A Ética Da Crença - W. K. Clifford, William James e Alvin Plantinga

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Prefcio

A religio pode ser estudada de diferentes pontos de vista. Podemos estudar os seus aspectos
psicolgicos, histricos, sociolgicos ou polticos. Mas tambm podemos estudar os problemas
filosficos que suscita. Esta pequena antologia oferece uma amostra de uma rea da filosofia da religio
conhecida por epistemologia da f. Nela, estuda-se aspectos epistemolgicos da crena religiosa, ou
f. Difere, por isso, de outras reas da filosofia da religio, nomeadamente a rea metafsica central, que
trata da discusso dos argumentos a favor e contra a existncia de Deus.
Muitos crentes sentem que esta ltima discusso algo irrelevante pois no em funo de
argumentos ou provas que tm f. Apesar de poder haver algo de errado nesta posio (confundir o que
faz algum ter f com a sua justificao), h tambm algo que aponta para um aspecto que no estudado
nessa rea mais tradicional da filosofia da religio, mas sim na epistemologia da f. Trata-se de saber se
haver justificao para ter f sem provas, argumentos ou indcios. Sem muita reflexo, muitos descrentes
respondero que no; muitos crentes respondero, talvez tambm sem muita reflexo, que sim. Que razes
haver para cada uma destas posies? este o nosso tema.
W. K. Clifford defende a primeira posio, a que se chama indiciarista: epistmica ou
racionalmente ilegtimo acreditar em algo se no tivermos provas ou indcios a favor disso. William
James e Alvin Plantinga defendem verses diferentes da segunda posio: legtimo acreditar sem
provas. No meu texto, apresento vrias distines e ideias que do ao leitor instrumentos que lhe
permitem entrar na discusso. No final do volume, apresento tambm um conjunto de leituras
recomendadas.
Este livro nasceu em parte da disciplina de Filosofia da Religio que leccionei na Universidade
Federal de Ouro Preto em 2009. Tive a felicidade de contar com alunos interessados, inteligentes e
imaginativos, que tornaram as aulas vivas e estimulantes. Agradeo a todos o que me ensinaram; a minha
compreenso deste tema seria bastante diferente sem as suas objeces e contra-exemplos.
O meu ensaio foi meticulosamente lido e corrigido por vrios amigos e colegas, a quem agradeo
calorosamente: Artur Polnio, Aires Almeida, Sagid Salles Ferreira, Faustino Vaz, Pedro Merlussi e Luiz
Helvcio Marques Segundo. As objeces que me levantaram permitiram melhorar bastante o texto
original, para benefcio do leitor.
Finalmente, agradeo a Vtor Guerreiro, pela traduo atempada e esmerada dos textos, assim como a
Alvin Plantinga, que prontamente acedeu publicao do seu texto.

Desidrio Murcho
Ouro Preto, 28 de Junho de 2010
Sobre os autores

William Kingdon Clifford nasceu no dia 4 de Maio de 1845, na Inglaterra, e morreu na Ilha da
Madeira no dia 3 de Maro de 1879, com apenas 34 anos. Apesar disso, deixou uma obra
matemtica considervel, assim como palestras influentes de divulgao cientfica, ensino e
filosofia. Antecipou Albert Einstein (1879-1955), explorando as geometrias no-euclidianas. Das
suas ideias filosficas, as mais influentes hoje so as que esto presentes no ensaio aqui publicado,
apresentando com grande clareza a posio de que s legtimo acreditar em algo se tivermos
indcios a seu favor. Mas defendeu tambm teorias filosficas na rea da filosofia da mente e da
tica. Das suas obras, quase todas publicadas postumamente, destaca-se Elements of Dynamic, 2
vols. (1878, 1887), Seeing and Thinking (1879), Lectures and Essays (1879), Mathematical
Papers (1882) e The Common Sense of the Exact Sciences (1885).
William James, irmo do famoso romancista norte-americano Henry James (1843-1916), nasceu no
dia 11 de Janeiro de 1842, na cidade de Nova Iorque, e morreu no dia 26 de Agosto de 1910, em
Chocorua. Ajudou a fundar e desenvolver a psicologia cientfica, e foi um dos proponentes do
movimento filosfico norte-americano conhecido como pragmatismo. Os seus interesses eram
simultaneamente cientficos e filosficos; ao mesmo tempo, era muito sensvel s manifestaes
religiosas, sendo autor do que ainda hoje uma importante fonte de informao antropolgica sobre
a diversidade religiosa, The Varieties of Religious Experience (1902). Na esteira de C. S. Peirce
(1839-1914), e juntamente com John Dewey (1859-1952), defendeu o pragmatismo. Deste ponto de
vista, a verdade seja o que for que funcione na prtica. Da sua vasta obra destaca-se The
Principles of Psychology (1890), The Will to Believe and Other Essays in Popular Philosophy
(1897), Pragmatismo: Um Nome Novo para Algumas Formas Antigas de Pensar (1907; trad. F.
Martinho, INCM, 1997), The Meaning of Truth (1909), Some Problems of Philosophy (1911) e
Essays in Radical Empiricism (1912).
Alvin Plantinga (n. 1932) um dos mais influentes filsofos actuais, com trabalhos muitssimo
discutidos nas reas da metafsica, filosofia da religio e teoria do conhecimento. Cristo
protestante, destacou-se por sustentar as suas ideias religiosas de um modo no s integrado nas
outras perspectivas metafsicas e epistemolgicas que defende, mas tambm com a mesma preciso
analtica. Das suas obras, destaca-se God and Other Minds (1967; ed. rev. 1990), The Nature of
Necessity (1974), Deus, a Liberdade e o Mal (1974; trad. D. Murcho, Vida Nova, 2012), Does God
Have A Nature? (1980), Warrant: the Current Debate (1993), Warrant and Proper Function
(1993), Warranted Christian Belief (2000) e Essays in the Metaphysics of Modality (2003).
1. F, epistemologia e virtude

Desidrio Murcho

Neste captulo, comea-se por esclarecer a natureza da filosofia da religio. De seguida, esclarece-se
vrias noes centrais de epistemologia, para ento se proceder a uma anlise preliminar do conceito de
f. Finalmente, discute-se o tema central do livro: ser legtimo acreditar sem provas?
O objectivo triplo. Sem maar o leitor com referncias bibliogrficas, que se encontram no final do
volume, oferece-se um conjunto de noes instrumentais, cujo domnio importante para poder discutir
proficientemente o tema. Mas o objectivo tambm incitar o leitor a raciocinar e teorizar intensamente;
da que o texto seja, sobretudo, argumentativo e teorizador, e no descritivo ou histrico. Estes dois
objectivos ajudam a concretizar o terceiro: ajudar o leitor no s a compreender os textos de Clifford,
James e Plantinga, mas tambm a discuti-los activamente. Contudo, os textos destes autores tm muito
mais a dizer do que o que discutido aqui; no se pretende esgot-los, caso em que a sua publicao
seria redundante, mas antes explorar alguns dos seus temas.
A possibilidade da filosofia da religio
Alguns problemas centrais da filosofia da religio tm a vantagem, relativamente a problemas de outras
reas da filosofia, de ser imediatamente compreensveis para qualquer pessoa. fcil compreender em
que consiste o problema da existncia de Deus, por exemplo: ser que Deus existe? Mas pensa-se por
vezes que nunca iremos saber se Deus existe ou no, invocando-se at Immanuel Kant (17241804)
como se este importante filsofo tivesse descoberto que no se pode saber se Deus existe ou no, mais ou
menos como um cientista descobre o ADN ou a composio qumica da gua.
Ao longo da nossa escolaridade e estudo individual habitumo-nos a compreender resultados
cientficos, cuja paternidade ou maternidade atribuda a este ou quele cientista ou intelectual.
Transferindo esta atitude para a filosofia, encara-se Kant, ou outro filsofo, no como algum que
apresentou teorias e argumentos que devemos analisar e discutir de maneira cuidadosa, mas antes como
uma espcie de cientista, que provou qualquer coisa mais ou menos definitivamente. Assim, se Kant
declarou que o problema da existncia de Deus insusceptvel de ser resolvido (pela razo terica), isso
imprudentemente considerado um resultado definitivo da filosofia, um pouco como a descoberta que um
cientista pode fazer de quantas luas tem Jpiter. O resultado desta atitude afastar a ateno dos
problemas centrais da filosofia da religio, como a existncia de Deus. Fixa-se ento a ateno sobre
problemas de sociologia da religio, histria das religies, psicologia e hermenutica das religies, etc.
sobre tudo o que susceptvel de ser estudado empiricamente, recorrendo aos mtodos aprovados
pela cincia.
Uma breve reflexo, contudo, mostra a instabilidade terica desta posio. Se no se pode saber que
Deus existe nem que no existe, como sabemos que no se pode saber? Ser a teoria do conhecimento de
Kant mais plausvel do que as posies de outros filsofos, tanto antigos como contemporneos, que
defendem que podemos saber que Deus existe, ou que no existe? Poder parecer-nos que sim, sobretudo
se desconhecermos a bibliografia da rea; mas tal como o desconhecimento da lei no iliba o
prevaricador, tambm o desconhecimento da bibliografia no fundamenta aquele que a ignora.
Imagine-se algum que, nomeadamente por ser um cientista, est habituado a distinguir
cuidadosamente as opinies descuidadas que as pessoas tm sobre biologia, por exemplo, de opinies
fundamentadas no conhecimento da bibliografia relevante. Essa mesma pessoa pode considerar que, no
que respeita filosofia, as coisas so diferentes, sendo desnecessrio conhecer a bibliografia relevante.
S aceitaria a ilegitimidade de ter opinies descuidadas, que ignoram a bibliografia, sobre filosofia da
religio, epistemologia ou metafsica, se nessa bibliografia se encontrasse o gnero de resultados que se
encontra na bibliografia cientfica.
Contudo, esta posio assenta numa confuso. Mesmo que em filosofia no tenhamos o gnero de
resultados que temos na cincia, temos outro tipo de resultados: alternativas tericas sofisticadas
cuidadosamente pensadas, argumentos rigorosamente explorados, distines e anlises clarificadoras. Se
ignorarmos a bibliografia relevante, estaremos a fazer filosofia outra vez como os primeiros filsofos
faziam, repetindo-lhes os passos o que desavisado porque podemos fazer melhor do que eles se
partirmos das suas investigaes.
No se deve confundir progresso com resultados. O progresso cognitivo numa rea no depende
exclusivamente do gnero de resultados que h nas cincias. Podemos saber muito, e muito
sofisticadamente, sobre um problema, sem saber resolv-lo, caso em que temos progresso sem
resultados. Recusar ler a bibliografia filosfica relevante porque esta no apresenta resultados
cientficos recusar o progresso filosfico entretanto alcanado. Ironicamente, se todos os cientistas se
tivessem recusado a estudar a bibliografia da sua rea antes de esta apresentar resultados, nenhuns
resultados teriam sido alcanados.
H duas maneiras comuns de argumentar a favor da ideia de que o problema filosfico da existncia
ou inexistncia de Deus insolvel, pelo que deve ser abandonado, e nenhuma plausvel. No primeiro
caso, argumenta-se que s podemos saber o que podemos saber pela experincia; dado que no podemos
saber pela experincia que Deus existe, segue-se que no podemos saber se Deus existe. No segundo,
defende-se que os argumentos a favor e contra a existncia de Deus se anulam mutuamente.
O primeiro argumento enfrenta a seguinte dificuldade: a ideia de que s podemos conhecer o que
podemos conhecer pela experincia no pode ser conhecida ou sustentada pela experincia. Nenhuma
experincia laboratorial, por exemplo, permite determinar que s podemos conhecer o que podemos
conhecer pela experincia. Para estabelecer esta tese necessrio argumentar filosoficamente, e uma
parte importante dessa argumentao no ser baseada na experincia. Por exemplo, pode-se argumentar
que todo o conhecimento implica justificao, e que a nica justificao disponvel emprica. Mas o
prprio princpio de que o conhecimento implica justificao no algo que se conhea pela experincia,
nem pela experincia se conhece a ideia de que s h justificaes empricas na verdade, a
experincia parece at mostrar-nos o contrrio, pois os matemticos no recorrem experincia para
estabelecer os seus resultados, que esto entre os mais slidos resultados de sempre da empresa
cognitiva humana.
Isto significa que a ideia de que s podemos saber o que podemos saber pela experincia , se no
incoerente, pelo menos teoricamente instvel pois, se for verdadeira, parece que no podemos saber
que verdadeira. Uma sada para esta dificuldade sublinhar, como Kant, a diferena entre saber ou
conhecer algo, por um lado, e pensar algo ou levantar conjecturas, por outro. Assim, podemos argumentar
que a nossa posio, pelos seus prprios critrios, no pode obviamente ser conhecida, porque no pode
ser conhecida pela experincia; no entanto, pode ser pensada ou conjecturada. Um problema desta
resposta tornar aparentemente a posio original arbitrria. Pois se a posio original pode ser
conjecturada com densidade suficiente para em funo dela se recusar a possibilidade de saber se Deus
existe ou no, ento tambm podemos conjecturar que Deus existe (ou que no existe), apesar de
reconhecermos que essa uma mera conjectura, e no conhecimento propriamente dito.
Quanto ao segundo argumento, enfrenta a seguinte dificuldade: para os argumentos a favor e contra a
existncia de Deus se anularem mutuamente no basta cont-los, ou apresentar objeces a cada um dos
argumentos a favor ou contra a existncia de Deus preciso mais. Nomeadamente, duas coisas, pelo
menos: primeiro, preciso mostrar que os argumentos a favor e contra a existncia de Deus so
rigorosamente de igual fora; segundo, que quaisquer argumentos concebveis contra ou a favor da
existncia de Deus tero sempre os seus opostos, e de fora rigorosamente igual. Ora, mostrar qualquer
uma destas duas coisas cognitivamente mais exigente do que argumentar apenas que Deus existe ou que
no existe. Alm disso, se todos os argumentos a favor e contra a existncia de Deus se anulam porque
no tm base experimental, ento tambm os argumentos a favor dessa mesma posio se anulam perante
os argumentos da posio rival, pois tambm aqui no h base experimental.
Alm disso, defensvel que ambos os argumentos confundem o problema da existncia de Deus com
o problema de saber se Deus existe. A diferena torna-se clara se pensarmos em extraterrestres. Neste
caso, bvio que h uma grande diferena entre saber se existem e existirem efectivamente ou no.
Podemos facilmente imaginar cenrios em que os extraterrestres existem, mas, por no quererem dar-se a
conhecer ou porque, querendo, no podem faz-lo por se encontrarem demasiado longe de ns, no
podemos saber da sua existncia. Mas da impossibilidade de saber que os extraterrestres existem no se
segue que no existem, apesar de ser verdadeiro que se no existirem extraterrestres se segue que no
podemos saber que existem. No que respeita a Deus, mesmo que tivssemos razes para pensar que no
podemos saber se existe, isso no constitui em si razes para pensar nem que Deus no existe nem que a
prpria existncia de Deus irrelevante. Mesmo sem saber se Deus existe, podemos querer pensar na
hiptese de que existe ou que no existe, e, caso exista, que gnero de caractersticas poder ou no
poder ter.
Ambos os argumentos so, pois, improcedentes, pelo menos sem reformulaes cuidadosas. Mas as
ideias subjacentes a estes argumentos desempenham o seu papel habitual: fazem parar de pensar e de
investigar ainda antes de se dar os primeiros passos.
Metafsica, epistemologia e lgica
A filosofia da religio ocupa-se de problemas metafsicos, epistemolgicos e lgicos suscitados pelas
religies. Esta uma caracterizao razoavelmente neutra da filosofia da religio, mas para a
compreender necessrio saber o que se entende em filosofia por problemas metafsicos,
epistemolgicos e lgicos.
O problema intuitivamente bvio da existncia de Deus, por exemplo, metafsico. Um problema
filosfico metafsico quando diz respeito aos aspectos mais gerais da realidade e no quando diz
respeito ao oculto ou ao misterioso, como popularmente se pensa, nem quando diz respeito ao que no
pode ser conhecido pela experincia. A ontologia a subdisciplina da metafsica que procura estabelecer
as categorias mais gerais da existncia. Isto implica discutir se h realmente nmeros, por exemplo, ou
proposies, ou se estas so meras projeces mentais dos seres humanos. Num certo sentido, todos os
problemas so metafsicos, porque todos os problemas so sobre a realidade (incluindo os problemas
sobre o conhecimento da realidade, pois tal conhecimento tambm parte da realidade). Mas bvio que
no consideramos que um fsico est a fazer metafsica ao teorizar sobre tomos, por exemplo. A razo
que consideramos que pertencem provncia da metafsica apenas aqueles problemas fundacionais sobre
a realidade que no so susceptveis de estudo cientfico (ou seja, experimental ou matemtico).
Enquanto que a metafsica se ocupa de problemas fundacionais sobre a realidade, a epistemologia
ocupa-se de problemas fundacionais sobre o conhecimento e outros fenmenos cognitivos centrais, como
a crena e a f. Por isso, chama-se teoria do conhecimento epistemologia.
Usa-se por vezes o termo epistemologia para falar exclusivamente de filosofia da cincia. A
generalidade dos autores no faz tal coisa, porque a filosofia da cincia em si no trata apenas de
problemas epistemolgicos suscitados pelas cincias, mas tambm de problemas lgicos (como o
problema da induo) e metafsicos (como o problema da existncia ou inexistncia de entidades
cientficas postuladas, mas nunca directamente observadas, como os quarks).
O estudo filosfico do conhecimento, da crena e da f difere do estudo cientfico, psicolgico ou
sociolgico destes mesmos fenmenos. Em sociologia pode-se perguntar, por exemplo, em que condies
sociais determinadas teorias cientficas, por exemplo so vistas como verdadeiras; em psicologia
pode-se perguntar que tipo de processamento cognitivo ocorre quando se raciocina com base na
experincia, por oposio ao que ocorre quando se raciocina matematicamente apenas; mas em
epistemologia pergunta-se, por exemplo, se sabemos o que pensamos saber, em que condies h
conhecimento genuno, o que afinal o conhecimento em si, o que a f e se esta epistemicamente
ntegra.
A lgica uma disciplina transdisciplinar, no sentido em que usa recursos matemticos, lingusticos e
filosficos, e tambm uma disciplina que tem aplicaes em reas diversas, como a filosofia, a
computao e a matemtica. O objecto central de estudo da lgica a argumentao e o raciocnio
no estudando os aspectos psicolgicos, retricos, histricos ou sociolgicos da argumentao e do
raciocnio, mas antes os aspectos relevantes para a cogncia da argumentao e do raciocnio. Central
porque a lgica acaba por se interessar pela estrutura da linguagem, seja ou no argumentativa. Por
exemplo, em lgica queremos saber se a frase O actual rei de Frana careca uma expresso
puramente quantificada, como H cidades bonitas, ou uma expresso denotativa, como Asdrbal
bonito.
Os argumentos e os raciocnios tm simultaneamente aspectos em comum e aspectos diferentes. Tanto
num caso como no outro se trata de articular informaes para delas extrair concluses; a diferena que
num argumento se pretende persuadir algum, ao passo que num raciocnio estamos apenas a tentar obter
concluses a partir de informaes.
Em filosofia da religio estuda-se problemas de carcter lgico suscitados pelas religies; mas no
se estuda o tipo de problemas que se estuda na lgica propriamente dita. Um problema de carcter lgico
no do interesse da prpria lgica se depender fortemente de conceitos que pertencem a outras reas
que no a lgica. o que acontece no caso do problema do mal, em filosofia da religio. Este um
problema de carcter lgico, no sentido em que se trata de saber se as seguintes afirmaes so
consistentes entre si:

Deus omnipotente, omnisciente e sumamente bom.


O mal gratuito existe.

Um conjunto de afirmaes consistente quando todas podem ser simultaneamente verdadeiras. Aquilo a
que em filosofia da religio se chama o problema do mal , ento, o seguinte: a existncia de mal
gratuito parece incompatvel com um Deus que pode impedir o mal porque omnipotente, que sabe que o
mal existe e sabe como o impedir porque omnisciente, e que quer impedi-lo porque sumamente bom.
Fala-se de mal gratuito porque alguns males no so gratuitos, mas antes meios para bens maiores
por exemplo, o mal de sofrer as dores de uma interveno cirrgica um meio para o bem maior de ficar
saudvel. Distingue-se tambm o mal moral do mal natural. O mal moral resulta da actividade humana,
como o caso dos roubos ou homicdios; o mal natural no resulta da actividade humana, como o caso
dos terramotos, das secas ou da maior parte das doenas. Pelo menos primeira vista, mais difcil
responder ao problema do mal natural do que ao problema do mal moral.
O problema do mal tem um carcter lgico, porque um problema de consistncia entre afirmaes e
a consistncia um conceito lgico; mas no um problema da lgica porque depende crucialmente de
conceitos extralgicos, como o conceito de mal, de Deus, de omnipotncia, de omniscincia e de suma
bondade. E cada um destes conceitos levanta igualmente problemas lgicos que so estudados em
filosofia da religio e no em lgica, tratando-se de saber se, por exemplo, possvel articular
coerentemente os conceitos de omnipotncia ou de omniscincia.
As distines entre problemas metafsicos, epistemolgicos e lgicos no devem ser entendidas como
se fossem estanques, claras e inequvocas. Os problemas lgicos, por exemplo, so metafsicos ou
epistmicos, consoante dizem respeito ao que pode ou no existir na realidade (poder existir um ser
omnipotente?) ou ao que podemos ou no concluir (ser que da existncia do mal gratuito se pode
concluir que Deus no existe?); e, como deveria ser evidente, todos os problemas epistmicos dizem
respeito a um determinado aspecto da realidade: a actividade cognitiva de agentes capazes de ter estados
cognitivos sofisticados. Em todo o caso, importante distinguir, ao abordar um dado problema, os seus
aspectos metafsicos, epistemolgicos e lgicos.
Epistemologia
Conhecimento, crena e f so conceitos distintos. Definir rigorosamente o conhecimento um dos
problemas em aberto da epistemologia, mas algumas distines cruciais podem ser dadas como
razoavelmente seguras.
Quando se fala de crena em filosofia no se tem em mente apenas a crena religiosa, caso em que
esta ltima expresso seria um pleonasmo. Por crena entende-se em filosofia qualquer representao,
susceptvel de ser verdadeira ou falsa, que um agente cognitivo faz de seja o que for. As crenas podem
ser muito sofisticadas ou muitssimo elementares: temos crenas sobre a natureza dos tomos, mas
tambm sobre a localizao dos nossos joelhos. As opinies so crenas razoavelmente sofisticadas e
articuladas; crianas de seis anos, por exemplo, podem ter crenas fortes sobre o que gostam ou no de
comer, mas no tm opinies, polticas ou outras. O termo crena usado em filosofia no sentido em que
muitos filsofos gregos usavam o termo (doxa). J o termo f usado em filosofia no sentido do
termo grego (pistis) e do termo latino fides.
Podemos distinguir trs tipos de conhecimento ou saber (as duas palavras so usadas como
aproximadamente sinnimas):

1. Conhecimento proposicional ou de verdades (saber-que);


2. Conhecimento por contacto; e
3. Saber-fazer.

O conhecimento proposicional o que temos quando sabemos que: sabemos que Lisboa uma cidade
portuguesa, que Marte um planeta deserto e que a gua H2O. O objecto de conhecimento, neste caso,
uma verdade ou uma proposio. (A noo de proposio ser esclarecida de seguida.)
O conhecimento por contacto o que temos quando sabemos algo directamente, ainda que no
tenhamos conhecimento de verdades claramente articuladas sobre isso: conhecemos Londres por contacto
quando visitmos Londres, mas s temos conhecimento por descrio de Londres (conhecimento
proposicional ou de verdades) se nunca visitmos a cidade, mas sabemos vrias coisas sobre Londres.
Tambm temos conhecimento por contacto de ns mesmos, apesar de muitas vezes ser bastante difcil
articular o que sabemos realmente de ns mesmos: Quando olho para mim, no me percebo, escreveu
lvaro de Campos.
Finalmente, o saber-fazer o que sabemos quando sabemos fazer algo, como andar de bicicleta,
raciocinar cogentemente ou pintar um quadro. O saber-fazer ou conhecimento como habilidade ou
competncia no parece reduzir-se ao conhecimento proposicional ou de verdades e parece
marcadamente distinto deste: podemos saber muitas coisas sobre bicicletas e no saber andar de
bicicleta, e podemos saber andar de bicicleta sabendo quase nada sobre bicicletas (tambm
argumentvel que se pode saber muitas coisas sobre filosofia sem saber fazer filosofia).
O conhecimento factivo, o que provoca por vezes confuses desnecessrias. Quando se diz que no
tempo de Ptolomeu se sabia que a Terra estava imvel e agora se sabe que a Terra no est imvel, vive-
se em plena confuso conceptual. Se a Terra est imvel, ns hoje no podemos realmente saber que se
move apenas podemos considerar erradamente que sabemos isso. E se a Terra sempre se moveu,
ningum pde algum dia saber que estava imvel apesar de muitas pessoas poderem ter tido essa
crena falsa.
O conceito de factividade no exclusivamente filosfico: tambm lingustico, dizendo respeito ao
tipo de pressuposies associadas a certos termos e s suas regras de funcionamento. As definies
rigorosas de factividade, infactividade e contrafactividade so as seguintes, sendo x uma pessoa
qualquer, V um verbo e p uma afirmao ou proposio:
Um verbo V factivo se, e s se, x V que p implica p.
Um verbo V infactivo (ou no factivo) se, e s se, x V que p no implica p.
Um verbo V contrafactivo se, e s se, x V que p implica a negao de p.

Por exemplo, o verbo ver factivo porque se o Asdrbal v que est a chover, ento est a chover. Claro
que o Asdrbal pode acreditar erradamente que est a ver chover quando na realidade est a sonhar ou a
ter uma alucinao ou a confundir a gua de rega com chuva mas em nenhum desses casos est
realmente a ver que est a chover. O mesmo acontece com o conhecimento: Asdrbal s pode saber que
h vida em Marte se houver vida em Marte; se no houver vida em Marte, pode acreditar muito
firmemente que h vida em Marte, mas no pode saber tal coisa.
Ao contrrio do conhecimento, a crena no factiva mas tambm no contrafactiva, pois tanto
podemos ter crenas verdadeiras como falsas. No so s os verbos que so factivos: advrbios,
adjectivos e quaisquer modificadores ou operadores podem ser ou no factivos. Pseudo- contrafactivo
porque, se Asdrbal for um pseudopintor, no um pintor. Fingir aparentemente contrafactivo, mas de
facto apenas infactivo, pois uma pessoa pode estar a fingir que rica acreditando que pobre quando,
sem o saber, lhe saiu ontem a lotaria.
Em suma, ao passo que a crena no factiva, o conhecimento factivo. Insistir na factividade do
conhecimento por oposio infactividade da crena pode parecer um exagero de exactido, mas trata-se
apenas de rigor conceptual elementar. Tal como em fsica a massa no esparguete, e a nenhuma pessoa
culta ocorre tratar esse conceito como se fosse tal coisa, tambm o conceito de conhecimento factivo e
escusado insistir que possvel saber que a Terra est imvel no estando a Terra imvel.
No adianta tambm argumentar que h um conceito de conhecimento que no factivo, diferente do
conceito filosfico, sendo esse o conceito que as pessoas sem formao filosfica adequada usam, pois
seria como argumentar que na verdade h um conceito de massa, diferente do conceito fsico, sendo esse
o conceito que as pessoas que no sabem fsica usam quando falam de pedras a cair e de carros em
movimento. Com certeza que tanto num caso como no outro esses conceitos populares so usados pelas
pessoas, mas se estamos realmente interessados em estudar o conhecimento ou a massa, temos de
abandonar essas noes, que s produzem confuso.
Todo o conhecimento proposicional assim como a crena uma relao entre uma pessoa que
conhece e uma proposio ou verdade conhecida. Portanto, quando no havia pessoas ou outros agentes
cognitivos, no podia haver conhecimento proposicional ainda que existissem rvores e pedras e
planetas e tomos disponveis para serem conhecidos caso existissem agentes cognitivos. E tambm
bvio que sem agentes cognitivos no havia conhecimento por contacto nem saber-fazer.
Por proposio entende-se geralmente o que expresso por uma frase verdadeira ou falsa. A frase
Est calor exprime a proposio de que est calor em Ouro Preto no dia 1 de Maro de 2009, mas
exprime outra proposio se for proferida noutro dia ou noutro local. Portanto, a mesma frase pode
exprimir diferentes proposies. E diferentes frases podem exprimir a mesma proposio: A neve
branca e Snow is white exprimem ambas a proposio de que a neve branca.
As frases so inequivocamente entidades espcio-temporais um certo conjunto de sons articulados
num dado intervalo de tempo ou um certo conjunto de traos inscritos num papel. Mas as proposies no
so inequivocamente entidades espcio-temporais. Isto porque as proposies no se confundem com os
pensamentos, no sentido psicolgico do termo, enquanto ocorrncias fsicas num crebro. Quando penso
que est a chover e outra pessoa pensa o mesmo, o meu pensamento enquanto ocorrncia fsica no meu
crebro diferente do pensamento dela enquanto ocorrncia fsica no seu crebro; mas ambos estamos a
pensar, num certo sentido, o mesmo pensamento ou seja, estamos a pensar na mesma proposio. A
existncia de proposies no pacfica: alguns filsofos consideram que no existem tais coisas, sendo
forados ento a explicar o que h de comum entre vrias frases ou pensamentos que exprimem o mesmo
(a via mais bvia insistir que tudo o que h de comum nas vrias frases e pensamentos que dizem que a
neve branca representarem a neve como branca).
Que h pelo menos trs tipos centrais de conhecimento (proposicional, por contacto e saber-fazer),
que o conhecimento factivo e a crena no, e que o conhecimento e a crena proposicionais so
relaes entre pessoas e proposies so aspectos elementares dos conceitos de conhecimento e de
crena. Contudo, muito difcil saber precisamente o que o conhecimento, com o mesmo tipo de
preciso com que sabemos o que a massa em fsica. O problema da definio de conhecimento
muitssimo difcil, precisamente por se tratar de um conceito muito bsico. Apesar disso, comum
aceitar que h trs condies necessrias para o conhecimento proposicional, ainda que no sejam
suficientes: para que algo seja conhecimento proposicional preciso que seja

1. uma crena,
2. verdadeira
3. e justificada.

Efectivamente, se concebemos a crena como qualquer representao, susceptvel de ser verdadeira ou


falsa, que uma pessoa faz da realidade, certamente que todo o conhecimento proposicional uma crena,
porque uma representao da realidade: saber que Londres uma cidade uma representao da
realidade. E dado que o conhecimento factivo, segue-se que s podemos saber algo se isso for
verdadeiro. Esta segunda condio separa o conhecimento da crena, pois podemos evidentemente ter
crenas falsas. A terceira condio, a justificao, a mais problemtica e, ao mesmo tempo, a mais
frutuosa filosoficamente.
Para haver conhecimento no basta haver crena verdadeira, porque podemos ter crenas verdadeiras
por sorte e certamente que isso no conhecimento. Por exemplo, imagine-se que tenho a crena de
que so 16:55 horas porque olhei para o relgio, e imagine-se que realmente so 16:55 horas. Acontece
que, sem eu saber, o meu relgio avariou-se e est parado mas, por coincidncia, olhei para ele
quando era 16:55. No parece razovel dizer que sei que so 16:55 horas, apesar de ter essa crena e de
isso ser verdadeiro no parece razovel, porque a minha justificao para essa crena no
adequada. No adequada porque no fidedigna: a mesmssima justificao exactamente produziria
uma crena falsa, apenas meia hora antes ou depois, e no uma crena verdadeira. Assim, apesar de ser
razovel pensar que todo o conhecimento uma crena verdadeira justificada, parece razovel que nem
toda a crena verdadeira justificada conhecimento.
A noo de justificao crucial para o conhecimento. Para um agente saber realmente algo tem de
ter uma crena verdadeira adequadamente justificada sobre isso. Saber exactamente o que distingue uma
justificao adequada de uma justificao inadequada um problema filosfico em aberto, como tantos
outros. Contudo, podemos avanar na compreenso da justificao sem nos embrenharmos nos seus
aspectos mais complexos. Uma alternativa que poderemos querer evitar conceber a justificao de um
modo to forte que implique a verdade, excluindo por isso a possibilidade de se ter uma justificao
adequada a favor de uma crena falsa.
Um exemplo ilustrativo do que est em causa o seguinte: Cludio Ptolomeu (100170 d.C.) tinha a
crena de que a Terra estava imvel, girando todo o restante universo em seu torno. Imagine-se, contudo,
que Ptolomeu no tinha essa crena por ser cognitivamente preguioso, preconceituoso ou hipcrita:
formou essa crena cuidadosamente, analisando dados e fazendo observaes. Se isto for verdadeiro,
ento razovel afirmar que Ptolomeu tinha uma justificao adequada para a sua crena que,
contudo, era falsa. Ptolomeu teve azar epistmico: estava numa situao epistmica em que no podia
saber que a sua crena era falsa e que os dados em que se apoiava eram enganadores. O mesmo acontece
a um detective, por exemplo, que investiga um crime: pode ficar convencido de que o criminoso foi o
Vilaa, no por preguia, preconceito ou hipocrisia, mas por azar epistmico: todas pistas apontam, por
azar, para o Vilaa, mas no foi ele realmente o criminoso.
Assim, seja qual for a nossa noo sofisticada de justificao, defensvel que tem de permitir casos
em que um agente tem justificao para acreditar em falsidades. Da que ter uma crena justificada seja
defensavelmente uma condio necessria para saber algo, mas no suficiente.
Se aceitarmos um conceito de justificao que permita a existncia de crenas falsas justificadas,
como parece plausvel, natural passar a dar ateno aos procedimentos epistmicos e at ao carcter
epistmico da prpria pessoa. Repensemos nos exemplos acima de Ptolomeu e do detective: no
estaremos dispostos a dizer que as suas crenas esto justificadas se as formaram ao acaso, sem darem
ateno aos indcios disponveis, por preguia ou preconceito, ou cometendo erros grosseiros de
raciocnio ou de anlise dos indcios disponveis. Na verdade, nesse caso diremos at que as suas
crenas no tinham justificao, mesmo que fossem verdadeiras. Assim, o conceito de virtude epistmica
torna-se rapidamente central em epistemologia.
Uma perspectiva inicialmente plausvel defender que uma crena est justificada, ainda que seja
falsa, desde que quem tem essa crena tenha sido epistemicamente virtuoso, ao invs de ser
preconceituoso, tendencioso, preguioso ou pura e simplesmente falho de raciocnio. Nesta perspectiva,
a justificao adequada no primariamente uma propriedade das crenas, mas antes das atitudes
epistmicas das pessoas; s derivadamente a justificao adequada uma propriedade das crenas. Esta
abordagem deu origem chamada epistemologia das virtudes, que ao analisar o problema central da
justificao epistmica pe a nfase no carcter epistemicamente virtuoso ou no das pessoas, e no nas
propriedades intrnsecas da justificao.
Uma vantagem desta abordagem o seu particularismo. Dada a complexidade da realidade,
argumentvel que no possvel estabelecer condies gerais, aplicveis a qualquer caso, do que
constitui ou no uma justificao adequada. Aristteles (384322 a.C.) considerava que no poderamos
ter uma teoria moral que nos dissesse, por si, o que correcto fazer em cada caso, sendo antes importante
esclarecer o que uma pessoa virtuosa; a aco correcta ento o que, em cada caso, a pessoa virtuosa
decide fazer. A epistemologia das virtudes pode ser entendida do mesmo modo: em vez de tentarmos em
vo estabelecer condies necessrias e suficientes do que constitui uma justificao adequada,
tentaremos estabelecer algumas virtudes epistmicas; compete depois pessoa epistemicamente virtuosa
dizer-nos, em cada caso, que procedimentos investigativos devemos adoptar, em funo do contexto e do
que estamos a tentar descobrir.
A justificao e a racionalidade so conceitos subtilmente relacionados, apesar de diferentes. Ter
uma crena injustificada, qual nos apegamos firmemente, rejeitando que seja posta em causa, ser
irracional; e justificar cuidadosamente as nossas crenas, estando dispostos a rev-las e a abandon-las,
parte integrante do que ser racional.
Finalmente, note-se que qualquer concepo excessivamente restritiva da justificao implausvel,
porque tornaria a maior parte das nossas crenas injustificadas. Caso se considerasse que s racional o
agente que souber justificar cientificamente todas as suas crenas, seriam irracionais quase todas as
crenas das pessoas incluindo as crenas cientficas dos cientistas. Isto porque ningum dispe do
tempo nem das energias nem das competncias para analisar e testar cientificamente todas as suas
crenas. A maior parte das pessoas tem a crena de que a gua H2O, que Marte um planeta desrtico
ou que ocorreu a segunda guerra mundial, sem ter justificaes adequadas para estas crenas na maior
parte dos casos, limitamo-nos a aceitar o testemunho de outras pessoas, nomeadamente os cientistas. Uma
maneira errada de acusar os crentes religiosos de albergarem crenas irracionais argumentar que so
incapazes de justificar as suas crenas religiosas pois, nesse caso, todas as pessoas seriam irracionais
porque so incapazes de justificar as suas crenas qumicas, fsicas, astronmicas, histricas ou at
quotidianas. E se o testemunho dos cientistas suficiente para justificar crenas, o testemunho dos livros
sagrados e dos profetas tambm o ser a menos que encontremos diferenas relevantes.
Uma anlise da f
O que exactamente a f? Mesmo que no possamos responder a esta pergunta apresentando condies
necessrias e suficientes, iluminante ter pelo menos uma caracterizao razoavelmente precisa da f.
Sem essa compreenso, a anlise da epistemologia da f poder ser desadequada exigindo-lhe, por
exemplo, padres epistemolgicos desadequados sua natureza.
H pelo menos duas concepes cruciais de f: a objectal e a fenomenolgica. A objectal a ideia de
que a f apenas uma crena fenomenologicamente como as outras, cuja diferena reside exclusivamente
no seu objecto. A crena de que ontem foi Domingo, por exemplo, s diferiria da f numa divindade
porque a primeira tem por objecto uma banalidade e a segunda uma divindade. A concepo
fenomenolgica a ideia de que a f uma crena diferente das outras no apenas por ter um objecto
diferente, mas tambm por envolver atitudes diferentes por parte da pessoa. Segundo esta concepo, a f
numa dada divindade diferente da crena de que ontem foi Domingo no apenas por ter uma divindade
por objecto, mas por envolver reverncia, testemunho, entrega, mistrio e outras atitudes prprias da f.
Exploremos cada uma destas concepes.
Se a concepo objectal de f for verdadeira, ter f em Deus como ter outra crena qualquer: esta
crena estar justificada ou no do mesmo modo que qualquer outra crena. Se houver razes para pensar
que irracional acreditar em algo sem provas, ser irracional ter f em deuses sem provas.
H dois argumentos centrais contra a concepo objectal de f. Em primeiro lugar, no parece fazer
jus experincia da f que os crentes religiosos efectivamente tm, e que a concepo fenomenolgica
destaca. A f no parece ser para quem a tem uma crena como qualquer outra, mesmo que a comparemos
com crenas muitssimo importantes e valiosas, como a crena de que os nossos filhos nos amam. Alm
de mais intensa, parece mais valiosa.
Em resposta a esta objeco podemos argumentar que as diferenas entre a f e as outras crenas
resultam precisamente da natureza do objecto da crena. Sendo a f uma crena que tem por objecto
divindades, natural que, por isso mesmo, as atitudes associadas f sejam adequadamente diferentes
das atitudes associadas a qualquer outro tipo de crena. Mas as atitudes associadas a uma crena no so
constitutivas dessa crena.
A segunda objeco mais promissora: se a f fosse como qualquer outra crena, teria de ser
possvel uma pessoa ter f na existncia de uma divindade depois de saber que essa divindade existe. Na
verdade, depois de uma pessoa saber que uma divindade existe, teria de lhe ser impossvel no ter f na
sua existncia, tal como defensavelmente impossvel que no acreditemos que a neve branca quando
sabemos que a neve branca. Contudo, parece implausvel defender sequer que possvel ter f que uma
divindade existe depois de sabermos que existe, e mais implausvel ainda defender que saber que uma
divindade existe implica ter f nessa divindade. Isto porque a f o gnero de atitude que se tem perante
o que se desconhece: antes de uma interveno cirrgica delicada, uma pessoa pode ter f de que tudo ir
correr bem, mas no pode ter f de que tudo correu bem depois de tudo ter corrido bem. No entanto, h
efectivamente um sentido em que se pode ter f no que se conhece no sentido de se ter confiana nisso.
Assim, podemos rejeitar a objeco acima distinguindo dois sentidos de f: a f como crena
proposicional e a f como confiana. H um sentido no qual no s temos f em algum ou algo mesmo
sabendo que isso existe como s racional ter f nesse algum ou algo se acreditarmos que existe. Por
exemplo, uma pessoa s pode ter f no amor dos seus filhos se acreditar que tem filhos. F, neste
contexto, quer dizer confiana: ter f em algum ou em algo confiar nessa pessoa ou nesse algo. Nesta
acepo, todos temos f diariamente em muitas coisas na gravidade, por exemplo, no poder nutritivo
do que comemos e na medicina porque todos confiamos nessas coisas. Mas possvel ter f no
sentido da crena proposicional sem ter f no sentido da confiana: uma pessoa pode saber que o
primeiro-ministro existe, mas no confiar nele. Na Bblia afirma-se: Tu crs que h um s Deus? Fazes
bem. Tambm o crem os demnios, mas enchem-se de terror (Tiago, 2:19) o que poder significar
que os demnios acreditam que Deus existe, mas no confiam nele.
A componente da confiana sem dvida uma das mais importantes da f. Mas a perspectiva objectal
sobre a natureza da f no se lhe adequa muito bem pois, nessa perspectiva, s o objecto da f a
distingue de outras crenas, e no as atitudes do agente. Ora, a confiana precisamente uma atitude
particular que podemos ter perante objectos diferentes. E ainda que objectos diferentes possam alterar a
fenomenologia da confiana, argumentvel que h algo de comum a todas ou, pelo menos, maioria das
atitudes de confiana; seria esse aspecto fenomenolgico da confiana que a caracterizaria, e no o
objecto da confiana. Em concluso, tentar defender a perspectiva objectal da f socorrendo-se de uma
acepo de f que a aproxima da confiana tem um efeito contrrio ao pretendido, pois conduz-nos
perspectiva fenomenolgica da natureza da f.
Acresce que apesar de a confiana ser uma componente importante da f, no nem poderia ser a
nica. Parece impossvel ou irracional ter confiana em algo e no acreditar pelo menos na possibilidade
de isso existir. Podemos, evidentemente, ter confiana em algo que no sabemos se existe, mas
gostaramos que existisse pois nesse caso a nossa confiana condicional. Por exemplo, um nufrago
pode no saber se o desaparecimento do seu veleiro foi registado, mas ter a esperana que o tenha sido e
confiar que, nesse caso, os servios de emergncia nutica acabaro por salv-lo. Mas impossvel ou
irracional o nufrago confiar que os servios de emergncia nutica acabaro por salv-lo se souber que
o desaparecimento do seu veleiro no foi registado. Ou seja, a confiana parece envolver uma
componente proposicional, pelo menos quando no estamos em contacto com o objecto da confiana e
quando no se trata de um saber-fazer. Logo, ainda que a confiana seja uma componente importante da
f, defensvel que tem de haver nesta uma componente proposicional: quem tem f numa dada
divindade tem de acreditar que essa divindade existe ou, pelo menos, desejar que exista ou ter esperana
que exista, e em qualquer destes casos estamos perante atitudes proposicionais. Esta a designao que
se d a qualquer atitude que tenha por objecto uma proposio: recear que esteja a chover, ter medo de
perder o comboio ou ter a esperana de chegar a horas so atitudes que tm como objecto,
respectivamente, as proposies expressas pelas frases Est a chover, Vou perder o comboio e
Chegarei a horas.
ilusrio pensar que a perspectiva objectal da f fica vindicada se admitirmos que a f tem
necessariamente uma componente proposicional. Na verdade, a perspectiva fenomenolgica de f no
est comprometida com a excluso da componente proposicional da f: limita-se a sustentar que no
apenas a diferena de objecto que caracteriza a f, mas tambm e sobretudo a atitude do agente. Nada na
concepo fenomenolgica de f a impede de aceitar que a atitude do agente uma atitude proposicional.
A concepo fenomenolgica de f
Passemos ento anlise da concepo fenomenolgica de f. Deste ponto de vista, a f no como
qualquer outra crena, diferindo apenas quanto ao objecto; ao invs, alm da diferena de objecto,
envolve aspectos que as outras crenas no envolvem. Um desses aspectos a fora da convico: a f
exibe a fora da convico do conhecimento, apesar de no ser conhecimento (ou, pelo menos, no
como os outros conhecimentos comuns, como o conhecimento de que a gua H2O, por exemplo;
exploraremos j de seguida a ideia de que a f um tipo especial de conhecimento). E por no ser
conhecimento, a f , nesse aspecto, como a mera crena. Portanto, deste ponto de vista, a f como o
conhecimento num aspecto e como a mera crena noutro. Assim, a f no apenas uma crena que tem
por objecto um certo tipo de entidades: uma crena que tem caractersticas prprias, que a distinguem
de muitas outras crenas, ou mesmo de todas.
Comparar a fora da convico da f com a fora da convico associada ao conhecimento
esclarecedor. Efectivamente, quando sabemos algo, temos uma forte adeso psicolgica ao contedo do
nosso conhecimento, bastante mais forte do que quando temos uma mera crena, ainda que parcialmente
justificada. Quando acredito meramente que a Joana est na praia porque me disseram, a fora da minha
convico muitssimo menor do que quando sei que ela est l porque acabei de a ver.
Contudo, ser a f como o conhecimento em todos os aspectos, caso em que a f seria conhecimento?
Podemos defender que a f conhecimento mas um tipo diferente de conhecimento ou defender que
a f no conhecimento, apesar de ser fenomenologicamente como o conhecimento no que respeita
fora da convico.
A primeira coisa a fazer quando se defende que a f conhecimento esclarecer de que gnero de
conhecimento se trata: proposicional, saber-fazer ou por contacto. Defender que a f conhecimento
proposicional implica defender que s h f quando h justificao, pois s h conhecimento
proposicional quando h justificao. No caso da f, a justificao seria a revelao: a ideia de que Deus
se deu a conhecer a algumas pessoas especiais, que depois transmitiram por testemunho essa ocorrncia.
Um argumento contra esta perspectiva que, se fosse verdadeira, quase nenhumas pessoas religiosas
teriam de facto f s a teriam aqueles telogos e filsofos que sabem justificar adequadamente a sua
crena numa divindade. A maior parte das pessoas que acredita no Deus cristo, por exemplo, pouco ou
nada sabe sobre os supostos testemunhos da revelao que sustentariam a sua f. Como isto
implausvel, a perspectiva seria falsa.
Este argumento, contudo, no convincente, pois ignora uma diferena entre haver justificao e o
agente do conhecimento ou da crena em causa conseguir articular essa justificao. Por exemplo, uma
criana forma a crena de que est uma ma em cima da mesa ao v-la l; a justificao da sua crena
muitssimo mais sofisticada do que o mero Vi-a l que ela capaz de articular, pois envolve coisas
como condies normais de luz e o funcionamento correcto do seu aparato visual e cognitivo. Parece
excessivo exigir que um agente tenha de conseguir articular uma justificao adequada das suas crenas
para estas poderem constituir conhecimento proposicional, dado que, na sua maior parte, as pessoas tm
grande dificuldade em fazer tal coisa. (Contudo, podemos insistir que as pessoas quase nada sabem, na
sua maior parte, vivendo apenas com base em meras crenas.) Uma alternativa ento aceitar que um
agente tem conhecimento proposicional desde que tenha uma crena verdadeira que se pode justificar
adequadamente, ainda que ele mesmo no o saiba fazer ou no o tenha efectivamente feito. Chama-se
externismo a esta posio sobre a justificao, e internismo posio oposta.
Aplicando esta distino f, poder-se-ia ento insistir que as pessoas s podem ter realmente f
numa divindade caso seja possvel justificar tal crena, ainda que elas mesmas sejam incapazes de o
fazer. Ter f numa divindade seria, assim, anlogo a muitas outras crenas que somos incapazes de
justificar adequadamente, mas que pensamos que outros seres humanos sabem justificar adequadamente.
Por exemplo, na sua maior parte, as pessoas so incapazes de justificar adequadamente a crena na
cosmologia do Big Bang, pois no tm os conhecimentos nem os recursos necessrios para justificar esta
teoria: limitam-se, por isso, a transferir para os especialistas relevantes a tarefa da justificao.
Esta perspectiva implica que caso no exista justificao adequada para crer numa divindade,
ningum teve jamais f nessa divindade, apesar de ter pensado que a tinha. Note-se que isto compatvel
com a diversidade de religies e de divindades; pois apesar de as diversas divindades que so objecto
de f em diferentes religies serem incompossveis (ou seja, no so conjuntamente possveis: no
podem existir todas simultaneamente), perfeitamente possvel que existam justificaes adequadas para
as crenas religiosas nessas divindades. Recorde-se que podemos defender que a justificao no
factiva, o que significa que diferentes pessoas em diferentes contextos epistmicos podem ter justificao
adequada para crer em divindades diferentes e incompossveis.
Contudo, a perspectiva que estamos a explorar no defende apenas que s h f quando h
justificao: defende tambm que a f factiva, pois defende que a f conhecimento, ou um tipo de
conhecimento. E isto que torna esta concepo implausvel, pois significaria que caso a nica
divindade que realmente existe seja Diana, por mais genuna que fosse a f dos antigos egpcios no deus
R, por exemplo, ou dos actuais cristos em Deus, nenhuma dessas pessoas tinha realmente f apenas
acreditava erradamente que a tinha. Isto parece excessivo: quem tem f numa divindade que, sem ela o
saber, no existe, no parece ter uma f menos genuna do que quem tem f numa divindade que realmente
existe. Assim, a f, ao contrrio do conhecimento, no parece factiva.
Uma sada para esta dificuldade seria sustentar que a f um tipo diferente de conhecimento, que no
envolve factividade. Mas isto seria presumivelmente um mero jogo de palavras, dado que conhecimento
infactivo no conhecimento, em qualquer acepo relevante do termo: mera crena (que pode at estar
justificada).
Dado que tanto o conhecimento proposicional como o conhecimento por contacto so factivos, o
mesmo argumento se aplica para refutar a ideia de que a f poderia ser conhecimento por contacto:
aceitar que a f conhecimento por contacto implica a tese implausvel de que a maior parte da
humanidade ao longo da maior parte da histria no teve realmente f, apesar de pensar que a tinha.
Testemunho e risco epistmico
Note-se, contudo, que h pelo menos um aspecto crucial que o conhecimento por contacto partilha com a
f. No conhecimento por contacto no h apenas uma forte convico acompanhada muitas vezes de uma
incapacidade para articular uma justificao adequada isto tambm acontece no conhecimento
proposicional. Um trao central do conhecimento por contacto que o distingue do proposicional o
aspecto pessoal, subjectivo ou testemunhal: quando conhecemos algo por contacto no se trata apenas de
sermos muitas vezes incapazes de articular uma justificao adequada desse conhecimento; h
aparentemente um aspecto fenomenolgico irredutvel a qualquer justificao cuidadosamente articulada.
Este aspecto do conhecimento por contacto envolve o que se chama qualia: a qualidade interna da
experincia. este aspecto do conhecimento por contacto que est em causa nos famosos artigos Como
Ser um Morcego?, de Thomas Nagel, e What Mary Didnt Know, de Frank Jackson.
No primeiro caso, Nagel faz notar que temos muito conhecimento proposicional sobre a
ecolocalizao usada pelos morcegos, e usamo-la tambm em navios, recorrendo a radares: um sinal
sonoro enviado e o tempo decorrido entre o seu envio e o eco devolvido permite determinar a distncia
e parcialmente a forma do que se encontra na direco relevante. Contudo, argumenta Nagel, num certo
sentido no podemos saber como percepcionar objectos dessa maneira, no sabemos como a
experincia interna da ecolocalizao: no sabemos como ser um morcego.
No exemplo de Jackson, imagina-se uma neurocientista da cor, a Maria, que tem um conhecimento
proposicional exaustivo do mecanismo da viso de cores que ocorre nos seres humanos. Contudo, nunca
viu cores porque viveu sempre num quarto a preto e branco. (Ser tambm preciso imaginar que tinha
uma doena da pele que a tornava completamente branca, que o seu cabelo era completamente preto, que
no podia ficar menstruada, porque nesse caso veria a cor do seu sangue, etc., o que torna tudo isto uma
fantasia filosfica, mas que serve correctamente os seus propsitos.) Um dia, a Maria pde finalmente
sair do seu quarto e viu uma rosa vermelha ou um pr-do-sol radioso. Apesar de ter um conhecimento
proposicional exaustivo do processamento visual e cognitivo das cores, havia algo que a Maria no
sabia, pois parece bvio que h algo que ela aprendeu quando viu a rosa ou o pr-do-sol. O
conhecimento que no tinha era o conhecimento por contacto, o conhecimento ntimo, subjectivo ou
testemunhal do que ver cores.
Este aspecto testemunhal do conhecimento por contacto parece crucial na fenomenologia da f. Ter f
numa divindade talvez mais do que ter uma convico forte na sua existncia: ter como que um
contacto ntimo com essa divindade; ter uma experincia defensavelmente irredutvel a todo o
conhecimento proposicional. Contudo, levar a srio a ideia de que a f conhecimento por contacto
implica, uma vez mais porque o conhecimento factivo, que a maior parte da humanidade ao longo da
maior parte da histria no teve experincia da f genuna, mas apenas a iluso de que a teve, dado que
as muitas divindades que foram objecto de f ao longo da histria humana so incompossveis.
No , pois, plausvel que a f seja conhecimento proposicional nem por contacto. Contudo,
inegvel que h algo na fenomenologia da f irredutvel s crenas proposicionais, pelo simples facto de
que toda a atitude proposicional tem uma fenomenologia prpria, irredutvel s crenas proposicionais.
Por exemplo, ter medo de drages tem uma fenomenologia prpria, diferente de ter a esperana de haver
drages, que no depende do objecto, mas sim da prpria atitude. Assim, ter f ter sem dvida uma
fenomenologia distinta, mas no implica de modo algum que tenha de existir a divindade que objecto da
f. A impresso subjectiva do conhecimento por contacto, testemunhal e subjectivo que se associa f
pode ser independente da existncia da divindade que objecto da f em causa: pode ser uma
peculiaridade da atitude. A peculiaridade da f, uma vez mais, no ser fenomenologicamente como uma
mera crena, como as muitas crenas que temos e a que no damos muita importncia: a f uma crena
considerada e sentida como muitssimo importante pelos crentes.
Uma objeco imaginativa a esta ltima ideia insiste que, apesar de historicamente a f ter sido
considerada e sentida como muitssimo importante pelos crentes, poderia no o ser. Podemos imaginar
pessoas que tm f numa divindade menor, digamos, com poucos poderes ou com poderes limitados, e
que intervm apenas em trivialidades do quotidiano como nunca deixar uma pessoa esquecer-se de
fechar a tampa da sanita, por exemplo. Estas pessoas teriam uma f banal, digamos, neste tipo de
divindade menor, precisamente por ser uma divindade menor.
Esta objeco insiste na conexo entre o objeto da f e a atitude do crente: a ideia que a atitude de
extrema importncia associada f resulta da natureza da divindade que objecto da f.
A resposta a esta objeco a seguinte: do mesmo modo que ter medo de escorregar quando neva
diferente de ter medo quando um leo corre na nossa direco, porque os objectos do medo so
diferentes, persistindo todavia algo em comum (caso contrrio no seria medo), tambm a f ser
inevitavelmente influenciada pela natureza do objecto da f. Quem tiver f numa divindade menor, ter
presumivelmente uma f diferente de quem tiver f numa divindade omnipotente, mas algo em comum ter
de haver em ambos os casos para que sejam ambos f. E apesar de ser evidentemente possvel imaginar
cenrios em que j duvidamos se estamos perante f ou perante uma mera crena banal e quotidiana, o
objectivo da nossa investigao a f que de facto as pessoas tm, e no a que conseguimos imaginar,
mas que depois nem sabemos bem se ainda f ou outra atitude. Ora, nas manifestaes conhecidas de f,
esta no uma crena banal, como as outras crenas quotidianas; uma crena a que o prprio crente d
extrema importncia.
Afastadas as hipteses de que a f seja conhecimento proposicional ou conhecimento por contacto,
resta ver se poder ser um saber-fazer. Esta ideia tambm no plausvel, pois saber fazer algo como
andar de bicicleta envolve uma actividade, mas no necessariamente uma atitude, ao passo que ter f
numa divindade envolve necessariamente um tipo de atitude, mas pode ou no envolver uma actividade.
certamente verdadeiro que os crentes religiosos consideram que o seu modo de vida profundamente
afectado pela sua f, mas no parece verdadeiro que esse modo de vida constitua a f. Uma vida
dedicada bondade e a aliviar o sofrimento alheio pode coincidir exteriormente com uma vida religiosa;
mas muitos ateus escolhem esse gnero de vida, sem terem, portanto, qualquer atitude anloga atitude
de uma pessoa de f. Por outro lado, mesmo que todas as pessoas de f desenvolvam um tipo de
actividades, estas parecem consequncia da sua f, no constituindo a f em si.
Podemos ento concluir preliminarmente que a f no conhecimento, nomeadamente porque a f
infactiva e o conhecimento factivo. Mas esta no a nica razo. Mesmo que a f implicasse
conhecimento, nunca poderia ser conhecimento, constitutivamente, dada a diferena entre as
fenomenologias da f e do conhecimento. Vimos que a f se assemelha ao conhecimento proposicional
por envolver uma forte convico, e que se assemelha ao conhecimento por contacto por envolver um
aspecto testemunhal. Mas noutros aspectos a f profundamente diferente desses tipos de conhecimento.
Para ver porqu, considere-se o que aconteceria se uma divindade se manifestasse inequivocamente
junto dos seres humanos. Alguns ateus, perante tal manifestao, passariam evidentemente a acreditar que
essa divindade existe, precisamente porque passariam a saber que existe. Mas teriam f? Poderiam
ganhar f no sentido de terem confiana na divindade, se soubessem que essa divindade estaria a zelar
por eles, sendo sumamente boa e sumamente poderosa. Contudo, alguns aspectos que parecem
constitutivos da fenomenologia da f poderiam no se manifestar, tornando implausvel afirmar que esses
ateus passaram a ter f. Os sentimentos de reverncia, ligao profunda, xtase e mistrio que parecem
estar associados f poderiam perfeitamente estar ausentes das atitudes epistmicas desses ateus
relativamente a essa divindade. Parece, por isso, conceptualmente possvel saber que uma divindade
existe sem ter f na sua existncia (mesmo que nela se tenha f, no mero sentido da confiana).
Sren Kierkegaard (18131855) foi um dos filsofos que mais claramente sublinhou este aspecto da
f, que a torna incompatvel com o conhecimento e, por isso, com as provas, argumentos ou
justificaes. Este aspecto da f parece corresponder desvalorizao, por parte de alguns crentes, dos
intrincados argumentos filosficos a favor e contra a existncia de Deus. Talvez isso ocorra por
considerarem, como Kierkegaard, que a f precisamente o gnero de confiana ou convico profunda
que se tem numa divindade quando no temos provas da sua existncia:

Em nome de quem se procura a prova? A f no precisa dela. Sim, tem de encar-la como inimiga.
Mas quando a f comea a ter vergonha, como uma rapariga para quem o amor deixa de ser
suficiente, que secretamente tem vergonha do seu namorado e tem por isso de confirmar junto de
outros que ele realmente notvel, quando a f vacila e comea a perder a sua paixo, ento a prova
torna-se necessria para parecer respeitvel da perspectiva do descrente. (Ps-Escrito Anti-
Cientfico Final, p. 27)

Sem risco no h f. A f precisamente a contradio entre a paixo infinita da interioridade e a


incerteza objectiva. Se posso compreender Deus objectivamente, no acredito; mas porque no
posso conhecer Deus objectivamente, tenho de ter f; e se for firme na f, tenho de estar
constantemente determinado a agarrar-me incerteza objectiva, para permanecer sobre as
profundezas do oceano, sobre setenta mil braas de gua, e continuar a acreditar. (Ps-Escrito Anti-
Cientfico Final, pp. 171-172)

Kierkegaard considera a f incompatvel com o conhecimento, por este ltimo implicar a justificao, ao
passo que a f implica o risco epistmico. Podemos fazer uma analogia com o que ocorre quando
encontramos um desconhecido e o ajudamos, sem ter provas da sua probidade, descobrindo mais tarde
com gosto que ele nos procurou para nos restituir o dinheiro emprestado, por exemplo, ou para nos
manifestar a sua gratido. Esta analogia permite compreender o tipo de valor que possvel ver na f
quando esta concebida como crena injustificada ou sem provas. Num certo sentido, tem mais valor
confiar num desconhecido, sem provas da sua probidade, do que confiar nele quando temos essas provas.
Confiar nele quando temos essas provas no envolve qualquer risco, nem um gesto particularmente
generoso da nossa parte. Kierkegaard parece defender algo anlogo relativamente f: se procuramos
provas da existncia da divindade, porque de algum modo no queremos arriscar ter f na sua
existncia; mas se tivermos provas de que essa divindade existe, a f parece no poder ter lugar, tal como
nada arriscamos ao ajudar uma pessoa quando sabemos que ela nos recompensar.
Ser realmente defensvel o risco epistmico de crer no que no temos provas que existe? William
James argumenta que sim.
Aposta momentosa
James sublinha que em alguns casos as nossas crenas so motivadoras: um desportista ganha em
acreditar que consegue obter um resultado; um estudante ganha em acreditar que conseguir bons
resultados num exame difcil. Nestes casos, precisamos de acreditar sem provas, de maneira a ter
motivao para tentar: no faria sentido treinar ou estudar se no confissemos na possibilidade de obter
os resultados desejados, ainda que no tenhamos realmente provas de que os conseguiremos obter. Ser a
f anloga a este gnero de casos? Tratar-se-ia nesse caso de ter confiana em algo que no sabemos bem
se ocorrer ou se existe. A f ficaria assim mais prxima da esperana.
Sem dvida que este tipo de crenas motivadoras e sem grandes provas existem, e so constitutivas
da nossa vida. difcil imaginar como seria a nossa vida sem elas. Mas no claro que este facto acerca
da nossa vida cognitiva tenha relevncia para a legitimidade da f sem provas, ao contrrio do que James
parecia pensar. Vejamos dois argumentos contra a posio de James.
Em primeiro lugar, as crenas motivadoras s so racionais porque tm efeitos causais: se um
estudante acreditar que com o seu esforo ir conseguir obter um certo resultado, isso tem o efeito causal
de lhe dar mais nimo, o que contribui para obter o resultado desejado. Mas no caso da crena religiosa
no h qualquer nexo causal, nem pode haver, entre a fora da convico e a existncia ou inexistncia de
divindades: estas no existem ou deixam de existir consoante as pessoas esto mais ou menos fortemente
convictas da sua existncia.
Em segundo lugar, irracional ter confiana quando a possibilidade de realizao do que se almeja
demasiado improvvel. Uma pessoa em risco de morte pode ganhar em ter confiana que conseguir ser
bem-sucedida num salto difcil que poder salvar a sua vida, se o salto que tem de dar for de, digamos,
um metro e meio. Mas, se for de dez metros, nenhuma confiana lhe dar energia suficiente para
conseguir salvar-se. O mesmo ocorre todos os finais de semestre com demasiados estudantes: no
estudaram ao longo do semestre e depois vo fazer os exames cheios de confiana que, naquele momento,
algo de mgico ocorra e subitamente sejam capazes de responder a perguntas sobre matrias que
desconhecem quase por completo: o resultado inevitvel, apesar de tanta confiana, a reprovao. E
esses estudantes teriam ganho mais em reconhecer a verdade da situao, ficando em casa tranquilamente.
Portanto, este gnero de confiana na ausncia de provas s pode ter relevncia caso no estejamos
perante uma impossibilidade ou quase impossibilidade.
Blaise Pascal (16231662), contudo, ficou famoso por defender que, bem vistas as coisas, temos tudo
a ganhar e nada a perder em apostar na existncia de Deus. Chama-se aposta de Pascal ao seu
argumento, que pertence mesma famlia da posio de James: trata-se de dizer que, na ausncia de
provas a favor ou contra a existncia de Deus, temos um argumento a favor da crena sem essas provas.
No caso da verso de Pascal, a ideia fazer uma matriz para revelar as quatro combinaes
possveis que resultam de se acreditar ou no e de Deus existir ou no:

1. Caso no acreditemos e Deus no exista, nada de especial ganhamos. Apenas no perdemos tempo,
por exemplo, em rituais religiosos.
2. Caso no acreditemos e Deus exista, perdemos a possibilidade do paraso, o que terrvel.
3. Caso acreditemos e Deus no exista, nada de especial perdemos. Apenas perdemos tempo, por
exemplo, em rituais religiosos.
4. Caso acreditemos e Deus exista, ganhamos o paraso, o que maravilhoso.

Portanto, continua o argumento, irracional no escolher acreditar. Porque se acreditarmos, o pior que
pode acontecer termos perdido tempo; e podemos ganhar o paraso. Mas se no acreditarmos, o melhor
que pode acontecer no termos perdido tempo; e podemos perder o paraso.
Este gnero de argumento pode ser visto como desprezvel por muitos crentes. Pois o seu efeito
retirar f o elemento de risco epistmico que Kierkegaard considerava importante: a f torna-se o mero
resultado do calculismo egosta, e no uma atitude de risco epistmico que nos d confiana perante a
incerteza objectiva.
O pior do argumento, contudo, precisar admitir pressupostos pouco razoveis sobre Deus. Por que
razo haveria Deus de castigar quem no acredita que ele existe precisamente por falta de provas? E por
que razo haveria Deus de recompensar com o paraso o calculista? A ideia de que ter f em si
importante porque Deus castiga quem no a tem praticamente indefensvel. Se Deus for sumamente bom
e sbio, no pode ser o gnero de ser que exige dos seres humanos crenas arbitrrias; pelo contrrio,
ser o gnero de ser que exige que os seres humanos sejam virtuosos, e ser epistemicamente virtuoso
parece incluir no acreditar sem provas.
O defensor da aposta de Pascal pode responder que no temos de ter uma concepo primitiva de um
Deus castigador: podemos entender a prpria vida do crente, com a graa da f, como uma ddiva de
imenso valor, e a vida do descrente como um deserto espiritual que ningum querer viver. Assim,
apostar em Deus faz sentido no porque a divindade recompense a credulidade e castigue a
racionalidade, mas antes porque a prpria vida sem f em Deus um martrio, ao passo que uma vida
com f em Deus graciosa e compensadora.
William James tem em mente algo como esta caracterizao da vida de f. Antes de analisarmos
brevemente as suas ideias, importa esclarecer as seguintes diferenas:

1. Acreditar que Deus existe.


2. No acreditar que Deus existe.
3. Acreditar que Deus no existe.

Confunde-se por vezes 2 com 3. 2 mais fraco do que 3, no sentido em que 3 implica 2, mas 2 no
implica 3: quem acredita que Deus no existe, no acredita que Deus existe, mas quem no acredita que
Deus existe pode no acreditar que Deus no existe. Suspender o juzo quanto existncia de Deus
rejeitar 1 e 3: o que faz o agnstico. O crente, claro, aceita 1 e rejeita as outras; o ateu aceita 3, o que
implica aceitar 2, e rejeita 1. Estas relaes lgicas dizem respeito a qualquer crena, e no
especificamente crena de que Deus existe. A maior parte das pessoas, por exemplo, nem acredita que
existem extraterrestres nem que no existem extraterrestres; considera as duas hipteses interessantes e
at momentosas, mas limita-se a suspender o juzo.
Esta atitude de suspenso do juzo na ausncia de provas precisamente o que prope um
indiciarista, como Clifford. Na verdade, o gnero de atitude que temos relativamente s mais diversas
matrias. James, todavia, discorda. Do seu ponto de vista, legtimo crer em Deus, quando a sua
existncia intelectualmente indecidvel, desde que a opo pela crena seja viva, forosa e momentosa.
Uma opo viva quando no uma mera hiptese intelectual vaga, mas antes algo que realmente nos
importa: supostamente, para quem se debate com a questo de Deus, a hiptese de acreditar ou no para
ela uma opo viva. Essa mesma pessoa pode no se debater com a questo de acreditar ou no em
Apolo, por exemplo. Uma opo forosa quando no tomar partido o mesmo que tomar partido.
Suspender a crena quanto existncia de Deus tem o mesmo efeito que no acreditar na existncia de
Deus, pensa James. Finalmente, uma opo momentosa quando de extrema importncia, e no uma
questo trivial.
James argumenta ento que, reunidas estas condies, epistemicamente legtimo acreditar sem
provas, quando a questo intelectualmente indecidvel. A razo que no o fazer priva-nos de algo
importante uma vida religiosa, a perspectiva de uma vida eterna sem nada de importante nos dar
em troca, excepto a garantia de no crer em falsidades. O argumento de James pertence, pois, mesma
famlia da aposta de Pascal; mas em vez de se basear directamente na ideia de que, sob a hiptese de
Deus existir, os descrentes ou os agnsticos sero enviados para o inferno, indo os crentes para o
paraso, permite dar nfase ao ganho que o crente tem nesta vida. A ideia torna-se mais vvida se
imaginarmos casos em que uma mentira piedosa poder salvar algum de sofrimento inconsequente: por
exemplo, uma me a quem, no leito de morte, se oculta a tragdia do seu filho que acaba de falecer de
acidente.
Contudo, o argumento de James enfrenta uma dificuldade relacionada. verdadeiro que no
dependemos de uma concepo brutal de um Deus que quer ser objecto de culto na ausncia de provas da
sua existncia, castigando quem suspender o juzo. Mas estamos perante uma concepo provinciana da
vida humana como se uma vida humana plenamente realizada s pudesse ocorrer na presena da f.
Pelo contrrio, muitos artistas, cientistas, filsofos e filantropos viveram vidas preenchidas e felizes, sem
qualquer crena em divindades. Para essas pessoas, a questo de haver ou no divindades poder ser
intelectualmente interessante, mas nenhuma consequncia prtica tem para qualquer lado. Isto porque
nenhuma pessoa genuinamente boa pode acreditar que Deus, se existir, um ser malvolo, que castiga
quem nele no acredita, ainda que essa pessoa tenha uma vida virtuosa, sob todos os aspectos.
A ideia de que uma vida virtuosa no possvel sem crer em divindades uma manifestao de
provincianismo ou de um mau ntimo: algum que s no trapaceia, mente, rouba e mata por ter medo
de ser castigado na outra vida. Kant, que era religioso, considerava que uma aco feita com vista
recompensa ou com medo do castigo no moralmente correcta, ainda que exteriormente o parea. E no
preciso invocar Kant para compreender que quem no mata o seu semelhante por medo do inferno e no
por respeit-lo, no o gnero de pessoa que queiramos ter por semelhante.
James poderia aceitar que possvel ter uma vida compensadora e virtuosa sem qualquer crena
religiosa, mas insistir que uma vida religiosa permite a qualquer pessoa, por mais culturalmente
carenciada que seja, o gnero de vida compensadora que um artista ou cientista pode ter. A vida religiosa
colocaria ao alcance de qualquer pessoa o gnero de vida compensadora a que, de outro modo, s alguns
poderiam almejar.
A ideia de que a religio permite s pessoas culturalmente mais carenciadas ter uma vida mais
compensadora do que de outro modo teriam plausvel. Tal como plausvel que a religio pode
oferecer conforto emocional a pessoas cujas vidas so desagradveis em quase todos os aspectos.
Contudo, este gnero de argumentao no particularmente promissora, pois no s implicaria que a
religio seria apenas um paliativo para o infortnio, como tornaria difcil explicar a f de pessoas
muitssimo cultas, como cientistas, filsofos, artistas ou outros intelectuais. A verdade que tanto se
encontra pessoas descrentes e crentes entre os cultos como entre os incultos; e a verdade que a vida
religiosa tanto oferece conforto emocional como opresso.
James precisa de defender que a crena na existncia de divindades forosa. Mas ou forosa
porque se concebe Deus como um ser castigador, como Pascal, e nesse caso aplica-se-lhe o mesmo
contra-argumento; ou o porque se tem uma concepo provinciana, e historicamente falsa, do que uma
vida humana generosa, bem-aventurada, virtuosa e realizada, considerando erradamente que sem a crena
em Deus esse tipo de vida no possvel. Em qualquer caso, no temos razo para pensar que a opo
entre crer ou no em Deus forosa. Suspender o juzo por falta de provas s equivalente a no crer
quando a consequncia de ambas aproximadamente igual. Mas as duas opes s so equivalentes caso
um Deus ciumento castigue quem nele no cr, ou caso nenhuma vida humana agnstica ou ateia possa ser
plena e digna. Quem rejeitar estas duas hipteses, rejeita a ideia de James de que a opo da crena
forosa. Poder at aceitar que uma questo momentosa, que nos dispomos a estudar e discutir com
sobriedade, como estudamos e discutimos a cura do cancro, sem que tenhamos de acreditar sem provas.
Podemos insistir na ideia original de James concedendo que perfeitamente possvel ter uma vida
humana digna e realizada sem crer em Deus; mas sublinhar que, mesmo assim, acrescentar a crena
religiosa a uma vida humana que j digna e realizada sob todos os outros aspectos fazer algo de
importncia superlativa. Uma vida humana digna em todos os outros aspectos, mas a que se acrescenta a
crena religiosa, uma vida ainda mais digna e rica, adquirindo uma textura e dimenso que nenhuma
vida de agnstico pode ter. Neste sentido, portanto, forosa a opo entre crer ou no em Deus.
Concedendo que a opo forosa neste sentido, o problema que agora o agnstico ou o ateu tm
uma resposta demasiado fcil. Podem responder que s forosa a deciso de ter ou no uma vida de
crente religioso porque ou verdadeiro ou no verdadeiro que Deus existe. O que torna forosa a
opo que se Deus existir, vivemos na verdade se formos crentes e a verdade de importncia
primordial para seres como ns. Uma vida de crente no pode ser uma coisa boa por ser boa apenas
internamente isto , por fazer o crente sentir-se melhor. Isso torna de tal modo subjectiva a crena
religiosa que faz dela uma opo no momentosa mas mesquinha, ainda que seja forosa: trata-se de
escolher o que me faz sentir bem, como quem escolhe os sapatos mais confortveis, e no o que
superlativamente real e importante. Para que a minha escolha seja superlativamente importante no pode
ser apenas uma escolha do que me faz sentir bem. Tem de ser tambm uma escolha do que me conecta
com uma realidade de superlativa importncia recorde-se que o sentido do timo da palavra religio
religao. mesquinho escolher uma vida religiosa pressupondo que a existncia ou inexistncia dessa
realidade de superlativa importncia irrelevante porque tudo o que conta que me sinta bem. Escolher
ou no escolher uma vida religiosa s de suprema importncia porque isso me abre ou no a uma
realidade de suprema importncia.
Assim, a ideia que, precisamente por prezar a verdade, o ser humano no deve aderir sem provas,
sobretudo quando se trata de matrias de importncia superlativa. verdadeiro que muitas vezes temos
de assumir riscos epistmicos, mas estes casos s so razoveis quando h uma relao causal entre a
crena e o que dela resulta: cremos, sem grandes provas, que somos capazes de fazer um curso
universitrio, e isso motiva-nos de tal modo que contribui para o sucesso dos nossos estudos. No que
respeita a Deus, no h tal relao causal: crer em Deus no o faz existir magicamente. O nico poder
causal dessa crena diz respeito nossa vida, e no bvio que, sob a hiptese de Deus no existir, uma
vida de crente seja realmente melhor do que uma vida virtuosa e realizada, aberta possibilidade de
existir Deus, mas que no a aceita sem provas.
Assim, o argumento de James implica que a questo da existncia ou inexistncia de Deus tem
prioridade sobre a opo de crer ou no. Optar pela crena no caso de Deus no existir to grave
quanto optar pela descrena caso Deus exista, e precisamente pela mesma razo: porque em ambos os
casos a crena falsa. A nossa melhor ateno cognitiva deve, assim, dirigir-se para os argumentos a
favor e contra a existncia de Deus, porque isso que decisivo; e sem argumentos suficientes para um
ou outro lado, a opo epistemicamente virtuosa suspender o juzo e continuar a investigar.
James enfrenta outra dificuldade. Uma opo forosa quando no tomar partido , na prtica, a
mesma coisa que tomar partido. O problema que no fcil encontrar casos neutros de opes
forosas. Um caso de uma opo forosa algum dar-nos um prazo de dois dias para decidir comprar
ou no uma casa, por exemplo. Mas estamos indecisos e deixamos passar o prazo. A indeciso, neste
caso, equivalente deciso de no comprar a casa. O problema deste tipo de exemplos que s se
aplica ao Deus mesquinho referido. Pois seria como se Deus nos desse nesta vida a oportunidade de
optar sem provas pela crena, acabando-se o prazo quando morremos. Pelo contrrio, um Deus razovel
consideraria sensato que no decidssemos to momentosa questo sem provas fortes; e se s na outra
vida tais provas surgissem, essa seria a altura para crer na sua existncia.
Este tipo de argumento pe em causa frontalmente a ideia central do fidesmo de que virtuoso crer
sem provas. O fidesta poderia rejeitar o argumento por essa razo. Mas isto seria confundir as coisas. O
argumento conclui que no h virtude em crer sem provas, pois isso mesmo que estamos a discutir. Se o
fidesta discorda desta concluso, tem de mostrar o que h de errado com o argumento apresentado, e no
apenas insistir que esta concluso contraria a sua ideia de que virtuoso crer sem provas.
Acresce que a ideia de que crer sem provas virtuoso poder ser uma forma subtil de impor a crena
religiosa, um pouco como jogar um jogo viciado em que se sair caras ganho eu, se sair coroas perdes tu.
Pois se algum declarar que algo existe, fica a dever-nos evidentemente algumas provas, sobretudo se for
algo momentoso e no uma trivialidade. Se essa pessoa declarar que no tem provas, mas que bom
acreditar sem provas nisso que ela diz que existe porque nessa circunstncia coisas maravilhosas iro
acontecer-nos, est a trapacear-nos. O que lhe pedimos, muito razoavelmente, foram provas. A sua
resposta, muito insensatamente, foi uma ameaa. Perante a incerteza da vida humana, sobretudo onde os
nveis de bem-estar so muitssimo baixos (por falta de cuidados de sade, proteco no emprego,
recursos econmicos adequados, etc.), este gnero de resposta torna a aposta de Pascal muito vvida:
nada se tem a perder e pode-se ganhar muito em crer sem provas. Mas o preo a pagar, como vimos,
uma concepo de uma divindade brutal. Concepo que difcil crer que uma pessoa genuinamente boa
e epistemicamente virtuosa possa aceitar.
Voltemos ao aspecto foroso da opo quanto crena na existncia de Deus. iluminante pensar
noutros casos em que a opo forosa. Por exemplo, no sabemos se conseguiremos realmente salvar
uma criana que acaba de cair no rio; mas no decidir tentar igual a decidir no tentar. Por isso, a
virtude exige que tentemos. Mas pensemos melhor no que est oculto neste tipo de exemplo. No seria
uma exigncia da virtude decidir tentar se fosse impossvel ou quase impossvel salv-la; e ainda menos
se ao tentar fosse inevitvel ou quase inevitvel que ns mesmos pereceramos, privando assim os nossos
filhos do apoio que lhes devemos. Isto significa que quando se pressupe que crer ou no em Deus uma
opo forosa porque se aceita duas coisas, e James s explicitou uma delas: aceita-se que a questo
intelectualmente indecidvel, mas aceita-se tambm que o preo por acreditar no demasiado elevado.
Ora, no podemos em rigor pressupor que crer melhor, exista ou no Deus, do que no crer. Clifford
argumenta que crer na ausncia de provas sempre pior, porque contribui para a crendice, e a crendice
tem inevitavelmente, e a longo prazo, ms consequncias. Este argumento, que crucial para a posio de
Clifford, nunca enfrentado por James, que se limita a pressupor que crer em Deus sempre melhor do
que no crer.
James argumenta, com alguma plausibilidade inicial, que a posio de Clifford nos afasta da verdade,
por estar demasiado preocupado com o erro. Compara Clifford a um general que, por querer provas
cabais da vitria antes de enviar as suas tropas, nunca ganha qualquer batalha, porque nunca envia as
suas tropas. A ideia que por vezes preciso aceitar o risco epistmico. Clifford concorda com a ideia,
mas rejeita que o risco epistmico implique crena sem provas: apenas implica que, quando necessrio
agir sem certezas, devemos agir em funo do que mais provvel.
O problema que nada disto se aplica crena em Deus. Esta crena no urgente: no temos de
decidir, aqui e agora, crer ou no crer em Deus: podemos perfeitamente continuar procura. o que
fazemos com muitas outras crenas momentosas: queremos saber o que poder curar uma doena grave,
por exemplo, e extremamente difcil decidir. Mas se pararmos de tentar decidir porque consideramos
virtuoso o risco epistmico de apostar numa das hipteses sem provas, no estamos a contribuir para a
descoberta da verdade, mas antes a dificult-la. Se o que realmente nos interessa saber se Deus existe
ou no, e isso qualquer crente ter de aceitar, a menos que tenha uma concepo de tal modo subjectiva
da crena que torne irrelevante a existncia de Deus, no uma boa ideia decidir de antemo e sem
provas que existe. Se Deus realmente existir, acertmos na verdade por sorte apenas, o que no constitui
conhecimento privmo-nos assim de conhecer uma verdade de superlativa importncia. Se no existir,
fomos crdulos e impedimos a descoberta de que no existe. Assim, a acusao central que James faz a
Clifford que est to preocupado em evitar o erro que no permite acertar na verdade aplica-se
facilmente a James, que parece ter pensado que tudo o que conta no que respeita verdade acertar nela,
ainda que por acaso, e no conhec-la.
Racionalidade distribuda
A objeco de Plantinga a Clifford uma objeco geral a qualquer posio indiciarista. Consiste em
defender que, pelo prprio critrio indiciarista, no devemos acreditar em coisa alguma sem provas; mas
no h provas de que o indiciarismo seja verdadeiro; logo, no devemos acreditar no indiciarismo.
Esta objeco depende, contudo, de uma concepo muito rgida de prova, concepo que o prprio
Clifford no defendia. Certamente que Clifford no pensava que o nico gnero de provas eram provas
matemticas ou cientficas. Em muitas matrias, prova-se ideias argumentando, e os argumentos podem
ser muito complexos. Aquilo a que Clifford claramente se opunha era a crena sem provas, sem
quaisquer razes, s porque se decide arriscar acreditar.
Quando perguntamos se a f aceitvel na ausncia de provas, o termo aceitvel, neste contexto,
quer dizer epistemicamente legtimo. Esta expresso melhor do que prova, que tem um significado
demasiado restrito. Mas no fcil saber o que epistemicamente legtimo e o que o no . Para
esclarecer este conceito, podemos recorrer a alguns paradigmas de atitudes epistemicamente legtimas e
ilegtimas.
Antes, porm, importante fazer notar que argumentvel que nem tudo o que epistemicamente
ilegtimo ou incorrecto moralmente ilegtimo ou incorrecto. Sem dvida que h alguma conexo entre os
dois conceitos; em alguns casos, uma atitude pode ser moralmente incorrecta precisamente por ser
epistemicamente incorrecta; Clifford, todavia, ou confundia ambos os conceitos ou estabelecia entre
ambos uma conexo excessivamente forte. O argumento de Clifford a favor da ideia de que sempre
moralmente incorrecto acreditar em algo sem provas que, mesmo no caso de uma crena trivial e
meramente pessoal, o facto de se acreditar sem provas torna-nos crdulos e isso acabar por ter efeitos
moralmente maus. Isto um exagero: fcil pensar em contextos em que ser crdulo no ter quaisquer
consequncias para a humanidade em geral: numa pequena ilha, um ancio doente alimenta a crena
injustificada de que os seus companheiros sero salvos, mas nada lhes diz e morre pacificamente. O
mximo que se pode defender que na maior parte dos contextos uma m ideia criar hbitos de
credulidade, em vez de hbitos de anlise cuidadosa das coisas, porque as consequncias, directas ou
indirectas, a curto ou longo prazo, so quase sempre desastrosas.
Por outro lado, podemos considerar que os deveres epistmicos procurar honestamente a verdade,
no ser tendencioso, etc. so casos especiais de deveres morais. Neste caso, verdadeiro que
qualquer violao de um dever epistmico , eo ipso, a violao de um dever moral. Mas isto um
pouco enganador, pois quer apenas dizer que descurar um dever epistmico descurar um dever moral:
no quer dizer que, ao faz-lo, descuramos um dever moral de outra categoria. Por isso, menos
enganador falar apenas do que epistemicamente legtimo ou no, em vez de usar a linguagem de
Clifford, na qual no atender aos indcios moralmente incorrecto.
Voltemos ao esclarecimento do que epistemicamente legtimo e ilegtimo, recorrendo a exemplos
claros de ambos. Comeando pelo ltimo caso, claramente ilegtimo rejeitar quaisquer argumentos
contra uma dada posio, ao mesmo tempo que se aceita o mesmo gnero de argumentos a favor dela.
Este tipo de ilegitimidade epistmica ocorre quando uma pessoa pe em causa a cincia ou a lgica, por
exemplo, quando estas parecem militar contra as suas crenas mais queridas, ao mesmo tempo que abraa
ambas calorosamente quando parecem militar a seu favor. Esta arbitrariedade claramente ilegtima,
epistemicamente, ainda que no consigamos estabelecer condies necessrias e suficientes do que uma
atitude epistemicamente legtima. Se uma pessoa considerar que acreditar sem provas s
epistemicamente legtimo no caso da crena religiosa, h alguma probabilidade de no ser
epistemicamente virtuosa. James, note-se, apresenta critrios suficientemente gerais que tornariam
epistemicamente legtimo ter qualquer crena, religiosa ou no, sem provas. (A dificuldade, como vimos,
que em todos os casos no religiosos a crena sem provas s legtima quando crer tem uma conexo
causal com um resultado desejvel, coisa que no h razes para pensar que ocorre no caso da crena
religiosa.)
Quanto legitimidade epistmica, esta parece manifestar-se mais claramente quando algum muda de
ideias por se deparar com razes adequadas para isso: por exemplo, o Joo pensava que a Francisca
tinha ido ao cinema, mas ao chegar a casa encontra-a l e muda por isso de ideias.
Contudo, nem toda a mudana de ideias epistemicamente legtima: s o quando h razes
adequadas para isso. Uma pessoa que acreditava em Deus e deixa de acreditar s porque assistiu a uma
palestra de uma hora sobre o tema poder no ser epistemicamente virtuosa, mas antes viciosa neste
caso, por ser leviana.
Assim, o problema saber o que so razes adequadas para mudar de ideias. No caso do Joo, a
razo adequada ter visto a Francisca em casa; mas a viso s em certos casos fidedigna. Na seguinte
imagem, por exemplo, a segunda linha parece maior do que a primeira, mas ambas tm o mesmo
comprimento:

Assim, nem sempre a simples viso nos d razes adequadas para acreditar no que vemos: nos sonhos,
tambm nos parece que vemos muitas coisas, mas essas coisas podem no existir. Distinguir as condies
em que os dados dos sentidos so fidedignos dos casos em que no o so por isso crucial.
A tentao a evitar aqui pensar como os cpticos, que negam a possibilidade do conhecimento
genuno. Uma maneira de argumentar a favor do cepticismo que as iluses cognitivas, como as visuais,
so recorrentes e no temos um modo de ter a certeza, perante uma dada crena ou percepo, se uma
iluso ou no.
A primeira crtica a fazer ao argumento cptico que o conceito de certeza epistemicamente
irrelevante e confuso. O conceito de certeza pode ser entendido de duas maneiras. Por um lado, podemos
conceber a certeza meramente como uma forte convico. Neste caso, a certeza irrelevante para o que
est em causa, porque se podemos estar enganados quando vemos, tambm podemos estar enganados
quando temos uma forte convico de que no estamos enganados quando vemos. argumentvel que,
nesta acepo, a certeza apenas mais um nvel de iluso epistmica como se a forte convico fosse
garantia de que no estamos enganados.
Outra maneira de conceber a certeza pensar que se trata de estar certo, no sentido de acertar. Nesta
acepo de certeza, por definio, quando se tem a certeza de algo, porque se acertou na verdade. Mas
nesta acepo podemos sempre estar enganados: quando pensamos que acertmos, podemos no ter
acertado.
Assim, seja a certeza concebida do primeiro modo ou do segundo, irrelevante para a discusso em
causa. Parece relevante, porque se confunde e mistura os dois sentidos: como se acertar implicasse uma
convico mais forte, e como se esta implicasse acertar. Mas isto falso: na melhor das hipteses, uma
convico mais forte, que se mantm depois de uma investigao cuidadosa, est correlacionada com
maior probabilidade de se ter acertado, o que muito diferente de implicar que se acertou.
Seja qual for a concepo de legitimidade epistmica que tenhamos, a mera certeza no parece
relevante: podemos ter a certeza por sermos casmurros, por exemplo, defendendo firmemente uma ideia
contra a qual h excelentes indcios ou argumentos. Tambm a mera possibilidade de estarmos
enganados, explorada pelo cptico, no parece relevante para a ilegitimidade epistmica: do facto de
podermos estar enganados no se segue que estamos enganados, e do facto de no se poder garantir que
no estamos enganados no se segue que qualquer maneira de investigar as coisas e de formar crenas
tem o mesmo grau de legitimidade epistmica.
No parece haver receitas automticas para determinar quando um dado processo de formao de
crenas epistemicamente legtimo, e este um dos problemas centrais da epistemologia da f. Quem
defende o indiciarismo, como Clifford, tende a pensar que nenhuma crena epistemicamente legtima
sem provas, incluindo as crenas religiosas, porque tem em mente o gnero de processo de
estabelecimento de verdades que se usa em medicina, fsica, biologia, matemtica, etc. Quem defende a
posio contrria tem em mente os processos mais quotidianos de formao de crenas, que incluem
coisas como a experincia pessoal, a tradio e a confiana nos outros, alm do poder motivador das
crenas.
O indiciarismo est por vezes associado a uma certa ingenuidade epistmica. A essa ingenuidade
epistmica podemos chamar o mito do investigador solitrio. Esta ingenuidade epistmica d origem a
uma verso infantil de indiciarismo, que fcil refutar: a ideia de que cada um de ns s tem
legitimidade epistmica para aceitar o que ns mesmos somos capaz de provar. Muitos crentes
consideram, com razo, que esta posio insustentvel, alm de algo cega.
Para ver porqu, considere-se o memorvel ensaio de George Orwell, de 1946, em que ele se
pergunta Como sei que a terra redonda?. Rapidamente nos apercebemos que s por testemunho
sabemos que a Terra esfrica, ou que a gua H2O: os professores ou cientistas escreveram isso ou
disseram isso, e ns acreditamos. No s no temos provas directas dessas coisas, como a maior parte de
ns no saberia estabelecer tais coisas, mesmo que tivssemos os meios para isso: eu, por exemplo, no
saberia estabelecer que a gua H2O, mesmo que tivesse acesso a um laboratrio de qumica. E, apesar
de poder viajar num avio ou outro meio de transporte para poder ver directamente que a Terra
esfrica, no saberia dizer se o que me pareceria visualmente evidente no ficaria a dever-se a alguma
iluso perceptiva, dado que neste caso eu estaria muito afastado do meu ambiente perceptivo comum.
Estas consideraes parecem militar contra Clifford, mas a sua posio mais sofisticada do que
isso. Na segunda parte do seu ensaio, Clifford aborda explicitamente o que acontece quando temos de nos
apoiar em terceiros para justificar as nossas crenas. Este problema torna-se mais vvido se
compararmos estes dois casos: no primeiro, a Josefa vem do supermercado e diz ao marido: Afinal, no
havia leite, esgotou-se; no segundo, a Marlia vem tambm do supermercado e diz ao marido Afinal,
no havia leite; vieram uns extraterrestres e levaram-no todo. No primeiro caso, o marido aceita o
testemunho da Josefa, sem mais perguntas, e ser capaz de dizer com toda a segurana a outra pessoa,
alguns minutos depois, que no h leite no supermercado porque se esgotou. Mas, no segundo, o marido
da Marlia fica estupefacto e comea imediatamente a fazer perguntas; muitas perguntas. Qual a
diferena?
No primeiro caso, o testemunho da Josefa banal; no segundo, no banal. Aceitamos informaes
banais por testemunho, sem mais perguntas; mas quando o testemunho transmite supostas informaes que
no so banais, queremos razes mais fortes do que a mera confiana na pessoa. Neste ltimo caso,
queremos algumas razes para pensar que a pessoa no est a enganar-nos; ou que no se enganou ela,
sendo vtima de uma iluso. O caso caricatural mais bvio que esclarece o que est em causa o
seguinte: passamos na rua e perguntamos as horas a algum, e confiamos na resposta; mas perguntamos a
essa mesma pessoa se h extraterrestres e, seja a resposta afirmativa ou no, no confiamos na resposta.
Porqu? Clifford viu porqu: porque num caso a pessoa est a dizer-nos algo que ns prprios sabemos
como podemos saber; no outro, est a dizer-nos algo que ns mesmos no sabemos como poderamos
saber. Acreditar no testemunho de algum que afirma saber algo que no fazemos ideia como ns mesmos
poderamos saber credulidade; e, claro, a credulidade mais tentadora quando o que essa pessoa nos
diz o que queremos ouvir.
Contudo, no num certo sentido verdadeiro que muitos de ns no fazem ideia como seria possvel
descobrir a composio qumica da gua? No entanto, confiamos no testemunho dos cientistas. Ser isso
credulidade? Se no o for, por que razo seria credulidade acreditar num profeta que afirma ter tido
contacto directo com uma divindade?
H duas respostas a este desafio. Primeiro, o gnero de experincia em causa muitssimo diferente.
Num caso, trata-se apenas de estudar qumica, e isso no exige quaisquer capacidades especiais da nossa
parte. Quem estuda qumica tem um acesso privilegiado verdade, mas apenas num sentido fraco: no
mesmo sentido em que se eu estiver a ver uma rvore e a outra pessoa no, eu tenho um acesso
privilegiado rvore mas a outra pessoa teria exactamente o mesmo acesso caso estivesse na minha
situao, vendo a rvore. Contudo, no que respeita a subir a uma montanha e ouvir a palavra de Deus, as
coisas so muito diferentes: no basta subir e ficar espera. Milhes de pessoas podem fazer isso e
nenhuma voz ouvir. Quem ouve tais vozes tem um acesso privilegiado intimidade dos deuses, acesso
que os outros no tm.
Assim, a primeira resposta que seremos crdulos se acreditarmos num testemunho que pressupe
que a outra pessoa tem um acesso privilegiado verdade, no sentido forte. Isto credulidade porque a
pessoa poder ser vtima de alucinao, ainda que seja sincera; ou poder estar a mentir, por qualquer
motivo. Acresce que qualquer pessoa que pense ouvir a voz de uma divindade ter pelo menos de
levantar a hiptese de estar a ser vtima de iluso, se for epistemicamente virtuosa, tal como olhamos
com estupefaco quando vemos coisas incomuns uma mulher a ser aparentemente serrada ao meio,
num circo, e que, no entanto, continua a mexer os ps no outro lado da caixa. O que poder fazer-nos
aceitar prontamente a nossa experincia religiosa, sem um exame cuidadoso, ao mesmo tempo que no
aceitamos a nossa experincia visual de ver uma mulher ser serrada ao meio e sobreviver, a
credulidade: a vontade de acreditar no que gostaramos que fosse verdadeiro.
Um antdoto credulidade o seguinte: quanto mais gostaramos que algo fosse verdadeiro, mais
razes temos para ver cuidadosamente se mesmo verdadeiro, ou se estamos a enganar-nos a ns
mesmos, nomeadamente por sermos vtimas da superstio comum de que acreditar em algo muito
firmemente contribui para a sua verdade, ainda que nenhuma relao causal exista entre uma coisa e
outra. Rejeitar este princpio incompatvel com a virtude epistmica.
A segunda resposta que a estrutura epistmica da comunidade em causa crucial. Tenho razes para
aceitar as afirmaes de um cientista, afirmaes que pessoalmente no posso testar, se as prprias
instituies cientficas tiverem uma estrutura epistmica adequada. Essa estrutura epistmica resume-se
na mxima de John Stuart Mill:

As nossas crenas mais justificadas no tm qualquer outra garantia sobre a qual assentar, seno
um convite permanente ao mundo inteiro para provar que carecem de fundamento (Sobre a
Liberdade, 1859, p. 58).

Dada a falibilidade humana, precisamos de testar cuidadosa e permanentemente as nossas crenas


todas elas. Quando as instituies tm este gnero de estrutura epistmica, convidando o mundo inteiro,
permanentemente, a provar que as suas afirmaes carecem de fundamento, do-nos razes para aceit-
las. Isto porque torna menos provvel que resultem da iluso ou da mentira, pois se podem ser
continuamente postas em causa e discutidas abertamente, mais provvel que as iluses e os erros sejam
detectados. No significa, contudo, que tais afirmaes so imutveis: na verdade, no caso das
instituies cientficas, o prprio facto de terem permitido ao longo do tempo a reviso das crenas
cientficas fundamentais que nos d razo para aceitar as afirmaes cientficas actuais porque quando
houver boas razes para pensar que so falsas, essas razes sero difundidas e discutidas e assumir-se-
que so falsas.
Note-se que isto no significa que os membros dessas instituies sejam to abertos discusso
quanto seria desejvel. Alguns podero no o ser; mas isso irrelevante se outros o forem e se estes no
forem impedidos de apresentar as suas ideias discordantes. Analogamente, numa instituio que no
permite a crtica aberta, alguns dos seus membros podem ser-lhe favorveis mas isso no torna as
afirmaes dessa instituio dignas de crdito. S o sero se as vozes discordantes no forem
silenciadas, mas antes acolhidas, levadas a srio e frontalmente discutidas.
Assim, a nossa estrutura epistmica eminentemente social no apenas no sentido trivial de que s
em conjunto sabemos o que nenhum de ns sabe isoladamente: no se trata apenas de precisarmos de
vrios crebros para armazenar quantidades gigantescas de informao, como quem precisa de vrios
armazns de fruta. A nossa estrutura epistmica eminentemente social no sentido mais profundo de
precisarmos de vrios olhares crticos para diminuir a probabilidade de sermos vtimas de erro e iluso
diminuir, note-se, e no eliminar. Em seres falveis, dificilmente haver maneiras de eliminar o erro e
a iluso. Mas se tentarmos activamente encontrar os erros e iluses uns dos outros, teremos mais
probabilidades de os descobrir.
Mesmo intuitivamente, sem qualquer discusso epistemolgica sobre as consequncias da nossa
bvia falibilidade, damos bastante importncia ao controlo social dos erros. Isto bom, por um lado,
mas mau, por outro. bom porque nos faz dar muita importncia ao que as outras pessoas afirmam; e se o
que eles afirmam colide com o que nos parece que verdade, desconfiamos que poderemos ter errado.
Mas tambm mau porque uma crena amplamente partilhada socialmente pode estar apesar de tudo
errada, tendo razo o ser humano isolado que contraria o que todos os outros aceitam. Comecemos com o
primeiro caso.
Imagine-se que, sem a Josefa saber, uma equipa de psiclogos decide fazer uma experincia com ela.
Falam com as pessoas do escritrio de advogados onde trabalha e, na hora do almoo, transformam o
escritrio num consultrio de dentista. Quando ela chega do almoo, entra no prdio, entra no elevador e
carrega no nmero 5. Chegado ao andar correcto, entra no seu escritrio e fica perplexa: no v o que
esperava ver, mas sim um consultrio desconhecido de dentista. A sua primeira reaco ser
provavelmente duvidar de que esteja no andar correcto. Isso parece-lhe mais provvel, e , do que a
hiptese doida de o escritrio onde trabalha h mais de cinco anos ter desaparecido durante a hora do
almoo. De modo que sai do consultrio e volta ao elevador. Para seu espanto, est mesmo no quinto
andar. Agora as coisas comeam a ficar mais estranhas para ela. O que poder haver de errado? Fica
ligeiramente desorientada: podero todas as suas memrias de que trabalha naquele prdio estar erradas?
Ser que est a enlouquecer?
Um pouco desorientada, considera ento que poder ter-se enganado no prdio. Entra no elevador,
chega ao rs-do-cho e sai do prdio. O resultado assustador: realmente aquele o prdio em que ela
trabalha. Pelo menos, tanto quanto se recorda. Muito provavelmente, a Josefa voltar a entrar no
elevador, porque duvida agora de que tenha realmente estado ao quinto piso, apesar de o ter verificado
h menos de cinco minutos. Ir de novo ao quinto piso e, ao ver uma vez mais o estranho consultrio de
dentista, comear a duvidar de que o seu escritrio de advogados esteja afinal no quinto andar. No
seria antes no 15.?
O significado desta histria que o nosso contexto epistmico quotidiano feito de controlos e
ajustes. Isso inclui no apenas a observao directa das coisas, mas tambm as informaes que os outros
nos transmitem. Em nenhuma acreditamos em absoluto; a todas damos algum crdito. Quando vemos algo
nossa frente, em certas condies, acreditamos que aquilo est mesmo ali. Quando vemos uma mulher a
ser serrada num nmero de circo, contudo, no acreditamos que est a ser serrada. Quando falamos com
as pessoas, acreditamos partida no que nos dizem; mas muitas vezes pensamos que tm razes para nos
mentir, ou que esto enganadas. Quando nos lembramos de coisas, como o andar em que trabalhamos h
cinco anos, acreditamos na nossa memria; mas por vezes temos razes para duvidar dela. Quando
ouvimos vozes, acreditamos geralmente que algumas pessoas esto do outro lado a conversar; mas
desconfiamos que podemos estar a ficar esquizofrnicos se ouvirmos vozes num deserto ou noutro lugar
sem pessoas nossa volta.
A cincia e a filosofia nada fazem de extraordinrio excepto alargar esta prtica epistmica de
controlos e ajustes a questes que so mais difceis de conhecer. Mas o princpio geral o mesmo:
avanos e recuos, controlos e ajustes. Nem crendice nem cepticismo, mas algo no meio: estudar
pacientemente as coisas, formular hipteses, testar ideias e argumentos. Leva-se a srio o que nos diz um
colega cientista, mas precisamos conseguir reproduzir a experincia que diz ter feito ontem e ter dado um
resultado extraordinrio; precisamos ver o que poder ter corrido mal, onde poder esconder-se uma
iluso. Se o resultado bom de mais para ser verdadeiro, provvel que seja realmente bom de mais
para ser verdadeiro e somos tanto mais rigorosos nos testes que fazemos e exigimos.
Passemos agora para o segundo caso. As pessoas mentem e enganam-se. Mas se forem erros
epistemicamente comuns, as outras pessoas iro ter a iluso de estar a confirm-los, precisamente por
serem comuns. Sem estudar cuidadosamente astronomia, nenhum ser humano tem razes directas e bvias
para pensar que a Terra se move, ou que esfrica. E ter uma razo acrescida para pensar que est
imvel: todas as outras pessoas sua volta pensam o mesmo. Parece improvvel que todas estejam
erradas, ainda que o estejam de facto. Nessa circunstncia, no bvio que seja epistemicamente vicioso
um ser humano crer que a Terra est imvel e que no esfrica, mas antes plana, ainda que tais crenas
sejam falsas.
Se aceitarmos isto, teremos de aceitar a tese de Plantinga: em certos contextos epistemicamente
legtimo acreditar em Deus sem provas ou melhor, sem provas cabais. Na realidade, haver nesse
contexto o mesmo gnero de provas no cabais que temos para acreditar que a Terra plana e est
imvel: todas as pessoas nossa volta acreditam em Deus e podemos ter experincias religiosas ao
contemplar a natureza ou ao ler livros sagrados. o que acontece a uma criana de doze anos, por
exemplo, que cresceu numa comunidade de adoradores do deus R. Todas as pessoas sua volta
acreditam nessa divindade e ela sente uma comunho com R em certas circunstncias. Quando l os
textos sagrados, sente certas emoes que interpreta como um contacto com R. Ningum na sua
comunidade pe em causa a existncia nem as intervenes milagrosas de R. Ela acredita em R, e a sua
crena no parece epistemicamente ilegtima.
Diversidade epistmica
As consideraes da seco anterior do uma imagem da legitimidade epistmica muito diferente do que
por vezes se pensa. A ideia de que somos agentes epistmicos sociais e de que estamos continuamente a
fazer controlos e ajustes nas nossas crenas colide com um ponto de vista comum, na histria da filosofia,
no que respeita justificao ltima das nossas crenas. Esse ponto de vista tradicional tem a designao
de fundacionalismo. A ideia que as nossas crenas s tm justificao, na sua maioria, porque se
baseiam noutras, das quais so inferidas. Assim, acreditamos que no nascemos ontem, por exemplo,
porque nos lembramos de existir h vrios anos. Portanto, a crena de que no nascemos ontem baseia-se
noutras crenas. Mas nem todas as crenas podero basear-se noutras, sob pena de regresso infinita;
logo, algumas crenas so bsicas: crenas que no se baseiam noutras.
s crenas bsicas que so epistemicamente legtimas chama-se crenas apropriadamente bsicas.
Determinar que crenas so apropriadamente bsicas o que o fundacionalista ter de fazer. Quando o
fundacionalista considera que essas crenas bsicas no incluem seno crenas empricas, um
empirista; quando considera que s incluem crenas que no so empricas, um racionalista.
O fundacionalismo um ponto de vista muito natural. E parece particularmente apelativo a quem tem
uma mentalidade cientfica. Neste caso, a ideia que as crenas apropriadamente bsicas sero
perceptivas. A cincia ento vista como um desenvolvimento de teorias que se baseiam em crenas
perceptivas apropriadamente bsicas. Suspeita-se que poder haver algo de errado nesta ideia quando
consideramos que a agricultura emprica, pr-cientfica, se baseia em crenas perceptivas bsicas, mas
no tem o poder explicativo nem o grau de sofisticao e preciso que permita afirmar que cientfica.
Um agricultor emprico sabe como cultivar um terreno, mas no sabe explicar por que razo fazendo as
coisas de uma maneira tudo corre bem, mas tudo corre mal se fizermos de outra. Um agricultor cientfico
sabe explicar, pelo menos parcialmente, por que razo as coisas funcionam de uma maneira e de outra
no.
O que faz a diferena que a agricultura cientfica resulta de se testar explicitamente ideias diferentes
e de se procurar activamente explicaes melhores, ao passo que a agricultura emprica consiste quase
exclusivamente na aceitao do que a tradio nos ensinou a fazer, e no que podemos ver sem recorrer
observao sistemtica nem a testes e controlos explcitos. Assim, o que parece crucial o carcter
activo e temporal dos nossos procedimentos epistmicos, num caso, e passivo e atemporal, no outro. O
que parece crucial no , ento, o carcter apropriadamente bsico das crenas de partida, nem o seu
carcter observacional, mas antes a atitude activa de procurar controlos e ajustes, ao longo do tempo.
Se rejeitarmos o fundacionalismo, contudo, no teremos de dizer que a estrutura das nossas crenas
viciosamente circular? Afinal, se no h crenas apropriadamente bsicas com base nas quais
estabelecemos as outras, o que estabelece a verdade de uma crena? Chama-se coerentista ideia de que
as nossas crenas podem justificar-se entre si sem que tal crculo seja vicioso. Na teoria coerentista
pode-se aceitar que algumas crenas so mais bsicas ou elementares do que outras; mas nega-se que
existam crenas rigorosamente bsicas, com base nas quais todas as outras se justifiquem.
O caso da Josefa, acima, ajuda a compreender o coerentismo: em alguns contextos, confiamos na
nossa memria; noutros, pomos a memria em causa. H uma dialctica contnua entre o que est em
causa, o contexto em que estamos e muitas outras crenas relacionadas com o que est em causa.
Quotidianamente, no parece sensato pr em causa que a Terra est imvel; mas a continuao do nosso
estudo da natureza pode fazer-nos rever esta crena. Para o fazermos, contudo, teremos de ter um
conjunto de outras crenas que julgamos mais slidas do que essa: podemos rever qualquer crena, mas
no as revemos todas ao mesmo tempo nem toa, sem ter em considerao as outras crenas
relacionadas. E este processo de rever crenas contnuo, decorrendo ao longo do tempo.
Porque somos falveis, a virtude epistmica exige que estejamos dispostos a pr em causa as nossas
crenas, incluindo as mais queridas. E difcil imaginar contextos epistmicos nos quais a falibilidade
humana no seja evidente. Contudo, em muitos contextos epistmicos, a falibilidade humana objecto de
ocultao, fingindo-se que certas pessoas ou instituies so infalveis, sendo imprprio e at ofensivo e
blasfemo pr em causa o que essas pessoas e instituies afirmam. Se levarmos a srio a falibilidade
humana, um agente ter tanto menos legitimidade epistmica para aceitar o que afirma um grupo de
pessoas quanto mais essas pessoas procuram impedir que as suas afirmaes sejam postas em causa. E,
em muitos casos, basta que nos perguntemos se as pessoas que afirmam algo no podero estar enganadas
para destruir a aparncia de autoridade epistmica que fingem deter.
Considere-se o Adelino. Vive numa comunidade tradicional, sem conhecimentos cientficos. No faz
a mnima ideia sobre a constituio da gua, nem sobre a natureza do Sol. Ignora que a Terra no est
imvel, e parece-lhe bvio que est imvel. Mas mesmo ele sabe que somos falveis, pois muitas vezes
lhe parecia ver ao longe algum, quando afinal era s uma rvore; ou parece recordar-se de ter visto uma
rvore num dado lugar, e depois descobre que afinal estava noutro. Alm disso, v que o mesmo ocorre
com as outras pessoas da sua comunidade. Por isso, se reflectir cuidadosamente, ver que no s ele
que no tem realmente razes de muito peso para pensar que a Terra est imvel: ningum na sua
comunidade as tem. Com respeito a uma crena incua como esta, o Adelino talvez esteja disposto a
abandon-la, se com o decorrer do tempo comear a ter razes para pensar que falsa. E se no estiver
disposto a isso, ser epistemicamente vicioso.
Se considerarmos agora o gnero de interlocutor que Clifford tem em mente, vemos muitas
diferenas. Clifford fala para ingleses do sc. XIX. Nesta altura, muitas crenas tradicionais foram postas
em causa, medida que os estudos cada vez mais complexos prosseguiam. Neste contexto epistmico, j
no verdadeiro que toda a gente pensa que Deus existe, por exemplo. Neste contexto, muitos estudiosos
declaram-se descrentes. Neste contexto, nenhum Adelino, educado na f crist, pode ficar indiferente
perante a hiptese de estar enganado quando pensa que a divindade crist existe; e se o ficar, porque
no epistemicamente virtuoso.
O primeiro resultado desta anlise que aceitar a tese de Plantinga tem consequncias menos fortes
do que se poderia pensar. Tudo o que Plantinga defende que em certos contextos epistemicamente
legtimo crer em Deus sem provas. Mas no mostra que epistemicamente legtimo crer em Deus sem
provas num contexto em que muitos outros agentes epistmicos pem a existncia de Deus em causa. S
conseguiria mostrar isso se conseguisse mostrar que as crenas ateias no devem ser tidas em conta pelos
crentes, por qualquer razo. Mas que razo poderemos invocar?
Podemos defender que falta aos descrentes uma faculdade especial, o sensus divinitatis; ou que esta
faculdade foi corrompida pelo pecado. O problema de qualquer uma destas ideias no ser mais
evidentemente verdadeira do que a hiptese de que so as pessoas crentes que so vtimas de iluso, ou
que so epistemicamente viciosas, crendo ser verdadeiro o que lhes d jeito crer que verdadeiro.
Esta ser outra discusso; para j, importa apenas mostrar o papel da diversidade e da tolerncia na
nossa estrutura epistmica. A diversidade de pontos de vista uma ameaa a sistemas de crenas que se
protegem precisamente porque as pessoas que tm essas crenas desconfiam que so falsas, mas
gostariam que fossem verdadeiras. difcil conceber qualquer virtude epistmica nesta atitude. Trata-se
to-somente de evitar o incmodo de ter de mudar de ideias. Quem cr sinceramente que as suas ideias
so verdadeiras no pode sentir-se assustado quando algum as pe em causa. E quem ao mesmo tempo
cr na sua bvia falibilidade epistmica, querer p-las em causa, pois se no resistirem ao exame
crtico porque so provavelmente falsas e devem ser abandonadas.
A diversidade epistmica por isso saudvel, e ter de ser acolhida com agrado por quem for
epistemicamente virtuoso. Cada um de ns pode pr em causa as ideias em que acredita, mas a melhor
pessoa para o fazer o nosso semelhante que desde o incio no acredita nessas ideias. Assim, qualquer
crente epistemicamente virtuoso acolhe com agrado os descrentes que argumentam contra a sua f; e
qualquer descrente epistemicamente virtuoso acolhe com agrado os crentes que argumentam a favor da f.
O valor epistmico da diversidade de opinies permitir que as ideias mais dspares sejam defendidas
por quem genuinamente acredita nelas. E o primeiro sinal de vcio epistmico a falta de tolerncia, que
se revela na vontade de eliminar ou silenciar quem pensa de maneira diferente de ns, ou na manipulao
da discusso, tornando-a um exerccio performativo que visa cativar e seduzir, e no descobrir a verdade
e detectar o erro.
Admitindo que James e Plantinga conseguem resolver as dificuldades discutidas, o que se segue da
aceitao das suas posies a legitimidade epistmica de crer sem provas; no se segue das suas
posies a legitimidade de crer com imensa convico sem provas. Se considerarmos que crer com
imensa convico constitutivo da f, ento nenhum destes dois filsofos foi bem-sucedido em defender
a legitimidade epistmica da f sem provas.
Concluso
Ambrose Bierce (18421914) definiu a f como Crena sem indcios no que diz quem fala sem
conhecimento de coisas sem paralelo.1 Esta humorstica definio caracteriza bem a atitude de muitos
descrentes, que consideram por vezes a f um paradigma de vcio epistmico. Muitos crentes, por sua
vez, consideram que esta atitude insensvel a realidades mais importantes e profundas, incluindo os
aspectos vivenciais de quem tem uma vida e atitude religiosa. O exame preliminar aqui realizado de
algumas ideias e conceitos centrais desta rea poder ajudar crentes e descrentes a discutir melhor o
tema. Outro no era o objectivo.
The Devils Dictionary, 1906. H uma traduo portuguesa, na Tinta da China.
2. A tica da crena

W. K. Clifford

I. O dever de investigar
Um armador preparava-se para enviar para o mar um navio com emigrantes. Sabia que o navio estava
velho e tinha defeitos de construo; que conhecera j muitos mares e climas e teve de ser reparado muito
mais de uma vez. Algum sugeriu ao armador que o navio talvez no estivesse em condies de navegar.
Estas dvidas pesavam-lhe na conscincia e deixavam-no infeliz; pensou que talvez devesse mandar
inspeccionar e renovar completamente o navio, embora isto provavelmente ficasse bastante caro. Antes
de o navio zarpar, contudo, o armador conseguiu deixar para trs estes pensamentos melanclicos. Disse
para consigo que o navio enfrentara com xito tantas viagens e resistira a tantas tempestades que no
havia razo para supor que no regressaria ileso tambm desta viagem. O armador confiaria na
providncia, que seguramente no deixaria de proteger todas aquelas infelizes famlias que abandonavam
a ptria em busca de uma vida melhor alhures. Silenciaria todas as dvidas mesquinhas acerca da
honestidade dos construtores e dos empreiteiros. Assim, alcanou uma certeza sincera e confortvel de
que o seu navio era completamente seguro e estava em condies de navegar; viu-o partir com
despreocupao e desejos caridosos de que os exilados fossem bem-sucedidos no novo e estranho lar
que os esperava; e recebeu o dinheiro do seguro quando o navio se afundou em pleno mar sem deixar
rasto.
O que diremos do armador? Seguramente, que muitssimo culpado pela morte daqueles homens.
Admitindo-se que acreditava sinceramente no bom estado do seu navio, a sinceridade da sua convico,
porm, no lhe pode valer de maneira alguma, porque no tinha o direito de acreditar com base nos
indcios de que dispunha. No adquiriu a sua crena por mrito honesto, atravs da investigao
paciente, mas silenciando as suas dvidas. E embora no final a sua certeza sobre o assunto fosse
porventura to grande que no era capaz de pensar de outra maneira, temos de o considerar responsvel
pelo sucedido, na medida em que se colocou deliberada e voluntariamente naquele estado de esprito.
Alteremos um pouco a histria e suponhamos que o navio no estava, afinal, em mau estado;
suponhamos que fez a viagem em segurana, e muitas outras viagens aps aquela. Ser que isso diminui a
culpa do seu proprietrio? Nem um pouco. Quando se pratica uma aco uma vez, esta correcta ou
incorrecta para sempre; nenhuma falha acidental das suas boas ou ms consequncias pode alterar isso. O
homem no seria inocente; apenas no teria sido descoberto. A questo do correcto e do incorrecto tem a
ver com a origem da crena do armador, e no com o seu contedo; no a crena que conta, mas o modo
como a adoptou; no se trata de a crena ser afinal verdadeira ou falsa, mas de o armador ter ou no o
direito a acreditar com base nos indcios de que dispunha.
Era uma vez uma ilha onde alguns dos habitantes seguiam uma religio que no pregava a doutrina do
pegado original nem a doutrina do castigo eterno. Espalhou-se a suspeita de que os seguidores desta
religio se tinham servido de meios desonestos para ensinar as suas doutrinas s crianas. Acusaram-nos
de violar as leis do pas de maneira a afastar as crianas da vigilncia de quem tinha a sua custdia
natural e legal; e at de as roubar e manter escondidas dos amigos e familiares. Algumas pessoas
formaram uma associao com o objectivo de provocar a agitao do pblico a respeito deste assunto.
Publicaram acusaes graves contra cidados individuais do mais elevado estatuto e reputao, e fizeram
tudo o que estava em seu poder para lesar estes cidados no exerccio das suas profisses. Fizeram
tamanho barulho que foi nomeada uma comisso para investigar os factos; mas aps a comisso ter
averiguado cuidadosamente todos os indcios que se podia obter, parecia que os acusados estavam
inocentes. No s foram acusados com base em indcios insuficientes, como os indcios da sua inocncia
eram tais que os agitadores os podiam ter facilmente obtido, se tivessem procurado fazer uma
investigao imparcial. Aps estas revelaes, os habitantes daquele pas passaram a encarar os
membros da associao agitadora no s como pessoas em cujo discernimento no se devia confiar, mas
tambm como indivduos que no mais podiam considerar honestos. Pois embora acreditassem sincera e
diligentemente nas acusaes que fizeram, no tinham todavia o direito de acreditar com base nos
indcios de que dispunham. As suas convices sinceras, em vez de merecidas pela investigao
paciente, foram roubadas, dando ouvidos voz do preconceito e da paixo.
Introduzamos uma variao tambm neste caso e suponhamos, deixando o resto na mesma, que uma
investigao ainda mais meticulosa provava que os acusados eram realmente culpados. Faria isto
diferena alguma para a culpa dos acusadores? Evidentemente que no; a questo no a de a sua crena
ser ou no verdadeira, mas a de a terem ou no sustentado sem razes adequadas. Sem dvida diriam:
Agora vem que afinal de contas tnhamos razo; talvez para a prxima acreditem em ns. E talvez
acreditassem neles, mas no se tornariam homens honestos por causa disso. No estariam inocentes,
apenas no teriam sido descobertos. Se cada um deles, sem excepo, decidisse examinar-se in foro
conscientiae, saberia que tinha adquirido e acalentado uma crena, quando no tinha o direito de
acreditar com base nos indcios de que dispunha; e assim saberia ter feito uma coisa incorrecta.
Dir-se-, todavia, que em ambos estes casos hipotticos no se considera errada a crena mas a
aco que dela decorre. O armador pode afirmar: Tenho a absoluta certeza de que o meu navio est em
bom estado, mas ainda assim sinto que meu dever mandar examin-lo, antes de lhe confiar as vidas de
tanta gente. E poder-se-ia dizer ao agitador: Por muito convencido que estejas da justeza da tua causa e
da verdade das tuas convices, no devias ter atacado publicamente o carcter de uma pessoa antes de
teres examinado os indcios de ambos os lados com a mxima pacincia e cuidado.
Em primeiro lugar, admitamos que, no que diz respeito ao nosso assunto, esta perspectiva correcta e
necessria; correcta, porque mesmo quando um homem tem uma crena to firme que o torna incapaz de
pensar de outra maneira, continua a ter escolha relativamente aco que a crena lhe sugere e, portanto,
no pode escapar ao dever de investigar o fundamento da fora das suas convices; e necessria, porque
aqueles que no so ainda capazes de controlar os seus sentimentos e pensamentos precisam de uma regra
clara para lidar com actos inequvocos.
Mas tendo-a formulado como necessria, torna-se claro que no suficiente, e que preciso
complement-la com o nosso juzo anterior. Pois no possvel separar assim a crena da aco que
aquela sugere, de maneira a condenar uma, mas no a outra. Ningum que sustente uma crena forte sobre
um dos lados de uma questo, ou mesmo deseje sustentar uma crena sobre um desses lados, pode
investig-la com a mesma imparcialidade e meticulosidade que teria se realmente duvidasse e fosse
isento; pelo que a existncia de uma crena que no sustentada por uma investigao imparcial torna um
homem inapto para a realizao deste dever necessrio.
To-pouco uma crena aquilo que no influencia de modo algum as aces de quem o sustenta.
Quem verdadeiramente acredita naquilo que o encoraja a realizar uma aco contemplou j a aco com
um desejo intenso, j a realizou no seu corao. Se uma crena no se realiza imediatamente em aces
inequvocas, reservada para orientao no futuro. Passa a fazer parte daquele agregado de crenas que
o elo entre a sensao e a aco em cada momento de todas as nossas vidas, e que est de tal maneira
organizado e compactado que nenhuma parte deste se pode isolar do resto, cada novo acrescento
modificando a estrutura do todo. Nenhuma crena genuna, por mais superficial e fragmentria, , em
circunstncia alguma, realmente insignificante; prepara-nos para receber mais crenas semelhantes,
confirma as crenas semelhantes anteriores, e enfraquece outras; e assim, gradualmente, estabelece um fio
condutor implcito nos nossos pensamentos mais ntimos, que pode um dia manifestar-se em aces
inequvocas e deixar a sua marca no nosso carcter para sempre.
Em circunstncia alguma a crena de um homem um assunto privado, que apenas diga respeito ao
prprio. As nossas vidas guiam-se por essa concepo geral da ordem das coisas que a sociedade criou
para fins sociais. As nossas palavras, as nossas expresses, as nossas formas, processos e modos de
pensamento, so propriedade comum, modificados e aperfeioados de poca para poca; um legado que
cada gerao sucessiva herda como um depsito precioso e uma doao sagrada a transmitir gerao
seguinte, no sem modificaes, mas alargado e depurado, com algumas marcas distintas do seu engenho
especfico. Nisto, para o bem e para o mal, se entretece cada crena de cada homem que partilha a lngua
dos seus semelhantes. um terrvel privilgio e uma terrvel responsabilidade, ajudarmos a criar o
mundo no qual vivero as geraes do futuro.
Nos dois casos hipotticos que temos vindo a ponderar, considerou-se incorrecto acreditar com base
em indcios insuficientes, ou acalentar crenas suprimindo as dvidas e evitando a investigao. A razo
deste juzo no difcil de ver: que em ambos os casos a crena sustentada por um homem era de
grande importncia para outros homens. Mas na medida em que nenhuma crena sustentada por um
homem, por muito trivial que a crena parea e por muito obscuro que seja o crente, na realidade
insignificante ou desprovida de consequncias para o destino da humanidade, no temos escolha seno
alargar o nosso juzo a todos e quaisquer casos de crena. A crena, essa faculdade sagrada que
impulsiona as decises da nossa vontade e une num funcionamento harmonioso todas as energias
compactas do nosso ser, pertence-nos no para nosso usufruto, mas para a humanidade. correctamente
usada em verdades que foram estabelecidas pela longa experincia e pelo trabalho persistente, que
enfrentaram a luz intensa do questionamento livre e intrpido. Alm disso, ajuda a unir os homens, a
fortalecer e orientar a sua aco comum. Profana-se a crena ao conced-la a afirmaes improvadas e
inquestionadas, para consolo e prazer privado do crente; para acrescentar um falso esplendor estrada
simples e directa da nossa vida e exibir para alm dela uma miragem radiosa; ou mesmo para afogar as
angstias comuns da nossa espcie atravs de um auto-engano que lhes permite no s deprimir-nos como
rebaixar-nos. Quem desejar bem aos seus semelhantes nesta matria guardar a pureza da sua crena com
o fanatismo prprio de um zelo ciumento, para que a dada altura no recaia sobre um objecto indigno,
ganhando uma mancha que jamais se poder remover.
No s o lder de homens, o estadista, o filsofo, ou o poeta, que tem este dever moral perante a
humanidade. Cada campnio que debita na taberna da aldeia as suas frases lentas e espordicas pode
ajudar a matar ou a manter vivas as supersties fatais que toldam o seu gnero. Cada diligente esposa de
arteso pode transmitir aos filhos crenas que mantero a sociedade coesa ou a faro em pedaos.
Nenhuma ingenuidade, nenhuma obscuridade de estatuto, podem escapar ao dever universal de questionar
tudo aquilo em que acreditamos.
verdadeiro que este dever difcil e a dvida que dele nasce muitas vezes amarga. Deixa-nos
desprotegidos e impotentes quando nos julgvamos seguros e fortes. Saber tudo acerca de qualquer coisa
saber como lidar com isso em todas as circunstncias. Sentimo-nos muito mais felizes e seguros quando
julgamos saber exactamente o que fazer, independentemente do que acontece, do que quando nos
perdemos e no sabemos por onde ir. E se pensvamos saber tudo acerca de alguma coisa e nos
julgvamos capazes de agir adequadamente a esse respeito, natural que no nos agrade descobrir que na
verdade somos ignorantes e impotentes, que temos de voltar mais uma vez ao incio e da partir, tentar
aprender o que a coisa e como se deve lidar com ela se que na verdade podemos conhecer algo
acerca disso. o sentido do poder ligado a um sentido do conhecimento que deixa os homens desejosos
de acreditar e receosos de duvidar.
Este sentido do poder o mais elevado e o melhor dos prazeres, quando a crena em que se funda
verdadeira e foi honestamente alcanada pela investigao. Pois ento podemos sentir com justia que
propriedade comum e se aplica aos outros bem como a ns mesmos. Ento podemos alegrar-nos, no
porque eu tenha aprendido segredos que me do maior segurana e fora, mas porque ns, homens,
ganhmos domnio sobre uma maior poro do mundo; e seremos fortes, no por ns prprios, mas em
nome do Homem e da sua fora. Mas se a crena foi aceite com base em indcios insuficientes, um
prazer roubado. No s nos engana ao dar-nos um sentido do poder que efectivamente no temos, como
pecaminoso, porque roubado em desprezo pelo nosso dever perante a humanidade. Esse dever consiste
em precaver-nos de tais crenas como de uma epidemia, que pode em pouco tempo tomar conta do nosso
prprio corpo e ento propagar-se para o resto da cidade. O que se pensaria daquele que, por causa de
um fruto doce, corresse deliberadamente o risco de trazer uma epidemia sua famlia e aos seus
vizinhos?
E, como acontece noutros casos, no apenas o risco o que se tem de considerar; pois uma m aco
sempre m no momento em que praticada, independentemente do que acontea depois. Sempre que
nos permitimos acreditar por razes indignas, enfraquecemos os nossos poderes de autocontrolo, de
dvida, de avaliao imparcial e honesta dos indcios. Todos sofremos gravemente com a sustentao de
crenas falsas e as aces fatalmente incorrectas a que conduzem, e o mal que decorre de se sustentar tal
crena grande e vasto. Mas surge um mal maior e mais vasto quando o temperamento crdulo mantido
e apoiado, quando se acalenta e perpetua o hbito de acreditar por razes indignas. Se roubo dinheiro a
uma pessoa qualquer, talvez no resulte um grande mal da mera transferncia de posse; ela pode no
sentir a perda, ou talvez isto a impea de dar mau uso ao dinheiro. Mas no deixo de fazer este grande
mal humanidade: o de me tornar desonesto. O que lesa a sociedade no a perda da propriedade, mas o
de se tornar um covil de ladres; pois ento deixar forosamente de ser uma sociedade. Por esta razo
no devemos fazer um mal para que dele resulte um bem; pois em todo o caso da resulta este grande mal:
que fiz um mal e que por isso me tornei malvado. De igual modo, se me permito acreditar seja no que for
com indcios insuficientes, da mera crena pode no resultar grande mal; pode afinal ser verdadeira, ou
posso nunca ter ocasio de a manifestar em aces pblicas. Mas no deixo de cometer este grande mal
contra o Homem: o de me tornar crdulo. O perigo para a sociedade no meramente o de acreditar em
coisas erradas, embora isso seja suficientemente mau; mas o de se tornar crdula e perder o hbito de
testar as coisas e de as investigar; pois ento reincidir forosamente na selvajaria.
O mal que a credulidade faz num homem no se limita estimulao de um carcter crdulo nos
outros e decorrente defesa de crenas falsas. O hbito de ser descuidado com aquilo em que acredito
leva os outros a serem por hbito descuidados com a verdade daquilo que me dito. Os homens dizem a
verdade uns aos outros quando cada um respeita a verdade na sua prpria mente e na mente do outro; mas
como poder o meu amigo respeitar a verdade na minha mente quando eu prprio sou descuidado com
ela, quando acredito em coisas porque quero acreditar nelas, porque so reconfortantes e agradveis?
No aprender ele a exclamar paz, na minha presena, quando no h qualquer paz? Adoptando tal
caminho, envolver-me-ei numa atmosfera carregada de falsidade e fraude e a tenho de viver. Talvez seja
de pouca importncia para mim, no meu castelo nas nuvens, feito de doces iluses e mentiras queridas;
mas para a humanidade de enorme importncia que eu tenha preparado os meus vizinhos para
enganarem. O homem crdulo o pai do mentiroso e do batoteiro; vive no seio da sua famlia, e no de
admirar que fique igualzinho a eles. To intimamente unidos esto os nossos deveres que quem observa a
lei em geral e, no entanto, a transgride num ponto particular, culpado de tudo.
Resumindo: sempre incorrecto, em todo o lado, para qualquer pessoa, acreditar seja no que for com
base em indcios insuficientes.
Se um homem, ao manter uma crena que lhe foi ensinada em criana ou da qual o persuadiram mais
tarde, reprime e afasta quaisquer dvidas que lhe surgem na mente a esse respeito, evita intencionalmente
a leitura de livros e a companhia de homens que questionam ou discutem essa crena, e considera mpias
as perguntas que no se pode colocar facilmente sem a perturbar a vida desse homem um enorme
pecado contra a humanidade.
Se este juzo parece severo quando aplicado quelas almas simples que nunca conheceram outra
coisa, que desde o bero foram educadas no horror dvida, a quem ensinaram que o seu bem-estar
eterno depende daquilo em que acreditam, ento leva-nos questo muito grave: Quem fez Israel pecar?
Talvez se me permita reforar este juzo com o veredicto de Milton:2

Um homem pode ser um hertico na verdade; e se acredita nas coisas apenas porque o seu pastor o
afirma, ou a assembleia assim o determina, sem conhecer outra razo, embora a sua crena seja
verdadeira, a prpria verdade que sustenta torna-se a sua heresia.

E com este famoso aforismo de Coleridge:3

Quem comea por amar mais o cristianismo do que a verdade, comear a amar mais a sua prpria
seita ou igreja do que o cristianismo, e acabar por se amar a si prprio mais do que a tudo.

A investigao dos indcios respeitantes a uma doutrina no se faz de uma vez por todas para ento se
assumir como definitivamente resolvida. Nunca legtimo silenciar uma dvida; pois que ou se lhe pode
responder honestamente atravs da investigao j feita, ou ento a dvida a prova de que a
investigao no est completa.
Mas, dir-se-, sou um homem ocupado; no tenho tempo para os demorados estudos que seriam
necessrios para me dar alguma competncia para avaliar certas questes, ou mesmo para me tornar
capaz de compreender a natureza dos argumentos. Nesse caso, no deveria ter tempo para acreditar.
II. O peso da autoridade
Teremos ento de nos tornar cpticos universais, duvidando de tudo, sempre receosos de pr um p
frente do outro antes de termos testado pessoalmente a solidez do pavimento? Teremos de nos privar da
ajuda e orientao daquele vasto corpo de conhecimento que cresce diariamente em todo o mundo,
porque nem ns nem qualquer outra pessoa pode em circunstncia alguma testar a centsima parte desse
conhecimento por experincia imediata ou por observao, e porque no estaria completamente provado
se o fizssemos? Roubaremos e pregaremos mentiras por no termos tido uma experincia pessoal
suficientemente vasta para justificar a crena de que incorrecto faz-lo?
No h qualquer perigo prtico de que tais consequncias alguma vez decorram do cuidado
escrupuloso e do autocontrolo em matria de crena. Aqueles homens que mais se aproximaram de
cumprir o seu dever a este respeito consideraram que certos princpios muito importantes, sendo estes os
mais apropriados para a orientao da vida, se destacaram cada vez mais nitidamente em proporo ao
cuidado e honestidade com que foram testados, e adquiriram assim uma certeza prtica. As crenas
acerca do que correcto ou incorrecto, que orientam as nossas aces ao lidar com os homens em
sociedade, e as crenas acerca da natureza fsica que orientam as nossas aces ao lidar com corpos
animados e inanimados, nunca so prejudicadas pela investigao; estas sabem tomar conta de si
prprias, sem serem sustentadas com actos de f, com o alarido de apologistas remunerados ou com a
supresso de indcios contrrios. Alm disso, h muitos casos em que temos o dever de agir com base em
probabilidades, embora os indcios no sejam tais que justifiquem a crena em causa; porque
precisamente por tal aco e pela observao dos seus resultados que se obtm indcios que podem
justificar a crena futura. Pelo que no temos qualquer razo para temer que um hbito de investigao
escrupulosa paralise as aces da nossa vida quotidiana.
Mas porque no basta afirmar incorrecto acreditar com base em indcios indignos sem explicar
tambm que indcios so dignos, passamos agora a investigar as circunstncias em que legtimo
acreditar com base no testemunho de outros; e depois, alm disso, investigaremos mais em geral quando e
por que razo podemos acreditar naquilo que ultrapassa a nossa experincia, ou mesmo a experincia da
humanidade.
Assim, perguntemos, antes de mais, em que casos o testemunho de um homem no digno de crdito.
Este pode afirmar o que contrrio verdade, sabendo-o ou no. No primeiro caso, mente, e o seu
carcter moral culpvel; no segundo, ignorante ou est equivocado, e apenas o seu conhecimento ou
discernimento esto em falta. De maneira a podermos ter o direito de aceitar o seu testemunho como base
para acreditar no que afirma, precisamos de uma justificao razovel para confiar na sua veracidade:
que ele procura realmente dizer a verdade na medida em que a conhece; no seu conhecimento: que teve
oportunidade de conhecer a verdade acerca deste assunto; e no seu discernimento: que fez um uso
apropriado dessas oportunidades ao chegar concluso que anuncia.
Por muito simples e bvias que sejam estas razes, de modo que nenhum homem de inteligncia
mediana, ao reflectir no assunto, pode deixar de alcan-las, ainda assim verdadeiro que um grande
nmero de pessoas tem por hbito desconsider-las ao avaliar um testemunho. Das duas questes,
igualmente importantes para a credibilidade da testemunha, desonesto? e Pode estar enganada?, os
membros da humanidade, na sua maioria, ficam perfeitamente satisfeitos se a uma delas se pode, com
alguma probabilidade, responder pela negativa. O excelente carcter moral de um homem apresentado
como justificao para aceitar as suas declaraes acerca de coisas que no pode de maneira alguma
conhecer. Um maometano, por exemplo, dir-nos- que o carcter do seu Profeta era to nobre e majestoso
que impe reverncia mesmo queles que no acreditam na sua misso. To admirvel foi o seu
ensinamento moral, to sabiamente edificada a mquina social que criou, que no s uma grande parcela
da humanidade aceitou os seus preceitos, como lhes tem efectivamente obedecido. As suas instituies,
por outro lado, fizeram o negro sair da selvajaria e por outro lado ensinaram a civilizao ao Ocidente
em desenvolvimento; e embora os povos que detinham as formas mais elevadas da sua f, e que mais
plenamente davam corpo aos seus ideais e pensamento, tenham todos sido conquistados e dizimados por
tribos brbaras, a histria dos seus feitos maravilhosos permanece uma glria imperecvel para o Islo.
Poderemos duvidar da palavra de um homem to grandioso e to bom? Poderemos supor que este
magnfico gnio, este esplndido heri moral, nos mentiu acerca das matrias mais solenes e sagradas? O
testemunho de Maom claro: que no h seno um Deus, e que ele, Maom, o seu Profeta; que se
acreditarmos nele, gozaremos da felicidade perptua, mas que se no acreditarmos, seremos condenados.
Este testemunho assenta no mais terrvel dos alicerces, a revelao dos prprios cus; pois no foi ele
visitado pelo anjo Gabriel, enquanto jejuava e rezava na sua gruta no deserto, tendo-lhe sido permitida a
entrada nos campos abenoados do Paraso? Seguramente que Deus Deus e Maom o Profeta de
Deus.
O que deveramos responder a este muulmano? Em primeiro lugar, sem dvida, talvez nos sintamos
tentados a protestar contra a sua perspectiva do carcter do Profeta e da influncia uniformemente
benigna do Islo: antes de o acompanharmos completamente nestes assuntos, parece que talvez
tivssemos de esquecer muitas coisas terrveis de que ouvimos falar ou que lemos. Mas se decidimos
conceder-lhe estes pressupostos, para fins de argumentao, e porque difcil tanto para o fiel como para
os infiis discuti-los imparcial e desapaixonadamente, ainda assim teramos algo a dizer que lhe retira a
base da sua crena, mostrando, portanto, que incorrecto sustent-la. Nomeadamente, o seguinte: o
carcter de Maom um excelente indcio de que era honesto e dizia a verdade tanto quanto a sabia; mas
no indcio, de todo em todo, de que soubesse o que era a verdade. Que meios teria de saber que a
forma que lhe pareceu o anjo Gabriel no era uma alucinao e que a sua aparente visita ao Paraso no
foi um sonho? Conceda-se que ele prprio estava plenamente persuadido e acreditava honestamente que
tinha a orientao dos cus e era o veculo de uma revelao sobrenatural, como podia saber que esta
forte convico no era um equvoco? Coloquemo-nos no seu lugar; veremos que quanto mais nos
esforarmos por compreender plenamente o que lhe passava pela mente, mais claramente veremos que o
Profeta no podia ter qualquer sustentao adequada para a crena na sua prpria inspirao.
muitssimo provvel que ele prprio nunca tenha duvidado do assunto, ou sequer pensasse em colocar a
questo; mas ns falamos do ponto de vista daqueles a quem foi colocada a pergunta e que tm de lhe dar
uma resposta. do conhecimento dos observadores mdicos que a solido e a carncia alimentar so
meios poderosos de produzir a deluso e de fomentar uma tendncia para a doena mental.4 Suponhamos
ento que, como Maom, vou para lugares desertos jejuar e rezar; que coisas me podem acontecer que me
daro o direito de acreditar que recebi a inspirao divina? Suponhamos que recebo informao,
aparentemente de um visitante celestial, que, ao ser testada, se considera correcta. No posso ter a
certeza, em primeiro lugar, de que o visitante celestial no um produto da minha prpria imaginao e
que a informao no me chegou, sem que na altura tivesse conscincia disso, atravs de um qualquer
meio sensorial subtil. Mas se o meu visitante era um visitante real e durante muito tempo me deu
informao que se concluiu ser fidedigna, isto constituiria de facto uma justificao para confiar nele
futuramente, no que diz respeito a assuntos que entram no mbito da capacidade humana de verificao;
mas no seria justificao para confiar no seu testemunho em quaisquer outros assuntos. Pois embora o
seu carcter comprovado me desse justificao para acreditar que dizia a verdade tanto quanto a sabia,
colocar-se-ia a mesma questo: que justificao h para supor que ele sabe?
Mesmo que o meu hipottico visitante me tivesse dado tal informao, subsequentemente verificada
por mim, probatria de que dispunha de meios de conhecimento, acerca de assuntos verificveis,
muitssimo superiores aos meus, isto no me daria justificao para acreditar no que ele afirmava acerca
de assuntos que de momento no so susceptveis de verificao pelo homem. Daria suporte a uma
conjectura interessante e esperana de que, em resultado da nossa investigao paciente, pudssemos
eventualmente conseguir tais meios de verificao, que justificadamente transformariam a conjectura em
crena. Pois a crena pertence ao homem e orientao dos assuntos humanos: nenhuma crena real a
menos que oriente as nossas aces, e essas mesmas aces fornecem um teste da sua verdade.
Mas, replicar-se-, a aceitao do Islo como um sistema precisamente a aco que encorajada
pela crena na misso do Profeta, e que servir para um teste da sua verdade. Ser possvel acreditar que
um sistema que prosperou tanto est realmente fundado numa deluso? No s os santos individuais
encontraram alegria e paz na crena, e verificaram essas experincias espirituais que so prometidas aos
fiis, como tambm se ergueu naes da selvajaria e do barbarismo at um estado social mais elevado.
Seguramente podemos afirmar que se agiu com base na crena e que foi verificada.
No se exige, todavia, seno alguma ponderao para mostrar que aquilo que realmente se verificou
no de todo em todo o carcter celestial da misso do Profeta, ou a fidedignidade da sua autoridade em
assuntos que ns prprios no temos como testar, mas apenas a sua sabedoria prtica em certas coisas
bastante mundanas. O facto de que os crentes encontraram alegria e paz na crena d-nos o direito de
afirmar que a doutrina confortvel, agradvel alma; mas no nos d o direito de afirmar que
verdadeira. E a questo que a nossa conscincia levanta sempre acerca daquilo em que nos sentimos
tentados a acreditar no Ser confortvel e agradvel?, mas Ser verdadeira?. Que o Profeta
pregou determinadas doutrinas e previu que nelas se encontraria o conforto espiritual, prova apenas a sua
compaixo pela natureza humana e o seu conhecimento da mesma; mas no prova o seu conhecimento
sobre-humano da teologia.
E se admitimos para fins de argumentao (pois parece que mais no podemos fazer) que o progresso
feito pelas naes muulmanas em certos casos se deve realmente ao sistema formado e lanado no
mundo por Maom, no nos permitido concluir a partir daqui que ele foi inspirado a declarar a verdade
acerca de coisas que no podemos verificar. S nos permitido inferir a excelncia dos seus preceitos
morais, ou dos meios que concebeu para levar os homens a obedecer-lhes, ou da maquinaria social e
poltica que estabeleceu. E seria preciso examinar muito cuidadosamente a histria destas naes para
determinar quais destas coisas influenciaram mais o resultado. Pelo que, mais uma vez, o conhecimento
do Profeta acerca da natureza humana e a sua compaixo pela mesma que se verificam; e no a sua
inspirao divina ou o seu conhecimento da teologia.
Se houvesse apenas um Profeta, com efeito, podia muito bem parecer uma tarefa difcil e mesmo
desagradvel decidir os aspectos com base nos quais confiaramos nele e os aspectos com base nos quais
duvidaramos da sua autoridade, vendo a ajuda e o progresso que todos os homens ganharam em todas as
pocas com os que viam mais claramente, sentiam mais fortemente e procuravam a verdade com maior
dedicao do que os seus irmos mais fracos. Mas no h s um Profeta; e ao passo que o consentimento
de muitos naquilo que, como homens, tinham meios genunos de conhecer e conheciam, persistiu at ao
fim e foi honrosamente integrado na grande estrutura do conhecimento humano, o testemunho divergente
de alguns acerca daquilo que no conheciam nem podiam conhecer um aviso permanente de que
exagerar a autoridade proftica us-la indevidamente e desonrar aqueles que apenas nos procuraram
ajudar e fazer avanar com o seu poder. Dificilmente faz parte da natureza humana que um homem avalie
com bastante preciso os limites da sua prpria sagacidade; mas o dever daqueles que beneficiam com
o seu trabalho considerar cuidadosamente onde poder ele ter sido levado a ultrapassar esses limites. Se
temos de preservar os seus possveis erros juntamente com as suas slidas realizaes e usar a sua
autoridade como uma desculpa para acreditar naquilo que no pode ter sabido, fazemos da sua bondade
uma ocasio para pecar.
Considerando apenas um de tais testemunhos: os seguidores do Buda tm pelo menos o mesmo direito
de apelar experincia individual e social em defesa da autoridade do salvador do Oriente. Consta que a
marca distintiva da sua religio, na qual nunca foi ultrapassada, o conforto e consolo que d aos
doentes e infelizes, a compaixo afectuosa com que suaviza e alivia todas as dores naturais dos homens.
Seguramente que nenhum triunfo de moralidade social pode ser maior ou mais nobre do que aquele que
tem evitado que quase metade do gnero humano se dedique a perseguies em nome da religio. A
confiarmos nos relatos dos seus primeiros seguidores, Buda acreditava que viera Terra com a misso
divina e csmica de pr em movimento a roda da lei. Sendo prncipe, despojou-se do seu reino e, de
livre vontade, conheceu a misria, para aprender a lidar com ela e a subjug-la. Poderia tal homem falar
falsamente acerca de coisas solenes? E no que diz respeito ao seu conhecimento, no era ele um homem
milagroso com poderes sobre-humanos? Nasceu de uma mulher sem a ajuda de um homem; levitou e
transfigurou-se frente dos seus familiares; por fim ascendeu em forma corprea aos cus a partir do
topo do Pico de Ado.5 No haver que acreditar na sua palavra quando testemunha acerca de coisas
celestiais?
Se apenas ele, e nenhum outro, fizesse tais afirmaes! Mas h Maom com o seu testemunho; no
temos escolha seno escutar ambos. O Profeta diz-nos que h um Deus e que viveremos na alegria ou na
infelicidade eternas, consoante acreditamos ou no no Profeta. O Buda afirma que no h qualquer Deus e
que seremos completamente aniquilados se formos suficientemente bons. No podem ambos ser objecto
de uma inspirao infalvel; um ou outro teve de ter sido vtima de uma deluso, pensando saber o que na
realidade no sabia. Quem se atrever a afirmar qual dos dois? E como poderemos ter justificao para
acreditar que o outro no estava tambm deludido?
Chegamos assim aos juzos que se seguem. A bondade e a grandeza de um homem no nos do
justificao para aceitar uma crena com base na sua autoridade, a menos que haja uma base razovel
para supor que conhece a verdade daquilo que afirma. E no pode haver bases para supor que um homem
sabe aquilo que no se pode supor que ns, sem deixarmos de ser homens, podemos verificar.
Se a mim, que no sou qumico, um qumico afirmar que se pode obter uma determinada substncia
combinando outras substncias em certas propores e sujeitando-as a um processo conhecido, tenho
toda a justificao para acreditar nisto com base na sua autoridade, a menos que tenha conhecimento de
algo desfavorvel a respeito do seu carcter ou discernimento. Pois o seu treino profissional tal que
tende a encorajar a veracidade e a procura honesta da verdade, e a produzir um desprezo por concluses
precipitadas e pelo desleixo investigativo. Tenho uma base razovel para supor que ele conhece a
verdade daquilo que afirma, pois embora eu no seja um qumico, podem-me fazer compreender o
suficiente acerca dos mtodos e processos da cincia de maneira a que me seja possvel, sem deixar de
ser um homem, verificar a afirmao. Posso nunca a verificar efectivamente, ou mesmo ver qualquer
experincia tendente a verific-la; mas ainda assim tenho razo suficiente para justificar a minha crena
de que a verificao est ao alcance dos instrumentos e capacidades humanas, e em particular que foi
efectivamente realizada pelo meu informante. O resultado, a crena a que foi conduzido pelas suas
investigaes, vlida no s para ele, mas tambm para os outros; observada e testada pelos que
trabalham no mesmo campo, e estes sabem que no se pode prestar maior servio cincia do que
depurar os resultados aceites dos erros que neles se podem ter introduzido. desta maneira que o
resultado se torna patrimnio comum, um objecto apropriado de crena, a qual uma preocupao social
e um assunto de interesse pblico. Assim, h que observar que a autoridade do qumico vlida porque
h quem a questione e verifique; precisamente este processo de exame e depurao que mantm vivo
entre os investigadores o amor quilo que suportar todos os testes possveis, o sentido de
responsabilidade pblica por parte daqueles cujo trabalho, se for bem feito, persistir como a herana
duradoura da humanidade.
Mas se o meu qumico me diz que um tomo de oxignio existiu desde sempre, inalterado em peso e
taxa de vibrao, no tenho o direito de acreditar nisto com base na sua autoridade, pois se trata de algo
que ele no pode conhecer sem deixar de ser um homem. Pode muito honestamente acreditar que esta
afirmao uma inferncia legtima a partir das suas experincias, mas nesse caso o seu juzo est em
falta. Uma reflexo muito simples acerca do carcter das experincias mostrar-lhe-ia que estas nunca
podem conduzir a resultados desse tipo; que, sendo elas mesmas meramente aproximadas e limitadas, no
nos podem dar conhecimento exacto e universal. Nenhuma eminncia de carcter e gnio pode dar a um
homem a autoridade suficiente para justificar que acreditemos nele quando faz afirmaes que implicam
conhecimento exacto ou universal.
Uma vez mais, um explorador do rctico pode relatar-nos que, numa dada latitude e longitude, teve
experincia de um certo grau de frio, que o mar tinha uma certa profundidade e que o gelo tinha um certo
carcter. Teramos toda a razo em acreditar nele, na ausncia de algo que comprometa a sua veracidade.
concebvel podermos, sem deixarmos de ser homens, ir ao local e verificar a sua afirmao; pode ser
testada pelo testemunho dos seus companheiros e h uma base adequada para supor que conhece a
verdade daquilo que afirma. Mas se um velho baleeiro nos diz que o gelo tem 90 metros de espessura at
ao plo, no teremos justificao para acreditar nele. Pois embora a afirmao seja susceptvel de ser
verificada pelo homem, seguramente que no susceptvel de ser verificada por ele, com quaisquer
meios e instrumentos de que dispusesse; e deve ter-se persuadido da verdade daquilo que afirma por
meios que no do crdito algum ao seu testemunho. Ainda que, portanto, o contedo do que se afirma
esteja ao alcance do conhecimento humano, no temos o direito de aceit-lo com base na autoridade a
menos que esteja ao alcance do conhecimento do nosso informante.
O que diremos daquela que a autoridade mais venervel e augusta do que qualquer testemunho
individual, a tradio, consagrada pelo tempo, do gnero humano? Uma atmosfera de crena e
concepes que se formou pelos esforos e lutas dos nossos antepassados, que nos permite respirar por
entre as diversas e complexas circunstncias da nossa vida. Est nossa volta, perto de ns, e dentro de
ns; no podemos pensar seno nas formas e processos de pensamento que nos proporciona. Ser
possvel duvidar dela e test-la? E se for, ser correcto faz-lo?
Veremos razes para responder que no s possvel e correcto, como tambm o nosso dever
incontornvel; que o principal objectivo da prpria tradio dar-nos os meios de colocar questes, de
testar e investigar as coisas; que se lhe damos mau uso e a vemos como uma coleco de frases feitas a
ser aceites sem investigao complementar, no s nos prejudicamos a ns prprios, como, ao recusar
contribuir com a nossa parte para aumentar a estrutura que ser herdada pelos nossos filhos, contribumos
para nos apartarmos a ns e ao nosso gnero da linhagem humana.
Tomemos em primeiro lugar o cuidado de distinguir um tipo de tradio que urge examinar e pr em
causa, por ser particularmente esquiva investigao. Suponhamos que um curandeiro na frica Central
declara sua tribo que na sua tenda se propiciar uma certa poo poderosa se matarem o gado da tribo,
e que esta acredita nele. No h maneira de verificar se a poo se propiciou ou no, mas o gado foi-se.
Ainda assim, pode-se manter na tribo a crena de que a propiciao se realizou desta maneira; e numa
gerao posterior ser tanto mais fcil a outro curandeiro persuadi-los de um acto semelhante. Aqui a
nica razo para acreditar que toda a gente acreditou durante tanto tempo na mesma coisa que deve ser
verdadeiro. E, no entanto, a crena foi fundada numa fraude e propagada pela credulidade. Sem dvida
que agir correctamente e ser amigo dos homens aquele que a questionar e vir que no h indcios a seu
favor, que ajudar os seus vizinhos a ver como ele, e at, se for preciso, que entrar na tenda sagrada e
destruir a poo.
A regra que nos devia orientar em tais casos bastante simples e bvia: que o testemunho conjunto
dos nossos vizinhos est sujeito s mesmas condies que o testemunho de qualquer um deles em
separado. Nomeadamente, no temos o direito de acreditar que algo verdadeiro porque toda a gente diz
que , a menos que haja boas razes para acreditar que pelo menos uma dessas pessoas tem os meios de
conhecer a verdade, e que fala a verdade tanto quanto a conhece. Por muitas naes e geraes de
homens que se traga ao banco das testemunhas, no podem testemunhar coisa alguma de que no tenham
conhecimento. Todo aquele que tenha aceitado a afirmao de outrem, sem ele prprio a verificar, est
excludo do tribunal; a sua palavra no vale, em rigor, coisa alguma. E quando finalmente regressamos
verdadeira origem da afirmao, temos de tirar duas questes do caminho, a respeito da primeira pessoa
que fez a afirmao: estaria ela enganada ao pensar que sabia algo acerca deste assunto, ou estaria a
mentir?
Esta ltima questo infelizmente muitssimo actual e prtica, mesmo para ns, nesta poca e neste
pas. No preciso ir a La Salette, ou frica Central, ou a Lourdes, para ter exemplos de superstio
imoral e degradante. muito bem possvel que uma criana cresa em Londres rodeada de uma atmosfera
de crenas unicamente apropriadas a selvagens, que nos nossos dias se fundaram na fraude e propagaram
pela credulidade.
Pondo ento de lado as tradies que passam sucessivamente de gerao para gerao sem serem
testadas, consideremos aquilo que verdadeiramente construdo a partir da experincia comum da
humanidade. Esta grandiosa estrutura serve-nos para orientar os nossos pensamentos e, por meio deles,
as nossas aces, tanto no mundo moral como no material. No mundo moral, por exemplo, d-nos as
concepes da rectido em geral, da justia, da verdade, da beneficncia, e coisas semelhantes. Estas
apresentam-se como concepes, e no como afirmaes ou proposies; respondem a certos instintos
definidos que seguramente se encontram em ns, seja por que meio l foram parar. Que correcto ser
beneficente objecto da experincia pessoal imediata; pois quando um homem se recolhe ao seu ntimo e
a encontra algo mais vasto e mais duradouro do que a sua personalidade solitria, algo que afirma
Quero agir rectamente, bem como Quero fazer bem ao homem, pode verificar por observao
directa que um instinto se funda no outro e concorda inteiramente com ele. E o seu dever verificar esta
afirmao e outras semelhantes.
A tradio afirma tambm, num local e poca especficos, que determinadas aces so justas, ou
verdadeiras, ou beneficentes. Para todas essas regras se precisa de uma investigao complementar, pois
so por vezes estabelecidas por uma autoridade que no o sentido moral fundado na experincia. At
recentemente, a tradio moral do nosso prprio pas e na verdade de toda a Europa ensinava que
era beneficente dar indiscriminadamente dinheiro aos pedintes. Mas o questionamento desta regra, e a
investigao da mesma, levaram os homens a ver que a verdadeira beneficncia aquela que ajuda um
homem a fazer o trabalho para o qual mais apto e no aquilo que o mantm na inactividade e a encoraja;
e que descurar esta distino no presente equivale a preparar a indigncia e a misria no futuro. Por este
exame e discusso no s a prtica se depurou e tornou mais beneficente, como a prpria concepo de
beneficncia se tornou mais lata e mais sbia. Agora a grande herana social consiste em duas partes; o
instinto de beneficncia, que, quando predomina, leva certa faceta da nossa natureza a desejar fazer bem
aos homens; e a concepo intelectual da beneficncia, que podemos comparar com qualquer conduta que
se apresente e perguntar: Ser isto beneficente ou no?. Ao colocar tais perguntas e responder-lhes
continuamente, a concepo cresce em flego e clareza e o instinto refora-se e purifica-se. Parece,
portanto, que a grande utilidade da concepo, a parte intelectual da herana, permitir-nos fazer
perguntas; atravs dessas perguntas, cresce e mantm-se recta; e se no a usamos para este fim perd-la-
emos completamente e ficaremos com um mero cdigo prescritivo a que j no se pode chamar, de todo
em todo, moralidade.
Tais consideraes aplicam-se de uma maneira ainda mais clara e bvia, se tal possvel, reserva
de crenas e concepes que os nossos pais acumularam para ns a respeito do mundo material. Estamos
prontos a rir do hbito do australiano que continua a amarrar o machado ao cabo, embora o serralheiro de
Birmingham lhe tenha feito propositadamente um buraco para a inserir o cabo. Os do seu povo amarram
assim os machados h geraes: quem ele para se opor sua sabedoria? Desceu tanto que no consegue
fazer aquilo que alguns deles tiveram de fazer no passado distante pr em causa um uso estabelecido e
inventar ou aprender algo melhor. No entanto, aqui, no amanhecer do conhecimento, onde a cincia e a
arte so uma s, encontramos apenas a mesma regra simples que se aplica s mais elevadas e s mais
profundas ramificaes daquela rvore csmica; aos seus mais imponentes ramos floridos bem como s
mais profundas das suas razes escondidas; a regra, nomeadamente, de que quem faz um uso apropriado
daquilo que foi acumulado e que nos foi transmitido quem age da mesma maneira que os criadores
agiram, quando o acumularam; os que o usam para fazer mais perguntas, para examinar, para investigar;
que procuram com honestidade e seriedade descobrir qual a maneira correcta de ver as coisas e de lidar
com elas.
Uma pergunta apropriadamente colocada j metade da resposta, afirmou Jacobi; podemos
acrescentar que o mtodo de a solucionar a outra metade da resposta, e que o resultado efectivo para
nada conta ao lado destas duas. Tomemos como exemplo o telgrafo, onde a teoria e a prtica, ambas
desenvolvidas discretamente ao longo dos anos, se unem para servir vantajosamente o homem. Ohm
descobriu que a intensidade de uma corrente elctrica directamente proporcional potncia da bateria
que a produz, e inversamente proporcional extenso do fio condutor que tem de percorrer. A isto se
chama lei de Ohm; mas o resultado, encarado como uma afirmao na qual acreditar, no a parte
valiosa do mesmo. A primeira metade a pergunta Que relao se verifica entre estas quantidades?
Assim formulada, a pergunta envolve j a concepo de intensidade da corrente e da potncia da bateria,
como quantidades a medir e comparar; sugere claramente que so estas as coisas com que se tem de lidar
no estudo das correntes elctricas. A segunda metade o mtodo de investigao: como medir estas
quantidades, de que instrumentos se precisa para a experincia e como devem ser usados? No se pede
ao estudante, que comea a sua aprendizagem na electricidade, que acredite na lei de Ohm; fazem-no
compreender a pergunta, colocam-no diante dos instrumentos e ensinam-no a verific-la. Aprende a fazer
coisas, e no a pensar que sabe coisas; a usar os instrumentos e a fazer perguntas, e no a aceitar uma
afirmao tradicional. A pergunta que para ser apropriadamente colocada exigiu um gnio respondida
por um principiante. Se a lei de Ohm subitamente se perdesse e fosse esquecida por todos os homens,
mas preservando-se a pergunta e o mtodo de soluo, o resultado podia ser redescoberto numa hora.
Mas o resultado por si s, se conhecido por um povo que no pudesse compreender o valor da questo ou
os meios de a resolver, seria como um relgio nas mos de um selvagem que no lhe soubesse dar corda
ou um navio a vapor manobrado por maquinistas espanhis.
A respeito, portanto, da sagrada tradio da humanidade, aprendemos que no consiste em
proposies ou afirmaes que se tem de aceitar e nas quais se tem de acreditar com base na autoridade
da tradio, mas em perguntas apropriadamente colocadas, em noes que nos permitem levantar
perguntas complementares, e em mtodos de lhes responder. O valor de todas estas coisas depende de
serem testadas quotidianamente. O prprio carcter sagrado do precioso depsito impe-nos o dever e a
responsabilidade de o testar, de o depurar e alargar at ao mximo das nossas capacidades. Aquele que
se serve dos resultados desta tradio para silenciar as prprias dvidas, ou para impedir a investigao
por parte dos outros, culpado de um sacrilgio que os sculos jamais apagaro. Quando os trabalhos e
as investigaes de homens honestos e corajosos tiverem elevado a estrutura da verdade conhecida a uma
glria que ns nesta gerao nem podemos esperar nem imaginar, naquele templo puro e sagrado no ter
ele parte nem quinho, mas o seu nome e as suas obras sero lanados nas trevas do esquecimento para
sempre.
III. Os limites da inferncia
A questo dos casos em que podemos acreditar naquilo que ultrapassa a nossa experincia muito ampla
e delicada, abarcando toda a extenso do mtodo cientfico, e exigindo um aumento considervel da sua
aplicao antes de lhe podermos dar alguma resposta que seja mais ou menos completa. Mas pode-se
aqui aflorar e formular brevemente uma regra de extrema simplicidade e enorme importncia prtica, que
se situa no limiar deste tema.
Um pouco de reflexo mostrar-nos- que todas as crenas, at as mais simples e mais fundamentais,
ultrapassam a nossa experincia quando so encaradas como guias para as nossas aces. Uma criana
que se queimou teme o fogo, porque acredita que o fogo a queimar hoje tal como ontem; mas esta crena
vai alm da experincia e pressupe que o desconhecido fogo de hoje como o fogo de ontem. Mesmo a
crena de que a criana se queimou ontem vai alm da experincia presente, que contm apenas a
memria de uma queimadura, e no a prpria queimadura; pressupe, portanto, que esta memria
fidedigna, embora saibamos que uma memria pode amide estar incorrecta. Mas se h que a usar como
guia para a aco, como uma pista daquilo que ser o futuro, tem de pressupor algo acerca desse futuro,
nomeadamente, que ser consistente com a suposio de que a queimadura realmente ocorreu ontem; o
que ir alm da experincia. Mesmo o fundamental Eu sou, de que no se pode duvidar, no um guia
para a aco at se tornar Eu serei, que vai alm da experincia. A questo no , portanto, Podemos
acreditar no que ultrapassa a experincia? pois isto est envolvido na prpria natureza da crena; mas
At que ponto e de que maneira podemos alargar a nossa experincia ao formar as nossas crenas?
E o exemplo que considermos uma criana que se queimou teme o fogo sugere uma resposta
extremamente simples e universal. Podemos ir alm da experincia pressupondo que aquilo que no
sabemos como aquilo que sabemos; ou, por outras palavras, podemos alargar a nossa experincia
pressupondo a uniformidade da natureza. O que esta uniformidade exactamente, como adquirimos maior
conhecimento dela de gerao para gerao, so questes que de momento deixamos de lado,
contentando-nos em examinar dois exemplos que podero servir para tornar mais clara a natureza da
regra.
A partir de certas observaes feitas ao espectroscpio, inferimos a existncia de hidrognio no Sol.
Olhando para o espectroscpio quando o Sol incide na sua abertura, vemos determinadas linhas
luminosas: e experincias realizadas com corpos na Terra ensinaram-nos que quando se v estas linhas
luminosas a fonte delas o hidrognio. Pressupomos, portanto, que as linhas luminosas desconhecidas no
Sol so como as linhas luminosas conhecidas do laboratrio, e que o hidrognio no Sol se comporta
como o hidrognio se comportaria na Terra em circunstncias idnticas.
Mas no estamos a confiar demasiado no nosso espectroscpio? Seguramente que tendo-o
considerado fidedigno para substncias terrestres, onde as suas asseres podem ser verificadas pelo
homem, temos justificao para aceitar o seu testemunho noutros casos semelhantes; mas no quando nos
d informao acerca de coisas que esto no Sol, onde o seu testemunho no pode ser directamente
verificado pelo homem, certo?
Queremos sem dvida saber um pouco mais antes de se poder justificar esta inferncia; e felizmente
sabemo-lo. O espectroscpio testemunha exactamente a mesma coisa nos dois casos; nomeadamente, que
atravs dele passam vibraes de luz de dada proporo. A sua construo tal que se estivesse errado
acerca disto num caso, estaria errado no outro. Quando comeamos a examinar o assunto, descobrimos
que pressupomos realmente que a matria do Sol como a matria da Terra, composta por dado nmero
de substncias distintas; e que cada uma destas, quando muito quente, tem uma taxa de vibrao distinta,
pela qual se pode reconhecer e isolar do resto. Mas este o tipo de pressuposto que temos justificao
para usar quando alargamos a nossa experincia. um pressuposto de uniformidade na natureza, e s se
pode verificar por comparao com muitos pressupostos semelhantes que temos de fazer noutros casos
semelhantes.
Mas ser verdadeira a crena na existncia de hidrognio no Sol? Poder ajudar na orientao
correcta da aco humana?
Certamente que no, se as bases para a aceitar forem indignas e desprovidas de qualquer
compreenso do processo pelo qual se obtm essa crena. Mas quando se compreende este processo
como a base para a crena, torna-se uma questo bastante sria e prtica. Pois se no h hidrognio no
Sol, o espectroscpio o que o mesmo que dizer, a medida das taxas de vibrao ter de ser um
guia inexacto no reconhecimento de substncias diferentes; e consequentemente no se deveria us-lo na
anlise qumica nos ensaios qumicos, por exemplo para maior economia de tempo, dificuldades e
dinheiro. Ao passo que a aceitao do mtodo espectroscpico como fidedigno no s nos enriqueceu
com novos metais, o que ptimo, mas tambm com novos processos de investigao, o que ainda
melhor.
Para outro exemplo, consideremos o modo como inferimos a verdade de um acontecimento histrico
por exemplo, o cerco de Siracusa durante a guerra do Peloponeso. A nossa experincia existirem
manuscritos dos quais se afirma serem os manuscritos da histria de Tucdides e que se referem a si
prprios desse modo; que noutros manuscritos, atribudos a historiadores subsequentes, se afirma que
viveu durante o perodo em que se deu a guerra; e que livros que supostamente datam do renascer do
saber nos dizem como estes manuscritos foram preservados e onde foram adquiridos. Depreendemos
tambm que em geral os homens no forjam livros e histrias sem um motivo especial; pressupomos que
neste aspecto os homens do passado eram como os homens do presente; e observamos que neste caso no
se apresentava qualquer motivo especial. Isto , alargamos a nossa experincia no pressuposto de uma
uniformidade nos caracteres do homem. Porque o nosso conhecimento desta uniformidade muitssimo
menos completo e exacto do que o nosso conhecimento daquilo que se verifica na fsica, as inferncias
do tipo histrico so mais instveis e menos exactas do que as inferncias em muitas outras cincias.
Mas se h alguma razo especial para suspeitar do carcter das pessoas que escreveram ou
transmitiram certos livros, o caso muda de figura. Se um grupo de documentos apresenta indcios internos
de terem sido produzidos entre pessoas que forjavam livros em nome de outras, e que, ao descrever os
acontecimentos, suprimiam as coisas que no lhes convinham, enquanto engrandeciam o que lhes
convinha; que no s cometeram estes crimes, como se regozijaram neles como provas de humildade e de
zelo; temos ento de afirmar que no se pode basear em tais documentos qualquer inferncia histrica
genuna, mas apenas conjecturas insatisfatrias.
Podemos, ento, alargar a nossa experincia no pressuposto de uma uniformidade na natureza;
podemos preencher a nossa imagem daquilo que e daquilo que foi, medida que a experincia a
fornece, de maneira a tornar o todo consistente com esta uniformidade. E a inferncia praticamente
demonstrativa o que nos d o direito de acreditar no seu resultado uma amostra clara de que s
pela verdade deste resultado se pode salvaguardar a uniformidade da natureza.
Nenhum indcio, portanto, pode dar-nos justificao para acreditar na verdade de uma afirmao que
seja contrria ou exterior uniformidade da natureza. Se a nossa experincia tal que no a podemos
preencher consistentemente com uniformidade, tudo o que temos direito a concluir que ocorreu um erro
algures; mas a possibilidade da inferncia afastada; temos de nos apoiar na nossa experincia, e no ir
alm dela de maneira alguma. Se de facto ocorresse um acontecimento que no fizesse parte da
uniformidade da natureza, teria duas propriedades: nenhum indcio poderia dar fosse a quem fosse o
direito de acreditar nele excepto queles que efectivamente tiveram a experincia; e nenhuma inferncia
digna de crdito se podia fundar nela, de todo em todo.
Teremos ento forosamente de acreditar que a natureza absoluta e universalmente uniforme?
Certamente que no, no temos direito de acreditar em seja o que for deste gnero. A regra apenas nos diz
que ao formar crenas que vo alm da experincia temos de pressupor que a natureza , para efeitos
prticos, uniforme, no que nos diz respeito. No mbito da aco e verificao humanas, podemos formar,
com a ajuda deste pressuposto, as crenas propriamente ditas; para l dele, s podemos formar aquelas
hipteses que servem para a colocao mais precisa das perguntas.
Resumindo:
Podemos acreditar no que ultrapassa a nossa experincia apenas quando o inferimos a partir dessa
experincia pelo pressuposto de que aquilo que no conhecemos como aquilo que conhecemos.
Podemos acreditar na afirmao de outra pessoa, quando h uma base razovel para supor que ela
conhece o assunto de que fala, e que fala a verdade tanto quanto a sabe.
incorrecto em todas as circunstncias acreditar com base em indcios insuficientes; e onde duvidar
e investigar uma presuno, acreditar a pior do que uma presuno.
Areopagitica.
Aids to Reflection.
preciso no confundir iluso com deluso. Enquanto a iluso tem como resultado uma crena ou
conjunto de crenas do indivduo, no pondo em causa a sua compreenso global da realidade, a deluso
um estado mental em que a compreenso da realidade pelo indivduo est inteiramente comprometida.
Um bom exemplo de iluso pensar que estamos a ver uma pessoa ao longe quando na verdade uma
rvore; um bom exemplo de deluso o fanatismo poltico que pode distorcer totalmente a compreenso
da realidade. (N. do T.)
O monte Sri Pada, no Sri Lanka (antigo Ceilo). Local de importncia religiosa para diversas tradies.
(N. do T.)
3. A vontade de acreditar

William James

Na biografia recentemente publicada que Leslie Stephen escreveu sobre o seu irmo, Fitzjames, h o
relato de uma escola que este frequentou em criana. O professor, um tal Sr. Guest, tinha o hbito de falar
com os seus alunos nestes termos: Gurney, qual a diferena entre justificao e santificao? Stephen,
prova a omnipotncia de Deus!, etc. No seio do nosso livre-pensamento e indiferena de Harvard,
tendemos a imaginar que aqui, no nosso bom velho colgio ortodoxo, a conversa continua mais ou menos
nestes parmetros; e para vos mostrar que em Harvard no perdemos todo o interesse nestes assuntos
vitais, trouxe comigo esta noite algo de semelhante a um sermo acerca da justificao pela f, para vo-lo
ler falo de um ensaio sobre a justificao da f, uma defesa do nosso direito a adoptar uma atitude
crente em assuntos religiosos, apesar de o nosso intelecto meramente lgico poder no ter sido
compelido. A Vontade de Acreditar, consequentemente, o ttulo do meu artigo.
H muito que defendo perante os meus prprios alunos a legitimidade da f adoptada
voluntariamente; mas assim que ficam bem adentrados no esprito lgico, tm por norma recusar admitir a
legitimidade filosfica da minha assero, embora eles mesmos, na verdade, estejam todos, pessoalmente
e a cada momento, repletos de uma f ou outra. Mantive-me sempre, contudo, to profundamente convicto
de que a minha posio est correcta, que o vosso convite me pareceu uma boa ocasio para esclarecer
as minhas afirmaes. Talvez as vossas mentes estejam mais abertas do que aquelas com que at agora
tive de lidar. Serei o menos tcnico possvel, embora tenha de comear por estabelecer algumas
distines tcnicas que acabaro por nos ajudar.
I
Chamemos hiptese a qualquer coisa que se proponha como objecto da nossa crena; e tal como os
linguistas6 falam em metforas vivas e mortas, diremos que uma hiptese qualquer est viva ou morta.
Uma hiptese est viva se parece uma possibilidade real pessoa a quem se apresenta. Se vos peo que
acreditem no Mdi, esta noo no estabelece qualquer conexo vvida com a vossa natureza escusa-
se de todo em todo a pulsar com alguma credibilidade. Como hiptese, est completamente morta. Para
um rabe, contudo, (mesmo que no pertena aos seguidores do Mdi), esta hiptese encontra-se entre as
possibilidades da mente: est viva. Isto mostra que a morbidez e a vividez numa hiptese no so
propriedades intrnsecas, mas relaes entre a hiptese e o pensador individual. So aferidas pela sua
inclinao para agir. O mximo de vividez numa hiptese significa inclinao para agir
irrevogavelmente. Na prtica, isto quer dizer crena; mas h uma tendncia para acreditar onde quer que
haja disposio para agir.
Em seguida, chamemos opo deciso entre duas hipteses. As opes podem ser de tipos
diferentes. Podem ser: 1) vivas ou mortas, 2) forosas ou evitveis, 3) momentosas ou triviais; e para o
que nos interessa, podemos chamar genuna a uma opo quando pertence ao tipo das opes que so
forosas, vivas e momentosas.

1. Uma opo viva uma opo em que ambas as hipteses esto vivas. Se vos digo: Sejam
teosofistas ou maometanos, trata-se provavelmente de uma opo morta, porque para vs nenhuma
das hipteses tem probabilidade de estar viva. Mas se afirmo: Sejam agnsticos ou cristos, a
histria outra: dada a vossa formao, cada hiptese apela, por muito pouco que seja, vossa
crena.
2. De seguida, se vos digo: Escolham entre sair com ou sem a vossa umbrela, no vos ofereo uma
opo genuna, pois no forosa. Podem facilmente evit-la no saindo sequer. De igual modo, se
digo Ou me amam ou me odeiam, ou consideram a minha teoria verdadeira ou a consideram
falsa, a vossa opo evitvel. Podem permanecer indiferentes a mim, nem me amando nem me
odiando, e podem recusar-se a emitir qualquer juzo a respeito da minha teoria. Mas se digo Ou
aceitam esta verdade ou lhe passam ao lado, coloco-vos uma opo forosa, pois no h lugar fora
da alternativa. Todos os dilemas baseados numa disjuno lgica completa, sem a possibilidade de
no escolher, so opes deste tipo foroso.
3. Finalmente, se eu fosse o Dr. Nansen e vos convidasse a juntarem-se minha expedio ao Plo
Norte, a vossa opo seria momentosa; pois provavelmente no voltariam a ter uma oportunidade
semelhante, e o que escolhessem agora ou vos excluiria completamente do tipo de imortalidade
norte-polar ou colocaria pelo menos essa hiptese nas vossas mos. Quem recusa uma oportunidade
nica perde to seguramente o prmio como se tivesse tentado e falhado. Per contra, a opo
trivial quando a oportunidade no nica, quando o que est em causa insignificante, ou quando a
deciso reversvel se mais tarde se mostrar insensata. Tais opes triviais abundam na vida
cientfica. Um qumico considera que uma hiptese est suficientemente viva para passar um ano a
verific-la: acredita nela at esse ponto. Mas se as suas experincias se mostram duplamente
inconclusivas, perdoa-se a sua perda de tempo, no resultando da qualquer mal vital.

A nossa discusso ser mais fcil se tivermos bem presentes estas distines.
II
A questo seguinte a considerar a psicologia propriamente dita da opinio humana. Quando olhamos
para determinados factos, parece que a nossa natureza passional e volitiva est na raiz de todas as nossas
convices. Quando olhamos para outros factos, parece que essa natureza nada pode fazer depois do
intelecto se ter pronunciado. Consideremos antes de mais estes ltimos factos.
No parece absurdo, primeira vista, afirmar que as nossas opinies so modificveis segundo a
nossa vontade? Poder a nossa vontade ajudar ou estorvar o nosso intelecto na sua percepo da
verdade? Ser que podemos, querendo-o apenas, acreditar que a existncia de Abraham Lincoln um
mito e que os seus retratos na McClures Magazine so de outra pessoa? Ser que podemos, por qualquer
esforo da vontade, ou por fora de desejar que fosse verdadeiro, acreditar que estamos de boa sade
quando estamos acamados a berrar com reumatismo, ou ter a certeza de que a soma das duas notas de
dlar que temos no bolso perfaz cem dlares? Podemos afirmar qualquer destas coisas, mas no temos
de modo algum o poder de acreditar nelas; e precisamente de tais coisas que se faz o tecido das
verdades em que realmente acreditamos questes de facto, imediatas ou remotas, como afirmou Hume,
e relaes entre ideias, que ou esto l para ns ou no se as encararmos desse modo, e que no estando
no podem ser colocadas l por qualquer aco nossa.
Nos Pensamentos de Pascal h uma passagem clebre, conhecida na bibliografia como a aposta de
Pascal. A, Pascal tenta compelir-nos ao cristianismo argumentando como se a nossa preocupao com
a verdade se assemelhasse ao interesse que teramos num jogo de azar. Traduzidas livremente, eis as suas
palavras: tm ou de acreditar ou de no acreditar que Deus existe o que escolhem? A vossa razo
humana no pode decidir. Decorre um jogo entre vocs e a natureza das coisas que no dia do juzo vai
dar caras ou coroas. Ponderem quais seriam os vossos ganhos e perdas se apostassem tudo em caras, ou
na existncia de Deus: ao ganhar nessas circunstncias, ganhariam a beatitude eterna; perdendo, nada
perderiam sequer. Se nesta aposta houvesse uma infinidade de possibilidades e s uma favorvel a Deus,
deviam ainda assim apostar tudo em Deus; pois embora agindo desta maneira arrisquem seguramente uma
perda finita, qualquer perda finita razovel, at mesmo uma perda finita certa, se h sequer a
possibilidade de um ganho infinito. Vo, pois, tomar a gua benta e mandar recitar a missa; a crena vir
entorpecer-vos os escrpulos Cela vous fera croire et vous abtira. Por que no? No fundo, o que tm
a perder?
Provavelmente sentem que quando a f religiosa se exprime assim, na linguagem da mesa de jogo,
est a lanar os seus ltimos trunfos. Seguramente que a prpria crena pessoal que Pascal tem nas
missas e na gua benta teve uma origem muito diferente; e esta sua clebre pgina no seno um
argumento para outros, uma ltima tentativa desesperada de deitar mo a uma arma contra a dureza do
corao do descrente. Sentimos que uma f nas missas e na gua benta adoptada voluntariamente depois
de um clculo to mecnico careceria da alma interior da realidade da f; e se estivssemos ns prprios
no lugar da divindade, provavelmente teramos um prazer especial em impedir a crentes deste calibre o
acesso recompensa infinita. evidente que a menos que haja uma tendncia preexistente para acreditar
nas missas e na gua benta, a opo que Pascal oferece vontade no uma opo viva. Certamente que
nenhum turco, por sua prpria conta, veria com bons olhos as missas e a gua benta; e mesmo para ns,
protestantes, estes meios de salvao parecem impossibilidades de tal maneira ultrapassadas que a
lgica de Pascal, invocada especificamente a favor destes meios, nos deixa indiferentes. De igual modo
podia o Mdi escrever-nos, afirmando: Sou o Esperado a quem Deus, no seu esplendor, criou. Sero
infinitamente felizes se me reconhecerem; de contrrio sero afastados da luz do Sol. Ponderem ento o
vosso ganho infinito no caso de eu ser genuno, contra o vosso sacrifcio finito no caso de no o ser! A
sua lgica seria a de Pascal; mas seria vo us-la em ns, pois a hiptese que nos oferece est morta.
No h em ns qualquer tendncia para agir com base nela, em grau algum.
Falar em acreditar segundo a nossa vontade parece, assim, de certo ponto de vista, simplesmente tolo.
De outro ponto de vista, pior do que tolo: vil. Quando nos voltamos para o magnfico edifcio das
cincias fsicas e vemos como foi erguido; quantos milhares de vidas morais humanas desinteressadas
jazem s nos seus alicerces; quanta pacincia e adiamento, quanto abafar das preferncias, quanta
submisso s leis glidas do facto exterior, talhada na prpria pedra e na argamassa; como se mantm de
p, absolutamente impessoal na sua vasta majestade como parece ento enfatuado e desprezvel cada
pequeno sentimentalista que vem soprar as suas espirais de fumo voluntrias, fingindo decidir as coisas a
partir do seu sonho privado! Ser que nos podemos sentir surpresos, se os que foram criados na escola
austera e viril da cincia tenham vontade de cuspir tal subjectivismo das suas bocas? Todo o sistema de
lealdades que cresce nas escolas de cincia se ope completamente a que se tolere tal coisa; de modo
que perfeitamente natural que quem contraiu a febre cientfica passe ao extremo oposto e por vezes
escreva como se o intelecto incorruptivelmente honesto devesse preferir em absoluto a amargura e a
inaceitabilidade ao corao inebriado.

Fortifica-me a alma saber


Que, embora eu perea, a verdade o que ,

canta Clough, enquanto Huxley exclama:

O meu nico consolo est em observar que, por muito m que a nossa posteridade venha a ser,
enquanto se ativerem regra simples de no fingir acreditar naquilo para o qual no dispem de
quaisquer razes, por lhes poder ser vantajoso fingi-lo [a palavra fingir seguramente redundante
aqui], no tero chegado ao patamar mais baixo da imoralidade.

E Clifford, o delicioso enfant terrible, escreve:

Profana-se a crena ao conced-la a afirmaes improvadas e inquestionadas, para consolo e


prazer privado do crente [] quem desejar bem aos seus semelhantes nesta matria guardar a
pureza da sua crena com o fanatismo prprio de um zelo ciumento, para que a dada altura no
recaia sobre um objecto indigno, ganhando uma mancha que jamais se poder remover [] Mas se a
crena foi aceite com base em indcios insuficientes [ainda que a crena seja verdadeira, como
Clifford explica na mesma pgina], um prazer roubado [] pecaminoso, porque roubado em
desprezo pelo nosso dever perante a humanidade. Esse dever consiste em precaver-nos de tais
crenas como de uma epidemia, que pode em pouco tempo tomar conta do nosso prprio corpo e
ento propagar-se para o resto da cidade [] sempre incorrecto, em todo o lado, para qualquer
pessoa, acreditar seja no que for com base em indcios insuficientes.
III
Tudo isto nos parece saudvel, mesmo quando expresso, como o faz Clifford, com uma paixo demasiado
vocal. O livre-arbtrio e o mero desejo, no que diz respeito s nossas crenas, parecem estar a mais. No
entanto, se algum pressupe de imediato que a penetrao intelectual o que resta depois de o desejo, a
vontade e a preferncia sentimental terem partido, ou que as nossas opinies passam a ser decididas pela
razo pura, opor-se-ia directamente realidade dos factos.
So s as nossas hipteses j mortas que a nossa natureza volitiva incapaz de trazer de novo vida.
Mas o que as fez morrer para ns , na sua maior parte, uma aco prvia, de tipo antagnico, da nossa
natureza volitiva. Quando digo natureza volitiva, no me refiro apenas a volies deliberadas que
podem ter estabelecido hbitos de crena aos quais agora no conseguimos escapar refiro-me a todos
os factores de crena, como o medo e a esperana, o preconceito e a paixo, a imitao e o partidarismo,
a presso envolvente da nossa classe e grupo. Na verdade, damos connosco a acreditar sem saber ao
certo como nem porqu. O Sr. Balfour d o nome de autoridade a todas estas influncias, nascidas do
clima intelectual, que tornam as hipteses possveis ou impossveis para ns, vivas ou mortas. Aqui nesta
sala, todos acreditamos em molculas e na conservao da energia, na democracia e no progresso
necessrio, no cristianismo protestante e no dever de lutar pela doutrina do imortal Monroe, tudo por
nenhuma razo digna do nome. A claridade interior com que discernimos estes assuntos no maior, e
talvez at seja menor, do que aquela que qualquer descrente nos mesmos pode ter. A sua
inconvencionalidade teria provavelmente algumas razes a mostrar a favor das suas concluses; mas para
ns, no a ideia sagaz e sim o prestgio das opinies o que as faz soltar uma centelha e acender os
nossos paiis adormecidos da f. A nossa razo satisfaz-se cabalmente, novecentas e noventa e nove em
cada mil de ns, se encontrar alguns argumentos que se possa recitar no caso de algum criticar a nossa
credulidade. A nossa f f na f de outrem e, nas questes mais importantes, isto sobretudo o que
acontece. A nossa crena na prpria verdade, por exemplo, de que h uma verdade, e de que esta e as
nossas mentes foram feitas uma para a outra o que seno uma afirmao apaixonada de desejo, em
que o nosso sistema social nos apoia? Queremos ter uma verdade; queremos acreditar que as nossas
experincias, estudos e discusses tm de nos colocar numa posio cada vez melhor em direco
verdade; e nesta linha concordamos resolver as nossas vidas pensantes. Mas se um cptico pirrnico nos
perguntar como podemos saber tudo isto, poder a nossa lgica dar-lhe uma resposta? No! Certamente
que no. Trata-se apenas de uma volio contra outra ns dispostos a avanar para uma vida com base
numa confiana ou pressuposto que ele, por sua parte, no se preocupa em fazer.7
Por regra, rejeitamos a crena em todos os factos e teorias para as quais no temos uso. As emoes
csmicas de Clifford no vem qualquer utilidade nos sentimentos cristos. Huxley ataca duramente os
bispos porque no seu esquema de vida o sacerdcio no tem qualquer utilidade. Newman, pelo contrrio,
passa para o catolicismo romano, e encontra todo o gnero de boas razes para a permanecer, porque um
sistema sacerdotal para ele uma necessidade orgnica e um deleite. Por que so to poucos os
cientistas que chegam sequer a olhar para os indcios a favor da chamada telepatia? Porque pensam
que, como um importante bilogo j falecido me disse uma vez, mesmo se tal coisa fosse verdadeira, os
cientistas deviam unir-se para a manter reprimida e escondida. Esta desfaria a uniformidade da natureza e
todo o gnero de outras coisas sem as quais os cientistas no podem levar a cabo as suas actividades
investigativas. Mas se a este mesmo homem se mostrasse algo que ele, como cientista, pudesse fazer com
a telepatia, talvez no s examinasse os indcios como at os considerasse suficientemente bons. Esta
mesma lei que os lgicos nos impem se me permitem chamar lgicos a todos os que nesta questo
excluiriam a nossa natureza volitiva em nada se baseia seno no seu prprio desejo natural de excluir
todos os elementos nos quais, na sua qualidade profissional de lgicos, no conseguem ver qualquer
utilidade.
claro, portanto, que a nossa natureza inintelectual influencia as nossas convices. H tendncias
passionais e volies que ocorrem antes da crena, outras que surgem depois, e s as ltimas entram em
cena demasiado tarde; e no entram demasiado tarde quando o trabalho passional prvio j as vinha
preparando. O argumento de Pascal, em vez de no ter fora, parece assim um tira-teimas como os outros,
e a ltima estocada necessria para tornar completa a nossa f nas missas e na gua benta. evidente
que este estado de coisas nada tem de simples; a mera penetrao intelectual e a lgica, seja o que for
que possam fazer idealmente, no so as nicas coisas que de facto produzem as nossas crenas.
IV
O nosso dever seguinte, tendo reconhecido este estado de coisas misturado, perguntar se ou no
simplesmente repreensvel e patolgico, ou se, pelo contrrio, temos ou no de o tratar como um
elemento normal ao tomar decises. A tese que defendo , em poucas palavras, a seguinte: A nossa
natureza passional no s pode, legitimamente, como deve decidir uma opo entre proposies,
sempre que se trata de uma opo genuna que no pode, pela sua natureza, ser decidida numa base
intelectual; pois afirmar, em tais circunstncias, No decidas, deixa a questo em aberto, em si
uma deciso passional tal como decidir pelo sim ou pelo no e tem o mesmo risco de perder a
verdade. A tese aqui expressa abstractamente tornar-se- em breve, espero, bastante clara. Mas antes
tenho de me demorar um pouco mais no trabalho preliminar.
V
Observar-se- que, para o que interessa a esta discusso, estamos em terreno dogmtico terreno,
quero dizer, que deixa completamente de parte o cepticismo filosfico sistemtico. O postulado de que h
a verdade e que o destino das nossas mentes alcan-la, estamos deliberadamente resolvidos a aceitar,
embora o cptico no o faa. Afastamo-nos da sua companhia, portanto, absolutamente, daqui para a
frente. Mas a f, segundo a qual a verdade existe e as nossas mentes a podem descobrir, pode ser
defendida de duas maneiras. Podemos falar no modo empirista e no modo absolutista de acreditar na
verdade. Os absolutistas neste assunto afirmam que no s conseguimos chegar ao conhecimento da
verdade, como podemos saber quando alcanmos esse conhecimento; ao passo que os empiristas
pensam que embora o possamos alcanar, no podemos saber infalivelmente quando o fizemos. Saber
uma coisa e saber com certeza que sabemos outra. Pode-se defender que a primeira possvel sem a
segunda; por isto que os empiristas e os absolutistas, embora nenhum seja cptico no sentido filosfico
usual do termo, exibem nas suas vidas graus de dogmatismo muito diferentes.
Se olharmos para a histria das opinies, vemos que a tendncia empirista prevaleceu em grande
medida na cincia, ao passo que na filosofia a tendncia absolutista tem feito tudo sua maneira. O
gnero caracterstico de felicidade, de facto, que as filosofias produzem, tem consistido, sobretudo, na
convico, sentida por cada escola ou sistema sucessivos, de que, por meio dessa escola ou sistema, se
alcanara a certeza definitiva. As outras filosofias so coleces de opinies, na sua maioria falsas; a
minha filosofia d-nos um ponto fixo para sempre quem no reconhece nisto a tnica de todo o
sistema digno desse nome? Um sistema, para sequer ser um sistema, tem de se apresentar como um
sistema fechado, reversvel neste ou naquele detalhe, talvez, mas nunca nas suas caractersticas
essenciais!
A ortodoxia escolstica, a que sempre temos de recorrer quando desejamos encontrar uma afirmao
perfeitamente clara, elaborou belissimamente esta convico absolutista na chamada doutrina dos
indcios objectivos. Se, por exemplo, sou incapaz de duvidar de que existo agora perante vs, que dois
so menos do que trs, ou que se todos os homens so mortais, ento tambm sou mortal, porque estas
coisas iluminam o meu intelecto irresistivelmente. A justificao ltima destes indcios objectivos que
certas proposies tm a adequatio intellectus nostri cum re. A certeza que traz envolve uma
aptitudinem ad extorquendum certum assensum por parte da verdade visada e, por parte do sujeito, uma
quietem in cognitione, assim que o objecto mentalmente apreendido, no deixando lugar a qualquer
possibilidade de dvida; e em todo este processo nada opera seno a entitas ipsa do objecto e a entitas
ipsa da mente. A ns, desleixados pensadores modernos, desagrada-nos a conversa em latim na
verdade, desagrada-nos conversar com termos bem definidos de todo em todo; mas no fundo o nosso
prprio estado de esprito muito semelhante a isto sempre que nos deixamos ir acriticamente: vocs
acreditam nos indcios objectivos, e eu tambm. De algumas coisas sentimos que estamos certos:
sabemos, e sabemos que sabemos. Algo ressoa em ns, um sino que bate as doze badaladas, quando os
ponteiros do nosso relgio mental deram a volta ao mostrador e se encontram ao meio-dia. Os maiores
empiristas entre ns s o so quando reflectem: abandonados aos seus instintos, dogmatizam como papas
infalveis. Quando os Clifford nos dizem como pecaminoso ser cristo com base em to insuficientes
indcios, a insuficincia na verdade a ltima coisa que tm em mente. Para eles, os indcios so
absolutamente suficientes, s que em sentido contrrio. Acreditam to completamente numa ordem
anticrist do universo que no h qualquer opo viva: a hiptese do cristianismo est morta partida.
VI
Mas agora, visto que todos somos tais absolutistas por instinto, o que devemos fazer, na qualidade de
estudantes de filosofia, acerca deste facto? Devemos defend-lo e sancion-lo? Ou trat-lo-emos como
uma fraqueza da nossa natureza, da qual temos de nos libertar, caso o possamos fazer?
Creio sinceramente que o ltimo procedimento o nico que podemos adoptar enquanto homens de
reflexo. Os indcios objectivos e a certeza so sem dvida excelentes ideais com que brincar, mas onde,
neste planeta iluminado pela Lua e visitado por sonhos, os encontramos? Eu prprio sou, portanto, um
completo empirista no que diz respeito minha teoria do conhecimento humano. Vivo, certamente, de
acordo com a f prtica de que temos de continuar a experimentar e a reflectir sobre a nossa experincia,
pois s assim as nossas opinies se podem aproximar da verdade; mas creio que a atitude de adoptar
qualquer uma delas -me de todo indiferente qual como se jamais pudesse ser reinterpretvel ou
corrigvel, um tremendo equvoco, e penso que toda a histria da filosofia me ir corroborar. No h
seno uma verdade indefectivelmente certa, que o prprio cepticismo pirrnico deixa de p a verdade
de que o fenmeno presente da conscincia existe. Isso, contudo, o ponto de partida nu do
conhecimento, a mera admisso de uma matria acerca da qual filosofar. As diversas filosofias so meras
tentativas de exprimir o que esta matria realmente . E se vamos s nossas bibliotecas quanto desacordo
descobrimos! Onde se encontra uma resposta indubitavelmente verdadeira? Alm de proposies
abstractas comparativas (tais como dois mais dois igual a quatro), proposies que em si mesmas
nada nos dizem acerca da realidade concreta, no encontramos qualquer proposio que algum tenha
considerado evidentemente certa ao ponto de nunca a terem declarado uma falsidade, ou pelo menos cuja
verdade nunca foi seriamente questionada por outrem. Transcender os axiomas da geometria, no a
brincar, mas a srio, por parte de alguns dos nossos contemporneos (como Zllner e Charles H. Hinton),
e a rejeio de toda a lgica aristotlica pelos hegelianos, so exemplos flagrantes a este respeito.
Nenhum teste concreto daquilo que realmente verdadeiro foi alguma vez objecto de consenso.
Alguns tornam o critrio externo ao momento da percepo, colocando-o na revelao, no consensus
gentium, nos instintos do corao ou na experincia sistematizada do gnero humano. Outros transformam
o momento perceptivo em teste de si prprio Descartes, por exemplo, com as suas ideias claras e
distintas garantidas pela veracidade de Deus; Reid com o seu senso comum; e Kant com as suas formas
do juzo sinttico a priori. O carcter inconcebvel do oposto; a capacidade de ser verificado pelos
sentidos; a posse de unidade orgnica completa ou auto-relao, realizada quando uma coisa o seu
prprio outro so cnones que foram, por sua vez, usados. Os louvadssimos indcios objectivos no
esto, triunfalmente, em lado algum; uma mera aspirao ou Grenzbegriff, assinalando o ideal
infinitamente remoto da nossa vida pensante. Afirmar que determinadas verdades agora o possuem
simplesmente afirmar que, quando as consideramos verdadeiras, e so verdadeiras, os indcios a seu
favor so objectivos e de contrrio no. Mas na prtica, a nossa convico de que os indcios por que
nos guiamos so da variedade genuinamente objectiva, apenas mais uma opinio subjectiva que se
acrescenta s outras. Pois j se reivindicou a objectividade dos indcios favorveis e a certeza absoluta
para uma to grande variedade de opinies contraditrias! O mundo inteiramente racional a sua
existncia um facto bruto ltimo; h um Deus pessoal um Deus pessoal inconcebvel; h um mundo
fsico extramental imediatamente conhecido a mente apenas pode conhecer as suas prprias ideias;
existe um imperativo moral a obrigao apenas o resultado dos desejos; h em todos um princpio
espiritual permanente h apenas estados mentais inconstantes; h uma cadeia interminvel de causas
h uma primeira causa absoluta; uma necessidade eterna uma liberdade; um propsito nenhum
propsito; um Uno primordial um Mltiplo primordial; uma continuidade universal uma
descontinuidade essencial nas coisas; uma infinidade nenhuma infinidade. H isto h aquilo; nada
h, na verdade, que algum no tenha considerado absolutamente verdadeiro, ao passo que o seu vizinho
o considerou absolutamente falso; e nenhum absolutista entre eles parece ter alguma vez considerado que
o problema pode ter sido sempre essencial e que o intelecto, mesmo com a verdade directamente ao seu
alcance, pode no ter qualquer sinal infalvel para saber se ou no verdadeiro. Efetivamente, quando
recordamos que a mais flagrante aplicao prtica vida da doutrina da certeza objectiva foi o trabalho
consciencioso do Santo Ofcio da Inquisio, sentimo-nos menos tentados do que nunca a ouvir com
bonomia tal doutrina.
Mas observem agora, peo-vos, que quando, na qualidade de empiristas, abandonamos a doutrina da
certeza objectiva, no deixamos por isso de procurar a verdade em si ou ter esperana nela. Ainda
depositamos a nossa f na sua existncia e ainda acreditamos que conseguimos progredir cada vez mais
na sua direco, continuando sistematicamente a acumular experincias e a pensar sobre elas. A grande
diferena entre ns e o escolstico est no lado para o qual nos voltamos. A fora do seu sistema est nos
princpios, na origem, no terminus a quo do seu pensamento; para ns a fora est no resultado, no
desfecho, no terminus ad quem. O decisivo no de onde vem, mas aonde conduz. No importa a um
empirista qual a procedncia de uma hiptese que se lhe depara: pode t-la obtido por meios justos ou
ilcitos; pode ter-lhe sido sussurrada pela paixo ou sugerida pelo acaso; mas se a direco total do
pensamento continuar a confirm-lo, isso o que significa dizer que verdadeiro.
VII
Um aspecto ainda, pequeno, mas importante, e conclumos os nossos preliminares. H duas maneiras de
encarar o nosso dever, no que diz respeito opinio maneiras completamente diferentes e, no entanto,
maneiras a cuja diferena a teoria do conhecimento parece ter dado at agora muito pouca ateno. Temos
de saber a verdade; temos de evitar o erro estes so os nossos primeiros e grandiosos mandamentos,
como pretendentes ao conhecimento; mas no so duas maneiras de afirmar um mesmo mandamento, so
duas leis distintas. Embora possa de facto acontecer que acreditar na verdade A tenha a consequncia
lateral de nos livrarmos de acreditar na falsidade B, quase nunca se d o caso de acreditarmos
necessariamente em A apenas por no acreditarmos em B. Podemos, ao evitar B, acabar acreditando
noutras falsidades, C ou D, to ms como B; ou podemos evitar B to-pouco acreditando seja no que for,
nem mesmo em A.
Acreditem na verdade! Evitem o erro! Estas, como se v, so duas leis materialmente diferentes; e
ao escolher entre elas podemos acabar por dar uma tonalidade diferente a toda a nossa vida intelectual.
Podemos encarar a caa verdade como primordial e a fuga ao erro como secundria; ou podemos, por
outro lado, tratar a fuga ao erro como algo mais imperativo e deixar a verdade correr os seus riscos.
Clifford, na instrutiva passagem que citei, exorta-nos a escolher o segundo caminho. No acreditem em
coisa alguma, diz-nos, mantenham para sempre a mente em suspenso, em vez de, cingindo-se a indcios
insuficientes, incorrer no terrvel risco de acreditar numa mentira. Vocs, por outro lado, podem pensar
que o risco de cair em erro algo de somenos importncia por comparao bno do conhecimento
genuno, e aceitar serem enganados muitas vezes na vossa investigao em vez de adiar indefinidamente a
hiptese de acertar na verdade. Por mim considero impossvel acompanhar Clifford. Temos de recordar
que estes sentimentos sobre o nosso dever perante a verdade ou o erro so, em todo o caso, apenas
expresses da nossa vida passional. Biologicamente consideradas, as nossas mentes so to aptas a
destilar a falsidade como a veracidade, e quem afirma Antes passar toda a vida sem crenas do que
acreditar numa mentira! apenas mostra o seu preponderante horror privado de se tornar um palerma.
Pode ser crtico relativamente a muitos dos seus desejos e medos, mas a este medo obedece servilmente.
No pode imaginar que algum questione a sua fora vinculadora. Da minha parte, tenho tambm horror a
ser intrujado; mas acredito que neste mundo podem acontecer coisas piores a um homem alm de ser
intrujado: pelo que a exortao de Clifford tem uma ressonncia completamente fantstica nos meus
ouvidos. como um general que diz os seus soldados que mais vale evitar eternamente a batalha do que
arriscar uma nica ferida. No se consegue assim vitrias sobre inimigos ou sobre a natureza. Os nossos
erros no so com certeza coisas to horrivelmente solenes. Num mundo onde estamos to certos de
incorrer neles, por muito prudentes que sejamos, uma certa ligeireza de esprito parece mais saudvel do
que este nervosismo exagerado por sua causa. Em todo o caso, parece o mais apropriado ao filsofo
empirista.
VIII
E agora, depois de toda esta introduo, passemos de imediato nossa questo. Afirmei, e agora repito,
que no s vemos que, na realidade, a nossa natureza passional influencia as nossas opinies como que
h opes entre opinies em que se tem de encarar esta influncia como um factor determinante, tanto
inevitvel como legtimo, da nossa escolha.
Receio neste ponto que alguns dos que me ouvem comearo a farejar o perigo, interpretando-me
ento de modo no caridoso. Dois primeiros passos da paixo tiveram de facto de admitir como
necessrios temos de pensar de maneira a evitar a intrujice, e temos de pensar de modo a obter a
verdade; mas o caminho mais seguro para essas consumaes ideais, consideraro muito provavelmente,
de agora em diante no dar mais passos passionais.
Bom, claro que concordo, tanto quanto os factos o permitirem. Sempre que a opo entre perder a
verdade e ganh-la no momentosa, podemos deitar fora a hiptese de obter a verdade e, em qualquer
circunstncia, salvaguardar-nos de qualquer hiptese de acreditar em falsidades, no decidindo sequer
antes de haver indcios objectivos disponveis. Nas questes cientficas, isto quase sempre assim; e
mesmo nos assuntos humanos em geral, poucas vezes a necessidade de agir to urgente que faa uma
falsa crena sobre a qual basear a aco ser melhor do que nenhuma crena sequer. Os tribunais, de facto,
tm de decidir com base nos melhores indcios que se pode obter no momento, porque o dever de um juiz
tanto fazer a lei como averigu-la, e (como me disse em tempos um juiz de grande erudio) poucos so
os casos em que vale a pena perder muito tempo: o importante decidi-los com base em qualquer
princpio aceitvel, e passar adiante. Mas na nossa relao com a natureza objectiva somos obviamente
registadores e no produtores da verdade; e decises tomadas apenas em funo de decidir prontamente e
passar prxima tarefa seriam completamente deslocadas. Em toda a amplitude da natureza fsica os
factos so o que so, independentemente de ns, e raramente h a propsito deles uma urgncia tal que
tenha de se enfrentar os riscos de ser enganado por acreditar numa teoria prematura. As questes aqui so
sempre opes triviais, as hipteses dificilmente esto vivas (em todo o caso, no esto vivas para ns
espectadores), a escolha entre acreditar na verdade ou na falsidade raramente forosa. A atitude do
equilbrio cptico , portanto, absolutamente sensata, para que evitemos os erros. Que diferena
realmente far para a maior parte de ns se temos ou no uma teoria dos raios Rntgen, se acreditamos ou
no na substncia mental, se temos ou no convices acerca da causalidade dos nossos estados
conscientes? indiferente. Tais opes no so forosas para ns. Em todos os aspectos, melhor no as
fazer, continuando, todavia, a pesar as razes pro et contra de modo indiferente.
Falo aqui, claro, da mente puramente judicativa. No que interessa descoberta, tal indiferena no
to fortemente recomendvel, e a cincia estaria muito menos avanada do que est se se mantivesse
fora de cena os desejos inflamados dos indivduos em ver confirmada a sua prpria f. Veja-se, por
exemplo, a sagacidade que Spencer e Weismann agora exibem. Por outro lado, se querem um perfeito
bronco a investigar, tm, afinal, de escolher o homem que no tem qualquer interesse nos resultados: o
inepto autorizado, o tolo genuno. O investigador mais til, porque o observador mais sensvel,
sempre aquele cujo interesse ardente num dos lados da questo equilibrado por um nervosismo
igualmente intenso, para que no se deixe iludir.8 A cincia organizou este nervosismo tornando-o uma
tcnica normal, o seu chamado mtodo de verificao; e apaixonou-se to profundamente pelo mtodo
que se pode mesmo afirmar que parou de se preocupar com a verdade por si, de todo em todo. apenas a
verdade enquanto tecnicamente verificada que lhe interessa. A verdade das verdades podia assumir uma
forma meramente afirmativa e ela recusaria tocar-lhe. A cincia podia repetir com Clifford que tal
verdade seria roubada em desrespeito ao seu dever perante a humanidade. As paixes humanas, todavia,
so mais fortes do que as regras tcnicas. Le coeur a ses raisons, como afirma Pascal, que la raison
ne connat point; e por muito que o rbitro, o intelecto abstracto, seja indiferente a tudo excepto as
simples regras do jogo, os jogadores concretos que lhe do os materiais para julgar esto normalmente,
cada um deles, apaixonados pela sua prpria hiptese viva de estimao. Concordemos, todavia, que
sempre que no haja uma opo forosa, o intelecto friamente judicativo, desprovido de qualquer
hiptese de estimao, salvaguardando-nos, como faz, do engano, em todo o caso, deve ser o nosso ideal.
Levanta-se em seguida a questo: no haver algures opes forosas nas nossas questes
especulativas, e ser que podemos (como homens que talvez estejam pelo menos to interessados em
obter positivamente a verdade como em meramente evitar o engano) esperar sempre impunemente at que
tenham chegado os indcios coercivos? Parece a priori improvvel que a verdade se ajustasse assim to
bem s nossas necessidades e poderes. Na grande hospedaria da natureza, raramente os bolos, a manteiga
e o xarope ficam to suaves e deixam os pratos to limpos. Na verdade, devamos encar-los com
desconfiana cientfica se o fizessem.
IX
As questes morais apresentam-se imediatamente como questes cuja soluo no pode esperar por uma
prova tangvel. Uma questo moral no sobre o que tangivelmente existe, mas sobre o que bom, ou
seria bom se existisse. A cincia pode dizer-nos o que existe; mas para comparar os valores, tanto
daquilo que existe como do que no existe, temos de consultar no a cincia mas aquilo a que Pascal
chama o nosso corao. A prpria cincia consulta o corao quando estabelece que a infinita
averiguao dos factos e a correco das crenas falsas so os bens supremos para o homem. Desafie-se
a afirmao e a cincia s pode repeti-la de modo oracular, ou ento prov-la, mostrando que tal
confirmao e correco trazem ao homem todo o gnero de outros bens que o corao do homem por sua
vez declara. A questo de ter crenas morais, de todo em todo, ou de no as ter, decidida pela nossa
vontade. Sero as nossas preferncias morais verdadeiras ou falsas, ou sero apenas fenmenos
biolgicos peculiares, tornando as coisas boas ou ms para ns, mas indiferentes em si? Como pode o
vosso puro intelecto decidir? Se o vosso corao no quer um mundo de realidade moral, a vossa cabea
seguramente nunca vos far acreditar num. O cepticismo mefistoflico, na verdade, satisfar os instintos
ldicos da cabea muito melhor do que qualquer idealismo rigoroso. Alguns homens (mesmo em idade
estudantil) so to naturalmente frios que a hiptese moral nunca tem para eles qualquer vida pungente, e
na sua presena altiva o moralista ardente sente-se sempre estranhamente pouco vontade. A aparncia
de conhecimento est do lado daqueles, a naivet e a credulidade do lado deste. Contudo, no seu corao
mudo, este agarra-se convico de que no um palerma e que h um domnio em que (como afirma
Emerson) toda a perspiccia e superioridade intelectual daqueles no valem mais do que a astcia de
uma raposa. O cepticismo moral no mais fcil de refutar ou provar atravs da lgica do que o
cepticismo intelectual. Quando sustentamos que h verdade (seja de que tipo for), fazemo-lo com toda a
nossa natureza, e decidimos ficar de p ou cair, consoante os resultados. O cptico, com toda a sua
natureza, adopta a atitude da dvida: mas qual de ns o mais sensato, s a Omniscincia sabe.
Passemos agora destas questes amplas sobre o bem para certa classe de questes de facto, questes
respeitantes a relaes pessoais, estados mentais entre um homem e outro. Gostam de mim ou no?
por exemplo. Se gostam ou no, depender, em inmeras circunstncias, de chegar a acordo convosco, da
minha disposio para pressupor que devem gostar de mim e de vos mostrar alguma confiana e
expectativa. O que vos faz simpatizar comigo, em muitos casos, a f prvia que tenho em como o faro.
Mas se me mantenho distncia e recuso mover-me um s centmetro antes de ter indcios objectivos,
antes de terem feito algo apropriado, como dizem os absolutistas, ad extorquendum assensum meum,
aposto que a vossa simpatia nunca se manifestar. Quantos coraes de mulher se deixam conquistar pela
mera insistncia confiante de um homem em como tm de o amar! No aceitar a hiptese de que no o
podem fazer. O desejo por certo tipo de verdade provoca aqui a existncia dessa verdade especial; e
assim em inmeros casos diferentes. Quem ganha promoes, favores, nomeaes, seno o homem em
cuja vida se v que estas coisas desempenham o papel de hipteses vivas, que conta com elas, sacrifica
outras coisas por causa delas antes de as ter vista e se arrisca de antemo por elas? A sua f age sobre
os poderes acima de si como uma reivindicao, e cria a sua prpria verificao.
Um organismo social de qualquer gnero que seja, pequeno ou grande, o que porque cada membro
cumpre o seu dever confiante de que os outros cumpriro o deles. Sempre que se alcana um resultado
desejado pela cooperao de muitas pessoas independentes, a sua existncia factual uma pura
consequncia da f prvia que as pessoas imediatamente envolvidas tm umas nas outras. Um governo,
um exrcito, um sistema comercial, um navio, um colgio, uma equipa de atletas, todos existem sob esta
condio, sem a qual no s nada se alcana, como nada alguma vez se procura alcanar. Um comboio
inteiro de passageiros (que individualmente so bastante corajosos) ser saqueado por um punhado de
salteadores, simplesmente porque os ltimos podem contar uns com os outros, enquanto cada passageiro
receia que ao encetar um movimento de resistncia, ser baleado antes que mais algum o ajude. Se
acreditssemos que todos os passageiros se levantariam ao mesmo tempo connosco, cada um levantar-se-
ia individualmente, e jamais se tentaria assaltar comboios. H, portanto, casos em que um facto no se
pode sequer dar a menos que exista uma f preliminar no seu advento. E onde a f num facto pode ajudar
a criar esse facto, uma lgica segundo a qual a f que se adianta aos indcios cientficos o tipo mais
baixo de imoralidade em que um ser pensante pode incorrer, seria uma lgica doente. No entanto, tal a
lgica pela qual os nossos absolutistas cientficos pretendem regular as nossas vidas!
X
Nas verdades que dependem da nossa aco pessoal, portanto, a f baseada no desejo certamente algo
legtimo e possivelmente indispensvel.
Mas agora, dir-se-, tudo isto so puerilidades humanas, e nada tm a ver com as grandes questes
csmicas, como a questo da f religiosa. Passemos ento a essas. As religies diferem tanto nas suas
caractersticas acidentais que ao discutir a questo religiosa temos de a tornar muito genrica e lata. O
que entendemos ento agora por hiptese religiosa? A cincia diz que as coisas so; a moralidade diz
que umas coisas so melhores do que outras; e a religio diz essencialmente duas coisas.
Em primeiro lugar, a religio afirma que as coisas melhores so as mais eternas, as que se
sobrepem, as coisas que no universo lanam a ltima pedra, por assim dizer, e do a ltima palavra. A
perfeio eterna esta expresso de Charles Secrtan parece uma boa maneira de colocar esta
primeira afirmao da religio, uma afirmao que obviamente no pode ainda ser cientificamente
verificada, de todo em todo.
A segunda afirmao da religio que mesmo agora ficamos melhor se acreditarmos na sua primeira
afirmao.
Consideremos agora quais so os elementos lgicos desta situao no caso de a hiptese religiosa
em ambas as suas ramificaes ser realmente verdadeira. (Evidentemente, temos de admitir partida
essa possibilidade. Para discutirmos a questo, de todo em todo, esta tem de envolver uma opo viva.
Se para qualquer um de vocs a religio uma hiptese que no pode ser verdadeira segundo qualquer
possibilidade viva, no precisam de ir mais longe. Falo apenas para as excepes que restarem.)
Procedendo assim, vemos, em primeiro lugar, que a religio se oferece como uma opo momentosa.
Supostamente ganhamos, agora mesmo, ao acreditar, e perdemos ao no acreditar, um certo bem vital. Em
segundo lugar, a religio uma opo forosa, no que diz respeito a esse bem. No podemos evitar a
questo permanecendo cpticos e esperando que se faa mais luz, porque, embora assim evitemos
realmente o erro no caso de a religio ser contrria verdade, perdemos o bem, no caso de ser
verdadeira, to seguramente como se de facto escolhssemos no acreditar. como se um homem
hesitasse indefinidamente em pedir uma mulher em casamento, por no ter a certeza absoluta de que
depois de a levar para casa ela continua a ser um anjo. No estar a privar-se dessa possibilidade
anglica particular to decisivamente como se casasse com outra pessoa? O cepticismo, portanto, no
consiste em evitar a opo; a opo por certo tipo particular de risco. Antes arriscar no acertar na
verdade do que a hiptese de cair em erro esta a posio exacta do nosso vetante da f. Arrisca-se
activamente tanto quanto o crente; est a apostar todos os cavalos contra o cavalo da hiptese religiosa,
tal como um crente aposta na hiptese religiosa contra todos os outros cavalos. Pregar-nos o cepticismo
como um dever at se encontrar indcios suficientes a favor da religio, equivale, portanto, a dizer-nos
que, na presena da hiptese religiosa, mais sensato e melhor ceder ao nosso medo de que esta seja
errnea do que ceder nossa esperana de que pode ser verdadeira. No se trata do intelecto contra
todas as paixes, portanto; trata-se apenas do intelecto com uma paixo impondo a sua lei. E por que
meio, em boa verdade, se garante a suprema sabedoria desta paixo? Logro por logro, que prova h de
que o logro que resulta da esperana pior do que o que resulta do medo? Por mim, no vejo prova
alguma; e simplesmente recuso obedecer ordem do cientista para imitar o seu tipo de opo, num caso
em que o meu prprio interesse suficientemente importante para me dar o direito de escolher a minha
prpria forma de risco. Se a religio for verdadeira e os indcios a seu favor ainda insuficientes, no
desejo, deixando que extingam as chamas da minha natureza (que me parece afinal ter algo a ver com este
assunto), abdicar da minha nica oportunidade na vida de entrar para o lado vencedor dependendo
essa oportunidade, evidentemente, da minha disposio para correr o risco de agir como se a minha
necessidade passional de compreender religiosamente o mundo possa ser proftica e correcta.
Tudo isto supondo que pode realmente ser proftica e correcta, e que, mesmo para ns, que
discutimos o assunto, a religio uma hiptese viva que pode ser verdadeira. Para a maioria de ns, a
religio surge-nos de outra maneira ainda, que torna ainda mais ilgico um veto nossa f activa. O
aspecto mais perfeito e eterno do universo representado nas nossas religies como algo que tem uma
forma pessoal. Quando se religioso, o universo no mais um mero Isso, mas um Tu, para ns; e
qualquer relao que pode ser possvel entre pessoas pode tambm ser possvel aqui. Por exemplo,
embora num sentido sejamos parcelas passivas do universo, noutro sentido mostramos uma curiosa
autonomia, como se fssemos pequenos centros activos autnomos. Sentimos, alm disso, que como se
o apelo que sentimos da religio se exercesse sobre a nossa boa vontade activa, como se os indcios
pudessem ficar para sempre escondidos de ns a menos que percorramos metade do caminho na sua
direco. Tomando numa ilustrao trivial: tal como um homem que numa companhia de cavalheiros no
tomasse quaisquer iniciativas, pedisse uma garantia por cada concesso, e no acreditasse na palavra de
quem quer que fosse sem provas, privar-se-ia, com tal rudeza, de qualquer gratificao social a que um
esprito mais confiante teria acesso tambm aqui, quem se fecha numa atitude lgica resmungona e
tenta fazer os deuses arrancar o seu reconhecimento contra a sua vontade, no o obtendo de outro modo,
pode perder para sempre a sua nica oportunidade de travar conhecimento com os deuses. Este
sentimento, que nos imposto sem que saibamos de onde vem, de que ao acreditar obstinadamente que h
deuses (embora no o fazer fosse to fcil tanto para a nossa lgica como para a nossa vida) prestamos
ao universo o mais profundo servio de que somos capazes, parece parte da essncia viva da hiptese
religiosa. Se a hiptese fosse verdadeira em todas as suas partes, incluindo esta, ento o puro
intelectualismo, com o seu veto a que tomemos iniciativas voluntrias, seria um absurdo; e exigir-se-ia
logicamente alguma participao da nossa empatia natural. Eu, portanto, por mim, no consigo ver-me
aceitar as regras agnsticas para a procura da verdade, ou concordar voluntariamente em manter a minha
natureza volitiva fora de jogo. No o posso fazer por esta razo simples: uma regra de pensamento que
me impediria em absoluto de reconhecer certos tipos de verdade se esses tipos de verdade estiverem
realmente l, seria uma regra irracional. Isto, para mim, tudo o que h a dizer sobre a lgica formal
da situao, independentemente dos tipos de verdade que possam materialmente existir.
* * *
Confesso que no vejo como se pode escapar a esta lgica. Mas a triste experincia faz-me recear
que alguns de vocs ainda possam inibir-se de afirmar radicalmente comigo, in abstracto, que temos o
direito de acreditar por nossa conta e risco em qualquer hiptese que esteja suficientemente viva para ser
uma tentao para a nossa vontade. Suspeito, contudo, que se isto for assim, porque se afastaram
completamente do ponto de vista lgico abstracto e pensam (talvez sem se aperceberem) em alguma
hiptese religiosa particular que para vs est morta. Aplicam a liberdade de acreditar no que se quer
a alguma superstio patente; e a f em que pensam a f definida pelo aluno quando disse: A f
quando acreditamos numa coisa que sabemos no ser verdadeira. No posso seno repetir que isto um
equvoco. In concreto, a liberdade de acreditar s pode abranger opes vivas que o intelecto do
indivduo no pode resolver por si; e as opes vivas nunca parecem absurdas a quem as tem em
considerao. Quando olho para a questo religiosa tal como se coloca realmente a homens concretos, e
quando penso em todas as possibilidades que envolve, tanto prtica como teoricamente, esta ordem de
pr um travo ao nosso corao, instintos e coragem, e esperar agindo evidentemente entretanto mais
ou menos como se a religio no fosse verdadeira9 at ao dia do juzo, ou at ao dia em que o nosso
intelecto e sentidos, trabalhando conjuntamente, possam ter adquirido indcios suficientes esta ordem,
digo, parece-me o dolo mais bizarro que se fabricou na caverna filosfica. Fssemos absolutistas
escolsticos, talvez tivssemos uma desculpa maior. Se tivssemos um intelecto infalvel, com as suas
certezas objectivas, podamo-nos sentir desleais perante um rgo de conhecimento to perfeito ao no
confiar exclusivamente nele, no esperando pela sua palavra libertadora. Mas se somos empiristas, se
acreditamos no haver em ns quaisquer sinos a tocar a rebate quando estamos perante a verdade, parece
que pregar to solenemente que temos o dever de aguardar pelo toque do sino no passa de uma
excentricidade v. Na verdade, podemos aguardar, se quisermos espero que no pensem que o nego
mas se o fizermos, fazemo-lo por nossa conta e risco, tal como se acreditssemos. Em todo o caso
agimos, tomando as rdeas da nossa prpria vida. Nenhum de ns devia impor vetos aos outros, nem
trocar palavras agressivas. Devemos, pelo contrrio, respeitar delicada e profundamente a liberdade
mental de cada um: s ento realizaremos a repblica intelectual, s ento teremos aquele esprito de
tolerncia interior sem o qual toda a tolerncia exterior se torna oca, e que a glria do empirismo; s
ento viveremos e deixaremos viver, tanto nas coisas especulativas como nas prticas.
Comecei com uma referncia a Fitzjames Stephen; permitam-me que termine citando-o:

O que pensas de ti mesmo? O que pensas do mundo? [] So questes com que todos tm de lidar
como lhes parecer melhor. So charadas esfngicas e, de uma maneira ou doutra, temos de lidar com
elas [] Em todo o comrcio importante da vida, temos de dar um salto no escuro [] Se
decidimos deixar as adivinhas sem resposta, uma escolha. Se hesitamos na nossa resposta, tambm
isso uma escolha; mas seja qual for a escolha que fazemos, fazemo-la por nossa conta e risco. Se
um homem escolhe voltar completamente as costas a Deus e ao futuro, ningum o pode impedir.
Ningum pode mostrar para l da dvida razovel que est enganado. Se um homem pensa o
contrrio, e se age tal como pensa, no vejo como algum pode provar que ele est enganado. Cada
qual tem de agir como acha melhor, e se est errado tanto pior para ele. Estamos num desfiladeiro,
no meio de um turbilho de neve e um nevoeiro denso, atravs do qual entrevemos de vez em
quando caminhos que podem ser enganadores. Se ficamos quietos, morremos congelados. Se
escolhemos a estrada errada, somos feitos em pedaos. No sabemos com certeza se h ou no uma
estrada certa. O que temos de fazer? Ser fortes e corajosos. Ajam pelo melhor, esperem o melhor,
aceitem o que vier [] Se a morte a tudo pe fim, no h maneira melhor de ir ao seu encontro.10

James faz originalmente uma analogia com a electricidade, e no com a lingustica, pois em ingls chama-
se respectivamente live wire e dead wire a um fio com e sem electricidade, ou positivo e negativo. (N. do
T.)
Compare-se com a admirvel pgina 310 na obra de S. H. Hodgson, Time and Space, Londres, 1865.
Compare-se com o ensaio de Wilfrid Ward, The Wish to Believe, no seu Witness to the Unseen,
McMillan & Co., 1893.
Como a crena se mede pela aco, quem nos probe de acreditar na verdade da religio, probe-nos
tambm necessariamente de agir como deveramos se acreditssemos na sua verdade. Toda a defesa da f
religiosa depende da aco. Se a aco exigida ou inspirada pela hiptese religiosa no for de modo
algum diferente da que ditada pela hiptese naturalista, a f religiosa uma pura superfluidade, que
melhor podar, e a controvrsia acerca da sua legitimidade uma frivolidade, indigna de mentes srias.
Eu prprio acredito, obviamente, que a hiptese religiosa d ao mundo uma expresso que determina
especificamente as nossas reaces, e as torna em grande parte diferentes daquilo que podiam ser num
esquema de crena puramente naturalista.
Liberty, Equality, Fraternity, p. 353, 2. edio, Londres, 1874.
4. Ser a crena em Deus apropriadamente bsica?

Alvin Plantinga

Muitos filsofos tm apelado objeco indiciarista crena testa; argumentam que a crena em Deus
irracional ou irrazovel ou racionalmente inaceitvel ou intelectualmente irresponsvel ou noeticamente
inferior, porque, segundo afirmam, os indcios a favor desta crena so insuficientes.11 Muitos outros
filsofos e telogos em particular os que se inserem na grande tradio da teologia natural afirmam
que a crena em Deus intelectualmente aceitvel, mas apenas pelo facto de haver indcios suficientes a
seu favor. Estes dois grupos unem-se na defesa de que a crena testa s racionalmente aceitvel se
houver indcios suficientes a seu favor. Mais exactamente, defendem que uma pessoa s racional ou
razovel em aceitar a crena testa se dispuser de indcios suficientes a favor dessa crena isto , s
se a pessoa conhece ou cr racionalmente noutras proposies que sustentam a proposio em causa, e
acredita na ltima com base nas primeiras. Em Is Belief in God Rational? argumentei que a objeco
indiciarista enraza no fundacionalismo clssico, uma imagem muitssimo popular ou uma perspectiva
total acerca da f, do conhecimento, da crena justificada, da racionalidade e de tpicos relacionados.
Esta imagem tem sido amplamente aceite desde Plato e Aristteles; as suas familiares prximas
continuam talvez a ser os modos dominantes de pensar acerca destes tpicos. Podemos imaginar o
fundacionalista clssico a comear com a observao de que algumas das nossas crenas se podem
basear noutras; pode dar-se o caso de haver um par de proposies A e B tal que acredito em A com base
em B. Embora no seja fcil caracterizar esta relao de uma maneira reveladora e intrivial, ainda
assim familiar. Acredito que a palavra umbroso se soletra u-m-b-r-o-s-o: esta crena baseia-se noutra
crena minha: a crena de que assim que o dicionrio mostra como se soletra. Acredito que 72 71 =
5112. Esta crena baseia-se em diversas outras crenas que tenho: que 1 72 = 72; 7 2 = 14; 7 7 =
49; 49 + 1 = 50; e outras. Contudo, h crenas que aceito, mas no com base em quaisquer outras.
Chamemos-lhes bsicas. Acredito que 2 + 1 = 3, por exemplo, e no o acredito com base noutras
proposies. Tambm acredito que estou sentado minha secretria e que tenho uma ligeira dor no joelho
direito. Tambm estas so bsicas para mim; no acredito nelas com base em quaisquer outras
proposies. Segundo o fundacionalista clssico, algumas proposies so apropriadamente ou
adequadamente bsicas relativamente a uma pessoa e outras no. As que no so, s so racionalmente
aceites com base em indcios, em que os indcios se tm de reportar, em ltima anlise, ao que
apropriadamente bsico. A existncia de Deus, alm disso, no est entre as proposies que so
apropriadamente bsicas; pelo que uma pessoa s racional ao aceitar a crena testa se tiver indcios a
seu favor.
Ora, muitos pensadores e telogos reformistas12 rejeitaram a teologia natural (concebida como a
tentativa de fornecer provas ou argumentos a favor da existncia de Deus). No s afirmaram que os
argumentos apresentados no so bons, mas que toda a empresa est, de alguma maneira, radicalmente
equivocada. Em The Reformed Objection to Natural Theology (Proceedings of the American Catholic
Philosophical Association, 1980), argumento que se interpreta melhor a objeco reformista teologia
natural como uma rejeio incipiente e imprecisa do fundacionalismo clssico. O que estes pensadores
reformistas realmente tm em mente sustentar, penso, que a crena em Deus no tem de se basear, de
todo em todo, em argumentos ou indcios dados por outras proposies. Tm em mente sustentar que o
crente est inteiramente no seu direito intelectual ao acreditar do modo como o faz, mesmo que no
conhea qualquer bom argumento testa (dedutivo ou indutivo), mesmo que no acredite que haja
qualquer argumento desse gnero, e mesmo que no haja de facto qualquer argumento assim. Defendem
que perfeitamente racional aceitar a crena em Deus sem que o faamos sequer com base em quaisquer
outras crenas ou proposies. Numa palavra, defendem que a crena em Deus apropriadamente
bsica. Neste ensaio tentarei desenvolver e defender esta posio.
Mas primeiro temos de ganhar uma compreenso mais profunda da objeco indiciarista.
importante ver que se trata de uma discusso normativa. O objector indiciarista defende que quem aceita
a crena testa de alguma maneira irracional ou noeticamente inferior. Aqui deve-se entender
racional e irracional como termos normativos ou avaliativos; segundo o objector, o testa no
consegue satisfazer um cnone ao qual se deveria conformar. No que diz respeito s crenas, como no
que diz respeito s aces, h um procedimento correcto e um incorrecto; temos deveres,
responsabilidades, obrigaes a respeito das primeiras, tal como no que diz respeito s segundas. Assim,
segundo o Professor Blanshard:

[] em todo o lado e sempre a crena tem um aspecto tico. H uma tica geral do intelecto.
Defendo que o princpio fundamental dessa tica o mesmo na religio e fora dela. Este princpio
simples e arrebatador: faa corresponder o assentimento aos indcios. (Brand Blanshard, Reason
and Belief. Londres: Allen & Unwin, 1974, p. 401.)

Pode-se interpretar de diferentes modos esta tica do intelecto; muitas questes fascinantes nas
quais temos de nos abster de entrar surgem quando tentamos formular mais precisamente as diversas
opes que o indiciarista pode querer adoptar. Inicialmente parece defender que h um gnero de dever
ou obrigao de no aceitar sem indcios proposies como a que afirma que Deus existe dever
desprezado pelo testa que no dispe de indcios. Se no dispe de indcios, ento tem o dever de
suspender a crena. Mas h uma dificuldade frequentemente apontada: as nossas crenas, na sua maioria,
no esto directamente sob o nosso controlo. Maioritariamente, quem acredita em Deus no consegue
despojar-se dessa crena apenas tentando faz-lo, tal como no conseguiriam dessa maneira livrar-se da
crena de que o mundo existe h muito tempo. Pelo que talvez a obrigao relevante no seja a de
despojar-me da crena testa se no disponho de indcios (isso est para l do meu poder), mas a de
tentar cultivar o gnero de hbitos intelectuais que tendem (esperamos) a fazer-me aceitar como bsicas
apenas as proposies que so apropriadamente bsicas.
Talvez se deva conceber esta obrigao teleologicamente: uma obrigao moral que surge de uma
conexo entre determinados bens e males intrnsecos e a maneira como as nossas crenas se formam e
sustentam. (W. K. Clifford parece interpretar desta a maneira a questo.) Talvez se deva conceber
areteticamente: h estados noticos ou intelectuais valiosos (sejam intrnseca ou extrinsecamente
valiosos); h tambm virtudes intelectuais correspondentes, hbitos de agir de maneira a promover e
melhorar tais estados virtuosos. Entre as nossas obrigaes, portanto, est o dever de tentar promover e
cultivar estas virtudes em ns ou noutros. Ou talvez se deva conceber deontologicamente: esta obrigao
cabe-nos apenas em virtude de termos o gnero de equipamento notico que os seres humanos de facto
exibem; no surge de uma conexo com estados de coisas valiosos. Tal obrigao, alm disso, podia ser
um gnero especial de obrigao moral; por outro lado, talvez seja uma obrigao amoral sui generis.
Mais ainda, talvez o indiciarista no tenha de falar aqui em dever ou obrigao de todo em todo.
Considere-se algum que acredite que Vnus menor do que Mercrio, no porque tenha indcios de
qualquer gnero, mas porque acha divertido sustentar uma crena que ningum mais sustenta ou
considere-se algum que defende esta crena com base num qualquer argumento escandalosamente mau.
Talvez no haja qualquer obrigao que ele no tenha cumprido. No obstante, a sua condio intelectual
de algum modo imperfeita; ou ento, talvez, haja uma excelncia comummente alcanada que ele
incapaz de exibir. E a objeco indiciarista crena testa, portanto, pode ser compreendida no como a
afirmao de que o testa que no dispe de indcios no cumpriu uma obrigao, mas como a afirmao
de que o testa sofre de um determinado gnero de imperfeio intelectual (de modo que a atitude
apropriada a adoptar quanto a ele seria a compaixo e no a censura).
Estas so algumas das formas, portanto, de desenvolver a objeco indiciarista; e evidentemente h
ainda outras possibilidades. Para facilidade de exposio, tomemos a afirmao deontologicamente; o
que direi aplicar-se-, mutatis mutandis, se o tomarmos de uma das outras maneiras. A objeco
indiciarista, portanto, pressupe uma perspectiva acerca de que gnero de proposies se aceita correcta,
devida ou justificadamente como bsicas; pressupe uma perspectiva acerca do que apropriadamente
bsico. E a afirmao minimamente relevante para o objector indiciarista que a crena em Deus no
apropriadamente bsica. Tipicamente, esta objeco enraza numa forma de fundacionalismo clssico,
segundo a qual uma proposio p apropriadamente bsica para uma pessoa S se, e s se, p ou auto-
evidente ou incorrigvel para S (fundacionalismo moderno) ou, alternativamente, se ou auto-evidente ou
evidente sensorialmente para S (fundacionalismo antigo e medieval). Em Is Belief in God Rational?
argumentei que ambas as formas de fundacionalismo so auto-referencialmente incoerentes e tm,
portanto, de ser rejeitadas.
Enquanto a objeco indiciarista enraizar no fundacionalismo clssico, estar efectivamente mal
fundada: e tanto quanto sei, ningum desenvolveu e articulou qualquer outra razo para supor que a
crena em Deus no apropriadamente bsica. Claro que no se segue que apropriadamente bsica;
talvez a classe das proposies apropriadamente bsicas seja mais lata do que supem os
fundacionalistas clssicos, mas ainda assim no lata o suficiente para admitir a crena em Deus. Mas
porqu pensar assim? Quais poderiam ser as objeces perspectiva reformista, de que a crena em
Deus apropriadamente bsica?
J ouvi argumentar que se no tenho quaisquer indcios a favor da existncia de Deus, ento se aceito
aquela proposio, a minha crena ser infundada, ou gratuita ou arbitrria. Penso que isto um erro;
permita-se-me que explique.
Suponha-se que consideramos as crenas perceptivas, crenas de memria e crenas que atribuem
estados mentais a outras pessoas: crenas como

1. Vejo uma rvore,


2. Tomei o pequeno-almoo esta manh, e
3. Aquela pessoa est zangada.

Embora as crenas deste gnero sejam tpica e apropriadamente aceites como bsicas, seria um erro
descrev-las como infundadas. Ao ter uma experincia de certo gnero, acredito que estou a
percepcionar uma rvore. No caso tpico no adopto esta crena com base noutras; ainda assim no
infundada. O facto de ter uma experincia daquele gnero caracterstico usando a linguagem do
Professor Chisholm, o aparecer-me arbreo desempenha um papel crucial na formao e justificao
dessa crena. Podemos dizer que esta experincia, juntamente, talvez, com outras circunstncias, o que
me d justificao para a adoptar; este o fundamento da minha justificao, e, por extenso, o
fundamento da prpria crena.
Se vejo algum exibir um comportamento tpico de dor, depreendo que a pessoa est com dores. Mais
uma vez, no aceito o comportamento exibido como um indcio a favor dessa crena; no infiro essa
crena a partir de outras crenas que tenho; no a aceito com base noutras crenas. Ainda assim, o facto
de percepcionar o comportamento de dor desempenha um papel nico na formao e justificao dessa
crena; como no caso anterior, constitui o fundamento da minha justificao para a crena em causa. O
mesmo se aplica s crenas de memria. Parece que me recordo de tomar o pequeno-almoo esta manh;
isto , tenho uma inclinao para acreditar na proposio segundo a qual tomei o pequeno-almoo,
juntamente com uma experincia com sabor a passado, que a todos familiar, mas difcil de descrever.
Talvez devssemos dizer que as coisas me aparecem preteritamente; mas talvez isto distinga
insuficientemente a experincia em causa daquelas crenas concomitantes acerca do passado que no se
fundam na minha prpria memria. A fenomenologia da memria um domnio rico e inexplorado; no
disponho aqui de tempo para a explorar. Neste como noutros casos, todavia, verifica-se uma
circunstncia justificante, uma condio que constitui o fundamento da minha justificao para aceitar a
crena de memria em causa.
Em cada um destes casos se aceita uma crena como bsica, e em cada caso se a aceita
apropriadamente como bsica. H em cada caso uma circunstncia ou condio que confere a
justificao; h uma circunstncia que serve como o fundamento da justificao. Pelo que em cada caso
haver uma proposio verdadeira do gnero:

4. Na condio C, S tem justificao para aceitar p como bsica.

Claro que C variar com p. Para um juzo perceptivo como

5. Vejo uma parede cor-de-rosa minha frente.

C incluir o aparecer-me de certa maneira. Sem dvida que C incluir mais. Se algo me aparece da
maneira habitual, mas sei que estou a usar culos cor-de-rosa, ou que sofro de uma doena que causa o
aparecer-me assim, independentemente da cor dos objectos prximos, ento no tenho justificao para
aceitar 5 como bsica. De igual modo para a memria. Suponha-se que sei que a minha memria no
fivel; que me prega frequentemente partidas. Em particular, quando pareo recordar-me de ter tomado o
pequeno-almoo, ento, no raro, no tomei o pequeno-almoo. Sob estas condies, no tenho
justificao para aceitar como bsica a crena de que tomei o pequeno-almoo, embora parea recordar-
me de que tomei.
Pelo que aparecer-me da maneira apropriada, no caso perceptivo, no suficiente para dar
justificao; uma condio ulterior difcil de explicar detalhadamente claramente necessria. O
aspecto central aqui, contudo, que uma crena s apropriadamente bsica em determinadas condies;
estas condies so, digamos, o fundamento da sua justificao e, por extenso, o fundamento da prpria
crena. Neste sentido, as crenas bsicas no so, ou no so necessariamente, crenas infundadas.
Pode-se afirmar coisas similares a propsito da crena em Deus. Quando os reformistas afirmam que
esta crena apropriadamente bsica, no pretendem, evidentemente, afirmar que no h circunstncias
justificantes para essa crena, ou que nesse sentido infundada ou gratuita. Muito pelo contrrio. Calvino
defende que Deus se revela e mostra diariamente a toda a construo do universo, e a arte divina
revela-se na inumervel e, no entanto, distinta e bem ordenada variedade da multido celestial. Deus
criou-nos de tal maneira que temos uma tendncia ou disposio para ver a sua mo no mundo nossa
volta. Mais precisamente, h em ns uma disposio para acreditar em proposies do gnero: esta flor
foi criada por Deus ou este universo vasto e intricado foi criado por Deus quando contemplamos a flor
ou observamos os cus estrelados ou pensamos nos vastos recantos do universo.
Calvino reconhece, pelo menos implicitamente, que esta disposio pode ser despoletada por
condies de outro gnero. Ao ler a Bblia, pode-se ficar impressionado com o profundo sentido de que
Deus nos fala. Depois de fazer o que considero reles, ou imoral ou malvolo, posso sentir-me culpado
aos olhos de Deus e formar a crena Deus desaprova o que fiz. Ao confessar-me e arrepender-me, posso
sentir-me perdoado formando a crena Deus perdoa-me o que fiz. Uma pessoa em grave perigo pode
voltar-se para Deus, pedindo-lhe proteco e ajuda; e claro que ele ou ela formar ento a crena de que
Deus de facto capaz de ouvir e ajudar se o considerar apropriado. Quando a vida doce e gratificante,
um sentido espontneo de gratido pode ascender na alma; algum nesta condio pode agradecer e
louvar o Senhor pela sua bondade e formar evidentemente a crena concomitante de que na verdade h
que agradecer ao Senhor e louv-lo.
H, portanto, muitas condies e circunstncias que evocam a crena em Deus: culpa, gratido,
perigo, a sensao da presena de Deus, um sentimento de que Deus fala, a percepo de diversas partes
do universo. Um trabalho completo explorar a fenomenologia de todas estas condies e de outras.
Trata-se de um tpico vasto e importante; mas aqui posso apenas indicar a existncia destas condies.
Claro que nenhuma das crenas que mencionei ainda h pouco a crena simples de que Deus existe.
O que temos, ao invs, so crenas como

6. Deus fala-me,
7. Deus criou tudo isto,
8. Deus desaprova o que fiz,
9. Deus perdoa-me, e
10. H que agradecer a Deus e louv-lo.

Estas proposies so apropriadamente bsicas nas circunstncias adequadas. Mas bastante consistente
com isto supor que a proposio h uma pessoa que Deus nem apropriadamente bsica nem aceite
como bsica por quem acredita em Deus. Talvez o que aceitam como bsico sejam proposies como as
de 6 a 10, acreditando na existncia de Deus com base em proposies como aquelas. Deste ponto de
vista, no exactamente correcto afirmar que a crena em Deus que apropriadamente bsica; mais
exactamente, so proposies como as de 6 a 10 que so apropriadamente bsicas, cada uma das quais
implica auto-evidentemente que Deus existe. No a proposio relativamente de ordem superior e geral
Deus existe que apropriadamente bsica, mas, ao invs, proposies que discriminam alguns dos seus
atributos e aces.
Suponha-se que regressamos analogia entre a crena em Deus e a crena na existncia de objectos
perceptuais, de outras pessoas e do passado. Tambm aqui se trata de proposies relativamente
especficas e concretas, em vez das suas companheiras mais gerais e abstractas, que so apropriadamente
bsicas. Talvez itens como

11. H rvores,
12. H outras pessoas, e
13. O mundo existe h mais de 5 minutos.

no sejam de facto apropriadamente bsicas; sendo, ao invs, proposies como

14. Vejo uma rvore,


15. Aquela pessoa est contente, e
16. Tomei o pequeno-almoo h mais de uma hora,

que merecem tal reconhecimento. Claro que proposies do ltimo gnero implicam imediata e auto-
evidentemente proposies do gnero anterior; e talvez no haja assim mal em falar nas anteriores como
apropriadamente bsicas, ainda que isso seja falar sem grande exactido.
O mesmo tem de se afirmar acerca da crena em Deus. Podemos afirmar, grosso modo, que a crena
em Deus apropriadamente bsica; estritamente falando, contudo, no provavelmente essa proposio,
mas proposies como as de 6 a 10 que gozam desse estatuto. Mas a ideia fundamental aqui que a
crena em Deus ou as de 6 a 10 so apropriadamente bsicas; afirm-lo, contudo, no negar que haja
circunstncias justificantes para estas crenas, ou condies que conferem justificao a quem as aceita
como bsicas. No so, consequentemente, infundadas ou gratuitas.
Uma segunda objeco, que ouo frequentemente: se a crena em Deus apropriadamente bsica, por
que no pode qualquer crena ser apropriadamente bsica? No podemos afirmar o mesmo acerca de
qualquer aberrao bizarra que nos ocorresse? E quanto ao vudu e astrologia? E quanto crena de que
a Grande Abbora regressa em todos os dias das bruxas? Poderia eu aceitar essa crena como bsica? E
se no posso, por que posso aceitar apropriadamente a crena em Deus como bsica? Suponhamos que
acredito que se agitar os braos com vigor suficiente posso descolar e voar volta da sala; poderia
defender-me da acusao de irracionalidade afirmando que esta crena bsica? Se afirmamos que a
crena em Deus apropriadamente bsica, no estaremos comprometidos a defender que qualquer coisa,
ou quase, pode ser apropriadamente aceite como bsica, escancarando assim a porta ao irracionalismo e
superstio?
Certamente que no. O que nos poderia levar a pensar que o epistemlogo reformista se encontra
neste tipo de dificuldade? O facto de rejeitar os critrios para a basicidade apropriada fornecidos pelo
fundacionalismo clssico? Mas porqu pensar que isso o compromete com tal tolerncia perante a
irracionalidade? Considere-se uma analogia. Nos dias felizes do positivismo, os positivistas andavam
confiantemente de um lado para o outro, brandindo o seu critrio de verificabilidade e declarando sem
sentido muitas coisas que obviamente tinham sentido. Suponha-se agora que algum rejeitou uma
formulao desse critrio a que se encontra na segunda edio da obra de A. J. Ayer, Linguagem,
Verdade e Lgica, por exemplo. Significar isso que a pessoa se compromete a defender que

17. Estava abrsigo; e os viscgeis xugaios moinhavam e esfuavam no ensouteiro.

ao contrrio do que parece, tem sentido? Claro que no. Mas nesse caso o mesmo se aplica ao
epistemlogo reformista; o facto de rejeitar o critrio da basicidade apropriada do fundacionalista
clssico no significa que est obrigado a supor que qualquer coisa apropriadamente bsica.
Mas qual ento o problema? Ser porque o epistemlogo reformista no s rejeita aqueles critrios
para a basicidade apropriada, como no parece sentir qualquer urgncia de apresentar aquilo que
considera um melhor substituto? Se no tem qualquer critrio semelhante, como pode rejeitar
honestamente a crena na Grande Abbora como apropriadamente bsica?
Esta objeco trai um importante erro de perspectiva. Como chegamos correctamente a critrios de
significado, ou crena justificada, ou basicidade apropriada? De onde vm? Ser que temos de ter tal
critrio antes de podermos sensatamente fazer quaisquer juzos positivos ou negativos acerca da
basicidade apropriada? Seguramente que no. Suponhamos que no conheo um substituto satisfatrio
para os critrios propostos pelo fundacionalismo clssico; estou, no obstante, inteiramente no meu
direito ao defender que determinadas proposies no so apropriadamente bsicas em determinadas
condies. Algumas proposies parecem auto-evidentes quando na verdade no so; essa a lio de
alguns dos paradoxos de Russell! No obstante, seria irracional aceitar como bsica a negao de uma
proposio que nos parece auto-evidente. De igual modo, suponha que lhe parece ver uma rvore; seria
ento irracional aceitar como bsica a proposio segundo a qual no v uma rvore; ou de que no h
quaisquer rvores. Da mesma maneira, ainda que no conhea qualquer critrio de significado
esclarecedor, posso declarar bastante apropriadamente que 17, acima, no significa coisa alguma.
E isto levanta uma importante pergunta que Roderick Chisholm nos ensinou a fazer. Qual o
estatuto dos critrios para o conhecimento, ou basicidade apropriada, ou crena justificada? Tipicamente,
so afirmaes universais. O critrio fundacionalista moderno para a basicidade apropriada, por
exemplo, duplamente universal:

18. Para qualquer proposio A e pessoa S, A apropriadamente bsica para S se, e s se, A
incorrigvel para S ou auto-evidente para S.

Mas como se pode saber tal coisa? Quais so as suas credenciais? Sem sombra de dvida, 18 no auto-
evidente ou apenas obviamente verdadeira. Mas se no , como se chega a ela? De que gnero so os
argumentos apropriados? Claro que um fundacionalista pode achar 18 to atraente que simplesmente a
aceita como verdadeira, nem apresentando argumentos a seu favor, nem a aceitando com base noutras
coisas em que acredita. Se o faz, todavia, a sua estrutura notica ser auto-referencialmente incoerente.
Em si, 18 nem auto-evidente nem incorrigvel; da que ao aceitar 18 como bsica o fundacionalista
moderno viole a condio da basicidade apropriada que ele prprio estabeleceu ao aceit-la. Por outro
lado, talvez o fundacionalista tente apresentar algum argumento a seu favor a partir de premissas que so
auto-evidentes ou incorrigveis: extremamente difcil ver, todavia, como poderia ser tal argumento. E
at que o fundacionalista apresente algum argumento, o que faro os restantes de ns que no
consideramos 18 bvia ou convincente, de todo em todo? Como pode o fundacionalista usar 18 para nos
mostrar que a crena em Deus, por exemplo, no apropriadamente bsica? Por que acreditaramos em
18, ou lhe daramos qualquer ateno?
O facto que, penso, nem 18 nem qualquer outra condio esclarecedora necessria e suficiente para
a basicidade apropriada se segue de premissas claramente auto-evidentes atravs de argumentos
claramente aceitveis. E assim a maneira apropriada de chegar a tal critrio , grosso modo, indutiva.
Temos de reunir exemplos de crenas e condies tais que as primeiras sejam, de uma maneira bvia,
apropriadamente bsicas sob as segundas, e exemplos de crenas e condies tais que as primeiras, de
uma maneira bvia, no sejam apropriadamente bsicas sob as segundas. Temos ento de enquadrar
hipteses quanto s condies necessrias e suficientes da basicidade apropriada e testar estas hipteses
por referncia queles exemplos. Sob condies adequadas, por exemplo, claramente racional acreditar
que o leitor v uma pessoa humana sua frente: um ser que tem pensamentos e sentimentos, que conhece e
acredita, que toma decises e age. evidente, alm disso, que o leitor no tem qualquer obrigao de
defender argumentativamente esta crena a partir de outras que tem; sob aquelas condies, essa crena
apropriadamente bsica para si. Mas ento 18 tem de estar errada; a crena em questo, sob essas
circunstncias, apropriadamente bsica, embora no seja auto-evidente nem incorrigvel para o leitor.
De igual modo, talvez parea recordar-se de ter tomado o pequeno-almoo esta manh, e talvez
desconhea qualquer razo para supor que a sua memria lhe prega partidas. Sendo assim, tem toda a
justificao para aceitar essa crena como bsica. Claro que no apropriadamente bsica luz dos
critrios dados pelos fundacionalistas clssicos; porm, esse facto no conta contra si, mas contra
aqueles critrios.
Em conformidade, tem de se obter os critrios para a basicidade apropriada a partir de baixo e no a
partir de cima; no se os devia apresentar como ex cathedra, mas sujeitos argumentao e ao teste por
um conjunto relevante de exemplos. Mas no h razo para supor, antecipadamente, que todos iro
concordar com os exemplos. O cristo ir com certeza supor que a crena em Deus inteiramente
apropriada e racional; se no aceita esta crena com base noutras proposies, concluir que bsica
para si, bastante apropriadamente. Os seguidores de Bertrand Russell e de Madelyn Murray OHare
podem discordar, mas como ser isso relevante? Tero os meus critrios, ou os da comunidade crist, de
conformar-se aos seus exemplos? Certamente que no. A comunidade crist responsvel pelo seu
conjunto de exemplos, no do deles.
Em conformidade, o epistemlogo reformista pode defender apropriadamente que a crena na Grande
Abbora no apropriadamente bsica; apesar de defender que a crena em Deus apropriadamente
bsica e apesar de no ter qualquer critrio, com pernas para andar, da basicidade apropriada. Claro que
est comprometido com o pressuposto de que h uma diferena relevante entre a crena em Deus e a
crena na Grande Abbora, se defende que a primeira apropriadamente bsica, mas no a segunda. Mas
isto no dever ser um grande constrangimento; h bastantes candidatos. Estes candidatos encontram-se
na proximidade das condies que mencionei na ltima seco, que justificam e fundamentam a crena
em Deus. Assim, por exemplo, o epistemlogo reformista pode concordar com Calvino na afirmao de
que Deus implantou em ns uma tendncia natural para ver a sua mo no mundo nossa volta; o mesmo
no se pode afirmar da Grande Abbora; no existindo qualquer Grande Abbora nem qualquer
tendncia natural para aceitar crenas acerca da Grande Abbora.
Em jeito de concluso, portanto: ser auto-evidente ou incorrigvel, ou evidente sensorialmente, no
uma condio necessria da basicidade apropriada. Alm disso, quem defende que a crena em Deus
apropriadamente bsica no est por isso comprometido com a ideia de que a crena em Deus
infundada ou gratuita ou que no tem circunstncias justificantes. E mesmo que carea de um critrio
geral para a basicidade apropriada, no est obrigado a supor que qualquer crena ou quase a crena
na Grande Abbora, por exemplo apropriadamente bsica. Como toda a gente o devia fazer, comea
com exemplos; e pode aceitar a crena na Grande Abbora como um paradigma da crena irracional
bsica.
Ver, por exemplo, Brand Blanshard, Reason and Belief (Londres: Allen & Unwin, 1974), pp. 400 ss, W.
K. Clifford, A tica da Crena (Cap. 2 deste volume), A. G. N. Flew, The Presumption of Atheism
(Londres: Pemberton Publishing Co., 1976), p. 22, Bertrand Russell, Why I am not a Christian, in Why
I am Not a Christian (Nova Iorque: Simon & Schuster, 1957), pp. 3 ss. e Michael Scrivin, Primary
Philosophy (Nova Iorque: McGraw-Hill, 1966), pp. 87 ss. Em Is Belief in God Rational? in
Rationality and Religious Belief, org. C. Delaney (Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1979),
considero e rejeito a objeco indiciarista crena testa.
Um pensador ou telogo reformista algum intelectualmente afecto tradio protestante que remonta a
Joo Calvino (e no algum que foi anteriormente telogo e que depois viu a luz).
Origem dos ensaios

A tica da Crena a traduo de The Ethics of Belief, originalmente publicado em


Contemporary Review, Janeiro de 1877. O texto foi retirado de The Ethics of Belief and Other
Essays, de W. K. Clifford (Amhest, NY: Prometheus Books, 1999) e confrontado com a edio
organizada por Leslie Stephen e Sir Frederick Pollock, publicada em Londres em 1901 (Vol. 2, pp.
163205).
A Vontade de Acreditar a traduo de The Will to Believe, palestra apresentada aos Clubes
Filosficos das Universidades de Yale e Brown. Publicada originalmente em New World, Junho de
1896. O texto foi retirado de Writings: 18781899, de William James (Nova Iorque, NY: The
Library of America, 1992, segunda impresso). Esta cuidada edio foi preparada por Gerald E.
Myers, baseando-se na edio crtica da Harvard University Press das obras de James, corrigindo
alguns erros que nela se encontram.
Ser a Crena em Deus Apropriadamente Bsica? a traduo de Is Belief in God Properly
Basic? (Nos, Vol. 15, N. 1, 1981, pp. 4151), publicada aqui com a autorizao do autor.
Leituras recomendadas

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Cornell University Press.
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Foundations of Knowledge. Cambridge: Cambridge University Press.
Expresses estrangeiras

Ad extorquendum assensum meum Que me obrigue ao assentimento


Adequatio intellectus nostri cum re Adequao do intelecto coisa
Aptitudinem ad extorquendum certum assensum Aptido para extrair assentimento certo
Cela vous fera croire et vous abtira Isso vos far crer e vos embotar
Consensus gentium Consenso dos povos
Entitas ipsa A entidade em si
Extorquendum assensum meum Que me obrigue ao assentimento
Grenzbegriff Conceito regulador
In foro conscientiae No seu foro ntimo
Le coeur a ses raisons que la raison ne connat point O corao tem razes que a razo
desconhece
Mutatis mutantis Mudando o que deve ser mudado
Naivet Ingenuidade
Quietem in cognitione Tranquilidade cognitiva
Sui generis Peculiar
Terminus a quo Extremo inicial
Terminus ad quem Extremo final
Sobre o organizador

Desidrio Murcho professor de filosofia na Universidade Federal de Ouro Preto (Brasil). autor de
vrios livros, destacando-se Essencialismo Naturalizado (2002), O Lugar da Lgica na Filosofia
(2003), Filosofia em Directo (2011), Sete Ideias Filosficas que Toda a Gente Deveria Conhecer
(2011) e Todos os Sonhos do Mundo e Outros Ensaios (2016). Traduziu vrios artigos e livros,
incluindo obras de George Orwell, Thomas Nagel, Bertrand Russell, Alvin Plantinga, Susan Wolf, W. O.
Quine, Nelson Goodman e Simon Blackburn. Fundou a revista Crtica e escreveu para o jornal Pblico.
Copyright

Copyright 2010 Desidrio Murcho e Editorial Bizncio (compilao)


Copyright 2010 Vtor Guerreiro e Editorial Bizncio (traduo)

Todos os direitos reservados.

Verso de 28 de Maro de 2017


Imagem da capa de Ryan McGuire.

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