A Antropologia Urbana No Brasil
A Antropologia Urbana No Brasil
A Antropologia Urbana No Brasil
TEORIA E CULTURA
Rogéria Campos de Almeida Dutra*
Nádia Oliveira Vizotto Ribeiro**
Resumo
O artigo pretende analisar o surgimento da Antropologia Urbana como campo de reflexão e investigação
da realidade brasileira a partir do desenvolvimento da Antropologia no Brasil ao longo do último século.
Procura também destacar o contexto de seu surgimento, bem como as particularidades de nossa sociedade
que propiciaram o crescimento deste campo da disciplina antropológica e de seus desdobramentos posteriores.
Palavras-chave: Antropologia Urbana, cidade, Antropologia no Brasil.
Abstract
This article aims at analysing the emergence of Urban Anthropology as a field of theoretical thought and
investigation of Brazilian social reality by presenting the historical development of Anthropology in Brazil
through the last century. It also seeks to highlight the social context of its emergence as well as the specific fea-
tures of Brazilian society that favored the fast growth of this area in Anthropology and its later developments.
Key-words: Urban Anthropology, city, Anthropology in Brazil.
* Doutora em Antropologia Social (Museu Nacional/UFRJ). Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade
Federal de Juiz de Fora (UFJF). E-mail: [email protected]
** Bacharel e Licenciada em Ciências Sociais (UFJF). Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade
Federal de Juiz de Fora. E-mail: [email protected]
128
Juiz de Fora, v. 8, n. 1, p. 127 a 138, jan./jun. 2013
ramo importante das Ciências Sociais. Em da longa estadia do pesquisador entre os grupos
TEORIA E CULTURA
1933 é criada na cidade de São Paulo a Escola indígenas vai ocorrer de forma tardia entre os
de Sociologia e Política, com grandes nomes pesquisadores brasileiros, prevalecendo neste
compondo sua grade docente, nos anos iniciais período as expedições que procuravam cobrir
de sua fundação, como Hebert Baldus, Donald grandes extensões, bem como visitas a diferentes
Pierson e Emílio Whillems. No ano seguinte é grupos étnicos.
fundada na USP (Universidade de São Paulo) Os estudos voltados para a população
a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do negra – tendo como representantes deste
Brasil, tendo Roger Bastide e Lévi-Strauss como período, autores como Roger Bastide, Edson
principais professores. Mellati (1983, p. 11) Carneiro, Nunes Pereira, Ruth Landes e Artur
afirma que foi em São Paulo o principal foco Ramos - procuravam estudar os vestígios das
de difusão da Etnologia nesse período, devido culturas africanas que continuavam a sobreviver
ao número de professores e alunos existentes no Brasil, apesar da perda de contato com a
nas instituições de ensino da cidade. Fora da origem e do conflito com as crenças e valores da
Academia também foram criados grupos de classe dominante. Observa-se neste momento
pesquisadores, como por exemplo, a Sociedade que as investigações passam a ter como cenário
de Etnografia e Folclore em 1937 e a Sociedade as cidades brasileiras. Os estudos sobre contatos
Brasileira de Antropologia e Etnologia em 1941. interétnicos, particularmente tratando dos
É também a partir da década de 30 que imigrantes ganham em qualidade, se convertendo
a influência da sociedade norte-americana no em pesquisas de caráter propriamente científico.
Brasil se faz presente em diversos aspectos, Podemos destacar as investigações de Emílio
em virtude da consolidação da hegemonia Whillems sobre os alemães, de Ruth Cardoso
política e econômica desta na América Latina. A sobre os japoneses e Thales de Azevedo e Eunice
Antropologia se vê beneficiada neste momento Durham, sobre italianos, muitos dos quais se
pela vinda de antropólogos norte-americanos propondo a discutir a questão da aculturação
para o país, como Ruth Landes, Charles através dos estudos de comunidade.
Wagley e Donald Pierson. A influência teórica
e metodológica norte-americana vai marcar a “Porém, a partir de 1952, chegam
produção antropológica até meados da década sucessivamente três missões científicas da
de 60. Os estudos de mudança social e cultural Universidade de Tóquio para estudar os
ou aculturação tornam-se a marca desta época: japoneses e seus descendentes no Brasil em
“[...] tiveram por objeto tanto a população negra, colaboração com pesquisadores brasileiros. O
como os grupos indígenas, bem como imigrantes primeiro a chegar, em 1952, foi Seiichi Izumi,
europeus e asiáticos e seus descendentes e ainda que volta outra vez ao Brasil em 1955 à frente
a população de áreas de povoamento antigo de uma equipe; em 1957 chega uma equipe
e economicamente estagnadas” (MELLATI, dirigida por Fumio Tada. Ao mesmo tempo em
1983:13). que esses pesquisadores japoneses atuavam,
No que tange aos estudos de aculturação desenvolviam-se os trabalhos de Hiroshi Saito,
entre índios e brancos, a década de 40 é marcada em colaboração com eles, e, ainda, os de Egon
pelos trabalhos de Charles Wagley, Eduardo Schaden e de Ruth Correia Leite Cardoso.”
Galvão e Egon Schaden. As pesquisas da época (MELLATI, 1983, p. 14-15).
se caracterizavam pela matriz funcionalista e pelo
Os estudos de comunidade ocuparam
interesse em compreender a cultura indígena
papel preponderante na produção científica
como um todo, resultando em monografias
das Ciências Sociais nas décadas de 40 e 50,
sobre totalidades socioculturais, destacando-se
se prolongando até a década de 70 do século
temas como a organização social, a religião e
passado. Podemos destacar como uma das
cosmologia (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1988,
conquistas desse recurso investigativo a inserção
p. 116). Vale destacar, segundo Mellati (1983,
do pesquisador na comunidade investigada, que
p. 16) que apesar desta orientação teórica, o
propiciava uma abordagem ampla e geral do
trabalho de campo extensivo, ou seja, através
uma referência para as primeiras pesquisas fundou-se o Museu do Índio. Sob a direção
em contextos urbanos. No entanto, apesar de de Darcy Ribeiro, esta instituição organizou o
vários pesquisadores importantes no Brasil “Curso de Aperfeiçoamento em Antropologia
terem se utilizado desse tipo de pesquisa, como Cultural” em 1955. Neste mesmo ano, é criada
Emílio Willems, Oracy Nogueira, Donald a ABA (Associação Brasileira de Antropologia),
Pierson e Antônio Cândido, os estudos de durante a Segunda Reunião Brasileira de
comunidade sofreram grandes críticas por parte Antropologia representando “um esforço de
de pesquisadores, particularmente advindas do colaboração, entre os participantes, para o
campo de reflexão marxista, sob influência de progresso dos estudos antropológicos e para a
Florestan Fernandes, seja pela ausência de reflexão criação de uma consciência profissional entre os
a respeito da inserção destas comunidades em antropologistas brasileiros.” (Anais, 1957 apud
contextos mais amplos, seja pela ausência do CORREA, 1988, p. 6). A criação da ABA tinha
recurso à documentação histórica como fonte de como objetivo propiciar reuniões periódicas
investigação. dedicadas à troca de experiências, informações e
Vale ressaltar a contribuição de Antônio o próprio convívio entre os associados. A cidade
Cândido para a Antropologia no Brasil, com do Rio de Janeiro foi escolhida para sediar a
um dos clássicos representantes dos estudos ABA, e sua primeira diretoria foi composta por
de comunidade, “Os Parceiros do Rio Bonito” residentes desta cidade.
publicado em 1964, onde traz reflexões teóricas A década de 50 continua sendo
importantes sobre o processo de urbanização, marcada pelos assuntos indígenas, tendo agora
estabelecendo parâmetros para a análise da Darcy Ribeiro e Roberto Cardoso de Oliveira
mudança social que ora acometia as pequenas como os principais pesquisadores. Através
comunidades do interior do Brasil. Em suas deles, a Etnologia começa a adquirir novas
próprias palavras: “A situação estudada não é características, como o intensivo trabalho de
de substituição mecânica dos padrões, mas de campo e a participação ativa dos antropólogos
redefinição dos incentivos tradicionais, por como defensores da cultura indígena,
meio de ajustamento dos velhos padrões ao novo transferindo o foco de pesquisa para a questão da
contexto social.” (CÂNDIDO apud PEIRANO, integração destes grupos à sociedade nacional.
1992, p. 34). Dentro de uma perspectiva Pesquisadores da história das Ciências Sociais no
plural, que integra as abordagens sociológica, Brasil (cf. Mellati, 1983, Micelli, 1987 e Peirano,
antropológica e literária, publica “Literatura e 2000) atribuem o período entre os anos 30 e o
Sociedade” em 1965, procurando estabelecer início dos anos 60 como fundamental para a
relações entre contexto sócio-cultural e as formas consolidação da Antropologia. Este período ficou
de arte literária. Na opinião de Mariza Peirano marcado também pela especialização crescente
(1992), fazendo uma antropologia da literatura: em torno dos assuntos indígenas, fazendo da
Etnologia o marco fundamental de pesquisa da
“Antônio Cândido mostra a tensão entre o Antropologia neste período.
universalismo da mente humana e as diferenças A partir dos anos 60, todas essas
culturais. Só assim é possível combater os dois iniciativas institucionais da Antropologia do
extremos, “modalidades da falácia antropocêntrica período anterior amadurecem, traduzindo-se
-, seja por verem no primitivo um bicho quase em grande produção científica, nas mais variadas
de outra espécie, seja por quererem reduzi-lo linhas de pesquisa. A criação das entidades
mecanicamente à nossa imagem, dispensando federais de fomento à pesquisa, Capes e CNPq em
o esforço de penetrar nas suas singularidades.” 1951, assim como a expansão da pós-graduação
(PEIRANO, 1992: 40). 2 favoreceu o crescimento do número de etnólogos
e professores da área. Vale destacar a criação do
Durante os anos 50 a cidade do Rio de Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Janeiro passa a ter um papel preponderante no Social do Museu Nacional em 1968 e de sua
desenvolvimento da Antropologia: sediou a posição de destaque no fomento e difusão da
130
Juiz de Fora, v. 8, n. 1, p. 127 a 138, jan./jun. 2013
pesquisa antropológica neste período. De fato, a influência de David Melbory-Lewis com o Projeto
TEORIA E CULTURA
capital carioca já havia começado a se destacar Harvard-Brasil Central que estabelecia parceria
como novo centro de atividade etnológica entre a Universidade de Harvard e o PPGAS do
na década de 50 e a criação deste programa Museu Nacional. Os mitos e ritos indígenas se
representou os resultados destes esforços. Em destacam como objeto de estudo, e incitam os
1971 é criado o Programa de Pós-Graduação em pesquisadores a novos recortes investigativos
Antropologia Social da UNICAMP, e em 1972 o sobre as sociedades indígenas no Brasil. A
Programa de Pós-Graduação em Antropologia abordagem estruturalista traz novas inspirações,
Social da UNB. ultrapassando o âmbito das sociedades tribais,
Sobre as orientações teóricas, estas como é o caso de Roberto da Matta que toma
também se modificaram em relação ao período os ritos como uma porta de entrada para o
anterior e passaram a priorizar a perspectiva conhecimento da sociedade brasileira na obra
estruturalista em detrimento do funcionalismo. “Carnavais, malandros e heróis” publicada pela
Além disso, certos temas de pesquisa perderam primeira vez em 1979.
interesse, como os estudos de comunidade, Podemos observar que esta multiplicação
sendo substituídos por pesquisas de caráter mais de temas de investigação, assim como a utilização
regional, dedicados às temáticas envolvendo o de diferentes matrizes teóricas não estão
campesinato, os assalariados rurais, as frentes de desconectadas das transformações da sociedade
expansão e os trabalhadores urbanos (MELLATI, brasileira, cujo processo de industrialização,
1983, p. 22). Os estudos etnológicos assistem integração institucional e urbanização
uma grande renovação teórica neste período. abrem espaço para realidades contraditórias
Conforme já anunciado anteriormente, o foco envolvendo diferentes atores sociais. Neste
das preocupações com o contato entre “índios contexto, particularmente a partir da década de
e brancos” passa a residir menos na questão da 60 temas relacionados à cidade, e à Antropologia
perda de traços originais do que na questão do Urbana começam a ganhar espaço no Brasil, tais
conflito de interesses e valores existentes entre os como as migrações da área rural para a urbana
grupos indígenas e a sociedade nacional, ou seja, e os desdobramentos recorrentes deste processo,
a perspectiva da aculturação cede lugar para a como a marginalidade e a ocupação em favelas.
questão da fricção interétnica. Roberto Cardoso A seguir estaremos apresentando de forma mais
de Oliveira publica em 1960 “O processo de detalhada o processo de consolidação deste
assimilação dos Terena”, em 1964, “O Índio no campo de investigação.
Mundo dos Brancos: a situação dos Tukúna do
Alto Solimões” e ao longo da próxima década Antropologia Urbana
uma série de trabalhos a respeito da situação
dos índios no contexto da sociedade nacional. A modernidade e seus desdobramentos,
Surge então o espaço de discussão sobre o papel tal qual a vivenciamos hoje, está marcada por
do antropólogo na sociedade brasileira, na diversas características importantes como
medida em que esta nova abordagem, sob forte o crescimento de grandes cidades derivado
influência da antropologia francesa marxista, fundamentalmente da Revolução Industrial
inspira nos pesquisadores o sentimento de e do desenvolvimento do capitalismo. As
militância a favor dos índios. Estes pesquisadores transformações sofridas a partir destes eventos
procuraram atender às necessidades indígenas e foram profundas e modificaram a vida social
buscar soluções para seus principais problemas, das cidades e dos indivíduos que a habitam. A
“como demarcação de terras, assistência médica, partir disso, um novo cenário é criado – com
instrução, administração direta pelos índios de sujeitos, identidades e características diferentes
sua produção para mercado e outros.” (MELLATI, - tornando-se um grande desafio teórico para
1983, p. 24). É também neste período que ganha as Ciências Sociais como um todo. Ulf Hannerz
impulso os estudos sobre a estrutura social das (1999) chama a atenção para o fato de que o
sociedades indígenas3, em que os pesquisadores processo de globalização - que apesar de se
buscaram respaldo teórico no estruturalismo sob intensificar nos últimos anos define-se como
132
Juiz de Fora, v. 8, n. 1, p. 127 a 138, jan./jun. 2013
sumariamente pela Escola de Chicago4, estas campo de investigação sistematizado da realidade
TEORIA E CULTURA
pesquisas, apesar de não focarem especificamente urbana dentro da Antropologia no Brasil vai
nas sociedades urbano-industriais, utilizam ocorrer de forma expressiva na década seguinte.
a cidade como pano de fundo e cenário dos
fenômenos estudados. Através da realização de “Com todos estes aspectos, o interesse nas
pesquisas em pequenas cidades e comunidades Ciências Sociais pelo urbano na década de
espalhadas ao longo do território nacional, 60, na minha opinião, estava-se “gestando
estes estudos se caracterizavam pela abordagem ou fermentando” um campo de estudos
qualitativa, utilizando-se da observação direta, antropológicos das populações urbanas
técnica tradicionalmente utilizada pelos que tomaria corpo na década de 70 e que
antropólogos na investigação de sociedades seria liderada por uma nova geração, [...]”
tribais. Com esses estudos de comunidade, (MENDOZA, 2000, p. 175).
uma bagagem cultural específica: “tratava-se de riscos e desgaste que envolve (VELHO, 1980,
conhecer como esses grupos urbanos organizam, p. 20).
classificam, representam, atuam e constroem o
seu espaço e modo de vida dentro de um sistema “Este ajuste de foco – graças ao qual não se
urbano.” (MENDOZA, 2000, p. 191). Para necessita ir muito longe para encontrar o
conhecer essa realidade cotidiana dos indivíduos “outro” – terminou revelando uma realidade
era necessário dar voz a esses sujeitos – que na que aparentemente nada fica a dever ao
maior parte das vezes eram caracterizados pela exotismo que tanto espantava os europeus em
opressão e pela invisibilidade - a partir de técnicas contato com os povos “primitivos”: basta uma
de investigação qualitativa como a observação caminhada pelos grandes centros urbanos
participante. e logo entra-se em contato com uma imensa
diversidade de personagens, comportamentos,
“E aí então, as pessoas têm que ir para a
hábitos, crenças, valores.” (MAGNANI, 1996,
periferia e observar como é o modo de vida e
p. 3).
tentar então agora incorporar o olhar do outro
que é a grande contribuição que a Antropologia
Através de recursos como a etnografia
tem frente a outros recortes em Ciências
e a observação participante foi possível a
Sociais, é valorizar o discurso do outro e fazer
investigação dos aspectos cotidianos e micro-
um contraponto entre um discurso daquele
sociais do complexo urbano procurando
que nunca foi ouvido porque parecia que era
enfatizar não somente os próprios atores sociais
lá no fundo escondido, com outros discursos
e suas práticas, como também o contexto de sua
dominantes.” (MAGNANI apud MENDOZA, produção, no caso a paisagem urbana, como parte
2000, p. 194 e 195). constitutiva da vida social destes indivíduos.
Neste sentido os estudos antropológicos “Portanto, aqueles dois planos a que se fez
deste contexto passam a focar e observar os alusão anteriormente – o da cidade em seu
acontecimentos corriqueiros e cotidianos, conjunto e o de cada prática cultural assignada
buscando entender como os indivíduos a este ou àquele grupo de atores em particular
vivenciam e reelaboram esses acontecimentos, – devem ser considerados como dois polos de
contribuindo para outros olhares e interpretações uma relação que circunscrevem, determinam e
a respeito da dinâmica das sociedades complexas possibilitam a dinâmica que se está estudando.”
e urbanizadas. Apesar de se configurar uma (MAGNANI, 2002, p. 20).
situação de proximidade perigosa entre
pesquisador e pesquisados, uma vez que o Desta forma, o olhar para a cidade
pesquisador se coloca em um contexto na qual sob o enfoque macroestrutural, isto é, das
está familiarizado, o próprio contexto plural das instituições e da estrutura, onde os indivíduos
cidades favorecia o exercício da objetividade que a habitam são interpretados como agentes
e do estranhamento. Além disto, este passivos deste cenário, desprovidos de atividades,
empreendimento torna-se oportunidade para a sociabilidades e ações individuais passa a ser
revisão de pressupostos e valores naturalizados, complementado por um novo viés que priorizou
colocando este pesquisador na posição de nativo. dar voz a esses moradores e mostrar uma parte
da cidade aparentemente invisível. Vale destacar,
“A antropologia tem a grande vantagem de ter
contudo, que esta abordagem se afasta de uma
uma saudável tradição de ceticismo e critica
perspectiva essencializadora da cidade, ou seja,
que pode nos ajudar a ver e superar as ideias
evita considerá-la como ambiente determinista
velhas e preconceituosas. Não creio que o
de processos sociais. Neste sentido fala-se de
estudo da própria sociedade seja uma heresia
uma Antropologia na cidade e não da cidade no
dentro da trajetória de reflexão antropológica,
Brasil, ou seja, “[...] pesquisas em pequena escala,
mas significa sem dúvida, uma ampliação e
mostrando em termos gerais a dinâmica da vida
complexificação de nosso campo de estudo.
134
Juiz de Fora, v. 8, n. 1, p. 127 a 138, jan./jun. 2013
urbana e da vida cotidiana” (MENDOZA, 2000, com novos objetos de estudo, passou a oferecer
TEORIA E CULTURA
p.222). Nas palavras de Eunice Durham (1986:19 novas perguntas e questões a um campo
apud MENDOZA, 2000, p. 189), intelectual maior, não só o antropológico. Este
reconhecimento alcançado a partir da década
“E, desde o começo, trata-se menos de de 70 contribuiu de forma intensiva para o
uma antropologia da cidade do que uma alargamento do campo teórico da Antropologia,
antropologia na cidade. Isto é, não se Podemos verificar esse desenvolvimento
desenvolveu no Brasil uma Antropologia na passagem das décadas de 70 e 80 através do
Urbana propriamente, nos moldes em que foi número de pesquisas na área da Antropologia
iniciada pela Escola de Chicago, uma tentativa Urbana, quando se multiplicam as dissertações
de compreender o fenômeno urbano em si e teses relacionadas à temática urbana, assim
mesmo. Ao contrário, trata-se de pesquisas como as publicações. É nesta época também
que operam com temas, conceitos e métodos que novos Programas de Pós-Graduação são
da antropologia. A cidade é portanto, antes o criados, em universidades de diferentes regiões
lugar da investigação do que seu objeto [...]”. do Brasil, contribuindo para a difusão desta
linha investigativa. Observa-se também que a
Além do contexto histórico, outro
multiplicação de estudos na área de Antropologia
fator contribuiu para a construção do campo
Urbana na década de 80 é verificada como
antropológico urbano no Brasil na década
tendência mundial. Sanjek (1990) aponta
de 70: a expansão do ensino universitário e
que apesar desta área de investigação ter se
da pós-graduação, promovidos pelo próprio
desenvolvido nos Estados Unidos na década de
regime militar. Os principais Programas de Pós-
60, é na década de 80 que seu escopo aumenta
Graduação em Antropologia na época eram o
drasticamente.
do Museu Nacional, da USP e da UNICAMP.
A partir de então, os objetos de estudo da
Cada um desses programas se especializou em
Antropologia Urbana tornaram-se heterogêneos
determinados temas de pesquisa, mas todos,
a ponto de se dificultar a sua identificação sob
de alguma forma, desenvolviam temas de
este rótulo somente, dada a multiplicidade de
investigação relacionados ao contexto urbano
recortes possíveis, além do recurso a diferentes
e à cidade. No Museu Nacional podemos
correntes de pensamento. Este cenário já havia
destacar como temas frequentes de investigação
sido apontado por autores que se dedicaram
as camadas médias, escolas de samba, religião,
ao tema (DURHAM, 1986; HANNERZ, 1999;
movimentos sociais, futebol, produção cultural,
VELHO, 2003) destacando a necessidade de
desvio e comportamento, moradia em favelas,
ampliação de matrizes teóricas para dar conta da
parentesco, redes sociais e carnaval. Na USP
diversidade de objetos que se apresentam neste
verifica-se a investigação de temas como família
campo de investigação. Assim, a consolidação
de operários, associações de bairros, bairros
deste campo de pesquisa, ao estimular o
populares, educação, habitações na periferia,
debate sobre a necessidade de se romper
lazer, movimentos sociais, migrações para a
com marcadores tradicionais de atuação da
cidade, participação popular e política, religião.
investigação antropológica, alargou os horizontes
Já na UNICAMP os objetos de pesquisa mais
e perspectivas da Antropologia. Este processo
frequentes eram papéis sociais, prostituição,
revela uma mudança de paradigma na medida
antropologia da mulher, saúde, migrações,
em que a disciplina descola sua legitimidade
culturas populares, organização social de bairros,
pela constituição de um objeto específico,
trabalhadores rurais, papéis sociais e identidade
previamente definido, para constituir-se pela
(MENDOZA, 2000, p. 196).
abordagem/ perspectiva que produz ao analisar
Esta escolha de foco de questões diversas
a realidade social, o que se torna mais produtivo
envolvendo o contexto urbano fez com que a
se considerarmos o contexto da sociedade
Antropologia começasse a ganhar prestígio frente
brasileira.
às outras disciplinas. De disciplina marginal, por
tratar de temas pouco políticos, a Antropologia,
136
Juiz de Fora, v. 8, n. 1, p. 127 a 138, jan./jun. 2013
HANNERZ, U. Entrevista: os limites de nosso Antônio Cândido. In: PEIRANO, M.G.S.
TEORIA E CULTURA
auto-retrato: antropologia urbana e globalização. Uma antropologia no Plural: três experiências
MANA, vol. 5, n. 1, p. 149-155, 1999. contemporâneas. Brasília: Ed. UnB, 1992.
138
Juiz de Fora, v. 8, n. 1, p. 127 a 138, jan./jun. 2013