A Psicanálise Novamente - 2ed - E-Book
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A Psicanálise,
Novamente
2ª Edição Revista e Aumentada
A PSICANÁLISE, NOVAMENTE
Um Pensamento Para o Século II da Era Freudiana
Conferências Introdutórias
à Nova Psicanálise (1999)
editora
é uma editora da
Presidente
Rosane Araujo
Diretor
Aristides Alonso
Preparação do texto
Potiguara Mendes da Silveira Jr.
Nelma Medeiros
Paula de Oliveira Carvalho
Editado por
Rosane Araujo
Aristides Alonso
M176p
Magno, M.D. 1938 -
A psicanálise, novamente: um pensamento para o Século II da era
freudiana : conferências introdutórias à Nova Psicanálise (1999) / M. D.
Magno ; preparação de texto: Potiguara Mendes da Silveira Jr., Nelma
Medeiros. – 2ª ed. – Rio de Janeiro : Novamente, 2008.
224 p ; 16 x 23 cm.
ISBN 978-85-87727-26-8
LEMINSKI
TALLEYRAND
DEDICATÓRIA:
Para Rosane,
que não deixa cair a peteca.
AGRADECIMENTO:
1. INTRODUÇÃO À
: revigoramento do pensamento freudiano – Jacques Lacan como momen-
to de recomposição da psicanálise – Metáforas de progressividade do pensamento:
tonalidade e atonalidade na música; tectonia e atectonia em arquitetura – Base conceitual
da pulsão, ALEI (Haver quer não-Haver) e princípio de catoptria.
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2. REVIRÃO
Estatuto do impossível n’ALEI Haver quer não-Haver – Compatibilidade do conceito
freudiano de pulsão com o princípio de catoptria – Princípio de Idioformação como
versão forte do princípio antrópico – Revirão qualifica a Idioformação em sua vontade
de transcendência – Hiperdeterminação é condição de criação – Estatuto da psicanálise
é místico.
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3. A CONTRABANDA
Esclarecimentos sobre utilização da topologia em psicanálise – Características da geo-
metria euclidiana – Características da topologia – Propriedades da banda bilátera –
Propriedades da banda de Moebius ou contrabanda – Banda de Moebius resulta de
operação topológica sobre o plano projetivo – Proposição da contrabanda como estru-
tura básica do psiquismo – Operação do Revirão a partir da contrabanda – Impossibi-
lidade absoluta, impossibilidade modal e proibição a partir da lógica do Revirão.
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4. RECALQUE
Apresentação do conceito freudiano de recalque – Recomposição do conceito de recalque
originário como quebra de simetria – Modalização do Haver: formações primárias, for-
mações secundárias e formação originária – Modalização do recalque originário:
recalque primário (autossoma e etossoma) e recalque secundário – Poder como agonística
entre formações recalcantes e recalcadas.
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6. O SEXO E A MORTE
Apresentação da questão da sexualidade em Freud – Entendimento lacaniano da dife-
rença sexual a partir da lógica do falo – Redução da lógica do falo à ordem sintomática
– Entendimento de toda binariedade a partir da lógica do Revirão – Reescrição das
lógicas da sexuação: sexo desistente, resistente, consistente e inconsistente.
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7. OS CINCO IMPÉRIOS
Desenvolvimento das lógicas da sexuação com consideração dos estilos – Articulação
das modalidades de gozo com as formações (primárias, secundárias, originária) – Pri-
mário, Secundário e Originário são referências para o périplo cultural – Creodo antrópico
como entendimento da dinâmica da cultura – Os Cinco Impérios: Império d’AMÃE,
d’OPAI, d’OFILHO, d’OESPÍRITO, do AMÉM.
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SEMINÁRIO DE MD MAGNO
217
Nota
1
Nesta segunda edição os editores incluíram os capítulos 8 e 9, retirados de textos posteriores
do autor (2003 e 2005), visando apresentar mais dois aparelhos conceituais importantes para o
entendimento geral da Nova Psicanálise: a Patemática, que transforma a (mal)chamada nosologia;
e a teoria do Eu, ou da Pessoa, que é resultante da teoria das Formações.
Fim de Século? Fim de Milênio?
Globalização do Mundo? Crise dos Fundamentos?
Caos da Economia? Inadimplência da Educação?
Precariedade da Saúde? Irrisão do Moral?
Éticas sem Caução? Políticas Farsantes?
Teimosia da Fé? Esperança Deceptiva?
Caridade Suspeita? Justiça Contestável?
Estado Impotente? Mercado Cínico?
Ocidente Fracassado? Oriente Confundido?
Consciência Perplexa? Inconsciente Denegado?
Amor Desconfiado? Sexo Ameaçado?
Artes de Araque? Ciências Afoitas?
Filosofias Marotas? Tecnologia Desembestada?
Caracteres Furtacores? Amizades Lábeis?
Violência Generalizada? Carinhos Fingidos?
Hiperpopulação Explosiva? Princípios Hipócritas?
Fundamentalismos Paranóides? Reproduções Assexuadas?
etc.? etc.? etc.?
1
INTRODUÇÃO À
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grande disseminação pelo mundo entre letrados e leigos de que esses tais funda-
mentos não vão lá muito bem das pernas, ou seja, de que na verdade não
fundamentavam coisíssima alguma. Tínhamos que aplicar algum volume de fé,
apostar, investir neles para que viessem previamente a garantir os compor-
tamentos de conhecimento, de socialidade ou de crença mesmo. O que está
acontecendo é que, apesar dos meios de comunicação, e mesmo de alguns
ditos pensadores e professores insistirem em reconhecer fundamentos em al-
gum tipo de afirmação – ética, por exemplo –, apesar disso, cada vez mais nos
temos dado conta de que esse papo estava furado desde o seu começo. Não dá
mais para acreditar na conseqüência esperável desses fundamentos.
Apesar de tudo, temos que viabilizar um encaminhamento qualquer
para nosso futuro. Há muita gente fazendo o esforço de tentar pensar alguma
indicação para os tempos que virão. Mas, como se fica muito apavorado por-
que não se encontra fundamento e, mesmo quando somos leigos, ouvimos falar
que as coisas estão degringoladas, embora acreditemos nos fundamentos que
nos apresentaram no passado – nem que seja por inércia cultural, por valores
familiares, ou do pedaço onde habitamos –, na maioria dos casos, as pessoas
estão fugindo para trás, retrogredindo, intensa e amplamente. Isto porque lá na
frente parece não haver nada muito claro, a escuridão é muito grande. Não há
luz no fim do túnel, ou mesmo não se tem túnel nenhum. Então, quem sabe,
conseguiríamos retrogredir no tempo para quando se acreditava belamente nos
fundamentos. Daí a explosão de recrudescências religiosas, pieguices e crendi-
ces. As pessoas não podem nem ser muito criticadas por isso, pois, coitadas,
estão se agarrando ao que parece ainda subsistir, que é essa velharia que,
mesmo não apresentando comprovação ou fundamentação capaz de suportar
a situação, fazia parecer que os antigamentes eram algo fundamentado. É cla-
ro que essa fuga já deu o que tinha que dar. Dará talvez para as pessoas ainda
sobreviverem durante algumas poucas décadas na esperança de que essas
coisas funcionem. Ou pelo menos não explodindo pelas tabelas porque estão
contidas por idéias mais ou menos configuradas e engastadas em suas mentes.
A explosão parece ficar minimizada quando retrogressivamente nos apegamos
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Introdução à
de que aquilo é fundamental. Ou correm para trás, procuram coisas mais anti-
gas que estão desgastadas e perecidas – vai-se rezar para o deus Édipo, por
exemplo – e tentam lhes dar um tônus novo. Ou fazem o que é o mais difícil e
mais perigoso, que é pensar: Será que isso não está superado e devemos saltar
para a frente? Ou seja, quem é o Schoenberg desse Lacan e desse Freud (se
continuarmos a comparação musical que vínhamos colocando)? Quem vai ten-
tar um atonalismo mesmo e, de uma vez por todas, sair da prisão configurada
que a psicanálise teve até hoje – e partir para uma visão comparável com a
relação que há entre a música de Schoenberg, a de Wagner e, para trás, a
música tonal clássica, seja de Bach ou de um romântico qualquer? Eu até diria
que a constituição freudiana é bem parecida com os músicos românticos, mais
para Beethoven do que outra coisa.
A Nova Mente que surgiu há um século com Freud, é preciso que
ela venha à tona. É preciso re-entoná-la para que te-
nha algum futuro. Não porque mereça ter futuro – de repente, serve para o
lixo: bota-se no lixo e passa-se adiante –, e sim porque pode ser um pensa-
mento vigoroso, com muita serventia, que tem apenas cem anos e não está
rendendo o que deveria na ordem bancária dos pensamentos, por estar talvez
mal aplicado, por estar com a sua moeda em péssima cotação, se não estiver
mesmo podre. Precisamos mudar a cotação do Freud depois de ter sido
mudada para a cotação do Lacan – e passar a outra cotação qualquer capaz
de reentonar o seu valor. Isto para, afinal de contas, vermos se essa eco-
nomia continua funcionando com alguma serventia para o mundo. A proposi-
ção extremamente pretensiosa que se faz aqui é esta: tentar o atonalismo
psicanalítico, um outro modo de investimento. Nem diria que queremos fazer
música à la Schoenberg, pois prefiro Webern, que me parece mais conciso e
mais preciso, embora tenha herdado de Schoenberg a transformação da música
wagneriana em verdadeira atonalidade.
Se quiserem outro tipo de comparação quanto ao que é necessário
fazer hoje, podemos pensar nas artes plásticas, sobretudo no que diz respeito às
grandes construções – como a arquitetura. Digamos que há uma arquitetura
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A Psicanálise, Novamente
clássica – no sentido mais genérico, pois não estou falando do classicismo his-
tórico – fundamentada na boa forma, na visibilidade da forma, que se parece
muito com a arquitetura do Édipo em Freud. Aquela coisa toda construída direi-
tinho: papai, mamãe, neném – neném quer mamãe, papai não deixa, então... Foi
uma anedota interessante, deu para pensar as coisas através dela, mas é claro
que não é bem assim que a coisa funciona. Do mesmo modo a famigerada
interdição do incesto, de Lévi-Strauss, que é uma bobagem, muito menos é
universal e talvez não seja capaz de estruturar ordem de parentesco nenhuma.
Mas foi bom acreditar nisto por um tempo, porque deu-se uma organizada e
deu para se fazer uma lente para ler melhor e ver que não era bem assim.
Freqüentemente, grandes idéias na história do pensamento servem para ver-
mos o que não é – e ficarmos livres de uma trave que só estava empatando
nossa vida. O Édipo freudiano é bem parecido com uma catedral, com sua
grande configuração com todas as suas sapatas completamente assentadas
sobre o chão. Se a inclinarmos um pouquinho, ela cai, ela se escombra, pois
está subdita a uma força e a uma ordem tectônicas – daí, archi-tectura: ficar
sentado numa verticalidade sobre a terra – relativas à ordem mesma da força
gravitacional. Quando chega Lacan com as histórias de Nome do Pai, Matema,
Sujeito Barrado, etc., isto é muitíssimo interessante e abstraente e a partir daí
não dá mais para se pensar em Édipo, y otras cositas más, com a pobreza
dessa estrutura. Édipo é uma anedota muito frágil para dar conta da complexi-
dade que, notou-se só-depois, era maior e mais abstrata no psiquismo.
Lacan começa, então, a produzir uma descentralização que é parecida
com uma revolução na arquitetura que modificasse a ordem da fachada em
relação à lateralidade, onde a composição dos espaços não tivesse mais que
obedecer a configuração de olhos e boca da fachada clássica – mas, mesmo
assim, continua tectônico: tem que ficar de pé virado para baixo, se não, cai.
Tudo é feito numa relação de mudança e abstração das formas, mas ainda na
manutenção da vocação tectônica de verticalidade sobre a terra porque depen-
dente da força gravitacional. Arquiteto daqui de baixo, daqui do planeta, não
pensa sem o geocentrismo da força da gravidade. Assim, com Lacan, já se
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Introdução à
abstrai, já se muda a fachada para dois, três lados, já se entra por trás, pela
frente, por cima, por baixo. É a tal arquitetura genericamente chamada moder-
na. Mas, uma vez que isto já não funciona para explicar a complexidade, a
loucura, que está recrudescendo no final do século – e que precisa ser reorga-
nizada –, essa arquitetura, esse lacanismo e esse freudismo já não servem mais
de arquitetura. Estamos passando por um momento em que a arquitetura já
começa a ser atectônica. Ou seja, qual é o lado de baixo? Não se sabe. Qual-
quer lado serve. Para que lado sentamos? Para falar em língua vulgar de todos
os dias: onde fica nossa bunda? Basta olharmos o que se passa numa nave
interplanetária. Uma vez, então, que se começa a agir para além da configura-
ção e do empuxo terráqueo da força gravitacional, há que pensar que qualquer
lado é lado e que não se tem mais tectonia.
Os movimentos da cultura, a velocidade da tecnologia, dos meios de
comunicação, da internet, de tudo que está acontecendo por aí, e o
desvigoramento das idéias supostamente fundamentadas pelo mundo estão fa-
zendo da nossa cabeça uma nave atectônica. Qualquer lado serve para chão.
Onde me assento? Onde quiser. No teto, por exemplo. Na ordem de movimen-
tação do pensamento como está ocorrendo agora, qualquer lado é lado. Então,
não sei por que a psicanálise ainda continuaria tectônica, mesmo que fosse com
o vigor maravilhoso do pensamento de Lacan. É preciso retomá-la e apre-
sentá-la em sua atectonia capaz de lidar com o desarvoramento dos fundamen-
tos e do chão. Acabou o chão. É preciso fazer uma psicanálise atonal, atectô-
nica. Para isso, uma reformatação da mesma idéia, do mesmo vigor de pensa-
mento, tem que ser feita, mas que seja compatível com a situação presente e
para além do que se conseguiu até agora. Precisamos rever todos os conceitos
e modos de operação dessa tal psicanálise. Vimos trabalhando nisso há anos e
nosso objetivo aqui é resumir o que conseguimos até agora.
É preciso repensar o que é mais vigoroso como chave, como conceito
fundamental supostamente capaz de fundamentar o resto no grande aparelho
que se chamou psicanálise. Terá ele fundamento? Não faço a menor idéia. O
que a psicanálise trouxe indica para um ponto essencial que é a chave de todo
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seu processamento e que é certamente o único fundamento que ela pode ofe-
recer, seja ele fundamental ou não. Não se está dizendo que esse fundamento
é comprovável em qualquer ponto, e sim que é a aposta que o pensamento
psicanalítico fez. Ou seja, quais são os conceitos básicos que fundamentam a
psicanálise? No quê a psicanálise se fundamenta para existir e oferecer ao
mundo um modo de pensar e até mesmo ter a pretensão de dizer que oferece
um modo de tratamento que melhora a vida da gente? Freud apresentou uma
quantidade enorme de conceitos, opiniões, configurações, aparelhos de pensa-
mento. Tudo parecendo fundamentar a psicanálise até com a pretensão de ser
científica, coisa que jamais ela foi. Lacan, depois de ler o Freud por inteiro e
submetê-lo ao crivo de suas idéias novas, chegou à conclusão de que havia
quatro conceitos fundamentadores da psicanálise, que embutiu e desenvolveu
em seu Seminário de 64, intitulado justamente Os Quatro Conceitos Funda-
mentais da Psicanálise, que tive a oportunidade de traduzir para o brasileiro.
Esses conceitos seriam: o Inconsciente, a Repetição, a Transferência e a Pulsão.
A idéia de que há um Inconsciente, as pessoas não sabem muito bem
do que se trata, pois o folclore já o confundiu com coisas de que não temos
consciência no momento. A Repetição se refere ao movimento do psiquismo
em verdadeiro eterno retorno, como diria Nietzsche, obrigando a certas posi-
ções compulsórias, se não compulsivas, enquanto resultantes de uma tendência
repetitiva. A Transferência é aquela transa meio amorosa meio odienta que
Freud descobriu entre o analista e seu analisando. Ele achava que era impossí-
vel uma análise sem essa transa – às vezes, em todos os sentidos, como no
caso de Lacan – que possibilita e atrapalha a análise ao mesmo tempo. O
próprio Lacan mostra que é coisa antiga e que, em termos ocidentais, vem
exarado, por exemplo, no texto do Banquete de Platão, lá nos começos da
filosofia. E, por último, a Pulsão. Mas, na verdade, desses conceitos que seri-
am os fundamentais, os três primeiros já estavam por aí nos pensamentos,
mesmo que a psicanálise possa ter-lhes dado nova formatação, novo arranjo.
Eram, portanto, idéias que estavam, por exemplo, nas filosofias anteriores como
é o caso da transferência em Platão. É clara na posição de Sócrates, como se
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não havendo, o não-Haver é tudo que desejamos. Sei que não-Haver não há,
não quero saber dessa questão, no entanto, o que quero mesmo é não-Haver.
Há uma maluquice originária nesta nossa espécie, talvez no Universo inteiro,
ou, se não, Deus é doido varrido, se é que existe. Mas há uma maluquice na
cabeça de Deus, se quiserem dizer assim, que impõe que o que há deseja o que
não há. Por quê? Porque é o maior tesão. O não-Haver seria a Paz absoluta e
definitiva. Seria gozar definitivamente e nunca mais se aporrinhar com isso. E
isso aporrinha tanto que, mesmo quando falha, as pessoas tomam Viagra para
continuar querendo, em vez de agradecer porque, afinal, graçasadeus aquilo
acabou. Compram Viagra para poder continuar pedindo o não-Haver, pedindo
um gozo que, quem sabe, um dia, gozarão de vez. Não custa tentar mais cem,
duzentas vezes... Só que isso não vem, porque o não-Haver não há. No entan-
to, tudo que há de movimento desejante, tudo isso que podíamos traduzir pelo
termo Pulsão, ou melhor, todo e qualquer Tesão, seja qual for, está, em última
instância, sendo algo que há – que escrevo: A – e que deseja não-Haver, que
escrevo: Ã. Em português “desejo não haver” é ambíguo: ou desejo aquilo que
não há; ou simplesmente desejo “eu” não haver. Freud e Lacan chamavam
atenção para isto quando se remetiam ao Édipo-Rei, de Sófocles, que diz
exatamente aquilo que todos queriam: “Antes, eu não houvesse!” A situação é
trágica e tão dramaticamente terrível que só haveria uma saída: não ter havido,
não ter existido. Se existo, não há saída: Mé funai! – no grego que Lacan cita.
Aí Freud faz a conhecida piada: – “Mas isso acontece com muito pouca gen-
te”. Não acontece com ninguém.
Vejamos agora a notação minimalista que posso escrever sobre isso:
A→Ã: Haver quer não-Haver ou Haver desejo de não-Haver. Aí está
um vetor como na mecânica da física. É uma força. Chama-se: Tesão, Pulsão.
Freud a chamou de konstante Kraft, uma força constante, se considerarmos a
totalidade da força que existe no Haver. Ela varia não porque não seja constan-
te, e sim porque fica pespegada, freada, pelas coisas que toca. Esta notação
resume tudo que pode embasar o pensamento da psicanálise. A idéia de Tesão
significando que o que há, em última instância, é Haver desejo de não-Ha-
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ver. Tudo começa daí. Veremos, assim, que podemos deduzir daí as idéias de
Inconsciente, Repetição, Transferência e o que mais. Observem que, se come-
cei logo por dizer ‘Haver desejo de não-Haver’ ou ‘Haver quer não-Haver’,
foi porque fui buscar em pensamentos anteriores que sempre indicaram para
isso. Mas ao dizer isto, digo também que todo e qualquer tesão, em sua última
instância, em sua significação última, exige o quê? O avesso, o contrário de si
mesmo. Haver quer passar a seu contrário, a não-Haver. O que quer que con-
sidere, mesmo não havendo o não-Haver, estou considerando uma polaridade
entre dois avessos. Isto é uma das coisas que mais intrigou o pensamento humano
em todos os tempos, ocidental ou oriental (o búdico, o hindu): a maluquice, se
não do universo – e hoje podemos dizer que é do universo, pois já se mostra
essa polaridade acontecendo na micro e na macrofísica –, de nossa cabeça
que, para o que quer que lhe seja colocado, o contrário também é pensável, ou
também é exigível. A não ser que se resolva por alguma força maior – a polícia,
por exemplo – dizer que só pode o lado de cá, mas basta dizerem isto para já
ficarmos achando que há outro mais interessante do lado de lá.
Os pensadores – matemáticos, físicos, filósofos, etc. – não puderam
não sofrer com essa questão básica do movimento de nosso pensamento: so-
mos uma espécie que, se diferimos radicalmente de qualquer outra, animal, por
exemplo, é porque somos meio maluquinhos, não nos conformamos em ser um
porco, cavalo, galinha, e, pior, não sabemos o que é ser homem. Então, diante
do que quer que pinte, do que quer que se diga, por que não o contrário? Não
temos uma cabeça capaz de se fixar em determinadas configurações e sim-
plesmente ser o cachorro cotidiano de todos os dias, cachorralmente bem insta-
lado. É claro que vamos nos configurar mais ou menos mediante aparelhos de
recalque, mas não é esta a especificidade da nossa espécie. Mesmo que tenha-
mos uma aparência mais ou menos constante – cabeça, tronco, membros, dois
olhos, boca, nariz, ânus –, o que se passa em nossas mentes é um vale-tudo
radical. Ao que quer que se diga, com um pouco de esforço trocamos de parti-
do, viramos ao contrário. Imaginem, então, um René Descartes com sua loucu-
ra da dúvida, da qual não consegue sair senão aplicando um golpe de força e
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A Psicanálise, Novamente
inventando um sujeito que justamente tem certeza porque não consegue tê-la.
É isto afinal o seu cogito. O que existe então? Parece que a máquina da nossa
mente funciona sem parar e indefectivelmente, embora às vezes sob trava,
segundo um princípio de polaridade entre opostos. Pode-se excluir um dos opos-
tos, dizer que é o lado do pecado e do proibido, mas pensa-se nele. Tanto é que
se inventou o pecado e o proibido. Se não, não eram nem pensados. Vejam, por
exemplo que, se conversarem com um cachorro durante horas, ele não dubitará
da idéia de ser cachorro. Ao passo que, se certas pessoas conversarem muito
comigo, posso pensar que sou um cavalo. Alguns, aliás, até me xingam disso...
Parece, então, que há um princípio de funcionamento na mente humana e em
todo o Haver que, segundo o modelo do ‘Haver desejo de não-Haver’ que
lhes apresento esquematizado no desenho abaixo, regula-se em polaridade
opositiva, como se no meio houvesse um espelho. Por isso, chamo de princí-
pio de catoptria (katoptron: espelho, em grego) a esse princípio que rege
todos os movimentos de nossa espécie e, quiçá, de todo o universo, os quais
dizem que, para o que quer que se coloque, o pólo oposto também é pensável
e mesmo exeqüível.
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Introdução à
fora. Então, por movimentos de negar e querer o contrário do que se lhe apre-
senta, vai criando contrariedades em relação à espontaneidade do que há por
aí. O princípio de catoptria é a idéia de que a máquina psíquica funciona
sempre assim, mesmo quando está bloqueada: ao que quer que se coloque, seu
avesso também é pensável e mesmo requisitado. Haver requisita o quê? Seu
avesso radical, que nem há, que é impossível, que é não-Haver. É o desejo de
impossível, do Impossível absoluto. Nesse ponto, a simetria de sempre se pedir
o avesso é quebrada. Não porque não se a peça mais, e sim porque não adianta
pedir porque ela não tem como comparecer, já que não há. Entretanto, daí para
baixo, o que quer que se pense pode ser impossível, mas não absolutamente. É
só modalmente impossível. Ou seja, não há como realizar, o preço é muito alto.
Se não posso ainda pagar o preço de deslocar o sol, não sei se, um dia, não
inventamos um modo qualquer de dar-lhe um empurrãozinho. É assim que a
humanidade inventa tudo que inventa. Isto porque é movimentada pelo desejo
absoluto de Impossível e, daí para baixo, na decadência, metaforização, decli-
nação disso, ela pode perfeitamente pensar – pelo menos, pensar – que é pos-
sível obter e mesmo querer o oposto do que está vendo.
É princípio de catoptria porque é como se o que quer que se colo-
casse propusesse também seu avesso, seu enantiomorfo. E qual seria o último
dos avessos, se posso pensar o avesso de qualquer coisa que se coloque? É
tomar o Haver por inteiro e dizer que seu avesso seria não-Haver. Falo em
avesso e não em oposto porque há várias formas de oposição e há muitos
espelhos. Enantiomorfismo, como sabem, é o princípio de o que quer que se
coloque ser virado pelo avesso, o contrário absoluto do que aquilo é. Diante de
um espelho, alguns, sobretudo crianças, não se dão logo conta de que, para
além da imagem especular – em que Lacan se apoiou, falou de imaginário, de
eu, etc. –, a essencialidade de um espelho é virar pelo avesso o que se coloca
diante dele. A imagem de minha mão direita que vejo no espelho é esquerda.
Mas mudou só de lado? Não, virou pelo avesso a imagem de cá. Podemos
verificar isto vestindo uma luva de borracha bem fina e a virando pelo avesso:
ela terá a imagem que tem a mão do lado de lá. Mas o espelho que usamos para
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Introdução à
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Introdução à
palavra –, que é o da chamada ética. Esta palavra não quer dizer nada que não
seja o que você quer que seja. Que não seja algo que se estatui politicamente.
Toda vez que alguém, numa discussão, levanta e diz que tal coisa “não é ética”,
significa: “Estou querendo que você se submeta àquilo que acho que é o certo
em termos de comportamento”. Aí, em termos de nosso pensamento, ou é
guerra ou é transação política. Não é assim na filosofia, na sociologia, onde
vemos um Habermas discutindo confusões imensas a respeito da consensualidade
de uma ética e de uma política? Isto só cabe aqui como dejeto sintomático.
• P – Na maiêutica socrática já não há essa colocação opositiva?
Todos os pensamentos sempre acabam por encontrar com isto, mas
não o tomaram como fundamento. Para eles, é um modo de articulação. Um
Hegel faz com isto uma dialética e chega até a uma síntese: tese, antítese,
síntese. Não há isto neste modo de pensar que se estatui sobre ‘Haver desejo
de não-Haver’. Como não-Haver não há, quebra-se a simetria e daí vem a
decorrência de tudo. E isto é extremamente abstrato. Não basta apenas pensar
em termos de oposição, é preciso pensar em termos de avessamento radical,
de enantiomorfismo, que será, dadas as circunstâncias, necessariamente
opositivo. É melhor pensar que é uma polaridade que pode funcionar como
oposição. O que importa é: ao que quer que se coloque, devo procurar seu
avesso, ainda que se tenha disto vários graus. De Haver para não-Haver, há
um avessamento radicalíssimo. Mas entre preto e branco, posso dizer que há
um avessamento menor. Ou seja, o nível de formação – e falarei sobre as
Formações do Haver – é menor. A declinação é menor, mas mesmo assim é
um avesso.
08/ABR
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morte. Alguns vão para o céu, outros para o centro espírita, outros, quando
saem de cirurgias, dão depoimento de que viram luzes no fim do túnel, etc.
Estes aí, aliás, não morreram. Se tivessem morrido, queria ver darem testemu-
nho. Isso tudo está envolvido de crenças e desejos de subsistência, mas, para o
pensamento psicanalítico que assim compareceu no mundo, não temos ou tere-
mos a menor condição de experiência de morte, nem do outro e muito menos
própria. Coisas terminam de repente, pessoas perecem. Marcel Duchamp
mandou escrever em seu túmulo o epitáfio: D’ailleurs, ce sont les autres
qui meurent – aliás, são os outros que morrem. Mas temos a idéia de pereci-
mento, que é da ordem de uma possibilidade muito menor do que simples-
mente atingir o não-Haver e, a senhor da situação, poder dizer: “Tive a
experiência de não-Haver, morri e estou aqui”. Isto não é possível, pois quem
está dando depoimento está vivo, ou é mentira, ou é outrem falando em lugar
de alguém indevidamente.
Posso pintar um grande mito a respeito do Haver, em sua inteireza,
encaminhando-se pulsionalmente para não-Haver, não conseguindo alcançá-lo,
esbarrando no Impossível – que é interno a ele mesmo, pois não há nada do
lado de fora, pois não há lado de fora – e o máximo que pode fazer sendo
“retornar” a Haver. E posso supor que “voltou” com uma postura avessa, con-
trária, à anterior porque o movimento era, como é sempre, no sentido de não-
Haver, tendo que abrir mão disso, desistir e, de maneira positivada, “retornar”
imediatamente para o seio do que há. Então, há um reviramento: retorna-se em
sentido contrário, do implosivo para o explosivo e, quando o caso é de última
instância, como é o do Haver, o sentido é o mesmo, mas algo ali se reverte. A
reversão aí é difícil de ser apanhada porque estamos na última instância do
Haver, mas, em nosso cotidiano, é mais fácil porque são coisas menores, decli-
nadas, decadências em relação à última instância. Temos facilmente a experi-
ência de tentarmos algo, fracassarmos e voltar. Para onde? Para o lado oposto
dessa tentativa. E isso organiza de certo modo nossa experiência segundo uma
estrutura de espelho, de avessamento, catoptria. Quer me parecer, então, que
toda a estrutura do Haver funciona da maneira que, tecnicamente, podemos
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pode entrar numa grave entropia, reduzir-se a zero e, suponho eu, até começar
a se concentrar, apertar, implodir, para passar a não-Haver. Não vai conseguir,
fracassa, como já deve tê-lo feito zilhões de vezes, explode e começa tudo
outra vez. O tal Big Bang deve ser algo que, de vez em quando, acontece por
aí, como cada vez mais os cientistas estão disponíveis para pensar. Temos
mitos de que, certo dia, um senhor meio barbudo, idoso, teve vontade de fazer
coisas e criou o Universo, o Homem, começou a parir maravilhas e tudo terá
começado. Esta é uma anedota de certo grupo cultural que, como outras do
Oriente, da Índia, serve para principalmente ilustrar nossa ignorância e também
para ilustrar a idéia de que essa fase, esse espetáculo aí, começou de algum
modo em algum lugar. É verdade, deve ter começado, mas certamente não é o
único e pode simplesmente ser a mera repetição de uma seqüência infinita de
espetáculos que acontecem talvez como moto-perpétuo, que encolhe e explode
em formações diferentes, talvez parecido com o que Nietzsche chamava de
eterno retorno.
Se estou conjeturando a respeito do chamado universo, parece que
nosso psiquismo funciona de modo que tudo que se coloca diante dele, se ele
não faz imediatamente o exercício de virar pelo avesso, pelo menos pode mui-
to bem fazê-lo. Ao que quer que compareça para nossa mente, pode ser posto
o contrário. Em última instância, ao que quer que compareça, posso dizer não
– o que é já dizer o avesso do sim que a mim se apresentou. Aí é que quero
pensar que a estrutura do psiquismo é em espelho. Que nossa última instância
mental é a competência de revirar pelo avesso o que quer que se nos apresen-
te. Por isso, chamo de Revirão a cambalhota que desenhei da vez anterior, que
é a condição de exercício supremo de última instância de nossa maneira espe-
cífica de ser, diferente de todos os outros seres que conhecemos. O enantiomor-
fismo, a catoptria, de nossa mente, podemos supor que também seja do Haver.
Digo, então, que aposto declarada e fortemente naquilo que, no campo da ciên-
cia, chamam de princípio antrópico, forte ou fraco, dependendo do grau de
insistência e da pressão que se faz sobre o reconhecimento do movimento
antrópico, i.e., da reflexão recíproca entre o Haver e nossa existência. O princípio
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as palavras da última moda. É preciso explicar muito bem, sim, mas aquilo não
é tudo, é apenas um pequeno pedaço. Na tentativa de explicar as máquinas
bióticas, seus funcionamentos e imitá-las com tecnologias, etc., em torno de
1930, surgiu um campo de estudo, a Etologia, que gosta muito de se chamar de
ciência – a psicanálise também passou por essa crise infantil de fazer questão
de chamar-se ciência, mas já abandonou esta fase (aliás, hojendia, ninguém
sabe muito bem o que possa ser a tal ciência) – e que é o estudo do comporta-
mento e da psicologia dos animais. Cada vez mais ela está sendo capaz de
mapear comportamentos, espécie por espécie, e dar-se conta de que, indepen-
dentemente da velha e quase divina noção de instinto – materno, fraterno,
sexual, de reprodução, etc. –, são apenas programas instalados em cada ani-
mal. Cada um com seu tipo de programa, reprodutivo, de auto-subsistência, de
luta, etc. São programas muitas vezes capazes de fazer alguma transa com
outro programa ao lado, seja a ecologia ao redor ou outra espécie, mas não
passam de meros programas que se cumprem como são, em função dos estí-
mulos e transas externas que têm encontrado por aí, e nenhum deles, que saiba-
mos até hoje, ultrapassa a sua própria programação.
Terá também a nossa espécie um conjunto de programas? A etologia
surgiu como estudo da psicologia e observação do comportamento animais e,
dado o rigor científico da exigência de universalidade, achava-se que, para
nossa espécie, não havia condição de encontrar e descrever esse conjunto de
programas, pois o antropológico, onde se faz a leitura da espécie metida nas
mais diversas culturas, varia demais. Como achar algum universal? No campo
da antropologia, já foi difícil e continua fracassado, imaginem então no campo
da etologia. Mas os etólogos, felizmente, cada vez mais, conseguem perceber
que, independentemente das formações culturais, existem em nossa espécie
certos funcionamentos que – com assentamento às vezes hormonais, de cons-
truções genéticas ou de mero aparelhamento, de órgãos, etc. – parecem bas-
tante programados, embora seja difícil sustentar a leitura e a descrição precisas
dessas programações. Isto porque são mais ou menos facilmente subversíveis
pelo fato de nossa espécie não aceitar necessariamente o que já está dado.
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Não adianta, por exemplo, dizer de alguém que seus hormônios estão com as
taxas normais, pois ele começa a fazer coisas anormais que não estão na de-
pendência desses hormônios. Tampouco adianta medir genes e procurar algo
genético, pois o que a espécie tem é uma maquininha, chamada Revirão, que de
repente funciona e o indivíduo diz: “É assim, mas não quero assim”. Existem,
portanto, programas outros que não são esses biótica e imediatamente dados.
Existe, em última instância, a competência de reviramento – para qualquer
lado. Conversaremos longamente sobre isto para ver como funciona o
mapeamento e a relação dessas construções bióticas em relação a essa máqui-
na completamente louca.
Somos a espécie louca, a irracional. Racionais são as outras. Funcio-
namos num movimento que não tem fim. Somos transcendentais. Está comple-
tamente fora de moda falar nisso, pois estamos numa época que perdeu – não
que as pessoas tenham perdido, ao contrário, estão cada vez mais apegadas
nisso da pior maneira – a competência de afirmar de cara limpa e com atestado
válido, seja filosófico, científico, o que for, que alguma transcendência seja pos-
sível. Transcendência, como sabem, é a suposição de que há algo para além de
nós – chamem de Deus ou do que quiserem – e isto está inteiramente desmo-
ralizado, a não ser como crença de cada um na fantasia que quiser usar para
seu gáudio. Faz parte do que chamam de “crise dos fundamentos”. A última
filosofia mais disseminada por aqui, cuja origem está em certas filosofias do
século XVII, de Espinosa por exemplo, diz que a humanidade chegou à noção
de que não há transcendência ou possibilidade de movimento para ela porque
estaríamos condenados a viver na imanência. Ou seja, temos que viver aqui
dentro do pedaço, ainda que o pedaço se chame o Haver por inteiro. Não há
nada ‘lá fora’, portanto, trata-se de chafurdar na lama do Haver e nos virar
mesmo aqui dentro. Esta é a concepção mais de ponta do pensamento ociden-
tal que corre as ruas hojendia. Por exemplo, o de nosso caro Gilles Deleuze,
recém-falecido. Como disse, antes se pensava que havia transcendência. As
filosofias diziam que tinham um fundamento, pois se Deus existe, temos que
achar que Ele não poderia ser um sacana e que deve ser uma pessoa decente.
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Vejam que o fundamento que os filósofos nos apresentavam nunca passou disso.
Quando as pessoas acharam que Ele ou não era bom caráter porque fazia muita
porcaria no pedaço, ou simplesmente não existia, ou havia morrido, e isto aqui
estava entregue era às baratas, caiu-se na filosofia da imanência pura.
O que estou trazendo é justamente algo que não é uma coisa nem
outra. Digo que a psicanálise põe o movimento pulsional como base. Isto signi-
fica que é o fundamento de seu pensamento, o que é diferente de acreditar se
existe ou não a Pulsão. Então, se parto da conjetura da Pulsão, aceito que ela
se escreve ‘Haver desejo de não-Haver’, que é ALEI férrea do Haver, que
não-Haver não há, que ela cai na imanência outra vez, e estou dizendo que não
acredito nem na transcendência nem na imanência. A nossa espécie – ou o
Haver por inteiro, se é que o Princípio de Idioformação está valendo – é produ-
zida de tal maneira que, se tudo para ela se avessa, dialetiza, catoptriza, não
pode, por constituição íntima de sua estrutura mental, não conjeturar o não-
Haver de última instância. Ela não pode não ter o seu movimento de
transcendentação. Ela exige o Impossível. Para ela, ‘lá fora’, que não há, há
algo, que não há. Já que não há, ela chafurda na imanência novamente. Não há
nada fora da imanência – esta frase não faz sentido, pois há menos que Nada
fora da imanência: o não-Haver, mesmo não havendo, por nossa estrutura ser
catóptrica e operar a exigência dessa última instância, não podemos abrir mão
do Impossível. Não precisamos mais brigar contra imanências e transcendências.
Nossa vida chafurda na imanência, mas não damos nenhum passo sem a von-
tade de transcendência, ainda que, o transcendente, de modo algum ele exista.
O transcendente não existe, mas algo transcende o momento da nossa
imanência: um Tesão, um empuxo.
O empuxo é, portanto, essa coisa ‘de fora’ que não há, que está embu-
tida no dentro, porque fora não há nada, não há fora, como princípio de
catoptria e que exige a última instância, que parece um fora mas que não
existe. Essa grande construção, esse atrator que não há, mas mesmo assim
funciona, coloca para nós a questão de que, para além da sobredeterminação
de todos os elementos de nosso cotidiano – o termo é usado por Freud, signifi-
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cando que tudo é sobredeterminado e que são muitas as determinações que levam
a vida da gente para certos lados –, existe uma Hiperdeterminação. É assim
que se exprime a especificidade de nossa espécie, a qual não é propriamen-
te a espécie homem – o macaco que virou gente –, mas sim a espécie das
Idioformações que existem no universo, com qualquer construto, biótico ou não.
É uma espécie que está pojada de sobredeterminações – por exemplo, seu corpo,
seu hard, que é biótico, vivo; o planeta que habita; tudo que pode acontecer na
cultura e na história, etc. –, mas seu específico é ser hiperdeterminada. Quando
digo hiper não é que a sua sobredeterminação seja forte demais, mas sim que há
uma determinação de última instância que extrapola todas as
sobredeterminações, esvazia o campo e nos deixa livres para nossa rebeldia contra
a limitação do impossível modal. Isto porque queremos o Impossível Absoluto,
mesmo não o conseguindo, mesmo ele não havendo.
É porque o movimento de transcendência faz parte de nós, haja ou não
transcendência, que manejamos a imanência com procedimentos de ponta, de
criação, cada vez mais artificializando o mundo, inventando e produzindo o que
não parecia haver antes. Sem o mesmo sentido de Kant, digo que nós, e todos
os nossos colegas aí pelo Cosmos, fazemos parte da espécie transcendental.
Imanente é cavalo, cachorro, pedra. E não adianta sonhar que se vai conseguir
passar ao Impossível, que se vai encontrar alguma entidade do outro lado, por-
que não vai, e não há outro lado. Só se pode sonhar que se quer mesmo assim.
No que se quer tanto isto, acaba-se fazendo um pouco mais barato. Por exem-
plo, não temos asas, queremos voar, então, por enquanto, andamos de avião.
Mas é pouco, queremos mais. Esta é a história de nossa espécie hiper-
determinável e sempre se movendo de acordo com o movimento do Revirão.
Vamos negando, multiplicando por menos-um e avessando: de escuro para cla-
ro, de quente para frio, de macho para fêmeo, e assim por diante e para sem-
pre. Evidentemente que participamos com muito de nós na “imbecilidade cós-
mica”, como a chamava Nietzsche. Ou seja, ficamos tão acostumados ao que
já há por aí que pensamos com freqüência que somos aquilo que há por aí,
como há por aí. E ainda ficamos com raiva daquele que não é igualzinho a nós.
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Somos capazes de fazer uma guerra imbecil e matar pessoas porque não são
da mesma etnia, por exemplo. Isto é a imbecilidade que portamos de montão.
Por outro lado, temos condição de escapar até mesmo dessa imbecilidade por-
que somos hiperdeterminados e podemos – como quem vai para a academia
de ginástica conseguir uma musculatura maravilhosa – ter uma Academia da
Mente de maneira a fazer os exercícios para ficarmos afiados em aspirar à
referência de hiperdeterminação que para nós está disposta. Foi para isto que
veio a psicanálise. Não só ela, pois outros exercícios espirituais de notório valor
também pediram por isto. A psicanálise é um modo de limparmos a área da
sujeira, de lama na qual chafurdamos, para chegarmos mais perto da
hiperdeterminação. Há alguns ditos analistas que nunca perceberam que se
tratava disso, mesmo estando assim declarado, mais ou menos explicitamente,
desde os atos de Freud. Estamos, portanto, metidos na situação de sobredeter-
minados animalescamente, mas também hiperdeterminados angelicamente pelo
movimento de transcendentação.
O movimento da Pulsão é de Haver para não-Haver. Isso esbarra e
retorna e fica girando eternamente dentro do mesmo princípio pulsional: Haver
quer não-Haver, não consegue, retorna, continua a ser Haver querendo não-
Haver, não consegue, retorna e continua... eternamente.
É claro que tudo muda aí dentro, mas há o vetor de Haver para não-
Haver. Escrevi não-Haver do lado de fora, para nos orientarmos, é claro que
de maneira um pouco tola, pois não há não-Haver lá fora, nem dentro nem em
lugar algum. E, no movimento em que queremos vetorialmente alcançar o não-
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Haver, o que há entre Haver e não-Haver? O que acontece aí? Quando faze-
mos um esforço muito grande de aproximar o transcendente que não há, exas-
peramos todas as nossas condições. Pedimos por algo que esteja completa-
mente fora e que possa reorganizar todas as nossas dores, prazeres, sabores,
i.e., reorganizar e justificar o próprio empuxo da transcendência. Então, a coisa
mais espontânea é que a humanidade, sem um teorema adequado – como este,
por exemplo –, imaginasse esse lugar de exasperação e lá pusesse algo. Por
isso, escrevo ali: HÁ-DEUS. Ou seja, podem tirar o cavalinho da chuva, pois
não há nada aí – Adeus! –, mas é onde todos, sempre, colocam o que supõem
haver quando pensam que Há Deus. É a esse lugar de desistência da última
instância favorável que, quando estamos exasperados, podemos recorrer – e
recorremos (na verdade, estamos recorrendo à nossa hiperdeterminação) –
para sair da situação e, às vezes, saímos. Pensamos que cai do céu uma solu-
ção, mas céu é essa exasperação, o lugar que não há: apenas cria-se uma
solução. Por isso, quanto mais primitiva uma pessoa, mais simplório, mais figural,
é o Deus que inventa para colocar nesse lugar: um Deus bem parecido com o
lodaçal de cá de baixo. Como só conhece isto, então inventa um Deus que é um
boi, um veado, um personagem qualquer. Mas, à medida que a reflexão vai se
refinando, encontramos em grandes místicos, por exemplo, a abstração forte
disso. Mesmo chamando-o de Deus, trata-se de indicar esse lugar abstrato e
que está é dentro de nós mesmos. Posso citar um que é o que mais prezo no
Ocidente, Mestre Eckhart, que só escapou da Inquisição porque morreu a
tempo. Embora tenha sido uma figura luminar da Igreja Católica, de tanto
indicar que esta era nossa última instância, o Papa quase que o pega. Há,
portanto, esse lugar de exasperação e de consolo, porque é o próprio lugar da
possível Criação.
Vivemos, assim, numa perene movimentação em Revirão. Tentamos
tirar o pé da lama com o movimento de hiperdeterminação, que nos propicia
algumas criações artísticas, poéticas, científicas, filosóficas, místicas, sendo esta
a condição da nossa espécie. Por isso, costumo dizer que, se é a isso que
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biótico, etc., e ao que vem secundariamente como lixo, resto, da nossa atividade,
que é o que chamam de cultura. São massas recalcantes que não nos deixam
quase nunca soltos. Então, ao contrário, somos a espécie que revira sim, que
pode revirar, mas que tem muitíssima dificuldade de fazer isto. A cura, a san-
tidade, sei lá o quê, seria cada vez termos mais disponibilidade de reviramento,
mas não temos tamanha facilidade, ou felicidade. Quanto à esquizofrenia, é
preciso ficar claro que não situo a psicose do modo como ainda a situam hojendia.
Portanto, não chamo isso de esquizofrênico. Se quiserem, podem chamar de
uma esquize-tice, ou seja, algo que é partido entre sim e não, entre Haver e
não-Haver, mas não acho que se constitua como uma esquizofrenia.
• P – A psicanálise seria uma pedagogia do conhecimento?
Pode ser, mas conhecimento de última instância. A psicanálise como
pedagogia do movimento no sentido da hiperdeterminação. Demandar, chamar,
invocar a hiperdeterminação para que ela venha em nosso auxílio para sairmos
um pouco desta e entrarmos em outra. Fernando Pessoa que o diga: o tamanho
do seu pedido incontentável.
29/ABR
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direitura, esteja mais ou menos bêbado, o caminho vai ficar todo torto. Há, pois,
uma espécie de intuição do que seja uma linha reta: um fio esticado entre dois
pontos, ou algo mais ou menos assim. Então, sem a linha reta, não se pode
imaginar uma superfície sobre a qual se projetem, no nível da geometria plana,
todas as formas euclidianas. E também, sem esses planos, não se pode cons-
truir a regragem da maioria das superfícies em terceira dimensão, como cubos,
paralelepípedos, prismas, pirâmides, etc. Há ainda as superfícies curvas, aber-
tas ou fechadas, como a esfera, i.e., a bola, que tem que ter ela também todos
os seus pontos exatamente eqüidistantes de um ponto fixo situado no seu cen-
tro. Então, quando construímos empiricamente formas com regragem euclidi-
ana, estamos sendo aproximativos, e não, construindo exatamente o que o idea-
lismo desse pensamento exigiria como forma absolutamente regrada.
Uma coisa é importante nessa geometria. O que quer que, para além
do ponto, compareça como objeto – uma linha qualquer, reta ou não; uma su-
perfície, plana, esticadinha ou torta, etc. – sempre divide o espaço que habita
em duas partes. Sempre há uma divisão, uma polarização, entre dentro e fora,
lado direito e lado esquerdo. Se, por exemplo, tenho uma esfera, terei sua su-
perfície na parte externa e na parte interna. O dentro e o fora estão absoluta-
mente separados, não dá para passar continuamente de um para outro lado. Se
temos duas paralelas e estamos andando sobre uma, não poderemos – ainda
que supostamente elas se encontrassem num ponto do infinito – passar em
continuidade para a outra, pois são absolutamente separadas. Vejamos um ci-
lindro, que é uma superfície regrada pela linha reta, mas que é curva, fechando-
se sobre si mesma, é infinitamente grande para os lados e termina em dois
buracos laterais.
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ou dois lados. Mas agora o percurso, se passar por dentro do furo, não é senão
aquele mesmo euclidiano da banda bilátera.
Vou agora fazer a prova do corte, como fiz com a banda de Euclides.
Quando corto longitudinalmente a euclidiana, ela produz duas bandas da mes-
ma natureza, mas quando corto uma contrabanda ela vira uma só. Se ela era
UMA, se só tinha uma margem, uma face, por que iria virar duas? A banda que
resulta tem algumas torções, mas estas não nos interessam deste ponto de vista
topológico. O que interessa é que a banda nova é absolutamente idêntica a uma
banda euclidiana. Portanto, repetindo, uma superfície unilátera, quando cortada
longitudinalmente pelo meio, não vira duas, e sim apenas uma que passa, isto
sim, de unilátera a bilátera. Isto é facilmente demonstrável se marcarmos na
contrabanda uma metade de sua largura no sentido longitudinal – e não uma
face como fiz com a euclidiana – com pontilhado e outra com cinza. Em segui-
da, cortando segundo o percurso longitudinal que antes tracei, veremos que o
resultado será uma banda bilátera com um lado inteiramente pontilhado e outro
inteiramente cinza. Pergunto então: é possível reconstituir a banda bilátera que
foi tirada de uma contrabanda por um corte longitudinal? Sim. Suturando-a, ela
virará de novo a contrabanda que era e, no caso desta última que lhes apresen-
tei, com duas metades no sentido longitudinal, uma pontilhada e outra cinza
(mas com uma única face, é claro).
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como uma mureta forte, para me impedir de passar. Mas imaginem que eu
esteja sobre aquela contrabanda dividida entre pontilhado e cinza. Aí, também
nada impede que atravesse de uma à outra divisão, pois o trajeto é contínuo
numa única face. Mas se cortar pelo meio, como fiz antes, um lado ficará
pontilhado e outro cinza por inteiro. Já não terei mais como passar continua-
mente de mão para contramão. Só me restará percorrer o pontilhado ou o
cinza.
Todos estes raciocínios indicam que, tomando a superfície unilátera
como uma espécie de modelo metafórico para pensar o psiquismo, tiraremos
inferências as mais variadas das lógicas que vimos. Então, para o desenvolvi-
mento dos meus teoremas, tal como os apresento aqui, preciso afirmar que a
estrutura de última instância de nosso psiquismo é uma contrabanda.
Lacan já utilizara a contrabanda para falar do que ele chama de sujeito. Não
estou falando disto, e sim dizendo que o modo de funcionamento do psiquismo
humano, nossa estrutura psíquica, se constitui como uma contrabanda. Temos,
pois, que pensar quais operações são feitas por nosso psiquismo e podemos
utilizar esse modelo como guia para pensar as lógicas desta operação. Para
tanto, não ficarei sempre me referindo à contrabanda construída do modo que
lhes mostrei, mas procurarei algo que possa representá-la sobre uma superfície
plana. Assim, poderei escrevê-la num papel, colocar num quadro-negro, etc. Se
tomar uma superfície euclidiana como a que cortei no meio e traçar seu percur-
so longitudinal sobre uma de suas faces, vejam abaixo a figura que tenho. O
pontilhado é para indicar que tem outro lado, como se sua espessura fosse
muito grande, que faço dois percursos – por cima / por baixo, por dentro / por
fora – e os dois ficam parecidos como uma rodinha.
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sol de lugar quando ele nos atrapalha, não temos técnica e potência de força
para deslocá-lo, mas quem sabe? A humanidade resta dilacerada entre a caretice
da obediência às formas constituídas e a revolta contra essas formas, a mudan-
ça e a construção de coisas novas. Esta humanidade que conhecemos não é
necessariamente da espécie dos primatas. É um bicho doido, maluco, mais
parecido com um ET do que com um macaco, que já deformou a face do
planeta. Se não, estaríamos aqui no escuro cheio de mosquitos e sem esta boa
temperatura refrigerada... Já fizemos muito, mas há muito por fazer, muito
mais do que já fizemos.
Então, para organizar tudo isto, uma vez que somos macacos porta-
dores da máquina Revirão que vira tudo ao contrário, nossa espécie, ao invés
de evoluir biologicamente e se transformar corporalmente num monstro capaz
de ter todas as faces, trocar de cor, de sexo, de cabelo a qualquer hora, como
gostaria um Darwin, ela começa a secretar um postiço, capaz de mapear as
coisas mesmo que não possa transformá-las. Este postiço são as linguagens,
as línguas que falamos, os aparelhos discursivos, as invenções de ciência,
filosofia, religião, etc. É a isto que chamo de Secundário, o qual tem a mes-
ma estrutura do Primário que a Natureza deu espontaneamente, com a dife-
rença de que é soft. Secretando esse soft, esse postiço, podemos fazer mil
conjeturas, até acharmos uma linguagem que fica parecida com o funciona-
mento duro, hard, do Primário e nele intervir mediante este conhecimento,
esta linguagem. É assim que vimos funcionando: como macacos primaria-
mente constituídos, mas piradinhos, querendo o assim e o assado também, e
secretando um postiço que, aplicado sobre o Primário dado, quando temos
poder, potência, força, condições e podemos pagar o preço exigido, consegui-
mos transformar esse Primário.
Nossa espécie é, portanto, portadora de um psiquismo, por sua vez,
cheio de formações secundárias – que chamamos de cultura: um entulho de
milênios –, que, também ele, começa a fazer peso, a atrapalhar a vida. Ou seja,
acreditamos tanto numa dessas invenções – secretadas secundariamente por-
que temos o Originário, o Revirão –, que, de repente, começamos a achar que
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é natural e não conseguimos mais passar por cima: viramos neuróticos sinto-
máticos e achando que não podemos mudar uma regra que é só uma regra de
comportamento, por exemplo. Acostumamo-nos a determinados comportamen-
tos e passamos a tomá-los por naturais, quando são apenas um vício nosso,
uma neura, um recalque, que não nos deixa maleabilidade para transitar à von-
tade de um lado para outro. Mas o específico desta espécie é a possibilidade,
pelo menos, de revirar. Qual a diferença entre uma interdição e uma impossibi-
lidade – modal que seja – dada? Temos que organizar a vida social de algum
modo. Se qualquer coisa valer, fica tudo meio perdido. Aliás, nem adianta valer
qualquer coisa, pois o empuxo do Primário, da carne, etc., é de uma forte im-
becilidade, então, sempre tendemos a cair na repetição das coisas dadas. Há,
portanto, que ter um processo de regragem que permita tanto nos afastar do
natural construindo coisas novas, quanto levar em consideração, às vezes
como necessárias, as imposições do natural. Ou seja, que permita um jogo de
duas faces.
Para que serve uma lei? Para interditar, proibir. Não se faz uma lei
para dizer que “você tem o direito”, mas sim para afirmar que “você não pode
isto ou aquilo”. A lei vem tentar traçar a fronteira que não existe no Revirão,
vem tentar fazer uma barreira para dizer que “só pode de um lado, e não do
outro”. Uma interdição serve para quê? Para imitar a ordem do Primário: fingir
que há algo meio natural que proíbe. Mas se acreditarmos em interdição como
se fosse natural, não há mais crescimento possível, pois há momentos em que
há exigência de variação. E mais, uma interdição, se imita o que é da ordem da
impossibilidade, não cria uma impossibilidade, mas só uma proibição mesmo.
“É proibido casar com a mamãe” – chama-se a isto “interdição do incesto”,
mas isto não é impossível, como tampouco é impossível desejá-la. Não é proi-
bido desejar a mãe, e sim ter filho com ela. Aí vêm todos os problemas da
psicanálise. Nossa mente tem movimentos pulsionais vigorosos que esbarram
em certas impossibilidades naturais, espontâneas, ou em certas proibições que
o grupo ordenou para sua sobrevivência. Devemos ser obedientes? Mais ou
menos, para funcionar... Mas se acreditássemos piamente na obediência, esta-
ríamos até hoje morando em cavernas. Não devo, de modo algum, acreditar em
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mento da intervenção direta no nível Primário ficou meio parado. Esta mesma
implicação simbólica que durou três, quatro décadas, muito acelerada, conduziu
a pensar o óbvio: por que não pensar isso no nível da intervenção direta no
Primário? O esquisito é algumas pessoas suporem que as coisas já foram en-
contradas, quando não foram. Nem de um lado, nem do outro. Precisamos dos
dois lados. Um problema sério de hoje é o da transmissão pela mídia. Abre-se
o jornal e lemos as coisas mais estapafúrdias que o cientista nunca disse. O que
temos é, na verdade, o entendimento precário de algum jornalista e a vontade
de fazer escândalo, pois vende jornal. O cientista nunca disse as tolices que
vemos publicadas, não é assim tão estúpido. Quando lemos seus livros vemos
que, no máximo, o que disse foi que determinada coisa talvez esteja
correlacionada com determinada outra numa porcentagem x, o que é mera
correlação, e não determinação. Alguns jornalistas acham que falar fácil para o
povo é mentir, omitir, dizer que foi encontrado o não-sei-o-quê do hormônio que
causa x. Portanto, não há que coibir a pesquisa. Há, sim, que mapear o cérebro
todo. Quem sabe, no futuro, isto, no trato psicológico do neurótico, venha ajudar
a propiciar-lhe uma soltura sem grandes efeitos secundários. Quanto mais con-
seguirmos, melhor. Só não é possível acreditar que se cura câncer com
psicoterapia, ou que se elimina psicose com injeção.
• P – Como fica a relação das transformações contínuas da cultura com
as concessões que sempre temos que fazer?
Fica aos trambolhos. É o sopapo que acontece hoje. Estamos no ritmo
do sopapo e sobrevivendo ao ritmo do tropeço. Isto porque o crescimento
tecnológico de conhecimento, o acúmulo e a massa de produção secundária
cada vez são maiores e mais rápidos, mas a preparação das pessoas é lenta
demais. Em função mesmo do ritmo veloz de produção orientada pela visão
capitalista – e não há outra, hoje –, poucas pessoas estão na frente mani-
pulando a tecnologia, com a cabeça adequada a esta riqueza e a maioria não
tem acesso. E não porque alguém tenha proibido, mas porque o ritmo não deu.
As grandes questões de nossa época, nossas questões políticas contemporâ-
neas sérias, são como manter a economia na relação estapafúrdia – em nível
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A contrabanda
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maneiras de dizer fica prejudicada para sempre. Neste caso, por exemplo, não
sei o que é meio ou o que é fim. Essas fórmulas têm nos ajudado a sobreviver,
mas com o pensamento analítico de assunção do processo de Revirão, já não
nos ajudam muito mais. A palavra paradoxo, por exemplo, muito cara ao pen-
samento filosófico, refere-se a algo que não existe. Costumamos chamar assim
a um emperramento fraseológico, mas um bom poeta é capaz de desemperrar
na frase e na ordem lógica das coisas, pois sabe que paradoxo é simplesmente
não conseguirmos continuar o processo e vermos que uma coisa pode revirar
ao contrário. Não há paradoxo algum, nem na língua, nem no Haver, o que há,
sim, é Revirão.
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sintoma, que só aparecia como indício do que estaria recalcado por trás dele
para que viesse à tona.
Contudo, para fundar o conceito de recalque tout court, esse recal-
quezinho de nossa neurose cotidiana, o protocolo teórico de Freud exigia uma
razão ou um precursor, algo originário por trás e antes desse recalque, como
sendo o que facilitaria, ou mesmo seria condição de seu aparecimento. Ele se
perguntava: Por que esta nossa espécie que pode deixar de tudo passar pela
sua cabeça acaba recalcando algumas coisas? Há que haver um modelo ante-
rior, uma possibilidade já dada de recalcamento. Freud, então, inventa o concei-
to de recalque originário, embora nunca tenha conseguido explicar muito
bem o que ele fosse e não nos desse idéia alguma que bem servisse para
explicar, em relação pelo menos ao recalque, a verdadeira razão de haver um
recalque secundariamente surgido. Pensou, então, em fazer do recalque origi-
nário simplesmente uma idéia abstrata, mais ou menos mítica, que pudesse
servir como fundamento, mediante um postulado, e nos pedindo que o aceitás-
semos. Com outras pinceladas, pode até ter inventado várias coisas para con-
figurar esse recalque originário, mas nunca o definiu direta e logicamente. É
claro que, em outros teoremas, de outros analistas, cada um inventou o seu
recalque originário. A meu ver, não muito satisfatórios. E, não tendo gostado
deles, propus o meu.
No percurso que fiz, fundamentando-me não no conceito freudiano de
recalque, mas no mais ulterior de pulsão de morte, deparei-me com uma
única frase lógica que me parece sustentar o edifício inteiro – não só com os
fundamentos, mas também com a pedra angular – numa única configuração do
conceito de Pulsão, que escrevo, em última instância, como: A→Ã ou Haver
quer não-Haver. Ora, como já disse diversas vezes, se Haver quer não-Ha-
ver, está pedindo o impossível, já que o não-Haver, como seu nome está di-
zendo, simplesmente não há, mas, enquanto o deseja, enquanto pedinte ou aquele
que demanda algo, o Haver requer de qualquer maneira esse impossível. Sendo
entretanto impossível, certamente que o Haver vai quebrar a cara, retornar
como Haver e continuar pedindo esse impossível e sempre quebrando a cara e
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me reporto, é mais como uma fábula que pode nos servir de modelo de ficção.
Temos hoje na cosmologia moderna vários modelos ficcionais – que os cientis-
tas consideram modelos científicos – que servem perfeitamente (se não para
garantir, pelo menos) para inspirar um modelo ficcional que gosto de fazer em
relação ao Revirão. Poderia tomá-lo com razão psicológica ou psicanalítica
apenas, como sendo a máquina do pensamento para a qual o Haver há e o não-
Haver não há – o Haver se deparando com o real ou com as realidades segun-
do este modelo –, mas gosto de supor mais, que, para o próprio Haver em sua
realidade, a multidão de universos que estão por aí em todas as suas possibilida-
des faz uma imanência só. Ou seja, não há nada fora d’isso: só há Isso. Faço,
então, a ficção de que o Haver funciona assim. Donde os físicos pensarem em
Big Bang, o momento em que, digamos, uma matéria absolutamente neutra se
condensa, se condensa e explode de tanta condensação. E, se explode em
cacos, ocorre uma fractalização radical de fragmentos que agora são configu-
rados. Aparecem estrelas, galáxias, etc., que, zilênios depois, condensam-se,
vão perdendo a força, tornando-se matéria neutra de novo e sofrendo outra
compressão. Chamo a isto de Nada que, para mim, não é coisa alguma, e sim o
Haver em neutralidade, sem diferença. Então, este Nada amassado, empaco-
tado, explode de novo em outras formações de universo. Esta é a ficção. Os
cientistas que descubram se é ou não verdadeira, porque, no nível do psiquismo,
ela me serve perfeitamente. Portanto, o psiquismo, que surgiu ele próprio den-
tro do Haver, no que tem a funcionalidade de, melhor do que espelhar, espe-
cular sobre o avesso, olhar algo e passar ao contrário, rebater
enantiomorficamente, etc., encontra coisas dadas. Assim – e agora lanço um
termo para nomear o que quer que compareça no Haver em qualquer nível,
formato, tamanho, situação –, ao que quer que apareça já desenhado e, portan-
to, já configurado como diferente de algo que está ao seu lado, a tudo isto de
cambulhada chamo de Formações do Haver. Há uma galáxia, é uma forma-
ção do Haver em nível estelar. Há uma árvore, é uma formação do Haver em
nível botânico. Há um pensamento, é uma formação do Haver em nível psíqui-
co. E assim por diante.
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Não nos adianta subir num morro e dizer: ‘Tenho vontade de voar’. Se
saltarmos dali, cairemos e talvez morreremos. Para ter sucesso é preciso al-
gum Santos Dumont repetir isso, no entanto com quantidade enorme de recur-
sos, de investimentos em dinheiro, de inteligência, de saberes acumulados. Ele
acaba voando, pois o impossível com que os voadores loucos, seus antecessores,
se deparavam não era absoluto, mas simplesmente modal. Em havendo condi-
ções de pagar o preço – em todos os sentidos: de tempo, saber, dinheiro –,
consegue-se reduzir um impossível modal. Há, então, esse Anjo liberto pensan-
do tudo quanto é loucura, e tolhido, não só pela própria formação biótica que o
sustenta como também pelas demais formações de que ele também não pode
prescindir por inteiro. E o Anjo não se conforma por quê? Porque, assim como
o modelo da castração é a quebra de simetria, o modelo do desejo é a exi-
gência de simetria. Então ele irá querer eternamente soçobrar no nível do
Impossível Absoluto, com o consolo de que, no nível do Impossível Modal, de
vez em quando, consegue algum sucesso. Se, então, somos livres do ponto de
vista da estrutura psíquica, mas inteiramente enjaulados dentro do macaco, o
próprio macaco, as coisas, as pedras, as estrelas, etc., passam a ser o quê?
Segundo o modelo do Recalque Originário, passam a ser Recalques Primári-
os: da existência de nossa corporeidade. Se não conseguíssemos construir a
quantidade enorme de próteses de que estamos aqui cercados – roupa, micro-
fone, mesa, cadeira, luz –, nosso corpo, que pode servir para muita coisa, seria
incompetente, de uma imbecilidade quase que total, e nos deixaria com muito
mais mal-estar do que o que já temos aqui no Haver. Aliás, mesmo assim ainda
nos deixa, pois sempre queremos mais, segundo o modelo de desejar o Impos-
sível, embora possa parecer que vamos aos poucos eliminando impossibilidades
e enriquecendo supostamente o bem-estar. Para a frente, para onde a máquina
desejante nos empurra, sempre há muito mais do que o que quer que já tenha-
mos conseguido.
Mostrei então como o Recalque Originário pode ser concebido lógica e
psicanaliticamente e, depois, afirmei que há Recalque Primário, que são as
formações espontâneas do Haver, as quais, pelo simples fato de existirem como
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seria genérica, não haveria limites para nada e nos perderíamos completamen-
te. Mas não sonhemos autoritariamente que por isso é necessário exercer mai-
ores repressões, pois o Primário já reprime espontaneamente e por sua própria
conta. Tampouco é necessário inventar mais e mais interdição, nem Deus trans-
cendente, nem Pai-Orangotango (como no mito de Freud). Quando a espécie
surge, já vem com Revirão disponível – e, também, com uma enorme carga de
opressões espontâneas, de impossibilidades modais, mas não com registro de
proibições. Mesmo a partir dos recalques primários já se começa a ter que
‘castrar’ possibilidades secundárias. Mas de qualquer modo, ainda por cima
inventamos mais e novos recalcantes secundários. O Recalque Secundário é,
portanto, em última instância, conseqüência do Recalque Originário, mas imi-
tação do Recalque Primário, de tal maneira que uma proibição não é senão
um fingimento de impossibilidade. Os antropólogos se desesperam há dé-
cadas para explicar a famosa “interdição do incesto”, a qual é apenas uma
bobagem, embora utilíssima no seu tempo, inventada no Neolítico para imitar
alguma impossibilidade na série das reproduções. Isto porque não é impossível
nem indesejável cometer incesto. Parecendo tão freqüente, Lévi-Strauss supôs
que essa interdição fosse universal e servisse para embrear a passagem de
Natureza a Cultura – como se simplesmente abrir a boca e dizer uma palavra já
não fosse passagem para aquilo.
Estamos, então, diante do Haver com suas formações, o Revirão como
Originário, o Recalque Originário como modelo de qualquer recalque e os
Recalques Primário e Secundário. Há Recalque Secundário porque, para orga-
nizar nossas possibilidades de ação baseadas no pensamento, digamos assim,
ou melhor, no Secundário, é necessário constituir e organizar as formações
secundárias. Vemos certas pequenas possibilidades de início de organização
nos animais, numa base dada em nível etológico. Os etólogos, e mesmo Lacan,
dizem que devemos conceber que há tentativa de emergência simbólica no
animal, o qual, no entanto, não consegue levá-la adiante: porque não revira,
explico eu, mesmo que haja certas substituições, preparadas por outras cir-
cunstâncias na maioria das vezes. Mas começamos a produzir nosso nicho de
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seio de uma formação secundária que não gosta de certas outras formações
secundárias, arrolam-se motivos, modelos e poderes para reprimi-las ou excluí-
las. Sabemos quantos, na história da humanidade, foram para a fogueira porque
inventaram, por exemplo, algo tão abstrato quanto um teorema. Estamos, en-
tão, diante de formações secundárias que são necessariamente recalcantes do
Originário e depois podem passar a sê-lo de outras formações secundárias.
Considerem por alguns instantes que coisa terrível pode ser a maré dos
recalques sobre nossas vidas. Não é só porque eventualmente a odiemos, mas
sim porque ela contém coisas que nos recalcam, nos reprimem, simplesmente
pelo fato de existirem – e assim estão embargando nossos movimentos. Por-
tanto, entre recalcantes e recalcados nos três níveis – sobretudo nos que pode-
mos manipular, o Primário e o Secundário –, tudo é questão de formações
como constituição de poder, o que torna o Haver um grande campo de batalha,
em cuja agonística temos obrigatoriamente que viver. Em última instância, o
que temos que entender é o que seja o Poder.
O Poder não é algo misterioso constituído nunca se sabe onde e sem-
pre sem a nossa permissão. Podemos muito bem reconhecer e encontrar suas
forças constituintes. E antes de mais nada devemos lembrar – questão que foi
aberta definitivamente por Foucault – que qualquer formação tem seu po-
der próprio, simplesmente pelo fato de existir. Pode se encontrar momentane-
amente em situação de inadimplência diante de outros poderes mais potentes,
mais avantajados, e eventualmente sucumbirá ou perderá uma ou outra batalha
ou mesmo a guerra por inteiro. Mas qualquer formação sempre tem o seu
próprio, isto é, algum poder. Quando, por sua vez, consegue juntar-se a diversas
outras formações e agrupar seus poderes, produz-se uma nova e maior forma-
ção com poder superior ao daquele que antes a estava oprimindo. E esta nova
formação pode vencer aquela outra e afirmar ser ela agora a que será recalcada.
Esta tem sido a história do homem, bem como as lutas pelos interesses de cada
um, mediante os poderes que pode ter e os que pode aglutinar a seu favor. E
isto vai da fundação de uma religião à criação e disseminação de uma filosofia,
da fundação de um partido político à simples hegemonia dentro de uma família.
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Se alguma coisa deu certo no nível do poder e se tal formação venceu, não foi
necessariamente por ela ser a melhor, mas sim porque conseguiu arrolar e
aglutinar poder de vencer, ainda que seja em algum sentido pior do que a outra
que não venceu. Um dia, talvez, outra maior quantidade de pessoas, outra mai-
or aglutinação de formações, venha a achar que aquela então vencida era a
melhor – e se una em torno disto para tentar substituí-la à anterior.
Esta dinâmica da guerra é a mesmíssima da tentativa de cura do psicana-
lista, metido que está no mesmo campo de batalha. Ele opera auxiliando na
organização de forças e sendo coadjuvante de seu analisando, para que este
venha a manejar as potências arrumando-as de um jeito mais compatível com
sua disponibilidade. Mas para tanto o psicanalista precisa tentar induzir que o
analisando rememore o Originário, o qual está soterrado e esquecido debaixo
de todo o entulho Primário e Secundário de sua história pessoal. Quando o
Originário deixa de ser nossa referência, restamos soterrados pelos escombros
culturais e das formações espontâneas, esquecidos de que nossa potência de
última instância é simplesmente dizer não e começar uma nova constituição de
nossas formações.
• Pergunta – Você disse que há uma idéia genérica de recalque, que serve
para o entendimento do que são os Recalques Originário, Primário e Se-
cundário. Mas é preciso fazer distinções minimamente relativas entre
Recalques Primário e Secundário. O modo como você os distinguiu diz
respeito mais ao modo como as formações se constituem?
Não temos como fazer idéia de onde fica a fronteira. Ninguém sabe.
Mesmo porque nossa espécie é aquela que costuma transgredir as fronteiras,
tal como no exemplo que dei sobre a estrada. Disse que considero espontâneas
as formações que pertencem ao campo do Primário, isto é, tudo que não foi
feito pelo homem. Chamo de primárias porque envolvem a formação de nosso
corpo e das demais materialidades. No entanto, algo revira ao avesso e a espé-
cie começa a produzir, digamos assim, secundariedades – linguagens, inscri-
ções, simbolizações –, que são todas de aparência soft, e logo começam a
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agredir o próprio Primário e a fazer marcas sobre ele. Isto acontece assim de
tal maneira que nós só acreditamos mesmo na potência de um pensamento
quando ele se materializa em tecnologia, quando produzimos um aparelho se-
cundário que efetivamente invade e modifica concretamente as densas forma-
ções do Primário. Do contrário, sempre teremos a chance de o acharmos um
delírio, coisa de poeta, sonho de filósofo. Milagre significa deslocar o Primário.
Por exemplo, a invenção de um remédio, a cura do câncer, a cura da AIDS, e
agora, mais recente e intrigante, a produção de um clone. Justamente porque,
segundo o que proponho em meu esquema, as formações não são heterogêneas
umas às outras, e sim apenas campos fechados por locks, cadeados, fechadu-
ras no sentido cibernético, se nos esforçarmos e tivermos sorte, encontraremos
as chaves e entraremos. É o que acontece, por exemplo, no caso dos aparelhos
científicos e sobretudo tecnológicos, onde, mediante muito investimento e tra-
balho, encontra-se um meio de romper a barreira, entrar numa formação e até
modificá-la. Consegue-se porque o campo é homogêneo, mesmo porque a for-
mação é simplesmente modal, não é o Impossível Absoluto. Este, não tem jeito.
Mas conseguimos borrar a fronteira entre Primário e Secundário, invadir forma-
ções primárias e secundárias que, às vezes, são tão duras que já se reificaram
talmente como aquelas primárias. Formações culturais, preconceitos, idéias,
que estão tão arraigadas no uso e crença de que são primariamente alguma
coisa, que as co-naturalizamos e começamos a obedecer a elas sintomatica-
mente a ponto de passarmos mal e irmos parar na psiquiatria se as contestar-
mos. Por exemplo, a interdição do incesto foi reificada: deixa de ser uma
interdição de formação dentro da cultura e vira simplesmente uma formação
concreta dentro do peito da pessoa que até sofre de angina só por pensar na
sua possível relatividade. É assim que se forma um sintoma que vai à carne.
Então, não há como precisar distinção de fronteira nem para um lado nem para
outro porque, mediante formações secundárias, com grandes investimentos,
acaba-se invadindo o Primário, mas também, mediante a reificação de forma-
ções secundárias, o Primário acaba invadindo sintomaticamente o Secundário.
Coisas que inventamos começam a parecer que são naturais. Deus, por exem-
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plo: há milênios nossa cultura tem sofrido os agravos dessa figura, que não
existe, por exemplo, no budismo, que dela não teve a menor necessidade para
ser mesmo assim uma religião. Se Deus fosse primário, por que não compare-
ceria sempre, sempre?
• P – Se você aceitar o conceito de castração, a fundação de uma língua, as
“estruturas elementares do parentesco”, de Lévi-Strauss, como algo sem
conteúdo ou uma representação deste ponto de impossibilidade em relação
ao não-Haver, qual seria, então, a crítica possível a estes construtos?
Uma coisa é reconhecermos que qualquer formação, indicando a
construtividade de outra, é descendente dessa impossibilidade absoluta; ou-
tra, é supor que é universal em si mesma. Não há, por exemplo, universalida-
de alguma na interdição do incesto. O único argumento – que está na edição
de 1949 e repetido por mim tantas vezes – é que nove, entre dez estrelas da
antropologia, acham que a interdição do incesto é universal. O estrutu-
ralismo nos serviu muito, mas isto é reconhecivelmente uma bobagem, pois
nem no tempo nem no espaço posso garantir essa universalidade. Se ela
tem aparência de freqüência (e não de universal), veremos mais adiante como
pode ter sido inventada no Neolítico. Alguns autores já o demonstraram à
sua maneira antropológica. Segundo nosso ponto de vista, quando tratarmos
dos Cinco Impérios, veremos que há um momento em que isto se facilita.
Logo, ser um creodo – um caminho que não posso não percorrer no meu
périplo – não é nenhuma universalidade porque para trás, não era assim, e
para a frente, pode não ser mais. Como fazemos com uma produção secun-
dária quando há quantidade suficiente de tolos, pessoas mal informadas, etc.,
e queremos tomar o poder absoluto em relação a essa invenção? Naturaliza-
mos a invenção e dizemos haver, lá no céu, um Deus que disse isto e aquilo.
Isto é da ordem da palavra divina e está incluída na carne do homem. Se
reificarmos, quase vira Primário.
Ora, a passagem de Natureza a Cultura – que não é na verdade ne-
nhuma passagem porque co-natural à espécie – é o surgimento do Revirão, no
seio mesmo disso que chamamos de natureza, se produzindo como origem do
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PODER DE CURA E
AVATARES DO FALICISMO
Já lhes trouxe as questões d’ALEI compatível com o teorema funda-
mental da psicanálise, que é o da Pulsão, Haver desejo de não-Haver (A Ã),
desenvolvendo-o na relação da imanência com o transcendental sem transcen-
dente e na dos Impossíveis Modais com o Impossível Absoluto (o não-Haver).
Depois, falei da banda de Moebius, da Contrabanda, para, a partir dela, explicar
os movimentos lógicos da mente e a produção do Revirão como Oito Interior.
Por último, coloquei o Recalque, utilizando justamente a contrabanda para pen-
sar as formações recalcantes e recalcadas, tudo se resumindo numa agonística
entre formações, onde nenhuma é absoluta, e cada qual constitui uma grande
cristalização sintomática. Hoje, falarei da questão da Cura, que está estrei-
tamente ligada à do Poder. Cura e poder, ou, quem sabe, o poder da cura.
Na agonística entre formações recalcantes e formações recalcadas,
tudo se joga na possibilidade de se conseguir revirar, tornar reversível ou não,
determinada formação. Por formação considero, em qualquer nível, ordem ou
perspectiva, todo e qualquer conjunto material – vozes, símbolos, etc., tudo é
material, pois não há heterogeneidade no aparelho que lhes apresento – que se
organize com alguma coalescência, que consiga constituir um fechamento, um
lock, e subsistir resistentemente enquanto formação, seja por pouco ou longo
tempo. Em última instância, em qualquer ordem que pensarem – estrelas, pla-
netas, sociedades, línguas, tesões, idéias –, são todas formações da mesma
‘natureza’. Contudo, basta sair da última instância para que elas tenham conteú-
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como podemos virar para o outro lado e considerar esta outra havência em
polaridade no confronto com não-Haver. Esse lugar neutro nos deixa à vontade
e o chamo, tomando um termo de Fernando Pessoa em sua Ode Marítima, de
Cais Absoluto, porque, lá assentado, nos confins desta Pólis Total que é o
Haver e à beira desse oceano de Coisalguma, que é o não-Haver, podemos
indiferenciar o que se passa no seio da Pólis do Haver. Se podemos nos colocar
neste lugar paralém do conjunto enorme de determinações ‘internas’ do Haver
que, emprestando-lhes a resistência que as mantém, forcejam as formações
para que se constituam e se mantenham, podemos invocar a hiperdeter-
minação – justamente para carregar, com este termo, a ambigüidade que a
coisa oferece, pois parece que algo, forçosa e forçadamente determina para
mais ainda do que as sobredeterminações ‘internas’ das formações. É
exatamente este o lugar desde onde tudo se re-considera com indiferença: o
Cais Absoluto onde se dá a relação entre Haver e não-Haver, a relação de
hiperdeterminação. Não podemos nele permanecer, mas podemos invocá-lo
como referência. E com esta referência, na indiferenciação das ‘internalidades’
opositivas do Haver, temos condição de passar a conceber, se não mesmo
perceber, o que para nós não estava presente para o entendimento de nossa
história – pelo menos isto.
Toda e qualquer operação de Cura, segundo a Nova Psicanálise, de-
pende de uma passagem, por breve que seja, uma referência ao lugar de
hiperderterminação. Depende de indiferença para com as internalidades, de
modo que, no olhar distanciado e indiferente sobre o Haver, algo se
hiperdetermine, ou seja, que um acontecimento possa ali nos mostrar algo que
antes não tínhamos como ver. Isto se costuma chamar de Criação. Não que se
vá criar algo que absolutamente não haja, que já não tenha havido ou não terá
havido no seio do Haver, pois nossa liberdade não é tanta, mas há possibilidade
de se destacar, acolher, de ‘dentro’ do próprio Haver, algo que dantes jamais
tivera sido acolhido, isto é, algo que agora, por nossa intervenção passará para
nós a existir. Toda operação de cura passa necessariamente, primeiro, por re-
experimentar essa indiferenciação; segundo, pela possibilidade de, a partir da
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indiferenciação, colher algo que dantes não se colhia para existir. É simples
isto, mas praticamente dificílimo. Simples, aliás, não é o sinônimo de fácil. A
hiperdeterminação e o que ela propicia é tudo que poderíamos chamar de li-
berdade. Não sei se é liberdade de ou para, mas é toda a liberdade possível.
Se é que alguma liberdade é. Trata-se portanto de indiferenciar, isto é, hiperde-
terminar-se, e não mais apenas sobredeterminar-se conforme a rotina das de-
terminações. É recair de novo abruptamente no seio do Haver, mas podendo
arrancar algum tasco do antes ainda não atingível. Este máximo de ‘liberdade’
que nos é possível não depende de nenhuma volição, mas sim, quem sabe, no
processo de Cura, do exercício dessa indiferenciação. Exercício – askésis, em
grego – extremamente difícil sim, mas não impossível de freqüentar. Se a Psi-
canálise ainda serve para alguma coisa, estou agoraqui lhes garantindo que seja
esta a sua serventia.
Assim, a possibilidade de Cura é possibilidade de Revirão, a possibilidade
de, mediante hiperdeterminação, suspender a imposição que agoraqui algu-
mas formações exercem sobre nós: esses sintomas, enfim, que ao mesmo tem-
po asseguram e estragam nossas vidas de bocós. Possibilidade, portanto, em
última instância, de anamnese, ou seja, de rememoração de uma experiência
que é nossa, que é a experiência fundamental de nossa espécie, que certamen-
te a tivemos em alguns momentos, mas que vem soterrada pela massa enorme
dos recalques dados pela ordem do Primário assim como daqueles Secundários
que a cultura, que nós mesmos fabricamos, torna a fazer desabar sobre nós.
Quando falo em anamnese, rememoração, não se trata aí de nenhum platonismo.
Não se trata de rememorar as formas arquetípicas do universo, mas
sim lembrar algo que, mesmo se também constitucional, é uma experiência
nossa, uma experiência da nossa espécie, que ela tem porque funciona assim, e
pela qual eventualmente sempre terá passado, ainda que na sua mais tenra
infância, pelo menos uma vez. Ela fica esquecida, dado o excesso de Primário
e Secundário, mas podemos conseguir alguma ana-lise, dissociar algumas for-
mações e forçar sua rememoração. É para isto que pode servir a psicanálise. É
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claro que, imediatamente, tudo nos cai em cima novamente e de chofre, dada a
enormidadede das formações recalcantes de que sofremos todos os dias. Mas
podemos também contar com algo que chamamos Retorno do Recalcado,
uma oportunidade para a nossa vingança, pois o recalcado sempre poderá even-
tualmente ter a boa chance de dar um jeito de retornar e nos salvar das aparen-
temente definitivas fechaduras enclausurantes.
Para partir do conceito de hiperdeterminação e continuar a observar a
patologia psicanalítica, a cultura e suas formações, é preciso perguntar acerca
do por quê, do quanto e do como da própria psicanálise até hoje produzida como
aparelho teórico capaz de ser ensinado e eventualmente transmitido em seu
status de conhecimento e de saber. Não necessariamente acerca da prática
analítica, porque, às vezes, o talento do analista é maior que a estupidez da
teoria e consegue vencê-la, dado que a teoria é tão formação como qualquer
outra coisa e, como tal, sintomática, seja quem for que a esteja produzindo.
Pode ser uma formação sintomática de boa serventia no atual momento de sua
exposição, mas certamente em breve, antes ainda de um bom lixo, merecerá
análise, pois a própria teoria é também uma formação neurotizante. Em nossas
lides com o Haver, a referência à hiperdeterminação é capaz de nos permitir
momentos de liberdade e “criação”. Coloco entre aspas, pois o que é produzido
é imediatamente um novo trambolho, com serventias para várias coisas, mas
que, por simplesmente estar ali, recomeça sua história de aparelho recalcante
de outras possíveis formações. Vivemos, então, no drama de criarmos coisas
interessantíssimas... que logo em seguida começam a nos oprimir. Entre essas
coisas, ainda que da melhor qualidade, estão as teorias psicanalíticas, que nin-
guém ainda bem disse ou bem sabe o que são. Podemos apenas projetar uma
idéia sugerindo que, no presente momento, considerem que possam servir para
indicar os passos de aprendizado compatíveis com nossa época e nossa prática
atual. Mas logo-logo, como sempre fazemos com qualquer outra formação,
começamos a adorá-las, porque as achamos bonitinhas ou porque simplesmen-
te nos foi dada a chance de conhecê-las. Portanto, cada teoria que suponho
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Poder de cura e avatares do falicismo
queno ato de indiferenciação, pôde colher um campo que, de lá para cá, tem
sido bastante fecundo, mas nem por isso menos cheio de defeitos e sintomas
por vezes da pior espécie. No entanto, tantas vezes útil e até mesmo agradável,
haja vista a quantas pessoas se vangloriam de nele viver e mesmo colher grana,
nomeada, amizade, prestígio, etc. e tal.
Depois de cem anos, o campo da psicanálise conseguiu uma massa
considerável de produções livrescas, de supostas análises, de organizações insti-
tucionais, de congressos, de lutas e de arranjos. Porém, nas sucessivas produ-
ções que tentam reequacionar sua bobagem – que é a nossa mesma de cada
dia, de inventar estilos, construir catedrais, fazer ruas, fabricar automóveis,
aparelhos de uma estupidez impressionante que, apenas por terem serventia,
não temos que achar serem tão importantes –, comete-se a tolice de acreditar
que aquilo é uma formação definitiva. E, indefectivelmente, toda vez que um
discurso se apronta, que uma formação discursiva de produção de saber se
propicia, isto carrega necessariamente as mazelas do seu tempo, das forma-
ções que possibilitaram esse dizer, pois não se pode fazê-lo sem uma língua e as
significações que ela porta naquele momento, sem a indicação de outros cam-
pos de saber que servem metafórica ou diretamente de referência para dizer o
que se diz. Assim, se não for uma velharia que se possa lançar ao lixo, por não
servir mais para nada, o que digo agoraqui na tentativa de equacionar a psica-
nálise tem, na melhor das hipóteses, que estar compatível com as necessidades
de revisão do campo, em função do desgaste dos aparelhos anteriormente
construídos e de um tempo que exige outras soluções. Isto porque já nos demos
conta de que as anteriores eram algo precárias, se não mesmo algumas vezes
falsas. E não podemos esquecer que todo campo de conhecimento passa ne-
cessariamente por este problema, caso contrário restamos ajoelhados beata-
mente diante do dito de alguém que foi sagrado Deus porque se chama Freud
ou Lacan depois de suas respectivas entronizações. Nenhuma destas pessoas
era assim tão pequena e simplesmente não poderia admitir nos ver ajoelhados
diante de sua própria limitação. No entanto, é o que se faz com mais freqüência.
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A Psicanálise, Novamente
Eis senão quando podemos nos dar conta de que os próprios construtos
da teoria que procura o saber curativo, liberador para nós, se enrascaram, por
seu cordão umbilical, num determinado aparelho que parecia lhe dar garantia
de existência, derrocando por completo quase todo o edifício da sua própria
produção. Apesar destas impregnações e aprisionamentos sintomáticos, con-
seguiu-se, por um esforço perene de análise, produzir coisas interessantíssi-
mas, um aparelho que, em sua maior generalidade, constitui um modo novo de
abordar o que há. Mas tal aparelho pode estar infectado de algum vírus capaz
de destruí-lo em todos os seus arquivos: talvez só porque, por uma questão de
pusilanimidade, ou de vaidade, fica-se apegado a algum conceito tão querido
que se fabricou quando jovem. Ou simplesmente porque se tem um sintoma tão
grave e ainda não analisado, que esse tal conceito ou pequeno aparelho oferece
uma satisfação tal que não se consegue abrir mão dele. Parece que há isto de
inarredável em nossa espécie: talvez não fizéssemos nem mesmo a parte boa
se não fôssemos de algum modo alugados a essa baixaria que acaba sendo
condição sine qua non para produzir alguma grandeza. Isto porque somos
neuróticos e restamos no interior de um processo de recalcamento exercido
por uma força poderosa que não conseguimos ainda deslocar. Basta
pesquisarmos e veremos que isto está presente em todas as estórias da histó-
ria. Na história das ciências, por exemplo, vê-se com que facilidade a impreg-
nação da teoria newtoniana foi capaz de engessar a física por longo tempo, até
que alguém ousasse deslocá-la e alguns percebessem que o deslocamento era
analítico, capaz de curar determinado sintoma e dar a condição de se enxergar
o que estava bem ali e ninguém via. Einstein, por exemplo. Não fora a fixação
da neurose chamada Teoria Newtoniana, talvez não viéssemos a ser tomados
por outra neurose chamada Teoria Einsteiniana, com um pouco mais de serventia
em seu momento e atualidade.
A mesma coisa na psicanálise. Freud constrói um belo teorema
possibilitador de bons truques e facililidades de realmente analisarem-se as
formações sintomáticas graves de sua época. Só que não se fazem mais neuró-
ticos como antigamente. Hoje, os neuróticos são outros e não adianta disparar
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estar compartilhando com os sintomas vigentes, caso contrário não seria assim
aplaudido. Esquecemo-nos disto quando aplaudimos os ídolos da arte, por
exemplo. Se realmente estivessem dizendo algo, entenderíamos para aplaudir
desse modo? Isto deveria ser, para cada um de nós, o reconhecimento de
que, se está compatível com nosso sintoma, podemos até repousar com o
aplauso, num momento de sossego dentro desta horrível vida, mas imedia-
tamente é preciso perguntar sobre o que ali não está dito – e muito menos
bem-dito. Esse sucesso da psicanálise hoje, com Freud, fulano, sicrano,
beltrano e Lacan, não será devido ao fato de estarem dizendo justamente o
que as pessoas queriam ouvir? Esta não é uma boa pergunta? Freud, no
início, não teve muito sucesso porque as pessoas não queriam escutá-lo e,
contudo, de tanto repetir, colocando, como conteúdo de sua repetição, coisas
tão pregnantes e agradáveis para os ouvidos, acabaram por reconhecê-lo. O
mesmo acontecendo com Lacan. Se tão rapidamente a igreja lacaniana se
instalou não é porque, certamente – como acontece em qualquer outro lugar –, o
lacanismo estava dizendo o que se queria ouvir? Mantenhamos esta pergunta.
Sucesso, aliás, democrático, coisa relativamente incompatível com a psicanálise,
a ciência e o saber, campos que não podem viver do voto de qualquer maioria que
não entende nada da invenção solitária de algo realmente novo. Precisamos lembrar,
então, que há outros campos de pensamento, outras reflexões, que questionam
veementemente e, com razão, certas posturas de nosso campo, entre elas a de
que estou falando hoje.
Terá Freud, seus subseqüentes, seus subsequazes, inclusive Lacan, des-
coberto efetivamente o Falo imaginariamente posto como conceito ou estrutura
inarredável, em última instância, da espécie humana, regendo, como uma bela
varinha de condão, todos os processos fundamentais da humanidade? Ou sim-
plesmente descobriu ele um óbvio ululante: que, em sua própria formação e na
de sua própria cultura, esse tal Falo estava assim colocado por mera produção
cultural? Estou descobrindo uma construção psíquica originária ou estou sim-
plesmente reproduzindo minha neurose e a de minha gente no momento em que
estou vivendo? Sabemos que Freud dizia ser evidente para todos que há uma
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impasse de Freud. Pois, se construo uma psicanálise que reduz tudo a esse
falicismo, quando ele comparece devo ficar abismado? Há pelo menos uma
burrice de Freud – perfeitamente compatível com sua neurose e a de seu tem-
po. Ele foi mal analisado, também analisou mal a situação e, apesar disto, ape-
sar de ser apenas Freud, mesmo assim fez coisas incríveis, da maior importân-
cia e da maior eficácia. Então, na paixão neolítica pelo Falo, o processo se
homossexualiza machamente, a ponto de as meninas terem que ser meninos
antes de serem meninas; de tudo ser julgado em função da presença e ausência
do tal Falo; de tudo ser analisado em função de tê-lo e de não tê-lo; e de as
mulheres terem obrigação de ter inveja do pênis; e de os homens não terem
mais o que fazer a vida toda senão viverem defendendo o seu.
O falicismo a que a psicanálise foi reduzida, também não está resolvido
na psicanálise de Lacan. Ao contrário, numa certa vertente bastante vitoriosa
porque democraticamente aceita, acabou por tornar o falo verdadeiro fetiche
de sua estrutura teórica, ainda que com sérias aparências de plena abstração,
de significante do desejo que, em últimas instância, vira o Nome-do-Pai,
compatibilíssimo com a ordem patriarcal do macho, branco, ocidental, com to-
das as vocações racistas da cultura em que vivemos e onde a psicanálise cos-
tuma sobreviver enquanto neolítico não ultrapassado. Ao mesmo tempo, as
mulheres não valem quase nada – artigos de segunda, se não de terceira –,
servindo apenas quando referidas à macheza do macho em sua competência
reprodutiva, com seus corpos geridos pela postura dos machos e seus ciúmes,
ainda que muito recentemente tenham resolvido o contrário sem que até hoje
consigam, mesmo escrevendo livros, demonstrá-lo. Como dizia Freud: essas
mulheres maravilhosas que tenho ao meu redor, que são boas analistas e que
produzem livros de teoria, elas são masculinas. Ou seja, se pensou, ou é sapatão
ou é macho, mesmo se indevidamente castrado...
Logo, a crítica de sociólogos, antropólogos, cientistas sociais é válida
quando afirma que a psicanálise propõe como aparelho fundamental o que é
processo de decantação sintomática do social e da cultura. Por isso, estou
tentando, bem ou mal às minhas custas, um aparelho abstrato que independa
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O sexo e a morte
via, e cada vez mais óbvia hojendia –, ele acaba produzindo um núcleo teórico
quanto à diferença sexual que é aceito por grande parte dos psicanalistas, não
o é por outra grande parte, e acaba sendo bastante consentâneo com a sinto-
mática social. Assim, quando se busca produzir um aparelho teórico relativo ao
psiquismo, supostamente filiado ao campo da psicanálise, há que fazer a opção
de seguir ou não esta perspectiva freudiana da diferença sexual.
Qual é a perspectiva para além da chamada bissexualidade (esta, aos
poucos, Freud foi deixando de lado para fazer a teoria da diferença sexual e da
opção sexual sobre o que chamou de complexo de castração)? Tudo no
psiquismo – mesmo as conhecidas funções de neurose, perversão e psicose –
se organizaria ou, pelo menos, teria a ver necessariamente com a sexuação.
Isto significando que estava de acordo com o complexo de castração e suas
resoluções. Complexo este absolutamente aderido ao complexo de Édipo – ou
seja, àquela estorinha caseira: quero-mamãe-não-pode, quero-papai-não-pode,
em que muita gente acredita até hoje –, o qual está ligado à ordem neolítica da
interdição do incesto. Esta também é outra estória, produzida no seio da for-
mação cultural, em relação à qual temos que fazer escolha: é a interdição do
incesto como algo estrutural que funda a cultura ou é a cultura, em seus pro-
cessos históricos, que funda a interdição, a proibição, do incesto? Poderíamos
dizer que a antropologia estrutural, de Lévi-Strauss – que Lacan veio a retomar
inteiramente –, é bastante amiga da idéia do complexo de castração, em Freud.
Mas há, por outro lado, aqueles que acreditam que a interdição do incesto é
estritamente histórica, que foi criada num certo momento, certamente no
Neolítico, e que, ao invés de ter sido ela a criadora da cultura, ela é que foi
criada pela cultura. Do mesmo modo que não existe complexo de castração,
pois, evidentemente, a diferenciação sexual não se dá assim.
Como devem lembrar, o complexo de castração era Freud, observando
em análise a sexualidade das pessoas durante a sua suposta construção do tal
Édipo, fazendo a suposição de que primordialmente não existiam meninas. Isto
porque elas seriam ignorantes, tanto quanto os meninos, a respeito da verdadei-
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A Psicanálise, Novamente
ra diferença sexual. Elas não teriam vagina, e sim um clitóris que não era senão
algo meio peniano mas muito pequeninho, que elas usavam prazerosamente em
sua masturbação, assim como os meninos podiam usar os seus também ainda
tão pouco desenvolvidos. Ele achava que não se encaixa no psiquismo humano
nenhuma idéia de diferença sexual, que isso não está marcado em nenhum
arquivo do inconsciente. Parece que, realmente, não trazemos nenhuma distin-
ção psíquica pré-dada quanto a pertencer a tal ou qual sexo, sobretudo do ponto
de vista dos comportamentos sexuais. Por isso mesmo é que ele falou em bi-
sexualidade. Resta saber se não haver marcação de sexualidade significa ne-
cessariamente complexo de castração. Mas ele inventou aquela estorinha nar-
rando que os meninos nascem meninos e as meninas também nascem meninos:
que só existe um sexo na primeira infância. As meninas vão passar por um
processo, até mesmo doloroso, para descobrir que não são mais meninos como
foram dantes e que têm que de algum modo virar mulheres para se normaliza-
rem nesta vida de loucuras. Como vêem, ficou muito difícil para as pobrezinhas:
os meninos existem, as meninas não, os homens já nascem feitos, as mulheres
tem que ser self-made-men, desculpem, self-made-women. Temos engolido
tudo isto durante muito tempo. Alguns ainda engolem, até hoje, como se isto se
tratasse de uma perfeição teórica absoluta.
Assim, quando um se deparava com outro, se é que se deparavam, os
meninos achavam que as meninas não tinham o que eles tinham e, portanto,
quem sabe?, alguém o teria tirado. Vai ver estavam se masturbando e o pai foi
lá e cortou o piu-piu delas! E as meninas, justamente pelo lado do avesso,
quando descobriam que os meninos tinham, achavam isto um absurdo e pensa-
vam: ‘Cortaram o meu, sou uma castrada’. Como eles também achavam que
elas eram umas castradas, ficaram vantagens e desvantagens do tipo: os meni-
nos tinham o que as meninas não tinham, portanto, eram machos, potentes,
proprietários, e elas despossuídas; a única compensação sendo que, fazendo
certo esforço, elas podiam conseguir algum, ou mesmo todos os deles, ou, tam-
bém, talvez pudessem vir a ter algum bebê para substituir aquela falta terrível.
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O sexo e a morte
Contudo, por outro lado, de certa forma, eles viveriam ameaçados a vida intei-
ra, porque, se cortaram os delas, a qualquer momento poderiam cortar os deles
também. Por isso os meninos são tão moralistas, tão certinhos, obedientes e
covardes. Ao passo que as mulheres, por sua vez, não são assim tão medrosas,
mesmo quando afirmam o contrário. Elas seriam, sim, é meio sem-vergonha,
pois nada tinham a perder quanto àquilo – já lhes tinham cortado mesmo – e, no
fundo, se os meninos não tomarem conta, elas seriam mesmo umas putinhas...
É claro que estou fazendo uma caricatura, mas é exatamente assim a famigerada
teoria da castração. Eles, coitados, teriam que passar o resto de suas vidas
mostrando o pau precário e ameaçado que supõem ter, botando o pau na mesa,
como se diz em brasileiro, e elas, também coitadinhas, com inveja do pau que
não têm para mostrar nem para botar na mesa. Protesto macho e inveja do
pênis – a estas duas coisas conjuminadas Freud chamava: o rochedo da cas-
tração. Ele achava que é impossível conduzir suficientemente longe qualquer
análise, porque os rapazes jamais vão abrir mão de mostrar o seu e dizer ‘sou
eu que mando’, ou ‘não aceito sua interpretação’, e porque as moças sempre
ficarão com inveja daquilo e dizendo ‘você está dizendo assim só porque você
é macho – e se eu também tivesse um pênis você então ia ver como é que
ficava’. E, segundo Freud, isto acabava com a possibilidade de uma análise
chegar até o seu fim.
É claro que um grupo considerável de pessoas ligadas à psicanálise, no
próprio registro da sociedade psicanalítica, até com Freud ainda vivo, sobretudo
mulheres brilhantes como Melanie Klein, Karen Horney e outras – inclusive
Ernest Jones, que é um espanto que tivesse se arrostado com Freud –, se
rebelou e contestou que não é assim que funciona, pois as meninas sabem
muito bem que têm vagina, e que algumas até mesmo se masturbam
vaginalmente, etc., etc., etc. Para estes, Freud estava se referindo a algo da
ordem de uma neurose já ali instalada, e não a algo primário (primário, no
sentido deles, não no meu). Mas os argumentos que propunham contra, eles
eram, a meu ver, tão ruins quanto os argumentos de Freud: tem/não- tem, elas-
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pode parecer uma atividade perversa cujo fetiche é esse Falo mais ou menos
obsceno que comparece o tempo todo como eixo, pivô fetichista do discurso
psicanalítico.
Vivemos, então, uma situação social historicamente posta que, como
todos sabem, é cheia de afetações relacionadas a séculos, se não milênios, de
repetição sintomática e que, mais recentemente, com a ajuda do desenvolvi-
mento tecnológico, começa a implodir. As mulheres, por exemplo, foram domi-
nadas durante longo tempo, não necessariamente pelos homens, mas por uma
idéia ou uma inadimplência de força. Precisamos lembrar que elas estiveram
milênios sem poder ter uma ação efetiva porque deviam estar sempre grávidas;
e além disso, morria-se muito cedo. Fica difícil ter capacidade de luta, qualquer
outra ou política, carregando aquela barriga e morrendo tão jovem.
De tal maneira que nos encontramos hoje numa civilização nitidamente
racista por ter feito a suposição de que certas formações biológicas são piores
do que outras só porque perderam alguma guerra por questões de tempo, de
força, de posse de armamento, e outras tantas coisas que tais. Assim, podemos
dizer que quanto a essas coisas há três sintomas graves em nossa cultura:
racismo; machismo (que podemos chamar de falicismo: os homens são, as
mulheres não); e heterossexualismo (a idéia de que o sexo existe estrita-
mente para a reprodução – aliás, qual seria mesmo o seu oposto?). São três
grandes sintomas da cultura nesses milênios últimos vividos por nós.
Estamos agora num momento em que tudo isso está implodindo, e cada
vez mais. E uma das objeções que se pode fazer aos teóricos, mesmo a Freud
e Lacan, é que uma teoria construída sobre o complexo de castração pode ser,
não o erro redondo de se mentir a respeito da repetição de um sintoma – ou
seja, é provável que, com muita freqüência, encontremos o sintoma assim des-
crito (o que não significa que seja estrutural e muito menos natural) –, mas
simplesmente um sintoma que está historicamente fundado por aí. Ele é tão
pregnante que é claro que o encontremos como sintoma. Portanto, é para ser
analisado, e não para se acreditar que é mesmo assim. É apenas mais uma
neura na humanidade. Estamos vivendo, então, um momento em que, por exem-
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plo, as reações das mulheres, as ondas feministas, cada vez se tornam mais
sutis ao mesmo tempo que mais fortes. Há evidência de que, quando se dá a
mesma oportunidade, elas se realizam em igualdade de potência. Dada a
tecnologia correta, não há diferença entre as competências das mulheres e
dos homens. Elas podem perfeitamente ir para a guerra e dirigir um submari-
no atômico. Há também a idéia, que as feministas ajudaram muito a fazer
comparecer, mas que também outros modos de comportamento, como a cha-
mada revolução sexual dos anos 60, trouxeram à tona, de que a sexualidade
não é algo feito para reproduzir. Depois que houve a queda do conceito de
instinto na etologia e se viu que os ditos instintos materno ou de reprodução
são programas que se deslancham, cada vez se descobrem coisas mais múl-
tiplas de que éramos ignorantes a respeito dos animais. Imaginem, então, a
respeito da espécie humana.
Muitos biólogos entendem que o modo de reprodução sexuada é uma
das coisas mais idiotas que já aconteceram na face do planeta. Custa caríssi-
mo, é um desperdício enorme, e não se sabe por que esse modo acabou ven-
cendo numa espécie tão diferente como a nossa. Do ponto de vista biológico, é
um modo meio perdulário, mesmo porque estamos a ponto de, mais economica-
mente, poder abolir a reprodução sexuada nos laboratórios. Mais algum tempo
de pesquisa, não só poderemos produzir clones, como faremos filhote de fulano
com sicrano ou beltrano, à vontade, sem nenhuma participação de sexualidade
no sentido do nhéco-nhéco conhecido. Estamos então num momento em que
tudo isso tem que ser questionado. Há hoje pesquisas de campo que nos dei-
xam estarrecidos. Vejamos uma, que ajuda a derrogar a idéia de complexo de
castração e que atinge as causas admitidas de perversão sexual, fetiche, ho-
mossexualidade, etc., em que não podemos mais acreditar com a mesma faci-
lidade e tontice de antigamente. Um livro saído agora no EUA, há dois ou três
meses, Biological exuberance: animal homosexuality and natural diversity,
de um cientista chamado Bruce Bagemihl, vem demonstrar inúmeras falhas
quanto ao que se pensava sobre o programa etológico dos comportamentos dos
animais. Pensávamos que, em todas as espécies, havia um etograma referido à
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A Psicanálise, Novamente
se está se tornando ridícula neste final de século – que nos traz tantas mani-
festações a porem em crise essas tolas afirmações anteriores. Precisamos,
sim, de um aparelho teórico que torne a psicanálise consentânea com o mundo
que está vindo por aí.
Estamos assim novamente diante da questão da sexuação. Se não é a
diferença anatômica que a sustenta, então como fazer? O desenvolvimento do
próprio Lacan em relação à sexuação, que é algo tardio em seu teorema, se dá
na sustentação dos teoremas do Falo e da castração, mas no que aí se abstrai
a sexuação, mesmo em relação à própria castração, ele não pode não se perder
da configuração anatômica. Ou seja, continua insistindo na preeminência, na
maior pregnância, do Falo, do tal penis erectus, para a partir dele equacionar
presença e ausência – isto é, entrar no regime do simbólico – e organizar a
sexuação. Mas quando organiza logicamente a sexuação, mesmo partindo dessa
configuração básica do imaginário do sexo, ele abstrai de tal forma que, por
causa dessa abstração da referência anatômica, não pode não se perder. Os
lacanianos dizem que ele partiu da mesma estrutura de Freud, mas que abstraiu
de tal maneira que não há mais a pregnância anatômica e os comportamentos
de homens e mulheres já não têm uma fronteira nítida. Isto, digo eu, pouco
importa porque o princípio continua sendo o mesmo. Por isto, por mais que seja
uma fórmula abstrata, quase matemática, ele chama os divididos por sua nova
sexuação de homens e mulheres, porque, no fundo, a configuração é imaginá-
ria e continua se tratando de pênis e não-pênis, erectus de preferência. Lacan,
então, depois de Freud, baseado na mesma fórmula – presença e ausência de
pênis –, diz que isto é o que configura o nosso simbólico, digamos o psiquismo.
Chamo atenção para isto, pois é daí que sai todo o erro.
Se esse tal simbólico pode se configurar como positivo e negativo,
não é necessariamente como presença e ausência. Pode simplesmente ser
afirmação de algo e seu radical oposto enantiomórfico. É a radical simetria de
duas formas, tal qual se coloca para a física moderna e para quantos místicos e
filósofos. Mas Lacan parte do mesmo lugar de Freud e tenta formular uma
lógica nova, estritamente da psicanálise, para arrumar a sexuação. Ou seja, em
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A Psicanálise, Novamente
mem: todo homem, tendo um externo que diz não, que fecha o circuito, faz
um universal; quanto a fórmula Mulher: se as mulheres não têm um de fora
para fechar o circuito, não existe toda mulher, pois não se pode fechar o
seu conjunto.
•
H M
Mas como Lacan chamou estas fórmulas de homens e mulheres, mesmo que a
idéia inicial seja referência à castração, ele fica numa situação difícil, pois tem
que reconhecer que muitos que têm pênis são mulheres e muitos que não o têm
são homens, dada a relação que tais indivíduos tiverem com a castração. Ele se
dá conta, por exemplo, de que alguns grandes místicos, alguns pensadores,
alguns artistas, alguns escritores, São João da Cruz, por exemplo, são mulheres,
e ainda mais como ele diz: coloquem na lista o próprio Jacques Lacan. Racio-
cinando assim, na medida que extrapola essa configuração da lei, ele mesmo é
mais uma mulher. Aí Philippe Sollers escreve um romance, Femmes, que já
está traduzido em português, Mulheres, cujos personagens principais são Lacan,
Foucault, Barthes, ...etc.
Afinal, Lacan não podia não cair nessa, já que partiu daquela lógica de
castração. É justamente este raciocínio que para meu uso não quero mais, pois
se suspendermos a teoria (neurótica) infantil da castração, tudo isto vai para o
beleléu. Nossa posição é o teorema da Pulsão: o que há é desejo de não-Haver,
no psiquismo. E não-Haver não há. Então, não adianta desejá-lo, a não ser por
insistência no Impossível, mas este jamais comparecerá. A libido quer o Impos-
sível para conseguir (tudo) o que é possível – mas justamente não conseguirá o
Impossível. Não há passagem a não-Haver com presença gozosa nessa passa-
gem. Se fizermos a idéia absurda de a conseguir, então seria o Gozo Absoluto
que às vezes alguns supõem ser o gozo na (ou da) morte. Na morte, se a
gozássemos absolutamente, conseguiríamos (tudo) o que desejamos, que é o
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O sexo e a morte
não-Haver, mas não há o lugar desde onde se possa conseguir tamanha proeza,
tamanha façanha.
Em não havendo esse lugar, mantendo-se os elementos das fórmulas
de Lacan e chamando a função fálica de Tesão, vamos supor que realmente
passássemos a não-Haver. Como seria a estrutura desse gozo? Depois dele
teríamos que dizer que não existe mais Tesão (~∃xTx). E se aí não existe mais
Tesão, podemos concluir que, neste caso, todo Tesão, isto não existe, aí todo
Tesão é nulo ( x~Tx). Está aí o universal do não-Tesão. Como só se goza-
ria desse modo na Morte (se ela houvesse), e isto não acontece, posso dizer: A
Morte Não Há.
Vocês podem ficar um tanto perplexos, pois estão cansados de ver
necrotérios, cemitérios, gente que morre, atestados de óbito, mas que experiên-
cia efetiva algum de nós tem mesmo da Morte? O que chamamos de Morte é
na verdade uma experiência de perda, quando notamos que um ente querido
apagou, não diz mais nada, não se mexe, e sobretudo não respira. Mas experi-
ência de Morte nem mesmo o morto a tem. Antes de chegar a Ela, ele já se
ausentou. É claro que a humanidade, não sabendo resolver a questão, inventa
todo tipo de passagem para supor a esta ocasião: vai-se para algum Céu, para
algum Inferno, para algum Purgatório, ou se resta perdido nalgum Limbo, ou se
fica no espaço e se baixa quando invocado, mas nunca tivemos realmente algu-
ma experiência de um morto efetivamente nos falar – com provas e tudo.
Quando algum ‘baixa’ e lhe diz algo ‘que só você sabia’, é preciso considerar
que existem muitas questões difíceis quanto ao psiquismo e que não sabemos
ainda nada sobre os nível de transmissão e de reconhecimento entre duas pes-
soas. Uma coisa é certa: não conhecemos a Morte. Então, na pujança, no
Tesão de querer não-Haver, o que aí há é uma sexualidade, uma secção (es-
crevam sexão), isto é, um tipo de gozo a que aspiramos mas que jamais com-
parece, que depende do Sexo da Morte – e do suposto gozo, aliás absoluto,
que deste sexo teremos podido obter, caso atingíssemos mesmo, em presença,
a Morte que se requer. Se Ela não comparece, o que comparece então? Se ao
invés de o Tesão acabar, – ‘não existe mais tesão’ –, se simplesmente existir
137
A Psicanálise, Novamente
Tesão, Libido, Pulsão, que resultado teremos então? Lembrem que a lógica
que estou aqui aplicando não é aristotélica (se o fosse, o que se diria neste
caso é: ‘se existe tesão, todo tesão é tesão’), pois o princípio agoraqui em
exercício é o de que o Tesão está voltado para o que não-Há e que, portanto,
não vai comparecer e subseqüentemente não será alcançado e conseqüente-
mente o Tesão permanece, o mesmo Tesão (∃xTx: aquela afirmação que
Aristóteles supunha fundamentar a possibilidade de universal), quase que ne-
gado (segundo seu empenho em não-Haver), mas só negado em sua intenção
e portanto eternamente re-tornado: para o mesmo não-Haver jamais en-
contrado. Assim, o que efetivamente comparece só se escreve logicamente
como: o Tesão pode ser negado, mas não-todo (~ x~Tx). O tesão pode
ser negado no nível do desejo dessa negação, mas não efetivamente para
aquele que assim desejar. E é fácil de se ver que isto não faz nenhum uni-
versal. Ou seja, podemos colocar anteparos, proibições, desvios à Libido,
mesmo desejarmos o seu fim, em conformidade com ALEI, mas não consegui-
remos eliminá-la, eternamente, jamais. E estes são o sexo e o gozo funda-
mentais de qualquer um de nós. Em outro lugar eu já disse que o nosso é
O Sexo dos Anjos: os anjos somos nós, independentemente do sexo que
portemos como diferença anatômica: fundamentalmente, nosso sexo é este,
angelical. A sexualidade de nossa espécie, no sentido de seu modo funda-
mental de gozo, é esta, qualquer outra é sua derivação. Se quiserem, podem
também chamar de Sexo da Gente ou Sexo Resistente, como prefiro, (isto
é, aquele que resiste à própria vontade de extinção).
Como se manifesta mais efetivamente em nossos gozos cotidianos esta
sexualidade em aberto, que pode ser negada, mas não-toda? De duas manei-
ras, que se escrevem, agora sim, com as fórmulas de Lacan para a sexuação.
Ou bem, primeiro caso, existe uma negação de certo Tesão. Isto se faz medi-
ante posição de um limite por uma marcação, que é dizer: meu Tesão está
nisto, gozo com isto e, quando gozo, a coisa termina (∃x~Tx). Com isto se
consegue aparência de universalidade em torno do pivô de que todo Tesão é
Tesão ( xTx). Pura afirmação. Este, que é o sexo Homem, de Lacan, é o que
chamo de Sexo Consistente. Ou bem, segundo caso, não demarco muito
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O sexo e a morte
bem meu gozo, gozo pelas tangentes, a coisa fica em aberto e não sei nem
dizer, com alguma certeza, se gozei ou não gozei. As Mulheres, segundo Lacan,
só dizíveis no plural, pois não fazem nenhum universal, seriam as titulares deste
sexo. Mas que mulheres? Não necessariamente as reconhecíveis pela anato-
mia, pois muitos homens, no sentido anatômico, é assim que eles gozam com
freqüência. Aí, o que logicamente se escreve é que não existe nenhum limite
que circunscreva este gozo (~∃x~Tx), portanto, fico numa situação absoluta-
mente aberta (~ x Tx). A este, chamo de Sexo Inconsistente.
Na formulação de Lacan, por causa da teoria (infantil) da castração
embasando o desenvolvimento de sua lógica, confundem-se formas, modos de
gozo, que podem ser para mulheres e para homens, e se chama um de Homem
e outro de Mulher. É isto que nossa posição vem derrogar, pois isto nada tem a
ver com Homem e com Mulher. Gente é assim. E, sendo assim – porque é
assim –, subdivide-se esse gozo que pode ser limitado, mas não-todo, em duas
maneiras: com Consistência e com Inconsistência. Nas experiências de gozo,
inclusive no nível orgásmico – pois gozo passa por muitos níveis: psíquico, esté-
tico, etc. –, notamos que há uma tendência mais para um lado do que para
outro, mas não é pouco freqüente que se reconheça que há uns gozos meio
dispersivos e outros muito concentrados. No tempo de Freud, chamava-se um
de meio feminino ou místico e o outro de perverso, mas não mais precisamos
destas palavras, pois homens e mulheres são da espécie que goza do (ou no)
Sexo Resistente, pois do (ou no) Sexo da Morte, o que chamo de Sexo
Desistente, simplesmente não dá para gozar. Nosso gozo, Resistente, se ma-
nifesta, então, necessariamente, ou bem consistente ou bem inconsistente-
mente. Então, escrevamos assim:
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A Psicanálise, Novamente
Homens e Mulheres não são senão o animal que somos, o qual, por
uma questão de ordenação na história biológica de sua produção, apareceu por
aí como Macho e Fêmea. Na concepção de nosso psiquismo, que está liberto
disto e é capaz de produzir cada vez mais próteses, o que temos nós a ver com
isto? O que tem a ver com isto a mente que é capaz de, mesmo sem conseguir,
requisitar o que quiser? Que limitação é essa que nos impuseram? Na verdade
ou, como se diz, no fundo no fundo, ninguém da espécie humana a aceitou até
hoje. Tanto é que se inventam comportamentos sexuais que não estão limitados
nem pelo sexo anatômico, nem por esses modos de gozo. Usamos dos sexos
anatômicos, desses tais modos de gozo, e de mais zilhões de coisicas da cultura,
da verve da inteligência, da multifariedade das formações disponíveis, e de
todas as próteses que conseguimos inventar. Já visitaram uma sexshop? São
ruins, são pobres, não têm quase nada de boa invenção. Mas elas existem, e o
que lá se encontra não foi produzido por cães ou gatos, mas por gente como
nós. Mas nota-se ali, de qualquer forma, uma redundante falta de imaginação.
Esquecemo-nos, por exemplo, de que uma sinfonia pode fazer parte dos artigos
de uma sexshop. Um Beethoven pode ser um tesão, faz parte dos interesses
da sexualidade humana. Aliás, que música vocês colocam para transar? As
pessoas sempre sabem qual música as leva onde querem. E a cor, qual é? São
fenômenos estéticos, culturais, no sentido mais geral, de que nos esquecemos e
pensamos que se trata apenas daquela anatomia idiota, a qual, na verdade, é
até mesmo dispensável. Alguns são tão refinados que a dispensam de fato – e
procuram outras vias para gozar.
Assim, a sexualidade humana, em seu modus operandi, vigora nas
múltiplas interseções entre as formações do sexo anatômico, da sexuação do
gozo e de quantas outras formações intervenientes em cada caso sexual. Seria
preciso analisar caso a caso, pois na verdade não há regra pré-estabelecida. Só
há todo esse jogo. Então, a disponibilidade, até segunda ordem, é de que temos
dois aspectos anatômicos, esses modos de gozo e uma porção de outras coisas,
mormente de caráter estético. Isto que aqui coloco, obriga a psicanálise a mu-
dar de rumo e não mais aplicar previamente, antes de qualquer consideração
140
O sexo e a morte
de caso, aparelhos edipianos, ou de diferença sexual, seja para que lado for.
Não pode permanecer sem se dar conta de como funciona efetivamente a
cada caso, inclusive com a sintomática e as pressões da cultura, com os sinto-
mas pessoais, etc. Repetindo: cada caso é um caso. E cabeça de analista
não é lata de lixo das formações culturais. Ele tem que ter a mente capaz
de abertura suficiente para poder escutar cada sintoma em sua peculiaridade –
e não projetar Édipos e outras estorietas sobre pessoas que eventualmente
nada têm a ver com isso.
141
A Psicanálise, Novamente
algumas coisas sem a menor explicação. Diz ele, por exemplo, deste caso, que
“há uma completa reversão: o pai simbólico passa a pai imaginário” e vai em
frente. Mas que reversão é essa? O que aconteceu no psiquismo? Chama-se
Revirão. E não foi talvez reversão de pai simbólico a pai imaginário. Foi,
sim, mais provavelmente talvez, uma moça que parecia funcionar segundo o
gosto da família – com tendências heterossexuais no sentido de vir a se casar,
ter filhos, dar netos para seu papai e sua mamãe – e que, de repente, pela
pressão de desencanto com a família, com o pai e com tantas outras coisas,
mostra paixão por uma senhora. Isso é reversão da figura paterna ou simples-
mente alguma coisa que estava sendo encaminhada historicamente para um
lugar, sofre um impacto, talvez muito forte, para a moça pelo menos, e ela dá
uma guinada e vai ficar com as mulheres, pois os homens são para ela, pelo
menos provisoriamente, umas boas porcarias? Ela não sabe disto, mas fez um
processo de Revirão no que Freud chamava de bissexualidade. Ou seja, as
coisas se encaminharam de tal maneira que ela teve disponibilidade de virar. E
foi uma coisa passageira, pois não era uma moça efetiva e permanentemente
homossexual, como aliás talvez ninguém o seja. Ela ficou danada da vida com
a situação, decepcionou-se e virou para outro lado. Não é, aliás, o que fazemos
todo dia? Quando nos decepcionamos, se tivermos potência, viramos para ou-
tro lado, mudamos de vizinho... Há uma série de formações e, entre outras,
uma pessoa que tem uma formação que, se precisar, ajudará em seu processo
de desvencilhamento de uma situação. Então, ela vai. Eis aí algo que, na práti-
ca, muda o entendimento e tira a complexidade absurda da função da castra-
ção num processo analítico. Mas de qualquer modo estou também ficcionando:
nada mais.
• P – Do ponto de vista de Lacan, o par presença/ausência do falo cons-
titui a idéia de simbólico no psiquismo. Quando você propõe um vetor
teórico que aponta uma referência de análise que coloca para a espécie
o puro Tesão – a propulsão de requerer, em última instância, seu
desaparecimento absoluto –, o que acontece daí para baixo é funciona-
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O sexo e a morte
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A Psicanálise, Novamente
que não se trata bem de serem iguais a eles. Pelo contrário, elas dizem agora:
“somos diferentes e não queremos aceitar esse princípio de dominação porque
não é verdadeiro”. Portanto, estão lutando contra a própria idéia da dominação,
e não mais contra os homens. Isto porque eles estão tão submetidos a esta idéia
quanto elas – e também perdem muito com isto: perdem a inteligência, por
exemplo; tornam-se estúpidos por acreditarem numa tal imbecilidade.
• P – Você disse que uma sociedade machista não pode não ser racista.
Por que o machismo tem o vetor que traria consigo o sintoma do racismo?
Se imaginarmos grupos isolados antes ainda das formações históricas
da humanidade, certamente que eram da mesma etnia, da mesma raça. Qual é,
então, no interior desses grupos, o primeiro racismo no mundo neolítico? O das
duas raças: homens e mulheres. O falicismo é, em última instância, o primeiro
sustentador de qualquer racismo. Por ser falicismo, se outorga o direito de
distribuir as diferenças. Tanto é verdade que, se tomamos o nível do racismo
propriamente dito, em relação aos negros no tempos da escravidão, por exem-
plo, quando o branco era o mais macho quanto à detenção do poder, etc., vere-
mos que os negros eram reduzidos à condição de mulher. Num processo de luta
contra o racismo, se não atacarmos diretamente o falicismo, não há como sub-
trair a sustentação desse racismo, pois o primeiro racismo é entre homens e
mulheres que vigora. Qualquer um sabe, em nossa cultura, pois está nos jornais
e nos livros, que os homens são assim e as mulheres são assado. As mulheres
falam de novela e os homens de futebol. Mas isto é espontâneo nelas ou neles?
Não: isto é induzido culturalmente. E mais, é sim uma pressão terrível, mas
nada tendo a ver com testículos e ovários. Aliás, já notaram que a invenção
tecnológica do corno é uma liberação para as mulheres? A invenção da pílula
anti-concepcional tem uma influência muito importante na explosão do mundo
contemporâneo, pois foi a dominação das gravidezes e das fornicações que
organizou o Neolítico. Quando o chifre sobrevem e não há como administrá-lo
porque a mulher não mais engravida aleatoriamente, tudo muda na sociedade.
• P – Você acha que existe orientação sexual? E a bissexualidade não é
sempre evocada para justificar uma homossexualidade?
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O sexo e a morte
Existe sim orientação sexual, mas não a que eu queira dar a outros. Há
que descobrir qual é. A bissexualidade justificar a homossexualidade, isto talvez
seja verdadeiro nos níveis jornalístico e sociológico, dada a sintomática do mun-
do atual. Quando um homem ou mulher querem dizer que não são homossexu-
ais, dizem que são bi, mas isto não é verdadeiro. Se supusermos que alguém é
hétero – mesmo porque não se é coisa alguma –, ou seja, que tem o hábito de
ser hétero e até tenha certo nojo de qualquer coisa homo, isto é apenas um
sintoma. Por outro lado, existem muitas pessoas que transam com todos os
sexos, e destes não podemos dizer que são homo ou hétero, e sim que circulam
à vontade. Aliás, gostar só dos dois sexos não é tudo. Pode-se gostar de poste,
galinha, cabra, égua barranqueira, jumento, cavalo, cachorro... A questão para
a postura psicanalítica é saber como, para cada um, se viabiliza sustentar sua
posição sintomática tendo, pelo menos, disponibilidade de aceitação do outro
que acaso tenha sintoma diferente. Mas é aceitação verdadeira, franca, de
conviver numa boa, não se ficar cheio de dedos só porque o outro é sexualmen-
te diferente.
Mais um passo adiante na questão: até onde vai uma análise em sua
competência de indiferenciar o sintoma da própria pessoa? Há uma coisa que
talvez não se saiba que acontece em análise. Se recebemos um analisando
macho, branco, bem empregado, classe A, todo por cima e absolutamente hete-
rossexual, vai-se tratá-lo durante muito tempo sem nunca questionar por que
ele tem que ser assim. Isto porque ele é supostamente normal. No entanto,
quando aparece um dito homossexual, os “analistas” querem corrigi-lo. Como
ele está por baixo, literalmente, na situação não só sexual, mas social, sentem-
se à vontade para induzi-lo ao outro lado. Às vezes, empurra-se a análise a tal
ponto que se consegue que alguém estritamente homossexual, com horror das
mulheres, comece a gostar e achá-las interessantes. Há aí, portanto, um parti-
pris absolutamente preconceituoso no analista e na situação analítica por cau-
sa das estases culturais. Se temos a audácia de dizer ao homo que devia, pelo
menos também, ser hétero, por que não dizemos ao hétero que devia, pelo
menos também, ser homo? Então, quando se diz que bissexualidade é desculpa
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30/SET
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OS CINCO IMPÉRIOS
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ter uma referência externa – a castração operada pelo pai, no sentido freudo-
lacaniano – e que, sobretudo, faz a lógica da consistência. É, na verdade, o
que podemos chamar de Homo-Sexo, ou seja, a estrutura do que se chama de
homossexualidade. Para Freud e Lacan, a vocação dos homens, enquanto re-
ferentes ao Sexo Consistente, é nitidamente homossexual. Não estou di-
zendo que seja sexo masculino, mas no sentido deles é homossexual porque
não considera nenhum outro sexo. Como as mulheres, também para eles, são
apenas um homem que não tem pênis, aí estamos no regime da homossexuali-
dade aberta. Podemos dizer que este sexo constitui a visão Clássica de mun-
do. O idealismo classicista, que propõe algo que lhe é externo, que se organiza
como fechamento, concentração, verticalidade, é a idéia formal da consistên-
cia. Na medida em que a consistência só aparece porque há algo externo – o
pelo-menos-um que faz barreira ao e nega o destino do Tesão, para criar a
consistência –, podemos dizer que aí está a lógica da Transcendência. Toda
vez que alguma lógica propõe uma externalidade que organiza, comanda e fe-
cha a unidade e a universalidade de um conjunto, o múltiplo que ela rege, estamos
diante da idéia de transcendente com todos os tipos de imperialismo que esta
vontade de transcendência cria e sustenta. É daí mesmo que Lacan, mergulha-
do no sintoma da cultura, chamou este sexo de masculino. Isto porque, desde
o Neolítico, vivemos no que podemos chamar de dominação masculina, que é
essa coisa homossexual, transcendentalista, classicista (em todos os sentidos,
sobretudo o da exclusão fundadora de classes).
O segundo que, na cabeça de Lacan, é justamente o Outro Sexo, que
ele chama de feminino, chamo de Sexo Inconsistente. Este faz NEXO – e
não plexo, ou puramente sexo, e também não é fora, exo –, vai de ligação em
ligação, vai se ligando no que funcionando. Se não existe nenhuma negação
sobrevinda de fora, o conjunto fica em aberto – e temos um não-universal
desse Tesão. É o que podemos chamar de Hetero-Sexo, a vontade de
heterogeneidade, de heterossexualidade, de diferenciação. Heterossexualidade
que é a aparência formal do Barroco, do formalismo em espiral.
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Os cinco impérios
como defino cultura, são as que acabo de retomar acima. É como se dissésse-
mos que, do ponto de vista da estrutura mental, em sua relação com o gozo, o
que podemos são essas quatro possibilidades. Os objetos nada têm a ver com
isto: cada um se esfrega naquele que achar mais interessante – o que é da
ordem de fixações, freqüentemente estéticas, que não têm ligação direta com
essa estrutura lógica. Pode-se gozar de qualquer modo, seja qual for o objeto
no qual se roce. O que podemos pensar quanto à relação deste teorema com a
cultura, a qual faz história, tem sucessivos arranjos, etc., dependerá do entendi-
mento do que já lhes falei sobre o Primário, com suas formações
autossomáticas e etossomáticas; e sobre o Secundário, como a estrutura
do simbolizante e do simbolizado, de organização branda (soft) de nossas transpo-
sições artificiosas; e sobre o Originário, como o aparelho de reviramento, de
Revirão, que é nossa estrutura específica, a própria de nossa espécie. Mi-
nhas suposição e proposta têm sido de que há um verdadeiro encaminhamento
necessário no desenvolvimento da espécie humana, isto é, quando esse desen-
volvimento há. Não se trata de nenhuma psicologia desenvolvimentista, ou uma
sociologia de fases, nem de nenhuma necessidade histórica, mas é como se
pudéssemos dizer que nossa espécie se encaminha para macro-organizações
principais que, é claro, incluem uma infinidade de organizações menores com
pequenas diferenças de formação. Isto, é claro, se e quando ela efetivamente
se encaminhar, pois pode não fazê-lo e paralisar-se durante séculos ou milênios
– se não mesmo regredir, acidental ou acintosamente. É de se supor que, em
seus primórdios, a formação da cultura tenha restado milênios paralisada num
mesmo processo, sem a velocidade que temos podido observar recentemente,
de rápidas mudanças, mesmo se regionais. Mas, como disse, nada obriga que a
espécie dê passos adiante; pode mesmo estacionar durante longo tempo em
alguma estupidez local ou regredir para outra.
Entretanto, se esta espécie se movimenta, a suposição é de que nossa
constituição macromórfica inicial seja o Primário, o qual é a base e a massa
que recalca profunda e extensivamente a possibilidade de reviramento, isto é, o
Originário, o qual, embora seja de surgimento mais recente, é o que qualifica
realmente quem somos nós. Não somos propriamente a espécie homem, e sim
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Creodo Antrópico:
os Cinco Impérios do Périplo Cultural
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todos desse povo, um deus superior, único, etc. Por que esse deus maravilhoso
seria tão idiossincrásico a ponto de ter que ser nomeado pelas aparências do
Primário? Ele começa a ganhar status cada vez mais abstratos, espirituais.
Assim, mediante longo processo de criação e revolução, inventa-se o Terceiro
Império, com um Pai que tem agora referência estritamente simbólica. Na
cultura, ainda restam Pais de Segundo Império, com as Mães corresponden-
tes, pois estas são entidades renitentes: uma vez aparecidas é modalmente
impossível eliminar e sobram como sintomas em repetição. Contudo, por cima
e para além do sintoma, inventa-se que a referência é que temos um Pai no
Céu, abstrato, puramente espiritual, simbólico, que independe de saber-se quem
seja a mãe carnal – e portanto de quem seja o pai carnal. Isto porque Ele é
absolutamente Pai de Todos e faz a todos Irmãos na referência a esta constru-
ção simbolizada, puramente secundária.
A revolução de Jesus Cristo é um exemplo do que pode acontecer em
quantos lugares, do mesmo modo, mesmo se com diferenças relativas. A dife-
rença do Cristianismo face ao Judaísmo, nessa época, nesse âmbito – e só
nesse, pois os Romanos há muito já sabiam que a coisa aí é de nível puramente
simbólico, que a filiação se dá por pura adoção (e nem mesmo sabemos se a
suposta invenção ou aceitação disso pelos cristãos não é já influência da convi-
vência com o Império Romano) –, é Jesus (seja ele histórico ou mítico, tanto
faz) ter tido a idéia genial de dizer que não se deve apedrejar nenhuma adúlte-
ra, pois todos temos pecados também – e com a intenção de eliminar qualquer
necessidade de prova de paternidade biológica, uma vez que decreta que a
verdadeira paternidade é a do Pai que está no Céu. Com que pretensão um
menino daquele – e ele o é, morre jovem aos trinta e poucos anos –, mesmo
sendo rabi ou coisa parecida, enfrenta a poderosa Igreja judaica? Seja qual for
a frase que tenha dito, no quê está baseado para coibir o apedrejamento? Em
que o Pai que está no Céu é pai de todos. Portanto, os filhos daquela que
chamam adúltera são também filhos d’Ele. Logo, não se é adúltero em relação
ao Pai verdadeiro, que é puramente simbólico. Isto é uma revolução enorme,
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Os cinco impérios
seja onde for que tenha ocorrido – e de quantos modos ou quantas vezes tenha
ocorrido. No mundo judaico, aparece com estas características. Assim, está aí
inventado o Terceiro Império que é este em que temos vivido. Um império de
referência celestial, onde cabem idéias como fraternidade universal, democra-
cia, direitos do homem, etc. e tal.
O fato de se ter produzido a revolução d’OFILHO não significa que se
aboliu os Impérios d’OPAI ou d’AMÃE, que continuam a existir por aí, regio-
nalmente recalcitrantes. O importante é que a idéia de referência de si próprio,
de referência de Eu, essa idéia mudou. Somos todos irmãos, filhos de Deus...
É claro que, como disse, cá embaixo, para aquém da questão espiritu-
al, em cada e todo cotidiano os outros impérios continuam a existir, com seus
privilégios e apropriações, com o jogo de capitalismo de Segundo Império, etc.,
etc. De qualquer forma, as referências começam a mudar. Assim, mesmo que,
dentro do Terceiro, grande parte da cultura continue regida pelos Primeiro e
Segundo Impérios, agora, neste momento históricos que estamos vivendo, com
grande acúmulo de processamentos, de invenções tecnológicas, de acelera-
ções comunicacionais, de críticas do pensamento, etc., já terminamos o Século
XX em crise radical desses valores. Não precisamos ficar atônitos com o fato
de haver tantos retrocessos, grandes reentonações religiosas, parecendo con-
servadoras ou reformistas, pois isto é apenas o grito de socorro de muitos de
um tempo que está na pior, que não sabe mais o que fazer para a frente – e
então não acha outra saída senão correr para trás. As massas estão em pânico
e há sempre aproveitadores para apregoarem que, se voltarmos uns três sécu-
los, a coisa fica melhor. Podia até funcionar, se desse mesmo para voltar...
Mas agora não dá mais. Ou bem retornamos e nos estupidificamos em forma-
ções pregressas, ou bem sustentamos a tecnologia de ponta que todos desejam
consumir. Os dois movimentos são incompatíveis. Além disso, não se conse-
guirá facilmente frear o movimento do capital – e subseqüentemente o da
tecnologia. Só esses movimentos por si mesmos acabarão por dissolver o Ter-
ceiro Império ainda em vigor.
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Os cinco impérios
nome, e menos ainda uma figuração. O que importa é que estamos cada vez
mais nos dando conta de que estamos ficando independentes da sexualidade
para a reprodução, bem como da paternidade para nossa própria identificação.
Justo quando já podemos, por via de ADN, comprovar com certeza a paterni-
dade de alguém, basta que seja possível a reprodução sem ato sexual e a
inserção social sem referência necessária à paternidade (mesmo que agora
comprovável), para, mentalmente, podermos desvincular mais fácil uma coisa
da outra. E a sexualidade, no bom e velho sentido carnal, que nos sobrou, serve
mesmo é para a gente brincar, como dizia inocentemente Macunaíma, para a
gente se divertir. Assim como a paternidade nada mais tem a ver com nenhum
gosto sexual (haja vista para o empréstimo de óvulos e espermatozóides entre
homossexuais de ambos os sexos).
O que se torna assustador quanto à chegada do Quarto Império é que,
ao invés de sermos aqueles que têm uma referência de última instância – que
pode ser um Deus transcendente, que acaba se representando, como diz por
exemplo a Igreja Católica, no seu Papa, no seu Padre, no seu Pai, na sua
(sagrada) Família afinal –, a referência fundamental de cada um agora tem
que ser a sua própria competência – e perfórmance – de articulação. Tome-
mos exemplo no campo das profissões. Cada vez mais, o que se requisita – nas
grandes empresas, na indústria, no comércio mundial – é que se tenha uma
formação, acadêmica ou qualquer outra, que seja cada vez mais elástica, mais
diversificada, mais abstrata também. Até ontem alguém podia dizer: – “Sou o
engenheiro tal”. Hoje, sabemos que não é mais assim, pois aquele saber, ama-
nhã, pode não valer mais nada ou muito pouco e elimina-se automaticamente
esse tal profissional. Então, como tenho que ser hoje? Alguém que articula
rapidamente e passa rapidamente de função para função. Como que eletroni-
camente, como que em franca computação. As empresas estão pedindo isto e
investindo muito dinheiro na reformulação da formação de seus quadros, e não
necessariamente reformulação acadêmica, universitária, para que seu funcio-
nário não seja lá tanto assim engenheiro, que seja mais ou menos engenheiro,
mas também muito mais, pois não sabem se amanhã não terão que mudar
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A Psicanálise, Novamente
rapidamente de lugar e de função. Como não se pode estar a toda hora trocan-
do de quadros, é preciso haver pessoas com adaptabilidade funcional e com
rápida rearticulação de seus saberes e competências. O que aqui chamo de
OESPÍRITO é simplesmente a articulação do campo do Secundário. E que
seja cada vez mais desembaraçada – tanto do Primário quanto das estases
sintomáticas do próprio Secundário, cada vez mais leve, cada vez mais rápida,
cada vez mais em disponibilidade para o que vier.
Portanto, dada esta situação, não dá para voltar. Só mesmo se sobre-
vier algum ingovernável cataclismo. A Bomba Atômica anda meio desmorali-
zada, não é mais ela que vai nos remeter de volta ao Neolítico. Então, ficamos
imaginando se não vai acontecer um cataclismo para não termos que andar
para a frente. Quem sabe, um asteróide não bate na terra? São sonhos
denegatórios de procurar um jeito de não ter que pensar para adiante, de ar-
ranjar algo supostamente conhecido que nos reconforte para trás. Contudo,
queiramos ou não, se não houver cataclismo e retrogressão, o Quarto Império
aí está começando aparecer. Qualquer pesquisa séria demonstra que a grande
família já se foi, e a família nuclear está se transformando – se é que ainda se
trata de família. Alguns dizem na mídia que paradoxalmente a família está
ficando cada vez mais forte. Mas que família? O que melhor parece é que o
Império d’OFILHO, o Terceiro, que para se sustentar vivia da idéia de amor,
está talvez em seus últimos estertores. Justo quando seu canto do cisne só fala
de amor, de amor, de amor... Ou senão é a idéia de amor que está inteiramente
se transformando. Mantendo o nome, mas mudando de significação. Não é a
primeira vez que isto acontece: na passagem de Império para Império, e mes-
mo na passagem de fase para fase dentro do mesmo Império, isto sempre se
viu. Mas ainda se fala tanto em amor aí porque a única relação que faz susten-
tação é essa vinculação transferencial entre as pessoas, e com a referência
transcendente da qual ainda não se quer definitivamente largar mão. Mas ain-
da é uma postura masculina, ou melhor, homossexualizante, no sentido de do-
minação e redução de tudo a um sexo só. Como lhes disse, em nossa cultura,
as mulheres não são senão homens castrados, não têm verdadeiro reconheci-
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Os cinco impérios
mento social. Homossexual, aqui, não significa transar com alguém do mesmo
sexo, mas sim ter um só sexo como referência. No Quarto Império, algo aí se
substitui – e já vemos isto surgindo nas novas gerações, em sua relação com a
tecnologia, com a internet, etc. – substitui-se o amor pela pura e simples con-
sideração, não só do outro como outro, mas sobretudo do outro como mes-
mo, não como o mero irmão ou o semelhante, ou o próximo (de quem se dizia,
ora hipocritamente ora ingenuamente, que devíamos amar como a nós mes-
mo), mas sim como alguém com quem nos relacionemos independentemente
de amores ou ódios, mas por mero reconhecimento das inarredáveis vinculações
tecidas a partir de um Vínculo Absoluto.
Se conseguirmos andar ainda mais para a frente, talvez tenhamos – o
que é ainda impensável, de tão distante para nós – a possibilidade de um Quin-
to Império. A passagem, o intervalo, o interregno do Secundário para o Originá-
rio é o que acontece no Quarto Império como referência. Ou seja, para ele, o
Primário é simplesmente o que se organiza como Secundário, então, há que
pensar no Secundário e em sua passagem para a absoluta possibilidade aí
dentro, que seria a idéia do Originário. O Quarto Império está hoje começando
a emergir, está na passagem, e não sabemos quanto tempo vai durar. Assim,
não temos condições de imaginar o que seria um Quinto Império, aquele em
que Eu é referido por simplesmente ser aquele que revira, que não tem pegas
obrigatórias, que não é ninguém senão possibilidades. No Quarto Império, Eu
ainda é alguém em função de suas alocações ad hoc: estou sendo isto agoraqui.
No Quinto Império, é Ninguém. Vemos isto, de antigo, no pensamento dos
grandes místicos, que indiferem toda possibilidade de Eu. Sou apenas possibi-
lidade, pensam eles. Na melhor das hipóteses, sou Deus, ou seja, Nada, Nin-
guém. Isto, ainda não sabemos bem pensar. Seria o Império do AMÉM: o
que der e vier está bom, ou melhor, não é bom nem mau, é tudo aceitável, tudo
bendito. Estamos começando a aceitar muita coisa, mas uma a uma, a cada
caso a cada momento. No Quinto Império não seria assim. É o que podemos
chamar de Valetudo em seus dois sentidos, no Português atual e no Latim –
onde quer dizer saúde. É O Império da Saúde, porque não se tem mais como
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28/OUT
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Teoria do eu: a pessoa
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TEORIA DO EU: A PESSOA1
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anteriores podem ser brilhantes, mas é preciso corrigi-los a toda hora. Por
exemplo, pensar em termos de indivíduo já é estúpido por si. É como se
pudéssemos recortar essa formação de dentro do Haver e deslocá-la até das
injunções primárias que ela tem aí dentro. Começa-se a entender que não há
indivíduo com a moda da ecologia, por exemplo.
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Teoria do eu: a pessoa
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A Psicanálise, Novamente
Isto está na língua, que se constitui assim. Mas a gente se constitui assim? As
línguas existentes que não se realizam mediante a oposição sujeito / objeto,
assim como a língua dos ETs ou mesmo a dos computadores, exigirão a divisão
sujeito / objeto? Minha questão fundamental com a história da filosofia e da
psicanálise tal como se deu ultimamente, sobretudo na mão de Lacan, continua
sendo: quem é Eu? E não adianta virem com a gramatiquice de Jakobson –
sujeito da enunciação, do enunciado, etc.
• P – Quando se fala em enunciação, fala-se em algo que está por trás,
que subjaz.
Esse por trás, por dentro, por baixo, subjectum, é o que seria o miolo
da gente, onde há um homenzinho que se exprime. Acaba sendo sempre o
homúnculo dentro do homão. O Ocidente é infectado da idéia absurda de alma
ou de agalma, por exemplo. Tudo faz parte dessa mesma configuração, com a
qual estou implicando por não corresponder (mais) aos acontecimentos de
mundo, que a dissolveram. Em seu tempo, Lacan chegou a entender essa
dissolução como mera fração, como interstício, mas a coisa está se multiplicando
demais. E no movimento de comunicação tecnológica dentro do que é a
globalidade do mundo, precisamos sair do Mediterrâneo e da Europa. Coisa
que não só está ficando visível como sendo abalada e dissolvida pela intervenção
do mundo que não é isso. Portanto, é preciso inteligir de outra maneira. Sei que
é difícil pensar assim. Não foi fácil também para mim.
• P – Schrödinger diz que essa questão nunca existiu. Embora as últimas
questões científicas mostrem isso mais claramente, não foi porque se
descobriu a mecânica quântica que se dissolveu a relação sujeito / objeto.
Ela nunca houve. Era forçada por um modo de articular, que é o
Mediterrâneo. Não é preciso nem falar de filosofia ou de monoteísmo, pois
ficamos infectados por aquela joça ocorrida entre os rios Reno e Hindu. Pode-
se manter a resistência dessa formação por muito tempo, só que esta resistência
(não será, mas) já foi rompida, e continuamos a abordar com ela o mundo que
está disponível. Lacan, em 1981, morreu junto com seus últimos estertores.
Depois dele, lacanianos ainda repetem isso, que já não dá conta de nada, e
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A Psicanálise, Novamente
quase um vício – que todos temos, aliás – de pensar com a teoria dos conjuntos.
Então, o que qualifica o sistema, ou melhor, a formação, é o perímetro externo.
Ou seja, formação com sua resistência terminam em seu limite de fronteira: o
limite é externo. Podemos utilizar a teoria dos sistemas para pensar muita
coisa, mas aqui não estou pensando em termos de fronteira, pois elas se
demonstraram eliminadas. Hoje, há que pensar em termos de força e poderes.
Se tenho um pólo com o foco situado, jamais saberei onde termina a franja.
Pode ser que termine intricada com outras franjas. Portanto, o que tenho para
pensar são muitas formações:
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Teoria do eu: a pessoa
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Consistência por fronteira e Inconsistência por pólo que funciona. E isto nada
tem a ver com macho e fêmea.
• P – Não podemos pensar que o Consistente tem a ver com o foco e o
Inconsistente com a franja?
É outra metáfora, mas a consistência fálica de que falam os analistas
é de recorte: homem que é homem não tem beiras. Podemos pensar o Sexo
Consistente como uma tentativa de demarcação de fronteiras onde tudo acaba,
e o Sexo Inconsistente como aquele que tem um foco, mas se espalha. Se
quisermos harmonizar as coisas com esse raciocínio, serve.
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texto que estabelece formações, relações entre formações que podem ser
acompanhadas das mais diversas maneiras. Ao considerarmos seus tracinhos
sobrepostos, vemos que existe um processo de leitura – que os ocidentais
chamam de interpretação, mas que não o é – das possibilidades de entendimento
que se abrem. Trata-se de um texto milenar que tem servido para grandes
reflexões e para produção de outros textos, isto é, de outros fatos textuais, que
procurariam lhe dar prosseguimento. É algo assim que precisamos pensar como
base para a psicanálise. Isto, para largar mão da nomenclatura exacerbada
que: 1) veio da ordem social; 2) passou à ordem jurídica; 3) foi conquistada
pela ordem médica; e 4) foi adaptada ao pensamento psicanalítico. Ou seja, é
uma lata de lixo da pior qualidade. Em alguns casos, continua funcionando até
hoje. Quando abrimos um texto legal e comparamos com um texto psicológico,
psiquiátrico ou dito psicanalítico, o que temos é o samba do crioulo doido. Vemos
classificações que são da ordem da moral social, que, em certo momento, são
elevadas à categoria de lei e passam à ordem jurídica. Depois, a ordem médica
acha que não é bem assim, que aquilo não é crime, e sim doença, então resolvem
tratar da doença. E isso vai bater na psicanálise. Então, quando tomamos um
fato policial na sociedade, vemos que se utilizam ao mesmo tempo essas diversas
abordagens absolutamente enlouquecidas. Isto, a respeito de um fato policial.
A mesma ordem que diz que determinadas ações jurídicas têm a ver com a
ordem médica – por exemplo, que o sujeito não cometeu tal ato porque é mau,
e sim porque é doente – estabelece, no entanto, uma sanção freqüentemente
da ordem do policial sobre essa pessoa. A coisa não faz sentido, é uma loucura.
É preciso, portanto, nos afastar definitivamente de toda essa conversa
do passado e perguntar, após cem anos de consideração do chamado
Inconsciente segundo as formulações da chamada psicanálise, se é possível
passar uma peneira e, sem correlação com essas formações maledicentes,
situar o que está acontecendo. E, com isso, diferir radicalmente as formações
de base da quantidade enorme de conteúdos que as pessoas nelas inserem.
Conteúdos psiquiátricos, por exemplo. Se não, continuaremos sem saber se
aquilo é descritivo ou estrutural, pois não faz sentido.
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As morfoses (ou psicomorfoses)
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caseira tipicamente neolítica, como se fosse estrutural. Mas por mais que se
repita e pareça universal do ponto de vista da situação presente no mundo,
podendo até ser um creodo cultural, não é estrutural nem universal, com
nenhuma categoria que se possa atribuir à palavra universal. Tampouco
temos que recobrir ponto a ponto as nosografias disponíveis como a da DSM
IV, em que a palavra nosografia foi proibida, pois preferem falar em
classificação dos transtornos. E nada nos impede de utilizar toda a literatura
disponível, psiquiátrica ou outra qualquer, inclusive a literária, como descrições
aproveitáveis da casuística patemática no mundo. Os psiquiatras
freqüentemente buscaram nos romances, nas peças de teatro, na obra
pictórica, etc., exemplos do que estavam suspeitando encontrar no consultório
ou no hospital. Mas não vamos transformar isso em descrição ou mesmo
nomenclatura de síndromes psicológicos.
Não confundir, portanto, formações casuísticas e/ou conteúdos
narrativos e/ou acontecimentais com formações patemáticas específicas. As
formações casuísticas ou conteudísticas serão consideradas, mas caso a caso.
Não confundir a descrição que fazemos de algo que encontramos pela frente
com a classificação em que podemos meter uma pessoa. O esforço é no sentido
de conseguir uma classificação minimalista e, quando considerarmos cada caso,
podermos ler em qualquer lugar – por exemplo, numa peça de Shakespeare,
ver que ele descreveu um caso parecido –, mas só introduzir a descrição
casuística numa classificação a mais abstrata possível. Cada caso pode ser
reconhecível como inserto, inserido na Patemática da Psicanálise e suas
formações-conteúdo constituirão a particularidade do caso. Nosso método de
trabalho é tentar entender a partir do estrutural quais são as estruturas mínimas,
quais são as formações de base – se não quisermos usar a palavra estrutura –
que a psicanálise, pelo menos esta de que estou falando, pode reconhecer.
Depois é que vem como entendemos a história, a casuística, os acontecimentos,
mesmo repetidos, entre pessoas que vamos colocar ali dentro.
Não precisamos repetir nomenclatura herdada. Para nós, não há transtornos,
e sim patemas. São as Formas de Gozo, é a Morfologia do Gozo. É por onde
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• P – Podemos até dizer que a maioria das pessoas é seqüelada, tem essa
falta de referência extrema.
Seqüela do transtorno ou da falta de educação? Isto nem a psiquiatria
nem a neurologia sabem dizer. Ora, se temos uma disfunção frontal, do que ela
resulta? De um defeito do cérebro? Ele é mal construído?
• P – Eles dizem que é genético.
Acho que é destrambelhamento na maioria dos casos.
Destrambelhamento familiar, falta de educação. A pessoa não recebe formação
adequada ou tem dissociações dentro de casa e aquilo não funciona direito.
Vamos supor que, em alguns casos, exista disfunção cerebral pura e simples.
Acredito que exista, mas penso que sua freqüência é muito maior pela disfunção
produzida na relação mórfica com o mundo. É por isto que, por enquanto, nem
psiquiatras nem neurologistas têm condição de se desfazer de nosso trabalho.
O processo é de mão dupla: há disfunções cerebrais, digamos, endógenas e
exógenas (e estas são produzidas na relação entre formações).
Retornando ao que dizia, é freqüente o caso de um psiquiatra, às vezes
de boa qualidade, diagnosticar como TDAH alguém que, na linguagem deles, é
borderline. Estou falando de um caso concreto, em que vi que o psiquiatra
estava acochambrando as questões, dada a importância da pessoa diagnosticada.
Não fica bem a uma pessoa de tal estirpe ter o outro diagnóstico. Se fosse o
pobrezinho da favela, era considerado delinqüente, 171, fdp. Nem de borderline
o chamariam. Quero mostrar é a quantidade de truques que há nisso. Aliás,
nada temos a ver com a nomenclatura borderline. Isto não nos interessa.
Desde 1986 (O Sexo dos Anjos. A Sexualidade Humana em
Psicanálise [Seminários 86-87]. Rio de Janeiro: Aoutra, 1988. p. 29-38), falo
em neurose, psicose e morfose, utilizando a terminologia e a descrição velhas.
Quero jogar no lixo os dois primeiros termos e chamar a tudo de Morfoses,
isto é: casuística de formações. Assim, tratamos das morfoses do psiquismo,
as quais são, elas próprias, consideradas através dos patemas da
psicanálise, que descrevem as formas do gozo. Coloco tudo num só
pacote, pois a canalhice anterior – que misturava os discursos social, jurídico,
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1. (P) = PROGRESSIVAS
(+P) = Positivas (Perversões)
(+P+) = Ativas (sadismo, exibicionismo, etc.)
(+P-) = Reativas (masoquismo, voyeurismo)
(-P) = Negativas (Fobias)
(-P+) = Ativas
(-P-) = Reativas (atos contrafóbicos)
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4. (T) = TANÁTICAS
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+/–
Ativo Reativo
Não há passividade aí. Por isso, estou modificando o que coloquei ano
passado quando falei em ativo/passivo. O Ativo é quando, por exemplo, estamos
diante de uma situação clínica e vemos nitidamente como as ações de uma
pessoa são no sentido de interferir no outro. É Reativo quando suas ações são
no sentido de provocar a reação no outro. Isto é muito nítido nas Progressivas
quanto ao que, por exemplo, chamam de sadismo e masoquismo (os textos de
Sade e de Masoch). No caso das Progressivas Ativas, a pessoa é sádica para
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própria positividade, mas não há que ligar para o anterior, e sim para o que está
segurando a Negativa, que é a positividade. Se derrubarmos o positivo, ou seja,
que ele possa entender que está aí para morrer, que não há saída, ele começa
a morrer numa boa. Aí somem os sintomas, pois aceitou que é mortal. Antes,
ele achava que era imortal. Coloca-se alguém assim na Academia, ele será um
ditador. Depois, ainda temos que convencê-lo de que é imortal mesmo, mas
esse é outro trabalho...
• P – Podemos dizer que a Morfose Progressiva é imperativa na insistência
de sua própria morfose, que a Estacionária o é no conteúdo recalcado, e
que a Regressiva o é no conteúdo hiper-recalcado?
Sim. E aí confunde-se a cabeça dos filósofos e daqueles que tratam
dos filósofos. Lacan jurava que Kant era um Progressivo. Acho-o
simplesmente um Estacionário. Quando Lacan considera o Sade do texto – e
ele não diz que Sade seja isso, e sim que no texto de Sade está isso –, o qual
realmente está descrevendo o Progressivo, diz: Kant com Sade. Mas Kant
não se canta junto com Sade, pois ele mora nas Estacionárias. Kant não está
produzindo um imperativo categórico com base numa progressividade positiva.
O que ele faz é: olhar para dentro de sua neura, ver que não suporta o
Progressivo, chamar seu sintoma de imperativo categórico, e achar que todos
devem tê-lo. Ora, isso é papo de neurótico. Lacan acha que o imperativo
categórico de Kant está inscrito em Sade. Como Kant legifera em cima
disso, Lacan fica com uma boa razão para dizer o que diz, mas ele legifera
em cima de uma impressão tipicamente neurótica, de que temos sentimentos
e não suportamos aquilo. É como Betinho que, numa reunião de que eu
participava, dizia ter descoberto um universal da espécie humana: a
solidariedade. Vejam a situação em que ele estava...
• P – A formulação de Lacan é parecida com a de Freud sobre a neurose
ser o negativo da perversão. Mas é apenas a questão da fantasia, que é
mostrada e atuada na Morfose Positiva, e que, na Estacionária, é sonhada...
Mas Freud tem alguma razão, pois o negativo de que fala não é o
avesso de que falo. Ele está dizendo no sentido que você está colocando. E
nesse sentido Kant vai muito bem como Estacionário.
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tem um trabalho enorme para exprimir sua Tanatose e, no final, acaba achando
que não exprimiu e se mata. Observem sua obra e acompanharão o figurativo
sumindo, passando a um abstrato repetitivo, cujas cores vão sumindo e o preto
virando cor, depois sumindo, e quando some, ele se mata.
• P – Essa maneira de apresentar deixa bem claro que o trauma por si só
não tem conteúdo algum.
O conteúdo do trauma é o conteúdo da ALEI. É o excessivo que não
se entende e sobre o que não se sabe falar. A psicologia é que começou com
isso de que a criança é traumatizada porque a mãe gritou, etc. Mas o trauma
é estar no mundo.
Temos, então, que estudar, discutir muito e, sobretudo, conseguir falar
essa linguagem com facilidade, simplicidade, e sacar, descrever, acompanhar
os movimentos de alguém que está em análise saltando de um lugar para outro.
Trata-se, por exemplo, de descobrir que, por trás de uma Estacionária, começa
a brotar um fingimento de Progressiva. Às vezes, a pessoa não entende sua
fundação mórfica necessariamente perversa e o tal superego lhe diz que ele é
um fdp, aí ela pensa que é perversista, mas só porque o superego lhe disse.
Acompanhar isto é muito difícil. A pessoa não é um Progressivo, e sim um
perverso como qualquer um de nós. Então, quando em análise mexemos ali,
descobre-se que há a perversão atrás. Aí o superego fica xingando a pessoa
de Progressiva.
É preciso entender que ninguém escapa dos Patemas, que são as formas
do gozo. Não existe o homem curado, mas existe aquele que aprende a dançar
e que vai gozar por essas formas, pois não há outro lugar. Por isso, digo que
perversão é o normal e pode se tornar a Morfose Progressiva em última
instância, lá no rabinho da coisa. Mas aí vem a questão quantitativa e o aspecto
intensivo, ou seja, os vetores serão leves ou não. Entendem por que faço questão
do quantitativo? Os vetores podem ser muitos pesados, com muito investimento,
ou leves, com pouco investimento. Na verdade, não existe quem não esteja
numa categoria dessas, mas é di cum força ou di levinho? Vemos pessoas se
apresentarem Estacionárias e, de repente, brotar por trás um Progressivo muito
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não se trata mais de lutas de classes. Não adianta mais apontar detentores do
poder para, com isso, estabelecer a luta política interna a determinado grupo
social, pois sabemos que os supostos detentores de certos poderes, ou de todos
os poderes disponíveis, são tão apoderados quanto aqueles que os massacram.
Às vezes, se sentindo muito mal, porque o sintoma é deles também. Em seu
livro A Dominação Masculina (Rio de Janeiro: Bertrand, 1999), o sociólogo
Pierre Bourdieu, com muita perspicácia, mostra como o lado masculino da
cultura se apoderou das forças, constituiu poderes que massacram o feminino,
etc. Não há mais condição, em termos de futuro, para se repetir assim: o poder
cai na cabeça de qualquer um e de todos. Resta saber que poder, quando e
como. Começamos a nos dar conta de que o suposto dono do poder é ele
mesmo massacrado pelo poder que se supõe estar arbitrariamente em suas
mãos. É também um trabalho danado para ele ter que se comportar segundo o
design sintomático que lhe coube.
Há grandes formações constitutivas que se apoderam das pessoas e
as aprisionam ‘em seus respectivos’ lugares – é o caso de dizer. Mesmo quan-
do esses lugares são bem remunerados, há uma sobretaxa que pode ser
destrutiva. Assim, do ponto de vista metodológico, há que pensar fora da supo-
sição de que os poderes são apoderados por alguém. Freqüentemente é o
contrário, são as pessoas que são apoderadas pelos poderes. Os poderes exis-
tem como formações que se deram e se impuseram, assim aprisionam e é
preciso dissolvê-las analiticamente a cada momento na política genérica do
mundo. A política não pode, portanto, acreditar simplesmente em
“luta de classes”, pois cada vez é mais claro que muita coisa escapa da supo-
sição de que classes em conflito conduzam à resolução de algum problema. As
tais classes não são apenasmente classificantes, são principalmente classifica-
das. O que há indiscutivelmente é luta permanente entre formações, o que tem
que ser tratado como perene operação anti-recalque, no sentido de se aviar o
reconhecimento das formações embutidas nessas formações. É esta abstração
o caminho futuro. Luta política deste tipo é prática da cura, exercício de aná-
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condições atuais, não dá para reconceber esse tipo de processo. Assim, alguns
pensam que não há nada a fazer. Ao contrário, há uma trabalheira enorme.
Mas não é a de constituir grandes Partidos dominantes. Mas sim a faina de, no
cotidiano de cada um – no processo completo das pessoas acuadas pelas for-
mações espontâneas e industriais, acuadas enfim por sua própria vida, e ne-
cessitando absoluta disponibilização para o que der e vier –, produzir-se a pe-
rene desconfiguração das formações neuróticas, dos processos recalcantes,
para cada existência poder vir a ser, também ela, moeda corrente em todos os
níveis, sentidos e direções. Como as pessoas não estão preparadas para este
novo Novo Mundo que está caindo sobre nossas cabeças, prepará-las é uma
tarefa de cura que, em última instância, é uma tarefa política.
Diante do quadro que lhes apresento, todas as reivindicações sintomá-
ticas da cultura são igualmente válidas, dado que podem ser referidas à
hiperdeterminação. A idéia das chamadas “minorias” está à beira da morte.
Minorias ou maiorias não se definem mais quantitativamente. Minoria não é
um conceito quantitativo – é um conceito exclusivo. A virulência das suas
próprias formações, associada à ruína das fundamentações, está obrigando
que elas sejam tomadas como de valor equivalente a quaisquer outras no con-
fronto entre as formações. A virulência corre sozinha pelos meios eletrônicos
e pelas redes em geral.
Os mais jovens não precisam se apavorar, só precisam é trocar de
cabeça o mais depressa possível. Estão com a impressão de que seu mundo
caiu. Mas não caiu, apenas está com novíssimas configurações. Aqueles anti-
gos ideais já não servem mais, temos que partir para novas imaginações. A
visualização da questão de hoje tem que ser completamente outra. Basta come-
çarmos a nos engajar nos problemas que nos estão efetivamente acuando e
veremos que são a questão política do momento e que essa postura nova a ser
tomada é a formação da cura para o futuro. As novas gerações de terapeutas
(talvez num certo futuro todos de algum modo tenham que se tornar terapeutas)
já foram convocadas para o trabalho contemporâneo e urgente da plena disponi-
bilização. Assim é o novo século, o Segundo Século da Era Freudiana, de que
lhes falei.
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tira nada do gênio e da força dele: qualquer um, para pensar uma pequena coisa
de grande importância, pensa junto com ela zil ninharias. O difícil é conseguir
discernir: jogar fora as ninharias e guardar o importante. Podemos até cometer
grandes erros: guardar ninharias e jogar fora o importante: isto acontece, na
produção de pensamento, muito mais freqüentemente do que se pensa.
Vejam então que nossa postura clínica também muda radicalmente.
Uma coisa é supor saber o que alguém significa. Outra, entender que produz
significações, está inserido num campo vastíssimo de pequenas e grandes for-
mações que têm ou não interseções, e poder movimentar as peças do xadrez
das formações para que certas formações venham à tona, sejam eventual-
mente reconhecidas e possam até mesmo abrir seus acessos. É só isto que há
para fazer. E, quanto a nós, é preciso todo um trabalho de limpeza, de faxina da
mente, para não estarmos a toda hora projetando delírios nossos sobre a igno-
rância dos outros. É preciso um longo e intenso trabalho de análise para nos
tornarmos mais indiferentes, neutros, diante das situações que a clínica nos
apresente. É preciso um trabalho mental enorme e permanente para estarmos
efetivamente disponíveis, de modo a podermos operar no sentido de disponibilizar
o próximo.
• P – Você pode falar um pouco mais sobre a Hiperdeterminação?
Para além de todas as sobredeterminações sintomáticas que um Freud
pôde entender com clareza e que vigem do mesmo modo até hoje no pensa-
mento psicanalítico, a Hiperdeterminação é a possibilidade que temos nós, dada
nossa estrutura mental em Revirão, de escapar da oposição “interna” – o que
é maneira de dizer, pois não há nenhum externo – a todas as formações, sem-
pre de polaridade binária, partir para o Terceiro lugar, onde se indiferenciar
essa oposição e lidar direto com a relação de impossibilidade entre Haver
sobredeterminação (de qualquer tipo) e simplesmente não-Haver coisa algu-
ma (o que, na verdade, não há). Este lugar neutraliza absolutamente qualquer
posição nossa e nos deixa disponíveis para colher qualquer coisa que compare-
ça, mesmo que dela nunca tenhamos dantes tido qualquer condição de percep-
ção. É este lugar que suponho ter encontrado freqüentemente – e que tantos
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SOBRE O AUTOR
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ENSINO DE MD MAGNO
3. 1977/78: Rosa Rosae: Leitura das Primeiras Estórias de João Guimarães Rosa
3ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1985. 220 p.
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8. 1982: A Música
2ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 329 p.
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Ensino de MD Magno
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Ensino de MD Magno
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Impressão e Acabamento
Artes Gráficas Edil
Formato
16 x 23 cm
Mancha
12 x 19 cm
Tipologia
Times New Roman e Amerigo BT
Corpo
11,0 | 16,5
Número de Páginas
224
Tiragem
500 exemplares
Papel
Capa – Supremo 250 g
Miolo – Pólen Soft 80 g
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