MESONS, ONTOLOGIA - Rodrigo Petronio Ribeiro PDF

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educao e Humanidades


Instituto de Letras

Rodrigo Petronio Ribeiro

Mesons
Ontologia

Rio de Janeiro
2015
Rodrigo Petronio Ribeiro

Mesons
Ontologia

Tese apresentada, como requisito parcial


para obteno do ttulo de Doutor, ao
Programa de Ps-Graduao em Letras da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
rea de concentrao: Literatura
Comparada.

Orientador: Prof. Dr. Joo Cezar de Castro Rocha

Rio de Janeiro
2015
CATALOGAO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEHB

R484 Ribeiro, Rodrigo Petronio.


Mesons: ontologia / Rodrigo Petronio Ribeiro. 2015.
495f.

Orientador: Joo Cezar de Castro Rocha.


Tese (Doutorado) Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Instituto de Letras.

1. Filosofia Teses. 2. Mesons - Teses. 3. Ontologia -


Teses. 4. Cosmologia Teses. 5. Modernidade - Teses. 6.
Infinito Teses. 7. Sloterdijk, Peter, 1947- - Crtica e
interpretao - Teses. 8. Prigogine, I. (Ilya), 1917-2003 -
Crtica e interpretao - Teses. 9. Stengers, Isabelle, 1949- -
Crtica e interpretao - Teses. 10. Shakespeare, William,
1564-1616. A tempestade Teses. 11. Literatura e filosofia
Teses. I. Rocha, Joo Cezar de Castro. II. Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Letras. III. Ttulo.

CDU 1

Autorizo, apenas para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial desta
tese desde que citada a fonte

_____________________________ __________________
Assinatura Data
Rodrigo Petronio Ribeiro

Mesons
Ontologia

Tese apresentada, como requisito parcial


para obteno do ttulo de Doutor, ao
Programa de Ps-Graduao em Letras da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
rea de concentrao: Literatura
Comparada.

Aprovada em 17 de julho de 2015.

Banca Examinadora

___________________________________________
Prof. Dr. Joo Cezar de Castro Rocha (Orientador)
Instituto de Letras - UERJ
___________________________________________
Prof. Dr. Stelio Marras
Universidade de So Paulo
___________________________________________
Prof. Dra. Regina Lucia de Faria
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
____________________________________________
Prof. Dr. Marcus Alexandre Motta
Instituto de Letras - UERJ
____________________________________________
Prof. Dr. Marcus Vinicius Nogueira Soares
Instituto de Letras - UERJ

Rio de Janeiro
2015
DEDICATRIA

Dedico esta tese a todos aqueles que, durante minha vida, acreditaram em mim e
me fortaleceram no Caminho.
AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. Joo Cezar de Castro Rocha [UERJ], por sempre ter acreditado e
apoiado meu trabalho, com grande generosidade intelectual.
Aos professores Stelio Marras, Regina Lucia de Faria, Marcus Alexandre
Motta e Marcus Vinicius Nogueira Soares, pela participao na Banca Examinadora
deste trabalho, pela leitura, a generosidade e as valiosas observaes, que serviram
de estmulo e aperfeioamento desta pesquisa.
Aos professores Guillermo Giucci e Johannes Kretschmer, que aceitaram
assumir a suplncia da Banca Examinadora e que me estimularam muito nesse
momento final deste trabalho.
Ao Prof. Dr. Stelio Marras [USP], pelos ensinamentos, a amizade e a
confiana, bem como pelo convite para ministrar uma disciplina a quatro mos na
USP, sempre dando mostras de seu esprito generoso e inclusivo.
Ao Prof. Dr. Hans Ulrich Gumbrecht [Stanford], que me acolheu da melhor
maneira possvel na Universidade de Stanford e me estimulou imensamente em
minhas pesquisas e no meu trabalho.
Ao Prof. Dr. Marcus Alexandre Motta [UERJ] pelo curso sobre Adorno e pelo
apoio nesses interstcios entre literatura e filosofia.
Ao Prof. Dr. Mario Bruno [UERJ], pela participao na Qualificao, pelas
sugestes de caminhos e veredas da filosofia contempornea.
Aos membros da banca que me honraram com sugestes e crticas a este
trabalho.
Ao amigo Prof. Dr. Vincent Barletta [Stanford University], entusiasta da
lusofonia e da brasilidade, pelas longas conversas e tantas ideias sobre literatura.
minha amiga, Profa. Dra. Victoria Saramago [Chicago University], que me
acolheu nos EUA e ajudou em todas as pontes possveis para meu estgio
sanduche e minha estadia.
minha amiga Jamille Pinheiro Dias, pelas trocas de ideias, apoios e ajudas
em diversos sentidos.
minha nova amiga, Profa. Dra. Marilia Librandi Rocha [Stanford University],
da Universidade de Stanford, pelo carinhosa recepo e pelas longas e estimulantes
conversas sobre tantos temas que tambm esto aqui.
s Profs. Dra. Marina Vanzolini [USP] e Maria Borba [CBPF] e ao Prof. Dr.
Renato Sztutman [USP], pelo excelente curso sobre Stengers e Prigogine e pelas
novas alianas intelectuais.
Ao Prof. Dr. Mrio Novello [CBPF], pela interlocuo, os ensinamentos, os
livros e por ter reforado ainda mais meu interesse e amor pela cosmologia.
Ao Prof. Dr. Ricardo Fabbrini [USP] pelas dicas relativas a modernidade, arte
e teoria da arte, e tambm pelo excelente curso que acompanhei.
Ao Prof. Maurcio de Carvalho Ramos [USP], por ter me apresentado alguns
caminhos de compreenso da Filosofia da Cincia, de Leibniz e dos interstcios
entre filosofia, morfologia e vida.
Ao Prof. Dr. Guillermo Giucci [UERJ], pelas aberturas compreensivas da obra
de Sloterdijk.
Profa. Dra. Maria da Conceio Monteiro [UERJ], pelo curso sobre
transumanismo e pelas diversas dicas de bibliografia.
Ao Prof. Dr. Roberto Aczelo Quelha de Souza [UERJ], por todo auxlio dado
na condio de coordenador de ps-graduao.
Ao Prof. Dr. Erick Felinto [UERJ] pelas dicas de obras e contatos de autores
do Realismo Especulativo e teoria das mdias.
Capes pela bolsa de Doutorado regular, que foi extremamente valiosa para
o desenvolvimento desta pesquisa, bem como pela Bolsa de Doutorado Sanduche
no Exterior, por meio da qual pude passar trs meses de pesquisa intensiva na
Universidade de Stanford, viagem que foi extremamente produtiva e cujos resultados
do levantamento bibliogrfico e de reflexo esto todos presentes neste trabalho.
Profa. Dra. Carlinda Nunes [UERJ] pelo enorme auxlio nos procedimentos
do Doutorado Sanduche no Exterior, sem os quais no teria conseguido ultimar tudo
a contento.
Claudia e a toda equipe da Secretaria de Ps-Graduao em Letras da
Universidade Estadual do Rio de Janeiro [UERJ], sempre prestativos e solcitos.
Tania Salgado por todo tempo de servio e as inmeras ajudas que me deu
durante a sua estada na Secretaria de Letras.
A todos os meus mais de quinhentos alunos que, ao longo desses quase 15
anos de docncia, passaram pela minha vida e contriburam de alguma maneira
para que eu viesse a ser o que sou.
A todos os professores que tive ao longo da vida e que fortaleceram cada vez
mais o amor que tenho pela palavra conhecimento, a comear pela professora
Quitria, minha me.
A meu amigo Mrio Dirienzo, pelas conversas e trocas no mbito de
paradoxos e dilemas de nossa humana condio, presentes em diversas destas
linhas.
A todos os integrantes do grupo de estudos Cavalo Azul, especialmente a
Dora Ferreira da Silva e a Vicente Ferreira da Silva [in memoriam], que ao longo de
anos proporcionaram um espao de Duplo Domnio e de celebrao, e me
ensinaram a tocar a Terra antes de alar voo.
Ao meu amigo Nelson Schuchmacher Endebo, pela amizade e pelas
excelentes conversas em torno de temas to excntricos quanto vitais, presentes
neste trabalho.
A meus pais Jeovah Petronio Ribeiro e Quitria Santana Ribeiro,
batalhadores que sempre transpuseram todos os limites para me dar tudo o que
tenho e que esto por trs de qualquer coisa boa que eu realize ou venha a realizar.
A meus irmos Leonardo Santana Ribeiro e Thiago Santana Ribeiro, porque o
Caminho infinito e, sendo infinito, inconsciente.
A toda minha famlia, pelo apoio, o amor e a presena sempre e sempre
decisiva para que eu possa realizar o que consigo realizar.
Para Ariane, meu amor, meio-mundo circundante sem o qual teoria alguma
seria possvel ou faria sentido.
A lgica de um pensamento o conjunto das crises que ele atravessa, assemelha-
se mais a uma cadeia vulcnica do que a um sistema tranquilo e prximo do
equilbrio.
Gilles Deleuze

Somos conscientes de que s escrevemos quando o salto se realizou, mas,


para realiz-lo, primeiro preciso escrever, escrever sem fim, escrever a partir
do infinito.
Maurice Blanchot

Pode-se dizer, aproximadamente, que essa revoluo cientfica e filosfica


de fato impossvel separar o aspecto filosfico do puramente cientfico desse
processo, pois um e outro se mostram interdependentes e estreitamente unidos
causou a destruio do cosmos, ou seja, o desaparecimento dos conceitos
vlidos, filosfica e cientificamente, da concepo do mundo como um todo
finito, fechado e ordenado hierarquicamente, um todo no qual a hierarquia de
valor determinava a hierarquia e a estrutura do ser, erguendo-se da terra
escura, pesada e imperfeita para a perfeio cada vez mais exaltada das
estrelas e das esferas celestes, e a sua substituio por um universo indefinido
e at mesmo infinito que mantido coeso pela identidade de seus
componentes e leis fundamentais, e no qual todos esses componentes so
colocados no mesmo nvel de ser. Isto, por seu turno, implica o abandono, pelo
pensamento cientfico, de todas as consideraes baseadas em conceitos de
valor, como perfeio, harmonia, significado e objetivo, e, finalmente, a
completa desvalorizao do ser, o divrcio do mundo do valor e do mundo dos
fatos.
Alexandre Koyr

Foi um erro crer que o mundo humano providenciou uma plataforma


comum para todos os seres vivos. Todo ser vivo tem uma plataforma
especial, que to especial quanto a plataforma especial dos seres humanos.
Jacob von Uexkll
As plantas so mortais. Os homens so mortais. Os homens so plantas.
Gregory Bateson

O processo de criao a forma da unidade do universo.


Alfred North Whitehead

A vida forma.
Peter Sloterdijk

O grande segredo consiste justamente em que os meios so mais importantes


que os fins.
Nicolai Berdiaev

A filosofia passa da cincia ao sonho e inversamente, pois conduziu-os


imaginao que atravessa os domnios, as ordens e os nveis, abatendo os
compartimentos, coextensiva ao mundo, guiando nosso corpo e inspirando nossa
alma, apreendendo a unidade da natureza e do esprito.
Gilles Deleuze

evidente que se esgotou a forma de pensar e a forma de vida da velha


Europa, a filosofia; a biosofia acaba de comear seu trabalho, a teoria das
atmosferas acaba de se consolidar provisoriamente, a teoria geral dos
sistemas de imunidade e dos sistemas de comunidade est em seus incios,
uma teoria dos lugares, das situaes, das imerses se coloca em marcha
lentamente, a substituio da sociologia pela teoria das redes de atores
uma hiptese com pouca recepo ainda, consideraes sobre a mobilizao
de um coletivo constitudo realisticamente com o intuito de aprovar uma nova
constituio para a sociedade global do saber no mostraram ainda nada
mais do que esboos. Nesses indcios, no se pode reconhecer uma
tendncia comum. Apenas algo est claro: onde se lamentava perdas de
forma, surgem desejos de mobilidade.
Peter Sloterdijk
RESUMO

PETRONIO, Rodrigo. Mesons: ontologia. 2015. 495 f. Tese (Doutorado em Literatura


Comparada) - Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2015.

Este trabalho se intitula Mesons e prope descrever e fundamentar uma nova


teoria: a mesologia. Trata-se de uma teoria geral dos meios [mesons] e das
mediaes, uma ontologia dos meios, poderamos dizer, cujo intuito fornecer
parmetros conceituais para a compreenso de fenmenos bastante heterogneos,
sejam eles de ordem cultural ou natural, fsica ou metafsica. Essa abrangncia
possvel porque a mesologia se apoia em princpios cosmolgicos e ontolgicos
para se fundamentar. Nesse sentido, um dos princpios fundamentais em torno dos
quais a teoria dos mesons se articula o binmio finito-infinito, entendido a partir da
ontologia e da cosmologia. Por isso, esta tese leva o subttulo de Ontologia, pois
pretende delinear as premissas metatericas elementares dessa teoria. Portanto,
este um trabalho eminentemente metaemprico, cujos objetos material e formal
coincidem em um mesmo objeto conceitual: a demarcao epistemolgica do
conceito de mesons, bem como a explorao de diversos fenmenos que possam
ser descritos e agenciados pela mesologia. A partir deste ncleo primrio que a
definio da ontologia dos mesons, uma srie de outros conceitos se dissemina,
centrais para a compreenso da mesologia como um todo: mesons, meios, ser, vida,
sapiens, ontologia, cosmologia, infinito, finito, heterarquia, heterognese, antropia,
antropofanias, antropogemas, transumano, holografia, holograma, mereografia,
mereograma, pluriontologias, transferncia, animismo, imaginal, tempestade, entre
outros. Obviamente no pude analisar e estabilizar todos esses conceitos neste
trabalho. E se no o fiz tambm porque imagino este trabalho dedicado a delinear
o ser dos mesons, ou seja, a ontologia dos meios, como o primeiro volume de um
projeto maior, em diversos volumes, intitulado Mesons, e que abordar outros
conceitos e outras noes, tais como cosmo, vida, forma, morte, sexualidade, em
suas determinaes e especificidades propriamente mesolgicas.

Palavras-Chave: Mesons. Meios. Teoria Global Dos Meios. Ser. Vida. Sapiens.
Ontologia. Cosmologia. Infinito. Finito. Heterarquia. Heterognese.
Antropia. Antropofanias. Antropogemas. Transumano. Holografia.
Holograma. Mereografia. Mereograma. Pluriontologias.
Transferncia. Animismo. Imaginal. Tempestade.
ABSTRACT

PETRONIO, Rodrigo. Mesons: ontology. 2015. 495 f. Tese (Doutorado em Literatura


Comparada) - Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2015.

The work hereby presented is titled Mesons. It purports to describe and lay
the foundations for a new theory, mesology, a general theory of media [mesons] and
mediations, an ontology of media, one could say, the purpose of which is to furnish
conceptual parameters for the understanding of highly heterogeneous phenomena,
be they of a cultural or natural order, or of a physical or metaphysical one. Such
scope is possible because mesology is buttressed by cosmological and ontological
foundational principles. In this sense, one of the basic principles around which the
theory of mesons is articulated is the binomial finite-infinite, understood from the
standpoint of ontology and cosmology. Thus is this dissertation subtitled Ontology,
for it seeks to outline the elementary meta-theoretical premises of this theory. This
work is therefore eminently meta-empirical, in that both its material and formal
objects coincide in one selfsame conceptual object: the epistemological demarcation
of the concept of mesons, as well as the exploration of diverse phenomena that
mesology could be used to describe and assemble [agencement]. Proceeding from
this primary core that defines the ontology of mesons, another series of concepts
unfolds, concepts central to the understanding of mesology as a whole: mesons,
media, being, life, sapiens, ontology, cosmology, infinite, finite, heterarchy,
heterogenesis, anthropy, anthropophany, anthropogemes, transhuman, holography,
hologram, mereography, mereogram, pluriontologies, transference, animism,
imaginal, tempest, among others. It has obviously not been possible to analyze and
develop all such concepts in this work. If I have failed to do so, it is also because I
imagine this work, dedicated to an outline of the being of mesons, that is, to the
ontology of media, as the first volume of a larger, multi-volume project, titled Mesons,
which will engage other concepts and notions such as cosmos, life and form, in their
properly mesological determinations and specificities.

Keywords: Mesons. Media. Global Theory Of Media. Being. Life. Sapiens. Ontology.
Cosmology. Infinite. Finite. Heterarchy. Heterogenesis. Anthropy.
Anthropophanies. Anthropogemes. Transhuman. Holography. Hologram.
Mereography. Mereogram. Pluriontologies. Transference. Animism.
Imaginal. Tempest.
SUMRIO

INTRODUO ................................................................................. 24

1 MESONS E MEIOS .......................................................................... 76

1.1 A Tempestade ................................................................................. 77

1.2 Mesons e Meios .............................................................................. 79

1.3 O Efeito-Ilha ..................................................................................... 94

1.4 Meio e Imagem ................................................................................ 97

1.5 Medida e Desmesura ...................................................................... 101

1.6 Ser, Cosmos e Infinito .................................................................... 108

1.7 Mesologia e Mereografia ................................................................ 113

1.8 Meio e Vida ...................................................................................... 118

1.9 Mesons e Mnadas ......................................................................... 122

1.10 Mesons e Ecologias ....................................................................... 125

1.11 Vida e Imunologia ........................................................................... 129

1.12 Atmosferas ...................................................................................... 131

1.13 Mesons, Desejo e Sexualidade ...................................................... 136

1.14 Sistema, Meio e Produo ............................................................. 142

1.15 Capital, Metabiologia e Mesons .................................................... 146

1.16 Mesons e Narrativa ......................................................................... 153

1.17 Dualismo, Monismo, Pluralismo ................................................... 156

1.18 Por uma teoria da expresso ......................................................... 163

2 JAMAIS FOMOS HUMANOS: MESONS E ANTROPIA ................. 168

2.1 Antropia e Heterognese ............................................................... 168

2.2 Antropofanias e Antropogemas .................................................... 171

2.3 Especular, Imaginal, Desejo .......................................................... 173

2.4 Humanismo e Teandrismo ............................................................. 177


2.5 Nada do que humano .................................................................. 180

2.6 Escrevo-te de um pas distante ..................................................... 182

2.7 Animismo e Mereologia ................................................................. 189

2.8 O fio de ouro de Homero ................................................................ 194

2.9 Eros, Cosmos e Mesons ................................................................ 197

2.10 Os Mamferos e a Geometria ........................................................ 201

2.11 Espelho ............................................................................................ 203


3 SER E RELAO: OS MESONS E AS ONTOLOGIAS
RELACIONAIS, CONSTITUINTES E PLURALISTAS ................... 207
3.1 Ontological Turn ............................................................................ 207

3.2 Realismo Especulativo .................................................................. 211

3.3 Metaxologia e Ontologia Relacional ............................................ 212

3.4 Arqueologia e Relao .................................................................. 213

3.5 Teologia e Relao ........................................................................ 214

3.6 Poltica e Ontologia ....................................................................... 216

3.7 Sociologia, Ontologia e Relao .................................................. 218

3.8 Modo, Pluralidade, Relao .......................................................... 230

3.9 Ser e Linguagem ............................................................................ 240

3.10 Metaontologia e Metametafsica .................................................... 242

3.11 Ontologias: Relacionais e Constituintes ...................................... 246

3.12 Quartos e Mesons ........................................................................... 248

3.13 Ontologia Orientada aos Objetos [OOO] ...................................... 253


4 MODOS E MESONS: UMA CONTRIBUIO PARA UMA
TEORIA DA MODERNIDADE .......................................................... 255
4.1 Cincia, Imanncia e Relao ........................................................ 255

4.2 Mesons e Modos ............................................................................ 259

4.3 Antropologia e Complexidade ....................................................... 263

4.4 Tenso e Teleologia ...................................................................... 265


4.5 Modernidade e Secularizao ....................................................... 268

4.6 Avessos da Modernidade .............................................................. 273

4.7 Deslegitimao e Contradio Produtiva ..................................... 275

4.8 Cinismo ............................................................................................ 280

4.9 Mesologia e Contemporneo ......................................................... 282


5 MEIO, VIDA E COMPLEXIDADE: OS MESONS ENTRE
STENGERS, PRIGOGINE E SLOTERDIJK .................................... 287
5.1 Aliens e Alianas ............................................................................ 288

5.2 Deus e Mecanicismo ...................................................................... 300

5.3 Acaso, Gnose e Dualismo .............................................................. 306

5.4 Irreversibilidade, Morfologia e Organicismo ................................ 326

5.5 Metamorfose ................................................................................... 328

5.6 Correlacionismo e Finitude ........................................................... 347

5.7 Vitalismos e Organicismos ............................................................ 355

5.8 Cincia do Fogo .............................................................................. 358

5.9 Darwin e Carnot: Devir Geral e Devir Complexo ......................... 363

5.10 Embriologia e Morfognese ........................................................... 365

5.11 Ser e Devir ....................................................................................... 373

5.12 Teoria da Relatividade e Ontologia dos Meios ........................... 374

5.13 Tempo e Complexidade ................................................................. 377


6 MESONS E ESFERAS: DA ONTOLOGIA DA DADE
ONTOLOGIA DOS MEIOS ............................................................... 381
6.1 Mesons e Esferas ........................................................................... 382

6.2 Imunidade e Comunidade .............................................................. 387

6.3 Afrologia, Climas, Atmosferas ...................................................... 390

6.4 Explicitao ..................................................................................... 395

6.5 O Antropos e a Domesticao ....................................................... 398

6.6 Ontologia e Topologia .................................................................... 404


6.7 Complexidade ................................................................................. 409

6.8 Do Um ao Dois ................................................................................ 413

6.9 Imunizao e Transferncia ........................................................... 415


7 O GRANDE GLOBO DESAPARECEU: OS MESONS E A
TEMPESTADE DE SHAKESPEARE ............................................... 429
7.1 Mesons e Anima ............................................................................. 429

7.2 A Tempestade ................................................................................. 432

7.3 Natureza e Simetria ........................................................................ 435

7.4 Physis e Techn ............................................................................. 436

7.5 Theatrum Alchemicum ................................................................... 437

7.6 Princpios ........................................................................................ 441

7.7 Physis e Animismo ......................................................................... 443

7.8 Orvalho das Bermudas .................................................................. 445

7.9 Planetas, Animais, Spiriti ............................................................... 447

7.10 Digby e Shakespeare ...................................................................... 449

7.11 Fermentao Universal .................................................................. 451

7.12 O Baixo Organicismo ..................................................................... 454

7.13 Limiar ............................................................................................... 458

7.14 Simetria e Infinito ............................................................................ 460

7.15 O Grande Globo Desapareceu ....................................................... 468

REFERNCIAS ................................................................................ 471


15

MESONS
Roteiro de Leitura

I. Mesons
1. A teoria dos mesons ou mesologia uma teoria que se define como uma
ontologia e uma cosmologia dos meios.
2. medida que uma epistemologia relacional, a teoria dos mesons prope-se
como uma ontologia que descreve e promove a emergncia e a gnese de
novos conceitos.
3. Um novo conceito aquele que cria uma nova realidade, produz realidades e
no apenas descreve realidades preexistentes.
4. Esses novos conceitos emergem justamente nos interstcios dos saberes e
das cincias constitudos e emergem medida mesma que se situam nos
interstcios relacionais nesses mesmo saberes e cincias.
5. Nesse sentido, a teoria dos mesons no um saber institudo, mas um saber
instituinte e emergente.
6. Pode-se dizer que os autores contemporneos mais marcantes para a
formulao da mesologia so trs autores fundamentais: Sloterdijk,
Whitehead e Deleuze.
7. Os autores-matrizes que deram ensejo a este trabalho so, entre outros, os
seguintes: Lucrcio, Bruno, Ficino, Schelling, Espinosa, Leibniz, Marx, Malfatti
von Montereggio, Nietzsche, Darwin, Tarde, Uexkll, Heidegger, Gdel,
Simondon, Driesch, Plessner, Girard, Ferreira da Silva, Bateson, Flusser,
Stengers, Prigogine, Koyr, Bachelard, Latour, Luhmann, Maturana, Jonas.
8. Do ponto de vista das imagens do pensamento, esta tese parte da obra A
Tempestade de Shakespeare, como fio condutor de sua argumentao em
torno do que venha a ser uma manifestao sensvel e narrativa dos
princpios aqui defendidos: os mesons e os meios.
9. Do ponto de vista conceitual, esta tese parte da trilogia Esferas de Sloterdijk
como um de suas principais inspiraes.

II. Finito e Infinito


10. Contudo, proponho uma alterao em um dos conceitos-chaves da
esferologia: ao invs de pensar a dade ontolgica interior-exterior, a teoria
16

dos mesons baseia-se em uma ontologia dos meios, emergente de uma


relao finito-infinito.
11. A hiptese de Sloterdijk de que as esferas seriam dades fundadas sobre o
acoplamento estrutura e ontolgico sistema-meio e interior-exterior apresenta
um compromisso com a biologia clssica de Monod, baseada em uma
descontinuidade entre orgnico-inorgnico. Nesse sentido, ao se basear
nessa descontinuidade, o que seria uma assimetria ontolgica e didica
interior-exterior, em um nvel cosmolgico acaba se transformando em um
dualismo de substncia, marcado por uma determinao autoexcludente
entre orgnico e inorgnico, vida e no-vida, interior e exterior.

III. Animismo
12. A realizao dessas passagens e conexes entre orgnico e inorgnico so
apoiadas tambm especialmente em Deleuze e Whitehead.
13. Os mesons so a cadeia que compe a continuidade infinita e a
relacionalidade infinita entre os processos cosmolgicos fisioqumicos e os
processos biolgicos e orgnicos, em uma lei de continuidade que se
desdobra tambm ad infinitum.
14. Os mesons propem uma passagem das esferas didicas interior-exterior
para um horizonte de eventos finito-infinito, bem como uma superao das
descontinuidade ontolgica orgnico-inorgnico. Para tanto, vali-me de um
confronto entre a esferologia de Sloterdijk e a teoria da complexidade de
Stengers e Prigogine, desenvolvida na obra Nova Aliana.
15. Essa passagem da descontinuidade continuidade consiste na passagem de
sistemas dinmicos ou termodinmicos, entendidos como sistemas prximos
ao equilbrio, a sistemas distantes do equilbrio, para os quais a entropia
passa a ser positiva e, portanto, a vida deixa de ser uma exceo aos demais
processos fisioqumicos e passam a ser uma longa continuidade desses
mesmos processos.
16. A continuidade dos processos fisioqumicos para os processos orgnicos
corresponde continuidade de processos galcticos e cosmolgicos ao
mundo do sistema semiaberto do planeta Terra.
17. Isso quer dizer que todo o universo e todos os agentes mesocsmicos ou
metacsmicos tm algum nvel de participao na substncia da vida e vice-
17

versa, conformando processos cosmolgicos contnuos e ininterruptos que


so reverberaes na cadeia relacional do ser.
18. Esta premissa conduz a teoria dos mesons a um imperativo: a reformulao e
atualizao global do animismo.

IV. Univocidade e Equivocidade


19. O pensamento se dividiu e ainda se divide em um escopo que vai da
equivocidade integral univocidade parcial. E assim o faz por ter ao longo de
muitos sculos evitado e se imunizado do infinito. Os mesons propem-se
como uma das primeiras teorias da univocidade integral.
20. A teoria dos mesons oferece-se como uma alternativa tanto ao princpio de
equivocidade integral [dualismo] quanto ao princpio de equivocidade parcial
[a metafsica das substncias], bem como se distingue da univocidade parcial
[monismos].
21. A equivocidade postula uma heterogeneidade absoluta entre duas
substncias ou o primado hierrquico de uma substncia sobre as demais
categorias que se relacionam e se submetem ontologicamente a essa mesma
substncia. Em ambos os casos, nos envolvemos em problemas lgicos e
nos protegemos da ao devastadora do infinito.
22. A univocidade parcial sempre monolgica, ou seja, postula que a
pluralidade dos seres ocorre em virtude de um isomorfismo entre o ser e as
expresses do ser.
23. A partir de um ponto de vista infinitesimal, a pluralidade de seres, cosmos,
universos e mundos diretamente sobredeterminada por uma pluralidade de
ontologias, ou seja, a substncia da expresso no nos reconduz s
modulaes de um mesmo ser. Por meio da ao do infinito, a pluralizao
das ontologias nos conduz a uma imploso da unidade mesma do ser e dos
seres entendidos como modos atuais unificados em um mesmo ser virtual.
24. Nesses termos, os mesons so uma ontologia da univocidade radical e
global, para alm dos regimes parciais da univocidade. Os mesons
constituem assim ontologias pluralistas e relacionalistas fundamentais. A
partir dessas ontologias, o ser apenas existe como unidade relacional de uma
substncia infinitesimal.
18

V. Ontologia e Cosmologia
25. A tese central da mesologia oriunda da ontologia e da cosmologia.
26. Essa tese central consiste no seguinte axioma: os universos, os cosmos e os
mundos so formas finitas de uma substncia relacional infinita.
27. Finito e infinito no estabelecem entretanto entre si uma relao nem de
univocidade, nem de equivocidade, nem de dualidade.
28. Finito e infinito estabelecem entre si uma estrutura de relacionalidade e de
pluralidade.
29. Como o infinito no pode ser circunscrito, o universo o modo finito de
emergncia do ser.
30. O universo estruturalmente relacional porque sua unidade formal e real
depende de uma substncia infinita que o transcende.
31. Da mesma maneira, a cadeia global do ser depende do infinito para vir a ser,
pois a cadeia global do ser uma unidade formal e realmente finita.
32. Portanto, para vir a ser o universo e todo o horizonte do ser atravessado por
uma substncia infinita em forma infinitesimal.
33. Essa infinitizao do ser no produz apenas uma infinitizao de seres:
produz tambm uma pluralidade de ontologias.
34. A pluralidade de ontologias abre-nos para uma pluralidade de cosmos, de
universos e de mundos.
35. Todos os cosmos, universos e mundos so atravessados pelo infinito.

VI. Mundos, Mediadores, Medidas


36. Os mesons so simultaneamente meios-mediadores, meios-mundos e meios-
medidas.
37. Um meio-mediador aquele que realiza a cadeia relacional infinita que lhe
transcende e sem o qual essa cadeia relacional no existiria.
38. Um meio-mundo um meio concebido a partir de sua facticidade finita, ou
seja, em sua ecologia.
39. Um meio-medida surge quando, por meio da forma, se confere mesura e
medida incomensurabilidade e desmesura do infinito.
40. Como meio-mundo, os mesons so finitos.
41. Como meio-mediador, os mesons so infinitos.
19

42. Como meio-medida, os mesons esto a meio caminho entre finito e infinito,
entre medida e desmedida.
43. Um mundo apenas pode se determinar como mundo finito em relao a
outros mundos finitos que lhe sejam transcendentes.
44. Um mediador apenas pode se determinar como mediador em relao a outros
mediadores infinitos que lhe sejam imanentes.
45. Uma medida sempre a dinmica incompleta entre formas imanentes e
transcendentes a um determinado ser na qual a forma se realiza.
46. Todos os seres do universo so mesons, ou seja, simultaneamente meios-
mediadores, meios-mundos e meios-medidas.
47. Seja como mediadores, como mundos ou como medidas, os mesons nascem
de uma dinmica mais ampla entre finito-infinito, compondo uma ontologia
infinitesimal.
48. Essa estrutura aparentemente paradoxal finito-infinito uma constante
cosmolgica, que atravessa todas as ordens dos seres.
49. O finito se atualiza como forma, pois a forma determina a indeterminao
primeira e circunscreve o infinito em finito.
50. A vida, justamente por sua precariedade, sua finitude e sua transitoriedade,
torna-se o lugar por excelncia de realizao da forma e, portanto, da
atualizao do finito na cadeia infinita e indeterminada.
51. Como forma tambm os mesons constituem medidas e padres de harmonia,
ordem, organizao, proporo.
52. Esses padres dos mesons-medidas traduzem a incomensurabilidade infinita
em comensurabilidade finita.
53. A vida uma extenso e uma continuidade do universo.
54. A singularidade da vida consiste em explicitar, por meio da forma, a
complexidade da estrutura desse mesmo universo.
55. A complexidade formal dos mesons-medidas depende da atualizao da
incomensurabilidade, da desmesura e da desmedida infinitas de onde as
medidas finitas se originam.
56. Justamente por ser o ponto central do finito, a vida o principal acesso ao
infinito.
57. Desse modo a vida a dimenso de emergncia da forma a partir da relao
20

ontolgica e cosmolgica finito-infinito.

VII. Desejo e Transferncia


58. A relao com o infinito determina os modos e os seres finitos.
59. Se todos os seres se infinitizam, todos os seres so partes que remetem a
outras partes, em uma escala exponencial ad infinitum.
60. A vida isolada vive uma estrutura relacional parte-todo: sente-se a si mesma
como algo que precisa pertencer ao meio e ao mundo.
61. A experincia da morte desenvolve a finitude na vida.
62. O todo no todo porque a morte existe e, portanto, o todo no
autossuficiente.
63. A experincia da finitude e o paradoxo da morte conduz a vida ao infinito.
64. Essa experincia do infinito inscreve a vida em uma nova relao parte-parte.
65. Essa constatao da incompletude da vida e a intuio do infinito produz na
vida um devir e um dever: tornar-se infinita como o universo no qual a vida
habita.
66. A dupla inscrio de finito-infinito e de mundo-mediador na vida conduz a vida
a tornar-se excntrica em relao a si mesma.
67. Diante desse imperativo e dessa excentricidade, a vida passa a produzir
relaes transferenciais que a infinitizem.
68. Para realizar em si o infinito que lhe atravessa, a vida precisa se expandir e
desenvolver meios de infinitizao de si
69. Esses meios de infinitizao de si desenvolvidos pela vida so basicamente
dois: a tecnologia e a sexualidade.
70. Por seu lado, as relaes parte-parte e todo-todo so definidoras de suas
matrizes, que so a mereografia e a holografia, a escrita da parte e a escrita
do todo.

VIII. Mereografia e Holografia


71. A tendncia infinitizao determina uma predominncia de relaes parte-
parte, ou seja, de partes que no podem ser assimiladas a uma unidade
global e a um todo homogneo.
21

72. Os mereogramas so as totalidades relativas da cadeia relacional infinita de


mesons que o universo.
73. Contudo o desejo transferencial consiste em transformar o relativo e o parcial
em um absoluto, ou seja, consiste em conferir o estatuto de totalidade a uma
frao parcial e a um mereograma.
74. Esse movimento de deslocamento das partes ao todo o movimento de
produo dos hologramas, levado a cabo pela ao hologrfica que leva uma
parte qualquer a assumir o valor de todo e de unidade, por meio da potncia
hologrfica.
75. Assim como existem as relaes mereogrficas parte-parte, determinadas
pelo princpio de infinitizao das partes, existem as relaes hologrficas,
que se baseiam em uma continua guerra de mundos, pois cada mundo
relativo aspira ser a representao e a imagem da totalidade dos mundos e
das artes.

IX. Tecnologia, Sexualidade e Religies


76. A tecnologia transforma o meio-mundo em meio-mediador.
77. A sexualidade transforma o meio-mediador em meio-mundo.
78. As religies so as mais potentes foras transferenciais biotrpicas, que
resolvem as antinomias internas e insolveis entre lei e transgresso.
79. A tecnologia, as religies e a sexualidade realizam a passagem transferencial
do finito ao infinito.
80. A vida que no apreendeu a finitude se v como parte de um todo ao qual
deve se dissolver e retornar na morte: relao todo-parte
81. A vida que capturou a estrutura infinita do universo se apreende a si mesma
como fragmente infinitesimal, como parte em meio a partes: relao parte-
parte.
82. A vida que experimentou a relao infinitesimal parte-parte passa a transferir-
se a si mesma e a criar meios de se infinitizar: tornar o meio-mundo finito em
um meio-mediador infinito.

X. Mesons e Imagem
83. A partir dessa relao transferencial, embaralham-se os domnios dos seres
reais e dos seres imaginrios
22

84. Esse campo ode real e imaginrio se fundem se chama campo imaginal.
85. Um meio-mundo pode se tornar a imagem mediadora de uma ao real .
86. Uma ao real pode se converter em uma imagem presente nos meios-
mundos.
87. Quanto mais potente a relao da vida com a finitude, ou seja, com a morte,
mais potente torna-se seu desejo transferencial: mais a vida realiza o impulso
cosmognico e ontognico de se infinitizar e, dessa maneira, a vida
transforma sua condio parcial em totalidade.
88. Quanto mais fraca a relao da vida com a finitude, ou seja, com a morte,
mais fraco torna-se seu desejo transferencial: menos a vida realiza o impulso
cosmognico e ontognico de se infinitizar .
89. Neste caso, quando no realiza o salto da parcialidade totalidade, do finito
ao infinito, a vida concebe-se a si mesma como parte de um grande todo, ao
qual pretende regressar.
90. O desejo transferencial que v a vida como parte que deve ser elevada
condio de totalidade produz um ato criador.
91. O desejo transferencial que v a vida como parte de um todo ao qual a vida
precisa ser reassimilada produz um ato mediador.
92. H uma anterioridade lgica, ontolgica e axiolgica do infinito em relao ao
finito: o infinito reduz parcialidade todos os regimes globais da causalidade,
do ser e dos valores.
93. O devir inscrito nos seres vivos como necessidade sobrevivncia e
ultrapassagem de sua condio instvel e precria consiste em promover
fendas, rachaduras, aberturas, fraturas e condies para aumentar o fluxo do
infinito nos transmundos finitos.

XI. Deus, Emergncia e Infinito


94. Deus, englobando aqui todas as divindades e deidades existentes em todas
as regies, por mais transcendente que seja, apenas pode ser concebido
como uma imagem, uma experincia e um conceito.
95. Enquanto imagem, experincia e conceito, Deus um mediador finito de
nossa relao com o infinito.
96. Deus a conscincia da finitude, mas tambm aquele que eterniza os
seres.
23

97. Devido relao singular e ambgua que Deus estabelece com a totalidade
dos seres finitos, no o logos que a primeira imagem temporal de Deus.
Deus que a primeira imagem temporal do infinito.
98. O infinito existe para alm de Deus.
99. Deus, os universos, os cosmos e os mundos so formas finitas de
autodeterminao do infinito, ou seja, so mesons.
100. medida que toda existncia finita emerge do infinito e o infinito no
racional e tampouco racionalizvel, no h em nenhum lugar dos universos,
dos cosmos e dos mundos e dos seres finitos nenhuma intencionalidade e
nenhuma inteligncia.
101. Para haver uma inteligncia no universo, seria preciso conciliar infinito
e razo.
102. Para conciliar infinito e razo seria preciso conceber uma identidade
entre Deus e infinito.
103. Para concebermos um Deus infinito, teramos que dissolver
infinitamente sua substncia, o que lhe retiraria o atributo da unidade sem o
qual Deus no pode ser Deus.
104. Deus no pode ser infinito, pois medida que Deus Deus, Deus
uma das autolimitaes do infinito.
105. Postular a identidade de substncia entre Deus e os universos torn-
los imanentes um ao outro.
106. Desse modo, tanto Deus quanto os universos seriam autolimitaes e
autodeterminaes, ou seja, mesons, de uma mesma substncia infinita que
os transcende.
24

INTRODUO

O que grande no homem o fato de ele ser uma ponte e no um fim; o


que se pode amar no homem ele ser uma passagem e um ocaso.
Friedrich Nietzsche

O ponto de partida seria uma definio no-metafsica e no-holstica da


vida: sua imunizao no pode mais ser pensada por meio de simplificao
ontolgica, de uma reassimilao na esfera-todo lisa. Se a vida atua
ilimitadamente, conformando espaos de diversas maneiras, no apenas
porque cada uma das mnadas tenha seu prprio entorno, seno porque
todas esto amalgamadas com outras vidas e se compem de inumerveis
unidades. A vida se articula em cenrios simultneos, uns imbricados nos
outros, e produz-se e se consome em regies interconectadas. Mas o
decisivo para ns o seguinte: a vida produz sempre o espao no qual e
que a . Assim como Bruno Latour falou de um parlamento das coisa, com a
ajuda da metfora da espuma pretendemos nos ocupar de uma repblica de
espaos.
Peter Sloterdijk
25

Ilhas de Luz

Dentro de mil anos, a sobrevivncia da vida na Terra est francamente


comprometida. Se no se criarem alternativas e possibilidades de habitar outros
planetas, as tecnologias criadas nesse intervalo, por mais potentes que sejam, no
podem conter o impacto da atmosfera e a escalada das temperaturas. Se a
humanidade conseguir criar tecnologias de domesticao e de climatizao, essas
capsulas atmosfricas intraterrestres podero preservar a vida dentro de um
intervalo de cem mil anos, mas em seguida haver uma metamorfose. Isso ocorre
porque nesse intervalo de tempo, mais cedo ou mais tarde, a Terra golpeada por
uma erupo vulcnica capaz de lanar quatrocentos quilmetros cbicos de
magma sobre a sua superfcie, um efeito similar a quatrocentas erupes de
Vesvio. Se os humanos sobreviverem ao magma, dentro de quinhentos mil anos
inevitavelmente um cometa de propores descomunais vai colidir com nosso
planeta azul, reduzindo sua atmosfera a uma crosta de poeira que obstrui a luz do
sol por um tempo necessrio para a extino de diversas formas de vida. Em
seguida, de hoje a um milho de anos, viveremos mais uma nova erupo vulcnica.
So mais trs mil e duzentos quilmetros cbicos de magma espalhados pela
superfcie terrestre. As pegadas de Neil Armstrong na lua desaparecem. Dante,
Shakespeare, Cervantes, Homero, Virgilio desaparecem. Newton, Bruno, Einstein,
Planck, Bhr, Gdel, Galileu, Poincar, Laplace, Boltzman, Darwin desapareceram.
Plato, Scrates, Aristteles, Agostinho, Toms de Aquino, Duns Scott, Erigena,
Ockham, Descartes, Leibniz, Voltaire, Nietzsche, Freud, Marx, Deleuze, Lvi-Strauss
desapareceram. Giotto, Cimabue, Da Vinci, Michelangelo, Van Gogh, Matisse, Mir,
Picasso, Gauguin, Kandinsky, Bacon desapareceram. Gesualdo, Monteverdi,
Mozart, Bach, Beethoven, Chopin, Stravinsky, Schenberg desapareceram. Moiss,
Maom, Orfeu, Dioniso, Confcio, Cristo, Buda, Lao-Ts desapareceram. Krsna,
iva, Brahm, Visnu, Exu, Ogum, Jav e Al desapareceram. Todas as cincias e
todas as artes. Todas as obras e todas narrativas. Todos os monumentos e todos os
arquivos. Todas as civilizaes passadas, presentes e futuras. Quase todas as
formas de vida, dos unicelulares aos milhes de seres vivos que constelam a
complexidade de nosso planeta, so extintos. Se de hoje a dois milhes de anos a
26

humanidade tiver conseguido colonizar outras regies do cosmos, algumas


centelhas dessa memria coletiva e dessas constelaes de informao sobre a
vida na Terra podem ser transportadas e armazenadas. A vida humana da Terra
dessa maneira pode prosseguir por meio da vida dos organismos que migraram para
outros planetas. Essa a era dos transumanos, das novas e inesperadas formas de
vida que habitam algum ponto de luz e gua perdido na escurido e nos abismos
dos espaos infinitos. Novas formas de vida, novos seres, novos pensamentos,
novos deuses, novos humanos, novas filosofias, novas cincias, novas tecnologias,
novos mundos. Tudo radicalmente novo e distinto do que concebemos aqui como
vida, ser, pensamento, deuses, humanos, filosofias, cincias, tcnicas, mundos. A
vida, em toda sua potncia e em todo seu esplendor, consegue transpor o primeiro
limiar.
O que ser da Terra? Em cinquenta milhes de anos, a Terra entra em uma
fase glacial, com temperaturas variando em torno de cinquenta graus negativos.
Cem milhes de anos a data-limite para a coliso de um meteoro de propores
semelhantes aos que levaram um dia remoto os dinossauros extino. Tambm
em cem milhes de anos os anis de Saturno comeam a se desfazer. Em duzentos
e cinquenta milhes de anos, um longo processo encontra finalmente um dos seus
apogeus: os continentes terrestres se reconfiguram e voltam a se unir. A Terra torna-
se de novo uma Pangeia, uma massa compacta de continentes em constante
coliso, um mundo de abalos ssmicas e acomodaes tectnicas. Em quinhentos
milhes de anos, a exploso de uma supernova vizinha conduz a uma emisso de
energia que atravessa as camadas de oznio da atmosfera e promove a extino
em massa de milhares de seres biolgicos do planeta. Em seiscentos milhes de
anos, a lua e a Terra se afastaram tanto que um eclipse completo torna-se invivel.
Em oitocentos milhes de anos, a fotossntese natural torna-se impossvel. Passa a
ser realizada apenas por meios artificiais, e pelos seres vivos que ainda habitem o
nosso planeta dentro de capsulas e estufas ambientais construdas artificialmente.
Em um bilho de anos, o crescimento da massa solar leva os oceanos a uma
evaporao e toda a gua se concentra nos polos. A temperatura chega a uma
mdia de cinquenta graus clsius. E com um bilho e trezentos milhes de anos,
finalmente o planeta atinge uma crise intransponvel de produo de oxignio, o que
culmina com a morte de toda e qualquer vida que no seja sinttica, inclusive os
unicelulares. Apenas os procariontes, as clulas sem ncleo, sobrevivem. Esse
27

cenrio continua em transformao. Dentro de dois bilhes e trezentos milhes de


anos, a Terra perde seu campo magntico. Isso quer dizer que nosso planeta para
de girar. Uma de suas faces fica exposta ao sol enquanto a outra no recebe mais
nenhum tipo de luz ou calor. Quando se aproximam os trs bilhes de anos, nosso
planeta atinge quase cento e cinquenta graus clsius e se transforma em uma
espcie de Vnus. Extingue-se a vida que surgira no planeta azul h quatro bilhes
e meio de anos. o fim definitivo de qualquer vestgio de vida na Terra.
Em quatro bilhes de anos, a Via-Lctea se encontra com Andrmeda.
Ambas permanecem unidas pelos sete bilhes de anos seguintes. Em cinco bilhes
e meio de anos, o sol se transforma em uma gigante vermelha. Em sete bilhes e
meio de anos, o sol tem duzentos e cinquenta vezes o seu tamanho atual, mas
perdeu quase metade de sua massa. Meio bilho de anos depois, o sol se torna uma
an branca, de alta concentrao. O sistema solar no existe mais, mas os planetas
ainda vagam pelo espao. Daqui a trs trilhes de anos, nenhuma galxia pode ver
outra galxia, pois se expandiram tanto que as emisses de mensagens e
informao de suas respectivas estrelas, mesmo viajando na velocidade da luz, no
alcanam mais umas s outras. Em cem trilhes de anos, o universo no tem mais
planetas nem estrelas. Possui apenas ans brancas, estrelas de nutrons e buracos
negros. Nenhuma vida mais possvel em todo universo. Seja uma eventual vida
extraterrestre de origem intergalctica, seja a vida que migrou da Terra em xodo e
se expandiu, colonizando outros planetas e outras galxias do universo: nenhuma
dessas formas vivas pode mais se sustentar diante das potncias dissipativas e dos
limites de entropia que se englobou todo universo. Caso a Terra ainda exista, um
quatrilho de anos o prazo para o nosso antigo planeta azul colidir com o sol e se
transformar em uma an negra. Em dez duodecilhes de anos, em todas as galxias
do universo restam apenas buracos negros. Estes engolem e eliminam tudo o que
de vivo ou no-vivo ainda por ventura exista em qualquer parte e em qualquer
tempo. Em dez googols de anos, correspondentes a dez elevado exponencialmente
a cem, os buracos negros comeam a evaporar. A energia csmica chega
finalmente a zero. E, enfim, em dez elevado a dez elevado por sua vez a cento e
vinte, todo o universo encontra o limite final de sua existncia. O universo e tudo o
que existe chegam ao fim. Morrem. Assim como o universo que conhecemos surgiu
28

h sete bilhes de anos, esse mesmo universo encontra inelutavelmente o seu fim
quando atinge esse limiar1.
Esse fim do universo no o fim, mas um fim. Um limiar. Umbral. Passagem.
Um ponto de singularidade que conecta este universo com a gnese de outros
universos, como um embrio se conecta a um cordo umbilical. O universo infinito
no espao e no tempo, ou seja, ilimitado e eterno. O universo so as sstoles e as
distoles de um mesmo rgo, eterno e infinito. Os diversos mundos so pontos de
um tecido, uma infinita cadeia de meios e mediaes, e a totalidade da arquitetura
csmica nada mais do que o meio dos meios, ou seja, a totalidade do universo e a
estrutura global de todos os seres existentes apenas o meio animado pelo qual um
continuum mais vasto de formas e conexes relacionais se propaga, eterna e
infinitamente. O Deus absoluto e todos os deuses, todas os sistemas racionais e
todas as filosofias, todas as divindades e todas as ausncias de divindades, todas
as religies e todas as escatologias, todas as narrativas e todas as verdades, todas
as msticas e todos os atesmos, todas as formas de crena e todas as formas de
descrena, todas as imagens das cincias e todas as imagens dos mitos, todas
artes e obras criadas e todas tecnologias e realidades criadas, todas as criaturas e
todos os criadores, todas as conjecturas e todas as convices, todas as formas de
vida e todas as formas de no-vida, todos os desastres e todas as glrias, toda a
criao e toda a destruio, todo acaso e todo destino, todos os acontecimentos e
tudo o que no se realizou, tudo o que existe e tudo o que no existe, tudo o que foi,
tudo o que e tudo o que ser. Tudo isso est contido nas molculas que se agitam
no meu corpo, nos objetos que toco, na face de uma pessoa amada, na face de um
inimigo. Tudo isso j morreu, em outra dimenso. Tudo isso vai morrer,
inexoravelmente. Mas tudo isso vive nos tomos e nas molculas e nos raios de sol
deste dia, que me iluminam, aqui e agora, enquanto escrevo, neste exato instante,
irrepetvel. Saber que morrerei, que Deus morrer, que os deuses morrero, que
tudo morrer, que o universo morrer. E ao mesmo tempo saber que tudo so meios
e formas finita pelas quais o infinito se realiza a si mesmo, no passado, no presente
e no futuro do universo, antes do universo vir a ser e depois da sua absoluta
extino. Tudo morre. Tudo vive. Morte e vida so consubstanciais. Morte e vida so
ilhas de luz, cercadas de escurido e de infinito em todas as direes.

1
ALLGRE, Claude. Introduo a uma histria natural: do big bang ao desaparecimento do homem.
Traduo Telma Costa. Lisboa: Teorema, s/d.
29

Esse cenrio de desintegrao no uma fbula de fico cientfica ou uma


superstio cunhada em alguma duvidosa futurologia. Esse passo a passo fora
rigorosamente deduzido do conhecimento atual que a cincia possui do cosmos.
Entretanto, cada vez mais a cincia tem demonstrado que esse fim trmico e
entrpico do universo, entendido como totalidade de tudo o que existe, um ponto
de singularidade. Esse ponto conecta este universo com a gnese de outro universo,
como um embrio. O novo universo que nasce pode na verdade j existir
paralelamente, em outras dimenses espaciotemporais2. a hiptese dos
multiversos, cada um situado em uma das cordas csmicas e cada corda com uma
configurao global da realidade, ou seja, cada uma com ontologias especficas,
hiptese sustentada por alguns cosmlogos3. Haveria diversos universos se
desenrolando simultnea e paralelamente, coimplicados e conectados uns nos
outros por meio desses cordes umbilicais csmicos, que seriam os pontos de
singularidades. Essa teoria dos multiversos coimplicados e simultneos, conectados
por linhas de fuga e cordes umbilicais, corroborada tambm pelas teorias evo
devo, que tm procurado pensar a formao do universo, dos planetas, das estrelas
e das galxias a partir do padro do desenvolvimento evolucionrio, cujo modelo
fornecido pela biologia4. Por outro lado, mesmo se partirmos da vetorizao do
tempo e com o modelo de um universo em constante expanso rumo morte
trmica, cada vez mais as teorias cosmolgicas tm refutado veementemente esse
modelo do big bang, que amplificam a origem e o fim da totalidade do universo,
como se fossem dois extremos situados em meio ao nada. Em outras palavras, cada
vez mais a cosmologia tem sustentado a tese de que o universo infinito no espao
e no tempo, ou seja, ilimitado e eterno5. As informaes elementares do cosmo, ao
chegarem ao zero, atravessam e transmutam esse zero para dar a forma de um
novo cosmo. Se o universo comea novamente, porque infinito: nunca comea
porque nunca comeou e nunca termina porque nunca h de terminar. O que
definimos como comeo e fim so os pontos de singularidade, as superfcies de

2
GLEISER, Marcelo. A Criao Imperfeita. Rio de Janeiro: 2010.
3
GREENE, Brian. O Universo Elegante: Supercordas, Dimenses Ocultas e a Busca da Teoria
Definitiva. So Paulo: Cia. das Letras, 2001.
4
Trata-se da evolutionary developmental biology: KINOUCHI, Osame. In: DE FRANCO, Clarissa e
PETRONIO, Rodrigo [org]. Crenca e evidencia: aproximaes e controvrsias entre religio e teoria
evolucionria no pensamento contemporneo. So Leopoldo: Unisinos, 2014.
5
NOVELLO, Mrio. Do big bang ao universo eterno. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
NOVELLO, Mrio. O que cosmologia? A revoluo do pensamento cosmolgico. Rio de Janeiro:
Zahar, 2006.
30

Cauchy nas quais se opera uma transmutao radical das leis que regem tempo,
espao, matria e causalidade, dentro das leis fsicas do universo que habitamos, ou
seja, dentro de uma ontologia geral que oculta em si as ontologias regionais e outras
ontologias paralelas que se desdobram para alm do horizonte observvel6.
Em um primeiro modelo o universo e a pluralidade dos mundos e galxias do
nosso universo estariam em conexo com outras dimenses e, portanto, com outros
universos. Desse modo, o que chamamos de universo seria a coimplicao
simultnea de multiversos, emaranhados e em constante trnsito de energia
realizada por meio de alguns canais dotados de topologias especiais. Em segundo
lugar temos um modelo de inflao, irreversibilidade, vetorizao e morte trmica,
cujo grau zero daria origem a uma nova expanso csmica, ou seja, a uma nova
vigncia do universo. O universo seria as sstoles e as distoles de um mesmo
rgo, eterno e infinito. Em ambos os cenrios cosmolgicos, por mais distintos que
paream, duas questes nucleares se colocam. Em primeiro lugar, em ambos
estamos diante de uma irreversibilidade e de uma vetorizao que nos obriga a
pensar o universo e a tudo o que existe como uma modalidade de vida, para alm
de quaisquer hipteses mecanicistas e de quaisquer separaes entre orgnico e
inorgnico. Em segundo lugar, as origens e os fins, seja em uma dimenso
cosmolgica ou em uma dimenso dos fenmenos empricos, tornam-se aparies
fantasmais. Convertem-se em pontos de transio de uma infinita cadeia de meios
e mediaes, cuja totalidade da arquitetura csmica nada mais do que o meio dos
meios, ou seja, a totalidade do universo e a estrutura global de todos os seres
existentes apenas a parte de um continuum mais vasto de formas e conexes
relacionais que se propaga eterna e infinitamente.

Rumo ao Infinito

Esta tese se prope como o primeiro volume de um projeto intitulado Mesons.


Neste primeiro volume procuro me ocupar da constituio do ser dos mesons, ou
seja, de sua ontologia, e apenas sinalizar outro aspecto fundamental dessa teoria: a
cosmologia. A teoria dos mesons uma teoria geral dos meios, que podemos
intitular como mesologia. O conjunto de captulos aqui reunidos se organizam em

6
HAWKING, Stephen. Minha Breve Histria Autor. Rio de Janero: Intrnseca, 2013.
31

torno desse objetivo precpuo de desenvolvimento do corpus terico dos mesons.


Contudo acabei tambm dando vazo a alguns aspectos de modo mais digressivo e
ensastico, ou seja, como um modo de pensar flutuante e erradio, com idas e vindas,
digresses e alegres saltos, espirais e novos retornos ao ponto de partida. Um
exerccio do pensamento com lpis e borracha, como diria Adorno. Acredito que isso
no comprometa o conjunto da argumentao como um todo. a teoria dos mesons
consiste em direcionar o olhar sobre a um conceito nuclear, que tem me perseguido
h anos e que aos poucos se transformou em um objeto central, tanto para minha
atividade na filosofia, e especialmente no desenvolvimento da mesologia, quanto
para meu trabalho como escritor: o infinito.
Parto da seguinte hiptese: o universo a forma finita do infinito. a
totalidade de meios finitos emergentes do infinito. A mesologia uma teoria geral
dos meios [mesons], que se baseia em uma ontologia e uma cosmologia relacionais,
ou seja, que concebe o ser e o universos como a forma finita de uma infinita cadeia
de meios e mediaes que se desdobra em um horizonte de eventos relacionais, em
direo ao infinito. a partir dessa premissa, tudo o que existe apenas existe como
meio de outros meios, ad infinitum. A forma pura e simples dessa cadeia relacional
infinita so os mesons. Em virtude dessa constatao, todas as manifestaes da
vida na Terra, bem como todas as manifestaes do que chamamos de cultura
humana, so determinadas por essa articulao mesons-infinito, ou seja, pela
dialtica finito-infinito. A percepo difusa de que a finitude mergulhada e
atravessada por todos lados pelo infinito conduz os seres vivos a criarem processos
e princpios de infinitizao, mesons que transcendem a facticidade de seu ser-a
local e parcial. Chamo esses processos e princpios de tecnologias de imortalidade.
Contudo, essa saga em direo ao infinito apenas se inicia quando os seres
vivos apreendem sua condio efmera e sua transitoriedade. Dessa maneira, a
estrutura cosmolgica e ontolgica fundamental finito-infinito extremamente
paradoxal, pois apenas quando o ser vivo apreende-se como parte de partes, como
uma parte em meio a partes, subdividido exponencialmente ao infinito, o ser vivo cria
mecanismos capazes de promover a transferncia dessas partes rumo a unidades
de sentido abrangentes e, em certo sentido, duradouras, ou seja, cria meios de
transformar os seus meios-mundos situados em meios-mediadores globais, que
transcendem as suas determinaes fticas. Haveria nesse sentido uma dinmica
indissolvel entre esses dois pares de uma mesma estrutura relacional: infinito-finito
32

e parte-todo. Dessa maneira, por meio dessa estrutura dinmica e complementar


infinito-finito e parte-todo, que constituem em si uma cosmologia e uma ontologia,
nascem as duas grandes matrizes biotrpicas e antrpicas que definem a evoluo
da vida: a mereografia e a holografia.
A mereografia a escrita das partes [meros]. Consiste em todos os modos de
concebermos as partes como partes, ou seja, como estruturas parciais de uma
cadeia relacional que se desdobra ao infinito e que, portanto, nunca pode ser
totalizada. O sonho de totalizao uma das principais potncias latentes do
cosmos, e se desdobra em todo seu esplendor desde as primeiras constelaes de
molculas e nos primeiros unicelulares, desde os agregados de carbono at as
formas mais complexas de vida. Isso ocorre porque a vida, mesmo sendo a forma
parcial e infinitesimal de um universo igualmente infinitesimal, tambm uma fora
negadora dessa parcialidade. A vida produz ento contnuas transferncias,
poderosos deslocamentos tectnicos, avassaladoras migraes, infinitesimais
polinizaes das clulas e dos mundos-meios parciais em direo ao meio-mediador
global, em um fluxo ininterrupto da parte ao todo e deste de novo em direo s
partes. Surgem dessa maneira todas as tecnologias da imortalidade, como a
literatura e a filosofia, as cincias e as religies, as artes e o pensamento, as
tcnicas e a poltica, chegando at a biotecnologia, a engenharia gentica, os
devires transumanos e as viagens intergalcticas. Estamos aqui diante da segunda
matriz antrpica: a holografia, a escrita do todo [holos].
A unidade relacional pars pro toto, em sua conexo necessria com o binmio
relacional infinito-finito, constitui a ontologia e a cosmologia globais dos mesons, e
descrevem a estrutura relacional primeira do universo e da vida. Mereografia e
holografia so dessa maneira duas vertentes de animao de um nico fenmeno
cosmolgico e ontolgico, que determinam os seres orgnicos e inorgnicos: as
dinmicas fundamentais entre finito e infinito. se partirmos desse ponto de vista,
todas as teorias que se posicionem contra ou a favor do relativismo dos valores no
passam de cartilhas de ressentimento e de poderosos sonferos. Como diriam
Deleuze e Guattari, no h e nunca houve algo chamado ideologia. Agregaria que
no h nem nunca houve nada chamado relativismo. No h e nunca houve nada
que possa ser chamado de relativo. Todo relativo o absoluto de algum, pois o
meio pelo qual esse algo ou algum transforma mesologicamente seu meio-mundo
em meio-mediador de abrangncia e valncia universais. Uma luta constante e uma
33

guerrilha infinita pelas definies e demarcaes da totalidade do mundo. Nesse


sentido, o que chamamos de relativismo sempre foi a guerra de guerrilha entre
infinitos absolutos. Contnuas disputas ontolgicas pela definio e pelo domnio da
totalidade do real enquanto real.
O que isso tem a ver com este livro? Acredito que essas dinmicas
relacionais finito-infinito, parte-todo e mereografia-holografia, que est no mago da
teoria geral dos mesons, se deem sempre simultaneamente, havendo apenas uma
questo de nfase de uma ou de outra dessas matrizes, em determinados
momentos histricos. Um dos eixos definidores do que chamamos modernidade a
infinitizao do mundo. Sabemos que a revoluo de Coprnico tirou a Terra do
centro do universo e a de Kepler duplicou os centros desse mesmo universo, em
uma elipse oscilante entre um centro real e um centro virtual. Contudo, mais
importante do que essas duas revolues, e um acontecimento tantas vezes
minimizado pelos cientistas, foi a revoluo de Nicolau De Cusa e de Giordano
Bruno: a concepo da pluralidade dos mundos, a infinitizao do universo e, por
conseguinte, a destruio da unidade do cosmos, que deixa de ser representado
como um todo fechado e passa a ser concebido como uma estrutura indefinita,
aberta e propriamente infinita.
A revoluo do infinito ainda um beb. Acredito que estejamos
engatinhando ainda nas primeiras emergncias dessa revoluo, que sequer
comeou. A teoria geral dos mesons uma teoria que parte do infinito como
postulado central de toda sua constituio lgica, cosmolgica e ontolgica. O
aspecto determinante dessa revoluo diz respeito a uma compreenso formal da
vida e do cosmos. Essa compreenso se enraza em um fator irreversvel: cada vez
torna-se mais difcil promover a passagem da parte ao todo. Cada vez mais o
sapiens se apreende a si mesmo como parte de outras partes que, por sua vez, nem
pelos mais assombrosos voos da imaginao, conseguem se unificar ou ser
reassimiladas a um grande todo, seja esse todo qual for. Essa condio na
verdade uma revelao e uma verdadeira fatalidade: todas os seres do universo so
partes de outras partes, conectados a partes de partes que por sua vez, remetem a
outras partes, em direo ao infinito. Cada vez mais o sapiens vive em seu cotidiano
a percepo de que a holografia est destinada a ser reconvertida em mereografia,
os hologramas se transformam rapidamente em novos mereogramas. Vivemos um
devir global de sentido que consiste na descoberta de que a estrutura formal de
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mereogramas parte-parte passa a sumir a forma dominante sobre a estrutura formal


de hologramas parte-todo.
Essa alterao formal e perceptiva determina o fenmeno planetrio de tudo o
que chamamos de modernidade, que comea no sculo XIII, mas cujo impacto, por
mais avassalador que seja, ainda se encontra em seus esboos e ainda possui um
gigantesco e desconhecido horizonte pela frente. Essa forma relacional parte-parte,
esse imprio do infinito sobre o finito, da parcialidade sobre a totalidade, pode ser
definido tambm a partir de uma experincia determinante para a vida humana no
comeo do sculo XXI: a transcendncia horizontal. Podemos compreender essa
transcendncia como transdescendncia, uma transcendncia descendente e no
mas ascendente, na acepo cunhada por Vicente Ferreira da Silva para definir a
peculiar acepo de transcendncia no pensamento de Heidegger. Uma
transcendncia em direo Terra. Uma transcendncia para baixo. Uma
transcendncia para a finitude. Uma transcendncia para a morte. Uma
transcendncia rumo s superfcies. Uma transcendncia em direo ao mais
insondvel dos abismos: os mesons..
Canais de acesso e os grandes saltos em direo a Deus, aos universais,
imortalidade, razo, s revelaes, aos imprios e tudo o que mais houver em
termos de unidade e totalidade de sentido. Todos esses canais encontram-se
alterados em seus vetores, pois as grandes transferncias hologrficas das partes
ao todo tendem a retornar precariedade das partes de onde essas mesmas
transferncias se originaram. As partes cada vez mais se nos oferecem como as
nicas totalidades precrias que nos restam. Os hologramas se convertem em
mereogramas, sob a ao sobrenatural e miraculosa de nosso cansao e de nossa
decepo. Tendo isso em vista, acredito que vivamos um momento singular do
sapiens. Nem melhor nem pior do que qualquer outro momento, mas apenas
diferente. E em que consiste essa diferena? Consiste no seguinte fato: diante da
inviabilidade de transcender o fragmento rumo s grandes totalizaes e em direo
abrangncia das metanarrativas, o sapiens tem encontrado no movimento inverso
a sua nova utopia. No se trata de promover o salto da parte ao todo, mas sim o
contrrio: de transformar a parte em todo. Sob o impacto da infinitizao, o mundo e
a cultura contemporneos podem ser entendidos como uma grande odisseia cuja
finalidade heroica seria conseguir produzir o elogio da superficialidade.
35

Deus morreu. Todos os deuses se foram. Finalmente algo de novo pode


nascer. Isso quer dizer que em um mundo reduzido a cacos, cada caco pode ter o
valor global de um mundo. E cada ilha pode se converter, no no fim do mundo
entendido como totalidade, mas na gnese de novos e inesperados mundos por vir.
Cada ilha traz em si um planeta submerso e potencial. Contra os msticos da
profundidade, contra os murmuradores caos, contra os idlatras de um passado que
jamais existiu, a teoria dos mesons pretende narrar as diversas formas pelas quais o
efmero, o precrio e o finito passam a ser tomados como a totalidade de um mundo
que aos poucos se converte em uma unidade incapaz de ser totalizada. Em dilogo
e em dbito com o pensamento de autores como Vilm Flusser e Peter Sloterdijk,
entre tantos outros, a mesologia realiza um elogio das superfcies e, desse modo,
um elogio da modernidade e um pensamento rigorosamente utpico.
A utopia, como queria Flusser, no o espao e o tempo de uma
transfigurao futura. A utopia , rigorosa e etimologicamente, o sem-cho [utopos].
A mesologia nesse sentido uma topologia e uma utopologia, uma ontologia dos
lugares e uma ontologia dos abismos, uma ontologia das transferncias em direo
imortalidade e uma meontologia, um estudo do nada e da nadificao do mundo
produzida pela sua infinitizao. Nesse sentido, a utopia no se encontra no futuro,
mas no passado, pois a utopia, entendida como suspenso de toda vigncia, de
todo lugar e de toda estabilidade, se realizou e vem se realizando desde a origem, e
prosseguir em seu devir, rumo a um futuro vazio. A utopia consiste em vivermos em
um mundo que se infinitiza cada vez mais e cada vez mais velozmente se encolhe e
se dissolve, abrindo abismos e espaos infinitos sob nossos ps.
O colapso entre o todo e as partes o que chamamos de modernidade.
Comemoremos. Ela consiste em uma inverso de vetores entre essas matrizes, de
modo que cada vez mais a totalidade de nosso mundo se identifica com a
precariedade das partes desse mesmo mundo vazio que habitamos. O infinito
aquilo que no tem limites. Mas o infinito tambm aquilo que permanece
eternamente in fieri, inacabado, aberto, ou seja, sem fim. O movimento de
transcendncia, vertical e hologrfica, em direo s cpulas celestes e s grandes
totalidades de sentido, tende cada vez mais a se realizar paradoxalmente em seu
refluxo, em seu retorno Terra, em seu devir, em sua impermanncia, ou seja, em
uma constante, cotidiana e abissal conquista de um horizonte sem fim de
superfcies.
36

Meios

Situada nesses termos, a teoria dos mesons uma cosmologia e uma


ontologia global dos meios. Os mesons partem do princpio de que a origem e o fim
globais de tudo o que existe no so nem origem nem fim, mas ambos so tambm
meios. Conexes. Passagens de acesso a outros universos, que vieram antes e que
viro depois ad infinitum. Da mesma maneira, a estrutura global do universo uma
irradiao de meios e processos relacionais em aberto, que emergem no horizonte
de um oceano infinito de eventos. Nesses termos, o universo no nem uma
totalidade passvel de obter contornos, nem uma estrutura que teve um comeo e
que ter um fim. O universo o grande Meio, a estrutura global e relacional
imanente em constante emergncia. O universo est sempre nascendo de um
horizonte de eventos sem fim, mesmo quando caminha em direo morte. E est
sempre imerso na substncia infinita e indeterminada que o emana, para alm de
toda e qualquer forma de sentido, unidade, razo ou totalidade. Em uma passagem
de seus dirios filosficos, Fernando Pessoa sentencia: h no universo as foras
que afirmam e as foras que negam. As foras que negam so mais fortes do que as
foras que afirmam, arremata o poeta. A despeito de seu gnio potico e filosfico,
essa abordagem de Pessoa, como a de tantos cientistas e filsofos, amplificam o
efeito da dissipao sobre o efeito da preservao. Esse modelo fatalmente gera
ontologias dualistas, incapazes de compreender o fenmeno da vida e do universo
em sua estrutura mais ampla e mais significativa. Essas ontologias dualistas se
replicam em todas as narrativas da biologia clssica e da fsica, por meio das
distines entre orgnico e inorgnico e por meio da amplificao do princpio de
inrcia, entendido como estado fundamental do universo pela cosmologia
mecanicista. Essas ontologias dualistas sero definitivamente superadas quando
compreendermos que a nica articulao existente no universo a articulao finito-
infinito. E que essa articulao relacional e coextensiva, nunca a oposio de duas
substncias heterogneas. Parafraseando Pessoa, as foras infinitas so mais fortes
do que as foras finitas. Estamos cercados e mergulhados em infinito por todos os
lados. O infinito o espao de animao no qual o universo, como grande Meio,
flutua. A destruio de tudo e a ressurreio de tudo no so eventos msticos. So
37

as condies necessrias e lgicas para que o universo exista e para que exista do
modo que existe, ou seja, como meio de realizao e como forma finita do infinito.
Entretanto, esse todo parcial chamado universo, parcial porque a parte
realizada e manifesta de uma cadeia virtual de realizaes infinitas, no existiria
como existe se no fosse tambm um ser vivo. No se trata de mera metfora
metabiolgica e muito menos de transposio antropocntrica. No nossa
concepo do universo que corre o risco de ser biocntrica e biomrfica. nossa
concepo de vida que teriocntrica e teriomrfica. Nossas atribuies de vida
intergalctica continua a servio de uma definio de vida cujo parmetro a Terra.
Para superar esse modelo, precisamos pensar em termos globais todos os
processos cosmolgicos como processos de animao e de movimento. Para isso, a
teoria dos mesons tem como um de seus objetivos precpuos uma redefinio da
alma, ou seja, o projeto de um novo animismo csmico.
Contudo imaginar que a vida est em toda parte pode ser reconfortante
apenas os mais ingnuos. Conceber o universo a partir da dimenso processual dos
organismos conceber o universo como um processo ininterrupto de diferenciaes
e de singularidades que se constelam em determinadas formas, sob a ao de
certas condies contingentes e de certas intensidades, mas cuja estrutura geral de
manifestao dificilmente se repetir em outras condies cosmolgicas, ainda que
essas condies cosmolgicas se assemelhem. Isso quer dizer que mesmo a partir
de um modelo de multiversos coimplicados e espelhados, e mesmo a partir de uma
concepo de universo para o qual o inicio e o fim so umbrais para a travessia em
direo a um metaverso, sempre a diferenciao da vida rege a cadeia das
mediaes em um universo vivo, e, sendo vivo, singular e irredutvel em cada um
dos pontos e tramas de seu tecido. O ponto de singularidade no apenas o canal
de transferncia entre dois ou mais universos. O ponto de singularidade se
manifesta de modo ubquo em todo universo, pois se o infinito produz uma constante
infinitizao dos seres, no h nada no universo que seja passvel de ser reduzido a
leis gerais. A infinita singularizao da substncia universal consiste
necessariamente em uma infinitizao das singularidades.
Eu nunca me repetirei. Nenhum de ns, em nenhum instante do tempo e em
nenhuma regio do espao, nunca se repetiu e nunca se repetir. Nenhum ser
gerado no universo jamais sobrevive a si mesmo e jamais se repete, no tempo ou no
espao. Todas as galxias e todo o cosmo so gigantescos processos de
38

diferenciao e de singularizao. As molculas e os elementais mais sutis que se


agitam neste instante em meu corpo, enquanto escrevo, essa energia composta de
partculas invisveis que compem, movimentam e atravessam no apenas meu
corpo, mas todos os corpos, e que atravessam todo cosmo, animam a existncia e
conferem vida vida. Mesmo sendo finito e mortal como o universo e como toda a
vida, as molculas que se agitam em mim so eternas e infinitas. Animaram seres
animados antes de o universo vir a ser um espao de animao. Animaro seres
animados depois da extino deste universo, pois o fim no o fim, mas sim uma
retrao no tempo e no espao. A completa aniquilao do universo, das vidas, dos
deuses, dos cosmos, dos mundos apenas consiste na metamorfose de seus
elementos mais primordiais, que sopraro um outro universo por vir, uma vida por
vir, os mundos por vir, os humanos por vir, depois que a noite abissal finalmente
cobrir tudo o que agora existe.
Creio que todo o universo e toda a vida, em sua cosmognese e em sua
ontognese, em sua aurora e em sua completa e inexorvel aniquilao, no so
origens nem fins de nada. O universo e a vida no surgiram de Deus e nem sero a
Deus reconduzidos, pois Deus tambm uma das imagens mediadoras, tambm
um meson. Deus o mais solitrio de todos os mediadores no horizonte imaginal e
infinito das mediaes, em um universo no qual no h intencionalidade, nem
projeto, nem inteligncia, nem destino, nem acaso. Todo universo e toda vida
existem e apenas existem como formas finitas do infinito, ou seja, como meios entre
os umbrais do comeo e do fim. O universo e a vida so os intervalos de uma
respirao que prossegue alm do intervalo. O fogo que se apaga e se crispa em
novas chamas. O instante que perdura e se perde entre dois lampejos que se
multiplicam. O hiato entre a noite e a noite que se alia noite. A centelha de luz em
meio a um mar de luzes. Uma folha flutuando em um oceano infinito, sem contornos
ou sentido, sem princpio e sem fim, sem motivo ou razo. Todo universo e toda a
vida so as formas finitas do infinito. Realizar o universo e realizar a vida realizar o
infinito no finito. Para alm de ns, de nossa origem e de nossa morte, quando a
intensidade toca o infinito, transporta-se para alm da vida e da morte do universo.

Cosmos e Vus
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Infinitos vus me separam de Deus, nenhum vu separa Deus de mim. Este


belo provrbio sufi demonstra a engenhosidade das grandes vertentes da sabedoria
revelada. Por meio dele compreendemos que a assimetria da relao eu-Deus
estrutural, e segue vetores radicalmente inversos simetria da relao Deus-eu.
Toda a existncia composta de existentes, que so meios. Mas para Deus no
existem vus. Deus funda uma relacionalidade imediata, para alm dos meios. Ao
passo que para as criaturas finitas, toda nossa cadeia relacional mediada ad
infinitum. Essa estrutura relacional ontologicamente assimtrica Deus-mundo foi
uma das maiores descobertas das narrativas religiosas e metafsicas. Por meio dela,
Deus ou quaisquer outras entidades fundamentais transformam-se nos pontos finais
da cadeia de mediaes. Corta-se o tecido de uma rede infinita. E medida que se
submete a essa cesura divina, o mundo torna-se, paradoxalmente, uma totalidade e,
portanto, um objeto racional.
Acredito que este belo provrbio sufi ser tanto mais correto e ainda mais
belo se o alterarmos em seu ponto central: infinitos vus separam Deus do infinito,
nenhum vu separa o infinito de Deus. Nesse caso, Deus torna-se um dos infinitos
mesons, mais um elemento mediador da cadeia infinita e circular de mediaes que
se constelam na pluralidade dos seres. As partes finitas que compem a existncia
emergem do oceano da indiferenciao infinita. Pensar que Deus no o ponto final
dessa cadeia sem fim de mediaes conceb-lo como mediador de algo que o
transcende, e que nem por isso o invalida em sua divindade. Esse Deus alm de
Deus foi justamente o Deus dos msticos, de Maester Eckhart e de Dioniso
Areopagita, da teologia negativa, dos gnsticos, de Jacob Bhme e de Simone Weil.
Tambm foi o Deus de muitos pensadores, artistas e cientistas. Contudo a maneira
como esse Deus infinitesimal tornou-se patente, e a sua transferncia para um
domnio de especulaes ontolgicas e cosmolgicas que prescindem de uma figura
divina, ainda um assunto a ser explorado. Da mesma forma, pensar toda a
existncia como conjunto infinito de vus, vus esses que no tm nada de ilusrio,
mas que ao contrrio constituem o tecido relacional mesmo da realidade, pensar
assim pensar toda a existncia como uma grande narrativa, sem comeo e sem
fim, e, acima de tudo, sem uma unidade de sentido que nos assegure e nos guie
nessa aventura, pois no podemos nos apoiar no infinito para produzir unidades
capazes de assimilar a ao desse mesmo infinito. Quem se apoia no infinito para
criar regimes morais ou valores transcendentais se assemelha a um equilibrista que
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guia a humanidade em um fio sobre um abismo: ele guia de todos, mas todos
esto sob as mesmas condies, em um fio sobre o desfiladeiro.
Nesses termos, as religies e todas as narrativas cosmognicas nunca
estiveram precisamente e completamente erradas ao atribuir o fundamento do
mundo a uma divindade, a um ser supremo, a Deus ou a deuses. Tampouco as
narrativas cosmolgicas se equivocaram ao atribuir densidade, forma, limites,
fundamentos e contornos epistemolgica e ontologicamente finitos ao universo.
Podemos muito bem apelar para as demandas da razo, para a intuio sensvel,
para a deduo transcendental e para os dados irrefutveis da empiria para legitimar
todas essas descries. Entretanto, em todos esses casos, a motivao encontra-se
em um mesmo e exato movimento: a ao do infinito sobre o finito e sua
devastadora fora produtora de continuidade. A hiptese antropolgica deste
trabalho resumidamente a seguinte: tudo o que a vida produziu sobre a superfcie
da Terra, das bactrias e dos unicelulares s viagens intergalcticas, uma
modulao das aes descomunais que a invarivel cosmolgica chamada infinito
exerce sobre os seres finitos. Uma unidade de sentido sempre nasce de uma
demanda racional e, nesses termos, de uma alterao nas modulaes parte-todo:
um objeto parcial transferido a um estatuto de totalidade medida que lhe
atribumos contornos, ou seja, quando o limitamos. E medida que totalizamos os
dados da experincia, transformamos esses dados em unidades racionais, sejam
esses dados definidos como cosmos, mundo natural ou Deus.

Infinito, Mesons, Antropia

A infinitizao do finito determina toda a relao que a vida estabelece com o


cosmos e, especialmente, determina a emergncia o do sapiens e a odisseia da
hominizao. Essa infinitizao do finito consiste em uma premissa bastante
simples: o universo a forma finita do infinito. Cosmos toda a unidade de sentido
ou de experincia, todo impulso de totalizao dos dados do sentido em uma
unidade que , de sada e para sempre, invivel, pois o universo, sendo mergulhado
no infinito, no pode ser totalizado. Desde a sua origem na Terra e desde os mais
elementares unicelulares, a vida assimila esse imperativo cosmolgico, traduzindo-o
a partir de mecanismos que definem o prprio ser dos seres vivos. Esses
mecanismos podem ser resumidos da seguinte maneira: os seres vivos so
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estruturas dissipativas, precrias e autopoiticas cuja preservao, ou seja, a


infinitizao, depende da reprodutibilidade dos indivduos. Nesse sentido, todos os
seres vivos lidam com essa aporia entre dissipao e preservao. Diferente dos
assexuados, os seres sexuados apreendem de modo mais sensvel, em sua prpria
estrutura vital, esse fato decisivo: cada indivduo precisa transcender a finitude de
sua condio para se infinitizar como espcie.
Abrem-se nesse momento da ontognese dos seres vivos os dois grandes
portais que articulam finito e infinito: a sexualidade e a morte. Essa a condio que
determina a ontologia de todos seres vivos, e a determina bilhes de anos antes da
emergncia dos primatas superiores e dos homindeos: a condio de associar a
sexualidade e a morte aos processos primrios de transferncia e de deslocamento,
responsveis pela realizao do infinito no finito. Os primatas superiores e os
homindeos se submetem igualmente a esse princpio. Se somos feitos da mesma
matria de que so feitos os sonhos, os sonhos por sua vez so feitos da mesma
matria de que feito o cosmos: poeira estelar e infinito. Essas substncias
elementares so partes de substncias e reverberaes mais amplas, que no
podem e nunca podero ser totalizadas. A forma pela qual o sapiens se relaciona
com o infinito delineia os principais contornos de tudo o que concebemos como
sinnimos de profundidade e superficialidade. Paradoxalmente, o fato decisivo da
hominizao consiste em um aprofundamento da superficializao, ou seja, em uma
experincia antropolgica que poderamos chamar de transcendncia horizontal:
uma transcendncia em direo ao mundo e no em direo a quaisquer mundos ou
entidades sobrenaturais situadas alm do mundo.
Como podemos entender a transcendncia horizontal? A transcendncia
horizontal foi o primeira cosmologia da espcie humana e um dos principais recursos
antrpicos da vida, ou seja, os recursos que definem o antropos em sua atividade e
em sua gnese transumana. O sapiens surge h duzentos mil anos, nas savanas
africanas. Contudo sua disperso por esse continente comea apenas setenta mil
anos atrs. Desde essas primeiras migraes, seguem-se outras, em intervalos de
tempo cada vez menores, mas que cobrem reas cada vez mais vastas e chegam a
regies cada vez mais distantes. H sessenta mil anos, ocorre a primeira dessas
migraes maior amplitude, que parte em direo sia e chega Austrlia. No
intervalo entre quarenta e quinze mil anos atrs, o sapiens atinge as estepes da
Eursia, coloniza as ilhas do Oceano ndico, toma o continente europeu, cruza o
42

estreito de Bering, povoa a Meso-Amrica e chega Amrica do Sul pelo Oceano


Pacfico. O que isso significa? Significa que, desde e emergncia do sapiens, foram
precisos cento e cinquenta mil anos de incubao para que esse mesmo sapiens se
tornasse nmade e conseguisse consumar esse que foi o primeiro e mais decisivo
processo de globalizao do planeta Terra. E foram precisos quarenta mil anos de
migraes para que os continentes do planeta recebessem a marca humana. A
motivao precpua dessa primeira globalizao apenas pode ser compreendida de
um ponto de vista da infinitizao.
Essa ontologia do nomadismo nos revela uma estrutura muito singular. Para
que os homindeos produzam essa expanso migratria precisaram realizar um
movimento determinante: transformar o meio-mundo em um lugar de passagem, em
um meio-mediador, capaz de conduzi-los a outros espaos, quando se esgotassem
as possibilidades do meio-mundo em que se situavam. Isso quer dizer que uma das
maiores odisseias da espcie esteve sempre atrelada ao suprimento de
necessidades elementares, projetadas para alm do meio-mundo ftico em que se
instalavam em direo a um horizonte que certamente sempre fora uma mescla de
limiar e de promessa, de fronteira e de imperativo, de condio e de liberdade.
Essas migraes certamente foram animadas por imagens ou motivaes ligadas
morte, aos elementos, aos astros, natureza. Contudo, do ponto de vista de uma
teoria dos mesons, todos esses componentes convergem para um fenmeno
comum: o deslocamento populacional, as rotas migratrias e a conquista de novos
continentes. A ontologia da migrao baseia-se em uma perspectiva segundo a qual
o real e o virtual se fundem na imagem do horizonte. O horizonte uma constante
virtualidade e uma reserva de oportunidades e de novos desempenhos. A
mobilidade o esteio e a regra para o desdobramento da vida, oscilando na fixidez
tremula e na imagem fugidia de um horizonte infinito e que apenas se realiza como
horizonte se continua a se infinitizar por meio do movimento. Em virtude da
realizao desse deslocamento e desse infinito horizontal, os territrios nmades
so meios opacos, espaos neutros para a realizao da travessia em busca da vida
que estavam sempre em outro lugar, sempre em um limiar indevassvel do horizonte
e esse horizonte se situava sempre em um umbral que conduzia ao infinito.
Esses meios-mundos foram opacos aos nmades, pois o vetor da vida no
consiste em abstrair ou verticalizar os potenciais ocultos desses meios envolventes,
mas simplesmente reduzir o impacto e a adversidade desses mesmos meios a partir
43

da conquista de novos meios heterogneos, os quais fornecem alimento, abrigo e


energia para um novo caminho em direo ao infinito. E o horizonte, sendo infinito,
se infinitiza. Todos os dias e todos os ciclos do sol e da noite no intervalos
propcios para a conquista de novos ciclos de dia e noite, rumo a um objetivo situado
sempre no alm. O alm, contudo, no a cpula celeste e tampouco os mundos
nferos situados sob a terra. O alm o horizonte e todas as dimenses
espaciotemporais ainda por vir. Esse deslocamento populacional e transcontinental
define o que podemos tranquila e rigorosamente definir como a primeira
globalizao do planeta. Essa primeira globalizao definiu cento e noventa mil anos
da jornada do sapiens na Terra. Contudo nos referimos ao sedentarismo e
agricultura como revoluo neoltica. Por que no nos referimos a essa globalizao
nmade, que define quase cem por cento da existncia do sapiens na Terra,
tambm como uma revoluo? No nos referimos ao nomadismo como uma
revoluo porque todas nossas categorias conceituais, sendo fruto das narrativas
metafsicas das mitologias sedentrias e da ontologia das substncias, privilegiam a
imobilidade em detrimento da mobilidade. A constituio da filosofia como saber e
seus dois mil anos de vigncia nada mais so do que a vitria esmagadora do
sedentarismo sobre a razo nmade, ou seja, a vitria de uma ontologia das
profundidades sobre uma ontologia das superfcies.
Sob esse ponto de vista, se analisarmos o devir antropolgico da espcie sob
a tica dessa grande narrativa do nomadismo, compreenderemos que a revoluo
neoltica da agricultura e da sedentarizao, ocorridos h dez mil anos, representa
um intervalo extremamente pequeno no percurso do sapiens. Comparativamente, a
narrativa do sedentarismo, desde a fundao das cidades at a atualidade, dura um
vigsimo da narrativa global do sapiens e um quarto do tempo que o sapiens levou
para povoar a Terra. Talvez esse cenrio nos auxilie a criar alternativas narrativa
hegemnica de constituio do ser humano na Terra. No se trata de reeditar a
narrativa da hominizao baseada na associao entre histria e escrita, pois ambas
so quase simultneas ao sedentarismo, s cidades e agricultura, ou seja,
pertencem ao recorte demarcado pela revoluo neoltica. Tampouco devemos
prosseguir com divises cronolgicas dos perodos antigos, medieval, moderno e
contemporneo. E mesmo a relativizao, apoiada nas nos relatos das migraes
tomados sob a as diversas perspectivas das culturas, bem como os complexos
emaranhados de sentidos e vetores institudos pelas diversas populaes do mundo,
44

no nos auxiliam a detectar as matrizes ou constantes para o percurso hominizador.


Devido a isso, devemos compreender a odisseia da hominizao como a alternncia
entre duas matrizes antropolgicas: o sedentarismo e o nomadismo. Entretanto,
seria preciso reorganizar as valncias desses termos. A modernidade est
diretamente ligada circunvoluo do globo terrestre levada a cabo pelas grandes
navegaes do sculo XVI e pela globalizao comunicativa ocorrida do sculo XX.
Contudo ambos os fenmenos tm mais ligao com a globalizao dos nmades
ocorrida h setenta mil anos do que com a sedentarizao ocorrida h dez mil anos.
Situamo-nos desse modo diante de um paradoxo. Afinal, por que falamos na
revoluo neoltica da agricultura e do sedentarismo caracterizam e no falamos na
revoluo do nomadismo, responsvel pela primeira globalizao da Terra? A chave
para a compreenso desse fenmenos diz respeito a uma aliana poderosa entre
sedentarismo e pensamento. Em linhas gerais, podemos dizer que a filosofia e a
metafsica da substncia, surgida sob a base do pensamento grego, nada mais do
que o mecanismo antropolgico de postular a primazia da permanncia sobre a
fugacidade. Em certo sentido, a metafsica da substncia determina praticamente
todos os sistemas filosficos e teolgicos, desde Plato e Aristteles a Agostinho e
Toms de Aquino, de Descartes e Newton a Husserl. Contudo ao eleger a
permanncia como fundamento de toda e qualquer ontologia, essa tradio produziu
uma reviravolta nos valores. Adotou como critrio de verdade a permanncia e a
projetou como fundamento global do mundo, ou seja, promoveu uma globalizao
metafsica, na acepo de Sloterdijk. Mas ao faz-lo, instituiu uma narrativa sobre a
Terra que diz respeito perspectiva da imobilidade, mas que fora explorada e cuja
abertura desocultante fora fornecida pelas migraes e pelas ontologias do
nomadismo. Quando isso ocorre, temos a translao de uma determinao
antropolgica que deixa de ser subsidiria em relao ancestralidade do
nomadismo e assume o protagonismo das descries do mundo e do planeta,
entendidos como categorias de pensamento e no mais como devir da espcie.
Obviamente, no se trata de minimizar a abertura do sedentarismo ou de
contrapor essas duas matrizes, pois ambas consistem na verdade em oscilaes
pendulares e simultneas na configurao matricial dos processos reais. O
interessante de observar nesse deslocamento o oxmoro sobre o qual esse mesmo
deslocamento se fundamenta. Enquanto a razo nmade levou dezenas de milhares
de anos para habitar e abranger quase todo planeta, essa mesma razo no
45

produziu uma narrativa sobre a totalidade desse mesmo globo que as rotas
migratrias traaram. Por outro lado, a fixao de um territrio pde instituir a
necessidade de criar uma narrativa sobre a totalidade, mesmo se essa totalidade
diga respeito viso parcial e terica de sbios e legisladores da verdade que nunca
transpuseram os muros de sua cidade natal. Somos uma cadeia infinita de relaes
e de partes que remetem a outras partes, sem nunca comporem uma totalidade. E
apenas como ressonncia desse percurso sem fim a vida pode ser chamada de
vida. Por isso, no podemos separar esses dois processos e essas duas matrizes,
como se fossem autoexcludentes. No por acaso, o sedentarismo tambm est
relacionado a uma revoluo dos mesons. A alterao substancial do sedentarismo
no foi ter exterminado ou inviabilizado a razo nmade. Pelo contrrio, o
sedentarismo possibilitou que as ontologias nmades se desdobrassem e se
fortalecessem, pois forneceu-lhes algo que elas nunca tiveram: um ponto fixo.
A saga nmade definida por uma estrutura relacional parte-parte que se
desdobra rumo ao infinito. Os meios de subsistncia dos nmades os conduziram a
ter sempre em mente um horizonte, cuja transposio atravessava suas vidas em
ciclos infinitos de dias e noites, sem que esse horizonte jamais se realizasse ou se
fechasse, ou seja, o horizonte sempre fora a imagem mesma do infinito. A revoluo
da agricultura, ao fornecer um ponto de referncia, pde dessa maneira constituir
essas relaes estruturais parte-parte em uma nova chave. A partir do momento em
que a percepo do infinito no se mistura percepo cotidiana de um horizonte
ontologicamente infinito a cada diz, abre-se uma nova potencialidade do ser: a
possibilidade de circunscrever o infinito e, desse modo, fornecer um ponto de
ancoragem finito ao infinito. Emerge a condio de possibilidade de transformar o
infinito em um cosmos e, desse modo, de dotar o infinito de sentido, de unidade e de
uma geometria. As relaes parte-parte passam desempenhar um novo sentido: o
sentido da transferncia da parte ao todo, em uma ontologia relacional parte-todo.
Em outras palavras, a experincia e o conceito de infinito passam a ser reduzidos
experincia e ao conceito de totalidade. Infinito e totalidade so as matrizes das
diversas ontologias, cosmologias e antropologias e desse modo determinam toda a
odisseia da vida na Terra. Obviamente o infinito no pode ser circunscrito, e a
substncia infinitesimal do universo fora constantemente a realidade intramundana
do cosmos a se realizar a si mesmo como excentricidade e como ultrapassagem.
Esse imperativo de excentricidade e de ultrapassagem dos limites e da finitude no
46

se cumpre nunca. E por isso a vida , em sua tessitura e em sua determinao


ntica, paradoxal e simultaneamente necessria e invivel.

Esferologia e Mesologia

Um autor decisivo para o desenvolvimento desta teoria dos mesons Peter


Sloterdijk. Sloterdijk define esse processo como um processo metabiolgico de
domesticao ontolgica do exterior pelo interior, uma transformao do no-prprio
em prprio e uma assimilao do no-sentido pelo sentido. Como o leitor perceber,
este estudo constantemente pontilhado pelas intuies brilhantes de Sloterdijk, e
pode-se pensar que a teoria das esferas uma das pedras angulares da teoria dos
mesons. Entretanto essa viso domesticadora me parece trazer em si uma postura
mais reativa do que ativa. Isso possivelmente uma das determinaes e dos
compromissos inescapveis gerados por um postulado central da esferologia, que
est no cerne da composio da dade ontolgica interno-externo: a distino
orgnico-inorgnico. Essa postura metabiolgica me parece que define o paradigma
da esferologia a partir de dois postulados centrais: o postulado biocntrico e o
postulado da descontinuidade entre orgnico e inorgnicos. A teoria dos mesons
procura se afastar de ambos os postulados de Sloterdijk logo a partir de seus
primeiros axiomas. Para tanto, no Captulo V recorro a uma comparao entre
Sloterdijk, Stengers e Prigogine, ou seja, uma possibilidade de pensar, no mbito da
complexidade, em uma transio e em uma continuidade entre sistemas inorgnicos
e orgnicos, por meio da passagem dos modelos de sistemas lineares em equilbrio
aos modelos no-lineares distantes do equilbrio.
Na teoria dos mesons, em primeiro lugar partimos de um postulado central: o
exterior no existe. Para os mesons, o cosmos infinitamente processual e
relacional. Por isso, embora a ao do infinito produza uma pluralidade de ontologias
e de cosmologias, no pode haver uma heterognese de substncias no interior do
infinito, pois nada existe fora ou para alm do infinito. Por outro lado, os mesons
orgnicos e os mesons inorgnicos no se submetem a legalidades distintas: ambos
seguem as mesmas leis, que so cosmolgicas. Por seu turno, a relao ativa, de
participao de substncia e de profunda continuidade entre inorgnico e orgnico
se espelha e se simetriza na relao ontolgica e cosmolgica existente entre infinito
e finito. Nesse sentido, a infinitizao dos seres decorre de agentes e potncias
47

transfinitas que atravessam as diversas totalidades e regimes mundanos,


perfurando-os e conduzindo-os a um horizonte desconhecido in fieri, ou seja, em
contnuo perfazimento de um horizonte eternamente em aberto e essencialmente
inacabado. O regime no mais o proposto pelos modelos da homeostase sistema-
meio e orgnico-inorgnico dos sistemas lineares e em equilbrio. O modelo passa a
ser o modelo da entropia positiva dos sistemas termodinmicos no-lineares,
distantes do equilbrio, e cujas foras csmicas atravessam os domnios
fisioqumicos e biolgicos, atuando infinitesimalmente em todos os espaos e
tempos da grande cadeia relacional do ser.

Animismo e Pluralismo

Essa continuidade entre orgnico e inorgnico nos conduz a um ponto que


tem sido muito investigado pela astrobiologia: tudo o que existe teria em alguma
medida uma participao em uma unidade e em uma atividade vital elementar. Essa
constatao fundamental nos abre para outro objetivo da teoria dos mesons: a
reformulao e a proposio de uma teoria global do animismo. Essa relao entre
infinito, continuidade de substncia e animismo explicaria, por exemplo, a
singularidade do pensamento de Giordano Bruno. H uma unidade essencial entre
seus princpios vitalistas, poder-se-ia dizer mesmo mgicos, e a dinmica de um
universo infinito no qual se desdobra a pluralidade dos mundos. O centro e a
unidade so sempre hipteses de natureza geomtrica. Um universo anmico,
infinitamente processual e relacional, no pode ter centro. O centro sempre ser
deslocado em relao a outros eixos gravitacionais que o transcendam. Em sentido
semelhante, a infinitizao do universo proposta Nicolau de Cusa, a partir do
minimamente mximo e do maximamente mnimo, nas sstoles e distoles do
movimentos csmicos, no interior do qual os opostos coincidem [coincidentia
oppositorum], apenas foi possvel porque fora pensada isomorficamente como
correspondente aos movimentos mesmos de dobrar [complicatio] e desdobrar
[explicatio], de implicitao e explicitao do prprio Deus, ou seja, a partir de um
parmetro de animao. Nesse sentido, para os mesons as revolues de Bruno e
de Nicolau de Cusa so mais importantes do que a revoluo copernicana.
Enquanto Coprnico representa uma alterao da morfologia do cosmos em termos
de substituio e de deslocamento das relaes centro-periferia, Bruno e De Cusa
48

representam uma alterao global das relaes parte-todo, ou seja, uma alterao
da estrutura mesma do cosmos e das condies fundamentais do universo.
Essa revoluo mereogrfica das relaes parte-todo [meros-holos] define de
maneira essencial a alterao dos paradigmas da cosmologia e, de um ponto de
vista da morfologia, constitui a revoluo das formas a que costumamos chamar
modernidade. Entretanto importante frisar que a partir da teria dos mesons, a
modernidade apresenta uma relao especial com os meios, pois a partir do sculo
XV a relao finito-infinito passa a assumir o centro da cincia e do pensamento em
geral. Contudo, o fenmeno moderno apresenta mais um aprofundamento de uma
constante cosmolgica e antropolgica fornecida pelos mesons, do que uma
descontinuidade em relao a outros perodos da histria. Em outras palavras,
desde a emergncia da vida na Terra e desde a emergncia dos primatas superiores
e do sapiens a relao finito-infinito e parte-todo se encontram em plena atividade.
Toda atividade da vida no planeta e o nascimento da cultura humana esto
intimamente ligadas experincia elementar do atravessamento do finito pelo
infinito. A modernidade, mais especificamente a partir do sculo XII, esses
processos primrios das relaes parte-todo sofreram o impacto da simetria: cada
vez mais as relaes entre as partes e suas sucessivas transferncias a uma
totalidade comeam a ruir, diante da potncia de simetrizao do infinito em relao
ao finito. Nesse sentido e apenas nesse sentido podemos identificar uma
descontinuidade no escopo da modernidade. Essa descontinuidade entretanto nos
obriga a rever algumas das premissas de demarcao da prpria modernidade, pois
em geral essas premissas esto relacionadas a concepes modais: a modernidade
seria produto de um isomorfismo entre substncia e modo.
Em outras palavras, a modernidade teria surgido de um modalismo radical.
Do ponto de vista dos mesons, as teorias modais descrevem apenas um aspecto do
fenmeno moderno. medida que os mesons so postulados e constantes
cosmolgicos, e antropolgicos, a descoberta do meio como meio define a
modernidade para alm dos critrios estabelecidos pela modernidade, a partir de
recursos modais. Isso quer dizer que as teorias modais se baseiam em um
isomorfismo entre sustncia e expresso, ao passo que a teoria dos mesons se
baseia em uma pluralidade de ontologias surgidas de um mesmo horizonte de
eventos e, portanto, constituidoras de mesons temporal e espacialmente distintos.
Nesses termos, seria preciso pensar a modernidade no mais a partir das teorias
49

modais, mas pensar a modernidade a partir da teoria dos mesons. Isso implica rever
os critrios mesmos de definio do moderno, ou seja, propor uma alternativa ao
paradigma hegemnico criado pela modernidade para julgar e definir a
modernidade, em termos teleolgicos e tautolgicos.

Digresso Afetiva

Amo filosofia como amo literatura. Como amo as cincias. Como amo um por
do sol, certos lugares, cheiros, imagens, lembranas, pessoas, paisagens. Ou seja,
os objetos so distintos, e ama-se cada um desses objetos de maneiras e com
intensidades diferentes. Mas o tecido da realidade sempre uno. E o desejo os
unifica em um espao comum de animao. Nesse sentido, creio meu interesse
sempre foi pela intensidade que se passa na linguagem. Sou obcecado por certas
intensidades que atravessam a linguagem verbal. Drummond comentou de maneira
muito tocante que as maiores emoes de sua vida se deram com uma caneta entre
os dedos. Eu diria que entre as maiores emoes de minha vida esto,
independente do valor que tenham, as linhas que escrevi e as linhas que li. Desse
ponto de vista, para a minha formao de escritor e de leitor, Lucrcio, Montaigne,
Hume, Nietzsche, Vico e Sloterdijk so to importantes quanto os mais de mil livros
de poesia que tenho em minha biblioteca. Cervantes e Dante no so mais
importantes para mim do que um tratado medieval que descreve a fisiologia
humana. Os contos de Poe no so mais importantes do que Eureka, o tratado de
cosmologia de Poe. Algumas obras obscuras que me chamam a ateno por algum
motivo obscuro, como a Hypnerotomachia Poliphili, por exemplo. A monadologia de
Leibniz, a cosmologia de Nicolau de Cusa e o tratado do infinito e da pluralidade dos
mundos de Giordano Bruno no so menos ficcionais e fantsticos do que uma obra
de fico cientfica. Os lampejos do pensamento de alguns filsofos e as ideias que
leio em obras cientficas no me tocam menos do que os personagens da fico que
me acompanham pela vida. Nesse sentido, penso que h um certo purismo por trs
de toda especializao, inclusive as especializaes artstica e literria. A literatura
o espao no qual a linguagem se realiza a si mesma em toda sua possibilidade e
intensidade. Essa intensidade da linguagem no depende de contar uma estria ou
ler todos os poetas contemporneos. Essa intensidade depende de cruzamentos, de
multiplicidades e de impurezas, de misturas e de contgios recprocos que a
50

literatura estabelece com outros saberes e cincias, com as artes e a filosofia, com
os dados da experincia e com as religies, com a poltica e a profecia, ou seja, com
tudo aquilo que no considerado literatura.
De um ponto de vista pragmtico, sem teologia, a filosofia, a filologia, da
politologia, da hermenutica sacra e do estudo das religies, a Divina Comdia no
seria possvel. Tampouco seriam possveis as obras de alguns dos maiores ascetas
da escrita, como Borges e Flaubert, cujo romance Bouvard e Pcuchet consiste
muito mais em uma enciclopdia dos saberes s avessas do que em um romance.
Quantos tratados de teoria da literatura e de pintura esto diludos na obra maior de
Proust? Quantas cincias, filosofias, artes e saberes produz um Da Vinci? Quantos
tratados de filosofia e de msica foram precisos para criar, respectivamente, O
homem sem qualidade e o Doutor Fausto? Com quanta alquimia, cincia e filosofia
se faz um Goethe? Quantas teorias poticas e retricas so desfiadas pela boca de
Quixote? Quantos tratados de filosofia, fisiologia e teologia se encontram dispersos
em Gargntua e Pantagruel? Isso tudo a multiplicidade da literatura, uma das
apostas de Calvino para o prximo milnio. A arte que se fecha para a alteridade, a
arte que no se deixa afetar e transformar pelo outro de si, a arte que se protege
daquilo que constitui o seu negativo, essa arte est condenada a duas fatalidades: a
morte ou o sucesso. A incapacidade de fracassar define toda a arte e toda a
literatura ruins de nosso tempo. Somos cada vez mais animais puritanos em busca
de xito. Queremos depurar, simplificar e catalogar cada vez mais, pois isso otimiza
os processos, antecipa a fama e gera dinheiro imediato. Em contrapartida, desafio
qualquer um a encontrar qualquer obra significativa, em qualquer domnio do
conhecimento ou em qualquer arte, que no tenha sido produzida em um espao de
transversalidade, ou seja, que no tenha nascido de toda sorte de tramas oficiosas,
de contaminaes, de misturas, de conexes, de mesclas, de sntese de materiais e
ideias os mais anacrnicos e heterogneos. Por qu? Porque a literatura vive do que
no literatura. A cincia germina quando se alimenta do que na cincia no
cincia. A poesia surge quando o poeta respira cotidianamente o que no poesia.
A filosofia se fortalece quando busca abranger o mundo e a totalidade do
pensamento, para alm do horizonte de tudo o que se convencionou chamar de
filosofia. Hegel e Adorno perceberam muito bem que a constituio de cada um dos
regimes e campos dos saberes est diretamente vinculada s suas respectivas
alteridades e negatividades. Embora ambos estejam pensando em termos finalistas
51

e concebendo uma arte e uma literatura emancipadas e autnomas, creio que esse
ideal possa ser compreendido em outra chave, a partir da qual a definio de
literatura seja colocada em cheque justamente pela imensa porosidade e
promiscuidade que a define em sua essncia. Tornar transparente esse campo de
misturas, impurezas e interseces basicamente uma das possibilidade de
compreender a arte e a literatura por meio da mesologia.
medida que a mesologia uma cosmologia e uma ontologia dos meios,
toda e qualquer obra apenas se realiza medida que se torna o meio de realizao
de outras obras, que passam a ser concebidas como meios e no mais como pontos
de chegada ou partida. Por isso, uma obra se torna um clssico na medida em que
essa obra consegue interiorizar o maior nmero de obras heterogneas,
transformando-as em mediaes de si mesma. A mesologia parte de um
pressuposto radicalmente antiessencialista. Um clssico no nasce da angstia da
influncia. Um clssico nasce da angstia da originalidade. Uma obra clssica no
a obra que melhor superou os modelos anteriores. Uma obra clssica aquela que
melhor incorporou em si o maior nmero de modelos, de modo a conseguir esvaziar
esses modelos de sua idealidade, reduzindo-os a mediaes internas de si mesma.
Quanto mais impura uma obra, mais clssica essa obra tende a ser. O clssico
uma obra que vive para realizar o conjunto de toda a literatura e de toda arte
existente. Por isso, toda teoria da arte e da literatura se resume a uma teoria global
dos meios, a uma ontologia dos meios, a uma mesologia. A teoria aborda a
singularidade de cada obra, mas seu objetivo na verdade deveria ser compreender
em que medida essas mesmas obras incorporaram obras alheias, transformando-as
em meios internos de sua prpria realizao, ou seja, negando o estatuto ideal
dessas diversas obras, que deixam de ser modelos externos e passam a ser meios
internos. De Virgilio a Dante, de Blake a Rimbaud, de George e Trakl a Rilke e
Perse, todos os poetas rficos realizaram a poesia justamente quando pensaram a
poesia como meio e no como fim ou origem, ou seja, como artesanato ou
possesso. As camadas de mediaes externas desses poetas foram colhidas nas
religies, nos mitos, na literatura, na filosofia, na teologia, ou seja, incorporaram o
maior nmero de meios externos ao interior do que se chama poesia, tornando-a
cada vez mais impura, ou seja, conduzindo a poesia para fora da poesia. Esse o
procedimento elementar e incontornvel de todo e qualquer artista, sobretudo
aqueles tristemente definidos como gnios originais. As pinceladas de Van Gogh
52

representam uma nova economia de meios, pois representa uma nova relao com
a um meio especial: a atmosfera. Tudo o que existe entre o olho e o objeto, ou seja,
todas as camadas e mediaes entre sujeito e objeto, assumem o centro da criao.
O pintor no pinta o real. O pintor pinta o meio entre o pintor e o real. Capta
atmosferas, que so intervalos entre o olho e um objeto, seja um sapato, um girassol
ou o horizonte estrelado. Esses meios so simultaneamente meios-mundos
circundantes e meios-mediadores, tais como luz, cor, vibrao, intensidade,
tonalidades, oscilaes, nuances, ou seja, todas as impurezas que se interpem
entre o olho e o objeto. E assim sucessivamente. Poderia me estender em dezenas
ou centenas de exemplos. Em linhas geras, o que podemos reter desse debate?
Quando se enfraquecem a negatividade e a alteridade da criao, e quando as
impurezas constitutivas da arte como arte so filtradas e depuradas, passamos a ter
escritores que escrevem, crticos que criticam e poetas que poetam.
Para compreender o sentido da literatura sob um novo ngulo, precisaramos
retomar o poder da palavra poiesis. No podemos vincular essa palavra ao sentido
meramente positivo e ativo de fazer. A poiesis no se restringe a uma atividade que
passa da potncia ao ato, como bem mostrou Agamben. A poiesis tambm descreve
a potncia de no fazer e a potncia de no ser. A poiesis, entendida como
atividade, em seu sentido geral, no se refere iluso de que todos so ou sero
poetas. Trata-se sim de entender que nenhum poeta poeta sem se manter sempre
tensionado e sempre na iminncia de renunciar a s-lo. A arte e o pensamento so
as atividades humanas por excelncia que vivem e sobrevivem, no da morte, mas
da iminncia da morte. Esse limiar consiste no vasto campo aberto no interior da
criao, a partir do qual a uma obra passa a canibalizar a maior quantidade possvel
de outras obras, a literatura passa a receber em si tudo o que no literatura, a arte
se abre finalmente para tudo o que no considerado arte. Apenas quando se
mantm tencionada no limiar de sua extino a arte pode vir a ser. Por isso Bartleby
e Sherazade so, nesse sentido, as maiores preceptivas da literatura e da narrativa
jamais criadas. Retornando ao ponto inicial de sua pergunta, estou trabalhando em
um novo livro de poemas. Talvez fique pronto ainda este ano. Felizmente o sanatrio
no me curou por completo. Entretanto o que de fato importa para mim que os
poemas que eu escreva sejam sempre um amlgama de todas as atividades que
desempenho e desempenhei, de todas as linhas que li, todos os momentos que vivi,
todos os silncios que silenciei, todos os pensamentos que pensei, todos os estudos
53

que estudei e de todas as linhas que escrevi, independente de serem ou no


considerados literatura.
Sinto realmente que muitas obras da filosofia e a atividade de diversos
ensastas como grandes mananciais da arte verbal. Tenho srias dvidas se Borges
e Valry so menos poetas em seus ensaios ou se apenas nos ensaios eles se
cumprem plenamente como os poetas que de fato so. O mesmo se aplica a tantos
escritores. E no me refiro apenas a clssicos e consagrados. Gosto tanto da prosa
filosfica de Sneca e Gracin quanto da fico de Quevedo. O Tratado sobre a
natureza humana e os ensaios sobre a arte do ensaio situam Hume nesse mesmo
limar. Conheo poucas obras mais fascinantes na histria da literatura do que A
origem das espcies de Darwin. Boa parte da fora terica de Blanchot e Barthes
est na capacidade de ambos tramarem os conceitos em forma de narrativa, em
uma tessitura discursiva. Nietzsche e Sloterdijk situam-se simultaneamente na
literatura e na filosofia. Por fim, basta pensarmos em um dos fundadores da filosofia:
Plato. O pensamento ocidental nasceu como forma dialgica, cnica e dramtica,
ou seja, por meio da criao de diversos personagens conceituais, entre os quais
Scrates. Se a filosofia ocidental uma nota de rodap a Plato, como queria
Whitehead, o motivo desse potencial da obra platnica est no fato de Plato ter
concebido sua obra tambm como forma dramtica, o que desestabiliza os
conceitos e lhes confere ainda mais equivocidade. Por esses e outros motivos,
acredito que seja essencial refletir sobre a instaurao discursiva da literatura e
repensar sua demarcao. Em outras palavras, talvez seja essencial uma reflexo
sobre a linguagem que gerou um discurso estabilizado que chamamos de filosofia,
de literatura, de cincia, entre outros. Esse liame entre representao dos conceitos
e percepo dos fenmenos animados pela linguagem nos levaria a compreender
que a filosofia um processo diferencial e diferenciador desde a sua gnese, no
apenas a partir do sculo XX.
A poesia uma arqueologia do presente. Um arco tensionado entre um
passado imemorial e um futuro vazio. Nesse sentido, a velocidade da poesia
geolgica, poderamos dizer mesmo cosmolgica. Tem a durao dos estratos que
se sedimentam, dos animais, dos vegetais e dos minerais que existem mesmo
quando nenhuma vida consciente se d conta de sua existncia e mesmo quando
toda a vida da Terra tiver se extinguido, daqui a trs bilhes de anos. A poesia capta
o eu que se enuncia no poema, bem como a situao existencial do mundo
54

circundante desse eu, mas os recorta, tanto o eu quanto o poema, contra o horizonte
de uma grande narrativa annima no interior da qual esse mesmo eu e esse mesmo
poema se dissolvem. Esse foi e continua sendo o mago de minha ambio na
literatura: uma arqueologia da aniquilao do eu. Pensar a poesia nessa chave
conceb-la como o mais lento de todos os objetos existentes. Porque a partir dessa
concepo, a velocidade da poesia a velocidade com que um fssil atinge um
receptor. Esse fssil pode levar minutos, anos, sculos, milhes ou bilhes de anos
para atingir seu receptor. Quando o atinge, altera algo que determinante de sua
sensibilidade e constela o mundo em um novo esquadro espaciotemporal. Essa
reconfigurao de nossa percepo geral do mundo semelhante ao que ocorre
com todos ns quando somos atravessados pela experincia da poesia. Essa
reorganizao no pode ser definida de um ponto de vista quantitativo. O que a
reconfigurao da percepo global de uma pessoa produz sobre a realidade dessa
pessoa? E o que produz, indiretamente, sobre aqueles com os quais essa pessoa
convive? E se essa pessoa se tornar um lder religioso ou poltico? Em que medida a
intensidade que promoveu a reconfigurao global dessa pessoa atingida pelo fssil
da linguagem estar presente na transmisso de sua mensagem para outros
receptores? Como quantificar o impacto do fssil-linguagem sobre uma cadeia de
conexes que se multiplicam de modo no-linear? Essa a base da teoria dos
mesons que tenho desenvolvido, que consiste em uma ontologia e uma cosmologia
dos meios e mediadores. Entender a linguagem como arqueologia do presente pode
ser uma das abordagens possveis da mesologia para a literatura e a arte.
Entretanto temos uma capacidade comum e mesmo cotidiana de olhar o presente do
ponto de vista de sua arqueologia passada e futura. A poesia a capacidade de
iluminar fragmentos imemoriais que permanecem sombra ou obscurecer a
claridade do todo, trazendo tona o impacto de sua inexorvel extino futura. Ao
mesmo tempo, para a poesia os mortos nunca se foram e o que est prestes a se
extinguir pode vir a ressuscitar em um futuro em aberto, vazio de qualquer
expectativa. A unidade indissolvel entre o imemorial e o messinico. Creio que
basicamente nisso consiste a atividade da poesia e at mesmo todo pensamento e
toda arte.

Mesons, Mimesis e Heterarquia


55

Um amigo me contou uma anedota. No metr, o av explicava por telefone ao


neto o teorema de Pitgoras. Ao concluir, afirmou: Pitgoras inventou o tringulo.
Se fizermos um exerccio de ceticismo maneira de Hume e formos em busca das
condies iniciais e dos agentes no-humanos que definem a esfera humana do ser
humano e o tringulo como tringulo, poderamos mesmo dizer que esse senhor no
est totalmente errado. Se o tringulo no existe como ideia ou categoria em si,
qualquer um que junte trs gravetos ou alinhave um barbante com trs lados, e
chame isso de tringulo, ter de fato inventado um tringulo, e no o tringulo, pois
o tringulo, em sua universalidade, jamais fora inventado por ningum, porque
jamais existiu. Desse modo, esse personagem produziu uma alternativa
extremamente fecunda para a mimesis. Tendo em vista a circularidade entre
inveno e representao, podemos reformular a frase dele da seguinte maneira:
Pitgoras inventou o tringulo de Pitgoras. Agora, se pensamos que existe a
essncia da triangularidade, imanente natureza, se ofereceu um belo dia ao
beneplcito de Pitgoras, e esse foi o primeiro a chamar esse aspecto imanente da
natureza de tringulo, Pitgoras se converte no medium de uma natureza que se
nomeia a si mesma por meio dos humanos. Isso quer dizer que Pitgoras um mero
nome humano para uma atividade que extrapola o humano, e que na verdade tem
no humano um mero meio-mediador mesolgico que fornece nomes para realidades
transumanas que, em sua produtividade titnica, exorbitam todas as esferas e
desempenhos humanos. Estou levando ao paroxismo a anedota justamente para
chamar a ateno sobre a fragilidade de certas categorias que julgamos
estabilizadas, como representao, imitao, tringulo, realidade, humano, autoria,
inveno.
Wittgenstein estava certo ao descobrir que a tautologia a figura matriz de
toda a linguagem e de todo pensamento. Contudo apenas os desdobramentos de
seu pensamento ulterior conseguiram levar adiante essa constatao, e o
conseguiram porque essa descoberta da tautologia estrutural anula igualmente
quaisquer tentativas de desativar a atividade tautolgica. Depois do Tratactus, o
pensamento de Wittgenstein teria passado do problema da tautologia ao que
poderamos chamar de tautontologia. O universo, a vida e todo pensamento no so
nada mais do que atividades incorrigivelmente tautolgicas. A questo do
transumano tem diversos aspectos, extremamente complexos. No creio que o
campo de atividades que o conceito de humano designa bem como toda narrativa do
56

humanismo deixaro de existir. Contudo, sinto que quanto mais vastos so os


horizontes de fenmenos nos quais inserimos o humano, mais frgil e inoperante se
torna o vocabulrio do humanismo. Certamente uma obra uma inscrio diferencial
no interior da soma de leituras, vivncias e situaes singulares, intransferveis e
irredutveis que constituem o seu autor. No surgem de um sujeito genrico, nem de
objetos genricos, nem de situaes genricas, pois no limite, lembrando Hume e
Whitehead, toda generalizao uma fico. Sou a soma de infinitos fatores que se
singularizam sob o nome de Rodrigo Petronio. Assim como cada um de ns a
soma infinita de fatores que faz cada qual ser o que em termos singulares.
Entretanto essa uma perspectiva extremamente antropocntrica, diria
mesmo biocntrica. Do ponto de vista das usinas de hlio, carbono e hidrognio que
so as estrelas, dos sete bilhes de anos do universo ou dos quatro bilhes de anos
de replicao gentica da vida, qual razo eu teria de reivindicar qualquer
originalidade sobre mim mesmo? O que sou eu de to especial e singular a ponto de
no poder ser reduzido a p, como tudo o que existe? Que evento, que propriedades
ou essncias participam do que sou a ponto de me isolar da substncia comum de
tudo o que ? Qual fora diferencial residiria em mim a ponto de me poupar de ser
dissolvido nos abismos infinitos do universo? Quais membranas so poderosas o
bastante a ponto de me imunizar da solidariedade annima, colossal e indiferente
que me une substncia do universo? Somos feitos da matria de que so feitos os
sonhos. E os sonhos so feitos da matria de que feito o cosmos. Tenho cada vez
mais dificuldade de debater com quem se preocupe em demarcar uma distino do
humano em relao aos demais processos globais da vida e do universo, sejam
quais forem os argumentos. A reivindicao de uma dignitas hominis, em
descontinuidade com os demais processos naturais, ainda vai transformar as
cincias humanas em uma variedade ou em uma subcultura da teologia.
As abordagens da literatura so diversas e, em sua diversidade, quase
infinitas, se contemplarmos o crescimento exponencial dos matizes e das variaes
no apenas no interior de uma mesma abordagem conceitual, mas tambm
resultante dos cruzamentos e intercmbios de matrizes tericas heterogneas. Alm
disso, desde as preceptivas poticas e retoricas antigas de Plato, Aristteles,
Horcio, Ccero e Quintiliano, por suas reformulaes bizantinas de Hermgenes at
as preceptivas renascentistas, de Castelvetro e Tesauro, passando por Buffon e
Johnson no sculo XVIII e desaguando nos romnticos e na chamada falncia da
57

crtica dos sculos XX e XXI, podemos extrair um ensinamento: toda, rigorosamente


toda teoria criada sobre a literatura, em qualquer tempo, foi uma forma redutiva de
conceber a literatura. Isso se deve ao fato de que os modelos descritivos da
constituio da literatura como campo de conhecimento precisam sempre agir em
algum nvel de reduo, e, nesse sentido, diminuem a quantidade de possibilidades
atuais e virtuais inscritas na experincia de cada leitor com cada obra, desde
Gilgamesh
Essa dimenso redutora do estabelecimento de cnones e da estabilizao
de critrios descritivos ou valorativos de tal maneira acentuada que grande parte
da teoria da literatura contempornea consiste em uma tentativa de explicitar o
reducionismo desses mtodos, propondo a irredutibilidade da escrita como horizonte
mais valioso da aventura das letras, ou seja, propondo a inviabilidade da teoria como
teoria e da crtica como crtica, pelo menos nos termos em que teoria e crtica foram
concebidas at T. S. Eliot e Harold Bloom. O efeito dessa guinada pode ser
detectado e mensurado em uma pletora de seguimentos tericos: o
desconstrucionismo, os cultural studies, a teoria da recepo, as abordagens de
gnero, a antropologia da literatura, a performance, o pragmatismo, o ceticismo, as
teorias oriundas do linguistic turn, as teorias da experincia, a critica gentica e as
abordagens psicanalticas, a intertextualidade, a semiologia, a ciberntica, a teoria
da informao e mais uma lista que poderia se subdividir ao infinito, se nos
ativssemos a topicalizar as modulaes e formas diferenciais que distinguem cada
uma dessas correntes entre si e as nuances de abordagens presentes no interior de
cada uma dessas epistmes.
Os representantes dessas diversas guinadas so conhecidos do pblico culto
e circulam nos debates acadmicos atuais com bastante frequncia. A teoria de
gnero representada por Judith Butler, Beatriz Preciado e teoria queer. Os
seguidores da teoria da diferena ontolgica e da gramtica da escritura, oriunda de
Blanchot, Levinas, Heidegger, Derrida e Paul De Man. O neopositivismo lgico de
Viena , baseados nos contratos provisrios entre linguagem, obra e enunciao, a
partir de Wittgenstein, Davidson e dos desdobramentos da filosofia analtica,
presentes em Steiner. A adeso aos efeitos e ao entendimento da literatura como
performance, a partir das teorias pragmticas de Rorty, Searle, Austin. Os
entusiastas da imanncia do valor do texto, de Barthes a Compagnon. Os analistas
das estruturas de poder subjacentes da microfsica textual, de Foucault e Kristeva,
58

s mutuas implicaes entre texto e sujeito levantadas pela critica gentica e pelos
diversos tericos que atuam na interface literatura-psicanlise. O deslocamento da
centralidade da autor e o foco na mouvance impessoal do significado, bem como a
dimenso constitutiva do receptor na construo desse mesmo significado, como
sugeriram Iser e a teria da recepo. A importncia do leitor-autor na configurao
do valor de cada obra, hiptese defendida por dezenas de escritores-ensastas, de
Calvino a Borges, de Mann a Valry. As contnuas flutuaes da literatura e, acima
de tudo, da definio mesma da literatura como literatura, e suas travessias pelo
campo movedio da antropologia, presente nas intuies brilhantes de Bataille, de
Leiris, de Lvi-Strauss, de Mauss. A interao da literatura com as novas
tecnologias, e a diluio do conceito de literatura nas teorias sistmicas e
combinatrias, que podem assumir tanto a feio dos jogos de linguagem numricos
de Oulipo quanto a relao entre poesia e cincia da computao, em certos
experimentos das vanguardas que se desdobram e prosseguem nos dias de hoje.
Por fim, a dissoluo completa da definio do que venha a ser literatura,
diante de sua inscrio nos domnios da arte conceitual e na chamada crise de
legitimao dos discursos, que desde as obras clssicas de Lyotard tm conduzido a
uma completa e irreversvel morte da literatura em seu sentido substantivo.
Teramos apenas manifestaes verbais, cujos produtos no podem mais ser
alados categoria geral de literatura porque os prprios discursos tericos que
validam a literatura como uma instituio formalmente universal no conseguem
mais produzir as condio de possibilidade de sua autolegitimao. Em outras
palavras, os recursos conceituais que at meados do sculo XX puderam assegurar
a definio formal de literatura, apoiando-se em definies aparentemente estveis e
autoevidentes de conceitos tais como cultura, civilizao, valor e arte, hoje em dia se
encontram bloqueados e esvaziados, pois tornou-se impossvel definir nenhum
desses termos sem recorrer ao horizonte global do capitalismo e do mercado,
horizonte que instaura a razo de ser desses mesmos conceitos que h meio sculo
podiam ser julgados como transparentes, e podiam assim definir de modo
transparente a literatura como literatura. Diante desse cenrio, no apenas noes e
critrios como cnone, tradio, tcnica, objetividade e valor se veem
comprometidas. A prpria definio do que venha a ser literatura e, por conseguinte,
a que obras ditas literrias esses critrios se aplicam, torna-se a cada dia cada vez
mais invivel. Contudo, justamente nessa chave acredito que possamos realizar a
59

passagem a uma reconfigurao do sentido e dos modelos descritivos da literatura,


entendidos no como uma readequao a sentidos antigos, mas a uma nova etapa
terica, que pode servir tanto exegese quanto ao escrutnio crtico, tanto das obras
do presente quanto totalidade das produes da literatura do passado. Refiro-me
ao conceito de heterarquia, entendido como modelo de leitura global dos objetos da
linguagem.
Desde a Antiguidade, o sentido de mimesis corresponde imitao de duas
ordens de realidades: objetos e modelos. H, portanto, na gnese da mimesis, um
escopo duplo, simultaneamente emprico e transcendental. A despeito do amplo
leque de variedades presente no debate em torno da questo da mimesis, pode-se
dizer que a hierarquia valorativa das obras ocorreu sempre como um deslocamento
do objeto em direo ao modelo. Um autor imita aes de um personagem e imita
tambm um modelo, outro autor, que por sua vez, tambm imitou as aes de
personagens congneres. O intuito do autor seria emular o autor-modelo, de modo a
reduzi-lo a objeto emprico, em uma estatura igual ao objeto emprico que lhe serviu
de objeto. A dinmica das aferies de valor da arte giram em torno da maneira
como as obras deixam de ser a sntese de um objeto e de um modelo e passam
condio de objeto-modelo, ou seja, passam a ser obras primas, primeiras, que
repetem um objeto preexistente e imitam uma obra preexistente, mas o fazem como
se no os tivesse tido como objeto e como modelo.
Poderamos gastar um grande tempo aqui refletindo sobre a predominncia
da tchne e do entusiasmo, das preceptivas aristotlicas ou platnicas. Essas duas
matrizes sempre estiveram indissoluvelmente unidas, pois representam na obra feita
e em cada obra feita a maneira pela qual a singularidade do objeto emprico se torna
uma singularidade de objeto imitado, a despeito da imitao. E como a idealidade do
modelo imitado se torna tambm um modelo, a despeito do fato de ter se servido de
outro modelo, ou seja, de no ter criado o Modelo. Os princpios das hierarquias
internas a cada arte partem da premissa de que o outro-real e o outro-modelo so
assimilados ambos na criao de uma nova obra, que por sua vez representa a
sntese entre o emprico e o transcendental. A medida dessa sntese confere maior
ou menor valor a cada obra, estipulado pelas preceptivas poticas e retricas e,
modernamente, pela crtica. Contudo h aqui um problema: por maior que seja a
remisso direta e a emulao de uma obra por outra, dentro das remissas clssicas
da imitatio e da aemulatio, no podemos nunca designar o objeto exato da imitao
60

e tampouco conseguimos designar o modelo da imitao, pois tanto objeto quanto


modelo nunca so apenas um objeto ou uma obra. So sempre mltiplos objetos e
mltiplas obras que se fusionam em uma obra materializada.
Apenas aparentemente esse horizonte se altera na modernidade e a partir
dos ideias romnticos de originalidade. Os artistas continuam desempenhando
tcnicas e procedimentos antigos ligados mimesis, mas o intuito passa a ser
generalizar o a singularidade da representao na mesma medida em que se
pretende ocultar as mediaes internas de outras obras que serviram de mediao a
cada obra. Esse grande golpe produziu de fato novas formas e explodiu mesmo o
conceito de arte e de literatura, como no caso das manifestaes mais
experimentais e especialmente na arte conceitual. Entretanto, esquecemos que a
arte conceitual, ainda que no tenha objeto e sequer que tenha uma obra final,
valorizando o processo, uma atividade mediada por um enorme mediador: o
conceito. Essa perspectiva nos revela que o esquema ternrio do mimetismo antigo
poderoso e eficaz, pois continuamos enredados nas duas grandes matrizes da
concepo de arte como um todo, os dados da empiria e os dados transcendentais.
Essa diviso se torna bastante clara no debate entre desenho e cor, que est
presente nos antigos e que e atualizado e ganha propores maiores a partir dos
tratados de pintura do sculo XIII, encontrando seu pice no debate de Rubens e
Poussin no sculo XVII. Esse debate funda o dualismo forma-ideia e real-
representao que define toda a modernidade. No por acaso, quando no sculo
XVIII comea a ocorrer a falncia dos sistemas potico-retricos e das preceptivas
prescritivas, toda reflexo esttica abandona os aspectos normativos da teoria da
arte e passa a desempenhar o exerccio do juzo e da razo como grande
fundamento de validao do fenmeno artstico, ainda assim essa mesma reflexo
continua a se ancorar nesses imperativos sintticos e analticos.
As obras de Burke, de Kant, de Hume, de Wincklemann, de Warburg, de
Wlfflin, de Cassirer, de Panofsky, de Benjamin, de Adorno e uma longa lista,
continuam a explicar o fenmeno da forma conferindo prioridade ao apriorismo
transcendental ou enfatizando o historicismo, o contexto social, as bases materiais e
outros fatores ligados empiria. Em outras palavras, todos os modernos que
celebraram a morte do Antigo Regime e a morte da metafsica continuam
determinados por dispositivos discursivos que os obriga a solucionar as aporias
entre empiria e apriorismo, entre pensamento e forma, entre ideia e material, entre
61

linguagem e mundo, entre inspirao e studium, entre palavra e coisa. Contudo essa
diviso no exclusivamente moderna. Derrida formulou muito bem essa condio
fundamental de toda arte no uma inveno da modernidade. A diferena
ontolgica no foi descoberta por Heidegger. Encontra-se como um conjunto de
preocupaes nos antigos, nos medievais e nos modernos, tendo sido tematizada
pelos artistas e pelos pensadores, ainda que de modo latente. O mesmo ocorre com
as intuies acerca dos conceitos de diferena e repetio, utilizadas por Deleuze
para superar as aporias internas representao, de modo a libertar a cpia e o
simulacro do cativeiro dos regimes de identidade. A noo de diferena ontolgica,
entendida como differnce, como distino ontolgica pressuposta nas decises
metafsicas de binmios indecidveis, como presena-ausncia, bem como as
noes de diferena pura, evidenciadas por Deleuze, percorrem todo o horizonte da
arte desde as primeiras formulaes da mimesis.
O que quero dizer com isso? Quero dizer que a arte, mesmo em suas
realizaes mais literais, como um autorretrato a partir do sculo XVI, por exemplo,
no qual o pintor se vale de outro pintor como modelo, mas imprime seu prprio rosto,
a partir de pressupostos literais da maniera grecca, e mesmo quando conseguimos,
mediante fontes documentais, resgatar alguns dos aspectos fisionmicos desse
mesmo pintor que se props se pintar a si mesmo, ainda assim o resultado final ser
um amlgama de impresses, tcnicas, nuances, vestgios, resduos, marcas,
signos e flutuaes de outros rostos e de outras obras, e todo esse amlgama
constitutivo do resultado final dessa obra, singular e acabada. Esse aspecto
estrutural da literatura e da arte de modo geral contradiz os modos e os critrios
pelos quais as artes foram definidas, valoradas e hierarquizadas ao longo do tempo,
independente das diversas vertentes e preceptivas de descrio, sejam elas antigas
ou modernas. Uma das matrizes de aferio do valor de uma obra, dentro dos
diversos regimes mimticos, baseou-se nos termos da imitao e da emulao, de
objetos e de modelos. O poeta e o artista seria aquele que consegue da melhor
maneira conceber uma obra nova a partir da imitao e singularizar um objeto
preexistente e natural a partir da representao e dos artifcios. Isso quer dizer que o
continuum de diferenciao pela matria-objeto e de diferenciao pela forma-
modelo sempre esteve presente. O problema fundamental de toda filosofia da forma
consiste no fato de essa filosofia ter sempre se apoiado em uma ciso entre objeto-
modelo, desde a gnese do pensamento. Desde Plato a Derrida, o binmio
62

sensvel-inteligvel afirmado metafisicamente ou ps-metafisicamente colocado em


suspenso e desconstrudo por meio da ontologia da indecidibilidade. Em ambas as
vertentes, encontramo-nos determinados pelo pensamento da superao de
dicotomias que nos so apresentadas como estruturais formais e ontologias
preexistentes a toda realizao e a todo desdobramento do ser enquanto ser.
exatamente nesse ponto que proponho o conceito de heterarquia.
A heterarquia uma teoria da arte e uma filosofia das formas emergentes,
derivada da teoria geral dos mesons. A heterarquia uma concepo de forma e de
obra radicalmente heternoma, e se baseia em uma alteridade ontolgica cujo
postulado central o infinito. A partir da heterarquia qualquer obra apenas pode ser
pensada e concebida a partir da realizao de sua alteridade. Em outras palavras,
toda obra apenas se realiza a si mesma quando realiza outra obra em si. Ampliando
a potencialidade inscrita nessa tese, podemos ampliar ainda mais sua abrangncia:
toda arte apenas se realiza como arte e como literatura medida que realizam a
no-arte e a no-literatura em si. Nesse sentido, seja pensando em termos de ideia-
forma ou na chave de escrita-escritura, estamos obstruindo o acesso ao infinito da
realizao formal, deixando de conceber que as obras no so mais ou menos
abertas, mas que a abertura ao infinito define toda obra como meson e, nesse
sentido, define cada obra como obra, pois devemos entender cada obra como uma
obra aberta, inserida em uma cadeia de mesons que se propaga e se abisma ao
infinito. A noo de obra aberta de Umberto Eco no seria nesse caso apenas
datada, mas seria sim propriamente incorreta, medida que circunscreve o conceito
de abertura sobretudo s obras das vanguardas, sendo que a abertura a
caracterstica primeira e fundamental de todos os sistemas, de todos os seres vivos
e de todos os mesons que permeiam o cosmos conhecido. Na medida mesma em
que esse cosmos a forma finita do infinito, nada mais ilusrio do que conceber a
possibilidade de instituir o finito como finito, ou seja, de produzir um fechamento
sistmico capaz de fundar suas prprias condies de possibilidade e capaz de
retroalimentar suas prprias demandas de consistncia. A odisseia dessa tautologia
produtiva e desse mecanismo antropolgico de fechamento sistmico, mediante o
qual o finito passa a ser concedido como forma e figura do finito, se confunde com o
arco dramtico que narra o nascimento e a morte de duas gmeas siamesas, a
filosofia e a razo, de Scrates a Habermas.
63

Heidegger desenvolveu em toda sua obra sob os signos da diferena


ontolgica radical, sob os espasmos originrios das clareiras do ser e das aberturas
intramundanas [Offenheit]. Derrida parte da fenomenologia de Husserl e da ontologia
heideggeriana para dar forma diferena ontolgica, concebida como processo
diferenciador fundamental da escritura, emergente a partir da descoberta da
anterioridade da escrita em relao fala. Em ambos os casos, temos movimentos
de tradues literais do processo de infinitizao cosmolgico no nvel da ontologia.
Os deslocamentos e os rudos dessas acomodaes tectnicas nesses casos
continuam permeados pela fratura fundamental inscrita na origem do pensamento, e
que consiste na possibilidade de pensar ser e mundo ou linguagem e ser a partir de
relaes simtricas e comensurveis entre si. A incomensurabilidade finito-infinito
traduzida nos termos do desvelamento e da escritura, nos termos da equivocidade
do ser que se delineou desde Plato.
Contudo essa guinada brilhante de Heidegger e Derrida se mantm na
demarcao dos limites da equivocidade ontolgica, delimitados pelo pensamento
grego antigo. O ser sempre uma inscrio diferencial que se recusa a ser
reconduzido a um regime de identidade prvio, concebido como uma cadeia
entitativa resultante da odisseia de desvelar-ocluir da verdade do ser enquanto ser,
ou seja, como diferena ontolgica pura. Contudo, nessas demarcaes,
prosseguimos sob o domnio de uma mesma noo de ser. Quer afirmada ou
refutada, essa noo do ser continua sendo pensada a partir da emancipao de
suas formas diferenciais, nas chaves monovalentes-plurivalentes das relaes
identidade-diferena. Em certo sentido, a superao das antinomias singular-
universal conduzida por Duns Scott a partir do conceito de estidade [haeccitas] e as
ontologias da potncia, desdobradas a partir de Espinosa, Nietzsche e Deleuze,
concebem a ideia de uma pura positividade do ser. Essa pura positividade nos
conduz a considerar a absoluta univocidade de seus modos de atualizao como os
modos de atualizaes unvocas de uma mesma substncia, porque a natureza-
totalidade seria um modo de ser da substncia-totalidade Deus, substncia esta
sempre simultaneamente una e composta, singular e universal. O mesmo ocorre
com Leibniz. A monadologia concebe a pluralidade de mundos a partir da
pluralidade relacional de substncias simples, mas ao mesmo tempo postula o
universo como uma unidade criada, ou seja, finita. Esses magnficos autores esto
dispersos por todos os lados desta teoria dos mesons. Conceberam a pluralidade de
64

mundos e modos de uma substncia una. E conceberam a diferena ontolgica por


meio da qual o mundo se transforma em meta-mundo, alm do qual podemos
acessar a regio originria e indecidvel onde a luz ofuscante das escrituras e das
clareiras do ser emergem. Entretanto todos eles se mantiveram no limiar. No
cruzaram o abismo. No se arriscaram em atravessar a linha que nos lana ao
infinito.
Haveria, desse modo, uma pluralidade de mundos implicadas em todas essas
perspectivas. Mas no haveria uma pluralidade de ontologias. E se no existem
porque o infinito foi o grande conceito interditado na histria do pensamento. Essa
pluralidade de ontologias apenas se torna possvel quando pensamos o ser em sua
interao com o infinito, ou seja, a partir dos mesons. Toda a odisseia do
pensamento se caracteriza pela reduo do infinito ao finito, em um movimento
gigantesco de holografias. A mesologia se prope o caminho oposto: desfiar e
desafiar todos os sistemas e todas as narrativas da totalidade a partir de um
continuum de infinitizao, ou seja, conceber a escrita das partes e os mereogramas
como constantes cosmolgicas que determina a vida e todas as determinaes
ontolgicas dos seres. No se trata obviamente de neutralizar ou minimizar a
odisseia da holologia, do pensamento da totalidade. Justamente por reconhecer sua
potencia transferncia, a teoria dos mesons a entende como um movimento
mesolgico primrio, coextensivo aos desdobramentos mesmo do ser enquanto ser,
e que tendem a reduzir as multiplicidades e a infinitizao para poder aumentar a
potncia e a fora de seus desdobramentos.
H um processo infinitesimal e infinitamente diferenciador ocorrendo no
interior do ser, mas no se cogita a possibilidade dessa incomensurabilidade finito-
infinito explodir o cosmos uno do ser e o transformar no mais em variaes
diferenciais, mas em ontologias diferencias, ontologias estas igualmente
incomensurveis entre si, porque todas submetidas ao efeito devastador e espiritual
do infinito, por todos os lados e em todos os tempos. Se adotarmos o infinito como
padro, todas as ontologias monovalentes e todo as doutrinas da equivocidade do
ser naufragam, pois em algum momento essas doutrinas postulam ou postularam a
inscrio do ser diferencial a partir de uma mesma ontologia e de um mesmo ser,
quando na verdade o que se faz urgente pensar no mais a pluralidade de
inscries diferenciais da cadeia do ser, mas ontologias plurais que no pode
produzir a distino entre ontologias regionais e locais, ou seja, no apenas os
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seres, mas as ontologias se relacionam de modo mesologicamente heterrquico e


incomensurvel. Trata-se de pensar a pluralidade de ontologias que legislam sobre
diversos conceitos de ser que se diferenciam entre si e, que por sua vez,
simultaneamente tambm pluralizam os mundos que existem e vivem sob a sua
regncia ontolgica. Diante dessas pluriontologias, adentramos a guerra dos
mundos.

Guerra dos Mundos

Um divertido episdio redefine a fronteira metaficcional da literatura a partir de


sua transferncia a novos meios tcnicos e por meio de uma reconfigurao
mesolgica: a transmisso radiofnica promovida por Orson Welles em 1938 a partir
da obra A Guerra dos Mundos de H. G. Wells. Mais especificamente, diz respeito a
suas consequncias: o pnico coletivo da populao que imaginou que a Terra
estivesse de fato e naquele instante sendo invadida por marcianos. No deixa de ser
surpreendente lembrar que um fato como esse ocorra em plena dcada de 1930.
Em plena entre-guerras e na iminncia da diviso do planeta nos blocos socialismo
e comunismo, a crena em marcianos parece que ainda gozava de bastante
prestgio. Entretanto essa fora deriva muito mais de um deslocamentos dos meios
do que da narrativa da invaso marciana propriamente dita. As narrativas
interestelares no so patrimnio da sci-fie. So comuns na literatura, muito mais do
que se imagina. No limite, retroagem ao xamanismo e s primeiras tcnicas arcaicas
do xtase das primeiras populaes de homindeos. Esto presentes na magnfica
descrio do pleroma celeste feita por Plato no Fdon, nas cosmologias gnsticas,
nas peripcias de Luciano de Samosata em sua viagem lua e na Viagem Lua de
Cyrano de Bergerac. Esto na ascenso celeste de Maom [mrj], na Alquimia da
felicidade perfeita de bn rab, na Commedia de Dante e no Pilgrim's Progress de
Bunyan. Esto na pluralidade dos mundos de Fontenelle, no Micrmegas de Voltaire
e na fico cientfica dos sculos XIX e XX. Esto nas Viagens de Gulliver e na obra-
prima dos irmos Mlis e no Interestelar de Nolan.
Qual seria a singularidade do experimento de Wells? Em outras palavras, por
que no comeo do sculo XX essa narrativa de contato com seres de outros mundos
gera esse efeito? Na transmisso de Wells, o meio ficcional, deslocado para o meio
radiofnico, promoveu a diluio das fronteiras entre literatura e mundo e entre real
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e fico. Podemos dizer que a partir do efeito-Welles, a relao de


extraterritorialidade radical dos extraterrestes convertida em uma proximidade
iminente e real. Terrestre e extraterrestre finalmente se tocam em um movimento
agora diferente: no so mais os humanos que viajam para colonizar ou contemplar
os campos celestes extraterritoriais ou os campos transmundanos dos mortos, dos
deuses e do ter, mas os extraterrestres que passam a acossar o planeta azul.
No se trata mais de uma relao ns-eles por meio da qual os agentes da viagem
colonizam ou usufruem do contato com o Outro de modo assimtrico. A simetria
entre terrestres e extraterrestres alcanada graas metafico, ou seja, graas
dissoluo da fronteira representacional que separa literatura e mundo. Quando isso
ocorre, estamos diante da manifestao de um dos fundamentos da mesologia: a
apreenso do meio como meio.
Em um sentido paradoxal, a humanidade apenas pode se unificar como
humanidade e a Terra como Terra quando a vida passa a criar mecanismos
biotcnicos capazes de produzir um olhar da Terra e da humanidade a partir de fora.
Quando a vida extraterrestre comea a ser cada vez mais tornada imanente por
meio da cincia. No estamos mais diante de um deslocamento da centralidade da
Terra em relao ao universo. Estamos diante de um deslocamento da centralidade
da vida em relao a si mesma. Em outras palavras, quando a Terra e vida so
apreendidas como mesons de uma cadeia relacional infinita de outros mundos e de
outras formas de vida. E isso demonstra um novo imperativo da mesologia: a vida
existe e apenas existe como excentricidade radical. Isso quer dizer que nunca
podemos fala de mundo em termos globais e que toda unidade uma diferenciao
relacional no seio do infinito. Os mundos so sempre mundi, parcialmente
comensurveis entre, mas ontologicamente incomensurveis em relao ao infinito.
So meios vivos semiabertos, meios-mediadores e meios-mundos circundantes
[Umwelten], horizontes de emergncia que se propagam horizontalmente ao infinito.
So os mundos globais dos hologramas que se erigem a partir de deslocamentos, e
que encontram seu limite quando a vida mesma se coloca como a realizao
heterrquica e descentralizada, ou seja, como a vida se realiza naquilo que a define
como vida: como excentricidade. So tambm os infinitos micromundos disputados
em guerrilhas cotidianas infinitas.
Essas guerrilhas so neutralizadas a partir da naturalidade e da assimetria.
Isso ocorre por exemplo em um dos projetos hologrficos mais poderosos e
67

eficientes da modernidade: a construo do conceito de Ocidente. As definies de


Ocidente so to verdadeiras quanto qualquer definio geral sobre qualquer dado
geral da linguagem, sejam unicrnios, o planeta Terra ou o ser humano. O problema
nuclear que se encontra no conceito de Ocidente diz respeito a outro aspecto, esse
sim mais tcnico e especfico: o conceito de Ocidente necessariamente traz
embutido em si a sua alteridade. No instante mesmo de sua enunciao, o termo
Ocidente nos leva necessariamente a pensarmos em um Oriente, ou seja, darmos
nome ao Outro do Ocidente que acabamos de instaurar discursivamente. Essa no
uma fatalidade cultural ou meramente lingustica. Esse estatuto do conceito de
Ocidente se define assim pois, em certa medida, Ocidente no se constitui como
uma relao pars pro toto, partes pelo todo, mas como uma das metades de uma
totalidade. Por isso que, ao dizermos esquerda, seja do ponto de vista ideolgico ou
das simples coordenadas espaciais, automaticamente pensamos em seu correlato
oposto, a direita. O lado de cima inclui dialeticamente o sentido de baixo, e, como
no deveria deixar de ser, automaticamente, subir no existe sem o seu oposto
complementar. Algo muito distinto se passa quando eu defino generalidades de
outro tipo. Por exemplo, quando digo Brasil, no estou dizendo o Brasil, para se
definir como Brasil, precisa se opor ao resto do mundo. Tampouco ao enunciar a
palavra Brasil estou alocando de modo homogneo todos os no-brasileiros em uma
mesma massa indiferenciada, como se essa mesma massa fosse o Outro do Brasil.
O mesmo ocorreria se eu dissesse Nepal, Alemanha, Canad, Etipia, China ou
Quirguisto. Ao enunciar cada um desses pases, defino determinados limites,
contornos e fronteiras, por meio da afirmao de uma topologia que produz imagens
em minha mente e me conduz a associaes sobre quais minhas expectativas sobre
elementos definidores da singularidade de cada um desses pases. Essa topologia
me leva a imaginar a existncia de nepaleses, alemes, canadenses, etopes,
chineses e quirguistaneses, e no a pensar que cada um desses povos precisa se
opor aos demais povos do mundo para serem o que so.
Essa peculiaridade das relaes e reaes semnticas geradas pelo conceito
de Ocidente se deve assimetria fundamental ns-eles, descrita por Bruno Latour.
Isso quer dizer: sempre que enuncio a existncia de um Ocidente, sejam quais
forem meus critrios de estabilizao desse conceito, necessariamente constituo
indivduos, populaes, povos e pases que levam o epteto de ocidentais. E a partir
de ento, surgem o Outro do Ocidente e os outros dos ocidentais que sero, desse
68

modo, a outra metade do mundo. As verses so muitas, para todos os gostos: do


exotismo dos primitivos excentricidade dos orientais, do irracionalismo dos
antimodernos aos arcasmo dos povos da natureza, da rusticidade tribal aos sonhos
hedonistas de consumo de uma natureza em estado puro, das pitorescas paisagens
das arbias s selvagens savanas africanas. Outro motivo entretanto determina
essa especificidade relacional produzida pelo conceito de Ocidente. Acredito que ele
seja um complemento aos conceitos de simetria e assimetria de Latour. So os
hologramas e os mereogramas, a escrita do todo e a escrita das partes. Todos os
conceitos que trazem implcitos uma dualidade fundamental, como o termo
Ocidente, constituem um modo especfico das relaes parte-todo, na qual as partes
assumem duas totalidades suposta e aparentemente equipolentes, ou seja, uma
relao hologrfica todo-todo.
Contudo, como o Ocidente depende de uma definio de seu Outro para
existir, ou seja, depende da constituio de um vasto continente chamado Oriente,
entendido como tudo aquilo que no ocidental, nessa assimetria consiste o grande
trunfo da guerra hologrfica: unificar a heterogeneidade dos amigos
automaticamente unifica a heterogeneidade dos inimigos, conferindo-lhes uma
fisionomia que, por mais monstruosa que seja, una. Ao reunir as infinitas partes
hetergenas, diversificadas e contraditrias sob o nome de Ocidente, constitui-se
automaticamente, para o fortalecimento do Ocidente, um inimigo comum, por mais
heterogneas, diversificadas e contraditrias que sejam as faces singulares desse
grande Outro que surge no horizonte como inimigo. Por isso, a simetria hologrfica,
baseada nas relaes todo-todo, o lugar por excelncia da emergncia do
monstruoso. O processo global da modernidade e da ocidentalizao do mundo
consiste em uma guerrilha discursiva e ontolgica baseada em hologramas de
simetria. Obviamente as relaes entre essas duas totalidades so ontologicamente
assimtricas, pois consistem na transferncia de partes heterogneas condio de
dois todos lisos homogneos que passam a ser entendidos como duas metades
totais do mundo.

Projeto Mesons

Este trabalho especificamente aborda o ser, ou seja, descreve a ontologia dos


mesons. Ele o primeiro volume de outros volumes ulteriores que se ocuparo de
69

outras faces da mesologia, como cosmos, vida, forma, natureza, antropos, tempo e
espao. Elegi-o como primeiro, pois a ontologia e a cosmologia so as pedras
angulares dos mesons, e como no seria possvel abordar ambas em um mesmo
trabalho, concentrei-me na descrio da ontologia dos mesons como fundamentao
terica primeira, de onde se irradiam as demais linhas e horizontes dessa teoria. Da
mesma maneira que este trabalho descreve a ontologia dos mesons, os volumes
seguintes pretendero por sua vez fundamentar e narrar a mesologia do ponto de
vista de suas respectivas cosmologia, biologia, morfologia, fisiologia, antropologia,
cronologia e topologia, em uma distribuio semelhante adotada em projetos como
as sries Hermes de Michel Serres, Homo Sacer de Giorgio Agamben e
Cosmopolticas de Isabelle Stengers. Em alguns dos captulos deste trabalho,
ensaio uma sntese desses elementos que sero posteriormente tratados, como por
exemplo no captulo dedicado conexo entre mesons e antropologia. A ideia
contudo que todas essas instncias se conectem e se cruzem em rede ao longo
dos volumes, sendo a diviso em volumes e em faces mais de ordem de nfase do
que devida a uma subdiviso de natureza. No caso da passagem dos modelos
dinmicos aos termodinmicos e dos sistemas lineares em equilbrio aos sistemas
no-lineares fora do equilbrio, apoiei-me expressivamente na obra clssica de
Isabelle Stengers e Ilya Prigogine, A nova aliana: metamorfose da cincia. A
esferologia de Sloterdijk atravessa todas estas pginas, como uma constante fonte
de inspirao, mas nunca servilmente referendada. Tomo-a sempre em contraponto
com outras teorias e a servio da constituio terica imanente e autnoma dos
mesons. A recorrncia pea A Tempestade de Shakespeare funciona como um
leitmotiv para a trama dos argumentos, pois nada melhor do que ver emergir em
uma das maiores obras de arte jamais escritas os conceitos, ideias e os agentes que
constituem a espinha dorsal e compem as principais linhas de tenso da
modernidade.
Nesse sentido, a teoria dos mesons uma ontologia dos meios, pensada em
nvel cosmolgico, ou seja, concebe o universo como uma estrutura aberta e
relacional, emergente de um horizonte infinito de eventos. Tive a intuio forte dos
mesons quando, ao ler Leibniz, ocorreu-me a seguinte questo: e se as formas
substanciais simples que se relacionam no fossem as mnadas, mas a substncia
mesma da relao? Essa ideia me transtornou durante algum tempo, e logo em
seguida foi ganhando forma e se expandindo cada vez mais. Assumi ento o termo
70

meson, entendido como forma pura da relao. O resultado este trabalho que ora
apresento. Comeo pela anlise de A Tempestade de Shakespeare, uma obra na
qual se encontram de modo translcido as principais intuies da mesologia.
Poderia inserir centenas de imagens em dilogo com a mesologia. Escolhi
entretanto me fixar em duas sries: imagens cientficas do universo e pinturas de
Victor Turner.
E o fiz porque, mesmo no se referindo direta e ilustrativamente obra de
Shakespeare e mesmo sem ter uma inspirao literalmente cientfica, e poderamos
pensar que talvez justamente por isso, a obra de Turner uma das melhores
captaes mesolgicas da tempestade, entendida como um conjunto cosmolgico
de meios-mundos, atmosferas, ecologias e ambientes circundantes, bem como um
festim explosivo de meios-mediadores, da cor e da luz. E isso porque a tempestade
para Turner no um tema ou motivo, um procedimento pragmtico e explicitativo
que se estende ao conjunto global do olhar, e, dessa maneira, adquire o valor de
ontologia e de cosmologia. Tanto em Turner quanto em Shakespeare esto as
bases para a compreenso de um animismo integral, um dos postulados da
mesologia. Como a obra de Shakespeare, acredito que tambm a obra de Turner
represente uma profunda alterao mesolgica na arte, medida que representa
uma dos melhores atestados da apreenso do meio como meio, ou seja, a captao
do universo, por meio da forma, como uma estrutura relacional, aberta e infinita. E
isso bem antes das imagens do universo e da Via-Lctea terem se tornado mesons
transparentes, a partir da conquista das sondas espaciais e das tecnologias de
observao externa das galxias e do espao sideral.
Parte do Captulo I foi escrito em uma dessas tempestades mentais, e depois
retrabalhado e desenvolvido, para fornecer um panorama geral da teoria geral dos
mesons, bem como as suas bases conceituais, ou seja, sua ontologia. Em seguida,
para desenhar a dimenso mais ampla da teoria dos mesons, concentro-me em
descrever no Captulo II a possibilidade de constituio de uma antropologia a partir
de seus postulados. As aporias, controvrsias e hesitaes conceituais presentes
nesse debate envolvendo uma ontologia relacional so trabalhados no Captulo III,
onde dialogo com uma bibliografia bastante atual em diversas reas do
conhecimento que tm se apoiado nas bases de uma ontologia relacional, tais como
teologia, sociologia, cosmologia, filosofia, fsica, arqueologia, arte. Circunscrevo o
debate em torno da filosofia, e das controvrsias existentes em torno das possveis
71

definies de ontologia e de relacionalidade. E o Captulo IV dedicado a propor


uma contribuio dos mesons para a formulao de uma teoria da modernidade. Em
seguida, descrevo a teoria das esferas de Sloterdijk no Captulo VI, como uma forma
de delimitar essas semelhanas e distines entre esferas e mesons. Por fim,
retorno a Shakespeare no Captulo VII e procuro, a partir das imagens de A
Tempestade, agenciar os principais elementos desenvolvidos ao longo deste
trabalho em torno dos mesons, das ontologias relacionais, da ontologia dos meios e
dos modos, bem como compreender os desdobramentos formais que essa pea do
bardo ingls sugere para concebermos uma teoria global dos meios e estabilizarmos
os mesons em sua ontologia e em sua cosmologia.
Os mesons so meios. Do ponto de vista fsico, so as partculas que
promovem a relao entre as demais partculas, e por isso os mesons no tm
massa. A ideia da mesologia me tomou violentamente durante uma leitura de
Leibniz. A questo que se colocou para mim foi a seguinte: e se a unidade mais
simples das formas substanciais que se relacionam no for uma substncia simples,
mas for a prpria relao? Esse foi para mim o salto da mnada ao meson, da
relao entre substncias simples simplicidade substancial da relao. Desde
ento essa ideia tem me obcecado. H entretanto fatores pessoais e biogrficos
bastante remotos na gnese dessa teoria dos mesons. Os primeiros livros que li na
vida foram enciclopdias que tnhamos em casa. Uma de cincia e astronomia e
outra, de povos e culturas de todo mundo. Uma das imagens mais marcantes da
minha infncia foram as horas e horas que eu ficava deitado no cho folheando
esses livros. A imagem da diversidade dos povos, da multiplicidade das paisagens
culturais do mundo, aliada imagem da unidade da Terra, o planeta azul visto do
espao. Antropologia e cosmologia. Hoje em dia, olhando retrospectivamente,
acredito que essas duas imagens e esses dois olhares para a vida foram para mim
imagens e olhares inaugurais. Foram matrizes que definiram e continuam definindo
o que sou e o que me tornei e o que pretendo continuar buscando. Meu primeiro
sonho foi ser astrnomo e desenhista: a unio de espao e forma, cosmos e
desenho. Ento, na adolescncia, a descoberta da literatura e da filosofia me
devastou. E fui totalmente abduzido por ambas. Em um momento da vida esse
interesse por cosmologia e antropologia comeou a voltar com toda fora. E agora
ambas tm se tornado objetos centrais para mim. Na verdade, como mencionei em
uma questo anterior, no vejo fronteiras entre literatura, filosofia, cosmologia,
72

antropologia. So faces de um mesmo olhar sobre os fenmenos e os seres que nos


cercam. A unidade do olhar mais importante que a variedade dos temas. Isso em
qualquer atividade humana.
A teoria dos mesons que tenho desenvolvido se insere no mago desse
debate. Acredito que essa teoria seja a soluo global que encontrei para abordar
esse olhar que me obseda h tanto tempo. E por isso a teoria dos mesons, tambm
chamada de mesologia, uma ontologia, uma cosmologia e uma antropologia
baseada em um conceito nuclear: o infinito. Os mesons so as formas puras
relacionais que configuram o que chamamos de universo, e o universo a forma
finita do infinito. Nesse sentido, toda a vida e todo cosmos, entendidos como
unidades parciais, consistem em um continuum relacional de infinitizao do finito.
Os mesons so simultaneamente meios-mundos e meios-mediadores nos liames
dos quais se realiza a articulao finito-infinito e nos quais se cumpre o imperativo
infinitesimal. Todo movimento do universo e todo devir biotrpico consiste em criar
mecanismos de transferncia que consigam transformar meios-mundos finitos
situados em meios-mediadores globais, inseridos em uma cadeia de mediaes
infinita. Esse tecido contnuo, coextensivo e coevolutivo, formado pela conexo de
mundos-mediadores, para mim a matriz mesolgica que define a emergncia da
vida e constitui o horizonte total de todas as tecnologias da imortalidade.
Poderamos chamar essas tecnologias como a totalidade das culturas ou das
civilizaes. Mas medida que essas tecnologias da imortalidade so transumanas,
dizem respeito totalidade dos processos mesolgicos da vida e no se restringem
apenas s inscries relativas esferas de atuao do sapiens, preciso criar
novos conceitos que transcendam a ciso natureza-cultura. Por isso, talvez o termo
tecnologia seja melhor do que cultura, entendida tecnologia no em oposio a
physis, mas como a operao que submete o finito ao infinito e como o constante
devir e reversibilidade entre natura naturans e natura naturata. Por outro lado, como
o universo no um sistema, mas sim um meio infinitamente aberto, onde todos os
meios se realizam como meios de outros meios, tenho lidado com algumas
concepes da astrobiologia e das teorias evo devo [Evolutionary Developmental
Biology], segundo as quais no h distino entre orgnico e inorgnico, havendo
pelo contrrio a predominncia do orgnico em todo universo. A partir desses
cenrios cosmolgicos, podemos expandir os modelos da embriognese,
73

entendendo-os como modelos padres da cosmognese e da ontognese do


universo.
Nesse sentido a teoria dos mesons tambm uma teoria que postula uma
refundao do animismo, que passa a ser nomeado e concebido como um animismo
integral. Tudo vivo. E, se tudo vivo e se tudo se encontra em constante devir,
tudo o que existe, assim como os organismos, apenas existe como um infinito
processo de diferenciao. O imperativo do infinito sobre o finito produz meios-
mediadores capazes de transpor a finitude dos meios-mundos circundantes.
Contudo, paradoxalmente, como tudo vivo, essa transferncia nunca total,
porque logicamente nada pode se totalizar. Nunca dois eventos se repetem no
universo. Desse modo, o desdobramento da potncia global em direo
imortalidade determina toda a vida enquanto vida, incluindo-se o sapiens, que segue
os mesmos processos gerais da vida como um todo. Mas nesse cenrio, um
acontecimento como a ressurreio, por exemplo, torna-se igualmente invivel, pois
a infinitizao do universo produz apenas diferenas e singularidades que nunca
podem ser reassimiladas ao interior de uma unidade, seja essa unidade passada,
presente ou futura, pois o infinito no passvel de unificao. A ressurreio
apenas seria possvel se compreendssemos, nesse contexto, estruturas de
multiversos simultneos, cujas passagens de um a outro se desse por meio dos
chamados pontos de singularidade, espcies de cordes umbilicais csmicos que
uniriam dois universos, universos-mes e universos-fetos, por exemplo. Desse
modo, tudo o que se dissolve em uma unidade espaciotemporal, de certa maneira
renasceria em outra unidade espaciotemporal, ou seja, em outro universo, dado que
o que chamamos de universo no seria uno, mas muitos. Todos os universos seriam
assim os diversos modos pelos quais o infinito se limita a si mesmo. Nesse caso,
haveria pluriversos e multiversos, bem como milhes de ontologias locais que por
sua vez no podem ser assimiladas a uma ontologia global, pois, mais uma vez, o
infinito no pode ser unificado. Tenho pensado tambm nessa hiptese dos
pluriversos para os aspectos cosmolgicos da teoria dos mesons, mas ainda no
consegui desenvolver esse problema o suficiente para poder fornecer uma resposta.
Este trabalho resultado e o amlgama de todas questes existenciais e
conceituais que vm me perseguindo h tanto tempo que no consigo sequer
precisar quando ele me tomou pela primeira vez. Sinto que em grande medida, por
mais heterogneas e mesmo discrepantes que sejam as leituras, estudos, reflexes,
74

obras, autores, tendncias, teorias, hipteses, pressupostos e abordagens que me


acompanharam ao longo da vida at agora, tudo parece convergir para esse ncleo
problemtico que batizei de mesons. Os autores e obras que pretendo tramar neste
projeto constituem os grande sistemas da ontologia diferencial, relacional e
pluralistas [Scotus Erigena, Bruno, De Cusa, Ficino, Schelling, Espinosa, Malfatti
von Montereggio, Bhme, Paracelso, Nietzsche, Ferreira da Silva, Heidegger,
Deleuze, Whitehead], as cosmologias da complexidade [Lucrcio, Fontenelle,
Leibniz], as biologias da complexidade [Luhmann, Driesch, Plessner, Henri Atlan,
Haeckel, Bateson, Tarde, Maturana, Jonas, Uexkll], as teorias de redes, meios,
tecnologias e agentes [Marx, Flusser, Latour, Lvy, Simondon], as teorias do
processo, do caos e da complexidade [Stengers e Prigogine], a teoria das formas
[Didi-Huberman, Warburg, Groys, Sloterdijk], os sistemas complexos [Poincar,
Dirac, Gdel, Bachelard] e as teorias do infinito [Koyr, Novello]. Ainda h centenas
de autores e obras aos quais preciso me dedicar para desenvolver os volumes
seguintes, e outras tantas centenas de autores e obras lidas cujos fios de Ariadne
precisarei retomar para levar a termo esse projeto em toda a significao que
pretendo lhe conferir.
Neste trabalho especificamente gostaria de ter explorado mais algumas
passagens e obras essenciais de Whitehead e Deleuze. Gostaria de ter extrado
mais dados de alguns clssicos da filosofia da cincia, como a obra-prima Do mundo
fechado ao universo infinito, de Alexandre Koyr. Gostaria de ter retomado mais as
fontes primrias antigas, medievais e modernas sobre ontologia e cosmologia,
Lucrcio e Aristteles, Plato e o Corpus Hermeticum, os tratados alqumicos e a
filosofia rabe, Leibniz, Clarke e Maupertius. Gostaria de ter promovido mais
conexes entre antropologia, cosmologia e ontologia, sobretudo a partir das
cosmologias e ontologias indgenas e dos povos no-ocidentais. Gostaria de ter
conseguido explorar mais o tema do infinito do ponto de vista da filosofia e da
cosmologia, seguindo notadamente pari passu o excepcional estudo de A. W.
Moore, The infinite. Gostaria de ter aprofundado e expandido os exemplos das artes
e da literatura, em profundas e surpreendentes conexes com os domnios da
cincia e da filosofia. Gostaria de ter ampliado o dilogo com as narrativas
religiosas, essenciais para compreendermos alguns dos fenmenos transferenciais e
anmicos dos mesons. Gostaria de ter explorado enfim uma srie de aspectos.
Espero conseguir explorar esses aspectos a contento nos desdobramentos deste
75

trabalho e nos volumes futuros que vo configurar a continuidade deste projeto


Mesons. A grande dificuldade no o estudo, nem a escrita, nem a inspirao. A
grande dificuldade consiste na essncia mesma de nossa existncia flutuante e
anfbia. Consiste no fato de sermos seres vivos finitos destinados a nascer e a
morrer no seio de uma vida infinita que nos atravessa e, desse modo, nos impele a
viver infinitamente, a cada vez e para sempre, em cada centelha parcial e finita de
uma vida que nunca teve e por isso nunca ter fim.
76

1 MESONS E MEIOS

No momento de procurar compreender a dramatizao, o movimento


terrvel que sofre aquele de quem uma ideia faz sua presa, em quem uma
ideia se encarna, preciso pensar na larva, capaz de sofrer movimentos
terrveis, marcas, deslizamentos, rotaes, contrariamente ao organismo
constitudo, empenhado em uma atividade estvel; preciso pensar
nesses processos que procuram descrever as cincias da natureza. A
dramatizao faz-se na cabea do sonhador, mas tambm sob o olho
crtico do sbio. A dramatizao psicolgica encontra seus ecos nos
processos geolgicos, geogrficos, biolgicos e ecolgicos, que criam os
espaos, modelam e confundem paisagens, a determinando migraes,
competies e amplificaes mtuas entre processos de crescimento,
proliferaes, lentas eroses e desintegraes brutais.
Isabelle Stengers e Ilya Prigogine

Ora, quer examinemos uma clula ou uma cidade, a mesma constatao


se impe: no somente esses sistemas so abertos, como vivem de sua
abertura, alimentam-se do fluxo de matria e de energia que lhes vm do
mundo exterior. Est excludo que uma cidade, ou uma clula viva, evolua
para uma compensao mtua, um equilbrio, entre os fluxos que entram e
saem. Se assim o decidirmos, podemos isolar um cristal; mas a cidade e a
clula separadas do seu meio, morrem rapidamente, pois so parte
integrante do mundo que as nutre, constituem uma espcie de encarnao,
local e singular, dos fluxos que elas no cessam de transformar.
Isabelle Stengers e Ilya Prigogine
77

1.1 A Tempestade

A imagem de Prspero em sua ilha, manipulando as mars, produzindo


tempestades e jogando livremente com os elementais da natureza, com certeza
uma das imagens mais fortes de toda a literatura. E se o , certamente o por
causa das diversas interpretaes polticas que a obra-prima de Shakespeare
transmite, em meio a suas tantas camadas de sentido. O deslocamento entre
periferia e centro, a irradiao de um perspectivismo poltico que torna ambguos os
agentes e pacientes de poder, e, alm disso, a figura mesma de um poder que joga
com o globo terrestre e cria recursos artificiais capazes de mobilizar a totalidade da
natureza, em muitos sentidos poderiam nos levar a pensar que Shakespeare estaria
intuindo a cosmopoltica de Isabelle Stengers7 ou a dinmica do sistema-mundo de
Immanuel Wallerstein8. Prspero perdera o ducado de Milo, mas ainda assim
capaz de alterar o curso dos oceanos e produzir tempestades que reconduzem seus
inimigos a suas mos, como se fossem marionetes. Submete a matria informe,
representada por Calib, bem como manipula o ter e as formas livres da atmosfera,
tramando o cosmos sob seus dedos, por meio das virtudes de Ariel. Por outro lado,
tambm poderamos atribuir o fascnio dessa obra sua natureza radicalmente
metaficcional. Prspero transforma a totalidade do mundo em um palco para sua
encenao, e torna-se assim o autor de uma narrativa cujos personagens so
personagens feitos de pura fico como ele mesmo. Todos eles e todos ns, feitos
da mesma matria de que so feitos os sonhos. O efeito de mise en abyme se
acentua ao pensarmos que o mundo intraficcional regido por Prspero um espelho
do mundo extraficcional regido por Shakespeare? Entretanto talvez o ponto nuclear
seja ainda mais sutil e mais vertiginoso.
Prspero fora trado politicamente e isolado em uma ilha por meio de um
naufrgio premeditado por seus inimigos, justamente para no exercer mais seu

7
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991. A Nova Aliana:
Metamorfose da cincia. Braslia: Universidade de Braslia, 1991.
8
WALLERSTEIN, Immanuel. The Modern World-System. Three Volums. New York: Academic Press,
1974.
78

poder e deixar seus inimigos usufrurem do poder. O meio-Milo, onde


desempenhava e mantinha seus recursos e onde desenvolveu sua arte e sua
sabedoria, fora obstrudo para Prspero. O meio-ilha emerge como uma fatalidade e
uma limitao. Ele perdera a chave de acesso reputao que gozara antes. Mais
do que isso: perdera a possibilidade de reconhecimento necessrio ao exerccio
dessa reputao. Passa a exercer um novo papel na ilha: mediador humano entre o
supra-humano Ariel e o infra-humano Calib. Em certo sentido, a limitao produzida
pelo isolamento dialeticamente proporciona novas potencialidades para o
desempenho de sua arte. E nesse ponto reside o paradoxo do poder de Prspero: a
fatalidade do isolamento da civilizao faz com que sua arte, desenvolvida na
civilizao, se potencialize ainda mais do que poderia se potencializar dentro do
meio da civilizao. Inadvertidamente poderamos recorrer aqui passagem entre
natureza e cultura ou em um regresso da cultura natureza, a partir de Lvi-Strauss
ou mesmo a partir das dinmicas antropolgicas que retroagem ao mitologema
Gilgamesh-Enkidu, dualidade primordial da literatura, cujo espelhamento seria
Prspero-Calib. Contudo nesse caso, vemos justamente o oposto. Em primeiro
lugar, a natureza no potencializa os impulsos naturais de Prspero. Pelo contrrio,
potencializa a arte que aprendera de modo extremamente codificado em seu Livro.
Em segundo lugar, a potencializao dessa arte suspende inclusive a globalidade do
que definimos como natureza, pois por meio de sua arte Prspero consegue
transformar a natureza em uma obra de arte e em um conjunto de artifcios nascidos
de sua deliberao, bem como reduzir as foras naturais s foras humanas de seu
engenho. Torna-se o deus ex machina da natureza e dessa maneira transforma a
natureza em uma fico e em um conjunto de artifcios produzidos pelos teor mgico
de suas prprias mos. Ao mesmo tempo, transforma-se em Shakespeare.
Prspero-Shakespeare o autor de uma representao cnica que deve ser
entendida como iluso e ao mesmo tempo o deus que manipula este grande teatro
do mundo a que chamamos de natureza.
A obra de Shakespeare se situa de fato em uma regio de emergncia onde
as dualidade natureza-cultura posta em suspenso. Essa suspenso talvez tenha
mais a nos ensinar do que todos os discursos produzidos at os dias de hoje sobre a
natureza ou sobre a cultura, purificados e isolados pelos modernos para depois
79

serem melhor mesclados, sem tabus e sem interdies9. Estamos sem dvida diante
de uma obra que embaralha dois conceitos centrais da histria do pensamento,
inclusive do pensamento anterior filosofia. Contudo preciso lembrar que apenas
modernamente esses dois conceitos passaram ser definidos como natureza e
cultura. Uma compreenso mais abrangente da natureza e da cultura humanas
poderia reposicionar essas duas matrizes, alocando-as a partir de outros dois
conceitos mais amplos: natureza e tcnica. A reversibilidade absoluta entre physis e
tekhn, entre natura naturans e natura naturata, entre microcosmo e macrocosmo
um dos pontos nucleares dessa narrativa. Contudo qualquer apelo a Espinosa, a
Nicolau de Cusa ou a Mulla Sadr pode ser um valioso exerccio de erudio, mas
no nos esclareceria a questo fundamental que subjaz a essa reversibilidade. A
fora dessa obra e a magia que exerce em leitores e espectadores ainda hoje de
fato tm elementos comuns com Cervantes, Caldern e tantas outras obras e
autores do sculo XVI e XVII. Poderamos compreender esse fenmenos
metaficcional como a crise da representao e a passagem a uma epistme a partir
da qual a representao passa a se representar a si mesma, como sugeriu
Foucault10. Mas essa diretiva epistmica tambm se refere a uma viso mais
historiogrfica do que antropolgica, e no pode nesse sentido nos auxiliar na busca
das grandes invariveis que esto em jogo a partir desses elementos fundamentais.
Justamente porque nessa aurora da modernidade um longo processo antropolgico
comea a emergir e correntes adormecidas do ser comeam a surgir luz do dia.
Esse deslocamento antropolgico se baseia em uma descoberta, descoberta essa
especialmente explcita nesta obra de Shakespeare. Essa descoberta no consiste
em conceber a essncia da arte como arte, a representao como representao ou
a fico como fico. Trata-se da descoberta de uma constante antropolgica que
por sua vez derivada de uma constante cosmolgica: a potncia do meio como
meio.

1.2 Mesons e Meios

9
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simtrica. Traduo Carlos Irineu
da Costa. So Paulo: 34 Letras, 1994.
10
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas: uma Arqueologia das Cincias Humanas. So Paulo,
Martins Fontes, 1995.
80

Mas o que um meio? Por um acaso ou uma oportunidade, a palavra meio


em portugus tem quatro sentidos. Designa um ambiente, uma atmosfera, uma
ecologia ou uma dimenso espaciotemporal ftica e circundante. Tambm se refere
a uma maneira ou modo pelo qual algo pode se realizar: uma comunicao por meio
de cartas ou por meio do telefone. Uma terceira acepo: o meio o intervalo entre
dois seres ou dois termos, sejam eles quais forem, e esses dois ou mais seres ou
termos em relao. Por fim, no se trata de pensar na realizao da comunicao
por meio de elemento qualquer. Trata-se de emancipar esse meio, conferindo-lhe
autonomia e transformando-o em um objeto independente dos atores reais e das
ecologias que produziram esse objeto, ou seja, converter esse objeto-meio em um
instrumento e em uma tcnica. Contudo um intrigante paralelismo semntico se
estabelece entre o conceito meio, entendido nessas acepes, e o conceito de
forma. A forma uma conjunto de relaes espaciotemporais, com nveis distintos
de organizao e de autoorganizao em relao a outros conjuntos relacionais que
criam outras formas contguas. medida que um conjunto de relaes, a forma
tambm tem uma dimenso espaciotemporal situacional, entendida como um
envoltrio significante. Essa acepo, a ontologia sempre foi muito sutil em suas
demarcaes conceituais: forma tudo aquilo que determina uma matria e,
conforme a dinmica interna estabelecida entre matria e forma, configura-se uma
substncia simples ou composta. Em outras palavras, desde o pensamento clssico
e dos medievais, a forma um continente que, em uma dinmica com a matria,
mais do determinar a substncia de um ser, explicita ontologicamente as relaes
internas e externas a um determinado desse mesmo ser. Por fim, a forma tambm
pode ser a forma pela qual realizamos algo, no sentido de modo ou maneira pelos
quais esse algo realizado. Nesse mesmo sentido, em uma acepo expandida, a
forma tambm pode ser entendida como um meio e um modo: a forma pela qual
algo existe ou vive um modo de vida e existncia e tambm um meio de se viver e
se existir.
Esse jogos de sentido envolvendo as palavras forma e meio, e a
surpreendente interao semntica de termos etimologicamente to distantes, nos
levam a uma suposio: haveria uma articulao estrutural e ontolgica entre meio e
forma. Enquanto a forma basicamente uma ontologia de relaes, os meios so os
modos pelos quais essas estruturas relacionais se encarnam. Uma filosofia das
81

formas ou uma teoria geral das formas necessariamente desaguam ou principiam


por uma investigao sobre a possibilidade de conceber uma teoria geral dos meios
e em uma ontologia dos meios, de modo que poderamos conceber tambm uma
ontologia das formas. A relao estabelecida entre meio e forma depende de um
terceiro termo de determinao, sem o qual essa relao se tornaria impossvel: a
vida. A vida, entendida como bios e organismo, se define a si mesma por diversos
critrios. O mais decisivo desses critrios sua relao estrutural com a
precariedade e com aquilo que paradoxalmente a define como vida: a morte. A
finitude a chancela que emerge da constituio ontolgica da vida e ao mesmo
tempo a define como vida singular ao mesmo tempo em que define o ser vivo em
termos globais e como ser vivente. Nesse sentido, a vida apenas se realizaria como
forma. A forma a inscrio de finitude dos seres que se articulam mesologicamente
em cadeias de relaes infinitas. Chegamos ento a um dos primeiros axiomas
desta ontologia de meios e teoria geral dos mesons: a vida a forma finita do
infinito. Um longo debate se desenvolve hoje em dia na astrobiologia e dos modelos
que propem uma cosmologia baseada na teoria evolucionria11. O mesmo ocorre
com a teoria evo devo, que se pretende um modelo de descritivo cosmolgico
fundado sobre os processos da embriognese, de seleo natural, do
desenvolvimento e da evoluo dos organismos de um ponto de vista
evolucionrio12. Justamente nesses termos, esse axioma pretende deixar em aberto
a definio de vida medida mesma que vida passa a ser tudo o que determina a
forma finita do infinito, e no a estrutura dualista fundada sobre as noes de
orgnico e inorgnico, que esto em vias de ser teoricamente extintas. Como
compreender essa relao reversvel entre forma, vida e meio? Justamente a partir
dos mesons. Os mesons so a totalidade infinita relacional e a ponto de emergncia
das configuraes reversveis e circulares entre forma, meio e vida.
Nesses termos, podemos postular mais um axioma da teoria dos mesons e da
ontologia especfica que essa teoria prope. A teoria geral dos mesons ou ontologia
dos meios busca a possibilidade de determinao de uma estrutura relacional finito-
infinito que consiga superar o dualismo lgico, ontolgico e epistemolgico

11
DARLING, David. Life Everywhere: The Maverick Science of Astrobiology. New York: Basic Books,
2001.
12
KINOUCHI, Osame. Cenrios de seleo natural em cosmologia. In: DE FRANCO, Clarissa e
PETRONIO, Rodrigo [org]. Crenca e evidencia: aproximaes e controvrsias entre religio e teoria
evolucionaria no pensamento contemporneo. So Leopoldo: Unisinos, 2014.
82

formalmente implicado nesta mesma estrutura relacional. A ontologia dos meios se


inspira na teoria das esferas de Peter Sloterdijk, que pode ser definida como
ontologia da dade, como ontologia relacional ou teoria geral dos meios13. Nessa
proposta, a categoria relacional seria o fundamento ontologicamente determinante
do real. Nesse sentido, a mesologia dialoga transversal e diretamente com a teoria
das esferas de Peter Sloterdijk, autor que desempenha um papel central nesta
reflexo. Contudo a teoria dos mesons se destaca da teoria das esferas em um
aspecto central. Sloterdijk parte de uma ontologia didica diretamente demarcada a
partir de uma diviso estabelecida entre orgnico e inorgnico. A partir dessa diviso
estrutural, que tomada de Jacques Monod e da compreenso clssica da biologia
darwiniana, concebe o universo como um puro exterior inorgnico indiferente, que
constantemente precisa ser domesticado pelo puro interior ontolgico, representado
pela vida. A partir de um acoplamento estrutural sistema-meio, a ontologia didica
interior-exterior seguiria o mesmos princpio paradoxal imunolgico das teorias
sistmicas: quanto maiores os rudos do meio, maior o grau de complexidade e
resposta adaptativa-domesticadora da vida em relao a esse mesmo meio. A
estrutura bivalente sistema-meio se traduz na teoria das esferas como uma ontologia
didica interior-exterior e dentro-fora, cujos padres de complexidade e organizao
tendem a crescer medida mesmo que o sistema desorganizado pelo meio, pois
isso aumenta seus recursos imunizados contra esse mesmo meio. O problema
essencial dessa concepo de Sloterdijk consiste em uma inadequao entre
ontologia e cosmologia. A sua ontologia didica, baseada em um padro imunizador
e em uma morfologia de base metabiolgica, apoia-se na verdade em uma
cosmologia dualista. Esse descompasso produz um problema propriamente
ontolgico e cosmolgico, pois nos obriga a lidar com a conceber a vida como um
elemento estranho ao cosmos, compreenso que tem sido fortemente criticada e
tem praticamente cado por terra a partir de estudos da complexidade.
Nesse sentido, por mais que a teoria das esferas nos conduza ao mago de
uma compreenso dos sistemas complexos, o que tambm uma proposta dos
mesons, trata-se de uma filosofia que apresenta um problema interno entre ontologia
e cosmologia. Para conceber um puro exterior cosmolgico, a esferologia precisaria
ser uma ontologia dualista e no didica. Ao se propor como uma ontologia didica e

13
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Burbujas. Microsferologa. Traduccin Isidoro Reguera, Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2003.
83

ao produzir, a partir de uma morfologia metabiolgica e na transferncia


esferolgica, os fundamentos de um animismo global de, ressonncia e animao
do mundo vivo, Sloterdijk no o faz a partir da irredutibilidade inerente aos sistemas
complexos, mas o faz a partir de um modelo reducionista: o dualismo ontolgico
orgnico-inorgnico. Justamente por ignorar o fluxo ininterrupto, infinito e violento
que conecta os processos fisioqumicos aos processos biolgicos, a esferologia
apresenta-se como uma ontologia que deduz a complexidade das interaes
sistema-meio a partir de um reducionismo dualista. Desse modo, no se aventura
nos modelos complexos e caticos emergentes de sistemas no-lineares e distantes
do equilbrio, que demonstram claramente a arbitrariedade da fronteira ontolgica
orgnico-inorgnico criada pela biologia clssica. O confronto entre modelos
reducionistas das cincias do simples e os modelos complexos, fundados na
termodinmica, na entropia positiva e nos sistemas no-lineares distantes do
equilbrio sero abordados por Isabelle Stengers, Ilya Prigogine, Ren Thom e
outros pensadores e cientistas contemporneos. A teoria das esferas e a teoria dos
mesons assumem o centro dessa dinmica, em uma oscilao entre aproximaes e
distanciamentos.
A partir dessa natureza de investigao, a teoria dos mesons pode ser
entendida como uma teoria geral dos meios e uma ontologia global das mediaes.
Ela situa em seu centro gravitacional os sistemas, conjuntos e sries dos media
naturais, humanos, transumano, meta-humano que modelam o real em seus
diversos nveis. Essas instncias mediadoras nos colocam no corao de um
operador antropolgico: a tcnica entendida como forma mediadora. Entretanto, tal
instncia no deve ser entendida como um fenmeno cuja inteligibilidade emergiu
com o advento das modernas sociedades tcnicas e seus processos especficos de
codificao do real, mas como uma unificao entre uma ontologia da tecnologia e
uma antropologia dos meios, entendendo-se aqui o termo tecnologia como o
conjunto de todos os sistemas parciais de mediaes criados em mbito natural e
artificial, diludas, portanto, as fronteiras positiva ou kantianamente delimitadas entre
natureza e cultura. Ao valorizar alguns modelos descritivos das cincias naturais,
inseridos no interior de modos operacionais propriamente mesolgicos, a mesologia
tambm se aproxima da metabiologia de Luhmann, Maturana, Varela entre outros
autores da abordagem sistmica, bem como da ciberntica e da teoria da
informao, entendida contudo como uma ontologia e uma cosmologia.
84

Por isso, os mesons se situa a meio caminho entre a epistemologia e a


ontologia. Essas duas matrizes de compreenso nos permitem pensar os mesons
como uma imbricao entre de techn, poiesis e ontos, nos sentidos mais amplos
em que esses termos possam ser concebidos. Ou seja: a poesia, entendida como
atividade produtora [poiesis] e como modo abstrativo de relao com os dados
empricos [techn], seria o horizonte de possibilidade nos quais se inscrevem todos
os mundos possveis [ontos] e a instncia projetiva radical que desvela os diversos
nveis do real enquanto real. Por meio dos mesons podemos pensar a questo da
univocidade, da equivocidade e da biunivocidade finito-infinito em sua gnese. Ela
se encontra presente nas narrativas e nos postulados centrais de praticamente todos
os grandes sistemas religiosos. Ela matricial e se manifesta de modo transistrico
em uma infinidade de obras da literatura e de todas as artes. Tambm podemos
abord-la no seu percurso na histria do pensamento metafsico, nas grandes
narrativas da ontologia antiga, at chegar s aporias aparentemente insolveis das
filosofias representacionais e sua oscilao infinita entre os polos da objetividade e
da subjetividade, oscilao pendular que caracteriza o pensamento moderno, como
bem diagnosticou Foucault. Diante desse problema, a psicanlise desempenha um
papel muito importante. Ela produz um deslocamento brutal na economia simblica
da subjetividade, por meio de relaes inesperadas entre transferncia e
contratransferncia e das diversas tcnicas de aproximao e de suspenso da
dicotomia sujeito-objeto criadas em ambiente clnico.
Poderamos adicionar nveis de complexidade a esse problema-matriz a partir
da emergncia da teoria da informao, da semiologia, da semitica e das demais
modernas cincias da linguagem. Alm disso, legtimo pens-lo a partir das
categorias renovadas do linguistic turn promovido pela lgica matemtica, sobretudo
a partir da crtica radical da concepo de linguagem privada, efetuada por
Wittgenstein. Os nveis de complexidade se aprofundam se agregarmos a essa
investigao a mediologia, os estudos dos mass media, a ciberntica, a teoria
sistmica, a teoria da comunicao, as diversas teorias da cultura baseadas em
sistemas informacionais, em suas diversas vertentes e ramificaes. Ele se torna
mais sutil e complexo se lhe agregarmos alguns pensadores e linhas da filosofia
contempornea. Chega a novas profundezas se nos reportarmos ao debate
contemporneo da neurocincia, filosofia da mente, antropologia, s linhas
darwinistas e neodarwinistas da filosofia da biologia. Por fim, torna-se abissal se por
85

acaso agregarmos a esse problema as conquistas e teorias descritivas oriundas da


fsica e das teorias de campos unificados, por meio das quais se estabelecem novos
nexos morfolgicos, formais e insubstanciais entre estrutura e funo dos seres
vivos e da estrutura do universo pensado em nvel cosmolgico. Se concebermos as
condies de possibilidade do exerccio do comparatismo, o termo comparatismo
deixa de ser entendido como a comparao entre duas ou mais obras mediadas por
um ou mais conceitos, nem mesmo como a comparao de objetos culturais de
naturezas e origens distintas. Pretende-se sim pensar o prprio mtodo comparatista
a partir de suas condies formais como sendo um mtodo que pode ser definido
como uma teoria geral dos meios, ou seja, como ontologia relacional pensada como
mesologia.
A expresso mesologia foi cunhada no sculo XIX primeiramente por Louis-
Adolphe Bertillon. Cientista quantitativo formado na escola positivista, passou a vida
bucolicamente como professor de estatstica e de demografia na escola
antropolgica de Paris. Uma pesquisa superficial sobre o termo em diversos
dicionrios nos revela sempre a sua mesma significao singela: ramo da biologia
que estuda as interaes dos seres vivos com o meio em que vivem. Por isso, o
termo grego mson [meio]14 se presta a delimitar o espao ou habitat no qual se
circunscrevem as criaturas e suas interaes recprocas entre essas criaturas e seu
meio. Antes de ser praticamente esquecida, a mesologia desempenhou um papel de
subdisciplina da biologia, sendo designada cincia do meio. Hoje usada em termos
genricos, para referir a influncia do meio do ponto de vista social, familiar,
meteorolgico e do meio-ambiente propriamente dito, tornando-se uma espcie de
sinnimo anacrnico de ecologia. Em seu surgimento, a mesologia no apresenta
nenhuma preocupao filosfica para alm de seu sentido imanente: descrever
agregados de seres vivos, includos seres humanos, e a partir de suas interaes
recprocas com o ambiente que os cerca.
Mas de que modo a herana da mesologia do sculo XIX pode se articular
com esse dado das pesquisas mais avanadas da fsica subatmica e com a
proposta central desta nova teoria mesolgica que proponho? Um dos autores que
exerceram maior impacto sobre a formulao da categoria do Dasein [ser-a]

14
Utilizarei a forma meson, sem acento e sem itlico, sempre que me referir a este termo em sua
acepo de meio, ou seja, na acepo adquirida e estabilizada no interior da teoria mesolgica que
estou desenvolvendo, no mais na sua acepo da fsica subatmica nem em seu sentido grego mais
geral.
86

desenvolvida por Heidegger, por sua vez uma das pedras angulares e inescapveis
do pensamento do sculo XX, um conceito criado pela biologia existencial de
Jacob von Uexkll: o Umwelt [meio circundante]. Como se sabe, a configurao dos
meios circundantes descritos por Uexkll nos leva a uma cadeia de mediaes
formal e virtualmente infinita, pois cada espcime dos seres vivos empiricamente
situada estaria imersa na irredutibilidade de seu meio circundante. Portanto, haveria
tantos meios circundantes [Umwelten] quantas situaes biologicamente
determinadas pela posicionalidade real dos seres da natureza. Cada ser natural
estaria mergulhado em seu meio circundante e com ele constituiria um sistema
autopoitico. Nesse sentido, os meios circundantes operam uma dissoluo mesma
da categoria natureza, medida que partem de uma diferena ontolgica radical que
funda a diferena como princpio impassvel de ser reassimilado por um regime de
identidade. A srie e os conjuntos da pluralidade real e virtual dos mundos possveis
seriam infinitos.
Para qualquer leitor de Heidegger esses termos soam extremamente
familiares. E se Heidegger no explicita tanto quanto seria preciso a biologia
existencial como uma das fontes inspiradoras do Dasein, colocando-se como um
herdeiro do modelo compreensivo, hermenutico e fenomenolgico, ele no o faz
apenas para poder autofundar a originalidade de sua analtica existencial, ou seja,
compreende-se sua atitude como sintoma de uma interdio epistemolgica
colocada por suas prprias premissas e por causa de sua conhecida ojeriza s
cincias naturais e antropologia. Esses dados fizeram da ontologia antimetafsica
heideggeriana uma sada parcial e muitas vezes hesitante no que diz respeito aos
problemas oferecidos por uma questo central da modernidade e dos prximos
milnios: a questo da tcnica. A partir de um dilogo com linhas renovadas da
ontologia moderna, enquanto ontologia relacional, a mesologia prope colocar-se no
centro dos debates envolvendo a esfera da tcnica e suas possveis formulaes e
implicaes ontolgicas.
A cincia chamada mesologia hoje em dia tem sido explorada por
pouqussimos pensadores. Entre eles se destaca o gelogo, filsofo e orientalista
francs Augustin Berque, espcie de pensador solitrio da mesologia nos dias de
hoje15. A mesologia de Berque consiste em uma retomada dessa tradio do sculo

15
BERQUE, Augustin. La mesologie: porquoi et pour quoi faire? Paris: Presses Universitaires de
Paris Ouest, 2014. BERQUE, Augustin. Ecoumene: introduction a l`etude des milieux humains. Paris:
87

XIX, mas relendo-a a partir da biologia existencial de Jacob von Uexkll, de


Heidegger, da fenomenologia do espao, da histria natural e, surpreendentemente,
a partir da filosofia japonesa. A mesologia de Berque prope-se como teoria
renovadora de um campo de saber especfico, referente a uma filosofia dos espaos
habitados. Diferentemente, a proposta dos mesons que desenvolvo aqui se situa
como uma aliana entre ontologia, epistemologia e cosmologia. Se a cosmologia a
metateoria que, a partir de bases conceituais e experimentais, pretende definir
nominalmente a condio de possibilidade de tudo-o-que-existe16, os mesons
consistem na proposta de transformar esse processo analtico em uma ontologia dos
meios: tudo o que existe, existe como forma emergente dos meios e das mediaes.
Nesse sentido, a teoria dos mesons pretende-se como conceito global de reviso
epistemolgica de todas as determinaes conceituais a partir da proposio de um
campo de emergncia situado no intervalo entre empirismo e transcendentalismo.
Para tanto, a teoria dos mesons precisa se apoiar em conceitos oriundos de diversas
cincias, sobretudo da fsica terica e da cosmologia.
A partir desse ponto de vista, o termo meson ocupa um lugar de destaque no
mbito da fsica de partculas elementares17. Como se sabe, em termos bastante
didticos, o meson um hdron, uma partcula subatmica composta por um quark
e um antiquark de cargas opostas. Os quarks e antiquarks no ocorrem
isoladamente. Em geral, se misturam a outros quarks, de modo que consigam criar
uma homeostase e balancear suas cargas positivas e negativas. Os mesons
mesoescalares tm spin zero. Os quarks e antiquarks tm spins opostos. Nos
mesons vetoriais, o spin tem valor um, ao passo que os quarks e antiquarks, nesse
caso, tm spins paralelos. Os graus de energia aumentam medida que o spin
aumenta em um momento especfico dos ngulos orbitais. Nas primeiras
investigaes fsicas, os mesons foram identificados como transportadores da fora
que ligam prtons e nutrons. Com a descoberta do mon, e a sua identificao
como membro da famlia dos mesons em virtude da semelhana de massa, o mon
foi definido como meson mu. Os mons, entretanto, no demonstram grande atrao

Berlin, 2000. BERQUE, Augustin. Poetique de la terre: histoire naturelle et histoire humaine, essai de
mesologie. Paris: Berlin, 2014.
16
NOVELLO, Mrio. O que cosmologia? A revoluo do pensamento cosmolgico. Rio de Janeiro:
Zahar, 2006.
17
Marshak, Robert E. Meson physics. New York : McGraw-Hill, 1952. CHARLES BALTAY &
ROSENFELD, ARTHUR H.. Meson Spectroscopy , a Collection of Articles. First Edition. W.A.
Benjamin, 1968. Torleif E.O. Ericson, Vernon W. Hughes, and Darragh E. Nagle. ... Ericson, T. E. O.
[Torleif Erik Oskar. The meson factories. Berkeley: University of California Press, 1930.
88

pela matria nuclear. Este fato levou os cientistas posteriormente a inseri-lo na


classe dos pons, estes sim verdadeiros transportadores da energia verificada no
meson.
Para o nosso intuito neste trabalho, um dos aspectos que mais chamam a
ateno nessa descrio simples o seguinte: a massa de um meson provm da
energia de ligao e no da soma das massas de seus componentes. E justamente
em funo desse dado estrutural, os mesons so radicalmente instveis. Em outras
palavras, essa dinmica microfsica do meson o revela como um elemento
subatmico que no possui uma constituio prpria para a definio de sua massa.
Mais que isso: sequer pode ser definido como agente ou paciente transportador da
energia que transporta. Isso que dizer que suas propriedades esto
sistematicamente sendo deslocadas, em profunda instabilidade, dependendo da
configurao dos spins e das demais conexes mtuas que ele estabelea com
outras partculas. Essa instabilidade ontolgica configurou sua prpria
indeterminao epistemolgica para a fsica terica, tendo sido assimilado
erroneamente aos mons e aos pons, e depois separado dessas partculas de
naturezas e funes distintas, restando mais uma vez ao meson a funo estrutural
de puro mediador da dinmica microfsica elementar das partculas. Nesse sentido,
podemos inferir dessas informaes que, tanto em sua estrutura quanto em sua
funo, um axioma: o meson um elemento que desempenha cosmologicamente a
forma pura da relao.
Cincia do meio e das diversas interaes dos seres em seus meios.
Partcula subatmica mediadora das trocas de energia na dinmica interna da
matria. O que essas duas acepes cientificamente estabilizadas do termo meson
e da mesologia poderiam nos oferecer como forma mental aplicvel a uma
investigao mais ampla? A partir de um deslocamento das premissas positivas e
fsicas da mesologia e dos estudos subatmicos do meson, e por meio de uma viso
renovada da ontologia a partir de alguns passos decisivos do sculo XX, acredito
que a mesologia possa se configurar como um mtodo produtivo para abordagem de
diversos fenmenos. Este estudo, portanto, consiste na anlise de uma ontologia
das partculas mediais. No nvel epistemolgico, pode-se estabelecer um conceito-
matriz e o operador formal e no substancialmente determinado da mesologia: o
meson. No nvel ontolgico, o meson a partcula imaterial e elementar mediadora
que constitui todos os meios circundantes e promove toda cadeia mediadora
89

universal no interior das formas relacionais. Tendo em vista esse horizonte de


questes e a partir de uma reflexo filosfica ancorada na formulao das categorias
fundamentais da mesologia, creio que possamos chegar a uma concepo do
mtodo mesolgico em trs nveis: um sistema global das mediaes, uma teoria
dos meios circundantes e envolventes e uma ontologia relacional. A teoria geral dos
mesons pretende ser nesse sentido uma investigao metaterica voltada
formulao de uma filosofia da forma, de modo a propor uma soluo satisfatria
para as dualidades da relao dentro-fora, finito-infinito, meio-ambiente e meio-
mediador, entre outras, sejam elas oriundas do mbito ontolgico-metafsico ou
provenientes de uma investigao transcendental-representacional. Para tanto, a
partir de estudos de caso, a mesologia procura mensurar de que modo a indistino
substancial entre essas duas categorias pode contribuir para conferir legibilidade a
determinados fenmenos empricos da arte, da literatura e da cultura de modo geral,
bem como propor descries mesolgicas que satisfaam a complexidade dessa
categoria relacional, ou seja, a mesologia constitui-se como uma ontologia, uma
cosmologia e uma antropologia.
A despeito de todos esses desdobramentos possveis, em hiptese nenhuma
pretendo neste estudo me inserir nas malhas dos debates infinitos que se
estabelecem no interior de cada uma dessas especialidades. Tanto por que no se
trata de um estudo terico que articule formalmente diversas disciplinas, mas da
constituio metaterica de um nico conceito que se situa ontologicamente no
interstcio no de muitas, mas de todas as disciplinas: os mesons. E na explanao
de sua eventual relevncia para se pensar uma filosofia da forma e uma morfologia
das artes e da cultura. Nesse sentido, minha proposta mais simples. Proponho
lanar mo de alguns conceitos criados por algumas cincias e ramos do
conhecimento, articulando-os em torno dessa matriz conceitual que denomino como
teoria geral dos mesons, para poder fund-la como modelo de leitura, no apenas
das artes e da literatura, mas de diversos outros sistemas de significao. A
investigao dessa ontologia dos meios consiste em um trabalho epistemolgico de
demarcao de um mtodo. Portanto, torna-se delicada sua relao com
metodologias previamente constitudas. Por isso, em linhas gerais, proponho
desenvolver a mesologia simultaneamente a sua aplicao a estudos de caso
especficos, dada a necessidade terica de fundar um mtodo pelas vidas da
demonstrao de seu alcance, bem como as necessidades igualmente importantes
90

de no submeter um mtodo a outro mtodo prvio, o que redundaria em uma


tautologia. Nesse sentido, a investigao em torno da mesologia consiste em um
trabalho metaterico cuja finalidade justamente promover novas formas de
legibilidade para conceitos aparentemente estabilizados dentro de seus respectivos
regimes discursivos de provenincia. Ao me propor essa tarefa, a perda de contorno
entre as disciplinas, cincias e saberes agenciadas nesse percurso e a dificuldade
mesma de demonstrao proposta ao longo da linha argumentativa no devem ser
menosprezadas. Entretanto, a meu ver elas apresentam mais vantagens e virtudes
cognitivas do que riscos epistemolgicos, medida que o transbordamento das
margens e das demarcaes dos saberes constitui o modo mesmo de organizao
no-demarcvel do mtodo mesolgico. Afinal, se a mesologia consiste em explorar
a indeterminao entre dentro e fora, nada mais razovel do que pensar a
hermenutica e a compreenso terica dos fenmenos como sendo apenas mais
uma das tantas instncias mediadoras e, portanto, uma atividade rigorosamente
criativa. Embora essa seja uma herana clssica das hermenuticas compreensivas
do sculo XX, a mesologia pretende radicalizar-se como critica desses postulados
interpretativos e hermenuticos. Justamente por isso, a abordagem mesolgica deve
inscrever-se a si mesmo no interior da prpria malha metaterica que ela agencia,
formalizando a sua adeso a um princpio mediador infinito, eternamente inacabado,
porque ontologicamente diferencial e diferenciador.
Aqui entra a segunda parte da minha tese, presente subliminarmente nestes
escritos, e explicitada apenas em alguns dos ensaios finais. Quando digo tese, digo
que estes breves ensaios, por mais circunstanciais que paream, partem de um
nico ponto de vista. O ponto de vista e o ngulo por onde eu tenho observado e
relatado a vida, como ensasta e escritor. Esse ponto de vista a teoria que venho
desenvolvendo e que tenho chamado de mesologia. Os mesons [meios] so
partculas que produzem a condio de possibilidade da relao entre as demais
partculas e, desse modo, tornam possveis as interaes fisioqumicas no nvel
cosmolgico. Porm, paradoxalmente, o meson no tem massa e tampouco
desempenha outro papel na escala fisioqumica, a no ser o de produzir os meios
necessrios realizao das conexes entre os tomos de diversas naturezas, e,
por sua vez, a gerao de molculas, unidades compostas mnimas que esto na
gnese de todas as galxias que povoam o universo conhecido.
91

Pensar a partir dos mesons pensar a partir de um mundo que s se tornou


uma entidade real, maravilhosa e complexa no porque foi criado por uma
inteligncia divina, mas porque emergiu de uma cadeia de relaes e de articulaes
entre elementos simples, proporcionada pelos mesons. A ontologia dos meios, ou
seja, pensar o universo e a vida a partir dos sistemas de mediaes e pensar o ser
como a forma pura da mediao: essa parece ser a ambio latente neste projeto.
Contudo, se todas as coisas vieram a ser pela intercesso de uma no-coisas e se o
mundo permanece conectado pela interveno de um elemento que um no-
elemento, quer dizer que no so as propriedades das coisas que definem mundo e
vida. O que define mundo e vida a capacidade que os corpos, seres e agentes
possuem de produzir e de receber imantaes, cada vez mais intensas. Nessa
cadeia infinita de vinculaes, no h transcendncia, a no ser a transcendncia
entendida como a vocao de todos os seres de se negarem em sua condio de
isolamento e se elevarem condio de meios produtores e receptores da grande
cadeia do ser.
A ontologia dos mesons uma ontologia relacional das superfcies e dos
horizontes de eventos. O que se oculta na parte deslocada de um todo outra parte,
nunca a realizao iminente de algo que possa ser totalizado. Se todos os seres
existem como seres mediais e como seres conectivos, e existem em um plano
atravessado pelo infinito, a relao parte-todo perde sua razo de existncia. Cada
singularidade um evento simultaneamente parcial e total na cadeia do ser que no
se totaliza nunca. Para os agentes de cada ponto e parte, aquele ponto e aquela
parte so o mundo todo e o Absolto. A viso dos mesons decreta o fim dos
ceticismos e dos idealismos, e todo seu enfadonho debate. A posio dos mesons
entende que o relativismo e o idealismo no existem nem nunca existiram. O
relativismo sempre foi a soma dos absolutos parciais de cada ponto de uma cadeia
mesolgica. O idealismo sempre foi o produto de uma imaginao terica capaz de
conceber um espirito, uma ideia ou um sujeito fora de uma estrutura relacional
imanente.
Os abismos so to mais vastos e insondveis quanto mais estejam
claramente abertos ao dia e banhados pela luz do sol o mesmo sol que, em conexo
com outros bilhes de sis, inaugurou o horizonte de realidade onde o universo se
desdobra, onde a vida emergiu e onde tempo e espao se emaranham em
complexos silogismos de formas e intensidades. Quanto maiores as extenses das
92

superfcies desse universo, maior o nvel de conexes e de continentes podem se


criar de uma superfcie a outra superfcie, de um mundo a outro mundo, de mesons
a mesons. Quando enfim percebermos que o destino dos seres no se preservar
em si mesmo, como rezaram muitos filsofos, uma paz trgica se diluir pelo mundo.
Compreenderemos que o destino dos seres, possivelmente seu nico destino,
sempre foi e sempre ser a tarefa de se metamorfosearem at a sua completa
extino como unidades singularidades, avessas s foras multitudinrias e
cosmolgicas da relao. O destino dos seres, sua primeira vocao, se tornarem
os pontos invisveis do tecido infinito e annimo do ser. Contra todo isolamento. Eis
o ponto mais agudo do abismo.
Em virtude disso, a abordagem mesolgica recusa veementemente toda e
qualquer forma de neutralizao da recepo e de recursos ou estratgias de
objetivao do pensamento no modelo sujeito-objeto. Afinal, se os processos
objetivadores do pensamento se encontram na raiz da ciso dentro-fora e interior-
exterior que a mesologia pretende superar, se uma cincia que pretenda superar
essa ciso recorrer a uma objetivao metodolgica para se legitimar a si mesmo
como cincia estaria incorrendo em evidente contradio performativa. Nesse
sentido, a reversibilidade entre compreenso e criao, entre inferncia da realidade
e produo discursiva da realidade no so apenas uma petio de princpio, mas a
causa sui de uma necessidade epistemolgica fundadora da mesologia como campo
de interseco e linhas de fuga do pensamento e das formas. Por meio desse xodo
intencional rumo s margens insubstanciais e no estabilizadas do pensamento,
estabelece-se uma importante isomorfia entre as ordens lgica e real. Cria-se uma
sincronia entre a descrio e o modo mesmo pelo qual os objetos descritos se
materializam na linguagem que os descreve, para alm de qualquer tautologia ou
contradio performativa. Esse modo flutuante de se relacionar com conceitos,
textos, autores, obras e ideias tem sua razo de ser em um conceito nuclear da
mesologia: a transferncia. Contudo, antes de desenvolver o conceito de
deslocamento, aproveito o ensejo e comeo aqui a desenhar, sem uma ordem de
prioridade, algumas das principais noes e articulaes categoriais a partir de
autores nos quais me apoio para fundar as bases da mesologia.
Dito dessa maneira, parece que estaramos minimizando os aspectos mediais
e mediadores do pensamento, explorados exausto em tantos momentos da
cincia, das religies e da filosofia. Entretanto de um ponto de vista mais especfico,
93

o pensamento se ocupou das origens e dos fins muito mais do que dos meios. No
por acaso, as unidades transcendentais de todos os sistemas filosficos
compreendem as causas finais e a causa sui, teleologia e primeiro motor como
categorias causais que se complementam. Poucas vezes se pensou o meio como
portador e motivador de uma ontologia prpria. Por isso temos a estranha e a
justificada sensao de que o consequencialismo e o apriorismo, os
transcendentalistas e os empiristas, os pragmticos e os formalistas compartilhariam
de uma solidariedade secreta entre si. Os jesutas e Maquiavel se encontram em
algum compartimento oculto do paraso ou do inferno da finalidade. Ado e Maom
dividem em paz e sem esperana algum recndito obscuro do purgatrio das
origens. Em uma afirmao mais assertiva, poderamos mesmo reduzir todas as
religies do mundo a uma sabedoria, a uma axiologia e a uma praxiologia fundadas
sobre origens e fins, sobre uma protologia e uma escatologia, enfatizando ora um ou
ora outro desses aspectos18. Essa fixao psicaggica relativa a origens e fins inibiu
a produo de grandes narrativas ligadas aos meios e, desse modo, obliterou a
captura e a compreenso do meio como meio. Os primeiros grandes pensadores
dos meios foram as espiritualidades arcaicas. No plano das religies universalistas,
Buda, Cristo e Lao-Ts podem dividir o protagonismo de compreenso da vida como
meson e como caminho. Contudo as filosofias dos meios tardaram a encontrar sua
expresso: Leibniz, Nietzsche, Darwin, Tarde, Peirce, Whitehead, Uexkll,
Heidegger, Gdel, Simondon, Driesch, Deleuze, Sloterdijk, Girard, Bateson, Flusser.
Mesmo a dialtica, que sempre foi a cincia dos meios, se constituiu historicamente
mais como um mtodo do que como uma ontologia. Apenas a partir de Hegel e
Marx, dialtica e ontologia passaram a ser vistas momentos espelhados de uma
negatividade primeira, em uma aproximao e distanciamento recprocos. Contudo,
a partir de Luckcs e Adorno, uma nova distase afasta e distncia a possibilidade
de conciliao entre teoria dos meios e ontologia. Por isso com exceo de Marx,
esse dilogo poucas vezes chegou a caracterizar uma aliana entre dialtica, teoria
dos meios e ontologia. E justamente por isso, Marx um dos autores-matriz deste
trabalho.

18
GALIMBERTI, Umberto. Rastros do sagrado: o cristianismo e a dessacralizao do sagrado. So
Paulo, Loyola, 1998.
94

1.3 O Efeito-Ilha

Como essa conscincia dos meios e, mais do que isso, a apreenso do meio
como meio se manifestam na obra de Shakespeare? Justamente ao propor que
Prspero prospera e potencializa sua arte e sua magia mais na periferia do que no
centro, mais na ilha do que no imprio. E se o faz porque o isolamento produz a
condio de possibilidade para a emergncia das potencialidades virtuais do meio,
entendido tanto como ecologia quanto como forma mediadora. Justamente quando
Prspero abandona os meios de produo de poder que amealhara em Milo e se
v limitado pelo meio-ilha estranho, a potencialidade de seus domnio sobre a
ecologia, ou seja, pela totalidade do meio circundante, se acentua. O meio-
instrumento de produo da magia de Prspero j se encontrava em seu domnio
em Milo, mas no centro do imprio esse meio-instrumento era inoperante. Foi
preciso Prspero recuar em direo ao meio-ilha e romper seus laos de
reconhecimento mtuo da civilizao para emancipar a potncia de um poder que
lhe pertencia. Em que sentido essa apreenso do meio enquanto meio pode ser
entendida? A intuio marxiana relativa conquista dos meios de produo valida
aqui. Entretanto, nesse caso, a partir da teoria dos mesons, essa conquista ocorre
justamente com os sinais trocados. Em uma formulao, poderamos dizer que esse
movimento descreve um movimento antropolgico de amplas ressonncias. Esse
movimento consiste em uma capacidade de capturar as formas parciais, conferindo-
lhes uma valncia global. Em outras palavras, quanto maior a apreenso do meio
como meio, ou seja, como um conjunto de relaes parte-parte, maior o domnio e
a amplitude produzida pela domesticao desse mesmo meio.
Essa descoberta o mecanismo antropolgico central que se encontra na
gnese da cultura humana e, mais do que isso, o mecanismo mesolgico global
que regula as mtuas interaes dos sistemas vivos. Esse mecanismos dos mesons
consiste em produzir um movimento aparentemente paradoxal: quando a vida
apreende a sua prpria finitude e as limitaes estruturais dos sistemas vivos que
lhe so conaturais, essa mesma vida apreende o infinito que atravessa e simultnea
e dialeticamente a configura como ser finito. Apenas recortado contra o infinito o
universo pode existir como unidade real e formal. Apenas recortada contra o infinito
a vida pode se definir a si mesma como vida, ou seja, como substncia passageira,
95

efmera e complexa que encontra na passagem, na efemeridade e na complexidade


sua razo de ser o que . O efeito-ilha, representado por Prspero, consiste em uma
das principais unidades biotrpicas que determinam a ontognese, a morfognese e
a epignese de todas as formas de vida. O efeito-ilha consiste em um isolamento
por meio do qual os seres vivos captam aquilo que os determina ontologicamente: a
forma finita. A vida apenas vida porque radicalmente determinada pela finitude. E
a finitude determina a vida por circunscreve e determina ontologicamente um
segundo conceito central, que surge junto com a vida: a forma. Forma e finitude so
duas dimenses circulares que definem a ontologia e a autopoiesis dos seres vivos.
No porque o vivo se determina contra o no vivo, no porque o orgnico possui leis
distintas do inorgnicos. Essa dualidade de substncia que demarcou o racionalismo
e o mecanicismo de toda cincia moderna, de Descartes e Newton a Monod e
Einstein, acaba de morrer. A orgnico se distingue do inorgnico pela simples razo
de que o orgnico apreende a sua finitude e explicita assim a relao parte-parte
que estrutura em termos cosmolgicos todos os seres, regidos pela estrutura finito-
infinito. Ao faz-lo, a vida pode enfim realizar a grande odisseia que a constitui:
produzir o infinito artificialmente por meio de sucessivas e ininterruptas cadeias
transferenciais. Essa cadeia transferencial o ponto de interseco das duas
principais acepes do conceito de meio. Os meios-envolventes, medida que so
apreendidos como realidades finitas, deixam de ser a parte de um todo em relao
ao qual se encontram em defasagem ou ao qual precisam ser assimilados. Esses
meios-partes transformam-se em totalidades plenas de sentido, autgenas e
plenipotentes. Os meios, captados como formas finitas vivas, so potencializados
pelo devir infinito que essa mesma apreenso paradoxal de sua finitude proporciona.
medida que so compreendidos em uma estrutura infinitesimal parte-parte, os
meios deixam de se subordinar a outras partes que representam hipoteticamente um
todo ao qual aqueles meios precisariam ser subsumidos. Os meios-partes passam a
ser a fonte e o valor global da totalidade, em sentido existencial e cosmolgico. Essa
apreenso da forma finita consiste no efeito-ilha.
O efeito-ilha o processo de transferncia a partir do qual um agente situa
seu meio como parte menor de um todo e passa a pensar esse mesmo meio como
uma parte entre partes. Esse mecanismo de transferncia ou de deslocamento no
interior de estruturas relacionais pode ser descrito como uma passagem de um
condio relacional todo-parte, na qual as partes se encontram subsumidas a um
96

sentido qualquer de totalidade. Entretanto, a apreenso da dinmica finito-infinito


conduz essas partes a um novo regime: passam a ser concebidas ontologicamente
a partir de formas relacionais parte-parte. A emergncia dessa ontologia parte-parte
representa a emergncia da grande invarivel cosmolgica: o infinito. A apreenso
do infinito retira os agentes e seus os meios de uma relao parte-todo e os coloca
em uma nova relao parte-parte. A experincia de uma ontologia infinitesimal
conduz cada parte e cada agente integrante da relao parte-parte em direo a
estruturas relacionais parte-todo na qual cada parte se converte em uma totalidade
autgena. Esse novo regime de totalidade produzido pela apreenso da finitude
formal do meio, apreendido como parte em meio a partes e, acima de tudo, por uma
reorientao libidinal produzida por essa mesma apreenso. Os agentes de um dado
meio deixam de se relacionar com esse meio com se esse meio fosse regido sob o
signo da defasagem em relao a outro meio que se produz a si mesmo como
totalidade omnicompreensiva e omnideterminante, ou seja, como sistema. Os
agentes desse meio passam a entender o meio como a sua forma particular de
totalidade: o meio relativo se converte na totalidade do mundo. Essa nova condio
produz uma enorme potencializao do desejo, pois produz uma ressignificao da
totalidade dos objetos parciais e fticos, imersos no devir parcial e relativo de um
dado meio vivo e finito, por mais restritos que sejam os recursos e a realidade desse
mesmo meio. Essa nova condio do meio e dos agentes consiste tambm na
apreenso da assimetria ontolgica fundamental finito-infinito.
Os seres vivos, diante dessa assimetria, sentem-se violentamente impelidos a
realizar o que poderamos definir como a sua destinao como vivos: produzir a
transferncia de meios vivos em outros meios vivos. Surgem desse impulso
mesolgico inicial algumas das principais estruturas biolgicas e metabiolgicas: a
tcnica, a sexualidade e a memria. Justamente porque foi capturado como meio-
vivo finito, o meio pode realizar em si o imperativo infinito do universo a partir dos
conjuntos artificiais de mediaes capazes de propagar e transferir
indeterminadamente a partir de meios-mediadores as informaes mais imemoriais
em direo a um futuro aberto e indeterminvel. Essa passagem transforma todo
meio-vivo em um absoluto de si mesmo e, ao mesmo tempo, como o realizador
privilegiado do infinito que apenas emergem para esses mesmos meios-vivos
medida que seus agentes apreendem sua prpria finitude, ou seja, quando o meio
se converte em um fim.
97

1.4 Meio e Imagem

No existe pensamento fora de uma esfera de produo de imagens. Pensar


no depurar conceitos, mas justamente inserir imagens e conceitos em uma
fecunda interao em uma temporalidade e em uma espacialidade especficas, de
modo que essas imagens se convertam em narrativas. Por maior que seja o trabalho
de purificao dos conceitos, ainda assim teremos imagens: imagens abstratas. A
filosofia perpetrou um grande golpe contra a imagem do amigo do saber ao edificar o
sentido do conceito entendido como forma pura; os personagens conceituais da
filosofia migraram para a arte; seja na filosofia, na arte ou na cincia, o pensamento
continuou mesmo assim sendo o corte transversal no plano de imanncia e a
articulao entre afectos, conceptos e perceptos19. O conceito puro, da cincia ou da
filosofia, uma imagem abstrata. Como abstrao, o fim de um processo
abstrativo. Como imagem deve ser entendido como um simplexo: o ponto final de
uma especulao redutiva e o ponto inicial de uma busca de um pensamento da
complexo20. Imagens nascidas de reverberaes acsticas e que emergem em um
campo de imagens e se transformam em ressonncias de imagens anteriores que
haviam sido submersas. Ainda que o processo abstrativo do trabalho paciente do
conceito limpe desses conceitos todo o resduo sensvel, ainda assim teremos uma
imaginao terica buscando as regies mais elevadas da razo ou do
entendimento, os abismos mais profundos das faculdades ou da esfera anmica,
para dar nome aos vastos espaos da experincia e do pensamento que no podem
ser nomeados nem pela experincia nem pelo pensamento. Sempre que
formulamos as grandes questes, no apenas questes filosficas, mas questes de
natureza religiosa, moral ou mesmo de esferas que julgamos pertencentes a toda
humanidade, mais do que formular questes, criamos narrativas.
Na teoria da arte essa associao da arte antiga aos conceitos de proporo
e de harmonia chancelada por Lessing e Winckelmann, ou seja, est os primrdios

19
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. O que filosofia? So Paulo: Editora 34, 1998.
20
BACHELARD, Gaston. Potica do espao. So Paulo: Martins, 200
98

mesmos da histria da arte entendida como disciplina autnoma21. A superao do


critrio de harmonia, mesura e proporo est na gnese da teoria e da antropologia
da arte que aos poucos se desenvolve no sculo XX, acima de tudo a partir da obra
de Aby Warburg22, e que encontra nos dias de hoje expoentes como Didi-Huberman
e Hans Belting23. Entretanto qual a relao entre uma teoria da imagem e uma teoria
dos meios? De que maneira uma ontologia infinitesimal poderia alterar o estatuto de
uma ontologia da imagem, medida que consiga conferir um lugar central
incomensurabilidade e, nesse sentido, reduza todas as premissas de medida e
mesura a ontologias regionais? Qual seria a conexo entre meio, imagem e a ilha de
Prspero? Como se sabe, a metonmia a clssica figura de linguagem que
consiste em um deslocamento entre parte e todo, de modo que a parte represente
metonimicamente o todo do qual parte e do qual se origina. Quando extramos
uma parte de um determinado objeto e a indicamos como sendo uma parte
representativa desse objeto, a totalidade desse mesmo objeto torna-se ao mesmo
tempo presente e ausente na parte que lhe extramos. Quando digo que leio
Shakespeare, quero dizer que leio a obra de Shakespeare, e no os traos
fisionmicos do bardo ingls. Nesse enunciado, a obra de Shakespeare estabelece
uma relao indireta com o nome que remete a esse mesma obra. E no entanto eu
no menciono essas imagens quando digo apenas: Shakespeare. A palavra
Shakespeare adquire um valor mgico, porque em meu devaneio surgem imagens
da imensido de papeis sadas das mos deste gnio, em suas mltiplas caligrafias
que se relacionariam aos mltiplos autores de uma mesma auctoritas. E aqui se
infiltra um novo problema: quando digo Shakespeare, digo no apenas a obra por
traz do nome, mas os autores potenciais por traz da obra e do nome. Ainda que eu
fizesse o que Pierre Menard fez com Cervantes, e revivesse a obra completa de
Shakespeare por meio de toda a vida que ele precisou viver para escrever a obra
que escreveu, ainda assim no conseguiria definir uma totalidade do autor e da obra
a que me refiro e tampouco determinar os autores por trs da auctoritas nomeada
como o nome de um nico autor Shakespeare. Em todos esses caso, menciono-o de

21
DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: Histria da arte e tempo dos fantasmas
segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
22
DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: Histria da arte e tempo dos fantasmas
segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
23
BELTING, Hans. Antropologia da Imagem. Traduo Moro, ed. J. F. Figueira, V. Silva. Lisboa:
KKYM+EAUM, 2014.
99

modo indireto, metonimicamente, pois no me reporto obra e nem vida nem ao


autor e nem aos eventuais autores por trs do autor, mas a uma frao mnima
desse vasto oceano que foram o autor, os autores, a auctoritas e a obra a que
displicentemente chamamos por uma nica palavra: Shakespeare.
Nesse processo, o todo no suprimido, mas deslocado. O deslocamento de
parte de um todo qualquer guarda em si uma relao todo-infinito, se quisermos. E
justamente devido a isso, a imagem metonmica nos coloca um novo problema. Se
h uma todo oculto sob a parte que me foi revelada, imediatamente somos levamos
a imaginar que o todo oculto a obra ou os autores que serve de ponto de partida
para o processo metonmico tambm pode ser a parte de outra totalidade que lhe
seja imanente. Como isso se tornaria patente? Se formulo outro enunciado e eu digo
que leio os sonetos de Shakespeare, quero dizer que leio exclusivamente os
sonetos que Shakespeare escrevera e apenas os sonetos. Trata-se nesse caso
tambm de uma parte da totalidade de sua obra. Produzo uma nova inciso. Refiro-
me a Shakespeare para dizer que leio sua obra. E me refiro aos sonetos de
Shakespeare para dizer que leio os sonetos escritos por Shakespeare, e no todas
as demais peas que o bardo escreveu. Se menciono o nome de qualquer
personagem dessa pea, indiretamente estou dizendo Shakespeare e tambm estou
dizendo A Tempestade. No acorde imanente de um mesmo nome, um tecido de
relaes parte-todo se compe e se decompe. Estamos diante de um
agenciamento, no sentido de Deleuze24. Mas tambm estamos diante da
manifestao de uma unidade no-discreta definida por um termo bem mais comum:
o infinito. A relao infinitesimal uma relao que opera ontologicamente a partir
de uma estrutura parte-parte que no pode ser unificada em uma relao parte-todo.
Tornar discreto o que no discreto, conferir medida desmedida, dotar de
comensurabilidade a incomensurabilidade, organizar em uma estrutura relacional
parte-todo uma estrutura relacional parte-parte, em outras palavras, transformar o
infinito aberto em uma totalidade semiaberta: esse o movimento cosmolgico dos
mesons. Os mesons so unidades relacionais no-discretas do ser que emergem do
infinito. Conceber os mesons como lugares de emergncia dessa dinmica aberta
entre infinito e totalidade identificar a matriz emergencial de todos os sistemas

24
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Flix. Mil Plats: Capitalismo e Esquizofrenia. So Paulo, 34
Letras, 1997.
100

vivos e no-vivos, e abrir caminho mesmo para uma redefinio do que venha a ser
a vida.
Em um sentido bem mais concreto e para recorrer mais uma vez a dinmicas
e imagens da criatividade, foi praticamente essa operao conceitual que levou
Fernando Pessoa a ser Fernando Pessoa. A partir da teoria sensacionista, o maior
poeta da lngua portuguesa percebeu que cada nova sensao engendra um novo
eu. Nomear cada sensao e cada estado psquico como se fossem a totalidade da
personalidade criadora conceber a vida como um devir eternamente em aberto e
impossvel de ser totalizado. pensar a criao dos heternimos a partir de um
ponto de vista da heteronomia radical, da alteridade ontolgica que as partes
mantm em reao ao horizonte aberto de suas snteses parciais. A partir dela
poderamos adentrar no apenas outros graus de deslocamento metonmico.
Podemos pensar a gnese mesma da conscincia e da linguagem como um devir
diferencial cuja essncia produzir novas diferenas em relao a si mesmo. Em
outras palavras, abordar a arte, a literatura ou mesmo a emergncia da cultura
humana a partir das cadeias metonmicas de relaes parte-parte que nunca
conseguem compor um todo: essa a proposta de uma ontologia dos meios. Essa
a teoria geral dos mesons que pretendo desenvolver aqui.
A passagem de meios concebidos como partes de um todo-sistema a meios
entendidos como totalidades autgenas um mecanismo que pode ser tomado
como uma matriz antropolgica por excelncia, como paradigma absoluto e
ontognese de toda a atividade criadora. A criao estaria intimamente ligada a essa
percepo de ordem cosmolgica de que todos os seres so finitos justamente
porque so atravessados pelo infinito. Dialeticamente a finitude de todos os seres
o dada pela natureza da apreenso desses mesmos seres, que os define como
seres finitos que so medida mesma que definem suas formas. Essa apreenso
da natureza finita dos seres, medida que atribui um sentido global aos seres
finitos, ao mesmo tempo explicita e oculta a fonte infinita de onde esses mesmos
seres proveem e para onde eles retornam, em sua derradeira agonia. Toda criao
uma transferncia de uma relao parcial a uma relao total. Por meio dela, as
estruturas relacionais parte-parte infinitas so transformadas em formas finitas e
cada formas finitas acabam assumindo a funo de uma totalidade. O estudo do
conjunto infinito dessas passagens do parcial ao global podemos chamas de teoria
geral dos mesons. O universo e Deus so os mais amplos recortes formais e,
101

portanto, finitos, produzidos pela relao transferencial da cadeia infinita dos


mesons. Isso quer dizer que mesmo o universo e Deus, entendidos como sistemas
absolutos e como totalidades alm das quais seria impossvel produzir qualquer
deslocamento, so unidades substanciais e nominais da ordem da razo, justamente
porque eles consistem em uma transferncia produzida no interior de uma ontologia
parte-parte infinita a um sistema relacional parte-todo finito. Essa concepo no
heterodoxa. Mesmo os grandes sistemas antigos e medievais, bem como Descartes,
Kant e Whitehead definem Deus como uma demanda da razo. Toda atividade que
consiste em buscar unidades, sejam essas unidade transcendentes ou imanentes,
so atividade que visam estabilizar a instabilidade radical do ser, ou seja, que visam
conferir um contorno formal e uma unidade ao ser infinito que no possui unidade e
no pode ser racionalizado. A partir de uma teoria dos mesons, racionalidade,
unidade e totalidade passam a ser entendidas como meios pelos quais as relaes
parte-parte se transferem para uma relao parte-todo e dessa maneira minimizam a
incomensurabilidade do infinito. E abre-se aqui uma abordagem decisiva de termos
correlatos desta ontologia dos meios: medida, mesura e incomensurabilidade.

1.5 Medida e Desmesura

A incomensurabilidade e o infinito so as duas invariantes cosmolgicas que


orientam a teoria dos mesons. A aderncia ao conceito de meson no sentido
subatmico insere essa mesma teoria na longa tradio de debate envolvendo uma
ontologia das partculas. O termo partcula aqui no concebido a partir dos termos
cartesianos nem newtonianos da matria e da extenso, e tampouco a partir do
materialismo atomstico da filosofia e da fsica antigas, embora as ressonncias de
Lucrcio e do conceito epicurista de clinmen desempenhem aqui um importante
papel. Os mesons esto mais prximos das mnadas e podem ser pensados no
sentido de uma relao particular, ou seja, na cadeia relacional infinita de partes-
partes. O meson entendido como meio circundante transumano e metabiolgico
tambm descreve a ontologia dos meios como a modelagem dos diversos modos
reais assumidos pela posicionalidade dos seres, cujo corolrio seria a infinitizao
dos corpos extensos e a particularizao infinita do mundo mediante a ao de um
102

ser puramente relacional e em um ininterrupto processo de diferenciao. Alm


disso, logo de sada possvel notar uma assimetria na prpria materializao
lingustica do termo meson, bem como na estrutura epistmica da mesologia. Isso
se d porque se trata de uma definio de relao e de mediaes na qual os dois
termos relacionados e mediados esto virtualmente ausentes e so ontologicamente
insubstanciais, corroborando a insubstancialidade e a relatividade do prprio
medium relacional enquanto ser da relao. Essa aporia presente na materialidade
insubstancial dos mesons nos conduz a um terceiro aspecto central da mesologia,
presente em outra acepo do termo grego: medida.
O que se pode mensurar o que se pode medir e exprimir em termos
correlatos, ainda proporcional ou desproporcionalmente dspares. Ter mesura ter
prumo. Apoiar-se em um termo que equivalha o terminus ad quo e o terminus ad
quem de duas relaes recprocas, sejam elas simtricas ou assimtricas. Ora, se
em ltima instncia, o que se relaciona entre si no so objetos ou termos, mas a
forma pura da relao que se apreende a si mesma sob a forma da mediao, a
comunicao das formas relacionais ainda se subdivide e se multiplica em unidades
relativas ainda menores, pulverizadas em comunidades infinitas e aglomeraes
ontolgicas de mesons tambm eles subdivisveis, em direo ao abismo dos
espaos infinitos. Nesse sentido, em termos mesolgicos, a incomensurabilidade
deixa de ser uma unidade metaterica, conceitual e formalmente descritiva, oriunda
da epistemologia e da matemtica, e cuja finalidade seria demonstrar a condio
universalmente aportica do percurso do conhecimento, e passa a ser o modo
narrativo relacional e infinito do ser e, por conseguinte, do real. Nesse salto, das
categorias epistemolgicas dimenso ontolgica, a mesologia se aproxima de uma
matematizao situacional da realidade, e para tanto se apoia no teorema da
incompletude de Kurt Gdel. Por meio dessa concepo, cada meio circundante
[Umwelt], cada meson ou, se quisermos, cada mundo, depende de elementos
extrassistmicos para adquirir sua consistncia sistmica e mundana. Portanto, para
adquirir sua significao mesolgica.
O paradigma formal da mesologia nesse caso envolve conceitos como
equilbrio, harmonia, padres, ordens, taxonomias, disposio, composio,
proporo, fora, intensidade, volume, desenho, contorno, margem e tantas outras
categorias concernentes relao entre mesons e medidas. Isso revela a
importncia da relao meson e medida, bem como entre medida e mesura, mesura
103

e desmesura, e, por fim, entre incomensurabilidade e incompletude, para se pensar


as bases de uma filosofia da forma, notadamente aplicvel s manifestaes da arte
e da literatura, ou seja, para a configurao de uma teoria da arte. medida que os
diversos meios pelos quais realizamos a justa medida dos mesons envolvidos em
determinadas situaes fticas so essenciais ao desdobramento incomensurvel
dos mesons em suas cadeias relacionais, pensar e viver sob uma lgica da
infinitizao tentar realizar o possvel do improvvel e perseguir a proporo da
desproporcionalidade. Essa, por si s, pode ser uma das tarefas e o ethos mesmo
da mesologia. Afinal, como lembra Heidegger, uma das acepes de ethos em
grego casa25. O ethos a restaurao da relao de proximidade forte, no interior
de mesons e meios-mundos. A partir dela, doravante possamos criar uma cadeia
relacional de ressonncias mais amplas, no rumo a esferas mais abstratas e
simples, mas em direo a vivncias cada vez mais simultaneamente enraizadas e
mediadas.
No que concerne relao entre meson e mesura, vale a pena recordarmos
um trao um tanto humorstico presente na famlia de Louis-Adolphe, criador do
termo mesologia. Dos seus dois irmos, Jacques Bertillon foi como Louis-Adolphe
um notvel estatstico. Porm, foi Alphonse Bertillon quem tornou-se o mais
conhecido dos trs irmos ao passar s pginas da histria como inventor da
antropometria. Bem menos buclico que Jacques e Louis-Adolphe, Alphonse se
destacou como um dos mais importantes criminalistas do sculo XIX ao aplicar o
mtodo antropomtrico de medida e padres dos seres humanos a uma cartografia
fisiopsquica de eventuais criminosos. Essa antropometria judicial ficou conhecida
como Sistema Bertillon. Estamos na aurora do mtodo lombrosiano e de tantas
outras identificaes positivistas que pretenderam dar conta do ser humano. Qual
seria a estranha relao mesolgica que produziu em um mesmo meio circundante
familiar pensadores to atentos medida dos seres naturais e humanos? Que
misteriosa sincronia e miraculoso acontecimento propiciador geraram trs irmos
que se tornaram, cada um a seu modo, taumaturgos seculares de mesuras e
desmesuras do universo? O que uniria Adolphe e Alphonse, estes seres que, alm
de irmos, possuem nomes que se espelham em um divertido, sinistro e misterioso
anagrama, dignos de personagens sados de pginas de Hoffmann, Poe ou Gautier?

25
HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. Conferncias e escritos filosficos. Traduo
Ernildo Stein. Coleo Os Pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1973.
104

Para alm dos devaneios imaginativos de sabor duvidoso acerca desse estranho
espelhamento, o paralelo mais importante entre a obra dos dois irmos se d a partir
justamente dessa outra acepo do termo meson: medida. A teoria dos mesons nos
aponta ento para dois vrtices conceituais situados em um mesmo horizonte: os
meios e as medidas. Esses vrtices se recobrem em justa medida devido ao fato de
paradoxalmente no poderem ser recobertos por nenhuma medida comum. A
relao entre meio e medida nos conduz a um importante axioma da mesologia:
uma das articulaes centrais entre epistemologia e ontologia ocorre por meio dos
princpios da incomensurabilidade e da incompletude.
As relaes entre os mesons carecem de termos mdios passveis de seres
estabilizados, pois nos termos da ontologia relacional todos os dados do real so
formas ntica e simultaneamente mediadas e mediadoras. Essa caracterstica
constitui a estrutura ontolgica relacional como uma realizao do princpio
epistemolgico da incomensurabilidade. Os termos finais e iniciais postos em
quaisquer relaes, sejam elas proposicionais ou reais, so equipolentes ao infinito,
pois s podem ser mensurados a partir dos critrios relativos das mediaes nas
quais eles estejam inseridos, no a partir dos critrios absolutos da forma pura da
relao, pois esses, sendo infinitos, so incomensurveis. Desse modo, os seres
reais em sua posicionalidade no podem ser mensurados a partir de princpios reais
ou criteriolgicos externos s suas constituies relacionais fticas, pois para tanto
seria preciso validar um universalismo formal dos mesons e medidas, o que implica
uma contradio lgica da categoria meson entendida como meio circundante, em
sua facticidade. Em outras palavras, a dinmica mesolgica consiste em um
constante devir no qual os mesons, em seu aspecto ftico e em seus respectivos
meios circundantes, realizam uma homeostase mesolgica entre meios e medidas.
Porm, o carter subatmico dos mesons e a insubstancialidade da ontologia
relacional, entendida a partir de cadeias de mesons, nos conduz a uma constante: a
incompletude e incomensurabilidade.
Em que sentido e quais tradies do pensamento exploraram o conceito de
infinito e de incomensurabilidade? Em linhas gerais podemos entender que as
doutrinas que propem uma assimetria ontolgica entre totalidade da physis e a
alteridade de Deus podem ser compreendidas como doutrinas da
incomensurabilidade. Entretanto, precisamos fazer aqui um corte, decisivo para
situarmos a especificidade da estrutura relacional finito-infinito proposta pela
105

mesologia e as ontologias que se ocuparam do problema da incomensurabilidade e


da incompletude. Em primeiro lugar, podemos lembrar que algumas vertentes da
filosofia, sobretudo as filosofias de extrao judaica, enfatizam o aspecto dialgico e
relacional da verdade justamente a partir de uma teoria da revelao e de uma
filosofia da religio fundada sobre uma relao de incomensurabilidade recproca
Deus-mundo e alteridade-natureza. Essa relao incomensurvel remonta noo
de queda e de livre-arbtrio de Agostinho, e aprofundada por todo debate ligado
misericrdia divina em conexo com as graas eficaz e contingentes, postulada por
Molina e Surez no sculo XVI e pelo aggiornamento proposto por Calvino e Lutero.
Tambm tem uma de suas principais fontes na doutrina paulina do escndalo,
entendido como uma ontologia da fratura da physis e da ordem racional promovida
pela imagem da cruz. Esse Cristo monstruoso porque desforme e desforme porque
agente de um amor que ultrapassa todas as relaes imanentes e intramundanas,
passa a ser lida sob o signo de uma nova ontologia: a ontologia do evento26.
Um evento basicamente uma desarticulao das premissas imanentes e
ordenadoras de um regime de sentido imanente. Consiste na emergncia de um
grau diferencial do ser que rasga a totalidade do ser e inviabiliza o ser entendido
como totalidade e como sinnimo de physis. No por acaso a diferena ontolgica
que demarca a guinada radical de Heidegger, a noo mesma de uma fissura aberta
na cadeia entitativa e produzida pela emergncia de um ser ontologicamente
diferencial, guarda ressonncias da mensagem paulina, o que demonstra que a
sensibilidade para o pensamento de um ser como evento, que determina o pensar
de maturidade de Heidegger27, fora gestada desde a sua formao inicial em
teologia. Uma releitura da teologia do escndalo da cruz teria conduzido Heidegger
a uma ontologia do escndalo, ou seja, a uma ontologia para alm das
determinaes da ontoteologia28. Por isso pensadores de esquadros distintos como
Badiou29, iek30 e Agamben31, medida que problematizam a desmedida e a

26
HEIDEN, Gert-Jan van der. Onthology and Ontotheology: Plarality, Event, and Contingengy in
Contemporary Philosophy. Pittsburgh/Pennsylvania: Duquesne University Press, 2014.
27
HEIDEGGER, Martin. Aportes a la filosofa: acerca del evento. Traducin Dina Picotti. Biblioteca
internacional Martin Heidegger. Buenos Aires: Biblos, 2003.
28
HEIDEN, Gert-Jan van der. Onthology and Ontotheology: Plarality, Event, and Contingengy in
Contemporary Philosophy. Pittsburgh/Pennsylvania: Duquesne University Press, 2014.
29
BADIOU, Alain. O Ser e o Evento. Traduo Maria Luiza X. de A. Borges, Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1996.
30
IEK, Slavo e MILBANK, John. A monstruosidade de Cristo: paradoxo ou dialtica? So Paulo:
Trs Estrelas, 2014.
106

desmesura ontolgicas a partir do conceito de evento, necessariamente acabam se


vinculando a Heidegger32, ontologia paulina ou teologia de modo geral. Por isso,
a eviscerao desse problema por meio dos filsofos tem uma grande contribuio
das narrativas judaicas e crists acerca da alteridade, e pode ser compreendida
como uma importante contribuio que Jerusalm deu a Atenas ao longo dos
sculos. Kierkegaard um dos ltimos grandes expoentes dessa traio, e no
outro o motivo de sua obsesso pelo paradoxo da cruz. O paradoxo da cruz consiste
em compreender como Cristo, sendo consubstancial a Deus, pde morrer, e Deus
sendo Deus e consubstancial a seu filho, pde se deixar morrer e deixarem matar a
seu filho.
A teologia do paradoxo, da fratura e do esvaziamento, tambm conhecida
como teologia da kenosis, a chancela de todo pensamento que postula um
princpio incomensurvel entre natureza e ser. Esse evento tambm a forma
messinica da plenipotncia de manifestao de Deus na histria como
desarticulao da razo necessria que rege a histria. Nesse sentido, escatologia,
messianismo e ontologia do evento desde Marx se coadunam em diversos autores,
de Benjamin a Bloch, de Von Baader a Scholem. Essa ontologia do evento encontra
conexes tambm com alguns autores, quase todos judeus ou de inspirao judaica:
a distino de Levinas entre totalidade e infinito33, a triangulao entre homem,
mundo e Deus e a crtica do conceito de totalidade em Rosenzweig34, o conceito de
dialgico em Buber35, a dinmica entre diferena, Deus e escritura em Derrida36. O
problema da diferena ontolgica, que se encontra na assimetria entre o conceito de
Deus e ser nas alianas entre religies abramicas e a filosofia, e cujo ponto de
inflexo no sculo XX se encontra na ontologia de Heidegger, e, a partir dele,
determina quase todo pensamento ontolgico contemporneo. Entretanto apenas
aparentemente ontologia infinitesimal e diferena ontolgica so sinnimos.

31
HEIDEN, Gert-Jan van der. Onthology and Ontotheology: Plarality, Event, and Contingengy in
Contemporary Philosophy. Pittsburgh/Pennsylvania: Duquesne University Press, 2014.
32
HEIDEGGER, Martin. Aportes a la filosofa: acerca del evento. Traducin Dina Picotti. Biblioteca
internacional Martin Heidegger. Buenos Aires: Biblos, 2003.
33
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Traduo Jos Pinto Ribeiro. Lisboa: Edies 70, 1988,
34
ROSENZWEIG, Franz, - .
, 2006.
35
BUBER, Martin. Do dilogo e do dialgico. So Paulo: Perspectiva, 1982.
36
DERRIDA, Jacques. A Escritura e a Diferena. Traduo Maria Beatriz da Silva. So. Paulo:
Perspectiva, 1995.
107

Decantemos um pouco a relao entre esses dois conceitos para compreendermos


um pouco melhor suas proximidades e dissonncias.
Contudo cabe aqui marcar a distino entre o conceito de infinito e alteridade.
medida que lidam com uma alteridade divina fundada sobre um sujeito
transcendente, a assimetria desse sujeito em relao ordem do mundo e da physis
acaba por dissolver essa mesma ordem imanente bem como sua possibilidade de
totalizao. Entretanto na medida mesma em que as filosofias da alteridade
pressupem Deus como transcendncia absoluta em relao esfera da physis,
esse mesmo Deus, seja como imagem seja como conceito ou mesmo como
experincia, acaba por ingressar novamente no campo das mediaes. A imagem
de Deus, medida que se torna a fora capaz de promover a passagem da
contingncia ao sentido, acaba por se converter em uma forma de razo
transcendental. Por maiores que sejam as correspondncias teolgicas,
cosmolgicas ou ontolgicas entre Deus e infinito, no momento mesmo em que o
Deus abramico se oferece como sujeito, delineia-se o contorno de uma substncia
passvel de ser determinada, ainda que para alm da esfera de predicaes finitas.
O problema da apophasis, a impossibilidade dos recursos finitos e circunscritos de
nomeao da substancia divina obseda os pensadores desde Dioniso Areopagita e
todos os ramos da mstica e do neoplatonismo at Wittgenstein. Esse problema das
formas contingentes de determinao de um ser indeterminvel, que extrapola os
expedientes da linguagem e fura os regimes imanentes de determinabilidade do ser,
no deve ser entendido como correlato ou sinnimo de uma substncia infinita. Essa
substncia infinita, indeterminada e impessoal, cosmologicamente
sobredeterminante de todas as regies e fascinaes do ser e da existncia, bem
como doadora de todos os regimes de mundanidade e de todos os cosmos
tangveis, no se constitui em sua essncia como uma figura que transcende os
esquemas e formas de nomeao e de figurao. Essa substncia infinita o
horizonte de eventos infinito no qua os pluriversos emergem como categorias
determinadas e formal e realmente inscritas em seus respectivos regimes de ser.
medida que Deus uma fonte de legalidade e de legitimidade, Deus a instncia
por excelncia que transforma o no-sentido em sentido, a contingncia em
necessidade, o acaso em lei. E se assim o faz, Deus uma alteridade inscrita na
cadeia infinita de mesons, mas ele mesmo um meson que conecta essa cadeia em
regimes de sentido sem contudo se confundir como o horizonte infinito de onde
108

Deus e o universo emergem, como seres relacionais. So doadores de sentido e


modos de racionalizao e totalizao transcendentais dessa mesma cadeia, e
assim desdobram-se ao infinito como modos relacionais e como meios
sobredeterminados pelo horizonte infinito que possibilita a sua emergncia. O modo
da alteridade o modo pelo qual a totalidade da physis foi concebida como plano
capaz de ser reduzido a uma totalidade, graas agncia de um ser eterno e infinito
que a transcende absolutamente, e que Deus. Contudo, do ponto de vista dos
mesons, no instante mesmo em que Deus atua na existncia e na physis, e por meio
de sua graa ou de sua misericrdia, dota o horizonte infinito de unidade de sentido,
de lei e de razo, esse mesmo Deus, mesmo sem deixar de ser absolutamente
transcendente em relao physis, passa a ser transcendido pelo horizonte infinito
e em relao a esse horizonte, converte-se em imagem e em meson.

1.6 Ser, Cosmos e Infinito

Os fundamentos de uma ontologia infinitesimal e de uma cosmologia da


incomensurabilidade encontra alguns de seus maiores expoentes no pensamento
moderno, sobretudo a partir de Giordano Bruno e depois em Tycho Brahe, em
Fontenelle, em Pascal, em Leibniz, em Schelling. Tambm tem sua realizao mais
consumada na lgica de Cantor e em seu conceito matemtico de nmeros
transfinitos37. Contudo o tema do infinito continua sendo um dos mais instigantes e
controversos da cosmologia38. Alm disso, toda a morfologia e a cosmologia
contemporneas em certa medida devem a essa translao de um mundo fechado a
um universo infinito, como observou Alexandre Koyr em sua obra decisiva sobre o
assunto39. Isso quer dizer que o infinito transformou radicalmente a imagem do

37
NOVELLO, Mrio. Limites incertos: Infinito. Anotaes para o ciclo de conferncias do professor
Mrio Novello apresentado no Departamento de Arquitetura da PUC-RJ. Organizao professores
Ana Luisa Nobre e Antonio Sena. Professor Mrio Novello do Instituto de Cosmologia, Relatividade e
Astrofsica do Centro Brasileiro de Pesquisas Fsicas [ICRA/CBPF]. Impresso, s/d, p. 10 e seg.
38
NOVELLO, Mrio. Limites incertos: Infinito. Anotaes para o ciclo de conferncias do professor
Mrio Novello apresentado no Departamento de Arquitetura da PUC-RJ. Organizao professores
Ana Luisa Nobre e Antonio Sena. Professor Mrio Novello do Instituto de Cosmologia, Relatividade e
Astrofsica do Centro Brasileiro de Pesquisas Fsicas [ICRA/CBPF]. Impresso, s/d.
39
A obra-prima de Koyr apresenta tantos e to importantes pontos para o debate desenvolvido
neste trabalho que tive que deixar para os trabalhar em outra oportunidade, seno esta tese se
109

universo que, mesmo descentrado, pudera durante tantos sculos ser concebido
como um holograma da totalidade [holos], e passou a ser concebido sob a forma de
uma pluralidade de centros virtuais e reais, bem como uma substncia eterna e
infinita em constante expanso, substncia que nunca tivera um comeo e, portanto,
nunca ter um fim40. Essa alterao no se reduz a um problema meramente
epistemolgico ou estrito dos fsicos, cosmlogos ou filsofos da cincia. Essa
alterao se desdobra no mbito da cultura e encontra ressonncia em um dos
temas que se encontram na raiz da modernidade: o niilismo. Porque conceber um
universo infinito conceber um universo como um sistema aberto e sem contornos.
Isso gera um impacto decisivo na esfera dos valores, pois esvazia qualquer
possibilidade de estabelecermos parmetros, medidas e mesuras comuns. A
simetria finito-infinito produz uma multiplicidade igualmente infinita de regimes
provisrios de sentido, a partir dos quais as clulas das comunidades se organizam.
Nesse sentido, o niilismo seria o regime moral emergente da incomensurabilidade do
cosmos, pois a infinitizao dos valores corresponde necessariamente a uma
destruio dos sistemas de estabilidade estabelecidos entre fato e valor41.
Tambm no teorema da incompletude de Kurt Gdel, formulado sobre as
bases indecidveis dos Principia Mathematica de Russell e Whitehead, e que
constituiu desde a sua concepo uma contribuio decisiva para a historia da lgica
e da matemtica42. Esse lugar decisivo do teorema da incompletude decorre do fato
de esse teorema ser uma descoberta metamatemtica, ou seja, uma frmula que
inviabiliza em diversos sentidos a prpria natureza dedutiva que afianou durante
tanto tempo a objetividade da matemtica43. A partir do princpio da indecidibilidade,
o teorema da incompletude situa-se simultaneamente dentro e fora da matemtica44.
No por acaso, o modelo definido pelo teorema de Gdel produziu impacto no

tornaria ironicamente infinita: KOYR, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Traduo
Donaldson Garschagen. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1979.
40
NOVELLO, Mrio. Do big bang ao universo eterno. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
41
KOYR, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Traduo Donaldson Garschagen. Rio
de Janeiro: Forense Universitria, 1979, p. 14.
42
NAGEL, Ernst e NEWMAN, James. A prova de Gdel. Traduo Gita Guinsburg. So Paulo:
Perspectiva, 2012, p. 13 e seg.
43
GOLDSTEIN, Rebecca. Incompletude: a prova e o paradox de Kurt Gdel. Coleo Grandes
Descobertas. So Paulo: Companha das Letras, 2008, p. 22 e seg.
44
GOLDSTEIN, Rebecca. Incompletude: a prova e o paradox de Kurt Gdel. Coleo Grandes
Descobertas. So Paulo: Companha das Letras, 2008, p. 22 e seg.
110

apenas em outras cincias, mas em outras reas e atividades culturais45. Mais do


que isso, serve de metamodelo para a compreenso do funcionamento, dos limites e
da natureza de todos os demais sistemas das cincias, e encontra ressonncias em
modelos posteriores como os modelos da lgica paraconsistente, desenvolvida por
Newton da Costa. Surge assim a necessidade de todos os sistemas deduzirem sua
consistncia fora de si mesmos, ou seja, apenas por meio de elementos
extrassistmicos os sistemas podem conferir consistncia a si mesmos, consistncia
essa que antes era determinada por meio de apriorismo e de deduo. Esses pontos
nos quais a teoria se conecta com a metateoria e no qual a matemtica conduz a
matemtica para alm de si mesma podem ser pontos de partida para passarmos da
epistemologia ontologia e, a partir do debate entre ontologias globais, regionais ou
constituintes, formularmos uma ontologia relacional e uma ontologia dos meios: os
mesons.
Embora essa marca do infinito seja mais evidente no pensamento moderno,
se rastrearmos a noo de infinito nas origens mais remotas da modernidade,
podemos chegar cosmologia e escatologia de Scotus Erigena, no sculo IX, ou
mesmo na cosmologia e na cosmogonia das partculas mnimas de Deus dissolvidas
na matria, que lemos em Gregrio de Nissa e em alguns dos primeiros
representantes da patrologia crist oriental de matriz grega46. Podemos mesmo dizer
que Nicolau de Cusa, Giordano Bruno, Pascal e Leibniz so os autores que melhor
compreenderam e trouxeram tona no pensamento moderno o problema do infinito.
A concepo de uma cosmologia animista desenvolvida por Bruno tem forte
influncia da cosmologia e da cosmogonia presentes no Corpus Hermeticum47.
Muitas obras arcaicas ressurgem como fonte de inspirao para a cincia e a
filosofia a partir do sculo XIII48, a partir do qual se produz uma constante releitura
do pensamento arcaico realizado pela Renascena, essa obra atribuda a Hermes
Trimegisto ocupa um lugar de destaque49. O modelo hermenutico o da
palingnese: no basta traduzir, editar e comentar os antigos, preciso reviver suas

45
LANNES, Wagner. A incompletude alm da matemtica: impactos culturais do teorema de Gdel
no sculo XX. So Paulo/Belo Horizonte: Annablume/Fapemig, 2012.
46
GILSON, tienne. Filosofia na Idade Mdia. So Paulo, Martins Fontes, 1995.
47
YATES, Frances. Giordano Bruno e a Tradio Hermtica. Traduo de Yolanda Steidel de Toledo.
So Paulo, Cultrix, 1995,
48
WIND, Edgar. Pagan Mysteries in the Renaissance. London: Faber and Faber Limited, 1958.
49
FESTUGIRE, A.-J. Revelation D'Hermes Trismegiste. Paris, Belles Lettres, 1986. 4 Tomos.
HERMES TRIMEGISTO. Corpus Hermeticum. Fixao do Texto A. D. Nock e Traduo, Introduo e
Notas de A.-J. Festugire. Paris: Les Belles Lettres, 2 Ed., 1960.
111

crenas e as prticas que deram origem a suas ideias50, em uma espcie de


epistemologia de palimpsestos maneira de Pierre Menard. A traduo do grego
para o latim e a edio feitas por Ficino sob encomenda dos Mdici passa a circular
em todos os crculos cultos da Europa desde o sculo XV51, tornando-se no apenas
direta e indiretamente presente nas artes e no pensamento da Renascena, mas
chegou a configurar mesmo um imaginrio coletivo de poca52.
Por meio dessa obra, na qual h a clara descrio de um sistema
heliocntrico, Bruno no deduziu apenas o heliocentrismo, mas um modelo de
descrio do infinito baseado em uma cosmogonia segundo a qual Deus teria se
misturado ao mundo no momento mesmo em que o criou53. Em ouras palavras,
Bruno promove a partir do Corpus uma reformulao teolgica e cosmolgica do
heliocentrismo e do animismo54. Esse princpio de um animismo cosmolgico,
presente no Corpus, passa a ser uma chave de acesso por meio do qual Bruno
consegue tambm defender a infinitizao desse mesmo universo, medida que
Deus e universo passam a ser concebidos como substncias coextensivas e,
medida que concebemos Deus a partir dos atributos da infinitude, o universo
tambm passa a ser infinito e constitudo de uma pluralidade de infinita de mundos.55
Essa relao entre cosmologia e animismo, intermediada ela doutrina hermtica,
tambm se manifesta na teoria da simpatia e da correspondncia universal de todos
os elementos56. Toda essa forma mentis passa a constituir um valioso procedimento
de pesquisa tanto nas cincias quando na filosofia e na arte, e os limites entre
ortodoxia e heterodoxia eram bastante flutuantes.
Essas novas concepes modernas do infinito se encontra sobretudo em
Pascal. Em Pascal, a desintegrao da unidade da natureza produz a distase entre
duas ordens, as ordens do corao e a da razo, e, por conseguinte, entre dois

50
NUNES, Benedito. Diretrizes da Filosofia do Renascimento. In: VRIOS. O Renascimento. Ciclo de
Conferncias Promovido pelo Museu Nacional de Belas-Artes. 16 de junho a 18 de agosto de 1977.
Rio de Janeiro: Agir, 1978, pg. 59.
51
YATES, Frances. Giordano Bruno e a Tradio Hermtica. Traduo de Yolanda Steidel de Toledo.
So Paulo, Cultrix, 1995,
52
DUBOIS, Claude-Gilbert. O Imaginrio da Renascena. Traduo de Sergio Bath. Braslia: UNB,
1985.
53
HERMES TRIMEGISTO. Corpus Hermeticum. Fixao do Texto A. D. Nock e Traduo, Introduo
e Notas de A.-J. Festugire. Paris, Les Belles Lettres, 2 Ed., 1960.
54
BRUNO, Giordano. Acerca do infinito, do universo e dos mundos. Lisboa: Fundao Calouste
Gulbenkian,1984.
55
BRUNO, Giordano. Acerca do infinito, do universo e dos mundos. Lisboa: Fundao Calouste
Gulbenkian,1984.
56
BRUNO, Giordano. Tratado da Magia. So Paulo: Martins Fontes, 2008.
112

modos de pensamento que se tornam incompatveis, baseados esprit gomtrique e


no esprit de finesse, dando origem a uma desintegrao mesma das faculdades:
vontade, inteligncia e imaginao se desagregam e seguem regimes e rumos
opostos umas em relao s outras. Apenas a graa eficaz capaz de reunir esses
pedaos decompostos do canio pensante que logo somos, se assim as condies
contingentes o quiserem. Nesse sentido, Nicolau de Cusa ocupa um lugar d
destaque da transformao morfolgica da margem do cosmos, que deixa de
assumir a figura circular de uma geometria perfeita e passa a ser identificado com os
planos de expanso e contrao divinas, por meio dos quais a maximamente
pequeno e o minimamente grande se encontrariam em um ponto absoluto,
representado pela coincidentia oppositorum57. , a importncia do pensamento de
Pascal nuclear para qualquer filosofia que queira desenvolver o conceito de
infinito, alocando-o como matriz.
Por outro lado, essa ontologia infinitesimal, que podemos chamar de ontologia
da incomensurabilidade, se entendida como constante antropolgica e cosmolgica,
conduz-nos a refutar a concepo de que o infinito seria um trao diferenciador da
modernidade. A crena de que o conceito de totalidade era conatural ao
pensamento grego e que a filosofia, em sua origem, teria horror ao infinito,
justamente por ser uma categoria irracional, procede muito dos modelos
hermenuticos do sculo XVIII, que tinham em conta uma reduo do pensamento
grego de modo geral aos critrio humanista da harmonia58. Essa crena se
assemelha ao conceito difundido durante sculos segundo o qual os gregos teriam
sido uma cultura majoritariamente racional, fundada sobre a proporo59. Pode-se
mesmo ver na dinmica entre determinado [peras] e indeterminado [apeiron] de
Anaximandro uma correspondncia arcaica com os sentidos de finito-infinito60.
Nesses termos, podemos postular que o sentido de reduo do finito ao infinito
sempre produziu uma transferncia da parcialidade totalidade. em outras palavras,
se todo ser se desdobra em um horizonte de eventos infinito, toda definio desses
eventos se apoia em alguma medida em uma determinao formal de aspectos
finitos desse horizonte infinito e, desse modo, em modos de realidade que
57
CUSA, Nicolau de. A Douta Ignorncia. Traduo, Introduo e Notas de Joo Maria Andr. Lisboa,
Servio de Educao e Bolsas Fundao Calouste Gulbenkian, 2003.
58
MONDOLFO, Rodolfo. O infinito no pensamento da antiguidade clssica. So Paulo: Mestre Jou,
1968., p. 18 e seg.
59
DODDS, E. R. Os Gregos e o Irracional. So Paulo: Escuta, 2002.
60
MOORE, A. W. The infinite. London and New York: Routledge, 1991, p. 17 e seg.
113

funcionam como totalidades parciais, pois a totalidade nunca pode vir a ser
totalizada por nenhum esquema, conceito ou experincia capaz de englobar o
horizonte infinito dos eventos em sua dimenso cosmolgica. nesse sentido que se
faz urgente determinarmos o sentido fundamental dessa processo de transferncia:
as relaes estabelecidas entre partes e todos.

1.7 Mesologia e Mereografia

No De amore, sua bela releitura de O Banquete de Plato, Marsilio Ficino se


vale de uma surpreendente etimologia para palavra ornamento: cosmoi61. Os
ornamentos so, literalmente, cosmos. E os cosmoi so ornamentos, ou seja, as
parcelas inessenciais de um poema ou de uma obra de arte. Essa relao
surpreendente entre cosmos e ornamento nos lana de sada em um percurso
bastante tortuoso em direo a uma filosofia da forma. Por que um ornamento seria
cosmos? Em que medida a totalidade do mundo ordenado pode ser comparado ao
detalhe superficial de uma obra artstica? Poderamos suspender essa questo ou
resolv-la rapidamente por um excurso histrico ou reduzindo sua importncia as
ideias filosficas e histricas da Academia Platnica do sculo XV. Contudo essa
postura no nos oferece nenhuma contribuio importante para uma efetiva
formulao de uma filosofia da forma. Esse aspecto destacado por Ficino nos
conduz a uma compreenso aguda da relao estabelecida entre cosmos e forma e,
mais do que isso, entre cosmos e parte, entre unidade e fragmento.
Em virtude das dificuldades crescentes e cada vez mais sutis oferecidas pela
estrutura relacional parte-todo, desde a antiguidade a filosofia se ocupa dessas
relaes. O todo para os gregos em geral designado por um conceito: holos.
Refere-se a uma totalidade qualitativa que no se reduz soma de partes, como
Aristteles o define em seu axioma basilar. Por seu lado, a teoria que trata
especialmente das partes de uma determinada composio relacional recebe o
nome de mereologia, e surge justamente a partir de uma nfase sobre o conceito de
parte [meros]. Desde o primrdio das definies dos seres, a partir do Sofista de

61
FICINO, Marsilio. De Amore: Comentrio a El Banquete de Platn. Traduccin y Estudio Preliminar
de Roco de la Villa Ardura. Madrid: Tectos, 1994.
114

Plato e dos filsofos physikoi anteriores a Scrates, a mereologia foi extremamente


importante para os sistemas lgicos antigos e medievais, e encontrou algumas de
suas maiores expresses na ars combinatoria e nas artes da memria medievais,
que tm em Giordano Bruno e em Ramon Llull alguns de seus maiores expoentes.
No por acaso, a mereologia tambm produziu um impacto especial na ontologia e
na cosmologia, e a monadologia de Leibniz pode ser vista como uma gigantesca
proposta de sntese entre mereologia e ontologia. Por esses e outros motivos, a
mereologia foi um dos principais instrumentos de acesso reflexo da modernidade,
e culminou com as revolues copernicana e kepleriana, com as teorias sobre a
pluralidade dos mundos e com o paulatino processo de infinitizao do universo nas
concepes cosmolgicas, que comea com o principio da coincidentia oppositorum
do cardeal Nicolau de Cusa no sculo XV e encontra um ponto importante de
inflexo no sculo XVII com Pascal.
Contudo no apenas a cosmologia e a ontologia dedicaram uma ateno
especial ao estudo das partes envolvidas em uma relao parte-todo. A antroploga
Marilyn Strathern, uma das maiores especialistas mundiais dos povos da Melansia,
tem desenvolvido uma teoria que pode vir a alterar uma das estruturas fundamentais
das culturas humanas62. Strathern percebeu que os melansios no possuem uma
noo para descrever o que chamaramos de todo. Em outras palavras, suas
prticas cotidianas e mesmo seus rituais e seus sistemas simblicos so
organizados tendo em vista uma pluralidade de relaes entre as diversas partes de
uma dada realidade. Entretanto essas partes nunca poderiam vir a se fechar ou a se
concluir em um todo que as unifique. Se partirmos desse tipo de viso, todos os
seres da realidade, sejam uma pessoa, um animal, uma paisagem, um deus, o Deus
ou o prprio universo no comporiam nunca um todo autofundado. Seriam sempre
uma parte de uma estrutura relacional parte-parte que se desdobra ao infinito e
nunca se totaliza. Dessa forma, a ontologia das relaes parte-todo acaba por se
transformar em uma ontologia das relaes parte-parte, em direo ao infinito. Um
ontologia da incompletude, desenvolvida a partir do teorema de Kurt Gdel, um dos
autores seminais para os mesons.
Totalidade e infinito so conceitos dificilmente conciliveis. E por isso boa
parte da filosofia contempornea, de Nietzsche, Rosenzweig e Heidegger a Levinas,

62
Marilyn Strathern. O Efeito Etnogrfico e Outros Ensaios. So Paulo: Cosac Naify, 2014.
115

Deleuze e Derrida, pode ser entendida como uma crtica noo de totalidade.
Entretanto essa crtica poucas vezes foi levada a seu limite, justamente devido s
enormes consequncias que essa transvalorao produziria. Uma das premissas
necessrias racionalidade da fsica terica e da cosmologia, por exemplo, a de
que o universo seja fechado ou pelo menos possa ser concebido como uma
totalidade, pois o infinito no passvel de racionalizao. Mas por que a noo de
totalidade desempenha um papel to decisivo para o sapiens? Qual seria a gnese
dessa necessidade e dessa demanda da razo humana por totalidade? Durante
milnios os sapiens criam narrativas e conceitos capazes de totalizaes, pois essa
foi a maneira dos humanos se imunizarem contra a ao do infinito. Todas as
religies se apoiam em deuses, em seres e agentes transumanos e metaempricos
capazes de dotar de sentido o mundo. Sentido e totalidade so termos sinnimos.
Possuem entre si uma secreta solidariedade ontolgica. medida que conseguem
dotar o mundo de sentido e unidade, os mitos e as narrativas, bem como os
conceitos criados pela cincia e pela filosofia, todo pensamento foi, em maior ou
menor grau, uma instncia antropolgica de legitimao da unidade e de produo
de totalidades.
H alguns sculos uma alterao antropolgica, entendida no mais como
comeou a alvorecer. Chamamos essa alterao de modernidade, pela falta de
outro termo melhor. O corao da modernidade consistiria em uma revoluo
antropolgica que tem incio no sculo XVI e cujas implicaes abissais ns, no
sculo XXI, ainda no conseguimos dimensionar. Essas implicaes consistem em
um nico movimento: a vitria do infinito sobre a totalidade. contudo, do ponto de
vista da mesologia, essa definio da modernidade ineficaz e ociosa, pois na
verdade, desde sempre o sapiens e mesmo os diversos estratos e condies
primrias da vida so atravessados pelo infinito, desde seus nveis fisioqumicos
mais elementares s dimenses macroestruturais e cosmolgicas. Por isso, o
conjunto planetrio dos processos humanos e meta-humanos que constituem esse
movimento global a que chamamos de modernidade poderia receber outro nome,
que diga respeito emergncia desses processos primrios de infinitizao que
caracterizam a pluralidade ontolgica e mesolgica de todos os existentes. Essas
duas matrizes antropolgicas, baseadas em um deslocamento das parcialidades
rumo a fechamentos totalizveis e, por outro lado, os desdobramentos ontolgicos
parte-parte, em relaes horizontais infinitas, podem ser definidas, respectivamente,
116

a partir de dois conceitos: a holografia e a mereografia. As unidades mnimas de


cada uma dessas formas relacionais so os hologramas e os mereogramas. A
passagem das imagens das partes s imagens da totalidade promovida pela
transferncia mesolgica, e constitui, nessa sua dupla articulao, o conjunto dos
mesogramas.
A mesografia a escritura transferencial das partes que, por interveno do
desejo, constituem-se como totalidades autossuficientes, absolutas e autopoiticas,
sem deixar de ser partes. A mereografia, nesse caso, entendida como uma escrita
das partes e como uma ontologia das relaes partes-partes, no consiste na
definio estrita dos melansios, e tampouco em uma investigao lgica e
epistemolgica da filosofia. A mereografia uma ontologia dos processos globais
por meio dos quais o todo passou a ser compreendido como parte de cadeias
horizontais infinitas, e no mais como unidade transcendente capaz de sintetizar as
partes e conferir racionalidade s diversas partes que lhe sejam relacionadas. A
holografia, como fica subentendido na dupla acepo deste termos em portugus,
simultaneamente uma realidade virtual e atual, uma imagem difana e ao mesmo
tempo espaciotemporal, uma imagem e uma poderosa realidade. Isso ocorre porque
os objetos parciais, mesmo quando so transferidos para uma regio de
universalidade formal e transformados em totalidades por meio desse processo
transferencial capaz de unificar a multiplicidade dos dados da experincia sensvel,
no so menos reais ou menos eficazes. Pelo contrrio, justamente por esse
processo transferencial que lhes confere potencia, pois os transforma em objetos
metafsicos. A mereografia, por sua vez, descreve a passagem de uma estrutural
relacional marcado por relaes todo-parte em direo organizao otolgica
basicamente estruturada a partir de uma dinmica de relaes parte-parte, na qual
as partes remetem a outras imagens parciais, sem nunca conseguirem se constituir
como totalidades autoevidentes ou ontologicamente estveis. Essas relaes
reversveis das relaes parte-todo e os deslocamentos de prioridade na ontologia
dessas relaes podem ser traduzidas em alteraes da dinmica interna s
relaes finito-infinito, inverso esta que produz uma prioridade do infinito sobre o
finito e, desse modo, uma alterao nos princpios e nos nexos causais
ontologicamente estabilizados nas reaes todo-parte. Quando procuramos
descrever a modernidade por meio das alteraes dessas dinmicas relacionais, e a
partir de uma reviravolta cintica, passamos cada vez mais a viver em um mundo
117

povoado de superfcies que no remetem, a no ser parcialmente, a um compostos


ou agentes mais profundos do que os presentes nos efeitos performativos de sua
enunciao e nas constituies imanentes das relaes parte-parte. Por outro lado,
mesmo quando constitumos unidades autossuficientes e totalizaes de
determinados fenmenos, tendo em vista determinados fins, a totalidade desses
fenmenos acaba assumindo um papel parcial em relao demanda de novos
posicionamentos e de novas descobertas, que transformam esses todos-parciais em
partes-parciais de uma cadeia mais ampla de seres e aes, em nvel infinitesimal.
Essa condio, muito das lamentaes neoconservadoras sobre uma perda
do centro, como desumanizao do humano ou como morte de Deus, pode ser
entendida como um processo de infinitizao que produz uma alterao global de
todas as relaes parte-todo, transformando-as em uma cascata vertiginosa de
relaes parte-parte ad infinitum. Quando h milhares de anos o oikomen dos
caadores, os limites conhecidos do mundo, eram a abbada celeste, a natureza
circundante e o horizonte, o impulso mais elementar do sapiens era deslocar os
elementos parciais da sua experincia para a esfera global dos dados captados
pelos sentidos, traduzindo-os como formas totalizadoras do universo. Por isso as
narrativas mais arcaicas consistem em deslocar a imagem de um animal, um vegetal
ou um deus, convertendo-as em princpios metaempricos explicativos da totalidade
de tudo o que existe, e como agentes responsveis pela constituio inclusive aquilo
que estaria para alm da esferas aptica e optica, das mos e da vista, da
sensibilidade e da prxis63. Essas formas elementares surgidas da experincia ftica
passam a ser deslocadas para esferas imaginais que englobam regies empricas e
metaempricas. Tanto essa ao de deslocamento quanto a constituio de imagens
globais a partir de objetos deslocados recebem um nome: mesons. Esse processo
de deslocamento e de constituio de mesons-meios que no so nem reais nem
imaginrios a matriz da hominizao. Hominizao e deslocamento, ou melhor,
biotropia e deslocamento so palavras distintas para designar um mesmo princpio:
o princpio de constituio de mesons.

63
FERREIRA DA SILVA, Vicente. Obras Completas: Transcendncia do Mundo. Introduo Geral
Rodrigo Petronio. Posfcios Julin Maras, Per Johns, Agostinho da Silva, Dora Ferreira da Silva.
So Paulo: Editora , 2010. Organizao, introduo geral, bibliografia e notas Rodrigo Petronio.
So Paulo: Editora , 2009-2010.
118

A constituio de mesons foram as primeiras operaes abstrativas da


espcie. Foi assim que nasceram as divindades animais, as divindades vegetais, as
divindades teriomrficas e antropomrficas. Foi assim que emergiram as primeiras
tecnologias de imortalidade. A partir do momento que os seres vivos autoapreendem
sua forma finita recortada em uma cadeia relacional infinita do universo, surge o
primeiro imperativo biotrpico: produzir meios-mesons de continuidade da vida. A
infinitizao da vida torna-se o devir mais poderoso de todas os seres vivos. Ela
consiste na criao de dimenses metaempricas capazes de transferir meios-vivos
finitos para a cadeia de ressonncias de meios-vivos infinitos. Se o ser quer se
preservar em si mesmo, como diz a conhecida divisa da ontologia clssica, ele o
quer justamente e apenas na medida em que ser e bios se tornam conversveis um
no outro.

1.8 Meio e Vida

As plantas so mortais. Os homens so mortais. Os homens so plantas.


Com essa inverso do silogismo clssico da filosofia, Gregory Bateson inaugura
uma nova maneira de compreender a natureza, especialmente a natureza humana64.
E essa nova compreenso consiste basicamente em uma nova maneira de formular
perguntas e enunciados acerca dos fenmenos. No devemos partir de uma
substncia que distingue os humanos das demais espcies, como a racionalidade.
Precisamos pensar a partir dos processos contnuos e no-discretos que diluem o
humano na cadeia dos seres. Uma ecologia da mente no uma ecologia apenas
da natureza e tampouco da natureza humana. Uma ecologia da mente aquela que
concebe a atividade da Terra como um processo ao mesmo tempo natural e mental,
aqum e alm do humano65. Cada vez mais as cincias humanas e naturais do
sculo XXI tm sido obrigadas a reconhecer nesse silogismo dos homens-plantas de
Bateson muito mais do que uma simples imagem potica. A revivescncia das
ontologias processuais, especialmente de Whitehead e do pragmatismo de lngua

64
BATESON, Gregory. Os homens so como plantas. In: MARGULIS, Lynn e LOVELOCK, James
Gaia: Uma teoria do conhecimento. Sao Paulo: Gaia, 2002.
65
BATESON, Gregory. Steps to an ecology of mind. With a new foreword by Catherine Bateson.
Chicago/London: University of Chicago Press, 2000.
119

inglesa, bem como o crescimento de propostas de ontologias relacionais


demonstram essa necessidade. Trata-se na verdade de uma nova maneira de
compreender os seres vivos, incluindo-se os humanos, para alm do dualismo
representacional natureza-cultura. Essa nova maneira pode ser descrita em linhas
gerais como uma abordagem relacional e processual, e no substancialista. Se a
fronteira entre imagens e descrio cientfica torna-se cada vez mais tnue, como
estabilizar os conhecimentos em suas devidas esferas e regimes representacionais?
A questo na verdade diz respeito a uma expanso de horizontes no mbito de
todos os conhecimentos constitudos.
Nesses termos uma ontologia dos meios em primeiro lugar uma filosofia da
vida. primeira vista essa afirmao pode parecer vulgarmente generalista e
fundada sobre uma tautologia evidente. Toda filosofia e todas as teorias se ocupam
em maior ou menor grau de fenmenos relativos globalidade da vida, alm de ser
feita e destinada a um singular animal vivo chamado humano. Para evitar esses
equvocos, faamos uma circunscrio conceitual, que a espinha dorsal da tese
que defendo aqui: apenas em alguns momentos pontuais a filosofia se ocupou da
vida. Em que sentido? H cerca de quatro bilhes e meio de anos, quando a vida
emergiu superfcie da Terra como um protoplasma e um muco viscoso, como
diziam os naturalistas do sculo XIX, os movimentos singulares desses primeiros
seres unicelulares continham em si os elementos, as estruturas e as funes
primordiais que definiriam a vida como vida, em toda a sua odisseia de
diversificao. Um dos primeiros componentes definidores da vida como vida diz
respeito ao que poderamos chamar de reversibilidade sistema-meio. Em outras
palavras, algo ocorreu no meio que foi capaz de produzir uma substncia
heterognea em relao s substncias fisioqumicos desse mesmo meio, de modo
a produzir um sistema diferencial no interior desse meio. Nessa transformao,
ocorre simultaneamente um movimento de diferenciao e de continuidade no
interior do ser: a vida emerge em um horizonte sem vida. Tomando a questo sob
essa perspectiva, no teria sido um sistema inorgnico que produziu um sistema
orgnico. Foi a simbiose entre diversos meios inorgnicos que promoveu a
emergncia do orgnico no seio do inorgnico. Essa emergncia representa tanto
uma continuidade e um desdobramento de potncias virtuais desse ser que o meio
a que chamamos Terra e ao mesmo tempo uma distino escalonar na cadeia dos
seres que existiam naquele momento de origem. Um meio anterior gnese da vida
120

criou as condies de possibilidade da ontognese de sistemas heterogneos em


relao s condies relativamente homogneas desses mesmos meios.
Pensando-se a partir dessa perspectiva, percebemos que as relaes
sistema-meio precisam ser reformuladas. Mesmo concebendo um acoplamento
estrutura entre sistema meio, as teorias relativas gnese da vida quase sempre
advogam por uma assimetria relacional entre esses dois termos constituintes66. O
sistema vivo, quando constitudo, seria moldado e adaptado ao meio, mas a
transformao contnua do sistema enquanto sistema no o descaracterizaria como
um ser que depende do meio para se autodefinir como sistema. A diversidade
replicadora do texto gentico encontra manifestao nas enorme variedade e
diversificao da vida, produzida pelos inmeros meios aos quais a vida vem se
adaptando em sua jornada. Contudo sistema e meio so assimtricos porque a
biologia sinttica no coloca em questo a definio da vida enquanto vida quando
analisa a heterogeneidade e a continncia desses diversos processos adaptativos
dessa mesma vida quando em relao com uma multiplicidade de meios. Estamos
diante de um problema clssico da ontologia: a relao entre a unidade e a
multiplicidade. E podemos dizer a teoria dos sistemas continua sendo uma
representante das filosofias da identidade, medida que define a vida como sistema
e promove o acoplamento de sistema-meio para explicar as variaes da vida, e no
para redefinir, a partir do meio, o que a vida viria ou no a ser. Uma ontologia dos
mesons se prope exatamente tomar a tarefa do pensamento sistmico nesse ponto
e conduzi-lo a um horizonte inaudito: a inverso dos postulados e da prioridade
ntica do sistema em relao ao meio. Essa inverso tem em vista propor uma
reinterpretao dos modos pelos quais ocorre a passagem da virtualidade
atualidade do ser, um dos problemas centrais do pensamento e ao mesmo tempo
um dos menos explorados.
Tendo em vista a tentativa de resgatar uma antiga compreenso da natureza
como processo, uma teoria geral dos mesons uma ontologia meios, entendidos
nas duas acepes do termo, tanto como topologias, ecologias e atmosferas quanto
como formas relacionais que medeiam processos no-discretos. Os mesons
descrevem uma ontologia a partir de um axioma fundamental: todos os seres se
realizam a si mesmos ao realizarem outros seres em si. A alteridade do ser no

66
LUHMANN, Niklas. Introduo teoria dos sistemas. Petrpolis: Vozes, 2009.
121

uma dimenso ontologicamente distinta do ser que o realiza. Essa alteridade que
realiza o ser ao se realizar no ser no pode ser pensada a partir das bifurcaes,
assimetrias ou convergncias entre ser e no-ser. Tampouco os mesons
estabelecido nessa relao entre ser e alteridade pode ser institudo a partir de
regimes de transcendncia ou imanncia ou de identidade e diferena. Os mesons
apenas podem ser concebidos como a interao entre unidades e pluralidades que
so atualizaes de virtualidades inscritas no devir do cosmos. Essas virtualidades
so objetos de estudo de uma teoria geral dos meios, e podem ser abordadas em
conexo direta com alguns autores, sobretudo autores que se valem de um
paradigma de leitura que podemos definir como paradigma metabiolgico, ou seja,
um paradigma que prope os processos biolgicos como campo expandido capaz
de descrever processos histricos e humanos com base em princpios meta-
histricos e meta-humanos.
Uma das vertentes clssicas desse linha de pensamento se encontra nas
tradies das morfologias culturais, oriundas sobretudo de autores como Goethe e
Wincklemann, nos vitalistas alemes, tais como Ludwig Klages, e na filosofia do
inconsciente de William Wundt e Eduard von Hartmann. Na passagem do sculo XIX
para o XX, os maiores morfologistas culturais sem duvida Arnold Toynbee e Oswald
Spengler, este ultimo citado constantemente por Sloterdijk. Porem, no sculo XX a
morfologia cultural perde certa ingenuidade terica que a caracterizou em seu
nascimento. Passa a explorar relaes mais dilemticas e estruturais entre forma de
vida e vida orgnica das formas. Podemos identificar essa guinada no
estruturalismo, mas sobretudo nas abordagens sistmicas como de Niklas Luhmann
e na ontobiologia da vida cotidiana desenvolvida por Humberto Maturana. A partir da
ontologia das formas biolgicas desenvolvida pelo bilogo e filsofo chileno
Humberto Maturana67, Luhmann define a totalidade das produes humanas como
sistemas autopoiticos, ou seja, como sistemas capazes de se gerar, produzir-se e
reproduzir-se a si mesmos, mediante um intercmbio entre sistema e meio68. As
maiores referncias de Sloterdijk aos sistemas autopoiticos de Maturana ocorrem
67
A obra que resume a articulao geral entre ontologia e biologia proposta por Maturana :
MATURANA, Humberto. A ontologia da realidade. Organizao e traduo Cristina Magro, Miriam
Graciano e Nelson Vaz. Inclui texto de Jorge Mpodozis. Belo Horizonte: UFMG, 2014. Conferir
tambm: MATURANA, Humberto. Cognio, cincia e vida cotidiana. Organizao, traduo e
reviso tcnica Cristina Magro e Victor Paredes. Belo Horizonte: UFMG, 2014. MATURANA,
Humberto. Emoes e linguagem na educao e na poltica. Traduo Jos Fernando Campos
Fortes. Belo Horizonte: UFMG, 2009.
68
LUHMANN, Niklas. Introduo teoria dos sistemas. Petrpolis: Vozes, 2009.
122

por meio da teoria geral dos sistemas de Luhmann, autor que Sloterdijk define como
representante de um pensamento metabiolgico69. Logo na abertura do terceiro
volume de Esferas, lemos que a filosofia precisa ser substituda por uma biosofia70.
As menes constantes a Gabriel Tarde, a Gilbert Simondon, a Bruno Latour e a
Jacob von Uexkll tambm no podem ser minimizadas. So autores que tambm
mobilizam a possibilidade de conceber os processos e mediaes a partir da teoria
das redes, dos princpios das associaes [assemblages] e dos meios circundantes
[Umwelten]. Nesse sentido, podemos entender que as obras de Maturana, Luhmann,
Tarde, Latour e Jacob von Uexkll fornecem a esferologia as matrizes para o
estabelecimento do conceito de vida, de forma e de meio.

1.9 Mesons e Mnadas

Um dos autores que formularam um sistema geral mais prximo das


premissas mesolgicas foi Leibniz. Em termos gerais, a premissa leibniziana
consiste em diminuir as demarcaes entre natura naturata e natura naturans, entre
natureza naturada e naturante, entre processos naturais e artificiais, fundados nas
mesmas causas formais, sem contudo deixar de diferenciar modos e relaes
propriamente divinos. As coisas assumem modos fictcios, embora no mudem de
natureza, porque participam de um contnuo da transformao infinita da cadeia dos
seres. Tanto no Sistema novo da natureza quanto na Monadologia, no existem
nascimentos e mortes completos, mas apenas transformao. Tampouco h
aniquilamento e criao em mbito natural, pois essas so operaes estritamente
divinas. Na Protogeae, seu magnfico tratado de geologia cujo objetivo e medir do
tempo da vida e da Terra e que pode ser considerado um precursor da
paleontologia, esse contnuo ressaltado por meio da imagem do verme
espermtico, e o conceito de espermtico, espcie de deslocamento do logos
spermatikos dos estoicos, ser retomado na Monadologia.

69
SLOTERDIJK, Peter. Derrida, um Egpcio: o Problema da Pirmide Judia. Traduo Evandro
Nascimento. So Paulo: Estao Liberdade, 2009.
70
SLOTERDIJK, Peter. Esferas III: Espumas. Esferologa Plural. Traduccin Isidoro Reguera. Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2006
123

A partir dele, Leibniz trabalha nas bases da teoria da continuidade, segundo a


qual o princpio de individuao dos animais, includo o ser humano, no seria
contraditrio com o fato de os animais serem transformaes de um animal
primordial. Isso ocorre porque Leibniz est em busca da ontognese das espcies,
no apenas de sua filognese, ou seja, quer fundamentar a transformao das
espcies em suas substncias, no apenas como o surgimento de uma nova forma
especfica. Para afinar essa compreenso, depois de ter se afastado de Aristteles
em benefcio do estudo dos matemticos modernos, Leibniz recupera algumas
divisas metafsicas, sobretudo o conceito de formas substanciais dos escolsticos,
que ser uma das bases para a sua formulao das foras primitivas, entelquias
primeiras e, posteriormente, da monadologia. Para a mesologia, o desenvolvimento
dessa teoria das formas substanciais uma das maiores contribuies de Leibniz
para se pensar a transio entre meios substanciais finitos, que seriam os mesons,
aos meios insubstanciais infinitos, que seria a forma pura da relao. A monadologia
concebe substncias simples imateriais que promovem a comunicao das
substncias. S o fazem por no serem extensas, mas sim por serem pontos, como
pontos matemticos, cuja universalidade formal coincide com a realidade
substancial. Por isso, como o Aleph de Borges, instigante leitura ficcionalizao da
teoria leibniziana, cada ponto contm o universo em si virtualmente e a atualizao
do Universo a realizao da perfeio mxima de cada mnada. O recurso s
mnadas necessrio porque para Leibniz a pura matria, a pura forma ou a
concepo atomstica no conseguem nos oferecer uma unidade formal logicamente
satisfatria. Se no h unidade substancial, tampouco pode haver unidade real dos
conjuntos das substncias. Essas substncias simples no surgem por um milagre.
medida que elas so uma unidade substancial, no podem ter comeo e nem fim.
Por isso, haveria leis de continuidade [lex continui] atuando na formao da natureza
em seu nvel geolgico, mas estas mesmas leis tambm atuariam no mbito das
produes humanas. Por meio dessas leis possvel produzir uma genealogia
biolgica e inferir princpios que atuam em escala humana e cosmolgica.
Podemos entender essas e outras consideraes de Leibniz no Sistema e na
Monadologia como temas centrais para compreender a especificidade de sua
compreenso da metempsicose como forma mental, em chave metafsica e
soteriolgica da realizao de uma cadeia mediadora. Entretanto, diversa de muitas
concepes antigas, mediante as quais a mesma alma era incorporada em corpos
124

diferentes, a brilhante argumentao leibniziana prope uma conformidade entre


corpo e alma. Partindo da afirmao de que as mortes so diminuies e a gerao
crescimento, no haveria rupturas na natureza. E tudo que chamamos de
interrupo da cadeia dos seres apenas uma transformao de sua matria e de
sua forma. Leibniz precisa compreender o modo pelo qual se realiza a perfeio dos
seres. E tambm uma pergunta fundamental: se os animais se transformam, mas a
alma uma substncia absolutamente simples, e, por isso, indestrutvel, dada a
mencionada conformidade, como possvel as almas dos animais migrarem de
corpos em corpos distintos para manterem a cadeia da vida e formalizarem novas
configuraes biolgicas? O modo renovado a partir do qual Leibniz entende essas
transformaes expresso, no Sistema, por meio da reatualizao da categoria
escolstica das formas substanciais, presente em Duns Scott e na sua doutrina da
haeccitas. Na Monadologia, o recurso s mnadas central para estabilizar e
resolver essa aporia no interior do seu sistema.
Mediante as mnadas, estabelece-se uma relao entre corpo e mnada para
conformar os seres viventes. E estabelece-se uma relao entre alma e mnada
para a gerao dos animais. A alma mantm a sua conformidade ao corpo medida
mesma que a alma se separa do corpo de modo muito lento e gradativo, e no com
a morte-transformao. A unidade substancial mondica consegue preservar a
unidade da relao corpo-alma mesmo depois da desintegrao do indivduo ou da
espcie que foi gerada mediante essa relao. Portanto, e este o ponto mais
instigante da teoria leibniziana, h preservao da estrutura formal, dir-se-ia
mesolgica dos animais mesmo depois da sua extino, pois ela se materializa em
outras espcies originadas da cadeia vital daqueles mesmos animais. Diferente das
concepes que concebem os animais como autmatos, como a teoria cartesiana,
Leibniz confere alma ao animal. Por outro lado, resolve as contradies do sistema
em termos filosficos e teolgicos, ao propor que a alma se extingue materialmente
junto com a morte dos seres singulares. Contudo, por meio da intermediao da
substncia simples mondica, preserva-se formalmente para alm da base material
que determinou o modo de ser e a substncia dos animais singulares mortos ou
extintos. Desse modo, refuta a teoria da metempsicose, da transmigrao da alma,
entendida como a recorrncia de uma mesma substncia em corpos diferenciais, e,
ao mesmo tempo, preserva a unidade formal e substancial necessria ao
125

reconhecimento da lei da continuidade vital e da indestrutvel e infinita cadeia dos


seres.

1.10 Mesons e Ecologias

A ontologia dos meios, entendida como teoria dos mesons, concebida a


partir das partculas elementares conhecidas como mesons e descrita com base em
topologias no-lineares. Nesse sentido, os meios no so instrumentos ou
mediadores entre dois seres ou aes, submetidos a um princpio de causalidade.
So formas puras da mediao em termos ontotopolgicos. A mesologia tambm se
fundamenta na dinmica de sistemas semiabertos. Esses sistemas se caracterizam
por uma assimetria entre sistema e meio. A sntese assimtrica entre sistema e meio
se realiza pela forma. Como percebeu Humberto Maturana, a natureza dos sistemas
vivos a autopoiesis, a reversibilidade estrutural entre vida e forma. Em virtude
dessa natureza autopoitica, os sistemas vivos no geram unidades, mas apenas
multiplicidades. A natureza no se unifica na mesma proporo em que se
diversifica, diria Montaigne. As formas vivas so formas que emergem superfcie
de processos infinitos de diferenciao. Por outro lado, so estruturas dissipativas
em seu grau mais agudo de irreversibilidade. Mas por que a forma decisiva nessa
interao sistema-meio? Porque embora possamos agrupar os seres vivos em
gneros e espcies e articular filognese e ontognese, cada evento da vida uma
singularidade. E apenas como singularidade pode ser compreendido. S possvel
falar em forma onde h vida, pois no existe diferenciao formal fora de unidades
vivas.
Whitehead captou muito bem essa caracterstica dos sistemas vivos. por
isso que sua teoria processual recorre aos sistemas organicistas para formular uma
continuidade no-discreta entre todos os eventos que constituem o tecido da
realidade. Por outro lado, segundo Niklas Luhmann e outros pensadores sistmicos,
haveria um acoplamento estrutural entre sistema e meio. Contudo, mesmo mediante
esse acoplamento, as teorias sistmicas em geral privilegiam o sistema em relao
ao meio, ou seja, supem uma anterioridade lgica daqueles em relao a estes. A
mesologia consiste em uma inverso radical dessa premissa. Postula uma
126

anterioridade dos meios em relao aos sistemas. Trata-se de uma passagem da


teoria geral dos sistemas a uma teoria geral dos meios. Se a forma singulariza e
define a vida como vida e, ao mesmo tempo, unifica sistema e meio como realidades
indiscernveis. E se vida e forma so categorias reversveis. O que afinal um meio?
O meio a dimenso de emergncia de todos os sistemas vivos e no-vivos.
Justamente por se situar no intervalo indecidvel entre a natureza e cultura, entre a
abordagem mecnica das teorias clssicas e o princpio de irreversibilidade das
estruturas dissipativas surgidas com a termodinmica, o meio pode ser entendido
como o ponto de convergncia entre o orgnico e o inorgnico. Est situado entre a
reduo formal empreendida pelas leis gerais e os sistemas complexos fora de
equilbrio, infensos a qualquer generalizao. Em outras palavras, os meios so
interseces entre os princpios de ordem e os princpios de caos.
guisa de exemplo concreto sobre como podemos articular vida, forma e
sistema a partir da mesologia, basta pensarmos no atual problema dos recursos
hdricos. Esse problema revela algo que est para alm da polarizao ideolgica: o
desenvolvimentismo. O corao do desenvolvimentismo a crena de que os
recursos naturais so infinitos. Essa possibilidade de dispor da natureza como fonte
infinita de produo est presente inclusive em Marx. Por diversos motivos, o
marxismo e a nova esquerda em geral se preocuparam com os meios de produo e
com a distribuio de riqueza. Quase nunca se interessaram pelos recursos naturais
que alimentam esses mesmos meios. Marx pensa o meio como elemento mediador
da cadeia de produo, no como meio circundante [Umwelt] ou como mundo da
vida [Lebenswelt], em termos fenomenolgicos. Quanto s doutrinas liberais, desde
Adam Smith e dos utilitaristas a natureza vista como um palco vazio onde o
mercado encena sua pea. O planeta uma massa amorfa de combustveis fsseis,
indiferentes e eternos, que movem a maquinaria dessa narrativa. Para a doutrina
liberal, o meio a forma neutra de realizao das trocas. Os meios se transformam
em fins medida que geram lucro. Nesse sentido, os meios so sempre formas
vazias da praxiologia que caracteriza o funcionamento do capital.
No vislumbro nenhuma soluo no horizonte para essa questo, que
comea a se mostrar como uma das questes mais graves da humanidade. Uma
megalpole como So Paulo sem gua, sem chuva e imersa em gases txicos salta
do mundo ficcional das distopias e se oferece agora como uma realidade tangvel.
Os pessimistas acreditam em um apocalipse perpetrado pelo desenvolvimento
127

planetrio do capital. Os otimistas podem imaginar que o capitalismo conseguir


forjar meios de energia limpa para perpetuar o capitalismo como sistema. Como
pessimismo e otimismo so dados afetivos e no conceitos tecnicamente vlidos, a
funo explicativa de ambos se reduz a zero. Para alm desse dualismo, mais
conveniente pensar a partir do conceito de sistema-mundo, cunhado por Immanuel
Wallerstein. Mesmo em condies fora do equilbrio, o sistema-mundo seria capaz
de metabolizar as adversidades e gerar subsistemas de imunizao, para falar com
Sloterdijk? Isso seria suficiente para evitar a destruio do conjunto dos meios e das
formas orgnicas e inorgnicas que compem o fenmeno da vida? Essas so as
delicadas questes que se nos oferecem nos dias de hoje e no limiar de um futuro
cada vez mais prximo. Penso dia e noite como a mesologia pode fornecer sadas
para elas e para todos ns. Aquilo que Isabelle Stengers chama de cosmopoltica
podemos chamar de mesopoltica. Trata-se de uma teoria geral dos meios
entendidos a partir de partculas elementares [mesons] e que se baseia em uma
reconfigurao das categorias sistema, forma e vida. O meio a regio de
emergncia dos sistemas vivos e no-vivos. Se o mundo sempre um dado de
sentido, como queria Kant, um mundo sempre uma relao de formas. Por seu
lado, a vida autopoiesis. A vida determina as formas e se autodetermina como
forma. Como instncia determinadora das relaes de formas, o meio propicia a
emergncia formal de todos os sistemas. Em outras palavras, um mundo sempre o
conjunto das formas orgnicas e inorgnicas emergentes em um meio vivo.
Essa circularidade entre sistema, forma e vida possibilitou tanto a criao dos
modelos de mundo mecnicos, fundados sobre a reversibilidade [todas as teorias
clssicas das cincias], quanto as teorias da irreversibilidade, surgidas com a
termodinmica e em plena expanso hoje em dia com os modelos qunticos e o
princpio do caos. A mesologia o estudo de mundos emergentes onde o vivo e o
no-vivo, a ordem e o caos se unificam pela forma. Essa reflexo em torno da
mesologia nos leva a pensar a totalidade formal de todos os meios-sistemas, ou
seja, o grande sistema semiaberto do planeta. Nesse sentido, adentramos outro
tema que tambm tenho enfatizado aqui: a ecologia. Nada mais pueril do que pensar
a ecologia como uma defesa romntica da natureza. A cultura humana no pode ser
dissociada dos processos mais amplos da natureza e tampouco reduzida a estes.
Desde a brilhante e solitria contribuio de Gabriel Tarde at alguns nomes de
ponta da reflexo contempornea, como Philippe Descola, Roy Wagner, Marilyn
128

Strathern, Donna Haraway, Stephen Pinker, Bruno Latour, Gilles Deleuze e Felix
Guattari, entre outros, so visveis os enormes esforos para superar essa dicotomia
representacional natureza-cultura. Inspirado no organicismo e na monadologia de
Leibniz, a aposta de Tarde foi a substituio do termo sociedade pelo termo
associao.
O que essa substituio sinaliza? Quando falamos em sociedades, referimo-
nos a um termo cuja referncia sempre humana. Por isso, a translao da
categoria sociedade para outras esferas dos seres vivos gera um primeiro e enorme
problema epistemolgico, sob diversos aspectos insolvel. Por outro lado, no
apenas os humanos, mas a natureza em seus nveis moleculares mais elementares
possui associaes. Nesses termos, todas as formas e sistemas de agregao
humanos podem ser entendidos como resultados de processos associativos meta-
humanos. Abre-se aqui uma nova possibilidade de compreenso de categorias
clssicas como natureza, cultura e tcnica. Estamos diante das trs ecologias de
Guattari: natural, social e maqunica71. A cultura humana seria uma guerrilha entre
infinitos mundos-meios que no podem ser unificados em um enunciado-sistema
universal. Os personagens dessas guerrilhas so humanos e meta-humanos que
habitam meios transobjetivos: animais, mquinas, biomas, deuses, territrios,
cidades, fluxos, o capital e os Estados. Como diria Carl Schmitt, todos que falam em
nome da humanidade o fazem com o intuito de enganar. Eu agregaria: todos que
falam em nome de um mundo unificado como sistema o fazem com o intuito de
enganar.
O futuro do ser humano e da natureza no depende de um novo sistema de
sentido universal sobre os humanos nem de um novo sistema de sentido universal
sobre a natureza. Depende de termos conscincia de que essa guerrilha se
desdobra em espaos transumanos. Sejam eles entendidos como esferas, redes,
plats ou associaes, so sempre maqunicos, naturais e sociais, simultaneamente.
Esses espaos situam-se em um intervalo indecidvel entre sistema e meio e entre
forma e vida. So mesons, ou seja, meios nos quais se desdobra a autopoiesis
infinita entre forma, mundo e vida. A nica sada em qualquer um desses cenrios
emergentes uma reverso do vetor produo-consumo. Apenas quando cada vida
humana deixar de ser um meio neutro de realizao de outras vidas, o consumo

71
GUATTARI, Felix. As trs ecologias. Campinas: Papirus, 1998.
129

deixar de ser uma forma de vida e passar a ser um meio de vida. Consumir para
pertencer a uma comunidade consumidora de bens globais reduzir o meio ao
sistema. uma autopoiesis sem diversificao de formas. Este o caminho sem
volta rumo destruio coletiva. O consumo de si e a criao de novos meios-
mundos a transio da vida de uma condio de meio neutro a uma condio de
forma singular. Trata-se de uma nova concepo da cadeia vital e de uma mudana
de esquadro do binmio produo-consumo. Mais do que isso, talvez essa mudana
sinalize inclusive uma nova concepo de vida e uma nova espiritualidade.
A partir dessa alterao, a vida passa a ser entendida como forma irreversvel
e finita. Esse o horizonte de uma emancipao possvel, tanto da vida em geral
quanto de cada vida em particular. Lutar contra o funcionamento do capital uma
atitude pueril. Uma revoluo dos sistemas s ocorre a partir de uma revoluo
radical dos meios. Esses meios no so os meios neutros de produo de Marx nem
os meios instrumentalizados do liberalismo econmico. Trata-se de meios-mundos
totalmente horizontais e de multiplicidades-espaos de emergncia onde a vida
cotidiana transcorre. Mudar a vida no mudar a forma geral da vida de um sistema.
Mudar a vida mudar as formas singulares de cada vida singular, em seus
respectivos meios envolventes. Uma revoluo dos meios implica uma tomada de
conscincia da relao coextensiva entre forma e vida. Apenas nesse momento
comearemos a pensar e agir a partir de uma efetiva nova poltica. Essa nova
poltica no ser uma reduo da importncia das polticas locais. Ela ser a
transformao de polticas locais em uma cosmopoltica, para usar o precioso
conceito de Isabelle Stengers. Se preferirmos, ser a transformao das polticas
locais em mesopoltica, ou seja, em uma poltica que entenda o cosmo no como um
sistema holstico universal, mas como a totalidade dos meios-mundos vivos, finitos
em suas formas e infinitos em seu devir e em seu metabolismo autopoiticos. Nesse
caso, a alterao da autopoiesis estabelecida entre meio e vida e entre vida e forma
pode reconfigurar a totalidade da vida deste sistema semiaberto que nos
acostumamos a chamar de Terra.

1.11 Vida e Imunologia


130

Por seu turno, para alm do ambiente da ontobiologia de Maturana e da teoria


geral dos sistemas de Luhmann, a reflexo em torno do conceito vida, entendido
como bos, surgiu nas conferncias de Michel Foucault no final da vida, e serviu de
orientao para a linhagem de pensamento que ficou conhecida como biopoltica72.
Essas concepes biopolticas tm uma ressonncia importante para o pensamento
de Sloterdijk, embora possam ser feitas algumas demarcaes e distines no
mbito das concepes polticas de ambos autores. Nesse mbito da biopoltica, o
dilogo travado por Sloterdijk ocorre especialmente com Roberto Esposito. Esse
dilogo se materializa em torno de um conceito nuclear da esferologia: os sistemas
de imunizao. Estes sistemas dizem respeito quilo que Sloterdijk nomeia como
paradigma imunolgico73. A obra de Esposito consiste em uma arqueologia dos
meios pelos quais se deu a emergncia de uma biopoltica e de um controle
sistemtico da vida por meios polticos a partir de trs etapas: communitas,
immunitas e bos74. Para Esposito, os sistemas de imunizao so tecnologias de
preservao e de negao da vida. Embora mais prximo da arqueologia de
Foucault do que da antropologia de Sloterdijk, Esposito uma referncia importante
na esferologia para se pensar a estrutura relaciona entre vida, imunizao e
comunidades inspiradas.
Nesse sentido, proponho como parte desta tese e como estudo de caso uma
anlise de A Tempestade de Shakespeare para demonstrar como esta ontologia
relacional, pensada em articulao com descrio de sistemas complexos, pode
partir de uma obra da literatura e explicitar a emergncia de uma rede de conexes
entre outras obras e entre outros saberes. Finalmente, pensando-se a esferologia
como uma teoria geral dos meios, preciso mencionar o trabalho de um dos
criadores da midiologia: Rgis Debray75. A midiologia se prope como uma

72
FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopoltica. So Paulo: Martins Fontes, 2008.
73
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Burbujas. Microsferologa. Traduccin Isidoro Reguera, Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2003 [Publicao Alem: 1998]
SLOTERDIJK, Peter. Esferas II: Globos. Macrosferologa. Traduccin Isidoro Reguera. Prlogo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2004 [Publicao Alem: 1999]
SLOTERDIJK, Peter. Esferas III: Espumas. Esferologa Plural. Traduccin Isidoro Reguera. Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2006
74
ESPOSITO, Roberto. Communitas. Origen y destino de la comunidad. Buenos Aires/Madrid:
Amorrortu editores, 2003. ____. Immunitas. Proteccin y negacin de la vida. Buenos Aires/Madrid:
Amorrortu, 2005. _____.Bos. Biopoltica y filosofa. Buenos Aires/Madrid: Amorrortu, 2006.
75
H diversas obras de Debray sobre mediologia. Concentro-me em uma das mais amplas: DEBRAY,
Rgis. Introduo mediologia. Traduo de Antnio Manuel Lopes Rodrigues. Lisboa: Horizonte,
2004. DEBRAY, Rgis. Introduo mediologia. Traduo de Antnio Manuel Lopes Rodrigues.
Lisboa: Horizonte, 2004. _____. O Estado Sedutor: revolues midiolgicas do poder. Petrpolis:
131

antropologia dos media, ou seja, uma anlise de todas as formas de mediao e


transmissibilidade da cultura humana. Mais do que comunicar, transmitir76. A
demarcao epistemolgica de uma cincia no se d na escolha de seu objeto,
mas no ponto de vista adotado sobre objetos heterogneos77. Por isso, a
transmissibilidade e a reconstruo de cadeias mediadoras podem se dar tanto no
nvel de sequncias genticas, de informao paleontolgica, de resduos
arqueolgicos, nas diversas tecnologias da memria e da informao, bem como na
transmissibilidade de doutrinas religiosas ou na fixao de grfica de quaisquer
contedos culturais. Isso ocorre porque, segundo Debray, a midiologia no diz
respeito ao domnio dos objetos, mas ao domnio das relaes78. Entretanto, ao
longo deste estudo, quando necessrio, gostaria de propor algumas demarcaes
em relao midiologia de Debray e a esferologia de Sloterdijk.

1.12 Atmosferas

A vida forma79. Essa mxima de Sloterdijk parece conectar


indissoluvelmente vida e forma, ou seja, chancelar a existncia da forma sua
prpria condio vital e, portanto, mortal. Vida e forma nascem e morrem unidas.
Isso quer dizer que as ideias no so abstratas. Tampouco as obras. Elas tm raiz.
Emergem de um solo, de gestos, de expresses. Surgem de uma presena. Esto
envolvidas em uma atmosfera, que lhes confere contorno e tom. A histria das ideias
e a teoria da literatura no se restringem a descrever um sistema das obras. A teoria
da literatura ilumina a ressonncia de obras e ideias ao longo do tempo. Capta a
presena e a atmosfera que as animam. Analisa a latncia dessas obras, ideias e
atmosferas no presente. Atmosfera, ressonncia, latncia, emergncia,

Vozes, 1984._____. Transmitir: o segredo e a fora das ideias. Petrpolis: Vozes, 2000. _____.
Manifestos midiolgicos. Petrpolis: Vozes, 1995._____. Curso de mediologia geral. Petrpolis:
Vozes, 1993.
76
DEBRAY, Rgis. Introduo mediologia. Traduo de Antnio Manuel Lopes Rodrigues. Lisboa:
Horizonte, 2004. p. 11.
77
DEBRAY, Rgis. Introduo mediologia. Traduo de Antnio Manuel Lopes Rodrigues. Lisboa:
Horizonte, 2004. p. 11.
78
DEBRAY, Rgis. Introduo mediologia. Traduo de Antnio Manuel Lopes Rodrigues. Lisboa:
Horizonte, 2004. p. 63.
79
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Burbujas. Microsferologa. Traduccin Isidoro Reguera, Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2003 [Publicao Alem: 1998]
132

materialidade, presena. Esses conceitos desenvolvidos por Hans Ulrich Gumbrecht


so extremamente solidrios ao projeto da esferologia. medida que uma teoria
dos meios, tambm uma teoria dos meios entendidos como espaos vivenciais,
como meios ambientes e como meios circundantes [Umwelten]80. A esferologia
uma teoria atmosfrica81. Nesse sentido, estabelece uma profcua relao com
alguns conceitos de Gumbrecht, a partir de uma divisa: antes de ser uma ideia, o
pensamento uma presena. Uma atmosfera. Como diria Pierre Hadot, todo
pensamento uma forma de vida. Toda forma de vida engendra uma vida de formas
que reverberam para alm das condies da gnese dessas mesmas formas. Essa
transferncia e essa circularidade infinitas entre vida e forma so o mago da
esferologia de Sloterdijk. O pensamento de Gumbrecht por seu turno tambm se
inscreve nesse limiar vida-forma a partir de conceitos tais como materialidade,
presena, atmosfera, latncia, emergncia, abordados em diversas de suas obras,
encontra forte convergncia com alguns dos conceitos nucleares desenvolvidos por
Peter Sloterdijk, em sua trilogia Esferas.
Pode-se dizer que o percurso intelectual de Gumbrecht atinge uma
ressonncia internacional com a publicao de Materialitt der Kommunikation
[1988]82. A partir desse momento, Gumbrecht passa a se dedicar a uma teoria no-
hermenutica da literatura, ou seja, a uma abordagem que contemple os suportes
materiais das obras e no apenas seu sentido. O pressuposto fundamental dessa
teoria da materialidade a de que os suportes que veiculam a representaes do
pensamento, da literatura e da arte determinam o sentido das obras em um grau
muito maior do que o suposto pelos modelos hermenuticos clssicos e
representacionais, a partir dos quais seria possvel desvincular forma material e
sentido, materialidade e significado. Essa teoria da materialidade foi entendida como
uma via de superao dos modelos hermenuticos de extrao romntica. Foram
esses interesses que aproximara os pensamentos de Joo Cezar de Castro Rocha e
de Hans Ulrich Gumbrecht. Essa aproximao ocorreu por meio de trs obras:

80
SLOTERDIJK, Peter. Esferas III: Espumas. Esferologa Plural. Traduccin Isidoro Reguera. Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2006
81
SLOTERDIJK, Peter. Esferas III: Espumas. Esferologa Plural. Traduccin Isidoro Reguera. Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2006
82
GUMBRECHT, Hans Ulrich und PFEIFFER, Ludwig. Materialitt der Kommunikation. Frankfurt am
Main: Shurkamp, 1988.
133

Interseces: a Materialidade da Comunicao83. Em Produo de presena [2004],


essa indagao inicial de Gumbrecht sobre a funo da materialidade na teoria da
literatura e da arte se aprofundou84. A partir do conceito de ser proposto por
Heidegger, e por meio de um intrincado debate com pensadores contemporneos
como Jean-Luc Nancy, Gianni Vattimo, Judith Butler, Michael Taussig, Martin Seel e
Karl Heinz Bohrer, Gumbrecht critica divises surgidas no interior do pensamento
representacional que lidam com a separao sujeito-objeto, sejam essas divises de
matriz cartesiana ou kantiana. Nessa oscilao entre filosofias do sujeito e filosofias
do objeto fora identificada uma oscilao entre o emprico e o transcendental,
Foucault diagnosticou como um dos grandes problemas da filosofia moderna85. Essa
ciso ocorre tanto no pensamento herdeiro de uma metafsica da subjetividade de
inclinao cartesiana, baseada na ciso entre res cogitans e res extensa, quanto
baseada no modelo apriorstico de um sujeito transcendental.
Para Gumbrecht, a presena seria um campo de manifestao das obras de
arte que escapa a essa ciso representacional. As obras de arte no representam
uma realidade que lhes seja exterior. Tampouco se reduzem materialidade de
seus artefatos tcnicos. Toda obra existe como presena. E como presena afeta o
leitor em diversos aspectos. Uma obra no nem subjetiva nem objetiva. Uma obra
sempre um intervalo. Uma presena. Nesse sentido, como a esferologia de
Sloterdijk, a teoria da presena fornece pode fornecer caminhos muito produtivos
no apenas para a superao das matrizes epistemolgicas sujeito-objeto. Mais do
que isso: pode fornecer uma alternativa s abordagens desconstrucionistas e
socioconstrutivistas, que tambm apresentam aporias internas. Dois novos conceitos
so inseridos no percurso terico de Gumbrecht: latncia e atmosfera. A partir deles,
os conceitos de materialidade e presena acabam por receber novas nuances e
reverberaes. Essas nuances se encontram em alguns ensaios nos quais
Gumbrecht procura formular novos parmetros de temporalidade, em especial um
tipo de temporalidade multicntrica86. Esses novos conceitos so desenvolvidos em

83
ROCHA, Joo Cezar de Castro [org.]. Interseces: a Materialidade da Comunicao. Rio de
Janeiro: Imago/EdUERJ, 1998.
84
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produo de Presena: o que o sentido no consegue transmitir.
Traduo Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC, 2010.
85
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas: uma Arqueologia das Cincias Humanas. So Paulo,
Martins Fontes, 1995.
86
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Graciosidade e estagnao: ensaios escolhidos. Introduo e
organizao Luciana Villas Bas. Traduo Luciana Villas Bas e Markus Hediger. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2012.
134

duas obras exemplares: Depois de 1945: latncia como origem do presente87 e


Atmosfera, Ambiente, Stimmung: sobre um potencial oculto da literatura88. Pode-se
dizer que, em Atmosfera, Gumbrecht desdobra os potenciais contidos no conceito de
presena, transferindo-os para uma nova noo: atmosfera [Stimmung]. A atmosfera
decisiva para a compreenso de alguns dos grandes momentos da literatura. Ela
orienta as canes medievais de Walther von der Vogelweide. Mostra-se na tradio
da novela picaresca espanhola. Emerge em Shakespeare, em Diderot e no pintor
romntico Capar David Friedrich. A atmosfera tambm o fio condutor de Morte em
Veneza de Thomas Mann, de Machado de Assis e mesmo das canes de Janis
Joplin.
Mas como articular atmosfera e presena para alm das esferas da arte e da
literatura? Paralelamente a essa teoria da literatura e da arte, Gumbrecht se destaca
como um crtico cultural e como um pensador dedicado histria das ideias. Uma
obra marcante nesse sentido Em 1926: vivendo no limite do tempo [1999]89. Nela
podemos perceber Gumbrecht como um fenomenlogo das formas de vida e da vida
das formas. E ele o medida mesma que apreende algumas das principais
mudanas do sculo XX a partir da arte, da literatura, da cincia e da filosofia no ao
apart-las dos meios circundantes, mas justamente ao inseri-las em um mundo de
ferrovias, elevadores, telefones, automveis, avies e lutas de boxe. Se o
pensamento e a arte esto ancorados nos dados imediatos da conscincia, como
queria a fenomenologia, no h como abstrair o nascimento das ideias do entorno
das prprias ideias em suas condies de nascena.
Em certo sentido, esse esforo de Gumbrecht se aprofunda em Depois de
1945. E se aprofunda no apenas porque o horizonte temporal no se restringe mais
a um ano, e ressoa desde 1945 at o presente. Mas tambm porque a dialtica
emergncia-latncia acaba por se firmar como um instrumento nuclear para a
histria das ideias e a crtica cultural. Isso ocorre porque, alm de levar adiante os
pressupostos no-hermenuticos desenvolvidos nas obras anteriores, e assim
conseguir se livrar das tentaes de uma busca equivocada pelas motivaes
profundas da histria e do tempo, a relao emergncia-latncia pode ser vista

87
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Depois de 1945: latncia como origem do presente. Traduo Ana
Isabel Soares. So Paulo: Unesp, 2014.
88
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Atmosfera, Ambiente, Stimmung: sobre um potencial oculto da
literatura. Traduo Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.
89
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Em 1926: vivendo no limite do tempo. Rio de Janeiro: Record, 1999.
135

como um modelo no-teleolgico de encarar a temporalidade histrica, sem a


necessidade de recorrer controvertida tese sobre o fim da histria ou s polmicas
definies de ps-modernidade. A partir de memrias pessoais, no
necessariamente autobiogrficas, Gumbrecht reconstri a atmosfera do perodo
imediatamente posterior Segunda Guerra Mundial. Marcas de carro, estrelas de
cinema, reportagens da revista Life, propagandas e produtos da cultura de massa se
mesclam a reflexes sobre Beckett, Sartre, Buuel, Pasternak, Camus, Celan.
Imagens da infncia na casa dos avs desenham em tons fugidios o perodo de
desmonte do nacional-socialismo. Canes de Edit Piaf lanam luzes sobre o
existencialismo francs. Gottfried Benn, Martin Heidegger, Carl Schmitt so
analisados contra o pano de fundo da chamada revoluo conservadora, que
promovera a ascenso de Hitler. Os brasileiros Joo Cabral de Melo Neto e
Guimares Rosa, bem como as literaturas hispano-americana e norte-americana,
gravitam ao redor desse turbilho.
Nessas constelaes culturais, Gumbrecht identifica algumas constantes:
claustrofobia, sensao de beco sem sada, m-f, interrogatrios, descarrilamento.
Contudo, a vida do ps-guerra seguiu o seu curso, como se tudo tivesse voltado
normalidade. E nisso consiste o grande sintoma. A histria perdeu sua capacidade
redentora. A poltica se esvaziou. A guerra persiste sob a forma de latncia, mesmo
nos ambientes de paz. Mas ns continuamos acreditando na poltica e na histria.
No mais por utopia, mas apenas por no termos outra alternativa. Hoje em dia o
sentido da histria [teleologia] simultaneamente nos redime e nos aprisiona. A
imagem da latncia a de um passageiro clandestino. Muitos no trem percebem sua
presena. Mas ele invisvel. Ao fim e ao cabo, a mensagem de Gumbrecht deixa
uma fresta de esperana. Talvez a histria volte a fazer sentido quando percebamos
que somos todos clandestinos. E que os trilhos no nos levam nunca estao que
espervamos. A dinmica da latncia aquela que assegura a permanncia de uma
temporalidade multidimensional de diversas obras, mesmo aquelas que parecem
no estar mais no horizonte presente, podem se manifestar sob a forma de latncia.
Esses conceitos se coadunam com a pesquisa que tenho desenvolvido em torno de
uma epistemologia comparatista baseada em uma teoria geral dos meios. Tendo em
vista essa explanao sobre a obra e o pensamento de Gumbrecht, pode-se
observar que ele um dos pensadores contemporneos que mais enfatizam a
dimenso da materialidade da forma na arte e na literatura. Mais do que isso, a partir
136

de um campo conceitual heterogneo como presena, materialidade, atmosfera e


latncia, em linhas gerais trata-se de um dos pensadores que mais insistentemente
tm enfatizado dois pontos. Primeiro: a arte e a literatura no nascem de um meio,
elas so o meio que as fez florescer. Segundo: h uma reversibilidade entre as
obras e a atmosfera, de modo que nunca uma forma engendrada pela vida, mas
uma vida destacada de uma atmosfera e reconduzida a outras geografias culturais,
ao longo do tempo.

1.13 Mesons, Desejo e Sexualidade

A mesologia assimila os objetos externos e os agencia em si, tornando-os


internos justamente para apagar as fronteiras dentro-fora. Em termos spinozistas,
poderamos dizer que ela valoriza uma potncia passiva de ser afetado, ou seja,
uma passividade criadora. Tendo em vista essa peculiaridade metdica da
mesologia e esse seu carter incontornvel de ser uma teoria da recepo criativa,
justamente porque evidencia sua natureza relacional e mediadora em relao aos
termos iniciais e finais dos conceitos, autores e obras que agencia, uma das
premissas centrais da mesologia o papel ativo desempenhado pelo conceito de
transferncia. A aderncia a contextos tericos ou metatericos, histricos ou
valorativos, sociais ou geogrficos, circunstanciais ou biogrficos nos quais as ideias
surgiram, medida que se valorizam os ambientes de provenincia ou de chegada
dessas diferentes formas discursivas que conferem vida as ideias, foi amplamente
criticada por Karl Popper em sua obra clebre obra sobre o tema. O sentido mesmo
de se pensar em um contexto definido em termos positivos algo dificilmente
defensvel, no apenas do ponto de vista da filosofia da linguagem, mas de outras
linhas filosficas. O problema central dessa viso contextualizadora que ela no
consegue fornecer um mtodo de leitura transistrico dos fenmenos que recorrem
para alm das formas histricas e materiais que os engendraram. Mais que isso: do
ponto de vista epistemolgico, se um discurso tem um locus de nascena e um lugar
mais ou menos apropriado, toda a vigncia ulterior pode ser vista como um modo
expropriador de uma eventual significao primeira, o que no se justifica do ponto
de vista mesolgico.
137

Embora sinalize caminhos para se dirimir esses impasses, a mesologia no


pretende entrar nesse tipo de polmica, pois a polmica sequer se faz necessria.
Por qu? Porque a mesologia parte do conceito de deslocamento como pressuposto
metdico e como um a priori epistmico. A busca por uma origem, seja ela material e
historicamente rastrevel; a inveno de uma ancestralidade fundadora; a adoo
de um critrio gentico que vincule em termos necessrios fatos discursivos a dados
empricos; a defesa de esquemas apriorsticos de apreenso do real. Todas essas
premissas so mesologicamente entendidas como modos deslocados de
substancializar estruturas formalmente relacionais e, portanto, no-
substancializveis. O deslocamento um absoluto no-totalizvel, porque um
modo e no uma substncia. medida que o original, a primeira palavra e o texto
genesaco foram irreversivelmente perdidos, o deslocamento no um movimento
de analogia ou migrao de um sentido prprio a um figurado. A alteridade no se
constri mediante um regime de identidade prvio. O deslocamento o modo
mesmo de operar do pensamento, seja em nvel consciente, inconsciente ou
antropolgico. A diferenciao no a soma dos acidentes que se inscrevem em
uma dada substncia, pacientemente espera de serem redimidos no futuro
messinico da identidade. A diferenciao o modo mesmo pelo qual a linguagem
se dissemina e gera as aberturas do pensamento. A transferncia reside na
atividade de uma instncia de produo da realidade: o desejo.
O fenmeno da vida consiste em uma diversificao do ser, no em termos
de aperfeioamento ou de hierarquia, mas em termos da criao de regies de
simplicidade e de complexidade, dependendo da quantidade de variveis e de
diferenciaes internas que emergem nos sistemas, bem como ao nmero de
interaes possveis entre sistemas e meios e entre sistemas e meios entre si. Por
outro lado, os primeiros seres passaram a alterar o metabolismo do planeta e a
determinar um ambiente no qual a prpria vida pudesse prosperar. Esses mesmos
unicelulares, por exemplo, emitem propores imensas de gs metano, hostil vida.
Contudo foi justamente a emisso desses gases txicos que promoveu a
estabilizao qumica da atmosfera, a ponto de no haver a multiplicao indefinida
de oxignio e de outras substncias inflamveis, o que tornaria a Terra um pequeno
planeta gasoso feito de fogo e obstruiria o fenmeno da vida90. Essa condio

90
LOVELOCK , James. As eras de Gaia: a biografia de nossa terra viva. Rio de Janeiro: Campus;
1991.
138

paradoxal persiste e avana, quanto mais complexa a vida se torna. Trilhes e


trilhes de bactrias se multiplicam pelas superfcies cristalinas do mundo, dentro
dos organismos, nos tecidos vegetais e animais, nos campos, nas cidades, dentro
dos nossos corpos. A vida seria igualmente invivel se no existissem esses
microrganismos para catalisar e metabolizar os processos orgnicos nos quais todas
as esferas da vida esto envolvidas.
Esse aspecto da estrutura paradoxal da vida nos conduz a uma terceira
definio que determina a vida comovida: em sua estrutura fundamental a vida
desconhece a morte. A conscincia da morte um patrimnio ou um problema
exclusive de algumas poucas manifestaes da vida. A quase totalidade da vida do
planeta, que fundou a vida como fenmeno e que continua promovendo a existncia
da vida, como anjos materiais e finos invlucros invisveis dispersos pelas peles e
pelos abismos do planeta, constitudo por um nmero mnimo de seres vivos: os
eucariontes. O drama em trs atos de nascimento, procriao e morte lhes
indiferente. Durante os primeiros dois bilhes de anos da vida na Terra, as bactrias
e os procariontes determinaram todos os ncleos de atividade da vida, a partir de
um ciclo de vida extremamente simples e, acima de tudo, por um modo de
reproduo assexuada, baseado em diviso celular91. O mesmo ocorre com as
clulas dos organismos e do nosso corpo. Elas morrem, se multiplicam, nascem e
morre mais uma vez, aos bilhes ao longo de um breve perodo de tempo.
Transformam-se inexoravelmente em outras idnticas, de tamanho um pouco menor,
para depois se extinguirem e se multiplicarem em outras. A replicao do texto
gentico contnua, e com poucas variaes. A individuao que distingue as
clulas entre si feita de finas membranas, muitas vezes apenas formais, pois elas
compartilham de uma mesma substncia. Essa realidade nos conduz a outro
aspecto paradoxal da vida: a irreversibilidade. A vida eterna porque tudo pode ser
pensado como uma unidade viva. Mas a vida tambm est destinada a acabar. A
morte um escndalo do ser, pois todas as dimenses do ser permanecem em si
mesmas, e mesmo as formas processuais simples da vida se transmutam, mas no
morrem. Apenas para algumas espcies complexas a morte existe. Contudo h
outra aliana, muitas vezes desapercebida. Para os seres sexuados, os nicos para

91
RUFFI, Jacques. O sexo e a morte. Traduo Carlota Gomes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1986, p. 13 e seg.
139

os quais a morte existe, a imortalidade estaria intimamente relacionada quilo que


atesta essa mesma condio mortal, para justamente a superar: o sexo.
A sexualidade a porta de entrada dos seres mortais aos domnios da
imortalidade, justamente porque a sexualidade atesta os processos contnuos e as
vinculaes imanentes do ser das quais emerge o fenmeno descontnuo da vida
dos eucariontes. Apenas como continuidade ininterrupta de transformaes de
clulas em clulas, de iguais em iguais, possvel transcender o imperativo inscrito
da vida e sua condio mortal. O sexo o modo pelo qual a espcies complexas se
imortalizam e ao mesmo tempo o atestado incontornvel da finitude dessas mesmas
espcies. Essa contradio no corao do ser ser o substrato do que viemos a
chamar de civilizao. Haveria ento um paradoxo entre a vida que promove o
negativo de si mesma para se manter como vida? E haveria tambm um paradoxo
da vida sexuada que afirma sua finitude para poder se imortalizar? Esses paradoxos
teriam nascido de uma paradoxo mais fundamental entre orgnico e inorgnico?
Enredarmo-nos nesses labirintos continuarmos presos nas alternativas infernais e
nas bifurcaes de que falam Stengers e Deleuze. Quando o pensamento comea a
produzir bifurcaes quer dizer que estamos nos afastando da verdade e da
condio mais fundamental do ser, para o qual as bifurcaes simplesmente no
existem. nesse ponto das bifurcaes que entra uma teoria dos mesons.
Algumas linhas e teorias so especialmente afins proposta da mesologia.
Entre elas, ideias, conceitos e proposies advindas da antropologia e da
psicanlise. O tema do desejo ocupa um lugar nuclear na teoria mesolgica. Embora
eu pretenda adotar algumas definies do desejo geradas no mbito psicanaltico e
antropolgico, meu intuito contudo ser us-las em sentido deslocado, explicitando a
movncia do deslocamento, uma das pedras angulares da mesologia. Mesmo
assim, a relao entre desejo e mesologia exige alguns desdobramentos e algumas
respostas ainda que parciais. medida que a mesologia uma ontologia da relao,
como podemos pensar esse ser que se oferece como forma pura da relao em sua
posicionalidade real e, portanto, relativa? Se o modo relacional a prpria no-
substncia que enforma todos os seres em uma regio de abertura [Offenheit]
anterior s cises representacionais, como posicion-lo no mbito de uma realidade
ftica determinada e no interior de um mundo dado experincia? Nesse ponto, a
articulao entre desejo e mesologia se torna interessante. contraluz,
acidentalmente, a abordagem que a mesologia prope do desejo, sendo distinta da
140

abordagem de diversas linhas da psicanlise, concentra-se mais em formular uma


definio mesologicamente vlida e em definir a essncia mesma da energia
desejante do que em apontar o modo supostamente equivocado por meio do qual a
psicanlise teria concebido o desejo.
Em linhas gerais, a psicanlise pensa o desejo como uma forma pulsional
motivada por um recalque ou um trauma. Nesse caso o desejo visa um objeto que
uma projeo externa de uma configurao intrapsquica. Embora latente e no
patente, em termos psicanalticos essa configurao contudo definida como objeto,
por mais heterogneos que sejam a motivao inconsciente e o objeto parcialmente
consciente visado no ato desejante. Como possvel notar nesse esquema, embora
paream concepes muito distintas, haja vista as crticas ferozes da fenomenologia
ao psicologismo, tanto a psicanlise quanto a as filosofias da conscincia, de
Agostinho a Husserl, preservam-se no interior de um crculo no qual a
intencionalidade, seja ela consciente ou inconsciente, materializada no desejo, visa
sempre um objeto. Como se sabe, uma das crticas mais fortes e consistentes a
essa noo de objeto de desejo proposta pela psicanlise foi feita por Deleuze e
Guattari. Em termos mesolgicos, tampouco nesse caso nos interessa polemizar.
Mas no que consiste ento o desejo para a mesologia? Em que ele se
distingue da matriz cannica da psicanlise, se me permitido formular assim? Em
um primeiro ponto, a mesologia uma ontologia relacional por meio da qual a
realizao dos seres em sua perfeio no se deve complexidade ou
simplicidade das substncias das quais eles participam em essncia, mas ao modo
mesmo pelo qual eles internalizam as mltiplas mediaes que os conectam ao
mundo circundante e os singularizam. esse movimento centrpeto de
internalizao dos meios externos que leva a uma superao da dicotomia dentro-
fora, no apenas no nvel da conscincia, mas tambm no nvel ntico, ontolgico e
antropolgico. Ora, em termos puramente conceituais, a posicionalidade real dos
seres no exclui a necessidade lgica de compreender os nexos que os unifica em
nossa apreenso sensvel, seja essa explicao de ordem ontolgica ou
transcendental. Se o desejo o continuum que produz a conexo universal dos
seres, ele no uma substncia que objetiva se completar por outra substncia,
nem uma forma que aspira uma matria ou uma matria em busca da alteridade de
uma matria distinta de si. O desejo a forma pura insubstancial da relao que
conecta todas as demais relaes mediadas no mbito real e que efetua a sntese
141

entre a posicionalidade real dos seres e a estrutura ontolgica relacional global. O


desejo o modo de singularizao dos seres desejantes, ou seja de todos os seres
vivos, dos unicelulares aos seres mais complexos. A atividade desejante no
singulariza a substncia desses seres empiricamente determinados, porque sua
forma primeira relacional. Nesse sentido, o desejo promove um aprofundamento
de sua natureza radicalmente relacional, aprofundamento proporcional capacidade
de internalizar as mediaes e as redes relacionais nas quais cada um desses seres
empiricamente situados esto envolvidos.
Se entendermos o problema nesses termos, chegaremos a uma concluso
que pode soar forte em um primeiro momento. O desejo no tem objetos totais
perdidos, como o Objeto A de Lacan, nem uma gama de objetos parciais para os
quais direcionamos o fantasma do desejo como falta e por meio dos quais
projetamos a negatividade de nossas projees e a falncia de nossos processos
idealizadores. O desejo s possui um e apenas um objeto: ele mesmo. O nico
objeto do desejo a realizao intensiva e intensista da infinita cadeia relacional que
o define enquanto desejo. E aqui temos outro axioma da mesologia: o nico objeto
do desejo se apresentar a si mesmo, em uma posio concreta e mundana, como
singularizao do modo absoluto da relao. O desejo o meson que promove a
unificao de todo sistema relacional e singulariza a estrutura ontolgica global das
mediaes. Em outras palavras, o desejo o universal concreto da relao, assim
como o modo relacional a forma pura da infinita cadeia mediadora.
Esse modo absoluto apenas se realiza a si mesmo como intensificao de
sua prpria condio desejante e como apreenso das camadas mediadoras
internalizadas pelo ser desejante no ato de desejar. No se d a partir da projeo e
da apreenso de objetos externos, pois os objetos externos s so externos por uma
mera conveno da linguagem. Nascem de uma atividade psquica ou terica de
denegao ou de neutralizao das formas mediadoras, com o intuito de ignorarmos
o ncleo gerador da atividade desejante, relegando-a s formas representacionais
de nos relacionarmos com objetos supostamente exteriores. Desse modo, os seres
desejantes se embrenham em redes de dicotomias que seccionam a infinita malha
mediadora do universo, constituindo corpos extensos hipoteticamente externos, ou
seja, consciente ou inconscientemente isolados da cadeia mediadora pela fora
substancializadora e pelo processo de entificao do real. O nico objeto do desejo
se captar a si mesmo como modo absoluto da forma relacional pura. Quando o
142

faz, paradoxalmente o desejo singulariza o ser desejante medida mesma que o


esvazia de substncia e o revela como centro da atividade de internalizao de
relaes insubstanciais. A atividade desejante, para a mesologia, o corao de
todo o conhecimento e de todas as modulaes possveis do pensamento, pois o
desejo que conecta, em sua forma relativa, o modo absoluto por meio do qual o
desejo realiza em si a forma pura da relao, ou seja, a estrutura ontolgica global
da grande cadeia mediadora do ser. Assim surge outro axioma: o deslocamento o
modo relacional absoluto do desejo. Por isso, o nico modo de nos relacionarmos
com seres singulares por meio do deslocamento. Isso ocorre porque o modo
absoluto do deslocamento o desejo. E o desejo, por sua vez, a realizao formal
relativa do modo absoluto da relao, em sua estrutura ontolgica global.
Nesses termos, o desejo insubstancial porque tambm um meson.
Entretanto se distingue dos demais mesons por trs motivos. Em primeiro lugar,
porque o desejo o agente de singularizao dos seres e aquele responsvel pela
individuao mesolgica dos seres singulares vivos. Em segundo lugar, porque o
desejo promove a conexo entre todas as ordens mediadoras da physis. E o terceiro
termo de distino consiste no fato do desejo ser o ponto no qual se realiza a
autoapreenso da forma pura da relao em si mesma e, por conseguinte, em
termos lgicos e ontolgicos, a autorrealizao da forma pura da relao enquanto
relao pura no-relacional. O desejo insubstancial porque os termos
motivacionais e finais da cadeia que ele conecta so tambm eles cadeias mediais
maiores do horizonte infinito relacional sem substncia. Nesse horizonte, o desejo
o ponto de interseco entre a forma modal pura da relao e a causa eficiente
relativa das diversas mediaes e dos infinitos mesons. O ser do desejo e a forma
pura da relao so ontologicamente biunvocos. Ao passo que o desejo e a cadeia
mesolgica, o desejo e infinito das mediaes estabelecem, por seu lado, uma
relao equvoca, pois ambos os vetores s se realizam como formas parciais de um
absoluto relacional puro que o modo puro da relao.

1.14 Sistema, Meio e Produo


143

Por outro lado, quando se fala em meio, em teoria dos meios, em apropriao
dos meios e em tomada de conscincia dos meios, em primeiro lugar nos vm
mente duas das mais poderosas teorias dos meios: a dialtica antiga e sua
reinterpretao moderna feita por Hegel e Marx. Ambas as matrizes da dialtica,
antiga e moderna, pertencem na verdade a uma doutrina global mais ampla,
fundada sobre o conceito de reconhecimento e desenvolvida por diversos
pensadores em diversas diretrizes: a vida comum92. A partir dessa premissa, este
trabalho, medida que se prope como uma ontologia dos meios, tambm prope
delinear indiretamente e de modo propositivo como uma ontologia do comum ou, se
preferirem, um comunismo ou anarquismo ontolgico, e espero que isso possa ser
explicitado no seu decorrer. Voltando dialtica, comecemos pela dialtica
hegeliana e marxiana. O esquema dialtico do senhor e do escravo, baseado em
uma teoria do reconhecimento, fora filtrado por Marx sob um ngulo diferente, s
avessas do idealismo. Onde Hegel v um ainda-no da concordncia do sensvel
em relao sua reintegrao no esprito absoluto, Marx v o sintoma de uma
reintegrao impossvel sem uma alterao global das relaes materiais de
produo. No sentido dialtico relativo ao poder, essa vida comum consiste em um
esgaramento da relao senhor-escravo que por sua vez promove uma alienao
do escravo em relao ao senhor que detm os meios de produo. O senhor
conquistou esses meios custa da mais-valia e da alienao do trabalho escravo,
depositado como trabalho imaterial no valor destes mesmos meios de produo que
o senhor agora detm, graas ao trabalho do escravo, mas ao mesmo tempo contra
o escravo.
Contudo sempre importante lembrar o segundo termo dialtico. Nesse
processo de ruptura do reconhecimento das conscincias e da cadeia de produes,
no apenas o escravo que se aliena, ao ter seu trabalho transformado em mais-
valia convertida em valor para o senhor. O senhor se aliena de si mesmo medida
mesma que o escravo, no reconhecendo mais o senhor como fonte de valor ao
qual ele aspira em sua condio de escravo, passa tambm a romper o ciclo do
reconhecimento recproco. Sem esse reconhecimento o senhor tampouco pode ser
reconhecido como senhor pelo escravo e, dessa maneira, tampouco pode ser
reconhecido como senhor em si mesmo, pois no existe nada fora de uma esfera

92
TODOROV, Tzvetan. A vida comum: ensaio de antropologia geral. So Paulo: Unesp, 2014.
144

relacional. Como se sabe, Marx identifica nesse momento final e nesse limiar do
esgaramento dialtico mtuo que desagua em uma ruptura do reconhecimento por
ambas as conscincias e promove a emergncia do momento revolucionrio. Isso
quer dizer que a negatividade das relaes desarmnicas da dialtica senhor-
escravo no produzi uma fatalidade. Produz sim uma oportunidade e um devir,
inscrito nas malhas e na potncias adormecidas do ser, e que se realiza como
transformao e como pura positividade. A homeostase sistema-meio, justamente
quando encontra uma fratura, encontra nessa fratura no a forma fechada da
tragdia. Encontra a forma aberta e a pura mobilidade da pica: o momento propcio
para a reviso do sistema por uma nova apropriao dos meios, entendidos nesse
caso sempre como meios de produo.
A crtica de Marx s estruturas fundamentais do mundo moderno sempre se
pretendeu definitiva, justamente por ter conseguido explicitar a relao de
codependncia estrutural entre sistema e meio, entendido como produo. Por meio
dela, veio luz o modo pelo qual a diviso de classes e do trabalho, os meios de
produo e os jogos de iluso da superestrutura ideolgica se orquestravam em
uma sinfonia to sinistra quanto pattica. Ele detectou de modo brilhante que quanto
maior era a alienao gerada pelos meios de produo, mais reais eram as
miragens e os sonhos de incluso que entorpeciam os excludos e os distanciavam
de uma tomada de conscincia de sua real condio de classe, fossem eles
proletrios ou burgueses. Em outras palavras, a lgica da mercadoria e da mais-
valia produziria tanto a excluso real dos oprimidos quanto a incluso ilusria dos
opressores, ambos submetidos fora motriz da alienao, corao do capital. A
passagem das economias centradas no MCM [mercadoria-capital-mercadoria] para
uma organizao CMC [capital-mercadoria-capital] caracteriza de maneira decisiva o
princpio de acumulao propriamente capitalista e o regime de alienao sobre o
qual ele se estrutura. A partir de condies materiais dadas e de um acmulo de
meios quantitativos, tratava-se de conduzir a histria a um salto qualitativo-
revolucionrio que iria reverter dialeticamente o princpio de alienao que rege o
modo de produo capitalista. At aqui, nada de novo sob este o sol geral da teoria
marxista.
Nas ltimas dcadas presenciamos algumas mudanas agudas na
organizao social: o fim do bloco socialista, a emergncia de uma sociedade ps-
industrial de consumo, a volatilizao do dinheiro no capitalismo financeiro, a
145

reticulao planetria dos meios de comunicao de massa. Em resumo, a


universalizao do capital como forma pura de todas as mediaes da vida. Essa
transformao foi prevista no apenas pelo velho Marx, mas tambm por Max
Weber, que a sintetizou em sua conhecida imagem da gaiola de ouro. Quanto maior
a racionalizao da vida, maior o desenvolvimento tcnico e cientfico. Quanto maior
este desenvolvimento, maiores e mais eficientes os instrumentos sociais de controle
da vida. Em outra chave, Michel Foucault tambm contribuiu para diagnosticar o
paradoxo da emancipao-domesticao que marca a modernidade.
Todos esses elementos evidenciam uma inverso decisiva nas estruturas
clssicas de poder. Qual ? O mundo contemporneo pode ser definido a partir do
deslocamento de um postulado central da teoria marxista: a assimilao da
infraestrutura pela superestrutura. No existem mais modos de produo prvios,
geradores da ideologia que os veicular. Em outras palavras, todo poder que
exercemos ou sofremos materialmente se produz e se legitima como representao
de uma representao anterior, ou seja, como simulacro. Isso ocorre porque a
superestrutura global dos meios de produo no mais regida por meios de
produo materiais, mas por foras representacionais do mbito do consumo:
desejo, esperana, sonho, pertencimento, realizao, autoestima. Em resumo: por
uma erotizao do narcisismo. Com o fim da Guerra Fria e a Queda do Muro de
Berlim, a emancipao do proletariado se realiza paradoxalmente como revoluo
hedonista das massas consumidoras. O mximo de desenvolvimento tcnico passa
a produzir o mximo de controle. O mximo de superfluidade das trocas gera o
mximo de descartabilidade da vida. Nas economias de mercado, polinizadas em
todos os cantos do planeta pela exploso miditica, o invlucro das coisas assume o
lugar das coisas.
Isso quer dizer: no movimento diferencial das snteses concretas, o simulacro
se repete como simulacro de si mesmo. Finalmente, a histria se repete como farsa.
Mas afinal quem disse que a farsa no pode ser um modo legtimo pela qual a
histria consegue se realizar em sua sntese precria? Diante desse cenrio,
deparamo-nos com o avesso da dialtica. Atravessar esse avesso viver na carne a
alienao da alienao, ou seja, a inviabilidade de reconstituir o percurso material
por meio do qual a alienao se produz. Niilismo? Nem tanto. Basta sabermos em
que commodities investir nosso prazer e em que corpo penetrar nosso sexo
cansado. Toda angstia se resolve. Desse modo, tornam-se involuntariamente
146

cmicas as imagens dos ludistas do sculo XIX destruindo as mquinas para acabar
com a explorao. No sculo XXI, as mquinas se domesticam e se suavizam cada
vez mais, enquanto o controle apenas aumenta, em doses homeopticas de prazer
distribudas s multides silenciosas. Se antes os meios de produo eram
idealizados para representar as formas relativas de mediao, hoje so as
mediaes que determinam o que deve ou no ser materializado no plano real. Se o
capital foi durante muito tempo a materializao universal por meio do qual se
realizaram trocas de objetos relativos, hoje em dia o conjunto das mediaes a
forma pura, absoluta e universalizada do capital. Qual seria ento a ncora que
unifica todas as dinmicas mediadoras? O desejo. Assistimos ao incio de uma
revoluo dos modos de produo. Desde a era agrria at a universalizao do
capital, a humanidade viveu uma cultura de instrumentos e de mediaes que
possibilitaram a conexo entre dois objetos. Ingressamos agora em uma era na qual
essa mesma humanidade transformou o meio em fim. E o meio o desejo, no a
mensagem, parodiando McLuhan. O desejo movedio, contraditrio. Tende a se
esquivar e a se multiplicar ao infinito. Mas apenas sob a lei do desejo poderemos
fugir dos simulacros. Na mesologia, o desejo pode ser entendido como a forma final
por excelncia da mediao.

1.15 Capital, Metabiologia e Mesons93

Como se sabe, h uma polemica interna aos hermeneutas de O Capital. Ela


se baseia em duas frentes. A primeira diz respeito a possibilidade de
compreendermos o opus magnum de Marx como uma unificao entre o mtodo
critico-dialtico e o pensamento ecossistmicos das cincias naturais e das filosofias
da natureza. Essa polemica tambm tem uma segunda vertente: a defesa da
possibilidade de descrever todo pensamento de Marx como uma atualizao critica
da ontologia, e, portanto, de uma ontologia global das trocas e dos processos.
Coloco esses dois problemas lado a lado, embora aparentemente eles seja apenas

93
At onde consegui pesquisar, apenas Jutta Weldes entre a teora marxiana como uma ontologa
relacional: Marxism and methodological individualism. Theory and Society
May 1989, Volume 18, Issue 3, pp 353-386
147

abordagens distintas do pensamento de Marx. E o fao justamente porque acredito


que a ciso dessas duas perspectivas e um dos tantos problemas das polarizaes
que apenas continuam sendo entendidas como polarizaes porque no receberam
o devido escrutnio dialtico. Ambas as abordagens de Marx e do capital no fundo
surgem de um mesmo questionamento e por isso podem ser unificadas sob uma
mesma teoria. O problema de se chegar a uma sntese entre abordagens sistmicas
e ontolgicas do funcionamento do capital, alm de ser de enorme envergadura,
coloca-se no amago do desenvolvimento de uma ontologia relacional.
Alm das mudanas de esquadro politico e histrico, a base da renovao
ocorrida a partir da dcada de 1920 tambm diz respeito a mudanas
epistemolgicas interiores a um quadro conceitual geral do que seria uma teoria
marxiana. Lukcs foi um dos mais importantes protagonistas desse guinada. Em
termos tericos, a guinada ontolgica de seu pensamento revela outro aspecto: uma
busca de refinamento conceitual. Esse refinamento conceitual ligado a novas
abordagens da teoria marxiana pretendeu distanciar-se dos modelos cristalizados do
materialismo histrico e matizar a conceituao, como uma maneira de retomar o fio
dialtico da Revoluo de 1917, que parecia ter se rompido com a ascenso
stalinista. Ganharam espao crescente as teorias heterogneas e de diversas
orientaes ideolgicas, mas que podem ser reunidas sob o nome de marxismo
ocidental, todos de algum modo crticos do materialismo histrico de base cientifica
que teria fornecido o arsenal terico para a construo do totalitarismo stalinista94.
Contudo essa renovao da teoria marxiana, levada a cabo majoritariamente
no Ocidente, comeou a se desmembrar em duas correntes que se complementam
e em alguns pontos divergem entre si: as concepes humanistas e anti-humanistas.
Enquanto as primeiras pensam a dialtica como um modelo de emancipao e
protagonismo do ser humano na histria, por meio da emancipao coletiva, a
segunda se atem mais aos processos impessoais e macroestruturais do poder e do
capital, ou seja, dos modelos e configuraes que sobredeterminam as relaes de
necessidade ou contingencia do devir histrico. Esse dilema passa pelo crivo de
abordagens mais humanistas e emancipacionistas do funcionamento do capital e
outras, mais ligadas a modelos sistmicos e ontolgicos de compreenso desse
mesmo funcionamento. Haveria dois modelos, um fundado sobre a descrio

94
MERQUIOR, Jos Guilherme. O Marxismo Ocidental. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.
148

cientifica e impessoal de processos inexorveis do sistema capitalista e a outra que


propem uma possibilidade de emancipao coletiva e individual emergente do
interior dessas mesmas estruturas. A sobreposio de ambos os modelos em
discursos bivalentes em sob a forma do double bind e algo que caracteriza a razo
cnica da sociedade contempornea a partir de meados do sculo XX ate os dias de
hoje95. A despeito dessas transformaes, as vertentes de anlise estrutural,
sistmica e ontolgica da teoria marxiana encontram entre seus principais
proponentes, respectivamente, Louis Althusser, Immanuel Wallerstein e Gyrgy
Lukcs.
Mas se o marxismo fora desde a sua origem uma teoria profundamente
marcada pela emancipao humana, como fora possvel surgir uma teoria marxiana
baseada no ponto de vista anti-humanista dos sistemas, das estruturas e do ser?
Essa possibilidade se deve a um grande veio terico presente em O Capital e nos
Grundrisse, e muitas vezes negligenciado pelos pensadores revolucionrios que
apreendiam e amplificavam apenas a dimenso utpica do jovem Marx. Esse veio
terico diz respeito ao dialogo estabelecido por Marx com os sistemas
metabiolgicos do sculo XIX, especialmente com Darwin. Um aspecto central para
compreender o pensamento de Marx, sobretudo em O Capital, diz respeito a uma
aliana que realiza entre os mtodos crtico e dialtico. Essa aliana tornou-se
possvel porque Marx unificou as teorias polticas-econmicas clssicas britnicas,
as ferramentas da filosofia alem e os princpios do utopismo francs. A partir dessa
nova cincia crtico-dialtica, Marx criou um modo de compreender o funcionamento
global do capital, aspecto no contemplado por nenhuma das anlises que
reduziram o capital a um fenmeno regional. Como se sabe, o Livro I aborda o
capital no do ponto de vista do mercado e do comrcio, mas da produo. Por seu
lado, o Livro II analisa as relaes de troca. Ao passo que o Livro III concentra-se
nas crises e contradies do capital financeiro, bem como em fenmenos como
juros, renda, lucro. A dificuldade se encontra no fato de os Livros II e III terem ficado
inconclusos. Alm disso, diferente da enorme abrangncia dos exemplos arrolados
no Livro I, que vo de Shakespeare e Balzac a contos de fadas, nos Livros II e III
Marx concentrou-se na tarefa de delinear tecnicamente dois conceitos: produo e

95
SLOTERDIJK, Peter. Crtica da razo cnica. Traduo e coordenao Marco Casanova. Equipe de
traduo: Paulo Soethe, Pedro Costa Rego, Mauricio Mendona Cardozo e Ricardo Hiendlmayer.
Preparao de originais Rodrigo Petronio. So Paulo: Estao Liberdade, 2012.
149

realizao. Ambos so entendidos como uma unidade contraditria. Nesse sentido,


estes dois livros so mais ridos. Neles a crtica da economia poltica deixa de ser
feita com base em imagens da produo social de cada tempo e passa a ser
entendida como um funcionamento do capital em estado puro. Ambos so
essenciais para compreender a produo do mais-valor e como este extrado do
trabalho e adicionado produo e circulao geral do capital. Nesses termos,
interessante ressaltar a importncia das leis naturais no Livro II. Elas conferem
anlise do capital um valor cientfico, aproximando-a das relaes de metabolismo
dos sistemas orgnicos96.
Por isso, para alm das especificidades de cada volume, alguns tericos tem
chamado a ateno para a possibilidade de compreender a abordagem sistmica
como uma linha de unificao do pensamento desenvolvido na obra-prima de Marx
para conseguir dar conta do fenmeno vasto da mecnica do capital em todas suas
dimenses. Um dos mais respeitados interpretes de Marx nos dias de hoje, como
David Harvey, tem ressaltado a importncia dessa segunda chave, ou seja, da
adoo por parte de Marx de sistemas de metabolismo dos processos naturais para
compreender a dialtica das trocas, produo e mais-valia da atividade global do
capital97. As metforas sistmicas e orgnicas so de extrema relevncia nesse
caso. E podem frustrar aqueles que gostariam de enxergar na crtica radical do
capital a consumao das utopias do jovem Marx. Produo, distribuio, troca e
consumo: esses seriam os quatro pontos cardeais da circulao do capital entendido
em sua generalidade, particularidade e singularidade98. Nessa chave, David Harvey
entende a concepo de Marx como ecossistmica, relacional, dialtica e orgnica.
Ou seja, como um mtodo crtico-dialtico de anlise capaz de decompor todas as
formas atuais ou virtuais, passadas ou futuras da produo do capital. Nessa chave,
o prprio processo de ascenso do capitalismo poderia ser entendida a partir de
modelos metabiolgicos, em uma relao de espelhamento entre dialtica e
metabolismo.
Paralelamente a essa concepo sistmico-orgnica do pensamento de Marx,
desenvolveu-se uma vertente de anlise de sue pensamento como uma ontologia. A
96
HARVEY, David. Para entender O Capital: Livros I, II e III. Dois Volumes. Traduo Nelson Enderle.
Sao Paulo: Boitempo, 2013-2014.
97
HARVEY, David. Para entender O Capital: Livros I, II e III. Dois Volumes. Traduo Nelson Enderle.
Sao Paulo: Boitempo, 2013-2014.
98
HARVEY, David. Para entender O Capital: Livros I, II e III. Dois Volumes. Traduo Nelson Enderle.
Sao Paulo: Boitempo, 2013-2014.
150

medida que a teoria do capital e uma teoria das formas globais de produo e troca,
ou seja, uma teoria global dos meios, o sentido critico presente nessa economia
politica no seria algo da ordem discursiva ou racional. Pelo contrario, a critica se
manifestaria em crises das mediaes e dos processos globais de produo, troca,
distribuio e consumo, ou seja, nos processos internos ao tecido mesmo da
realidade. Em outras palavras, a teoria de Marx no seria mais uma filosofia critica
nos moldes do pensamento herdeira do Aufklrung, do criticismo kantiano ou do
racionalismo cartesiano, embora os assimile. Ela seria sim uma teoria geral dos
desdobramentos e das mediaes produzidas no cerne da contradies do real:
uma ontologia.
Talvez o nome de maior destaque dessa vertente seja Gyrgy Lukcs. Para
Lukcs, o mundo moderno um desdobramento da questo da dupla verdade. Essa
concepo se desenvolveu a partir do chamado averrosmo latino e teve seu pice
no sculo XIII, com a teoria nominalista, que propunha uma ciso entre linguagem e
ser99. Para Lukcs, o cardeal Belarmino, que atuou no julgamento de Galileu, no
sculo XVI, marca a guinada decisiva desse movimento dissociador. Dessa
distase, diramos. A diviso da verdade em um duplo reino, um da f e outro da
natureza, atendeu a uma dupla necessidade da burguesia ascendente. Por um lado,
liberou a natureza para uma manipulao irrestrita e gerou assim uma sociedade
tecnicista. Por outro, fortaleceu o aspecto transcendente da f, minimizando a
potncia racionalizadora interna s religies, potncia esta descrita magistralmente
por Max Weber, um dos inspiradores do jovem Lukcs.
Nesse sentido, cincia e f seriam as duas armas pelas quais o mundo
burgus criou suas instncias de legitimao, minando a possibilidade de conceber
uma ontologia geral, ou seja, de entender o real como racional, como queria Hegel.
Esse divrcio teria gerado uma compreenso cada vez mais instrumentalizada da
linguagem e cada vez mais imanente da natureza. Belarmino orquestrou a
capitulao da filosofia da natureza s exigncias de uma manipulao
antiontolgica. Ao se afastarem do ser, a cincia se tornou tecnicista e a religio,
irracionalista. Por isso, a obra de Lukcs se abre com uma crtica dupla. Primeiro, ao
neopositivismo lgico do sculo XX, sobretudo a Carnap, e, de modo mais atenuado,

99
Conferir tanto os Prolegmenos quanto o dois volumes de Para uma ontologia do ser social:
LUKCS, Gyrgy. Prolegomenos a uma ontologia do ser social. So Paulo: Boitempo, 2010.
LUKCS, Gyrgy. Para uma ontologa do ser social. Dois volumes. So Paulo: Boitempo, 2012-2013.
151

a Wittgenstein. Segundo, ao existencialismo. Ao refutar a abordagem ontolgica, o


neopositivismo teria fornecido uma base conceitual que poderia ser apropriada a
uma instrumentalizao da linguagem. Em temos ideolgicos, Lukcs tambm est
pensando no impacto poltico dessa instrumentalizao. Ela poderia se converter em
um perigoso alimento de teorias manipuladoras, de vises estrategistas e anti-
humanistas, como a da poltica sovitica a partir de Stalin.
Por isso, critica tambm a concepo positivista de cincia, em ascenso
desde o sculo XIX. Ao se propor como uma anlise neutra da natureza,
paradoxalmente a cincia de inspirao positivista ocultaria em si os atos de f que
a animam, e, ao faz-lo, no estaria produzindo cincia, mas sim ideologia. Por sua
vez, o existencialismo seria um modo de preservar a ideia de Deus sob uma
camuflagem atesta. Alm disso, seu pessimismo conduziria a uma inrcia em
relao s transformaes sociais. Em um segundo momento, Lukcs reconstri o
percurso do estudo do ser, discriminando ontologias autnticas e inautnticas.
Critica Heidegger e as propostas vitalistas e irracionalistas de Bergson e Nietzsche.
Em seguida, retoma a ontologia de Nicolai Hartmann, autor importante e infelizmente
ainda hoje pouco lido. Usa-o como modelo para retificar os equvocos que
vinculavam a ontologia a um pensamento metafsico. No terceiro captulo, Lukcs
produz um salto. Em sua longa anlise de Hegel, demonstra como a ontologia
hegeliana apresenta a possibilidade de superao do hiato entre natureza e histria.
Portanto, Hegel seria uma chave-mestra para retificar a diviso da verdade ocorrida
com a emergncia da racionalidade instrumentalizadora burguesa. Esta, para
Lukcs, padece de uma rgida delimitao entre procedimentos histricos e
abstrativo, genticos e sistemticos. A sntese dessas contradies s se completa
quando lanamos luz sobre a dimenso ontolgica da obra de Marx. A parte final da
obra uma minuciosa anlise ontolgica do sistema marxista. Por meio da teoria do
espelhamento, Marx teria refinado o idealismo objetivo de Hegel, e, portanto,
finalmente consumado a superao definitiva de todo dualismo ontolgico.
Em sua perspiccia intelectual, Lukcs percebeu que sem um
aprofundamento terico e um projeto cultural o marxismo no conseguiria superar os
impasses do materialismo histrico e, a partir de pretextos cientficos, ou seja,
neopositivistas, fatalmente criaria sistemas totalitrios. A renovao de Lukcs,
Bloch, Korsch, Gramsci, Kosk se intensifica com a estrela solitria e redentora
chamada Walter Benjamin e com a Escola de Frankfurt. Seguindo ventos mais ou
152

menos propcios, a partir dos anos 1960 essas mars se desenham em uma
oscilao entre posturas ps, anti e neomarxistas. V-se uma percepo ps-
marxista na midiologia de Debray, em Colletti, em Wallerstein, em Giddens, no
debate da derivao do estado de Mller e Neusss, bem como na teoria da lgica
do capital de Hirsch. Em contrapartida, haveria um antimarxismo nas crticas ao
politismo [maximizao da poltica e minimizao da economia], empreendidas por
Holloway e Picciotto, e nas crticas aos inimigos das sociedades abertas, feitas por
Popper. Contudo, um dos aspectos que tem se tornado cada vez mais presente na
teoria marxiana contempornea e a conciliao possvel entre H, por fim, o
florescimento de uma tradio neomarxista, nos herdeiros da teoria crtica e na nova
esquerda, em um prisma matizado que vai de Deleuze, Agamben, Badiou, iek e
Sloterdijk.
A partir dessa intuio, a teoria marxista se alinha as teorias sistmicas.
Tendo em vista que Sloterdijk e um autor egresso e, poder-se-ia dizer, um dissidente
da teoria critica e da herana da Escola de Frankfurt, pode-se dizer que por outro
lado nunca abandonara totalmente o sentido critico dialtico. Por essa razo, sua
fenomenologia das formas apenas aparentemente pode ser entendida como uma
reatualizao do idealismo ou do transcendentalismo, como ocorre com autores
como Ernst Cassirer ou como Benedetto Croce. Nesse sentido, um dos maiores
expoentes dessa simetria entre a ascenso do capitalismo planetrio e a descrio
sistmica global de processos e Immanuel Wallerstein e sua teoria acerca da
emergncia de um sistema-mundo100. As correlaes possveis tanto com entre a
teoria do sistema-mundo, mesologia e a esferologia e marcante101. Tambm nos
caminhos abertos pela semitica possvel detectar esse reposicionamento da
ontologia para o centro do debate. Lucia Santaella desenvolve esse
reposicionamento como uma espcie de modelo-padro para pensar o mundo
contemporneo102. A partir do estudo das mdias, a ontologia deixa de ser concebida
como metafsica, ou seja, como uma anlise da substncia do mundo. Passa a se
ocupar, ao contrrio, das relaes, associaes, mediadores e agentes desse
100
WALLERSTEIN, Immanuel. World-Systems Analysis: An Introduction. Durham, North Carolina:
Duke University Press, 2004.
101
SLOTERDIJK, Peter. Esferas II: Globos. Macrosferologa. Traduccin Isidoro Reguera. Prlogo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2004 [Publicao Alem: 1999] SLOTERDIJK, Peter. Esferas
III: Espumas. Esferologa Plural. Traduccin Isidoro Reguera. Prologo Rdiger Safranski. Barcelona:
Siruela, 2006 [Publicao Alem: 2004]
102
SANTAELLA, Lucia. Comunicao ubqua: Repercusses na cultura e na educao. So Paulo:
Paulus, 2013.
153

mesmo mundo. Nessa linha, Santaella aproxima-se da ontologia das redes criada
por Latour, alm de dialogar com a sua teoria do ator-rede, uma das mais instigantes
do pensamento contemporneo. Em um dos momentos mais finos da obra,
Santaella desfaz as fronteiras entre mente e corpo, entre subjetividade e
objetividade. Repensa as relaes intersubjetivas depois do advento da internet. E, a
partir de Foucault, Deleuze e Guattari, evidencia quais os novos dispositivos de
saber-poder emergentes do ciberespao, bem como as redes e a nova configurao
da sociedade do saber103.

1.16 Mesons e Narrativa

A hiptese central da mesologia se inspira em algumas premissas. Dentre


elas podemos destacar uma que recobre o seu ponto nuclear, relativo s categorias
relao e substncia: toda reconstruo dos modos pelos quais o real se processa
que se baseie em uma demarcao substancial de agentes e pacientes dessa
cadeia processual uma reconstruo que entifica seus mediadores,
substancializando-os. , portanto, em termos mesolgicos, uma reconstruo
equivocada. Nesse sentido, a mesologia prope um entendimento dos sistemas de
mediaes que podem e, quase sempre, so e devem ser materiais, mas que nunca
so substanciais. Isso quer dizer que a mesologia consiste em uma ontologia
relacional dinmica. As descries discretas de sua natureza processual em etapas,
atores, agentes, pacientes, cenrios, origens e fins meramente narrativa e no
substancialista. Parafraseando uma bela metfora de Borges para descrever a
literatura, no possvel uma delimitao ontolgica dos personagens fictcios ou
dos atores reais envolvidos no tecido relacional seno como pontos relacionais de
uma trama que os dilui em seu conjunto e cuja existncia singular como ponto s
existe mediante a trama na qual os pontos esto inscritos e determinados como
trama de pontos.
Dois desses pontos metatericos da mesologia saltam aos olhos ao
formularmos esse tipo de reflexo. O primeiro consiste na impossibilidade de definir

103
LVY, Pierre. A Inteligncia coletiva por uma antropologia do ciberespao. So Paulo: Loyola,
1999.
154

em termos positivos realidade e fico em planos ontologicamente distintos. O


segundo consiste em uma sntese parcial da dialtica dentro-fora em uma dimenso
que podemos definir como a forma pura da interioridade ontolgica. A articulao
entre essas duas matrizes da mesologia nos leva a uma proposio que pretende
ser perseguida como leitmotiv nos estudos mesolgicos. Ela consiste mais ou
menos no seguinte axioma: a impossibilidade de conceber um espao ontolgico
exterior ao espao real no qual se desdobra empiricamente uma totalidade parcial
dos seres existentes no significa que no haja um espao exterior s
determinaes formais do realizvel no plano do pensamento. Essa concluso nos
conduz a outro axioma que, de certa maneira, completa esse anterior: diante da
impossibilidade de ambas dimenses, a do pensamento realizvel e a do real
pensvel, se recobrirem mutuamente, e devido ao fato de ambas instncias
apresentarem uma assimetria estrutural, todos os modos, seres e nveis de
existncia s se realizam formalmente e substancialmente como instncias
mediadoras do pensamento, ou seja, como cadeias relacionais mesolgicas, no
havendo nenhum ciso representacional possvel entre pensamento e mundo.
Desse modo, chegamos a uma concluso provisria segundo a qual a mesologia,
entendida como teoria estruturalmente relacional, estabelece com a linguagem uma
conexo unvoca, ou seja, seu modo de se relacionar com a linguagem no
parcial, mas absoluto. E o modo pelo qual a linguagem se relaciona com o mundo
tampouco pode ser positivo ou relativo, medida que o mundo nada mais do que
a cadeia infinita de mediaes parcialmente realizveis e pensveis, de acordo com
a posicionalidade e a instalao relacional. Nesses termos, do ponto de vista da
mesologia, no h distino entre linguagem e estado de coisas, entre entes reais e
racionais, entre estruturas formais e bases hilticas, entre estruturas eidticas e
noticas.
No havendo essa distino, a cadeia mesolgica pode ser entendida como
uma razo narrativa cuja conexo realiza a forma pura da relao, ou seja, as
substncias implicadas no processo mediador so construes ilusrias e snteses
dialticas parciais do modo absoluto de ser do real, ou seja, do ser da relao. A
forma pura da relao explicita contraluz e dialeticamente o vazio da substncia.
As substncias, por sua vez, no se individuam e se singularizam por meio da
relao matria e forma, como pensou a metafsica. As substncias s se
singularizam recortadas contra o absoluto da forma relacional e no substancial que
155

determina o regime e o modo relativo e absoluto de todos os seres. Todas as


instncias formadoras da realidade e do pensamento so estruturas narrativas
incomensurveis entre si, por no consistem em substncias simples ou compostas
que assumem graus mais ou menos reais de participao e relao. So modos de
habitar a forma pura das mediaes e, portanto, processos mesolgicos impassveis
de discrio e de substancializao.
Por ignorar a potncia da categoria relao, escamoteando-a como o mero
intervalo que liga dois entes reais ou categoriais ou que liga os predicados s
substncias e a forma matria, em esquemas hilemrficos, durante muitos sculos
a dualidade ontolgica fundamental foi regida por uma relao dialtica que oscilou
em linhas gerais em um leque metafsico que recobre trs doutrinas fundamentais: a
univocidade, a equivocidade e a dualidade de substncia. A partir desse leque
fundamental, desdobrou-se todo o pensamento entre realidades eidticas e
fenmenos, no sentido de Plato, e entre seres extensos e seus respectivos modos
lgicos de predicao, como pensaram Aristteles e boa parte do realismo
escolstico. No estamos em um terreno muito distante quando pensamos na
substncia pensante cartesiana e na diviso entre res cogitans e res extensa. Onde
alocar o papel das mediaes nesse sistema? Elas parecem evaporar.
Um dos pensadores que mais agudamente se defrontou com essa aporia foi
Leibniz. Em seu sistema da natureza, ao se defrontar com o problema da
comunicao das substncias, vendo-se diante da impossibilidade de pensar o
modo puro da relao e a demanda de uma explicao causal necessria que
resolvesse a aporia da comunicabilidade de todas as substncias entre si, resolveu
esse impasse ao postular uma substncia imaterial, mnada das mnadas. Ela
absolutamente simples, no absolutamente relacional. A comunicao das
substncias se daria pelo concurso de uma substncia radicalmente simples,
mediadora universal. Mesmo assim, trata-se de uma categoria do modo substancial,
no de uma forma pura da relao. No mesmo sentido, em termos kantianos, o
dualismo esquemtico resolve o problema da dualidade por meio da forma pura da
deduo transcendental. Assim unifica as categorias apriorsticas e os modos a
posteriori de organizao da experincia emprica no interior do sujeito
transcendental.
A sntese entre conceito e contraconceito se realiza no modo no-substancial
do Esprito e na autoapreenso da conscincia. Entretanto, o telos da
156

autorrealizao da conscincia no conceito e do Esprito em forma de Estado uma


superao do modo puramente relacional em busca de uma sntese na qual as
mediaes sejam absorvidas e dissolvidas na autorrealizao no-mediada do
Esprito. Sequer a dialtica entre ser e autenticidade da ontologia antimetafsica de
Heidegger escapa ao horror vacui e ao terror metafsico produzido pela forma pura
da mediao. Haja vista a sua conceituao de tcnica, que nada mais do que
uma destruio de todo potencial mediador e de toda operosidade humana
relacional, definidos como motor do milenar processo de entificao do ser
promovido pela metafsica que reduz a tcnica e seu potencial mediador a um mero
agente causador do longo esquecimento do ser pelo Ocidente. Uma genealogia
dessas novas configuraes fica mais clara a partir da obra de Shakespeare e de
seu potencial explicitador de mesons e meios104.

1.17 Dualismo, Monismo, Pluralismo

Primeiro preciso superao o dois. Em seguida, preciso superao o um.


preciso que as dualidades entre norma e lei, entre desejo e transgresso, entre
regra e exceo, ou seja, todos os conjuntos e sries de antinomias, encontrem a
sua ancoragem para alm das snteses parciais e da seduo da totalidade. A
superao do dois um imperativo, pois a dilacerao da vida entre polos produz a
perda do sentido da vida como fluxo, para alm das deliberaes racionais. Quando
penso que preciso escolher, isso uma iluso cristalina: uma iluso decisria. A
frase eu preciso escolher no passa de um eco de uma reverberao anterior e
interior que no possui nem um comeo e nem um fim, nem um sujeito de desejo
identificado nem um objeto de desejo determinado. Quando a pronuncio, no mago
do meu ser e em meu corao, uma frase-silncio diz: algo em mim escolheu antes
e depois da enunciao. Pensar a partir do signo do dois o inferno em vida.
Quando achamos que a alternativa a A precisa ser B, optamos por B. Mas logo um
C surge como uma alternativa a B. Ento C ser a nova verdade at que D venha se

104
Um importante trabalho para compreender esse movimento mundial a filosofia da globalizao
desenvolvida por Sloterdijk: SLOTERDIJK, Peter. Palcio de Cristal: para uma Teoria Filosfica da
Globalizao. Traduo Manuel Resende. Coleo Antropos. Lisboa: Relgio Dgua, 2005.
157

colocar com toda sua urgncia. E nos sentiremos impelidos a escolher entre C e D.
O ciclo infinito e apenas se fecha com a ironia: quando chegarmos a Z,
provavelmente Z nos levar de volta a A. Se existe o inferno, ele no sombrio. Ele
atua em plena luz do dia, nos lugares tranquilos e transparentes. O inferno a soma
de todos os momentos em que agimos, pensamos e vivemos por bifurcaes.
Whitehead e Deleuze perceberam a atividade do demnio das bifurcaes com uma
lucidez inaudita.
Contudo tambm preciso superar o um. Durante muitos sculos o um foi
concebido imagem e semelhana da totalidade, contra as multiplicidades e
pluralidades do ser. A oscilao entre Atenas e Jerusalm apenas reforou as
imagens fascinantes do um, entendido como absoluta transcendncia de Deus ou
absoluta transcendncia do Conceito. Apenas a partir desse transcendentalismo
absoluto foi possvel blindar o devir no-discreto do real entendido como fluxo,
fixando-o no espao celeste das figuraes de Deus e do ser, ambos alocados em
uma esfera extramundana. O um passou assim a ser pensado como sustncia ou
como agente, como conceito ou como alteridade, abandonando sua natureza
transitiva e infinita. Em outras palavras, o um deixou de ser a unidade relativa do
infinito e passou a ser a unidade absoluta de um sujeito ou de uma substncia, de
Deus ou do ser. Por isso, o pensamento precisa superar a acepo do um como
substncia e como alteridade, pois em ambas as acepes o termo final da relao
se coloca como variaes da totalidade e da alteridade. Essas duas matrizes,
medida que postulam uma unidade ou alteridade transcendentes, passam a
inscrever o ser no regime da mesura, a conferir uma medida ao infinito relacional. A
sustncia primeira, o primeiro motor, o uno ou as ideias no podem ser
desmesurados, pois eles so atributos de racionalidade e desse modo, fecham o
infinito em uma esfera. Tampouco Deus o monstro da desmesura, como querem
algumas leituras crists, pois mesmo sendo monstruoso, medida que Deus, dota
de sentido o infinito, ou seja confere medida a absoluta desmesura do infinito, e,
desse modo, produz racionalidade. e so mesons do infinito, e apenas podem ser
assim compreendidas se a inscrevermos novamente em uma horizontalidade
relacional, subordinadas ao infinito.
O problema do infinito e a relao incomensurvel que o infinito estabelece
com a totalidade do real nos conduz a outro axioma da mesologia: e a totalidade de
tudo o que existe apenas pode ser pensada como totalidade medida que realiza
158

em si o infinito. Como compreender esse axioma? E por que a relao atualidade e


virtualidade foi pouco explorada pelo pensamento? H mais de dois mil anos, a
passagem do uno ao mltiplo e o retorno deste quele se faz mediante o princpio
de equivocidade que rege os seres e promove as gradaes e as hierarquias de
suas constituies imanentes. Se quisermos entender a equivocidade como um
principio inscrito em tradies mais antigas, e apenas sistematizada pelos gregos,
podemos recuar a matrizes egpcias, hiperbreas ou mesopotmicas105. O
importante assinalar que essa a tnica do pensamento desde a fundamentao
do regime de equivocidade no Parmnides e no Sofista, obras nas quais se produz a
conciliao dialtica entre ontologia e meontologia, entre ser e no-ser. Elas fundam
a doutrina da equivocidade, contra as doutrinas animistas e monistas da univocidade
ontolgica, tambm elas de origens protogregas. Desde Plato e Aristteles,
passando por todos os medievais e por quase todos os modernos, a tarefa do
pensamento a de reconhecer identidades onde houver diferenas e, portanto,
unidade onde houver multiplicidades. O principium individuationis dos seres baseia-
se no percurso de identificao de suas substncias e na reconduo de suas
propriedades e atributos substncia que funda sua unidade e sua identidade,
entendidas tanto como singularidade ntica quanto como universalidade formal. O
estatuto transcendental das formas, das ideias ou das substncias promove o
imperativo racional de uma unidade global capaz de conter todas as dinmicas e
transformaes internas totalidade do mundo dos fenmenos e interna a tudo o
que existe, ou seja, interna a todo cosmos106. Os fenmenos so contemplados em
sua especificidade, mas resgatados por uma deliberao racional que funda todo
campo fenomnico em uma instncia do ser que estaria simultaneamente dentro e
fora do regime global do ser. A totalidade do ser entendido como unidade
fenomnica, para ser validada como uma categoria da razo e do entendimento,
precisa de unidade. Para ser una, precisa se fundar como totalidade do existente. E
para conceber a totalidade, dialeticamente essa totalidade precisa ser instituda
como a parte de um todo [holos] que seja, por sua vez, simultaneamente
omnicompreensivo e produza a autodeterminao diferencial entre si e o universo,
105
CORNFORD, F. M. Principium Sapientiae: as origens do pensamento filosfico grego. Traduo
Maria Manuela Rocheta dos Santos. Prefcio W. K. C. Guthrie. Lisboa: Calouste Gulbenkian, s/d.
106
NOVELLO, Mrio. O que cosmologia? A revoluo do pensamento cosmolgico. Rio de Janeiro:
Zahar, 2006.
159

de modo a delimitar a totalidade do universo e de tudo que existe como uma unidade
real e formal. Esse limiar fronteira do mundo que instaura o mundo como
totalidade mundana real e estabelece ao mesmo tempo as condies formais e reais
da existncia desse mesmo mundo como mundo, ou seja, a identidade que
determina o mundo e a pluralidade dos seres do mundo como so. Plato define
essa instncia como alm-ser [hiperousa].
Quando Heidegger prope refundar as condies originrias de emergncia
do pensamento a partir do estabelecimento de uma novo modo de compreender a
diferena ontolgica, acaba por determinar a totalidade do modo de pensar como
uma atividade entitativa, em detrimento da clareira mais fundamental a partir da qual
a inteligibilidade do prprio mundo como mundo e do pensamento como
pensamento se tornam possveis. Contudo o que Heidegger oculta ao revelar essa
nova fascinao do ser e ao propor essa nova imagem do ser para uma nova
imagem do mundo, que a necessidade de uma diferena ontolgica fundada em
um meta-ser e necessria ao estabelecimento da totalidade do ser sempre estivera
posta na historia do pensamento. Poderamos ir mais longe: para conceber o munda
como totalidade, o estabelecimento de uma totalidade, ainda que seja uma
totalidade entitativa, precisa inscrever esse mesmo mundo em uma relao de
descontinuidade com o ser que a funda em termos transcendentais. Isso quer dizer
que a determinao da totalidade do ser e da totalidade de tudo que existe necessita
preservar-se sempre no interior de uma estrutura relacional equvoca, pois apenas
assim o ser pode se autodeterminar a si mesmo, e a alteridade surgida dessa
autodeterminao pode ser concebida ontologicamente como totalidade do mundo.
Se seguirmos esses caminhos de floresta, de Plato a Heidegger o
pensamento foi sempre o pensamento da equivocidade. E por maior que seja o
esforo de Heidegger em retomar Herclito, Parmnides e os physikoi anteriores ao
estabelecimento por Scrates de uma razo negativa, as regies de autenticidade e
inautenticidade do ser esto dispostas conforma o corte diferencial de uma estrutura
que demarca uma descontinuidade instauradora da regio originria de emergncia
do ser enquanto ser, e no como ser do ente. Isso no um problema. Pelo
contrrio, mais do que uma destruio fenomenolgica do pensamento, toda obra de
Heidegger pode ser pensada de uma forma menos grandiloquente e mais pontual:
como explicitao definitiva e derradeira da equivocidade como estrutura
fundamental do pensamento. Trabalhar no limiar [khra] entre sensvel e inteligvel,
160

estabelecidos como estruturas antinmicas reconciliadas pelas arquiformas


transcendentais, no seria um privilgio do pensamento metafsico e tampouco do
pensamento antigo107. Essa estrutura biunvoca, atravessada longitudinalmente pelo
binmio veneno-remdio [phrmakon], seria o modo mesmo como o pensamento
sempre operou. E esse talvez seja uma as maiores contribuies de Derrida para o
pensamento. Uma contribuio que consiste em mostrar como toda constituio e
toda legitimidade do pensamento metafsico consiste em uma tomada de deciso
diante de alternativas ontologicamente indecidveis. A equivocidade o nome do
pensamento que opera decises entre alternativas indecidveis. A indecidibilidade
a explicitao dessa equivocidade fundamental que determina todo o horizonte do
pensamento e que renuncia a tomar essa decises. Em linhas gerais, desde Plato,
Aristteles e Plotino a Heidegger, Derrida e Agamben, estaramos diante das mais
consumadas descries da equivocidade do ser. As filosofias da diferena advogam
pela inscrio diferencial do ser a despeito dos mecanismos de identidade que
legitimam o estatuto diferencial das diversas manifestaes do ser. Essa
constituio discursiva em nome da diferena se sustenta sobre a engrenagem
conceitual dos mecanismos internos produo diferencial como um todo, e esses
mecanismos, em termos ontolgicos, continuam sendo possibilidades inscritas pelo
horizonte das doutrinas da equivocidade, surgidas na filosofia antiga. Nesses
termos, o problema fundamental da doutrina da equivocidade consiste em seu ponto
cego. As concepes do ser fundadas na gradao e na escalada de diferencial das
substncias necessitam de uma diferena ontolgica que delimite a inscrio formal
do todo a partir da relao de alteridade que esse mesmo todo mantm com o outro
dele mesmo, pois apenas assim pode ser se validar em termos lgicos. Ao mesmo
tempo, essa mesma escalada de diferenciaes da cadeia do ser necessita negar a
existncia real desses mesmos princpios transcendentais, pois caso eles existissem
como substncias separadas, no apenas formal mas onticamente distintas, no
estaramos mais no interior da doutrina da equivocidade e desaguaramos
naturalmente em uma clara filosofia dualista.
A cruzada das ontologias da equivocidade sempre tiveram como alvo
privilegiado as ontologias dualistas, mais do que as ontologias monista ou
pluralistas. A partir de um ponto de vista psquico, essa dinmica de coincidentia

107
DERRIDA, Jacques. Khra. Campinas: Papirus, 1995.
161

oppositorum entre equivocidade e dualismo explicaria em parte a guerrilha otolgica


que sempre se travou entre essas duas vertentes, a ponto de podermos entend-las
como gmeas univitelinas, separadas no parto. Plato e seus malabarismos para
superar o dualismo rfico. Plotino em combate contra o dualismo gnstico.
Agostinho e sua artilharia contra o dualismo dos maniqueus. O campo de batalha
entre equivocidade e dualismo no uma exceo, mas ocupa a arena central da
histria das ideias. Manifesta-se ainda recentemente, mas de modo muito mais
caricato, na demonizao da gnose levada a cabo por um pensadores catlicos mais
ortodoxos, como Eric Voegelin. Em termos histricos e de um ponto de vista tcnico,
o conflito entre dualismo e equivocidade pode ser aprendido em toda sua
complexidade no corao mesmo da obra de Plato. Plotino e toda traio de
reinterpretao do platonismo se situam na fronteira obscura entre equivocidade e
dualismo. E no por outro motivo essa guerra ontolgica se encontra como um
verdadeiro motor interno da edificao da obra de alguns dos mais potentes
fundadores da ontologia crist, de Orgenes e Agostinho, de Irineu a Tertuliano, de
Gregrio Nazianzeno a Gregrio de Nissa, todos inspirados pelo combate aos
docetistas, maniqueus, gnsticos e tantas outras heresias antigas, muito mais
afinadas ao dualismo do que aos monismos pantestas ou s ontologias pluralistas.
Esse combate est presente mesmo internamente e o motivo central de litgio dos
primeiros conclios cristos, mediante a definio do estatuto relacional ou
substancial estabelecido entre Cristo e Deus. Alm disso, basta vermos como o
cristianismo oriental ortodoxo e a o cristianismo romano incorporaram em suas
prprias estruturas teolgicas, figurativas e dogmticas, diversos elementos
decididamente pagos, seja pelas vias da santidade ou da mstica. As doutrinas da
equivocidade e as doutrinas dualistas promoveram um antagonismo mais explcito
justamente porque, dadas suas semelhanas internas estruturais e profundas,
precisaram determinar suas distines externas com mais tenacidade. Ao passo que
as ontologias monistas e pluralistas, devido sua distino radical em relao
teses do dualismo e da equivocidade, simplesmente comearam a cair no
esquecimento, emergindo de modo descontnuo e intermitente no horizonte do
pensamento, para depois retornarem s sombras. Contudo aqui precisamos
demarcar uma nova fronteira e uma nova guerrilha interna s constituies do ser: o
combate entre monismo e pluralismo.
162

Esse aspecto nos conduz a um interessante rearranjo de algumas matrizes


fundamentais das principais concepes de ser, bem como de sua historicidade e de
suas mtuas interaes, convergncias e divergncias. A dificuldade de se pensar
as ontologias monistas monovalentes se deve a uma impossibilidade de o fazer por
meio dos mesmos recursos conceituais produzidos pelos regimes de sentido da
equivocidade. Diferente das categorias estruturantes do regime de sentido das
filosofias da equivocidade, o monismo e o pluralismo no podem ser pensados a
partir dos binmios transcendncia-imanncia e identidade-diferena. Precisam sim
ser concebidos a partir dos binmios atualidade-virtualidade e unidade-
multiplicidade. A odisseia marginal das ontologias pluralistas e monistas passa
comea com Lucrcio, passa por Leibniz, Marx e Espinosa, encontra uma guinada
em Nietzsche e chega a seu vrtice em Whitehead, Deleuze e Sloterdijk. Hoje em
dia as ontologias pluralistas e monistas encontram ressonncia sobretudo nas
cincias naturais, na antropologia e na cosmologia. A teoria geral dos mesons se
constitui como uma ontologia dos meios e situa-se como herdeira direta das
ontologias monistas e pluralistas, e como uma possibilidade de se pensar o ser a
partir dessas matrizes de sentido.
Se o ser quer se preservar em si mesmo, como o ser se preserva em si
mesmo se todo ser se coloca como um modo relacional tensionado entre finito e
infinito? Essa tenso se resolve parcialmente quando compreendemos que,
mesologicamente, o modo atual da totalidade do ser se realiza como multiplicidade:
como ontologia pluralista. Chegamos em mais um axioma: o conjunto
incomensurvel de mesons, justamente por causa da incomensurabilidade que lhe
estrutural, no produz apenas uma pluralidade de ontologias, mas produz tambm
uma pluralidade de ontologias. medida que cada meio instaura um regime de
valncia do ser, todo e qualquer ser vem a ser na medida em que se relaciona com
outros seres e outros meios, e, desse modo, quando se relacionam com outras
ontologias. Esse pluralismo de seres, meios e ontologias, medida que deduzem a
totalidade do ser do modo relacional por meio do qual esse mesmo ser se atualiza,
desfaz-se dessa maneira a necessidade de submisso de ontologias globais s
ontologias regionais.
163

1.18 Por uma teoria da expresso

Se no existe e nunca existiu algo chamado ideologia, como querem Deleuze


e Guattari, essa crtica ao conceito de ideologia apenas um captulo de uma crtica
a um conceito mais amplo: a iluso. Desde a antiguidade at o presente, muitos
pensadores se nutriram nos beres generosos de uma antinomia: a antinomia entre
verdade e iluso. No apenas o ceticismo se debateu com os enunciados,
proposies e entimemas, tentando demonstrar os graus de iluso aos quais mesmo
o pensamento mais lcido pode incorrer. No apenas Plato e Aristteles vo
combater os regimes ilusrios da verdade dos physikoi, dos mitos, do sensvel, dos
simulacros, da contingncia. No apenas Agostinho e os escolsticos iro declarar
guerra aberta a todas as figuras da imanncia, em nome de um dos primeiros
sujeitos transcendentais da histria, nascido dois mil anos antes de Kant: Deus. No
apenas Descartes vai fundar todo o mundo e toda possibilidade de conhecimento
sob os ditames de um gnio maligno que converte todo conhecimento e todo mundo
em iluses que apenas afianam a verdade transparente do cogito. No apenas
Kant vai conferir o estatuto de iluso a toda substncia exterior ao sujeito
transcendental e aos fenmenos. No apenas Wittgenstein e o positivismo lgico
imaginaram-se capazes de desativar todos os mecanismos ilusionistas do
pensamento, reduzindo os problemas filosficos a pseudoproblemas mal
formulados. Em outras palavras, por todos lados, o conceito de iluso e o conceito
de verdade se digladiam.
Nessa arena, a linha de sombra entre iluso e verdade se apaga. A
indecidibilidade e a indiscernibilidade so contraproducentes, tanto para os saberes
revelados que querem combater a falsidade da filosofia ou de outros saberes
revelados quanto para as filosofias que querem combater os saberes revelados ou a
natureza falsa de outras filosofias. Verdade e iluso no se contentam em demarcar
as diferenas entre verdade racional e verdade revelada. Essa distino serviu
tambm para igualmente distinguir entre a verdadeira e a falsa filosofia, entre a
verdadeira e a falsa religio. E assim o combate entre verdade e iluso prosseguiu e
prossegue ad infinitum. Um ponto de inflexo nessa trajetria se encontra em Hegel.
Quando Hegel define a histria como figura negativa do pensamento, promove uma
alterao substanciosa nos modos de conceber as dicotomias clssicas realidade e
164

iluso, verdade e aparncia, essncia e fenmeno. A histria passa a ser vista como
o movimento de negatividade por meio do qual real e racional se identificam. Nunca
nenhum ser humano adorou o sol. Porque o sol nunca foi um objeto sensvel e
tampouco foi um ser divino. Tanto o sol quanto o deus que se adora por meio do sol
sempre foram a figurao real e negativa da ideia do sol. O sol real medida
mesma que, ao se produzir como ente sensvel, produz simultaneamente a
possibilidade de se pensar em um ente no-sensvel. O sol divino medida que,
ao se tornar passvel de ser divinizado, torna possvel identificar a esfera no divina
e natural que participa de sua essncia divina, agora revelada. A sntese das
diversas figuraes do sol, seja pela filosofia seja pelas religies, so contrafiguras
positivas do processo nadificador sem o qual o real no se realiza a si mesmo como
ideia.
Isso significa que no interior da vida do Esprito, todo evento se realiza e
apenas se realiza quando incorpora em si seu contraevento. A figura do mundo e a
contrafigura do mundo se inscrevem simultaneamente em uma mesma ordem global
da realidade, e no podem existir uma sem a outra. O telos do Esprito equaciona
historicidade e racionalidade, ou seja, produz a sntese passiva do real negado, que
se mantm de modo residual na atividade negadora. Como diria Hegel e depois
Adorno, em termos de dialtica negativa, a superao sempre guarda em si o
superado. Estamos diante da runa do princpio aristotlico de no-contradio. O
furor dialtico de Marx vai apenas depurar esse ingrediente explosivo da filosofia
hegeliana, invertendo-o para torn-lo ainda mais potente. No o Esprito que
unifica a sntese parcial de cada esfera autnoma da realidade. a prpria dinmica
global dos processos que produz a necessidade explicativa de um Esprito para
preencher as lacunas de um real alienado. A dialtica marxista trabalha com a noo
de iluso, como subproduto da superestrutura ideolgica que simula o real onde ele
fora alienado. A psicanlise, com suas antinomias entre vontade e desejo, colocou a
manifestao do desejo como expresso de uma heteronomia radical. Caso o
desejo no se realize, obstrudo pelo imperativo moral ou pela denegao da
conscincia, esse irrealizao do desejo se realiza como patologia. Essas
ambivalncias decisrias estruturam a neurose, e so muito produtivas para a
produzir o estado tensional de alerta em sociedades cada vez mais produtivas.
O que tenho dificuldade com a chave da dicotomia universal-relativo. Para
mim o relativismo no existe. Todas as religies so relativos universalizados para
165

quem faz parte de cada uma delas. As sociedades e os indivduos so animais


metonmicos com o perdo do abuso de linguagem RS Estamos sempre elevando a
parte condio de todo. A vida e uma guerrilha pela hegemonia de alguns
sistemas universais. O que ocorre no caso do fundamentalismo que ele tambm
um fenmeno tipicamente secular e ocidental. Ele um mecanismo de aplicao
hermenutica "cientfica" e "racional" a textos sagrados que nunca foram lidos de
modo literal. Ai matar em nome de leituras literais do Coro no diferente de matar
em nome de leituras literais de Marx. Assim como tantos cristos mataram e
escravizaram literalizando Aristteles. Eu acho que esse um vazio da
secularizao. Precisamos defender a secularizao. Mas muitas vezes a "cincia"
ou "progresso" acabam virando valores nitidamente teolgicos.
Esses aspectos da ontognese da vida e da relao que a vida estabelece
com os meios hipoteticamente inorgnicos nos conduzem estabilizao de uma
ontologia. Essa reversibilidade sistema-meio, de um ponto de vista do ser, impede-
nos de demarcar uma fronteira ntida entre vida e no-vida. Ainda que essa vida
tenha uma origem extragalctica, como algumas hipteses sustentam, essa vida
extragalctica foi gerada no seio de alguma frao da matria do universo, matria
essa que hoje em dia considerada relativamente homognea em quase todas as
pores de espao conhecido. Isso quer dizer que h uma dificuldade lgica e
ontolgica em definir a vida como uma matriz do ser distinta da matriz que
engendrou os demais elementos fisioqumicos do cosmos. Por ouro lado, a atividade
que a vida desempenha em conexo com o meio que a envolve paradoxal: a vida
produz agentes negativos sua prpria sobrevivncia, mas o metabolismo desses
agentes na atmosfera torna-se um dos fatores essenciais sobrevivncia e ao
desenvolvimento dessa mesma vida que os produziu.
A teoria dos mesons possui mltiplas dimenses que se articulam de maneira
simultnea. Ela ao mesmo tempo uma ontologia, uma cosmologia, uma
morfologia, uma antropologia, uma topologia. Na medida em que os mesons so
entendidos em seu sentido grego como partculas mediadoras elementares, a teoria
dos mesons uma ontologia dos meios, ou seja, pretende descrever os modos
pelos quais os seres-meios podem ser entendidos como unidades mnimas de
configurao do tecido da realidade. Como se sabe, a topologia assume valores
distintos na fsica e na geologia. A partir de um ponto de vista fsico, a topologia
pode descrever as dimenses espaciais dos seres tendo em vista apenas suas
166

qualidades fsicas tridimensionais, entendidas de um ponto de vista linear e


euclidiano. Entretanto, no sculo XX, sobretudo em dilogo com a filosofia da cincia
e a cosmologia, matemticos e fsicos como DeSitter e Minkowski passaram a
desenvolver uma geometria dos espaos no-euclidianos, tambm conhecida como
uma geometria no-linear. Um dos aspectos mais importantes dessas geometrias diz
respeito sua capacidade de descrever espaos de quatro ou mais dimenses, bem
como espaos formados por fluxos de energia de natureza termodinmica, prprios
de sistemas distantes do equilbrio, e que portanto no conseguem ser estabilizados
a partir das funes simples e das leis clssicas da dinmica. Essa esferas
propriamente fsica da topologia pode ser pensada na geologia a partir de outro
aspecto, um pouco mais emprico. A topologia seria o estudo das estratificaes de
natureza e origens diversas que determinam a estrutura de um determinados recorte
geodsico. Essa determinao permite geologia pensar a idade desse territrio e,
mais do que isso, decompor seus elementos qumicos e isolar sua constituio
predominante. Essa operao permite reconstruir apenas a datao dos estratos
geolgicos em questo e, alm disso, reconstruir tambm as eras do planeta Terra e
inclusive do universo, analisando as molculas e as combinaes qumicas por meio
de contrastes entre os estratos mais recentes e os estratos mais arcaicos.
A despeito desse sentido circunstancial, h uma ntida linha de orientao
amarrando todos estes breve lampejos da linguagem. Ousaria dizer que uma tese os
articula. E que eu a persegui de modo mais ou menos consciente. Essa tese tem
dois nveis: um antropolgico e outro cosmolgico. Esse dois nveis caminham
juntos e so inseparveis. Sempre que cindimos a esfera do cosmos da esfera do
sapiens, produzimos vises parciais ou equivocadas de ambas, de modo que
preciso sempre pensar essas duas unidades conceituais como unidades mutua e
dialeticamente coimplicadas e em constante coevoluo. Tendo em vista esse
cenrio, minha tese consiste na seguinte afirmao: o cosmo toda ordem finita de
um universo infinito. Essa proposio contm duas afirmaes. Primeiro: h uma
relao entre cosmos, ordem e finitude. Segundo: a estrutura fundamental que
possibilita a relao entre esses trs termos um universo infinito. Em ouras
palavras, o universo um horizonte de eventos infinito e uma regio emergente a
partir dos quais uma pluralidade de cosmos encontram sua ontognese, seu
desenvolvimento e sua dissipao. O que convencionamos chamar de universo
fsico, medida que finito, no nada mais do que um desses cosmos
167

emergentes, no interior do qual se configuram certas leis e uma ontologia. As


ontologia so mltiplas como as leis, mas o universo uno e infinito em todas as
direes do espao e do tempo. Categorias como eternidade e imortalidade so
categorias intramundanas capazes de traduzir no nvel do cosmos a infinitude do
universo que no pode e nunca poder ser totalizada, ou seja, cosmizada. Como
estamos acostumados, o modelo cosmolgico atual tem sua origem no
Renascimento, quando o universo comeou a ser descrito a partir do modelo
heliocntrico de Bruno e de Coprnico, e o geocentrismo de Ptolomeu comeou a
entrar em eclipse. Contudo h um personagem que muitas vezes escapa a essa
narrativa: Kepler. A teoria de Kepler, que em certo sentido se encontrava intuda nos
trabalhos do astrnomo renascentista Tycho Brahe, agrega um elemento decisivo ao
heliocentrismo, e cuja importncia foi muitas vezes minimizada pela historia da
ideias. muitas vezes do sapiens, pois nos conduz a um imperativo de realizao da
estrutura mereolgica que nos constitui como espcie.
A modernidade consista em uma metamorfose antropolgica. O que essa
constatao tem a dizer sobre os abismos e a leveza destes breves exerccios de
pensamento e de linguagem? E o que eu tenho a dizer sobre estes breves escritos e
sobre o animal metonmico que logo somos? Em uma dimenso evolucionria do
cosmos, pensada em torno de sete bilhes de anos, a diversidade dos elementos e
a complexidade de todas as formas e de todos os seres devem sua origem ao hlio
e ao hidrognio, as dois tomos mas simples de que se tem notcia, e os primeiros a
nascer da usina viva das estrelas. Porm o que definimos como o todo do universo
depende de uma origem temporal e de uma circunscrio cosmolgica. Cada vez
mais se desenvolvem teorias segundo as quais tanto esse incio temporal quanto
isso que se convencionou chamar de big bang podem ser um ponto de singularidade
que nos conecta a uma estrutura aberta, e cuja expanso pode ocorrer em direo
ao infinito.
168

2 JAMAIS FOMOS HUMANOS: MESONS E ANTROPIA

Foi um erro crer que o mundo humano providenciou uma plataforma


comum para todos os seres vivos. Todo ser vivo tem uma plataforma
especial, que to especial quanto a plataforma especial dos seres humanos.
Jacob von Uexkll

As plantas so mortais. Os homens so mortais. Os homens so plantas.


Gregory Bateson

O que grande no homem o fato de ele ser uma ponte e no um fim; o


que se pode amar no homem ele ser uma passagem e um ocaso.
Friedrich Nietzsche

Ns, humanos, somos um dilogo.


Friedrich Hlderlin

O Apocalipse ser a suprema realizao da espcie humana.


Ren Girard

2.1 Antropia e Heterognese

Heidegger problematiza a situao da antropologia justamente por acreditar


que a antropologia analisava o ser humano tendo previamente definido os conceitos
de ser, de humano e de antropos. Por isso, a abertura da instaurao originria
situada em uma regio de emergncia, apreendida pelo Dasein lanado na estrutura
mundana da facticidade, mas anterior ao desvelamento entitativo dos seres que
dialeticamente ocultam a possibilidade de pensar o ser como esfera de emergncia.
Essa inscrio de Heidegger nos abre possibilidade de pensar o meta-humano ou
transumano, na medida em que ontologicamente no h uma substncia, um ente
169

ou um conceito capaz de descrever o ser do humano fora do regime da facticidade e


da finitude. O humano um ente capaz de desvelar seu prprio ser. Essa
circularidade esvazia quaisquer apreenses prvias do que o ser e o humano do ser
humano possam ser ou vir a ser. Entretanto em diversos momentos Heidegger
demarca a distino ntica radical do humano em relao a outros seres. A partir da
teoria dos mesons, essa demarcao torna-se totalmente impossvel.
E isso decorre do fato de que o horizonte de emergncia dos eventos que
constituem a totalidade dos seres no uma totalidade e no finito. No podemos
portanto definir onticamente um determinado ser sem recorrer cadeia relacional e
aos meios-mundos que o instituem naquilo que . Como essa cadeia infinita, no
h diques ou fronteiras capazes de circunscrever um contedo em um oceano sem
fim de meios-continentes. Nesses termos, como pensou Heidegger, de fato no
existe uma ancoragem do ser capaz de afianar o antropos em uma ontologia
estvel. Entretanto o ser humano tampouco o ente capaz de desvelar seu prprio
ser, em um ato que o distinguiria dos animais e das demais formas de vida. O ser
humano um meson capaz de apreender o meio como meio, ou seja, justamente
capaz de apreender a infinita permeabilidade ontolgica e as contnuas
participaes de substncias heterogneas que o constituem em sua humanidade,
diluda no horizonte mais vasto dos fenmenos animados que constituem o universo.
O meson humano nesse sentido sempre transumano. Chamo essa apreenso do
meio como meio levada a cabo pelo meson transumano de antropia.
A antropia no diz respeito ao principio antrpico, que tem sido estudado
recentemente e que parte do pressuposto de que o emergncia do humano est
inscrita necessariamente desde a origem do cosmos. Nada mais distante dessa
nova modalidade de antropocentrismo do que a teoria dos mesons. O jogo de
linguagem presente no conceito de antropia na verdade foi inspirado livremente em
uma intuio de Lvi-Strauss: uma mescla de antropia e entropia. A definio do
humano precisa ser pensada a partir das estruturas dissipativas da entropia em suas
abordagens complexas e instveis, ou seja, tanto em seus vetores positivos quanto
negativos, tanto a partir de sistemas lineares em equilbrio quanto a partir de
sistemas no-lineares fora de equilbrio. Desse modo, a entropia simultaneamente
a perda de forma que concorre para a morte do sistema quanto o aumento de
complexidade formal, decorrente justamente dessa mesma vetorizao dissipativa.
Em outras palavras, como ontologia dissipativa, quanto mais o humano se esvazia
170

de suas prerrogativas humanas e de sua essncia, por meio da dissipao de seu


ser, mais ele se torna capaz de apreender a pluralidade de agenciamentos e de
seres que o atravessam, constituem, habitam. A antropia essa vetorizao do
antropos que o conduz dissipao de quaisquer determinaes anteriores de sua
fisionomia, conduzindo-o permeabilidade ontolgica e participao necessria de
substncias mltiplas que configuram o humano em seu ser. Chamo essa
permeabilidade e essa multiplicidade de substncias em constante coparticipao e
coafetao de heterognese. Apreender-se como meio de meios e como relaes
de relaes conduz o antropos a se apreender em um continuum de heterogneses
e fascinaes, eventos que emergem no horizonte infinito dos mesons.
Em termos mesolgicos, o dualismo de substncia caracteriza a metafsica e
se emaranha sub-repticiamente no pensamento ps-metafsico. Essa aporia se faz
presente em construes tericas que se ocuparam da tarefa de pensar a forma
pura da diferena, como ousaram fazer Deleuze e Derrida, mas que evitaram pensar
e forma pura da relao. Nesses termos, o dualismo de substncia, que desde os
primrdios do pensamento, dos gnsticos a Kant, de Hume a Wittgenstein, obsedou
o pensamento em uma floresta sem sada, em termos mesolgicos consiste em um
equvoco. Equvoco devido no a uma falha das categorias do entendimento ou da
razo, mas em um deslocamento de ordem perceptiva. Como ele se d? Como um
mecanismo antropolgico de fixao de estados provisrio dos seres apreendidos
em seu fluxo a partir de tecnologias de domesticao. Essa domesticao das
formas mediadoras e relacionais puras foi internalizada pelos prprios mecanismos
mentais de produo do real, de modo que inclusive a valncia e os esquemas
veritativos dos enunciados produzidos acerca da realidade assumissem uma
estrutura dual marcada pelas dicotomias e pelas estruturas binrias do pensamento
tal como ns o concebemos. Obviamente, a mesologia no se arvora definir como
uma teoria que consegue de fato solucionar essa aporia estrutural. A proposta da
mesologia apenas apoiar-se em conceitos oriundos de diversas cincias e saberes
de modo a explicitar os mecanismos implcitos nessa domesticao do real,
demonstrando as razes perceptivas da produo dos dualismos e das aporias em
torno das relaes dentro-fora. Aporias essas produzidas justamente por conta de
demandas antropolgicas que evitaram pensar uma ontologia relacional uma
ontologia da dade, como diria Peter Sloterdijk, na qual o esquema lgico de
anterioridade e de posterioridade no se eleve condio de ontologia geral que
171

recolhe sob seu seio as demais ontologias regionais. Foi esse movimento das
ontologias imperiais que configurou o predomnio de sculos de metafsica da
substncia. E esta, por sua vez, determinou os rumos do pensamento ocidental at
os dias de hoje. Nesses termos, a mesologia um trabalho epistemolgico e
tambm um modelo de anlise da cultura.
Ao me valer de um vocabulrio oriundo da filosofia, em nenhum momento
pretendo positivar esse vocabulrio sem entender que os conceitos matriciais da
filosofia esto inscritos em processo de mediadores antropolgicos de milhes de
anos. As mediaes, ao fim e ao cabo, remontam origem do homo sapiens e s
primeiras tecnologias de domesticao do Paleoltico. Confundem-se com o prprio
processo de hominizao e com as tecnologias de domesticao que produziram o
horizonte humano e nos inscreveram na clareia meta-humana de onde surgimos e
que ainda atuam na atualizao de nossa humanidade. Esse deslocamento da
centralidade conceitual oportuno medida que insere os elementos formais de
base do trabalho intelectual em uma srie de tcnicas e de desempenhos humanos
muito mais abrangente, contribuindo no para desmerec-lo, mas para recoloc-lo
como apenas um dos infinitos elementos e sistemas mediadores da cadeia de
mediaes humanas.

2.2 Antropofanias e Antropogemas

Para podermos pensar o conceito de transumano, mais importante do que


definir em que medida o transumano se articula com o conceito de humano
tentarmos situar o humanismo dentro de uma cadeia conceitual mais ampla. A
antropofania a regio emergente onde se desdobram milhes de fascinaes
acerca do humano, desde a origem da espcie e mesmo antes da emergncia do
sapiens em termos paleontolgicos. Produz milhares de imagens e narrativas. E
cada uma dessas imagens e narrativas, que esto na gnese das antropofanias,
levam o nome de antropogemas. Os antropogemas so unidades formais que
remetem a determinadas regies emergentes do humano. Essas regies
emergentes so regies de incandescncia, topologias indiscernveis entre a
172

natureza e a cultura, abertas desde o comeo da grande narrativa da hominizao,


h sete milhes de anos108.
Contudo as ressonncias mrficas meta e transumanas persistem na
memria humana109. Recuam ontognese da vida na Terra e mesmo origem dos
corpos elementais e das substncias mais simples do universo110. O que costuma
ser definido como ser humano precisa ser perspectivado, pois ainda hoje nas
categorias definidoras do humano em geral se apoiam nos antropogemas
produzidos pelo humanismo. As cincias humanas, justamente pela contradio
performativa presente desde a sua definio, no nos ajudam muito nessa jornada,
pois encontram-se sobredeterminadas pelo prprio projeto humanista da qual so
herdeiras e porta-vozes, ainda que de modo inconsciente. A relao entre as
cincias humanas e nossos conceitos de humano e de humanidade transformam-se
em uma figura da tautologia: definem o humano apoiando-se quase sempre no
antropogema que define os limites formais da mesma cincia que se diz humana
medida mesma que estuda o humano formalmente definido em seus pressupostos.
No h problema algum nos antropogemas humanistas. Eles so autoimagens do
devir-humano to legtimas quanto quaisquer outras autoimagens. O problema que
pretendo desenvolver neste trabalho de outra natureza. E se resume na tentativa
do antropogema humanista, devido a uma srie de fatores, ter se expandido e
universalizado, aspirando tornar-se um modelo de produo da autoimagem de
todos os sapiens do planeta. A ambio do humanismo a de deter a narrativa
verdadeira sobre a ontognese do sapiens. E nesses termos, nada melhor do que
pensar que sequer a paleontologia e as cincias experimentais e empricas foram
capazes de fornecer uma rgua capaz de definir o ser humano e de encontrar uma
justa medida desmedida que caracteriza o sapiens como sapiens111.
Como veremos, os antropogemas humanistas contemplam um recorte
bastante restrito da cadeia de antropofanias que o sapiens produziu, produz e
continuar produzindo de si mesmo. Como intuiu Michel Serres, as narrativas do
humanismo so todas forjadas a partir de uma noo recente de eu que tem em

108
SERRES, Michel. O incandescente. Trad. Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
109
SHELDRAKE, Rupert. A presena do passado: ressonncia mrfica. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.
110
ALLGRE, Claude. Introduo a uma histria natural: do big bang ao desaparecimento do homem.
Traduo Telma Costa. Lisboa: Teorema, s/d.
111
GOULD, Stephen Jay. A falsa medida do homem. So Paulo: Martins Fontes, 1991.
173

Agostinho um dos seus mentores112. As narrativas do eu e as escritas de si,


substratos ontolgicos e dispositivos do humanismo, como Foucault tambm
ressaltou, so manifestaes circunscritas a um lapso temporal de pouco mais de
trs mil anos, lapso bastante pequeno se tivermos em mente o processo mais amplo
da hominizao e seus milhes de anos de durao. esse processo que as
antropofanias pretendem abranger. Para isso, podemos entender a antropofania
como um sistema semiaberto e infinito que engloba um oceano de autoimagens que
so os antropogemas. Os antropogemas so todas as fascinaes emergentes por
meio das quais o homo sapiens produziu uma autoimagem de si mesmo. O conjunto
aberto, dinmico e infinito dessas fascinaes especulares e especulativas,
chamadas antropogemas, o que chamo de antropofanias113.

2.3 Especular, Imaginal e Desejo

A antropofania uma antropologia do ontos mais do que do ontologia do


antropos. Toda a histria da filosofia, de Aristteles e Plato a Heidegger e Scheler,
se confunde com uma antropontologia cuja finalidade a definio da dignitas do
humano no cosmos por meio de uma investigao de seu ser. Os milnios de
explicao teolgica cada vez mais passaram a ser refutados pela empiria, e as
antropologias metafsicas tornaram-se ineficazes, pois mantm em sua estrutura
conceitual primeira uma unidade imaginal humana preconcebida pelos sculos de
investigao, o que dificulta uma abertura a novas e poderosas imagens e narrativas
das cincias naturais recentes. Essa constatao da fragilidade da metafsica diante
do estudo do animal humano fora constatada por Heidegger. Segundo Heidegger, o
ser humano no pode ser entendido como parte de uma estrutura entitativa. A
humanidade do humano transcende o estatuto relacional de uma mera cadeia de
ens a ens, ou seja, o ser do humano no pode ser determinado pelos mesmos

112
SERRES, Michel. O incandescente. Trad. Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005, p. 128 e seg.
113
H apenas uma obra que desenvolve uma teoria a partir do conceito de antropofania, escrita pelo
missionrio indiano Jacob Kavunkal. Porm, como ele entende antropofania como uma
universalizao do antropogema cristo, coloca-se em uma perspectiva rigorosamente oposta
acepo que dou a esse conceito: KAVUNKAL, Jacob. Anthropophany: Mission as Making a New
Humanity
174

caminhos pelos quais se determina a generalidade de todos os demais entes no-


humanos. Haveria aqui um corte ontolgico entre humanos e no-humanos, e esse
corte atravessa o pensamento do mestre da Floresta Negra desde seus escritos de
juventude at a maturidade. Uma definio angular dessa sua cosmoviso se
encontra na conhecida diviso dos reinos a partir dos seus graus de acesso
abertura desocultante das esferas mundanas. A pedra sem mundo, o animal
formador de mundo114. Essa viso de Heidegger, mesmo entendendo o projeto
humanista ocidental como sinnimo do longo processo de entificao e
esquecimento do ser,
Mesmo se tratando de um dos maiores crticos do humanismo, estamos
diante de um pensador ambivalente. Ao mesmo tempo que a diferena ontolgica
radical de Heidegger nos conduz a uma esfera de emergncia do humano em uma
regio meta-humana, a clara ciso ontolgica entre o humano e os demais seres
inscreve o pensamento heideggeriano no antropogema tendrico. Isso se torna claro
se analisarmos a postura reticente de Heidegger em relao antropologia. Por
outro lado, mesmo se valendo da herana das teorias organicistas e das
contribuies revolucionarias do bilogo Jacob von Uxkull, Heidegger no operou o
salto da reduo fenomenolgica da filosofia antropologia, permanecendo como o
ultimo representante do pensamento grego do Ocidente. Se quisermos, o ultimo
pensador agrcola115, que permanece tendo como imagem axiolgica a terra, em um
mundo que se tornara fluido pela regncia da agua e do ar116. Essa atitude
denegadora em relao antropologia talvez explique a conhecida a averso a essa
cincia, pois a antropologia seria mais uma maneira de compreender o ente humano
tendo-o previamente definido, ou seja, mais um dos sistemas tautolgicos de
entificao do ser nos quais consiste a histria do pensamento ocidental, entendida
como histria do esquecimento do ser. Ao basear-se nessa concepo, escapou-lhe
do horizonte que uma antropologia no-metafsica poderia solucionar boa parte dos
problemas que levaram a filosofia a entificar o ser. Por esses e outros motivos que
Heidegger, ao mesmo tempo em que nos oferece uma das mais ousadas
antropologias filosficas jamais criadas, por meio da analtica do Dasein e da
114
HEIDEGGER, Martin. The Fundamental Concepts of Metaphysics: World, Finitude, Solitude.
Translation William McNeill and Nicholas Walker. Bloomington: Indiana University Press, 1995.
115
SLOTERDIJK, Peter. Regras para o Parque Humano: Uma Resposta Carta Sobre o Humanismo
de Heidegger. Traduo Jos Oscar de Almeida Marques. So Paulo: Estao Liberdade, 2000.
116
SLOTERDIJK, Peter. Esferas III: Espumas. Esferologa Plural. Traduccin Isidoro Reguera.
Prologo Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2006.
175

estrutura da facticidade como horizonte situacional do ser-lanado, e alm disso sua


obra pode ser vista como um dos momentos importantes do sculo XX no processo
de destruio do humanismo, a ciso ontolgica humano-natureza que define o
antropogema tendrico permanece rigorosamente intocada.
Essa dificuldade da filosofia em pensar fora das categorias matriciais
tendricas talvez se deva ao prprio carter dianotico de sua investigao do
sapiens. Entretanto esse movimento sempre buscou as regies mais abstratas da
universalidade do ser para determinar a essncia formal do humano como humano
m geral. Nesse sentido o percurso proposto pela antropofania rigorosamente
oposto a esse percurso, pois seu intuito no buscar o universal sob o diverso, mas
justamente pensar cada singularidade como um absoluto. Trata-se de uma
passagem do especulativo ao especular: a verdade no est no ponto final de um
percurso abstrativo, mas na encarnao de uma imagem qualquer imagem que
seja verdadeira para o desejo. Universalismo e relativismo tornam-se bifurcaes
vazias e inoperantes, a serem abandonadas. So conceitos defendidos apenas por
aqueles que ainda no compreenderam que somos animais metonmicos, e que a
odisseia da espcie consiste justamente em um gigantesco projeto transferencial,
por meio do qual os objetos parciais so simultaneamente parciais para a realidade
e absolutos para o desejo. Por isso todo ato desejante um ato de produo de
realidades mltiplas que se sobrepem dimenso unidimensional da empiria como
um palimpsesto ou como as camadas geolgicas se sobrepem em um nmero
equivalente idade da Terra.
Essas realidades so criadas medida mesma que o desejo, por meio da
transferncia, suprime o intervalo que separa real e ideal e real e imaginrio. Defino
essa supresso das fronteiras entre real e imaginrio com um conceito: o imaginal.
O campo imaginal no da ordem dos eventos empricos e tampouco se assemelha
a nada que nos lembre sequer de longe o conceito de fico. E assim porque o
campo imaginal transcende os modelos do pensamento representacional. Estamos
aqui muito mais prximos do mundus imaginalis desenvolvido pela falsafa e pelas
teofanias de Al-Frb, bn Arab, Avicena, Suhraward, Mulla Sadr e cujas
ressonncias antropofnicas no pensamento europeu so nitidamente perceptveis
em autores como Espinosa, Schelling, Corbin117, Warburg118, Heidegger119,

117
JAMBET, Christian. A lgica dos orientais: Henri Corbin e a cincia das formas. So Paulo: Globo,
2006.
176

Bachelard e Deleuze. Trata-se contudo de uma concepo de imagem que foi


marginalizada no pensamento moderno com a ascenso das filosofias
representacionais e dos dualismos racionalista e kantiano. A narrativa antropofnica
pretende ser o conjunto de narrativas-imagens desses deslocamentos por meio dos
quais a autoimagem de um indivduo, de uma tribo, de um cl, de uma horda, de um
bando, de uma populao, ou seja, de quaisquer associaes humanas torna a
imagem por excelncia do ser que torna o humano, h

Uma sucesso de antropogemas emergem e depois voltam a submergir no


horizonte imaginal do sapiens. A antropofania o acorde complexo que sintetiza o
fluxo incessante dessas unidades imaginais, e assim pretende captar os diversos
modos pelos quais o humano se define a si mesmo por meio de autoimagens e de
autoatribuies de sentido humano, sejam essas imagens forjadas a partir de
figuraes biologicamente humanas ou a partir de quaisquer outras entidades
naturais ou artificiais. O imaginal produz uma suspenso do limite entre physis e
tekhn. Ambas passam a ser pensadas como um duplo movimento da physis,
entendida como natureza naturada [natura naturata] e natureza naturante [natura
naturans]. A physis o sistema global dos mundos imaginais. a unidade relativa e
parcial da totalidade de imagens e perspectivas imaginais que nunca podem ser
unificadas em um todo. Uma atitude antropofnica tem em vista mais a produo de
presena das imagens e das narrativas do que o sentido interpretativo que se possa
extrair dessas mesmas imagens e narrativas120.
Em grande medida essa percepo anima as mais recentes pesquisas da
antropologia, ligadas ao chamado ontological turn, e que aproximam antropologia e
antropofania121. Obviamente, essa definio do que somos e de quem somos se
pluraliza ao infinito, uma vez que o sentido do humano se multiplica na proporo
mesma em que o conceito de ser se torna equvoco, dando origem a uma

118
DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: histria da arte e tempo dos fantasmas
segundo Aby Warburg. Traduo de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto/Museu de Arte do Rio,
2013.
119
JAMBET, Christian. A lgica dos orientais: Henri Corbin e a cincia das formas. So Paulo: Globo,
2006.
120
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produo de Presena: o que o sentido no consegue transmitir. Rio
de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2010.
121
VRIOS. Somastophere. Science, Medicine, and Anthropology. Disponvel:
http://somatosphere.net/series/ontology-2
177

pluralidade de mundos e de humanidades atuais e virtuais. E o mais sutil dessa


odisseia consiste em um aspecto que eleva ainda mais o grau de equivocidade: os
antropogemas que definem a humanidade dos humanos em sua grande maioria no
se referem a agentes humanos, entendidos em termos biolgicos, mas sim a
entidades metaempricas que, por sua vez, so de ordem meta, pr, ps e
transumanas, pertencentes aos reinos animal, mineral e vegetal ou a quantos mais
reinos houver. Enquanto na antropologia clssica o olhar distanciado o mais
amoroso dos olhares, pois confere autonomia voz do outro e assim abre um
espao de ressonncias do Outro, na antropofania a alteridade se manifesta
justamente por meio da encarnao: preciso mostrar a multiplicidades de
antropologias por meios das quais as populaes se autodefinem a si mesmas de
modo irredutvel. O chamado princpio de irreduo guia o olhar da antropofania, o
mesmo princpio que guia as cincias contemporneas da complexidade122. A
pluralidade especular dos diversos sentidos do ser que definem o humano produz
tambm uma pluralidade de antropologias. A antropofania pretende ser o estudo das
dessas diversas humanidades, desses diversos mundos e dessas diversas
antropologias, todos emergentes e contidos a partir das diversas designaes do
ser.

2.4 Humanismo e Teandrismo

Quando falamos em humanismo e quando nos referimos a todo o campo de


conceitos que representam continuidades ou descontinuidades em relao ao
humanismo, estamos tratando de um antropogema, de uma unidade de fascinao
na odisseia de milhes de fascinaes que constitui o processo antropofnico da
espcie. Uso aqui o conceito de fascinao no sentido de fascinator, figura
conceitual criada pelo grande filsofo brasileiro Vicente Ferreira da Silva, em uma de
suas leituras de Heidegger: horizonte desocultante de desempenhos humanos na

122
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991. A Nova Aliana:
Metamorfose da cincia. Braslia: Universidade de Braslia, 1991.
178

cena mundana123. O humanismo uma das modulaes desse processo, uma


modulao por sinal bastante circunscrita e recente dentro do processo mais amplo
da hominizao e dos devires do homo sapiens, entendidos de um ponto de vista
evolucionrio. Devido a isso, sugiro que comecemos pela anlise de um
antropogema: o antropogema tendrico124. Em outras palavras, sugiro que
comecemos compreendendo o fenmeno do humanismo como uma clula no
interior de uma estrutura tendrica de sentido.
O que isso quer dizer? O teandrismo o conjunto dos discursos e imagens
que se desenvolveram no trajeto de circunscries e redues do homo sapiens a
uma imago homini que tem como tipo ideal os modelos fornecidos pelas religies
abramicas [judasmo, cristianismo, islamismo], e cujo cerne a figura do homem-
deus [teandros]. Por mais que as religies arcaicas possuam a figura antropomrfica
de deuses humanizados, como Osris, Dioniso e Orfeu, a participao desses
mesmos deuses e humanos em outros domnios, sobretudo no domnio animal,
representa uma impossibilidade de corte ontolgico entre os humanos, os demais
seres vivos e a totalidade da natureza. Esse corte ocorre sobretudo a partir das
mitologias mesopotmicas, est presente em alguns aspectos do pico sumrio
acadiano Gilgamesh e se consuma nas religies de transcendncia que tm na
aliana de Abrao com Deus seu primeiro profeta.
O teandrismo seria o modo dominante por meio do qual as religies reveladas
abramicas conseguiram produzir uma autoimagem do ser humano isolado dos
demais processos naturais, e essa imagem modelou muitos dos processos
dedutivos das cincias e da filosofia ao longo de dois milnios. Essa autoimagem
inaugura um novo campo imaginal, que encontra na filosofia a sua grande aliada.
Essa adaptao das ontologias antigas desenvolvidas pela filosofia e as doutrinas

123
FERREIRA DA SILVA, Vicente. Obras Completas. Organizao, introduo geral, bibliografia e
notas Rodrigo Petronio. So Paulo: Editora , 2009-2010. Trs Volumes. __________. Lgica
Simblica. Prefcio de Milton Vargas. Posfcio Newton da Costa. So Paulo: Editora , 2009.
__________. Dialtica das Conscincias. Prefcio de Miguel Reale. Posfcios Vilm Flusser e Luigi
Bagolini. So Paulo: Editora , 2009. __________. Transcendncia do Mundo. Introduo Geral
Rodrigo Petronio. Posfcios Julin Maras, Per Johns, Agostinho da Silva, Dora Ferreira da Silva. So
Paulo: Editora , 2010.
124
FERREIRA DA SILVA, Vicente. Obras Completas. Organizao, introduo geral, bibliografia e
notas Rodrigo Petronio. So Paulo: Editora , 2009-2010. Trs Volumes. __________. Lgica
Simblica. Prefcio de Milton Vargas. Posfcio Newton da Costa. So Paulo: Editora , 2009.
__________. Dialtica das Conscincias. Prefcio de Miguel Reale. Posfcios Vilm Flusser e Luigi
Bagolini. So Paulo: Editora , 2009. __________. Transcendncia do Mundo. Introduo Geral
Rodrigo Petronio. Posfcios Julin Maras, Per Johns, Agostinho da Silva, Dora Ferreira da Silva. So
Paulo: Editora , 2010.
179

reveladas da Criao pode ser sintetizada como a passagem de um isso para um


quem125. Em outras palavras, essa passagem consiste na a transformao da
substncia em sujeito126. O imperativo impessoal que estruturou todo pensamento
grego e que englobou toda a esfera da physis nos limites impessoais do ser. As
religies abramicas transformaram esse ser em sujeito e lhe deram um nome e
uma fisionomia antropomrfica: Deus. Por isso, a oscilao entre Atenas e
Jerusalm na verdade est na raiz do maior problema epistemolgico do Ocidente:
as oscilaes entre filosofias do objeto e filosofias do sujeito, entre empirismo e
transcendentalismo. Esse mesmo dualismo persiste na filosofia moderna,
assumindo-se como um verdadeiro motor que determina a gnese a atuao das
cincias na modernidade127.
A partir do ponto de vista antropofnico, essa oscilao apenas refora a
natureza estruturalmente tendrica desse mesmo pensamento, pois apenas a partir
da emergncia de um campo imaginal relativo ao sujeito, que passa a ser pensado
como esfera destacada dos demais fluxos perceptivos e dos demais processos da
realidade, torna-se possvel falar em objetos, separados desse mesmo sujeito e dos
processo globais do ser, para os quais esse binmio sujeito-objeto inexiste. Para
que esse enquadramento seja produtivo, a humanidade do ser humano precisa ser
concebida simultaneamente de sua condio natural e sobrenatural, pois o humano
um animal inscrito em uma clareia transcendente aberta por Deus e cujo acesso
s foi facultado aos humanos. O homem humano medida mesma que participa
diretamente da substncia de um Deus que transcende a esfera imanente da
natureza. No por acaso, os escolsticos leem o Genesis como a narrativa que
melhor corrobora a teoria da participao e da hierarquia dos seres. Feito imagem
e semelhana de Deus, apenas no homem a substncia divina participa de modo
essencial, pois nas demais criaturas ela participa indiretamente por analogia128. Essa
a fundamentao estrutural do pensamento tendrico: pensar uma ciso
ontolgica entre homem e natureza. Nesse sentido o teandrismo apenas uma das

125
GILSON, Etinne. Deus e a Filosofia. Traduo Ada Macedo. Lisboa: Edies 70, 2002.
126
SLOTERDIJK, Peter. O Desprezo das Massas: Ensaio sobre Lutas Culturais na Sociedade
Moderna. Traduo Cludia Cavalcanti. So Paulo: Estao Liberdade, 2002.
127
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das cincias humanas. Traduo
Salma Tannus Muchail. So Paulo: Martins Fontes, 2000.
128
AQUINO, Toms de. O ente e a essncia. Verso do latim e introduo de Mrio A. Santiago de
Carvalho. Porto: Contraponto, 1995.
180

centenas de fascinaes do humano, interiores ao devir antropofnico da espcie


desde a sua origem transumana e meta-humana h milhes de anos.

2.5 Nada do que humano

Nada do que humano me estranho: nihil humanum alienum puto. Essa


sentena latina, replicada milhares de vezes em manuais escolares at o sculo XX
e utilizada exausto em aulas de pedagogia e puericultura, tem um sentido cifrado.
Em uma primeira interpretao, revela-se como um belo bordo humanista, na
acepo do senso comum, ou seja, convoca-me a uma identificao direta,
translcida e imediata da humanidade em meio a tudo o que me cerca. Sem
qualquer mediao formal, posso captar a humanidade dos seres ao meu redor e,
ao faz-lo, em um movimento instantneo e autoapreensivo, simultaneamente
instauro a minha prpria humanidade e em um s golpe valido a universalidade
formal do enunciado nela embutido: sou humano. Porm, h uma segunda camada
nessa mxima: preciso saber latim para realizar o seu imperativo antropolgico. A
funo mediadora desvelada pela sentena de Terncio oculta, sob a docilidade
transparente de sua mensagem moral, um meson poltico que a interdita e torna a
sua realizao opaca aos agentes e pacientes da atividade humanizadora. Afinal, se
a mesma sentena estivesse escrita em banto, em ingls, em alemo, em mandarim
ou em portugus, outras seriam as portas de acesso universalidade formal e
humanidade de seus falantes e leitores. A dupla articulao do humanismo em sua
estrutura ambivalente de pertencimento-excluso comea a desenhar sua face
bifronte de Janus. A humanidade se senta diante da Porta da Lei, espera de uma
deciso129.
Essa ponderao importante para compreendermos as reflexes de Peter
Sloterdijk, um dos principais pensadores contemporneos do transumanismo e da
gnese do humanismo. Embora a trilogia Esferas seja o projeto consumado de uma
antropotecnontologia e a antropotcnica esteja presente em seus trabalhos mais

129
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o Poder Soberano e a Vida Nua. Volume I. Belo Horizonte:
UFMG, 2002.
181

recentes130, um dos pontos centrais de sua obra para a definio de humanismo a


conferncia-livro Regras para o parque humano131, releitura ruidosa da Carta sobre
o humanismo de Heidegger132, tambm este um dos textos seminais do sculo XX e
praticamente um divisor de guas na abordagem moderna do humanismo. Saltam
aos olhos desde o incio dois conceitos matriciais mobilizados por Sloterdijk para
delimitar o campo do humanismo, um de origem sumria e outro greco-latino, mas
ambos de carter tecnolgico: a escrita e a pedagogia. Tanto a escrita como a
pedagogia teriam sido tecnologias que desempenharam um papel decisivo no longo
processo de entificao e esquecimento do ser, na acepo de Heidegger133, e de
domesticao do ser, na acepo de Sloterdijk134. E esse papel consiste no
desvelamento de diversas clareiras para o pensamento, bem como nos diversos
horizontes do pensvel que a escrita criou, ao se instituir como uma gramatologia135,
como letra que traz em si uma metafsica da presena de uma voz, e desse modo
pde constituir o fonocentrismo ocidental, em nada distinto de um logocentrismo e
de um etnocentrismo136.
A filosofia nessa chave nada mais seria do que uma tecnologia, por sinal uma
das mais poderosas tecnologias de domesticao surgida em mbito grego. Por
isso, uma das funes da ginstica imperial realizar uma dinmica de aproximao
eficaz de tudo aquilo que est fora da sua circunscrio137. Ideia, essncia, conceito,
substncia, nmero: seja qual for a categoria, o mbito transespacial e transtemporal
de valncia desses termos determina a sua eficcia poltica e a sua legitimidade
conceitual, pois possibilita capturar sob sua grande rede transparente todas as

130
SLOTERDIJK Peter, Tu dois changer ta vie: de l'anthropotechnique. Trad. de l'allemand par Olivier
Mannoni, Paris, Libella Maren Sell, coll. ess-docum, 2011.
131
SLOTERDIJK, Peter. La Domestication de ltre: pour un claircissement de la Clairire. Traduit
de lallemand par Olivier Mannoni. Paris: Mille et Une Nuits, 2000.
132
HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. Conferncias e escritos filosficos. Traduo
Ernildo Stein. Coleo Os Pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1973.
133
HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. Conferncias e escritos filosficos. Traduo
Ernildo Stein. Coleo Os Pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1973.
134
SLOTERDIJK, Peter. La Domestication de ltre: pour un claircissement de la Clairire. Traduit
de lallemand par Olivier Mannoni. Paris: Mille et Une Nuits, 2000.
135
DERRIDA, Jacques. Gramatologia. So Paulo: Perspectiva, 2006. SLOTERDIJK, Peter. Derrida,
um Egpcio: o Problema da Pirmide Judia. Traduo Evando Nascimento. So Paulo: Estao
Liberdade, 2009.
136
Conferir tambm a anlise fenomenolgica de Derrida da passagem da voz letra e do problema
do signo no pensamento de Husserl: DERRIDA, Jacques. A Voz e o Fenmeno: introduo ao
problema do signo na fenomenologia de Husserl. Traduo Lucy Magalhes. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1994.
137
SLOTERDIJK, Peter. No Mesmo Barco: Ensaio sobre a Hiperpoltica. Traduo de Hlder
Loureno. Reviso Cientfica Jos Bragana de Miranda. Lisboa: Sculo XX, 1996.
182

diferenas e opacidades rebeles, domesticadas e apaziguadas sob um princpio de


identidade. o comeo da globalizao metafsica e das ontologias imperiais138.
Edifica-se o castelo das filosofias da identidade, as mais poderosas mquinas de
capturas jamais criadas, para usar o conceito de Deleuze139. Na conhecida oscilao
entre Atenas e Jerusalm que define a interao entre verdade dianotica da
filosofia e verdade revelada das religies abramicas, conforme descrita por Leo
Strauss e Len Chestov, a sntese parcial desse pndulo encontra seu prumo
justamente no antropogema humanista.

2.6 Escrevo-te de um pas distante

Na Antiguidade, h uma simetria entre os termos humanista e literato: aquele


que manipula as litterae [letras]. A proximidade entre a escrita e o cultivo da
intimidade dada pela semelhana etimolgica entre letras e cartas, em algumas
lnguas latinas. A troca de cartas denota proximidade140, faz os discpulos verem
como algo tangvel a sabedoria envolvida entre Sneca e Lucilio, pois as vidas-
escritas e as obras-cartas so reversveis umas s outras. No por acaso,
Montaigne, um dos maiores humanistas de todos os tempos, dedica dois saborosos
ensaios a esses temas. Um exclusivamente troca de cartas. Outro,
inacreditavelmente, aos correios141. Tambm no por acaso, o mesmo Montaigne
realiza uma revoluo antropolgica ao criar um novo gnero literrio [ensaio] e ao
estabelecer uma nova linha de fuga para o pensamento: o eu. Este eu, por sua vez,
no se coloca de qualquer maneira diante do leitor. Cria, sim, um dos mais espessos
espaos de intimidade e uma das mais singulares relaes de interiorizao eu-tu.
Um dilogo profundo e uma microesfera de intimizao, para falar com Sloterdijk, se

138
SLOTERDIJK, Peter. Esferas II: Globos. Macrosferologa. Traduccin Isidoro Reguera. Prlogo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2004.
139
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Flix. Mil Plats: Capitalismo e Esquizofrenia. Cinco Volumes.
Coordenao da traduo Ana Lcia de Oliveira. So Paulo: 34 Letras, 2007.
140
SLOTERDIJK, Peter. Regras para o Parque Humano: Uma Resposta Carta Sobre o Humanismo
de Heidegger. Traduo Jos Oscar de Almeida Marques. So Paulo: Estao Liberdade, 2000.
141
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Traduo Rosemary Costhek Ablio. 3 volumes. So
Paulo: Martins Fontes, 2000.
183

estabelecem entre o eu-escritor e o tu-leitor, em um nvel talvez s repetido por


Proust142.
Nesses termos, os livros passam a ganhar um estatuto que os determinar
durante muito tempo, pois comeam a ser a princpio demonstraes pblicas de
proximidade exercidas por meio da maior de todas as tecnologias imperiais: a
escrita143. Por isso Michel Serres pde enfatizar que a noo mesma de um eu
substancial e de subjetividade, caractersticas essenciais ao projeto humanista, no
por acaso surgiram com Agostinho144. Escrever e confessar tornam-se sinnimos. E
ambos os verbos so modos de enderear-se a um interlocutor ao mesmo tempo
abstrato e absolutamente presente: Deus. Alm disso, pensar a cidade terrena como
espelho do globo celestial no deixa de ser uma ontologia poltica de dimenses
imperiais. O monotesmo, a pedagogia e a escrita produzem uma guinada das
tecnologias produtoras do eu. Trata-se de um deslocamento esferolgico por meio
dos quais o espao de intimizao das microesferas vitais [cartas] transferido ao
sentido amplo das macroesferas globais e ao habitat poltico ou mesmo
cosmolgico145. Assim como ocorre entre humanismo e literatura, cria-se uma
homologia entre pedagogia e domesticao146. Ao assumir o lugar do mistagogo, o
pedagogo orienta o curso da sociedade mediante algumas tcnicas de
domesticao do saber. preciso domesticar, ou seja, tornar caseiro [domus] tudo o
que esteja sob o arco tensional do imprio, de modo a evitar qualquer abstrao
inoperante147. A funo da escrita, mais do que veicular e preservar saberes, foi a de
efetuar aquilo que o egiptlogo e especialista na tecnologia da escrita Jan Assmann

142
PETRONIO, Rodrigo. O Teatro do Mundo: os Ensaios de Montaigne. _____. Transversal do
Tempo. Recife: Imprensa Oficial do estado de Pernambuco, 2000.
143
SLOTERDIJK, Peter. No Mesmo Barco: Ensaio sobre a Hiperpoltica. Traduo de Hlder
Loureno. Reviso Cientfica Jos Bragana de Miranda. Lisboa: Sculo XX, 1996.
144
SERRES, Michel. A grande narrativa do humanismo: a histria da humanidade um conto
inicitico. Traduo Antnio Viegas. Lisboa: Instituto Piaget, 2008, p. 29 e seg.
145
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Burbujas. Microsferologa. Traduccin Isidoro Reguera, Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2003 SLOTERDIJK, Peter. Esferas II: Globos. Macrosferologa.
Traduccin Isidoro Reguera. Prlogo Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2004
146
Conferir sobretudo a primeira parte de SLOTERDIJK, Peter. Regras para o Parque Humano: Uma
Resposta Carta Sobre o Humanismo de Heidegger. Traduo Jos Oscar de Almeida Marques.
So Paulo: Estao Liberdade, 2000.
147
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Burbujas. Microsferologa. Traduccin Isidoro Reguera, Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2003. SLOTERDIJK, Peter. Esferas II: Globos.
Macrosferologa. Traduccin Isidoro Reguera. Prlogo Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2004.
SLOTERDIJK, Peter. La Domestication de ltre: pour un claircissement de la Clairire. Traduit de
lallemand par Olivier Mannoni. Paris: Mille et Une Nuits, 2000. SLOTERDIJK, Peter. Regras para o
Parque Humano: Uma Resposta Carta Sobre o Humanismo de Heidegger. Traduo Jos Oscar de
Almeida Marques. So Paulo: Estao Liberdade, 2000.
184

designa como descarnao: abstrair algo de seu contexto existencial-vital e transferi-


lo para a regio reservada da escrita148. Processo semelhante entificao do ser e
ao exlio dos dados imediatos da facticidade, produzido pela metafsica ocidental,
segundo a leitura de Heidegger. Nesse sentido a escrita uma atividade abstrativa
por excelncia149, e se insere em uma longa tradio neguentrpica que funda as
civilizaes ao produzir uma conteno do devir e um deslocamento dos sistemas
dissipativos da natureza em constante entropia, de modo que a vida possa ser
preservada150. A escrita seria uma das principais tecnologias da imortalidade, na
definio de Boris Groys.
Essa conceituao do humanismo romano ganhou em complexidade com a
ascenso do cristianismo. A associao entre humanismo antigo e humanismo
cristo recobriu o intervalo que vai de Virgilio a Dante, e preservou em grande parte
e durante muitos sculos tambm os seus valores antigos151. Mesmo a dupla
articulao entre as letras humanas e as letras divinas no esvaziou o sentido
humanista do cultivo das litterae. Ao contrrio, o humanismo passou a receber
camadas teolgicas e soteriolgicas de sentidos suplementares, sem que se
questionasse a sua validade nem seu estatuto, como comprovam centenas de
iluminuras: todos os sbios medievais e os doutores da Igreja representados com
livro nas mos, eles mesmos inscritos em um livro ou apreendidos no ato da
escrita152. H uma longa narrativa envolvendo o campo imaginal que concebe o a
totalidade das coisas do mundo como vestgios da escrita de Deus e espelhos
embaados do Verbo com que Deus insuflou vida nas criaturas. A doutrina das
assinalaes e dos vestgios desenvolvida por Boaventura pode ser vista como uma
das maiores contribuies desse campo imaginal. Ocioso tambm designar as
infinitas metforas extradas das chamadas religies do livro, principalmente no
judasmo e no islamismo. Em hebraico davar designa, simultaneamente, coisa e
palavra, dando mostras da extenso que o livro-mundo e o universo-escrita

148
ASSMANN, Jan. Religin y memoria cultural. Buenos Aires: Lilmod/Libros de la Araucaria, 2008.
Agradeo ao professor Pedro Lima Vasconcellos a indicao de uma excelente bibliografia relativa a
escrita, memria e oralidade.
149
FLUSSER, Vilm. O universo das imagens tcnicas: Elogio da superficialidade. So Paulo:
Annablume, 2008.
150
FLUSSER, Vilm. A Escrita. So Paulo: Annablume, 2010.
151
CURTIUS, Ernst Robert. Literatura Europeia e Idade Mdia Latina. So Paulo: Fapesp/Edusp,
1995.
152
CURTIUS, Ernst Robert. Literatura Europeia e Idade Mdia Latina. So Paulo: Fapesp/Edusp,
1995.
185

reservam a todos os venturosos capazes de desvend-lo153. Na traio sufi essa


infinita produtividade da escrita divina e da imagem do mundo-escritura se amplifica
e toma dimenses cosmolgicas nas descries do cosmos como escritura
emergente do clamo divino de Al154. O Gnesis termina com a criao do homem
entendida como glorificao da Criao. Para cime dos anjos, Deus lhe conferiu
uma faculdade muito especial: nomear. A nomeao, ainda num contexto admico,
a primeira tecnologia de captura do real, a primeira mquina de captura, para usar
mais uma vez a terminologia de Deleuze.
Uma variante por dissimilao de letras [grammar], na raiz de gramtica,
tornou-se glammar, de onde surge glamour, que denota muito bem o carter
espetacular que a escrita assumiu no mundo antigo, mas cujo sentido anterior era
enfeitiamento e magia155. No por acaso, no comeo do sculo XX, Benjamin pde
notar como no mundo a escrita produz um novo tipo de enfeitiamento, ao
estabelecer uma relao dissimtrica entre oculto e revelado, entre acesso e
obstculo, ou seja, ao se propor como fetiche e feitio156. Recentemente esse campo
imaginal ainda se sutilizou por meio das finas interpretaes de Latour, segundo as
quais haveria uma correlao entre fato, feito e fetiche157. O fetiche se associa
magia no apenas por se associar antes a um deus, mas justamente por ter sido
feito e por ser um fato: algo acabado e consumado em sua perfectibilidade. Essa
inscrio do fetichismo no conjunto da praxiologia humana dilui a fronteira entre
pensamento moderno e pensamento arcaico, sugerindo que a cincia tambm pode
ser entendida como uma atividade fetichista medida mesma que manipula a
natureza e converte feitos construdos em fatos naturalizados.
Nos termos latinos, o saber letrado, entendido como uma das belas-artes,
designa o cultivo e a cultura, no interior dos quais emerge a humanidade do animal
humano. Justamente por isso, o leque semntico que possibilita acessar a
correlao entre os termos culto, cultura e cultivo percorre as lnguas latinas e se

153
AMNCIO, Moacir. Yona e o Andrgino: notas sobre poesia e cabala. So Paulo: Edusp/Nankin
Editorial, 2011.
154
RAB, bn. A alquimia da felicidade perfeita. Traduo Roberto Ahamad Cattani. So Paulo:
Landy, 2002.
155
SLOTERDIJK, Peter. Regras para o Parque Humano: Uma Resposta Carta Sobre o Humanismo
de Heidegger. Traduo Jos Oscar de Almeida Marques. So Paulo: Estao Liberdade, 2000, p.
11.
156
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas. Magia e tcnica, arte e poltica. Volume I. Traduo Sergio
Paulo Rouanet. So Paulo: Brasiliense, 1985.
157
LATOUR, Bruno. Reflexo sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches. Trad. Sandra Moreira.
Bauru: Editora da Universidade do Sagrado Corao, 2002.
186

espalha nos documentos e autos dos processos de colonizao nas Amricas ao


longo de sculos158. Nas sociedades romanas a religio civil se organizou sobretudo
em torno de duas modalidades: o culto aos csares e o culto aos prprios objetos da
civilizao, como a literatura e a erudio. A despeito dos sentidos mais comuns da
etimologia de religio, produzida a partir do religare [religar], associao lanada por
Tertuliano e fortalecida por Agostinho159, preciso buscar em Ccero outra acepo
iluminadora: religare viria de relegere: ler de novo160. Prostrar-se diante do cenculo
dos deuses e da pira das oferendas, observar a lei e a letra da maneira mais
fidedigna possvel: esse o culto dos homens cultivados e, portanto, passveis de
serem cultuados. A inclinao do corpo e a sacralizao [separao]161 do objeto por
meio de uma ateno reiterada sobre o seu sentido: essa a dinmica e o
movimento do culto, em ambos os sentidos, com o perdo do trocadilho. As
alteraes propostas a partir do sculo XV e XVI, diferente do que se imagina, no
rompem com essa lei da maniera grecca e da literalizao. Pelo contrrio, a doutrina
da sola scritura de Lutero e o humanismo filolgico de Erasmo so novas
possibilidades abertas em direo modernidade para um poderoso aggiornamento
de duas grandes vertentes do humanismo, ambas letradas: a crist e a secular.
As associaes entre o antropogema tendrico do homem-deus e a definio
greco-latina do homem-humanista atravessam toda a jornada antropofnica dos
ltimos dois mil anos. E quando a partir do Renascimento comeam a circular os
primeiros documentos mais significativos de negao do humanismo, em termos
modernos o antropogema humanista continua a ser afirmado por meio de uma
determinao negativa. No por acaso, a conhecida definio do ser humano dada
por Kant pretende exprimir a situao antinmica do humanismo em termos
transcendentais: a natureza quis que o ser humano se autodeterminasse a si
mesmo162. O ser humano simultaneamente um ser natural, mas a natureza que o
determina naturalmente em sua humanidade a mesma natureza que o leva a se
determinar a si mesmo como condio transcendental de liberdade em relao s
determinaes da natureza. Obviamente estamos diante de um regime de
158
BOSI, Alfredo. Dialtica da colonizao. So Paulo: Companhia das Letras, 1992.
159
FILORAMO, Giovanni e PRANDI, Carlo. As Cincias das Religies. So Paulo: Paulus, 1990.
160
AGAMBEN, Giorgio. Profanaes. Traduo e apresentao de Selvino Jos Assmann. So
Paulo: Boitempo, 2007.
161
GALIMBERTTI, Umberto. Rastros do sagrado: o cristianismo e a dessacralizao do sagrado. So
Paulo: Paulus, 2003.
162
KANT, Immanuel. Antropologia de um ponto de vista pragmtico. Traduo Cllia Aparecida
Martins. So Paulo: Iluminuras, 2006.
187

autonomia, no mais diante dos imperativos de Jav ou de qualquer ao da


heteronomia divina. Entretanto a dicotomia estrutural homem-natureza continua em
plena produtividade, o que nos autoriza a assimilar imagens distintas sob um mesmo
antropogema. O humanismo pode ser definido nesses termos como toda tentativa
religiosa ou secular de estabelecer uma dignitas hominis, um lugar humano ideal no
seio do ser ou da Criao, bem como a modalidade e o limite de perfeio que lhe
cabem como criatura livre. Esse estabelecimento de uma dignitas no uma
constante homognea na Antiguidade, mas sua origem a antiga matriz vitruviana,
que parte do pressuposto de uma medida humana ideal.
Por seu lado, o anti-humanismo perceptvel nas concepes que
maximizam a funo da heteronomia, instaurando o humano entre agentes
impessoais que modelam o humano a partir de uma pura alteridade, destacada dos
indivduos reais, mas paradoxalmente em constante atuao sobre os mesmos para
assegurar sua humanidade. Mesmo em uma esfera secularizada, o anti-humanismo
reedita o antropogema tendrico do homem-deus ou do homem-humanista. Ele
surge sempre que estamos diante de estruturas objetivas de produo de poder,
mediante as quais a interveno individual se torna praticamente insignificante.
Nesse sentido, Kafka representa talvez o canto de cisne dos antropogemas
tendricos, pois transformou a estrutura formal dessa antropofania em forma vazia
da lei e da escrita. A obra de Kafka narra o esvaziamento do ser humano de sua sua
humanidade em nome da humanidade. Essa circularidade ontolgica realizada em
sua obra coloca em cheque o estatuto e a universalidade desse antropogema,
explicitando a profunda coincidentia oppositorum que conecta o humanismo e anti-
humanismo como manifestaes de um mesmo princpio. Na esteira dessas
narrativas, o idealismo alemo, o materialismo dialtico, o marxismo cientfico, o
comunismo, algumas correntes das cincias duras, a dialtica negativa da Escola de
Frankfurt, a arqueologia de Foucault, a leitura estrutural de Marx realizada por
Althusser so exemplos patentes de anti-humanismo. O caso de Althusser
exemplar, pois consegue demonstrar a diviso de conscincia no interior do projeto
marxista, fraturado entre um projeto humanista, utpico, revolucionrio e outro, anti-
humanista, cientfico e estrutural. Essa fratura se materializou nas consequncias
biogrficas trgicas do prprio Althusser, consequncias estas que Sloterdijk analisa
como fruto da indefectvel emergncia da diviso da conscincia cnica no mundo
moderno, justo no corao do prprio marxismo, ou seja, como uma expresso da
188

estrutura cnica e bivalente que confere sustentao ao humanismo e a seu


antpoda163.
O recente debate em torno do ps-humanismo muitas vezes se apoia nessa
herana anti-humanista, essencialmente ligada a uma amplificao de instncias
impessoais de produo de poder e a agenciamentos coletivos de sentido, para
efetuar a sua crtica ao humanismo. Uma das maiores expoentes dos estudos de
ps-humanismo, Cary Wolfe elenca a ciberntica, a teoria da informao, os
modelos da biologia autopoitica e a teoria geral dos sistemas de pensadores como
Bateson, Von Neumann, Wiener, Maturana, Luhmann, Varela, Von Foerster como
teorias e pensadores que propem uma minimizao do projeto de autonomia do
sujeito, pedra angular do humanismo moderno oriundo do Esclarecimento, e passam
a pensar o humano a partir de redes de sentido e de produo de realidades para
alm das fronteiras entre natureza e cultura164. As teorias advindas das cincias
naturais atravessam as cincias humanas, e produzem uma reconstruo do projeto
desconstrucionista de Derrida e de outros pensadores165. Afinal no se trata de
pensar a diferena ontolgica que transforma o centro do pensamento em um efeito
de sentido da ocultao de suas margens. A questo ainda mais ampla: como
agentes extra-humanos, anti-humanos e meta-humanos, como sistemas artificiais e
como os animais, concorrem para a configurao de nossa humanidade?
Obviamente, esse questionamento desemboca em questes ligadas a gnero, raa,
etnia, entre outras, mas sobretudo a problemas relacionados especiao, para os
quais a obra de Donna Haraway continua sendo uma referncia essencial166.
A teoria das antropofanias tem uma grande conexo com essa natureza de
problemas. Contudo a teoria das antropofanias insere nesse debate uma questo
que pode ser resumida da seguinte forma: em que medida o ps-humano
representa, no uma superao dos regimes de sentido do humanismo, mas sim
uma reativao de experincias pr-humanas adormecidas, que modelaram a vida e
a percepo do sapiens por milhes de anos, antes da revoluo neoltica e antes

163
SLOTERDIJK, Peter. Crtica da razo cnica. Traduo e coordenao Marco Casanova. Equipe
de traduo: Paulo Soethe, Pedro Costa Rego, Mauricio Mendona Cardozo e Ricardo Hiendlmayer.
Preparao de originais Rodrigo Petronio. So Paulo: Estao Liberdade, 2012.
164
WOLFE, Cary. What is posthumanism? Posthumanities Volume 8. Minneapolis/London: University
of Minnesota Press, 2010, p. xii e seg.
165
WOLFE, Cary. What is posthumanism? Posthumanities Volume 8. Minneapolis/London: University
of Minnesota Press, 2010, p. 3-31.
166
HARAWAY, Donna. When species meet. Posthumanities Volume 8. Minneapolis/London:
University of Minnesota Press, 2008.
189

da emergncia e da dominao do antropogema humanista? E podemos mesmo


pensar que a maior contribuio da teoria antropofnica seria conduzir esse debate
em torno do ps-humanismo, muito ligado a manifestaes do mundo
contemporneo, a uma teoria geral do meta e do transumanismo, ou seja, a uma
conceitualizao transversal baseada em narrativas de longa durao, e cujo intuito
seria situar o meta e o transumanismo como condies de possibilidade da
antropognese e da hominizao.
Essa reconduo pode levar o debate em torno do humanismo a assumir
certas precaues. Uma delas seria evitar que a crtica ao humanismo se transforme
em uma teleologia. Caso isso ocorra, poderemos definir o humano como uma
assemblage dos mais variados seres orgnicos e inorgnicos, naturais ou sintticos,
artificiais ou animais. Ainda assim continuaremos sendo guiados pelo telos que guia
as metanarrativas do humanismo e continuaremos inseridos na clareira da
autonomia, na esteira dos arqui-humanistas Hegel e Kant. Em outras palavras,
persistiremos em uma chave de leitura na qual o humano continua assumindo o
centro do processo antropofnico. Nesse sentido, um dos caminhos produtivos para
evitar esses impasses consiste em seguir uma guinada relativamente recente das
cincias naturais. Essa guinada pode ser entendida a partir de uma conexo entre a
teoria de Darwin e a teoria animista167.

2.7 Animismo e Mereologia

Uma longa jornada antropolgica nos une aos animais. Recuperar o elo
perdido da grande cadeia do ser que une animais e humanos foi obra da
maravilhosa especulao de Darwin, Wallace e dos zologos e bilogos do sculo
XIX. Contudo esse elo no foi criado por Darwin. Ele est presente nos principais
antropogemas das religies arcaicas, cuja origem pode recuar a milhes de anos.
So os chamados devires-animais, de que fala Deleuze168. A indiscernibilidade entre
devir-humano, devir-planta e devir-animal nas culturas arcaicas to acentuada que

167
GUTHRIE, Stewart Elliot. Faces in the clouds: a new theory of religion. Oxford: Oxford University
Press, 1995.
168
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Flix. Mil Plats: Capitalismo e Esquizofrenia. Cinco Volumes.
Coordenao da traduo Ana Lcia de Oliveira. So Paulo: 34 Letras, 2007.
190

se torna to impossvel quanto ociosa a tentativa de uma demarcao


epistemolgica169. Esse trnsito livre de substncias sutis entre os seres vivos e a
criao de vasos comunicantes entre todos os seres animados tampouco se iniciam
com os xams, que constituem o marco simblico mais antigo a que se tem
acesso170. Encontram-se em resduos paleontolgicos e arqueolgicos, em matrizes
fsseis e em inscries tumulares. Cartografia anmica sem margens, fronteiras ou
molduras, o fluxo entre os seres vivos assim se realiza justamente por conta de um
elemento central de unidade mvel e intercambiante: a alma.
Se a substncia sutil mais pura e mais simples, responsvel por todos os
agenciamentos vitais, migra de seres a seres, de animais a animais e de animais a
humanos, retornando ao seio produtivo da natureza, qual a possibilidade de
circunscrever o domnio especfico do humano nessa estrutura vital de simpatia e
contgio, para nos valermos aqui dos dois conceitos nucleares das sociedades
mgicas, descritas por Frazer?171 No por acaso, a hiptese de Taylor e sua
definio do animismo como a mais elementar forma religiosa existente obteve tanto
xito172, sendo relativizada apenas pelo estatuto dos sistemas totmicos descritos
por Durkheim173. Porm, esse fio invisvel e o tecido anmico que une todas as
criaturas, embaralhando-as em uma regio indiscernvel de gneros e espcies,
estava longe de ser totalmente rompido. E h novas vertentes da teoria
evolucionria e das cincias cognitivas contemporneas que pretendem reformular a
proposta animista e demonstrar sua validade para os estudos da interface religio-
cognio em uma perspectiva de evoluo das espcies174. Mesmo as pesquisas na
rea de arqueologia da mente, que trabalham com a hiptese de uma revoluo no
funcionamento da mente, ou seja, a passagem de uma estrutura modular a uma
estrutura integrada, ocorrida h cerca de cento e sessenta mil anos, decisiva para a
passagem do homo habilis ao homo erectus e responsvel pelas primeiras

169
LVQUE, Pierre. Animais, deuses e homens. Coleo Perspectivas do Homem. Lisboa: Edies
70, 1996.
170
LAMBERT, Yves. O nascimento das religies: da pr-histria s religies universalistas. So
Paulo: Loyola, 2011.
171
FRAZER, James George. O ramo de ouro. Organizao Mary Douglas. Rio de Janeiro: Zahar,
1982.
172
HOCK, Klaus. Introduo Cincia da Religio. Traduo Monika Ottermann. So Paulo: Loyola,
2010.
FILORAMO, Giovanni e PRANDI, Carlo. As Cincias das Religies. So Paulo: Paulus, 1990.
173
DURKHEIM, E. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totmico na Austrlia. So
Paulo: Martins Fontes, 1996.
174
GUTHRIE, Stewart Elliot. Faces in the clouds: a new theory of religion. Oxford: Oxford University
Press, 1995.
191

migraes de homindeos que partiram da frica austral, no podem produzir uma


conexo entre base cerebral e mudanas de funes mentais175.
Alm disso, essas mutaes genticas e os deslocamentos de funes
mentais no so concomitantes, tampouco estabelecem uma relao causal
simples. Em outras palavras, no possvel demarcar claramente quais os
mecanismos propriamente materiais que concorrem para a hominizao. Por seu
turno, tampouco identificvel o ponto de suspenso da natureza humana e da
natureza animal. Essa questo nos abre para um problema nuclear: a teoria da
emergncia176. Ora, se no possvel identificar uma ruptura no tecido vivo que
produza uma ciso entre ser humano e natureza, entre o homem e o animal,
havendo sempre uma infinita gradao no interior de uma mesma natureza discreta,
como realizar a demarcao da humanidade do ser humano no reino natural? O
australopitecos contava com inmeras propriedades do homo sapiens que viemos a
nos tornar. Se ele tivesse sobrevivido, como hoje em dia poderamos proceder a
uma distino entre ambas as espcies, por exemplo? As teorias quantificadoras
no funcionam, pois em termos de matria gentica quase nada nos distingue dos
alegres bonobos e dos chimpanzs malandros.
As imagens produzidas por essas boas novas cientficas, a conexo profunda
entre os humanos e os primatas superiores, geram surpresa, indignao ou
comoo apenas para as almas vitorianas de qualquer tempo. Em termos
antropofnicos, quando Darwin propem a validade cientfica do antropogema
homem-animal, que havia sido expulso da grande cadeia do ser tendrica, est
simplesmente introduzindo no corpo da cincia europeia uma imagem que os
aborgenes australianos, as redes de saberes amerndios e os nativos da Melansia
conhecem desde sempre: a solidariedade ontolgica, a conexo de substncias e os
devires agenciados pela relao animal-humano. Em termos antropofnicos, a
cadeia causal se altera. No Darwin que deve ser considerado o precursor de um
novo antropogema homem-animal, que passa a figurar no conjunto das imagens da
cincia europeia do sculo XX. Os amerndios, os aborgenes e os melansios que
so os precursores do antropogema cientificamente definido por Darwin, pois tanto a
cincia moderna quanto as tradies arcaicas participam em um mesmo campo

175
MITHEN, Steven. A pr-histria da mente: uma busca das origens da arte, da religio e da cincia.
Traduo de Laura de Oliveira. So Paulo: Unesp, 2003.
176
STEIN, Ernildo. Antropologia filosfica: questes epistemolgicas. Iju: Uniju, 2010.
192

imaginal. O paradoxo dessa situao torna-se cada vez mais claro: quanto mais a
cincia evolui em termos experimentais, mais o seu horizonte acaba incorporando
em si os saberes regionais metaempricos e os grandes sistemas dedutivos que
essa mesma cincia relegou s suas margens para poder se constituir como cincia.
Para uma compreenso mais clara dessa dinmica, basta pensarmos na enorme
quantidade de antropogemas produzida por povos para os quais o logos ocidental
indiferente, e para os quais a ideia mesma de humanidade ou de ser humano
entendido em termos gerais no tem o menor sentido terico ou prtico. E mesmo
assim, todas as populaes do mundo produzem desde sempre narrativas visuais e
verbais para iluminar o humano.
A antropologia no nesse sentido um conjunto de discursos sobre o Outro.
medida mesma que especula sobre o Outro, a antropologia acaba por produzir
uma autoimagem dos sujeitos humanos envolvidos na atividade antropolgica de
descrever o Outro. Poderamos dizer com Latour que se trata de um fenmeno de
simetria da relao ns-eles177. Ao emancipar os modelos cientficos capazes de
empreender a taxonomia da humanidade, o projeto moderno conseguiu depurar e
separar as imagens e narrativas sobre o ser humano de suas impurezas, definindo-
as em sua universalidade e em sua cientificidade. Ao faz-lo, a modernidade criou
as condies adequadas para poder produzir as misturas significativas, ou seja, para
validar as misturas em uma esferas moderna e no mais vinculadas ao pensamento
tradicional, que passa a ser associado ao mbito pr-moderno. Se levarmos em
conta essas simetrias e extrapolarmos essa primeira aproximao, podemos dizer
que no apenas a antropologia, mas todas as cincias que se dedicam a definir o
humano, seja em sua universalidade ou em sua especificidade, produzem
simultaneamente um conjunto de antropogemas que dizem respeito aos sujeitos da
cincia comprometidos com essa taxonomia descritivas, gerando assim uma
simetria de especulao e espelhamento.
Ningum menos do que Lvi-Strauss chamou a ateno para esse fenmeno.
No momento em que a comunidade cientfica precisa comunicar suas descobertas a
um pblico mais amplo, passa a recorrer a imagens mais amplas e gerais. Ao faz-
lo, os conceitos puros que estiveram a servio da heurstica racional comeam a ser
reabsorvidos esfera do mito. Passam a ser assimilados ao horizonte imaginal e s

177
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simtrica. Traduo Carlos
Irineu da Costa. So Paulo: 34 Letras, 1994.
193

sucessivas manifestaes antropofnicas. A cincia, entendida nesses termos, deixa


de ser um acesso transparente ao Outro e passa a ser vista como uma produtora
incansvel de antropogemas por meio dos quais o Ocidente consegue falar de si
mesmo utilizando o Outro como espelho. A cincia especulativa por princpio e
especular por consequncia. medida que toda imagem uma ideia encarnada em
uma forma, o conjunto dessas narrativas de si so antropogemas, estruturas formais
que traduzem a parte pelo todo. Essas narrativas no so relativas, mas sim
universais, medida que toda operao totalizadora consiste em uma transferncia
ontolgica de parte a parte, e o sentido da totalidade nada mais do que o
fechamento da cadeia transferencial por meio da qual uma parte assume a funo
de todo178.
Seria o sapiens um animal metonmico? No deixa de ser uma produtiva
intuio imaginal. No por acaso, diversas linhas da psicanlise consideram a
metonmia como figura fundamental do psiquismo, pois na livre associao de parte-
todo estariam as artimanhas usadas pelo inconsciente em seu jogo de revelar-
ocultar os traumas que motivam os sintomas. Mas no s de psicanlise e literatura
vivem a metonmia. A antroploga Marilyn Strathern, estudando os nativos Nova
Guin, desenvolveu uma nova tese sobre as estruturas fundamentais da cultura
humana e da linguagem: a mereografia. A mereografia uma escrita das partes
[meros]. O salto antropolgico dado por Strathern no diz respeito a uma nova teoria
das relaes parte-todo tribos da Melansia. O salto consiste em uma descoberta
decisiva: a ausncia praticamente absoluta do sentido de todo ou de totalidade
nessas culturas. Em outras palavras, quando um nativo se refere s partes de um
todo, tem conscincia de que o todo oculto na parte que enuncia tambm uma
parte de um todo-parte que lhe imanente. O universo e a cultura seriam regidos
por flutuaes e conexes infinitas das relaes parte-parte, e nunca por partes que
poderiam ser absorvidas e vir a se completar no interior de uma unidade anterior ou
ulterior ao processo de disseminao das partes.
Como toda parte conduz a uma parte e todas as partes se articulam em um
processo eternamente em aberto, o pensamento de Strathern original no campo
da antropologia e da etnografia, mas precisamos compreend-lo tambm como uma

178
STRATHERN, Marilyn. O efeito etnogrfico e outros ensaios. Coordenao editorial Florencia
Ferrari. Traduo Iracema Dulley, Jamille Pinheiro Dias e Lusa Valentini. So Paulo: Cosacnaify,
2014.
194

parte de uma cadeia que conduz a outras partes ad infinitum. O estudo das relaes
parte-todo existe desde a origem da filosofia. E a nfase dada s partes nessa
relao dialtica recebeu o nome de mereologia. A mereologia foi extremamente
importante para as teorias dialticas antigas sobre parte-todo e sobretudo para a
ontologia e a cosmologia. Atravessou o pensamento medieval e encontrou algumas
de suas mais vastas realizaes nas investigaes medievais relacionando Deus,
criaturas e criao, nos sistemas de mundo de Llull, na monadologia de Leibniz e
posteriormente em Husserl, onde entendida como um dos axiomas centrais da
fenomenologia. No sculo XX, o estudo da mereologia se especificou muito e
acabou assumindo o campo da fsica terica e da matemtica pura, principalmente
por causa das contribuies do matemtico polons Stanisaw Leniewski, que
unifica o problema da mereologia lgica.
Tanto na matemtica quanto na cosmologia, o desafio consiste cada vez mais
emancipar as partes em relao ao todo e tentar captar a estrutura relacional parte-
parte em sua imanncia. Exatamente como os melansios descritos por Strathern
compreendem essas relaes em termos imaginais, ou seja, por meio de uma
ontologia das relaes parte-parte. O gigantesco processo da hominizao um
gigantesco processo transferencial. Ele consiste em um continuo deslocamento
relaes parte-parte que, por meio da ao do desejo, acabam assumindo o valor de
totalidades. Entendidas a partir da mereologia e da mereografia, defino essa
odisseia antropolgica e ontolgica de deslocamento das constelaes abertas de
relaes partes-partes em direo ao todo, que a totalizao da partes produzida
pelo desejo, a partir de um conceito: mesons [meios]. Os mesons so a rede infinita
de cadeias transferenciais que compem a totalidade aberta de todos os campos
imaginais, e por sua vez sustentam a flutuao de todos os antropogemas no
horizonte maior das cadeias antropofnicas.

2.8 O fio de ouro de Homero

Em uma passagem obscura da Odisseia, motivo de diversas controvrsias,


Homero fala de um fio invisvel, uma substncia sutil que conecta todas as coisas.
Convencionou-se definir essa alegoria, que seria a fonte da teoria platnica da
195

cadeia de anis que une o mundo179, a partir de sua fonte latina: a cadeia de ouro de
Homero [aurea catena Homeri]. Essa seria a descrio ocidental mais arcaica de um
princpio sutil do mundo, aquilo que mais tarde seria chamado de alma do mundo,
explorado exausto pela teoria hermtica e uma das matrizes da alquimia,
chegando a dar ensejo a uma obra homnima de Anton Kirchweger, Aurea Catena
Homeri, que saiu do prelo em 1757 e foi lida pelos pietistas, chegando a influenciar o
jovem Goethe180. Por ser uma alegoria produtiva ao desenvolvimento da cincia, e
por induzir a mente na busca da unidade imaterial oculta, alm dessa acepo mito-
hermtica ela tambm apresenta um grande valor epistemolgico-dedutivo de leis
globais que regem a natureza181. No por acaso, essa alegoria despertou o
interesse de Pierre Lvque, um dos estudiosos das relaes entre animais, homens
e deuses nas religies arcaicas, anteriores aos gregos182. Afinal, trata-se de uma
das mais claras imagens descritivas da unidade anmica invisvel que unifica todos
os campos de ao da natureza. Em outras palavras, uma imagem da alma.
O conceito de alma um dos mais fascinantes da histria humana. E sua
relao com o corpo ainda mais delicada. Tanto que depois de milhes de anos de
unio, a separao marcante de ambos como substncias distintas um fenmeno
extremamente recente na histria da cultura183, oriunda do zoroastrismo184 e mais
claramente do orfismo185 e da filosofia186. Ainda no mundo arcaico, Homero podia se

179
PLATO. on. Traduo Cludio Oliveira. Coleo Fil/Esttica. Belo Horizonte: Autntica, 2011.
180
Conferir os excelentes comentrios de Jos Jorge de Carvalho, antroplogo responsvel pela
edio comentada de um dos mais importantes tratados da histria da alquimia: ALTUS. Mutus liber:
o livro mudo da alquimia. Ensaio introdutrio e comentrios e notas de Jos Jorge de Carvalho. So
Paulo: Attar, 1995.
181
CAZENAVE, M. A. Cincia e a alma do mundo. Lisboa: Instituto Piajet. 1982.
182
LVQUE, Pierre. Aurea catena Homeri: une tude sur l'allgorie grecque. Annales Littraires de
l'Universit de Besancon, 27. Paris: Les Belles Lettres, 1959, p. 90. LVQUE, Pierre.
Animais, deuses e homens. Coleo Perspectivas do Homem. Lisboa: Edies 70, 1996.
183
Para conferir a origem grega da noo de alma, conferir o monumental obra de Erwin Rohde:
ROHDE, Erwin. Psique: la idea del alma y la imortalidad entre los griegos. Mxico: Fondo de Cultura
Economica, 1948. Quanto s relaes entre alma e tekhn, o enorme estudo de Umberto Galimberti:
GALIMBERTI, Umberto. Psiche e Techne: o homem na idade da tcnica. So Paulo: Loyola, 2005.
Ver tambm: BREMMER, Jan. El concepto de alma en la antigua Grecia. Traduccin Menchu
Gutirrez. Barcelona: Siruela, 2003.
184
LAMBERT, Yves. O nascimento das religies: da pr-histria s religies universalistas. So
Paulo: Loyola, 2011.
185
GUTHRIE, W.C.K. Orpheus and greek religion. Princeton: Princeton University Press, 1993.
186
H uma enorme bibliografia sobre a histria da alma e a origem das concepes gregas, antes e
depois do advento da filosofia: CORNFORD, F. M. Principium Sapientiae: as origens do pensamento
filosfico grego. Traduo Maria Manuela Rocheta dos Santos. Prefcio W. K. C. Guthrie. Lisboa:
Calouste Gulbenkian, s/d.CORNFORD, F. M. From religion to philosophy: a study in the origens of
Western speculation. New York: Dover, 2004. DODDS, E. R. Os Gregos e o Irracional. So Paulo:
Escuta, 2002. KERNYI, Karl. Dioniso: imagem arquetpica da vida indestrutvel. So Paulo:
196

referir sombra de Aquiles como a psych de Aquiles. No havia exterioridade


representacional para o conceito de alma, sobretudo no mundo trgico. Os heris
eram sempre aqueles que partiam desta vida com gritos lancinantes de dor, e isso,
possivelmente, para pensar com Nietzsche, porque sabiam que no haveria outra
vida, a no ser em um Hades bem pouco acolhedor, em meio a sombras, vozes e
dissipao. Entretanto, mesmo com as sofisticadas tecnologias metafsicas de
produo do Alm, de globos e esferas que circundam a totalidade do universo187,
muitos resduos arcaicos da duplicidade anmica primordial ainda se preservaram.
Em algumas mitologias arcaicas pags se desenvolveram cultos placenta188,
cultos estes que se mantm vivos em regies agrrias da Europa at hoje,
realizados mediante o enterro da substncia placentria como modo de preservar o
resduo de matria anmico-amnitica do feto. Sloterdijk chega a propor uma
arqueologia desses cultos como a matriz antropolgica das crenas nos duplos
angelicais, desde as vises crists s angelologias e s angelofanias, centrais tanto
a mstica quanto na ortodoxa islmicas189.
Agamben, por sua vez, nos sugere uma ousada e interessantssima
arqueologia do conceito gnio190, hoje em dia to espetacular na sociedade do
espetculo. Advindo do genius latino, do paganismo romano, quer dizer
rigorosamente: a substncia sutil que nasce conosco no instante do parto e que nos
acompanha at o tmulo. Duplo que confere a singularidade inefvel do indivduo
que, como diria Toms de Aquino, define-se justamente por ser inefvel, mescla-se
a meus gestos mais singulares, s linhas irredutveis de minha fisionomia, circunda a
atmosfera da pessoa humana e lhe confere aquela irredutibilidade a quaisquer
sistemas gerais, de que falava Kierkegaard. Trata-se do resduo pago romano que,
no podendo ser incorporado sutilizao metafsica da alma, foi subsumido no
conceito catlico de anjo da guarda. Por esses e outros motivos, a inveno da alma

Odysseus, 2002. KERNYI, Karl. Eleusis: Imagen Arquetpica de La Madre y de la Hija. Traduccin
Mara Tabuyo y Agustn Lpez. Barcelona: Siruela, 2004.
187
SLOTERDIJK, Peter. Esferas II: Globos. Macrosferologa. Traduccin Isidoro Reguera. Prlogo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2004.
188
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Burbujas. Microsferologa. Traduccin Isidoro Reguera, Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2003.
189
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Burbujas. Microsferologa. Traduccin Isidoro Reguera, Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2003.
190
AGAMBEN, Giorgio. Profanaes. Traduo e apresentao de Selvino Jos Assmann. So
Paulo: Boitempo, 2007.
SLOTERDIJK, Peter. Ira e Tempo: Ensaio Psicolgico-Poltico. So Paulo: Estao Liberdade, 2012.
SLOTERDIJK, Peter. Extraamiento del Mundo. Traduccin Eduardo Gil Bera. Valencia: Pre-Textos,
1998
197

como substncia separada ou, para falar com Deleuze, como virtualizao do plano
de imanncia, certamente foi uma das mais poderosas tecnologias da humanidade,
pensando-se tecnologia aqui na acepo mesma de Sloterdijk: princpios de
domesticao dos espaos vitais191, desdobrados por transferncias esferolgicas,
no por meio de uma projeo representacional. Por um mesmo movimento, a
descoberta da transcendncia da ira ou do que se convencionou chamar de ira
divina foi uma das mais poderosas tecnologias blicas e uma das mais eficientes
armas nas lutas de poder192.
A transferncia no psquica ou representacional, mas real e ontolgica.
Quando falamos em transferncia, falamos em um processo de metokosis:
mudana de substncia193. quando falamos em transferncia falamos nos mesons
que produzem o deslocamento que engloba real e ideal e os torna idnticos diante
do desejo. Se de um ponto de vista etimolgico o animal aquele ser dotado de
anima, de movimento, e, portanto, de psych, a demarcao entre humanidade e
animalidade passa necessariamente por uma clivagem sobre o que venha a ser a
especificidade da alma humana, debate complexo que hoje em dia se encontra
totalmente em aberto na teoria cognitiva, na antropologia, na filosofia, na biologia e
na etologia. Contudo qual seria a produtividade de reativar uma teoria animista?
Talvez o dado mais importante de uma reformulao do animismo se encontre em
uma nova cosmologia. Uma cosmologia que representa aos poucos o deslocamento
de um campo imaginal centrado no logos, entendido como substncia racional que
ordena a cadeia dos seres, em direo a um eros cosmognico, capaz de manter os
seres unidos, a despeito das infinitas transferncias e migraes de substncias na
cadeia imaginal.

2.9 Eros, Cosmos e Mesons

191
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Burbujas. Microsferologa. Traduccin Isidoro Reguera, Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2003.
192
SLOTERDIJK, Peter. Ira e Tempo: Ensaio Psicolgico-Poltico. So Paulo: Estao Liberdade,
2012.
193
SLOTERDIJK, Peter. Extraamiento del Mundo. Traduccin Eduardo Gil Bera. Valencia: Pre-
Textos, 1998.
198

Como se sabe, muitos especialistas sustentam um alinhamento direto entre


as teorias darwiniana e neodarwiniana e o pensamento de Hume, situando-o como
uma espcie de precursor de Darwin do ponto de vista filosfico. Ao fazer uma
defesa radical da contingncia, Hume estaria preparado o terreno para a teoria da
seleo natural operada pelo acaso, uma das premissas de Darwin e, sob diversos
aspectos, diferente de uma organizao dos seres vivos produzida por uma
inteligncia natural ou sobrenatural. Essa leitura de Darwin, enfatizando as
condies de exceo sob as quais se deu a ontognese da vida e a seleo das
espcies em relao aos demais processos fisioqumicos, foi amplamente difundida
no sculo XX. E encontra uma de suas expresses mais consumadas na obra de
Jacques Monod194. Uma das divisas de Monod a de que o ser humano bem como
toda a vida seriam ciganos s margens do universo195.
Por seu lado, alm de suas contribuies relativas ao ascetismo [askesis]
como um dos dispositivos antropolgicos fundadores da filosofia, contribuies que
tanto influenciaram Foucault196, Pierre Hadot nos lembra que os estoicos
desenvolveram a imagem do ser humano como um soldado do cosmos197. Sozinho
no universo e tendo como ponto de apoio apenas a retido fornecida pelo logos
primordial [logos spermatiks], sem amparo dos valores mundanos, dos estados e
da polis, caberia ao estoico ser um soldado do cosmos. O cosmopolitismo inerente a
essa concepo estoica serviu de esteio para o cristianismo conciliar pensamento
pago, ascetismo, rigor moral e evangelizao, ou seja, constituir-se como uma
esfereologia imperial e como um dos principais protagonistas da globalizao
metafsica198. Essa mesma conciliao entre logos e determinao individual obteve
grande difuso, ofereceu apoio s teorias descritivas da singularizao da
substncia divina em um longo processo de individuao dos elementos e deu
origem a uma das categorias centrais do cristianismo: a pessoa. Recapitulando a
antiga imagem estoica, Sloterdijk se apoia em Monod e o conecta aos pensadores

194
MONOD, Jacques. O acaso e a necessidade: Ensaio sobre a filosofia natural da biologia.
Traduo Bruno Palma e Pedro Paulo de Sena Madureira. Petrpolis: Vozes, 1971.
195
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991. A nova aliana:
metamorfose da cincia. Traduo Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de
Braslia, 1991.
196
FOUCAULT, M. Histria da sexualidade III: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
197
HADOT, P. Exercices spirituels et philosophie antique. Prefcio de Arnold I. Davidson. Nova
edio, revista e aumentada. Paris: Albin Michel, 2002.
198
SLOTERDIJK, Peter. Esferas II: Globos. Macrosferologa. Traduccin Isidoro Reguera. Prlogo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2004.
199

antigos ao descrever o ser humano, agora no mais como um soldado, mas como
um idiota do cosmos199.
O deslocamento da imagem do soldado imagem do idiota acentua ainda
mais esse esplendor de ambivalncia que o humano, um ser que tudo perante o
nada e nada perante o infinito, como sentenciou Pascal. Alm disso, a imagem do
idiota serve para hiperbolizar o movimento por excelncia da modernidade: a
explicitao e a infinitizao200. As consequncias desses movimentos um
esvaziamento da racionalidade imanente da natureza, marcada sob o antropogema
estoico-cristo do logos, e a produo de outras fascinaes imaginais ligadas ao
acaso e absoluta indiferena de um universo no qual Deus morreu, ou seja, o
maior de todos os sistemas de imunizao do sapiens, o sistema-Deus sob a forma
do globo foi infinitizado e ruiu. A imagem descrita por Monod assimila essa guinada,
e nova dentro de uma descrio cientfica da origem da vida. Mas se a pesarmos
como um antropogema, essa imagem foi explorada por diversas tradies arcaicas e
retomada com toda fora a partir da cincia moderna. Hans Jonas compreendeu
com exatido e sensibilidade o itinerrio dessa mesma imagem de isolamento,
finitude e estrangeirismo dos seres vivos em relao ao universo, no apenas a
partir de Monod, mas tambm a partir das escrituras gnsticas antigas.
Jonas intuiu que a imagem do exlio csmico e do estrangeirismo do ser
humano em relao ao universo, e mesmo em relao a Deus, embora adormecida
entre as tintas do tempo e da heresia, possua uma profunda conexo com algumas
das teses centrais da biologia contempornea e do pensamento existencial. Mais do
que isso, notou que a cosmologia gnstica basicamente desempenhou na
antiguidade o papel que a cosmologia cientfica passou a desempenhar a partir do
sculo XVI para o mundo moderno. Por isso, inicialmente dedicado filosofia da
biologia, Jonas decidiu dedicar anos de trabalho na elaborao de uma
fenomenologia da atitude gnstica diante do cosmo, das escrituras antigas ao
pensamento do sculo XX201.

199
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Burbujas. Microsferologa. Traduccin Isidoro Reguera, Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2003 SLOTERDIJK, Peter. Esferas II: Globos. Macrosferologa.
Traduccin Isidoro Reguera. Prlogo Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2004
200
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Burbujas. Microsferologa. Traduccin Isidoro Reguera, Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2003 SLOTERDIJK, Peter. Esferas II: Globos. Macrosferologa.
Traduccin Isidoro Reguera. Prlogo Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2004
201
JONAS, Hans. La religin gnstica: El mensaje del Dios extrao y los comienzos del cristianismo.
Siruela: Madrid, 2003.
200

Indiferena, simplicidade, racionalidade, estranheza, reversibilidade, acaso:


todos esses elementos corroboram a inexistncia de um logos cosmognico202. Essa
constatao nos conduz a uma interessante concluso: a vida consiste em uma
passagem do mais simples ao mais complexo e no o inverso. A complexidade e os
nveis de inteligncia ocorrem a posteriori, ao longo de bilhes de anos de
acomodaes, adaptaes e desempenhos exitosos dos seres vivos. A
complexidade das formas no est inscrita na substncia cosmolgica original como
se houvesse virtualmente nessa primeira substncia uma cadeia de determinaes e
necessidades. Ela surge justamente do movimento livre, acidental, espontneo e
contingente da vida em busca de sobrevivncia e segurana. Em outras palavras,
seria epistemologicamente impossvel sustentar a existncia de complexidade no
instante do fiat original do universo.
Contudo, diante da impossibilidade de uma inteligncia infusa na origem do
universo, o mesmo Jonas oferece um mito cosmognico alternativo: o eros
cosmognico203. No princpio no era o logos, com todas as vastas implicaes
metafsicas e religiosas que a polifonia desse termo nos sugere: razo, palavra,
verbo, inteligncia, discurso, ordem, mesura, harmonia, proporo. No princpio era
o eros. O desdobramento ontolgico dessa distino de enormes consequncias.
Ele nos conduz a uma concepo de cosmo que fruto do acaso e movido pelo
acaso. No h Deus ou qualquer vestgio de design inteligente [intelligent design]
movendo os seres. H entretanto uma fora centrpeta que conecta todos os seres
para alm dos primados de uma razo necessria ou suficiente. Essa conexo
csmica se d por meio de eros.
Esse conceito de eros cosmognico talvez seja um bom comeo para
pensarmos a antropofania no mbito transumanista, bem como para redefinirmos os
limiares e as fronteiras entre physis e tekhn. O eros cosmognico e a condio
estrangeira desse mesmo ser humano no cosmos, descritos por Jonas, tambm so
nitidamente antropogemas, imagens autodefinidoras do humano como um ser
tensionado e diludo no tecido ertico e nas fibras desejantes do cosmos. Como
conciliar essas unidades antropofnicas aparentemente paradoxais? Como pensar o
humano a partir da inscrio de dois antropogemas antagnicos do estrangeirismo

202
JONAS, Hans. Matria, Esprito e Criao: Dados Cosmolgicos e Conjecturas Cosmognicas.
Traduo Wendell Evangelista Soares Lopes. Petrpolis: Vozes, 2010.
203
JONAS, Hans. Matria, Esprito e Criao: Dados Cosmolgicos e Conjecturas Cosmognicas.
Traduo Wendell Evangelista Soares Lopes. Petrpolis: Vozes, 2010.
201

ontolgico e do eros cosmognico? Talvez a teoria da esferas de Sloterdijk possa


nos auxiliar nesse ponto.

2.10 Os Mamferos e a Geometria

Logo nas primeiras linhas da introduo de seu projeto Esferas, Sloterdijk nos
lembra que a filosofia nasceu sob a gide da geometria204. Haja vista a inscrio
famosa na Academia de Plato: afastem-se daqui todos que no forem
gemetras205. O aspecto a ser ressaltado logo nesse ponto de partida se refere
portanto a uma categoria antropolgica implcita ao surgimento do discurso
filosfico. Em que medida os critrios dianoticos necessrios a uma verdadeira
aproximao das realidades eidticas [edos] e das formas inteligveis, ao revelar a
prioridade dos gemetras, teriam nos conduzido a um esquecimento de nossa
ancestralidade de mamferos?206 Em que medida a filosofia, entendida como
contemplao de formas perfeitas e busca da pura circularidade do ser,
absolutamente idntico a si mesmo, no nos distanciou de outra circularidade,
aquela que experimentamos envoltos na placenta e no lquido amnitico maternos?
Para os mamferos, para nos valermos aqui da conhecida acepo de Pascal, nada
mais alheio ao esprit de gomtrie, em tudo oposto ao esprit de finesse.
Em primeiro lugar, os mamferos so animais gregrios. Em sentido etolgico,
para eles os modelos universais e as formas gerais abstratas tm sua gnese
sempre em processos primrios. A gnese desses processos primrios e das formas
de vida compartilhadas dos grupos extrai seu modelo das primeiras relaes me-
filho. Isso quer dizer que o princpio de demonstrao da verdade no pode nunca
se afastar do horizonte espacial imediato, onde a vida se desenrola em sua
facticidade. Nesse sentido, tudo o que se reputou at hoje como pensamento
filosfico no tem incio em uma contemplao das formas puras, acessveis ao puro

204
SLOTERDIJK, Peter. Esferas III: Espumas. Esferologa Plural. Traduccin Isidoro Reguera.
Prologo Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2006. SLOTERDIJK, Peter. Esferas II: Globos.
Macrosferologa. Traduccin Isidoro Reguera. Prlogo Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2004
205
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Burbujas. Microsferologa. Traduccin Isidoro Reguera, Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2003, 21.
206
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Burbujas. Microsferologa. Traduccin Isidoro Reguera, Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2003, 22.
202

intelecto e depreendidas pelo mos geometricus. Origina-se sim de um amor


transferencial que o ser humano, enquanto mamfero, desloca para regies cada vez
mais distantes, s quais no poderia acessar por outros meios207. Pensar no
acessar o logos que deu origem ao mundo e tornou possvel conceber o real como
real. Pensar acima de tudo efetuar um amor de transferncia ao todo208. Toda a
atividade criadora e toda manifestao do pensamento se produzem por meio dessa
fora centrfuga transferencial, mobilizada por eros. Os processos criadores so
aqueles que conduzem o ser humano a um xodo em direo ao aberto [Offenheit] e
rumo a um puro exterior209.
Partindo dessas premissas, a esferologia desenha nessa relao primria o
seu axioma. A vida a soma de infinitos fenmenos de animao e ressonncia 210.
Esses fenmenos so oriundos de um enraizamento primitivo, antropolgico e
metabiolgico, que os seres humanos produzem no momento mesmo em que
realizam seu xodo uterino e ingressam no mundo. A dupla chama que orienta os
seres humanos nessa viagem uma associao entre eros e transferncia. A
esfereologia uma filosofia do xodo e do vir ao mundo. Uma narrativa que procura
descrever as morfologias desses desdobramentos transferenciais por meio de
unidades dplice-unas. Essa unidade didicas so propriamente a configurao
formal e metaemprica do que podemos chamar de esferas.
Se durante milnios a reminiscncia foi a chave pela qual a filosofia
desenvolveu tecnologias psicaggicas e conseguiu educar a alma para acessar os
vestgios das realidades arcanas das formas-ideias, esquecidas ou obliteradas pela
opacidade dos sentidos, a esferologia prope um novo caminho para essa viagem
da alma. O que deve ser recordado no so as formas [arkhai] entendidas como
ideias. O que deve ser recordado a vida entendida como devir da espcie, ou seja,
como esfera. A esferologia, concebida como ampla teoria dos fenmenos vitais de
animao, a narrativa que pretende fazer o elogio da transferncia e a refutao

207
SLOTERDIJK, Peter. Esferas III: Espumas. Esferologa Plural. Traduccin Isidoro Reguera.
Prologo Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2006. SLOTERDIJK, Peter. Esferas II: Globos.
Macrosferologa. Traduccin Isidoro Reguera. Prlogo Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2004
208
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Burbujas. Microsferologa. Traduccin Isidoro Reguera, Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2003, 23.
209
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Burbujas. Microsferologa. Traduccin Isidoro Reguera, Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2003, 23.
210
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Burbujas. Microsferologa. Traduccin Isidoro Reguera, Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2003, 2003
203

de todas as formas de solido e isolamento211. Mas como o eros de transferncia


pode ser entendido em termos transumanistas? Talvez esse ponto fique mais
evidente se reatarmos os fios animistas tecidos pelo eros cosmognico, e que
conectam o humano, literalmente, cadeia mais vasta dos seres.

2.11 Espelho

O conceito de antropofania consiste em uma definio do sapiens a partir do


ponto de vista de suas propriedades emergentes, ou seja, a partir de uma tentativa
de definio da ontognese do humano fora dos marcos tericos reducionistas,
sejam eles de ordem naturalista ou culturalista. Para tanto, a antropofania se apoia
em duas grandes matrizes antropolgicas: o campo imaginal e os antropogemas. Os
antropogemas so autoimagens definidoras da humanidade do ser humano,
presentes em todas as culturas, com as variaes as mais surpreendentes. Nesse
sentido, os antropogemas so fascinaes meta e transumanas, pois sempre
descrevem a essncia do ser humano a partir da solidariedade ontolgica com
outros reinos do ser, da esfera orgnica e inorgnica, como animais, minerais e
vegetais. Os agrupamentos de determinadas autoimagens sobre a gnese e a
essncia do humano constitui um antropogema. A sucesso espaciotemporal dos
antropogemas ocorre no interior de cadeias imaginais, ou seja, de conjuntos de
imagens que, ao definir o humano como humano, produzem transferncia da
parcialidade totalidade. Essa transferncia de imagens parciais elevadas
dimenso de imagens totais, bem como e as ressonncias de antropogemas no
interior dos campos imaginais, configuram as antropofanias. importante
ressaltarmos a excentricidade desses conjuntos antropofnicos em relao a uma
fonte antropognica e imaginal especfica: o antropogema tendrico do homem-
deus, considerado a matriz de todas as variantes do humanismo.
Podemos dessa maneira pensar que a jornada do humanismo se insere como
um antropogema em meio a um oceano de antropogemas que se deslocam
infinitamente no horizonte imaginal do sapiens desde h milhes de anos. O

211
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Burbujas. Microsferologa. Traduccin Isidoro Reguera, Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2003, 23.
204

humanismo surgiu da fascinao tendrica, cujo antropogema central seria o campo


imaginal do homem-deus, em contraposio ao campo imaginal homem-natureza.
Contudo o humanismo uma narrativa to vlida quanto qualquer outra narrativa da
antropognese. Como todas as narrativas que constituem a cadeia de fascinaes e
o fluxo das antropofanias, o humanismo tambm surgiu de uma transferncia por
meio da qual uma figurao parcial do humano engloba todas a multiplicidade das
demais fascinaes. A figura do humanismo torna-se um meson de realizao do
desejo medida mesma que, por meio da criao de um campo de imanncia
atrativo e imaginal, regiro por eros, suprime a distncia que separa o ideal do real e
apaga quaisquer cises representacionais entre realidade e fico.
O que se pode pensar sobre o humanismo inseri-lo na cadeia de
fascinaes antropofnicas do antropogema tendrico. Diversas outras narrativas do
mundo abordam a imagem do homem-deus, mas poderamos dizer que a tradio
abramica foi aquela que mais poderosamente conseguiu inserir o humano em um
regime de exceo em relao natureza, e por isso enfatizou com maior nitidez a
especificidade dos traos do rosto humano em detrimento das continuidades do
humano em relao a outros seres, vivos ou inorgnicos. Esse princpio de
solidarizao de todos os seres e de participao recproca de suas substncias
entre si o que nos leva a pensar o meta-humanismo ou um transumanismo como
condio de possibilidade da antropognese, ou seja, como regio de emergncia
de todas as fascinaes e de todas as figuraes antropofnicas e de todos os
devires da espcie. A narrativa por excelncia que demonstra essa ontologia das
trocas, dos fluxos e das migraes entre as substncias de diversas espcies, reinos
e domnios a narrativa do animismo. Em certo sentido, a cincia moderna o
corolrio da operosidade do ser humano sobre uma natureza que se converteu em
matria inerte, apta a ser manipulada. Essa reduo da natureza condio amorfa
foi possvel graas ao antropogema do homem-deus. Essa dade imaginal promoveu
um isolamento da natureza, em uma distase processada no interior da trade
imaginal deus-homem-natureza. Essa distase produziu a natureza como uma
esfera autnoma, como o grande Outro tanto de Deus quanto do homem. A absoluta
transcendncia de Deus em relao natureza e a criao de um homem concebido
imagem e semelhana desse Deus absoluto e transcendente produziram, de
maneira paradoxal, tambm uma transcendncia absoluta da natureza, tanto em
relao a Deus quanto em relao ao homem. A natureza passou a ser a evidencia
205

mais prxima e ao mesmo tempo a imagem mais distante. Em termos dialticos


negativos, nesse percurso a prpria natureza se sobrenaturalizou, transformada em
presena fantasma tensionada entre duas grandezas que se espelham mutuamente,
o homem e Deus.
Como no poderia ser diferente, esse percurso de objetivao abriu na cena
mundana uma ilha na qual o ser humano e Deus tornaram-se estrangeiros. Idiotas
habitando um cosmo vazio e indiferente, e proferindo seu canto de som e fria
significando nada. Quando Nietzsche, em sua famosa parbola do louco na taverna,
diz que Deus est morto e que fomos ns quem o matamos, quer dizer
simplesmente que tanto o homem quanto Deus foram assassinados pelo
humanismo, pois o humanismo a condio formal primeira de uma ontologia
centrfuga que produz o exlio simultneo de Deus e do humano, e por meio do qual
rompe-se a cadeia de solidarizao que conecta ambos natureza. Em que medida
essa distase desejada e produtiva para inscrever o humano no seio de novas
antropofanias e amplificar o ciclo imaginal dos antropogemas do exlio? Essa uma
questo que prefiro deixar produtivamente em aberto. O importante perceber que a
teoria animista, sobretudo em sua reformulao no interior do pensamento
evolucionrio, pode vir a produzir uma poderosa reconfigurao, tanto do
humanismo quanto dos diversos campos imaginais que permaneceram excludos do
regime de fascinaes do humanismo. Poderamos estar diante de uma
reconfigurao do plano geral das manifestaes e das imagens internas prpria
antropofania tendrica, e de uma metamorfose iminente dessas mesmas imagens
internas, em direo a novas concepes do humano e a novas concepes de
Deus, bem como em direo a uma reconfigurao global do antropogema homem-
deus.
A emergncia, no do sapiens enquanto sapiens, mas das diversas
processes e figuraes do humano, ocorre em uma regio transespacial e
transtemporal: a esfera da antropognese. Essa esfera se enraza em uma
dimenso meta-humana ou transumana. Esse espao de emergncia imanente,
sempre atual ou passvel de ser atualizado, independente das geografias ou das
temporalidades que estejam implicadas em processos de longa durao, pois esse
espao se refere ontognese do humano como humano e a seu devir e no
cadeia cronolgica de sua filognese como espcie ou ao sentido estritamente
paleontolgico da especiao. Nesse sentido, o humanismo no tem ps nem pr,
206

pois pensar assim continuar a tomar o humanismo como evento central e base de
organizao das cadeias antropofnicas, sendo que se trata exatamente do oposto:
o antropogema do humanismo a exceo e no a regra dos regimes e
desempenhos antropofnicos, entendidos a partir do arco temporal da hominizao,
ou seja, em um enquadramento de muitos milhes de anos. Isso quer dizer que a
odisseia da hominizao encontra-se nesse exato momento to aberta e produtiva
quanto esteve h cento e cinquenta mil anos e quanto estar daqui a um milho de
anos, posto que a origem das fascinaes e dos antropogemas uma origem
imaginal, e no temporal.
As linhas de fuga dos antropogemas hegemnicos da tradio humanista
podem ser as novas snteses fornecidas pela biotecnologia, pelo sequenciamento
gentico, pelos ciborgues, pela inteligncia artificial, pelas filosofias sintticas e
transgnicas, pela diluio completa entre orgnico e inorgnico e pela
universalizao de todas as formas pelas quais o humano produz uma interveno
significativa no processo seletivo da espcie, a ponto de podermos hoje em dia falar
em uma seleo artificial coexistindo com a seleo natural. Contudo, no apenas
nos saltos que a techn empreende sobre os domnios da natureza, produzindo
descontinuidades e abismos ontolgicos, reside o mistrio e a definio do humano.
Quando o protagonista-narrador do conto de Guimares Rosa se olha no espelho,
consegue ver seu rosto se transformar em uma ona, assim como pode ver tambm
uma criana e uma prola, flutuando nas regies abissais do oceano. A regio meta
e transumana de emergncia dessas fascinaes est e sempre esteve ao alcance
de nossas mos e de nosso pensamento. Por isso foi e continuar sendo possvel
modelarmos o mundo que nos modelar, em uma sucesso de imagens que se
expandem e nunca se esgotam em sua travessia infinita. Por isso o humano um
ser de intervalo. Um enigmtico rosto que emerge entre uma ona, uma criana e
uma prola.
207

3 SER E RELAO: OS MESONS E AS ONTOLOGIAS RELACIONAIS,


CONSTITUINTES E PLURALISTAS

Seria preciso inventar uma estrutura (como as inventadas por Riemann) cuja
conexo fizesse ver, ao menos grosseiramente, as dependncias recprocas que
fazem de um contedo um continente e de um continente um contedo, j que eu
estou em um mundo que est em mim, encerrado no que encerro, produto disso que
eu formo entretenho.
Paul Valry

3.1 Ontological Turn

A odisseia da ontologia percorre toda a histria do pensamento. Contudo


desde Kant criou-se uma interdio discursiva e epistmica em relao ontologia,
entendida como uma derivao do substancialismo medieval ou como variantes da
metafsica que se regozijavam em se iludir atribuindo realidade substancial ao que
no passava de estados de coisa e de fenmenos interiores s determinaes de
seus respectivos regimes de representao. Pode-se dizer que o pensamento
moderno foi marcado pela guinada criticista kantiana e pelo empirismo, fechando as
vias de acesso a ontologia. Entretanto essa apenas uma narrativa parcial do
efetivo percurso e das reais questes que o pensamento enfrentou e enfrenta desde
Kant. Pois logo no idealismo alemo, em Van Baader, em Lwith, em Hegel, em
Fichte, em Hlderlin e na obra abissal de Schelling, as comportas da ontologia
novamente arrebentam e se produz um oceano de novas especulaes que
pretendem refundar uma compreenso do real enquanto real. Obviamente, essa
nova ontologia no retorna sem as devidas mediaes e tampouco sem ser filtrada
pelo criticismo kantiano e por suas determinaes negativas. E se essa aliana o ser
e sua negatividade j est presente nos marcos fundadores das ontologias
clssicas, na dialtica entre ontologia e meontologia presentes em Plato e em
Aristteles, a forma recursiva dessa nova ontologia moderna no deixa em nenhum
208

momento de se abismar nos horizontes da negatividade. E isso visvel na obra de


um dos mais poderosos metafsicos da modernidade: Hegel. Entretanto, na
ontologia hegeliana o sentido da negatividade passa a ser avaliado como forma
residual do sistema, e o conceito hesita e pacientemente adia seu despertar para o
momento em que o ser possa incorporar em si o negativo de si mesmo. Essa
operao apenas em um primeiro momento imanente a processos reais e globais
do que poderamos definir como a totalidade de natureza, pois o seu telos no
consiste em esgotar esse campo de fenmenos naturas, mas em fundar a
conceitualidade mesma do conceito e em fundir o conceito ideia universal. Tem-se
aqui a ponte entre a ontologia e o grande caminho para uma reflexo situada nos
limiares do pensamento puro, uma investigao sem objeto, e por isso mesmo, um
dos pices da filosofia. Toda uma tradio da ontologia associada a Hegel e depois
a Marx se enveredou pelo sculo XX, e se manifesta em obras tao heterogneas
que recobrem a monumental especulao da ontologia de Luckcs s variaes
ontoteolgicas de iek, Badiou, Agamben.
Em um sentido diverso, a guinada ontolgica empreendida nas primeiras
dcadas do sculo XX por Heidegger, Whitehead e, em seguida, por Deleuze e
Sloterdijk, bem como o chamado ontological turn que tem se observado em diversas
reas do conhecimento na ltimas dcadas, tanto nas cincias humanas quanto nas
cincias naturais, demonstram a ambiguidade desse legado moderno da ontologia e,
ao mesmo tempo, a sua impressionante vitalidade, mesmo em uma acepo ps ou
antimetafsica. Essa guinada ontolgica [ontological turn] tem sido demarcada com
esses termos desde h uma dcada, sobretudo no campo da antropologia212, com
destaque para os nomes partir de nomes como Bruno Latour213, William Connolly214,
Philippe Descola215, Tim Ingold216, Annemarie Mol,217 Eduardo Kohn218, Eduardo

212
Um excelente readers guide em quatro partes organizando os principais livros e artigos relativos a
esse ontological turn na antropologia:
http://somatosphere.net/2014/01/a-readers-guide-to-the-ontology-turn-part-1.html
213
Praticamente todo pensamento de Latour e marcado por essa recorrncia a ontologia: Graham
Harman, 2009, Prince of Networks: Bruno Latour and Metaphysics. Melbourne: Re.Press. [OA]
214
William Connolly, 2005, Pluralism. Durham: Duke University Press. [Ch. 3, Pluralism and the
Universe [on William James], pp. 68-92.]
215
Philippe Descola, 2013, The Ecology of Others, Chicago: Prickly Paradigm Press.
216
Tim Ingold, 2004, A Circumpolar Nights Dream, in John Clammer et al., eds., Figured Worlds:
Ontological Obstacles in Intercultural Relations. Toronto: University of Toronto Press, pp. 25-57.
217
Annemarie Mol, 1999, Ontological Politics: A Word and Some Questions, in John Law, and J.
Hassard, ed., Actor Network Theory and After. Oxford: Blackwell, pp. 74-89.
218
Eduardo Kohn, 2013, How Forests Think: Toward an anthropology beyond the human. Berkeley:
University of California Press.
209

Viveiros de Castro. Embora esse turning point ontolgico seja bastante visvel na
antropologia, esse movimento de reativao das narrativas ontolgicas no se
esgota nesta cincia. Encontra ressonncia na filosofia, na teoria da literatura, na
teoria da arte e nas cincias da natureza219, como fsica, biologia, qumica, nas
cincias da mente220 e mesmo na economia221. Na antropologia filosfica, nos
ltimos anos comeou a crescer um novo campo de conhecimento: a
antropontologia222.
Como compreender essa demanda ontolgica em reas to distintas e
empreendidas por pensadores tambm eles mesmos muito distintos entre si? Essa
situao torna-se compreensvel quando nos damos conta de um problema da
demarcao, fundamental na epistemologia, continua sendo a pedra de discrdia
das circunscrio de mtodo na cincia, a medida que a incomensurabilidade dos
critrios impossibilita uma uniformizao irrestrita de todos os campos de atividade
do pensamento por meio de critrios universalizveis. Embora essa questo da
incomensurabilidade possa ser criticada como uma mera tcnica de reductio ad
absurdum, tpica das vertentes epistemolgicas ligadas ao ceticismo radical ou a
concepes prximas ao anarquismo epistemolgico de Paul Feyrabend, a questo
da definio do mtodo e da demarcao cada vez mais torna clara a dificuldade de
constituio clara dos regimes discursivos de diversas cincias223. Se a apreenso
dos fenmenos qunticos torna difcil a demarcao de fronteiras entre observador e
objeto observado, como conceber uma epistemologia puramente descritiva, fundada
sobre bases analticas, a medida que sujeito e objeto se encontram mutuamente
implicados? Esse conceito de implicao e desenvolvido por Pierre Lvy224 e sinaliza
para aquilo que Isabelle Stengers225 define como uma ecologia das prticas, dentre
as quais estariam includas a prtica cientifica. A cincia no pode mais ser pensada

219
Isabelle Stengers, 2005, The Cosmopolitical Proposal, in Bruno Latour & Peter Weibel, eds.,
Making Things Public: Atmospheres of Democracy. Cambridge MA: MIT Press, pp. 994-1003.
220
Brain, mind, and the structure of reality [2010] Nunez, Paul L.
Oxford ; New York : Oxford University Press, 2010.
221
GOTTLIEB, Dale. Ontological economy: substitutional quantification and mathematics. London:
Oxford University Press, 1980.
222
otuksken, Betl Conferir o artigo do filosofo turco SYNTHESIS PHILOSOPHICA,
Anthropontology as a New 54 [2/2012] pp. [237244] Kind of Ontology . Disponivel em:
http://philpapers.org/rec/OTUAAA
223
FEYERABEND, Paul K. Contra o mtodo. So. Paulo: UNESP, 2007. FEYERABEND, P. Adeus
razo. So Paulo: Ed. UNESP, [Trad. V. Joscelyne]. 2010.
224
LVY, Pierre. A inteligncia coletiva: por uma antropologia do ciberespao. Traduo Luiz Paulo
Rouanet. So Paulo: Loyola, 1998.
225
STENGERS, A inveno das cincias modernas, So Paulo, Ed. 34, 2002.
210

como uma organizao estrangeira da sociedade, conforme se concebeu em seu


nascimentos moderno226. Muito menos como um organismo exterior as demais
dinmicas orgnicas da vida. No apenas a critica a situao estrangeira assumida
pela cincia se coaduna com essa nova perspectiva. A noo mesma de um
observador de segundo grau, desenvolvida pela teoria sistmica de Luhmann,
inviabiliza qualquer tentativa de neutralidade assumida por qualquer discurso no
interior das interaes sistmicas227. E um dos motivos na reatualizaro da ontologia
se deve as dimenses abertas pelo chamado pensamento complexo e pelas
cincias da complexidade. Embora o termo complexidade tenha se associado nos
ltimos tempos ao pensamento de Edgar Morin, as teorias da complexidade podem
ser entendidas como o conjunto de alternativas possveis aos impasses dos modelos
reducionistas, sem minimizar a viabilidade da aplicao pragmtica deste modelo
em determinados cenrios tericos e experimentais.
Nesses termos, uma epistemologia comparatista ps-disciplinar baseada na
esferologia de Sloterdijk pode ser definida sob o conceito de ontologia relacional228,
que eu tenho desenvolvido, ou como uma ontologia narrativa, se quisermos cunhar a
expresso de Jean-Luc Nancy. Tendo em vista que a trilogia Esferas de Peter
Sloterdijk seja o exemplo mais acabado dessa acepo de meio extremamente
ampla que acabo de descrever, minha proposta pens-la como ponto de partida
para estabilizar uma proposta de epistemologia comparatista e de antropologia da
complexidade229. Em seguida, meu intuito analisar a reversibilidade entre os
termos vida, forma e meio, tal como a esferologia os aborda. Nesse ponto, pretendo
ressaltar algumas das comparaes especficas efetuadas por Sloterdijk entre obras
de arte visuais, imagens de modo geral, conceitos oriundos da filosofia, das cincias
humanas e das cincias naturais e obras da literatura.

226
ROSSI, Paolo. O Nascimento da Cincia Moderna na Europa. Bauru, EDUSC, 2001.
227
LUHMANN, Niklas. Introduo teoria dos sistemas. Petrpolis: Vozes, 2009.
228
O termo ontologia relacional em uma pesquisa no Google em 08.09.2014 encontrou 1 mil
ocorrncias em lngua portuguesa. O termos em ingls relational ontology revelou cerca de 28 mil
ocorrncias. Isso demonstra que o debate em lngua portuguesa ainda e praticamente inexistente e
em lngua inglesa esteja mais avanado, mas ainda incipiente.
229
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Burbujas. Microsferologa. Traduccin Isidoro Reguera, Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2003 [Publicao Alem: 1998]
SLOTERDIJK, Peter. Esferas II: Globos. Macrosferologa. Traduccin Isidoro Reguera. Prlogo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2004 [Publicao Alem: 1999]
SLOTERDIJK, Peter. Esferas III: Espumas. Esferologa Plural. Traduccin Isidoro Reguera. Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2006 [Publicao Alem: 2004]
211

3.2 Realismo Especulativo

Uma importante guinada relativa preponderncia da ontologia para a


filosofia e se ontologia ocorreu h menos de dez anos. O surgimento do movimento
filosfico intitulado realismo especulativo costuma ser situado em abril de 2007, nos
workshops do Goldsmiths College, na Universidade de Londres. Um dos pontos de
partida foi a obra de Quentin Meillassoux. Entre os autores dessa nova vertente,
Shaviro se atem especialmente no pensamento de Quentin Meillasoux, Grahan
Harman, Ray Brassier, Ian Hamilton Grant, bem como em outros como Levi Bryant,
Ian Bogost, Timothy Morton, Eugene Tracker e Ben Woodard230. O trabalho de
Steven Shaviro especialmente importante para a compreenso dos diversos
fatores envolvidos no debate do realismo especulativo, e especialmente o papel
desempenhado por Whitehead nesse debate na formulao das principais ideias
desse movimento da filosofia continental intitulado realismo especulativo ou novo
materialismo231. Mesmo sendo amplamente admirada por Deleuze, a filosofia de
Whitehead, aps a sua morte em 1947, afora alguns de seus desdobramentos na
teologia do processo, caiu em um ostracismo cujo motivo e difcil de ser
diagnosticado232. Apenas no fim do sculo comeou a ocorrer um novo interesse por
Whitehead, sobretudo a partir de trabalhos como de Judith Jones e Isabelle
Stengers e mais recentemente de Steven Shaviro233.
Uma das noes-chave do realismo especulativo uma crtica ao chamado
correlativismo, cuja origem estaria em Kant e se desdobrar ate a fenomenologia e a
Heidegger. Uma das bases do correlativismo consiste em conceber que no existe
um mundo anterior ao humano, mas quando falamos em mundo necessariamente

230
SHAVIRO, Steven. Introduction: Whitehead and Speculative Realism. The universe off things: on
speculative realism. Posthumanities 30. Cary Wolfe Series Editor. London/Minneapolis: University off
Minnesota Press, 2014, p. 5.
231
SHAVIRO, Steven. Introduction: Whitehead and Speculative Realism. The universe off things: on
speculative realism. Posthumanities 30. Cary Wolfe Series Editor. London/Minneapolis: University off
Minnesota Press, 2014.
232
SHAVIRO, Steven. Introduction: Whitehead and Speculative Realism. The universe off things: on
speculative realism. Posthumanities 30. Cary Wolfe Series Editor. London/Minneapolis: University off
Minnesota Press, 2014, p. 4.
233
SHAVIRO, Steven. Introduction: Whitehead and Speculative Realism. The universe off things: on
speculative realism. Posthumanities 30. Cary Wolfe Series Editor. London/Minneapolis: University off
Minnesota Press, 2014, p. 4.
212

pensamos em um mundo de humanos como humanos234. Whitehead antecipa essa


crtica ao correlativismo, pois compreende que desde Aristteles as estruturas de
sujeito-predicado das formas de pensamento sempre vieram acompanhadas de
conceitos de substncia-qualidade235. Um dos desdobramentos do realismo
especulativo e a ontologia orientada aos objetos [object-oriented ontology],
conhecida como OOO e que teve seu propulsor na obra de Bruno Latour, A
democracia dos objetos, de 2009236. A proposta de Bryant se situa no terreno do
realismo especulativo e busca propor um novo materialismo, baseado em um
ontologia das maquinas e dos media237. A partir de uma diviso entre duas matrizes,
mquinas e mundos, Bryant prope o conceitos na chave de uma ecologia dos
meios [media ecology]238. Desenvolve as relaes estabelecidas entre agregados de
mquinas e entropia239. Em termos ontolgicos, prope tambm uma cartografia e
uma estrutura de mundos240, baseada em noes da topologia do espao e do
tempo241. Em linhas gerais, o realismo especulativo se insere nas demandas de
novas especulaes ontolgicas, no mais ligadas aos esquemas de atributos e
predicados que caracteriza a metafsica clssica. Em linhas gerais, o realismo
especulativo se aproxima nesse sentido do que Manuel Delanda Eli Hirsch
passaram a chamar de ontologia leve [flat ontology]242.

3.3 Metaxologia e Ontologia Relacional

234
SHAVIRO, Steven. Introduction: Whitehead and Speculative Realism. The universe off things: on
speculative realism. Posthumanities 30. Cary Wolfe Series Editor. London/Minneapolis: University off
Minnesota Press, 2014, p. 6.
235
SHAVIRO, Steven. Introduction: Whitehead and Speculative Realism. The universe off things: on
speculative realism. Posthumanities 30. Cary Wolfe Series Editor. London/Minneapolis: University off
Minnesota Press, 2014, p. 7.
236
HARMAN, Grahan. Series Editor`s Preface. BRYANT, Levi. Onto-Cartpgraphy: an ontology off
machines and media. Speculative Realism Series Editor Graham Harman. Edimburgh: Edimburgh
University Press, 2014.
237
BRYANT, Levi. Onto-Cartpgraphy: an ontology off machines and media. Speculative Realism
Series Editor Graham Harman. Edimburgh: Edimburgh University Press, 2014, p. 1-12.
238
BRYANT, Levi. Onto-Cartpgraphy: an ontology off machines and media. Speculative Realism
Series Editor Graham Harman. Edimburgh: Edimburgh University Press, 2014, p. 15 seg.
239
BRYANT, Levi. Onto-Cartpgraphy: an ontology off machines and media. Speculative Realism
Series Editor Graham Harman. Edimburgh: Edimburgh University Press, 2014, p. 75 e seg.
240
BRYANT, Levi. Onto-Cartpgraphy: an ontology off machines and media. Speculative Realism
Series Editor Graham Harman. Edimburgh: Edimburgh University Press, 2014, p. 111.
241
BRYANT, Levi. Onto-Cartpgraphy: an ontology off machines and media. Speculative Realism
Series Editor Graham Harman. Edimburgh: Edimburgh University Press, 2014, p. 140 e seg.
242
DELANDA, Manuel. Intensive Science & Virtual Philosophy. New York: Continuum, 2002, p. 41.
213

Por seu lado, em um projeto bastante pessoal e singular e de ampla


envergadura, o hegeliano William Desmond criou o conceito de metaxologia para
definir seu pensamento como uma filosofia do intervalo, uma filosofia do entre
[between]243. O termo grego metaxu significa entre244. Desmond primeiro traa uma
considerao geral sobre os sentidos do ser no pensamento metafsico245. Em
seguida aborda as trs grandes meios de se abordar o ser: a univocidade246, a
equivocidade247 e a dialtica248. Para finalmente explorar a relao entre
metaxologia e ontologia249. A diferena entre a metaxologia e a dialtica consiste na
concepo no teleolgica da metaxologia, cuja nfase recai justamente no intervalo
entre os seres e no no processo de supresso positiva dos intervalos em direo a
uma sntese250. Nesse sentido, do ponto de vista da metaxologia o entre-ser seria
sobredeterminado251. Essa sobredeterminao recobre tambm o sentido agpico
do entre [metaxu], outro conceito desenvolvido por Desmond e que serve de base
para a abordagem para o dilogo da metaxologia com a tica252 e a teologia253,
explorado em outros de seus dois livros, que constituem ao todo uma enorme trilogia
metaxolgica do entre-ser.

3.4 Arqueologia e Relao

243
DESMOND, William. Being and the between. New York: State of New York Press, 1995.
244
DESMOND, William. Being and the between. New York: State of New York Press, 1995.
245
DESMOND, William. Mind, being and between. Being and the between. New York: State of New
York Press, 1995, p. 3-44.
246
DESMOND, William.Being and univocity. Being and the between. New York: State of New York
Press, 1995, p. 47-80.
247
DESMOND, William. Being and equivocity. Being and the between. New York: State of New York
Press, 1995, 85-123.
248
DESMOND, WilliamBeing and dialetic. Being and the between. New York: State of New York
Press, 1995, p. 131-167.
249
DESMOND, William.Being and the metaxological. Being and the between. New York: State of New
York Press, 1995, 177-207.
250
DESMOND, William.Being and the metaxological. Being and the between. New York: State of New
York Press, 1995, 177-207.
251
DESMOND, William.Being and the metaxological. Being and the between. New York: State of New
York Press, 1995, 177-207.
252
DESMOND, William. Ethics and the Between. New York: State University of New York Press,
2001.
253
DESMOND, William. God and the Between. New York: State University of New York Press, 2008.
214

O excelente trabalho de Christopher Watts rene alguns dos importantes


nomes da arqueologia contempornea em torno do debate desse horizonte que se
abre da arqueologia relacional, um estudo na fronteira entre humanos, animais e
coisas254. Na arqueologia, justamente sob a influencia confessa do conceito de
antropologia simtrica de Latour, Ian Hodder prope um modelo de implicao e
emaranhamento entre humanos e objetos e entre humanos e no-humanos para
superar o dualismo epistemolgico255. A teoria do ator-rede de Latour conduz a uma
semitica das materialidades, com um foco incidente sobre a materialidade
relacional256. E nesse sentido possvel pensar em uma arqueologia dos conexo
[entanglements], no necessariamente numa arqueologia de objetos ou humanos
isolados. Essa arqueologia envolveria a produo de tipos e de nveis de
conexes257. Algumas das premissas de Hodder e a de que as coisas so que as
coisas podem ser analisadas isoladamente, no so inertes, as coisas duram ao
longo de diferentes temporalidades, as coisas as vezes parecem no ser coisas e as
coisas se agem contra o esquecimento258. Hodder se apoia no ensaio A Coisa [Das
Ding] de Heidegger para definir o que e uma coisa259. Nesse sentido, uma coisa
seria diferente de um objeto. O objeto est fundado sobre uma noo de
objetificao cientfica260. Ao passo que os humanos se relacionam com as coisas
de um modo diferente.

3.5 Teologia e Relao

254
WATTS, Christopher. Relational archaeologies: humans, animals, things. New York: Routledge,
2013.
255
HODDER, Ian. Latour and Actor Network Theory. Entangled: an archaeology off the relationships
between humans and things. Oxford: Wiley-Blackwell, 2012, p. 1.
256
HODDER, Ian. Entangled: an archaeology off the relationships between humans and things.
Oxford: Wiley-Blackwell, 2012, p. 91 e seg.
257
HODDER, Ian. Types and Degrees of Entanglement. Entangled: an archaeology off the
relationships between humans and things. Oxford: Wiley-Blackwell, 2012, p. 1.
258
HODDER, Ian. Entangled: an archaeology off the relationships between humans and things.
Oxford: Wiley-Blackwell, 2012, p. 3 e seg.
259
HODDER, Ian. Entangled: an archaeology off the relationships between humans and things.
Oxford: Wiley-Blackwell, 2012, p. 7 e seg.
260
HODDER, Ian. Entangled: an archaeology off the relationships between humans and things.
Oxford: Wiley-Blackwell, 2012, p. 9.
215

Uma das melhores abordagens sobre a ontologia relacional em seu dialogo


com a teologia se encontra em um artigo de Wesley Wildman261, bem como na obra
organizada por John Polkinghorne em torno desse assunto. Por sua vez,
Polkinghorne tambm aborda a dificuldade de pensar a interao quntica entre
partculas e ondas e suas implicaes csmicas a partir de estruturas causais
baseadas em concepes cartesianas ligadas a extenso e ao mecanicismo
materialista262. Uma explicao suficiente demandaria uma concepo relacional,
fundada sobre um principio divino263. Um dos pontos nos quais o pensamento
relacional encontra forca e na critica as concepes materialistas e atomsticas da
fsica. Essa concepo de um universo objetivo comea a dar espao a outra,
definida pelo importante fsico Erwin Schrdinger como um universo emaranhado ou
enredado [entangled universe]264. Ora essa percepo do mundo bastante
diferente daquela que regeu toda a fsica clssica desde Newton ate Einstein, ou
seja, o ideal de um observador distanciado [detached observer]265.
O limiar do debate na fsica quntica implica repensar se esses campos
qunticos podem ser pensados a partir da epistemologia ou se necessitariam ser
visto a partir de uma concepo oriunda da ontologia266. Para repassar essas essa
distino Anton Zeilinger distingue dois nveis de anlise dos fenmenos qunticos:
um primeiro determinado pela posio dos elementos observados e um segundo
determinado pelas relaes que esses elementos estabelecem entre si267. Michael

261
WILDMAN, Wesley. An introduction to relational ontology. POLKINGHORNE, John. The Trinity
and the entangled world: relationality in physical science and theology. William Eerdmans Publish
Company: Michigan/Cambridge, 2010, p. 41-54.
262
POLKINGHORNE, John. The demise off Democritus. POLKINGHORNE, John. The Trinity and
the entangled world: relationality in physical Science and theology. William Eerdmans Publish
Company: Michigan/Cambridge, 2010, p. 1-14.
263
POLKINGHORNE, John. The demise off Democritus. POLKINGHORNE, John. The Trinity and
the entangled world: relationality in physical Science and theology. William Eerdmans Publish
Company: Michigan/Cambridge, 2010, p. 1-14.
264
BUB, Jeffrey. The entagled world: how can it be like that. POLKINGHORNE, John. The Trinity
and the entangled world: relationality in physical Science and theology. William Eerdmans Publish
Company: Michigan/Cambridge, 2010, p. 15 e seg.
265
BUB, Jeffrey. The entagled world: how can it be like that. POLKINGHORNE, John. The Trinity
and the entangled world: relationality in physical Science and theology. William Eerdmans Publish
Company: Michigan/Cambridge, 2010, p. 15 e seg.
266
ZEILINGER, Anton. Quantum physics: ontology or epistemology?. POLKINGHORNE, John. The
Trinity and the entangled world: relationality in physical Science and theology. William Eerdmans
Publish Company: Michigan/Cambridge, 2010, p. 32-40.
267
ZEILINGER, Anton. Quantum physics: ontology or epistemology?. POLKINGHORNE, John. The
Trinity and the entangled world: relationality in physical Science and theology. William Eerdmans
Publish Company: Michigan/Cambridge, 2010, p. 33.
216

Heller aborda a teoria do universo autocontido268. Heller demarca uma disputa entre
uma abordagem cosmolgica relacional e outra absoluta, presente na definio dada
por Einstein da massa inercial local e totalmente determinada pela massa global
distribuda pelo universo269. Nesse ponto teria inicio uma disputa entre uma
concepo de universo autocontido, baseado em uma suspenso das condies
iniciais deste mesmo universo, com base em sua inacessibilidade ou arbitrariedade.
A partir do principio de Ernst Mach, Halle identifica uma crescente abordagem da
fsica de tendncias relacionais, que negariam o universo autoconsistente, absoluto
e fechado, como no modelo einsteiniano, notadamente se pensarmos na relao
entre teorias relacionais e teorias acerca da incompletude do universo, como
presente em Gdel, Church, Turing e Tarski270.

3.6 Poltica e Ontologia

Ruth Groff identifica um crescimento no cenrio contemporneo de teorias


politicas e sociais fundadas sobre base ontolgicas, como meios de se superar os
paradigmas de Marx e Hume que determinam em linhas gerais o debate metaterio
da filosofia poltica e poderamos dizer fornecem as principais diretrizes para
pensamento conservador e pensamento da esquerda, em todo mundo271. Diferente
disso, e possvel notar uma presena cada vez maior da ontologia na teoria social e
politica, sobretudo no apelo do monismo de Espinosa272. Uma das vertentes
observadas e um predomnio do antiessencialismo no pensamento contemporneo.
Entretanto o debate em torno das possveis definies de essncia so controversos
e envolvem em suas disputas componentes tericos metafsicos, mesmo para

268
HELLER, Michael. A self-contained universe. POLKINGHORNE, John. The Trinity and the
entangled world: relationality in physical science and theology. William Eerdmans Publish Company:
Michigan/Cambridge, 2010, p. 41-54.
269
HELLER, Michael. A self-contained universe. POLKINGHORNE, John. The Trinity and the
entangled world: relationality in physical science and theology. William Eerdmans Publish Company:
Michigan/Cambridge, 2010, p. 41.
270
HELLER, Michael. A self-contained universe. POLKINGHORNE, John. The Trinity and the
entangled world: relationality in physical science and theology. William Eerdmans Publish Company:
Michigan/Cambridge, 2010, p. 42 e seg.
271
GROFF, Ruth. Ontology revisited: metaphisics in social and political philosopy. London and New
York: Routledge, 2013, p. 1 e seg.
272
GROFF, Ruth. Ontology revisited: metaphisics in social and political philosopy. London and New
York: Routledge, 2013, p. 1 e seg.
217

aqueles pensadores que pretendem pertencer a uma tradio antimetafsica273. A


partir de um desmonte da crena em uma eventual neutralidade da metafsica, Groff
mapeia as principais heranas da ontologia e da metafsica no debate moderno a
partir de Hume274, dos utilitaristas como Mill275, da presena de Kant na Escola de
Frankfurt276, especialmente para Adorno, e por fim a influencia da teoria humeana no
liberalismo, os neoaristotelismos, o retorno da neutralidade metafsica na obra de
Martha Nussbaum277 e a forca da ontologia e das categorias de poder em leitores de
Espinosa e do materialismo vital nas obras de Deleuze, Guattari, Hardt Negri,
Bennett e Latour278.
A partir do conceito de emergncia e de propriedades emergentes, Groff
identifica um turning point nas concepes correntes de definio de agentes, de
poder e de eventos279. Baseando-se nos tericos Jonatham Jacobs e Tim O`Connor,
Groff define a emergncia como uma produo instantnea e simples de
propriedades no-estruturais280. As definies de ao, causa, efeito, liberdade e
responsabilidade se veem reorganizadas diante da noo de emergncia, pois a
emergncia no pode ser reduzida a categorias biolgicas, psicolgicas, sociais e a
nenhuma totalidade281. Nesse sentido, e passvel de ser pensada a partir da
ontologia e das categorias do ser disponveis para articular a complexidade de
agencias e efeitos.

273
GROFF, Ruth. Ontology revisited: metaphisics in social and political philosopy. London and New
York: Routledge, 2013, p. 4 e seg.
274
GROFF, Ruth. Ontology revisited: metaphisics in social and political philosopy. London and New
York: Routledge, 2013, p. 11.
275
GROFF, Ruth. Ontology revisited: metaphisics in social and political philosopy. London and New
York: Routledge, 2013, p. 33.
276
GROFF, Ruth. Ontology revisited: metaphisics in social and political philosopy. London and New
York: Routledge, 2013, p. 50.
277
GROFF, Ruth. Ontology revisited: metaphisics in social and political philosopy. London and New
York: Routledge, 2013, p. 92.
278
GROFF, Ruth. Ontology revisited: metaphisics in social and political philosopy. London and New
York: Routledge, 2013, p. 106 e seg.
279
GROFF, Ruth. Ontology revisited: metaphisics in social and political philosopy. London and New
York: Routledge, 2013, p. 86 e seg.
280
GROFF, Ruth. Ontology revisited: metaphisics in social and political philosopy. London and New
York: Routledge, 2013, p. 86 e seg.
281
GROFF, Ruth. Ontology revisited: metaphisics in social and political philosopy. London and New
York: Routledge, 2013, p. 90.
218

3.7 Sociologia, Ontologia e Relao282

Christopher Powell e Franois Depelteau definem um novo campo de estudo


em plena expanso: a sociologia relacional. A base da sociologia relacional consiste
em estudar as sociedades humanas a partir de um foco em processos relacionais e
interacionais. Powell e Depelteau enfatizam o fato de que o conceito de relao j
fora explorado por pensadores que se dedicaram a compreender a sociedade,
desde Hegel, Marx e Simmel passando por Cassirer, Elias, e Foucault ate Benhabib,
Latour e Chodorow283. Isso quer dizer que a relao esteve em latncia durante os
ltimos trs sculos de teoria sociolgica, e agora comea a se emancipar como
categoria central para a compreenso das dinmicas sociais. O mesmo movimento
encontra-se presente tambm em alguns clssicos como Weber e Durkheim284.
Mesmo tempo em vista que o primeiro confere uma especial importncia a esferas
individual e o segundo a esfera coletiva, submetendo s foras de interao e
relao e esses dois horizontes tericos, tanto no sentido das escolhas propostas
pelo primeiro quanto no conceito de fatos sociais proposto pelo segundo e possvel
tambm efetuar uma leitura focada nas relaes. A dimenso relacional tem
assumido uma importncia tao grande na sociologia que e possvel pensar em uma
passagem do relacionalismo entendido como projeto ao relacionalismo entendido
como paradigma285.
Esse paradigma relacional na sociologia pode ser incorporado a diversas
frentes de estudo. No caso das questes de gnero e das teorias feministas, pode-
se pensar a constituio do gnero sob um ponto de vista de uma diferena
relacional, como quer Sarah Redshaw286. Esse seria um dos modos de se superar
as aporias das generalizaes das tenses relacionais a partir de uma generalizao

282
POWELL, Chritopher and DPELTEAU, Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological
and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan, 2013.
283
POWELL, Chritopher and DPELTEAU, Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological
and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan, 2013, p. 1.
284
POWELL, Chritopher and DPELTEAU, Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological
and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan, 2013, p. 2 e seg.
285
POWELL, Chritopher and DPELTEAU, Franois. Relational Sociology: from Project to
paradigma. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New Yor:
Palgrave Macmillan, 2013, p. 10 e seg.
286
REDSHAW, Sarah. Feminist preludes to relational sociology. POWELL, Chritopher and
DPELTEAU, Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New
Yor: Palgrave Macmillan, 2013, p. 24 e seg.
219

do outro que acaba sendo compreendida como um modelo abstrato de humanidade


em geral287. Essa abordagem relacional tambm pode ser identificada em alguns
pontos centrais do materialismo histrico288. O debate nessa questo se desenvolve
em duas frentes opostas da sociologia: as teorias holistas e a individualistas. As
primeiras tomam o todo como unidade de tratamento da sociedade. As segundas
tratam o individuo como unidade mnima da sociedade289. A primeira vertente pode
ser entendida como a teoria dos sistemas de Luhmann, o funcionalismo de Parsons
e a anlise estrutural de Marx empreendida por Althusser290. Nesse sentido, contra
um sentido essencialista, substancialista ou reducionista, a obra de Marx se abriria
para uma completa reviso de todas suas partes a partir de uma nfase na
perspectiva relacional. As relaes sociais nesse sentido podem ser entendidas
como a essncia dos seres humanos, mas uma essncia que se projeta e
transforma juntamente com as transformaes operadas nesses mesmos sistemas
de relaes ao longo da histria. Essa acepo pode reduzir os seres humanos a
tores e gerar um codeterminismo mtuo dos indivduos, suprimindo sua liberdade
como indivduos e em nome de um constante interacionismo autorreflexivo291. A
produo de meios de subsistncia e exclusivo dos seres humanos para Marx292.
Nesse sentido as relaes sociais s se constituiriam na passagem da
natureza para o estado humano a partir da produtividade que torna os humanos

287
REDSHAW, Sarah. Feminist preludes to relational sociology. POWELL, Chritopher and
DPELTEAU, Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New
Yor: Palgrave Macmillan, 2013, p. 17 e seg.
288
FISH, Keneth. Relational sociology and historical materialism: three conversation starters.
POWELL, Chritopher and DPELTEAU, Franois. Relational Sociology: from Project to paradigma.
Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan,
2013, p. 27-44.
289
FISH, Keneth. Relational sociology and historical materialism: three conversation starters.
POWELL, Chritopher and DPELTEAU, Franois. Relational Sociology: from Project to paradigma.
Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan,
2013, p. 28 e seg.
290
FISH, Keneth. Relational sociology and historical materialism: three conversation starters.
POWELL, Chritopher and DPELTEAU, Franois. Relational Sociology: from Project to paradigma.
Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan,
2013, p. 27-44.
291
FISH, Keneth. Relational sociology and historical materialism: three conversation starters.
POWELL, Chritopher and DPELTEAU, Franois. Relational Sociology: from Project to paradigma.
Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan,
2013, p. 31 e seg.
292
FISH, Keneth. Relational sociology and historical materialism: three conversation starters.
POWELL, Chritopher and DPELTEAU, Franois. Relational Sociology: from Project to paradigma.
Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan,
2013, p. 35.
220

como humanos293. Marx deixa muito claro: onde existe relacionamento existem
seres humanos. O animal na entra em relao com nada, portanto, para o animal a
relao no existe como relao294. Todas as relaes sociais seriam determinadas
pelo modo de produo humana e seriam tomadas de conscincia do homem de si
mesmo, ou seja, as relaes humanas so sempre relaes autoconscientes295.
Nesse sentido, pode-se dizer que Marx no desenvolveu uma concepo
generalizada de relao social296. A teoria materialista portanto no seria holstica,
pois o holismo pressupem uma unidade dialtica de todos as partes em questo,
bem como pressupe uma teleologia, presente em Hegel.297 No caso de Marx, as
leis sociais so leis relacionais a medida que feitas por relaes sociais constitudas
pelos prprios seres humanos, e essa concepo seria perfeitamente coerente com
o materialismo298.
Craig McFarlane chama as correntes oriundas do anti-humanismo
estruturalista e que podemos definir como ps-humanistas, Althusser, Foucault,
Derrida, Latour e Haraway, de humanismo reacionrio299. Argumenta que os anti e
ps-humanistas dessubstancializam o sentido do humano para poder incorporar os
no-humanos, e com isso esvaziam o sentido politico humano da sociedade. A partir
da sociologia relacional, prope uma critica da definio no-humana em sentido

293
FISH, Keneth. Relational sociology and historical materialism: three conversation starters.
POWELL, Chritopher and DPELTEAU, Franois. Relational Sociology: from Project to paradigma.
Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan,
2013, p. 36.
294
FISH, Keneth. Relational sociology and historical materialism: three conversation starters.
POWELL, Chritopher and DPELTEAU, Franois. Relational Sociology: from Project to paradigma.
Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan,
2013, p. 37.
295
FISH, Keneth. Relational sociology and historical materialism: three conversation starters.
POWELL, Chritopher and DPELTEAU, Franois. Relational Sociology: from Project to paradigma.
Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan,
2013, p. 37.
296
FISH, Keneth. Relational sociology and historical materialism: three conversation starters.
POWELL, Chritopher and DPELTEAU, Franois. Relational Sociology: from Project to paradigma.
Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan,
2013, p. 38.
297
FISH, Keneth. Relational sociology and historical materialism: three conversation starters.
POWELL, Chritopher and DPELTEAU, Franois. Relational Sociology: from Project to paradigma.
Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan,
2013, p. 42 e seg.
298
FISH, Keneth. Relational sociology and historical materialism: three conversation starters.
POWELL, Chritopher and DPELTEAU, Franois. Relational Sociology: from Project to paradigma.
Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan,
2013, p. 42 e seg.
299
McFARLANE, Craig. Relational sociology, theoretical inhumanism. POWELL, Chritopher and
DPELTEAU, Franois. Relational Sociology: from Project to paradigma. Conceptualizing relational
sociology: ontological and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan, 2013, p. 45-66.
221

abstrato e uma incorporao dos no-humanos a ordem das sociedades


humanas300. Debie Kasper valoriza a tendncia a dessubstancializao presente nas
abordagens relacionais das teorias sociais, e identifica posturas semelhantes nas
obras de Elias, Bourdieu, Giddens, Luhamnn e mesmo em autores mais clssicos
como Lvi-Strauss, Jakobson, Braudel e Durkheim. A despeito disso, critica a
transformao da sociologia relacional em ontologia relacional, como um
aprofundamento do jargo tcnico e de obscurantismo terminolgico301. Debbie
Kasper sinaliza a presena de graus de complexidade nas organizaes dos
sistemas, concebidos a partir de Elias. Esses graus poderiam se escalares como
partculas, tomos, molculas, clulas, organismos, sociedades, ecossistemas,
biosfera, dependendo de seus graus de complexidade302. Contudo os sistemas
complexos no podem ser compreendidos a partir de uma anlise das propriedades
e propores que compem cada uma de suas partes303.
Norbert Elias e um dos nome principais para se pensar a teoria relacional304.
Elias teria transcende a concepo antiga do dualismo individuo-sociedade e e um
dos primeiros a formular claramente uma sociologia relacional305. Para Elias, a
verdade seria relacional, a medida que a verdade seria uma forma mutvel e
contingente de efeitos relacionais no corpo da sociedade306.Diferente do
funcionalismo de Talcott Parsons, que demarca ego e sistema como entidades
distintas, Elias v em ambas no uma oposio ou antagonismo, mas uma unidade
300
McFARLANE, Craig. Relational sociology, theoretical inhumanism. POWELL, Chritopher and
DPELTEAU, Franois. Relational Sociology: from Project to paradigma. Conceptualizing relational
sociology: ontological and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan, 2013, p. 62.
301
KASPER, Debbie. Advancing sociology. POWELL, Chritopher and DPELTEAU, Franois.
Relational Sociology: from Project to paradigma. Conceptualizing relational sociology: ontological
and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan, 2013, p. 67-86.
302
KASPER, Debbie. Advancing sociology. POWELL, Chritopher and DPELTEAU, Franois.
Relational Sociology: from Project to paradigma. Conceptualizing relational sociology: ontological
and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan, 2013, p. 73.
303
KASPER, Debbie. Advancing sociology. POWELL, Chritopher and DPELTEAU, Franois.
Relational Sociology: from Project to paradigma. Conceptualizing relational sociology: ontological
and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan, 2013, p. 74.
304
TSEKERIS, Charalambos.Norbert Elias on relations: insights and perspectives. POWELL,
Chritopher and DPELTEAU, Franois. Relational Sociology: from Project to paradigma.
Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan,
2013, p. 87-104.
305
TSEKERIS, Charalambos.Norbert Elias on relations: insights and perspectives. POWELL,
Chritopher and DPELTEAU, Franois. Relational Sociology: from Project to paradigma.
Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan,
2013, p. 88.
306
TSEKERIS, Charalambos.Norbert Elias on relations: insights and perspectives. POWELL,
Chritopher and DPELTEAU, Franois. Relational Sociology: from Project to paradigma.
Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan,
2013, p. 88.
222

dinmica sob o ponto de vista relacional307. J no Manifesto por uma sociologia


relacional, lanado em 1997, Mustafa Emirbayer identifica na obra de Elias
concepes de uma otologia no-substantiva para o mundo social. O eco desse
manifesto pode ser estendido a teoria relacionista de Pierre Bourdieu, para quem a
sociedade e constituda a partir de interaes recprocas. A relao entre o agente
social e o mundo no pode ser concebida como uma relao estabelecida entre um
sujeito e um objeto308. Deve ser sim compreendida como uma relao de
cumplicidade ontolgica e de mutua possesso309. Elias teria passado de um
dualismo individuo-sociedade a uma viso da interdependncia individuo-sociedade,
moveu-se de um pensamento essencialista a um pensamento relacionalista, da
mesma maneira que a fsica de Aristteles se converteu em fsica moderna310.
Temos ento uma linhagem de tericos que enfatizam o individuo, como Weber,
Popper e Raymond Boudon e os culturalistas e estruturalistas, como Durkheim,
Parsons, Althusser311.
Contra o naturalismo e o descritivismo, Elias prope que instituies,
universidade, famlia, escola sejam vistos sob a perspectiva de uma complexa rede
de agentes e de seres humanos interdependentes, no como agregados de matria
esttica312. Essa estrutura interrelacional polimorfa e a plasticidade de interrelaes

307
TSEKERIS, Charalambos.Norbert Elias on relations: insights and perspectives. POWELL,
Chritopher and DPELTEAU, Franois. Relational Sociology: from Project to paradigma.
Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan,
2013, p. 90.
308
TSEKERIS, Charalambos.Norbert Elias on relations: insights and perspectives. POWELL,
Chritopher and DPELTEAU, Franois. Relational Sociology: from Project to paradigma.
Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan,
2013, p. 91.
309
TSEKERIS, Charalambos.Norbert Elias on relations: insights and perspectives. POWELL,
Chritopher and DPELTEAU, Franois. Relational Sociology: from Project to paradigma.
Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan,
2013, p. 91.
310
TSEKERIS, Charalambos.Norbert Elias on relations: insights and perspectives. POWELL,
Chritopher and DPELTEAU, Franois. Relational Sociology: from Project to paradigma.
Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan,
2013, p. 91.
311
TSEKERIS, Charalambos.Norbert Elias on relations: insights and perspectives. POWELL,
Chritopher and DPELTEAU, Franois. Relational Sociology: from Project to paradigma.
Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan,
2013, p. 92.
312
TSEKERIS, Charalambos.Norbert Elias on relations: insights and perspectives. POWELL,
Chritopher and DPELTEAU, Franois. Relational Sociology: from Project to paradigma.
Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan,
2013, p. 93 seg.
223

configura o que Elias define como homines aperti, abertura humana313. O homines
aperti e a imagem de uma multitude de pessoas, cada uma relativamente aberta em
relao a outra e ao conjunto, em processos interdependentes314. Os sujeitos
humanos no so passivos nem isolados atomisticamente para depois serem
reagregados em uma ordem conjunta. Inspirado em Ludwig Binswanger, Elias
transforma os sujeitos da historia em intersubjetividade e pensa o os processos
civilizatrios sem reduzir questes ontolgica as questes epistemolgicas, como se
tornou comum fazer desde Kant315. Semelhante a Scott Lash e Ulrich Beck conceito
de agencias individuais, e poder-se-ia dizer que diferente da dualidade agencia-
estrutura, pensada em termos de Habermas, Elias concebe a sociedade a partir da
dinmica entre mundo da vida e sistema, prximo a concepo antimentalista e
fenomenolgica de Lash, prximas da acepo de Heidegger e Dilthey316. Nesse
sentido se aproxima da concepo de Luhmann da sociedade como um sistema
comunicativo, complexo e autoorganizado317. Elias contribui para pensar a
sociedade a partir de novas categorias, como interconectividade, emergncia e
318
transformao . Para Christopher Thorpe, os grandes elaboradores de uma
sociologia relacional foram primeiro Georg Simmel e depois Elias e Bourdieu319.

313
TSEKERIS, Charalambos.Norbert Elias on relations: insights and perspectives. POWELL,
Chritopher and DPELTEAU, Franois. Relational Sociology: from Project to paradigma.
Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan,
2013, p. 93 e seg.
314
TSEKERIS, Charalambos.Norbert Elias on relations: insights and perspectives. POWELL,
Chritopher and DPELTEAU, Franois. Relational Sociology: from Project to paradigma.
Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan,
2013, p. 93 e seg.
315
TSEKERIS, Charalambos.Norbert Elias on relations: insights and perspectives. POWELL,
Chritopher and DPELTEAU, Franois. Relational Sociology: from Project to paradigma.
Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan,
2013, p. 94.
316
TSEKERIS, Charalambos.Norbert Elias on relations: insights and perspectives. POWELL,
Chritopher and DPELTEAU, Franois. Relational Sociology: from Project to paradigma.
Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan,
2013, p. 94.
317
TSEKERIS, Charalambos.Norbert Elias on relations: insights and perspectives. POWELL,
Chritopher and DPELTEAU, Franois. Relational Sociology: from Project to paradigma.
Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan,
2013, p. 100 e seg.
318
TSEKERIS, Charalambos.Norbert Elias on relations: insights and perspectives. POWELL,
Chritopher and DPELTEAU, Franois. Relational Sociology: from Project to paradigma.
Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan,
2013, p. 102.
319
THORPE, Chriistopher. Crtitical strategies for implement a relational sociological paradigm: Elias,
Bourdieu, and uncivilized sociological theoretical struggels. POWELL, Chritopher and DPELTEAU,
Franois. Relational Sociology: from Project to paradigma. Conceptualizing relational sociology:
ontological and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan, 2013, p. 105-122.
224

Como em observa Franois Dpelteau, se fizermos uma busca na internet ara


o termo relacional, encontraremos uma grande lista de referencias: teologia
relacional, relacional na psicologia, teoria relacional e prtica psicoteraputica,
conceitos relacionais em psicanlise, realidade relacional, inteligncia relacional,
mascaras relacionais, arqueologia relacional, sociologia relacional e assim por
diante320. A partir dessa recorrncia, sugere a existncia nos ltimos anos de uma
guinada epistemolgica, que ele define como um relational turn e como a
constituio da relacionalidade como um novo paradigma das cincias, no sentido
de Thomas Kuhn. Contudo no mbito das cincias sociais, a definio desse
paradigma pode ser observado em direes diversas e ontologicamente divergentes:
uma sociologia relacional determinista [ou estruturalista], uma sociologia relacional
codeterminista [ou dialtica] e uma sociologia relacional profunda321. E o que define
como as trs ontologias sociais de cunho relacional e seu artigo se desenvolve no
sentido de identificar os principais movimentos internos a esses trs ontologias322.
Donati diz: no comeo era a relao. Essa divisa poderia determinar uma
definio para as ontologias relacionais deterministas, preponderantemente
centradas no relacionalismo, como as teorias de Gabriel Tarde e Bruno Latour323. E
tambm pode ser identificado esse mesmo paradigma em atores de cunho mais
estruturalista, como Durkheim, Simmel e Parsons. A adoo desses critrios
radicalmente deterministas colocam as estruturas em um lugar privilegiado sobre os
modelos, as interaes e a ao324. O mesmo se pode esperar de uma minimizao
dos sujeitos, como na teoria dos sistemas de Luhmann. Por seu lado, o paradigma
codeterminista insistiria nessa dessa determinao estrutura, mas a entenderia em
uma chave de mo dupla, como uma mtua determinao de agentes e pacientes

320
DPELTEAU, Franois. What is the direction of the relational turn?. POWELL, Chritopher and
DPELTEAU, Franois. Relational Sociology: from Project to paradigma. Conceptualizing relational
sociology: ontological and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan, 2013, p. 164-185.
321
DPELTEAU, Franois. What is the direction of the relational turn?. POWELL, Chritopher and
DPELTEAU, Franois. Relational Sociology: from Project to paradigma. Conceptualizing relational
sociology: ontological and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan, 2013, p. 164.
322
DPELTEAU, Franois. What is the direction of the relational turn?. POWELL, Chritopher and
DPELTEAU, Franois. Relational Sociology: from Project to paradigma. Conceptualizing relational
sociology: ontological and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan, 2013, p. 167 e seg.
323
DPELTEAU, Franois. What is the direction of the relational turn?. POWELL, Chritopher and
DPELTEAU, Franois. Relational Sociology: from Project to paradigma. Conceptualizing relational
sociology: ontological and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan, 2013, p. 167 e seg.
324
DPELTEAU, Franois. What is the direction of the relational turn?. POWELL, Chritopher and
DPELTEAU, Franois. Relational Sociology: from Project to paradigma. Conceptualizing relational
sociology: ontological and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan, 2013, p. 169.
225

das interaes sociais. Esta vertente seria representada por Donati, Giddens,
Bahskar, Berger e Luckmann325.
O terceiro modelo de ontologia relacional descrito por Dpelteau e o que me
interessa mais: a ontologia relacional profunda tambm chamada de transacional326.
Trata-se de um tipo de sociologia proposta por Dewey e Bentley que engloba trs
posturas epistemolgicas: a autoao, a interao e transao327.
Fundamentalmente, a noes de uma ontologia profunda apresentaria maior numero
de indeterminao quanto aos vrios campos da transao. Tampouco essa postura
aborda as relaes em termos hermenuticos ou interpretativos, e as interaes
ocorrem entre agentes empricos de nveis diversos, sejam bactrias ou pessoas328.
Nessa chave estariam pensadores relacionas como H. Blumer, H. Becker, B. Latour,
A. King, Emirbayer, Sipegel. Em linhas gerais, a ontologia profunda rejeita o
determinismo das teorias estruturalistas. Nessa perspectiva, indivduos so
fundamentalmente interdependentes329. A ontologia relacional profunda compreende
as interaes em um sentido biunvoco e o meio social como um processo fluido e
dinmico. A otologia profunda no remete a divises como sujeito e objeto, agencial
e estrutural. Essa ontologia profunda tambm seria distinta das epistmes
codeterministas. A base dessa ontologia pode ser encontrada nos mundos sociais
de Becker, nas figuraes de leias ou nas associaes de Latour330. A ontologia
profunda pode ser identificada nas obras de Dewey, Bentley, Elias, Weber e
contemporaneamente sobretudo na teoria do ator-rede de Latour331.

325
DPELTEAU, Franois. What is the direction of the relational turn?. POWELL, Chritopher and
DPELTEAU, Franois. Relational Sociology: from Project to paradigma. Conceptualizing relational
sociology: ontological and theoretical issues. New Yor: Palgrave Macmillan, 2013, p. 167 e seg.
326
DPELTEAU, Franois. What is the direction of the relational turn?. POWELL, Chritopher and
DPELTEAU, Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New
Yor: Palgrave Macmillan, 2013, p. 177 e seg.
327
DPELTEAU, Franois. What is the direction of the relational turn?. POWELL, Chritopher and
DPELTEAU, Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New
Yor: Palgrave Macmillan, 2013, p. 177 e seg.
328
DPELTEAU, Franois. What is the direction of the relational turn?. POWELL, Chritopher and
DPELTEAU, Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New
Yor: Palgrave Macmillan, 2013, p. 178.
329
DPELTEAU, Franois. What is the direction of the relational turn?. POWELL, Chritopher and
DPELTEAU, Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New
Yor: Palgrave Macmillan, 2013, p. 180.
330
DPELTEAU, Franois. What is the direction of the relational turn?. POWELL, Chritopher and
DPELTEAU, Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New
Yor: Palgrave Macmillan, 2013, p. 180.
331
DPELTEAU, Franois. What is the direction of the relational turn?. POWELL, Chritopher and
DPELTEAU, Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New
Yor: Palgrave Macmillan, 2013, p. 184.
226

Um dos caminhos mais importantes desse debate metaterico em torno das


condies de se pensar a sociologia relacional e justamente a possibilidade de
definir o que venha a ser o objeto da sociologia, ou seja, o que venha a ser a
sociedade, conceitual e ontologicamente falando332. Essas reflexes abrem uma
porta. Essa porta pode dar acesso a novas aventura de compreenso do ser social,
de que somos como seres interdependentes tanto em termos de um ser total quanto
no que diz respeito de um ser parcialmente determinado333. Para Christopher Powell,
uma epistemologia radicalmente relacional seria aquela que retm resduos
dualistas e que consegue englobar todos os fenmenos sociais, incluindo os
indivduos, atravs de relaes334. Trata-se de uma epistemologia que assume um
monismo materialista e naturalista mas adota uma postura agnstica em relao ao
realismo335. A proposta seria de uma instancia no-realista baseada em uma
tendncia de relacionalismo radical que tanto conecta quanto separa sujeitos e
objetos do conhecimento336. Relaes definidas como processos, ocorrem no tempo
e no espao, e a distino entre relaes atuais ou potenciais depende do lugar
onde o observador se situe337. Podemos pensar em relaes fortes como
constitutivas de objetos. Nesse sentido, um relacionismo radical e antiessencialista e
no-humanista338. Esta conceptualizao de relacionismo e fundamental para

332
DPELTEAU, Franois. What is the direction of the relational turn?. POWELL, Chritopher and
DPELTEAU, Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New
York: Palgrave Macmillan, 2013, p. 180.
333
DPELTEAU, Franois. What is the direction of the relational turn?. POWELL, Chritopher and
DPELTEAU, Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New
Yor: Palgrave Macmillan, 2013, p. 184.
334
POWELL, Christopher. Radical relationism: a proposal. POWELL, Chritopher and DPELTEAU,
Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New York: Palgrave
Macmillan, 2013, p. 187-207.
335
POWELL, Christopher. Radical relationism: a proposal. POWELL, Chritopher and DPELTEAU,
Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New York: Palgrave
Macmillan, 2013, p. 187.
336
POWELL, Christopher. Radical relationism: a proposal. POWELL, Chritopher and DPELTEAU,
Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New York: Palgrave
Macmillan, 2013, p. 188.
337
POWELL, Christopher. Radical relationism: a proposal. POWELL, Chritopher and DPELTEAU,
Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New York: Palgrave
Macmillan, 2013, p. 190.
338
POWELL, Christopher. Radical relationism: a proposal. POWELL, Chritopher and DPELTEAU,
Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New York: Palgrave
Macmillan, 2013, p. 190.
227

compor uma continuidade entre as cincias sociais e naturais sem a necessidade de


reducionismos biolgicos339.
H tericos que defendem que a obra de Marx consiste em uma articulao
de relaes internas e que portanto todos os objetos so na verdade
relaes340.para corroborar essa viso, basta pensarmos no conceito de alienao.
A alienao produzida pelo expropriao dos meios de produo e ocorrida sobre o
trabalho no e propriamente um objeto e tampouco um conceito objetivo, mas o
resultado de uma interao relacional341. A alienao que constitui o trabalhador
como trabalhador e o capitalismo como capitalismo. Da mesma maneira, os sujeitos
no so na obra de Marx entendidos como sujeitos. Os sujeitos so constitudos em
suas relaes342. Em sentido semelhante, Althusser nos lembra que na obra de Marx
o sujeito individual no e real, mas um efeito de interpretao da ideologia burguesa.
Por outro lado, a partir de uma leitura humanista pode rejeitar esse
antiessencialismo, e propor que a filosofia de Marx lida com uma dinmica de
relaes internas que so implcitas e se tornam explicitas343. Esse carter da obra
de Marx e uma fonte ambivalente para uma sociologia relacional radical344.
Foucault pensa o poder como relaes de poder. O poder no e uma
substancia, mas o exerccio de atores que assumem campos de relaes de poder
entre sujeitos, engendrando efeitos de dominao, de resistncia, de
conhecimento345. Por meio de uma anlise microfsica do poder e da insurreio de
saberes subjugados, Foucault demonstra como a produo de subjetividade ocorre

339
POWELL, Christopher. Radical relationism: a proposal. POWELL, Chritopher and DPELTEAU,
Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New York: Palgrave
Macmillan, 2013, p. 191.
340
POWELL, Christopher. Radical relationism: a proposal. POWELL, Chritopher and DPELTEAU,
Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New York: Palgrave
Macmillan, 2013, p. 191.
341
POWELL, Christopher. Radical relationism: a proposal. POWELL, Chritopher and DPELTEAU,
Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New York: Palgrave
Macmillan, 2013, p. 192.
342
POWELL, Christopher. Radical relationism: a proposal. POWELL, Chritopher and DPELTEAU,
Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New York: Palgrave
Macmillan, 2013, p. 192
343
POWELL, Christopher. Radical relationism: a proposal. POWELL, Chritopher and DPELTEAU,
Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New York: Palgrave
Macmillan, 2013, p. 192.
344
POWELL, Christopher. Radical relationism: a proposal. POWELL, Chritopher and DPELTEAU,
Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New York: Palgrave
Macmillan, 2013, p. 192.
345
POWELL, Christopher. Radical relationism: a proposal. POWELL, Chritopher and DPELTEAU,
Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New York: Palgrave
Macmillan, 2013, p. 192.
228

por meio dos discursos, ou seja, produz os sujeitos por meio da assimilao da
assimilao de formas externas de poder346.
As dinmicas ligadas a subjetividade tambm assumem um aspecto peculiar
se observadas desde um ponto de vista das interaes sujeito-objeto347. Em termos
ontolgicos, podemos dizer que a relao existe como um potencial do ser
atualizado atravs da interao348. Quando tratamos qualidade de sujeitos, corremos
o risco de reduzir as qualidades a partir de um reducionismo no-relacionista ou
essencialista349. Todo fenmeno, seja uma pessoa, uma instituio ou um objeto
material, um processo350. A noo de infinito nesse caso e extremamente
importante, inclusive em sua acepo cosmolgica351. Como diz Elias, no existe um
ponto zero da historicidade do desenvolvimento humano352. Por isso quando Marx
fala das qualidades histricas da vida social, precisamos entender essa afirmao
sempre de um ponto de vista de um processo. Da mesma maneira, quando Foucault
se vale do mtodo de investigao genealgico, no se interessa pela noo de
pontos definidos de origem, mas sim por momentos de emergncia353. Compreender
relaes como processos implica uma observao das relaes em movimentos de
transformao d suas transies e interaes. A partir de uma concepo de
sociologia relacional radical os conceitos clssicos de agencia e estrutura podem ser
compreendidos como postos e complementares para a abordagem dos

346
POWELL, Christopher. Radical relationism: a proposal. POWELL, Chritopher and DPELTEAU,
Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New York: Palgrave
Macmillan, 2013, p. 192.
347
POWELL, Christopher. Radical relationism: a proposal. POWELL, Chritopher and DPELTEAU,
Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New York: Palgrave
Macmillan, 2013, p. 192.
348
POWELL, Christopher. Radical relationism: a proposal. POWELL, Chritopher and DPELTEAU,
Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New York: Palgrave
Macmillan, 2013, p. 192.
349
POWELL, Christopher. Radical relationism: a proposal. POWELL, Chritopher and DPELTEAU,
Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New York: Palgrave
Macmillan, 2013, p. 193-194.
350
POWELL, Christopher. Radical relationism: a proposal. POWELL, Chritopher and DPELTEAU,
Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New York: Palgrave
Macmillan, 2013, p. 194.
351
POWELL, Christopher. Radical relationism: a proposal. POWELL, Chritopher and DPELTEAU,
Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New York: Palgrave
Macmillan, 2013, p. 194-195.
352
POWELL, Christopher. Radical relationism: a proposal. POWELL, Chritopher and DPELTEAU,
Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New York: Palgrave
Macmillan, 2013, p. 194-195.
353
POWELL, Christopher. Radical relationism: a proposal. POWELL, Chritopher and DPELTEAU,
Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New York: Palgrave
Macmillan, 2013, p. 194-195.
229

fenmenos354. Agencia e estrutura no designariam dois tipos de fenmenos mas


aspectos de um mesmo fenmeno relacional355. A partir da teoria do ator-rede de
Latour, podemos identificar que a agencia no esta ligada estritamente ao fenmeno
da intencionalidade, ou seja, no e exclusiva de seres humanos356. A agencia esta
em toda parte mas no e a mesma em toda parte.357 De um ponto de vista
relacional, as estruturas sociais so as expresses de agencias humanas e no-
humanas.358 A partir dessa conceituao e possvel distinguir o conceito de
emergncia. A partir de indeterminadas oportunidades para a ao as estruturas
emergem359. A emergncia no e uma variao de escalas ou de complexidade,
mas de irredutibilidade360. Essa variao ocorre tanta para condies
epistemolgicas quanto para determinadas condies ontolgicas. Kontopoulos
cunha o termo heterarquia, a mesma usada por Sloterdijk361, para superar as noes
dualistas ou pluralistas de ontologias sociais rumo ao monismo da relacionalidade
radical362. Em uma epistemologia heterrquica, sistemas ou figuraes so
interpenetrados em suas escalas363. Macro, meso e micronveis figuraes da

354
POWELL, Christopher. Radical relationism: a proposal. POWELL, Chritopher and DPELTEAU,
Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New York: Palgrave
Macmillan, 2013, p. 198.
355
POWELL, Christopher. Radical relationism: a proposal. POWELL, Chritopher and DPELTEAU,
Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New York: Palgrave
Macmillan, 2013, p. 198.
356
POWELL, Christopher. Radical relationism: a proposal. POWELL, Chritopher and DPELTEAU,
Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New York: Palgrave
Macmillan, 2013, p. 198.
357
POWELL, Christopher. Radical relationism: a proposal. POWELL, Chritopher and DPELTEAU,
Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New York: Palgrave
Macmillan, 2013, p. 199.
358
POWELL, Christopher. Radical relationism: a proposal. POWELL, Chritopher and DPELTEAU,
Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New York: Palgrave
Macmillan, 2013, p. 200.
359
POWELL, Christopher. Radical relationism: a proposal. POWELL, Chritopher and DPELTEAU,
Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New York: Palgrave
Macmillan, 2013, p. 201.
360
POWELL, Christopher. Radical relationism: a proposal. POWELL, Chritopher and DPELTEAU,
Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New York: Palgrave
Macmillan, 2013, p. 202.
361
E-III.
362
POWELL, Christopher. Radical relationism: a proposal. POWELL, Chritopher and DPELTEAU,
Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New York: Palgrave
Macmillan, 2013, p. 202.
363
POWELL, Christopher. Radical relationism: a proposal. POWELL, Chritopher and DPELTEAU,
Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New York: Palgrave
Macmillan, 2013, p. 202.
230

economia capitalista global interagem com a fisiologia do corpo humano, em nveis


distintos, sem que um dos nveis determine os outros em ultima instncia364.

3.8 Modo, Pluralidade, Relao

Para o interesse deste trabalho, uma das importncias das abordagens do


realismo modal consiste na derivao de uma concepo ontolgica da pluralidade
dos mundos365. Em sua obra clssica sobre esse assunto, David Lewis defende o
realismo modal segundo o qual o mundo que habitamos seria apenas uma parte de
uma pluralidade de mundos366. Essa concepo se aproxima muito da ontologia dos
mesons, mesmo em se tratando de uma concepo que, como veremos, sempre se
mantm nos limites analticos e descritivos da linguagem, e evita dar o salto em
direo s redes e ao tecido mundano dos mesons, concebidos como meios
circundantes e infinita cadeia de mediaes. Por outro lado, ao falar em ontologia
relacional e em sua relao com a linguagem, estamos em franco contato com um
campo de conhecimento que podemos denominar de um campo de conhecimento
ps-disciplinar367, regio onde ocorre o dilogo entre uma ontologia relacional e o
que poderamos chamar de epistemologia comparatista368. A epistemloga Rosa
Pombo, que at onde pude pesquisar e a nica a cunhar a expresso epistemologia
comparatista369, utiliza a expresso epistemologia comparatista em um nico
momento: para se referir epistemologia transcendental e ao comparativismo
transcendental de Gilles Gaston Granger e a abordagens mais teorticas e
especulativas como as de Popper, Kuhn, Lakatos e, notadamente, de Bachelard.
364
POWELL, Christopher. Radical relationism: a proposal. POWELL, Chritopher and DPELTEAU,
Franois. Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. New York: Palgrave
Macmillan, 2013, p. 202.
365
LEWIS, David. On the plurality of worlds. Oxford/New Yor: Basil Blackwell, 1986.
366
LEWIS, David. On the plurality of worlds. Oxford/New Yor: Basil Blackwell, 1986, p. vii.
367
Tendo em vista o desgaste de termos como interdisciplinaridade, multidisciplinaridade e
transdisciplinaridade, inspirei-me no grupo de pesquisa alocado no IEB-USP e coordenado pelo
professor Stelio Marras. Dedicado antropologia da cincia e da tecnologia, o grupo se define como
um grupo de pesquisas ps-disciplinares.
368
Muitas delas so replicaes de um artigo da professora Olga Pombo:
http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/investigacao/cat_epist.htm
369
O termo epistemologia comparatista em uma pesquisa no Google em 08.09.2014 encontrou
apenas 74 ocorrncias em lngua portuguesa. Quase todas as ocorrncias referem-se ao artigo da
professora Rosa Pombo. Contudo, ela no a define como um campo autnomo do saber, como eu
pretendo faz-lo neste estudo.
231

Todos eles so representantes de uma epistemologia entendida como saber


autnomo, no como sendo um ramo da filosofia ou da cincia. Esses dados podem
sinalizar para a novidade da proposta de um campo de pesquisa em epistemologia
comparatista e em ontologia relacional, emergente do interior de um departamento
de Literatura Comparada. Ela no se restringe ao mbito interno da comparao de
obras da literatura e tampouco ao departamento de Literatura Comparada, mas se
expande para a noo mesmo de campo medial, como sendo a imagem mais exata
que se possa produzir de toda a atividade do conhecimento, em qualquer cincia ou
arte.
A metafsica no e o estudo de entidades abstratas, sobrenaturais ou divinas.
Como diria William James, a metafsica significa apenas uma incomum e obstinada
tentativa de pensar de modo claro e consistente. De fato, o mesmo James quem
nos fornece outro precioso conceito diretamente conectado ontologias pluralistas:
o multiverso370. Se a ontologia o ramo do pensamento que estuda o ser e todas as
suas ordens de manifestao, uma das categorias que ficaram interditadas ao
pensamento do ser desde a sua origem foi a categoria relao. Como se sabe, a
fundamentao da ontologia na Antiguidade sempre se concentrou em buscar um
dos elementos mais importantes da atividade racional: o principio de identidade. A
doutrina da identidade consiste basicamente em demonstrar como e por que os
seres so o que so e como o so sem serem diversos de si mesmos. Nessa
dialtica entre unidade formal e pluralidade fenomnica, a ontologia foi o principal
instrumento por meio do qual o pensamento metafsico conseguiu lanar os
fundamentos do real em termos dialticos. Desde o declogo das categorias de
Aristteles, a essncia dos seres foi fundada sobre a primazia da categoria
substancia sobre as demais categorias371. na No que diz respeito ontologia
relacional, essa expresso se refere em quase sua totalidade a abordagens crists e
agostinianas do ser, ou seja, a noes ontolgicas que visam mais a relao do
homem com Deus e com suas propriedades substanciais e eidticas, conforme as
ontologias platnicas ou aristotlicas e suas disseminaes medievais372. Desde as

370
STENGERS, Isabelle; JAMES, William; DRUMM, Thierry. Une autre science est posible! Manifeste
pour une relentissemont des sciences. Series Les Empcheurs de penser en rond. Paris: La
Dcouverte, 2013.
371
HOOD, Pamela Michelle. Aristotle on the Category of Relation. Lanham. : University Press of
America, 2004.
372
Nesse sentido, a recente publicao de uma obra da filosofa portuguesa Paula Oliveira e Silva e
oportuna e esclarecedora sobre a genese do conceito de relacao no pensamento cristao: Oliveira E
232

concepes da patrstica a categoria relao adquiriu um estatuto diferencial, a partir


da translao de uma abordagem da substancia em direo a noo de pessoa373.
Essa passagem, como bem notou tienne Gilson, e a passagem das ontologias do
mundo greco-latina baseadas em o qu para as ontologias judaico-crists fundadas
em um quem374. O que foi criado pressupem physis, ousa e substncia, ao passo
que a pergunta pelo como foi criado pressupe relao [schesis]375.
O filosofo grego Christos Yannaras e autor da nica obra exclusivamente
voltada a fundamentao de uma ontologia relacional376. Embora no chegue a ser
uma obra confessional da doutrina crista ortodoxa oriental, no por acaso a sua
premissa e claramente delineada na fronteira entre filosofia e teologia. A comear
pela epigrafe, chama a ateno o constante dialogo de Yannaras com Wittgenstein,
ate mesmo pela organizao da obra em tpicos, semelhante ao Tratactus. Essa
relao entre teologia, ontologia e filosofia da linguagem demonstra um dos
principais campos de ressonncia da ontologia no pensamento contemporneo, que
pretendo examinar adiante. A tese de Yannaras e a de uma correspondncia logica
entre relao e existncia. No senso comum acreditamos que primeiro as coisa
existem e depois se colocam em relao377. Mas haveria aqui uma impossibilidade
de compreender a relao antes dos termos constitudos. Contudo como o que esta
em questo nesse caso e a prpria existncia como condio possibilidade de
estabelecimento dos nexos relacionais, ambos conceitos de relao e existncia
estabeleceriam uma codependncia, como a estabelecida entre termos constitudos
e constituintes. Para tanto seria preciso conceber uma dimenso pr-subjetiva
constituinte de relaes378. Porem esse raciocnio abriria uma alternncia entre ser,
existncia e relao, o que nos conduz a um problema lgico e pragmtico na

Silva, Paula. Ordem E Mediao: a Ontologia Relacional de Agostinho de Hipona. Porto Alegre: Letra
& Vida, 2012.
373
ZIZIOULAS, Metropolitan John. Relational ontology: insights from d ethe patristic thought.
POLKINGHORNE, John. The Trinity and the entangled world: relationality in physical science and
theology. William Eerdmans Publish Company: Michigan/Cambridge, 2010, p. 146e seg.
374
GILSON, Etienne. Deus e a filosofia.
375
ZIZIOULAS, Metropolitan John. Relational ontology: insights from d ethe patristic thought.
POLKINGHORNE, John. The Trinity and the entangled world: relationality in physical science and
theology. William Eerdmans Publish Company: Michigan/Cambridge, 2010, p. 149 e seg.
376
YANNARAS, Christos. Relational ontology. Transled by Norman Russell.
Brookline/Massachussetts: Holy Cross Orthodox Press, 2011.
377
YANNARAS, Christos. Relational ontology. Transled by Norman Russell.
Brookline/Massachussetts: Holy Cross Orthodox Press, 2011, p. 1.
378
YANNARAS, Christos. Relational ontology. Transled by Norman Russell.
Brookline/Massachussetts: Holy Cross Orthodox Press, 2011, p. 2 e seg.
233

nomeao de ontologia relacional379. A obra de Yannaras descreve a possibilidade


de compreender os seres, a ontologia, a partir de uma estrutura relacional e
existencial antinaturalista380. A partir dessa perspectiva, empreende uma
demonstrao dos problemas de diversas modalidades do que poderamos chamar
de realismo ontolgico e de indeterminao ntica.
Ao deslocar os lugares estabilizados entre ser, relao e existncia para
corroborar o conceito de Deus como operador relacional lgico por excelncia,
Yannaras prossegue a longa tradio do modalismo na teologia e na filosofia. A
base da concepo modal consiste em uma determinada articulao entre
necessidade, possibilidade e contingencia. Alm disso, o modalismo se baseia
tambm em um principio de causalidade. Abordar o problema do ser de um ponto de
vista modal consiste em conciliar a multiplicidade das possibilidades de atualizao
do ser aos princpios de causalidade necessrios a existncia desse mesmo ser em
sua condio finita e perfeita de ser. O modalismo e a via filosfica que pretende
inserir a contingencia na esfera da atualizao da necessidade, e assim negar a
ao do acaso. No por acaso, a teoria modal e fortemente aliada as teologias
abramicas de inclinao mais sistemtica. Dessa maneira, a existncia da
diversidade de entes e da pluralidade de mundos na realidade pode ser explicada a
partir de uma capacidade de esses seres transformarem sua condio potencial em
atual, e no necessariamente a partir de uma constituio anterior ao ser [ante rem].
Quando pressupomos a relao como categoria fundamental a partir de uma teoria
dos modos, de certa maneira retomamos a concepo segundo a qual ato e
existncia so idnticos, definio de Deus corrente entre os escolsticos. Deus e a
coincidncia entre ato puro e puro existir, entre bem e liberdade, entre necessidade
e contingncia, pois caso algum desses dois polos se emancipasse, retornaramos
as voltas com o problema do mal. Em outros termos, a teoria modal pensa a
identidade real entre essncia e existncia. No por acaso Leibniz retomara a
ontologia modal para trabalhar o problema dos compossveis na Monadologia e o
problema do mal na Teodiceia. Assim como Espinosa e Mulla Sadr381 podem ser

379
YANNARAS, Christos. Relational ontology. Transled by Norman Russell.
Brookline/Massachussetts: Holy Cross Orthodox Press, 2011, p. 2 e seg.
380
YANNARAS, Christos. Relational ontology. Transled by Norman Russell.
Brookline/Massachussetts: Holy Cross Orthodox Press, 2011, p. 4 e seg.
381
Os paralelos entre Espinosa e o filosofo iraniano da teofania islmica sao comuns. Mas para este
e outros paralelos entre a filosofia greco-latina e a islmica, recomendo a obra de Christian Jambet
234

considerados os mais radicais modalistas da historia do pensamento, ao proporem


cada um a seu modo uma identidade de substancia entre Deus e natureza [Deus
sive Natura], e todo ser existente como uma constante modalizao dessa mesma
substancia, una e indivisvel. Nesse sentido, de fato torna-se impossvel pensarmos
o mundo a partir de um realismo ontolgico entendido como causa sui, pois isso
implicaria concebermos o universo como uma instncia natural autofundada e
autopoitica. Em uma chave do cristianismo ortodoxo, Yannaras realoca a categoria
da beleza e da beatitude, para assim compreender os problemas do mal e da
liberdade, bem como outros conceitos como libido, sexualidade, natureza,
conscincia, subjetividade em uma chave relacional. Entretanto, em uma diferena
ontolgica radical, em linhas gerais, para Yannaras o ser no pode ser entendido
como condio de possibilidade da relao, mas apenas Deus.
Embora reconhea que a obra de Yannaras e brilhante em sua argumentao
e este seja o nico trabalho existente que desde o titulo leva a ontologia relacional
em todas suas implicaes, a minha proposta e sensivelmente distinta. A acepo
de ontologia relacional que estou desenvolvendo apenas de modo remoto
compartilha dessas concepes judaico-crists, ou seja, com uma forte aderncia a
razes teolgicas. Em primeiro lugar porque no proponho com a ontologia relacional
uma aderncia, desdobramento ou implicaes a nenhuma cincia, saber ou
doutrina especifica, seja a teologia, a filosofia ou alguma das cincias naturais. Em
segundo lugar por um ponto que e mais profundo e mais difcil de equalizar
teoricamente, embora seja nuclear para o desenvolvimento deste trabalho: a
ontologia relacional no e uma teoria modal. No se pode minimizar a importncia
da teologia para a concepo da esferologia. Essa importncia e ressaltada logo na
abertura da trilogia382. Contudo, e importante frisar que, em consonncia com a
fenomenologia das formas desenvolvida por Sloterdijk, a ontologia relacional no
consiste em uma reedio de matrizes epistmicas surgidas no seio da cultura
abramica. Trata-se sim de uma tentativa de conceber uma teoria geral da cultura a
partir de um sistema relacional global, que tenha em vista todas as maneiras de
relao, privilegiando o ser da relao e no o ser dos entes implicados nessa

sobre Henri Corbin: JAMBET, Christian. A lgica dos orientais: Um introduo ao pensamento de
Henry Corbin. So Paulo: Globo, 2005.
382
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Burbujas. Microsferologa. Traduccin Isidoro Reguera, Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2003 [Publicao Alem: 1998]
235

mesma relao. Mediante essa concepo, mesmo Deus monotesta, os deuses ou


as divindades, quaisquer que sejam, podem ser entendidos como figuraes mediais
em uma cadeia de mediaes imanentes, no como objetos metafsicos ou
demandas de autorrealizao transcendente internas dinmica da razo. Esses
exemplos das religies como corpos mediais esto dispersos por todos os trs
volumes de Esferas, notadamente nos volumes um e dois, a comear pela bela
abertura da trilogia com uma anlise do Genesis383.
De qualquer forma, a o ontological turn do pensamento contemporneo, por
mais diversos que sejam seus proponentes, tem um objetivo bastante claro de
superar as contradies da filosofia analtica e das filosofias representacionais.
Ambos so caminhos que se esgotaram e que no conseguem fornecer explicaes
satisfatrias para os problemas reais que se apresentam ao pensamento no sculo
XXI. Porque a grande questo que continua interditada ao pensamento no e saber
qual a melhor maneira de descrever a realidade de modo a dirimir as iluses criadas
pela linguagem e assim continuarmos preservados e imunizados nas esferas
higinicas de nossos gabinetes cnicos384. Afinal, a filosofia analtica, do ponto de
vista esferolgico tambm e uma cultura de autoadestramento e uma tecnologia de
imunizao. Tampouco consiste em gerar novos imperativos transcendentais que
desmoronam ao som do primeiro atentado terrorista ou aos uivos emitidos pela
aliana entre capital, tecnologia e cultura de massas. A perspectiva aberta pela
ontologia relacional e justamente a de propor uma superao entre epistemologias
representacionais-transcendentais e epistemologias analticas-descritivas. O
trabalho de construo de uma epistemologia comparatista fatalmente ser
completado pela abordagem da ontologia relacional a medida mesma que perceba
que toda descrio e uma produo de novas mediaes. E que toda a realidade e
impura, a medida que se constitui de relaes mediais infinitas que se espraiam e se
disseminam horizontalmente pelos canais e pelo tecido do ser.
Porque diferente do que a percepo mais imediata dos fenmenos nos
sugere, ser e no-ser no constituem opostos. So pelo contrario as bases de
estruturao da ontologia [estudo do ser] e de seu complemento, a meontologia
383
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Burbujas. Microsferologa. Traduccin Isidoro Reguera, Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2003.
384
SLOTERDIJK, Peter. Crtica da razo cnica. Traduo e coordenao Marco Casanova. Equipe
de traduo: Paulo Soethe, Pedro Costa Rego, Mauricio Mendona Cardozo e Ricardo Hiendlmayer.
Preparao de originais Rodrigo Petronio. So Paulo: Estao Liberdade, 2012.
236

[estudo do no-ser], como Plato os define em sua magnnima obra Sofista, uma
das pedras angulares da reflexo ontolgica na historia do pensamento. A dinmica
das relaes mutuas estabelecidas entre o ser, seus fundamentos, suas condies e
seus limites se desenvolveram as narrativas da univocidade, da equivocidade, da
dualidade e da pluralidade ontolgicas em seus respectivos enquadramentos
metafsicos. E paralelamente, a critica da ontologia e de suas pretenses de
universalidade e apoditismo foi o alvo preferido do ceticismo, do cinismo e das
vertentes empireocriticistas de todos os tempos. Em geral essas crticas partem do
pressuposto de que seja possvel a produo do conhecimento sem a necessidade
de uma unificao dos fenmenos conhecidos sob a chancela do ser. A partir do
ponto de vista de uma ontologia relacional, poderemos demonstrar que essa ciso
entre universalismo ontolgico e perspectivismo critico no passa de uma iluso
discursiva, pois os dispositivos reais que facultam a emergncia de discursos
perspectivistas que empreendem a critica da ontologia so tambm eles possveis
graas a emergncia e ao desdobramento de condies reais para que esses
discursos fossem possveis. Isso quer dizer que pensar a partir das categorias de
uma ontologia relacional implica a pressuposio de que pensamento e mundo so
unidades reais indissolveis e no so passiveis de separao do ponto de vista
representacional. Pressupe tambm que no existe nenhuma atividade conceitual
divorciada das condies reais e fticas de sua existncia e de seu lugar de
enunciao. E o que proponho desenvolver nas partes que seguem deste estudo.
Uma ontologia geral engloba e mais do que isso pressupe em sua dinmica
interna o ser e seu avesso, o ser e o no-ser. Alm disso diz respeito a uma
estrutura universal dos fenmenos bem como aquilo que os fundamenta ser e no-
ser, isoladamente e em mutua correspondncia. Nossa percepo dos fenmenos e
a dinmica interna mesma da realidade coincidem, em sua eterna oscilao entre
ser e deixar de ser, permanecer e se transformar, se assemelhar e se distinguir, se
aproximar e se afastar. Justamente por se focar nessa investigao dos princpios, a
ontologia no pensa apenas na fundamentao discursiva ou racional dos seres,
mas pressupe sim a possibilidade de chegar a forma fundamental da realidade e ao
fundo real da elaborao nocional da atividade cognitiva, que existe em termos
substanciais e extensos e independe das eventuais relatividade das formulaes
discursivas ou da relatividade das mltiplas perspectivas que tenhamos sobre os
seres reais. A partir dessas bases, as diversas narrativas da ontologia, por mais
237

distantes que sejam suas elaboraes, partem da premissa de que essas


elaboraes tratam da causa primeira de todas as coisas, ou seja, descrevem a
estrutura primaria que funda a realidade como realidade.
Essa busca da causa sui e da razo primeira dos fenmenos protagonizada
pela ontologia, ao se indagar pelas condies formais e reais de todos os seres,
acabou sempre chegando ao limite [peras] do conhecimento. A passagem para alm
dos limites em busca de uma esfera incondicionada [apeiron] ou a relativizao da
condio material entendida como condio formal primeira da realidade, em seus
elementos fsicos [agua, ar, fogo, terra] foram as primeiras manifestaes do
pensamento ontomitolgico antes de Scrates. Em uma regio do pensamento na
qual que a logica demonstrativa, em termos dedutivos ou indutivos, no conseguem
transpor. Essa intransponibilidade epistmica e o motivo pelo qual ao longo da
historia do pensamento do Ocidente ontologia e metafsica se mesclam, se
confundem se misturam e depois novamente se separaram. Trata-se de duas
esferas dianoticas distintas, mas que se apoiam mutuamente, pois ambas tentam
fundar a essncia dos fenmenos a partir do principio de identidade e este, por sua
vez, necessariamente precisa de causas transfsicas que no se esgotam na empiria
ou nos fenmenos imanentes para poder fundamentar a essncia desses mesmos
fenmenos. Nesse sentido, embora em um primeiro momento pode e muitas vezes
foi amparada em concepes de poder religiosa ou mtica, a demanda exigida pela
ontologia
Costuma-se considerar Hume e Kant como os autores que operaram o fim ou
a inviabilidade da metafsica e tambm da ontologia, notadamente a partir da
refutao que Kant realiza do chamado argumento ontolgico de Anselmo de
Canturia e da critica ao principio de inferncia indutiva desenvolvido por Hume385.
Muitos comentadores tem entendido a obra de Kant como uma resposta a Hume.
Seguindo a tradio nominalista que prega o divorcio entre ens e uerbum, Hume
aprofunda o problema da indeterminao ontolgica dos seres, que e um dos
problemas mais espinhosos da ontologia desde os antigos. Pode-se dizer que ate o
sculo XII no encontrara uma soluo satisfatria e foi um dos pontos nodais na
querela dos universais e nas contendas dos sculos XIII e XIV, que invadiu em

385
Uma excelente sintese dos desdobramentos do argumento ontolgico de Anselmo ate os dias de
hoje pode ser encontrada em: Ontological arguments. Stanford Encyclopedia of Philosophy.
Disponivel em: http://plato.stanford.edu/entries/ontological-arguments/
238

linhas distintas o pensamento de Duns Scott, William of Ockham e Toms de


Aquino. possvel enxergar nesses trs pensadores as trs linhas mestras da
formao da modernidade e a diviso da ontologia moderna.
O problema da indeterminao consiste basicamente na impossibilidade de
definir a quididade [quidditas], a singularidade ontolgica radical de cada ser, sem
recorrer a uma regio opaca de determinao das categorias em gnero e espcie e
nos processos contnuos de atribuio de diferenas formais e especificas para
operar a singularizao e a generalizao ontolgicas de cada ser inserido na
cadeia dos seres. Essa regio de indiscernibilidade e de indecidibilidade e limite,
regies estas vastamente exploradas mais tarde por Deleuze e Derrida, so
fundamentas para que Hume produza a sua critica radical dos universais. Porque se
toda a escalada entitativa de conexo entre os seres depende de um ponto cego
que, racionalmente, no pode ser aferido de nenhum dos graus desse processo
escalonar, tampouco podemos considerar como legitimo em termos racionais o salto
que vai do ser singular ao ser geral, dos seres as leis naturais que os organiza. No
Prosologium, Anselmo lanou as bases do argumento ternrio da hierarquia dos
seres existentes386. Um primeiro circulo do pensamento, um segundo circulo do
mundo e um terceiro circulo de Deus. Seria impossvel reduzir o circulo de Deus ao
mundo bem como reduzir o circulo de Deus e do mundo ao do pensamento. Isso
ocorre porque a existncia real dos seres mundanos e divinos transcendem as
condies formais de apreenso da totalidade desses seres por meio do
pensamento. O argumento de Anselmo representa junto com algumas teses de
Tomas de Aquino um dos eixos estruturantes do pensamento metafsico ocidental. A
chamada revoluo copernicana empreendida por Kant consiste basicamente em
inverter esses postulados. Para Kant, no nos e possvel pensar em termos de
substancias reais fora da atividade transcendental do sujeito. Surge ento a
conhecida diviso das dimenses do noumenos, entendido como coisa em si, e o
fenmeno. Todos os seres, a despeito de julgarmos se so seres que existem ou
no realmente, s nos so acessveis mediante a apreenso de fenmenos e esto
inscritos na ordem transcendental do sujeito. Isso quer dizer que mesmo se eu tiver
uma ideia de Deus e de seres do mundo, independente de eles existirem ou no,
eles se tornaram possveis como demandas a razo e devem ser entendidos

386
ANSELMO DE CANTUARIA. Prosologion. So Paulo: Abril Cultural, 1973.
239

racionalmente a medida mesma que so demandas da razo em busca de


explicao. A empiria e os condicionamentos dos sentidos no esgotam os nosso
meios de acesso ao mundo, como queria o ceticismo e o fantasma de Hume
assombrando Kant todas as noites. A experincia no pode se validar a si mesma,
pois a multiplicidade dos sentidos implicados na experincia no poderia se unificar
no prprio ato da experincia se no houve uma condio de unificao desses
mesmos fenmenos. Para Kant, essa unidade e a sntese transcendental realizada
pela razo e emergente no horizonte dos fenmenos que se desdobram na mente.
Alguns pensadores contemporneos como Kurt Gdel, Charles Hartshorne,
Alvin Plantinga, Robert Maydole e Brian Leftow reatualizam o argumento ontolgico
de Anselmo a partir da teoria dos mundos possveis e da teologia processual387. No
nos cabe aqui adentrar essa discusso. O que e interessante e que um dos
instrumentos centrais para a reatualizao do argumento ontolgico e quase sempre
feita com base na logica modal. Por mais que possamos divisar na dialtica de
Hegel uma clara preocupao ontolgica, como se nota em sua Cincia da lgica.
Para superar as antinomias kantianas entre razo, experincia e entendimento, Kant
estabeleceu uma redistribuio das categorias aristotlicas, a partir das quais a
configurao de esquemas formariam a estrutura transcendental do sujeito da
experincia, de modo que lhe fosse facultado apreender os dados sensveis no a
partir de suas relaes quantitativas, qualitativas ou substanciais, como era
manifesto nas ontologias clssicas, mas sim a partir dos esquemas apriorsticos
dispostos pela razo na mente. Desse modo Kant conseguiu superar o eterno jogo
entre inatismo e empiria, entre apreenso sensvel e conceito, a medida que esse
dualismo seria apenas uma iluso produzida pela metafsica, por meio da crena na
possibilidade de se chegar a coisa em si e ao noumenos da realidade. Hegel
subverte esse postulado do criticismo kantiano. E o faz justamente ao reintroduz a
dimenso substancial do ser no real e ao identificar real ao racional, ou seja, razo
se realizaria no tempo como telos da negatividade do sujeito. Apenas sob ao
nadificadora [Nachtung] do sujeito o mundo pode se realizar como mundo. O mundo
seria portanto o termo mdio relacional de um processo infinito realizado
constantemente pela ao negadora do Espirito em busca de sua reconciliao

387
PLANTINGA, Alvin, The Nature of Necessity [Oxford: Clarendon, 1974]; Robert Maydole, A Modal
Model for Proving the Existence of God, American Philosophical Quarterly 17 [1980]: 13542; Brian
Leftow, The Ontological Argument, in The Oxford Handbook for Philosophy of Religion [ed. William J.
Wainwright; Oxford University Press, 2005], 80115.
240

consigo mesmo. Pode-se dizer que com esse salto brilhante Hegel conseguiu
realizar a assimilao da lgica a ontologia e, mais do que isso, ofereceu uma
soluo ao principio de no-contradio que marca os sistemas lgicos de
Aristteles a Kant. Para Hegel, ser e negao [Aufhebung] encontram-se unidos
dialeticamente como figura e contrafigura do real e da racionalidade que se realiza
no tempo388.

3.9 Ser e Linguagem

Como um contraponto ao linguistic turn empreendido notadamente com base


na obra de Wittgenstein pelo positivismo lgico do Circulo de Viena da primeira
metade do sculo XX, nas ltimas dcadas tem sido proposto um ontological turn.
Embora a filosofia da linguagem de Wittgenstein tenha sido o grande estopim para a
guinada lingustica do Crculo de Viena, a questo entre filosofia da linguagem e
ontologia bem mais complexa, e no se esgota na simples superao metafsica e
ontolgica empreendida por alguns representantes da filosofia analtica. Essa
oscilao entre filosofias da linguagem e filosofias do ser diz respeito a um problema
que persiste ate hoje aberto como uma ferida no pensamento moderno, e que na
realidade boa parte dos pensadores contemporneos ainda se esforam por
solucionar. Essa ferida bem como a diviso entre empirismo e transcendentalismo,
ocorrida desde o sculo XVII, e que Foucault identificou muito bem como uma das
gneses da modernidade, e por isso sob seu ponto de vista, a polarizao entre as
filosofias de Heidegger e de Wittgenstein seriam ilusrias, pois ambos seriam
representantes de um mesmo problema filosfico por vias opostas389.
Por isso, a relao entre linguagem, ser e metafsica continuou sendo um dos
pontos de eternos embates entre as chamadas filosofias continental e analtica. E
mesmo no interior dessas tradies mais amplas, a viabilidade ou a inviabilidade da
ontologia e da metafsica esta sempre sendo posta na em questo, subdividindo as
388
Sobre as fundacoes do criticismo kantiano, sua reversao por Hegel e a conversao das categorias
de Aristoteles: REDDING, Paul. The relation of logic to ontology in Hegel. HAAPARANTA, Leila e
KOSKINEN, Heikki. Categories of being: Essays on metaphysics and logic. Oxford: Oxford University
Pressa, 2012, p. 147 e seg.
389
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas: uma Arqueologia das Cincias Humanas. So
Paulo, Martins Fontes, 1995.
241

perspectivas em aspectos bem mais nuanados do debate. Esse problema foi posto
pelos positivistas lgicos desde Moritz Schlick e Rudolf Carnap, que realizaram um
trabalho sistemtico de dinamitar a metafsica e todo pensamento baseado em
ordens extensas da realidade, e no por acaso Carnap dedica um estudo seminal ao
problema das relaes entre ontologia e semntica390. O retorno do recalcado e
sempre mais poderoso do que o recalque passado? Como sustenta Sami Pihlstrm,
os dias gloriosos da cruzada antimetafsica do Crculo de Viena chegaram ao fim391.
E no chegaram ao fim apenas no sculo XXI, graas ao retorno da metafsica e da
ontologia ordem do dia em diversas cincias e correntes tericas. Essa
reconverso veio se produzindo ao longo do prprio sculo XX, pela mos de alguns
dos mais importantes representantes da filosofia da linguagem. E basicamente da
concepo de que mesmo a filosofia transcendental, que teria ido o ponto de
esgotamento e o fim da metafsica, possa ser considerada hoje em dia como uma
ontologia392. O grande lgico Willard Van Orman Quine, no por acaso orientando de
Whitehead em Harvard, criou a possibilidade de equacionar ontologia e positivismo
lgico, por meio do princpio da no-oposio entre as abordagens analtica e
sinttica, bem como da concepo de que a filosofia analtica no se esgota em uma
anlise dos conceitos. Um caminho de reviso da metafsica pelas vias da filosofia
analtica tambm foi traado em mbito alemo por Ernst Tugendhat, a partir de uma
releitura semntica do texto de Aristteles. Contudo a contribuio de Quine para
esse debate continua sendo at os dias de hoje um eixo de orientao e um ponto
de partida.
Criou-se ento uma dupla via de apreenso da ontologia do ponto de vista
analtico, representadas, respectivamente, por Carnap e Quine: uma mais rigorosa
quanto a inviabilidade de recuperao da questo do ser e em sua crtica da
metafsica e outra que prope o estudo do ser como algo necessrio a consistncia

390
O ensaio classicod de Carnap foi republicado na coletanea Meaning and Necessity da
Universidade de Chicago: CARNAP, Rudolf. Revue Internationale de Philosophie 4 [1950]: 20-40.
Reprinted in the Supplement to Meaning and Necessity: A Study in Semantics and Modal Logic,
enlarged edition. University of Chicago Press, 1956.
391
PIHLSTRM, Sami. Transcendental philosophy as ontology. HAAPARANTA, Leila e KOSKINEN,
Heikki. Categories of being: Essays on metaphysics and logic. Oxford: Oxford University Pressa,
2012, p. 453-477.
392
Ver Koistinen e Pihlstrm: KOISTINEN, Olli. The critique of pure reason as metaphysics.
HAAPARANTA, Leila e KOSKINEN, Heikki. Categories of being: Essays on metaphysics and logic.
Oxford: Oxford University Pressa, 2012, p. 119-144. PIHLSTRM, Sami. Transcendental philosophy
as ontology. HAAPARANTA, Leila e KOSKINEN, Heikki. Categories of being: Essays on metaphysics
and logic. Oxford: Oxford University Pressa, 2012, p. 453-477.
242

performativa dos enunciados no interior da pragmtica discursiva393. Essa


perspectiva aberta por Quine, tambm conhecida como abordagem holstica, vai
culminar com sua definio de epistemologia naturalizada394, ou seja, a possibilidade
epistemolgica de pensar universais no apenas do ponto de vista lgico-formal,
mas como entidades discursivas integrantes de processos internos da realidade.
Essa posio tambm est afinada noo de compromisso: no se deve perguntar
quais os entes reais referidos pelos enunciados, mas apenas verificar quais os
compromissos parciais estabelecidos entre linguagem, ser e mundo395. Para alm do
dilema milenar entre as epistemologias centradas no sujeito ou no objeto, no
transcendentalismo ou no empirismo, o problema dessa diviso persiste na ontologia
e sobretudo na filosofia da cincia no sculo XX sob a forma dos paradigmas
internalistas e externalistas396. De modo que e consensual considerar que essa
abertura e reinsero da ontologia empreendida por Quine define algumas das
atitudes bsicas da filosofia analtica contempornea em relao a metafsica e a
ontologia397.

3.10 Metaontologia e Metametafsica

Nessa concepo, tambm fundam-se as bases do realismo matemtico de


Hilary Putnam. Embora o ceticismo de Putnam com relao a ontologia seja
bastante marcado, o argumento da indispensabilidade398, desenvolvido por Quine e

393
SOAMES, Scott. Ontology, Analyticity, and Meaning: the Quine-Carnap Dispute. CHALMERS,
David; MALEY, David; WASSERMAN, Ryan. Metametaphysics: new essas on the foundations of
ontology. Oxford: Oxford University Press, 2009, p. 424-443.
394
QUINE, W. V. O. Ontological Relativity and Other Essays, New York: Columbia University Press,
1969.
395
INWAGEN, Peter Van. Being, Existence, and Ontological Commitment. CHALMERS, David;
MALEY, David; WASSERMAN, Ryan. Metametaphysics: new essas on the foundations of ontology.
Oxford: Oxford University Press, 2009, p. 472-506. Ver tambm: INWAGEN, Peter Van. Alston on
ontological commitment. Existence: essays in ontology. Cambridge: Cambridge University Press,
2014, p. 137-152.
396
HOFWEBER, Thomas. Ambitious, yet modest, metaphysics. CHALMERS, David; MALEY, David;
WASSERMAN, Ryan. Metametaphysics: new essas on the foundations of ontology. Oxford: Oxford
University Press, 2009, p. 280 e seg.
397
FINE, Kit. The question of ontology. CHALMERS, David; MALEY, David; WASSERMAN, Ryan.
Metametaphysics: new essays on the foundations of ontology. Oxford: Oxford University Press, 2009,
p. 157.
398
INWAGEN, Peter Van. Relational vs. Constituent Ontologies. Existence: essays in ontology.
Cambridge: Cambridge University Press, 2014, p. 217. Ver tambem: PRICE, huw. Metaphisics after
243

Putnam, prope uma reflexo sobre a ontologia entendida como discurso produzido
sobre entidades indispensveis a realizao formal dos objetos referidos em termos
semnticos, semelhante a concepo da chamada confirmao holstica,
desenvolvida tambm por ambos os filsofos. Sider considera que o argumento da
indispensabilidade teria um valor realista ligado a esta ontologia399. Esse modo pelo
qual a linguagem produz acordos e compromissos pode ser lido tanto em uma
acepo convencionalista, meramente arbitraria, ou sob uma tica realista400. Por
seu turno, o chamado critrio de compromisso ontolgico desenvolvido por Quine
seria um compromisso entre as asseres e sua base emprica401. Contudo esse
compromisso estaria alm de uma atividade referencial e aqum de uma condio
substancial presente nessa nomeao. Essa posio de intervalo situa Quine como
um dos proponentes de uma corrente decisiva para a discusso colocada aqui: a
metaontologia402. William Alston segue o mesmo percurso por meio do compromisso
ontolgico durante a dcada de 1950403.
As conhecidas divises entre linguagem e referncia podem ser entendidas
como uma relao arbitraria formulada por um compromisso pragmtico e por
acordos, e nessa chave a filosofia pragmtica de Richard Rorty e a filosofia da ao
de Donald Davidson vo incorporar a filosofia analtica. A ontologia dos acordos e
no-extensiva, ou seja, no pressupe a existncia de objetos dados exteriormente
ao espelhamento interno da linguagem404. Essa postura pode conduzir a um
realismo semntico a partir do qual as categorias naturalizadas tem uma vigncia
real sem deixar de ser um acordo provisrio estabelecido em certas condies de
possibilidade de sentido405. Justamente por isso, mesmo partindo de um franco

Carnap: the ghost who walks?. CHALMERS, David; MALEY, David; WASSERMAN, Ryan.
Metametaphysics: new essays on the foundations of ontology. Oxford: Oxford University Press, 2009,
I There an Argument from ndispensability?, p. 336 e seg.
399
SIDER, Theodore. Indispensability. Writing the book off the world. Oxford: Oxford University
Press, 2011, p. 1.
400
SIDER, Theodore. Ontological commitment. Writing the book off the world. Oxford: Oxford
University Press, 2011, p. 1.
401
INWAGEN, Peter Van. Existence: essays in ontology. Cambridge: Cambridge University Press,
2014, p. 101 e seg.
402
INWAGEN, Peter Van. Quine`s 1946 lecture on nominalism. Existence: essays in ontology.
Cambridge: Cambridge University Press, 2014, p. 121-136.
403
INWAGEN, Peter Van. Alston on ontological commitment. Existence: essays in ontology.
Cambridge: Cambridge University Press, 2014, p. 137-152.
404
GOTTLIEB, Dale. Ontological economy: substitutional quantification and mathematics. London:
Oxford University Press, 1980, p. 3 e seg.
405
GOTTLIEB, Dale. Ontological economy: substitutional quantification and mathematics. London:
Oxford University Press, 1980, p. 9 e seg.
244

confronto contra o revisionismo ontolgico406, os principais protagonistas da filosofia


da linguagem ainda hoje reconhecem a dificuldade de se estabelecer as condies
operativas fundamentais de estabilizao da linguagem sem recorrer a categorias
fornecidas pelo realismo ou ao subjetivismo, ou seja, em ultimo caso, a metafsica.
Em outras palavras, diante da incapacidade de resolver determinados problemas
pelas vias estritamente epistemolgicas, esse novo realismo retoma a ontologia para
alm do naturalismo407. A medida que a ontologia cada vez mais se aloca nos
espao lingusticos do senso comum, e preciso produzir novas abordagens para se
criar um realismo centrado em uma ontologia fsica-objetiva e nas disputas verbais
envolvidas em torno desses objetos408. Nesse sentido se tem pensado em uma nova
dimenso da ontologia: a metaontologia409.
Em dialogo tanto com Carnap quanto com Putnam, Eli Hirsch prope o
conceito de variantes quantificveis para afianar o acesso aos objetos por meio da
linguagem, sem recorrer a propriedades ou a causalidades internas ao mundo
fenomnico para poder legitimar essa postura410. A metaontologia, no por acaso
chamada tambm de postura quineana411 e definida por Hirsch como uma ontologia
leve [flat ontology], consistiria basicamente em uma reflexo lingustica e pragmtica
sobre os operadores envolvidos na dotao de realidade de determinados
enunciados e proposies emitidos sobre objetos materiais, sem contudo
reconhecer uma existncia autnomo a esses mesmos objetos, o que foi desde
sempre a pedra angular das metafsicas e das ontologias substancialistas. Em
outras palavras, estaramos diante de uma objetividade sem objetos412. O importante
e evidenciar que a concepo metaontolgica tambm pretende fornecer
explicaes as condies metaempricas por meio das quais a percepo a mente

406
Hirsch, Eli. Against revisionary ontology. Quantifier variance and realism: essas in metaontology.
Oxford: Oxford University Press, 2011, p. 96 e seg.
407
Hirsch, Eli. Against revisionary ontology. Quantifier variance and realism: essas in metaontology.
Oxford: Oxford University Press, 2011, p. 100 e seg.
408
Hirsch, Eli. Physical-Object ontology, verbal disputes, and commom sense. Quantifier variance
and realism: essas in metaontology. Oxford: Oxford University Press, 2011.
409
Hirsch, Eli. Quantifier variance and realism: essas in metaontology. Oxford: Oxford University
Press, 2011.
410
Hirsch, Eli. Quantifier variance and realism: essas in metaontology. Oxford: Oxford University
Press, 2011, Introduction, p. xi e seg.
411
INWAGEN, Peter Van. Relational vs. Constituent Ontologies. Existence: essays in ontology.
Cabridge: Cambridge University Press, 2014, p. vii.
412
Hirsch, Eli. Objectivity whitout object. Quantifier variance and realism: essas in metaontology.
Oxford: Oxford University Press, 2011, p. 36-44.
245

podem captar estados de coisas e unifica-los como objetos413, preocupao


bastante presente tanto em William James quanto em Whitehead.
Essa reflexo em tornos dos contornos formais de apreenso esta presente
em outro termo cunhado para conseguir mapear e situar a ontologia e a metafsica
no pensamento contemporneo: a metametafsica. Em um dos grandes e mais
recentes mapeamentos dessa reflexo414, David Manley define a predominncia de
uma atitude deflacionista em diversos pensadores: a relativizao das categorias
metafsicas fortes da herana ocidental serve de suporte para se poder efetuar a
critica a metafsica sem transformar o pensamento em refm do prprio alvo que
critica. A mesma perspectiva e endossada por Sider415. Metaontologia como
ontologia leve de Hirsch, metametafsica como metafsica deflacionada, bem como a
leitura de Heidegger como ontologia deflacionista416 bem como do deflacionismo de
Carnap417. Esses termos lembram bem a instigante proposta de Gianni Vattimo em
busca de um pensamento fraco [pensiero debole] como alternativa para sair das
aporias e dilemas das categorias peremptas e fortes da herana metafsica. David
Chalmers tambm enfatiza a viso deflacionista como meio de se constituir uma
ontologia antirrealista418. Theodore Sider tambm analisa o aspecto deflacionista das
transformaes da metafsica no debate contemporneo419. Uma nota interessante
ao debate e dada por Matti Eklund em uma proposta de pluralismo ontolgico a
partir de Carnap. Carnap seria o ponto de emergncia das variantes quantificveis
de Hirsch e da relatividade conceitual de Putnam420. E a teoria da metafsica

413
Hirsch, Eli. A sense off unity. Quantifier variance and realism: essas in metaontology. Oxford:
Oxford University Press, 2011, p. 3 a 26.
414
MALEY, David;. Introduction: A guide tour off metametaphysics. CHALMERS, David; MALEY,
David; WASSERMAN, Ryan. Metametaphysics: new essas on the foundations of ontology. Oxford:
Oxford University Press, 2009, p. 1-36.
415
SIDER, Theodore. Ontological deflationism. Writing the book off the world. Oxford: Oxford
University Press, 2011, p. 167 e seg.
416
O capitulo Heidegger and the ontological deflacionist: MCDANIEL, Kris. Ways of being.
CHALMERS, David; MALEY, David; WASSERMAN, Ryan. Metametaphysics: new essas on the
foundations of ontology. Oxford: Oxford University Press, 2009, p. 310 e seg.
417
Ver Carnaps deflationism em PRICE, Huw. metaphysics after Carnap: the ghost who walks?.
CHALMERS, David; MALEY, David; WASSERMAN, Ryan. Metametaphysics: new essas on the
foundations of ontology. Oxford: Oxford University Press, 2009, p. 323.
418
CHALMERS, David. Ontological Anti-Realism. CHALMERS, David; MALEY, David;
WASSERMAN, Ryan. Metametaphysics: new essas on the foundations of ontology. Oxford: Oxford
University Press, 2009
419
SIDER, Theodore. Metametaphysics. Writing the book off the world. Oxford: Oxford University
Press, 2011,
420
EKLUND, Matti. Carnap and Ontological Pluralism. CHALMERS, David; MALEY, David;
WASSERMAN, Ryan. Metametaphysics: new essas on the foundations of ontology. Oxford: Oxford
University Press, 2009
246

descritiva de Strawson seria um dos tantos desdobramentos possveis dessa


espcie de metafsica mitigada que vislumbramos em diversas correntes da
metafsica e da ontologia contemporneas421.

3.11 Ontologias: Relacionais e Constituintes

Justamente nessa chave entre a filosofia analtica e a metaontologia que se


insere a diviso de Peter Van Inwagen entre uma ontologia relacional e uma
ontologia constituinte, bastante importante para pensarmos uma ontologia
relacional422. Partindo justamente da demanda por realismo formulada por Quine,
Inwagen identifica na oposio relacional-constituinte, respectivamente, uma
adoo-rejeio da ontologia dos objetos desenvolvida pelo filosofo austraco
Alexius Meinong Ritter von Handschuchsheim, um dos maiores pensadores da
ontologia nos sculos XIX e XX, e que desenvolveu um paradigma ontolgico
conhecido como paradigma meinongeano, que pode em linhas gerais ser situado
como uma alternativa a definio dos objetos a partir de modelos conscienciolgicos
e intencionais de Franz Brentano adotados por Husserl e Twardowski423. Meinong
pressupe a intencionalidade de objetos inexistentes e que a conscincia intenciona
inclusive a inexistncia424. No nos cabe aqui entrar no debate em torno do sistema
ontolgico dos objetos desenvolvido por Meinong. Tanto porque, Inwagen reconhece
a insuficincia dessa diviso, e propem uma nova, baseada em esferas
policategoriais e monocategoriais. As ontologias monocategoriais seriam as formas

421
GLOCK, Hans-Johann. Strawson`s descriptive metaphysics. HAAPARANTA, Leila e KOSKINEN,
Heikki. Categories of being: Essays on metaphysics and logic. Oxford: Oxford University Pressa,
2012, p. 391- 418.
422
O artigo de Inwagen e de 2014 e situade modo bem atualizado o estado da arte desse debate:
INWAGEN, Peter Van. Relational vs. Constituent Ontologies. Existence: essays in ontology.
Cambridge: Cambridge University Press, 2014, p. 202-221.
423
SIMONS, Peter. To be and/or note to be: the objects of Meinong and Husserl. HAAPARANTA,
Leila e KOSKINEN, Heikki. Categories of being: Essays on metaphysics and logic. Oxford: Oxford
University Pressa, 2012, p. 241-257.
424
SIMONS, Peter. Intentional inexistence and Meinong and the nonexistent. HAAPARANTA, Leila
e KOSKINEN, Heikki. Categories of being: Essays on metaphysics and logic. Oxford: Oxford
University Pressa, 2012, p. 241, 245.
247

radicais de nominalismo, aquelas que advogam a existncia exclusiva de


propriedades, ou seja, haveria apena suma categoria fundamental: propriedade425.
Seria justamente no interior das ontologias policategoriais que se
encontrariam a subdiviso entre concepes relacionais e constituintes do ser. E
ambas podem ser pensadas a partir da noo de distintas estruturas ontolgicas.
Qual seria a distino estrutural entre ambas? Para essa distino, Inwagen se
apoia na mereologia, que em linhas gerais e uma teoria das divises dos seres em
estruturas parte-todo. A ontologia relacional e uma ontologia policategorial cujas
partculas concretas no constituem uma estrutura ontolgica426. Embora a ontologia
relacional inclua partculas concretas em seu interior, a nica estrutura ontolgica
valida no seria uma estrutura que engloba essas mesmas partculas seria uma
estrutura mereolgica427. Por seu lado, a ontologia constituinte, como a relacional,
tambm inclui partculas concretas em si428. Diferentemente da ontologia relacional,
a ontologia constituinte pressupe uma configurao dessas partculas no sentido de
uma estrutura, ou seja, no sentido de integrante constitutivamente a categoria das
partculas concretas. As ontologias particulares que exploram a natureza concreta
de partculas [bundle theory], como as de Van Cleve e L. A. Paul, convergem para
os marcos tericos das ontologias constituintes429.
Por seu lado, a ontologia relacional parte do pressuposto de que seres
individuais, objetos particulares ou substncias no possuem estrutura ontolgica430.
De acordo com a ontologia relacional, descrita por Inwagen, propriedades apenas
servem para referir algo sobre alguma coisa. Outro aspecto da ontologia relacional
seria uma campo de propriedades dos objetos. A possibilidade de determinados
objetos serem referidos por determinadas propriedades estaria dentro dos limites de
um campo relacional431. Em termos de imagens didticas, as ontologias constituintes

425
INWAGEN, Peter Van. Relational vs. Constituent Ontologies. Existence: essays in ontology.
Cambridge: Cambridge University Press, 2014, p. 203.
426
INWAGEN, Peter Van. Relational vs. Constituent Ontologies. Existence: essays in ontology.
Cambridge: Cambridge University Press, 2014, p. 204.
427
INWAGEN, Peter Van. Relational vs. Constituent Ontologies. Existence: essays in ontology.
Cambridge: Cambridge University Press, 2014, p. 204-205.
428
INWAGEN, Peter Van. Relational vs. Constituent Ontologies. Existence: essays in ontology.
Cambridge: Cambridge University Press, 2014, p. 204.
429
INWAGEN, Peter Van. Relational vs. Constituent Ontologies. Existence: essays in ontology.
Cambridge: Cambridge University Press, 2014, p. 205.
430
INWAGEN, Peter Van. Relational vs. Constituent Ontologies. Existence: essays in ontology.
Cambridge: Cambridge University Press, 2014, p. 205.
431
INWAGEN, Peter Van. Relational vs. Constituent Ontologies. Existence: essays in ontology.
Cambridge: Cambridge University Press, 2014, p. 207.
248

tenderiam a ser associadas tradio oriunda de Aristteles e s ontologias


relacionais seria ligadas a tradio de Plato432. As ontologias relacionais tenderiam
a lidar em maior frequncia com sentenas abertas do que as ontologias
constituintes. A crtica feita por Inwagen a ambas perspectivas e justamente a noo
de estrutura. Para superar esse considerao problemtica do conceito de estrutura
e chega por fim a uma concepo triangular, para alm da polarizao entre
ontologias policategoriais e monocategoriais. Essa triangulao consistiria em um
nominalismo rigoroso, a ontologia relacional e as ontologias constituintes, estas
ltimas alinhadas bundle theory433. Segundo Theodore Sider, a metafsica e uma
busca por estrutura434. Justamente o conceito de estrutura precisa ser repensado
quando se pensa em uma fundamentao da filosofia. Seria o ponto de partida de
uma metametafsica435. Essa suspeita em relao a estrutura e porque estrutura
seria um modo elusivo de se compreender a noo de substantividade436.

3.12 Quartos e Mesons

Em linhas gerais, a reflexo sobre a metaontologia e a metametafsica


contemporneas podem ser entendidas a partir de uma imagem proposta por
Inwagen: a imagem de um quarto437. Sider utiliza a mesma imagem para tratar a
metafsica438. Podemos observar o mundo de dentro ou de fora do quarto da
ontologia, mas a totalidade das proposies e dos enunciados estariam sempre em
uma oscilao entre entradas e sadas desse quarto439. Restaria saber como seria
possvel equacionar essa imagem de um quarto, no qual a pobre ontologia teria sido

432
INWAGEN, Peter Van. Relational vs. Constituent Ontologies. Existence: essays in ontology.
Cambridge: Cambridge University Press, 2014, p. 207-208.
433
INWAGEN, Peter Van. Relational vs. Constituent Ontologies. Existence: essays in ontology.
Cambridge: Cambridge University Press, 2014, p. 218.
434
SIDER, Theodore. Writing the book off the world. Oxford: Oxford University Press, 2011, p. 1.
435
SIDER, Theodore. Metametaphysics. Writing the book off the world. Oxford: Oxford University
Press, 2011, p. 67 e seg.
436
SIDER, Theodore. Writing the book off the world. Oxford: Oxford University Press, 2011, p. 44.
437
INWAGEN, Peter Van. Introduction: inside and outside the ontology room. Existence: essays in
ontology. Cabridge: Cambridge University Press, 2014, p. 1-15.
438
SIDER, Theodore. The metaphysics room. Writing the book off the world. Oxford: Oxford
University Press, 2011, p. 74 e seg.
439
INWAGEN, Peter Van. Introduction: inside and outside the ontology room. Existence: essays in
ontology. Cabridge: Cambridge University Press, 2014, p. 1-15.
249

deixada de castigo devido aos maus-tratos que perpetrara ao pensamento durante


tantos sculos, e a critica a linguagem privada efetivada pelo patriarca dos filsofos
analticos Wittgenstein lido luz de Kripke440. A inviabilidade de uma dimenso
privada para a linguagem esta posta por diversas teorias que pensam a gnese do
sujeito e da linguagem no limiar de uma coimplicao. No seria possvel definir um
sujeito da linguagem fora do escopo da instaurao transobjetiva desse mesmo
sujeito operada pela linguagem. Esse problema e um problema seminal da ontologia
clssica, e na ontologia moderna foi abordado em toda sua exuberncia por
Schelling, cujo justo legado ainda esta por ser reivindicado.
Nesse diapaso, podemos rastrear autores to diversos como Barthes,
Heidegger, Foucault e Lacan. Podemos pensar essa instaurao inaugural como
uma caracterstica fascista da linguagem, que exige que tenhamos a liberdade de
falar [parole] dentro dos limites do que a linguagem [langue] estipula que possa ser
falado; podemos pensar a linguagem como clareira meta-humana de emergncia do
ser que, por sua vez, possibilita o desvelamento do ente humano como ente, ou
seja, desvela a estrutura ontolgica mesma da humanidade do ser humano como
humano; podemos pesar na linguagem como o conjunto de dispositivos que falam
justamente por meio da interdio e que sinalizam o sentido justamente onde o
sentido e elidido: o falante seria um sintoma de processos constitutivos de sentido
mais amplos, que se ocultam a medida mesma em que os discursos so produzidos
pelos falantes, e caberia a nos reivindicar uma arqueologia capaz de reconstruir os
pontos de eliso das constituies discursivas, entendidas como dispositivos;
podemos pensar que um sujeito nunca fala, mas e sempre falado, e que o
enunciador de todos os discursos nunca e o sujeito do discurso, mas sempre um
Outro que possibilidade que a linguagem atravesse o sujeito e se signifique a si
mesma mediante esse sujeito que a linguagem atravessa.
Todos esse problemas referentes a uma suspenso epistmica, lgica, formal
e ntica, levada a cabo por concepes metaontolgica, conduzem-nos a um
problema que a partir do pensamento de Sloterdijk pode ser entendido como um
problema mais amplo de constituio psicopoltica e de morfologia cultural: o

440
KRIPKE, S., Wittgenstein on Rules and Private Language, Oxford: Blackwell, 1982.
250

cinismo441. A essncia do cinismo consiste precisamente em transformar a


transparncia em opacidade442. A razo cnica e aquela que opera no sentido de
colocar a realidade entre parntesis para que o falante real do discurso possa se
distinguir dessa mesma realidade, em termos formais e tambm em termos de
poder. A suspenso fenomenolgica do sujeito do discurso inscreve um espao de
objetividade e neutralidade que simula a existncia de discursos e de sujeitos
incondicionados, ou seja, simula uma existncia impossvel.
Nesse sentido, a imagem do quarto utilizada por Inwagen e bastante
ilustrativa de um problema filosfico oferecido pela metaontologia, para alm da
querela entre ontologia e metaontologia e das disputas vazias entre pensadores
continentais e analticos, em suas respectivas igrejas. Esse problema extrapola os
cenrios tericos onde e comumente abordado e o mbito das diversas vertentes da
filosofia analtica e das filosofias da linguagem de modo geral. Converte-se em um
problema de compreender quais os sujeitos reais aos quais e dado o poder de entrar
ou sair do quarto escuro da ontologia. E uma pergunta mais ctica ou, se
preferirmos, mais cnica: ser que a ontologia faculta a entrada de todos na esfera
privada de sua divina alcova, sem um prvio consentimento? Deixemos essas
questes para um momento oportuno no qual poderemos fala de cinismo, duplo
vinculo [double bind] e ontologia relacional. Atenhamo-nos por ora apenas ao debate
interno aos contornos epistmicos de uma ontologia relacional, entendido em termos
puramente analticos.
E em outro sentido, a discusso metaontolgica encerra um especial
interesse para a definio de uma ontologia relacional. Se a ontologia relacional e
uma ontologia global de todos os processos relacionais entendidos em termos de
processos internos ao ser, torna-se invivel qualquer pensamento capaz de isolar o
pensamento em esferas privadas, sejam indivduos, quartos, casas, instituies,
cidades, pases, estados ou mesmo o sistema semiaberto do planeta. Todas essas
esferas apenas encontram sua condio de possibilidade quando pensadas em
relao a outras esferas heternomas e diante da alteridade radical que
estabelecem com outras esferas, em termos relacionais. o delirante, quando delira,
no delira com os personagens de sua casa, seu pai e sua me. O delirante, quando

441
SLOTERDIJK, Peter. Crtica da razo cnica. Traduo e coordenao Marco Casanova. Equipe
de traduo: Paulo Soethe, Pedro Costa Rego, Mauricio Mendona Cardozo e Ricardo Hiendlmayer.
Preparao de originais Rodrigo Petronio. So Paulo: Estao Liberdade, 2012.
442
SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falncia da critica. Sao Paulo: Boitempo, 2010.
251

delira, delira com o mundo inteiro. Essa intuio de Deleuze para perpetrar sua
critica da psicanlise serve muito justamente a um pensamento relacional.
Concebido como ontologia das relaes e dos processos, a esfera do inconsciente
no e nem nunca pode ser considerada a partir de um ponto de vista subjetivo.
Tampouco a esfera da conscincia, porque em ambas h o atravessamento de
estratos relacionais que lhes so anteriores e posteriores, e que criam a condio de
possibilidade mesma do isolamento. A unio no e possvel porque antes se efetuou
a separao. A separao e que e um epifenmeno de uma unio que nunca pode
ser totalmente suprimida e que na verdade nunca pode ser totalmente elidida em
nenhuma esfera dos seres vivos. Nesse sentido que podemos pensar, com
Winnicott e Bowlby, na ontologia relacional como uma teoria global do vinculo. As
formas vinculantes esto sempre pressupostas e subjacentes em todos os
processos, no so apenas atualizaes modais de possibilidade e necessidade
desses mesmos processos.
A filosofia analtica e uma chave de indagao que coloca em suspenso a
ontologia naturalista da herana metafsica, e nesse sentido contribui para
compreendermos que a reflexo sobre a totalidade do ser pode ser um mero quatro
no desse aglomerado de infinitos cmodos que e o pensamento. Contudo, nesta
proposta de ontologia relacional, acredito em uma sada sinttica para as aporias
presentes nas filosofias da linguagem. A sada sinttica consiste em reconverter
esse pluralismo ontolgico que as filosofias da linguagem concebem como entidades
discursivas a uma dimenso da multiplicidade de agentes e unidades reais
presentes nos processos de produo e dotao de sentido do mundo. Nesse
sentido, a ontologia relacional e uma teoria da heteronomia radical e da inviabilidade
ontolgica de conceber espaos insolados e de uma indistino radical entre real e
imaginrio. Estamos aqui muito mais prximos do pluralismo da monadologia das
associaes [assemblages] de Gabriel Tarde, da ontologia das redes de Bruno
Latour e da esferologia de Sloterdijk. Em odos os lados e em todos os lugares, para
quem pensa do ponto de vista relacional, no h espaos ou tempo que
despovoado. Pensar uma ontologia das relaes e partir da convico de que, do
ponto de vista dos seres vivos e dos organismos, a unidade da relao e anterior a
separao e a unidade da relao esta sempre pressuposta em toda separao de
unidades ilusrias, a medida que a essncia do ser e relacional e no substancial,
252

extensiva, representacional ou nocional. Estamos aqui diante da impossibilidade


sistmica de pensar quaisquer espaos isolados na infinita cadeia relacional do ser.
Whitehead, Nietzsche, Heidegger e Deleuze representam os pontos de
inflexo mais poderosos da ontologia no sculo XX. Pode-se dizer que todo
pensamento vindouro sobre o ser passa necessariamente pela clivagem desses
pensadores. E a partir deles que precisamos pensar na atualizao da ontologia no
pensamento contemporneos por meio de autores heterogneos como Alain Badiou,
Jean-Luc Nancy, Slavoj iek, Claude Romano, Giorgio Agamben, Quentin
Meillasoux e Peter Sloterdijk. Uma das vertentes dessa inflexo foi mapeada pelo
excelente estudo de Gert-Jan van der Heiden e diz respeito a uma tenso
inaugurada por Heidegger em sua distino entre ontologia e ontoteologia,
concentrando-se em Romano, Nancy, Agamben, Badiou e Meillasoux443.
O caminho de Heidegger pela ontologia e marcado pelos desdobramentos de
sua leitura da fenomenologia de Husserl. Heidegger no esta sozinho nessa
recuperao da ontologia nas primeiras dcadas do sculo XX. H a obra
monumental e injustamente menosprezada de Nicolai Hartmann, em como as
especulaes do realismo metafsico de Ortega y Gasset, de Louis Lavelle e de
Xavier Zubiri. Em uma corrente paralela, a filosofia dos organismos e dos processes
desenvolvida por Whitehead. Contudo Heidegger e aquele que deixou mais marcada
sua ambio ontolgicas, e aquele que por diversas razoes mais deu ensejo as
guinadas ontolgicas e contraontolgicas dos pensadores da segunda metade do
sculo XX, entre eles Derrida, Levinas, Agamben e mesmo Deleuze, por mais que
tenha desdobrado essa herana em uma nova matriz. Embora o mtodo de Husserl
sirva de base para a destruio fenomenolgica da historia do pensamento
perpetrada em Ser e tempo, os problemas abertos por Heidegger transcendem o
escopo da epoch fenomenolgica. Contra as evidncias kantianas, Heidegger
passa a trazer para o debate mais uma vez no mais as condies de possibilidades
de compreenso do universo fenomnico, mas a condio de possibilidade originaria
da emergncia do fenmeno enquanto fenmeno.

443
HEIDEN, Gert-Jan van der. Onthology and Ontotheology: Plarality, Event, and Contingengy in
Contemporary Philosophy. Pittsburgh/Pennsylvania: Duquesne University Press, 2014.
253

3.13 Ontologia Orientada ao Objeto [OOO]

Essa leitura da virtualidade infinita dos objeto a partir do Das Ding de


Heidegger correta. Porm essa uma faceta do objeto desocultado dentro da
inobjetividade do ser. Transformar o objeto em uma virtualidade objetual infinita
negar o prprio estatuto do objeto como conceito, ou seja, pura contradio
performativa. O conceito de objeto muito complicado. A demolio que Deleuze e
Guattari fazem da psicanlise comea pelo conceito se objeto. Por isso vo falar em
agenciamento no lugar de objeto, para evitar essa autoevidncia real e formal que
nenhum objeto pode ter em nenhuma condio. O ontological turn a possibilidade
de pensar processos como atividades reais, nem discursivas e nem meramente
materiais. Nisso vem Hegel, Marx, Heidegger, Nietzsche, Whitehead, Deleuze,
Sloterdijk. Por mais diversos, eles esto interessados em apreender os modos do
devir e das condies processuais da realidade. Ento, reduzir as coisas a uma
critica do correlacionismo e emancipar onticamente os objetos me parece que
perder a dimenso processual mais originria da prpria realidade e da experincia,
na qual a prpria objetivao pode emergir e ser concebida e concretizada no nvel
dos fenmenos. O Vicente Ferreira da Silva um gnio que sacou muito bem isso,
que os mitos no so objetos de nada. Eles so as condies se possibilidade
formais para a objetivao da natureza, para que a natureza venha a ser natureza.
Mas isso est em Hegel, em Schelling, em Hlderlin, em Heidegger. O realismo
especulativo associa correlacionismo a finitude. Mas Sloterdijk, James, Whitehead,
Bachelard, Bergson, Deleuze: todos eles so correlacionistas-processuais da
infinitude.
Acho que a crtica do correlacionismo pode reduzi-lo a funcionalismo. As
virtualidades de relaes podem ser infinitas, se tomarmos sistemas abertos como
padro e no sistemas fechados e estveis. Ento essa adoo correlao, finitude
e fenomenologia me parece que faz sentido, e de certa forma Heidegger est se
batendo contra essa tradio. Contudo sinto que ela j foi dialetizada de forma mais
interessante. E que no precisamos ressuscitar conceitos metafsicos como objeto,
materialismo, transcendental, entre outros, para derrubar as filosofias melanclicas
da finitude. Isso est sendo feito desde o sculo XIX. Schelling isso. Whitehead,
meu novo autor do corao, sobre o qual quero escrever um livro, tambm isso.
254

Ento quando falo de mesologia e ontologia relacional estou ciente que relao um
conceito metafsico e mesmo teolgico, fortemente agostiniano. E isso no me
incomoda. Pelo contrrio, me entusiasma. Porque sinto que relao uma unidade
que me livra de cair em todas as armadilhas substancialistas da metafsica clssica:
sujeito, objeto, transcendncia, imanncia, matria, esprito e o que mais houver.
255

4 MODOS E MESONS: CONTRIBUIO PARA UMA TEORIA DA


MODERNIDADE

A vida forma.
Peter Sloterdijk

A filosofia passa da cincia ao sonho e inversamente, pois conduziu-os


imaginao que atravessa os domnios, as ordens e os nveis, abatendo os
compartimentos, coextensiva ao mundo, guiando nosso corpo e inspirando
nossa alma, apreendendo a unidade da natureza e do esprito.
Gilles Deleuze

4.1 Cincia, Imanncia e Relao

Talvez tenha sido Deleuze que com maior radicalidade tenha produzido no
sculo XX a diluio das fronteiras entre diversos regimes de conhecimento. E o fez
mediante a sua brilhante concepo de campo de imanncia444. O campo de
imanncia o fundamento da constituio dos regimes de saber do ponto de vista
dos seus devires e no de suas demarcaes transcendentais e representacionais.
Em termos de imanncia, a imagem-conceito perfeita do pensamento no seria nem
a imagem da arvores nem a radicular, mas sim a forma-rizoma, que pressupem a
multiplicao horizontal e descentrada de suas capilaridades445. Essa imagem-
conceito do rizoma ainda ser ampliada e potencializada por meio da definio das
figuras e dos conceitos, e pela identificao do plano de imanncia ao espao onde
ocorre o cruzamento os trs grandes regimes do ser e do pensamento: os afectos,
os perceptos e os conceptos446. Essa proposta esta ligada a possibilidade de pensar
a partir de uma ontologia diferencial pura, sem uma previa inscrio nos regimes de
444
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Flix. Mil Plats: Capitalismo e Esquizofrenia. So Paulo, 34
Letras, 1997.
445
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Flix. Mil Plats: Capitalismo e Esquizofrenia. So Paulo, 34
Letras, 1997.
446
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Flix. O que a Filosofia? Traducao Bento Prado Jr. e Alberto A.
Muoz. Rio de Janeiro: Editora 34, 2001.
256

identidade e uma captura da diferena pelas filosofias da unidade447. Estamos na


aurora do pensamento em forma de rede, de uma ontologia das multiplicidades e da
irredutibilidade. Estamos na gnese de uma ontologia da complexidade.
Em algumas de suas definies mais marcantes de esferas, Sloterdijk deixa
bastante clara a dimenso medial nuclear de sua teoria: esferas so criaes
espaciais imunologicamente efetivas para seres extticos sobre os quais opera o
exterior448. Tambm enftico ao dizer que a teoria das esferas uma teoria dos
meios449. Uma teoria dos meios pode ser entendida como uma cincia geral da
visitabilidade de algo por algo em algo450. Uma teoria das polinizaes ontolgicas e
mtuas fecundaes dos seres que alegremente se misturam e se interpenetram, se
territorializam, se desterritorializam e se reterritorializam, diria Deleuze. nesses
termos que, como acredito e proponho neste estudo, uma teoria geral das esferas e
uma teoria geral dos meios convergem para um campo unificado chamado ontologia
relacional451. Esse campo unificado nunca geomtrico ou passvel de reduo ou
geometrizao. Ele sempre se desdobra em nos mltiplos espaos de animao
vital que se manifestam no mundo da vital [Lebenswelt], regio matricial de Husserl
e Bachelard e reiteradamente nomeada por Sloterdijk. As esferas so meios na
medida mesma que so meios circundantes [Umwelten], como o bilogo existencial
Jacob von Uexkll concebeu que seja o espao vital de todos os seres vivos452, ou a
monadologia organicista das associaes desenvolvida por Gabriel Tarde453. H
tantos mundos quantos meios circundantes houver.
Nesse sentido, as primeiras comunidades humanas nada mais foram do que
esferas inspiradas por mensagens metaempricas: deuses, espritos, entidades,
almas, demnios ou Deus. Eles foram os primeiros agentes imunizadores dos
bandos e das hordas, pois conseguiram criar impermeabilidade esfrica contra os
447
Esse trabalho foi realizado por Deleuze em outro clssico: DELEUZE, Gilles. [1988]. Diferena e
repetio. Traduo: Luiz Orlandi, Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal.
448
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Burbujas. Microsferologa. Traduccin Isidoro Reguera, Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2003, 36-37.
449
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Burbujas. Microsferologa. Traduccin Isidoro Reguera, Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2003, p. 39.
450
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Burbujas. Microsferologa. Traduccin Isidoro Reguera, Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2003, p. 38.
451
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Burbujas. Microsferologa. Traduccin Isidoro Reguera, Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2003, p. 39.
452
UEXKLL, Jacob Von. Ambienti animali e ambienti umani: una passeggiata in mondi sconosciuti e
invisibili. Milo: Quodlibet, 2000. UEXKLL, Jacob Von. Foray into the worlds of animals and humans:
with a theory of mea. Coleo: Posthumanities. Minnesota, 2002.
453
TARDE, Gabriel. Monadologia e sociologia. Organizao Eduardo Viana Vargas. Traduo Paulo
Neves. So Paulo: Cosacnaify, 2007.
257

brbaros, ou seja, contra todos que fossem no-prprios. Essa condio


omnicompreensiva transforma uma teoria dos meios em um espao ps-disciplinar
por excelncia, medida que todo conhecimento simultaneamente uma operao
mediadora e mediada. Na medida em que no existe objeto puro, conceito puro nem
conhecimento puro, todo nosso acesso ao real e aos objetos da realidade s nos
facultado como investigao das tramas inter-relacionais de que essa mesma
realidade feita. Pensar a partir dos meios pensar o ser como rede e como
rizoma, no como soma ou diviso de pontos, linhas ou planos. Em outras palavras,
pensar a partir da raiz radical dos meios pensar a partir de esferas, na acepo de
Sloterdijk.
Se no existe nada no horizonte da cultura humana que no seja mediado,
uma teoria geral dos meios requer tambm outra interrogao de fundo, que a
satisfaa em termos epistemolgicos. Essa interrogao diz respeito prpria
condio de possibilidade de circunscrio dos campos e dos saberes, entendidos
como construes predeterminadas por certos discursos concernentes a esses
campos e saberes, incluindo-se os saberes da arte, as cincias e os demais campos
institudos dos conhecimentos, sejam eles especulativos, empricos ou metatericos.
Em outras palavras, uma teoria geral dos meios abre a possibilidade de pensar
como diversas disciplinas, saberes e cincias podem ser agenciadas na interseco
comparatista, bem como pensar os campos de imanncia dessas interseces como
se eles fossem meios puros, ou seja, no submetidos a demandas externas de
sentido para serem legitimados. Os meios so o princpio e o fim desta investigao.
So a um s tempo objetos materiais e formais.
A partir das mesmas motivaes, este estudo trata exatamente do devir que
os saberes estabelecem entre si rumo a constituio de uma ontologia complexa.
Desse modo, no traz nenhuma pretenso de esgotar o campo de atuao
discursiva das possveis interseces entre os saberes. E tampouco visa produzir
uma arqueologia por meio da qual seja possvel levantar todos os dispositivos de
saber-poder contidos em cada pratica discursiva, como fora brilhantemente realizada
por Foucault454. O objetivo deste estudo e muito mais modesto e ao mesmo tempo
mais transversal. Ambiciona demonstrar que a partir de uma ontologia relacional e
possvel delinearmos um tecido discursivo de praticas de conhecimento, na qual

454
No caso, quase toda obra de Foucault realiza esse desgnio, embora ele esteja bem claro em sua
obra-prima: FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas.
258

muitas vezes se apaguem as fronteiras representacionais que as isolavam. No por


acaso, a importncia cada vez maior da que a ontologia comeou a assumir no
cenrio contemporneo se relaciona a uma dificuldade crescente de demarcao
epistemolgica em diversas reas, inclusive nas cincias naturais, como a fsica e a
biologia.
Na fsica as interpretaes do campo quntico com base epistemolgica e
fenomenolgica mostram seus limites, o que produz a necessidade de uma
alternativa ontolgica que de conta do campo dos fenmenos observados455. Esses
limites vinham sendo atestados em trabalhos clssicos de Werner Heisenberg456,
que desde 1925 comea a chamar a ateno para as dificuldades de constituio
descritiva do campo quntico e, desde essas primeiras intuies, recorre a filosofia
para poder dar conta de preencher as lacunas epistmicas da fsica457. Uma das
demarcaes desse problema apresentado pelo campo quntico e que extrapola o
domnio puramente formal da epistemologia e aquilo que Kristian Camilleri chama de
principio de observabilidade458. Coloca-se tambm como um problema de
interpretao e, em ultimo caso, como uma demonstrao dos limites do
pensamento hermenutico e dos princpios de dotao de sentido da realidade459.
Diante do campo quntico estaramos muito mais prximos de produes
performativas de presena do que de demandas hermenuticas de sentido460. Essa
condio singular produz uma oscilao entre perspectivas entre a fenomenologia, a
epistemologia e a ontologia, o que teria levado Heisenberg, por meio da obra de Carl
Friedrich von Weizscker, a um reviso das bases kantianas apriorsticas de anlise
em um linguistic turn em direo a ontologia e a uma redefinio do problema da

455
HEELAN, Patrick. Phenomenology, Ontology, and Quantum Physics. In Foundations of Science,
Jun. 2013.
456
Uma parte dessas analises esta disponvel na edio brasileira: HEISENBERG, Werner. Fisica e
filosofia. Brasilia: UnB, 1995.
457
CAMILLERI, Kristian. Heisenberg and the interpretation off quantum mechanics: the physicist as
philosopher. Cambridge: Cambridge University Press, 2009, p. 17-35.
458
CAMILLERI, Kristian. Quantum mechanics and the principle of observability. Heisenberg and the
interpretation off quantum mechanics: the physicist as philosopher. Cambridge: Cambridge University
Press, 2009, p. 17.
459
CAMILLERI, Kristian. The problem of interpretation. Heisenberg and the interpretation off
quantum mechanics: the physicist as philosopher. Cambridge: Cambridge University Press, 2009, p.
36-59.
460
Para este ponto e muito importante a distino desenvolvida por Hans Ulrich Gumbrecht entre
cultura de presena e culturas de significado: GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produo de Presena: o
que o sentido no consegue transmitir. Traduo Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro:
Contraponto/PUC, 2010.
259

realidade461. No caso da biologia, extremamente importante para este trabalho, h a


corrente da ontobiologia que comea a desenvolver seus primeiros trabalhos de
peso nas ultimas dcadas, em geral associada ao pensamento transumanista, a
teoria ciborgue e a inteligncia artificial, debates que Sloterdijk encabea e que
esto tambm no centro das preocupaes de uma ontologia relacional462. Na
medicina h a pioneira e importantssima contribuio de Annemarie Mol, com sua
obra que j se tornou clssica nessa interface463.

4.2 Mesons e Modos

Como situar a teoria dos mesons no mundo contemporneo? Qual a


contribuio que essa teoria poderia fornecer para se pensar a modernidade? Em
que medida a biosofia e a antropologia da complexidade propostas no mago da
esferologia podem sinalizar uma superao dialtica de contradies formais e reais
que herdamos do projeto moderno? Em linhas bastante gerais, podemos dizer que
h um conceito matriz capaz de unificar todas as correntes e tenses oriundas do
sculo XVI, de maneira a podermos chamar o conjunto dessas correntes e tenses
de modernidade: uma ontologia dos modos. A grande descoberta desinibidora da
modernidade foi ter percebido que o modo mais importante que as origens e os
fins. Essa revelao constitui a essncia de toda a arte dita moderna, ate essa que
e sempre foi moderna medida que se assumiu como modo de vida. Melhor
dizendo: medida que elegeu a impermanncia, instabilidade e a precariedade da
vida como matria-prima essencial. Ser moderno entender que as modalizaes
da substncia reformulam e alteram a essncia da substncia. Se esse o
imperativo moderno desde Espinosa s filosofias da existncia. Contudo, o debate
em torno da modernidade sempre se equivocou na medida em que no
compreendeu que a modernidade no representa uma ruptura com nada do que lhe

461
CAMILLERI, Kristian. Heisenberg`s epistemology and ontology of quantum mechanics.
Heisenberg and the interpretation off quantum mechanics: the physicist as philosopher. Cambridge:
Cambridge University Press, 2009, p. 132-171.
462
NAITOH, Ken. Onto-biology: clarifying the spatiotemporal structure. 15th International Symposium
on Artificial Life and Robotics, Oita, Japan, February 46, 2010.
463
MOL, Annemarie. The Body Multiple: Ontology in Medical Practice. Durham: Duke University
Press, 2002.
260

precede e tampouco a modernidade pode ser dada como uma etapa superada.
Esse equvoco consiste em no compreender que a revoluo moderna nada mais
do que uma nfase lanada sobre a constante cosmolgica e antropolgica mais
arcaicas de que se tem notcia: os mesons e o infinito. A modernidade consiste em
uma odisseia antropolgica de exteriorizao dos princpios mesolgicos que se
encontravam em estado de latncia durante tantos sculos. A modernidade, na
medida mesma em que consiste no giro copernicano da descoberta do meio como
meio, nada mais do que uma exteriorizao e a tomada de conscincia dos meios
como meios e de sua ontologia, ou seja, da exteriorizao do mundo como mesons.
Como se sabe, algumas dessas alternativas recebem nomes distintos,
conforme queiram mapear a situao do tempo presente. Segundo alguns autores,
tendo Frederic Jameson e Jean-Franois Lyotard na linha de frente, o presente pode
ser caracterizado por uma descontinuidade em relao modernidade e, por isso,
como ps-modernidade. Outros o caracterizam a partir de amplificaes conceituais
de elementos contidos no prprio processo moderno, como o caso da
modernidade lquida de Zygmunt Baumann, modernidade reflexiva de Anthony
Giddens ou mesmo da sociedade de risco de Ulrich Beck. Por seu turno, h autores
que entendem o tempo presente como um tempo marcado por um aguamento de
contradies, impasses e recuos diante internos ao prprio processo de
modernizao, entre os quais Alain Touraine, Jacques Rancire, Immanuel
Wallerstein e outros. H outros ainda que definem o presente como a vitria da
sociedade de consumo, e, portanto, em termos opostos anlise das contradies e
do princpio de negatividade que marca a modernidade da Escola de Frankfurt, em
especial de Adorno. Trata-se de Gilles Lipovetsky e de Luc Ferry, que valorizam o
declnio de noes abstratas de emancipao, oriundas do Esclarecimento. Apostam
em outra vertente de transformao social, no mais ligada esfera poltica, mas
sim esfera dos afetos. Some-se a isso as interpretaes do fim ou de ocaso da
modernidade associada ao fim e ao ocaso do conceito de histria e teremos uma
assimilao entre ps-modernidade e ps-histria, cujo signo se desenha no
horizonte desde o debate dos crculos hegelianos de Kojve e Bataille nas primeiras
dcadas do sculo XX e chega sua formulao mais acabada com a publicao da
obra capital de Francis Fukuyama, sobre o fim da histria e o ltimo homem. Se
agregarmos a esse cenrio o conflito entre as inmeras acepes possveis de
modernidade, moderno e modernismo, em suas diversas latitudes e longitudes
261

semnticas, teremos a sensao de falncia de quaisquer conceituaes positivas


do mundo contemporneo.
Em uma de suas obras, Sloterdijk cunha o termo hipermodernidade, embora o
utilize em uma acepo relativamente distinta da cunhada por Gilles Lipovetsky464.
Contudo, podemos entender o terceiro volume de Esferas como uma longa teoria da
modernidade, entendida em diversos mbitos, desde o poltico e religioso at o
cientfico, artstico e cultural. No cerne de sua definio est o conceito de
explicitao465. Esse conceito nuclear para compreendermos o sentido da
modernidade e tambm como surge em seu mago, a partir das contradies
produtivas do sculo XX, uma teoria da complexidade, que se materializa na
esferologia. A dificuldade de uma definio abrangente e apodtica de modernidade
pode ser entendida como uma das maiores causas do aprofundamento da
equivocidade desse conceito, que muitas vezes podem redundar em conflitos
improdutivos acerca de seus limites e de suas possibilidades. Devido a isso, a seguir
proponho inserir o pensamento de Sloterdijk no interior dessas genealogias da
modernidade e de sua eventual superao. Assim muitos aspectos nucleares da
esferologia podem se elucidar e, mais do que isso, podemos compreender melhor
no que consiste um pensamento complexo e quais os seus compromissos polticos e
epistemolgicos, no limiar do sculo XXI.
Como se pode ver, os esforos de definio do que venha a ser a ps-
modernidade esbarram de sada em uma enorme dificuldade, preliminar e
incontornvel: a definio do que seja a modernidade. Ainda alm dessa dificuldade,
h um problema adicional: a distino entre modernidade, entendido como
fenmeno macroestrutural, e os modernismos, em sua acepo especfica de
manifestaes culturais e artsticos que comeam a eclodir no final do sculo XIX. A
definio de modernidade apresenta dois extremos. Em um deles se encontra uma
relativizao conceitual do que venha a ser modernidade. Essa relativizao gera
um esgaramento do conceito, tornando o campo transistrico de fenmenos que
ele abrange to amplo que perdermos a sua historicidade. No outro extremo, h o
risco da tautologia. Ela ocorre quando definimos modernidade sem produzirmos uma
inspeo metaterica dessa mesma definio, luz de uma perspectiva que

464
SLOTERDIJK, Peter. No Mesmo Barco: Ensaio sobre a Hiperpoltica. Traduo de Hlder
Loureno. Reviso Cientfica Jos Bragana de Miranda. Lisboa: Sculo XX, 1996.
465
SLOTERDIJK, Peter. Esferas III: Espumas. Esferologa Plural. Traduccin Isidoro Reguera.
Prologo Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2006.
262

pretenda se colocar, o quanto for possvel, fora do esquadro conceitual moderno que
nos determina historicamente. Em outras palavras, se o mundo em que vivemos
moderno, as definies de modernidade sero apenas variantes cronocntricas por
meio das quais o nosso tempo se autodefine a si mesmo. Se no conseguirmos nos
posicionar em uma perspectiva de alteridade em relao s obras e valores tidos
como modernos, a nossa produo conceitual sobre a modernidade ser uma
tautologia. Ao pressupor definir a modernidade, estaramos a todo tempo definindo
apenas a ns mesmos. A incapacidade de metateoria a incapacidade de exercer a
crtica. Nesses termos, paradoxalmente, falaramos da modernidade sem
conseguirmos ser modernos, pois estaramos produzindo um discurso acrtico sobre
a modernidade que julgamos, em nosso discurso, representar466. Um problema
semelhante ocorre ao simples fato de nomearmos uma disciplina chamada histria
da arte ou histria da filosofia. medida que o fenmeno histria rigorosamente
ocidental, em que medida ele pode ser universalizado? E em se tratando de uma
histria linear, algumas determinaes igualmente ocidentais incidem sobre seus
pressupostos: as noes de historicidade, linearidade e progresso467.
Para conseguirmos sair desse crculo vicioso, preciso partir de uma
abordagem antropolgica da modernidade, ou seja, de uma abordagem que no
apenas relativize os diversos agentes histricas em relao sua maior ou menor
adeso aos processos modernizadores, mas que questione o prprio estatuto
discursivo e a validade formal da universalidade pretendida pelos discursos
moderno. Nesses termos, a esferologia de Sloterdijk pensa a modernidade a partir
de uma antropologia simtrica, como a instituda por Bruno Latour468. Isso quer
dizer: conceber o no-moderno como a alteridade da modernidade persistir em um
modelo de pensamento refm das categorias ns-eles. Essas alternativas infernais,
como as define Isabelle Stengers, tambm caracterizam as cincias clssicas e seu

466
A percepo desse problema epistemolgico foi tratado nas brilhantes e abrangentes anlises de
Bruno Latour: LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simtrica. Traduo
Carlos Irineu da Costa. So Paulo: 34 Letras, 2013, p. 17.
467
Esse um dos argumentos centrais de Belting ao redefinir o que entende pelo fim da histria da
arte. No se trata de uma interdio da disciplina, mas de um alargamento no-linear de seus
horizontes, pois os objetos artsticos no podem mais ser descritos no interior de modelos lineares,
sistmicos e causais: BELTING, Hans. O fim da histria da arte: uma reviso dez anos depois.
Traduo Rodnei Nascimento. So Paulo: Cosacnaify, 2006, p. 191 e seg.
468
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simtrica. Traduo Carlos
Irineu da Costa. So Paulo: 34 Letras, 2013, p. 17.
263

modelo redutivo universalizado469. Um pensamento das simetrias e uma cincia da


complexidade precisa implicar-se nos processos que descreve, transformar-se no
objeto que aborda e ser aquilo mesmo de que se pretende analisar. Sem essa
metamorfose, o pensamento deixa de se conceber como outro de si mesmo, e
acaba por se instrumentalizar em sua captao e classificao das realidades do
mundo. Esse movimento oblitera o sentido mesmo do pensamento, que a
capacidade de gerar heterogeneidades no interior das homogeneidades, de produzir
o mltiplo onde antes havia apenas subordinaes a unidades. Todos esses
problemas apresentam-se como falsos dilemas quando observamos que a
modernidade apenas uma etapa antropolgica especifica de desdobramentos e
das reconfiguraes da potncia dos meios, bem como a distino entre uma
ontologia modal e uma ontologia dos meios, o que pretendo destacar adiante,
quando abordarmos o debate envolvendo ser, modo e relao.

4.3 Antropologia e Complexidade

Uma abordagem antropolgica do pensamento e das prticas pode suprir


algumas defasagens do discurso da historiografia clssica da arte para dar conta
das manifestaes artsticas e culturais contemporneas e que se anunciam na
iminncia de um futuro prximo. Para tanto, proponho primeiro uma incurso pelos
conceitos de tenso e teleologia e depois, uma anlise da deslegitimao e do
estatuto das narrativas, segundo Jean-Franois Lyotard, bem como das
contradies produtivas assim definidas por Andreas Huyssen, que caracterizam a
produo do conhecimento no mundo contemporneo. A partir dessa anlise,
acredito que seja possvel lanar as bases de uma antropologia narrativa como
princpio epistemolgico de abordagem dos fenmenos culturais e artsticos do
mundo contemporneo a partir de algumas de suas invariveis e continuidades e
no mais por meio de etapas descontnuas submetidas a um telos.
Nesse sentido, o projeto Esferas pode ser entendido como uma tentativa de
antropologia narrativa. O que seria isso? Curiosamente, no extra o conceito de

469
STENGERS, Isabelle. A inveno das cincias modernas. Traduo de Max Altman. So
Paulo: Editora 34, 2002.
264

antropologia narrativa das teorias antropolgicas propriamente ditas, mas sim


teologia sistemtica470. Trata-se de um conceito bastante perifrico na aplicao
acadmica e no meio da teologia, utilizado por alguns poucos pesquisadores ao
mbito dos estudos bblicos e da educao. A antropologia narrativa uma distino
proposta por Lutero. Segundo este, o ser humano, sendo um ser radicalmente
histrico, s pode ser compreendido de modo narrativo, nunca ontolgico ou
substancialista. A antropologia narrativa se desdobraria em um espao meta-
histrico, no qual a positividade dos fatos cederia sempre universalidade
pragmtica da instituio discursiva desses mesmos fatos mediante uma forma
narrativa471.
Adorno definia apenas dois modos de conhecimento: o histrico e mtico.
Para ele, a modernidade se caracteriza justamente por uma demanda de
historicidade que , por sua vez, uma demanda de esclarecimento. Em meio s
runas dos projetos polticos modernos e emancipacionistas oriundos do sculo
XVIII, entendida como uma antropologia narrativa, talvez esferologia seja uma
promessa de sntese de uma dialtica que Adorno manteve em aberto, entre o devir
da histria e as fascinaes transistricas do mito. Acredito que este conceito de
antropologia narrativa tenha uma grande pertinncia epistemolgica no mundo atual.
Ele tambm um elemento-chave para a passagem das epistemologias positivistas
e reducionistas a uma epistemologia no-redutiva e complexa, cujo desdobramento
o mago de investigao deste trabalho. E isso ocorre por justamente por causa
de seu aspecto ambivalente. Ele pressupe linhas de continuidade e invariveis
antropolgicas, aplicveis para compreender os fenmenos artsticos em uma
dimenso antropolgica. Entretanto, ao mesmo tempo, a abordagem narrativa a
capaz de desconstruir a estabilidade das metanarrativas, demonstrando
pragmaticamente o sentido construdo, contingente e ficcional dos discursos tericos
sobre a arte, tambm eles modos de conhecimento narrativos e metaempricos,
portanto, limitados em termos de valor positivo.

470
Conferir Mike van Treek e Joan-Carles Mlich: VAN TREEK, Mike. Amnn y Tamar [2 Sam 13,1-
22] ensayo de antropologa narrativa sobre la violencia. Estudios bblicos, 65 [2007], 3-32. MLICH,
Joan-Carles. Antropologa narrativa y educacin. Universidad Autnoma de Barcelona. Facultad de
Ciencias de la Educacin. Departamento de Pedagoga Sistemtica y Social. Edificio G-6. 08193
Bellaterra [Barcelona]. Fecha de recepcin: enero de 2008. Fecha de aceptacin definitiva: abril de
2008. BIBLID [[1130-3743] 20, 2008, 101-124].
471
Penso aqui, obviamente, no conceito de meta-histria desenvolvido por Hayden White a partir da
tropologia dos modos e mitos de Northrop Frye: WHITE, Hayden. Meta-histria: a imaginao
histrica no sculo XIX. So Paulo: Edusp, 2001.
265

4.4 Tenso e Teleologia

Essas dificuldades chegam a se tornar intransponveis quando recorremos a


autores que ampliam o escopo e a tornam mais complexas as redes de critrios de
definio do fenmeno moderno. Maurice de Gandillac chega a propor uma
arqueologia da modernidade que retroage ao sculo IX, ou seja, querela dos
universais e s disputas entre realistas e nominalistas na disputa pelas vias
possveis de acesso verdade472. Em um sentido mais pontual, se tomarmos a
definio de modernidade como sinnimo de Esclarecimento, o projeto moderno se
desenha de modo um pouco mais ntido. A modernidade seria o modo pelo qual a
forma artstica realiza o seu sentido histrico a partir de um princpio teleolgico de
emancipao coletiva. Nesses termos, nada melhor do que a definio dada por
Adorno, segundo a qual a arte a forma histrica do universal. Como universal, a
forma nunca emprica, pois ela no a descrio da experincia, mas uma
realizao da ideia mediada pelo conceito, e, nesse sentido, a forma da arte sempre
aspira ser apodtica473.
Entendida como realizao da ideia enquanto forma mediada pelo conceito, e
no como expresso emprica do real, a concepo de arte de Adorno remonta
matriz hegeliana474. Como forma histrica, a arte contempla toda a humanidade em
sua expresso temporal e espacialmente determinada. Entretanto, apenas ao
incorporar o seu sentido histrico contingente a arte realiza dialeticamente a ideia
universal. Ao expor as contradies que paradoxalmente a alimentam ou a
interditam como arte, a arte pode cumprir a universalidade da forma a que toda arte

472
Em seu brilhante estudo sobre as gneses da modernidade, Maurice de Gandillac retroage esses
seus marcos fundadores ao sculo IX e, por vezes, ao sculo VIII: GANDILLAC, Maurice de.
Gneses da Modernidade. Traduo Lcia Cludia Leo e Marilia Pessoa. So Paulo: 34 Letras,
1995.
473
Adorno desenvolve dialeticamente a ideia de modernidade artstica e suas diversas implicaes
estticas em sua obra clssica: ADORNO, Theodor. Teoria esttica. Lisboa: Edies 70, 1993. Sigo
em linhas gerais algumas de suas teses desenvolvidas por Adorno nesta obra sem me ater a elas,
pois isso transcenderia o escopo e o espao deste trabalho.
474
Esta concepo conflui para as definies desenvolvidas por Benjamin em sua anlise da crtica
de arte do Romantismo: Benjamin, Walter. O conceito de crtica de arte no romantismo alemo.
Traduo, introduo e notas Mrcio Seligmann-Silva. So Paulo: Iluminuras, 1993.
266

est destinada475. Essa tautologia fundamental nos conduziria desanimara e


radical concluso de que a modernidade nunca chegou a existir.
Nesses termos, por mais heterogneos que sejam os exemplos e
contraexemplos de modernidade todos eles acabam se reunindo sob a forma final
da teleologia. Podemos ter em mente o heri grego Ulisses como modelo do
primeiro burgus. Podemos encontrar em Shakespeare incipientes manifestaes de
um movimento de negatividade do esprito, em luta contra a reificao instrumental
do capital. Por mais distantes que sejam os casos em termos geogrficos ou
temporais, a identificao entre modernidade e esclarecimento se realiza sob o
primado da teleologia476. Como lembra Adorno, a forma artstica moderna aquela
que se recusa estar a servio da totalizao e da harmonia, pois estas so as faces
civilizadas da violncia477.
Os diversos exemplos de dissonncia estrutural encontrados ao longo da
histria da arte deram ensejo ideia moderna da arte, e nesse sentido contriburam
para formar o seu sentido histrico. Se s existem dois modelos de pensamento, o
mtico e o histrico, a inviabilidade de recuperar a eficcia simblica dos mitos uma
marca distintiva entre os mundos modernos e pr-modernos, e s nos resta viver o
tempo da espera, do infinito e do fragmento, que so os modos de ser mesmos da
experincia concebida como historicidade no-totalizvel478. Entretanto, em termos
dialticos, se por um lado essa concepo teleolgica pressupe captar, desde o
Renascimento479, como se deu a superao das formas alienadas da vida enquanto
esteve submetida s falsas snteses do capital, por outro lado a arte nunca pode se
positivar um sentido nico para si mesma, identificando-o como fundamento de sua
prpria verdade, pois a arte se alienaria assim de sua contrafigura e, ou seja, se
alienaria do fundamento negativo que a constitui como arte em uma acepo
moderna480. Essa tenso fundamental pode ser capturada desde os primrdios

475
ADORNO, Theodor. Teoria esttica. Lisboa: Edies 70, 1993.
476
ADORNO, Theodor. Teoria esttica. Lisboa: Edies 70, 1993.
477
ADORNO, Theodor. Teoria esttica. Lisboa: Edies 70, 1993.
478
ADORNO, Theodor. Teoria esttica. Lisboa: Edies 70, 1993.
479
Argan identifica o incio da arte moderna nas primeiras greves das corporaes de artesos no fim
da Idade Mdia, ou seja, como um fenmeno social da definio propriamente moderna do lugar do
artista nas trocas simblicas e mercantis: ARGAN, Giulio Carlo. Clssico Anticlssico:
Renascimento de Brunelleschi a Bruegel. Traduo Lorenzo Mammi. So Paulo: Companhia das
Letras, 1999.
480
ADORNO, Theodor. Teoria esttica. Lisboa: Edies 70, 1993.
267

renascentistas da modernidade, sob a querela entre antigos e modernos, entre


clssico e anticlssico481.
Entretanto, do ponto de vista teleolgico, na modernidade as lacunas
deixadas pelas snteses positivas parciais do real so retificadas pela sucesso de
snteses negativas no plano artstico da forma. Se toda superao retm em si algo
do que supera, como diria Hegel, a dinmica entre arte e histria infinita, mas
sempre passvel de esclarecimento presente e de realizao futura. A arte um
signo messinico de redeno coletiva ou a interdio que revela a estrutura
negativa do real, e, assim, esclarece a conscincia para criar a condio de
possibilidade de sua liberdade482. Estes dois percursos esto claramente delineados
em dois mestres modernos: Benjamin e Brecht483.
Nesse sentido, pode-se afirmar que o princpio crtico da arte moderna, a um
s tempo centrfugo e centrpeto, concebe uma superao das contradies formais
imanentes da fatura artstica como uma materializao da superao das
contradies lgicas da organizao do capital. Contudo, esse fundo teleolgico no
implica unilateralismo ou neutralizao dos antagonismos. Afinal, desde Baudelaire,
a definio mesma de modernidade a de um conflito entre o transitrio, o efmero
e contingente, tensionados com o eterno e imutvel484. A tenso desses polos
antagnicos o meio pelo qual a atividade crtica moderna consegue realizar a
crtica da crtica, sem a qual o moderno poderia se transformar em moda. E a moda,
por fim, em modismo. Sem o polo do efmero, a arte no conseguiria superar a
herana do modelo clssico. Sem o polo do eterno, ressaltado por Baudelaire como
a outra metade da arte, a arte no se completaria enquanto fenmeno propriamente

481
ARGAN, Giulio Carlo. Clssico Anticlssico: Renascimento de Brunelleschi a Bruegel. Traduo
Lorenzo Mammi. So Paulo: Companhia das Letras, 1999.
482
Todo debate entre arte e antiarte, cujos desdobramentos ulteriores se encontram em diversos
desdobramentos contemporneos [arte conceitual, performance, happening, performatividade e
esttica relacional], surge dessa anlise crtico-dialtica que a arte moderna realiza do mundo e de si
mesmo, suspendendo os limites mesmos de sua legitimidade enquanto arte. Este movimento de
negatividade interna, analisado por Adorno como o modo da dor encarnada, encontra-se tambm
desenvolvido por Octavio Paz, que o desenvolve sob a chave paradoxal da tradio da ruptura: PAZ
Octavio. Os filhos do barro: do romantismo vanguarda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. Uma
acepo semelhante desenvolvida por Harold Rosenberg em seu influente estudo sobre a tradio
do novo.
483
Essas duas concepes distintas alimentaram tanto a amizade quanto as divergncias entre o
pensador e o dramaturgo.
484
BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. In: COELHO, Teixeira. A modernidade de
Baudelaire. Textos inditos selecionados por Teixeira Coelho. Traduo Suely Cassal. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 174 e seg.
268

histrico, ou seja, moderno485. Para abordar esse aspecto conflituoso inscrito no


interior do processo modernizador, Antoine Compagnon desenvolveu sua anlise a
partir da dialtica entre modernidade e antimodernidade, de Joseph de Maistre a
Roland Barthes486. Para Compagnon, a antimodernidade no se refere a autores e
ideias oriundos da traduo do pensamento conservador, contrrios a muitas
diretrizes da modernidade. Refere-se pelo contrrio a um movimento de
negatividade interno ao prprio processo modernizador. Em linhas gerais, essa
negatividade pode ser captada em diversos traos do alto modernismo.

4.5 Modernidade e Secularizao

Um dos movimentos mais interessantes do pensamento moderno diz respeito


a corrente que podemos chamar de contrailustrao ou de antimodernidade A
contrailustrao no pretende negar os valores do Iluminismo e da modernidade. Ela
diz respeito pelo contrario a um movimento critico interno ao prprio projeto
moderno, sem o qual o conceito mesmo de modernidade de inviabiliza. Diz respeito
aquela anlise empreendida por Antoine Compagnon dos chamados antimodernos.
Aqueles que, de Joseph de Maistre a Roland Barthes, contriburam para a
construo dos pilares da modernidade, mesmo estando a contrapelo de alguns de
seus valores fundamentais. Nada mais justo. Se a modernidade e o tempo da critica
por excelncia, no h como ser moderno sem empreender tambm o movimento
centrpeto de critica da critica, por mais que esse movimento possa redundar naquilo
que Octavio Paz e outros tericos da modernidade denunciaram como a tradio da
ruptura.
Mas no que consiste basicamente a contramodernidade se no se apoia em
uma negao da modernidade em suas pedras angulares? Basicamente, uma das
definies mais abrangentes de modernidade, aquela que contempla os aspectos
mais heterogneos de todos os fenmenos sociais, culturais, polticos, artsticos e

485
BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. In: COELHO, Teixeira. A modernidade de
Baudelaire. Textos inditos selecionados por Teixeira Coelho. Traduo Suely Cassal. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 174 e seg.
486
COMPAGNON, Antoine. Os antimodernos: de Joseph de Maistre a Roland Barthes. Traduo
Laura Taddei Brandini. Belo Horizonte: UFMG, 2011.
269

intelectuais que atribumos a modernidade, e o aspecto seminal da secularizao. A


constituio do poder secular e do poder espiritual em esferas autnomas de ao
levou milnios para se cumprir. O movimento do Ocidente desde o imprio romano
tem sido a busca frustrada de sntese entre poder espiritual e poder terreno, entre
esferas secular e esfera eclesistica, em suma, entre reino e imprio. Essa dialtica
se observa desde a falncia do imprio romano e a ascenso do cristianismo. A
Igreja Catlica se constituiu como herdeira politica do imprio. E o imprio por sua
vez teve que se investir da tarefa messinica de evangelizao politica de todos os
virtuais cordeiros de Cristo, onde quer que eles estivessem, et urbi et orbi.
O movimento de distase desses poderes e uma marca da modernidade e
nesse sentido que podemos entender a relao profunda e estrutural entre
modernidade e secularizao. Mais do que a cincia, a democracia, o capitalismo ou
a tcnica, a secularizao e a marca fundamental do projeto moderno, pois e
justamente a abertura de esferas autnomas seculares e desvinculadas de uma
dimenso teolgica que possibilitaram a emergncia dessas diversas esferas dos
saberes, da prxis e da tecnologia. No por acaso, todos os totalitarismos sempre
tentaram negar o estatuto secular do Estado, transformando a cincia, o capital ou a
tcnica em instrumentos de poder dentro de regimes semidivinos. Uma das
melhores definies que existem de secularizao nos e fornecida por um dos
autores que mais exaustivamente a estudaram? Charles Taylor. Para Taylor, a
secularizao e a condio de possibilidade da descrena. De fato, a condio de
possibilidade da descrena e quando posso crer e posso no crer. E apenas nessa
zona indecidvel se produz algo de novo no horizonte humano. Se me e imposta a
condio da crena, a possibilidade de descrer me e interdita. Se me e imposta por
seu turno a possibilidade de crer, tampouco estou em uma esfera secular, porque
minha crena no esta sendo reforada pela condio de livre escolha, facultada
pela possibilidade de descrer.
Contudo, no interior do movimento centrpeto de critica, a partir do sculo XIX
comea a surgir uma grande suspeita em relao aos projetos de secularizao. Da
mesma maneira que os mestres da suspeita Nietzsche, Freud e Marx encabeam a
linha de frente da secularizao e do desmonte dos sistemas de crena baseados
em argumentos sobrenaturais ou teolgicos, comeam a surgir, sobretudo no
ambiente dos novos hegelianos, uma continua suspeita em relao a suspeita, ou
seja, um uma suspeita de segundo grau, segundo a qual o processo de
270

secularizao estaria apenas tornando os vestgios teolgicos inaparentes. A esfera


do Estado no seria propriamente oposta da esfera teolgica, mas traria, pelo
contrario, a prprio estrutura das instituies e dos dispositivos discursivos
teolgicos inscritos em si, mas de movo invisvel. Um dos autores mais importantes
dessa guinada e Karl Lwith e seu monumental estudo sobre o Hegel e o Idealismo
Alemo. Karl Lwith comea a perceber que a teleologia hegeliana colocava no
trono a razo sob a forma de Estado, mas que esse Estado para ser concebido em
termos dialticos precisava sempre ser constitudo a partir de modelos deslocados
de teologia secularizada. Em uma chave muito semelhante se direciona o
pensamento de Carl Schimdt. Ao analisar o nomos [lei] da terra na jurisdio da
Antiguidade, Schmidt reconhece a condio indecidvel da chamada atribuio
primeira. Nessa esteira de impossibilidade de chegar a uma primeira deciso que
valide a esfera dos atos humanos, estamos prximos dos fundamentos msticos da
lei em sua totalidade, como quis Derrida.
E justamente essa natureza de reflexo que levara o contramoderno Schmidt,
um dos pensadores mais importantes da Republica de Weimar e do iderio que ser
conhecido mais tarde, no sem razo, como revoluo conservadora. Nesse caso, a
revoluo conservadora e apenas o nome pomposo para uma dinmica histrica
real e para os impasses de projetos polticos mais profundos. O fato e que as
analises brilhantes sobre a soberania, perpetradas por Carl Schmitt, sero
fundamentais para compreendermos um mecanismo do poder ocidental em uma
constituio de milhares de anos. Esse mecanismo desvelado por Schmidt diz
respeito a conexo profunda que existe entre soberania e exceo, cujas pecas tem
sido brilhantemente expostas por Giorgio Agamben nos dias de hoje em seu
magnnimo projeto Homo Sacer. Como demonstrou o medievalista Ernst
Kantorowicz, a diviso do reino e do imprio a partir de modelos orgnicos no era
apenas uma tpica inofensiva esquecida em alguma pagina da Metafsica de
Aristteles. No apenas de teologia e filosofia politica vive o zoon politikon. O
pensamento politico antigo e medieval sempre se aventurou pelas regies da
fisiologia, produzindo decalques da estrutura politica a partir das partes do corpo
humano. A clssica imagem dos dois corpos do rei, cunhada por Kantorowicz,
sinaliza um colapso nessa distase entre esfera secular e esfera teolgica, na
aurora medieval da modernidade. Isso explica, por exemplo, a constituio politica
271

das monarquias absolutas do sculo XVII e muitos dos impasses presentes na


transferncia das monarquias para as republicas. Esses impasses esto presentes
na diviso do corpo do rei. E tambm no projeto de secularizao que propunha
dividir o corpo do rei e do papa, criando jurisdies distintas para cada um desses
corpos. Mas como dividir o corpo de um rei que e a um s tempo taumaturgo e com
poder sagrado de curar a escrfula, como demonstrou o estudo pioneiro de Marc
Bloch?
Estamos aqui na verdade diante de um impasse que recobre quatro atos. No
primeiro ato, a partir do sculo XVIII, houve uma universalizao do sentido humano,
dos direitos humanos e da jurisdio humana, natural e laica. Esse movimento
centrfugo foi decisivo para que o projeto secularizador e a modernidade se
tornassem sinnimos. A emergncia da esfera publica burguesa e a sociedade
mercantil conseguiram criar a iluso bastante convincente da emancipao humana
por meio da economia, como sonharam Stuart Mill e Adam Smith. Em um segundo
ato, temos os mestres da suspeita, que colocaram as devidas pedras no caminho
desses projetos progressistas. O ser humano perdera o centro do mundo com
Coprnico, perdera o centro da natureza com Darwin e, em seguida, Freud sugeriu a
descoberta da psicanlise e da legislao da libido uma terceira ferida narcsica
humana, por meio da qual o humano perdera o centro de si mesmo. Em um sentido
semelhante, Marx vai operar a critica da iluso burguesa pela logica do acumulo, da
mais-valia, da alienao e da reificao. E Nietzsche vai desmascarar a democracia,
a modernidade e o cristianismo como as doenas do Ocidente, criado pelo apostolo
Paulo.
Contudo a seita da suspeita comea a angariar novos adeptos. E esses
adeptos passam ao terceiro ato: em que medida essa critica das iluses em busca
da emancipao no e ela mesma uma devedora das iluses que critica? O
visionrio Walter Benjamin teve tanta lucidez em relao a esse ponto que em sua
decisivas Teses sobre a historia acaba por realocar a teologia no cerne de uma
utopia politica, ou seja, passa a reatualizar os resduos teolgicos denegados pelos
discursos modernos esclarecidos e pelos mestres da suspeita e passa a entender a
dimenso teolgica de um ponto de vista messinico. A superestrutura e a
infraestrutura so os jogadores de xadrez. Deus e o autmato, escondido e invisvel
dentro do tabuleiro, movendo as pecas. No se sabe ate que ponto Benjamin
absorve ideias de Gershom Scholem e vice-versa, dada sua rica correspondncia.
272

Em algumas passagens de sua obra, interpretando as escrituras talmdicas,


Scholem e claro: a lei s pode se cumprir plenamente com sua desativao. O que e
importante nesse caso e analisarmos um fundo messinico, no qual lei e
desativao da lei caminham juntas, como forma de superar as antinomias da
secularizao. A intuio central benjaminiana e que no haveria gloria nenhuma em
realizar a equanimidade social ou perpetrar a paz perptua de Kant, caso essa
ordem no tenha brotado de um ensejo efetivamente humano em direo a
alteridade. O problema das partes e do todo, e da totalidade presente no fragmento
que s pode ser todo porque e fragmento, presente nos luminosos e impenetrveis
ensinamentos de Novalis, interessou o jovem Benjamin em suas reflexes sobre o
romantismo alemo. Essa dialtica sem sntese ou dialtica negativa, continua
presente na elaborao messinica de Benjamin como pensador poltico. H,
contudo, uma dificuldade nessa formulao: o Messias e aquele que realiza a
ausncia. Justamente sua interdio temporal, ou seja, sua vinda, e que o torna
plenipotente em todos os tempos. Apenas como indisponibilidade e inoperosidade o
Messias pode ser essa imagem catalisadora do sentido da pelo da historia. Apenas
como fragmento no totalizvel pelo conceito nem pela experincia, h a totalizao
da experincia do tempo no tempo. Caso contrario, sem a finitude e a
temporalidade, nada teramos de humano, e, portanto, Deus mesmo no poderia se
realizar em seu sentido temporal. Para compreender um pouco desse recuo
teolgico necessrio a um avano escatolgico que supere as perspectivas.
No que consistiria o quarto ato? Em linhas gerais percebe-se em alguns
pensadores uma crtica a essa concepo da teologia do Estado e a esse
pressuposto de que a modernidade seria um mero deslocamento de estruturas
teolgicas secularizadas. Pois nessa concepo coloca a modernidade a reboque de
estruturas teolgicas e impede que vejamos a modernidade como um fenmeno
com uma validade e uma lgica prprias. No caso de Esferas, a definio desses
limites e difcil de ser precisada. A medida que esferas so conceitos-imagens que
descrevem a gnese de espaos animados de sentido, em termos fenomenolgicos,
essa gnese recorre a narrativas teolgicas e religiosas, mas o faz buscando nelas
elementos morfolgicos da prpria constituio da esferologia, no a partir de uma
concepo de teologias secularizadas. Nesse sentido, podemos dizer que Sloterdijk
confere uma autonomia antropolgica ao processo moderno, descrito sobretudo no
273

terceiro volume sob o conceito de explicitao487. Porm, avana no domnio


teolgico sobretudo no volume um [a microesferologia das bolhas] e, acima de tudo,
no volume dois [marcoesferologia dos globos], a medida que os globos so
justamente a morfologia das esferas das teologias imperiais.

4.6 Avessos da Modernidade

Teria esse princpio de negatividade interna ao processo moderno


paradoxalmente propiciado a runa mesma da modernidade? Seria a negatividade
crtica da linguagem artstica assimilada pelos mass media a forma agnica da
linguagem emancipada das vanguardas? O reverso da negatividade seria a adoo
de um pensamento formal no-dialtico e este, por sua vez, o responsvel pela
descontinuidade entre moderno e ps-moderno? Ou o que se convencionou chamar
de ps-moderno no seria nada mais do que um deslocamento da negatividade
rigorosamente moderna, reorientada a partir de outros meios, suportes, conceitos,
aes e valores, mas ainda assim moderna? A tese de Frederic Jameson, em seu
ensaio clssico sobre o tema, aponta para a falncia estrutural do moderno488.
Para Jameson, manifestaes sincrnicas como perda do real, pastiche e
esquizofrenia determinam a produo contempornea em uma chave diversa
daquela que orientou todo o projeto moderno e as vanguardas489. Em sentido similar
ao de Jameson, a hipervisibilidade gerada pela mudana de materiais, e por novos
modos de relacionamento entre os diversos atores sociais, caracterizaria essa
falncia moderna, encarnada em espaos de dissuaso e ancorada
sistematicamente em uma ideologia da visibilidade, segundo Baudrillard490. O pice

487
SLOTERDIJK, Peter. Esferas III: Espumas. Esferologa Plural. Traduccin Isidoro Reguera.
Prologo Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2006.
488
JAMESON, Frederic. Ps-modernidade e sociedade de consumo, Novos Estudos, Cebrap, So
Paulo, n12, jun./1985.
489
JAMESON, Frederic. Ps-modernidade e sociedade de consumo, Novos Estudos, Cebrap, So
Paulo, n12, jun./1985.
490
BAUDRILLARD, Jean. A arte da desapario. Organizao Katia Maciel. Traduo Annamaria
Skinner. Rio de Janeiro: UFRJ/Ncleo de Tecnologia da Imagem, 1997, 158 e seg. essa anlise
negativa do mundo contemporneo desenhada por Baudrillard desde O sistema dos objetos, obra
alocada entre a semiologia e a sociologia, na qual expe as mudanas de valores e de ideologias
implicadas na transposio da hegemonia de determinados materiais [madeira, metal, vidro] para a
274

dessa conjuno de formas esquizoides e anomia em favor da pura visibilidade e da


hipoteca do real se encontra em algumas realizaes gigantescas da arquitetura
contempornea. Para Baudrillard, no Beaubourg491. Para Jameson, no hotel
Bonaventure492. Entretanto, acredito que essas desqualificaes gerais do estado
geral do mundo contemporneo sob a insgnia do ps se apoiem em um
paralogismo, ou seja, so alternativas logicamente razoveis construdas sobre
premissas com problemas de consistncia lgica. Por qu? Porque se a
modernidade uma atividade ambivalente em sua essncia, pois precisa negativar
seus prprios pressupostos para continuar operando a sua atividade negativa, os
critrios de valor mesmos do que venha a ser uma obra moderna e o aspecto crtico
de cada realizao artstica tambm devem ser relativizados. A relatividade crtica e
autocrtica da modernidade no diz respeito apenas ao fato de identificarmos se as
manifestaes artsticas cumprem ou no as premissas do que historicamente se
convencionou definir como arte moderna.
No apenas a arte, mas o pensamento moderno em seu todo demanda que
os critrios mesmos de sua autovalidao, de sua autolegitimao e de sua
autodefinio sejam sistematicamente postos prova. Apenas quando um conceito
deixa de ser um instrumento de descrio de realidades empricas e passa a
questionar o prprio estatuto de sua validade formal, esse conceito representa um
modo de pensamento rigorosamente moderno. Esse modo de pensamento no
obra dos desconstrucionistas ou dos ps-estruturalistas. Ele o princpio de
conhecimento estabelecido por Descartes, no longnquo [e moderno] sculo XVII. Se
esse princpio continua tendo valor, porque continuamos, ainda que nossa
revelia, produzindo arte e pensamento rigorosamente modernos.
Em outras palavras, a crtica da ps-modernidade se baseia nesse movimento
duplo. Em um primeiro momento, identifica uma descontinuidade entre modernidade
e ps-modernidade. Em um segundo momento, realiza a crtica desta luz daquela.
O problema central dessa operao que os sujeitos que delimitam esta
descontinuidade e realizam performaticamente essa crtica, ao delimitar a
descontinuidade e ao realizar a crtica sugerem estar em algum lugar epistemolgico

arquitetura e o urbanismo: BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. So Paulo: Perspectiva,


1973.
491
BAUDRILLARD, Jean. A arte da desapario. Organizao Katia Maciel. Traduo Annamaria
Skinner. Rio de Janeiro: UFRJ/Ncleo de Tecnologia da Imagem, 1997.
492
JAMESON, Frederic. A virada cultural: reflexes sobre o ps-modernismo. Traduo Carolina
Arajo. Reviso Tcnica Danilo Marcondes. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2006, p. 31 e seg.
275

e mesmo existencial privilegiado, acima ou alm dos mecanismos de poder-saber do


mundo contemporneo, capilarizado pelo capital, que eles mesmos criticam.
Dessa forma, incorrem naquilo que a filosofia da linguagem define como
contradio performativa, ou seja, na negao de realidades no nvel proposicional
que no so negados no nvel real da enunciao. Para fazer a crtica da ps-
modernidade no perodo mesmo de sua vigncia, ou seja, o mundo do
contemporneo, preciso se manter no esquadro de um pensamento moderno.
Nesse sentido, se precisamos enraizar nosso discurso em pressupostos modernos
para fazer a crtica global da ps-modernidade, nosso enraizamento por si mesmo
inviabiliza essa crtica global, pois a sua prpria existncia como discurso crtico
inviabiliza uma descontinuidade radical entre modernidade e mundo contemporneo,
ou seja, ps-modernidade. O pensamento moderno aquele que questiona a todo
instante sua prpria legitimidade. Essas tenses internas e a manuteno da
negatividade podem ser entendidas como contradies produtivas493 e como campo
de tenso494, na acepo de Andreas Huyssen. Nesses termos, haveria uma linha
de continuidade, ainda que tnue e sempre s vias de se romper, entre a alta
modernidade, os modernismos, as vanguardas e as manifestaes da arte e da
cultura na ps-modernidade. So estas contradies produtivas e esse campo de
tenso, aliados anlise crtica do processo de legitimao do conhecimento, que
pretendo analisar a seguir, por meio das obras de Jean-Franois Lyotard e Andreas
Huyssen.

4.7 Deslegitimao e Contradio Produtiva

Pelos motivos levantados acima, ressaltando o carter metaterico presente


nesse debate, embora o impacto do termo ps-moderno seja sentido especialmente
nos campos das artes e da poltica, para o compreendermos em sua especificidade
precisamos dar um passo atrs. Isso necessrio porque, alm das dificuldades de
estabelecer as continuidades e descontinuidades entre moderno e ps-moderno do

493
HUYSSEN, Andreas. Mapeando o ps-moderno. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de [org.]. Ps-
modernismo e poltica. Rio de Janeiro: Rocco, 1991, p. 49.
494
HUYSSEN, Andreas. Mapeando o ps-moderno. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de [org.]. Ps-
modernismo e poltica. Rio de Janeiro: Rocco, 1991, p. 74.
276

ponto de vista esttico e polticos, h uma distino anterior a ser feita: uma
distino epistemolgica. Apenas ao estabilizarmos o valor de um conceito podemos
estabelecer igualmente o campo de fenmenos empricos que ele recobre. Caso
contrrio, o debate se esgara em milhares de seguimentos, tornando-se infrutfero.
Nesse sentido, Andreas Huyssen e Jean-Franois Lyotard podem ser vistos como
pensadores rigorosamente modernos em sua anlise da ps-modernidade,
justamente porque questionam o estatuto epistemolgico dos valores da
modernidade.
A hiptese de Huyssen contempla esse movimento de ir e vir dos paradigmas.
Acredita que vivamos uma transformao, mas no se situa entre aqueles que
identificam mudanas profundas, pois sob muitos aspectos o que chamamos de ps-
modernismo seria uma reciclagem de tcnicas e estratgias do modernismo495. No
possvel desqualificarmos o potencial crtico do ps-modernismo, pois isso
incorreria em um total abandono de uma arte qualificada como crtica, e no o que
se nota na produo contempornea496. Ao suspender os macroesquemas de
abordagem do ps-modernismo497, Huyssen reivindica que pensemos as eventuais
continuidades entre modernismo e ps-modernismo498. Nesse sentido, chama a
ateno para a natureza relacional do ps-modernismo. A crescente busca de
culturas arcaicas e de narrativas pr-modernas no pode ser encarada apenas como
uma variante do espetculo499. E em uma passagem, Huyssen lana um dos
argumentos mais fortes para a ideia central que est sendo desenvolvida neste
trabalho: no foram os princpios especficos do modernismo que entraram em
colapso, mas uma imagem especfica do modernismo que se transformou em pomo
da discrdia500.

495
HUYSSEN, Andreas. Mapeando o ps-moderno. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de [org.]. Ps-
modernismo e poltica. Rio de Janeiro: Rocco, 1991, p. 20.
496
HUYSSEN, Andreas. Mapeando o ps-moderno. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de [org.]. Ps-
modernismo e poltica. Rio de Janeiro: Rocco, 1991, p. 21.
497
HUYSSEN, Andreas. Mapeando o ps-moderno. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de [org.]. Ps-
modernismo e poltica. Rio de Janeiro: Rocco, 1991, p. 22.
498
HUYSSEN, Andreas. Mapeando o ps-moderno. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de [org.]. Ps-
modernismo e poltica. Rio de Janeiro: Rocco, 1991, p. 21.
499
HUYSSEN, Andreas. Mapeando o ps-moderno. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de [org.]. Ps-
modernismo e poltica. Rio de Janeiro: Rocco, 1991, p. 26.
500
HUYSSEN, Andreas. Mapeando o ps-moderno. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de [org.]. Ps-
modernismo e poltica. Rio de Janeiro: Rocco, 1991, p. 27.
277

Para estabelecer uma linha divisora em relao ao passado, o modernismo


estabeleceu um mito da modernizao501. exatamente esse mito teleolgico da
modernizao que entrou em declnio. Seu declnio passou a ser identificado como
um diagnstico da ps-modernidade, sem contudo atentar para as linhas de
continuidade e de diacronia estabelecidas entre a herana modernista e seus
deslocamentos contemporneos. A crtica ps-modernista no se dirigia contra a
totalidade do modernismo. Dirigia-se sim contra uma imagem austera do
modernismo502 e contra suas presses normativas503. Nesse sentido, as
sucessivas rebelies dos anos 1960 e a obra-documento de atestado de ruptura
com o modernismo, assinada na dcada de 1970 por Roberto Venturi, Scott-Brown e
Steven Izenour504, nunca foram uma recusa do modernismo em sua totalidade505. O
ps-modernismo em geral apresenta uma relao distinta com as duas grandes
heranas do sculo XX: os modernismos e as vanguardas506. Nesse sentido, age
muitas vezes a partir das runas dos discursos modernistas e das vanguardas, mas
nem sempre.
Um aspecto especialmente penetrante da anlise de Huyssen diz respeito ao
papel desempenhado pela teoria em um regime de ps-modernidade. A tese a
seguinte: todos os problemas colocados pelo modernismo artstico se realizaram,
alcanaram a sua autoconscincia e alaram seu voo de Minerva na obra dos ps-
estruturalistas507. Essa continuidade interessante, pois inverte totalmente os
escopos positivos e negativos da relao estabilizada entre o binmio
estruturalismo/modernismo e ps-estruturalismo/ps-modernismo. Intertextualidade,
morte do sujeito, heterografia, escritura, diferena ontolgica, simulacro, fuso arte-
vida: todos esses questionamentos so rigorosamente questionamentos dos
modernismos e das vanguardas. Esto em Lautramont, Artaud, Rimbaud, em

501
HUYSSEN, Andreas. Mapeando o ps-moderno. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de [org.]. Ps-
modernismo e poltica. Rio de Janeiro: Rocco, 1991, p. 28.
502
HUYSSEN, Andreas. Mapeando o ps-moderno. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de [org.]. Ps-
modernismo e poltica. Rio de Janeiro: Rocco, 1991, p. 33.
503
HUYSSEN, Andreas. Mapeando o ps-moderno. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de [org.]. Ps-
modernismo e poltica. Rio de Janeiro: Rocco, 1991, p. 43.
504
HUYSSEN, Andreas. Mapeando o ps-moderno. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de [org.]. Ps-
modernismo e poltica. Rio de Janeiro: Rocco, 1991, p. 30.
505
HUYSSEN, Andreas. Mapeando o ps-moderno. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de [org.]. Ps-
modernismo e poltica. Rio de Janeiro: Rocco, 1991, p. 34.
506
HUYSSEN, Andreas. Mapeando o ps-moderno. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de [org.]. Ps-
modernismo e poltica. Rio de Janeiro: Rocco, 1991, p. 37.
507
HUYSSEN, Andreas. Mapeando o ps-moderno. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de [org.]. Ps-
modernismo e poltica. Rio de Janeiro: Rocco, 1991, p. 62.
278

Celan, nos surrealistas, no dada, nos expressionistas, em Eliot, Pound, Joyce e


Kafka. No so patrimnio do segundo Barthes, Blanchot, Deleuze, Guattari,
Foucault, Kristeva, Derrida, Nancy e Sloterdijk.
Nesse sentido, a tomada de conscincia de que no estamos destinados a
completar o projeto da modernidade508, ao contrrio de ter um valor deceptivo, pode
revelar sua contraface dialtica: o fato de que tenhamos tomado conscincia dos
limites da promessa teleolgica do projeto moderno. O abandono do telos tem
aberto um leque de possibilidades expressivas s manifestaes artsticas atuais509.
No se trata do questionamento entre arte e no-arte feito pelo modernismo. Trata-
se do questionamento de reivindicar legitimidade artstica para diversos campos da
experincia e da expresso humana. Essa abordagem altera a prprio concepo do
que foi o modernismo.
Essa dificuldade de demarcao epistemolgica ressaltada por Huyssen pode
ser encontrada in nuce desde o estado nascente do conceito de ps-moderno,
descrito no clssico de Jean-Franois Lyotard510. Como se sabe, para Lyotard um
dos pontos nucleares para a definio de uma condio distinta da modernidade a
questo da legitimao dos saberes nas sociedades informatizadas511. A atividade
conceitual aquela que descreve o mundo em sua dimenso emprica sem ser ela
mesma guiada pela empiria. Para traarmos as linhas de tenso entre o campo de
experincias a que se convencionou chamar de moderno e as suas transformaes
no mundo contemporneo, dando ensejo a uma nova condio, precisamos analisar
quais critrios metatericos de legitimao produzem a descrio desse movimento
e dessas flutuaes da ordem real. Nesse sentido, para pensar com Wittgenstein, o
ato de conhecimento nunca uma adequao entre a realidade e linguagem, mas
antes de tudo um acordo provisrio no mago interno de jogos de linguagem que
determinam nossa capacidade de dizer o mundo como limites do mundo em si

508
HUYSSEN, Andreas. Mapeando o ps-moderno. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de [org.]. Ps-
modernismo e poltica. Rio de Janeiro: Rocco, 1991, p. 75.
509
Esse um dos pontos marcantes da argumentao de Belting: BELTING, Hans. O fim da histria
da arte: uma reviso dez anos depois. So Paulo: Cosac Naify, 2006.
510
LYOTARD, Jean-Franois. O ps-moderno. Traduo Ricardo Corra Barbosa. Rio de Janeiro:
Jos Olympio, 1986.
511
O tema da legitimidade atravessa toda obra clssica de Lyotard. Para esta apresentao geral do
problema, conferir especialmente os dois primeiros captulos: O campo: o saber nas sociedades
informatizadas e O problema: a legitimao, LYOTARD, Jean-Franois. O ps-moderno. Traduo
Ricardo Corra Barbosa. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1986. p. 3 e seg.
279

mesmo512. Se o mundo tudo o que o caso, o mundo tudo aquilo que pode ser
declinado em forma de linguagem.
Nas sociedades informatizadas, o estatuto de verdade das cincias
responsveis por essa descrio, sejam elas as cincias humanas ou as cincias
duras, encontra-se rigorosamente abalado. Isso se d porque os critrios
valorativos, para serem eficazes, precisam se legitimar pelo desempenho, pois este
o modelo de legitimao pragmtica das sociedades dominadas pelo capital
global513. Nesses termos, para pensar com Adorno, as cincias no seriam o outro
do capital; no mundo capilarizado pela tcnica e pelo capital globalizado, as cincias
no representam uma alteridade em relao totalidade dos meios de produo.
Porque tambm as cincias se apresentam como mecanismos de realizao da
eficcia pelo desempenho, mesmo quando fornecem modelos crticos dessa mesma
situao estrutural por meio do qual o poder se organiza no mundo atual.
Esse modelo descritivo aportico est presente tanto nos estruturalistas
quanto nas anlises dos ps-estruturalistas, tais como na descrio dos dispositivos
de saber-poder de Foucault, a noo de indecidibilidade de Derrida ou a dinmica
biunvoca de domesticao-liberao do desejo promovida pelo capitalismo,
segundo o modelo de Deleuze e Guattari514. Lyotard o concebe como o processo de
deslegitimao instalado no mago das atividades de conhecimento da sociedade
da informao515, espcie de variante atual da sociedade do espetculo dos
situacionistas. Capitalismo e ambivalncia caminham juntos: quanto mais o primeiro
se realiza mais a segunda se aprofunda516.

512
A relao entre produo cientfica e jogos de linguagem descrita por Lyotard como mtodo e
tematizada em: LYOTARD, 1986, p. 15 e seg.
513
LYOTARD, Jean-Franois. O ps-moderno. Traduo Ricardo Corra Barbosa. Rio de Janeiro:
Jos Olympio, 1986. p. 3 e seg.
p. 77 e seg.
514
Esse aspecto ambivalente do desejo no capitalismo desenvolvido por Deleuze e Guattari a partir
da anlise das codificaes, sobrecodificaes e axiomatizaes, das estruturas tribais, passando
pelos imprios, pelo Estado e pela novas configuraes do capitalismo planetrio: DELEUZE, Gilles e
GUATTARI, Flix. Mil Plats: Capitalismo e Esquizofrenia. So Paulo, 34 Letras, 1997.
515
LYOTARD, Jean-Franois. O ps-moderno. Traduo Ricardo Corra Barbosa. Rio de Janeiro:
Jos Olympio, 1986. p. 3 e seg.
A deslegitimao, p. 69 e seg.
516
Penso nestes conceitos nos termos de Baumann: BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e
Ambivalncia. Traduo Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
280

4.8 Cinismo

A realizao plena do capital reduz a axiologia a uma praxiologia: a esfera


dos valores se dilui diante da esfera das aes. E nesse caso no se trata nem de
invocar o fantasma senil do niilismo, tantas vezes glosado nos primeiros decnios do
sculo XX, paradoxalmente, tanto pelos artistas de vanguardas como o dada quanto
pelos idelogos da revoluo conservadora que culminou na ascenso do nacional-
socialismo. Ainda que custa de reduzir toda a realizao da vida humana a uma
sobrevida funcional, sob diversos aspectos a sociedade do desempenho funciona e
a humanidade no encontrou nenhuma alternativa para esse modelo. Na chave de
Sloterdijk, esta a constatao da razo cnica517.
O cinismo uma nova e noturna forma de esclarecimento necessrio para
compreender o mundo contemporneo como ocaso do projeto iluminista e como
espao de realizao ps-histrica518. O cinismo o quarto nvel de falsidade da
conscincia, depois do erro, da mentira e da ideologia. Onde a crtica ideolgica no
consegue seguir adiante, pois demasiadamente herdeira das premissas do
esclarecimento, a crtica do cinismo pode desempenhar um papel emancipador e
uma nova funo ilustradora na sociedade dos mass media. No por acaso, pode-se
pensar a anatomia do cinismo levada a cabo por Sloterdijk como uma tentativa de
pensar a modernidade fora dos padres valorativos teleolgicos do paradigma
iluminista [em declnio] e por meio de uma viso do contemporneo que mais
aportica-positiva do que melanclica-negativa519. Nesse sentido, o cinismo, como
princpio universal difuso, uma chave possvel para compreendermos a ps-
modernidade, embora Sloterdijk no cunhe este termo520.

517
Andreas Huyssen menciona a anlise do cinismo empreendida por Sloterdijk e a aloca em um dos
pontos de virada para o que poderamos definir como um pensamento ps-moderno: HUYSSEN,
1991, p. 51.
518
BELTING, Hans. O fim da histria da arte: uma reviso dez anos depois. So Paulo: Cosac Naify,
2006.271 e seg.
519
Esse o ponto de dissenso de Sloterdijk com a teoria crtica e especialmente com Adorno e
Habermas, embora ele retenha muito mais do esprito de Frankfurt do que se supe ou imagina.
520
A anlise da razo cnica aloca o cinismo como princpio universal difuso da modernidade e como
dominante no mundo atual do capital globalizado. A obra de Sloterdijk muito extensa e haveria
muitos pontos de contato a serem feitos entre sua fenomenologia do cinismo e os desdobramentos
da modernidade at o mundo contemporneo, eventualmente ps-moderno: SLOTERDIJK, Peter.
Crtica da razo cnica. Traduo e coordenao Marco Casanova. Equipe de traduo: Paulo
Soethe, Pedro Costa Rego, Mauricio Mendona Cardozo e Ricardo Hiendlmayer. Preparao de
originais Rodrigo Petronio. So Paulo: Estao Liberdade, 2012.
281

O sentido de ps-histria no se refere a uma diluio dos projetos modernos


ou a lamentos neoconservadores sobre a perda do sujeito, da arte, do indivduo ou
das grandes tradies. O sentido ps-histrico seria em termos mais precisos uma
recuperao e um reingresso na histrica em uma chave ps-teleolgica e ps-
utpica. Para Belting, a ps-histria no uma denegao da falncia ideolgica.
sim um modo incontornvel de configurao simultnea e no-linear da percepo,
produzido pelo espao hipermediado das sociedades da informao521. Este
ambiente meditico transformou o artista e mesmo o espectador comum em um
bricoleur, no sentido de Lvi-Strauss, ou seja, em algum que organiza o mundo
sua volta a partir dos materiais disponveis, tendo em vista o campo de ao
provvel, no mais em busca de um horizonte utpico e da realizao do
impossvel522.
O fim da histria da arte no a interdio desta disciplina ou uma suspenso
do valor da poltica e da possibilidade de pensar e produzir arte523. Ele uma
abertura de novos horizontes discursivos nos quais a arte, para seguir sua vida,
despede-se de sua histria524, que dever adotar outros critrios e modelos, no
mais ligados linearidade pressuposta nos discursos teleolgicos de raiz moderna e
vanguardista. Nesses termos, o fim da arte e da histria prenunciado por Hegel, que
ocorreria quando a conscincia realizasse em si a ideia universal, na verdade j
ocorreu. Esses dois fins so o legado e a conquista do alto modernismo. Os sculos
XX e XXI levam adiante o projeto moderno propondo um novo fim: o fim da histria
da arte525. Dois autores so centrais para pensarmos esta questo: Hans Belting e
Arthur Danto526.

521
Nesse sentido Belting se aproxima da concepo esferologia plural [Esferas III] a partir da qual
Sloterdijk l o contemporneo luz da imagem das espumas, e tambm da anlise penetrante de
Vilm Flusser sobre a ps-histria como uma sociedades das caixas pretas, nas quais as narrativas
histricas assumiram o sentido de programas: FLUSSER, Vilm. A escrita: h futuro para a escrita?
So Paulo: Annablume, 2010. FLUSSER, Vilm. Ps-Histria: vinte instantneos e um modo de usar.
So Paulo: Duas Cidades, 1983.FLUSSER, Vilm. O universo das imagens tcnicas: elogio da
superficialidade. So Paulo: Annablume, 2008.
522
BELTING, Hans. O fim da histria da arte: uma reviso dez anos depois. So Paulo: Cosac Naify,
2006, 260 e seg.
523
BELTING, Hans. O fim da histria da arte: uma reviso dez anos depois. So Paulo: Cosac Naify,
2006.260 e seg.
524
BELTING, Hans. O fim da histria da arte: uma reviso dez anos depois. So Paulo: Cosac Naify,
2006.260 e seg.
525
BELTING, Hans. O fim da histria da arte: uma reviso dez anos depois. So Paulo: Cosac Naify,
2006.2006.
526
Gostaria de ter articulado alguns dos pontos da obra nuclear de Danto. Porm, em razo da
extenso de seu debate, a sua insero acabou se tornando invivel dentro dos limites deste
282

4.9 Mesologia e Contemporneo

A histria da arte representou durante muito tempo a metanarrativa de sentido


que incluiu a alteridade sempre sob o ponto de vista da identidade, que inseriu os
outros sem conseguir descentralizar luz de um grande Outro. Nesse sentido, como
ressalta Hal Foster, na linha de Derrida, muitos dos discursos sobre a perda dos
valores e os lamentos pela eventual morte da arte moderna e da modernidade se
inscrevem como uma atitude de lamento pela perda dos valores falo, logo e
fonocntricos que guiaram a histria da arte, e no pela perda em relao
qualidade da produo dos prprios artistas527. preciso criar um novo repertrio
conceitual e um novo vocabulrio para essas alternativas. Uma nova gramtica
valorativa para descrever o fenmeno contemporneo fora das oposies insolveis
entre moderno, antimoderno e ps-moderno.
Como acentua Latour, a definio de modernidade surge como a inscrio de
uma Grande Separao528. Esta separao inaugura a distino ilusria ns-eles,
distino esta que tornou possvel a seco entre modernidade e tudo o que lhe seja
anterior, oposto ou posterior [pr, anti e ps]529. Ao utiliz-la, estamos reproduzindo
as antigas dicotomias estabelecidas pelos colonizadores em relao aos povos
subjugados. Essa tentativa de rever o discurso historiogrfico da arte luz da
experincia contempornea radical do descentramento ocorre por meio de uma
aliana entre teoria, arte e antropologia. Essa aliana pode ser captada em diversos
autores e artistas atuais. O conceito matriz essa aliana o conceito de narrativa.
Em outros termos, a descoberta do ficcional como fonte de valor heurstico e
epistemolgico530.
Enquanto metanarrativa, o discurso sobre a histria da arte dividido em
perodos surge com as meditaes Johann Joachim Winckelmann e desenvolvido

trabalho: DANTO, Arthur. Aps o fim da arte: arte contempornea e os limites da histria da arte. So
Paulo: Edusp/Odysseus, 2006.
527
FOSTER, Hal. Recodificao: arte, espetculo, poltica cultural. Traduo Duda Machado. So
Paulo: Casa Editorial Paulista, 1996.
528
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simtrica. Traduo Carlos
Irineu da Costa. So Paulo: 34 Letras, 2013, p. 17.
529
LATOUR, 2013, p. 17.
530
A expresso descoberta do ficcional de Belting: BELTING, 2006, 210 e seg. especialmente
pgina 212. Ver tambm pgina 120.
283

e universalizado por Henrich Wlfflin531. Entre ambos, o enorme sistema esttico de


Hegel. O primeiro, a partir de sua Histria da Arte Antiga [1764], implementou o
legado de Giorgio Vasari. Para alm da vida dos artistas e da anlise cronolgica,
adicionou a tentativa de descrever a essncia da arte de cada perodo, bem como
um panorama da arte universal e de um edifcio conceitual que desse conta da
narrativa da arte no mais apenas em um sentido descritivo, preceptivo ou
biogrfico532. O segundo, por sua vez, props preencher todas as lacunas da
narrativa da arte em termos de estilos, perseguindo em todos os estilos o surgimento
de uma viso moderna533. Quanto a Hegel, forneceu toda a base para a construo
da arte como conceito. E a histria, o modo pelo o Esprito retorna a si mesmo
mediante a autoconscincia do sujeito534.
De certa maneira, os discursos sobre a modernidade e a ps-modernidade,
ainda que no sejam propriamente estilsticos, remontam a essa concepo do
tempo e da arte concebidos como sucesso de etapas535. Entretanto, com a
hegemonia do discurso teleolgico, diversas abordagens de continuidades formais
de longa durao acabaram ficando adormecidas. Podemos cham-las de
invariveis antropolgicas da forma. No escopo das artes e guisa de exemplo, os
trabalhos de Jacqueline Lichtenstein sobre as preceptivas de pintura dos sculos XV
demonstram a aguda controvrsia entre os defensores do desenho e da cor,
materializadas nas duas matrizes representadas por Poussin e Rubens536.
Podemos pensar a emancipao da cor como emancipao da elocuo da
pintura, movimento cujo percurso pode ser captado na linha que vai de Rubens,
Turner e Delacroix a Gauguin, Klee, Van Gogh, ao fauvismo e a Matisse, chegando
ao expressionismo abstrato e action painting, nos anos 60. Por seu lado, o
531
WLFFLIN, Henrich. Conceitos fundamentais da histria da arte. So Paulo: Martins Fontes,
1984.
532
BELTING, Hans. O fim da histria da arte: uma reviso dez anos depois. So Paulo: Cosac Naify,
2006,, 182.
533
BELTING, Hans. O fim da histria da arte: uma reviso dez anos depois. So Paulo: Cosac Naify,
2006,, 202.
534
BELTING, Hans. O fim da histria da arte: uma reviso dez anos depois. So Paulo: Cosac Naify,
2006, 191 e seg.
535
Para entender um pouco mais das etapas da construo dessa narrativa histria da arte feita de
etapas, remeto ao artigo de Roland Recht: RECHT, Roland. A escritura da histria da arte diante dos
modernos: observaes a partir de Riegl, Wlfflin, Warburg e Panofsky. In: HUCHET, Stphane
[org.]. Fragmentos de uma teoria de arte. So Paulo: Edusp, 2012, p. 33-60.
536
LICHTENSTEIN, Jacqueline. A Cor Eloquente. So Paulo, Siciliano, 1994. Outras duas fontes
fundamentais para esse debate so o artigo de Leon Kossovitch e a obra de Antony Blunt:
KOSSOVITCH, Leon. A Emancipao da Cor in NOVAES, Adauto. O Olhar. So Paulo, Companhia
das Letras, 1988. BLUNT, Antony. Teoria Artstica na Itlia 1450-1600. Traduo de Joo Moura Jr.
So Paulo, Cosac & Naify, 2001.
284

desenho, entendido como cosa mentale e parte mais intelectual e mais abstrata da
pintura, assim concebido desde os tratados de pintura renascentistas [Ludovico
Dolce, Cennino Cennini, Paolo Pino537 e Federico Zuccaro538]539, e que encontra um
ponto de viragem em Poussin, teria delineado a tradio analtica do desenho que
passa por Czanne, Modigliani, Picasso, Braque, o cubismo, o futurismo, a arte
construtiva sovitica, a Bauhaus e a fase americana de Mondrian. No limite,
podemos dizer que o salto conceitual de Duchamp com os ready mades se baseia
em uma crtica da arte retiniana ocidental, herdada desde o XV540. Nesse sentido,
estabelecendo uma distino entre artesanato e ideia, entre produo e valor, ou
seja, entre materializao da obra e realizao performativa de seu conceito, a partir
de seus gestos Duchamp teria levado ao paroxismo a crtica da matriz desenho-ideia
s premissas de toda a arte que fosse entendida e valorizada no interior da tradio
da cor-sensvel.
Ora, nesse caso, por meio de uma abordagem narrativa e antropolgica da
arte, possvel captar as linhas transistricas e transespaciais da construo de
padres formais. Nesse caso, a descontinuidade sociolgica da experincia histrica
determinante de cada poca e das respectivas obras dessas pocas no pode mais
ser submetida a uma leitura teleolgica compreendida em termos de etapas-estilos.
H estilos distintos convivendo de modo concomitante, sob os mesmos regimes
estticos e polticos. A permanncia da dialtica desenho-cor no interior do debate
contemporneo, obviamente atualizada a partir dos critrios e problemas especficos
do sculo XXI, inscreve a permanncia de questionamentos artsticos transistricos
nas manifestaes culturais da atualidade. Essa inscrio demonstra a pertinncia
maior ou menor dos critrios modernos na arte contempornea, bem como as
eventuais descontinuidades que as prticas artsticas atuais demarquem em relao

537
PINO, Paolo. Dilogo Sobre a Pintura. Traduo, Apresentao e Notas de Rejane Bernal
Ventura. So Paulo, Cadernos de Traduo, Nmero 8, 2002, Departamento de Filosofia da
Universidade de So Paulo, DF/USP.
538
ZUCCARO, Federigo. LIdea de Pittori, Scultori ed Architetti. Divisa in Due Libri. Roma, Nella
Stamperia di Marco Pagliarini, 1768. Reproduo de Edio Rara.
539
A bibliografia relativa s preceptivas e tratados de pintura que abordam o debate desenho-cor
entre outros aspectos tcnicos da arte bastante extensa. Sinalizo aqui apenas algumas referncias
mais importantes, entre elas a obra em seis volumes organizada por Lichtenstein: LICHTENSTEIN,
Jacqueline. A Pintura: Textos Essenciais. Direo de Jacqueline Lichtenstein. Colaborao de Jean-
Franois Groulier, Nadeije Laneyrie-Dagen e Denis Riout. So Paulo, 34 Letras, 2004. 6 Volumes.
540
A premissa da crtica arte retiniana descrita pelo prprio Duchamp em seus escritos da Caixa
Verde. Paz analisa a presena desse primado do conceito inclusive no Grande Vidro: PAZ, Octavio.
Marcel Duchamp ou o castelo da pureza. So Paulo: Perspectiva, 1996.
285

a essa mesma tradio, sinalizando novos caminhos para linhas e procedimentos


que se desenvolveram nos ltimos cinco sculos da alta modernidade.
Nesse sentido, a anlise de Huyssen, Lyotard, Danto, Belting e Sloterdijk,
entre outros pensadores, realiza, no plano da teoria, um princpio moderno de
relativizao do estatuto dos discursos. Ao faz-lo, inserem-se como um enclave
terico moderno no cerne do mundo contemporneo que se pretende ps-moderno.
Assim, paradoxalmente, tanto pensadores como artistas demonstram a possibilidade
de criar ncleos de resistncia hegemonia unidimensional e aos padres estticos
de valor duvidoso que podemos, sem sombra de dvida, reputar como sintomas do
capital universalizado, no como alternativas aos caminhos e aporias da alta
modernidade e aos impasses das vanguardas histricas. Essa abertura a outros
regimes estticos e ao estabelecimento de outros horizontes de criao possveis,
no mais sob a gide da teleologia, tambm est presente na noo de dissenso de
Jacques Rancire541, noo que reconduz a uma aliana entre esttica e poltica no
mundo contemporneo, para alm do mito modernizador e da racionalidade de um
telos. Essa retomada pode ser inscrita pelo pensamento de Nicolas Bourriaud e sua
proposta de reconexo com o princpio da arte como forma de vida, expresso em
algumas vanguardas542. Essa noo de forma de vida nuclear para o presente
estudo, que a explicita no mago da esferologia, como uma teoria autopoitica das
formas em geral, incluindo-se as formas propriamente artsticas.
Encerro aqui este debate sobre os limites da modernidade e a situao
ocupada por Sloterdijk em seu interior. Fao-o com uma reflexo de Giorgio
Agamben sobre o contemporneo543. Como lembra Agamben, o contemporneo no
o atual. Porque o contemporneo se assemelha s estrelas que divisamos na
escurido da noite. Muitas delas esto mortas, mas devido ao fato de viajarem na
velocidade da luz, ainda conseguimos enxergar seu brilho. Contudo, h estrelas de
universos ainda mais distantes, viajando na velocidade da luz, em nossa direo.

541
Prefiro dissenso a desentendimento, como foi traduzido nas duas obras de Rancire que remetem
a este conceito: RANCIRE, Jacques. A partilha do sensvel: esttica e poltica. Traduo ngela
Leite Lopes. So Paulo: 34 Letras, 2006, p. 15 e seg. RANCIRE, Jacques. O desentendimento:
poltica e filosofia. Traduo ngela Leite Lopes. So Paulo: 34 Letras, 1996.
542
BOURRIAUD, Nicholas. Formas de vida: a arte moderna e a inveno de si. Traduo Dorothe
de Bruchard. So Paulo: Martins Fontes, 2011b
543
Esta reconexo entre esttica e poltica marcante em diversas obras de Giorgio Agamben,
especialmente nas obras nas quais ele redefine o sentido de poiesis ou em momentos de seu
pensamento focados na vida comum e em uma reviso do conceito de comunidade. No que concerne
especificamente sua definio de contemporneo: AGAMBEN, Giorgio. O que o contemporneo? e
outros ensaios. Traduo: Vincius Nikastro Honesko. Chapec: Argos, 2009.
286

Ainda no as vemos, pois elas no se aproximaram o bastante para serem vistas.


As estrelas mortas visveis podem ser a atualidade de nossos discursos e valores
artsticos, modernos, pr-modernos ou ps-modernos. Entretanto, as estrelas vivas e
invisveis viajam em nossa direo. Elas podem vir de um passado que esquecemos
ou de um futuro que ainda ignoramos. Nessa acepo, para a esferologia, todos os
fatos, sejam ele modernos, pr-modernos, ps-modernos ou hipermodernos, sero
sempre contemporneos das regies antropolgicas de instituio de seu sentido.
Essa a regio de emergncia do ser e dos meios enquanto meios, o horizonte
infinito de eventos e sua infinita cadeia relacional, que se desdobra pelas galxias,
infinita para todos os ados e em todos os tempos.
287

5 MEIO, VIDA E COMPLEXIDADE: OS MESONS ENTRE STENGERS,


PRIGOGINE E SLOTERDIJK

O ponto de partida seria uma definio no-metafsica e no-holstica da


vida: sua imunizao no pode mais ser pensada por meio de simplificao
ontolgica, de uma reassimilao na esfera-todo lisa. Se a vida atua
ilimitadamente, conformando espaos de diversas maneiras, no apenas
porque cada uma das mnadas tenha seu prprio entorno, seno porque
todas esto amalgamadas com outras vidas e se compem de inumerveis
unidades. A vida se articula em cenrios simultneos, uns imbricados nos
outros, e produz-se e se consome em regies interconectadas. Mas o
decisivo para ns o seguinte: a vida produz sempre o espao no qual e
que a . Assim como Bruno Latour falou de um parlamento das coisa, com a
ajuda da metfora da espuma pretendemos nos ocupar de uma repblica de
espaos.
Peter Sloterdijk

Seria preciso conceber uma estrutura que nos fizesse ver a conexo
possvel entre as dependncias recprocas que fazem de um contedo um
continente e de um continente um contedo, j que estou em um mundo que
est em mim, encerrado naquilo que encerro, produto de tudo que entre as
mos formo e entretenho.
Paul Valry

Assim, o mundo da cincia o mundo real se afastou e se separou


inteiramente do mundo da vida, que a cincia foi incapaz de explicar mesmo
com uma explicao dissolvente que lhe desse uma aparncia subjetiva. Na
realidade, esses dois mundos esto sempre e cada vez mais unidos pela
prxis. Mas, teoricamente, esto separados por um abismo. nisso que
consiste a tragdia do espirito moderno que desvendou o enigma do
Universo, mas apenas para substitu-lo por um outro: o enigma de si mesmo.
Alexander Koyr
288

Existe uma tendncia para esquecer que o conjunto da cincia est ligado
cultura humana geral, e que as descobertas cientficas, mesmo aquelas que
em um dado momento parecem ser as mais avanadas, esotricas e difceis
de compreender, so despidas de significado fora de seu contexto cultural.
Uma cincia terica que no esteja consciente que os conceitos que julga
pertinentes e importantes so, afinal, destinados a ser expressos em
conceitos e palavras com um sentido para a comunidade culta e a se
inscrever em uma imagem do mundo, uma cincia terica, digo, onde isso
fosse esquecido e onde os iniciados continuassem a resmungar em termos
compreendidos o melhor possvel por um pequeno nmero de parceiros,
ficar necessariamente divorciada do resto da humanidade cultural. E estar
votada atrofia e ossificao.
Erwin Schrdinger

A cincia quantitativa dos processos fisioqumicos , a partir da,


reconhecida em sua unidade. A conservao de uma grandeza fsica, a
energia, atravs das transformaes que os sistemas fsicos, qumicos e
biolgicos podem sofrer, vai desde ento ser colocada na base do que
podemos chamar de cincia do complexo, e vai constituir o fio condutor que
permitir explorar de maneira coerente os processos naturais.
Isabelle Stengers e Ilya Prigogine

5.1 Aliens e Alianas

Em um de seus mais conhecidos ensaios sobre a gnese e a natureza da


poesia, T. S. Eliot sugere uma analogia entre a poesia e os processos qumicos544.
O poema no seria produzido pela mente do poeta, pois o poeta um medium da
tradio, e tampouco por uma mera atualizao dessa mesma tradio, a despeito
do engenho individual do poeta. Eliot sugere que a mente do poeta seja uma fina

544
ELIOT, T. S. Talento individual e tradio. Ensaios. Traduo, introduo e notas de Ivan
Junqueira. So Paulo: Art Editora, 1989.
289

pelcula de metal. Um tipo de metal que possibilita a reao qumica e a sntese


entre dois elementos distintos, produzindo um terceiro. A sntese potica de dois ou
mais elementos-poemas, realizada pela mente do poeta, que apenas possibilita a
reao, daria origem a uma nova obra de arte. Essa obra estaria na fronteira
indecidvel entre o sentido impessoal da tradio e o sentido subjetivo do poeta.
Podemos chamar essa sntese misteriosa, descrita por Eliot para captar o processo
criativo, pelo nome de metamorfose. A metamorfose transubstancia os elementos da
tradio sem os recusar e sem contudo representar uma mera herana passiva
desses mesmos elementos. Como diria Hegel, toda superao retm em si aquilo
que supera, como negatividade necessria continuidade de sua essncia
superadora. H aqui tanto uma continuidade afirmativa daquilo que preciso reter
quanto uma descontinuidade passiva daquilo que preciso recusar, mas que
continua presente, metamorfoseado. A metamorfose seria algo alm de uma
transformao e aqum de uma revoluo. nesse sentido que podemos entender
a metamorfose da cincia descrita por Isabelle Stengers e Ilya Prigogine em uma
obra-prima do pensamento cientfico do sculo XX545. Nessa obra, Stengers e
Prigogine conseguem realizar uma das maiores ambies relativas a obras que
pretendem descrever a cincia: definir os limites globais da cincia clssica, tambm
chamada de moderna, levantar seus impasses e propor alternativas conceituais, em
direo a um pensamento complexo que estaria na base de toda cincia
contempornea.
A epistme clssica marcada por critrios herdados da mecnica:
simplicidade, reduo, determinismo, universalidade, reversibilidade. Embora sejam
mais explcitos nas cincias naturais, esses critrios recobrem um campo de
conceitos reiterados em praticamente todas as cincias, humanas e naturais. A
valiosa abertura dos dias de hoje e fornecida pelos novos modelos de complexidade
no consiste em definir autores como Galileu, Newton, Laplace, Boltzmann, Darwin
e Einstein como reducionistas, herdeiros da cincia clssica e da dinmica, pois isso
as cincias naturais paulatinamente o fazem. A grande abertura atual consiste na
possibilidade de pensarmos toda a histria recente do pensamento como uma
metamorfose do simples ao complexo. Podemos cunhar essa metamorfose como a

545
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991. A nova aliana:
metamorfose da cincia. Traduo Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de
Braslia, 1991.
290

busca do que Bachelard definiu como simplexo546. Para tanto, em primeiro lugar,
preciso desativar a iluso de complexidade produzida pelas cincias humanas, que
se julgam portadoras de uma amplitude metaterica que no existiria nas cincias
naturais. Metateoria e complexidade so horizontes distintos. Refletir sobre as
condies de possibilidade de constituio conceitual de uma determinada cincia
no o mesmo que conduzir os fundamentos dessa mesma cincia aos seus
limiares e conseguir transpor suas demarcaes epistemolgicas. Nesses termos,
uma atividade urgente seria comear a pensar alguns dos maiores lumiares das
cincias humanas, como Marx, Nietzsche, Freud, Heidegger, Adorno, Foucault, no
mais a partir das distintas linhas de pensamento que os separam entre si, mas do
enquadramento conceitual que os une: o reducionismo. Ningum nega que sejam
mestres. Mas mestres de qu? Talvez possamos agregar: mestres do
reducionismo547. Para usar uma imagem mais expressiva, poderamos abandonar a
hiptese de uma ciso temporal ou ontolgica entre simplicidade e complexidade.
Poderamos pensar em duas sugestivas imagens-matrizes lanadas por Isaiah
Berlim para definir dois modos distintos de pensar e presentes em qualquer tempo: o
pensador raposa e o pensador porco-espinho548. O pensador porco-espinho sabe
muito de uma nica coisa. O pensador raposa sabe um pouco de muitas coisas. O
dilogo proposto pela metamorfose do simples ao complexo envolveria uma
coexistncia e uma mtua fecundao entre raposas e porcos-espinhos, em um
estimulante experimento de especiao, talvez o primeiro na evoluo das espcies.
Para redefinir os limites dessa epistme clssica fundada no reducionismo e
propor novos regimes de sentido para a cincia, preciso enfatizar a natureza dessa
alterao como uma verdadeira metamorfose da cincia. Em outras palavras,
preciso mostrar como, por razes internas s suas prticas e s suas constituies
discursivas, a cincia se viu diante de impasses que a conduziram a um novo
horizonte de problemas, de valores e de solues. Como no mencionado processo
qumico, as possibilidades inscritas na cincia clssica so expandidas e adquirem
novos sentidos e valncias, dando origem desse modo a novas prticas e a novos
valores. Para cunhar outra expresso de Stengers, essa metamorfose da cincia
546
BACHELARD, Gaston. Ensaio sobre o conhecimento aproximado. Rio de Janeiro: Contraponto,
2004.
547
ELIADE, Mircea. Histria das crenas e das idias religiosas. Tres Volumes. Rio de Janeiro:
Zahar, 2013.
548
BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a Humanidade. Uma Antologia de Ensaios. Traduo Rosaura
Eichenberg. So Paulo: Cia. das Letras, 2002.
291

tem um compromisso com uma ecologia das prticas, ecologia no interior da qual a
cincia precisa comear a ser pensada. Essa metamorfose diz respeito no apenas
praxiologia, mas inclusive e, sobretudo, axiologia da cincia, pois diz respeito s
prprias condies de possibilidade de se pensar e de se fazer a cincia no mundo
contemporneo. Captar essa metamorfose de natureza que no se esgota no
debate entre internalistas e externalistas, entre imanentismo e contextualismo, bem
como descrever a passagem de uma cincia clssica fundada nos mtodos
redutivos cincia contempornea definida a partir de critrios de complexidade:
isso basicamente o movimento descrito e proposto por Prigogine e Stengers549.
Qual o eixo argumentativo que orienta essa metamorfose? A cincia clssica,
ao produzir uma reduo do universo a leis universais, produziu uma situao
singular: quanto mais geral, mais universal uma lei, e, desse modo, essa lei
consegue explicar um nmero de fenmenos cada vez mais amplo e heterogneo.
Contudo esse movimento produz um paradoxo de grandes propores: quanto mais
universais e eficientes se tornaram essas leis, mais os sistemas vivos e seu
funcionamento especfico passaram a ser excludos dessas mesmas leis. A relao
entre physis e bos paulatinamente se desfaz. Rompe-se a antiga aliana entre a
natureza e os seres vivos e, especialmente, entre a natureza e o ser humano. Essa
ruptura, que fora um dos maiores trunfos da cincia clssica, a partir do sculo XIX
comea a demonstrar suas limitaes. O paradoxal dessa situao que a ruptura
dessa aliana produziu alguns dos mais importantes sistemas explicativos do
universo. O ltimo representante da cincia clssica, aquele que melhor sintetiza
essa ruptura entre vida e natureza, seria bilogo Jacques Monod. Os seus marcos
conceituais esto especialmente presentes na obra que sintetiza seu pensamento:
Acaso e Necessidade550.
Esse elo perdido entre vida e natureza pode ser reatado por meio da
termodinmica, desenvolvida no sculo XIX. Conhecida como cincia do fogo, a
termodinmica o primeiro modelo terico que aborda a assimetria entre energia,
conservao e trabalho, evidenciando um fenmeno at ento tratado pela cincia
clssica como residual e desprezvel dentro dos esquemas quantitativos: a
549
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991. A nova aliana:
metamorfose da cincia. Traduo Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de
Braslia, 1991.
550
MONOD, Jacques. Acaso e necessidade: ensaio sobre a filosofia natural da biologia moderna.
Traduo Bruno Palma e Pedro Paulo de Sena Madureira. Petrpolis: Vozes, 1971.
292

irreversibilidade dos sistemas e a seta de tempo que conduz a energia a uma perda
que no pode ser revertida. Essa constatao leva o nome de entropia. Entretanto,
pensadores como Boltzman, que tiveram o mrito de revelar essas estruturas
dissipativas, continuaram a pensar essa perda entrpica dos sistemas como um
sinal negativo de desagregao desses mesmos sistemas. O que as cincias do
complexo comearam a se indagar no sculo XX se essa noo negativa de
entropia no seria uma maneira de determinar os fenmenos termodinmicos a
partir de sistemas em equilbrio, sendo que na verdade a complexidade produzida
pela entropia nos exige que pensemos em uma ordem nesses sistemas entrpicos,
ou seja, exige que pensemos que justamente por estarem distantes do equilbrio
essa entropia que pode ser considerada negativa desde um ponto de vista da
dinmica pode produzir complexidade, a partir do ponto de vista da termodinmica.
Se isso for confirmado, a antiga aliana que se rompera entre orgnico e inorgnico,
e cuja ruptura Monod, pode ser restabelecida, em outra chave. A complexidade
dos sistemas no dependeria de uma assimetria ontolgica entre vida e no-vida,
entre sistema e meio, como a biologia moderna de inspirao darwiniana postulou.
Ao contrrio, a complexidade seria uma continuidade mesma dos processos internos
de complexidade da natureza, demonstrando um continuum entre natureza inerte e
os seres vivos, bem como das leis que regem esses domnios que antes haviam
sido separados. Criar uma nova aliana entre esses domnios, para alm da cincia
clssica, cujo arco temporal iria de Newton a Monod, a proposta de Stengers e
Prigogine. Por outro lado, Monod um autor nuclear para Sloterdijk conceber a
teoria das esferas.
No que consiste em linhas gerais a teoria das esferas? Um dos pontos de
partida de Sloterdijk Heidegger. O pensamento de Heidegger orbita em torno do
conceito de ser-a [Dasein]. Esse conceito, entendido como modo de existncia da
facticidade, a condio prvia para a emergncia do ser e ocupa a centralidade do
pensamento heideggeriano. A horizonte da facticidade propicia a emergncia do ser
a partir de uma regio mais originria do que aquela pela qual o ser foi declinado
pela histria da metafsica, que consiste em um esquecimento do ser. A diferena
ontolgica que determina essa anterior assimilao do ser ao ente, e que antes
produziu a indeterminao do ser enquanto ser, a nova acepo de ser cunhada
por Heidegger. Entretanto, a despeito da centralidade do Dasein, Sloterdijk ilumina a
noo de ser-com [Mitsein], desenvolvida perifericamente por Heidegger na analtica
293

de Ser e tempo, sobretudo associada esfera da inautenticidade da gente [Das


Man]. Ao promover um deslocamento de nfase do ser-a em direo ao ser-com,
Sloterdijk desenvolve o que define como ontologia da dade ou a ontologia
relacional: o ser-dois551. Essa ontologia relacional o eixo estruturante do projeto
esferas. Se o ser no existe antes das relaes, os monismos monovalentes ou os
dualismos bivalentes seriam sempre modos parciais e tentativas de reconduzir a
estrutura relacional a uma unidade ou dividi-la em uma dualidade de substancias
heterogneas entre si. A partir da concepo didica do ser, esses impasses se
transformam em uma potncia relacional adormecida e em um novo modelo do ser.
A partir dele, temos as relaes de intimidade forte das bolhas [microesferologia], as
relaes de interioridade ontolgica distncia [macroesferologia] e as relaes
descentradas das espumas [pluriesferologia]552.
A partir da teoria geral dos sistemas de Luhmann e tambm nos sistemas
autopoiticos de Varela e Maturana553, as esferas seriam as formas da dade
interior-exterior, identificada com o acoplamento estrutural sistema-meio554. A partir
de um ponto de vista evolucionrio, a complexidade no estaria no comeo, mas no
fim, pois a complexidade da vida seria o resultado das assimetrias e dos conjuntos
de isolamentos dos sistemas promovidos pelas condies adversas do meio. Essa
intuio fundamental est na origem da intuio de Darwin, em sua observao
emprica dos tentilhes de Galpagos: a variao morfolgica dos bicos das aves se
daria pelo isolamento das ilhas e o confinamento de uma mesma espcie em
regies distintas555. A diversidade da vida na Terra, seguindo os mesmos princpios,
estaria ligada a essa assimetria sistema-meio e, mais do que isso, a essa contnua
ao de um meio indiferente vida e composto de uma matria heterognea em
relao mesma. essa a leitura que Monod faz de Darwin, equacionando trs
grandes matrizes da vida: a teleonomia, a morfognese autnoma e a invarincia
reprodutiva556. Para Monod, a teleonomia o finalismo que determina a vida como

551
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Burbujas. Microsferologa. Traduccin Isidoro Reguera, Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2003 [Publicao Alem: 1998]
552
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Burbujas. Microsferologa. Traduccin Isidoro Reguera, Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2003 [Publicao Alem: 1998]
553
MATURANA R., Humberto; MAGRO, Cristina; GRACIANO, Miriam; VAZ, Nelson. A Ontologia da
realidade. Belo Horizonte : Ed. UFMG, 1997.
554
LUHMANN, Niklas. Introduo teoria geral dos sistemas. Petrpolis: Vozes, 2009.
555
WEINER, Jonathan. O bico do tentilho: uma histria da evoluo no nosso tempo. Rio de Janeiro:
Rocco, 1995.
556
MONOD, Jacques. Acaso e necessidade: ensaio sobre a filosofia natural da biologia moderna.
Traduo Bruno Palma e Pedro Paulo de Sena Madureira. Petrpolis: Vozes, 1971.p. 24 e seg.
294

vida, bem como seus mecanismos projetivos, distintos de todos os demais seres
inorgnicos. A teleonomia a teleologia dos organismos vivos. A natureza objetiva
e no projetiva, e a teleonomia que inscreve os seres vivos como seres projetivos,
distintos da ausncia de projeto presente nas demais organizaes fisioqumicas557.
A morfognese autnoma seria o salto realizado pela vida em relao s demais
substncias qumicas, e produzido pelo acaso, o que transforma a vida em um
fenmeno improvvel e isolado no seio do universo. E, por fim, a invarincia
reprodutiva estaria ligada ao modo de replicao do texto gentico, matriz de
reprodutibilidade tambm distinta do modo pelo qual as molculas se organizam no
reino inorgnico.
Essas trs leis demarcariam o estatuto ontolgico da vida no cosmos558. A
teleonomia demonstra a distino entre os processos morfolgicos dos seres vivos e
de outras organizaes complexas, como os cristais. Esse estatuto expresso por
uma mxima que resume a dialtica entre acaso e necessidade: os seres vivos so
objetos estranhos559. A autonomia da gnese da vida ocorre devido
descontinuidade entre o vivo e o no-vivo, o que implica uma crtica radical aos
projetos vitalistas, baseados em um el vital ou uma fora qualitativamente distinta
presente na matria e que concorreria para a formao da vida560. Essa autonomia
ocorre porque no seria modelada a partir de foras externas561. A complexidade
das formas vivas consiste em mecanismos autopoiticos internos aos seres vivos.
Os nveis de complexidade gerados pelos sucessivos processos adaptativos dos
sistemas vivos, em contato com meios mais ou menos hostis ou isolados, apenas
ativa a ao teleonmica desses mesmos seres vivos, concorrendo para uma
diversificao morfolgica cada vez mais crescente. A ao do acaso produz o
isolamento das espcies em determinados meios e dessa maneira produz a
complexidade das formas autorreplicantes. A necessidade reprodutiva dos sistemas
vivos, em contato com a indiferena de meios heterogneos e indiferentes,

557
MONOD, Jacques. Acaso e necessidade: ensaio sobre a filosofia natural da biologia moderna.
Traduo Bruno Palma e Pedro Paulo de Sena Madureira. Petrpolis: Vozes, 1971.p. 15 e seg.
558
MONOD, Jacques. Acaso e necessidade: ensaio sobre a filosofia natural da biologia moderna.
Traduo Bruno Palma e Pedro Paulo de Sena Madureira. Petrpolis: Vozes, 1971.p. 13-32.
559
MONOD, Jacques. Acaso e necessidade: ensaio sobre a filosofia natural da biologia moderna.
Traduo Bruno Palma e Pedro Paulo de Sena Madureira. Petrpolis: Vozes, 1971.p. 24 e seg.
560
MONOD, Jacques. Acaso e necessidade: ensaio sobre a filosofia natural da biologia moderna.
Traduo Bruno Palma e Pedro Paulo de Sena Madureira. Petrpolis: Vozes, 1971.Vitalismos e
Animismos, 1971, p. 33-54.
561
MONOD, Jacques. Acaso e necessidade: ensaio sobre a filosofia natural da biologia moderna.
Traduo Bruno Palma e Pedro Paulo de Sena Madureira. Petrpolis: Vozes, 1971.p. 22.
295

concorreria para a acentuao da natureza e das leis teleonmicas desses mesmos


sistemas vivos, o que estaria na raiz da multiplicidade fenomnica das formas de
vida do planeta. A invarincia do cdigo gentico demonstraria uma estrutura
paradoxal da vida: a reproduo de estruturas altamente organizadas estaria ligada
possibilidade de uma invariabilidade da replicao gentica562. Contudo esse
paradoxo apenas reforaria uma condio paradoxal ainda mais profunda: a
existncia da prpria vida563. A vida seria uma presena aliengena no cosmos.
De certa maneira, a esferologia continua o projeto fundado sobre a assimetria
e a heterogeneidade da relao sistema-meio demarcado por Monod, mas o altera
sensivelmente em alguns pontos. Sloterdijk prope, inspirado diretamente em
Monod, a existncia de um puro Exterior, vazio e indiferente, domesticado e
incorporado pela vida em contnuos processos de transferncia esferolgica e de
assimilaes do puro exterior pelo puro interior, o que constitui uma matriz
antropolgica que determina no apenas os sapiens, mas todas as formas de vida.
O intuito subjacente a esse projeto de negao da teleologia imanente da natureza
claro: a biologia pretende por meio dele neutralizar as doutrinas que pregam a
presena de formas organizadas preexistentes vida, o que quase sempre implica
algum nvel de intencionalidade e, implicando intencionalidade, criaria a necessidade
de alguma agncia divina na criao do universo, fato refutado por praticamente
todas as vertentes da teoria darwiniana, pois exigiria conceber a complexidade no
comeo da vida, presente sob a forma de substncia inteligente, sendo que a
complexidade est sempre situada no fim do percurso evolucionrio, no no
comeo564.
Contudo, nada to simples e transparente. Segundo Stengers e Prigogine, a
teoria de Monod seria o ltimo umbral da cincia clssica: um umbral que precisa ser
ultrapassado. Um dos pontos nodais de ultrapassagem dessa herana seria uma
releitura dos princpios da termodinmica, sobretudo o segundo princpio. O segundo
princpio da termodinmica prev que o grau de entropia e desordem dos sistemas
organizados tende a aumentar ao longo do tempo. Devido a esse aspecto, Monod
sente-se obrigado a reconhecer que a lei da invarincia reprodutiva incompatvel
562
MONOD, Jacques. Acaso e necessidade: ensaio sobre a filosofia natural da biologia moderna.
Traduo Bruno Palma e Pedro Paulo de Sena Madureira. Petrpolis: Vozes, 1971.p. 29.
563
MONOD, Jacques. Acaso e necessidade: ensaio sobre a filosofia natural da biologia moderna.
Traduo Bruno Palma e Pedro Paulo de Sena Madureira. Petrpolis: Vozes, 1971.p. 29.
564
JONAS, Hans. Matria, Esprito e Criao: Dados Cosmolgicos e Conjecturas Cosmognicas.
Traduo Wendell Evangelista Soares Lopes. Petrpolis: Vozes, 2010.
296

com o segundo princpio da termodinmica565. E soluciona esse problema por duas


vias. Primeiro, reconhecendo o paradoxo como paradoxo inerente condio
paradoxal e excepcional da vida: justamente porque a vida no segue as leis da
matria, os vetores de dissipao e entropia presentes na natureza se invertem, e
quanto maior a entropia do meio, maiores os recursos adaptativos utilizados pela
vida para negar o meio e, desse modo, maior a produo de diversidade e
complexidade. Segundo, ao propor que a lei da invarincia funciona e deve
funcionar sempre dentro de sistemas energeticamente isolados, o que de fato est
de acordo com os princpios da especiao darwiniana, esse isolamento confirma a
lei geral da teleonomia, ou seja, do finalismo interno e exclusivo dos organismos
vivos566. justamente nesses pontos que Stengers e Prigogine sugerem a ruptura e
o salto qualitativo em relao a Monod e, a partir desse salto, uma superao de
toda a cincia clssica. E o fazem sugerindo uma nova compreenso da segunda lei
da termodinmica, tendo em vista sistemas no-lineares e estruturas dissipativas
irreversveis analisadas a partir de sistemas distantes do equilbrio e no a partir de
sistemas em equilbrio. O equilbrio dos sistemas produziria uma concepo de
entropia sempre negativa. Ao passo que o deslocamento do padro de equilbrio
poderia unificar entropia, perda de energia e complexidade, no como dados
isolados e exclusivo da vida, mas como uma realidade de todo o universo e de todas
as formas materiais, sejam orgnicas e inorgnicas.
Estamos ento diante de um impasse. Se a teoria das esferas representa
uma continuidade em relao a Monod e a essa matriz da cincia clssica, como a
esferologia pode ser entendida como uma teoria da complexidade? E se Stengers e
Prigogine propem uma superao dessa matriz clssica a partir de uma superao
de Monod, seu ltimo grande lumiar, em que sentido podemos colocar Sloterdijk,
Prigogine e Stengers em dilogo para criar essa alternativa de complexidade no seio
da cincia reducionista? E aqui se faz necessrio um recuo. Um recuo justamente
para o pensador matricial desses trs autores: o prprio Monod. A crtica nuclear
que se pode fazer a Monod no pode ser uma crtica que recorra empiria, pois os
dados da empiria esto sempre mudando e so flutuantes. A crtica que se deve
fazer a Monod deve partir de um fundamento epistemolgico e metodolgico. A

565
MONOD, Jacques. Acaso e necessidade: ensaio sobre a filosofia natural da biologia moderna.
Traduo Bruno Palma e Pedro Paulo de Sena Madureira. Petrpolis: Vozes, 1971.p. 29 e seg.
566
MONOD, Jacques. Acaso e necessidade: ensaio sobre a filosofia natural da biologia moderna.
Traduo Bruno Palma e Pedro Paulo de Sena Madureira. Petrpolis: Vozes, 1971.p. 29 e seg.
297

descrio dualista que Monod realiza da ontognese da vida no nada mais do


que uma extenso do dualismo ontolgico e de substncia presente em seu mtodo,
que explicitamente o mtodo dualista do racionalismo cartesiano, que faz a
objetividade da cincia derivar da objetividade imanente da natureza567.
O dualismo de Monod, nesse sentido, est distante do diadismo de Sloterdijk,
pois a ontologia relacional no pode ser confundida como um dualismo de
substncia. Como ontologia da relacionalidade, h um dado essencial na
esferologia, que diz respeito a uma prioridade ontolgica do interior em relao ao
exterior. Em outras palavras, medida que o Exterior s acessvel vida por meio
de incorporaes, todo inorgnico apenas pode ser compreendido como inorgnico
medida mesma que se torna um acoplamento ou uma extenso dos organismos
vivos. Esse aspecto crucial da esferologia nos conduz a uma grande matriz das
esferas, resumidas em dois conceitos: animismo e participao. A teoria da
participao a concepo segundo a qual todos os seres se fecundam e se
interpenetram mutuamente, em suas essncias, promovendo uma contnua
transferncia e metamorfose de substncia quando esses diversos seres se colocam
em contato, ou seja, quando se relacional. Por extenso, uma logica participativa
abole a fronteira racional entre vivo e no-vivo, entre humano e no-humano, entre
agente e paciente, entre natural e artificial, pois o puro Exterior sempre ser
agenciado por meio de acoplamentos produzidos pelos organismos, e desse modo,
os agentes sero sempre em alguma medida vivos. Ao seguir a cosmologia dualista
de Monod, a esferologia nega uma inteligncia imanente natureza e presente
desde o comeo do cosmos. Por outro lado, por meio da teoria da participao, ao
acentuar os seres vivos como agentes sobredeterminantes dos seres no-vivos, a
esferologia se instaura como um campo de multiplicidades e de animaes
anmicas, e pode ser entendida como uma ontologia animista radical.
Por outro lado, Stengers e Prigogine apresentam um cenrio da cincia da
complexidade contempornea que nos leva a questionar a distino exterior-interior
da teoria das esferas, como se a esferologia estivesse ancorada nos sistemas
reducionistas clssicos. Contudo, as ltimas linhas de sua obra, Stengers e
Prigogine se realinham a Monod para refutar uma perspectiva animista do

567
MONOD, Jacques. Acaso e necessidade: ensaio sobre a filosofia natural da biologia moderna.
Traduo Bruno Palma e Pedro Paulo de Sena Madureira. Petrpolis: Vozes, 1971.p. 32.
298

cosmos568. Como alternativa ao animismo, propem uma escuta potica da


natureza, que devolveria cincia, sem nus das conquistas da cincia clssica, a
possibilidade de criao de uma nova aliana entre vida e natureza e entre o
humano e o universo569. Seja como escuta potica seja como animismo reformulado,
esses parecem ser os pontos de conexo de uma aliana possvel entre Sloterdijk,
Stengers e Prigogine. Mas e Monod? Monod critica e se ope claramente a duas
matrizes de pensamento da cincia: o vitalismo e o animismo570. Contudo, enquanto
o vitalismo refutado em poucos pargrafos, Monod reconhece no animismo uma
teoria muito mais interessante e ntida a dificuldade que encontra em refut-la571.
Refere-se a Teilhard de Chardin como um herdeiro do animismo cientfico, o que faz
sentido572. Entretanto, surpreendentemente coloca no cerne do animismo trs
autores que no esperaramos ver arrolados com essa designao: Hegel, Engels e
Marx573. Nesse ponto esferologia, dialtica e complexidade se tocam por meio do
animismo. A poesia, concebida como acontecimento da linguagem que exige uma
escuta fina, pode vir a ser um modelo hermenutico da natureza, no menos vlido
do que a apreenso experimental. E por fim uma ontologia dos meios no nada
mais do que pensar nessas conexes, interpenetraes e devires de uma
substncia em outra substncia, de modo que a estrutura relacional entre duas
unidades possa ser iluminada como uma forma coextensiva e imanentes, sem as
quais essas mesmas unidades em questo no existiriam como unidades.
Poderamos tomar esses caminhos em alguns veredas. Concentro-me no
animismo. Creio que o animismo pode ser a porta de entrada de uma releitura de
Monod que promova o salto para a complexidade e, ao mesmo tempo, o ponto de
convergncia entre Stengers, Prigogine e Sloterdijk. Para traar essas pontes e
promover essas alianas, faamos uma digresso sobre as origens das ontologias
dualistas, e como essas ontologias determinaram o racionalismo clssico, incluindo
Monod. Depois analisemos o pensamento de Stengers e Prigogine, para

568
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 226.
569
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 226.
570
Conferir Captulo II, Vitalismos e Animismos, MONOD, Jacques. Acaso e necessidade: ensaio
sobre a filosofia natural da biologia moderna. Traduo Bruno Palma e Pedro Paulo de Sena
Madureira. Petrpolis: Vozes, 1971, p. 33-54.
571
MONOD, Jacques. Acaso e necessidade: ensaio sobre a filosofia natural da biologia moderna.
Traduo Bruno Palma e Pedro Paulo de Sena Madureira. Petrpolis: Vozes, 1971.p. 37.
572
MONOD, Jacques. Acaso e necessidade: ensaio sobre a filosofia natural da biologia moderna.
Traduo Bruno Palma e Pedro Paulo de Sena Madureira. Petrpolis: Vozes, 1971.p. 42 e seg.
573
MONOD, Jacques. Acaso e necessidade: ensaio sobre a filosofia natural da biologia moderna.
Traduo Bruno Palma e Pedro Paulo de Sena Madureira. Petrpolis: Vozes, 1971.p. 44 e seg.
299

compreender a narrativa alternativa que eles propem como meio de promover a


metamorfose das cincias da simplicidade para as cincias da complexidade. Nos
termos da esferologia, essa hiptese de uma nova aliana pode ser reformulada.
Todas as formas relacionais, inclusive as formas paradoxais, constituem um nico
ser relacional didico, independente do que chamemos de natureza e do que
chamemos de unio. Nesse sentido, poderemos chegar concluso de que aliana
alguma jamais se rompera. A partir da ontologia dos meios e da teoria geral dos
mesons, bem como a partir da ontologia da dade, nada existe fora de uma estrutura
relacional. Mesmo o dualismo de Monod no consegue promover uma ciso ntica.
O paradoxo de habitarmos um mundo que nos absolutamente estranho se resolve
medida mesma que incorporamos a estranheza e a aceitamos como
ontologicamente determinante daquilo que somos. A lucidez sobre o paradoxo
dissociativo vida-mundo dissolve a natureza paradoxal dessa mesma dissociao.
Se a humanidade do ser humanos depende da lucidez radical de nos sabermos
estrangeiros no universo, essa lucidez, justamente ao esvaziar o universo, abre a
clareira onde emerge aquilo que somos. E talvez seja isso que Monod tenha em
mente em sua defesa do dualismo: uma lucidez que ao separar une. E por isso
mesmo paradoxal, como Stengers e Prigogine acentuam. Uma lucidez que
Sloterdijk toma direta e frequentemente nas antigas escrituras gnsticas574.
Contudo, um problema continua a se propor. Como Sloterdijk pode sustentar
uma teoria geral da participao das substncias e uma teoria animista global, se a
vida permanece ancorada em uma substncia externa que lhe radicalmente
heterognea? A esferologia no padeceria nesse sentido dos mesmos problemas de
todo dualismo de substncia? A estrutura da dade ontolgica no poderia ser um
mero argumento recursivo que pretende camuflar as aporias internas a todo
dualismo substancial? Nesse sentido, e devido a essas mtuas limitaes surgidas
no confronto entre matrizes tericas distintas, preciso compreender em que
medida a esferologia pode ser criticada e reformulada a partir das descries
termodinmicas, dos sistemas no-lineares distantes do equilbrio e das estruturas
574
O tema da gnose est disperso por toda obra de Sloterdijk. Encontra-se mais especficamente em:
SLOTERDIJK, Peter. Extraamiento del Mundo. Traduccin Eduardo Gil Bera. Valencia: Pre-Textos,
1998 [Publicao Alem: 1993] SLOTERDIJK, Peter. El Sol y la Muerte. Investigaciones Dialgicas.
Traduccin Germn Cano. Barcelona: Siruela, 2004 [Publicao Alem: 2001. Coautor: Hans-Jrgen
Heinrichs] SLOTERDIJK, Peter. Tu Dois Changer ta Vie: De lAnthropotechnic. Traduit de lAllemand
par Olivier Mannoni. Paris: Libella, 2011. SLOTERDIJK, Peter & MACHO, Thomas H.. Weltrevolution
der Seele. Ein Lese und Arbeitsbuch der Gnosis von der Sptantike bis zur Gegenwart:.Mnchen,
Artemis & Winkler Verlag, 1991.
300

dissipativas, que retificam a concepo corrente da extraterritorialidade da vida em


relao natureza, concepo essa presente tanto em Monod quanto em Sloterdijk.
No mesmo sentido, podemos repensar os limites epistemolgicos dessa descrio
de uma aliana que se rompera. Essa ruptura pertinente no mbito de anlise das
cincias modernas, mas faria sentido falar em ruptura nos termos mais globais da
experincia de mundo moderna? Ou essa seria apenas uma nova aposta em velhas
alianas que se tornaram inviveis? Para fazer esse percurso crtico, comecemos
analisando as condies formais de emergncia do dualismo na historia do
pensamento. E como as concepes dualistas so a iminncia parda e conduzem
necessariamente a uma cosmologia inorgnica e ao mecanicismo modernos.

5.2 Deus e Mecanicismo

Para os antigos o conceito grego de physis engloba tudo o que existe. E


muitas vezes pensado como anlogo a devir. A physis grega uma fonte viva de
legalidade, um cosmos animado e em constante conflito [agon]. Nietzsche tinha
exatamente essa acepo de natureza quando props o herosmo da filosofia grega
trgica. Uma natureza passional, dinmica e sempre em transformao, combate e
luta. Uma natureza que se infinitiza a todo instante, como um grande organismo. A
vontade de potncia no nada mais do que uma ontologia das multiplicidades. A
descoberta das foras em eterna agonia que regem e dilaceram o universo em
sentidos convergentes ou antagnicos, mas sempre equipolentes. Um cosmos
animado que fora esvaziado pela razo negativa de Scrates e pelo cristianismo.
Essa agonstica representada pelos deuses e tambm pelos heris e humanos.
Nesse mbito, a relao entre physis e bios to marcante que a transformao do
conceito durante o latim medieval, traduzido como natura, ainda guarda sua marca
original: natura significa tudo o que nasce575. Vida e physis so conceitos
coextensivos. Para que houvesse uma diferenciao entre vida e cosmos foi preciso
ser produzida uma ciso ontolgica da physis, que passa a ser concebida a partir de
duas substncias distintas e heterogneas entre si: uma substncia orgnica e uma

575
GANDILLAC, Maurice de. Gneses da Modernidade. So Paulo: Editora 34, 1998.
301

substncia inorgnica. Qual a origem desse dualismo de substncia, que promove a


dissociao entre natureza e vida? Quando o universo comeou a ser pensado
como uma exterioridade indiferente e a vida a ser concebida como uma atividade
exterior s demais atividades do cosmo? Em linhas gerais, essa alterao no regime
de sentido e a passagem de um cosmos orgnico a um cosmos inorgnico est
diretamente ligada a uma alterao da formas e figuraes de Deus e dos deuses,
bem como aos desdobramentos do animismo. Em uma imagem altamente sugestiva,
o poeta Alexander Pope pinta o amigo Isaac Newton como um novo Moiss576. O
sentido do termo mdio que torna implcita a cadeia analgica do belo poema de
Pope simples: por meio da cincia, Newton pde acrescentar novas leis s leis
fundamentais do universo prescritas por Deus577. A cincia no apenas deixa de ser
o meio neutro de realizao de uma ao. Ela chega a rivalizar com Deus,
apresentando-se como corolrio das leis divinas. Em um sentido
surpreendentemente semelhante, o poeta John Milton diz que o fim de todo saber
restaurar a queda dos primeiros progenitores, ou seja, regenerar o den578. A
associao entre verdade revelada e teoria mecanicista, entre imago dei e imago
mundi guardam em si um sentido que precisaria ser melhor investigado. Esse dilema
entre uma divindade de amor e uma divindade de razo atravessa todo debate
cristo medieval. Um ponto de inflexo nesse debate a obra de Francis Bacon579.
Como se sabe, Bacon nunca refutou as Escrituras. Pelo contrrio, recorre a
elas para corroborar seus princpios naturais. H um dado valioso que a mensagem
crist tem a lhe oferecer, contra a desqualificao das artes mecnicas e manuais e
contra o farisasmo dos sbios e dos doutos: a redeno pelas obras. O nascimento
experimental guarda um lao de unio muito maior com essa dimenso soteriolgica
do ora et labora do que com as especulaes abstratas da baixa escolstica, que
a inimiga no apenas de Bacon, mas tambm de Leonardo e de todos os gnios da

576
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991. A nova aliana:
metamorfose da cincia. Traduo Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de
Braslia, 1991.
577
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991. A nova aliana:
metamorfose da cincia. Traduo Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de
Braslia, 1991.
578
ROSSI, Paolo. A cincia e a filosofia dos modernos: aspectos da revoluo cientfica. Traduo
lvaro Lorencini. So Paulo: Unesp, 1992.
579
ROSSI, Paolo. A cincia e a filosofia dos modernos: aspectos da revoluo cientfica. Traduo
lvaro Lorencini. So Paulo: Unesp, 1992, p. 59 e seg.
302

experincia580. Outra no foi a importncia subterrnea da alquimia para a


conformao de todo saber experimental moderno, a no ser seguir uma
espiritualidade experimental e radicalmente vinculada as operaes manuais e aos
experimentos, entendidos como processos discretos de transmutar, calcinar,
catalisar e purificar a matria, em sua passagem do nigredo ao albedo, da queda
redeno581. A intuio brilhante de Bacon consiste em ter depurado os elementos
da teologia das especulaes abstratas da filosofia. O gosto pelos jogos e labirintos
verbais tinha destrudo a pureza da f582. Restaurara a f implica em deslocar a
nfase, da linguagem para as mos. E tambm preciso depurar a teologia de si
mesma, pensando-a como uma forma de realizar Deus por meio da investigao
natural. Contudo para ultimar essa proposta em toda sua amplitude, uma guinada
fora essencial: o mundo no a imagem de Deus583.
Esta uma operao mais delicada. Para efetu-la preciso recorrer a
muitas passagens bblicas. Mas toda a cincia experimental moderna est embutida
nessa distase Deus-mundo. Por meio dessa concepo, a ordem de realidades
manipuladas na natureza no teria uma relao especular com a ordem e a
racionalidade prpria de Deus, permanecendo isoladas, em duas ontologias
distintas. Essa protossecularizao levada a cabo por Bacon foi decisiva para a
liberao de um potencial experimental adormecido na natureza, e, ao mesmo
tempo, pela condio de extraterritorialidade do homem e de Deus, que passam a
ver a natureza como um meio neutro de realizao. Entretanto essa separao
natureza-Deus estava em curso h uns sculos. Ela tem sua origem na doutrina da
dupla verdade, chamada pejorativamente de doutrina averrosta pelos filsofos
latinos, fora defendida e proposta por muitos outros pensadores medievais, como
Siger de Brabante, magistral defensor e teorizador da dupla verdade que
surpreendentemente figura nos ciclos puros do Paraso de Dante584. A atribuio
exclusiva da doutrina da dupla verdade Averris to errnea quanto limitadora,
pois a falsfa, a tradio da filosofia rabe, lidava com a ideia de uma separao
entre as duas ordens de seres, os naturais e os divinos, desde os seus primrdios,
580
ROSSI, Paolo. A cincia e a filosofia dos modernos: aspectos da revoluo cientfica. Traduo
lvaro Lorencini. So Paulo: Unesp, 1992, p. 78 e seg. e 49 e seg.
581
ROOB, Alexander. O museu hermtico: alquimia e misticismo. Lisboa, Taschen, 1997.
582
ROSSI, Paolo. A cincia e a filosofia dos modernos: aspectos da revoluo cientfica. Traduo
lvaro Lorencini. So Paulo: Unesp, 1992, p. 69 e seg.
583
ROSSI, Paolo. A cincia e a filosofia dos modernos: aspectos da revoluo cientfica. Traduo
lvaro Lorencini. So Paulo: Unesp, 1992, p. 80 e seg.
584
GILSON, Etienne. Dante y la filosofa. Madrid: Eunsa, 2004.
303

no sculo IX585. Justamente a possibilidade de separao entre as duas verdades, a


verdade da natureza e a verdade divina, que possibilitou os incrveis avanos
cientficos no mundo rabe nas reas da cincia natural, da matemtica, da tica e
da medicina, quase sempre feitos pelas mos de filsofos islmicos, como Al-
Ghazl, Avicena, bn Tufayl, Al-Kind e Al-Fhbi586. A separao entre ordem
divina e ordem natural pelos falsifa corresponderia apenas mais tarde separao
entre linguagem e mundo empreendida pelos nominalistas e Oxford a partir do
sculo XIII, e no conseguimos uma clara compreenso dessas assimetrias e
diacronias distintas entre as filosofias produzidas pelas trs tradies abramicas
sem uma viso de conjunto587. A teoria tica de Bacon a teoria tica de Al-Ghazl.
E muitas das condies abertas experimentao no surgiram apenas de uma
separao entre as palavras e as coisas. Surgiram de uma separao entre Deus e
natureza. Neste sentido, a cincia dos falsifa fora precursora de muitas
metamorfoses da cincia europeia.
Isso torna incorreto afirmar que o pensamento medieval foi avesso cincia,
pois em diversos sentidos a escolstica foi o esforo discursivo e conceitual para
que Deus, entendido como logos encarnado em Cristo por amor humanidade,
representasse tambm o logos grego da racionalidade imanente da natureza. H
uma demanda de racionalidade na filosofia escolstica, fundada sobre a noo de
que Deus no se reduz a um objeto de f, mas constitui-se como um imperativo
racional. Da mesma maneira, a presena de Deus no mundo conforma a substncia
animada desse mesmo mundo, entendido como uma unidade viva, e no como
mecanismo. Essa presena de uma natureza viva, animada por Deus, esto
presentes tanto no conceito fidesta de vestgio de Boaventura quanto na relao
entre ratio e natura, desenvolvida por Toms de Aquino. Quais as condies de
surgimento de um Deus que passa a ter as propriedades das mquinas e a
funcionar em analogia com os mecanismos artificiais? Esse sentido consiste em uma
assimilao da imagem do Deus transcendente das religies abramicas a uma
nova concepo: a de um Deus que se manifesta nesse mesmo mundo como lei e
no como presena.

585
ATTIE FILHO, Miguel. Falsafa: a filosofia entre os rabes. So Paulo: Palas Athena, 2002.
586
ATTIE FILHO, Miguel. Falsafa: a filosofia entre os rabes. So Paulo: Palas Athena, 2002.
587
LIBERA, Alain de. A filosofia Medieval. So Paulo: Loyola, 1998,
304

A distase entre presena e lei pode ser entendida como um dos eixos
estruturantes da modernidade588. Pascal percebeu muito bem essa dissociao e a
materializou na diferena entre o Deus do corao e o Deus dos filsofos. O
protestantismo e as doutrinas da sola fides e da sola scritura seriam manifestaes
dessa transformao no mbito das relaes entre Deus de presena e o Deus da
lei e das instituies. No por acaso Kant um dos agentes de erradicao do
pensamento metafsico e, ao mesmo tempo, o criador de um dos mais assombrosos
e inexequveis formalismos morais. Por isso, mesmo com a crtica moderna ao
pensamento metafsico, a oscilao entre explicaes do mundo de ordem mecnica
e de ordem vitalista prosseguiu ao longo do sculo XIX, e forneceu os substratos
tericos para que a demarcao entre orgnico e inorgnico persistisse. Esse
dualismo de substncia marca o surgimento da cincia clssica desde Newton, e
consiste em uma reduo do universo s formas vazias de leis absolutas, eternas e
perfeitas. Essas mesmas leis produzem apenas um inconveniente. Justamente por
causa de sua natureza absoluta, eterna e perfeita, acabam por se tornar inaplicveis
a um dos reinos do cosmos: a vida. Desenvolve-se uma dupla verdade e uma dupla
doutrina. Uma teoria geral do cosmos, da gravitao, da inrcia, das foras. Contudo
essa mesma teoria geral no consegue explicar a ontognese e a morfognese da
vida aplicando os mesmos princpios vlidos para o universo. Presenciamos uma
ciso entre as leis da physis e as leis do bios. Esse dualismo o marco epistmico
da cincia clssica de Newton a Einstein.
As imagens de um Deus ou de deuses humanos, demasiadamente humanos,
cumprem apenas uma tarefa parcial nessa guinada epistmica rumo a uma
depurao das engrenagens do cosmos, entendidos a partir das analogias
mecnicas. As paixes e os afetos desses agentes metaempricos no podem ser
conciliados com a hiptese de uma completa impassibilidade e indiferena do
cosmos em relao vida e ao homem. Se a cincia moderna efetua essa ruptura
da aliana entre natureza e vida, ela o faz porque realiza uma aliana com outros
modelos descritivos. Nesses termos, a modernidade consistiria em retomar o elo
pedido entre a cincia e cosmologias arcaicas dualistas, que tm como princpio um
dualismo ontolgico vida-natura e homem-cosmos. Nesse sentido, o problema no
e nunca foi sermos estrangeiros no cosmos. O problema como uma constituio

588
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produo de presena.: o que o sentido no pode transmitir. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2012.
305

relacional entre substncias ontologicamente heterogneas pode ser possvel em


termos epistmicos. Nesse sentido, a cincia moderna, em seu discurso oficial,
escamoteou o fato de que essa narrativa dualista apenas aparentemente pode ser
inferida de observaes empricas, e em muitos sentidos consiste na atualizao de
modelos dedutivos de tradies antigas.
Poderamos pensar ento em uma distino rigorosamente moderna entre a
cincia oficial e a cincia oficiosa589. A cincia oficiosa moderna se alinha a
cosmologias e cosmogonias arcaicas. Contudo, a cincia produz a denegao desse
estatuto, pois cabe modernidade justamente promover a separao e a purificao
das instncias discursivas das cincias e das demais prticas. Nesse sentido que
Latour prope que compreendamos a modernidade como uma dialtica entre
hibridizao e purificao590. medida que asseguramos a separao entre os polos
natureza e cultura e conseguimos isolar os elementos pertencentes a cada um
desses polos, conseguimos produzir a multiplicao dos hbridos sem interdies.
Justamente porque natureza e religio se tornaram entidades isoladas, possvel
alocar matrizes religiosas arcaicas no cerne de atividades experimentais empricas
das cincias da natureza, pois estas so concebidas como atividades
inquestionavelmente cientficas. nesse sentido que podemos identificar a matriz do
dualismo ontolgico do pensamento sobretudo em uma raiz: os textos gnsticos
antigos. E podemos compreender o dualismo orgnico-inorgnico da cincia
moderna como uma boa nova. No se pode analisar esse dualismo apenas do ponto
de vista privativo ou negativo. Ele estruturante da modernidade. E a ruptura de
uma aliana se tornou possvel graas reconstruo de uma aliana que havia sido
perdida. A ruptura da aliana do homem com a natureza surgiu graas a uma nova
aliana que a cincia estabelecera com as antigas tradies gnsticas e com o
evangelho do deus estrangeiro. O autor que melhor compreendeu essa aliana da
cincia moderna com a gnose antiga foi Hans Jonas. Tentemos circunscrever os
pontos nucleares desse debate.

589
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simtrica. Traduo Carlos
Irineu da Costa. So Paulo, 1994.
590
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simtrica. Traduo Carlos
Irineu da Costa. So Paulo, 1994.
306

5.3 Acaso, Gnose e Dualismo

Algum caminha por uma praia e descobre uma concha. Por mais perfeita
que essa concha seja em sua simetria, parece natural ao andarilho imaginar aquela
concha como um produto da natureza. Instala-se no esprito do andarilho a pergunta
sobre a natureza objetiva ou projetiva da natureza e sobre as distines entre
natureza e artefato591. Contudo se algum encontrasse no uma concha, mas um
relgio na areia, logo seria obrigado a imaginar uma intencionalidade de um sujeito
por trs da criao desse objeto. Essa imagem clssica desenvolvida por William
Paley no sculo XVIII foi eficaz para demonstrar um princpio de inteligncia infuso
na ordem natural e para realar em que medida a ordem natural seria fruto de uma
intencionalidade divina e obra de um divino relojoeiro592. Esse argumento, chamado
argumento teleolgico nas cincias naturais, hoje em dia conhecido como intelligent
design, parte de uma assimilao entre a racionalidade da criao divina e a
racionalidade dos artefatos mecnicos humanos, visando a fins [telos]. Essa imagem
mecanicista descreve em diversos graus a chamada cincia clssica, para a qual a
autossuficincia de Deus funciona como um recurso racional de demonstrar a
autossuficincia das leis naturais, por meio de modelos recursivos. Mesmo no
tendo vivido para presenciar a publicao da principal obra de Paley, David Hume
critica a noo de causalidade presente em sua concepo teleolgica. Como se
sabe, muitos especialistas sustentam um alinhamento direto entre a teoria
darwiniana e neodarwiniana e o pensamento de Hume, situando-o como uma
espcie de precursor de Darwin do ponto de vista filosfico. Ao fazer uma defesa
radical da contingncia, Hume estaria preparado o terreno para a teoria da seleo
natural operada pelo acaso, uma das premissas de Darwin e em diversos sentidos
diferente de uma organizao dos seres vivos produzida por uma inteligncia natural
ou sobrenatural.
Essa leitura de Darwin que enfatiza as condies de exceo sob as quais se
deu a ontognese da vida e a seleo das espcies em relao aos demais
processos fisioqumicos foi amplamente difundida no sculo XX. E encontra uma de

591
MONOD, 1971, p. 16 e seg.
592
PALEY, William. Natural Theology, or, Evidences of the Existence and Attributes of the Deity. 1st
ed. London: J. Faulder, 1802.
307

suas expresses mais consumadas na mencionada obra de Monod. Uma das


divisas de Monod consiste na distino ontolgica entre sistemas projetivos e
objetivos593. Essas dois conceitos, por sua vez, no apresentam paralelismo em
relao aos pares artificial e natural. Em outras palavras, boa parte da atribuio de
significado e de atividade projetiva que produzimos em relao s organizaes
naturais surge e uma viso antropocntrica, pois na quase totalidade dos casos
essas atividades ocorrem ao acaso e no possuem um plano de intencionalidade ou
de organizao imanente. Caberia natureza o cumprimento de uma atividade sem
finalidade, uma atividade indiferente e repetitiva em sua totalidade. O nico
fenmeno que possuiria esses nveis teleonmicos de autoorganizao seriam os
seres vivos. Surge ento a imagem matriz do projeto de Monod: a imagem da vida e,
especialmente, do ser humano como ciganos s margens do universo594.
A imagem descrita por Monod nova dentro de uma descrio cientfica da
origem da vida. Mas seu sentido filosfico foi explorados por diversas tradies
antigas. Duas cosmologias antigas retornam com toda fora a partir da cincia
moderna: o estoicismo e o gnosticismo. Alm de suas contribuies relativas ao
ascetismo [askesis] como um dos dispositivos antropolgicos fundadores da filosofia
e que tanto influenciaram Foucault595, Pierre Hadot nos lembra que os estoicos
desenvolveram a imagem do ser humano como um soldado do cosmos596. Sozinho
no universo e tendo como ponto de apoio apenas a retido fornecida pelo razo
primordial [logos spermatiks], sem amparo dos valores mundanos e da polis,
caberia ao estoico ser um soldado do cosmos. O cosmopolitismo inerente a essa
concepo estoica serviu de esteio para o cristianismo conciliar pensamento pago,
ascetismo, rigor moral e evangelizao, ou seja, constituir-se como uma esfereologia
imperial e uma das mais poderosas teorias cosmopolitas597. Tambm serviu para
produzir uma grande difuso de teorias descritivas sobre a singularizao da

593
MONOD, 1971, p. 16 e seg.
594
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991. A nova aliana:
metamorfose da cincia. Traduo Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de
Braslia, 1991.p. 2 e seg.
595
FOUCAULT, M. Histria da sexualidade III: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
596
HADOT, P. Exercices spirituels et philosophie antique. Prefcio de Arnold I. Davidson. Nova
edio, revista e aumentada. Paris: Albin Michel, 2002.
597
SLOTERDIJK, Peter. Esferas II: Globos. Macrosferologa. Traduccin Isidoro Reguera. Prlogo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2004 [Publicao Alem: 1999]
308

substncia divina em um longo processo de individuao dos elementos, dando


origem a uma das categorias centrais do cristianismo: a pessoa.
As disputas hermenuticas sobre a origem de algumas ideias modernas e
sobre a constituio da cincia moderna ampla e envolveria diversos aspectos e
fatores. Da mesma maneira, o papel desempenhado por doutrinas antigas no
desenvolvimento dessas ideias uma rea de enormes controvrsias. Frances
Yates analisou a presena do Corpus Hermeticum como pedra angular do
pensamento da Renascena, em especial Giordano Bruno598. Paolo Rossi mitiga o
aspecto religioso, e valoriza a matriz experimental599. Whitehead prope uma
continuidade entre pensamento medieval e moderno600. Serres aloca a criao da
fsica moderna em Lucrcio601. Na mesma linha, Greenblatt defende o
reaparecimento da obra de Lucrcio no sculo XV como um dos principais vrtices
irradiadores do mundo moderno como um todo602. Desse modo, faz sentido
pensarmos em uma origem gnstica para o dualismo moderno, medida que as
doutrinas que advogaram por um dualismo de substncia retroagem antiguidade.
Esto nas bases da definio da ortodoxia crist, no debate interno de Agostinho
contra o maniquesmo, uma das influentes vertentes da gnose do mundo antigo.
Uma abordagem sobre o aggiornamento da gnose no cenrio intelectual moderno
feita pela leitura antimoderna de Voegelin603. Voegelin define o gnosticismo em
linhas gerais como uma reduo da escatologia revelada das religies abramicas a
ordens naturais imanentes do ser. Um autor central para essa inverso dos
postulados das doutrinas transcendentalistas clssicas da tradio abramica seria
a escatologia do terceiro reino formulada por Joachin de Fiore, no sculo XII.
Curiosamente o mesmo autor que estaria na gnese da modernidade ocidental a
partir da dinmica psquica coletiva entre mscara, sombra, cristianismo e si-mesmo,

598
YATES, Frances. Giordano Bruno e a Tradio Hermtica. Traduo de Yolanda Steidel de
Toledo. So Paulo, Cultrix, 1995.
599
ROSSI, Paolo. O nascimento da cincia moderna na Europa. Traduo Antonio Angonese. Bauru:
Edusc, 2001.
600
WHITEHEAD, Alfred North. A Cincia e o mundo moderno. Trad. Hermann Herbert Watzlawskied.
Philosophica. So Paulo: Paulus, 2006,
601
SERRES, Michel. O nascimento da fsica no texto de Lucrcio. So Paulo: Unesp, 2003.
602
GREENBLATT, Stephen. A virada: o nascimento do mundo moderno. So Paulo: Companhia das
Letras, 2012
603
A tese est dispersa nos cinco volumes de Ordem e Histria, e especialmente em The New
Science of Politics e em Order and History, mas encontra-se rsumida em: Science, Politics, and
Gnosticism. Translation of Wissenschaft, Politik, und Gnosis by William J. Fitzpatrick, with a Foreword
to the American edition. Chicago: Henry Regnery, 1968.
309

segundo o Jung, um dos maiores gnsticos do sculo XX ao lado de Sloterdijk604.


Para Voegelin, contudo, essa reduo imanentista teria um valor gnosiolgico
francamente negativo, e teria marcado de modo indelvel a obra e o pensamento de
grandes autores ocidentais, como Marx, Hegel, Nietzsche e Heidegger, e, mais do
que isso, teria determinado a forma mentis do mudo moderno e contemporneo em
termos polticos.
Hans Jonas compreendeu com exatido e sensibilidade o itinerrio dessa
mesma imagem de isolamento, finitude e estrangeirismo dos seres vivos em relao
ao universo605. No comeo dos tempos, o ser humano vivia imerso em um
panvitalismo animista606. Como a vida estava dispersa por todos os lados, a vida no
constitua um problema, mas justamente seu oposto: a morte. A morte foi tematizada
pelas religies arcaicas como um problema fundamental justamente porque a morte
escapa cadeia causal de um monismo primordial, regido pela panspermia e pelo
pampsiquismo: tudo uma variedade do orgnico e tudo participa de uma nica
mente. Esse estado pode ser chamado de pananimismo ou de hilozosmo607. Com o
avano da cincia moderna desde o sculo XVI, e com as revolues copernicana e
kepleriana, houve uma expanso centrfuga do conhecimento do universo e da
imagem do mundo, por meio da qual a situao do homem e da vida passou a se
tornar ada vez mais anmala. Se antes o mundo era pensado medida do vivo, a
ponto de a cpula celeste e toda a Terra poder se solidarizar em termos ontolgicos
com esses mesmos seres vivos, a descoberta dos abismos dos espaos infinitos
comeou a encher de terror esse mesmo homem que passou a reconhecer a
desproporo na antiga proporo e a desmesura da antiga mesura. Surgia diante
da vida um puro e indiferente Exterior608.

604
JUNG, Carl Gustav. Aion: estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. Obras Completas de C G
Jung. Vol. lX/2. Petrpolis: Vozes, 1982.
605
JONAS, Hans. La religin gnstica: El mensaje del Dios extrao y los comienzos del cristianismo.
Siruela: Madrid, 2003.
606
JONAS, Hans. O Princpio Vida: Fundamentos para uma Biologia Filosfica. Traduo Carlos
Almeida Pereira. Petrpolis: Vozes, 2004, p. 17 e seg.
607
JONAS, Hans. La religin gnstica: El mensaje del Dios extrao y los comienzos del cristianismo.
Siruela: Madrid, 2003.
607
JONAS, Hans. O Princpio Vida: Fundamentos para uma Biologia Filosfica. Traduo Carlos
Almeida Pereira. Petrpolis: Vozes, 2004.
p. 17.
608
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Burbujas. Microsferologa. Traduccin Isidoro Reguera, Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2003 [Publicao Alem: 1998] SLOTERDIJK, Peter. Esferas
III: Espumas. Esferologa Plural. Traduccin Isidoro Reguera. Prologo Rdiger Safranski. Barcelona:
Siruela, 2006 [Publicao Alem: 2004]
310

O colapso dos globos e a crise imunolgica do sistema-Deus comea seu


trabalho609. As ontologias imperiais conseguiram por meio de transferncia
esferolgica povoar todos os recantos do mundo de vida, por meio do imperialismo
metafsico forjado na ubiquidade e oniscincia de Deus e dos deuses. A catstrofe
dos globos inaugura essa nova morfologia: a dos espaos vazios e desabitados de
qualquer indcio de vida610. Essa transformao da imagem animista do mundo teve
sua reconfigurao na cincia moderna, sobretudo com a teoria cartesiana e o
esvaziamento do mundo natural promovido pelo advento da concepo da extenso.
Vida e extenso so termos ontologicamente autoexcludentes. A
incomensurabilidade entre os termos matriciais referidos em qualquer sistema
dualista a condio primordial para que esse mesmo sistema funcione. A partir
dessa condio, a natureza, entendida como matria inerte, passa ser pensada
como matria, e, por conseguinte, a conscincia, como portadora da substncia
pensante, passa a ser concebida como portadora de uma substncia puramente
espiritual, que no est na matria extensa, nem nos demais seres vivos, nem na
natureza, nem em Deus e tampouco no cosmos. Habita apenas no humano, este ser
aliengena, lanado no deserto da finitude e nas praias vazias do universo.
Desenvolve-se a partir dessa clareira conceitual e real uma concepo que se torna
universal e hegemnica: o panmecanicismo611. Por meio dela, produz-se uma nova
configurao mental, radicalmente heterognea da herana animista. A morte
entendida como princpio de inrcia ou como princpio no-vivo passa a

609
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Burbujas. Microsferologa. Traduccin Isidoro Reguera, Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2003 [Publicao Alem: 1998] SLOTERDIJK, Peter. Esferas
II: Globos. Macrosferologa. Traduccin Isidoro Reguera. Prlogo Rdiger Safranski. Barcelona:
Siruela, 2004 [Publicao Alem: 1999] SLOTERDIJK, Peter. Esferas III: Espumas. Esferologa
Plural. Traduccin Isidoro Reguera. Prologo Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2006 [Publicao
Alem: 2004]
610
SLOTERDIJK, Peter. Esferas II: Globos. Macrosferologa. Traduccin Isidoro Reguera. Prlogo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2004 [Publicao Alem: 1999] SLOTERDIJK, Peter. Esferas
III: Espumas. Esferologa Plural. Traduccin Isidoro Reguera. Prologo Rdiger Safranski. Barcelona:
Siruela, 2006 [Publicao Alem: 2004]
611
JONAS, Hans. O Princpio Vida: Fundamentos para uma Biologia Filosfica. Traduo Carlos
Almeida Pereira. Petrpolis: Vozes, 2004.
611
JONAS, Hans. La religin gnstica: El mensaje del Dios extrao y los comienzos del cristianismo.
Siruela: Madrid, 2003.
611
JONAS, Hans. O Princpio Vida: Fundamentos para uma Biologia Filosfica. Traduo Carlos
Almeida Pereira. Petrpolis: Vozes, 2004.
p. 19 e seg.
311

desempenhar o papel de substncia primordial do universo. Estamos agora diante


de uma ontologia da morte612.
Contudo a potncia do dualismo muito maior do que se poderia imaginar. A
modernidade no cumpriu apenas a meta de se estabilizar sobre o dualismo como
fundamento ontolgico e epistemolgico. O dualismo de substncia pde inclusive
criar recursos que inviabilizassem a sua crtica e a sua superao. Um dos recursos
mais eficazes consiste em uma estratgia. Tendo produzido a separao entre
esprito e matria, entre mente e mundo, agora cabe constituir monismos parciais,
baseados na universalizao ontolgica dessas matrizes que foram divididas613.
Cada uma das metades do dualismo passam a atuar em regimes de sentido parciais
como se descrevessem a realidade global dos fenmenos, e assim adquirem a
valncia de totalidade. Justamente por isso, Heidegger compreendeu que Marx e
Kant, por mais que houvessem superado os impasses internos metafsica, ao
elegerem a matria e o sujeito como condies fundamentais do real, estavam ainda
assim inseridos dentro de um pensamento metafsico e da metafsica da
subjetividade que funda a modernidade, inaugurada com o dualismo de substncia
de Descartes614.
Por isso, se nos dias de hoje sentimos o devir do pensamento ultrapassar as
fronteiras do dualismo, esse mesmo dualismo se encontra cada vez mais fortalecido,
pois os mecanismos de crtica concepo dualista foram filtrados por essa mesma
premissa dualista que funda o horizonte de experincia e de conceitos do mundo
moderno. Trata-se da velha oscilao entre empirismo e transcendentalismo
detectada por Foucault como constitutiva dos dispositivos discursivos do saber-
poder da modernidade, oscilao que nunca foi resolvida justamente porque,

612
JONAS, Hans. O Princpio Vida: Fundamentos para uma Biologia Filosfica. Traduo Carlos
Almeida Pereira. Petrpolis: Vozes, 2004.
612
JONAS, Hans. O Princpio Vida: Fundamentos para uma Biologia Filosfica. Traduo Carlos
Almeida Pereira. Petrpolis: Vozes, 2004.
612
JONAS, Hans. O Princpio Vida: Fundamentos para uma Biologia Filosfica. Traduo Carlos
Almeida Pereira. Petrpolis: Vozes, 2004.
p. 24.
613
JONAS, Hans. La religin gnstica: El mensaje del Dios extrao y los comienzos del cristianismo.
Siruela: Madrid, 2003.
613
JONAS, Hans. O Princpio Vida: Fundamentos para uma Biologia Filosfica. Traduo Carlos
Almeida Pereira. Petrpolis: Vozes, 2004.
p. 26 e seg.
614
HEIDEGGER, Martin.Carta sobre o humanismo. Os Pensadores. So Paulo: Abril, 1987.
312

medida que a apario fantasma do dualismo, no foi feita para ser resolvida615.
Se fosse resolvida, como os modernos poderiam se constituir como modernos em
uma relao de simetria ns-eles cuja finalidade dissolver as simetrias em
assimetrias produtivas?616 Trata-se exatamente do mesmo movimento detectado por
Latour: a purificao dos agentes e a constituio de dois polos absolutos de
natureza e cultura, de modo que esses polos possam se misturar, sem alterar o
regime de dualismo ontolgico nos quais eles operam e que constitui a sua segunda
natureza, para pensar com Norbert Elias. Ela baseada em dois tipos de monismo:
o monismo materialista e o monismo idealista617. Ambas as concepes nascem de
uma mesma ciso primordial no interior do ser e de uma dissoluo do dualismo que
se instituiu como matriz do pensamento a partir do sculo XVII. A passagem de uma
matriz dualista a um novo tipo de pensamento que pretenda superar a mecnica
interna ao dualismo o maior desafio intelectual do mundo contemporneo. Essa
passagem depende da criao de uma nova filosofia integral dos organismos,
empreendimento que foi levado a seu ponto mais alto no sculo XX por Whitehead.
E tambm pode vir a se realizar a partir do desenvolvimento de uma ontologia dos
meios e uma teoria geral dos mesons.
Uma das principais contribuies de Jonas nesse sentido ter proposto uma
fenomenologia das matrizes do dualismo moderno a partir das escrituras gnsticas,
bem como suas implicaes para o pensamento cientfico e para a doutrina do ser
de modo geral618. Mas no que consiste em linhas gerais a doutrina da gnose? Os
documentos e as escrituras apresentam perspectivas e procedncias diversas.
Contudo de modo geral um dos postulados centrais da gnose a defesa de uma
cosmologia dualista, baseada em um dualismo ontolgico de substncia. H uma
variedade desse dualismo presente na religio rfica619. Muitas fontes extragregas
estariam na sua origem, e podem ser rastreadas sobretudo a partir de vestgios de

615
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das cincias humanas. Traduo
Salma Tannus Muchail. So Paulo: Martins Fontes, 2000.
616
LATOUR, 1999.
617
JONAS, Hans. La religin gnstica: El mensaje del Dios extrao y los comienzos del cristianismo.
Siruela: Madrid, 2003.
617
JONAS, Hans. O Princpio Vida: Fundamentos para uma Biologia Filosfica. Traduo Carlos
Almeida Pereira. Petrpolis: Vozes, 2004, p. 26 e seg.
618
JONAS, Hans. O princpio vida: fundamentos para uma biologia filosfica. Traduo Carlos
Almeida Pereira. Petrpolis Vozes, 2004, p. 16-34.
619
GUTHRIE, W. C. K. Orfeo y la religin griega: estudio sobre el movimiento rfico. Madrid: Siruela,
2003.
313

um dos primeiros e mais assertivo dualismos da historia humana: o zoroastrismo620.


O orfismo uma reforma no interior do dionisismo e pretendeu promover uma
purificao das concepes dionisacas relativas alma, purificao essa bastante
comum no mundo antigo na poca do surgimento do cristianismo, como a o seu
arquirrival Mitra e as diversas modalidades de cultos de mistrios621. Dentre essas
manifestaes, o mito de Orfeu foi aquele que conseguiu catalisar um dos mais
poderosos discursos sobre a diviso entre corpo e alma. A partir de imagens como a
do corpo [soma] entendido como tmulo [sema], o orfismo promoveu uma guinada
no estatuto da alma622. Esse dualismo rfico seduziu Plato, e um das principais
matrizes para a sua definio de alma nos dilogos intermedirios, como o Fdon.
A assimilao da religio de Orfeu, tanto pela filosofia quanto pelo
cristianismo, acabou por diluir esse dualismo ontolgico, transformando-o a servio
da dualidade corpo-alma da soteriologia crist a servio da imortalidade e da
salvao, ou seja, mitigou o dualismo e o incorporou a um princpio de equivocidade
ontolgica gradualista, pois as partes separadas acabavam se unificando em Deus.
Certamente esse no um debate tranquilo. Um dos maiores trabalhos do
cristianismo sempre foi manter as substncias do mundo e de Deus unidas pela
Encarnao, mas separadas na salvao, caso contrrio torna-se impossvel criar
qualquer regime moral. O dualismo esteve presente como doutrina oficiosa, e
ausente como corpo oficial de crenas. Essa dialtica teve alguns dos seus pontos
mais agudos em alguns momentos dramticos do pensamento. A doutrina da
apocatstase de Orgenes, a noo segundo a qual, se o cosmos regido por uma
unidade, no fim dos tempos Deus e sat se reunificaro em uma mesma figura, se
dispersa pelo mundo cristo grego por meio de Gregrio Nazianzeno, Mximo
Confessor e encontra no sculo IX uma das mais sublimes e poderosas formulaes
na cosmologia pantesta de Scotus Erigena, no por acaso assassinado por
heresia623. A ontologia de Erigena prosseguir transformada nos sistema monistas
globais de Espinosa, Hegel e, sobretudo, Schelling.

620
GUTHRIE, W. C. K. Orfeo y la religin griega: estudio sobre el movimiento rfico. Madrid: Siruela,
2003.
621
BURKERT, Walter. Antigos cultos de mistrio. So Paulo: Edusp, 1991.
622
Esse exemplo explorado por Guthrie e tambem por JONAS, Hans. O princpio vida: fundamentos
para uma biologia filosfica. Traduo Carlos Almeida Pereira. Petrpolis Vozes, 2004, p. 23.
623
GILSON, Etienne. A filosofia na Idade Mdia. Traduo Eduardo Brando. So Paulo: Martins
Fontes, 1995.
314

Em termos bastante gerais, para a gnose o cosmos dividido em duas


instncias absolutamente incomensurveis entre si: o puro esprito [pleroma] e a
pura matria [kenoma]. O Deus que todas as religies reputam criador do mundo
no Deus, mas um demiurgo, imperfeito e mal. Por isso o universo sugere para os
humanos a perfeio e a plenitude mesma medida que torna essa perfeio e
plenitude impossvel pela interveno da morte, da dor, do sofrimento e de uma
absoluta e silenciosa indiferena. O cosmos seria uma cmara fechada de
sofrimento e absurdo, porque deixa entrever uma salvao, mas no fundo um
holograma. Para a gnose, Cristo e os demais avatares das religies so atores na
arena trgica do cosmos. O verdadeiro deus Sophia, situada na regio plermica,
fora do cosmos e para alm de Deus. Os gnsticos tm uma centelha divina dessa
substncia sofinca, e por isso conseguem reconhecer o mundo como palco, Deus
como farsa e o cosmos como iluso. A imagem do exlio csmico, a indiferena de
Deus, o estrangeirismo de uma conscincia, o absurdo de um mundo vazio de
qualquer sentido: essas fascinaes primordiais e arcaicas, embora adormecidas
entre as tintas do tempo e da heresia, possuem uma profunda conexo com
algumas das teses centrais da biologia contempornea e do pensamento existencial,
e por isso Jonas dedicou anos de trabalho em sua fenomenologia da gnose e do que
pode ser chamado como um atitude gnstica diante do cosmo624. A cosmologia
gnstica seria profundamente solidria s descries do universo e da vida
presentes em autores como Pascal, Nietzsche, Heidegger625. Tambm foi uma
preparao para o conceito e para a experincia do niilismo e para as filosofias da
existncia na modernidade. Por isso, nessa mesma chave, Monod abre sua obra-
prima com uma citao de Camus, autor que no por acaso forjou toda sua filosofia
da desvinculao ontolgica, do homem absurdo e do estrangeirismo existencial por
meio de um contato direto com a gnose antiga, possibilitado por seus estudos sobre
Plotino e o neoplatonismo626.
Essa atualizao de gnose pela modernidade recobre um amplo espectro de
fenmenos, e especialmente marcante na arte e na literatura, desde escritores

624
JONAS, Hans. La religin gnstica: El mensaje del Dios extrao y los comienzos del cristianismo.
Siruela: Madrid, 2003.
625
JONAS, Hans. La religin gnstica: El mensaje del Dios extrao y los comienzos del cristianismo.
Siruela: Madrid, 2003.
626
Ver especialmente o captulo: JONAS, Hans. Gnose, existencialismo e niilismo. O princpio vida:
fundamentos para uma biologia filosfica. Traduo Carlos Almeida Pereira. Petrpolis Vozes, 2004,
p. 211-251.
315

como Sade, Blake, Nerval e Baudelaire at o furor gnsticos de Rimbaud,


Lautramont e Bataille627. O importante captar a presena intempestiva dessas
matrizes gnsticas antigas e compreendermos como elas podem, direta ou
indiretamente, ter configurado o pensamento moderno, determinando muitos de
seus modelos descritivos do universo. E entendermos tambm como o dualismo
promove uma ruptura irreversvel no estatuto ontolgico do cosmos, cindindo-o em
duas substncias heterogneas. Alm disso, a gnose produz um golpe que ser
decisivo para o pensamento cientfico moderno: promove um colapso nas relaes
parte-todo e, desse modo, inviabiliza a noo de uma inteligncia divina imanente ao
universo628. Ao faz-lo, a gnose teria fornecido um dos eixos de estruturao do
pensamento moderno, presente sobretudo na biologia: a noo de acaso. Se no h
continuidade entre a matria extensa do universo e a vida, a teleonomia e a
autopoiesis que caracterizam a vida como uma atividade projetiva do ser no podem
ser deduzidas de uma razo ou de uma intencionalidade presentes no cosmos. A
necessidade de adaptao a meios cada vez mais adversos teria gerado a
complexidade do sistema-vida ao longo do tempo, e no estaria inscrita na origem
do universo ou em sua estrutura fundamental. Se no h finalidade marcada na
existncia da vida, o que pode manter nossa experincia da realidade una, a ponto
de podermos compreender os fenmenos como fenmenos? Essa grande pergunta
sobre a unidade sinttica transcendental da experincia a pergunta que est na
base da guinada transcendental de Kant, como resposta estrutura causal
contingente formulada por Hume. Poderamos acrescentar que a resposta de Kant
no seria apenas a Hume, mas a Descartes. E, indiretamente, a toda tradio da
gnose. Contudo esse recurso experincia e aos dado da inferncia indutiva para
corroborar ou criticar os princpios de causalidade formados a partir de dados
sensveis se mostram insuficientes sob alguns aspectos629. O mais acentuado deles
que elas se apoiam em argumentos recursivos antropocntricos.
Como solucionar o impasse transcendental da unidade da percepo sem
precisar recorrer a uma constituio transcendental do sujeito, nem ao empirismo
transcendental que postula a experincia pura e nem a uma ordem divina inscrita no
627
WILLER, Claudio. Um obscuro encanto gnose, gnosticismo e poesia moderna. Rio de Janeiro:
Editora: Civilizacao Brasileira, 2010.
628
JONAS, Hans. O princpio vida: fundamentos para uma biologia filosfica. Traduo Carlos
Almeida Pereira. Petrpolis Vozes, 2004, p. 242 e seg.
629
JONAS, Hans. Percepo, causalidade e teleologia. O princpio vida: fundamentos para uma
biologia filosfica. Traduo Carlos Almeida Pereira. Petrpolis Vozes, 2004, p. 35-48.
316

cosmos e espelhada nos organismos? Em outro belo livro situado na fronteira entre
a filosofia, a cosmologia, a teoria evolucionria e a cincia da religio, Jonas
desenvolve uma tese que pode ser uma alternativa a esses regimes de causalidade
que configuraram acaso e teleologia como regimes de sentido antagnicos e
inconciliveis630. O universo no seria eterno, como imaginavam Aristteles e toda
tradio fsica e metafsica inspirada nele ou em tradies orientais. O cosmo de fato
teria surgido de um ponto inicial, de altssima concentrao de energia. Esse
momento inicial passou a ser confirmada por dados empricos, baseados na
segunda lei segunda da termodinmica e na captao das chamadas radiaes de
fundo, emisses de energia vindas do momento em que o universo veio luz e se
expandiu631. Contudo o imaginrio comeou a conceb-lo a partir da imagem
equivocada de uma exploso. Poderamos pensar o ponto de singularidade como
esse ponto inicial das dimenses espaciotemporais que constituem o universo, sem
necessariamente precisarmos fundar uma teoria criacionista ou nos apoiarmos no
big bang, hiptese cada vez mais refutada na cosmologia632. Pois bem: mesmo
partindo desse postulado, para Jonas impossvel sustentar a presena de uma
inteligncia no comeo da criao. E sugere dois modelos cosmognicos de
compreenso. O universo no teria surgido de um logos cosmognico. Teria surgido
sim de um eros cosmognico. O modelo descritivo da unidade racional de um logos,
entendido como princpio cosmolgico de inteligibilidade, passa a ser substitudo por
uma unidade ontolgica amorosa e conectiva, fundada em eros e compreendida
como fora capaz de sustentar o universo unido, a despeito das foras dissipativas e
entrpicas que lhe so imanentes633. E essa impossibilidade pode ser explicada do
ponto de vista da teoria evolucionria darwiniana e neodarwiniana, e corrobora a
tese de Monod.
Desde Darwin a evoluo da vida tem sido entendida como resultado de um
processo de seleo natural. Esse processo cego, regido pelo acaso, e seus
desdobramentos englobam a totalidade das espcies e das formas, estruturas e

630
JONAS, Hans. Matria, Esprito e Criao: Dados Cosmolgicos e Conjecturas Cosmognicas.
Traduo Wendell Evangelista Soares Lopes. Petrpolis: Vozes, 2010.
631
HAWKING, Stephen. Minha breve histria. Traduo de Alexandre Raposo, Julia Sobral Campos e
Maria Carmelita Dias. Reviso tcnica de Amncio Friaa, Astrofsico do Instituto de Astronomia,
Geofsica e Cincias Atmosfricas da USP. Rio de Janeiro: Intrnseca, 2013.
632
NOVELLO, Mrio. O que cosmologia? A revoluo do pensamento cosmolgico. Rio de Janeiro:
Zahar, 2016.
633
JONAS, Hans. Matria, Esprito e Criao: Dados Cosmolgicos e Conjecturas Cosmognicas.
Traduo Wendell Evangelista Soares Lopes. Petrpolis: Vozes, 2010.
317

funes da vida na Terra at o presente momento. A narrativa da vida a odisseia


da sobrevivncia dos mais aptos e da extino dos menos aptos, aos olhos de um
universo absolutamente indiferente. Se o universo foi produzido por um artfice que
assume as figuras antropomrficas do arquiteto ou do relojoeiro, esse arquiteto ou
esse relojoeiro seriam cegos: as catstrofes seriam erros microscpicos na escala
macroscpica das engrenagens da criao634. basicamente a partir dessa noo
de ordem sem intencionalidade que Monod explica a teleonomia e a autopoiesis
internas organizao da vida. Uma organizao que visa a fins e cresce em
complexidade, mas que no surge da continuidade de uma legalidade ou como
causa interna de uma teleologia presente em todos os nveis da matria csmica.
Essa concepo de uma ordem sem intencionalidade, de um sistema que se torna
complexo, no por meio da atuao de leis de organizao, mas por meio do
acmulo de desempenhos cegos, formados a partir de tentativas e de erros que, por
sua vez, se desenrolam em um jogo aberto entre o acaso e a necessidade: essa
parece ser a imagem do cosmos moldada pela biologia moderna surgida com
Darwin.
O surgimento da cincia clssica estaria nesses termos intimamente ligado
concepo de que o universo uma mquina635. Justamente em virtude desse papel
nuclear desempenhado pelo acaso, a imagem da indiferena csmica passou cada
vez mais a ser assimilada imagem das mquinas. Elas funcionam perfeitamente
bem, possuem leis abstratas e universais que as regem, mas no apresentam
nenhuma intencionalidade e tampouco se organizam a partir de uma inteligncia que
lhes seja exterior e muito menos transcendente. E no apenas a isso: o universo,
como um autmato, tambm nos totalmente indiferente. Nesse sentido, tornou-se
conhecida a definio dada por Monod, segundo a qual a vida seria um objeto
estranho e os seres humanos seriam ciganos no cosmos636. Recapitulando a antiga
imagem gnstica, Sloterdijk se apoia em Monod e o conecta aos pensadores antigos
ao descrever o ser humano como um idiota do cosmos637. No seria a noo de

634
Refiro-me imagem usada por William Paley no sculo XVIII e retomada por Richard Dawkins
para exemplificar a teoria evolucionria: DAWKINS, Richard. O relojoeiro cego. So Paulo:
Companhia das Letras, 2001.
635
Uma brilhante sntese do pensamento de Newton feita em sua poca por Voltaire: VOLTAIRE.
Elementos da Filosofia de Newton. Campinas: Unicamp, 1996.
636
PRIGOGINE-STENGERS, 1991.
637
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Burbujas. Microsferologa. Traduccin Isidoro Reguera, Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2003, p. 30..SLOTERDIJK, Peter. Esferas III: Espumas.
Esferologa Plural. Traduccin Isidoro Reguera. Prologo Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2006.
318

progresso o centro irradiador e o ncleo epistmico da cincia clssica e da


modernidade. Ela se tornou possvel graas a um elemento estrutural que a
condio de possibilidade do progresso: o desenvolvimento da ideia de que o
orgnico um acidente no seio do inorgnico. Como diria Paul Valry, o ser um
acidente do no-ser. Como poeta-pensador, Valry intuiu em toda sua amplitude a
revoluo morfolgica produzida pela descoberta do infinito e de uma pura
exterioridade, que passa a ser figurada como um cosmos impessoal e indiferente. A
revoluo de Kepler foi mais do que uma revoluo antropolgica, foi uma revoluo
dos mesons. No alterou apenas o conjunto de imagens que concorrem para a
autoimagem do ser humano. Alterou a escala de proporcionalidade dessas mesmas
imagens, alterao cujos desdobramentos mais do que humanos passam a ser
meta-humanos e transumanos.
Em outra luminosa intuio, glosada e elevada por Heidegger condio de
conceito, Hlderlin fala na fuga dos deuses. Menciona tambm o advento de uma
nova era: a noite dos deuses [Gottesnacht]. Justamente porque os deuses se foram
do mundo e no habitam mais a natureza, a natureza pode ser alterada e
manipulada. A partir do movimento de desvelar-ocultar da verdade, Heidegger l
essa noite dos deuses que abandonaram o mundo como o fim de uma imagem do
mundo. Parafraseando Whitehead, o conflito entre teorias no um destino, mas
uma oportunidade638. O fim de um mundo no uma fatalidade, mas uma nova
possibilidade. A fuga dos deuses da natureza explicita o abandono e, por sua vez,
possibilita a experincia do vazio, do nada e da carncia, entendidas no como
estruturas privativas, mas como potncias do ser que se tornaram passveis de
serem desveladas e retiradas de seu ocultamento em direo luz. O sujeito s
pode mudar livremente o mundo porque o mundo se objetivou em um no-sujeito. O
ser povoado de criaturas e animado pelo animismo primordial, surgido de um cosmo
pensado e vivido imagem e semelhana da vida e que toma a vida como medida,
encontra finalmente a sua desmesura. Passa a ser pensado como um cosmos
oculto, cada vez mais incessvel. No por acaso o surgimento do protestantismo
sincrnico emergncia dessa imagem de um cosmos frio e aliengena. A noo
mesma de um Deus abscndito, absolutamente distante, e mesmo a imagem de um
Deus que abandou o mundo e se retirou em silncio nos confins de um universo

638
PRIGOGINE-STENGERS, 1991.
319

infinito passa a ser uma imago mundi precisamente moderna de uma das vertentes
mais influentes do cristianismo, porque precisamente ligada a uma ontologia de
meios e a uma imagem de mesons por meio dos quais a presena passa a se
realizar por meio da ausncia.
O mago dessa fora centrfuga de esvaziamento da natureza pode ser
apreendida por diferentes narrativas. Algumas dessas narrativas retroagem a
origens remotas. Enquanto as teologias das religies abramicas consistem em
linhas gerais em uma enorme tentativa de conciliar a absoluta transcendncia de
Deus e o gradualismo de sua presena no universo, por meio da equivocidade do
ser e do gradualismo das emanaes, atributos e manifestaes da substncia
divina no universo, o dualismo da gnose prope a imagem de um Deus que se exilou
para fora do cosmos, deixando como nica testemunha de seu exlio uma centelha
de sustncia divina na mente de alguns poucos. Acessar o conhecimento divino
sobre o mundo se separar da totalidade do mundo. estabelecer uma estranha
aliana com Sophia, divindade que, sendo exterior ao cosmos, reduz a totalidade do
cosmos a um holograma estpido, animado por um Deus bruto, como um
ventrloquo. A acosmia da gnose se materializa como uma ontologia radical do
Estrangeiro e, a partir do sculo XVII, se materializa por meio de uma aliana
subterrnea entre gnose e cincia. A partir dessa fratura ontolgica instaurada no
mago do universo, torna-se possvel conceber um ponto de vista extraterritorial em
relao a esse mesmo universo. O modelo representacional sujeito-objeto passa a
ser a condio para a instaurao de uma manipulao livre da natureza, em termos
experimentais.
No que concerne complexidade e extraterritorialidade, precisamos ampliar
um pouco mais o teor paradoxal que esse dualismo ontolgico representa. A pior
forma de nos desembaraarmos do dualismo ignorarmos sua potncia explicativa.
O dualismo no pode ser visto apenas como uma aliana que se rompera entre
homem e natureza, entre cincia e experincia, entre ser e devir, entre pensamento
e vida. Por qu? Porque a partir de um ponto de vista da teoria sistmica, se
elevarmos essa concepo de extraterritorialidade mxima potncia, poderemos
produzir uma compreenso complexa das diversas e recprocas interaes entre
agentes e pacientes dos diversos sistemas e das diversas prticas, bem como das
mltiplas interaes dos sistemas e meios, em uma chave decididamente complexa.
Nesse caso, o estrangeirismo torna-se a condio de possibilidade para o
320

surgimento de uma pea fundamental da teoria dos sistemas: o observador de


segunda ordem639. O observador de segunda ordem, tambm chamado de
observador de segundo grau, aquele que observa os sistemas que observam
outros sistemas, ou seja, que observa os sistemas se observando a si mesmos.
Desse modo, os observadores de segunda ordem constitui pontos cegos de
observao dos sistemas entre si, bem como a possibilidade de uma
autoobservao interna e externa a diversos sistemas, em uma escala ad
infinitum640. A possibilidade de conceber a natureza como matria inerte de
manipulao no um dado emprico. uma possibilidade discursiva inscrita nas
prprias relaes antropolgicas que os seres humanos mantm com aquilo que
definem como natureza. Partimos de uma divisa comum: a suspenso do sentido
global da natureza, com seus atributos, potncias, reservas e inviolabilidades,
produziu a abertura necessria emergncia da ciso ontolgica sujeito-objeto, sem
a qual cincia experimental alguma teria havido. No por acaso, Foucault ressaltou
essa ciso com muita lucidez: a partir do fim da metafsica com Kant, toda a filosofia
moderna at Wittgenstein e Heidegger consiste em uma oscilao entre empirismo e
transcendentalismo, ou seja, em um litgio sem fim entre filosofias do objeto e
filosofias do sujeito, sem uma sntese dialtica possvel641. Hegel e Marx seriam os
pensadores por excelncia da superao dessa dicotomia. E o fazem, segundo
Monod, como porta-vozes da reativao do animismo642.
Contudo no deixa de ser sugestivo que essa dinmica de exterior-interior e
os imperativos de extraterritorialidade prossigam com a Escola de Frankfurt. A
possibilidade de se pensar os fenmenos a partir de sua constituio negativa passa
a ser uma das condies sine qua non de desativao das snteses parciais
alienadas pelo mecanismo de captura do capital. Em certo sentido, Sloterdijk
compreende o acosmismo gnstico como um instrumento privilegiado de levar a
teoria crtica para alm de si mesma, em uma negatividade de segundo grau, porque
fundada sobre uma ontologia e no a partir de mecanismos dialticos recursivos. Se
retroagirmos, veremos que essa percepo de um estado de exceo ontolgico
quase se confunde com a constituio da modernidade, entendida como processo

639
LUHMANN, Niklas. Introduo teoria dos sistemas. Petrpolis: Vozes, 2009.
640
LUHMANN, Niklas. Introduo teoria dos sistemas. Petrpolis: Vozes, 2009.
641
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas: uma Arqueologia das Cincias Humanas. So
Paulo, Martins Fontes, 1995. Captulo III, Representar, pg. 64.
642
MONOD, Op.cit.
321

de atravessamento que o infinito no interior dos regimes de totalidade, produzindo


um desmoronamento dos sistemas de totalizao e de imunizao. Por isso no
apenas a cincia clssica se baseia no primado do inorgnico: o movimento mesmo
da modernidade parece ter sido desde os limiares do sculo XVI um xodo dos
seres humanos em direo hegemonia e ao omnvora de foras extra-
humanas643. Paradoxalmente, quanto mais acessamos as leis e as engrenagens
sutis da natureza, mais nos tornamos estranhos a essa mesma natureza644.
Tambm, nesse sentido, no de se surpreender que o mesmo Jonas tenha se
dedicado por dcadas a se transformar em um dos principais exegetas do antigo
pensamento gnstico. Este postulara a acosmia de um Deus estrangeiro, situado
fora do mundo, e que transformava tambm os seres humanos e, em especial, os
gnsticos, em estrangeiros do cosmos645. Sem recorrer necessariamente matriz
gnstica, Foucault detecta a emergncia de um olhar capaz de instaurar a
experincia de um exterior absoluto justamente como uma das bases epistmicas da
modernidade646.
Nesse quadro terico, os postulados das leis gravitacionais newtonianas
compem uma mecnica descritiva do universo baseada na simplicidade e
homogeneidade dessas leis647. Por isso, por mais que Newton retenha elementos do
imaginrio alqumico, como tem sido ressaltado por alguns de seus principais
especialistas648, as divisas mgicas lhe fornecem os subsdios para a reduo
radical que caracteriza a modernidade fundadora de sua concepo de cincia, cujo
corolrio se encontra em uma de suas mximas: o espao so os rgos sensrios

643
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Burbujas. Microsferologa. Traduccin Isidoro Reguera, Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2003, p. 29. SLOTERDIJK, Peter. Esferas III: Espumas.
Esferologa Plural. Traduccin Isidoro Reguera. Prologo Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2006.
644
Esse paradoxo central para uma definio do desenvolvimento da cincia clssica em
PRIGOGINE-STENGERS, 1991.
645
JONAS, Hans. La religin gnstica: el mensaje del Dios Extrao y los comienzos del cristianismo.
Barceloa: Siruela, 2000.
646
FOUCAULT, Michel. O Pensamento do Exterior. So Paulo: Princpio, 1990.
647
PRIGOGINE-STENGERS, 1991.
648
Betty Dobbs uma das historiadoras da cincia que revelam com maior profundidade o impacto
das cincias alqumico-hermticas nos Principia de Newton: DOBBS, Betty Jo Tetter. The Janus
Faces of Genius: The Role of Alchemy in Newton's Thought. Cambridge: Cambridge University Press,
1991. Vale lembrar tambm os trabalhos de Eugenio Garin, Paolo Rossi e Frances Yates abordando
as confluncias-divergncias entre cincia e magia na aurora da modernidade: GARIN, Eugenio.
Astrology in the Renaissance: The Zodiac of Life. ROSSI, Paolo. O nascimento da cincia
moderna na Europa. Traduo Antonio Angonese. Bauru: Edusc, 2001. YATES, Frances. Giordano
Bruno e a Tradio Hermtica. Traduo Yolanda Steidel de Toledo. So Paulo: Cultrix, 1995.
322

de Deus649. Nesses termos, egressa do saber experimental alqumico e de sua


hermenutica espiritualista, a cincia moderna retm desses saberes o mpeto de
transformao da natureza sob a rubrica de uma escatologia secularizada. Contudo
privilegia o mtodo redutivo e positivo dos meios de transformao dessa natureza,
de modo que a natureza se divorcie do sujeito observador para melhor ser
manipulada650. Trata-se da emergncia da chamada oniscincia cientfica: o
investigador precisa se neutralizar como sujeito para liberar o objeto em toda sua
objetividade, ou seja, precisa se separar da natureza para compreend-la em sua
sagrada exatido651. Surge como uma tentativa de reduzir os fenmenos em busca
de suas origens reversveis, racionais, simples e universais. Surge o grande
paradoxo fundador da cincia moderna: o ser humano compreende a natureza na
mesma proporo em que se torna um estranho a essa mesma natureza que
compreende652. Para Sloterdijk, esse processo de objetivao data de muito antes
das religies abramicas, e recebe o nome de explicitao653.
No por acaso, Sloterdijk analisa os divertidos momentos da histria das
ideias cujos emblemas no eram apenas o universo-mquina de Newton. Eram
tambm os animais-mquinas de Descartes, os homens-mquinas de La Mettrie e o
sexo-mquina do Marqus de Sade654. Afora isso, as esferas de proteo csmica
erguidas pela metafsica comeam a ruir. Primeiro com o giro de descentramento
copernicano655. Em seguida com a elipse de Kepler e seu descentramento do
universo, que passa assumir a estrutura de um centro duplo, atual e virtual656.
Depois o cosmgrafo Thomas Digges acaba por fim por arruinar a hiptese das
abbadas celestes, to inconsistentes em termos fsicos quanto desnecessrias em

649
A frase literalmente citada por Mrio Schenberg, que tambm aborda a importncia dos tratados
alqumicos na obra de Newton: SCHENBERG, Mrio. Pensando a Fsica. So Paulo: Nova Stella,
1990.
650
PRIGOGINE-STENGERS, 1991.
651
PRIGOGINE-STENGERS, 1991.
652
Prigogine e Stengers enfatizam esse paradoxo como um elemento central na conscituio de um
campo de investigao da cincia clssica, que se encontra em seu ocaso: PRIGOGINE-
STENGERS, 1991.
653
SLOTERDIJK, Peter. Esferas III: Espumas. Esferologa Plural. Traduccin Isidoro Reguera.
Prologo Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2006.
654
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Burbujas. Microsferologa. Traduccin Isidoro Reguera, Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2003.
655
SLOTERDIJK, Peter. Mobilizao Copernicana e Desarmamento Ptolomaico. Ensaio Esttico.
Biblioteca Tempo Universitrio n 92. Dirigida Eduardo Portella. Traduo Heidrun Krieger Olinto. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileira, 1992.
656
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Burbujas. Microsferologa. Traduccin Isidoro Reguera, Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2003.30.
323

termos metafsicos657. O humano comea a se situar diante daquilo que Nietzsche


define como um porto de mil desertos, lanado ao acaso, em um universo
indiferente e jogando com um globo que lhe excntrico e mesmo excntrico a todo
cosmos658. Essas sucessivas runas das formas macroestruturais do mundo no so
o suficiente para desarraigar do ser humano a sua velha nostalgia da unidade
perfeita, o sonho do cosmos geomtrico. Por mais que, em pleno alvorecer do
terceiro milnio, o gosto duvidoso de algum holismo decadente ou alguma
subcultura esotrica ainda queiram nos iludir sobre a grande harmonia da cadeia do
ser e da vida, sabemos muito bem que essa cadeia e essa harmonia jamais existiu.
Alm disso o imaginrio maqunico haurido nos limiares do sculo XVII ainda nos
muito familiar. Haja vista que a estrutura fundamental da psicanlise, que atravessou
todo imaginrio do sculo XX at os dias de hoje, nada mais do que uma
transferncia das teorias mecanicistas, traduzidas em termos psicaggicos e nos
moldes de uma teoria geral da psique a partir da dicotomia orgnico-inorgnico. Na
teoria freudiana, a libido e as pulses so entendidas em termos mecnico-molares
de expanso-contenso. Por seu lado, a atividade do inconsciente determinada a
partir de uma fundamentao negativa ou privativa. O desejo entendido como
carncia e, como carncia, se submete ascendncia csmica do inorgnico sobre
o orgnico. Entre a preservao da espcie pelo impulso sexual externo e a
preservao de si como autoerotismo, as descargas de energia libidinal pressupem
a pulso de morte como invarivel inorgnica presente na atividade psquica e na
vida desejante desde a sua gnese na Terra.
Em outras palavras, na psicanlise a teoria gravitacional da fsica mecnica
transferida para a teoria gravitacional do desejo e traduzida em termos de pulses
reprimidas pela ao reguladora do supereu. A dialtica entre a conscincia infeliz
hegeliana, escrava da conscincia alheia que se assenhora dela, em Freud assume
novos papeis. Transforma-se em uma dialtica no mais entre conscincias em si e
para si, mas numa dinmica entre consciente e incosciente, na qual este ltimo se
coloca como negatividade produtora do desejo. Em todos os casos, continuamos na
mesma aporia: como uma instncia negativa pode gerar a positividade do eros sem
submeter essa positividade a alguma forma secundria e reduzi-la assim a uma

657
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Burbujas. Microsferologa. Traduccin Isidoro Reguera, Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2003.31.
658
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: Burbujas. Microsferologa. Traduccin Isidoro Reguera, Prologo
Rdiger Safranski. Barcelona: Siruela, 2003.33.
324

mera atividade de compensao?659 Em outras palavras, podemos entender que a


psicanlise, em suas escolas desdobradas a partir da obra de Freud, so em menor
ou maior grau devedoras da mecnica clssica e de sua teoria dos corpos, dos
impulsos e das foras. A forma e a funo psicanalticas no teriam assimilados em
seu quadro conceitual e em sua prxis a termodinmica de transformaes mtuas
dos corpos envolvidos amorosamente em desoneraes e desinibies, entendidas
como puras positividades e potncias do ser em seus desdobramentos660.
Estamos diante de cruzamentos e paralelismos entre matrizes arcaicas de
pensamento, como a gnose, e a atualizao que a cincia clssica faz de um Deus
absolutamente perfeito. Em ambos os casos, um aspecto se destaca. Para produzir
a autossuficincia de sistemas reversveis, as leis absolutas e a concepo abstrata
de tempo e espao necessrias s necessidades internas ao mecanicismo, a
imagem de Deus que a cincia clssica comea a conceber no fundo uma imagem
de Deus descreve uma distase e acentua a ruptura da aliana entre ser humano e
cosmos e entre cosmos e Deus. O universo em sua magnanimidade
absolutamente indiferente vida, pois a vida surgiu do acaso e, em um sistema
simples de probabilidade, teria muito mais motivos para no ter vindo a existir do
que para existir. Nesse sentido, a aliana entre vida e cosmos teria se rompido. Da
mesma maneira, para equacionar o funcionamento de leis para observao e
aplicao de campos cada vez mais vastos do mundo emprico, a cincia comea a
se apoiar em descries ada vez mais marcadas pela teleologia e pelas imagens
mecnicas, pois ambas descreveriam perfeitamente o sentidos de autossuficincia,
reversibilidade, onipresena e oniscincia que antes eram atributos divinos e agora
passam a ser atributos de um universo que s pode ser assim fielmente descrito
medida mesma que o observador mesmo crie situaes artificiais de afastamento
em relao a esse mesmo universo. A relao existente entre a indiferena de um
universo pensado como mecanismo e a indiferena da condio da vida pensada
como exlio ou estrangeirismo, ou seja, a diferena entre as readaptaes da
teologia abramica e da teologia gnstica levada a cabo pela cincia como
instrumentos de descrio de modelos cosmolgicos, no fundo diferem pouco entre
659
Em sua antropologia da vida comum, Todorov perfaz uma bela anlise da teoria do
reconhecimento e descreve as insuficincias da teoria freudiana para uma abordagem da dinmica
intersubjetiva situada para alm do recalque, da negatividade e da sublimao: TODOROV, Tzvetan.
A Vida em Comum: Ensaio de Antropologia Geral. So Paulo: Unesp, 2014.
660
SLOTERDIJK, Peter. Palcio de Cristal: para uma Teoria Filosfica da Globalizao. Traduo
Manuel Resende. Coleo Antropos. Lisboa: Relgio Dgua, 2005.
325

si. Se so posturas pouco diferentes entre si, por que at hoje se perpetua o
acirrado debate entre religio e cincia? Um ponto importante dessa narrativa se
encontra em dois momentos da histria do pensamento: no organicismo do sculo
XVII e nos debates envolvendo a filosofia da biologia do sculo XIX.
Qual seria o ponto de virada dessas concepes clssicas do mecanicismo?
Esse ponto ocorre com a assimilao de duas reas de investigao da qumica e
da fsica: as novas teorias trmicas [relativas ao calor] aliadas reformulaes
ocorridas no mbito das teorias dinmicas clssicas [relativas s relaes massa-
movimento]. Em um campo unificado, passaram a ser descritas como princpios de
um novo campo de estudo: a termodinmica661. O cerne desse novo campo se
dedica a investigar os fenmenos de dupla articulao: a entropia e a neguentropia.
Por meio dessa intuio, por exemplo, Flusser pde estabelecer o segundo princpio
da termodinmica, baseado na relao sistmica entropia-neguentropia, e o projetar
fenomenologicamente para toda a histria da cultura humana, diluindo esse princpio
ao longo de toda sua obra. O princpio didico da perda-preservao de energia em
um mesmo sistema. A partir do sculo XIX, com o advento de sistemas explicativos
que contemplam no apenas os ganhos, mas tambm as perdas de energia
envolvidas em uma atividade mecnica, a cincia percebe a importncia de
direcionar seus esforos para uma anlise da transformao da matria implicada
em atividades fsicas, qumicas ou biolgicas, e no apenas se reduzir descrio
da ao gravitacional e indiferente de foras exercidas sobre corpos, como na
mecnica clssica662. A partir de ento, o cosmos deixa de ser entendido como a
manifestao de leis estveis simples e reversveis. Iniciam-se as investigaes que
do origem a um novo paradigma cientfico e mesmo a um novo modelo de cincia:
a cincia do complexo e da irreversibilidade663.

661
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991. A nova aliana:
metamorfose da cincia. Traduo Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de
Braslia, 1991.
662
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991. A nova aliana:
metamorfose da cincia. Traduo Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de
Braslia, 1991.
663
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991. A nova aliana:
metamorfose da cincia. Traduo Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de
Braslia, 1991.
326

5.4 Irreversibilidade, Morfologia e Organicismo

Em modo de anedota e ao mesmo tempo dizendo uma grande verdade,


Whitehead teria definido toda a filosofia do Ocidente como uma nota de rodap a
Plato. O dado de verdade dessa anedota torna-se mais evidente se pensarmos que
toda a filosofia, medida que compreendem a gnese da realidade a partir de
causas transcendentais primeiras, independente de determinarmos se a essncia
dessas causas esteja na substncia, no sujeito, no objeto, na conscincia, em Deus,
nas ideias, no cogito ou em quaisquer outras dimenses do ser, em todas essas
variaes estaramos sempre dentro de uma dinmica interna ao modelo do
transcendentalismo formal de matriz platnica. No por acaso, a teoria processual e
a filosofia da percepo, da singularidade e da natureza no-discreta, desenvolvida
por Whitehead, retoma uma matriz de pensamento do sculo XVII e XVIII,
desenvolvida entre Locke, Berkeley e Hume, e que de certa maneira foi marginal
dentro da histria do pensamento e teria inclusive sido abandonada pela filosofia
moderna: a teoria dos organismos664. A questo fundamental levantada por
Whitehead diz respeito possibilidade de conceber uma ontologia processual no
mais fundada sobre os sistemas de identidade que tendem a reconverter todos os
processos diferenciais dos fluxos vivos a determinadas unidades reais ou
conceituais fornecidas pelos regimes transcendentais. Se um pensamento desse
tipo for possvel, ele seria um pensamento do puro fluxo de unidades reais no-
discretas e em um processo de diferenciao pura do ser. O mais instigante dessa
proposta que, para se chegar a uma tal concepo de pensamento, seria preciso
dar um passo atrs dos modelos teorticos fundados sobre a unidade do conceito.
Seria preciso partir dos seres vivos e dos modos de organizao dos organismos.
Essa brilhante descoberta de Whitehead pode ser entendida como uma
verdadeira revoluo do pensamento. Por meio dela, as unidades do real no so
matrizes eidticas transcendentais que fundam a condio de possibilidade de
apreenso dos fenmenos. A unidade dinmica da realidade se basearia ao
contrrio em uma predeterminao formal da realidade, produzida pelo infinito
processo de diferenciao da realidade, cujo modelo seriam os organismos e os

664
WHITEHEAD, Alfred North. Processo e Realidade. Ensaio de Cosmologia. Lisboa: CFUL, 2010.
327

seres vivos. O fundamento da natureza no ideal, material, espiritual, substancial e


tampouco um espelho da linguagem. A natureza um conjunto de eventos
singulares dados na ordem da percepo, e que apenas a partir de operaes
mentais configuram-se como unidades subsistentes sob a forma de entes e
entidades665. O princpio de identidade e diferena, que definiu todos os regimes de
verdade das filosofias transcendentais, cede lugar a uma ontologia das
multiplicidades sensveis, nos quais a forma viva determina o modo pelo qual a
realidade se realiza a si mesma como processo infinito de diferenciao e de
relao. Essa ontologia das multiplicidades processuais e relacionais basicamente
uma ontologia dos meios.
Ao mesmo tempo em que Darwin e Wallace desenvolviam a teoria da seleo
natural, outras teorias sobre a origem e a transformao da vida se desenvolviam
paralelamente. Dentre as mais destacadas se encontram as ideias da filosofia
natural alem, que encontram em Goethe e em Leibniz alguns de seus primeiros
representantes e que atinge um dos pontos de culminncia no pensamento de
Haeckel: a morfologia. Tanto do pontos de vista taxonmico quanto ontolgico, a
teoria morfolgica procura integrar as relaes entre forma, estrutura e funo dos
seres vivos, conferindo uma nfase especial esfera formal. O pensamento
morfolgico e o pensamento que busca refazer o percurso entre a ontognese e a
filognese da vida por meio de suas cadeias morfolgicas, e das associaes
possveis que as diversas espcies possuam entre si. O que notvel nessa
postura, que posteriormente ser to criticada, a ponto de chegar a uma quase
extino na biologia contempornea, e o principio de indecidibilidade que ela
sustenta m relao anterioridade ontolgica entre forma e funo. Em outras
palavras, a finalidade adaptativa uma grande deusa que rege a sobrevivncia, a
procriao e a preservao dos indivduos e das espcies, e de fato podemos
entender boa parte da complexidade da vida luz desses mecanismos finalistas.
Contudo a multiplicidade de formas, analisadas com cuidado, apresentam tantas
defasagens e redundncias em relao finalidade a que foram aparentemente
criadas, que em muitos sentidos torna-se difcil chegar ontognese de uma forma
viva atribuindo-lhe apenas um finalismo externo ligado adaptao, sobrevivncia
ou procriao.

665
WHITEHEAD, A. N. O Conceito de Natureza. Traduo de Jlio B. Fischer. So Paulo: Martins
Fontes, 1993.
328

A obra de Darwin contempla as duas alternativas seletivas, entendidas como


mecanismos adaptativos pelos quais populaes teria sobrevivido e mecanismos
mutacionais por meio dos quais a seleo natural teria produzido processos de
especiao e novos entroncamentos entre os seres vivos, tornando uns mais aptos
a se adaptarem e outros menos aptos, o que explicaria o fato de terem sido extintos.
Uma linha de interpretao radical da condio contingente da origem da vida e da
seleo das espcies presente na obra de Darwin continua sustentando essa
postura de Monod como uma maneira de combater os resduos teolgicos que
estariam presentes nas teorias organicistas e na teleologia da tese de Paley. E no
por outro motivo que Richard Dawkins escolhe retomar justamente a imagem de
Paley para propor uma seleo baseada no acaso ou realizada por um relojoeiro
cego, ou seja, um design cego, isento de inteligncia e de finalidade666. Dawkins se
situa no polo de radicalizao da leitura gentica, tambm conhecida como
genecentrismo, alinhada teoria da seleo por parentesco em aberta polmica
contra os defensores da seleo de grupos, como Wilson.
Talvez a melhor descrio sobre essas mudanas ocorridas no interior da
cincia e dos conceitos de natureza seja a empreendida por Stengers e Prigogine. E
justamente porque se trata de uma transformao que retrata a passagem do ser ao
devir, das categorias universais entendidas como leis eternas , abstratas e absolutas
e uma temporalizao da atividade cientfica, que passa a abandonar a ambio da
oniscincia e da extraterritorialidade do observador em relao facticidade de sua
condio de observador e em relao prpria natureza observada. Analisemos
passo a passo a estrutura dessa metamorfose do pensamento que eles nos
descrevem.

5.5 Metamorfose

E essa metamorfose ocorrida na cincia deu ensejo a um pensamento e a


uma prxis que passou cada vez mais a enfrentar fenmenos de natureza
irredutvel, claramente marcados por noes oriundas de uma esfera ligada physis,

666
DAWKINS, Richard. O relojoeiro cego. So Paulo: Companhia das Letras, 2001.
329

entendida como uma esfera distinta e heterognea em relao s leis mecnicas. O


dilogo experimental, como pensou Alexander Koyr, uma das marcas da cincia
experimental clssica, baseia-se em uma relao homem-natureza fundada sobre
dois princpios: compreender e modificar667. O paradoxo que marca a cincia
clssica pode ser definida da seguinte forma: desde o sculo XVII, quanto mais o
homem desvenda a natureza em seu funcionamento ultimo, mas o universo se
revela como uma matria inerte, indiferente ao interlocutor humano que o
interpela668. Contudo mesmo assim a cincia prosseguiu em sua busca, pois esse
silencio dos abismos infinitos era o preo a ser pago pelo conhecimento racional669.
O paradoxo esta instaurado: quanto mais o ser humano conhece racionalmente o
universo, mais se distancia desse universo. Quanto mais se distancia, melhor o
compreende. A solido seria o preo da racionalidade670. A cincia moderna se
firmou como como uma reao ao aristotelismo, e tambm magia e alquimia.
Mas ao faz-lo, reivindicou tambm compreenso da complexidade dos
fenmenos, reduzindo-os a leis abstratas, simples e previsveis671. Surge a ideia de
uma natureza autmata cujo acesso seria facultado por meio da depreenso de seu
comportamento finito e racional672. A cincia de hoje no mais a cincia moderna,
e a passagem de uma cincia moderna a cincia contempornea pode ser
entendida como uma metamorfose: uma transformao dos elementos centrais em
novas formas, sem contudo haver uma ruptura com os modelos modernos em suas
aplicaes especificas673.
As descries de Monod situam-no no quadro de uma concepo moderna de
mundo, que conduz o uma solido do homem situado em um cosmos que lhe

667
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991. p. 3.
668
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991. p. 4.
669
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 4.
670
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991.
p. 4.
671
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 4.
672
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 5.
673
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 5.
330

estranho674. As teorias fsicas modernas so marcadas pela legalidade, o


determinismo e a causalidade675. A metamorfose da cincia a abertura ocorrida
nas fronteiras da cincia clssica que definiam diferenciaes intrnsecas entre
sistemas conservativos e dissipativos676. Se o microscpio simples, regido por leis
matemticas simples, uma das ambies da cincia clssica foi minimizar as
aparncias complexas por meio de reduo a partir de leis simples677. As leis
matemticas simples, sob a gide das quais foi possvel se chegar universalidade
e simplicidade dos fenmenos, quase sempre foram estabelecidas com base em
modelos dinmicos, que descrevem o mundo sempre de um ponto de vista
determinista e reversvel678. A partir da mecnica quntica a hiptese da
simplicidade comea a se tornar insustentvel679. A irreversibilidade comea a ser
pensada como constitutiva da natureza e surge a hiptese de que apenas
recorrendo a um demnio de oniscincia fora possvel cincia conceber as
condies necessrias para a reversibilidade e o determinismo pleno das leis, a
partir das quais era possvel calcular o futuro e o passado de uma trajetria,
medida que essa nova fronteira aberta pela quntica situa a irreversibilidade e a
indeterminao no mais como casos particulares, internos a um sistema global
homogneo, mas como regras680.
O problema da complexidade presente nessa metamorfose encetada pela
cincia possui uma conexo direta com a incorporao da temporalidade por parte
da cincia, ou seja, por uma alterao cultural concebida nos limites da demarcao
das cincias681. Essa reorientao cultural est intimamente ligada explorao dos
limites da cincia clssica empreendida por pensadores como Bergson, e a

674
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 6.
675
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 7.
676
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 7.
677
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 7.
678
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 7.
679
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 7.
680
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Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 8.
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PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 8.
331

possibilidade de conferir natureza682. Para Bergson, nas teorias clssicas que


vinham de Newton a Einstein, tempo e espao encontravam-se de tal modo
implicados que poderiam ser confundidos683. A nova cincia explora a emergncia
de uma nova temporalidade e uma redescoberta do tempo fsico, que no surgiram
de demandas internas lgica cientfica, mas de uma nova indagao sobre
questes que haviam permanecido de fora da investigao cientifica da fsica
clssica684. Qual o horizonte cultural dessa alterao cultural que marca a cincia do
complexo? Em linhas gerais, trata-se de rever aquela conhecida demarcao de
Snow, segundo a qual as cincias humanas e as cincias naturais pertenceriam a
duas culturas distintas e isoladas685.
Essa diminuio da fronteira que separa ambas as culturas pde deixar mais
evidente o carter artificial desse isolamento. Por outro lado, a partir da cincia do
calor, da termodinmica e dos sistemas dissipativos, passou-se cada vez mais a se
enfatizar a ascenso histrica daquilo que as leis da dinmica no puderam nunca
admitir: os processos irreversveis constituem uma realidade da natureza e no so
apenas resduos indesejveis de frmulas descritivas perfeitas desses mesmos
fenmenos686. A termodinmica se funda ento como a primeira cincia no-
clssica, a partir da adoo de um dos mais importantes critrios de aferio da
complexidade: a seta do tempo e a vetorizao da temporalidade687. Essa
transformao da cincia foi possvel no apenas por meio de mudanas conceituais
internas. Ela se deu sobretudo por uma mudana na imagem de mundo feita pela
cincia688. Durante muito tempo, para obter a objetividade das leis absolutas, a
cincia assumiu a perspectiva privilegiada da extraterritorialidade: quanto mais
distante o observador mais verdadeira a descrio do observado689. O cientista visto

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Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 8
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Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 8
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Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 8-9
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Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 10
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Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 10
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Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 11.
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Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 11.
332

como detentor de uma chave universal e de um poder total pensado um


representante do Templo da cincia em busca da frmula do universo690.
Representado como asceta ou como mago, o homem de cincia apresenta-se como
portador de uma chave universal691. Essa mistura de cincia e ascetismo e o
isolamento clerical da sociedade cientfica continua sendo um problema da nossa
poca692. Nesse sentido, mais ser em um futuro onde os recursos se tornam cada
vez mais finitos, a cincia no poder mais ser estritamente ocidental e nem
estritamente racional, pois medida que a cincia se desembarace das iluses de
objetividade, onipotncia e extraterritorialidade, poder ser mais lcida quanto a
outras exigncias da racionalidade693.
Os padres da cincia clssica geraram uma imagem da natureza e do ser
humano, do universo e da vida como seres desconectados, exilados mutuamente.
Tambm produziu a imagem de uma natureza autmata descrita pelo ser humano
como algo que lhe to estranho quanto um relojoeiro o a se relgio694. Contudo a
termodinmica alterou esse modelo. Levou-nos a alterar a imagem do relgio pela
imagem das maquinas a fogo695. Trata-se de uma nova cincia que surge de um
Tempo Redescoberto696. De agora em diante, a cincia passa a explorar e a pensar
a natureza como o conjunto de evolues mltiplas, que no ocorre na disputa de
um tempo em relao a outro, mas que produz sim uma coexistncia de tempos
irredutivelmente diferentes e articulados697. Essa noo de acordes complexos de
tempos remete natureza criativa do tempo, entendido no como um objeto
matemtico e absoluto, mas como Bergson o descreve: como durao698. Assim
como as esferas de Sloterdijk e os fundamentos de uma ontologia relacional, que

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Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 13
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Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 13
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Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 13.
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Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 14
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Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 15.
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Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 15.
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Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 15
333

so uma configurao de multiplicidades relacionais em um continuo de conexes


didicas, tanto as esferas quanto o ser entendido como pura cadeia de relaes e
essa temporalidade redescoberta, consiste em abandonar a perspectiva da solido.
A qumica e a fsica encontraram o desenvolvimento desse ideal matematizvel e
quantitativo Laplace e em Lavoisier699. A base de sustentao do edifcio newtoniano
consiste em um conjunto de leis e de sistemas baseados na harmonia, e na crena
de que essa harmonia pode se comunicar com a ordem natural, moral, politica e
social humana700.
Essa premissa teolgica, segundo a qual a cincia uma herdeira da religio
e cabe cincia conduzir o mundo moderno a aperfeioar a antiga compreenso do
monotesmo abramica, na verdade conduz a um impasse no interior da prpria
relao alternativa e complementar entre religio e cincia. Como se sabe, Max
Weber entendia o processo de modernizao como um processo de racionalizao
dos meios pelos quais as sociedades se organizam. Para Weber contudo essa
racionalizao no era algo da ordem do racionalismo do sculo XVII e tampouco
estava circunscrito ao da cincia. O processo de racionalizao teria comeado
com as prprias religies abramicas e com a revelao de Israel, e na modernidade
teria se intensificado com a partir da conexo estabelecida entre a tica protestante,
teologia da retribuio e a natureza instrumental do capitalismo. A radical estranheza
e a completa solido dos seres humanos em relao ao universo, descritas por
Monod, dizem respeito a esse processo de desencantamento de um mundo
enquanto mundo e a sua substituio do mundo por objetos transcendentais, sejam
eles Deus, leis abstratas ou princpios matematizveis. A deciso metafsica da
cincia moderna apenas aparentemente suprime ou supera os componentes divinos
da tradio revelada. De modo mais preciso, a cincia clssica representa uma linha
de continuidade do desencantamento do mundo produzido pelas tradies
abramicas. Esse esvaziamento diz respeito quilo que Jean-Luc Nancy as define
como religies atestas medida que so religies cuja crena em um Deus
absolutamente transcendente esvazia o mundo da divindade imanente de que o
mundo se revestia. Nesse sentido, se Deus a pura alteridade da natureza e o
absolutamente Outro em relao esfera mundana, essa mesma esfera mundana

699
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Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 20
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Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 20
334

torna-se uma matria inerte, que pode muito bem ser manipulada e transformada ad
infinitum, acentuando-se assim o hiato que separa Deus, mundo e homem, hiptese
sustentada tambm por Heidegger, Flusser e Vicente Ferreira da Silva.
Nesses termos, as religies abramicas desencantaram o mundo, pelas vias
do mtodo experimental baseado na absoluta estranheza e estrangeirismo do
homem em relao ao universo, a cincia tambm levar adiante a tarefa do
desencantamento701. A ciso trgica oferecido pela cincia clssica consiste em um
aprofundamento desse divrcio entre homem e mundo, agora acentuado por um
agravante: a morte de Deus. Enquanto as tradies reveladas Deus um
reservatrio de imunidade que assegura o sentido da falta de sentido de um mundo
imanente e dessacralizado, a cincia moderna, por meio de um longo processo de
explicitao, demonstrar que no apenas o universo vazio, mas que o Criador
desse universo vazio provavelmente tampouco exista ou caso exista, no o Deus
vivo da f, mas um Deus mecnico que funciona como um agente autorregulador
das leis que so abstratas e absolutas justamente porque Deus abstrato e
absoluto. O mundo desencantado se reduz a ponto de se tornar um mundo
manejvel702. Entra aqui o problema da tcnica, enfrentado por Heidegger, e para o
qual o grande mestre da Floresta Negra apresentou algumas das mais sibilinas e
equivocadas solues703. Porque em linhas gerais o problema do desencantamento
do mundo produzido pela cincia gera uma resposta problemtica de
desqualificao da cincia como um todo. Essa reduo da cincia chamada
usurpao da cincia no se esgota na critica de Heidegger, mas passa mesmo pela
critica cincia como emancipao irracional, consequncia da doutrina da dupla
verdade, segundo Luckcs704, e pela cincia entendida como razo instrumental
para Adorno e Horkheimer705. Tanto a cincia que reduz o mundo a leis simples
quanto as teorias e cincias humanas que ao criticar a cincia reduzem toda a
cincia cincia reducionista, so ambas representaes dos modelos reducionistas

701
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 22
702
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 22
703
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, 1991, p. 22-23
704
LUKCS, Gyrgy. Prolegmenos para uma ontologia do ser social: questes de princpios para
uma ontologia hoje tornada possvel. So Paulo: Boitempo, 2010.
705
ADORNO, Theodor W. Dialtica Negativa. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
335

do pensamento clssico. No chegaram compreenso do pensamento complexo e


dos mtodos de irreduo que definem as cincias e os saberes da complexidade.
Essa atitude de polarizao entre cincia e mundo, por mais dialtica que
seja, contribuiu para fortalecer a velha diviso pela qual Newton e toda a cincia
clssica so responsveis e que fora diagnosticada por Alexander Koyr: a diviso
do mundo em dois706. Para Koyr, a cincia clssica transps o limiar que separava
a terra e o cu, e unificou as leis do universo. Mas o fez custa de substituir o
mundo das qualidades sensveis e transitrias por um mundo de quantidades e da
geometria deificada707. Esse estreitamento do espao humano e esse cenrio
csmico no qual o ser humano passa a ser visto como um estrangeiro constitui o
grande afastamento da cincia em relao ao mundo dos fenmenos vivos, ou seja,
uma separao entre mundo da cincia e mundo da vida [Lebenswelt]708. A
aquisio do tempo biolgico como padro de aferio da evoluo da vida uma
clara demarcao entre o tempo da vida e o tempo dos planetas uma dentre tantas
demarcaes dessa nova maneira de pensar, para alm das leis gerais do
mecanicismo e do reducionismo709. A cincia clssica definida por Newton incapaz
de integrar em si esses elementos de irreversibilidade, de autopoiesis e de
criatividade, emergentes a partir de uma reconfigurao da categoria temporal por
meio de um mergulho nos processos vitais Por isso a necessidade da criao de
uma terceira cultura que seja a sntese de diversas reas do conhecimento e que
parta do principio de comunicabilidade entre esses diversos setores isolados, com a
710
finalidade de compreender as associaes e fenmenos em sua complexidade .
Vivemos ainda hoje de tcnicas emergentes com a revoluo paleoltica. Essas
tcnicas e essa revoluo podem ser descrias como projetos de utilizao dos
meios711. A revoluo neoltica em primeiro lugar foi uma revoluo dos media. Para
isso, realizou uma incrvel metamorfose dos meios em instrumentos. Trata-se de

706
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 24.
707
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 24
708
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 24-25.
709
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 25
710
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 25 e seg.
711
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 27
336

uma enorme converso dos elementos constitutivos dos meios circundantes


imediatos [Umwelt], bem como de objetos do mundo da vida, da experincia e dos
processos primrios [Lebenswelt], em instrumentos de ao distncia [actions in
distans]712, que dilatam o tempo e o espao da vida dos humanos e dos objetos.
Entre esses objetos se encontram as tecnologias da imortalidade, e constituem os
primrdios da globalizao metafsica713.
A constituio de um campo experimental para a cincia demarca a
importante alterao sofrida nas concepes de cincia da antiguidade e do mundo
moderno. Para Aristteles e Plato, haveria uma grande heterogeneidade entre a
cincia saber pratico e saber terico714. Outra heterogeneidade claramente marcada
seria entre o mundo do cu e o mundo da Terra, o supralunar e o sublunar. Essa
heterogeneidade marcante na importncia dada por Aristteles aos
desenvolvimento embrionrio entendido como modelo da transformao dos seres
sublunares, ao passo que a cincia celeste tenderia muito mais a ser assimilada
natureza de espaos matemticos715. Quando finalmente Galileu comea a adentrar
a praxiologia dos mtodos experimentais, o imperativo e a necessidade da
formulao por que, que dominou a cincia aristotlica, comea a fazer gua716. O
dilogo experimental inaugurado por Galileu tem um carter de refundao da
cincia, pois em muitos sentidos foge normalidade e aos padres normais de
produo cientifica que caracterizariam o paradigma de sua poca, no sentido de
Kuhn717. Mais do que isso, muitos de seus recursos experimentais podem ser
entendidos como a constituio de um antimtodo e de metodologias de
investigao que escapam aos modelos estveis que a cincia posteriormente
consagra como sendo os modelos racionais por excelncia718. O importante do
dilogo experimental que a natureza no precisa corresponder indagao terica
para ser legitimada719. A legitimidade da pergunta no se reduz antiga concepo

712
E-II.
713
E-II.
714
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 28.
715
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 29
716
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 29
717
KUHN, Thomas. A Estrutura das Revolues Cientficas. So Paulo: Perspectiva, 2003.
718
FEYERABEND, Paul. Contra o Mtodo. So Paulo: Unesp, 2003.
719
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 30-31.
337

medieval da adaequatio rei ad intellectum, justa adequao das coisas ao


intelecto. Uma assimetria entre pergunta e resposta comea a ser valorizada; a
questo implicada nessa assimetria no mais pensada como um dado essencial
de ligao dos conceitos ordem natural. O que est em jogo justamente a
possibilidade de experimentar todas as variveis possveis de inspeo dos
fenmenos sensveis para finalmente chegarmos a uma invarivel que legisle sobre
os diversos acidentes e contingncias presentes durante a experimentao.
Enquanto a cincia e a filosofia antigas buscavam as estruturas eidticas e as
condies formais elementares constituio dos fenmenos a partir d indagaes
sobre o ser, a cincia experimental a partir de Galileu torna-se emprica e
experimental, sem deixar de reivindicar universalidade. A diferena significativa
que essa universalidade paulatinamente deixa de ser entendida como um conjunto
de leis naturais inerentes aos fenmenos observados, ou seja, constitutivas de sua
essncia, e passam a ser instrumentos conceituais descritivos que tendem a ser
tanto mais eficazes quanto mais abstratos forem esses instrumentos, independente
de sabermos se h uma aliana natural ou sobrenatural entre os instrumentos de
descrio e fenmenos descritos.
A cincia desde Galileu continua a ter como a meta de descobrimento de um
saber global sobre a natureza. A diferena significativa repousa sobre o fato de os
meios no serem mais meios deduzidos a partir de estruturas dedutivas
transcendentais ou de especulaes e suposies tericas sobre a estrutura do ser.
justamente sobre os sucessivos erros, ou seja, sobre as sucessivas discordncias
entre conhecimento e realidade que a experimentao consegue fixar leis que
consigam explicar o maior nmero desses fenmenos, em termos universais. A
viso global e expandida da bos que estruturava o universo sublunar aristotlico
passa a ser substituda por outra: uma concepo descritiva cujo modelo seriam as
mquinas. A matematizao e a geometrizao do mundo passa a ser operada com
base nessa metfora seminal das mquinas, pensando a metfora como um
desdobramento central da construo epistemolgica das cincias, como definiu
Hans Blumenberg, e no como uma mera imagem derivada de segundo grau720.
medida que o relgio um mecanismo construdo e o mundo e deve ser pensado
como um objeto construdo por leis simples e funcionais, o mundo-relgio

720
BLUMENBERG, Hans. Paradigmas para una metaforologa. Madrid: Trotta, 2003.
338

eternamente movido e organizado por um Deus-relojoeiro passa a ser a metfora


nuclear de descrio que conferir racionalidade a uma natureza autmata, e cabe ao
cientista descobrir as engrenagens desse mecanismo universal721.
No por acaso, foi Whitehead quem percebeu que essa demanda interna de
racionalidade estava presente nas prprias religies reveladas722. Foi preciso a
cincia clssica se valer da imagem de perfeio fornecida por Deus para poder
construir uma imagem de um cosmo ordenado logicamente e passvel de ser
esgotado em todos os seus detalhes723. Nesse sentido, a imago Dei fornece a
estrutura causal transcendental de que a cincia necessitava para produzir um
sistema de inspeo racional imanente da natureza, absolutamente coeso e fechado
dentro de suas premissas racionais. Deus a figura da racionalidade transcendente
porque cria o mundo sem se circunscrever ao mundo. A cincia se apoia nessa
imagem para definir a natureza como um mecanismo absolutamente perfeito,
embora passvel de ser analisado, explicitado e decomposto em todas as suas
peas imanentes. A intuio de Whitehead sobre a demanda de racionalidade
presente no pensamento medieval, na possibilidade criacional de Jav bem como
nos filsofos gregos uma intuio precisa, e que segue na contramo de muitas
interpretaes724. Contudo esse mitologema das religies abramicas no so a
forma mentis exclusiva do desenvolvimento cientfico e tampouco circunscrevem a
possibilidade de emergncia das cincias ao Ocidente725. Needham demonstrara
que os avanos da cincia na China foram concomitantes e to significativos quanto
no Ocidente726. O antroplogo Jack Goody vai ainda mais longe e designa toda a
relao que a Europa manteve com as demais regies do mundo como uma relao
de roubo sistemtico727. Em um sentido semelhante, Goody tambm prope uma
desconstruo do mito ocidental do Renascimento. Teria havido uma srie de
renascimentos, se entendermos esse conceito como um conjunto de florescimentos

721
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, 34
722
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 34
723
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 34
724
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 34
725
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 35
726
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 35
727
GOODY, Jack. O roubo da histria: como os ocidentais se apropriaram das ideias e invenes do
Oriente. So Paulo: Contexto, 2008.
339

culturais, cientficos, filosficos e artsticos na ndia, na China, no Oriente Mdio, em


momentos anteriores e posteriores ao chamado renascimento ocorrido na Itlia e
expandido pela Europa a partir do sculo XIV728.
Essa vinculao entre religio e cincia no quer derivar a cincia da religio
e tampouco da filosofia729. Na verdade cincia, religio e filosofia so esferas
discursivas que possuem uma heterogeneidade irredutvel uma a outra. Na verdade
estamos diante de narrativas que se implicam e se negam mutuamente, sem uma
relao de causalidade ou de necessidade clara. A questo que se coloca saber
como a forma mental que caracteriza a cincia clssica pde emergir e por quais
motivos uma das linhas de ouro dessa cincia a noo de que quanto mais
externos natureza, melhor podemos descrev-la e domin-la730. Essa grande
ambio da cincia experimental clssica a ambio de conseguir ver o mundo do
ponto de vista de Deus, ainda que para isso seja preciso recorrer aos demnios,
como o fizeram Descartes e Laplace. Para definir as qualidades secundrias da
natureza, aquelas qualidades que lhe so aderentes e no inerentes, que so
atribuies do esprito mais do que dados objetivos imanentes, a cincia pode muito
bem rebaixar essa mesma natureza731.
A cincia clssica nasceu ento da aliana entre o homem entendido como
observador racional e o Deus legislador que organiza o mundo a partir de princpios
infusos de sua inteligncia divina. A autossuficincia dessa atividade cientfica torna-
se clara medida que a religio revelada lhe fornece a base de racionalidade da
natureza criada por Deus e medida que a filosofia lhe fornece a base da
racionalidade humana capaz de investigar e comprovar os mecanismos da natureza
e, por conseguinte, os mecanismos divinos. Essa estrutura bivalente, de raiz cnica,
tem consequncias bastante diversas s consequncias esperadas. Isso porque
medida que Deus se encontra como premissa maior de todo postulado chamado
natureza, paradoxalmente a figura de Deus acaba sendo reduzida a um principio
explicativo e a uma demanda de perfeio que no precisa necessariamente ser
referida a Deus para se realizar. Em outras palavras, Deus cada vez mais deixa de
assumir o desiderato de figura divina e passa cada vez mais a ser assimilado a uma

728
GOODY, Jack. Renascimentos: um ou muitos? Traduo de Magda Lopes. So Paulo: Unesp,
2011.
729
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 36.
730
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 36.
731
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 36.
340

necessidade epistmica interna aos imperativos lgicos da perfeio dos sistemas.


Esse Deus entendido como premissa tampouco precisa figurar nas demonstraes
empricas ou como apoio s argumentaes dedutivas, pois isso retiraria a
legitimidade da cincia concebida como discurso emancipado e autnomo. Por esse
motivo, a relao entre Deus e cincia, entendida como uma necessidade de
dotao de racionalidade ao mundo e natureza, pode muito bem ser suprimida, e
situar-se em uma condio de uma criptoteologia latente na prtica e nos discursos
da cincia. Isso explica o cinismo presente na mxima de Laplace, quando
perguntado por Napoleo onde estaria Deus em seus sistema do mundo: No
necessito dessa hiptese732.
Criado imagem e semelhana de Deus, o homem pode muito bem se apoiar
nessa crena para recuar ao ponto infinito de observao a partir do qual Deus v o
universo. O ser humano transforma-se em um meio de realizao da perspectiva
perfeita e pura de Deus sobre o universo e Deus constitui-se como observador
exterior por excelncia, aquele observador no qual a cincia se apoia para constituir
sua extraterritorialidade discursiva733. Seria preciso esperar a constituio terica do
observador de segundo grau, um observador que se observa ao observar e que
descreve a observao de outros observadores, desenvolvida pela teoria geral dos
sistemas734, para chegarmos a um desmantelamento desse princpio de oniscincia.
Esse princpio de reduo da heterogeneidade simplicidade de leis universais
regula a cincia, de Newton a Einstein. No por acaso, Einstein corrobora esse
percurso levado a cabo pela cincia para encontrar as leis gerais que regulam o
universo e sintetiz-las em uma imagem do mundo735. A passagem da convico da
cincia clssica conduz a uma concepo de suas premissas como uma concluso
de toda a cincia, em razo de seu sucesso736. Essa conexo entre desempenho e
estabilidade epistemolgica levada adiante pela cincia clssica tornou-se objeto de

732
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 38.
733
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 38.
734
LUHMANN, Op.cit.
735
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 39.
736
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 39.
341

suspeita, observando-se a inviabilidade dessa mesma conexo em um cenrio


contemporneo737.
De qualquer modo, se compreendermos a atividade cientfica no mbito mais
amplo das atividades culturais, entenderemos que os limites da cincia clssica no
so limites da cincia como um todo. Apresentam-se como um modo pelo qual a
cincia resolveu os impasses internos sua dinmica e tambm um modo pelo qual
ela conseguiu abstrair aspectos da realidade que obstrussem seu objetivo de
descrio objetiva e distanciada. Hoje em dia essa situao do conhecimento
cientfico clssico, estabilizado por alguns sculos, precisa ser reformulado, caso
contrrio pode redundar em ingenuidade. A oniscincia um dos desideratos e dos
documentos de fundao que acompanhou a cincia clssica em seu percurso.
Sejam seres oniscientes, o demnio de Laplace e de Maxwell, o deus de Einstein,
em todos esses casos estamos diante de recursos que podem ser eficazes
pragmaticamente, mas que no correspondem mais imagem global que a cincia
hoje delineia e pretende delinear, de si mesma e do mundo. Essa iminncia de
morte da cincia clssica no anunciada pela filosofia, mas pelo seu prprio
desenvolvimento interno738. E sobretudo porque a cincia de hoje no pode mais
recusar compreender outros pontos de vista, sobretudo os pontos de vista das
cincias humanas, da filosofia e da arte739. Esse parece ser um dos ns decisivos na
definio do campo de imanncia da complexidade. Por meio dessa metamorfose da
cincia e de sua passagem dos modelos clssicos aos modelos complexos,
inaugura-se uma possibilidade de dialogo cultural entre as cincias e com outros
saberes e domnios que constituem a sua alteridade. Uma nova aliana com a
natureza e a criao de circuitos de uma cultura tornam-se de novo possveis dentro
dessa perspectiva de complexidade, que leva adiante os impasses da cincia
clssica, fornecendo-lhes solues740. Essa aliana, essas conexes e esses
circuitos podem ser pensados, em termos de sistemas complexos, a partir de uma
ontologia relacional.

737
LYOTARD, Jean-Franois. O ps-moderno. Traduo Ricardo Corra Barosa. Rio de Janeiro:
Jos Olympio, 1986.
738
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 41.
739
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 41
740
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 41.
342

Podemos definir a cincia clssica como a adoo em maior ou menor grau


de um conjunto de fatores como reversibilidade, extraterritorialidade,
homogeneidade, legalidade, causalidade, finalismo, determinismo e oniscincia.
Dois modelos dominaram o pensamento ocidental: Aristteles e Galileu741. A cincia
clssica surgiu a partir do abandono do finalismo aristotlico742. Contudo a questo
da organizao dos seres vivos continuou como uma proposta em aberto e assim
atravessou muitos sculos, e encontrou seu ponto de viragem em uma das figuras
mis singulares do sculo XVIII: Diderot743. O problema enfrentado por Diderot o
problema enfrentado tambm por Leibniz: a possibilidade de conciliar ontognese e
filognese. Todos os elementos constitutivos da cincia clssica, descritos acima,
podem explicar a conformao de formas a partir de modelos mecnicos, mas no
conseguem explicar a evoluo dos tecidos vivos a partir de um ncleo at a
configurao complexa. Comea a grande odisseia, no de busca das leis simples
que regem o universo complexo, mas do processo evolutivo que conduziu os seres
vivos do simples ao complexo. A Protogeia de Leibniz ocupa ento um lugar de
destaque como uma das primeiras seno a primeira obra de paleontologia da
histria do pensamento744. Mais do que uma teoria descritiva da de uma evoluo
cronolgica, a obra de Leibniz se articula com outras matrizes de seu pensamento,
como o desenvolvimento da teoria organicista e os sistemas da natureza745, cujo
pice seria a monadologia746. E a reconfigurao das condies de possibilidade das
transformao de formas primitivas elementares, dando origem diversidade atual
da vida na Terra. O mesmo problema surge nas dataes das eras do mundo e nas
premissas de idade a vida e dos seres vivos no planeta, um debate que envolve Vico
e Hoocke747.

741
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 63.
742
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, 1991, p. 63.
743
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, 1991, p. 63.
744
LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Protogaea, ou discusso sobre o aspecto primitivo da Terra e sobre os
vestgios da antigussima histria que encerram os prprios monumentos da natureza. Traduo
Nelson Papavero, Dante Martins Teixeira, Maurcio de Carvalho Ramos. So Paulo: Pliade/Fapesp,
1997.
745
LEIBNIZ, G. W. Sistema novo da natureza e da comunicao das. substncias e outros textos.
Belo Horizonte: UFMG, 2002
746
LEIBNIZ, G. W. Monadologia. Pensadores. So Paulo: Abril, 1988.
747
ROSSI, Paolo. Os Sinais do Tempo: Histria da Terra e Histria das Naes de Hocke a Vico.
Traduo Julia Mainardi. So Paulo: Companhia das Letras, 1992.
343

A tese dos graus de complexidade que unem os humanos aos demais seres
vivos foi uma das pedras de toque da demolio teolgica do sculo XVIII,
perpetrada por Voltaire, DAlembert, DHolbach e especialmente Diderot, o pensador
que teve um discurso dos mais articulados em torno do ser vivente, tentando partir
dele como modelo compreensivo para as demais seres. Essa guinada ontolgica,
que desloca a nfase do ser dos mecanismos gerais da natureza e a concentra nas
estruturas dos seres vivos de vastas dimenses e consequncias. No foi iniciada
nem consumada por Diderot. Ele e Buffon de fato representam as vozes mais
sensveis a esse problema em mbito francs, mas como lembra Whitehead essa
tradio vinha se desenvolvendo desde os empiristas britnicos e encontra sua
breve durao no espao de tempo que separa Locke e Berkeley de Hume748.
Independente de definir os primeiros protagonistas dessa viso de mundo, o que de
fato importa nesse caso compreendermos um movimento decisivo: no momento
mesmo em que a mecnica clssica se desenvolve sobre os postulados da imagem-
mquina, comeam a se desenvolver teorias que seguem em um sentido oposto e
que elegem como modelos algo bastante distante desse imaginrio maqunico: os
embries749. A organizao progressiva dos espaos e dos seres biolgicos pode
ser descrita de diversas maneiras, menos por meio do recurso s leis da mecnica,
da reduo e da simplicidade. Como se sabe, o sistema de Newton constitui um
sistema do mundo. Como tal, no confere nenhum importncia s diferenciaes
dos seres. A totalidade dos corpos est subordinada a leis universais e no se
privilegia nenhum movimento regional dos corpos fora dessas leis que enquadram e
explicam a mecnica geral750. A relao entre os corpos a relao entre massas
que se afetam mutuamente mediante a ao das leis gerais da gravidade. O sistema
newtoniano no contempla nenhuma explicao e sequer demonstra interesse pelos
princpios que regem a organizao, a tendncia complexidade, a inscrio
diferencial em espaos aparentemente homogneos e a inclinao a assumir formas
cada vez mais complexas, ou seja, todos os princpios que regem a emergncia, a
evoluo, a estrutura e a funo dos seres vivos751.

748
WHITEHEAD, 2010.
749
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 64.
750
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 64.
751
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 64.
344

Encontramo-nos diante de uma assimetria ontolgica. A razo do ser, em sua


unidade e descrio cosmolgicas, e baseada nos princpios da mecnica, capaz
de explicar todas as engrenagens do universo, dos movimentos gravitacionais dos
corpos celestes s dinmica de atrao e repulso entre os corpos. S no capaz
de explicar uma realidade: a vida. Trata-se portanto de ir em busca de uma nova
cincia: a cincia da natureza viva e organizada. Essa cruzada de D`Holbach e
Diderot pela qumica e pela medicina resulta em um programa bastante claro: opor a
matria viva e a dinmica que a rege, capaz de gerar a complexidade dos seres
vivos, natureza inerte do cosmo descrito a partir das leis gerais da mecnica752.
Essa cruzada vitalista de Diderot baseia-se em um postulado teolgico e em uma
critica do espiritualismo, pois o ser humano no pode estar margem do processo
geral de formao do universo. Se h leis gerais que regem o universo supralunar,
essas leis precisam ser as mesmas que regem a vida desde a sua emergncia at a
sua organizao.
O mesmo problema obseda Leibniz, para quem uma explicao semelhante a
de Descartes, na qual o mundo se reduziria em duas substncias, extenso e
pensamento, apenas criaria mais problemas, pois a partir dessa premissa os seres
vivos so maquinas, apenas mediante um golpe de espirito o ser humano poderia
ser entendido como um autmato dotada de alma, sem contudo alterar as peas
fundamentais desse dualismo subjacente753. Para Leibniz no pode existir
descontinuidade cosmolgica entre os seres. Assumir a possibilidade de uma
descontinuidade seria assumir uma fratura ontolgica na cadeia imanente do ser
natural em outras palavras, seria supor que Deus e criao no so
necessariamente coextensivos, ou seja, assumir uma modalidade de imperfeio
nos planos de criao divina que se espelharia em uma imperfeio do prprio
criador. Ao mesmo tempo, essa descontinuidade no interior dos sistemas naturais
produziria um problema no mbito das razes necessrias e contingentes da
existncia atual da natureza enquanto natureza, conduzindo-nos a uma deficincia
interna livre escolha divina de criar o mundo, o que implicaria o problema do livre-
arbtrio humano e a gnese do mal. Todos esses fatores conduzem Leibniz a sua
brilhante argumentao acerca dos compossveis, da pluralidade dos mundos e aos

752
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 64.
753
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991,, p. 65.
345

argumentos desenvolvidos na Teodiceia754. O problema da origem e da estrutura da


vida ocupou Kant e seu idealismo transcendental procura oferecer uma soluo para
as aporias presentes entre a formao dos cristais e a formao dos seres vivos755.
O que est em questo aqui uma imagem fundamental da histria do pensamento,
e que acabou por se tornar ainda mais forte devido obra de Arthur Lovejoy: a
grande cadeia do ser756. E ainda mais do que isso: comea a haver uma clara
sensibilidade por parte dos sbios de diversas cincias de que observar os
processos do bos observar os processos complexos, reais, singulares da matria,
em busca de uma sntese entre o vivo e o no-vivo. Eis-nos aqui no nascimento de
uma nova ontologia: uma ontologia dos processos vivos. Uma ontologia que durou
pouco tempo e logo foi deliberadamente esquecida.
A figura de Georg Ernst Stahl se destaca nesse movimento como um dos pais
de uma teoria animista dos organismos, que posteriormente, sobretudo a partir do
sculo XIX, comea a ser chamada de vitalismo757. A teoria do flogisto desenvolvida
por Stahl prope a existncia de uma elemento que liberado durante a combusto
dos materiais orgnicos e da calcinao dos metais. A hiptese estaria no encalo
de uma busca por elementos mais sutis e capazes de explicar a dinmica da matria
e da vida sob uma mesma teoria, para alm do quadro dos elementos fundamentais
herdado dos antigos. Mais do que isso, em certo sentido, Stahl procura um sopro
vital que atravesse o orgnico e o inorgnico. Uma das delicadas questes
levantadas por Stahl relacionada ao princpio de conservao: dada a
corruptibilidade singular dos seres vivos, diferente da matria inerte, haveria um
princpio natural, permanente e imanente cuja atuao seria capaz de sustentar
esses seres sempre sensveis ao perecimento, mas esse princpio seria estranho s
leis da matria inanimada758. Estamos aqui mais uma vez s voltas com o dualismo
e a definio paradoxal ulterior de Monod. preciso encontrar as leis que explicam a
gnese e a evoluo da vida; essa leis so de ordem mecnica; por isso tampouco
so as mesmas leis da matria inerte, descrita pelo mecanicismo. Esse silogismo
nos lembra uma tautologia: a definio das leis da vida precisa ser derivada das leis
754
LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Ensaios de Teodiceia: sobre a bondade de Deus, a liberdade do
homem e a origem do mal. So Paulo: Estao Liberdade, 2013.
755
MARQUES, Ubirajara Rancan de Azevedo. Kant e a biologia. So Paulo: Barcarolla, 2012.
756
LOVEJOY, Arthur. A grande cadeia do ser. So Paulo: Palndromo, 2005.
757
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 65 e seg.
758
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 66.
346

gerais que descrevem o universo como um ser sem vida e, portanto, as leis da vida
e da no-vida vo se situar em regies cujas demarcaes e limites sero
necessariamente intransponveis entre si. A querela entre Stahl e seu mestre
Friedrich Hoffmann pode ser vista como uma ilustrao exemplar dos embates entre
mecanicismo e organicismo no momento de consolidao da cincia clssica.
A nfase de Stahl recai sobre a conservao e no sobre a transformao759,
ou seja, sua premissa se baseia em uma concepo esttica, como o universo de
Newton, baseado no princpio da inrcia e edificado sobre a crena de que a
imobilidade seria o estado estacionrio primordial do cosmos e de todos os seres
fsicos. Isso demonstra como as teorias orgnicas e as teorias mecnicas se
encontravam unidas em seus nascimentos, e que apenas durante os sculos
seguintes essas solidariedade se rompe em busca de vises de mundo distintas. A
histria da arte, surgida no sculo XVIII com Winckelmann, tambm advoga em
nome desses mesmos princpios: harmonia, estabilidade, imobilidade,
proporcionalidade, equilbrio760. E por meio dele que toda a arte passada ser
reconstruda e que toda arte presente ser julgada, de Winckelmann a Warburg.
Este coloca um ponto final na histria da arte entendida como telos e na altera o
sentido da semntica sob a qual as obras eram lidas, baseada na proporo.
Semelhante a Freud e Nietzsche, Warburg passa a entender a arte como
sintomatologia da cultura, manifestao imemorial do pthos e como princpio
termodinmico de desproporo e turbulncia761. Isso quer dizer que na passagem
do sculo XVII ao sculo XVIII, a teologia aristotlica fundada sobre a imobilidade de
uma causa primeira e de um deus criador do mundo, identificado por sua vez a um
primo mobile que move o mundo sem se mover a si mesmo, reverbera nesses
enunciados, sejam ou no filtrados por meio de matriz revelada crist ou diretamente
tomados do Estagirita. A alterao desse regime de sentido que norteou os estudos
dos organismos apenas ocorre com o romantismo762.
Mas qual a principal crtica possvel de ser feita ao mecanicismo a partir do
ponto de vista dos organismos? A principal crtica de ordem ontolgica, e diz
759
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 66.
760
WINCKELMANN, Johann Joachim. Reflexes sobre a arte antiga. Porto Alegre:
Movimento/UFRGS, 1975.
761
DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: histria da arte e tempo dos fantasmas
segundo Aby Warburg. Traduo de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
762
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 66.
347

respeito tambm ao princpio de causalidade: o autmato tem sua origem em um


criador que lhe externo ao passo que os seres vivos se originam e possuem em si
mesma a finalidade de sua organizao763. O ser vivo forma e se autodetermina
como forma medida mesma que vivo. Essa brilhante intuio, que est na raiz da
teoria dos sistemas de Luhmann, dos sistemas autopoiticos Maturana e Varela e da
ontopoiesis de Sloterdijk, talvez seja uma dos mais importantes vislumbres sobreas
cincias da vida na aurora e na contramo das teorias mecanicistas. Desde o sculo
XIII, o grande embate global do pensamento, e no apenas das cincias naturais,
no foi a ciso produzida entre nominalistas e realistas, cujos desdobramentos
muitos definem como sinnimo de modernidade. O grande embate que passa a
ocorrer diz respeito a uma mudana de esquadro das concepes de Deus. Se
durante sculos Deus mantivera o mundo e a vida unidos em uma profunda aliana
por meio de sua interseco e de sua participao no globo divino da Terra e no
universo, esse mesmo Deus, para ser definido de modo cada vez mais perfeito,
comea a assumir a fisionomia geomtrica decorrente dos avanos da
matematizao do mundo e do universo. Essa geometrizao transformou as
crenas animistas arcaicas, presentes nas tradies alqumicas e centrais para a
configurao e a evoluo do pensamento filosfico e cientfico, em componentes
residuais, margem dos centros hegemnicos de debate do mundo ilustrado.

5.6 Correlacionismo e Finitude

Uma das dificuldades de criticar a tradio mecanicista nasce tambm de um


empecilho criado por Kant. O grande filsofo de Konigsberg acabou por identificar a
cincia de Newton com a arquitetura geral de toda cincia764. Mais do que isso,
medida que Kant fundamenta todos os dados da experincia a partir dos esquemas
transcendentais e das categorias apriorsticas de tempo e espao, entendidos como
instancias dedutivas absolutas, sua obra pode ser entendida como o equivalente
perfeito da fsica de Newton na filosofia. Em virtude da ascenso monumental de

763
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 66.
764
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 67.
348

suas ideias sobre toda a filosofia moderna, o criticismo e o idealismo transcendental


kantianos passaram a fortalecer ainda mais o conjunto das atividades da cincia
clssica, fornecendo-lhes subsdios tericos at o sculo XX.
A chamada revoluo copernicana empreendida por Kant consiste em um
deslocamento da racionalidade da esfera divina de Deus para a esfera humana do
sujeito. Essa subsuno de Deus aos postulados da razo havia sido empreendida
tambm por Descartes, que passa a entender a noo de Deus como uma demanda
necessria explicao racional e portanto como um dos desdobramentos do cogito
em seu percurso de conhecimento dos diversos nveis da realidade765. Descartes
chega mesmo a invocar tambm um gnio maligno, semelhante ao de Maxwell e
Laplace, um gnio que conseguisse ludibriar a razo ao produzir um uma iluso to
perfeita a ponto de a razo acreditar que essa iluso fosse real. O teste de fogo aqui
em ao pretende definir que mesmo pela ao demonaca que transformasse uma
o mundo em iluso, ainda assim a razo no poderia deixar de atestar sua prpria
existncia, da mesma forma que ningum pode negar a existncia de Deus como
ente de razo. Mesmo sendo um demnio e mesmo sendo uma iluso, trata-se
nesse caso de uma iluso racional, o mesmo argumento utilizado por Laplace para
validar esse mtodo especulativo e transformar os recursos abstrativos e ilusionistas
utilizados pela cincia como uma mera maneira de acessar as estruturas
fundamentais e universais da realidade766.
Por isso que em ambos os casos, tanto no transcendentalismo kantiano
quanto no racionalismo cartesiano, pode-se dizer que Deus no negado. Deus
transforma-se em uma demanda interna da prpria racionalidade, sem a qual a
racionalidade se destruiria a si mesma, ignorante de seus prprios limites. Seja visto
como objeto da razo transcendental seja visto como fundamento do percurso
meditativo do cogito que se desdobra nas diversas substncias do mundo at
chegar substncia divina, em ambos os casos Deus pode ser entendido como uma
das peas necessrias ao fechamento racional do sistema. Um Deus de filsofos,
diria Pascal, em tom de ironia, pois um Deus dos filsofos em nada se distingue de
uma pea a mais de um mundo entendido como engrenagem racional. Ainda com
Pascal, poderamos dizer que a partir do sculo XVIII o Deus do esprit de gomtrie

765
DESCARTES, Ren. Meditaes metafsicas e filosofia primeira. So Paulo: Difel, 1962.
766
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 69.
349

acaba por vencer o Deus do corao, o Deus do esprit de finesse esprit de finessse.
Em nosso caso, o Deus dos mecanismos suplanta pouco a pouco o Deus dos
organismos e dos devires vivos.
A guinada de Kant diz respeito a uma alterao das relaes sujeito-objeto.
Se a relao com o mundo de ordem transcendental e o transcendental o sujeito,
o conhecimento dos objetos no se realiza como apreenso de dados empricos por
parte da experincia, mas sim como uma atividade sinttica das categorias
apriorsticas. A dualismo de substncia que para Descartes constitui dois nveis de
realidade ontologicamente distintos, a res extensa e a res cogitans, no existem
para Kant. O que existe so as condies transcendentais de apreenso e
configurao da experincia e dos objetos no interior da atividade cognitiva. Esses
dois modelos de pensamento produzem duas ontologias que marcam
definitivamente a modernidade, por mais que se queira dizer que Kant ps um ponto
final na metafsica767. O grande problema ocorre quando tentamos pensar a
condio de possibilidade e o que sustenta a natureza apodtica desse sistema. Se
todo sistema de Kant consiste em vedar o acesso aos fenmenos e empiria,
entendidos como coisa em si, e tambm em inviabilizar qualquer possibilidade do
pensamento se unificar como conceito e como razo apoiando-se apenas nos dados
da experincia, a pea-chave da filosofia transcendental tem um nome: deduo
transcendental. O resultado do dilogo experimental nascente entre o homem e a
natureza pode continuar em aberto, como o mtodo experimental o exige. Mas os
seus resultados sempre precisam se adequar aos esquemas a priori universais da
razo para poderem ser validados em termos epistemolgicos. Aquilo que escapa
expectativa do sujeito do conhecimento pode ser concebido como um novo desafio
razo, que passa a rever seus postulados e sua natureza, ciente de sua
precariedade. Esse o espao, sempre em aberto, da eterna dinmica entre
conhecimento e ignorncia, entre experincia e razo, que marca a genialidade do
pensador alemo. Contudo ainda assim os esquemas permanecem como horizonte
apriorstico anterior s metamorfoses oferecidas pela experincia e pelos dados
sensveis imanentes aos fenmenos entendidos como fenmenos, e no como
redues noticas.

767
Para a vigncia da metafsica na modernidade, de Descartes e Deleuze, conferir o excelente
estudo de Moore: MOORE, A. W. The Evolution of Modern Metaphysics: Making Sense of Things.
Cambridge: Cambridge University Press, 2012.
350

Em outras palavras, o que quero dizer pode ser resumido da seguinte


maneira. Kant de fato rompeu os liames que validavam os seres do mundo e os
entes do pensamento a partir do primado da substncia, categoria das categorias,
conforme o declogo aristotlico que atravessou os sculos. A revoluo kantiana
contudo no suprime a vigncia das estruturas fundamentais da realidade, apenas
nos diz que no existem formas externas subsistentes e existentes de per se no
mundo exterior. Kant representa uma refundao da metafsica, e no o seu fim768.
Todo nosso acesso ao mundo na verdade a soma das formas pelas quais esse
mesmo mundo apreendido na esfera sinttica do sujeito transcendental, tese que
de certa forma elimina a ideia de uma objetividade exterior atividade
transcendental. Isso quer dizer que Kant ps fim a uma tradio metafsica,
provavelmente a mais ampla e difundida dentre as tradies: a metafsica da
substncia. E o fez em nome de uma nova estrutura fundamental da realidade: a
correlao. A revoluo kantiana consiste muito mais em um deslocamento das
categorias fundamentais da metafsica do que em uma aniquilao da metafsica
como um todo. Esse deslocamento consiste em transferir o primado da metafsica
clssica, entendida como uma ontologia das substncias, para uma metafsica
moderna, fundada sobre o correlacionismo da conscincia. Em certa medida essa
revoluo correlacionista permaneceu praticamente intocada de Kant a Husserl, e
comea a sofrer seus primeiros golpes com Heidegger e, hoje em dia, como os
adeptos do realismo especulativo769.
O carter rigorosamente metafsico da teoria kantiana se baseia no ponto-
cego de seu sistema, ao mesmo tempo pedra angular de toda a arquitetura: a
deduo transcendental. A deduo o mtodo que valida a razo transcendental
como condio de possibilidade do conhecimento e da verdade. medida que a
deduo no pode ser deslegitimada nem legitimada por meio da experincia, pois
fim de toda experincia ser reabsorvida pela razo para demonstrar a
precariedade dessa razo e, assim, torn-la mais universal. A deduo no
desempenha na filosofia kantiana apenas um recurso meramente epistemolgico. A
deduo a chave que produz o fechamento global do sistema em suas trs
esferas, tanto na razo pura quanto na razo prtica e na esttica. Por seu turno, a

768
NOVELLO, Mrio. O que cosmologia? A revoluo do pensamento cosmolgico. Rio de Janeiro:
Zahar, 2016, p. 172.
769
GRATTON, Peter. Speculative realism: problems and prospects. London & New York: Continuum,
2013.
351

deduo fornece a condio de possibilidade para que a realidade seja pensada


como estrutura correlacional e transcendental, unificada pela razo, e no mais a
partir de uma lgica de substncias e predicados, que postulam a existncia de
qualidades intrnsecas realidade exterior ao sujeito.
A metafsica comea quando o princpio de identidade entre ser e physis se
quebra, e quando surge uma assimetria entre ontologia e natureza. Nesses termos,
podemos dizer que imprprio designar Descartes, solitariamente, como um dos
criadores da chamada metafsica da subjetividade, uma espcie de reformador
radical que faz a ponte entre Agostinho e a modernidade, e cujo herana se espraia
pelas filosofias da existncia dos sculos XIX e XX. O criticismo e o
transcendentalismo kantianos tambm podem ser entendidos como uma metafsica
do sujeito. Assim como Nietzsche, Espinosa, Heidegger, Whitehead, Deleuze,
Levinas, Wittgenstein, Derrida representam, respectivamente, metafsicas da
potncia, da expresso, do ser, do processo, do desejo, da alteridade, da linguagem
e da diferena770. Kant reembaralha o declogo das categorias aristotlicas,
deslocando o acento da substncia para a relao. Realiza essa operao
desvencilhando-se do milenar peso da ontologia, mas o faz custa de fundar todo
seu sistema sobre a deduo, minimizando o componente metafsico residual
presente nesse deslocamento. O real participa de modo fantasmal em seus
esquematismos transcendentais. Como poderamos pensar com Lacan, o real
imanente torna-se o sintoma latente da razo transcendental771.
O conflito entre as cincias experimentais e a tradio kantiana comea a se
colocar a partir da produtividade que o esquematismo fornece ao dilogo
experimental com a natureza. Um primeiro aspecto do conflito diz respeito aos
mtodos. A heurstica das descobertas se vale de diversos recursos, e seria preciso
um longo debate em torno desses recursos para compreender sua vigncia e sua
eficcia. Entretanto, a cincia experimental moderna se caracteriza em linhas gerais
pela valorizao cada vez mais acentuada da inferncia indutiva, e no dos mtodos
dedutivos. Por outro lado, se a cincia torna-se cada vez mais experimental, e se
verificamos nos ltimos sculos a ascenso vertiginosa do princpio de
falseabilidade descrito por Popper como a essncia de toda a atividade cientfica, a
filosofia transcendental pode ser uma maravilhoso instrumento crtico capaz de

770
MOORE, 2012.
771
JURANVILLE, Alain. Lacan e a Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.
352

colocar limites atividade do entendimento, circundando-a com a determinao


negativa da razo. A cincia experimental em grande parte experimenta uma
crescente onipotncia e perda de limites porque embaralha razo e entendimento,
dissolvendo os limites entre essas duas faculdades e suas respectivas potncias.
Entretanto do ponto de vista da filosofia transcendental, o devir dos processos
imanentes experimentais, s medida em que se vinculam em grande parte ao
imperativo da experincia, teriam que se subordinados s formas vazias das
categorias a priori. Nesse sentido a atividade experimental acaba por perder sua
autonomia e se enfraquecer. Todo o dilogo experimental do ser humano com a
natureza precisaria ter em vista o finalismo de uma adequao a uma sintaxe
universal772. medida que o apriorismo se baseia em estruturas formais vazias, o
dilogo experimental acaba por se esvaziar de sua legitimidade imanente,
transformando-se em uma atividade fantasmal, carente de significado caso no
consiga preencher essas estruturas formais e essa linguagem geral da razo,
fornecida pelo transcendentalismo773. A estrutura formal do transcendentalismo
uma estrutura formalmente fechada, ao passo que a viagem da cincia experimental
desde o sculo XVII tem produzido um movimento justamente oposto: a passagem
do mundo fechado ao universo infinito e formalmente aberto774.
Estamos aqui diante dos conflitos entre racionalidade e infinito, um dos mais
agudos debates da cosmologia775. Na medida mesma em que a a racionalidade do
pressupe uma totalidade e o universo pode ser definido como totalidade de tudo o
que existe, o conceito de infinito apresenta-se como um dos mais problemticos
para as teorias que pretendem sustentar a autonomia da razo. A partir da
esferologia, poderamos dizer que Kant o ltimo representante da globalizao
metafsica e das ontologias imperiais776. Ele pde construir a estrutura formal das
condies de possibilidade de um pensamento universalmente vlido medida
mesma que assimilou a um imperativo geral da razo as foras contingentes que
conduziram descoberta desse mesmo pensamento. Assim pde conciliar

772
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 69.
773
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 69.
774
KOYR, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Rio de Janeiro/So Paulo, Forense
Universitria/Edusp, 1979.
775
NOVELLO, Mrio. O que cosmologia? A revoluo do pensamento cosmolgico. Rio de Janeiro:
Zahar, 2016, p. 19 e seg.
776
E-II.
353

necessidade de demonstrar como ocorre a unidade e a continuidade dos fenmenos


da conscincia, sem que essa unidade e essa continuidade sejam fornecidas por
propriedades inerentes a esses mesmos fenmenos. Esse aspecto o que
podemos definir como o princpio da percepo transcendental. Por outro lado,
estipulou que a racionalidade da realizao dos fenmenos na conscincia apenas
pode se completar diante da finitude que essa mesma conscincia se coloca para si
mesma. Enquanto no sculo XXI a cincia experimental conquista a pluralidade dos
mundos e as multiplicidades-espumas flutuam na vertigem dos abismos dos
espaos infinitos, descritos por Pascal, Kant se props reintroduzir a razo na ordem
natural, de onde Hume a havia expulso. Por isso a defesa da razo transcendental
nos dias de hoje em alguns aspectos pode soar como uma tentativa cnica de
formular as condies de possibilidade universais da razo, medida mesmo em
que os agentes e produtores dos critrios que validam essa universalidade se
tornam eles mesmos cada vez mais opacos.
O sentido geral da filosofia transcendental na verdade uma autossuficincia
cognitiva, baseada em um modelo de cosmos que poderamos definir como um
cosmos fechado, e apoiada em um princpio dedutivo que acaba sendo o ponto
chave e o ponto cego de todo o sistema. A premissa nascidas da atividade
abstrativa, resumida no apriorismo, produz um enlace subterrneo entre Kant e
Newton. No por acaso Einstein mira seu alvo justamente em Kant quando pretende
desenvolver as leis do espao-tempo curvo formado pela ao gravitacional,
justamente por entender que o tempo e o espao absolutos e abstratos de Newton e
de Kant eram os mesmos777. Para ambos a natureza existe como unidade
fenomnica transcendental de leis simples, s quais essa mesma natureza precisa
ser reassimilada, para demonstrar o fechamento interno e necessrio ordem
racional. Essa ordem racional segue em uma distase em relao aos mtodos e
expanso planetria da atividade da cincia, concebida em termos experimentais.
Por fim, para Kant a pergunta sobre a existncia de Deus surge de um falso
problema. E por isso sempre nos reportamos a Kant quando queremos compreender
como ele invalidou o argumento ontolgico de Anselmo de Canturia, uma das
principais vias de demonstrao da existncia de Deus778. Trata-se de um problema

777
NOVELLO, Mrio. O que cosmologia? A revoluo do pensamento cosmolgico. Rio de Janeiro:
Zahar, 2016, p. 15 e seg.
778
ANSELMO. Prosologium. Os Pensadores. So Paulo: Abril, 1989.
354

de linguagem, a partir do qual se acredita que as mesmas estruturas proposicionais


referentes a propriedades e objetos possam ser transferidas para estruturas
proposicionais que se referem existncia. Sentenas que dizem que uma cadeira
azul ou branca no podem ser entendidas como sendo sentenas da mesma
natureza de sentenas que se perguntam se as cadeiras, em geral, existem ou no
existem. A existncia no uma propriedade que se possa atribuir ou retirar por
privao ou atribuio. Simplesmente porque a existncia a condio de
possibilidade da experincia dos objetos e, portanto, dos prprios objetos,
entendidos como unidades fenomnicas779. Nesse sentido, o Deus de Kant um
Deus que obviamente existe, mas existe como demanda interna da razo de
formular seus prprios limites, ou seja, de reforar a contingncia que a constitui
como atividade racional. Deus seria um dos tantos objetos transcendentais, e nesse
sentido Deus tambm pode ser entendido como uma necessidade abstrativa do
sistema racional, e no como uma ordem viva, presente nos seres e em constante
devir. O Deus da mecnica clssica e o Deus de Kant se completam. Formam a
imagem vazia de uma divindade que fornece os meios de se demonstrar a
racionalidade e a geometria do universo, e que se realiza plenamente no sujeito. Por
isso a abbada do cu estralado e a lei moral no esprito humano so as duas
metades que completam o percurso da razo.
Em virtude de todos esses aspectos, podemos considerar Kant como um dos
criadores do mito da cincia moderna, e esse mito se baseia sobretudo na crena de
que seja possvel a criao de uma linguagem nica para a cincia780. Assim como
Kant promoveu a separao entre as ordens do entendimento e da razo,
minimizando o acesso verdade por parte da cincia, a unidade do mtodo dedutivo
levada a cabo pela filosofia transcendental tambm pde comear a ser vista pela
variedade das prticas adotadas pela cincia experimental como uma unidade
mtica781. O fato que uma das origens consumadas do princpio de reduo que
caracteriza a cincia clssica reside nessa reduo eidtica inspirada em grande
parte na filosofia transcendental de Kant. O princpio de reduo, que no sculo
XVIII forjou as divertidas imagens dos homens-mquinas de La Mettrie e a
779
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 69.
780
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 70.
781
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 70.
355

cosmologia mecnica de Descartes, segundo a qual todos os seres vivos podem ser
reduzidos a imagem da mquina e mesmo a fisiologia do corpo humano tem o
dinamismo dos autmatos782.

5.7 Vitalismos e Organicismos

Os progressos do princpio de reduo se mesclam historia mesma do


pensamento moderno. Mais ou menos inspirados em Kant, Helmholtz no nega a
existncia de uma fora vital nos organismos, mas prope que os seres vivos sejam
estudados a partir das mesmas leis que regulam a matria inanimada783. O conflito
entre reducionismo e antirreducionismo marca o debate das cincias desde o sculo
XIX e pode ser entendido como uma questo aberta at hoje, seja com passagens
de filsofos para o campo da cincia ou da cincia para o campo da filosofia784. E a
necessidade explicativa vitalista sugerida por Stahl e entendida como meio de
superar os impasses do reducionismo torna-se cada vez mais urgente. Tanto que
presenciamos nesse mesmo sculo XIX fortes movimentos em busca de uma
unidade sinttica entre natureza e ideia, entre experincia e a dimenso
transcendental. Uma das mais poderosas respostas aos impasses da filosofia
transcendental e ao criticismo de Kant ser Hegel785, bem como todo o idealismo
alemo, sobretudo na figura marginal de Schelling, autor de uma das mais ousadas
filosofias da natureza da histria do pensamento.
Por outro lado, o vitalismo e a teoria dos organismos prosseguem seu
trabalho subterrneo, na esteira de Stahl e em busca de uma teoria explicativa
satisfatria sobre a organizao, a gnese e a finalidade da vida. Essa busca acaba
se entrelaando a disseminao de doutrinas em torno do pampsiquismo e na
aurora das teorias psicanalticas. Contudo, a teoria dos fluxos corporais e das
afetaes mutuas dos organismos se encontra bem antes, mais precisamente na

782
E-I.
783
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 71-72.
784
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 72.
785
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 72.
356

Academia Platnica de Florena, no sculo XV, e foi delineada sobretudo pelas


mos de Marsilio Ficino786. A teoria dos spirit desenvolvida em mbito neoplatnico
basicamente uma teoria da mutua afetao entre os corpos, produzida por
substancias sutis. Essa doutrina define uma grande parte das premissas da arte e
da poesia renascentista, sobretudo a partir da adoo da cosmologia animista
teorizada no Corpus Hermeticum787. Uma teoria da natureza a uma teoria geral das
pulses surgem delineados na filosofia da psicologia vitalistas de Von Hartmann e
de Ludwig Klages, reaparecendo na cosmologia vitalista de Max Scheler. A gnese
mesma das tcnicas psicanalticas a partir da atividade magnetopticas dos crculos
de hipnose do sculo XVIII, de Mesmer e Puysgur, geralmente evitada pelos
historiadores da psicanlise, mas precisariam ser pensadas a partir de uma
ontologia dos meios788.
O papel de Hegel nessa tentativa de superao dos modelos redutivos de
abordagem da natureza exemplar789. Pela primeira vez surge uma perspectiva
global da evoluo da vida e do universo como o desenvolvimento de nveis de
complexidade na processo do Esprito, e que inclusive integra esses nveis no a
partir de uma viso de superao de etapas, mas concebendo o desenvolvimento a
partir de snteses negativas. A odisseia da fenomenologia de Hegel enfrenta um
domnio evitado pelas demais teorias totalizadoras da natureza que surgiram a partir
do sculo XVIII: o desafio de definies qualitativas. A mecnica clssica lida
sempre com propriedades espaciotemporais, e justamente por isso transforma a
natureza em uma entidade matematizvel790. Em oposio a Newton, Hegel comea
a desenvolver uma filosofia capaz de descrever no apenas a natureza a partir de
um estado estacionrio, redutvel a leis simples, mas sim um universo dinmico,
entendido como o fluxo de uma unidade vital, cuja transcendncia negativa se
realiza como devir. Em certo sentido, o sistema hegeliano inverte os postulados de
Kant, sem minimizar o criticismo desses postulados. Se para Kant a transcendncia
do sujeito produz a determinao negativa desse mesmo sujeito e, portanto, funda
os limites intransponveis do mundo conhecido, para Hegel essa negatividade no

786
E-I.
787
PAZ, Octavio. Sror Juana Ins de la Cruz: As armadilhas da f. So Paulo: Mandarim,1998.
788
E-I, AM.
789
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 72.
790
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 73.
357

um limite formal do conhecimento, mas a alavanca interna do real. Se o real


racional e a razo a realizao suprema do Esprito no tempo, essa realizao s
possvel porque o Esprito engloba as contradies e produz a partir delas snteses
que sero novamente negadas pela nadificao [Nachtung] fundamental da ao.
Nesses termos, a racionalidade no o limite transcendental do conhecimento, mas
sim um devir que apenas se realiza como razo medida que a razo promove a
transcendncia de si mesma, e se realiza no como razo pura e nem como razo
prtica, mas como histria.
O fato que esses edifcios conceituais em poucos aspectos poderiam
auxiliar de fato os problemas especficos de uma cincia cada vez mais
experimental791. Contudo o sculo XIX, por meio do movimento hegeliano e das
tentativas, internas cincia, de estabelecer modelos globais no-redutivos que
pudessem funcionar como uma alternativa s aporias do mecanicismo, sinalizaram
para um horizonte que acabaria por ser perseguido no apenas por outras filosofias,
mas que emergiria no centro de problemas prticos das prprias cincias naturais: o
vitalismo e o organicismo. nesse ponto que a enorme e decisiva influncia das
obras de Bergson e, acima de tudo, de Whitehead devem ser entendidas792. A teoria
bergsoniana consiste em evidenciar como o modelo mecnico havia sido
universalizado pela cincia clssica, e a partir de investigaes sobre a ontognese
da vida, chega aos conceitos de durao e de intuio, ambos relacionados a uma
descrio de movimento puro e de captao desse movimento puro793, ambos
definidos de modo qualitativo.
Quanto a Whitehead, um dos maiores desafios de sua filosofia consiste em
ter sido erguida em uma postura deliberadamente pr-kantiana794, ou seja, ter se
valido como ponto de partida das teorias organicistas que se desenvolveram entre
Locke, Berkeley e Hume795. A base da filosofia de Whitehead retomar a conexo
entre a experincia humana e a natureza796. Para esse objetivo, prope uma reviso

791
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 73.
792
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 74 e seg.
793
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 75.
794
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 76.
795
WHITEHEAD, 2010.
796
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 76 e seg.
358

da herana cientfica do sculo XVII, pois esta estaria marcadamente fundada sobre
trs matrizes: o dualismo que isola matria e esprito como duas substancias
heterogneas, o monismo que integra o esprito dentro da matria e o monismo que
integra a matria dentro do esprito797. Essas trs matrizes so incapazes de pensar
os processos fsicos de modo coerente, pois em todos os casos temos uma reduo
dos processos a dimenses que lhes so exteriores. Os processos reais ocorrem
entretanto na interao entre devir e relao, pois no possvel pensar em
entidades constitudas anteriormente estruturas relacionais e tampouco essas
relaes podem ser pensadas fora de uma realidade processual798. Essa
constituio dos seres explicaria como as multiplicidades se unificam e ao mesmo
tempo produzem novas configuraes relacionais799.
A obra de Whitehead teve maior impacto na biologia, pois enquanto a
escrevia a fsica no havia desenvolvido a ideia de partculas elementares
instveis. Tanto no caso de Bergson quanto de Whitehead, estamos diante de um
novo estatuto ontolgico pra o tempo, que deixa de ser reduzido, como o era na
cincia clssica800. O tempo o agente principal da complexidade, e negar ou
suspender sua ao seria invalidar o processo mesmo responsvel pela
conformao da complexidade da vida, incluindo o homem801. Essa metamorfose da
cincia clssica para a cincia complexa tem seu ponto de viragem a partir da
termodinmica802, justamente por meio de uma insero dos princpios temporais da
irreversibilidade na ordem natural dos fenmenos e nas necessidades descritivas
das teorias e das praticas cientificas implicadas nesses fenmenos.

5.8 Cincia do Fogo

797
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 76 e seg.
798
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 76 e seg.
799
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 76 e seg.
800
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 79.
801
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 79.
802
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 79.
359

Essa unificao entre processos fisioqumicos e os processos relativos ao


fenmenos da vida passa a se mostrar possvel graas a uma nova abordagem das
transformaes de estado da matria: a a termodinmica. A termodinmica surge de
um horizonte industrial, mas sua possibilidade terica devem d eum aspecto
bastante prtico, ligado no natureza do calor mas utilizao desse calor803. Os
equilbrios dinmico e trmico foram tomados pela cincia clssica em uma
interao homognea. A suspeita sobre a heterogeneidades dessas duas leis
universais, o calor e a gravitao, pode ser entendida como o comeo de uma
interrogao mais ampla sobre um novo princpio: a irreversibilidade. O
funcionamento de um motor mecnico consiste basicamente em repor, por meio do
trabalho, uma energia potencial anterior interao, de modo que a causa e o efeito
tornem-se equivalentes em termos ideais804. Um motor trmico, por seu lado,
pressupe uma mudana de estado, ou seja, uma alterao das propriedades
mecnicas como dilatao e contrao805. A relao entre o trabalho e o calor
necessrio a um sistema para dois processos se compensem pode ser entendida
como ponto de partida do processo irreversvel que se introduziu na fsica806.
Essa irreversibilidade e a concepo da energia, trabalho e calor sob uma
tica termodinmica passam a ser a chave de acesso aos processos globais da
natureza. Essa viso no se restringe natureza. Passa a ser apreendida no
imaginrio cultural, a ponto de podermos pensar a noo de inconsciente de Freud,
baseada na teoria das pulses e da energia psquica, bem como a literatura de Zola,
a partir de uma imagem: a maquina energtica807. Entretanto a pergunta crucial
ainda no havia sido respondida: para onde vai a energia que se dissipa? Se o
mundo uma fornalha, mesmo quando h conservao de energia, h tambm
dissipao. Ee nesse ponto que surge o ciclo de Carnot e sua descrio das
propriedades dissipativas por meio de uma lei geral de propagao do calor808. A

803
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 83 e seg.
804
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 86.
805
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 86.
806
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 86.
807
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991,, p. 90.
808
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 92-93.
360

passagem de uma teoria dos motores para a cosmologia recebe um nome:


entropia809.
O segundo princpio da termodinmica comea a sofrer uma reviso. Se
todos os sistemas precisam manter sob controle o fluxo de energia envolvida em um
determinado trabalho, pois a relao entre perdas e ganhos deveria se manter
estvel de acordo com a lei da conservao, o que imaginar diante de sistemas
dissipativos, cuja perda de energia fosse constante e, mais do que isso, irreversvel?
Thomson, Fourier e Clausius so alguns dos nomes que se empenham em
compreender essa defasagem. Para tanto, precisam formular a experincia
situacional de sistemas empricos, nos quais se observa a propagao de calor e de
energia, para outro sistema metaemprico: o cosmos810. medida que a entropia
produz uma evoluo irreversvel dos sistemas e, nesse sentido, uma evoluo
irreversvel das trocas entre sistema e meio, como definir a entropia, se ela consiste
em uma variao irreversvel das interaes sistema-meio que resultam em um valor
negativo? Esse o dilema que marca a passagem dos sistemas lineares aos
sistemas no-lineares, dos sistemas baseados no princpio de equilbrio a outros
sistemas concebidos como sistemas fora do equilbrio, e para os quais, portanto, as
relaes negativas e positivas implicadas nas trocas de energia entre sistema-meio
permanecem em suspenso. Essa aparente antinomia entre dois grandes modelos
descritivos dos processos primrios da natureza no constituem um antagonismo
intrnseco a dinmica dessa mesma natureza. Pelo contrrio, demonstram um
impasse interno s descries dos processos naturais que acabam se encontrando
em uma bifurcao entre as leis da dinmica, que pressupem um mundo de
massas em movimento estvel, e as leis da termodinmica, que pressupem
dissipao da energia, concebida como entropia, mas cujo valor negativo s pode
ser concebido quando tomamos como modelo sistemas em equilbrio811. A cincia
da complexidade seria a herdeira dessas antinomias e aquela responsvel por
integrar essas duas descries da natureza em leis gerais o suficiente para darem
conta dos processos globais da natureza e especficas o suficiente para no
precisarem colocar entre parnteses a irreversibilidade dos fenmenos e a seta da
809
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 94-95.
810
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 94-95.
811
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 98.
361

temporalidade como estratgia para validar seus prprios princpios e conferir


universalidade s suas prprias leis.
Boltzman um dos primeiros a enfrentar esse problema recorrendo
probabilidade812. Independente da evoluo particular de um sistema, esse sistema
sempre tende a produzir uma simetria entre os estados macroscpicos e
microscpicos de desordem e equilbrio, e essa simetria de suas flutuaes sempre
tende para um princpio de ordem813. Por meio da probabilidade, Boltzman
conseguiu demonstrar um comportamento dos sistemas alheio quele demarcado
pelo comportamento determinista da dinmica. Entretanto, a indagao persiste:
poderia essa descrio baseada no equilbrio demonstrar o funcionamento das
estruturas da natureza em seu todo? Como se pode imaginar, a proposta de
Boltzman serviu para uma abertura no interior da cincia, mas precisou ser ampliada
para de fato termos uma linguagem capaz de descrever os sistemas complexos fora
da regio de equilbrio que, malgrado sua eficincia parcial, continuava se servindo
do anteparo conceitual da probabilidade para minimizar suas prprias limitaes.
Como o homnculo criado pelo Fausto de Goethe, para preservar um sistema em
equilbrio preciso preserv-lo em uma redoma814. Ao contrrio, os sistemas
dissipativos e termodinmicos, sejam eles os organismos, uma cidade ou mesmo um
conjunto de cristais, se forem mantidos isolados, tendero inexoravelmente morte,
pois no podem simultaneamente viver e estar separados de seus respectivos
meios815.
E eis aqui um ponto central, ponto de convergncia entre a teoria da esferas e
a termodinmica. A evoluo das espcies descrita pelas cincias biolgicas e o
desenvolvimento das culturas e das sociedades baseiam-se em um princpio
comum: o aumento constante de complexidade. Essa complexidade por sua vez
tende a crescer quanto mais abertos e quanto mais os sistemas estejam em
condies fora de equilbrio. A termodinmica do equilbrio pode ser vista nesse
sentido como a primeira descrio em termos fsicos da complexidade da natureza,
e como um segundo estgio, dir-se-ia um estgio intermedirio, em direo a uma
812
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 100.
813
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991,. 100.
814
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 102.
815
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 102-103.
362

compreenso da complexidade imanente da natureza816. Em primeiro lugar a


irreversibilidade foi pensada como algo passvel de ser suspenso por meio de
reduo. Temos aqui as leis da cincia clssica, que trataram de abstrair do
percurso heurstico tudo o que pudesse comprometer os resultados esperados.
Abstraiu-se o tempo e o espao fsico, produzindo a iluso planimtrica de um
espao e tempo puros. Em segundo lugar, a termodinmica fez emergir um conjunto
de fenmenos dissipativo, presentes na ordem dos prprios fenmenos naturais e
no mais passiveis de serem entendidos como resduos desprezveis de uma
operao matemtica. Trata-se de um primeiro entendimento da irreversibilidade e
da desordem dos sistemas tomados como perda e como entropia negativa. Foi esse
o salto de Boltzman. Por fim, um terceiro estagio de compreenso pode ser descrito
de outro modo. A irreversibilidade crescente e as perdas de energia tambm o
so. Mas entendidos a partir de fluxos constantes e recprocos de trocas entre
sistema e meio, essa irreversibilidade negativa acaba por se converter em ganho.
Eis-nos diante dos sistemas fora de equilbrio e na gnese da complexidade
imanente dos processos naturais817. As reaes qumicas podem ser analisadas a
partir de dois pontos de vista: o cintico e o termodinmico818. Em biologia, as
protenas e as enzimas desempenham a funo de catalisadoras, ou seja, so o
local relacional que possibilita uma reao819. O estudo dessas reaes nos conduz
a uma observao importante: os fluxo termodinmicos so grandezas
fenomenolgicas, ou seja, no so dedutveis de uma teoria geral, mas resultam do
estudo particular de cada processo irreversvel820. A entropia, por seu lado, pode
ser entendida a partir de trs etapas sucessivas: a entropia, os fluxos e as foras
so nulos quando em equilbrio; prximo ao equilbrio o fluxo uma funo linear da
fora; e fora do equilbrio quando o fluxo uma funo mais complexa da fora e
estabelecem entre si uma relao no-linear821.

816
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 102-103.
817
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991,, p. 105 e seg.
818
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, 1991, p. 105 e seg.
819
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 107.
820
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 108.
821
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 109-110.
363

5.9 Darwin e Carnot: Devir Geral e Devir Complexo

Essa distino entre tendncias de sistemas desorganizao entrpica e a


escala cada vez mais complexa da vida constituiu uma oposio entre dois modelos
tericos: Darwin e Carnot. Os antigos tinha uma preocupao com os escoamentos
turbulentos da natureza822, e Michel Serres observou em sua obra clssica sobre o
assunto que a partir de Lucrcio e do conceito de clinmen, a queda imprevisvel e
irreversvel dos tomos para a conformao do cosmos, podemos formular as bases
da cincia moderna823. Apenas a partir do sculo XIX a filosofia volta a se interessar
por esse vetor temporal, por meio das filosofias da vida e das descries do mundo
da vida [Lebenswelt], desenvolvidas por Husserl a partir da fenomenologia que no
por acaso se ocupa da noo de escoamento do tempo824. Esses escoamentos
constantes e suas flutuaes so detectados pela hidrodinmica com uma tendncia
ao equilbrio, e por isso gerariam autoorganizaes espontneas825, como a
autopoiesis das interaes sistema-meio.
Contudo essas flutuaes e escoamentos tm implicaes, pois se elas so
constitutivas de sistemas distantes do equilbrio, a noo de ordem desenvolvida por
Boltzman e baseada em probabilidades perde o sentido826. Estaramos diante de
estruturas de outra natureza: as estruturas dissipativas. Essas estruturas so
paradoxais, pois dizem respeito a associaes entre ordem e desperdcio, e portanto
poderiam se relacionar aos processos de entropia negativa dos sistemas em
equilbrio. Contudo, nos sistemas distantes do equilbrio, essas mesmas estruturas
dissipativas acabam por se converter em fontes de ordem, pois o que descrevemos
como dissipao estaria na origem de novos estados da matria827. Nesse sentido, o

822
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 112-113.
823
SERRES, 2003.
824
SOKOLOWSKI, Robert. Introduo fenomenologia. Traduo Alfredo de O. Moraes. So Paulo:
Loyola, 2004.
825
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991, p. 113.
826
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 114.
827
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 114.
364

desenvolvimento da termodinmica dos processos irreversveis pode ser identificado


com os processos da biologia molecular828.
O funcionamento metablico regido por ativaes e inibies metablicas
regidas por necessidades funcionais829. A grande contribuio da biologia para a
teoria da complexidade foi ter percebido que essas relaes metablicas nas
catlises so onipresentes. E mais do que isso: so frutos de reaes no-lineares
distantes do equilbrio830. Esses fenmenos que, para a fsica, representam aspectos
complexos da natureza, pois configuram fenmenos distantes das leis gerais
definidas a partir de sistemas em equilbrio, para a biologia o complexo o mais
simples, ou seja, o mais autoevidente, medida que essas reaes e catlises de
padres no-lineares so as regras e no as excees na atividade molecular831. A
distino que precisa ser frisada aqui que essa passagem do fisioqumico ao
molecular e ao celular muitas vezes foi pensada como uma fruto de uma emergncia
ontologicamente qualitativa. O que o estudo dos sistemas distantes do equilbrio tm
demonstrado que o comportamento supramolecular no transcende em nada os
mtodos da cincia quantitativa832. Isso quer dizer que mais uma vez preciso ter
cautela e encontrar outras sadas para no reiterarmos as alternativas infernais e
enfatizarmos as bifurcaes, pensando os fenmenos emergentes a partir de um
salto ontolgico do quantitativo ao qualitativo, bem como todas as implicaes
presentes em uma concepo dessa natureza.
A biologia representa um campo privilegiado de investigao para as
estruturas dissipativas. E o que possibilitou a deteco foram os modelos da teoria
cintica, que tornaram mais simples as organizaes metablicas e demonstraram a
variedade dos fenmenos de organizao833. Ao se apoiar na biologia, os sistemas
precisam necessariamente recuperar um aspecto essencial: a historicidade e as
bifurcaes834. A histria o conjunto de alteraes sofridas ou produzidas por
determinados sistemas, e essas alteraes produzem mudanas no estado da
matria justamente quando se afastam das regies de equilbrio. Os limiar dessas
alteraes que promove a emergncia de novos estados chamado de bifurcao.

828
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 116.
829
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 116.
830
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 117.
831
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 116.
832
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 117.
833
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 118.
834
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 122 e seg.
365

Um diagrama de bifurcaes pode ser entendido como a historia de um determinado


sistema835.

5.10 Embriologia e Morfognese

Diferente do que seria de se esperar, as estruturas dissipativas possuem uma


grande coerncia em seu desenvolvimento. Passada a primeira bifurcao, as
demais bifurcaes demonstram o movimento dos sistemas dissipativos como
sistemas coerentes em seu conjunto836. A gnese de um espao homogneo o
conceito de isotropia de Euclides. Graas a essa isotropia, o espao pde ser
pensado como uma substncia simples, diversa portanto da constituio dos seres
vivos. Da mesma maneira, apenas com as topologias no-lineares desenvolvidas na
fsica do sculo XX por Minkowski e DeSitter, os limites do conceito de espao
isotrpico de Euclides comeou a ser repensado837. Entretanto essa concepo de
um espao em devir e em constante dissipao se encontra na antiguidade
sobretudo em Aristteles838. Isso ocorre sobretudo por causa da concepo de
physis presente no pensamento aristotlico, entendida como conjunto integral de
todos os fenmenos, sejam eles naturais ou humanos. Por outro lado, a nfase dada
aos chamados dois nveis cosmolgicos, um sublunar e outro supralunar, apenas
aparentemente produzem uma ciso ontolgica. No por acaso, Aristteles cunha o
termo zoa [ser vivo] como um dos termos para designar os planetas. Essa
concepo nos leva a um modelo de espao fortemente inspirado em uma matriz de
compreenso que acaba por se converter em fonte heurstica de outras ordens de
seres: a embriologia839.
A embriologia a totalidade dos processos de transformao observado nos
seres vivos. E cumpre um papel decisivo no estudo das formas: determinar a
morfognese. A morfognese a determinao da forma dos seres vivos a partir de
suas origens e de suas funes por meio de suas formas e fins, e tendo em vista

835
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 123.
836
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 124 e seg.
837
NOVELLO, 2006.
838
ARISTTELES. Da Gerao e da Corrupo. So Paulo: Landy, 2001.
839
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 124 e seg.
366

suas metamorfoses no tempo. Por isso o grande embriologista e filsofo da biologia


Hans Driesch notou que a origem da vida no seria muito distinta da origem do
universo, pois em ambos os casos estamos de um mesmo problema metafsico,
cunhado justamente por Aristteles: a origem do movimento [entelquia]840. A causa
interna dos seres vivos pode nos reconduzir causa formal de sua permanncia
precria e de sua dissipao. Compreender isso por meio dos modelos
embriolgicos seria um modo de compreender as causas internas do devir e da
corrupo de todos os seres. Por meio do modelo embriolgico e das formas de
cada individuo possvel relacionar filognese e ontognese: a origem da forma
individual associada origem da forma atual dos indivduos, bem como a descrever
o posicionamento dos indivduos em uma determinada espcie, bem como a
emergncia dessa espcie.
No sculo XIX, a embriologia teve uma grande propagao nas teorias
chamadas morfologias, e, por sua vez, a morfologia desempenhou um importante
papel antirreducionista em relao tentativa de explicar os seres vivos a partir das
leis gerais fisioqumicas. No sculo XIX, a morfologia alem de Haeckel e a
investigao da biologia evolucionria de Darwin e Wallance e mesmo as teorias
adaptativas de Lamarck convergem em muitos aspectos. Apenas a partir de um
novo reducionismo das primeiras dcadas do sculo XX que esses mtodos se
dividiram em unidades isoladas, e tanto a morfologia quanto o lamarckismo foram
relegados ao esquecimento. Essa ruptura veio por meio da chamada biologia da
sntese, cujos desdobramentos mais poderosos foram a aliana entre biologia,
tecnologia e paleontologia. Entretanto o mtodo morfolgico e o modelo do
desenvolvimento dos embries continua a servio de diversos nveis de explicao
da complexidade, em especial usados como recursos taxonmicos e como
possibilidades de definio ontolgica da totalidade das cadeias dos seres, e por
isso a morfologia conta com um mentor anterior ao sculo XIX: Leibniz. Todo
sistema de pensamento leibniziano foi concebido com base na teoria dos
organismos e, em certo sentido, como uma tentativa de explicao das relaes
mutuas entre simplicidade e multiplicidade das formas e dos fenmenos tendo em
vista uma morfologia especifica, emergente em cada indivduo ou em cada agregado
ou constelao de indivduos.

840
ARISTTELES. Metafsica. Edio de Giovanni Reale. Trs Tomos. So Paulo: Loyola, 2002.
367

Em linhas gerais, pode-se pensar que as estruturas dissipativas so uma


chave de acesso aos sistemas vivos e a sua irredutibilidade e, mais do que isso,
uma das vias de superao das antinomias entre reducionismo e
antirreducionismo841. Nessa mesma linha, podemos pensar uma reformulao dos
modelos biolgicos de Aristteles, e tambm os pensadores como Stahl, Diderot,
Hegel, Leibniz, Hume, Berkeley, Locke, Bergson, Whitehead e Sloterdijk, entre
outros. Eles tentaram formular modelos compreensivos que contemplassem a
especificidade dos seres vivos e, desse modo, contriburam para a emergncia do
pensamento complexo, baseado no princpio de irredutibilidade no apenas dos
sistemas vivos, mas de quaisquer sistemas. O problema aberto pela organizao
imanente s clulas e molculas, e mesmo s suas populaes, pode ser apenas
uma transferncia de modelos de organizao tecnolgicas de determinadas
pocas, e que configuram determinadas sensibilidade descritivas da natureza842.
Afinal as clulas so unidades de partes maiores que por sua vez daro origem a
novos aglomerados, pois essa descrio da vida apenas uma viso ainda parcial,
como todas as vises, dos sistemas integrais vivos em suas dinmicas
especficas843. Se na verdade s temos acesso a partes discretas da vida, e se
essas partes discretas no podem ser descritas como sendo a essncia do
comportamento vital, tal constatao estimulou a biologia a produzir novas ondas
reducionistas que marcaram e tm marcado de maneira indelvel seu
desenvolvimento no sculo XX e ainda esto presentes nos dias de hoje. Esses
novos reducionismos basicamente se concentram na concepo genecentrista que
privilegia o texto gentico em detrimento da seleo e da adaptao, viso que se
encontra marcada nos dias de hoje do dualismo e na polmica envolvendo, os
defensores da seleo por parentesco e da seleo de grupo, cujos dois grandes
representantes so, respectivamente, Dawkins e Wilson.
A atribuio de ordem aos sistemas vivos poderia ser uma capciosa metfora
antropocntrica? Quando a questo de coloca desse modo, torna-se ainda mais
produtiva a abordagem proposta pela teoria das esferas. medida que a esferologia
se baseia em sistemas autopoiticos, recursivos e circulares, essa distino entre
atribuies de sentido antropocntrico ou descries imanentes da natureza perde o

841
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 124 e seg.
842
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 126 e seg.
843
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 126 e seg.
368

sentido. Se tudo se desdobra na cadeia do ser e se para a ontologia no h


distino entre a descrio dos fenmenos e a constituio imanente dos
fenmenos, pois em ambos os casos estamos diante de produo formas, a
estrutura relacional capaz de produzir metforas de organizao e complexidade
to legitima quanto as estruturas relacionais capazes de promover a reduo do
meio ao sistema ou de sistemas irredutveis a outros, dentro de suas finalidades e
intenes. O que se pode produzir como distino entre esses diversos modos de
constituir esferologicamente a natureza e as teorias a capacidade que essas
constituies demonstram de se inserirem em redes mais amplas de ressonncia e
de transferncia. A verdade latente e por vezes manifesta da esferologia uma
exigncia contundente de perda da inocncia, definio alis dada por Sloterdijk
como nica finalidade da filosofia. A perda da inocncia a capacidade de
suspender as bifurcaes inerentes e incontornveis das metafsicas monovalentes
e bivalentes e, no sentido de Stengers, a busca por uma sada para as alternativas
infernais que no produza novas bifurcaes. Nesses termos, os regimes
representacionais da verdade, da natureza e da cincia continuam enclausurados
em suas condies de verdade, e estas quase sempre desaguam em algum nvel de
dualismo ou de ciso nas cadeias do ser. o pensamento complexo e a esferologia
no uma salvao dos regimes dualistas e das bifurcaes, mas apenas uma
maneira de demonstrar que a sua eficincia talvez exista apenas custa de sua
ingenuidade.
Entretanto sempre importante termos conscincia de que a denncia do
reducionismo pode ser apenas uma repetio da crtica de Aristteles aos
atomistas844, que acreditavam que o todo pode ser deduzido a partir de suas partes
e de que a essncia minima da natureza seriam unidades materiais. O importante
dessa questo notarmos justamente o valor positivo das controvrsias envolvendo
reducionismo e antirreducionismo, os ganhos, perdas e resduos dessa interao,
como quem observasse os fluxos trocados entre diversos sistemas. O modo pelo
qual se podem entender essas tendncias organizao sem recorrer ao
artificialismo da atribuio nominal e ao naturalismo de leis inerentes natureza a
partir da noo de ordem por flutuao845. Em biologia esse tipo de ordem pode ser
encontrada em fenmenos como as construes de um ninho, que parecem invocar

844
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 126 e seg.
845
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 129 e seg.
369

uma espcie de alma coletiva para produzir o sentido conjunto das coordenadas846.
O importante desses sistemas ordenados por flutuao notarmos que ocorre a
partir das bifurcaes, e no se d de uma s vez em todo sistema, mas estabelece-
se primeiro em uma regio e, dependendo de se situar em uma regio critica, a
flutuao pode regressar ou se expandir por todo sistema847. A relao estabelecida
entre parte-todo de um sistema a partir da flutuao se conecta a uma concepo
ecolgica e complexa, e as relaes igualmente perigosas de sistemas muito
complexos, como os sistemas humanos, tendem a ter suas flutuaes controladas e
mantidas em estabilidade848. Em um sentido semelhante, e de um ponto de vista
ecolgico, as flutuaes sistema-meio so simtricas e constantes. Em alguns
casos, flutuaes de origem externa podem produzir rudos e perturbaes
aleatrias849. Contudo, pensados a partir dos modelos sistmicos distantes do
equilbrio esses mesmos rudos ao invs de produzirem maior entropia do sistema,
acabam por contribuir para a sua complexidade.
As implicaes das estruturas dissipativas podem portanto promover uma
convergncia entre as no-linearidades mltiplas das cincia bioqumica e ao
mesmo tempo reconsiderar a estabilidade do estado estacionrio inicial de
determinados sistemas, medida que a estabilidade desse estado estacionrio,
pensado a partir dos sistemas distantes do equilbrio, passa a ser concebido como
um dado de equilbrio parcial diante das ressonncias e das mudanas de estado de
outros sistemas dissipativos850. Nesse mesmo sentido, a direo apontada pela
teoria da informao poderia restabelecer o modelo de complexidade que a fsica
clssica reduziu por conta do imperativo da simplicidade de suas leis. Em termos
informacionais, possvel pensar no em evoluo de sistemas ou na evoluo de
sistemas-meios, mas sim a partir de modelos coevoluo de mensagens e
informaes851. Em termos informacionais, Lvi-Strauss havia pensado dois modelos
possveis de se analisar as culturas: o mecnico e o estatstico852. A partir dos
modelos dinmicos poderamos pensar a relao do Ocidente com os demais povos
a partir de rupturas de simetria. Por meio dos modelos estatsticos, seria justamente

846
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 130.
847
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 131.
848
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 132.
849
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 132.
850
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 138.
851
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 139.
852
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 139-140.
370

a interao esses contatos entre padres ocidentais e no-ocidentais, bem como a


mtua interao e reorganizao promovida por esse contato, que iriam concorrer
para a reorganizao de ambos os sistemas em interao853. H um ponto central
que precisa ser iluminado nessa expanso de modelos naturais para, por meio da
teoria da informao e da ciberntica, podermos pensar a interao de sistemas
humanos: as interaes no-lineares so fundamentais para os modos pelos quais
esses determinados sistemas pode involuir, evoluir ou coevoluir em termos de
complexidade e de novos estados flutuantes que possibilitam novas aquisies ou
novas perdas em termos de equilbrio.
Eis-nos aqui de novo envolvidos no problema descrito por Monod. As ordens
por flutuao em muitos sentidos poderiam nos reconduzir aos dilemas entre acaso
e necessidade854. Todavia no esse o sentido. Justamente porque os sistemas se
organizam por flutuaes distantes do equilbrio e justamente porque essas
flutuaes no ocorrem de modo uniforme em todo sistema, a ao dos elementos
individuais ganha um destaque muito maior. O deslocamento de indivduos em
determinadas regies deixa de ser pensado como um fato isolado e de menor
relevncia, dado que no corresponde s expectativas de probabilidade da evoluo
desse mesmo sistema. As aes parciais e inesperadas podem ser um comeo de
alterao de estado desse sistema, a primeira manifestao de entropia. Desse
modo, como no se pode definir os estados iniciais de equilbrio de um sistema
como o ponto de partida para determinar a linearidade ou no-linearidade de sua
evoluo, temos nesse sentido uma ntida diferenciao entre ordem e desordem
por flutuao e a definio dos sistemas globais como funcionais ou disfuncionais855.
Isso quer dizer que toda norma emerge de um campo de diversas decises e
escolhas tomadas por um sistema ao longo de sua trajetria. Essas decises e
essas bifurcaes so da ordem do acaso, no da arbitrariedade856. A arbitrariedade
seria a crena de que as escolhas poderia ser totalmente distintas do que foram. O
acaso sugere que as escolhas ocorreram como de fato ocorreram porque nelas
estavam implicadas, virtualmente, a serie de escolhas passadas e futuras de uma
cadeia de transformaes. Essa mtua implicao diz respeito ao fato de que toda
evoluo, mesmo sob o efeito do acaso, uma coevoluo, e essa coevoluo ou

853
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 139-140.
854
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 141 e seg.
855
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 141.
856
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 141.
371

essa coimplicao podem ser pensadas a partir da esferologia, em sentido mais


especfico, e a partir de uma ontologia relacional.
Entretanto as noes de acaso e de necessidade, surgidas na biologia para
dar conta da seleo natural, produzem uma ciso ontolgica entre os reinos do
animado e do inanimado. Se o acaso est presente como elemento ordenador
imanente aos processos naturais, sua ao s pode ser compreendida desde um
ponto de vista de uma ao extraterritorial que incide sobre a natureza, arrojando-a
em seu devir propriamente vivo. medida que Monod faz toda a morfognese
derivar dessa assimetria presente na relao entre acaso e necessidade, acaba por
definir que a lei que rege o vivo a lei de retorno ao inorgnico e o ser vivo como um
morto adiando sua morte s margens do universo indiferente857. A posio terica de
Monod pode ser vista como a forma mais acabada da biologia e mesmo em certo
sentido como o ponto final das cincias clssicas e de seu imperativo de
simplicidade858. Esse imperativo fornece uma resposta s indagaes de Stahl sobre
as leis comuns que regulam a matria, que seriam as mesmas que regulam a
mecnica csmica859.
Essa formulao guarda problemas de ordem epistemolgica, e mesmo
ontolgica. Esses problemas derivam de uma mesma fonte: ao criar a vida como
exceo da cadeia dos seres, preciso localizar sua gnese em uma posio de
extraterritorialidade860, estranha dinmica geral dos demais seres inorgnicos.
Concebida assim, a vida passa a ser, paradoxalmente, submetida s leis gerais de
um universo sem vida e, ao mesmo tempo, uma exceo surgida no seio desse
mesmo universo por meio do acaso e cuja complexidade surgiria, tambm
paradoxalmente, da continua e infinita luta dessa mesma vida contra um cosmos
adverso. No preciso frisar que nesse modelo pode-se ver claramente uma
concepo de entropia negativa e de organizao de um sistema em equilbrio que
encontra sua homeostase em um retorno do orgnico ao inorgnico. Em outras
palavras, a existncia do sistema-animado em nada altera as condies iniciais do
universo concebido como um sistema-inanimado. Isso quer dizer que, a despeito da
escala micro ou macroscpica em que tomemos essa descrio, em ambos os
casos esse modelo pressupe uma interao fraca entre sistemas e uma finalidade

857
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 142.
858
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 142.
859
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 142.
860
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 142.
372

de assimilao das flutuaes de um sistema por outro, redundando em um grau


zero de transformao geral dessas mesmas interaes entre sistemas. Definir a
vida a partir de um estado de exceo do inorgnico o mesmo que dizer que o
estatuto da vida depende das condies iniciais da morte e que a nica coisa que
podemos dizer sobre a vida no diz respeito sua ontognese, mas simplesmente
sua finalidade. Definir a vida a partir de uma exceo aos processos globais da
natureza que lhe so indiferentes o mesmo que definir a vida a partir do ponto no
qual quando essa mesma vida se decompe, se desagrega, se corrompe e morre,
ou seja, quando a vida deixa de ser o que . Nesse ponto, Monod finaliza o ciclo da
biologia moderna apresentando ganhos em relao s definies gerais e pouco
experimentais de vida dadas por Aristteles, mas sem todavia ter demovido os
mesmos impasses fundamentais lanados por Stahl861.
Por outro lado, se pensarmos o ser vivo a partir dos processos irreversveis,
esses mesmos resultados obtidos pela biologia passam a assumir um novo
sentido862. Poderamos comear a conceber os sistemas vivos como sistemas que
funcionam fora do equilbrio, e cuja a natureza dissipativa, ao invs de produzir
entropia, entendida como perda de energia, so fontes de ordens cada vez mais
complexas, surgidas por flutuao863. O ser humano no seria nem o corolrio da
evoluo de uma vida estranha ao universo e que produziu o ser humano como o
maior de todos os estranhos. Compreendida a partir de fenmenos de
autoorganizao, a vida torna-se um fenmeno que no nem extraordinrio nem
esperado, mas simplesmente to natural quanto os demais processos do cosmos864.
Nesse sentido, a questo que se coloca no seria mais reduzir o ser vivo a uma
nica descrio. Seria sim compreender como matria, energia e informao so
transformadas e armazenadas, dando origem ao fenmenos da vida865. A pergunta
que se coloca como conciliar a cincia do simples com a cincia do complexo?
Como equacionar as leis deterministas com as leis da indeterminao, das
flutuaes e da irreversibilidade, oriundas da termodinmica e das cincias do calor

861
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 142.
862
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 143.
863
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 143.
864
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 143.
865
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 143-144.
373

e da energia? Essa resposta pode ser encontrada quando conseguirmos unificar a


cincia do ser e a cincia do devir866.

5.11 Ser e Devir

As distines entre ser e devir sugerem no mbito da ontologia como um


paralelismo no campo da cincia entre os princpios da dinmica e da
termodinmica, respectivamente. Pensar a partir do comportamento de populaes
para prever estatisticamente a evoluo de um sistema: essa parece ter sido o
grande trunfo de Boltzman e Darwin, fundamentais para o principio de ordem na
fsica e para a seleo natural na biologia867. Em ambos os casos, leva-se em conta
as populaes e as mdias, no os indivduos. Boltzman conseguiu fundar seu
modelo a partir de uma interpretao fenomenolgica da dinmica, pois no teria
como deduzir a entropia da dinmica868. As limitaes desse modelo de ordem
criado pelo fsico alemo consiste basicamente em um ponto: a crena de que seria
possvel medir estatisticamente a media de colises estranha dinmica, pois ela
s se tornaria vivel se fosse possvel retroagir a histria de um sistema e
determinar seu estado inicial de velocidades validas para todas as molculas, oque
s pode ser sustentado em termos fenomenolgicos869.
Outro problema enfrentado pela lei da irreversibilidade consiste na natureza
subjetiva de sua interpretao870. Essa reduo da objetividade da entropia consiste
em uma relativizao do papel desempenhado pelo observador durante o percurso
das flutuaes de um dado sistema. J que o observador no pode abranger o todo
da manifestao do sistema, a assimetria temporal que caracterizaria sua condio
irreversvel poderia ser uma transposio de uma condio de desconhecimento que
o observador tem do todo sistmico871. Esse um problema clssico da teoria do
conhecimento, de vertente ctica e proposto por Hume. Diante dele o que se pode
ter em mente a determinao sempre aproximada de todo tipo de conhecimento, e
866
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 144-145, 149 e seg.
867
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 151.
868
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 154-155.
869
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 154-155.
870
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 158 e seg.
871
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 159.
374

que essa natureza aproximada872, como a descreveu Bachelard, no minimiza a


validade objetiva dos dados descritos ao longo de um experimento873. Por outro
lado, a questo pode ser colocado sob outro ngulo, se pensarmos o devir da
natureza como equivalente do devir e da transformao que minimiza o potencial do
observador, isso quer dizer que no se trata de universos incomunicantes e que as
limitaes mesmas coimplicadas nessa relao fenmeno-observador devem ser
pensadas como condies complexas do conhecimento.
A concepo da natureza como devir e como historicidade em certa medida
esto presentes nas obras de Marx e Engels874. O mecanicismo posto prova ao
ser submetido a outro modelo terico: as leis dialticas875. Todas essas teorias
envolvidas fizeram o oceano que separava a dinmica da termodinmica se
transformar em um rio876. A ponte de transposio desse rio tem sido um dos
principais tarefas da cincia contempornea. Essa transposio depende de modo
essencial da interveno de uma categoria central: o tempo. A temporalidade passa
cada vez mais a assumir um papel nuclear nas cincias naturais e humanas, e
inclusive nos nveis fundamental e cosmolgico, antes dominados pelas leis gerais e
eternas. Nessas transformaes de regimes tericos, duas mudanas se acentuam:
o fim da universalidade por meio da relatividade e o fim do conceito galileano de
objeto, com o advento da mecnica quntica877.

5.12 Teoria da Relatividade e Ontologia dos Meios

Do ponto de vista da relatividade, a alterao nas leis clssicas sensvel.


Nenhum ser submetido leis da fsica pode emitir sinais mais velozes do que a
velocidade da luz no vcuo. Essa descoberta de Einstein conduziu a uma concluso
decisiva: no mais possvel falar em simultaneidade de dois acontecimentos
distantes878. As velocidades desses acontecimentos precisa ser pensada a partir da

872
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 159.
873
BACHELARD, Op. Cit.
874
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 161.
875
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 161.
876
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 162.
877
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 166 e seg.
878
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 166.
375

relatividade do observador que descreve esses mesmos acontecimentos. Nesse


sentido, a relatividade consiste basicamente na descoberta de que o tempo e o
espao, entendidos como esferas absolutas e eternas por Newton, dependem do
ponto de vista de um observador. E a partir da teoria da relatividade estamos mais
uma vez no mago desta tese e do conceito de ontologia relacional. medida que a
teoria da relatividade consiste literalmente em uma relativizao do espao-tempo
absoluto da fsica clssica, podemos dizer que essa relativizao empreendida por
Einstein se baseia em nada mais nada menos do que pensar o ser do universo de
um ponto de vista rigorosamente relacional. O espao e o tempo no se estruturam
mais a partir do eixo cartesiano das coordenadas absolutas, como no modelo de
Newton. Assume a forma da curvatura que o tempo produz sobre o espao do ponto
de vista da velocidade da luz. A gravidade nesse caso tambm deixa de ser uma
constante relativa em funo da massa dos seres, e passa a ser um dado real,
ontologicamente responsvel pelas modulaes da matria e do prprio espao.
Isso quer dizer que a totalidade das descries possveis do universo podem ser
entendias como a totalidade dos pontos observacionais desse mesmo universo entre
si, ou seja, o universo e os observadores do universo passam a ser instncias
coimplicadas e, portanto, a relatividade geral transforma-se na totalidade das formas
modais do ser entendido como relao. Alm disso, a relatividade pe fim
possibilidade de uma descrio completa da natureza, bem como o recurso a um
demnio matemtico capaz de produzir uma extraterritorialidade em relao ao
universo e a seus mltiplos e virtuais observadores879. Outra alterao sensvel foi
produzida pela mecnica quntica sobre a noo galileana de objeto. Uma das
principais crticas consiste na descrio dos tomos como unidade pesadas e nas
tentativas de descrever os eltrons em si mesmos880. A despeito das implicaes
cientficas especficas de cada uma dessas alteraes, o importante notarmos que
em todos esses casos estamos diante de tentativas no de suplantar a fsica
clssica, mas de produzir uma sntese do simples e do complexo881.
Um dos meios de realizar essa sntese desenhar a passagem das
flutuaes estabelecidas pela termodinmica ao conceito filosfico de devir882. Para
tanto, um dos recursos tomar o tempo como operador e como ponte entre a

879
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 167.
880
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 167.
881
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 181 e seg.
882
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 189 e seg.
376

entropia macroscpica e a microscpica883. Esse caminho abre a possibilidade de


definir em termos globais a ao da entropia, sem contudo definir de sada a
entropia dentro dos limites estabelecidos por Boltzman, como a perda irreversvel de
sistemas em equilbrio. O conjunto dessas transformaes conduzem a uma nova
sntese884. Quais os fundamentos dessa sntese? Quando vista sob a forma acima, a
entropia no pode ser pensada aprioristicamente nem como perda nem como
ganho. Deve ser vista como uma fora atraente que conduz os sistemas885. Os
estados mximos de entropia atraem o restante do sistema, situado em entropia
mais baixa, e a termodinmica consegue medir essa atrao desde um ponto de
vista macroscpico, e nesses termos a entropia se expressaria como uma funo
entre fluxos e foras, produzindo flutuaes886. Entretanto a grande questo fsica
no era definir esse cenrio termodinmico da entropia em termos macroscpicos,
mas demonstrar se esse mesmo cenrio encontra um funcionamento similar no nvel
microscpico887. Conseguir efetuar a passagem do macro ao micro seria estabelecer
o nexo entre o sistema geral e a temporalidade. Se esse percurso obter xito, a nova
sntese seria a unidade descritiva de diferentes descries temporais tais como as
descries dinmicas, probabilsticas e macroscpicas, que estiveram separadas na
atividade terica da fsica durante muito tempo888. A mecnica quntica e a dinmica
clssica se afastam paralelemente por motivos opostos e paradoxalmente cruzados:
a primeira parte de princpios de ordem, e a trajetria das partculas muito
independente, e a segunda parte de princpios de desordem, mas trajetrias so
correlatas889. Enquanto a coerncia parcial da fsica clssica depende de um ideal
abstrado dos processos imanentes da natureza, a incoerncia parcial da fsica
quntica se deve ao fato de seus modelos conseguirem englobar em si a realidade
dos fenmenos irreversveis. Contudo quanto mais cresce o conhecimento da
natureza, mais os sistemas clssicos das trajetrias passa a ocupar o lugar de uma
ilha cercada de fenmenos de instabilidade quntica por todos os lados890. O cerne
dessa metamorfose de compreenso se encontra no problema do tempo.

883
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 197.
884
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 198 e seg.
885
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 198.
886
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 198.
887
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 198.
888
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 198.
889
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 201.
890
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 201.
377

5.13 Tempo e Complexidade

A temporalidade o elemento central dessa metamorfose da cincia,


minuciosamente explicitada por Stengers e Prigogine. Dentre os diversos fatores
mobilizados por um reencontro entre das cincias naturais com o horizonte da
temporalidade, um deles a perda final da expectativa de oniscincia891. O ponto de
viragem nuclear em relao temporalidade se deu no sculo XVII, quando a teoria
do movimento se constituiu contra a teoria o modelo biolgico de uma organizao
autnoma e espontnea dos seres naturais892. Eis-nos diante de um ponto nuclear
deste estudo. Ele revela que a grande alterao nas concepes de natureza diz
respeito a uma neutralizao doe meios vivos, que passam a no se mostrar mais
como um modelo padro da cincia, como o era na antiguidade. Tampouco as
estruturas dissipativas vivas se sustentam como o maior de todos os obstculos
para a configurao das leis gerais. Essas mesmas leis passam a equacionar seus
limites formais a partir da reduo, por meio da linguagem ou por meio de processos
abstrativos, de modo que os campos de fenmenos relativos aos modelos biolgicos
acabam por ser englobados pelas leis que regem a totalidade dos fenmenos no-
vivos, produzindo uma distase entre esses dois reinos.
A concepo dinmica clssica constitui uma novidade com enormes
vantagens sobre o saber antigo e medieval. Ela consegue, por meio da reduo,
descrever e explicar um numero cada vez mais vasto de fenmenos e produzir
enunciados universalmente vlidos. O sistema do mundo passa a ser pensado como
algo presente em si, por todas as partes e de todos os modos, e cada uma de suas
partes contm a verdade sobre todas as demais partes, organizadas no eixo puro e
mondromo do tempo893. Essa equivalncia ontolgica entre verdade e ubiquidade
a base da definio das esferas entendidas como globos894. Nesse sentido, as leis
universais da dinmica seriam deterministas, conservativas e reversveis, e pensar
em uma evoluo dessas leis seria uma tautologia, pois elas contm a totalidade de
seu passado e a totalidade de seu futuro895.

891
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 203 e seg.
892
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 203.
893
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 204
894
E-II.
895
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 204-205.
378

Como uma tal natureza no poderia ser estranha ao humano que a descreve?
No poderia ser diferente. Obviamente que o conhecimento e manipulao foram
sinnimos, durante muitos sculos. Contudo a manipulao como condio sine qua
non da cincia no precisa necessariamente equivaler e ciso ontolgica dos
domnios do bos e os domnios da physis. medida que a dinmica consiste em um
conjunto de equivalncias entre as diversas possibilidades de manipulao, os seres
vivos passaram a ser as caixas pretas do conhecimento896, pois mantm vedados o
acesso aos processos mesmos por meio dos quais esse conhecimento se constitui a
partir da ciso ontolgica entre bos e physis que o funda como conhecimento
legtimo. Nesse sentido a dinmica conseguiu uma perfeita conciliao entre
interesse e desinteresse, entre os compromissos e acordos de saberes que visam
tanto manipulao quanto compreenso897. Um dos agentes fundamentais para
essa equao e para o seu sucesso, foi a capacidade de produzir oniscincia e
extraterritorialidade em relao aos fenmenos observados. Em outras palavras, a
capacidade de transformar, por meio de instrumentos conceituais neutralizadores
dos meios vivos, tais como o demnio de Laplace ou de Maxwell, capazes de captar
os dados da descrio de trajetrias em um dado instante e transferi-los para a
esfera da eternidade898. Desse modo, determinar os estados iniciais de qualquer
sistema poderia ser o meio de neutralizar as derivadas de quaisquer outros estados
desses mesmo sistema, situando-o to prximos quanto se queira899, o que pe em
destaque a necessidade de uma epistemologia do conhecimento aproximado.
Fala-se muito na revoluo copernicana. E, por extenso, invoca-se Kant a
assumir seu protagonismo na filosofia. Contudo h uma revoluo inaudita, descrita
por Serge Moscovici, muito menos explorada, e que entretanto nos situa no corao
da modernidade e dos sistemas complexos: a revoluo de Kepler900. Como
estamos acostumados, o modelo cosmolgico atual tem sua origem no
Renascimento, quando o universo comeou a ser descrito a partir do modelo
heliocntrico de Bruno e de Coprnico, e o geocentrismo de Ptolomeu comeou a
entrar em eclipse. Contudo h um personagem que muitas vezes escapa a essa
narrativa: Kepler. A teoria de Kepler, que em certo sentido se encontrava intuda nos

896
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 205.
897
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 205.
898
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 208.
899
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 208.
900
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 209.
379

trabalhos do astrnomo renascentista Tycho Brahe, agrega um elemento decisivo ao


heliocentrismo, e cuja importncia foi muitas vezes minimizada pela histria da
ideias: a noo de que as rbitas seriam elpticas e no circulares. Essa morfologia
da elipse produz uma duplicao do centro em um cento real e um virtual. A
virtualizao e a infinitizao dos centros consistem nos mais importantes fatores da
destruio dos sistemas imunomorfolgicos das esferas-globos e a emergncia das
multiplicidades-espumas que caracterizam a modernidade em termos
esferolgicos901.
Essa guinada morfolgica pode ser lida paralelamente redescoberta do
tempo por parte das cincias naturais902. O contnuo processo de eliminao do
tempo comeou a se mostrar insuficiente para a compreenso dos fenmenos em
termos complexos. Contudo o sentido profundo da irreversibilidade demorou para
adentrar o cerne do corpo terico das cincias, a ponto de ser definida por Einstein
como uma iluso produzida por condies iniciais improvveis903. Como alguns
autores sugeriram, Einstein um gnio situado no umbral entre dois mundos.
Contribuiu decisivamente para a reviso de alguns postulados centrais da mecnica
clssica, mas ao mesmo tempo manteve em suspenso e revelou mesmo certo
ceticismo em relao aos problemas suscitados pela mecnica quntica e a
complexidade. Einstein ampliou os limites da mecnica clssica e, ao mesmo tempo,
demonstrou a importncia das chamadas demonstraes de impossibilidade, os
estabelecimentos dos limites alm dos quais os fenmenos tornam-se
inobservveis. Porm, coube a Heisenberg e no a Einstein transpor esses limites e
propor uma nova teoria fsica baseada n descrio de campos inobservveis da
mecnica quntica e se lanar aventura de um jogo de dados com Deus. Hoje em
dia cresce cada vez mais o mundo da vida [Lebenswelt] no qual se enraizaria toda
experincia originria, segundo a fenomenologia, cada vez mais se aproxima das
indagaes decisivas da cincia e de sua necessidade de ultrapassar os limites do
mecanicismo. Apenas mediante uma indagao radical sobre a raiz mesma de suas
prticas a cincia poder rever o ideal de extraterritorialidade que lhe animou nos
ltimos sculos. Para tanto, a oposio entre Carnot e Darwin, entre reversibilidade
fsica e irreversibilidade biolgica, comea a dar lugar a uma instigante

901
E-II, E-III.
902
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 210 e seg.
903
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 210.
380

complementaridade904. Todos os seres comeam a ser vistos como seres complexos


e, como complexos, como seres constitudos por uma pluralidade de tempos que
surgem de processos de bifurcaes e se articulam em multiplicidades
espaciotemporais905.
Essa evoluo no progressiva ou linear, pois isso pressuporia novos
esquemas reducionistas que negassem a pertinncia parcial e local dos regimes do
mecanicismo e da dinmica clssica. Essa nova evoluo consiste na figura de um
anel e circular906. A sucesso circular descrita nesse anel pode ser entendida
como a passagem da dinmica das trajetrias instabilidade, da instabilidade surge
uma noo alargada de dinmica, de tempos mltiplos e irreversveis. Essa
multiplicidade irreversibilidade produz um desvio do equilbrio inicial, e, por seu
turno, uma necessidade de pensar a natureza dissipativa desses mesmos sistemas
onde as trajetrias ocorrem. As estruturas dissipativas, por seu lado, exigem
instrumentos finos de descrio de suas trajetrias, que so regidas pelo acaso, mas
no so arbitrrias. Essa descrio devolve as trajetrias das estruturas dissipativas
a seu ponto inicial, conseguindo assim integrar as leis da dinmica e da
termodinmica, bem como a reversibilidade e a irreversibilidade de fenmenos, que
deixam se ser homogneos e passam a constituir entre si uma produtiva
heterogeneidade, que amplia a compreenso dos sistemas da natureza em seu
conjunto. Esse o funcionamento de uma cincia que podemos chamar de cincia
aberta907. Se os camponeses e marinheiros mantm uma atitude de respeito em
relao natureza, porque sabem que a physis viva e por isso autnoma, no se
submete s vontades e deliberaes humanas. O segredo de saber que physis e
bos so as duas faces de uma mesma e nica natureza o segredo de Prspero.
Esse segredo o leva a reinar sobre o mundo sublunar, dominar os elementais e os
reis terrenos, mesmo estando aprisionado em uma ilha.

904
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 211.
905
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 211.
906
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 214.
907
PRIGOGINE-STENGERS, 1991, p. 218 e seg.
381

6 MESONS E ESFERAS: DA ONTOLOGIA DA DADE ONTOLOGIA DOS


MEIOS

O ponto de partida seria uma definio no-metafsica e no-


holstica da vida: sua imunizao no pode mais ser pensada por
meio de simplificao ontolgica, de uma reassimilao na esfera-
todo lisa. Se a vida atua ilimitadamente, conformando espaos
de diversas maneiras, no apenas porque cada uma das
mnadas tenha seu prprio entorno, seno porque todas esto
amalgamadas com outras vidas e se compem de inumerveis
unidades. A vida se articula em cenrios simultneos, uns
imbricados nos outros, e produz-se e se consome em regies
interconectadas. Mas o decisivo para ns o seguinte: a vida
produz sempre o espao no qual e que a . Assim como Bruno
Latour falou de um parlamento das coisa, com a ajuda da
metfora da espuma pretendemos nos ocupar de uma repblica
de espaos.
Peter Sloterdijk

evidente que se esgotou a forma de pensar e a forma de vida


da velha Europa, a filosofia; a biosofia acaba de comear seu
trabalho, a teoria das atmosferas acaba de se consolidar
provisoriamente, a teoria geral dos sistemas de imunidade e dos
sistemas de comunidade est em seus incios, uma teoria dos
lugares, das situaes, das imerses se coloca em marcha
lentamente, a substituio da sociologia pela teoria das redes de
atores uma hiptese com pouca recepo ainda, consideraes
sobre a mobilizao de um coletivo constitudo realisticamente
com o intuito de aprovar uma nova constituio para a sociedade
global do saber no mostraram ainda nada mais do que esboos.
Nesses indcios, no se pode reconhecer uma tendncia comum.
Apenas algo est claro: onde se lamentava perdas de forma,
surgem desejos de mobilidade.
382

Peter Sloterdijk

Foi um erro crer que o mundo humano proporcionou uma


plataforma comum para todos os seres vivos. Todo ser vivo tem
uma plataforma especial, que to especial quanto a plataforma
especial dos seres humanos.
Jacob von Uexkll

6.1 Mesons e Esferas

Analisando a obra de Aby Warburg, Giorgio Agamben notou um impulso rumo


a esse lugar indecidvel do conhecimento. Agamben intuiu luminosamente uma
definio para esse lugar: uma cincia sem nome908. Acredito que o mesmo possa
ser dito sobre a obra de Peter Sloterdijk. A teoria das esferas desenvolvida por
Sloterdijk um dos principais referenciais tericos para a formulao da mesologia.
Tanto que um dos objetivos precpuos deste estudo colocar esferologia e
mesologia em dilogo, definindo suas semelhanas e distines formais e temticas.
A concepo de esferas parte da premissa de que existiria uma regio de
indecidibilidade e de indiscernibilidade entre as matrizes biolgicas e lingusticas que
determinam o antropos. Minha hiptese a de que a esferologia, entendida como
ontologia da dade, uma teoria capaz de superar a dicotomia estrutural dentro-fora
proposta como problema desta pesquisa, pois ela no uma filosofia monista nem
dualista, mas didica. Nesse sentido, uma das bases conceituais para o
desenvolvimento desta ontologia relacional chamada mesologia.
A expresso ontologia relacional e usado por Sloterdijk justamente para
definir o conceito de esfera909. Usa-o como sinnimo de ontologia da dade ou de
teoria geral dos meios910. Em geral, otologia relacional, ontologia da dade e teoria
geral dos meios so os termos mais usados pelo pensador para definir o ncleo duro

908
AGAMBEN, Giorgio. Aby Warburg e a cincia sem nome. In: Revista Arte e Ensaios. Revista do
Programa de Ps-Graduao em Artes Visuais EBA, UFRJ, ano XVI, nmero 19, 2009.
Disponvel em: http://www.eba.ufrj.br/ppgav/doku.php?id=revista:arte_e_ensaios_19#dossie
909
E-I.
910
E-I.
383

da esferologia911. Em outro momento de autodefinio do projeto, fala em uma


biosofia como substituta da filosofia912. Em um dos momentos de sntese de seu
pensamento, Sloterdijk tambm e bastante peremptrio em outra definio: a vida e
forma913. Partindo dessas definies, sustento neste trabalho uma possibilidade de
equacionar uma teoria geral de articulao entre vida [bios], meio e forma, a partir do
desenvolvimento de uma ontologia relacional, ou seja, de uma ontologia que d
conta de modo global de todos os processos relacionais. Para estabilizar o caminho
dessa busca e a esfera provisria dessa cincia, esta tese toma como ponto de
partida da articulao de dois conceitos nucleares da obra Esferas de Peter
Sloterdijk: vida e forma914. A sntese desses dois conceitos ocorre com um terceiro:
meio. A circularidade entre vida e forma o mago da esferologia. E a centralidade
dos media nessa relao dialtica tambm o . No por acaso, a esferologia pode
ser entendia, como Sloterdijk a define, como uma teoria geral dos meios915.
Por sua vez, a articulao desses trs conceitos tem o intuito de propor as
bases fundamentais de uma teoria relacional que se constitui como uma ontologia,
ou seja, como uma ontologia relacional. Nesse sentido, poderamos nos perguntar
pela definio de meio, condio de possibilidade para que as conexes se
estabeleam. O meio no uma simples mediao entre dois termos materiais ou
formais. Um meio algo alm de um instrumento e aqum de uma tcnica. Um meio
tampouco uma realidade transparente o bastante para ser neutro ou opaco o
bastante para no deixar florescer obras que escapem a seu controle e s suas
determinaes. O cerne desta pesquisa consiste no desenvolvimento do conceito de
ontologia relacional, cunhado por Sloterdijk e por outros autores, para designar um
ontological turn do pensamento contemporneo em diversas reas do
conhecimento. A partir dessa guinada, dois conceitos assumiram uma enorme
preponderncia: meio e relao. O eixo de articulao deste trabalho a teoria das
esferas ou esferologia de Sloterdijk e a rede de relaes que ela nos possibilita
explorar.
Esse campo de imanncia conceitual que concebe forma e vida como
estruturas relacionais concebidas a partir de meios e relaes converge com as

911
E-I, E-III.
912
E-III.
913
E-I.
914
E-I.
915
E-I.
384

teses de alguns tericos contemporneos, tais como Hans Ulrich Gumbrecht,


Isabelle Stengers, Ilya Prigogine, Giorgio Agamben, Bruno Latour, Hans
Blumenberg, Gilles Deleuze, Jacques Derrida, Roberto Esposito, Niklas Luhmann,
entre outros. Alm deles, privilegiei alguns autores nucleares para Sloterdijk que,
apoiado no conceito de autor-matriz desenvolvido pelo professor Joo Cezar de
Castro Rocha916, podemos nomear como autores-matrizes. Entre eles encontramos
cnicos, gnsticos, Hegel, Nietzsche, Heidegger, Luhmann, Bachelard, Spengler,
Tarde, Schimdt, Blumenberg, Deleuze, Foucault. No caso de Bachelard, apenas
para citar um exemplo, estamos diante de um dos primeiros pensadores da
complexidade e da articulao entre cincia, arte e vida. Trata-se no apenas de um
autor-matriz de Sloterdijk917, mas tambm aquele que no sculo XX mais levou mais
longe uma reflexo sobre a ontognese das formas em sua natureza emergente,
sempre na interseco entre forma, meio e vida. Contudo, minha proposta no
consiste em abranger todo o tecido de citaes e referencias de Esferas. A medida
que Sloterdijk pensa e escreva compondo redes de referencias a outros autores
esse empreendimento seria praticamente impossvel.
Como os passos em direo a ecologia da mente dados por Bateson, minha
hiptese nesta tese consiste em quatro passos. Primeiro: desdobrar a partir de
Esferas os conceitos de vida, meio e forma, tentando revelar as mutuas implicaes
que eles tenham entre si e as conexes possveis da esferologia e destes conceitos
que lhe so nucleares com outros autores e acepes. Segundo: definir em que
medida eles se articulam mediante o desenvolvimento de uma ontologia
relacional918. Terceiro: em que medida essa ontologia relacional pode ser entendida
como uma proposta produtiva para o novo horizonte de estudos de sistemas
semiabertos, complexos e fora do equilbrio, em uma perspectiva posterior a
hegemonia dos mtodos reducionistas. Para tanto, proponho um dialogo entre a
esferologia e a cincia da complexidade, descrita na obra clssica de Isabelle

916
ROCHA, Joo Cezar de Castro. Machado de Assis: por uma potica da emulao. Rio de Janeiro:
Civilizao Brasileira, 2013.
917
ROCHA, Joo Cezar de Castro. Machado de Assis: por uma potica da emulao. Rio de Janeiro:
Civilizao Brasileira, 2013.
918
Um bom panorama sobre os debates em torno de ontologia relacional e feito no artigo de Wesley
Wildman: POLKINGHORNE, John. An introduction to relational ontology. The Trinity and the
entangled world: relationality in physical Science and theology. William Eerdmans Publish Company:
Michigan/Cambridge, 2010. Este capitulo encontra-se disponvel em:
http://www.wesleywildman.com/wordpress/wp-content/uploads/docs/2010-Wildman-Introduction-to-
Relational-Ontology-final-author-version-Polkinghorne-ed.pdf
385

Stengers e Ilya Prigogine919. Esta obra e uma das melhores descries da


passagem das cincia clssica, fundada sobre a reversibilidade e o reducionismo,
para as cincias moderna e contempornea, fundadas sobre o principio de
irreversibilidade e sobre o paradigma da complexidade. Nesse sentido, o que
proponho como ontologia relacional pode ser compreendida como uma proposta de
unificao entre complexidade e esferologia. O quarto passo seria um estudo de
caso: a partir de uma obra da literatura, no caso A Tempestade de Shakespeare, e
ressaltar como esse tecido de referncias a meio, forma e vida se integram em sua
obra, a partir da perceptiva da ontologia relacional.
Contudo, a obra de Shakespeare em nenhum momento deve ser pensada
como um pea meramente ilustrativa da ontologia relacional e da articulao entre
vida, forma e meio. Como diria Heidegger, a filosofia no explica a poesia. A poesia
e que funda e torna possvel o exerccio da filosofia. Todos os conceitos, antes de
serem operados logicamente pelos filsofos, foram antes instaurados pelos poetas.
Por isso, Shakespeare corrobora a circularidade entre forma e vida e entre vida e
pensamento, a medida que em sua obra podemos ver nitidamente encenados
princpios claros da esferologia e da complexidade, emergentes no sculo XVII e
que esto sendo institudos e desenvolvidos pela pesquisa de ponta da cincia do
sculo XXI. A arte, nesse caso, deixa de assumir o estatuto de um discurso da
intuio sensvel que confirma os esquemas dedutivos da razo. E a cincia, por sua
vez, deixa de ser a reduo do mundo sensvel a leis universais e mecnicas
comprovadas por vias empricas. Arte e cincia, do ponto de vista de uma ontologia
relacional, so matrizes que se fecundam mutuamente e fornecem cada qual
modelos provisrios de compreenso e descrio dos fenmenos. Em vez de se
focar no sentido imanente de um objeto ou de cotejar dois objetos a partir de uma
unidade transcendente que os articule entre si, o pensamento relacional produz uma
nova possibilidade e uma nova inteligibilidade dos fenmenos: revela a relao de
alteridade que cada constituio discursiva estabelece com outras constituies
discursivas, sejam elas objetos transcendentalmente isoladas na categoria arte,
cincia, filosofia ou qualquer outro saber.

919
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A nova aliana: metamorfose da cincia. Traduo
Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de Braslia, 1991. A nova aliana:
metamorfose da cincia. Traduo Miguel Faria e Maria Joaquina Machado. Braslia: Universidade de
Braslia, 1991.
386

Como a mesologia, a teoria das esferas tambm opera a partir de alguns


horizontes da teoria sistmica, da concepo de mediologia e de sistema-mundo.
Para Sloterdijk, os seres humanos so criaturas extticas sobre as quais opera o
Exterior. A humanidade do ser humano consiste justamente nos infinitos media
imunolgicos eficazes que o antropos criou para conseguir se imunizar da
devastao extra-humana e da indiferena da natureza em relao s demandas de
sentido da espcie. Em outras palavras, a humanidade do ser humano reside
justamente na sua capacidade de criar sistemas imunologicamente eficientes contra
o atravessamento das foras extra-humanas, cada vez mais crescentes na
modernidade920. O ser humano um interior sobre o qual opera um puro Exterior.
aquele que consegue, por meio de tecnologias de domesticao, incorporar o no-
prprio ao prprio, o no-sentido ao sentido. Nisso consiste a longa odisseia
antropoesferolgica da espcie. Essa jornada um continuum ininterrupto que
descreve sistematicamente as diversas concepes que o ser humano tem de si
mesmo, ou seja, alm de ser uma emergncia do sapiens na cena mundana, em
termos biolgicos, ela consiste em uma incessante autocompreenso e
autoapreenso da estrutura ontolgica do antropos.
Essas imagens que descrevem o itinerrio emergente das diversas
fascinaes de proximidade, em seu paradoxal modo de compreenso, so os
meios precrios com os quais o antropos conseguiu desvelar a sua prpria
humanidade. Chamo esses modos de figurao da estrutura ontolgica do humano
de antropogemas. As esferas so narrativas hominizadoras do itinerrio da espcie.
A esferologia procura, por meio desses antropogemas, chegar regio pr-
compreensiva e pr-hermenutica que fundamenta ontologicamente o humano, para
alm das vises bivalentes e monovalentes, dos dualismos e dos reducionismos e,
desse modo, superar antinomias internas destes sistemas.
Como se pode ver, h diversos pontos de contato entre a proposta da
mesologia e a teoria das esferas. Essa proximidade marcada desde a definio
dada por Sloterdijk da teoria das esferas: uma ontologia da dade e uma teoria dos
meios. O desenvolvimento da mesologia pretende demarcar seus tributos para com
o autor de Esferas. E tambm pontuar os pontos centrais nos quais as duas teorias
se bifurcam e se separam. Esse exerccio de admirao e de emulao de um autor

920
O conceito de hominizao na obra Esferas foi justamente o objeto de meu segundo mestrado,
defendido na PUC-SP.
387

da amplitude de Sloterdijk pode ser entendido como uma modesta homenagem


prestada pelo discpulo ao mestre.

6.2 Imunidade e Comunidade

O projeto da teoria das esferas saiu do prelo em 1998 e 1999, com a


publicao dos dois primeiros tomos da trilogia Esferas921. Nesse dois tomos
Sloterdijk pretendeu conceber a esfera entendidas a partir de uma topologia, uma
imunologia, uma antropologia e uma semiologia922. O primeiro volume acentua o
aspecto de interioridade das microesferas, marcado pela proximidade e pelo ser-
juntos923. No o indivduo, mas sim o duplo apresentam a magnitude que deve ser
levada em considerao924. A imunidade-eu superada pela imunidade-ns925.
Desde o momento ab utero, o espao humano formado bipolarmente e
pluripolarmente de um estrutura e uma dinmica de animaes vitais926. Os
movimentos de communitas e concordia se entrelaam como respostas s
aproximao de agresses primrias927. Nesse sentido, se a coexistncia precede a
existncia928, o mundo pode ser definido como as possibilidades de acessos929. Um
elo entre ser-a e vizinhana se estabelece930. As microesferas situam-se diante do
abismo ontolgico do coexistente, esto fadadas a incorporar o outro, o estranho931.
A passagem ao segundo volume, que se ocupa dos globos e das macroesferas,
marca a passagem ao relatos de expanses do anmico e das ocupaes imperiais
e cognitivas do mundo932. O puro exterior precisa ser domesticado, e para tano
produz-se um arredondamento desse exterior, tornando-o como um espao
habitado933. As produes de conexes psquicas e as capacidades de abertura ao

921
III, 15.
922
III, 15.
923
III, 15.
924
III, 15.
925
III, 15.
926
III, 16.
927
III, 16.
928
I.
929
III, 16.
930
III, 16.
931
III, 16.
932
III, 16-17.
933
III, 17.
388

mundo se encontram resumidas em um esquema de cinco polos, a partir da


condio da famlia e da vila passa-se cidade, da cidade ao imprio, depois ao
universo finito e por fim ao espao ilimitado e inabitvel934. Com as macroesferas
comea o processo de arredondamento do exterior935.
O postulado e os novos regimes de segurana produzem um constante
investimento na conexo entre alma e geometria936. Por isso, desde a filosofia
clssica o instinto da geometria que domina a macroesferologia passou a ser a
tnica, marcada pela aliana entre totalidade, mundo e Deus, a ponto de podermos
afirmar que de Plotino a Leibniz a macroesfera a fora autoritativa da ontologia937.
Torna-se patente o conflito entre infinidade e imunidade, que passa a se constituir
como o eixo polemico do pensamento moderno938. Costumamos designar a
modernidade como a sada do monocentrismo metafsico e como os movimentos
antropolgicos inscritos a partir do sculo XVI sob o signo da globalizao, como se
houvesse apenas uma globalizao e no trs939. Porque no existe apenas uma
globalizao, mas trs: uma metafsica, uma terrestre e outra telecomunicativa940. A
runa da monoesfera divina se realiza quando se produz a equidistncia de todas as
criaturas em relao a Deus941. A teoria de McLuhan baseada em uma proposta de
aldeia global seria a ltima tentativa de criar uma teoria global-tribal compreendida
em uma esfera una e em uma nica942. Esta seria a tentativa, por sua vez, de
unificar unidade central da Igreja romana e a forma ovalada da periferia943. Contudo
esse modelo contrasta com o modelo oferecido pelo terceiro volume da esferologia,
dedicado s espumas e s pluriesferas e toma como ponto de partida uma vida
considerada de um ponto de vista multifocal, multiperspectivista e
heterarquicamente944.O assunto da vida no estava em boas mos, nem com os
representantes das religies tradicionais nem com a metafsica, pois em ambos os
casos estvamos diante de simplificaes945.

934
III, 17.
935
III, 17.
936
II, III, 18.
937
III, 18.
938
III, 20.
939
III, 20.
940
III, 20-21.
941
III, 22.
942
III, 23.
943
III, 23.
944
III, 23.
945
III, 23.
389

A imagem da espuma uma recuperao ps-metafisicamente do pluralismo


pr-metafsico das fices de mundo946. Essa imerso no se deixa contudo
atravessar pelo pathos niilista que marcou os sculo XIX e XX quando procuraram
refletir para alm da metafsica monolgica947. O imperativo segundo o qual Deus
est morto precisa ser pensado como uma boa nova do presente: a esfera una
implodiu948. Considerar que Deus morreu abrir a possibilidade de retomar o
trabalho fora dos esquemas simplificadores e dos constrangimentos das hiprboles
metafsicas que representaram a globalizao dos globos e as totalizaes
imperiais949. Fenomenologia da espuma: a terra unida ao ar950. A advertncia e a
admoestao de Herclito em seguir o comum [konon] pode ser entendida como
uma maneira de distanciar-se das espumas que produzem o no-comum, o no-
universal951. A espuma encerra em si o mesmo problema do simulacro e da
falsidade, dos fogos-ftuos e da aparncia que desvenda o no-ser como ser, o no-
existente como existente952. Conforme Lucrcio a espuma seria o inconsistente e
aquilo que no possui idade alguma953.
A partir de Hegel ocorre uma transformao polivalente do pensamento, por
meio de uma positivao do negativo. O esprito seria o medium pelo qual a
substancia se transforma em sujeito954. Desde os antigos e incluindo Aristteles a
espuma foi associada ao espirito sutil, ou seja, entendida como um dos males
volteis causadores da melancolia955. Mais do que isso, Aristteles considera
mesmo a ejaculao masculina e a ereo como fenmenos pneumticos, pois a
expulsa do esperma produzida pelo ar956. Em todos os casos, a espuma pode ser
entendida sob o axioma: a presena de ar em lugar inesperado957. Uma das
chancelas da modernidade a patncia do inaparente e sua redescoberta, poramos
dizer958. Se Freud foi um Galileu do mundo interior, como o definiu Arnold Gehlen, foi
porque demonstrou a importncia nuclear das quantidades negligenciveis e

946
III, 24.
947
III, 25.
948
III, 25.
949
III, 25.
950
III, 27 e seg.
951
III, 29.
952
III, 29.
953
III, 30.
954
III, 30, DM.
955
III, 30-31.
956
III, 31.
957
III, 31.
958
III, 31.
390

colocou em relevo aquilo que era insignificante959. O movimento central da


psicanlise foi deslocar o centro para a periferia e uma subverso do sistema de
seriedade960, promotor central para a formao do que chamamos de valores. Freud
o conquistador de uma frica interior961, o aphros a emergncia da cultura
humana dos homindeos africanos e a espuma que estrutura o inconsciente. Uma
nova nfase comea a ser conferida aos processos primrios: o insignificante
comea a fazer as pazes com o significativo e assume uma nova posio nas
manifestaes da cultura962. Comea a equao entre espuma e sonho963. A
modernizao de modo global pode ser entendida como esse deslocamento do
essencial ao vago, indefinido, efmero, em uma palavra: atmosfera964. Pela
primeira vez o atmosfrico elevado ao estatuto de teoria965.

6.3 Afrologia, Climas, Atmosferas

Nietzsche e Husserl tm uma representatividade nessa guinada a partir da


qual o acento deixa de ser sobre o peso e a gravidade e passa a ser conferido ao
inesperado, ao corriqueiro966. possvel elaborar uma teoria da arte a partir dessa
passagem do exterior aos interiores e aos fatos climticos967. Esse giro microlgico
promoveu a emergncia das entidades e dos estados de espirito antes ignorados, e
que dizem respeito ao quase-nada, ao informe e ao casual.968 A afrologia se estende
pelos domnios de diversos tempos e pode ser detectada nas mitologias como deusa
da fertilidade, especialmente no mito de Afrodite, e pode ser pensada como uma
remanescente de uma metafsica do efmero969. Pode-se pensar em uma
afrognese: um nascimento a partir da espuma como uma matriz de gerao da

959
III, 31.
960
III, 31.
961
II, PC.
962
III, 32.
963
III, 32.
964
III, 32.
965
III, 32.
966
III, 32.
967
III, 32.
968
III, 33.
969
III, 36-37.
391

vida970. Assim como haveria o logos spermatiks, o logos gerador do mundo, pode-
se pensar a afrognese como um aphros spermatiks, entendida como emergncia
de qualidades matriciais ergenas, afrgenas e tegenas971. Tanto para os gregos
quanto no Ramayana indiano e nas cosmogonias egpcias relacionadas a Atum e ao
nascimento do mundo como esperma, estamos diante dessa dimenso de uma
teoria fundamental ligada aos processos primrios e a uma fora originria vinculada
afrognese972. Nesse sentido, as cincias naturais modernas tambm deram sua
contribuio para o que podemos definir como o imprio das espumas: as
afroesferas973. Os estudos da espuma nas cincias naturais no sculo XIX tiveram o
impulso do belga Joseph Antoine Ferdinand Plateau que determinou leis e
geometrias para esses seres aparentemente caticos que so as espumas974. A
existncia de tegumentos esponjosos se nota desde as anotaes de 1508, feitas
por Leonardo da Vinci, e sua observaes sobre a morfologia das gotas975. As
propriedades das espumas mida e seca foram estudadas pelo fsico britnico
Charles Vernon Boys ao passo que o sculo XX de modo generalizado introduziu o
tempo na anlise das espumas976. Mesmo quando a espuma grande, sofre a lei de
Plateau, que consiste em uma geometria da vizinhana e na deformao recproca
das bolhas maiores977. Devido a esses aspectos, podemos definir as espumas
como sistemas cofrgeis978. As espumas seriam a a forma vazia de todas as
histrias que tratam de espaos de incluso imanentemente crescentes979.
Um dos aspectos mais importantes a notar que nas espumas no existe
uma clula como ponto central e a ideia mesma de uma capital seria
contraproducente per se980. As teorias fsicas atuais tm lidado com a ideia de uma
multiplicidade de cmaras, e por isso a espuma pode ser usada como uma metfora
descritiva de conformao de espaos, tanto em dimenses mnimas quanto em
fenmenos mesocsmicos e inclusive em processos de dimenses galcticas e

970
III, 38.
971
III, 38.
972
III, 40 e seg.
973
III, 42 e seg.
974
III, 42.
975
III, 42.
976
III, 43.
977
III, 44.
978
III, 44.
979
III, 44.
980
III, 44.
392

csmicos981. O sculo XXI ser o sculo da espuma982. E se a espuma pode servir


de modelo descritivo para as conformaes microesfricas de espao porque
nenhuma cincia tem olhe concedido maiores possibilidades morfolgicas do que a
biologia celular983. Segundo descries biolgicas, surgiu do mar um primeiro ser
vivo como uma mnada surgida da espuma, a partir de um caldo original molecular
onde emergiram pequenos seres interiormente protegidos984. Por isso, a biologia
sistmica nomeia sistemas semiabertos aqueles que se processam a partir de uma
reao sensitiva com o entorno e com eles mesmos.985 Os fsseis mais antigos de
vida descobertos pelos paleobilogos datam de um bilho e meio de anos, e so
chamados microesferas-Suazilndia, o que demonstra a impossibilidade de se
pensar a vida sem pensar a forma e mesmo pensar vida e forma sob o ponto de
vista de leis esfricas986. O surgimento dos unicelulares pode ser descrito como a
emergncia do orgnico, entendido coo condensao e como encapsulamento
esfrico e nas membranas em forma de globo se concentra o plus que ser
chamado de vida987. De um ponto de vista da teoria da cultura e de uma
antropologia, mesmo de uma antropognese, essa zoognese primitiva em conexo
com a morfologia das espumas nos insere em uma aventura: a aventura das
multiplicidades-espao988. A partir das espumas, descreve-se os conjuntos e as
aglomeraes de bolhas por meio de uma anlise de microesferolgica, de onde se
percebe o elo profundo existente entre a microesferologia das bolhas e a
pluriesferologia das espumas989. Um agregado celular mais do que um conceito,
pode-se dizer que um mundo ou um lugar, no sentido forte do termo, tensionado
por ressonncias didicas ou multipolares a partir de relaes de intimizao
recproca e contnuas ressonncias990. A clula experimenta uma simbiose e uma
estufa de relaes sui generis, pois conformadas a partir de sociedades de dois, e
justamente por isso a palavra sociedade serve mais para desorientar do que para
esclarecer os modos de convivncia e de coexistncia991.

981
III, 45.
982
III, 45.
983
III, 45.
984
III, 45-46.
985
III, 45-46.
986
III, 47.
987
III, 47.
988
III, 47.
989
III, 47.
990
III, 47.
991
III, 47.
393

Nessas situaes, o existir para o outro se transforma em um autntico


agens de conformao de espao, em outras palavras, a climatizao do espao
interior coexistencial se produz por meio da extroverso recproca dos simbiontes,
que aquecem o interior comum como um fogo antes do forno992. Desse modo, a
introverso de cada uma das clulas e dos lares no impede que gerem alianas
mais densas que podem ser chamadas de espumas sociais993. As espumas sociais
consistem em uma relao recproca entre vizinhana e separao que so as duas
faces de um mesmo fenmeno, pois nas espumas vale o princpio de coisolamento:
uma mesma parede serve de separao e de limite para a constituio de uma ou
mais esferas994. O coisolamento mltiplo pode ser visto simultaneamente como
fechamento e abertura para o mundo, e sob o paradigma das espumas, as
coexistncia de bolhas se mostra como uma coexistncia paradoxal, pois esto ao
mesmo tempo separadas e unidas, acessveis e inacessveis995. A autopoiesis dos
imprios e das antigas fices do reno de Deus existe desde tempos imemoriais.
Essa autopoiesis apenas foi possvel porque o que chamamos de sociedades s
podem ser entendidas como associaes agitadas e assimtricas de
multiplicidades-espaos e multiplicidades-processos, cujas clulas no podem estar
nem realmente unidas nem realmente separadas. As sociedades apenas podem se
considerar monosferas unidas desde a origem [ou graas a um estatuto excepcional]
apenas medida que se hipnotizam a si mesmas tomando-se como unidades
homogneas, algo como povos nacionais, gentica ou teologicamente
substanciais996.
Quem fala em sociedade, teria que o fazer fora de um regime de ns997.
Quando falamos em sociedade, falamos em um receptculo monoesfrico que inclui
uma quantidade enorme de populaes, famlias e indivduos que se constituem a
partir de uma comunicao inespacial998. Quando falamos em sociedade, nesse
sentido, falamos em agregados multitudinrios de microesferas de casais, famlias,
empresas, lares, associaes e uma infinidade de espumas, que no se separam

992
III, 47-48.
993
III, 48.
994
III, 48.
995
III, 49.
996
III, 49. II, Captulos 3e 7.
997
III, 49.
998
III, 49.
394

nem se unificam999. Como diria Ernst Bloch, h muitos aposentos na casa do


mundo1000. A teoria das espumas possui nesses termos uma estrutura didica ou
multipolar e est orientada em um sentido neomonadolgico, entretanto as mnadas
esto orientadas sob a forma fundamental da dade e animadas em espaos-
anmicos como comunidades1001. Sob um ponto de vista miditico e tcnico, as
clulas das espumas so feitas de um material malevel e suscetvel a certas
condutibilidades1002. A partir de cada ponto e de cada clula possvel uma
perspectiva parcial e relativa s demais clulas, mas nunca se torna possvel uma
viso panormica do todo1003. A metafsica clssica consistiu na criao de uma
monoesfera omnicompreensiva, constituda a partir de um centro de emisso e de
projeo esferolgica como um panptico1004. A forma da ontologia dos espaos
macro descritos como centro urbi et orbi a centralidade por excelncia dos globos
imperiais1005. Essas noes centralistas hoje em dia ocupam um lugar marginal, pois
o desenvolvimento das espumas invadiu todo o espao e os mundos da vida.
Por isso as esferas estabelecem um conceito forte de entorno e de meio
circundante. As espumas so meios circundantes meio transparentes e meio
opacas. O ser no mundo entendido como ser na espuma abre-nos uma nova
compreenso acerca dos processos da teoria dos sistemas e da metabiologia,
justamente a partir da introduo do conceito de meio circundante, sobretudo a partir
das contribuies decisivas de Jacob von Uexkll1006: Foi um erro crer que o mundo
humano proporcionou uma plataforma comum para todos os seres vivos. Todo ser
vivo tem uma plataforma especial, que to especial quanto a plataforma especial
dos seres humanos1007. Completando, a reunio de uma infinidade de bolhas de
sabo no pode mais ser pensada a partir de um monocosmos proporcionado pela
metafsica, por meio da qual a pletora dos existentes teria sido reunida sob um logos
comum a todos1008. E: importante compreender que a multiplicidade ilimitada de
modos de existncia sensvel, concebidos em entornos estruturados de sentido, j

999
III, 50.
1000
III, 50.
1001
III, 52.
1002
III, 53.
1003
III, 53.
1004
III, 53.
1005
III, 53.
1006
III, 53.
1007
III, 53.
1008
III, 54.
395

se encontra desenvolvida no nvel da inteligncia animal, e, por tudo o que sabemos,


no existe animal algum que faca um inventario de todos os demais animais e os
refira a si mesmo1009. Apenas agora, com algumas teorias avanadas sobre o
ciberespao, como os desenvolvidos por Pierre Lvy, temos os primeiros conceitos
de modos de ser elsticos e de desenhos descentrados do mundo1010.
Trata-se de uma tenso entre bens mveis e imveis, preciso considerar a
materializao esferopoitica de espaos habitados e de aglomerados
arquitetnicos1011. Como disse Le Corbusier: podemos comparar um edifcio a uma
bolha de sabo, na qual o exterior regulado desde dentro: o exterior resultado do
interior1012. Na sociedade do saber a premissa das atmosferas se converte em um
conhecimento essencial. Os estados de nimo e novas constituies de ser-em
determinam os modi de existncia gerais por meio de um conjunto de imerses1013.
Cria-se nesse ambiente de fragilidade e instabilidade um temor pela explicitao do
pano de fundo. justamente nesse ponto que reside a essncia da cincia da
cultura: tornar-se agente de explicitaes da civilizao em geral1014. medida que a
cultura deixou de ser instalada e nascida de uma tradio espontnea, a cultura
continua viva se a filtramos, explicamos, cultivamos, reformulamos, em outras
palavras, a cultura permanece por meio de sua contnua explicitao1015.

6.4 Explicitao

O ser no mundo da fenomenologia se transfere para a engenharia de


ambientes e para o controle de atmosferas. As situaes envolventes que designam
o que chamamos de cultura apenas podem ser preservadas por meio de novas
atividades construtivas e socioconstrutivas: o antigo mundo da vida transforma-se
em cuidado e em tcnica climtica1016. Desse modo podemos dizer que a
modernidade consiste em um constante aumento da conscincia da artificialidade
1009
III, 54.
1010
III, 54.
1011
III, 54-55.
1012
III, 54-55.
1013
III, 56.
1014
III, 57.
1015
III, 58.
1016
III, 58.
396

dos meios promovido pelo processo de explicitao1017. O sentido de revoluo


muito mais do que um sentido poltico diz respeito a uma reorientao de nosso
conhecimento da bios. Nesses termos a revoluo dos anatomistas do sculo XVI,
que podemos chamar de revoluo de Vesalius, foi muito desconsiderada em
relao revoluo copernicana1018. Os atores da modernidade participam de um
movimento autocirrgico que determina a poca moderna. Esse movimento encontra
um de seus pontos crticos na eviscerao do corpo, pois por meio dele o antigo
universo-corpo integral e animista passa paulatinamente a se esvaziar1019. A
revoluo de Vesalius pode ser entendida nesse termos como uma alterao
decisiva nos processos cognitivos primrios que conformam a viso de mundo1020,
revoluo apenas comparvel revoluo da circunavegao terrestre e o
atravessamento do cabo de Magalhes1021. Abrir um mapa que representa toda a
Terra e abrir o corpo humano em todas suas partes; eis duas imagens emblemticas
do saber moderno e de sua sabedoria de explicitao1022.
O making it explicit um lema moderno que consiste em uma filosofia pratica
de anatomistas, baseada em cortes, penetraes, implantaes, prteses e
invases diversas1023. A grande caracterstica do saber moderno, por isso mesmo,
consiste em uma relao centrada no sujeito, que designa pontos de interveno e
que se institui a si mesmo, publicamente, como objeto de interesse e de
autointerveno e de autoanlise1024. Os seres humanos modernos, quando
designam outros meios de expresso, ocultam o fato central de suas existncias: o
fato de serem autooperveis1025. No outra a essncia da antropotcnica1026. A
fenomenologia a cincia dos fenmenos, tambm a cincia do desvelamento do
oculto e da dialtica entre latente-patente. Nesse sentido, a fenomenologia narra o
processo de explicitao1027. A seta de tempo do pensamento tem uma explicitao
superior quando aquilo que convocado a ser dito no esprito do tempo1028. Em

1017
III, 58.
1018
III, 59.
1019
III, 59.
1020
III, 59.
1021
III, 59. II.
1022
III, 59.
1023
III, 61.
1024
III, 61.
1025
III, 61.
1026
TDMV.
1027
III, 63.
1028
III, 63.
397

outras palavras, a partir da fenomenologia pode-se pensar que tudo o que se


encontra latente nas formas existentes podem vir a encontrar expresso, pois por
mais estranho que seja o emerge no horizonte do saber, nada h que obstrua o fato
de esse mesmo contedo que emergiu no horizonte provvel e visvel1029.
Por isso, desde Nicolau de Cusa o jogo com o globo passou a entrar em
colapso1030. Por meio do princpio da coincidentia oppositorum, o ousado cardeal
alemo passou a conceber a relao entre Deus e universo a partir de uma
cosmologia singular. Podemos resumir sua cosmologia a partir de um princpio de
simetria entre o ser maximamente implcito, Deus entendido como mxima
concentrao em um tomo divino, coincide com o ser maximamente explcito, ou
seja, como Deus concebido imagem de desdobramento de uma esfera-todo1031. As
esferas-globos foram pensadas a partir de uma divisa espinosista do Deus sive
Sphaera. Entretanto antes mesmo dessa concepo de Espinosa, o tratado De ludo
globi do cardeal De Cusa desempenhara um papel central. Enquanto Leibniz atenua
o desempenho da insondabilidade de Deus por meio da infinitizao e, por seu lado,
Hegel concebe os termos ltimos como simples consumao de um sentido
temporal que traz tona a necessidade do conceito, com De Cusa pode-se dizer
que a modernidade ingressa em uma aventura mais ousada que consiste em
sustentar a seguinte questo: quando podemos conceber que o interno se torne
externo em sua totalidade?1032 E poderamos arrematar: em que medida possvel
controlar a explicitao, de modo no apenas a evitar a arbitrariedade, mas que a
explicitao consiga tornar aquilo que explicitou em um componente
1033
reassimilvel? Eis-nos diante da apario do monstruoso: a simetria entre o
implcito e o explcito1034.

1029
III, 64.
1030
I, II, III, 64.
1031
III, 64.
1032
III, 65.
1033
III, 65.
1034
III, 65.
398

6.5 O Antropos e a Domesticao

Em linhas gerais, Regras para o parque humano pode ser resumido em


algumas teses centrais. O humanismo resultado de tecnologias de domesticao,
dentre as quais se destacam duas: a pedagogia e a escrita. O modelo psicaggico
que a cultura letrada assumiu para educar a alma a partir do advento da escrita no
foi vigente ao longo de toda a histria do sapiens. Ele tem um ciclo temporal
determinado, descrito com o surgimento da grande tecnologia de domesticao que
a escrita. O primado vitruviano da medida humana e do homem como medida de
todas as coisas no uma realidade eidtica. o resultado de uma sucesso de
imagens do mundo organizada em torno do homem-centro. Essas imagens foram
criadas pela possibilidade da relao distncia e pela translao das esferas-
bolhas s esferas-globos, ou seja, pelo deslocamento da experincia das relaes
imediatas de convvio, intimidade e presena no mundo ftico aos gigantescos
envoltrios globais criados pelas narrativas metafsicas e pelas ontologias imperiais.
Por meio desse deslocamento, os imprios puderam capturar as diversas
tribos e hordas, envolvendo-as na esfera global de seu poder mediante a ao
domesticadora da escrita e da pedagogia. Enquanto a primeira uniformiza a
percepo do mundo e reduz os espaos heterogneos a dimenses homogneas,
a segunda planifica os valores e propaga a normatizao da vida a partir de centros
emissores de sentido. Dessa maneira, a escrita possibilitou o advento da noo
mesma de universalidade, pois a escrita um centro vazio de emisso de
significados que torna homogneo o espao heterogneo e desenraiza as tribos, os
grupos, as hordas e os povos do mundo da vida [Lebenswelt]. Nesse sentido, a
escrita tambm tornou possvel a universalizao dos valores e a criao de uma
protoimagem universal do ser humano, de matizes arcanos. Por meio dela, desde as
antigas mitologias mesopotmicas, foi possvel moldar um regime de perfectibilidade
humana centrado na imago, seja a imagem de deuses teriomorfos ou de homens-
deuses. A dignitas e a humanitas do ser humano como ente passvel de
universalizao uma das criaes dos discursos sobre a cultura e o cultivo do ser
humano mediante a escrita. No por acaso a passagem do cosmolgico ao
antropolgico, presente em Plato, guarda ainda uma agonstica com relao ao
papel positivo-negativo e de remdio-veneno [phrmakon] da escrita. Esto
399

radicalmente atreladas ao cultivo das letras e alfabetizao. Se histria e escrita se


recobrem, medida que o sculo XX produziu em uma dimenso global a falncia
da tecnologia da escrita e tambm dos sistemas pedaggicos tradicionais, levada a
cabo pelos mass media, pode-se dizer que nesse mesmo sculo ingressamos
tambm em uma ordem ps-histrica.
At este ponto, a tese central de Sloterdijk se assemelha de outros
pensadores da ps-histria, como Flusser, Kojve e Fukuyama. Porm, a introduo
original e provocativa da conferncia est em seu segundo excurso, no qual o
pensador desenvolve uma genealogia da eugenia ocidental a partir de Plato. Aa
faz-lo, articula-a teoria da excentricidade ontolgica humana, ou seja, definio
exttica do ser humano presente na Carta sobre o humanismo de Heidegger. Como
se sabe, o brilhante opsculo de Heidegger instaura uma compreenso meta-
humana do ser humano, medida que relaciona a humanidade do ser humano
condio excntrica da conscincia humana em relao ecloso do ser. Apenas
como ser-lanado e o ser humano existe. Existncia e impermanncia [ek-sistere]
so o mesmo. Por isso, o ser humano o nico ente que questiona sua prpria
existncia. Ou seja: o ser humano apenas se torna humano medida que se
experimenta como ser fora-da-permanncia e como um ser expulso da estabilidade
da substncia [hypokeimenon]. O sentido da apreenso da existncia produz o
xodo do ser humano da cadeia entitativa e apenas nesse momento ele pode
contemplar o aberto [Offenheit] e desvelar o ser. A humanidade do ser humano no
uma natureza-substncia, mas uma abertura excntrica clareira do ser.
Nessa abertura se realiza a poderosa guinada do pensamento heideggeriano.
A culminncia da destruio fenomenolgica de toda a histria da filosofia iniciada
em Ser e Tempo. O ponto mais sensvel dessa guinada se d na fratura do
entendimento do mundo a partir das chaves metafsicas da totalidade-identidade que
consistem em linhas gerais em uma espiral de analogias e semelhanas entre ser e
physis. Essa fratura a chamada de diferena ontolgica. Ela funda a analtica do
Dasein do primeiro Heidegger e est no centro de irradiao de seu pensamento da
segunda fase, posterior reviravolta [Khere], notadamente na importncia cada vez
mais aguda concedida ao conceito de evento [Ereignis] e subordinao no mais
do ser ao tempo, mas do tempo ao ser. Em sua conferncia, Sloterdijk fustiga aquilo
que ficou oculto na meditao de Heidegger. No pretende retomar o fio
heideggeriano a partir do esquecimento do ser produzido pela tcnica e pelo modo
400

de pensar entitativo. Prope que a revelao do problema do ser consiste em uma


ocluso da centralidade da tcnica como fora antropolgica de domesticao capaz
de gerar a abertura mundana e a clareira da hominizao. Se reduzirmos
drasticamente e em forma de parfrase a tese de Sloterdijk a partir de uma
subverso de Heidegger, podemos resumi-la do seguinte modo: a tcnica a fora
antrpica que possibilitou a abertura da clareira hominizadora no interior da qual a
pergunta pelo ser pde ser realizada. Nesse sentido, importante compreender o
Regras para o parque humano no conjunto da obra de Sloterdijk e especialmente em
ressonncia direta com uma obra especifica que lhe complementar: A
domesticao do ser: elucidao da clareira.
Nesta mesma mencionada conferncia, Sloterdijk tambm recorre a Plato
para delinear algumas crenas desenvolvidas no Ocidente sobre um conceito matriz
para a histria do pensamento, analisado tambm em uma bela obra do filsofo
australiano John Passmore: o conceito de perfectibilidade. No dilogo Poltico,
Plato concebe uma teoria da seleo dos mais aptos, ou seja, daqueles fisicamente
mais capacitados para comandar a polis. Obviamente, Plato no usa o termo
eugenia. Entretanto, pensa em termos rigorosamente bioeugnicos. Alm das
aptides ticas e noticas, as virtudes fsicas tambm so contempladas nessa
clivagem em direo ao poder. Um estadista precisa ter todas essas premissas para
que possa desempenhar o papel de estadista.
Essa concepo, ao contrrio do que se pensa, no uma exceo, nem no
mundo antigo nem nas sociedades medievais ou modernas. E aqui importante
traar uma fronteira e especificar o sentido histrico da eugenia. H um ramo
especfico da teoria eugnica. Trata-se daquele que foi gerada no mbito anglo-
saxo, se desenvolveu nos EUA, chegou Alemanha e foi instrumentalizada
politicamente pelo nazismo. Pois bem: a adoo dessa acepo para compreender o
sentido de eugenia na conferncia de Sloterdijk um enorme equvoco. Um
equvoco epistemolgico, no ideolgico. Essa acepo da eugenia tem suas
origens no chamado darwinismo social e uma apropriao amplificada da teoria
darwiniana com fins polticos. Est para a obra de Darwin assim como uma srie de
interpretaes livres socialistas e comunistas esto para Marx. Porm, essas
premissas eugnicas no so de modo algumas novas. Tampouco so exclusivas
das doutrinas polticas biologizantes oriundas do sculo XIX. Enrazam-se em
teorias que retroagem Antiguidade. essa genealogia mais ampla da eugenia, em
401

sentido retrospectivo e prospectivo, que Sloterdijk promove na breve conferncia


que deu origem ao livro Regras para o parque humano. medida que se concentra
nessa acepo especfica da teoria eugnica e a atribui a Sloterdijk, a crtica de
Habermas equivocada. Se Habermas no fosse o grande intelectual que ,
poderamos dizer que ela chega a ser de m-f.
Se no compreendermos essa dimenso dura que o sentido da poltica
assume na Antiguidade, tampouco conseguiremos compreender a possibilidade de
conciliao entre democracia e escravido que ocorreu entre os gregos do perodo
helnico ou mesmo a conciliao produtiva entre liberalismo mercantil, eugenia e
economia escravagista que dominou toda a expanso transatlntica durante
diversos sculos da modernidade, desde a Renascena. Todas as teorias sobre as
origens das raas, desde o sculo XVII, buscavam sua fundamentao na Bblia e
em Aristteles para demonstrar que o negro, como os animais, era desprovido de
alma. Fao essa divagao, que no est propriamente no Regras para o parque
humano, apenas para sinalizar o campo mais amplo no qual Sloterdijk est se
movendo. E para enfatizar que a determinao de eugenia no sentido biopoltico no
um patrimnio do nazismo ou dos gulags soviticos, que tambm tiveram projetos
eugnicos e genocdio.
A hiptese de Sloterdijk a de que, em um sentido macroestrutural, a eugenia
no foi uma inveno hitlerista e nem teve seu ciclo de produtividade encerrado. Ela
se encontra em plena expanso por meio da biotecnologia e pelas clivagens
biopolticas produzidas a partir da reticulao planetria promovida pela sociedade
de consumo e pela universalizao do capital. A eugenia no se reduz aos meios
pelos quais o Estado, totalitrio ou democrtico, isso pouco importa, captura a vida.
E aqui penso tambm na vida nua do homo sacer de Giorgio Agamben. A eugenia
se realiza tambm com a ampliao do campo de consumo de bens biolgicos,
como cirurgias plsticas, sequenciamento gentico, reproduo in vitro e todas as
replicaes de tecidos orgnicos para fins que no estejam ligados sobrevivncia.
Ou seja: a eugenia uma das possibilidades contidas em todas as tecnologias
autgenas e antropognicas por meio das quais a vida se produz a si mesma.
nesse sentido que a tese de Sloterdijk a de que vivemos hoje uma universalizao
e uma democratizao da eugenia. Por isso, em suas acepes histricas mais
pontuais e mesmo em suas correntes mais amplas, preciso compreender a
402

fenomenologia das teorias eugnicas no mbito de um conceito central no


pensamento de Sloterdijk: a antropotcnica.
A antropotcnica nuclear em toda sua obra. No sentido antropolgico, o
homem no apenas aquela que nega o meio pela tcnica. aquele que por meio
da tcnica tambm se nega a si mesmo como natureza, tornando-se plstico e apto
a assumir novas fisionomias e habitar novas antropofanias. Para cunhar o termo de
Michel Serres citado por Sloterdijk: novas hominescncias. A antropotcnica
atravessa a trilogia Esferas [Bolhas, Globos, Espumas]. notadamente
desenvolvida no terceiro volume, e visvel em outras obras e conferncias, tais como
Tu deves mudar tua vida, No mesmo barco, Estranhamento do mundo, Palcio de
cristal, A natureza por fazer e no captulo final da Crtica da razo cnica, onde
Sloterdijk analisa a emergncia de conceitos e imagens maqunicas na arte, na
literatura e na intelligentsia alems da Repblica de Weimar, ou seja, na gestao
do ovo da serpente do nazismo, para usar a metfora concebida pelo brilhante
Ingmar Bergman em seu filme sobre o tema.
Finalizando a questo da polmica Habermas-Sloterdijk, entendo o poder que
a simples meno eugenia exerce sobre a histria recene alem. Contudo, a
crtica de Habermas, totalmente descontextualizada. A partir de uma anlise da
autognese humana e da antropotcnica, nessa conferncia e em diversas outras
obras, Sloterdijk assina o atestado de bito do humanismo. Habermas isolou
totalmente o sentido mais amplo dessa abordagem e amplificou o sentido especfico
da acepo eugnica nazista, que sequer uma acepo relevante na conferncia
de Sloterdijk proferida em Elmau. No por acaso, diversos intelectuais acorreram em
defesa de Sloterdijk contra as acusaes de Habermas, entre eles Bruno Latour,
autor confessamente influenciado por Sloterdijk e, um dos pensadores mais
brilhantes em atividade hoje no mundo.
O problema evidenciado pela polmica entre Habermas e Sloterdijk consiste
em uma compreenso normativa do Esclarecimento. E o devir da espcie humana e
a determinao do sapiens no comeou h trezentos anos em Paris ou em Jena,
mas h 60 mil anos, nas savanas africanas. Isso evidencia um fato: a pragmtica
transcendental de Habermas mais transcendental do que pragmtica. A
racionalidade no pode ser um imperativo deve ser o resultado de processos
descontnuos sempre contingentes. Mesmo Hegel, o maior pensador da
racionalidade na histria, entendia que o conceito s se realiza ao anoitecer. um
403

ocaso, no um incio. Habermas parte de um idealismo lingustico e de uma


premissa questionvel de possibilidade de simetria nos processos comunicativos.
Nesse sentido, parece imaginar o desdobramento do mundo da vida [Lebenswelt]
como uma assembleia de senhores dialogando ao redor de uma mesa e no como a
guerrilha cnica universal de redes e a reticulao planetria de pactos provisrios
envolvendo poder, dinheiro, desejo e tcnica. No de surpreender que um
pensador excntrico e provocativo como Sloterdijk, que se prope comear a
reflexo justamente no ponto onde o pensamento parecia interditado, possa causar
escndalo aos conservadores. O que fica da polmica, por estranho que parea, no
so os eventuais equvocos ou excessos da anlise feita por Sloterdijk, que de fato
podem existir. Ficam os limites da teoria da ao comunicativa de Habermas e sua
defasagem crescente em relao aos caminhos que o mundo vem assumindo.
Sloterdijk um pensador da potncia e do desdobramento da potncia contra
o ressentimento, no das concepes pauperistas ou miserabilistas, em suas
variantes de carncia e privao. Desse ponto de vista, da tradio conservadora
britnica aos neoconservadores norte-americanos e realpolitik, da dialtica
negativa de Adorno antropologia de Arnold Gehlen, para Sloterdijk todo pensador
que se ocupa da negatividade ontolgica constitui uma ontologia da carncia.
Nesses termos, a ontologia da carncia descreve um arco que vai da razo negativa
de Scrates dialtica negativa de Adorno. Nasceu em Atenas e morreu em
Frankfurt. Em sua crtica a Sloterdijk, Habermas torna visvel sua posio de
deflao, negatividade e carncia. Demonstra no ter assimilado a modernizao
como uma vitria esmagadora da liberdade sobre a necessidade, ou seja, como o
desdobramento antropolgico de uma ontologia da potncia. Essa ontologia foi
ampla e profundamente compreendida em todas as suas dimenses, ambivalncias
e implicaes por correntes e pensadores to distintos quanto o cinismo antigo
[kynismus], os gnsticos, Scotus Erigena, Duns Scott, Espinosa, Stirner, Nietzsche,
Heidegger, Bachelard, Bergson, Foucault, Deleuze e o prprio Sloterdijk.
Por outro lado, sempre que falamos em natureza humana, preciso chamar
ao dilogo as cincias duras para compreendermos de fato o que vem a ser essa
noo. Alis, no mundo contemporneo, se a filosofia no dialogar com as cincias
duras ao abordar invariveis antropolgicas de longa durao, e continuar
apostando todas suas fichas em modelos dedutivos, correr o risco de deixar de ser
filosofia e se transformar em uma curiosa variante de teologia dialtica. Em diversas
404

reas, da teoria cognitiva biologia, da teoria neodarwiniana da mente etologia,


muitos pensadores tm apontado para um horizonte comum: a superao da
dicotomia clssica entre construtivismo e naturalismo. Ambas abordagens seriam
insuficientes. Mais do que isso: a prpria polarizao entre esses dois modelos de
compreenso da natureza humana seria equivocada.
Um exemplo dessa tentativa de superao dicotmica desenvolvido por Ilya
Prigogine e Isabelle Stengers em A nova aliana. Outra sntese importante para
esse debate o conceito de tabula rasa de Stephen Pinker, desenvolvido na obra
homnima e retomada na monumental Os anjos bons de nossa natureza. Ao
contrrio do que imaginamos, esse conceito no significa que sejamos uma folha em
branco preenchida pela experincia e pelo meio ambiente. O que ele significa que
h nos seres humanos uma dupla natureza, atual e virtual. Caso alguns estmulos
externos do meio ambiente desapaream com o tempo, a nossa natureza herdada
tende a se retrair at uma completa virtualizao, ou seja, at atingir um ponto de
retrao que como se essa caracterstica natural no existisse.

6.6 Ontologia e Topologia

A esferologia desenvolvida por Sloterdijk em seu opus magnum em trs


volumes sinalize exatamente para essa natureza humana dplice. Como ontologia
da dade, a esfera um campo de animao e de ressonncias, uma regio de
intervalo entre interior e exterior. Esse o ponto sensvel onde se nota tambm o
dilogo de Sloterdijk com a psicanlise, sobretudo com o conceito de espao
transicional de Winnicott, com autores das escolas inglesa e francesa [Franois
Dolto, Alfred Tomatis, Gregory Bateson] e dissidentes da escola freudiana [Otto
Rank]. Mais do que isso, onde se demonstra o desmonte da psicanlise que
Sloterdijk promove desde seu romance filosfico A rvore mgica, que recua a
origem da psicanlise ao mesmerismo e s prticas magnetopticas do sculo XVIII,
at a sua abordagem em Esferas, sobretudo em Bolhas [Esferas-I], e est presente
tambm no conceito de psicopoltica desenvolvido em Ira e tempo.
A partir dessa anlise de extrao didica, toda vida existe e apenas existe
em uma regio indecidvel e em um mbito radicalmente relacional. No princpio no
405

era a unidade. No princpio era a dade. Essa ontologia relacional na qual se baseia
a teoria das esferas transforma o prprio mundo circundante e todos os seres em
prolongamentos e extenses artificiais da manifestao da vida na Terra. desse
modo que a tcnica se projeta fenmeno nuclear para Sloterdijk, como mencionei.
Em certo sentido, os prprios processos naturais so eles mesmos desdobramentos
tcnicos, pois muitas vezes no h uma cesura identificvel entre physis e techn.
Ser humano transformar o puro exterior em interior. domesticar o grande
Exterior.
Em outras palavras, a humanidade do ser humano uma clareira aberta pela
emergncia antrpica da tcnica. Apenas mediante essa compreenso
conseguiremos superar a falsa dualidade natureza-cultura. Essa dualidade est na
raiz de protologias [narrativas das origens] e escatologias [narrativas do fim]. Ambas
desenham parasos ou infernos mediante a perda ou a redeno da natureza pela
humanidade e a perda ou a redeno da humanidade pela tcnica, sem
compreenderem que no limiar do sculo XXI essa taxonomia perdeu totalmente o
sentido. A tese central de Espumas [Esferas-III] justamente propor um fundamento
metabiolgico para os padres artificiais que metabolizam todas as construes
humanas a que chamamos civilizao ou cultura, e que se encontram tambm nas
miragens a que denominamos natureza. Acredito que Sloterdijk, ao lado de outros
pensadores, seja um autor nuclear para a criao de um novo vocabulrio para esse
horizonte antropolgico ainda sem nome que se desdobra nossa frente.
Contudo a biotecnologia apenas uma face de uma questo mais ampla que
atravessa quase toda a sua obra: a questo da tcnica e, mais especificamente, a
questo da antropotcnica. Todo pensamento de Sloterdijk se organiza a partir de
uma fenomenologia das formas e em torno da gnese das formas em espaos
animados de sentido. A prpria divisa que resume o seu projeto pode ser sintetizada
em uma mxima de sua autoria: a vida forma. A esferologia uma morfologia que
apreende a eterna oscilao entre a vida das formas e as formas de vida. A tcnica
apenas o ponto mais agudo do desdobramento da vida como forma, ou seja, como
organizao material dos meios e modos espaciotemporais pelos quais a vida se
desdobra, se produz e se reproduz a si mesma em sistemas autopoiticos. O que
fora sinalizado na conferncia de 1999, acaba encontrando um enorme
aprofundamento na publicao dos trs volumes da trilogia Esferas, ao longo dos
anos 2000. Esse aprofundamento ocorre sobretudo em Espumas [Esferas-III].
406

Espumas trata do xodo do ser humano em direo ao puro exterior, representado


pelos paradigmas mecanicistas e pelas cosmologias inorgnicas, dominantes como
modelos descritivos nas cincias e na produo de conhecimento desde o sculo
XVII. Pela primeira vez na histria o ser humano se depara com um universo que
no mais um organismo vivo ou animado pelos deuses ou por Deus. Com a morte
de Deus, segundo Sloterdijk, ocorre a falncia do maior sistema imunolgico da
histria humana. O processo tcnico o meio pelo qual a odisseia da espcie
continua a elaborar a morte do sistema-Deus e continua a se imunizar por meios
artificiais, mediante a implantao de envoltrios metabiolgicos de proteo. Esse
processo se assemelha quilo que Norbert Elias define como a criao de uma
segunda natureza. Sloterdijk o chama de processo de explicitao.
Aquilo que estava oculto ou virtualmente inscrito na physis como possibilidade
passa a ser explicitado e atualizado com a modernidade. Em razo da sua
magnitude, paradoxalmente, essa mesma explicitao que imuniza o ser humano
contra a hostilidade do exterior, ao mesmo tempo o eviscera constantemente de sua
prpria natureza, arrojando-o excentricamente para fora de si mesmo. Em ltima
instncia, a explicitao desestabiliza elementos que foram estabilizados ao longo
de sculos como constitutivos de uma natureza humana. A tcnica o meio
coextensivo por meio do qual a natureza humana se realiza e produz sistemas de
imunizao em um mundo sem Deus. O amplo espectro dessa explicitao, descrito
no terceiro volume, recobre alguns pontos importantes para compreendermos como
seu pensamento radical sobre a tcnica equaciona antropotcnica e modernidade
dentro do devir milenar do antropos. Uma das imagens mais belas dessa reflexo se
encontra justamente em Espumas [Esferas-III], no longo captulo dedicado
insularidade e teoria das ilhas. A ilha no apenas fim, limite, morte, ocaso. A ilha
o meio pelo qual a vida retorna a si e recomea em outro sentido. A ilha uma
forma de gnese. A partir dessa imagem, colhida em linhas memorveis de Gilles
Deleuze, Sloterdijk realiza a topoanlise, apreenso fenomenolgica de espaos
vitais, na acepo de Gaston Bachelard, de algumas naturezas de ilhas, desde as
ilhas absolutas, como as naves e estaes espaciais, s ilhas entendidas como
associaes humanas arcaicas e como protossociedades e associaes pr-
histricas.
O paradigma da metabiologia e a abordagem sistmica, presentes em Niklas
Luhmann, bem como a teoria das associaes, de Gabriel Tarde, so bastante
407

importantes para seu pensamento, pois a partir dessas premissas Sloterdijk passa a
conceber esses espaos vitais e animados como multiplicidades de formas cujas
matrizes so orgnicas. Entretanto, nesse ponto entra o que voc mencionou sobre
a biologia sinttica e sobre outras concepes de vida que tm se desenvolvido nas
ltimas dcadas. Como eu disse, essas concepes em linhas gerais tm sinalizado
para uma superao da dicotomia natureza-cultura. Portanto, para uma superao
dos modelos representacionais e conscienciolgicos da filosofia clssica, ainda
bastante presentes em diversos autores do sculo XX. O pensamento de Sloterdijk
pode ser definido em seu sentido global como uma teoria geral dos meios. Como
uma teoria do xodo e da vinda ao mundo. As microesferas de relaes fortes de
intimidade so estabelecidas pelos fetos no ventre materno. Com o nascimento, o
humano se encaminha para a criao de espaos animados pela presena de um
puro interior, e cuja fenomenologia descrita em Bolhas [Esferas-I]. Contudo, as
esferas-bolhas dessas relaes fortes de intimidade no podem esmorecer.
Precisam permanecer vivas ao longo do desenvolvimento humano superfcie fria
da Terra e aos olhos de um cosmos cada vez mais indiferente. Por isso, a translao
dessa experincia genesaca de puro interior produz os sistemas metafsicos, as
polticas imperiais de captura e de incluso das diferenas no seio de regimes de
identidade. O puro interior tambm se manifesta por meio das narrativas das
religies de salvao e das ontologias clssicas. Esse processo de transferncia,
iniciado com a catstrofe esferolgicas das bolhas, descrito em Globos [Esferas-II].
Com a falncia dos sistemas globais de imunidade e com a morte de Deus,
tem incio uma nova jornada: a animal humano adentra as pluriesferas movedia e
descentrada e o infinito processo de explicitao a que convencionamos chamar de
modernidade, cujo corolrio Espumas [Esferas-III]. Em todos esses casos, o
humano est sempre se defrontando com a necessidade de domesticar o grande
Exterior. por isso que a construo de ambientes e sistemas metablicos
atravessa toda a produo do homo sapiens. por isso que essas construes
recebem o nome de esferas. Toda esfera um meio, no sentido forte desse termo,
ou seja, no apenas um meio-instrumento que conecta duas unidades. Um meio
entendido como a prpria estrutura relacional do mundo. Do ponto de vista da
esferologia, o dois anterior ao um. O modo de ser da relao mais originrio do
que a relao de anterioridade ou posterioridade estabelecida entre substncias,
predicados e propriedades, como se postulou durante muito tempo nos termos da
408

metafsica clssica. Acredito que uma contribuio valiosa de Sloterdijk e de outros


grandes pensadores contemporneos consista em uma nova nomenclatura para a
definio da vida. E na possibilidade de apreender a vida a partir de sua radical
estrutura relacional. medida que os meios no meros instrumentos e a tcnica
entendida como uma forma conatural ao desdobramento antropolgico do sapiens,
um vasto campo de pesquisa se abre para a redefinio de algumas matrizes do
pensamento, tais como vida, alma, tcnica, substncia, relao, comunidade, entre
outros. E nesse sentido entram as novas categorias de vida sinttica ou relativas
articulao profunda entre sistemas naturais e artificiais. Espero que minha pesquisa
sobre a obra de Sloterdijk e sobre outros autores contemporneos possa fornecer
algumas pequenas contribuies nesse sentido.
Sloterdijk mobiliza tradies, textos, filsofos, artistas e pensadores de
tempos e espaos bastante heterogneos. Atualiza em suas obras centenas de
autores do pensamento antigo, moderno e contemporneo, articulados em rede,
difceis de serem enumerados. Alm disso, dialoga com diversas cincias e saberes,
entre eles a biologia, a politologia, a psicologia, a medicina, entre outros. Como voc
bem apontou, Nietzsche um dos pensadores centrais para Sloterdijk, a ponto de
alguns comentadores o definirem como um pensador nietzschiano. Entre a
assimilao ruidosa e o embate produtivo, Nietzsche est disperso por toda sua
obra. Alm disso, o pensador de Karlsruhe dedicou algumas obras e conferncias
especficas ao criador de Zaratustra: O quinto evangelho e O pensador no palco.
Outras obras so animadas por temas nitidamente nietzschianos: o fim da grande
poltica, a ps-histria, ontologia da potncia, transvalorao, alm-do-homem,
morte de Deus, religies seculares, crtica da modernidade unidimensional, crtica
dos valores, anlise das religies, o cinismo, o fenmeno do ressentimento, a
desconstruo da filosofia, a mitologia e a filosofia do mito, entre outros temas.
Acredito que possamos alinhar alguns pensadores, matrizes de pensamento e
correntes de ideias que formam a espinha dorsal da obra de Sloterdijk.
Em primeiro lugar, h os autores e linhas de pensamento recorrentes, que
formam uma espcie de fundamentao de sua obra. Chamo-os de autores-matrizes
ou de correntes-matrizes de Sloterdijk, apoiado no conceito de autor-matriz
desenvolvido pelo professor Joo Cezar de Castro Rocha. Eles so os seguintes,
sem uma ordem de prioridade: cnicos, gnsticos, Hegel, Nietzsche, Heidegger,
Luhmann, Bachelard, Spengler, Tarde, Schimdt, Blumenberg, Deleuze, Foucault. Em
409

segundo lugar, e como fio condutor que os conecta entre si, h o cruzamento de
dois mtodos: a fenomenologia e o ceticismo. Por mais distantes que sejam, eles se
encontram por meio de um conceito comum: a suspenso [epoch]. Em terceiro
lugar, h quatro saberes de destaque que se entrecruzam: a psicanlise, a
antropologia, a ciberntica e a teoria da informao. Em quarto lugar, h a
incorporao e o dilogo extremamente importante que ele realiza com as artes e a
literatura. Por isso, a presena constante de imagens, desde Crtica da razo cnica,
publicada em 1983 e sua primeira grande obra. As artes visuais e a literatura
recebem estatuto epistemolgico no distinto das chamadas cincias ou saberes.
Elas tm uma relevncia igual ou s vezes maior dos autores citados. Em quinto
lugar: a presena de obras, conceitos e autores de diversas cincias, da etologia e
da biologia astronutica e politologia, da ciberntica e da teoria dos sistemas
arqueologia e paleontologia. Em sexto lugar, agregaria a importncia de matrizes
religiosas e vias de espiritualidade, presentes no esprito de Sloterdijk desde quando
ainda jovem morou por dois anos na ndia. Estas ltimas correntes-matrizes
percorrem diversas de suas obras. Manifestam-se nas anlises excelentes
dedicadas ao pensamento gnstico, como Estranhamento do mundo e A revoluo
global da alma, passam por sua fenomenologia das religies abramicas em A
loucura de Deus, surgem como foras estruturantes em sua fenomenologia da ira e
do reconhecimento [thymos] em Ira e tempo e chegam a uma de suas obras mais
recentes, Tu deves mudar tua vida.

6.7 Complexidade

Antes que o leitor leia incrdulo esses seis tpicos e imagine [com certa
razo] que, a despeito de parecer um vasto erudito, Sloterdijk provavelmente no
passe de um charlato, preciso esclarecer um ponto nuclear que diz respeito a
todos esses tpicos e ao modo de organizao geral de seu pensamento: ele no
analtico, mas sinttico. O modo pelo qual Sloterdijk articula essa movncia de
conceitos, autores, imagens, obras e mtodos se apoia em um recurso semelhante
quele que Husserl chama de sntese passiva e quela figura que Deleuze define
como campo de imanncia. O modo pelo qual os conceitos so agenciados no o
410

modo demonstrativo do racionalismo clssico, nem o modo analtico das filosofias


representacionais e dedutivas ou dos positivismos lgicos. Est ainda mais distante
do mos geometricus spinozista ou cartesiana.
A sua obra se organiza como uma escritura, no sentido de Jacques Derrida,
autor ao qual Sloterdijk no por acaso dedicou o livro-conferncia Derrida, um
egpcio, no qual postula justamente o chamado problema da pirmide judaica, ou
seja, a origem da diffrance e a emergncia do conceito de escritura a partir da
anlise que Freud faz do monotesmo como fenmeno de deslocamento
suplementar e recalque simblico, quando do xodo dos judeus do Egito. No caso
de Sloterdijk, essa escritura se desdobra em forma de rede ou como um rizoma, se
quisermos pensar mais uma vez com Deleuze. Nesse sentido, essa mirade de
autores, obras e conceitos agenciados ao longo de suas pginas no disputam entre
si a primazia de um modelo demonstrativo de cada um dos saberes e cincias a que
pertencem. Justamente por isso, trata-se de uma obra filosfica, ou seja, de uma
investigao metaterica sobre a condio de possibilidade dos conceitos, e no de
uma comprovao emprica da validade desses mesmos conceitos em seus diversos
campos de aplicao e em suas ontologias regionais. Ela ousa trabalhar justamente
na interseco desses diversos campos de imanncia e desfiar os seus conceitos-
matriz como novelos vivos, em direo s aberturas que se produzem no interior do
prprio processo do pensamento.
Nesse sentido, partindo de um postulado nuclear, poder-se-ia dizer do axioma
central de sua obra, arrisco formular a seguinte definio: a obra de Sloterdijk uma
ontologia relacional em que forma e pensamento se encontram indissociavelmente
ligados e se materializam na escritura. E isso ocorre porque, como pensador da
forma excntrica, realiza a excentricidade da forma na materialidade mesma de sua
escrita, em seu majestoso ensasmo, com o qual chegou a ganhar o prmio Ernst
Robert Curtius de literatura na categoria ensaio. Por outro lado, ao agenciar esses
autores e saberes, no postula as suas respectivas unidades transcendentais-
representacionais, concebidas em termos analticos. Pelo contrrio, desconstri e
descostura mesmo a unidade desses saberes. Ao faz-lo, sua obra se apresenta ela
mesma como um dos modos de explicitao da mesma modernidade que ela define
como continuum explicitador. E, ao mesmo tempo, demonstra um dado
extremamente importante: o carter ficcional de toda teoria. Em razo dessa
411

abordagem, podemos aproximar o pensamento de Sloterdijk de um belo conceito de


Jean-Luc Nancy: a ontologia narrativa.
Como ontologia, seu pensamento descreve processos reais e sistemas
mediadores desdobrados no mundo como esferas. Porm, como forma e escritura,
demonstra tambm que todas essas esferas reais e conceituais so fices mais ou
menos eficazes, conforme o campo de realidades que elas desdobram e a potncia
do imaginrio que elas mobilizam. Nesse sentido, a obra de Sloterdijk,
especialmente a esferologia, pode ser entendida como uma gigantesca filosofia da
fico. Se as formas da vida e do mundo se organizam como esferas e se o mundo
e tudo o que o caso, como queria Wittgenstein, as esferas tambm so narrativas,
fora das quais no h mundo ou vida alguma acessvel ou concebvel, seja em
termos formais ou empricos. Tendo em vista esse modus dicendi que se reconverte
sistematicamente em modus vivendi, essa vida-escrita que uma escrita viva
entendida como mundo-escritura, Sloterdijk chega a uma luminosa e inesperada
coerncia. Ela consiste em uma aguda desproporo na proporo e em uma
simetria na absoluta assimetria. Torna a incomensurabilidade do mundo, mais agudo
produto da explicitao infinita, em uma unidade formal-vital relativamente
comensurvel: as esferas. Se a teoria das esferas uma teoria que suspende a
dicotomia exterior-interior, o modo pelo qual o pensamento se desdobra tampouco
pode se basear em modelos representacionais fundados sobre os paradigmas
alternativos presentes em binmios como sujeito-objeto, res cogitans ou res extensa,
empirismo ou transcendentalismo.
Nesse sentido, pensamento e linguagem so um mesmo corpo criativo.
Descrevem imagens-conceitos metaempricos. Ambos seguem sua deriva pelos
interstcios, meios e interseces do real. Porque, afinal, do ponto de vista relacional
e esferolgico, a nica realidade existente a realidade da relao. Como ontologia
das relaes, o pensamento-linguagem de Sloterdijk s poderia habitar as regies
de intervalo e espaos de indecidibilidade ps-metafsica, na acepo de Derrida.
Sendo uma teia dos meios, em sua condio de escritura e de ontologia narrativa, a
esferologia consegue se constituir como canal de mediao de si mesmo. Torna-se
assim a grande Mediadora das demais imagens-conceitos que mobiliza em si para
descrever fenmenos de animao e espaos vitais de convivncia. H uma
articulao entre Nietzsche e Heidegger no pensamento de Sloterdijk, ambos
autores-matrizes do pensador. Alis, ele mesmo chegou a declarar que essa
412

articulao assumiu um papel de destaque em seu projeto filosfico nos ltimos


anos. Em primeiro lugar, inspirado em Nietzsche e na antropologia, Sloterdijk retira a
centralidade da filosofia e passa a pens-la como resultado de um longo processo
de domesticao e sedentarismo. A filosofia no um modo privilegiado de
compreender o homem. Ela apenas uma das tantas tecnologias de domesticao
desenvolvida pelo antropos, cuja finalidade incorporar o no-prprio ao prprio, o
no-sentido ao sentido, o exterior ao interior. Em outras palavras: criar sistemas de
imunizao. Nisso consiste a odisseia antropoesferolgica da espcie. As esferas
narram essa jornada, em um continuum que descreve sistematicamente as diversas
concepes que o ser humano tem de si mesmo. As esferas no se ocupam apenas
da emergncia do sapiens na cena mundana em termos biolgicos. Elas consistem
em uma incessante autocompreenso e autoapreenso da estrutura ontolgica
paradoxal do antropos.
Nesses termos, Heidegger sem dvida um dos autores-matrizes de
Sloterdijk. O pensador de Karlsruhe o cita reiteradamente, ora incorporando-o ora
em um embate crtico que chega aos limites da polmica. Dedicou-lhe um livro, Sem
salvao, no qual reuniu ensaios e conferncias exclusivamente dedicadas ao
pensador da Floresta Negra. Em razo dessa importncia, interessante analisar os
deslocamentos que Sloterdijk promove na obra heideggeriana. Por meio de uma
lente antropolgica, Sloterdijk desloca o acento heideggeriano do ser-a
[Dasein] para o ser-com [Mitsein]. Assim, a partir de uma ontologia da dade, desvela
a estrutura fundamental dos seres humanos: criaturas extticas sobre as quais
opera o Exterior. A humanidade do ser humano consiste justamente nos
infinitos media didicos imunolgicos eficazes que o antropos criou, cria e criar
para conseguir se preservar da ao extra-humana e da indiferena da natureza em
relao espcie. Em outras palavras, a humanidade do ser humano reside
justamente na sua capacidade de criar sistemas esferolgicos imunologicamente
eficientes contra o atravessamento das foras extra-humanas, cada vez mais
crescentes na modernidade. A morte de Deus a runa de um dos mais poderosos
sistemas imunolgicos existentes. Mas isso em nada altera o processo
antropolgico, pois primeiro as ideologias, em seguida a cincia e depois a
tecnologia acabaram assumindo a funo de produtoras de novos sistemas de
imunizao para suprir o vcuo do sistema-Deus. Essa translao de meios que
definimos pelo nome de processo evolucionrio ocorre a partir de unidades
413

antropolgicas. Inspirado nos biografemas de Barthes, nos mitemas de Lvi-Strauss


e nos mitologemas de Jung, chamo essas unidades antropolgicas
de antropogemas. A esferologia procura chegar regio pr-compreensiva e
predeterminante, em termos heideggerianos, que fundamenta ontologicamente o
humano, para alm das vises bivalentes e monovalentes, dos dualismos e dos
monismos da metafsica clssica ou das metafsicas da subjetividade e da
objetividade que marcam a filosofia moderna. Afinal, em linhas gerais, boa parte do
pensamento ps-metafsico no fundo persiste em estruturas conceituais de
monismos materialistas-idealistas ou em concepes dualistas de inspirao
kantiana ou racionalista.

6.8 Do Um ao Dois

Por isso, a leitura desestruturadora que Sloterdijk faz de Heidegger lhe


confere um duplo salto. Ao mesmo tempo em que lhe fornece base de apoio a uma
crtica radical da metafsica, Sloterdijk consegue se neutralizar das aporias do
pensamento heideggeriano, justamente ao transformar a dade estrutural do ser-
a em uma dade relacional do ser-com. Desse modo, portanto, no h mais ser
antes da relao. A regio predeterminante originria deixa de ser a diferena
ontolgica heideggeriana e passa a ser a estrutura relacional interna prpria
condio do ser. Desse modo, Sloterdijk ao mesmo tempo se impermeabiliza da
metafsica da substncia e de seu longo percurso aristotlico, bem como se blinda
da criptometafsica heideggeriana, cuja reflexo sobre o ser no consegue superar o
problema da techn ou sequer confere a devida importncia que esse problema
reivindica para si. Ao negar legitimidade tcnica por entend-la como fim do
processo entitativo, Heidegger criou uma das mais perigosas armadilhas que um
filsofo pode criar para si: inviabilizou cadeias mediadoras de acesso s instncias
originrias do ser. Ao faz-lo, tornou-se vtima dos paralogismos presentes nos mais
contumazes idealismos, pois a estrutura proposicional de sua definio de ser traz
em si inscrita a premissa de que esse acesso ao ser precisa ser no-mediado.
Heidegger produziu assim uma necessidade implcita a seu sistema: situar ser e
414

meio como categorias opostas. Essa premissa a ruina da compreenso


heideggeriana do vasto fenmeno da techn.
medida que a tcnica a explicitao do meio como meio, a ecloso do ser
sempre deve ser concebida de modo no-mediado. Ou seja: torna-se impossvel
uma articulao estrutural entre ser, pensamento e tcnica sem se incorrer em uma
entificao do ser. Por isso, como leitor de Heidegger antes de conhecer a obra de
Sloterdijk, tenho cada vez mais a convico de que a tcnica o ponto cego do
pensar sibilino do mestre da Floresta Negra. Sloterdijk tambm teve essa intuio e
decidiu incorporar o legado de Heidegger, desconstruindo-o luz das
potencialidades ocultas da tcnica. E o fez mediante a dialtica heideggeriana entre
ocluso-desvelamento do ser. Entretanto, inverteu os vetores e deixou de pensar a
emergncia da era da tcnica como esquecimento do ser. Passou a conceber a
manifestao do ser como uma instncia mediada pela tcnica. Mais do que isso: a
pensar a tcnica como princpio de domesticao capaz de abrir a clareira meta-
humana e antrpica por meio da qual o ser pde se revelar. Nesse sentido,
parafraseando um brilhante ensaio de Heidegger, o mundo no seria apenas a
imagem do mundo, em uma das fascinogneses meta-histricas do ser. O mundo
a possibilidade tcnica de configurar o prprio mundo como imagem.
Nesse ponto se insere uma curiosidade e uma breve digresso. Sloterdijk
nutre grande estima por um pensador poderoso: Vilm Flusser. Cita-o reiteradas
vezes. A obra de Flusser pode ser situada a meio caminho entre as indagaes
ontolgicas, renovadas por Hartmann e Heidegger, a fenomenologia e a filosofia
analtica. nesse lugar indecidvel que Flusser fez emergir sua magnfica filosofia da
tecnologia, em uma obra traduzida em mais de vinte idiomas. Sou o organizador dos
trs volumes das obras completas de Vicente Ferreira da Silva, o maior filsofo
brasileiro ao lado de Flusser. Ambos tiveram uma ruidosa e profunda amizade. Na
minha opinio, sem demrito do belo trabalho de grandes exegetas de Heidegger
como Benedito Nunes, Ernildo Stein, Emmanuel Carneiro Leo, Vicente no
apenas o primeiro, mas tambm o mais criativo leitor de Heidegger no Brasil.
Apenas quando tomei contato com Sloterdijk encontrei anlises to fecundas e
imaginativas da obra de Heidegger quanto as realizadas por Vicente, no Brasil, nos
anos 1940-50. A interlocuo e a fecundao mtua Vicente-Flusser foi maior do
que se imagina. Vicente, como pensador da clareira do ser. Flusser, como pensador
da tcnica. Imagino que essa herana brasileira adquirida pelo judeu-tcheco Flusser
415

contribuiu direta e indiretamente para que Sloterdijk empreendesse a sua reviravolta


no interior do pensamento de Heidegger. Contudo, essas rotas migratrias e
polinizaes conceituais, como diria Deleuze, no deixam de ser irnicas. Ao ler
diretamente Flusser, Sloterdijk leu indiretamente Vicente. E por meio de Flusser,
pde reelaborar a obra heideggeriana, que fora reelaborada por Flusser via Vicente.
Mediado por dois autores brasileiros [Flusser viveu trinta anos no Brasil], o alemo
Sloterdijk pde reler inventivamente outro alemo da dimenso de Heidegger. Esse
outro aspecto fascinante para se pensar o conjunto de mediaes que os textos,
ideias e autores sofrem em sua migrao e deslocamento ao redor do mundo. Esse
um aspecto que a esferologia como cincia geral da visitabilidade de algo por algo
em algo pode possibilitar ao prprio estudo da filosofia e compreenso das
migraes de textos, autores, obras e conceitos.

6.9 Imunizao e Transferncia

H algumas definies da teoria das esferas dadas por Sloterdijk. Uma delas
diz: esferas so criaes espaciais imunologicamente efetivas para seres extticos
sobre os quais opera o exterior. Sloterdijk tambm enftico ao propor que a teoria
das esferas uma teoria dos meios. Uma teoria dos meios pode ser entendida como
uma cincia geral da visitabilidade de algo por algo em algo. nesses termos que
uma teoria das esferas e uma teoria dos meios convergem para um campo
unificado. As primeiras comunidades humanas nada mais foram do que esferas
inspiradas por agentes metaempricos: deuses, espritos, entidades, almas,
demnios ou Deus. Estas foram as primeiras foras imunizadoras dos bandos e das
hordas, pois conseguiram criar impermeabilidade esfrica contra os brbaros, ou
seja, proteger o conhecido contra o desconhecido, o prprio contra o no-prprio, o
interior contra o puro exterior. A passagem desse conglomerado de bolhas-hordas
aos globos, ou seja, os primrdios mais remotos da acepo que Sloterdijk confere
ao termo globalizao, est intimamente ligada tecnologia da escrita. Ela pde
unificar o que estava disperso e configurar um modelo de universalizao formal da
experincia por meio de uma reduo da indeterminao dos subsistemas a um
sistema global homogneo. O declnio da eficcia desses sistemas-globos constitui
416

a gnese da modernidade. Esta consiste na multiplicao de uma ubiquidade de


centros emissores de sentido e, por conseguinte, em uma virtualizao cada vez
mais crescente da relao centro-circunferncia no que diz respeito estrutura do
poder.
Nesses termos, existiram narrativas que produziram suplementos, no sentido
de Derrida, para salvar a excentricidade estrutural humana. As primeiras dessas
metanarrativas so as bolhas [Esferas-I], ou seja, as microesferas como primeiras
formas que pretendem, no horizonte da cultura humana, reproduzir as relaes de
intensidade forte mantidas pelo ser humano no lquido amnitico da me. Mas
inevitvel a fratura dessas bolhas. Mais do que isso, dentro da estrutura ontolgica
excntrica do humano, apenas mediante uma ruptura e uma negatividade desses
primeiros envoltrios a vida pode criar mecanismos imunolgicos necessrios para a
sua prpria configurao como vida. A positividade faz esferas s pode existir
mediante a incorporao da negatividade das antiesferas, a consistncia de um
sistema depende da capacidade de incorporar antissistemas. Apenas mediante essa
operao a imunologia se produz. Essa passagem das esferas s antiesferas exige
que se produza uma homeostase. Esta consiste no metabolismo e na nova
configurao vital-formal adquiridos mediante a desarticulao das primeiras
emergncias das formas [esferas-bolhas] e sua transferncia para os modelos
universalizados [esferas-globos], bem como em uma reconfigurao destas em
formas flutuantes [esferas-espumas], aps a sua dissoluo morfolgica. A dialtica
dessas trs unidades morfognicas e fenomenolgicas se d por meio de cesuras.
Essa cesuras so o que Sloterdijk chama de catstrofes esferolgicas.
A ruptura das bolhas lana os humanos no puro exterior. Para tanto, mediante
o amor de transferncia, fora centrpeta e conceito nuclear na esferologia, o ser
humano precisa deslocar e desdobrar a configurao microesferolgica das bolhas
para horizontes mais amplos. Ou seja: precisa projetar os globos [Esferas-II], que
so sistemas macroesferolgicos autopoiticos representados pelas metanarrativas
das ontologias clssicas, da teologia e da psicopoltica metafsico-imperial. Os
globos so todos os invlucros ontolgicos que sustentam crenas e conceitos
capazes de dotar de sentido a totalidade do universo e toda a hierarquia dos entes,
sejam eles reais ou de razo, como diziam os escolsticos. Com o colapso dos
mecanismos imunizadores dessas metanarrativas, temos a vigncia do processo de
explicitao a que chamamos modernidade, ou seja, descortina-se a pluriesferologia
417

e a possibilidade de conceber o mundo como a soma de conjuntos incomensurveis.


Essa passagem foi descrita de modo brilhante por Alexandre Koyr em sua obra
clssica, e encontra sua traduo morfoesferolgica em Sloterdijk. Desse modo, o
mundo passa a ser atravessado por um conceito cada vez mais presente nas
cincias naturais: o infinito. A partir do infinito e mediante um movimento cada vez
mais intenso de explicitao, o ser humano cada vez mais eviscerado em direo
ao puro Exterior. Esse movimento encontra sua homeostase em uma contnua
negao dessa exterioridade por meio da produo de agregados, associaes e
organismos flutuantes que podem ser descritos por meio de uma morfologia das
espumas [Esferas-III].
A teoria das esferas definida por Sloterdijk em quatro aspectos nucleares:
uma filosofia da forma, uma antropologia do espao, uma teoria geral dos meios e
uma ontologia da dade1035. Em todos esses escopos, podemos conceber a esfera
como uma unidade formal e uma estrutura vital dinmica de dois. Nunca se trata de
um monismo que nostalgicamente ambiciona um retorno unidade e tampouco de
um dualismo de substncia, seccionada a partir do binmio extenso-pensamento.
Nesses termos, do ponto de vista da esferologia, no existe ciso ou dualismo
algum nesse longo processo histrico, pois encontrar cises a tarefa do idealismo,
seja ele metafsico ou ps-metafsico. H sim uma revoluo dos meios de
estruturao formal da vida a partir dos quais os seres humanos organizam o
espao vivido, seja ele real, simblico e imaginrio1036. Nesse sentido, ocorre uma
mudana do centro gravitacional das esferas-globo, entendidas como unidades de
uma era imperial-metafsica, s esferas-espuma, cuja formao consiste no
deslocamento kepleriano de um centro real em uma multiplicidade de centros
virtuais1037. A grande tenso no mbito da forma-mundo moderna no seria,
portanto, o conflito cosmolgico entre as matrizes ptolomaicas e a copernicanas1038.

1035
Essas definies so dadas ao longo de E-I.
1036
Para conferir a ruptura de Sloterdijk com a conhecida triangulao de Lacan, conferir E-I.
1037
O escritor e crtico cubano Severo Sarduy defende a tese de que toda produo barroca seria a
materializao artstico-formal da elipse de Kepler: SARDUY, Severo. Barroco. Lisboa, Veja, s/d.
Parte I, Captulo II, A Cosmologia antes do Barroco, pg. 33 a 51. Captulo IV, A Cosmologia Barroca:
Kepler, pg. 55 a 75. Sobretudo pg. 42 e 43. O terico da arte Eugenio DOrs segue caminho
semelhante: DORS, Eugenio. El barroco. Madrid, s/d. Gustave Ren Hocke sinaliza algo nesses
termos para definir o maneirismo, porm como uma forma-elipse transistrica: HOCKE, Gustav Ren.
Maneirismo: o Mundo como Labirinto. So Paulo, Perspectiva, 1986.
1038
Isso no quer dizer que esse conflito no exista Sloterdijk dedica uma obra anlise do impacto
formal que o conflito entre esses dois sistemas-mundos desempenharam na formao do
pensamento moderno: SLOTERDIJK, Peter. Mobilizao Copernicana e Desarmamento Ptolomaico.
418

O conflito matricial seria sim entre dois binmios relacionais: crculo-elipse e


orgnico-inorgnico. Em outras palavras, o corte epistmico que comea a ocorrer
no sculo XVII seria um conflito entre as teses que descrevem um universo baseado
em uma esfera circular divina, perfeita em sua relao centro-circunferncia, e
outras teses, mediante as quais esse mesmo universo pressupe um centro
oscilante entre o real e o virtual, e, por conseguinte, uma diluio das noes
mesmas de centro-circunferncia em pontos suspensos entre o contnuo e o discreto
e entre o orgnico e o inorgnico1039.
No corao das guerrilhas cnicas e da ontologia cintica1040 que constitui a
modernidade, o choque de paradigmas seria entre a esfera-crculo e a esfera-
infinita, entre o orgnico e o inorgnico, entre perfectibilidade e infinitude. A estrutura
formal dessa infinitizao do centro corresponde, em termos polticos,
multiplicao descentralizada da modernidade, em sua oscilao paradoxal entre
centros-emissores e circunferncias-receptoras de poder1041. Como se deve
imaginar, bvio que esse conflito deve ser entendido de modo dialtica, com a
contnua sobreposio desses discursos aparentemente antitticos, uns sobre os
outros. basicamente esse double bind [duplo vnculo] que caracteriza a razo
cnica, matriz universal da vida contempornea1042. Estamos na era da
hiperpoltica1043. Tambm conhecida como poltica cintica1044, na qual movimento,
realidade e iluso se encontram em uma codependncia antinmica por meio das
migraes cinticas do ser1045.

Ensaio Esttico. Biblioteca Tempo Universitrio n 92. Dirigida Eduardo Portella. Traduo Heidrun
Krieger Olinto. Rio de Janeiro: Tempo Brasileira, 1992.
1039
Um dos sistemas que conseguem realizar uma sntese brilhante dessa aporia praticamente
insolvel justamente o sistema organicista da monadologia de Leibniz, medida que as mnadas
so, simultaneamente, pontos matemticos e formas substanciais. Porm, o modelo leibniziano
passa a rivalizar com as teorias mecanicistas cartesianas e newtonianas.
1040
O conceito de ontologia cintica especialmente desenvolvido em: SLOTERDIJK, Peter.
Extraamiento del Mundo. Traduccin Eduardo Gil Bera. Valencia: Pre-Textos, 1998 [Publicao
Alem: 1993]
1041
Essa infinitizao do centro real-virtual e os modelos formais que essa infinitizao passa a
fornecer so desenvolvidos no segundo volume de Esferas e notadamente em Palcio de Cristal,
uma filosofia da globalizao: SLOTERDIJK, Peter. Palcio de Cristal: para uma Teoria Filosfica da
Globalizao. Traduo Manuel Resende. Coleo Antropos. Lisboa: Relgio Dgua, 2005.
1042
SLOTERDIJK, Peter. Crtica da razo cnica. Traduo e coordenao Marco Casanova. Equipe
de traduo: Paulo Soethe, Pedro Costa Rego, Mauricio Mendona Cardozo e Ricardo Hiendlmayer.
Preparao de originais Rodrigo Petronio. So Paulo: Estao Liberdade, 2012.
1043
SLOTERDIJK, Peter. No Mesmo Barco: Ensaio sobre a Hiperpoltica. Traduo de Hlder
Loureno. Reviso Cientfica Jos Bragana de Miranda. Lisboa: Sculo XX, 1996.
1044
SLOTERDIJK, Peter. A Mobilizao Infinita: para uma Crtica da Cintica Poltica. Traduo Paulo
Osrio de Castro. Coleo filosofia. Lisboa: Relgio Dgua, 2002.
1045
MI, NMB, EM.
419

Obviamente, Sloterdijk dialoga com a fascinante tese de Alexander Koyr1046.


Mas o faz relacionando a passagem do mundo fechado ao cosmo infinito como
passagem da esfera-globo esfera-espuma e s crises dos paradigmas
imunolgicos globais decorrentes dessa translao. Embora no o afirme nesses
termos, a partir do ponto de vista da esferologia, podemos dizer que o modelo
organicista estaria ligado odisseia da globalizao imperial-metafsica, por meio da
qual as sociedades constituram amplos discursos que dotaram de sentido o vazio
do universo e assim conseguiram produzir sistemas de imunizao1047. No centro
dessas narrativas, a esfera-Deus seria o maior sistema imunolgico jamais criado.
No centro dessa premissa repousa um paradoxo, advindo justamente das
concepes mais ou menos organicistas da realidade de Deus. Ele consiste na
possibilidade de conciliar de modo no-contraditrio a suma perfeio divina e o
universo entendido como um organismo vivo. Nesse sentido, esferologia,
organicismo e imunologia so categorias complementares.
Mas como conjugar a suma perfeio divina com a imperfeio do mundo
criado? Essa pergunta central. E todo esforo da teodiceia ser o de fornecer
fundamentos racionais de sustentao incomensurabilidade existente entre a
graa divina e contingncia. E, por meio desses fundamentos, obter uma
proporcionalidade ainda que parcial entre perfeio e finitude, entre Deus e mundo.
Esse esforo foi logrado pelas narrativas metafsicas, materializadas nos modos de
organizao poltica imperiais. Sua base de sustentao est em Plato, justamente
no nascimento da filosofia. E seu conceito-chave claro: geometria1048. O modo
geomtrico foi o instrumento antropolgico pelo qual a metafsica, em sua vigncia
milenar, conseguiu solucionar parcialmente o problema da incomensurabilidade dos
mundos divino-humano. E o fez assimilando as imperfeies do mundo razo
necessria da prpria perfectibilidade de Deus e s condies de possibilidade de se
pensar o mundo enquanto mundo1049. Desse modo, sistema-Deus e sistema-mundo
convertem-se um no outro por meio da assimilao da imperfeio na perfeio, do
sentido no no-sentido, do contingente no necessrio, do acaso no destino. Assim,
sistema e extrassistema conseguiram produzir suas mtuas autoimunizaes. Deus
1046
KOYR, Alexander. Do mundo fechado ao universo infinito. Lisboa: Gradiva, 1961.
1047
E-I.
1048
Conferir a bela introduo de E-I confrontando a nossa realidade de mamferos e o esquecimento
antropolgico implcito no modo geomtrico platnico.
1049
Sobre este ponto consultar o magistral estudo de Passmore: PASSMORE, John. A
Perfectibilidade do Homem. Rio de Janeiro: Topbooks, 2004.
420

e mundo, criador e seres criados foram imunologicamente impermeabilizados. Em


outras palavras, foram incorporados estrutura didica de uma esfera.
Por mais imperfeitas que sejam as criaturas, a suma perfeio circular de
Deus omnicompreensiva e pode abranger a infinitude dos pontos finitos e dotar de
perfeio a imperfeio infinitamente mortal, pois a mortalidade a prpria inscrio
de racionalidade da vida divina em sua dimenso mundana. Porm, ainda resta um
problema. E se concebermos o mundo como um grande organismo vivo? Como
geometrizar o orgnico? Esse o conflito entre as racionalidades orgnica-vital e
inorgnica-geomtrica, um conflito antropolgico milenar. No por acaso, Pascal
percebeu com muita argcia que esse embate epistemolgico tinha no fundo razes
morais e teolgicas, identificadas pelo pensador jansenista como dois modos do
esprito, o geomtrico e o de finesse. Tambm no por acaso, Pascal um pensador
central para compreender o eclipse da era das esferas-globo e o comeo da
infinitizao dos centros, que conduz s sociedades contemporneas articuladas a
partir da esfera-espuma1050. Acredito que essas duas matrizes espirituais tenham se
materializado em duas grandes matrizes de pensamento: a geomtrico-metafsica e
a alqumica-orgnica. Adiante desenvolverei essa premissa, pois ela nuclear neste
trabalho. Como pensar a esferologia em consonncia com essas oscilaes entre o
orgnico e o inorgnico? Para Sloterdijk, em termos antropolgicos, o ser humano
se enraza no mundo de modo paradoxal. Expomo-nos, desde a sada da esfera
intrauterina, exterioridade e fora centrfuga e indiferente do universo. A
sobrevivncia da espcie depende de conseguirmos criar meios de domesticao do
espao. O conjunto milenar desses meios no nada mais do que aquilo que
chamamos de tecnologias. Apenas por meio de tecnologias de domesticao
conseguimos traduzir a forma exterior em alguma forma vital de interioridade. Esse
movimento paradoxal justamente por um motivo: os grupos humanos ampliam os
sistemas imunolgicos dos quais dependem sua sobrevivncia medida mesma
que expem e pem em risco a interioridade dos sistemas autopoitico nos quais
esto inseridos1051. A fascinao de proximidade e a interioridade ontolgica sobre a

1050
Essa passagem vem marcada especialmente no captulos finais de E-II, publicado com
acrscimos e de maneira autnoma com o ttulo de PC, e sua smula se encontra em E-III.
1051
O conceito de sistema autopoitico tomado por Sloterdijk diretamente da teoria dos sistemas de
Niklas Luhmann, um dos seus autores-matrizes: LUHMANN, Niklas. Introduo teoria dos sistemas.
Petrpolis: Vozes, 2009.
421

qual se enraza a experincia hominizadora precisa ser tocada pela densidade: a


intimidade precisa produzir seu xodo rumo extimidade1052.
Apenas assim, nesse movimento morfolgico paradoxal entre sistemas e
extrassistemas, nessa dinmica de excentricidade-interiorizao, de perda do centro
e de incorporao de centros exteriores, o ser humano consegue domesticar o puro
Exterior1053, englobando-o em sistemas de sentido, ou seja, em esferas, sejam elas
bolhas, globos ou espumas. Em outras palavras: ao criarmos esferas, dotamos de
forma orgnica a matria indiferente. Organizamos o Externo. Habitamos o mundo
como um dado de sentido, no racional, mas de uma racionalidade orgnica.
Nesses termos, a esferologia uma grande narrativa da organizao do mundo.
uma odisseia da emergncia do homo sapiens, dos crculos restritos de sua
fatalidade antropolgica criao de modos cada vez mais sofisticados de
domesticar o Exterior por meio da tcnica. A modernidade, a partir do sculo XVI,
com a globalizao terrestre promovida pelas navegaes e com as desinibies1054
tecnolgicas de todos os mbitos, passou a inscrever cada vez mais o ser humano
no mago de um mundo artificial e de uma segunda natureza, para usar aqui o
conceito de Norbert Elias1055.
Tendo em vista que as esferas so uma morfologia e uma fenomenologia da
infinitude incomensurvel desses meios circundantes [Umwelten], o ser humano
um animal indecidvel. Est simultaneamente dentro e fora do mundo. Habita esferas
que o humanizam. Mas estas so estruturas radicalmente didicas, situadas em um
limiar ontolgico interior-exterior que nunca se resolve em unidade. Nesse sentido, a
natureza do ser humano e a sua humanidade mesma nunca lhe so prprias. So-
lhe sempre adventcias. Esto sempre em constante emergncia. Esto sempre em
vias de se realizar, medida que ele capaz de interiorizar o exterior em um
dinmica de esferas. Interiorizar o exterior produzir uma esfera e assim assegurar
a humanidade do ser humano. Contudo, apenas mediante o contato com a
negatividade do exterior, o interior capaz de produzir sistemas imunolgicos, ou
seja, capaz de prosseguir sendo uma pura positividade ontolgica da dade
1052
O conceito de extimidade de Winnicott, autor com o qual PS dialoga muito. A concepo das
esferas como espaos radicalmente intersticiais e de intervalo encontra ressonncia no conceito
fundamental de espaos transicionais desse psicanalista.
1053
PC.
1054
O conceito de agentes desinibidores e de desinibio especialmente tratado em PC.
1055
ELIAS, N. O processo civilizador: Uma histria dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994,
v I. _____________. O processo civilizador: Formao do Estado e Civilizao. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1993, v. II.
422

interior-exterior. Em outras palavras: pode continuar sendo uma esfera. Por isso,
reforando o que disse, pois esse um ponto nodal, a tnica antropolgica que
permeia o projeto Esferas se baseia em uma concepo exttica do ser humano. Ela
est presente em Schelling, mas Sloterdijk a tomou diretamente de Heidegger e
tambm de Nietzsche. Em uma acepo bioantrpica, essa condio exttica [ek-
sistere], fora da permanncia-substncia, encontra uma analogia possvel com o
axioma da posicionalidade de Helmut Plessner: o ser humano um animal
excntrico.
A esferologia se encontra nesse sentido muito alm das axiologias
conservadoras e neoconservadoras, bem como dos discursos devedores de uma
nostalgia romntica. Nada mais alheio esferologia do que discursos que associam
a modernidade a uma perda do centro, de Deus ou dos valores humanos. Isso
porque Sloterdijk pensa o ser humano exatamente como um animal enraizado em
uma experincia predeterminada de excentricidade. A excentricidade, sob esse
ponto de vista, no nada mais do que a chancela com a qual se inscreve a
humanidade do ser humano no momento mesmo de sua vinda ao mundo. Ou seja:
quando ns, em nossa condio de mamferos, abandonamos a pura interioridade
do ser uterino materno e nos posicionamos diante do Exterior. Contudo, e nesse
ponto a abordagem sistmica de Luhmann lhe nuclear, todo sistema possui uma
natureza autopoitica. A essncia de todo sistema consiste em passar da
indeterminao determinao. Por isso, justamente porque o descentramento
constitutivo da humanidade do ser humano, a odisseia do sapiens consiste em um
deslocamento infinito dessa excentricidade estrutural indeterminada em novas
configuraes de esferas e de sistemas de imunizao e de determinao antrpica.
Essa odisseia de deslocamentos, configuraes e reconfiguraes de uma
excentricidade predeterminante a totalidade do que chamamos de cultura humana
ou civilizao.
A partir desses modelos imunolgicos, podemos entender que a esferologia
concebe todas as determinaes humanas como emergncias de um horizonte
meta-humano. Paradoxalmente, a ao excntrica das foras meta-humanas no
atua sobre o ser humano retirando-o de sua humanidade, mas justamente o
contrrio. Desempenha a funo de agentes externos necessrios prpria
conformao imunolgica e ontolgica do sistema-humano. Levam-no a metabolizar
essa ao externa em suas criaes domesticadoras-imunizadoras. Ao faz-lo,
423

inserem-no propriamente no que podemos chamar de devir da hominizao. Nesse


sentido, especificando a resposta sua pergunta, podemos dizer que para a teoria
das esferas o antropocentrismo impossvel. Mais especificamente, nesse quadro
terico, o antropocentrismo seria possvel apenas como iluso cintica, conceito
importante, presente embrionariamente na Crtica da razo cnica, depois
desenvolvido por Sloterdijk em Mobilizao infinita e em Estranhamento do mundo.
A iluso cintica uma variante de sua concepo de ontologia cintica. Esta seria
um modo de deslocamento [metoikosis] de determinadas formas. Esse
deslocamento sugere uma transformao de substncia, mas ao mesmo tempo
preserva a forma anterior da substncia em sua migrao para novas formas
diferentes.
Em que sentido o antropocentrismo pode ser compreendido nessa chave? Ele
seria um meio pelo qual o ser humano anula as camadas mediadoras-imunizadoras
no interior do qual os humanos surgem como pura excentricidade. Mediante essa
anulao, o ser humano passaria cineticamente a acreditar em sua autossuficincia
ontolgica. Em outras palavras: o antropocentrismo seria apenas uma narrativa de
sentido que produz autoimagens do ser humano, antropogemas, como eu
mencionei, pressupondo que essas autoimagens correspondam a uma estabilidade
de sua substncia e a uma autossuficincia ontolgica de sua humanidade. Como
fica claro de acordo com o exposto acima, essa miragem de autossuficincia seria
uma tentativa de conferir um sentido humano prprio a uma humanidade que nos
sempre e eternamente derivada. Seria uma tentativa de dotar a instabilidade
ontolgica humana de um fundamento. Seria um modo de transformar a
instabilidade ontolgica das esferas em algo que possa ser chamado de natureza
humana. Seria, por fim, uma tentativa de encontrar o comeo ou fim inacessveis do
infinito processo de deslocamentos e de metoikosis de esferas em que consiste a
vida, e no interior do qual o ser humano um mero mediador. Em outras palavras, o
antropocentrismo uma tentativa de negar a condio excntrica estrutural que nos
determina como espcie. Entretanto, no podemos lidar aqui com a polarizao
antropocentrismo-teocentrismo. Quero dizer: negar a viabilidade ontolgica do
antropocentrismo no leva Sloterdijk a postular Deus como necessidade lgica,
diante da falncia dos meios imanentes de acesso autonomia humana. Para a
esferologia, Deus apenas mais uma das metanarrativas metafsico-imperiais pr-
modernas que conferem um fundamento, uma substncia ou um sentido
424

experincia da excentricidade humana. Trata-se de uma das mais poderosas


metanarrativas da humanidade, se pensarmos o sistema-Deus como uma poderosa
fora imunizadora. Contudo, a morte de Deus, bem como os inmeros
desdobramentos que essa morte produziu nas sociedades ps-metafsicas, no so
nem positivos nem negativos. Tampouco esto inscritos em princpios de
causalidade e de necessidade, sejam eles indutivos ou dedutivos.
Em termos esferolgicos, a morte de Deus apenas conduziu o animal humano
a produzir novas formas de imunizao. Colocou-o face a face diante da experincia
cada vez mais aguda de excentricidade, produzida por um crescente processo de
explicitao e pelo xodo cada vez mais veloz do ser humano rumo a um universo
que cada vez mais se apresenta como um Exterior absolutamente vazio e sem
sentido. Se o antropocentrismo invivel, pois a autoimagem do ser humano
apenas uma fico, uma figurao mediada no interior de uma cadeia excntrica de
imagens e emaranhada em uma caixa de infinitas ressonncias esfricas, o mesmo
ocorre para o conceito de teocentrismo. Nem Deus nem o homem podem ser centro
de nada. Para que isso ocorra, seria preciso conceber cada um deles como uma
unidade. E conceber Deus ou o homem ou qualquer outro ser como como unidade
absolutamente impossvel para esferologia, pois para a esferologia tudo o que existe
apenas existe como derivado da categoria relao. Existncia e relao so
exatamente o mesmo. Mais do que isso: luz da esferologia, dizer que a existncia
relao uma tautologia.
Uma boa entrada preliminar para as de duas mil e quinhentas pginas de
Esferas o breve livro No mesmo barco. Nesta obra, Sloterdijk realiza algo
semelhante a um plano-piloto da esferologia, mas analisando a diviso das esferas
de um ponto de vista poltico e extremamente sucinto. Na descrio da esferologia
temos as microesferas das bolhas [Esferas-I], a macroesfera dos globos [Esferas-II]
e as pluriesferas das espumas [Esferas-III]. Em No mesmo barco, essas trs
morfologias, pois so mais caracterizaes fenomenolgicas de formas do que uma
cronologia de etapas, assumem os nomes de paleopoltica, polticas imperiais e a
hiperpoltica. A paleopoltica a estrutura das hordas da pr e da proto-histria, o
modo microesfrico pelo qual os pequenos grupos produziram relaes fortes de
intimidade e mantiveram a coeso social. Em diversos momentos, o sapiens
desempenha esse modelo morfolgico. A emergncia do rosto humano em termos
evolucionrios e a definio protrtil da face humana descrita em conjuno com a
425

formao das primeiras representaes figurativas das vnus de Willendorf e de


Hohle Fels [Esferas-I]. Contudo, em um mundo cada vez mais sinttico e artificial, a
emergncia das ilhas antropognicas nas quais h o surgimento de modos
relacionais do sapiens prossegue em seu devir. Podemos entender alguns modelos
de arquitetura, como a de Buckminster Fuller, e a prpria cincia da astronutica e
das navegaes espaciais, como novas gnesis de ilhas antrpicas, semelhantes
quelas que originaram as primeiras associaes humanas que apenas muito
recentemente passamos a chamar pelo equivocado nome de sociedade [Esferas-III].
Fao esse prembulo no para recuar diante da pergunta, mas justamente
para adentr-la em seu ncleo. Tendo em vista essas configuraes formais sempre
se relacionam como modos de vida, na acepo clssica de Pierre Hadot, Foucault
um autor bastante importante para Sloterdijk. E o medida que ambos pensam
as tecnologias de produo do real como a prpria mensagem ambivalente do real.
O conceito de dispositivo desenvolvido por Foucault, semelhante sua concepo
paradoxal da estrutura do poder, pressupe que o poder se manifesta justamente
onde os sujeitos pretendem deslocar ou ocultar as formas de sua manifestao.
Exemplos dessa leitura esto muito prximos da lgica do duplo vnculo [double
bind] cnico desenvolvido em Crtica da razo cnica e dos espaos transicionais
desenvolvidos em Esferas, nos quais o problema milenar sujeito-objeto ganha
finalmente uma de suas primeiras formulaes de fato no-dualista. Como se sabe,
uma das brilhantes descobertas de Foucault foi o estabelecimento da relao saber-
poder. Por meio dela, desconstruiu a ordem dos metadiscursos axiolgicos,
doadores de legitimidade e de sentido, colocando-os em paridade com discursos e
prticas discursivas marginais nos diversos mbitos das chamadas cincias
humanas, fossem eles oriundos do universo penitencirio, criminal, mdico, sexual,
jurdico, religioso, filosfico, teolgico ou cientfico.
Em todos esses casos, os mesmos padres normativos de produo de poder
podem ser capturados justo onde menos se espera, ou seja, inclusive naquelas
organizaes discursivas que se pretendiam transgressoras ou que se colocavam
como o avesso das normas vigentes em cada configurao epistmica. Esse gesto
muito semelhante ao de Sloterdijk. Sobretudo quando este, a partir de uma acepo
antropologicamente positiva de despesa [potlatch], desenvolvida por George Bataille
e Marcel Mauss, situa as desoneraes libidinais, a capitalizao da violncia e a
canalizao psicopoltica da ira no como um movimento de destruio, mas como o
426

eixo estruturante da civilizao [Ira e tempo]. Por fim, em relao a sexualidade,


absolutamente marginalizada no pensamento ocidental, para a qual Foucault
manteve sempre uma escuta atenta e qual conferiu a devida centralidade,
Sloterdijk tambm deu suas contribuies. A sexualidade e a liberao sexual
aparecem tanto em Crtica da razo cnica quanto em nos captulos finais de Esferas
[Esferas-III] como a culminao do movimento antrpico de desonerao e de
desinibio, marcantes em todas as sociedades da opulncia [affluent society], como
John Kenneth Galbraith caracteriza a sociedade contempornea.
Contudo, h um ponto onde o pensamento de Foucault e Sloterdijk se
distanciam bastante. Pode-se dizer que Foucault se dedica mais a anlises
microfsicas e s microestruturas narrativas, com o intuito de capturar as fmbrias
das relaes de poder. Sloterdijk, por seu lado, busca os grandes enquadramentos,
as narrativas macroestruturais e com a esferologia, em certo sentido, at mesmo
reprope a viabilidade de uma metanarrativa no mundo contemporneo. Essa
distino torna-se mais clara a partir de um conceito de Sloterdijk: a cesura. A
cesura um corte qualitativo. Um evento realmente significativo que produz uma
descontinuidade efetiva na gigantesca continuidade das invariveis antropolgicas.
A cesura se diferencia daquilo que Foucault chama de epistme. Para a epistme, a
descontinuidade est sempre pressuposta, pois o pensador francs pretende por
meio dela demonstrar como as diversas determinaes discursivas de cada perodo
marcaram as diferentes condies de possibilidade de poder-saber desses mesmos
perodos. Os cortes epistmicos exigem alguma relao com a historicidade e a
diacronia das formas de poder-saber em questo. Isso demonstra que mesmo tendo
se distanciado do estruturalismo, Foucault continuou muito marcado pelos mtodos
historiogrficos. Nesse sentido, a genealogia e a arqueologia desenvolvidas por
Foucault podem ser vistas como uma descrio de sucesses epistmicas de
formas de saber-poder e de suas sucessivas descontinuidades. Ao passo que a obra
de Sloterdijk, tanto na esferologia quanto nas demais abordagens, sempre produz
uma descrio fenomenolgica dos espaos e das formas de vida, em busca de
suas poucas e milenares cesuras. guisa de finalizao, deixo um relato pessoal.
Para mim a obra de Sloterdijk tem sido um alimento cotidiano e uma fonte
inesgotvel de inspirao. Este trabalho dedicado mesologia a primeira tentativa
de formular uma teoria geral dos meios, ou seja, uma ontologia dos mesons, e tem
como ponto de partida em grande medida a ontologia relacional das esferas e de
427

outros autores. Parto do conceito de meson na fsica para estabelecer a distino-


identidade entre um meio-mediador e um meio-envolvente. Essa teoria pretende
atuar no campo de imanncia dos conceitos e na interseco de diversos campos do
conhecimento, pois tambm uma filosofia das formas, medida que o meio no
uma relao entre duas unidades, mas a forma insubstancial que possibilita a
manifestao do real como real. Pretendo desenvolv-la em sentidos distintos aos
sentidos empregados por Sloterdijk na construo do projeto Esferas. Mesmo
porque meu dilogo com as cincias naturais tem sido muito mais intenso do que o
realizado na esferologia. Espero que esse embate com seu pensamento potencialize
tanto a compreenso que tenho de sua obra quanto me emancipe para trilhar
caminhos que eu aprendi com a vida e com muitos autores. Entretanto, no posso
negar que a obra de Sloterdijk foi para mim um dos grandes agentes aglutinadoras
de muitos anos, talvez de duas dcadas de leituras. Ela foi para mim um espelho
que me iluminou para conexes de muitos interesses meus que pareciam distantes
ou desconexos entre si antes de eu tomar cincia de sua obra.
Essa obra, no presente momento e a partir de contas imprecisas, deve
ultrapassar as cinco mil pginas. A partir de um mapeamento criterioso da filosofia
contempornea em suas diversas correntes, seria necessrio cotejar seus principais
ncleos irradiadores com as obras de outros pensadores para avaliar de fato qual a
originalidade e o futuro de sua contribuio. Entretanto, tendo em vista alguns
pontos que salientei, creio que a importncia de seu nome para o pensamento deste
comeo do sculo XXI seja incontestvel. Mais do que isso: sinto que sua influncia
e atualidade sejam cada vez mais crescentes. E isso visvel no apenas nas
conexes de seu pensamento com outras reas do conhecimento, mas na conexo
que ele estabelece tambm com diversas esferas prticas da vida e do mundo
atuais. Esses desdobramentos podem ser identificados em algumas esferas centrais
da modernidade e do mundo contemporneo, tais como sexualidade, globalizao,
geopoltica, cultura e o impacto que os milhares de agentes tecnolgicos exerceram
no ltimo sculo sobre o castelo humanista, conduzindo-o runa. No fundo,
Sloterdijk apenas procura algumas chaves de compreenso para esse atormentado
animal humano que ainda luta contra suas prprias sombras projetadas nas
cavernas, para usar a bela metfora de Hans Blumenberg. A partir de Sloterdijk
talvez consigamos compreender que a falncia do projeto moderno, entendido em
termos unilaterais como uma teleologia da emancipao, bem como a runa do
428

humanismo, no foram necessariamente perdas. Elas podem se transformar no


exerccio cotidiano e sereno daquela alegria trgica de que falava Nietzsche. E
quem sabe sobre essa runa possamos viver o futuro de uma promissora e poderosa
liberdade.
429

7 O GRANDE GLOBO DESAPARECEU: OS MESONS E A TEMPESTADE DE


SHAKESPEARE

Como vos preveni, eram espritos


todos esses atores; dissiparam-se
no ar, sim, no ar impalpvel. E tal como
o grosseiro substrato desta vista,
as torres que se elevam para as nuvens,
os palcios altivos, as igrejas
majestosas, o prprio globo imenso,
com tudo o que contm, ho de sumir,
sem deixar vestgio. Somos feitos
da matria dos sonhos; nossa pequena
vida cercada pelo sono.
Prspero, Ato IV, Cena

7.1 Mesons e Anima

Meu objetivo pode ser definido em dois caminhos. Primeiro, a partir de um


cotejo entre as noes gerais de physis e techn, pretendo estabilizar algumas das
matrizes de um pensamento que postula o universo como um organismo vivo,
sobretudo aquelas oriundas da tradio alqumico-hermticas, que encontram seu
maior florescimento justamente na Renascena, perodo de Shakespeare. Segundo,
mostrar como essa concepo organicista, a partir do sculo XVI, comea a entrar
em conflito com a tese cartesiana de uma matria extensa e com o mecanicismo
newtoniano, produzindo divises no mbito das formas de representao do mundo,
sejam elas polticas ou artsticas. Para articular esses dois caminhos e percorr-los,
apoio-me em trs conceitos nucleares: mesons, animismo e physis. No que consiste
cada um deles? Como eles se relacionam entre si? Por mais marcante que seja
esse esgaramento dos conflitos epistemolgicos ocorridos no mbito das cincia a
430

partir do sculo XVII, trata-se apenas do ponto mais agudo de uma ciso que se
operou paulatinamente. Em grande medida, o que chamamos de modernidade diz
respeito ao aprofundamento paradoxal dessa ciso entre orgnico e inorgnico,
entendidos no mbito das controvrsias tericas como construes discursivas e
como dispositivos de descrio do mundo, no como categorias apriorsticas1056.
Embora seja possvel dizer que essa demarcao epistemolgica corresponda
diviso interna e estrutura emergente do prprio mundo burgus, suas origens so
medievais e se encontram in nuce na doutrina da dupla verdade1057, supostamente
averrosta, e no debate entre nominalistas e realistas a partir do sculo XIII ou
mesmo antes, em matizes de definies de alguns conceitos seminais, como o de
natureza, nas acepes de autores como Alain de Lille e Marciano Capella1058.
Por seu lado, o tema da perfectibilidade1059, desenvolvido pelos pensadores
artiens a partir do sculo XIII, tem um importante papel na constituio de um
discurso sobre a tcnica apoiado em premissas teolgicas, ou seja, de uma
teotcnica1060. Porm, determinar o gnese desse conceito uma tarefa complexa,
pois esses discursos so muito anteriores ao sculo XII e XIII. Encontram-se
configurados na tradio alqumica desde h muitos sculos. A modernidade foi
apenas o ambiente propcio para seu florescimento mais amplo. Acredito que esse
conflito entre organicismo e mecanicismo, entendidos como dois sistemas-mundos e

1056
Sobe essa dimenso necessariamente conflituosa do trabalho epistemolgico, conferir Barba
Smith: SMITH, Barbara Herrnstein. Crena e Resistncia: a Dinmica da Controvrsia Intelectual
Contempornea. Traduo Maria Elisa Marchini Sayeg. So Paulo: Unesp, 1998.
1057
A anlise da modernidade a partir da doutrina da dupla verdade especialmente importante para
Gyrgy Lukcs. Por meio dela o filsofo hngaro concilia as fontes medievais e a emergncia das
estruturas sociais propriamente burguesas: LUKCS, Gyrgy. Para uma ontologia do ser social:
Volumes I e II. Prefcio: Jos Paulo Netto; Orelha: Maria Orlanda Pinassi. Tradutor[a]: Carlos Nelson
Coutinho, Mario Duayer, Nlio Schneider. Reviso da traduo: Nlio Schneider; Reviso tcnica:
Ronaldo Vielmi Fortes com colaborao de Ester Vaisman e Elcemir Pao Cunha. So Paulo:
Boitempo, 2103.
1058
Em seu brilhante estudo sobre as gneses da modernidade, Maurice de Gandillac retroage esses
seus marcos fundadores ao sculo IX e, por vezes, ao sculo VIII: GANDILLAC, Maurice de.
Gneses da Modernidade. Traduo Lcia Cludia Leo e Marilia Pessoa. So Paulo: 34 Letras,
1995.
1059
Sobre o tema da perfectibilidade na histria do pensamento, conferir o magistral estudo do
filsofo australiano John Passmore: PASSMORE, John. A Perfectibilidade do Homem. Rio de Janeiro:
Topbooks, 2004.
1060
Sobre a teotcnica, conferir a brilhante anlise do Gnesis bblico realizada por Sloterdijk em E-I.
Abordei de modo detida essa anlise no meu mestrado sobre Sloterdijk: PETRONIO, Rodrigo. Uma
Antropologia para alm do Homem: Religio e Hominizao na obra Esferas de Peter Sloterdijk.
Dissertao de Mestrado. Departamento de Cincia da Religio. Pontifcia Universidade Catlica de
So Paulo, 2013.
431

como dois paradigmas esferoimunolgicos1061, seja o centro oculto de da obra, prima


e derradeira, de Shakespeare: A Tempestade1062. O conflito que norteia a
modernidade encontra-se tematizado indiretamente nessa fbula shakespeariana.
Ele o conflito entre um sistema mecanicista e extensista, baseado em um universo
no qual se inscreve uma diferena ontolgica. Esta funciona como demarcao
epistmica entre o vivo e o no-vivo. A partir dessa premissa, muitas teses prope
uma anterioridade lgica e mesmo cosmolgica do inorgnico sobre o orgnico,
concebendo uma fora inorgnica como motor do mundo. Por seu turno, o modelo
organicista parte da hiptese de uma continuidade ininterrupta da vida orgnica na
grande cadeia do ser1063.
Para alm de uma maior ou menor pertinncia epistemolgica, o que me
interessa aqui o sentido histrico desse conflito1064. Os atritos, convergncias e
dissonncias entre esses dois paradigmas imunolgicos esto inscritos na obra de
Shakespeare. A oscilao entre eles determina, em sentido poltico, as principais
tenses planetrias com a universalizao do capital e a ascenso do que Immanuel
Wallerstein define como as ambivalncias do sistema-mundo1065. Em termos
formais, embora tenha tido contato com sua obra depois de ter delineado a hiptese
deste estudo, minha tese se encontra, quase em sua ntegra, em consonncia com
tese de Harold Bloom, maior autoridade mundial na obra do bardo: Prspero seria o
personagem-tipo representante da grande tradio hermtica-alqumica-gnstica e

1061
Produzo uma aproximao da esferologia, entendida como uma teoria sistmica, e o conceito de
sistema-mundo, de Immanuel Wallerstein. A despeito de suas especificidades, acredito que essa
aproximao seja procedente, pois tanto Sloterdijk quanto Wallerstein so leitores da teoria sistmica
de Luhmann, e Sloterdijk tambm dialoga diretamente com Wallerstein, embora seus escopos sejam
bastante diversos.
1062
Basear-me-ei na traduo de Barbara Heliodora: SHAKESPERARE, William. A Tempestade.
Traduo de Barbara Heliodora. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999.
1063
LOVEJOY, Arthur. A Grande Cadeia do Ser: Um Estudo da Histria de uma Ideia. Conferncias
William James Proferidas na Universidade de Harvard em 1933. Traduo Aldo Fernando Barbieri.
So Paulo: Palndromo, 2007.
1064
Nesse sentido, ao analisar o estudo da forma na arte como forma organizada, e, por conseguinte,
orgnica, este estudo tambm incorpora alguns aportes tericos fornecidos pela Morfologia, mtodo
epistemolgico-histrico criado e desenvolvido pelo professor Maurcio de Carvalho Ramos, a quem
agradeo pelas aulas e pelas conexes extremamente ricas entre arte, filosofia e cincia.
1065
Apoio-me na teoria do sistema-mundo de Wallerstein inspirado no curso do professor Joo Cezar
de Castro Rocha sobre Shakespeare. Sem sua intuio inicial da relao de Shakespeare com o
sistema-mundo, a concepo geral deste trabalho no existiria como veio a existir. A anlise de
Wallerstein se encontra alocada na tradio marxista liberal, mas esse movimento estrutural pode
muito bem ser visto na relao indissocivel entre capitalismo e ambivalncia, proposta por Zygmunt
Baumann e pelos crticos mais agudos do capitalismo: WALLERSTEIN, Immanuel. World-Systems
Analysis: An Introduction. Durham, North Carolina: Duke University Press, 2004.
432

da magologia renascentista1066. Uma variante de Fausto, que a verso latina de


Simo Mago, da Judeia, um dos pilares da tradio gnstica1067. Em termos
dramticos, uma literal imitao-emulao do Fausto de Christopher Marlowe, seu
maior rival nos palcos elisabetanos1068. Mas no que consiste afinal a obra-matriz de
Shakespeare? Analisemos em primeiro lugar seu enredo do modo mais literal
possvel. E em seguida, entremos nos conceitos fundamentais que ela mobiliza.

7.2 A Tempestade1069

Prspero, duque de Milo, e sua filha Miranda, com trs anos ainda
incompletos, so lanados em uma ilha deserta no naufrgio produzido como um ato
de traio poltica idealizado por seu irmo Antonio e seu cmplice, Alonso, rei de
Npoles. No pretendem transtornar a populao, que ama Prspero. Tampouco
querem macular a estratgia poltica de isolar o duque e usurpar seu cargo. Desse
modo, sem sanguinolncia, ambos o colocam em uma embarcao comprometida e
designam Gonzalo para realizar esse naufrgio premeditado. Gonzalo realiza o
plano. Entretanto, guarda os livros mais importantes de Prspero e lhos confia. Os
livros no so apenas livros, objetos maiores do amor de Prspero. Eles so a base
para o exerccio de sua Arte, que consiste no domnio das leis da Natureza e na
prtica de operaes mgicas. Realizada a traio de Antonio e Alonso, viles da
pea, o naufrgio certo. Prspero e Miranda sobrevivem. Encontram-se enfim
cativos na ilha, sem que os autores da traio o saibam. Por seu turno, Sebastian,
irmo de Alonso, por sua vez, deixa sugerido ao longo da pea que pretende
usurpar tambm o trono de Npoles de seu irmo, como Antonio e Alonso fizeram
com Prspero. Nesse sentido, h um espelhamento entre os irmos Antonio-
Prspero e Alonso-Sebastian, em seus respectivos intentos de traio e usurpao
do trono.
1066
BLOOM, Harold. Shakespeare: a Inveno do Humano. Traduo Jos Roberto OShea. Reviso
tcnica Marta Miranda OShea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 802-828.
1067
BLOOM, Op. Cit., p. 803. Sobre a relao entre literatura e gnose h uma grande bibliografia.
Conferir especialmente o excelente estudo de Claudio Willer: WILLER, Claudio. Um Obscuro
Encanto: Gnose, Gnosticismo e Poesia Moderna. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2010.
1068
BLOOM, Op. Cit., p. 803.
1069
SHAKESPERARE, William. A Tempestade. Traduo de Barbara Heliodora. Rio de Janeiro:
Lacerda, 1999.
433

Prspero torna-se uma espcie de imperador da ilha. Subjuga a bruxa


Sycorax e liberta o esprito etreo Ariel, que ela mantivera aprisiona em um pinheiro
rachado durante doze anos. Ariel torna-se o lder de uma infinidade de espritos da
natureza. Entretanto, sempre a servio das ordens de Prspero. Esse um aspecto
importante: tudo o que ocorre em A Tempestade ocorre por meio dos poderes de
Ariel e sua legio de espritos, mas sempre sob o controle de Prspero1070. Ariel o
medium de Prspero. Alm disso, domestica o filho da bruxa, a criatura autctone
Calib, meio humana meio anfbia, transformando-o em seu servo. A despeito da
relao servil estabelecida por Calib em relao a Prspero, este argumenta em
benefcio prprio, dizendo-se responsvel por libertar Calib dos domnios terrveis
de sua prpria me, a bruxa Sycorax. Tamanha a Arte de Prspero que ela
domina e submete inclusive Setebos, o deus de Calib. Ao ter seu deus destitudo
do panteo, Calib passa a idolatrar Stephano e depois Prspero. Mas sua
adorao contem ndoas de ressentimento. A aliana entre ambos demonstra que o
pacto de sujeio dominador-dominado encontra-se em uma estabilidade precria.
H subentendidos e foras obscuras movendo-se nos subterrneos dessa relao
Prspero-Calib, foras essas que representaro um dos eixos da tenso da
narrativa.
Prspero tambm se apoia nas foras etreas do sutil Ariel para realizar a sua
inclinao natural: a magia. Em uma passagem, fica sugerido que essa magia
alcanaria a potncia mesmo de ressurreio dos mortos. Em um ato de magia,
produz artificialmente uma tempestade, apresentada logo na primeira cena, e que
arroja na ilha os antigos desafetos de Prspero. Prspero diz a Miranda que sua
tempestade produzida no provocar danos. Apenas trar os tripulantes ilha sobre
a qual exerce seu imprio. De fato, em nenhum dos personagens se fere, em
momento algum da pea. Cronologicamente, a pea comea com este naufrgio.
Em uma cena na qual Gonzalo coordena mestre e contramestre da embarcao,
pedindo-lhes maior empenho nos remos, sob a invocao do status dos dignitrios
que se encontram dentro da embarcao. A relao entre dois planos narrativos se
desdobra. O primeiro trata da sobrevivncia dos tripulantes recm-perdidos na ilha,
agora regida por Prspero. O segundo so as cenas marcadas da atividade do outro
ncleo dramtico, que gira em torno de Miranda, Calib, Ariel, Miranda e o prprio

1070
BLOOM, Op. cit., p. 813.
434

Prspero. O duque quer com esse naufrgio pagar a sua desgraa na mesma
moeda. O ncleo dramtico representado por Gonzalo, Antonio, Alonso e Sebastian
mobilizado por duas questes. A primeira o desaparecimento de Ferdinand, filho
de Alonso, na ilha. E a segunda o casamento de Claribel, cujo nome, diga-se de
passagem, um anagrama de Calib e Ariel, filha de Antonio, com o rei de Tnis,
na distante frica. Com o encontro recproco dos personagens na ilha, a natureza
maligna de Antonio se revela aos olhos de Prspero. Revela-se tambm o amor.
Miranda s conhecera dois homens na vida: Calib e seu pai. Ao vislumbrar
Ferdinand, filho de Alonso, apaixona-se por ele. O casamento de Ferdinand, prncipe
de Npoles, com Miranda, filha de Prspero, poderia promover a unio dos dois
reinos e preserv-los de ataques.
Mas a vingana adiada de Calib precisa se concluir. Em concluiu com
Trnculo, o bobo da corte de Alonso, e Stephano, irmo de Trnculo e sempre
bbado. A criatura indica os pontos fracos de seu senhor, notadamente o seu livro
propiciador de magia. E os induz a o assassinarem durante uma mascarada de
Ceres. Ariel descobre os planos malignos de Calib, deixando seu senhor ciente
deles. Ariel, disfarado de gavio-real, detecta a chegada dos nufragos inimigos.
Leva-os para um bosque prximo da gruta onde o mago realiza o julgamento
daqueles que o traram e celebra o casamento de Miranda e Ferdinand na
mascarada mgica de Ceres. Prspero detecta e destri o plano de Calib. Ariel, por
sua vez, convoca espritos transformados em ces que correm atrs de Trnculo,
Stefano e Calib, expulsando-os. Por fim, diante do irmo Antonio, no o perdoa,
mas exige que o ducado lhe seja restitudo. Diante dessa vitria, Prspero cumpre
dois desgnios que dera a si mesmo como metas. Primeiro, libertar Ariel de seus
domnios de senhor. Este se torna um ser alado independente, no mais
subordinado a Prspero. Acompanh-lo- em sua viagem de volta a Milo. Embora
o futuro de Ariel permanea desconhecido, pelo que o texto sugere, continuar seu
processo de educao temporariamente interrompido1071. Segundo, quebra o basto
mgico e lana ao mar o seu livro de magia. Renunciar Arte. Ao final, deixa claro
que seus encantos mgicos so abandonados. Fecha sempre o livro da magia. Sua
liberdade consiste em um pedido de perdo a uma entidade suprema. Apenas a sua
indulgncia pode lhe dar a verdadeira liberdade.

1071
BLOOM, Op. cit., p. 812.
435

7.3 Natureza e Simetria

Essa sinopse simples da obra-prima final de Shakespeare retm apenas o fio


condutor da ao, que na verdade bastante breve, o menor enredo de todas as 35
peas de Shakespeare, segundo Anthony Holden1072. Isso ocorre justamente porque
nesta obra de Shakespeare a trama secundria. O principal foi elidido. Acredito
que isso seja significativo. Essa brevidade elptica nos induz a pensar que o centro
da pea seja simblico1073. E o principal no seja a ao, mas os deslocamentos que
ela mobiliza em diversos nveis hermenuticos. Esse mesmo dado ressaltado por
Harold Bloom1074. Segundo ele, por causa desse aspecto, preciso lanar a ateno
para o esquema simblico da obra1075. Trata-se de uma das obras mais filosficas
do bardo, em certo sentido. Por isso, medida que a simplificamos, revelam-se
alguns pontos importantes para a compreendermos. Quais seriam os pontos
centrais? Ao ler a obra, saltam aos olhos dois aspectos: as relaes de simetria-
assimetria e de natureza-tcnica. Acredito que o corao de A Tempestade seja um
deslocamento das concepes clssicas de physis e techn. E que esse
deslocamento possa ser visto em um amplo sentido poltico a partir de uma eroso
das categorias clssicas do poder, da autoridade e da soberania. Nesse
deslocamento reside a fora mitopotica dessa obra encantadora. Por qu? Porque
a partir dela, Shakespeare redistribui os lugares institucionais e metafsicos do corpo
poltico e reconfigura algumas peas centrais da teologia poltica de seu tempo,
sinalizando para algumas das questes que sero paulatinamente levantadas pela
modernidade.
Esse movimento complexo, propagado por meio da trama e de personagens
em cores at mesmo singelas, sinaliza uma alterao significativa das premissas da
teologia poltica do sculo XVII e mesmo da prpria concepo de natureza. No que
consiste esse movimento? Consiste em um deslocamento, paradoxal e simultneo,
que se baseia em uma desnaturalizao das simetrias e em uma naturalizao das

1072
HOLDEN, Anthony. Shakespeare. Traduo Beatriz Horta. Reviso tcnica Marcia A. P. Martins.
So Paulo: Ediouro, 2003, p. 238.
1073
BLOOM, Op. cit., p. 807.
1074
BLOOM, Op. cit., p. 807.
1075
BLOOM, Op. cit., p. 807.
436

assimetrias1076. Esse movimento fornece o cerne mitopotico da obra e tambm seu


sentido rigorosa e profundamente poltico, para alm do mito da explorao criada
em torno da relao Prspero-Calib ao longo de sculos de recepo produzida
pelas teorias anticolonialistas. E o faz tambm na chave dos jogos de contradio e
do carter metaficcional que so cernes das prticas de representao do sculo
XVII. Portanto, nessa abordagem, o primeiro conceito o de natureza. O segundo,
de simetria. Analisemos ento esses dois conceitos e como Shakespeare os
embaralha em sua obra. E tambm, apoiados em uma filosofia da forma, pensemos
quais as consequncias polticas implicadas em deslocamentos de conceitos
matriciais como esses.

7.4 Physis e Techn

Tomemos a obra de Shakespeare dentro dos marcos imanentes da narrativa.


Ao faz-lo, saltam aos olhos alguns aspectos. O primeiro a potncia desinibida
pelos artifcios tcnicos, resultante da Arte de Prspero, e a centralidade mgica dos
livros para o desempenho dessa mesma Arte. E nesse caso, logo de sada,
importante diferenciar essa Arte em relao ao conjunto das ars do sculo XVI e
XVII, sejam elas liberais ou mecnicas, como se convencionou definir as artes desde
a Idade Mdia. Em uma passagem, Prspero demarca de modo bastante taxativo
que teria deixado a cargo de seu irmo o governo de Milo justamente para que
pudesse se ocupar das artes liberais, tornando-se um estranho ao Estado e um
estudioso do secreto1077. Isso quer dizer que a sua arte de outra ordem,
qualitativamente distinta das conhecidas artes liberais na acepo medieval. Embora
pressuponha agudeza e inteligncia necessrias s artes liberais e nesse sentido, e
apenas nesse sentido, delas se aproxime, essa distino qualitativa o que
determina a especiosidade da Arte no contexto da pea e a aproxima do tema em
questo: a magia. Esta entendida como uma arte liberal amplificada, pois para
alm da compreenso e contemplao dos fenmenos do mundo luz da teoria, ela

1076
Os conceitos de deslocamento, simetria e assimetria so do mbito da Mesologia, uma teoria que
estou desenvolvendo e cujas acepes pretendo estabilizar mais adiante.
1077
Ato I, Cena II, p. 21.
437

implica necessariamente uma capacidade prometeica de transformao desses


mesmos fenmenos. Ambos os aspectos se recobrem, seja no nvel da sabedoria
intelectiva ou da deliberao mgica; traam entre si uma comunicao sibilina;
complementam-se e se alimentam mutuamente. Isso ocorre porque o sculo XVI foi
o palco de um dos momentos de maior solidarizao entre magia, cincia, tcnica e
arte que se tem notcia na histria das ideias. O fluxo entre esses domnios e
prticas, que chega aos limites do apagamento de suas fronteiras, um fenmeno
comum na Renascena, e ecoa de modo central na obra de alguns dos maiores
artistas renascentistas e seiscentistas. Mas de que prtica mgica Prspero seria
especificamente praticante? Alguns elementos da obra nos conduzem tradio
hermtico-alqumica.

7.5 Theatrum Alchemicum

Essa indecidibilidade epistemolgica entre domnios emprico-cientficos e


mtico-dedutivos pode ser encontrada em algumas dessas tradies bastante
influentes no sculo XVI1078. Principalmente no que diz respeito s crenas e
prticas alqumicas, que poderamos generalizar como pertencentes milenar
tradio mito-hermtica, de origem Mesopotmica1079. Essa situao
epistemologicamente indecidvel da tradio da alquimia e do hermetismo, ao
mesmo tempo centrais e marginais em relao histria do pensamento e ao
conjunto dos sistemas racionais e filosficos, levou Jacques Derrida a pens-la a
partir de uma escritura da diffrance e como um dos exemplos das margens da
filosofia1080. O fortalecimento desses princpios hermticos na Renascena foi
amplamente estudado em seu dilogo com as artes pela escola de Aby Warburg1081.

1078
A relao entre arte, cincia, filosofia e magia, entendida em sentido amplo, bastante ressaltada
por Claude-Gilbert Dubois em seu belo estudo sobre o imaginrio da Renascena: DUBOIS, Claude-
Gilbert. O Imaginrio da Renascena. Traduo de Sergio Bath. Braslia, Editora UNB, 1985.
1079
A origem da alquimia e do hermetismo e as convergncias e divergncias entre esses termos
objeto de imensas polmicas. Procurei sintetizar alguns dos pontos nucleares da tradio alqumico-
hermtica em um longo artigo publicado na revista Filosofia: PETRONIO, Rodrigo. O Ouro do
Princpio. In: http://portalcienciaevida.uol.com.br/esfi/Edicoes/52/artigo188780-1.asp
1080
DERRIDA, Jacques. A farmcia de Plato. Traduo Rogrio da Costa. So Paulo: Iluminuras,
2005.
1081
Conferir: DIDI-HUBERMANN, Georges. Imagem sobrevivente: histria da arte e tempo dos
fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. Do prprio Warburg acaba de
438

A despeito da maior ou menor proximidade desta escola de Warburg, diversos


historiadores da arte, da filosofia e da cincia tm ressaltado os nexos entre
modelos mtico-dedutivos de teor religioso, conceitos e prticas cientficas, padres
de representao artstica e conceitos propriamente filosficos. Nessa linha,
podemos ressaltar, cada um a sua maneira e com sua especificidades, nomes como
Frances Yates1082, Betty Dobbs1083, Eugenio Garin1084, Andr-Jean Festugire1085,
Brian Copenhaver1086, Andr Chastel1087, Robert Klein1088, Erwin Panofsky1089,
Raymond Klibansky1090, Fritz Saxl1091, Paolo Rossi1092, Edgar Wind1093, entre outros.
Atualmente, Georges Didi-Huberman tambm tem dado contribuies a essa linha
de estudos, justamente por meio de uma leitura renovada de Warburg1094.

sair em portugus um estudo exemplar: WARBURG, Aby. Renovao da antiguidade pag:


contribuies cientfico-culturais para a histria do Renascimento europeu. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2013.
1082
Refiro-me ao estudo clssico de Yates sobre Giordano Bruno: YATES, Frances. Giordano Bruno
e a Tradio Hermtica. Traduo de Yolanda Steidel de Toledo. So Paulo: Cultrix, 1995.
1083
Ver a conhecida anlise de Dobbs sobre a importncia da alquimia para Newton: DOBBS,
Betty Jo Tetter. The Janus Faces of Genius: The Role of Alchemy in Newton's Thought. Cambridge:
Cambridge University Press, 1991.
1084
Sobre a relao entre hermetismo, filosofia, cincia e astrologia ver Eugenio Garin: GARIN,
Eugenio. Astrology in the Renaissance: The Zodiac of Life. Transleted by Carolyn Jackson and June
Allen. Translation Revised in Conjunction with the Author by Clare Robertson. London, Routledge &
Kegan Paul, 1983.
1085
Jean Festugire um nome de proa nos estudos hermticos e gnsticos do sculo XX. Remeto o
leitor s exaustivas anlises de uma das maiores obras sobre hermetismo: FESTUGIRE, A.-J.
Revelation D'Hermes Trismegiste. Paris, Belles Lettres, 1986. 4 Tomos.
1086
COPENHAVER, Brian. Hermetica: The Greek Corpus Hermeticum and the Latin Asclepius in
English Translation, with Notes and Introduction. Cambridge: Cambridge University Press, 1991.
1087
CHASTEL, Andr. Marsile Ficin et lArt. Ouvre Publi avec le Concours du Centre National de la
Recherche Scientifique. Genve, Librarie E. Droz, 1975.
1088
KLEIN, Robert. A Forma e o Inteligvel: Escritos sobre o Renascimento e a Arte Moderna. Artigos
e Ensaios Reunidos e Apresentados por Andr Chastel. Traduo de Cely Arena. Reviso tcnica de
Leon Kossovitch e Elisa Angotti Kossovitch. So Paulo, Edusp, 1998.
1089
KLIBANSKY, Raymond, PANOFSKY, Erwin, SAXL, Fritz. Saturne et la Mlancolie: tudes
Historiques et Philosophiques: Nature, Religion, Mdecine et Art. Traduit de langlais et dautres
langues par Fabienne Durand-Bogaert et Louis vrard. 180 Ilustrations. Ouvrage Publi avec le
Concours du Centre National de Lettres. Paris, Gallimard, 1989.
1090
KLIBANSKY, Raymond, PANOFSKY, Erwin, SAXL, Fritz. Saturne et la Mlancolie: tudes
Historiques et Philosophiques: Nature, Religion, Mdecine et Art. Traduit de langlais et dautres
langues par Fabienne Durand-Bogaert et Louis vrard. 180 Ilustrations. Ouvrage Publi avec le
Concours du Centre National de Lettres. Paris, Gallimard, 1989
1091
KLIBANSKY, Raymond, PANOFSKY, Erwin, SAXL, Fritz. Saturne et la Mlancolie: tudes
Historiques et Philosophiques: Nature, Religion, Mdecine et Art. Traduit de langlais et dautres
langues par Fabienne Durand-Bogaert et Louis vrard. 180 Ilustrations. Ouvrage Publi avec le
Concours du Centre National de Lettres. Paris, Gallimard, 1989.
1092
Rossi um dos mais brilhantes historiadores e filsofos da cincia que aborda a relao entre
magia e cincia. H diversas de suas obras sobre o assunto: ROSSI, Paolo. O nascimento da cincia
moderna na Europa. Trad. por Antonio Angonese. Bauru: EDUSC, 2001.
1093
WIND, Edgar. Pagan Mysteries in the Renaissance. London, Faber and Faber Limited, 1958.
1094
DIDI-HUBERMANN, Georges. Imagem sobrevivente: histria da arte e tempo dos fantasmas
segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
439

A philosophia perennis de Titus Burckhardt1095, Ren Gunon1096, Ananda


Coomaraswamy1097, Frithjof Schuon e Martin Lings, entre outros, trouxe
contribuies importantes, embora as concluses a que cheguem e as suas
interpretaes da modernidade sejam quase sempre ideologicamente equivocadas.
Isso para no se falar na presena dos membros da Escola de Eranos, sobretudo
pelas obras fundamentais de Mircea Eliade1098 e o brilhante trabalho de Henry
Corbin de traduo e hermenutica das vertentes da tradio alqumico-hermtica
islmica1099. A importncia de Jung para a alquimia, principalmente na fase final de
seu trabalho, quando chegou a afirmar que a formular um princpio de identidade
entre a linguagem da alquimia e a do inconsciente, representa um captulo parte
brilhante na histria milenar desse saber1100.
A origem da alquimia perde-se de vista se a tomarmos em sentido mais
abrangente a partir de suas variantes indiana, chinesa, africana e mesopotmica1101.
A tradio que se desenvolveu mais na Europa a de origem mesopotmica e se
consolidou com os tratados alexandrinos1102. Desde as sibilinas mensagens de
Zzimo e mesmo de alguns filsofos physikoi como Empdocles, posteriormente
assimilados tradio alqumica, s obras atribudas a Alberto Magno e ao
esplendor da alquimia renascentista e seiscentista, com Robert Fludd, John Dee,
Athanasius Kircher, Paracelso, Cornelius Agrippa, Giambattista della Porta, entre
tantos outros, a alquimia se oferece como chave universal de acesso aos princpios
da transformao1103. Os autores so muitos e o contedo dos tratados impossvel
de ser analisado aqui. Em geral, muitos desses nomes so obscuros para ns hoje

1095
BURKHARDT, Titus. Alchemy. Science of the Cosmos, Science of the Soul. Londres: Stuart and
Watkins, 1967.
1096
Ren Gunon vincula a tradio mito-hermtica unidade perene de todas as tradies
esotricas, em diversas de suas obras.
1097
COOMARASWAMY, Ananda. La transformacin de la naturaleza en arte. Barcelona: Kairos,
2001.
1098
O trabalho de Eliade monumental e possvel encontrar reflexes sobre arte, cincia e religio
em diversas de suas obras. Para a tradio hermtico-alqumica, conferir especialmente duas obras:
ELIADE, Mircea. Herreros y Alquimistas. Madrid: Alianza, 1999. ELIADE, Mircea. O mito da alquimia:
a alquimia asitica. Coleo Limiares. Lisboa: Fim de Sculo, 2000.
1099
JAMBET, Christian. A lgica dos orientais: Um introduo ao pensamento de Henry Corbin. So
Paulo: Globo, 2005.
1100
As mais importantes anlises sobre o isomorfismo entre alquimia e psiquismo esto em
Psicologia e Alquimia e nos trs volumes de Mysterium Conjunctionis.
1101
Para os primrdios da alquimia, consultar: ELIADE, Mircea. O mito da alquimia: a alquimia
asitica. Coleo Limiares. Lisboa: Fim de Sculo, 2000.
1102
ELIADE, Mircea. O mito da alquimia: a alquimia asitica. Coleo Limiares. Lisboa: Fim de
Sculo, 2000.
1103
PETRONIO, Rodrigo. O Ouro do Princpio. In:
http://portalcienciaevida.uol.com.br/esfi/Edicoes/52/artigo188780-1.asp
440

em dia e muitos tratados, annimos. Boa parte deles est no corpus alqumico que
colige diversas obras: De Alchemia, Ars Alchemica, Artis Auriferae, Bibliotheca
Chemica Curiosa, Musaeum Hermeticum e Theatrum Chemicum1104. A pletora
simblica dessas coletneas vai das complexas representaes do monge
franciscano Ulmannus ao importante Splendor Solis de Salomo Trismosin, das
impressionantes imagens do Rosarium Philosophorum a obras de menor
envergadura, mas nem por isso menos essenciais compreenso da Obra. Nessa
floresta, vale a pena nos atermos a alguns autores e tratados1105. Em primeiro lugar,
cabe mencionar o Atalanta Fugiens de Michael Maier, entre os sculos XVI e XVII,
organizado em forma de fuga musical, com temas e desdobramentos em imagens e textos.
Atido tradio alqumica, um dos nomes centrais tambm o de Nicolas Flamel, no sculo
XIV e XV, um dos maiores herdeiros do simbolismo da alquimia judaica1106, sobretudo
com O Livro das Figuras Hieroglficas, dentre nomes como Georg von Welling, Arnald
Villanova e George von Ripley. As gravuras de Mathus Merian para a Opus Medico-
Chymicum de Johannes Mylius esto entre os prodgios legados pela alquimia. Alm de
sntese formal de seus preceitos, so obras de um grau de simbolismo poucas vezes
atingido na histria da Arte. Tambm de Mylius deve-se destacar a Filosofia Reformata, e do
beneditino Baslio Valentim, As Doze Chaves da Filosofia, num paralelo evidente entre os
processos alqumicos e a filosofia.
Dentro dessa tradio, tambm saltam aos olhos as gigantescas snteses de
Robert Fludd e Athanasius Kircher. Nesses dois, encontramos um furor
enciclopdico de tal envergadura que suas obras saem dos domnios alqumico e
filosfico e acabam se valendo de todos os recursos cientficos e investigativos
existentes poca para a compreenso do universo, ou seja, para se chegar
chave que decifraria a sua engrenagem. No seio dessa tradio est tambm Jacob
Bhme1107. Podemos afirmar com certa tranquilidade que com Bhme atinge-se o
ponto mais elevado de especulao teosfico-hermtica no Ocidente. Guardadas as

1104
Para estas obras as melhores referncias so De Rola e Jung de Psicologia e Alquimia: ROLA,
Stanislas Klossowski de. The golden game: alchemical engraving of the seventeenth century. London,
Thames, 1988.
1105
Para a alquimia dos sculos XVI e XVI uma excelente referncia a obra de Roob: ROOB,
Alexander. O museu hermtico: alquimia e misticismo. Lisboa: Taschen, 1997.
1106
Conferir a monumental obra de Raphael Patai sobre os alquimistas judeus: PATAI, Raphael. Os
alquimistas judeus: um livro de histria e fontes. So Paulo: Perspectiva, 2013.
1107
H diversas obras de Bhme editadas pela editora Polar, com o esmero e a traduo cuidadosa
de Amrico Sommerman, grande difusor deste pensador no Brasil.
441

propores da analogia, o que bn Arab1108 representa para o islamismo, Bhme o


para o cristianismo1109. Quando imaginamos que a alquimia teria se extinguido no
sculo XVII, surgem duas das mais importantes obras da tradio alqumica em
nvel mundial: o Mutus Liber1110, atribudo a Altus, em sua edio de La Rochelle, de
o Segredo da Flor de Ouro1111, obra dos crculos alqumicos chineses. Ambas datam
surpreendentemente do sculo XVIII. Simultaneamente ao enciclopedismo e
emancipao da razo, esses tratados alqumicos abrem importantes caminhos
especulativos para os primrdios da cincia experimental e da configurao de
recursos no-representativos para as artes plsticas e a literatura. Entretanto,
fazem-no na contracorrente do Esclarecimento.

7.6 Princpios

Mas em que consiste essa relao entre alquimia, arte e cincia? Como se
sabe, uma premissa central do pensamento alqumico a possiblidade de
estabelecer homologias entre os processos anmicos e as transformaes ocorridas
no reino da natureza. Ao compreender essas homologias, o alquimista consegue
intervir no curso desses mesmos processos e reproduzi-los por meios artificiais,
concorrendo para um aperfeioamento da natureza enquanto tal e, por conseguinte,
da prpria natureza humana, entendida como uma segunda natureza, para utilizar a
feliz expresso empregada por Norbert Elias1112 para designar o processo
civilizatrio advindo das revolues tcnico-cientficas e cujo corolrio seria o
fortalecimento da ideia de perfectibilidade1113. Se a natureza produziu no homem a
possibilidade desse mesmo homem poder alter-la, os artifcios tcnicos no so
alheios essncia da natureza e aos seus processos1114.

1108
ARAB, bn. A alquimia da felicidade perfeita. Traduo Roberto Ahamad Cattani. So Paulo:
Landy, 2002.
1109
PETRONIO, Rodrigo. O Ouro do Princpio. In:
http://portalcienciaevida.uol.com.br/esfi/Edicoes/52/artigo188780-1.asp
1110
ALTUS. Mutus Liber. Estudo introdutrio de Jos Jorge de Carvalho. So Paulo: Attar, 1995.
1111
JUNG, C. G., WILHELM, R. O Segredo da Flor de Ouro: Um Livro de Vida Chins. Petrpolis:
Vozes, 2003.
1112
ELIAS, Op. cit.
1113
PASSMORE, Op. cit.
1114
Sobre a construo de uma escatologia secular conferir o monumental trabalho de Delumeau:
DELUMEAU, Jean. Mil anos de felicidade: uma histria do paraso. So Paulo: Terramar, 1997.
442

Pelo contrrio, haveria uma continuidade profunda entre physis e techn


medida mesma que a natureza se aperfeioa pelas suas prprias vias e tambm
pelas vias que ela mesma engendrou no humano, entendido como natureza de
segundo grau. Por isso o binmio physis e techn est entre os mais complexos da
histria do pensamento. Se entendidos em sua radicalidade, acabam assumindo
valor tautolgico. Afinal se a tcnica consiste em todas as extenses artificiais do
sistema nervoso central e em um sistemtico mimetismo animal, isso quer dizer que
essa mesma tcnica seria, em ltima instncia, uma atualizao de desempenhos
virtualmente inscritos na prpria natureza humana e esta, por conseguinte, realizaria
sua plena humanidade que lhe compete justamente no livre fluxo de seus
agenciamentos maqunicos1115. A tcnica seria um espelho das leis ocultas da
natureza que comeam a vir tona por meio de um longo processo de
explicitao1116.
Encontrar as correlaes entre processos naturais e fabricados, entre natura
naturans e natura naturata, entre transformaes da natureza e transmutaes
anmicas imanentes ao ser humano a grande utopia alqumica, cujo corolrio, tanto
simblico quanto real, a Grande Obra. O lapis philosophorum a lapidao
espiritual do homem pelo homem justamente porque, ao praticar essa
espiritualidade, ele redime a prpria natureza. Por isso a alquimia sempre foi referida
como Ars Magna, como a grande arte que incluiria todos os sistemas locais das
cincias e saberes, porque ela se pretende uma ontologia geral da transmutao. Se
tudo o que existe no mundo sublunar est submetido a gerao, devir e corrupo, a
transmutao a chave universal de compreenso do ser enquanto ser. Se tudo
transformao e, portanto, o real se baseia em uma ontologia processual, a alquimia
a cincia da transformao que pretende suplantar a centralidade da metafsica
especulativa, substituindo-a por uma metafsica das operaes naturais e das
intervenes. Em outras palavras, grosso modo, se a metafsica foi a milenar
contemplao que buscou a identidade entre natureza, ser e substncia, a alquimia
desloca o acento dessa investigao, postulando uma relao radical entre
natureza, ser e transformao. Passamos de uma filosofia terico-contemplativa das
1115
Agenciamentos maqunicos esto relacionados ao devir-mquina que, como o devir-animal,
segundo Deleuze e Guattari, tambm cabem ao ser humano: DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Flix.
Mil Plats: Capitalismo e Esquizofrenia. Cinco Volumes. Coordenao da traduo Ana Lcia de
Oliveira. So Paulo: 34 Letras, 2007.
1116
O conceito de explicitao nuclear para compreender a passagem dos globos s espumas
descrita em E-II e E-III, bem como a gnese da modernidade em termos antropolgicos.
443

realidades eidticas a uma filosofia prtica na qual a tecnologia assume contornos


espirituais e escatolgicos. Em termos alqumicos a natureza no precisa ser
explicada. Deve ser transformada. E, em ltima instncia, redimida.

7.7 Physis e Animismo

Porm, h um aspecto que define de modo definitivo o mago da alquimia: a


concepo organicista. Uma das crenas centrais que unifica todas as correntes
alqumico-hermticas, por mais heterogneas que sejam entre si, a crena de que
o cosmos um organismo vivo. Essa crena fornece apoio a alguns pressupostos
da alquimia. A origem de suas concepes protorreligiosas deita razes se configura
mais claramente a partir da Idade dos Bronze e do advento das tecnologias
metalrgicas dos fornos de fundio e a capacidade de transformao dos minrios
em metais. Mas uma investigao arqueolgica mais detalhada nos obrigaria
retroagir ainda mais, a vestgios pr-histricos e aos antigos cultos lticos da Idade
da Pedra1117. Se os minrios chegam a se transformar em metais, o ferro pode
transformar-se em ouro, porque eles so fetos e cumprem uma milenar gestao
no ventre da me Terra1118. Por isso, em uma analogia de segundo grau, a retorta
alqumica em diversos tratados chamada de ventre. O fogo acelera os processos
infusos da natureza e o medium desse processo artificial no faz nada mais do que
realizar em termos antropomrficos um desejo oculta da prpria natureza. Da
mesma maneira, minerais e vegetais tambm so sexuados. por meio de relaes
sexuais que se produzem e se reproduzem, nos confins inacessveis dos ventres da
Terra. A transposio dessa crena para a esfera mtica plausvel em termos
racionais, e no apenas mticos. O conhecido mito de Deucalio e Pirra, narrado nas
Metamorfoses de Ovdio, retomado pelas codificaes hermticas e tambm pela
arte dos emblemas1119, desempenha uma sugestiva sntese dessa dimenso

1117
A tese da origem pr-histrica da alquimia sustentada por Eliade: ELIADE, Op. cit.
1118
ELIADE, Op. cit.
1119
H um longo debate sobre a presena dos emblematum libri como padres de codificao
artstica nos sculos XV e XVII. Os livros de emblemas guardam estreitas afinidades com os modelos
de codificao visual de obras alqumicas. Conferir: OLIVEIRA, Ana Lcia de. Do Emblema
Metfora: Breve Abordagem do Visualismo Pattico Seiscentista. Revista Filologia, Crculo de
Estudos Filolgicos e Lingusticos, Atas, UERJ, s/d. A relao entre arte emblemtica e conhecimento
444

organicista. Aps o dilvio, o mencionado casal sobrevivente precisa dar origem a


uma nova prognie humana. Para tanto, lanam s suas costas um pedra, como se
ela fosse um osso da terra1120. Esse gesto provavelmente dizia respeito a alguma
ritualizao pag arcaica greco-latina. Na chave hermtica, a explicao se encontra
na prpria anatomia da palavra em sentido literal. As pedras so ossos da Terra
porque a Terra um organismo vivo. Os minerais-pedras seriam a estrutura sseo-
esqueltica que confere estrutura a esse organismo, dotado de uma infinita
continuidade orgnica. E no outro o sentido pelo qual a alquimia define o objeto
precpuo de sua busca como a pedra, o lapis philosophorum, definido como uma
pedra viva, expresso correntes em diversos tratados1121.
Assim como a natureza produz maravilhas, medida que a alma humana
apreende os meios pelos quais a natureza transforma os elementos, por meios
indiretos o ser humano pode reproduzir esses processos em um ambiente artificial,
conduzindo-os mais rapidamente realizao de sua ltima perfeio. Para tanto,
preciso um imperativo: preciso que se compreenda toda a cadeia dos seres do
universo como um organismo contnuo e sem rupturas. Apenas assim, por meio de
efeitos simpticos e por cadeias de analogias, possvel compreender e intervir na
estrutura universal. Se h homologias entre processos naturais e anmicos, tambm
as h entre o organismo humano e os organismos vegetais e animais e tambm
entre organismo humano e o organismo dos planetas e a composio igualmente
orgnica do sistema solar1122. Por isso, as imagens, analogias, alegorias, figuras e
tantos outros meios de figurao realizam na arte alqumica o pressuposto de um
todo-orgnico no qual os reinos minerais, vegetais, animais, humano, todos os nveis
anglicos e todas as substncias simples prximas de Deus se articulam,
promovendo uma grande cadeia de seres. Tendo em vista esses aspectos, de modo
resumido e forando uma generalizao meramente didtica e operacional,
podemos definir a tradio hermtico-alqumica da seguinte maneira: um imemorial

proibido estabelecida por Carlo Ginzburg em seu magistral estudo: GINZBURG, Carlo. O Alto e o
Baixo: o Tema do Conhecimento Proibido nos Sculos XVI e XVII. Mitos, Emblemas, Sinais:
Morfologia e Histria. So Paulo : Companhia das Letras, 1990.
1120
ELIADE, Op. cit.
1121
ELIADE, Op. cit.
1122
A relao entre alquimia e astrologia extremamente forte na tradio islmica e encontra um de
seus pices da Alquimia da Felicidade Perfeita de bn Arab. No entrarei neste ponto. Mas vale
conferir o trabalho clssico do historiador italiano Eugenio Garin sobre o valor epistemolgico da
astrologia na Renascena: GARIN, Eugenio. Astrology in the Renaissance: The Zodiac of Life.
Transleted by Carolyn Jackson and June Allen. Translation Revised in Conjunction with the Author by
Clare Robertson. London, Routledge & Kegan Paul, 1983.
445

monismo organicista que realiza operaes empricas naturais a partir de sistemas


mtico-dedutivos e de crenas metaempricas de teor escatolgico. Mas qual a
relao que esse modelo meta-organicista teria com Shakespeare e o teatro
elisabetano do sculo XVI? Vejamos alguns pontos.

7.8 Orvalho das Bermudas

Creio que possamos identificar com bastante tranquilidade alguns aspectos


nominalmente atribudos por Shakespeare a Prspero no conjunto dessas prticas
simblicas milenares, mas que assumiram a especificidade histrica das
codificaes quinhentistas. Em A Tempestade, h uma reiterada meno ao orvalho,
entendido como ingrediente de que Prspero lana mo para exercitar sua ars.
Como se sabe, o orvalho um dos componentes centrais das codificaes
hermticas, sobretudo poca de seu maior florescimento na Renascena. Tambm
conhecido como ouro da manh, o orvalho representa a quintessncia das estrelas e
a possibilidade de captar o ter. Seria uma manifestao material composto de um
princpio imaterial simples e sutil. A presena do orvalho como elemento alqumico
central das transformaes anmico-naturais est ligada a um paradigma orgnico-
atmosfrico: o universo um organismo. Paralelamente ao editus e ao reditus, o
fluxo e refluxo de inspirao e expirao do universo a que se refere Meister
Eckhart, seguindo uma extensa linhagem mstica, a respirao desse mesmo
universo configura um fluxo pneumtico, entendido em seu sentido tanto fsico e
metafsico-espiritual. Sua transpirao se materializa nessa forma sutil: orvalho.
Domesticar esses fluxos e refluxos orgnicos criar possibilidades de alterar os
processos naturais.
Tambm se fala em um orvalho das Bermudas1123. Nesse caso, alm da
chave hermtica, h importantes referncias histricas para a concepo da obra: a
descoberta do Novo Mundo e os relatos dos naufrgios e de navegaes aos quais

1123
SHAKESPERARE, William. A Tempestade. Traduo de Barbara Heliodora. Rio de Janeiro:
Lacerda, 1999, p. 29.
446

Shakespeare certamente teve acesso, ainda que de modo superficial1124. Nesse


sentido, costuma-se destacar o nome de Montaigne como uma das fontes
importantes1125. Este, por sua vez, ecoa os relatos de Jean de Lry em alguns dos
ensaios dedicados Amrica. As fontes de Shakespeare se espraiam tambm em
relatos sobre o perigo do Tringulo das Bermudas, conhecido nos tempos
elisabetanos como Ilha dos Diabos, prdiga inclusive em associaes a prticas de
canibalismo, tema que o bardo chegara a explorar em Tito Andronicus, uma de suas
primeiras obras1126. Entretanto o mito em torno das Bermudas ganhou em
complexidade com os relatos dos tripulantes da Virginia Company, segundo os quais
mesmo apresentando uma realidade demonaca, o arquiplago tambm era rico em
alimento, em clima e em madeira1127. Entre o maravilhoso e o demonaco, os relatos
dos tripulantes como Sylvester Jourdan e a Virginia Company confirmaram a
aventura de prodgios das Bermudas, em forma de panfletos impressos na primeira
dcada do sculo XVII. Por sua vez, William Strachey escreveu o Verdadeiro
relatrio do naufrgio e do resgate de Sir Thomas Gates, abordando esse mesmo
conglomerado de ilhas, e levou-o ao prelo em 15 de julho de 16101128, ou seja,
menos de um ano antes da encenao de A Tempestade e provavelmente
concomitante ao momento em que Shakespeare a escrevia.
Esse aspecto contraditrio da nova realidade de ultramar com certeza instigou
o faro de Shakespeare e o levou a reter essas antinomias em seu drama. certo
que a bruxa Sycorax e a fisionomia de Calib tematizam essas exploraes do
imaginrio hiperblico, mgico e, em ltima instncia, demonaco que se tinha do
Novo Mundo, e que fora cristalizado por diversos viajantes inclusive em relao ao
Brasil. Esse aspecto histrico todavia no invalida a aglutinao de contedos
alqumicos e hermticos nos elementos do drama. Quais os principais tpicos
dessas tradies na arte shakespeariana? Acredito que alguns. Um aspecto central
para pensar a relao no dissociada entre natureza-artifcio o modelo mtico-
dedutivo baseado em uma cosmologia organicista. Analisemos alguns de seus
postulados e origens.

1124
HOLDEN, Anthony. Shakespeare. Traduo Beatriz Horta. Reviso tcnica Marcia A. P. Martins.
So Paulo: Ediouro, 2003, p. 237 e seg.
1125
HOLDEN, Ibidem, p. 238.
1126
HOLDEN, Ibidem, p. 238.
1127
HOLDEN, Ibidem, p. 238.
1128
HOLDEN, Ibidem, p. 238.
447

7.9 Planetas, Animais, Spiriti

A partir da traduo e edio de Marsilio Ficino fez do Corpus Hermeticum em


Florena, no sculo XV, as ideias hermticas passaram a se espraiar em diversos
domnios e se tornaram um fato cultural de ampla relevncia na Europa e tambm
na Amrica1129. Em seu cerne, a noo pantesta de que Deus teria se misturado
natureza ao criar o universo1130. A cosmogonia pag contida neste tratado passou a
ser assimilada a princpios escolsticos, aristotlicos e, sobretudo, rfico-
platnicos1131. Afinal, a cosmogonia contida nos hinos rficos identifica ontognese e
filognese em um nico ato de surgimento do deus Fanes [luz] do ovo csmico
primordial tem todos os elementos arcaicos em consonncia com a viso cientfica
organicista de protoplasma primordial1132. No por acaso que Ficino ser um
furioso tradutor desses hinos, bem como de todo material heterodoxo de religies
arcaicas extintas.
O modelo intelectual de Ficino, seu mtodo hermenutico, o da
palingenesia: ilumina materiais arcaicos a partir da perspectiva da eternidade
transistrica dos edola, espelhando-os no conjunto das ideias inscritas na alma do
mundo como imago1133. Tanto na matriz rfico-platnica quanto na de ascendncia
propriamente hermtico-alqumica, um dos pontos centrais a presena de energia
e de substncias sutis que promoveriam a conexo csmica dos entes. Da pedra a
Deus, no se trata mais da analogia entis tomista que se realiza por participao
indireta nos seres sencientes e de modo direto no ser humano, instilando-lhes a
centelha divina, cuja apreenso como lumen naturalis chamada de sindrese1134.

1129
Sigo a edio do Corpus Hermeticum e a conhecida obra de Frances Yates sobre Giordano
Bruno.
1130
Conferir a explicao da cosmologia hermtica feita por Copenhaver na introduo de sua
traduo: COPENHAVER, Brian. Hermetica: The Greek Corpus Hermeticum and the Latin Asclepius
in English Translation, with Notes and Introduction. Cambridge: Cambridge University Press, 1991.
1131
muito difcil estabelecer uma distino entre hermetismo, gnose e orfismo no mundo Antigo.
Para a especificidade do orfismo conferir o clssico estudo de Guthrie: GUTHRIE, W. K. C. Orfeo y la
Religin Griega: Estudio sobre el Movimiento rfico. Traduccin Juan Valmard. Prefacio Larry
Alderink. Barcelona: Siruela, 2003.
1132
GUTHRIE, Ibidem.
1133
Sobre Ficino e a palingenesia conferir o belo estudo de Benedito Nunes: NUNES, Benedito.
Diretrizes da Filosofia do Renascimento in VRIOS. O Renascimento. Ciclo de Conferncias
Promovido pelo Museu Nacional de Belas-Artes. 16 de junho a 18 de agosto de 1977. Rio de Janeiro,
Agir, 1978, pg. 59.
1134
Uma forma de sublevao da analogia entis e da cadeia dos seres chamada de assurreio,
que tem fortes ressonncias hermticas. Em meu primeiro mestrado, abordei as implicaes
448

Trata-se sim de uma metafsica organicista, mediante a qual essa substncia sutil
concorreria para manter intacta a cadeia entitativa. Essa substncia conectiva
universal recebeu o nome de spiritus. Essa cosmologia organicista, sistematizada
por Leibniz, ser um ponto de dilema e um dos instrumentos de ciso na cincia a
partir do sculo XVII entre os modelos de Giordano Bruno, de Tycho Brahe, de
Kepler, o ptolomaico, o copernicano e depois o sistema de Newton1135. Uma de suas
premissas centrais a inexistncia de uma dimenso inorgnica no cosmos. Por
isso, a metfora alqumica-astrolgica do universo como um ser vivo to constante
em diversos tratados. Na obra de Shakespeare, uma passagem que ilustra bem
essa concepo o solilquio de Calib contra Prspero.
Ao invocar os espritos [spiriti] do sol, Calib os convoca a sugar da lama, do
charco e do lixo todas as doenas e a concentrar essas doenas todas em
Prspero1136. Em outra passagem, o mesmo Prspero refere-se ao irmo e futuro
traidor, Antonio, como um imitador que reorganizava a harmonia poltica dos sditos
que ele mesmo, Prspero, criara1137. No limite do mimetismo e da rivalizao
mimtica, em tons poticos, Prspero descreve o irmo como a hera que lhe sugava
a seiva e o ocultava1138. Essas imagens no so propriedades do bardo ingls.
Tampouco se referem a jogos de linguagem com efeito puramente esttico, como se
diria em termos formalistas. Elas so o esteio de uma cultura da imagem que
atravessa todas as artes, as prticas de representao, a filosofia e a cincia
renascentistas e seiscentistas. Tanto que encontramos esta mesma descrio de
spiriti transmissores que conectam o hermeticamente o alto e o baixo em uma bela
descrio das Soledades de Luis de Gngora, que comeou a sair dos prelos de
Madrid em 16111139. Os raios de sol sugam, como um animal, cada minscula
filigrana da roupa do peregrino errante1140. Tambm ele um nufrago, arrojado em
uma praia deserta, exposta s lnguas invisveis e quentes do sol que sorve os

teolgicas, filosficas, polticas e propriamente formais da assurreio nas Soledades de Gngora,


tendo como pano de fundo a arte e a filosofia da Renascena: PETRONIO, Rodrigo. Cartografia de
Orfeu: Analogia e Assurreio nas Soledades de Luis de Gngora y Argote. Dissertao de Mestrado.
Instituto de Letras da Universidade Estadual do Rio de Janeiro [UERJ], 2013.
1135
ROSSI, Paolo. O nascimento da cincia moderna na Europa. Trad. por Antonio Angonese. Bauru:
EDUSC, 2001.
1136
Ato I, Cena II, p. 21.
1137
Ato I, Cena II, p. 21.
1138
Ato I, Cena II, p. 21.
1139
Realizei uma anlise das imagens contidas nas Soledades com algumas ideias e codificaes
visuais hermtico-alqumicas em meu primeiro mestrado, citado acima: PETRONIO, Rodrigo. Op. cit.,
2013.
1140
GNGORA, Luis de. Soledades. Edicin de John Beverley. Madrid, Catedra, 1989.
449

elementos sublunares, transmutando-os e os depositando-os transubstanciados em


outro organismo1141. Mas qual seria a raiz filosfica e cientfica desses spiriti? Quais
premissas esto implicadas nessa conexo? Analisemos um dos importantes
tratados cientficos do sculo XVII para compreender as conexes entre arte,
alquimia e cincia encontradas na obra de Shakespeare.

7.10 Digby e Shakespeare

Esse modelo orgnico no tampouco um patrimnio das artes e da filosofia


de inspirao hermtica. Essas imagens de fluxos atmosfricos e conexes
csmicas de elementos sutis, presentes em Gngora e em Shakespeare, bem como
em uma gama enorme de topoi e de lugares-comuns de poetas e artistas dos
sculos XVI e XVII, podem ser cotejadas diretamente com discursos cientficos da
poca. Em especial, essas imagens se associam a imagens utilizadas por Kenelme
Digby em sua comunicao cientfica na Academia Real de Cincia da Inglaterra,
em janeiro de 16601142. O texto de Digby comea postulando uma possibilidade de
comparao entre a morte e a ressurreio das plantas e dos corpos. Fala de uma
misteriosa contemplao capaz de apreender essas analogias. Assim, busca os
princpios e circunstncias por meio dos quais se realizaria esse processo. A Terra
seria um organismo que produz a consistncia e a fluidez dos corpos. Em seu curso,
a natureza procede de tal modo que no difcil a compreenso de seus fenmenos
observados. No caso das plantas, trata-se de uma substncia compacta que sofre o
influxo do Sol, o grande Arcano da Natureza. Aquele que promove a dilatao da
superfcie da natureza e, por conseguinte, a dilatao da semente1143.
preciso que a semente esteja envolta em um ambiente propcio e hmido
para que haja o contgio. Dois elementos centrais atuam nesse processo: o
balsmico e o sal. Ambos compem as emanaes da Terra. A substncia da
semente se dilata para cumprir as necessidades naturais e circunstanciais dos
fluidos. preciso realar o trabalho do Supremo Arquiteto de engendrar ordem no

1141
GNGORA, Luis de. Soledades. Edicin de John Beverley. Madrid, Catedra, 1989.
1142
DIGBY, Kenelm. A discourse concerning the vegetation of plants spoken by Sir Kenelme Digby at
Greshan College on the 23 of January, 1660. Edio rara digitalizada.
1143
DIGBY, Ibidem.
450

que parece aparentemente obscuro. A semente rompe sua priso aparente. Comea
a se dilatar em um movimento de combusto. A ao natural do Fogo a partir do
Centro continua fluindo atravs dos extremos cada vez mais fluidos dos tomos1144.
A fermentao se desdobra em termos que podemos chamar tanto materiais quanto
espirituais. Inicia-se o processo que os alquimistas definiam como putrefactio ou
calcinatio, putrefao ou calcinao. Ela ocorre pela ao de espritos etreos na
transformao. Eis que se define a Fermentao como a chave para a compreenso
de tudo o que existe sob o Sol, todo o mundo sublunar. A partir dela podemos
compor um mapa do Empreo. Como no Apocalipse os corpos ressuscitam para
demonstrar a grande vitria da natureza, assim tambm a semente na Terra precisa
morrer para ressuscitar. A semente mantm a parte viscosa da natureza, como se o
centro se deslocasse em direo circunferncia. Pela superfcie e pelos poros da
Terra, a chuva e o ar penetram para o concurso do desenvolvimento da substncia
viscosa1145. Nesse movimento, o ambiente da Terra e seus elementos so
sublimados e se mesclam aos agentes mais sutis, como o ar e o calor do sol. A
sublimao tende a escalar as camadas mais etreas. H tambm influxos da Terra
que se direcionam ao Centro. Continuamente, a sublimao cresce, torna-se cada
vez mais vasta, em seus crculos. Neste ponto, Digby desenvolve uma longa
dissertao sobre os influxos na composio do globo terrestre. Como esses
influxos configuram os polos Norte e Sul. E sobre os princpios magnticos dos
polos, relacionados tenso magntica entre os fluxos energticos vindos dos
corpos celestes e aqueles que emergem da Terra e se desdobram sua superfcie,
dinamizando o fenmeno da vida. Assim os vapores balsmicos e o sal da terra
proporcionam o surgimento de mais espritos que passam a se concentrar em
grandes quantidades1146.
Em seguida, outra grande dissertao sobre as correspondncias
macrocsmicas e microcsmicas entre a vegetao e os demais processos da
natureza. Digby cita o experimento dos vasos hermeticamente fechados, realizado
pelo famoso fsico do rei Henrique. Elabora uma explicao da transmutao a partir
de Alberto Magno, telogo e filsofo natural medieval, mestre de Toms de Aquino.
Cita tambm Ramn LLull, um dos nomes centrais da lgica e das artes da memria,

1144
DIGBY, Ibidem.
1145
DIGBY, Ibidem.
1146
DIGBY, Ibidem.
451

bem como o mistagogo Athanasius Kircher. Finalmente, Digby termina o tratado


propondo uma analogia teolgica entre a ressurreio das plantas e a ressurreio
humana dos corpos. Ambos os fenmenos nos propem um maravilhoso Mistrio.
Haveria propriedades da matria que nos individuam e nos singularizariam mesmo
depois da Ressurreio. Todas as coisas so como rios. Rios que confluem para o
Paraso por meio da transmutao universal que a ressurreio no dia do Juzo
Final1147. O princpio universal da fermentao se orienta mediante um eixo de
atividade natural, cujo cerne a transmutao. Esta possibilita a existncia mesma
da ressurreio vegetal, em consonncia com a prpria dinmica vital dos fluxos
que, por sua vez, possibilitam a passagem da semente planta, da potncia ao ato,
nos crculos de fluxos dos espritos empenhados na atividade universal da
fermentao. A homologia formal entre a ressurreio do corpo humano apenas
evidencia a lgica misteriosa que envolve essa dinmica, explicitando em termos
sobrenaturais o modo pelo qual a natureza realiza suas transformaes de
substncia sob a forma de transmutao. A transmutao estaria para a natureza
como a ressurreio dos corpos estaria para o ato divino no plano humano. Nada
mais claro. Nada mais evidente. Nada mais rigorosamente verdadeiro. Assim Digby
conclui seu tratado1148.

7.11 Fermentao Universal

Temos aqui um tratado de cincia que postula o princpio de um todo-


orgnico csmicos-astral regido pelas leis de uma fermentao universal. Para tanto,
uma lei se exige: o cosmo todo precisa ser um organismo vivo. Apenas assim Digby
consegue explicar a palingnese capaz de produzir a ressurreio das plantas e
manter a unidade de certos ncleos vitais permanentes para alm da morte dos
indivduos. Entretanto, seu discurso embaralha categorias cientficas, escatolgicas
e propriamente alqumicas, pressupondo a lei da fermentao como elemento-chave
para a conexo entre os diversos organismos csmicos. Essas imagens de
transformao, metamorfose, transmutao e passagem de elementos de uma

1147
DIGBY, Ibidem.
1148
DIGBY, Ibidem.
452

natureza a outra no so moldadas a partir de premissas estritamente cientficas.


Incorporam elementos do imaginrio comum das artes e da grande ars alchemicha.
Por isso, tais imagens so extremamente semelhantes s encontradas nas
mencionadas passagens de Gngora e de Shakespeare, nas quais a crena em
uma substncia sutil universal central para articular a grande cadeia do ser e, mais
do que isso, para proporcionar a possibilidade da prpria conexo potica, sem a
qual a matriz imaginria da poesia se invalidaria.
Como se pode inferir, tanto em Digby quanto em Shakespeare essa atividade
no propriamente uma atividade de um astro ou de um corpo celeste entendido
como mera substncia extensa cartesiana ou como um pedao de mineral
inorgnico vagando na frieza de espaos celestes intangveis. Ele um zoa, um ser
pertencente ao reino animal de modo muito especfico, como mesmo Aristteles
imaginou em sua taxonomia dos planetas. Tal como Plato imaginou que a alma
teria centelhas e fragmentos de matria estelar1149. Por meio das mediaes
astrolgico-alqumicas, essa concepo aristotlico-platnica est presente em uma
obra como o Picatrix, um tratado alqumico rabe dos mais importantes da histria
da cincia, pois prope um modelo de compreenso cosmolgica organicista,
baseado em fluxos e influxos das regies etreas e celestes sobre a atividade dos
seres vivos sublunares1150. Em outras palavras, descreve a atividade dos spiriti como
mediadores arcanos de toda a atividade interplanetria em concordncia com a
atividade dos seres vivos em geral que se situam na superfcie da Terra.
A arte e a filosofia renascentistas so prdigas de spiriti. E na verdade, em
uma chave neoplatnica, eles so encontrados na canzoniere de Dante, ainda antes
da entrada oficial do hermetismo florentino por meio das tradues de Ficino1151.
Servem para configurar uma teoria do amor. Os spiriteli so vasos comunicantes
entre amante-amado. Trocas de fluxos materiais sutis que imantam os amantes na
composio uraniana-divina do amor em seu nvel pandmico-humano terrestre.
Para Sloterdijk, a filosofia de Ficino a primeira psicologia de profundezas da

1149
Essa concepo est especialmente descrita no Timeu e na formulao da alma do mundo.
1150
Para mais informaes sobre o Picatrix, conferir Frances Yates e Eugenio Garin: GARIN,
Eugenio. Astrology and Magic: Picatrix in Astrology in the Renaissance: The Zodiac of Life.
Transleted by Carolyn Jackson and June Allen. Translation Revised in Conjunction with the Author by
Clare Robertson. London, Routledge & Kegan Paul, 1983.
1151
Octavio Paz aborda brilhantemente a presena dos spiriti em sua variante neoplatnica e
hermtica na poesia de Dante: PAZ, Octavio. Sror Juana Ins de la Cruz: As Armadilhas da F. So
Traduo de Wladir Dupont. Paulo, Mandarim, 1982.
453

Europa1152. Ele um dos primeiros pensadores a conceber uma premissa


materialista, os spiriti, como base explicativa para a comunicao intersubjetiva e
mesmo para a conexo csmica dos entes. Em termos da esferologia, essa a
maneira pela qual a filosofia da Renascena intuiu a fora das microesferas de
intimizao e a fascinao da proximidade, e por isso a centralidade do amor nas
reflexes de Ficino1153. A erotizao do cosmos instala o ser humano em um regime
de sentido, em uma microesfera acolhedora, em outras palavras, traduz o externo
em interno1154. E nesse ponto, mais uma vez reincide a centralidade do amor que
move o cu e as estrelas tambm para Dante. Em uma chave menos materialista
que a de Ficino, a associao de Dante entre amor e primo mobile aristotlico
descreve a vasta abrangncia do amor como razo necessria para uma explicao
propriamente religiosa, escatolgica e racional do universo. A tradio dos
trovadores, de onde se origina o amor no sentido moderno, deita razes nas
doutrinas amorosas dos ctaros e albigenses1155. Em certo sentido, a modernidade
da concepo de amor tambm se deve aos fideli de amore, grupo no qual Dante
fora iniciado1156.
Essas analogias entre hermetismo, filosofia, cincia e artes no para aqui. Os
estudos de Frances Yates sobre os padres de visualidade de Botticelli demonstram
a presena da forma talismnica proposta pela magia hermtica nos crculos
filosficos neoplatnicos, especialmente os de Pico della Mirandola e Marsilio
Ficino1157. O mesmo estudo de Yates no deixa de subscrever o sistema
heliocntrico nitidamente descrito no Corpus Hermeticum como pedra angular para a
filosofia selvagem de Giordano Bruno e sua consequente revoluo de paradigmas.
Tampouco se esgotam nas convergncias dos centros europeus de cultura. Em
algumas pginas brilhantes, Octavio Paz disseca o Sueo de Soror Juana Ins de la
Cruz, um dos mais complexos sistemas poticos jamais criados na Amrica, ainda

1152
E-I.
1153
FICINO, Marsilio. De Amore: Comentrio a El Banquete de Platn. Traduccin y Estudio
Preliminar de Roco de la Villa Ardura. Madrid: Tectos, 1994.
1154
E-I.
1155
PAZ, Octavio. A dupla chama: amor e erotismo no ocidente. So Paulo: Siciliano, 1998. Denis de
Rougemont tambm desenvolve essa tese em seu clssico sobre o assunto.
1156
O vnculo de Dante aos fideli de amore est dispersa em diversos autores. Ver sobretudo:
GUNON, Ren. Esoterismo de Dante e So Bernardo. So Paulo: Irget, 2011.
1157
YATES, Frances. Giordano Bruno e a Tradio Hermtica. Traduo de Yolanda Steidel de
Toledo. So Paulo, Cultrix, 1995.
454

em pleno alvorecer da literatura hispano-americana1158. Temos ali o mesmo princpio


das emanaes neoplatnicas de corpos sutis; desprendem-se do corpo rumo ao
ter; atingem ao fim o estado autorreflexivo da alma que se apreende a si mesma,
em uma contemplao da pura inteligibilidade do cosmos. A base de Soror Juana
para sua viagem anmica neoplatonismo, o padro do Scipianus Somnium que
alimentou boa parte da literatura visionria medieval, as descries maravilhosas
cosmogrficas de Athanasius Kircher1159, acima de tudo, a doutrina hermtico-
alqumica dos spiriti1160.
Isso tudo significa o qu? Que a doutrina dos spiriti estava profundamente
enraizada na filosofia da forma e na prtica artstica renascentistas. Chegou e se
imiscuir em diversas camadas da poesia shakespeariana, desde a poca do Globe,
nome no por acaso com fortes ressonncias hermticas e central para pensarmos
a arte dramtica elisabetana a partir de um paradigma da esferologia-imunologia1161.
Um dramaturgo como Bem Johnson chegou a compor a stira O Alquimista,
encenada entre 1606 e 1608, desenvolvendo o lugar-comum do alquimista
entendido como charlato. Para emul-lo, Shakespeare no poderia ter tomado a
alquimia em seu sentido oposto, deslocado genericamente? Seria Prspero, nesse
sentido, um alquimista trgico? Essa hiptese de uma emulao que se vale do
mesmo material do autor-matriz imitado para deflagrar uma rivalizao mimtica
bastante convincente1162. Para tanto, o bardo, que era mal de latim e pior em grego,
como maliciosamente o definira o mesmo rival Johnson, no era preciso se valer de
copiosa erudio e de especulaes em cdices alqumicos. Tampouco era preciso
um domnio sobre esse sistema simblico. Porm, nem s de sublime alquimia
vivem os modelos organicistas da Renascena.

7.12 O Baixo Organicismo

1158
PAZ, Octavio. Sror Juana Ins de la Cruz: As Armadilhas da F. So Traduo de Wladir
Dupont. Paulo, Mandarim, 1982.
1159
PAZ, Ibidem.
1160
PAZ, Ibidem.
1161
E-II.
1162
Refiro-me aqui aos conceitos de desejo mimtico, que induz rivalizao, e potica da
emulao e ao conceito de autor-matriz, desenvolvido por Joo Cezar de Castro Rocha: ROCHA,
Joo Cezar de Castro. Macha de Assis: Por uma potica da emulao. Rio de Janeiro: Civilizao
Brasileira, 2013.
455

A alquimia, no sculo XVI, no era uma especialidade. Era uma cultura, na


acepo que T. S. Eliot confere a essa palavra1163. Ou seja: no era patrimnio de
especialistas. Conectava-se a um repertrio de imagens, ideias e prticas difundidas
desde os crculos intelectuais s camadas mais populares. Como prtica interditada,
muitos dos magos, hermetistas e alquimistas medievais estiveram ligados s artes
manuais, s corporaes de artesos e de aos mestres de ofcios. As inscries
hermticas escritas em argot nas catedrais gticas sinalizam para o baixo estrato
social desses mestres de obras que, no fundo, eram mestres da grande Obra1164. O
recrudescimento dessas prticas a partir do sculo XV marca toda a cultura da
Renascena; abre um enorme espectro temtico e artstico, at ento confinado s
tradies populares no-escritas dos estratos sociais mais baixos.
No apenas o retorno da maniera greca marca o declnio da arte alegrica-
tipolgica-figural em benefcio de um modo de composio emprico-fisionmico-
literal1165. O retorno recalcado da tradio do chamado baixo material est no mago
da revoluo renascentista1166. Produziu Boccaccio, Rabelais, Brantme, Bosch,
Bruegel e tantos outros gnios da empiria e do sentido experimental da ars, rainha
dos afetos, dos fluidos e dos detritos do mundo sublunar. Merda, cu, peido, mijo,
esperma, caralho, buceta, nus, ndega, pelos, orifcios, suor, excrementos. Um
desfile taxonmico de alegres insultos reinstaura a antiga razo cnica1167. Tudo o
que fora domesticado pela filosofia escolstica e toda a dimenso propriamente
orgnica da vida humana, para alm de imagens organicistas sutilizadas pela
metafsica, retorna cena do pensamento justamente pela porta dos fundos: por
meio da arte1168. No por outro motivo, justamente o tema da magia que encabea
um dos grandes deslocamentos genricos do teatro: a tragicomdia La Celestina de
Fernando de Rojas. Se a unidade aristotlica comea a ser ferida em seu mago
com a criao de gneros mistos, isso no se deve a um mero capricho dos artistas.
O material artstico orgnico que comea a vir cena tambm mesclado,
pois instaura uma situao trgica permeada pela vida de personagens de baixo
estrato social, como a bruxa Celestina. O efeito oscila entre o riso produzido pela
1163
ELIOT, T. S. Notas para uma definio de cultura.
1164
FULCANELLI. El misterio de las catedrales. Coleccin: Ensayo Filosofa Debolsillo. Barcelona:
Debolsillo, 2003.
1165
E-I.
1166
O conceito de baixo material de Bakhtin, em seu estudo clssico sobre Rabelais: BAKHTIN,
Mikhail. Cultura Popular na Idade Mdia: o contexto de Franois Rabelais. So Paulo: Hucitec, 2010.
1167
CRC.
1168
CRC.
456

alcoviteira Celestina, com as pernas de rs e as asas de gafanhotos de seu


caldeiro de bruxa alcoviteira, e a morte trgica dos amantes, em um monlogo de
extrema beleza antes da queda do pano. Tambm no por outro motivo que a
aliana entre plebe e aristocracia se deu em todo seu esplendor nas terras
espanholas, sob o nome de dois amigos aventureiros, Sancho e Quixote. E que,
Lope de Vega, grande dramaturgo da corte, tenha se tornado um dos mais
contumazes teorizadores e defensores do gnero misto1169.
Shakespeare aprendeu muito com os mestres selvagens espanhis. Tanto
que a tipificao de Sycorax certamente guarda um nexo ainda que sutil com a
Celestina. E as oscilaes de elementos e materiais cnicos e verbais, prpria dos
gneros mistos que o bardo ingls praticou exausto, tenha sido um dos principais
motivos do repdio manifestado por seu gnio. Tanto pelos seus contemporneos
quanto pelos critrios ulteriores do classicismo, sobretudo pela crtica mordaz de
Samuel Johnson1170 e de Voltaire1171. H um dado histrico que corrobora a
centralidade dessas doutrinas na formao de Shakespeare e, mais
especificamente, sua relevncia em A Tempestade: a proximidade que o dramaturgo
passa a estabelecer do rei James I. Como se sabe, o rei James no apenas tinha
um grande apreo por temas ligados bruxaria como era nada mais nada menos do
que o autor de um dos mais importantes tratados sobre o assunto, o Demonologia,
publicado em 15971172. Em agosto de 1605, assistira a um divertimento intitulado
Trs Sibilas, que foram as bases de inspirao sugeridas pelo rei para a composio
das trs bruxas da abertura de Macbeth1173. por essa simpatia mtua e pela
ambivalncia moral de James que Shakespeare, nesta mesma obra, dignifica o
monarca por meio da idealizao do personagem Banquo, inspirado no personagem
histrico da linhagem do rei James. Banquo passa de conspirador assassino em
mrtir honrado, que espelha o monarca, sentado na plateia1174.
Logo na abertura de Macbeth, as bruxas dizem que a imaginao pode ter
efeitos concretos1175. O que isso seno um dos axiomas e dos princpios arcanos
da magia? A teologia natural propunha uma explicao racional que conciliasse os
1169
HAVERBECK, Erwin, "El Arte Nuevo de hacer comedias, una nueva esttica teatral", Documentos
Lingsticos y Literarios, 14, 1988, pgs. 7-17.
1170
JOHNSON, Samuel. Prefcio a Shakespeare. So Paulo: Iluminuras, 1997.
1171
VOLTAIRE. Cartas inglesas. Rio de Janeiro: Jackson, 1964.
1172
HOLDEN, Op. cit., p. 205.
1173
HOLDEN, Ibidem.
1174
HOLDEN, Ibidem.
1175
HOLDEN, Ibidem.
457

modos revelados e uma anlise cientfica imanente do universo. Muitas das


conquistas da teologia natural tentavam sanar os impasses dos modelos racionais-
especulativos e daquelas premissas escolsticas que propunham uma aliana entre
ratio e revelao, mas que no abriam a possibilidade para uma atividade emprico-
experimental. Por isso, a partir do sculo XVI no raras vezes a teologia natural
acabava resvalando em prticas de magia simptica ou mesmo na sua verso mais
radical: a magia natural e a manipulao de elementos1176. Esse limite tnue entre
religio e magia ganha uma investidura importante quando a entendemos no
contexto do debate teolgico-poltico sobre doutrina da soberania divina dos reis.
Afinal, se a soberania legitima toda a ao da realeza como o cumprimento de um
desgnio divino, qual o problema se essa ao soberana ferir o limite inscrito pelos
dogmas revelados? No seio dessa intrincada dinmica entre poder temporal e
espiritual, que tem nas monarquias absolutistas a sua sntese plena e contraditria
dos dois corpos do rei1177, assegurar o direito divino dos reis pode ser um modo de
testar os limites institucionais das crenas sem contudo abalar o monoplio da
teologia poltica imperial. Temos nesse sentido uma paulatina alterao na estrutura
dos arcana Dei, arcana imperii e arcana naturae1178.
Em outras palavras, possvel, nesses limites, reinstituir uma funo prtica
da magia como uma necessidade interna realizao plena e manuteno das
prprias monarquias crists. Esses limites tornam-se bastante visveis na srie de
figuras histricas dos reis taumaturgos medievais, que acreditavam curar a escrfula
e outras doenas mediante intervenes mgicas e o toque divino do rei1179. James
era adepto dessa crena, que remonta a Eduardo, o Confessor1180. Passar da
demonologia do rei James a uma figurao de ncubos e scubos pelos nomes de
Ariel e Calib. Alm disso, traduzir os tratados de demonizao das ilhas do Novo
Mundo na figura de Sycorax. Esse parece ter sido o percurso quase natural da
criao e A Tempestade. A figura de Ariel amplamente inspirada na tradio

1176
Para a distino entre magia simptica e magia natural conferir Frances Yates, Op. cit.
1177
Refiro-me ao estudo clssico e brilhante de Ernst Kantorowicz sobre a teologia poltica medieval e
seus sucedneos at as monarquias absolutas: KANTOROWICZ, Ernst. Os dois corpos do rei. So
Paulo, Cia da Letras, 1998.
1178
GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais: Morfologia e Histria. So Paulo, Companhia das
Letras, 1990.
1179
Haja vista o notvel e clssico estudo de Marc Bloch sobre o assunto: BLOCH, Marc. Reis
Taumaturgos: o carter sobrenatural do poder rgio: Frana e Inglaterra. Prefcio de Jacques Le
Goff. Traduo: Jlia Mainard. So Paulo: Cia das Letras, 1999.
1180
HOLDEN, Ibidem, p. 205.
458

hermtica dos spiriti. A de Prspero, concebida na chave do tipo cultural do


alquimista e ideal-tpica de Fausto, que na verdade recua ao imaginrio medieval
sob o mito do poder sobrenatural humano que se exerce para alm dos limites
determinados pela Providncia. Como corolrio dessas peas soltas que
concorreram para a criao do mito shakespeariano de Prspero, vale lembrar que o
arquirrival shakespeariano Christopher Marlowe havia levado aos palcos do Corpus
Christi College, de Cambridge, a sua verso do mito fustico pouco antes da
encenao de A Tempestade, nos anos de 15801181. A hiptese de Bloom, segundo
a qual o bardo ingls teria escrito A Tempestade justamente como resposta ao
Fausto de Marlowe, por isso bastante pertinente1182. A presena de Ariel por doze
anos no interior de um carvalho, sem qualquer ingenuidade ou aleatoriedade,
designa outra codificao usada pelo dramaturgo. Trata do ciclo de durao do ano
e das doze casas, pensadas em termos astrolgico-hermticos para poder ser
fecundado pela madeira, que em grego e, desde Aristteles, sinnimo de matria,
e, no por acaso, a mesma matria de que era feito o Globe1183, cujo sentido
analisarei mais adiante. A matria-prima bruta alquimicamente se sutiliza, passa do
nigredo-podre ao albedo-espiritual para poder, pelas mos de Prspero, deliberar
sobre a natureza, manipular a teia dos spiriti engendrados no mago do mundo,
gerar a tempestade e todas as demais operaes tcnicas.

7.13 Limiar

Ao contrrio do que se pensa, no h nenhum esoterismo nessas premissas


e conexes entre arte e pensamento alqumico, a no ser para quem quer
deliberadamente cultivar o obscurantismo, a contrapelo da racionalidade imanente
dos processos histricos. O modo mtico-dedutivo foi um dos mais poderosos
modelos explicativos racionais da histria da filosofia e da cincia. E um dos grandes
operadores imanentes da produo artstica. Muitas vezes, realizou-se em
consonncia com o imaginrio e as figuraes metaempricas de crenas religiosas,

1181
HOLDEN, Ibidem, p. 205.
1182
BLOOM, Op. cit.
1183
HOLDEN, Ibidem, p. 205.
459

protorreligiosas ou mesmo mgicas que hoje em dia so consideradas superadas.


Essas prticas e crenas encontraram na arte um grande repositrio de imagens.
Por isso a magia esteve para a cincia assim como a arte esteve para a filosofia. A
imaginao terico-eidtica exercitada pela filosofia e pela cincia dedutiva
encontrou nas prticas e nas figuraes mgico-artsticas um vasto campo de
realizao emprica. A partir dessa confluncia entre filosofia-cincia e arte-magia, a
atividade do pensamento conseguiu criar uma das mais poderosas foras
desinibidoras, matriz centrfuga da modernidade: a tcnica.
Em resumo, todos esses pontos querem dizer o seguinte: a emergncia de
um discurso sobre magia, alquimia e hermetismo o modo pelo qual a cultura
comea a produzir agentes desinibidores de suas foras recalcadas1184. Tenham
como princpios o primo mobile aristotlico ou as arkhai platnicas, o primado da
metafsica da substncia o primado do pensamento que assimila o orgnico-vital
ao inorgnico-geomtrico para assim manter a integridade perfeita da esfera-globo
em sua perfeita circunferncia. Desse modo, pode-se compreender que a
desinibio de discursos de ordem alqumica e de teses organicistas corresponde a
uma transformao cultural e epistmica de amplas dimenses e ressonncias. No
cerne dessas transformaes, muito mais importante do que o deslocamento do
sistema geocntrico para o sistema heliocntrico, perpetrado pela revoluo
copernicana, o deslocamento de um centro cosmolgico real em uma infinitude de
centros virtuais, pressupostas na passagem do cosmo-crculo ao cosmo-elipse. Em
termos esferolgicos, na transio das esferas-globo para as esferas-espuma.
Esses agentes desinibidoras dizem respeito prpria transformao social e poltica
das classes subalternas que comeam a ganhar voz a partir dos sculos XVI e XVII
e a encontrar ressonncia na vida civil, movimento que culmina com a Revoluo
Francesa e seus desdobramentos. Essas transformaes no mago das estruturas
de poder tm como correspondente uma guinada esferolgica de amplas
dimenses1185. Ela consiste na runa da esfera-Deus e a consequente passagem dos
globos metafsico-imperiais, entendidos como grandes princpios arcanos e
imunolgicos das sociedades pr-modernas, s espumas ps-metafsicas e
virtualizao dos centros com o advento da modernidade. A organizao morfolgica
da vida passa a seguir o padro da elipse, ou seja, do centro infinito. Essa

1184
Sloterdijk desenvolve o conceito de agentes desinibidores em E-II.
1185
Trata-se da passagem descrita ao final do segundo volume de Esferas: E-II.
460

infinitizao do centro, multiplicado em centros infinitos virtuais, basicamente o que


convencionamos chamar de modernidade1186.
A codificao alqumica e a magia compunham o amplo espectro das
doutrinas das similitudes, que determinam a epistme do sculo XVI e comeam a
naufragar a partir do sculo XVII, como bem intuiu Foucault1187. Estavam
embrenhadas na cultura humanstica como diversos outros discursos que hoje
chamaramos de cientficos, filosficos, artsticos, morais, religiosos. As concepes
alqumico-astrolgicas esto presentes em outras obras shakespearianas. No
apenas na diviso por fases de sete anos, correspondentes ao grande climatrico da
Rainha Elizabeth, eixo estruturante dos sonetos. Mas tambm dispersas em
Macbeth, Hamlet, Ricardo III e tantas outras passagens emblemticas do bardo. No
por acaso, Frances Yates dedicou um estudo inteiro s fontes hermticas dos
autores elisabetanos, que no cabe pormenorizar aqui1188. Mas afinal, quais as
implicaes polticas dessa translao esferolgica? Quais os desdobramentos
virtualmente contidos nessa anlise shakespeariana do poder? Em linhas gerais,
podemos dizer que a anatomia realizada por Shakespeare mediante a qual ele
apresenta novas relaes estruturais de poder consiste em um ponto fundamental: a
identificao da multiplicidade de centros de poder e de seu carter da mtua
dominao de uns pelos outros.

7.14 Simetria e Infinito

Autor instalado no limiar da globalizao terrestre que se inicia no sculo XVI


com Magalhes e as navegaes e com o eclipse da globalizao imperial-
metafsica1189, Shakespeare captou com muita sagacidade algumas reorientaes
da filosofia poltica de seu tempo, cujo impacto sentimos at os dias de hoje. Nesses
termos, A Tempestade uma smula dramtica dos primrdios de uma poltica
1186
E-II, E-III.
1187
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Uma arqueologia das cincias humanas. Traduo
Salma Tannus Muchail. So Paulo: Martins Fontes, 2000.
1188
Se eu fosse abordar todos os pontos levantados por Yates sobre a filosofia oculta na Renascena
e na obra de Shakespeare e dos dramaturgos elisabetanos, isso daria ensejo a um livro e
transcenderia os limites deste artigo: YATES, Frances. The Occult Philosophy in the Elizabethan Age.
New York: Routledge Classics, 2000.
1189
E-II.
461

global e uma encenao mitopotica acerca da formao de um sistema-mundo. Se


entendermos que a teoria do sistema-mundo para descrever a relao de
codependncia universal de todos os pontos do planeta, decorrente da
universalizao do capital, o que est em jogo em A Tempestade justamente uma
disputa pela hegemonia em uma dialtica entre ilha-Europa e entre frica-Ocidente,
ou seja, um conflito em torno da definio dos centros-emissores e periferias-
receptoras de poder.
Mas nesses termos, como fica a relao Prspero-Calib e mesmo Prspero-
Ariel? Como se sabe, Calib acabou se tornando ao longo dos ltimos sculos o
signo emblemtico da resistncia do colonizado ao conquistador europeu. Em linhas
gerais, uma marca da resistncia violncia colonizadora, uma resposta dos nativos
aos valores das monarquias e das polticas neocoloniais. O signo de Calib to
poderoso que foi invocado em inmeras adaptaes por poetas, dramaturgos,
cineastas e artistas de pases coloniais da Amrica, da frica e da sia como forma
final da rebelio contra as foras expropriadoras dos missionrios e colonizadores.
Porm, como enfatiza Bloom, trata-se de um personagem que conta com menos de
cem versos ao longo de toda pea1190. Nesses termos, precisaramos formular outra
pergunta: e se levarmos em considerao que tambm Prspero fora excludo dos
centros do poder por traio poltica? O que muda nesse cenrio? Nesse ponto,
preciso matizar cada vez mais as sutis relaes de poder encenadas por
Shakespeare nessa obra. Apenas assim conseguiremos apreender a sua
ressonncia mais ampla e sua anlise fina do poder. Pois foi justamente essa
dimenso mitopotica sutil que fez de Shakespeare e do conjunto de sua obra um
clssico dos clssicos, reverberando ao longo dos ltimos sculos, sem perder o
frescor e a atualidade. Qual seria portanto o sentido poltico central dessa obra
shakespeariana? Encetemos mais uma reflexo esferolgica para unificar essa
trama.
Nesse xadrez, a obra shakespeariana redefine os limites entre natureza,
poltica e cultura. Em uma de suas falas mais sintomticas, Prspero revela
literalmente que a poltica no lhe interessava. Seus livros eram o seu ducado. Mas
para Prspero, um livro no um livro. Um livro a Arte. Ou seja: a capacidade de
produzir tempestades, controlar os ventos, submeter os elementos, acionar

1190
BLOOM, Op. cit.
462

terremotos, alterar as leis sublunares dos elementos, em outras palavras, exercer a


possiblidade de organizar livremente o orgnico, que corresponde a todo o cosmos,
includos os seres humanos. Nesse sentido, a Arte de Prspero extremamente
paradoxal. Ela se constitui como poder tcnico justamente ao compreender e
controlar a estrutura orgnica do mundo e captar, como um marionetista, os liames
mgicos de conexo entre todas as partes desse todo organizado. Apenas ao deter
as leis desse cosmo-organismo, ele pode colocar a seu bel-prazer esse mesmo
organismo para danar a sua msica. Essa dana nada mais do que o os
primrdios da era tcnica e do primado da tecnologia. Nesse sentido, tornam-se
ainda mais brilhantes as intuies de Walter Benjamin, segundo as quais a relao
entre tcnica, feitio e fetiche teriam sido significadas e mesmo reinauguradas com a
ascenso do capitalismo1191. Afinal, o fetichismo da mercadoria s possvel porque
a forma ltima impessoal de manipulao dos objetos guarda resduos de
concepes mgicas e de aes sem sujeito.
Por outro lado, h que se ressaltar um desinteresse de Prspero pela poltica,
marcado na letra do texto. E talvez por isso mesmo o seu irmo lhe tenha usurpado
o ducado com tanta facilidade. Justamente por isso, esse roubo da insgnia de poder
secundrio. O que est em jogo uma ciso de amplas ressonncias que
determina a modernidade e os problemas mais urgentes que vivemos nos dias de
hoje. Uma ciso entre poltica e tcnica. Em outras palavras, entre a potncia
domesticadora da poltica e as potncias desinibidoras que emergiram por meio da
conquista da tcnica1192. A diviso entre essas duas instncias, como a plena
realizao, no mbito da vida, da doutrina averrosta da dupla verdade, corresponde
ao esgaramento intrnseco dinmica do mundo burgus1193. Ao liberar as foras
da natureza e a circulao mundial do capital, esse mesmo mundo emancipa os
detentores de domnios especficos da natureza que conseguem, por meio da
tcnica, produzir ressonncias em seu sentido mesolgico global. Eis-nos diante da
figura de Prspero. Entretanto, os agentes polticos que roubaram o seu trono e o
enviaram para a periferia do mundo so os mesmos que justamente por esse gesto
perderam o controle dos pacientes de seu poder, ou seja, aqueles que assumiram

1191
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: Magia e Tcnica, Arte e Poltica. So Paulo, Brasiliense,
1985.
1192
E-II.
1193
Sobre a emergncia do mundo burgus como plena realizao da doutrina da dupla verdade:
LUCKCS, Op. cit.
463

as foras tcnicas desinibidoras paradoxalmente potencializadas pelo ato mesmo de


sua excluso. Os dominadores, ao produzirem a excluso, produzem a condio de
possibilidade para o surgimento da prosperidade fustica dos novos atores sociais
que essa mesma liberalizao do capital produziu e que agora se volta sobre os
poderosos em um movimento de contracorrente e, poder-se-ia dizer, de
contracolonizao.
O que podemos concluir de todas essas articulaes? Uma das tnicas da
teoria da esfera-globo desenvolvida por Sloterdijk a objetivao do mundo
enquanto mundo. Em um sentido heideggeriano, a tomada de conscincia do ser
humano que apreende o mundo como imagem do mundo, e, portanto, como algo
passvel de ser objetivado1194. Em resumo, toda narrativa que produz uma totalidade,
exclui dessa norma totalizvel justamente o agrimensor que legisla sobre a
totalidade enquanto totalidade. medida que soberano aquele que decide sobre a
exceo, o soberano aquele que, ao se excluir de uma totalidade, inclui-se
formalmente em seu estabelecimento, ou seja, sua excluso simultaneamente
instaura e a domina a totalidade de onde foi excludo. A soberania uma
codependncia mutua por meio da qual um agente se exclui e, justamente por meio
de sua autoexcluso dos ordenamentos jurdicos e formais, realiza a norma por meio
de seu estado de exceo1195.
A anlise que Sloterdijk empreende do afresco da Torre Annunziata e de seus
sete sbios que meditam em torno do globo terrestre disposto no centro de seu
crculo nuclear nesse sentido1196. Coloca-se como ponto de partida
fenomenolgico para a reconstruo do pensamento metafsico-imperial, cujo cerne
consiste em criar narrativas metafsicas de imunizao que impermeabilizam os
detentores da esfera-mundo, narrativas essas que se instauram justamente ao
produzir a autoexcluso de seus autores e de seus regimes de exceo. Em outras
palavras, a teoria imperial da esfera-globo consiste em fazer coincidir cada vez mais
os regimes de sentido ligados circularidade perfeita do mundo-circunferncia, cuja
essncia procede de uma teologia de base geomtrica, com a descries empricas
1194
Refiro-me ao brilhante ensaio de Heidegger intitulado O mundo como imagem do mundo, relido e
reinterpretado por Sloterdijk: HEIDEGGER, Martin. Caminhos de Floresta. Lisboa:
Fundao Calouste Gulbenkian, 2002.
1195
Nesse ponto a esferologia de Sloterdijk converge para as teorias do estado de exceo
desenvolvidas por Carl Schmidt e para o conceito de homo sacer de Agamben. Conferir todo projeto
Homo Sacer dividido em diversos volumes em pleno progresso ainda. Especialmente: AGAMBEN,
Giorgio. Homo Sacer: o Poder Soberano e a Vida Nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
1196
E-II.
464

do mundo-da-vida [Lebenswelt], assimilando assim as imperfeies destes suma


perfeio daquele. Nisso basicamente consiste a odisseia do pensamento
metafsico: em criar dispositivos de poder capazes de domesticar o mundo vivido e
imuniz-lo de todos os agentes descentralizadores e desorganizadores que por
ventura pudessem lhe confiscar a unidade geomtrica que sua por princpio.
Entretanto, podemos nos perguntar: em que sentido um organismo pode de fato ser
perfeito? O modelo orgnico e os monismos organicistas no seriam em si e por si
mesmos rupturas dessa unidade geomtrica perfeita? Nesse ponto se articulam a
obra de Shakespeare, as antigas tradies magolgicas, hermticas e alqumicas
em seu florescimento no sculo XVI e a sinalizao das prticas polticas que
podemos chamar de inorgnicas, fundadas sobre a dupla verdade e sobre a ciso
entre lei e natureza, entre nomos e physis e entre physis e techn.
Prspero o ltimo representante do que poderamos chamar de uma poltica
orgnica, cujas deliberaes so da ordem mgica e, portanto, produzem-se por
meio de magia simptica. Do ponto de vista antropolgico, apenas superficialmente
a tecnologia de Prspero a tecnologia das sociedades tradicionais pr-modernas.
Como Latour nos ensinou, a reivindicao que os modernos fazem de sua
modernidade consiste apenas em ocultar os dispositivos e mecanismos da poltica
orgnica e das guerrilhas ontolgicas representadas por Prspero, com o intuito de
nos fazer crer que magia, tecnologia, cincia e poltica so unidades que foram
devidamente purificadas, e encontram-se dissociadas e em regime de
heterogeneidade, umas em relao s outras. Entretanto, um personagem acabava
de surgir na arena poltica internacional. E ele responsvel pela ruptura entre virt
e moral pelas mos da Fortuna e sob a anuncia da natureza: Maquiavel. Em certo
sentido, podemos pensar que A Tempestade uma longa encenao de duas
matrizes da filosofia poltica do cinquecento: o pragmatismo maquiavlico e o
pragmatismo alqumico. O primeiro representado pelo ncleo de Antonio e Alonso e
pelos traidores polticos em nome da eficcia da soberania. O segundo
representado por Prspero e sua engenharia poltica metafsica. Na verdade,
apenas secundariamente a obra derradeira de Shakespeare trata de exploraes
sociais, entendidas em um sentido referencial e temtico. O furor do colonizador
Prspero sobre Calib apenas uma das engrenagens de uma concepo poltica
bem mais sofisticada. O sentido poltico da pea est justamente em sua forma e em
suas matrizes imanentes, que traduzem formalmente as estruturas polticas de
465

poder em suas diversas inter-relaes morfolgicas. No por acaso, a primeira cena


de abertura da pea protagonizada pelo mestre e pelo contramestre do navio que
carrega os inimigos de Prspero, prestes a serem arrojados na ilha pela tempestade
pseudonatural. As figuras simtricas de mestre e contramestre designam o eixo
formal estruturante da obra que a relao entre natureza, simetria e poder. Elas
esto sob a batuta assimtrica dos capites do navio, insignes polticos de Milo. As
relaes convencionais de poder e os estatutos nobilirquicos so alterados. O
terico das polticas e costumes de corte Baldassare Castiglione chega a cunhar a
expresso dissimulao honesta1197 para designar uma mentira que to natural
que acaba sendo verdadeira, porque obedece o decoro da ars e se afina aos
padres da natureza sem romper seus desiderativos formais. Os traidores obtm o
domnio por meio da eficcia da dissimulao, ou seja, da falsa natureza, que uma
das regras eminentes da arte poltica na Renascena. Recorrem a artifcios polticos
naturalizados e adquirem o trono de Prspero. Este, por sua vez, usa dos
instrumentos inversos: domina o sentido artificial da natureza retendo a lgica
orgnica de suas inter-relaes e operando a partir delas nas fmbrias de sua Arte.
Os traidores atentam contra os arcana imperii. Prspero subjuga os arcana naturae.
Em ambos os casos, os sistemas jusnaturalistas medievais se encontram
abalados1198.
As relaes entre simetria e assimetria comeam na prpria disposio os
dois eixos narrativos da obra. O primeiro trata da sobrevivncia dos tripulantes
recm-perdidos na ilha, agora regida por Prspero. O segundo so as cenas
marcadas da atividade do outro ncleo dramtico, que gira em torno de Miranda,
Calib, Ariel, Miranda e o prprio Prspero. O duque quer com esse naufrgio pagar
a sua desgraa na mesma moeda. Ou seja: quer produzir por artifcios naturais uma
reposio do ordo naturalis [ordem natural] e da harmonia poltica que lhe fora
confiscada. Em um sentido amplo, a obra de Shakespeare aborda o processo de
devassa da opacidade da natureza, reduzindo a sua totalidade a uma transparncia
passvel de ser manipulada a partir do domnio da conexo interna e orgnica de

1197
CASTIGLIONE, Baldassare. O Corteso. 1 edio 1528. So Paulo: Martins Fontes, 1997. A
obra de Castiglione um aparato terico muito importante para ser cotejado com o processo
civilizador descrito por Norbert Elias. Sobre a fortuna crtica e a recepo da obra de Castiglione
conferir: BURKE, Peter. As Fortunas dO Corteso: a Recepo Europeia a O Corteso de
Castiglione. So Paulo: Unesp, 1997.
1198
GINZBURG, Carlo. O Alto e o Baixo: o Tema do Conhecimento Proibido nos Sculos XVI e XVII.
Mitos, Emblemas, Sinais: Morfologia e Histria. So Paulo : Companhia das Letras, 1990.
466

suas partes. A assimetria entre Prspero e Calib de ordem poltica medida que
da ordem das mediaes. A criatura proto-humana no tem o conjunto dos media
necessrios para sublevar o poder de seu dominador. Padece de uma carncia de
meios, no de uma condio inalienvel criada pelo colonizador, medida que o
colonizador libertou Ariel e forneceu-lhe os meios de executar seu poder celestial. As
assimetrias naturais entre Calib e Ariel e as assimetrias artificiais entre Prspero e
Calib designam a dificuldade de enquadramento ideolgico desta obra, bem como
a fineza da anatomia poltica de Shakespeare.
A assimetria entre natureza elevada e baixa natureza se estabelecem em um
continuum do eixo Prspero-Arte, Ariel-Espritos e Calib-Sycorax-Setebos. A
despeito da relao servil estabelecida por Calib em relao a Prspero, este
argumenta em benefcio prprio, dizendo-se responsvel por libertar Calib dos
domnios terrveis de sua prpria me, a bruxa Sycorax. Com sua Arte, Prspero
domina inclusive Setebos, o deus de Calib. Por seu turno, as assimetrias entre o
eixo Antonio-Alonso e a figura de Prspero so de outra ordem. Apontam para um
embate que se coloca na ascenso planetria do capitalismo e na configurao de
um sistema-mundo, bem como na translao dos regimes polticos dos globos,
configurados pela metafsica imperial, para a pluriesferas das espumas, advindas
com a infinitizao cosmolgica e com a virtualizao da vida sobre as quais a
modernidade se alicera e produz seu enorme desdobramento cultural e
morfolgico. Shakespeare demonstra o carter paradoxal desse conflito. Coloca em
cena o embate entre dois sistemas, um orgnico e outro inorgnico, mas ressalta a
codependncia recproca que ambos apresentam um em relao ao outro:
Sebastian, irmo de Alonso, deixa sugerido ao longo da pea que pretende usurpar
tambm o trono de Npoles de seu irmo, como Antonio e Alonso fizeram com
Prspero. H um espelhamento entre os irmos Antonio-Prspero e Alonso-
Sebastian, em seus respectivos intentos de traio e usurpao do trono.
Alm disso, h o eminente casamento de Claribel, filha de Antonio, com o rei
de Tnis, na distante frica. E h a paixo de Miranda por Ferdinand, filho de
Alonso, e seu sucessivo casamento. Essas alianas reforam a tese da
naturalizao das assimetrias e da desnaturalizao das assimetrias. Isso ocorre
porque esses pactos amorosos no tm nada de romntico. Realizam as conexes
mundiais entre Npoles-Tnis, ou seja, Europa-frica, que, no limite, consumar-se-
o com as cruzadas neocoloniais do sculo XIX com. E realizam tambm a dinmica
467

de uma incluso-excludente entre civilizao-barbrie e entre continente-ilha, por


meio do pacto de sujeio a que os traidores, agora prisioneiros, estabelecem com
Prspero. Essas alianas so as formas ambivalentes da emergncia do capital
global, que se consumou ao longo dos ltimos sculos at chegar s dinmicas
cnicas e cinticas das reticulaes do capital planetrio do comeo do sculo
XXI1199. Esses casamentos e alianas selam o pacto dos centros emissores de
poder com as periferias receptoras de poder. Configuram a ambivalncia estrutural
do sistema-mundo. Sinalizam os modelos bivalentes sobre os quais se estrutura o
double bind [duplo vnculo] da razo cnica moderna. Ratificam os paradigmas
bivalentes dos sistemas de imunizao da esferologia.
No plano da epistemologia, o conflito hermenutico entre orgnico-inorgnico
e a divergncia entre os dualismos e monismos, sejam eles formais ou de
substncia, entre empirismo e transcendentalismo, que demarcam tanto as
controvrsias epistemolgicas tipicamente modernas, determinam a grande histria
da cincia dos ltimos sculos, de Newton e Descartes a Leibniz e Haeckel, de
Darwin e Freud a Einstein e Bhr. Como sempre preciso analisar em termos
dialticos, esse conflito ocorre como sobreposio e naturalizao mais ou menos
hegemnica de discursos em aberto, no como a superao teleolgica de
premissas que se anulam umas s outras. Como diz Agamben, toda definio de
vida uma deciso poltica em torno do que a vida possa vir a ser. Nesse sentido, o
conflito epistemolgico entre teorias organicistas e dualismos de substncia
baseados no binmio extenso-pensamento, ou seja, entre postulados orgnicos e
inorgnicos, so uma iluso cintica e poltica. Eles nos ocultam o fato de que
preciso que o mundo seja orgnico para que possa ser mimetizado aos padres
humanos e dessa forma manipulado. Inorgnica seria no a matria inerte,
concebida como pura extenso cartesiana, mas o puro Exterior, que ainda no foi
absorvido pelas tecnologias e organizado na pura interioridade de esferas habitadas
e de espaos vividos.

1199
O conceito de reticulao e de malhas reticulares oriundo das teoria do campo reticulado do
matemtico Henri Poincar. Sloterdijk o cita por meio da assimilao e desdobramento desse
conceito propostos por Philippe Forget e Gilles Polycarpe. FORGET, Philippe e POLYCARPE, Gilles.
A Rede e o Infinito: Ensaio de Antropologia Filosfica e Estratgia. Lisboa: Piaget, s/d.
468

7.15 O Grande Globo Desapareceu

O teatro Globe foi o palco no qual se encenaram algumas das maiores obras-
primas mundiais do teatro e da arte dos sculos XVI e XVII. Tambm foi o signo
hermtico e esferolgico da soberania do absolutismo monrquico britnico. A
intuio do incndio que o reduzira a p, lanada por Shakespeare em alguns
versos soltos de Macbeth, tempos antes de que o acidente de fato consumasse a
sua majestosa destruio, assume diversos nveis de sentido, como as camadas
hermenuticas que Dante pressups para a sua Commedia. Em primeiro lugar, h
um nvel literal, que poderamos chamar de biogrfico. Ele se refere ao fim da poca
urea do bardo nos palcos do Globe. Em segundo lugar, possvel pensar o
desaparecimento do Globe como a prefigurao de um evento histrico real, ou seja,
como uma sinalizao escatolgica do fim dos tempos, entendido como sinnimo do
fim efetivo do teatro Globe. Entretanto, em nveis mais sutis, Shakespeare
demonstra que o prprio conceito de mundo entendido como globo que
desapareceu. E desapareceu no porque o mundo como era concebido tenha
desaparecido, mas porque o mito de sua obra derradeira detecta a runa dos modos
de imunizao poltica centrados na esfera-globo e a passagem infinitizao e
recproca codependncia dos centros emissores-receptores de poder global, agora
diludos na simultaneidade virtual e efmera das esferas-espuma. A legalidade dos
prncipes do continente abalada pelo efeito-ilha produzido pelas mos mgicas e
anacrnicas de Prspero e pelos agentes visveis e invisveis de sua Arte. Somos
agora a espuma da vida lanada deriva de sua prpria autodeterminao. As
espumas das tempestades da hiperpoltica se inauguram com a modernidade. Sob
seu impacto avassalador, vislumbramos o horizonte do sculo XXI. Essa a
Tempestade de Shakespeare. Capitaneada por Prspero, ela demonstra que a
desinibio de concepes organicistas e mgicas capaz de produzir a queda da
imunizao imperial sob a qual os legisladores metafsicos submetem seus sditos
da mesma maneira que submetem a vida e a domesticam, em molduras abstratas e
geomtricas. Mas as espumas comportam ainda um paradoxo mais cruel: o
paradoxo da prpria liberdade. Pois nos remetem fatalidade incontornvel de que
em cada recndito meandro do globo cada um de ns , simultaneamente, Prspero
e Ariel, Calib e Prspero, Antonio e Prspero, Prspero e Alonso, ou seja,
469

traidores, conquistadores e vtimas. Somos, a um s tempo, o sujeito coletivo e a


interdio singular de nossa efetiva emancipao.
No limiar do sculo XXI, os combates mesolgicos e os usos dos meios-
mediadores para conquistar os meios-mundos continuam to ou mais violentos do
que sempre foram. Todo imperador cria suas prprias ilhas, e a partir delas, com
poucos recursos, une magia e politologia para coordenar um exrcito de spiriti
capitaneados por Ariel e mobilizados por aqueles que detm os segredos da Arte.
Assim consegue produzir um misto de devastao da Terra e criao simtrica de
novas ecologias e de novos ambientes artificiais mesologicamente instalados,
imunes e impermeveis aos agentes coletivos responsveis por sua instalao. Os
meios-mundos, regidos pela impermanncia, surgem-nos justamente da intuio de
que nossos ps no repousam na terra, mas sim no abismo de espaos infinitos.
Como diria Flusser, a utopia j se realizou. A utopia no a consumao de um
futuro ideal, sob a forma imaginal de uma communio e de uma polis expandida e
partilhada. A utopia , rigorosamente, o no-lugar, entendido como ausncia de
cho [Bodenlos] e falta de solo [Ungrund], ou seja, como infinitizao irreversvel dos
processos finitos, que temos vivido em escala global, desde o sculo XII. Hoje em
dia apenas o nada conseguiu ser efetivamente catlico, ou seja, ecumnico e
universal. O nada o nome dado pelo finito para a infinitizao, e, aos poucos, nada
e angstia sero felizmente transcendidos e aniquilados pela infinitizao ilimitada
dos processos contingentes.
Essa constatao antropolgica tem produzido a acelerao tecnolgica
capaz de conter em si essa eroso ontolgica, e seus desdobramentos constituem
aquilo que chamamos de modernidade. A contrao do tempo e a infinitizao do
espao moderna apenas em termos didticos. No fundo do olho do infinito, somos
simultaneamente prsperos e miserveis. Animais capturados em uma ilha e
domesticados por um estranho e ao mesmo tempo domesticadores lascivos de
outras vidas, humanas e no-humanas. Tambm somos agentes e pacientes, livres
e escravos nas malhas infinitas da economia e do poder globais. Somos peas do
sistema-mundo sem as quais no haveria nem sistema e tampouco mundo. Esteja
esse mundo em qualquer ilha ainda no catalogada. Seja o mundo o espao ainda a
ser criado fora da possibilidade de inscrio em qualquer mapa. Nesses termos, as
palavras finais do solilquio de Prspero trazem um ensinamento sibilino, mais
oculto e mais sutil que todos os tratados hermticos. A renncia de Prspero a sua
470

Arte no uma derrota. a forma pura do impoder, na acepo de Agamben. O


pleno exerccio da no-potncia. O nico sentido para a poltica global no sculo XXI
no o exerccio da potncia. a conscincia de nossa impotncia. Apenas a
autoapreenso de nossa finitude e de nossos limites pode transformar as guas
infinitas do universo em modos pelos quais a vida possa prosseguir em si mesma,
Apenas assim conseguiremos dar prosseguimento ao movimento transferencial por
meio do qual a vida h de realizar o destino infinito e eterno que lhe cabe e que a
define como vida.
471

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