Dossiê Belo Monte
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Editor responsvel
Messias Basques
Comisso Editorial
Alexandra Gomes de Almeida, Amanda Danaga, Bruna Potechi, Caio Arajo Manhanelli,
Camila Rocha Firmino, Carla Souza de Camargo, Cristina Rodrigues da Silva, Christiane
Tragante, Erica Rosa Hatugai, Flvia Carolina Costa, Gil Vicente Loureno, Karina
Biondi, Lara Tejada Stahlberg, Lecy Sartori, Lgia Rodrigues de Almeida, Ludmila H. R.
Santos, Maria Carolina de Arajo Antnio, Mariana Medina Martinez, Marlia Martins
Bandeira, Marlia Sene de Loureno, Natlia Sganzella, Patrcia dos Santos Begnami,
Tatiana de Lourdes Massaro, Thas Regina Mantovanelli da Silva
Conselho Editorial
Ana Claudia Marques (USP), Celso Castro (FGV), Christine Alencar Chaves (PPGAS-
UFPR), Cynthia Andersen Sarti (UNIFESP), Dbora Morato Pinto (UFSCar), Edward
MacRae (UFBA), Fernando Rabossi (Museu Nacional), Fraya Frehse (USP), Gabriel de
Santis Feltran (UFSCar), Guilherme Jos da Silva e S (UNB), Joo Biehl (Princeton),
Joo Valentin Wawzyniak (UEL), Jorge Luiz Mattar Villela (UFSCar), Marco Antonio T.
Gonalves (UFRJ), Marcos Lanna (UFSCar), Maria Catarina C. Zanini (UFSM), Mariza
Gomes e Souza Peirano (UNB), Olvia Cunha (Museu Nacional), Pedro Peixoto
Ferreira (UFSCar), Rose Satiko G. Hikiji (USP), Simoni Lahud Guedes (UFF)
Correspondncia Editorial
[email protected]
https://sites.google.com/site/raufscar/
R@U
Revista de Antropologia Social
dos Alunos do PPGAS-UFSCar
volume 2, nmero 2
ISSN: 2175-4705
R@U Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS UFSCar
Volume 2, nmero 2, Julho Dezembro, 2010
ISSN: 2175-4705
Colaboradores deste nmero: Sally Price, Aristteles Barcelos Neto, Giuliana Borea,
Clarice Cohn, Luis Roberto de Paula, Ana Maria Daou, Daniela Manica, Mariana Vilas
Bas Mendes, Luis Felipe Kojima Hirano, Tatiana Helena Lotierzo, Eduardo Soares
Nunes, Moiss Lopes, Edward Evan Evans-Pritchard (traduo), Igor Mello Diniz, Lgia
Maria Venturini Romo, Fbio Lopes Alves, Lgia Rodrigues de Almeida, Marlia Sene de
Loureno, Camila Mariano Lupino dos Santos, Marlia Martins Bandeira, Maleonn (capa
e entrevista)
1. Antropologia;
Artigos
___
Rumo ao mainstream p.12
Trasladando autenticidades na arte
SALLY PRICE
Participao-imitao p.145
Ensaio para um possvel dilogo entre Lucien Lvy-Bruhl e Gabriel Tarde
LUIS FELIPE KOJIMA HIRANO
TATIANA HELENA LOTIERZO
Traduo
A Dana p.208
EDWARD EVAN EVANS-PRITCHARD
Por Igor Mello Diniz
Sumrio
Dossi Belo Monte
Belo Monte e processos de licenciamento ambiental p.224
As percepes e as atuaes dos Xikrin e dos seus antroplogos
CLARICE COHN
Entrevista
O pintor do desassossego p.303
Entrevista com Maleonn
Por MESSIAS BASQUES
Relatos de pesquisas
Fazendo antropologia no bordel p.314
Relatos de uma pesquisa participante
FBIO LOPES ALVES
Guarani-Nhandeva p.326
Migrao, territrio e identidade
LGIA RODRIGUES DE ALMEIDA
Resenhas
ALMEIDA, R. A igreja universal e seus demnios: um estudo etnogrfico. p.336
MARLIA SENE DE LOURENO
TOLEDO, L. H.; COSTA, C. E. (orgs.). Viso de Jogo: antropologia das prticas p.349
esportivas. MARLIA MARTINS BANDEIRA
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Editorial
A
R@U Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-
UFSCar apresenta aos leitores a sua quarta edio. Neste nmero,
contamos com trabalhos que dialogam com as mais variadas linhas
de pesquisa antropolgica, alm de uma seo inteiramente
dedicada ao projeto de construo da Usina de Belo Monte, na bacia do Rio
Xingu, que traz textos de trs pesquisadores envolvidos com a temtica: Clarice
Cohn (UFSCar), Luis Roberto de Paula (UFMG) e Ana Maria Daou (UFRJ).
Os encontros que esta edio propiciou no foram planejados, contrrio
ao que se poderia imaginar ao passar os olhos por seu sumrio. Enquanto
caminhvamos para o fechamento da Revista, recebemos algumas ddivas que
se encaixaram perfeitamente ao compasso correspondente dos artigos que j haviam
tomado lugar em sua partitura.
O trptico de abertura composto pelos trabalhos de Sally Price, Aristteles
Barcelos Neto e Giuliana Borea que debatem, respectivamente, o universo da arte
quilombola na Guiana Francesa, os rituais de mscaras realizados pelos Wauja do
Alto Xingu e a ampliao da cena artstica peruana atravs da obra de Rember
Yahuarcani Lpez. A capa desta edio conta com a generosa participao do
artista chins Maleonn (Ma Liang, em chins), que autorizou o uso da imagem
que a ilustra e ainda nos brindou com uma breve entrevista. De So Carlos a
Pequim, a Revista prossegue com os trabalhos de Daniela Manica e sua etnografia
de congressos mdicos; Mariana Vilas Bas Mendes discute os territrios
existenciais dos moradores de rua de Belo Horizonte; Luis F.K. Hirano e Tatiana
H. Lotierzo apresentam um ensaio para um possvel dilogo entre Lucien Lvy-
Bruhl e Gabriel Tarde, cujos apontamentos alinhavam uma evoluo a-paralela com
o artigo de Eduardo S. Nunes, dedicado ao dilogo entre este mesmo Lucien
Lvy-Bruhl e Claude Lvi-Strauss. A seo de artigos encerrada pelo trabalho de
Moiss Lopes acerca da conversao e caracterizao do self em uma entrevista.
Editorial
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Boa leitura!
Messias Basques
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Sally Price*
Artes se rearranjam. Quando artistas que antes eram ditos primitivos se veem
atuando num ambiente novo e expandido, com uma clientela internacional, novos
materiais com os quais trabalhar, acesso a espaos de exibio urbanos, assessoria de
agentes culturais e opes de trnsito internacional, sua reao pode incluir inovaes
altamente criativas tanto nas formas que produzem quanto nas interpretaes que
oferecem de seus trabalhos. O novo ambiente pode at mesmo levar a rearranjos nas
vises que eles tm das origens e significados de sua herana artstica...
Seis de maio de 2005. a abertura de gala de uma exposio de pinturas num bar
chique e urbano. Um amplo espao sob um teto em estilo catedral, mesas e cadeiras de
ferro forjado, vime, e madeiras de lei elegantemente esculpidas, iluminao fraca,
grandes plantas em vasos e pinturas saborosamente dispostas (ver figura 1). Atrs do bar
h um tecido de cores vivas elaborado pelo artista e produzido por batiqueiros da
distante Indonsia (ver figura 2). s nove e meia, as mesas esto todas ocupadas,
principalmente por membros do jovem jet set local, vestidos num estilo casual refinado, e
o lugar preenchido pelo burburinho de conversas animadas. Homens bebem Johnny
on the rocks, enquanto muitas das mulheres optam por batidas espumantes em tons pastis
de cassis, granadina e limo.
* A Comisso Editorial da Revista R@U agradece a Sally Price pelo gentil acolhimento de nossa solicitao
para a traduo e publicao deste texto, bem como por ter revisado a primeira verso em portugus e
oferecido as imagens coloridas. Tambm agradecemos o apoio do professor Pedro Peixoto Ferreira
(PPGAS-UFSCar). Este artigo foi originalmente publicado na revista American Ethnologist, vol. 34, n. 4,
pp. 603620, 2007. A sua publicao em portugus visa ampliar o acesso aos trabalhos da autora em nossa
Artigos
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Figura 2: Tecido batik elaborado por Franky Amete. Foto: S. Price, 2005
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Se o termo art premiers existisse em meados do sculo XX, ele abarcaria facilmente
a arte do pai, dos tios e dos avs de Franky.2 Naquele tempo, as mulheres Aluku ainda
no cobriam os seios e os homens mais velhos usavam tangas. Ainda se podia ver rostos
decorados com escarificaes. Muitas casas tinham telhado de folhas de palmeira e a
gua era trazida do rio em baldes. A dieta era centrada em mandioca cultivada em roas
e complementada por caa local, como papagaios, macacos e antas. As decises eram
tomadas consultando-se vrios tipos de divinao, e mensagens eram percutidas no
tambor falante apinti. Havia possesso espiritual, culto aos ancestrais, e danas para
deuses corporificados em abutres, anacondas e outros animais da floresta. Escrita,
leituras e escolas praticamente inexistiam. At mesmo o termo que os Aluku e outros
quilombolas nas Guianas frequentemente usam para si mesmos buschinengu ou
busineng, traduzidos geralmente como Bush Negro (em ingls) ou Boschneger ou Bosneger
(em holands) - passa uma impresso de completo exotismo. A milhares de milhas e trs
sculos distantes da frica, os quilombolas foram, no obstante, chamados de africanos
da Guiana (Hurault 1970) pelos de fora. Melville Herskovits, visitando os quilombolas
de Saramaka nos anos 1920, escreveu em seu dirio: Isto africano. As casas e os
fetiches, as crianas nuas e os adultos cicatrizados, tudo se encaixa. (Price e Price
2003b:18) Ou, como haviam se admirado dois viajantes de Harvard nos anos 1970, os
quilombolas pareciam ser mais africanos que boa parte da frica. (Counter e Evans
1981: 32-22, s.d.:2)
Durante a dcada de 1970, no entanto, os quilombolas Aluku (assim como os
amerndios da Guiana Francesa) foram alvo de um programa assimilacionista agressivo,
concebido em Paris, conhecido como francisation (francesizao), que transformou os
prprios fundamentos de seu modo de vida e resultou numa migrao em massa das
vilas do interior para as cidades ao longo da costa. L eles se juntaram aos crioulos,
europeus, chineses, brasileiros, antilhanos e haitianos que compem a populao das
cidades costeiras da Guiana Francesa, juntamente com nmeros substantivos de
quilombolas de outros grupos, sobretudo Saramakas do Suriname central. Desde meados
do sculo XIX, os homens de Saramaka tm deixado suas vilas para integrar, por anos a
fio, o caleidoscpio tnico da Guiana Francesa primeiro no comrcio madeireiro e em
transportes fluviais e depois numa variedade de nichos, da construo minerao do
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ouro. No final dos anos 1980, uma guerra civil no Suriname levou a um aumento do
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lies se transmutaram numa nova arte vibrante que se tornou um gnero enfaticamente
autntico da expresso criativa quilombola.
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brancos. (Kasfir 1999: 96-97)6 Kasfir indica como esse conselho, que poderia parecer
benigno em outros contextos, implicou o estabelecimento de limites para os artistas
negros no ambiente racialmente carregado do apartheid, conduzindo-os rumo ao
desenvolvimento de uma arte distrital baseada em realismo social. Ironicamente, esse
estilo foi apoiado no outro extremo do espectro poltico, por motivos totalmente
distintos, pelo Congresso Nacional Africano, como sendo consistente com a ideia de que
o assunto humano era o nico assunto digno de explorao. (Kasfir 1999: 97)
Kasfir mostra tambm como os organizadores de oficinas na Nambia, assumindo
um papel protetor frente aos artistas bosqumanos (bushman) para que no fossem
explorados por estrangeiros inescrupulosos, acabaram construindo e autenticando uma
cultura bosqumana para o benefcio do resto do mundo, [ligando] os artistas das oficinas
a um passado de caadores-coletores, mesmo que nenhum dos artistas ou suas famlias
tenham jamais vivido desse modo, porque isto confere sua arte um pedigree que o
pblico reconhecer como autntico. (1999: 63)
Outros casos de inveno de novos estilos e de sua promoo como produtos de
uma cultura autntica devem muito aplicao equivocada de vrios enquadramentos de
origem europeia, de misticismo e conceitos junguianos de um inconsciente coletivo at
modelos baseados na arte de artistas europeus como Pablo Picasso e Henry Moore.
Tomados em conjunto, as centenas de exemplos analisados por Kasfir compem um
retrato da emergncia de uma nova arte africana para o palco mundial, que teve incio
nas dcadas de 1950 e 1960, como uma grande iniciativa de mediao cultural realizada
por um pequeno nmero de promotores, sobretudo agentes europeus. (1999: 65)7
Um livro recente do antroplogo africanista Jean-Loup Amselle sobre as direes
atuais no mundo da arte africana explora desenvolvimentos similares. Lart de la friche
(2005), um trocadilho com Lart de LAfrique, tambm brinca com a metfora la friche,
um conceito atualmente em voga na Frana, que parte da transformao de runas
industriais em espaos da moda para uma clientela de alta classe. Em lugar de ocupar-se
das caractersticas estticas das artes em questo, Amselle focaliza o lugar que a frica
ocupa na imaginao ocidental e o espao (social, cultural e poltico) que artistas
africanos ocupam hoje em dia. Ele adverte que ver a arte africana contempornea
apenas como o produto das fantasias exotizantes ocidentais seria superestimar o poder de
agentes coloniais e ps-coloniais. E assim se deixaria de considerar as interaes, tanto
integrativas como de oposio, com alternativas, tanto prximas quanto distantes, que
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Aps dcadas de envolvimento com os artistas Saramaka, eles tem insistido que
as reivindicaes de significados simblicos so a marca de uma disposio para se
enunciar qualquer discurso capaz de aumentar seu sucesso no mercado. Muitos homens
expressaram orgulho por nunca ter abandonado sua integridade por meio de tolices sobre
smbolos e at alguma amargura em relao ao sucesso que esses discursos trazem. No
incio de 1990, tivemos a oportunidade de expandir a nossa experincia de campo aos
quilombolas do leste, graas a uma expedio de coleta (conduzida em conjunto com o
etngrafo Aluku Kenneth Bilby, num ano, e o etngrafo Ndyuka Diane Vermon, no
seguinte), e l, conversando com homens de meia idade e ancies nas vilas do interior,
ns ouvimos mais do mesmo discurso. Mais tarde, conversamos com um talentoso
entalhador Ndyuka que havia criado uma pardia cmica dos relatos smbolo-
centrados com os quais alguns de seus pares se engajaram.
Nossas viagens recentes Guiana Francesa incluram conversas com homens da
gerao do pai de Franky Amete, alguns dos quais nos deram os nomes dos motivos e
afirmaram que os designs fazem referncia generalizada ao lobi (amor), apesar de todos
eles terem negado vigorosamente que seus entalhes possam ser lidos como mensagens.
Finalmente, discutimos estas questes com os colegas antroplogos que trabalham com
os quilombolas do leste Bonno Thoden van Velzen e Ineke van Wetering, que estudam
a cultura Ndyuka ininterruptamente desde os anos 1960; Bilby, cuja experincia com os
Aluku remonta a meados da dcada de 1980; Vernon, que fez trabalho de campo com
Ndyuka no incio dos anos 1980 e residiu por muitos anos na cidade de Saint-Laurent du
Maroni, majoritariamente Ndyuka , e todos chegaram s mesmas concluses que
surgiram de nosso trabalho com os Saramaka.
Em 2005, entrevistei um produtivo artista Ndyuka de quarenta anos que,
recentemente, abandonou a cooperativa que havia promovido o seu trabalho. Ele estava
magoado, sentindo-se usado pelos lderes europeus da organizao. Ao vermos juntos
um reluzente catlogo publicado pela cooperativa, ele apontou para uma foto sua,
sorrindo, ao lado de citaes sobre simbolismo que lhe foram atribudas. preciso
arrancar as pginas e jog-las na lata de lixo, ele disse. Eu, eu tive que sair. Eu no
poderia permanecer numa organizao que tem muitas coisas erradas. As pessoas que
compram o livro, elas esto recebendo 75% de mentiras.
A viso da arte quilombola como uma linguagem simblica, alimentada em um
ambiente fortemente enviesado pelo gnero, contm um equvoco interessante. Alega-se
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que a maioria dos entalhes so destinados como presentes de amor dos homens para
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escarificao ou motivos de entalhes. Esses nomes, que para os quilombolas nada mais
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Figura 7: Mural elaborado por Dimpai-awini, membro da cooperativa Mama Bobi. Em 2000,
estudantes participaram de sua realizao na parede de um collge (equivalente ao ensino mdio) em
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Figura 8: Anncio de um entalhador Saramaka em uma estrada na regio oeste da Guiana Francesa.
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Figura 10: Centro Cultural Mama Bobi, Saint-Laurent-du-Maroni. Foto: S. Price, 2005
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Simbolismo de mercado
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aprendida atravs de iniciao de pai para filho e concebida para transmitir mensagens
(sexuais) explcitas para as mulheres para as quais a maior parte da arte fora
tradicionalmente feita.
As cooperativas da Guiana Francesa adotaram essa viso de exotismo quilombola
e usaram-na de forma criativa para promover a arte de seus membros. Uma das
publicaes assinadas pela equipe de arquitetura de Grenoble na Libi Na Wan diz o
seguinte:
Alguns exemplos:
Lua cheia florescimento, fertilidade
Boca expresso de um desejo
Casco de tartaruga paixo ardente
Letras S lado a lado amor de longa durao
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de temb fora usada como um meio de comunicao entre os escravos das plantations,
comparvel s mensagens de cdigos secretos. Aps os escravos sarem de sua condio
de servido e se estabelecerem nas margens do rio (...), ela [a arte temb] se tornou a
linguagem escrita de uma comunidade que at ento se baseava numa tradio oral.
(2004:1)
A arte dos quilombolas est longe de ser a nica a tornar-se alvo daqueles que tm
sede de significados simblicos na arte. Ao contrrio, o fenmeno tem sido
frequentemente notado por observadores em vrias partes do mundo, escrevendo sobre
uma variedade de meios artsticos. Para citar apenas dois exemplos, a estudiosa de
txteis africanos Venice Lamb traou a busca de simbolismo clnico em roupas
Asante, pelo capito Robert Sutherland Rattray (1881-1938), ao poder do desejo de
atar nomes e significados para as formas artsticas, que, segundo ela, podem t-lo levado
a ler mais sobre estes padres do que havia planejado inicialmente. Os teceles,
particularmente quando submetidos a questionamentos de estrangeiros, podem-se sentir
sob alguma obrigao de construir estrias significativas e lendas para explicar padres
abstratos que, em si mesmos, so realmente apenas belos trabalhos txteis. (1975:136) E
estudiosos da arte nativa norte-americana tm apontado a inadequao da busca de
estrangeiros por significados sagrados nos txteis Navajo, sublinhando que no h
nenhum significado sagrado para os produtos acabados ou em seus desenhos
geomtricos. (Berlo e Phillips 1998:67)
Mais recentemente, o mito do simbolismo artstico alcanou a primeira pgina do
The New York Times em conexo com uma esttua comemorativa no Central Park
(Cohen 2007). A instalao de uma esttua de pouco mais de 2 metros de altura, de
Frederick Douglass, se desenrolava como o previsto, a um custo de $ 15,5 milhes de
dlares, quando historiadores apontaram um problema com a representao de granito
de uma colcha que fazia parte da esttua. Os quadrados da colcha continham smbolos
que, de acordo com uma placa ao lado, sinalizavam a localizao de esconderijos e
rotas de fugas ao longo da Underground Railroad, bem como outras informaes vitais
para uma fuga de escravos e sua sobrevivncia. Entretanto, como os historiadores
rapidamente apontaram, a ideia de que a colcha carregasse mensagens secretas nada
mais era que uma histria espria, popularizada por um livro de 1999 intitulado
Hidden in Plain View (Tobin e Dobard 1999), que se baseou nas lembranas de uma
nica mulher. O livro imediatamente ganhou ampla exposio no programa televisivo de
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Oprah Winfrey, no jornal USA Today e foi avidamente apanhado por professores de
ensino fundamental que o viram como uma inspiradora ferramenta pedaggica para a
sala de aula. Sua tiragem ultrapassou o nmero de 207 mil cpias. O apelo que lanou o
cdigo secreto no difcil de discernir. Como um colunista Op-Ed (Opposite editorial)
observou,
Poucos aspectos do passado americano inspiraram uma mitologia
to fascinante como a Underground Railroad. Talvez seja justo dizer
que a maioria dos americanos a veem como uma trama
emocionante de voos meia-noite, fugas de tirar o flego, cdigos
misteriosos e estranhos esconderijos. Portanto, no de se admirar
que a intrigante (no obstante tenha sido recentemente inventada)
estria de mapas de fuga codificados em colchas do antebellum
[nome dado ao pr-Guerra Civil americana] (...) tambm se
aproveite da imaginao popular. (...) Colchas vistosas e tneis
misteriosos satisfazem a propenso humana para histrias
facilmente digerveis. Os mitos nos entregam os heris que
desejamos e submergem a terrvel realidade da escravido numa
nvoa dourada de elevao. [Bordewich 2007: A19]
Artistas estrangeiros
Algum poderia argumentar que o teste decisivo para a entrada de uma arte do
Quarto Mundo no mercado global a sua capacidade de incutir estrangeiros a passar de
consumidores a produtores. Os entalhadores de Saramaka atingiram a meta no incio dos
anos 1990, quando um professor francs empreendedor vendeu com sucesso sua coleo
de instrumentos musicais antigos a um museu estatal, todos elaboradamente
entalhados com motivos Saramaka e guarnecidos com bzios e incrustaes de ossos em
combinaes que refletem a prpria construo idiossincrtica da arte quilombola (cf.
Price e Price 1995 para a histria dessas falsificaes). Quinze anos depois, outra
adaptao despertou minha ateno, sugerindo que os desenhos pintados dos
quilombolas do leste tambm se encaminharam para tomar parte no mainstream. A
admirvel toalha de praia de cores vibrantes mostrada na figura 11, venda por 45 euros;
um exemplo perfeito, se que haveria um nico exemplo da arte temb. De fato, ela
implica tantas faixas entrelaadas, tantos contrastes de cor, e tantos pequenos motivos de
tipo simblico que algum at se sentiria tentado a consider-la uma caricatura. Nesse
sentido, ressoa nas falsificaes Saramaka da dcada de 1990, que decolou da viso
europeia de seu autor a respeito da arte quilombola, levando um estilo bem
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Franky Amete conta uma estria que traa uma linguagem do simbolismo na arte
quilombola desde as origens da era da escravido, quando ela alegadamente funcionava
como um meio de comunicao de uma fazenda a outra. Eu contei uma estria neste
artigo que a descreve como o produto de uma entrada tardia na economia de mercado do
sculo XX e os sonhos de primitivizao dos agentes culturais no-quilombolas.
Parece que estamos flutuando num domnio nebuloso em que discurso e evento
competem por autoridade. Mas independentemente das maneiras como se leem as placas
de sinalizao, parece claro que uma linguagem de simbolismo conquistou o seu lugar
como uma dimenso significativa da arte quilombola, ao menos para alguns de seus
produtores mais bem sucedidos. Olhando pelos olhos de Elmyr de Hory [o falsificador
do filme de Orson Welles], se permanecer na parede por tempo suficiente ter obtido a
sua autenticidade.
Sally Price
Departamento de Antropologia
College of William and Mary
Estados Unidos da Amrica
E-mail: [email protected]
Agradecimentos
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Figura 12: Pster que ensina a ler os motivos na toalha de praia de Hatt Eaton. Foto: Price, 2006
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Figura 13: Participantes trajando toalhas de praia elaboradas por Hatt Eaton.
Foto: Hatt Eaton, cedida por Sally Price em 2010.
Figura 14: Participante desfila perante a comisso de jurados do concurso, coberta por uma toalha elaborada por Hatt
Eaton. Foto: Hatt Eaton, cedida por Sally Price em 2010.
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1
Nota dos tradutores: Em funo da polissemia do verbo shift, optou-se aqui por traduzi-lo como
trasladar. O verbo trasladar implica tanto uma mudana em termos de deslocamento (traslado) como a
possibilidade de traduo de um regime a outro (a ideia de verter, p.ex., o canto poesia). A
ambiguidade constitutiva do verbo trasladar interessante e comunica uma ambiguidade equivalente do
verbo shift, em ingls. Segundo o Dicionrio Aurlio, trasladar pode significar mudana de um lugar
para outro; transferir, transportar; traduzir, verter; adiar, transferir. Algo similar a definio do Dicionrio
Houaiss: transpor de uma lngua para outra; traduzir, verter; mudar(-se) de um lugar para outro;
transferir(-se), transferir para outra data; adiar, diferir.
2
A expresso arts premiers, popularizada na Frana como parte da campanha de Jacques Chirac para
promover o reconhecimento das artes do continente africano, da Oceania e pr-Colombiana em Paris, foi
uma tentativa para evitar as conotaes negativas da arte primitiva. A campanha presidencial se realizou em
dois locais proeminentes. Uma nova galeria com exibio dessas artes inaugurada no Museu do Louvre,
em abril do ano 2000, e um grande museu, construdo ao lado da Torre Eiffel, inaugurado em junho de
2006 (cf. Price 2007).
3
At a distribuio das ferramentas mudou. Eu vi recentemente esculturas de cabaas feitas por mulheres
que, em vez de serem gravadas com o caco de vidro tradicional, mostram as marcas de um compasso tal
aquele utilizado por homens nos seus entalhes. Nos anos 1960, alguns homens possuam mquinas de
costura com pedais e as usavam para ocasionalmente aodar algumas tangas, enquanto as mulheres
produziam a maioria de suas roupas mo. Agora, as mulheres desenvolveram estilos de bordados e
apliques, que empregam uma variedade de pontos decorativos, por elas produzidos em suas prprias
mquinas de ltima gerao.
4
Ver, por exemplo, Kasfir 1999, Amselle 2005, Phillips e Steiner 1999, Steiner 1994, Berlo e Phillips 1998,
Mullin 2001, Morphy 1998, e Myers 2002.
5
Ver o Posfcio em Price 2000, onde o autor lista as principais contribuies a estas tendncias.
6
Para um comentrio do artista Romare Bearden, pressionado at mesmo pelos artistas afro-americanos
do sculo passado nos Estados Unidos a se conformar aos esteretipos da arte primitiva, ver Price e
Price 2006: 42.
7
A curta lista de Kasfir dos casos mais conhecidos de agentes culturais inclui Ulli e Georgina Beier e
Susanne Wenger na Nigria, Frank McEwen e Tom Blomefield na Zimbbue-Rodsia (atual Zimbbue),
Pierre Romain-Defosss e Pierre Lods no Congo Francs e Belga, e Pancho Guedes em Moambique, mas
seu livro inclui inmeros outros, como missionrios, professores de arte, filantropos e at mesmo empresas
como a ESSO e a BMW.
8
Para uma reviso menos miniaturizada das interaes entre artistas quilombolas e observadores
estrangeiros, ver Price e Price 1999.
9
A palavra temb, que existe em ambas as lnguas quilombolas (Saramaka e Ndyuka), pode se referir a
objetos feitos com inteno artstica ou a pessoas com talento artstico.
10
Herskovits, cuja primeira experincia de campo fora dos Estados Unidos foi com os Saramaka, diz que
A anlise da arte dos negros do mato [no original, Bush-Negro] impossvel sem a ajuda dos nativos, e os
nativos tm uma maneira atraente de escapar s perguntas do investigador quando questionados sobre
os significados dos entalhes. Quaisquer que sejam as motivaes psicolgicas, o negro do mato
engenhoso em iludir seu inquiridor. Ele dir que o entalhe de madeira; dar um nome para ela; dir
que linda; que um desenho dentro e fora; ele dir que carpinteiro, ou que feito com uma faca,
ou que uma decorao, para citar algumas das respostas recorrentes. (1969:159-160)
Da mesma forma, um visitante holands de uma aldeia quilombola crist nos anos 1950, relata:
Ao inquirir o significado de [um tecido bordado suspenso numa porta], ningum deu uma resposta
direta. As mulheres da aldeia responderam uma flor. Como esta resposta no foi muito esclarecedora,
um homem velho foi perguntado. Sua resposta insatisfatria foi a mesma, uma flor. Obviamente, as
pessoas consideraram-na inapropriada para esclarecer o significado desta decorao privada aos
visitantes estrangeiros, especialmente quando referida a crenas religiosas que j no eram
(abertamente) professadas. [De Vries-Hamburger 1959:109]
11
Ken Bilby, que leu um esboo deste artigo, salienta que as unidades deste roteiro Afaka representam
sons especficos, que as tornam muito diferentes dos smbolos complexos (talvez multivocais),
incorporando ideias mais abstratas que os estrangeiros gostariam de imaginar quando pensam sobre a arte
quilombola. (comunicao pessoal, 9 dezembro de 2006)
12
O diretor geral da SIMKO, Jacques Maurice, tambm presidente da Libi Na Wan.
Artigos
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13
O livro de colorir foi publicado com o apoio do Conseil Rgional, um dos dois principais rgos do
governo da Guiana Francesa.
14
O carto indica que vermelho e branco representam um homem e uma mulher fazendo amor; um motivo
circular retrata o umbigo e, portanto, fertilidade; outro motivo circular glosado como o corao
batendo, com um ponto central indicando que o desenho foi feito tendo-se em mente uma pessoa
particular; um ponto semelhante parte de um motivo de tringulo duplo que comunica amor eterno. E
assim por diante.
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Artigos
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Tradutores:
Messias Basques
Mestrando em Antropologia Social
PPGAS-UFSCar
Recebido em 15/04/2010
Aprovado em 15/04/2010
Artigos
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As expedies alems s nascentes do Xingu (Karl e Wilhelm von den Steinen 1884 e
1887; Herrmann Meyer 1896 e 1899; Max Schmidt 1901) trouxeram notcias de curiosas e
gigantescas mscaras de dana, s quais, at o presente, no se parece ter dado muita
ateno na bibliografia cientfica, embora durante decnios uma dessas mscaras estivesse
exposta, debaixo de uma redoma de vidro, na seo americana do Museu Etnolgico de
Berlim. No obstante, merecem estudo cientfico mais acurado por causa de sua
peculiaridade, de sua exclusividade (no me consta haver paralelos em qualquer parte da
Amrica do Sul) e de sua ligao com o grande trocano, no menos curioso e por sua vez
limitado ao Alto-Xingu.
Fritz Krause publicou originalmente esse artigo em Leipzig, em 1942. Dois anos
mais tarde, o nico exemplar da mscara gigantesca, arduamente coletado por Herrmann
Meyer, era destrudo pelos bombardeios de Berlim, juntamente com milhares de outros
artefatos sul-americanos. no mesmo ano dos bombardeios que a clebre expedio
Roncador-Xingu redescobre os povos do Alto Xingu e abre caminhos para aquilo que
chegou a ser considerado um Eldorado de pesquisas etnolgicas no Brasil Central. Entre
1947, ano da implantao do primeiro projeto do Museu Nacional na rea, liderado por
Eduardo Galvo, e o fim da dcada de 1990, uma profuso de trabalhos foram escritos
sobre o Alto Xingu.2 Contudo, em nenhum deles so mencionadas as gigantescas
1
Agradeo aos Wauja seu valioso apoio, e ao CNPq, CAPES, FAPESP e Museu Nacional de Etnologia as
bolsas e financiamentos de pesquisa. A generosidade de Lux Vidal, Pedro Agostinho, Maria Rosario
Borges, Michael Heckenberger, Rafael Bastos e Bruna Franchetto permitiram que minha pesquisa no Alto
Xingu se tornasse realidade. Este artigo uma verso resumida e modificada de um trabalho publicado em
Barcelos Neto (2004a).
2
O Alto Xingu uma sociedade regional multitnica que integra, alm dos Wauja, outros nove grupos de
diferentes filiaes lingusticas Mehinako e Yawalapti (Arawak); Kuikuro, Kalapalo, Matipu e
Nahukw (Carib); Kamayur (Tupi-Guarani), Aweti (Tupi) e Trumai (de lngua isolada). Essa integrao
sustentada basicamente por trocas matrimoniais, rituais (sobretudo em grandes funerais), xamnicas e de
presentes cerimoniais. A sociedade regional xinguana teria sua gnese mais remota por volta do sculo X
AD (Heckenberger 2001). Transformaes profundas ocorrem a partir do sculo XVIII, culminando com a
Pax Xinguana instaurada pelos irmos Villas Boas na dcada de 1950, a qual se estende at os dias atuais
Artigos
(Menezes Bastos, 1992 e 1995) . Os Wauja somam uma populao de aproximadamente 410 pessoas, das
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quais 385 residem numa aldeia circular com o sistema de praa central e casa das flautas (dados censitrios
FUNASA 2006).
3
Para uma descrio das condies de realizao dos rituais de mscaras wauja e para uma etnografia
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Figura 1 O apapaatai Atujuw Ajou (Jatob) fmea amedronta uma menina que retorna do rio com um
caldeiro de gua. Ritual Apapaatai Iyu de julho-agosto de 2000. Foto: A. B. Neto
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Figura 2 esquerda o apapaatai Atujuw Anapi (Arco-ris) macho, ao centro a fmea do mesmo
apapaatai, e direita a fmea do apapaatai Atujuw Ajou (Jatob). Ritual Apapaatai Iyu de julho-agosto de
2000. Foto: A. B. Neto
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Figura 4 Os apapaatai Sapukuyaw Arikamu (Jacar), em primeiro plano, e Sapukuyaw Muluta (Peixe
Cascudo), em segundo plano, posam para uma fotografia. Ritual Apapaatai Iyu de julho-agosto de 2000.
Foto: A. B. Neto
4
Em kamayur o mesmo ritual chamado de Payemeramaraka. Vide Menezes Bastos, 1984-5, para uma
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5
As marcas so elementos visuais no identificados como motivos grficos. Tratam-se de pompons,
manchas e aderncias que singularizam uma determinada mascara.
6
Segundo a descrio de Ferreira (1975: 1092) trata-se de um peixe amaznico com o dorso escuro, uma
faixa amarela ao longo da linha lateral, com duas sries de pigmentos amarelo-ouro; cabea e parte
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Figura 5 Em primeiro plano, mscara do apapaatai Yuma. Ritual Apapaatai Iyu de julho-agosto de
2000. Foto: A. B. Neto
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inseridas.
Se tomarmos a imaginao visual dos apapaatai tal qual expressa pelos xamas
visionrios-divinatrios (yakap) em seus desenhos (Barcelos Neto 2002), teremos um
repertrio formal de roupas muito maior do que se observa nos rituais. A possibilidade
de fazer os apapaatai com lpis de cor e papel permite expressar com eloquncia as
suas capacidades transformativas. Mostrei tambm que os apapaatai, enquanto roupas,
estabeleciam com os animais uma relao de distoro formal por meio de uma
superlativao, compartilhamento ou reduo anatmicos, tendo ainda o grafismo como
signo complementar da distoro e da mistura/hibridizao (Barcelos Neto 2002: 155).
Assim, por exemplo, as marcas grficas de uma anta beb e de um tucunar podem estar
contemplados na mscara de um apapaatai qualquer, sem que esse apapaatai seja
necessariamente uma anta ou um tucunar. As roupas revelam um esforo de
combinar/alterar os elementos que se encontram isolados na natureza ou separados
conforme cada espcie animal. Roupas e mscaras no so, portanto, representaes
de espcies animais especficas.
Os motivos que os Wauja denominam com nomes animais no so cpias dos
grafismos que lhes so peculiares, so sobretudo motivos, i.e. formas estilizadas. Nas artes
decorativas, a estilizao pode evocar uma ideia de representao, qui de cdigo visual
(Munn 1973; Vidal 1992). O caso wauja, no inclina para nenhuma dessas direes.
Embora as formas visuais e grficas sejam padronizadas de um ponto de vista estilstico,
elas no implicam contedos invariveis.
Ao nos depararmos com objetos cuja sobrevivncia ao tempo se impe, como no
caso daqueles recolhidos aos museus, h sempre a insistente pergunta: mas afinal, o que
(ou era) esse objeto? Quando se trata de um objeto ritual, como mscaras, a questo
torna-se bem mais complexa, pois no se trata apenas de um objeto, mas de uma
personagem, o que coloca o problema da identidade numa posio absolutamente
central.
A identidade dos objetos de arte est geralmente relacionada a elementos grficos
e formais, o que leva o pesquisador a refletir sobre as questes de referente-referncia e
forma-contedo. Ser que em mundos altamente transformacionais como os amerndios
(Rivire 1995; Viveiros de Castro 1998), as artes visuais teriam alguma ressonncia sobre
essas questes? Ou elas se voltariam mais para a inconstncia e para as identidades
ambguas e mltiplas? Ser que devemos achar que toda mscara wauja pintada com
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fios de algodo que tm, em suas pontas inferiores, um pequeno pompom feito de fios de
algodo. Abaixo da otowona estende-se o puhutapa, uma espcie de cauda que cobre os
ombros e parte do abdome de quem veste a mscara. Um par de calas e mangas,
tambm feitas de fibra de buriti, completam a roupa. Sapukuyaw uma mscara que
consegue expressar imenso equilbrio formal. A vara com cordes e pompons atados que
atravessa horizontalmente a otowona cria um enquadramento retangular que acentua e
equilibra a verticalidade da roupa. Quando algum veste uma roupa bvio que o
seu corpo lhe conferir volume, mas a ideia da roupa propor uma outra anatomia.
Assim, quem vestir Yuma apresentar uma cabea achatada e alongada. As mscaras
apresentam outras possibilidades anatmicas, nem humanas, nem animais, mas
apapaatai.
Na pintura das Sapukuyaw empregam-se trs tipos de pigmentos: resinas vegetais
misturadas com fuligem, que do a cor preta; urucum, que d a cor vermelha; e raiz de
urucum, que d a cor amarela. Sapukuyaw tem duas faces laterais planas que so
igualmente pintadas. Na verdade, trata-se de um nico motivo que se estende de uma
face outra.
A pintura das Sapukuyaw um excelente exemplo para se analisar o sistema de
transformaes que relaciona forma grfica e identidade. A sua pintura segue dois
padres bsicos que consistem em seccionar ou no o campo plstico. So trs os tipos
de seccionamento: transversal, vertical e horizontal, sendo o primeiro o mais recorrente.
As Sapukuyaw Arikamu (figura 6), Kuwa (figura 7), Yusitstsi (figura 8) e Ukix (figura 9)
tm como motivo grfico uma faixa preta que secciona transversalmente o espao
plstico em duas partes. As Sapukuyaw Yutap (figura 10) e Muluta (figura 11) tm o
mesmo motivo de seco transversal, porm bicolor (preto e amarelo).
Listar as caractersticas morfolgicas das espcies animais, verificar como elas se
manifestam nas mscaras e depois deduzir uma identidade animal ir em direo
contrria ao pensamento e a prtica artsticas wauja, supor, de partida, que os animais
so o modelo para a criao arte grfica e das personagens rituais. Se seguirmos a trilha
dos mitos, veremos que os animais so tanto arte quanto as mscaras, pois ambos so
coisas fabricadas a partir de elementos formais que os Wauja reconhecem como ogana
(desenho) e opotalapitsi (imagem). Mscaras (roupas) e animais podem ser vistos como
transformaes/variaes uns dos outros, e, neste caso, dizer o que precede, como
modelo, analiticamente pouco til. O impulso de transformaes ocorrido com o
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surgimento do astro solar explica a criao da maioria dos animais pelos yerupoho, mas
h animais que Kamo e Kejo (os gmeos Sol e Lua, respectivamente) criaram, e outros
que ningum sabe exatamente como apareceram. Portanto no h o jacar, o tucunar, o
urubu etc. O que h so mltiplas origens de muitos dos animais conhecidos pelos
Wauja e isso implica igualmente nas mltiplas identidades dos animais.
O que se pode depreender disso que os aspectos anatmicos e morfolgicos dos
animais no determinam a natureza do animal. Acima da aparncia, o que mais importa
saber que tipo de gente aquele animal. Aparncias distintas podem ocultar pessoas iguais
(ou pelo menos semelhantes), por outro lado uma mesma aparncia pode ocultar varias
pessoas diferentes. So para esses modos de relacionar aparncia e essncia que os rituais
de mscaras e aerofones se voltam.
Muluta (peixe cascudo) um peixe todo preto e pequeno (20 cm em mdia),
porm com a cabea e a boca grandes, desproporcionais ao corpo, assim como o peixe
pirarara (yuma). Se a espcie muluta fosse um modelo para a representao, a mscara
Sapukuyaw Muluta (figura 11) deveria, no mnimo, ser totalmente preta, ou ento ter
uma forma parecida com a da mscara Yuma, cuja cabea achatada e a boca larga. Mas
o exemplar de Muluta no Apapaatai yu do ano 2000 foi feito na forma de Sapukuyaw,
com uma metade da pintura em preto e a outra em amarelo, e com marcas (pequenos
detalhes decorativos) em vermelho, caractersticas formais que no podem ser elevadas
ao estatuto de referncias. A mscara Sapukuyaw Ejekalu (figura 15), que alis tambem
um peixe totalmente preto (espcie no identificada), foi inteiramente pintada de preto.
O que a anlise a seguir mostra que essas mesmas identidades formais podem ser
invertidas. Ou seja, Ejekalu, como mscara, poderia ser Muluta e vice-versa, pois assim
como ambos so pretos, ambos tambm podem se apresentar como no-pretos. Se os
elementos formais so intercambiveis, a forma tem, portanto, a identidade que se lhe
atribui ao momento da fabricao de cada mscara. O problema que as mscaras
colocam que as diferenas entre as identidades no so necessariamente fixas. Vejamos
estas questes a partir de um repertrio mais extenso de exemplos.
Para efeitos de demonstrao analtica, denomino o motivo monocromtico7 de
seco transversal de motivo grfico X e o bi-cromtico de motivo grfico Y. Conforme a
amostra apresentada o motivo grfico X foi empregado em quatro Sapukuyaw:
7
Os motivos monocromticos no tm, tal como os motivos de Arakuni (quadro 1), nomes especficos. Eles
so apenas chamados de ejetaku (campo preto), mohjataku (campo vermelho), kisutaku (campo branco),
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Figura 6 Sapukuyaw Arikamu eneja (Jacar Figura 7 Sapukuyaw Kuwa eneja (Peixe
macho). Desenho da mscara usada no Curimat macho). Desenho da mscara
ritual Apapaatai Iyu de julho-agosto de usada no ritual Apapaatai Iyu de julho-
2000. Desenho: A. B. Neto agosto de 2000. Desenho: A. B. Neto
Figura 8 Sapukuyaw Yusitsetsi eneja (Peixe Figura 9 Sapukuyaw Ukix eneja (Peixe
Voador macho). Desenho da mscara usada Pacu grande macho). Desenho da mscara
no ritual Apapaatai Iyu de fevereiro-maro usada no ritual Apapaatai Iyu de fevereiro-
de 2002. Desenho: A. B. Neto maro de 2002. Desenho: A. B. Neto
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Figura 11 Sapukuyaw Muluta eneja (Peixe Figura 12 Sapukuyaw Yuma eneja (Peixe
Cascudo macho). Desenho da mscara usada Pirarara macho). Desenho da mscara usada no
no ritual Apapaatai Iyu de julho-agosto de ritual Apapaatai Iyu de fevereiro-maro de 2002.
2000. Desenho: A. B. Neto Desenho: A. B. Neto
Figura 13 Sapukuyaw Isejo eneja (Peixe Figura 14 Sapukuyaw Wajai eneja (Peixe
Cascudo Liso macho). Desenho da mscara Tambaqui macho). Desenho da mscara
usada no ritual Apapaatai Iyu de fevereiro- usada no ritual Apapaatai Iyu de julho-
maro de 2002. Desenho: A. B. Neto agosto de 2000. Desenho: A. B. Neto
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Figura 16 Sapukuyaw Ejekalu eneja (Peixe Figura 17 Sapukuyaw Ejekalu eneja (Peixe
Preto macho). Desenho da mscara usada no Preto macho). Desenho da mscara usada
ritual Apapaatai Iyu de fevereiro-maro de 2002. no ritual Apapaatai Iyu de fevereiro-maro
Desenho: A. B. Neto de 2002. Desenho: A. B. Neto
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A anlise da iconografia das mscaras mostra que, neste sistema, A pode ser B, C
ou D (ou ainda E, F e G, se consideramos o motivo grfico Y uma variante do motivo
grfico X) e que a marca visual X pode, por exemplo, transformar A em D ou F em G. J a
marca visual Z pode, por sua vez, transformar F em H. Nesta sequncia de mscaras,
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passa-se de uma identidade a outra tendo como recurso ligeiras (re)combinaes formais
sob uma forma bsica. Esse fenmeno pode ser conceituado como template:
8
Embora o conceito de template tenha sido originalmente empregado por Morphy na dcada de 1980, seu
desenvolvimento parece mais bem resolvido nos trabalhos de Kchler (1987 e 1992) sobre as mscaras
malangan da Melansia. Se no caso malangan os templates esto ligados morte e consequente mudana
de aldeia, no caso dos apapaatai eles esto ligados a novos adoecimentos, ou melhor, s interpretaes
xamnicas advindas dos mesmos. Os casos malangan e apapaatai geram respectivamente fragmentaes do
Artigos
grupo e da alma (Barcelos Neto 2007), que apenas as mscaras podem recompor.
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A panela de cermica o objeto por excelncia da cultura material wauja.
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Figura 19 Pintura do fundo externo de uma panela kamalupo. O motivo Atujuw opaka delineia a borda e o
centro formando trs sees. As duas sees laterais foram preenchidas com o motivo kulupien e a central
com figuras de peixinhos (kupatoti). Aldeia wauja, outubro de 2000. Foto: A. B. Neto
Figura 21 Sepultura de pessoa adulta. Aldeia wauja, julho de 2001. Foto: A. B. Neto
Figura 22 Mscara Atujuw pintada com o motivo kulupien. Montpellier, julho de 2005. Coleo do Muse du
quai Branly. Foto: A. B. Neto
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65
@ Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v.2, n.2, jul.-dez., p.43-66, 2010
Recebido em 18/01/2011
Aprovado em 18/01/2011
Artigos
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@ Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v.2, n.2, jul.-dez., p.67-87, 2010
Giuliana Borea
1
This article is based on my MA dissertation, The Emergence of Amazonian Peruvian Contemporary Art in the 21st century
Peruvian Art Scene (2009), for the University of East Anglia (United Kingdom). I wish to thank to my advisor Aristteles
Barcelos Neto and Steven Hooper for their insightful comments and constant motivation. I also wish to express my
gratitude to my professors at New York University, Fred Myers and Arlene Davila, who both read my MA thesis and
Artigos
provided helpful feedback. Finally, I wish to thank to Lee Douglas and Matthew Bawn for contributing in different
ways with the writing of this document.
67
@ Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v.2, n.2, jul.-dez., p.67-87, 2010
established visibility to Amazonian contemporary art in Limas art circuits. A new art
agenda in which Yahuarcani participates and thus shapes.
Barranco - Lima, August 2008. I wake up and turn on the radio. Bareto, a
currently famous band that uses Amazonian rhythms is playing. I have to do some tasks
at city hall. I walk there. I pass by Neomutatis, a hipster clothes shop, and a fashionable
dress with Andean and Amazonian designs is hanging in its display window. I keep
walking, and suddenly I stop. Red letters announces an exhibition of Rember Yahuarcani
in the art gallery 80m Arte & Debate. In the main square a group of Shipibo women are
selling their seed necklaces. I finally enter the city hall. Months after this episode, a
journalist asks the artist and curator Christian Bendayn, Is it really true that the
Amazon is in vogue, at least in a cultural way?2 Before dealing with the new location of
the Amazon in the cultural landscape and Bendayans curatorial practice towards
Amazonian art, I want to address that the Amazons visibility is part of a process, not a
fashion in vogue, that implies struggles, strategies, and agents that have inserted the long
lasting invisible Amazon on the national Peruvian stage.
Until the 1980s, the image of Peru as a nation was composed essentially of two
central regions: the Coast and the Andes. While the Coast linked notions of progress and
modernity, the Andes spoke to ideas about national roots and traditions. The Amazon
was not included in either of these national imaginaries. Instead it was physically,
politically, and symbolically isolated from the rest of the country. It appeared
sporadically, but in relation to exploitation or conquest. Examples include rubber
exploitation from the 1870s to the 1890s that led to slavery and village displacement, or
the president Belaundes policies that in the 1960s promoted the construction of roads in
an attempt to redirect Andean migration from the coast to the Amazon, policies that
consequently caused the appropriation of native territories. It was only in 1974 that Juan
Velascos government recognized the native territories, but this recognition was modeled
on Andean communities that had little to do with territorial control of the Amazon. This
misconception was reformulated by anthropologists (Barclay 1985: 20) and by the
denunciations made by indigenous movements.
Artigos
2
In: http://diariodeiqt.wordpress.com/2009/03/27/christian-bendayan-verde-al-poder
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@ Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v.2, n.2, jul.-dez., p.67-87, 2010
In the 1970s, local Amazonian leaders started to raise their voices against
inequalities and isolation. Unlike Andeans, who had raised their voices on the basis of
class divisions (Caldern 2000), Amazonians grounded their movement on issues of
ethnicity. If the 1970s was the decade of the indigenous movement formation; the 1980s
was the decade of their national consolidation and international networks, and 1990s and
mainly the 2000s (after Fujimoris dictatorship) are decades marked by indigenous
movement national visualization and their intense political participation. In this arena,
native leaders acting as political actors have put their cultural symbols in motion, as
index of authenticity. (Conklin 1997: 712) Never before had Amazonian symbols and
culture been empowered as assets or put on display. However, despite steps forward
regarding the social and political recognition of Amazon people as equal citizens as well
as cultural diverse, discrimination persists in Peruvian society and within governmental
policies. The thirty-four deaths in Bagua on June 6th 2009 is only one example.3 In a
collective e-mail Rember Yahuarcani writes, Like the birth of the Republic of Peru, the
history of a forgotten, ignored, oppressed... hated people is written. (June 7th 2009)
Now, however, this history is written by other authors, thus providing new perspectives.
Indigenous movements, anthropologists, tourism, new consumers, and curators, among
others have played an important role in including the Amazon in the national
imagination and in recognizing its people as political actors. In this article, I deal with
the art and cultural sphere.
Until a decade ago, the Amazon was on the periphery of Peruvian cultural
representation and of the Peruvian art scene. According to the curator Gredna Landolt
(2003: 47), the greatest difficulty in producing the exhibition Serpiente de Agua was to
work with the few existing collections and to cull through the little information available
about the pieces. Only in the begining of the 2000s did the Museo Nacional de
Antropologa, Arqueologa e Historia and the Museo Nacional de la Cultura Peruana
open their Amazonian halls. Before that, both museums focused on the Andean and
Coastal material culture and history. The lack of interest regarding Amazonian cultures
as part of a larger sphere of Peruvian cultural representation was clearly reflected in the
national motto: Peru, Pas de los Incas (Peru, the Incas country), which in 2008 was
changed to Per, vive la leyenda (Peru, live the legend).
Artigos
3
The Goverment responded brutaly towards Indigenous protests against the enactment of the unconstitutional law
#1090 (forest and wildlife law). This violent action has been called the Baguas massacre.
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@ Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v.2, n.2, jul.-dez., p.67-87, 2010
Regarding the construction of Peruvian art history, Lauer (2007: 101) notes that
during a long time the Indian figure [the highlander figure] has been considered to be
the touchstone of pictorial nationalism.4 From romantic visions to the Indigenismo
movement, from abstractionism with pre-Inca roots to a political recognition of Andean
artists and its rejection by many mestizo art agents, and to the appropriation of urban
Andean icons, the Andes and the Andean people have been a continuous reference in
Peruvian art. However, despite constant representation and appropriation of the Andes
by mestizo artists, the inclusion of Andean artists and their artistic proposals within the
art circuit has not necessarily happened beyond the pretense of egalitarian discourses
(Borea and German 2008). I propose that the Amazon stands in another situation. The
visibilization and circulation of Amazonian art in the 21st Century favors its
incorporation into the Peruvian art system.5 Amazonian art circulates within new
conceptual landscapes while at the same time actively participate in shaping these
landscapes. The consolidation of a new group of agents (curators, artists, promoters) into
the art system during recent years has led to the creation of new art values. They, in turn,
have created more inclusive agendas regarding the poetics and politics of representation
(Karp 2001). These agents are articulating Amazonian art in innovative curatorial
discourses and displaying them in strategic ways and in strategic venues. I wish to
address four consecutive milestone exhibitions during the 2000s that have contributed to
situate the Amazon in the cultural sphere: El Ojo Verde. Cosmovisiones Amaznicas (2000-
2001), Serpiente de Agua. La Vida Indgena en la Amazona (2003), Amazonia al Descubierto.
Dueos, costumbres y visiones (2005) and La Piel de un Ro. La Amazona en el Arte
4
Arnd Schneider in his book Appropriation as Practice. Art and Identity in Argentina (2006) points out that in Argentina
appropriating choices among artists have to be deliberately constructed. This is in stark contrast to countries such as
Mexico, Peru or Ecuador, in which nationalist projects provided legitimate and hegemonic discourses for the
assimilation or incorporation of indigenous societies into the nation-state at least since the Mexican Revolution.
(Schneider 2006: 3) In the Peruvian case, this argument is valid for the Andes, but does not explain the Amazon case.
5
With this, I am not suggesting that individual artists, native or mestizo, were not previously linked with the Amazon
as a source for artistic practices. For instance, the mestizo Amazonian painter Cesar Calvo de Araujo (1910-1970) went
beyond the travelers drawings of an exotic jungle to portray habitants in real contexts (Bendayn 2008) and was an
influential figure in Iquitos. The National Art Schools in Iquitos, Bagua, and Pucallpa trained local artists and
introduced them to local art scenes. Nevertheless, their different proposals did not obtain a strong impact on the main
Limeo art circuit. In addition, the Amazon was not part of other artists imaginations, and native painters were
exclusively committed to the tourist art market. Some exceptions to this tendency are the artists Gino Ceccarelli, Pablo
Amaringo and Victor Churay. Amaringo (1943-2009) and Churay (1972 2002) achieved an earlier entrance into the
capitals art spheres by depicting the Amazonian cosmology. Amaringo did this at the end of the 1980s and Churay in
the 1990s. But Churay died tragically in an accident in 2002 and Amaringo did not obtain a strategically constant
Artigos
presence in the national art circuit. Limeo society, and specifically the art milieu, was not yet prepared to re-locate
Amaringo beyond an ethnographic discourse and a sphere of mysticism.
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@ Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v.2, n.2, jul.-dez., p.67-87, 2010
Contemporneo (2008). The last two exhibitions in particular have played a critical role in
expanding the contemporary art circuit.6
El Ojo Verde, curated by the historian Pablo Macera and the curator Gredna
Landolt, supported by Fundacin Telefnica and promoted by AIDESEP,7 revealed the
ways in which Amazonian groups give significance to the material and intangible world.
Looking for adequate ways to display the Amazonian cosmology and to include native
people in the process of representing their culture, the curators convoked native
specialists, who were selected by their corresponding federations, to depict their myths
and beliefs. The overwhelming response to the show created a space for the exhibition
Serpiente de Agua three years later. In Serpiente de Agua, the curatorial proposal and the
display strategies were similar to El Ojo Verde, but its scope, political support and venue
placed the Amazon at the height of visualization. This exhibition was curated by Gredna
Landolt and Alexandre Surralles, supported by Telefnica and other organizations. It
was promoted specifically by the first lady Eliane Karp in concordance with AIDESEP.
With this exhibition, a 19th Century train station in Limas center, Desamparados, was
converted to a cultural place of encounter by hosting the show. It is within this exhibition
context that the artist Rember Yahuarcani first travelled to Lima. It was also there that he
met art agents that eventually facilitated the articulation of his artistic network.
In 2005, a third key exhibition Amazonia al Descubierto was on show at the Museo
de Arte de San Marcos. Composed of seven curatorial projects, the exhibition focused
specifically on Amazonian art. Among the seven projects, Pablo Macera presented Los
Dueos del Mundo with paintings of the Ashaninka Enrique Casanto and the Shipibo
Lastenia Canayo. Gredna Landolt presented Esta es Nuestra Costumbre: Shoyan Sheca y
Bahuan Jisb / Elena Valera y Roldan Pinedo, and the curator and artist Christian Bendayn
presented La Soga de los Muertos. El Conocer Desconocido del Ayahuasca. Bendayn brought
together the works of thirty contemporary artists, mestizos, and natives. These works
evoke the artists experiences with the Ayahuasca plant. Among these artists was Rember
Yahuarcani. In 2003 La Soga de los Muertos was proposed to another gallery, but not
accepted. However, after two years was part of this bigger event in the Museo de Arte de
San Marcos. I suggest that two factors might have played in favor of this latter
6
In this new panorama, significant solo exhibitions of contemporary artists who integrate and use Amazonian issues as
their main artistic references have been carried out, such as shows of Bendayn, Manchego, Ccecarelli, Chvez,
Yahuarcani, among others. There have also been remarkable exhibitions in Shipibo traditional art such as Una Ventana
Artigos
al Infinito. Arte Shipibo y Conibo. But I emphasize next in four exhibitions that have produced more general discourses.
7
Interethnic Association for the Development of the Peruvian Amazon.
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@ Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v.2, n.2, jul.-dez., p.67-87, 2010
acceptance. First, El Ojo Verde y Serpiente del Agua opened a path to bolckbuster
Amazonian exhibitions and to more challenging proposals, as is the nature of
contemporary art. Second, the people managing the Museo de Arte de San Marcos
possessed a special commitment for more inclusive art agendas. The museum director
was Armando Williams, an artist and curator, who in 2008 promoted Rember
Yahuarcanis first exhibition in an art gallery. The director of the Institution to which this
museum belongs was Gustavo Buntinx, an art historian, art critic and curator who
produces dynamic cross-cultural readings. I argue here that cultural projects are
entangled in social networks that agents activate and use them strategically for circulating
proposals at the time they intend to create, reinforce, or shift artistic values.
In La Piel de un Ro: La Amazona en el Arte Contemporneo exhibited in the Museo
de Arte de San Marcos, Bendayn reinforced his project that sought to recognize cultural
diversity in contemporary art. For Bendayn La Piel de un Ro, La Soga de los Muertos and
Puro Sabor (a previous show) were three faces of the same project (interview, Dec. 2008).
As an artist and curator, Christian Bendayn (Iquitos 1973) has consistently pushed the
boundaries of art in Peruvian society. In general, Bendayns artworks represent and
combine marginalized urban Amazonian people, such as transvestites and prostitutes;
middle-class kitsch aesthetics; religious images and sensual motives on a garish color
palette. Bendayn has participated in several exhibitions that according to German
(2007: 134) had situated him as one of the most important and influential contemporary
artists. Hence, his ability for articulating different traditions, groups and aesthetics and
incorporating them in new narratives, be it on a canvas or within a museum space, is part
of his artistic and curatorial proposals.
These four consecutive milestone exhibitions that put forth a polycentric
perspective on what art and contemporary art are (Shohat and Stam 2002) have
generated a strong impact on the conceptual and artistic landscape of Peru by enlarging
the cultural and artistic arena. This art scenario that is more encompassing of
difference (Morphy 2007: 3) is the result of new curatorial discourses and strategies,
adequate venues of display, key sponsors, political support, renewed feelings of
nationhood, and a growing arena of intercultural art production. It is in this arena where
Rember Yahuarcani stands, acts, and contributes to produce. In art journalist Diego
Oteros 2009 annual review, he writes: An Amazonian year. Paradoxically, in a
political context of threat and non-respect, 2009 has been a very significant year for the
Artigos
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Amazonian culture. The two parallel exhibitions of Rember Yahuarcani, at the end of
the year, confirm this. (El Dominical, El Comercio, Jan. 10th 2010)
Rember Yahuarcanis work has moved through two different regimes of value:
from the tourist market to the contemporary art scene. Throughout this circulation,
Yahuarcanis, references, compositions, materials, colors, self-perception, and display
venues have changed and been redefined. I propose to analyze Yahuarcanis work in four
periods. Before doing this, I wish two point out two characteristics that are constant
present in his work and that relate to Huitoto traditions. First, Yahuarcani finds in the
Huitoto cosmology a site of inspiration, and mainly in those cosmologies related to the
Aymenu clan. Originally, this clan was settled in the Putumayu River in Colombia. Due
to the territorial conflict between Peru and Colombia, some families migrated to the
Ampiyacu River in Loreto. In Peru, according to Yahuarcani, the Aymenu clan is
comprised of only two extended families. Martha Lpez, the artists grandmother, is the
matriarch of one family. She maintains several oral traditions that have been transmitted
to Yahuarcani. She narrated to him the various myths that provide the main vocabulary
in his artistic language. In addition, Yahuarcani acquires further information about these
myths through anthropological books and articles. Yahuarcanis work is, then, first
informed by his experiences and understandings of his culture, but this first-hand
reference is not his only source. Second, Yahuarcanis work is full of characters with
transformational bodies and identities. As Barcelos Neto explains, the conception of
body in the Amazon is unstable, it has to be produced and reinforced everyday.8 The
transit between humans, animals, plants, and even natural phenomena is not only
possible but frequent. This combination of different bodies is also an articulation of
diverse identities. The original entity acquires the abilities and sometimes even the body
of the entity to which it is transformed. The depiction of Convirtindose en Aima (fig. 1) is a
clear example of this. In general, this transformation finds support in myths and in
shamanic practices. Yahuarcani takes the belief of transmutational bodies to produce
many of his characters (see fig. 4). For instance, Duea del Pijuayo III, fig. 4, shows a
cyclical transformation between plant, human and animal.
Artigos
8
In conference in the Sainsbury Research Unit, University of East Anglia, on 24th Sep. 2008.
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Narrative Depictions for a Tourist Market (from his earlier works to 2004)
Young Rember Yahuarcani learned to paint in order to sell his works to tourists.
His father taught him and his siblings what and how to paint. These works depict
Huitoto traditions on a natural surface, the bark of the oj tree named llanchama.
According to Yllia, since the 1980s, native groups have been using llanchama as canvases
for painting their culture in response to tourist affluence and the resulting demand for
souvenir production (2003: 7). Since then, Yahuarcani usually prepares the llanchama
with his father. On sunny days, it takes almost three days to prepare the bark surfaces.
They have to cut the tree and hit the log with a machete handle until the bark comes off.
The bark is then turn inside out and hit again over a flat surface. Finally, the bark is
washed, cut, and dried. In order to paint the llanchama, they use a Piri Piri twig, which is
strong enough to withstand the harshness of the material. In this first period, Yahuarcani
painted only with natural dyes giving an opaque color to his work. In general, his
depictions represented scenes of Huitoto daily life and rituals (fig. 1 - 2). He shares an
ethnographic narrative style with other native painters. His self-location as a native
painter for the touristic market is evident in his signature and the information given:
Rember Yahuarcani / Pebas-Loreto-Per/ Huitoto-Aymenu / (the year). It was during this time
when he took part in the Serpiente de Agua workshops. For the exhibition La Soga de los
Muertos, Yahuarcani participated with his work Aima (fig. 3), piece that announced the
next stage of his pictorial development.
In Serpiente de Agua, Rember Yahuarcani met key people within Perus cultural
sphere, including Gredna Landolt, Pablo Macera, and Christian Bendayn, among
others. He also met Victoria Morales, a member of Museo de Artes de San Marcoss art
staff, who would eventually become Yahuarcanis best friend and his main mentor
regarding the Limeo art system: She told me if you want to survive here you have to
learn many things [...] And the people that can help you with the things that you do are
these people. (interview 2009) Victoria Morales encouraged Yahuarcani to visit
museums and galleries and to see as many exhibitions as possible. These experiences led
him to embrace a personal, artistic exploration. This was a transitional period for
Artigos
Yahuarcani. His compositions moved from a focus on daily life, landscapes, and ritual
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also a person. A large bird wing embraces the two figures. Both pictures are informed by
Jitomas transmutational attributes, but with different combinations and intentions.
This type of work composes Yahuarcanis first solo art gallery exhibition.
Llanchama: Slo pieles, presented at the gallery 80m Arte&Debate and curated by
Armando Williams and Doris Bayly, constitutes a milestone in Yahuarcanis career. In
this exhibit, his work is placed in an important contemporary art venue that allows it to
achieve more powerful modes of circulating through the art circuit and market. The
curators affirmed, With this show, Rember Yahuarcani marks a turning point with
respect to his previous exhibitions. (Williams and Bayly 2008)
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Under the rules of art rules, if a person from the Coast arrives and
begins to use materials from the Aymara and Andean culture, they
say, This guy is innovating. But, when a native uses those same
materials, they say This is bullshit.
The surface and the materials were not part of the circuit, and I
want to show that I can also use the materials that they use.
(Yahuarcani, interview Dec. 2008)
9
Rember Yahuarcani is also a writer. In 2009, he won the first prize of competition Carlota Carvallo de Nez
Artigos
which was awarded as part of the events held in the 30th Lima Book Fair.
10
This aspect has been strongly discussed by several scholars (see Richard 2007, Sullivan 2000, Rmirez 1992).
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cultural narratives and practices. Amazonian art and other categories can be helpful
tools for the circulation of works, their exhibition, and for the market. They are also
helpful analytical tools for dealing with systems of objects and practices. They are not,
however, helpful when are used to encapsulate artists and topics under the exercise of
new forms of reductionism and power domination.
I argue that Yahuarcani puts in practice technologies of appropriation
(Schneider 2006) to acquire competence within the contemporary art field. Arnd
Schneider understands technologies of appropriations as being the different levels of
engagement those artists have with original cultures and the practices they use to
incorporate difference into their work (2006: 183).11 He also states that a crucial
question is, who appropriates what, where, and from whom. This implies situating
practices of appropriation in different power relations. (2006: 23) Considering power
relations, I wish to address the multiple directionalities of these technologies of
appropriation, where, for instance, Indigenous artists appropriate Western artistic styles,
imaginaries or even practices for their participation in certain circuits. Nonetheless, these
appropriations of topics and performances are still being seen with some reluctance, as
Yahuarcani mentions (see quote above).
On December 3rd 2009, the Once Lunas exhibition was opened. In the days before,
the curatorial text was sent to the gallery. I thought the perspective addressed on the text
was clear. It concluded by saying, Once Lunas is a generational and visual dialogue.
Father and son begin from a shared worldview, which they use and reconstruct to
generate a [H]uitoto calendar where the real and the unreal have no limits. Specifically
it mentioned how Rember Yahuarcanis, work anchors its roots in the [H]uitoto culture
but expands its multiple branches to different visualities and spheres, generating a hybrid
and totally contemporary proposal. However, in the gallery press release, Santiago and
Rember Yahuarcanis works were discussed as a reflection of the Huitoto worldview.
Moreover it included phrases, such as, Within their art practices, a contained happiness
is clear, which communicates a fresh sensation that captivates the visitor. The exhibition
was made public within an exotic cultural discourse that lessened artistic individuality.
This fact motivated me to explore how Yahuarcanis exhibitions were divulged.
The formula was the same. While the curatorial texts communicated hybridization and
11
In this ethnographic turn (Foster 1995), artists usually include fieldwork and interviews into their methodological
artistic repertoire while also flirting with anthropological approaches to cultural difference (Schneider and Wright
Artigos
2007: 3). In my dissertation, I have also examined the work of the mestizo artist Harry Chavez, which is influenced by
Amazonian as well as other traditions.
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This speech was given in the art gallery in which Yahuarcani was exhibiting.
Yahuarcanis participation in this market space entailed a clear intention of selling his
work. In an interview talking about the market Yahuarcani told me, Before I sold more,
but cheaper... I had to sacrifice selling because of the offer price. I can lower my prices a
little, but not so much. (December 2008) Accordingly, the ideas of being honest,
being out of the market, out of the magazines were exaltations that prevailed the
exotic and honest other over the individualist western art sphere and the market. A
market viewed as a hostile world (Velthius 2007). The audiences comments adopted
this tenor. Therefore, the specific reception of his work and discourse is still in tension.
However, as I have addressed in this piece, Yahuarcanis art practice and new curatorial
discourses are enlarging the art system and also impacting other spheres by contesting
stereotypical perspectives. In doing so, these visualities and narratives are putting forth
Artigos
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In 2010, in celebration of its 40th anniversary, the Museo de Arte de San Marcos
presented its enriched collection of contemporary art. This collection provides an
important visual narrative into the existent discourses regarding Peruvian art. Rember
Yahuarcanis cartographies of a Huitoto mythology are now part of this collection.
Giuliana Borea
PhD Student, Department of Anthropology New York University
MA in the Arts of Africa, Oceania and the Americas University of East Anglia
MA in Museology Universidad de Valladolid
BA in Anthropology Pontificia Universidad Catlica del Per
Artigos
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Recebido em 03/02/2011
Aprovado em 03/02/2011
Artigos
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Daniela Manica
Ao fazer uma arqueologia dos hormnios sexuais, Nelly Oudshoorn procura ilustrar a
maneira pela qual determinados conceitos, como o de corpo hormonal, assumem a
aparncia de fenmenos naturais atravs da atividade de cientistas (Oudshoorn
1990:138). Partindo da perspectiva dos estudos sociais das cincias, Oudshoorn traa
muitas das alianas que se estabeleceram nesse processo. Compunham essa rede mdicos
ginecologistas, cientistas e os laboratrios farmacuticos que passaram, a partir da
segunda metade do sculo XX, a produzir de forma crescente hormnios que seriam
usados para a regulao da fertilidade (sobretudo para contracepo e reposio
hormonal).
Segundo a autora, no comeo do sculo XX, o acesso desses trs atores aos
materiais de pesquisa no interferia no relacionamento entre eles: os trs grupos tinham
glndulas sexuais sua disposio. Os ginecologistas conseguiam material atravs da
prtica clnica, os cientistas com animais de laboratrio e a indstria farmacutica,
inicialmente, negociava com matadouros a compra das glndulas dos animais, que no
eram usadas para alimentao.
A partir da dcada de 1910, um momento de captura dos interesses recprocos,
(Oudshoorn 1990:10) os atores passaram a interagir principalmente em funo da disputa
sobre a legitimidade do conhecimento e dos produtos que estavam sendo construdos. Ao
mesmo tempo, alianas entre eles comeam a emergir neste contexto. Na dcada de 20,
as pesquisas comeam a ser constrangidas pela falta de acesso a material de pesquisa e a
Artigos
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contraceptivos.
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A maior contribuio da autora para a discusso que proponho neste artigo est
em demonstrar como se constituiu uma relao de interdependncia entre mdicos,
cientistas e os laboratrios farmacuticos. A produo de contraceptivos passou a ser,
desde o surgimento dos primeiros laboratrios farmacuticos dedicados produo e
comercializao de hormnios, resultado da interao entre esses sujeitos. Atualmente,
os medicamentos so parte mais que significativa tanto da prtica clnica (ou seja, da
atuao do mdico em consultrio ou no atendimento pblico de sade) como das
pesquisas acadmicas (muitas delas financiadas pela prpria indstria farmacutica).
A atuao do professor de Farmacologia da Universidade de Amsterd, Ernest
Laqueur, na fundao do laboratrio holands Organon, tal como descrita por
Oudshoorn, evidencia como, desde o surgimento do campo da indstria farmacutica,
determinados sujeitos circulam por esses diferentes espaos institucionais (Oudshoorn
1990).
No contexto brasileiro contemporneo, essa rede composta pelos laboratrios e
indstrias farmacuticas, responsveis pelo desenvolvimento, produo e divulgao dos
contraceptivos; as universidades, hospitais-escola e centros de pesquisa, que atuam nas
pesquisas e desenvolvimento de novas tecnologias, e so responsveis, principalmente,
pela experimentao em pacientes e pela publicao dos resultados das pesquisas
(reconhecidas como cientificamente legtimas) em espaos tambm legitimados pelo
campo (como revistas ou congressos); e, finalmente, aos hospitais, postos de sade e
clnicas mdicas, em que pacientes so atendidas e os contraceptivos, prescritos. H,
ainda, que se considerar a importncia da divulgao cientfica em vrios formatos dos
meios de comunicao (imprensa escrita, televisiva, internet), bem como as propagandas
publicitrias dos laboratrios farmacuticos para o/a consumidor/a final.
Pignarre procura elucidar o que caracterizaria a "economia do medicamento,
partindo de suas especificidades enquanto objeto tcnico particular. (Pignarre 1999:82)
Para ele, a economia dos medicamentos distingue-se do mercado capitalista em geral.
Outros mecanismos de mediao entre o produto e o consumidor estariam em jogo.
Uma caracterstica fundamental o fato de que os laboratrios definem, ao desenvolver
o medicamento, o que universal e os limites dessa universalidade: quem pode/deve
tomar o medicamento. preciso, ainda, que o medicamento encontre concretamente
cada um de seus consumidores. Para as mercadorias clssicas, o mercado faz essas duas
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1
nfase do autor.
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Folhetos e outros materiais informativos sobre os medicamentos seriam elaborados para serem - em geral
muito rapidamente, segundo Pignarre - apresentados aos mdicos nas visitas aos consultrios.
Artigos
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nfase do autor.
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A minha comprovao era um atestado de matrcula da Unicamp. As demais classificaes eram: scios
da Febrasgo com TEGO, scios da Febrasgo sem TEGO, no-scios (todos os trs, mdicos), outros
profissionais da rea de sade e residentes com comprovao. O termo TEGO refere-se ao Ttulo de
Especialista em Ginecologia e Obstetrcia, obtido atravs de uma prova realizada pela prpria Febrasgo.
5
Os mdulos prticos foram realizados em hospitais da cidade de So Paulo.
6
Outras atividades, que fornecem informaes a respeito do perfil social dos participantes do congresso,
compunham o Programa Oficial: Programao Social, Programao de Acompanhantes e Programao Esportiva.
Quatro programas integravam a primeira: a abertura solene, ocorrida na noite de 20 de novembro, na Sala
So Paulo da Estao Jlio Prestes, com a apresentao da Orquestra Sinfnica de So Paulo e a presena
da prefeita Marta Suplicy, do presidente da Febrasgo Edmund Baracat e outras personalidades das reas
mdica e poltica; o jantar de confraternizao, realizado na sexta-feira 23 de novembro em um dos buffets
mais tradicionais de So Paulo; o churrasco de encerramento, realizado no prprio ITM, no sbado aps o
Artigos
trmino das atividades; e a ida pea Les Misrables, na noite de quinta-feira. Para a Programao de
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Acompanhantes, foram organizadas excurses denominadas Tradition & Art, com visitas ao Mercado
Municipal e Pinacoteca do Estado, e direito a um almoo light num restaurante tradicional e elegante; Gems &
Fashion, com visitas ao Museu de Gemologia da USP, a um Shopping Center e almoo no Jockey Clube;
Cultura & Compras; Art & Fashions; Flores & Sabores (workshop com noes bsicas de execuo em Arte Floral).
A Programao Esportiva, que ficou a cargo de uma empresa especializada, inclua Atividades Outdoor
(realizadas das 10 s 17 horas no Parque Villa-Lobos, com assistncia da equipe contratada) e Atividades
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O quase-mercado da contracepo
7
Um dos efeitos dos contraceptivos base de progestagnios a alterao da menstruao.
8
A endometriose uma doena que afeta muitas mulheres e que decorre da presena, na parte externa do
tero, de tecido semelhante quele que reveste o seu interior. Mesmo se localizando na parte externa do
tero, esse tecido sofre influncias das oscilaes hormonais que ocorrem mensalmente nos ciclos
menstruais. semelhana do que ocorre com o revestimento interno do tero, o tecido da endometriose
cresce no transcorrer do ms e sangra na menstruao. (Explicao dada em um folheto produzido pela
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Com isso, evidentemente, os laboratrios obtm informaes para posteriormente estabelecer contato
com os mdicos (por meio de visitas) e/ou enviar materiais de divulgao pelo correio.
10
As descries que se seguem so baseadas na minha primeira experincia de campo (em que, certamente,
o estranhamento foi maior). Referem-se, portanto, ao 49o CBGO.
11
Mirena um dispositivo intra-uterino que contm tambm o hormnio levonorgestrel.
12
Embora algumas matrias - sobre os simpsios e outras atividades - devam ter sido previamente
montadas, foi impressionante a rapidez com que essas revistas, organizadas por jornalistas contratados
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temticos Saber Mulher, feitos para as pacientes (para serem disponibilizados nas salas de
espera do consultrio, por exemplo). Esses folhetos contm discusses sobre Contracepo
Contnua, Contracepo de Emergncia, Contracepes, Gravidez Precoce, Terapia de Reposio
Hormonal, entre vrios outros. Nesses folhetos, no entanto, no h referncia ao nome
comercial de qualquer produto.13
O estande da Organon para a divulgao de Cerazette e Implanon estava
localizado na entrada lateral do centro de exposies,14 e era um dos primeiros a ser visto
pelas pessoas que vinham das salas do congresso. Um enorme painel com fotos, imagens
e os nomes de ambos os medicamentos cobria toda a parede do estande. Ao lado direito,
ficava o balco com comidas e bebidas, servidos durante todo o dia. Computadores com
acesso Internet podiam ser usados por quem passasse pelo estande o que na poca
(2001) era muito inovador. Ao centro, vrias mesinhas e cadeiras configuravam um
espao para encontros, conversas, ou para descansar ou comer alguma coisa.
Um folheto entregue aos mdicos no caminho que levava s salas de conveno
convidava para conhecer o mtodo revolucionrio que vai colocar voc frente.
Chamava, ento, para visitar o estande da Organon e conhecer Implanon por meio de
um treinamento sobre os procedimentos de insero e remoo deste revolucionrio
mtodo contraceptivo. E anunciava que no final do treinamento eram entregues o
certificado de participao e o CD-Rom com a monografia e as imagens da insero e
remoo.
Ao fundo do estande, esquerda, uma jovem lanava num computador o nome e
o CRM do/a mdico/a que quisesse participar do treinamento. Encaminhava-o, ento,
para um balco em frente ao qual se podia ver o simulacro de um pedao de brao (feito
de materiais plsticos e espumas e coberto por um tecido cuja textura era parecida com a
da pele) e os instrumentos para insero do Implanon. Do outro lado do balco, um/a
funcionrio/a da Organon instrua e acompanhava o/a ginecologista na insero e
remoo do implante no simulacro de brao.15
Ao sair do estande, cada mdico/a recebia um certificado de participao com seu
nome e CRM impressos e uma mochila azul com o smbolo da Organon, que continha
material informativo sobre o produto e os resultados da pesquisa encomendada pela
13
A Libbs patrocina, ainda, o stio da Internet em que so, tambm, apresentadas essas informaes
(www.sabermulher.com.br). Em alguns folhetos, fornecido o endereo da empresa (www.libbs.com.br).
14
Cerazette uma plula que s contm progestagnio e que deve ser tomada ininterruptamente e o
Implanon, o implante subcutneo para uso contnuo pelo perodo de 3 anos. Ambos contraceptivos
supostamente provocariam a supresso da menstruao.
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O implante usado obviamente tambm era um simulacro.
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importante lembrar que, em muitos casos, a inscrio de mdicos no congresso financiada por um ou
outro laboratrio farmacutico. Em troca, eles circulam pelos estandes e at apresentam palestras sobre
alguns medicamentos.
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Cujo processo de pesquisa e aprovao foi longo e polmico, como discuto em minha tese de doutorado
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Exceto, talvez, alguns livros de medicina ou materiais para o consultrio ou clnica. Mas nesse caso, os
estandes no pertencem a laboratrios farmacuticos, e sim a empresas especializadas no fornecimento
Artigos
desses produtos aos mdicos portanto, no pertencentes ao grupo de relaes que procuro explicitar.
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Esta classificao, box lunch, foi usada em alguns simpsios. De fato, o almoo vinha, em geral, dentro de
uma pequena caixa de plstico. Em alguns simpsios, as caixas eram entregues para os congressistas depois
que eles j haviam se acomodado na platia. Em alguns simpsios foram distribudos, alm do lanche,
bijouterias e relgios. Um dos laboratrios estava usando como atrativo a divulgao de que, em um dos
seus simpsios, estaria servindo sanduches da rede Mc Donalds.
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TRH, Terapia de Reposio Hormonal
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Como se pode perceber pelos ttulos dos simpsios, com exceo do Simpsio do Mirena, todos os
demais tinham temas mais gerais, como anticoncepcionais ou terapia de reposio hormonal (TRH), isto , no
explicitava no ttulo quais produtos estariam sendo divulgados. Como a Schering era, de fato, a nica a
produzir e vender o DIU com levonorgestrel no pas, mencionar o nome do produto no o colocava, para
todos os efeitos, em vantagem perante os similares produzidos por outros laboratrios, como parece ser o
caso dos contraceptivos orais ou injetveis e outros medicamentos. O Mirena foi tambm o nico a ser
nomeado nos simpsios e lunch meetings do VII CPOG.
22
Os dois simpsios ocorreram ao mesmo tempo, em salas diferentes. Assisti pessoalmente ao simpsio da
Schering e ao final do simpsio da Libbs. Entretanto, neste ltimo foi entregue um encarte com o resumo
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A ablao do endomtrio consiste numa espcie de cauterizao cujo intuito destruir o tecido interno
do tero (tecido endometrial). A relao desses dois temas com o Mirena est na sua potencial ao sobre
o endomtrio, inibindo seu crescimento. Assim, cogita-se a possibilidade de utilizar o Mirena em
tratamentos de problemas relacionados ao endomtrio, como os que envolvem a ablao endometrial, e os
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Ele lembrou que a experincia com o implante subcutneo Norplant na dcada de 1980 deixou muito
evidente a importncia desse processo educativo. As pesquisas com o Norplant foram proibidas no
Brasil aps a atuao de movimentos feministas brasileiros, como discuto em minha tese (Manica 2009) e
pode ser visto em Corra, 1994 e Dacach e Israel, 1993.
25
Como analisei no primeiro captulo da dissertao (Manica 2003).
26
Enquanto que os folhetos, como apontou Pignarre, so, em geral, apresentados rapidamente durante a
visita dos representantes dos laboratrios aos consultrios mdicos (Pignarre 1999).
27
Carlos Alberto Petta tambm apresentou o lunch meeting patrocinado pela Schering no VII CPOG,
intitulado Endocepo: Contracepo prolongada e efeitos sistmicos, o que confirma sua relao com o
laboratrio como mdico-pesquisador que atua como divulgador dos resultados de pesquisas com o
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Mirena.
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publicada no jornal Libbs no 49o CBGO (com fotos dos palestrantes). As palestras, encartes
e cobertura jornalstica (quase que imediata) sobre o simpsio expressam os termos
atravs dos quais os laboratrios apresentam seus produtos ao pblico mdico: vozes
confiveis, dos prprios pares donos de uma slida e bem-sucedida carreira
acadmica/cientfica, muitos deles envolvidos com pesquisas sobre os contraceptivos de
que falam apresentando-os da mesma forma que costumam fazer nas outras atividades
do congresso. Com a diferena de que, neste caso, o objetivo da transmisso das
informaes condicionado pelo patrocnio e, portanto, a configurao das classificaes
organizada de acordo com a inteno de promover a recomendao do produto.
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CBGO.
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Esse comentrio foi feito por Aldrighi durante um simpsio patrocinado pela Schering sobre as terapias
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de reposio hormonal e ressalta, evidentemente, as conexes que esto em foco nesse artigo.
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Essa sesso foi a nica, nos dois congressos observados, a debater explicitamente
a questo da necessidade da menstruao. E para esse debate, coordenado por Geraldo
Rodrigues de Lima, foram chamados Elsimar Coutinho (o principal defensor da
inutilidade dos sangramentos menstruais) e Lucas Viana Machado (defendendo que sim,
necessrio menstruar).
Em sua palestra, Lucas Machado discutiu alguns dos efeitos do uso de hormnios
no corpo feminino, bem como o papel da indstria farmacutica na produo e
disseminao desses hormnios. Machado relata um incidente interessante para pensar a
relao entre ginecologistas e laboratrios. O presidente de outro congresso do qual
Machado participara teria pedido que ele escrevesse um artigo para o jornal que seria
entregue durante o evento. Segundo ele:
Seu relato apontava, ento, para uma correlao entre o que deve (ou no) ser dito
nos espaos patrocinados pelos laboratrios e a distino entre estes espaos e sesses
como essa, intitulada ponto e contraponto, na qual a relao com os laboratrios poderia
33
Trato dessas questes na minha tese de doutorado (Manica 2009).
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O que reflete e acarreta, evidentemente, muitos problemas. Sobre isso, ver Santos 2003.
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A natureza, seguindo seu argumento, teria elaborado os seres vivos - entre eles, os
humanos - com a finalidade exclusiva da procriao: a gravidez no mundo animal
inevitvel. A menstruao entendida, ento, como uma falha do objetivo principal
arquitetado pela natureza, mas como parte desse processo: a natureza fez com que essa
menstruao, que levava a mulher morte, facilitasse a necessidade de engravidar.
Coutinho contrastava, ento, a menstruao na natureza (programada para
recuperar rapidamente a capacidade frtil e possibilitar uma nova fecundao) com a
menstruao repetitiva e incessante, provocada pela convivncia em sociedade. Nesse
processo, retirava da menstruao seu carter (frequentemente atribudo) de natural:
Artigos
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E que foi, alis, o foco principal da minha pesquisa de doutorado (Manica 2009).
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Reflexes finais
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Novamente, uso o conceito de reapresentao no sentido cunhado por Daniel de Coppet, incorporando a
peculiaridade dada pelo contexto social em que as relaes sociais acontecem, tendo em vista as
hierarquias de valor que so colocadas em jogo (De Coppet 1992).
37
Traduo livre.
38
A necessidade de redefinio relacional das categorias de natureza e cultura , tambm, o argumento de
Artigos
Eduardo Viveiros de Castro ao tratar do que ele chama perspectivismo amerndio (Viveiros de Castro 1996).
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Como procurei sugerir na dissertao (Manica 2003).
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Para essas discusses, ver por exemplo Rabinow e Rose 2006 e Manica 2009.
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Resumo: Neste artigo, composto por parte de um dos captulos da minha dissertao de mestrado,
apresento uma descrio da experincia de pesquisa etnogrfica em dois congressos de
Ginecologia e Obstetrcia no incio da dcada de 2000. O objetivo da referida pesquisa foi observar
a introduo de determinados contraceptivos hormonais que propunham, como um de seus efeitos
possveis, a supresso dos sangramentos mensais. Procuro descrever algumas das falas e contextos
nos quais esses produtos eram apresentados comunidade mdica que atendia os congressos, e as
nuances que envolveram a negociao da positividade da supresso dos sangramentos menstruais.
Nesse espao observado, explicitaram-se as interaes entre a medicina e a indstria farmacutica
(produtora dos hormnios contraceptivos) e, portanto, parte significativa da rede envolvida na
estabilizao desses produtos no mercado farmacutico brasileiro contemporneo.
Palavras-chave: contracepo hormonal; etnografia da cincia; natureza x cultura; gnero
Abstract: In this article, composed by part of one of my Masters Degree dissertation, I present a
description of my ethnographical experience of research in two congresses of Gynecology and
Obstetrics in the beginning of the 2000s. The objective of the research was to observe the
introduction of certain hormonal contraceptives that proposed, as one of their possible effects, the
suppression of mensal bleedings. I try to describe some of the interventions and contexts in which
these products were presented to the medical community that attended the congresses, and the
nuances that involved the negotiation of the positivity of menstrual bleeding suppression. In this
space observed, the interactions between medicine and the pharmaceutical industry (that produce
these contraceptive hormones) were explicit, hence also was significant part of the network
involved on the stabilization of these products on the contemporary Brazilian pharmaceutical
market.
Keywords: hormonal contraception; ethnography of Science; nature x culture; gender
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Recebido em 03/09/2010
Aceito para publicao em 22/11/2010
Artigos
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Os moradores de rua ou aquelas pessoas que tiram da rua o seu sustento, assim
como os andarilhos, participam da literatura e do imaginrio popular pelo menos desde
as cidades medievais. Muitas vezes foram tratados como personagens cmicos, que
realizam trabalhos subalternos, outras como mendigos atravs dos quais podemos
praticar a caridade e garantir nosso lugar no cu ou ainda como criaturas perigosas,
homens criminosos ou monstros assustadores.
Nas sociedades contemporneas parte dessa viso romntica sobre os moradores
de rua se perdeu, restando uma perspectiva ambgua que os encara como problemas
sociais, ora como vtimas, dignas de caridade, ora como bandidos potenciais, dignos de
apanhar ou ir para a cadeia antes mesmo que pratiquem qualquer crime.
sobre os moradores de rua de Belo Horizonte e os agenciamentos atravs dos
quais constroem seus territrios que versa esse artigo.
Durante cinco anos, entre 1997 e 2002, trabalhei junto aos moradores de rua que
frequentavam o Centro de Referncia da Populao de Rua (CRPR), onde fui monitora
de uma oficina de teatro. O CRPR um equipamento da prefeitura de Belo Horizonte
onde os moradores de rua podem passar o dia, guardar objetos, tomar banho e lavar
roupa e que oferece tambm outras atividades como oficinas de teatro, esportes, msica,
artes plsticas, leitura etc. O CRPR no oferece alimentao, exceto em circunstncias
especiais, nem passagens de retorno cidade de origem dos moradores de rua e no serve
como dormitrio, mas um equipamento que encaminha os moradores de rua para
outros tipos de atendimento como esses mencionados e tambm para o atendimento
mdico-hospitalar.
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O presente artigo resulta da pesquisa realizada para fins da minha dissertao de mestrado sobre os
territrios existenciais da populao de rua de Belo Horizonte, orientada pelo prof. Dr. Eduardo Viana
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Casas construdas por moradores de rua com materiais encontrados nas ruas e que geralmente se
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Essa classificao reduz a quatro categorias os termos utilizados por moradores de rua, pessoas que
trabalham no atendimento populao de rua, populao em geral e autores que escrevem sobre
moradores de rua como vemos nos textos organizados por Rosa (1995) e nos textos organizados por
Bursztyn (2000). No entanto, mesmo os termos utilizados para definir as categorias no so unvocos entre
esses atores (moradores de rua, pessoas que atendem a populao de rua e demais moradores da cidade) e
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Ferroviria Federal visitei uma grande ocupao, que hoje pertence ASMARE, numa
rea de aproximadamente 400 metros de extenso ao longo da Av. do Contorno e
profundidade de mais ou menos 50 metros o suficiente para a construo de duas filas
de malocas, uma junto calada e outra mais prxima linha do trem, separadas por um
corredor da largura de uma rua estreita. A demarcao da rea dada, por um lado, pela
aproximao entre a rede ferroviria e a calada, onde no h espao para construir e o
resto da rea todo murado: aos fundos ela acompanha o muro da linha do trem, na
frente ela acompanha o muro que a separa da calada e ela acaba num muro, onde o
terreno tambm acaba. Quando visitei essa ocupao, entre 2002 e 2003, havia l um
conjunto de malocas, embora muitas delas j no fossem usadas como moradia, e sim
como depsito para triagem de material reciclvel.
Nessa ocupao algumas malocas eram usadas para triagem de lixo e outras como
moradia. No entanto, nem todos os moradores da ocupao eram moradores de rua,
parte deles era de associados da ASMARE, que estavam ali temporariamente para
garantir a posse do terreno. Durante algum tempo os moradores de rua foram aceitos na
ocupao para ajudar no processo de usucapio, mas seriam (como foram) retirados
assim que a posse do terreno fosse conquistada na justia.
Seguindo a calada, ao longo do muro, o mau cheiro chegava a ser insuportvel. O
muro era todo quebrado prximo ao cho e usado como banheiro por quem estava do
lado de dentro. Aps urinar ou defecar os moradores das malocas que estava junto ao
muro jogavam gua e a urina e as fezes passavam pelos buracos, junto com a gua, para
o outro lado da calada. Algumas partes do muro haviam tambm sido quebradas para
servir como portes para os moradores que estavam mais distantes do porto que era a
entrada principal.
A partir do porto, avistvamos um corredor com malocas dos dois lados. As
malocas tinham tamanhos uniformes, em mdia 3 metros quadrados. Algumas se
emendavam nas paredes das outras e outras, como a de Soraia4, tinham at quintal. Ao
fundo (bem distante) havia um muro de madeira e uma passagem, a partir de onde s
havia lixo para triagem.
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O nome de Soraia, assim como outros nomes que possam aparecer ao longo deste trabalho, fictcio. No
caso dos moradores de rua com quem eu tive contato pessoal e que estavam vivos no momento em que
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escrevi a dissertao, os nomes foram inventados por eles mesmos; nos outros casos eu os inventei.
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Programa da Prefeitura de Belo Horizonte que aluga imveis para remanejar populaes que vivem em
reas de risco, mas que algumas vezes tem sido utilizado para abrigar moradores de rua em processo de
sada da rua ou moradores de reas desapropriadas pela prefeitura para construo de ruas, avenidas etc.
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Aps dois anos de uso o imvel pode ser transferido definitivamente para a famlia.
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Soraia amarrou um varal de corda para secar roupas e um banheiro um espao fechado
onde cabia uma pessoa em p, cujo teto era uma pequena caixa dgua que era o prprio
chuveiro. Esse banheiro era usado somente para o banho e a higiene pessoal, para outras
finalidades usavam o mato prximo linha do trem. No quintal havia tambm vasos
com flores, feitos de latas de leo ou tinta ou de vasilhames de plstico duro. As paredes
da casa e do banheiro foram feitas com tapume tbuas finas de madeira usadas para
cercar casas e prdios em obras, assim como o teto. Na entrada da casa, do lado de fora,
Soraia colocou um tapete para limpar os ps. A porta da casa dava para a cozinha, onde
havia um armrio de ferro prprio para cozinha, uma mesa com uma fruteira cheia de
frutas, um isopor com gelo que servia de geladeira e uma estante que funcionava como
parede, separando a cozinha do quarto-sala. No quarto-sala havia uma poltrona forrada
com uma colcha (onde dormia o cachorro), uma cama de casal, uma estante que era ao
mesmo tempo um guarda-roupas e onde ficava a televiso, e um bero. O piso era
totalmente forrado com plsticos grossos e coloridos. A luz eltrica era puxada
clandestinamente do poste de iluminao pblica.
A outra maloca que visitei nesta ocupao no estava habitada quando estive l.
Era a maloca itinerante de Valquria, um travesti que construa praticamente uma
maloca por semana. Quando se cansava de uma mudava para outra. Nunca consegui
chegar a tempo na maloca onde ela estava realmente morando. A maloca que ela
construiu na ocupao da ASMARE tambm era feita de tapume (alis, como todas as
outras) e, diferentemente da maloca de Soraia, no tinha quintal, era contgua com as
malocas dos lados. O cho no era forrado. Ao abrir a porta vamos um corredor. Dois
quartos direita e um esquerda. Ao fundo do corredor ficava a cozinha. A maloca
estava sem mveis e no foi possvel entrar nos quartos que estavam trancados e tinham
nas portas os nomes dos seus donos. A maloca tinha o mesmo tamanho que a maloca de
Soraia, mas por ser mais dividida, era menos ampla. Vemos assim que, como afirmam
Deleuze e Guattari (2002), os elementos que compem o territrio so codificados,
distribudos espacialmente e investidos de uma expresso que registra esse territrio.
Observei tambm que, embora se tratassem de malocas muito prximas e de
pessoas que se conhecessem, as tcnicas usadas nas construes variavam, como se pode
ver na soluo dos pisos, nas distribuies dos cmodos ou na variedade de materiais
utilizados em cada maloca. Aldebaran por exemplo, retirante nordestino que morava
nessa ocupao, conta que fez seu chuveiro com um lato (e no com a caixa dgua,
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como fez Soraia), o que permitia que ele pudesse tomar banho quente at o incio da
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noite. Ainda assim, podemos ver que na maioria das vezes a construo desses espaos
habitacionais feita a partir de elementos decodificados (ou codificados sob a forma
genrica de lixo) disponveis na cidade que so recodificados na forma de parede,
chuveiro, moblia etc. e tambm a partir da sobrecodificao, ou seja da atribuio de
novo uso e novo significado, dos elementos arquitetnicos da cidade na apropriao de
postes, muros, viadutos etc. na forma de parede, teto etc.
Vemos assim que a populao de rua sobrecodifica o espao urbano atravs da
prpria ocupao desse territrio. E tambm na ocupao desse espao que so
estabelecidas reas de lazer e confraternizao. Algumas instalaes parecidas com as
malocas, no entanto menos estruturadas, criam regies como a que existe ao lado do
Elevado Castelo Branco. Os moradores de rua fizeram uma espcie de sala usando como
paredes a lateral externa do elevado e um muro de galpo de triagem. Entre essas
paredes existem as caladas e uma rua, que teve que ser fechada pela prefeitura devido
aos altos ndices de atropelamento e s obstrues causadas pelos carrinhos dos
catadores. s vezes tambm, na calada que segue da rua Araguari at a Av. do
Contorno, podemos ver carretis de fio de telefone ou mangueira sendo usados como
mesas onde os moradores de rua jogam baralho, usando caixotes de frutas como bancos.
Esses espaos so frequentados por moradores de rua de diversos segmentos.
Regies de fundo, onde se pode ter mais privacidade so construdas da mesma
forma. So escolhidos os fundos dos viadutos ou lugares mal iluminados nas ruas ou
praas para serem usados como banheiro, lugar para comer ou beber sozinho, fumar
maconha ou craque, dormir ou fazer sexo. Essas regies de fundo so especialmente mal
cheirosas e evitadas pela populao em geral.
De modo que dentro do territrio, cada elemento apresenta um cdigo/funo.
Assim, os elementos que compem o territrio o anunciam esteticamente e so
articulados de forma a codific-lo. A esses cdigos atravs dos quais os elementos que
compem o territrio se comunicam estabelecendo relaes entre si, Deleuze e Guattari
(2002) chamam intra-agenciamentos. So os intra-agenciamentos que informam aos
agentes as aes adequadas a cada lugar e o uso adequado de cada elemento,
segmentando assim o territrio como numa casa onde se tem lugares adequados para
dormir, comer, cozinhar etc. com equipamentos que possibilitam essas prticas e cuja
existncia j informa em qual cmodo estamos. Deste modo, um territrio definido no
apenas por seu espao fsico, mas tambm por seu funcionamento (Perlongher 1994: 57;
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mata da UFMG pela Avenida Carlos Luz at uma rotatria do Anel Rodovirio, onde
podia ser visto sentado pelo resto da manh. Assim, vemos que, do mesmo modo como
alguns trecheiros estabelecem um trecho especfico no qual trafegam, alguns moradores
de rua estabelecem um percurso recorrente e at mesmo uma rotina das suas aes.
Black Rey, um morador de rua vindo h treze anos de Mantena, interior do estado
de Minas Gerais, com quem convivi no CRPR, me relatou o seguinte trajeto dirio:
acorda no alto da Avenida Afonso Pena, zona sul de Belo Horizonte, anda em direo
ao hipercentro e Lagoinha procurando latinhas, toma caf, joga no bicho, chega na
Lagoinha e vende as latinhas sempre no mesmo lugar. Com o dinheiro das latinhas
almoa no Restaurante Popular, na Avenida dos Andradas. Aps o almoo vai para o
CRPR, na Avenida do Contorno. s dezoito horas, quando o CRPR fecha, ele sai em
busca de latinhas em pontos predefinidos. Chega marquise onde dorme aps ter
percorrido aproximadamente 15 quilmetros ao longo do dia.
Alguns moradores de rua constroem itinerrios mais restritos, que englobam
somente uma rua ou avenida e adjacncias, um quarteiro ou somente alguns metros
alm do local onde se instalaram.
No seu deslocamento, buscam alimentos atravs de doaes realizadas por
restaurantes, ou se andarem por regies de comrcio ou pela caridade que cuida da
distribuio de alimentos para a populao carente, como igrejas, por exemplo. Muitas
vezes reviram o lixo em busca de latas para vender, ou mesmo alimentos e objetos de
consumo pessoal. Mas no dependem dessa atividade para viver e no a realizam de
forma sistemtica. Podem tambm realizar pequenos servios em troca de um prato de
comida como acontece nos bairros residenciais, afastados do centro. Nas casas tambm
eles pedem gua, comida e roupas usadas, o que no acontece com muita frequncia nos
edifcios de apartamentos, j que o contato com os moradores mais controlado. Por
isso, embora haja muitos andarilhos pelo centro, os bairros residenciais so uma rea
privilegiada para a sua circulao. Por vezes, so forados a se sedentarizar, limitados
por seus prprios corpos doentes, velhos ou cansados e pode ocorrer de serem
incorporados pela vizinhana ou pelo menos de no serem expulsos e se tornarem os
mendigos do bairro, os cados por excelncia.
Havia um morador de rua na Avenida Campos Sales, em frente ao antigo Posto de
Atendimento Mdico (PAM Campos Sales), cujo territrio era uma vasta cabeleira,
barba, muita sujeira, uns papeles e uns trapos do que talvez tenha sido um colcho, uma
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sacola de supermercado onde guardava a comida que ganhava, uma garrafa pet, cigarros.
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s vezes tinha remdios, porque era atendido num hospital psiquitrico. Tinha poca em
que no conversava com ningum. Havia pocas em que, estando na rua, sequer
mendigava. No saa dali, nem quando chovia seu territrio no inclua abrigo contra a
chuva. Quando sua sade piorava muito, dizia a vizinhana que ele era recolhido pela
polcia e levado a um asilo, no se sabe onde. Depois ele voltava. Quando voltava,
voltava bem e era conversador. Com o tempo ia se tornando recluso novamente. Da
ltima vez que sumiu disseram que havia morrido, outro morador de rua da regio
informou que ele foi espancado na rua e no resistiu. Alguns vizinhos disseram que isso
era mentira. Mas s se sabe que ele foi retirado de l numa ambulncia.
Na marquise do prdio onde moro, na regio centro-sul da cidade, havia outro
mendigo. Este no ficou na rua por muito tempo. No incio ele se identificava como
pedreiro e pintor e no se considerava morador de rua, embora dormisse sob a marquise.
Fazia pequenos servios na vizinhana. Depois passei a v-lo revirando o lixo e andando
pela Avenida Prudente de Morais. Por fim ficou doente. Num domingo passou muito
mal. O porteiro do prdio tentou socorro por telefone nos hospitais, avisou a polcia, que
s apareceu para retirar o corpo.
Os moradores de rua que vivem sozinhos e perambulam pela cidade, assim como
alguns trecheiros, esto muito expostos tanto violncia urbana quanto s doenas e a
morte sempre uma possibilidade muito prxima. Alm disso, uma vida que no se
presta acumulao. Pode haver fixao temporria, se a vizinhana permitir, se a
regio oferecer recursos adequados: uma rvore, uma marquise, acesso gua etc. Nesse
caso alguns poucos objetos podero ser acumulados e, juntamente com outras marcas
expressivas, como aquelas do baixo viaduto, circunscrever um territrio, impor uma
distncia frgil e agressiva como pepinos do mar que lanam suas vsceras contra o
inimigo -, assinalar um domnio atravs do mau cheiro, da sujeira, da imagem
desagradvel, da distribuio de seus objetos sobre a calada.
Muitos cados no chegam a fixar um local de dormitrio nem mesmo um
itinerrio de circulao. Tomam banho e lavam roupas, quando o fazem, em
equipamentos urbanos que se destinam a isso, assim como em fontes e chafarizes, em
riachos na cidade, na lagoa da Pampulha, em postos de gasolina etc. que estejam em seu
caminho. Passam a vida perambulando pela cidade.
A construo do territrio existencial dos andarilhos, cados ou no, passa antes
pela apropriao dos lugares em que se encontram e dos recursos a que tm acesso do
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que por uma demarcao espacial, ao contrrio dos maloqueiros. Fazem de seus corpos,
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alm de uns poucos trapos, sacolas e objetos o seu territrio existencial, sua marca de
expresso, como observa a psicloga social Cenise Vicente sobre a populao de rua de
Campinas:
O mau cheiro de quem no toma banho na situao de rua uma
estratgia de sobrevivncia, uma couraa protetora do corpo. [...]
o mau cheiro lhes til, pois funciona como defesa e como
proteo, afastando as pessoas. [...] O corpo o ltimo territrio
que sobrou para aquela pessoa; ela perdeu, do ponto de vista do
tempo, o passado, porque perdeu o direito de ter uma raiz, de ter
um lugar no mundo. Ela vai perambular de cidade em cidade ou
dentro da mesma cidade por vrios locais e vai perdendo essa coisa
fundamental, o direito de ter memria, de pertencer a uma
comunidade. (Vicente 1995: 25)
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tinham uma religio diferente por dia da semana, de acordo com o fornecedor do
rango, da comida.
Os tcnicos que trabalham no atendimento populao de rua, ou os voluntrios
que trabalham na caridade, tambm participam dessa representao da casa. Eles so
chamados de pais, mes, avs ou tios pelos moradores de rua. Muitas vezes eles tambm
se consideram assim e aceitam ser chamados dessa forma o que refora o personalismo
no atendimento a essa populao, reforando tambm a necessidade, por parte dos
moradores de rua, de construir discursos convincentes para obterem os servios, ou
favores, que desejam ou necessitam.
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Existindo no Territrio
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por acaso na rua. Contam que quando tem festa nas malocas ficam sabendo uns pelos
outros, sejam estes bem-vindos ou no. Cada um chega no seu tempo. Na maior parte
das vezes se renem por acaso. Um descola um dinheiro, outro compra a cachaa, outro
prepara qualquer coisa para comer, se o dinheiro der tem maconha, dependendo da
maloca tem craque. Fazem festas para comemorar aniversrios, Natal, Ano Novo,
nascimentos, casamentos, batismos, ou tambm sem qualquer pretexto. A comida da
festa pode ser churrasco ou salgadinhos industrializados e baratos. Nas festas escuta-se
pagode (podem improvisar uma batucada), ax, msica romntica, rap, hip-hop e msica
sertaneja. Pratos e copos, se necessrios, so improvisados em garrafas pet cortadas,
sacolas de supermercado, tampas de lata etc. No dia seguinte as pessoas comentam a
festa, se os anfitries estavam presentes, se trataram bem as pessoas, se houve briga, se
algum arrumou namorado, quem faltou, quem compareceu, quem deu vexame...
Marta, que foi moradora de rua e hoje cozinheira de restaurante, conta que s
vezes faziam churrasco beira da cachoeira do Arrudas, (uma queda dgua que seria
uma cachoeira se o rio Arrudas no fosse canalizado) j na sada de Belo Horizonte para
Sabar. Ela e seus amigos de rua se reuniam, juntavam dinheiro para comprar carne,
carvo, bebidas etc. e caminhavam do centro da cidade at a cachoeira para fazer o
churrasco.
Os moradores de rua, quando so chamados ou quando veem algum chegando
com cachaa ou preparando alguma droga para usar, se agrupam e bebem, fumam ou
cheiram juntos. A cachaa o principal vetor de aglutinao da populao de rua. Ao
seu redor os moradores de rua se renem, conversam, contam piadas, s vezes jogam
baralho. Quando ela acaba, um dorme num canto, outro na calada, dois discutem,
outros continuam o jogo. A sua frequncia tamanha, que um morador de rua, decidido
a parar de beber, contou em uma tarde quantas vezes a garrafa de cachaa passou pelas
suas mos. Ele resistiu por mais de 40 vezes. Dois dias depois foi encontrado desmaiado
de tanto beber, na calada da rua Araguari.
No todo mundo na rua que consome drogas ilcitas. O uso dessas drogas
duplamente perigoso: preciso ter dinheiro para pagar o traficante e preciso tomar
cuidado para evitar a polcia. Alm disso, o preconceito que existe contra o uso e os
usurios de drogas ilcitas entre os no moradores de rua existe tambm entre os
moradores de rua. Preconceito que existe tambm em relao cachaa: consideram que
a cachaa, e no a bebida alcolica em geral, que faz com que a pessoa seja cada,
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pingua ou cachaceira.
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A mesma potncia que a cachaa tem para reunir os moradores de rua, ela tem
para gerar desentendimentos. A princpio, quando eu perguntava quais eram os
principais motivos de atrito entre os moradores de rua e eles me respondiam a cachaa e
a droga, eu pensava que essa era uma espcie de resposta padro da qual eles esperavam
que eu os levasse a concluir que no deveriam beber ou se drogar. De fato, h um certo
moralismo nessa resposta, mas se perguntamos a eles: depois de beber cachaa, o que
faz com que vocs briguem?, ouvimos que brigam por cimes, por dinheiro, por
antipatia gratuita. Se um no gosta do outro ele pode, por estar embriagado, fazer
acusaes de cunho ofensivo como falar mal da me ou da famlia (me, na rua,
tambm especialmente sagrada), cham-lo de bbado ou de maloqueiro. Essas
acusaes costumam ser respondidas com um soco na cara ou como aconteceu com
Isaura, uma moradora de rua que dormia sob o Elevado Castelo Branco, que teve sua
garganta cortada. Perguntei o que aconteceu para que ela tivesse sua garganta cortada.
Ela me respondeu:
No sei. Cachaa demais, ns tudo. Era final de ano, n. A todo
mundo bebe mais. Ela nunca gostou de mim. Ela nunca gostou de
mim e nem eu dela, n. A aconteceu. A aconteceu isso e ns no
conversa mais, ela pra l eu pra c. (Isaura)
No decorrer dessa mesma entrevista, comecei a perceber que eu deveria levar mais
a srio essa resposta. Como eu esperava mesmo uma resposta moralista, no notei que a
frase briga-se por causa de cachaa tinha um contedo bastante objetivo: briga-se pela
cachaa. Como Isaura me disse,
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morreu atropelado pouco tempo depois da entrevista, ele tambm comentou sobre o
risco que se corre brincando com a droga e a bebida alheias:
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nas caladas, como o caso do marido de Isaura que dormia na calada enquanto eu a
entrevistava. Antes da entrevista ela retirou dele o bon e algumas coisas no bolso da
camisa para evitar que outros o fizessem. De qualquer forma, os moradores de rua
furtam muitas coisas uns dos outros, mas essa no , nem pode ser sua nica fonte de
renda ou de obteno de provises.
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tempo, tanto para conquistar os clientes, quanto para achac-los. Os que viram o lixo
sem carrinho no tm hora para o trabalho. Procuram suas latinhas sempre que esto
caminhando pelas ruas. Recolhem o suficiente para pagar o almoo ou a cachaa. Os
trabalhos so feitos assim, na medida do desejo e da necessidade, como faz Black Rey:
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Consideraes Finais
paredes feitas de tapumes, papelo ou amianto) e pode ser que ao invs de uma,
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A respeito do bricolleur e das formas de pensamento associadas a esse modo de produo, ver Lvi-Strauss
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(1998).
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interior dessa moradia so o mau cheiro, restos de comida, cobertores e grandes latas
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(que servem para transportar gua, guardar mantimentos e, sobretudo como fogareiro).
Eventualmente podem ser encontrados colches, travesseiros, mveis velhos,
estofamento de automveis, roupas, fezes, urina e marcas de fumaa no teto ou nas
paredes do viaduto ou no muro. Mas , sobretudo, a presena constante dos moradores
de rua que marca seu territrio.
Esses elementos elencados podem ser suficientes para informar a ocupao
territorial, mas no so suficientes para impedir efetivamente a passagem de transeuntes
e a invaso do territrio. Por outro lado, apesar de sua fragilidade como instrumento de
proteo, algumas dessas marcas, como o mau cheiro ou as marcas de fumaa, resistem
no territrio mesmo quando dele so retirados os moradores de rua.
Resumo: Este artigo versa sobre os territrios existenciais dos moradores de rua de Belo
Horizonte. O objetivo maior deste trabalho descrever e analisar como vive essa populao,
observando a maneira como se relaciona entre si e as estratgias de vida por ela desenvolvida, ou
seja, sua sociabilidade. Interessa, sobretudo, saber como os moradores de rua de Belo Horizonte se
apropriam do espao pblico e de espaos institucionais da cidade para neles construir as suas
vidas, deles extraindo os recursos necessrios para sua sobrevivncia e transformando-os com sua
presena. Os dados foram obtidos atravs de observao participante e entrevistas, realizadas entre
2002 e 2004 para fins da minha dissertao de mestrado.
Palavras-chave: Antropologia urbana; Populao de rua; Territrios existenciais.
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Referncias bibliogrficas
Recebido em 26/08/2010
Aprovado em 16/11/2010
Artigos
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Introduo
Mitologia Primitiva (1935) e em Les Carnets (1949), os cadernos de notas publicados aps a
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morte do autor. Tal conceito nos parece interessante medida que, aparentemente,
carrega em si um paradoxo: por um lado, diz respeito a uma modalidade de
participao ideia que Lvy-Bruhl formular no decorrer de sua obra etnolgica para
designar a maneira especfica com que a mentalidade primitiva entende as complexas
relaes entre os seres e os objetos. Grosso modo, tal ponto de vista pressupe que a
participao no se define como representao (o que acarretaria, na viso do
antroplogo, na separao entre sujeito e objeto), mas por uma relao recproca na qual
o sujeito participa no objeto e este participa no sujeito. Por outro lado, Lvy-Bruhl
imprime a essa modalidade de participao o qualitativo imitao o que num
primeiro momento implica a ideia de representao, uma vez que na viso do terico,
imitar seria representar algo exterior ao sujeito. Podemos ensaiar algumas questes para
compreender melhor esse conceito em sua caracterstica aparentemente paradoxal:
estaria Lvy-Bruhl, ao qualificar a modalidade de participao-imitao, referindo-se ao
conceito de representao? Em caso afirmativo, em que sentido ele utiliza desta ideia?
possvel pensar numa aproximao com a ideia de representao de Durkheim, presente,
de certo modo, em seus primeiros escritos em particular, em As Funes Mentais nas
Sociedades Inferiores? Ou, pelo contrrio, estaria ele se aproximando do conceito basilar de
imitao de Gabriel Tarde autor conhecido por formular uma anlise do social em tudo
diversa da sociologia durkheimiana?
So essas questes, apenas delineadas, que iremos tentar discutir no decorrer do
presente artigo. Organizamos o texto da seguinte maneira: na primeira parte,
apresentaremos as formas como Lvy-Bruhl conceitua participao-imitao e tambm
discutiremos a viso de Durkheim sobre o que ele chama de representao coletiva.
Em seguida, discutiremos a definio de Tarde para imitao. Por fim, indicaremos as
aproximaes e distanciamentos possveis entre os trs autores.
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de hoje reproduzem aquelas que o ancestral mtico (...) celebrou, em presena dos
nefitos, na poca em que ele criou ou produziu a espcie (animal ou vegetal) da qual
o mito expe a origem. A virtude da cerimnia atual provem do fato de que ela imita
aquela do perodo mtico. (Lvy-Bruhl 1963: 214)1 Convm aqui destacar alguns
exemplos que ilustram a maneira como Lvy-Bruhl mobiliza o conceito de participao-
imitao.
Um primeiro uso se refere a rituais de celebrao da fecundidade entre as tribos
australianas e da Nova Guin, quando se encena um mito original com a finalidade de
proteger o grupo e obter sucesso na colheita. Segundo Lvy-Bruhl, se essas cerimnias
no ocorressem, e nas formas consagradas pela tradio, a vida do grupo social estaria
mais do que comprometida. Falta de alimentos, seus membros morreriam. (1935: 119)
Ao citar o exemplo de um comandante de barco que imita o heri Aori, o autor
acrescenta que a eficcia da imitao depende no tanto da vontade do ancestral mtico,
quanto da possesso do mito e da possesso do nome (em que reside o poder) e da
imitao to exata e perfeita quanto possvel do heri e de seus atos. (Lvy-Bruhl 1935:
121) Lvy-Bruhl defende que os parmetros de uma imitao eficaz, conforme as
formas consagradas da tradio, so conhecidos pelos ancios, que entendem o sentido
profundo dos mitos sagrados. Compreendem que os seres e objetos da experincia
presente so reprodues daqueles que existiram no perodo mtico e que mais
frequentemente no deixaram de ser. (idem, ibidem: 123)
Outro uso do conceito de participao-imitao diz respeito prtica, entre os
Naga da fronteira norte da ndia, de caminhar no arrozal durante o cultivo, mas sempre
imitando o gestual e os movimentos que fariam no perodo da colheita, a fim de garantir
o crescimento de plantas viosas no futuro. Comum tambm a prtica, entre os Papuas
da ilha Kiwai e dos Canaques da Nova Calednia, de enterrar pedras grandes e
resistentes para garantir o nascimento de tubrculos gordos e fortes. As pedras, segundo
os primitivos, ensinariam os tubrculos a crescer. Tambm pertence a essa modalidade
de participao a dana da chuva, na qual os indgenas de Queensland, Austrlia, imitam
os gestos e reaes que eles mesmos teriam se estivesse chovendo. Conforme Lvy-Bruhl,
os passos no arrozal, o enterro da pedra e a dana da chuva so modelos que devem
exercer uma feliz influncia sobre as disposies das plantas e os fenmenos da
natureza destacando-se que os prprios objetos, plantas e animais tambm participam
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A traduo de todos os trechos citados de A Mitologia Primitiva e Les Carnets livre, a partir do original em
Artigos
francs.
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indivduo e objetos que lhe fazem referncia, como pertences, restos ou rastros. Na
comunidade de essncia, agir sobre uma pegada, um fio de cabelo, ou a imagem de um
indivduo, para citar alguns casos, de fato agir sobre ele. A participao-imitao, por
sua vez, seria funo indispensvel dos precedentes e dos modelos; fundamento de
realidade atualmente dada a seres mticos, legitimao, ao mesmo tempo mstica e
histrica, ou sobretudo meta-histrica, que satisfaz a necessidade de explicao. (idem,
ibidem)
Haveria, acima de tudo, uma diferena no modo de realizar a participao em
cada modalidade. A participao/comunidade de essncia seguiria, por assim dizer, o
princpio de pars pro toto, ou seja, agir sobre a parte equivaleria a agir sobre o todo, ao
passo que a participao-imitao seria uma forma de atualizao do tempo mtico
atravs encenao do mito. Alm disso, para a mentalidade primitiva tal encenao
legitimaria uma ordem do mundo, prescindindo da necessidade de explicao lgica, no
entender de Lvy-Bruhl. O antroplogo, todavia, no desenvolve mais a fundo as
diferenas e as possveis semelhanas entre esses tipos de participao. Ao tecer
consideraes para um estudo mais detalhado, ele afirma que elas podem dialogar e at
se confundir (idem, ibidem), defendendo a importncia de:
2
Como afirmado acima, os Carnets so anotaes pessoais de Bruhl, publicadas postumamente. Por esse
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motivo, a escrita parece confusa em algumas passagens, gerando dificuldades tambm em sua traduo.
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Termo formulado por Goldman para se referir a determinados discpulos de Durkheim, entre eles Mauss
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ato lgico que se tornou mais complexo no decorrer da histria. bem verdade que eles
reconheceram que o estado de indistino presente nas sociedades ditas primitivas
carregaria um alto grau de afetividade. Porm, diferentemente de Lvy-Bruhl, que se
debruou boa parte da vida sobre a compreenso deste, digamos assim, estado de
indistino, Durkheim e Mauss4 desenvolveram poucas reflexes em torno dessa forma
de entendimento afetivo, sob o argumento de que a emoo naturalmente refratria
anlise ou, ao menos, dificilmente se presta a isto, porque demasiado complexa.
(Durkheim e Mauss 1981 [1903]: 455) Alm disso, no processo de complexificao dos
sistemas classificatrios, as influncias afetivas cederiam lugar a uma anlise cada vez
mais racional dos fenmenos, no entender de Durkheim.
A noo de representao durkheimiana, nesse sentido, est baseada naquilo que
Goldman identifica como conceito tradicional da filosofia ocidental, qual seja: uma
noo que privilegia o aspecto cognitivo em detrimento da ao e da afetividade: antes
de agir, antes de sentir, preciso se representar o ser sobre o qual a ao incidir, ou que
suscita sentimento. (Goldman 1994: 216-217, grifos do autor) Durkheim, em seu
estudo sobre as representaes individuais e coletivas, defende a existncia da autonomia
relativa da representao individual pelo desenvolvimento da faculdade cognitiva:
4
Mauss, posteriormente, daria mais ateno a esses fenmenos, sobretudo na ideia de homem total e fato
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social total (Mauss 1979 [1921] e 2003), mas seguindo um caminho diverso de Lvy-Bruhl.
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Para Tarde, no mundo social, tudo imitao ou inveno. O fato social seria
uma relao de imitao, assim como os fenmenos biolgicos resultariam da
hereditariedade e os fsicos, qumicos e geolgicos consistiriam em desdobramentos de
movimentos vibratrios constantes. De acordo com o autor, a imitao seria:
ingls.
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modelo, ou fazer exatamente o oposto do que ele faz. A contra-imitao, assim como a
imitao per se, resultariam em assimilao social ao longo do tempo. O contrrio seria
apenas a no-imitao processo que, segundo tal compreenso, ocorreria na ausncia
de relaes sociais. Dessa forma, Tarde refora que quando um homem inconsciente e
involuntariamente reflete a opinio dos outros, ou permite que a ao de outros lhe seja
sugerida, ele imita esta ideia ou ato. (Tarde 1962: xiii)
De acordo com Vargas, a centralidade do conceito de imitao desenvolvido por
Tarde estaria amparada pela noo de realidade probabilstica adotada pelo autor, para
quem o real so emergncias produzidas pelos encontros fortuitos e inumerveis das
sries repetitivas, cuja consistncia contingente, situacional e atual. Emergncias,
contudo, inteligveis apenas com relao a infinitas sries de relaes ou encontros
virtuais. (Vargas 2000: 214) Seguindo-se este entendimento, pode-se pensar que longe
de definir a realidade como dado emprico indubitvel, como indicado pela concepo de
representao de Durkheim, Tarde questionaria esse pressuposto, buscando compreender
as formas constituintes das realidades (no plural) e, por conseguinte, as representaes
suscitadas por elas. Haveria, dessa forma, um plano anterior ao real e representao,
sobre o qual o socilogo deveria debruar-se.
Com essa noo um tanto distinta do emprico, Tarde concebe o social de forma
totalmente diversa da escola durkheimiana, sendo a sociedade uma coleo de seres
com tendncia a se imitarem entre si, ou que, sem se imitarem, atualmente, se parecem, e
suas qualidades comuns so cpias antigas de um mesmo modelo. (Tarde 1903: 93)
Alm disso, na perspectiva de Tarde, a coisa inventada, a coisa imitada sempre uma
ideia ou uma vontade, um julgamento ou uma finalidade que incorpora uma certa
quantidade de crena e desejo. (...) Desejo e crena: eles so a substncia e a fora, eles so
as duas quantidades psicolgicas encontradas no fundo de todas as qualidades sensoriais
que eles combinam. (Tarde 1903: 145-146)
As relaes sociais, segundo tal perspectiva, consistiriam em desdobramentos de
uma distribuio mutante de crenas e desejos (Vargas 2000: 231) e no seriam de
modo algum exclusividade dos seres humanos. Segundo Tarde, sociedades funcionam
de acordo com a competio ou cooperao de seus desejos ou quereres. Crenas,
principalmente religiosas e morais, mas tambm jurdicas e polticas, e at mesmo
crenas lingusticas (...), so as foras plsticas das sociedades. Os desejos econmicos ou
estticos so suas foras funcionais. (Tarde 1903: 146)
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Dessa forma, Tarde lana luzes sobre o mistrio, em suas prprias palavras, que
reside no processo pelo qual uma coisa se origina a partir de outra; mais alm, percebe
que sempre que a produo no significa a reproduo de si, estamos completamente no
escuro. (idem: 6)
Conforme mencionamos, ao conceber a representao dessa maneira, Tarde parte
de um plano diferente de Durkheim. Segundo argumenta Vargas (2000 e 2007), enquanto
o primeiro busca compreender a representao coletiva em um plano microssociolgico,
ao indagar de que maneira as relaes entre crenas e desejos a constituem, Durkheim
parte de um plano macrossociolgico, explicando a representao coletiva pela
morfologia e acabando, de acordo com Tarde, por reificar os conceitos de sociedade e a
representao coletiva em uma explicao tautolgica, na qual uma seria resultado da
outra, sendo o inverso tambm verdadeiro.
Bruno Latour (2010) contribui com outros argumentos para explicar as diferenas
de concepo de Tarde e Durkheim, ao considerar que o ponto nevrlgico do debate
estaria nas posies destes tericos sobre o que deveria ser uma cincia: se Durkheim
aposta numa separao acentuada entre as cincias humanas e as naturais, Tarde
acredita que todas trabalham com sociedades, ainda que elas constituam conjuntos de
tipos distintos algumas humanas, outras biolgicas ou fsicas. Segundo Latour, o
paradoxo que Durkheim quem imita as cincias naturais, enquanto ao mesmo tempo
distancia sua disciplina o mais radicalmente possvel das delas. Enquanto isso, Tarde,
por no distinguir o ideal de cincia em domnios separados, toma maior liberdade ao
afastar-se das formas costumeiras pelas quais as cincias naturais apresentam seus
objetos. (Latour 2010: 3)
Assim, afirma Latour, a querela entre os dois estaria relacionada ao fato de
Durkheim defender que uma estrutura pode ser qualitativamente distinta de seus
componentes (idem, ibidem: 3), ou seja, as representaes coletivas jamais poderiam ser
confundidas com as individuais, cabendo a Sociologia estudar as primeiras. Para Tarde,
por outro lado, no seria possvel fazer Sociologia ao dissociar-se o plano individual do
social: Nada, no entanto, menos cientfico que o estabelecimento dessa absoluta
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Mais do que coisas diferentes, seria apropriado dizer movimentos ou ritmos diferentes com capacidades
de interferncias mtuas uns sobre o outros. Isto porque, para Tarde, as coisas, os tipos, as leis so apenas
freios ou diques que se constituem nos encontros dos fluxos de crenas e desejos. O homem seria
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associao, tentando articul-las ao mundo social, vivo, fsico, hipofsico e assim por
diante. Isso decorre de seu pressuposto de que a menor partcula se decompe ao
infinito. Sendo assim, as crenas e desejos teriam sua origem profunda no mundo vivo
(Tarde 1890 apud Vargas 2000: 231), enquanto a imitao consistiria no processo de
repetio de algo cuja origem externa ao mundo social.9
Tudo indica, portanto, que os conceitos de imitao em Tarde e em Lvy-Bruhl
no coincidem, medida que abordam planos, processos e coisas distintas. Entretanto,
se no nesse conceito que eles se aproximam, possvel imaginar, como sugere
Goldman, que tal acercamento se d por outras razes, especialmente por se
contraporem a uma explicao macro dos fenmenos sociais, empreendida por
Durkheim.
9
Embora Vargas identifique em Tarde a ideia de que qualquer forma de associao um fenmeno social,
tem-se ao mesmo tempo a impresso de que tal formulao fica pouco clara quando Tarde separa o mundo
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social do fsico e do qumico em esferas distintas, mas que devem ser analisadas conjuntamente.
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Resumo: este artigo busca uma possvel aproximao entre Lucien Lvy-Bruhl e Gabriel
Tarde, partindo da hiptese de que o conceito de participao-imitao, de Lvy-Bruhl,
estabelece um dilogo com as leis da imitao formuladas por Tarde. No decorrer da
anlise, entretanto, chega-se concluso de que os conceitos de imitao de ambos os
autores dizem respeito a processos diferentes. Para Lvy-Bruhl, participao-imitao
refere-se a uma dimenso mstica, unindo imitador e imitado num s elemento, ao
passo que para Tarde, a imitao pressupe duas ou mais coisas diferentes que, no fluxo
de crenas e desejos, ou assimilariam uma outra, ou resultariam em inovaes. As
reflexes nos levam a concluir, dessa forma, que um dilogo entre esses autores possvel
no tanto pela similitude desses conceitos, mas ao se tomar em conta que a ideia de
participao-imitao e a de leis das imitaes conduzem ambos os autores a propor
alternativas crticas noo de representao coletiva, de mile Durkheim.
Abstract: This article aims to demonstrate a connection between Lucien Lvy-Bruhl and
Gabriel Tarde, starting with the hypothesis that Bruhls concept of participation-
imitation establishes a dialogue with the laws of imitation formulated by Tarde. Over
the course of the study, however, it is determined that the two authors concepts of
imitation refer to different processes. According to Lvy-Bruhl, participation-
imitation is a mystical dimension that unites the imitator and the imitated into a single
element, whereas according to Tarde, imitation presupposes two or more different things
that, in the flow of beliefs and desires, either assimilate one another or result in
innovations. This analysis leads us to the conclusion that a dialogue between the two
authors is possible not because of a supposed similitude of their concepts but rather
inasmuch as their respective ideas of participation-imitation and laws of imitation
lead both authors to propose critical alternatives to the concept of collective
representation that had been created by mile Durkheim.
Referncias bibliogrficas:
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Recebido em 04/10/2010
Aprovado em 01/02/2011
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Do pensamento indgena:
Algumas reflexes sobre Lucien Lvy-Bruhl e Claude Lvi-Strauss1
Eduardo S. Nunes
1
Este ensaio uma verso revisada do trabalho final apresentado disciplina Histria da Antropologia:
Autores Clssicos 1, oferecida no mbito do Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social do
Departamento de Antropologia da Universidade de Braslia no primeiro semestre de 2010. Agradeo aos
professores Guilherme Jos da Silva e S que ministrou a referida disciplina e Marcela Stockler Coelho
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2002a). Partir da hiptese de que esses primitivos raciocinam [raisonnent] como ns [...]
antecipadamente renunciar a compreend-los. O que eles pensam e o que eles fazem s
pode ento nos parecer ridculo e pueril. Todavia, se, em vez de supor entre eles nossos
prprios hbitos de esprito, tentarmos nos dobrar sua atitude mental, [...] veremos que
seu modo de pensar e de agir sua consequncia natural, e at necessria. (id.: 221)4
Assim, Lvy-Bruhl levado a colocar em cheque ao longo de sua obra conceitos
fundamentais para as cincias sociais de seu tempo (e alguns ainda para as do nosso),
como representao, identidade, experincia (sensvel), smbolo, etc.
Sua incessvel autocrtica tambm o conduziu a repensar constantemente seus
prprios conceitos e formulaes, em prol de uma preciso maior na caracterizao da
mentalidade primitiva, tendo abandonado alguns conceitos (como o de pr-lgico) e
transformado outros (ao afirmar a participao no como lei, mas como fato, p. ex.).
em seus Carnets, notas tomadas nos ltimos anos de sua vida5 e publicados
postumamente, que isto fica mais evidente. Essa transformao ao longo de seus livros
etnolgicos, comumente divididos em duas fases,6 no parece, porm, ter significado
qualquer ruptura em sua obra, como seus dois principais comentadores no Brasil
afirmam. Assim, se a caracterstica da segunda fase seria a predominncia do afetivo e do
emocional, ao passo que a primeira fase seria marcada pela nfase na racionalidade, a
afetividade j se fazia presente em sua obra desde seu ltimo livro filosfico, La Morale et
la Science des Moeurs (1903), ou mesmo antes, em seu comentrio sobre o filsofo alemo
Jacobi (1894); a racionalidade, por outro lado, no foi em momento nenhum
abandonada (Goldman 1994: 15, 260; Cardoso de Oliveira 1991: 91, 154). Desse ponto
de vista, talvez as diferenas entre seus livros estejam mais na nfase dada a um aspecto
ou outro de uma reflexo constante.
Quais seriam as nfases, ento, do seu livro de 1922? Comecemos por um exemplo
que nos permitir entrar em algumas questes centrais: os malefcios crocodilos-
feiticeiros, tal como Lvy-Bruhl descreve a partir do trabalho de Bentley no Congo. Um
4
necessrio trat-los como sujeitos Outros, e no como outros sujeitos, diria Viveiros de Castro. justo
porque o antroplogo toma o nativo muito facilmente por um outro sujeito que ele no consegue v-lo
como um sujeito outro, como uma figura de Outrem que, antes de ser sujeito ou objeto, a expresso de
um mundo possvel. (2002a: 117).
5
Essas anotaes, que datam de janeiro de 1938 a fevereiro de 1939, foram, na verdade, dentre os vrios
cadernos de notas que Lvy-Bruhl mantinha, as nicas que sobreviveram guerra.
6
A primeira fase abarcaria os trs primeiros livros Les fonctions mentales dans les socits infrieurs (1910), La
mentalit primitive (1922) e Lme primitive (1927) e a segunda os trs ltimos Le surnaturel et la nature dans
la mentalit primitive (1931), La mythologie primitive (1935) e Lexprience mystique et les symboles chez les primitifs
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(1938).
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indgena entra no rio e atacado por um crocodilo. Para compreendermos sua atitude
diante de tal acontecimento, preciso antes esclarecer que, para eles, tais rpteis so
naturalmente inofensivos, de modo que, por mais que eles existam em quantidade na
regio, raros so os casos de ataque. Para Bentley, bastava que se tomassem algumas
precaues, como entrar no rio sempre em grupo e fazer barulho para afugentar os
animais, e o perigo estaria afastado. Os ataques acontecem quando algum se aventura
sozinho na gua. E como pensa o indgena quando a desgraa sobrevm? Acusar sua
prpria imprudncia, ou mudar de opinio sobre os costumes do crocodilo? Pensar que
foi um acidente? Ele o faria, sem dvida, caso raciocinasse como ns [quero dizer,
representando como ns a ligao das causas e dos efeitos, complementa nosso autor em
outra passagem]. De fato, ele nem sonha com isso. (Lvy-Bruhl 2008[1922]: 41) Estes
indgenas acreditam, relata Bentley, que os feiticeiros transformam-se em crocodilos,
ou entram nestes animais, guiando-os, e assim investem sobre suas vtimas. Quando um
deles atacado, sua atitude realizar uma conferncia para descobrir o feiticeiro. (id.
ibid.) Bentley fica indignado, prossegue Lvy-Bruhl, por aquilo que ele considera uma
obstinao inaudita de negar a evidncia. Trata-se, porm, de algo muito diferente.
simplesmente um caso da impermeabilidade experincia, que caracteriza a
mentalidade dos primitivos, quando representaes coletivas ocupam antecipadamente
seu esprito, representaes estas para as quais o papel das causas segundas
negligencivel e a verdadeira causa de ordem mstica. (id.: 42) O pensamento deles,
continua, no tem as mesmas exigncias lgicas que o nosso. Ele regido, tanto neste
caso como em muitos outros, pela lei da participao. estabelecida entre o feiticeiro e o
crocodilo uma relao tal que o feiticeiro se torna o crocodilo, sem, no entanto, se
confundir com ele. Do ponto de vista de contradio, preciso entre duas coisas uma
delas: ou que o feiticeiro e o animal sejam um, ou que sejam dois seres distintos. Mas a
mentalidade pr-lgica acomoda-se com as duas afirmaes ao mesmo tempo. (id.: 44)7
Para Lvy-Bruhl, a mentalidade primitiva pr-lgica porque efetua a passagem
imediata de tal percepo sensvel [em nosso exemplo, uma morte causada por ataque de
crocodilo] para tal fora invisvel [a ao do feiticeiro]. (id.: 50) Pr-lgico, portanto, no
implica, para o autor, um sentido de anterioridade, como alguns crticos insistiram em
7
Aqui poderamos, igualmente, ter citado o exemplo Azande, tal como encontramos na etnografia de
Evans-Pritchard (2005[1937]). Este autor britnico foi um leitor de Lvy-Bruhl, e, como nosso autor
francs reconheceu, logrou chegar exata significao de seu trabalho (Lvy-Bruhl 1952[1934]: 117). Ao
ver Evans-Pritchard descrever a magia Zande, portanto, podemos imaginar o quanto ele aproveitou suas
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afirmar (cf. Goldman 1994: 277). Na carta que escreveu a Evans-Pritchard, Lvy-Bruhl
agradece o comentrio que o britnico havia escrito sobre sua obra, que esclarecia ao
pblico ingls bastante refratrio a seus escritos que a expresso pr-lgico no
significa que os selvagens so incapazes de pensar corretamente ou so intelectualmente
inferiores ao homem civilizado. Mas como a ideia evocava a noo de anterioridade,
Lvy-Bruhl acabou por reconhecer que a escolha de seu termo foi infeliz (1952[1934]:
120, traduo minha). Esta constatao est tambm em seus prprios livros, como a
leitura das Fonctions mentales8 e dA mentalidade primitiva deixa claro. No se trata, diz o
autor, de uma carncia da mentalidade primitiva: No h, conforme a expresso
escolstica, uma razo deficiente ou negativa. H uma razo real e positiva. Ele a
consequncia imediata e necessria do fato de que os primitivos vivem, pensam, sentem, se
movem e agem em um mundo que, sob muitos aspectos, no coincide com o nosso. Por
conseguinte, muitas questes que a experincia nos coloca no existem para eles, pois
elas foram respondidas antecipadamente, ou melhor, porque seu sistema de
representaes tal que essas questes no tm interesse aos olhos deles. (2008[1922]:
49 grifos meus)
Um exemplo de autor que parece no ter compreendido bem o que Lvy-Bruhl quis
dizer com pr-lgico foi Paul Radin. Em seu Primitive Man as a Philosopher (1927), se
referindo a Les fonctons mentales, ele assevera que
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9
Nenhuma noo do conceito do homem primitivo de mundo exterior, de sua anlise de si prprio, da
natureza do Ser Superior [godhead], etc., possvel a menos que se reconhea que, como entre ns, existem,
grosseiramente falando, dois tipos gerais de temperamento: o homem da ao e o pensador [thinker], o tipo
que vive quase exclusivamente no que poderia ser chamado de um nvel motor e o tipo que demanda
explicaes e que retira prazer de alguma forma de pensamento especulativo, comenta Radin (1927: 229-
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30 traduo minha).
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10
Eis aqui a ocasio para fazer uma citao elogiosa, com a qual eu s poderia concordar:
surpreendente verificar em L-B o fato dele conseguir observar a realidade do pensamento indgena apenas
atravs da leitura diligente e perspicaz de textos, sem jamais ter tido a oportunidade de pesquisa de campo!
Esse desvelamento da mentalidade dita primitiva s foi possvel por uma excepcional qualidade: fina
sensibilidade combinada a um intelecto rigoroso e profundo, a despeito de todas as imprecises e muitas
especulaes que uma obra pioneira como a sua no poderia deixar de conter. (Cardoso de Oliveira 1991:
105)
11
Aqui trouxe uma formulao de Lvi-Strauss em auxlio a uma de Lvy-Bruhl. Mas poderia tambm
fazer o contrrio, pois h algo na empreitada de traio/traduo do segundo que se deve lembrar sobre a
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quadro mental de seus conterrneos, certos conceitos, como os de lgica (com a ressalva
feita por Cardoso de Oliveira), experincia (sensvel, fsica), associao, conceito,
conhecimento, dentre outros, no se tornam mais claros os motivos dos dilemas e
dificuldades da escrita do autor?12 E se assim podemos fazer, o que pensar dos termos
que se contrape a estes, da insistncia do autor no carter mstico e, sobretudo, na
dimenso afetiva desta mentalidade?
Note-se que na formulao colocada acima, h uma assimetria: no jogo de
traduo-traio, de transposio entre nveis, a oposio colocada foi entre nosso quadro
mental, por um lado, e a realidade indgena, por outro. A representao do espao, por
exemplo, diz Lvy-Bruhl, principalmente qualitativa. As regies do espao no so
concebidas, nem propriamente representadas, mas muito mais sentidas em conjuntos
complexos, em que cada uma inseparvel daquilo que ocupa. Cada uma participa dos
animais reais ou mticos que nela vivem, das plantas que nela crescem, das tribos que a
habitam, dos ventos e das tempestades que nela sobrevm. (2008[1922]: 205 grifos
meus)13 No se trata, assim, de uma apreenso mental (conceber ou representar) de uma
realidade natural exterior (o espao). E ao pensar nessa representao qualitativa
uma representao sentida, poderamos dizer14 , no se coloca sob dvida a prpria
distino entre a dimenso representativa (imaterial) e a dimenso sensitiva (material) do
mundo? Ao tratar da noo de causalidade inerente mentalidade primitiva, Lvy-Bruhl
insiste justamente sobre a impropriedade de ser projetar sobre tal mentalidade essa
distino entre o material e o imaterial, ausente nela. O mundo visvel e o mundo
invisvel so apenas um, e os acontecimentos do mundo visvel dependem a cada instante
das potncias do outro. [...] Para espritos assim orientados, no existe um fato
puramente fsico. (2008[1922]: 444) Ao insistir que a mentalidade primitiva no , ao
contrrio da nossa, orientada para o conhecimento propriamente dito (mantendo,
lembremos, a noo de conhecimento uma forma de apreenso mental intacta), que o
12
Olhando esse movimento, eu me colocaria a mesma questo que Marcio Goldman: Eu quase se me
perguntaria se nossa dificuldade em compreender a obra de Lvy-Bruhl no se assemelha aos problemas
que ele prprio enfrentava para compreender os seus primitivos. (1994: 29)
13
Tal passagem no poderia deixar de evocar discusses recentes sobre a relao indgena com o espao,
na qual o lugar no pode ser destacado dos seres que o habitam (ou vice-versa), e a relao que algum
estabelece com este lugar sempre mediada pelas relaes que entrava com os seres que o habitam algo
que pode ser entrevisto, por exemplo, nos nomes de lugares (cf. Coelho de Souza 2009).
14
Poderamos dizer, tambm, uma representao sensitiva? E, se pudermos, no haveria aqui algo em
comum com a cincia do concreto, de que fala Lvi-Strauss, esse modo de conhecimento que
proporciona descobertas do tipo que a natureza autoriza, a partir da organizao e da explorao
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Essa ideia de que o mundo antes sentido que representado, parte o problema terminolgico que a
afetividade cria no pensamento de Lvy-Bruhl (cf. nota 17, infra), no deixa de lembrar (pois visa promover
o mesmo movimento) algumas discusses recentes que, em termos gerais poderiam ser caracterizadas pela
ideia de que as (habilidades) tcnicas, o conhecimento de uma forma geral e, em ltima instncia, o social,
no so representaes, mas emergem da experincia, do engajamento, das relaes vividas para com o
mundo fsico e social (humano e no-humano). Para dar o exemplo de um autor atualmente bastante
proeminente que trabalha sob essa orientao geral, poderamos citar Tim Ingold (2000). Mas h, na
verdade, algumas formas distintas de encarar este problema. Cf. por exemplo, os trabalhos de Kohn (2002),
orientado por uma ecologia da percepo, Sautchuck (2007), cuja abordagem da tcnica parte de Andr
Leroi-Gourhan e Marcel Mauss, e Surrals (2009), cuja influncia mais importante nesse sentido a da
fenomenologia.
16
A bela formulao de Patrcia Rodrigues me ecoa na memria. Tudo aquilo que no Ocidente est
localizado fora do corpo na alma, na psique ou no intelecto e que constitui o sujeito abstrato, seja a
inteligncia ou o pensamento, a sensibilidade artstica ou as emoes, a criatividade conceitual ou as
imagens onricas, a conscincia ou o inconsciente, para os Java est profundamente dentro da carne,
imanente matria de que constitudo o corpo humano. No se trata meramente de uma no oposio
entre emoo (sentimentos) e razo (pensamentos), ambos situados dentro do ky, mas de uma inadequao
total da clssica oposio entre os atributos e produtos do corpo e os atributos e produtos da mente/alma,
entre o concreto e o abstrato, entre o material e o sutilmente invisvel, entre o biolgico e o conceitual.
(2008: 406-7) E Lvy-Bruhl leva ao extremo o empreendimento de pensar esse mundo. Para conseguir
pensar um pensamento totalizante, necessrio renunciar um mtodo cognitivo, como ns fazemos
usualmente, e adotar o mtodo indgena, sensitivo: seria necessrio tentar desposar a atitude constante
dos primitivos frente presena das realidades sobrenaturais e msticas, apreender esses complexos
enquanto tal sem se obstinar a analis-los, e sentir como eles se relacionam com a categoria afetiva do
sobrenatural. (La mythologie primitive, apud Goldman 1994: 267)
17
Isso por mais, tambm, que haja uma assimetria de postura frente a dois conjuntos de termos, como o
prprio Lvy-Bruhl ir reconhecer em seus Carnets: De fato, escreve ele, a palavra sentir, no uso que
dela fao aqui, s tem seu sentido bem definido em oposio a perceber, representar; afetivo em oposio
cognitivo. (apud Goldman 1994: 319) Trata-se de um momento capital no pensamento de Lvy-Bruhl,
comenta Marcio Goldman, embora tardio e breve. Sentir, afetivo..., afinal de contas, podem ser to
inadequados quanto representar, cognitivo...: projees, tambm, de um modo de pensamento que s
pode se constituir como conceitual na medida em que objetiva, critica e exclui o que dele escapa, o que
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Das muitas crticas que Lvi-Strauss faz s diversas teorias do totemismo, apenas duas,
que levam ao mesmo lugar (o intelecto) por vias distintas, interessam aqui. Uma
pergunta que sempre rondou os escritos sobre o tema : porque os animais, em primeiro
lugar, e plantas, em segundo, so os principais emblemas totmicos? Muitos autores
procuraram explicaes utilitrias para a questo, supondo que os animais ou plantas
totmicos fossem espcies de acentuada importncia (alimentar, sobretudo) para os
indgenas. Muitas so as descries que no confirmam essa hiptese, havendo vrios
totens que ocupam posio perifrica na dimenso pragmtica da vida indgena. Para
Lvi-Strauss, a atribuio de emblemas naturais no poderia ser explicada desta forma.
As espcies naturais, diz ele, no so escolhidas por serem boas para comer mas por
serem boas para pensar. (id.: 165-6) Para ele, assim como para Durkheim e Mauss
(1998), o totemismo seria uma forma classificao.18
A outra crtica que quero chamar a ateno aquela feita por Lvi-Strauss quanto
associao de um grupo social com um totem especfico. O que est em questo, para
ele, no so as relaes entre o grupo A e a espcie a, o grupo B e a espcie b, etc., no
so as relaes de semelhana. No so as semelhanas, mas as diferenas, que se assemelham.
[...] No h uma semelhana global entre os dois grupos, mas, de um lado, animais que
diferem uns dos outros (porque procedem de espcies diferentes, das quais cada uma tem
uma aparncia fsica e um modo de vida que lhe prprio) e, de outro, homens [...] que
diferem entre si (por serem repartidos entre segmentos da sociedade, ocupando cada um
uma posio particular na estrutura social). A semelhana que as representaes ditas
totmicas supem entre dois sistemas de diferenas (1980, p. 157), uma srie social e uma
natural. Desvinculando o totemismo da existncia de grupos sociais concretos, Lvi-
Strauss vai afirmar a realidade dos sistemas totmicos como sistemas de classificao:
eles retiram seu valor operatrio de seu carter formal, so cdigos aptos a veicular
mensagens transponveis nos termos de outros cdigos e a exprimir em seu prprio
sistema as mensagens recebidas pelo canal de cdigos diferentes. O erro dos etnlogos
clssicos foi querer reificar essa forma, ligando-a a um contedo determinado, enquanto
18
Uma diferena deve, entretanto, ser notada. Durkheim e Mauss fazem emanar a classificao da
sociedade. A hierarquia lgica, dizem eles, no seno um outro aspecto da hierarquia social. [...] Os
mesmos sentimentos que esto na base da organizao domstica, social, etc., presidem tambm
repartio lgica das coisas. Estas se atraem ou se opem da mesma maneira que os homens se ligam pelo
parentesco ou se opem pela vendeta. (1998: 199-200) Para Lvi-Strauss, entretanto, no h anterioridade
alguma, nem da sociedade nem da natureza, no processo de classificao. Sua base parece mais estar na
reciprocidade de perspectivas na qual o homem e o mundo se fazem espelho um do outro. (2004[1962]
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ela se apresenta ao observador como um mtodo para assimilar toda espcie de contedo
(2004[1962], p. 93 grifos meus). Do totemismo, Lvi-Strauss chega ao princpio de
classificao, importante dizer, metafrica.
Em O totemismo hoje Lvi-Strauss j havia oposto o totemismo religio como a
semelhana contiguidade, a metfora metonmia. Em O pensamento selvagem ele ir
fazer uma anlise mais detalhada da relao entre totemismo e sacrifcio. Se antes,
algumas hipteses encontravam no totemismo a origem do sacrifcio, Lvi-Strauss
mostrar que a relao entre ambos no gentica, de anterioridade (lgica ou histrica)
necessria de um em relao ao outro: eles so independentes e se opem como a
metfora metonmia. Se no totemismo, nenhuma outra espcie ou fenmeno natural
substituvel ao epnimo uma guia no pode, certamente, representar o totem do
urso, nem mesmo provisoriamente , no sacrifcio o princpio fundamental o da
substituio, na falta da coisa prescrita, qualquer outra pode substitu-la, desde que
permanea a inteno, a nica que importa. (2004[1962]: 249-50) Se o totemismo
emparelha diferenas, repousa em uma homologia postulada entre duas sries
paralelas a relao entre um grupo e seu totem s podendo ser, portanto, metafrica:
eu me diferencio de meu compatriota de outro grupo totmico da mesma forma que a
guia e o urso se diferenciam em seus hbitos alimentares , no sacrifcio, a srie [...]
das espcies naturais desempenha o papel de intermedirio entre dois termos polares, dos
quais um o sacrificador e o outro a divindade e entre os quais, no incio, no existe
homologia nem sequer uma relao de qualquer tipo; o objetivo do sacrifcio
precisamente instaurar uma relao, que no de semelhana mas de contiguidade, por
meio de uma srie de identificaes sucessivas. (id.: 250-1) E, no seria preciso dizer,
Lvi-Strauss toma o partido do totemismo para pensar os sistemas de classificao: o
sacrifcio seu oposto.
Anos mais tarde, Deleuze e Guattari iriam, em um belssimo texto, critic-lo
justamente por ter tomado tal partido, pois a ateno dos autores estava voltada para um
processo que concerne justamente quilo do que Lvi-Strauss havia tentado se desfazer, a
nfase das relaes de contiguidade.19 Um devir no se contenta em passar pela
semelhana: a semelhana para ele, ao contrrio, um obstculo, um ponto de parada
(Deleuze, Guattari 1997: 12). E no resta dvida de que esta uma limitao da
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Para os propsitos da discusso entre totemismo e sacrifcio em Lvi-Strauss e os limites da antropologia
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O estruturalismo uma grande revoluo, o mundo inteiro torna-se mais razovel. (Deleuze, Guattari
1997: 17) Mas no seria essa clebre ironia uma expresso ambgua, que aponta ao mesmo tempo para um
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nem pode, deixar de reconhecer o movimento operado pelo autor, nem muito menos neg-lo.
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J hora, depois deste (breve) mergulho na obra dos dois autores, de colocar a
cabea para fora dgua a fim de dizer algumas palavras finais. Como disse no incio, um
dos objetivos perseguidos era pensar as possveis implicaes das reflexes feitas ao
longo do texto sobre o que pensamos hoje sobre o objeto de anlise dos dois autores, o
pensamento indgena. Sem explicit-lo, eu me referia a uma questo que me parece
central no atual campo da etnologia indgena sul-americana, em torno da qual h uma
tenso que, h algum tempo, tem me levado a refletir: o estatuto do pensamento
amerndio enquanto um construto antropolgico e sua relao com o exerccio
etnogrfico (ou, mais precisamente, como o mundo indgena etnografado). Um dos
resultados do enorme nmero de etnografias feitas sobre diversos povos da Amrica do
Sul desde a dcada de 196022 foi, sem dvida, a consolidao de um campo de
conhecimento que permitiu a elaborao tanto de snteses regionais ou temticas quanto
de generalizaes ou formulaes gerais sobre este macro-conjunto. nesse contexto que
emerge a possibilidade da ideia de um pensamento amerndio (ou ao menos de certos
traos que caracterizariam a enorme maioria das sociedades da regio, seno todas). Um
dos esforos mais notveis nesse sentido foi a formulao o conceito de perspectivismo
22
O Projeto Harvard-Museu Nacional, coordenado por David Maybury-Lewis, teve, certamente, um papel
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amerndio (cf. Viveiros de Castro 1996, 2002b; Lima 1996, 1999).23 Seu impacto sobre o
campo da etnologia foi enorme, e consolidou-se de tal forma que parece, hoje, colocar o
problema inverso. Antes, tratava-se de tentar fazer as etnografias convergirem no sentido
de pensar as caractersticas comuns das sociedades indgenas sul-americanas. Agora,
duas questes se pem: ao aplicar o perspectivismo como uma teoria, em lugar de v-la
emergir do campo, arrisca-se, por um lado, a reduzir a complexidade do mundo emprico
pela suposio de uma homogeneidade perspectivista, por assim dizer, e, por outro, a
criar a iluso de um pensamento indgena. Estes dois riscos so bastante reais, penso. E
no seria justamente isso que Evans-Pritchard temia em relao generalizao de Lvy-
Bruhl sobre a mentalidade primitiva? Estamos s voltas, podemos bem ver, com um
problema primitivo na antropologia, com o perdo da analogia ambgua. Pois, se por um
lado o problema primitivo agora sim no sentido de anterioridade (um velho
problema, poderamos simplesmente dizer), no haveria algo nele que seria colocado
pelo fato de estarmos lidando com um pensamento Outro? Pois a questo no passa
justamente pela tenso entre diferena e semelhana?
Tanto Lvi-Strauss quanto Lvy-Bruhl trabalham num nvel muito elevado de
generalidade: quando pensamento selvagem ou mentalidade primitiva esto se
referindo a grupos humanos, no raro trata-se de todos os povos no-ocidentais
espalhados pela superfcie do planeta. E tal generalizao seria vlida, inevitvel
perguntar? Para a antropologia que se pratica hoje, seria mais do que sbio evit-la. Mas
reduzamos a frmula pensamento indgena pensamento amerndio, voltando-nos
para nosso objeto de interesse, ainda seria vlido proceder desta forma? No h dvida
que a evidente conexo histrico-geogrfica deste conjunto de populaes torna mais
plausvel a generalizao como j havia argumentado Franz Boas (2004[1896]) , mas
isso resolve nosso problema? Tomando partido do recorte regional, vou operar aqui uma
confuso de horizontes, pensando o que nossos dois autores franceses podem nos dizer
sobre a questo que, afinal, mesmo com nveis de generalidade diferentes, permanece a
mesma.
Meu primeiro ponto que ir contra estas generalizaes no deve nos levar ao
empobrecimento oposto do mundo emprico que seria minimizar ou mesmo negar a
diferena entre as duas mentalidades. Apenas sua afirmao no precisa ser irredutvel.
23
Se a formulao do conceito cabe a estes dois autores e, indiretamente, s etnografias de um sem
nmero de outros , no raro apenas ao nome de Eduardo Viveiros de Castro que se faz referncia,
colocando o de Tnia Stolze Lima de lado. Lembremos apenas que as formulaes de ambos vm tona
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24
Para tomar o exemplo Wari: estes indgenas afirmam sua identidade tnica diferenciada e, em outros
momentos, dizem ser brancos completamente (Vilaa 2000). Os significados envolvidos nesta afirmao
so certamente diferentes para os Wari e para ns, para quem uma alternativa se impe: dos dois,
necessrio escolher um... E se a opo o ser branco completamente, ns (no s antroplogos, mas
tambm certamente alguns deles, como pessoas de muitas outras parcelas da populao) no hesitamos em
supor que se trata de um processo aculturativo, de perda da cultura ou da tradio. Para os Wari,
como para os Karaj de Buridina grupo com o qual tenho trabalhado , no se trata disso: possvel ser
as duas coisas (cf. Nunes 2009). Cf. tambm Kelly (no prelo) para o caso Ynommi.
25
E no seria isso porque toda relao, no mundo indgena, uma relao entre sujeitos? (cf. p. ex.,
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Estou usando os construtos pensamento amerndio e perspectivismo amerndio de maneira
intercambivel. No que se trata exatamente da mesma coisa. O perspectivismo , certamente, de uma
ordem de abrangncia menor, embora parea trata de uma dimenso fundamental do pensamento
amerndio. Se, como disse acima, essa confuso de horizontes possvel, por que, quer se trate do
perspectivismo, do pensamento amerndio, do pensamento selvagem ou mentalidade primitiva, estamos
diante de uma mesma questo: em cada nvel da escala, a mesma relao se reproduz.
27
Talvez seja mesmo essa a dificuldade latente dos britnicos, empiricistas, chegarem a uma compreenso
mais profunda da obra de ambos os autores. Evans-Pritchard , evidentemente, uma exceo, talvez a mais
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notvel delas.
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Foi numa conversa com um amigo, Guilherme Moura, que este ponto se tornou claro para mim. A ele
agradeo.
29
Pois se tomamos a realidade virtual do pensamento amerndio ou do perspectivismo por um possvel, ou
se ontologizamos tais construtos, conferindo-os uma realidade emprica diferente daquela do virtual,
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ambos s poderiam mesmo nos servir como um modelo ou como uma teoria.
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Resumo: Este ensaio apresenta algumas reflexes baseadas na obra de dois autores, a partir de
livros especficos: A mentalidade primitiva, de Lucien Lvy-Bruhl, e O pensamento selvagem, de
Claude Lvi-Strauss. Maior ateno, entretanto, concedida Lvy-Bruhl, numa tentativa de
contornar algumas dificuldades de leitura de sua obra, rebatendo certas crticas feitas a seus
trabalhos e apontando convergncias tanto para com Lvi-Strauss quanto para com alguns debates
contemporneos na etnologia. Como concluso, trago as idias de pensamento amerndio e de
perspectivismo amerndio para fazer uma reflexo sobre uma questo: qual o estatuto da relao
entre tais construtos assim como tambm do pensamento selvagem e da mentalidade
primitiva com a etnografia? Sugiro que no so generalizaes, e que, portanto, no
favorecem nem dificultam uma homogeneidade emprica: so, antes, matrizes de pensamento, da
ordem do virtual, da potncia, cuja relao com o mundo emprico s pode ser uma de
atualizao.
Palavras-Chave: Lvy-Bruhl; Lvi-Strauss; Pensamento Amerndio; Perspectivismo Amerndio;
Matrizes de pensamento; Atualizao do Virtual.
Abstract: The present essay draws some comments about two authors, centered on two specific
books: La mentalit primitive, by Lucien Lvy-Bruhl, and La pense sauvage, by Claude Lvi-Strauss.
In most of the time, however, attention is given to Lvy-Bruhl, in an attempt to sidestep some
difficulties in the reading of his works, replying some of the critics directed to him and pointing
proximities with Lvi-Strauss and with some contemporary debates in ethnology. In conclusion, I
use the ideas of Amerindian thought and Amerindian perspectivism to make a reflection
about one problem: what kind of relation does such constructs as well as savage mind and
primitive mentality have with the ethnography? I suggest that they are not generalizations
and thus do not favor or prevents an empirical homogeneity. Actually, they are matrixes of thought,
of the virtual order, a potency, whose relation to the empirical world may only be one of
actualization.
Key words: Lvy-Bruhl; Lvi-Strauss; Amerindian Thought; Amerindian Perspectivism; Matrixes
of thought; Actualization of the virtual.
Referncias Bibliogrficas
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Artigos
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Moiss Lopes
1. Introduo
Por um lado, o etngrafo deve se engajar na vida das pessoas a quem estuda; ele deve
entrar em seu mundo determinado intencionalmente o mundo de sua prxis; e ele deve
se permitir de algum modo apenas a reflexo de si necessitada pela prxis particular deles
(e sua prpria). Por outro lado, o pesquisador de campo deve permanecer fiel sua
inteno primeira: pesquisar. Ele deve estar apto a se remover da vida daqueles a quem
estuda; ele deve se manter fora do mundo intencionalmente determinado deles; e ele deve
permitir a si mesmo uma reflexo sobre si que requerida e delimitada por sua prpria
prxis particular, sua pesquisa.
1
So adotadas neste trabalho as seguintes convenes: Itlico para conceitos acadmicos, categorias de
anlise, expresses e categorias nativas; Aspas duplas para grifo do autor.
2
Essa primeira ida a campo foi realizada no contexto de um estgio efetuado junto a uma organizao
no-governamental intitulada Associao do Projeto de Educao ao Assalariado Rural Temporrio
(APEART) que desenvolvia inmeros projetos com populaes especficas na cidade de Londrina e regio,
dentre esses projetos havia o Projeto de Educao Rural Indgena (PERI) no qual fiz algumas observaes
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3
Resta ainda dizer da pesquisa que as entrevistas foram desenvolvidas com 10 (dez) homossexuais
masculinos, todos adultos, com idades variando entre 20 e 44 anos, oriundos das camadas mdias da
cidade de Cuiab, sendo que todos os nomes dos entrevistados so fictcios. No que se refere ao grau de
escolaridade entre os entrevistados, ocorreu uma grande variao com a presena desde sujeitos com o
Ensino Mdio completo at indivduos com ps-graduao.
4
Signo aqui utilizado no sentido atribudo por Peirce. Um signo, ou representmen, aquilo que, sob
certo aspecto ou modo, representa algo para algum. Dirige-se a algum, isto , cria, na mente dessa
pessoa, um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado denomino
interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto. Representa esse objeto no em
todos seus aspectos, mas com referncia a um tipo de idia que eu, por vezes, denominei fundamento do
representmen (1977: 46) ... os objetos pois o signo pode ter vrios deles podem ser, cada um deles,
uma coisa singular existente e conhecida ou que se acredita tenha anteriormente existido ou que se espera
venha existir, ou um conjunto de tais coisas, ou uma qualidade, relao ou fato conhecidos cujo Objeto
singular pode ser um conjunto ou uma totalidade de partes, ou pode ter outro modo de ser, tal como algum
ato permitido cujo ser no impede sua negao de ser igualmente permitida, ou algo de uma natureza geral
desejado, exigido, ou invariavelmente encontrado em certas circunstncias gerais (idem: 48) ... um signo
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forma5 pela qual a interao se d, busco neste texto desenvolver uma primeira
elaborao terica.
No obstante, perguntas como as elaboradas acima, apontaram tambm para uma
relao estabelecida por Marcelo, Marcos, Daniel, Andr e outros, entre a construo da
conjugalidade e a conquista de respeitabilidade pblica. Tal construo desenvolvida
pela caracterizao de seu self (dos entrevistados/interlocutores) como sujeitos
respeitveis pela postura que assumiram publicamente, pois evitam freqentar o mundo
gay,6 bem como ter demonstraes pblicas de afeto, controlando o segredo7 sobre sua
homossexualidade e sobre sua conjugalidade.
Todas essas questes destacadas se referem a recortes das entrevistas,
privilegiando alguns elementos que se evidenciam nas narrativas dos
entrevistados/interlocutores que estes consideram importantes para a configurao de
uma relao estvel de conjugalidade homossexual masculina no esgotando de
maneira alguma a riqueza e complexidade do material levantado por meio de entrevistas
e observaes feito que demandaria um trabalho muito mais extenso uma vez que a
pretenso deste artigo analisar a situao de entrevista como um evento no qual,
atravs de conversaes, o eu do entrevistado/interlocutor construdo de maneira
contrastiva8 a outros, sejam esses o prprio pesquisador ou um outro grupo da
sociedade.
5
Seguindo Simmel (1983), entendo forma como a mtua determinao e interao dos elementos da associao
(:168). Assim, no contexto da entrevista de suma importncia a problematizao dos elementos presentes
(o entrevistador, o entrevistado, o gravador, o local da entrevista) que esto presentes nessa interao, pois
eles iro influenciar o modo e determinar a forma como essa interao ir ocorrer.
6
Mundo gay se refere aqui ao conjunto de locais (pblicos ou particulares) que se destinam e/ou se
tornaram com o passar dos anos, locais consagrados de encontros e interaes sexuais ou no entre
pessoas do mesmo sexo.
7
De acordo com Simmel, o segredo contm uma tenso que se dissolve no momento da revelao. Este
momento constitui o apogeu no desenvolvimento do segredo [...]. Tambm o segredo contm a
conscincia de que pode ser rompido: de que algum detm o poder das surpresas, das mudanas de
destino, da alegria, da destruio - e at da autodestruio. Por tal razo, o segredo est sempre envolvido
na possibilidade e na tentao da traio; e o perigo externo de ser descoberto se entretece com o perigo
interno, que como o fascnio de um abismo, a vertigem de a ele nos entregarmos. O segredo cria barreiras
entre os homens, mas ao mesmo tempo traz baila o desafio tentador de romp-lo por boataria ou por
confisso - e esse desafio o acompanha todo o tempo. (1999: 2)
8
Essa discusso me remeteu ao conceito de identidade contrastiva elaborado por Roberto Cardoso de
Oliveira (1976). Tal autor, em consonncia com Barth (1976) desenvolve uma crtica ao conceito de grupo
tnico ampliando a noo de identificao intertnica para melhor compreender o processo de assimilao
passando a considerar, portanto, duas dimenses nesse fenmeno: a particularidade cultural do grupo em
estudo e a identificao tnica de seus membros. Assim, no interior das relaes intertnicas a
gramaticalidade das relaes de identidade se expressava pelo jogo entre oposies e contrastes. A noo
de identidade contrastiva proposta, ento, por esse autor procura dar conta desse jogo sobre o qual a
identidade tnica se define. Nesse trabalho, no discutirei a noo de identidade, mas me focarei no
processo pelo qual a caracterizao do self do entrevistado elaborada atravs de um jogo de oposies e
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2. Construindo a cena...
Era um dia quente de agosto, Cuiab, como alguns amigos que moravam l me
diziam, s tinha duas estaes, a seca e a chuvosa, ambas sempre muito quentes. E eu,
como um estrangeiro na cidade, entre suores e louco ao menos por um ventilador,
estranhava o calor, afinal acabara de chegar de Londrina no sul do pas. J havia ido a
Cuiab algumas vezes a passeio sempre na estao chuvosa, nunca nesse perodo, de
modo que o calor e a seca nesse momento me sufocavam. Das outras vezes havia ficado
na casa de um de meus amigos como um visitante, agora como um novo morador da
cidade tinha de aprender a me movimentar, conhecer os lugares de freqncia de
homossexuais casados9 e solteiros, enfim buscaria mapear o mundo gay j que isso era
um dos objetivos da pesquisa.
9
Quando cheguei na cidade para pesquisar tal tema e, antes disso na verdade, uma das questes mais
bsicas era pesquisar o vocabulrio utilizado pelos homens que vivem relaes estveis com homens para
se auto-identificar e identificar suas relaes, assim seriam eles casais, companheiros ou parceiros?
Viveriam situaes de conjugalidade ou de parceria? Estariam eles casados, namorando ou
seriam solteiros? Durante a pesquisa a maioria dos entrevistados utilizou para se nomear dos conceitos
de casados e companheiros raramente usavam os conceitos parceiros, parceria e nunca conjugalidade. Os
namorados seriam uma categoria intermediria que nunca aparecia para nome-los, mas que servia para
nomear os relacionamentos precedentes que no redundaram em conjugalidade. Atuando como um
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mediador, um intrprete, um tradutor, em meu trabalho de pesquisa como etngrafo, busquei relativizar,
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ou mesmo criticar minhas prprias categorias de entendimento, minhas noes e pressupostos culturais
levados para o campo assim como os prprios conceitos antropolgicos que orientaram minhas indagaes
com o objetivo de iluminar adequadamente o objeto dessa pesquisa recontextualizando-os no seio das
prticas e representaes do grupo em estudo (Cardoso de Oliveira 1996). Desse modo, questionei e
questiono o uso a priori da categoria conjugalidade nessa pesquisa bem como em outras do mesmo
tema.
10
Interessante notar que vrios entrevistados tambm apontaram conhecer vrios casais de lsbicas. Essa
recorrncia ao conhecimento e a lembrana de casais de lsbicas por gays me levou a questionar muitas
vezes se h realmente uma diferena entre elas e eles quando em uma situao de conjugalidade, no
formulei uma resposta a essa questo, mas gostaria de ressaltar que o senso-comum, assim como uma
parte da literatura especfica sobre o tema aponta para uma maior estabilidade do par de lsbicas em
relao ao par de gays, o que conseqentemente, promoveria uma maior recorrncia a elas quando o tema
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a conjugalidade. Acredito que uma melhor elaborao dessa questo valha uma pesquisa mais profunda.
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Mais a frente tratarei desse e de outros conceitos tal como elaborado por Trajano (s.d.).
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conhecamos. Ambos comentavam sobre momentos da vida deles marcados nos lugares
que passvamos. O interessante desse pequeno tour proporcionado por eles para mim
que se referiam sempre a ns ao falar desses lugares marcados construindo a presena
constante de um na vida do outro, apesar de ambos haverem se conhecido muito
posteriormente quando j eram adultos.
Chegando ao apartamento deles, entre sacolas de supermercado que ajudei a
carregar me convidam para entrar, continuar a conversa e marcar a entrevista. J no
apartamento, entre pulos de Rex e Lassie12 que nomeavam como seus filhos, Rodrigo se
prontifica a ser entrevistado de imediato enquanto seu companheiro guardava as
compras e faria o almoo. Nos encaminhamos para o escritrio, fechamos a porta, e
explico para Rodrigo como transcorreria a entrevista, falo que ela seria gravada e
conversamos sobre a necessidade de assinar o Termo de Consentimento Livre e
Informado obrigatoriedade13 prevista pelo Comit de tica em Pesquisa do Instituto
de Medicina Social da UERJ que financiou essa pesquisa. Aps a assinatura de tal
documento, iniciamos a entrevista.
3. A entrevista...
Nesse texto, apresento uma leitura de meu encontro14 com Rodrigo um outro
que no era nada distante sendo essa leitura tambm inspirada em um outro encontro;
12
No me recordo os nomes verdadeiros desse casal de ces da raa pintcher.
13
Rodrigo foi um dos poucos que assinou o documento sem grandes questionamentos, uma vez que ele j
desenvolvera pesquisas e conhecia a necessidade de tal uso. Outros entrevistados, no entanto questionaram
grandemente o uso de tal ferramenta para garantir-lhes a confidencialidade absoluta de sua identidade j
que teriam de assinar um documento usando seus nomes completos. No desenrolar dessa pesquisa ocorre
inclusive um caso de recusa absoluta em assinar tal documento, apesar de autorizao verbal para o uso
das informaes coletadas durante a entrevista. O uso do Termo de Consentimento Livre e Informado
em entrevistas mereceria uma longa problematizao, no entanto esse no aqui meu foco de anlise.
14
Na verdade, esse encontro tambm pode ser considerado um confronto etnogrfico (Dwyer 1982;
Crapanzano 1985), isso acarreta que, sendo concebida como confronto, a pesquisa de campo resulta de/ou
em um dilogo, partilhando das caractersticas comuns a todos os encontros: ele recursivo seu
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significado em qualquer momento depende daquele que o precedeu; contingente o confronto pode ser
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interrompido em qualquer momento; engajado no sentido que vinculado a foras especficas que
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Crapanzano (1992) aponta que a funo dele pode ser simbolizada pelas noes de lei,
conveno, razo, cultura, tradio ou linguagem. o interlocutor ausente com silncios
forosamente secundrios ou sombrios.
Mas, antes disso acho necessrio apresentar melhor meu
entrevistado/interlocutor. Rodrigo tem 31 anos, ps-graduado e professor do ensino
mdio, seu companheiro tem 37 anos e cursa a universidade. O entrevistado/interlocutor
tem um filho de 12 anos oriundo de uma unio anterior com uma mulher, mas mesmo
antes dessa unio Rodrigo j tido experincias homossexuais. Morava no momento da
entrevista com seu companheiro h quatro anos e as famlias de ambos sabiam, assim
como seus amigos. Seu filho (de Rodrigo) mora com sua ex-mulher em outra cidade,
ambos (filho e ex-mulher) sabem e no vem a homossexualidade como um problema
segundo meu entrevistado/interlocutor. Antes da unio atual e do casamento, Rodrigo
teve outros namoros mais curtos com outros homens que no resultaram em unies
consolidadas.
Voltando a entrevista, ligo o gravador e inicio as perguntas, as primeiras questes
so sobre dados pessoais como idade, religio, grau de escolaridade, profisso e emprego,
cidade de origem, tanto de Rodrigo quanto de seu companheiro, bem como tempo de
durao do relacionamento vivido. Aps estas primeiras questes, interrogo Rodrigo
sobre os significados da sexualidade e como esses se refletiram na construo de sua
vida. Fao tambm um outro conjunto de questes que do acesso s representaes e
significados da conjugalidade. Todas essas questes so respondidas com tranqilidade.
No desenvolvimento da entrevista, h um conjunto de questes mais ntimas
que envolviam temas como infidelidade, atividade sexual e uso de preservativo (com o
companheiro e com outros). Diante dessas perguntas, as reaes dos
entrevistados/interlocutores vo do embarao passando pelo silncio e chegando ao
questionamento da pertinncia dessas questes. Rodrigo um dos
entrevistados/interlocutores que sempre reage com grande habilidade social a essas
questes, desde o incio exibe ter fortes qualificaes, e inclusive afirma conhecer o
processo de entrevista por j ter desenvolvido pesquisas acadmicas anteriormente.
Diante dessas reaes defensivas a essas ltimas perguntas, questiono-me sobre
o valor15 atribudo a tais temas mais ntimos, pois se em dilogos gravados tais temas
15
De acordo com Saussure (2004), o valor de um signo nunca intrnseco, s existindo na relao tendo
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como referncia um sistema. Tal afirmao se constitui como um problema na etnografia, pois no basta
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apenas traduzir o signo, mas essencial traduzir tambm o valor desse signo no sistema de
significados do nativo, esse o esforo que venho elaborando nesse artigo.
16
A busca por uma hiper-correo por parte de entrevistados na situao de entrevista j foi apontada por
muitos pesquisadores, entre os meus entrevistados ela est presente ora nas demonstraes de habilidade
social de Rodrigo e Marcelo; ora nas tentativas de utilizao da gramtica normativa por parte de Paulo,
Rafael, Murilo e Daniel.
17
No citarei aqui nomes dos entrevistados, pois os dados utilizados aqui podem identificar informaes
sobre fidelidade ou infidelidade dos entrevistados para seus companheiros.
18
Segundo Trajano-Filho (2000), boatos, mexericos, fofocas ou rumores so fenmenos fugidios que
resistem ao olhar analtico do pesquisador. O importante no se so verdadeiros ou falsos, e sim que eles
so transmitidos por meio de interaes face-a-face, o que os torna diferentes de outros meios de
comunicao em que a mensagem transmitida a partir de uma fonte nica e conhecida, atingindo
simultaneamente a todos que a eles tm acesso. O rumor ganha energia atravs de uma srie de dilogos
Artigos
nos quais os atores sociais criam e recriam o sentido das mensagens que veiculam.
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conhecido e muito familiar (idem: 14). Assim, a prosa envolve um tipo particular de conversa
que funciona como uma ponte que vence os silncios, as culpas, as vergonhas e
embaraos.
Nessa pesquisa dialoguei bastante com meus entrevistados/interlocutores, conversei
sempre que foi possvel com entrevistados/interlocutores, mas tive uma dificuldade
muito grande em prosear. As barreiras que separavam um estrangeiro, no caso eu (o
antroplogo), se mantiveram. As vergonhas, culpas e embaraos para falar de temas
como (in)fidelidade, e atividade sexual se mantiveram levantadas. Como prosear com
estranhos munidos de gravadores sobre tais temas? Como no se esquivar ante a
presena de um terceiro to poderoso como as hierarquias sociais, os valores
estabelecidos, a sociedade?
Com Rodrigo muito mais um interlocutor do que um entrevistado os dilogos
gravados aconteceram em dois momentos diferentes distanciados entre eles por um
perodo de trs meses; as conversas foram comuns e aconteceram em diversos momentos,
seja pessoalmente tanto individualmente, quanto em grupo, em festas ou com seu
companheiro por telefone ou pela internet; j as prosas, apesar de menos constantes,
aconteciam sempre que fosse possvel quebrar as barreiras j impostas, mas nesse artigo
como j visto me atenho a dilogos e conversas, a prosa aqui fica impressa no ar, marcada
nos traos do texto como um anseio por alcanar a compreenso de Rodrigo e de seu
mundo, uma busca por sua interpretao.
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4. Caracterizao do Self...
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Igualmente, Rodrigo afirma que o ambiente de baladas GLS aqui ele faz
referncia a boates gays no o ideal para ele, nem para o companheiro dele uma vez
que a grande maioria das pessoas que a freqentam vo apenas em busca de sexo. J os
bares tm a caracterstica de manter uma certa respeitabilidade pblica independente da
freqncia a esses serem de homossexuais ou heterossexuais. Desse modo, depreendo
que a categoria imagem de respeito est ligada diretamente s idias de fidelidade e no
promiscuidade. Uma imagem que deveria ser construda e mantida sob pena de se perder
o respeito, mesmo diante dos rumores e boatos, uma vez que Cuiab19 poderia ser
enquadrada como uma cidade mdia onde a possibilidade de estabelecimento de um
anonimato relativo (Velho 1999) seria dificultada pela existncia de um mundo gay muito
19
Cuiab somada a Vrzea Grande (cidade vizinha) comporia a chamada Grande Cuiab, conurbao que
teria uma populao de mais de 765 mil habitantes, com Cuiab respondendo por 525 mil e Vrzea
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Embora cidades como Rio de Janeiro e So Paulo tenham se tornado os centros mais importantes de
difuso da vida gay no Brasil no sculo XX, como afirma James Green (2000), necessrio apontar a
formao de subculturas gays cada vez mais visveis em diversas cidades do pas, entre essas se
destacam: Fortaleza, Belm, Belo Horizonte, Porto Alegre, Braslia, Curitiba e Recife (Parker 2002).
21
Alm disso, Simmel (1999) aponta que num crculo pequeno e estreito, a formao e a preservao dos
segredos se mostra difcil inclusive em bases tcnicas: todos esto muito prximos de todos e suas
circunstncias, de modo que a freqncia e a proximidade dos contatos implicam em maiores tentaes e
possibilidades de revelao. Alm disso, o segredo nem to necessrio, pois esse tipo de formao social
costuma nivelar seus membros e as peculiaridades da existncia, das atividades e das coisas que se possui e
cuja conservao tornaria necessria a forma do segredo, militam contra essa mesma forma social. (: 3)
Esse o caso desses social networks, local propcio para o surgimento e circulao de boatos e rumores sobre o
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Desse modo, se constri dois tipos de homossexuais, os que vivem no mundo gay e
que so encarados com desconfiana e um certo preconceito por colocarem em risco os
outros. Estes outros viveriam em redes de sociabilidades especficas e buscariam o
respeito como um marco para se alcanar o reconhecimento social de sua
conjugalidade. So a partir dessas tipificaes e caracterizaes do self de um outro
abstrato que meus entrevistados/interlocutores iro construir seus selves pela oposio,
pelo contraste.
As conversaes entre mim e Rodrigo e tambm com outros
entrevistados/interlocutores quando o tema abordado a construo da
conjugalidade sempre estabelecem uma relao entre essa unio e a conquista de
respeitabilidade pblica. Tal construo desenvolvida pela caracterizao de seu self (de
Rodrigo) de maneira contrastiva a outros que pela freqncia constante a lugares de
pegao, e por comportamentos tomados como desrespeitosos pelas exibies pblicas de
seus afetos (desses outros) fundamentam a excluso, o preconceito e a discriminao de
todos os homossexuais. a partir dessa caracterizao do self desses outros que o self
de Rodrigo e de outros entrevistados/interlocutores se constri.
Enfim, em nossas conversaes (minhas e de Rodrigo) sempre pairava um terceiro
invisvel, como dito anteriormente por Crapanzano, essa sombra pode ser considerada
uma lei, uma regra, uma conveno, a prpria linguagem poderia ocupar esse papel e o
faz tambm, se tornando em nossas falas um mediador. em conversaes com o outro,
intermediadas pela linguagem, que o ego toma conscincia de si e se constitui. Esse
movimento dialtico eu e outro forma um fluxo instvel e contnuo de mtuas
caracterizaes que, em alguns momentos, se congelam e fornecem a impresso
ilusria de uma estabilidade na qual o verdadeiro self emerge em tipos ou categorias.
Tais tipificaes, pensadas como diagnsticos da realidade objetiva, mascaram o
instvel processo de contnua criao do self, apresentando-o como uma entidade
objetiva que atravessa o tempo e o espao, passvel de uma descrio empiricamente
verificvel. (Santos 2001: 1)
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5. Consideraes finais
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A primeira foi realizada em 26 de junho de 2003 com a participao de cerca de duas mil pessoas. Em
sua segunda edio, no dia 19 de junho de 2004, reuniu cerca de 10 mil pessoas, segundo dados da
organizao. J a terceira edio ocorreu no dia 29 de julho de 2005, reuniu cerca de 18 mil segundo
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organizadores do evento.
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Moiss Lopes
Doutor em Antropologia, Universidade de Braslia
Email: [email protected]
Resumo: Este artigo analisa, partindo de uma srie de entrevistas realizadas em Cuiab com
homossexuais masculinos que vivem uma unio conjugal, a maneira pela qual se estabelece e se d
a relao entre pesquisador e nativo no momento da pesquisa, mais especificamente no momento
da entrevista. Tal relao mediada o tempo todo atravs da construo da categoria respeito
que usada como recurso para o estabelecimento da imagem pblica do casal homossexual. Na
anlise, essa respeitabilidade pblica construda tendo como recurso o exame da relao
didica estabelecida no momento da entrevista entre nativo-pesquisador, da oposio construda
por esses casais em relao a outros grupos de homossexuais e, tambm, atravs da
manipulao do segredo acerca de sua unio.
Palavras-chave: Entrevista; conversao; unio homossexual.
Abstract: Based on a series of interviews performed with couples of male homosexuals from
Cuiab, this paper analyzes how, in the moment of the research, more specifically, during the
interview, the relationship between researcher and native is established and develops itself. Such a
relationship is mediated, throughout the interview, by the construction of the category respect
which is used as a resource to the establishment of the public image of the gay couple. In the
analysis, this public respectability is built by the examination of the dyadic relation established
during the interview, as well as, the opposition built by the couples towards other gay groups
and, also, by means of the manipulation of the secret about the union.
Keywords: Interview; conversation; homosexual union.
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Recebido em 10/10/2010
Aceito para publicao em 30/12/2010
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A Dana 1
Nos relatos etnolgicos, confere-se dana um lugar que no faz jus sua
importncia social. Ela quase sempre percebida como uma atividade independente e
descrita sem referncia ao contexto de sua existncia na vida nativa. Essa abordagem
desconsidera muitos problemas como a composio e organizao da dana e oculta sua
funo sociolgica.
Uma breve anlise de uma dana africana mostrar que sua estrutura bem
diferente daquela da dana europeia moderna. Tambm, quando se trata de uma dana
pequena, e de modo ainda mais notvel quando centenas de pessoas dela participam, a
dana requer uma forma estereotipada, um modo prescrito de realizao, atividades
coreografadas, liderana reconhecida e regulao e organizao elaboradas. Se estes
problemas no estiverem na mente do observador, talvez ele nos d uma descrio
interessante, mas no ter feito um relato detalhado de grande valor para o trabalho
terico.
A dana possui tambm funes psicolgicas e fisiolgicas reveladas apenas por
uma descrio acurada. essencialmente uma atividade coletiva, e no individual, e
devemos explic-la, portanto, em termos de funo social, o que equivale a dizer que
devemos determinar qual o seu valor social. Aqui, novamente, o observador
despreparado de uma dana nativa, mesmo sem ter o olhar distorcido e pejorativo, est
to pouco acostumado a considerar as instituies luz de seu prprio valor funcional,
que ele frequentemente no oferece ao pensamento terico a ocasio de estimar a
significncia da dana.
No presente artigo, realizo uma anlise condensada de uma dana da nao
Azande seguindo o percurso sugerido acima. Os Azande2 esto sob o domnio de trs
1
Traduo de The Dance, artigo publicado originalmente em ingls em Africa: Journal of the
International African Institute, vol. 1, n 4 (oct., 1928), pp. 446-462. Gostaramos de agradecer ao
International African Institute pela permisso para publicar esta traduo e, em especial, a Stephanie
Kitchen, que tratou gentilmente de examinar o pedido. Traduo de Igor Mello Diniz (PPGSA/UFRJ).
Traduo
2
Para relatos gerais sobre os Azande, ver Lagae, Les Azande ou Niam-Niam, 1926, e Larken, An account
of the Zande, In: Sudan Notes and Records, Julho de 1926.
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administraes europeias. A maioria deles vive nos distritos nortistas do Congo Belga,
mas podem tambm ser encontrados nas provncias de Bahr-el-Ghazal e Mongalla, no
Sudo Anglo-Egpcio e na provncia de Ubangi-Shari da frica Franco-Equinocial. Os
Azande de que trato neste artigo vivem no Sudo Anglo-Egpcio.3
H um grande nmero de danas Zande. Algumas destas so regionais, outras
agora j no so mais realizadas, mas ainda so lembradas pelos homens mais velhos e
reconstitudas se for pedido a eles que o faam. H danas que acompanham os
tambores, danas que acompanham o xilofone, danas que acompanham instrumentos
de corda, e danas que no so acompanhadas por instrumentos musicais. Existem
danas especiais para cerimnias de circunciso, outras especiais para as vrias
sociedades secretas, outras especiais para filhos de chefes, outras restritas s mulheres ou,
por exemplo, para cerimnias funerrias e outras que so realizadas apenas como
acompanhamento do trabalho econmico. No tenho espao em um artigo to curto
para traar uma classificao das tantas diferentes formas de dana encontradas entre os
Azande; irei, portanto, me restringir a uma anlise das principais facetas de um tipo de
dana, aquela que acompanhada por tambores e conhecida como gbere buda (a dana
da cerveja).
MSICA. Os elementos que compem a gbere buda so msica, canto e
movimento muscular. Quaisquer destes elementos sem os outros seriam inconcebveis
nessa dana, mas difcil compreender a forma como eles se articulam.
A msica feita pelos grandes gongos de madeira, e por tambores de madeira
revestidos de couro na parte superior. O gongo de madeira tem a aparncia de um
bfalo, com pernas, rabo, cabea e chifres. Quando o vento sopra no oco de seu corpo
cavado, ele muge como um bfalo. Estes gongos variam consideravelmente em tamanho,
alguns chegando a quatro ou cinco ps de distncia do cho. Cada um feito de um
nico tronco e pode levar de dois a trs meses para ficar pronto. Ao longo de seu topo ou
de sua parte traseira, corta-se uma fenda estreita e os dois lados so cavados
desigualmente a partir da fenda. O instrumentista senta na extremidade do rabo do
gongo e bate nele com baquetas, cujas pontas so envolvidas em couro, formando uma
maa que protege o entalhe feito na madeira. Ele segura cada baqueta em uma mo e
acerta o gongo com batidas curtas ou longas. Pode bater com as duas baquetas
3
Minha expedio ao Sudo foi possibilitada pela generosidade do governo do Sudo Anglo-Egpcio e por
Traduo
uma verba governamental concedida pela Royal Society. Agradeo a confiana do Laura Spelman
Rockefeller Memorial Fund pela assistncia adicional.
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simultaneamente ou us-las em ritmo alternado. O volume do som pode ser regulado (a)
pela batida em um dos lados ao invs do outro, j que as cavidades so talhadas em
profundidades diferentes; (b) pela distncia existente entre o ponto da batida e a fenda ;
(c) pelo posicionamento de uma das pernas do instrumentista sobre a fenda; a perna
levantada quando se dobra o joelho, ou abaixada quando se alonga o joelho abrindo ou
fechando ento a abertura na a extenso almejada; (d) pela fora com a qual se bate no
gongo.
Os tambores de couro ficam a trs ou quatro ps de altura do cho. Uma tora de
madeira cavada por dentro e a pele de um animal bem esticada sobre cada
extremidade. A ponta em que se bate mais larga do que aquela que apoia o instrumento
no solo, e o tambor afina levemente do topo para baixo, como um cone. Geralmente, o
tambor seguro entre as pernas e bate-se nele com as palmas das mos, com batidas
longas e curtas. O uso desses dois instrumentos musicais significa que h, j na partida,
uma dupla diviso do trabalho na dana. Deve haver um homem para o gugu (o gongo) e
um para o gaza (o tambor de couro).
CANTO. Alm da msica do gongo e do tambor, existe a msica da voz humana.
Como no possua um aparelho fonogrfico e tenho pouco conhecimento musical, devo
referir-me ao canto de uma maneira bem geral.4 Para os nossos objetivos, o canto pode
ser dividido em dois, ou mais precisamente trs, aspectos: a melodia ou sucesso de
notas em uma sequncia rtmica, os significados ou valores fonticos em sua cena
contextual, e a condio do cantor, que inclui o timbre da voz e a variedade de
movimentos musculares.
Por razo j explicitada, no entrarei na questo da melodia. Em qualquer
melodia Zande, h apenas uma pequena gama patamares. Ao ouvido destreinado, as
melodias africanas parecem ter muito pouca variao, o que indubitavelmente no o
caso, e geralmente a diferena entre as melodias estimada pelo seu grau de semelhana
com canes europeias. Em tais circunstncias, agravao dos sons o nico recurso
confivel. As melodias so transitrias, poucas duram mais do que uma ou duas
estaes, aps as quais perdem a popularidade e tornam-se criaes totalmente perdidas.
4
Para consideraes gerais a respeito da msica negra africana por parte de um especialista, ver E.M. von
Humboldt sobre Msica Negra Africana neste peridico, vol.1, n.1. Trabalhos acurados sobre msica s
podem ser feitos com o uso de aparelhos de gravao. Tentei, no barco a vapor durante a volta para casa,
Traduo
com dois msicos e dois instrumentos, reproduzir as notas musicais dos cantores Azande. A tentativa
fracassou.
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Ou pode ser que apenas as canes sejam transitrias, ao passo que as melodias existam
sempre, em combinao com diferentes temas.
Todas estas canes possuem significado, mas o nvel de significado varia. Seu
significado indubitvel em seu contexto na mente de seu criador, pois se referem a
pessoas ou eventos que ele conhece. O significado expresso por aqueles que cantam ou
escutam a cano depende do quanto estes esto familiarizados com as pessoas ou os
acontecimentos neles referidos. No tive dificuldade em obter do autor um comentrio
claro, mas com frequncia as outras pessoas, mesmo quando conheciam e cantavam as
canes, tinham apenas uma ideia muito vaga a respeito do seu significado. O
significado, em ambas as suas qualidades de som e de sentido, passa por vrias
modificaes fonticas e gramaticais. Falando de modo geral, podemos dizer que a
melodia e no o significado que importa ou, como no linguajar comum, a harmonia
que conta, e no as palavras.5
Entretanto, no devemos esquecer que a cano , com frequncia, uma arma
dotada de algum poder. Um criador de canes perspicaz e popular respeitado pelo
talento que tem e pela habilidade que possui de ridicularizar seus inimigos. Serve
tambm como rgo de lei, no sentido amplo do termo, como um corpus de sanes
coercitivas, repreende o homem que ofendeu a opinio pblica, gratifica os que se
distinguiram e enaltece os chefes.
J falamos sobe melodia e significado, apenas restando agora direcionar a ateno
sobre a condio do executante ou do performer. O cantor produz a melodia com suas
mos como quando as seguramos para chamar algum que est distante e ele acompanha
sua execuo com uma variedade de movimentos musculares que so bem diferentes dos
movimentos estereotipados da dana. Cantar, seja numa dana ou fora dela,
inconcebvel sem as reaes musculares correspondentes. Elas so partes to integrais da
melodia quanto as palavras.
Ora, tais canes da dana da cerveja tm uma estrutura especial. Como a
maioria das canes africanas elas so antfonas, ou seja, so cantadas por um solista e
um coro. Na verdade, nas canes da dana da cerveja Zande deve-se distinguir dois
coros, mas explicarei tal fato depois. Cada cano possui um verso de abertura cantado
5
E.M. von Humboldt chamou a ateno para a escrita de palavras africanas em hinrios europeus por
parte dos missionrios. O resultado invariavelmente insatisfatrio. As formas musicais europeias, assim
como as rabes, so bem incongruentes para o ouvido africano. Os nativos sempre cantam o hino fora de
tom. impossvel traduzir as palavras de um hino para uma lngua africana sem que se faa uma pardia
Traduo
infeliz de seu significado. Por fim, movimentos musculares correlatos, que so um acompanhamento
essencial de todas as canes africanas so deixadas de lado no canto de hinos.
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pelo solista (undu) e pelo coro (bangwa). Se houver muitos versos, ento o solista comea
o undu seguinte enquanto o coro ainda est terminando o bangwa. Essa sobreposio
um aspecto comum a todas as canes deste tipo. Darei o exemplo de uma cano para
mostrar a diviso de coro e solo.6
6
Como a melodia no est escrita, transcrevi as palavras em seus valores fonticos cotidianos, e no como
so cantadas.
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O trecho do coro pode ser escrito da mesma maneira, uma vez que as pausas
ocorrem no canto de modo que as slabas se arranjem em uma sequncia mtrica regular.
Ao menos, este provavelmente o caso da maioria das canes.
MOVIMENTO MUSCULAR. Tentamos formular alguns problemas acerca da
msica e da cano, e agora chegamos ao terceiro componente essencial da dana, o
movimento muscular. O africano dana com o corpo todo. Ele no s movimenta seus
ps com a msica, mas mantm tambm os braos flexionados nos cotovelos, movendo
mos e braos para cima e para baixo, balana a cabea para frente e para trs, inclina-se
para um lado e para o outro, levanta e abaixa os ombros, e exercita os msculos
abdominais. Todos os msculos do corpo parecem estar em ao de tal modo que
como se muitas cobras estivessem sob a pele.
Os movimentos podem variar muito. Nem todos realizam os mesmos
movimentos, mas so todos feitos no mesmo ritmo. Existem, no entanto, passos com os
ps estereotipados e seguidos por todos os danarinos, e essa conformidade por vezes
necessria, como veremos quando eu descrever a ao da dana. Assim como os cantos,
esses passos obedecem a uma moda e logo sero substitudos por outros. No creio que
haja alguma correlao especfica entre um tipo de passo e um tipo de melodia.
PADRO DA DANA. bvio que, a menos que haja uma confuso absoluta
resultante das atividades individuais em uma dana, deve haver uma forma de conjunto.
A forma esttica da dana da cerveja dos Azande pode ser melhor demonstrada por meio
de um diagrama:
Legenda:
M Mulheres danando
H Homens danando
C e C Cantores do coro interno
S Solista
T Tambor
G Gongo
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canes. Em retribuio aos pequenos presentes, como por vezes uma ponta de uma
lana, o lder de canes oferece magia a seus seguidores. O ato de comer a magia atua
de duas maneiras. Primeiramente, confere ao homem confiana para compor e entoar
suas canes, e para atrair suali ou seguidores. Em segundo lugar, confere um diploma,
um direito a ocupar o lugar mais privilegiado na dana. Um homem, a meu servio,
costumava a brigar quando viajvamos a algum distrito estrangeiro, pois se considerava
um bom solista e tentava monopolizar esse papel. As pessoas costumavam a perguntar-
lhe com quem ele havia obtido sua magia e o fato de que ele podia contar-lhes que a
obtivera com um famoso lder de canes desarmava em alguma medida as crticas.
O mesmo se d com os tambores. Um jovem que viaja para fora de seu distrito
pedir permisso para tocar o tambor e explicar que o pupilo de tal ou tal mestre-de-
tambor e que dele recebeu sua magia.
Quando o lder de canes d a magia a um de seus seguidores, ele toma a raiz de
uma planta e a cozinha em leo, no fogo. Enquanto isso, ele mistura os ingredientes e
profere uma frmula mgica:
Vocs so remdio de canes. Eu cozinharei vocs. No me tragam m sorte. J
cantei muitas canes. No deixem que as canes se aborream comigo. Vamos cantar
canes com os lderes de canes. Eles cantam bem o coro de minhas canes. Eu vou
para cantar minhas canes. Todos os homens mais velhos se aprontam todos para a
dana. No me deixem falhar no canto. Eu vou mesmo continuar a cantar ainda por
muito tempo. Vou ficar bem velho e sempre cantarei. Todos os meus seguidores, os
homens me seguem muito no canto. Todos os meus seguidores veem com presentes para
mim. Vocs so remdio de canes; se vocs forem bom remdio vocs fervem bem
como gua, pois so o remdio de Andegi (um lder de canes famoso). Eu no roubei
vocs. Estive muito com ele por muitos anos. Andegi viu que eu estava bem com ele. Ele
foi me mostrar o lugar de todos os meus remdios e de minha magia de canes em todo
o pas. No deixe que lderes de canes briguem comigo por causa das canes.
Esta uma traduo muito livre do feitio proferido. s vezes um homem pode
tambm possuir um apito mgico, parcialmente oco em uma extremidade. Ele pega o
apito e o assopra antes de ir cantar suas canes em uma dana. Quando ele se dirige ao
apito, ele diz:
Voc um apito de cano. Eu vou cantar minhas canes. Os homens do
muito suporte s minhas canes. No permita que as pessoas fiquem em silncio
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durante minhas canes. Que minhas canes no caiam por terra. Vou cantar minhas
canes para as pessoas, mulheres e mulheres velhas, e homens velhos e todos os
homens. No deixe que eles fiquem em casa. Eles vm cantar todas as minhas canes.
No deixe que o lder de canes estrague minhas canes. por isso que eu assopro o
meu apito de canes, que voc. Eu no s te peguei, mas eu te comprei. Ento
soprarei meu apito. Vou sopr-lo fia.
Dei essas duas frmulas como exemplos do tipo de ritos e frmulas mgicos
usados para as canes. H outros tipos de magia usados para conferir o sucesso no
canto das canes e provavelmente h tambm muitos remdios usados para conferir
sucesso para bater os tambores de couro. No darei exemplos de feitios para ilustrar este
ltimo tipo de magia. Sua forma semelhante quela dos feitios apresentados acima
ainda que seu sentido seja diferente, sendo adaptados aos diferentes propsitos da magia.
FUNO SOCIAL DA DANA. Analisamos os elementos componentes da
dana Zande, ou seja, msica, cano, e movimento muscular. Descrevemos o padro da
dana e mostramos sua necessidade de organizao e liderana e como tal necessidade
satisfeita. Em nossa discusso formulamos questes concretas para as quais em geral
temos respostas inadequadas. A formulao dessas questes nos permitir retornar aos
fatos com melhores chances de obter as respostas definidas.
Abordaremos agora a questo que deve ser sempre a primordial na mente do
etnlogo. Qual o valor da dana na sociedade primitiva, que necessidades ela satisfaz,
qual o papel desempenhado por ela na vida nativa? Os relatos usuais da dana entre
povos primitivos nos oferece to pouca informao sobre a sociologia da dana que
somos incapazes de responder a essas indagaes.
Ao descrever os vrios aspectos da dana da cerveja Zande, nos restringiremos
aqui a mostrar atravs de que perspectivas esses problemas devem receber a ateno do
observador. O gbere buda uma atividade local. S aqueles que vivem a apenas algumas
horas de caminhada do lugar em que a dana se realiza podem participar. Todas essas
pessoas se conhecem, cresceram juntas, desde crianas, brincando, trabalhando e
lutando, lado a lado. Muitos estaro ligados entre si por laos de sangue ou por outros
laos sociais, tais como aqueles criados por matrimnio, irmos-de-sangue, circunciso,
associaes mgicas, e assim por diante. Todos so membros do mesmo grupo poltico
da tribo e devem fidelidade ao mesmo chefe. at certo ponto importante lembrar que a
dana uma atividade social desenvolvida por pessoas que tm entre si um lao de
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atrativo que para os jovens como um meio de flertar. Para eles, como na verdade para
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todos que vo dana, a prpria dana a principal atrao. Mas os adultos parecem
menos inclinados a serem atrados pelas distraes e dedicam toda a sua ateno ao
ritmo da dana. Os idosos geralmente no tomam parte na dana.
Mencionamos alguns aspectos importantes da gbere buda, mas no podemos entrar
aqui em muitos outros problemas interessantes levantados pela observao da dana.
Para tanto, teramos que oferecer uma descrio detalhada e completa de cada aspecto da
atividade como um todo.
Gostaramos, entretanto, de fazer a pergunta geral: qual a funo social da
dana? Essa pergunta nos propiciar uma formulao geral que abarca todas as danas
em todas as comunidades, uma formulao que d conta de outras coisas alm das
outras funes especficas das danas em diferentes comunidades e em distintas ocasies.
O melhor que podemos fazer a esse respeito resumir o excelente tratamento dado ao
problema pelo professor Radcliffe-Brown. No podemos dar conta de toda a extenso de
suas opinies, mas todos podemos l-las no captulo V de seu Andaman Islanders. 7
Em seu cerne, nossas observaes sobre a dana da cerveja Zande esto de acordo
com a anlise de Radcliffe-Brown sobre a dana entre os ilhus de Andaman. A dana
traz baila todo o sistema muscular do danarino, exige as atividades da viso e da
audio e produz um sentimento de vaidade no danarino. Todas estas experincias so
intensificadas pelo fato de serem expressas coletivamente. Certamente, o ritmo e o
costume influenciam o indivduo a tomar parte na dana. Em certo grau, o danarino
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7
A. Radcliffe-Brown, The Andaman Islanders, 1922.
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compelido a coordenar suas aes com as dos outros danarinos e esta coordenao
constrangedora agradvel. H tambm a tendncia promovida pela dana para o
aumento da boa vontade e para a produo dede um sentimento de concrdia.
A anlise de Radcliffe-Brown propicia uma base e um estmulo para a
investigao e gostaramos de fazer algumas observaes antes de nos engajarmos na
completa concordncia. Baseado nas observaes feitas sobre a dana da cerveja Zande,
gostaramos de dar algumas sugestes que podem modificar ou refinar essa viso.
O constrangimento exercido pelo ritmo e pelo costume no to enfatizado pelos
Azande. Sempre se v zandes habilitados a danar que, no entanto, no participam da
dana. Eles no so compelidos pelo costume a tomar parte alguma na atividade e
tambm no revelam qualquer desconforto por responderem ao ritmo dos tambores e da
melodia. Algumas pessoas no gostam de danar e preferem ficar em casa quando a
dana est em curso. bem verdade que essas pessoas passaram da etapa da juventude e
provavelmente h uma diferena considervel na influncia do ritmo sobre pessoas de
faixas etrias distintas, sendo seu efeito mais compulsivo nas crianas do que nos
adultos. Tambm, a conformidade s aes dos outros danarinos permite muita
variao individual. Os indivduos frequentemente perambulam livremente. Aqui h,
outra vez, uma correlao com a idade, os adultos se mantendo estritamente em seus
lugares na ordem da dana, ao passo que as aes das crianas pequenas esto de modo
geral fora da organizao da atividade principal. preciso ainda salientar que apesar da
dana gerar um sentimento de camaradagem, tais reunies produzem no obstante
perigos disruptivos para a unidade e a concrdia da cerimnia. J mencionamos alguns
desses perigos: canes difamatrias, indiscries sexuais, embriaguez, competio (pois
a exibio essencialmente quando frustrada ou contrariada), e assim por diante e
tentamos mostrar que h maquinaria social para impedir essas desordens. Os homens
tambm gostam de dar vazo a suas mgoas em um encontro pblico desse tipo.
Qualquer um que tivesse assistido a vrias danas da cerveja teria visto brigas e no
poderia subscrever a afirmao de que a dana sempre uma atividade da perfeita
concrdia, na qual as paixes e vaidades individuais estariam completamente
socializadas pelas foras constrangedoras da comunidade. Radcliffe-Brown no
reconheceu a complexidade dos motivos nana dana.
Mencionamos alguns pontos acerca dos quais uma maior observao se faz
desejvel. Todos esses detalhes so importantes. Queremos quadros cinematogrficos de
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8
A nica exceo a isto o fato de a dana ser realizada nas visitas dos oficiais europeus. Entre os Azande
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que foram reunidos pelo governo e assentamentos h, acredito eu, uma tendncia crescente a realizar a
dana como diverso, sem quaisquer associaes rituais.
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Assim sendo no podemos concluir que a dana seja simplesmente uma diverso,
mas que se trata de uma parte integrante de um importante investimento social associado
ao cerimonial religioso.
Isso no significa que os danarinos participem de alguma forma no cerimonial
relacionado aos espritos dos mortos. Tais funes ntimas so levadas a cabo pela
parentela do morto ou por outras pessoas a ele ligadas por laos sociais prximos. Os
parentes no tomam parte das festividades. Suas atividades so bem distintas daquelas
dos amigos e vizinhos que vieram para danar. Estes ltimos vieram para se divertir.
Para eles, a dana um importante assunto local e nenhum jovem, de ambos os sexos, se
daria ao luxo de faltar. Comparecem com o humor de feriado. Mas as atividades que
conformam o ritual ntimo dos espritos e a troca cerimonial entre parentes afins no
esto desassociadas das atividades mais profanas e animadas da dana. Mesmo que as
emoes dos parentes do morto sejam diferentes das emoes dos danarinos, ainda
assim a dana deve ser vista como parte da totalidade do complexo cerimonial.
A batida dos tambores atrai um grande nmero de vizinhos para a terra da famlia
do homem que assumiu a realizao das tarefas rituais devidas ao morto. Essa multido
forma a base para a realizao do ritual. O comparecimento de um grande nmero de
pessoas no s prestigia o anfitrio como essa presena serve de apoio para os eventos
mais srios da ocasio. A multido propicia reconhecimento social ao cumprimento de
um dever sagrado para com os mortos e s obrigaes de troca cerimonial entre o chefe
da festa e seus parentes afins. A multido torna banal e desagradvel o trabalho de levar
as pedras para o tmulo, e as vergonhosas discusses acerca da quantidade de lanas ou
de cerveja a ser trocada, uma ocasio memorvel. Ela faz do penoso trabalho de preparo
da festa e das cansativas obrigaes dos parentes uma cerimnia digna em honra aos
espritos dos mortos. Essa , creio eu, a funo da dana como parte do complexo
cerimonial religioso.
Recebido em 18/11/2010
Aprovado em 30/12/2010
Traduo
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Clarice Cohn
1
Agradeo a comisso editorial da R@U pelo convite para escrever este texto, e aos alunos em geral, do
Dossi Belo Monte
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2
Veja-se o livro organizado por Oswaldo Sev, Tenot-M, Alertas sobre as consequncias dos projetos
hidreltricos no rio Xingu, publicado pelo International Rivers Network em 2005, disponvel pela internet
http://www.internationalrivers.org/files/Tenot-M.pdf; os dados disponibilizados pelo site do Instituto
Socioambiental, http://www.socioambiental.org/; e o livro organizado por Lucia Andrade e Leinad Ayer
O. Santos, As hidreltricas do Xingu e os povos indgenas.
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Em 2010, tudo havia mudado de figura. E o mapa dos impactos, assim como os
afetados, tambm mudou, o que tem exigido contnuas reconfiguraes nos estudos de
impacto ambiental, mas tambm na mobilizao contrria barragem. Os efeitos dessas
mudanas tm sido grandes, com complexas reverberaes. Os Xikrin se veem
repentinamente no olho do furaco, e, neste mosaico de novos atores e de mudanas nos
impactos, tm que descobrir novas sadas, novos procedimentos, novos aliados e
alianas. Certamente, este o maior desafio por eles enfrentado nas ltimas dcadas,
desde que decidiram por aceitar o contato e se instalar definitivamente s margens do
Rio Bacaj, em meados do sculo XX, e seus temores pelo destino do rio e pelo futuro de
suas crianas dos primeiros, e nada desprezveis, impactos do projeto.
Tal como se apresenta hoje, Belo Monte ter impactos diretos, e ainda pouco
esclarecidos, sobre os Xikrin e a Terra Indgena Trincheira-Bacaj, onde esto suas atuais
seis aldeias. A T.I. cruzada pelo Rio Bacaj, que nasce ao sul da terra, fora da rea
indgena, corre por toda ela, sai, corre pelas fazendas que a margeiam, passa ento pelas
terras dos Arara da Volta Grande do Xingu, e desemboca no Rio Xingu. Acontece que o
projeto atual prev o que se denominou a Vazo Reduzida da Volta Grande do Xingu,
ou seja, a diminuio do fluxo de gua no Rio Xingu exatamente onde desemboca o
Bacaj. Quais sero as consequncias disso para o Bacaj e para os Xikrin ainda no se
sabe ao certo.
Retomemos o fluxo de nossa histria: no projeto anterior, a barragem que seria
construda no Stio Pimental, ou no Bananal, como conhecido regionalmente, serviria
para fazer o barramento do rio, que iria correr pelas turbinas para a gerao de energia.
As terras que ficavam a montante da barragem seriam inundadas, o que afetaria as terras
que estavam s margens no Xingu nesta regio de Altamira Karara, dos Karara,
Koatinemo, dos Asurini do Xingu, Cachoeira Seca e Laranjal, dos Arara, Ipixuna, dos
Arawet, e Apiterewa, dos Parakan , assim como os povos indgenas que se
encontravam mais a montante, nas vrias Terras Indgenas dos Kayap, e no Parque
Indgena do Xingu, que compreende muitas etnias. Como dizamos logo acima, a
Dossi Belo Monte
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ambientes impactados nos Rios Xingu e Iriri, em longo curso que chegava quase s suas
cabeceiras, dava mobilizao grande peso e visibilidade.
No projeto atual, o barramento no servir mais para a formao de um grande
reservatrio de guas, que inundaria assim muitas terras indgenas. Ele preparar o
desvio do rio, a acontecer por meio dos Canais de Derivao a serem implodidos para
levar as guas do Xingu s turbinas que sero instaladas onde hoje est o municpio de
Belo Monte de onde vem o novo nome do empreendimento. Por diminuir os
reservatrios, estes projetos so chamados de fio dgua, outro belo nome que
escamoteia a vultuosidade das obras e dos impactos necessrios. Diz-se que se
aproveitar o curso de igaraps que esto na regio entre o Stio Pimental e Belo Monte
mas ficou conhecida a ilustrativa comparao que diz que, para construir os canais, ser
necessrio remover quantidade de terra semelhante ao que se fez necessrio escavar para
a construo do Canal do Panam para ligar os oceanos Atlntico ao Pacfico.
Com o desvio das guas, o Rio Xingu secaria na sua Volta Grande, um pedao do
rio encachoeirado que desenha um lao que, nas pontas de suas curvas, quase faz
encontrar os municpios de Altamira, onde tem incio este percurso, e o de Belo Monte,
ao seu final, e que um ambiente bitico e ecolgico de grande riqueza e diversidade.
Este lao teria suas pontas feitas encontrar pelo canal de derivao, e a grande volta
deixaria de existir. Praticamente: porque, para garantir a reproduo da ictiofauna que
nela vive, se designou um hidrograma de vazo reduzida, pelo qual se deixa correr um
volume de guas que fora calculado como necessrio para a sobrevivncia da fauna e da
vegetao das margens do rio. Este volume de gua, porm, mnimo, e se prev um
regime de alternncia entre o que se poderia chamar de o mnimo necessrio e metade
desse valor em anos alternados.
O impacto da Vazo Reduzida sobre a diversidade ambiental da Volta Grande do
Xingu imenso, e tem sido debatido em diversas fontes3. Mas h outro imenso impacto,
sobre as pessoas que l vivem, pescam, cultivam nas margens do rio, tm suas casas, e
navegam pelo rio. Dentre elas, os Xikrin. Como eles, novos atores so colocados em
cena: os ribeirinhos que vivem no Xingu na sua Volta Grande, comunidades como as da
Ilha da Fazenda, e povos indgenas como os Juruna do Km. 17 e da Terra Indgena
Paquiamba e os Arara da Volta Grande do Xingu. Todos estes vivendo diretamente no
Dossi Belo Monte
3
Veja-se por exemplo a entrevista concedida pelo professor de Ps-graduao do Instituto de Energia e
Eletrotcnica da USP, Clio Bermann, ao Instituto Socioambiental em 2002, disponvel em
http://www.socioambiental.org/esp/bm/esp.asp, e seus artigos recentes (Bermann 2010, 2008, 2007).
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Rio Xingu, de onde tiram seus alimentos, seus recursos, e onde navegam. Canoeiros, os
Juruna para dar apenas um exemplo devero ver o rio se afastar de sua aldeia no
Paquiamba ao ter sua vazo reduzida o que, como j deve ter ficado claro, um
eufemismo para sua seca , correndo o risco de um dia se verem precisando carregar seus
barcos e suas canoas at o rio, cuja navegabilidade nestas condies ainda so incertas.
Mas e o Rio Bacaj? Seu futuro igualmente incerto. Afinal, suas cabeceiras esto
em outro canto, e ele compe sua prpria bacia hidrogrfica, em dada medida autnoma
em relao ao Xingu. No tendo sido estudado nestas dcadas de estudos que tm
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Os Xikrin, que estavam previstos para constar dos estudos do grupo 1, passaram
a constar do grupo 2, composto ainda dos estudos nas Terras Indgenas Arara, Cachoeira
Seca (Arara), Karara (Karara), Koatinemo (Asurini do Xingu), Ipixuna (Arawet) e
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A particularidade do Grupo 2 era que, diferente dos Grupos 1 e 4, nele uma parte
da pesquisa poderia ser feita a partir de dados secundrios. A equipe a realizar o estudo
ficaria responsvel ento por reunir o material existente sobre os Xikrin e sobre o rio e
sua bacia hidrogrfica, e, por indicao dos Xikrin, eu vim a integrar a equipe,
coordenada pela biloga e antroploga Isabelle Vidal Giannini, com grande experincia
de pesquisa e atuao em projetos com os Xikrin do Catet.4 De fato, foi possvel fazer,
ainda em 2009, uma viagem a campo de 10 dias, na qual pudemos navegar pelo rio,
marcar os pontos relevantes para sua explorao, manejo e navegao, tal como o fazem
os Xikrin, e os pontos de restrio de navegao etc.: foi um verdadeiro reconhecimento
de rea, para o qual contriburam os Xikrin, nos acompanhando ao longo do rio na ida e
na volta desde Altamira, indicando os pontos relevantes, e dando sua apreciao sobre os
impactos que adviriam da construo da barragem. Uma imagem de satlite tambm foi
trabalhada em cada aldeia com os homens xikrin, que l apontaram os usos que fazem
do rio para navegao, pesca, acesso s roas e s rotas de caa e coleta, viagens e
translados: em suma, documentando toda a importncia que o rio tem hoje para eles.
Deixarei os detalhes deste processo para adiante, quando poderei apresentar a
insero dos antroplogos nestes estudos e a participao dos Xikrin. Aqui, quero
ressaltar que todo o estudo feito at o momento por profissionais especializados em rios e
4
Os Xikrin indicaram tambm dois antroplogos que com eles estiveram nestas ltimas dcadas: William
Dossi Belo Monte
Fisher, que com eles estuda desde a dcada de 1980, e Paride Bollettin, que iniciou recentemente suas
pesquisas na aldeia de Mrotidjam. No entanto, eles no puderam ser indicados pela FUNAI por sua
origem estrangeira e atuao em universidades estrangeiras Fisher norte-americano e professor na
William & Mary College, e Bollettin italiano e doutorando na Universidade de Pisa. A ideia dos Xikrin
era a de dividir os antroplogos pelas aldeias, garantindo um interlocutor privilegiado a cada aldeia, em
um movimento e uma lgica muito tpicos a eles.
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ictiofauna sobre o Rio Bacaj, em especial sobre seu curso na Terra Indgena, teve por
fonte dados secundrios, tais como imagens de satlite, e que os profissionais por ele
responsveis, que analisaram a ictiofauna e a bacia hidrogrfica do Bacaj, no puderam,
porque no lhes foi dado tempo para tal, realizar viagens de campo e pesquisa, como se
ver abaixo. Ao final, concluiu-se pela necessidade de tais viagens e de tal estudo.
O Parecer Tcnico 21, emitido pela FUNAI aps anlise dos estudos do
componente indgena (FUNAI 2009), prossegue, revendo sua deciso de alocar a TI
Trincheira-Bacaj no grupo 2:
5
Enquanto escrevo, a mdia noticia a polmica sobre o licenciamento provisrio, solicitado pelo consrcio
vencedor do leilo para adiantar a construo dos canteiros de obras, o que lhes adiantaria todo o processo,
tendo em vista o regime de chuvas da regio. Por enquanto, est-se garantindo o cumprimento das
condicionantes, sem se ceder licenciamentos provisrios. Vamos ver.
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estudos complementares do Rio Bacaj. Parece ser uma constante dos estudos de
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Alm dos estudos complementares do Rio Bacaj, tambm foram contemplados com estudos
complementares os Xipaia e Curuaia, cujas Terras Indgenas no haviam sido estudadas at ento.
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impacto quando esto em questo as populaes indgenas: seu atraso. Isso, claro, tem
srias consequncias: os impactos no so definidos a tempo de se poder propor e estudar
mudanas no projeto dos empreendimentos, ou mesmo para definir com preciso as
mitigaes e compensaes. Se este um problema constante, certamente se revela muito
grave no caso dos Xikrin.
A comear, os estudos s passaram a contemplar os Xikrin do Bacaj, e o Rio
Bacaj, a partir de 2008. Depois, uma primeira leva dos estudos foi realizada com a
metodologia dos dados indiretos, tendo-se definida a juno dos Xikrin ao Grupo 2, para
os quais os estudos seriam realizados apenas com dados secundrios, inclusive os
disponibilizados para as equipes advindos do Estudo de Impacto Ambiental que estava
sendo realizado e a essa altura em processo de finalizao enquanto, frise-se mais uma
vez, os estudos relativos aos indgenas impactados se iniciavam. Os dados referiam-se a
apenas trs pontos de estudos e mensurao no Rio Bacaj, e de resto podia-se contar
apenas com imagens de satlite. As equipes de estudo do Grupo 2 se dividiram ento em
2, uma se dedicando aos povos do Xingu a montante da barragem e do Iriri, e a segunda
para o Rio Bacaj, composta por mim, por Isabelle Vidal Giannini, coordenadora, por
Roberto Giannini, oceangrafo, Oswaldo Nogueira, gegrafo, Gerson Edson Ferreira
Filho, estatstico, Mrcia Viotto Darci Gonalves, engenheira cartogrfica .
Nossa equipe, por sua vez, dividiu o trabalho em duas partes, uma de escritrio e
outra de campo, o que foi negociado pela coordenadora, demonstrando ser impossvel
fazer o estudo sem a participao dos Xikrin e sem ouvi-los. O trabalho de campo foi
feito por mim e por Isabelle Giannini, como antroploga e biloga, e teve a durao de
apenas 10 dias, nos quais visitamos todas as aldeias da TI Trincheira-Bacaj. Fizemos o
percurso desde Altamira de barco contratado, subindo o rio at a primeira aldeia a
montante, e retornando parando ento nas demais.
Em cada aldeia, na primeira reunio coletiva, apresentvamos o projeto do
empreendimento, cuja mudana era at ento desconhecida pelos Xikrin, e todo o
material que poca dispnhamos, e que havia sido preparado pelo Oswaldo Nogueira:
mapas topogrficos e de relevo, mapas retirados do material a ns disponibilizado dos
estudos que estavam sendo feitos, e da previso do canal que seria mantido na vazo
reduzida da Volta Grande. Em Altamira, foi-nos dado tambm, pelo escritrio local do
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7
Veja o site mantido pelo movimento, http://www.xinguvivo.org.br/.
8
Veja-se Fisher 1991 para uma comparao entre o associativismo masculino e feminino, e os espaos a
ele correspondente; veja-se tambm Vidal 1977, Turner 1979 e Lea 1986.
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Elaboramos com os Xikrin um mapa de uso e ocupao do rio, que teve por
resultado um mapa fascinante. Abrindo no cho a imagem satlite que levamos, de
grandes dimenses, marcvamos os locais de pesca, de acesso a rotas de caa e coleta, a
roas e castanhais, os canais de navegao, etc. o mapa ficou riqussimo, e foi sendo
completado a cada aldeia isso porque, como logo notou Giannini, o rio foi
compartimentado por eles, de modo a que cada aldeia explora os recursos de uma
parcela do rio. O mapa, cujas marcaes foram feitas a mo, foi preparado pela
engenheira cartogrfica Mrcia Viotto Darci Gonalves e incorporado, como
documento, no relatrio apresentado, de modo a demonstrar o grande uso feito pelos
Xikrin do rio para navegao entre as aldeias, para Altamira, onde encontram os servios
do estado que lhes atendem, e para acesso a locais de caa, coleta, pesca e cultivo.
Permanecamos cerca de trs turnos em cada aldeia um dia inteiro e a manh
seguinte, uma tarde e o dia inteiro seguinte...nosso calendrio nos impunha pressa, e o
translado de uma aldeia at a prxima durava no mnimo meio dia. Assim, dividimos
nosso tempo entre a permanncia nas aldeias para as reunies e o translado pelo rio
desde Altamira e de modo a parar em cada aldeia.
Nestes translados, pessoas escolhidas pelos Xikrin nos ajudavam a marcar os
pontos importantes para o uso que eles fazem do rio, assim como os pontos de maior
dificuldade de navegao, tendo em vista a possibilidade de maior extenso, no tempo e
na intensidade, da seca do rio Bacaj. Desde Altamira, tomamos o cuidado de viajarmos
sempre acompanhadas por eles; e a cada aldeia nosso acompanhante mudava,
apontando-nos pontos de sada para os igaraps, para os caminhos de caa e de coleta da
castanha do Par, importante fonte de recursos aos Xikrin, poes para a pesca,
dificuldades com as cachoeiras e corredeiras, pontos em que o rio seca normalmente
dificultando a navegao ressalte-se que o rio Bacaj oferece inmeras dificuldades
para a navegao quando o rio baixa.
Foi com este material que retornamos para elaborar o relatrio final de nosso
Estudo de Impacto Ambiental do componente indgena Xikrin da Terra Indgena
Trincheira-Bacaj. Reunimo-nos novamente aos colegas que trabalhavam em So Paulo
examinando o material que nos foram disponibilizados, e elaboramos um relatrio que
apresentava a situao dos Xikrin naquele momento, na sua organizao social e poltica
Dossi Belo Monte
e no uso e nas estratgias de uso e manejo que elaboravam naquele momento da Terra
Indgena, nos servios que lhes atendem, nas aldeias e em Altamira, dos profissionais
que com eles trabalham, da situao da sade e da educao escolar, do uso que fazem
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Referia-se figura preparada pelo consrcio para falar das etapas do licenciamento ambiental de Belo
Monte, que usa uma linha do tempo e a ilustra com pezinhos que acompanham a passagem do tempo.
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Ressalte-se que funcionrios que no foram afastados na reestruturao, e enquanto no era nomeado o
Coordenador, mantinham aberto o escritrio da FUNAI, e que vrios deles, exatamente os que
mantinham um contato mais direto com os indgenas, em represlia ou manifesto contra a reestruturao,
Dossi Belo Monte
os recebiam apenas para dizer que nada podiam fazer e falar mal da reestruturao. A Casa do ndio,
mantida h dcadas pela FUNAI para os indgenas de passagem em Altamira e que no estejam aos
cuidados dos servios de sade ou no tenham recursos prprios - se hospedarem e alimentarem, foi
completamente abandonada durante este perodo, sem que fossem servidas refeies e sem a limpeza
bsica. As consequncias disso para a percepo indgena local das novas atribuies da FUNAI pode ter
sido desastrosa.
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No entanto, estiveram pouco presentes nos eventos posteriores. Quando estive com eles
em Altamira em 2008, momento em que ocorria o encontro promovido pelo Movimento
Xingu Vivo para Sempre, eles se mantiveram na Casa do ndio em Altamira, quando
todos os outros participantes indgenas se hospedaram no stio Bethnia, mantido pela
Prelazia do Xingu.11 Eles diziam, poca, que no confiavam no CIMI outro ator que
tem sofrido mudanas nos ltimos anos, mas que era importante parceiro da causa
indgena quando os conheci -, porque, explicavam, da ltima vez que haviam se
hospedado na Bethnia passaram fome, j que a comida era dada preferencialmente aos
demais indgenas uma reclamao que soar talvez menos surpreendente abaixo.
O fato que as diversas organizaes, e o Movimento Xingu Vivo para Sempre,
no sabiam como se aproximar dos Xikrin. Nas dcadas anteriores, no tinham se
articulado com eles, e eles foram mantidos s margens do processo; de repente, eles
entram em foco e ocupam o papel central nos impactos a terras e povos indgenas, e
fazia-se necessrio que eles se organizassem, se mobilizassem, participassem do
movimento contra a construo da barragem.12 Revelou-se, agudamente, a difcil
11
Veja-se o depoimento de Don Erwin Krutler, Bispo do Xingu, sobre a mobilizao de 1989, a
participao (que se manteve fundamental ao longo de todo o tempo) da Prelazia do Xingu, e a alocao
dos manifestantes na Bethnia, Centro de Formao da Prelazia do Xingu, em sua Mensagem de
Abertura, no o livro organizado por Oswaldo Sev, Temot-M, Alertas sobre as consequncias dos projetos
Dossi Belo Monte
hidreltricos no rio Xingu, publicado pelo International Rivers Network em 2005, disponvel pela internet
http://www.internationalrivers.org/files/Tenot-M.pdf.
12
Quero aqui ressaltar o respeito que tenho por este movimento que se organiza na luta contra a barragem
e para salvar o Xingu h anos, com muito profissionalismo, e correndo riscos inmeros. Em momento
algum pretendo deslegitim-los; aponto aqui apenas a dificuldade de articulao deste movimento com os
Xikrin, particularmente.
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autodenominam todos os Kayap mais a norte, e viveram uma relao com o mercado
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13
Veja-se Fisher 2000 para a histria recente dos Xikrin do Bacaj e suas estratgias de insero no
mercado regional; compare-se com os Xikrin do Catet (Gordon 2006) e com os Gorotire (Inglez de Souza
2000).
14
Quando fui visitar pela primeira vez em Belm no Forte do Castelo que havia sido recm inaugurado
aps uma reforma e restaurao, entrei na mostra que eles mantm no forte e fui recebida por uma grande
imagem fotogrfica de Tedjere, o Domingos, do Bacaj, tomada quando ele esteve em Altamira para o
Dossi Belo Monte
encontro de 1989. A imagem no tinha crditos, mas l estava ele, ornado e com sua borduna, na reunio.
Em compensao, e inversamente, foi ele tambm que foi indicado para entregar a carta dos povos
indgenas de Altamira com suas crticas e reivindicaes ao Presidente Lula em sua visita a Altamira em
2010, carta altamente crtica e assinada tambm pelos Xikrin, mas sua imagem aparece, recebendo um
abrao de Lula, como que amigvel, na capa do CD distribudo pela Eletronorte e que tem por ttulo
Visita do Presidente Lula.
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15
As danas e a competio pela ateno da mdia por cada etnia representada algo que merece tambm
uma reflexo mais detalhada, j que revelou o que cada um apresentava como prprio, estratgias de
engajamento do pblico, e competies pela ateno e pelo impacto sonoro e visual que me foram
Dossi Belo Monte
fascinantes; para o danar forte e duro, importante caracterstica atribuda pelos Xikrin a seus rituais a
participao neles, ver por exemplo Fisher 1996, Cohn 2000 e Gordon 2006; para esta sua prtica de pegar
as coisas dos outros e com elas se produzir a si mesmos, ver Versvijwer 1992, Gordon 2006 e Cohn 2006.
16
Foi ao perceberem a presena dos Xikrin do Ginsio que os organizadores vieram me perguntar os
nomes das lideranas presentes; no sendo os presentes lideranas, no sabia o que fazer. Forneci os nomes
dos presentes, que se apresentaram com danas e canes para tomar seu lugar ao lado dos representantes
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deste encontro foi muito ruim, de vrios modos: eles foram culpados pela populao
local pela baguna feita pelos ndios, em especial o corte no brao do engenheiro,
quando haviam sido e se sentido marginalizados durante todo o encontro.
Desde ento, os Xikrin dizem que no querem Kayap vindo de longe para fazer
baguna na casa deles. Mas, desde ento, tm visto outras mobilizaes que trazem
Kayap de fora sem conseguir de fato articular com eles cada vez mais, porque sua
exigncia de no traz-los no tem sido nem respeitada, nem ouvida, e, quando tal, tem
sido mal vista e mal interpretada. Em agosto de 2010, o Acampamento Terra Livre
aconteceu em Altamira, com a presena de lderes Kayap como Raoni, e os Xikrin no
estavam presentes; de fato, me disseram que os que estavam em Altamira retornariam s
aldeias antes da chegada dos Kayap, que os viriam ameaando pelo telefone. Diziam
que, se ficassem, a guerra seria inevitvel, e para isso teriam que se retirar.
Ao menos quatro coisas tm que ser levadas em considerao: a inimizade
histrica dos Xikrin com os demais Kayap,17 o alijamento dos Xikrin das mobilizaes
at ento, no s referentes a Belo Monte, e no s pelos demais Kayap, mas por todo o
movimento organizado de Altamira, e o fato de que h uma disputa pela frente da
mobilizao, os Kayap, historicamente associados luta contra a barragem, no se
dispondo a abrir mo deste posto em prol dos Xikrin, agora os mais diretamente
atingidos, e a dificuldade ainda presente de por em prtica uma estratgia de luta que no
guerreira. As mudanas tm desfavorecido os Xikrin de todos os lados, e sua dificuldade
em se articular com o movimento organizado no-indgena, de negociar uma aliana
com os Kayap, e de entender as mudanas institucionais tem-lhes custado caro: eles so
atualmente acusados, por diversos atores, de terem se vendido. O ciclo vicioso se fecha, e
eles parecem no ter mais sada.
Enquanto isso, esto preocupados tambm com seu futuro prximo, com os
prximos passos, agora que perceberam que os passos para a construo da barragem se
aceleraram, como nos disse Sulamita na reunio no Bacaj. Entre elas, a realizao dos
Estudos Complementares do Rio Bacaj, a condicionante que falta efetivar e que , como
dizamos acima, crucial para conhecer e projetar os possveis impactos sobre seu rio, e a
formulao e garantia de implantao dos Planos Bsicos Ambientais Indgenas, caso
seja construdo o empreendimento, fundamental para que muitos de seus temores sejam
Dossi Belo Monte
indgenas na mobilizao, mas sem adornos e pintura, o que era uma situao, para um Mebengokr,
muito constrangedora. At hoje no sei qual teria sido a atitude mais correta, ou menos desrespeitosa.
17
Para tal, ver Vidal 1977, Versvijwer 1992, Fisher 1991 e 2000, e Cohn 2006.
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minorados. Quando nos reunimos com eles, pudemos perceber que suas preocupaes
so claras e sua percepo aguda. Eles esto preocupados com seu acesso a Altamira,
pelas condies de navegabilidade do Rio Bacaj e da Volta Grande do Xingu, e pelas
condies de transposio da barragem; com as condies sanitrias e a possibilidade de
aumentos das zoonoses, com a criao pela seca prolongada de lagos que virem
reservatrios de mosquitos da malria, entre outros; com as condies da gua e de
sobrevivncia dos peixes e animais que dependem dela; com as condies das guas para
o banho e o uso para lavagem de roupas, utenslios, etc.; com a presso antrpica e a
invaso de suas terras;18 com a sobrecarga dos servios de sade e educao. So todas
preocupaes que demandam cuidados urgentes, e os Xikrin sabem que no podem
descuidar de acompanhar e exigir os estudos do rio Bacaj, ainda no devidamente
estudado e assim sem a possibilidade de se prever impactos, e os programas de mitigao
e compensao que sero cruciais para eles caso a barragem seja construda. O ciclo se
fecha, os estrangulando, mais uma vez: lutar por essas coisas parece aos olhos de muitos
ter se vendido.
Por fim, os Xikrin parecem estar tendo dificuldades de imaginar como se pode
lutar contra o empreendimento sem fazer guerra. Tenho argumentado (Cohn 2006) que
eles tm tido sucesso em fazer guerra por outros meios, ou seja, manter a produtividade
que tiravam da guerra, nas suas relaes de diferena, por outros meios, tais como
encontros indgenas, jogos indgenas, torneios de futebol, reunies de formao de
Agentes Indgenas de Sade e Saneamento, utilizao de registros audiovisuais, viagens
em geral. No entanto, este parece ser um caso limite. Sem fazer guerra, sua reao
contrria lhes parece ineficaz; fazer guerra impossvel hoje, pacificados que so, porque
no um meio reconhecido pelo Estado. Resta-lhes os meios reconhecidos e legitimados
mesmo que no contrapelo pelo Estado, os quais eles, por sua vez, no reconhecem ou
dominam. Kayap (e guerreiros) demais, eles tornam-se por isso mesmo inoperantes, e
so acusados de serem Kayap de menos, e vendidos.
Nem os Xikrin, nem eu, sabemos muito bem como atuar neste momento. dessa
relao que passo a tratar agora.
Dossi Belo Monte
18
Duas cises ocorreram desde nossa visita em 2009, e, de quarto aldeias poca, hoje so seis; uma delas
resultado da apreciao de que necessrio ocupar uma regio de fronteira seca.
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Trabalho com os Xikrin do Bacaj desde o incio da dcada de 1990, quando fui
levada por Lux Vidal, minha orientadora poca, na minha Iniciao Cientfica, e
depois na ps-graduao, para fazer uma pesquisa que se tornou com um tempo um
estudo das concepes de infncia e aprendizagem. poca, Lux estava engajada na
reviso das terras dos Xikrin, que resultou em sua ampliao em 1995, tornando-se ento
a TI Trincheira-Bacaj. poca tambm, as relaes com FUNAI e madeireiros eram
tensas (Fisher 2000). Os Xikrin me acolheram com carinho e entusiasmo, mas me
avisaram para me manter parte destes debates. Foi o que fiz, por anos, tendo
acompanhado mais de perto apenas a definio de um plano de manejo ambiental para
explorao sustentvel da madeira que no entanto no chegou a ser implantado. Mas
Belo Monte no permitiria que isso permanecesse assim.
Em princpio, isso no foi um problema na nossa relao, embora tenha sido para
mim um enorme dilema tico. Preferiria, claro, que nada disso estivesse acontecendo,
que Belo Monte no existisse, e por diversas vezes me peguei me perguntado por que isso
tinha que acontecer comigo, s para ento lembrar que isso acontece afinal com eles! E,
quando um antroplogo se engaja neste tipo de processo, imagino que poucas vezes
consiga evitar a impresso de que de algum modo colabora com ele. O raciocnio mais
ou menos assim: se os estudos complementares so condicionantes para a licena de
instalao do empreendimento, no se o faa, e o empreendimento no se instalar. Mas
sabemos todos que isso um ledo engano: se no o fao eu, o faro outros, com menos
experincia e comprometimento com os Xikrin. Por eles, a necessidade de participar do
processo se imps.
Os Xikrin me indicaram. No s a mim, como mencionei acima, mas aos trs
antroplogos que trabalharam com eles mais diretamente. Receberam-me, e Isabelle
Giannini, que trabalhou com os Xikrin do Catet por muitos anos, com entusiasmo e
carinho, e colaboraram como puderam para que nosso relatrio, feito com to pouco
tempo de campo e de redao, pudesse se tornar um documento da importncia que o rio
tem para eles e de suas preocupaes e percepes. Mas, em uma reunio, noite, ouvi
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neste debate significa colocar em risco a relao que construmos estes anos todos. Mais
que isso, nunca escondi minha posio contrria a Belo Monte e, como sua posio
tem sido to criticada por todos, eles se preocuparam comigo tambm. Recebo uma
mensagem estes dias que me conta que eles esto se questionando se eu ainda gosto
deles, j que sou contrria a Belo Monte. Gosto, sem dvida; mas preferiria, de meu
lado, poder t-los auxiliado a se posicionar mais claramente contra Belo Monte,
garantindo-lhes, e os auxiliando a garantir, ao mesmo tempo, as condies para, caso o
empreendimento seja construdo, ter programas adequados de mitigao e compensao.
A confuso, como se v, grande.
Minhas dificuldades, como antroploga, poderiam ser elencadas, resumidamente,
nos seguintes pontos: um constante incmodo tico, muito embora a certeza de que no
posso me furtar de acompanhar os Xikrin neste processo; um temor de que isso abale
para sempre nossa relao; a dificuldade em ter que lidar com os empreendedores, ou
seus contratados empresas de consultoria e engenharia , to diretamente, j que a
FUNAI intermedia a relao com os indgenas, elabora os termos de referncia e
protocola os planos de trabalho e os relatrios, mas os processos de licenciamento, tal
como esto definidos hoje, colocam os antroplogos em direta relao com os
responsveis pelos Estudos de Impacto Ambiental; a dificuldade em acompanhar os
posicionamentos dos Xikrin e seus modos de fazer poltica, e de perceber minha
minscula capacidade de interveno neste processo; a dificuldade em auxiliar na
articulao com o movimento organizado j engajado na luta contra a barragem, dada a
dificuldade mesmo de comunicao e entendimentos entre eles e os Xikrin, muito
embora tenhamos tentado, de ambos os lados.
Depois do campo para o relatrio do EIA e do retorno dos resultados do estudo
em reunio conjunta, fiz algumas outras viagens a Altamira. Nenhuma delas, at o
momento, foi para dar continuidade aos estudos de impacto os estudos
complementares esto, neste momento em que escrevo, em processo de protocolao dos
planos de trabalho pela FUNAI, tendo sofrido todos os atrasos a que me referia
anteriormente, e devido tentativa, barrada pela FUNAI em outubro, de faz-lo fora da
TI. Mas fiz viagens que me permitiram acompanhar, com eles, este processo.
Uma das mais impactantes vou usar o termo aqui, e permito-me estender a
Dossi Belo Monte
referncia para indicar que, a seu modo, os antroplogos que atuam junto s
comunidades impactadas por este tipo de empreendimento so tambm impactados foi
logo depois do leilo, que aconteceu em abril de 2010. Os Xikrin tinham acabado de
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S para relembrar, este o momento de transio da FUNAI local, tendo se retirado o administrador
regional que atuava anteriormente e no tendo sido ainda conduzido o novo coordenador o que no
redime a FUNAI, que tem um quadro nacional que, imagino, poderia atuar neste processo.
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enfrentamento direto, j que, disseram, se fosse para faz-lo, ele teria que ganhar o
formato da guerra, que eles sabem impossvel hoje. Elaboramos uma carta requisitando
uma reunio de esclarecimento que contasse com a presena da FUNAI, do IBAMA, da
6. Cmara, da Procuradoria de Altamira, do empreendedor, e que reunisse os povos
indgenas da regio, que foi encaminhada, pelo novo coordenador, assim que foi
conduzido ao cargo, pouco tempo depois disso, Presidncia da FUNAI.
A reunio nunca aconteceu. Em agosto, em reunio com os Xikrin novamente,
percebo que eles novamente mudaram as estratgias. Tenho a impresso de que nunca
consigo faz-los coincidir com minha percepo das alianas a eles interessantes, ou
ajud-los a formar o quadro completo, como j havia sentido na reunio na aldeia do
Bacaj, com a FUNAI, a Leme Engenharia, o empreendedor. Debato com eles o quanto
acho que posso, irritada mesmo com o que me parecia sua incapacidade de definir as
alianas que lhes seriam favorveis e importantes, e me questiono at quando posso ir
neste tipo de interveno. Como diz Gallois (2000), a atuao do antroplogo em laudos
e processos de licenciamento uma forma de tutela, que deve ter por horizonte a ao
poltica indgena direta. Depois de ter estudado por tanto tempo, lido tanto sobre isso,
conversado tanto com os Xikrin, sobre as estratgias polticas e de relaes intertnicas e
com a sociedade nacional brasileira, orgulhando-me de sua capacidade de se tornar
pacificados, como a eles se refere o Estado, reinventando suas guerras, ver agora Belo
Monte bagunar o coreto, e perceber e ineficcia de sua ao poltica, e minha prpria
ineficcia em auxili-los a tornar essa ao mais eficaz, tem sido, no mnimo,
impactante.
Hoje, tento viabilizar a definio de um marco zero do Rio Bacaj, um
diagnstico de sua situao atual e uma previso de impactos, para garantir que as
mudanas decorrentes do empreendimento que, Sulamita tem cada vez mais razo, tem
tido seu processo de implantao acelerado, recebendo o recado de se ainda gosto deles.
Gosto. No tenho dvida. Mas sofro em acompanhar seus tropeos, e minha
incapacidade de sequer me convencer a agir de modo a torn-los algo diferente do que
so. Os Xikrin esto lidando com algo to grande que eles at agora no puderam
dimensionar, ou o fizeram apenas em seus piores pesadelos. Belo Monte sendo
construda, os impactos sero muitos e grandes. Os impactos em nossa relao so para
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que eu possa estar junto a eles, os acompanhado nesta outra fase de sua j to difcil e
sofrida histria.
Clarice Cohn
Programa de Ps-graduao em Antropologia Social
Universidade Federal de So Carlos
Referncias bibliogrficas
LEA, Vanessa. Nomes e Nekrets Kayap: uma concepo de riqueza. Tese (doutorado)
Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social, Museu Nacional UFRJ,
mimeo. 1986.
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Documentos:
Recebido em 21/01/2011
Aprovado em 21/01/2011
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1
Por exemplo, veja DECRETOS N 6.040, DE 7 DE FEVEREIRO DE 2007, que Institui a Poltica
Nacional de Desenvolvimento Sustentvel dos Povos e Comunidades Tradicionais; N 4.887, DE 20 DE
NOVEMBRO DE 2003, que regulamenta o procedimento para identificao, reconhecimento,
Dossi Belo Monte
delimitao, demarcao e titulao das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos
quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias (CF 1988); 5051 DE
19 DE ABRIL de 2004 PRES que ratificou a Conveno 169 da OIT.
2
Entenda-se empreendimentos cujo paradigma orientador principal a ideia de Progresso produzida
ainda no sculo XIX, ou do Desenvolvimento, elaborada aps a Segunda Guerra Mundial. Para um
debate detalhado sobre este tema ver Santoyo, 1992; Diegues, 1992; Ribeiro, 1992b.
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3
Os EIA-RIMAs esto previstos na Lei Federal n. 6.938/81, que instituiu a Poltica Nacional de Meio
Ambiente, regulamentada pelo Decreto Federal n. 99.274/90 e na Resoluo do CONAMA n. 001 de
23/01/86.
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4
Ver o interessante artigo elaborado por antroplogo Ricardo Cid (2004) a respeito de sua participao
como antroplogo em um componente indgena de estudo de impacto ambiental.
5
Esta linha de abordagem pode ser encontrada de maneira sistematizada na recente coletnea de ensaios
organizada por ZHOURI & LASCHEFSKI (2010). No entanto, na parte introdutria da coletnea e mais
especificamente no artigo de Severino Soares Agra Filho h passagens que podem servir de contraste
crtico ao tom de adequao ambiental e social (Zhouri et al. 2005 apud 2010:13) que orienta este
ensaio.
6
No ltimo encontro da ABA (2010), foi realizado de maneira pioneira um GT coordenado pelos
Dossi Belo Monte
antroplogos Ana Maria Daou (UFRJ) e Henyo Trindade Barreto (IEB) denominado Licenciamento
Ambiental de grandes obras como objeto de anlise e lugar do ofcio antropolgico: etnografia reflexiva de
poderes e engajamentos. Diversos antroplogos apresentaram papers sobre esta temtica. Nenhum deles
tratou especificamente do tema do envolvimento de antroplogos nos EIAs. O resumo que deu origem a
este ensaio foi selecionado para compor o GT. Entretanto, me vi impossibilitado de participar do evento na
ltima hora.
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por isso que o papel da Antropologia como cincia aplicada e dos antroplogos
como especialistas privilegiados na orientao da transio de modelos comunitrios
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para societrios, o pano de fundo terico no qual se assenta este debate. Em outras
palavras, o papel da Antropologia como cincia aplicada e dos antroplogos como
especialistas na transio entre estes dois modelos sociolgicos (funo paradigmtica
exercida em situaes tipicamente coloniais desta natureza) vem sendo recuperado
gradativamente em anos recentes no Brasil. Podemos aproximar este movimento
daquilo que Roge Bastide (1979) denominou de maneira pioneira como a participao
em processos de aculturao planejada (seja ela implementada em contextos
capitalistas ou socialistas):
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II
Terra sem homens para homens sem terra e Integrar para no entregar foram
slogans utilizados pelo regime militar para estimular a ocupao demogrfica e a
apropriao capitalista da terra na Amaznia Legal durante boa parte da dcada de 1960
e 1970.
7
No entanto, historicamente, a maior evidncia da utilizao da antropologia na Amrica do Norte foi a
participao em massa de antroplogos e antroplogas em agncias do governo poca da segunda guerra
mundial, atuando principalmente pelo Office of Strategic Services - OSS -, rgo predecessor da hoje
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mundialmente conhecida CIA, criado em 1942 pelo presidente Roosevelt. Entre os principais antroplogos
que atuaram neste perodo podemos lembrar de Cora Dubois, Anne Fuller, Alexander Lesser, Alfred
Metraux, George Murdock, Gregory Bateson, Ruth Benedict s para ficarmos com alguns dos mais
importantes. (Rubem & Mattos, 2002). Para atualizao deste debate, ver matria disponvel no GLOBO
ON-LINE, 05.10.2007 - EUA recorrem a antroplogos para resolver conflitos no Afeganisto.
http://tinyurl.com/4tjh9bn
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A redescoberta do ndio fez parte da campanha governamental para popularizar a Marcha para o Oeste.
Lanada na vspera de 1938, a Marcha para o Oeste foi um projeto dirigido pelo governo para ocupar e
desenvolver o interior do Brasil. Nas palavras de Vargas, a Marcha incorporou o verdadeiro sentido de
brasilidade, uma soluo para os infortnios da nao. Apesar do extenso territrio, o Brasil havia
prosperado quase que exclusivamente na regio litoral, enquanto o vasto interior mantinha-se estagnado -
Dossi Belo Monte
vtima da poltica mercantilista colonial, da falta de estradas viveis e de rios navegveis, do liberalismo
econmico e do sistema federalista que caracterizaram a Velha Repblica (1889-1930). Mais de 90% da
populao brasileira ocupava cerca de um tero do territrio nacional. O vasto interior, principalmente as
regies Norte e Centro-oeste, permanecia esparsamente povoado. Muito ndios, claro, fugiram para o
interior justamente por estas razes. Mas os seus dias de isolamento, anunciou o governo, estavam
contados. (Garfield, Seth, 2000: 03)
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novas etnicidades9 tm sido reivindicadas por diversos segmentos sociais que, por manter
aspectos de seus modos de vida tradicionais, exigem um acesso diferenciado tanto junto
s polticas pblicas de regularizao fundiria, quanto nos processos de formulao de
estratgias de gesto socioeconmica e ambiental.
O que h de comum entre esses inmeros agrupamentos etnicamente
diferenciados a demanda por territrios protegidos pela legislao competente que
garanta tanto a reproduo dos seus modos de vida especficos, como uma insero
menos traumtica no contexto capitalista local e regional.
Como j comentado na introduo, nos ltimos anos temos assistido a
implantao de um conjunto de grandes obras de infraestrutura (particularmente,
hidreltricas, gasodutos, transposio de rios e pavimentao de estradas) que seguem na
contramo do processo de aparente aprendizado institucional que vem incorporando
ideias de matriz sustentvel socioambientalmente e de respeito a diferena cultural em
diversas reas da administrao governamental. O conjunto dessas obras tem feito parte
de diversos programas desenvolvimentistas governamentais desde pelo menos o perodo
militar, culminando recentemente no Programa de Acelerao do Crescimento (PAC).10
As demandas atuais por empreendimentos infraestruturais na Amaznia Legal presentes
na agenda desenvolvimentista hegemnica da mquina estatal brasileira atual podem ser
notadas no mapa ao lado.
9
So incontveis as solicitaes de reconhecimento de novas identidades territoriais diferenciadas:
babauais livres, castanhais do povo, faxinais etc. Ou mesmo, auto-identificao territorial
diferenciada: terras de preto; terras de santo, terreiros etc. (Almeida 2006).
10
Marcha para Oeste, grandes obras amaznicas no perodo militar, programa Avana Brasil.
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11
Que tomei de emprstimo do Instituto Socioambiental (SP), a quem agradeo.
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12
Elaborei algo nesta direo num artigo no qual sintetizo um diagnstico que realizei para a FUNAI e
para o MPF do Tocantins de um programa de compensao ambiental junto aos Xerente (TO) derivado da
implantao de uma hidreltrica construda a montante de suas duas terras indgenas. Tratou-se, para usar
uma expresso curiosa, mas com enorme capacidade de significao, de uma autpsia de fracassos de
autoria da antroploga Lucy Maier, 1976[1965]:276. O artigo foi publicado na coletnea Povos
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rgos de licenciamento envolvidos (nos casos apresentados, IBAMA e FUNAI); (b) que
possuem recursos financeiros suficientes para sua execuo e acompanhamento e (b1)
que o empreendedor aceitou arcar com as condicionantes socioambientais previstas nos
EIAs, j que os recursos financeiros de que fala o item (b) so de sua inteira
responsabilidade. S com estas trs prerrogativas garantidas formalmente que as aes
formuladas nos EIAs podem ser concretizadas em sua plenitude. por isso mesmo que
dificilmente as inmeras e diversificadas condicionantes (aes prvias, mitigadoras e
compensatrias) contidas em (bons) EIA-RIMAs so de difcil implementao, j que
sua efetivao prtica depende de uma pactuao formal que envolve a esfera
governamental, as comunidades afetadas e a esfera privada (leia-se, o empreendedor
responsvel pela obra). Ou seja, o EIA, um procedimento tcnico aparentemente
realizado a cada ano de maneira ideal (estudos integrados e interdisciplinares, projetos e
aes formulados sob o mantra da sustentabilidade socioambiental e, porque no, da
aculturao planejada no contexto capitalista), torna-se bastante vulnervel em suas
etapas posteriores e mais decisivas, pois termina numa mesa de negociao que envolve
setores governamentais com pouca capacidade de interveno poltica (no caso, FUNAI
e IBAMA), comunidades afetadas com baixo poder de mobilizao da opinio pblica e
alta probabilidade de cooptao e grupos de investidores privados com alto poder de
agenciamento poltico tanto junto s comunidades, como esfera pblica.
Do outro lado, segmentos socioambientalistas da sociedade civil organizada em
parceria com parte das lideranas nativas locais (as no cooptadas, digamos assim) e
com o empenho circunstancial do Ministrio Pblico Federal - defendem da maneira que
podem o patrimnio sociocultural valioso que colocado em xeque quando do anncio
da instalao de uma grande obra de infraestrutura.14
De certa forma, este ciclo se fecha da mesma maneira que comeou: l em sua
origem, a contratao dos profissionais (inclusive dos antroplogos) no feita pelo
poder pblico, note-se bem, mas pelos investidores privados interessados justamente na
construo do empreendimento (e nos lucros a serem auferidos em suas diversas e
valiosas etapas de implementao); no fim, no fechamento do ciclo, via de regra os
profissionais envolvidos na elaborao do EIA saem de cena (inclusive os
Dossi Belo Monte
14
Para os dois exemplos aqui focalizados Hidrovia Araguaia-Tocantins e UHE Belo Monte -, foram
produzidas avaliaes crticas e independentes de ambos os processos de licenciamento ambiental,
denominados como painis de especialistas, e que envolveram alm de acadmicos, representantes da
sociedade civil organizada. O painel sobre a UHE Belo Monte colocou na mesma sacola, portanto, de
maneira equivocada, todos os profissionais que participaram do EIA. Ele pode ser acessado no site
http://www.xinguvivo.org.br/2010/10/14/o-projeto/
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III
Como foi dito no incio deste ensaio, a relao existente entre sucessivos
governos brasileiros e as comunidades tradicionais situadas em territrio nacional tem
sido pautada h dcadas pelo paradigma desenvolvimentista ortodoxo, renomeado pela
sociedade civil organizada como desenvolvimento a qualquer custo. Trata-se de um
fenmeno sociolgico ocidental de grande dimenso (algo como um tsunami social) que
engolfa as comunidades no-ocidentais e as leva de maneira inexorvel em direo
degradao sociocultural (pelo menos no ponto de vista dos antroplogos).
Paralelamente, e isso tambm j foi dito, mesmo com certas dificuldades de
implementao em sua integralidade por conta de interferncias no campo da tcnica a
partir de agenciamentos provenientes do campo da poltica instrumentos legais de
constrangimento lgica do desenvolvimento a qualquer custo vm sendo
promulgados desde pelos menos a metade da dcada de 1980 no pas. Os estudos de
impacto ambiental (EIAs) de grandes obras de infraestrutura que afetam as comunidades
Dossi Belo Monte
15
So raros os antroplogos que continuam atrelados profissionalmente ao empreendimento aps a entrega
dos EIA-RIMAS. Esta tendncia parece estar mudando ultimamente.
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indgenas ou tradicionais so ilustraes desta fase mais democrtica que o pas vive em
diversas de suas dimenses sociais, desde o final do regime militar, em 1985.
A participao dos antroplogos em atividades profissionais desta natureza tem
aumentado, ainda que timidamente. A justificativa para esta timidez , aparentemente,
um constrangimento de ordem moral que leva boa parte dos antroplogos a supor que a
participao em estudos desta natureza implique necessariamente na legitimao da
dinmica desenvolvimentista deflagrada pela implementao de grandes obras de
infraestrutura. Uma pena, pois a grande maioria das monografias produzida pelos
mesmos antroplogos traz subsdios significativos para a compreenso mais adequada de
processos mais ou menos traumticos de mudana social em comunidades tradicionais.
Associar a teoria antropolgica que guia o antroplogo em termos acadmicos
quando realiza etnografia sobre comunidades tradicionais aos estudos de etnografia
aplicada produzidos sob a gide dos EIA-RIMAs uma tarefa complexa e ainda pouco
realizada, apesar de devidamente anunciada pelo antroplogo Roge Bastide h mais de
30 anos. No obstante, interessante notar que a descrio ideal dos aspectos
metodolgicos que devem estar presentes no Componente Indgena (ou tradicional)
de um EIA-RIMA se parece sobremaneira com as etapas presentes na elaborao de uma
etnografia aplicada, conforme indica Bastide no capitulo 9 de seu livro Antropologia
Aplicada: elaborao de maneira cientfica e pormenorizada um diagnstico
socioambiental de uma comunidade tradicional afetada por uma grande obra de
infraestrutura; avaliao dos impactos previstos durante as etapas de anncio,
licenciamento, instalao e operao deste mesmo empreendimento; proposio de
medidas prvias, mitigadoras e compensveis que permitam a diminuio de possveis
danos causados pelo empreendimento as comunidades afetadas; monitoramento e
avaliao de todo o processo para identificao de sucessos e fracassos do programa.
No h espao suficiente e nem flego terico para trazer para o texto inmeras
passagens presentes nos relatrios de impacto ambiental aqui mencionados que poderiam
render boas reflexes sobre a utilizao terica (boa ou m) da Antropologia como
cincia aplicada. Em outras palavras, no ser nesta ocasio que conseguirei apresentar
uma reflexo pormenorizada sobre a apropriao que pode ser feita da teoria
antropolgica e do conhecimento etnolgico acumulado sobre determinada comunidade
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das duas grandes obras de infraestrutura mencionadas, apenas para dar maior substncia
etnogrfica ao que tenho anunciado como desafios ticos, tcnicos e polticos envolvidos
neste tipo de atuao profissional.
Essas duas frentes de atuao como profissional de antropologia possibilitaram a
apreenso (e no necessariamente, compreenso) preliminar de pontos de vista bastante
diferentes dos meus a partir do estabelecimento de relaes com atores sociais com
interesses claramente contrrios autonomia social e poltica das comunidades indgenas
afetadas e, particularmente, moldados numa formatao altamente preconceituosa
(tcnicos e gestores da prpria equipe interdisciplinar, empreiteiros, fazendeiros,
membros de elites poltico-partidrias locais e regionais etc.). Ao mesmo tempo, tambm
nas representaes emanadas por parte de pesquisadores que compunham os grupos de
estudo de impactos ambientais engenheiros, gegrafos, bilogos, socilogos,
economistas etc. foi possvel perceber, se no interesses explicitamente anti-indgenas,
pelo menos aluso a chaves preconceituosos contra tais populaes que certamente
acabam por contaminar as avaliaes tcnicas por eles produzidas (os clssicos: ndios
so um atraso para o desenvolvimento do pas ; h muita terra para pouco ndio; os ndios so
preguiosos ; ndios so manipulados pro ONGs internacionais etc.).
Muitas vezes, em diversas reunies do grupo interdisciplinar, ao invs de discutir
tecnicamente o impacto x ou y de uma obra de engenharia (por exemplo, a instalao de
um porto de embarcaes a montante de uma terra indgena), os antroplogos da equipe
se viam com a misso de explicar didaticamente os direitos dos ndios garantidos pela
Constituio Federal de 1988.
Como ilustrao da amplitude e diversidade de relaes polticas travadas no
processo de construo de um processo de licenciamento ambiental, em certas reunies
de carter informativo nas reas indgenas o pblico-alvo era composto desde agentes do
poder pblico federal, estadual e municipal (prefeitos, funcionrios da FUNAI, agentes
do Ministrio Pblico Federal etc.), passando por representantes do empreendedor e
tcnicos da equipe multidisciplinar contratada, at chegar aos parceiros das comunidades
afetadas (por exemplo, organizaes no-governamentais) e suas prprias lideranas e
membros da comunidade em geral. Isso exigia uma complexidade argumentativa e
narrativa do antroplogo de planto frente a um pblico ideologicamente to
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entre as partes neste espao democrtico de dilogo intercultural propiciado pela prpria
estrutura interna e operacional do EIA-RIMA.
No sejamos, evidentemente, pollyannas: a probabilidade de todos os
participantes sarem insatisfeitos com os resultados pactuados e, particularmente, com a
estranha posio de mediao (neutralidade poltica + discurso tcnico) assumida pelo
antroplogo at ento amigo-da-comunidade (ou funcionrio do empreendedor, a
depender do ponto de vista e do nativo) no deve ser descartada.
Em resumo, esta espcie de exerccio didtico-pedaggico operacionalizado pelo
antroplogo dentro do grupo interdisciplinar implica em uma necessria habilidade
poltica em lidar com situaes conflituosas derivadas do jogo de foras sociais
intertnicas presentes em cenrios tcnicos-polticos com este perfil.
Um outro aspecto importante a ser destacado aqui so as condies biogrficas
do antroplogo quando chamado a participar de estudos de impacto ambiental.
Ilustremos.
No perodo do meu envolvimento com o licenciamento da Hidrovia Araguaia-
Tocantins (1997/1998) (e a pavimentao de uma estrada que cortava uma das terras
indgenas xerente), meu vnculo institucional era exclusivamente com a pesquisa
acadmica (numa posio circunstancial, portanto, de antroplogo-outsider (crtica-
sem-adeso ao projeto), cf. classificao de Ribeiro (1992a) apresentada na prxima seo).
Minha participao nestas experincias de licenciamento possibilitou a mudana da
minha condio de antroplogo outsider para insider e a fonte de legitimidade para
este remanejamento profissional foi justamente a legitimidade alcanada no campo da
pesquisa, ou seja, a minha condio de etngrafo especialista-acadmico na comunidade
indgena afetada pela obra e indicado pelo orientador.
Dificilmente um antroplogo que tenha um longo tempo de relao com uma
comunidade consegue se omitir diante de um convite para participar como mediador de
um processo conflituoso que a atinja, particularmente quando o conflito proveniente da
dinmica arrebatadora do desenvolvimento (... das foras produtivas). A relao de
confiana e de afetividade estabelecida entre o pesquisador e seus nativos , de fato, o
grande trunfo tico e poltico que o antroplogo tem em mos nestas ocasies. A
conscincia deste trunfo ser certamente a base da soluo para futuros conflitos entre o
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antroplogo e o empreendedor.
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Expediente empregado para realizar um trabalho de mapeamento das redes de sociabilidades indgenas
na regio de maneira bem-feita e no para cooptarmos lideranas ou obtermos um suposto consentimento
prvio e informado dos ndios. Esta explicao est expressamente colocada no relatrio entregue ao
IBAMA.
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condio cooptado para heroico rapidamente (pelo menos aos olhos de alguns
segmentos locais, como a equipe do Conselho Indigenista Missionrio regional, claro).
Dez anos depois, os componentes indgenas elaborados pelos antroplogos na
avaliao dos impactos da UHE Belo Monte foram entregues pelo empreendedor ao
IBAMA e Funai de maneira integral (para alvio geral de todos, diga-se de passagem).
Esta espcie de aprendizado e amadurecimento democrtico e institucional, ou seja,
quando atores do jogo (empreendedor pblico e privado/ antroplogos e
equipe/comunidade afetada) cumprem com suas respectivas responsabilidades ticas,
tcnicas e polticas, pode ser de alguma maneira atribudo, ao meu modo de ver, ao papel
ativo recentemente assumido pela Fundao Nacional do ndio na conduo dos
processos de licenciamento de obras de infraestrutura que incidem sobre terras indgenas:
a elaborao prvia pelo rgo indigenista de um documento que orienta (no sentido de
constranger e obrigar) a elaborao e os contedos tcnicos que devem se fazer presentes
no componente indgena de um determinado estudo de impacto ambiental (os
denominados Termos de Referncia). Quando do meu envolvimento com o
licenciamento da Hidrovia Araguaia-Tocantins h dez anos atrs, no havia qualquer
interferncia governamental formalizada de maneira prvia na relao dos profissionais
contratados com o empreendedor para realizao do EIA-RIMA.
O Termo de Referncia elaborado pelo principal rgo governamental de apoio
aos ndios cumpre atualmente uma funo estratgica nesta delicada relao: ele que
possibilita ao antroplogo e equipe que coordena os componentes indgenas maior
autonomia diante das potenciais presses do empreendedor-patro sobre a equipe.
Diminui-se assim, e de maneira considervel, a possibilidade da emergncia de conflitos
de ordem tcnica, tica e poltica, como aqueles que tiveram repercusses polticas
profundas e dramticas no caso do licenciamento da Hidrovia Araguaia-Tocantins.
Alis, o que nos permitiu questionar a operao fraudulenta a que foram submetidos
nossos relatrios naquele episdio foi a utilizao de um expediente importante de ser
colocado em prtica quando oferecemos nossos conhecimentos tcnicos para a empresa
capitalista: a entrega de cpias integrais dos estudos antropolgicos e ambientais para a
Associao Brasileira de Antropologia e para o Ministrio Pblico Federal.
Claro que, como o prprio caso Belo Monte tem revelado, mesmo com o Termo
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E com razo, j que os agenciamentos da tcnica pela poltica continuam a pleno vapor no caso da UHE
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Belo Monte. A presidente Dilma Rousseff j tem pela frente o desafio de administrar uma crise no
Ministrio do Meio Ambiente. A sada de Abelardo Bayma do comando do Ibama, depois de pedir
demisso alegando razes pessoais, deixa em aberto o cargo do rgo que vem sendo tratado como chave
para o licenciamento das principais obras do Programa de Acelerao do Crescimento (PAC), em especial
o projeto bilionrio da hidreltrica de Belo Monte. - O Globo, 14/1, O Pas, p.12. FONTE:ISA, Manchetes
Socioambientais.
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IV
Depois de adentrarmos nos dois estudos de caso de perfil mais etnogrfico que
subsidiam em parte o debate aqui proposto, situemos de maneira mais detalhada o
campo das possibilidades previstas no envolvimento (ou no) dos antroplogos com a
aplicao prtica da antropologia e os limites ticos deste envolvimento.
Para efeito do que nos interessa alcanar neste ensaio, podemos distinguir de
maneira analtica para fins eminentemente didticos dois campos de atuao dos
antroplogos e o decorrente exerccio terico e prtico da disciplina antropolgica: o
acadmico e o no-acadmico. No pretendo ir muito longe neste contraste, pois a ideia
deixar claro ao leitor que a condio de antroplogo-insider ou de antroplogo-
outsider (mas um pouco, chegares l), independe do vnculo profissional ao qual
estejamos conectados institucionalmente.
No primeiro campo, o fim ltimo do antroplogo enquanto acadmico alcanar,
na grande maioria dos casos, a condio de professor universitrio de uma instituio de
prestgio (que no Brasil pensada necessariamente como uma universidade pblica).
Uma vez conquistada a vaga, o professor de antropologia se deparar com o exerccio
cotidiano de um trip de atuao institucional que lhe exigir o que se tem denominado
como dedicao exclusiva: como docente, pesquisador e extensionista (cada
universidade ou departamento costuma dar maior ou menos nfase a cada uma destas
dimenses acadmicas). No geral, sua agenda ser uma verdadeira salada-russa
cotidiana, tomada pela preparao de aulas, seminrios e provas (elaborao e correo);
produo de artigos, participao em congressos nacionais e internacionais; projetos de
pesquisa e orientao de alunos; envolvimento com bancas de seleo de alunos e
professores, alm de toda sorte de coordenaes administrativas, colegiados etc. Note-se
que o eixo da extenso, de pouco prestgio na hierarquia acadmica em boa parte das
grandes universidades pblicas (sobressaem-se neste campo, de longe, pesquisa e
docncia), carrega muitas das caractersticas que estruturam a maioria das atividades que
os antroplogos exercitam no campo no-acadmico: etnografia e contato com a
populao nativa; envolvimento direto no contexto poltico local; construo de relaes
de intimidade e distncia com os demais atores envolvidos no trabalho; prestao de
Dossi Belo Monte
contas das suas aes para e em nome da comunidade. De maneira geral, o que ocorre
de fato sobrar muito pouco tempo para que os professores-antroplogos, digamos
assim, tenham tempo suficiente ainda mais em tempos de alta produtividade - para
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18
...todo grande projeto implica uma intricada articulao de capital financeiro e industrial, pblico e privado, que
coloca juntos, em cooperao e conflito, elites (tcnicas, administrativas, polticas e econmicas) que atuam em nveis
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(2) Passveis de comportar aes nobres, mas de pouco prestgio (ou holofotes): o
antroplogo exerce, na maioria das vezes, tarefas burocrticas em ncleos de
educao indgena estaduais, ajudando a inserir os povos tradicionais em processos
de letramento e em processos de diviso social do trabalho; em institutos estaduais de
terra ou ainda nas mais variadas funes exercidas em ministrios indigenistas
(Vianna 2005). Em comum, estes antroplogos encontram-se situao de quase
absoluta invisibilidade social e acadmica; trata-se do antroplogo-insider-
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invisvel.
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Como tentei demonstrar mesmo que brevemente a partir dos dois exemplos
mencionados, os dramas emocionais e de conscincia derivados dos embates polticos
travados entre uma equipe multidisciplinar (ou parte dela) e o empreendedor de planto,
poderiam ser eliminados com uma medida simples: deveria ser o Estado, a partir de
alguma de suas agncias federais, o responsvel pelo pagamento dos estudos de impacto
ambiental e, principalmente, pelo gerenciamento integral de todas suas etapas. Ser que
os estudos de impacto ambiental poderiam ser inseridos como parte das atividades de
extenso acadmica dos professores-antroplogos-insiders? Esta soluo permitiria no
s o vnculo direto entre Antropologia Pura e Antropologia Aplicada, como,
aparentemente, uma desejada autonomia tcnica dos profissionais envolvidos em relao
aos agenciamentos polticos presentes neste campo devers conflituoso.
Deixemos de lado o lado mais pragmtico do debate e retomemos os aspectos
mais tericos da questo neste momento final do texto.
O que pensa e faz um antroplogo ciente de todas as implicaes delineadas no
decorrer deste ensaio e que se v em situao insider, ou seja, avaliando
socioambientalmente os possveis impactos da implementao de uma grande obra de
infraestrutura prxima a uma determinada comunidade tradicional? Ou, de uma forma
mais ousada e reflexiva, o que pensa e faz o antroplogo diante da mudana social?
Segundo Bartolom (1992), as ideias que os antroplogos e a Antropologia
historicamente fazem do fenmeno do desenvolvimento (portanto, de um fenmeno
correlato, a mudana social) sempre estiveram carregadas pelo seguinte conjunto de
pressuposies: 1. Os impactos do desenvolvimento so sempre negativos; 2. Toda mudana social
negativa para os grupos sociais afetados (principalmente quando so pobres, negros, ndios); 3.
Esses grupos sociais so incapazes de reagir diante dos problemas trazidos pelo desenvolvimento; 4.
As instituies formuladoras ou executoras do projeto so perversas; 5. Portanto, as aes destas
instituies jamais beneficiariam a populao afetada; 6. A tarefa do antroplogo documentar
impactos negativos. Poderamos acrescentar mais um item ainda, como o fez o antroplogo
Ricardo Cid (2004) em outro contexto etnogrfico: 7. A documentao produzida pelo
antroplogo [num processo de elaborao de EIA] poder ser engavetada.
Se concordamos com os significados pessimistas presentes neste conjunto de
pressupostos, a melhor resposta a ser dada a um convite para elaborao de um estudo
Dossi Belo Monte
de impacto ambiental seria mais do que bvia: a sua recusa peremptria, j que: (1)
tecnicamente o antroplogo apenas avalia impactos negativos; (1a) seu trabalho pode ser
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engavetado; (2) os empreendedores, portanto, seu patro ad hoc, so perversos (quase que
por natureza) e suas aes jamais beneficiaro as populaes afetadas e (3) as
comunidades so por demais passivas e vulnerveis diante das mudanas sociais que se
avizinham em se tratando especialmente da instalao de uma grande obra de
infraestrutura. Estaria assim em maus-lenis nosso antroplogo-insider-cooptado, no?
Por sorte (ou azar) das comunidades afetadas e azar (ou sorte) dos
empreendedores, uma boa parte dos antroplogos tem se envolvido no s com estudos
de impacto ambiental, como tambm, de maneira mais polmica ainda, junto a empresas
privadas (assumindo assim uma posio de insider certamente; de cooptado,
raramente). Importante lembrar: a despeito de suas atuaes estarem sujeitas a uma certa
desconfiana por parte dos povos tradicionais, de entidades parceiras e segmentos
acadmicos, que preferem, em seu conjunto, manterem-se na posio outsider
(legitimamente, convenhamos).
Acredito que este tipo de interveno especfica (a participao de antroplogos
em estudos de impacto ambiental) pode facilmente deslizar entre os dois polos
antagnicos da tipologia que propus no ensaio: ora como antroplogo-insider-ideal,
ora como antroplogo-insider-cooptado; no nada fcil para o profissional de
antropologia dormir o sono dos justos quando assume esse tipo de tarefa.
Apesar disso, e retomando rapidamente as questes levantadas na introduo
deste ensaio luz das reflexes delineadas no corpo do texto, no h como deixar de
notar que a tomada de posio aqui bastante explcita: o antroplogo deve participar
criticamente dos estudos de impacto ambiental, inclusive como portador de uma voz
dissonante dentro das equipes multidisciplinares responsveis pela sua elaborao e
exercitando assim aquilo que Ribeiro (1992a) denominou como monitoramento das
elites (ou seja, disseminando as informaes obtidas sobre o empreendimento para as
populaes afetadas e seus parceiros, s possveis no exerccio de sua condio
insider); alm disso, esta participao possibilitar a legitimidade necessria para que
os EIA-RIMAS possam adquirir cada vez mais a condio de canais institucionais
adequados (respondendo a questo formulada por Arantes 1992:23) para o atendimento
das reivindicaes das populaes afetadas por grandes obras de desenvolvimento em
curso no pas.
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Referncias bibliogrficas
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Recebido em 21/01/2011
Aprovado em 21/01/2011
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1
Participei do projeto coordenado por Lygia Sigaud sobre efeitos sociais de grandes projetos hidreltricos,
no qual me inseri como aluna do mestrado em Antropologia Social, no PPGAS/MN, de 1985 a 1992. A
partir da, meu envolvimento com a temtica foi mais distanciado e se deu sobretudo pela orientao de
tese, monografias e participao em bancas. Na ltima reunio da Associao Brasileira de Antropologia,
ocorrida em agosto de 2010, em Belm, coordenei, juntamente com Henyo Barreto Filho, o grupo de
trabalho denominado Licenciamento Ambiental de Grandes Obras como Objeto de Anlise e Lugar do
Ofcio Antropolgico: etnografia reflexiva de poderes e engajamentos. O encontro de trabalho ensejou a
Dossi Belo Monte
reflexo que aqui apresento em resposta solicitao dos alunos da UFSCar, empenhados no
lanamento de sua revista eletrnica e certamente interessados na temtica dos efeitos sociais da produo
de energia hidreltrica de notvel presena no estado de Santa Catarina. Agradeo a Clarice Cohn a
sugesto e a Marlia Loureno o convite estmulo a realizao do trabalho
2
Ver Sigaud 1986, 1989, 1995; Daou 1988, 1990, 1996; Martins-Costa 1989, 1990; Faillace 1990; Vianna
1992; Magalhes 1988.
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ocorreria uma acomodao, impondo-se com isto uma temporalidade prvia e externa
s sociedades estudadas.
A crtica a esta abordagem levou reflexo sobre o processo de mudana cultural
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3
A barragem de Sobradinho, situada a 50 km da cidade de Juazeiro, Bahia, foi construda entre os anos de
1973 a 1978, pela Chesf, Companhia Hidreltrica do So Francisco, concessionria da Eletrobrs. Para a
formao do lago de 4.124 km2 foram parcialmente inundadas terras dos municpios de Juazeiro, Sento S
e Xique-Xique, situados na margem direita e de Casa Nova, Remanso e Pilo Arcado na margem direita.
Cerca de 70.000 pessoas foram deslocadas de povoados e cidades- as sedes dos municpio- sendo a maioria
de camponeses.
4
Machadinho foi o primeiro dos 22 barramentos previstos para a bacia do rio Uruguai, na confluncia dos
rio Pelotas e Apu, entre os estados o Rio Grande do Sul e Santa Catarina, pela ELETROSUL Centrais
Dossi Belo Monte
Eltricas do Sul do Brasil. A previso era de formao de um reservatrio de 270 km2, com a inundao do
distrito de Carlos Gomes e numerosos povoados. A populao predominantemente camponesa era
contabilizada em aproximadamente 11.200 pessoas, com alta densidade populacional (Sigaud 1986: 69).
5
A aproximao entre os procedimentos administrativos das potncias coloniais e os deslocamentos
compulsrios das grandes obras, como as barragens, seja pelas tcnicas de remoo, isolamento, foi
tratada por Sigaud (op. cit.) e Almeida (1996: 471)
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Na borda do lago
6
Participaram Lygia Sigaud, Ana Maria Daou e Ana Luiza Martins-Costa.
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lago e, embora esta no fosse uma proposio da Chesf, acabou se impondo sobre as
demais possibilidades.8
As condies sociais preexistentes, expressas nas posies dos indivduos no
espao social, assim como no papel dos mediadores na divulgao dos acontecimentos
da barragem, se constituram em determinantes sociais significativos para a tomada de
posio dos indivduos e para o entendimento das condutas diferenciadas quanto ao
deslocamento. Em Sobradinho, o anncio da barragem era feito por tcnicos,
desconhecidos e estranhos populao e vida ribeirinha; suas insistentes afirmativas de
que os ribeirinhos deviam sair de seus tradicionais locais de moradia, pois as guas
subiriam, foram entendidas luz do conhecimento e das prticas sobre as cheias do rio
So Francisco, assim como estas condutas foram determinadas pelos interesses na
manuteno dos patrimnios familiares e das posies sociais.
A insistncia dos camponeses em permanecer junto ao rio at o ltimo momento,
considerada como expresso de atraso e tradicionalismo, foi politicamente
estratgica, pois ensejou a possibilidade de permanncia junto borda do lago. O caso da
nova Itapera povoado onde Martins-Costa realizou a pesquisa de campo ilustrativo
para a compreenso da recusa em deixar a beira do rio. Para relatar a sada da beira do
rio da antiga Itapera, por ocasio da formao do lago, os camponeses no se utilizavam
dos termos apresentados nos documentos sobre a transferncia, o reassentamento ou o
deslocamento. Faziam uso do termo retirada, carregado de sentidos e relacionado s
enchentes do rio So Francisco. No passado, nos anos em que o povoado onde viviam
era atingido pelas chamadas enchentes altas, era preciso retirar, a categoria nativa, cujos
significados remetiam tanto retirada dos pertences utenslios e animais para que no
ficassem sob as guas da enchente, quanto sada dos ribeirinhos que, com suas famlias
e parentes, abandonavam temporariamente suas casas e iam para os lugares altos. Nos
lugares de retiro, situados no alto, permaneciam at que as guas baixassem. Martins-
Costa assinala o carter provisrio e coletivo dessas ocasies ditadas pela subida
excepcional das guas e demonstra como as formas tradicionais de apreenso do tempo e
do espao, consagradas no que chama de modelo da retirada, incidiram na
representao camponesa sobre a formao do lago de forma decisiva para o rumo dos
acontecimentos (Martins-Costa 1989: 63).
Dossi Belo Monte
8
Em funo do processo de negociao e da posio irredutvel da maioria quanto permanncia nos
locais onde viviam, foi possvel permanecerem povoados rurais construdos junto borda do lago; sair para
as chamadas agrovilas, ou seja, o projeto de colonizao concebido pelo INCRA no municpio de Serra
do Ramalho; e a soluo prpria, que significava sair da borda do lago rumo a outros municpios.
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Ainda o rio
O valor social do rio So Francisco est na base das condutas dos camponeses de
Sobradinho, como pude observar em outro momento. Muitos anos depois da retirada
da barragem, alguns camponeses realizavam um novo deslocamento. Este agora de
retorno borda do lago e adjacncias, diante da avaliao negativa encontrada nas
situaes escolhidas no momento eu que deixaram seus povoados na beira do rio.
No incio dos anos 1990, realizei trabalho de campo no municpio de Xique-
Xique, Bahia, situado montante do Reservatrio de Sobradinho. Por intermdio do
sindicato de trabalhadores rurais e de contatos no mercado da cidade, encontrei muitos
deslocados pela barragem e que tinham ido viver jusante do lago, em Xique-Xique,
para onde haviam sado dez anos antes, na expectativa de se manterem prximo ao rio e
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Atingidos e Region
informao tornada pblica no final dos anos 1970. O cadastro scio- econmico previa o deslocamento de
aproximadamente 16.700 de pessoas que viviam a rea rural, de alta densidade demogrfica, como a
apresentada por Machadinho. 70% de agricultores com notvel diversidade tnica e religiosa ali vivam. O
empreendimento situava-se a cerca de 580 km de Florianpolis (direo oeste), sob responsabilidade da
Eletrosul.
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no implementadas. Nos casos analisados, conclui Sigaud ser notvel que as situaes
de deslocamento compulsrio propiciaram explicitao de interesses e o
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assim se reafirmava.
Nos trabalhos aqui citados as categorias retirada, atingidos, ou region
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O mesmo pode ser concebido para o rio Uruguai que, do ponto de vista de antigos
viageiros, era palco de uma luta braba, pesada, de sofrimento no enfretamento das
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guas, do rio e das chuvas. Outrora, vencer o rio e a correnteza era o nico meio de
chegar ao destino final e completar o escasso fluxo de trocas mercantis. Em suas balsas,
os viageiros se protegiam para a ultrapassagem dos saltos e das corredeiras e suportavam
o frio e as ventanias (CEOM Centro de Memria do Oeste de Santa Catarina 2008: 22-
23).
A etnografia e as histrias de vida so abordagens estimulantes para recuperar a
experincia de longa data, entranhada na paisagem, que se encerra nos corpos dgua,
rios, crregos e lagoas, mas tambm nos cantos, poemas e mitos que envolvem as
paisagens. Esta a dimenso da memria, associada s prticas dos caboclos, em que a
presena no/do rio Uruguai antecede chegada dos colonos europeus, reveladora da
histria silenciada pelos barramentos e pelos modernos usos do rio (Centro de Memria
do Oeste de Santa Catarina 2008: 22-23).
10
Sobre o papel da famlia na retomada do processo produtivo na borda do lago de Sobradinho, ver
Martins-Costa (1990) e Daou (1989 e 1996).
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11
Ver ZHOURY, Andra, entrevista publicada em notcias socioambientais ISA Instituto Scio
Ambiental http://www.socioambiental.org/nsa/detalhe?id=3205, acessado em 10/12/2010.
12
Resenha disponvel em http://www.antropologia.com.br/res/res29_1.htm#top, acesso em 31/01/2011.
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Referncias bibliogrficas
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Recebido em 21/01/2011
Aprovado em 21/01/2011
Dossi Belo Monte
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@ Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v.2, n.2, jul.-dez., p.299-301, 2010
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Mais informaes:
http://colunas.epoca.globo.com/politico/2011/01/13/os-bastidores-da-queda-do-presidente-do-ibama/
http://oglobo.globo.com/economia/miriam/posts/2011/01/16/caminho-das-aguas-356835.asp
http://www.youtube.com/defendendoosriosdaamazonia.parte1
http://www.youtube.com/defendendoosriosdaamazonia.parte2
301
@ Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v.2, n.2, jul.-dez., p.303-312, 2010
Messias Basques
1972
Traduo: Lgia Maria Venturini Romo Nasce em Xangai
1984-1995
Escola de Arte Xangai Huashan;
Colgio de Belas Artes da
Universidade de Xangai;
Graduao em Belas Artes na
Universidade de Xangai, com
nfase em Design Grfico.
1995-2003
Produziu filmes comerciais e
atuou como diretor de arte e
diretor geral.
2004 -
Atualmente, est envolvido com
Criao de Arte. Vive e trabalha
em Xangai, China.
Este encontro teve incio h pouco mais de um ano. J no me lembro como foi
que descobri o stio eletrnico da Galerie Paris-Beijing,1 mas desde ento o seu endereo na
Web est marcado como um dos meus favoritos. Na seo dos artistas, onde esto os
trabalhos de jovens fotgrafos, encontrei Maleonn (Ma Liang, em chins). A pgina a ele
dedicada contm 13 colees, todas incrveis! Parece que estamos diante das telas de um
pintor chins apcrifo, como aquele citado por Roy Wagner, que perseguido por seus
credores, pintou um ganso na parede, montou nele e fugiu voando! (2010: 37). Maleonn
costuma dizer que a fotografia o seu pincel mgico.
Tempos depois, j nos ltimos dias de dezembro de 2010 e s voltas com o
fechamento desta edio da Revista, perambulava Internet adentro em busca de alguma
imagem que pudesse ilustrar a capa. Nesse vai-e-vem, pensei: - Ser que eu conseguiria
1
De acordo com o stio da Galerie, a sua misso criar um elo de ligao entre Paris, a capital mundial da
fotografia, e Beijing (em portugus, Pequim), que se tornou um local importante na cena artstica. E so
dois os seus objetivos: 1) Descobrir e promover internacionalmente uma nova gerao de fotgrafos
chineses; 2) Ser uma plataforma para aclamados fotgrafos ocidentais, exibindo seus trabalhos num pas
Entrevista
em que seus nomes e obras so pouco conhecidos. Para tanto, a Galerie Paris-Beijing dispe de duas sedes,
uma em Paris e outra em Pequim. http://www.parisbeijingphotogallery.com/
303
@ Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v.2, n.2, jul.-dez., p.303-312, 2010
falar com o autor das fotografias do carteiro? Dito e feito. Digitei o nome da galeria no
buscador, encontrei o nome de Maleonn e o postei, novamente, no Google. Encontrei o
seu stio eletrnico pessoal e lhe enviei um e-mail atravs da pgina contact. Para
minha surpresa, Maleonn no s respondeu, como tambm autorizou o uso da imagem
Postman n.1 que ilustra a capa desta edio e nos brindou com essa breve entrevista.
O personagem (re)inventado por Maleoon nasceu de uma figura real, o carteiro
rural francs Ferdinand Cheval, que no final do sculo XIX construiu o seu Palcio
Ideal (Palais Idal) com as pedras que recolhera ao longo de 33 anos de colecionismo.
Pelas tintas do fotgrafo-pintor, o carteiro reaparece nas ruas da China, atravessando as
paredes dos destinatrios e lanando voo num universo de irrealidade.
Figura 2: Exposio Jardim dos Espelhos. Museu de Arte de Xangai, China. Fonte: China
Economic Net, www.ce.cn
f
Entrevista
304
@ Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v.2, n.2, jul.-dez., p.303-312, 2010
Ol Maleonn! Obrigado pela ateno e Hello Maleonn! Thank you for your time
por aceitar o convite para essa and for accepting to do this interview. I
entrevista. Gostaria de fazer algumas would like to ask you a few questions,
perguntas e, fique tranquilo, pois no but dont worry because we wont be
falaremos da Antropologia. Ainda que a talking about Anthropology. Even
Antropologia, desde o seu nascimento, though, since its birth, Anthropology has
tenha grande interesse pelas expresses been interested in artistic expressions, it
artsticas, trata-se antes de aprender o is rather about learning what is art in
que a arte em cada caso e de como ela each case and how it done in different
feita em cada local. Nesse sentido, places. In this sense, general theories on
teorias gerais sobre a Arte ou juzos de Art or value judgments are not
valor pouco importam. Queremos important. We want to know more
conhecer um pouco mais do seu about your work. In a recent interview,
trabalho. Numa entrevista recente,2 voc you said that you began your career after
disse que comeou sua carreira aps realizing that you were not very satisfied
perceber que no estava muito satisfeito with the idea of being an actor.
com a ideia de ser ator. Entretanto, suas However, your photographs done in
fotografias feitas em srie, como series, like collections, always present
colees, sempre apresentam characters as if they are part of a story.
personagens como se eles estivessem You also said that you see yourself more
numa estria. Voc tambm j disse que as a painter or a writer, and that you
se v mais como um pintor ou um rarely use cameras. What is the
escritor, e que raramente usa cmeras. production process for your works and
Como o processo de produo de seus how do they relate to writing and the
trabalhos e qual a relao deles com a theater?
escrita e o teatro?
2
Flying to Spain. Disponvel no stio
http://www.maleonn.com
305
@ Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v.2, n.2, jul.-dez., p.303-312, 2010
Glad to accept your interview. Fico
feliz
por
aceitar
a
sua
entrevista.
Na
Actually, I think what is fun for me is verdade,
eu
acho
que
o
que
divertido
that its not from an art magazine. para
mim
que
no
se
trata
de
uma
revista
For me, art dont exists as sort of de
arte.
Penso
que
a
arte
no
existe
como
independent form. It must being uma
espcie
de
forma
independente.
Ela
related to some of our activities. Like deve
estar
relacionada
com
algumas
de
what you asked, my work itself isnt a nossas
atividades.
Como
voc
apontou,
meu
kind of some pure art medium. Its trabalho
em
si
mesmo
no
uma
espcie
de
not photography, nor stills of drama arte
pura.
No
fotografia,
nem
mesmo
or film. My life experience is quite teatro
ou
filme.
Minha
experincia
de
vida
rich, for instance, I was born in a bastante
rica,
eu
diria,
porque
nasci
em
family of drama. My father was a uma
famlia
de
teatro.
Meu
pai
foi
diretor
director of Beijing Opera, and my da
pera
de
Pequim
e
minha
me
era
atriz.
mother was an actress. Both of their A
vida
de
ambos
me
influenciou
muito.
lives influenced me a lot. Later Ive Depois
estudei
pintura
por
quase
10
anos
e
studied painting for over ten years, estive
envolvido
com
vdeos
comerciais
por
and engaged in commercial video for uma
dcada.
Tambm
sou
um
amante
da
a decade. Also Im a literature fan. literatura.
Tudo
isso
pode
parecer
confuso,
All of that could sound messy, but it mas
me
proporcionou
muitas
was exactly what provided me with possibilidades.
lots of possibilities. When I decided Quando
eu
decido
criar
um
trabalho,
toda
a
to create a work, all my experience minha
experincia
aparece
em
conjunto,
o
appears altogether, what guides me to
que
me
orienta
por
tal
ou
qual
caminho.
seek for such kind of way. Only like
S
assim
eu
posso
express-lo
mais
this, I can express it more smoothly.
suavemente.
306
@ Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v.2, n.2, jul.-dez., p.303-312, 2010
Figura 5: King of the Ridiculous, n.1. 2010
Entrevista
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Do you think so? Thats great. Actually Voc acha? Isso timo! Na verdade,
some views are quite against my work. h quem seja completamente contra o
They think its boring, messy, hysterias, meu trabalho. Pensam que chato,
etc. I think theyre pissed off. Most of the confuso, algum tipo de histeria, etc.
time, people always hope to understand all Acho que [meus crticos] esto de
the logic in one work, which should be saco cheio. Na maioria das vezes, as
explainable. When facing such kind of pessoas sempre tm a esperana de
views with such expectations, my work compreender toda a lgica de uma
probably disappointed them, even being obra e que ela seja passvel de
detested. Personally, I think that artwork explicao. Ao se confrontar com
itself doesnt need to be understood, tais pontos de vista, e suas
explained nor to have logic. What is expectativas, o meu trabalho
important is to provide the sense of feeling, provavelmente os desaponta, sendo
like in a labyrinth; in which feel lost is part at detestado. Pessoalmente, eu
of the charm. penso que obras de arte no precisam
I dont know either how to define my work. ser compreendidas, explicadas ou ter
Theres one sentence I like very much (I alguma lgica. O importante
forgot the writer, might be Susan Sontag) provocar uma sensao, porque se
what said that the artist is like a mirror, perder faz parte do charme, como em
which reflects the shadow of the world. Not um labirinto. Eu no sei como definir
of it all, but only the part from the mirror. a minha arte. Gosto muito de uma
Everyone has his own angle. While the frase (esqueci o nome do autor, talvez
reflection isnt so important, the most seja Susan Sontag) que diz que o
important thing is the existence of the artista como um espelho que reflete
mirror. Im the mirror that reflects the a sombra do mundo. No de toda ela,
world of my world. Without me you wont mas principalmente da parte do
see these images forever. espelho. Todo mundo tem o seu
I always talk about the past, about the prprio ngulo. Importa pouco o que
disappearing, about the fragile existence in refletido, pois a coisa mais
our life. Sometimes I use some ridiculous importante a existncia do espelho.
manners to play the tragedy. But in the Eu sou o espelho que reflete o mundo
sadness, there still left some naivet and do meu mundo. Sem mim, voc
hope. Those are my themes. jamais veria essas imagens.
Eu sempre falo sobre o passado, sobre
desaparecimentos e da fragilidade da
existncia em nossas vidas. s vezes
eu uso alguns recursos ridculos para
encenar a tragdia. Mas na tristeza,
sempre resta alguma ingenuidade e
esperana. Estes so os meus temas.
Entrevista
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@ Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v.2, n.2, jul.-dez., p.303-312, 2010
3
Para ver os trabalhos de Matthew Barney, siga o link:
http://www.cremaster.net/
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@ Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v.2, n.2, jul.-dez., p.303-312, 2010
Voltando ao tema da escrita, suas fotos Going back to writing, your photos
costumam ser acompanhadas de textos e usually include texts and poems. The
poesias. O pouco que conheo da little I know about Chinese philosophy I
filosofia chinesa, devo a um autor owe to a French Author called Franois
francs chamado Franois Jullien e as Jullien and the images I know of China
imagens que conheo da China are the ones I have seen in movies and,
chegaram at mim por meio de filmes e, more recently, photos such as those in
mais recentemente, atravs de the Galerie Paris-Beijing. Franois
fotografias como as da Galerie Paris- Jullien usually works with central
Beijing. Franois Jullien costuma themes of the western philosophy based
trabalhar com temas centrais da filosofia on dialogues with the rationale of
ocidental a partir de dilogos com o Chinese philosophers which, he believes,
pensamento de filsofos chineses que, a enlighten and tell us something more
seu ver, iluminam e nos dizem algo mais about our own philosophy (western).
sobre a nossa prpria filosofia They say something more because
(ocidental). Eles dizem algo mais they allow us to see other possibilities,
porque nos deixam ver outras make us think in another manner. How
possibilidades, nos fazem pensar de do you see China nowadays? In other
outra maneira. Como voc v a China words, are scenarios and people you
atual? Isto , as cores, cenrios e pessoas relate to during your trips part of how
com os quais voc se relaciona em suas you see China currently?
viagens passam a fazer parte do seu
olhar sobre a China atual?
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Por fim, alm de agradec-lo, Finally, I would like to thank you for
novamente, por conceder essa entrevista, giving this interview, and I would like
gostaria de perguntar sobre o que voc to ask you about what you have been
vem trabalhando atualmente e se voc working on currently and if you intend
pretende voltar a trabalhar com filmes. to work with movies again. I ask this
Pergunto isto porque as suas fotografias because your photographs have
tm cenografias belssimas e revelam beautiful sceneries and reveal a
uma minuciosa pesquisa por objetos e meticulous research for objects and
locais que, juntos, compem ambientes locations that, together, make up
similares ao universo dos sonhos. Muito environments that resemble the
obrigado! universe of dreams. Thank you!
Im glad to chat with you about these. Fico contente por conversar com voc
Recently I've been organizing my sobre tudo isso. Atualmente, tenho
Chinese old photos, and writing some organizado minhas fotos antigas da China
articles about these photos. I just hope e escrito alguns artigos sobre elas. Espero
to find a new way to put into my future encontrar uma nova maneira de colocar
creation by such kind of study and esse tipo de estudo e observao em
observation. So far I don't have any minhas criaes futuras. At agora,
plan on taking films. But Im talking no tenho nenhum plano de trabalhar
about some collaboration with some com filmes, embora eu esteja conversando
drama workers. Maybe Ill try to do a sobre algumas colaboraes com pessoas
drama creation first. Thanks for your que trabalham com dramaturgia.
interview let me think about Talvez eu tente trabalhar com criao
something again when I answered your dramatrgica. Obrigado pela entrevista...
questions. [Ela] me fez pensar algumas coisas
enquanto eu respondia as suas perguntas.
Entrevista
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1
Sou grato ao parecerista annimo da R@U pelas valiosas contribuies emitidas, aps cuidadosa leitura da
primeira verso deste texto.
314
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minha presena, porm com ressalvas, tais como: no fazer gravaes, preservar o nome
da boate, cidade, meninas, dentre outras.
Tamires uma das garotas que, durante o dilogo, passou por ns vrias vezes, se
aproximou e disse: Quando voc veio pra c a meninas queriam saber o que estava
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@ Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v.2, n.2, jul.-dez., p.314-325, 2010
acontecendo. A eu disse pra elas: pode deixar que eu vou l tentar descobrir alguma
coisa. Ao saber do meu interesse, imediatamente comeou a contar um pouco da sua
experincia como garota de programa. Nesse instante, outra moa veio e disse: Tamires
voc no vai assistir? J est passando? Ela respondeu sorridente: Agora no. Estou
dando entrevista! Sou importante, bem!
No era uma entrevista propriamente dita. Mas, naquele momento pude perceber
que elas se sentiam valorizadas ao conversar sobre seu cotidiano. uma maneira de
sentirem importantes. Afinal, a vida delas passa a ter interesse para outras pessoas. Ao
me despedir, Geni afirmou: Pode vir aqui a hora que quiser. Mas, se puder, venha
amanh, pois amanh temos a noite da langerri. Tratava-se da noite em que todas as
mulheres ficam apenas de calcinha e suti a espera dos clientes.
Planejei retornar a noite. Novamente fiquei preocupado. Seria minha primeira
observao participante. As dvidas eram: saberia me relacionar com elas? Minha
pesquisa iria dar certo? Poderia frequentar vrias noites seguidas? Quanto isso iria me
custar? Afinal, aparentemente, seria preciso consumir bebidas para permanecer no
ambiente. Essas foram algumas das questes que imediatamente me inquietaram.
Conforme ser visto mais adiante, de forma tmida e insegura passei a conviver
com meu objeto de estudo. O trabalho de campo no foi fcil. As mulheres com que
convivi exigiram, involuntariamente, a escolha de uma metodologia apropriada que me
permitisse sair do status de estranho ou intruso e passasse a ser considerado algum
prximo. Em princpio, minha presena as deixavam inibidas. No entanto, com o passar
do tempo e seguindo as orientaes de Ruth Cardoso (1986) de que necessrio
estabelecer amizades, esta foi se firmando aos poucos. Isso me favoreceu, tendo em vista
que, passei a ser convidado para participar dos momentos de lazer, incluindo churrascos,
festas, bailes, banhos de rio e banhos de sol entre outras atividades.
Taxista de Cabar
To logo negociei minha entrada em campo, fui para a primeira noite de pesquisa.
Depois de lecionar na universidade em que trabalho, dirigi-me a Geni Drinks. Ao
chegar, por volta das 23h25min, fui reconhecido pelas meninas. Naquela noite de quarta-
Relatos de Pesquisas
feira, o movimento estava fraco. A razo, segundo elas, era o fato de a televiso
transmitir o jogo do Corinthians. Em dias em que h jogo desse time, disseram, homens
na zona so raridades.
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Nesse momento foi possvel identificar uma diviso interna entre as garotas de
programa. Enquanto na cama da dona do cabar sete mulheres dividiam o mesmo
espao, do lado de fora do quarto, estavam outras que no tinham proximidade
suficiente para a se deitarem.
Dentro do quarto, havia uma cadeira desocupada. Imediatamente, pensei: se eu
sentasse, poderia perceber com mais detalhes o que estava sendo discutido. Mas refleti
tambm: se eu no for convidado, no irei. Como era minha primeira vez pesquisando
efetivamente aquele ambiente, no poderia vacilar. Como no fui convidado nem para
entrar no quarto e nem para sentar com as meninas que estavam do lado de fora, fiquei
inquieto e comecei a circular pela sala, ora saa, ora entrava, sempre na expectativa do
que iria acontecer.
Nessa noite, elas organizavam um almoo que seria realizado no domingo. Geni
me convidou para almoar com elas, caso se concretizasse o evento, pois, que naquele
momento estava apenas sendo planejado. Prontamente, aceitei o convite. Em seguida ela
me ofereceu caf. Aceitei.
Identifiquei que o expediente estava se findando quando Geni comentou sobre a
necessidade de fechar o porto principal. Diante disso, despedi-me das meninas e fui
convidado para retornar na noite seguinte quando, conforme relatado, aconteceria a
noite da langerri.
Na noite seguinte, por volta de 20 h, retornei ao cabar. Pelo nmero de carros que
se encontravam no estacionamento, percebi que a casa estava movimentada. Ao entrar,
cumprimentei apenas Geni que se encontrava no balco, pois todas as meninas estavam
acompanhadas. Nessa noite, o nmero de mulheres no era suficiente para atender a
todos os clientes que ali se encontravam. Era a popular noite da langerri. Por isso, alguns
esperavam elas voltarem dos programas que estavam acontecendo para atend-los. Um
dos frequentadores, que estava sozinho, aproximou-se de mim e comeou a conversar.
Enquanto isso, Laura, que acabara de sair de um programa, aproxima,
cumprimenta-me e me leva para conhecer a mquina de msica. A msica do ambiente
paga pelos clientes. Cada msica custa R$ 1,00. Para ouvir preciso inserir uma cdula
ou moeda. A mquina reconhece o valor e libera o numero de canes proporcionais ao
Relatos de Pesquisas
valor pago. Em seguida, Laura me diz: Olha... fique de olho quando os clientes forem
colocar msica, assim podemos colocar as que voc gosta. Agradeo a gentileza e reflito
sobre o fato de elas estarem comeando a interagir comigo. Nessa noite, comecei a me
familiarizar com o ambiente. medida que as meninas saiam do quarto, elas tomavam a
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grupinhos estavam formados. Nessa noite, eu era esperado. Afinal, sabiam que o
dinheiro arrecadado com a funo de taxista seria utilizado para compra de pizzas. Elas
escolheram o sabor e fizeram o pedido. Na hora de buscar, como no havia parado de
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chover, estava difcil encontrar moto-txi que trouxesse a encomenda. Diante disso, Geni
pede para que eu mesmo busque, seno iria esfriar. Chegando ao restaurante, a moa que
estava no caixa conhecia a mim e a minha namorada. Quando disse que fui apanhar a
pizza da Geni, ela se assusta, noto pela expresso facial dela, dizendo: Voc est na
Geni pagando pizza pra elas? Como havia outros funcionrios por perto, optei por no
dar detalhes da minha pesquisa.
Ao chegar com as pizzas, o movimento estava intenso. Entrego a encomenda para
a Geni que guarda em seu prprio quarto para que os clientes no vissem. Decidimos
deixar para comer depois que eles sassem. Assim, poderamos comer juntos.
Em seguida, um carro estaciona. Dois homens entram e se apresentam como
vendedores de enxovais. Perguntam se elas queriam comprar. Ningum teve interesse.
Imediatamente, eles fazem a proposta de pagar as despesas na casa com as prprias
mercadorias. Tamires esclarece que ningum queria fazer permuta. Um deles insiste.
Estou passeando pelo salo. Tamires encontra uma sada. Chama-me de meu amor.
Abraa-me e diz: Vamos fazer nosso programa! Samos abraados e fomos para a
cozinha, que fica nos fundos, e me explica: Usei voc para me livrar daqueles malas.
Posteriormente, olha disfarada para o salo, ao perceber que eles haviam sados,
convida-me para retornar ao salo Ao voltarmos, as outras meninas riem de ns e uma
delas comenta: Vocs esto se aproveitando do Fbio.
Como os clientes saram, os grupos comeam a se formar novamente. Tive a
preocupao de circular por todos eles, mesmo sabendo que isso implicava na perda do
contedo de vrios dilogos. No entanto, o ganho residiria no fato de eu no ser
associado a nenhum grupo e, consequentemente, no assimilaria as rivalidades
existentes.
Posteriormente, sento no sof onde Sandra e Joice, que so namoradas, mas fazem
programas com homens, conversavam sobre a gravidez de Joice. Aproximo-me delas e a
grvida me pede para eu passar a mo em sua barriga para perceber o beb mexendo.
Minha presena ainda causava certo constrangimento de forma que vrios assuntos no
eram conversados quando eu estava prximo. Ao final da noite Geni pergunta: Voc
vem amanh n? Na semana que vem vou fechar mais cedo para irmos para o baile.
Relatos de Pesquisas
Vamos com a gente, a dividimos quem vai no meu carro e quem vai no seu?
Prontamente, aceito o convite. Reflito sobre o fato de, se eu disponibilizasse meu carro
para sair com as garotas, o contato poderia gradativamente ir aumentando.
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Passado alguns minutos, Preta me pede R$ 2,00. Nesse momento, os olhares das
outras garotas se voltam para mim no sentido de perceber: Vamos ver como ele vai se
sair dessa! Repasso o dinheiro solicitado. Nesse nterim, um carro estaciona. Descem
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dois homens. Um dele aluno meu, que me cumprimenta, senta-se ao meu lado e
comea a conversar. Fico constrangido. Minha preocupao era de ele ficar conversando
comigo e no gastar com as mulheres. Se isso acontecesse minha estada poderia ser
comprometida em funo da possibilidade de atrapalhar o ganho delas.
Disfaradamente, peo licena e vou ao carro. Volto, fico um pouco distante e percebo
que a interao entre ele e as mulheres se iniciou.
Posteriormente, trs jovens entram. Geni fica em dvida sobre a maioridade deles.
Pede o documento de identidade. Um deles se recusa. Aline diz: Voc tem que mostrar.
O fiscal est ali. E aponta para mim. Ele pergunta: Voc fiscal mesmo? Respondo
que sim. Imediatamente ele mostra sua habilitao e diz: Mas esse fiscal est muito
parado. Barbie responde: Voc nem imagina que o melhor da noite ele que presencia.
Ele j viu todas ns peladas.
Ao negociar um striptease, Tamires passa por mim, abre o sobretudo e me mostra a
fantasia ntima com a qual ria desempenhar a performance. Era de colegial. Em seguida,
diz: Professor essa em sua homenagem! Venha assistir? Aps o striptease um dos
clientes, diz: Ser fiscal muito bom hein?
Aps vinte dias de observao participante, em determinada noite, chega uma
dupla de rapazes. Eles chamam duas garotas para irem para o fundo da boate. Camila,
uma das convidadas, diz que no iria acompanh-los porque eram muito mal educados.
Eles escolhem, ento, outra garota para interagir e saem para os fundos. Um deles
retorna ao salo e presencia um rapaz sorrindo e imagina que o jovem ri dele. Em visvel
estado de embriaguez, foi tirar satisfao com o outro cliente querendo saber por que ele
estava sendo motivo de zombaria. O rapaz explica que no estava rindo dele. Ele,
nervoso, diz que vai sacar a arma e atirar no cabar. Algumas meninas e eu nos
preocupamos. Tomei a iniciativa de ficar em frente a porta, com as mos para trs, de
modo a dar a entender que fosse realmente o segurana da casa. Ele me observou. Olhei
dentro de seus olhos. Mesmo estando com medo, procurei no demonstrar. Ele saiu.
Acompanhei todos seus movimentos. Ele se deu conta de que era observado e voltou
para os fundos e no ambiente tudo voltou normalidade.
Ao comear um striptease, Geni pediu para que eu a acompanhasse de modo a
Relatos de Pesquisas
impedir que qualquer cliente invadisse o palco onde ela exibia seu show. Novamente, fiz
pose de segurana. O rapaz que momento atrs havia ameaado atirar me chama. Com
medo, fui. Ele me pediu uma cerveja. Busquei e compreendi que ele imaginava que de
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fato eu era um funcionrio da casa. Aps o show, ele e seu amigo propuseram para
Joice, grvida de seis meses, que ela transasse com os dois, ao mesmo tempo, num
motel. Ela recusou, temendo violncia. Posteriormente, eles fizeram a mesma proposta
para duas outras garotas que, temerosas, tambm recusaram. Diante das negativas,
optaram por dormir na boate. Novamente, o medo da violncia pairou sobre elas. Por
isso, Geni pediu se, naquela noite, eu poderia dormir ali, pois caso houvesse algum
problema ter-se-ia a figura masculina no ambiente, visando inibi-los.
Geni escolheu um quarto que estava vago para eu pousar. Era o de nmero trs.
Dormi ao lado do quarto onde os clientes, tidos como violentos, faziam o programa.
Ouo os gemidos da relao sexual. Uma das minhas funes era ficar atento para
quaisquer sinais de violncia. O combinado com as meninas foi: se houvesse quaisquer
atos de violncia elas bateriam na parede ou gritariam meu nome.
Tudo ocorreu dentro da normalidade. s 06hs47min, ouvi a movimentao dos
clientes. Levanto-me, abro o porto para eles sarem, fecho e volto a dormir at as 11hs,
horrio em que elas se levantam. O assunto do caf da manh foi sobre os clientes da
noite anterior. Elas me agradeceram pelo fato de eu ter me passado por segurana. A
partir daquele dia ganhei a alcunha de segurana pelas meninas do cabar.
Em funo de elas se referirem assim a mim, tive a preocupao de me portar como
tal. Com olhar firme, mos para trs, passei a caminhar por toda a boate para que os
clientes tambm assimilassem essa imagem. Esse foi um ganho extraordinrio. A partir
de ento, tive a liberdade para circular por qualquer espao sem causar
constrangimentos.
Passada uma semana desde a data que assumi a funo de segurana, Geni pediu
que eu ficasse no caixa enquanto ela limparia algumas mesas nos fundos. Prontamente
aceitei e refleti sobre o fato de ter conseguido conquistar a confiana dela. Ao v-la
voltando com uma vasilha de copos que estavam para ser lavados, pedi se poderia lav-
los. Ela sorri e diz: Professor, voc? Lavar copos?
Naquela mesma noite, Geni pediu para que eu depositasse um cheque de um
cliente na minha conta e repassasse, aps a compensao, o dinheiro para ela, O cheque
estava em branco e eu deveria preench-lo no valor conforme o gasto, que foi de R$
Relatos de Pesquisas
950,00. Esse pedido se deu pelo ao fato de, tanto ela quanto o cliente serem conhecidos
na cidade e, por isso, haveria a possibilidade de a esposa do fregus desconfiar do valor
do cheque, conseguir cpia dele e descobrir, consequentemente, que ele esteve no cabar.
Se meu nome aparecesse, no haveria problema algum, pois ele poderia alegar alguma
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negociao. Naquele dia, quando fui pagar minha consumao, a proprietria se recusa a
receber, justificando o fato de eu ajudar no trabalho. Uma das garotas, Mel, elogiou-me,
dizendo: Nossa, o professor ponta firme mesmo. Ele dorme aqui, fica no caixa, lava
copos e ainda vai no banco. Ele muito legal.
Diversas vezes almocei no ambiente de pesquisa. Por mais que, por reiteradas
ocasies, Geni dissesse para eu me sentir a vontade e ir fazer refeies sempre que
quisesse, precavi-me de somente almoar quando convidado especificamente para aquela
ocasio. Eram nesses encontros que, ao retornar para casa, eu levava em meu carro as
garotas de programa para irem ao mdico, dentista, hotis e motis para atender clientes.
Tornou-se uma prtica comum, sempre que elas precisavam sair na parte da tarde eu era
convidado a almoar e, em seguida, samos juntos.
At aqui, relatei como se deu a convivncia com as garotas de programa no interior
do bordel. No entanto, a observao participante, permitiu que, a convite das prprias
garotas de programa, no ficasse restrita ao cabar. Em funo de eu passar a ser visto
com algum da prpria zona de meretrcio sempre que havia momentos de lazer eu era
convidado a participar. Todavia, dada as limitaes espaciais no ser possvel descrever
aqui.
Aps esse perodo, acumulei vrias fotografias, todas tiradas pelas prprias garotas
de programa. Elas faziam o registro nas cmeras particulares, nos mais diversos
momentos, e pediam para eu salvar as imagens em CDs e ficar com uma cpia de
segurana em meu computador, pois em caso de extravio elas me procurariam. Fui
autorizado a publicar essas imagens desde que feito tratamento imagtico com vistas a
no mostrar os rostos das personagens. Essa foi a nica restrio imposta.
A antroploga Claudia Fonseca torna claro que o sexo do pesquisador um dos
mltiplos fatores que compem o lugar da pesquisa. O sexo de um indivduo tem
grande influncia sobre seu acesso a dados e situaes de campo. Homens presenciam
cenas que seriam vedadas mulheres e vice versa. (Fonseca 1996: 31) Pude vivenciar
essa situao quando estive em campo. O fato de o estudo ter sido realizado por mim,
isto , um pesquisador e no por uma pesquisadora no foi sem significncia. Tive acesso
as dados que uma pesquisadora teria dificuldade em conseguir. A esse respeito, vide
Relatos de Pesquisas
Gaspar (1985). Trata-se de um trabalho exemplar que retrata com total maestria as
dificuldades impostas mulher que estuda a prostituio feminina no momento em que
precisa estabelecer relaes com as informantes. No meu caso, no tive esse infortnio,
tendo em vista que, em nenhum momento, fui visto como algum que poderia disputar
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@ Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v.2, n.2, jul.-dez., p.314-325, 2010
clientes com as garotas de programa. Situao esta que pode ser inversa quando se trata
de uma pesquisadora. Sobre as condies de um homem pesquisando mulheres garotas
de programa vide tambm Freitas (1985).
Em meu primeiro contato deixei claro que meu objetivo no local pesquisado era
por fazer um estudo etnogrfico. Assim, foi possvel evitar que elas me vissem como um
cliente em potencial.
Dados os limites espaciais imposto a um relato de pesquisa, no foi possvel
problematizar no presente texto outras condies em/de campo, que incluem o que
representou conquistar a confiana de Tamires? De que maneira incide o desempenho da
figura da Geni na articulao da casa? Como ocorre a transformao do ambiente entre
local de moradia x local de trabalho. No entanto, os leitores interessados nestas questes
podero encontrar uma descrio mais detalhada em Alves (2010a; 2010b).
Por fim, mister ressaltar que esses apontamentos pessoais so relevantes porque
compem o trao peculiar pesquisa etnogrfica, conforme exps Malinowski, sobre a
necessidade de o pesquisador compartilhar do ambiente pesquisado, experienciando-o.
Foi nesse clima que durante seis meses, de maro a agosto de 2009, convivi intensamente
com essas mulheres, quando pude observar suas prticas no perodo de trabalho, nas
horas de folga e nos momentos de lazer.
Referncias bibliogrficas:
ALVES, Fbio Lopes. Noites de cabar: interao, gnero e sociabilidade na zona de meretrcio.
Dissertao (Mestrado em Cincias Sociais) Universidade do Vale do Rio dos
Sinos. So Leopoldo, 2010a. Disponvel em
http://bdtd.unisinos.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=1312
_______. Noites de cabar: prostituio feminina, gnero e sociabilidade na zona de meretrcio. So
Paulo: Arte&Cincia, 2010b.
BACELAR, Jeferson Afonso. A famlia da prostituta. So Paulo: tica, 1982.
BAUER, Martin; GASKEL, George. Pesquisa qualitativa com texto: imagem e som. Petrpolis:
Vozes, 2002.
BECKER, Howard. Marginais e desviantes. In: Uma teoria da ao coletiva. Rio de Janeiro,
Relatos de Pesquisas
324
@ Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v.2, n.2, jul.-dez., p.314-325, 2010
Recebido em 15/08/2010
Aprovado em 12/09/2010
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decidi que realizaria minha pesquisa de mestrado (iniciada no ano de 2009) em conjunto
com os ndios que a compunha. Para isso tive a autorizao de Marclio, que ocupava no
momento o posto de cacique.
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Localizada beira da estrada que leva aos stios vizinhos e de frente para o Rio verde
(que delimita as terras juntamente com o rio Itarar), a aldeia apresenta uma estrutura
ainda precria. Ela conta com 5 casas de 1 cmodo feitas de madeira e no h servios de
gua e esgoto (a gua retirada de uma mina e no h banheiros), fato que contribuiu
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para que muitas crianas ficassem doentes. A aldeia possui ainda uma escola de 1 ao 5
ano feita de bambu e sap, que no tem recebido materiais didticos. importante dizer
que graas insistncia do grupo esses recursos esto previstos para o final de novembro
de 2010.
No relato desses ndios frequente a meno s disputas polticas internas na
aldeia como causa fundamental de seus deslocamentos, entretanto se pode notar que elas
vem acompanhadas de questes que envolvem parentesco, considerando que s se
deslocam para lugares onde reconhecem parentes, tanto antepassados como atuais.
Outro ponto que se coloca o da busca da Terra sem males, a terra muitas vezes
revelada em sonhos, a terra em que viveram os antepassados e onde poderiam viver
segundo os costumes no passando pelas dificuldades impostas s reservas. Mas como
conciliar a busca por essa Terra sem males, as formas prprias de organizao social
poltica e econmica desses grupos com os processos de demarcao?
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De acordo do John Monteiro (1992), Meli sugere um importante elo entre a constante procura de terras
novas para aldeias e roado e a migrao de inspirao proftica. Sugere ele que ambos os movimentos
inscrevem-se na busca de um espao geogrfico e espiritual propcio recriao de um modo de vida
autenticamente guarani, quer pela renovao do local de assentamento, quer pelo reencontro com uma
terra mstica. Ver Meli 1988: 105-8
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Referncias bibliogrficas
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Relatos de Pesquisas
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marcada pela relao horizontal entre os fiis), mas centralizador e universalista, moda
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com o autor esse antagonismo fomenta o pluralismo religioso no pas, mais do que o
sincretismo.
Os anos 1950 so marcados por outro movimento tpico dos pentecostais:
crescimento por dissidncia. Entre as igrejas criadas nesse perodo, destaque para O Brasil
para Cristo (1956). Entre fins de 1970 e a dcada de 1980 a difuso torna-se ofensiva
surge o que alguns nominam neopentecostalismo. O crescimento da atuao na
poltica e na mdia vem acompanhado pela mudana na linguagem e formato dos cultos;
a pretenso pela conquista massiva atinge seu auge com a criao da Igreja Universal,
em 1977. O sucesso do pentecostalismo entre os pobres chama a ateno dos
pesquisadores, que levantam suas hipteses em torno do ajuste de anomias sociais.
Mesmo entre os no-funcionalistas, consenso que a migrao de trabalhadores para as
grandes cidades incide sobre a escolha religiosa. Ronaldo de Almeida escolhe outro
ngulo para analisar o fenmeno. A capacidade de os evanglicos criarem redes de
relacionamento voltadas para a reciprocidade responsvel pelo sucesso das
congregaes nas comunidades. Note-se que o principal vocativo na relao entre os
fiis, irmo, a replicao simblica de um vnculo de parentesco replicao por
vezes real, pois muito comum o casamento entre irmos de f. Identificar uma
estrutura comunitria marcada pela troca chave para compreender o pentecostalismo;
mas o que dizer sobre a Igreja Universal que, embora pentecostal, constri outros tipos
de sociabilidade? Qual a natureza de seu circuito de relacionamentos?
As pessoas procuram na IURD uma interveno divina para problemas de toda
natureza. Os templos se localizam em grandes vias de acesso nas cidades e seu interior
suporta mais de mil lugares, o que impossibilita a criao de laos extensivos a todos os
irmos. Conforme os programas de rdio e televiso anunciam, h sempre um templo
por perto para o alvio imediato do sofrimento diferente da Assemblia de Deus e suas
pequenas igrejas nos bairros, a temporalidade da Igreja Universal condensada nos
cultos, onde veremos que a doutrina revela-se coadjuvante diante da performance.
Conhecida por ancorar-se no trip cura - prosperidade - exorcismo, a IURD oferece
cultos especficos para cada necessidade. Em Diabo no templo Ronaldo de Almeida se
dedica a descrever o mais caracterstico deles, o culto da libertao. A nfase no
sobrenatural e nos malefcios do contato com religiosidades inimigas d o tom do ritual:
(...) A problematizao do sofrimento, a busca da sua origem e a oferta de libertao
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desse sofrimento constituem o eixo central a partir do qual o sentido do culto pode ser
entendido e um conflito religioso explicitado. (: 77)
Pode-se visualizar os trs pontos citados no decorrer da seo: o incio
sinalizado por cnticos tristes que exteriorizam os sofrimentos e a esperana pela sua
resoluo; aos poucos os cnticos tornam-se alegres e cedem lugar ao sermo, de curta
durao e rapidamente substitudo pela pregao de fato. A eloquncia do pastor o
transforma num exorcista e a guerra santa est travada contra o causador de todos os
males, o Diabo. As oraes agora no se dirigem a Deus, so antes uma convocatria
aos demnios que possuem fiis no templo. Muitos entram em transe e as entidades
respondem. Importante mencionar as especificidades que conferem um carter nico ao
exorcismo da IURD: no inesperado, mas estimulado socialmente, alm de as
entidades serem todas afro-brasileiras; a atitude dos pastores no discreta como no
catolicismo, os possudos so combatidos no plpito. Parte central no culto, a
entrevista com o demnio serve para nome-lo e postular sua origem (geralmente
terreiros de Umbanda). Demonstra-se ritualmente a superioridade da Igreja Universal
medida que as entidades so humilhadas e expulsas; estas no voltam para os terreiros,
seguem para o inferno. A libertao bem-sucedida conforme as categorias das outras
religies so reduzidas s da IURD. Nega-se o contedo, mas incorpora-se a lgica de
funcionamento: a libertao assume o papel estrutural de contrafeitio.
Magia e eficcia simblica so fundamentais aqui. Trnsito das entidades atesta a
dimenso mgica do pentecostalismo em sua forma exacerbada na IURD: o princpio de
imanncia do sagrado no s nos corpos das pessoas, mas nos objetos, permite ao fiel ser
possudo pelo simples contato com um alimento trabalhado num terreiro. Na Igreja
Universal o princpio pentecostal da imanncia do divino abre um espao para a
imanncia do Diabo, seu equivalente estrutural. O transe, outro inegvel princpio
mgico, pode ser considerado o elemento mediador entre os dois universos
simetricamente opostos: por meio do transe dos fiis se d o trnsito das entidades, logo,
a comunicao. No obstante, Ronaldo de Almeida ressalta, conforme Bastide, as
decodificaes socialmente controladas do ritual da IURD: o transe e as pessoas que nele
so construdas j no so os mesmos do terreiro, pertencem ao templo. O captulo
quatro reafirma em teoria o que o culto demonstrou: o mesmo movimento que combate
os elementos das religies afro-brasileiras tambm os dota de eficcia, de modo que o
culto da libertao seja uma inverso simblica dos rituais do terreiro. Religio sem
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doutrina, religio sem centro: pratica-se pela guerra uma verdadeira antropofagia da f
inimiga, diz o autor.
Resta um problema: o pleno sucesso diante das religies inimigas levaria a Igreja
Universal do Reino de Deus falncia onde alocar a fonte dos males? O que est em jogo
no o antagonismo com as religies afro-brasileiras, mas os mecanismos de
inverso/continuidade e de negao/assimilao pelos quais a IURD enxerga a
diferena. Quem ativa esses binmios o Diabo em seus vrios nomes. Logo, mais do
que Candombl e Umbanda, o que a Igreja Universal necessita de fato dialogar com
uma tradio scio-religiosa na qual seja possvel encontrar os sofrimentos e os espritos
que possam se equivaler figura do Diabo. (: 126)
O ltimo captulo refora esses argumentos. Chute na santa trata de uma guerra
travada alm do plpito, no espao miditico. A breve exposio das polmicas causadas
pela IURD no espao pblico (acusaes de uso duvidoso do dinheiro dos fiis; de
fazerem falsas promessas de cura; a compra da Rede Record) culmina na descrio do
episdio de um pastor chutando a imagem de Nossa Senhora Aparecida em um culto. A
transmisso da cena pela Rede Globo explicita um complexo cenrio de oposies.
Globo x IURD (e no apenas Record): ora guerra miditica, ora guerra santa, esse fato
deixou claro a indissociabilidade entre expanso religiosa e empreendimentos financeiros
na Igreja Universal, bem como a disputa por legitimidade com a Igreja Catlica, que
ainda detm o maior nmero de fiis no pas. Ambas disputam pela universalizao de
sua crena, uma centrada no polo divino e outra, no do Diabo.
Embora o autor no mencione no corpo do texto, sua obra nos permite indagar o
quo distante a antropologia se encontra da perspectiva catlica. A questo diante de um
fenmeno como a IURD saber se os antroplogos ultrapassam a atmosfera de
preconceito em torno de suas polmicas a ponto de levar a srio um de seus principais
atributos, o xtase religioso. A criatividade dA igreja Universal e seus demnios reside na
disposio de conferir uma lgica antes de tudo simblica IURD, buscar a estrutura
que informa aes por vezes contraditrias. O que soa incongruente ao observador pode
ser apenas uma das superfcies de uma estrutura flexvel. Para lidar com tamanha fluidez,
o autor emprega conceitos como rede, trnsito, plasticidade. O livro traz ainda a novidade
de conferir IURD o status de uma cosmologia: num primeiro momento focado na
sociabilidade entre os fiis e a organizao social da Igreja nas cidades, com a
descrio do culto de libertao podemos dizer que a anlise salta rumo socialidade.
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Tal mtodo expe a necessidade de conviver o mximo com os nativos, para que assim seja possvel
participar de suas atividades cotidianas, presumindo assim a observao participante.
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dependeria de outros fatores. Por fim, utiliza a teoria da dominao masculina, de Pierre
Bourdieu, para compreender as formas de violncia de gnero que se do durante a
interao de garotas de programa e seus clientes.
Com o intuito de realizar uma pesquisa que lhe trouxesse uma viso intima do
cotidiano do cabar, Alves tentou buscar um informante, que iria servir de mediador,
fazendo ponte entre a comunidade pesquisada e ele, o pesquisador. Como falhou nessa
forma de abordagem, o antroplogo buscou entrar em contato diretamente com a dona
do cabar. A princpio, houve um certo receio por parte da proprietria do local, mas,
quando ela finalmente compreendeu que o objetivo do pesquisador, e tambm professor,
era apenas estudar o cabar, ela aceitou a presena deste no local, porm com algumas
ressalvas, como: no fazer gravaes, preservar o nome das meninas, da boate, da
cidade, entre outras.
Para cumprir com as exigncias, o autor nomeou a dona do cabar de Geni,
baseando-se na msica de Chico Buarque, e nomeou o local de Geni Drinks. As garotas
tambm recebem nomes fictcios e a localizao desse ambiente prostitucional
detalhada simplesmente, de forma que no se identifique o local facilmente.
Alves preocupa-se em alterar seu status de estranho para um status de amizade, ser
algum prximo das meninas, de forma com que participe das atividades cotidianas e
tenha contato estreito com elas. Assim, ele se empenha em passar grande parte do seu
tempo com o seu objeto de estudo. Gradativamente, foi ganhando confiana das garotas
e de Geni, e passa a desempenhar algumas funes dentro do bordel, entre elas: taxista
de cabar, segurana, garom, manobrista e caixa. Foi dessa maneira que o pesquisador
foi se aproximando das garotas, e a partir disso no fazia apenas parte do cotidiano do
bordel, mas tambm dos momentos de lazer que eram desfrutados pelas garotas.
feita ento uma descrio detalhada do ambiente de estudo, o Geni Drinks, que
se constitui em ambiente de trabalho e moradia das garotas de programa e da dona do
estabelecimento. A parte externa possui um letreiro com uma garota de lingerie, onde se
diz: Realizamos seus desejos mais ocultos, alm disso, h a indicao de
funcionamento vinte e quatro horas por dia. No lado de fora da casa, h uma varanda,
que um local importante para a sociabilidade das meninas, alm disso, neste local que
elas atraem os clientes, e onde pode se iniciar a interao entre garota de programa e
cliente, embora o principal local onde isso ocorre seja na sala da casa.
Dentro da casa possvel notar paredes revestidas com espelhos, embora parea
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apenas um artefato decorativo, os espelhos servem como forma de vigilncia, uma vez
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meninas da Geni, ficando o mais perto possvel. A outra vem de homens, algumas vezes
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conhecidos das garotas de programa, que ficam constrangidos com a presena dessas,
com medo de serem cumprimentados e terem que explicar de onde conhece essas
mulheres. Tamires uma profissional do sexo que trabalha para Geni no v motivo para
preocupao, uma vez que a prtica adotada pelas garotas de no tomar a iniciativa de
cumprimentar nenhum homem fora da zona, a no ser quando a esta iniciativa parte do
homem.
A respeito da renda mensal das garotas, algumas dizem terem faturado at
R$7000,00 em um ms, outras falam em R$5.500,00, outras falam em R$2.000,00 em
um s programa. A preocupao delas deixar claro que essa vida no tal fcil como
alguns afirmam ser, pois devem se submeter a algumas adversidades: como atender
clientes violentos, drogados, bbados, sujos e com odores, ente outros. Uma outra
inquietao de para onde vai esse dinheiro que elas ganham, dizem ser um dinheiro
que vai embora fcil, gasta-se com futilidades, como roupas, perfumes, sapatos, salo de
beleza. Uma das garotas, Barbie, diz que esse dinheiro no abenoado, por isso vai
embora facilmente.
As profissionais do sexo dispem de diferentes maneiras para se comportar com
os clientes, essas tcnicas de interao, seduo e performance variam de acordo com o
cliente. Inicialmente se deve estudar o cliente, ou seja, ver qual o seu perfil para
adequar a melhor performance, isso se d principalmente atravs da conversa,
considerada fator definidor para tal. As conversas mais frequentes so referentes ao
casamento e trabalho, onde os clientes desabafam, pedem conselhos, dessa maneira, as
garotas se auto-intitulam de psiclogas ou psiclogas do prazer.
A interao entre cliente e garota de programa s se concretiza, se ao menos um,
de dois elementos se fizerem presentes; a realizao do programa ou o pagamento de
bebidas para a mulher que lhe faz companhia. A partir disto, h trs atitudes tomadas
pelas garotas durante o momento em que esto com os clientes, elas so: acompanhar o
cliente desde que a interao seja mediada pelo consumo de bebida; no fazer programa
se o cliente no demonstrar interesse e s querer conversar; e s se relacionar caso a
bebida seja fator intermedirio para realizar o programa.
A bebida aqui de grande importncia, porque como j foi dito, ela parte do
rendimento do cabar, e tambm porque a garota de programa fatura 20% sobre o valor
das bebidas que seu cliente consumiu. Assim, se no houver programa, a dona do cabar
e a garota de programa no ficam no prejuzo. Alm disso, as profissionais do sexo
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cabar, elas ficariam bbadas e deixariam de atender vrios clientes na noite, alm de
diminuir o consumo de bebidas. As que no se embriagassem facilmente poderiam, em
determinadas situaes, consumir bebidas de baixo teor alcolico, como Amarula.
Dentro do cabar estudado, h uma regra que diz que se o cliente estiver pagando
bebidas para a garota ele deter o poder sobre ela, de modo que outro frequentador no
poder interagir com essa garota. Dessa forma, as garotas ficam atentas para ver se o
cliente no quer s conversa, e estipulam mais ou menos um tempo de vinte minutos
para comear a interao, caso no ocorra elas partem para outro cliente, porm se o
cliente estiver pagando bebidas, ela no pode simplesmente o abandonar, por isso ficam
atentas antes, para que tal inconveniente no ocorra, pois se fatura mais com um
programa do que com o faturamento de bebidas consumidas pelo cliente.
Alves demonstra toda uma preparao em fazer sala, ficar a espera do cliente.
Segundo as garotas de programa, h determinados lugares, considerados estratgicos,
como ficar no balco ou escolher algum outro lugar em que seja vista pelo cliente e ele
possa escolher ficar com ela. Esse um momento de disputa entre as meninas, pois
nesse momento que o cliente vai escolher com que garota vai ficar, o que chamado de
definio da situao, o cliente vai dar uma olhada especial para a garota que escolheu,
vai fazer algum sinal, nesse momento a garota tem que saber interpretar o sinal dado.
aqui tambm que elas tm que fazer um charme, mostrar interesse. neste momento
tambm onde acontece o que elas chamam de jogo sujo, espcie de traio, uma vez
que uma garota tenta roubar o cliente da outra, por esse ser considerado bom.
De acordo com as garotas de programa, h dois tipos principais de clientes, os
clientes po duro e os clientes considerados bons. No primeiro caso temos clientes que
se recusam a colocar uma msica e a pagar bebidas, elas acreditam que se o cliente se
recusa a fazer tais pagamentos, dificilmente vai fazer um programa. O cliente bom o
que paga o que foi pedido sem ficar reclamando. A garota deve se sentir conquistada
temporariamente pelo cliente, que pode se dar atravs de seus recursos financeiros, ou
atravs de sua postura educada, o que quer dizer que este cliente no vai lhe fazer
perguntas consideradas indecentes, como por exemplo: perguntar porque esto nessa
vida.
A pesquisa revela, que alguns clientes so considerados indesejveis, por serem
clientes que causam transtorno durante a interao. Os malas so os que no querem
usar preservativo, faltam com a higiene ou demoram para gozar. Porm h diferentes
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truques utilizados pelas garotas de programa, para enfrentar esses diversos tipos de
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no esforo comparativo um estilo de jogar basquete brasileira. Isto demonstra que uma
vez que h consenso sobre as caractersticas das diferentes escolas de basquete, o jogador
pode direcionar seu treinamento e alterar seu estilo, visando uma transferncia.
J Leonardo Erivelto Soares de Oliveira, no quinto captulo, apresenta uma
reflexo sobre a constituio de um estilo brasileiro de jogar vlei atravs de um estudo
minucioso da evoluo das regras e sistemas de pontuao do voleibol como se deram
para sua adaptao ao pblico jovem e sua veiculao massiva na mdia. O autor sugere
que sempre houve espao para a inovao de certos atletas, tcnicos ou equipes, no
sentido de diferentes interpretaes possveis das regras, que acabaram por caracterizar
os estilos de jogar. Isto exemplificado pelos casos da criao do saque viagem e
jornada nas estrelas. O autor afirma que o estilo brasileiro no vlei teria surgido, como
estes saques, na dcada de 1980 e que a estatura relativamente baixa dos jogadores era
compensada pela sua versatilidade, um repertrio variado de jogadas ensaiadas,
levantadores habilidosos e finalizaes velozes e criativas. E que estas caractersticas
seriam relacionadas, pelos agentes do vlei nacional tanto a certo talento e inteligncia
essencializadas dos jogadores, como ao processo de racionalizao do esporte, com a
exaltao da competncia na administrao das instituies esportivas nos ltimos anos.
Por sua vez, no nono captulo, Claudemir Jos dos Santos, transporta o leitor ao
universo das escolinhas de futebol, para apresentar como o estilo de jogar brasileira,
frequentemente associado rua, vrzea e pelada operado nesta nova configurao
institucionalizada do futebol nacional. O autor dispe de uma breve histria do
surgimento de tais instituies que remete racionalizao do mesmo na dcada de 1980
e enfoca, ento, o processo de aprendizagem do futebol em seu interior em uma cidade
mdia do interior paulista, problematizando as representaes de famlia e trabalho,
religiosidade e dom, jeito inato e formatao do corpo, habilidade com o p esquerdo,
incorporao tcnica nas rotinas dirias e formas de moldagem de jogadores de futebol.
Por fim, Luiz Henrique de Toledo arremata o tema com uma anlise comparativa
do impacto dos trabalhos de Eduardo Archetti e Roberto DaMatta, como estilos de
pensar sobre os estilos de jogar, expoentes da antropologia dos esportes na Amrica
Latina, que embalaram com seus modelos explicativos, entre outros, os autores deste
livro.
No que se refere reflexo sobre gnero, no terceiro captulo, Juliana Affonso
Gomes Coelho se prope a verificar como distintas constituies sociais de gnero se
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autor se viu instigado a realizar uma reviso conceitual dos termos festa, jogo e esporte;
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repetio sistemtica dos gestos e a fora dos movimentos que revelam o domnio de
uma eficcia presumida por parte dos fiis da ao corporal e das coreografias no
louvor e na recepo da bno, a magia em sua prtica. Este trabalho demonstra, ento,
uma possvel contrao do esporte com a magia e a religio.
Estes dois estudos ilustram o movimento percebido pelos organizadores, no qual,
segundo suas palavras, os prprios agentes das pesquisas esgaram os significados da
categoria esporte a ponto de subvert-la em manifestaes variadas que combinam, em
diferentes graus, ludicidade, performance e competio e que por sua premissa analtica,
a da adoo do termo prticas esportivas ao invs de esporte, estariam livres de ser
enquadradas forosamente apenas nas categorias jogo ou esporte. Iniciativa que s tem a
contribuir com a investigao sobre manifestaes sociais cada vez mais informadas por
esta mesma discusso.
Entretanto, inevitvel notar como a coletnea, mesmo partindo de uma proposta
mais ampla e comparativa e contando com trabalhos sobre esporte universitrio, vlei e
basquete, retrata uma antropologia ainda em vias de problematizar outras modalidades
coletivas que no o futebol. E de se lamentar o atraso de investigaes antropolgicas
realizadas mais sistematicamente e com mais frequncia sobre as modalidades olmpicas
ou as diversas dinmicas do jogo, na medida em que prticas distintas destas duas j
estavam previstas na agenda antropolgica desde as Tcnicas Corporais de Marcel
Mauss, quando o autor discorre sobre seu alpinismo e a educao do sangue frio. E visto
que outras delas, como o surfe, por exemplo, vm se estruturando no Brasil desde a
dcada de 1930, em contraposio ao futebol, ao olimpismo e ao jogo e conquistam cada
vez mais espao na mdia e na vida social.
Ainda sem saber o que dizer das manifestaes convencionais a antropologia
brasileira se depara agora com um campo crescente de atividades que se pretende no
convencional, no olmpico, no futebol, no jogo; mas sim alternativo, radical, de aventura
ou na natureza. preciso valorizar a iniciativa de Luiz Henrique de Toledo e Carlos
Eduardo Costa em propor que se investigue o que chamam de modalidades coletivas
comparativamente, mas tambm considerar o que parece ser uma dificuldade da
antropologia em contar com estudiosos interessados por outras prticas, que esto em
crescente expanso e bastante em voga, e colocar a provocao e o convite. O que seriam
modalidades coletivas? O rafting ou a corrida de aventura, por exemplo, teriam natureza
social ou forma simblica semelhantes s do handebol ou do crquete?
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R@U Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS UFSCar
Volume 2, nmero 2, Julho Dezembro, 2010
ISSN: 2175-4705
E devem indicar, em folha separada, nome(s) do(s) autor(es), titulao, afiliao acadmica,
endereo para correspondncia e e-mail.
Os textos devem estar digitados em pgina A4, fonte Times New Roman, corpo 12,
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As notas devem ser numeradas com algarismos arbicos, em ordem crescente e listadas ao final
do texto, antes das referncias bibliogrficas.
Quadros, mapas, tabelas, imagens etc., devem ser enviados em arquivo separado, com
indicaes claras, ao longo do texto, dos locais em que devem ser includos. No caso das
fotografias, devem estar digitalizadas com resoluo acima de 300 dpi e nos formatos TIFF,
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quesitos para ser encaminhada para avaliao - no prazo de at 8 (oito) dias a partir da
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da revista para os autores ser feita atravs do e-mail do primeiro autor do artigo. Os autores
que no receberem mensagem da revista nos prazos supra-citados devem procurar novo
contato para esclarecer se houve extravio de correspondncia eletrnica.
ISSN: 2175-4705
a) Artigos e ensaios inditos. Devem indicar ttulo (em portugus e ingls) e apresentar, em
portugus e ingls, um resumo entre 100 e 150 palavras e um elenco de palavras-chave
(separadas por ponto) que identifique seu contedo. Limite mximo de 30 pginas, includas
as referncias.
d) Resenhas de livros, coletneas, filmes, documentrios, discos, etc., editados nos dois
ltimos anos a contar da data de publicao da revista. Devem indicar a referncia bibliogrfica
do trabalho resenhado. No devem ultrapassar 6 pginas.
Livros:
GEERTZ, Clifford. Ethos, world view and the analysis of sacred symbols. The Antioch review,
Yellow Springs, v. 17, n. 4, p. 234-267, 1957.
TOREN, Christina. Como sabemos o que verdade? O caso do mana em Fiji. Mana, Rio de
Janeiro, v. 12, n. 2, 2006. Disponvel em: . Acesso em: 31 Mar 2007.
Trabalhos em coletneas:
DAWSEY, John Cowart. De que riem os bias-frias? Walter Benjamin e o teatro pico de Brecht
em carrocerias de caminhes. 1999. 235 f. Tese (Livre-docncia) - Faculdade de Filosofia,
Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo. 1999.
Documento eletrnico:
Referncias videogrficas
Multimeios: CD
MIRANDA, Marlui. Ihu todos dos sons. [S.1]: Pau brasil [1995].
Antropologia Social
Programa de Ps-graduao