O documento discute o papel do xamã em sociedades xamânicas. O xamã é um curador eleito que entra em contato com os ancestrais e divindades através de técnicas de êxtase como rituais e drogas, para curar a dor da humanidade após superar sua própria dor no mito do curador ferido.
O documento discute o papel do xamã em sociedades xamânicas. O xamã é um curador eleito que entra em contato com os ancestrais e divindades através de técnicas de êxtase como rituais e drogas, para curar a dor da humanidade após superar sua própria dor no mito do curador ferido.
Descrição original:
Falar sobre aquele que 'cura'...
Título original
O Curador Ferido Xamanismo e a Psi Analitica_Revista Self
O documento discute o papel do xamã em sociedades xamânicas. O xamã é um curador eleito que entra em contato com os ancestrais e divindades através de técnicas de êxtase como rituais e drogas, para curar a dor da humanidade após superar sua própria dor no mito do curador ferido.
O documento discute o papel do xamã em sociedades xamânicas. O xamã é um curador eleito que entra em contato com os ancestrais e divindades através de técnicas de êxtase como rituais e drogas, para curar a dor da humanidade após superar sua própria dor no mito do curador ferido.
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Auxiliar uma pessoa que se encontra na condio de sofrimento tentar, a
partir de sua histria, ajud-la a dar um sentido a sua vida. Ao estudarmos
outras culturas e seus mitos, estamos enriquecendo as possibilidades de nos aproximarmos de nosso paciente, ajudando-o assim a encontrar e a acolher o mito que reger sua prpria vida. A figura do xam apresenta correspondncia no mito do curador ferido em vrias mitologias. Sua figura nas sociedades a do sacerdote, mdico, conselheiro e mantenedor das tradies da cultura do grupo. Mas o xam deve passar primeiro por um processo inicitico, uma jornada heroica, antes que possa se tornar um curador. A funo religiosa se manifesta nos processos iniciticos e define quem est apto a ser representante: ela surge da necessidade da compreenso dos smbolos e de seus significados, originrios dos contedos universais do homem. Na formao junguiana, a busca por ser um analista se d na necessria juno da teoria e da vivncia analtica, sendo preciso que o analista se submeta a vivncias e experincias que propiciem o contato com os contedos do inconsciente coletivo, por meio de tcnicas de anlise dos sonhos, imaginao ativa, produo artstica e outras. Por meio da relao da psique inconsciente profunda com a conscincia, os mitos fundantes so reatualizados, permitindo ao candidato a analista resgatar sua individualidade na busca por ajudar os outros a fazer o mesmo. A autora declara no haver nenhum interesse Self, individuao, xamanismo, psicologia junguiana, conscincia, profissional ou pessoal que inconsciente. possa gerar conflito de interesses em relao a este manuscrito.
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To help a person who is suffering is to try, from his history, to help him give meaning to his live. As we study other cultures and their myths, we are enriching the possibilities of getting close to our patient, helping him to find and to accept the myth that will govern his own life. The figure of the shaman is related to the myth of the wounded healer in various mythologies. In societies his figures corresponds to priest, physician, counselor and maintainer of the traditions of the group's culture. But the shaman must first go through an initiatory process, a heroic journey, before he can become a healer. The religious function is manifested in the initiatory processes and defines who is capable of being a representative: it arises from the need to understand symbols and their meanings, from the human universal contents. In the Jungian formation, the search to be an analyst takes place in the necessary junction of theory and analytic experience, and the analyst needs to submit himself to experiences that provide contact with the contents of the collective unconscious through techniques of dream analysis, active imagination, artistic production and others. Through the relationship of the deep unconscious psyche with the consciousness, the founding myths are updated, allowing the candidate to be an analyst who redeems his individuality in the search to help others to do the same.
Ayudar a una persona que est en una condicin de sufrimiento es intentar, a partir de su historia, ayudarla a dar sentido a su vida. Al estudiar otras culturas y sus mitos, estamos enriqueciendo las posibilidades de acercarnos a nuestro paciente, ayudndole as a encontrar y a aceptar el mito que gobierna su propia vida. La figura del chamn corresponde al curador herido en varias mitologas. Su figura en las sociedades es la del sacerdote, mdico, consejero y encargado de mantener las tradiciones culturales del grupo. Pero el chamn debe pasar primero por un proceso de iniciacin, un viaje heroico, antes de que pueda convertirse en un sanador. La funcin religiosa se manifiesta en el proceso de iniciacin y define quien es capaz de ser el representante: ella surge de la necesidad de entender los smbolos y sus significados, del contenido universal humano. En el entrenamiento de Jung, la bsqueda de ser analista se da en la combinacin necesaria de la teora y de la experiencia analtica, lo que requiere del analista someterse a las experiencias que proporcionan el contacto con el contenido inconsciente colectivo a travs de tcnicas de anlisis de sueo, imaginacin activa, produccin artstica y otras. A travs de la relacin de la psique inconsciente profunda con la conciencia, los mitos fundadores han sido representados, lo que le permite al candidato a analista rescatar su individualidad en la bsqueda de ayudar a los dems a hacer lo mismo.
[...] no precisamos correr sozinhos o risco da aventura, pois os heris de todos os tempos a enfrentaram antes de ns. O labirinto conhecido em toda a sua extenso. Temos apenas que seguir a trilha do heri, e l, onde temamos encontrar o abominvel, encontraremos um Deus. E l onde espervamos matar algum, mataremos a ns mesmos. Onde imaginvamos viajar para longe, iremos ter o centro da nossa prpria existncia. E l, onde pensvamos estar ss, estaremos na companhia do mundo todo. (Campbell & Moyers, 1990, p. 131) Nossa vida, dia aps dia, ultrapassa em muito os limites de nossa experincia consciente e, sem que o saibamos, a vida do inconsciente acompanha a nossa existncia. Apesar de ser nica, cada pessoa tambm um sujeito coletivo em suas representaes e manifestaes religiosas. Estas representaes simblicas contam as histrias dos povos e dos seus deuses. Ernest Cassirer (1994) observa que No h nenhum fenmeno natural, e nenhum fenmeno da vida humana, que no seja passvel de uma interpretao mtica, e que no pea uma interpretao. (p. 123) A religio pode ser definida como o universo simblico de um grupo de pessoas, uma comunidade, representado por um mito fundante e outros mitos e ritos que organizam e estabelecem as normas de conduta da comunidade. O que entendo por religio o contato com o si-mesmo ou Self, o arqutipo da orientao e do significado.
O mito do curador ferido o fundamento das sociedades xamnicas. Seu
mitologema central traz o homem ferido (meio-homem-meio-deus) que, superando sua dor e sofrimento, ao curar-se, passa a poder curar a dor da humanidade. O curador ou xam geralmente um eleito e identificado em seu grupo por apresentar, desde a infncia, caractersticas que o diferenciam dos demais membros. Para as sociedades xamnicas, o homem e a natureza so o todo integrado em um pensamento de identidade. Como sacerdote das sociedades tribais, o xam um intermedirio entre o sagrado e o profano. Frequentemente tambm o conselheiro e intermedirio nos conflitos da comunidade. O xam usa tcnicas de xtase, por meio de rituais e drogas alucingenas, como forma de entrar em contato com os ancestrais e as divindades, ou seja, os arqutipos do inconsciente coletivo, especialmente o arqutipo do si- mesmo existente no nosso inconsciente mais profundo.
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Figura 1. Xam de Olkhon, Valentin Hagdaev, Olkhon (Baikal). Reproduzido de Wikimedia Commons, https://commons.wikimedia.org/wiki/File%3AKhagdaev1.JPG. Atribuio: at ru.wikipedia [CC BY-SA 3.0 (http://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0)], via Wikimedia Commons.
Segundo Mircea Eliade (1998),
Todo medicine-man cura, mas o xam emprega um mtodo que lhe exclusivo. As tcnicas xamnicas de xtase, por sua vez, no esgotam todas as variedades da experincia exttica registrada na histria das religies e na etnologia religiosa; no se pode, portanto, considerar qualquer exttico como um xam; este um especialista em transe, durante o qual se acredita que sua alma deixa o corpo para realizar ascenses celestes ou descensos infernais. (p. 16) Nas sociedades xamnicas esse processo exttico de possesso induzido e controlado por tcnicas rituais. Segundo I. M. Lewis (1977), A possesso tomada tanto como involuntria (ou incontrolada) e voluntria (controlada). Os que praticam a possesso controlada, dominando os espritos so conhecidos no contexto rtico como xams. Retenho este termo para homens e mulheres que exeram uma ampla gama de funes sociais nessa base. A obteno do chamado xamanstico normalmente o clmax de uma srie de experincias traumticas e curas no decorrer das quais a extenso de seu controle sobre o transe aumenta progressivamente. Ele acaba por adquirir uma relao estvel. (p. 76) A vocao do xam um chamado dos deuses ou dos espritos para que ele se torne um curador, geralmente associado a uma experincia exttica que modifica sua vida e que pode se dar a conhecer em situaes de extremo perigo fsico e psquico: vises, sonhos premonitrios, perdas, lutos, doenas iniciticas graves e outros sofrimentos.
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Figura 2. Xam mulher do povo Oroqen, minoria tnica chinesa. Reproduzido de Wikimedia Commons, https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Schamanin_der_Mergen-Oroqen_03.JPG. Atribuio: By Bin im Garten (Own work (own picture)) [CC BY-SA 3.0 (http://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0)], via Wikimedia Commons.
Segundo Marie-Louise von Franz (2004),
[...] a vocao continua a encerrar o significado original da palavra: um chamado dos deuses ou dos espritos para que ele se torne curador. Os xams (bem como muito dos curandeiros e curandeiras de outros povos) passam por perodo especfico de treinamento e desenvolvimento. So chamados por espritos do cl ou por outros espritos, frequentemente contra a vontade deles. (p. 299) Muitas sociedades xamnicas acreditam na hereditariedade do chamado. A linhagem respeitada em muitas dessas sociedades, e os velhos xams transmitem as tradies e os conhecimentos religiosos e de cura apenas a seus descendentes. Essa vem a ser a origem do mito do primeiro xam. Contedos afetivos de grande carga emocional colocam o xam em contato direto com os espritos. Ele o nico capaz de se comunicar com eles, de ouvi-los e encaminh-los ao mundo dos mortos.
Xams passam por processos de iniciao que geralmente incluem testes de
resistncia fsica, psquica e espiritual, em uma forma de jornada heroica. Ao resistir e enfrentar todo o processo inicitico de treinamento e aprendizado, geralmente transmitido de forma oral, o candidato a xam est apto a ser o curandeiro do grupo.
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Figura 3. Xam da Amaznia Equatoriana. Reproduzido de Wikimedia Commons, https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Chaman_amazonie_5_06.jpg. Atribuio: By Veton PICQ (Own work) [GFDL (http://www.gnu.org/copyleft/fdl.html), CC-BY-SA-3.0 (http://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0/) or CC BY-SA 2.5-2.0-1.0 (http://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.5-2.0-1.0)], via Wikimedia Commons.
von Franz (2004) lembra que:
Antes que o xam se apresente, a alma da pessoa destinada a essa funo tomada por espritos e arrastada para o mundo subterrneo ou o mundo superior. As almas dos futuros xams so ento colocadas em ninhos de diferentes nveis nos galhos de uma rvore, sendo geralmente incubadas e criadas por uma me do reino animal sob a forma de um corvo ou outro pssaro, ou por um alce ou veado alado etc. Essa me do reino animal o alterego do xam, seu duplo, seu esprito protetor e seu princpio vital. s vezes ele devora o xam e o d a luz novamente, ou ento, o choca enquanto ele est no ovo. Alm disso, a iniciao xamanstica geralmente tambm consiste, como sabemos, na mutilao do candidato e na sua reduo a esqueleto. Este ltimo apresenta a substncia bsica imperecvel a partir da qual o xam renovado pode ser reconstitudo. Nem sempre o novo xam est no controle de sua nova forma; s vezes, ele a encontra apenas nos momentos cruciais, durante a iniciao ou na hora da morte, mas atravs desse alterego interior que ele realiza suas curas. (p. 299) von Franz (2004) afirma ainda que estritamente proibido agir como xam enquanto o perodo da iniciao no termina e o iniciado no est curado da sua doena iniciatria. (p. 301) Ao atingir a condio de xam, ele passa ento a ser o mantenedor das tradies da tribo, e suas funes incluem ser o depositrio da cosmoviso do grupo, partindo de seus mitos de criao; reter o conhecimento das tcnicas de xtase, que lhe permitem alcanar estados alterados de conscincia e assim entrar em contato com os espritos; e promover a cura simblica de forma a devolver ao doente sua integridade fsica, psquica e espiritual.
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Figura 4. Chuonnasuan (1927-2000), o ultimo xam do povo Oroqen, na China. Foto de julho de 1994, por Richard Noll. O xaanismo desse povo da Manchria est extinto. Reproduzido de Wikimedia Commons, https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Chuonnasuan,_the_last_shaman_of_the_Oroqen,_in_July_1994_(Photo_b y_Richard_Noll).jpg. Atribuio: By Richard Noll at English Wikipedia [Public domain], via Wikimedia Commons.
Mas mesmo depois de aceito, o xam ainda depender de sua capacidade
de curar e de transmitir as tradies religiosas da sua cultura para obter o respeito e reconhecimento do grupo. Mircea Eliade (1998) define a figura do xam como o mito vivo, contido na vida cotidiana da sua cultura.
O universo simblico xamanista inclui sua indumentria, ervas, objetos tais
como tambor e maracs (termo brasileiro para um chocalho especfico), animais de poder e outros: estes so a representao da integrao de sua natureza fsica e espiritual e tambm de sua linhagem e de sua comunidade. Segundo Mircea Eliade (1998), A indumentria xamnica constitui em si mesma uma hierofania e uma cosmografia religiosa: revela no apenas uma presena sagrada, mas tambm smbolos csmicos e itinerrios metafsicos. Examinando com ateno, a indumentria revela o sistema do xamanismo com a mesma transparncia que os mitos e tcnicas xamnicas. (p. 169) Eliade (1989) ainda afirma que A maioria desses cnticos rituais com fim medicinal comea por evocar a cosmogonia: No incio, no tempo em que os cus, o sol, a lua, os astros, os planetas e a terra no tinham ainda aparecido, quando nada tinha ainda aparecido etc. E conta-se a criao do mundo, o nascimento dos demnios, o aparecimento das doenas e finalmente a epifania do xam primordial [...] que trouxe medicamentos necessrios. (p. 30)
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Figura 5. Xam guarani na dana que marcou a despedida do encontro de lideranas para o lanamento da campanha Povo Guarani, Grande Povo!, Caarap (MS), Brasil. Reproduzido de Wikimedia Commons, https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Xam%C3%A3_guarani.jpg. Atribuio: By Roosewelt Pinheiro/ABr [CC BY 3.0 br (http://creativecommons.org/licenses/by/3.0/br/deed.en)], via Wikimedia Commons.
Nas sociedades xamnicas, a cosmogonia explica o incio e a origem da
doena e o porqu de sua apario. A sua ritualizao possui um carter medicinal. A evocao do xam primordial acontece para que ele possa trazer os medicamentos necessrios para a cura. O cntico, as ervas, o tambor, a identificao com animais protetores, as danas e os diversos objetos so utilizados ritualisticamente para a obteno da cura. Estes objetos representam as foras e os instrumentos necessrios para lidar com os perigos que o xam enfrentar em sua busca por acalmar os espritos perturbadores que causaram a doena ao indivduo. Marie-Louise von Franz (2004) nos lembra que: Os smbolos do esprito animal-me, do tambor, da rvore e de muitos outros, em to grande nmero que impossvel descrev- los todos, so, sob o aspecto da psicologia junguiana, smbolos do Si-mesmo. Na tradio xamanstica, o futuro curador no apenas precisa ter sofrido uma invaso do inconsciente coletivo, como tambm ter chegado ao seu ncleo, ao que Jung chamava de Si-mesmo. Estranhamente, com frequncia o Si-mesmo primeiro confronta a pessoa de maneira hostil, como algo explosivo que poderia at provocar a loucura. (p. 300)
A proposta da psicoterapia junguiana traz representaes simblicas que
podemos observar tambm no xamanismo no querendo dizer com isso que sejam processos idnticos, mas sim que existem paralelismos e analogias sob uma perspectiva simblica. Segundo Jung e von Franz, para ser um psicoterapeuta junguiano, o candidato necessita, no contato com o inconsciente profundo e seus fenmenos numinosos, passar por processos muito semelhantes aos processos iniciticos de um xam. O treinamento e a
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vocao exigidos para o xam podem servir como orientao para os futuros analistas junguianos. Acompanhar o paciente no mergulho em seus smbolos e por meio dos sonhos e de outras tcnicas tais como imaginao ativa e expresso artstica ajud-lo a buscar em si mesmo aquilo que est contido em seu centro e totalidade psquicas: o Self. Esses autores alertam que o psicoterapeuta, para alm do aprendizado terico, do treinamento e da vocao, necessita passar por um longo processo de autoconhecimento, submetendo-se ele mesmo s provas de resistncia que o processo analtico impe na busca da cura simblica, sob o risco de permanecer com seus pacientes em um nvel superficial de terapia, eventualmente fazendo mais o papel de orientador do que o de curador. Segundo Marie-Louise von Franz (2004), A partir do ponto de vista da psicologia profunda atual, essa experincia xamanstica importa em sofrer uma invaso do inconsciente coletivo e ter xito ao lidar com ela. Quando a anlise de treinamento do futuro analista permanece presa discusso de problemas pessoais, de acordo com minha experincia, essa pessoa nunca se torna, mais tarde um analista eficaz. Somente quando experimenta o infinito na sua vida, como Jung formulou, que a vida encontra significado. Caso contrrio, ela se perde em superficialidades. (pp. 299-300) Exige-se do futuro analista grande conhecimento. Mas o simples conhecimento terico que se pode obter no permitir, sozinho, auxiliar o paciente. A capacidade de curar o outro exige do curador poder reconhecer e acolher a dor do outro e a possibilidade de curar a si mesmo. Esta cura pode acontecer quele que, na busca por individuao, consegue enfrentar seu inconsciente profundo e depois retornar a sua vida consciente e cotidiana transformado por suas crenas e seu universo simblico. A cura simblica se d nos mbitos espiritual e psicolgico. Para Donald Sandner (1997) [...] o cerne de todos os mtodos culturais e psicolgicos de cura que ocorram em sociedades letradas ou iletradas uma estrutura simblica que explique ou, pelo menos, oferea um contexto de significao para o sofrimento de seus membros. H muito o que tolerar: a exaustiva monotonia da vida diria, o apocalptico aparecimento de enfermidades e tragdias, e o sofrido resultado da ignorncia e da maldade humana. Dentro da estrutura simblica de sua cultura, o homem tenta criar um sentido satisfatrio para esses sofrimentos e um mtodo para cur-lo. (p. 25) A vocao do analista para estar a servio do outro tem que ser o ponto central da sua escolha e pode tambm ser considerada como um chamado, pois a necessidade de entrar em contato com o prprio inconsciente exige
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do mesmo a submisso da conscincia ao si-mesmo e funo religiosa nele contida. O mito do curador ferido se sobrepe e delineia os propsitos do Self em uma trajetria de sucessivos enfrentamentos com o mundo interior. Ao nos depararmos com o nosso prprio sofrimento e com nossas dvidas, vivenciando-os no processo simblico, podemos nos identificar e nos aproximar do nosso prprio mito, do nosso prprio curador ferido e assim compreender com tolerncia e valorizao os mitos de outras culturas e sociedades. Para von Franz (2004) Tudo o que dissemos aqui sobre o xamanismo dos povos circumpolares se aplica, de maneira surpreendente, problemtica vocacional dos terapeutas atuais. A pessoa que no tenha tido acesso s profundezas do inconsciente, e visto ali a natureza de todos os espritos da doena, dificilmente pode possuir uma empatia real e suficiente com relao ao grave sofrimento psquico dos seus semelhantes. Ela s os tratar de acordo com as regras, sem jamais ser capaz de sentir empatia por eles, e este frequentemente o fator-chave para os pacientes. (p. 301) A vocao para o ofcio simultaneamente um ser escolhido e escolher torna-se ento profisso, ofcio, lugar no mundo. Este ofcio vem carregado de uma carga afetiva, que s identificamos, muitas vezes, ao longo da vida. comum vermos adultos, que na infncia sofreram doenas graves, ao se curarem, se transformarem em grandes mdicos, grandes curadores. E assim o mito do curador ferido se mantm vivo em nosso inconsciente.
Discrimino a cura em dois universos distintos para melhor compreender
como ela se d em nossa sociedade contempornea: a cura simblica e a cura cientfica. A cura cientfica da nossa sociedade laica moderna objetiva e racional em seu aparato tecnolgico, bioqumico e instrumental, e pressupe que um tratamento qualquer, cientificamente testado, funcionar de maneira previsvel em qualquer pessoa ou grupo de pessoas independentemente de sua cultura e das suas crenas. Essa a conceitualizao que nossa sociedade contempornea parece ter da cura. J o xamanismo, assim como a maioria das religies e mitologias, se diferencia por propiciar a cura simblica. Para Edward F. Edinger (1993), [...] ergue-se no horizonte um novo modo, a saber, a psicologia profunda. A nova dispensao psicolgica descobre a relao do homem com Deus na relao do indivduo com o inconsciente. (p. 86)
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Tambm entendo a psicologia analtica como capaz de promover uma cura simblica, o que a diferencia de outras abordagens dentro da cincia: a psicologia, de algum modo, quem faz a comunicao entre esses dois modos de ver a cura. (Natel, 2003, p. 72) Segundo Aldo Natale Terrin (1998), A viso xamnica implica tambm uma definio e uma concepo de sade que se diferenciam de maneira clara da viso ocidental. A sade um fato total, um bem-estar, um estar bem do corpo e do esprito, num justo equilbrio entre as foras da natureza e as foras espirituais e esse equilbrio pode ser unicamente o resultado de uma manuteno da relao estreita com os mbitos internos da realidade: antes de tudo, o esprito que se deve harmonizar com o corpo, com o mundo circunstante, com a natureza, com o mundo senciente, com os outros e com o mundo dos espritos. (p. 229)
Mas como podemos avaliar a eficincia da cura? Evidentemente ela se dar
no restabelecimento da sade do paciente, seu bem-estar e seu retorno vida cotidiana. Para o xamanismo essa cura se d quando o sujeito no est merc de espritos perturbadores, feitios ou da perda de pedaos da alma em momentos de extremo sofrimento, traumas e lutos. O xam o mediador entre o mundo dos vivos e dos mortos; ele quem entra em contato com o mundo dos mortos e obtm os conhecimentos e instrumentos para ajudar seu paciente a se curar.
Tambm o papel do analista junguiano deve ser o de um facilitador no
processo de individuao de seu paciente, ao possibilitar a comunicao entre dois mundos: o mundo da conscincia e o mundo do inconsciente. No contexto psicolgico, a cura s efetiva quando a individuao ocorre, melhor dizendo, quando a pessoa solidifica sua personalidade natural e passa a exerc-la, deixando de estar merc da agitao de afetos internos, de projees ou simplesmente dos modismos de sua sociedade. Tanto no xamanismo, quanto na psicologia de abordagem junguiana, devemos ter cuidado extremo ao falarmos em cura, especialmente ao levarmos em conta a possibilidade de emergncia de um curador demonaco. Segundo Marie-Louise von Franz (2004), No contexto etnolgico, contudo, o curador tambm tem uma sombra especfica, ou seja, essa vocao tambm possui um contraaspecto sombrio. Trata-se da figura do xam ou curandeiro
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demonaco. A forma mais superficial disso o terapeuta que governado por um complexo de poder. evidente que nessa profisso, na qual o indivduo seu prprio senhor e amo, e na qual as outras pessoas frequentemente se agarram a ele de maneira ingnua e infantil, o abuso do poder representa uma enorme tentao. Por exemplo, o analista pode se ver tentando assumir o papel do pai ou do sbio, aquele que sabe o que est certo. Por mais repugnante que isso seja, no , na minha opinio, o mais perigoso, visto que esses terapeutas so de modo geral devidamente importunados por pacientes igualmente possudos pelo poder, ou punidos, atravs do fato de que eles tendem a reunir ao redor de si um tedioso jardim-de-infncia de pacientes que os atormentam com exigncias. (p. 303) Quando o paciente no se permite atender ao chamado do seu prprio mundo interior, estabelece-se uma resistncia que mantm a pessoa fixada no mundo externo de forma literal. Essa atitude gera uma neurose que afasta artificialmente a pessoa da dor por meio de um mecanismo defensivo que, como consequncia funesta, o impedir de viver situaes criativas na vida diria. O curador demonaco causar outros quadros neurticos e tomar como cura novas doenas da alma, exercendo sob seus pacientes poder e controle que, ao invs de buscar realmente pela cura, manter o paciente em dependncia com novos conflitos e eterna servido ao curador. O curador demonaco chamado de xam negro ou sanguinrio porque pratica magia negra: escolhe a feitiaria e atua com ela. A arrogncia dos xams frequentemente vista como verdadeira fonte do mal. von Franz afirma (2004) O curador demonaco algo em escala maior, algo mais perigoso. Os Yakuts, por exemplo, acreditam que no momento da iniciao, o xam tem a escolha de ser iniciado pelos espritos da fonte da destruio e da morte ou pelos espritos da cura e da salvao. [...] A partir do ponto de vista psicolgico, os xams do mal so aqueles que encontraram o acesso ao inconsciente e se mostraram suficientemente fortes para no serem derrubados por ele, mas que, por assim dizer, intencionalmente se rendem aos impulsos sombrios do inconsciente. (p. 303) E conclui: Na minha opinio, essa arrogncia tambm existe entre os terapeutas modernos, e os que so marcados por ela so, creio eu, mais perigosos do que aqueles com treinamento profissional inadequado. (von Franz, 2004, p. 304) Podemos observar esse fenmeno em certos profissionais que se tornam verdadeiros gurus em nossa sociedade, eventualmente provocando
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fanatismos e perda de conscincia crtica em seus pacientes e na sociedade em geral. Em algumas religies contemporneas, discursos emocionais de lderes manipuladores podem eventualmente produzir episdios de histeria coletiva, despersonalizando os indivduos possudos pela participation mystique. Jung mais de uma vez fez aluso a Hitler como um exemplo de salvador negativo ou destruidor e, de fato, foram imensos o sofrimento e a vergonha que o nazismo causou humanidade como um todo. Segundo Jung (2002), [...] a magia negra exalta os impulsos destrutivos como nica verdade vlida em oposio ordem at agora existente e, alm disso, compele a servir ao indivduo em oposio coletividade. (p. 256)
Ao entrarmos em contato com o nosso Self, corremos o risco de
encontrarmos uma posio transcendente, uma terceira via, diferente das duas que invariavelmente constituem o par de opostos do conflito psquico: retornamos da jornada conscientes de contedos profundos e permitimos a transformao dos valores da conscincia de modo a estarem de acordo com o si-mesmo, integrando-os ento na nossa vida cotidiana. Trazer luz da conscincia aquilo que em ns permanece na escurido da nossa psique ancestral e compreender o conceito de sade como integrao psquica entre conscincia e inconsciente a possibilidade de dar sentido existncia. Na direo contrria, nos afastamos de ns mesmos. A tomada de conscincia algo que s pode ser feito pelo indivduo. Tratar a religiosidade humana como mero pensamento mgico, sem valor no contexto sociocultural da modernidade, funo do domnio do pensamento cientfico na cultura contempornea que, transformado em viso de mundo, desmerece o carter religioso e simblico da prpria cultura e do ser humano. A humanidade, ao longo da sua histria e desenvolvimento, apresenta um imenso contedo de smbolos e mitos. O xamanismo assim como o animismo e todas as formas de religies posteriores um conjunto diverso de simbologias e mitologemas. Os mitos habitam nosso inconsciente coletivo como motivos bsicos de formaes de ideias que herdamos de nossos antepassados; emergem da nossa histria de vida e so definidores na relao com a sociedade na qual estamos inseridos. O inconsciente coletivo a nossa herana individual deixada por toda a humanidade em seu processo de desenvolvimento. Em funo da evoluo da diversidade cultural, esses smbolos foram sendo transformados e ressignificados, mas, ao nos depararmos com os momentos crticos de nossas vidas, o sentido e a carga afetiva do acontecimento primordial, que foi introjetado em nosso inconciente, retornam. Nesse processo que a prpria vida, enfrentamos
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situaes de extremo sofrimento, tais como perdas, lutos, conflitos e doenas, as quais, muitas vezes, nos remetem a um vazio existencial, geram distrbios e desajustamentos tanto no meio em que convivemos quanto em relao a ns mesmos. Jung pergunta (1986): Quem este Deus? Esta pergunta se imps humanidade em todas as partes do mundo e em todos os tempos e sempre de novo, de forma semelhante: uma fora do alm, a que estamos abandonados, que cria assim como mata, uma imagem das necessidades e dos fatos inevitveis da vida. Como, do ponto de vista psicolgico, a figura de Deus um complexo de ideias de natureza arquetpica, deve ser considerada como representante de uma certa soma de energia (libido), que aparece de forma projetada. Nas principais religies da atualidade os atributos de Deus parecem ser derivados da imago paterna, em religies mais antigas tambm da imago materna. So eles o poder dominador, o pai atemorizante e rancoroso (Antigo Testamento), e o pai amoroso (Novo Testamento). Em certas imagens pags o lado materno sobressai muito, acrescentando-se ainda o elemento animal, o teriomorfo. (pp. 48-49; OC V: 89) A vida se torna inspida e sem criatividade se nos afastamos do contato com aquilo que naturalmente somos, incluindo o que desconhecemos em ns mesmos: ela fica plena de neuroses que ns mesmos construmos, com comportamentos, mscaras e racionalizaes que cristalizam o nosso viver. O inconsciente coletivo um sucessivo acmulo de experincias e vivncias, que em cada um de ns expressa sentidos e simbologias de origens comuns, porm, com revestimentos diversos: o afastamento da vida simblica nos despersonaliza e nos afasta do centro organizador da vida psquica que o si-mesmo. Para Jung (1986): A figura religiosa no pode ser apenas um homem; ela deve representar aquilo que realmente , a totalidade daqueles prottipos que sempre e em todos os tempos exprimem o extraordinariamente eficiente. Sob a forma humana visvel no se procura o homem, mas o super-homem, heri ou o deus, justamente o ser semelhante ao homem, que exprime aquelas ideias, formas e foras que comovem e moldam a alma humana. Para a experincia psicolgica so os contedos arquetpicos do inconsciente (coletivo), aqueles resduos da remota humanidade comuns a todos os homens, aquele patrimnio geral sobrevivente a toda diferenciao e desenvolvimento, que dado a todos os homens como a luz do Sol e como o ar. Mas ao amarem este legado, amam aquilo que comum a todos; voltam assim me da humanidade, psique que era antes de existir um consciente,
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e readquirem desse modo uma parcela desta coeso e desta fora secreta e irresistvel que emana da sensao de solidariedade com o todo. (p. 163; OC V: 259) Como analistas, devemos ter a capacidade de acolher nosso prprio processo de autoconhecimento e individuao, para podermos almejar ajudar nossos pacientes a fazerem o mesmo. Para isso, necessrio conhecer e exercitar tantos as funes psicolgicas superiores quanto as inferiores. A funo religiosa nos remeter ao nosso centro psquico e, ao nos encontramos com a imagem de Deus, estaremos em confronto com episdios e experincias numinosas que traro nossa conscincia a possibilidade de autoconhecimento, permitindo assim nos identificarmos com um universo simblico que nos auxiliar no objetivo de estar a servio do outro. A aproximao do xamanismo e da psicologia analtica se d, simultaneamente, no nvel do inconsciente coletivo, onde os smbolos nos remetem aos primrdios da humanidade, e no nvel da conscincia, tanto individual quanto coletiva, aos nos identificarmos com esses smbolos e darmos importncia a eles e a sua universalidade. Desse modo, poderemos continuar, mulheres e homens, pessoas contemporneas, a lhes dar significado. S podemos oferecer ao outro aquilo que possumos. Nossas caractersticas inatas, nossa histria de vida e o lugar que ocupamos no mundo nos obrigam a viver mitos que revelam o nosso processo de individuao.
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Rejane Maria Gomes Leite Natel Psicloga. Membro didata
do Instituto Junguiano de So Paulo (IJUSP) e da Associao Junguiana do Brasil (ABJ). Professora convidada no Centro Universitrio Salesiano de So Paulo (Unisal). Mestre em Cincias das Religies pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC/SP); especialista em Psicologia Junguiana. Diretora Administrativa do IJUSP (2016/2018). E-mail: [email protected]