Camille Flammarion - Estela PDF

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Camille Flammarion

Estela

Traduzido do Francês
Camille Flammarion - Stella
Paris – (1897)
Conteúdo resumido

A presente obra é um romance que denota toda a alma sensí-


vel do autor. Nela Flammarion narra a história de Rafael e Este-
la, um casal de jovens profundamente unidos pelo mais puro
amor numa sintonia perfeita, em busca do conhecimento do céu,
onde na verdade todos nós vivemos. Ele se consagra ao estudo
dos astros do céu, com o objetivo de vulgarizar esse conheci-
mento através de suas obras; Estela, compreendendo a grandeza
desse trabalho, o acompanha, sintonizando-se com o seu amado
na busca do conhecimento dos astros do Universo.
Aborda a importância da Astronomia na busca da verdade
através do estudo dedicado dessas almas gêmeas, Rafael e Este-
la, dois seres que denotam elevada compreensão das questões
espirituais.

A
James Gordon Bennet
Diretor do “New York Herald”

Meu caro amigo:

Sois um espírito livre, independente, liberto de


preconceitos, amigo do Progresso e da Ciência. Tais
espíritos são raros em nossa Humanidade terrestre.
Permiti que vos dedique este livro.
Camille Flammarion
Sumário
Prefácio ............................................................................. 5
I – Depois do baile ............................................................ 7
II – O mundo e a Igreja .................................................... 13
III – O jantar de Epicuro .................................................... 18
IV – Esponsais mundanos .................................................. 31
V – No domínio do desconhecido .................................... 43
VI – Senhorita Eva ............................................................. 55
VII – Período de transição .................................................. 68
VIII – Os Pirineus ................................................................. 81
IX – Crítica e discussão ..................................................... 87
X – O Solitário ................................................................. 99
XI – O céu estrelado ........................................................ 111
XII – Os outros mundos .................................................... 123
XIII – Estela a Cecília (1ª carta) ......................................... 137
XIV – Cecília a Estela (1ª carta) ......................................... 141
XV – Estela a Cecília (2ª carta) ......................................... 143
XVI – Cecília a Estela (2ª carta) ......................................... 146
XVII – Estela a Cecília (3ª carta) ......................................... 149
XVIII – A fagulha ................................................................. 151
XIX – Duque e duquesa ...................................................... 161
XX – A ciência, a honra e o amor ..................................... 167
XXI – Heróica abnegação ................................................... 177
XXII – “Ad augusta per angusta” ........................................ 182
XXIII – Felicidade suprema .................................................. 188
XXIV – A vida de casal ......................................................... 197
XXV – A vida de casal continua .......................................... 201
XXVI – A vida de casal se perpetua ...................................... 211
XXVII – Onde se parte de Lourdes para chegar a Deus ......... 226
XXVIII – Pleno céu ................................................................. 242
XXIX – Ciência – Verdade – Felicidade ............................... 254
XXX – Cecília a Estela (3ª carta) ......................................... 264
XXXI – Adriana a Estela ....................................................... 267
XXXII – Solange a Estela ....................................................... 270
XXXIII – Viagem de férias ...................................................... 272
XXIV – Espíritos celestes – poeira terrestre ......................... 286
XXXV – Eternidade – Infinito ................................................ 294
Prefácio

Encontram-se na vida, certas vezes, alguns seres que impres-


sionam pela perfeição das idéias, pela nobreza dos sentimentos,
profundeza e extensão do saber, pela impecável segurança dos
julgamentos, evidente superioridade sobre o comum dos seus
contemporâneos, e ante a quais se é levado a desejar assemelhar-
se-lhes, pensar igual a eles, viver do modo pelo qual vivem, ser
feliz da sua mesma felicidade. Esses seres privilegiados sobrepu-
jam, de bem longe, o seu século e pairam muito acima da raça
humana que pulula em nosso planeta. São grandes pelo espírito,
bons e indulgentes de coração, desinteressados de todas as
vaidades terrestres.
Dos dois heróis da história que vai ser narrada, um me havia
mostrado esse aspecto de caráter. Possuía, em grau supremo, a
força moral e intelectual, e se consagrara especialmente ao
estudo do céu, tendo extraído dos conhecimentos astronômicos
uma filosofia religiosa, na qual muitos dos seus discípulos
acreditaram pressentir a religião do futuro. Ouvindo-o, ou lendo
seus escritos, ou ainda quando o encontrava, repetidas vezes
disse a mim próprio: Eis o filósofo que eu quisera ser.1
Tipo de superior intelectualidade, exerceu durante toda a sua
vida grande influência sobre meu espírito e por vezes parece
continuar a agir sobre mim, depois do seu retorno das regiões
etéreas.
“Ela” era mais sublime ainda. Infatigável curiosa dos grandes
problemas, olhar aberto para o Desconhecido, seu encanto juve-
nil e cativante impressionava a todos que dela se aproximavam.
Tanto quanto ele, vivia no céu, mas era particularmente dotada
dessa idealidade sutil e misteriosa à qual o homem jamais atinge,
e parece reservada, na Terra, às delicadezas do sistema nervoso
da mulher. Sua voz era musical; a beleza mais angélica do que
material, e sua alma, dir-se-ia, luz interior que, transparecendo
através dos olhos, iluminava longe. Ela compreendeu a grandeza,
a magnificência da Astronomia.
Educada pelo mundo e para o mundo, de acordo com a ins-
trução religiosa em um internato de freiras muito da moda,
apercebeu-se de que suas crenças não estavam alicerçadas em
base sólida; de que as descobertas da Ciência as modificavam
gradualmente, transformando-as; de que, no mundo, quase tudo
era mentira em seu redor: hipocrisia, ambições, intrigas, igno-
rância e coisas fúteis. A nulidade intelectual das pessoas distintas
que a cercavam, associada à adoração cínica do – bezerro de
ouro – revoltaram sua esclarecida consciência. Então, não hesi-
tou em abandonar as primitivas idéias, a fortuna, o luxo, os
prazeres, a ociosidade, as alegrias mundanas, e preferir uma vida
simples, estudiosa e contemplativa, e consagrar-se, na solitude,
àquele que lhe apareceu qual um apóstolo da Verdade. E com ele
viveu enlevada na contemplação das inenarráveis maravilhas do
Universo.
Jamais conheci criaturas mais perfeitamente felizes do que
Rafael e Estela. Seu Espírito era alimentado pela Ciência; seus
corações vibravam uníssonos; sua vida foi um cântico de amor.
I
Depois do baile

Chegando ao aposento, enquanto próximo ainda se faziam


ouvir o rodar da carruagem e o patear cadenciado dos cavalos,
Estela atirou o pesado casaco de peles sobre uma poltrona e
permaneceu de pé, frente à lareira, onde crepitavam tocos de boa
lenha, unindo seu cálido clarão à luz dos candelabros de velas.
Loura, olhos pretos, talhe médio, algo esguio, era elegante,
realmente bela.
Não pôde conter um indefinível sorriso feminino, ao rever no
espelho as espáduas, de acentuada alvura, seu busto admiravel-
mente modelado, um gracioso lunar no pescoço e os cachos um
tanto vaporosos da opulenta cabeleira de louro veneziano, por
onde passavam os tons fulvos do oriente.
De súbito, porém, em seu espírito uma imagem perpassou,
acendendo-lhe repentino rubor nas faces e fazendo-a levar as
mãos à altura do coração, como que a comprimir o acelerado
palpitar. Depois, sentou-se no leito, pendeu a cabeça, apalpando-
a nas mãos, cotovelos encostados ao peito, e assim permaneceu
esquecida de despir-se, toda entregue os devaneios, abandonada
a um voluptuoso langor.
Esse longo baile, que a envolvera em seus turbilhões durante
quase seis horas, não a fatigara, porém muito a excitara.
Sentir-se, pela primeira vez, embriagada na vertigem da val-
sa; pela primeira vez, sentir-se conduzida por uma criatura mais
forte do que ela, e nos braços da qual deixara parte do seu ser!
Em virtude de um hábito mundano encantador e de uma das
mais prodigiosas mentiras convencionais da nossa civilização,
um homem, um desconhecido a enlaçara, seminu, sob os olhares
cegamente enlevados da sua família; apertara-a contra si; havia,
mediante certos movimentos, roçado a ponta do bigode nos fios
ondulantes da sua nuca; havia respirado o primaveril perfume
emanado da sua carne; havia, por vezes, comprimido seu busto
com aumentada energia; teria podido (e por que não o havia
feito?) sussurrar aos seus ouvidos uma declaração de amor.
Sua tutora, austera, prudente, religiosa, educada em rígidos
princípios, sempre tivera o cuidado de afastar da tutelada as
leituras profanas; nunca um jornal entrara em sua casa; jamais a
deixara assistir a representações de peças teatrais; vez alguma
permitira que saísse à rua desacompanhada, nem mesmo para
dirigir-se ao templo, com o fim de confessar-se.
Assim, essa jovem, próxima dos quatro lustros de idade, era
um lírio virginal, cultivado à vista, num jardim tão fechado que
nem as borboletas celestes, nem as abelhas puras, nem o sopro
dos ventos a podiam atingir.
E eis que, de súbito, abandonado o himalaia de exageros, é
lançada num mundo ande as canções que interpretava com graça
falam de amantes; conduzida a um baile estonteante de ruído e
luz, animado pelas penetrantes melodias de uma orquestra en-
volvente; presa inocente dos apetites sensuais de jovens que a
passavam de mão-a-mão, qual flor esquisita, de perfume delica-
do, deliciosa, para ser contemplada de perto.
Um deles, principalmente, a retivera por muito tempo, a pre-
texto de combinações de cotillon, e a monopolizara, por assim
dizer, durante uma boa parte da noite.
Esse jovem duque, pertencente ao que se convencionou cha-
mar “alta sociedade”, da qual era sem dúvida dos mais lídimos
expoentes, somente naquela mesma noite lhe fora apresentado.
Vestia ele pelos últimos figurinos, esforçando-se por apresentar
sempre as mais recentes novidades em referência à indumentária;
usava camisa de peitilho mais alvo do que neve, abotoaduras de
grandes pérolas, e o laço da gravata a qualquer hora da noite
estava tão bem ajeitado quanto a gardênia que ostentava a lapela.
De elegante porte, estatura acima de mediana, cabelos frisados e
de tonalidade castanho-escuro, barba fina e cortada em ponta,
olhos pretos e brilhantes, semblante moreno-mate, mãos peque-
nas e claras – era alvo dos olhares femininos, que o admiravam.
Era, além disso, exímio valsista, qualidade rara.
Foi um sonho estonteante para ela, que tudo isso observara no
jovem, sem notar defeitos, salvo o de um ligeiro tique – o levan-
tar de vez em quando o canto direito dos lábios, o que não lhe
ficava de todo mal, pois a boca era bem desenhada e deixava
entrever dentes muito claros.
Certamente, não era a primeira vez que o encontrava. Tinha
certeza de havê-lo já visto. Onde? Em qualquer festa de caridade,
em alguma reunião anterior, na ópera, num concerto musical, ou
na igreja, talvez? Não. Fora no bosque, a cavalo, num passeio
matinal do último verão.
A princípio, pouco lhe falara durante o baile. Entretanto, qua-
se adivinhara que ele estava ao corrente de tudo, conhecia de
tudo, sabia tudo narrar com um tato especial. Uma palavra de
admiração sobre o penteado a encantara. Talvez que outra, de
mais experiência, notasse algo de banalidade nessas gentilezas,
inéditas para ela que as julgava inspiradas unicamente pela sua
presença.
Depois, durante o jantar, ele sustentara brilhantemente a pa-
lestra, sem afetação, dizendo com leal camaradagem sobre os
companheiros de sua convivência, indicando os quadros que
provavelmente seriam os mais destacados no Salão de Pintura,
aprovando a última peça teatral, tão mal julgada pela imprensa,
narrando um desastre ocorrido nas cavalariças do seu amigo, o
Conde Frascati, fazendo prognósticos a respeito da próxima
corrida no hipódromo, tratando do exagero econômico dos
empréstimos russos, e discutindo o futuro das colônias francesas.
Sim, esse homem conhecia de tudo. E por que não concorda-
va em entrar na política, fazer-se deputado e ministro, ele, cujos
antepassados remontavam ao tempo das Cruzadas?
É verdade que a alta magistratura do país não é nada invejá-
vel; que a independência está banida, podendo-se observar que,
dos seis presidentes eleitos depois do estabelecimento do gover-
no republicano em França, quatro pediram demissão e um outro
foi assassinado.
Contudo, evidentemente – e ela compreendia que era essa a
opinião de seus tios –, todas as carreiras estavam abertas para o
jovem duque: a diplomacia e a política, o jornalismo e a tribuna,
se ele quisesse dar-se ao trabalho de aproveitar os dotes naturais
que possuía e fazer alguma coisa, a despeito dos esplêndidos
rendimentos de que dispunha e de outros a herdar. No momento,
porém, nenhuma dessas coisas o atraía; tranqüilamente se entre-
gava à vida mundana da sua classe: levantava-se do leito às dez
horas do dia, passeava a cavalo, almoçava, fazia suas visitas de
cortesia ou amizade, jantava em casa de amigos, desperdiçava
metade das noites no clube ou em reuniões, jogava bastante, e
afinal se recolhia cerca de duas horas da madrugada.
Se alguma preocupação o dominava, era a de triplicar seus
haveres, com um bom casamento, e restaurar o velho castelo que
lhe deixara o pai. Apreciava a Arqueologia, da qual falava como
se fosse um Violliet-le-Duc ou um Charles Garnier.
Estela fora a rainha desse baile.
Sua beleza e juventude, um encanto particular que emanava
de toda a sua personalidade, atraíam a atenção de todos e de
todas. Foi-lhe apresentado, além do elegante Duque de Jumièges,
o filho de riquíssimo banqueiro e mais um deputado de futuro
promissor. Os três pareciam disputá-la, mas, evidentemente, ao
duque coubera a preferência da formosa moça.
Inteiramente enleada na recordação do seu lindo cavalheiro, a
jovem começou a despir-se lentamente, maquinalmente, diante
da lareira, deixando cair, uma a uma, as peças da vestimenta
sobre o atapetamento; enrolando a luxuriante cabeleira, que se
espalhara pelas espáduas, pouco a pouco se sentiu invadida pelo
sono. Quatro horas soaram num pequeno relógio Luís XV.
Estendendo-se sobre o macio frescor do leito, pareceu-lhe que ia
adormecer desde logo, em meio ao silêncio do dormitório, agora
iluminado apenas pela claridade vinda do átrio.
Tal não aconteceu, porém. As pálpebras reabriam constante-
mente. Não, não estava fatigada, apesar de haverem seus tios
achado e dito que a festa se prolongara e ter chegado o momento
de deixá-la. Não tinha sono. Seu pretenso desejo de dormir fora
apenas uma ilusão, uma vaga obediência aos hábitos rotineiros.
Descobriu os braços cuja alvura se iluminou e se coloriu de
suave rosa pelo fulgor da lareira.
Enrodilhada no seu devaneio, só então reparou que, pela pri-
meira vez, se deitara vestindo em camisa-de-dia, a camisa do
baile, de finas e vaporosas rendas, e notou que jamais se vira
assim tão bela; e essa descoberta não lhe aproximou o sono.
Estela era uma jovem recentemente saída de um convento e
ainda muito devota. Refletindo sobre as sensações do baile,
recordou as opiniões severas do seu confessor e as achou acerta-
das.
Ó valsa! dança voluptuosa e acariciante, despertar da carne na
luz e no movimento, não és (oh! contentamento do ser vivente!)
um primeiro pecado? Não é na dança que o homem e a mulher se
encontram pela primeira vez na vida? Não são aí os nossos
sentidos invadidos de ternura? Os olhos pela beleza das formas,
o ouvido pela música, o olfato por perfumes capitosos, o tato de
todo o corpo pelo ritmo cadenciado que conduz um par em
espirais ondulantes?
A moça a princípio dança pelo prazer de dançar, de movi-
mentar-se, de sonhar girando, servindo de cavalheiro um condis-
cípulo do convento; mas esse prazer se transforma um dia e se
desdobra, quando ela se sente escolhida por sua beleza e se vê
admirada do seu par masculino. E depois, certa noite, o prazer se
transforma ainda, e desta vez em outra sensação inteiramente
nova, que lhe parece indelével: a valsa, ondulante e leve, desfo-
lha em seu giro as mulheres e as flores.
Na vida tudo é contraste e tudo se assemelha.
As impressões sentidas em suas primeiras noites de vida
mundana estavam certamente bem longe das emoções religiosas
experimentadas nas austeras cerimônias da Igreja; contudo,
nestas todos os seus sentidos haviam sido cativados: a vista, pelo
grandioso estilo gótico que leva o pensamento às alturas e pela
misteriosa luz que filtra dos vitrais; o olfato, pelo perfume do
incenso; a audição, pela penetrante suavidade de certos cânticos
litúrgicos que se casam à melodia misteriosa do órgão; todo o
seu ser, em suma, tão sensitivo, por um conjunto de impressões
que são sabiamente combinadas para obtenção de melhor efeito.
Estela era piedosa, sincera, crente, delicada de sentimentos e
de sensações. No internato, destacara-se pelo seu fervor. Aban-
donara-se às aspirações divinas, aos mistérios, ao desconhecido,
ao ideal. Fruíra as santificações da religião.
Essa mesma natureza, assim impressionável, libara também
sensações inéditas nessa reunião do mundo, em que tudo parecia
ter sido bem organizado para agradar e seduzir. E esse prazer,
tão diferente dos transportes místicos, tinha, entretanto, com
estes, secretas relações.
Os prazeres mundanos são um pouco perigosos: o pudor da
virgem enrubesceu aos menores alarmes; a sensibilidade de sua
alma aumentou. Aconteceu, por um bizarro contraste, que a
jovem, no seu leito de rendas, iluminado pelas débeis chamas da
lareira, associou aos primeiros arrepios de volúpia, que acreditou
sentir, os conselhos do seu confessor e a imagem do seu anjo de
guarda. E julgou ouvir uma voz interior repetir-lhe que a dança é
um pecado... principalmente a valsa.
E depois, adormeceu. Ninguém recebeu a confidência dos
seus sonhos.
II
O mundo e a Igreja

Estela d'Ossian era religiosa e gostava da vida social.


Educada no Convento Oiseaux, passara a infância na alegre
casa-de-campo d'Issy (desaparecido hoje seu belo parque, para
dar espaço a novas ruas e construções) e depois fora transferida,
com os demais condiscípulos, para o Internato da rua Sèvres,
onde lhe decorreu a juventude, sob a austera e atenta direção das
religiosas congregadas de Notre Dame, canônicas regulares de
Santo Agostinho.
Em Issy, as alunas, as menores, as violetas, as debruadas, as
amarantes (assim designadas conforme o adorno dos cabeções
dos uniformes) acompanham maquinalmente, a exemplo do que
ocorre nos pensionatos, às aulas e exercícios cotidianos que
enchem, de modo absolutamente monótono, as horas e os dias;
em Paris, aonde vão aos onze anos, as verdes, as azuis, as amare-
las e as vermelhas (designações correspondentes à cor dos distin-
tivos) começam a viver e a pensar. Não diremos das “brancas”,
as maiores, pouco numerosas, prestes a partir de regresso aos
lares.
Além das férias, todos esses “pássaros” têm dias de visita às
suas famílias, de modo que jamais se sentem de todo isoladas do
mundo. No próprio convento aprendem a apresentar-se, cantar,
tocar piano ou violino, e até dança.
O quarteirão dos Inválidos, no fim do bairro de Saint-
Germain, com os três grandes parques Oiseaux, Sacré-Cœur e
Archevêque, têm a semelhança de uma solitude longínqua, tão
distante de Paris quanto a Bretanha ou a Vendeia; contudo, não
se sente a tristeza da clausura: respira-se ali certo ambiente
mundano; pela convivência, conversa-se com as amiguinhas,
narrando impressões recebidas fora, observações colhidas pela
curiosidade juvenil que se abre ao espetáculo da vida, e que sabe
próxima a saída do convento, muitas vezes poucos meses antes
do casamento.
Os estudos não são muito fatigantes, porque entremeados de
períodos de recreio; as obrigações religiosas têm a regularidade
de um relógio: a prece pela manhã, após a toalete e a ação de
graças, antes e depois das refeições, em comum; oração antes de
cada aula, estudo ou exercício; ouvir missa todas as manhãs, na
ampla capela cuja torre alta e quadrada domina o parque, qual a
de uma orgulhosa catedral; confissão mensalmente e comunhão
cinco ou seis vezes durante o ano.
Além disso, ouvem sermões, que mantêm o espírito na fé e
confirmam todos os ensinamentos ministrados antes da primeira
comunhão. Assim aprendem que Jesus Cristo morreu na cruz
para remissão de nossos pecados; que ressuscitou para glorifica-
ção nossa; que está no Céu, sentado à direita de Deus-Pai; que o
bem-aventurado corpo da Virgem Maria foi transportado pelos
anjos no dia da Assunção; que existem anjos no Céu e na Terra;
que os santos estão no Paraíso; que nossas almas, salvas por
Jesus Cristo, devem, após nossa morte, ir ao Purgatório – cujas
chamas lustrais as purificarão das derradeiras manchas (a menos
que pecados imperdoáveis às precipitem no Inferno, por toda a
eternidade); que no fim do mundo os corpos ressuscitados,
dignos do Céu pela pureza angelical de suas almas, viverão
eternamente na glória do Paraíso.
Estela, no mesmo regime das companheiras, vivera assim, as-
sim pensara, até sair do convento, ao completar as dezoito pri-
maveras.
Era correta e pura em seus sentimentos e acreditava em tudo
quanto lhe haviam ensinado. A idéia de uma dúvida nunca
germinara em seu espírito; vivia e pensava seriamente, sem o
temperamento e a educação das jovens do “fim de século”.
Estava convicta de que os ensinamentos da Religião tinham base
tão sólida quanto os da Ciência; de que o Catecismo possuía a
exatidão do Tratado de Aritmética, de Geografia ou de Cosmo-
grafia. Quando dizia que sete vezes doze são oitenta e quatro, ou
que a soma dos ângulos de um triângulo é igual a dois ângulos
retos, ou que a Córsega é uma ilha do Mediterrâneo – a cento e
oitenta quilômetros da costa francesa e a setenta e sete da italiana
–, ou que a Terra é um planeta que em um ano faz o giro em
torno do Sol e em vinte quatro horas sobre ela mesma, sabia que
tais afirmações estavam rigorosamente demonstradas, e jamais
lhe ocorreu à idéia de que alguém as pudesse contestar.
O mesmo acontecia com relação às afirmações da religião.
Admitia por demonstrado cabalmente que Jesus Cristo desceu
aos infernos, subiu ao céu e está assentado à direita de Deus seu
Pai, e que descerá, sobre nuvens, para julgar os vivos e os mor-
tos; que os diabos no inferno passam a eternidade atormentando
os condenados; que Josué fez parar o Sol e que a serpente tentou
Eva, suspensa dos ramos da árvore do bem e do mal.
Em seu candor, não duvidava de ensinamento algum. Se aca-
so lhe viesse à idéia de comparar os dois gêneros de verdades, as
da religião decerto teriam parecido mais absolutas do que as da
ciência.
Por vezes, gostava de recolher-se ao silêncio da igreja e pre-
feria fazer preces na Capela dos Santos Anjos. Acreditava que
seu anjo de guarda lhe esquadrinhava a consciência em busca de
pecados imaginários e acusava-se ao confessor de desatenções
em aula, de sinais de impaciência com os condiscípulos, de
pequenas gulas, e então sentia na alma a pureza do anjo de seus
sonhos. Enlevava-se a sonhar que ressuscitaria assim, em seu
corpo de virgem nas dezoito auroras da sua idade, sem afundar a
curiosidade, sem visionar qualquer roupagem, e ia ao extremo de
achar belo o confessor calvo e senil, e imaginá-lo, também ele,
no paraíso, junto dos bispos, dos papas, dos mártires e dos
profetas.
Dir-se-ia que, com leve esforço, abraçaria a vida religiosa, à
semelhança de suas mestras, consagrando-se por toda a vida ao
bom Deus.
Nos dias de comunhão, Páscoa, missa do galo (a da meia-
noite), nas grandes festividades, Estela sentia verdadeiramente a
hóstia, depois de esta tocar-lhe a língua e descer pela garganta,
penetrá-la de um sentimento de absorção na divindade. De que
Jesus fosse Deus e de que ela o comesse misticamente, não lhe
restava dúvida. Durante as missas cantadas, certos cânticos da
Igreja, muito melodiosos e suaves, qual o Panis Angelicus ou o
Salutaris, transportavam-na a celestes êxtases.
Seu confessor era um santo homem, escolhido com grande
acerto pelo arcebispo de Paris para direção dessas jovens almas
femininas, e que (circunstância bem rara no clero da metrópole, e
em Roma e Madrid) era um sacerdote sem mácula, crente since-
ro, simples e convicto. Prudente e reservado, nunca lhe acontece-
ra fazer, durante a confissão, uma dessas perguntas vergonhosas
que fazem enrubescer o jovem ou a moça antes que a tenham
compreendido, e que desviam do chamado tribunal da consciên-
cia mais de uma alma pura, afastando-a bruscamente para cogi-
tações carnais, por uma pergunta infeliz, bisbilhoteira ou crimi-
nosa.
O padre Ildefonso reunia à virtude do bom sacerdote e ao de-
sapego das naturezas simples a afetuosa bondade de um avô: as
pequenas aprendizes eram suas netas. Seu único desejo consistia
em conservar-lhes a fé, a qual, segundo entendia, era o único
elemento moral capaz de mantê-las castas e honestas, quando
trocassem o convento pelas liberdades do mundo.
Deixando o internato, impossibilitada de conservar o mesmo
confessor, Estela, a conselho deste, escolheu para diretor espiri-
tual um padre jesuíta, muito afamado, da paróquia de Santa
Clotilde.
Órfã de pai e mãe, habitando o segundo pavimento do prédio
que os tios, os condes de Noirmoutiers, ocupavam a Rua Vaneau,
entrava na vida com a independência de uma grande fortuna e o
sentimento da responsabilidade pessoal.
Muito aristocrática nos gostos, deixou-se facilmente deslizar
pelos mundanismos, no prazer de brilhar em meio à elegância.
Não podia compreender os homens sem que acompanhassem as
modas mais recentes, sem que tivessem a palestra espirituosa,
sem que se comprimissem em torno dela, dando-lhe nas conver-
sações e em primeira mão a última nota social digna de registro.
Das amizades do convento conservara três amigas: uma ainda
mais religiosa do que ela, cenobita por natureza; outra que
começava a ocupar-se com estudos de Física, Química e Astro-
nomia; a terceira, de temperamento mais artístico, que se dedica-
va à pintura.
Estela era a mais formosa e mais mundana, mal preparada pa-
ra isso, aliás. Nenhuma arte a fascinara; a literatura de certo
modo a seduzia. Aprendera, com grande facilidade, diversos
idiomas estrangeiros, nos quais lia e falava com a mesma facili-
dade do francês. Quanto às ciências, não se detivera e, tal qual a
maioria dos habitantes da Terra, sempre vivera sem se interrogar
sobre o terreno em que pisava. Essa ignorância normal lhe
bastava, e suas convicções religiosas satisfaziam de modo com-
pleto aos devaneios que, por vezes, a elevavam acima do mun-
danismo habitual do seu viver.
Já na alvorada dos quatro lustros, época em que começa esta
história, Estela ainda fazia preces todas as noites, e a primeira
vez que as esqueceu foi na do longo baile de que falamos. Todo
o domingo era vista, com a tia, assistindo à missa das dez horas,
em Santa Clotilde. Os deveres religiosos e os prazeres da socie-
dade, ela os associava muito bem na vida e no pensamento, em
acordo perfeito, ajudada pelo próprio diretor espiritual, o hábil
jesuíta a quem a elite do bairro Saint-Germain devia os melhores
casamentos.
Homem do mundo até à ponta das unhas, o abade Laferté era
muito procurado, excelente conviva, prosa agradável. Dizia-se
mesmo, com algum exagero talvez, que esses casamentos tão
bem conseguidos e por ele realizados, lhe haviam trazido, bem
ou mal, cerca de quarenta mil libras de rendimentos. Suas quali-
dades exteriores não o impediam de ser comparado com o padre
Ildefonso, embora em outra ordem de idéias, um confessor muito
honesto para as jovens.
Estela confiou-lhe todos os pensamentos, todos os projetos, e
nada empreendia sem ouvir a opinião do seu querido e venerado
mentor.
III
O jantar de Epicuro

Quinze dias depois da festa a que nos referimos, duas dezenas


de convivas estavam reunidos em volta da suntuosa mesa da
Marquesa La Rochelle.
Um luxo inaudito, ao qual nem sempre um perfeito bom gos-
to se aliava, presidia a esses deboches gastronômicos.
Por toda parte, maciça prataria, admiravelmente cinzelada;
em profusão, cristais da Boêmia, de cores vivas. Seis copos
diante de cada conviva; o centro da mesa ocupado por elegante
vaso em cujos bordos estavam presas guirlandas de cravinas,
gerânios e camélias, vindas pela manhã, de Nice.
Os lacaios, em libré de luxo, permaneciam imóveis por detrás
da fila de convivas, atentos ao menor aceno e, principalmente, às
conversações.
Ondas de luz desprendiam-se dos lustres, tocheiros e cande-
labros guarnecidos de velas, luz cariciosa, lisonjeira para as
níveas espáduas e os rostos primaveris. O gás e a eletricidade
estavam relegados para a copa e a despensa.
Qual chama volante, perguntas e respostas, juízos e reflexões
diversas não permitiam arrefecer a palestra generalizada, de resto
mundana, ridícula e banal.
A mocidade predominava, mas notavam-se alguns comenda-
dores e pessoas de “certa idade”, colocados ao centro, gente esta
que não estava menos alegre, nem menos animada do que a
juventude das extremidades.
Serviam-se as últimas iguarias e próxima estava a sobremesa,
mas tudo se fazia sem pressas, pois o jantar seria seguido de
divertimentos íntimos, predominando o jogo e “um pouco de
música”.
O que maravilhava a criadagem era a soma das fortunas ali
reunidas. Salvo duas ou três exceções, nenhuma ou nenhum dos
convivas desfrutava menos de cinqüenta mil libras de rendimen-
tos; muitos dispunham de cem mil; alguns, trezentas e quatrocen-
tas mil.
Tais fortunas eram conhecidas e cotadas. Somados os capitais
e remunerados ao juro de três por cento, chegava-se ao total de
cento e dez milhões para as vinte pessoas ali agrupadas.
Não se falava nisso sem chiliques de admiração, e a própria
dona da casa ensoberbecia no mesmo grau dos seus domésticos.
A plenitude do mais nobre orgulho ela exteriorizava no porte, na
maneira de comer, beber e falar. Seus dedos estavam congestio-
nados de anéis; as orelhas, pescoço e espáduas resplendiam de
pedrarias preciosas. Até certo ponto, podia-se considerá-la a
mais rica de todos, pois sua fortuna avaliava-se em catorze
milhões de francos.
Tão colossal riqueza adquirira-a ela mesmo, só, ou quase so-
zinho, em negócios especiais que entendia à maravilha, associ-
ando sucessivamente sua inteligência à de cinco ou seis capitalis-
tas bem selecionados, e também (dizia-se à boca pequena) em
alguns serviços diplomáticos em proveito de uma potência
vizinha.
Era muito formosa e de inteligência notável, principalmente
em combinações financeiras. Casada, em primeiras núpcias, com
um diplomata brasileiro, desposara, num segundo matrimônio,
na idade de meio século, um jovem deputado, herdeiro de inve-
jável nome, e recebia ao que se chama “todo o Paris”, do mundo
dos pândegos.
A conversação recaiu sobre um casamento celebrado, à vés-
pera, na Igreja da Madalena, e talvez não seja supérfluo apanhar
alguns fragmentos, que darão um resumo do ambiente anticientí-
fico e artificial em que vivia a nossa donzela idealista e sensitiva.
– É a miséria em pouco tempo, ao primeiro filho, dizia um
anafado cavalheiro de amplas suíças brancas, tez corada, lábios
espessos e sensuais. Que se pode esperar de um lar, em Paris,
com quarenta mil francos de rendimentos?
– Eu creio, disse o duque, falando bem próximo da sua bela
vizinha Estela, que Henriqueta ama profundamente o marido, e
que serão felizes, porque o dinheiro não faz a felicidade. O
amor...
– Que dizeis senhor duque? – indagou a dona da casa.
– Dizia minha senhora, que coisa alguma vale tanto quanto
uma boa e sincera afeição, e quando dois entes se adoram a vida
deve ser encantadora, mesmo sem fortuna.
– Nós conhecemos isso, replica um general sentado à direita
da marquesa. Quando eu tinha a vossa idade, meu caro duque,
pensava tal qual, principalmente quando o acaso colocava a meu
lado uma encantadora vizinha. Os enamorados são sempre muito
desinteressados, mas os provérbios não erram: “Quando falta o
feno na grade da manjedoura...” Para mim, esse casamento é
ridículo. Uma jovem bela e de sociedade apaixonar-se por um
jovem que nada tem de seu! É inconcebível que os parentes se
deixem assim levar pelo capricho dos seus meninos. Mas, que
querem? A autoridade dos pais não existe mais.
– É esse o meu parecer, disse o tio de Estela. As fortunas de-
vem ser associadas.
– Meu general, replicou então o duque, se eu estivesse ena-
morado, não perguntaria quanto a minha noiva teria de dote.
Compreendo, pois, e muito bem, que uma jovem proceda de
igual modo para com o rapaz, principalmente quando esse moço
está bem colocado, é inteligente e distinto, nas condições de
Hervé.
– Eu vos compreendo, retrucou o general, partilhais da opini-
ão de Alfredo Musset: “Quando se apetece o belo, é sem vesti-
do.”
– Quereis dizer da opinião de Shakespeare, no “Mouro de
Veneza”. Sim, sem dúvida.
– Muitas vezes nos enganamos pelas promessas de dote, sen-
tenciou um financista. As fortunas nem sempre são o que aparen-
tam. Veja-se o exemplo do Barão Chirch, que acaba de render a
bela alma ao deus Plutão. Diziam-no riquíssimo e, no entanto,
deixou apenas sessenta milhões.
– Julgava que tivesse menores haveres, comentou o deputado.
– Enganai-vos. Ele deixa oitocentos milhões.
– Que homem! Exclamou a marquesa com entusiasmo. Acu-
mular oitocentos milhões. É verdadeiramente de um gênio.
– De certo não terá dado cem mil francos para favorecer o
progresso das ciências, interrompeu o jornalista.
– Sabeis quem comprou os seus cavalos?
– Ninguém ainda. Será vendida quinta-feira, no Tattersall.
– Eu cobiçaria o seu par de alazões, disse a condessinha.
– Pois eu exclamo um belo jovem, só ambiciono o campeona-
to de bicicleta. Completei quinta-feira, oitenta quilômetros!
– Afirmaram-me que na semana passada Artur fez setenta e
oito.
– Singular prazer! Comentou a mulher do financista. Nada
mais agradável do que andar sempre para frente, sozinho, e
pedalar até perder o fôlego.
– Há melhor! Afirmou uma jovem gorduchinha, de loura ca-
beleira flutuante.
– E qual é Senhorita Solange?
– O tandem.
– Eu te acredito, cochichou ao vizinho da ponta da mesa o
Capitão Lomond. O casamento no tandem não deve tardar.
– Ontem, em Neuilly, todo um cortejo de núpcias chegou à
pretoria em bicicleta, inclusive a noiva.
– Muito bem! Viva a bicicleta; abandonemos os cavalos!
– Sabeis a novidade das sete horas? Indagou o jornalista.
– Um dos meus amigos foi preso, ou o Ministério caiu, res-
pondeu o Senhor de Taupin.
– Exatamente, como se houvésseis posto o dedo em cima. Ca-
ído o Ministério, por motivo do imposto sobre os domésticos.
– Justíssimo. Compreendeis que se taxem os domésticos?
– Exige-se o imposto sobre cavalos, cães, portas, janelas, ar,
luz, pão, vinho, sobre toda a vossa casa, desde a adega até o teto,
sobre a própria pessoa, desde as palmilhas ao chapéu, sobre o
caminho por onde andais, campos que contemplais, o ar que
respirais, e tudo, tudo! Porque não criar imposto sobre os domés-
ticos? O aumento perpétuo das despesas públicas, o desperdício
cego, levam fatalmente à majoração dos tributos. É a esteriliza-
ção da nossa bela França; é a ruína geral; é a bancarrota próxima.
Que fazer?
– Enfim, o Ministério caiu. E não tinha ele quase dois me-
ses?...
– Consta que o presidente vai renunciar.
– Era bem simples ter um rei, disse o deputado. Vede a Ingla-
terra.
– Política! Política! interveio a dona da casa. Vamos ter con-
trariedade. Bem sabeis que isso é proibido.
– A política, disse do extremo da mesa o jovem e já volumoso
advogado, é o “sai daí, que eu quero o lugar”, tal qual nos negó-
cios, é o “dinheiro dos outros”. Aliás, nada tem de imoral, por
isso que está convencionado.
– Tendes razão, senhora, repôs o general. Prefiro os cancãs do
mundo teatral. Quem já foi ver a nova peça do Bouffes? No
espetáculo de ontem, a Eminha estava positivamente nua. Adivi-
nhava-se tudo. Para que serve a censura? E na verdade, ela é
muito bem feitinha, a mestiça.
– Por Deus, general! E acreditais que sem essa circunstância
ela se mostraria? Mas, se deixassem à vontade as mulheres de
“extra-sociedade”!...
– E mesmo as da sociedade, disse o Sr. de Taupin.
– Ema tem formosas pernas, o que não impediu que o seu de-
putado a mandasse às urtigas.
– Receberemos amanhã o viscondinho em nosso clube? per-
guntou um magricela, que não ousava mover a cabeça com
receio de que lhe desabasse o monóculo do olho esquerdo. Que
achais, Jumièges?
– Certamente, respondeu um vizinho cuja cabeça parecia an-
quilosada, graças ao colarinho que lhe chegava às orelhas, os
padrinhos do recipendiário são gente chique.
– Além disso, ele é da linha mais distinta, disse o duque.
– E o bravo Patarouf?
– Oh! Esse vale por dois.
– E o Barão de Hautecombe?
– Um pesadão, não civilizado de todo, um criador de abelhas;
mas encontrou escora, apesar disso, e isso vale por uma voz de
comando para ser recebido.
– Senhora marquesa, disse o financeiro, não fostes vista quar-
ta-feira, na ópera, na repetição do Tannhauser, de Wagner.
– Não me entusiasmo por Wagner, vós o sabeis. Nada de es-
nobismo! Podereis dizer-me porque o pano Orleães baixou tanto,
ontem?
– Para contar desde já com os lucros das futuras compras e
vendas.
– Tenho convites para o Instituto, quinta-feira, interrompeu a
Senhorita Cecília Street. Quem quer ir?
– É mortalmente enfadonho, respondeu o Visconde de Val-
vin, mas é de bom-tom, tanto quanto Wagner. Iremos, certamen-
te.
– Sempre fui da opinião de Alfredo de Musset, a respeito dos
discursos acadêmicos, disse o general. A uma sessão da Acade-
mia Francesa, prefiro a de segunda-feira, na Academia de Ciên-
cias. É mais substanciosa.
– E vós, Senhorita Estela, apreciais os sábios?
– Jamais os vi. Ah, sim, certa vez, quando menina, levaram-
me para ver Chevreul à saída de um banquete. Que feiúra!...
– Sábios, disse seu vizinho, conheço três; desagradáveis, in-
civis, fastidiosos. Não se encontra meio de palestrar com eles,
que, aliás, não respondem aos nossos assuntos.
– Se fossem somente fastidiosos! Alguém, há dias, escreveu
que as celebridades são as que maiores males causam. E não
errou. Por exemplo, o inventor da pólvora...
– Mas, nem todos inventaram a pólvora.
– Os sábios, interveio a Baronesa Castelviel, constituem
mundo à parte e fechado àquele a que nós outros pertencemos. Já
lhes fiz, várias vezes, convites, sem que jamais me pudesse
envaidecer da sua presença em minha casa. Por isso, não os
convido mais, nem nos Pirineus, nem em Paris. De resto, são
todos uns pobretões, bem mal-postos.
– Mais do que pobres, muitas vezes verdadeiros mendigos, tal
qual a maior parte dos escritores, poetas e artistas. E, afinal, que
fariam da riqueza? Só lhes poderia trazer preocupações, pois não
passam de trabalhadores, de obreiros. As fortunas só se tornam
realmente úteis aos que não têm nada para fazer.
– Não penso desse modo, interrompeu o jornalista, e quanto a
mim, a propósito do barão de quem tanto se fala (o que morreu,
possuindo oitocentos milhões), considerá-lo-ia muito mais digno
de apreço se houvesse deixado apenas cem, e consagrado sete-
centos aos progressos da Ciência.
– Não falemos mais em sábios, anônimos ou pedantes. De
resto, não ignorais que a Ciência faliu. Acabou-se. Viva a ale-
gria!
– E depois são bem ridículos, com os seus casacões e bonés
de pala, disse uma encantadora ingênua. Um deles descobriu que
a cauda de não sei mais que animal exala o cheiro de resina de
opopânax.
– Não foi na Faculdade de Medicina que a cena se passou,
senhorita, replicou o visconde, foi no Teatro Variedades.
– A Ciência e os sábios, sentenciou o general, não servem pa-
ra grande coisa na vida, eu o reconheço; mas, acho erro metê-los
sempre a ridículo, no teatro, nos romances, e mesmo um pouqui-
nho em outros gêneros. Pode-se viver ignorando a Física, a
Química, a História Natural, a Botânica, etc.; pode-se, em suma,
viver ignorando tudo, sem que de tal desconhecimento resulte
mal maior. Contudo, a Ciência tem prestado serviços à socieda-
de; não lhe devemos os caminhos de ferro, os navios a vapor, o
telégrafo, o telefone, a fotografia, e tantas outras coisas agradá-
veis, úteis, necessárias e mesmo indispensáveis em nossos dias?
Entendo, pois, que se deveria sempre render justiça aos sábios. E
não é por mim que o digo, vós o sabeis, porque nunca me preo-
cupei em mudar o meio-dia para duas horas da tarde. Minha
máxima é a de Epicuro: “Gozemos a vida!” Pura e simplesmente.
“Carpe diem”, se não esqueci o latim que então se usava.
– Isso é de Horácio, emendou o duque. Mas, Horácio ou Epi-
curo se assemelham bastante, e confessemos que a sua maneira
de compreender a vida é a da maioria dos homens.
– Estamos todos de acordo. Ciência e sábios, eis o que o
mundo tem de mais sensaborão e mais inútil. Falemos de assun-
tos mais alegres. Sabeis que resultado magnífico foi obtido na
pista de Catford, por Stocks. No curso de um ensaio de recorde
de cinqüenta milhas, ele bateu uma série de recordes mundiais,
incluídos o de hora, o dos cinqüenta quilômetros e o das dez
milhas. A primeira milha foi feita em um minuto, cinqüenta e
nove segundos e 1/5; a segunda milha em três minutos, cinqüen-
ta e dois segundos e 2/5; e bateu o recorde mundial, percorrendo
as dez milhas em vinte minutos e as vinte milhas em quarenta
minutos e cinqüenta e sete segundos! Em uma hora, fez quarenta
e seis quilômetros e setecentos e onze metros, ultrapassando
assim de duzentos metros o resultado de Bouhours. Esbaforido
por esse treino formidável, Stocks se deteve ao fim de quarenta e
quatro milhas, em uma hora e trinta e quatro minutos e onze
segundos e 4/5.
– É maravilhoso!... Fostes à caçada do marquês?
– Sim. Um enorme porco-selvagem, atacado pelos monteiros
e habilmente descoutado pelo primeiro picador Renard, às cinco
horas do Près-du-Rozoir. Soberbo cervinho. Tudo perfeito.
Equipagens muito chiques.
– Quarta-feira próxima, corrida de cães na floresta de Fontai-
nebleau.
– Os passeios em carrinhos foram inaugurados terça-feira úl-
tima.
– O visconde fez a sua primeira batida de caça. Registrou
cento e noventa e cinco perdizes.
– Fostes ao campo de tênis do parque? Estava encantador.
– Não, mas teria ficado satisfeitíssimo de reencontrar o Du-
que de Leuchtenberg.
– Sabeis, disse o homem especado, sem mudar de posição,
que a casa de Leuchtenberg é a mesma dos Beauharnais, originá-
ria da Orleanesa, que encontra sua raiz em Guilherme de Beau-
harnais, Senhor de Miramion e de La Chaussée, em 1309. Euge-
nio de Beauharnais, filho do Visconde Alexandre de Beauharnais
e de Josefina Tascher de La Pagerie, depois Imperatriz dos
Franceses, foi adotado por Napoleão I. Príncipe francês, foi
eleito Duque de Leuchtenberg e Príncipe d'Eischtaedt. Seu filho
Maximiliano esposa a Grã-duquesa Maria, filha do Imperador
Nicolau I, da Rússia, e toma o nome de Príncipe Romanovski,
com a qualificação de Alteza Imperial para toda a sua descen-
dência.
– Como terá sido possível, no ato de casamento de Napoleão
Bonaparte, existir uma certidão de idade constatando que ele
nascera a 5 de fevereiro de 1768, quando a data oficial é a de 15
de agosto de 1769?
– Ele se fazia mais velho para aproximar-se de Josefina, re-
moçada a seu turno no mesmo ato.
Um outro conviva tomou a palavra para descrever, com enfa-
donhos detalhes, o desenho do brasão de um noivado do seu
conhecimento, minuciando as cores, o que havia nas quatro
divisões do escudo, no cimo, na base, nos lados e risca central,
tendo o do noivo, nos suportes, dois leões e no da noiva três
cabeças de lobo, tudo cheio de variações coloridas. Isso provo-
cou um jocoso comentário do general.
– Minha cara baronesa, continuais com as vossas duchas,
apesar do frio glacial que faz?
– Sem dúvida, todas as manhãs.
– E sempre com o Dr. Calais?
– Sim. Ele ducha muito bem. Acho seu jacto excelente.
– Pois eu mudei. Vou atualmente a Passy. O Dr. Chevreuse é
mais afável. Além disso, a casaca e a gravata branca lhe dão
aspecto mui distinto no seu mister.
– Não compreendo que mulheres se coloquem assim nuas di-
ante de homens quase desconhecidos, sussurrou o general ao
ouvido da sua vizinha, embora confesse que não deve ser desa-
gradável a profissão de aplicar duchas.
– Eis uma salada deliciosa!
– Virgem, primeira colheita, explica o dono da casa.
– Poderíeis mesmo dizer: extra virgem, ajuntou o general, e
mesmo virgem néctar, pois creio haver três categorias da primei-
ra qualidade.
– A que vos estais referindo?
– Ao azeite.
– Fostes à patinação, esta manhã, Senhorita Estela?
– Sem dúvida! Essas nevadas me atraem. É absolutamente
soberbo. Gelo excelente e batido qual um assoalho de salão.
Patinava-se em fileiras de dez pessoas.
– Sempre muita gente, não? E a fina flor!
– E se combinássemos para amanhã cedo? perguntou o du-
que.
– Impossível. Temos convites de jornalistas para o duelo de
amanhã, e jantaremos na Grande Jatte. Depois de amanhã, serve?
– Pois sim, combinado! Às dez horas, no lago.
– Onde acompanhará os sermões da Quaresma, este ano, cara
baronesa?
– Na Notre Dame.
– Ah, eu prefiro a Madalena. Os chapéus são muito mais chi-
ques.
E daí por diante pouco se entendia. Todos falavam quase ao
mesmo tempo. O duque retomou a palestra a meia-voz com a sua
vizinha, a propósito da guirlanda de flores rubras que corria ao
longo da mesa, assegurando não gostar da cor vermelha e apreci-
ar as flores azuis. Assim também não apreciava as mulheres
morenas, porque são muito masculinizadas. Para ele, a verdadei-
ra mulher, arrebatadora, filha de Eva, a fada, a encantadora, era a
loura, principalmente a de olhos negros, sonho delicioso que faz
esquecer todo o Universo. Havia visto suficientemente o mundo,
para poder avaliar a real beleza. Acusavam-no de bem afortuna-
do, mas havia sempre exagero. Aos cinco lustros de idade, ou
antes, depois de meio decênio de observação, havia encontrado
apenas sete ou oito mulheres verdadeiramente louras, do seu
preferido, do louro de Veneza, e neste pequeno número somente
uma representava totalmente o seu ideal.
– Acusam-vos, senhor duque, de grande jogador.
– Outro exagero. Jogo unicamente para passar tempo, uma
vez que não tenho entretenimento mais agradável. Falando
verdade, não tenho amor ao jogo.
– Mas jogais todas as noites?
– Sim; um pouco, porém no meu círculo, a exemplo dos meus
amigos.
– E sois feliz no jogo?
– Principalmente de quinze dias a esta parte. Tenho mascote.
– Mascote?
– Sim. Uma ponta de fita azul. Vede-a, insistiu ele, ei-la aqui.
Estela sentiu que devia desviar por instantes o rosto do olhar
indiscreto do seu interlocutor e fez menção de beber na taça de
champanha.
O duque, apercebendo-se do gesto, acrescentou imediatamen-
te:
– Imagina-se que eu nada faço, mas trabalho enormemente.
Passeio a cavalo, pela manhã, ou faço esgrima, quando chove.
Toco piano, quando posso; caço três meses por ano. Compus
uma peça teatral, em colaboração com o meu amigo Serdo, e
traduzimos Schiler. No ano passado, redigi a crônica esportiva
para o Gaulois. Presentemente leio Schopenhauer. Durante bem
longo período, aprofundei-me na Numismática, para classificar
as moedas romanas, e vou agora desenhar fachadas Renascença
para o Castelo. Minha mãe muitas vezes me diz jamais ter visto
quem trabalhe tanto quanto eu.
– E a dança?
– É o que prefiro a tudo!
– Por que não vos fazeis eleger deputado?
– Não há deputado de acatamento, em condições de ser mi-
nistro, senão entre os casados. Um ministro solteiro não pode dar
recepções. Dir-me-eis conhecermos um, talvez o mais poderoso
de todos, que ainda não se casou. Mas, é sonho. Quanto a mim,
não me casarei nunca, a menos que... E a única... Experimentará
ela por mim os mesmos sentimentos que lhe consagro de há
muito... desde o dia em que a encontrei pela primeira vez? E,
além disso, seu coração lhe pertencerá ainda?
Nesse momento, a dona da casa deu, erguendo-se, sinal de
que o jantar havia terminado. Os convivas dirigiram-se para os
salões cintilantes de luz e onde as mesas de jogo já estavam
preparadas.
Bem depressa foi ouvido o anúncio dos primeiros visitantes:
Senhores Aimelafille e Piedevache, senhor e senhora de la
Mouchardière, senhoras Abelard e Condessa de Saint-Phal.
– A propósito, disse a marquesa ao jornalista, prestai atenção
no vosso noticiário mundano de amanhã, especialmente em citar
exclusivamente os nomes com partícula de fidalguia.
O duque havia oferecido o braço a Estela.
– Que pesar! Suspirou ele, não se valsará esta noite. Tendes
dançado muito nestes últimos dias?
– Não, depois da outra reunião.
– Assim também ocorre comigo.
– Tendes ido ao teatro, senhor duque? Vistes a peça dos Cô-
micos a que se referiu o general?
– Não, senhorita. Tenho passado minhas noitadas no Círculo
e, conforme o hábito, jogando. E aí não faço senão ganhar,
graças à minha mascote, a qual não me deixará nunca, nem
mesmo na Armada, onde, como deveis saber, sou oficial. Se
tivermos guerra, estou certo de que não serei ferido.
– Imploremos para que não haja guerra. E horrível.
– Bem ao contrário, senhorita, creio que a teremos, e bem
proximamente. Acreditais que possamos passar longo tempo
com a Alsácia e a Lorena nas mãos dos alemães? Por isso, há
momentos na vida em que não é desagradável expor-se a perigos.
– Principalmente com a mascote, ironizou Estela.
– A verdadeira mascote, senhorita, não é somente esse pedaço
de fita azul arrancado num movimento de cotilhon; é uma ima-
gem encantadora que não mais abandonou meu coração.
– O senhor toma café? Indagou um alto lacaio todo agaloado
que seguiu os convidados à saída da sala de jantar.
IV
Esponsais mundanos

Estela e o duque freqüentemente se encontravam nas reuniões


mundanas, e a crônica anunciava já uma próxima união matri-
monial.
E teria sido difícil achar dois seres mais bem talhados para
uma vida comum de mundanismo e esplendor.
Portador de soberbo nome, o duque tinha o seu brasão a re-
dourar; herdeira de enorme fortuna, Estela estava, pela educação,
preparada para ser uma deliciosa duquesinha. Ambas as famílias
acariciavam tal projeto e cada uma procurava aproximar doce-
mente os jovens um para o outro. Desse modo, eram as famílias
as autoras do casamento; mas eles julgavam seguir os impulsos
pessoais.
Amavam-se? Um pouco, por parte de Estela; nada, por parte
do duque.
Elegante, frio, correto, bom jogador – nos baralhos e no
amor, tinha por ambição – o dote. Quanto à mulher propriamen-
te, por mais atraente que fosse já conhecera numerosas, e delas
estava meio farto. Ótimo comediante, quase de boa-fé, à força do
hábito de fingir. Seu título nobiliárquico valia bem uma fortuna,
e, à sua vez, a riqueza lhe era absolutamente indispensável,
primeiro para pagar as dívidas feitas, depois para ocupar o
destaque ambicionado por ele no grande-mundo.
Estela achava-o um jovem perfeitamente fino. Era o primeiro
que se lhe prendera ao pensamento, e sentia-se pouco a pouco
atraída para ele, pela distinção, amabilidades, espírito e atenções
delicadas. Ainda não ouvira falar em projetos de casamento;
mas, interrogada de súbito que fosse sobre seus sentimentos a
respeito, não teria surpresas. Nos seus devaneios, não encontrava
nenhum obstáculo, salvo, por vezes, a paixão do duque pelo
jogo.
Os três meses do inverno passaram assim: no dia de Ano-
Novo recebera, com amável carta do duque, das serras da Bélgi-
ca, gigantesca cesta de lilases brancos; em seguida, na ceia de
Reis, tendo-lhe cabido a fava simbólica, foi feita rainha. A
Páscoa foi um pretexto escolhido pelas duas famílias para estrei-
tar os laços já muito fortes, e desta vez ela recebeu o duque em
sua casa, no baile à fantasia organizado por seus tios.
Noite de raro esplendor, uma das que fizeram mais ruído em
todo o Paris naquele inverno. Várias centenas de pessoas se
comprimiam nos salões magnificamente decorados, e todas as
fantasias rivalizavam em originalidade, brilho e ostentação. O
duque escolhera um costume “diretório”, que lhe assentava
muito bem; Estela mandara desenhar expressamente para si um
delicioso costume veneziano. Suas amigas mais íntimas estavam
lá; flores resplandecentes deslizando quais alegres libélulas
através do deslumbramento de luzes, risos e canções. A orques-
tra iniciou a festa com uma das “ouvertures” da “Cármen”.
Todas as amigas de Estela deviam cantar. Foi Cecília quem,
na sua encantadora fantasia de Colombina, começou, com uma
canção muito em moda naquela época. O acompanhamento foi
feito por ela própria na cítara, agradando muito.
– Que é isso? Perguntaram-lhe.
– Chama-se “Um sonho”, respondeu. Creio que já a conhe-
cem. Não a cantarei tão bem quanto a condessa.
– Cantará sim, disseram. É muito interessante.
E ela cantou:
Rapelle-toi le temps de nos chansons
Où nous bravions le rire des pinsons;
Le temps oú plein d'ivresses printanières
L'amour faisait l'école buissonière.
Souviens-toi, souviens-toi de l'heure brève
Où tu m'as dit que tu m'aimaìs!
Souviens-toi! Souviens-toi!... le joli réve
Reviendra-t-il jamais?
(Recorda os tempos de nossas canções
Em que atacávamos rindo os tentilhões;
Os tempos em que, cheios da embriaguez primaveril
O amor nos fazia gazear escola.
Recorda-te, recorda-te do momento fugaz
Em que disseste que me amavas!
Recorda-te! Recorda-te!... o lindo sonho
Nunca mais voltará?)
Os aplausos cobriam as últimas palavras e encorajaram a jo-
vem cantora, que demonstrara grande delicadeza na maneira de
dizer essas coisas emotivas. Um poeta reprovou “l'heure brève”
ao ouvido de seu vizinho, que rejeita a fraqueza do termo em
relação à rima necessária, acrescentando que a música atenuava
tudo. Voltou o silêncio e a linda Colombina sublinhou, com
maior finura ainda, a estrofe seguinte:
Tes yeux brillants prennaient un air moqueur
Et ton sourire assassinait mou coeur,
Et je guettais, voltigeant sur ta lèvre,
L'aveu charmant qui redoublait ma fièvre.
Souviens-toi...
(Teus brilhantes olhos tomavam um ar brejeiro
E teu sorriso feria meu coração,
E eu espreitava adejante em teus lábios,
A linda confissão que redobrava minha febre.
Recorda-te...)
O auditório estava identificado com o assunto, e os aplausos
estrugiram em trovoada. Encorajou-se mais ainda, e cantou com
calor a última estrofe, muito bem acompanhada por seus dedos,
ágeis no manejo da cítara de lânguidos sons:
Nous nous aimions toujours comme deux foux.
Et les baisers dont nous étions jaloux,
Nous desirons encore nous les rendre;
Nos coeurs sont fait, vois-tu, pour se comprendre.
Souviens-toi! souviens-toi!... O joli rêve,
Ne t'en va plus jamais!
(Amamo-nos sempre quais dois loucos,
E ainda hoje desejamos dar-nos
Os beijos que tanto ansiávamos.
Veja, nossos corações foram feitos para se compreende-
rem.
Recorda-te! recorda-te!... O lindo sonho,
Não me abandones mais!)
Divinamente cantado por essa cabecinha vaporosa, o estribi-
lho foi saudado com verdadeiro estrépito. Cecília estava rubra
qual um papafigo.
Nunca se vira em festa igual. O ambiente era simpático. O
êxito não depende muitas vezes do auditório?
Conversava-se agora.
– A pequena Colombina está boa para casar, disse um senhor
a seu vizinho, acompanhando-a com um olhar vivo, enquanto ela
voltava ao seu lugar.
– Ela não tem dezessete de idade.
– Acredita que... Acrescentou em voz baixa ao ouvido de seu
interlocutor.
– Não tenho dúvidas. É uma criatura honesta, absolutamente.
Além do mais, admiravelmente educada.
– É curioso, as meninas cantam cada coisa... Chega-se a acre-
ditar que conhecem um pouco. Reparou com que entusiasmo ela
disse: Amamo-nos sempre quais dois loucos! Acredita que não
compreenda isso?
– Tenho certeza. Pura imaginação. O senhor não quererá con-
denar seus filhos a cantar apenas cânticos religiosos!
– É o mesmo: convenha em que elas escolhem assuntos bas-
tante escabrosos e também em que não têm a aparência de estar
cantando em chinês.
– Oh! Veja a Senhorita Adriana d'Hauteville ao piano. Apre-
cia um semblante com olheiras? Eu sim. Ela adora as velhas
canções da avó.
– É um pequeno trecho de Jean-Jacques Rousseau, anunciou
Adriana.
E preludiou lentamente. Depois cantou, com acentuada ex-
pressão de ardente paixão:
Le coeur me palpite
Quand j'entends ta voix.
Tout mon sang s'agite
Dès que je te vois.
Ouvres-tu la bouche?
Les cieux vont s'ouvrir.
Si ta main me touche
Je me sens mourir !
(Palpita-me o coração
Quando ouço tua voz.
Todo o meu sangue se agita
Quando te vejo.
Abres a tua boca?
Os céus vão-se abrir.
Se tua mão me toca
Eu me sinto morrer!)
– Ah! Meu Deus, disse alegre o gordo senhor, que irá aconte-
cer? Se começa assim!...
– Veja que não é de hoje, replicou seu vizinho, o Visconde de
Valvin; é uma canção do tempo da avó.
– As mulheres sempre foram iguais. Nunca me convencerá de
que ela não escolheu propositadamente essa canção, pois a
compreende muito bem.
– Acreditais realmente que ela tenha alguém em cujos braços
se sinta morrer?
– Não vou até aí, mas acredito que ela não desejaria outra
coisa.
E, depois, pediram a essas jovens que iniciassem a festa. Isso
não tem importância. A Senhorita d'Ossian, que devia começar,
nunca teria ousado tanto. Mas, onde estará ela?
Procuraram-na com os olhos e não a encontraram. Fora para o
quarto de vestir, acompanhada de Cecília, mudar a toalete de
jantar e vestir a fantasia que preparara expressamente para essa
noite. Era um costume veneziano do século XVII que fazia
ressaltar singularmente o esplendor de sua tez e o ouro fulvo da
cabeleira. Despindo-se e vestindo-se diante do alto espelho do
seu quarto, conversava com a amiga e lhe respondia às pergun-
tas.
– Sabes que serás a mais linda duquesinha que já se viu, quer
em Veneza, quer em Versalhes?
– Oh! Isso ainda não está decidido...
– Está nas tuas mãos que assim seja. Tudo te vai bem. Sabes
que ficas muito melhor sem espartilho. Mas que perfume está
usando? O ambiente de teu quarto está todo perfumado!
– Eu? Sabes bem que não gosto de perfumes. Nunca escolhi
um.
– Não é possível. Serei indiscreta?
– Afianço-te. Nunca comprei o mais insignificante perfume.
– Não queres dizer-me. É curioso que as lindas mulheres fa-
çam um segredo de Estado de suas águas de toucador! Já adivi-
nhei... É... espera... verbena... íris... não... eu sei. É uma das
primeiras flores da primavera. No mês de maio floresce na sebe
do parque de meu tio... É... sabugueiro, quando o botão abre.
Colhi no ano passado.
– Mas Cecília, tu não sabes o que dizes. Vamos! Não teria
segredos contigo, e ainda menos de tão pouco valor. Mas esta-
mos vadiando, disse atirando a mantilha de seda dourada sobre
os braços nus; devem ter notado minha ausência. Depressa!
Desçamos!
Procuravam-na, com efeito.
Apareceu encantadora em seu elegante costume, e um instan-
te depois sentava-se ao piano.
Cantou, por sua vez, com voz adoravelmente pura, um pouco
trêmula:
Les lèvres et le coeur sont des coupes divines
Où les étres humains s'abrevent a longs traits.
La lèvre est le desir qui boule nos poitrines,
Le coeur est le trésor où dorment nos secrets.
(Os lábios e o coração são taças divinas,
Onde os seres humanos mitigam sua sede.
O lábio é o desejo ardente que queima nossos peitos,
O coração é o tesouro onde dormem nossos segredos.)
A música era deliciosa e todos ficaram encantados. A austera
rigidez da Condessa de Noirmoutiers, não vendo nessas quatro
linhas um sentido dúbio, como em quase todas as canções em
voga nas reuniões musicais, partilhou da admiração de todo o
auditório pela sua encantadora sobrinha. Um tenor sucedeu a
Estela; a seguir foi a vez de um cantor de cançonetas cômicas;
depois, uma jovem da melhor sociedade cantou, com muita
delicadeza, uma canção ligeira que tinha por título: “É o vento”.
Em seguida, uma insinuante morena, de bandós lisos e cabeça de
Madona, cantou com um jovem Saint-Cyrien apaixonado duo de
amor.
As danças iam ter início.
As amigas de Estela cercaram-na em uma saleta antes de se
lançarem ao turbilhão que já lhes fazia fremir as pernas. Contu-
do, a curiosidade as dominava.
– Então está decidido, disse Adriana. Vais casar-te?
– Ainda não disse sim.
– É preciso tão pouco! Ele é perfeito, bem o sabes.
– Sim. Homem de sociedade, alta nobreza, pessoa elegante,
distintíssimo: é o que eu sempre sonhei. Sou de tua opinião.
Cada uma de nós tem o seu tipo, o seu ideal. Creio que encontrei
o meu. E tu, nunca sonhaste?
– Eu, disse Cecília, que escutava, desejaria desposar um ofi-
cial alto, magro, de bigodes; viajar, percorrer a França., É uma
vida adorável. Brilha-se em toda parte, qual rainha; monta-se a
cavalo; não se firmam relações íntimas com ninguém, é-se livre
e independente. Apenas quero um oficial com muitas probabili-
dades de chegar a general. Os moços não me interessam.
– Olhem o Dr. Pusap, que se desprendeu de seus estudos abs-
tratos, divertindo-se em fazer quiromancia. Cecília, estende-lhe
tua mão esquerda.
– De boa vontade, senhorita. Acabo de ouvir o sonho de sua
amiga. Nada me impede confirmá-lo.
– Não, senhor. Diga francamente tudo o que vir.
– Pois bem. Desposará um homem estável, até um pouco pe-
sado, provavelmente da magistratura superior; não viajará e terá
filhos.
– Quantos, senhor adivinho?
– Cinco.
– Juro que não. Não acredito tudo.
– E tem muita razão. Sonhe, durma em paz, dance e deixe o
destino andar.
– E eu? disse Adriana, tirando as luvas. Serei enganada por
meu marido?
– Para responder-lhe é preciso ver a mão de seu marido. Pode
trazer-mo?
Meu marido? Ainda não o conheço. Responda-me pela minha
mão. É mesmo a mão esquerda?
– Quer então um marido da mão esquerda?
– Nunca disse isso. Desejo um marido da mão direita, que só
pense em mim; que não tenha ocupações; que não seja de negó-
cios, principalmente das finanças; que viva de suas rendas, em
Paris; que tenha uma frisa na Ópera e na Ópera Cômica; que
tenha bons cavalos, e aprecie flores; um marido quieto e apaixo-
nado somente por mim; que só se ocupe comigo e me presenteie
amiúde.
– Moreno ou louro?
– Louro e de olhos azuis; a vida em comum calma e tranqüila.
– Veja bem aquela linha que parte do monte de Vênus...
– Onde está isso, o monte de Vênus?
– Ali ao lado da palma, em baixo do polegar. Júpiter está na
base do índice; Saturno na base do dedo médio; sob o anular está
Apolo, e Mercúrio na base do dedo mínimo. A linha da vida
contorna, como se vê, o monte de Vênus. É a primeira perna da
letra M; a segunda perna é a linha da cabeça, e a quarta, que
atravessa a mão no sentido da largura, é a linha do coração. Esta
linha que desce do dedo médio e vai até ao pulso é a linha da
fortuna, ou da felicidade, a terceira perna, do M de que falamos.
A senhorita tem-na bem acentuada, porém cortada aqui, veja, e
ali também.
– E que significa isso?
– Que não terá sua vida inteiramente calma, como desejaria.
Seu marido...
– Ah! Acredita?
– Receio. E senhorita mesma... se não tiver princípios... Seus
olhos são muito negros e muito vivos. É um temperamento
oculto. Há pouco acentuou admiravelmente a canção de Rousse-
au.
Uma terceira amiga se adiantara.
– Eu, disse ela, não gosto que me leiam a mão. Não me casa-
rei.
– Solange, tens medo! disse a morena.
– Medo de quê?
– Medo de que se veja em tua mão coisas que ocultas.
– Certamente que não. Nada tenho a ocultar. Mas é um peca-
do procurar conhecer o futuro.
– Não preciso ver sua mão para predizer que vai casar senho-
rita, e que fará um casamento muito acertado. Mas nunca possui-
rá a verdadeira felicidade, apesar de toda a sua prudência.
Nesse momento o Duque de Jumièges irrompeu com seus
amigos no meio do lindo grupo.
– Senhoritas, procuram-nas por toda parte, para dançar. Por
acaso vão passar toda a noite contando novidades?
– Não falamos da vida alheia, replicou Cecília. Este senhor
nos fala do nosso futuro.
– E nós viemos para levá-las.
– Não antes que ele fale do meu futuro, afirmou Estela. E es-
tendeu sua mão ao Dr. Pusap.
– Senhorita d'Ossian, disse, será a mais feliz.
– Ah! Exclamou o duque, aproximando-se.
Sim. Porém, tal qual o destas jovens, seu destino será muito
diverso daquele que acredita ter diante de si. Sua vida mudará
completamente. Veja aquela linha que se volta ali. Modificação
completa, transformação radical. Justamente o oposto de suas
idéias atuais. Mas felicidade perfeita, repito-lhe, isso está claro
quanto à luz do Sol.
– Durante muito tempo?
Será completamente feliz e não terá a tristeza de envelhecer.
– E o senhor, duque?
– Não será muito feliz. Vida muito agitada, assemelhando-se
um pouco a todas as existências comuns.
E, voltando-se para o Capitão Lomond, acrescentou ao ouvi-
do:
– Morte trágica.
– Eis aí dois horóscopos difíceis de conciliar, disse o duque.
Felizmente não há nada de real; isso é simplesmente um modo
como outro qualquer de passar o tempo. Mas, esse tempo passa e
a orquestra nos chama. Vamos ao salão branco!
“É bem estranho – pensou Estela –; já me fizeram uma predi-
ção análoga há quatro anos. Será a vida escrita com antecedên-
cia?”
O duque ofereceu o braço à sua noiva e todos voaram para o
baile já muito animado.
As noites continuaram assim durante toda a primavera. Não
havia uma promessa formal entre aqueles que muitos denomina-
vam os dois noivos. Estela não se decidia.
Em um dia da semana de Páscoa, por uma bela tarde, a jovem
estava sentada, em companhia de seu, tio e sua tia, em frente ao
chalé da cascata do Bois de Boulogne. Amava esse recanto do
bosque, tão verdejante, tão alegre, com suas perspectivas vizi-
nhas, o prado de Longchamps, o moinho da Bagatelle, a colina
de Saint-Cloud, os vapores azulados do Sena. Perceberam o
duque, que passou rapidamente sem os ver, montado em uma
bicicleta, e que mudou bruscamente a direção para desaparecer
qual relâmpago na avenida das Acácias.
– Então, minha Estela, sonhas? disse a Condessa de Noir-
moutiers.
– Efeitos da primavera, replicou o tio.
– Continuas sempre sem te decidir?
– Tenho muito tempo; sinto-me bem na companhia de meus
tios.
– Sem dúvida, mas tu não segues os passos da tua tia-avó, a
Duquesa de Lesdijuières, que era avó aos trinta e dois anos.
– E que, acrescentou o conde, tomou por emblema uma laran-
jeira carregada de flores e frutos, com esta divisa: o fruto não
impede a flor.
– Somos menos apressados hoje em dia, respondeu Estela.
Puseram-se a conversar todos três a respeito de suas relações,
dos últimos casamentos, das propostas que já tinham recebido
para ela. Estela continuou a afirmar que nunca pensava em
abandoná-los.
Sua conversação foi interrompida pela chegada de uma boda
ruidosa que desceu correndo do pequeno montículo da cascata e
que se precipitou na direção das mesas do terraço do café. Os
recém-casados foram os únicos que não tomaram parte no baru-
lho e seguiam de longe seus convidados, conversando muito
seriamente. Vieram sentar-se perto deles, sem se preocuparem
com o séqüito da boda, o qual se dispersou ao longe.
– Isso é que é coincidência, disse o conde. Queres dar um pe-
queno passeio a pé em torno do lago?
Não falaram mais em casamento nesse dia. Porém, um mês
mais tarde, Estela d'Ossian e o Duque de Jumièges eram noivos,
para todos os efeitos, perante as duas famílias. Ela, na verdade,
não dera absolutamente o seu consentimento; reservava-se, dizia,
alguns meses ainda, até o verão, e, quando o duque lhe falara das
alianças de noivado, adiara o assunto, rindo com o seu lindo
sorriso: “Quando ficar oito dias sem jogar; não quero rival; de
duas paixões ao mesmo tempo, uma é demais.” Mas, evidente-
mente, dizia apenas um gracejo. O casamento estava quase
marcado pelas duas famílias para setembro ou outubro. E as
festas continuaram.
V
No domínio do desconhecido

Certa noite de inverno, depois de um belo dia de geada seca e


pleno de sol, Estela, ao despentear-se para alisar sua linda e
luxuriante cabeleira, ouviu ligeiras crepitações, semelhantes ao
ruído que faz a neve fina e dura lançada pelo vento contra a
vidraça, e sentiu ao mesmo tempo seus cabelos eriçarem-se até à
raiz. Foi no internato, aproximadamente às suas catorze primave-
ras, que fizera essa primeira observação. Depois dessa ocasião, o
fenômeno se renovara com freqüência. Várias vezes sua cabelei-
ra se mostrara rebelde a toda tentativa de penteado, e se embara-
çara obstinadamente, com perda de toda flexibilidade. Algumas
vezes, em seu velado gabinete de toalete, notara no espelho
palpitantes clarões acompanhando as crepitações à passagem do
pente. Certa vez, a camisa de dormir, de fina batista, instantane-
amente se lhe colara ao longo das costas com uma aderência
extraordinária e, tentando desprendê-la, sentira picadas na carne,
ouvira crepitações e vira pequenas faíscas aqui e ali: Divertia-se,
então, passando rapidamente as mãos ao longo da leve peça de
vestuário sobre o corpo, e fazia brotar clarões muito vivos,
semelhantes a clarões fosforescentes. Essas mesmas crepitações
e essas faíscas se produziram sacudindo uma saia de lã cor de
rosa que acabara de tirar. Voluntariamente rodeava-se de cha-
mas. Chegara a observar luzes espontâneas em sua carne, e por
vezes eflúvios luminosos escapavam de seus dedos. Algumas
vezes também os lençóis aderiam um ao outro e, quando os
separava, deixavam ver pequenas fagulhas.
Quando pela primeira vez transmitira essas observações à tia,
esta se limitou a rir bem, acusando-a de ilusão e quase alucina-
ção. Em diversas circunstâncias voltara ao mesmo assunto, sem
obter explicação alguma. Um dia em que seu tio, intrigado, a
interrogava discretamente sobre essas diversas observações, ela
notou que, embora sem partilhar da mesma incredulidade, ele via
em tudo isso apenas efeitos de imaginação, acrescentando,
porém, que talvez houvesse algum fenômeno elétrico. No desejo
de instruir-se em assunto que a tocava tão de perto, e que, sem
dúvida, pensava, não lhe era exclusivo, contara na mesa, ao lado
do duque, a história como vinda de uma de suas amigas. O
homem, mundano, que nunca ouvira falar sobre o assunto,
acolheu a narração com um sorriso de incredulidade e afirmou
com ar desdenhoso que a tal amiga tinha imaginação muito
divertida, mas que nada podia haver de verdadeiro em tudo isso.
No entanto, ela estava certa do que constatara. Sua natureza
era muito personalista, e não se perdia nas vagas. Amava os
devaneios, mas não se abandonava a eles.
Viajantes narram que, nas ruínas do velho castelo de Báden,
se ouvem, à noite, ao clarão da Lua, harpas eólias que vibram
suavemente ao sopro da brisa. Estela não era uma harpa eólia
vibrando inconscientemente à passagem do vento. Sentia-se com
uma energia muito própria e começava a achar-se bastante
diferente das mundanas e mundanos insignificantes, com os
quais estava em contacto. Sentia-se chamada a uma vida ao
mesmo tempo mais original e mais séria. Sob a beleza clássica,
bastante fria na aparência, escondia um temperamento muito
impressionável. Era uma Diana, porém Diana que uma centelha
poderia animar e arder com incendiário fogo. Quanto mais
observava o mundo, mais se encontrava diferente, pela natureza,
gostos, tendências de seu espírito, nas vibrações de seu coração.
A resposta desdenhosa e a ignorância evidente do duque
chamaram-lhe a atenção, tanto mais que nunca, quando o inter-
rogava sobre um assunto científico qualquer, ele pudera dar-lhe
uma resposta satisfatória. Esses homens do mundo seriam então
desprovidos de toda instrução real? Viveria então toda a vida
sem nada saber, sem nada aprender? Em certos dias de enerva-
mento, deixava-se levar por um vago devaneio, e por vezes
passava horas esquecidas de ócio na biblioteca de seu tio, a
bisbilhotar aqui e acolá, às vezes romances, pelos quais não tinha
grande inclinação, e com mais freqüência livres de Ciência ou de
História. Muito exigente na escolha, raramente lhe acontecia
encontrar alguns capítulos seriados suficientemente belos ou
interessantes para cativar sua atenção e inúmeras vezes folheava
uma obra sem lê-la. Mas, quando por acaso um livro tinha o dom
de agradar-lhe, não o abandonava enquanto não o terminava.
Estendia-se no divã, a cabeça e os braços apoiados em travessei-
ros, e mergulhava na leitura, esquecida das horas e de seus
projetos.
Num dia, em que nada encontrara ao seu gosto, dispunha-se a
voltar ao salão e partir para um passeio ao bosque, quando, sobre
uma divisão de estante próxima à porta, o título de um livro
elegantemente encadernado em vermelho lhe feriu de repente a
vista. Esse livro tinha por título: “O Domínio do Desconhecido”,
e não trazia nome de autor algum. Apenas o prefácio estava
assinado, anonimamente, aliás, e sem nenhuma preocupação de
glória: “Um Solitário”. A primeira página começava por esta
frase: “O que é conhecido pelo homem pode ser representado por
uma ilha minúscula, em redor da qual se estende, até ao infinito,
um oceano sem limites. Esse infinito é o que nos falta conhecer.”
Alguém já disse que se o homem procura às vezes a verdade
em um livro, a mulher procura nele acima de tudo suas ilusões.
Nesse livro Estela encontrou tudo. Era a primeira resposta à
multidão de questões que ela muitas vezes se apresentara a si
própria.
Folheou-o e viu, pelos títulos no alto das páginas, uma grande
variedade de assuntos curiosos: A Vida e a Morte – O Diabo e os
Demônios – As Bruxarias do Sabat – Processos de Bruxaria – O
Oculto – O Magnetismo – Os Sensitivos – Aurora Boreal e
Agulha Imantada – As Aparições – Os Pressentimentos – Os
Sonhos – Que é o tempo? – O Céu – O Além – As Aspirações –
O Corpo Astral, etc. Porém, um título atraiu seu olhar, título
composto por duas palavras simples “Eletricidade humana”. E
por esse capítulo iniciou a leitura.
Foi para ela uma revelação, um despontar de sol, um desdo-
bramento de horizontes sem fim. A crisálida que desperta aos
raios do Sol primaveril e se agita febrilmente e quebra o invólu-
cro para iniciar seu vôo no espaço livre, não sofre metamorfose
mais completa do que a transformação de todo o ser experimen-
tada pela jovem, à medida que devorava as páginas desse livro.
Parecia-lhe que pressentia tudo, que estava preparada, pela sua
vida anterior, sua natureza pessoal, suas reticências mundanas,
seus gostos reais, suas aptidões, para beber nessa fonte de água
viva. Todos os fenômenos que sentira em si própria estavam
explicados e descritos com minúcias. Aprendeu, por essa leitura,
que a eletricidade desempenha um papel importante e pouco
conhecido na vida de todos os seres, fluido que se transforma no
sistema nervoso e se manifesta até nos fenômenos de ordem
psíquica; que uma espécie de magnetismo age entre as almas e
entre os corpos; que os efeitos antes tão curiosos que ela obser-
vara já haviam sido estudados em manifestações mais intensas
em outros seres, tais a Angélica Cottin, por exemplo, que, con-
forme relatório de Arago à Academia de Ciências, atraía móveis
qual o ímã atrai o ferro, e a vidente de Prevorst, cujas visões
sonambúlicas eram extraordinárias. Os fenômenos elétricos que
se desenvolvem em certas condições interessaram-na particular-
mente. Leu no referido livro que, no Canadá, quando fazia frio
muito seco, as jovens se divertiam às vezes, estendendo os lábios
ao se beijarem, dando esses beijos, assim, origem a uma faísca
bastante viva, e que, friccionando os pés em tapete, era possível
acender um bico de gás, aproximando a ponta do dedo. Essas
questões de Física e Fisiologia a apaixonaram e lhe fizeram
entrever um novo mundo.
Ainda não terminara o capítulo sobre a eletricidade humana e
já ansiava ler todo o livro, da primeira à última página. Levou-o
para seu quarto e esqueceu o passeio ao bosque, planejado e
organizado desde vários dias, com suas amigas. Era a primeira
vez que se apaixonava por um livro, e esse livro era científico.
Os romances que tentara ler não haviam conseguido cativá-la.
Em geral, a ficção desagradava-lhe. Parecia-lhe que os romancis-
tas contavam na maioria das vezes fatos que todo mundo conhe-
cia, falavam sem nada dizer, escreviam coisas que ninguém
aprendia, discutiam assuntos banais. Naquele livro encontrara
um fundo substancial, uma realidade de ordem superior, a pró-
pria Natureza com seus imensos problemas. O autor estudava o
ser humano, o corpo, a alma, as forças, o Espaço, o Tempo, o
Universo. As páginas sobre as radiações invisíveis, as vibrações
e as ações à distância intrigaram-na ao mais alto grau. Não ouviu
bater a hora do jantar e foi preciso que sua tia fosse buscá-la no
quarto.
Não falou do empréstimo que tomara na biblioteca do tio e,
tão logo terminou o jantar, retirou-se, para continuar a leitura,
que só terminou alta hora da noite. No dia seguinte, ao almoço,
não pôde conter-se por mais tempo e interrogou o tio.
Este, a princípio, a repreendeu vivamente, por ter apanhado
um livro na biblioteca sem pedir autorização. Poderia, agindo
assim, cair-lhe nas mãos uma obra imprópria para uma jovem.
Quanto ao livro de que lhe falava, achava-o demasiado grave
para ela.
– Suponhamos, por exemplo, acrescentou, estendendo-lhe um
in-18, publicado em 1859, que escolhesses este livro!
Estela leu o título: “O amor das mulheres aos tolos”.
– Ah! Disse ela, não acredite que eu o folheasse sequer.
– Pode-se, entretanto, defender a tese, que não é de todo pa-
radoxal. É até caso muito comum. Napoleão não foi compreen-
dido por suas duas esposas.
– Nunca eu amaria um tolo!
– Está bem. No íntimo fiquei satisfeito de teres lido essa obra
interessante, que acaba de abrir à tua imaginação horizontes
inteiramente novos sobre o Além. Esse escritor tem sobre muitos
outros a vantagem de não ser banal e ocupar-se com problemas
“sugestivos”, como se diz. É um dos meus autores favoritos e
tenho todas as suas obras. Aprecio o seu saber luminoso e vivo.
Não é necessário ser obscuro para ser profundo, nem fastidioso
para ser sábio.
Falaram dos interessantes capítulos sobre o magnetismo ter-
restre, misteriosa força vital de nosso planeta. Havia uma bússola
na peça vizinha. A convite de seu tio, Estela colocou-a sobre a
mesa e observou a leve oscilação e seu rumo um pouco a oeste
do Norte. O Conde Noirmoutiers explicou que esse rumo varia
conforme a região, não sendo o mesmo em Paris, Roma ou
Madrid, que varia também de ano para ano, de século para século
e que existe na pequena agulha imantada a manifestação de uma
intensa vida planetária. Ensinou-lhe também que tal direção da
agulha oscila regularmente em certas horas do dia, movimento
que tem uma certa correlação com as manchas solares e até com
os planetas. Um laço magnético liga o Sol à Terra e os mundos
entre si, apesar da distância e do vácuo aparente que os separam.
Em seguida, apanhou uma faca de sobre a mesa e pôs a lâmina
por cima da bússola: a lâmina de aço atraiu as pontas da agulha,
porém mais fortemente a extremidade Norte do que a extremida-
de Sul. Aproximou uma tesoura; a ponta repelia a extremidade
Sul da agulha e atraía a extremidade Norte, enquanto o cabo da
tesoura atraía a extremidade Sul e repelia a extremidade Norte.
Os dois extremos de uma chave atraíam as duas pontas da bússo-
la. Esta frágil agulha se mostrava animada de uma vida ativa,
agitava-se febrilmente sob influência do ferro, deixava-se cativar
numa espécie de frenesi ou fugia com aparência de repulsa. De
um lado, parecia querer desejar tal aproximação com afã; de
outro, desdenhava, temia, recusava-se.
– São observações que já podias ter feito no pensionato,
acrescentou o conde, mas quero acreditar que elas nunca te
interessaram e nem nunca te mostraram a vida magnética do
nosso planeta. D'Alémbert dizia, com razão, que uma pedra que
cai faz o filósofo divagar, chamando sua atenção para a atração
da Terra.
Vendo quanto a curiosidade de sua linda sobrinha despertara
com essas primeiras experiências, ele a conduziu para o seu
gabinete de estudo e lhe mostrou um barrotim imantado de
grande força. Suspenderam uma pena de aço ao fio preso a uma
régua de madeira fixada em prateleira da biblioteca e a mantive-
ram sem contacto a alguns centímetros de uma das extremidades
do barrotim. Era maravilha ver os trêmulos da pena, sua tensão
para atingir o ímã, a brusca reviravolta quando se lhe apresentou
o outro pólo, suas preferências e suas recusas, e por vezes um
tremor convulsivo tão violento que, em dado momento, Estela,
tomada de piedade, exclamou:
– Basta, meu tio, o senhor a maltrata.
Esta ação à distância e sem contacto do ímã sobre o ferro ou
dos ímãs uns sobre outros, a vida latente de súbito revelada pela
aproximação de um barrotim imantado, as linhas de força que
tendem para um mesmo ponto do globo, a rotação lenta desse
sistema no interior e à superfície da Terra, a correspondência da
agulha imantada com a aurora boreal, a luz polar que ela assinala
do fundo de uma adega e a correspondência de todos esses
fenômenos magnéticos com o Sol, tudo isso não seria suficiente
para ferir a imaginação, mesmo o espírito mundano de uma
jovem que nunca se impressionara com os grandes problemas da
Natureza? Nesse dia, muito se falou de ciência, e Estela compre-
endeu que a ciência é algumas vezes interessante e desperta na
alma idéias dignas de atenção.
– A eletricidade, dizia o conde, é uma força imensa, ainda
quase inexplorada.
“O “Solitário” tem razão de proclamar que ela é o agente su-
premo da vida. Age constantemente em torno de nós e sobre nós,
não somente durante os dias ou noites de tempestade que prece-
dem as descargas dos raios e em que os nossos nervos estão em
um estado de agitação, que varia conforme os temperamentos,
porém continuamente, mais ou menos, porque nunca está ausen-
te. A eletricidade cria e mata; é benfeitora ou malfazeja, confor-
me sua maneira de agir; uma chuva tempestuosa ativa instanta-
neamente os fenômenos da vegetação, desperta a força, a beleza,
os perfumes das flores, enquanto que o brusco estrondo do raio
reduz o carvalho a lascas ressecadas e semeia a morte com a
rapidez da sua própria fulguração. É eletricidade que circula em
nosso sistema nervoso e em nossos músculos; é por ela que
agimos; é ela que impulsiona os nossos gestos e que brilha em
nosso olhar. É ela que une a alma ao corpo; é, falando com
propriedade, a substância de nossa alma; age entre os espíritos,
entre os corações, entre os corpos. Leste, em um capítulo do
“Solitário”, que cada um de nós irradia em torno de si ondas
elétricas invisíveis.
“As simpatias e as antipatias são explicadas pelo encontro
dessas ondas, que podemos comparar às sonoras vibrações das
cordas do violino, da harpa ou do piano. Façamos vibrar uma de
tais cordas e produziremos um som. Se a onda sonora encontra
em seu caminho uma outra corda em estado de vibrar harmoni-
camente com ela, esta segunda corda emitirá um som sem neces-
sidade de que alguém a toque. É uma experiência que se pode
fazer todos os dias. Emite, pela voz, um som forte em uma sala,
e os objetos em estado de vibrar com a nota emitida responderão;
os outros ficarão mudos.
“Coloquemos dois ímãs semelhantes, podendo girar sobre as
pontas, a alguma distância um do outro. Toquemos um deles e
façamo-lo oscilar, e o outro oscilará também.
“Se duas almas vibrarem em perfeita harmonia suas ondas
mentais quando se aproximam se unem.
“Se há dissonância no encontro das vibrações, resulta a anti-
patia. Não sabemos por que, mas todos os raciocínios serão
inúteis. Este homem me é antipático, aquela mulher me irrita os
nervos. Não se deve procurar corrigir essa primeira impressão,
pois nossas ondas não se harmonizarão.
“Os semelhantes se atraem, os opostos se repelem: “Dize-me
com quem andas e dir-te-ei quem és.” Os bons combinam entre
si, o mesmo acontece aos maus.
“Nossas almas não são puros Espíritos. São substâncias fluí-
dicas. Agem e se comunicam entre si por meios materiais, porém
matéria sutil, invisível, imponderável.
“Sim, a eletricidade ainda é um domínio inexplorado, nota-
damente a eletricidade humana. As crepitações e os clarões que
observaste em ti própria são os indícios de uma sensibilidade
especial. Estou certo de que poderias reconhecer os dois pólos de
um ímã. Quanto a mim, tenho a certeza de que, colocando-te ali,
de pé, diante da chaminé, de costas para mim, ser-me-ia suficien-
te estender o braço até o teu ombro, e querer fortemente, para
que não te possas manter ereta e caias de costas. Não o ensaiarei,
entretanto.”
– Tudo isso é muito curioso, disse Estela, e constitui para
mim um mundo novo. Sabe o que mais me impressionou nesse
livro do “Solitário”?
– As comunicações com o planeta Marte?
– Não, ainda não as compreendi; é um pouco forte para a mi-
nha ignorância. O que mais chamou a minha atenção foi o capí-
tulo das aparições e o da transmissão de pensamento à distância,
entre outras, a história da beatificação de Afonso Maria de
Liguóri e a discussão, apoiada em provas, da sua aparição ao
papa.
“Certamente conheces o fato. Estando esse santo bispo em
Scala, no Reino de Nápoles, caiu um dia em transe, em estado de
morte aparente, na poltrona em que habitualmente se sentava ao
voltar da missa. Tornando ao estado normal, deparou seus servi-
dores, que o acreditavam morto, ajoelhados diante dele. Meus
amigos, disse-lhes, o Santo Padre acaba de expirar. Dois dias
depois, um correio confirmava a notícia. A hora da morte do
papa coincidiu com a em que o bispo tornara ao seu estado
normal. Ora, durante essa ausência, Afonso de Liguóri havia
aparecido ao soberano pontífice, com quem falara, tinha sido
visto e ouvido e assistira o papa até o momento em que este
exalara o último suspiro. No processo de beatificação, esse dom
de bilocação ou ubiqüidade foi classificado milagre e apresenta-
do por prova de santidade.”
– Sim, lembro-me. Porém nesse caso não existe mais milagre
do que na floração de uma rosa ou na eclosão de um passarinho
do ovo e o acontecimento é mais raro. Eis tudo, mais raro talvez
do que um eclipse total do Sol em Paris. Essa história sempre me
impressionou por não me parecer contestável, uma vez que se
passou em pleno século de incredulidade, em 1774, tendo por
objeto a morte de Clemente XIV (Ganganéli), no ano seguinte ao
Breve com o qual esse papa ousou suprimir a Ordem dos Jesuí-
tas. Foi em nosso século, em 1816, que a beatificação se reali-
zou. É, pois, assaz recente; Liguóri morreu em 1787, treze anos
depois dessa aparição.
“No meu modo de pensar, fatos dessa natureza são uma prova
em favor das teorias do “Solitário” sobre a eletricidade humana e
sobre o que chama nosso “corpo astral” – substância fluídica que
ocupa todo o sistema nervoso do ser vivente, do qual tem a
mesma forma e do qual é verdadeiramente o “duplo”. Esse
“duplo”, que é nossa alma dotada de espírito, pode, às vezes,
destacar-se do corpo e até mesmo afastar-se.”
– Encontrei também uma história mais recente, extraída de
um inquérito sobre o que se denomina – não sei bem porque –
“alucinações telepáticas”, escrito por uma jovem cujo nome me
interessou (pois que se assina Estela), em data de 18 de janeiro
de 1884, narrativa que me fez passar um ligeiro arrepio por todo
o corpo. Conta ela que numa bela noite, estando sentada próximo
da lareira, entretida na leitura de um livro de aventuras muito
alegres e que lhe despertara forte riso, nesse instante, ouviu girar
a maçaneta da porta do salão onde se achava, e viu entrar um seu
primo, que aparentava sentir muito frio, sem agasalho, embora
nevasse. Levantou-se, para lhe colocar uma poltrona perto ao
fogo e o recriminou por se haver deixado gelar daquela maneira.
“Em vez de responder, acrescenta a narradora, ele colocou a
mão sobre o peito e sacudiu a cabeça, o que parecia indicar que
não tinha frio, e sim que sofria do peito e era presa da afonia que
lhe sobreviera ultimamente. Mais uma vez lhe reprovava a
imprudência, quando o Dr. G..., em cuja casa morava então com
minha mãe, entrou e indagou com quem eu falava. Respondi: “É
ao fastuoso Bertie, que se constipou a ponto de não poder pro-
nunciar uma palavra; empreste-lhe, pois, um casaco, e mande-o
para casa.” Jamais esquecerei o horror e a estupefação pintados
no semblante do bom doutor, que acabara de assistir os últimos
momentos do meu primo, morto meia hora antes. Sua primeira
impressão foi de que eu acabara de saber da catástrofe naquele
instante, e perdera a razão. Não me tocou, porém, no assunto, e,
tratando-me por “minha filha” (eu contava três lustros de idade),
me fez sair do salão, enquanto me dava explicações científicas
das visões, tidas por ilusão de óptica. A casa em que Bertie
acabara de falecer ficava a distancia de um quarto de hora, mais
ou menos, feito o percurso a pé. Havia bem três ou quatro minu-
tos que meu primo viera, quando o doutor entrou. Eu ouvira girar
a maçaneta da porta, vira abrir e fechar essa porta, feito o que,
Bertie atravessara o salão, caminhara suavemente até à chaminé,
sentando-se aí na poltrona que eu puxara para ele. Acendi as
velas sobre a lareira e conversei durante algum tempo, embora
sem receber qualquer resposta, o que atribuía à sua perturbação
vocal.
“De acordo com essa narrativa – acrescentou Estela –, tal
aparição difere da de Santo Afonso de Liguóri – em que este
estava vivo, e assim continuou, enquanto que o primo da minha
homônima acabara de falecer. Acredita então que se possa
aparecer estando morto?
– Há em tudo isso, replicou o conde, um mundo a estudar, e
compreendo que o “Solitário” tenha incluído esses problemas em
sua obra “O Domínio do Desconhecido”. Confesso-te que eu
mesmo me sinto atraído, desde há algum tempo, por esse gênero
de pesquisas, e comecei a comparar numerosas dessas observa-
ções com a esperança de lhes achar falhas e poder atribuí-las a
coincidências fortuitas ou a ilusões; porém elas têm resistido à
crítica, porque as averiguações foram feitas de maneira cautelo-
sa. Procura-se atribuí-las à imaginação, à sugestão, etc.; mas tais
explicações não me satisfazem. O que sabemos é bem pouca
coisa; o que nós ignoramos é imenso.
“Todos esses fatos me parecem tão interessantes quanto inex-
plicáveis, e compreendo que o livro do “Solitário” te haja im-
pressionado, notadamente a ti, pequena sensitiva. Mas, vejo com
satisfação que raciocinas igual a um homem, e realmente há uma
hora em que raciocinamos quais dois homens. Por minha parte,
declaro ser francamente discípulo desse emancipado das orlas da
ciência clássica; na maioria dos casos, suas teorias elétricas
encontram adequada aplicação. As transmissões de pensamento,
e mesmo as de sensações à distância, são casos reais. As apari-
ções oferecem aspectos múltiplos e diversos. Sem dúvida, os
cépticos encontrarão sempre meios de sair do embaraço, afir-
mando que nesses casos nada existe de real; que são coincidên-
cias, ilusões ou até histórias inventadas para distrair. Pode-se
afirmar tudo. Lembro-me de que muito me diverti com a leitura
de um espirituoso opúsculo, escrito para demonstrar, muito
engenhosamente, aliás, que Napoleão nunca existiu.”
Esse livro sobre “O Domínio do Desconhecido”, as palestras
que tivera com o tio a propósito das questões relacionadas com o
assunto, trabalharam tanto o espírito da nossa jovem pensadora,
que oito dias depois sentia outra personalidade e, nesta, a prova
de que a sua vida, tornando-se intelectual, lhe proporcionava
satisfações inesperadas e esquisitas. Ao mesmo tempo, o pro-
blema da eletricidade humana parecia associar vagamente sua
própria pessoa à alma do autor de tão curiosa obra.
VI
Senhorita Eva

Estela penetrou nos domínios da Ciência por um caminho in-


direto. Sua curiosidade assim despertada quase por acaso, por
fenômenos estranhos e pouco estudados até então, não devia
extinguir-se mais. Interessava-se por tudo, queria tudo aprender,
tudo saber. As coisas da vida mundana, as conversações de
salão, os bailes, os jantares, o teatro, tornaram-se sem brilho aos
seus olhos e perderam todo atrativo. Falara ao seu diretor espiri-
tual a respeito do livro do “Solitário”, da aparição de Liguóri ao
Papa Clemente XIV e de alguns outros fatos relatados na obra. O
confessor admitia a aparição do santo, mas insinuou que os
outros casos provavelmente eram ilusões ou talvez até tentações
do demônio. Entretanto, não lhe proibira absolutamente a leitura
dos livros do “Solitário”, prevenindo-a, contudo contra seus
“erros teológicos” que, acrescentou com benevolência, não
tinham importância para ela – que não pretendia cogitar de
Teologia. “Podeis ler seus livros, acrescentou; elevam a alma e
combatem o materialismo. Mas não chegueis ao extremo de
considerá-los iguais às palavras evangélicas. Ele não é um ver-
dadeiro sábio. Os verdadeiros sábios são todos católicos prati-
cantes. Os outros, os independentes, são meio sábios, pois duas
verdades não podem opor-se uma à outra, e desde que a palavra
de Deus nos deu a conhecer a verdade, toda a ciência que não
esteja de acordo com a fé não passa de ciência falsa. É, em
muitos pontos, o caso desse autor. Desconfiai também de sua
imaginação, que vos pode arrastar longe. Em uma palavra:
embora não se trate de um romancista, lede-o como se lê um
romance honesto, sem acreditar que tudo haja acontecido.”
Era uma autorização, incompleta, porém suficiente, e ela não
precisava de mais para continuar a leitura que a interessava; em
verdade, hesitara e talvez não continuasse a leitura sem essa
velada autorização. Seu tio lhe prometera emprestar um segundo
livro do “Solitário”, intitulado “A aurora de um novo dia”.
Reclamou-o naquela mesma noite, e iniciou avidamente a leitura
das páginas.
Começava pela história da Terra. As épocas sucessivas esta-
vam claramente expostas, segundo os fósseis característicos de
cada período, e assistia-se ao desenvolvimento gradativo da vida,
desde os rudimentares seres primitivos (os moluscos, os acéfa-
los) ao homem. A seguir, este era descrito, desde a era da pedra
até as conquistas intelectuais da civilização moderna. A árvore
genealógica da vida terrestre desdobrava-se em sua amplitude,
com as lacunas que as descobertas da Ciência preenchem pouco
a pouco. Admirava-se em tudo uma lei simples e providencial de
progresso manifestada com a evidência da luz meridiana. Ne-
nhuma dedução que não fosse baseada em fatos observados. As
analogias do corpo humano com os mamíferos superiores esta-
vam explicadas.
Remontava-se, insensivelmente, da nossa época às anteriores,
e até aos tempos primitivos, quando o nosso planeta começou a
condensar-se no espaço, nos flancos da nebulosa solar!
Essa teoria cosmogônica fornecida pela Ciência, baseada na
Astronomia, Geologia e Paleontologia, e bem assim na Fisiolo-
gia e na Anatomia, pareceu evidente e simples ao espírito da
jovem leitora. Começou então, tal qual em outros tempos no
colégio, a fazer uma recopilação desse primeiro capítulo, e lhe
veio à idéia compará-lo com a narrativa do Gênesis bíblico.
Depois, por curiosidade, imaginou transcrever ambas as narra-
ções em duas colunas paralelas. Acreditou-se ainda, por um
instante, no pensionato, fazendo uma obrigatória composição, à
qual se entregou com afã. Disso resultou o seguinte resumo, em
que apareciam sob seus olhos, de um lado os ensinamentos
apresentados pela Ciência e do outro a instrução religiosa do
Catecismo, da Bíblia e do Evangelho. Reproduzimos, textual-
mente, esse resumo, ao qual não faltava originalidade. Estela se
esmerara, à imitação de Bossuet, em dividir por épocas esta
pequena História Universal:
A CIÊNCIA A RELIGIÃO
Primeira época Primeira época
O sistema solar parece proceden- Deus criou o Céu e a Terra em
te de uma imensa nebulosa, da qual seis dias, com todos os seres que
o Sol e os planetas seriam conden- encerram, e após terminar suas
sações. obras descansou no sétimo dia.
A própria Terra, primitivamente, foi O Sol, a Lua e as estrelas foram
nebulosa, depois sol e, resfriando- criadas no quarto dia.
se, tornou-se um corpo sólido. Os primeiros seres criados foram
Os elementos da atmosfera e das os anjos que lutaram uns com os
águas prepararam as condições da outros. Os vencidos são os demô-
vida, a qual começou por seres nios. Tal é a origem do diabo.
rudimentares.
Segunda época Segunda época
Os fósseis nos mostram, a exem- No sexto dia Deus fez os animais
plo de folhas de um livro de anais da que habitam a terra firme. Em
Terra, que a vida começou pelos seguida disse: Façamos o homem à
mais rudimentares e imperfeitos nossa imagem e semelhança.
seres. Deus criou Adão, modelando um
Os três grandes períodos geológi- homem de argila, sobre o qual
cos poderiam ser denominados: era soprou.
dos peixes, era dos répteis e era dos Isso em um jardim. Em seguida
mamíferos. arrancou-lhe uma costela, durante o
Cada uma dessas eras representa sono, e a transformou na mulher.
milhares de séculos. Encontram-se E a ambos proibiu que comessem
os peixes abundantes nos terrenos dos frutos de uma certa árvore do
cambrianos, silurianos, devonianos e centro do jardim.
permo-carbônicos; os répteis nos O diabo entrou em uma serpente
triássicos, jurássicos e cretáceos; os e falou, assegurando à mulher que
mamíferos desde o eocênico. precisamente a árvore do centro do
O mar tomou muitas vezes o lugar jardim era a melhor.
da terra e vice-versa. E a mulher se deixou tentar, por
As espécies se foram diferencian- isso que o fruto era belo e agradável
do cada vez mais, aperfeiçoando-se. à vista; provou e dele deu a seu
A árvore da vira mostra a unidade marido, que comeu também. Então
genealógica e a transformação se aperceberam de que estavam
gradual das espécies. nus.
Terceira época Terceira época
Em fins do período terciário as Deus passeava pelo jardim, à
espécies animais e vegetais já se tarde, quando se levantou um vento
assemelhavam às da nossa época. leve.
Lenta e gradualmente, nosso Adão e Eva quiseram ocultar-se,
planeta adquiriu as condições atuais porém Deus os chamou.
de existência, suas estações e Adão respondeu:
climas. – Ouvi vossa voz; tive medo, por-
Os primeiros seres que merece- que estava nu, e me ocultei.
ram o título de humanos parece – E como soubeste que estavas
terem sido os selvagens primitivos, nu, senão por teres comido do fruto
que viviam nus e incultos nos vedado?
bosques, disputando sua vida aos – Foi a mulher quem mo ofereceu.
animais ferozes. O Senhor Deus disse à mulher:
A anatomia do homem asseme- – Por que fizestes isso?
lha-se à dos grandes símios; o Ela respondeu:
homem, porém, não descende do – A serpente me enganou.
macaco. É o aperfeiçoamento de
Então Deus disse à serpente:
uma espécie desaparecida. A
– Arrastar-te-ás sobre o ventre e
estrutura respectiva mostra que seu
comerás terra todos os dias.
corpo pertence à ordem dos mamífe-
ros. Deus disse à mulher:
Uma admirável Lei de Progresso – Terás filhos, por entre dores.
presidiu ao desenvolvimento gradati- Deus fez para Adão e sua mulher
vo dos seres, desde os mais humil- vestes de peles, com as quais os
des até o homem. vestiu. E os expulsou do jardim, e
A vida terrestre é uma grande colocou os querubins, munidos de
unidade, e o homem a sua coroação. espadas de fogo, para guardarem a
entrada.
Quarta época Quarta época
Pelo desenvolvimento gradual de Para salvar a posteridade de Adão
suas faculdades físicas e morais, o do “pecado original”, Deus se
homem se tornou cada vez menos encarnou no seio de uma virgem,
bárbaro. que se tornou mãe, com a interven-
À idade da pedra bruta sucede- ção do Espírito Santo, sem o
ram-se as idades da pedra polida, do concurso do marido, José.
bronze e do ferro. Sucessivamente e A anunciação teve lugar a 25 de
sempre, foram inventadas as março e o nascimento a 25 de
vestimentas, as habitações, os dezembro.
instrumentos de trabalho, os apare- Os profetas bíblicos anunciaram
lhos de ciência e os de indústria, as que o Salvador devia ser filho de
artes da civilização. David. Essa a razão pela qual os
Os homens se tornaram justos e Evangelhos dão a genealogia de
pensadores. A Humanidade pôde Jesus-Cristo, mostrando que o pai
produzir espíritos da estirpe de de Jesus, S. José, e seu avô des-
Homero, Sócrates, Platão, Arquime- cendiam de David, pela mulher de
des e Newton. Urias, que o santo rei elevara.
Contudo, a raça humana atual- Jesus-Cristo provou, pela sua
mente ainda é assaz primária. missão, por seus milagres, pela
Continuará, porém, sua marcha ressurreição, que era realmente
ascensional, principalmente d’ora em Deus, e a Humanidade foi salva.
diante, com o desenvolvimento das Jesus-Cristo trouxe a Verdade ao
ciências. A Ciência avança. Há mundo, e desde há 18 séculos não
sempre o que investigar. há nada mais a investigar.

Estela leu, e, pela primeira vez, dúvidas religiosas atravessa-


ram seu espírito. Releu uma terceira vez e certificou-se de que a
cópia estava curtíssima. Seu confessor lhe aconselhara desconfi-
ar da imaginação do “Solitário”, e em um lampejo ela percebeu
que, no paralelo precedente, a imaginação estava – fora de
dúvida – à direita, e não à esquerda. A História Científica é
fundada na observação direta de fatos da Natureza, enquanto que
a História Religiosa apenas oferece por base ficções, de um belo
simbolismo oriental, porém ficções puras, ingênuas, indemons-
tráveis e mesmo contraditórias.
A jovem pesquisadora perguntou a si própria:
Se realmente o Sol, a Lua e as estrelas foram criadas em um
dia – e o quarto – para luzir sobre a Terra;
Se em verdade Deus se dera ao trabalho de modelar um corpo
de argila, para deste formar Adão;
Se em realidade Eva foi tirada de uma costela do homem as-
sim criado;
Se verdadeiramente a serpente falara.
Depois, de ligação em ligação, aprofundou os conhecimentos
bíblicos, e achou que o autor da narração tratava Deus um tanto
familiarmente, e não via nele mais do que um homem. Releu
diversas vezes em sua Bíblia que Deus “passeava pelo jardim, à
tarde, quando se levantou um vento leve” e que “Ele próprio fez
vestimentas” para cobrir Adão e Eva. Nunca estudara a Bíblia
com essa atenção, e não duvidava do que seus olhos liam. E
então ficou surpreendida com outras singularidades, tal a conde-
nação da serpente a arrastar-se daí em diante, e perguntou a si
própria, sem poder achar resposta, qual era a maneira pela qual
se locomovia a serpente antes do pecado de Eva.
E depois, sem qualquer malícia, pareceu-lhe que Jesus não
seria descendente de David, se José não fosse seu pai, e se José
fosse seu pai a virgem Maria não continuaria virgem, no que
notou haver contradição.
E também lhe pareceu que Jesus não salvara a Humanidade,
de vez que três quartas partes dos habitantes da Terra não conhe-
cem o Evangelho, ou nele não acreditam.
Em suas perplexidades, procurou alguma lógica, remontou à
origem e se apercebeu de que a redenção se baseava na falta
(pecado original), a falta na tentação, a tentação na existência do
demônio e esta na luta dos anjos antes da criação do homem.
Todo esse edifício lhe pareceu muito fabuloso.
Teve um resto de dia inquieto e durante toda a noite não con-
seguiu conciliar o sono. Era possível! Vivera tão tranqüila até
então! Seus pensamentos tinham sido tão confiantes, tão sim-
ples! A vida e a morte tinham sido explicadas e, contudo, come-
çava a duvidar. E quanto mais se aprofundava, e quanto mais lia
a Bíblia, mais duvidava. Que havia ali de verdade? Nada, talvez!
E passou dias, noites, semanas inteiras em uma perturbação
de espírito que não conhecera até então; era por vezes uma
angústia horrível, para ela que se sentira tão feliz na sua fé. E se
não fosse verdade? dizia.
Aconteceu-lhe até perguntar-se se Jesus era Deus, se ela
mesma possuía uma alma, se esta alma era imortal e em que se
tornaria depois da morte... Tudo se desmoronava a um tempo só.
E horríveis dúvidas a atenazavam cruelmente. Não dormia mais,
não se alimentava mais, definhava.
Semanas escoaram nessas angústias sempre crescentes, por
isso que seu coração era puro e sincero. Não mais crer! viver
sem religião! Impossível! Monstruosidade!
Por fim, não se podendo conter por mais tempo, foi consultar
seu diretor espiritual. Ele a deixou expor todas as dúvidas, sem
proferir uma única palavra.
Depois, no fim, quando ela esperou as explicações:
– Minha querida filha, disse-lhe, vós pecais por orgulho. Es-
sas questões não são nem do vosso sexo, nem da vossa idade.
Com que direito pretendeis perscrutar os desígnios de Deus? Os
mistérios da nossa Santa Religião não são discutíveis. A revela-
ção divina jamais se discute. Acreditai-vos superior aos Apósto-
los e aos Padres da Igreja, e supondes que santos inspirados por
Deus, tais São Paulo, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino,
ou que espíritos eminentes, do valor de Pascal, Bossuet, Fenelon,
e tantos outros, hajam sido impostores? Pensais que N. S. Jesus-
Cristo, que se proclamou – ele mesmo – filho de Deus, tenha
sido um farsante? Semelhantes dúvidas são sacrilégios. Cumpri
vossos deveres; segui os mandamentos de Deus e da Igreja, não
esqueçais a prece da noite e o exame de consciência, e encontra-
reis os benefícios da graça e a tranqüilidade da fé. Humilhai-vos
com os nossos grandes doutores, com Tertuliano, que não hesi-
tou em dizer: “Credo quia absurdum” (creio porque é absurdo).
Nós não podemos compreender os mistérios. E, principalmente,
não lede mais esses livros que perturbam inutilmente o espírito.
Tendes outras coisas a fazer no mundo, em vez de investigações
pseudocientíficas. Deixai a Geologia aos geólogos e a Teologia
aos teólogos. Sois boa musicista, creio. Isso não é pecado. Os
prazeres permitidos de uma sociedade honesta e distinta, qual o
mundo a que pertenceis por nascimento, dar-vos-ão mais satisfa-
ções do que essas vãs querelas renovadas, de heréticas, já conde-
nados por todos os Concílios. Em breve teremos a estação das
viagens. Ide contemplar as maravilhas da Natureza; à beira-mar
ou entre as montanhas, adorareis Deus em suas obras, e voltareis
sã de corpo e de espírito. De outra maneira, seria estiolar-se nas
bibliotecas onde cada livro está impregnado de pó e micróbios.
Até à vista, minha querida filha, fazei vosso ato de contrição e
recebei a minha bênção paternal.
Pela primeira vez, a jovem cristã saiu do confessionário sem
experimentar a suave emoção interior da graça, cuja penetração
em tantas outras ocasiões inundara sua alma de reconfortadoras
claridades. Julgou aperceber-se de que sua fé vacilava e, embora
sentindo o desejo de avançar no saber, lastimava ter começado.
Recordou os inefáveis prazeres da sua primeira comunhão e
acreditou ter tornado a encontrar a graça. Antes de transpor os
umbrais da igreja estava convencida de que era preferível não
continuar as leituras inquietantes, e que o melhor era não mais
nelas pensar.
Tomou essa resolução. Mas, a luz exterior, o ar pleno, o Sol
de maio, as visitas da tarde fizeram evaporar tais impressões, e
quando naquela mesma noite reviu a “Aurora de um novo dia”
sobre a mesinha do seu aposento azul, não se pôde conter de
retomar o livro nas mãos, folheá-lo e continuar a leitura.
Após haver exposto a história do nosso planeta, o “Solitário”
mostrava que a Humanidade terrena, a despeito dos progressos
que já fizera, ainda está em idade infantil.
“Ela é material, grosseira, inconseqüente e brutal. Menos di-
vidida do que nos tempos primitivos das tribos, quando estas se
mantinham constantemente em guerra de aldeia a aldeia, qual
acontece ainda em nossos dias nas regiões da África Central;
menos dividida também do que em tempos mais recentes em que
o Rei de França, o Duque de Normandia e o Duque de Borgonha
viviam em lutas permanentes, em que Paris se batia contra Ruão
e Dijon, da mesma forma que Florença contra Veneza, Berlim
contra Frankfurt, Edimburgo e Dublin contra Londres, e igual-
mente do que nos primeiros dias da monarquia francesa em que o
rei de Paris se batia contra o rei de Soissons; essa pobre Huma-
nidade está, no entanto, longe ainda de despojar-se do antigo e
bárbaro erro de regionalismos, e ganhou muito pouco também
em liberdade real, porque quase todos os seus recursos são
consagrados a manter certos grupos, encerrados em fronteiras
artificiais e variáveis, sentimentos de rivalidades, animosidades e
rancores que a esgotam e esterilizam. A inteligência está ainda
tão embrutecida, que os povos honram os diplomatas que, pela
mentira e fraude, fizeram desencadear as guerras mais ruinosas
para se cobrirem de homenagens e glórias. Ainda se vêem reis e
imperadores asseverando a seus súditos que a guerra é de insti-
tuição divina e que o mais inteligente proceder consiste em
derramar o sangue sobre o altar da pátria. O militarismo, assim
exagerado, vale por um crime, uma vergonha, uma loucura
grosseira e malsã. Todos os governos da Europa, reunidos, têm
menos inteligência do que um bando de lobos, ou, se verdadei-
ramente raciocinam sobre a sua própria conduta, proclamam em
princípio o roubo e o assassínio. Prefiro acreditar que são in-
conscientes e vítimas do atavismo. Os homens são educados no
porte de punhais nos bolsos para se degolarem feito brutos. Os
soldados da Europa despendem doze milhões por dia, exercitan-
do-se: doze milhões por dia, quatro bilhões quatrocentos trinta e
cinco milhões por ano, dinheiro pago pelos que trabalham. A
Europa está atualmente endividada em cento e vinte e um bilhões
(sendo a parte da França trinta bilhões). Tal militarismo é uma
escola de ociosidade que rouba trabalhadores aos seus ofícios.
Insensata e dividida, essa Humanidade terrestre. Os cães, os
gatos, as toupeiras, as ostras, as cenouras, as abóboras são menos
estúpidas. Os animais e as plantas lutam pela vida; os homens
pugnam pela glória de ser mortos!
“Ao mesmo tempo, continuava o autor, todos esses seres vi-
vem sem saber e sem indagar onde estão. Sua principal ocupação
é o dinheiro, sem limites na aquisição, embora dele não careçam
porque têm a existência assegurada; ou ainda quando o despen-
dem nas mil futilidades supérfluas em que dissipam sua existên-
cia. Uns, incessantemente premidos pelas necessidades da vida
material, trabalham constantemente, sem ter tempo para pensar;
outros, mais privilegiados na aparência, não são mais intelectu-
ais. Ninguém procura esclarecer o espírito, instruir-se a respeito
do Universo e da Criação. Estão satisfeitos com a sua ignorância
nativa, da qual saem por exceção. Suas impressões se limitam à
superfície, e os escritores mais populares são os que narram em
estilo imaginoso às funções do estômago e do ventre. Do cére-
bro, nada. A arte, o teatro e o romance não são inspirados por
ideal algum. O povo mais espiritual da Terra escuta e aplaude
canções tão idiotas quanto grosseiras. A matéria espessa e pesada
domina tudo.”
Eis o que leu com os seus próprios olhos, e sentia ser verda-
de. A Humanidade se lhe mostrava bem diferente do que lhe
parecia até então.
“A Humanidade – acrescentava o “Solitário” – não tem mais
do que um lustro de idade. Certamente não atingiu ainda a da
razão, que, na criança, desperta geralmente aos sete. E como já
tem mais de dez mil séculos, é altamente provável que só atinja o
seu apogeu intelectual dentro de muitos milhões.
“O papel do pensador é o de precedê-la. As almas que pen-
sam são raras e formam uma exceção de elite, cuja felicidade
consiste na pesquisa pura da Verdade e no desinteresse pelas
paixões grosseiras e pelas vaidades do mundo. O sentimento
religioso existe no fundo dessa indagação da Verdade. Mas Deus
pressentido pelo pensamento é um Ser transcendente, sublime e
inidentificável, tão acima da nossa faculdade de compreensão
quanto o infinito está acima do finito. O homem inventou um
deus antropomorfo.
Mon Dieu n'est pas le tien et je m'en glorifie.
J'en adore un plus grand que tu ne comprends pas!
(Meu Deus não é o teu; disso me glorifico.
Adoro um Deus maior que não compreendes.)
“O Espírito reina tão pouco na Humanidade, que ela só acre-
dita nas aparências. Não há muito tempo, todos os habitantes da
Terra pensavam habitar uma superfície plana fixada na base do
Céu e suportando o Universo. Para eles, a Terra é tudo, o Céu,
nada.
“Igualmente, acreditam na matéria visível. Para eles um bloco
de ferro é sólido, embora seja composto de moléculas invisíveis
e impalpáveis, que não se tocam; ignoram que o agente essencial
do Universo é a força e não a matéria. A gravitação universal
que sustenta os mundos no Espaço é invisível e imponderável; se
a suprimirmos na concepção, o movimento do Universo deter-se-
á e a vida desaparecerá.
“O que eles denominam o mundo visível é, aliás, um quase
contra-senso. Na multidão de raios que o Sol envia à Terra,
apenas um sobre cem se torna acessível à nossa retina e faz
vibrar nosso nervo óptico. Uns vibram muito rapidamente, outros
muito lentamente e o que vemos é um quase nada em relação ao
que existe. Entretanto, os nossos literatos e filósofos falam
dessas impressões incompletas e relativas qual se elas represen-
tassem o absoluto.
“Assim também com relação ao corpo humano. Vêem nele o
que a Anatomia e a Fisiologia permitem conhecer, e não perce-
bem que esse conjunto de tecidos não constitui o ser humano. A
Alma é invisível. As forças com que a Alma age sobre o corpo e
o mundo exterior é invisível. Procura-se explicar tudo pelo corpo
visível e suas funções, e não se obtém nenhum resultado satisfa-
tório. Daí as incompetências e as cegueiras das ciências denomi-
nadas positivas, em referência a tudo que pertence à ordem
psíquica, que é, no entanto, tudo de essencial no homem.
“Começamos a reconhecer o erro das aparências. É tempo de
nos ocuparmos com a realidade. É a nova era da Ciência que se
abre agora ante nosso horizonte ampliado. Vimos de nascer à
alvorada de um novo dia. Abramos nossas asas. Voemos na luz e
no infinito!”
Estela prosseguiu lendo. Quer se trate das mulheres, dos reis
ou do povo, para impor-se é mister agradar. E esse autor lhe
agradava, pela originalidade, pela independência. Sentia-se, pela
sua própria natureza, inclinada às curiosidades intelectuais, e se
por vezes se perdera, em tempos anteriores, nas nuvens do
misticismo, fora por ter acreditado na autenticidade da revelação
cristã. Começava a sentir agora que, se essa revelação muito se
aproximara da verdade, contudo não a continha, nas ficções
encantadoras do paraíso terrestre – esse elegante símbolo de um
período da história oriental. Apegou-se à leitura da segunda obra
com o sentimento de que, longe de lhe ser proibida, essa curiosi-
dade era uma obrigação para o adiantamento de seu Espírito. A
raça humana pareceu-lhe realmente infantil e pouco intelectual.
Sentia-se acima das vulgaridades universais pelo desprendimento
espiritual e pelo seu anseio de saber. Leu avidamente os diversos
capítulos, e chegou ao que era de algum modo a conclusão e
trazia por título: “A Libertação do Pensamento pela Astrono-
mia”.
O autor mostrava a Terra como ilha perdida no infinito. Mirí-
ades de mundos se balançavam no Espaço, uns habitados atual-
mente por Humanidades análogas à nossa; outros por espécies
inferiores: larvas, elementos rudimentares, monstros, animais,
embriões do pensamento; ainda outros por seres tão superiores
ao homem e à mulher terrestres quanto nós o somos aos peixes
do mar ou aos moluscos inconscientes; outros mais, outros
povoados, hoje desertos, cemitérios de Humanidades extintas;
outros, enfim, em preparativos para as glórias do porvir. Com-
preendia-se assim que o nosso pequeno e medíocre planeta não
passa de um átomo na imensidade, e que a nossa existência atual
representa um segundo na hora da eternidade. Os mundos suce-
dendo mundos, os espaços aos espaços, em todas as direções, por
toda parte aonde era possível dirigir um olhar, sem fim em
qualquer sentido.
O centro desse infinito estava em toda parte e a circunferên-
cia em parte alguma. Sobre a Terra ou em Sírio, estava-se no
centro. Era possível avançar em linha reta em uma direção
qualquer, com a velocidade do relâmpago, e viajar com essa
velocidade durante dez mil séculos, sem mudar de lugar, sem
adiantar um passo, sem se aproximar de forma alguma de limites
que não existem. Um telegrama enviado hoje, para as fronteiras
do Espaço, jamais chegaria. E então, sobre essa pequena Terra,
ilha gigante nos raios do nosso Sol, cada um se sente como que
perdido, abandonado.
Emocionada por esse peso de infinito que lhe pesava sobre o
coração, Estela abriu a janela que dava para os castanheiros de
um grande parque. O ar estava fresco e perfumado; a noite
silenciosa, nesse quarteirão deserto. A Lua, em quarto crescente,
flutuava qual pequenina barca luminosa, sobre os vapores do
horizonte ocidental, vagamente iluminado pelas luzes de Paris;
Vênus e Júpiter brilhavam na constelação dos Gêmeos, acima de
Castor e Pólux, e as quatro estrelas de Leão pareciam no seu
alinhamento mostrar ao longe, a leste, a aresta da Virgem, por
cima da qual brilhavam Arctúrus, a constelação e as pequenas
estrelas da Coroa boreal. As estrelas mais resplandecentes cinti-
lavam bonançosas e atraíam o olhar e o pensamento.
Com os cotovelos apoiados à janela, contemplou-as, identifi-
cando-as pelos nomes, e sua imaginação voou até elas. A beleza
da noite, a calma atmosférica, os lumes do céu, a imensidade do
Espaço, transportaram seu pensamento às altas regiões que
acabara de visitar na sua leitura. Paris que dormia, os edifícios
dos quais se notava algumas cúpulas escuras, a torre quadrada do
Convento dos Pássaros, as próprias igrejas, tudo lhe parecia
coisas inferiores, terrestres e humanas. O mistério do céu estre-
lado arrebatou sua alma, qual um sonho divino. E pela primeira
vez sentiu que a verdade pairava lá, em cima; que ninguém a
encontrou cá em baixo; que as religiões são tentativas incomple-
tas, e que se uma dentre elas pretendesse confiscar o Deus – das
estrelas, seria vítima de infantil puerilidade.
Sentiu então sua alma expandir-se verdadeiramente e elevar-
se no espaço, rumo das culminâncias puras do éter, e pareceu-lhe
receber um novo batismo, que se tornava iniciante de uma reli-
gião nova – que não tinha nada de terreno, e, ainda, que planava
nas regiões sublimes em que brilhavam as estrelas gêmeas de
Castor e Pólux. Depois, experimentou a sensação de estar só no
mundo; de que o Universo era demasiado imenso; de que o
silêncio da noite estrelada era apavorante; de que Deus, inacessí-
vel, a abandonara. Ao entusiasmo e à contemplação do céu
estrelado sucedeu a emoção de uma imensidade, grande demais
para suportar, e foi invadida por uma profunda melancolia. E
porque continuasse a contemplar as estrelas, seus olhos se vela-
ram de lágrimas. E permaneceu muito tempo assim, de cotovelos
apoiados à janela. E, quando se retirou, o crescente, bem tomba-
do para a direita, já desaparecia atrás das árvores e continuava a
descer na noite, levada no inexorável movimento dos astros e das
coisas.
VII
Período de transição

A Condessa de Noirmoutiers recebia todas as quartas-feiras, à


noite, e havia três meses que o Duque de Jumièges não faltava a
uma só dessas reuniões, ora mundanas e brilhantes, ora simples e
restritas. Cada visita sua era precedida por um ramalhete do mais
fino gosto, formado das mais raras flores, e, embora a formosa
Estela ainda se não houvesse pronunciado, parecia que só faltava
fixar a data do casamento. As famílias estavam de acordo. Nas
noites de baile, os dois jovens só dançavam um com o outro. Nas
reuniões íntimas, Jumièges jogava assiduamente sua partida de
xadrez com o conde, e conversava-se em camaradagem sobre as
últimas indiscrições da sociedade parisiense. O duque estava ao
corrente de tudo, sabia tudo e tudo podia narrar. Não faltava a
uma estréia teatral, e conhecia minuciosamente todas as peças
em moda, das quais fazia a crítica imediata. Com freqüência
escolhido para árbitro de certas querelas, havia sido testemunha
em três duelos desde o início daquele ano. A largura de sua
gravata e o comprimento do cordão de seu monóculo eram
tomados por padrão do que convinha adotar pela gente distinta.
Isso chegou a tal ponto que, por ter em dia de chuva dobrado
para cima a bainha da calça, embora pouco andasse a pé, todos
os seus jovens amigos do clube começaram a fazer outro tanto,
mesmo nos dias de bom tempo, e não era raro encontrá-los assim
em pleno salão, em conseqüência de um esquecimento que, aliás,
parecia se ter também tornado moda. Nos cafés-concertos não
havia canção nova que não fosse conhecida, apreciada e citada a
propósito por esse mundano universal que, não fazendo coisa
alguma, não dispunha de um instante de liberdade. A maior parte
de seu tempo era tomada por visitas; todas as suas horas perten-
ciam às exigências desse mundo elegante, de que se ufanava,
com razão, de ser o representante mais completo.
Nessa noite não havia além de trinta pessoas no salão, e o du-
que sustentava com muita correção o dedal da conversa. Falava
das últimas canções ouvidas e divertia-se analisando com muito
espírito. Porém, sob essa mentalidade mundana de convenção e
sob essa aparente correção, Estela notou de novo falhas e vácuos.
Pareceu-lhe que tais opiniões não passavam de belas frases.
Nada exprimiam. Bolhas de sabão que uma ponta de alfinete fura
e faz desvanecer. Ouvindo-o, feria-a também a vulgaridade das
idéias: nenhum sentimento intelectual ou estético. Quando
muito, algumas sensações superficiais e assaz obtusas. Estela não
conhecia a literatura “naturalista” contemporânea; mas, nessas
conversações de salão, recebia uma impressão que a feria, sem
que o percebesse nitidamente. Não se tomavam, aliás, precau-
ções para narrar os últimos sucessos do teatro ou do romance.
Estela ficou admirada desse gosto predominante pelas coisas
abjetas e néscias.
Falava-se um pouco de tudo. Um brilhante oficial, o Capitão
Lomond, criticou certas obras literárias, recentemente apareci-
das, e elogiou outras. Mas a discussão começou a animar-se; a
condessa pediu um pouco de música.
Os primeiros trechos foram ouvidos sem entusiasmo e em
ambiente de distração generalizada, embora tivesse o violino
estreante o talento de Sivori. Porém, a seguir, o duo de “Mi-
reillle”, maravilhosamente cantado com ternura e paixão, cativou
todas as opiniões, e o pequeno auditório pareceu esquecer, pela
harmonia, as discussões literárias que o dividira momentos antes.
Contudo, a própria música não podia passar de um intermé-
dio, e não tardou que as conversações fossem reiniciadas. Estela
acabara de acompanhar ao piano a ideal e deliciosa serenata de
“Don Juan”, muito agradavelmente cantada por sua amiga Cecí-
lia, e, sentada ao piano, ficara conversando a meia voz com ela,
enquanto se reatava a palestra entre seu tio, o duque e o oficial.
Embora falando, ela escutava, “com um ouvido”, essa conversa-
ção entre homens, e certamente nenhum dos três interlocutores
imaginava estar sendo escutado por uma mulher, e muito menos
por uma donzela.
– Sim, sustentava o oficial, é a literatura nova, fim de século,
como se diz; são o romance e o teatro novos, progresso literário
ao qual ainda não estamos mais afeitos do que à música de
Wagner. Mas não se pode negar que haja em tudo isso uma
evolução radical. Não apreciamos mais o “xarope de orchata” de
Lamartine e Gounod, nem os Cupidos róseos e nus dos quadros
de Bouguereau.
– Também aprecio a força e a virilidade, respondeu o senhor
de Noirmoutiers. Não obstante, sou de opinião de que o escritor
de quem ora falais não devia deleitar-se tanto no esterco. Se
encontrais uma imundice na rua, vós vos desviais logo, e não
meteis os pés nela. Porque meter nisso o nariz?
– Porque é real. Existe qual o resto. Uma pintura verdadeira
deve mostrar tudo.
– Vejamos. Folheando esses livros que os senhores citam a
todo momento, não se chega à página trinta sem encontrar a
palavra “porco”.
– E o povo não emprega correntemente essa expressão em su-
as discussões e até em suas conversações?
– As pessoas grosseiras, em que vos podem elas interessar?
Então o vosso amigo é um fotógrafo e um fonógrafo?
– Isso nem sempre o torna um pornógrafo.
– Henrique o chamava, há dias, pornógrafo; mas, desconhe-
cendo o grego, usam muitos desses barbarismos.
– Sou da opinião do capitão, replicou o duque. Um autor deve
fazer as suas personagens falarem a linguagem que lhes é peculi-
ar. Por que os historiadores de Waterloo só ousaram repetir a
expressão de Cambrone depois que Victor Hugo a empregou em
“Os Miseráveis”?
– A trivialidade não é necessária para desenhar caracteres,
ainda os mais grosseiros. Vede Balzac.
– Outros tempos, outra linguagem, retrucou o oficial. Preci-
samos hoje justamente de palavras que impressionem os burgue-
ses, e que os firam, acrescentarei eu. Sem isso, eles nunca lerão.
Sabeis bem que, em geral, o burguês não passa de um pateta.
– E os outros, os rastacueras, os Peruvianos, e o resto? Vejam
o teatro! continuou o duque.
– Sim, fui com a condessa ver as três últimas peças. Pois
bem, para falar nova língua francesa, não encontro, com efeito,
senão uma expressão suficientemente adequada, e ousarei dizer,
para estar mais à altura da vossa linguagem: é sendeiro, ou, se
preferis: porcaria. É linda a vossa evolução literária!
– Não existe para as ditas peças nem um bilhete de entrada
disponível. Veja-se bem que é o gosto atual. 500.000 francos de
receita!
– Meu caro duque, pode-se ter 100.000 francos de êxito, sem
se ter dois centavos de valor real. Quanto ao gosto da maioria, eu
o nego. Não está aí, nunca estará aí o gosto francês. Vai-se lá,
como se lê, por mera curiosidade. Os franceses apreciam a finura
das idéias, a delicadeza das sensações, a alegria, um pouco de
“sal” chistoso, se assim querem, como diziam nossos pais, os
requintes, os contos de Lafontaine, as histórias galantes de
Bocácio ou da Rainha de Navarra, as gravuras de Fragonard e
Moreau, tudo o que quiserem, mas não apreciam a indecência,
mormente a licenciosidade sem espírito, nem a estimarão jamais.
Esses livros e essas peças teatrais nos criam uma bem falsa
reputação no estrangeiro. Não se podem ver sem tristeza esses
folhetins de jornais, essa literatura rasteira, porque a moral de
um povo depende muito da qualidade do que lê.
– Oh! Meu caro conde, não está mais no “Lago” e na “Tarde”
ou em “A Graça de Deus”. Não se segue mais, agora.
Nas ondas do ar
O carro da Noite que avança!
O amor não é um sonho. Nós evolvemos, desde há meio sécu-
lo. É o progresso.
– Os jovens, meu caro duque, não olham muito longe no pas-
sado; acreditam que o mundo recomeça com eles. Já fui assim
também; mas, agora, sei que não fazemos senão continuar.
Vossos autores “naturalistas” não parecem desconfiar de que
reeditam, bem menos originalmente, o nosso velho Rabelais, e
ressuscitam Aristófanes. Nada de novo debaixo do Sol. Recon-
duzem-nos há mais de 20 séculos para trás.
E a isso chamais progresso? Estranho erro. É igual ao dos
vossos pintores que vêem em tudo a cor violeta. Questão de
retina. Daltonismo. Os jovens acreditam renovar a face da Terra;
os velhos se lamentam de uma decadência imaginária; por mim,
acredito no progresso, vejo em sua rota caminhos onde o carro se
atola. A memória humana é curta. Cada século imagina que a sua
luta é a mais importante de todas. Sempre houve realistas. Acre-
dite-me, o único e verdadeiro progresso é o da Ciência. A litera-
tura e a arte são formas mutáveis; não é nelas que se deve procu-
rar uma ascese. Chamai-me Fídias, se quiserdes. Prefiro essa
modalidade de injúria às incongruências nauseantes desse gros-
seiro camponês a quem um de vossos autores favoritos achou de
bom gosto dar o nome de Jesus-Cristo.
– Então, senhor conde! Replicou o capitão. É um velho gêne-
ro, eis tudo. Não digo que no século XX não se retorne a imita-
ções de ordem coríntia, e a Homero; retorna-se a Napoleão, tão
vilipendiado há vinte ou trinta anos. Porém, os autores da nova
escola não rebuscam perífrases. É o pintor Manet plagiado. Há
pouco eu lia um capítulo bem traçado, e fiquei nesta frase,
quando me foram buscar: Nini recusou o lugar no atelier, por
isso que “sua vizinha destapava gargalos de garrafas”. Não
achais este modo de dizer completamente expressivo?
– Como dissestes? Inquiriu o conde.
O oficial repetiu a frase, mas os dois interlocutores confessa-
ram não compreender, e pediram explicação do sentido.
– Ah! é o que se chama “esvaziar o gargalo”. É efetivamente
esquisito, disse o conde.
– Aprovo esse gênero; Bernardin de Saint Pierre e Chateau-
briand estão longe de nós, acrescentou o duque. É um grande
erro imaginar que a Humanidade atual tenha necessidade do
ideal: ela tem outra coisa em mente. Vede, no fundo, o misticis-
mo e o idealismo: é afetação, é a corrida ao Além, um gênero de
desporte igual a outro qualquer. Ninguém acredita nisso, nin-
guém necessita disso. Viva o realismo! É só o que existe de
verdadeiro!
– Entretanto, vede todas essas jovens encantadoras. Acredi-
tais que elas não sonhem um pouco? O primeiro que souber
prender a mais interessante de todas, acrescentou o oficial,
designando Estela com o olhar, não deve ser muito brusco.
– O primeiro, o primeiro... replicou o duque, virando costas
ao conde. Com as jovens, sabem-se lá a quantos se anda?
Ouviu-se um golpe de notas no piano, e Estela anunciou um
trecho a quatro mãos, com Cecília.
– A propósito de novidade, retornou o duque, ouviu a última
canção do Alcáçar? Meu caro, é um furor!
– Não, replicou o capitão. Há uma eternidade que não ponho
lá os pés.
– Ouça a última oitava dos versos. Esquecia-me de dizer que
se trata de um jovem que quis seduzir certa rapariga, irmã de um
seu amigo.
E o duque recitou os versos de uma cançoneta em estilo de
gíria, toda cheia de frases equívocas:
Espéc’ de sal’ goulu
D’ vieux mann’ quin d’étalage
Il parait qu’ t’as voulu
Lui prendre son... heritage!
Une bonne volé t’attend.
Ne crains pas qu’elle se perde.
Ma soeur m’ prie nonobstant
De te dire qu’ elle...
– Hein? Aí está a verdadeira literatura realista. Que pensais?
– Não se suspeitaria, replicou o conde, que a França produziu
Molière, La Bruyère, Lafontaine, Voltaire, Beaumarchais, Cré-
billon, Chamfort e alguns outros escritores delicados que sabiam
associar o espírito à alegria. Também os há entre os modernos e
os nossos contemporâneos. Pois bem, continuo a pensar que o
valor de um povo reside em suas elites e não em seus varredores
de esgoto.
Estela e Cecília iniciaram seu trecho a quatro mãos. Os três
interlocutores retomaram seus lugares, próximo do aquecedor.
– Viu o novo cavalo do circo? Disse o duque. É uma maravi-
lha. Olga o monta com uma elegância admirável e chegou a fazê-
la valsar ao som de um trecho da valsa “O Beijo”. Ficamos
boquiabertos. É um encanto. Uma elegância de formas extraor-
dinária. Dança, faz trejeitos, cumprimenta, cai morto. Ide ver
isso na sexta-feira.
– E a Praça Blanche?
– Não vou mais de uma vez por semana ao “Chat Noir” e ao
“Moulin Rouge”.
– Nunca me veio à idéia de dar uma volta por esse quarteirão,
interveio o conde.
– Contudo, é bastante divertido, acrescentou o oficial. “Grille
d'Egout” é deliciosa.
– Que vem a ser isso? Perguntou a Senhora de Noirmoutiers.
É uma jumenta?
– Não. Uma senhorita que dança de um modo um tanto des-
cabelado e cujas pernas rivalizam em contorções fantásticas com
as de sua amiga “a comilona”. São incomparáveis para um
grande jogo de cena e caem completamente estateladas no chão,
sem se machucarem. Temos também Nini, “pata no ar”.
– A propósito. Sabem que fim levou o Príncipe Léonou?
– Eclipse total. Crivada de dívidas. Conselho judiciário.
– Com cem mil libras de rendimento!
– Gastava duzentas mil. Um dia desses, tomou emprestado
vinte cinco luíses.
– Minha senhora, foi à Exposição do Império?
– Certamente, sim, muito nos interessou, embora na realidade
tivesse poucas coisas. Foi uma grande época! Suas menores
recordações nos comovem profundamente. Mostraram-me lá um
sabre do General Morland. Será autêntica a história do tonel de
rum?
– Tudo quanto há de mais verdadeiro. Quando ele foi morto
em Austerlitz, Napoleão mostrou-se muito sentido e ordenou que
seu corpo fosse transportado para Paris; mas os cirurgiões, nada
tendo do que era necessário para embalsamá-la, encerraram-no
em um tonel de rum, que foi esquecido em uma adega da Escola
de Medicina até 1814. O corpo foi encontrado em perfeita con-
servação, porém o rum fez crescer os bigodes de um modo tão
extraordinário que caíam abaixo da cintura.
– E que se fez com o rum?
– A crônica pretende que os ajudantes dos enfermeiros o be-
beram.
– A marquesa é toda entusiasta do Império, continuou a Sra.
de Noirmoutiers. Renovou todos os móveis do salão e só usa
toaletes de 1810. Não pudemos ir à sua última reunião. Parece
que foi das mais animadas.
– Principalmente no fim, informou o capitão. Foram cantadas
as últimas canções.
– É o que nos disseram ontem. Parece que o senhor não se
aborreceu de todo.
– Oh! Isso nada tem de extraordinário. Apenas rir. Houve
uma canção, bisada, tendo por assunto uma recém-casada que
falava das vestes íntimas.2 O que mais divertiu foi o fato de essa
canção terminar com um bailado bastante ligeiro, lembrando
uma célebre quadrilha das damas da Corte de Compienha, e ter a
encantadora mulherzinha, em seu movimento final, feito cair
sobre uma das orelhas a coroa de flores de laranjeira. Depois
agraciaram-nos com duas canções cacetes.
– Pois bem, disse o conde, se realmente, como se diz, a litera-
tura fosse a expressão da sociedade, isso seria para desesperar da
França.
– Foi em algum café-concerto que viu esse espetáculo?
– Absolutamente; foi em um sarau da marquesa. Estávamos
sentados atrás de oito filas de senhoras muito decotadas. Um
verdadeiro ramalhete. Entretanto, meu vizinho observou-me que,
para alguns raros elegantes, grande número dessas damas tinham
costas bastante brutas.
– Ora essa! Costas brutas?
– Sim, largas, pesadas e sem estilo. Acrescentem-se os pente-
ados escorridos que não mostram ao menos uma ponta de orelha
algo espiritual.
– E todas essas canções são ditas diante de donzelas?
– Elas riem iguais a nós outros, e sabem muitas outras! Lite-
ratura popular é a que todo o mundo conhece.
– Confesso, pela minha parte, replicou o duque, que nem
sempre compreendo as obras-primas da nova literatura dos
senhores estetas sibilinos. Que significa isto, por exemplo?
Un ignoré vallon de vierges s’est assis
Que n’endeuille, l’elu! la saison sans sursis.3
E este soneto?
M’introduire dans ton histoire
C’est en héros effaurouché
S’il a du talon nu touché
Quelque gazon de territoire.
A des graciers attentatoire
Je ne sais le naïf pèché
Que tu n’auras pas empèché
De rire très haut sa victoire.
Dis si je ne suis pas joyeux
Tonnerre et rubis aux moyeux
De voir em l’air que ce feu troue
Avec des royaumes épars
Comme mourir pourpre la roue
De seul vespéral de mes chars? 4
O conde deu um salto da poltrona, qual se fosse acionado por
oculta mola, exclamando.
– Quem praticou semelhante mistificação?
– Estevão Bienarmé.
– Muito bem. Voto para que seja condecorado e para que se
lhe encadernem os livros com uma porção de fechos invioláveis.
Quando quiser ler um poeta, escolherei na minha biblioteca
Hugo, Mussuet, Byron, Leconte de Lisle, Prudhomme ou Copée.
Vale por uma confissão de que prefiro a incoerência e a divaga-
ção às licenciosidades imundas.
Essa reunião em casa da Condessa de Noirmoutiers indica, e
assim as precedentes, o meio em que Estela vivia; bolhas de
sabão, fumos, banalidades. Estela saía muitas vezes completa-
mente desiludida dessas reuniões, que pretendiam tornar-se
divertidas. A ignorância desses jovens mundanos ociosos, a de
seu noivo em particular, e sua indiferença por todas as curiosida-
des da Natureza e da Ciência, eram para ela um primeiro motivo
de desapontamento, que se agravava e lhe causava uma espécie
de humilhação, toda vez que para isso se apresentava uma opor-
tunidade. Em circunstâncias várias, foi levada às mesmas refle-
xões, observando todos esses brilhantes jovens que a rodeavam.
Não sabiam coisa alguma, não se preocupavam de coisa alguma,
estavam satisfeitos com a sua nulidade intelectual.
Por um belo entardecer de fins de março, após um passeio pe-
lo bosque Saint-Germain, voltavam em “break” o conde, a
sobrinha e toda a alegre companhia. A noite começara a cair
gradativamente antes do retorno a Paris. As estrelas já brilhavam
em vivas claridades e era possível admirar no céu, do lado do
poente, um clarão que se levantava obliquamente do ponto em
que o Sol desaparecera e terminava em seta a uma grande altura.
Essa claridade, de aspecto estelar, era muito suave e tranqüila, e
parecia formada para além das estrelas. Estela, que a contempla-
va desde que a noite tombara, chamou para ela a atenção de suas
amigas e de toda a alegre caravana. Procurava informar-se,
indagando como se denominava essa luz, o que era, se estava
longe da Terra, pensando em voz alta, por assim dizer. Ninguém
soubera responder. Apenas um deles se lembrara de dizer que era
a Via-Láctea. Constatou-se, entretanto, um pouco mais tarde, que
tal não era, pois a Via-Láctea desdobrava em outra direção,
enquanto que a primeira claridade se extinguia gradativamente.
Somente na manhã seguinte, durante a primeira refeição, é que
ela soube, pelo tio, que sé tratava da luz zodiacal.
E embora nessa luz, no vértice e nas proximidades, cintilantes
estrelas ou planetas atraíssem o olhar, ninguém, de todo o fino e
elegante grupo mundano, ninguém soubera dar o nome de um só
desses astros, ninguém pudera responder seriamente a qualquer
das perguntas feitas. Era evidente que nenhum deles jamais as
vira, nunca elevara seu pensamento até lá; em tempo algum
procurara saber o nome desses astros que brilham constantemen-
te sobre nossas cabeças.
Adriana, que lhe estava ao lado, não ocultou seu grande es-
panto com as indagações de Estela. “A Astronomia – disse – a
quem pode interessar? Aos loucos! Olha, não sei sequer o que
seja a Ursa Maior... Nisso ou naquilo me é indiferente!”
Em outro dia, ouvira uma espécie de profissão de fé feita por
seu noivo a um dos amigos íntimos. Certo artigo da “Revista dos
Dois Mundos”, de autoria de Renan, era objeto de momentânea
discussão e o duque concluíra sua resposta com estas palavras:
“No fim de contas, a verdadeira filosofia está no rir de tudo e de
todos.” – no momento exato em que a jovem sonhadora entrava
no salão. Ouvira apenas essa frase, porém às vezes uma só
palavra ensina mais do que um longo discurso. Nunca sentira
tanto a banalidade da vida mundana, a nulidade das pessoas
desocupadas, o vácuo de suas conversações, a estreiteza do
quadro dentro do qual se movem suas idéias, a pouca extensão
do horizonte habitual desses liliputianos, a grosseria de suas
sensações. Nenhum ideal. Nenhuma grandeza. Cegueira intelec-
tual. As conversações desses homens e dessas mulheres mostra-
vam que tomavam grãos de areia por montanhas. Concepções de
formigas. Parecia-lhe, lendo os livros agora seus preferidos, sair
de um calabouço e respirar o ar e a liberdade dos grandes planal-
tos. Era realmente um mundo novo que se desdobrava diante
dela.
Como podiam tantos seres inteligentes viver sem exercitar a
inteligência, sem nada aprender, sem outra leitura que a de
frivolidade, sem biblioteca? Era um problema para Estela. Nota-
ra, pela primeira vez, que os apartamentos não têm biblioteca,
apesar de entulhados de numerosos móveis inúteis.
Porque seu tio só jurava pelo “Solitário” e recorria sempre
aos seus escritos para a solução de todos os enigmas, Estela
acabou um dia por lhe dizer:
– Mas, quem é esse “Solitário”? Seus livros são encontrados
em todas as mãos e ninguém jamais o viu. Não reside em Paris?
– Provavelmente não. Nunca ouvi falar da sua pessoa.
– Contudo, deve existir, viver em alguma parte. Nunca se vê
seu retrato, entre os autores contemporâneos, dos quais é, sem
contradita, o mais célebre. Encontrei citações suas em numerosos
jornais estrangeiros, tanto entre amigos nossos do Brasil, quanto
entre ingleses, americanos e russos.
– Talvez não resida na França.
– Entretanto, seu estilo é bem francês.
– Talvez tenha morrido.
– Seu último livro data de seis meses. Onde compra esses li-
vros?
– Nas livrarias.
– Não seria possível, em uma delas, conhecer o seu endereço?
Estimaria muito obter um autógrafo traçado pela mão do seu
autor favorito, meu tiozinho.
– Com o editor, talvez. Mas, que curiosidade! Em que te pode
interessar a sua pessoa? É muito provável que nunca tenhas
ocasião de encontrá-lo. E depois, vós, as mulheres, sois, muitas
vezes, bizarras.
– Será ele da Academia?
– Certamente não. No primeiro século de existência da Aca-
demia Francesa houve três grandes homens em França, univer-
salmente célebres: Descartes, o poderoso filósofo; Pascal, o
imortal pensador; e Molière, o mestre do Teatro. Essas três
glórias sem rival foram esquecidas, todas três, pelos fundadores
do cenáculo.
– Será deputado ou senador?
– Menos ainda. Vejamos, reflete: por que queres que seja “al-
guma coisa” sendo “alguém”? Não vais perguntar-me agora se é
jovem, velho, alto, baixo ou condecorado? Academias e conde-
corações não são pueris infantilidades? Minha querida, mete na
cabeça que um autor é um autor, um sábio é um sábio, um poeta
é um poeta, e que, se realmente tem valor pessoal, ele trabalha e
ignora as ambições mundanas. Fala à Humanidade e aos séculos.
Não é um bom burguês, um cidadão do meio social. Pode estar
morto ou vivo, pouco importa. E, depois, queres que te confesse?
Todos os grandes homens, sem exceção, perdem muito, quando
vistos de perto.
Em minha opinião, deve ser um urso, um selvagem, um drui-
da das florestas gaulesas. Não te desejaria que o visses entrar em
um salão: nem ao menos saberia atravessá-lo. Terias a mais
bonita desilusão que se possa imaginar. Certamente não sabe
dançar, mexericar, patinar, namorar, nem montar a cavalo ou em
bicicleta. Faria triste figura ao lado dos teus elegantes e seria dos
mais desajeitados para dirigir um “cotillon”. Lê seus livros para
maior bem do teu espírito, admira o pensador, mas não procures
o homem.
O tio e a sobrinha com freqüência conversavam assim, entre
eles, sobre o seu autor favorito. Haviam adotado as opiniões dele
sobre os homens e as coisas, serviam-se de expressões peculiares
com as quais caracterizavam a civilização moderna, entendiam-
se em meia-palavra, pensavam ao modo dele, falavam à maneira
dele. Seus livros tornaram-se a sua sociedade intelectual e íntima
tão exclusiva que, em uma viagem feita no verão seguinte,
verificaram que a metade das obras do “Solitário” estava na
maleta do tio e a outra metade na mala da sobrinha. Tal qual ele,
sentiam que a Ciência é a soberana do mundo, que por ela e nela
se deve viver e que ela não deve ser estranha à direção das
consciências. Esse apóstolo da Ciência se tornara em amigo de
seus espíritos e quase de seus corações.
VIII
Os Pirineus

Essas leituras, esses devaneios, essas pesquisas, essas lutas


com a sua consciência, essa agitação interior, fatigaram Estela
um pouco, certamente muito mais do que as reuniões noturnas ou
os jantares da última estação. Seus olhos eram menos vivazes,
seu semblante perdera o brilho, seu andar se tornara quase lân-
guido. Chegara o mês de junho. Os salões de pintura iam fechar
suas portas; já havia corrido o Grande Prêmio; falava-se diaria-
mente em projetos de viagem e vacilava-se entre Dieppe, a Suíça
e os Pirineus, quando o convite de uma família, ligada de longa
data com a do Conde de Noirmoutiers, a família de Castelvieil,
chegou à Rua Vaneau, pedindo-lhes irem passar algumas sema-
nas nas montanhas de Bagnères-de-Luchon. O solar de Castelvi-
eil há muito tempo era apenas um torreão em ruínas, porém fora
construído, quase em frente, sobre a outra vertente ao vale de
Burbe, pequeno castelo moderno, junto de verde floresta e
banhado por um curso d'água que surgia de antro selvagem e,
depois de atravessar o parque, tombava em cascata no fundo de
um barranco. A senhora de Castelvieil convidava seus amigos
para repousarem das fadigas de Paris na frescura das montanhas.
O local oferecia um encanto particular que, dizia ela, devia ser
muito apreciado pelos parisienses. É que, se se desejasse reen-
contrar um aspecto de vida mundana para amenizar a solidão,
bastava, à tarde, descer até ao cassino de Luchon, ouvir música
do quinteto, dar uma volta pelas lojas floridas das aléias de
Etigny. Quanto aos banhos, era fácil tomá-los todos os dias e a
qualquer hora. Depois, minuciou as encantadoras excursões a
fazer em todos os arredores, à fonte do Amor, à alameda dos
Suspiros, ao vale de Lys, à cascata do Inferno, à ponte Nadié, à
cascata do Coração, ao lago ao vale do Arboust, à cascata das
Moças, e descrevia com entusiasmo a beleza das montanhas, o
suave ruído das quedas d'água, o frescor dos bosques, o verdor
dos prados, a atmosfera sã e perfumada desses imensos campos e
as vistas admiráveis que ali se encontrasse a cada passo. Acres-
centava que, se a senhorita d'Ossian gostava de passeios a cava-
lo, só teria embaraços para escolher entre as ascensões possíveis
de se fazer em todos esses sítios dos Pirineus.
Não houve dificuldade na decisão, e, antes que junho termi-
nasse, o trio da Rua Vaneau se instalava num vagão do rápido
que conduz ao Pirineus. Foi uma encantadora viagem de colegi-
ais em férias; tudo foi esquecido, as diversões de Paris, e os
livros e a Filosofia. Era a primeira vez que Estela se afastava
para tão longe. O carro restaurante, diante do qual as paisagens
passavam e desapareciam vertiginosas, foi para ela a mais curio-
sa distração da viagem: as idéias que tanto a absorveram, nesses
últimos meses, desapareceram com a fumaça do trem e com as
rápidas imagens dos campos apenas entrevistas. Chegaram a
Bordéus, quase sem se aperceberem da distância percorrida, e ali
permaneceram dois dias. Visitaram, em seguida, Baiona e Biar-
riz, detiveram-se um dia em Pau, o dia seguinte em Lourdes, e
desceram em Luchon com a intenção de aí demorar alguns dias
antes de se instalarem no castelo. Porém, na manhã seguinte à
chegada, os Castelvieil vieram buscá-los.
O domínio ocupava, com efeito, uma posição maravilhosa
sobre a vertente da montanha, no meio de bosques e pastagens,
com uma vista muito ampla sobre o vale, para além do antigo
torreão. Encantadores passeios a pé, em carruagem ou a cavalo,
permitiam excursionar alegremente pelas estradas e caminhos
que acompanham todos os cursos d'água, subindo o Pique, o
One, o Lys e seus numerosos afluentes. As excursões foram
iniciadas desde o dia seguinte. Visitaram a cascata Sidônia, a
igreja de Saint-Mamet, a cascata de Montauban, e fizeram a
volta de Luchon. Nos dias seguintes, afastaram-se até o vale de
Arboust, visitaram S. Aventino com a sua igreja do século XI,
Cazaux, Garro, o lago d’Oo, dominado pelo pico de Nero. E
assim continuou cada dia. Todos esses caminhos através do
maciço dos Pirineus são ao mesmo tempo pitorescos e graciosos.
Não são mais os grandes lagos da Suíça, nem as geleiras prodi-
giosas dos Alpes do Oberland; são menos vastos, menos altos,
mais densos de pinheiros; porém os vales por toda parte são mais
verdejantes, menos povoados de chalés ou de vilas, mais agres-
tes, mais desertos, mais arborizados, sulcados de ribeiros e por
quase toda parte animados, especialmente em junho, com o ruído
das quedas d'água e das cascatas. A cada dia surgiam novas
excursões, que em nada se pareciam às da véspera. Nesse ar vivo
das montanhas as caminhadas mais longas não fatigam, prepa-
ram um sono reparador, e a cada manhã, com o despontar do Sol,
cada um se dispõe para novas subidas e visitas a essas paisagens
encantadoras.
Havia já uma quinzena que viviam assim, em plena Natureza,
sem o mais leve pensamento de voltar ao cassino de Luchon, e
projetava-se uma “viagem de longo curso”, conforme a expres-
são do senhor de Castelvieil, a Arreau, Barèges, Luz, S. Salva-
dor, Gavarnie e Cauterets, quando, olhando o mapa, Estela
exclamou:
– Por que não irmos à Espanha? Parece-me que não é muito
longe.
– Até é muito perto daqui, replicou o senhor de Castelvieil, e,
indo até lá, não faríamos uma “viagem de longo curso”. Repa-
rem, é tão perto que, pelo caminho que ali está, disse aproximan-
do-se da janela e estendendo a mão para a esquerda, podemos
almoçar lá, o dia que quiserem, e voltar tranqüilamente para
jantar em casa.
– Em verdade! Exclamou Estela. Por que ainda não fizemos
isso? E onde podemos almoçar nessas condições?
– Em uma pequena cidade espanhola, pitoresca e bulhenta,
onde se pescam excelentes trutas. Acrescentarei mesmo que o
caminho até à crista dos Pirineus, a Portillon, é uma verdadeira
avenida de castelo, sombreada de árvores seculares de nossa
floresta de Houeil de Hourtino, e que, por um contraste quase
teatral, quando se chega à vertente espanhola, tem-se de repente
sob os olhos uma paisagem absolutamente diferente, o calor em
vez da brisa fresca, o vale de Aran em vez da nossa floresta
francesa, e subitamente, tal qual uma mudança de decoração, a
Espanha em vez da França. Embora contra a vontade de Luís
XIV e Napoleão, os Pirineus não são uma palavra vã.
– Oh! Vamos lá amanhã! – exclamou Esteta toda alegre, não
esperemos. Há muito que faz bom tempo, e se a chuva chega
adeus excursões!
A fronteira da Espanha não dista cinco quilômetros dos do-
mínios de Hourtino e a cidade de Bosot fica a três quilômetros
para além. Puseram-se a caminho às sete horas; a subida foi um
pouco lenta, porém a descida rápida. Às dez horas, chegaram ao
centro de uma população mesclada e barulhenta. Era dia de festa
e feira. Os sinos soavam; as praças estavam repletas de feirantes,
cavalos, muares, mercadorias; os albergues com os seus terraços
desbordantes de gente atarefada. As ruidosas exclamações da
língua espanhola se entrecruzavam através das buliçosas ruas; o
Sol dardejava seus raios de fogo sobre todas essas cores e toda
essa algazarra; o riacho cintilava com jovial cascateio sobre as
rochas do seu leito rápido. Era realmente um povo todo diferen-
te, uma Natureza inteiramente diversa, um outro mundo.
Enquanto fazia horas para o almoço, nossos excursionistas
foram visitar a velha igreja romana, e chegaram em meio a
missa, cantada em estilo misto e bizarro que nada tinha da gran-
deza do canto gregoriano. A turba de mulheres e homens estava
ajoelhada sobre as lajes. Detiveram-se próximo ao portal, para
não perturbar o ofício. Durante a elevação da hóstia, um menino
no coro, que se achava em uma tribuna junto ao órgão, fez girar
uma roda guarnecida de campainhas que tilintavam alegremente,
enquanto os fiéis se prosternavam até ao chão. Os raios de Sol
desciam em jactos oblíquos de luz através da pequena igreja e
vinha lançar tons variegados sobre toda a assistência. Fora,
ouvia-se o mugir dos bois, a zoada confusa dos mercadores, os
gritos das crianças, o latir dos cães, o canto repetido dos galos.
Uma antífona do ritual, sustentada pelo solo de um oficlide,
afinal abafou o conjunto.
Ao voltar para o albergue, não puderam, como teriam deseja-
do, encontrar mesa vaga no terraço, à beira do riacho: a estala-
gem estava repleta; mas, pelo calor ardente, pela luz ofuscante
que o Sol fazia cair em cheio, não lamentaram muito ser força-
dos a tomar lugares na sala comum, onde estavam sentados à
mesa cerca de cinqüenta mercadores, e terem de se contentar
com os pratos um pouco vulgares do cardápio do hotel.
Essas fisionomias crestadas pelo Sol e pelos ventos, esses
semblantes tão animados, os vaivéns atarantados dos servidores,
que não sabiam a qual chamado atender em primeiro, as iguarias
desconhecidas que lhes serviam, o vinho de Espanha, um tanto
pesado, que coloria os copos, toda essa variedade acrescentava à
excursão um imprevisto que divertia imensamente Estela, encan-
tada com a sua idéia desse passeio a um recanto da velha Ibéria.
A tarde foi preenchida com uma caminhada ao longo da mar-
gem esquerda do Garona, sob as grandes árvores que o margei-
am, e, quando voltaram ao carro que os esperava, já havia termi-
nado a feira, cessara o barulho das horas precedentes, e a peque-
na cidade espanhola parecia metamorfoseada em tranqüila aldeia
de província. Toda essa gente é madrugadora, e quando o pôr do
Sol se aproxima, tumultuoso movimento do dia se apazigua e se
extingue, à semelhança dos ninhos de pássaros.
Retomaram o caminho de França, para não chegar muito
avançada a noite, e a tempo também de aproveitar a brisa da
tarde. E porque os cavalos subiam a passo a estrada espanhola de
Portillon, nas proximidades do ponto mais elevado, que forma a
fronteira, Estela assinalou, para além de uma clareira, velha torre
que dominava o vasto e grandioso panorama do vale de Oran e
que, iluminada pelos raios do Sol poente, se destacava em ver-
melha sombra sobre a floresta. Interrogou o Barão de Castelvieil.
– É a Torre do “Solitário”, respondeu. É habitada por um fa-
moso original.
Esse nome – “Solitário” – sulcou o cérebro da jovem, qual
um relâmpago.
– O senhor disse a Torre do “Solitário” – repetiu. De que soli-
tário?
– Um filósofo, um astrônomo, um sonhador. Vive ali inteira-
mente isolado, entre o céu e a Terra. Sabe que estamos aqui a
1300 metros de altura? E veja, a sua torre ainda domina bastante
a eminência.
– O solitário! Repetiu por sua vez o Conde de Noirmoutiers.
Escute, não é um escritor, um autor? Não tem publicado vários
livros?
– “O Domínio do Desconhecido” – acrescentou vivamente
Estela –, “A Aurora do Novo Dia”, “Cosmos” e muitos outros...
– Justamente, é ele. Leu então essas obras, senhorita?
– Como! Exclamou Estela, o “Solitário” reside lá? Oh! Parem
a carruagem para que eu possa observar! É uma torre em ruínas!
exclamou.
– Sim, replicou o barão. Não se sabe verdadeiramente como
pode alguém morar ali, exposto a todos os ventos. E no inverno
não é nada divertido, senhorita; só se encontra neve... Entretanto,
esse filósofo instalou um observatório munido, dizem, de exce-
lentes instrumentos, e passa a vida estudando o céu.
Puseram-se novamente em caminho os excursionistas, con-
versando de mil coisas diversas, que a alma da sonhadora não
ouvia.
IX
Crítica e discussão

Na manhã seguinte, ao almoço, não houve nada mais imedia-


to para Estela do que falar sobre a excursão da véspera, sobre
Bosost, a vale de Oran, o Portillon e... a Torre do “Solitário”. O
Dr. Bernard, antigo interno de hospitais, médico do estabeleci-
mento termal, almoçava nesse dia no castelo. Era um conviva
alegre, de conversação muito agradável, excelente caçador,
céptico em tudo, até em Medicina, às vezes um pouco acerbo em
suas críticas aos homens e às coisas, nada idealista, de um posi-
tivismo seguro, não se enrodilhando em qualquer espécie de
admiração, exceto pela música de Wagner, pois era um melôma-
no, qual o é a maioria dos médicos, e julgava tudo com calma e
circunspeção. Também estava presente o vigário de Bagnères,
que freqüentava o castelo, e um comandante de Engenharia,
antigo aluno da Escola Politécnica, a quem denominavam o
Politecniano. A refeição no campo, à sombra dos altos arvore-
dos, não longe da fonte rumorejante em torno da qual cantavam
os pássaros, decorreu no meio de atraente e variada palestra.
Estela não conseguira, entretanto, apesar de mui hábil diploma-
cia, obter que se fosse, depois do café, dar um pequeno passeio a
pé, para os lados da Torre do “Solitário”, que, partindo de pe-
queno portão do parque, distava apenas meia hora do castelo. O
senhor e a senhora de Castelvieil tinham visto o sábio várias
vezes, é verdade, e teriam podido tentar a excursão; mas não
tinham desejo algum de fazê-lo, por acharem o caráter do “Soli-
tário” dos mais insociais. Além disso, acrescentaram eles, essa
visita não vos pode interessar em coisa alguma.
– Nunca vi um observatório!
– E depois, disse por sua vez o Conde de Noirmoutiers, mi-
nha sobrinha não disse tudo. O “Solitário” é seu autor favorito,
como, aliás, também é o meu, agora o confesso, e ela não ficaria
zangada por ver um grande homem em trajes caseiros. Contudo,
preveni-a de que seu ideal, seguramente, muito perderia com
isso. As mulheres se apaixonam por um ou qual autor e imagi-
nam ingenuamente tornar a encontrar o encanto, a vida, a sedu-
ção do estilo no rosto, na voz ou no tipo do indivíduo. Não é
nesse sentido que deviam interpretar a definição de Buffom: “O
estilo é o homem”. Mas, todos o sabem, as filhas de Eva são
curiosas apesar de tudo, e minha sobrinha saiu bem ao avô.
– Às vezes elas têm razão, disse o doutor, e nem sempre se
enganam em suas esperanças. Ninguém contestará, por exemplo,
que o senhor Anatole France, que vimos no ano passado em
Luchon, seja um homem tão agradável de conhecer quanto os
seus escritos.
– Não seria esse o caso do nosso “Solitário”, replicou o barão,
porque não é verdadeiramente atraente, nem amável. Dá a im-
pressão de desprezar a Terra toda. Não sai do seu céu, não dá
atenção a nada fora da Ciência, não ama coisa alguma.
– Eu, que o li muito, repliquei o Conde Noirmoutiers, o com-
preendo. O mais nobre emprego que se pode fazer da vida não é
estudar o enigma do Universo? A Astronomia parece-me ser uma
ciência empolgante, suficiente para absorver inteiramente a vida
de um homem.
– Sim, certamente, interveio o politecniano, e chego a per-
guntar-me porque prossegue ele tantos estudos ao mesmo tempo.
A Astronomia deve ser, com efeito, uma ciência bastante vasta
para encher todos os instantes, trabalhando dezoito horas por dia,
e agir-se-ia melhor escolhendo um ramo para nele especializar-
se. Como então mistura ele pesquisas, aliás muito diferentes e,
parece-me, pouco científicas? Não se preocupa ele com as pre-
tensas forças psíquicas, ocultismo, magnetismo, hipnotismo,
espiritismo, telepatia, e outras fantasias, que sei eu? Farsa tudo
isso! Não é clássico para um sábio.
– É a reflexão que fiz durante algum tempo, lendo certos dos
seus livros, replicou o conde, e julgo ter encontrado a explicação.
A Astronomia, por si, não se limita à medida matemática das
posições dos astros: consiste essencialmente na pesquisa das
condições da vida na superfície dos outros mundos. Essa vida em
Marte, Vênus, Júpiter, Saturno ou nos outros sistemas solares,
seja atual, passada ou futura, nos interessa, não somente porque
pode assemelhar-se à nossa, mas por isso que transfigura para
nós o aspecto do céu estrelado, mostrando-nos em todas as
regiões do Espaço infinito moradas atuais, passadas ou futuras de
seres viventes e pensantes, de todos os graus de inteligência.
Esse novo céu da Ciência substitui o antigo céu teológico. Desde
então é natural associar-lhe o problema dos nossos destinos, e
estou certo de que o senhor abade não me contestará, de vez que
o antigo céu de Ptolomeu, de São Tomás e de Pascal cedeu lugar
ao de Herschel e Le Verrier. Que há, pois, de surpreendente em
que um astrônomo, que tem o hábito de viver nesse céu, se
pergunte se nossas almas são imortais e se esses mundos são a
moradas da imortalidade? É o grande problema do Além, que
tem a sua importância. A procura de testemunhos da existência
da alma e da sua sobrevivência não é o complemento lógico da
Astronomia? Se todo ser humano morre completamente, em que
a imensidade do Universo nos pode interessar? Se não restam
nada de nós outros, se somos efêmeros cogumelos do globo
terráqueo, vivendo alguns dias, em que nos pode adiantar tudo
isso? A Ciência não passa de uma burla, e assim a nossa própria
vida, sim, um logro idiota e ridículo. Eis como me explico essas
preocupações do “Solitário”, que lhes parecem, e bem assim a
muitos outros, pouco científicas. Acrescentarei ainda que se a
Astronomia nos interessa por si mesma, muito mais ela o faz
pelos horizontes filosóficos que nos desvenda. Que é o Univer-
so? Que existe em todos esses mundos? Qual o nosso verdadeiro
lugar, o nosso destino, em todo esse plano maravilhoso? Eis aí
questões que certamente nos apaixonam mais do que o cálculo
logarítmico da posição de uma estrela.
– Não quis interromper o senhor conde, interveio o vigário,
mas tenho certas reservas a opor, “Non est hic locus”. Direi
somente que a Fé resolve certos problemas inacessíveis à Razão
e que os sábios deveriam deixar esse cuidado aos teólogos. A
verdade é uma luz que, agitada, corre o risco de se apagar.
– E o senhor, doutor, disse o comandante, que pensa?
– Oh! De lá de cima nada tenho a dizer. Os senhores conhe-
cem os meus sentimentos. Morrerei, como diz o senhor vigário,
na impenitência final.
– Sim, confirmou a baronesa, sabemos que o nosso amável
doutor não acredita em nada.
– Mas, minha senhora, não se deve crer em nada. A palavra
crença é anticientífica. Só se admite o que está demonstrado; eis
tudo.
– E que há realmente demonstrado, replicou o sacerdote, re-
almente conhecido em sua essência?
– A discussão nos levará longe, respondeu o médico. Mas,
com toda a certeza, o que não me parece demonstrado (e peço ao
senhor abade que me desculpe a franqueza, porém lhe respondo à
pergunta) é a existência da alma tanto quanto a de Deus. E
quereis que desvende o fundo do meu pensamento? Pois bem: o
tempo despendido com essa divagação é tempo perdido.
– Da mesma forma que com o bilhar e com a pesca de anzol?
disse rindo o Barão de Castelvieil.
– Muito mais, podemos divertir-nos com o bilhar, apanhar
peixes com o anzol; mas nessas questões não há divertimento,
nem se apanha coisa nenhuma.
– Creio que o doutor faz pilhéria à nossa custa neste momen-
to, disse o abade com um sorriso contrafeito.
– Não penseis isso. Afirmo-vos que essas questões insolúveis
absolutamente não me interessam. Nunca pude compreender, por
minha parte, que alguém se preocupe com a eventualidade do
que nos possa acontecer após a morte. A vida e os seus afazeres,
eis tudo. Tenho visto muitos doentes, muitos velhos, muitos
moribundos. A inteligência é frágil. É uma chama fácil de extin-
guir. Facilmente se extingue por um nada, e temos muitas vezes
muito trabalho para reacendê-la.
– Desculpe, mas vós não a reacendeis quando ela está extinta.
– E quando salvamos um afogado? E quando reanimamos um
asfixiado? E quando o desmaio, a síncope, a febre cerebral ou a
febre tífica cedem à volta da lucidez? Digam-me, pois, onde
estava a alma do doente? Onde está a do louco? Digam-me onde
está a do velho caduco, em período de segunda infância, ou onde
está a do idiota, do cretino, da criança atrofiada? Minha experi-
ência não data de ontem. Para mim, a faculdade de pensar é uma
propriedade do cérebro, tanto no homem quanto no animal.
Ausência de cérebro é ausência de pensamento. E não há outra
coisa a investigar.
– E essa doutrina vos satisfaz?
– A mim, sim. Mas não está nisso a questão. Perguntai a um
inseto se preferiria ser o pássaro que o devora, indagai ao pássaro
se preferiria ser o caçador, inquiri ao atáxico se preferiria ter as
pernas em bom estado, interrogai à mulher sexagenária se prefe-
riria ter vinte primaveras, e as respostas afirmativas nada signifi-
cariam. Não se trata do que se desejaria ser; trata-se do que se é.
Se há imaginações às quais a realidade não satisfaz, tanto pior
para elas. A Natureza nada pode, no caso.
Mas, vou mais longe e digo que se pode estar, que se deve
estar inteiramente satisfeito com o que existe. Não somente não
me inquieto com o que os psicólogos denominam o “Além”, mas
também não compreendo que se possa desejar recomeçar a vida
sob uma forma ou sob outra. Se se apresentasse a questão: Que
preferis ao morrer: dormir completamente, não existir mais de
maneira alguma, ou recomeçar exatamente a vida tal como foi?
Quem não escolheria o Nada? A vida é antes de tudo uma fadiga,
e não há mal algum em dela libertar-se. Os mais felizes não o são
em realidade. Há mais horas más do que boas, mais de sofrimen-
tos, de aborrecimentos, de desilusões, do que de satisfações
perfeitas. Pela minha parte, embora não tenha muito de que me
queixar da sorte, ficaria desolado de viver, mesmo assim, eter-
namente. Oh! O repouso! Coma se pode temê-lo, e não o dese-
jar?
– Isso não seria o repouso, se não sentísseis mais nada: seria
o Nada, sem esperança.
– Qualquer que seja o gênero de vida que se possa imaginar
para depois da morte, desde o momento que houvesse vida,
haveria luta. Pois bem, é suficiente ter lutado durante seis ou oito
decênios. Prefiro o aniquilamento, o repouso eterno, requiem
œternam, conforme o dizeis, senhor abade.
– Eu não, replicou a condessa. Prefiro a vida, qualquer que
ela seja.
– Viver, agir, sentir, amar, sofrer até, antes isso do que o na-
da, secundou a baronesa.
– E eu também, acrescentou Estela.
– Oh! minhas senhoras, tendes liberdade de desejar tudo
quanto vos agrade. Nossos sentimentos, porém, em nada alteram
a ordem das coisas. Na minha opinião de positivista que sou
esses devaneios da imaginação, essas pesquisas no desconhecido
não são científicas. Quero que um sábio não saia da sua ciência.
Seja médico, cirurgião, químico, físico, botânico, fisiologista,
anatomista, arqueólogo, filósofo ou astrônomo: quanto mais se
concentrar na sua especialidade, mais provecto será. Mas não me
falem dos generalizadores.
– O senhor prefere a análise à síntese, caro doutor, e não será
errado. Reconheça, entretanto, que é útil haver, de tempos em
tempos, espíritos sintéticos, que abarquem mais vastos horizon-
tes e combinem várias luzes em benefício do progresso geral do
espírito humano.
– Quem muito abarca pouco abraça, disse o politecniano. Tal
era possível no tempo de Aristóteles, mas hoje, com a divisão do
trabalho, é impossível reunir o conjunto dos conhecimentos
humanos.
– Oh! Ninguém tem essa pretensão. Julgo somente, a propósi-
to do “Solitário”, que um astrônomo pode ser – deveria dizer,
deve ser – filósofo. A Astronomia é precisamente uma ciência
bastante imensa para deixar de engrandecer as idéias. Um astrô-
nomo que não interpreta o que vê não passa de um autômato,
simples máquina de calcular ou um aparelho de fotografia.
Admito tanto menos um astrônomo-mecânico quanto um astrô-
nomo católico. Quer um, quer outro, são incompletos.
– Obrigado pela nossa parte, disse o sacerdote. Por mim, con-
fesso que o vosso “Solitário” não é um astrônomo igual aos
outros; é mais um "astrósofo".
– Chamem-lhe como quiserem, replicou o conde. Haverá
mesmo quem o trate até por “astrófilo”.
– Oh! exclamou a baronesa, é um iluminado!
– E eu tenho uma recriminação muito mais grave a fazer-lhe,
interveio vivamente o politecniano. É um literato. Tem escrito
romances.
– Romances!
– Se não romances, pelo menos narrações literárias, histórias.
Um sábio se compromete, escrevendo dessa maneira.
– O senhor acha que ele escreve mal!
– Não. Ao contrária, reconheço sua estética e aprecio seu esti-
lo. Aprecio a forma literária e concedo que poucos escritores
sejam tão puristas. Mas, justamente por causa dessa correção, é
um literato, é um artista; não é mais a de uma sábio.
– Um sábio deve escrever mal? O fato é que em geral...
– Um sábio não deve escrever. Se escreve não deve fazê-lo
para confundir-se com os literatos, não deve oferecer ao público
obras de imaginação. Concordo em que um sábio escreva trata-
dos técnicos especiais.
– Ele os fez, e mais de um, que são clássicos nos Observató-
rios.
– Essas obras são lógicas, naturais. As outras são erros sem
os quais nós não o discutiríamos. Já leu o seu “Cosmos”?
– Ia falar justamente dele. Pois bem, a meu juízo, esse livro
lhe trouxe muita honra. Imaginou uma narração, uma história,
como dizeis, um romance, se assim quiserem, no qual expôs suas
idéias sobre o céu, seus conhecimentos sobre Marte, sua doutrina
palingenésica. Vós não podeis negar que, desde algum tempo, as
noções astronômicas publicadas nessa obra tenham penetrado o
público. Esse público hoje conhece Marte, fala de suas neves
polares, de seus canais, de suas estações, sabe que existe no céu,
não longe de nós, um planeta análogo à Terra e que poderá ser
habitado por seres pouco diferentes de nós outros. Os jornais, até
os menos científicos, já tratam agora de Marte qual se fosse um
país que interessa a todo o mundo, Tóquio ou Madagascar. A
quem deveis isso? Ao livro “Cosmos”, que foi lido por cem mil
leitores. Se o “Solitário” se tivesse contentado com o seu enorme
alfarrábio clássico, a “Aerografia”, do qual não foram impressos
mais de duzentos exemplares, e que não saiu da esfera dos
Observatórios, ninguém, à hora presente, teria ouvido falar das
maravilhosas observações feitas sobre esse globo vizinho por
tantos astrônomos, inclusive ele. De minha parte, aprovo-o por
se fazer ler em vez de deixar “a luz debaixo do alqueire” e acho
estúpido recriminá-lo. Preferia até vê-lo um pouco mais vulgari-
zador, a exemplo de Fontenelle, Buffon, Lalande, Humboldt,
Arago, Darwin, Haeckel. Mas ele não corteja o sufrágio univer-
sal. O que escreve, fá-lo com cuidado, eis tudo, com sinceridade
e com fé. E o recriminam! Esses julgamentos são realmente
bizarros. Sempre as divisões, as categorias, as seleções. Para
serdes lógicos, devíeis também recriminar Galileu, Descartes,
Leibnitz, d'Alembert, Laplace e Cuvier por terem sabido escre-
ver. Como quereis, deve-se ser ou literato ou sábio! Em outros
termos, o literato deve ser ignorante, os escritores devem falar
para nada dizer, para “reamassar” sempre as mesmas histórias
que não se alteraram desde o dilúvio! Eis o que chamais literatu-
ra: prosa ou versos que nada ensinam, romances que só têm por
objeto recomeçar sempre os mesmos contos de pessoas que se
abraçam para enganar, que noivam, comem e bebem, que se
batem em duelo ou que assassinam, em uma palavra, a descrição
das ações humanas. Mais banais e mais vulgares, e algumas
vezes, porém, muito raramente, de sentimentos algo mais refina-
dos e nobres! Tal qual no teatro! Sempre a mesma peça, sempre
o adultério: o marido, a mulher e o amante. Sempre o quarto de
dormir e a sala de jantar. Eis toda a Humanidade. Para vós, um
escritor não deve sair da pele das pessoas que vemos viver em
torno de nós e, principalmente, nada deve ensinar de ciências
exatas; é um crime elevar o espírito humano a esferas mais altas!
Eu vos confesso que essa classificação me parece uma pura
estupidez, perdoai-me a expressão, pois não encontra outra
melhor, uma idiotice. Recriminar um astrônomo, um médico, um
naturalista, um geólogo, um químico, por imaginar ele uma
elegante moldura para expandir suas idéias, o que ele acredita ser
a verdade, é um falso raciocínio. Vós dizeis que os seus colegas
o apelidaram de literato e que os literatos o rejeitaram por sábio.
Que lhe pode fazer isso? Em que lhe pode interessar a opinião de
Pedro ou de Paulo? Ele não tem ambição, nada deseja, é inde-
pendente. Sabe que influi sobre os espíritos do mundo inteiro;
tem disso provas irrecusáveis, e é o que lhe importa. Faz o bem e
caminha para frente. Só podem ser acompanhadas as criaturas
que andam. Esse homem é um instrumento do progresso. É um
precursor, e um apostolo.
– Que advogado me saiu o meu caro conde! Certamente há
muita verdade no que diz. Pode-se estar errado em encurralar os
autores a modo de carneiros, e encerrá-los em uma trincheira da
qual lhes seja vedado sair. É um erro de apreciação, e evidente-
mente não haveria mal algum em que os escritores fossem instru-
ídos, e em que os sábios soubessem escrever e tivessem idéias
gerais. Contudo, mantenho a minha opinião: o gênero romance
não me parece apropriado para um cientista.
– Todos os gêneros são bons, menos o gênero fastidioso, dis-
se Voltaire.
– Não penso assim, e farei uma outra objeção. Quando o se-
nhor lê um tratado de Física, de História Natural, de Geologia, de
Entomologia, não está exposto a enganar-se, avança passo a
passo no estudo e tem a certeza de aprender a ciência pela qual
se interessa. Mas se o autor dilui essa ciência em um quadro que
lhe é estranho e acrescenta ficções, acreditais que o leitor saiba
sempre distinguir o verdadeiro do falso e não acabará por se
enganar? Um romance científico é, em minha opinião, muito
perigoso, e continuo a pensar que é bem melhor fazer ciência ou
literatura. Como quereis que um ignorante reconheça o que é
fantasia e o que é ciência? E não acabe formando idéias falsas?
– É preciso, creio eu, que em um romance científico tudo
quanto se refira à Ciência seja absolutamente exato. Reconhece-
reis que esse é o caso dos livros do Solitário. Desafio que alguém
descubra em suas obras um erro ou uma invencionice. Não há
nelas uma frase, uma palavra, que possa ser desmentida. Seme-
lhante alegação, que pode parecer arbitrária, é o resultado de
longo trabalho e baseada no cálculo, na observação ou na experi-
ência, as três fontes dos nossos conhecimentos positivos. É
preciso ser bem ingênuo, nada perspicaz, para não destacar desse
científico incontestável a narração destinada a orná-lo e tornar-
lhe atraente a leitura. Confesso que existem esses espíritos
cândidos, porém em pequeno número, e muitos dentre eles não
compreenderiam com maior proveito um tratado técnico; veriam
o que ali não existe. Conheci um honrado homem que após ter
lido certo tratado de Astronomia muito bem feito, o de Delaunay,
veio dizer-me que, segundo compreendera, a Terra não girava.
No entanto, o livro era de pura Cosmografia.
– E eu, replicou o médico, tive um doente, doente imaginário,
que passava o tempo tateando o pulso, observando a língua,
estudando a sua própria alimentação e a ler livros de Medicina.
Um belo dia, sentindo qualquer coisa no coração e não sei mais
que embaraço gástrico, reconheceu-se atingido de quase todos os
sintomas da gravidez! Esse também lera mal. Nenhum autor
pode orgulhar-se de ser compreendido de igual modo por todos
os seus leitores. E principalmente nenhum pode ufanar-se de
agradar a todo o mundo.
– Tudo que os senhores queiram, disse o politecniano, mas
nunca me farão apreciar o seu cenobita da montanha.
– Mas, interrompeu Estela, por acaso não é útil a um sábio
conhecer assuntos diferentes na aparência, mas que se esclare-
cem mutuamente? Por exemplo, um filósofo poderia ignorar a
Astronomia e crer que a Terra existe sozinha no Universo? Ou
um físico poderá ignorar a Química?
– Sem dúvida que não, senhorita; mas, repito: esse original
não é um sábio, é um literato, um poeta, um jornalista.
– Pois bem, eu, disse o vigário de Bagnères, que a muito cus-
to se contivera até então, irei mais longe e declararei que esse
homem é um malfeitor!
A essa afirmação bastante inesperada, apesar do calor da dis-
cussão, o conde saltou da cadeira...
– Malfeitor! Esse grande escritor, esse sábio, esse gênio!...
– Gênio do mal! Sim, senhor conde, um malfeitor. Ele pertur-
ba as consciências, mina a tradição, destrói a obra secular dos
preceptores da Humanidade. A Revelação nada tem a recear,
pois que é de instituição divina, e as portas do inferno não preva-
lecerão contra ela. É um demolidor. E o que oferece em troca?
– A Verdade, pura e simplesmente, respondeu o conde.
Nesse momento abriram-se as portas do salão onde ia ser ser-
vido o café. A baronesa levantou-se, o abade ofereceu-lhe galan-
temente o braço, e todos os convivas os acompanharam.
– Vejo, disse Estela a seu tio, que não iremos visitar esse Ob-
servatório.
– Falais a todo instante em independência, disse o barão.
Como se pode ser independente sem fortuna? Eis aí outra ques-
tão. Nosso “Solitário” vive lá em cima numa indiferença e num
desinteresse extraordinários.
– Oh! A esse respeito, acrescentou a baronesa, é um tipo ori-
ginal. Não se importa com coisa alguma. Não tem ambição de
nenhuma espécie, nem sequer a da glória, que, no entanto, é
nobre, pois os livros que deu a imprimir, dizem, foi preciso
arrancar-lhos. Quanto a dinheiro, vota-lhe o mais absoluto des-
dém. Não é um pouco maníaco? Ninguém se isola assim impu-
nemente da Humanidade.
– Com que vive esse indivíduo? replicou o abade, pois, no
fim de contas, “primo vivere, deinde philosophare”.
– Isso não o preocupa. Trabalha no que lhe agrada e é tudo.
– Dizem-no de uma sobriedade pitagórica. Bebe água e se nu-
tre com flores de acácia, interveio a baronesa. É um anacoreta,
um vegetariano.
– Vive sozinho?
– Sim, disse o doutor. Aliás, vivendo isolado o homem per-
manece livre. A ambição é uma escravidão e as próprias afeições
são cadeias.
– Por mim, replicou o conde, não posso deixar de admirar sua
obra. E de mais a mais (disse olhando para o sacerdote a quem
não perdoava o dito) a religião da Ciência nunca fará correr rios
de sangue! Sua filosofia astronômica abriu novos horizontes à
Humanidade. Tem numerosos adeptos espalhados pelo mundo
inteiro. Interrogai os viajantes: em qualquer país da Terra, seja
na América, África, Ásia ou Austrália, não se fala no firmamento
sem que seja lembrado o seu nome, seu nome anônimo podemos
dizer, pois, no seu desprendimento por tudo, nem sequer se deu
ao trabalho de assiná-lo. É o “Solitário”, como quem diz “o
desconhecido”.
– É um nome, uma vez que é célebre. Todos os nomes não
foram a princípio alcunhas?
– Talvez não o tenha.
– Disseram-nos que é um enjeitado, que cresceu nos arredo-
res de Luchon, sem nunca ter tido família.
– Que horror! exclamaram ao mesmo tempo a baronesa e a
condessa.
– É um erro: chama-se Dargilan, informou o doutor.
– Conhece-o então?
– Perfeitamente. Vejo-o algumas vezes, embora não compar-
tilhe de suas idéias.
– Conhece-o bem? Exclamou Estela, cujos olhos negros bri-
lharam quais dois carbúnculos.
– E, senhorita, caso sinceramente o deseje, ficará encantada
em lhe apresentar um dia, em companhia de seus tios, e até
iremos todos, se preferem. O passeio daqui lá é encantador,
como deve ter notado ontem.
– E se fossemos hoje à tarde? interrogou Estela. O mau tempo
não tarda a vir e desejaria tanto ver um telescópio!
– Acho prudente preveni-lo, senhorita. Já vos disseram que o
seu caráter não é dos mais cômodos, e nada mais verdadeiro. É
um original, quase um misantropo. Mas, como tenho de visitar
um doente entre os guardas da Alfândega, posso fazer um pe-
queno desvio, ir à Torre, e combinar a apresentação para ama-
nhã, por exemplo.
– Não, para amanhã não, disse a baronesa.
– Por quê? Replicou o barão. Ah! Tens razão amanhã é sexta-
feira, 13!
Ambos tinham pavor desse número e desse dia, e não sentari-
am treze à mesa nem por todo o ouro do mundo. Estela, que já se
apercebera de certas fraquezas de seus espíritos, não insistiu.
– Depois de amanhã! Disse, olhando para o doutor.
X
O Solitário

No depois de amanhã, às quatro horas da tarde, pouco mais


ou menos, a pequena caravana ia bater à porta do Observatório
do “Solitário”. A velha torre era uma ruína romana ainda sólida,
encravada em antigo convento de há muito tempo abandonada.
Recebera aquela pequena propriedade ao atingir a maioridade,
por força de cláusula testamentária que datava do ano do seu
nascimento. A pessoa do misterioso donatário ficara para sempre
desconhecida. Julgava, entretanto, poder venerar nela a memória
de seu pai. Algumas semanas depois de haver recebido a carta do
tabelião que o informara desse legado, instalara-se no antigo
mosteiro, mantendo ao seu serviço o velho jardineiro e a mulher
deste, que ali estavam desde tempo imemorial.
O “Solitário” da Torre nascera numa região selvagem de Ce-
vennes. Criança encontrada em linda manhã numa pequena gruta
– que mais tarde se tornou a famosa Gruta de Dargilan, e que
então não passava de uma anfractuosidade na montanha do
estéril Noir, à beira de rústico caminho –, passara a infância
nesse vale pitoresco e solitário da Fonte, perdendo-se com os
pastores na gruta de Nabrigas, onde por diversas vezes encontra-
va, entre destroços fósseis do “ursus spelæus”, utensílios e armas
pré-históricas de nossos antepassados da idade da pedra. Certo
dia, um pastor, perseguindo uma raposa, reconheceu que a gruta
de Dargilan era muito mais extensa do que a de Nabrigas, e mais
tarde caprichosas escavações fizeram-na rivalizar com as de Han
e Aldelsberg. Região relegada, na fronteira do Aveyron e da
Lozère, ainda hoje é atravessada apenas por um caminho pouco
freqüentado entre Rozier e Meyrueis. Raras aldeias, alguns
lugarejos, algumas quintas aparecem aqui ou ali, no campo, quer
se atravesse os áridos planaltos, quer se acompanhe os vales
ensombrados. A criança passara ali sua primeira idade, sem ir
além dos rochedos ruiniformes de Montpellier-le-Vieux, no meio
de pastores e campônios. Um dia, a ama de leite que o recolhera
herdara, sem que soubesse a proveniência real, uma pequena
casa com jardim e prado que descia até ao ribeiro. Por morte
desta honesta mulher o pequeno Rafael (nome que se encontrara
preso com alfinete aos cueiros) herdara a propriedade por sua
vez.
Crescera no meio da Natureza, entre as paisagens pitorescas e
selvagens de Cevennes, atravessando por vezes, à tarde, ao cair
da noite, os planaltos solitários, admirando o pôr do Sol, o
despontar da Lua, o aparecimento das estrelas, enquanto a brisa
perfumada das montanhas enchia seus jovens pulmões que a
respiravam com delícia. Nas noites de Lua cheia, as fantásticas
silhuetas dos rochedos de Montpellier-le-Vieux pareciam uma
petrificação de fantasmas saídos do Inferno. Deslizando em uma
prancha na correnteza do Tarn, via na imaginação mil castelos,
feéricos, empoleirados ao longo das cristas escarpadas, inacessí-
veis ninhos de águias, nos quais, entretanto, disputara diversas
vezes com seus companheiros os filhotes aos abutres. Na calma
das noites silenciosas, aprendera a conhecer as estrelas, às quais
os pastores tinham dado nomes. Contemplava-as, sentia seu
pensamento elevar-se até elas, e as interrogava. O vigário da
aldeia vizinha, a quem ajudava na missa, ensinara-lhe a ler,
escrever e contar; e desde os dois lustros de idade lia o latim nos
clássicos.
O vigário tinha um pequeno óculo de alcance com o qual Ra-
fael observara as montanhas anulares da Lua, os satélites de
Júpiter, algumas curiosidades siderais, cuja contemplação imper-
feita excitara o seu ardor. Amava o céu com paixão, e só almeja-
va uma felicidade: poder estudá-lo. Antes de atingir quatro
lustros de idade escrevera um poema, que primeiramente circula-
ra manuscrito nas redondezas locais, e do qual o jornal de Millau
publicara trechos, e lhe foi afinal pedido pelo amigo de um editor
de Paris, em vilegiatura às margens do Tarn.
Logo que recebeu, aos vinte e um, a doação, certamente mui-
to inesperada, do velho convento dos Pirineus, vendeu a pequena
casa em que morava com o jardim e o prado que a rodeavam, e
comprou em troca uma boa lente astronômica, um tubo de cobre
e uma aparelhagem com mecanismo de relógio. Dedicou-se a
construir com isso um instrumento ao seu gasto, o que conseguiu
com felicidade, e desde então se entregou de corpo e alma à sua
paixão dominante: a contemplação e o estudo das maravilhas do
céu. E em tal cifrou toda a sua vida.
Reunira também no Observatório, compradas a preços de
ocasião, as obras mais importantes das ciências contemporâneas
e da Filosofia, e, tendo bem depressa entrado em correspondên-
cia com os principais sábios do mundo inteiro, recebera as
memórias originais, os resultados de pesquisas e as observações
de todos os observatórios, de sorte que a sua biblioteca estava
abundantemente fornida, sob o ponto de vista de seus estudos
favoritos. Não tinha tendência alguma para prodigalidade, nem
para mobilhar os aposentos, nem para roupas, nem para sua
mesa; era muito frugal, não comia carne e preferia a água ao
vinho; era à biblioteca e aos seus instrumentos que consagrava
todas as pequenas importâncias não absolutamente indispensá-
veis à sua vida material.
Seu orçamento era dos mais modestos. Não tinha mais fortu-
na do que o dinheiro que ganhava e nada lhe era tão desagradá-
vel quanto perder tempo em ganhar dinheiro. Entretanto, era
preciso viver. Seu nome rapidamente ganhara celebridade, desde
a publicação de seu primeiro livro, aos dezenove anos de idade, e
com freqüência recebia propostas de diretores de revistas, da
França e de outros países, pedindo-lhe crônicas mensais sobre o
mais interessante assunto da atualidade científica. Aceitara duas:
uma de Paris e outra de Londres, e lhes enviava o mesmo artigo,
com pequenas diferenças. O jornal de Paris pagava trezentos
francos, e o de Londres duzentos. Esse rendimento de seis mil
francos anuais lhe era suficiente. Acrescentava-se a isso os
direitos autorais sobre a venda de suas obras, que a Livraria
Hachette lhe enviava anualmente, obras pouco populares, com
exceção das duas últimas, pois ele não cortejava a opinião públi-
ca.
Os aposentos do velho convento eram simples, lajeados, po-
bres, frios, caiados de branco, bem conservados. Eram sofríveis
no verão. Deviam ser glaciais no inverno. Acostumada ao luxo,
ao conforto e à elegância, Estela surpreendeu-se um pouco
tristemente, entrando nesse alojamento de uma habitação tão
pobre e tão humilde. Q doutor fê-los penetrar na biblioteca, e
subiu, ele próprio, à torre, à procura do astrônomo, que não se
apresentara embora os esperasse.
Uma grande porta aberta lhes mostrou um gabinete da Física,
no qual notaram avantajada máquina elétrica, de modelo antigo.
– Vês, minha linda sobrinha, disse o conde de Noirmoutiers,
que o nosso “Solitário” não demonstra a menor pressa em nos vir
receber.
– Talvez se esquecesse, acrescentou o barão. Talvez até haja
saído!
– O senhor conhece o original: o mundo não existe para ele.
– Que singular existência, a de passar a vida, assim, na abs-
tração!
– Nunca pude compreender as pessoas do mundo que procu-
ram a convivência dos sábios, replicou a baronesa. Não falamos
a mesma linguagem. Há dois anos, quando aqui viemos, aconte-
ceu a mesma coisa. Estava absorvido em um cálculo e nos fez
esperar meia hora.
– Se fossemos passear no bosque, acrescentou a condessa, es-
taríamos melhor do que aqui – frio quanto uma adega. Com esse
vestido tão leve, Estela, vais constipar-te.
Nesse instante o doutor desceu.
– O Sr. Dargilan está ocupado lá em cima, falou, e pede que
subamos.
– Eu bem disse que ele não se incomodaria! Acrescentou a
baronesa, fazendo um movimento de ombros.
Atravessaram vasta sala arruinada, cujas lajes eram desiguais
e desunidas, e, passando por uma poterna baixa, começaram a
galgar os degraus gastos de velha escada de pedra. Em algumas
pontes as pedras haviam caído e sido substituídas por tábuas.
Tudo era bem diferente dos assoalhos encerados e dos macios
tapetes dos apartamentos de Paris ou dos castelos modernos.
Quando chegaram ao topo da torre e penetraram sob a cúpula,
perceberam empoleirado em um escabelo, o olho na luneta, o
autor de “O Domínio do Desconhecido”, pobre e negligentemen-
te vestido com uma simples japona de lã, continuando tranqüi-
lamente uma observação.
– Peço-lhes que me desculpem, disse, estarei convosco dentro
em pouco; estou terminando uma observação.
E continuou a espiar o espaço qual se estivesse sozinho.
– Meu caro mestre, disse o Conde de Noirmoutiers, não se
incomode conosco. Compreendemos o seu trabalho e o respeita-
mos. Nós outros somos uns inúteis que passamos a existência
sem algo produzir. Se só houvesse gente da nossa espécie, a
Humanidade ainda seria do gênero troglodita ou símio, e não
saberíamos nada de coisa alguma.
Dargilan, a quem o ruído das palavras aborrecia, renunciou
continuar e desceu da sua banqueta giratória.
– Meu caro doutor, disse, estendendo a mão ao médico, agra-
deço-lhe por haver trazido os seus amigos, e sentir-me-ei feliz
mostrando-lhes alguma coisa. Porém, acrescentou um pouco
secamente, sabes, tanto quanto eu, que as pessoas do mundo
nada podem ver em nossos instrumentos.
Disse isso com simplicidade, sem menosprezo; porém Estela
se sentiu melindrada. Estava linda; vestira uma de suas toaletes
mais elegantes, e ele nem sequer a olhara. “É possível seja este
homem, dizia-se a si mesma, quem escreveu tão lindas páginas e
me transportou ao céu?” Esse aspecto extravagante correspondia
exatamente à descrição que ouvira fazer: vestes grosseiras, andar
pesado e desajeitado, cabeleira e barba hirsutas, tez de cor emba-
ciada. No momento de transpor a porta do jardim do observató-
rio, ao pensar que ia encontrar-se frente a frente com o seu autor
predileto, seu coração palpitava com força. No entanto, via um
homem de aspecto comum e, além do mais, desagradável. Foi a
primeira a falar-lhe e sem perturbação.
– Senhor, disse-lhe, viemos estorvar suas observações. Cabe-
me a culpa. Fui eu quem desejou ver o seu observatório. Perdoe
e permita que nos retiremos.
Enquanto Estela falava, ele, fixa e tranqüilamente, dirigira
seu olhar aos olhos dela. Esse olhar, de um brilho assaz estranho,
a impressionou tanto que não o pôde sustentar, e foi com grande
esforço que conseguiu concluir a frase. Baixou os olhos, e lhe
pareceu que ia receber uma ordem.
– Amo o céu, replicou o “Solitário”; a ele consagro o meu vi-
ver. É tudo para mim, o resto é nada. Aliás, tudo está no céu,
inclusive a Terra e tudo o que ela contém. E uma vez que a
senhorita também ama a Ciência, não é uma estranha aqui.
Chegastes no momento em que fazia uma observação bastante
rara. Quer tomar o lugar que eu ocupava há pouco e dizer-me o
que vai ver no campo da lente?
Ela tentou de novo dirigir-lhe o olhar para agradecer; mas, no
momento em que seus olhos se encontravam pela segunda vez,
sentiu-se percorrida, da cabeça aos pés, por um choque elétrico,
rápido qual relâmpago. Suas pernas vacilaram. Apoiou-se num
suporte do escabelo e subiu lentamente. Entretanto, refez-se
dessa emoção tão súbita e examinou a imagem celeste que
brilhava na luneta.
– Vejo Vênus, disse.
O astrônomo pareceu surpreso.
– A senhorita, sua sobrinha, é mais instruída do que eu pen-
sava, disse ao conde.
– Ela leu todos os livros do “Solitário”, respondeu o senhor
de Noirmoutiers, sem parecer ter-se apercebido do descaso e da
falta de polidez da reflexão.
– Ah! Exclamou ele ainda mais surpreendido. É que em geral
– perdoe-me a franqueza –, em relação à Astronomia, os habitan-
tes da Terra nada sabem, não desconfiam de nada, vivem às
cegas no meio do Universo. Nem sequer conhecem o terreno em
que pisam.
– O crescente está muito pálido, disse Estela, que recuperara
de modo completo o domínio de si própria. A extremidade
superior é mais aguda que a inferior. Venha ver, meu tio, quanto
Vênus está admirável no céu azul. Senhor Dargilan, é assim que
vemos os habitantes de Marte?
– Já vedes meu caro mestre, disse o doutor, que não exagerei.
Tendes aí uma discípula muito convicta.
O Conde de Noirmoutiers tomara lugar, olhando no campo
visual, e, por sua vez, extasiava-se com a beleza do fenômeno.
– Sabe o que mais me impressiona em tudo isso? É que os as-
trônomos sabem sempre onde estão as estrelas, de dia e de noite,
e assentam rapidamente as lentes sobre as posições exatas. E
também que podem calcular com antecedência tudo que acontece
no céu. Confesso, nesse ponto sou igual à minha sobrinha:
admiro a Astronomia.
A fisionomia de Dargilan iluminou-se. Não sabendo dissimu-
lar nenhuma impressão, deixava geralmente transparecer o
aborrecimento que lhe causavam as raras visitas que recebia de
tempos a tempos. Sabia que, em geral, teria de lidar com curio-
sos e ignorantes, o que era tempo perdido. Ora, nada lhe era tão
desagradável quanto o perder seu tempo. O senhor e a senhora de
Castelvieil, e assim a Condessa de Noirmoutiers, aperceberam-se
muito bem das nuvens que a sua visita produzira na fisionomia
habitualmente melancólica do astrônomo. A baronesa, que de há
muito tempo começara uma coleção de autógrafos, e a muito
custo conseguia enriquecê-la, trouxera o seu álbum. Mas não
ousava abrir fogo. Dirigiu-se ao doutor para confiar-lhe a sua
pretensão e pedir-lhe que sondasse o terreno.
O doutor encaminhou a conversação para o assunto, dizendo
que um dos seus clientes de Luchon lhe mostrara, na véspera, um
álbum muito lindo em que se viam interessantes autógrafos de
Victcr Hugo, Sully Prudhomme, Copée, Alphonse Daudet,
Anatole France, Sardou; Richepin; croquis de Jean Paul Laurens,
de Carolus Duran, de Benjamim Constant, Bartholdi, Rochegres-
se; páginas musicais de Gounod, Saint-Saens, Massenet; senten-
ças escritas por Faye, Pasteur, Berthelot, Brouardel...
– Uma coleção de autógrafos! interrompeu Dargilan, confes-
sai que é moda bem intempestiva. O senhor admite sem dúvida
que os homens de quem fala ocupam o seu tempo de modo útil
para a Humanidade, e é justamente essa a causa da nossa estima
por eles. Parece-me que desviá-los de seus trabalhos, para pedir
que escrevam em um caderno, é cometer uma ação má. Não
posso admitir Le Verrier dando autógrafos em lugar de descobrir
Netuno; e assim Darwin em vez de demonstrar a seleção natural,
Hugo em vez de escrever a “Legenda dos Séculos”, Pasteur em
vez de procurar os micróbios das moléstias contagiosas, Édison e
Graham Bell em vez de inventar o fonógrafo e o telefone... Não,
não louvo que se venha tomar o tempo dos sábios, dos que
estudam, dos poetas e artistas com fantasias de tal gênero, em
vez de respeitá-las como se deve. Compreendo, até certo ponto,
as coleções de quadros, desenhos, medalhas, moedas, selos
postais, leques, deuses chineses, de tudo, enfim, que se possa
reunir sem perturbar alguém, mas desaprovo a mania dos autó-
grafos, que não se podem obter sem furtar precioso tempo a
homens que têm mais afazeres.
A senhora de Noirmoutiers ouvira toda a arenga sem replicar,
porém sua fisionomia, já bastante perturbada, mudara várias
vezes de cor. Sentia-se cada vez mais contrafeita na presença do
astrônomo, e, tomando o braço do marido, dirigiu-se para uma
porta. A baronesa e Estela os acompanharam, enquanto que o
Barão de Castelvieil e o doutor permaneciam com Dargilan.
A porta dava acesso a amplo terraço, de onde a vista se esten-
dia sobre admirável paisagem. Era a vertente sudoeste dos Piri-
neus, com as vastas planícies espanholas do vale do Oron esten-
dendo-se, longe, às brumas do Meio-Dia. Junto do terraço, a
floresta, com os cantos dos pássaros e o suave ruído de uma
queda d'água vizinha. Os perfumes das matas enchiam a atmos-
fera, iluminada com os raios do Sol que declinava para o ocaso.
Aquele era realmente um canto feérico perdido nas selvagens
solidões pirenaicas.
– Que sítio encantador! disse a baronesa, e o vosso “Solitá-
rio” é um poeta em seus livros, acrescentou dirigindo-se a Estela.
Mas, convenhamos em que é um rústico de franqueza um tanto
brutal. Ainda prefiro o mundo, apesar das suas comédias e suas
perfidiazinhas. Pelo menos tem formas agradáveis. É a segunda
vez que venho aqui, porém será a última. Decididamente não nos
compreendemos. O vosso “Solitário” é o meu antípoda. Não faz
muito caso de nós, apesar da nossa antiga nobreza.
– A instrução é uma bela coisa, replicou a condessa; contudo,
a ela, prefiro a educação.
– Sou do seu parecer, disse o senhor de Noirmoutiers; acho,
porém, que não se deve ser severo com ele. É um homem sim-
ples, rústico, que diz quanto pensa, arriscando-se a ferir susceti-
bilidades, mas que, certamente, ficaria desolado se causasse
algum aborrecimento. É um grande espírito. Perturbamo-lo em
meio a importante trabalho, pelo qual ainda estava absorvido, e
notava-se que apenas nos prestava meio ouvido à conversação.
Nesse momento, o doutor chegou por sua vez ao terraço.
– É um coração excelente, acrescentou, porém, um impulsivo
nas atitudes. Pensa em voz alta, e tem opiniões muito arraigadas.
Uma delas, por exemplo, é que todos devemos trabalhar, entre-
ter-nos em alguma coisa. As pessoas que nada fazem horrori-
zam-no.
– Mas doutor, replicou a baronesa, que quer que façamos?
Empregamos o tempo do melhor meio possível; realmente, não
podemos fazer grande coisa. Somos iguais aos que têm rendi-
mentos.
– Pois bem, esse solitário, que trabalha noite e dia, sem se de-
ter; que jamais fruiu distrações, nem deseja prazer algum; para o
qual as horas, os dias, as semanas do ano são dez vezes mais
curtos – imagina que todos os seres humanos deveriam asseme-
lhar-se-lhe. É um socialista no seu modo. Só conhece e só com-
preende o trabalho. Daí, a ser insociável para as pessoas do
mundo, não há muita distância. Sabeis o que fez há pouco? O
barão e eu ficamos um instante conversando com ele; pois, de
repente, nos deixou só, tornou a subir na sua escadinha e reco-
meçou a observar Vênus, da qual fez um croquis!
Estela contemplava silenciosamente a imensa paisagem e ex-
perimentava impressões até então desconhecidas. Suas recentes
leituras dos livros do “Solitário” surgiam inteiramente nítidas em
sua memória; sentia-se deslumbrada com a grandeza do conjun-
to, com as novas perspectivas abertas sobre o Universo, e ao
mesmo tempo atraída para ouvir falar o predileto autor. Esse
homem, que até então lhe parecera um mito, continuava, para
ela, sendo diferente de todos os outros. Pela primeira vez na sua
vida, não ouvira uma palavra amável e gentil, não recebera
nenhum galanteio; pela primeira vez fora diretamente desdenha-
da, e não produzira movimento algum de admiração. Esse selva-
gem era áspero e quase grosseiro. Em compensação, sentira uma
comoção estranha, da qual se desembaraçara com dificuldade.
Pensava nele. Vivia ali isolado, no meio de seus estudos, fora do
mundo, privado de tudo o que constitui as delícias da vida,
entregue de corpo e alma a uma paixão imaterial, desprovido de
qualquer ambição de fortuna ou de gloria, e ela estava prestes a
sentir piedade por semelhante situação e a admirá-lo. As vestes
desbotadas e gastas que acabava de ver tocavam sua bondade
feminina. Seu ar de tristeza, seu todo descuidado, faziam um
contraste absoluto com o que até então vira em torno de si. Essa
solidão, essas velhas paredes e essa pobreza deram-lhe mais viva
impressão do que lhe causaria a de um palácio em centro de
capital. Sentia agitar-se em seu seio uma espécie de fibra mater-
nal. Contemplando a paisagem, dizia, de si para si, que habitava
ali, perdido entre as montanhas, um ser notável, único talvez em
seu gênero, estranha e singularmente esquecido no abandono da
Humanidade.
Dargilan, por seu lado, continuara a observação e terminara o
respectivo desenho. Chegou, por seu turno, ao terraço no mo-
mento em que se procurava reconhecer e declinar os nomes dos
sítios mais interessantes da paisagem e dos cumes de algumas
das elevações pirenaicas. Pareceu fazer um esforço sobre si
próprio para sorrir e colocar-se ao nível de seus visitantes, e,
saindo repentinamente de sua absorção habitual:
– Vedes mais uma vez, senhora baronesa, disse dirigindo-se à
esposa de Castelvieil, que os cientistas não passam de ursos. É
preciso perdoá-los. Um Observatório seria triste prisão para
qualquer dama da sociedade.
– Apesar disso, eu o preferiria a um hospital, replicou o dou-
tor. Mais vale ser astrônomo do que médico. Quem diz ciência,
diz estudo. Os sábios não passam a vida em canapés.
– Os médicos não vivem menos dentro do mundo, respondeu
Dargilan, enquanto que os astrônomos estão fora dele. A Huma-
nidade nos interessa muito mediocremente. Não tem grande
valor intelectual ou moral. Nossa simplicidade protesta no meio
de todas as afetadas convenções que enchem e constituem a vida
mundana. Que figura quereriam fizesse no mundo um homem
que não sabe dançar, nem conhece jogos de qualquer gênero, que
nunca usou luvas, nem cartola, e para o qual o fumo é uma vil
mistura que estraga a boca e o paladar? Repito minha senhora, os
sábios são ursos e ninguém lhes rouba essa reputação.
– O fumo rende um milhão de francos por dia ao orçamento
francês, replicou o barão, prova de que, em geral, é tido por bom.
– Dei minha opinião, replicou Dargilan. O consenso público é
favorável ao fumo, às bicicletas, ao jogo da Bolsa, aos cavalos de
corrida, ao teatro (que constitui, disseram-me, a base de todas as
palestras mundanas), à Câmara dos Deputados, aos cafés-
concerto, aos saraus, aos bailes e mil outras atraentes coisas sem
as quais não saberiam passar, e que por vezes desfilam diante
dos meus olhos quando abro um jornal. Nós, abstratores de
quintessência, não somos conhecidos da opinião pública. E
preferimos a nossa solidão a toda essa loucura complicada.
A conversação se prolongou assim por alguns instantes. Pou-
co depois, os visitantes do Observatório despediram-se do astrô-
nomo, desculpando-se pela perturbação que lhe teriam causado.
Estela pediu para contemplar Vênus mais uma vez na lente.
Dargilan verificou que o planeta não saíra do alcance visual e
conduziu a jovem para junto do escabelo. Extasiou-se novamente
com a refulgente beleza do crescente planando sobre o azul.
Depois, afastou-se com pesar e estendeu a mão ao seu queri-
do autor, a quem não pensava rever. Dargilan tomou-lhe as
pequenas mãos entre as suas, fixando-a com aqueles olhos cujo
fulgor Estela não podia suportar. Ela reparou, então, que não
eram castanhos, nem azuis, mas aproximados do verde do hori-
zonte do mar combinado com o amarelo vivo dos olhos felinos.
Desses pontos amarelos explodia uma espécie de fulguração
rápida. O choque experimentado foi tão violento que ela retirou
as mãos com vivacidade, e sentiu instantaneamente a semelhança
de um grande vácuo no peito.
– Senhor conde, disse Dargilan, uma vez que vossa sobrinha
se interessa tão particularmente pelas coisas do céu, eu vos
anuncio que, dentro de cinco dias, quinta-feira, Saturno será
encoberto pela Lua, constituindo um espetáculo raro e digno de
observação. Se o tempo estiver bom, eu me empenho em que
volteis aqui. O fenômeno ocorrerá à entrada da noite, próxima
das nove horas.
XI
O céu estrelado

Estela voltara ao castelo toda sonhadora, silenciosa, a alma


ligada por um laço invisível ao imenso panorama pirenaico sobre
o qual seus olhares haviam passeado do cimo do terraço do
“Solitário”.
Naquela tarde, após o retorno dessa primeira visita, durante o
jantar a conversação quase versou toda sobre o “Solitário” e seu
Observatório. Discutia-se até com certa vivacidade. O Barão e a
Baronesa de Castelvieil eram de opinião que não se voltasse
mais lá. Declararam-no um selvagem absolutamente insociável,
grosseiro, digno de sua origem plebéia e rústica. Falou-se nova-
mente sobre sua procedência desconhecida e falta de família. O
Conde de Noirmoutiers era o único a defendê-lo, dando-o por um
ser à parte, ao qual tudo era desculpável. Estela permanecia
muda, com a certeza íntima de que dentro de alguns dias iria
observar a ocultação de Saturno. A Condessa de Noirmoutiers
estava indecisa; faria o que seu marido decidisse. O médico não
tinha voz na reunião, pois fora de regresso a Luchon, e não podia
estar de volta tão depressa.
Nos dias seguintes, almoço e jantar, só se falava no original
habitante do velho convento da fronteira espanhola. Se a jovem
sonhadora tivesse podido esquecê-lo um instante, os que a rode-
avam lho recordariam sem cessar, a agrado.
Na noite do fenômeno de Saturno, às oito e meia, o senhor e a
senhora de Noirmoutiers e sua sobrinha chegavam ao Observató-
rio. Estela reparou que as vestes do “Solitário” não estavam mais
cuidadas, nem menos pobres, e que a barba e a cabeleira eram
realmente rústicas e emaranhadas. Não fizera alteração alguma
em sua toalete para recebê-los.
– Vedes meu caro mestre, disse o conde, que não esquecemos
o seu convite. Sabemos que é muita indiscrição perturbá-lo, no
meio de seus importantes trabalhos; porém minha sobrinha é
fanática pela Astronomia.
– A senhorita tem razão, respondeu Dargilan. A ciência do
céu é sublime e não lhe dará desilusões. A atmosfera está muito
pura esta noite. Admirará Saturno qual se estivesse em uma
gravura. É uma das mais estupendas maravilhas do céu. Eu
próprio não revejo esses anéis sem emoção, embora os observe
desde há muito tempo. Senhora condessa, experimente ver: o
astro está no campo visual. Se a imagem não se apresentar
perfeitamente nítida, acrescentou, gire lentamente esta pequena
cremalheira até atingir seu grau de visão.
– Oh! realmente, confesso, exclamou a senhora de Noir-
moutiers, é admirável! Não, nunca mais esquecerei esta beleza,
esta luz! Este anel celeste é extraordinário!
– Dentro de um quarto de hora, explicou o astrônomo, a Lua
vai passar exatamente diante. Todos terão tempo de observar
tranqüilamente esse curioso planeta.
O conde e Estela observaram por sua vez, maravilhados. Fa-
lou-lhes dos anéis, de sua natureza e movimento. Depois, Dargi-
lan pediu licença para fazer por si a observação exata do contac-
to entre o bordo escuro da Lua e o anel, indicado pelo cálculo,
assim como da reaparição do planeta pelo bordo iluminado.
Em seguida, foi a vez de Marte, que já passara pelo meridia-
no, e o astrônomo procurou reconhecer as neves polares e as
principais manchas geográficas. Porém, a imagem carecia de
nitidez, pois a atmosfera da cúpula estava um pouco aquecida. A
lente foi então voltada para os principais círculos lunares visíveis
naquela noite, que era a antevéspera do quarto crescente. O
senhor e a senhora de Noirmoutiers demoraram-se bastante
tempo contemplando os efeitos de luz prateada sobre as chanfra-
duras lunares tão curiosamente recortadas.
Enquanto seu tio e sua tia observavam na lente, Estela saíra
para o terraço, a fim de olhar o conjunto da abóbada estrelada. O
“Solitário” não tardou em segui-la.
Era uma bela noite de Verão. Tudo era calmo e silencioso; as
estrelas resplendiam no céu, apenas esmaecidas no poente pela
claridade do amplo crescente lunar. Haviam-se acendido uma a
uma, e agora constelavam o imenso zimbório. Arctúrus com os
seus raios de ouro; Vega da Lira duma alvura tão viva que pare-
cia quase azulada; Altair e seus dois satélites da Águia; as sete
estrelas da Ursa Maior; as quatro do quadrado do Pégaso; os três
brilhantes de Andrômeda; todas as constelações do Verão; a
cadeira de Cassíope; Perseu, com a sua cabeça de Medusa; o
Delfim; o Cisne; a estrela Polar; a Coroa Boreal, prendiam
alternativamente o olhar e o pensamento. A montanha estava
muda, e os derradeiros pássaros já haviam cessado o seu cantar.
Só o rouxinol enviava ainda à Lua seus trinados infatigáveis que
pareciam, detendo-se, mergulhar toda a Natureza em um silêncio
atento. Então, a brisa, vinda das altas matas da vertente sul dos
Pirineus, trazia, num ligeiro sussurro, o odor florestal das azi-
nheiras mesclado ao fresco perfume das acácias.
– Pode-se sentir bem a vida nesta solidão! Exclamou Estela.
Os olhos do astrônomo, iluminados pela Lua, brilharam com
intenso fulgor. Estela compreendeu que podia acostumar-se com
esse olhar, porém, toda vez que o encontrava, um leve fluido
elétrico lhe percorria o corpo.
– Julguei, respondeu Dargilan, que a senhorita preferiria, sem
discussão, Paris a estas montanhas.
– Para viver, certamente, replicou Estela; mas, esta tranqüili-
dade da Natureza é agradável após os prazeres mundanos do
inverno.
– Não vi Paris e algumas grandes cidades senão de passagem,
acrescentou o “Solitário”, e não posso compreender como se
viva no meio desses amontoados de pedras. Muros, janelas,
calçadas, lojas, bulevares, avenidas, ruas e praças públicas, tudo
formigando de pessoas atarefadas: que vida fictícia, artificial e
superficial! E nos salões, visitas e teatro, existe mais verdade?
Esses alojamentos, atapetados, fechados entre ruas e alamedas,
parecem irrespiráveis. Quanto prefiro uma vista sobre essas
vertentes, essas florestas, essas pradeiras, uma paisagem, um
bosque, uma fonte, um riacho, plantas, flores e pássaros, e, acima
de tudo, esse ar tão puro!
Aqui, nestas alturas, a vida é em plena Natureza e ante a
imensidade. É um grande sossego para o pensamento. Nada de
agitações, de tormentos, de tolas vaidades, de interesses grossei-
ros, nem pequenezes vulgares; nada de hipocrisia, de mentiras,
de invejas, nem de ódios. O espírito reina acima do corpo. Vive-
se desembaraçado da Humanidade. Tudo é puro, tudo é grande.
A Natureza é uma consoladora, a floresta um repouso, os ninhos
gorjeiam. As giestas, os musgos, os fetos e as urzes formam
tapetes imensos nas clareiras; sob os carvalhos, os ulmeiros, os
freixos e as faias. Sob os pinheiros de ramos estendidos, onde o
solo permanece estéril, existe um tapete em que é agradável
estender-se e sonhar. Vós ouvis esse rouxinol: cantará até que a
flor de lis esteja em desabroche. Vós respirais o perfume longín-
quo dos sabugueiros; dentro de alguns dias as acácias, que já se
cobrem de rebentos, estarão plenas de flores; depois virão as
tílias e as roseiras. Tudo é sempre bom, até a chuva, as tempes-
tades e a neve do inverno. Essa queda d'água que ouvis não se
detém quase nunca. No bosque a fonte murmura, as florinhas
parecem sonhar junto das grandes árvores, e por cima dessa
decoração grandiosa se estende a imensidão dos céus. Mas,
senhorita, acrescentou, falo-lhe como se já a conhecesse de há
muito tempo.
Estela também pensou que já o conhecia desde muito tempo.
– Esse céu estrelado é maravilhoso! Replicou, animando-se.
Sempre amei a Astronomia e compreendo quanto merece a nossa
adoração. Nada mais belo no mundo! E parece-me neste momen-
to, tal qual a vós, que para bem compreendê-la não é de uma
grande cidade que se deve olhar o céu, porém de uma calma
solidão igual a esta. Li todos os seus livros. Contudo, isso, este
eterno silêncio não foi feito para entristecer o pensamento?
– O silêncio do céu é mais eloqüente do que todas as vozes
humanas. Sentir-me-ia um sacrílego se o comparasse aos discur-
sos dos mais brilhantes advogados, às orações do mais fogoso
tribuno. Prefiro a toutinegra. Oh! Esses oradores que defendem,
a frio, o falso e o verdadeiro, cujas eloqüentes palavras não
passam de burlas e que tantas vezes se vendem àqueles que os
pagam! Comovem a Humanidade com palavras e fazem subir o
lodo para turvar a água. Todos esses belos faladores que explo-
ram a popularidade causam-me na verdade um santo horror.
– E eu que fui deputado, aparteou o senhor de Noirmoutiers,
que chegara havia instantes ao terraço.
– Há, sem dúvida, sinceros e honestos, continuou Dargilan;
falo em geral e exprimo francamente o meu pensamento. O
aspecto desta abóbada celeste me transporta de admiração.
Talvez esta sublimidade me torne injusto para com os demais. A
senhorita d'Ossian me dizia que o céu é silencioso. Oh! Esse
silêncio é uma sublime linguagem. As impressões que se sentem
aqui não são seriamente as de um salão parisiense ou de uma sala
de espetáculos!
O astrônomo levantou a mão no rumo das sete estrelas do
Norte, e continuou, em um tom suave, sem exaltação aparente:
– Penso em voz alta convosco, exclamou.
– Somos da vossa família intelectual, respondeu o conde; so-
mos vossos discípulos. Admiramos o vosso céu e desejaríamos
conhecê-lo tanto quanto o conheceis.
– Vede todas essas estrelas perdidas no infinito. Não é possí-
vel contemplá-las sem nos recordarmos de que elas brilham lá
desde o começo do mundo, e de que nossos pais dos séculos
passados, mortos há tanto tempo, as saudaram, tal qual o faze-
mos hoje, no silêncio das noites de outrora. Essas sete estrelas da
Ursa Maior guiaram a expedição dos Argonautas à conquista do
Tosão de Ouro. Job, Homero, Hesíodo e o meigo Vergílio as
cantaram. Jesus as contemplou nas noites que passou no deserto.
Todas essas longínquas estrelas estiveram associadas aos aconte-
cimentos da Humanidade. Viram as pirâmides no tempo de
Cheops e de Bonaparte; brilharam sobre os atenienses e os
romanos. Quantos olhares se cruzaram nessas alturas! Quantos
juramentos ouviram! Os olhos humanos se fecham; os corações
cessam de bater; mas, esses olhos do céu, esses corações da vida
infinita estão sempre lá, brilham, palpitam sempre! Não posso
contemplar essas estrelas sem me sentir associado a toda a
história da Humanidade e sem pensar que tudo passa menos elas,
tudo: nações, pátrias, idiomas, religiões, idéias, gerações, pai-
xões, seres e coisas, tudo, menos elas, símbolos da Eternidade. E
é uma outra vida que se desenvolve distante, uma vida da qual
somos ao mesmo tempo estranhos e partícipes. Como quereis
que não as ame?
– Jamais tinha visto o céu qual o vejo nesta noite, exclamou
Estela. Fostes vós quem me ensinou a ler nesse grande livro, e é
somente agora que creio compreender. Minha impressão é de
que as estrelas me falam pela primeira vez. Seria uma coisa bela,
suave, mas talvez triste, uma Terra onde sempre reinasse a noite.
O astrônomo pareceu tocado pela observação, e olhou a jo-
vem com interesse.
– Desejaria escolher uma estrela, acrescentou. Olhe! Aquela!
– A alva estrela da Lira! Vega. É uma das mais belas do céu.
– Pois bem, eu a escolhi! Confiar-lhe-ei meus pensamentos. E
aquela outra, menos alva, é Arctúrus, não é?
– Sim, Arctúrus, de raios de ouro, mais velha do que Vega,
que é muito jovem; a rubra Aldebarã tem já idade avançada.
Quanto a Arctúrus, a constelação onde ela é diamante parece o
rebanho dos sete bois do Monte, e por isso se chama Boeiro.
– Os sete bois? Indagou o senhor de Noirmoutiers.
– Sim, os latinos chamavam a essas estrelas da Grande Ursa –
os “septem triones”. Daí surgiu a palavra setentrião para designar
o Norte.
– Qual é, disse a condessa, que chegara ao terraço naquele
momento, qual é aquela espécie de ninho, de montão de peque-
nas estrelas, ali, entre aquela bela estrela é a Grande Ursa?
– É a cabeleira de Berenice. Conheceis a história?
– Não.
– Certamente vos recordam de Berenice, irmã e esposa do
rei...
– Irmã e esposa?
– Sim. Naquele tempo, no Egito, era um costume da alta so-
ciedade. Eram jovens e amorosos. Tolomeu Evergeta fora com-
bater seu vizinho, Seleucis II, rei da Síria. Na sua tristeza, Bere-
nice, cuja cabeleira era admirável, acreditou tornar os deuses
favoráveis fazendo um grande sacrifício, e prometeu a Vênus
cortar os cabelos se o seu bem amado fosse vitorioso. O rei
retornou vencedor e encontrou Berenice despojada do seu mais
belo ornamento. Para cúmulo de infelicidade a cabeleira, deposi-
tada sobre o altar de Vênus, fora roubada. O desespero do rei só
foi acalmado com a intervenção do astrônomo Cónon, que
naquela mesma noite mostrou ao jovem casal a cabeleira de
Berenice brilhando no céu, aonde fora levada por Vênus. Ca-
límaco fez disso assunto de um poema, que Catulo traduziu em
elegia.
– É um episódio encantador, retrucou o senhor de Noir-
moutiers. Não me admira mais que o céu lhe interesse tanto: está
cheio de histórias, recordações, lendas...
– De verdades, replicou Dargilan. O episódio da cabeleira de
Berenice é uma infantilidade. Encontramos no céu fatos de toda
natureza, trágicos até, se quisermos ir ao fundo das coisas. Vede,
por exemplo, aquelas estrelas de Cassíope. Pois bem, no ano da
matança de Bartolomeu, toda a Europa viu nela um fenômeno
extraordinário: um mundo em fogo.
Acolá, perto daquela pequena estrela, brilhou de repente um
astro luminoso, enorme. Foi a 11 de Novembro de 1572. A nova
estrela era tão resplandecente, que permanecia visível em pleno
dia. Durante cinco meses dominou os astros de primeira grande-
za, para depois enfraquecer gradualmente o brilho até desapare-
cer de chofre, ao termo de dezessete meses. Isso foi causa de
grande inquietação em toda a cristandade. Naquele tempo ainda
se acreditava que a Terra fosse o centro da Criação. O observa-
dor Ticho-Brahe combatia a hipótese do cônego Copérnico. Os
astrólogos imaginaram que a aparição misteriosa fosse a estrela
dos Magos, e anunciaram o retorno do Homem-Deus à Terra e o
fim do mundo. Desde então a estrela não se viu mais; porém,
talvez assistamos qualquer dia a uma conflagração da mesma
ordem e não perderemos de vista o local desse incêndio celeste,
que talvez tenha marcado o fim de um mundo ou de todo um
sistema de mundos.
O céu está longe de ser um painel de silêncio e de morte. Por
toda parte, nesse espaço imenso, o historiador da Natureza
assiste a espetáculos prodigiosos. Olhai, lá também, em Cassío-
pe, distinguis aquela pequena estrela, quase imperceptível a olho
nu?... Sim, aquela. Pois bem, ela viaja no céu com uma veloci-
dade superior a duzentos quilômetros por segundo! Há quarenta
séculos, era vizinha da estrela Alfa que Vedes ali, e dentro de
sessenta séculos atingirá aquela outra do lado Este. Imaginai o
que possa ser uma velocidade de doze mil quilômetros por hora!
Os choques não são impossíveis. Eles explicarão as conflagra-
ções periódicas, as quais já foram observadas em número de
vinte e cinco, e explicarão também a ressurreição de sóis extin-
tos. Que obuses!...
E vedes, ainda ali, sempre nesta mesma região do céu, esta
brilhante estrela de Perseu? É Algol, a estrela do Diabo, a cabeça
da Medusa. É bem curiosa ela, também. De dois em dois dias
decai da segunda para a quarta grandeza. É um eclipse produzido
pela passagem de um corpo escuro diante desse longínquo sol. A
duração mínima é de seis minutos. É um sistema que gira no
plano do nosso raio visual, e é graças a essa coincidência que o
conhecemos.
– Por conseguinte, os astrônomos já conhecem sistemas sola-
res diferentes do nosso? Interrogou o conde.
– Sim. Diversos, qual o de Algol, da estrela Delta de Cafeu,
que vedes também ali, na estrela U de Ophiucus, que foram
descobertas por gravitarem no plano do nosso raio visual. Ou-
tros, os de Sírio, Procion, Castor, foram descobertos pelos deslo-
camentos da estrela, devidos à atração de seus satélites. Não
podemos mais supor que o nosso sistema planetário seja uma
exceção no Universo.
– Oh! Que linda estrela cadente! Exclamou Estela.
– Ela desapareceu, explicou o astrônomo, próximo de uma
estrela, bastante curiosa também, da constelação de Cefeu, a que
William Herschel chamava Garne Sídus, o astro grená, e que é
de um vermelho translúcido admirável. É símile de um carvão
ardente. Varia da quarta à sexta grandeza. Vemos nela um sol
que se extingue. Viveu em séculos passados, brilhou sobre
primaveras e flores, e agora lança os últimos clarões de uma
lenta agonia. Não posso observá-lo sem pensar nos mortos que lá
estão. Esse olho extinto do passado nos observa sem nos ver,
pobre cristalino já descorado pela agonia. Foi jovem antes de
nós. É um astro do passado.
– O céu também vive seus dramas e suas tragédias, disse o
conde.
– Mostrar-vos-ei ao telescópio estrelas tão rubras que pare-
cem gotas de sangue, pérolas de rubis brilhando na imensidade.
É um escrínio de jóias infinito.
O céu, imagem da noite e da morte! A imobilidade aparente
das estrelas no firmamento! O silêncio secular e a antiga solidão
das profundezas estreladas! Não há no mundo erro mais ingênuo
do que a nossa impressão! Não se compreende o céu. É a vida, é
o movimento, é a força, a energia, a luz, o calor, o sol! Que digo
o sol? É um turbilhão de sóis sem número, precipitando-se
através dos abismos do Infinito, é uma fantástica conflagração de
mundos desconhecidos arrebatados na imensidade; nossas revo-
luções humanas, nossos terremotos, nossas tempestades e trovo-
adas, são sorrisos de crianças comparadas a esses movimentos de
forças colossais.
O céu é a Terra multiplicada milhões de vezes, e a Terra é um
caminho do céu. Estamos no céu. A Terra que habitamos faz
parte dele. É um planeta, um globo suspenso no espaço, tal qual
está a Lua, Vênus ou Júpiter. Eis a verdade. Todas as idéias
humanas, de que a vida está cheia, são falsas. A Humanidade se
satisfaz com elas, porque é ignorante.
– Meu caro mestre, exclamou o conde, sois o verdadeiro poe-
ta da noite. Na minha infância li e admirei as “Noites”, de
Young, e lembro-me ainda de sua invocação: “Oh! noite majes-
tosa, augusta ancestral do Universo, tu que, nascida antes do
astro dos dias, deves sobreviver-lhe ainda, onde começarei, onde
terminarei teu panegírico? Tua fronte caliginosa é coroada de
estrelas, as nuvens matizadas pelas sombras e enroscadas em mil
contornos compõem a tua imensa roupagem.” Sim, é uma bela
invocação. Parece-me, porém, aí se canta uma noite artificial,
feitura das mãos dos homens. Não diz ele que “o firmamento se
assemelha ao peitoral do sacrificador, semeado de pedras precio-
sas e distintivas dos oráculos?” Não diz também que “a noite é
um véu que a Providência estende entre o homem e sua vaida-
de?” Prefiro a Natureza, o Universo real, prefiro a Astronomia,
singela, da qual é o revelador.
– Não sou, senhor conde, poeta nem revelador. Exprimo
quanto sinto, humildemente, sem a menor pretensão. Perante o
Infinito, somos tão totalmente esmagados que não resta lugar
para o orgulho. Um astrônomo fátuo dar-me-ia a impressão de
um asno carregado de relíquias.
E depois, que humilhação a nossa! Já pensastes alguma vez
no quanto é grosseira a nossa mísera organização humana?
Obrigados a comer! Não, verdadeiramente, para a perfectibilida-
de ainda nos falta muito. Felizmente a alma domina o corpo, e a
ciência nos purifica, além de que a vida passa depressa, muito
depressa para o estudioso do céu.
– Mas, tendes sempre o que aprender nesse céu?
– Vivendo mil séculos, não saberíamos tudo, não aprenderí-
amos a metade, nem a quarta, nem a centésima parte. É o Infinito
a conquistar. Lembrai-vos do enigma proposto por Timeo de
Locres há vinte séculos: Que é um círculo, cujo centro está em
toda parte e a circunferência em parte alguma? A resposta era:
Deus. Podemos, com o Cardeal De Cusa e Pascal, atribuir essa
mesma definição ao Universo infinito.
E quantas grandezas, quantas maravilhas, quantas riquezas! O
presente, o passado e o porvir, tudo está além. Vede aquelas
estrelas da constelação de Hércules: é para lá que marchamos,
que o Sol nos conduz qual passageiros de um navio. Vede esse
fragmento da Via-Láctea, que parece partida em dois rios celes-
tes: há até uma furna no céu estrelado; se o vosso pensamento
voar ao fundo dessa caverna e de lá contemplar a Terra, verá o
nosso planeta, não qual é no dia de hoje, e sim qual o foi há
cinco mil séculos. Olhai aquela terceira estrela de Andrômeda;
vos a credes branca e simples; pois bem, quando quiser eu a farei
vir ao campo do telescópio, e vós vereis com os vossos próprios
olhos a maravilha que é: um sol de ouro em torno do qual gira
lentamente um sol verde-esmeralda, em torno do qual e por sua
vez gira rapidamente um sol azul-safira. Imaginai as colorações
fantásticas dos mundos iluminados por esse tríplice sol! Quanto
o nosso pobre Sol terrestre é pálido ao lado dessas riquezas!...
Vede, na constelação do Cisne, aquela linda estrela: é Albíreo.
Há ali o consórcio de dois astros esplêndidos, um que lança em
torno de si jatos deslumbrantes de uma luz dourada, e outro,
estrela azul, que irradia uma coloração de safira. E acolá, no
Delfim, está um topázio que mistura as suas chamas às de uma
esmeralda. E mais adiante está Mizar: dois diamantes celestes
que deixam muito longe os mais luminosos diamantes da Terra.
Vede no Cisne, que contemplamos há pouco e que se estende
resplendente de alvura, em plena Via-Láctea: ali se encontra a
primeira estrela cuja distância da Terra pôde ser medida; é uma
das mais próximas de nós: gira a setenta mil milhões de quilôme-
tros daqui, e a seta de luz que atravessa o espaço com a veloci-
dade do relâmpago, e percorre 300.000 quilômetros por segundo,
voa com essa velocidade durante 2555 dias antes de nos chegar.
Assim, o resplendor que recebemos neste momento se despren-
deu há esse tempo, e vemos a estrela, não qual é atualmente,
porém qual era na época em que partiu a fotografia que nos
chega hoje... Pela Astronomia vivemos no Tempo e no Espaço,
no Infinito e na Eternidade!
E tudo isso gira, vagueia, e se precipita no mistério, no des-
conhecido, e com que velocidade! Com que vertigem! Cem,
duzentos, trezentos mil metros por segundo! É isso loucura? É
sabedoria? Aonde vão todos esses sóis, todos esses mundos?
Onde está a meta? Onde está o fim? Onde está o começo? E
aonde vamos nós mesmos com o nosso Sol? Para onde, pois,
tudo o que existe na Criação inteira, astros, sóis, planetas, meses,
dias, estações, primaveras, perfumes, ninhos dos arvoredos,
crianças de berço, velhos com um pé na tumba, para onde, pois,
corre tudo isso com tanta velocidade? Abismo! Insondável...
Inflamava-se, esquecia a Terra, elevava-se e planava no pró-
prio céu, e, sem se fixar nisso, assim descrevia aos circunstantes
as descobertas da Ciência, que têm verdadeiramente algo de
prodigioso e que por vezes calavam fundo, na jovem ouvinte,
chegando ao auge quando Dargilan falou da análise química dos
mundos pelo exame da luz respectiva, e dos movimentos vertigi-
nosos que lançam todos esses astros através da imensidão, uns se
aproximando de nós, afastando-se outros, e chovendo no Infinito
qual uma chuva de meteoros impelidos em turbilhões pelos
ventos do céu, pela força da atração.
Estela ouvia, interrogava, admirava, caminhava de surpresa
em surpresa, e no seu deslumbramento perdia de vista a Terra e a
sua Humanidade, e compreendia que a mais nobre missão do
espírito humano é a pesquisa da Verdade. Todos os apetites
materiais da vida vulgar, todas as vaidades do mundo, todas as
glórias, todas as ambições, todos os interesses desciam a seus
olhas à insignificância real; e uma luz única lhe parecia digna de
cativar a alma: a luz da Ciência.
Descendo do Observatório para o castelo, a Humanidade lhe
pareceu mesquinha, e o “Solitário”, pobre e isolado, pareceu-lhe
brilhar no céu qual um Espírito puro, envolto numa auréola
luminosa. Ele, o silencioso, o mudo, o absorto, deixara-se arras-
tar pela sua paixão dominante, e cantava o Céu qual o poeta
celebra o Amor. Sim, era um ser, à primeira vista, quase brutal;
porém, sob essa rude aparência, que alma apaixonada, que
embriaguez de ciência, que superioridade de inteligência, que
desprendimento de tudo que é falso e incerto, pelo culto puro da
Verdade!
XII
Os outros mundos

Alguns dias depois da conversação precedente, no final do


jantar, à hora em que o Sol, que ainda não se ocultara, fazia
espelhar em reflexos de ouro, pelas janelas de longínqua aldeia,
os raios de seu disco, incandescente, Estela disse, de repente, ao
tio:
– O céu me parece muito lindo esta noite. Seria talvez a me-
lhor ocasião para observar Marte ao telescópio. Sabes que naque-
la noite, apesar de todas as interessantes descrições do astrôno-
mo, não pude chegar a reconhecer em realidade nenhum dos
detalhes da sua carta de Marte, nem os canais, nem os lagos.
Distingui muito bem os continentes, os mares e a neve do pólo.
Mas isso é pouco para o todo.
– Também o desejaria. Mas não achas que nos vamos tornar
um pouco maçantes? Não te esqueças de que, quando o pertur-
bam em seus trabalhos, ele não é nada gentil. E depois, nada nos
apressa. A noite ainda não está próxima.
– Oh! o tempo de subir, e já será quase noite. Não nos disse
ele que se distingue muito melhor a geografia de Marte antes do
pôr do Sol e ao crepúsculo do que durante a noite plena?
– Como queiras. Visto que estás em vias de te tornar astrô-
noma, não encontro melhor do que te imitar. Acreditas que
estamos longe de Paris e de suas pompas! Vês que nem sempre a
gente se aborrece no campo.
Estela já estava de pé, com a mantilha na cabeça. Chegaram
ao Observatório antes do pôr do Sol.
Enquanto atravessavam, conduzidos pelo jardineiro, a ampla
peça lajeada do rés-do-chão, um ruído de queda d’água atraiu
sua atenção para uma porta deixada aberta e perceberam uma
espécie de pequena cascata caindo do rochedo.
– É uma fonte, informou o jardineiro. É ali que meu amo to-
ma sua ducha todas as manhãs. Ele gosta da água fria. Às vezes
mergulha no côncavo da base onde a água que cai é gelada.
Somente no inverno nos deixa aquecer água para a sala de ba-
nhos.
– Tendes sala de banhos? – inquiriu o conde.
– Sim, naquela porta. Dizem até que data do temp dos roma-
nos, tal qual a de Luchon.
E o honrado servidor ficou todo satisfeito em mostrar a pe-
quena sala contígua ao rochedo, vizinha da fonte.
“Isto não é tão selvagem – pensou Estela; os romanos não
eram bárbaros. Muitos parisienses não têm esse luxo de água
fria. Nosso Solitário não é a semelhança de um capuchinho.”
– Meu tio – disse Estela em voz alta –, subamos; o Sol vai
ocultar-se. Sabe que pretendo ver Marte ainda de dia.
– Agradecemos-lhe – acrescentou, dirigindo-se ao jardineiro
–. Conheço a escada. Iremos imediatamente ao Observatório.
Foi a primeira a chegar, um pouco sufocada.
– Não vos estorvamos, senhor Dargilan?
– Não, senhorita. Queira apenas esperar um instante, enquan-
to termino um desenho do lado do Sol. Fostes bem inspirada em
vir esta noite; a visibilidade será ótima dentro de meia hora.
Parece-me que amanhã o tempo vai mudar.
O tio e a sobrinha, afastando-se, viram-se na presença de um
dos mais belos poentes do ano. O enorme disco vermelho descia
lentamente por detrás das montanhas, deixando na sua esteira um
rastro de glória resplandecente, e no bosque, circundando-os, os
pássaros chilreavam, parecendo celebrar em todos os tons a
alegria de viver. Nem uma nuvem no céu. Rubra, luminosa,
esplendente no horizonte ocidental, azul quase escuro no zênite,
a celeste cúpula, onde não se apercebia ainda nenhuma estrela,
passava insensivelmente por todas as gamas desta coloração, que
funde todas as nuances no imenso azul atmosférico. Era uma
apoteose universal apagando-se lentamente para dar lugar às
revelações da noite.
Quando voltaram ao equatorial, o astrônomo já tinha descido
da banqueta de observação.
– Olhai senhor, disse, o planeta está no campo do instrumen-
to, e marcha em sentido contrário ao do movimento da Terra. Se
o contorno do disco de Marte não aparecer muito claro, regulai a
ocular segundo já sabeis.
– A neve do pólo superior está ofuscante de alvura, disse o
senhor de Noirmoutiers, bem mais nítida do que naquela noite.
– Notais um pouco mais em baixo uma pequena mancha es-
cura, rodeada por um rebordo cor parda-pérola?
– Sim, está bem nítida e perfeitamente redonda. Não, antes –
um pouco ovalada.
– É o lago do sol. E, à esquerda, um debrum fusco que desce
obliquamente, a princípio assaz largo e parecendo terminar em
ponta?
– Perfeitamente. Será esse o mar da Ampulheta, que nos ha-
veis descrito?
– Não, a rotação já o arrastou. A pequena ponta que vedes é o
golfo das Pérolas.
– Meu tio, exclamou Estela, tu já viste suficiente. É a minha
vez. Em pouco, o céu estará escuro...
– Não, não há perigo, pela ausência de qualquer nuvem. Po-
des muito bem esperar cinco minutos. Nunca vi os famosos
canais e quero tentar descobrir um. Senhor Dargilan, creio
descobrir uma linha que se eleva obliquamente à direita do lago
do Sol.
– Vejamos.
O Astrônomo subiu à escadinha e identificou a linha.
– Pois bem, disse, o senhor tem razão, é um canal; é o Araxe,
que se vai lançar no mar das Sereias. Ainda o distinguiremos
melhor daqui a minutos, pois o planeta, ao girar, vai trazê-lo bem
para diante de nossos olhos.
– Gira então bastante depressa para que possamos notá-lo tão
rapidamente.
– Deveis saber que a rotação diurna é calculada atualmente
com um centésimo de segundo de aproximação.
– Que maravilhosa precisão! O dia lá não é um pouco maior
do que aqui?
– Esta rotação é de 24 horas, 37 minutos, 22 segundos e 65
centésimos de segundo, informou Estela.
– Senhorita, merece um primeiro prêmio, disse o astrônomo.
– Então, meu tio, já viu bastante? É a minha vez?
– Sim, minha pequena. Vem, cedo-te o lugar.
Estela não se fez rogar. Colocou rapidamente a ocular em fo-
co e procurou por sua vez reconhecer os detalhes da geografia de
Marte.
O primeiro detalhe que lhe chamou a atenção foi a neve alvís-
sima do pólo austral.
– É a de lá realmente igual à neve daqui?
– Sim, senhorita. Sabei que vemo-la fundir-se literalmente ao
Sol, à medida que o verão avança...
– O verão... dos marcianos?
– Naturalmente. Nossas estações lhes são completamente es-
tranhas. Contudo eles possuem aproximadamente as mesmas
estações que nós, quanto à intensidade; sabeis, tanto quanto eu,
que elas apenas são duas vezes mais longas do que as da nossa
Terra.
– Talvez seja isso que faz que a neve derreta inteiramente,
conforme o senhor disse no outro dia. São na verdade estontean-
tes de alvura essas neves de Marte. Em comparação, os continen-
tes são bem amarelos. Quanto seria interessante saber o que há
por lá, talvez a mesma Natureza de aqui.
– Provavelmente tudo dessemelhante. Não há motivo para
que as nossas espécies vegetais e animais existam lá. Embora
seja o mesmo Sol que ilumina esse mundo e o nosso, não é o
mesmo ar que o envolve, não são as mesmas as condições vitais.
A temperatura de lá talvez seja pouco mais ou menos a daqui.
Mas, quantas outras diferenças! Quase nunca chove.
– Ah! Vejo o lago do Sol. Parece exatamente o do mapa. Não
está mais sobre a linha central, e sim à esquerda. Ah! Vejo o
canal. Oh! Não um só, porém dois.
– E onde vê o segundo?
– Por baixo do... Araxe (não é assim que denominais?), par-
tindo do mesmo ponto, porém divergindo à direita.
– Está certo. Não quis preveni-la, mas está bem nítido esta
noite. É o canal das Euménides. No extremo do Araxe deveis
distinguir pequeno mar, que lembra um pouco o Adriático. É o
mar das Sereias.
– Os canais serão rios que tenham suas desembocaduras nes-
ses mares?
– Não, nunca começam em terra firme; vão de um mar a ou-
tro.
– Oh! Como estou contente por ver tudo isso! Poderei voltar
muitas vezes?
– Cada vez que desejar, senhorita. Mas receio bem que o
tempo se modifique. Experimente fazer um desenho de tudo que
viu.
– Um desenho! Não o conseguiria nunca.
– Por quê? É só tentar. Repare eis ali um círculo preparado e
lápis.
Estela tomou o papel e um lápis e, assinalando primeiro o lo-
cal tão evidente da neve polar, desenhou o lago negro circular do
Sol, o terreno pardo que o rodeia, o mar superior, os dois canais
que percebera, o mar das Sereias. Os croquis careciam de exati-
dão, de nitidez e de precisão; contudo, assemelhava-se bastante à
imagem telescópica para que se conhecesse nele um desenho de
Marte e não o de um outro planeta. Estela sentiu-se lisonjeada
com a apreciação do astrônomo e pela crítica séria que ele se deu
ao trabalho de fazer, e prometeu a si mesma sair-se melhor na
próxima vez. Uma hora antes, o astrônomo fizera um desenho
muito preciso, e a comparação dos dois mostrou que o da jovem
não era ridículo.
Estela notara, presa ao muro, uma grande carta geográfica de
Marte, um mapa-múndi, no qual os mares, os continentes, os
canais, os lagos, litorais, os golfos e até as ilhas estavam repre-
sentados com minúcias. Aproximou-se, examinou demorada-
mente esse mapa e, pousando o dedo sobre determinado ponto,
exclamou.
– Eis aqui com certeza o que vimos há pouco pelo telescópio.
– Exatamente, replicou o “Solitário”. A senhorita reconheceu
admiravelmente.
– Mas nós não vimos toda essa redezínha de pequenos canais!
– Não, e por várias razões. Primeiro, porque é preciso cir-
cunstâncias atmosféricas excepcionais, para distingui-los; de-
pois, é preciso ter uma vista exercitada, o hábito de observações
astronômicas. Sabeis que a distância é grande. O planeta está
esta noite a 95 milhões de quilômetros: um expresso, correndo
com a velocidade de um quilômetro por minuto, gastaria 95
milhões de minutos para chegar lá, o que dá aproximadamente
66.000 dias ou 18 decênios! A lente de que nos servimos há
pouco aumenta quinhentas vezes, o que reduz aquela distância a
190.000 quilômetros, isto é, diminuição igual à metade da dis-
tância da Lua – vista a olho nu. É ainda um pouco longe para
distinguir os pequenos detalhes.
Além disso, prosseguiu o astrônomo, esses canais não são
permanentes. Em certas estações, os melhores instrumentos
ópticos não os poderiam mostrar. Só se enchem d'água na época
da fusão das neves, e distribuem essas águas na irrigação dos
continentes. Não há ali chuvas, nem mananciais, nem rios. Os
canais são os únicos a fazer a circulação das águas.
– Que admirável traçado geométrico! Observou o conde, de-
pois de examinar por instantes o mesmo mapa. Está aí um belo
trabalho de drenagem em pleno céu.
– Não é água o que vemos, replicou Dargilan, e sim o produto
de água, pradarias que crescem em poucos meses sob a influên-
cia da umidade, de igual modo que vemos, em balão, os cursos
d'água desenhados pelos almargeais que bordam cada lado de um
delgado filete de água. Muitas dessas manchas verde-escuras,
que denominam os mares, podem ser também planícies cobertas
de vegetação.
– Quando se imagina que podem, que devem existir lá habi-
tantes, disse o senhor de Noirmoutiers, seres humanos que
pensam igual a nós, melhor do que nós talvez, e, quem sabe? se
perguntem, vendo nossa Terra em seu céu, se existimos...!
– Pela minha parte não tenho dúvidas, replicou o “Solitário”.
Marte é mais antigo e mais adiantado do que a Terra no seu ciclo
vital; está também, podemos dizer, mais evolvido do que o nosso
planeta, considerando-se o conjunto de condições de habitabili-
dade, e a duração dos períodos que medem a existência, pois,
sendo lá os períodos anuais duas vezes maiores do que os daqui,
proporcionam bem melhor curso de vida do que os nossos à
fecundidade do trabalho intelectual...
– Qual a sua duração?
– Os ciclos anuais, nesse mundo vizinho, são quase de 687
dias.
– De 686 dias, 23 horas, 30 minutos e 41 segundos, interrom-
peu Estela.
– Que memória! disse o “Solitário” sorrindo. Assim, é quase
duas vezes mais lento do que aqui. Não há nada de surpreendente
em que se viva ali duas vezes mais do que entre nós. Mas, acres-
centou, dizia eu que esse planeta é, em certos pontos, mais
agradável, mais elevado do que o nosso. Assim, entre outros,
presumo que os corpos, sendo ali menos pesados, são menos
grosseiros, mais delicados, mais sensíveis, mais etéreos, mais
puros. Não quero fazer o julgamento dos organismos terrestres;
porém, não é necessária longa reflexão para aperceber-se de que
a espécie humana ainda está muito vizinha da animalidade, e
bem tosca. O peso da matéria desempenha papel importante na
sua organização e em todos os seus apetites. Fazei idéia de que
se pudéssemos ir pesar um quilo, em Marte, averiguaria que os
1000 gramas pesavam apenas 376. A senhorita d'Ossian terá,
suponho, 60 quilos; transportada, tal qual está, para Marte, não
pesaria ali mais de 22. Parece-me que a Humanidade marciana
deve ter gostos superiores em tudo.
Nada nos autoriza a pensar que a evolução da consciência no
Universo tenha dado o máximo da sua medida no espírito huma-
no terrestre. Tudo nos convida a crer, ao contrário, que há seres
incomparavelmente superiores a nós outros quanto à organização
e quanto ao espírito.
– A mim, o que impressiona mais na Astronomia viva da nos-
sa época, interveio o senhor de Noirmoutiers, é, de um lado, a
sua precisão matemática e, de outro, a imensa luz que esparge
em nossa visão do Universo. O céu não é mais sombrio.
– E a mim o que mais admira, replicou Estela, é a tolice da
maioria dessa pesada espécie humana de que fala o mestre, dessa
raça pouco inteligente, que não somente desconhece o total de
tais verdades científicas, mas também, quando estas lhe são
expostas, não se interessa por elas e até as toma por invenções da
imaginação. Quantas criaturas humanas viram Marte na forma
pela qual nós outros o vimos hoje?
– Um em cada milhão, senhorita.
– Somente! É uma grande minoria de elite, e agradeço a meu
tio ter-me permitido fazer parte desse número.
– Sim, um milionésimo. Falamos da população total do glo-
bo. Há talvez um pouco mais de 38 franceses e 336 europeus que
tenham visto Marte qual o acabamos de ver; certamente esse
número não excede de 1.500 em toda a Terra. Talvez não haja
15.000 pessoas ao corrente dessas questões, que possam conver-
sar conosco como o fazemos e que compreendam exatamente o
que dizemos, sem diminuir nem exagerar nossas idéias. E a Terra
tem 1.500 milhões de habitantes! Eis porque o pensador é um
solitário. Quanto mais se eleva, mais se insula. Não encontra
facilmente um espírito preparado para compreendê-lo. E com
freqüência os que o ouvem só contam dele extravagâncias,
porque não falam a sua linguagem.
– Não estou bem certa de já a compreender, disse Estela, e às
vezes, quando estou a sós em meu quarto, e procuro relembrar o
que ouvi, parece-me que faço uma tradução. E depois também
tenho as minhas idéias. Não digo nada para evitar que ria de
mim.
– Têm-se intuições às vezes, respondeu gravemente o astrô-
nomo.
– Pensando em todos esses mundos inumeráveis que povoam
o espaço, pergunto-me se não existirá um que, acaso, seja exa-
tamente igual a Terra.
– Exatamente igual?
– Sim; de formação idêntica à da Terra, de um Sol semelhan-
te ao nosso, à mesma distância, com os mesmos elementos, em
circunstâncias idênticas, os mesmos ciclos anuais, os mesmos
dias, a mesma temperatura, a mesma atmosfera, a mesma história
geológica, os mesmos continentes; e assim, sucessivamente, as
mesmas espécies vegetais, animais e humanas; sim, a mesma
Humanidade, as mesmas raças, as mesmas nações, a mesma
evolução, o mesmo desenvolvimento físico e intelectual; e, por
conseqüência, seria povoado, exatamente igual à Terra, de seres
semelhantes a nós outros, habitando países análogos, usando
nossos nomes, vivendo identicamente à nossa maneira, reprodu-
zindo em fac-símile sobre outra terra do céu tudo que fazemos,
tudo que dizemos e até tudo que pensamos nesta Terra.
– Um mundo sósia?
– Sim. Um viajante que lá fosse ter, neste momento, encon-
traria Paris, tal qual é, cada aldeia da França como é atualmente,
e também encontraria a nós três ocupados em conversar famili-
armente sobre o terraço de um observatório dos Pirineus.
– E também lá, replicou o tio, Luís XIV teria construído a cú-
pula dos Inválidos para receber o féretro de Napoleão, e este
teria deixado a ilha de Elba para morrer em Santa Helena, pas-
sando por Waterloo?
– Sim, tudo se passaria exatamente como aqui.
– E uma encantadora jovem, chamada Estela d'Ossian, tam-
bém lá perguntaria a si, neste momento, se não existe em uma
outra terra do céu uma outra Estela, cujo coração pulsasse exa-
tamente qual o seu, e que com certeza também estaria vestida
com a mesma roupa, feita pela mesma costureira?
– Eu bem sabia que zombariam da minha idéia. Ainda tenho
outras. Não direi mais nada.
– Senhorita, replicou o “Solitário”, não é impossível que entre
os milhões e milhões de terras habitadas que existem, existiram
ou existirão na imensidade do Universo, as forças da Natureza
tenham feito nascer um mundo idêntico ao nosso.
– Vês, meu tio!
– Não é impossível, mas é improvável. Que muitos, um gran-
de número talvez tenha tido origem igual a Terra, é admissível,
quase certo, dadas a unidade de substância e a unidade de força.
Porém, as bifurcações são inevitáveis. Entretanto, circunscre-
vendo o raciocínio, sente-se que não é impossível existir no
Espaço um sistema solar análogo ao nosso, e, nesse sistema, um
planeta que tenha seguido exatamente a mesma evolução do
nosso. Não, no infinito dos espaços isso não é impossível.
– E, ajuntou Estela, esse mundo-sósia poderia ter um pouco
em avanço sobre o nosso, por exemplo, de um ou dez ciclos
anuais?
– Seguramente; poderia.
– De sorte que, neste momento, Estela seria o que eu serei o
ano que vem ou daqui a dois lustros?
– Curiosa! Exclamou o tio.
– Oh! Meu tio, talvez não seja muito divertido o que eu serei
daqui a um decênio. Mas, na realidade, a Astronomia é um ninho
cheio de pássaros. Um voa, outro o segue, depois um terceiro,
sem fim. Vejam, pensando nesse mundo-sósia, fui levada a
perguntar-me se nós fazemos o que queremos, se somos livres.
– Grande problema, respondeu o astrônomo. É bem certo que
o porvir existe em gérmen no presente; que não há efeitos sem
causas; e o Espírito que conhecesse as causas poderia de ante-
mão escrever a História.
– Senhor Dargilan, indagou Estela, que voltara à observação
de Marte, o senhor disse em um de seus livros que essas neves
que vemos em redor do pólo se fundem durante o verão. Neste
momento se acham sob o inverno?
– Estão na primavera. Se observardes novamente o planeta
dentro de alguns meses, vereis essas neves quase completamente
liquefeitas.
– As estações lá são as mesmas daqui, e duas vezes mais lon-
gas?
– Sim, senhorita.
– E a atmosfera?
– Mais leve, mais pura. Ali há quase sempre bom tempo.
– Se é mais leve do que aqui, deve ser um mundo encantador.
– Julgais serem todos esses mundos habitados iguais à Terra?
interrogou o conde.
– Sim e não. Sim, se levais em consideração a imensa dura-
ção dos tempos. Não, se apenas encarais a hora atual. Não há
razão alguma para que todos os mundos estejam habitados
presentemente. Nossa época não tem mais importância do que as
precedentes nem do que as que se seguirão. É um orgulho infan-
til da nossa parte imaginar que, por vivermos neste instante, a
nossa época tem um valor especial. Ela passará tal qual as outras.
Tomemos uma data a cem milhões de séculos no passado. Es-
sa data é tão importante quanto a nossa. A Terra não existia. Mas
havia outros mundos habitados, outras formas de vida, outros
seres, outros Espíritos.
Consideremos uma época a cem milhões de séculos no futuro.
Então a Terra não existirá mais. Haverá outras terras, outros sóis,
outros dias, outras noites, outros pensamentos, outras almas.
As forças da Natureza não podem permanecer inativas. Nada
se perde; nada se cria. Tudo se transforma. A vida e o pensamen-
to, sob formas conhecidas ou desconhecidas, resultam das mani-
festações da Energia.
Para conceber exatamente o conjunto da vida universal, é
mister considerar o Tempo tanto quanto o Espaço. Existem no
céu túmulos e berços. Aqui cemitérios. Lá, germens flutuantes.
Parece verossímil que entre os planetas do nosso sistema,
Vênus, Marte e a Terra sejam os únicos atualmente habitados,
achando-se Vênus menos adiantada do que o nosso mundo,
enquanto que Marte é mais adiantado. Vede essas fotografias da
Lua, essas crateras, esses círculos de rochas, esses desertos. Não
é a imagem da morte? Enquanto que Marte e Vênus! Reparai!
acrescentou, fixando o dedo sobre o grande mapa de Marte, em
todos os verãos, na época da liquefação das neves, Vede de que
modo a água se distribui na superfície das terras pela urdidura
geométrica de canais. Esses dois mundos são tão vivos quanto a
Terra.
– Como seria interessante entrar em relações com esses vizi-
nhos do céu, corresponder-nos com eles por meio de sinais
quaisquer!
– É o que nos será dado um dia. Não desesperemos. O espíri-
to humano que soube inventar os instrumentos de óptica, a
fotografia, a análise espectral, a telegrafia, o telefone, o fonógra-
fo, encontrará seguramente um código de correspondência com
Marte ou Vênus. Talvez não seja por meio de aparelhos ópticos.
Ainda há muitas forças a descobrir. O magnetismo interplanetá-
rio poderá desempenhar um grande papel em todos esses futuros
modos de comunicação. Já o Sol nos dirige diversos despachos
cósmicos e os próprios planetas agem sobre a agulha imantada.
– Mas nunca será possível comunicar-nos pessoalmente com
Marte ou Vênus, para ali nos transportarmos em carne e osso?
– Não, certamente. É essa uma das raras negativas que pode-
mos emitir. O Espaço interplanetário é infranqueável para os
nossos corpos terrestres. A atmosfera circunda o nosso globo à
semelhança da cobertura a um casulo, e percorre com ele o
espaço. O éter é o vácuo, o imponderável. Porém, se podemos
estar convictos de que nunca nos será possível transportar-nos
corporalmente de um mundo a outro, seria temerário negar que
essas viagens possam jamais ser feitas por seres espirituais e
imponderáveis, por Almas, Almas humanas, e que um dia uma
comunicação seja estabelecida entre Marte e a Terra pelas forças
psíquicas.
Assim se entretinham com freqüência o “Solitário”, Estela e o
Conde de Noirmoutiers. A alteração levada à solidão e aos
trabalhos absorventes do astrônomo filósofo, por essas visitas
um pouco mundanas, não fora tão desagradável quanto, a princí-
pio, fizera supor o seu caráter original e misantrópico. A primei-
ra visita perturbara-o em seus hábitos e não lhe causara prazer
algum; a segunda ainda lhe fora bastante indiferente; a terceira
parecera-lhe quase natural; as seguintes entraram na sua vida
com agrado, pois proporcionavam repouso à sua longa e solitária
tensão de espírito. O conde e a sobrinha, que de muito tempo lhe
haviam assimilado as idéias e a maneira especial de encarar a
Natureza, deixaram de ser estranhos para ele; faziam parte da
família intelectual de seus numerosos leitores e estavam associa-
dos às suas pesquisas e às suas esperanças. A inteligência de
Estela, seu anseio de ciência e sua curiosidade filosófica interes-
savam-no, e sem dúvida também, ignorando-o, sentia ele o
encanto juvenil dessa flor de sol, que vinha trazer tão delicioso
raio de luz àquela vida até então monótona, tranqüila e obscura,
símile da de um anacoreta. Se essas visitas cessassem brusca-
mente, alguma coisa certamente faltaria à nova atmosfera desse
Observatório que se tornara um pouco mais animado, algo mais
vivo, bem menos silencioso. Gradativa, e mui naturalmente, os
hóspedes do Castelo, o médico de Luchon e um químico que
vivia nas montanhas, adquiriram o hábito de passar uma ou duas
vezes por semana algumas horas no Observatório, ora à noite,
quando o céu estrelado convidava à observação de suas curiosi-
dades infinitas, ora à tarde. Faziam-se alguns passeios pela
floresta ou se reuniam na biblioteca, folheando livros, passando
em revista desenhos e fotografias celestes; realizavam-se experi-
ências de eletricidade no gabinete de Física (e a particular sensi-
bilidade de Estela encaminhara o sábio no rumo de uma nova
descoberta); conversava-se, discutia-se, esquecendo-se por vezes
as horas. O senhor e a senhora de Castelvieil, que, pelos seus
preconceitos sociais e opiniões religiosas, se consideravam
antípodas do sábio, algumas vezes tomavam parte na reunião e
terminaram acostumando-se à rudeza que a princípio tanto os
chocara, e até interessando-se por algumas observações telescó-
picas.
Essas reuniões representavam para todos eles uma vida nova,
uma vida intelectual e, para Estela, em particular, a perfeita
felicidade do espírito e que ela desejaria durasse sempre. As
descrições celestes do astrônomo, suas pesquisas nos horizontes
infinitos, mergulhavam-na em um sonho, sonho em vigília, que
por vezes a perturbava durante noites inteiras.
Sim, sonhava. Meditava nos esplendores da verdade astronô-
mica, e pensava também no astrônomo, que lhe aparecia envolto
em uma auréola, superior pelo seu valor pessoal, pela sua ciên-
cia, pelo seu caráter comparado ao de todos os homens que tivera
ocasião de encontrar no mundo, desde a sua saída do Convento.
Apesar das previsões de seu tio, o escritor nada perdera, visto de
perto. Sua simplicidade igualava-se à grandeza de sua alma.
Admirava-lhe a vida de trabalho, o devotamento tão absoluta-
mente desinteressado gela Ciência, e, para ela, personificava a
glória mais pura da Humanidade. Associava-o ao próprio céu, e
não podia mais contemplar uma estrela sem que visse aparecer a
sua imagem; pensava nele sem cessar.
Quanto essas impressões eram diferentes daquelas que senti-
ra, vagamente, quando o jovem Duque de Jumièges a arrebatara
no turbilhão de um baile! Grave e profundo sentimento nascia
agora em seu coração, e lhe dava a noção de uma nova dignida-
de. Sentia sua alma engrandecida e nobilitada. Parecia reconhe-
cer-se destinada por sua natureza a amar um grande espírito ou
não amar ninguém. Sem que o buscasse, o “Solitário” a atraía
qual o ímã que estende, através de muralhas, o seu irresistível
campo de atração, e força à obediência. E muitas vezes, em
momentos dolorosos em que uma sensação de vácuo atravessava
repentinamente todo o seu ser, e em que sentia o sangue logo
afluir ao coração, ela repetia a si própria a pergunta que fizera ao
jovem filósofo: Somos livres?
As horas que passava junto dele eram, desde então, as suas
únicas horas de ventura.
Nas conversações de seu tio e sua tia já se começava a falar,
porém, no retorno a Paris.
XIII
Estela a Cecília (1ª carta)

“Castelo de Hourtino, 1º de setembro.


Não te escrevo desde há quinze dias, minha querida, apesar
das tuas três cartas, e não desejava responder a elas.
Mas a tua insistência se torna cruel e quase pérfida para mim.
Ainda não adivinhaste a perturbação da minha alma, após a
pequena confidência que dirigi ao teu coração?
Pois bem, vou fazer a confissão inteira. Não resisto mais. Não
és minha irmã? Tive jamais segredos contigo? De resto, tu és
culta, tu, que tens a paixão da Ciência, tu me compreenderás.
Imagino, contudo, que vais tratar-me de louca. És motejadora
e céptica.
Tanto pior! ou tanto melhor! porque procuro o que é verdade.
Mas, o que sei bem, minha querida, é que não me recusarás
jamais a tua amizade, a tua afeição, a tua ternura. Tu mo juraste
um dia, como se adivinhasses de antemão o que me acontece
neste momento.
Com a tua natureza mais masculinizada, a tua lógica, a tua
razão, tu nunca foste... (que deveria eu escrever aqui?) Quem
sabe? Talvez teu coração também houvesse batido um pouco
mais acelerado. É o que ora me acontece. Viste-me no mundo.
Sou acaso muito fria, muito desagradável, muito altiva? Sim, sou
ainda mais independente de caráter do que tu.
Unicamente, às vezes os provérbios têm razão. Não se deve
dizer: Desta água... Em uma palavra: eis tudo. Pedes-me ainda
em tua carta de ontem notícias de um certo projeto de casamento
entre certo duque e eu. Pois bem! para mim não haveria mais do
que um homem no mundo... Que acabo de escrever? Tanto pior.
Não risco. Talvez devesse ter escrito: só existe uma verdade.
Sim, uma única verdade, a da Ciência.
Tu és filósofa, és estudiosa. Teu diploma superior não passa
de um gorro de asno posto na tua inteligência. Sabes álgebra e
geometria, o que sempre me apavorou, mesmo agora. És perga-
minhada? És sim. Pois bem, não é dessa ciência que eu te quero
falar. Compreender-me-ás.
Praticaste a Fotografia, a Química, a Física, a Mecânica. Não
tens um primor no teu gabinete? Pois bem, ainda não é a tudo
isso que eu desejo referir-me.
Ah! se tu compreendesses! Mas, que disse eu? Sim, é isso
mesmo. Algum dia já pensaste no céu? Não o céu de que nos
falavam no Internato. Paraíso, anjos (lembras a capelinha dos
santos anjos-guardiães onde fazíamos nossas preces?), queru-
bins, serafins, santos e santas, virgens mártires (são sempre
mártires as virgens do paraíso), apóstolos, profetas, etc. Era o
céu empíreo dos cristãos. Isso nunca existiu. Ainda acreditas em
tais coisas? Nunca to perguntei. Eu, até ao ano passado, acredi-
tava. Sabes o que é o céu? É o lugar onde estamos.
Algum dia viste Marte ao telescópio? Já viste, com os teus
próprios olhos, esses continentes, esses mares, essas neves, esses
lagos, esses canais extraordinários? Sabes que vivem no Espaço
mundos semelhantes ao que habitamos e para lá devemos ir?
Viste, com os teus próprios olhos, o anel de Saturno? e as nu-
vens de Júpiter, e a grande mancha vermelha, e a nebulosa de
Andrômeda, e as estrelas coloridas – pedras preciosas do céu,
diamantes brancos e amarelos, topázios, esmeraldas, rubis e
safiras? Alguma vez já remigiaste em plena Via-Láctea? Com-
preendeste o Infinito, compreendeste a Eternidade?
A vida intelectual, sabe-o tu, eis a verdadeira vida, a única
vida possível. Pois bem, tu conheces os teus duques, os teus
príncipes, os teus marqueses, os teus condes, e mais os teus
deputados, os teus senadores, os teus ministros, e ainda os teus
milionários, os teus zangões da Bolsa, os teus peraltas, os teus
admiradores, os teus patinadores, os teus ciclistas, os teus cava-
leiros e, finalmente, os teus jornalistas, os teus autores, os teus
histriões, os teus cabotinos, os teus homens chiques de todos os
gêneros. Tudo isso é a Terra.
Ah! sim, pode continuar a falar-me comodamente em casa-
mento durante meio século, esse querido duque, meu belo valsis-
ta, com os seus anéis, seu bracelete e seu monóculo. Que ele
permaneça no círculo, no circo ou nos bastidores. Se algum dia
eu me casar, certamente não será com ele. Pensando em todos os
meus suspirantes (conforme tu os denominas) do último inverno,
conto com a Cármen:
É o outro quem eu prefiro.
Nada disse, mas me agrada.
Vais talvez pensar que eu esteja apaixonada! Vais pedir-me
que te descreva o meu herói, que te diga se é formoso ou feio,
alto, baixo, médio, moreno, louro, amável, atencioso, qual é a
cor de seus olhos, se tem sobrancelhas finas ou espessas, se os
seus cabelos são ondulados, se o seu nariz é grego ou espanhol,
se sua mão é branca, se o seu pé é pequeno, enfim, para dizer
tudo, que remeta o seu retrato de corpo inteiro. Pois bem, não te
envio a sua fotografia por esta simples razão: ele ainda não se
colocou ante uma objetiva para tal. Minha tia acha-o feio, a
baronesa acha-o ridículo. Todo o mundo me incita contra ele;
porém não me preocupo com a sua fisionomia, nem com o seu
corpo. É a sua alma que me agrada. Se tu pudesses ver a expres-
são de seus olhos! Particularmente, em certos momentos...
quando fala do céu. Quanto são simples os grandes homens,
quando os comparo aos nossos pigmeus “poseurs”!
Dizer-te que estou apaixonada? Não. Nunca pensei nisso,
nem ele me fez a menor declaração. E Deus sabe quantas decla-
rações recebi de outros! Seis, pelo menos. Ele, algumas vezes,
me fala, contempla meu rosto. Roçou-me de leve a mão, em
certa ocasião, sem sequer aperceber-se. Nunca me disse que me
amava, e mesmo eu não o acreditaria, pois ele é todo da sua
ciência, e bem se vê que as mulheres não existem nas suas
cogitações.
Dizer-se que jamais me apaixonarei? Isso não sei. Mas repito:
não é a sua pessoa, o seu corpo, o seu semblante que eu amo: é a
sua alma, o seu espírito, o seu coração, a sua ciência. É um
perfeito homem de sentimento. E ninguém o põe em dúvida.
Ah! minha querida, não estou apaixonada, mas quanta agita-
ção! Não fechei olhos durante a noite passada. Estou feia hoje;
ele não me verá.
É uma região linda esta. Asseguro-te que por um nada eu fi-
caria aqui. Tudo é encantador. Por que não se construiu Paris em
Luchon? Aí vão oito páginas repletas de rabiscos. E que desali-
nho! Fui muito tagarela? Não te podes queixar. Abraço-te mil
vezes. Rasga logo esta desatinada carta. Não devia mesmo
remetê-la. Mas, eu própria, meu coração transbordava. E tu
sabes, és agora a minha confidente. A outra morreu. Nunca tive
segredos contigo, minha querida Cecília. Mas não zombes de
mim. Mais um beijo.
Estela”
XIV
Cecília a Estela (1ª carta)

“Monte S. Miguel, 5 de setembro.


Minha Estrela, podes vangloriar-te de estar iludida, tu, a fria
Estela! Não te reconheço mais. E falas em ficar por aí! Um
enlevo, enquanto aí permaneceres! Espero, ao menos, que não
seja um enlevo por adolescente. Não me dizes a idade do teu
Romeu, ó Julieta! Tens uma vintena. Contará ele dezesseis, ao
menos?
Tiveste um novo acesso de eletrização epidérmica, minha
querida. É ocasião de multiplicar as duchas. Vossas ondas elétri-
cas se cruzaram; depois a faísca! Qual! Quem é esse senhor? Não
me dizes nem o seu nome.
Pelo que me contas da opinião de tua tia e da senhora de Cas-
telvieil, ele deve ser muito vulgar e bastante feio. Não te reco-
nheço mais, tu que tinhas tanto gosto! Malvada! que te enamoras
facilmente do primeiro que chega! É o resultado da morna soli-
dão do campo. No reino dos cegos, o zarolho é rei. Acredito que
o teu herói faria figura triste em Paris. Certamente não tem
apresentação, nem elegância.
Isso passará, conforme creio. Cuida em não praticares impru-
dências.
Não pedes notícias minhas, nem de minha mãe, nem dos nos-
sos amigos de Monte São Miguel. Minha mãe atualmente está
bastante enferma, o que me dá inquietude. Imagina que tivemos
ultimamente a visita do Duque de Jumièges, que veio à Abadia.
Que moço encantador! Que distinção em todas as maneiras, e – o
que não prejudicaria mulher alguma – que belo nome! Se eu
fosse linda e rica... Veio acompanhado do seu amigo, o Visconde
de Valvin. Que belo rapaz, esse também! Todo mundo se voltava
à sua passagem, para contemplá-los.
Tu reconheces que emito julgamentos bastante seguros. Sabes
por que não me engano quase nunca a respeito de caracteres? É
porque, quando alguém me fala, homem ou mulher, não reparo
somente nos olhos, mas ainda e principalmente na boca. A
expressão do canto dos lábios trai quase sempre o pensamento
íntimo que a palavra, e até os olhos, desejariam mascarar. Pois
bem, tenho certeza de que, se o duque não te agrada, o visconde
seria um excelente marido.
Conversei sobre o caso, à noite, com minha mãe. Parece que
ambos são mais instruídos do que aparentam. Sabes que em seu
meio não se abre lugar à Ciência.
Contei-lhe que um dia desses, procurando mariscos entre os
rochedos, durante a maré vazante, abaixo do pequeno bosque,
que tu conheces, próximo à capela de Saint-Aubert, o pequeno
René escapou de morrer afogado. Caíra em um buraco e o mar
começava a subir. Felizmente a senhora Poulard, que nos acom-
panhara para mostrar o caminho, apercebeu-se em tempo e
pudemos subir novamente pelo bosque fechado, do qual ela
possuía a chave. Divertimo-nos imutavelmente em “graaande”
sociedade. Na próxima semana iremos a Jersey. Viva a alegria!
Abaixo as melancolias do sentimento e as solidões!
Farás uma verdadeira loucura.
Mil ternuras da tua amiga sincera
Cecília”
XV
Estela a Cecília (2ª carta)

“Castelo de Hourtino, 7 de setembro.


Como és vilã! Abro-te o meu coração, faço-te a confidente
dos meus sentimentos mais íntimos e zombas de mim! Não está
direito, minha pequena Tototte. O que eu disse é muito sério e
não estou iludida de todo. Lembra-te de que já cheguei às vinte
primaveras e não sou mais criança. De há um mês, tenho refleti-
do muito. Minha convicção é de que na Humanidade só existem
duas coisas boas: o espírito e o coração, ou, em outras palavras, a
Ciência e o Amor. Eis aí a grande palavra negligenciada. Enga-
nas-te se sorris. Para mim o amor não é o contato de duas epi-
dermes, como dizia Chamfort, creio eu, no livro que Margarida
me emprestou. É uma vergonha profanar essa palavra divina
como se faz, e tomar por amor sensações e não sentimentos. O
amor é um beijo eterno de duas almas. É a poesia dos sentidos,
admito, mas é também, acima de tudo, a poesia da alma. Eu te
assevero que a minha vida se traça muito clara e muito franca-
mente diante de mim. Quero levar vida intelectual. As gloriolas
efêmeras da política, as pretensões burlescas do dinheiro, as
vaidades da nobreza antiga ou moderna, e todos esses novos
títulos de conde, com que se enfeitam, desde o ano ante-transato,
muitos de nossos amigos de origem honrada e modesta, e todas
essas fortunas, mais ou menos escandalosas – roubadas de ma-
neiras diversas por homens e mulheres – tudo isso, minha queri-
da, me causa piedade. Nem por um império eu desejaria confun-
dir-me com eles. Tornei-me filósofa igual a ti, mas por outro
motivo. E depois, com franqueza, acreditas seriamente, tu, a
lógica, acreditas que haja, nesse chamado “mundo”, sentimentos
verdadeiros e verdadeira felicidade? Vi bastante, ouvi o bastante,
principalmente para saber – digo-te ao ouvido e tremeria se
pudessem ouvir semelhantes palavras saindo da minha boca –
para saber que nesse belo mundo, que nos dão por modelo, quase
todos os maridos têm concubina e quase todas as mulheres um
amante. É o natural! E apesar dos seus “prazeres” e de suas
intrigas, têm o exterior de entediados, esses homens e essas
mulheres do mundo. A sua existência oca não é a verdadeira
vida.
E mais ainda, queres que te diga tudo? Pois bem, tenho uma
nova religião: a religião do céu, da Astronomia, do Infinito, da
Eternidade.
É muito grave. Se a minha vida não se tornar o que desejo
que seja, sentir-me-ei muito infeliz. Morreria!
Vais dizer-me ainda que levante a cabeça, tratar-me de sensi-
tiva, de imaginosa, de nervosa. Enganar-te-ias. sou muito mais
séria do que tenho aparentado até agora.
Leio em teu pensamento. Neste momento tu te perguntas se
estou acordada ou adormecida; se não estou sonhando; se tenho
realmente um motivo seguro, uma base sólida para decidir assim
de minha vida, por mim sozinha, sem ouvir a opinião de meu tio,
da minha tia, de qualquer parente meu... Sim, só, ai de mim!
porque, confesso também, ele não me deixou perceber ainda o
menor indício de amor... embora eu sinta bem que não lhe desa-
grado.
Assim, para teres uma idéia: em uma noite destas, estava eu
junto dele, no alto do escadim em que se sobe para observar os
astros no equatorial, quando não se encontram muitos elevados
no horizonte. A luneta ficava quase horizontal. A lâmpada estava
apagada, para permitir uma observação melhor. Meu tio, que se
achava em nível inferior, nada poderia ver. O alto do escabelo
foi feito para uma só pessoa. Avalia se estaríamos próximos um
do outro. Ele até me segurou pela cintura, para evitar que eu
escorregasse nos degraus. Pois bem! durante toda a minha obser-
vação, que durou bem uns cinco minutos, sua barba roçava o
meu pescoço e ele não aproximou os lábios nem sequer às pontas
dos meus cabelos, que deviam incomodá-lo. Que achas do meu
semideus? É ele bastante correto? Mais correto do que os nossos
valsadores, hein? Estou certa, entretanto, de que não é insensível
aos perfumes, e fez recordar-me de reflexões tuas certa noite em
que me vestia diante de ti. Notei que as asas do seu nariz são por
vezes de singular mobilidade, o que em um homem vulgar talvez
seja um sinal de sensualidade. Mas ele tem sempre o espírito tão
afastado do corpo! Sob o ponto de vista amoroso, parece-me tão
frio quanto o espaço celeste: 273 graus abaixo de zero! Bem vês
que é um verdadeiro sábio! Inteiramente absorvido pela sua
ciência, a Humanidade não existe para ele. Acho até que a des-
preza. Isso é dizer, minha querida, que faço o meu sonho por
mim só, e que ele não me encoraja. Porém, quanto mais convivo
com ele, mais o estimo, mais o admiro, mais... não, tu não me
compreenderias. Julgo-te um pouco sensual.
A propósito, que querias dizer, escrevendo-me que eu faria
uma verdadeira loucura em amá-lo e que me dirias por que?
Perguntas-me se ele tem dezesseis anos de idade. Tem mais de
trinta!
Recebe todos os meus carinhos.
Estela”
XVI
Cecília a Estela (2ª carta)

“Monte S. Miguel, 13 de setembro.


Pois bem, uma vez que mo pedes, afianço-te que farás uma
verdadeira loucura. Conversei, sem nada deixar transparecer,
bem entendido, com pessoas que o conhecem, o teu herói, o teu
pretenso Solitário (confesso que não tive trabalho para adivi-
nhar!), que o viram de perto, amigos, até dois colegas, que, há
dias, jantaram em Avranches conosco. Tem uma reputação
detestável. Em Luchon fazia a corte a todas as mulheres, dizia
seus versos em todos os salões. Misógamo ele? mas ele sempre
esteve rodeado de jovens e lindas mulheres, e tu farias honra ao
nosso sexo em refletir que nunca são as mulheres que começam.
Todas temos muita timidez para tal, sem levar em conta o pudor
e a inocência. Jamais atacamos. Vê o baile, por exemplo. Já se
viu acaso a jovem convidar um rapaz para dançar com ela? Tu
me responderás, talvez, que os nossos trajes de baile já constitu-
em provocações e mesmo bastante lindas. Mas não; é o uso que
assim o quer, eis tudo. Se o teu cavalheiro é tão discreto como
dizes, tão sábio, o “não me toques” é porque esconde o seu jogo.
Sabes o que ele quer? Doutrinar-te com boas razões para despo-
sar-te, pelo teu dinheiro, porque ele é pobre. Cálculo ou interes-
se, e mais nada.
Na semana finda, soube de uma muito boa, a propósito desses
casamentos de interesse – noventa e nove por cento, aliás. Es-
queceram-se da minha qualidade de moça e falaram na minha
presença, qual se eu fosse um rapaz. Pensa-se, ou que nada
compreendemos, ou que, se compreendemos, isso não nos inte-
ressa. E depois tenho vinte e cinco anos de idade, conheço bem o
mundo e nunca me casarei.
Tu conhecias o La Grange que desposou há quatro meses a
nossa encantadora amiga, a viúva loura, como lhe chamávamos,
a linda Condessa d’Asti. Ei-la novamente viúva, pela terceira
vez, e o luto condiz à maravilha com a sua cabeleira de ouro e a
sua pele alvíssima. Pois bem: seu último marido, tão elegante,
tão distinto, tão cheio de atenções constantes para ela, em casa
tanto quanto num salão ou no teatro, esse belo rapaz, que desapa-
rece aos quarenta, desposara-a unicamente pelo dinheiro e repre-
sentava tão bem a sua comédia que ela, tão perspicaz, se deixara
prender qual verdadeiro galináceo. Inicialmente, tinha uma
amante efetiva, havia quatro lustros; em seguida, outras três ao
mesmo tempo. Precisando de seiscentos mil francos, em prazo
curto, procurou, de comum acordo com a amante principal, o que
entre eles se chama um pássaro para depenar (empreguei o termo
tal qual eles usam). Travaram relações com a condessa, e o nosso
lindo cavalheiro a desposou, perante o tabelião principalmente. E
ficou concluído o negócio. Se ele não tivesse morrido subitamen-
te ela talvez nunca descobrisse a trama que lhe armaram. Não
dizia ela que ele a “amava muito”? Este advérbio, adicionado ao
verbo, sempre me pareceu diminuí-lo. Entendo que o verbo é
suficiente e traz em si o seu superlativo. Mas não devo introme-
ter-me nisso, porque não sou casada, nem tenho o desejo de tal,
pois são esses, minha querida, os matrimônios dos dias de hoje.
Chegamos de Jersey, a ilha do namoro ao ar livre. Apesar dis-
so, a estada não é desagradável. Sem embargo, a pessoa se sente
de certo modo prisioneira. Não se pode sair à vontade. É preciso
esperar o barco. Sempre senti desejos de escapulir... e pensava
em ti, que me disseste, certa noite de luar: a Terra é uma ilha
flutuante no Espaço. Apesar disto, não sentimos desejos de fugir
dela.
O duque partiu para as suas propriedades. O deputado da sua
circunscrição morreu e ele se candidatou. A eleição está assegu-
rada. Será republicano, embora nobre, mas muito moderado, e o
Conselheiro Geral de Avranches nos asseverou que ele bem
poderia ser ministro dentro de pouco tempo. Talvez presidente
da República, e muito mais, quem sabe? Para tal é suficiente ter
maioria de amigos no Senado e na Câmara, e não deixar entrever
– antes do escrutínio – uma personalidade capaz de eclipsar os
chefes de grupos.
É bem o caso do duque. Ele não pode fazer sombra a nin-
guém. Ficaria bem um Duque-Presidente. Sabes que deve ser
bem agradável morar no Palácio Elisco?
Voltemos ao poeta pirenaico. Minha mãe recebeu, de tua tia,
uma carta em que fala da visita ao moinho de vento do teu
astrólogo. Não quero ser “enredadeira”, como dizíamos no
colégio. Mas tu sabes, o teu ilustre é uma criança achada... ou
perdida... não se sabe onde. Espero que teu “fogo de palha”
esteja extinto. Na verdade, não quero a minha linda Estela rei-
nando em montanhas, entre as quatro paredes de um velho
mosteiro. Desposar um solitário? Não te lembras mais de me
haveres emprestado os seus livros? É um místico. Admitamos
seja ele tão inteligente quanto os solitários de Port-Royal e o
próprio Pascal. Maus maridos. Essas criaturas são doentes. Que
inseto te picou? Enfim, passou a hora de tudo isso, eu o suponho.
Tens bom senso. Não te desnivelarás.
Quando voltas? Vamos arrumar nossas malas amanhã. Dez
dias em Dinard. Dentro de quinze dias em Paris.
Abraço-te fortemente.
Cecília”
XVII
Estela a Cecília (3ª carta)

“16 de setembro.
Como te enganas, minha querida! Meu Solitário nunca residiu
em Luchon e nunca recitou versos. Tu o confundes com um
jovem poeta que, com efeito, teve muito êxito, mas não se lhe
assemelha de forma alguma. Meu autor favorito não é nada
mundano e nunca se exibiu em um salão. Para mim representa o
verdadeiro tipo do “homem intelectual”. Zomba quanto quiseres,
mas para mim está ali verdadeiramente “o homem”. Que repre-
senta um título de nobreza? Antepassados, e nada mais, sem
trazer mérito algum para o seu portador. Dir-te-ei mais: se se
quisesse remontar à origem de certas nobrezas, encontrar-se-iam
com freqüência coisas bem vis. Portanto, sobre esse ponto nada
de ilusões, não é? Deixemos esses fantoches para a vaidade das
americanas. Ei-las para a nobreza.
Passemos agora à fortuna. Que representa também? Parentes
que ganharam muito dinheiro, ou o roubaram, pois a esse respei-
to as origens nem sempre são de angélica pureza. Um jovem rico
não tem, por isso, valor pessoal; ao contrário, não tendo compre-
endido jamais a necessidade do trabalho, também nunca adqui-
riu, durante seus estudos, o método, sem o qual o espírito perma-
nece oco e superficial. Um moço rico não trabalha, não pode
trabalhar, flana em amadorismos, não leva nada a sério, não
produzirá coisa nenhuma, salvo mui raras exceções. Portanto, a
fortuna, e assim a nobreza, nada provam em favor dos que as
possuem. O ignorante, embora milionário, é o verdadeiro pobre:
espírito oco. Queres passar a outras qualidades? A beleza, por
exemplo. Que representa a beleza para um homem? Prefiro a
força à graça, e a saúde à elegância. Um belo rapaz? Não, isso
me diz menos que coisa alguma. Vou mais longe: a força e a
saúde não me parecem bastante, mais do que a nobreza e a
fortuna, para constituir uma personalidade, porque uma doença
pode destruí-las. O que eu quero é que um homem seja inteligen-
te, instruído e bom. eis tudo.
O valor de um homem é o seu “valor pessoal”, e não o dos
seus antepassados, dos seus pais ou dos seus amigos... Portanto,
confesso-te que o seu nariz me agrada e que os seus olhos não
me desgostam. Estás satisfeita? Não, seriamente, eu nasci para
compreender um homem intelectual. É necessário à minha alma.
Encontrei-o. “Eureca”! Por que me dizes serem os filósofos uns
doentes? Crês porventura que só entre imbecis se encontra gente
sã?
Não me dirás mais que não raciocino, que estou louca. Vês,
ao contrário, que sou de uma lógica tão fria quanto a tua. Assim,
deves aprovar-me. E a conclusão é que não estou apaixonada,
porque o amor não raciocina, todos o sabem. Ainda mais, eu te
demonstrarei que vou fazer um casamento sensato.
Um casamento... Certamente. E por que não? Creio unica-
mente que ele ainda não pensou em tal. É sempre tão frio, tão
correto. Nem a menor declaração”
Às vezes tenho vontade de fugir. Mas, como é freqüente en-
contrarmos o nosso destino nos meios buscados para evitá-lo,
creio que o mais simples é ser oriental, fatalista, e deixar agir a
Providência de Marco Aurélio e dos filósofos.
Filho natural, dizes? E depois isso? E todos os filhos não são
naturais? D’Alembert foi encontrado nos degraus de uma igreja
pobre: acreditas que eu recusaria desposar d’Alembert?
Tu me recriminas o desnivelar-me. A verdadeira desigualdade
de nível não é a dos corpos; é a das almas.
Abraça-te tanto quanto te ama, tua
Estela”
XVIII
A fagulha

Para a manhã seguinte ao dia em que a carta precedente foi


escrita, estava marcado um encontro no velho retiro, para a
observação de Vênus, em plena tarde de verão. O planeta estava
então em seu brilho máximo e apresentava ao telescópio uma
fase elegante, análoga à do crescente lunar no seu quarto dia de
lunação. Estela, cuja imaginação remigiava agora, de dia ou de
noite, através dos espaços siderais, galgava alegremente a encos-
ta sombreada, sentindo-se feliz por viver aquele esplêndido dia
de verão. Trajava um vestido claro e leve, tinha as mãos e os
braços protegidos do calor atmosférico por luvas brancas que os
cobriam inteiramente; uma pelerine caía sobre os ombros e os
braços, deixando destacados o seu talhe elegante, a cintura e a
cauda da saia. Vendo-a de longe, com a sua pequena sombrinha,
galgar o atalho onduloso, dir-se-ia uma dessas brilhantes borbo-
letas dos trópicos que volteiam graciosamente, de flor em flor, e
parecendo prender-se à Terra unicamente pelas cores e perfumes.
Encontrou o astrônomo no seu escabelo, absorvido por um
desenho dos pontos mínimos do crescente de Vênus. Apenas a
percebeu chegar, desceu, esquecendo a Vênus do céu pela sua
estrela da Terra. Sua toalete fascinou-o um pouco, e com esforço
refreou a saudação efusiva que lhe vinha aos lábios; mas, ime-
diatamente, lhe estendeu a mão e falou do planeta, sem alusões
mitológicas.
E porque Estela observava, quase no alto do escabelo, em
uma posição oblíqua e fatigante, tomou-lhe o braço para susten-
tá-la um instante! Mas repentinamente retirou a mão, todo inqui-
eto e singularmente constrangido. Estela, entretanto, parecia não
se haver apercebido de nada.
A luva, embora se prolongasse um pouco acima do cotovelo,
deixava o braço nu até ao ombro, oculto exteriormente pela
pelerine caída. Rafael julgara segurar a parte protegida do braço,
o que para ele já representava uma grande temeridade! E eis que
sentira em sua mão a macia carne polida de um braço nu, que ele
segurara bastante ao alto. A sensação voluptuosa e súbita, expe-
rimentada pelos dedos, expandiu-se instantaneamente por todo o
seu sistema nervoso, e lhe percorreu o corpo qual arrepio de
fogo. Seu primeiro movimento foi de retomar esse braço. Não o
ousou, e desceu do escabelo para ir olhar pela janela.
– Senhor Dargilan, por acaso observa Vênus com freqüência?
perguntou, aliás, sem malícia. Ela deve interessar menos do que
Marte ou Júpiter. Fez a graduação para a sua vista?... Parece-me
que a vejo um pouco confusa!
Era chamar o astrônomo para o seu posto. Ele retornou, fez
girar ligeiramente a ocular e certificou-se de que a imagem
estava bem nítida para a vista de Estela. Mas o seu pensamento
estava fora do telescópio. O contacto que acabara de sentir, a
obrigação de permanecer bem próximo da jovem, a fim de
chamar sua atenção para os detalhes do disco de Vênus que ela
desejava identificar; a elegância da leve toalete de Verão; a
coloração de suas faces animadas pela caminhada e que fazia
ressaltar mais ainda a alvura do pescoço; e depois o delicado
perfume da carne emanado daquela flor de beleza, e que alguns
dias antes já havia ferido o seu olfato; toda essa sinfonia de
impressões o afundou em um estado de perturbação anticientífica
e de desassossego tão insuportável, que teve de pretextar uma
desculpa qualquer, e pediu a Estela que lhe permitisse concluir
um cálculo. Sentou-se a uma pequena mesa e traçou algarismos.
Mas, logo, muito próximo dele, sobre o escabelo, ante seus
olhos, dois pequeninos pés apareciam, calçados de pantufos
negros, abertos, e, através de sedas cor de rosa e rendas transpa-
rentes, se deixava adivinhar a pele branca e acetinada.
O amor torna as mulheres mais animosas, mais ousadas, mais
empreendedoras e torna, ao contrário, os homens mais tímidos,
mais desajeitados. Esse efeito contrário de um mesmo sentimen-
to sobre cada sexo pode parecer estranho, mas é muito fácil de
observar, pois toca um tanto a todos, e os nossos dois amorosos
não faziam nisso exceção à regra geral. E, assim, também o amor
torna a mulher mais alegre e o homem mais sério.
Estela parecia não ter notado a agitação súbita e extraordiná-
ria de seu companheiro, e naquele momento estava muito entre-
gue à sua observação astronômica. A encantadora toalete de
verão nada tinha de particular para a sua elegância habitual; sem
dúvida ela não compreendera o efeito que o contacto de seu
braço produzira sobre ele, e era muito inocentemente que procu-
rava descobrir as asperezas montanhosas da borda interior do
crescente de Vênus, impacientando-se às vezes com o tremor das
imagens no ar aquecido, com a ofuscante luz do Sol, e nas mu-
danças de posição, erguendo um pouco o braço, ou mostrando
acima do tornozelo.
Rafael ia pôr-se a salvo, quando o bom semblante do tio Noi-
rmoutiers apareceu no alto da escada:
– Então, Estela! precedeste-nos bem um quarto de hora. Olha
a tua tia que vem restituir ao senhor Dargilan o novo livro de
João Rameau. Que delicioso poeta, e que bem compreende a
alma da Natureza!
– Olhe meu tio, replicou Estela, descendo do escabelo, Vênus
apresenta um lindo crescente. Repare. É mais fino que o da Lua.
Dargilan, ao pé do escabelo, estendeu a mão à jovem para
ajudá-la a descer os últimos degraus, e Estela, deixando nesse
apoio o peso do corpo, sentiu que aquela mão forte tremia.
Olhou então o “Solitário” e lhe viu o semblante alterado e em
extremo pálido. O jovem sábio estava preso, ligado por invisível
fio, que lhe amarrava o corpo e a alma. Da mesma forma que
duas eletricidades contrárias determinam pela sua aproximação
um fulminante clarão, o contacto sentido havia breve instante,
pela mão de Rafael tocando de imprevisto o braço desnudo da
jovem, confundira de algum modo os fluidos de ambos, à seme-
lhança da eletricidade que, em estado de tensão nas nuvens
tempestuosas, tendem a seu tempo a produzir o raio. A faísca
incendiara a pólvora.
Havia algumas semanas que reparara naquela jovem, não so-
mente pela beleza e elegância, mas, antes de tudo e de início,
pela sua curiosidade científica, pelo espírito tão maravilhosa-
mente aberto ao estudo dos grandes problemas, e também pela
bondade de alma, pois nunca lhe ouvira dizer uma palavra malé-
vola a respeito do quer que fosse. Fora tocado primeiramente por
esse belo caráter, e um primeiro amor, vago e indefinido, nascera
em seu coração.
Tinha vivido até então inteiramente esquecido de si mesmo; o
estudo havia absorvido os seus dias e as suas noites, absorvendo
também as forças da sua juventude. Passava as noites ao óculo
dos seus telescópios e os dias sobre tábuas de logaritmos, livros
ou memórias científicas. Nada o interessava além da Ciência, e
fora dela nada lhe parecia digno de tomar, por instante sequer, a
atenção de um espírito sério.
Que é o Universo? Qual o nosso destino? Era esse o imenso
problema sempre enunciado diante dele e enchendo constante-
mente o seu pensamento.
O pouco que havia visto da Humanidade lhe mostrara nessa
raça seres incoerentes, nada razoáveis, muitas vezes maus,
vivendo sobre a Terra sem saber como nem por quê, à custa uns
dos outros, e, além disso, bastante nulos em qualidades. Sem ser
misantropo, ficara estranho aos homens e olhara de muito longe
o mundo humano, qual simples espectador. A Humanidade não o
interessava em absoluto. Crescendo em sua alma, a luz intelectu-
al teria consumido todas as pequenas paixões vulgares, se elas
tivessem podido ali nascer.
E eis que repentinamente um raio de Sol iluminara a paisa-
gem humana, raio muito suave, de uma claridade celeste, vapo-
roso, imponderável, porém real. Essa luz trazia algo de Céu e de
Terra. Sua vista se fartara a esse raio. Estela era uma luz que lhe
fazia pressentir uma Humanidade desconhecida, de cuja existên-
cia ele nunca suspeitara. Sua curiosidade e sua ignorância não
lhe pareceram desprezíveis. Apreciava ouvir sua voz tão clara,
que cantava, parecendo musical; gostava de ver o seu olhar
límpido, dilatado diante do infinito; agradava-lhe responder às
suas perguntas ingênuas, e, quando ela passava alguns dias sem
aparecer, parecia-lhe que algo lhe faltava, e sua melancolia
habitual se tornava mais profunda.
Sim, desde muitas semanas sentia-se atraído por esse fascí-
nio, essa graça e essa beleza, e quisera ter resistido ao encanta-
mento. Julgava-se forte, inteiramente conquistado pela Ciência;
jamais sonhara em amor; imaginava-se invencível. Porém a
atração agia. O fascínio da imagem de Estela se tornava a luz da
sua vida. Durante suas observações, seus cálculos, suas pesqui-
sas, seus trabalhos mais árduos, a doce imagem lhe aparecia de
súbito, seu coração batia precipitadamente, seus pensamentos
científicos tombavam qual o trigo ceifado, e todo trabalho se lhe
tornava impossível. Queria desterrar esse sentimento que já o
absorvia à semelhança da água que embebe a esponja, e não
podia. Era delicioso entregar-se a ele, mas a sua querida Ciência
seria sacrificada. Estudos, começados de há muito tempo, sobre
os movimentos das diversas zonas dos anéis de Saturno, e esta-
vam a ponto de terminados, ficaram interrompidos subitamente,
e lhe era impossível ligar dois raciocínios ao mesmo tempo.
Esperara resistir, fazendo-se glacial, insensível, quase brutal,
junto de Estela; em vão. Eros ia vencer; Eros tinha vencido.
Enquanto a Ciência transformara Estela, o amor, a seu turno,
transformara Rafael. Quanto mais elevada é a alma, também
mais céu nela se contém e mais é capaz de amar.
Na noite daquela data, nada pôde observar, por nada se inte-
ressou, nenhum trabalho soube realizar, passou febril, sem uma
hora de sono. Nos dias seguintes, o estado de agitação e superex-
citação pioraram.
Dargilan, enamorado, era o mais infeliz dos homens. Perdera
toda aptidão para o trabalho intelectual e estava incapaz de
concentrar atenção cinco minutos consecutivos no mesmo assun-
to. Um único pensamento, uma só imagem, lhe tomava a alma
noite e dia. Era uma espécie de nova atmosfera para a sua respi-
ração. Até então, vivera no meio das estrelas, que conhecia pelo
nome e pela história de cada uma; o Universo celeste fora a sua
vida, absorvera-o sem cessar, e entre os esplendores estelares sua
alma adquirira o hábito de viajar, resistir e assim viver; mas,
repentinamente, do mesmo modo que a claridade da aurora
apaga as estrelas, assim o pensamento luminoso de Estela fizera
eclipse em toda a sua vida anterior, e lhe inundara o ser de uma
nova luz. Luz inefável e divina que o encantava e enfeitiçava, e
na qual todo o seu ser se banhava com delícias, em uma expan-
são de alegria sobre-humana. Só pensava nela. Tornara-se o seu
objeto, o seu complemento e parecia pertencer-lhe. Oh! quanto
queria aquela adorável criatura, quanto desejaria respirá-la de um
hausto e absorvê-la em uma aspiração frenética, prendê-la em
seus braços, envolvê-la em imensa carícia e aniquilá-la em si
próprio, dois seres formando um só, que os associa e os confun-
de, duas chamas em uma, ardente, inextinguível. Céu de aurora,
de luz e de eterna primavera, mas de repente atravessado por
uma espessa nuvem tempestuosa: o amor, o amor absoluto, sem
esperança de felicidade! Aquela parisiense elegante e delicada
aquela mundana de luxo refinado, aquela mulher de “boudoir”,
não fora feita, dizia-se consigo Dargilan, para a vida simples,
séria, severa do sábio, para a simplicidade, a pobreza, o trabalho.
Um capricho de instante a interessara pela Ciência, mas tal não
poderia passar de uma extravagância, e seria enganá-la fazer-lhe
acreditar que pudesse ser durável. Torná-la companheira de um
pesquisador solitário seria enterrá-la viva. E depois, que ambi-
ção! Algum dia, ela o amaria? Já não estava noiva? Não. É
impossível. É bela, é adorável, é divina. É preciso esquecê-la!
Por que tê-la conhecido! Por que tê-la visto! Fatalidade! A vida é
absurda.
E assim, durante uma longa semana, se agitou, dia e noite es-
sa alma, presa da paixão mais desordenada e incapaz de se
desprender do torniquete de ouro que a aprisionava. Despertan-
do, durante as noites de insônia, era a imagem de Estela que lhe
aparecia; sucumbido de fadiga em sono de alguns momentos, era
o mesmo pensamento que o embalava; debruçando-se durante a
noite profunda à varanda do terraço, era a forma diáfana de
Estela que ele via desenhar-se, voluptuosamente desdobrada, nos
flocos da Via-Láctea, e durante o dia, abrindo um livro, não lhe
era possível ler meia página sem sentir repentinamente um
grande vácuo em todo o seu ser, e a respiração interrompida qual
se o ar lhe faltasse.
Ainda não atingira a idade em que, na mulher amada, o aman-
te, muitas vezes, ama o próprio eu. Estudara, analisara até,
notadamente no começo, a encantadora desconhecida. Três
coisas, em sua opinião, lançavam entre as duas existências um
abismo intransponível. A primeira era a grande fortuna de Estela.
Parecia-lhe inaceitável que a mulher fosse mais rica do que o
homem, e nunca pudera compreender a condição dos dotes.
Aceitar dinheiro de uma criatura a quem se ama, a quem se
estima, que se associa à própria existência, parecia-lhe monstru-
osidade, e ao mesmo tempo uma humilhação para ambos. Se,
pois, algum dia se casasse, a primeira condição, muito natural-
mente, seria desposar uma jovem sem dote. A segunda coisa que
distanciava da sua vida a daquela deliciosa criança, era a sua
educação mundana, as idéias superficiais de que o seu cérebro
deveria estar repleto, sua incapacidade provável de compreender
verdadeiramente a Ciência e a Filosofia, seus hábitos de grande
conforto e de luxo, em uma palavra, um conjunto de condições
inteiramente opostas às da vida que ele vivia. Por fim, uma
terceira razão, que não dizia pessoalmente a Estela, sempre o
mantivera afastado de toda idéia de casamento: supunha que as
mulheres não gostam da solidão, do silêncio, da vida laboriosa
em si, e que mulher alguma poderia sentir-se satisfeita na sua
solidão.
Se era feliz por amar Estela, se experimentava um sentimento
mais agradável, mais delicioso, uma felicidade imensa, qual
jamais sentira, mesmo nos transportes ao seio das maravilhas
infinitas, essa felicidade, contudo, lhe parecia ocultar um abismo.
De princípio, duvidava que ela pudesse partilhar do seu amor (os
homens nada sabem adivinhar), depois, imaginava que, se che-
gasse a declarar sua paixão e a ser ouvido, não ousaria, não
quereria ir mais longe.
Sua alma estava assim prisioneira de um terrível impasse, do
qual lhe parecia impossível sair. Por diversas vezes esteve a
ponto de ir ao castelo. Jamais ousou.
Oito dias haviam decorrido nesse doloroso combate, quando
Estela voltou, sozinha ainda, precedendo seu tio e sua tia. Ao
passar diante da porta aberta da biblioteca, em direção à escada
da cúpula, ouviu um grande suspiro e voltou: o astrônomo ali
estava sentado à mesa de trabalho, a cabeça apoiada e oculta nas
mãos. Estela bateu na porta: ele não ouviu. Entrou.
– Bom dia, caro mestre, exclamou. Perturbo a vossa medita-
ção. Em que pensais?
Dargilan levantou-se. À voz de Estela, seu coração começou
a vibrar com violência. O semblante era pálido e desfeito. To-
mou-lhe a mão e nela apoiou demoradamente os lábios ardentes.
– Pensava na... Na atração, respondeu. A atração rege o Uni-
verso, e vós sois disso um vivo testemunho. Vós o demonstrais
com evidência maior do que Newton.
Estela pareceu não compreender esse gênero de declaração
astronômica.
– O senhor está com febre, respondeu. Trabalhais demasiado.
Porque fatigar-se assim?
– Não, não tenho trabalhado muito; ao contrario, contestou,
apertando nas suas a pequena mão enluvada que se lhe abando-
nara. Meu espírito não está mais na Ciência. Uma tristeza imensa
invadiu minha alma...
Deteve-se, não ousando dizer mais. Porém, ela estava tão per-
to dele, seus olhares tão ternamente se encontraram, a respiração
estava tão aproximada, que, de repente, ele a tomou nos braços e
lhe deu na boca um longo beijo.
– Amo-vos! Exclamou... E estou louco. Perdoai-me. Não go-
verno mais minha razão.
Abriu os braços e recuou, como se pretendesse fugir para
longe.
Estela permaneceu imóvel e silenciosa, com as mãos cruza-
das.
O “Solitário” voltou, e, inclinando-se humildemente diante
dela, disse:
– Perdoar-me-eis?
– Meu “Solitário”, viveis no céu. Que podereis desejar de me-
lhor? Invejo a vossa existência.
Levantando o busto, ele a contemplou mais calmo.
– Sim, vivo no céu, no céu esplêndido e infinito. Não, nada é
mais belo, nada é melhor; porém, sinto-me isolado.
– Essa solidão absoluta é indispensável aos vossos estudos?
– E quem consentiria em partilhá-la?
– Há três meses que estou aqui, e parece-me que vim ontem.
– É a duração normal de uma estada nos Pirineus, replicou
Dargilan, que não compreendeu, ou não quis compreender. Não
ficaria aqui um ano, vós, a beleza parisiense por excelência.
– Eu, aqui, ficaria... sempre, pronunciou ela tranqüilamente.
Dominado por opiniões diametralmente opostas, Dargilan não
compreendeu o amor oculto sob as palavras da jovem, que eram,
contudo, os mais doces que ele ouvira. Manteve-se na mesma
posição, silencioso, diante dela, qual se, por sua vez, ela o hou-
vesse hipnotizado.
– Senhorita Estela, replicou, sois ainda uma criança. Vós,
aqui, seríeis o meu verdadeiro céu, o meu arrebatamento perpé-
tuo, minha única felicidade possível. Mas, isso constitui a vossa
desventura. Fostes educadas no mundo e para o mundo. Paris vos
é tão indispensável quanto o ar que respirais. Ah! Não existe
nada perfeito neste mundo. A atração sois vós! O céu sois vós!
Minha estrela, far-me-íeis esquecer a Astronomia e todas as
ciências.
– Que estais dizendo? Replicou ela vivamente. A Astronomia
não é a vossa vida?
– Não mais, agora.
Nesse momento, o senhor e a senhora de Noirmoutiers chega-
ram por sua vez à biblioteca.
– Meu tio, disse Estela, o Sr. Dargilan está aqui, mostrando-
me alguns livros; não se afastem.
– Como está vermelha, minha sobrinha! Por que corres sem-
pre, assim, a tanta pressa? Vais apanhar palpitações.
Estela, para dominar-se, começou a folhear um livrinho do
século XVII que se encontrava em uma estante da biblioteca, ao
alcance da mão. Na primeira página, aberta ao acaso, lera estas
duas palavras “Sede de Amor”, encimando uma gravura que
mostrava dois cupidos tirando água de um mesmo poço, e tra-
zendo por epígrafe estas outras do Evangelho: “Non sitiet in
eternum”. Prometeu a si mesma continuar, algum dia, a leitura
desse livrinho, e, destacando uma linda margarida dentre as
flores do campo que prendera à cintura, marcou a página assim
aberta ao acaso.
XIX
Duque e duquesa

Enquanto esses acontecimentos se passavam nos Pirineus, o


Duque de Jumièges, que esquecemos em Paris, preparava seu
casamento para o mês de setembro, não pondo em dúvida, por
um instante sequer, as suas altas qualidades pessoais e o amor de
Estela por ele. Certo de ser aceito, descontara por antecipação
uma parte do dote daquela que considerava sua noiva; uma
cadeira de deputado vagara no seu Departamento: declarara-se
republicano, atirara sessenta mil francos na arena, e fora eleito
por pequena maioria; o mês de setembro se aproximava com o
termo de suas esperanças. Não abrigava dúvidas. Ignorava ele
que, em geral, em amor não é o homem quem elege. Assim, a
primeira carta que escrevera ao conde em fins de junho, logo
após a partida de Paris, ficara sem resposta (o que ele atribuía às
peripécias da viagem), e as respostas recebidas à segunda e à
terceira estavam longe de fixar a data almejada.
Às perguntas que lhe eram dirigidas por seu tio e sua tia, Es-
tela respondia, a cada vez, não ter pressa de casar; que o duque
lhe agradava mediocremente; que não queria decidir a sorte da
sua vida sem ter maduramente refletido nela. À primeira vista,
no último inverno, durante a estação das festas onde o jovem
duque brilhara com tanto esplendor, acreditou que o amava. A
idéia de ser chamada “Senhora Duquesa de Jumièges” era-lhe
agradável. Encarara sob uma perspectiva rósea suas recepções
em um suntuoso palácio do bairro Saint-Germain, seu camarote
da ópera, sua carruagem no bosque, seu chalé à beira-mar no
verão, seu castelo e suas caçadas no outono, o terraço de Monte
Carlo em dezembro e janeiro. Mas, em seguida e gradualmente, a
nulidade intelectual do belo jovem a impressionara e acalmara.
A leitura das obras do “Solitário” a princípio, o conhecimento
que fizera em seguida, de modo tão inesperado, do autor favori-
to, deram às suas idéias outra direção, conforme vimos. E agora
amava o “Solitário”, tanto quanto o admirava, e sentia-se perten-
cer de corpo e alma à misteriosa influência que ele exercia sobre
ela.
O conde e a condessa, seus tutores, não suspeitavam natural-
mente de nada, e bem assim o senhor e a senhora de Castelvieil.
Foi um “cair das nuvens” para todos, quando, premida por uma
quarta carta do duque, e sitiada de perguntas, Estela declarou
decididamente que não se casaria. Foi efeito de raio para ambas
as famílias, que viam o aniquilamento de um sonho longamente
acariciado.
Empregaram todos os meios para impedir semelhante deter-
minação; pelo raciocínio e a persuasão, frisaram todas as vanta-
gens de uma união que consideravam admiravelmente combina-
da: o duque tinha todos os trunfos no seu jogo; acabava de ser
eleito deputado; aliara-se à Republica, podia tornar-se ministro
um dia, etc. Mas não conseguiram sequer atenuar a decisão que
Estela declarou ser irrevogável.
– Capricho de moça! Exclamou o barão, quando Estela voltou
ao seu aposento. Não insistamos mais por hoje, nada obteremos.
Ela está fixada numa idéia qualquer.
– Um casamento tão bom! Repetiu a condessa. Seria a felici-
dade assegurada. Ela mudou muito, desde o inverno passado.
– Simples capricho, já vos disse, acrescentou o barão. Oito
dias depois do regresso a Paris, voltará aos antigos projetos.
Deixemo-la agir. Esperemos. Não comuniquem a recusa ao
duque: Seria arruinar tudo.
– Certamente que não, disse o conde. Vou responder que Es-
tela ainda não se decidiu; que se julga muito jovem para casar;
que aguarde pacientemente o nosso breve retorno a Paris. É o
atalho a seguir no momento.
E, com efeito, foi em termos vagos que o Conde de Noir-
moutiers julgou conveniente responder, pela quarta vez, ao
Duque de Jumièges. Este, que contava absolutamente com o
casamento para o outono, era, conforme se viu, de caráter bas-
tante fátuo. Era mais vaidade do que orgulho, ou mais orgulho
vulgar do que nobre altivez de raça. A última resposta teve o
dom de feri-lo profundamente e lançá-lo em cólera extrema. Não
ficara em Paris senão para fazer preparativos para o casamento, e
se contentara, para férias, com uma estada de dez dias em Gran-
ville. Na véspera, perdera forte quantia no jogo. Quando, às dez
horas, o criado particular lhe trouxera a carta carimbada de
Bagnères-de-Luchon, saía de uma noite, ou antes, de uma ma-
drugada de insônia. Levantou-se, foi ao gabinete do toalete, onde
a água fresca não conseguiu atenuar a agitação desordenada de
seu cérebro; voltou ao quarto, que mediu a grandes passadas;
releu a carta, amarrotou-a raivoso e atirou-a ao cesto. Depois
chamou o criado, por longo toque da campainha.
– Batista, apronta a minha maleta, a maleta para excursões de
oito dias. Seguiremos esta noite, às 10:22, no rápido de Bordéus.
O céu estava cinzento e pesado o aspecto do tempo. Montou a
cavalo e fez um passeio ao bosque; almoçou no Círculo; foi ao
banqueiro; regulou a dívida de jogo; fez uma visita à amante, a
qual dançava nessa noite o bailado de “Maledeta”, jantou com
ela, e chegou à gare de Orleães 15 minutos antes da partida do
trem.
No depois de amanhã seguinte, tocava a campainha do pe-
queno Castelo de Castelvieil.
– Pergunte ao senhor Conde de Noirmoutiers se pode receber-
me, disse ao entregar seu cartão de visita ao doméstico.
Cinco minutos depois estavam em presença um do outro.
– Quê! Vós, meu caro duque?
– Não me esperava! Achei que uma visita seria melhor do que
uma quinta missiva.
– Ficamos, minha senhora e eu, satisfeitos com a vossa visita,
além de que não é um estranho para o Barão e a Baronesa de
Castelvieil.
– E a senhorita d'Ossian?
– Não está aqui. Foi a uma excursão pelas montanhas.
– Sozinha?
– Com uma de suas amigas.
– Ah! exclamou, fixando os olhos do conde. Podeis explicar-
me a causa de sua mudança? Que há nisso tudo?
– Meu caro duque, tende vinte cinco primaveras e eu cin-
qüenta invernos. Vejo-vos muito excitado. O que me perguntais
é o que perguntamos diariamente à minha sobrinha. Sabemos
tanto quanto vós. Ela não tem pressa de casar, eis tudo, em
minha opinião.
– Não acredito nisso. Lembro-me do que ela era na última
primavera. Não se engana a um namorado. Ela ama a um outro!
Quero falar-lhe. Quero ouvi-la e quero que ela me ouça.
– Quereis, quereis... Não a quereis tomar à força, suponho?
– Senhor conde, não me deu a sua palavra?
– Minha sobrinha não é uma escrava. Seu coração lhe perten-
ce. Disse-vos o que pensava. Vossos desejos são os meus. Não
os modifiquei. Se Estela é caprichosa e não se decide por en-
quanto, queira esperar. Que pretendeis que eu faça no caso?
– Podeis aconselhá-la. Se ela nada ouve, podeis pedir-lhe uma
explicação sincera. É seu tio, seu tutor. Ela é menor.
– Asseguro-vos que não tendes melhor amigo do que eu, nem
melhores aliados do que nós todos. Mas, neste momento, ela não
quer ouvir falar em casamento. Essa opinião não durará. Aguar-
dai o nosso retorno a Paris.
– Não posso vê-la, falar-lhe?
– Está ausente.
– Por quanto tempo? Esperarei. Estou em Luchon. Voltarei
amanhã. Desejo, absolutamente, falar-lhe, e ela não pode recusar
uma entrevista.
– Está bem, meu caro duque, volte amanhã. Certamente ela
estará aqui; partiu esta manhã e nunca passou uma noite fora.
Até amanhã!
– Até amanhã! Queira apresentar os meus respeitos à senhora
condessa.
Apenas o duque saíra, entrou no salão a Condessa de Noir-
moutiers, seguida logo pelo senhor e a senhora de Castelvieil. A
visita do duque fulminara os habitantes do castelo, qual um raio.
Que o dissera? Que pretenderia fazer? O conde narrou a conver-
sação e declarou ser absolutamente necessário dar uma resposta
formal no dia seguinte. Após uma discussão um pouco longa,
ficou decidido que era necessário prevenir Estela, fazê-la descer
e interrogá-la.
Estela chegou muito pálida, no seu matinal vestido branco, e
sentou-se, qual uma acusada, perante os seus juízes. O conde lhe
narrou à visita do noivo, seu estado de superexcitação, sua
promessa de voltar no dia seguinte.
– Graças a meu pequeno subterfúgio, acrescentou o conde,
ele acreditou ou pareceu acreditar na tua ausência. Mas, amanhã,
não é possível fingir. Bem sabes, minha filha, o quanto te ama-
mos. A união que recusas é muito desejável. Jamais encontrarias
um partido tão conveniente, sob todos os pontos de vista. Não
recomeçaremos os nossos argumentos de outros dias. Não és
mais uma criança. Sabes o que perdes recusando esse título e
esse nome. Vejamos! Reflete ainda. Não faças loucura. Tens até
amanhã para decidir. Já estás um pouco comprometida aos olhos
do mundo, pelo menos.
– Estou inteiramente decidida, respondeu Estela, e não muda-
rei de agora até amanhã. Não amo o duque. Só me casarei por
amor.
– Amor... É romance. Isso é nos contos de fadas. Não se casa
mais por amor. Encontrarás jamais em teu caminho um homem
perfeito, com a perfeição que almejas, e digno da tua confiança?
É duvidoso.
– Tenho refletido muito desde há três meses. O duque é um
“viveur” e um jogador...
– É um homem do mundo, e do melhor. Tu não tens a preten-
são de reformar a Humanidade.
– É um ignorante...
– Sabe o que é preciso saber, que todos os da sua classe sa-
bem. Um homem do mundo não tem necessidade de ser profes-
sor da Sorbone.
– Enfim, meu tio, já lhe disse, há dias: ele não me agrada. Eu
seria infeliz por toda a minha vida se o desposasse. Vós não
desejais minha desgraça.
– Minha querida filha, sabe quanto te amamos. Somos os teus
melhores amigos, acredita. Vejamos. Faremos o que quiseres.
Pensaste em algum outro partido? Na brilhante soirée do último
inverno, em que foste à verdadeira rainha, bem me recordo de
que outros dois jovens te fizeram uma corte quase tão assídua
quanto à do duque. Preferirias um deles? A impressão que neles
produziste não é mistério para ninguém, e tu os viste em nossas
reuniões.
– Sei, antes de tudo, que eles me buscam pelo meu dote, e
não por mim própria. Demais, eu não quero casar, pura e sim-
plesmente.
– O duque teima, em absoluto, em ter uma entrevista contigo.
– Espero que o senhor me evite essa contrariedade. Para que
serviria essa entrevista? O senhor pode transmitir-lhe a minha
resposta.
A conversação continuou algum tempo ainda nesse tom, sem
modificar em nada as resoluções de Estela, e o dia transcorreu
bastante triste, todos os nervos tensos, num diapasão mais do que
agudo. Estela só reapareceu ao jantar, apenas o tempo estrita-
mente necessário para a refeição, e depois se encerrou nos apo-
sentos de dormir.
– Um casamento de conveniências! Repetia ela a si própria.
Entregar meu corpo a esse estranho! Nunca! Nunca!
E na manhã seguinte, durante a visita do duque, recusou des-
cer para dar a este uma explicação qualquer.
XX
A ciência, a honra e o amor

Alguns dias depois, o Dr. Bernard chegava à casa de Dargi-


lan, fisionomia inquieta, ar grave e agitado.
– Venho hoje, disse, vê-lo em missão de embaixador e tam-
bém de amigo. Sou interrogado, e não sei o que responder. A
sobrinha do Conde Noirmoutiers acaba de recusar um casamento
esplêndido, para o qual estava quase comprometida desde o
inverno passado. Foi uma complicação no castelo, onde não
houve mais sossego. Esta manhã fui chamado para a senhorita
d'Ossian, que está febril. Adivinho, ou creio adivinhar. Não há
efeito sem causa. Parece-me, caro astrônomo, que não sois
estranho a toda essa agitação.
Não venho pedir confidências, porém faço um apelo aos vos-
sos sentimentos de honra e lealdade. Recusando esse casamento,
essa jovem parece destruir sua vida.
– Meu caro doutor, respondeu Dargilan, não quero e não devo
ocultar nada. Sim, fixei-me na senhorita d'Ossian; ela entrou na
minha vida. Sim, experimento por ela um profundo sentimento
de admiração, e – por que não confessar logo? – uma atração
muito séria. Seduziu-me pelo seu encanto, todo novo para mim,
pelas delicadezas do seu espírito, pela elevação de sua alma, pela
sua bondade, e também pela sua radiante beleza. Quinze dias
depois, eu nada mais vi no céu, nem na Terra, e o meu espírito
não mais me pertenceu. É a maior felicidade que haja experimen-
tado e, acrescentou com voz perturbada, também a maior infeli-
cidade da minha vida. Não a devo amar. De resto, ela não suspei-
ta de nada.
– Tudo que me dizeis já o adivinhara. Mas, não acreditais que
ela tenha podido pensar em um casamento convosco?
– Um casamento! replicou o astrônomo, erguendo-se da ca-
deira. Que idéia louca e quimérica! Não posso, não a devo amar.
– E por quê?
– Porque a estimo, porque a considero, porque não me sinto
no direito de modificar, num quer que seja, os rumos da sua vida.
Estou estupefato com o que me contastes. Ela estava comprome-
tida?
– São as duas famílias que desejam essa união, aliás, perfei-
tamente equilibrada, pelo menos sob o ponto de vista das apa-
rências mundanas. A senhorita d'Ossian nada resolvera definiti-
vamente, nem rejeitara as propostas; mas, hoje, as recusou de
modo peremptório.
– Espanta-me, isso que me dizeis.
– Parece-me, contudo, que, se vós a amais, o que ela acaba de
fazer não vos deve ser desagradável.
– Não me compreendeis. Não adivinhais então o que pode ser
uma paixão inspirada por uma criatura de tal nível? Não compre-
endeis a luta atroz que lacera minha alma? Sim, amo-a louca-
mente, amo-a até à morte, e...
– Mas, que é isso? Que tendes? Na verdade, não compreendo
nada. Que vos irrita? Contra quem estais encolerizado? Boa
peça, se isso é amor!...
– Não. Vós não compreendeis. É preciso pôr os pontos nos ii.
Pois bem: se ela fez quanto dizeis é porque também me ama!
– E é isso que vos deixa nesse estado de furor?
– Não, doutor; mas a vossa cegueira me causa piedade. Não
compreendeis então que, primo, me estais ouvindo? Sim, primo,
ela não se pode tornar minha amante; e, segundo, não posso
desposá-la? Compreendestes agora se há ou não motivo para
enlouquecer?
Dargilan caminhava, olhar alterado, com gestos de alucinado.
– Vós não podereis desposá-la, respondeu o doutor com cal-
ma. E por quê?
– Não somos da mesma raça.
– Nem assim compreendo mais alguma coisa! O senhor está
completamente louco!
– Não. Escutai-me. Ela é bela e elegante; é rica; foi educada
no mundo e para o mundo. Sua divinal pessoa, seu caráter, suas
aptidões hereditárias, todo o seu ser se encontra em antítese à
minha situação. Sou um apagado rústico, pobre; vivo no deserto.
A Ciência é – era – minha única paixão. A maior loucura que
poderíamos fazer, um e outro, seria unir nossas existências tão
díspares. Pela minha parte, nunca a impelirei para esse abismo.
– Vós a amais?
– Sim, absolutamente. Meu amor é sincero e profundo, a pon-
to de que é por ela que a amo, e não por mim, e de almejar a sua
felicidade antes da minha própria. Devo sacrificar-me.
– Não a desposaríeis, mesmo se ela vos amasse no mesmo
grau em que a amais, mesmo que ela o quisesse?
– Não. É impossível! A vida nesta montanha seria para ela
um exílio, um exílio de toda a sua brilhante existência, o que ela
não tardaria em lamentar amargamente.
– Seu dote é de sessenta mil libras de rendimento.
– Quanto?
– Sessenta mil libras de rendimento.
– Então se torna mais impossível do que nunca. Dinheiro
aqui, ouro, fortuna? Desposar uma jovem que tenha dote! Não
penseis nisso!
– Contudo, é o que se vê, e não constitui crime. A vossa cele-
bridade não vale alguma coisa? Por que recusar a riqueza?
– Porque... porque amo o estudo. Não conheço felicidade al-
guma, do espírito, superior ao estudo, e não penso em outra
desde que possuo uma.
“A Ciência, a Ciência, a Ciência!...” Repetiu, continuando a
caminhar, a levando a mão direita em gesto imperioso.
– Mas, em que a fortuna vos impediria de satisfazer a vossa
paixão dominante?
– Em tudo. Atendei e conversemos. Estou mais calmo. Per-
guntais...? Respondo que a riqueza e o trabalho jamais andam
juntos. Primeiramente, o simples fato de ser rico já oferece um
bom travesseiro para dormir. Sabeis tão bem quanto eu que, em
geral, as pessoas que nasceram ricas não trabalham, nem amam o
trabalho, são incapazes de ação. Não lhes deve ser mui difícil
contrair hábitos de luxo e acostumar à preguiça. É uma tendência
perigosa. A riqueza é, pois, má conselheira. Depois, admitis, não
é verdade? que se temos dinheiro é para nos servirmos dele. Se o
guardamos, de nada serve, e inútil se torna possuí-lo. Não é
verdade que, por isso, estamos de acordo em que cada um se
serve do seu dinheiro?
– Evidentemente, não compreendo a avareza dos seres que
passam a vida empilhando títulos de renda para morrer sobre
eles. É o cúmulo da estupidez.
– Portanto, dele devo servir-me. Dizei-me: em que se empre-
ga o dinheiro? A gerir essa fortuna no legítimo desejo de não a
perder... A acompanhar a cotação dos títulos de renda... A com-
prar propriedades?... A sustentar estabelecimentos de caridade?
No dinheiro de S. Pedro?... Mantendo dançarinas?... Dedicando-
se a corridas de cavalos?... Dando-se à caça de lebres e coelhos?
Vejamos, em que, em sua opinião?
– Entendo que... no objeto do desejo de cada um...
– Em suma, antes de tudo é preciso manter um modo de vida
correspondente à fortuna. Se tem sessenta ou oitenta mil francos
de renda, não é conveniente residir em um casebre igual a este. É
necessário um todo de serviços domésticos, no inverno, em
Paris, Nice ou Nápoles; no verão, em um castelo, algumas via-
gens, etc. É indispensável, sob pena de fracasso, uma instalação
condigna, cozinheira, camareiro, cocheiro, e outros serviçais
ainda, se se é casado. Ides responder-me que não é desagradável
estar bem instalado e ter todas as correspondentes facilidades.
Esperai! Conversaremos ainda, já que viestes para tal fim. Habi-
tamos, por suposição, uma propriedade de alguns hectares (sim-
plifico o mais possível) embelezada por belo parque, repuxos,
bom pomar, uma boa horta. Estou a ouvir desde aqui as pergun-
tas cotidianas: Senhor! Há um tanque vazando; quer que chame o
pedreiro?... Senhor, a carruagem foi derrubada pelo novo cavalo,
que é muito espantadiço; parece também que a aveia está mistu-
rada... A senhora perguntou hoje que fim tiveram os pêssegos de
próximo do pavilhão: o vento os derrubou... Devo avisar também
ao senhor que deu oídio na parreira... Um canto do muro que
fecha o parque foi derrubado por malfeitores; o senhor não acha
que seria melhor abrir uma vala e colocar uma grade de ferro?...
Quer que solte os cavalos? – pois o senhor não estabeleceu hora
de atrelá-los... O arquiteto deseja falar com o senhor a respeito
da nova chaminé... A cozinheira previne a senhora de que é
inadiável mudar de açougueiro... Senhor, não é possível sair com
este chapéu... Senhor, o cocheiro está a cair de bêbado... O
senhor encomendou o feno?... E eu poderia facilmente continuar
essa ladainha, falar dos dias em que madame, cansada das pedin-
charias e dos roubos, despede todos os domésticas de uma vez,
ou dos aborrecimentos que ela teve, quando soube que a jardinei-
ra era conhecida em todo o país pela sua conduta escandalosa, e
que o cocheiro e a criada de quarto viviam iguais a marido e
mulher? Esses amos são, pois, cegos e imbecis a ponto de não
perceberem que são roubados por essa gente que os escarnece?
Em que se ocupam eles, senão dos seus interesses e da conduta
dos seus domésticos?
Vejamos caro doutor, como pretendeis que um homem de ci-
ência trabalhe nessas condições? São preocupações inúteis ao
funcionamento do cérebro, aceitáveis, quando muito, para ho-
mens sem o que fazer ou que se interessam pelas couves e beter-
rabas. Quanto mais servos, mais aborrecimentos cotidianos.
Lembrai o provérbio: “A quem terra tem, guerra vem”, e eu não
aprecio a guerra. A tranqüilidade e a independência do espírito
são os primeiros dos bens. Onde encontrareis independência com
riquezas? Nelas vejo apenas escravidão disfarçada. Não se
almoça, nem se janta duas vezes. Então, para que servem? Acha-
reis esses medíocres detalhes insignificantes, mas a vida se
compõe de detalhes, tal qual a hora se compõe de minutos. Que
direi agora da vida real e fatal do homem e da mulher da socie-
dade? Fortuna obriga! As relações, as visitas, os jantares, as
reuniões noturnas, a correspondência epistolar, eis em que minú-
cias a minha vida se escoaria! É preciso também dar recepções.
Onde encontrar, fora daí, tempo para trabalhar?
E não falo das intrigas mundanas, nem das vaidades, das
questões de amor-próprio, das ambições que se sucedem. É
preciso ter um lugar no que se denomina mundo, ser pelo menos
de uma das cinco Academias do Instituto; conceder um ou dois
dias, senão três, por semana, às exigências das gloríolas, fazer
parte de grupinhos, perder, em uma palavra, a independência.
Não esqueçamos também que é convencional o caçar e matar
pequenos animais inofensivos. Em resumo, o homem e a mulher
do mundo dissipam sua vida, perdem seu tempo. Pois bem, nada
me parece mais estúpido do que o tempo perdido. A vida é curta.
Passemo-la seguindo os nossos gostos, é o bem menor; gozemo-
la cada um segundo as suas faculdades; mas não a desperdice-
mos em ninharias. Por que buscar cuidados? A independência,
eis o maior bem. Que se consagrem ao trabalho aqueles que o
amam: será isso a maior vantagem para a Humanidade. Deixe-
mos os prazeres do mundo, os seus atrativos dourados ou pratea-
dos de todo o gênero, aos desocupados e aos intrigantes. Recorde
a história de Símilis, cortesão de Trajano: após ter deixado a
Corte e abandonado todos os empregos para viver tranqüilamen-
te no campo, fez gravar estas palavras em sua tumba: Habitei na
Terra 76 anos, e só vivi sete. Viver com a Natureza é fruir o
Universo inteiro, sem tormentos, sem ódios, sem rivalidades,
sem guerras, sem desgostos, na felicidade completa, principal-
mente quando essa vida é intelectual e estamos rodeados das
mais belas produções do espírito humano, da Ciência e da Filo-
sofia.
Por conseguinte, para que procurar a fortuna, quando se vive
tão pouco tempo, quando se morre tão facilmente?
– Contudo, nem sempre a fortuna é um embaraço. Pode-se ter
um administrador, e não cuidar de nada.
– Um administrador que vos substitua e trinque a fortuna, im-
pondo em tudo as suas idéias e as suas preferências. Então será
com ele o maior trabalho e se perderá a mor parte do tempo com
ele. Se quiserdes aproveitar fortuna, não podeis deixar de vos
ocupar com ela. Ambos ficais unidos.
– Aos vossos argumentos não falta lógica. Nunca encontrei
um caráter igual ao vosso. Preferis a pobreza à riqueza?
– Não. Nem pobreza, nem riqueza. Nem miséria, nem opu-
lência. A simplicidade. Nada de inútil. A felicidade que a mão
não alcança é quimérica.
Estando certo de ganhar honestamente a minha vida, de ter o
necessário para a minha fome e minha sede, de estar ao abrigo
do Sol, do frio e das intempéries, de estar convenientemente
vestido, nada mais desejo sacrificar à vida material; não quero
que ela invada, na mínima coisa, a minha vida intelectual, que
coloco muito acima; cuido de guardar minha liberdade.
– Então, não ama a senhorita Estela. Pelo menos não lhe que-
reis sacrificar a vossa independência?
– Ao contrário, é principalmente por ela que falo assim. Com
a sua fortuna, os seus hábitos, educação e gostos, ela seria muito
infeliz vindo para a minha situação. Imaginai-a morando neste
deserto!
– Ainda uma palavra, meu caro astrônomo. Consagrais a vida
ao estudo das maravilhas do céu. Não gostaríeis de possuir um
telescópio superior, um observatório melhor provido, um prepa-
rador que vos evitasse pesadas tarefas e vos ajudasse nos cálcu-
los, e até mesmo um observador que trabalhasse convosco, que
pudesse fazer descobertas e trouxesse à Ciência resultados úteis?
– Meu caro doutor, eu poderia, se achasse útil, ganhar duas,
três, quatro ou talvez dez vezes mais dinheiro; para tal seria
suficiente atender aos pedidos de jornais que desejam publicar
artigos meus, ou escrever obras para o grande público. Deixo aos
comerciantes os prazeres pecuniários que tanto lhes interessam.
– Se algum admirador da Ciência vos trouxesse cem mil fran-
cos, recusaríeis?
– Não. Eu os consagraria com felicidade à Ciência. Mas, tor-
nar-me o que chamais “rico”, desposar uma jovem com dote,
mudar de vida, jamais! O homem deve ter a altivez de não se
deixar comprar por uma esposa; deve ganhar a vida para a sua
mulher e seus filhos, deve ser o senhor. Quando me lembro de
que há em Paris homens que pagam os aluguéis, sua carruagem,
seus prazeres, com o dinheiro da esposa, fico simplesmente
revoltado. Encontrareis mulheres que trazem bolsa sempre, tanto
para acudir ao marido quanto ao amante. Os casamentos moder-
nos valem por certas uniões livres – o que há de mais imoral no
mundo. São feiras, e muitas vezes às avessas.
– Está bem. Admito. Há em tudo isso um sentimento aceitá-
vel: é uma forma de altivez igual à outra qualquer, afinal. Mas,
se estais convencido de que a fortuna pode prejudicar a tranqüila
felicidade de um ser puramente intelectual, podeis desposar a
senhorita Estela, sem dote. Nada é mais simples do que recusar
um dote.
– Recusar o dote? E ela? Não se trata unicamente de mim.
Não quero riqueza; é o meu ponto de vista. Porém, com que
direito eu a privaria do que lhe pertence? Com que direito lhe
suprimiria o bem-estar da sua vida costumeira? Isso sim, seria
um belo egoísmo! Seria precipitá-la no desconhecido, preparar a
sua desgraça! E, depois, sua educação; seus hábitos de elegância,
as suas necessidades de luxo, as suas idéias, os seus preconcei-
tos, que sei eu?
Nunca pensei em casar. A história da Ciência nos oferece
exemplos que se podem tomar por modelos. Newton e Pascal
jamais tiveram mulheres na sua vida. Para o homem de ciência é
necessário um tipo de mulher criada expressamente para ele. Um
sábio, um filósofo, um pensador que tivesse para companheira
mulher que não o compreendesse, não partilhando inteiramente
da sua vida intelectual, seria mais desditoso, mais miserável,
mais deserdado que um galé. Ora, a mulher intelectual é um
pássaro raro.
– Parece-me, contudo, que encontrastes exatamente esse pás-
saro raro. Ela renunciou a todas as suas crenças pelas vossas.
Ama a Ciência, tem um verdadeiro culto pela Astronomia... E
por vós.
– Falo, compreendei-me bem, da sua educação mundana. Ela
não poderia ser feliz aqui, renunciando a tudo quanto constituiu
para ela o encanto da existência. A minha vida não é a dela.
Seria o mesmo que unir um habitante de Mercúrio com outro de
Netuno. O mundo lhe é necessário. Eu sou um selvagem, um
bárbaro. Pobre flor! Consentir que a transplantasse para a areia
do deserto seria condená-la à morte. Não sou assassino.
– Meu caro Dargilan, sois de uma exageração fantástica. Por
que o homem e a mulher que se amam não podem ser bem
dessemelhantes? Sabeis, em verdade, que eles o são sempre. O
homem e a mulher são dois seres muito diferentes, tanto pelo
espírito quanto pelo corpo, e aí está uma condição de felicidade.
Completam-se um ao outro. O cérebro masculino e o cérebro
feminino absolutamente não funcionam de igual maneira.
– Por favor, não faleis de “sexo cerebral” no caso. Vós ou-
tros, os médicos, sois abominavelmente incisivos.
– Obrigado por eles.
– Não há de quê; mas vejamos que pretendeis com os cére-
bros sexuados.
– Está bem. Lamento contradizer um sábio do vosso quilate;
porém, o homem e a mulher absolutamente não pensam de
idêntica maneira. A mulher não tem lógica. É toda sentimento.
Raciocine, pois, com o sentimento! Vão dizer-lha que dois e dois
são quatro? Ela não acreditará; em que lhe importa que dois e
dois sejam quatro? Seus nervos nisso não têm interesse. Ela
sente, e é tudo. Sabe que, em amor, um e um são um, ou três,
nunca dois. Vou mais longe. Acreditais seja pelo cérebro que as
mulheres sentem? Estudastes anatomia? Pois bem, vou explicar
por onde sentem e em que diferem absolutamente de nós outros.
– Não, meu caro doutor, é inútil. Estais saindo da questão. Eu
vos digo que um negro não desposa uma sueca.
– Sempre o exagero. Considerai-vos um negro?
– Sim. Ela é branca; eu sou moreno. Ela é formosa; eu sou
feio. Ela não atingiu quatro lustros de idade; eu conto seis. Ela é
flor; eu sou urso. Ela é alegre; eu sou a tristeza. Ela é luz; eu sou
à noite.
– Mas, diabos levem! Ela não vos ama tal qual sois?
– Não, é impossível. Se ela o crê, ela se engana a si própria.
Que eu a ame, eu, que a adore, que por ela esteja louco, é muito
natural; que eu morra por ela, é ainda possível. Porém, amar-me,
ela! Que erro! A ave do paraíso pode amar a prisão? Ela é o meu
sonho de amor, permanecerá o anjo do meu céu.
– Portanto, uma jovem pura, adorável. O senhor vai agir igual
a tantos outros: deixar passar a felicidade sem a deter.
– Não quero causar a sua infelicidade.
– Então, está entendido. Jamais consentireis unir vossas duas
existências?
– Jamais! Amo-a muito, para que tal admita!
– É tudo quanto desejava saber. Adeus!
E o doutor, levantando-se, foi em direção à porta.
– Que ides fazer?
– Dar a vossa resposta à senhorita d'Ossian, pois recebi as su-
as confidências. Eu já vos disse: ela está no leito, bastante adoen-
tada.
– E daí?
– E daí... Não a vereis mais.
XXI
Heróica abnegação

Na manhã seguinte à da conversação precedente, o Conde e a


Condessa de Noirmoutiers decidiram muito bruscamente a volta
imediata a Paris. Fatigada, enervada, doente, Estela não abando-
nara seu aposento havia mais de uma semana. O doutor afirmou,
porém, que ela poderia suportar a viagem, acrescentando que o
derivativo resultante da mudança de ares talvez lhe fosse até
favorável. Aconselhou fazer-se um desvio de itinerário até
Royan, mas Estela recusou isso, formalmente. A partida foi
marcada para a manhã seguinte.
Ela só pensava nele. Ele só pensava nela. Sim, seus fluidos, e
assim suas almas, estavam associados, e daí em diante viveriam
ambos da mesma atmosfera. O astrônomo sonhava só com a sua
Estrela, e a Estrela brilhava apenas para o astrônomo. O amor é
serem dois, formando um. Dargilan sentia que uma juventude
sem amor é semelhante à manhã sem Sol. Embora não houvesse
retribuído o beijo que lhe dera, ela o recebera deliciosamente;
estavam ligados para sempre; ela absorvida nele, ele absorvido
nela. Todavia, seu espírito científico de astrônomo havia perdido
a faculdade de trabalho, que, até então, constituía toda a sua
vida. Sentia-se muito infeliz.
Tentou, apesar disso, retomar os estudos sobre Saturno. Essas
últimas noites de setembro estavam tão belas! Ensaiou; mas, seus
pensamentos, distraídos, abriram asas e voaram para longe.
Na noite da decisão tomada no castelo para o regresso, a viva
luz do luar em plenilúnio impedia qualquer observação telescó-
pica, e o contemplador, debruçado à balaustrada do terraço,
pensava na bem-amada, enxergando só a ela. O agreste perfume
das campinas vizinho, recentemente ceifado, impregnava a
atmosfera, deslizando qual um sopro embalsamado. A paisagem
era silenciosa e solitária.
“Se ela viesse aqui, nesta noite tão maravilhosa, dizia de si
para si, quanto eu seria feliz!”
E teve a idéia de atraí-la, apenas pela força psíquica, da qual
fizera tantos estudos na primeira obra lida por Estela. Voltou-se
para a direção do castelo, e estendeu os braços.
“Vem! vibrou ele em fervente amor, vem, minha bem-amada!
Unamo-nos por um instante em face deste belo céu. Amo-te,
quero-te, não posso viver sem ti. Vem para junto de mim; quero
sentir-te, respirar-te, a sós, a sós nesta solitude!”
Estela, depois de feitos os preparativos da viagem, deitara-se
e adormecera. Levantou-se, vestiu-se, envolveu-se em um mantô,
desceu a escada, abriu uma porta e saiu no parque. Seu ser estava
como que mergulhado numa espécie de estado sonambúlico.
Galgou lentamente a senda que conduzia à pequena porta de
comunicação com a montanha. Dargilan a viu chegar pelo pátio
do jardim, ouviu quando subiu a escada, e esperou. Seu coração
pulsava violentamente.
Estela apareceu diante dele, branca e pura, qual visão celeste,
e parou. Seus olhos estavam abertos, e ele sabia que o sono
normal cedera lugar ao sono hipnótico. Tinha diante de si uma
criatura que teria obedecido cegamente a todas as suas ordens;
porém, de forma alguma queria um autômato. Então, sem tocá-
la, e colocando unicamente um braço por detrás do busto, com
receio de uma queda, soprou fortemente sobre a sua fronte e a
tomou logo nos braços.
Estupefata por se encontrar ali, Estela procurou a princípio,
inutilmente, recordar-se da causa que ali a conduzira. Sendo
todas as coisas que via em torno de si já familiares, não sentiu
espanto algum ao reconhecê-las. Dargilan, que a sustentava nos
braços, cobriu-a de beijos. Estela não estava inteiramente acor-
dada; permanecia em um desses estados superficiais de hipnose
que parecem meio-sonho.
– Chamastes-me, disse ela, e eu vos ouvi. Adormecera naque-
le momento. Creio lembrar-me de ter sentido um violento cho-
que elétrico, igual ao de certas ocasiões em que me olhais fixa-
mente. Mas, como vim?
– Não posso viver sem a minha Estrela. É o anjo do meu céu.
Nunca fui tão feliz quanto neste momento. Oh! Fiquemos juntos!
A Lua silenciosa iluminava a paisagem adormecida aos seus
pés. Seus olhares se elevavam alternadamente da Terra para as
estrelas, e juntos percorriam a vasta imensidão. A Criação pare-
cia um sonho divino desvendado só para eles.
Assim permaneceram muito tempo, tão próximos um do ou-
tro que de longe apenas uma sombra seria visível, falando pouco,
quase silenciosos. A eloqüência do amor não se apregoa, murmu-
ra-se. Em amor, quanto mais baixo se fala, melhor se ouve.
A boca permanece no silêncio
para ouvir-se falar o coração.
E o poeta diz a verdade. Eram seus corações que falavam, e
essa doce e misteriosa linguagem, esse pensamento em comum
perante o céu imenso, naquela noite de verão tão calma e tão
suave, era uma volúpia infinita. Seu amor assemelhava-se a um
perfume puro, elevando qual a flor de lis ao cimo da montanha
solitária.
De repente, deslizou ao longe uma estrela errante, parecendo
cair sobre o castelo.
– Fiz o meu pedido... disse Estela.
Subitamente o astrônomo pousou dois dedos sobre os amados
lábios.
– Ai de mim! suspirou, sou o mais infeliz dos homens!
– Não éreis tão feliz há pouco?
– O mais feliz dos homens por vos conhecer e por vos amar...
O mais infeliz por não ser digno de vós e ter de vos renunciar.
– Que dizeis...?!
– Silêncio! O amor é a maior contradição social do nosso mí-
sero planeta. Não me estais destinada!
Apertou-a amorosamente contra o peito.
– Estou louco, prosseguiu; eu quero e não quero; eu vos amo
muito! Sentimento divino e diabólico! O Céu e o Inferno se
combatem em mim. Não posso viver sem o meu amor, nem viver
com ele. Estela, sois bela e pura. Vossa presença aqui, a esta
hora, veio consagrar minha vida de anacoreta. Um anjo me
apareceu. Sereis eternamente para mim um anjo descido dos céus
e a vossa auréola planará sempre aqui qual celeste luz. Doravan-
te inspirareis todos os meus pensamentos. Mas, Estela, meu
amor, que tendes?
– Reconduzem-me, amanhã, a Paris, disse. Desejaria ficar
aqui. Meus parentes são cruéis.
– Amanhã! Declarou o astrônomo com voz estrangulada.
– Amanhã, pela manhã, dentro de algumas horas!
– Não te levarão! Vais ficar. Guardo-te, acrescentou apertan-
do-a perdidamente em seus braços. Mas, de repente, irresistível
sensação sé apoderou de todo o seu ser; desprendeu-se do con-
tacto desse jovem corpo tépido e perfumado.
– Eu te amo; eu te amo para sempre!
E de novo uniu longamente os lábios aos dela.
Estela correspondeu ao beijo e o envolveu nos seus amorosos
braços.
– Também eu, também eu te amo há muito tempo.
Rafael estava, nesse momento, agitado pela mais violenta
emoção, oscilando qual um navio ao mais forte temporal. Duas
determinações inteiramente opostas o dominavam com alternati-
vas. Por fim, uma transfiguração, que parecia vir do céu, acal-
mou de repente o seu tormento. O rosto da eleita do seu coração,
daquela divina companheira, estava reclinado em seu peito,
oculto pela penumbra, enquanto o seu ficara iluminado em cheio
pela alva claridade lunar.
– Pousa as tuas mãos nas minhas, disse Dargilan, e olha-me.
Apenas recebeu a força do olhar e da vontade que lhe eram
dirigidos, Estela recaiu em sono hipnótico. As lágrimas pararam
em suas pálpebras, parecendo presas aos longos e negros cílios.
– Vai! Disse, volta ao teu aposento e repousa em uma poltro-
na. Quando o relógio bater meia-noite, acorda. Só então irás para
o teu leito. Vai!
A bela estátua retomou o caminho e cumpriu pontualmente as
ordens do mestre. Acordou, com efeito, tão logo soou meia-
noite, e acreditou ter sido joguete de um sonho. Luar intenso
iluminava o aposento. Reviu, em visão confusa e perturbada, a
cena que se passara, e durante a qual não estivera, de todo,
desprendida do estado de hipnose. Mas, qual se obedecesse a um
dado impulso, voltou automaticamente ao leito e dormiu o sono
normal.
Vendo-a partir, descer lentamente, qual sombra alva, o cami-
nho da montanha, o “Solitário” sentiu, por sua vez, que lágrimas
lhe subiam aos olhos e escureciam a vista.
“É preciso ser forte! Disse, falando a si mesmo. Meu santuá-
rio está abençoado pela sua presença. A felicidade dominará a
dor. Ela me ama! Estaremos unidos em Deus. Céu, eterno e
infinito, eu te tomo por testemunha do meu amor!”
Depois, um instante decorrido, esteve a ponto de precipitar-se
no seu encalço e reconduzi-la ao terraço.
“Não! Disse. A verdade deve ser pura!”
E acrescentou, elevando os olhos para a estrela da Lira:
“Talvez seja inacessível!”
Algumas horas mais tarde o trem de Paris conduzia os três
turistas dos Pirineus. Chegando à Rua Vaneau, Estela ficou
enferma e não pôde abandonar o leito.
XXII
“Ad augusta per angusta”

Doença de langor apoderou-se do corpo enfraquecido da po-


bre Estela. O amor lhe pareceu o único interesse sério, o único
bem da vida. Sentira a luz e via a noite recomeçar. O médico não
pôde fazer diagnóstico algum, e procurou impedi-la de permane-
cer no leito, e fortificá-la um pouco, receitando certas iguarias
capazes de despertar o apetite adormecido. Nada lhe agradava.
Tudo lhe era pesado e fatigante. Flor definhada e descolorida,
estava em fraqueza extrema; tomara horror a todos os prazeres
mundanos, não saía do seu aposento, recebendo apenas algumas
das suas melhores amigas, e até cessou toda confidência com a
querida Cecília.
Entretanto, esta amiga muito devotada, e que a queria com
sincera afeição, continuou a visitá-la assiduamente, procurando
desviar para outros rumos o curso das idéias constantes. Porém,
não tardou a reconhecer que todos os esforços eram inúteis.
Acreditou então dever atacar diretamente e com todas as armas
aquela paixão, para ela inexplicável, absurda e funesta. As
discussões tornaram-se freqüentes. Um dia, deduziu, ao ouvir
certas palavras, que Estela ia fugir ao encontro dele talvez. Teve
uma crise de nervos que terminou em lágrimas, mas a cólera
explodiu novamente em seus olhos.
– Não te compreendo, continuou Cecília. Há razão para que
digam que as moças são loucas. Escolher esse selvagem! Como
queres que te aprovem? Tu, a quem basta levantar o dedo para
ser duquesa ou marquesa, rainha do mundo mais elegante?
– Tu jamais amaste.
– Sim! O amor é cego, todos o sabem. Porém, em ti é mais do
que cegueira. É uma tolice que fará de ti a mais infeliz das
mulheres e da qual te arrependerás por toda a tua vida. Tu!
Preferir a miséria à riqueza?
– E que mais?
– Sim, a miséria. Não tenhas dúvida. Sem criados, pois afinal
de contas esse velho jardineiro e sua mulher ou nada é quase a
mesma coisa. Não vais cozinhar com essas mãos!
– E por que não?
– Lavar louça, engraxar seu calçado!
– Maria Madalena não enxugou os pés do Cristo com a sua
cabeleira, e o próprio Jesus não lavou os pés aos seus apóstolos?
– Estás completamente louca. E pensas que ele te amará com
mãos avermelhadas e encardidas? E depois cairás doente, fati-
gar-te-ás, esgotar-te-ás, ficarás feia, morrerás. Oh! Meu Deus!
Vamos, minha Estela, eu te suplico, ainda é tempo, raciocina,
reflete, o caso é sério, é a tua vida! É a tua morte, talvez. Estela,
vejo mais longe do que tu. Quanto eu te lamento!
Tomou-a em seus braços, soluçando.
– Ele ou o convento, replicou. A verdade ou coisa nenhuma.
– O convento! Exclamou Cecília, Carmelita! Pois bem, irei
contigo.
Essas discussões entre as duas amigas se tornaram freqüentes,
sem produzir mudança alguma no estado de alma de Estela.
Durante os dois primeiros meses, escreveu algumas vezes ao
Dr. Bernard, a pretexto de consulta, porém, em verdade, na
esperança de ouvir o eco longínquo de uma voz amada. Não
recebeu dele nenhuma palavra escrita; apenas, dois dias após seu
retorno à Capital, uma rosa e um pensamento ligados. O outono
chegara, trazendo seus dias cinzentos para o céu de Paris, e a
tristeza do adeus do Sol. Uma carta lhe trouxe a noticia de que o
“Solitário” estivera doente, de que se achava em convalescença,
de que se insulara mais do que nunca em seus estudos e de que
preparava um livro sobre “o amor no além da vida”.
Podemos ensaiar a sondagem desse abismo vivo que se cha-
ma – o coração humano, e jamais encontraremos nele uma
alegria ou dor iguais às que pode causar o sentimento do amor.
Bem depressa os parentes de Estela julgaram compreender
que ela estava decidida a tomar o véu de freira. A jovem sentia
que para amar a vida era preciso partilhá-la com outrem; e teria
achado a morte menos assustadora do que o eterno deserto do
coração. Às vezes comparava o mundo ao oceano, dizia que a
água das suas ondas era amarga e agitada, porém essa mesma
água se tornava pura e doce elevando-se para o céu na evapora-
ção solar. Desejaria evaporar-se no espaço.
Dargilan, por seu lado, tivera todas as forças abatidas pelas
emoções e lutas da consciência, e também fora obrigado a reco-
lher-se ao leito por várias semanas, agitado por febre violenta.
Ficara em estado de torpor inconsciente. Depois, gradualmente,
os trabalhos intelectuais e as árduas pesquisas científicas absor-
veram seus pensamentos durante uma parte do dia. Nas noites
límpidas, observações astronômicas urgentes ocupavam-lhe
várias horas. Encontrava o quase esquecimento. Em face daque-
las grandezas sublimes, o coração se acalmava. Por volta de
meia-noite, quando regressava ao quarto de dormir, esquecia os
trabalhos, folheava livros ou revistas, e se deitava para dormir;
mas, então, cada noite, inevitavelmente, o sono se recusava a vir
e a imagem adorada de Estela, evocada pela sua ardente paixão,
surgia ante ele, circundada por uma dourada auréola.
Conheceu as longas e cruéis insônias, a obsessão das idéias
fixas que lhe atenazavam o cérebro, os desesperos, os abismos
do coração, dos quais não se vêem o fundo, a tortura das angús-
tias morais, as tristezas amargas da alma desorientada.
Noite e dia, seu pensamento ia desvanecer-se no vácuo.
Quando a fadiga quebrava seus nervos e lhe trazia um pouco de
sono, então a alma se desprendia, voava, ia visitar a bem-amada.
Aconteceu, em meio do inverno, que todas as noites, quando
uma hora da madrugada, precedida dos quatro quartos de aviso,
batia no sino sonoro de um velho relógio de castelo, em um
jardim da Rua Vaneau, Estela, quer estivesse adormecida, quer
estivesse acordada, via aparecer ao pé de seu leito o rosto de
Rafael, contemplando-a fixamente. A aparição durava alguns
segundos. Depois, o semblante amado se desvanecia, qual pálida
claridade fosforescente. E Estela sentia que era adorada.
Algumas vezes também, durante a noite, um sopro leve a to-
cava, e ela despertava sob a impressão de um beijo, do qual seus
lábios imóveis guardavam por muito tempo a esquisita doçura.
Ela vivia qual num sonho perpétuo, às vezes atravessado por
deslumbramentos luminosos. O trabalho misterioso de sua carne
lhe fazia pressentir uma vida desconhecida, parecendo ao mesmo
tempo encantada e inacessível. Porém, ela se concentrava, en-
volvendo-se com o véu das noivas do Além, guardando-se qual
um tesouro em um túmulo.
Os banquetes e as reuniões do ano anterior tinham retomado
o seu curso; mas todas as solicitações de seus tios resultaram
inúteis. Soube com satisfação do casamento do Duque de Jumiè-
ges, com uma de suas amigas, tão rica quanto ela. Cada vez mais
encerrada no seu insulamento, dedicou-se à leitura das obras do
“Solitário”, de Pascal, de d'Alembert, Rousseau, Goethe, Sha-
kespeare, Ossian, Lamartine, Musset.
Por quais ramificações ocultas os conventos e estabelecimen-
tos religiosos conseguem estar tão exatamente ao corrente das
fortunas particulares, dos dotes e das heranças? É o que o autor
desta narração ignora. Mas, por uma coincidência notável, não
fizera três meses ainda que a senhorita d'Ossian manifestasse, a
bem raras pessoas, a intenção de abandonar o mundo, e já sua tia
começara a receber a visita de diversos eclesiásticos que, sob
pretexto de donativos para obras-pias, tinham elogiado, perante a
jovem, as vantagens de certas casas religiosas onde acabavam de
entrar a filha do General X..., a sobrinha do Ministro Y... ou a
filhinha da Duquesa de Z..., viúva, dotada.
O Conde e a Condessa de Noirmoutiers não acreditavam ain-
da nessa determinação. Entretanto, repetidas vezes falara Estela
da sua maioridade próxima e se informara do estado de sua
fortuna. Soubera que as suas sessenta mil libras de renda repre-
sentavam um capital de mais de dois milhões.
Um dia, dirigiu-se ela própria ao velho notário da família e
lhe expôs o desejo de abandonar sua riqueza.
– Renunciar! Exclamou o notário. Que está dizendo, senhori-
ta?
– Sim, fazer uma doação.
– Para quê? Para quem? Com que fim?
– Desejo afastar-me do mundo.
A conversação se prolongou sobre o assunto por mais de uma
hora de discussão complicada. O excelente homem, pressentindo
sob tudo isso algum mistério, prometeu a si próprio falar com o
tio Noirmoutiers e despediu a sua original cliente, assegurando
ocupar-se do caso e a necessidade de fazer primeiramente a
avaliação exata da fortuna.
E, com efeito, poucos dias após, soube pelo conde a história
dos Pirineus.
Decidira Estela seriamente encerrar sua vida em um mostei-
ro? Ouvira falar de alguns, estava até informada dos exercícios
com que ali se ocupavam; porém deixava as coisas correrem sem
nada resolver, e o mês de abril, o mês da sua maioridade, chegou
sem que ela houvesse tomado decisão alguma.
Enquanto isso insensivelmente, sua vontade se fixara de mo-
do irrevogável. Resolvera ser pobre e, após muitas discussões,
deu ordem ao seu notário para vender todas as suas apólices e
distribuir o produto conforme o julgamento e as luzes dele
próprio.
O homem da Lei e o tutor tiveram então freqüentes entendi-
mentos para a execução dessa estranha vontade. Decidiram
vender os títulos de renda, de acordo com as intenções formais
da jovem, à qual mostrariam as contas de venda; mas, imediata-
mente, comprarem outros, ao portador, e depositá-los no Banco
de França em nome do Conde de Noirmoutiers, do qual era
Estela a herdeira única. Conforme o modo de pensar desses dois
homens, a fortuna ficaria à disposição de Estela em dia próximo,
quando o que chamavam “sua loucura” cedesse lugar ao regresso
da razão. Porém, deixá-la-iam na persuasão de que as suas
intenções tinham sido fielmente executadas, e até lhe indicariam
o emprego e a distribuição das importâncias.
– É igual, disse o conde, e eu preciso confessar que o amor é
o que há no mundo de mais desarrazoado e mais louco.
– Se fosse razoável, não seria amor, replicou o velho notário.
Mas isso passará. Tudo passa.
– Não tem observado, acrescentou o conde, que, em geral, as
mulheres não raciocinam?
– Jamais igual a nós outros, em todos os casos. Mas é prová-
vel que elas julguem raciocinar, e o fazem à sua maneira. Não
me refiro às enamoradas. Nessa hipótese, elas nem sonham em
raciocinar.
– E os enamorados, então?
– Caluda! Já se escoaram mais de seis lustros... E, demais, os
homens têm desculpas: as mulheres são tão belas!
– Basta! Basta! Senhor notário.
Seis longos meses tinham decorrido. Os parentes e as últimas
amigas de Estela esperavam a cada dia receber a sua decisão,
sobre a escolha do convento.
Falava-se de Lourdes e de Pau. Estela observou que, desde o
dia em que sua fortuna deixou de lhe pertencer, os padres cessa-
ram as visitas.
Na sua solidão dos Pirineus, Dargilan, por sua vez, caíra em
negra melancolia. Foi a muito custo que, no decorrer do inverno,
chegou a escrever algumas cartas aos grandes espíritos com os
quais mantinha correspondência. Dirigira duas a Victor Hugo.
Sem dúvida exprimiu, sem de tal aperceber-se, um estado de
alma bem perturbada, pois a resposta do poeta (uma das últimas
cartas que escrevera meses antes da sua morte) terminava por
esta divisa dos conjurados do “Ernâni”.
“Ad augusta per angusta.”
Victor Hugo
XXIII
Felicidade suprema

Em uma noite de princípios de maio, Dargilan observava em


sua luneta um magnífico conjunto de estrelas situado na conste-
lação de Hércules, e, em meio ao silêncio absoluto da noite,
estava ocupado em escutar e contar as pancadas do pêndulo para
determinar a distância desse conjunto a uma estrela vizinha, que
brilhava um pouco a Leste, quando um leve ruído, semelhante ao
roçar de seda, feriu o seu ouvido atento e, voltando-se para o
lado de onde parecia vir o frufru, percebeu a figura de Estela a
alguns passos dele. Aproximava-se lentamente, como se desli-
zasse sobre o solo. Sua alvura assemelhava-se à de ligeira nuvem
semitransparente, iluminada pela Lua; o semblante, porém, não
era tão alvo e parecia levemente rosado. Os olhos eram difíceis
de reconhecer, mas olhavam de frente, e, quando a figura passou
diante dele, o astrônomo viu bem que a cabeça se voltava e os
olhos continuavam a contemplá-lo. Sentiu na fronte algo pareci-
do ao sopro vivo do beijo de um anjo, e viu a aparição desvane-
cer-se, dissolvendo-se: em breve restava apenas uma leve clari-
dade no lugar do coração e essa claridade suavemente se elevou
no céu pela abertura existente na cúpula.
Rafael teve medo. Julgou que a aparição anunciava a morte
de Estela e, abandonando o seu escabelo de observação, foi
soluçar na poltrona. Sua natureza muito impressionável, desde
tanto tempo superexcitada por uma série de agitações violentas,
confundira o duplo de um vivo com um fantasma de morto,
embora conhecesse exatamente as diferenças tão características
que distinguem essas duas ordens de aparição. O copo astral tem,
com efeito, nesses dois estados opostos, aspectos bem desseme-
lhantes. Abandonando-se ao desespero, não duvidou de uma
catástrofe, e, quando a noite cedeu lugar à aurora, o Sol o encon-
trou abismado em dor e desolação.
Incapaz de realizar qualquer trabalho recolheu-se, depois do
meio-dia, à biblioteca, onde começou a folhear alguns velhos
livros. Sua mão pegou, entre outras, uma obra do século XVII,
encadernada em pergaminho, que trazia por título: “Os Emble-
mas do amor divino e humano reunidos”, publicada em Paris, em
1631, com privilegio dos doutores de Teologia, trazendo em
cada página uma linda figura em talho-doce, representando todos
os sentimentos do amor sob imagens religiosas, sendo cada
figura comentada por uma pequena composição de doze versos.
Olhou maquinalmente essas ingênuas gravuras. De repente, entre
duas folhas, percebeu uma pequena flor fanada. Lembrou-se de
que, por ocasião da penúltima visita de Estela, quando, num
arrebatamento, lhe dera o beijo que decidira do seu destino, ela
apanhara um livro da estante em frente. Sim, aquela flor era a da
sua Estrela, não podia ser outra. E beijou ternamente a flor, sem
poder desprendê-la dos lábios.
Era dela a pequenina flor. Ela a tocara e a colocara ali, e nela
o seu pensamento ficara. Pobre Estela, tão ternamente, tão apai-
xonadamente ficara! Onde estaria? Que seria feito dela? Sim, ela
também o amava. Mas, depois de tantos meses, sabendo que ele
não queria, não podia desposá-la, não se teria ela decidido pelo
duque, ou qualquer outro partido ao agrado da família? Era um
absurdo o que ele fizera! Ela lhe pertencia, e lhe dera sua alma,
seu coração, seu amor. Porque não tomara posse desse todo? Que
estranhos escrúpulos, para ele, o “Solitário”, o desdenhoso de
todas as convenções mundanas, o apóstolo do absoluto. E fora
por excesso de amor que a respeitara! E não tornara a chamá-la!
E a perdera! Que loucura! Revê-la-ia ainda? E para que revê-la,
se não poderia mais ser sua companheira no caminho da vida,
pois que estava condenado a uma solidão eterna? Revê-la, correr
a Paris, chegar à Rua Vaneau, procurar a silhueta da sua sombra
na janela, espreitar sua saída, segui-la, apresentar-se de chofre
diante dela... Não; ela nunca mais lhe escrevera. Esquecera-o. E,
depois, aquela aparição'. Talvez estivesse morta ou agonizante!...
E a frase, que tantas vezes repetira para justificar sua conduta,
voltava-lhe outra vez aos lábios: “Ela crê que me ama, a encan-
tadora parisiense; imagina poder partilhar da minha vida de
trabalho e o meu deserto; ilude-se; teria sido sua infelicidade.
Agi bem! Agi muito bem!”
Sentado na velha poltrona, a cabeça apoiada na mão, medita-
va, sonhava, lastimava tudo, o passado, o presente, o abandono
do futuro, e as lágrimas obscureciam os seus olhos quase desme-
suradamente abertos.
Mas, eis que um leve ruído se faz ouvir outra vez, semelhante
ao da noite anterior.
– Estela!
– Rafael!
Lançaram-se aos braços um do outro; cobriram-se de beijos.
– Estela! Es tu, és tu, sim, tu! Não estás morta?
– Morta? Não, afianço-te, e não tenho desejo algum de mor-
rer.
– Mas, por que estás por aqui?
– Venho de Luchon... Ou melhor, de Paris.
– Como?
– Só.
– Só?
– Sim. Quero viver a tua vida. O céu contigo, para sempre. O
esquecimento do mundo, das suas vaidades, das suas mentiras.
Sou digna de ti. Sou pobre, enfim... Abandonei a minha fortuna.
Minha primeira educação está apagada. Cabe-te refazê-la à tua
imagem. Venho a ti, à tua ciência, ao teu céu. És o meu senhor, o
meu deus, o meu tudo. O resto não existe mais. Rafael, eu te
amo!
E novamente se lançou ao seu pescoço, deixando sua arreba-
tadora cabecinha abandonada sobre o robusto peito do sábio.
– Minha Estela bem-amada. É possível! Não posso acreditar
na imensidão da minha felicidade. Tu, para sempre comigo! Oh,
vem! Mas, toma cuidado! Meu amor te devorará.
E lhe cobriu de beijos a fronte, os olhos, as faces, os lábios.
Ali estavam, unidos nos braços um do outro, famintos de
amor, embriagados por uma alegria fantástica, ébrios de uma
embriaguez infinita, transportados às regiões transcendentes de
onde o Universo se torna invisível para o ser, que perde a facul-
dade de enxergar permanecendo absorvido na sua própria felici-
dade. Certamente, naquele momento, nada, fora deles, existia
para os seus pensamentos. Estreitamente enlaçados, seus lábios
não se desprenderam, e Estela se abandonara, apaixonadamente
aniquilada, no seu amor.
Mas a exaltação das emoções ultrapassou suas forças físicas,
e Rafael sentiu o peso de seu belo corpo aumentar em seus
braços. A cabeça reclinara e os olhos estavam fechados. Não
falava mais.
Ele a susteve com vigor, impedindo-a de cair, e, delicada-
mente, com mil precauções, levou-a para seu aposento, depondo-
a sobre o leito.
Estela não despertou! Inquieto e agitado procurou as causas
daquela síncope, pensou em pedir o auxílio dos dois velhos
jardineiros; porém, antes, abriu as janelas de par em par, a fim de
que penetrasse no aposento o ar balsâmico do bosque. Mas o
sopro daqueles lábios adorados apenas era sensível e as mãos
começavam a ficar frias. Pensou, então, que talvez ela estivesse
comprimida em suas vestes, e, com as mãos inábeis e febris,
desabotoou o corpete, desapertou a cintura, num meio-despir.
Receando então que ela se resfriasse, tornou a fechar as janelas.
A bela criança continuava adormecida. Sua cabeleira magnífica
se desenrolara e estendera pelo travesseiro, qual auréola de seda.
Dargilan conseguiu, enfim, após algumas tentativas infrutíferas,
retirar a terrível couraça com que a maioria das mulheres, sob o
nome de espartilho, deformava o talhe havia séculos. Somente
então o peito da desmaiada se encheu de ar, e, com um suspiro,
despertou e abriu os olhos.
Que suplício fora aquele estado para Rafael! Mas também,
doce compensação, que tentativa deliciosa, que riqueza de reve-
lações, quantos tesouros descobertos! Ele, que nunca vira mais
do que gravuras ou estátuas! Aquelas formas primorosas, aquela
brancura Láctea, toda uma atmosfera de voluptuosidade mergu-
lhavam-no em um êxtase embriagador e apaixonado. Aquela
deslumbrante criatura lhe aparecia mais bela do que todas as
estrelas do céu. Parecia-lhe estar ali o que Deus havia formado
de mais esplêndido e mais admirável. A visão do Infinito nos
céus brilhou ante seu espírito maravilhado, e seu amor por Estela
lhe pareceu mais imenso que o Infinito. E porque ela tivesse
aberto os olhos e lhe sorrisse mais tranqüilo a respeito do seu
estado, abraçou-a ternamente. Estava quase inteiramente despi-
da. Então Rafael ficou a contemplá-la, adorá-la na sua esplêndi-
da beleza.
Anjos do Paraíso! Nunca assististes em redor do trono do Al-
tíssimo a uma adoração mais embriagadora do que a primeira
contemplação da mulher por este amante ofuscado. Talvez em
outras esferas haja Deus criado seres mais perfeitos; porém, em
todas as suas viagens imaginárias, de estrelas em estrelas, e em
todos os seus sonhos de populações extraterrestres, jamais o
astrônomo imaginara algo semelhante.
Ajoelhara-se ante o leito, bem a adorar a sua divindade queri-
da; tomara-lhe a mão para nela apoiar os lábios ferventes, e
depois os beijos subiram, acariciando os braços, o colo alabastri-
no.
O amor não é apenas o mais ideal dos sentimentos, o maior e
o mais sublime. É também a mais deliciosa das sensações e a
mais violenta das paixões. Prova-se o divino néctar, bebe-se na
taça encantada, mergulha-se em embriaguez infinita.
Os dois amantes conheceram o que jamais haviam divisado,
e, esquecidos da Terra obscura, viram-se transportados a uma
região de delícias, onde, banhados de claridades, embriagados de
luz, adormeceram no êxtase de um sonho encantado.
Quando despertaram, a noite era profunda e constelada. Uma
linda estrela branca, Vega, da Lira, enviava pela janela, em
saudação, seus raios cintilantes.
– Repara! Olha, exclamou Estela. É a minha estrela, bem sa-
bes, aquela que eu escolhi!...
– A Lira, replicou, interrompendo-lhe as palavras com beijos.
Pois bem! Conheço agora uma lira mais encantadora e mais
melodiosa, que bem me fará esquecer a de Pitágoras.
– Será que observareis o céu, esta noite, meu astrônomo?
– Qual, meu amor? Parece-me agora que existem dois. E o
outro está tão longe... E é tão frio!
Naquela noite, pela primeira vez o “Solitário” esqueceu intei-
ramente as estrelas e a Astronomia.
Só na manhã seguinte tiveram tempo de conversar. Estela
contou-lhe suas penas, seus tormentos, suas inquietudes, suas
lutas com a família, sua determinação inquebrantável, sua partida
de Paris, sua viagem. Amava-o, como acabara de dar prova; mas
também amava a Ciência, a Natureza, a poesia das coisas, os
mistérios da Criação. Oh! Quanto seria feliz compartilhando a
sua vida, trabalhando com ele, pensando igual a ele! Hesitara e
sofrera durante muito tempo. Sua atração sobre ela dominara
tudo. Hesitações vãs. O espírito procura, mas é o coração quem
encontra.
– Não avalias o que sonhei a noite passada, à força de pensar
em ti! Pois bem, anteontem, chegada havia algumas horas a
Luchon, deito-me por volta das onze, esperando adormecer e
repousar (o banho relaxara-me os nervos); tento espancar todas
as idéias que me passam pela cabeça, porém permaneces tu,
sempre tu! Por fim, adormeço e, de repente, estou aqui, lá em
cima, sob a tua cúpula, onde fazias tuas observações. Vi que não
pensavas em mim naquele momento. Creio, meu querido, que a
mulher ama bem melhor do que o homem. Tu me esquecias,
estavas inteiramente ocupado com uma observação, sem dúvida
atraente. Afinal, percebeste a minha presença e te dignaste olhar-
me. Sabes que eu teria muitos ciúmes da tua Ciência, se não
formasse d’ora em diante um só ser contigo? Eu te seguirei por
toda parte, qual a tua sombra, e ainda mais, mesmo à noite.
– Mesmo à noite?
– Mau! Não era isso que eu pensava. Sou mais idealista do
que tu no meu amor.
– Parece-te?
– Estou certa. Há uma diferença entre nós dois.
– Lamentaste? Preferirias ser Rafael? Eu ficaria encantado se
fosse Estela: és linda!
– Não. Permanece o que és, meu belo Rafael, sempre, durante
um século.
E continuaram conversando, dizendo-se as mil coisas delicio-
sas que os amantes gostam de ouvir. Dargilan narrou que a vira
realmente, naquela antevéspera, mas receara uma catástrofe, o
que explicava as primeiras palavras de espanto pronunciadas à
sua chegada – quando ainda se achava sob a influência da apari-
ção noturna; pensava constantemente na sua querida Estela e a
amava bem mais fortemente, “mais apaixonada, mais seriamente
do que ela poderia fazê-lo, pois o homem indubitavelmente sabe
amar melhor do que a mulher...”
– Oh! Isso é impossível. Não podes saber como eu te amo, tu
não estás no meu coração.
O dia passou em palavras de amor, em carícias sem fim; o dia
e a noite... Pela segunda vez, o astrônomo esqueceu ainda,
inteiramente, o céu e as estrelas.
É delicioso amar, principalmente para o sábio, para o poeta.
Quanto mais vasta a esfera das contemplações intelectuais, mais
ampla é também a capacidade de amar. O amor antes de tudo
vale quanto lhe tenhamos dado: sua riqueza é a da nossa alma. O
amor de Rafael por Estela era igual ao que dedicava ao céu
imenso. E porque a Ciência era álgida, silenciosa, sem eco,
encontrava na sua divina Estela todo o complemento do amor
que a Ciência por si mesma não lhe pudera dar. Aos júbilos do
seu espírito juntavam-se as emoções do seu coração; aos seus
contentamentos intelectuais vinham reunir-se as delícias de um
sentimento de afeição profunda e sem reservas. Sua alma ofus-
cada, atônita, nunca suspeitara tal intensidade de alegria e felici-
dade. Parecia-lhe que só então nascia para a vida real, que até
então esperara, sem encontrá-la, a verdade por fim possuída.
Os primeiros dias daquela vida a dois, tão enfeitiçante e tão
nova para o “Solitário”, passaram em contínua carícia de suas
almas e seus corpos. Diante daquela beleza feminina, ao mesmo
tempo casta e perturbadora, quase inatingida por seus sonhos,
permanecia em delicioso êxtase, que se renovava sem cessar.
Toda a juventude, contida por tanto tempo, despertava em chama
inextinguível. Saboreou as inenarráveis delícias de ver e de
possuir uma beleza perfeita, entregue a todos os seus desejos.
Aquelas formas esbeltas e puras, tão harmoniosas, mármore
vivo, que, dos pés à cabeça, apareciam na sua nobre pureza de
linhas, encantavam o seu olhar de artista, tanto quanto à sua
paixão amorosa. Eram transportes sem fim. A ardente imagina-
ção multiplicava as sensações. Estela morria e renascia animada,
ela também, por um ardor encantado, e todo o seu ser, fremente,
desfalecia sob os beijos apaixonados. Uma noite, ela pediu a
escuridão completa da primeira noite “para saborear de outra
forma, concentrada nessa treva, para aniquilar-se completamen-
te”, pensava ela. Exigiu também fossem fechadas de todo às
janelas. Porém esquecera os efeitos elétricos que, em outros
tempos, observara no seu próprio corpo. Isso foi para Rafael uma
nova revelação, e naquela noite pôde fazer estudos que não
adivinhara em suas pesquisas científicas, até então um pouco
bisonhas, sobre a eletricidade humana.
Define-se a eternidade pela negação do tempo, não lhe sendo
aplicável qualquer medida de duração. Também para eles a
noção do tempo não existia. Os dias e as noites voavam como
horas, ou minutos, instantes inapercebidos. Eternidade em cada
beijo! O calendário foi suprimido. Não antes do oitavo ou nono
dia, pela manhã já bastante avançada, foi que Esteta disse de
repente, procurando fazer esquecido o langor de seus olhos:
“Mas, meu amor, pensei ter desposado um astrônomo!”
Desde a chegada de sua bem-amada, Dargilan perdera intei-
ramente de vista a sua Ciência, todavia tão querida; não se
lembrara um só instante dos trabalhos habituais, que até então
haviam sido tarefa exclusiva e assídua de toda a sua vida.
A observação de sua companheira despertou-o de um sonho.
– Em que dia estamos hoje? – perguntou.
Procuraram, calcularam, mas em vão; foi absolutamente im-
possível acertar a quantos dias se abraçavam. Concluíram pelos
oito dias, mas o jardineiro, interrogado durante o almoço, asseve-
rou que já eram decorridos dez.
Só então o sábio se lembrou da observação astronômica inter-
rompida pela aparição noturna de Estela. Uma chuva tempestu-
osa, que desabara compacta durante mais de hora, limpara a
atmosfera, e era de prever um belo céu, perfeitamente nítido,
para a noite próxima.
Ficou combinado que reiniciariam juntos a observação inter-
rompida, e Estela saltou de alegria à idéia de ser associada ao
estudo das maravilhas siderais, em companhia de seu bem-
amado.
Abraçou-o mais uma vez.
– Se continuas a abraçar-me, nunca poderei voltar ao traba-
lho.
– Prometo não te tocar mais...
XXIV
A vida de casal

À noite, o equatorial foi dirigido para um magnífico agrupa-


mento de estrelas da constelação de Hércules, denominado
Messier 92.
– Por que esse nome? Interrogou Estela. É necessário que me
ensines tudo.
– Esse nome é o de um observador modesto que passava as
noites em uma torre da comunidade do Palácio de Cluny, em
Paris, nas ruínas das antigas termas de Juliano. Essas construções
existem ainda. São veneráveis. Messier ficava ali todas as noites
em busca de cometas, e, pesquisando cometas, encontrou nebu-
losas, das quais publicou, em 1783 e 1784, o primeiro catálogo,
elevando-se à cifra de 103. Olha, eis aqui justamente o exemplar
do próprio Messier, com as suas anotações manuscritas.
E estendeu a Estela um pequeno livro encadernado em ver-
melho.
– Oh! Que escrito antigo! Exclamou. Emociono-me, ao folhe-
ar essas páginas seculares.
– Olha o número 92.
– Ei-lo. Está bem visível: “18 de março de 1781. Nebulosa
bem nítida e de grande luminosidade, entre o joelho e a perna
esquerda de Hércules. Não tem nenhuma estrela. O centro é
brilhante, rodeado de nebulosidade; assemelha-se ao núcleo de
um cometa. Tem, com pouca diferença, a mesma luminosidade e
grandeza da que está na cintura de Hércules, e traz o nº 13 do
meu catálogo”. Sabes o que mais me impressiona nesta descri-
ção? É o joelho e a perna esquerda de Hércules. Pode-se ver isso
no céu?
– Olha tu mesma. Vem ver.
– Conduziu-a ao terraço e lhe mostrou a constelação.
– Olha! Está perto da minha estrela!
– Justamente. Perto da Lira. A coincidência é bastante curio-
sa. Precisamente nesse rumo tinha eu os olhos quando da tua
aparição. Vês Hércules?
– Onde?
– Observa aquela estrela brilhante, avermelhada: indica o lu-
gar da cabeça. Essa estrela se chama Alfa.
– Sim, vejo. Então aquela estrela é Alfa de Hércules?
– E tem uma história, das mais estranhas, por motivo da natu-
reza inteiramente bizarra da sua luz. Narrá-la-ei mais tarde.
Agora, olha ali uma estrela também brilhante, porém mais clara:
tem o nome da letra grega Beta e indica o ombro direito de
Hércules. Do outro lado, aquela segunda estrela, sim, aquela,
marca o ombro esquerdo e se chama Delta. Aquela terceira
assinala a anca direita e se denomina Zeta. Continuando em linha
reta, aquela outra corresponde à coxa...
Enquanto Dargilan lhe mostrava a estrela, Estela lhe deu pro-
longado beijo na boca.
– Ah! Se não ficas quieta, não continuaremos. Prometeste que
não me tocarias.
– Eu te reprometo.
– Onde estávamos?
– Na coxa de Hércules. Prestei bem atenção. Continua.
– Sim, é a estrela Eta. Depois a perna se encolhe com aquele
alinhamento, de sorte que o homem está de joelhos. Agora, olha
ali, depois de Delta; aquele outro alinhamento de estrelas dese-
nha o braço esquerdo, segurando um ramo, enquanto o direito
sustenta a maça. Pois bem, com essas estrelas podes traçar o
esboço de um homem ajoelhado.
– Inclinado, com a cabeça para baixo?
– Precisamente; vejo que o reconheces. Não se deve pensar
em encontrar nas constelações pinturas de Rafael, Miguel Ânge-
lo ou Rubens. Não. São simples agrupamentos de linhas, esbo-
ços, como os podem desenhar as crianças, que com dois traços
de carvão fazem duas pernas, com outros quatro um corpo, com
outros dois os braços, com um círculo a cabeça. Eis tudo. Ao
traçar esses croquis, corporificando nesses alinhamentos repre-
sentações de seres reais ou fictícios, a imaginação de nossos
antepassados povoou esses espaços silenciosos de uma vida
extraterrestre, mais ou menos bizarra e fantástica.
Viviam muito mais e muito melhor do que nós outros, com a
Natureza. A solidão das noites, o vento, a tempestade, o raio, a
fecundidade da flor ou da mulher, os devaneios do sono, o
murmúrio do riacho, os frêmitos da folhagem, os mananciais
sombreados, as quietas fontes – tudo para eles se povoava de
uma espécie de vida aérea, fugitiva e imperceptível, e até nas
profundidades celestes encontraram, inventaram, pressentiram
formas mais ou menos extraordinárias. Sim, se observas com
atenção, se segues esses alinhamentos, se julgas que neles nada
há, que as constelações na realidade não existem, e se pensas que
os nossos avós quiseram desenhar no céu figuras quaisquer, para
serem assim identificadas, tu encontrarás este esboço do corpo
de Hércules ou do Ajoelhado, qual o denominavam os Gregos,
da mesma forma que ao lado, na tua querida Lira, adivinharás
um instrumento de música, alongado, do qual Vega indica o
braço, o cimo, uma lira, cítara ou harpa, da mesma forma que
naquelas estrelas da Coroa, ali, ao outro lado de Hércules, vês
uma coroa formada com grande exatidão, e mais distante adivi-
nhas um delfim, e um pássaro sustentado por duas asas abertas.
Essas denominações, paralelos e criações mitológicas são gracio-
sas e poéticas. Os modernos quiseram completá-las, improvisan-
do figuras nos intervalos não ocupados pelos antigos, mas foram
pouco felizes, pesadões, tediosos com as suas invenções canhes-
tras: o atelier do escultor, o fornilho do químico, o cavalete do
pintor, o relógio, a máquina pneumática, o sextante, o otante e
também a raposa, o ganso e o gato. Tudo isso é artificial e parece
ligado por ficções. Quanto era bem mais viva a mitologia pagã,
com os seus doze signos do zodíaco, avançando gravemente ao
longo da esfera, com a Virgem conduzindo a Arista, Andrômeda
encadeada, Cassíope no seu trono, ou o cavalo Pégaso lançado
no espaço, e o jovem Perseu sustentando na mão a sangrenta
cabeça de Medusa! Mas, não esqueçamos o nosso montão de
estrelas de Messier. Vem admirar ao telescópio.
– Parece uma pequena nuvem luminosa, disse Estela, uma
poeira de pequenas estrelas. Oh! Eu o vejo bem agora. É prodi-
gioso!
– Cada um desses pequenos pontos é um sol semelhante ao
que nos ilumina. É uma aglomeração de estrelas, milhares de
sóis iguais ao nosso. O menor desses pontos luminosos é um
milhão de vezes maior do que a Terra.
– É possível? Milhares de sóis! Então esse conjunto deve
ocupar um espaço imenso. É muito luminoso no centro. Está
longe daqui?
– Certamente seriam necessários mais de três mil séculos
num trem expresso para chegar até lá. Quanto à extensão, é um
universo. Em comparação, a Terra não passa de um grão de pó.
– O Espaço é escuro em torno. É o fundo do céu?
– Fundo do céu? Que queres dizer?
– É verdade. O Espaço não tem limites. E essas estrelas que
vemos ali, de todos os tamanhos, a diversas distâncias do conjun-
to, estão mais perto de nós ou mais longe?
– Mais perto, sem dúvida. Não vês uma, bastante luminosa,
um pouco à direita?
– Não, não vejo bem, respondeu, desviando a cabeça da ocu-
lar.
Dargilan se aproximou para observar no equatorial. Estela se
mantinha em pé, ao lado dele, e suas cabeças se tocaram.
– Tu és preciosa, disse Dargilan, abraçando-a pelo pescoço.
Eu estava procurando... Mas não, os sabugueiros ainda não
floriram.
– Meu Rafael! Amo-te!
– Querida, meu encanto, queres que te diga o meu pensamen-
to? Pois bem, não há nada mais lindo do que uma bela jovem.
– Senhor Astrônomo!... E as estrelas?
Naquela primeira noite de trabalho, a observação astronômi-
ca, apenas começada, foi subitamente interrompida.
XXV
A vida de casal continua

A noite seguinte estava tão bela quanto a da véspera.


– E o agrupamento de Hércules? disse Estela. Ontem inter-
rompeste subitamente a observação que fazíamos. Lamento.
– Realmente? Lamentas muito, muito mesmo?
– Não queres compreender que adoro a Astronomia. O amor e
a Ciência devem caminhar lado a lado. Vou hoje à cúpula. Quem
me amar que me siga!
Um instante depois, a magnífica porção de estrelas estava no-
vamente no campo do equatorial.
– Dizias-me haver ali uma pequena estrela vizinha, bastante
brilhante. Vejo-a.
– Pois bem, minha querida, quando teu duplo passou por mim
naquela noite, estava ocupado em ouvir os movimentos do
pêndulo, contando-os, para saber quantos segundos de distância
há entre o conjunto e a estrela.
– Com que fim?
– Para sabê-lo, desde logo, e determinar assim a posição exa-
ta do aglomerado; depois, para verificar se nessa distância houve
alteração.
– Então, já foi medida?
– Sim, e é esse um dos encantos da Astronomia. Nossos olhos
se encontram hoje sobre pontas celestes em que se detiveram já
espíritos que veneramos. Assim, Messier observou e descreveu
esse conjunto em 18 de março de 1781; William Herschel em 15
de agosto de 1783; Lalande em 25 de maio de 1795 (no mais
aceso período das jornadas tumultuosas de Pradial, ano III);
Bode já o observara em 1777; um astrônomo poeta, Darrest,
observador exato e preciso ao mesmo tempo, mediu com todo o
cuidado e minuciosamente e o descreveu em 23 de outubro de
1863; extasiou-se com o seu esplendor e, na sua bela linguagem
latina, o denominou “acervus adspectu jucundissimus”. Pois
bem, naquele ano a distância entre o conjunto e a estrela era de
trinta e três segundos e meio. Se quiseres, vamos medi-la ambos
esta noite.
– De que modo?
– Oh! Muito simples. Basta ouvires os batidos daquele pên-
dulo e contar em voz alta quando eu te disser.
– Aquele pêndulo? Marca dezessete horas?
– É um pêndulo sideral. Ainda aqui, vês que os astrônomos
vivem fora do mundo. Não temos as horas vulgares. Se quisesses
saber a hora, para o público, consultando este relógio, terias que
fazer um cálculo bastante longo. O que vês ali é a hora das
estrelas, a hora da sua passagem pelo meridiano.
– Quanto é divertido! Então não temos mais a hora dos ou-
tros! É também o que se me afigura desde há onze dias: parece
que aqui cheguei agora mesmo. Nosso coração é um pêndulo
sideral. Será que todos os astrônomos têm essa hora simultanea-
mente?
– Sim. Quer se observe o céu na América, na África, Ásia ou
Europa, é aquela hora a que nos rege. Somos uma sociedade à
parte. E, como te disse, tal sociedade permanece através dos
séculos. Foi essa hora que Herschel consultou quando, há mais
de um século, observou esse mesmo conjunto no céu. Quer
observemos da Inglaterra, qual o fez Herschel; da Dinamarca, de
igual modo que Darrest; da Alemanha, a exemplo de Bode; de
Paris à repetição de Messier; dos Pirineus qual o fazemos esta
noite, estamos sempre no céu, e não conhecemos e jamais co-
nheceremos as divisões de fronteiras...
– Viva a Astronomia! Os astrônomos são felizes mortais.
Mas, por que não se adota para o público essa divisão do dia em
vinte quatro horas, em vez de duas vezes doze horas, feito crian-
ças?
– Porque seria muito simples, muito lógico, muito razoável.
Queres contar as batidas do pêndulo?
– Sim. Um, dois, três, quatro...
– Espera. Começarás no momento exato em que eu disser:
top!
– Pronto. Estou...
– Top!
– Um, dois, três, quatro... Trinta e três, trinta e quatro.
– Top!
– Trinta e quatro e meio. Há um segundo mais do que em
1863.
Será necessário repetir a observação um grande número de
vezes, para assegurar a exatidão. Suponhamos que esta diferença
de um segundo esteja certa. Não parece nada, um segundo! Pois
bem, é enorme! Essa diferença nos indica que o conjunto, ou a
estrela vizinha, ou ambos talvez, se deslocaram na direção este-
oeste. E, com elementos suficientes de cálculo, encontraríamos
sem dúvida um movimento considerável, não somente de cem
mil quilômetros por hora, qual a Terra na sua translação anual
em torno do Sol, mas de duzentos, trezentos, quatrocentos mil
quilômetros por hora, ou mais. A medida em si própria parece
um pouco prosaica. Contar um, dois, três, quatro não é uma
operação transcendente. Porém, quantas vezes o resultado é
interessante quando nos mostra, assim, todos esses sóis lançados
no espaço com uma velocidade vertiginosa!
– Mas, pela minha parte, não acho as cifras tão fastidiosas
como se diz. Resolvi problemas no Internato e aprendi Geome-
tria. Até vou estudar logaritmos.
– Para isso não, senhorita-meu-anjo; oponho-me formalmen-
te. As matemáticas não são assunto para mulheres.
– Já tirano!
– Sim, minha querida. Toma da Ciência tudo o que ela tem de
agradável, mas não te tornes muito técnica, pois emagrecerias.
Estou encantado por saber que não tens horror às cifras, porém
não sejas matemática: isso não é indispensável à nossa felicida-
de.
– Serei o que quiseres. Sabes o que gostaria de ver esta noite?
Eu o tenho sonhado mais de uma vez. No ano passado me falaste
de estrelas coloridas, tão belas quanto as pedras preciosas:
esmeraldas, safiras, rubis, granates, topázios, ametistas. Apenas
as entrevi; queres mostrar-mas?
– Justamente pensei nisso. Quero apresentar-lhe, minha se-
nhora, a estrela R da Lebre e a estrela R do Leão. Atenção: olhe.
– Que coloração estranha sobre esse fundo de céu quase pre-
to! É um rubi, uma gota de sangue luminoso! Quase tenho medo.
– É um sol que se extingue.
– Todas as estrelas ficarão rubras, extinguindo-se?
– Provavelmente.
– Então aquela é muito velha. Não foram criadas ao mesmo
tempo em que as estrelas brancas, que a minha bela Vega, por
exemplo?
– Ou então envelheceu mais depressa. Mas, tu não crês que
todas as estrelas tenham sido criadas no mesmo dia, acrescentou,
sorrindo.
– Não. Teus livros me fizeram compreender a eternidade.
Conhecem-se muitas estrelas vermelhas?
– Tens diante de ti um catálogo mencionando 766. Formam
minoria no céu. Em geral, as estrelas são brancas.
– Não seria uma primeira criação, uma tentativa de resultado
mal sucedido?
– Por que resultado mal sucedido?
– Porque já estão quase mortas.
– Mas se elas datam de uma eternidade anterior às outras! De
mais a mais, todas as estrelas que vemos no céu estarão extintas
um dia, todas, sem exceção.
– E então?
– E então o céu continuará constelado tal qual hoje; apenas
não serão mais as mesmas estrelas.
– E quem criará as novas?
– Vem, olha!
Durante esta conversação o astrônomo dirigira a luneta para
uma nebulosa, em estado gasoso, que se encontra na constelação
do Dragão, bem no pólo da eclíptica, e a primeira cuja análise
espectral demonstrou a constituição gasosa. É, com toda certeza,
uma nebulosa, e não um aglomerado de estrelas que a distância
torna nebuloso; ali está um universo em formação, uma gênese
de mundos vindouros.
– Pálido floco de gás! Disse ela.
– Tendo condensação central; o sol desse futuro sistema.
– É um pouco azulado.
– Sim. É uma névoa cósmica.
– Pequena e pobre.
– Mais vasta do que todo o nosso sistema solar, embora a ór-
bita de Netuno meça perto de nove milhões de quilômetros de
diâmetro. Assistimos daqui à sua criação.
– A que distância?
– Desconhecida. A luz talvez gaste algumas dezenas ou mi-
lhares de séculos para nos chegar de lá.
– Então nós a vemos tal qual era no momento em que partiu o
raio luminoso que nos chega hoje. Talvez agora esteja transfor-
mada em sol e em planetas, e, no entanto, vemos o que era então
e não o que é hoje.
– Sim. São as vozes do passado que ouvimos.
– Como se conversássemos como um ser que morreu há de-
zenas de séculos.
– E se seus planetas são habitados, vê-se, de lá, a Terra e todo
o nosso sistema solar tal qual foram antes da criação do homem.
– Meu amor, começo a compreender o que dizias, que os es-
petáculos da Terra não passam de um sonho ante os do eterno
Universo. É necessário que te faça uma confissão. Esses abismos
do Alto me causam vertigem, igual à que senti no ano passado,
no alto do pico Poujastou.
Estava emocionada e trêmula.
– Nunca estive tão longe pelo pensamento, acrescentou.
– Queres ver um quadro mais maravilhoso ainda? Olha!
– Oh! É pasmoso! Que imensidade! É uma nebulosa também?
Que maravilha!
– Sim, uma verdadeira maravilha, uma das mais admiráveis
da abóbada celeste.
– Também está longe?
– A uma distância desconhecida, no Infinito. Eu te prometi
pedras preciosas. Olha aquelas.
– Topázio e esmeralda. Que brilho! É...
– A estrela tripla gama de Andrômeda.
– Vejo mesmo três: uma azul, pequenina, ao lado da verde.
– Olha agora aquela. É a estrela dupla de Albíreo.
– Oh! Exclamou Estela, seria impossível à pintura reproduzir
essas luminosas cores... A menos que molhasse um pincel no
arco-íris para pintar sobre uma lâmina de marfim translúcido.
– E esta? Chamam-lhe a pulquérrima, “a mais bela”. É o no-
me que a tua madrinha te deveria ter dado.
– Não te agrada Estela?
– Muitas vezes associei os dois nomes, pensando em ti e no
céu. Não é para mim a mais bela das estrelas?
– Mostra-me outra estrela dupla.
– Eis aqui outra minúscula, muito delicada. É a Eta de Cassí-
ope.
– Oh! A encantadora miniatura! Quanto é lindo!
– Pois bem! Imagina, contemplando-a, que um milhão qua-
trocentos e cinqüenta mil terras das dimensões da nossa mal
representariam o peso desse encantador parzinho, na aparência
tão minúscula e tão modesta. De igual modo que a gota de
orvalho reflete o Universo, esse pequeno diamante duplo, perdi-
do na imensidade dos céus, resume a universal atração dos
mundos e a vida infinita.
Continuaram, nessa primeira noite, a fazer uma viagem pelo
mar telescópico, e foi com alegria que o apóstolo do céu desven-
dou, perante os olhos maravilhados de sua companheira, o
opulento escrínio das curiosidades siderais. Depois falaram dessa
infinidade de sóis, dos sistemas que gravitam em torno deles, e a
respeito dos seres que podem existir nessas inumeráveis mora-
das.
Estela se preocupou com esses seres desconhecidos. Já sabia,
pelos livros do seu querido autor, que a forma humana terrestre é
uma conseqüência das condições da vida na superfície do nosso
globo. Aprendera mais: que a vida começou, na Terra, por uma
combinação do carbono com o hidrogênio, o oxigênio e o azoto;
que os organismos aqui são todos compostos do carbono, porém
podemos imaginar seres de outra constituição, que seriam, por
exemplo, combinações de sílica com o oxigênio, formados de
células orgânicas absolutamente diferentes das nossas. Interro-
gou-o sobre os sentimentos extraterrestres de que esses seres
pudessem ser dotados. Dargilan falou-lhe da variedade, já tão
curiosa, de seres do nosso mundo: das formigas, às quais a
Natureza dá asas no dia de suas núpcias e que se elevam na
atmosfera eletrizada para amar e morrer; das plantas que, em
outros mundos, poderiam ser animadas e pensar; de seres que,
formados de amianto, seriam incombustíveis; de paisagens que
poderiam ser luminosas, à noite, por fosforescência; de olhos
cujo sistema óptico, diferente do nosso, permitiria ver o que não
vemos, e não ver o que vemos; etc. Concluíram que os habitantes
dos outros mundos não se assemelham aos da Terra. E Estela
sentiu algum desgosto.
– Queres ver Júpiter? perguntou Dargilan. Como está passan-
do exatamente pelo meridiano, vou pô-lo no campo da luneta, e
poderás examiná-lo à vontade. Seus quatro satélites estão bem
colocados, dois à direita, um à esquerda, e, se observares com
atenção, um adiante, acompanhado da respectiva sombra negra.
– É sobre esse globo, 1.200 vezes mais volumoso do que a
Terra, que eu pesaria 136 quilos, enquanto que 22 em Marte?
– Vês tantas diferenças apenas em três mundos do nosso sis-
tema e sob o só ponto de vista do peso. É preciso nos resignemos
com o fato de os habitantes de outros globos não se nos asseme-
lharem, e que mudaremos de feitio, se os habitarmos algum dia.
– Que ruído é esse?...
– É o movimento do maquinismo de relógio.
Um ruído surdo, ligeiramente cadenciado, resultava da mar-
cha do mecanismo do relógio encerrado no pé da luneta. Esta,
arrastada por aquele movimento qual uma agulha colossal,
girava em sentido contrário ao da rotação da Terra, e conservava
o astro imóvel no campo visual. O observador, ocupado com o
estudo de um astro, segue esse astro no seu curso aparente e, de
certo modo, a Terra gira sob seus pés sem que ele de tal se
aperceba.
Esse ruído, monótono, igual ao sussurro da água de um rio,
acentua mais do que diminui o silêncio. É a calma, o isolamento,
o recolhimento de um santuário. A criatura se sente longe de
tudo. Por vezes a observação é penosa e difícil. Trata-se de
esperar, em uma posição nalguns casos fatigante, um fenômeno
celeste, apanhá-lo de relance, apreciar o momento exato da
passagem de um ponto sobre o último fio do retículo da luneta,
de medir uma distância infinitamente pequena na aparência,
infinitamente grande na realidade. O astrônomo, na plenitude da
noite silenciosa, é, ao mesmo tempo, juiz e sacerdote, juiz das
leis do Universo, sacerdote do Eterno. Isolado em face do Infini-
to, vê girar em torno dele os céus e os mundos, e, ensaiando
deter seu pensamento sobre a ordem invisível que rege o Cos-
mos, ele próprio se sente arrebatado no inexorável movimento
das coisas. Quando o ruído de relógio cessa, o silêncio absoluto
que lhe sucede parece, por vezes, lançar o contemplador na
imensidade do Espaço e abandoná-lo ao Nada.
Rafael e Estela saíram ao terraço para observar Júpiter, a olho
nu, em meio às estrelas.
– Olha que luz súbita!
– Olha depressa!
– Um bólido. Nunca vi um.
– Observemos, e, principalmente, nem uma palavra!
Um magnífico bólido, com efeito, atravessava lentamente o
céu de este a oeste. Tiveram tempo, sem perdê-lo de vista, de vê-
lo aumentar ainda, até igualar à quarta parte do diâmetro lunar,
mudar de cor, do verde esmeralda para o branco incandescente, e
explodir, após ter lançado um clarão muito vivo sobre toda a
paisagem.
– Caluda! fez Rafael, colocando dois dedos sobre os lábios de
Estela, que começava a exprimir sua admiração. Escuta. Nem
uma palavra!
De repente um ruído surdo chegou aos seus ouvidos, seguido
de um longo rufar de trovoada. Via-se ainda, sob a forma de uma
leve nuvem branca, o lugar em que o bólido explodira.
– Oitenta e um.
– Oitenta e um quê?
– Oitenta e um segundos. Nesta atmosfera, a velocidade do
som é de 330 metros por segundo. O bólido explodiu a 26.700
metros daqui, a 22 quilômetros de altura, aproximadamente.
– Fizeste bem, impedindo-me de falar! exclamou Estela. Meu
Deus! Que beleza! Que majestade no percurso celeste! Eu me
extasiaria sem termo! Nunca teria ouvido o ruído da explosão.
Que é um bólido?
– É, em geral, um bloco de minério em que o ferro predomi-
na, e que, atravessando o espaça celeste, nos encontra em seu
caminho e penetra em nossa atmosfera. Sabes que o nosso plane-
ta voga na imensidão com uma velocidade de 30 quilômetros por
segundo. A velocidade dos bólidos é de 40 a 50 quilômetros.
Quando eles encontram o nosso planeta de frente, as duas velo-
cidades, adicionando-se, representam, pois, 70 a 80 quilômetros
por segundo.
– Por segundo! É inimaginável!
– E é isso que causa a explosão, pela espantosa compressão
de ar que o bólido determina diante dele. Geralmente explode
como acabas de ver.
– Se chegassem até à superfície da Terra, poderiam causar
acidentes.
– Há exemplos. O Palácio da Justiça, de Paris, foi incendiado,
em 1618, pela queda de um bólido.
– São, algumas vezes, muito grandes?
– Alguns pesam milhares de quilos. Em geral, são pequenos
fragmentos. Vou buscar alguns espécimes que possuo na minha
coleção.
– Oh! Exclamou Estela, tomando-os religiosamente nas mãos,
um após outro; não é sem emoção que toco estes enviados do
céu. De onde vêm?
– De diversas fontes, sem dúvida. Da Lua... dos planetas... de
antigos vulcões da Terra, pois o cálculo demonstra que, lançados
com certa violência, os blocos poderiam projetar-se a distâncias
imensas, e não recair senão depois de centenários de séculos e
até viajarem eternamente, sem nunca mais voltar a Terra...
Talvez também de explosões solares, que observamos daqui,
conforme sabes. Alguns podem provir de estrelas, trazendo-nos
novidades. Oh! “novidades” antigas. Para vir da estrela mais
próxima, um cometa, um bólido, um uranólito, não levaria
menos de setenta mil séculos...
– Setenta mil séculos! Oh! Quanto seria bom estarmos deita-
dos ambos em um bólido durante todo esse tempo!... Meu “Soli-
tário” abrace-me. Vós me esqueceis!
XXVI
A vida de casal se perpetua

Estela, rapidamente, e com amor e paixão, se associara de


modo completo e sem reservas à vida do “Solitário”, vida labori-
osa da qual não tivera antes a mínima idéia e que, de súbito, nela
substituíra a ociosidade mundana de outros tempos.
Sentira, a vida afirmar-se, acumular, transbordar na felicidade
e na alegria. Pareceu-lhe mesmo que não vivera até então.
Apaixonados no nível de dois loucos, trabalhavam, entretanto
como dois sábios. Estela o ajudava nas pesquisas; lia austeros
livros de Ciência; tornou-se sua secretária; traduzia para ele
memórias científicas inglesas, alemãs, italianas, espanholas, que
ele não tinha tempo de folhear; observava com ele; desenhava as
curiosidades do céu; achava até prazer em manejar algarismos.
Nunca, porém, se tornou mulher sábia, autora pedante, crítica
literária. Permaneceu sempre feminina, fantasista, artista elegan-
te, graciosa, sem ambição intelectual aparente, mas seduzida
cada vez mais pelas descobertas tão brilhantes e tão rápidas da
ciência contemporânea.
Pouco a pouco, no seu espírito, dividiu a Humanidade em du-
as categorias: a dos que conheciam as noções essenciais da
Astronomia, e a dos que as ignorava. Os primeiros, dizia ela,
sabem onde estão e vivem na luz; os outros são cegos e toda a
Criação é para eles letra morta. Essa divisão era para ela tão
absoluta quanto o dia e a noite.
Descobriu que o “Solitário” melancólico do ano precedente
possuía um caráter muito alegre, agradável e quase infantil. As
nuvens da sua fronte se evaporaram com o novo sol. O jovem
filósofo era feliz, perfeitamente ditoso. Com efeito, jamais Estela
vira em fisionomia humana uma tão luminosa serenidade. Sentia-
se que o aborrecimento, a inveja, a ambição, um desgosto qual-
quer, jamais empanara, sombreara ou engelhara aquela fisiono-
mia pura. É certo que o sonhador ficava às vezes pensativo
durante horas inteiras, e ela via passar sob essa fronte as idéias
profundas, que nele se associavam sempre à pesquisa do grande
problema. Mas essa fronte era calma, esses olhos eram brilhantes
e claros, o canto da boca sorria também, e a fisionomia, aberta e
tranqüila, porejava a felicidade interior do Espírito – constante-
mente ocupado em pesquisas de ordem intelectual.
– Fica sabendo, meu Rafael, disse-lhe certo dia, sem mim a
Ciência ter-te-ia devorado.
– De que modo?
– Sim. Durante o longo inverno da minha espera pensei nisso
muitas vezes. Para os sábios iguais a ti, honestos, desinteressa-
dos, para os quais a Ciência é um fim sublime, e não um meio de
conquistar lugares e honras, a vida se torna um devotamento
perpétuo, uma abnegação absoluta de tudo. Via-o bem. Ela te
dominava inteiramente e tu nada fruías da vida.
A Ciência, vês tu, é uma bela mulher, uma admirável mulher,
de semblante sedutor, que se faz adorar pelo amante, apaixona-o
ao mais alto grau, faz que abandone tudo, leva-o a esquecer tudo
e tudo desprezar por ela. Ele a ama, e lhe dá sua vida total, suas
forças, a sua alma. Um dia, ele sente leve enroscar a seus pés,
rodeando-lhe os tornozelos. Esse envolvimento sobe, prende as
pernas, o corpo, vai até ao coração, até aos braços, paralisados
pelos tentáculos, até os ombros, até ao pescoço, e a serpente,
sorridente, constringe o pobre amante, sufoca-o, esmaga-o,
tritura-o e a vítima sucumbe hipnotizada, sorrindo ainda ao
divino monstro... Meu pobre amigo, se eu não viesse não tardari-
as a descer aos baixos da terra, sem ter visto o Sol. Tu havias
nascido para a felicidade; faltava-te alguma coisa, um nada: eu.
– Meu querido pequenino nada, tu és meu tudo. Veio ilumi-
nar e florir o meu deserto.
Tomou-a nos braços, e a cobriu de beijos.
– Meu bem-amado, sou coisa tua. Sim, tu mo fizeste pressen-
tir, o amor é uma escravidão; porém, é bom ser tua escrava.
E assim, constantemente permutavam todas as íntimas im-
pressões. O antigo silêncio do claustro cedera lugar ao gorjeio
dos pássaros. Ele e ela pensavam em voz alta. E muitas vezes
observaram que seus pensamentos se aproximavam tanto, que se
ouviam sem se falar. E assim também um mesmo sentimento
intuitivo pareceu emergir em seus corações: o de já terem vivido,
conservado certas idéias, certas preferências adquiridas em uma
existência anterior, e de já se haverem conhecido. Uma afinidade
misteriosa parecia uni-los por laços predestinados. Estela amava-
o sem reservas, tinha-o na alma, no próprio sangue, vivia nele;
ele vivia nela. Tornara-se a atmosfera do “Solitário”, o ar que ele
respirava. Um dia, algumas semanas depois da chegada, disse-
lhe de chofre:
– Querido amor, quando nos casaremos?
– Quando quiseres.
– Na igreja? Na pretoria apenas?
– Conforme preferires. Nos Estados Unidos, na Inglaterra,
muitas vezes é suficiente uma curta cerimônia, perante um
pastor. Algumas vezes é celebrada em casa à meia-noite. Não há
muito, li a narração de um casamento religioso realizado pelo
telefone. Muitas vezes, bastam colocar as assinaturas em um
livro do consulado. Todas essas convenções são respeitáveis,
mas não passam de convenções sociais. Poderíamos também ir
um dia casar em Bosost.
– Na Espanha?
– É mais perto do que Luchon.
– Mas... És espanhol?
– Não.
– És francês?
– Certamente; porém, sou antes europeu do que francês; mais
cidadão do globo do que europeu – e mais ainda cidadão do
sistema solar – e muito mais ainda cidadão do céu. A Terra é
pequena, e o nosso sistema solar, no qual o nosso planeta não
passa de uma formiguinha, é, ele próprio, bastante medíocre.
– Conheço as tuas idéias internacionais e interplanetárias.
– Para o astrônomo não há fronteiras em nosso globo; não
podem existir. De resto, as pretensas fronteiras existem apenas
nos mapas, no papel. Os campos não mudam de lugar, nem os
cultivadores, nem as aldeias. São os políticos, que vivem de
impostos, os que fazem acreditar em fronteiras. Por nossa parte,
nós estamos bem no céu.
– Não podemos, no entanto, ir celebrar nossa união em Marte
ou em Vega. Sabes aonde gostaria fossemos um dia?
– Não o adivinho sequer.
– Que pensarias de Ceilão? É o país mais belo do mundo.
Chamam-lhe “paraíso terrestre”.
– Nós já estamos no paraíso. Creio não haver nada mais agra-
dável do que isto aqui. A França, a Espanha ou a Índia são
iguais, para os enamorados. Farei tudo quanto queira minha
querida, e quando o quiseres, principalmente se...
Não completou a frase. Seu pensamento a penetrara com a
expressão do olhar. Estela compreendeu e enrubesceu. Lançou-se
ao pescoço de Dargilan.
– Quanto o amaremos! Exclamou. E como será lindo!
– Seriamente, minha querida, pensaste em... regularizar, co-
mo se diz, a nossa posição social?
– Não. Mas eu gosto de conversar contigo e gostaria até de
discutir. Infelizmente somos sempre da mesma opinião. Tu me
dizes sempre “sim”!
Pois bem! Parece-me que estamos um pouco casados, e muito
seriamente e, queres que acrescente todo o meu pensamento?...
Muito santamente.
Vivemos na verdade. A nossa religião parece-me mais verda-
deira do que a do papa Alexandre VI e de sua filha Lucrécia
Bórgia.
Parece-me também incomparavelmente mais digna de estima
do que a do Cardeal Dubois, confidente do Regente, do Bispo
Cauchon, que fez queimar por herege a admirável Joana d'Arc, e
de Monsenhor Talleyrand Perigord, Bispo de Autun.
Teu céu é mais certo que o de Josué e do tribunal pontifício
que condenou Galileu e declarou herética a crença no movimento
da Terra.
Sinto-me mais próxima do Deus infinito do que os teósofos
com a inconcebível audácia de julgar que o criam e o comem.
Posso caminhar com a cabeça mais erguida e o coração mais
puro do que a beata rainha Catarina de Médicis, e do que a
rainha virgem Elisabeth, da Inglaterra.
E depois, o nosso casamento, tal qual é, tem de particular
que... não nos pode vir à idéia de divórcio.
Entretanto, um dia, Dargilan lhe falou das leis necessárias ao
bom governo das sociedades, da conveniência de obedecer a
essas leis; Estela compreendeu que podia ser, ao mesmo tempo, a
amante e a esposa do seu bem-amado, que o seu amor não ficaria
diminuído com uma formalidade social, e algum tempo depois o
pretor de Luchou os declarou “unidos em nome da lei”, a eles
que já o eram precípua e indissoluvelmente pelo coração.
Amavam-se. Diz-se que o amor nasce de um nada e morre
por tudo. Sim, quando o fogo que ilumina a celeste centelha é
fraco para o seu mister. Mas o verdadeiro amor se alimenta e se
renova sem cessar na sua própria fogueira, sem nunca se esgotar.
Sentia por ele uma paixão violenta, e por vezes as crispações
nervosas de suas mãos, estreitando as dele, parecia entregar-lhe
toda a sua alma, toda a sua vida, deixando-a, após um paroxismo
de amor, inanimada, feito morta. Acaso não é o amor, perpetua-
mente, o sol da alma, luz, calor e criação? Ambos estavam
emparaisados, viviam em um céu ideal e divino.
Os enamorados não têm sempre um pouco de loucos? A ar-
dente e inextinguível paixão poderia existir sem as mil extrava-
gâncias do espírito e dos sentidos? Deliciosas infantilidades,
carícias extravagantes, não sois o que a vida tem de melhor? Para
que tantas fadigas no trato das ciências, artes, política, se a vida
passa tão depressa e tão facilmente é interrompida? Que vale
toda essa confusão? Não é melhor nada fazer, sonhar, amar e
colher flores? Tal é, parece, a reflexão que poderia atravessar o
espírito de um filósofo epicurista assistindo aos entretenimentos
de Rafael e Estela nessas “hours of idleness” cantadas por Lorde
Byron, o voluptuoso poeta.
Nosso filósofo, outrora austero, tinha tesouros de sensibilida-
de que se revelavam todos os dias. Era uma natureza terna e
carinhosa, até então incompreendida por ele mesmo.
Seus recreios amorosos renovavam-se sem cessar e associa-
vam-se de um modo encantador aos seus trabalhos. Nunca
deveriam conhecer o tédio, nem a lassidão. Um dia, após o
almoço, à sobremesa, Estela ofereceu-lhe, na ponta dos lábios
rosados, uma linda cereja da qual segurava o cabo entre os
dentes. O convite era tentador. Envolveu o lindo corpo entre os
braços e apanhou delicadamente a cereja com um beijo. E depois
outra, e mais outra. Imaginou por sua vez guardar aqueles caro-
ços de cereja para plantá-los! Saíam de sua boca, e pareciam-lhe
mais preciosos do que diamantes. E, uma vez firmado nessa
idéia, concebeu o projeto de formar, no grande jardim inculto do
antigo convento, um pequeno pomar exclusivamente plantado de
frutos que houvessem tocado seu corpo, seu corpo adorado! Os
caroços de pêssegos e damascos, de cerejas ou rainhas-Cláudia,
amêndoas, nozes, avelãs, receberam uma espécie de consagração
amorosa, pelo contacto com aquela carne amada, e foram suces-
sivamente confiados, no decorrer desse primeiro verão, ao seio
da terra geradora. Que encanto seria ver essas pequenas árvores
saírem do solo na próxima primavera, acompanhar cada ano o
seu progresso, crescendo, desenvolvendo-se, e um dia comer os
seus frutos!
– Meu Rafael, tu és verdadeiramente um louco completo.
Mas, deixava-o agir; e esses frutos preciosos tomavam, ao
contacto do corpo querido, uma espécie de parentesco com ela, e
era com recolhimento, com um cuidado zeloso que Rafael procu-
rava no antigo pomar do convento os melhores lugares para
semear a terra virgem com essas sementes nupciais. Já via no
futuro as cerejeiras, aveleiras, balançando as ramagens verdes ao
sopro dos ventos primaveris, darem flores e frutos. Mas, pensou,
desejaria ter também um pequeno bosque vindo de Estela, para
deitar-me um dia à sua sombra, um “bosquezinho de grandes
árvores”! E por uma bela tarde trouxe castanhas e sementes de
carvalho, apanhadas na floresta, para receberem também o
batismo do seu contacto carnal, e, em outro canto do jardim,
plantou-as em um pequeno cerrado. E, sem calcular sequer o
tempo necessário para que as árvores atingissem as verdadeiras
dimensões, experimentou uma satisfação estranha só em colocar
também, ali, algo de sua bem-amada, que tomaria corpo e viveria
no futuro, guardando segredos encantadores, quais as árvores
antigas da floresta de Dodona guardam os dos oráculos.
O solo era excelente; escolheu para cada espécie de árvore
uma situação apropriada à sua natureza vegetal, deixou os carva-
lhos e os vegetais mais rústicos na proximidade do Observatório,
sobre a fria elevação, e os damascos e pêssegos a um canto
abrigado, junto ao riacho, onde o Sol de Espanha certamente os
amadureceria. Estela ouvia-o, não sem um secreto prazer; era
feliz por sentir que ele queria envolver completamente a vida e a
morada com todos os ecos possíveis da sua terna música de
amor.
Desde a primavera seguinte, com efeito, viram sair da terra
pequenos carvalhos, castanheiros, pessegueiros, pereiras, cerejei-
ras e aveleiras. E um dia em que contemplava com amor o
nascente viveiro vegetal, meditando sobre a sua origem, excla-
mou.
– Paraíso! Sabes que paraíso quer dizer jardim. Jardim de de-
lícias! Este velho convento não tinha mais nome. Chamaremos
de “o Paraíso”.
Viviam acima de tudo pelo espírito, pela imaginação, pela ar-
te de amar, preocupando-se pouco com os grosseiros prazeres da
mesa, que têm grande importância na vida dos homens em geral,
e também não se preocupavam muito com o que se costuma
chamar conforto. Embora cuidando da sua pessoa, conservando
com zelo o enxoval, aliás, finíssimo, Estela se habituara à sim-
plicidade e frugalidade do “Solitário”. Imitando-o, nunca provara
um licor ou café. Não sentiam a falta dessas espécies de exigên-
cias modernas.
Continuavam a viver além das nuvens, planando no céu lumi-
noso e infinito. Poder-se-ia acreditar que eram as duas asas de
uma só alma.
Mil fatos, na aparência insignificantes, davam aos dois as
provas recíprocas e constantes da mais profunda ternura, assim
exemplificados: Um dia (de início, ficavam juntos; mas, depois
de alguns visitantes, adotaram a colocação comum), enquanto
almoçavam em face um do outro, ela estava assaz alegre e rira
durante a refeição, quando de repente sua fisionomia se convul-
sionou, seus olhos se encheram de lagrimas e ela rompeu em
soluços.
– Que tens? perguntou Dargilan. Já observei essas mudanças
bruscas de humor, sem poder compreender uma palavra.
– Observava-te, respondeu ela. Vejo o brilho dos teus olhos...
E rompeu de novo em soluços, escondendo a cabeça entre as
mãos.
– Tu és extraordinária! exclamou Dargilan.
– Meu amor, trabalha muito! Oh! Esses olhos! Se eu os per-
desse! Quando penso que um dia mor...
E não pôde completar a frase. Seu semblante estava inundado
de lágrimas.
Algumas vezes, observava-o em silêncio, contemplava-o, por
melhor dizer, depois se precipitava sobre ele, apertava-o com
violência em seus braços e cobria as faces, seus olhos, sua fronte,
de beijos multiplicados.
E ele nunca passava perto dela sem lhe fazer uma terna carí-
cia, e jamais saía, mesmo por uma hora, sem abraçá-la; nunca
adormecia, nem despertava, sem que o seu último pensamento da
noite, e assim o primeiro pensamento de cada novo dia, não
fosse exclusivamente para ela. Tal existência era séria, e se
tornava deliciosa, encantada. O amor é verdadeiramente uma luz
celestial.
A admirável natureza que os rodeava era um quadro digno
daquele blandicioso idílio. Ambos compreendiam e amavam
esses grandiosos espetáculos. Em seus passeios sob os arvoredos,
os corações cantavam com os ninhos, desabrochavam com os
raios do Sol, elevavam-se com os perfumes das plantas e das
flores. As formas tormentosas das nuvens que correm pelo céu,
carregadas pelas correntes chuvosas do sudoeste, o sadio e
penetrante odor das árvores depois da chuva, as rajas mornas que
sopram entre os galhos, a iluminação das paisagens do pôr do
Sol, o vento que perfuma e purifica, o murmúrio longínquo das
torrentes, o ruído agudo e monótono dos grilos ao cair da noite, o
chamado dos cucos, o grito estridente do pássaro zombeteiro que
foge, as borboletas que perseguem, toda essa vida intensa e
perpétua da imensa Natureza se associava à deles, e por vezes se
sentiam senhores desses soberbos Pirineus – que lhes abriam
todos os seus tesouros de vitalidade –, senhores do solo e das
Alturas.
Estela amava o luar, luz doce e virginal, que parece reunir a
Terra ao Céu e que, saturando a atmosfera de uma espécie de
vapor etéreo, derrama encanto misterioso no sono da Natureza.
As brancuras são mais alvas; os escuros se tornam mais negros.
Figuras fantásticas se desenham nas árvores da estrada; os abis-
mos dormem aos pés dos rochedos. Sobre o caminho esbranqui-
çado, as sombras de ambos formavam uma só, uma sombra
dupla, caprichosamente variável.
Nas noites de verão, o ambiente permanecia aquecido pelo
calor do dia, e eles iam silenciosos, ao longo do caminho alva-
cento, entre as árvores, seguindo os muros, olhando suas som-
bras móveis, mudando de poses, formando silhuetas diversas.
– Olha, dizia Dargilan, parece que te abraço e, no entanto,
não te toco. Aí está a imagem da História. Acredita-se tudo
saber, nada se sabe do fundo das coisas.
– Observa como vamos bem unidos! Respondia Estela. Que-
res que eu fique menor? Basta que me abaixe um pouco. Reco-
nhecer-te-ia de longe, só pelo perfil da tua sombra.
Ele se voltava para contemplá-la. A carne de seu pescoço ti-
nha a alvura do leite; o braço, que ela acabava de levantar, e do
qual pendia a manga, valia por um mármore de Paros; os olhos
brilhavam, e os pequenos dentes pareciam pérolas iluminadas.
Era preciso parar. O amoroso sábio enlaçava-a e a cobria de
beijos. Estela ficava mais formosa àquela celeste luz. Nunca seu
belo corpo lhe parecera de tão estonteante alvura. Desejaria vê-la
toda, qual Vênus saindo das ondas, naquela claridade.
– Senhor astrônomo, não se pode fazer um passeio sentimen-
tal convosco. Vós outros, os homens, nos amais com os sentidos.
– Nós outros, os homens? Dir-se-ia que conheceste um regi-
mento!
– Rafael!
– Pois bem, sim, somos homens. Não eu: sabes que te amo
com a alma.
– Não acredito mais. Tu não podes ficar quieto. Sabes, meu
Rafael, que para mim representas todos os homens, em grau mais
perfeito. Pois bem, o mais perfeito de entre vós ainda é muito
material. Eu não tenho necessidade dessas demonstrações. Seria
tão bom irmos assim, de mãos dadas, tranqüilamente sem...
– Sem?... Sem nos abraçarmos?
– Não, abraçando-nos, se queres, porém docemente, gentil-
mente, sem essa ferocidade que te assalta, às vezes, qual se
quisesse devorar-me.
– Minha Estela querida, falas assim porque é mulher. Sabes
em que pensava quando te arranquei o broche há instante? Não
era em ti. Estás contente agora? Pensava na bela Helena.
– Que dizes?
– Sim. Não sei se ela era tão elétrica, igual a ti; mas, recordo
que os gregos davam o nome de elétron a um metal, liga de ouro
e prata, e que dele Helena mandara fazer uma taça, moldada na
forma do seio, para oferecê-la a Páris.
– Meu poeta, esqueces a Astronomia. Eu não. Olha, as estre-
las empalidecem ao clarão da Lua. Porém a minha não esmaece.
Vês ali? Nunca me disseste por que lhe chamaram Vega.
– Examina aquela estrela resplandecente com as duas menos
brilhantes que a acompanham. Os árabes compararam essa
disposição a um abutre que fecha as asas, como se quisesse
deixar-se cair, e aí está porque lhe chamavam “caindo, Waki”.
Essa palavra se transforma em Wega e depois Vega.
– É bem comparado. Quando Vega está abaixo das duas es-
trelas, parece um pássaro caindo, com a cabeça para diante e as
asas para trás, enquanto que, ao lado, a Águia tem as asas esten-
didas, planando sobre as margens do rio lácteo.
Em seus passeios, palestras e leituras, Estela se iniciou gra-
dualmente em todas as curiosidades da Astronomia. Depois se
tornou, ela própria, excelente observadora. Após ter admirado os
prodigiosos efeitos de luz produzidos sobre as montanhas da
Lua, pelo despontar e pôr do Sol, o rendilhado maravilhoso dos
círculos lunares, as belas noites em que o quarto crescente recebe
a iluminação oblíqua, que tanto relevo dá às paisagens do nosso
satélite, quis também observar as manchas do Sol e ensaiou
desenhá-las. Certo dia, uma dessas manchas estava tão grande
que era possível observá-la sem luneta, bastando proteger a vista
com um simples vidro azul enfumaçado. Era um lindo dia de
verão e o ardor do Sol era intenso.
– Essa mancha, que parece um ponto, disse ele, é quatro ve-
zes maior do que o diâmetro total da Terra.
– O Sol é quente! Exclamou Estela. Dizes, não é verdade?
que estamos a 148 milhões de quilômetros de distância. Os
habitantes de Mercúrio, que se acham quase três vezes mais
próximos do que nós, devem estar assados. Quando era criança,
pedia para tocar a Lua com as minhas mãozinhas. Nunca pediria
para tocar o Sol.
– Se tivesses o braço bastante comprido para chegar lá, minha
bela, não sentirias a queimadura.
– E por quê?
– A impressão nervosa não é instantânea: ela se transmite ao
longo dos nervos com velocidade de 28 metros por segundo. A
sensação da queimadura não chegaria ao teu cérebro em menos
de 167 vezes 365 dias.
– Realmente, nada iguala à Astronomia, para nos imergir a
cada instante nos abismos do Tempo e do Espaço. Mas, escuta o
canto dos pássaros: é maravilhoso neste momento.
– Sim, delicioso! E é ainda da Astronomia, porque é o Sol
que gorjeia na garganta dos pássaros.
O amoroso sábio, já o vimos, não perdia tempo em pensar nas
minúcias da vida material. Absorvido pela sua ciência, e absor-
vido duplamente pelo seu amor, esquecia preocupar-se com o
futuro, e vivia em negligência infantil. Sua jovem companheira
não pensava melhor. Talvez houvesse mais apego de um pelo
outro nessas situações modestas, do que haveria nas de luxo e
abundância.
Certo dia, entretanto, um sentimento doloroso o convidou
bruscamente a descer das alturas. Era numa bela tarde de verão.
Tinham partido para as montanhas, à procura de fósseis, com que
formavam uma coleção. A luz era viva e punha em relevo todos
os tons. A Natureza cantava uma adorável sinfonia.
Ao sair da sombra das árvores e chegando ao caminho, o filó-
sofo reparou que as luvas de Estela estavam com orifícios, que o
veludo do seu corpete havia desbotado e o cabo da sombrinha
estava partido.
Durante toda a noite refletiu, e na manhã seguinte observou
outros vestígios que tiveram o dom de perturbá-lo profundamen-
te.
Já alguns meses antes, fora tocado por um ato de abnegação
bem comovente. Estela herdara de sua mãe dois esplêndidos
brilhantes, que ele lhe vira algumas vezes nas orelhas. Apresen-
tou-se ocasião, certa noite, de fazer uma experiência sobre a
refração e ele lhos pediu, para esse fim.
Estela mostrou ficar muito embaraçada, e respondeu, a prin-
cípio, que não sabia onde estavam; enrubesceu, perturbou-se.
Entretanto, ele sabia perfeitamente bem que lhos traria de boa
vontade, mesmo que fosse para queimá-los e até reduzi-los a
carbono.
– Ocultas-me alguma coisa! Exclamou.
– Sim.
– ...
– Lembras-te, no inverno passado, do teu grande desejo de
comprar, para a tua biblioteca, as “Memórias da Real Sociedade
Astronômica de Londres”? Vi quanto a almejavas, e também que
renunciaste à compra por motivo do elevado preço da bela
coleção.
– Dois mil e quinhentos francos!
– Sim. Pois bem: fiz acreditasses que aquela sábia sociedade
tas presenteava. E tu me encarregaste de agradecê-las na quali-
dade de tua secretária. Isso foi o que eu nunca fiz, por que... fui a
Luchon com os meus diamantes. Um joalheiro me ofereceu
exatamente dois mil e quinhentos francos, e ali os deixei. Não foi
grande sacrifício, porque eu não os uso mais. Meus diamantes...
são os teus olhos.
De outra vez, durante uma doença da jardineira, que reclama-
va os cuidados assíduos do marido, já velho e alquebrado, junto
dela, surpreendera-a escovando as roupas e notara na respectiva
prateleira os seus calçados que acabavam de ser lustrados por
ela.
Experimentou, pela primeira vez, o sentimento de um novo
dever, e sentiu caber-lhe um imperioso encargo maior. Grandes
jornais de países estrangeiros lhe haviam, muitas vezes, dirigido
pedidos de colaboração, aos quais não dera resposta, preferindo
trabalhar nas suas queridas pesquisas científicas, do que aumen-
tar os rendimentos. Pareceu-lhe, agora, que devia resignar-se a
consagrar mais algumas horas por mês a esse aspecto, para ele
desagradável, dos interesses materiais. Sua Estela, tão amante e
tão devotada, sofria talvez, em silêncio, a sua mudança de condi-
ção, do que ele, na sua brutal cegueira, não se apercebera. “Anjo
adorado! O homem é um monstro de egoísmo.”
Desde esse momento sua decisão foi tomada. Em vez de en-
viar o artigo mensal apenas a Paris e a Londres, o endereçou,
simultaneamente, ao “Novoie-Vremia”, de São Petersburgo; ao
“Pesti-Hirlap”, da Hungria; ao “Sécolo”, de Milão; ao “Afton-
bladet”, de Estocolmo; a “La Nacion”, de Buenos Aires; ao
“Universal”, do México; e, em vez de quinhentos francos, por
mês, passou a receber, daí em diante, mil e quinhentos, sem
perder mais de três dias nesse múltiplo trabalho. Às vezes,
perguntava-se se não errara, recusando uma fortuna; mas, sentia
que a obrigação do trabalho é uma lei natural, útil, necessária
mesma para manter a atividade do cérebro, e não se lastimou. De
resto, sentia-se feliz de ser, por assim dizer, forçado a redigir
essas notas sobre os grandes fatos da ciência contemporânea e,
ao mesmo tempo, espalhar pelo mundo os conhecimentos cientí-
ficos e educar os espíritos no culto da verdade pura. Sem embar-
go, recusou outras solicitações de Berlim, Viena, Atenas, Cons-
tantinopla e Amsterdã, achando o seu orçamento mais do que
suficiente.
A partir de então, a vida material para ambas foi mais confor-
tável, mais cuidada, mais agradável. Tomou um camareiro e uma
cozinheira; ordenou a Estela que renovasse seu guarda-roupa;
ocupou-se até com as suas toaletes; quis que ela retomasse a sua
antiga revista de modas, e fizesse os vestidos em Paris. Porém a
vida intelectual continuou sempre em primeiro plano.
Em lembrança dos diamantes, tão generosa e simplesmente
sacrificados à Ciência, ele lhe fez a surpresa de excelente e
magnífico piano Ehrard que, um belo dia, Estela encontrou
entronizado na biblioteca. Com que alegria retomou sua querida
música, absolutamente relegada. No seu esquecimento de tudo,
nada lastimara; mas, isso, para ela, valeu por uma nova vida.
Sabia interpretar com sentimento apurado as inspirações musi-
cais, que são uma poesia da alma. Dargilan a ouvia com o júbilo
interior de quem contempla a harmonia de um lindo poente.
Que horas deliciosas passaram um e outro, na audição das ce-
lestes sinfonias dos grandes mestres, que souberam traduzir, em
sonoridades maravilhosas, as forças da Natureza e as paixões da
Humanidade!
Sua vida científica foi ainda mais embelezada, mais encanta-
dora.
Um grande químico disse que a verdadeira felicidade lhe apa-
recia sob a forma do sábio, que consagra suas vigílias à penetra-
ção dos segredos da Natureza, à descoberta de verdades novas.
Tanto quanto o químico, o físico e o naturalista, o geólogo e o
astrônomo experimentam tal ventura perfeita; mais profunda-
mente ainda, o primeiro, remontando os cursos das idades; o
segundo, avançando no infinito do Espaço, e a sua vida intelec-
tual se estende, por assim dizer, em imensidades sempre renova-
das.
Insensivelmente, gradativamente, a felicidade de Rafael se
tornou a felicidade de Estela.
– Meu amor, dizia ela com freqüência, se me oferecessem to-
dos os tesouros da Terra, todos os prazeres imagináveis, jamais
consentiria em tentar sequer trocar a minha vida pela da rainha
mais invejada. O Céu, a Ciência, a Natureza, os escritos dos
homens superiores, nossa afeição – que vem do Infinito e que
nos inebria... eis a verdadeira felicidade. É supremamente boa!
Às vezes temo que não perdure.
XXVII
Onde se parte de Lourdes
para chegar a Deus

O Dr. Bernardo, nos seus passeios pelos arredores de Luchon,


ia, de tempos em tempos, passar uma hora com eles, conversar
sobre as novidades científicas, levar-lhes também um ligeiro eco
do mundo dos despreocupados. Era sempre o céptico que conhe-
cemos, e os mais belos espetáculos telescópicos não lhe faziam
vibrar qualquer corda sensível de admiração por uma Causa
inteligente. Um dos fatos que tinham mais fortemente agido
sobre seu espírito, para reforçar e cristalizar, de algum modo, o
seu ateísmo, foi a história de Lourdes, que se passara na sua
vizinhança e sob seus olhos. Nivelava as religiões, os sistemas
teocráticos que, em todos os países, têm tão longamente subju-
gado as consciências sem esclarecê-las, com a Religião, com o
sentimento religioso em si, com o Deísmo puro. Não podendo
ser católico julgava-se, conforme vimos no direito de ser ateu.
Muitas vezes, discutia com o filósofo. Um dia, a discussão se
acalorou logo, porque, ao chegar ao aposento dos dois esposos,
onde fora recebido familiarmente, percebeu uma obra intitulada
“Nossa Senhora de Lourdes”, por Henrique Lasserre.
– Como! Exclamou. A senhora lê dessa qualidade de livros?
– Leio um pouco de tudo. Esse me interessou. Não sou a úni-
ca. Veja: está no tricentésimo milheiro.
– É o maior êxito de livraria, desde a invenção da imprensa,
acrescentou Dargilan.
– E a exploração da aparição da Senhora P. à pequena idiota é
um dos melhores negócios comerciais da nossa época, replicou
em tom acre o médico.
O oficial é que deve ter rido! acrescentou, principalmente
quando viram gravadas em letras de ouro, sobre uma placa de
mármore, as palavras de sua amiga a Bernardete: “Vai-te lavar e
come erva”, confidência verdadeiramente divina e merecedora
de ser conservada religiosamente.
Não achais que a origem de Lourdes lembra um pouco a do
romance da senhorita de la Merlière, em La Salette?
– O amor tem muitas vezes desempenhado grande papel nas
coisas da devoção, disse Dargilan. Podemos recordar também a
história de Maria Alacoque, em Paray-le-Monial, e do Padre de
la Colombière, quando da fundação do Sacré-Cœur. Seja como
for, a Sra. P... teve uma inspiração que trouxe milhões ao seu
país. Deve-se-lhe reconhecimento.
– Certamente. Não se tem sido ingrato para ela, e todo mundo
se entende, por meia palavra, sobre esse ponto. Mas, como
quereis que os protestantes não ridicularizem abertamente a culto
moderno da Virgem Maria? O que se passa em Lourdes é idênti-
co ao que se passava, há vinte séculos, no templo de Esculápio,
em Epidauro. A mesma credulidade, os mesmos fenômenos
nervosos, o mesmo alimento à superstição popular pelos sacer-
dotes encarregados do ídolo.
– A mentira religiosa me revolta, tanto quanto a vós, replicou
Dargilan, e é por isso que um homem honesto, fazendo uso da
sua razão, não se pode encarcerar nas fórmulas de nenhuma
religião, pois em todas a mentira se infiltrou. É humano. E
depois, confessemos, a Humanidade gosta de ser iludida. É quase
uma necessidade para ela. Precisa de ilusões, e os que lhe men-
tem prestam serviço. Veja esses bispos que, após a guerra de
1870, fizeram erguer estátuas à Virgem próximo das cidades
onde os prussianos não entraram – Langres, Haure, Poitiers, etc.
–, asseverando ter sido ela quem as protegeu. Entretanto, eles
sabem, tão bem quanto o sabemos nós dois, que isso não é
verdade. Veja o “ex-voto” e os círios de Nossa Senhora das
Vitórias para os números premiados na loteria e bons resultados
nos exames! Essas superstições ingênuas estão ainda tão vivas
quanto no tempo da deusa Cibele. Os sacerdotes disso vivem. E
a audácia da pretensa “promessa nacional”, em Montmartre!...
Porém, esses erros da nossa pobre espécie não impedem acredi-
tar no Deus absoluto e íntegro de Jesus, de São Paulo, de Platão,
de Marco Aurélio, Kepler, Newton, Pascal, Linneu, Euler, Hugo,
nem tampouco impedem os erros dos adoradores de Buda,
Osíris, Júpiter e tantas outras divindades imaginárias. O Desco-
nhecido paira mais alto.
– A crença é um sentimento. Não é ciência. Lalande e Lapla-
ce eram ateus. Vós sois poetas.
– Meu caro doutor, o astrônomo que vê no céu apenas massas
e distâncias não suspeita sequer da realidade, pois a realidade é a
vida universal, irradiando no Espaço através da eternidade.
Recusar à Ciência o sentimento poético é ignorar o coração de
todos os sábios que o experimentam; é não ter lido nem Kepler,
cujas excelsitudes são tão sublimes; nem Linneu, “vendo a
sombra de Deus passar perante a face da Natureza”; nem Euler,
que aconselhava aos pregadores fazerem os seus sermões sobre
as maravilhas dos céus; nem Pascal, perdendo-se no seio do
infinito até à loucura; nem a mor parte dos sábios em todos os
ramos da Ciência. Sem dúvida, houve, e há notoriamente hoje,
sábios inteiramente cépticos e tão secos quanto madeira morta;
há outros que são anti-religiosos, por protesto contra os cultos;
há outros também que fazem da Ciência o que se faz com um
ramo de negócio, e têm por único fito na vida o dinheiro, os
empregos e as honrarias. Que prova isso? Nada contra a Ciência
em si, que os afoga na sua grandeza; de igual modo que a decla-
ração fantástica da Sra. P... e o embasbacado da pequena Bernar-
dete nada prova contra o Criador da Via-Láctea.
A Ciência, ao contrário, é a soberana inspiradora, porque en-
grandece até ao infinito os horizontes do nosso pensamento. A
emoção da alma, perante o céu estrelado, é diversamente profun-
da para o espírito que vê o insulamento do homem e da Terra no
seio da imensidade sem limites, povoada por milhares de outros
mundos, do que para o olho ignorante que apenas divisa pontos
luminosos encravados em uma abóbada. Nem há mesmo compa-
ração possível entre os dois sentimentos. É preciso jamais ter
sentido o calafrio do infinito e da eternidade, esse calafrio do
qual às vezes nos surpreendemos ter saído vivos – quando nos
atravessou, para atrever-se a acusar a Ciência de ser antípoda da
poesia.
O estudo do céu me dá de Deus uma idéia mais elevada e
mais sublime do que poderiam fazê-lo todas as definições huma-
nas. O Infinito prova Deus. Mas o Deus dos astrônomos não
pode ser o Deus dos exércitos, de Filipe II, de Maomé; não
derrama sangue, nem em nome da Cruz, nem do Crescente; não
conduz às infâmias da Inquisição; não faz queimar vivo um
herético; não aprova a matança de São Bartolomeu; não sustenta
o erro; não condena Copérnico e Galileu; porque Ele é a Supre-
ma Justiça e a Suprema Verdade, e paira impecável na sua pura
luz.
É por acreditar em Deus que não sou cristão. Todas essas
inépcias revoltam a minha adoração. Teria sido cristão no tempo
das Cruzadas, quando, à voz de Pedro, o Eremita, todos os
corações palpitavam pelo túmulo do Cristo; quando o rei São
Luís simbolizava, pela candura e piedade, o estado de alma dos
crentes; quando, nas irradiações da divina fé, os homens se
imolavam com convicção pela posse do Céu. Teria sido cristão
no tempo em que a prece elevava no êxtase as arcadas góticas
das escuras catedrais e se espalhava qual incenso puro, nos
santuários das igrejas. Teria sido cristão com os mártires das
catacumbas, quando as aspirações da religião nova santificavam
a Humanidade, e a Palavra Divina vinha arrancar as almas à
torpeza da decadência romana. Sim, eu seria cristão com Vicente
de Paulo, com Francisco de Assis, com Ambrósio de Milão, com
Fenelon, com os espíritos superiores e os grandes corações;
porém não o sou com São Domingos, o Inquisidor; com o Papa
Urbano VIII, que condenou Galileu; com Alexandre VI, o Bór-
gia; com os massacradores da noite de São Bartolomeu; com o
Bispo Cauchon, que acendeu a fogueira de Joana Arc; com o
piolhento Benedito José Labre; com os administradores da gruta
de Lourdes.
– Mas, replicou o médico, também podíeis ter sido com Na-
poleão e a Concordata!
– Quereis dizer que a religião pode ser considerada uma or-
ganização social, útil aos bons costumes e ao funcionamento de
um governo ponderado. É a opinião geral. O papa, os bispos, a
disciplina eclesiástica, são útil auxiliar do poder, e a educação
cristã das crianças as mantém, por muito tempo, em uma sã
concepção do dever. Eu vo-lo concedo. Diz-se: Sejamos católi-
cos na França, protestantes na Inglaterra, muçulmanos no Egito,
budistas no Japão e na China, como diríamos. Sejamos bons
cidadãos e obedeçamos às leis. Mas, para mim, isso não é reli-
gião. Trata-se de ser sinceros. Não aprecio, de modo algum,
aquele que vai à igreja para mostrar que é “equilibrado”, para ser
escolhido pela mamãe de uma rica herdeira ou fazer negócios. O
interesse é desprezível. Tenho a religião em mais alto apreço do
que uma simples decência social. O sentimento religioso reside
na aspiração da alma para a Verdade, na sede de conhecer nossos
destinos futuros, nas convicções espirituais que a Ciência nos
pode fornecer. O sentimento religioso é essencialmente pessoal.
É sincero ou não é. E como duas verdades não podem ser contrá-
rias uma à outra, é necessário primeiramente que as nossas
crenças estejam de acordo com o que é conhecido, e, mais do
que tudo, com o que sabemos sobre a construção do Universo.
Não é absolutamente sob o ponto de vista teosófico que falo,
meu caro doutor, mas no de cientista. Tenho o mesmo desprezo
vosso pelos homens que especulam com a fraqueza e a ingenui-
dade humanas, sejam sacerdotes ou políticos; abomino a hipocri-
sia. Para mim, porém, o espetáculo da Natureza demonstra a
existência de um Espírito dirigente.
Não existe o acaso. Todo fenômeno é efeito de uma causa.
Os fatos observados, os ninhos dos pássaros, a coragem das
mães, a postura dos ovos pelas moscas ou pelas borboletas, o
alimento de um mamífero, a atração dos sexos, a organização do
corpo humano – tudo prova uma finalidade, um plano no estado
atual das coisas terrestres.
A imensidão do céu, o número incalculável de sóis e de sis-
temas, testemunha uma grandeza ante a qual o homem não é
mais do que um átomo.
A justiça existe na mecânica celeste. Nela, erro algum é pos-
sível.
A história da vida terrestre, desde as mais antigas épocas geo-
lógicas até nossos dias, mostra um progresso gradativo e cons-
tante. Esse progresso é uma lei à qual a Natureza obedece. Essa
lei é de ordem intelectual.
As matemáticas, a geometria, a física, a óptica, que exprimem
em fórmulas o estado de coisas existentes, indicam uma organi-
zação intelectual do Universo.
Nossa faculdade de contar, abstrair, nosso sentimento do jus-
to e injusto, do verdadeiro e do falso, a bondade, a maldade, não
podem ser produtos da química cerebral. O mundo psíquico tem
uma existência tão certa quanto o mundo material.
Assim falou o filósofo. Quando abordava o tema, dizia tudo o
que tinha a dizer, e, geralmente, deixavam-no falar sem inter-
rompê-lo. Entretanto, o médico manifestara, mais de uma vez,
sinais de impaciência.
– Meu caro amigo, disse de jacto, com acintoso ar de desdém,
está bem próximo de deixar vossa esposa ir à missa.
– Não sou intolerante. Se ela o desejar...
– Meu Rafael, que estás dizendo? Exclamou Estela.
– É uma convenção idêntica a outra qualquer, replicou doce-
mente o astrônomo. A senhora Littré vai à missa, e Littré, ateu, a
deixa ir.
Porém, a linda Estela pareceu revoltada.
– Sim, exclamou, a maioria das mulheres vão à missa, e le-
vam as filhas e os filhos, mesmo sabendo que se acha em contra-
dição absoluta com as idéias dos maridos. Aí está justamente o
que impede e impedirá, por muito tempo, o avanço do progresso.
Os filósofos trabalham em vão, porque suas próprias companhei-
ras destroem esse labor. Elas menosprezam pura e simplesmente
o homem cujo nome usam. Os padres sabem-no bem, e sorriem
superiormente. Não sou dessas mulheres. E se eu não tivesse já
apreciado a tua extraordinária bondade, tua tese ter-me-ia feito
“cair das nuvens”. O amor torna os homens fracos. A mulher
deve ser superior ao homem no seu amor.
Aproximou-se dele. Dargilan levantou-se, envolveu-lhe o fi-
no talhe nos braços e pousou os lábios em seu pescoço perfuma-
do. O Sol lançava seus dourados raios através dos vidros, e sua
luz parecia aureolar de um nimbo aéreo a cabeleira vaporosa de
Estela.
– Tu não me amas somente pelo coração, disse, amas-me
também pelo espírito. Estava seguro da tua resposta, porém quis
ouvi-la. Meu caro doutor, acrescentou, Vede que somos, todos
três, da mesma opinião sobre esse ponto, e que não iremos à
missa.
– Dr. Bernardo, ajuntou Estela, meu marido é um anjo. Tenho
a sua religião. Não terei outra.
– Não compreendo meu caro doutor, prosseguiu Dargilan,
não admitais comigo que o mundo visível é apenas uma aparên-
cia, ocultando o mundo invisível. Sabeis, no entanto, que uma
bigorna é um conjunto de átomos intangíveis, em movimento, e
que não se tocam entre si. O ser humano, verdadeiro, não é o
corpo que nós vemos, composto, por sua vez, de partículas
invisíveis em circulação perpétua. É uma substância de ordem
psíquica, que difere essencialmente dos produtos fisiológicos;
que percebe e age diversamente, e que, sem embargo disso,
obedece, qual a Natureza inteira, à lei suprema do progresso.
Podeis comer bem, beber ou respirar, seja o que for; em hipótese
alguma, os efeitos dessa atividade vital darão nascimento a um
teorema de geometria, a uma pesquisa metafísica igual às que
têm apaixonado todos os grandes espíritos, ou a um ato de devo-
tamento. O raciocínio que constata que o quadrado dos tempos
de revolução dos planetas está entre si na relação do cubo das
distâncias, assim como a análise das faculdades da alma ou o
sentimento que, em caso de perigo, faz escolher a morte para
salvar um ser querido, nada têm de comum com as secreções
orgânicas. É outra coisa.
Objetareis que não se vê a alma. Admito o argumento, porém,
repito: não vemos nada do que existe realmente. Vedes a força
que sustenta a Terra no Espaço? Vedes a gravitação universal?
Vedes o magnetismo cósmico? Vedes o magnetismo humano?
A questão é esta: a alma existe? Sobrevive ela à morte do
corpo? Em que se torna? Onde estaremos, que seremos daqui a
um século, há dez séculos, durante a eternidade?
Não há outro problema além deste. É o que todas as religiões
pretendem resolver. É o grito supremo do coração humano em
todas as eras, em todas as raças. Os teólogos afirmam que a
religião cristã resolveu o problema, e que a Ciência faliu na sua
missão de resolvê-lo. Estão errados.
Quanto aos sábios que contestam, caem em erro mais profun-
do ainda. Os primeiros, pelo menos, apresentam o problema e,
dogmaticamente, proclamam havê-lo resolvido. Os segundos,
que se intitulam representantes da Ciência, nem sequer o apre-
sentam, e parecem ignorá-lo. Admitem que possam estar satisfei-
tos com os progressos materiais e sociais da Humanidade, e
resolvem, a seu modo, os nossos desejos de imortalidade, predi-
zendo uma era de felicidade para os nossos descendentes no
cenário do mundo. Que nós saberíamos a esse respeito, uma vez
que não existiremos mais? A solidariedade humana, o reinado da
justiça no porvir: eis aí, na opinião deles, a grande satisfação
moral que a Ciência nos pode dar. É o aniquilamento, de vez que
a Humanidade terrestre acabará. Quanto à imortalidade pessoal,
ou bem a negam absolutamente, afirmando que a faculdade de
pensar não passa de uma função do cérebro e desaparece com a
cessação do seu funcionamento, ou então declaram que a ciência
positiva nada pode procurar nesse domínio, que lhe estará sem-
pre fechado, domínio do agnosticismo, que declara ser o Absolu-
to inacessível ao espírito humano.
Aí está o erro, o louco e inqualificável erro dos sábios, quanto
dos teólogos. Estes acreditam saber tudo, e tudo ignoram; aque-
les sabem um pouco e não imaginam que a Ciência possa ir mais
longe. Se considerarmos esses doutrinários em bloco, vemos que
os crentes são simples iluminados, admitindo tudo sem provas, e
que os científicos são ateus e materialistas, mais ou menos
convictos, Porém, a verdade, não a encontro nem entre uns, nem
entre os outros.
Se as ciências exatas, a observação, o estudo dos fenômenos,
nada nos ensinarem a respeito da existência da Alma e sua
imortalidade, nunca saberão mais nada porque – ainda uma vez –
só se pode saber o que se aprende. Não existe revelação sobrena-
tural. Que Moisés, Jesus, Maomé, Brama, Buda, Confúcio,
Platão, ou um inspirado qualquer nos afirme tudo quanto queira:
um homem sensato só pode admitir tais afirmações quando
estiverem de acordo com o seu saber. Se elas lhe aparecerem
inaceitáveis, ele não as aceitará. É sempre necessário, para uma
crença qualquer, partir de um primeiro ponto inicial, aceito pela
razão. É pois, em última análise, a razão quem julga, e ninguém
contestará que a razão esclarecida seja superior à razão ignoran-
te. Ainda que um teólogo ensine, qual se tem feito durante tantos
séculos, que o céu é uma abóbada sólida, por cima da qual reina
a Trindade, rodeada de anjos e de santos, e que nossas almas vão
para lá depois da morte, ou então para o purgatório ou para o
inferno, sabemos que semelhante concepção do Universo é falsa
e não a aceitamos. Nossas idéias e nossas crenças devem, antes
de tudo, estar de acordo com a verdade científica demonstrada. A
antiga concepção geocêntrica e antropocêntrica está irremedia-
velmente condenada em nossos dias. Não há muito tempo,
porém, que o debate ficou encerrado.
O problema da Alma é o primeiro de todos. Prima até sobre o
da existência de Deus. Entre nossa existência e a de Deus, a que
nos interessa mais é a nossa. Vós viveis, é o principal para vós.
O mesmo será dentro de dez ou cem decênios. Quanto a Deus,
podeis discuti-lo, afirmá-lo ou negá-lo: não o sentireis qual vos
sentis a vós próprios. Repito: só existe realmente uma questão
capital para nós outros, dominando todas as outras: a do nosso
ser pessoal.
Aí está, pois, o que devemos estudar: em primeiro lugar, o
ser; em segundo, o Universo.
Como age a alma?
– Se o puderdes explicar, disse o médico, eu farei erigir a
vossa estátua em vida.
– Sabeis tão bem e até melhor do que eu, continuou Dargilan,
que a eletricidade desempenha um papel imenso, apenas entre-
visto, o qual, para o ser humano, começa com a geração... Vós
compreendeis...
Uma atmosfera de eletricidade nos envolve. O sistema nervo-
so não está circunscrito ao nosso cérebro, à nossa medula, aos
nossos nervos: irradia em torno. Nosso pensamento age à distân-
cia, não somente com a nossa voz ou o nosso olhar, porém muito
mais longe, e silenciosamente. Nossa alma reside em um corpo
astral, que se pode desprender do corpo terrestre. Nunca procu-
rastes explicar as simpatias e antipatias? Ações da alma à distân-
cia, harmonias ou cacofonias de vibrações.
E os pressentimentos, e os sonhos premonitórios, e os fatos
psíquicos, e a telepatia?
A descoberta da atração das sensibilidades e das vontades, da
penetrabilidade das consciências, será, no século próximo, bem
mais importante e fecunda do que a de Newton para os corpos
celestes. E fundará a psicologia científica. A Ciência se purifica.
O ser psíquico desenvolver-se-á nas suas sensações e no co-
nhecimento de si próprio, tal qual acorreu com o ser físico. Abri
as páginas da história geológica da Terra. A princípio a luz
brilhava sem que olhos se abrissem para vê-la. Após milhares de
séculos, o nervo óptico rudimentar, informe, quase insensível, do
trilobita, aparece. Insensivelmente, o órgão se esclarece, apura,
aperfeiçoa, até chegar à transparência cristalina do olho humano
e à sua potência óptica. Pois bem, a nossa Humanidade é ainda
animal, e o nosso ser psíquico apenas desperta. Ele se sente,
procura, sonha. É um olho interior, lento no esboçar-se, ainda
cego, mas que procura, quer a luz. Irá aperfeiçoando-se sem
cessar, e então se mostrará.
Não nos fiemos nas aparências: são falsas e enganosas.
Sem dúvida, parece que a nossa faculdade de pensar nasceu
com o corpo, e com ele morrerá. Sim, parece-nos; mas é errado.
Se a lagarta pensasse, acreditaria morrer no sudário necro-
morfo da crisálida, pois não poderia adivinhar que a borboleta e
ela são um só e mesmo ser. Seus olhos chegariam a ver as borbo-
letas?
Dizeis sempre só admitir o que vemos. Então, para que ser-
viriam o espírito, a reflexão, o entendimento, a razão? Sabeis o
que vemos, mesmo em Física, em relação à luz? Nada, ou quase
nada.
As vibrações etéreas, capazes de impressionar nossa retina e
de serem sentidas pelo nosso nervo óptico, estão compreendidas
entre dois limites muito reduzidos. Conheceis o espectro solar,
do vermelho ao violeta, e sabeis que todos os raios visíveis aos
olhos humanos estão compreendidos nesse espectro. Sabeis
também que os raios se prolongam tanto além do violeta, quanto
além do vermelho; que os primeiros, invisíveis, porém de grande
potência química, são visíveis, para o “olho fotográfico”, e foram
fotografados com os seus riscos ou sulcos espectrais; e que os
segundos, igualmente invisíveis para nós outros, são caloríficos e
foram fotografados também, com o auxílio do bolômetro. Ora,
sede, pois, lógico, e confessai que o mundo visível está longe de
representar o mundo real. Atentai para o espectro atualmente
conhecido: mede um metro. Vedes, ao centro, uma zona branca?
É o espectro visível: mede cinco centímetros. Todos os outros
raios nos passam despercebidos. Não sejamos, pois, tão “positi-
vistas”.
E por que vemos tão pouco do próprio mundo físico? Porque
estamos muito próximos ao Sol.
Nossos olhos, formados nesse meio tão luminoso, são quase
cegos; nossa sensação óptica é rude, brutal, grosseira, e a ampli-
tude das vibrações acessíveis ao nosso nervo óptico muito redu-
zida. Não vemos quase nada do que existe. Quando, saindo da
viva luz de um lindo dia de verão, entramos em um subterrâneo,
nele nada podemos distinguir. Se os nossos olhos se tivessem
desenvolvido no ambiente de uma claridade mais suave, mais
temperada, à semelhança do que ocorre em Urano ou Netuno,
par exemplo, seu campo de captação seria incomparavelmente
mais extenso. Mas, é assim: estamos na Terra. Não é uma corda
vibrante de harpa ou de violino a que possui o nosso organismo;
é uma barra de ferro. Não vibramos. Nessa condição a que
chamamos “noite” está o estado real do Universo. Ardemos com
a proximidade do nosso Sol. Observai este escorço do sistema
planetário: Enquanto Júpiter, Saturno, Urano, Netuno e os plane-
tas transnetunianos descrevem com majestade suas órbitas
imensas na extensão, Mercúrio, Vênus, Terra e Marte giram,
dentro da própria órbita do astro deslumbrante, e é com dificul-
dade que os distinguimos. Nosso modo de percepção é acanhado
e incompleto; a Ciência, porém, o desenvolve, revelando à nossa
razão o mundo invisível, imensidade na qual o mundo visível
não passa de ligeira e frágil bolha de sabão.
Paradoxo tão estranho quanto incontestável: a noite é o facho
da Ciência. Sem a noite, não conheceríamos o Universo, nunca
teríamos visto as estrelas. O dia apaga a imensidão dos céus.
E os nossos olhos, formados nessa luz solar, não vêem nada,
quase nada, e, sobre cem vibrações, só sentem algumas.
Sim, o mundo invisível é à base de tudo: mundo real, aberto à
Ciência, e não um mundo imaginário ou sobrenatural. O sobrena-
tural não existe. A religião do porvir será a religião da Ciência,
da Ciência que nunca mente!
Aqueles que duvidam da Ciência estão em errado caminho.
Só se sabe o que se aprende, e nunca saberemos o que nunca nos
foi dado aprender. Para fonte de aprendizagem, seja do que for,
só temos a Ciência, e nada paralelo. É uma grande ilusão imagi-
nar outras fontes, reais, de conhecimento.
– Evidentemente, replicou o medico. Só há a Ciência. Não
devemos, não podemos afirmar senão o que soubermos. Eis
porque não tenho temperamento religioso. Não duvido da Ciên-
cia, e digo que ela não nos prova a alma, nem a imortalidade.
– Sua missão não está terminada; apenas começa. É uma ilu-
são julgá-la pelo que nos tem dado até hoje. A Humanidade é
jovem, muito jovem, criança ainda, e tem milhares e milhares de
séculos pela frente. Se compararmos sua vida à duração de uma
vida humana normal, poderemos estimar sua idade atual em um
lustro, no máximo. Atingirá a idade da razão, ou seja, os sete,
quando souber pensar. Ainda não chegamos lá. Ama-se a barbá-
rie, a ruína e a miséria. É um prazer para a maioria dos homens.
Não se pensa, não se raciocina ainda. Têm-se esse lustro de
idade, é muito.
Meu caro Dr. Bernardo, imitais os escritores que pretendem
julgar uma raça nessa idade. É um pouco ingênuo.
A consciência, a razão, está ainda em estado rudimentar em
nossa Humanidade terrestre. Não podemos formar uma idéia do
que será a Humanidade quando, a milhares de séculos, a consci-
ência tenha atingido o seu pleno desenvolvimento. Haverá tanta
distância entre o nosso estado atual e esse futuro, quanto atual-
mente entre os animais inferiores e o homem.
Não, a Ciência ainda não nos deu o segredo da vida e da mor-
te, porém no-lo dará. Se não chegar a esse ponto, é porque a
Humanidade terrestre estará condenada a uma eterna incapacida-
de. Isso é pouco provável porque, se o nosso saber atual é ainda
pobre, confessai que nos dá belos dividendos; que começa a
penetrar no Invisível; que seus frutos já são maravilhosos; que
temos alguns direitos de contar com o futuro.
A Ciência nos salvará da bancarrota das religiões.
Constato que vos chocais, e assim muitos outros, com essa
bancarrota das religiões; mas, é preciso ver as coisas de mais
alto. O Céu de Moisés, de Jesus, de Buda, de Maomé, não existe;
os dogmas são erros. Que prova isso?
Prova que os homens caíram em engano, que as religiões,
prometendo a verdade e pretendendo no-la terem dado, falharam,
eis tudo. Porém, isso nada prova contra os nossos destinos.
Não se podia adivinhar a natureza real do céu, a constituição
do Universo infinito, antes das descobertas da Astronomia.
A Astronomia é o facho, o único, que pode esclarecer as nos-
sas noções sobre o céu. É, pois, aos astrônomos que compete
lançar as bases da religião do futuro.
– Admiro as vossas convicções, replicou o médico. Só me
convencerei, porém, da sua veracidade, se mas vier repetir
depois de morto, morte que não desejo, nem presumo. Tenho
uma vintena de idade acima da vossa.
– Virei eu, interveio Estela. Rafael não morrerá.
– Não falemos disso, minha querida, replicou Dargilan. Re-
tornemos ao que dizíamos. A existência de outros mundos,
desconhecidos dos fundadores de religiões, abre às nossas almas
os horizontes do invisível. Habitamos atualmente um astro do
céu, e prosseguiremos. Cada um de nós é a Parca de si mesmo, e
tece o seu futuro. Nossa vida atual é a semente da futura. Sere-
mos o que tenhamos querido ser e merecido ser. Cada consciên-
cia sente bem que não pode ser de outra forma.
Vós não quereis levar em conta as aspirações da Humanidade
inteira, de todos os tempos e de todas as raças, e não dais expli-
cação alguma da ordem das coisas. Nem razão, nem finalidade
na Criação! Pretendeis que quando adormecemos no “bom
sono”, conforme lhe chamais, não despertamos mais; que o
grande “Talvez” seja um grande “Nada”. Nesse caso, nossa
existência seria sem finalidade.
– A finalidade da vida é gozar e procriar. Acreditai-me,
acrescentou o médico, examinai bem a Humanidade, e mesmo os
animais – ou as flores, se preferis a poesia –, observai bem,
pesquisai bem, e verá aí a finalidade da vida, a intenção da
Natureza.
– E depois?
– As crianças se tornam adultas por sua vez, e continuam a
obra da carne.
– E é tudo?
– Descobris alguma outra coisa? Dizei, se quiserdes, que as
gerações sucessivas tragam um progresso à Humanidade.
– O futuro da raça não pode ser uma finalidade, uma vez que
a Humanidade acabará com a Terra, e antes dela.
– Pois bem, não há finalidade.
– E admitis que possa ser isso a mesma coisa – naturalmente
– para todos os mundos do Infinito?
– Certamente. A lei é a mesma para todos. Se houvesse, em
qualquer mundo que fosse, seres dotados do privilégio da imorta-
lidade, poderíamos pretender também com eles a mesma regalia.
– Assim, na vossa opinião, o Universo inteiro não serve para
nada?
– Serve para o que existe. O Sol faz germinar as flores, ama-
durecer os frutos, iluminar a vida terrestre. Os outros sóis ilumi-
nam, iluminaram ou iluminarão outras existências. Vive-se por
viver, eis tudo. Vede a nossa própria Humanidade. Em que se
ocupa? Em disputar seu lugar sob o Sol. Cada um cuida dos seus
interesses e só pensa, em geral, no dinheiro, que os representa.
Em que passariam os homens a sua vida eterna, não importa em
que mundo? Em lutar pela vida, em fazer negócios, em tosar o
vizinho, exatamente tal qual aqui. Isso não vale a pena. Direi até
mais. Deus não seria inteligente se outorgasse a imortalidade a
seres de nossa espécie, a menos que ele se divirta com a nossa
estupidez.
– Não tendes mais o que fazer de um deus qualquer, uma vez
que não reconhece plano algum, nenhuma finalidade na Nature-
za.
– É o meu modo de pensar, vós o sabeis. Dizei-me onde está
a Providência, quando o raio mata os fiéis junto dos altares;
quando as igrejas flagelam os penitentes; quando as geadas de
maio destroem em uma breve manhã todo o trabalho dos lavra-
dores; quando chuvas diluvianas arruínam as colheitas; quando o
ciclone semeia a devastação e a morte; quando o mar deglute
navios; quando a criança – rósea e sorridente – é arrebatada das
mães; quando o incêndio carboniza, em horríveis torturas, uma
sociedade mundana reunida para fins de caridade! Admitireis
também um deus – Moloque, que exige vítimas inocentes?
Vergonha e cretinice! A Providência está longe de ser evidente.
Não diviso senão acontecimentos brutais e cegos. Os bons são
castigados; os espertos triunfam. Vedes, acaso, outra coisa? Vós
amais o mistério.
– Não nego o mistério, acrescentou o filósofo, levantando-se.
Existe em tudo. Nossa vida é uma preparação ininteligível para
um destino desconhecido, que começa no túmulo. Para julgar
disso seria necessário conhecer o conjunto do Universo e das
Humanidades. As nossas idéias de formigas são insuficientes.
No meio de um obscuro caos, povoado de sombras incertas,
nossa raça procura resolver o enigma do seu destino, e ainda não
o conseguiu. Uma claridade, porém, começa a aparecer, anunci-
ando a aurora, dissipando as sombras. Essa luz cresce e prepara o
despontar de um sol esplendoroso. Eu saúdo nela a luz da Astro-
nomia, fora da qual a Humanidade viveu na cegueira até aqui, e
que é chamada a nos revelar os arcanos da Criação, a descobrir o
verdadeiro, a desenvolver perante nossas almas os horizontes
celestes abertos à realização de todas as nossas esperanças.
Enquanto os homens se agitam no meio de suas ambições in-
fantis, de suas vãs querelas políticas e de seus interesses efême-
ros, a Ciência, calma e tranqüila, prossegue o seu labor e se
eleva, de conquista em conquista, rumo ao conhecimento da
Verdade.
XXVIII
Pleno céu

Rafael e Estela viviam em pleno paraíso. Sua felicidade era


sem nuvens. O Céu, a Ciência e o Amor enchiam suas almas.
Um ano passava qual um mês, este qual um dia e o dia qual um
minuto. Interessava-se por todas as descobertas, tão múltiplas,
tão engenhosas, da ciência moderna, e já lamentavam a brevida-
de desta vida fugitiva, que os arrastava no seu rápido turbilhão e
os impedia de fruir longamente as coisas.
As observações astronômicas os atraíam, toda vez que a pu-
reza do céu era favorável, e, por vezes, espreitavam durante
horas inteiras uma clareira no céu, que lhes permitisse observar
um fenômeno raro e passageiro; um eclipse de Lua, por exemplo,
um desaparecimento de satélites de Júpiter, um mínimo de
estrela variante, um cometa deslizando através das estrelas.
Enquanto observavam, conversavam, comunicavam suas mú-
tuas impressões, animavam o céu dos seus pensamentos.
Certa noite de outubro, depois de uma semana de chuva e
frio, a atmosfera subitamente se acalmara purificada e até um
tanto amornada. Quase fazia calor. A noite estava resplandecente
de inúmeras estrelas. As Plêiades, precursoras de constelações de
inverno, já se mostravam a leste, trêmulas quais filhotes em um
ninho, agrupadas em torno de Alcione. A Via-Láctea atravessava
o céu, descendo no oeste, trazendo a cruz do Cisne nas suas
nuvens de opala. O astrônomo e sua companheira observavam,
sob a cúpula silenciosa, um grupo de estrelas de duodécima
grandeza, perdido no Infinito e que se mostrava qual um poço no
meio de negro deserto. Um pouco fatigados com as minúcias de
uma observação atenta e escrupulosa que haviam terminado,
saíram para o terraço e ficaram maravilhados com a luminosida-
de extraordinária das estrelas.
– Quanto à noite está formosa hoje! Exclamou Estela entusi-
asmada. Estas estrelas, tão luminosas assim, parecem até próxi-
mas de nós. Dir-se-ia que distingo a nebulosa de Andrômeda.
– E a Via-Láctea! replicou Rafael, seus dois ramos se desta-
cam como dois braços de rio, rio de diamantes. Vês a Flecha e o
Delfim? Que magnífico brilho esta noite! Mas, em que pensas?
acrescentou, passados instantes. Estás tão silenciosa. Em que
sonhas?
– Pensava em que a Terra onde estamos é um desses astros,
um astro obscuro, minúsculo, e que esse céu estrelado nos rodeia
por toda parte; pensava nas estrelas que estão sob nossos pés.
Quais são as constelações que brilham lá em baixo neste momen-
to?
– As que estão em oposto a estas. Vês aquela brilhante estrela
avermelhada, quase no horizonte sul; é Fomalhaut. Caminhando
naquela direção e fazendo a volta ao mundo, encontraremos mais
longe, no céu austral, Achernar, que está abaixo do nosso hori-
zonte, o Tucano, o Cruzeiro do Sul, o Centauro, a Hidra, a
Virgem.
– Pensava que estivéssemos no meio do céu, que há estrelas
abaixo e acima de nós, e que habitamos um astro.
– Sim, como se habitássemos Vênus, Marte, Júpiter ou Satur-
no. Se estivéssemos em Andrômeda ou nas Plêiades, estaríamos
igualmente no meio do céu. Sempre se está no meio do céu. O
centro do Infinito está em toda parte.
– Se a Terra fosse transparente, veríamos neste momento as
constelações que estão sob nossos pés, e a Via-Láctea nos rodea-
ria qual um turbante. Estamos realmente, absolutamente no céu.
Era essa idéia que me preocupava quando me perguntaste em
que sonhava.
E estamos, ali, no vácuo, carregados qual se estivéssemos so-
bre uma barquinha.
Cada uma dessas inumeráveis estrelas é um sol! Nossa situa-
ção não pode ser mais modesta. Que imensidão! Será que nesse
exército de sóis as estrelas mais brilhantes são as mais próximas?
– Não. Todos esses longínquos sóis diferem uns dos outros
em dimensões, em brilho, em natureza de luz, em idade, em
força, em potência.
– Conhece-se a distância da minha estrela?
– É uma das que se tentou medir. Achou-se 204 trilhões de
quilômetros. É a distância do Sol acrescida de 1.375.000 vezes.
Um trem direto, com a velocidade de um quilômetro por mi-
nuto, que levaria mais de dois séculos e meio para chegar ao Sol,
correria durante 371 milhões de anos antes de chegar a Vega.
O raio luminoso que recebemos, e que viaja com a velocidade
espantosa de trezentos mil quilômetros por segundo... Adivinha a
tua idade quando esse raio partiu de sua fonte em nossa direção?
– Sabes que não sou forte em cálculo. Tenho vinte cinco
anos.
– Pois bem, quando esse raio que estamos recebendo partiu,
estavas no terceiro ano e quatro meses. Esse raio correu no céu
em linha reta desde o momento em que partiu até chegar a tocar
hoje em teus olhos. É uma das estrelas mais próximas de nós.
Dessa distância, que nos parece espantosa, recebemos sua luz,
seu calor. Sua atração se combina com a do Sol, e bem assim
com a dos outros sóis, vizinhos, Sírio, Prócion, Aldebarã, Alfa
do Centauro, Arctúrus, para constituir de algum modo a base
fundamental da nossa região sideral. Os sóis são os pivôs do
Universo.
Nosso sol e todos os seus vizinhos se sustêm entre si pela
atração mútua, e cada um circula no espaço obedecendo ao
conjunto das atrações. Só o nosso planeta é joguete de doze
movimentos diferentes. Habitamos um astro móvel igual a todos
os outros, balançado no vácuo pela força universal.
– É justamente essa idéia que me impressiona diante desse
céu estrelado. Habitarmos um astro, acrescentou Esteta, marcan-
do pausadamente cada sílaba. Sabes que se tem necessidade de
repeti-lo para ficar convencido. As aparências são tão contrárias
à realidade! Habitamos um astro. Estamos no céu!
Na luz de todos esses sóis gravitam terras habitadas qual a
nossa. Não posso contemplar as estrelas sem pensar nesses seres
desconhecidos, nessa vida longínqua e misteriosa, e nessa noite
estrelada que se torna viva para minha alma.
Oh! Gostaria de saber de que modo e por quem são esses mi-
lhões de mundos povoados! Esses seres desconhecidos podem
assemelhar-se-nos? Têm eles os nossos sentidos? Pensam iguais
a nós outros? Quando divago sobre essa vida universal, formidá-
vel, fico emocionada. Quanto seria interessante uma comunica-
ção com Marte, tão próximo daqui! Por que não se chega a isso?
Estela falava com o fervor de outros tempos, quando fazia su-
as preces; sentia-se em comunicação com a Natureza, contem-
plava as estrelas com amor, e parecia-lhe poder abrir asas e voar
até elas. Sua alma vibrava na luz celeste, cujos raios atravessa-
vam a imensidade, e acreditava sofrer também a atração univer-
sal. Seus olhos encantados iam de Vega às Plêiades, de Altair à
Capela, detendo-se sobre as mais brilhantes estrelas, pousando
sobre as constelações, arrebatando o pensamento no abismo
sideral, e sentia-se tão longe de tudo, que esquecia até o afeto
mais caro, o seu mestre adorado, seu deus terrestre. Depois, ficou
silenciosa, meio hipnotizada pelo céu. E calou-se, com os olhos
fitos na estrela predileta.
De repente, sem sair do enlevo, repetiu com voz grave, falan-
do a si própria:
– Estamos no céu! Que se procura? Ali está, a realidade! A
realidade sublime! Ó minhas estrelas queridas! Eu vos vejo, eu
vos amo, eu sinto que vos pertenço. Por que procurar à margem
da verdade? Por que inventar sistemas? Sou pequena, minúscula,
invisível, ignorada; mas também existo, penso e amo. Minha
alma brilha; é uma outra luz; vê-se a atração?
Ali está a vida, a vida universal, eterna. Que se procura? Ali
estão as moradas da imortalidade. É um arquipélago de ilhas
celestes. Já habitamos esse arquipélago. Não estamos à margem
do céu, nem fora, nem abaixo; estamos em pleno céu. Se viver-
mos depois da morte, é lá que viveremos; não se deve inventar
fábulas e contos. Se não vivemos, se os habitantes de todos os
mundos nascem neles para neles morrer, a vida não tem finalida-
de e o Universo para nada serve. É uma lanterna mágica, tola e
burlesca. Vega, minha Vega! E vós todas, estrelas cintilantes,
sóis do infinito, sois os fachos da Eternidade!
Estamos aqui, continuou, poderíamos estar lá, no Cisne, na
Águia, na Lira; nosso Sol poderia ser uma dessas estrelas; é
outra, eis tudo; vivemos na irradiação de uma estrela; nosso Sol é
uma estrela igual às outras; estamos no céu. A Humanidade é
cega! Entretanto, tudo é bem claro, bem evidente, incontestável.
Aí está o Universo; não o inventamos.
A Humanidade imagina que não está no céu. Onde tinham os
olhos os grandes espíritos que a dirigiram? Que viram então os
fundadores de religiões para pôr a Terra em baixo e o Céu em
cima, para terem separado o nosso planeta do resto do Universo,
a vida cá é a morte lá, e para suporem que o nosso ponto imper-
ceptível nos mundos era a finalidade da Criação? Por que não se
desprendeu do erro vulgar das aparências, para ver simplesmente
a realidade?
A vida não se extingue. Não se fará acreditar jamais que a
nossa existência seja sem finalidade alguma, e que todas as
existências inúmeras, que se sucedem de estrelas em estrelas,
através de toda essa imensidade, sejam também sem finalidade
alguma. Não. Agora vi a verdade, vi a luz. Sinto mais do que
nunca a minha insignificância; porém não é uma insignificância
absoluta. Somos os infinitamente pequenos no infinitamente
grande!
Estela parou de falar, o olhar sempre mergulhado em plena
Via-Láctea.
– Meu amor, acrescentou, quando alço o vôo para essas esfe-
ras sublimes, parece-me que a alma vai caminhando sobre poeira
de astros!
Rafael a escutara sem a interromper, feliz por ver que a con-
templação desse maravilhoso céu a conduzira, qual uma intuição
natural, à doutrina religiosa que ele deduzira de suas análises
científicas. Aproximou-se suavemente dela, tomou-a com ternura
nos braços, e disse, sem procurar esconder a emoção.
– Acabas de fazer uma bela viagem pelo céu, minha querida.
Quanto o compreendes já!
– Rafael, respondeu ela, parecendo continuar ainda os seus
pensamentos, quer te diga o que me impressiona neste momento,
em regresso dessa viagem de que falas? Pois bem, ao partir foi o
fato claro, evidente, incontestável de que a Terra é um astro do
céu; ao voltar é... Um outro fato não menos claro, não menos
evidente, não menos incontestável...
– Qual?
– A ignorância, a indiferença, a tolice da Humanidade. Que
risível raça! Em que pensam todos esses seres?
– Em nada, ou quase nada.
A Terra é um astro do céu; estamos atualmente no céu. Nin-
guém o suspeita. Ninguém sabe nada. A Terra nos leva no seu
curso. Cada manhã, quando o dia recomeça, esse globo fez mais
um giro, o pensamento o vê girar. Ninguém se preocupa. Nosso
planeta está povoado de criaturas que não sabem onde estão.
– E que não o indagam sequer. É-lhes indiferente!
– Acreditas que os habitantes de Marte ou de Vênus sejam
também indiferentes quanto os da Terra?
– A ignorância nativa e satisfeita dos terráqueos deve ser um
caso particular, uma espécie de anemia produzida pelo solo,
igual à papeira e ao cretinismo na região de certos vales dos
Alpes. O fato é que eles vivem sem ter idéia alguma da realida-
de. Não sabem que habitam na irradiação de uma estrela. Se, por
vezes, alguns deles olham para o céu, vêem apenas um teto. A
Ciência não existe para eles, e os sábios são uns originais. Notas-
te de que modo distribuem eles as honras e a glória? primeiro
para aqueles que os matam, depois para aqueles que os divertem,
e um pouco, por exceção, para aqueles que lhes são úteis. Pode-
riam ser ainda muito mais... ininteligentes, por exemplo, real-
mente cegos.
– A diferença é muito grande?
– Sim. Um dia eles saberão servir-se dos olhos. Podemos
desculpá-los, porque seus interesses materiais, seus negócios,
segundo dizem, os ocupam tanto, que quase não podem pensar
em outra coisa. Passam a vida correndo atrás da fortuna e mor-
rem durante a carreira. É pouco espiritual, sem dúvida, mas, que
queres? A vida terrestre é assim mesmo. Os homens não têm
tempo de pensar.
– Entretanto, é belo esse grande espetáculo da noite estrelada.
Que paz profunda! Que tranqüilidade! Que grandeza! Oh! As
Plêiades subiram muito no céu enquanto conversávamos. Cinti-
lam menos do que há pouco, parecem mais calmas. Conto sete.
– Vês aquela que os antigos acreditavam terem visto desapa-
recer ao tempo da guerra de Tróia. É a mais fraca, e a vista
comum não a distingue. Os olhos mais apurados contam oito,
nove, dez, às vezes até mais.
– Quantas são na realidade?
– Muitos milhares. O telescópio descobre minúsculas da dé-
cima quinta à décima sétima grandeza. A fotografia revela outras
mais imperceptíveis ainda, porque o “olho fotográfico”, a chapa
sensibilizada, nova retina do astrônomo, ficando em exposição
para o céu, durante algumas horas, acaba por ver o que a nossa
vista não veria jamais. Essas Plêiades formam um universo.
– Parecem isoladas. Tenho a impressão de que a alma poderia
facilmente voar entre elas, qual um pássaro em uma árvore.
Algumas vezes imagino que vôo até lá, e que olho em torno de
mim o abismo do infinito por vezes, tenho medo. Sinto atraves-
sar-me um calafrio. Pode a alma ter vertigens? Experimentei-as
ante a sensação do Infinito, de igual modo que as sentira ante a
da Eternidade. Tive de fechar os olhos do meu Espírito, não
olhar mais, cessar o pensamento. Oh! O Infinito! Sinto-o, porém
não chego a compreendê-lo...
– No entanto, é muito mais fácil concebê-lo do que o finito.
Ensaia representar-te um espaço finito, experimenta supor um
limite, uma fronteira qualquer a essa imensidade, e não o conse-
guirás; tua imaginação passará a barreira. O Espaço é infinito.
Vês aquele ponto do céu, lá em cima. Voemos, como dizes,
voemos até lá, pelo pensamento. O clarão vai depressa. Pois
bem, supõe que viajamos com uma velocidade mais rápida ainda,
com a da luz. Ser-nos-á necessário, com essa velocidade de
trezentos mil quilômetros por segundo, quarenta minutos para
atingir Júpiter; uma hora para chegar até Saturno; quatro horas
para tocar em Netuno; sete lustros e mais um ano para atingir a
estrela polar; e um século para chegar àquela estrela. Continue-
mos nosso vôo em linha reta, para além daquela estrela, durante
mais outro século, e, sempre mais longe, durante dez séculos,
cem séculos, mil séculos, sem parar, sempre avante, com a
mesma velocidade de trezentos mil quilômetros por segundo.
Perdemos de vista a Terra, o sistema solar, o próprio Sol, tornado
estrela e, pouco a pouco, desaparecido; também perdemos de
vista as principais estrelas que observamos da Terra, e todas as
constelações que, gradativamente, se deslocaram pela mudança
de perspectiva; atravessamos regiões estelíferas desconhecidas
ao nosso planeta; depois, imensos desertos desprovidos de sóis;
roçamos, em nosso vôo, por mundos mais maravilhosos do que
os anéis de Saturno; fantásticos cometas – morcegos do céu e
sóis de clarões fulgurantes, faróis incandescentes lançando todas
as cores do prisma através da imensidade; adivinhamos moradas
estranhas, povoadas de seres sobrenaturais para nós outros,
extraterrestres, extra-solares; porém, nenhuma atração nos dete-
ve, e continuamos nosso vôo, em linha reta, durante dez mil,
cinqüenta mil, durante cem mil, um milhão, dez milhões de
séculos, sempre com a mesma velocidade de trezentos mil qui-
lômetros por segundo.
Onde estamos? Que caminho percorremos? Onde está, a fron-
teira? Onde o Universo termina?
Não avançamos um passo! Estamos no vestíbulo do Infinito!
Poderíamos viajar assim, nessa mesma direção ou em outra
qualquer, durante a eternidade inteira: não nos aproximaríamos
jamais do término.
Que existe para além? Novos céus. E mais além? Novos céus
ainda. É o Infinito. Sem fim. Nem alto nem baixo: o Zênite igual
ao Nadir. Nem direita, nem esquerda, nem direção alguma. As
estrelas são pontos de referência, espécie de marcos sobre o
caminho eterno, sobre os quais podemos fazer uma espécie de
triangulação dos céus; mas não há um só ponto fixo na imensi-
dade, ao quais essas posições possam ser relacionadas. Essa
viagem que acabamos de fazer, as próprias estrelas a fazem: elas
tombam em todos os sentidos com velocidades prodigiosas. Nós
mesmos viajamos no Espaço, desde tempos imemoriais, e a
nossa viagem não tem fim. Antes de nascer, a Terra já viajava,
uma vez que fazia parte da nebulosa solar, em rumo para o seu
destino. Depois do fim do mundo terrestre, as ruínas do nosso
planeta continuarão a viajar nas suas novas associações solares.
O espaço é infinito; o movimento é indestrutível.
Olha esta estrela, Alfa do Cisne, que caminha em nossa dire-
ção e que cai diretamente sobre nós, podemos assim dizer, com
uma velocidade de 2 bilhões de quilômetros por ano. Entretanto,
nunca nos atingirá, porque vogamos para a constelação de Hér-
cules.
Arctúrus se precipita para o Sol com uma velocidade de 3 bi-
lhões de quilômetros por ano.
Existe, na Grande Ursa, uma estrela que voa com a velocida-
de de 28 milhões de quilômetros por dia, ou sejam, 10 bilhões de
quilômetros por ano.
Tudo isso corre, cai, circula através da imensidade sem limi-
tes. É a poeira, a poeira celeste, chuva de diamantes impelida por
um sopro divino... E também chuva de almas, pois lá existem
populações incontáveis.
E que é o nosso Sol? Um átomo.
E que é a Terra? Um nada.
– E que somos?
– Que somos? Meu amor... Emanações de Deus, quando
compreendemos esses esplendores.
Sabes a idéia que me veio a pouco, passeando minha vista por
essa multidão inumerável de estrelas?
Parecem tocar-se, na via-láctea, por exemplo. Ao telescópio,
as mais pobres regiões do céu se enchem quase que por encanto.
Pela fotografia celeste é suficiente deixar a chapa exposta
cinco ou seis horas para que fique coberta de pontos luminosos.
Deixando-a bastante mais tempo, obter-se-á uma verdadeira
superfície solar, todos os pontos luminosos se tocando.
Pois bem, penso que, na realidade, todas as estrelas estão li-
gadas umas às outras, vizinhas, contíguas, tal qual as moléculas
da nossa carne.
– De que modo, se a mais próxima está a 40.000 bilhões de
quilômetros do nosso Sol?
– Essa distância não é nada. Seus raios de luz, de calor, de
eletricidade, suas atrações, seu magnetismo, se combinam.
Parece-nos que daqui ao Sol há um vácuo de 149 milhões de
quilômetros, e daqui à Lua outro vácuo de 384 mil quilômetros;
é um erro; o vácuo não existe. O Sol mantém a Terra no Espaço,
ilumina-a, aquece-a, fecunda-a. Laços invisíveis unem entre si
todos os mundos.
Nosso universo sideral deve formar um grande corpo, um
imenso organismo, do qual os sóis e os mundos são as molécu-
las, os átomos materiais.
Não existe afastamento real entre os mundos. Estão entre si
na mesma relação que os átomos de um pedaço de ferro, de uma
árvore ou de um corpo humano, que não se tocam e também
vibram e se agitam em um movimento perpétuo.
O Universo é um ser vivo. Cada mundo é uma molécula do
grande corpo.
E as almas circulam de um mundo para outro, eflúvios ani-
mando o Universo. Sem elas, os mundos seriam inanimados. As
forças psíquicas, de igual maneira que as forças físicas, atraves-
sam essas distâncias, longitudes que não são o que nos parecem.
Aí está a grande unidade física e psíquica. Olha a Via-Láctea:
todas as estrelas se tocam. É o universo sideral visto de longe.
O poeta disse:
Les mondes dans la nuit que vous nommez l’azur
Se jettent en fuyant l’un à l’autre des âmes.
(Os mundos, na noite a que chamais o azul,
Circulam, levando de um ao outro as almas.)
E disse ainda:
Les tombeaux sont les trous du crible cimitière
D’ou tombe, graine obscure en un tenebreux champ,
L’effrayant tourbillon des âmes.
(A tumba é fenda de crivado cemitério
Onde cai, grão obscuro em tenebroso campo,
O pavoroso turbilhão das almas.)
Esse campo tenebroso é a Noite. As almas o atravessam para
passar de um mundo para outro. Esses mundos são os átomos do
corpo do Universo. Temos sob os olhos uma grande unidade
viva.
– E que é a morte?
– A morte é a porta pela qual a alma chega ao seu destino. Já
viste alguma vez um morto? Que inefável sorriso no seu descan-
sado semblante! Não é apenas o repouso dos músculos e dos
nervos, no dizer dos médicos. Existe algo mais, uma expressão
de alívio da vida, de contentamento íntimo, de desdém pela
matéria, de um estado transcendente, que resta na fisionomia
logo após a partida da alma. Desprendendo-se, já entreviu a luz
etérea. É uma impressão análoga à que o aeronauta experimenta
em balão quando chega acima das nuvens: sai do escuro, do
espesso, do lodoso, e, encontrando-se de repente em uma luz
embriagadora, frui uma alegria penetrante que o enche de felici-
dade. Não desejaria mais tornar a descer. Assim, e mais despren-
dida ainda, cintila a alma ao sair desta vida. Em um instante viu
a luz, e a impressão permanece por muito tempo sobre o sem-
blante inanimado, enquanto o luto e as lágrimas rodeiam o
defunto de lúgubre aparato.
A vida é igual a um sonho. As realidades que acreditamos ver
em torno de nós não passam de aparências mentirosas: a Astro-
nomia, a Física e a Química o provam. Durante a vida não temos
consciência de nossas existências anteriores, de igual modo que,
em sonho, não nos lembramos de nossos sonhos precedentes.
Mas, saindo desta vida, nos desprendemos do véu sensual e nos
lembramos do passado.
O astrônomo se deteve, contemplando silenciosamente a
magnífica noite estrelada. Depois, de súbito, voltando-se para a
companheira.
– Olha! exclamou, esqueci-me de dizer-te que amanhã, à noi-
te, há uma brilhante reunião no Cassino de Luchon. A Comédia
Francesa deve representar uma excelente peça. É uma ocasião
raríssima. Queres ir?
– Rafael! exclamou Estela, fechando-lhe a boca com a mão,
não zombes da tua mulherzinha. Vem falar-me no teatro dos
homens, quando temos este diante de nós!
XXIX
Ciência – Verdade – Felicidade

Levavam uma vida muito retraída e sua mútua felicidade lhes


era suficiente. Apesar disso, o renome universal do “Solitário”
atraía por vezes, com especialidade no verão, distrações inespe-
radas. Sábios ilustres, grandes escritores, filósofos de todos os
países, ao fazerem viagem à França ou à Espanha, desviavam-se
do seu itinerário para lhe fazer uma visita e passar algumas horas
no observatório pirenaico. De certa vez, veio expressamente de
Londres um célebre físico inglês para realizar, com ele e Estela,
algumas experiências sobre forças ocultas. Em outra ocasião, um
dos mais famosos inventores dos Estados Unidos veio consultá-
lo a respeito da fundação de um Observatório magnético nos
antípodas. Um rei, célebre pelas tendências científicas, quis
passar por Luchon e Bosost, no intuito de visitar o autor de “O
Domínio do Desconhecido” e palestrar com ele. Em outra opor-
tunidade, um de seus antigos camaradinhas do Aveyron, agora
deputado e ministro, viera oferecer-lhe, em nome do Governo, a
cruz da Legião de Honra. Dargilan não teria solicitado aquela
distinção, porém aceitou, e Estela a reuniu, em lugar especial, às
insígnias de Comendador da Estrela Polar e às de uma vintena de
outras Ordens.
– Aí está quem me reconcilia um pouco com a política, disse
ao seu amigo ministro; estou encantado de ver que podeis ter às
vezes uma iniciativa pessoal. Confessai, entretanto, que, habitu-
almente, as coisas não se passam assim. Li três jornais de ten-
dências diferentes. Parece-me que tanto sob a República quanto
sob o Império ou a Monarquia, e no estrangeiro, tanto quanto na
França, os ministros são constantemente importunados por uma
turba de intrigantes por causa de empregos, honrarias e condeco-
rações, e que essas coisas lhes são arrancadas, sem que eles
tenham realmente a liberdade de escolher por si, e procurar
recompensar o verdadeiro mérito. Reparai bem, não falo por
mim, pois não mereço coisa alguma, e tenho todos os meus
desejos realizados, e com excesso, na minha felicidade sem
nuvens. Mas, em geral, vós, os ministros, não me parecem livres,
e vos deixais conduzir. Se eu tivesse a honra e a infelicidade de
ser Governo, começaria por jamais condecorar aqueles que o
pedissem por não dar lugar algum àqueles que acotovelam para
chegar primeiro; por suprimir os “pau de sebo” e os bombos de
auto-reclame; por tentar descobrir – eu mesmo – trabalhadores,
os verdadeiros valores intelectuais. Porém, isso seria lógico, e
ides responder-me que a lógica não é deste mundo.
– Espero que a minha administração se distinga das preceden-
tes, sob esse ponto de vista, replicou o ministro, e que saberei
encontrar os homens de valor em qualquer lugar onde se ocul-
tem... se ficar o tempo suficiente para tal, acrescentou rindo. Sei
bem, quanto a ti, que não dás grande importância a essas espé-
cies de testemunhos.
– Entre nossa gente, essas fitas de diversas cores e essas pe-
quenas placas de prata esmaltada são verdadeiros brinquedos um
pouco infantis. A nossa verdadeira recompensa está em nós
mesmos.
– No entanto, é ainda o único meio de que podem lançar mão
os governos para bem assinalar a estima por um sábio, um artis-
ta, um inventor, um grande cidadão, um soldado que derramou
seu sangue pela Pátria. Além do mais, é, para a maioria, um
estímulo certamente útil ao progresso.
– Uma vez que foram inventadas, deveriam, ao menos, ser
eqüitativamente adjudicadas.
Um dia, o Venerável da Loja de cidade vizinha foi visitá-lo,
na missão de embaixador do Grande Oriente de França, e convi-
dá-lo a ingressar na Maçonaria. Recusou, muito simplesmente,
declarando que preferia a liberdade de espírito a todos os ritos;
que, em nossa época, assiste a cada um o direito de externar o
pensamento e de caminhar para frente; que um homem indepen-
dente não deve ser maçon, nem clerical.
A mais inesperada de todas as visitas foi a que recebeu às
primeiras horas da manhã de um lindo dia de verão: a de um
sacerdote, facilmente reconhecível, apesar de vestido com hábi-
tos burgueses, o qual declinou, de inicio, a sua qualidade.
– Meu caro mestre, disse, deixo a França, vou exercer o meu
ministério na Suíça, e vim pedir-lhe a sua bênção.
– Minha bênção!
– Sim. Abjurei os meus erros. Reconheci a verdade de que é
pontífice.
– Mas eu não sou pontífice de coisa alguma.
– O senhor o é, à semelhança de Jesus. Retorno à religião dos
primeiros cristãos.
– Não creio em sacerdotes, nem em cultos. Para mim, a reli-
gião do futuro será sem culto.
– É a que Jesus proclamou no poço da Samaritana. Ele tam-
bém não acreditava em sacerdotes. Expulsou-os, com os outros
vendilhões do Templo.
– Não me dizia o senhor ir exercer o seu ministério na Suíça?
Continua então sacerdote?
– Sim e não. Inclino-me “para o velho catolicismo” que não
tinha a confissão auricular, as indulgências e o purgatório. Se
não for o que eu penso, escolherei a religião dos Coptas.
– Que necessidade tem então o senhor de se encarcerar no
círculo estreito de um sistema religioso?
– Meu caro mestre, valeis por um Padre da Igreja, e saúdo na
vossa pessoa o cardeal de Cusa reencarnado. Vossa religião, que
é verdadeira, que é a de Buda e de Jesus, é ainda a eleita por
espíritos superiores, por almas esclarecidas e delicadas, que
compreendem a Ciência, a Natureza, a grandeza de Deus. Entre-
tanto, aguardando o evento dessa religião pura, o vulgo ainda
necessita de ficções e de exterioridades. É um encaminhamento
ao qual quero consagrar-me.
Aprendi, acrescentou, pelos meus próprios sermões, que o
homem absoluto nos seus julgamentos, que apresenta as questões
em tom autoritário, só pode ser um ignorante, pois desde que se
analisem as coisas, não se pode mais ter certeza alguma sobre a
maioria dos problemas da vida.
Conversaram e discutiram, mas, de repente, o sacerdote se
deteve de modo a parecer que não dissera tudo quanto tinha
vindo dizer.
Estela acabava de aparecer.
Embora setenta e dois meses já se tivessem passado após a
última visita ao seu confessor, ela o reconheceu logo.
– Sim, senhori.., sim, minha senhora, disse, levantando-se e
saudando com respeito: Sou eu!
Tenho a religião do vosso marido, acrescentou, e vim confiar-
lho. Não sou o único sacerdote no qual a Astronomia, modifica a
Teologia.
– Senhor Laferté, disse Estela, eu vos devo muito reconheci-
mento, A última vez que, solteira ainda, vós me haveis ralhado
severamente, naquele sombrio confessionário de Santa Clotilde,
aconselhastes que eu mudasse de ares, que viajasse, que fosse
respirar a atmosfera pura das montanhas. Foi seguindo esse
conselho que vim para cá.
– Soube-o logo, replicou o sacerdote, e também tive conhe-
cimento, no outono seguinte, das vossas veleidades aparentes de
entrar para um retiro de freiras e, depois, na primavera, da vossa
fuga, que foi um grande acontecimento parisiense. Falou-se a
respeito pelo menos durante oito dias! Muitas vezes me pergun-
tei se seríeis perfeitamente feliz e, também confesso, tive a
indiscrição de vir constatá-lo pessoalmente.
Pois bem, estão ambos com a verdade, e são recompensados
com uma perfeita felicidade.
– Não é mais sacerdote, senhor abade?
– Sim e não. Sabeis senhor Dargilan, que o celibato dos sa-
cerdotes não é uma questão de dogma, e sim de simples discipli-
na eclesiástica. Confesso que vou imitá-lo. Após ter feito tantos
casamentos, à conta de terceiros, faço agora o meu. Desposo
uma das minhas antigas penitentes.
– O senhor tem, creio eu, certa independência de fortuna.
– No meu quarteirão todo mundo sabe isso, porém não sou do
lenho de que se fazem os bispos.
Conversaram algum tempo ainda. O abade pediu para ver um
novo livro filosófico, de grande êxito, que o astrônomo acabara
de receber da Alemanha. Enquanto Dargilan foi apanhar o livro
na peça ao lado, o abade levantou-se da sua poltrona e veio
sentar-se no sofá em que Estela se achava.
– Cuidado, senhor abade! Exclamou Estela afastando-se um
pouco e puxando uma almofada de veludo bordado, o senhor
estava sentado sobre os cabelos do meu marido.
– Sobre os cabelos do seu marido?
– Sim, essa almofada está cheia dos seus cabelos. Sou eu
quem lhe corta o cabelo e lhe faz a barba. Ninguém toca na sua
cabeça. Como vê, fiz uma linda almofada. Mas, não tenho mais
onde pô-los. São de seiva extraordinária! Crescem velozes!
– Ah! Suspirou ele, tomando a almofada. A idéia é rara. É
uma originalidade que a senhora Laferté certamente não terá.
– Tanto mais, senhor abade, continuou Estela olhando para a
sua fronte calva e o semblante glabro, que não sois muito rico
desse material.
– Oh! Replicou o sacerdote sorrindo, minha felicidade não
depende de um cabelo. Então é bem verdade que compartilhais
de todas as idéias do vosso ilustre marido?
– Sim, absolutamente. Elas estão gravadas em minha alma a
tal ponto, senhor abade, que eu, por elas, enfrentaria o martírio, e
com verdadeira satisfação, acrescentou de olhar inflamado.
Dargilan voltou, trazendo o livro, que começaram a folhear.
Depois, o abade perguntou se poderia visitar o Observatório.
Percorreu com maior interesse ainda as estantes da biblioteca. Na
ocasião das despedidas, tirou do bolso a última obra do “Solitá-
rio”, “As Regiões da Imortalidade”; pediu uma dedicatória na
primeira página e rogou à senhora Dargilan que a pusesse tam-
bém sua assinatura. A carruagem que o trouxera voltava para
Luchon. Despediu-se de ambos e apertou fortemente, nas suas, a
mão que o astrônomo lhe estendia.
– Esse aperto de mãos, disse, é a bênção que lhe vim pedir.
Fora dessas visitas diversas, bastante raras, aliás, o Observa-
tório permanecia geralmente solitário e digno das contemplações
e dos estudos de nossos dois astrônomos, pois, da mesma forma
que a irmã de William Herschel, a esposa de Dargilan, conforme
vimos, estava possuída de uma paixão absoluta pela Ciência.
A vida de ambos continuou desenrolando-se em pleno céu, no
meio das harmonias da Natureza.
E ambos conheciam (o que é raro nas mulheres) a felicidade
da bibliofilia. Tomar em mãos um bom livro, de caprichada
edição, bem impresso, amplas margens, bom papel, encaderna-
ção elegante, gravuras de mestres, não muito pesado para manu-
seio, e contemplar esse livro antes de encetada a leitura, costas
apoiadas em confortável poltrona, lâmpada com a luz projetada
de trás para diante, percorrê-lo, avaliá-lo, e depois ler à vontade,
saboreando todas as qualidades de pensamento e de estilo; tornar
a encontrá-lo mais tarde nas estantes de uma biblioteca aberta,
acessível a todos os caprichos da mão, em companhia de muitos
outros não menos apreciados, era prazer refinado para o espírito,
que tornava sempre muito breves e muito fugitivas as horas
passadas na biblioteca. Oh! Quanto os livros são bons amigos!
Escolhemo-los ao nosso gosto, consultamo-los, são fiéis, instru-
em, esclarecem, guiam-nos, consolam-nos. É uma sociedade
intelectual, inteligente, distinta, de todos os tempos, de todos os
países, que associamos ao nosso espírito em horas de devaneio,
de meditação e de repouso.
Durante os primeiros tempos de sua felicidade, não lhes veio
à idéia de fazer uma viagem, pequena sequer, além de algumas
excursões aos arredores de Luchon, ao vale de Lys, ao lago
preto, ao lago verde, ao lago azul, ao lago do Oo, ao porto de
Venasque, a Bosost, ao vale d'Aran, à Maladetta. Somente uma
vez foram até Cauterets e ao circuito de Gavarnie, e haviam
admirado na sua grandeza as montanhas coroadas de bosques, os
rios torrenciais, as cascatas impetuosas, o caos dos desmorona-
mentos pirenaicos, o grande circuito diademado de neve e os
cimos soberbos que tentaram atingir, em uma ascensão à brecha
de Roland. Porém não chegaram a distanciar-se até Pau, e volta-
ram ao seu ninho sem o ter perdido de vista.
No quarto ano, decidiram ir até Bordéus, e esquecer o céu du-
rante quinze dias. Pelo mais feliz dos acasos ia dar-se em Luchon
uma ascensão em balão. Tomaram lugar na barquinha e viram
que o aeróstato os levava naquela direção e os deixava próximo a
Baione. Deteve-se em Biarriz, que lhes pareceu um paraíso
criado expressamente para os enamorados. Após a cadeia gran-
diosa dos Pirineus, que, durante o percurso, se desenrolara sob
seus pés em toda a luxuriante beleza, chegaram de repente a uma
praia maravilhosa, diante de um mar tão gracioso e calmo quanto
o Mediterrâneo, na baía de Mônaco, durante os belos dias de
primavera. Se Bordéus não fosse o objetivo da viagem, deixar-
se-iam embalar pelo ruído caricioso das vagas, que vinham
docemente espraiar-se na areia dourada.
Amantes apaixonadas da Natureza, a grande cidade ativa,
turbulenta, comercial, interessou menos do que as verdejantes
montanhas e o mar. Encontraram ali todo um novo mundo. A
imensa ponte sobre o Garona, o rio sulcado de navios, o porto, as
ruas, as praças agitadas e os edifícios prenderam sua atenção
durante três dias. Uma das coisas que mais lhes feriu a curiosi-
dade foi a visita à sepultura de São Miguel, onde estão expostos
uns sessenta cadáveres colocados em pé, contra a parede da
tumba, conservados no símile de múmias egípcias, com surpre-
endentes minúcias. São seres humanos, salvos da decomposição
pela propriedade da terra do cemitério onde haviam sido inuma-
dos. Foram encontrados quase intactos, decorridos séculos do
sepultamento, e expostos ali, a título de curiosidade macabra. A
pele, os cabelos, a barba, tudo está conservado. Notam-se, entre
eles, velhos, crianças, uma senhora grávida, um homem que deve
ter sido enterrado vivo. Essa espécie de exposição fúnebre, de
cadáveres amontoados, causou à jovem não só espanto, mas
desgosto. Pensou no seu belo corpo, e na noite seguinte sonhou
com vermes de cemitério e foi assaltada por um espantoso pesa-
delo. Quis deixar Bordéus na manhã seguinte; desceram o Gi-
ronda, reviram o mar luminoso, respiraram os eflúvios dos
bosques de pinheiros, foram visitar a ilha de Yeu e a quase ilha
de Noirmoutiers, onde Estela encontrou as origens da família de
sua mãe. Depois cuidaram da volta aos livros amados, às suas
observações astronômicas, e só se detiveram na pequena estação
de Montrejeau, onde visitaram o local em que, a 9 de dezembro
de 1858, caiu do céu uma pedra, da qual o astrônomo guardava
preciosamente um fragmento em suas coleções. Foi com um
júbilo inteiramente novo que retomaram seus queridos hábitos.
Alguns dias depois, Estela fez testamento no qual pedia fosse
o seu cadáver incinerado.
O que eles mais estimavam, depois do trabalho intelectual,
que dá ao espírito suas melhores alegrias, era a contemplação da
Natureza. Estela se entregava, às vezes, diante do céu estrelado,
de um poente, da imensa paisagem que se descortinava ao meio-
dia da Torre, a intermináveis devaneios. As formas cambiantes
das nuvens que deslizam pela atmosfera, impelidas pelo vento,
atraíam seus olhares e seus pensamentos. Contemplava-as em
silêncio, vendo elevarem-se no horizonte longínquo. A impassi-
bilidade tranqüila da Natureza, no eterno movimento das coisas,
conduz à meditação. A alma se recolhe de algum modo para
dentro de si mesmo, e parece obedecer a uma lei fatal. “Que
mistério é a vida! Dizia com freqüência, que insondável misté-
rio! As nuvens passam, a Terra gira, as estações e os meses se
sucedem, os seres nascem, vivem, se agitam, morrem.” E tudo
isso por quê? Que somos nós? Nuvens talvez. E sua alma se
perdia em devaneios sem fim.
E assim se passavam os tempos.
Certo dia de outubro, à sobremesa de opíparo almoço, Rafael
parecia mais alegre que de costume.
– Que achaste destes pêssegos, meu amor?
– Excelentes, deliciosos. Que suco! Que olor!
– Há um pouco de ti dentro deles.
– Que estás dizendo?
– Não adivinhas?
– Não, de forma alguma. Não são muito grandes, mas, de fa-
to, excelentes.
– São nossos filhos.
– Rafael, falas sempre por enigmas.
– Pensa um pouco...
– Ah! Nossas arvorezinhas? As flores rosadas da última pri-
mavera? São elas? Já? Parece que foi ontem, o teu amoroso
capricho de batismo de sementes de cerejas e de pêssegos.
– E então? As nossas arvorezinhas têm sete outonos. Sabes
quais as que cresceram mais depressa?... Os pessegueiros... os
pessegueiros rosados.
– Isso não me admira. Contigo! Parecem mentira, sete outo-
nos! Meu coração diz – sete dias. Comamos aquele entre os dois.
Decididamente o pêssego é ótimo, é a melhor das frutas. Es-
tes têm um gostinho adocicado bastante curioso. Não acreditas
que no paraíso terrestre Eva tenha sido tentada por pêssegos, em
vez de maçãs?
– E as nossas outras frutas? Os damascos, as maçãs, as ave-
lãs, as amendoeiras, os castanheiros?
– Até agora só os pessegueiros deram flores e frutos. Os ou-
tros se reservam para o ano próximo. Já estão todos crescidos.
Os pessegueiros estão com 2 metros e meio de altura; as amei-
xeiras ultrapassaram, porém ainda não floriram; uma nogueira
mede 2 metros, o carvalho e o castanheiro 2 metros e meio.
Deitando-se ao pé dessas pequenas árvores já se tem bastante
sombra. A Natureza caminha e prossegue no seu labor. O Sol, a
chuva e o solo nutridor agem sobre o ser vegetal: criam-no e
desenvolvem-no. Essas árvores vivem, viverão além de nós
sobre esta terra, e nos séculos vindouros, talvez, o viajante,
extraviado por estas montanhas, virá repousar ao pé de um velho
carvalho de ramagens imensas, sem suspeitar da hora de amor à
qual essa árvore secular deveu o nascimento. Contudo, sua
sombra sagrada guardará, em seus estremecimentos, alguma
recordação do nosso mistério, será meiga e benfazeja ao viajor
fatigado. E se algum par amoroso vier sentar-se sob sua folha-
gem, sentir-se-á tocado levemente por um sopro de volúpia, por
nossas sombras etéreas, quando elas vierem rever estas recorda-
ções queridas.
– Não fales de morte, meu Rafael. Estamos bem vivos. Não
morreremos. Tu não morrerás nunca. Vamos, não mantenhas
essas idéias tristonhas. Dá-me mais um pêssego.
O amoroso filósofo denominara suas arvorezinhas “árvores
estelares”. Tratava-as com amor. No oitavo ano, uma primavera
suave e chuvosa as desenvolveu consideravelmente; recolheram-
se, além dos pêssegos, damascos e cerejas. As aveleiras, amei-
xeiras, amendoeiras, castanheiros e nogueiras cresciam conforme
sua espécie. No décimo ano já constituíam verdadeiras árvores.
Estela conservara relações com muitas de suas amigas, nota-
damente com Cecília, Adriana e Solange, que já encontramos no
início desta história. Todas três estavam casadas, tendo feito o
que se chamam, no mundo, brilhantes casamentos. Desposaram
homens ricos, mundanos, sem profissão fixa. O marido de Cecí-
lia não tinha outro cuidado senão administrar os haveres, bem
elevados; sua vida começava e acabava nos salões da elegância
parisiense. O marido de Adriana enveredara nos negócios e nas
finanças. O terceiro era um deputado militante, muito em desta-
que no Parlamento. Mantinham correspondência bastante fre-
qüente com Estela, mesmo depois do início irregular do seu
romance; estimavam-na pela sua sinceridade e originalidade, e
tudo teriam desculpado nela. Entretanto, havia muito tempo que
não recebia notícias dela, quando, por uma coincidência assaz
estranha, três cartas lhe chegaram ao mesmo dia. Essas cartas são
bastante curiosas, para que deixemos de reproduzi-las aqui.
Os homens que cada uma delas havia desposado eram tipos
diametralmente opostos aos que elas tinham sonhado quando
solteiras.
XXX
Cecília a Estela (3ª carta)

Paris, sexta-feira.
Minha querida: tenho andado muito aborrecida. Há três meses
que não te escrevo por não ter nada interessante a contar. E tu,
perversa, por que não me escrever? Tuas cartas são tão encanta-
doras! Vives realmente em um mundo à parte. A nossa é a vida
“fim de século” que conheces. Meu marido mantém sempre o
recorde do graúdo. Demos dois grandes banquetes no inverno
passado e quatro grandes recepções, mas não coincidindo no
mesmo dia, porque é muito fatigante. Todavia, seria mais lógico
dar uma brilhante recepção em seguida a um jantar elegante,
para divertir as altas personagens que se é obrigada a receber.
Entretanto, renunciei a isso. Estaria condenada a ficar a pé firme,
ou quase, das cinco horas da tarde às cinco horas da manhã, e
com uma espantosa enxaqueca para muitos dias.
Não se pode mais ter confiança nos domésticos. Não pensam
em nada, senão neles mesmos; são verdadeiras máquinas, ou
ainda menos do que isso. Fui obrigada a mudar duas vezes de
camareira e três vezes de cozinheira. Meu marido pensa agora
comigo, que não se deve mais admitir servidores casados, por-
que, se se está contente com um e descontente com outro, fica-se
bem embaraçado. E de mais a mais, eles se entendem quais
ladrões em feira.
Minha pequenina Georgete sofreu muito com a dentição. É
uma péssima invenção do bom Deus. Sofre-se para ter os dentes,
sofre-se para conservá-los, sofre-se ao perdê-los. Está-se desen-
volvendo muito bem e creio que será muito linda. Saiu ao pai
que, como sabes, tem os mais lindos olhos do mundo. Será
menos corpulenta do que ele. Amo-o sempre muito. É tão bom!
Realmente é o melhor dos homens. Mas a direção da nossa
fortuna, com os tempos que correm, ocupa-o muito, embora nada
tenha a fazer. Todas as quintas-feiras recebe. Só homens. Fuma-
se, conversa-se, passa-se por todos os assuntos. É uma feira.
Recebo com ele. Não é de todo divertido, mas é obrigatório.
Algumas vezes Willy e seus amigos vêm. Então rimos à vontade.
É sempre desopilante com os seus jogos de palavras insensatas.
Esqueci-me de dizer-lhe que Téo caça uma vez por semana,
com o Presidente; recebemos muita caça, que enviamos a todos
os nossos amigos. Vamos freqüentemente ao teatro. Não achas
que no fundo todas as peças se parecem? Sempre o adultério, tal
qual nos romances.
Por mim, nunca seria uma personagem de romance; jamais
enganei meu marido e jamais o enganarei. Aliás, não teria grande
mérito disso, porque, como lhe diria? não encontro nada de
maravilhoso nesse prazer. Enquanto a nossa lua de mel durou,
envidei os meus maiores esforços para descobrir em que pode
consistir essa sensação tão extraordinária da qual tanto se fala, e
com a melhor boa vontade do mundo esperava com toda confi-
ança a inspiração. Não veio. Continuei tão fria quanto antes do
meu casamento. Depois do nascimento de Georgete não pensei
mais nisso, ou pouco mais do que nada. Não compreendo que se
possa enganar o marido. Os homens são tolos e vaidosos. E
impertinentes! O melhor amigo de meu marido não me disse em
um baile, no inverno passado, que era um desperdício, para a
mulher do meu feitio, dar o seio a seu filho! Não demonstrei
compreender. E depois, no fundo, não fiquei sabendo ao certo o
que ele queria dizer, a menos que imaginasse um homem de
quarenta anos, com aquela barba... É burlesco. Dizem que há
mulheres mundanas que se divertem muito. Menos eu. Essas
conversações são de um vácuo!... Mexericos, modas, criadagem,
eis a sua base. Só freqüentamos, é verdade, os colegas do círculo
de meu marido.
As ciências, a História Natural principalmente, que me preo-
cupavam tanto, em outros tempos, agora não me interessam
mais. Quanto o casamento modifica as moças!
Tens notícias de Adriana? Parece-me que leva uma vida bas-
tante divertida. Deve escrever-lhe, segundo me dizia na sua
última carta, que data de um mês.
Sei que prossegues perfeitamente feliz, contrariamente a to-
das as minhas previsões. Aprovo-te, agora, e te abraço com todo
o meu coração.
Cecília
P.S. – Dizem que o Duque de Jumièges foi morto, em uma
caçada, pelo amante de sua própria mulher, e que é, parece, o
Coronel Lomond.
XXXI
Adriana a Estela

Paris, quinta-feira, 13.


Minha cara Estela, aborreço-me mortalmente. Alfredo me en-
ganou. Tu o conheces. Já te falei nele, ou melhor, confessei o
que tinhas adivinhado. Era o companheiro de meu marido, na
finança, e já o distinguira antes do meu casamento. Sabes por
que série de fatalidades me deixei arrastar. Acreditava-o tão
cavalheiresco, tão nobre, tão verdadeiro! E amava-o realmente.
Eu era o seu tipo de mulher. Para ele minha cabeleira – asa de
corvo –, meus olhos negros, sempre com olheiras, meu talhe
esguio, meu nervosismo um pouco fantasista, era o ideal, a
mulher ardente por excelência. Nunca meu marido me disse tais
coisas. Fomos loucamente felizes durante três meses. Heitor não
se apercebeu de nada, pois não há homens mais ocupados do que
os financistas. E sabes o que me aconteceu há oito dias?
Ia à casa de minha modista, rua da Paz, em carruagem fecha-
da. Praça do Teatro Francês, grande ajuntamento. Um cupê, com
as cortinas arriadas, pára bem junto à minha carruagem. Ouço
uma voz, que reconheço logo. Ah! o miserável! Escuto. Não há
dúvida. Meu sangue ferve. Ordeno ao cocheiro que acompanhe o
cupê aonde for. O ajuntamento continua. Ouço a voz de ambos.
Imbecis! Pensavam estar em casa! Nem sei o que me impediu de
rasgar a cortina com a minha sombrinha.
Sigo-os. Vejo meus dois pombinhos descerem no Hotel Con-
tinental. Era uma loura de cabelos esfiapados, horrorosa, cintura
grossa, miúda, um feixe, um monstro. Pele branca, é verdade;
não lhe vi os olhos. O oposto de mim. Acredite-se nos homens!
Bem observara, havia algum tempo, que ele me abandonava
um pouco, porém atribuía o fato aos afazeres. Três dias após esse
encontro marcamos uma entrevista. Não compareci. Na manhã
seguinte procurou-me, ar de surpreso. Acreditarás que ele não se
rendeu à verdade? Se lhe desse crédito, eu é que me enganara.
Era um sósia! Ele nunca estivera no Hotel Continental. Mentiu
com audácia! Que lástima! Podia confessar simplesmente que
não mais me ama!
E mais ainda! Negando com aprumo imperturbável, e afir-
mando que o seu amor por mim jamais variara, teve ainda o
topete de sustentar uma teoria abracadabrante! Pretende que um
homem pode muito bem amar duas mulheres ao mesmo tempo, o
que não era o seu caso, que tem aversão às louras por causa da
sua insipidez; porém, um de seus amigos tivera, o ano passado,
duas amantes, as quais amava apaixonadamente, uma ruiva e
outra morena, e não podia passar sem uma, nem outra. Cada uma
exercia sobre ele uma influência distinta, agindo até, dizia ele,
sobre sentidos diferentes.
Deixei-o expor suas divagações psicológicas, físicas, ópticas
ou olfativas, e começo a crer que, em matéria de senso, ele não
tem o – senso moral.
Não o amo mais. Não o poderia mais abraçar do modo pelo
qual o fazia antes. Não, eu quero um homem só para mim.
Que pode ele encontrar de bom nessa loura deslavada? Deve
ter vícios ocultos. As mulheres são velhacas.
Como vês, não me divirto mais. Por alguns instantes de pra-
zer roubados, a vida só oferece desilusões. Compreendo muito
bem que se dê um mergulho no Sena.
E depois, no último inverno só tive aborrecimentos com a
famulagem. O cocheiro sempre tinha pretextos para não sair: os
cavalos estavam cansados; o pavimento das ruas estava muito
escorregadio; a chuva perigosa, e não sei mais o quê. A maior
parte das vezes era-lhe impossível vir buscar-nos no teatro.
Decidimos não ter mais cocheiro e tomar uma carruagem por
mês. Pelo menos não se têm preocupações e, se o cavalo parte
uma perna, substituem-no. Disseram-me um dia desses que,
mesmo alugando um cocheiro muito caro, nem sempre se pode
contar com ele à noite, depois do jantar.
Sabes que comecei a andar de bicicleta? É muito divertido.
Fomos ontem, quarta-feira, a um concurso de velocidade. Imagi-
na que, após cinqüenta quilômetros de corrida, Rigolô, que
estava em terceiro lugar, ganhou por meio pneu! Que sorte!
Recebo todas as quartas-feiras ao meu “five o’clock”. Con-
fesso-te que esses mexericos não me divertem muito. Só se fala
de modas, cavalos, criadagem: esse o alicerce das conversas. É
verdade que só freqüentamos a finança.
Sempre feliz, tu! Ó grande prêmio da loteria.
Mil beijos.
Adriana
XXXII
Solange a Estela

Lille, quarta-feira, à noite.


Cara galante, devo dizer-te que não acredito mais em política.
Meu querido marido, que tem tanto talento e que ia muito bem
até o presente, acaba de ser derrotado por um farsista, um intri-
gante, um impostor da pior espécie, e isso exatamente no mo-
mento em que esperávamos um ministério. É de cair das nuvens.
Há três meses, por 25 votos discordantes, o Ministério caiu e
meu marido fazia parte da nova combinação. Teria a pasta do
Comércio ou dos Trabalhos Públicos, da Agricultura ou da
Instrução Pública. Todo o mundo conhece e aprecia suas quali-
dades excepcionais e ninguém tem dúvidas de que ele esteja apto
a preencher todos os postos, exceto as Finanças, o Interior, a
Justiça e a Guerra, que exigem homens um pouco mais especiali-
zados. A Marinha também é acessível a todo o mundo. Acabam
de dá-la a um homem de letras, esse jornalista, parente de Victor
Hugo, creio eu, que já ocupou a pasta do Comércio e da Instru-
ção Pública. Um célebre químico se tornou, de uma hora para
outra, diplomata e ministro dos Negócios Estrangeiros. Nada é
mais fácil para os franceses. Na Inglaterra é diferente. Parece que
eles escolhem homens especiais, notadamente para a diplomacia;
e a sua política exterior não se modificou nestes dois últimos
séculos. Na França não há tantos embaraços. É suficiente ser
deputado ou senador para estar apto a exercer qualquer alta
função. Aliás, conforme Júlio me dizia, os ministros têm seus
diretores para fazer tudo. E eis que nas novas eleições nem
sequer foi reeleito deputado! É insensato! Acreditar-se-ia que o
eleitorado é cego e se deixa conduzir pelo primeiro que aparece.
Creio que Júlio andou errado alistando apenas cinqüenta mil. Seu
concorrente, que não lhe chega aos calcanhares, que não tem
valor algum, conseguiu sessenta e seis.
Vamos desforrar-nos no Senado. Mas, enquanto esperamos,
meu marido não é mais nada, ele, tão altivo, tão diligente. Estou
desolada. A culpa é dele. Pela minha parte teria dado tudo, até
minha camisa, pois teríamos certamente um ministério no pró-
ximo ano.
No último momento, entretanto, em manobra de última hora,
tivemos cuidado em guardar um bom-bocado a esses sujos
eleitores: fizemos afixar que seu concorrente esteve comprome-
tido, em outros tempos, nos negócios de Honduras; que recebeu
luvas de duzentos mil francos pelos fornecimentos do Panamá;
que recebeu um cheque de oitenta mil francos na casa de Rei-
nach, e roubou, pelo menos, trezentos mil francos nas minas de
ouro do Transval. Pois bem, avalia a corrupção eleitoral! Esse
ladrão pretende processar meu marido por difamação! Que
topete! Não se prendem mais os gatunos! Breve não se poderá
mais guilhotinar os assassinos.
Vamos fundar um jornal.
Como me aborreço! Vou escrever-te mais vezes. E tu, por que
não me escreves mais? Será que te sentes bem no teu deserto,
sem nunca ver ninguém? Em todo caso, felicito-te por não teres
escolhido para esposo um deputado.
Tua velha amiga, que te ama ternamente.
Solange
XXXIII
Viagem de férias

Rafael e Estela viviam assim, desde um decênio, em ventura


perfeita, incomparavelmente mais feliz, conforme acabamos de
ver por algumas cartas, que, aliás, falavam de males bem conhe-
cidos. Sua felicidade era absoluta. A contemplação da Natureza,
o aspecto sempre variável das paisagens, os devaneios perante o
Infinito, a observação telescópica dos outros mundos, os dese-
nhos de Marte, Júpiter, Saturno, o estudo de curiosos conjuntos
de estrelas, os problemas sem fim da Astronomia, e também, na
Natureza terrestre, interessantes observações sobre ninhos de
pássaros, sobre as datas de renovação das folhas e floração das
árvores, sobre as flores, sobre as estações, e, nas longas noites de
inverno, a leitura de autores favoritos, as arrumações na bibliote-
ca, segundo o gosto ou o capricho do momento, a música, na
qual Estela sabia animar de grande sentimento as obras-primas
dos mestres, haviam ocupado a vida de ambos, já quase inteira-
mente tomada pelo absorvente sentimento de mútuo amor que
encantava perpetuamente seus corações. Viviam na sociedade
dos grandes Espíritos que iluminaram a Humanidade, ou se
divertiam algumas vezes em leituras profanas que os distraíam
das elevadas contemplações do pensamento. A biblioteca se
tornava cada vez mais variada. Poder-se-ia observar freqüentes
vezes, fora do respectivo lugar, todas as mais belas produções do
espírito humano.
Viviam, assim, na atmosfera de seu amor, no meio das flores
de um jardim cuidado, sempre ocupados, sem nunca terem
conhecido o tédio, a coberto de desgostos e decepções, estranhos
a toda ambição e a todo desejo exterior, conhecendo da Humani-
dade o que ela tem de bom e de agradável, habitando mais no
céu do que na Terra. Esse decênio de ventura passara igual há
dez dias.
Depois da primeira viagem a Bordéus, habituaram-se a voar,
cada ano, durante algumas semanas, para longe de seu ninho dos
Pirineus. Visitaram primeiro a Suíça, no intuito de colher uma
impressão comparativa dos Alpes e dos lagos, relativamente às
paisagens pirenaicas, com as quais estavam acostumados; sonha-
ram ternos sonhos junto das margens do lago de Como; foram à
Itália, permanecendo alguns dias em Veneza, onde inolvidáveis
impressões ficaram indeléveis em suas almas encantadas. O
balouçar voluptuoso das gôndolas; as serenatas no grande canal;
o luar sobre as lagoas; os velhos palácios de mármore, surgindo
das águas; a Praça de São Marcos; a basílica oriental, de um
misticismo sensual na sua luz multicolor; o elegante palácio dos
Doges; a ponte dos Suspiros – fazem de Veneza a moradia
expressamente preparada para o prazer dos amantes.
No ano seguinte, visitaram a Espanha, sua vizinha. A seguir,
foram à Escócia, com a pitoresca cidade de Edimburgo, os lagos
e as montanhas de Ossian, que os atraiu. Em outro ano, preferi-
ram não sair da França e percorreram o Auvergue, as gargantas
do Tarn, terra natal de Rafael, e voltaram por Paris, a fim de
passar alguns dias no quarteirão onde Estela vivera a infância.
Os grandes formigueiros humanos, Paris, Londres, Madrid, Lião,
Marselha, havia-lhes-lhes interessado, porém não seduzido.
Retornavam cada vez com um acréscimo de felicidade ao seu
caro paraíso, onde a contemplação do céu lhes reservava cons-
tantemente novas maravilhas.
Nesse décimo ano de sua era de ventura, decidiram fazer uma
viagem ao Tirol, visitar as montanhas do Arlberg e do Brener,
Innsbrück, Hall, Salzburg, Ischl, Gmünden, Hallstadt, os lagos e
as geleiras da pitoresca região.
Innsbrück os deteve por vários dias. Suas ruas bizarras, tão
diferentes das ruas das cidades francesas; sua situação próxima
dos Alpes germânicos; seus cantos tiroleses; seu velho castelo de
Amras, cheio de antigas armaduras e coleções; a igreja dos
Franciscanos, com o seu túmulo de Maximiliano e suas colossais
estátuas de bronze, em vestes e armaduras de tempos já idos,
desde Clóvis, Teodorico, Artur de Inglaterra, até Carlos, o Teme-
rário, Filipe, o Bom, Eleonora de Portugal e Joana, a Louca, mãe
de Carlos V, excitaram ao mais alto grau sua curiosidade. Acha-
ram essa igreja extraordinária e absolutamente fantástica, à noite,
ao pálido clarão das lâmpadas das capelas, e pouco se surpreen-
deriam, quando erravam pelos correres sombrios, se vissem essas
heróicas estátuas descendo dos pedestais para despertar Maximi-
liano em seu túmulo.
Essas viagens eram para ambos um assunto de deliciosa vari-
ação em seu eterno tema de amor. Iam pelas ruas, campos ou
bosques, montanhas ou praias, sem se preocuparem com o resto
da Humanidade, tal se estivessem sós no mundo e em sua própria
casa. Vendo passar, acreditar-se-ia em uma viagem de núpcias,
sem suspeitar que o noivado durasse havia dois lustros. As horas
fugiam para eles rápidas e feéricas. Nunca estavam prontos, a
qualquer hora da manhã, para o café ou para o trem; faltavam às
caravanas excursionistas; se passeavam um pouco, esqueciam
igualmente a hora do jantar – amorosos, apaixonados, frementes,
tão encantados de viver e tão jovens quanto no primeiro dia.
Quando suas mãos não se tocavam, seus olhos cantavam. Tran-
seuntes voltavam-se à sua passagem, acompanhavam-nos com o
olhar, invejavam-nos. Eles não viam ninguém.
Visitaram o Tirol, de igual modo que a Itália, a Espanha e a
Escócia, felizes de juntos correrem o mundo; de respirar unidos
um ar que parecia sempre feito só para eles; habitar, em comum,
novos aposentos imprevistos; contemplar, num simultâneo olhar,
novos sítios; viver fundidos em novas molduras maravilhosa-
mente escolhidas para apaixonados, cujos olhos, aliás, embele-
zam e poetizam tudo. Essa vida a dois era tudo para eles. As
cidades e as paisagens ficavam em segundo plano. De Ragatz a
Innsbrück, a via-férrea, vinda de Zurich, desce primeiro o vale
do Reno superior, dirigindo-se para o norte e lago de Constança,
vira depois a leste e sobe pelo vale de III aos declives de Arl-
berg, que ascende lentamente até ao túnel, a mil e trezentos
metros de altura. De um lado e de outro do caminho, existe um
extenso vale, muito largo, com belos prados e verdes pastagens
na confluência do III e do Reno, e que se vai estreitando gradu-
almente até ao cimo do Arlberg. À medida que se sobe, espera-se
a desaparição das aldeias e habitações humanas; porém, ao
contrário, elas se sucedem e estendem ao longo dos riachos e
fica-se atônito de ver, até nos planos mais elevados, a exemplo
de Santo Antônio e Landech, em regiões onde o inverno reina
três quartas partes do ano, atraente povoações, verdes pastagens,
igrejas de torres elevadas, graciosos chalés encravados nas
encostas das montanhas. À descida do Arlberg, até Innsbrück,
segue-se ainda um vale que se prolonga para além durante mui-
tas horas. O grande vagão da cauda dos trens, que diariamente
atravessam sem cessar essa pitoresca região, permite admirar à
vontade a suntuosa paisagem, as montanhas longínquas, as
cidades que passam os prados, os capoeirões e todas as curiosi-
dades do caminho. O vale do Inn gradativamente se elastece e,
depois, deixando-o, se chega a outros vales no meio de abruptas
montanhas, e se contorna em seguida a torrente impetuosa do
Salzbach, que rui em múltiplas cascatas, e corre com impetuosi-
dade através das rochas desmoronadas. Quedas d'água, riachos e
florestas passam. Um velho castelo, pendurado no cimo de
imensa rocha a pique, parece mirar de cima as pequenas coisas
que passam a seus pés. O vale se expande, abre-se a planície,
surge Salzburg.
Nossos viajantes também aí se demoraram. Poucas cidades
podem comparar-se a ela, pela beleza da situação. O curso do rio
Salzbach, que a atravessa, as duas montanhas do Monchsberg e
Capuzinerberg que a flanqueiam de um lado e de outro, sua alta
e formidável cidadela, as fachadas esbranquiçadas ao Sol, os
jardins floridos, os terraços, as cúpulas de igrejas e conventos, as
aléias de árvores seculares, os caminhos que a prolongam para
longe, a graciosa grandeza das paisagens debruçadas a alguma
distância por soberbas montanhas, e todos os arredores magnífi-
cos e pitorescos haviam-nos transportado a uma região de contos
de fadas. A alimentação era excelente, e os vinhos de ótima
qualidade. Teriam esquecido o céu se não o tivessem levado
consigo. Pareceu-lhes, após alguns dias de estada, que tinham
tendências Sibaritas.
Ficaram sobremodo encantados com uma excursão ao lago do
Rei, ao “Koenigs-See”, na Baviera, quase às portas de Salzburg,
o mais lindo lago da Alemanha que rivaliza, pelo tamanho, com
os da Suíça e da Itália, apresentando um caráter muito mais
selvagem, pois as montanhas que o rodeiam são verdadeiras
muralhas infranqueáveis. O imenso lago, de um verde escuro, jaz
ao fundo dessa enorme bacia de rochas que o aprisionam e lhe
dão um invariável frescor, mantido também pela profundidade
das águas. Um dos declives é menos vertical e coberto de bos-
ques até à superfície do lago. Verdes galhos caem à guisa de
cabeleiras que se banham em ondas. Ao fundo, a barca chega a
um promontório dedicado a São Bartolomeu, onde se encontra
antigo castelo de caça e uma capela, e, atravessando-se pequena
língua de terra, chega-se a um segundo lago rodeado por um
circuito grandioso, que faz lembrar o circuito de Gavarnie com a
sua cascata.
O percurso de Salzburg ao lago foi tão encantador quanto o
próprio lago. É um dos mais pitorescos que se podem ver, embo-
ra na planície. A aldeia de Berchtesgaden, com as suas casas
italianas, seus pórticos, vestimentas de cores fortes, suas lojas de
pequenos objetos de madeira e marfim, projeta uma flor lumino-
sa em meio ao verdor dos prados e dos bosques. Detiveram-se na
primeira aldeia que atravessaram na Baviera, por motivo de uma
velha igreja. Desceram um instante da carruagem, rodearam a
igreja, e, vendo na praça um pequeno monumento coberto de
inscrições, aproximaram-se. Leram que fora erigido em memória
aos soldados do lugar, mortos durante a guerra de 1870. O Sol
era radioso no céu azul e crianças brincavam à sombra de um
grande portão. Pobre aldeia! Alguns metros de diferença no
traçado da fronteira e pertenceria à Áustria em vez de à Baviera,
e aqueles seus filhos não teriam ido derramar o sangue por uma
causa desconhecida em terra estranha. Alguns átomos de bom-
senso e honestidade na cabeça de Bismarck teriam deixado a
Europa em paz, e não se teria feito a civilização recuar de um
século! Rafael e Estela quase se sentiram impelidos a ajoelhar
diante desse pequeno monumento de aldeia, testemunhando o
seu pesar pelas vítimas da ambição de alguns malfeitores, e
também para rogar a Deus que impedisse, doravante, as guerras
em seu primeiro gérmen pelo grão de areia de – Cromwell.
Voltando ao hotel, encontraram, em cima de certa mesa, sem
dúvida esquecido por algum inglês, uma obra do sábio Sr. Hum-
phry Davy, cujo título lhes atraiu a atenção: “Os últimos dias de
um filósofo”, e, folheando-o, seus olhos se detiveram sobre a
admirável descrição dos Alpes da Ilíria, que Estela começou a ler
em voz alta para Rafael.
– Como é curioso! Acrescentou, fizemos a mesma viagem
que esse sábio realizou há três quartos de século. Que simpatia!
Não há nada a acrescentar, pensamos exatamente iguais a ele.
– Se leres mais algumas páginas, verás que ele esteve para
morrer lá. Espero que não o imitemos até ao fim da viagem.
– Por quê? Só lhe faltou morrer, dizes? Ficarias realmente
contristado de morrer agora? Sabes que sempre tive a opinião
dos antigos, que não desejavam envelhecer, e asseguravam que
“os deuses chamam a si os seus eleitos”.
– Estela! Amo-te!
– E não nos amaremos para sempre? Em Marte ou em Vega?
– Um “toma!” vale mais do que dois “te darei!”, diz o pro-
vérbio. E eu sei que te tenho.
– Oh, sim! Ter-me-ás para sempre, assim o quero!
– Não gostarias de ser homem, em uma existência futura, en-
quanto eu seria tua mulher; seres eu, por exemplo, enquanto que
eu seria tu?
– Não. Estou muito satisfeita sendo tua mulherzinha. Isso me
é suficiente. E tu?
– Eu também.
– Então, não tenhamos pressa de mudar de corpos. Sabes, po-
rém, como disseste um dia, que breve chegaremos ao nosso
meridiano. Será agradável descer?
– Tu não tens seis lustros, se bem que quase. Tenho oito. É a
juventude. E depois, com o nosso amor, envelheceremos algum
dia?
– Que astro pode permanecer no meridiano, sem descer? On-
de está o Josué que o deterá?
– Josué és tu.
– Sinto que te amarei sempre, e cada vez mais. Porém tu, se
não me amasses mais, se me amasses menos! Dizem que os
homens não sabem amar igual à mulher. Um dia terei rugas,
cabelos brancos. A juventude não pode ser eterna. Pois bem, se
tu me amasses somente um pouco menos, sofreria tanto que
preferiria morrer.
– Estela! Por que essas idéias estranhas?
– Porque sou muito feliz. Meu Rafael, eu te amo tanto!
E atirou-se ao seu pescoço. Seus olhos estavam cheios de lá-
grimas.
– Sim, amo-te, prosseguiu, fui e sou muito feliz. E eu sei,
sim, eu sei que essa felicidade acabará. Há um segredo que
nunca te confessei.
– Um segredo?
– Sim, pois sempre hesitei, renunciei falar-te. Oh! No entanto
não é grave. Não te atormentes. É até muito simples. É o seguin-
te:
Estava ainda no Internato. Tinha dezesseis anos de idade. Em
um dia de saída, minha mãe, já atingida pelo mal que deveria
abatê-la, foi com minha tia consultar uma espécie de sonâmbula
de quem se falava muito então. Pedi, por minha vez, licença para
interrogá-la. Pois bem! Predisse minha vida tal como se passou
até este momento. Sim. Grande amor. Grande mágoa. Mudança
de existência. Vida intelectual. Felicidade perfeita. E...
– E?
– E morte durante uma viagem.
– Acreditas isso?
– Sim, visto que tudo quanto me anunciou aconteceu ao pé da
letra. E tu também, meu querido, acreditas na visão do futuro,
em pressentimentos, em sonhos premonitórios. Muitas vezes me
disseste que quantos conhecessem as causas das nossas determi-
nações poderiam ver o porvir tão facilmente quanto vemos o
passado.
– Certamente. Não há efeito sem causa; porém ela não podia
anunciar a época da tua morte. Certamente tu te enganas.
– Não. Ela me anunciou que a minha felicidade terminaria
por uma grande viagem. Nunca fizemos uma viagem tão longa
quanto esta.
– Oh! E Edimburgo? Se contasses os quilômetros! E, depois,
não tencionamos ir ao próximo inverno ao Egito?
– É verdade, disse ela. Estava louca.
– Se tu me houvesses confiado esse famoso segredo, no ano
passado, na Escócia, já se acreditarias a pique da véspera da
morte.
– Nem tinha pensado. Mas, por que me lembrei disso hoje?
– A culpa é de Sir Humphry Davy.
– Sim. Esqueçamos esses receios imaginários.
No dia seguinte, foram ao lago Traun, em Gmunden.
O curso do rio, tão rápido na saída do lago, o próprio lago,
ridente e gracioso na grande bacia de Gmunden, severo e quase
triste na pequena bacia de Ebensee; a enorme massa calcária do
Traunstein; o caminho, subindo a Traun, do lago a Ischl e o sítio
esplêndido de Ischl na sua moldura de colinas, montanhas e
geleiras, trouxeram ainda à viagem novas impressões, encanta-
doras e variadas. Dali acompanhou o Traun, pelo lago de Halls-
tadt, até Aussee. A via férrea serpenteia através de uma série de
sombrios barrancos que parecem encerrá-la a cada instante em
um antro, e à medida que sobe nesse estreito vale cavado pela
torrente, o viajante acredita afastar-se gradativamente do mundo
dos vivos para extraviar-se em regiões inóspitas que a espécie
humana ainda não habitou. O desfiladeiro selvagem, no fundo do
qual borbulha o Traun, termina por desembocar em um tríplice
vale superior, no meio do qual adormece a graciosa aldeia de
Aussee. Torna-se a encontrar ali os costumes pitorescos das
filhas de Ischl, mas persiste a impressão do prolongamento do
fim do mundo.
Ali três lagos atraíram ainda os nossos viajantes: o Grundlsee,
que se atinge após a travessia de um bosque, e que se mostra
enquadrado em montanhas semeadas de chalés e bordejado de
cabanas de pesca e de banhistas; mais adiante, subindo sempre o
Traun, o lago de Toplitz, agreste, sombrio, solitário e silencioso;
e além, mais perdido ainda na montanha, o pequeno Kammersee,
onde o rio tem a nascente.
Não se cansavam de admirar, remirar, divagar particularmen-
te na travessia do melancólico Toplitz, que parece tão longe de
tudo, tão estranho a toda animação humana, que se acreditaria
estar na Lua e não na Terra.
Na montanha plena de bosques, onde terminam os três lagos,
estava-se a uma altitude de 600 metros. Atravessando o Arlberg
subiram, até 1300. Em Pilato, permaneceram dois dias, a mais de
2000 metros. O ar leve das montanhas embriaga pela sua pureza,
de igual modo que a visão das alturas fascina pela majestade.
Muitas vezes, especialmente desde alguns dias, entre os cimos
dos montes cerrados de bosques, perceberam a alva geleira do
Dachstein, que, nos Alpes do Salzkammergut, eleva sua crista de
neve a 2900 metros de altura. Tinham a mais viva ambição de ir
até lá, e escutavam com entusiasmo as narrativas dos turistas que
desciam. Sua intenção era ir a Hallstadt. Hallstadt é pequena
aldeia incrustada no flanco de um rochedo, isolado ao fundo do
lago, um pouco semelhante a Veneza em suas lagoas, silencioso
e solitário, onde não passa estrada de ferro, e aonde só se chega
da estação utilizando barcos. Uma enorme queda d'água se
precipita bem no meio da aldeia, por detrás das mui modestas
moradias, não longe da igreja e do cemitério, ou melhor, das
duas igrejas e dos dois cemitérios, porque esta pobre povoação
de mil e quatrocentas almas está dividida entre duas religiões
rivais, o Catolicismo e o Protestantismo. Hallstadt é tão singu-
larmente situada ao fundo do lago e ao pé setentrional das mon-
tanhas, que não vê o Sol, de 17 de novembro a 2 de fevereiro. Os
arqueólogos conhecem o antigo cemitério céltico ali descoberto.
Esse lugar é habitado desde muitos séculos, principalmente por
causa da exploração das minas de sal.
Ali também naquela solidão alpestre, em face ao lago e às
montanhas, desejariam eles permanecer por muito tempo. Mas o
tempo estava esplêndido e o ápice nervoso do Dachstein conti-
nuava a atraí-los.
Além do mais, uma grave e apaixonante questão astronômica
cativava desde algum tempo o pensamento do sábio e era tam-
bém sonho de sua companheira.
Calculara que as estrelas cadentes de 10 de agosto deviam ser
extremamente numerosas naquele ano, e que um cometa, origi-
nariamente associado ao terceiro cometa de 1862, devia de novo
encontrar a Terra e espargir uma verdadeira chuva de estrelas nas
camadas superiores da atmosfera. Era um espetáculo celeste que
vira somente uma vez, e em más condições, quando, a 27 de
novembro de 1872, estilhaços do cometa de Biela encontraram
nosso globo e sulcaram o céu de tal quantidade de meteoros, que
se podiam comparar a uma queda de flocos de neve, sendo que
certos observadores avaliaram seu número em mais de sessenta
mil. Também Estela desejava ardentemente assistir a esse espe-
táculo. Quanto mais alto estivessem nas montanhas, melhor seria
o posto de observação. Ao projeto de ascensão ao Dachstein
associou-se logo o da observação das estrelas errantes. Mas,
seria possível passar a noite na geleira?
A questão foi examinada com os guias, e, após diversas com-
binações discutidas e rejeitadas, resolveram levar quatro deles,
carregar cobertores, víveres e uma tenda, e instalarem-se no alto
da montanha, a menos que o vento e a neve a tal se opusessem
em absoluto.
Depois de alguns dias de preparativos, decidiu-se a empreen-
der a ascensão e deixaram Hallstadt antes do alvorecer, acompa-
nhados dos condutores. Em sete horas, pelo Echarn-Thal, o Alte-
Herd, o Propfevand, o Thiergarten e o Ochsenwies-Hõhe, atingi-
ram o mirante de Simony-Hut, a dois mil metros de altitude. A
vista se estendia maravilhosa, sobre todo esse maciço dos Alpes
orientais. A ascensão fora fatigante, e decidiram passar ali a
tarde e a noite, tanto mais que um vento violento começara a
soprar. A barraca em que esperavam dormir foi sacudida pela
tempestade, que uivou durante toda a noite, e não lhes permitiu
um instante de repouso. Podia julgar no alto de um pico deserto
ou em um navio sem refúgio, abandonado em pleno oceano.
Levantaram-se pela manhã, antes do Sol, no intento de voltar
sem prosseguir a ascensão. No entanto, porque o vento amainas-
se de um momento para outro e um Sol radioso alegrasse a
atmosfera amornada, continuaram a marcha com os guias, atra-
vessaram a geleira de Hallstadt e chegaram em duas horas junto
do Dachsteinwand. Então, com o auxílio de cavilhas de ferro
plantadas na rocha e da corda metálica, atingiram o alto em hora
e meia de marcha. O panorama desvendou-se esplêndido aos
seus olhos maravilhados; a vista se estendia da Schneeberg à
floresta da Boêmia, sobre os picos, as montanhas e as colinas. O
ar estava muito puro, seco e frio. Permaneceram longo tempo em
contemplação, na embriaguez das alturas, mergulhados na mais
viva admiração.
O tempo estava realmente esplêndido. O furacão da véspera
fugira para longe, e tudo anunciava uma bela tarde e uma noite
bem propícia às observações. Os guias cuidaram de instalar uma
tenda sob a qual os dois turistas pudessem dormir. Uma ligeira
anfractuosidade servia muito bem para tal instalação. Em algu-
mas horas a tenda foi solidamente amarrada, numerosas peles de
cabra e de antílopes foram superpostas e forradas, e fogos foram
acessos.
O Sol adormeceu em um leito de púrpura e ouro. Seus últi-
mos raios envolveram o imenso panorama em uma iluminação
feérica que, suave e insensivelmente, se extinguiu, enviando um
adeus da luz à Natureza. A sombra da Terra subiu lentamente no
horizonte oriental, trazendo o crepúsculo, e as primeiras estrelas
se acenderam. Rafael e Estela estavam sós no alto da montanha;
os guias se haviam retirado, antes do pôr do Sol, para um velho
abrigo cavado na rocha; um pouco mais abaixo, do lado do
levante; comeram por sua vez, estafados que estavam de fadiga,
e deviam, na manhã seguinte, antes do nascer do Sol, despertar
os turistas, desmontar a tenda e preparar o regresso.
Naquela solidão das alturas e profundo silêncio da Natureza,
os dois contempladores, emocionados pela grandeza e magnifi-
cência do poente, admirando as maravilhosas nuanças da Terra e
do céu que sucediam à desaparição do astro-rei, viram-se envol-
vidos, em breve, nas trevas da noite, atenuadas por um brando
luar, sem se aperceberem da fuga das horas. E apenas tiveram
tempo de pensar nas estrelas errantes e no cometa, quando sua
atenção foi atraída na direção das constelações de Andrômeda,
Cassíope e Perseu por foguetes celestes, prelúdios de fogo de
artifício firmamental.
Fulgentes estrelas errantes começaram a atravessar a atmosfe-
ra. O astrônomo reconheceu logo que não se enganara em seus
cálculos, e que o ponto de irradiação correspondia exatamente às
coordenadas da órbita do cometa. De resto, mal anoitecera, um
foco de vaga luminosidade foi percebido nas profundidades do
céu, precisamente no ponto calculado. O astro cometário, do qual
as estrelas errantes eram as desagregações, vinha então em
direção à Terra, qual o estado-maior de um exército no meio das
suas falanges.
A chuva de estrelas começara, e gradativamente se tornavam
tão numerosas que fora impossível contá-las. Apesar do luar, que
eclipsava um grande número delas, a comparação com flocos de
neve não era exagerada. Unicamente se compreendia que esta-
vam muito longe. Entretanto, algumas se mostravam tão brilhan-
tes que pareciam chegar até à montanha, a ponto de os turistas se
perguntarem se uma ou outra não iria cair à Terra.
Deslumbrantes bólidos vinham da mesma região, cresciam,
tornavam-se vermelhos e verdes, e estouravam. O núcleo come-
tário aumentara e invadira uma parte da constelação de Cassíope.
Absorvidos, um e outro, na observação celeste, os dois aman-
tes separaram-se após alguns instantes, procurando, por assim
dizer, abranger todo o céu ao mesmo tempo. Não se olhavam um
ao outro, lançavam mil exclamações, não afastavam os olhos das
estrelas. Seus cérebros estavam superexcitados, sem que de tal se
apercebessem, seja pelo espetáculo insólito e extraordinário que
se ia desenvolvendo no espaço, seja talvez também por causa da
intensa eletrização da atmosfera que fazia passar em suas artérias
uma nova corrente de vida. De repente, voltando-se para o lado
de Estela a fim de acompanhar a queda de uma estrela que, a
guisa de foguete, parecia cair lentamente até à Terra, Rafael
gritou:
– Estela! Que tens? Estás em labaredas!
E precipitou-se sobre ela.
– Tu também. Exclamou Estela.
Com efeito, penachos luminosos levantavam-se de suas cabe-
ças, dos ombros, de suas mãos erguidas.
Precipitando-se, instintivamente, sobre ela a fim de apagar as
chamas, conseguiu extingui-las, com efeito; porém os penachos
luminosos passaram todos para a sua própria cabeça, que ficava
mais alto do que a da companheira. Seus cabelos eriçaram,
prolongando-se em filetes inflamados, Estela teve medo e pou-
sou vivamente suas mãos sobre a cabeça de Rafael. Essas mãos,
por sua vez, se cobriram de chamas, à feição da labareda do
ponche, ardendo sobre a cabeça do seu bem-amado.
Contudo, não sentiram calor algum, mas frêmitos lhes atra-
vessaram as carnes. Rafael tomou Estela em seus braços e a
beijou sobre a boca. Então, o contacto de seus corpos lhes deu
uma sensação nova, jamais experimentada nos auges do seu
amor. Cada um deles foi invadido por um imenso desejo de
substituição. Estela sentiu que, mais do que nunca, lhe pertencia
totalmente; só existia, na felicidade de pertencer a ele; só vivia
pela fusão nele. Rafael, que a conservava em seus braços num
beijo sem fim, experimentou a mesma sensação de que ela o
absorvia e sua personalidade ia desaparecer para fundir-se com
ela, a adorada, em um ser único.
Clarões sulcavam a atmosfera. Todo o céu parecia atravessa-
do por palpitações magnéticas da aurora boreal. A neve estava
rósea e parecia aquecida. Naquela noite de 10 de agosto produzi-
ra-se uma inversão de temperatura, qual, às vezes, acontece nas
montanhas. A frialdade baixara à planície e baforadas de calor
passavam sobre eles, aumentando ainda a tensão elétrica de seus
nervos.
Ao penetrar na atmosfera, o cometa determinara uma eletri-
zação prodigiosa daquele cimo elevado dos Alpes, de alturas
aéreas, e dos dois seres sensitivos que pairavam naqueles cimos.
As chamas continuavam a voltear sobre suas cabeças, seus
ombros, seus braços e suas mãos.
Foram para a barraca e fecharam-na.
Deitando-se sobre as peles forradas, viram brotar milhares de
faíscas. A Natureza inteira estava saturada de eletricidade.
A carne de Estela estava impregnada; clarões fosforescentes
percorriam-na; sua cabeleira deslumbrava. Todo o seu corpo,
sobre o qual descobrira, ela mesma, em outros tempos, curiosas
manifestações de eletricidade humana, estava em um paroxismo
indescritível.
– Meu amor! meu amor! meu amor! exclamou, envolvendo
com os braços o pescoço de seu bem-amado e atraindo com
violência os lábios de encontro aos seus, nunca te amei tanto
quanto nesta noite. Dá-me a tua vida, pois eu te dou toda a minha
existência!
O céu estava abrasado e a sua rutilante claridade aparecia
avermelhada através dos interstícios da tenda.
XXIV
Espíritos celestes – poeira terrestre

O Dr. Bernardo acabava de almoçar tranqüilamente no Cassi-


no de Luchon, quando, lendo o jornal, as seguintes linhas feriram
sua atenção com a intensidade de letras de fogo:
“ÁUSTRIA – A noite extraordinária de 10 de agosto, de
que já falamos ontem, e que foi assinalada em todo o Tirol
por fenômenos elétricos tão estranhos, relâmpagos de calor
sem trovoada, por uma verdadeira chuva de estrelas e pela
aparição de deslumbrante luz nas elevadas camadas do céu,
por volta de duas horas da madrugada, também foi infeliz-
mente marcada por um triste acidente.
Dois franceses, um sábio muito conhecido, Rafael Dargi-
lan, e sua jovem esposa, que tinham deixado Hallstadt na an-
tevéspera, para uma ascensão ao Dachstein, foram encontra-
dos mortos no vértice da montanha. Quiseram passar a noite
sobre a geleira para assistir ao despontar do Sol. Os guias,
que dormiram a uma centena de passos abaixo, encontraram-
nos inanimados sob a tenda. Há um labirinto de conjeturas
sobre a causa da morte.”
A essa leitura, o médico saltou da poltrona, atravessou feito
louco o salão de leitura, desceu a escadaria, chegou ao parque,
entrou por uma aléia, depois por outra, voltou sobre seus passos,
errou pela estrada, voltou para casa, foi à estação e tomou o trem
de Tolosa. Uma vez em caminho, traçou o seu itinerário: Nimes,
Lião, Genebra, Zurich, Unnsbruck, Salzburg, Ischl. Calculara
bem, e dois dias seguintes à partida chegara a Hallstadt.
Fez que lhe contassem todas as minúcias do acontecimento.
O chefe dos guias, tendo chamado, sem receber resposta, pene-
trou na tenda e, a princípio, os julgou profundamente adormeci-
dos. Aproximando-se, porém, notou que seus olhos estavam
abertos. Repousavam um ao lado da outro; o braço esquerdo de
Rafael estendido sob a cintura de Estela, e sua mão direita segu-
rando a esquerda da bem-amada. Um pedaço de tela do cânhamo
se desprendera da tenda e estava caído sobre eles.
Foram conduzidos a Hallstadt, mas infrutiferamente se tentou
desunir as mãos; e, sem separá-los um do outro, colocaram-nos
sobre o leito onde, três dias antes, tinham dormido. Piedosa
mulher colocara à cabeceira duas velas em pequena mesa, cober-
ta com toalha de altar, trazendo galhos de arbusto bentos. O
médico instalou-se perto deles, e quis ficar a sós para velá-los;
agradeceu aos hóspedes do hotel os cuidados póstumos que
piedosamente dispensaram aos dois infortunados.
Sentou-se aos seus pés e os contemplou com profunda afei-
ção. Se não fosse a macilenta palidez, poder-se-ia acreditar que
dormiam. Uma tranqüila expressão de ventura parecia animar
suas bocas levemente entreabertas.
Estela estava linda.
Longamente os contemplou assim, unidos em um mesmo
abraço, que sobreviveu à morte.
Meditava na rara felicidade do homem amado por alma e cor-
po virgens, por um ser enamorado tão somente de um mesmo e
perpétuo amor; na felicidade daquela mulher por ter sido adorada
exclusivamente; e achava que tal existência favorecera, com um
raro privilégio, esse par encantador que havia adormecido em
plena glória de amor, num ininterrupto noivado, e que parecia
sorrir ainda ao seu feliz destino. Não foi possível fechar-lhes os
olhos, que permaneceram obstinadamente fixados no céu.
Depois, perante esses restos imóveis, lembrou-se de que pre-
cisava agir na missão de executor testamentário. Recordou-se de
ter ouvido Estela dizer, por diversas vezes, que havia tomado
disposições relativas à sua última hora e fizera um testamento,
do qual não se separava. Uma grande mala de viagem estava ali
entre as duas janelas do aposento. O médico procurou, encontrou
um maço de chaves, e abriu a dita mala.
Continha roupas, fotografias do Tirol, alguns livros publica-
dos recentemente. A idéia de que um testamento pudesse estar
ali perdia a seus olhos a probabilidade inicial; mas, tendo come-
çado as pesquisas, continuou, sem grande esperança.
De repente sua mão tocou em objeto bem no fundo da mala.
Retirou-o. Era um cofrezinho de pau rosa. Pareceu-lhe haver
algo escrito sobre o cofre. Aproximou-se das velas acesas à
cabeceira do leito mortuário e leu, traçado em azul pela mão de
Estela, estas duas palavras: “Minha fortuna”. Esse pequeno cofre
não se separava dela. Conservava-o na gaveta da sua mesa de
trabalho, sobre a qual escrevia, e habituara-se a levá-lo nas
viagens, à lembrança dos avaros carregando o seu tesouro.
Intrigadíssimo com essas duas palavras, o médico hesitou so-
bre se devia abrir o cofre ou ignorar-lhe o conteúdo. Lembrou-se
da antiga fortuna de Estela e pensou nos dois milhões que, um
decênio antes, representava seu dote. Então, escrupulosamente, o
recolocou onde estava. Mas, seu espírito achava-se agitado por
mil pensamentos contraditórios. Era, no entanto, urgente uma
decisão. Devia simplesmente levar esses pobres corpos a Luchon
e conduzi-los ao cemitério? Uma voz parecia dizer-lhe que o
amigo devia fazer alguma coisa mais. Contemplou os cadáveres,
imaginando que talvez algum sinal pudesse manifestar-se nos
semblantes adormecidos. Dargilan tantas vezes mantivera comu-
nicações com o Além. Porém, nada. Impassibilidade absoluta. Os
dois pálidos rostos permaneciam imóveis, de olhos abertos para a
Eternidade.
De súbito ouviu um leve ruído. Voltou à cabeça e notou que o
feixe de chaves, deixado na fechadura da mala, oscilava e tilinta-
va. Seu olhar se deteve sobre um ponto brilhante: era uma pe-
quenina chave de ouro. Apanhou o molho. A chave abriu o
cofrezinho.
Não havia ali título algum de renda, porém modestas e queri-
das lembranças: uma rosa e um amor-perfeito entrelaçados, que
Rafael lhe enviara após a partida de Luchon, no primeiro ano de
seu encontro; uma carteirinha em cetim alaranjado, sobre o qual
Estela bordara suas iniciais com cabelos de Rafael – prendendo
fragmentos de unhas, algumas relíquias preciosas, uma laranja
dessecada, um pequeno ramalhete de centáureas, três retratos de
Rafael, um lencinho e outros pequenos nadas deliciosos para o
seu coração. No fundo do cofre havia um envelope fechado sobre
o qual estava escrito: “Este é o meu testamento”.
Rasgou o envelope e leu:
“Amo Rafael.
Só a ele amo no mundo.
Cremos na indestrutibilidade da força psíquica que nos
anima; não acreditamos na ressurreição dos corpos: o cor-
po é pó e volta ao pó.
Espero reencontrar Rafael na existência que é a continua-
ção desta depois da morte, e prosseguir juntos a nossa vida
intelectual, feliz e amante; queria também que nossos cor-
pos não fossem separados.
Com o meu bem-amado, na perspectiva da decomposição
desses pobres corpos na horrível noite do túmulo, prefiro a
incineração. Desejo que nossas cinzas sejam intimamente
misturadas e reunidas na mesma urna.
Se eu morrer antes dele – o que peço a Deus todos os dias
– rogo a Rafael que faça incinerar meu corpo, conservar
minhas cinzas e ordene, por testamento, seja seu corpo tam-
bém incinerado, conforme intenção a mim manifesta, e reu-
nir suas cinzas às minhas, em íntima fusão, na mesma urna.
Se ele morrer antes de mim, encontrar-me-ão morta al-
gumas horas depois. Sobreviver-lhe estaria acima das mi-
nhas forças. Seria então fácil, nesse caso, queimar-nos jun-
tos e satisfazer minha vontade.
Escrito de meu próprio punho, em nosso paraíso terrestre,
aos 2 de Novembro de 189...
Estela Dargilan.”
Naquele mesmo cofre, o doutor encontrou pequeno frasco
cheio de um licor verde transparente, no qual reconheceu um dos
venenos mais terríveis da farmacopéia.
“Pobre filha! – disse – quanto o amava! Que ternura e que
sincera simplicidade! Nós, os homens, não sabemos amar assim.
E ela teria feito conforme escreveu! Enfim, morreram unidos.
Ela não o previu.”
Desde então o médico só se preocupou em executar as vonta-
des tão nitidamente expressas por esse testamento. Passou a noite
em claro, velando os dois corpos. Naquele triste silêncio apenas
ouvia o embate das águas do lago ao pé da varanda. Relâmpagos
longínquos lançavam, de vez em quando, um clarão súbito
através das janelas, e surdos trovões já se faziam ouvir. Uma
tempestade se aproximava, uma dessas terríveis tempestades das
montanhas, cujas trovoadas rolavam com estrondo e repercutiam
de eco em eco, sem fim, e que rapidamente transformam todos os
riachos em torrentes impetuosas. Os clarões passaram a cintilan-
tes. De repente, iluminaram com uma claridade violáceo-esbatida
os dois semblantes pálidos, que pareciam, assim, espelhar a luz
de um outro mundo. Um raio desgarrou-se das nuvens e se
precipitou em faíscas fulgurantes, seguidas imediatamente por
explosões formidáveis. Chuva diluviana caiu sobre o lago.
Parecia que o mundo material opunha uma última vez suas
forças cegas e violentas ao mundo intelectual, simbolizado na
vida e no pensamento dos dois seres que ali dormiam.
Na manhã seguinte, já serenado o céu, o Sol brilhou em todo
o esplendor por cima das montanhas. O médico se dispunha a
tomar providências para amortalhar os cadáveres, quando bate-
ram à porta.
Era o hoteleiro, acompanhado de dois homens, vestidos de
preto, que haviam chegado ao mesmo tempo. Não queriam tomar
a dianteira um do outro, e pareciam evitar-se mutuamente.
– Ambos os senhores podem entrar, disse, tanto mais que na-
da terei a pedir-lhes. Cada um dos senhores é o ministro de uma
religião respeitável; mas, meus finados amigos não eram católi-
cos nem protestantes. Não lhes tributaremos cerimônia religiosa
alguma.
O padre católico retirou-se logo, sem responder uma só pala-
vra. O pastor ficou.
– Compreendemos, disse, que não se seja católico. Entretan-
to, pode-se ser cristão. Jesus é a mais nobre figura da Humanida-
de. Nós não admitimos o culto das imagens, as cerimônias
infantis, as superstições romanas. Mas não se pode orar a Deus?
– Aqui não é lugar de entabular discussões, replicou o doutor.
As religiões que vieram representar, o padre e o senhor, se
aproximam por um sentimento comum, por uma terceira doutri-
na, mais vasta, pela religião natural, pelo espiritualismo puro,
que não reconhece culto algum. Foi a religião dos meus amigos,
e devo respeitá-la. Certamente tereis por esses infortunados o
mesmo respeito que eu, senhor pastor.
Este compreendeu inteiramente o pensamento do médico, e
retirou-se por sua vez.
Os corpos dos dois amantes, sempre inseparáveis, foram en-
volvidos em uma só mortalha e colocados em um mesmo ataúde.
Foi preparada uma barca para transportá-los à outra margem do
lago, à estação da estrada de ferro, de onde o doutor resolvera
conduzi-los a Zurich e onde poderiam ser cremados. Era o
mesmo caminho que eles haviam tomado, tão alegremente, para
vir, quinze dias antes. O trem em correspondência com o Expres-
so Oriental devia passar à meia-noite. Próximo de onze horas, a
barca funerária se pôs em marcha. Dois remadores ocupavam
cada lado, um bateleiro sentou-se ao leme, e o médico se mante-
ve em pé, a fronte descoberta, à cabeceira do ataúde, na parte
posterior da embarcação; uma criança, na frente, empunhava
uma lanterna.
Um simples pano preto recobria o esquife. O doutor o enci-
mara com um escudo, trazendo, em fundo negro, duas grandes
estrelas, talhadas em lâminas de um pedaço de sal da mina
próxima, e que, pela alvura, parecia mármore de Paros. A barca
avançava em silêncio sobre o lago solitário, iluminado unica-
mente pela luz avermelhada da lanterna e pela claridade resplan-
decente da Lua cheia, que se espalhava em mil palhetas sobre as
facetas brancas das águas. Dir-se-ia ver deslizar uma estrela
dupla de celeste brancura, precedida de um cometa avermelhado.
Os bateleiros remavam silenciosos, num movimento regular e
monótono, não ousando elevar a voz, meditando sobre o inexo-
rável poder da morte, que reinava por baixo deles, nas profundi-
dades daquele lago, onde mais de um deles imergira de vez, e
por cima, nas geleiras das montanhas, onde se encontra aqui e
acolá grosseiras cruzes de madeira plantadas em memória de
acidentes. Sobre esse lago sombrio, cujos limites eram marcados
pela irregular e longínqua moldura das montanhas negras, a
Natureza, calma e recolhida, parecia agora associada ao luto do
fúnebre comboio. Nem uma voz se fazia ouvir, nem um canto de
pássaro, nem um ruído de inseto, nenhum rumor, além do ritmo
cadenciado dos remadores. Assim chegaram à outra margem. O
trem saiu dos estreitos desfiladeiros da montanha e se deteve.
Piedosamente e sem pronunciar uma palavra, os bateleiros
depuseram o ataúde. Quando o comboio novamente se pôs em
marcha na noite escura, o médico se perguntou a si próprio se
não estaria sendo vítima de um espantoso pesadelo nesses últi-
mos quatro dias.
Em Zurich, após a incineração, recolheu ele mesmo as cinzas
de seus dois amigos, misturando-as intimamente, e as colocou
em uma urna de prata. A vontade de Estela fora religiosamente
cumprida.
Recordou-se do Observatório de Dargilan, da eminência dos
montes pirenaicos, denominada seu “paraíso”, dos amenos
passeios de tarde que fizeram juntos, da paisagem que preferiam
ter diante deles, do pequeno bosque de árvores “estelares” plan-
tado pelo “Solitário”, das horas deliciosas que haviam passado
nesse jardim campestre e retirado. Piedosamente conduziu para
lá a urna que continha as cinzas.
Um ancião, que parecia abismado em profunda mágoa, estava
diante do médico no momento em que este chegou ao Observató-
rio. Era o tio de Estela, o Conde de Noirmoutiers, que Bernardo
não reconheceu de início. Ao saber a notícia da morte dos dois
esposos, viera ignorando as minúcias da catástrofe. Não tornara a
ver a sobrinha após a fuga de Paris; sua mulher recusara respon-
der às cartas que Estela escrevera depois do casamento; ele,
porém, nunca deixara de amar aquela criança louca, conforme
lhe chamava, e de estimar Dargilan. Agora, vinha abraçar a urna
que continha suas cinzas, e também obter do doutor um entendi-
mento no sentido de assegurar a continuação e o desenvolvimen-
to da obra fundada pelo astrônomo, com a renda do capital de
três milhões, resultante dos juros acumulados durante uma
década à fortuna que a jovem apaixonada abandonara.
Alguns dias depois, encerraram a urna funerária em um cubo
de pedra e fizeram incrustar essa pedra em um orifício do roche-
do.
Nenhuma inscrição foi gravada; apenas duas iniciais entrela-
çadas eram visíveis. As árvores do amor cresceram; o carvalho,
próximo do rochedo, tem hoje em dia ramas verdejantes; no seio
daquela solidão, a Natureza reina soberana; o vento sopra na
floresta; os pássaros cantam junto dos ninhos; o regato murmura;
a Criação continua seu curso eterno; o Sol do meio-dia espalha
raios tépidos coados pela folhagem e à noite a Lua clara vem
acariciar ternamente com seus raios prateados esse pequenino
recanto da Terra onde a vida de dois seres felizes escoou em tão
perfeita felicidade.
XXXV
Eternidade – Infinito

O pó fica para a Terra. A alma volta para o céu.


No êxtase de um supremo abraço, enquanto a apoteose aérea
iluminava a montanha e a Natureza inteira recebia, à passagem
do meteoro, uma superexcitação elétrica que pareceu incendiá-la,
os dois amantes sentiram-se morrer em um rápido aniquilamento.
Mas, suas almas tinham sobrevivido e voado, transportadas, no
Espaço, pelo cometa que, tendo apenas tocado o nosso globo, de
leve, continuava sua carreira celeste para as constelações. Quais
dois pássaros pairando acima dos cumes, e mais intimamente
aproximados ainda, enlaçados em um par inseparável, pareciam
dormir sonhar, estendido sobre a nuvem deslumbrante que subia
para o céu sideral. Rafael foi o primeiro a despertar, e reparou
que levava Estela em seus braços. Tinham um corpo semelhante
ao corpo terrestre, porém imponderável, substância elétrica,
corpo fluídico astral, ao qual o Espírito está ligado e que, durante
a vida terrestre, serve de união entre o Espírito puro e o organis-
mo material.
Estela despertou sorridente na aurora que a envolvia, incons-
ciente da transformação por que acabavam de passar. Nenhum
deles soube, aliás, que um cometa os conduzia. Da mesma forma
que, na barquinha do aeróstato, viajamos com a velocidade ao
vento, sentindo-nos absolutamente imóveis, assim a velocidade
do seu vôo celeste continuava desconhecida para eles, que se
julgavam voluptuosamente deitados na imobilidade de um sonho
eterno.
O astro cometário, cuja cauda havia pouco envolvera a Terra,
afastava-se rapidamente do nosso globo e se dirigia para o nosso
vizinho, o planeta Marte. Aconteceu que, pela combinação de
movimentos celestes, o astro vaporoso rodeou Marte, tal qual
cercara a Terra, e foi com grande surpresa que os dois amantes
viram aproximar-se deles um mundo que não era o nosso: vastas
planícies avermelhadas, grandes linhas de verduras, inumeráveis
canais, habitações aéreas, seres leves – voando nos ares. Senti-
ram-se descer ali muito suavemente, quais essas estrelas errantes,
que, às vezes, parecem tão lentas, e deslizam, deixando na at-
mosfera um fumo luminoso, quase imóvel.
O corpo astral tem a propriedade, em certos mundos, de con-
densar os fluidos da atmosfera e constituir com eles novos
corpos orgânicos. Uma das vantagens desta faculdade é a de não
obrigar os seres a nascerem crianças num seio de mãe. Nasce-se,
não criança, e sim em plena adolescência. É lá que vivem atual-
mente Rafael e Estela. Primeira etapa depois da Terra, Marte
lhes deu uma deliciosa moradia. É um mundo pouco diferente,
porém mais avançado no progresso, e de residência bem mais
agradável do que o nosso, porque não está submetido às intem-
péries, às tempestades, às revoluções atmosféricas que agitam
perpetuamente a Terra e nos distribuem tão violentos contrastes
de climas e de estações. O ar é quase sempre puro e sem nuvens;
a atmosfera, nutritiva. Ali não se come, não se mata. Os dias e as
noites se sucedem tal qual aqui, mas os ciclos anuais decorrem
quase duas vezes mais lentamente, e as condições gerais da vida
são mais suaves e mais generosas.
Às vezes, ambos contemplam de lá o nosso planeta, brilhante
estrela da noite, seguindo lentamente no céu o Sol após o ocaso.
Lembram-se de aqui haver vivido, porém não lamentam a parti-
da. Seus corpos terrestres eram roupagens que abandonaram.
Sentem, sabem que a vida é eterna e que os mundos sãos as
etapas dessa existência sem fim, cuja transformação é infinita
quanto a própria eternidade.
De lá também, reconhecem Vega, sua brilhante estrela, e
pressentem que um dia viverão juntos, longamente, em um
paraíso mais perfeito ainda. Vega é para eles o símbolo da felici-
dade eterna.
Há verdades superiores à Terra; há sentimentos superiores à
vida. A felicidade de contemplar o Universo, de estudar a Natu-
reza, é sentida nos outros mundos no mesmo grau do nosso, e a
Ciência reina lá quanto aqui. O Amor, vitorioso da Morte, se
perpetua nas existências sucessivas, e continua a brilhar além da
Terra, numa luz inextinguível. A vida terrestre passa qual som-
bra.
As religiões responderam às aspirações das nossas almas, ca-
da uma segundo sua época e com a sua ignorância. Nascidas e
desenvolvidas antes da descoberta da verdade astronômica, da
imensidade dos céus, da insignificância do nosso planeta, elas
acreditaram que a Terra e o homem eram o centro e o fim da
Criação, e foram edificadas sobre esse erro fundamental. Elas só
puderam preparar a verdadeira religião, que será mais elevada,
mais ampla, mais pura do que os velhos sistemas, e em perfeito
acordo com a Ciência e a Razão.
Jesus foi um precursor. Se ele tivesse vindo a este mundo de-
pois de Copérnico e Galileu, talvez nos tivesse verdadeiramente
aberto o Céu. À medida que o saber aumentar sobre o nosso
planeta, a Religião se esclarecerá e desenvolverá. Grandes Espí-
ritos surgirão no futuro para o progresso da Humanidade. Só há
uma verdade: a verdade astronômica, a realidade universal dos
mundos e dos seres. A religião do porvir será a religião da Ciên-
cia; reunirão em seu seio todos os seres pensantes; serão a mes-
ma sobre a Terra, sobre Marte e todos os mundos habitados.
Rafael e Estela sabem-no hoje.

FIM

Notas:
1
Os que conheceram Ferd. Hoefer, o eremita da floresta de
Senart, poderão talvez reconstituir em parte a personagem de
quem se trata aqui.
2
Eis a brejeirice, em francês:
Bien que je sois austère,
J’apporte un soin jaloux,
Je le dis sans mystère
Aux choix de mes dessous.
Si l’on fait une chute
Et qu’on ait à rougir,
Avoir des d’essous três pschutte
Ça fait toujours plaisir!
3
Dois versos futuristas, intraduzíveis, pois dizem, num es-
forço de tradução:
Um ignorado vale de virgens situado
entristece, predestinado! a estação sem mudanças.
(Nota do tradutor.)
4
Esse disparate, rimado em francês, é praticamente intradu-
zível e dá, no ingrato metro de oito sílabas, mais ou menos o
seguinte:
Introduzir-me em tua história
É para herói algo assustado
Que o calcanhar tenha tocado
Alguma letra de terreno.
Contra geleiras atentar
Não sei, se bem que tal pecado
Não deves ter embaraçado
De rir bem alto na vitória.
Diz se não sou um divertido,
Trovões, rubis em gema d’ovo
A ver no ar que o fogo fura
Com seus impérios esparsos
Qual morre em púrpura na roda
A vesperal dos meus transportes.
(Nota do tradutor.)

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