Gilbert Durand - A Imaginação Simbólica PDF

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Esta colecção visa essencialmente
o estudo da evolução do homem
sob os aspectos mais genericamente antropológicos
- isto é, a visão do homem como um ser
que se destacou do conjunto da natureza,
que soube modelar-se a si próprio,
que foi capaz de criar técnicas e artes,
sociedades e culturas
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.....
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PERSPECTIVAS DO HOMEM
(tiS CULTURfiS, 1\5 SOCIED,O.DES)
TÍTULOS PUBLICADOS:

l. A CONSTRUÇÃO DO MUNDO, dir. Marc Augé


2. OS DOMfNIOS DO PARENTESCO, dir. Marc Augé •
3. ANTROPOLOGIA SOCIAL, de E. E. Evans-Pritchard
4. A ANTROPOLOGIA ECONÓMICA, dir. François Pouillon
5. O MITO DO ETERNO RETORNO, de Mircea Eliade
6. INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS ETNO-ANTROPOLÓGICOS, de Bemardo Bemardi
7. TRISTES TRÓPICOS, de Claude Lévi-Strauss
8. MITO E SIGNIFICADO, de Claude Lévi-Strauss
9. A IDEIA DE RAÇA, de Michel Banton
10. O HOMEM E O SAGRADO, de Roger Cail/ois
ll. GUERRA, RELIGIÃO, PODER, de Pierre Clastres, Alfred Adler e outros
12. O MITO E O HOMEM, de Roger Caiflois
13. ANTROPOLOGIA: CIÊNCIA DAS SOCIEDADES PRIMITIVAS, de J. Copans, S. Tomay, M.
Godelier e C. Backés-Clément
14. HORIZONTES DA ANTROPOLOGIA, de Maurice Godelier
15. CRÍTICAS E POLÍTICAS DA ANTROPOLOGIA, de Jean Copans
16. O GESTO E A PALAVRA- I TÉCNICA E LINGUAGEM, de André Leroi-Gourlzan
17. AS RELIGIÕES DA PRÉ-HISTÓRIA, de André Leroi-Gourlzan
18. O GESTO E A PALAVRA- II A MEMÓRIA E OS RITMOS, de André Leroi-Gourhan
19. ASPECTOS DO MITO, de Mircea Eliade
20. EVOLUÇÃO E TÉCNICAS -I O HOMEM E A MATÉRIA, de André Leroi-Gourhan
21. EVOLUÇÃO E TÉCNICAS -II O MEIO E AS TÉCNICAS, de André Leroi-Gourhan
22. OS CAÇADORES DA PRÉ-HISTÓRIA. de André Leroi-Gourhan
23. AS EPIDEMIAS NA HISTÓRIA DO HOMEM, de Jacques Ruffié e Jean Charle Soumia
24. O OLHAR DISTANCIADO, de Claude Lévi-Strauss
25. MAGIA, CIÊNCIA E E CIVILIZAÇÃO, de J. Bronowski
26. TOTETISMO, HOJE, de Claude Lévi-Strauss
27. O OLEIRA CIUMENTA, de Claude Lévi-Strauss
28. A LÓGICA DA ESCRITA E A ORGANIZAÇÃO DA SOCIEDADE, de Jack Goody
29. ENSAIO SOBRE A DÁDIVA, de Marcel Mauss
30. MAGIA, CIÊNCIA E RELIGIÃO, de Bronislaw Malinowski
31. INDIVÍDUO E PODER, de Paul Veyne, Jean-Pierre Vemant, Louis Dumont, Paul Ricoeur.
Françoise Dolto e outros
32. MITOS, SONHOS E MISTÉRIOS, de Mircea E/iade
33. HISTÓRIA DO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO, de E. E. Evans-Pritclwrd
34. ORIGENS, de Mircea Eliade
35. A DIVERSIDADE DA ANTROPOLOGIA. de Edmund Leaclz
36. ESTRUTURA E FUNÇÃO NAS SOCIEDADES PRIMITIVAS, de A. R. Radclife-Brown
37. CANOIBAIS E REIS, de Marvin Harris
38. HISTÓRIA DAS RELIGIÕES, de Maurilio Adriani
39. PUREZA E PERIGO, de Mary Douglas
40. MITO E MITOLOGIA, de Walter Burkert
41. O SAGRADO, de Rudolf Otto
42. CULTURA E COMUNICAÇÃO, de Edmund Leaclz
43. O SABER DOS ANTROPÓLOGOS, de Dan Sperber
44. A NATUREZA DA CULTURA, de A. L Kroeber
45. A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA, de Gilbert Durand
46. ANIMAIS DEUSES E HOMENS, de Pierre Leveque
47. UMA TEORIA CIENTÍFICA DA CULTURA, de Bronislaw Malinowski
48. SIGNOS. SÍMBOLOS E MITOS, de Luc Bemoist
49. INTRODUÇÃO À ANTROPOLOGIA, de Claude Riviere
A IMAGINAÇÃO
SIMBÓLICA

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Título original: L'im agi natio n s ym boliqu e

© Presses Universitaires de France, 1964

Tradução (da 6.a ed. franc. - 1993): Carlos Aboim de Brito


revista pelo Gabinete Técnico de Edições 70, Lda

Capa: Arcângela Marques

Depósito legal 11.0 86411/95

ISBN 972-44-0902-3

Direitos reservados para todos os países de língua portuguesa


por Edições 70 - Lisboa - Portugal

EDIÇÕES 70, LDA.


Rua Luciano Cordeiro, 123 - 2.0 Esq.01069-157
- LISBOA I Portugal
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Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzida
no todo Ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado,
incluindo fotocópia e xerocópia, sem prévia autorização do Editor.
Qualquer transgressão à lei dos Direitos do Autor será passível de
procedimento judicial.
IMAGINACAO
--

A
SIMBóliCA
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GILBERT DURAND

edições 70
«- E nós bradámos-lhe:

Abraão! Acreditaste no
teu sonho! Na verdade
está aí a prova evidente!»

Corão, XXXVII,
104-106
INTRODUÇÃO

O vocabulário do simbolismo

f./
/

«Um sinal é uma parte do mundo

I
físico do ser (being), um símbolo é
uma parte do mundo humano do
significado (m eani ng).»

'\ E. CASSIRER
A n Essay o n Man, p. 32.

Sempre reinou uma extrema confusão na utilização dos ter­


mos relativos ao imaginário. Talvez seja necessário pressupor
que tal estado de coisas provém da extrema desvalorização que
sofreu a imaginação, a «phantasia», no pensamento do Oci­
dente e da Antiguidade clássica. «Imagem», «signo», «alego­
ria», «Símbolo», «emblema», «parábola», «mito», «figura»,
«ícone», «ídolo», etc., são utilizados indiferentemente pela
maior parte dos autores ( 1 ).
A consciência dispõe de duas maneiras para representar o
mundo. Urna directa, na qual a própria coisa parece estar pre­
sente no espírito, como na percepção ou na simples sensação.
A outra indirecta quando, por esta ou por aquela razão, a coisa
não pode apresentar-se «em carne e osso» à sensibilidade,
como por exemplo na recordação da nossa infância, na ima­
ginação das paisagens do p1aneta Marte, na compreensão da
dança dos e1ectrões em torno do núcleo atómico ou na repre­
sentação de um além da morte. Em todos estes casos de cons­
ciência indirecta, o obj ecto ausente é re-presentado na cons­
ciência por uma imagem, no sentido muito lato do termo.

e) Ver G. DUMAS, Tra it é de Ps ychologie, t. IV. p. 266-268. Ver o


excelente mtigo de F. EDELINE, << Le symbole ét l'image selon la théorie
des codes», Cahiers internationaux de s ym bolism e, n.0 2, 1963.

7
A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

Na verdade, a diferença entre pensamento directo e pen­


samento indirecto não é tão definitiva como acabamos de
expor, por preocupação de clareza. Seria melhor escrever que
a consciência dispõe de diferentes graus de imagem - con­
soante esta última é uma cópia fiel da sensação ou apenas assi­
nala a coisa - cujos dois extremos seriam constituídos pela
adequação total, a presença perceptiva, ou pela inadequação
mais extrema, isto é, um signo eternamente viúvo de signifi­
cado, e veríamos que este signo longínquo não é 1nais do que
o símbolo.
O símbolo define-se como pertencente à categoria do
signo. Mas a maior parte dos signos são apenas subterfúgios
de economia, que remetem para um significado que poderia
estar presente ou ser verificado. Assim, um sinal previne sim­
plesmente sobre a presença do objecto que representa . Do
mesmo modo, uma palavra, uma sigla, um algoritmo substi­
tuem econonlicamente uma extensa definição conceptual.
É mais rápido desenhar numa etiqueta um crânio estilizado e
duas tíbias cruzadas do que explicitar o complicado processo
através do qual o cianeto de potássio destrói a vida. Da mesma
maneira, o nome de «V énus» aplicado a um planeta do sis­
tema solar, a sua sigla astrológica 9, ou mesmo o conjunto de
algoritmos que definem a trajectória elipsoidal deste planeta
nas fórmulas de Kepler, são mais económicos do que uma
extensa definição assente nas observações da trajectória, da
magnitude e das distâncias deste planeta em relação ao Sol.
Sendo os signos deste tipo, apenas em teoria, um meio de
economizar operações mentais, nada impede- pelo menos em
teoria- que eles sejam escolhidos arbitrariamente. Basta que
se declare que um disco vermelho com uma barra branca sig­
nifica que se não deve avançar, para que este sinal se torne o
do «sentido proibido». Não há qualquer necessidade de figu­
rar no painel de sinalização a imagem de um agente de polí­
cia ameaçador. Do mesmo modo, a maior parte das palavras,
e especialmente os nomes próprios, para quem não estudou a
filologia da língua, parecem ser desprovidos de qualquer moti­
vação, de toda e qualquer razão de serem constituídos de uma
maneira e não de outra: não preciso de saber que existia um
deus celta Lug e que «Lião» vem de Lugdunum para não con-

l
O VOCABULÁRIO DO SIMBOLISMO

fundir a cidade de Lião com a de Grenoble. Basta saber que


a palavra Lião - que associo à palavra «cidade» para não con­
fundir foneticamente com o animal «leão» - remete para uma
cidade francesa realmente existente na conf1uência dos rios
Ródano e Sona, para que utilize este signo fonético através de
uma convenção cuja origem poderia ser totalmente arbitrária:
poderia substituir este nome de cidade por um simples número
como fazem os americanos para as ruas e avenidas das suas
cidades.
No entanto, há casos em que o signo é obrigado a perder
o seu arbitrário teórico: quando remete para abstracções, espe­
cialmente para qualidades espirituais ou do domínio moral difi­
cilmente apresentáveis «em carne e osso». Para significar o pla­
neta Vénus, eu poderia também denominá-lo Carlos Magno,
Pedro, Paulo ou Médor. Mas para significar a Justiça ou a Ver­
dade, o pensamento não pode abrir-se ao arbitrário, porque
estes conceitos são menos evidentes do que aqueles que assen­
tam em percepções objectivas. É então necessário recorrer a
um tipo de signos complexos. A ideia de justiça será figurada
por um personagem punindo ou absolvendo e eu teria então
uma alegoria; este personagem poderá estar rodeado ou ser­
vir-se de diferentes objectos: tábuas da lei, gládio, balança e
eu estaria então a tratar de emblemas. Para captar ainda melhor
esta noção de Justiça, o pensamento poderá escolher a narra­
ção de um exemplo de facto judiciário, mais ou menos real ou
alegórico, e neste caso ter-se-ia um .apólogo. A alegoria é tra­
dução e) concreta de uma ideia difícil de compreender ou de
exprimir de uma maneira simples. Os signos alegóricos con­
têm sempre um elemento concreto ou exemplificativo do sig­
nificado.
Podemos, portanto, pelo menos em teoria, distinguir dois
tipos de signos: os signos arbitrários puramente indicativos e),
que remetem para mna realidade significada, se não presente
pelo menos sempre apresentável, e os signos alegóricos, que
remetem para uma realidade significada dificilmente apresen-

e) Ver P. RICOEUR, Finitude et culpahilité, p. 23. «Uma vez feita a


introdução, podemos passar sem a alegoria que se tornou inútil».
e) E. CASSIRER, Philosophie des symbolischen Formen, III, p. 285.

9
A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

tável . Estes últimos signos são obrigados a figurar concreta­


mente uma parte da realidade que significam.
Finalmente, chegamos à imaginação simbólica propria­
mente dita quando o significado não é de modo algum apre­
sentável e o signo só pode referir-se a um sentido e não a uma
coisa sensível. Por exemplo, o mito escatológico que coroa a
obra Fedon é um mito simbólico dado que descreve o domí­
nio interdito a qualquer experiência humana, o além da morte.
Do mesmo modo, podemos distinguir, nos Evangelhos, as
«parábolas» que são verdadeiros conjuntos simbólicos do Reino
e os s imples «exemplos» morais: o Bom Samaritano, Lázaro
e o Mau Rico, etc., que são apenas apólogos alegóricos (4). Por
outras palavras, podemos definir o símbolo, como A. La-��
lande (5), como qualquer signo concreto que evoca, através de

·�
uma relação natural, algo de ausente ou impossível de perce­
ber, ou ainda, como Jung: «A melhor figura possível de uma .
coisa relativamente desconhecida que não conseguíamos desig­
nar inicialmente de uma maneira mais clara e mais caracterís- /
tica (6).»
O símbolo seria mesmo, segundo P. Godet C), o inverso da
alegoria: «A alegoria parte de uma ideia (abstracta) para che­
gar a uma figura, enquanto o símbolo é primeiro e em si figura
e, como tal, fonte, entre outras coisas, de ideias.» Porque o
que é próprio do símbolo é ser, além do carácter centrífugo da

(4) Ver O. LEMARIE, Initiation ou Nouveau Testament, p. 164: «Dis­


tinguimo-los das parábolas por não serem símbolos que transpõem um ensino
religioso numa ordem diferente. Os «exemplos» são tomados na própria
ordem moral da qual são casos supostos... » Ver LUC, X, 30, 37, XVI, 19,
31, etc.
(5) A. LALANDE, Vocabulaire critique et technique de la philosophie,
attigo «símbolo sentido», n.0 2.
(6) Ver C. G. JUNG, Psychologische Typen, p. 642. Ver Fr. CREU­
ZER, Symbolik und Mythologie der a/ten Volker, I, p. 70. «A diferença entre
uma representação simbólica e uma representação alegórica reside no facto
de que esta última dá unicamente uma noção geral, ou uma ideia que é dife­
rente de si mesma, enquanto a primeira é a própria ideia tornad� sensível, .
encarnada.» /
C) P. GODET, «Sujet et symbole dans les arts plastiques», em Signe
et Symbo/e, p. 125. «A figura alegórica tem o seu significado fora de si
mesma, no programa conceptual que tem a missão de ilustrar.»

10
O VOCABULÁRIO DO SIMBOLISMO

figura alegórica em relação à sensação, centrípeto. O símbolo


é, como a alegoria, recondução do sensível, do figurado ao sig­
nificado, ma� é também, pela própria natureza do significado
inacessível, epifania, isto é, aparição, através do e no signifi­
cante, do indizível (8).
Vemos, de novo, qual vai ser o domínio de predilecção do
simbolismo: o não-sensível sob todas as suas formas: incons­
ciente, metafísico, sobrenatural e surreal. Estas «coisas ausen­
tes ou impossíveis de perceber», por definição, ·vão ser, de
maneira privilegiada, os próprios sujeitos da metafísica, da arte,
da religião (9), da magia: causa primeira, fim últüno, «finali­
dade sem fim»», alma, espíritos, deuses, etc.
Mas existe um paradoxo, que convém desde já sublinhar,
nesta definição do próprio símbolo. Inadequado por essência,
isto é, pará-bola (10), de uma maneira ainda mais radical do que
as imagens e processos emblemáticos, o símbolo é inversa­
mente obrigado a muito menos de arbitrário, muito menos de
«convenção» do que o emblema. Dado que a re-presentação
simbólica nunca pode ser confirmada pela representação pura
e simples do que ela significa, o símbolo, em última instân­
cia, só é válido por si mesmo(11). Não podendo figurar a in­
figurável transcendência, a i magem simbólica é transfiguração
de uma representação concreta através de um sentido para sem-

(8) A liturgia cristã ortodoxa, na ornamentação do iconostase ou no


sacramento da Eucaristia, mostra bem que a imagem simbólica (ícone) é
simultaneamente anamnese cujo tipo é o sacramento de comunhão, e epi­
clese cujo tipo é o Pentecostes.
(9) É preciso notar que os filósofos utilizam signo e símbolo ao con­
trário dos teólogos e linguistas. Para estes, o signo é plenári o , ou mesmo
natural, enquanto o símbolo é que é convencional. Ver B. MOREL, Le signe
sacré, p. 37; J.-L. LEUBA, «Signe et symbole en théologie», em Signe et
symbole; P. GUIRAUD, La Sémant ique, p. 1 3.
eo) Dando ao prefixo grego «para». o seu sentido mais forte: «que não
atinge». Ver J.-L. LEUBA, op. 'cit. , p. 160: «As parábolas evangélicas são
um exemplo surpreendente desta relação simultaneamente essencial
·
c inade-
quada.» ·

(11) Ver P. GODET, op. cit., p. 120. «0 símbolo é uma figura que é
válida, não precisamente para si mesma, porque nesse caso não seria sím­
bolo de nada, mas por si mesma.»

11
r
I

A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

pre abstracto. O símbolo é, pois, uma representação que faz


aparecer um sentido secreto, é a epifania de um mistério (12).
A metade visível do símbolo, o «significante», estará sempr ê\
carregado da máxima concreção e, como Paul Ricoeur ( 13) diz '
de u ma maneira excelente, qualquer símbolo autêntico possui
três dimensões concretas: é simultaneamente «cósmico» (isto
é, recolhe às mãos cheias a sua figuração no mundo bem visí­
vel que nos rodeia), «onírica» (isto é, enraíza-se nas recorda­
ções, nos gestos que emergem nos nossos sonhos e constituem,


como bem demonstrou Freud, a massa muito concreta da nossa
biografia mais íntima) e, finalmente, «poética», isto é, -o sím­
bolo apela igualmente à linguagem, e à linguagem que mais
brota, logo, mais concreta. Mas também a outra metade do sím--?"
bolo, a parte de invisível e de indizível que faz dela um mundo-
de representações indirectas, de signos alegóricos sempre ina­
dequados, constitui uma espécie lógica bem à parte. Enquanto
nmn simples signo o significado é limitado e o significante,
ainda que arbitrário, é infinito: enquanto a simples alegoria tra­ ·

duz um significado finito por um significante e não menos deli-


mi tado, os dois termos do Sumbolon ('4) são, por sua vez, infi­
nitamente abertos. O termo significante, o único concretamente
conhecido, remete em «extensão», se assim podetnos dizer,
para todas as espécies de «qualidades» não figuráveis, e isto
até à antinomia. É por isso que o signo simbólico, «o fogo»,
aglutina os sentidos divergentes e antinómicos do «fogo puri­
ficador», do «fogo sexual», do «fogo demoníaco e infernal» .Í
Mas, paralelamente, o termo significado, concebível no
melhor dos casos mas não representável, estende-se por todo
o un iverso concreto: mineral, vegetal, animal, astral, humano,

e2) Epiphaneia (grego): «aparição». Ver CORBIN, L'imagination créa­


tice dans le soufisme d'ihn ' Arabi: «Ü s ímbolo . . . é a cifra de um mistério»,
ou P. GODET, op. cit. , p. 1 28. «Um infinito no finito: é sem dúvida a melhor
maneira de caracterizar a essência singular que é o símbolo na arte.»
('3) P. RICOEUR, Finitude et culpabilité, II, «La symbolique du mal»,
p. 18.
( '4 ) Sobre a etimologia de Sumholon, ver R. ALLEAU, De la nature
des sym.boles, p. 14 e 49. Em grego (sumbolon) c omo em hebreu (mashal)
ou em alemão (Sinnbild), o termo que significa símbolo implica sempre a
união de duas metades: signo e significado.

12
O VOCABULÁRIO DO SIMBOLISMO

«có smi c o » , « o ntnco» ou « poético » . É por i s so q u e o


«sagrado», ou a «divindade», pode ser significado por não
importa o quê: uma pedra erguida, uma árvore gigante, uma
águia, uma serpente, u m planeta, uma encarnação humana
como Jesus, Buda ou Krishna, ou até pelo apelo à Infância que
permanece em nós.
Este duplo imperialismo (15) simultaneamente do signi-\.
- ·

ficante e do significado - na imaginação simbólica, marca


especificamente o signo simbólico e constitui a «flexibilidade»
do simbolismo ( 16). O i mperialismo do significante, que ao
repetir-se chega a integrar numa única figura as qualidades
mai s contraditórias, tal como o imperialismo do significado,
que chega a transbordar por todo o universo sensível para se
manifestar, repetindo incansavelmente o acto epifânico, pos­
suem o carácter comum da redundância. É através do poder
de repetição que o símbolo preenche indefinidamente a sua ina­
dequação fundamental. Mas esta repetição não é tautológica: é
aperfeiçoante através da acumulação de aproximações. É com­
parável nisso a uma espiral, ou melhor, a um solenóide, que
em cada volta define cada vez mais o seu objectivo, o seu cen­
tro. Isto não quer dizer que um único símbolo não seja tão
significativo como todos os outros, mas que o conj unto de
todos os símbolos sobre um tema esclarece os símbolos uns
através dos outros, acrescentando-lhes um «poder» simbólico
suplementarC7). 1
Da mesma maneira, a partir desta específica propriedade
de redundância aperfeiçoante podemos esboçar uma classifica­
ção sumária, mas cómoda, do universo simbólico consoante os
símbolos se limitam a uma redundância de gestos, de relações
linguísticas ou de imagens materializadas através de uma arte.
Uma redundância significante dos gestos constitui a classe
dos símbolos rituais: o muçulmano que na hora da oração se

es) Ver P. GODET, op. cit. , p. 1 2 1 . «Ü símbolo cuja propriedade é


manifestar um sentido de que é portador pode ser rico de numerosos senti­
dos».
e6) E. CASSIRER, An essay on man, p. 57.
e7) Veremos mais adiante que este método de «Convergência» é bem
o método por excelência da hermenêutica.

13
A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

inclina para Oriente, o padre cristão que benze o pão e o vinho,


o soldado que faz o juramento de bandeira, o bailarino, o actor
que «interpreta» um combate ou uma cena de amor dão atra­
vés dos seus gestos uma atitude significativa ao corpo ou aos
objectos que manipulam.
A redundância das relações linguísticas é significativa do
mito e dos seus derivados, como demonstrou o etnólogo Claude
Lévi-Strauss C8). Um mito - ou um conjunto de parábolas
evangélicas, por exemplo - é uma repetição de certas rela­
ções, lógicas e linguísticas, entre ideias ou imagens expressas
verbalmente. É por isso que o «Reino de Deus» é significado
nos Evangelhos por um conjunto de parábolas que constituem,
especialmente em S . Mateus C9), um verdadeiro mito simbó­
lico em que a relação semântica entre trigo e joio, pequenez
do grão de mostarda e grandeza da árvore que dele nasceu,
rede e peixe, etc., tem mais do que o sentido literal de cada
parábola.
�\
Finalmente, a imagem pintada, esculpida, etc., tudo o q �:
se poderia chamar símbolo iconográfico, constitui múltiplas
redundâncias: «cópia» redundante de um sítio, de uma cara, de
um modelo decerto, mas também representação pelo especta­
dor daquilo que o pintor já representou tecnicamente . . . Nos
casos dos ícones religiosos existe mesmo «cópia» em vários
exemplares de um mesmo modelo: cada estatueta da Nossa
Senhora de Lurdes é a Imaculada Conceição única, o altar de
cada igreja é simultaneamente o Cenáculo e o Gólgota. Mas,
mesmo no caso de uma simples pintura profana, a Gioconda
por exemplo, percebe-se bem este poder da imagem simbólica:
o «modelo» Mona Lisa desapareceu para sempre, não sabemos
nada dele, no entanto, o seu retrato mantém presente esta
ausência definitiva. Cada espectador que visita o Luvre repete
sem saber o acto redundante de Da Vinci e a Gioconda surge-

(f8) Ver Cl. LÉVI-STRAUSS, Anthropologie structurale, cap. XI: «Les


structures des mythes», p. 227. Este autor mostra que sob o «diacronismo»
aparente da narrativa é o «Sincronismo» das sequências -isto é, das redun­
dâncias - que é significativo. Ver G. DURAND, Les structures anthropo­
logiques de l'imaginaire, pp. 397 e segs.
C9) S. Mateus, 13-3, 24-31, 31-33, 31-44, 45-46, 47-51.

14
O VOCABULÁRIO DO SIMBOLISMO

-lhe concretamente numa inesgotável epifaniae0). É certo que


existem variações na intensidade simbólica de urna imagem
pintada e na intensidade significativa do sistema de redundân­
cias iconográficas. A imagem veicula mais ou menos «sen­
tido». E, tal como foi dito, Os peregrinos de Emaús de Rem­
brandt são incontestavelmente mais ricos deste ponto de vista
do que O boi esfoladoe1). Do mesmo modo, a intenção sim­
bólica de um ícone bizantino ou de um Giotto é mais intensa
do que a do pintor impressionista que só se interessa pela
«súmula» epidérmica da luz. Uma pintura ou uma escultura
com valor simbólico é a que possui o que Étienne Souriau
denomina - com um termo que tão bem se justifica, como
veremos - «0 Anjo da Obra» , isto é, que encobre um «con- ..,.
teúdo para além» e2).
O verdadeiro «Ícone» é «instaurador» de um sentido, a
simples imagem - que depressa se perverteu em ídolo ou em
feitiço - é clausura sobre si mesmo, rejeição do sentido,
«cópia» inerte do sensível. No domínio do ícone mais simbo­
licamente intensivo, parece que, do ponto de vista do consu­
midor, é o ícone bizantino que melhor satisfaz o imperati vo
da recondução e3) e, do ponto de vista do produtor e do con­
sumidor, é a pintura Tchan e taoísta, que reconduz o artista
chinês ao sentido do objecto sugerido por alguns traços ou
algumas manchas de aguarelae4).

eo) H. CORBIN (op. cit., p. 1 3) i nsistiu bastante neste poder de repe­


tição instauradora do objecto simbólico, que compara à «interpretação» musi­
cal: «0 símbolo. . . nunca é explicado uma vez por todas, mas está sempre
por decifrar de novo, do mesmo modo que uma partitura musical nunca é
decifrada uma vez por todas, mas exige uma execução sempre nova.»
e') P. GODET, op. c:it., p. 106.
e2) Ver E. SOURIAU, L'omhre de Dieu, Paris, 1955, p. 167 e tam­
bém pp. 1 33- 1 44, 152- 1 53, 280-282. Cf. o que FOCILLON denomina a aura
que transfigura a obra (La vie des formes, Paris, Leroux, 1 934 [A Vida das
Fonnas, Edições 701); ver igualmente H. CORBIN, op. cit., p. 2 1 5, n.0 1 0,
e P. GODET, op. cit. , p. 1 27.
e3) O ícone é definido como anamnese pelo VII Concílio Ecuménico
(787, N iceia).
e4) Para todo o Extremo-Oriente sino-japonês a beleza concreta, como
para Platão, é recondução iluminante à beleza em si e ao além inefável da
beleza. Sobre o pintor chinês Yu-Ko, foi afirmado que, quando pintava bam-

15
A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

Vamos deter-nos, por agora, nesta definição, nestas pro­


priedades e nesta sumária cl assificação do símbo lo como
«signo que remete para um indizível e invisível significado e,
deste modo, sendo obrigado a encarnar concretamente esta ade­
quação que lhe escapa, e isto através do jogo das redundân­
cias míticas, rituais, iconográficas, que corrigem e completam
inesgotavelmente a inadequação».
Vemos de imediato que tal modo de conhecimento nunca
adequado, nunca «obj ectivo», dado que nunca atinge um
objecto e que se pretende sempre essencial porque se basta a
si próprio e que traz em si mesmo, de modo escandaloso, a
mensagem imanente de uma transcendência, nunca explícita
mas sempre ambígua e geralmente redundante, verá, ao longo
da história, numerosas acções religiosas ou filosóficas levan­
tar-se contra ele. É este conflito que vamos assinalar sucinta­
mente no primeiro capítulo deste livro. Mas, depois de termos
verificado que, apesar da ofensiva de toda uma civilização, o
símbolo está de boa saúde e que a própria abordagem do pen­
samento ocidental contemporâneo deve, de boa ou má vontade,
sob pena de alienação, encarar melodicamente o «facto» sim­
bólico, estudaremos nos capítulos seguintes a realidade sim­
bólica e os métodos da simbologia. Finalmente, nos últimos
capítulos, tendo mostrado a via de apaziguamento no conflito
entre a Razão e a Imagem, poderemos com serenidade, tendo
em conta os resultados trazidos pelos métodos da hermenêu­
tica, encarar a possibilidade de uma ciência e de um saber novo
baseado na simbologia e estudar as funções filosóficas do sim­
bolismo. Antes disso, vamos resumir brevemente num quadro
as principais diferenças que acabamos de estabelecer entre
signo, alegoria e símbolo.

bús «esquecia o seu próprio corpo e era transformado e m bambús». Mas


estes bambús são, por sua vez, símbolos e reconduzem a um êxtase místico.
Ver F. S. C. NORTHROP, Th e meeting of Ea st a nd West, p. 340.

16
QUADRO 1
Os modos de conhecimento indirecto

O signo
A alegoria O símbolo
(sentido estrito)

Arbitrário. Não arbitrário, ilus­ Não arbitrário.


tração geralmente
convencional do Não convencional.
significado.
Pode ser uma parte, Reconduz à signifi­
Significante
um elemento, uma cação.
qualidade do sig­ É dado em exclu­
nificado (emble­ sivo.
ma).
Adequado. Parcialmente ade­ Suficiente e inade­
quado. quado ou «para­
-bólico».

Relação Equivalência indi­ Tradução: ::::; (tra­ Epifania: <=?.


entre cativa: = duz e c o nomica­
significante mente o signifi­
e significado cado).

Pode ser apreen ­ Dificilmente captá­ Nunca pode ser


did o por outro vel por um meio captado pelo pensa­
processo de pen­ directo, geralmente mento directo.
samento. é um conceito com­
Significado plexo ou uma ideia
abstracta.
Dado antes do sig­ Dado antes do sig­ Nunca é dado fora
nificante. nificante. do processo simbó­
lico.

Semiológico Alegórico Simbólico.


(Saussure). (Jung). Semântico
Semiótica Emblemático. (Saussure).
(Jung, Cassirer). Sintemático
Qualificativos Indicativo (R. Alleau).
(Cassirer).

Signo «arbitrário» Signo «associado» (Edeline).


(Edcline).

17
CAPÍTULO PRIMEIRO

A vitória dos iconoclastas


ou o inverso dos positivismos

«0 positivismo é a filosofia que, no


mesmo movimento, suprime Deus e
clericaliza t odo o pensamento.»
JEAN LACROIX
La sociologie de Auguste Comte

Pode parecer duplamente paradoxal querer tratar do «Oci­


dente iconoclasta» . Não reserva a História cultural este epíteto
à crise que sacudiu o Oriente bizantino no séc. VII? Como pode
uma civilização que transborda de imagens, que inventou a
fotografia, o cinema, os inúmeros meios de reprodução icono­
gráfica, ser acusada de iconoclasmo?
Existem, decerto, formas de iconoclasmo. Um, por defeito,
rigorista, é o de Bizâncio que, a partir do séc. v, se manifesta
com Santo Epifânio e irá reforçar-se sob a influência do lega­
lismo judeu ou muçulmano e será mais uma exigência refor­
madora de «pureza» do símbolo contra o realismo demasiado
antropomorfo do humanismo cristológico de São Germano de
Constantinopla e, em seguida, de Teodoro Studita e ) . O outro,
mais insidioso, é de certo modo, por excesso, inverso nas suas
intenções aos dos pios concílios bizantinos. Ora, se o icono-

C) Ver V. GRUMEL, «L'iconologie de saint Germain de Constanti­


nople», em Echos d'Orie nt, t. 2 1 , p. 1 65 , e «L'iconologie de saint Théodore
Studite», em Echos d' Orient, t. 21, p. 25 7. Ver também em Dict. d'Arch éo ­
logie chrétie nne et de liturg ie, H. LECLERC, artigo sobre «Les images»,
t. VII. Ver o nosso artigo, «L'occident iconoclaste», em Cahiers int e rna ti­
onaux de sym bolism e , n.0 2, 1963.

19
A IMAGINAÇÃO SIMBÓLI CA

clasmo do primeiro tipo foi um simples acidente na ortodoxia,


vamos tentar mostrar que o iconoclasta do segundo tipo, por
excesso, por evaporação do sentido, foi o traço constituti vo e
incessantemente agravado da cultura ocidental .
Numa primeira abordagem, o «co-nascimento» simbólico,
definido triplamente como pensamento sempre indirecto, como
presença figurada da transcendência e como compreensão epi­
fânica, surge nos antípodas da pedagogia do saber tal como o
conhecimento foi instituído desde há dez séculos no Ocidente.
Se, tal como O. Spenglere), considerarmos, de modo plausí­
vel, o início da nossa civilização com a herança de Carlos
Mag�o, apercebemo-nos que o Ocidente sempre opôs aos três
critérios precedentes elementos pedagógicos violentamente
antagónicos: à presença epifânica da transcendência as Igrejas
irão opor dogmas e clericalismos; ao «pensamento indirecto»
os pragmatismos irão opor o pensamento directo, o «conceito»
- quando não é o «preceito» - e, final mente, face à imagi­
nação compreensiva, «mestra do erro e da falsidade», a Ciên­
cia levantará longas sucessões de razões da explicação semio­
lógica, assimilando aliás estas últimas às longas sucessões de
«factos» da explicação positivista. De certo modo, estes famo­
sos «três estados» sucessivos do triunfo da explicação positi­
vista são os três estados da extinção simbólica.
São estes «três estados» do iconoclasmo ocidental que
teremos de percorrer brevemente. Todavia, estes «três estados»
não têm a mesma evidência iconoclasta e, para passar do mais
evidente ao menos evidente, vamos inverter �o nosso estudo
o curso da história, tentando, . para lá do iconoclasmo dema­
siado notório do cientismo, regressar às raízes mais profundas
deste grande cisma do Ocidente relativamente à vocação tra­
dicional do conhecimento humano.

A mais evidente depreciação dos símbolos que a história


da nossa civilização nos apresenta é certamente a que se mani­
festa na corrente cientista saída do cartesianismo. É certo que,

e) O. SPENGLER, Le déclin de l'Occident, I.

20
A VITÓRIA DOS ICONOCLASTAS

como escreve de forma excelente um cartesiano contemporâ­


neo e), isto não acontece porque Descartes recusa utilizar a
noção do símbolo. Para o Descartes da III Meditação, o único
símbolo é a consciência, ela própria «à imagem e à seme­
lhança» de Deus. Continua, portanto, a ser exacto pretender
que foi com Descartes que o simbolismo vai perder o seu
direito de cidadania em filosofia. Mesmo um epistemólogo de
um não-cartesianismo tão decidido como Bachelard (4) escreve
ainda, nos nossos dias, que os eixos da ciência e do imaginá­
rio são inicialmente inversos e que o científico deve, antes de
mais, lavar o objecto do seu saber, através de uma «psicaná­
lise objectiva», de todas as pérfidas sequelas da imaginação
«deformadora». Foi bem o «reino» e) do algoritmo matemá­
tico que Descartes instaurou e Pascal matemático, católico e
místico não se enganou quando denunciou Descartes. O car­
tesianismo assegura o triunfo do «signo» sobre o símbolo.
A imaginação, como aliás a sensação, é refutada por todos os
cartesianos como a mestra do erro. É certo que, para Descar­
tes, só o universo material é reduzido ao algoritmo matemá­
tico graças à famosa analogia funcional: o mundo físico é ape­
nas forma e movimento, isto é, res extensa e, em seguida,
qualquer figura geométrica é apenas equação algébrica.
Mas este método de redução às «evidências» analíticas
pretende ser o método universal. Ele aplica-se precisamente,
mesmo e em primeiro lugar em Descartes, �o «eu penso»,
derradeiro «símbolo» do ser, é certo, mas um símbolo formi­
dável, dado que o pensamento, logo o método - isto é, o
método matemático - se torna o único símbolo do ser! O sím­
bolo - cujo significante tem apenas a diafaneidade do signo
� esbate-se pouco a pouco na pura semiologia, evapora-se,
por assim dizer, metodicamente em signo. É por este meio que,
com Malebranche e sobretudo Espinoza, o método redutor da
geometria analítica será aplicado ao Ser absoluto, ao próprio
Deus.

C) F. ALQUIÉ, «Conscience et signe dans la philosophie moderne et


le cartésianisme», em Polarité du symbole, Desclée, 1 960, p. 221.
(4) Ver G. BACHELARD, La .formation de l 'esprit scientifique.
( 5) Ver R. GUÉNON, Le regne de la quantité et le signe des temps.

21
A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

É certo que, com o séc. XVIII, se i nicia uma reacção con­


tra o cartesianismo. Mas esta reacção será apenas inspirada
pelo empirismo escolástico de Leibniz e de Newton, pois vere­
mos mais adiante que este empirismo é tão iconoclasta como
o método cartesiano.
Todo o saber dos dois últimos séculos resumir-se-á a um
método de análise e de medidas matemáticas marcado por uma
preocupação de recenseamento e de observação no qual a ciên­
cia histórica encontrará a sua medida. Foi assim que se inau­
gurou a era da explicação cientista que, no séc . XIX, sob as
pressões da história e da sua filosofia, se desvia para o posi­
tivismo (6).
Esta concepção «semiológica» do actual mundo será a
concepção oficial das Universidades ocidentais e, em especial,
da Universidade francesa, filha mais velha de Auguste Comte
e neta de Descartes. Não só o mundo é possível de explora­
ção científica, como só a exploração científica tem direito ao
título desafecto de conhecimento. Durante dois séculos a ima­
ginação é violentamente anatemizada. Brunschvicg considera­
a ainda como «pecado contra o espírito>�, enquanto Alai n não
consegue ver nela mais do que a infância confusa da cons­
ciência C). Sart_e só descobre no imaginário «nada», «obj ecto
fantasma», «pobreza essencial» (8).
Na filosofia contemporânea realiza-se, sob o impulso car­
tesiano, uma dupla hemorragia do simbolismo: quer porque se
reduz o cogito às «cogitações», e se obtém então o mundo da
ciência em que o signo só é pensado como termo adequado
de uma relação, quer porque se «quer tomar o ser interior à
consciência» (9), obtendo então fenomenologias viúvas de trans­
cendência para as quais a colecção dos fenómenos deixa de se

(6) Ver F. S. C. NORTHROP, The meeting of East and West, p. 7 1 e


segs., nas quais o autor compara este reino do algoritmo com a igualdade
política na democracia de Locke i nspiradora dos teóricos franceses da Revo­
lução.
C) Ver BRUNSCHVICG, Héritage de mots, héritage d'idées, p. 98.
ALAIN , Préliminaires à l a mythologie, p. 89 e segs. Ver GUSDORF, Mythe
et métaphysique, p. 1 74.
(8) SARTRE, L'imaginaire, pp. 82, 85, 91, 1 3 7, 174- 1 75, etc.
(9) ALQUIÉ, op. cit., p. 223.

22
A VITÓRIA DOS ICONOCLASTAS

orientar para um pólo metafísico, deixando tanto de evocar o


ontológico como de o invocar, só atingindo uma «verdade à
distância, uma verdade reduzida» e0). Em suma, podemos dizer
que a denúncia das causas finais pelo cartesianismo e a redu­
ção do ser ao tecido das relações objectivas dela resultante
liquidaram no significante tudo o que era sentido figurado, toda
a recondução à profundidade vital do apelo ontológico.
Es(e iconoclasmo radical não se desenvolveu sem graves
repercussões na imagem artística pintada ou esculpida. O papel
cultural da imagem pintada é minimizado ao extremo num uni­
verso em que o poder pragmático do signo triunfa diariamente.
Até Pascal afirma o seu desprezo pela pintura prefaciando
assim o abandono social a que é votado o «artista» pelo con­
senso ocidental, mesmo através da revolta artística do roman­
tismo. O artista, como o ícone, deixa de ter lugar numa socie­
dade que el imi nou pouco a pouco a função essencial da
imagem simbólica. Na sequência das vastas e ambiciosas ale­
gorias do Renascime_nto, vemos também a arte dos séculos XVII
e XVIII ser minimizada em puro «divertimento», em puro
«ornamento». A própria imagem pintada, tanto na alegoria tem­
perada de Le Sueur, na alegoria política de Lebrun e de David,
como na «cena típica» do século XVIII, já não procura evocar.
Desta recusa da evocação nasce o omamentalismo académico
que, dos epígonos de Rafael a Femand Léger, passando por
David e pelos epígonos de Ingres, reduz o papel do ícone ao
da decoração. Mesmo nas suas revoltas românticas e impres­
sionistas contra esta condição desvalorizada, a imagem e o seu
artista nunca irão atingir, nos tempos modernos, o poder de
significação plena que possuem nas sociedades iconófilas, na
Bizâncio macedónia como na China dos Song. E na anarquia
pululante e vingativa das imagens que subtilmente varre e sub­
merge o século XX, o artista procura desesperadamente anco­
rar a sua evocação para lá do deserto cientista da nossa peda­
gogia cultural.

eo) P. RICOEUR, op. cit., p. 70.

23
A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

Se recuarmos alguns séculos para lá do cartesianismo,


vislumbramos uma corrente ainda mais profunda de icono­
clasmo, corrente que a mentalidade cartesianact1 ) repudiará
muito menos do que se afirmou. Esta corrente é veiculada,
do século XIII ao século XIX, pelo conceptuali smo aristotélico
ou, mais exactamente, pelo desvio ockhamista e averroísta
deste último. A Idade Média ocidental retoma, por sua conta,
a velha querela filosófica da Antiguidade clássica. O plato­
nismo, tanto greco- latino, como alexandri no, é, muito ou
pouco, uma filosofia da «cifra» da transcendência, isto é,
implica uma simbólica. É certo que, a nosso ver, dez anos
de racionalismo corrigiram os diálogos do discípulo de Sócra­
tes onde já só lemos as premissas da dialéctica e da lógica
de Aristóteles, ou mesmo do matematismo de Descartesct2).
Mas a utilização sistemática do simbolismo mítico, ou mesmo
do trocadilho etimológico, no autor do «Banquete» ou do
«Timeu», basta para nos convencer que o grande problema
platónico era bem o da recondução ct3) dos objectos sensíveis
ao mundo das ideias, ·o da <<reminiscência» que, longe de ser
uma memória vulgar, é, pelo contrário, uma imaginação epi­
fânica.
No ponto extremo da aurora medieval, é ainda uma dou­
trina semelhante que Jean Scot Érigene irá defender: tornando­
-se Cristo o princípio desta reversio, inversa do creatio, atra­
vés da qual se efectuará a divinização deificatio, de todas as
coisasct4). Mas a solução adequada do problema platónico é,
afinal, a gnose valentiniana que a propõe nesse longínquo pré-

(11) E. GILSON mostrou como Descartes era herdeiro da problemática


e dos conceitos peripatéticos; ver Discours de la méthode, notas críticas de
E. GILSON, edições Vrin [Discurso do Método, Edições 70 -Lisboa].
('2) Ver L. BRUNSCHVICG, L 'expérience humaine et la causalité
physique.
{'3) H. CORBIN (op. cit., pp. 17-18) mostrou que o Islão oriental chiita,
especial mente com Ibn Arabi', dito lbn A.flatún, «filho de Platão», foi mais
protegido do que o Ocidente cristão da vaga peripatética do averroísmo, con­
servando assim intacta esta doutrina da recondução, o ta 'wfll e os privilé­
gios da imaginação epifânica (âlam al-mithâl).
{'4) Ver M. CAPPUYNE, Jean Scot Érighze, sa vie, son reuvre, sa pen­
sée, Lovaina, 1933.

24
A VITÓRIA DOS ICONOCLASTAS

-Ocidente dos primeiros séculos da era cristã. À questão que


preocupa o platonismo - «Como conseguiu o Ser sem raiz e
sem ligação chegar às coisas?» C5), colocada pelo alexandrino
Basilido - Valentino responde por meio de uma angelologia,
uma doutrina dos anjos intermediários, os Eons que são os
modelos eternos e perfeitos do mundo imperfeito porque sepa­
rado, enquanto a reunião dos Eons constitui a Plenitude (o Plé­
roma).
Estes anjos, que se encontram noutras tradições orientais
são, como mostrou Henry Corbin (16), o próprio critério de uma
ontologia simbólica. São símbolos da própria função simbó­
lica que é - como eles! mediadora entre a transcendên­
-

cia do significado e o mundo manifesto dos signos concretos,


encarnados, que se tornam símbolos através dela.
Ora, esta angelologia, constitutiva de uma doutrina do sen­
tido transcendente veiculado pelo humilde símbolo, extrema
consequência de um desenvolvimento histórico do platonismo,
vai ser repelida em nome do «pensamento directo» pela crise
dos universos que o conceptualismo aristotélico abre no Oci­
dente. Conceptualismo cada vez mais carregado de empirismo
ao qual, no seu conjunto, o Ocidente será fiel durante cinco a
dez séculos pelo menos (se dermos por encerrada a era peri­
patética em Descartes, sem ter em conta o conceptualismo kan­
tiano ou o positivismo de Comte . . . (17)). O aristotelismo medie­
val, nomeadamente o proveniente de Averróis, do qual se

e5) Título do XIII livro dos Commentaires des Evangiles, de Basilide.


Ver F. SAGNARD, La gnose valentinienne et le témoignage de saint Iré­
née, Paris, Vrin, 1 947. Ver S. HUTIN, Les gnostiques, p. 40. «Estas enti­
dades meio-abstractas, meio-concretas, movem-se num domínio intermédio
[o sublinhado é nosso] entre a realidade e o mito».
e6) H. CORBIN, op. cit. , p. 16.
('7) Pode parecer estranho querer reabsorver uma parte do positivismo
na idade «metafísica» do peripatetismo. No entanto, o próprio COMTE se
reclama explicitamente de Aristóteles: ele vê no conceptualismo biológico
de Stagirite o próprio modelo da série constitutiva dos famosos três estados:
a série «este artifício biológico, gradualmente elaborado desde Aristóteles . . .
para instituir uma i mensa escala destinada a li gar o homem ao vegetal . . . »
(Cathéch. positiviste, p. 128, ed. Péchut.) Não podemos dizer melhor: o modo
de ligação, bem positivo, é o do vegetal ao homem, e não como o de Pla­
tão, do homem à ideia pelo meio termo simbólico.

25
A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

reclamaram Siger de Brabante e Ockham, é a apologia do


«pensamento directo» ( 18) contra todos os prestígios do pensa­
mento indirecto. O mundo da percepção, o sensível, deixa de
ser o mundo da intercessão ontológica onde se epifaniza um
mistério, como acontecia com Scot Érigene ou com São Boa­
ventura. É um mundo material, o do lugar próprio, separado
de um motor imóvel tão abstracto que não merece o nome de
Deus. A «física» de Aristóteles, que a Cristandade irá adoptar
até Galileu, é a física de um mundo desafeiçoado, combinató­
ria de qualidades sensíveis que só reconduzem ao sensível ou
à ilusão ontológica que baptiza com o nome de ser a cópula
que une um sujeito a um atributo. O que Descartes irá denun­
ciar nesta física de primeira instância não é a sua positividade
mas a sua precipitação.
É certo que, para o conceptualismo, a ideia possui bem
uma realidade in re, na coisa sensível donde o intelecto vai
extraí-la, mas ela só conduz a um conceito, a uma definição
terra a terra que se proclama sentido próprio, deixando de
reconduzir, de impulso meditativo em impulso meditativo como
a ideia platónica, ao sentido transcendente supremo que está
«para além do ser em dignidade e em poder». Sabemos com
que facilidade este conceptualismo irá esbater-se no nomina­
lismo de Ockham. Os comentadores dos tratados de física peri­
patética não estão de modo algum errados ('9) quando opõem
os historiai' (as inquirições) aristotélicas, tão próximas no seu
espírito da entidade «historiadora» do positivismo moderno, às
mirabilia (os acontecimentos raros e maravilhosos) ou então
às idiotes (acontecimentos singulares) de todas as tradições her-

es) Sobre G. d'Ockham, ver L. BAUDRY, Le Tractatus de principiis


heologiae attribué à G. d 'Ockham, Vrin, 1 936; ver E. GILSON, La philo­
sophie au Moyen Age. Sobre Averróis, ver L. GAUTHIER, Accord de la
religion et de la philosophie, tratado de lbn Rochd, traduzido para francês
e anotado, Argel, 1 905. P. MANDONELL, Siger de Brabant et l 'averroisme
latin au X/Ir siecle, Lovaina, 1 908- 1 9 1 1.
e9) Ver P. FESTUGUIERE, La révélation d'Hermes Trismégiste, I, p.
1 94: «E na medida em que os antigos e também os bizantinos, e depois a
Idade Média tiveram alguma ideia do método científico, devem-no ao Sta­
girite ou à longa linhagem dos seus comentadores, de Alexandre de Afro­
disias a Filopon».

26
A VITÓRIA DOS ICONOCLASTAS

méticas. Estas últimas procediam por relações «simpáticas» ,


por homologias simbólicas e0).
Este deslizar para o mundo do r�_alismo perceptivo, onde
o expressionismo - ou mesmo o sensualismo - substitui a
evocação simbólica, é dos mais visíveis na passagem da arte
românica para a arte gótica. A primavera românica viu flores­
cer uma iconografia simbólica herdada do Oriente, mas esta
primavera foi mais breve relativamente aos três séculos de arte
«ocidental», de arte dita gótica e1). A arte românica é uma arte
«indirecta», com muito de evocação simbólica,' em compara­
ção com a arte gótica tão «directa», cujo prolongamento natu­
ral será a pintura flamejante e renascentista. O que transparece
na encarnação escultural do símbolo românico é a glória de
Deus e a sua vitória sobre-humana sobre a morte. O que a
estatuária gótica mostra cada vez mais são os sofrimentos do
homem-Deus e2).
Enquanto o estilo românico, ainda que com menos conti­
nuidade "ôo que Bizâncio e3), conserva uma arte do ícone que
assenta no princípio teofânico de uma angelologia, a arte gótica
surge no seu processo como o próprio tipo do iconoclasmo por
excesso: acentua a tal ponto o significante que desliza do ícone
para a imagem muito naturalista que perde o seu sentido
s_Mrado e se torna simples ornamento realista, simples «objecto
de arte». Paradoxalmente, é menos o purismo austero de
S. Bernardo que é iconoclasta do que o realismo estético dos
góticos alimentados pela escolástica peripatética de S. Tomás.
É certo que esta depreciação do «pensamento indirecto» e da

eo) lbid. , pp. 1 96- 1 97, sobre a literatura «simpática» de Bolos, o Demo­
criti ano, autor de um Traité des sympathies et antipathies.
(21 ) Ver E. MALE, L 'art religieux du Xl/e siecle en France ; ver
M. DAVY, Essai sur la symbolique romane, e O. BEIGBEDER, L'icono­
graphie religieuse des pays entre Rhône et Loire.
( 22 ) A arte românica, especialmente a das regiões cátaras, seria facil­
mente suspeita de «docetismo», heresia que leva a crer que Cristo não foi
realmente de carne e osso. Para Basilide, como para Valentino, e mais tarde
os cátaros, a crucificação de Jesus é um escândalo e a cruz objecto de repulsa
(ver VALENTINO, citado por Clemente de Alexandria, Stromates, III, 6, 59).
(23 ) O cisma só data de I 054 e só será realmente consumado na aurora
do século X I I I , com o saque de Constantinopla pelos Cruzados ( 1 204 ).

27
A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

evocação angélica que lhe está intimamente ligada através do


bom-senso terra-a-terra da filosofia aristotélica e do averroismo
latino, não se realizará em um dia. Haverá as resistências mal
dissimuladas : o florescimento da cortesia, do culto do amor
platónico dos FedeU d 'Amore, o renascimento franciscano do
simbol ismo com São Boaventura e4). É necessário assinalar
também que no realismo de certos artistas, por exemplo de
Memling e mais tarde de Bosch, transparece uma mística oculta
que transfigura a minúcia trivial da visão e5). Mas não é menos
verdade que o regime de pensamento que o Ocidente «faus­
tiano» do século XIII adopta, ao fazer do aristotelismo a filo­
sofia oficial da cristandade, é um regime que privilegia o «pen­
samento directo» em detrimento da imaginação simbólica e dos
modos de pensamento indirecto.
A partir do século XIII, as artes e a consciência deixam de
ter a ambição de reconduzir a um sentido, preferindo «copiar
a natureza» e6). o conceptualismo gótico pretende ser um rea­
lismo que decalca as coisas tal como s ão . A imagem do
mundo, quer seja pintada, esculpida ou pensada, des-figura-se
e substitui o sentido da Beleza e a invocação ao Ser pelo
maneirismo do bonito ou pelo expressionismo dos pavores da
fealdade. Podemos escrever que se o cartesianismo e o cien­
tismo dele resultante eram um iconoclasmo por defeito e des­
prezo generalizado da imagem, o iconoclasmo peripatético é o
tipo de iconoclasmo por excesso: no símbolo, despreza o sig-

e4) Convém sublinhar aqui o contraste que ao longo dos séculos irá
opor o pensamento franciscano, de obediência platónica, ao pensamento
dominicano, que se tornará o bastião do tomismo. É certo que Eckhart foi
domi nicano, mas um dominicano condenado pela sua ordem . . .
e5) É preciso assinalar que esta transfiguração d o realismo se efectua
nos países do Norte da Europa menos «romanos» e onde se desenvolve a
Reforma. O realismo de Caravagio e de Ribera manter-se-á ao simples nível
do expressionismo.
e6) A poética de Aristóteles que será a bíblia da estética ocidental antes
do romantismo assenta essencialmente na noção de imitação. A imitação é
apenas a degeneração extrema da redundância: quando figura o Cristo, o
ícone bizantino repete incansavelmente a Santa Face, enquanto Grunewald
ou até Van der Weyden se limitam a copiar um modelo humano, demasi­
ado humano.

28
A VITÓRIA DOS ICONOCLASTAS

nificado para só se ligar à epiderme do sentido, ao significante.


Toda a arte, toda a imaginação, é colocada exclusivamente ao
serviço do desejo fastuoso e conquistador da cristandade.
É certo que a consciência do Ocidente tinha sido preparada,
ainda mais profundamente, para este papel ornamentalista por
uma corrente de iconoclasmo mais primitiva e mais funda­
mental que teremos de examinar agora.

O racionalismo, aristotélico ou cartesiano, detém a imensa


vantagem de se pretender uni versai por partilha individual do
«bom-senso» ou do «senso comum». O mesmo não acontece
com as imagens: elas estão submetidas a um acontecimento, a
uma situação histórica ou existencial que lhes dá cor. É por
isso que uma imagem simbólica precisa constantemente de ser
revivida, um pouco como um trecho de música ou um herói
de teatro precisam de um «intérprete». E o símbolo, como qual­
quer imagem, é ameaçado pel o regionalismo do significado e
corre o ri sco de se transformar em cada instante naquilo a que
R. All eau chama aj uizadamente mn «sintema» e7), isto é, uma
imagem que, antes de mais, tem por função um reconhecimento
social, uma segregação convencional. Poderemos dizer que se
trata aqui de um símbolo reduzido ao seu poder sociológico.
Qualquer «convenção», ainda que animada das melhores i nten­
ções de «defesa simbólica» é fatalmente dogmática e8). No
plano da recondução ontológica e da vocação pessoal, produz­
-se uma degenerescência que o pastor Bernard Morei distin­
gue bastante bem e9) : «A teologia latina traduziu a palavra
grega "mistério" por "sacramento", mas a palavra latina não
abrange toda a riqueza da palavra grega. Existe no mistério
grego uma abertura ao céu um respeito do inefável, um rea­
lismo espiritual, uma força na exultação e0), que não expri-

e7) R. ALLEAU, De la nature des symboles.


eK) Ver B. MOREL, Le signe et le sacré, p. 1 86: «Les conventions
sacramentaires».
e9) Op. cit. , p. 23 .
C0) o sublinhado é nosso.

29
A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

mem a moderação lógica e concisão jurídica do sacramenta­


lismo romano.» Estas virtudes de abertura sobre a transcen­
dência no seio da livre imanência vão ser perdidas pela ima­
gem simbólica. Tornando-se sintema, ela funcionaliza-se,
teríamos quase vontade de dizer, relativamente aos clericalis­
mos que vão defini-la, que se torna funcionária. A imagem
simbólica, ao encarnar-se numa cultura e numa linguagem cul­
tural corre o risco de esclerosar-se em dogma e em sintaxe.
É neste ponto que a escrita ameaça o espírito quando a poé­
tica profética é suspeita e amordaçada. É verdade que um dos
grandes paradoxos do símbolo é ser apenas expresso por uma
«escrita» mais ou menos sintemática. Mas a inspiração sim­
bólica pretende ser prevenção do espírito para lá da escrita sob
pena de morte. Ora, toda a Igrej a é funcionalmente dogmática,
está institucionalmente ao lado da escrita. Uma Igreja, como
corpo sociológico «COrta O mundo em dois: OS fiéis e OS sacrÍ­
l�gos» C1), especialmente a Igreja romana que, no momento
culminante da sua história, agarrando com mão firme o gume
dos «dois gládios», não podera--admitir a liberdade de inspira­
ção da imaginação simbólica. Como já dissemos, a virtude
essencial do símbolo é assegurar no seio do mistério pessoal
a própria presença da transcendênc ia. Esta pretensão surge
num pensamento de igreja como uma porta aberta ao sacrilé­
gio. Quer o legali smo religioso sej a farisaico, sunita ou
«romano», defronta-se sempre, fundamentalmente, com a afir­
mação que existe para cada individualidade espiritual uma
«inteligência que age separadamente, o seu Espírito-Santo o
seu Senho r pessoal, ligando-o ao Pleroma sem qualquer outra
medi ação» C2) . Por outras palavras, no processo simbólico
puro, o Mediador, Anjo ou Espírito-Santo C3) é pessoal, emana

e 1 ) B. MOREL, op. cit. , p. 32.


e2) H. CORB IN, op. cit. , p. 160, que mostra bem a ligação entre a
heresia gnóstica e o simbolismo quando escreve: «É possível distinguir na
oposição que ocasionou a queda do avicenismo latino ... razões iguais às que
motivaram os esforços da grande Igreja, nos primeiros séculos, para elimi­
nar a gnose. Contudo, esta eliminação assegurou antecipadamente, com todas
as suas implicações, a vitória do averroísmo»
e3) Ver B. MOREL, op. cit. , p. 1 93 , que define o Espírito Santo como
uma inserção p essoal da energia divina: «É necessário admitir um ponto de

30
A VITÓRIA DOS ICONOCLASTAS

de certo modo do exame livre, ou melhor, da livre exultação,


escapando assim a qualquer formulação dogmática imposta
do exterior. A ligação da pessoa com o Absoluto ontológico,
por intermédio do seu anjo, escamoteia mesmo a segregação
sacramental da IgrejaC4) . Como no platonismo, especialmente
no platonismo valentiniano, sob a capa da angelologia, existe
relação pessoal com o Anjo do Conhecimento e da Revela­
ção C5) .
Todo o simbolismo é, pois, uma espécie de gnose, isto é,
um processo ·ae · mediação por meio de um conhecimento con­
creto e experimental C6) . Como uma determinada gnose, o
símbolo é um «conhecimento beatificante», um «conhecimento
salvador» que, previamente, não tem necessidade de um inter­
mediário social, isto é, sacramental e eclesiástico. Mas esta
gnose, . porque concreta e experimental, terá sempre tendência
a -fi gurar o anj o dentro dos mediadores pessoais do segundo
grau: profetâs, messias e, sobretudo, a mulher. Para a gnose

incidênci a da energia divina no organismo humano, a menos que se faça


coexistir dois tipos de vida heterogéneos na mesma pessoa.»
e4) A Igrej a ortodoxa oficializa, no entanto, esta ligação pessoal no
sacramento do crisma (myron) que faz de todo o confirmado um «Porta­
dor do Espírito Santo» (pneumatophore). A Igreja ortodoxa insiste também
na confirmação individual do Pentecostes «línguas de fogo . . . pousaram em
cada um deles . . . », ver O. CLEMENT, op. cit. , pp. 81 e 82.
e5) H. CORBIN, op. cit. , p. 1 6. Aliás, o autor subli nha um notável
paralelismo entre as perseguições da Igreja romana em relação às seitas mís­
ticas - gnósticos, cátaros, etc. - e as do Islão sunita em relação à mística
sufi.
e6) Escrevemos «Uma espécie de g nos e», porque a gnose propriamente
dita é um processo bastardo de racionalismo e de dogmatismo defensivo,
como bem viu P. RICOEUR (Finitu des et cu lpabilité, p. 1 56): «A gnose é
o que recolhe e desenvolve o momento etiológico do mito.» Todavia, o que
H. C. Puech escreve sobre a gnose pode perfeitamente aplicar-se ao conhe­
cimento simbólico: «Chama-se ou pode chamar-se gnosticismo - e também
gnose - qualquer doutrina ou atitude religiosa baseada na teoria ou na expe­
riência interna, chamada a tornar-se estado inamissível . . . através da qual, no
decurso de uma i luminação, o homem se reassume na sua verdade, torna a
recordar-se de si . . . e, por essa via, se conhece ou se reconhece em Deus . . . »,
PUECH, «Phénoménologie de la gnose», em A n na les du Colleg e d e Fra nce,
n.0 53, pp. 1 68-1 69. Ver S. PETREMENT, Le dualisme ch ez Plato n, les
gnostiqu es et les manich éens, Presses Universitaires de France, 1 947.

31
A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

propriamente dita, os «anjos supremos» são Sofia, Barbeló,


Nossa Senhora do Espírito Santo , Helena, etc . , cuja queda e
salvação representam as próprias esperanças da via simbólica:
a recondução do concreto ao seu sentido iluminador. Porque
a Mulher, como os Anj os da teofania plotiniana, possui, ao
contrário do homem, uma dupla natureza que é a dupla natu­
reza do próprio «symbolon»: criadora de um sentido e ao
mesmo tempo receptáculo concreto desse sentido. A femini­
dade é a única mediadora porque simultaneamente «passiva»
e «activa». Foi o que Platão já tinha expresso, é o que exprime
tanto a figura judia da Schekinah como a figura muçulmana
de Fátima C7) . A Mulher é, pois, como o Anjo, o símbolo dos
símbolos, tal como aparece na mariologia ortodoxa sob a
figura da Teotokos, ou na liturgia das Igrejas cristãs, que se
comparam facilmente, como i ntermediária suprema, como
«Esposa» C8).
Ora, é significativo que todo o misticismo do Ocidente
venha banhar-se nestas fontes platónicas. Santo Agostinho
nunca renegou completamente o neo-platonismo. E foi Scol
Érigenes que introduziu no Ocidente, no século IX, os escritos
de Dinis, o Areopágita C9). Bernard de Clairvaux, como o seu
amigo Guillaume de Sai nt-Thierry, como Hildegardo de B in­
gen (40) , são todos familiares da anamnese platónica. Mas face
a esta transfusão do misticismo, a Igrej a vigia funcionalmente
com suspeição.

C7) Não só o Amor (Eros) é em Platão o próprio tipo do intermediá­


rio (Banquete, 203 h-e) que a iconografia antiga apresenta como um «demó­
nio» alado, como também (Timeu, 480 e segs.) Platão coloca entre o modelo
inteligível e o mundo sensível um misterioso intermediário: «Ü Receptáculo»,
«A Ama», «A Mãe» . . . Ver as ressurgências platónicas na Madonna intelli­
genzia dos platónicos da Idade Média e na figura de Fátima-Criação do
sufismo, em H. CORBIN, op. cit. , p. 1 1 9 e segs. Sobre a Schekinah, ver
G. VADJA, Juda hen Nissim ibn Malka, philosophe ju�f marocain.
C8) Ver B. MOREL, op. cit. , p. 2 1 0.
C9) «Des noms divins», «De la théologie mystique», «De la hiérarchie
céleste» (Ver Euvres Completes, ed. M. de GANDILLAC), títulos signifi­
cativos que remetem tanto para a doutrina j udaica dos nomes divinos como
para a angelologia oriental.
(40) Ver LEISEGANG, La gnose, p. 25 e segs.

32
A VITÓRIA DOS ICONOCLASTAS

Chegamos aqui ao factor mais importante do iconoclasmo


o�deptal, porque a atitude dogmática implica uma recusa cate­
górica do ícone como abertura espiritual por uma sensibilidade,
uma epifania de comunhão individual. Para as Igrejas orien­
tais, o ícone é, na verdade, pintado segundo meios canonica­
mente fixados, e fixados, segundo parece, de modo mais rígido
do que na iconografia ocidental. Mas não deixa de ser menos
verdade que o culto dos ícones utiliza plenamente o duplo
poder de recondução e de epifania sobrenatural do símbolo. Só
a Igreja ortodoxa, aplicando plenamente as decisões do VII
Concílio ecuménico, que prescreve a veneração dos ícones, dá
totalmente à imagem o papel sacramental da «dupla depen­
dência», o que implica que, por meio da imagem, do signifi­
cante, as relações entre o significado e a consciência de ado­
ração «não sej am puramente convencionais, mas radicalmente
íntimas»(4 1). Só então se revela o papel profundo do símbolo:
ele é «confirmação» de um sentido a uma liberdade pessoal.
É por isso que o símbolo não pode explicitar-se: a alquimia da
transmutação;-- da transfiguração simbólica só pode, em última
instância, efectuar-se na experiência de uma liberdade. E o
poder poético do símbolo define a liberdade humana melhor
do que qualquer especulação filosófica: esta última obstina-se
a ver na liberdade uma escolha objectiva, quando na expe­
riência do símbolo demonstramos que a liberdade é criadora
de um sentido: ela é poética de uma transcendência no seio
do sujeito mais objectivo, do mais implicado no acontecimento
concreto. Ela é o motor da simbólica. É a Asa do Anjo (42).

(4 1 ) Ver B. MOREL, op. cit. , p. 1 95 e segs. : «As submissões litúrgi­


cas.» Ver Olivier CLÉMENT, op. cit. , p. 1 07, «0 Cristo não é apenas o
Verbo de Deus mas a sua imagem. A encarnação é a base do ícone e o
ícone prova a Encarnação. . . A graça divina assenta no ícone.» Este papel
de intermediário que o ícone desempenha é simbolizado pela própria ico­
nostase que, no seu centro representa sempre a Deesis (a intercessão) figu­
rada pela Virgem e S. João, ,os dois grandes intercessores.
(42) É por isso que, ,noS\ gregos, a iconografia e a própria etimologia
da «alma» fazem desta uma filha do ar, uma filha do vento. A alma é alada
como a Vitória, e quando bELACROIX pinta a Liberdade no topo da bar­
ricada, ou quando RUDE esculpe no arco do triunfo, estão a reencontrar
espontaneamente o voo da Vitória de Samotrácia.

33
A IMAGIN AÇÃO SIMBÓLICA

Henri Gouhier escreve algures que a Idade Média se extin­


gue quando desaparecem os Anjos. Podemos acrescentar que
uma espiritualidade concreta é encoberta quando os ícones per­
dem o seu destino e são substituídos pela alegoria. Ora, nas
épocas de recuperação dogmática e de endurecimento doutri­
nal, no apogeu do poder papal sob Inocêncio III ou após o
Concílio de Trento, a arte ocidental é essencialmente alegó­
rica. A arte católica romana é uma arte ditada pela formula­
ção conceptual de um dogma. Não reconduz a uma ilumina­
ção, «ilustra» simplesmente as verdades da Fé dogmaticamente
definidas. Dizer que a catedral gótica é uma «bíblia de pedra»
não implica de modo algum que em relação a ela seja tole­
rada qualquer interpretação livre, q� e a Igrej a recusa para a
própria Bíblia escrita. Esta expressão significa simplesmente
que a escultura, o vitral, o fresco, são ilustrações da interpre­
tação dogmática do Livro. Se a grande arte cristã se confunde
com a arte bizantina e a arte românica (que são artes do ícone
e do símbolo), a grande arte católica (arte que sustenta toda a
sensibilidade estética do Ocidente) confunde-se com o «rea­
lismo» e o ornamentismo gótico como com o ornamentismo e
o expressionismo barroco . O pintor do «triunfo da Igreja» é
Rubens, não Andrey Rublev ou mesmo Rembrandt.

Assim, na aurora do pensamento contemporâneo, no ins­


tante em que a Revolução francesa vai acabar de desarticular
os suportes culturais da civilização do Ocidente, percebe-se que
o iconoclasmo ocidental sai consideravelmente reforçado de
seis séculos de «progresso da consciência» . Porque, se o dog­
matismo da escrita, o empirismo do pensamento directo e o
cientismo semiológico são iconoclasmos divergentes, o seu
efeito comum não deixa de se ir reforçando ao longo da his­
tória. De tal modo que é esta acumulação dos «três estados
das nossas concepções principais» que A. Comte vai notar (43)
e que vai fundar o positivismo do século XIX. Porque o posi-

(43) Ver A. COMTE, Cours de philosophie positive, l .a lição.

34
A VITÓRIA DOS ICONOCLASTAS

ti vis mo que Comte destaca do balanço da história ocidental do


pensamento é simultaneamente dogmatismo «ditatorial» e «cle­
rical», pensamento directo ao nível dos «factos» «reais» por
oposição às «quimeras», e legalismo cientista (44). Para retomar
uma expressão que Jean Lacroix (45) aplica ao positivismo de
Auguste Comte, poderíamos dizer que a «redução» progressiva
do campo simbólico conduz, no despontar do século XIX, a
uma concepção e a um papel excessivamente «acanhado» do
simbolismo. Podemos justamente interrogar-nos se estes «três
estados»» que são os estados do progresso da consciência não
são três etapas da obnubilação e sobretudo da alienação do
espírito. Dogmatismo «teológico», conceptualismo «metafísico»
com os seus prolongamentos ackhamistas e, finalmente, semio­
logia «positivista», são apenas uma extinção progressiva do
poder humano de relação com a transcendência, do poder de
mediação natural do símbolo.

(44) Ver A. COMTE, Systhn e de politique positive. Ver J. LACROIX,


út sociologie d 'Auguste Comte, e a importantíssima e monumental obra de
H. GOUHIER, Lo jeunesse d'Auguste Comte et la formation du positivisme
(3 vols.).
(45 ) J . LACROIX, op. cit. , p. 1 03 ; ver p. 1 08 : «0 positivismo é a filo­
sofia que, no mesmo movimento, suprime Deus e clericaliza todo o pensa­
mento»; p. 1 1 0: «Só se escapa à tirania política para cair no despotismo
espiritual.»

35
! •.
-, .

,}


CAPÍTULO II

As hermenêuticas redutoras

«Analisar intelectualmente um sím­


bolo, é descascar uma cebola para
encontrar a cebola.»
Pierre EMMANUEL
Considération de l 'extase

O nosso tempo retomou a consciência da importância das


imagens simbólicas na vida mental, graças à contribuição da
patologia psicológica e da etnologia. Uma e outra destas duas
ciências parecem ter subitamente revelado, recordado ao indi­
víduo normal e civilizado que toda uma parte da sua repre­
sentação confinava singularmente com as representações do
neurótico, do delírio ou dos «primitivos». Os métodos que
comparam a «loucura» com a razão sã, a lógica eficaz do civi­
lizado com as mitologias dos «primitivos» tiveram imenso
mérito de chamar a atenção científica para o denominador
comum da comparação: o reino das imagens, o mecanismo
através do qual se associam os símbolos e a investigação no
sentido mais ou menos vedado das imagens, ou hermenêutica.
Mas se a psicanálise, como a antropologia social, redes­
cobre a importância das imagens e rompe revolucionariamente
com oito séculos de recalcamento e de coerção do imaginário,
estas doutrinas só descobrem a imaginação simbólica para ten­
tar integrá-la na sistemática intelectualista em vigor, para ten­
tar reduzir a simbolização a um simbolizado sem mistérios. São
estes processos de redução do simbolizado a dados científicos
e do símbolo ao signo, que precisamos de estudar agora e, em
primeiro lugar, no sistema da psicanálise.

37
A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

«Ü tão famoso freudismo é uma


arte de inventar em cada homem um
animal temível, segundo signos per­
feitamento ordinários . . . !»

ALAIN
Eléments de philosophie

É-nos indispensável resumir muito grosseiramente o que


constitui a armadura da doutrina freudiana para melhor fazer
compreender qual é a concepção redutora do método psicana­
lítico e ).
O primeiro princípio de Freud, é que existe uma casuali­
dade especificamente psíquica, por outras palavras, que inci­
dentes psíquicos, ou mesmo fisiológicos, não têm forçosamente
uma origem orgânica. Daí resulta, sobretudo, que um determi­
nismo reina tão estritamente no universo psíquico como no uni­
verso material e).
O segundo princípio de Freud, que decorre do exercício
deste esforço terapêutico para exumar as causas psíquicas,
cujos efeitos significativos são as neuroses, é que existe um
inconsciente psíquico, reservatório concreto de toda a biogra­
fia do indivíduo, conservatório de todas as causas psíquicas
«esquecidas».
O terceiro princípio, é que existe uma causa para o apa­
gamento, para o próprio esquecimento. É a censura, isto é, uma
oposição, um interdito social, na maioria dos casos parental,
que é a verdadeira causa ocasional da emergência do efeito

C) É necessário fazer referência aos escritos do próprio FREUD, em


especial: Introduction à la psychanalyse, Payot, 1 926; L 'interprétation des
rêves, Presses Universitaires de France, 1 967; Essais de psychanalyse, Payot,
1 936. Podemos também consultar as duas obras monumentais: E. JONES,
La vie et l 'reuvre de S. Freud, 3 tomos, Presses Universitaires de France, e
R. DALBIEZ, úz méthode psychanalytique et la doctrine freudienne, 2 vo1s.,
Desclée de Brouwer, 1 949.
e) Sobre a negação da liberdade por FREUD, ver Introduction à la
psychanalyse, pp. 3 8-59.

L
38
AS HERMENÊUTICAS REDUTORAS

neurótico. A censura recalca no inconsciente o que ela marca


como interdito e).
O quarto princípio, ou causa geral da vida psíquica, é a
invencível pulsão que a censura combate sem nunca a vencer:
a tendência sexual ou Ubido. Ora, esta tendência sexual não é
uma aquisição da puberdade, ela é pré-existente na infância
mas em estados pré-sexuais, nos quais a sexualidade existe sem
instrumento, ou mesmo sem objecto. A líbido quer satisfazer
sempre a sua irreprimível necessidade, apresenta-se como exci­
tação erógena e a finalidade que visa é sempre a supressão da
excitação. Ora, as censuras vêm frustrar esta satisfação sem
por isso atingir o dinamismo da líbido, daí resultando um
quinto princípio, decisivo para a nossa questão.
A pulsão recalcada no inconsciente por um interdito mais
ou menos brutal e através de acontecimentos mais ou menos
traumatizantes vai satisfazer-se por vias tortuosas. É então que
a satisfação directa da pulsão se aliena, travestindo-se em
«imagens», e em imagens que guardam a marca dos estádios
da evolução libidinosa da infância. Em particular, as imagens
do sonho são significativas da líbido e das suas aventuras
infantis. O essencial do método terapêutico da psicanálise con­
sistirá em partir destes fantasmas absurdos aparentemente na
sua origem biográfica profunda, escondida por uma censura
tenaz no mais secreto do inconsciente. A imagem, o fantasma,
é símbolo de uma causa conflitual que opôs, num passado bio­
gráfico muito recuado - geralmente durante os cinco primei­
ros anos da vida - a líbido e as contrapulsões da censura.
Assim, a imagem é sempre significativa de um bloqueio da
líbido, isto é, de uma regressão afectiva.
Partindo desta axiomática, a noção de símbolo sofre em
Freud uma dupla redução a que corresponde o duplo método
que Roland Dalbiez pôs magistralmente em evidência no freu­
dismo: o método associativo e o método simbólico. Em pri­
meiro lugar, através da natureza determinada que reúne sem-

e) Simplificamos consideravelmente o pensamento de Freud. Até cerca


de 1 920, Freud concebe o conflito neurótico como resultado da confronta­
ção da «pulsão do eu» com o «líbido sexual», ver LAGACHE, La psycha­
nalyse, p. 27.

39
A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

pre um efeito psíquico (por exemplo, as imagens de um sonho)


à causa suprema do psiquismo, isto é a líbido, o símbolo recon­
duzirá sempre, em última instância, à sexualidade, a uma
sexualidade imatura, dado que insatisfeita. Foi esta tendência
fatal que Freud denominou de pan-sexualismo. Todas as ima­
gens, todos os fantasmas, todos os símbolos reduzem-se a alu­
sões metafóricas dos órgãos sexuais masculino e feminino.
A infância e as etapas da maturação sexual seriam o reserva­
tório causal de todas as manifestações da sexualidade, de todo
o polimorfismo (4) das satisfações sexuais. Ora, como assinala
Dalbiez (5), é a estreiteza e a rigidez do determinismo que per­
mite reduzir qualquer imagem ao seu modelo sexual; o erro
de Freud foi ter confundido «causalidade» e «associação» com
semelhança ou continuidade, foi ter constituído como causa
necessária e suficiente do fantasma o que era mais do que um
acessório associado no polimorfismo do símbolo. Não só Freud
reduz a imagem a um simples espelho vergonhoso do órgão
sexual, como também reduz ainda mais profundamente a ima­
gem a um mero espelho de uma sexualidade mutilada seme­
lhante aos modelos fornecidos pelas etapas de imaturação
sexual da infância. A imagem está, pois, maculada de anoma­
lia, entalada que está entre dois traumatismos: o traumatismo
do adulto que provoca a regressão neurótica e o traumatismo
da infância que fixa a imagem a um nível biográfico de «per­
versidade» (6). O método associativo - no qual a associação
não possui qualquer liberdade - confundido com a procura
estritamente determinista de uma causalidade - e neste caso
de uma única causa - só pode reduzir-se de associação em
associação e o aparecimento anódino e fantasista de uma ima­
gem só pode ser o efeito necessário da causa primeira e das
suas transformações: a líbido e os seus incidentes biográficos.
Mas há algo ainda mais grave do que esta redução em­
pobrecedora do símbolo a um sintoma sexual: Dalbiez ( )

(4) Ver FREUD, Ma vie et la psychanalyse, p. 1 58.


(5) R. DALBIEZ, op. cit. , II, 267.
(6) Ver FREUD, «Fragment d' une analyse d'hystérie», em Revue de
Psychanalyse, t. II, n.0 1 , pp. I e 1 1 2.
C) R. DALBIEZ, op. cit. , II, p. 1 24.

40
AS HERMENÊUTICAS REDUTORAS

assinala que Freud utiliza a palavra símbolo no sentido de


efeito-signo, o que reduz o campo infinitamente aberto do sim­
bolismo tal como nós o definimos no início deste trabalho:
«Um ser tem, portanto, uma infinidade de símbolos (8), mas ele
só pode ter um número limitado de efeitos e de causas . . . »
«Ü simbolismo psicanalítico constitui exactamente o sentido
oposto do simbolismo ordinário.»
A partir daí, assistimos a uma série de «reduções» psica­
nalíticas: enquanto o comum dos mortais considera que Minerva
sai do crânio de Júpiter (9) como o símbolo, ou, pelo menos, a
alegoria, da origem divina da sabedoria, o psicanalista, iguali­
zando Minerva e a Sabedoria na desconcretização, e segundo a
estrita necessidade da causalidade, considera a Sabedoria como
o símbolo - ou melhor, o índice-efeito - de Minerva. Assim,
após uma primeira redução do simbolismo a uma pura repre­
sentação associativa, em nome do princípio linear de causali­
dade, inverte-se o sentido comum do símbolo: o simbolizante
é logicamente igualado ao simbolizado e pode-se então, por
uma operação de reversibilidade, substituir um pelo outro.
Em segundo lugar, de redução em redução, Minerva que
sai do crânio de Júpiter é «reduzida» por sua vez à represen­
tação do nascimento pela vulva . . . só falta dar mais um passo
para que a emergência da sabedoria não seja mais do que o
efeito-signo do vulgar nascimento do comum dos mortais pela
vulva feminina. A própria sabedoria, tal como Minerva, é, afi­
nal, apenas um efeito-signo da sexualidade. Resumindo a
cadeia desta redução «símbolo invertido», tal como Freud o
concebeu, temos: A sabedoria -+ Minerva saindo da cabeça -+
nascimento pela vulva. O defeito essencial da psicanálise de
Freud foi ter combinado um determinismo estrito que faz do
símbolo um simples «efeito-signo» como uma causalidade
única: a líbido imperialista. A partir daí, o sistema de explo­
ração já só pode ser um sistema unívoco em que um signo
remete para um signo, e um sistema pan-sexual no qual o signo
último, a causa, é incidente da sexualidade, sendo esta última
uma espécie de motor imóvel de todo o sistema.

( 8) Ibid. , op. cit. , pp. 1 25 - 1 26.


(9) DALBIEZ, op. cit. , 1 28.

41
A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

Podemos dar-nos conta desta dupla redução num caso con­


creto que põe em evidência o famoso complexo de Édipo no
exemplo seguinte: X . . sonha que come uma refeição na com­
.

panhia de um monge, compromete-se na sua presença, perante


uma estátua da virgem, não sem alguma repugnância, a ir tra­
tar os leprosos. A análise freudiana deste caso dá-nos, em pri­
meiro lugar, as seguintes associações: «monge»: outrora o
sujeito X . . . teve por director de consciência um franciscano;
«compromisso»: o sujeito aceitou uma atitude amiga muito
tema em relação a uma jovem que atravessa uma crise moral;
«estátua da virgem»: era a estátua perante a qual a mãe lhe
mandava fazer as orações na infância, parecendo-se, aliás, o
rosto da estátua com o da mãe. Se passarmos das associações
aos símbolos, descobrimos que «a lepra» é a alusão bíblica do
pecado, por outro lado, o «monge» recorda ao sujeito que viu
representar Thais e que o personagem do monge Paphnuce, que
quer salvar a cortesã mas que acaba por sucumbir, o sur­
preendeu vivamente.
Portanto, o sonho deduz-se, com o símbolo a animar as
associações, de um sonho de rapaz edipiano: a secreta tenta­
ção pela mulher que presentemente atravessa uma crise de
consciência desempenha um papel traumático que remete para
o desej o incestuoso da infância. A líbido sexual, e os seus
recalcamentos biográficos, é o único encenador do simbolismo
do sonho.
No entanto, o imenso mérito de Freud e da psicanálise,
apesar desta linearidade causalista e da escamoteação do sím­
bolo a favor do sistema, foi ter devolvido o direito de cida­
dania aos valores psíquicos, às imagens, expulsos pelo racio­
nalismo aplicado das ciências da natureza. É certo que o
efeito-signo simbólico se reduz, em última análise, a uma trans­
formação da líbido, mas entretanto, actuou como uma causa
secundária no campo da actividade psíquica. E é neste «rea­
lismo psicológico» que reside, acima de tudo, a revolução freu­
diana e0) .

eo) Ver DALBIEZ, op. cit. , II, p. 56: « A influência de Freud n a psi­
quiatria e na psicopatologia traduziu-se por uma verdadeira ressurreição da
crença na eficácia do psiquismo.»

L
42
AS HERMENÊUTICAS REDUTORAS

Vamos ver agora que, entretanto, houve uma outra maneira


de conceber o inconsciente, não já «como o inefável refúgio
das particularidades individuais, o depositário de uma história
única ( 11 )», mas como o reservatório das «estruturas» que a
colectividade privilegia, não no perverso polimorfo que seria
a criança, mas «social polimorfo» que é a criança humana.

«0 pensamento mítico . . . constrói os


seus palácios ideológicos com as
ruínas de um d i s c u rs o social
antigo.»
C. LÉVI-STRAUSS
Le pensée sauvage

Como acabámos de ver, a psicanálise, ao mesmo tempo


que era uma descoberta da importância do símbolo escamo­
teava o significado a favor da biografia individual e da causa
libidinal . Sob o seu aspecto freudiano ela desenhava uma
arquetipologia, mas obcecada pela sexualidade, reduzindo o
símbolo à aparência envergonhada da líbido recaldada, e a
líbido ao imperialismo multiforme da pulsão sexual.
Foi este monismo subjacente, este imperialismo da sexua­
lidade e, especialmente, o universalismo dos modos de recal­
camento, que foi precisamente criticado. Particularmente os
etnógrafos, na sequência de Malinowski (' 2) e do seu estudo
determinante sobre os indígenas da ilha Trobriand, puseram em
dúvida a universalidade do famoso complexo de Édipo (1 3).
A investigação etnográfica ensina que o simbolismo edipiano
em que assenta todo o sistema freudiano, não é mais do que
um episódio cultural estritamente localizado no espaço e, pro­
vavelmente, no tempo. A antropologia cultural no seu conjunto
vai pôr em questão a unidade dos modos de recalcamento, a
unidade da pedagogia parental. A redução primária a um trau-

(' 1 ) Ver LÉVI-STRAUSS, Anthropologie structurale, p. 224.


('2) B. MALINOWSKI, La vie sexuelle chez les sauvages de Mélanésie.
( '3) Ver mais à frente p. 84.

43

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,.... -.-

A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

matismo edipiano, chave-mestra da psicanálise freudiana, deixa


de poder manter-se. Em particular, o livro em que Freud se
arrisca no terreno da etnologia, Totém e Tabú, e chega a redu­
zir a sociedade, a ligação e o contrato social, ao acidente edi­
piano origi nári o, é consi derado pela etnologia como um
romance da mais alta fantasiae4). Como poderia uma socie­
dade primitiva ter por origem de todos os símbolos, de todos
os elos sociais, um acontecimento edipiano, quando nos seus
hábitos, nos seus costumes vivos, esta sociedade não apresenta
qualquer vestígio, qualquer possibilidade de uma situação edi­
piana?
No entanto, o etnógrafo ou o etnólogo não pode perma­
necer insensível à inflação mitológica, poética, simbólica que
reina nestas sociedades ditas «primitivas». Estas sociedades
parecem substituir a ausência de progressos tecnológicos, a
ausência de preocupações tecnocráticas por uma fantástica vaga
imaginativa. Os actos mais quotidianos, os costumes, as rela­
ções sociais, estão sobrecarregados de símbolos, são acompa­
nhados no seu mais íntimo pormenor por todo um cortejo de
valores simbólicos ( ' 5). Para que remetem estes símbolos luxu­
riantes que parecem atapetar o comportamento e o pensamento
dos «primitivos»?
A linguística em todas as suas formas será sempre o
modelo de um pensamento sociológico. De facto, a língua é
um fenómeno testemunha e privilegiado do objecto socioló­
gico. Ela estabelece o pluralismo diferencial que constitui a
especifi c i d ade da antropologia soc i al por oposição ao
monismo da natureza humana que a antropologia psicológica
e particularmente a psicanálise postulam. Dado que as lín­
guas são diferentes, os grandes grupos linguísticos são irre­
dutíveis uns aos outros. E se o «simbolismo» que constitui
uma língua com os seus fonemas, as suas palavras, as suas
construções de frases, remete para um sign ificado mais pro­
fundo, este significado deve conservar o carácter diferencial

e4) Ver MALINOWSKI, La vie sexuelle chez les sauvages de Méla­


nésie.
e5) Ver M. GRIAULE, Dieu d'eau ; ver G. DIETERLEN, La religion
des Bambara; ver TALA YES V A, Soleil Hopi.

44
AS HERMENÊUTICAS REDUTORAS

da língua que o explicita e o manifesta: tal como ela, não é


passível de generalização: é de natureza diferencial e o «sim­
bolismo» ideológico só pode remeter para um significado
sociológico. A redução do simbolismo a uma sociedade que
o suporta parece ser sugerida pela linguística. Mas, enquanto
certos sociólogos ( 16) se restringem estritamente ao simbo­
lismo linguístico ou se limitam ao domínio dos fonemas e
dos sementemas procurando, nas inesgotáveis formas das lín­
guas da linguagem humana semelhanças sociológicas, outros
tentam aplicar os métodos da linguística - e especialmente
da fonologia - não só à língua, mas aos símbolos de uma
sociedade em geral, tanto rituais como mitológicos, procu­
rando, não já as semelhanças, mas, pelo contrário, as dife­
renças entre as sociedades indicadas pelas estruturas dos con­
juntos simbólicos, míticos ou rituais.
Com o primeiro método de «redução» simbólica relacio­
nam-se os trabalhos de Georges Dumézil, antecedidos pelos de
André Piganiol, que podemos denominar «redução sociológica
funcionalista» . A. Piganiol tinha notado, ao estudar a Antigui­
dade romana, que se achava em presença de duas traves do
simbolismo que, na maior parte do tempo, estavam lado a lado
sem se tocarem. Por um lado, observavam-se símbolos -
rituais ou míticos - centrados em cultos ctónicos, incluindo
rituais de sacrifício, mistérios, orgias, utilizando altares baixos,
«pedras de sacrifício», sepulturas onde o morto é encerrado,
etc.; por outro, o outro grupo de símbolos «isomorfos» no seu
antagonismo com os precedentes e 7). Piganiol inferia daí que
a sociedade romana era constituída por duas sociedades histo­
ricamente sobrepostas: as tribos de Rómulo, indo-europeias, e
os sedentários «sabinos», populações asiáticas que tinham cul­
tos e costumes agrários.

e6) Tomamos este termo genérico não no sentido estrito mas querendo
exprimir simplesmente que o especialista em questão aborda o domínio das
«ciências sociais» em geral : sociologia propriamente dita, etnologia, antro­
pologia cultural, etnografia, etc.
('7) Termo tomado ao psicanalista Baudouin e que significa «perten­
cente qualitativamente à mesma espécie», remetendo para o mesmo tronco
interpretativo; preferiríamos «isotopo».

45
A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

Completamente diferente será o método de G. Dumézil


aplicado ao mesmo terreno semântico que o de Piganiol,
nomeadamente à Roma Antiga. Dumézil vai reintegrar, se
assim podemos dizer, o simbolismo «sabino», ao lado do sim­
bolismo propriamente «romano», numa entidade funcional que
engloba um e outro, entidade funcional que nada tem a ver
com uma «difusão» de símbolos indo-europeus numa popula­
ção estrangeira, pela simples razão que a filologia põe em evi­
dência que os símbolos « sabinos», tal como os símbolos
«romanos», coexistem no conjunto das sociedades do grupo
linguístico indo-europeu. Melhor ainda, entre os celtas, os ger­
manos, os latinos ou os antigos hindus e iranianos, a sociolo­
gia linguística põe em relevo, não duas camadas simbólicas,
mas três camadas perfeitamente distintas, três camadas que
manifestam o seu simbolismo religioso nos três deuses latinos
que se tornam o emblema de todo o sistema de Dumézil: Júpi­
ter, Marte e Quirinus. Mas Dumézil não tem a timidez redu­
tora de um Piganiol ou de um Lowie: a «difusão» indo-euro­
peia não explica nada, a explicação profunda, a redução última
da «tripartição» simbólica nos indo-europeus é uma explicação
funcional. Os três regimes simbólicos correspondem termo a
termo a uma tripartição da sociedade indo-europeia em três
grupos funcionais muito próximos do que eram as três castas
tradicionais da Índia antiga: Bramanes, Ksatrias e Vaicias. Júpi­
ter, o seu ritual e os seus mitos, é o deus dos «padres» ( ' 8), do
flâmine, como Mitra-Varuna é o deus do bramane; Marte é o
deus dos «équites», dos «lúceres», como lndra é o deus dos
guerreiros ksátrias; quanto a Quirinus é a divindade «plural»
geralmente feminóide, (Fortuna, Ceres, etc.), divindade dos
agricultores e dos «produtores», artesãos e comerciantes.
Para o funcionalismo de Dumézil um mito, um ritual, um
símbolo, é directamente inteligível a partir do momento em que
se conhece bem a sua etimologia. O simbol ismo é um depar­
tamento do semantismo linguístico.

e8) A realidade é mais complexa: as próprias funções de Júpiter são


duplas como acontece em Roma, ou entre os Vedas, com a soberania: cor­
respondendo rex-flâmine termo a termo a raj-bramane.

46
AS HERMENÊUTICAS REDUTORAS

No entanto, a psicanálise provou-nos que era necessário


duvidar de uma leitura directa: não é ao nível da consciência
clara - neste caso, para que serviria a complicação do «sen­
tido figurado», do «Símbolo» relativamente ao sentido próprio?
- mas nas complicações do inconsciente que se tece a trama
do símbolo. Se o símbolo tem necessidade de uma enumera­
ção é precisamente porque é um número, criptograma indi­
recto, velado. Por outro lado, os principais conjuntos simbó­
licos, os mitos, possuem a estranha propriedade de escapar à
contingência linguística: o mito é o oposto de um «compro­
misso» linguístico como o da poesia, embebida no próprio
material da língua: o seu fonetismo, o seu léxico, as suas ali­
terações e os seus trocadilhos. É esta originalidade em rela­
ção a todos os outros factos linguísticos que Lévi-Strauss
assinala c t 9) quando escreve: «Poderíamos definir o mito como
o modo do discurso em que o valor da fórmula traduttore,
traditore CZ0) tende praticamente para zero . . . » «Ü valor do
m ito pers iste como mito através das piores traduções»,
enquanto o valor filológico da palavra - flâmine ou rex por
exemplo - se evapora numa tradução. O que significa isto?
Que o mito não vai, como a palavra que se arruma no léxico,
reduzir-se directamente através da contingência de uma lín­
gua, a um sentido funcional. É certo que constitui uma lin­
g uagem, mas uma linguagem acima do nível habitual da
expressão linguística e 1 ).
É isto que faz a diferença fundamental entre a redução
semântica directa, do funcionalismo de Dumézil, e a redução
translinguística do «estruturalismo» de Lévi-Strauss. Não é
numa linguística positivista, ao nível do léxico e do seman­
tismo, que Lévi-Strauss vai alinhar a sua antropologia e, em
especial, a sua hermenêutica, mas na fonologia estrutural: a
.ambição de Lévi-Strauss é fazer que a sociologia - e especial­
mente a hermenêutica sociológica - realize um processo aná­
logo e2) quanto à forma (ou mesmo quanto ao conteúdo) ao

C9) Anthropologie structurale, p. 232.


eo) Que se apl ica, no máximo, ao texto de poesia.
( 2 1 ) LÉVI-STRAUSS, op. cit. , p. 232.
e2) Somos nós que sublinhamos este termo que nos parece importante.

47
A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

progresso introduzido pela fonologia e3). Abandonando qual­


quer interpretação que modelasse estreitamente o símbolo por
um padrão de linguística material (isto é, lexicológico e semân­
tico), Lévi-Strauss só conserva da linguística o método estru­
tural da fonologia. E este método, tal como o encontramos em
N. Troubetzkoy e4) tem admiravelmente em conta - entre
outras - as próprias características do mito, em particular, e
do símbolo, em geral.
«Em primeiro lugar», a hermenêutica sociológica, em per­
feita concordância com a psicanálise como com a fonologia
«passa do estudo dos fenómenos . . conscientes ao estudo da
.

sua infra-estrutura inconsciente». O inconsciente que, muito


longe de ser o «inefável refúgio das particularidades indivi­
duais», é, pelo contrário, o órgão da estruturação simbólica.
Isto significa que o elo redutor já não é procurado directa­
mente, mas indirectamente e muito longe do significado do
semantismo dos termos; e isto remete-nos para a segunda
característica.
De facto, em segundo lugar, a hermenêutica estrutural,
como a fonologia «recusa-se a tratar os termos como entida­
des independentes, tomando, pelo contrário, como base da sua
análise as relações entre os termos».
Acrescentamos que é isto que constitui a própria força do
estruturalismo: a possibilidade de decifrar um conjunto sim­
bólico, um mito, reduzindo-o a relações significativas. Ora,
como podemos distinguir estas «relações»? Como estabelecer
relações não arbitrárias, isto é, constitutivas, podendo ser apre­
sentadas como leis? Tal como a fonologia ultrapassa e aban­
dona as pequenas unidades semânticas (fonemas, morfemas,
semantemas) para se interessar pelo dinamismo das relações
entre os fonemas, também a mitologia estrutural nunca irá
deter-se num símbolo separado do seu contexto: ela terá por
objectivo a frase complexa na qual se estabelecem relações
entre os semantemas e é esta frase que constitui o mitema,
«grande unidade constitutiva» que, pela sua complexidade,

e3) op. cir. , p. 4 1 .


e4) N . TROUBETZKOY, «La phonologie actuelle», em Psychologie
du langage (Paris, 1 933), citado por LÉVI-STRAUSS, op. cit. , p. 40.

48
AS HERMENÊUTICAS REDUTORAS

«tem o carácter de uma relação» (25). Retomando um exemplo


do próprio Lévi-Strauss, no mito de Édipo, tal como a tradi­
ção helénica nos conta, não é ao símbolo do dragão morto por
Cadmos, ou ao da Esfinge morta por Édipo, ou mesmo ao ritual
do enterro de Polinice por Antígona, ou ao simbolismo tão caro
ao psicanalista do incesto que devemos agarrar-nos, mas sim
à relação expressa pelas frases: «Üs heróis matam os mons­
tros ctónicos», «Üs pais (Édipo, Polinice) sobrestimam a rela­
ção de parentesco (casamento com a mãe, proibição do enterro
do irmão . . . )», etc.
Finalmente, precisamente entre estas «grandes unidades»,
vão estabelecer-se relações, e vamos mostrar, seguindo o
método da fonologia, que estes diferentes «mitemas» se orde­
nam em sistemas de afinidades entre si. Podemos dizer, por
exemplo, que a «colocação em mitemas» estruturais do mito
de Édipo «mostra sistemas . . . concretos e põe em evidência a
sua estrutura» e6). Com efeito, podemos ordenar em classes de
relações semelhantes os mitemas assim obtidos, classificá-los
em «pacotes» «sincrónicos» que marcam através de uma espé­
cie de repetição, de «redundância» estrutural, o fio da narra­
tiva mítica, o seu «diacronismo». O mito transcreve-se assim
em várias colunas sincrónicas que podemos i nscrever no
pequeno quadro que apresentamos na página seguinte e7).
Por fim, falta descodificar o sentido deste mito, o que é
facilitado pela dupla análise redutora: os símbolos foram redu­
zidos a «relações» ditas «mitemas» e os mitemas alinhados em
colunas «sincrónicas», sendo então possível reduzir estes sin­
cronismos a um único sistema: a IV coluna (consagrada a seres
deficientes, «cambaleando para a frente ou para o lado» e que
a mitologia comparada nos apresenta como «OS filhos da
terra»), que significa a «persistência da autoctonia humana» ,
estabelece com a coluna III («negação da autoctonia» através
da destruição do monstro ctónico) a mesma relação que a

e5) LÉVI-STRAUSS, op. cit. , p. 233.


e6) Como Troubetzkoy afirma sobre a fonologia. Citado por C. LÉVI­
-STRA USS, op. cit. , p. 40.
(27) Retiramos o essencial deste quadro de LÉVI-STRAUSS, op. cit. ,
p. 236.

49
Fio da narrativa (diacronismo)

� Cadmos procura a irmã I


\/)
(D Europa.

I
s I Cadmos mata o ...

dragão.
\/) Os Espartos exter-

(J minam-se entre si.
o;
o,
= I I Labdacos (pai de
() ' Laios)=<<coxo».

I I
o
0..
� Lai os (pai de
Édipo mata o pai
� Éd i p o ) = « c a -
Laios.
I
V!
o §. nhoto».
(D
s Éd ipo imola o
� ...
\/) Esfinge.

Édipo casa com a mãe.


I Édipo = « pé in-
chado».
Etíoque mata o I
irmão Pol i n i c e .
Apesar da proibição, Antí-
gona enterra o irmão.
I
I
II III IV
AS HERMENÊUTICAS REDUTORAS

coluna I («relações de parentesco sobrestimadas») estabelece


com a coluna II («relações de parentesco subestimadas»).
O mito de Édipo seria, portanto, um instrumento lógico
utilizado com fins sociológicos e8) : permitiria a uma sociedade
que afirma em inúmeras narrativas que os homens vêm da terra
(«autoctonia»), mas sabendo que o homem nasce da união do
homem e da mulher, resolver esta contradição. A vida social
(colunas I e II) apresenta-nos, de facto, de modo experimen­
tal, uma coexistência dos contrários semelhantes à contradição
ontológica (colunas III e IV) : «0 mesmo nasce do mesmo e
também do outro.»
Estando o mito reduzido a um jogo estrutural, aperce­
bemo-nos que a combinatória estrutural que, à primeira vista,
parecia tão complicada, é, afinal, bem simples e9), de uma sim­
plicidade quase algébrica, da mesma maneira que «há muitas
línguas». Por exemplo, a extrema complexidade da mitologia
Zuni, uma vez ordenada num quadro, uma vez metodicamente
reduzida, não é mai s do que um simples «utensílio lógico, des­
tinado a operar a mediação entre a vida e a morte» C0), media­
ção particularmente difícil para uma mentalidade que modela
a sua concepção da vida e do nascimento pelo símbolo da saída
do vegetal para fora da terra. Estruturalismo e funcionalismo
reduzem, portanto, o símbolo ao seu estrito contexto social,
semântico, ou sintático, consoante o método utilizado.

Poderíamos dizer que a redução sociológica é o exacto


inverso da redução psicanalítica, mas procede do mesmo modo
exclusivo. Para a p sicanálise, o inconsciente é uma verdadeira
faculdade sempre «plena», e simplesmente repleta do potencial
energético da líbido. O ambiente social, as situações da vida
individual vêm modelar de múltiplas maneiras, vêm «meta­
morfosear» C 1 ) e velar mais ou menos esta corrente única de

es) Ver op. cit. , p. 239.


e9) Ver op. cit. , p. 243 .
eo) Ver op. cit. , p. 243 .
e1) Ver JUNG, Symboles et métamorphoses de la libido.

51
A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

vida, este impulso específico cujo poder vital transvasa por


todos os lados a clara vontade individual e deixa constante­
mente marcas no conteúdo da representação, dando cor a todas
as imagens e atitudes. Pelo contrário, para o sociólogo, o
inconsciente «está sempre vazio» e2), «tão estranho às imagens
como o estômago aos alimentos que o atravessam», limita-se
a «impor as leis estruturais» e a estruturação - que, estra­
nhamente, é a mesma faculdade que a inteligência, uma espé­
cie de inteligência não consciente - integra nas suas formas
simples as imagens, os semantemas veiculados pelo social.
Mas, para a psicanálise, como para a sociologia do ima­
ginário, o símbolo remete apenas, em última análise, para um
episódio regional. A transcendência do simbolizado é sempre
negada a favor de uma redução ao simbolizante explicitado.
Finalmente, psicanálise ou estruturali smo reduzem o símbolo
ao signo ou, no melhor dos casos, à alegoria. «Ü efeito de
transcendência» dever-se-ia apenas, numa doutrina ou noutra,
à opacidade do inconsciente. Um esforço de elucidação inte­
lectualista anima tanto Lévi-Strauss como Freud. Todo o seu
método se esforça por reduzir o símbolo ao signo.

e2) Ver C. LÉVI-STRAUSS, op. cit. , p. 224.

52
CAPÍTULO III

As hermenêuticas instauradoras

«Üs conceitos criam ídolos de Deus,


só a i mpressão súb i ta pre s sente
algo.»
Gregóire de NYSSE
Patrologie grecque, 44-3728.

Entre a grande corrente das hermenêuticas redutoras,


caracterizada pela psicanálise e pela etnologia, e as herme­
nêuticas instauradoras, é j usto colocar a obra filosófica de Ernst
Cassirer( 1 ), que abrange a primeira metade do século XX e que
teve o mérito de orientar a filosofia e não só o inquérito socio­
lógico e psicológico para o interesse simbólico. Esta obra cons­
titui um admirável contraponto ou um prefácio à doutrina do
sobreconsciente simbólico de Jung, à fenomenologia da lin­
guagem poética de Bachelard como aos nossos próprios tra­
balhos de antropologia arquetipológica ou ao humanismo de
Merleau-Ponty.
Partindo da crítica kantiana, C assirer teve o i menso
mérito de tentar desaliená-la de um certo positivismo c ien­
tista que só queria considerar a 1 .a Crítica, a da Razão pura.
Cassirer vai ter em conta, não só as outras «Crític as», es­
pecialmente, a Crítica do Juízo, mas também concluir o
inventário da consciência constitutiva de universo de conhe­
cimento e de acção. Cassirer consagra também uma parte dos

( 1 ) E. CASSIRER ( 1 874- 1 945), obras principais: Philosophie des


symbolischen Formen (III vols., 1 923, 1 925, 1 929); Die Begriffs Fonn im
mythischen Denken ( 1 922); Sprache und Mythos ( 1 925); e An essay on man

53
A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

seus trabalhos ao mito e à magia, à rel igião e à linguagem.


A grande descoberta «copernicana» de Kant consistiu, recor­
damos aq ui, em ter mostrado que a ciência, a moral e a arte
não se limitam a ler analiticamente o mundo, mas fazem um
j u ízo « s i n t ético a p riori» p ara constitu ir um u n i v e rso
\
de valores. Já para Kant, o conceito não é o sinal indicativo
dos objectos, mas a organização in stauradora da «realidade».
O conheci mento é, pois, constituiç ão do mundo ; e a síntese
conceptual forj a-se graças ao «esquemati smo tran scendental»,
i sto é, à imag inação CZ) .
Assim, não se trata de modo algum de interpretar um mito
ou um símbolo procurando nele, por exemplo, uma explicação
cosmogónica pré-científica, ou de reduzir o mito e o símbolo
a forças afecti vas como faz a psicanálise, ou a um modelo
sociológico como fazem os sociólogos (3)JPor outras palavras:"-�
o problema do símbolo não é de modo al gum o do seu fun­
damento, como pretendem as perspectivas substancialistas do
cientismo, da sociologia e da psicanálise, mas antes, numa
perspectiva funcional que o criticismo esboça, o problema da L
expressão imanente ao próprio simbolizante (4) . O objecto da
simbólica não é de maneira nenhuma uma coisa anali sável, /-"/ ,
mas, de acordo com uma expressão do agrado de Cassirer, uma
fisionomia, isto é, uma espécie de mo�elagem global, expres­
siva e viva das coisas mortas e inertes.' É este fenómeno ine­
lutável para a consciência humana que · constitui a imediata
organização do real . Este último nunca se apresenta como um
objecto morto, mas objectificado, isto é, promovido por todo
o conteúdo psico-cultural da consciência à dignidade de obj ecto
para a consciência humana. A esta i mpotência constitutiva que
condena o pensamento a nunca poder intuir objecti vamente
uma coi sa, mas a integrá-la i meditamente num sentido, chama
Cassirer carga simbólica e). Mas esta i mpotência é apenas o
inverso de um imenso poder: o da presença inelutável do sen-

e) CASS IRER, Philosophie des symbolischen, II, p . 38.


(l)Ver CASSIRER, Philosophie, II, p. 22; An essay on man, pp. 39,
1 42.
(4) CASSIRER, Philosophie, II, 1 92, 1 94; An essay, p. 1 06.
e) CASSIRER, Philosophie, III, p. 202.

54
AS HERMENÊUTICAS INSTAURADORAS

tido que faz que, para a c onsciência humana, nada é simples­


mente apresentado, mas tudo é representado.
A doença mental reside justamente numa perturbação da
re-presentação. O pensamento doente é um pensamento que
perdeu o «poder de analogia» e no qual os símbolos se des­
fazem, se esvaziam de sentido (6) . O homem pensante e a saúde
mental definem-se, portanto, em termos de cultura, e o homo
t
sapiens é, afinal , um animal symbolicum. As coisas só exis-"'
tem pela «figura» que o pensamento objectificante lhes dá, são I'
eminentemente «símbolos» dado que só se aguentam na coe­
rência da percepç ão-;-da conce � ção, do juízo ou do raciocínio�
pelo sentido que os impregna. lA . filosofia · e a análise fenome­
nológica dos diferentes sectores da «objectificação» conduzem ·

em Cassirer a uma espécie de pan-simbolismo.


Todavia, tendo definido o símbolo pelo seu dinamismo


puro, damo-nos conta que Cassirer consegue ainda hierarqui­
zar as formas da c ultura e as do simbolismo, considerando, por
exemplo, o mito como um símbolo esclerosado, que perdeu a
sua vocação «poética», enquanto a ciência, objectificação por
excelência, é, pelo contrário, um constante pôr em causa dos
símbolos , possuindo, portanto, um maior potencial de carga
simbólica . . .
Foi preciso esperar pela obra de investigadores mais des­
comprometidos em relação ao criticismo e à epistemologia
kantiana para ftue a imaginação simbólica encontrasse uma
total autonomia em relação ao império da lógica da identidade.

«Ü conhecimento das bases arquetí­


p i c a s u n i vers a i s . . . i ncitou-me a
olhar o que existe por toda a parte
e sempre e o que pertence a todos . . .
como um facto psicológico.»
JUNG
Symbolique de l 'esprit.

(6) CASSIRER, op. cit. , 559.

55
A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

Se a teoria de Jung sobre o papel das imagens é uma das


mais profundas, a sua terminologia relativa ao símbolo é das
mais confusas e flutuantes. Arquétipos, símbolos e complexos
são constantemente confundidos. No entanto, Jung parte de
uma diferença muito firme e nítida entre signo-sintoma e sím­
bolo-arquétipo para criticar a psicanálise freudiana.
Ora, Jung C), ao retomar a definição clássica do símbolo
redescobre explicitamente que esta última é, em primeiro lugar,
multívoco (ou mesmo equívoco) e, por conseguinte, que o sím­
bolo não pode ser assimilado a um efeito que se reduziria a
uma «causa» única. O símbolo remete para algo, mas não se
reduz a uma única coisa. Por outras palavras, «O conteúdo ima­
ginário da pulsão pode interpretar-se . . . quer redutivamente,
isto é, semioticamente, como a própria representação da pul­
são, quer simbolicamente, como sentido espiritual do instinto
natural» (8).
Este «sentido espiritual», esta infra-estrutura ambígua da
própria ambiguidade simbólica, é aquilo a que Jung chama o
arquétipo. O arquétipo per se, em si, é um «sistema de virtua­
lidades», «um centro de força invisível», um «núcleo dinâ­
I , mico» ou ainda «os elementos de estrutura numinosa ( 9 ) da psi­
que». É o inconsciente que fornece a «forma arquetípica»,
«vazia» em si mesmo, que para se tornar sensível à consciên­
cia «é preenchida de imediato pelo consciente com a ajuda de
elementos de representação, c onexos ou análogo s» ( 10 ) .
O arquétipo é, pois, uma forma dinâmica, uma estrutura orga­
nizadora das imagens, mas que transvaza sempre as concre­
ções individuais, biográficas, regionais e sociais, da formação
das imagens .
Assim, o efeito-signo freudiano encontra-se simultanea­
mente integrado e ultrapassado pelo arquétipo psíquico em que

C) JUNG, Seelenprobleme, III, Aufl., Zurique, 1 946, p. 49.


(8) JUNG, Die Psychologie der Uebertragung, Zurique, 1 946, pp. 1 7,
1 8, 23.
(9) De numen, o poder, a vontade divina.
( ' 0) J UNG, Symbole der Wandlung, Zurique, 1 952, p. 39 1 e Von den
Wurzeln des Bewusstseins, Zurique, 1 954, VI, p. 49 1 ; ver Jolande JACOBI.
Archétype et symbole dans la psychologie de Jung.

56
AS HERMENÊUTICAS INSTAURADORAS

está mergulhado. Retomemos o exemplo que citávamos a pro­


pósito de Freud, o do sonho incestuoso de tipo edipiano. No
caso preciso que escolhemos, há certamente uma redução pos­
sível a um desejo real, embora passado, de dormir efectiva­
mente com a mãe. No entanto, em inúmeros sonhos seme­
lhantes, não podemos chegar à redução do efeito-signo do
sonho a um acontecimento causal muito preciso da biografia.
Nesse caso, uma explicação puramente conduzido pelo método
de associação por «contiguidade» na biografia do paciente
pode levar a conclusões falsas e a uma terapêutica fantasista.
Mas, sobretudo, o «sonho do incesto», muito mais geral do
que o desejo efectivo de incesto, reconduzido simbolicamente
ao que os grandes sistemas religiosos ilustram pela grande
imagem do Paraíso: «Refúgio secreto onde se está livre do
peso da responsabilidade e do dever de tomar decisões e cujo
seio materno é o símbolo inultrapassável» ( 1 1 ). Assim, inverte­
mos aqui totalmente a redução simbólica freudiana: é a exal­
tação arquetípica do símbolo que nos dá o seu «sentido», não
a sua redução a uma líbido sexual, biológica e aos seus inci­
dentes biográficos.
Mas então, em Jung, a própria líbido muda de acepção;
em vez de ser apenas uma pulsão biológica mais ou menos
imperialista, torna-se a Energia psíquica em geral, espécie de
«motor imóvel» do arquétipo, de arquétipo dos arquétipos, cer­
tamente inexprimível, mas muito bem simbolizado pela ser­
pente que se desenrola e mesmo pelo sexo masculino em
erecção.
De facto, Jung revela e expõe muito profundamente o
papel mediador do arquétipo-símbolo. Porque, através da facul­
dade simbólica, o homem não pertence só ao mundo superfi­
c ial da linearidade dos signos, ao mundo da causalidade física,
mas também ao mundo da irrupção simbólica, da criação sim­
bólica contínua, através da incessante «metamorfose» e 2) da
líbido. Portanto, a função simbólica é, no homem, o lugar de
«passagem» de reunião dos contrários: o símbolo na sua essên­
cia e quase na sua etimologia (Sinnbild, em alemão) é «unifi-

e 1 ) Jolande JACOBI, op. cit. , p. 1 79 .


e2) É o título de u m a obra capital d e JUNG.

57
A IMAGI NAÇÃO SI MBÓLICA

cador de pares opostos» C3). Seria, em termo aristotélico, a


faculdade de «manter em conjunto» o sentido (Sinn = o sentido)
consciente e4) que percebe e recorta precisamente objectos, e
a matéria-prima (Bild = a imagem) que emana do fundo do
inconsciente e5). Para Jung, a função simbólica é conjonctio,
casamento, em que os dois elementos se fundem sinteticamente
no próprio pensamento simbolizante num verdadeiro «herma­
frodita», um «Filho divino» do pensamento.
De facto, este simbolismo é constitutivo do processo de
individuação através do qual o eu se conquista por equilíbrio,
por colocação em «síntese» dos dois termos do Sinn-Bild: a
consciência clara, que é em patte colectiva ( ' 6), constituída pelos
usos, costumes, métodos, linguagens inculcados pela educação
na psique, e o inconsciente colectivo, que não é mais do que
a I íbido, essa energia e as suas categorias arquetípicas. Mas este
processo de individuação apela para elementos arquetípicos
(inconsciente colectivo) que, evidentemente, diferem consoante
o sexo que informou a líbido: assim, no homem, a grande ima­
gem mediadora que vem contrabalançar a consciência clara será
a da Anima, da mulher etérea, élfica, enquanto que na mulher
é a imagem do Animus, do «jovem primeiro», herói de múlti­
plas aventuras que vem equilibrar a consciência colectiva.
Mas, sobretudo, convém sublinhar que, em Jung como em
Cassirer, a doença mental, a neurose, advém de uma deficiên­
cia da função simbólica que cria um desequilíbrio que sub­
merge o princípio de individuação de duas maneiras possíveis:
quer - como nos «casos» estudados pela psicanálise - pela
dominância das pulsões instintivas que já não conseguem «sim­
bolizar» conscientemente a energia que as anima e, então, o

e3) JACOBI, op. cit. , 1 83 .


e4) Ver o esquematismo de Kant.
es) Ver Bachelard, para quem, igualmente, o símbolo necessita de
consciência despeita.
e6) 0 termo «COlectivo» não é de modo algum uma alusão socioló­
gica; significa, muito mais do que uma ligação social muito regional, o
cimento comunitário que reúne colectivamente os indivíduos solidários
de uma mesma espécie. Sobre o problema do inconsciente colectivo, ver
R. BASTIDE, Sociologie et psychanalyse, Presses Universitaires de France,
1 950, p. 39.

58
AS HERMENÊUTICAS INSTAURADORAS

indivíduo, longe de se personalizar, separa-se do mundo real


(autismo) e toma uma atitude a-social, impulsiva e compulsiva,
quer, nos casos menos estudados mas mais insidiosos, o equi­
líbrio é interrompido a favor da consciência clara e, então,
assiste-se a um duplo processo de liquidação - liquidação do
símbolo que se reduz a signo, liquidação da pessoa e da sua
energia constitutiva metamorfoseada num «robot» mecânico
animado apenas pelas «razões» do consciente social vigente.
A dissociação a-simbólica, como Cassirer já tinha visto,
constitui a doença mental: o símbolo reduz-se então a um sim­
ples sintoma, o sintoma de uma «antítese recalcada» e7).
«No que diz respeito à primeira-imagem conteúdo do incons­
ciente, faz falta o poder que tem o consciente de criar formas,
de engendrar estruturas» . ( ' 8) e, então, a pulsão manifesta-se
. .

de um modo cego, nunca encontrando a sua expressão simbó­


lica e consciente. Paralelamente, ao «significante» deixa de cor­
responder um significado instaurador, uma energia criadora, e
o símbolo «apaga-se» em signo consciente, convencional,
«concha vazia dos arquétipos» e 9) que se agrupa com os seus
semelhantes em teorias vãs - mas temíveis porque são ersatz
de símbolos ! - «doutrinas, programas, concepções que mer­
gulham nas trevas e enganam a nossa inteligência», tornando­
-se então o indivíduo escravo do consciente colectivo, do pre­
conceito vigente, tornando-se «homem de massa», à mercê de
todas as aberrações do consciente colectivo.
Portanto, o símbolo é mediação, porque é equilíbrio que
esclarece a líbido inconsciente pelo «sentido» consciente que
lhe dá, mas lastrando a consciência por meio da energia psí­
quica que a imagem veicula. Sendo o símbolo mediador, será
igualmente constitutivo da personalidade através do processo
de individuação. Assim, vemos esboçar-se em Jung, contra­
riamente à associação redutiva de Freud, um sobreconsciente
pessoal e ecuménico que é o domínio específico do símbolo.
Todavia, a grande obscuridade - geralmente ajudada pelas
imprecisões de linguagem que assinalávamos no início deste

( 1 7) Psychologische Typen, p. 648.


es) JACOBI, p. 1 84 .
e9) JACOBI, p. 1 96.

59

J
A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

parágrafo - que reina em Jung, provém da confusão que


geralmente existe entre as noções de arquétipo-símbolo, por um
lado, e de individuação, por outro. Ora, na prática, apercebemo­
-nos muito bem que existem símbolos conscientes que não são
«personalizantes» e que a imaginação simbólica só tem uma
função «sintética», no seio do processo de individuação. Os
grandes delírios apresentam todas as características do símbolo
e não são «sínteses» personalizantes, mas, pelo contrário, ilhas
de imagens «Obcessivas» por exemplo, isto é, estereotipadas
por um único arquétipo.
Por outras palavras, se Freud tinha uma concepção muito
apertada do simbolismo, que reduzia a uma causalidade sexual,
podemos dizer que Jung tem uma concepção demasiado ampla
da imaginação simbólica, que só concebe na sua actividade sin­
tética - isto é, na sua actividade mais normal, mais ética -
não tendo praticamente em conta o «carácter mórbido» de cer­
tos símbolos, de certas imagens eo). Porque se a psicanálise só
pode assinalar a notável universalidade dos grandes símbolos
através da ilusão da extrapolação edipiana (desmentida por
toda a etnologia), se, sobretudo o sistema do recalcamento não
pode descrever a expressão simbólica nas suas formas criado­
ras mais elevadas e se a teoria de Jung restaura precisamente
o símbolo na sua dignidade criadora não patológica e não apela
para o Édipo generalizado para considerar o carácter universal
dos arquétipos-símbolos, o sistema de Jung parece, estranha­
mente, confundir ainda num optimismo do imaginário a cons­
ciência simbólica criadora da arte e da religião e a consciên­
cia simbólica criadora das simples alucinações do delírio, do
sonho e da aberração mental.

eo) Haveria muito a dizer sobre a utilização da própria noção de «SÍn­


tese», que Jung parece retomar de Hegel, e que nós próprios tínhamos adop­
tado em seguida. De facto, Lupasco mostrou bem que se trata muito mais
de um sistema, onde subsistem as polaridades antagónicas, de que de uma
síntese em que a tese e a antítese perdem mesmo a sua potencialidade de
contradição. A «pessoa», enquanto individualizada, é muito mais um sistema,
rico de potencialidades contraditórias que permitem a liberdade, do que uma
«síntese», que é apenas uma liquidação estática das contradições.

60
AS HERMENÊUTICAS INSTAURADORAS

«A imagem só pode ser estudada


pela imagem, sonhando as imagens
tal como elas se juntam na fanta­
sia . . »
.

Gaston BACHELARD
La poétique de la rêveri.

Gaston Bachelard iria precisar, segundo nos parece, a boa


e a má utilização dos símbolos. O universo de Bachelard,
divide-se em três sectores nos quais os símbolos têm uma uti­
lização bem diferente: o sector que se presta à ciência objec­
tiva e donde qualquer símbolo deve se proscrito impiedosa­
mente SOb pena de eclipse do objecto e I ), O Sector do SOnho,
da neurose, no qual o símbolo se desfaz, se reduz - como
bem vira Freud - a uma miserável sintomática. Em qualquer
destes sectores, qualquer símbolo deve ser considerado sus­
peito, encurralado e desalojado por uma «psicanálise objectiva»
que restitui a limpidez e a precisão do símbolo, ou por uma
psicanálise clássica, subjectiva, que desperte a psique das bru­
mas do delírio e a reponha de pé no domínio da consciência
humana.
Mas existe um terceiro sector, este plenário porque espe­
cifico da humanidade que existe em nós: o sector da palavra
humana, isto é, da linguagem que nasce, que brota do génio
da espécie, simultaneamente língua e pensamento. E é na lin­
guagem poética que encontramos esta encruzilhada humana
entre uma revelação objectiva e o enraizamento desta revela-

f1) Poétique de la rêverie, p. 46. «No pensamento científico, o con­


ceito funciona tanto melhor quanto mais é privado de toda a imagem-pre­
concebida.» Ver Le matérialisme rationnel [O Materialismo Racional, Edi­
ções 70] p. 49: «Sabemos bem que a atitude científica consiste precisamente
em resistir contra esta invasão do símbolo.» Ver La formation de l 'esprit
scientifique, contribution à une psychanalyse de la connaissance objective.
Mais em pormenor, consultar o nosso artigo «Science objective et consci­
ence symbolique dans l'reuvre de Gaston Bachelard», em Cahiers intern. de
symbo/., 1 963, n.0 4.

61
r,
I
A IMAGINAÇÃO SIM BÓLICA

ção mais obscuro do indivíduo biológico e2). A linguagem


poema confere, como Fernand Verhesen sublinha num notável
artigo, «um não-eu meu» e3) que permite que as funções real­
mente humanizantes do homem tenham um desempenho pleno
e estejam para lá da árida objectividade ou da viscosa subjec­
tividade. Finalmente, se descurarmos a viscosidade autista do
sonho e da neurose, o homem dispõe plenamente de dois, e
não apenas de um meio, de «transformar» o mundo, de duas
«numenotécnicas»: por um lado, a objectificação da ciência que
pouco a pouco domina a natureza, por outro, a subjectificação
da poesia que, através do poema, do mito e da religião, aco­
moda o mundo ao ideal humano, à felicidade ética da espécie
humana.
Enquanto a psicanálise e a sociologia se orientaram para
uma redução no inconsciente, quer através da interpretação dos
sintomas oníricas, quer através da interpretação das sequên­
cias mitológicas, Bachelard orienta a sua investigação si mul­
taneamente para o sobreconsciente poético, que se exprime por
meio das palavras e das metáforas, e também para o sistema
de expressão, mais maleável, menos retórico do que a poesia,
que é a fantasia. Fantasia livre ou «fantasia de palavras» do
leitor de poemas, pouco i mporta, desde que nos mantenhamos
na claridade de uma consciência desperta aquém das trevas
do sonho.
Daí uma hermenêutica que, neste epistemólogo, parado­
xalmente, já nada tem a ver com a análise, com o método das
ciências da natureza. B achelard mostrou-o constantemente em
toda uma série de livros: a análise é o produto das ciências
objectivas, das ciências obrigadas à ascese rigorosa de uma
«psicanálise objectiva» que arranca o objecto a todas as suas
ligações afectivas e sentimentais. Bachelard verifica inúmeras

e2) Ver F. VERHESEN, «La lecture heureuse de Gaston Bachelard»,


em Courier du Centre International d'Études poétiques, n.0 42, p. 5: «Saber
científico e saber poético utili zam métodos diametralmente opostos, mas
ambos conferem um poder sobre os factos e sobre a vivência que, libetta
das contingências, as ilumina e as valoriza.» .
e3) F. VERHESEN, op. cit. , p. 7. Ver G. BACHELARD, La poétique
de la rêverie, p. 1 2.

62
AS HERMENÊUTICAS INSTAURADORAS

vezes que os fulcros da ciência e da poesia são inversos «como


dois pólos da vida psíquica» e4), contrariamente ao que afirma
o intelectualismo de Cassirer ou de Lévi-Strauss. Mais, não só
esta dualidade existe no seio da consciência, como também:
« É bom suscitar uma rivalidade entre a actividade conceptual
e a actividade de imaginação. De qualquer modo, só encon­
tramos desi lusão quando as fazemos cooperar» e5). Porque «é
preciso amar os poderes psíquicos com dois amores diferentes
se gostamos dos conceitos e das imagens» C Z6 ) .
Daí a necessidade de adoptar um método adequado ao
campo da expressão poética. A fenomenologia só desemboca
em contra-sensos quando se aventura no universo «numeno­
técnico» da objectificação. Pelo contrário, para explorar o uni­
verso do imaginário, da recondução simbólica, é a fenomeno­
logia que se impõe e só ela permite «reexaminar com um olhar
novo as imagens fielmente amadas» (27). Em que consiste neste
domínio este famoso método? Em acentuar a virtude de ori­
gem das imagens, «em captar o próprio ser da sua originali­
dade e em beneficiar assim do título produtividade psíquica
que é a da imaginação» e8). A fenomenologia do i maginário
é, em B achelard, uma «escola de ingenuidade» que nos per­
mite colher, para lá de todos os obstáculos do compromisso
biográfico do poeta ou do leitor, o símbolo em carne e osso,

e4) Psychanalyse du feu, p. I O.


es) Poétique de la rêverie, p . 45.
e6) Op. cit. , p. 47, é este amor complementar que constitui a «boa
ciência», uma consciência nunca vazia de razão nem de fantasia.
e7) op. cit. , p. 2.
e8) Op. cit. , p. 3: «Isto é, afastar todo o passado que podia ter prepa­
rado a imagem na alma do poeta.» Por sua vez, Bachelard reserva à psica­
nálise o estudo do inconsciente, logo, dos sonhos nocturnos. Estes últimos
já não são «uma consciência», logo, não são passíveis da fenomenologia,
são «factos» (op. cit. , p. 1 30). Esta distinção é capital, permitindo elucidar
niti damente o falso problema da «sublimação»: o sonho é infraconsciência,
logo, submete-se à análise obj ectiva dos factos, a fantasia criadora é sobre­
-consciência e a consciência que a ela se aplica é criadora precisamente por
isso, e a hermenêutica, segundo a palavra de R. Abellio, torna-se integra­
ção». Ver R. ABELLIO, «Valeur ontologique du symbole», em Cahiers
intern. de symbol., n.0 1 .

63
A IMAGINA ÇÃO SIMB ÓLICA

porque «não se lê poesia a pensar outra coisa» e9). Assim, o


leitor ingénuo, este fenomenólogo sem o saber, não é mais do
que o lugar da «ressonância» poética, lugar que é receptáculo
fecundo, dado que a imagem é semente e nos «faz criar o que
vemos» C0).
Encontramo-nos precisamente no centro do mecanismo do
símbolo, cujo funcionamento essencial - por oposição à ale­
goria - é uma recondução instauradora num ser que só se
manifesta através de u m a determinada imagem singular.
A fenomenologia dinâmica e «amplificadora» C 1 ) de Bachelard
difere totalmente da fenomenologia estática e niilista de um
Sarte, por exemplo C2). Este último - fiel a Husserl - põe
«entre parêntesis» o conteúdo imaginativo julgando conseguir
pôr em evidência, neste vazio, o sentido do imaginário. Bache­
lard, mais próximo de Hegel, que define a fenomenologia como
«ciência da experiência da consciência», faz, pelo contrário, o
pleno de imagens: o imaginário confunde-se então como o
dinamismo criador, a amplificação «poética» de cada imagem
concreta.
Esta prospecção fenomenológica dos símbolos poéticos vai
abrir-nos, através da obra de Bachelard, de modo confuso nas
primeiras obras e cada vez com maior precisão, sobretudo num
dos seus últimos livros, La poétique de la rêverie C3), as gran­
des perspectivas de uma verdadeira ontologia simbólica que,
por encerramentos sucessivos, conduzem aos três grandes
temas da ontologia tradicional : o eu, o mundo e Deus.

A cosmologia simbólica preocupou Bachelard durante mui­


tos anos, como testemunham as cinco obras consagradas à

e9> op. cir p. 3.


.•

C0) Shelley, citado por Bachelard.


C 1 ) R. Abellio aplica este epíteto à hermenêutica de Jung, embora pre­
fira «i ntegração».
C2) Ver J.-P. Sartre, L 'imaginaire, e a crítica do método de Sartre, em
G. DURAND, Les structures anthropologiques de l'imaginaire.
C3) Presses Universitaires de France, 1 960.

64
AS HERMENÊUTICAS INSTAURADORAS

recondução simbólica dos quatro elementos. A água, a terra, o


fogo e o ar, e todos os seus derivados poéticos não são mais
do que o lugar mais comum deste império em que o imagi­
nário vem prender-se directamente à sensação. A cosmologia
não é do domínio da ciência, mas sim da poética filosófica;
não é «Visão» do mundo, mas expressão do homem, do sujeito
humano no mundo. Como escreve Femand Verhesen e4), nesta
cosmologia das matérias, já não existe oposição entre a fanta­
sia e a realidade sensível, mas «cumplicidade . . . entre o eu
sonhador e o mundo determinado, existe conivência secreta
numa região intermédia, uma região plena, de uma plenitude
de fraca densidade» e5).
Não se trata, apesar das aparências, de um conceptualismo
aristotélico que parte de quatro elementos construídos pela
combinação do quente, do frio, do seco e do húmido, mas de
uma fantasia que parte dos elementos, se amplifica não só atra­
vés das quatro sensações, mas através de todas as sensações e
das relações entre sensações possíveis: o alto, o baixo, o claro,
o escuro, o pesado, o leve, o volátil, etc . Por sua vez, a feno­
menologia apodera-se destas imagens e reconstrói um mundo
de acolhimento a todas as atitudes do homem, um mundo de
felicidade pela concordância. Por trás desta cosmologia, a
grande inspiração alquímica de um macrocosmos imagem do
microcosmos e, sobretudo, de um macrocosmos lugar das trans­
formações e do trabalho humano, isto é, cofre, quadro para o
microcosmos do organismo humano e dos utensílios do homo
faber.
Neste trajecto de felicidade desenvolvem-se muitos cos­
mos intermédios, por exemplo os que s ão descritos por
L'espace poétique e, particularmente, um microcosmos privi­
legiado, o microcosmos humanizado pelo trabalho e pelo sonho
humano : a casa, a habitação humana que recapitula «da cave
ao sótão» os símbolos do mundo na sua pedra, nas suas tra­
ves, na sua lareira, no seu poço, nas suas caves húmidas e

e4) F. VERHESEN, op. cit. , p. 9.


C5) Poétique de la rêverie, p. 1 44, citado por VERHESEN. Ver a noção
de «mundo intermediário» no Chiismo, em Terre céleste et corps de résur­
rection, de H. CORBIN.

65
A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

sombrias, nos seus casebres aéreos e secos. Todas as imagens,


todas as metáforas substancialistas dos poetas remetem, afinal,
para esta habitação do mundo, de que a minha casa é o último
símbolo. Portanto, o símbolo revela-nos um mundo e a sim­
bólica fenomenológica explicita este mundo que - nos antí­
podas do mundo da ciência - é, no entanto, eticamente pri­
mordial, regente de todas as descobertas científicas do mundo.
Parafraseando a famosa frase «ciência sem consciência não é
mais do que ruína da alma», poderíamos escrever que a cos­
mologia simbólica de B achelard nos dita que «ciência sem poé­
tica, inteligência pura sem compreensão simbólica das finali­
dades humanas, conhecimento objectivo sem expressão do
sujeito humano, fel icidade sem felicidade apropriadora, não é
mais do que alienação do homem» . A imaginação humana
volta a colocar o orgulho humano do conhecimento fastuoso
nos felizes limites da condição humana.
Se o cosmos simbólico leva à felicidade do homem, para­
lelamente e por um movimento idêntico, o cogito do sonhador
- e com maior razão o cogito do sonhador de fantasias, do
«sonhador de palavras» que é o fenomenólogo simbolista ! -
nunca é vão, nunca é puro, nunca é nirvana sonolento.
O cogito é consciência, consciência plena, consciência dialo­
gante. B achelard não cartesiano no plano da ciência, é não car­
tesiano no plano de cogito e poderia retomar por sua conta a
afirmação de um outro simbolólogo: «0 ser que se situa no
cogito descobre que o próprio acto através da qual se furta à
totalidade participa ainda do ser que o interpela em cada sím­
bolo» e6). E, muito paradoxalmente, encontramos no pensador
racionalista do «materialismo racional», mas no fulcro da poé­
tica, um regresso mais em profundidade à teoria jungiana da
anima e do animus que nos parece muito próxima de uma
angelologia. Na consciência clara e viril do racionalista, no
rigor do trabalho da inteligência científica, de súbito a anima
desce e «interpela» como o anjo feminino, como o mediador
consolador. O que permite ao solipsismo do cogito ligar-se ao
mundo e à fraternidade dos outros. Os símbolos do mundo

(36) P. RICOEUR, Le symbole donne à penser, op. cit.

66
AS HERMENÊUTICAS INSTAURADORAS

reconduziam ao microcosmos, o cogito - coração do micro­


cosmos humano - remete para a anima, símbolo Mãe de
todos os símbolos que as fantasias veiculam. Como muito bem
afirma Ricoeur. . . «Ü cogito está no interior do ser e não o
inverso.» Teríamos vontade de escrever que o cogito bache­
lardiano é secretamente preparado pelo ser. Bachelard encon­
tra nesta descoberta da anima poética a angelologia do
«médium» i maginário. A anima do sonhador não é mais do
que o Anjo Outro que anima e «interpela» a sua alma. Mas,
sobretudo, esta fenomenologia do símbolo descobre a «qua­
drupolaridade» do sonhador e do ser sonhado: «Eu estou só,
logo somos quatro» C7) e B achelard vai esboçar uma espécie
de erótica dos «quatro seres em duas pessoas, ou melhor, dos
quatro seres num sonhador e numa fantasia» C8), ao referir-se
directamente ao Banquete C9) de Platão. Isto porque, sendo o
sonhador duplo por natureza psiconalítica, projecta por sua
vez, uma espécie de projecção cruzada, u m objecto do seu
sonho que também é duplo . . . «Ü nosso duplo (sonhado) é o
duplo do nosso ser duplo . . . » (40). O que a fenomenologia do
símbolo encontra na base da antropologia que inaugura, é uma
Androginia. No plano do cosmos, o símbolo levava a reco­
nhecer uma fraterna e feliz consubstancialidade entre macro­
cosmos e microcosmos, embebendo-se o espírito sensorial de
um na materialidade do outro e a materialidade de u m
ganhando sentido sob a fantasia tecnicista d o outro. N o plano
da antropologia, o símbolo leva a uma co-naturalidade «do
homem e da mulher íntimos» que, na fantasia, «falam para con­
fessar os seus desejos, para comungar» através do jogo dos
seus quatro pólos reunidos dois a dois, «na tranquilidade de
uma dupla natureza em boa concordância» .
Assim, num primeiro movimento, a fenomenologia mos­
trava-se no símbolo, coração da fantasia poetizante, uma recon­
ciliação por recondução metafísica - isto é, para lá da física,
para lá da ciência - com o universo. Num segundo movi-

e7) Poétique de la rêverie, pp. 64, 70.


es) Op. cit. , p. 64.
e9> op. cir p . 12.
.•

(40) Op. cit., p. 71.

67
A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

menta, o que a própria ambiguidade do símbolo e a ambigui­


dade do pensamento que projecta significantes revelam, é que
nós nunca estamos sós. A imanência da nossa fantasia suscita
como que uma animação dialogada da alma solitária: a anima
ergue-se então face ao animus e a consciência sonhadora torna­
-se uma dupla, um abraço de imagens, diálogo em perfeita con­
cordância. Esta abertura, esta amplificação interna da consci­
ência so nh adora, proíbe-lhe tanto a alienação como o
solipsismo. A dialéctica interna à fantasia dialogada reequili­
bra incessantemente a sua humanidade e, por uma espécie de
pilotagem automática, remete incessantemente o conhecimento
à problemática da condição humana. A anima surge assim
como o anjo dos limites que protege a consciência nos des­
vios para o angelismo da objectiv idade, para a alienação desu­
manizante. O anjo é, de certo modo, transcendental: a consci­
ência que · se decalca na objectividade perde todo o seu poder
de transcendência e, ao querer fazer de anjo, torna-se Lúcifer.
Finalmente, se nos é permitido levar até ao ponto extremo,
sem a ela recorrer demasiado, a amplificação fenomenológica
deste racionalista com uma alma que é Gaston Bachelard,
vemos esboçar-se, com um extremo pudor, uma hierofania.
Hierofania e escatologia simultaneamente: as imagens, os sím­
bolos, devolvem-nos ao estado de inocência em que, como Paul
Ricoeur exprime de modo magnífico, «entramos na simbólica
quando temos a morte atrás de nós e a infância diante de
nós» (41 ) A infância surge em Gaston Bachelard, e mais onto­
.

logicamente que a própria Anima, como o símbolo dos sím­


bolos: «Verdadeiro arquétipo, o arquétipo da felicidade sim­
ples» (42). E, sobretudo, e é isso que enraíza a infância no
símbolo «arquétipo comunicável». Que distância separa esta
consciência clara da clara infância da perversidade polimorfa
que a psicanálise quer esconder no seio do inconsciente da
criança !
Com a segurança de um psicólogo prevenido - preve­
nido contra os sempiternos escolhos do falso problema da

(4 1 ) P. RICOEUR, «Le conflit des herméneutiques: épistémologie des


interprétations», em Cahiers intern. de symbol. , n.0 I, 1 962.
(42) BACHELARD, Poétique de la rêverie, p. 1 06.

68
AS HERMENÊUTICAS INSTAURADORAS

«memória afectiva» - Bachelard estabelece que o significante


deste arquétipo da infância são os odores (43). O fenomenólogo
propõe-nos então todo um florilégio dos perfumes de infância
colhidos pelos mais diversos poetas (44). Para o filósofo cham­
panhês, se a cosmologia era multisensorial, se a psicologia se
definia como diálogo amoroso da alma com o seu anjo, a teo­
fania revelava-se sobretudo como olfactiva ! Deus é a Criança
que está em nós e a epifania desta infância é um perfume de
infância para onde nos remete o odor de uma flor seca. O gosto
da pequena «madalena» e o perfume do chá conduziam Proust
a uma recordação biográfica: para Bachelard, o perfume é guia
espiritual para uma teofania da infânc ia. As flores secas, o pat­
chouli dos velhos armários, exalam mai s do que um odor de
santidade, perfumam de maneira teosófica!
É então que Bachelard precedendo Paul Ricoeur, encontra
a prescrição evangélica do Reino: «Se não sois semelhantes a
um destes pequenos . . . » Dado que a verdadeira anamnese não
é a memória chã (45), também não é, como em Platão, recon­
dução a um mundo objectivo das ideias. Retomando a citação
do romântico Karl Philipp Moritz, Bachelard verifica que a
infância é precisamente a última base da anamnese. «A nossa
infância seria o Lete onde teríamos bebido para não nos dis­
solvermos no Todo anterior e no vindouro. Se pretendermos
exprimir isto em linguagem ainda mais platónica (46) dizemos

(43) Op. cit. , p.- 1 1 9.


(44) Op. cit. , p. 1 1 7, especialmente esta citação de Documents secrets
de Franz HELLEN: «A infância não é uma coisa que morra em nós e seque
desde que conclua o seu ciclo. Não é uma recordação. É o mais vivo dos
tesouros e continua a enriquecer-nos independente de nós . . . Infeliz daquele
que não consegue recordar a sua infância, voltar a captá-la em si mesma
como um corpo no seu próprio corpo, um sangue novo no velho sangue:
está morto a partir do momento em que ela o abandonou.»
(45) Op. cit. , p. 89: «Ü passado recordado não é apenas um passado da
percepção . . . A imaginação dá cor desde o princípio às cenas que gosta de
rever» e assim se aproxima da concepção boudelairiana, que cita na p. 1 03,
de uma memória baseada na «vivavidade» da imaginação.
(46) Convém assinalar o «tom» platónico do discurso de Bachelard. Em
toda a obra do filósofo do Rationalisme appliqué e da Poétique de la rêve­
rie existe uma soberana ironia, uma maneira de nunca levar a sério o que

69

l
A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

que a infância é o Bem Soberano, concreto, autorizado, efi­


caz». A anamnese de todos os símbolismos contidos em todas
as fantasias remete, para lá do tempo e das suas confusões, a
um Tédio primordial, à Infância, ao Puer aeternus que Jung e
Kérényi assinalaram em inúmeras mitologias (47). E o autor do
Racionalismo aplicado, para confirmar esta intuição última,
acaba por recorrer a Kierkegaard, confessando que numa «vida
humilde que não tem as certezas da fé, as imagens do seu belo
livro (48) actuam», e recorre sobretudo a uma das nossas mís­
ticas mais romanescas: a senhora Guyon exaltando o Espírito
da Infância, o culto de um ícone em cera do Menino Jesus.
Assim, a fenomenologia dos símbolos poéticos da fanta­
sia conduz-nos, para lá de uma cosmologia da reconciliação
com o mundo, para lá de uma íntima sociedade do coração
onde o anjo da compensação sentimental está vigilante, até uma
teofania em que a anamnese já não é iluminada por um
Soberano muito abstracto, mas pelo sol quente de uma infân­
cia cheirosa como uma tentadora cozinha: «No céu azul assava
um sol amanteigado» (49). Esta infância é muito o Verbo e o
verbo tem o seu mais alto voo de jubilação . . . «A infância soma
as insignificâncias do ser humano, tem um significado feno­
menológico próprio, um significado fenomenológico puro dado
que existe sob o signo do espanto. Pela graça do poeta, tor­
námo-nos o puro e simples sujeito do verbo espantar-se» (50).
O génio de Bachelard consiste em ter compreendido que
esta superação dos iconoclasmos só podia efectuar-se através
da meditação e da superação da crítica «científica», como atra­
vés da superação do simples e confuso mergulho onírico.
O optimismo de Bachelard, mais circunstanciado do que o de
Jung, justifica-se pela própria precisão do seu campo de apli-

se avança ou o que se argumenta, de maneira a dar ao argumento ou à intui­


ção toda a gravidade convincente necessária. Este bom humor elegante, esta
ligeireza plena de modéstia conferem às obras de Bachelard, como às afir­
mações de Sócrates, uma terrível eficácia de convicção.
(47) Citado por BACHELARD, op. cit. , p. 1 1 5.
(48) Bachelard cita KIERKEGAARD, Les lis des champs et les oise­
au.x du ciel.
(49) E. Van der Cammen citado por BACHELARD, op. cit. , p. 1 23.
( 50) Op. cit. , p. 1 09.

70
AS HERMENÊUTICAS INSTAURADORAS

cação: a «ingenuidade» e I) da linguagem poética. Todavia, fora


deste «espírito de infância», desta santidade, ou, pelo menos,
desta «beatitude» do imaginário a que Bachelard chegou, pode­
mos interrogar-nos de novo, sem negar a herança decisiva do
filósofo da Fantasia poética, sobre a totalidade do imaginário
e dar acesso na experiência da consciência, não só à poesia,
mas também aos velhos mitos, aos ritos que demarcam as reli­
giões, às magias e às neuroses. Por outras palavras, depois de
Bachelard, só faltava «generalizar» a antropologia restrita do
autor da Poétique de la rêverie, sabendo bem que esta gene­
ralização, pelo seu próprio método, só pode ser uma integra­
ção maior dos poderes imaginativos no coração do acto de
consciência.

(51 ) Ver P. RICOEUR, Le symbo/e donne à penser, p. 7 1 .

71
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' I
CAPÍTULO IV

Os níveis do sentido
e a convergência das hermenêuticas

«Um símbolo revela sempre, qual­


quer que sej a o contexto, a unidade
fu ndamental de várias zonas do
real.»
Mircea ELIADE
Traité d 'histoire des religions.

Para generalizar a antropologia do imaginário, convinha­


-nos, portan to, paradoxalmente, aplicar uma «psicanálise
objectiva» ao próprio imaginário a fim de o expurgar de todas
as reminiscências culturais e dos juízos de valor herdados,
independentemente da sua vontade, pelos pensadores atrás
citados através do triplo iconoclasmo do Ocidente. Em pri ­
meiro lugar, era preciso repudiar os métodos puramente redu­
tores e que só visam a epiderme semiológica do símbolo, e
depois fazer o cerco às reminiscênci as do privilégio raciona­
lista que transparece mesmo na simbólica de Cassirer, quando
este sobrestima ainda a ciência em relação ao mito. Era tam­
bém necessário descobrir, para lá da meditação bachelardiana,
precisamente o ponto privilegiado em que os fulcros da ciên­
cia e os fulcros da poesia se compreendem complementar­
mente no seu dinamismo contraditório, se fu ndem numa
mesma função de Esperança. Enfim, era necessário evitar cair
no optimismo paradoxal de Jung, que apenas vê no símbolo
uma «Síntese mental» que torna incompreensível o simbolismo
entretanto agudo da doença mental e do automatismo dereis­
tico.
Mas tal refutação e tal extrapolação do imaginário com
todo o conteúdo da psique humana necessitavam de uma minu-

73
A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

ciosa e vasta comparação, primeiro teórica, depois aplicada a


este ou àquele sector do pensamento simbólico e finalmente
aplicada directamente ao balanço psicossocial de psiquismos
singulares, normais e patológicos. Foi este trabalho que empre­
endemos sistematicamente com os nossos colaboradores e que
prosseguimos há 1 5 anos ( I ). Nesta breve exposição, só pode­
mos resumir as nossas conclusões, conclusões que se ordenam
num triplo plano: em primeiro lugar, o de uma teoria geral do
imaginário e) concebido como uma função geral de equilíbrio
antropológico, em seguida o dos níveis formadores das ima­
gens simbólicas, estas últimas formando-se e informando-se em
todos os sectores e em todos os ambientes da actividade
humana, finalmente a generalização tanto estática como dinâ­
mica da virtude de imaginação que conduz a uma metodolo­
gia que já é uma ética e que desenha uma metafísica de que
iremos ocupar-nos na última parte deste trabalho, mas que
desde já, pela própria generalização do seu ponto de aplica­
ção, implica a convergência dos métodos, a convergência das
hermenêuticas.
São estes três resultados que passamos a resumir breve­
mente.

«Os Anj os que rodeiam o Trono por


cima são chamados Dias e os que
rodeiam o Trono por baixo são cha­
mados Noites.»
Le Zoha r, II, 1 37, a.

Passamos a apresentar os resultados globais que podemos


induzir das nossas investigações. Em primeiro lugar, uma total
supressão das sequelas da doutrina clássica - ainda aparente
em Cassirer e no dualismo de Bachelard - que distingue o

e) Ver G. DURAND, Les structures anthropologiques de l 'imaginaire,


Le décor mythique de la Chartreuse de Parme.
e) A nossa obra Les structures anthropo/ogiques de l 'imaginaire é
subintitulada lntroduction à / 'archétypologie généra/e.

74
OS NÍVEIS DO SENTIDO

consciente racional dos outros fenómenos psíquicos e, em par­


ticular, das franjas subconscientes do imaginário. Esta integra­
ção de toda a psique no seio de uma única actividade pode
ainda ser expressa de duas maneiras. Primeiro, pelo facto de
que o sentido próprio (que conduz ao conceito e ao signo ade­
quado) é apenas um caso particular do sentido figurado, isto
é, é apenas um símbolo restrito. As sintaxes da razão são ape­
nas formalizações extremas de uma retórica, ela própria embe­
bida no consenso imaginário geral. Depois, de uma maneira
mais precisa, não existe corte entre o racional e o imaginário,
não sendo o racionalismo, entre outras coisas, mais do que uma
estrutura polarizante particular do campo das imagens.
A partir daí, podemos assimilar a totalidade do psiquismo,
desde que ele se separa da imediata sensação, ao Imaginário,
e o pensamento na sua totalidade é integrado na função sim­
bólica. A imaginação, como função simbólica deixa de ser rele­
gada, como nas concepções clássicas, para a condição de
défice, uma pré-história do pensamento saudável, como é ainda
hoje o mito em Cassirer, ou então como em Freud, condenada
a ser um falhanço do pensamento adequado. Também não é,
como em Jung, o momento único de um raro êxito sintético
no qual o esforço de individuação mantém em contacto com­
preensivo o Sinn e o Bild. A imaginação não é simplesmente
o reequilibrar da objectivação científica através da poética tal
como surge em Bachelard. Ela revela-se como o factor geral
de equilíbrio psicossocial.
Do ponto de vista antropológico em que nos situamos, o
dinamismo equilibrante que é o imaginário apresenta-se como
a tensão de duas «forças de coesão» C), de dois «regimes» em
que cada um inventaria as imagens, em dois universos anta­
gónicos. Estes universos, no estado normal e médio da activi­
dade psíquica «combinam» bem, como Jung bem assinalou,
num subuniverso que, para dizer a verdade, é mais «sistemá­
tico» do que realmente «sintético», como crê Jung. Porque as

C> Ver Yves DURAND, «Le test archétypa] à neuf élements (A.T. 9)»,
in Cahiers lnternationaux de Symbolisme, n.0 4, 1 964. Estas «forças de coe­
são» não são simplesmente, como nas psicanálises, psicológicas e biográfi­
cas, são também sociais e reflectem a globa1idade da cultura interessada.

75
A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

polaridades divergentes, as imagens antagónicas guardam a sua


inqividualidade própria, a sua potencialidade antagónica e só
se ligam no tempo, no fio da narrativa, muito mais num sis­
tema do que numa síntese.
E este ponto é importante para compreender bem os diver­
sos aspectos, «normal» e «patológico», do imaginário. As ima­
gens, qualquer que seja o regime a que pertencem, em con­
tacto com a duração pragmática e com os acontecimentos,
organizam-se no tempo, ou melhor, organizam os instantes psí­
quicos numa «história». Destas estruturas discursivas do ima­
ginário emergem então certos hábitos retóricos inerentes à nar­
rativa, como a hipótipose, e certos princípios, como o da
causalidade, que liga um sucedente a um consequente que,
entretanto, é «Outro». A narrativa, histórica ou mítica, como
verificara Lévi-Strauss, tal como a seriação causal, é «sistema»
de imagens antagónicas. É a narrativa que, no mito de Édipo (4),
permite coordenar os episódios antagónicos como a hostilidade
dos consanguíneos e a sobrestimação da consanguinidade.
E, sobretudo, este dinamismo antagónico das imagens per­
mite assinalar grandes manifestações psicossociais da imagi­
nação simbólica e da sua variação no tempo. O desenvolvi­
mento das artes, a evolução das religiões, dos sistemas de
conhecimento e dos valores, os próprios estilos científicos,
manifestam-se com uma regularidade alternante que foi assi­
nalada há muito tempo por todos os sociólogos da história e
da cultura e). Verificou-se que os grandes sistemas de imagens
( Weltbild), de «representação do mundo», se sucedem de forma
marcada no decurso da evolução das civilizações humanas.
Mas a dialéctica é geralmente mais delicada do que os filóso­
fos vislumbraram, ainda que fossem filosófos da história.
A dialéctica pode operar em diferentes planos de generaliza­
ção. Desde que nos ocupemos de uma cultura perfeitamente
integrada (6), isto é, na qual a arte, moral, religião, visão do

(4) Ver atrás, p. 47.


e) Hegel, Marx, Spengler,Worringer, Sorokin, Matoré, Peyre, para citar
apenas alguns nomes.
(6) Sobre esta noção de integração e sobre a noção inversa de «con­
gere», ver P. SOROKIN, Social and Cultural Dynamics.

76
OS NÍVEIS DO SENTIDO

mundo, correspondem ao mesmo «padrão» imaginário e se


ordenem ao mesmo grupo de estruturas. É evidente que este
caso é muito teórico, porque definiria um tipo de cultura «fria»,
imobilizada, coisa que praticamente é impossível dado que
existem sempre factores de desequilíbrio extrínseco (climas,
irregularidade das estações, das chuvas, das colheitas, epide­
mias, agressões, etc.) que, mesmo nas sociedades primitivas,
perturbam esta harmonia teórica. A maior parte do tempo vive­
mos também em presença de reequilíbrios parciais, não estando
a religião, por exemplo, no mesmo regime que o rito C). Final­
mente, podemos considerar, no interior da evolução social, o
antagonismo - mais ou menos edipiano - das faixas etárias,
esclarecendo-se então os reequilíbrios simbólicos com excesso
deste ou daquele regime no jogo das «gerações literárias», das
«modas» (8), etc.
Se nos colocarmos agora, não no terreno psicossociológico
com a finalidade de cobrir todo o campo antropológico ou,
como gostamos de dizer, para considerar todos os agentes e
resultantes do «trajecto antropológico» que a energia simbó­
lica percorre, mas no terreno psicofisiológico, apercebemo-nos,
em primeiro lugar, que o conceito de líbido tal como se apre­
senta na psicanálise deixa de ter razão de ser. Efectivamente,
o factor geral de equilíbrio que anima todo o simbolismo já
não se manifesta sob o aspecto teórico de uma única «pulsão»,
que as «metamorfoses» jungianas não conseguiam, afinal, dina­
mizar realmente, mas sim sob a aparência, confirmada pela
fisiologia, de três esquemas de acção (que por isso denomi­
námos «verbais», porque o verbo é a parte do discurso que
exprime a acção) que manifestam a energia biopsíquica tanto
no inconsciente biológico como no consciente. Estes três esque­
mas correspondem, por um lado, aos três grupos de estruturas
(esquizomorfas, sintéticas e místicas) (9) assinaladas na classi­
ficação (isotopismo) psicológica e psicossocial dos símbolos,
por outro, coincidem com as verificações psicofisiológicas fei-

C) Ver LÉVI-STRAUSS, que assinalou bem este fenómeno, em Anthro­


pologie structura le, «Structure et dialectique».
(8) Ver os trabalhos de Peyre e Matoré.
(9) Ver quadro, pp. 80 e 8 1 .

77
A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

tas pela Escola de Leninegrado (Betcherev, Oufland, Ouk­


tomsky) relativas aos reflexos dominantes (reflexos organiza­
dores dos outros reflexos por inibição ou reforço): dominante
postural, dominante digestiva, dominante copulativa.
No entanto, neste encontro das categorias simbólicas
«arquetípicas» («axiomáticas», diria Bachelard) com a refle­
xologia não existe qualquer relação de causa a efeito. O «tra­
jecto antropológico» pode ser seguido no sentido : fisiologia --+
sociedade, ou, ao contrário, sociedade --)- fisiologia. Simples­
mente, verifica-se uma convergência dos símbolos em séries
isotopas em diferentes níveis antropológicos. Regimes, estru­
turas, classes de arquétipos, não são mais do que categorias de
classificação induzidas desta convergência empírica, mai s eco­
nómica do que o arsenal explicativo das pulsões, dos comple­
xos postulados pela psicanálise. Porque uma pulsão é um pos­
tulado, um comportamento reflexo ou soc ial é um facto
verificável.
Esta tripartição «verbal» que descobrimos na origem
reflexa ainda inteiramente biológica do trajecto antropológico,
vamos reencontrar constantemente nos diferentes níveis da for­
mação dos símbolos. Quisemos insistir aqui no sistema de for­
mulações lógicas que estas diferentes estruturas isotopas das
imagens sugerem. Formulações que mostram bem que o sím­
bolo não se reduz a uma lógica delineada c t 0), mas, muito pelo
contrário, que os esquemas dinâmicos que suportam as ima­
gens isotopas promovem três grandes direcções lógicas , três
grandes grupos constitutivos de lógicas bem distintas. A par­
tir de 1 955, Roger Bastide, ao estudar o «Candomblé» afro­
-brasileiro ct 1), assinalava no seio deste universo simbólico reli­
gioso, a coalescência dos símbolos e das atitudes rituais em
torno de três princípios que, aliás, agem concorrenteme nte: o
famoso Princípio de Ligação que, a partir de Lévy-Bruhl c arac-

eo) Como LÉVI-STRAUSS se esforça ainda por mostrar em La pensée


sauvage, impedindo assim que se estabeleça uma diferença entre «pensamento
selvagem» e pensamento domesticado por uma pedagogia cientista.
e 1 ) R. BASTIDE, «Le príncipe de coupure et le comportemen t afro­
-brésilien», em XXXI Congresso Internacional dos Americanistas, São Paulo,
1 955. O candomblé é uma religião sincrética comparável ao Vudu hai tiano.

78
OS N ÍVEIS DO SENTIDO

teriza, pela sua acentuação, o pensamento «primitivo», mas


também em oposição ao precedente, um Princípio de Ruptura
muito próximo do velho princípio de Contradição e, final­
mente, um Princípio de Analogia, sintético, que permite lan­
çar uma ponte entre os dois precedentes. Ora, foi quase na
mesma época e por vias totalmente diferentes que o nosso
inquérito empírico conduziu a um plano de classificação de
imagens, também regido por três princípios, e que o lógico
Stéphane Lupasco e 2), sem passar pela mediação do inquérito
etnográfico ou do inquérito antropológico, estabeleceu um sis­
tema de lógica com dois vectores «polares» e uma resultante
mista, três termos praticamente coincidentes com as «três lógi­
cas» que Roger Bastide e eu próprio verificamos na nossa
investigação antropológica. Assim, a coerência (isotopismo)
concreta dos símbolos no seio de constelações de imagens
revelava igualmente este sistema dinâmico de «forças de coe­
sões» antagónicas, cujas lógicas constituem apenas a formali­
zação. Mas íamos verificar igualmente que a genética dos sím­
bolos, em todos os seus níveis, correspondia, também ela, a
esta dialéctica dinâmica.

«A procura de estruturas só tem


sentido e valor quando é encarada
sob o ângulo de um relacionamento
h a rm o n i o s o e n tre os d i fere n t e s
domínios d o Real e c o m a finali­
dade de chegar a uma espécie de
síntese totalizante.»

André GUIMBRETfERE
Quelques remarques préliminaires
sur le symbole et le symbolisme.

('2) Ver quadro seguinte, extraído da nossa obra Les structures anthro­
Ver S. LUPASCO, Les trois matieres e o impor­
pologiques de l 'imaginaire.
tantíssimo Appendice théorique do livro L 'énergie et la matiere vivante, no
qual Lupasco formaliza as três lógicas que regem as três matérias.

79
QUADRO DA CLASSIFICAÇÃO

REGIMES
DIURNO
OU POLARIDADES

ESQUIZOMORFAS
(ou heróicas)

1 .0 Idealização e «recuo» autístico.


2.0 Diairetismo (Spaltung).
Estruturas 3.0 Geometrismo, simetria, gigantismo.
4.0 Antítese polémica.

Representação objectivamente heterogeneizante (antítese) e subjecti­


Princípios de explicação vamente homogeneizante (autismo). Os Princípios de EXCLU­
e de justificação SÃO, de CONTRADIÇÃO e de IDENTIDADE, actuam plena­
ou lógicos. mente.

Dominante POSTURAL com os seus derivados manuais e o adju­


Reflexos dominantes vante das sensações à distância (vista, audiofonação).

DISTINGUIR

Esquemas «verbais» Separar :f Misturar. Subir :f Cair. �l


--------�---4--� 1
I
Puro :f Maculado. Alto :f Baixo.
Arquétipos «epítetos»
Claro :f Escuro.

A Luz :f As Trevas. O Cume :f O Abismo.


O Ar :f O Miasma. O Céu :f O Inferno.
A Arma Heróica :f O Vínculo O Chefe :f O Inferior.
Arquétipos «substantivos»
O Baptismo :f A Mácula O Herói :f O Monstro.
O Anjo :f O Animal.
A Asa :f O Réptil.

O Sol, o Azul, o Olho do Pai, as A Escala, a Escada, o Bétilo, o


Runas, o Mantra, as Armas, as S i no, o Zig urate, a Águia, a
Couraças, a Clausura, a Circun­ Calhandra, a Pomba, Júpiter, etc.
cisão, a tonsura, etc.
Dos símbolos aos sintemas
ISOTÓPICA DAS IMAGENS

NOCTURNO

SINTÉCfiCAS MÍSTICAS
(ou dramáticas) (ou antifrásicas)

1 .° Coincidentia oppositorum e sistematiza- 1 .0 Repetição e perseverança.


ção. 2.0 Viscosidade, adesividade antifrásica.
2.0 Dialéctica dos antagonistas, dramatização. 3.0 Realismo sensorial.
3.0 Historização. 4.0 Miniaturização (Guliver).
4." Progressismo parcial (ciclo) ou total.

Representação diacrónica que liga as contradi­ Representação objectivamente homogeneizante


ções pelo factor tempo. O Princípio de CAU­ (perseverança) e subjectivamente heterogenei­
SALIDADE, sob todas as formas (especial­ zante (esforço antifrásico). Os Princípios de
mente FINAL e EFICIENTE) actua em pleno. ANALOGIA e de SIMILITUDE actuam ple­
namente.

Dominante COPULATIVA, com os seus deriva­ Dominante DIGESTIVA com os seus adjuvantes
dos motores rítmicos e os seus adjuvantes sen­ coenestésicos, térmicos e os seus derivados
soriais (cinéticos, musicais-rítmicos, e tc . ) . tácteis, olfactivos e gustativos.

LIGAR CONFUNDIR

..,.. Amadurecer, progredir Voltar, recensear. � Descer, possuir, penetrar.

Avante, por vir. Atrás, passado. Profundo, calmo, quente, íntimo, escondido.

O Fogo-chama. A roda. O Microcosmos. A Casa.


O filho. A Cruz. A criança, o Pequeno. O Centro.
A árvore. A Lua O Animal Mãe. A Flor.
O Germen. O Andrógino. A Cor, a Noite. A Mulher.
O Deus plural. A Mãe. Alimento.
O Recipiente. Substância.

O Calendário, a Aritmologia, a Tríade, a


Tétrade, a Astrobiologia.

A Iniciação, o «Nas­ O Sacrifício, o Dragão, O Ventre, Comedores A Tumba, o Berço, a


c i d o duas veze s » , a a Espiral, o Caracol, o e Comidos, Kobold, C r i s á l i d a , a I l h a, a
Orgia,o Messias, a Urso, o C o rdeiro, a D a c t i l o s , Osiris, a s Caverna, a Mandala, a
Pedra F i l osofa l , a Lebre , a Rodinha, o T i ntas, as Gemas, B a rc a , a A l c ofa , o
Música, etc. Sabre, o Cadinho, etc. M e l u s i n a , o V éu , o Ovo, o Leite, o Mel, o
Manto, a Taça, o Cal­ V i n ho, o Ouro, etc.
deirão, etc.
A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

Com efeito, exceptuando todas as questões de transfor­


mação dinâmica dos regimes e das estruturas, podemos obser­
var geneticamente, na psique de cada i ndivíduo adulto, vários
níveis c t 3), matrizes de certo modo, onde vêm constituir-se os
elementos «simbolizantes» (Bild) do símbolo. Ou, se preferir­
mos, verificámos vários quadros, mais ou menos coordenados
entre si de acordo com o grau de integração das culturas enca­
radas, de «padrões» simbólicos culturais, que vão derivar, acen­
tuar, apagar ou repetir u ma ou outra das forças de coesão que
animam as atitudes psicofisiológicas de um adulto humano
normalmente desenvolvido.
S e deixarmos de l ado o nível psicofisio lógico já abor­
dado e que nos deu a chave da classificação dos símbolos,
achamo- nos em presença de diferentes ambientes formadores
- ou informadores - do simbolismo adulto . Exceptuando
este nível natural que a reflexologia nos revela, distinguire­
Inos dois grandes patamares de derivação do simbolismo que
podemos chamar, um, o nível pedagógico, o da educação da
criança através do ambiente imedi ato, o outro, o nível cu l ­
tura l , que poderíamos qual ificar, como René A l leau , de
sintemático ( 1 4 ), porque a herança e a j u stificação de uma
sociedade , surgem, aos olhos do adulto, sobretudo como
constituídos pela relação mútua que os homens do grupo
estabelecem institucionalmente entre si.
Se analisarmos o primeiro nível, notamos em primeiro
lugar que se subdivide, com maior ou menor intensidade, numa
fase lúdica em que a criança, mais ou menos privada do am­
biente familiar, constitui com os seus semelhantes uma pseudo­
-sociedade, sendo a fase familiar cara aos freudianos apenas a
parte mai s íntima deste nível reduzido aos primeiros anos (dos
3 aos 5 anos, consoante os autores) da infância.

e 3) Ver G. DURAND, «Les trois niveaux de formation du symbo­


lisme», em Cahiers lntern. Symbol. , n.0 I , 1 962, no qual desenvolvemos mais
abertamente o tema. Ver A. GUIMBRETIERE, artigo citado, Cahiers lntern.
Symbol. , II, 1 963 .
e4) R. ALLEAU, De la nature du symbole, p. 35: «0 nome sintema
deve ser reservado aos signos convencionais através dos quais os homens
estabelecem uma ligação mútua, quer entre eles . . .»

82
OS NÍVEIS DO SENTIDO

Ora, o que surpreendeu todos os antropólogos especialis­


tas de j ogos infantis ( 1 5) foi, por um lado, o carácter conser­
vador dos jogos, por outro, a sua classificação binária. Os
j ogos são o conservatório de símbolos ou ritos desafectados, o
«jogo do avi ão». por exemplo, ludificação de um rito iniciá­
tico pagão (forma espiralada), depois cristão (forma de basí­
lica e depois de catedral) de que a criança apenas conservou
o gesto desportivo c t 6) . Do mesmo modo, os jogos de mãos e
os jogos de cartas provêm de um simbolismo agonística e 7)
que se perde na noite das grandes civilizações agrárias c t 8) .
Finalmente, a maioria d o s contos - esses jogos de imagina­
ção - veiculam um simbolismo desafectado onde se profa­
nam mitos antiquíssimos c t 9).
Os j ogos, muito antes da sociedade adulta, educam a infân­
cia no seio de um legado simbólico arcaico - geralmente
transmitido pelos avós e pelas avós e sempre através da muito
estática pseudo-sociedade infantil - que, mais do que a ini­
ciação imposta pelo adulto aos s ímbolos aceites pela sociedade,
dá à imaginação e à sensibilidade simbólica da criança a pos­
sibilidade de <<jogar» em plena liberdade.
Em segundo l ugar, os antropólogos encontram na class ifi­
cação dos jogos duas séries «inconcil iáveis» e0) : a série ago­
nística (agon = competição com regras) e a a série ilinxica
(ilinx = turbilhão) , pass ando pelos meios termos do aléa (sorte)
e da mimicry (simulacro). Esta classificação binária dos j ogos
parece anunciar singularmente a classificação dos patterns e 1 )
essenciais das instituições adultas e das culturas.

e5) Ver Johan HUIZINGA, Homo Ludens; R. CAILLOIS, «Les jeux et


les hommes», e «Structure et classification des jeux», em Diogene, Out., 1 955.
e6) «Paraíso», «adiana» na criança muçulmana, ver C. BÉART, Recher­
che d 'une sociologie des peuples africains à partir de leurs jeux.
e7) Agonística: relativo aos jogos de competição.
('8) Ver R. GIRARD, Les Chortis ante el problema maya, ed. Robredo,
5 vols. , México, e R. GIRARD, Le Popol- Vuh, história cultural dos maias­
-quiches.
( 19) Ver LEIA, Le symbolisme des contes de fées.
eo) Ver CAILLOIS, Les jeux et les hommes, p. 1 1 5 .
e1) Palavra que na antropologia americana significa «modelo»,
«padrão».

83
r ·
/

A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

Esta fase lúdica está, aliás, em estreita ligação com a peda­


gogia da fase parental, consoante a «escola dos jogos» - e
qualquer escola é mais ou menos lúdica - tolere, encoraje ou,
pelo contrário, reprima os j ogos e o pré-exercício sexual e con­
jugal. Aqui, todos os matizes pedagógicos são possíveis, desde
a estrita proibição e a segn gação sexual das sociedades caras
aos nossos psicanalistas, até ao pré-exercício das «casas de
crianças» dos v1uria ou dos Trobriandeses, passando pelos
colégios «mistOS» dos países luteranos e2). É assim que nos
apercebemos que a aparente «latência» sexual não passa de um
ser mítico estreitamente ligado à pedagogia católica e bur­
guesa, da mesma maneira que a «cortesia» e o romanesco são
uma sobrevivência lúdica de todo o sistema pedagógico medie­
val e3). Assim, os «jogos», longe de serem de acaso, estão liga­
dos à fase idealizante do pré-exercício e a rigorosas tradições
simbólicas arcaicas.
Este pré-exercício sexual ou a sua proibição liga o universo
dos jogos à fase parental, àquilo que Piaget chama, com razão,
o nível dos «esquemas afectivos» e4). Mas, a partir da obra de
Malinowski, sabemos que a hermenêutica dos símbolos que
estão li.sados a estes esquemas é menos simples do que a psi­
canálise freudiana tinha dado a entender ao reduzir toda a peda­
gogia formadora dos símbolos (no sonho, como nas artes) ao
modelo edipiano da repressão da pulsão incestuosa. A antro­
pologia cultural mostra-nos que Jocasta e Édipo, longe de serem
arquétipos «naturais» dependem estreitamente do sistema fami­
liar em presença nas diferentes sociedades ; a repressão do
incesto, muito longe de ser o alfa - ou até o omega ! - do

e2) Ver BÉART, op. cit., p. 83, Jeu des petites huttes; ver MALI­
I'IOWSKI, La vie sexuel/e des sau vages du N. -0. de la Mélanésie, cap. IX,
pp . 230-265, cap. III, pp. 65-82. Ver Verrier ELWIN La maison des jeu­
,

nes � hez les Muria.


e3) Ver Denis de ROUGEMONT, L 'amour et l 'Occident; sobre o
«romanesco», ver G. DURAND, Le décor mythique de la Chartreuse de
Parme. Rougemont pôs em evidência a disj unção «ocidental» entre os
«mitos» do amor, o jogo galante e a exigência das instituições matrimoni­
ais; ver igualmente R. NELLI L· amou r et les mythes du coeur.
,

e4) O que MALINOWSKI (op. cit. , p. 1 30) denomina «oficina cultu-


ral».

84
OS NÍVEIS DO SENTIDO

simbólico infantil é uma formação cultural secundária, que pode


muito bem fixar-se mais em Electra do que em Jocasta.
Para certas sociedades, como as de Alor e as das ilhas Mar­
quesinas, estudadas por Cora du Bois, Linton e Kardiner e5), a
pedagogia parental esbate-se de tal maneira, sendo a «indife­
rença» da mãe o eco da «indulgência» do pai, que já não há,
como escreve Kardiner, «inflação anormal da imagem parental».
Deflação de que resulta um universo simbólico «sem rigor e sem
fervor» e cuja maioria dos elementos constitutivos são proveni­
entes de um nível inteiramente distinto do nível parental . Pelo
contrário, nos Tanala, o autoritarismo patriarcal, junto à exigên­
cia do controlo muito precoce dos esfincteres (seis meses ! ) e à
proibição dos jogos sexuais, suscita uma simbólica constrange­
dora, monoteísta, fatalista, imbuída da noção de pecado e de pre­
destinação, penetrada por todos os símbolos que sugerem o rigor
e a imobilidade. O arquétipo essencial, como na judiaria vienense
estudada por Freud, é aqui o Pai, ancestral divino, guardião temí­
vel da moralidade. Assim, se o puritanismo dos Tanala se apro­
xima do da pedagogia judaico-cristã estudada por Freud, o liber­
tarismo da sociedade de Alor cria um universo simbólico donde
Édipo é apagado, mas onde se difunde uma angústia motivada
pelo vazio e pela ausência de calor matemo.
Outra diferença que vem falsear o dogma ocidental do
Édipo: na sociedade matrilinear de Trobriand e6), não só vemos
um sistema simbólico exclusivamente matriarca! inspirar a cos­
mogonia e vir polarizar uma série de símbolos isótopos da
maternidade (valorização positiva do subsolo, mãe subterrânea,
mãe chuva, papel fecundador do macho minimizado em peixe
ou até numa estalactite da gruta no decurso da concepção do
herói Tuvada, etc.), como também a agressividade «edipiana»
do Trobriandês não se volta - e com razão - contra o pai
natural, nem contra o tio matriarca e7).

(25) Cora du BOIS, The people of Alor; LINTON, The science of man
in the world crisis.
(26) MALINOWSKI, op. cit. e La sexualité et sa répression dans les
sociétés primitives, p. 92.
e7) Matriarca: diz-se daquele que possui autoridade (o irmão da mãe)
nas sociedades matrilineares não patriarcais.

85
A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

temas rituais parece reinar totalmente. Por exemplo, os códi­


gos de cortesia, a «etiqueta» , os hábitos funerários, variam e
são até totalmente opostos de sociedade para sociedade, como
frágeis superestruturas, sob as influências imprevisíveis dos
acontecimentos , das mudanças climáticas e das invasões. Por
isso, foi possível relacionar a prática de embalsamar, ou do
canibalismo, nas ilhas Marquisinas, com a ameaça endémica
de fome. Nos Tanala e nos Betsileu, a simples passagem téc­
nica da cultura seca do arroz para a cultura húmida substitui
o simbolismo da fatalidade i mpessoal e irrevocável pelo sim­
bolismo de um Deu s todo-poderoso, autoritário e capri­
choso e2).
Temos ainda que a influência da língua, da sua estrutura,
dos jogos fonéticos ou caligráficos, reduzem, segundo parece,
os sistemas simbólicos a puras convenções. Basta pensar em
toda a simbólica do culto de Shiva, baseado no jogo da pala­
vra «Shiva»-«Shava» (o cadáver). O nome do deus privado da
letra feminina i é apenas o semantema do «cadáver» e3).
Todavia, apesar do arbitrário aparente e da superestrutura
simbólica neste nível puramente cultural, podemos já avançar
duas observações que confirmam a polaridade natural dos sím­
bolos - mesmo reduzidos a simples sintemas.
A maioria dos sociólogos e antropólogos das civilizações
observaram que existiam «padrões» de cultura e4) , que per­
mitem classificar estas últimas em dois grandes grupos irre­
dutíveis. Culturas ideacionais ou culturas visualistas (ideatio­
nal, sensate) de Sorokin, ou ainda, para Ruth Benedict, que
retoma qualificativos nietzschianos, culturas apolinianas ou

e2) KARDINER, The individual and his society, pp. 223, 320 c scgs.
Para melhor compreender por que razão, no tempo dos romanos, os burros
das mós públicas descansavam nas vesta/ia, é preciso saber que Vesta é a
deusa do lar (jocus) e também do moinho doméstico (pistrinum); ver tam­
bém DUMEZIL, Tarpeia, . p. 1 08 .
e3) Ver ZIMMER, Mythes et symboles dans l 'art e t l a civilisation de
1 '/nde.
e4) Ruth BENEDICT, Patterns of Culture. Este dualismo foi obser­
vado por muitos antropólogos: ver P. SOROKIN, Social and cultural dyna­
mics e F. S. C. NORTHROP, The meeting of East and West; ver também
os trabalhos de Piganiol, Worringer, etc.

88
OS N ÍVEIS DO SENTIDO

dionisianas, Oriente e Ocidente para Northrop, vêm recortar


sociologicamente a distinção entre regime diurno e regime
nocturno que já distinguimos psicologicamente e são indica­
tivos deste ou daquele regime simbólico preferencial utilizado
globalmente por esta ou aquela cultura singular. Conseguimos
assim seriar os símbolos em duas grandes classes culturais
«isótopas» e agrupar estas estruturas culturais, não por redu­
ção a uma infra-estrutura última e por isso ontológica, mas,
mais modestamente, num dualismo antagónico.
Mais, observamos que existe, no seio de um regime cul­
tural agora bem diferenciado, uma dialéctica que anima, dina­
miza, vivifica, o sibolismo de uma determinada cultura. O pró­
prio Sorokin verifica que uma sociedade nunca está totalmente
integrada num tipo e que existem elementos irredutíveis, sobre­
vivências, ilhéus antagónicos que ele denomina «congeres»,
Roger Mucchielli C5) - na sequência de Ruyer e da estética
de André Malraux, que definia a linguagem artística como um
«antidestino» - apercebe-se que os símbolos artísticos, míti­
cos, ideais, são determinados, paradoxalmente, por «oposição
às estruturas histórico-políticas ou psicossociais» de um deter­
minado grupo humano. Já antes, Cazeneuve C6) pusera em
relevo, na Sociedade «apoliniana» dos Zuni, a instituição e o
simbolismo saturnal dos palhaços Koyemshis, verdadeira vál­
vula de segurança «dionisiana».
A dialéctica pode, aliás, intervir entre as duas fases que
distinguimos neste nível, entre o rito e o mito como muitos
antropólogos pressentiram. Por exemplo, Lévi-Strauss C7) mos­
trou, a propósito dos índios Pawnee, que não existia homolo­
gia, numa sociedade determinada, entre os costumes ou os ritos
e os mitos.
Podemos até afirmar que quanto mais se complicam as dia­
lécticas, que quanto mais os esquemas simbólicos se contradi-
C5) R. MUCCHIELLI, Le myJhe et la cité idéale, p. 257 ; ver RUYER,
L 'utopie et les utopies, p. 1 59.
C6) CAZENEUVE, Les Dieux dansent à Cibola.
C7) Ver LÉVI-STRAUSS, «Structure et dialectique», em Anthropolo­
gie structurale, p. 257. Sobre a disjunção da lenda, do rito e do ícone, ver
também L. DUMONT, La Tarasque, Essai de description d 'un fait local
d 'un point de vue ethnographique.

89
A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

li zem e se compensam numa determinada sociedade, mais esta

lf '
I
sociedade está em vias de transformação integral, de liquefac­
ção histolítica. É o que acontece, segundo nos parece, com as
nossas sociedades «civilizadas», onde se enfrentam simbolis­
mos religiosos, estatais, familiares, sentimentos, mitos do pro­
gresso, mitos nacionalistas, utopias internacionalistas, mitos
socialistas ou individualistas . . . enquanto as sociedades primi­
tivas «frias» parecem possuir um maior grau de integração.
Todavia, mesmo no nível sintemático em que a relação
é mais importante do que o conteúdo simbólico, o mitólogo
descobre algumas grandes constantes, algumas grandes i ma­
gens que parecem escapar ao puro determinismo sociológico
e conduzir a uma espécie de lógica qualitativa universalizá­
vel e8).
Melhor, estas grandes imagens, ainda que tributárias da
Weltbild de uma sociedade singular, são directamente com­
preendidas como simbólicas por indivíduos - os mitólogos !
- que pertencem a uma outra sociedade. Como Lévi-Strauss
pressentiu, contar o mito conduz à singularidade convencional
dos sistemas, mas compreendere9) o mito apela para o sen­
tido do próprio mitema. E é o que faz que uma mitologia seja
imediatamente traduzível. O nível cultural fornece, portanto,
uma linguagem simbólica já universalizável. Os grandes sím­
bolos tecnológicos e astrobiológicos: o Sol, a Lua, os pontos
solsticiais, a árvore, o cereal, a chuva, a poção, o fogo e a
pederneira, o tecido e os ofícios de tecelagem, o ferro e a forja,
o pote e a cerâmica, constituem espécies de substantivos, sim­
bólicos polarizados por um par de padrões culturais facilmente
decifráveis.
Deste modo, quer pela análise estática que a psicologia
nos oferece, quer pelos resultados genéticos que a antropolo­
gia cultural nos propõe (estamos tentados a escrever, reto­
mando a linguagem do geólogo: quer pela estratigrafia como
pela tectónica) obtemos sempre dados simbólicos bi-polares

es) Ver LÉVI-STRAUSS, op. cit. , p. 25 1 , que estabelece o arquétipo


do «mediador» através da série isomorfa: messias > dioscuros > trickster >
ser bissexuado, etc.
i e9) LÉVI-STRAUSS, op. cit., p. 237.
!
90

l
OS NÍVEIS DO SENTIDO

que definem através de toda a antropologia, tanto psicológica,


como cultural e social, um vasto sistema de «forças de coe­
são» antagónicas. As imagens simbólicas equilibram-se umas
às outras mais ou menos pormenorizadamente, mais ou menos
globalmente, consoante a coesão das sociedades e também con­
soante o grau de integração dos indivíduos nos grupos.
Mas se o objecto da simbologia é por essência pluridi­
mensional e se refracta ao longo de todo o trajecto antropoló­
gico, daí resulta que já não podemos contentar-nos com uma
hermenêutica limitada a uma única dimensão. Por outras pala­
vras, tanto as hermenêuticas redutoras como as hermenêuticas
instauradoras que examinámos até agora pecam pela restrição
do campo explicativo. Só adquirem valor juntas umas às outras,
sendo a psicanálise esclarecida pela sociologia estrutural e
tomando esta última, como referência, uma filosofia do tipo
cassireriano, jungiano ou bachelardiano. O corolário do plura­
lismo dinâmico e da constância bipolar do imaginário é, como
Paul Ricoeur descobre (40) num artigo decisivo, a coerência das
hermenêuticas.

«Porque tudo está em cima, nada


está em baixo. Mas isto só é assim
para aqueles que não têm conheci-
mento.»
Odes de Salomão, 34.

f. Verificamos _uma dupla polaridade: a do símbolo, dividido


entre o significante e o significado, e a da simbólica no seu
todo, sendo o conteúdo da · imaginação simbólica, o imaginá­
rio, concebido como um vasto campo organizado por duas for­

ças reciprocamente antagónicas. Paul Ricoeur, levado a medi­
tar sobre o simboli smo do mal (4 1 ) f vai fazer recair a sua
reflexão na dupla polaridade dos métodos de interpretação, das

(40) P. RICOEUR, «Le conflit des herméneutiques, épistémologie des


interprétations», em Cahiers Intern. Symbol. , 1 962, n.0 I .
(4 1 ) P. RICOEUR, «Finitude et culpabilité», La symbolique du mal.

91
A IMAGINAÇÃO S IMBÓLICA

/
hermenêuticas (42). Indicamos anteriormente que havia, em tra­
ços gerais, duas espécies de hermenêuticas: as que reduzem o
símbolo a um simples epifenómeno, ao efeito, à superestrutura,
ao sintoma, e as que, pelo contrário, amplificam o símbolo,
deixando-se levar pela sua força de integração para aceder a
uma espécie de sobreconsciente vi v ido. Paul Ricoeur precisa
também o sentido destas duas hermenêuticas. Sendo ambas
esforço de decifração, são «reminiscências», como escrevemos
nos preliminares deste livro. Mas uma é, segundo as palavras
de Ricoeur, arqueológica, mergulhada em todo o passado bio­
gráfico, sociológica e até filogenética, e a outra é escatoló­
gica (43), isto é, reminiscência, ou melhor, chamada à ordem
essencial, incessante interpelação l do que chamámos o anjo.
V ma, por exemplo a de Freud, é denúncia da máscara que são
as imagens que vêm disfarçar as nossas pulsões, os nosso·s
desejos mais tenazes. A outra é revelação da essência do anjo,
se assim podemos dizer, da essência do espírito através das
metamorfoses da nossa encarnação, da nossa situação aqui e
agora no mundo. �
Também a hermenêutica segue duas vias igualmente anta­
gónicas. Por um lado, a via da desmistificação, preparada pelo
econoclasmo dos seis ou sete séculos da nossa civilização, com
Freud, com Lévi-Strauss (e P. Ricoeur acrescenta com Nietzs­
che e Marx); por outro, a via da remitificação, com Heideg­
ger, Van der Lew, Eliade, e nós acrescentaremos Bachelard.
Remitificação, isto é, recolecção do sentido, coleccionado, vin­
dimado (44), em todas as suas redundâncias e imediatamente
vivido pela consciência que o medita numa epifania instaura­
dora, constituinte do próprio ser da consciência. Assim, há duas
maneiras de ler, de confrontar um símbolo. Podemos fazer
«duas leituras» do mito de Édipo, uma freudiana, a outra hei­
deggeriana ou platónica (45) . Não insistiremos na leitura freu-

(42) P. RICOEUR, «Le conflit des herméneutiques». É também o tema


do Livre des deu.x Sagesses, de Nâsir-e KHOSRAW; ver edição H. Corbin,
1 953.
(43) Do grego: eschaton, o fim último, o último prazo.
(44) P. RICOEUR faz alusão ao alemão Weinlese, op. cit. , p. 1 66.
(45) P. RICOEUR, op. cit. , p. 1 79.

92
OS NÍVEIS DO SENTIDO

diana: sabemos que ela «lê» no mito de Édipo o drama do


incesto: «Édipo que mata o pai e casa com a mãe realiza ape­
nas um dos desejos da nossa infância». Mas, ao lado deste
drama de Édipo criança, e no mesmo texto de Sófocles, pode­
mos «ler» um outro drama: o de Édipo Rei e este Édipo
encarna o drama da verdade, porque Édipo procura o assas­
sino do seu pai Laios e luta contra tudo aquilo que vem entra­
var constantemente esta descoberta da verdade. Na segunda lei­
tura, à Esfi nge que representa o enigma freudiano do
nascimento, Ricoeur opõe Tirésias, o louco cego que é o sím­
bolo, a epifania da verdade. Daí a importância que adquire a
cegueira nesta segunda leitura. É certo que o freudiano assi­
nalava esta cegueira e fazia dela um efeito-signo de uma auto­
punição castradora, mutiladora. Mas como Lévi-Strauss, que
pode facilmente classificar a automutilação de Édipo como
característica suplementar da «dificuldade de andar direito» (46),
a cena da cegueira de Édipo é lida pelo freudiano com indi­
ferença e a cegueira esfuma-se a favor do incesto e do parri­
cídio. Pelo contrário, na segunda leitura que P. Ricoeur pro­
põe, a cegueira de Édipo, reforçada pela de Tirésias, torna-se
essencial. Tirésias « . . . não tem os olhos da carne, tem os olhos
do espírito e da inteligência: ele sabe. Será, pois, necessário
que Édipo, que pode ver, se tome cego para ter acesso à ver­
dade. Quando, como último acto, Édipo fura os olhos, trans­
formar-se-á, nesse momento, num vidente cego» (47).
Ricoeur legitima as duas hermenêuticas, porque, no fundo,
qualquer símbolo é duplo: como significante, organiza-se
arqueologicamente entre os determinismos e os encadeamen­
tos causais, é «efeito», sintoma; mas, como portador de um
sentido, tende para uma escatologia tão alienável como as cores
que lhe são dadas pela própria encarnação numa palavra, num
objecto situado no espaço e no tempo.
Paul Ricoeur propõe também que não se rejeite nem uma
nem outra destas hermenêuticas inversas. Somos filhos da
nossa civilização e de dez séculos de crítica, de racionalismo
e de positivismo, e «agora, para um homem moderno, este tra-

(46) Recordamos que Édipo significa «pé inchado».


(47) P. RICOEUR op. cit., p. 1 79.
,

93
A IMAGINAÇÃO SIMB Ó LICA

balho de iconoclasta, este trabalho de desmistificação, pertence


necessariamente a qualquer relação com os símbolos» (48). Mas
o poder de figuração das figuras, a interpelação dos emblemas,
das alegorias, das si mples palavras libertas de toda a sua evo­
cação poética, apelam também, irrevogavelmente, para uma
outra interpretação. O sentido figurado é inalienável: as pala­
vras organizam-se em frases, as coisas em universo, os objec­
tos animam-se em valores de uso O sentido próprio não é
. . .

suficiente. É então que, parafraseando Bachelard que aplica


este termo à química moderna, podemos conceber que as her­
menêuticas opostas e, no seio do próprio simbolismo, a con­
vergência de sentidos antagónicos devem ser pensados e inter­
pretados como um pluralismo coerente em que o significante
temporal, material, ao mesmo tempo que é distinto e inade­
quado, se reconcilia com o sentido, o significado fugaz que
dinam iza a consciência e salta de redundância em redundân­
cia, de símbolo em símbolo.
No entanto, no seio desta coerência, gostaríamos de insis­
tir no facto de que é o escatológico que tem a supremacia como
facto sobre o arqueológico. Porque existem sociedades sem
investigadores científicos, sem psicanalistas, sociedades «não
fastuosas», mas não sociedades sem poetas, sem artistas, sem
valores. Para o homem, é sempre «a dimensão de apelo, de
esperança» (49) que se sobrepõe à desmistificação. Porque a des­
m i stificação total equi valeria a anular o s valores da vida
perante a verificação brutal da nossa mortalidade. «Todos os

(48) P. RICOEUR, op. cit. , p. 1 65.


(49) P. RICOEUR, op. cit. , p. 1 83. Temos de acrescentar que, a partir
de então, Ricoeur deixou de ser fiel ao programa que traçou, e que sucum­
biu, como tantos outros, à i nflação, banalizada pelo coro dos «mass media»,
do arqueológico, dando o primado a este último em detrimento do escato­
lógico. Também nós não podíamos seguir por esta via banalizante a partir
de 1 965 (Ver o nosso artigo «Tâches de l ' Esprit et Imperatif de l ' Etre», Era­
nos Jahrbuch, XXXIV, 1 965) e, sobretudo a partir de 1 968 (R. BULT­
MANN, Jésus, mythologie et démythologisation, prefácio de P. RICOEUR,
entusiasta de B ultmann . . . ) Ver o cap. II, «Science historique et mythologie
traditionelle» do nosso livro Science de l 'Homme et tradition: Le Nouvel
Esprit anthropologique, Paris, Tête de Feuilles, 1 975.

94
OS NÍVEIS DO SENTIDO

homens são mortais», verifica a máxima positivista do inelu­


tável silogismo, mas no Fédon é proclamada a escandalosa
conclusão . . . «Logo, S ócrates é imortal ». E a esperança, sob
pena de se situar num plano acima da morte, nunca pode ser
mistificação. Contenta-se em ser mitos. Desmistificar o sím­
bolo e simultaneamente remitificá-lo talvez seja, precisamente,
extrair primeiro das contingências da biografia e da história a
intenção simbolista de transcender a história. Para um cristão,
a cruz não se reduz ao instrumento infamante de um suplício
romano. Para um hermeneuta a cruz também não se reduz à
cruz de Cristo, brilha já com todo o seu sentido de Encruzi­
lhada e de Mensagem no swastika hindú, como na «cruz de
Malta» dos manuscritos aztecas.
Acabamos de percorrer, de Freud a Ricoeur, todas as direc­
ções da hermenêutica, e de verificar mais uma vez que a dupli­
cidade, a equivocidade do símbolo (à qual correspondia a dua­
lidade das hermenêuticas) precisa e activa ainda o seu primeiro
sentido de mensageiro da transcendência no mundo da encar­
nação e da morte. Como escrevíamos na conclusão de uma
obra consagrada ao imaginário (50), a imaginação simbólica tem
por escandalosa função geral negar eticamente o negativo.
Poderíamos acrescentar aqui, à luz deste dualismo coerente que
P. Ricoeur observa nas hermenêuticas antagónicas (antago­
nismo coerente que se repercute no seio da própria estrutura
do símbolo, irredutivelmente significante, Bild e sentido, Sinn)
que a imaginação simbólica constitui a própria actividade dia­
léctica do espírito, dado que ao nível do «sentido próprio» da
imagem, cópia da sensação, ao nível da vulgar palavra do
dicionário, desenha sempre o «Sentido figurado», a criação per­
ceptiva, a poesia da frase que no seio da limitação nega esta
própria l i mitaç ã o . Porque a verdadeira d i aléctica, como
Lupasco mostrou, não é uma síntese pacificada, mas sim uma
tensão presente dos contraditórios. E se tantos símbolos, tan­
tas metáforas poéticas animam os espíritos dos homens, não
será, em última análise, porque são as «hormonas» (5 1 ) da ener­
gia espiritual?

(50) G. DURAND, Les structures anthropologiques de l 'imaginaire.


(5 1 ) A palavra é de Bachelard.

95

I
-
'--· -
A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

Resta-nos, pois, agora, no breve capítulo conclusivo deste


I' livro, passar rapidamente em revista os diferentes sectores em
que a fun ção simbólica manifesta o seu dinamismo contradi­
tonal e2).

(52 ) Ver P. FA YSSE, Le Contradictoriel, tese, Universidade Lavai, Que­


bec, 1 974.

96
CAPÍTULO V

Conclusão:
as funções da imaginação simbólica

«E se suprimes o que está entre o


Imparticipável e os participantes -
oh ! que vazio - separas-nos de
Deus, destruindo o elo e criando um
grande e inultrapassável abismo . . . »
Grégoire PALAMAS
Triade pour la défense des saints
hésychastes, III, 2, 24.

Sempre que abordamos o símbolo e os problemas do sím-·


bolo e a sua decifração, encontramo-nos em presença de uma
ambiguidade fundamental. Não só o símbolo tem um duplo
sentido, um concreto, preciso, o outro alusivo e figurado, como
também a classificação dos símbolos nos revelava os «regi­
mes» antagónicos sob os quais as imagems vêm ordenar-se.
Mais, não é só o símbolo que é duplo, as hermenêuticas tam­
bém são duplas: umas redutoras, «arqueológicas», as outras ins­
tauradoras, amplificadoras e «escatológicas». É que, como
dizíamos no final do capítulo precedente, a imaginação sim­
bólica é dinamicamente negação vital, negação do nada da
morte e do tempo. Esta essência dialéctica do símbolo desdo­
bra-se em vários planos que precisamos de examinar agora.
Como restabelecedor de equilíbrio, o pensamento simbólico faz
sentir os seus benefícios pelo menos em quatro sectores.
Primeiro, e na sua determinação imediata, na sua espon­
taneidade, o símbolo surge como restabelecedor do equilíbrio
vital comprometido pela inteligência da morte; depois, peda­
gogicamente, o símbolo é utilizado para o restabelecimento
do equilíbrio psicossocial; em seguida, se examinarmos o pro­
blema da simbólica em geral, através da coerência das her­
menêuticas, apercebemo-nos que a simbólica estabelece, atra-

97
A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

vés da negação da assimilação racista da espécie humana a


uma pura animalidade, ainda que racional, um equilíbrio
antropológico que constitui o humanismo ou o ecumenismo
da alma humana. Por fim, depois de ter instaurado a vida face
à morte, o bom-senso do equilíbrio face ao desregulamento
psicossocial, depois de ter verificado a grande catolicidade dos
mitos e dos poemas e instaurado o homem como homo symbo­
licus, o símbolo erige finalmente, face à entropia positiva do
universo, o domínio do valor supremo e equilibra o universo
que passa, por um Ser que não passa, ao qual pertence a
eterna Infância, a eterna aurora, e desemboca então numa teo­
fania.

Foi a Bergson ( 1 ) que coube o mérito de ter estabelecido


de forma explicita o papel biológico da imaginação, a que ele
chama «função fabuladora». A fabulação é geralmente uma
«reacção da natureza contra o poder dissolvente da inteligên­
cia», mas mais precisamente este poder negativo da inteligên­
cia manifesta-se na consciência da decrepitude e da morte.
A partir de então, a imaginação define-se como uma «reacção
defensiva da natureza contra a representação da inevitabilidade
da morte, através da inteligência». Mais adiante e) Bergson
insiste ainda no carácter antitético à dissolução que apresenta
a fabulação e utiliza incessantemente o termo de «reacção» ;
«Reacção defensiva da natureza contra um desencorajamento . . .
esta reacção suscita no seio da própria inteligência imagens e
ideias que deitam por terra a representação deprimente ou que
a impedem de actualizar-se.» Por outras palavras, no vasto uni­
verso bergsoniano de um dualismo matizado, a fabulação vem
situar-se ao lado do instinto, da adaptabilidade vital face à inte­
ligência grosseira e estática dos sólidos, dos factos e, por isso
mesmo, da morte. Graças à fabulação, o «todos os homens são
mortais» mantem-se potencial na consciência, mascarado pelo

e) Ver Les deux sources de la mora/e et de la religion, 1 932, pp. 1 27


e 1 37 .
e> lbid. , p. 1 59.

98
CONCLUSÃO: AS FUNÇÕES DA IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

concretíssimo projecto vital que faz espelhar a imaginação nos


olhos do pensamento.
Alguns anos depois de Bergson, será René Lacroze e) que,
num estudo sistemático, confirmará a tese do «papel biológico»
da imaginação. Ele confrontava estas conclusões com a tese
freudiana do recalcamento, o reino das imagens que surgem
como uma «posição de recuo em caso de impossibilidade física
ou de proibição moral», como «evasão para longe da dura rea­
lidade».
Finalmente, até nós (4), baseando-nos não na biologia,
como B ergson, ou na psicologia, como Lacroze, mas no
balanço antropológico, conseguíamos estabelecer que a função
de imaginação é, acima de tudo, uma função de «eufemiza­
ção», mas não simplesmente ópio negativo, máscara que a
consciência ergue diante da hedionda figura da morte, mas,
pelo contrário, dinamismo prospectivo que através de todas as
estruturas do projecto imaginário, tenta melhorar a situação do
homem no mundo. Concordávamos em particular com o etnó­
grafo Marcel Griaule (5), quando verificámos que toda a arte,
da máscara sagrada à ópera-cómica, é sobretudo iniciativa eufé­
mica que se insurge contra o apodrecimento da morte.
Todavia, esta eufemização verga-se também ao antago­
nismo dos regimes do imaginário. Tentámos mostrar(6) como
o eufemismo se diversifica, às portas da retórica, em antítese
declarada quando funciona no regime diurno ou, pelo contrá­
rio, através da dupla negação, em antifrase quando depende
do regime nocturno da imagem. Longe de ser incompatível
com o instinto de vida, o famoso «instinto de morte» que Freud
revelava em certas análises é simplesmente o facto de que a
morte é negada, é eufemizada ao extremo numa vida eterna,
no seio das pulsões e das resignações que inclinam as imagens

e) R. LACROZE, La fonction de l 'imagination, 1 935.


(4) Structures anthrop. de l 'imaginaire, pp. 439 e 44 1 .
(5) Ver GRIAULE, Masques Dogons, p . 8 1 8: « A arte dos Dogons é,
na sua origen, uma luta contra a putrefacção» ; p. 775 : «Ü mito não é mais
do que o método seguido . . . pelos homens para restabelecer a ordem na
medida do possível e limitar os efeitos da morte. Pmtanto, contém em si um
princípio de defesa e de conservação que comunica ao rito».

99
A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

para a representação da morte. O próprio facto de desejar e de


imaginar a morte como um repouso, um sono, eufemiza-a e
destrói-a.

Em segundo lugar, a imaginação simbólica é um factor de


equilíbrio psicossocial. A psicanálise clássica, na concepção da
sublimação, já tinha confirmado o papel tampão que desem­
penha a imaginação entre a pulsão e a sua repressão. Todavia,
a psicanálise freudiana, através da desvalorização que impunha
à imagem, limitava-se a verificar a estrutura equilibrante de
processos de sublimação, mas consistia em desmistificar as
aberrações imaginárias da neurose reduzindo-as à sua causa
temporal e substituindo-as pelo encadeamento positivista dos
factos biográficos da primeira infância. Num tal sistema, a ima­
gem, exceptuando o caso de sublimação, é mais um obstáculo
ao equilíbrio do que um adjuvante eficaz. É certo que já na
psicanálise jungiana, graças à noção de arquétipo, o símbolo é
concebido como uma síntese equilibrante através da qual a
alma individual se une à psique da espécie e apresenta solu­
ções tranquilizadoras para os problemas que a inteligência da
espécie coloca. No entanto, tanto em Jung como em Freud, o
símbolo nunca é encarado com meio terapêutico directo.
Passa-se exactamente o contrário com certos psiquiatras e
psicólogos contemporâneos que vão fazer a imagem desempe­
nhar o seu papel essencial: o de factor dinâmico do reequilí­
brio mental, isto é, psicossocial. Na terapêutica de Robert
Desoille ou de M.-A. Séchehaye C), podemos ver uma aplica­
ção sistematizada do que Bachelard pressentia na felicidade da
leitura, no equilíbrio reencontrado pelo «sonhador de palavras».
Porque o «sonho desperto», de que Desoille se faz teórico e
prático, está muito próximo nos seus efeitos da «fantasia»

(6) Ver Les structures anthropologiques de l 'imaginaire.


C) Ver R. DESOILLE, Le rêve éveillé en psychothérapie, Paris,
d' Artrey, 1 952, e M .A. SÉCHE HAYE, La réalisation symbolique, Berna, H.
Huber, 1947; ver H:: CHAMBRON, Contribution à / 'étude du rêve éveillé
en psych othérapie, TÓulouse, 1 963.

... . . 1 00
CONCLUSÃO: AS FUNÇÕES DA IMAGINAÇÃO S I M BÓLICA

bachelardiana. O psicoterapeuta que tem de tratar psicopatas


depressivos injecta no seu psiquismo asténico imagens anta­
gónicas, imagens de ascensão, de conquista vertical. E de ime­
diato, não só todo o «regime» isótopo das estruturas ascensio­
nais invade o campo de consciência - luz, pureza, domínio,
voo, ligeireza, etc. - como também a consciência sofre uma
verdadeira revitalização moral. A verticalidade é indutora de
proezas aeronáuticas ou montanhistas, mas também de «recti­
dão» moral.
Do mesmo modo, para reequilibrar os neuropatas que têm
tendência a perder o contacto com o real, Desoille fá-los-á
sonhar, não com a ascensão, mas com a descida à terra ou ao
mar concreto, levando-os, segundo a bela expressão de Bache­
lard, a «desaprender o medo» (8).
Na terapêutica preconizada pela Dr.a Séchehaye, o papel
equilibrante de um regime de imagem e das suas ressonâncias
simbólicas em relação ao outro é ainda mais nítido. O psi­
quiatra enfrenta aqui graves psicoses de aspecto esquizofré­
nico (9). A doente estudada vive obnubilada pelo regime
«diurno» da imagem. Sente-se abandonada no «país da clari­
dade», onde os objectos, os sons, os seres são «separados »,
as personagens são apenas «estátuas», «marionetas», caras
«recortadas como do cartão». Neste universo desolado, seco,
onde «tudo é separado, eléctrico, mineral», a doente é aterro­
rizada, esmagada perante o «muro de estanho», o «muro de
gelo» c t 0) . o psiquiatra, na cura de «realização simbólica» que
vai fazer seguir à doente, esforçar-se-á por temperar o impe­
rialismo de um único regime e, progressivamente, por arran­
car a doente do terrível «País da claridade» através de um sis­
temático e muito concreto «retiro campestre» e 1 ). Assim ,
nestas terapêuticas, a mudança de regime institui no cam po
da imaginação, primeiro uma conduta, e depois um requilí­
brio simbólico.

(8) BACHELARJ?, La terre et les rêveries de la volonté, p. 398.


(9) Ver M .-A. SECHEHAYE, Journal d ' une Schizophrene, pp. 4, 1 7,
22 e 5 1 .
�t� ,
-<1 5 4R..;:
eo) Op. cit. , pp. 59 e 77.
e 1) Op. cit., pp. 1 1 0 e 1 1 1 .
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A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

É certo que, no limite, como bem viram Cassirer e Jung,


a doença é perda da função simbólica. No entanto, nos casos
acima citados, o simbolismo ainda tem um desempenho, mas
um desempenho esclerosado e orientado para um único regime.
Os trabalhos de Yves Durand já citados mostram bem que a
saúde mental é sempre, e até ao limiar do afundamento cata­
tónico, uma tentativa de equilibrar um regime por outro. Por
exemplo, em alguns doentes no nível j á muito baixo, nos quais
os temas imaginários são muito estereotipados, muito polari­
zados por um único regime, é a forma que tentará um supremo
restabelecimento no sentido do regime antagónico. Do mesmo
modo, a doença média, aquela que dá esperança de cura, é,
mais do que a «perda da função simbólica», a hipertrofia desta
ou daquela estrutura simbólica e o bloqueamento sobre esta
estrutura. O doente é um desadaptado, eu diria mesmo quase
um «ultrapassado» em relação ao meio e à acção na qual está
inserido: o seu modo de reequilíbrio em relação ao meio não
é aquele que é aceite pelo próprio meio.
Mas, a par desta dialéctica de certo modo estática, neces­
sária ao equilíbrio presente da consciência, a história cultural,
especialmente a dos temas literários e artísticos e a dos esti­
los e das formas, revela uma dialéctica cinemática, se assim
podemos dizer, e passível da mesma função vital para uma
sociedade, a função de reequilíbrio. Não vamos alongar-nos
sobre o problema das «gerações» culturais, mas convirá assi­
nalar que a dialéctica das «noites» e dos «dias» ( 12) da histó­
ria cultural segue um duplo movimento no seu constante ree­
quilíbrio: cada «geração de 36 anos» opõe-se à precedente, a
dos «filhos» opõe-se à dos «pais», dos mais velhos, e os regi­
mes simbólicos vão-se reforçando enquanto os adultos educam
as crianças; depois, muito bruscamente, mudam quando as
crianças se tornam adultos ávidos de mudança, de «evasão».
Como escrevíamos noutro livro e3), «uma pedagogia persegue
a outra e a duração de uma pedagogia é limitada apenas pela
duração da vida do pedagogo». O equilíbrio sócio-histórico de

e2) Expressão tomada a G. MICHAUD, Introduction à une science de


la littérature, p. 255.
e3) G. DURAND, Les structures anthrop. de l 'imaginaire, p. 4 1 9.

102
CONCLUSÃO: AS FUNÇÕES DA IMAGINAÇÃO SIMBÓI .I< ' A

uma determinada sociedade não seria mais do que uma c o n s­


tante «realização simbólica» e a vida de uma cultura seria feita
destas diástoles e sistoles, mais ou menos lentas, mais o u
menos rápidas, consoante a própria concepção que estas socie­
dades fazem da história.
Do mesmo modo que o psiquiatra aplica uma terapêutica
de reequilíbrio simbólica, poderíamos conceber que a pedago­
gia - deliberadamente centrada na dinâmica dos símbolos -
se torna uma verdadeira sociatria, doseando precisamente para
uma dada sociedade as colecções e as estruturas de imagens
que exige para o seu dinamismo evolutivo. Num século de ace­
leração técnica, uma pedagogia táctica do imaginário surge
como mais urgente do que no lento desenrolar da sociedade
neolítica, onde os reequilíbrios se faziam por si mesmos, ao
ritmo lento das gerações.

Equilíbrio biológico, equilíbrio psíquico e sociológico, é


esta, afinal, a função da imaginação. Mas existe um outro equi­
líbrio que facilita paradoxalmente a nossa civilização tecno­
crática plena de exclusivos simbólicos. Porque, face ao icono­
clasmo triplamente reforçado que denunciávamos no início
deste estudo, a civilização que tantas vezes confundiu desmis­
tificação e desmitização, que é a nossa, propõe um gigantesco
processo de remitização, à escala planetária, meio que nenhuma
sociedade tinha possuído até agora na história da espécie.
O grande mérito de André Malraux ( '4) foi ter mostrado
nitidamente que os meios rápidos de comunicação, que a difu­
são em massa das obras-primas da cultura, por processos foto­
gráficos, tipográficos, cinematográficos, através do livro, da
reprodução a cores, do disco, das telecomunicações, da pró­
pria imprensa, permitiam uma confrontação planetária das cul­
turas e um recenseamento total dos temas, dos ícones e das
imagens, num Museu imaginário generalizado a todas as mani­
festações culturais. Perante a enorme actividade da sociedade
cientista e iconoclasta, é esta própria sociedade que nos pro-

ct4) A. MALRAUX, Les voix du silence.

103
' I T T'
II '

A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

I! I põe os meios de reequilíbrio: o poder e o dever de promover


um intenso activismo cultural.
Neste caso, como pressentiu Northrop e5), o «Museu ima­
ginário» generalizado ao conjunto de todos os departamentos
de todas as culturas, é o factor supremo de reequilíbrio de toda
a espécie humana. Para nós, ocidentais, o «recurso ao Oriente»,
a aceitação de regimes e de enxames de imagens veiculadas
pela arte do Oriente ou pela arte de civilizações diferentes da
nossa, são um meio, o único meio, de restabelecer um equilí­
brio humanista realmente ecuménico. A razão e a ciência só
ligam os homens às coisas, mas o que liga os homens entre
si, ao humilde nível das felicidades e das penas quotidianas da
espécie humana, é a representação afectiva, porque vivida, que
o império das imagens constitui . Depois do «Museu imaginá­
rio» no sentido estrito, o museu dos ícones e das estátuas, é
preciso apelar para um outro museu, é preciso generalizar um
museu mais vasto que é o dos «poemas» e6). A antologia gene­
raliza o museu. E só então a antropologia do imaginário pode
constituir-se, antropologia que não tem por finalidade ser ape­
nas uma colecção de imagens, de metáforas e de temas poéti­
cos. Mas que, além disso, deve ter por ambição elaborar o qua­
dro compósito das esperanças e dos receios da espécie humana,
a fim de que cada um possa reconhecer-se e confirmar-se nele.
Porque, como escreve Jean Lacroix: «O espírito só pode conhe­
cer-se nas suas obras quando, de qualquer modo, se reconhece
nelas» ( 17). O que a antropologia do imaginário permite, e só
ela permite, é reconhecer o mesmo espírito da espécie em prá­
tica tanto no pensamento «primitivo» como no pensamento
civilizado, tanto no pensamento normal como no pensamento
patológico. Reconhecemos aqui o optimismo de um Lévi­
-Strauss ao declarar que «O homem pensou sempre bem» ( 1 8 )
e ao calcular que a espécie humana sempre foi dotada de

c t 5) The meeting of East and West, pp. 345 e 383.


( 16) Foi o que esboçámos modestamente no Décor mythique de la Char­
treuse de Parme, quando tentamos ligar o romanesco do séc. XIX com os
grandes mitos da Antiguidade clássica.
e 7) J. LACROIX, La sociologie d'A uguste Comte, p. 1 1 0.
e 11) LÉVI-STRAUSS, Anthropologie structurelle., p. 255.

1 04
' CONCLUSÃO: AS FUNÇÕES DA IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

«faculdades constantes». Mas, ao contrário do célebre etnólogo,


não pensamos que esta perenidade e este ecumenismo residem
exclusivamente no «regime diurno», no pensamento analítico
que modela a lógica aristotélica da nossa civilização. Pelo con­
trário, no final das nossas pesquisas, estamos persuadidos de
que a Esperança da espécie, aquilo que dinamiza o pensamento
humano, é polarizada por dois pólos antagónicos e 9) em torno
dos quais gravitam rotativamente as imagens, os mitos, as fan­
tasias e os poemas dos homens. O ecumenismo do imaginário
diversifica-se para nós num dualismo «coerente». O «pensa­
mento selvagem» , que não é apenas o pensamento dos «sel­
vagens», como Lévy-Bruhl defendia, que se liga ao mais
secreto do meu pensamento domesticado pela ciência, não é
um simples balbuciar da ciência. Porque, nesse caso, a ciên­
cia, o «regime diurno» da consciência, seria um progresso em
relação às suas infâncias selvagens, e nós estaríamos a rein­
troduzir o orgulhoso racismo cultural caro à nossa civilização.
Ora, Lévi-Strauss reconhece-o bem eo) ao afirmar que «um
machado de ferro não é superior a um machado de pedra, por
ser mais bem feito. Ambos são igualmente bem feitos, mas o
ferro não é a mesma coisa que a pedra». Nós próprios aplica­
mos esta verdade tecnológica às imagens e às famílias de sím­
bolos: a teoria electrónica, as hipóteses sobre a expansão do
universo não são «mais bem feitas» do que um mito de emer­
gência Zuni ou do que a parábola do grão de mostarda. Sim­
plesmente, aplicam-se a doi s objectos diferentes. Mas, do
mesmo modo que não temos o direito de desvalorizar tais
mitos e a sua vocação de esperança em relação às nossas cren­
ças científicas e à sua vocação de domínio, também não temos
o direito de reduzir o machado de pedra ao seu «aperfeiçoa­
mento» metalúrgico. Convém simplesmente verificar que este
ecumeni smo do imaginário é dualista, i sto é, dialéctico.
E, humildemente, saber fazer como Gaston Bachelard: pedir o

e9) Claude LÉVI-STRA USS, nas últimas linhas do La pensée sauvage


(p. 356), parece reintroduzir esta dupla polaridade quando distingue «dois
caminhos» do pensamento para apreender o mundo: «Um surprcmamcnte con ­
creto, o outro supremamente abstracto».
eo) LÉVI-STRAUSS, Anthrop. stuct. , p. 255.

/ 05
A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

«suplemento da alma», a autodefesa contra os privilégios da


nossa própria civilização fastuosa, à fantasia que está de vigia
às nossas noites. É necessário contrabalançar o nosso pensa­
mento crítico, a nossa imaginação desmistificada, com o ina­
lienável «pensamento selvagem» que estende a mão fraterna
da espécie ao nosso orgulhoso desamparo de civilizado.

Finalmente, sem se estender ao domínio das revelações


religiosas e da fé, a antropologia simbolista, quer a de Mircea
Éliade e ' ) quer a de La poétique de la rêverie, desemboca
numa inevitável verificação: tanto o regime diurno como o
regime nocturno da imaginação organizam os símbolos em
séries que reconduzem sempre para uma infinita transcendên­
cia, que se coloca como valor supremo. Se o simbolólogo deve
evitar com cuidado as querelas das teologias não pode de modo
algum esquivar a universalidade da teofania. O hermeneuta
tem sempre o sentimento que todos os símbolos se organizam
numa vasta e única tradição que se torna por esta própria
exaustividade uma insuficiente revelação. E que, em última
análise, se a função simbólica opõe a vida à morte biológica,
se opõe o bom-senso à loucura, a adesão aos mitos da cidade
à alienação e à desadaptação, se finalmente constrói a frater­
nidade das culturas e especialmente das artes num «antides­
tino» consubstancial à espécie humana e à sua vocação fun­
damental, então na sua ponta extrema o dinamismo desta
função estende-se ainda numa nova dialéctica. De facto, a vida
biológica, o «bom-senso» que faz o espírito justo, a cidade e
os seus sintemas, o género humano e o glorioso museu das
imagens e das fantasias que construiu numa interminável e fra­
terna lenda dos séculos, são, por sua vez, aos olhos da insa­
ciável função simbólica e na sua relação negativa mesmo com
a morte, a loucura, a desadaptação ou a segregação racista, os
símbolos vivos revestidos por seu turno por um sentido que os
acompanha e os transcende. Por trás da vida que se alicerça

CZ 1 ) Ver M. ÉLIADE, Traité d 'histoire des religions e Images et sym­


boles.

106
CONCLUSÃO: AS FUNÇÕES DA IMAGINAÇÃO S I M BÓLJ < 'A

contra a morte, esboça-se uma vida do espírito que nada te m


a ver de essencial com a biologia. E é precisamente isso que
Paul Ricoeur quer dizer quando nos fala do «intercâmbio entre
o nascimento e a morte» em que «a simbólica se realiza» . Do
mesmo modo, no plano anterior da justeza da consciência no
seu bom-senso esboça-se um tipo de Justo, que resume a vir­
tude do herói, do sábio e do santo. Finalmente, a cidade dos
homens projecta-se no céu numa imutável Cidade de Deus e2),
enquanto o ecumenismo das imagens relança no plano espiri­
tual uma reversibilidade dos méritos e das penas que a frater­
nidade realmente concretiza. A partir de então, o símbolo surge,
por todas as suas funções, como abertura para uma epifania
do Espírito e do valor, para uma hierofania.
Por fim, como última dialéctica em que pela última vez a
imagem, Bild, persegue o sentido, Sinn, a epifania busca uma
figuração suprema para revestir esta mesma actividade espiri­
tual e procura uma Mãe e um Pai para esta vida espiritual, um
Justo dos Justos, um Rei da Jerusalém celeste, um Irmão divino
que possa verter, como resgate, «uma gota de sangue por ti» . . .
Todavia, mesmo nesta ponta extrema em que a simbologia está
disposta, segundo parece, a perder-se na mística por meio do
«retomo ao silêncio», uma vez esgotada toda a hermenêutica,
como diz Paul Ricoeur e3), a fundamental dialéctica das ima­
gens ainda funciona. o historiador das religiões e4) que se
debruça sobre as teofanias verifica a tensão dialéctica no pre­
sente de toda a intuição religiosa como na evolução temporal
de toda a religião. É por isso que o Grande Deus Shiva se des­
dobra numa figura energética e antagónica: Kali que, por sua
vez, se desdobra em «bondosa» e em «terrível». O próprio
Deus da B íblia, o Deus do Corão, ou o Deus da Kabala, têm
uma face de Rigor e outra de Misericórdia. O inefável «ben­
dito S anto» desdobra-se mesmo na feminidade encarnada pela
Schekinah. Observando a história, a evolução de uma religião,
o cristianismo por exemplo, apercebemo-nos rapidamente desta
pluralização: à sobriedade cristológica das Catacumbas opõe-

e2) Ver MUCCHIELLI, Le mythe de la cité idéale.


e3) P. RICOEUR, Le conflit des herméneutiques, p. 1 84.
e4) Ver B. MOREL, Dialectiques du Mystere.

107
A IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

-se a rutilância dos esmaltes bizantinos, depois ao ouro e à


hagiografia bizantinos, novamente a ocidental reforma de Cis­
ter e, de novo, na esteira do purismo românico, a exuberância
e a eflorescência góticas. Poderíamos ainda observar estes flu­
xos e refluxos de teofanias antagónicas no decurso da Reforma,
da Contra-Reforma e do Quietismo e, finalmente, nos nossos
dias , entre um certo formalismo moral do cristianismo social
e a enorme proliferação do culto mariano em Lurdes ou em
Fátima. Quer estática quer dinamicamente, a própria teofania
é animada pela dialéctica. Isto é tão verdade que a dialéctica,
e o símbolo que é dialéctica em acto, que é tensão criadora,
não pode tolerar a astenia de um fim. Por outras palavras, a
antropologia simbólica reconstitui em todas as suas tensões
antagónicas uma teofania; no final deste livro, voltamos à afir­
mação que fizemos no início deste estudo: o símbolo, no seu
dinamismo instaurador em busca de sentido, constitui o pró­
prio modelo da mediação do Eterno no temporal.
Deste modo, este livro de iniciação, partindo da psicaná­
lise vem desembocar na teofania e5). Sem querer especializar
o leitor nestes dois extremos da hermenêutica, desejaríamos
simplesmente, ao fechar estas páginas, que o exame da ima­
ginação simbólica que acabamos de fazer fosse realmente
iniciador do humanismo aberto que será o humanismo de ama­
nhã e ao qual a simbólica nos convida, através da psicopato­
logia, etnologia, história das religiões, mitologias, literaturas,
estéticas e sociologia. Em suma, a simbólica confunde-se com
o andamento de toda a cultura humana. No irremediável ras­
gão entre a fugacidade da imagem e a perenidade do sentido
que o símbolo constitui, precipita-se a totalidade da cultura
humana, como uma mediação perpétua entre a Esperança dos
homens e a sua condição temporal. O humanismo de amanhã,
depois de Freud e Bachelard, já não poderá fechar-se numa
iconoclasta exclusiva. Possa também este livro incitar o leitor,
sem nada negar da cultura ocidental e dos seus processos de
desmistificação, a tornar-se, a exemplo de Bachelard, sonha­
dor de palavras, sonhador de poemas, sonhador de mitos e,

e5) Foi este itinerário que o psicanalista Stern percorreu espiritualmente.


Ver STERN, La troisieme révolution e Le buisson ardent.

108
CONCLUSÃO: AS FUNÇÕES DA IMAGINAÇÃO SIMBÓLICA

assim, instalar-se plenamente na realidade antropológica bem


mais vital, mais importante para o destino e, sobretudo, para
a felicidade do homem do que a morta verdade objectiva. Por­
que é entre as verdades objectivas desmistificadoras e o insa­
ciável querer ser constitutivo do homem que se instaura a liber­
dade poética, a liberdade «remitificante». Mais do que nunca,
nós sentimos que u ma ciência sem consciência, isto é, sem
afirmação mítica de uma Esperança, marcaria o declínio defi­
nitivo das nossas civilizações.

L
109
:.:· ·
BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA

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rier du Centre lnternational d 'Études poétiques, n.0 42.

111
ÍNDICE
I I

Introdução - O vocabulário do simbolismo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7


Capítulo I - A vitória dos iconoclasmos ou o inverso
dos positivismos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
Cartesianos e cientismo. Conceptualismo aristotélico e
ockhamismo, dogmatismo religioso e clericalismo
Capítulo II - As hermenêuticas redutoras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37
A psicanálise d e Freud. O fu ncionalismo d e G. Dumézil .
O estruturalismo d e Claude Lévi-Strauss.
Capítulo III - As hermenêuticas instauradoras . . . . . . . . . . . . . . 53
Kant e o criticismo d e Ernst Cassirer. A arqueti pologia
de Jung, Bachelard e a fenomenologia poética. Cosmolo-
gia, psicologia, teofania poéticas . . .
Capítulo IV - O s níveis do sentido e a convergência
das hermenêuticas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . ... . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73
A antropologia d o imagi nário e a dialéctica d o s símbo­
los. Os níveis de formação do simbolismo. P. Ricoeur e
a coerência das hermenêuticas
Capítulo V - Conc lusão : as funções da imaginação sim-
bólica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97
A função biológica: o eufemismo. A função psicossocial:
real ização s i m bó l ica e reequi l íbrio social . A fu nção
humani sta: o ecumenismo do símbolo. A função teofâ­
nica: a Grande Obra dialéctica
Bibliografia Sumária . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 1

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