A Questao Da Frase Da Oração, Do Enunciado Concreto e Do Dialogismo em Bakhtin Eo Círculo

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SIMPÓSIO DE LÍNGUAS E LINGUAGENS DA ETE

EDIÇÃO ATUAL: v.1 Dezembro de 2016 ISSN 2525-8206

Título: A questão da frase, da


oração, do enunciado concreto e do
dialogismo em Bakhtin e o círculo.
NOME DO AUTOR
Aguinaldo Gomes de Souza –UFPE

RESUMO:

O presente ensaio tem por objetivo descrever os caminhos sinalizados por


Bakhtin, Volochínov e Medvedv para construção do conceito de enunciado e
dialogismo. Para esse fim revisitamos a biografia dos referidos autores em
torno das categorias enunciado, enunciado concreto, frase, oração e
dialogismo. A respeito do dialogismo verificamos que Buber se instala na
história da filosofia como um dos primeiros filósofos a pensar no diálogo e no
dialogismo. Nessa direção verificamos que Buber e Bakhtin compartilham
posições comuns, o que de certa forma coloca Bakhtin dentro do campo dos
filósofos que se convencionou chamar de filósofos do diálogo. Para
fundamentar sua proposta dialógica, Buber, e por consequência, Bakhtin,
elegem o Eu e o Tu como elementos constitutivos da interação. Nessa direção,
examinamos como a ontologia fenomenológica de Buber reverbera nos escritos
do círculo de Bakhtin.

PALAVRAS-CHAVE: Bakhtin, Buber, dialogismo, enunciado

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EDIÇÃO ATUAL: v.1 Dezembro de 2016 ISSN 2525-8206

1- CONSIDERAÇÕES INICIAIS.

Tratar do conceito de enunciado, enunciado concreto e enunciação no


círculo de Bakhtin é tentar perseguir uma unidade que como tal não se faz ou
não costuma ser entendida como uma estrutura ou um esquema que perpasse
e se reduza à mera descoberta. Com efeito, dada a vida dos participantes do
círculo ser carregada de mudanças, por vezes drásticas no seu curso,a ideia
de uma unidade não caberia. Para Bakhtin, o conceito de unidade necessita
abarcar a possibilidade de uma criatividade autêntica cujo objetivo seria uma
unidade não-monológica.
No manuscrito “Apontamentos/Das notas Feitas 1970-1971" publicado
em “Estética da Criação Verbal” o próprio Bakhtin enuncia que seu “amor pelas
variações e por uma diversidade de termos para um único fenômeno” o coloca
em uma situação de mal-entendidos relativos ao seu hábito de uma escrita
não-monológica. Destarte essas considerações, perseguir uma unidade em
torno das noções de enunciado, enunciado concreto e enunciação, dentro do
pensamento de Bakhtin e seu Círculo, é de certa forma admitir que tal intento
emergee deságua em uma finalização-aberta, para usar um termo Bakhtiniano.
Na tentativa de uma “inteireza” do conceito de enunciado, enunciado
concreto e enunciação dentro do círculo bakthiniano voltemos nossos olhos
para a biografia desses autores. Esse labirinto de elos, porém, deve ser
encarado não como um dado acabado em si, mas como parte de uma
arquitetônica maior, cuja estrutura profunda se constrói por variantes que
circulam ao redor de um ideia ou problema inicial, nesse sentido é o próprio
Bakhtin (1997, p.329) que, ao se pronunciar sobre o seu fazer laboral, enuncia:

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nosso estudo poderá ser classificado de filosófico sobretudo por


razões negativas. Na verdade, não se trata de uma análise
lingüística, nem filológica, nem literária, ou de alguma outra
especialização. No tocante às razões positivas, são as seguintes:
nossa investigação se situa nas zonas limítrofes, nas fronteiras de
todas as disciplinas mencionadas, em sua junção, em seu
cruzamento.

Bakhtin (1895-1975) viveu os piores anos da antiga União Soviética,


paradoxalmente, este período foi ao mesmo tempo cheio de transformações e
novidades no mundo das artes e da cultura em geral. Nesta época era muito
comum a cultura dos Círculos. Muito provavelmente, como aponta Souza
(2002), Bakhtin, Volochínov e Medvedev se encontraram em um desses
círculos que aconteciam na Universidade de Petrogrado e São Petersburgo.
Sabe-se que Bakhtin e Volochinov participaram do Círculo de Nevel(1918-
1920), e Medvedev se juntou ao grupo no Círculo de Vitebsk(1921-1924). Os
participantes do grupo possuíam características dissímil, tanto na forma de
encarar os problemas do mundo em que eles estavam inseridos quanto no
olhar para o objeto de análise. Ponzio (2008, p.15) chega a afirmar que as
“conjecturas dos integrantes do Círculo (Volochínov e Medvedev, por exemplo)
se distinguiam em seus estudos e em suas ideias por áreas que Marx e Engels
haviam apenas tocado, como o problema da ideologia e das superestruturas, o
papel dos signos e o entrelaçamento entre a linguagem verbal e os outros
sistemas sígnicos”.
De fato, como veremos adiante, são esses dois integrantes do grupo que
levarão a cabo o intento de unir a teoria Marxista com a filosofia da linguagem.
Nesta mesma época, Bakhtin publica o texto “Arte e Responsabilidade” (1929)
e “Sobre a Filosofia do Ato” (1919-1921). É época em que o autor investiga a

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ética e a fenomenologia, nestes textos é tratado do conceito de arte, de ética e


responsabilidade.
A questão da autoria nas obras de Bakhtin e do círculo ainda faz parte
de uma perquirição controvérsia, entretanto, neste ensaio assumimos a
posição de que as obras escritas sob a égide do círculo possuem não apenas
um autor, mas autores. Sobre esse ponto (o mistério da autoria) é interessante
notar que Faraco (2009, p. 11) alerta que

quem se aproxima pela primeira vez do pensamento de Mikhail M.


Bakhtin e de seus pares se depara com um persistente quiproquó em
torno da autoria de certos textos, em especial de três livros:
Freudismo, Marxismo e filosofia da linguagem e O método formal nos
estudos literários. Isso porque os dois primeiros foram originalmente
publicados sob o nome de Valentin N. Voloshinov e o último sob o de
Pavel N. Medvedev. Depois de trinta anos de silêncio, trabalhos de
Bakhtin tinham sido novamente publicados na Rússia em 1963 e
1965, fazendo seu nome circular nos meios acadêmicos de sua terra
natal. Nessa conjuntura, o linguista Viatcheslav V. Ivanov, sem
apresentar argumentos efetivos, afirmou que o livro Marxis mo e
filosofia da linguagem tinha sido escrito por Bakhtin e não por
Voloshinov, a atribuição de autoria se estendeu, em seguida, aos
outros textos.

Esse quiproquó, como acentua Faraco (2009), não invalida a construção


do pensamento bakhtiniano, mas antes ratifica a ideia subjacente aos
estudiosos da obra bakhtiniana de que são inegáveis a diversidade de
pensamento1 do círculo e suas múltiplas inter-relações. Essa diversidade de
pensamento, talvez, existisse por conta do chamado círculo de Bakhtin ter sido
composto por pessoas de diversas formações, como por exemplo: o filosofo
Matvei I. Kagan, o biólogo Ivan I. Kanaev, a pianista Maria V. Yudina, o

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Utilizamos a expressão 'diversidade de pensamento' para nos referirmos às várias influências
filosóficas encontradas nas obras do círculo

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professor de literatura Lev V. Pumpianski, o professor e advogado Medvedev, o


professor Voloshinov e o filosofo/professor Mikail Bakhtin. Esses três últimos
possuem uma unidade mais intensa e são os que contribuíram de forma
significativa para um dialogo maior com o que se convencionou chamar de
pensamento bakhtiniano, por esse motivo, acreditamos ser de grande valia
revisitar suas biografias.

1.1- MEDVEDEV

Medvedev foi reitor da universidade Proletária em Vitebsk, trabalhou na


editora de Petrogrado. Formado em direito, ele teve uma intensa atividade
como educador e gestor da área de cultura, além disto, Medvedev desenvolveu
intensamente a profissão de jornalista cultural e ensinou literatura no instituto
Pedagógico Herzen em Leningrado, como mostra Faraco (2009).
Grande parte do que Medvedev escreveu foi relacionado ao tratamento
de questões literárias, sociológicas e linguísticas. No final da década de 1930,
época em que Stalin estava no poder na URSS, Medvedev foi preso e seu fim
ainda causa controvérsias. Eram anos terrivelmente duros para os pensadores.
Clark; Holquist (1998) mostra-nos que uma das obras de Medvedev "O método
formal nos estudos literários" foi creditada inicialmente como uma co-autoria
entre ele e Mikail Bakhtin, hoje essa questão da autoria já está quase que
apaziguada embora muitos ainda prefiram tratar “O método formal” como uma
co-autoria. Além deste livro destacamos o "La evaluación social, su papel, el
enunciado concreto y la construcción poética (1993)"que também é creditado
em co-autoria com Bakhtin.

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1.2 VOLOCHÍNOV

Volochínov, como pontua Faraco (2009), trabalhou como professor no


instituto Pedagógico Hertzen em Leningrado tendo se formado em estudos
linguísticos em 1926. Possuía profundo interesse por música e pela história da
música sendo o responsável por este departamento na escola de artes teatrais,
em Nevel. Assina os livros: "O discurso na vida e o discurso na arte (1928)"; "O
freudismo (1927)"; "As fronteiras entre a poética e a linguística (1930)" e
"Marxismo e filosofia da linguagem (1929)", para citar alguns. Assim como
Medvedev, grande parte de sua obra está inspirada na teoria marxista. Sua
obra mais popular "Marxismo e filosofiada linguagem" parte da critica sobre o
positivismo na filosofia e as influências deste nas mais diversas correntes
dominantes da época.

1.3 M.BAKHTIN

Bakhtin pode ser considerado, na atualidade, o mais expressivo estudioso que


viveu na antiga União Soviética. Seu prestígio como sabemos, não se dá por
nenhuma dissidência política (o próprio Bakhtin fez todo o possível para evitar
entrar em conflito com o Estado soviético e as forças de Lenin) mas é antes um
homem que levou a vida a estudar o ser em toda a sua completude (cultural,
espiritual e linguística) trata-se de um pensador, de um filósofo como ele
mesmo assinalou, que viveu os anos da grande revolução russa. Clark;
Holquist (1984) mostram-nos que Bakhtin viveu em uma antiga família nobre
que após a falência se envolveu com o comércio. Neto de banqueiros, recebeu
dos pais uma educação exigente e muito refinada. Logo cedo, juntamente com

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suas três irmãs e um irmão, foram introduzidos, por uma governanta, na língua
e cultura Alemã. É nessa época que ele começa a ler intensamente os filósofos
antigos, Nietzsche, Søren Aabye Kierkegaard e Martin Buber. Este último, ao
que tudo indica, inspira em Bakhtin o conceito basilar que vai alicerçar todo o
seu pensamento e que mais tarde seria trabalhado por ele e por todos do
círculo: o dialogismo. A esse respeito é interessante notar a descrição, em
nota de rodapé encontrada em Joseph (1918[1992], p.20), na qual assegura
que

Em um artigo que apareceu numa revista de emigrados,


simultaneamente com o livro de Clark e Holquist indica que Bakhtin
conservou sua admiração por Martin Burber até o fim da sua vida. O
autor, que visitou Bakhtin no hospital, relembra outro visitante, que
perguntava ao erudito adoentado o que ele pensava sobre Buber. A
pergunta foi feita porque um amigo comum, questionado acerca da
opinião de Bakhtin sobre esse pensador, tinha permanecido
estranhamente silencioso. Bakhtin respondeu, com fastio, que esse
amigo comum, sendo um anti-semita, teria evitado deter-se no
assunto. Mas então deu sua opinião: "De Buber, Bakhtin pensa que
ele - Buber - é o maior filósofo do século XX, e talvez, neste século
filosoficamente mesquinho, o único filósofo em cena". Bakhtin
continuou então a explicar que, embora Nikolai Bierdiáiev, Lev
Chestov e Jean-Paul Sartre fossem todos excelentes exemplos de
pensadores, havia uma diferença entre eles e os filósofos. "Mas
Buber é um filósofo. E eu devo muito a ele. Em particular, pelaideia de
diálogo. Certamente isto é óbvio para qualquer um que leia Buber."

Além da filosofia, a poesia também interessava ao jovem Bakhtin. É nessa


época da juventude que ele começa a se interessar pelo simbolismo russo e
pela poética de Viatcheslav Ivánov o qual possui um trabalho vasto sobre a
obra de Dostoiévski.
Bakhtin estudou na Universidade de São Petersburgo entre os anos de 1914 e
1918, após esse período ele vai viver em Nevel e dois anos mais tarde ele se
muda para Vitebsk, centro da arte de vanguarda. Para sobreviver Bakhtin

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lecionou no curso secundário, dando várias conferências, foi guarda-livros


(contador) e consultor econômico. Algum tempo depois Bakhtin se muda para
Lenigrado, onde conheceu os integrantes do chamado círculo de Bakhtin,
conforme Clark e Holquist, no círculo havia músicos, escritores, cientistas
naturais além de vários estudos de disciplinas variadas. O círculo de Bakhtin
não era, em nenhum sentido, uma organização fixa. Era apenas um grupo de
amigos que adoravam se encontrar e debater ideias e que tinham interesses
comuns. Normalmente, um dos participantes preparava uma breve sinopse ou
resenha de uma obra filosófica e lia para os demais como base para discussão.

2 – DO TRATAMENTO DADO À ORAÇÃO, À FRASE E AENUNCIAÇÃO.

Como vimos nestas sucintas biografias, em comum, Bakhtin, Volochínov


e Medvedev possuem o amor pelo conhecimento e um pensamento que
converge em direção ao enunciado e a enunciação e a todas as relações que
surgem a partir deste ponto. Não constitui tarefa fácil esmiuçar a teoria
enunciativa de Bakhtin, isto devido à totalidade do pensamento ora analisado e
da diversidade de objetos que são frutos da reflexão dos integrantes do círculo.
Ainda assim, no todo da obra bakhtiniana os termos atos de fala concreto,
enunciado concreto, frase, sentença e oração assumem formulações próprias e
se fundamentam como um dos eixos do pensar bakhtiniano. Nesse sentido, no
livro "Questões de literatura e de estética: a teoria do romance" Bakhtin (1993,
p.47) ao tratar das diferentes abordagens da obra literária pela poética e pela
Linguística, salienta a necessidade de a Linguística ampliar seu escopo pois

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até hoje a linguística ainda não ultrapassou cientificamente a oração


complexa: este é o mais longo fenômeno da língua já explorado
lingüística e cientificamente: tem-se a impressão de que a língua
precisamente lingüística e metodologicamente pura de repente
termina ali e de repente tem início a ciência, a poesia, etc.; entretanto,
a análise lingüística pura pode ser levada mais adiante, por mais
difícil que pareça e por mais tentador que seja aqui introduzir aqui
ponto de vista alheios à lingüística.

Nesse sentido, a distinção entre formas da língua e formas do enunciado


concreto se tornam mais evidentes. A frase, material linguístico, é percebida
pelo círculo de Bakhtin como um enunciado monológico que finda em si sua
relação com o exterior. E por ser monológica, a frase pode ser decomposta em
unidades menores, como os morfemas, os fonemas etc. Bakhtin e o círculo
constroem a proposição de que a frase é monológica, levando em
consideração as críticas formuladas ao pensamento abstrato, ou nas palavras
de Volochínov "ao objetivismo abstrato". A frase, deste ponto de vista, é
analisada como uma unidade independente do enunciado. De igual modo,
quando o círculo começa a teorizar sobres os atos de fala, ou para utilizar uma
terminologia própria do círculo, enunciado concreto, o faz não como sendo
individual. A esse respeito vale lembrar Volochínov quando em Marxismo e
Filosofia da Linguagem vai tecer crítica ao subjetivismo idealista justamente por
este também considerar o ato de fala como individual.
Em relação às outras categorias sintáticas, como a oração, Volochínov
(2006) vai dizer que a categoria oração é meramente uma definição da oração
como uma unidade dentro de uma enunciação, mas de nenhuma maneira
como entidade global. Além de Volochínov, Bakhtin no ensaio intitulado de "Os
gêneros do discurso" datado entre os anos de 1952 e 1953 e publicado no livro
“Estética da Criação Verbal”, vai explicitar as diferenças entre a oração e o
enunciado. Para o autor, a oração é uma unidade da língua enquanto que o

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enunciado é uma unidade da comunicação verbal. Essa caracterização põe em


oposição o pensamento abstrato e o pensamento concreto que foi trabalhado
detalhadamente por Volochínov em Marxismo e Filosofia da Linguagem. O
interessante no ensaio sobre os gêneros do discurso é que Bakhtin vai mostrar
que a frase pode se tornar um enunciado completo e isto ocorre quando ela se
torna uma reposta ou uma compreensão responsiva de outro locutor. Nesse
ponto, é importante notar que, ainda em Estética da criação verbal, Bakhtin
(1997, p.294) acentua que a real unidade da comunicação verbal é o
enunciado.

O enunciado não é uma unidade convencional, mas uma unidade


real, estritamente delimitada pela alternância dos sujeitos falantes, e
que termina por uma transferência da palavra ao outro, po ao outro,
por algo como um mudo “dixi” percebido pelo ouvinte, como sinal de
que o locutor terminou. Essa alternância dos sujeitos falantes que
traça fronteiras estritas entre os enunciados nas diversas esferas da
atividade e da existência humana, conforme as diferentes atribuições
da língua e as condições e situações variadas da comunicação, é
diversamente caracterizada e adota formas variadas. É no diálogo
real que esta alternância dos sujeitos falantes é observada de modo
mais direto e evidente; os enunciados dos interlocutores (parceiros do
diálogo), a que chamamos de réplicas, alternam-se regularmente
nele. O diálogo, por sua clareza e simplicidade, é a forma clássica da
comunicação verbal. Cada réplica, por mais breve e fragmentária que
seja, possui um acabamento específico que expressa a posição
dolocutor, sendo possível responder, sendo possível tomar, com
relação a essa réplica, uma posição responsiva.

Como podemos observar na citação acima, para Bakhtin o enunciado é


uma unidade real da comunicação é o que ele chama de „criado‟, em oposição
ao „dado‟ (a oração, a frase, a sentença). Dizendo o que já se foi dito, nenhuma
oração, ainda que constituída de uma única palavra jamais poderá ser repetida
ou reiterada. No ensaio "O problema do texto" encontrado em Estética da
criação verbal, Bakhtin vai situar o estudo do enunciado dentro do campo de

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estudo da ciência e para isso, argumenta o autor, a análise desse tipo de


estudo deve se situar na fronteira entre a análise da língua e a análise do
sentido, é o que ele nomeia de metalinguística.
A metalinguística ultrapassa os limites da linguística e possui um objeto
autônomo e tarefas próprias, ela seria responsável pelo “estudo dos aspectos e
das formas da relação dialógica que se estabelece entre os enunciados e entre
suas formas tipológicas (os fatores do enunciado)”, como apontou Bakhtin
(1997, p.335).
O todo do enunciado se constitui como tal graças a elementos extra-
linguísticos(dialógicos). Assim, podemos dizer com Medevdev (1991, p. 93) que
“se tomarmos a palavra comunicativo no seu sentido mais largo e mais geral,
então, todo enunciado é comunicativo, a comunicação, compreendida nesse
sentido largo, é um elemento constitutivo da linguagem como tal2”.
Nessa direção, não é estrando dizer que para Medevdev a questão do
enunciado perpassa os diferentes campos da atividade humana, eles são
espaços onde a comunicação verbal e a organização social se entrecruza.
Para o círculo, todos os discursos são dialógicos, “toda comunicação, toda
interação verbal se realiza sob a forma de uma troca de enunciados, isto é, na
dimensão de um diálogo” como apontou Volochínov (2006 [1981], p. 292).
Bakhtin em “O discurso no romance” vai dizer que o enunciado surge de
maneira significativa em um determinado momento social e histórico. Da
mesma maneira, Medvedv em "La evaluación social, su papel, el enunciado
concreto y laconstrucción poética" vai eleger o social como lugar de vida do

2
Tradução livre do fragmento contido no texto “Bakhtin, M. / Medvedev (1928) The Formal
Method in Literary Scholarship. A Critical Introduction to Sociological Poetics. trad. Albert J.
Wehrle. Baltimore e London, The Johns Hopkins Press, 1991”

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enunciado. Tal posição também é assumida por Volochínov em Marxismo e


Filosofia da Linguagem quando enuncia que o signo e a enunciação são de
natureza social.
Compreender esse trato constitutivo da natureza do enunciado é atentar
que nessas relações sociais há um elemento motriz que subjaz a existênciado
enunciado, trata-se do conceito de dialogismo o qual, como vimos, M. Bakhtin
vai, de uma forma ou de outra, conceber da mesma maneira como Buber havia
proposto anteriormente. Nesse sentido, cabe realizar um exame mais apurado
do tema dialogismo uma vez que ele é uma das condições de existência dos
enunciados, é ele que vai permitir, em nosso entender, a passagem da frase
para o enunciado.

3- As bases do conceito de dialogismo

Quando Bakhtin vai tratar da questão da linguagem, ele aponta que a


unidade básica de análise da linguagem é o enunciado. Este entendido como
uma realização linguística implicado no eixo dialogismo-subjetividade-
enunciação, isto é, se consideramos que para Bakhtin não existe um objeto de
discurso puro, que todo discurso contém um já dito. Porém, a noção de
dialogismo trabalhada por Bakhtin foi antes objeto de reflexão de outro filósofo
e nesse sentido acreditamos ser de valia um breve recuo para verificarmos
uma das influências filosóficas que corroborou o pensamento de Bakhtin.
É fato que os biógrafos de Mikhail Bakhtin já apontavam que desde a
infância ele e o irmão mais velho Nicolau, já possuíam uma formação precoce
em filosofia. Dentre as influências filosóficas de Bakhtin destacamos a

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presença de Kierkegaard (o filósofo do cristianismo) e a posteriori de Martin


Buber, o chamado filósofo do diálogo. Interessante notar que a filosofia de
Kierkengaard vai influenciar tanto Bakhtin quanto Buber sendo consenso
considerar Kierkengaard como o filósofo pai do existencialismo. Mais comum
ainda é encontrar traços de semelhanças entre a questão existencial, entre o
existencialismo e o pensamento de Bakhtin (embora alguns estudiosos de sua
vida o considerem como um filósofo assistemático, como é o caso de Clark e
Holquist). É possível notar isto quando se considera que a filosofia de Bakhtin
era de base fenomenológica na qual o sentido do ser se constitui na relação
com o outro, trata-se de uma filosofia do dialogo em que ou outro(a outridade)
constitui fator importante.
Martin Buber pode ser considerado o mais expressivo dentre aqueles
que se dedicaram à filosofia do diálogo e do Dialógico. Para ele, o diálogo
pertence e é constitutivo do modo ontológico de sermos, o dialógico nos abre
as possiblidades de encontro com o outro. Bakhtin vai considerar, conforme
Morson; Emerson (2008, p.78), que “o diálogo da vida requer um método
dialógico e uma concepção dialógica da verdade para representá-la”. Para
formular o conceito de dialogia Buber (2001) invoca a ideia do modo Eu-Tu. É
no Eu-Tu que acontecem as relações. O Eu-Tu é o alternativo ao Eu-Isso, da
coisificação, o Eu-Tu é uma palavra-princípio que se funda na ação. Para
Buber (2001, p.03) "uma palavra-princípio não é um vocábulo, mas sim um par
de vocábulos que funda uma existência".
O modo fenomenológico de Buber é o modo da ação, a vivência deste
modo em um dado instante da vida e tem a característica de ser dialógica. O
logos desse modofenomenológico se funda no sentido, logos é sentido. Esse
modo é o modo ser do logos, é o modo ontológico do ser que vivencia sentidos.

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O conceito de dialogia em Buber vai perpassar outros campos da atividade


humana, como por exemplo, no mundo das artes, nesse sentido, no livro “Do
diálogo e do dialógico” Buber (2007, p.60) pondera que
desde sua origem, toda arte é essencialmente dialógica: toda música
é dirigida a um ouvido que não é o do próprio músico, toda escult ura,
a um olho que não é o do escultor; também a arquitetura é dirigida às
pessoas que medem a obra. Todas elas dizem, àquele que as
recebe, algo que só pode ser dito nesta linguagem única (não um
„sentimento‟, mas um segredo percebido)

Ainda em "Do diálogo e do Dialógico" Buber vai ponderar que o


dialogismo não se restringe ao mundo das artes como tal, mas é antes parte
constitutiva de toda e qualquer forma de pensamento, independente da
presença física de um interlocutor. Como podemos observar, as concepções
utilizadas por Buber em sua filosofia são caras ao pensamento de Mikail
Bakhtin e é comum encontrarmos pontos de contato não só quando o teórico
russo trata da questão do dialógico, mas também quando ele envereda por
outros caminhos como, por exemplo, o conceito de ética, de Responsabilidade
etc. Elas se deixam vislumbrar quando, por exemplo, Bakhtin vai tratar da
questão de outrem que é força motriz na constituição do "eu". Vejamos, por
exemplo, "Estética da criação verbal" onde Bakhtin (1997, p. 57) vai enunciar
que
a forma concreta da vivência real do homem emana de uma
correlação entre as categorias representativas do eu e do outro; as
formas do eu através das quais sou o único a vivenciar-me se
distinguem fundamentalmente das formas do outro através das quais
vivencio a todos os outros sem exceção

Mas se a categoria filosófica chamada de „o dialógico‟ é cara tanto para


Buber quanto para Bakhtin, o que torna o pensamento filosófico de Bakhtin
original? Responder a essa questão não é tarefa fácil, faz-se necessário

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examinar outras categorias dentro do pensamento do russo, mas de imediato


poderíamos dizer que o que dá especificidade ao pensamento bakhtiniano é o
fato dele explorar o conceito de dialogismo dentro da língua/linguagem.
O dialogismo é uma das concepções particulares e caras ao círculo, é
ele ( e não só ele) que Bakhtin e Volochínov irão utilizar como base para a
crítica formulada ao formalismo russo e ao estruturalismo, Bakhtin no ensaio “O
problema do texto” vai caracterizar as relações dialógicas como relações de
sentido que se estabelecem entre os enunciados. Em relação ao dialogismo,
reiteramos Faraco (2009, p. 69) quando diz que “Bakhtin e o Círculo entendem
as relações dialógicas como espaços de tensão entre enunciados. Estes,
portanto, não apenas coexistem, mas se tencionam nas relações dialógicas”.
Não seria equivoco dizer que a concepção de diálogo e dialogismo, em
Bakhtin, serviram de base, por exemplo, para os conceitos de enunciado,
enunciado concreto e gêneros do discurso que foram largamente trabalhados
pelo círculo.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail.Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo:


Martins Fontes, 1997

BAKHTIN. Apontamentos de 1970-1971. In: BAKHTIN. M. Estética da criação


verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003a, p. 384-385

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BAKHTIN, Mikhail. Arte e Responsabilidade. In: Estética da Criação Verbal. 4.


ed. Tradução: Paulo Bezerra. São Paulo: Ed Martins Fontes, 2006. (pp. XXXIII,
XXXIV)

BAKHTIN, Mikhail. Questões e literatura e de estética: A teoria do romance.


Trad. Aurora F. Bernadini e outros. São Paulo: Hucitec, 1998, p. 13-70

BAJTÍN,Mijail/Medvedev, Pável.La evaluación social, su papel, el enunciado


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