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MD Magno

A Psicanálise,
Novamente
2ª Edição Revista e Aumentada

O direito de impressão é pessoal e intransferível.


MD Magno

A PSICANÁLISE, NOVAMENTE
Um Pensamento Para o Século II da Era Freudiana

Conferências Introdutórias
à Nova Psicanálise (1999)

2ª Edição Revista e Aumentada

editora
é uma editora da

Presidente
Rosane Araujo

Diretor
Aristides Alonso

Copyright 2008 © MD Magno

Preparação do texto
Potiguara Mendes da Silveira Jr.
Nelma Medeiros
Paula de Oliveira Carvalho

Editoração Eletrônica e Produção Gráfica


Amaury Fernandes e Raphael Carneiro

Editado por
Rosane Araujo
Aristides Alonso
M176p
Magno, M.D. 1938 -
A psicanálise, novamente: um pensamento para o Século II da era
freudiana : conferências introdutórias à Nova Psicanálise (1999) / M. D.
Magno ; preparação de texto: Potiguara Mendes da Silveira Jr., Nelma
Medeiros. – 2ª ed. – Rio de Janeiro : Novamente, 2008.
224 p ; 16 x 23 cm.

ISBN 978-85-87727-26-8

1. Psicanálise - Discursos, ensaios, conferências. I. Silveira Junior,


Potiguara Mendes da. II. Medeiros, Nelma. III. Título.
CDD-150.195
Direitos de edição reservados à:

Rua Sericita, 391 - Jacarepaguá


22763-260 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil
Telefax: (55 21) 2445-3177 / 2445-5980
www.novamente.org.br
www.novamenteeditora.com.br
Haja hoje para tanto hontem.

LEMINSKI

Em vez de falar gravemente de coisas leves,


falar com leveza de coisas graves.

TALLEYRAND

DEDICATÓRIA:

Para Rosane,
que não deixa cair a peteca.

AGRADECIMENTO:

A Annita, Aristides, Nelma e Poti


que seguram a barra.
Sumário

1. INTRODUÇÃO À
: revigoramento do pensamento freudiano – Jacques Lacan como momen-
to de recomposição da psicanálise – Metáforas de progressividade do pensamento:
tonalidade e atonalidade na música; tectonia e atectonia em arquitetura – Base conceitual
da pulsão, ALEI (Haver quer não-Haver) e princípio de catoptria.
13

2. REVIRÃO
Estatuto do impossível n’ALEI Haver quer não-Haver – Compatibilidade do conceito
freudiano de pulsão com o princípio de catoptria – Princípio de Idioformação como
versão forte do princípio antrópico – Revirão qualifica a Idioformação em sua vontade
de transcendência – Hiperdeterminação é condição de criação – Estatuto da psicanálise
é místico.
37

3. A CONTRABANDA
Esclarecimentos sobre utilização da topologia em psicanálise – Características da geo-
metria euclidiana – Características da topologia – Propriedades da banda bilátera –
Propriedades da banda de Moebius ou contrabanda – Banda de Moebius resulta de
operação topológica sobre o plano projetivo – Proposição da contrabanda como estru-
tura básica do psiquismo – Operação do Revirão a partir da contrabanda – Impossibi-
lidade absoluta, impossibilidade modal e proibição a partir da lógica do Revirão.
55
4. RECALQUE
Apresentação do conceito freudiano de recalque – Recomposição do conceito de recalque
originário como quebra de simetria – Modalização do Haver: formações primárias, for-
mações secundárias e formação originária – Modalização do recalque originário:
recalque primário (autossoma e etossoma) e recalque secundário – Poder como agonística
entre formações recalcantes e recalcadas.
81

5. PODER DE CURA E AVATARES DO FALICISMO


Poder de cura é uma questão de ana-lise das formações – Suspensão do sintoma depen-
de de experiência de Hiperdeterminação – Exigência de análise perene da própria
psicanálise – Crítica à pregnância sintomática do conceito de falo em Freud e Lacan –
Falicismo é compatível com a ordem neolítica da cultura.
103

6. O SEXO E A MORTE
Apresentação da questão da sexualidade em Freud – Entendimento lacaniano da dife-
rença sexual a partir da lógica do falo – Redução da lógica do falo à ordem sintomática
– Entendimento de toda binariedade a partir da lógica do Revirão – Reescrição das
lógicas da sexuação: sexo desistente, resistente, consistente e inconsistente.
121

7. OS CINCO IMPÉRIOS
Desenvolvimento das lógicas da sexuação com consideração dos estilos – Articulação
das modalidades de gozo com as formações (primárias, secundárias, originária) – Pri-
mário, Secundário e Originário são referências para o périplo cultural – Creodo antrópico
como entendimento da dinâmica da cultura – Os Cinco Impérios: Império d’AMÃE,
d’OPAI, d’OFILHO, d’OESPÍRITO, do AMÉM.
147

8. TEORIA DO EU: PESSOA


Pessoa é Idioformação do caso humano – Sujeito e objeto como sintomas do
pensamento ocidental – Com-sideração das formações a partir de pólo, foco e franja –
Crítica ao pensamento sistêmico (Bertalanffy, Luhmann, Maturana) – Eu é polar, focal e
franjal.

169

9. AS MORFOSES (OU PSICOMORFOSES)


Positivização da Psicanálise – Formações patemáticas (patemas) x patologia - Distinção
entre formações genéricas (patemas) e formações de conteúdo – Patemática trata das
morfoses ou formas de gozo – Apresentação e discussão das quatro modalidades das
morfoses: formações progressivas, estacionárias, regressivas e tanáticas.
179

10. AGONÍSTICA DAS FORMAÇÕES


Considerações sobre referenciais abstrativos e míticos em psicanálise – Mal-estar no
Haver é o campo de operação analítica – Operação analítica como permanente conside-
ração do poder das formações – Juízo foraclusivo é poder de suspensão de recalque e
uso ad hoc das formações – Política é análise das formações.
201

SEMINÁRIO DE MD MAGNO
217
Nota

Este livro reúne o conjunto de oito conferências, para público


heterogêneo e não especializado, proferidas durante o ano de 1999 no
auditório da FINEP (Financiadora de Estudos e Pesquisas, do Ministério de
Ciência e Tecnologia, do Brasil), na Praia do Flamengo, Rio de Janeiro, sob
cujo patrocínio foram realizadas. Nelas o autor apresentava naquela oca-
sião um resumo de seu encaminhamento teórico no campo da Psicanálise.
Este pequeno volume introduz aos aspectos mais gerais da teoria sem
tratar todas as suas partes, e de modo algum pretende esgotá-la1 – mesmo
porque embora seja o resultado de um trabalho de 25 anos de Seminários,
ela resta um work in progress ainda em francos desenvolvimento e produ-
ção. O leitor interessado poderá recorrer à extensa lista de volumes que se
encontra em Anexo, caso deseje acompanhar mais de perto e em seu movi-
mento de criação todo o escopo desta teoria da Psicanálise. Ex-discípulo e
analisando de Jacques Lacan, a partir de 1986 inicia o autor uma via pró-
pria de abordagem teórica e prática da Psicanálise, a partir de Freud e
Lacan, levando adiante essas posturas teóricas, mas agora em conformida-
de com sua própria contemporaneidade.

1
Nesta segunda edição os editores incluíram os capítulos 8 e 9, retirados de textos posteriores
do autor (2003 e 2005), visando apresentar mais dois aparelhos conceituais importantes para o
entendimento geral da Nova Psicanálise: a Patemática, que transforma a (mal)chamada nosologia;
e a teoria do Eu, ou da Pessoa, que é resultante da teoria das Formações.
Fim de Século? Fim de Milênio?
Globalização do Mundo? Crise dos Fundamentos?
Caos da Economia? Inadimplência da Educação?
Precariedade da Saúde? Irrisão do Moral?
Éticas sem Caução? Políticas Farsantes?
Teimosia da Fé? Esperança Deceptiva?
Caridade Suspeita? Justiça Contestável?
Estado Impotente? Mercado Cínico?
Ocidente Fracassado? Oriente Confundido?
Consciência Perplexa? Inconsciente Denegado?
Amor Desconfiado? Sexo Ameaçado?
Artes de Araque? Ciências Afoitas?
Filosofias Marotas? Tecnologia Desembestada?
Caracteres Furtacores? Amizades Lábeis?
Violência Generalizada? Carinhos Fingidos?
Hiperpopulação Explosiva? Princípios Hipócritas?
Fundamentalismos Paranóides? Reproduções Assexuadas?
etc.? etc.? etc.?

Tudo isso e tudo mais urge ser pensado. E aqui se aposta no


RENASCIMENTO ora emergente da postura freudiana: como o pensamen-
to adequado para o futuro imediato.
Fim de Século? Fim de Milênio?
Globalização do Mundo? Crise dos Fundamentos?
Caos da Economia? Inadimplência da Educação?
Precariedade da Saúde? Irrisão do Moral?
Éticas sem Caução? Políticas Farsantes?
Teimosia da Fé? Esperança Deceptiva?
Caridade Suspeita? Justiça Contestável?
Estado Impotente? Mercado Cínico?
Ocidente Fracassado? Oriente Confundido?
Consciência Perplexa? Inconsciente Denegado?
Amor Desconfiado? Sexo Ameaçado?
Artes de Araque? Ciências Afoitas?
Filosofias Marotas? Tecnologia Desembestada?
Caracteres Furtacores? Amizades Lábeis?
Violência Generalizada? Carinhos Fingidos?
Hiperpopulação Explosiva? Princípios Hipócritas?
Fundamentalismos Paranóides? Reproduções Assexuadas?
etc.? etc.? etc.?

Tudo isso e tudo mais urge ser pensado. E aqui se aposta no


RENASCIMENTO ora emergente da postura freudiana: como o pensamen-
to adequado para o futuro imediato.
Introdução à

1
INTRODUÇÃO À

Começamos hoje esta série de conferências introdutórias sobre o que


estamos chamando .
Todos sabemos que neste final de século há grandes questões a respei-
to da continuação de nossa espécie, de que tipo de vida viveremos daqui para a
frente, e outras coisas mais ou menos difíceis de abordar. É o chamado fim-de-
século, que vem junto com o fim do milênio e com a globalização do planeta.
Grandes confusões, grandes aparências de acerto, muita gente perplexa, os
costumes desbaratados. Ninguém sabe para que lado se virar, o que se há de
fazer: as economias em crise; a sexualidade ameaçada, ao mesmo tempo que
meio desvairada; as artes parecem um grande conjunto de araques; as ciências
não sabem se ainda são confiáveis ou mesmo se são científicas; e assim por
diante. A idéia que eu gostaria de trazer é que, pelo menos com a indicação que
podemos oferecer, existe um modo de ver, um tipo de pensamento que supõe
ter condições de arcar com essas novas, ou aparentemente novas questões que
estão emergindo em nossa época.
Fala-se demais em crise dos fundamentos, significando a crise de
todas as idéias e estorinhas mais ou menos filosóficas, científicas, políticas,
morais, etc., a que estávamos acostumados e que supostamente seriam funda-
mentadas em algo que universalmente podia ser reconhecido, fosse a idéia de
Deus ou uma certeza de conhecimento absolutizada e universalizada por algum
modo de positivação e comprovação. É claro que tal crise é antiga, mas hoje há

13
A Psicanálise, Novamente

grande disseminação pelo mundo entre letrados e leigos de que esses tais funda-
mentos não vão lá muito bem das pernas, ou seja, de que na verdade não
fundamentavam coisíssima alguma. Tínhamos que aplicar algum volume de fé,
apostar, investir neles para que viessem previamente a garantir os compor-
tamentos de conhecimento, de socialidade ou de crença mesmo. O que está
acontecendo é que, apesar dos meios de comunicação, e mesmo de alguns
ditos pensadores e professores insistirem em reconhecer fundamentos em al-
gum tipo de afirmação – ética, por exemplo –, apesar disso, cada vez mais nos
temos dado conta de que esse papo estava furado desde o seu começo. Não dá
mais para acreditar na conseqüência esperável desses fundamentos.
Apesar de tudo, temos que viabilizar um encaminhamento qualquer
para nosso futuro. Há muita gente fazendo o esforço de tentar pensar alguma
indicação para os tempos que virão. Mas, como se fica muito apavorado por-
que não se encontra fundamento e, mesmo quando somos leigos, ouvimos falar
que as coisas estão degringoladas, embora acreditemos nos fundamentos que
nos apresentaram no passado – nem que seja por inércia cultural, por valores
familiares, ou do pedaço onde habitamos –, na maioria dos casos, as pessoas
estão fugindo para trás, retrogredindo, intensa e amplamente. Isto porque lá na
frente parece não haver nada muito claro, a escuridão é muito grande. Não há
luz no fim do túnel, ou mesmo não se tem túnel nenhum. Então, quem sabe,
conseguiríamos retrogredir no tempo para quando se acreditava belamente nos
fundamentos. Daí a explosão de recrudescências religiosas, pieguices e crendi-
ces. As pessoas não podem nem ser muito criticadas por isso, pois, coitadas,
estão se agarrando ao que parece ainda subsistir, que é essa velharia que,
mesmo não apresentando comprovação ou fundamentação capaz de suportar
a situação, fazia parecer que os antigamentes eram algo fundamentado. É cla-
ro que essa fuga já deu o que tinha que dar. Dará talvez para as pessoas ainda
sobreviverem durante algumas poucas décadas na esperança de que essas
coisas funcionem. Ou pelo menos não explodindo pelas tabelas porque estão
contidas por idéias mais ou menos configuradas e engastadas em suas mentes.
A explosão parece ficar minimizada quando retrogressivamente nos apegamos

14
Introdução à

a configurações que pareciam facilmente disponíveis e mais ou menos bem


reconhecíveis...
Existe um pensamento que vai completar um século segundo minha
datação: mesmo tendo escrito a Interpretação dos Sonhos um pouco antes,
Freud fez questão de publicá-la com a data de 1900 como se estivesse inaugu-
rando um tempo novo, embora o novo século só começasse mesmo no ano
seguinte. Acompanhando esta orientação, dato a psicanálise de 1900, junta-
mente com essa publicação. Estamos, portanto, às beiras da entrada no segun-
do século da era freudiana. O pensamento ali inaugurado é o que quero chamar
. Custamos a nos dar conta disto, mesmo porque a idéia embutida no
ventre da psicanálise é de repercussões folclorizadas, banalizadas, às vezes
mesmo por responsabilidade do modo de operação em vigor em sua produção
inicial. Hoje, na parte ocidental do planeta, qualquer um sabe dizer que “Freud
explica”: na verdade, nunca o vimos explicar nada, mas acham que ele expli-
ca... Quero, juntamente com tantos outros, considerar que, efetivamente, é um
novo modo de pensar, uma nova mentalidade, uma nova mente que se inaugura
com a psicanálise. Mesmo que a deterioração tenha comido pelas beiras seu
vigor – e é normal que isto aconteça – trata-se de um pensamento radicalmen-
te novo, com uma pujança tão original que as pessoas tinham dificuldade em
considerá-lo desse modo. Puxavam um pouco para o lado da filosofia – quem
sabe, é um pensamento filosófico? Para o lado da ciência – quem sabe, é uma
ciência nova? Mas, na verdade, em termos de pensamento no Ocidente, a
psicanálise é radicalmente outra coisa que não filosofia ou ciência. É algo pensá-
vel, já que Freud deu esse nome – do qual na verdade não gosto –, como...
apenasmente Psicanálise. Estou francamente preferindo, para meu uso, substi-
tuir este nome pelo de : é o que Freud inaugurara com o
nome de Psicanálise, o pensamento novo que começou há cerca de um século
e vai entrar pelo segundo agora.
Entretanto, mesmo criando um novo modo de pensar – a filosofia, a
ciência, etc., são modos de pensar –, seu conteúdo e maneira de expressar
estão sempre compromissados com a época em que se toma a palavra. Não há

15
A Psicanálise, Novamente

como falar fora da disponibilidade metafórica de determinado momento. Fala-


se talvez com dois ou três elementos de novidade, mas o grosso do discurso
acompanha sua época. Justamente, mesmo sendo um novo modo de pensar, é
preciso que isso se renove com bastante freqüência, pois, a cada momento que
a prolação a respeito desse pensamento está comprometida com a circunstân-
cia conteudisticamente marcada pela época em que se está falando, pelo que já
se disse e pelo que se quer introduzir de novo, tudo isso faz um lastro e um peso
que dificultam a manutenção do vôo do pensamento. Por causa disso, torna-se
necessário – não só porque se quer –, ao menor sinal de esgotamento de qual-
quer das formações desse pensamento, começar a pensar... novamente. Se
não, ele perde sua força de expressão, sua eficácia e sua contundência de
intervenção. E isto é uma coisa que acontece muito rápido nos dias de hoje.
A psicanálise é muito recente, neste momento em que falo, ela ainda
não completou os cem aninhos inaugurais para deixar um pouco de ser ingênua
em sua forma de expressão, embora seu pensamento seja muito vigoroso. O
que é espantoso é que tenha feito grande sucesso ao mesmo tempo que enfren-
ta uma série de dificuldades de manutenção de seu status próprio, justo porque
o movimento de acompanhamento do desenvolvimento dessas formações é
coisa muito difícil. No caso da psicanálise, então, que está envolvida com seu
próprio material de trabalho, essa dificuldade é, sobretudo, uma forte massa de
neurose, um grande panorama de recalques, etc. Deslocar isto em seu próprio
seio é extremamente difícil. E acontece uma coisa interessante com os modos
de pensar que pretendem intervenção direta e imediata nas ocorrências do
mundo, que é um certo retardo, e certo medo de mexer demais. Diante das
experimentações num campo que toca diretamente a vida das pessoas sem um
mínimo de segurança sobre sua eficácia momentânea, os operadores desse
pensamento entram em certa lentidão, até mesmo por razões de recalque. Ve-
jam, por exemplo, que mesmo que a idéia de ciência, seja qual for, tenha surgido
como coisa radical, forte, vigorosa, nova, etc., o movimento de desenvolvimento
das questões localizadas, conteudizadas, dentro desse pensamento científico é
um pouco mais lento do que os movimentos no campo da Arte. Costumo achar

16
Introdução à

que, no campo da produção artística, os produtores têm mais desenvoltura por-


que, mesmo que só aparentemente, digamos assim, imediatamente, na razão da
intervenção direta, é mais inócuo. Uma experiência radical no campo artístico
pode ser digerida em décadas sem talvez afetar diretamente um campo de
operação. Não que a arte seja mais fácil, mas, no campo da arte, as coisas são
mais fáceis de a gente se deixar levar por uma intuição, um processo de cria-
ção, por não nos sentirmos tão imediatamente responsáveis por intromissões
desastrosas. Os artistas têm uma desenvoltura que não conseguimos ter em
outros campos de pensamento. Seria um pouco desastroso repentinamente mo-
dificarmos inteiramente um aparelho científico nas intervenções tecnológicas
que tem um aparelho psicanalítico ou mesmo filosófico no que possam ter de
repercussões sociais e políticas, etc.
Apesar disso, podemos observar que a evolução das coisas nos cam-
pos do pensamento é da ordem de um abandono progressivo da fixação a for-
mas assaz configuradas. Usando mal um verbo, talvez o artista vá se libertan-
do de imposições formais e os aparelhos organizadores do pensamento artísti-
co vão se tornando mais complexos, mais leves, mais rápidos, mais
desconfigurados e permitindo uma possibilidade de movimento cada vez maior
aos operadores. A psicanálise também tem esse movimento, embora, por ser
muito nova, não tenhamos acompanhado muito bem seus procedimentos de
desenvolvimento. Aqueles que quiserem se deter na leitura dos textos, dos acon-
tecimentos teóricos e clínicos no campo da psicanálise, e mesmo culturais, tal-
vez possam se dar conta do que estamos falando mediante comparação com
outras áreas que têm movimentos parecidos. Se tomarmos a música, por exem-
plo, poderíamos dizer que, quando Freud tem a idéia de introduzir um modo de
pensar radicalmente novo no Ocidente – e só é radicalmente novo naquilo em
que é radicalmente novo, pois nem tudo que veio da psicanálise o é, muita coisa
veio de cambulhada da filosofia, da ciência, etc. –, vai tentar organizar o campo
falando com a linguagem e a disponibilidade de sua época, e também com o
freio necessário a seu momento. Se olharmos para a Viena de seu tempo,
veremos como os artistas e mesmo os filósofos estão inteiramente enlouqueci-
dos, pois é uma cidade algo retrógrada do ponto de vista do pensamento e cheia

17
A Psicanálise, Novamente

de gênios e loucos. E Freud parecia estar perfeitamente paritário com esses


pintores, escritores e filósofos que lá desabrochavam nesse momento, mas, se
observarmos o modo de produção de seu projeto de pensamento, veremos que
é um pouco inibido pela impossibilidade de lidar com o psiquismo daquela época
como se estivesse lidando com uma sonata romântica ou mesmo com todo o
sistema tonal clássico, o que seria um pouco mais grave.
Podemos encontrar uma comparação para o modo de construção,
por Freud, de sua então recente psicanálise, justamente na música tonal clás-
sica. É aquele modo de composição dentro de uma estrutura auditiva consti-
tuída por tonalidades girando e obedecendo à ordem tonal que conhecemos
desde Johan Sebastian Bach e que se encaminha assim até o romantismo.
Ouçam essas músicas, depois ouçam outras que não são dessa mesma or-
dem e verão a diferença.
Durante muito tempo, no campo da psicanálise, vários autores disse-
ram diversas coisas, conteudizaram teoremas, cada um apresentando sua re-
gião sintomática, às vezes com veemência. Via-se depois que podia ser uma
tolice, apenas idiossincrasia de alguém motivado por sua própria análise e tra-
duzindo para menos o que Freud nos trouxera com maior grandeza. Mas há
movimentos progressivos também, com vários analistas teorizantes de talento.
Cada qual colocando uma coisinha aqui, outra lá, às vezes sem muita pers-
pectiva, sem escopo genérico, mas introduzindo elementos importantes. Vários
nomes aparecem, mas talvez nenhum com esse vigor de compleição de revisão
por inteiro do campo quanto Jacques Lacan, que, hojendia, infelizmente, já
está banalizado demais, pelo menos no Brasil. Trata-se de um pensador potente
num momento de alta efervescência na Europa, sobremodo em Paris, onde
havia grande burburinho intelectual quanto a uma idéia chamada estruturalismo
e quanto a outras coisas ao seu redor, mais ou menos a favor ou contra. Isto
toma vulto ali pelo meio do século com grandes movimentos voluntariosos e
explosivos no campo das artes, como o surrealismo, por exemplo, que muito
influiu na vida e na presença intelectual de Lacan. Vocês podem facilmente
tomar conhecimento disso em muitos livros já publicados sobre o assunto.

18
Introdução à

Jacques Lacan consegue então recompor inteiramente o escopo da


psicanálise num momento em que isto se fazia necessário, pois ela estava se
desintegrando. Não porque tivesse deteriorado, mas porque as mentes que tra-
balhavam com ela não caminhavam muito bem e já estavam, a essa altura,
folclorizando e banalizando tudo. O esforço vigoroso de Lacan recompõe o
quadro por inteiro e podemos dizer que foi capaz de fazer com que aquela
psicanálise desse um passo mais ou menos parecido com o que, na música,
questionou o sistema tonal clássico e passou a movimentá-lo de tal maneira que
começou a ficar mais ou menos dissolvido, relativizado. É, por exemplo, o que
acontece a partir de Wagner. Ouçam bem Tristão e Isolda por exemplo, com-
parativamente ao que é tonal antes de Wagner, e verão que o seu é um movi-
mento de recomposição da compleição do aparelho fundamental com que se
estatuía a música na época. Ouvindo Lacan, não vão conseguir ler muito Wagner,
pois quem faz mesmo isto é, confessadamente, Lévi-Strauss. Leiam sua obra e
verão que ele se aboleta sobre Wagner e, com o estruturalismo lingüístico que
orienta sua mente, quer pensar uma antropologia wagneriana, onde a relativização
das estruturas deixa um pouco de lado, por modulações sucessivas, a organiza-
ção básica da tonalidade musical. Lacan anda por aí, e Lévi-Strauss lhe serviu
muito bem de base para desenvolver seu próprio sistema. Não percebemos
muito a semelhança porque seu ouvido é mais parecido com um músico da
época, que também borda ali por Viena, chamado Mahler, o qual é um wagneriano
um pouco mais dissoluto (no sentido ótimo do termo) do que Wagner. Lacan,
então, recompõe inteiramente o pensamento psicanalítico em torno de uma
reestruturação que, comparativamente com a música, é como se fosse um
grande passo no distanciamento da formalização modal e tonal que assegurava
a estética anterior e que já tinha se tornado um hábito auditivo, ou seja, uma
chatice para quem ouvira aquilo demais.
Sou do tempo em que, quando se falava de Lacan no Brasil, se era um
tanto apedrejado. Hoje, já sou apedrejado por mim mesmo e Lacan já é uma
figura palatável. Geralmente não se sabe muito bem o que ele pensa, mas como
está na mídia, deve ser algo importante. Lacan fez então a grande reestruturação,

19
A Psicanálise, Novamente

deu um passo enorme para a psicanálise e para o pensamento em geral, uma


vez que a psicanálise é um modo de pensar importante para o mundo compara-
tivamente com a filosofia, a ciência, etc. Mas acontece que ele é um pensador
terminal, e disto as pessoas ainda não estão se dando conta com muita facilida-
de. Ele deu esse grande passo e com ele encerrou o século. Não porque tivesse
que caber num século, mas porque lhe aconteceu fechar uma idéia que servia
perfeitamente para finalizar o pensamento ocidental do século XX. Não há
mais como sustentar uma visão estruturalista no mundo. Foi um golpe excelen-
te. Os precursores são pessoas que fazem coisas geniais justamente porque
aquilo vai acabar, vai perder seu vigor, mas, enquanto foi vigoroso, terá servido
para enxugar um pouco alguns campos. Aquilo já foi feito, organizou o pensa-
mento, deu o que tinha que dar, decantou-se, às vezes, até deteriorou-se. Pron-
to, já sabemos que aquilo não é mais para se fazer. É assim que funciona. Não
há pensamento definitivo: para ninguém. Lacan é essa pessoa que tomou o
sistema tonal clássico da psicanálise que Freud havia construído com idéias
configuradas demais – Édipo, sexualidade infantil, etc. –, ainda que potentes
para sua época, e tentou mostrar que eram organizações estruturais que ele
talvez pudesse tornar científicas através de uma algebrização, uma matemização,
precisa. Teve gente que acreditou nisto, ele inclusive, e mesmo Althusser, um
dos pensadores mais importantes da filosofia na época. Mas, hoje, sabemos
que não há como garantir cientificidade ou matematicidade alguma daquilo. É
apenas uma metáfora, um modo de pensar vigoroso, que serviu para darmos
passos e perguntar: daqui para a frente, o que há para fazer? Isto, como o
próprio Lacan pedira que se fizesse quando tenta definir a psicanálise como
sendo a pergunta “O que é a psicanálise?” É preciso sustentar esse vôo.
As pessoas envolvidas com o trabalho psicanalítico – que não é mero
tratamento terapêutico de consultório, e sim um modo de pensar: uma re-visão,
uma re-escopização da cultura por inteiro (cultura entendida como modo de
viver de nossa espécie) – têm tido saídas para seu final de século tão tristonhas
quanto as das outras áreas de que eu falava há pouco, que são as saídas mais
gerais das pessoas. Ou ficam repetindo a mesma coisa, porque dá a impressão

20
Introdução à

de que aquilo é fundamental. Ou correm para trás, procuram coisas mais anti-
gas que estão desgastadas e perecidas – vai-se rezar para o deus Édipo, por
exemplo – e tentam lhes dar um tônus novo. Ou fazem o que é o mais difícil e
mais perigoso, que é pensar: Será que isso não está superado e devemos saltar
para a frente? Ou seja, quem é o Schoenberg desse Lacan e desse Freud (se
continuarmos a comparação musical que vínhamos colocando)? Quem vai ten-
tar um atonalismo mesmo e, de uma vez por todas, sair da prisão configurada
que a psicanálise teve até hoje – e partir para uma visão comparável com a
relação que há entre a música de Schoenberg, a de Wagner e, para trás, a
música tonal clássica, seja de Bach ou de um romântico qualquer? Eu até diria
que a constituição freudiana é bem parecida com os músicos românticos, mais
para Beethoven do que outra coisa.
A Nova Mente que surgiu há um século com Freud, é preciso que
ela venha à tona. É preciso re-entoná-la para que te-
nha algum futuro. Não porque mereça ter futuro – de repente, serve para o
lixo: bota-se no lixo e passa-se adiante –, e sim porque pode ser um pensa-
mento vigoroso, com muita serventia, que tem apenas cem anos e não está
rendendo o que deveria na ordem bancária dos pensamentos, por estar talvez
mal aplicado, por estar com a sua moeda em péssima cotação, se não estiver
mesmo podre. Precisamos mudar a cotação do Freud depois de ter sido
mudada para a cotação do Lacan – e passar a outra cotação qualquer capaz
de reentonar o seu valor. Isto para, afinal de contas, vermos se essa eco-
nomia continua funcionando com alguma serventia para o mundo. A proposi-
ção extremamente pretensiosa que se faz aqui é esta: tentar o atonalismo
psicanalítico, um outro modo de investimento. Nem diria que queremos fazer
música à la Schoenberg, pois prefiro Webern, que me parece mais conciso e
mais preciso, embora tenha herdado de Schoenberg a transformação da música
wagneriana em verdadeira atonalidade.
Se quiserem outro tipo de comparação quanto ao que é necessário
fazer hoje, podemos pensar nas artes plásticas, sobretudo no que diz respeito às
grandes construções – como a arquitetura. Digamos que há uma arquitetura

21
A Psicanálise, Novamente

clássica – no sentido mais genérico, pois não estou falando do classicismo his-
tórico – fundamentada na boa forma, na visibilidade da forma, que se parece
muito com a arquitetura do Édipo em Freud. Aquela coisa toda construída direi-
tinho: papai, mamãe, neném – neném quer mamãe, papai não deixa, então... Foi
uma anedota interessante, deu para pensar as coisas através dela, mas é claro
que não é bem assim que a coisa funciona. Do mesmo modo a famigerada
interdição do incesto, de Lévi-Strauss, que é uma bobagem, muito menos é
universal e talvez não seja capaz de estruturar ordem de parentesco nenhuma.
Mas foi bom acreditar nisto por um tempo, porque deu-se uma organizada e
deu para se fazer uma lente para ler melhor e ver que não era bem assim.
Freqüentemente, grandes idéias na história do pensamento servem para ver-
mos o que não é – e ficarmos livres de uma trave que só estava empatando
nossa vida. O Édipo freudiano é bem parecido com uma catedral, com sua
grande configuração com todas as suas sapatas completamente assentadas
sobre o chão. Se a inclinarmos um pouquinho, ela cai, ela se escombra, pois
está subdita a uma força e a uma ordem tectônicas – daí, archi-tectura: ficar
sentado numa verticalidade sobre a terra – relativas à ordem mesma da força
gravitacional. Quando chega Lacan com as histórias de Nome do Pai, Matema,
Sujeito Barrado, etc., isto é muitíssimo interessante e abstraente e a partir daí
não dá mais para se pensar em Édipo, y otras cositas más, com a pobreza
dessa estrutura. Édipo é uma anedota muito frágil para dar conta da complexi-
dade que, notou-se só-depois, era maior e mais abstrata no psiquismo.
Lacan começa, então, a produzir uma descentralização que é parecida
com uma revolução na arquitetura que modificasse a ordem da fachada em
relação à lateralidade, onde a composição dos espaços não tivesse mais que
obedecer a configuração de olhos e boca da fachada clássica – mas, mesmo
assim, continua tectônico: tem que ficar de pé virado para baixo, se não, cai.
Tudo é feito numa relação de mudança e abstração das formas, mas ainda na
manutenção da vocação tectônica de verticalidade sobre a terra porque depen-
dente da força gravitacional. Arquiteto daqui de baixo, daqui do planeta, não
pensa sem o geocentrismo da força da gravidade. Assim, com Lacan, já se

22
Introdução à

abstrai, já se muda a fachada para dois, três lados, já se entra por trás, pela
frente, por cima, por baixo. É a tal arquitetura genericamente chamada moder-
na. Mas, uma vez que isto já não funciona para explicar a complexidade, a
loucura, que está recrudescendo no final do século – e que precisa ser reorga-
nizada –, essa arquitetura, esse lacanismo e esse freudismo já não servem mais
de arquitetura. Estamos passando por um momento em que a arquitetura já
começa a ser atectônica. Ou seja, qual é o lado de baixo? Não se sabe. Qual-
quer lado serve. Para que lado sentamos? Para falar em língua vulgar de todos
os dias: onde fica nossa bunda? Basta olharmos o que se passa numa nave
interplanetária. Uma vez, então, que se começa a agir para além da configura-
ção e do empuxo terráqueo da força gravitacional, há que pensar que qualquer
lado é lado e que não se tem mais tectonia.
Os movimentos da cultura, a velocidade da tecnologia, dos meios de
comunicação, da internet, de tudo que está acontecendo por aí, e o
desvigoramento das idéias supostamente fundamentadas pelo mundo estão fa-
zendo da nossa cabeça uma nave atectônica. Qualquer lado serve para chão.
Onde me assento? Onde quiser. No teto, por exemplo. Na ordem de movimen-
tação do pensamento como está ocorrendo agora, qualquer lado é lado. Então,
não sei por que a psicanálise ainda continuaria tectônica, mesmo que fosse com
o vigor maravilhoso do pensamento de Lacan. É preciso retomá-la e apre-
sentá-la em sua atectonia capaz de lidar com o desarvoramento dos fundamen-
tos e do chão. Acabou o chão. É preciso fazer uma psicanálise atonal, atectô-
nica. Para isso, uma reformatação da mesma idéia, do mesmo vigor de pensa-
mento, tem que ser feita, mas que seja compatível com a situação presente e
para além do que se conseguiu até agora. Precisamos rever todos os conceitos
e modos de operação dessa tal psicanálise. Vimos trabalhando nisso há anos e
nosso objetivo aqui é resumir o que conseguimos até agora.
É preciso repensar o que é mais vigoroso como chave, como conceito
fundamental supostamente capaz de fundamentar o resto no grande aparelho
que se chamou psicanálise. Terá ele fundamento? Não faço a menor idéia. O
que a psicanálise trouxe indica para um ponto essencial que é a chave de todo

23
A Psicanálise, Novamente

seu processamento e que é certamente o único fundamento que ela pode ofe-
recer, seja ele fundamental ou não. Não se está dizendo que esse fundamento
é comprovável em qualquer ponto, e sim que é a aposta que o pensamento
psicanalítico fez. Ou seja, quais são os conceitos básicos que fundamentam a
psicanálise? No quê a psicanálise se fundamenta para existir e oferecer ao
mundo um modo de pensar e até mesmo ter a pretensão de dizer que oferece
um modo de tratamento que melhora a vida da gente? Freud apresentou uma
quantidade enorme de conceitos, opiniões, configurações, aparelhos de pensa-
mento. Tudo parecendo fundamentar a psicanálise até com a pretensão de ser
científica, coisa que jamais ela foi. Lacan, depois de ler o Freud por inteiro e
submetê-lo ao crivo de suas idéias novas, chegou à conclusão de que havia
quatro conceitos fundamentadores da psicanálise, que embutiu e desenvolveu
em seu Seminário de 64, intitulado justamente Os Quatro Conceitos Funda-
mentais da Psicanálise, que tive a oportunidade de traduzir para o brasileiro.
Esses conceitos seriam: o Inconsciente, a Repetição, a Transferência e a Pulsão.
A idéia de que há um Inconsciente, as pessoas não sabem muito bem
do que se trata, pois o folclore já o confundiu com coisas de que não temos
consciência no momento. A Repetição se refere ao movimento do psiquismo
em verdadeiro eterno retorno, como diria Nietzsche, obrigando a certas posi-
ções compulsórias, se não compulsivas, enquanto resultantes de uma tendência
repetitiva. A Transferência é aquela transa meio amorosa meio odienta que
Freud descobriu entre o analista e seu analisando. Ele achava que era impossí-
vel uma análise sem essa transa – às vezes, em todos os sentidos, como no
caso de Lacan – que possibilita e atrapalha a análise ao mesmo tempo. O
próprio Lacan mostra que é coisa antiga e que, em termos ocidentais, vem
exarado, por exemplo, no texto do Banquete de Platão, lá nos começos da
filosofia. E, por último, a Pulsão. Mas, na verdade, desses conceitos que seri-
am os fundamentais, os três primeiros já estavam por aí nos pensamentos,
mesmo que a psicanálise possa ter-lhes dado nova formatação, novo arranjo.
Eram, portanto, idéias que estavam, por exemplo, nas filosofias anteriores como
é o caso da transferência em Platão. É clara na posição de Sócrates, como se

24
Introdução à

fosse o analista de seus garotões filosofantes e amorosos. Assim como Incons-


ciente não é algo que nascesse com Freud, nem Repetição, que está clara em
muitas obras, sobretudo na de Nietzsche, que era vizinho imediato de Freud. O
conceito de Pulsão é talvez o único que a psicanálise tenha trazido como novo.
Poderíamos até supor que, na termodinâmica, tenha aparecido mais ou menos
aproximado do conceito de entropia e dos arranjos ao redor, mas em nenhum
pensamento surge com clareza essa coisa nova que a psicanálise trouxe como
conceito de Pulsão.
Em português, o nome é Tesão, que não é só algo que sentimos, um
fricote, mas sim um conceito fundamental para segurar toda a estrutura da
psicanálise. O que é o Tesão? O homem é um animal tesudo, como tudo que
há. Quero eu hoje, então, diversamente do que propôs Lacan, dizer que, dadas
a novidade e centralidade que tem no pensamento psicanalítico, Tesão é o
único conceito fundamental da psicanálise. Os demais servem, são utilizáveis,
mas não são nem originais nem fundamentais. Digo isto porque posso rever o
conceito de Pulsão que, de início, era mais ou menos regionalizado em Freud.
Dizia respeito às zonas erotizadas ou erógenas do corpo, com um circuito muito
pequeno de partida e de chegada: tesões localizáveis por algo que alguma
esfregação arruma, seja na boca ou alhures, e que tinham percurso, objeto,
alvo, etc. Mas quero supor que este é O conceito psicanalítico e que é dele,
reconhecido em sua amplitude, que podemos partir para verificar até mesmo
que os demais, supostamente antes fundamentais, são decorrência, podem ser
dele depreendidos, deduzidos, derivados. E aí é que começa a aventura de
construção, em torno da idéia de Pulsão – Trieb, em alemão; pulsion, em
francês; drive, em inglês –, do Tesão que se tem em relação a algumas coisas.
O Tesão é genérico e generalizado. Encontramos, aliás, hoje, essa idéia genéri-
ca reduzida à de Desejo muito vigorante tanto em filosofias contemporâneas
como a de Deleuze et caterva, quanto no pensamento de Lacan.
Há o Tesão, esse movimento que vai para alguma coisa. Aonde quer
que se vá na face do planeta – e agora, então, que podemos observar melhor
até o universo inteiro –, há um tesão. Aquilo parece que quer, deseja, algo.

25
A Psicanálise, Novamente

Encontramos os melhores pensamentos ocidentais e orientais, muito antes da


existência de qualquer psicanálise, sempre apontando para o fato de que o
movimento de tudo que há, se não do universo – e, quanto a mim, acho que
também do universo –, pelo menos dos humanos e mesmo dos animais, está
voltado para a consecução de alguma coisa. É um tesão que pode ser maior ou
menor, localizado em coisa maior ou menor, mas os pensamentos, sobretudo
filosóficos, religiosos, apontam para o fato de que há um tesão de última instân-
cia: algo desejado quase que transcendentalmente ou como transcendência. É
o mesmo tesão, só que o místico quer algo que está no infinito, ou para além
dele.... Seja Deus ou o que for. Isto se traduz em amor a Deus e coisas assim.
Ou seja, está claro em Freud, em Lacan e em todos os grandes pensamentos
ocidentais e orientais que, pelo menos em termos da nossa espécie, se não, do
universo, há um movimento desejante, um movimento de tesão, que quer o
quê? Simplesmente sumir! Quer morrer de gozar, quer gozar para sempre, quer
um gozo absoluto, último e definitivo! Mas já que não tem Isso, aquilo menor
serve, por enquanto. É o que está nos pensamentos de Freud e Lacan quando
se referem ao objeto que não há: Acoisa, das Ding, la Chose. Há uma Coisa
que nem há, que não se pode atingir. Freud chegou a achar que ela era a idéia
de algo que tivera sido fundamentalmente perdido porque nunca se teve. Seja a
mãe, o seio, o que quer ele pudesse pensar. Então, perdemos uma relação que,
na verdade, nunca tivemos e ficamos na nostalgia de reencontro d’Aquilo. É
uma metáfora bonita, uma lorota literária bem construída que nos serviu bas-
tante, mal ou bem, para pensar. Lacan aponta o objeto Acoisa, inatingível, que
não existe, mas é o empuxo, o atrator, dos desejos. E, para fazer barato, inventa
a álgebra do objeto a minúsculo, le petit a. São todos os multifários avatares d’
Acoisa em objetos que estão para além de todo e qualquer objeto ofertável.
Tudo isso, para dizerem que, seja bom ou mau, não é nem bom nem
mau, é assim! Todos os tesões que existem por aí são na verdade tesões em
algo que é impossível porque simplesmente não existe. Estamos submetidos a
um movimento de desejo por algo que jamais vai se oferecer. E tampouco
adianta desistir porque sabemos que nunca vai se oferecer, pois a máquina

26
Introdução à

funciona assim. Ela só funciona se quiser o Impossível. Mesmo porque nin-


guém vai desistir disso, jamais. Nem que se torne o último dos melancólicos,
ainda estará chorando porque não ganhou isso. Lacan não sabia muito bem
disso e até fez a suposição de que poderia construir uma ética para a psicaná-
lise baseada em que a culpa é sempre de “abrir mão do seu desejo” – o que é
uma bobagem. Ninguém abre mão do seu desejo: troca-se por outra coisa,
negocia-se, entra-se na baixaria do botequim da esquina. Ninguém abre mão
do seu desejo porque é impossível não desejar o Impossível. Então, temos que
o que há para nós e para o universo é que Há! As coisas estão por aí. Alguns
filósofos maníaco-depressivos – temos que sofrer de alguma coisa – como
Heidegger, Leibniz, se perguntavam por que há o Haver, e não o não-Haver?
Podia não haver nada. Mas a psicanálise não pode se permitir tanta doença.
Pelo menos, que se permita outra. Para ela, a resposta é clara: só há o Haver
porque o não-Haver, como o nome diz, não há. É o Haver que se oferece, e não
o não-Haver. Mas os filósofos não são tão malucos assim, pois quando pergun-
tam desesperados porque há o Haver e não antes o não-Haver, dizem: por que
há o ser, e não o nada? Pergunta ocidental típica. Um pensador oriental, que
tem suas próprias bobagens, jamais diria esta, que é a nossa doença. E a psica-
nálise não pode compactuar com isso porque não tem obrigação alguma de ser
ocidental. Freud fez um esforço de ser ocidental para vencer na vida, para
poder ficar parecido com a cara dos cientistas a seu redor e ter um lugar na
academia, um consultório respeitável, etc. Se ficarmos muito diferentes, acham
que somos doidos e não vão lá. Lacan ficou querendo que a psicanálise fosse
ciência, isso e aquilo, também para poder vencer na vida. Hoje, não precisamos
muito disso. Basta algum apoio na mídia, um grupo que é maluco de um certo
modo e capaz de nos ouvir...
Alguns filósofos mais renitentes ficaram, portanto, com a questão: Por
que há o ser, e não o nada? Isto se traduz na linguagem que estou trazendo
como: Por que Há, em vez de não-Há? Por que há o Haver, e não o não-
Haver? Esta pergunta não interessa porque a resposta é óbvia: se é não-Haver,
não há. Mas eles não são tão malucos assim, como eu dizia, porque, mesmo

27
A Psicanálise, Novamente

não havendo, o não-Haver é tudo que desejamos. Sei que não-Haver não há,
não quero saber dessa questão, no entanto, o que quero mesmo é não-Haver.
Há uma maluquice originária nesta nossa espécie, talvez no Universo inteiro,
ou, se não, Deus é doido varrido, se é que existe. Mas há uma maluquice na
cabeça de Deus, se quiserem dizer assim, que impõe que o que há deseja o que
não há. Por quê? Porque é o maior tesão. O não-Haver seria a Paz absoluta e
definitiva. Seria gozar definitivamente e nunca mais se aporrinhar com isso. E
isso aporrinha tanto que, mesmo quando falha, as pessoas tomam Viagra para
continuar querendo, em vez de agradecer porque, afinal, graçasadeus aquilo
acabou. Compram Viagra para poder continuar pedindo o não-Haver, pedindo
um gozo que, quem sabe, um dia, gozarão de vez. Não custa tentar mais cem,
duzentas vezes... Só que isso não vem, porque o não-Haver não há. No entan-
to, tudo que há de movimento desejante, tudo isso que podíamos traduzir pelo
termo Pulsão, ou melhor, todo e qualquer Tesão, seja qual for, está, em última
instância, sendo algo que há – que escrevo: A – e que deseja não-Haver, que
escrevo: Ã. Em português “desejo não haver” é ambíguo: ou desejo aquilo que
não há; ou simplesmente desejo “eu” não haver. Freud e Lacan chamavam
atenção para isto quando se remetiam ao Édipo-Rei, de Sófocles, que diz
exatamente aquilo que todos queriam: “Antes, eu não houvesse!” A situação é
trágica e tão dramaticamente terrível que só haveria uma saída: não ter havido,
não ter existido. Se existo, não há saída: Mé funai! – no grego que Lacan cita.
Aí Freud faz a conhecida piada: – “Mas isso acontece com muito pouca gen-
te”. Não acontece com ninguém.
Vejamos agora a notação minimalista que posso escrever sobre isso:
A→Ã: Haver quer não-Haver ou Haver desejo de não-Haver. Aí está
um vetor como na mecânica da física. É uma força. Chama-se: Tesão, Pulsão.
Freud a chamou de konstante Kraft, uma força constante, se considerarmos a
totalidade da força que existe no Haver. Ela varia não porque não seja constan-
te, e sim porque fica pespegada, freada, pelas coisas que toca. Esta notação
resume tudo que pode embasar o pensamento da psicanálise. A idéia de Tesão
significando que o que há, em última instância, é Haver desejo de não-Ha-

28
Introdução à

ver. Tudo começa daí. Veremos, assim, que podemos deduzir daí as idéias de
Inconsciente, Repetição, Transferência e o que mais. Observem que, se come-
cei logo por dizer ‘Haver desejo de não-Haver’ ou ‘Haver quer não-Haver’,
foi porque fui buscar em pensamentos anteriores que sempre indicaram para
isso. Mas ao dizer isto, digo também que todo e qualquer tesão, em sua última
instância, em sua significação última, exige o quê? O avesso, o contrário de si
mesmo. Haver quer passar a seu contrário, a não-Haver. O que quer que con-
sidere, mesmo não havendo o não-Haver, estou considerando uma polaridade
entre dois avessos. Isto é uma das coisas que mais intrigou o pensamento humano
em todos os tempos, ocidental ou oriental (o búdico, o hindu): a maluquice, se
não do universo – e hoje podemos dizer que é do universo, pois já se mostra
essa polaridade acontecendo na micro e na macrofísica –, de nossa cabeça
que, para o que quer que lhe seja colocado, o contrário também é pensável, ou
também é exigível. A não ser que se resolva por alguma força maior – a polícia,
por exemplo – dizer que só pode o lado de cá, mas basta dizerem isto para já
ficarmos achando que há outro mais interessante do lado de lá.
Os pensadores – matemáticos, físicos, filósofos, etc. – não puderam
não sofrer com essa questão básica do movimento de nosso pensamento: so-
mos uma espécie que, se diferimos radicalmente de qualquer outra, animal, por
exemplo, é porque somos meio maluquinhos, não nos conformamos em ser um
porco, cavalo, galinha, e, pior, não sabemos o que é ser homem. Então, diante
do que quer que pinte, do que quer que se diga, por que não o contrário? Não
temos uma cabeça capaz de se fixar em determinadas configurações e sim-
plesmente ser o cachorro cotidiano de todos os dias, cachorralmente bem insta-
lado. É claro que vamos nos configurar mais ou menos mediante aparelhos de
recalque, mas não é esta a especificidade da nossa espécie. Mesmo que tenha-
mos uma aparência mais ou menos constante – cabeça, tronco, membros, dois
olhos, boca, nariz, ânus –, o que se passa em nossas mentes é um vale-tudo
radical. Ao que quer que se diga, com um pouco de esforço trocamos de parti-
do, viramos ao contrário. Imaginem, então, um René Descartes com sua loucu-
ra da dúvida, da qual não consegue sair senão aplicando um golpe de força e

29
A Psicanálise, Novamente

inventando um sujeito que justamente tem certeza porque não consegue tê-la.
É isto afinal o seu cogito. O que existe então? Parece que a máquina da nossa
mente funciona sem parar e indefectivelmente, embora às vezes sob trava,
segundo um princípio de polaridade entre opostos. Pode-se excluir um dos opos-
tos, dizer que é o lado do pecado e do proibido, mas pensa-se nele. Tanto é que
se inventou o pecado e o proibido. Se não, não eram nem pensados. Vejam, por
exemplo que, se conversarem com um cachorro durante horas, ele não dubitará
da idéia de ser cachorro. Ao passo que, se certas pessoas conversarem muito
comigo, posso pensar que sou um cavalo. Alguns, aliás, até me xingam disso...
Parece, então, que há um princípio de funcionamento na mente humana e em
todo o Haver que, segundo o modelo do ‘Haver desejo de não-Haver’ que
lhes apresento esquematizado no desenho abaixo, regula-se em polaridade
opositiva, como se no meio houvesse um espelho. Por isso, chamo de princí-
pio de catoptria (katoptron: espelho, em grego) a esse princípio que rege
todos os movimentos de nossa espécie e, quiçá, de todo o universo, os quais
dizem que, para o que quer que se coloque, o pólo oposto também é pensável
e mesmo exeqüível.

A humanidade, diferentemente dos outros habitantes do planeta – aos


de outros planetas ainda não fui apresentado –, por ter a maluquice originária, é
a única que sai do estado de co-naturalidade com o que aparece espontanea-
mente e inventa a loucura, por exemplo, de estarmos agora sentados numa sala
com ar refrigerado, em contraposição à temperatura obrigatória do ambiente lá

30
Introdução à

fora. Então, por movimentos de negar e querer o contrário do que se lhe apre-
senta, vai criando contrariedades em relação à espontaneidade do que há por
aí. O princípio de catoptria é a idéia de que a máquina psíquica funciona
sempre assim, mesmo quando está bloqueada: ao que quer que se coloque, seu
avesso também é pensável e mesmo requisitado. Haver requisita o quê? Seu
avesso radical, que nem há, que é impossível, que é não-Haver. É o desejo de
impossível, do Impossível absoluto. Nesse ponto, a simetria de sempre se pedir
o avesso é quebrada. Não porque não se a peça mais, e sim porque não adianta
pedir porque ela não tem como comparecer, já que não há. Entretanto, daí para
baixo, o que quer que se pense pode ser impossível, mas não absolutamente. É
só modalmente impossível. Ou seja, não há como realizar, o preço é muito alto.
Se não posso ainda pagar o preço de deslocar o sol, não sei se, um dia, não
inventamos um modo qualquer de dar-lhe um empurrãozinho. É assim que a
humanidade inventa tudo que inventa. Isto porque é movimentada pelo desejo
absoluto de Impossível e, daí para baixo, na decadência, metaforização, decli-
nação disso, ela pode perfeitamente pensar – pelo menos, pensar – que é pos-
sível obter e mesmo querer o oposto do que está vendo.
É princípio de catoptria porque é como se o que quer que se colo-
casse propusesse também seu avesso, seu enantiomorfo. E qual seria o último
dos avessos, se posso pensar o avesso de qualquer coisa que se coloque? É
tomar o Haver por inteiro e dizer que seu avesso seria não-Haver. Falo em
avesso e não em oposto porque há várias formas de oposição e há muitos
espelhos. Enantiomorfismo, como sabem, é o princípio de o que quer que se
coloque ser virado pelo avesso, o contrário absoluto do que aquilo é. Diante de
um espelho, alguns, sobretudo crianças, não se dão logo conta de que, para
além da imagem especular – em que Lacan se apoiou, falou de imaginário, de
eu, etc. –, a essencialidade de um espelho é virar pelo avesso o que se coloca
diante dele. A imagem de minha mão direita que vejo no espelho é esquerda.
Mas mudou só de lado? Não, virou pelo avesso a imagem de cá. Podemos
verificar isto vestindo uma luva de borracha bem fina e a virando pelo avesso:
ela terá a imagem que tem a mão do lado de lá. Mas o espelho que usamos para

31
A Psicanálise, Novamente

pentear o cabelo é meio tolo. Há espelhos radicais, pensáveis na ordem mesma


do universo, que virariam pelo avesso o que quer que se lhes apresentasse. Por
exemplo, diante de um espelho radicalíssimo, quando acender a luz aqui, apaga
lá. Se tenho aqui matéria, do outro lado teria anti-matéria. Mas não quero fingir
que estou fazendo ciência porque isto é apenas metafórico. Aliás, pedir à física,
por exemplo, elementos de fingir que estou apoiando o que estou dizendo em
bases científicas é uma das maiores calhordices do século XX nas ciências
humanas. Não é preciso do apoio da física quando pensamos com termos
psicanalíticos. Mas como os físicos garantem que há possibilidade de espelhos
radicais, aviso que conheço um, o espelho do psiquismo, que avessa radical-
mente o que quer que se coloca para ele. Dia/noite, preto/branco, bonito/feio,
macho/fêmea, etc., e todas as confusões que nossa cabeça faz quando opera
esse avessamento.
Princípio de catoptria, portanto, é: ao que quer que se coloque, o
avesso radical também é pensável e requisitável por nossa espécie. E tudo,
quem sabe, dado o acesso ao pagamento do custo, é possível de ser construído.
Menos o Ã, porque simplesmente não há, mas é o que queremos, e isto é o que
designa todo o procedimento da Pulsão. Se Haver deseja não-Haver e se não-
Haver não há, a simetria que é exigida a cada momento do oposto, do avesso,
aí se quebra, pois não há como passar. Em cima, está não-Haver, embaixo está
Haver: Haver (A) deseja (→) não-Haver (Ã), quebra a cara, se decepciona,
dá a volta e retorna continuando a querer aquilo mesmo porque não sabe fazer
outra coisa. No que quebra a cara, vira ao contrário, vira para Haver de novo,
sem passar a não-Haver. Vira ao contrário, de algum modo, seu movimento de
retorno a Haver depois de passar por uma neutralidade de quase atingimento
de não-Haver, e, por isso, tem que retornar. Digamos que não-Haver esteja
fora do circuito, pois é impossível passar para fora. Mas é possível retornar
pelo caminho contrário. Em vez de subir, há que descer e continuar querendo a
mesma coisa. Nesse lugar, o avesso possível é retornar explosivamente à for-
ma anterior. Se quisermos uma metáfora cosmológica, sem querer fazer ciên-
cia ou imitar os físicos, vamos imaginar uma entropia comendo todo o universo

32
Introdução à

que temos agora, o qual é inteiramente diferenciado, com planetas, estrelas,


etc. Isto, segundo a lei da termodinâmica, contemporânea de Freud, e que o
ajudou a pensar o que chamou de Pulsão, em última instância “de Morte”,
pois fazia a suposição de que o movimento desejante quer extinguir-se, desapa-
recer, morrer. Hoje, sabemos que qualquer Pulsão é assim, portanto, não é
preciso colocar a palavra morte no meio.
Podemos supor, assim, que toda a massa energética de um universo
diferenciado pode ser comida entropicamente e virar uma massa mais ou me-
nos homogênea de energia. Quem sabe se isso tudo não será comido pela tal
“matéria escura” de que falam? Quem sabe se isso tudo não se indiferencia,
neutraliza? Depois, além de ficar tudo igual, tudo neutro entropicamente, ainda
começa a se condensar no tesão de passar por aquele buraquinho que pensa
que está lá? Mas como não há o buraquinho, quando a massa chega no ponto R
de meu esquema, pára de se condensar e explode de novo. Aí pinta toda a
diferença outra vez. Falo “virar pelo avesso” porque tenho que fazer a conjetura
de que a coisa vem, por entropia, neutralidade, aperta-se para passar, implode,
bate, não passa e explode novamente. Muito parecido, aliás, com nossos te-
sões e nossos orgasmos, que vão se apertando, se apertando e quando pensa-
mos que aquilo vai gozar, aquilo desgoza. A coisa desliga, acaba e não passa de
vez para o outro lado. Gozar mesmo era ir, ir e não voltar mais. Mas o troço
desliga e começa tudo de novo: vira pelo avesso. E isto como modo de cons-
trução de nossa mente se mostra perfeitamente compatível com a idéia de que,
ao que quer que pensemos, podemos pensar o oposto, e mesmo tendemos a
querer o oposto. Sobretudo, quando parece não se oferecer. E mais, que ela
tem como última instância um desejo não negociável, que é o desejo de Impos-
sível. No máximo, podemos fazer mais barato e distribuí-lo por outros tesões
localizados. Ou seja, esse inexistente objeto do desejo, que não há, é o que nos
faz movimentar e até correr atrás de algum pequeno objeto de desejo que,
porque existe, suscita um gozo mais barato e, amanhã, depois de se gozar três
vezes, já se está de olho em outro.

33
A Psicanálise, Novamente

A idéia de que o conceito de Pulsão (Tesão) é o fundamental da psica-


nálise, é o começo da nossa conversa. No que se apresenta e se configura para
nós como isso que vai, tenta o impossível, não consegue, vira ao contrário para
procurar a mesmíssima coisa novamente, não consegue, e assim por diante e
para sempre... chega a um ponto, que então já esquecemos, e recomeça tudo
novamente. Aí está o eterno retorno nietzscheano ou freudiano da Repetição
que posso depreender desse movimento. A Transferência e o Inconsciente não
são fáceis de deduzir imediatamente daí. Tratarei deles depois quando continu-
ar a desenvolver todo o mínimo deste teorema com o qual tentamos enfrentar
as dificuldades que nos estão chegando.

• Pergunta – Você tem dito que a psicanálise é um campo de conhecimento


específico, que não é ciência, arte ou filosofia. Hoje, você falou que é um
modo de pensar. O que especifica este modo de pensar é a idéia de que
tudo que há pede o seu avesso?
Modalizar esse pensamento, ou seja, dizer que é modo de pensar, é
dizer que, a partir de tomar o conceito de Pulsão como fundamento de seu
movimento, constituo modo, se não modos, de pensar. Se tomo isto como fun-
damento de meu movimento pensante, estatuo um modo de pensar que é regido
por isto. E só ser regido por isto já qualifica um modo de pensar que não está
compromissado com nada para além disso. O que estatui o modo de pensar da
filosofia, da ciência? Vejam que são coisas um pouco mais configuradas e chei-
as de ingredientes do que o modo minimalista de pensar que estou dizendo que
é o da psicanálise. São pensamentos muito mais compromissados. Vocês diri-
am, por exemplo, que o que qualifica a filosofia é pensar o ser? Alguns dizem
que é e isto já não é coisa alguma, se não for coisa demais. Então, se configuro
um modo de pensar chamado psicanalítico, que (não é só isto, mas) se estatui
em cima de que a mente é isto e, mais, de que o que quer que haja se qualifica
assim, isto é de uma competência, uma grandeza e uma explosão imensas. Isto
faz atectonismo e atectonia. Basta aplicar-se isto a outros campos. Por exem-
plo, num campo absolutamente sujo, se não for imundo – no sentido maior desta

34
Introdução à

palavra –, que é o da chamada ética. Esta palavra não quer dizer nada que não
seja o que você quer que seja. Que não seja algo que se estatui politicamente.
Toda vez que alguém, numa discussão, levanta e diz que tal coisa “não é ética”,
significa: “Estou querendo que você se submeta àquilo que acho que é o certo
em termos de comportamento”. Aí, em termos de nosso pensamento, ou é
guerra ou é transação política. Não é assim na filosofia, na sociologia, onde
vemos um Habermas discutindo confusões imensas a respeito da consensualidade
de uma ética e de uma política? Isto só cabe aqui como dejeto sintomático.
• P – Na maiêutica socrática já não há essa colocação opositiva?
Todos os pensamentos sempre acabam por encontrar com isto, mas
não o tomaram como fundamento. Para eles, é um modo de articulação. Um
Hegel faz com isto uma dialética e chega até a uma síntese: tese, antítese,
síntese. Não há isto neste modo de pensar que se estatui sobre ‘Haver desejo
de não-Haver’. Como não-Haver não há, quebra-se a simetria e daí vem a
decorrência de tudo. E isto é extremamente abstrato. Não basta apenas pensar
em termos de oposição, é preciso pensar em termos de avessamento radical,
de enantiomorfismo, que será, dadas as circunstâncias, necessariamente
opositivo. É melhor pensar que é uma polaridade que pode funcionar como
oposição. O que importa é: ao que quer que se coloque, devo procurar seu
avesso, ainda que se tenha disto vários graus. De Haver para não-Haver, há
um avessamento radicalíssimo. Mas entre preto e branco, posso dizer que há
um avessamento menor. Ou seja, o nível de formação – e falarei sobre as
Formações do Haver – é menor. A declinação é menor, mas mesmo assim é
um avesso.

08/ABR

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A Psicanálise, Novamente

36
Revirão

2
REVIRÃO

Da vez anterior, tratamos da Pulsão, aquela trazida por Freud com a


característica “de Morte”, como conceito único que pode fundamentar todos
os processos da psicanálise. Concluímos que seu movimento é de Haver para
não-Haver, que poderíamos dizer: Haver desejo de não-Haver ou Haver
quer não-Haver, cuja notação vetorizada é: A→Ã. E isto é tomado como
ALEI do Haver. Se houver alguma lei, a mais genérica possível, que regule
todo o movimento do Haver, é esta. Observem que uma Lei genérica desse tipo
extrapola a mera vontade jurídica. Portanto, não confundi-la com os procedi-
mentos lacanianos em que a noção de lei é tão importante, mas cuja vocação é
eminentemente jurídica. Na relação do sujeito com o outro, em Lacan, há a
noção de lei fundamentada na palavra do homem como estabilizadora de to-
dos os procedimentos desta relação. Nossa aposta, ao dizer que ALEI é Ha-
ver desejo de não-Haver, é de que este enunciado legal coincidiria com a
própria realidade do Haver. Podemos dizer também que se parece muito com a
vocação científica de enunciar as coisas de tal maneira que os enunciados
descrevessem ou tivessem uma relação íntima com a realidade.
Como o não-Haver não há, ALEI denota que o movimento pulsional do
que quer que haja se encaminha decisivamente para seu próprio sumiço. Mas
se é não-Haver e se não-Haver não há, como o nome está dizendo, o sumiço é
impossível. ALEI diz, então, que todo Tesão se encaminha para o impossível.
No que o Haver tem Tesão? No impossível de ser ele mesmo algo que possa

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A Psicanálise, Novamente

vir a sumir, desaparecer, o que chamei de Impossível Absoluto. O empuxo


de todo Tesão – Pulsão, libido – é no sentido do impossível de se apresentar o
não-Haver. Então, na decadência do empuxo, quando o movimento tende a
realizar sua pressão pulsional segundo ALEI, qualquer coisa menor como a
nossa espécie – sem sabermos de todos os outros entes que têm algum movi-
mento, com ou sem alma (vai ver todos são espirituais, até as pedras) – estará
querendo o Impossível. No entanto, contenta-se com menos, porque é uma
formação menor que o Haver por inteiro. Quando desejamos algo, sua obten-
ção é sempre frustrante, pois, daqui a pouco, queremos novamente ou quere-
mos outra coisa, já que não conseguimos aquilo que realmente queríamos. Se
tivéssemos conseguido o não-Haver, tudo pararia. Já que não conseguimos,
porque é absolutamente impossível, simplesmente temos uma satisfaçãozinha
muito pobre, quando a temos.
Estas obtenções são possibilidades de gozo, de atingimento de algo. Às
vezes, essas coisas, mesmo sendo menores do que não-Haver, se apresentam
como impossíveis em dado momento, pois parece que não temos como pagar
por elas. Na verdade, tudo tem um preço, seja em dinheiro, esforço, competên-
cia, volume de poder, etc. E quando não temos condição de pagar dizemos que
aquilo se tornou impossível. Este não é o mesmo Impossível Absoluto de atingir
o não-Haver. É o que posso chamar de impossível modal, porque, em sendo
dadas as condições, sabe-se lá quando, ele passa a ser possível. A história da
humanidade não é senão a lenta e gradual transformação, pagando preços
altíssimos muitas vezes, de impossíveis modais em possibilidades cada vez mai-
ores. Diferentemente de outros seres que conhecemos, animais ou coisas pa-
recidas, que simplesmente não têm condição de exercer movimentos para con-
testar as impossibilidades modais, nossa espécie tem sido a única que se rebela
contra limitações impostas e procura recursos, poderes, de ultrapassá-las. En-
tão, ficamos atraídos, provocados, pelo Impossível Absoluto, esbarrando em
impossibilidades modais e capengando pela vida na tentativa de conseguir
transformá-las em possibilidades. Mas de uma coisa estamos certos, não é
possível Haver passar a não-Haver, pelo simples fato de que não-Haver não há.

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Revirão

Freqüentemente, confundimos coisas menores com atingimentos de


não-Haver. Tanto é que acreditamos que haja a Morte. Muitos filósofos oci-
dentais até a tomam como base de sua filosofia e dizem que somos “seres para
a morte”. O próprio Freud levou um grande tropeção ao importar o termo de
pensamentos filosóficos para utilizar na nomeação do conceito de Pulsão de
Morte e enunciar que o que ela procura é sumir, atingir seu oposto, que é não-
Haver. Mas o que é isso, morte? Será que isso existe? Aliás, o Ocidente tem
também uma tradição, um pouco idiota – no sentido de: auto-referente –, de
que há imortalidade: constroem-se Templos e Academias para lá enfiar pesso-
as que seriam... imortais. Não sei por que as outras também não seriam. Mas
pode alguém narrar, testemunhar, uma experiência de morte? Quer me parecer
que é impossível. Por isso, costumo dizer de maneira um pouco arrogante, mas
com muita convicção, que A Morte não há – o que não significa que, com o
aparelho tão impotentezinho que é o nosso, iremos durar como corpo eterna-
mente no sentido cronológico. Eu diria também que a vida de cada um é eterna.
Temos o mau hábito ocidental de pensar que eterno significa muito tempo. Ou
seja, que ninguém vai perecer e ficará sem sucumbir para sempre. Eternidade
nada tem a ver com isso. Quero dizer, sim, que é impossível para qualquer um
ter experiência de morte. Quando, por exemplo, perdemos uma pessoa mui-
to querida, o que temos é uma experiência de perda irrecuperável. Freud,
com seus cacoetes de entendimento da libido através da diferença sexual
anatômica imediata, chamava isto de castração. Não sabemos o que fazer
porque nada substitui aquilo que pensávamos que tínhamos – e efetivamente
não tínhamos – e o hábito de pensar que tínhamos, quando se perde, nos faz
dizer que fulano morreu. Mas não tenho, para mim, essa experiência de morte,
pois nunca morri. As pessoas que morrem não têm o hábito de dar testemunhos
fidedignos... Testemunhos há, mas sempre meramente fantasiosos – e falaciosos.
Temos mesmo sérias experiências de perdas terríveis, mas jamais tive-
mos, temos ou teremos, a experiência da morte. Para tê-la, seria preciso passar
por ela e continuar capaz de descrevê-la. Por isso mesmo, alguns inventaram
expedientes – acredite quem quiser – de imaginar que algo continua após a

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A Psicanálise, Novamente

morte. Alguns vão para o céu, outros para o centro espírita, outros, quando
saem de cirurgias, dão depoimento de que viram luzes no fim do túnel, etc.
Estes aí, aliás, não morreram. Se tivessem morrido, queria ver darem testemu-
nho. Isso tudo está envolvido de crenças e desejos de subsistência, mas, para o
pensamento psicanalítico que assim compareceu no mundo, não temos ou tere-
mos a menor condição de experiência de morte, nem do outro e muito menos
própria. Coisas terminam de repente, pessoas perecem. Marcel Duchamp
mandou escrever em seu túmulo o epitáfio: D’ailleurs, ce sont les autres
qui meurent – aliás, são os outros que morrem. Mas temos a idéia de pereci-
mento, que é da ordem de uma possibilidade muito menor do que simples-
mente atingir o não-Haver e, a senhor da situação, poder dizer: “Tive a
experiência de não-Haver, morri e estou aqui”. Isto não é possível, pois quem
está dando depoimento está vivo, ou é mentira, ou é outrem falando em lugar
de alguém indevidamente.
Posso pintar um grande mito a respeito do Haver, em sua inteireza,
encaminhando-se pulsionalmente para não-Haver, não conseguindo alcançá-lo,
esbarrando no Impossível – que é interno a ele mesmo, pois não há nada do
lado de fora, pois não há lado de fora – e o máximo que pode fazer sendo
“retornar” a Haver. E posso supor que “voltou” com uma postura avessa, con-
trária, à anterior porque o movimento era, como é sempre, no sentido de não-
Haver, tendo que abrir mão disso, desistir e, de maneira positivada, “retornar”
imediatamente para o seio do que há. Então, há um reviramento: retorna-se em
sentido contrário, do implosivo para o explosivo e, quando o caso é de última
instância, como é o do Haver, o sentido é o mesmo, mas algo ali se reverte. A
reversão aí é difícil de ser apanhada porque estamos na última instância do
Haver, mas, em nosso cotidiano, é mais fácil porque são coisas menores, decli-
nadas, decadências em relação à última instância. Temos facilmente a experi-
ência de tentarmos algo, fracassarmos e voltar. Para onde? Para o lado oposto
dessa tentativa. E isso organiza de certo modo nossa experiência segundo uma
estrutura de espelho, de avessamento, catoptria. Quer me parecer, então, que
toda a estrutura do Haver funciona da maneira que, tecnicamente, podemos

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Revirão

chamar de enantiomórfica. Como já disse da vez anterior, diante do espelho,


tudo se avessa, vira pelo avesso, e a idéia radical de enantiomorfismo é de que
existe uma função catóptrica – katoptron: espelho, em grego – que avessa
tudo. Seria, portanto, um espelho muito complicado, diante do qual poderia me
ver de cabeça para baixo, ou, por exemplo, quando acendo a luz aqui, lá apaga;
quando aqui é matéria, lá é anti-matéria...
O princípio de avessamento radical disponível para o Haver, embora
não o utilize o tempo todo, é compatível com o conceito de Pulsão: encaminhar-
se no sentido de não-Haver, que é o avesso radical de Haver. O que quer que
seja avesso do que quer que haja, é possível ser pensado, mas o avesso radical
do simples Haver em sua plenitude, é impossível. Posso conjeturá-lo como
nome, não-Haver, mas não faço a menor idéia do que seja porque não é expe-
riência possível para nós que somos imortais. Todos de nossa espécie vivemos
achacados pela idéia de morte, com pena de perder as pessoas que amamos,
que certamente vão perecer, assim como nós também iremos acabar. Podemos
fazer fantasia, escrever romance, produzir filme, programa de televisão a res-
peito, mas não fazemos a menor idéia do que seja o mundo sem nós. Emília,
personagem de Monteiro Lobato, sabia isto muito bem ao dizer: “Vou escrever
minha biografia completa. Quando chegar no fim, eu morro. Aí me escondo
atrás do armário”. É a única maneira de conjeturar nossa ausência, fingir que
estamos escondidos atrás de algum armário, assim como alguns vivem a vida
inteira trancados dentro dele. O Haver por inteiro – que as pessoas chamam de
universo ou conjunto de universos (mas não uso o mesmo conceito, pois trata-
se de tudo que há, que está aqui neste momento que estamos habitando) – está
numa fase muito simplória de sua existência. Tem composições muito estáveis:
astros bem fundamentados, movimentos repetitivos e corretos das estrelas, dos
planetas, tudo funcionando direitinho... para nós que, para existirmos como car-
ne, precisamos muito desse direitinho.
Como não existe um tempo no qual as formações estão mergulhadas, e
sim o movimento lento, ou rápido, sei lá, que emana do funcionamento dessas
formações estelares, galaxiais, etc., isso tudo, um dia, como conjetura a física,

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A Psicanálise, Novamente

pode entrar numa grave entropia, reduzir-se a zero e, suponho eu, até começar
a se concentrar, apertar, implodir, para passar a não-Haver. Não vai conseguir,
fracassa, como já deve tê-lo feito zilhões de vezes, explode e começa tudo
outra vez. O tal Big Bang deve ser algo que, de vez em quando, acontece por
aí, como cada vez mais os cientistas estão disponíveis para pensar. Temos
mitos de que, certo dia, um senhor meio barbudo, idoso, teve vontade de fazer
coisas e criou o Universo, o Homem, começou a parir maravilhas e tudo terá
começado. Esta é uma anedota de certo grupo cultural que, como outras do
Oriente, da Índia, serve para principalmente ilustrar nossa ignorância e também
para ilustrar a idéia de que essa fase, esse espetáculo aí, começou de algum
modo em algum lugar. É verdade, deve ter começado, mas certamente não é o
único e pode simplesmente ser a mera repetição de uma seqüência infinita de
espetáculos que acontecem talvez como moto-perpétuo, que encolhe e explode
em formações diferentes, talvez parecido com o que Nietzsche chamava de
eterno retorno.
Se estou conjeturando a respeito do chamado universo, parece que
nosso psiquismo funciona de modo que tudo que se coloca diante dele, se ele
não faz imediatamente o exercício de virar pelo avesso, pelo menos pode mui-
to bem fazê-lo. Ao que quer que compareça para nossa mente, pode ser posto
o contrário. Em última instância, ao que quer que compareça, posso dizer não
– o que é já dizer o avesso do sim que a mim se apresentou. Aí é que quero
pensar que a estrutura do psiquismo é em espelho. Que nossa última instância
mental é a competência de revirar pelo avesso o que quer que se nos apresen-
te. Por isso, chamo de Revirão a cambalhota que desenhei da vez anterior, que
é a condição de exercício supremo de última instância de nossa maneira espe-
cífica de ser, diferente de todos os outros seres que conhecemos. O enantiomor-
fismo, a catoptria, de nossa mente, podemos supor que também seja do Haver.
Digo, então, que aposto declarada e fortemente naquilo que, no campo da ciên-
cia, chamam de princípio antrópico, forte ou fraco, dependendo do grau de
insistência e da pressão que se faz sobre o reconhecimento do movimento
antrópico, i.e., da reflexão recíproca entre o Haver e nossa existência. O princípio

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Revirão

antrópico, falando barato, diz que, se existimos refletindo a respeito do universo,


é porque o universo está informado de maneira a vir nos produzir para fazermos
justamente isto. Se estamos pensando a respeito do que há, refletindo, crian-
do ciência, seríamos aparelhos de auto-observação do universo que nos
fabricou, se é que foi assim, ou se isso se fabrica sozinho dentro dele, de
maneira a lhe permitir refletir-se a si mesmo. Ou seja, há um princípio de
espelho no universo, o que é aceito por tantos cientistas. Stephen Hawking,
por exemplo, que é o Aleijadinho lá de Londres: só que ao invés de esculpir
profetas como o nosso escultor barroco-mineiro (ou melhor, maneiro) ele
profetiza ex-culturas.
Devo assumir este princípio com toda sua força, mas não o chamaria
assim, pois seria fazer a suposição – que os cientistas têm o direito de fazer,
pois até agora só conhecemos, parecidos conosco, nós mesmos, e daí poder-
mos dizer que surgiu o ser humano porque o universo não poderia fazer senão
isto – de que só há antropos, gente desta espécie. Prefiro chamar de Princí-
pio de Idioformação (de Ídios: ‘mesmo’). Se o universo tem uma formação
em reflexão, espelho, catoptria, e se, em última instância, vai produzir algo que
reflita sua reflexão, está é repetindo a si mesmo, naquilo que lhe é o mais
próprio, e de maneiras as mais variadas. É de se supor que, se isso é tão grande
como se imagina, aqui e ali devem aparecer formações que, independentemen-
te de seu hard, i.e., de suas bases de construção – carbono, carne, silício, lata,
etc. –, tenham a condição soft de ser uma Idioformação, ou seja, de refletir
especularmente, de fazer a especulação a respeito de si mesma. Si-mesmo é o
Haver, onde está de molho o chamado Universo. Somos só si-mesmo. Ficou da
forma esquisita que está porque foi o que deu, aonde chegou, pouco importa se
por acaso ou de propósito: É assim! Portanto, aqui e ali, no seio da grande
massa chamada Haver, ele se reflete a si mesmo construindo pequenos apare-
lhos que funcionam como ele mesmo, só que mais pobrezinhos, micros, minia-
turas. Ao invés de ser uma máquina gigantesca como o sol, uma galáxia ou o
universo inteiro, é um pequeno chip, e que funciona igual, só que com menos
potência. É isto que as religiões tanto repetiram: a onipotência divina e nossa

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A Psicanálise, Novamente

impotência, ou minuspotência de seres humanos. Mas não é preciso ficar tão


humilhado, pois isto já é mesmo muita coisa.
Se faço a conjetura do movimento pulsional que a psicanálise, em últi-
ma instância, pôde nos oferecer, tenho que perguntar: de que espécie nós so-
mos? O que aconteceu por aqui, neste planeta, foi água se misturando com
terra, aquela lama se mexendo sob certa temperatura adequada – ou não, às
vezes –, fazendo brotar o que chamamos vida. Levamos milênios achando que
era algo de outro mundo, impossível de ser entendida e reproduzida, mas como
somos implicantes, podemos muito bem supor que algum dia a estaremos re-
produzindo em laboratório, mesmo sem tomar elementos vivos anteriores. A
impotência do passado está diminuindo, justamente por causa da rebeldia da
espécie, a que me referi de começo. Então, o que apareceu por aqui foi esta
nossa espécie, que tem parentesco com todos os outros animais, mais próxima
de mamíferos, macacos, os quais não tiveram a mesma sorte nossa. Eles são
muito complexos, inteligentes, etc., mas não reviram. Não adianta colocar nada
diante deles e pedir que digam o contrário, que neguem o dia e pensem na noite,
por exemplo, pois estão sempre presentes a si mesmos e não são aparelhinhos
que imitaram imediatamente a catoptria do Haver. São fragmentos, complexos,
sim, mas apenas pequenos robôs da presença e do presente. O pior é que
temos a mesma encarnação, a mesma carnadura, desses bichos. Nossa
animalidade está à flor da pele: comemos, brigamos, fodemos feito uns ani-
mais... É uma nojeira, às vezes da melhor qualidade, uma delícia, mas não
somos propriamente da família deles. Não adianta nenhuma organização, mes-
mo darwinista, fazer a suposição de que somos da mesma família só porque
somos primatas, pois algo em nós extrapola de tal maneira a organização des-
ses outros seres que não os somos mais.
Tudo se artificializa em nossas mãos. Tudo o que fazemos, em qual-
quer cultura, da mais primitiva à mais sofisticada, é perene artificialização do
mundo. Basta observar que ninguém está pelado aqui, cada um está vestido de
um jeito, que existem miríades de formações, plásticas, visuais, sonoras, etc.,
envolvendo nossa vida. É a arquitetura, a rua, o inferno, o paraíso, sei lá o quê,

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Revirão

de condições de reprodução dessa grande Artificialidade. Como sabem, quan-


do qualificamos uma espécie, qualificamos por sua diferença em relação às
outras. Então, qual é nossa diferença específica em relação a todas as outras?
A diferença é que reviramos. Com menos freqüência do que talvez gostarí-
amos, mas temos esta disponibilidade de reviramento e fazemos a loucura
que fazemos na face do planeta, onde, em nossas mãos, tudo se artificializa de
maneira expansiva, exorbitante, rica, excessiva. A nossa, para além de huma-
na, é a espécie das Idioformações. Um dia, podemos encontrar alguém vindo
de outro planeta, de outro sistema solar, feito de silicone, lata, sei lá do quê. Não
teremos talvez a menor relação hard to hard, talvez até nenhum tesão nessa
figura por estarmos ainda muito apegados às nossas carnes, ao churrasco da
vida, mas, com o tempo, aprenderemos a nos apaixonar por uma geladeira, por
uma pessoa de matéria plástica... É uma questão de chance – e de aprendiza-
gem. No futuro, veremos como fica essa transa, mas se esse extra-terrestre é
alguém desta espécie minha, uma Idioformação, ele revira como eu, é capaz
dos mesmos artifícios e, portanto, de conversar comigo de algum modo. É meu
colega, portanto.
Nosso hard é vivo e animal e quando estudamos os animais à procura
de alguma relação de semelhança em relação a nós, às vezes ficamos perple-
xos porque há a diferença resultante da produção artificiosa, mas há também
demasiada semelhança. Será que ainda temos em nossa compleição de progra-
mas, de repertórios, as mesmas coisas que eles têm? Certamente que sim.
Mais do que pensávamos. Vivemos uma época em que, por algum tempo, o
interesse está deixando de ser tão fixado nas coisas da mente, do espírito, e
volta-se, demasiado até, para as coisas do corpo, a constituição do cérebro, do
biológico em geral. Isto é necessário, pois, às vezes, é preciso parar um pouco
aí. Trabalhamos muitos pensamentos e como não tínhamos materiais adequados,
laboratórios suficientes, teorias competentes, não desenvolvemos suficiente-
mente o outro lado, mas agora apareceu uma tecnologia nova e está-se esmiu-
çando a construção biótica das pessoas, sobretudo o seu cérebro. Aí, como
toda vez que algo entra na moda, vem a tendência a querer explicar tudo com

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A Psicanálise, Novamente

as palavras da última moda. É preciso explicar muito bem, sim, mas aquilo não
é tudo, é apenas um pequeno pedaço. Na tentativa de explicar as máquinas
bióticas, seus funcionamentos e imitá-las com tecnologias, etc., em torno de
1930, surgiu um campo de estudo, a Etologia, que gosta muito de se chamar de
ciência – a psicanálise também passou por essa crise infantil de fazer questão
de chamar-se ciência, mas já abandonou esta fase (aliás, hojendia, ninguém
sabe muito bem o que possa ser a tal ciência) – e que é o estudo do comporta-
mento e da psicologia dos animais. Cada vez mais ela está sendo capaz de
mapear comportamentos, espécie por espécie, e dar-se conta de que, indepen-
dentemente da velha e quase divina noção de instinto – materno, fraterno,
sexual, de reprodução, etc. –, são apenas programas instalados em cada ani-
mal. Cada um com seu tipo de programa, reprodutivo, de auto-subsistência, de
luta, etc. São programas muitas vezes capazes de fazer alguma transa com
outro programa ao lado, seja a ecologia ao redor ou outra espécie, mas não
passam de meros programas que se cumprem como são, em função dos estí-
mulos e transas externas que têm encontrado por aí, e nenhum deles, que saiba-
mos até hoje, ultrapassa a sua própria programação.
Terá também a nossa espécie um conjunto de programas? A etologia
surgiu como estudo da psicologia e observação do comportamento animais e,
dado o rigor científico da exigência de universalidade, achava-se que, para
nossa espécie, não havia condição de encontrar e descrever esse conjunto de
programas, pois o antropológico, onde se faz a leitura da espécie metida nas
mais diversas culturas, varia demais. Como achar algum universal? No campo
da antropologia, já foi difícil e continua fracassado, imaginem então no campo
da etologia. Mas os etólogos, felizmente, cada vez mais, conseguem perceber
que, independentemente das formações culturais, existem em nossa espécie
certos funcionamentos que – com assentamento às vezes hormonais, de cons-
truções genéticas ou de mero aparelhamento, de órgãos, etc. – parecem bas-
tante programados, embora seja difícil sustentar a leitura e a descrição precisas
dessas programações. Isto porque são mais ou menos facilmente subversíveis
pelo fato de nossa espécie não aceitar necessariamente o que já está dado.

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Revirão

Não adianta, por exemplo, dizer de alguém que seus hormônios estão com as
taxas normais, pois ele começa a fazer coisas anormais que não estão na de-
pendência desses hormônios. Tampouco adianta medir genes e procurar algo
genético, pois o que a espécie tem é uma maquininha, chamada Revirão, que de
repente funciona e o indivíduo diz: “É assim, mas não quero assim”. Existem,
portanto, programas outros que não são esses biótica e imediatamente dados.
Existe, em última instância, a competência de reviramento – para qualquer
lado. Conversaremos longamente sobre isto para ver como funciona o
mapeamento e a relação dessas construções bióticas em relação a essa máqui-
na completamente louca.
Somos a espécie louca, a irracional. Racionais são as outras. Funcio-
namos num movimento que não tem fim. Somos transcendentais. Está comple-
tamente fora de moda falar nisso, pois estamos numa época que perdeu – não
que as pessoas tenham perdido, ao contrário, estão cada vez mais apegadas
nisso da pior maneira – a competência de afirmar de cara limpa e com atestado
válido, seja filosófico, científico, o que for, que alguma transcendência seja pos-
sível. Transcendência, como sabem, é a suposição de que há algo para além de
nós – chamem de Deus ou do que quiserem – e isto está inteiramente desmo-
ralizado, a não ser como crença de cada um na fantasia que quiser usar para
seu gáudio. Faz parte do que chamam de “crise dos fundamentos”. A última
filosofia mais disseminada por aqui, cuja origem está em certas filosofias do
século XVII, de Espinosa por exemplo, diz que a humanidade chegou à noção
de que não há transcendência ou possibilidade de movimento para ela porque
estaríamos condenados a viver na imanência. Ou seja, temos que viver aqui
dentro do pedaço, ainda que o pedaço se chame o Haver por inteiro. Não há
nada ‘lá fora’, portanto, trata-se de chafurdar na lama do Haver e nos virar
mesmo aqui dentro. Esta é a concepção mais de ponta do pensamento ociden-
tal que corre as ruas hojendia. Por exemplo, o de nosso caro Gilles Deleuze,
recém-falecido. Como disse, antes se pensava que havia transcendência. As
filosofias diziam que tinham um fundamento, pois se Deus existe, temos que
achar que Ele não poderia ser um sacana e que deve ser uma pessoa decente.

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A Psicanálise, Novamente

Vejam que o fundamento que os filósofos nos apresentavam nunca passou disso.
Quando as pessoas acharam que Ele ou não era bom caráter porque fazia muita
porcaria no pedaço, ou simplesmente não existia, ou havia morrido, e isto aqui
estava entregue era às baratas, caiu-se na filosofia da imanência pura.
O que estou trazendo é justamente algo que não é uma coisa nem
outra. Digo que a psicanálise põe o movimento pulsional como base. Isto signi-
fica que é o fundamento de seu pensamento, o que é diferente de acreditar se
existe ou não a Pulsão. Então, se parto da conjetura da Pulsão, aceito que ela
se escreve ‘Haver desejo de não-Haver’, que é ALEI férrea do Haver, que
não-Haver não há, que ela cai na imanência outra vez, e estou dizendo que não
acredito nem na transcendência nem na imanência. A nossa espécie – ou o
Haver por inteiro, se é que o Princípio de Idioformação está valendo – é produ-
zida de tal maneira que, se tudo para ela se avessa, dialetiza, catoptriza, não
pode, por constituição íntima de sua estrutura mental, não conjeturar o não-
Haver de última instância. Ela não pode não ter o seu movimento de
transcendentação. Ela exige o Impossível. Para ela, ‘lá fora’, que não há, há
algo, que não há. Já que não há, ela chafurda na imanência novamente. Não há
nada fora da imanência – esta frase não faz sentido, pois há menos que Nada
fora da imanência: o não-Haver, mesmo não havendo, por nossa estrutura ser
catóptrica e operar a exigência dessa última instância, não podemos abrir mão
do Impossível. Não precisamos mais brigar contra imanências e transcendências.
Nossa vida chafurda na imanência, mas não damos nenhum passo sem a von-
tade de transcendência, ainda que, o transcendente, de modo algum ele exista.
O transcendente não existe, mas algo transcende o momento da nossa
imanência: um Tesão, um empuxo.
O empuxo é, portanto, essa coisa ‘de fora’ que não há, que está embu-
tida no dentro, porque fora não há nada, não há fora, como princípio de
catoptria e que exige a última instância, que parece um fora mas que não
existe. Essa grande construção, esse atrator que não há, mas mesmo assim
funciona, coloca para nós a questão de que, para além da sobredeterminação
de todos os elementos de nosso cotidiano – o termo é usado por Freud, signifi-

48
Revirão

cando que tudo é sobredeterminado e que são muitas as determinações que levam
a vida da gente para certos lados –, existe uma Hiperdeterminação. É assim
que se exprime a especificidade de nossa espécie, a qual não é propriamen-
te a espécie homem – o macaco que virou gente –, mas sim a espécie das
Idioformações que existem no universo, com qualquer construto, biótico ou não.
É uma espécie que está pojada de sobredeterminações – por exemplo, seu corpo,
seu hard, que é biótico, vivo; o planeta que habita; tudo que pode acontecer na
cultura e na história, etc. –, mas seu específico é ser hiperdeterminada. Quando
digo hiper não é que a sua sobredeterminação seja forte demais, mas sim que há
uma determinação de última instância que extrapola todas as
sobredeterminações, esvazia o campo e nos deixa livres para nossa rebeldia contra
a limitação do impossível modal. Isto porque queremos o Impossível Absoluto,
mesmo não o conseguindo, mesmo ele não havendo.
É porque o movimento de transcendência faz parte de nós, haja ou não
transcendência, que manejamos a imanência com procedimentos de ponta, de
criação, cada vez mais artificializando o mundo, inventando e produzindo o que
não parecia haver antes. Sem o mesmo sentido de Kant, digo que nós, e todos
os nossos colegas aí pelo Cosmos, fazemos parte da espécie transcendental.
Imanente é cavalo, cachorro, pedra. E não adianta sonhar que se vai conseguir
passar ao Impossível, que se vai encontrar alguma entidade do outro lado, por-
que não vai, e não há outro lado. Só se pode sonhar que se quer mesmo assim.
No que se quer tanto isto, acaba-se fazendo um pouco mais barato. Por exem-
plo, não temos asas, queremos voar, então, por enquanto, andamos de avião.
Mas é pouco, queremos mais. Esta é a história de nossa espécie hiper-
determinável e sempre se movendo de acordo com o movimento do Revirão.
Vamos negando, multiplicando por menos-um e avessando: de escuro para cla-
ro, de quente para frio, de macho para fêmeo, e assim por diante e para sem-
pre. Evidentemente que participamos com muito de nós na “imbecilidade cós-
mica”, como a chamava Nietzsche. Ou seja, ficamos tão acostumados ao que
já há por aí que pensamos com freqüência que somos aquilo que há por aí,
como há por aí. E ainda ficamos com raiva daquele que não é igualzinho a nós.

49
A Psicanálise, Novamente

Somos capazes de fazer uma guerra imbecil e matar pessoas porque não são
da mesma etnia, por exemplo. Isto é a imbecilidade que portamos de montão.
Por outro lado, temos condição de escapar até mesmo dessa imbecilidade por-
que somos hiperdeterminados e podemos – como quem vai para a academia
de ginástica conseguir uma musculatura maravilhosa – ter uma Academia da
Mente de maneira a fazer os exercícios para ficarmos afiados em aspirar à
referência de hiperdeterminação que para nós está disposta. Foi para isto que
veio a psicanálise. Não só ela, pois outros exercícios espirituais de notório valor
também pediram por isto. A psicanálise é um modo de limparmos a área da
sujeira, de lama na qual chafurdamos, para chegarmos mais perto da
hiperdeterminação. Há alguns ditos analistas que nunca perceberam que se
tratava disso, mesmo estando assim declarado, mais ou menos explicitamente,
desde os atos de Freud. Estamos, portanto, metidos na situação de sobredeter-
minados animalescamente, mas também hiperdeterminados angelicamente pelo
movimento de transcendentação.
O movimento da Pulsão é de Haver para não-Haver. Isso esbarra e
retorna e fica girando eternamente dentro do mesmo princípio pulsional: Haver
quer não-Haver, não consegue, retorna, continua a ser Haver querendo não-
Haver, não consegue, retorna e continua... eternamente.

É claro que tudo muda aí dentro, mas há o vetor de Haver para não-
Haver. Escrevi não-Haver do lado de fora, para nos orientarmos, é claro que
de maneira um pouco tola, pois não há não-Haver lá fora, nem dentro nem em
lugar algum. E, no movimento em que queremos vetorialmente alcançar o não-

50
Revirão

Haver, o que há entre Haver e não-Haver? O que acontece aí? Quando faze-
mos um esforço muito grande de aproximar o transcendente que não há, exas-
peramos todas as nossas condições. Pedimos por algo que esteja completa-
mente fora e que possa reorganizar todas as nossas dores, prazeres, sabores,
i.e., reorganizar e justificar o próprio empuxo da transcendência. Então, a coisa
mais espontânea é que a humanidade, sem um teorema adequado – como este,
por exemplo –, imaginasse esse lugar de exasperação e lá pusesse algo. Por
isso, escrevo ali: HÁ-DEUS. Ou seja, podem tirar o cavalinho da chuva, pois
não há nada aí – Adeus! –, mas é onde todos, sempre, colocam o que supõem
haver quando pensam que Há Deus. É a esse lugar de desistência da última
instância favorável que, quando estamos exasperados, podemos recorrer – e
recorremos (na verdade, estamos recorrendo à nossa hiperdeterminação) –
para sair da situação e, às vezes, saímos. Pensamos que cai do céu uma solu-
ção, mas céu é essa exasperação, o lugar que não há: apenas cria-se uma
solução. Por isso, quanto mais primitiva uma pessoa, mais simplório, mais figural,
é o Deus que inventa para colocar nesse lugar: um Deus bem parecido com o
lodaçal de cá de baixo. Como só conhece isto, então inventa um Deus que é um
boi, um veado, um personagem qualquer. Mas, à medida que a reflexão vai se
refinando, encontramos em grandes místicos, por exemplo, a abstração forte
disso. Mesmo chamando-o de Deus, trata-se de indicar esse lugar abstrato e
que está é dentro de nós mesmos. Posso citar um que é o que mais prezo no
Ocidente, Mestre Eckhart, que só escapou da Inquisição porque morreu a
tempo. Embora tenha sido uma figura luminar da Igreja Católica, de tanto
indicar que esta era nossa última instância, o Papa quase que o pega. Há,
portanto, esse lugar de exasperação e de consolo, porque é o próprio lugar da
possível Criação.
Vivemos, assim, numa perene movimentação em Revirão. Tentamos
tirar o pé da lama com o movimento de hiperdeterminação, que nos propicia
algumas criações artísticas, poéticas, científicas, filosóficas, místicas, sendo esta
a condição da nossa espécie. Por isso, costumo dizer que, se é a isso que

51
A Psicanálise, Novamente

conduz o pensamento que tenho a oferecer, então o estatuto da experiência


chamada Psicanálise, é místico. Seu fundamento é crer no conceito de Pulsão
– se o tirarmos, acabou o fundamento da psicanálise –, mas o que lhe dá seu
modo de funcionamento, antes ainda de ela existir e vir a criar o conceito de
Pulsão, é seu estatuto místico. Lacan dizia que o estatuto da psicanálise é ético,
mas hojendia fica um pouco difícil sustentar este termo com alguma dignidade.
Quando digo que o estatuto da psicanálise é místico, alguns desavisados podem
achar que se trata de runas, de horóscopo, de beatice, de pai de santo, mas
estas coisas não são místicas, e sim religiões ou crendices. O que define a
especificidade do místico é o seu afastamento em relação ao Haver. Ele é
aquele que faz exercícios espirituais pesados, de domínio da carne, etc., no
sentido de se afastar das pregnâncias do Haver e ficar disponível para além
das marcações sintomáticas de sua sobredeterminação. Em última instância, é
aquele que está absolutamente disponível para o que der e vier; para bem
dizer o que quer que haja; para afirmar como divina qualquer coisa que houver.
O místico é aquele que recebe a vocação do santo, isto é, para santificar o que
quer que haja: da flor à merda, da merda à flor – tudo para ele em última
instância é bendito, só porque tudo Há. O que dá, portanto, estatuto à psica-
nálise é a mesma vocação de operar o movimento pulsional em sua última
instância de maneira a poder redimir a sintomática; a cada vez tentar ficar mais
livre das imposições sintomáticas e aceitar o que der e vier; a usar enfim a
disponibilidade para ser revirante: ser espelho, e não aquele que se olha no
espelho, de modo a poder revirar o que quer que venha a comparecer. É claro
que não conseguimos muito bem, pois o exercício (a ascese) é muito pesado,
mas conseguimos um pouco. O estatuto da psicanálise é místico no sentido
do afastamento radical das formações do Haver, para poder considerar o Ha-
ver como um inteiro em relação a não-Haver, o que é finalmente considerar a
última das possíveis oposições. Para poder considerar o belo e o feio, o preto e
o branco, o escuro e o claro, o macho e a fêmea e, em última instância, o Haver
e o não-Haver como nos sendo indiferentes.

52
Revirão

• Pergunta – Então, não há transcendência, mas há o transcendental? Há


uma transcendência imanente?
Poderia até dizer, porque assim acredito, que há uma transcendência
em vazio. É uma transcendência imanentizada. Porque a catoptria funciona na
imanência, ela pro-põe e mesmo exige essa última instância.
• P – Penso na imanência, na colocação de pensamento para a
transcendência e imagino que o momento do Revirão é o momento de
interface de alguma coisa, do quê?
No caso do transcendental, é simplesmente exasperação de última ins-
tância. A experiência de morte, ninguém a tem, mas a de exasperação todos
têm. Ou seja, de que não há mais nada para a frente, mas que estou requisitan-
do o que lá haveria se houvesse. Então, ainda que, na decadência do movimen-
to, se venha a descobrir que era apenas uma passagem em interface de A para
B, na exasperação não há B. Mas só existe a exasperação e a demanda de
um Graal do outro lado, que aliás, não há.
• P – Isso não é gozo?
Perfeitamente. Se não se goza na exasperação, goza-se quando dá
aquela quedinha para menos. Em última instância, o que importa é que tudo que
se faz é no sentido de um poder de gozo.
• P – Sendo o Revirão aquilo que nos habita, como esse momento
expectorante, avessante, convive conosco? Seria, por exemplo, a realiza-
ção ou realidade esquizofrênica?
O Revirão não é aquilo que nos habita. Ele é o lugar onde nós habita-
mos. Não nós os humanos, mas nós as Idioformações de qualquer tipo ou jeito.
E não se trata de Esquizofrenia: não penso assim, não me chamo Deleuze, ou
mesmo deleuziano. Não diria que isso nos habita, digo que nós habitamos Isso.
O reviramento é o nosso lugar, é o que há, é nossa morada. Ele não se manifes-
ta o tempo todo, mesmo porque piraríamos se revirássemos sem parar assim.
Precisamos de certas pousadas. Além do mais, estamos submetidos a podero-
sas massas recalcantes de dois níveis. À formação primária, da ordem do

53
A Psicanálise, Novamente

biótico, etc., e ao que vem secundariamente como lixo, resto, da nossa atividade,
que é o que chamam de cultura. São massas recalcantes que não nos deixam
quase nunca soltos. Então, ao contrário, somos a espécie que revira sim, que
pode revirar, mas que tem muitíssima dificuldade de fazer isto. A cura, a san-
tidade, sei lá o quê, seria cada vez termos mais disponibilidade de reviramento,
mas não temos tamanha facilidade, ou felicidade. Quanto à esquizofrenia, é
preciso ficar claro que não situo a psicose do modo como ainda a situam hojendia.
Portanto, não chamo isso de esquizofrênico. Se quiserem, podem chamar de
uma esquize-tice, ou seja, algo que é partido entre sim e não, entre Haver e
não-Haver, mas não acho que se constitua como uma esquizofrenia.
• P – A psicanálise seria uma pedagogia do conhecimento?
Pode ser, mas conhecimento de última instância. A psicanálise como
pedagogia do movimento no sentido da hiperdeterminação. Demandar, chamar,
invocar a hiperdeterminação para que ela venha em nosso auxílio para sairmos
um pouco desta e entrarmos em outra. Fernando Pessoa que o diga: o tamanho
do seu pedido incontentável.

29/ABR

54
A contrabanda

3
A CONTRABANDA

Tenho hoje a pachorra de repetir algo que já apresentei tantas vezes


em diversas conferências. Implorei aos organizadores deste evento que fizes-
sem uma gravação em vídeo para eu não precisar nunca mais repetir. Como
vêem, ao meu lado há um telão para acompanharmos concretamente os deta-
lhes da produção e dos raciocínios que vou expor. Como tudo está sendo grava-
do numa fita de vídeo, quem quiser poderá ter uma cópia para seu próprio uso
e estudo. O interesse é trazer um modelo topológico capaz de servir, metafori-
camente que seja, como simulação lógica do funcionamento de nosso psiquismo.
É um recurso mínimo para trazer os raciocínios que necessito para apresentar
a assim chamada Nova Psicanálise, ou melhor, .
Aqueles versados em matemática e que conhecem isto com mais pro-
fundidade do que tratarei aqui, por favor não pensem que estou tentando
cientifizar, transferir a alguma garantia científica o que estou dizendo de meu.
Estou sim sugerindo que há um aparelho matemático que tem servido – serviu
a Lacan, por exemplo, e de certo modo serve a mim – como metáfora para o
entendimento do que se passa na estrutura psíquica. Peço-lhes, então, paci-
ência para acompanhar certos raciocínios que são mais ou menos densos, pois
é preciso uma seqüência acirrada e, como disse, aqueles que já conhecem
apenas se lembrem de que estou usando um modelo. Um matemático poderia
dizer que, se passo de um tipo de espaço para outro, algumas ocorrências do
que vou trazer não seriam verdadeiras, mas não vou passar de um tipo a outro

55
A Psicanálise, Novamente

de espaço, e sim manipular objetos geométricos de dois tipos diferentes de


geometria para chegar a determinada construção de um objeto que sirva como
metáfora da máquina, ou máquina-metáfora de produção que lhes apresento.
Nosso interesse é tentar colocar o que chamo de Revirão, desenhado
de maneira que possa servir de orientação geométrica para nossos raciocínios.
Como se lembram, na geometria plana e espacial euclidiana, as formas
são extremamente rígidas do ponto de vista lógico de sua construção. Quando
efetivamente construídas, elas aliás jamais conseguem corresponder à rigidez
lógica do pensamento euclidiano, pois é um pensamento idealista que imagina
as formas numa tal pureza que seria mesmo empiricamente impossível, por
exemplo, desenhar uma circunferência perfeita. O simples fato de se produzir
a circunferência desenhada já é uma distorção segundo essa geometria ideali-
zada. Mas nossa mente tem sido conformada por esse tipo de pensamento
geométrico que, inclusive, é o que serve para o nosso cotidiano: a construção
do nosso ambiente arquitetônico, das nossas roupas, da maioria dos objetos que
utilizamos, pelo menos em sua macroforma, é orientada por essa geometria
projetada sobre uma superfície plana, como é o caso dos objetos da geometria
projetiva mais simples.
No pensamento euclidiano, as formas são rígidas. Não são pensadas
concretamente, mas sim idealmente. A menor distorção as leva a uma modifi-
cação que agride e deforma também sua lei de composição. Uma circunferên-
cia é uma circunferência: uma curva plana fechada cujos pontos eqüidistam de
um ponto fixo que fica no seu centro. O que já é dureza demais, pois é preciso
haver uma superfície plana e sobre ela imaginar uma curva cujos pontos, todos
eles, distam exata e igualmente de um ponto prefixado. À menor deformação,
já não é mais uma circunferência, pode ser uma elipse por exemplo, ou qual-
quer outra forma. Se tomarmos qualquer outra linha desenhada sobre um pla-
no, veremos também que está regrada do mesmo modo. A geometria euclidiana
precisa, por exemplo, do conceito de linha reta, que Euclides nunca soube defi-
nir bem em seu Tratado. Diz ele que é ‘uma sucessão de pontos em direitura’
– o que não quer mesmo dizer nada, pois se alguém andar simplesmente em

56
A contrabanda

direitura, esteja mais ou menos bêbado, o caminho vai ficar todo torto. Há, pois,
uma espécie de intuição do que seja uma linha reta: um fio esticado entre dois
pontos, ou algo mais ou menos assim. Então, sem a linha reta, não se pode
imaginar uma superfície sobre a qual se projetem, no nível da geometria plana,
todas as formas euclidianas. E também, sem esses planos, não se pode cons-
truir a regragem da maioria das superfícies em terceira dimensão, como cubos,
paralelepípedos, prismas, pirâmides, etc. Há ainda as superfícies curvas, aber-
tas ou fechadas, como a esfera, i.e., a bola, que tem que ter ela também todos
os seus pontos exatamente eqüidistantes de um ponto fixo situado no seu cen-
tro. Então, quando construímos empiricamente formas com regragem euclidi-
ana, estamos sendo aproximativos, e não, construindo exatamente o que o idea-
lismo desse pensamento exigiria como forma absolutamente regrada.
Uma coisa é importante nessa geometria. O que quer que, para além
do ponto, compareça como objeto – uma linha qualquer, reta ou não; uma su-
perfície, plana, esticadinha ou torta, etc. – sempre divide o espaço que habita
em duas partes. Sempre há uma divisão, uma polarização, entre dentro e fora,
lado direito e lado esquerdo. Se, por exemplo, tenho uma esfera, terei sua su-
perfície na parte externa e na parte interna. O dentro e o fora estão absoluta-
mente separados, não dá para passar continuamente de um para outro lado. Se
temos duas paralelas e estamos andando sobre uma, não poderemos – ainda
que supostamente elas se encontrassem num ponto do infinito – passar em
continuidade para a outra, pois são absolutamente separadas. Vejamos um ci-
lindro, que é uma superfície regrada pela linha reta, mas que é curva, fechando-
se sobre si mesma, é infinitamente grande para os lados e termina em dois
buracos laterais.

57
A Psicanálise, Novamente

Também neste caso, como no de qualquer superfície euclidiana, plana


ou não, no espaço, necessariamente se divide: um lado e outro, um dentro e um
fora. Posso percorrer o lado cinza em sua extensão total, mas jamais consegui-
rei passar para o lado pontilhado, ou seja, passar de um semi-espaço para outro,
de uma face da superfície para outra, sem estabelecer o que, na terminologia
geométrica, chama-se de furo ou traço. Há que furar, agredir, a superfície,
através de um só ponto que seja, para poder passar de dentro para fora ou de
fora para dentro, da esquerda para a direita e vice-versa.

Depois da invenção de certa geometria que vem do final do século XIX


e se desenvolve no começo do seguinte, nem todos os objetos pensáveis pade-
cem da mesma limitação que acossa os objetos do pensamento euclidiano.
Trata-se da Topologia – de topos e logos: discurso a respeito dos lugares ou
lógica dos lugares; em latim: analisis situs –, que não tem a regragem dura,
quantitativa, existente no caso da geometria euclidiana. Digo dura e quantitati-
va porque os conceitos que regem as formas rígidas da geometria euclidiana
exigem indispensavelmente o regime da quantidade. Se digo que todos os pon-
tos de uma circunferência ou de uma esfera distam igualmente de um ponto
fixo, já marquei este igualmente com uma quantidade x de distância que deve
permanecer a mesma o tempo todo. Se digo que determinada situação está a
tantos graus de angulação de outra, estou medindo e ela será rígida e
quantitativamente demarcada. A quantidade é, portanto, indispensável no pen-
samento euclidiano. Já a topologia não se interessa – imediatamente, pelo me-
nos – pelas quantidades. Ela pensa seus objetos observando os pontos que os

58
A contrabanda

constituem e a relação de proximidade, de localização relativa, desses pontos


uns para com os outros. Isto significa que uma esfera numa bola de soprar,
para ser euclidiana teria que ser absolutamente perfeita quanto à distância de
todos os seus pontos na superfície em relação a um ponto que estivesse lá
dentro, no centro, e bastaria apertar a bola para que ela se deformasse e já
seria outra coisa, mas não uma esfera. Para a topologia o que interessa é
saber que na superfície de uma bola dessas pode-se demarcar uma quanti-
dade infinitamente grande de pontos, não importando a quantidade de extensão
que os separa, e sim a posição relativa de um ponto para com outro, que um
está antes e outro depois, etc., etc. Portanto, podemos amassar a bola,
embrulhar uma folha de papel, que os pontos continuarão na mesma posição
em relação aos outros.
É como se fosse uma geometria de borracha. E o interessante é que
ela pode ser operada num nível concreto, pois os objetos não são tão idealiza-
dos quanto o são na geometria de Euclides. Isto de tal maneira que construo
os objetos e faço provas lógicas sobre eles. Por exemplo, quando tomo uma
faixa que tem duas faces, se fechar a face pontilhada, construí um pedaço de
cilindro no sentido euclidiano, com seu dentro cinza e seu fora pontilhado,
como no desenho anterior. Mas existem objetos geométricos pensados pela
topologia que não têm essa característica funcionando obrigatoriamente: não
dividem o espaço em duas porções, não constituem duas faces ou dois lados
da mesma coisa. Parece absurdo, mas é muito simples. Um matemático cha-
mado Moebius, no final do século XIX, tomou uma faixa destas e, ao invés de
fechá-la da maneira direta e obter um cilindro euclidiano, fez uma torção de
180 graus e fechou o lado cinza... com o pontilhado. Vejam que aconteceu
algo estranho, houve uma passagem em continuidade do cinza para o ponti-
lhado e do pontilhado para o cinza. Ele construiu a superfície que os matemá-
ticos costumam chamar de faixa, cinta, fita ou banda de Moebius. Para
esta banda, dadas suas características, Lacan inventou o apelido de
contrabanda, que vem muito a calhar. A partir de agora, então, digo que há a
banda euclidiana e a contrabanda moebiusiana.

59
A Psicanálise, Novamente

Se operarmos lógica e efetivamente alguns raciocínios sobre uma ban-


da como o pedaço de cilindro que lhes apresentei, tiraremos conclusões bastan-
te claras a respeito de seu funcionamento. Em seguida, poderemos tentar ope-
rar estes mesmos raciocínios sobre uma contrabanda para verificar se funcio-
nam. Esse caco, tronco de cilindro, regular ou não, foi recortado de um cilindro
que podemos imaginar infinitamente grande, se pensarmos suas continuações
para cá e para lá de suas extremidades atuais. Do ponto de vista euclidiano,
tem uma face externa, pontilhada, e uma face interna, cinza. Suas caracte-
rísticas euclidianas necessariamente dividem o espaço em duas porções: se
andarmos continuamente sobre a face pontilhada e retornarmos ao ponto de
partida, jamais chegaremos à face cinza de dentro. A geometria euclidiana
chama esse tipo de superfície de bilátera. Só é possível passar de um lado
para outro por descontinuidade, fazendo um furo. Se, como disse, ela foi retira-
da de um cilindro infinitamente grande, para fazer isto tivemos que fazer dois
cortes, o que significa que só opero este objeto se o estiver retirando de outro
objeto. Terei, assim, construído um objeto que não é infinitamente grande e que,
além de dois lados, também tem duas margens diferentes. Para provar isto,

60
A contrabanda

basta tomar um dedo e percorrer junto a uma das margens. Retornarei ao


ponto de partida sem tocar a outra. Terei que dar um salto para percorrer a
outra margem até retornar ao ponto de partida sem tampouco tocar a mar-
gem anterior.

Outra característica desta superfície é que, além de ter duas margens,


pode ser abordada de dois modos diferentes. O que é ‘abordar’ uma margem?
Numa piscina ou num rio, posso chegar à margem vindo da terra ou da água.
Isto significa que essa superfície, para cada uma de suas margens, tem duas
bordas. Se tomar uma flecha indicativa de sentido, posso chegar à margem
vindo de fora ou de dentro e posso, também, mostrar que, se acompanhar com
qualquer uma das flechas todo o percurso da margem, retorno ao ponto de
partida com a flecha sempre no mesmo sentido. Portanto, estas superfícies
euclidianas têm duas margens e cada uma de suas margens tem duas bordas.

Se estou sobre a face de uma superfície bilátera e preciso tomar


sentido, os matemáticos têm uma maneira precisa de saber como se orien-
tar aí. Marcam um ponto e o fazem girar para direita, caso em que teremos
um ponto destrógiro:

61
A Psicanálise, Novamente

Ou para a esquerda, quando teremos um ponto levógiro:

Para saber se posso me orientar sobre a superfície da banda euclidiana,


tomo um ponto, faço-o girar para a direita, por exemplo, e saio percorrendo
toda a superfície sempre com o ponto girando para a direita. Verei então que
retorno ao ponto de partida girando para a direita. Estou orientado: sei o que é
direita, portanto, sei o que é esquerda. Posso então dizer que uma superfície
euclidiana é perfeitamente orientável e que os pontos sobre ela são orientáveis.

Se corto a banda segundo uma linha mediana que saia de um ponto,


percorra toda a banda numa de suas faces e volte ao ponto de partida, verei
que, primeiro, foi preciso fazer um furo para passar de um lado para o outro, e,
segundo, o corte produz duas superfícies da mesma natureza. O tamanho ficou
menor, mas, do ponto de vista topológico, são ambas superfícies biláteras, euclidi-
anas. Posso, então, dizer que a secção longitudinal mais ou menos mediana de
uma superfície como esta, bilátera, produz duas bandas biláteras. E mais, que
posso reconstituir o corte fazendo uma sutura e a retorno ao que era antes: ela
volta a ser uma única superfície de duas faces.

62
A contrabanda

Se fizer um percurso por cima de uma das faces da superfície, sairei de


um ponto da face pontilhada, por exemplo, e retornarei ao ponto de partida
sempre sobre a mesma face. Mas se, como no segundo desenho acima, fizer
um furo na superfície e levá-lo em consideração em meu percurso, a coisa
muda muito. Parto de perto do furo, dou a volta na face pontilhada, mas quando
chego no furo, caio e passo para a face cinza. Aí, dou a volta no cinza e quando
chego de novo no furo, caio e passo para o pontilhado. Isto é outra coisa que
não aquele percurso mediano anterior, pois esbarro no furo. Mas deixemos isto
em suspenso para depois.
Agora, consideremos a superfície esquisita que Moebius construiu dando
uma torção de 180 graus na banda euclidiana. Vamos, então, perguntar se ela
se comporta matematicamente do mesmo jeito que a superfície euclidiana. Pri-
meiro, ela divide o espaço em dois? Ou seja, considerando apenas sua superfí-
cie – que, no caso da euclidiana, como vimos, tem duas faces –, poderei colorir
cada face de uma cor e continuamente passar de uma a outra sem elas se
misturarem porque a banda de Moebius também teria duas faces? Vejam que,
se traçar uma linha mediana sobre ela, farei o encaminhamento riscando a
superfície e voltarei ao ponto de partida tendo percorrido toda a superfície com
o traçado. Volta-se ao ponto de partida continuamente e não resta nenhum lado
sem o traço. A torção que há nessa superfície produz uma continuidade tal que,
caminhando sobre ela, volto ao ponto de partida e não terei um outro lado para
apresentar. Que inferência posso tirar de um acontecimento como este? Que a
banda de Moebius, logicamente, tem apenas um lado, apenas uma face. Seguro
com meus dedos e penso que estou segurando duas faces, mas, logicamente,
percorrendo o objeto como tal, ele só tem uma face. Ao me encaminhar conti-
nuamente sobre ele a partir de um ponto, regresso ao ponto de partida sem
deixar nenhum lado virgem de meus passos. Vejam, portanto, que é um objeto
matemático, uma superfície construtível, verificável lógica e concretamente
que tem apenas uma face. Nela, não posso dividir o espaço, falar deste ou
daquele lado, pois sempre estou do mesmo lado. Tampouco posso pintar de
duas cores, pois as cores vão se misturar numa só. Os matemáticos a chamam

63
A Psicanálise, Novamente

de superfície unilátera, ao contrário da euclidiana que é bilátera, tem duas


faces.
Mostrei que a superfície bilátera tem duas margens. Quantas margens
teria a contrabanda? Pegando-a como faço agora parece, sensorialmente, ha-
ver duas, mas se repito a prova que fiz com o cilindro colocando-me ao lado de
uma margem, irei rabiscando meu percurso e verei que percorro a margem por
inteiro e retorno ao ponto de partida diferentemente do caso da superfície de
Euclides em que uma das margens ficou intocada por estar distante. O que
acontece na contrabanda é que percorro sempre a margem, retorno ao ponto
de partida e não encontro ‘a outra’ porque toda a margem fica desenhada com
o percurso dos meus passos. Então, esta superfície, além de ser unilátera, de
ter uma só face, a margem que acompanho é uma só. Há continuidade plena da
margem e ela retorna sobre si mesma sem ficar com outra margem disponível.

Pergunto agora: quantas bordas tem a margem comprovadamente úni-


ca da superfície unilátera? Como disse, posso abordar a margem da superfície
euclidiana vindo de fora ou de dentro, mas, no caso de uma superfície unilátera,
que tem apenas uma margem, o que fazer se quero saber como abordar essa
margem? Se fizer a mesma prova, desenhar uma seta para um único lado e,
continuando a desenhá-la, voltar ao ponto de partida, verei que não consigo
mantê-la do ‘mesmo’ lado. Como a contrabanda tem uma só margem, vai pas-

64
A contrabanda

sar continuamente e chegar do ‘outro’ (mesmo) lado virada ao contrário. Se


desenhei sempre virada para um lado, o que terá acontecido? Estou louco?
Significa que não posso abordar uma superfície unilátera senão sempre do lado
qualquer, pois ela só tem uma e não duas bordas. Cada margem tem apenas
uma borda. Tudo é UM só neste objeto: uma face, uma margem, uma borda.

E os pontos, na superfície unilátera, são orientáveis? Como vimos, para


procurar alguma orientação na superfície euclidiana, tracei um círculo em volta
do ponto e o continuei desenhando girado para o mesmo lado até ele voltar ao
ponto de partida. Descobri, então, que posso orientar os pontos para a esquerda
ou para a direita que eles não mudam de sentido. No caso da banda de Moebius,
se desenhar seqüencialmente um ponto destrógiro, por exemplo, até voltar ao
ponto de partida, verei que quando passou pelo mesmo lugar ‘no avesso’ – mas
não no mesmo ponto, pois ela só tem um lado – onde iniciei, ele vira levógiro.
Coloco a banda contra a luz e vejo que o ponto desenhado do começo ao fim do
percurso sempre girando para direita, ao passar pelo mesmo lugar, no ‘avesso’,

65
A Psicanálise, Novamente

passa girando para a esquerda. Isto porque, como dizem os matemáticos, os


pontos ali não são orientáveis. Se estiver caminhando sobre essa superfície
sem outra referência, nunca saberei se estou girando para a direita ou para a
esquerda, o que, aliás, é muito importante na ordem das estrelas e da microfísica,
por exemplo, onde as coisas não funcionam bem como em nosso mundo eucli-
diano de todos os dias.

Se os pontos são não-orientáveis, pois se comportam como querem,


girando para a direita e/ou para a esquerda, serão eles orientados? Claro que
não. Os matemáticos param em dizer que os pontos não são orientáveis, o que
não é o nosso interesse, pois posso querer utilizar isto não como o espaço sobre
o qual vivo, mas como uma máquina cujo funcionamento estou observando.
Assim, no momento em que faço um furo nesta superfície, o que foi que fiz?
Como que, no mesmo lugar onde fiz o furo, pespeguei um ponto que ora gira
para a direita, ora para a esquerda. Ou seja, em meu interesse de observar isto
como máquina de produção e não como lugar que habito, digo que, no lugar do
furo, surpreendo um ponto que chamo de Ponto Bífido e que posso
momentaneamente escolher que gire para um lado ou para outro. Dependendo
do caso em que estiver operando, posso escolhê-lo girando para a direita ou
para a esquerda, pois estabeleci um furo que junta as duas possibilidades de um
só lado. Lembrem-se de que, quando fiz o furo na banda euclidiana, disse que,
se fizermos um percurso escolhendo passar pelo furo, passaremos do pontilha-
do para o cinza e vice-versa, mas se, aqui, escolher um percurso passando pelo
furo, ele passará sempre na mesma cor, pois a contrabanda não tem duas cores

66
A contrabanda

ou dois lados. Mas agora o percurso, se passar por dentro do furo, não é senão
aquele mesmo euclidiano da banda bilátera.
Vou agora fazer a prova do corte, como fiz com a banda de Euclides.
Quando corto longitudinalmente a euclidiana, ela produz duas bandas da mes-
ma natureza, mas quando corto uma contrabanda ela vira uma só. Se ela era
UMA, se só tinha uma margem, uma face, por que iria virar duas? A banda que
resulta tem algumas torções, mas estas não nos interessam deste ponto de vista
topológico. O que interessa é que a banda nova é absolutamente idêntica a uma
banda euclidiana. Portanto, repetindo, uma superfície unilátera, quando cortada
longitudinalmente pelo meio, não vira duas, e sim apenas uma que passa, isto
sim, de unilátera a bilátera. Isto é facilmente demonstrável se marcarmos na
contrabanda uma metade de sua largura no sentido longitudinal – e não uma
face como fiz com a euclidiana – com pontilhado e outra com cinza. Em segui-
da, cortando segundo o percurso longitudinal que antes tracei, veremos que o
resultado será uma banda bilátera com um lado inteiramente pontilhado e outro
inteiramente cinza. Pergunto então: é possível reconstituir a banda bilátera que
foi tirada de uma contrabanda por um corte longitudinal? Sim. Suturando-a, ela
virará de novo a contrabanda que era e, no caso desta última que lhes apresen-
tei, com duas metades no sentido longitudinal, uma pontilhada e outra cinza
(mas com uma única face, é claro).

Continuando a considerar a contrabanda já construída e inteira, per-


gunto: do mesmo modo que pude retirar a banda bilátera de um pedaço de

67
A Psicanálise, Novamente

cilindro ou de uma esfera da qual se tiram duas calotas, de que superfície


esquisita – com um corte só, pois a contrabanda só tem uma margem – poderia
eu retirar a contrabanda? Esta superfície é possível, mas não dá para construí-
la, só para conjeturar como seria. Ela teria uma só face, seria sem nenhum
recorte, nenhuma margem, nenhuma dobra, como uma esfera que não fosse
euclidiana, que não tivesse margem ou bordas, e na qual se passa de dentro
para fora à vontade. Matematicamente pensada, esta superfície, cuja constru-
ção só é possível se for infinitamente grande e elástica, chama-se gorro cru-
zado, boné cruzado. Lacan, por causa da comparação com a esfera, apelida-
va-a de asfera. Mas o nome matemático preciso desta superfície é Plano
Projetivo, o que é interessante, pois plano é um conceito da geometria de
Euclides. Esta seria a superfície mais absoluta, mais abrangente de todas, mais
capaz de receber qualquer outra, qualquer projeção, de qualquer jeito. Vamos,
então, supor que o Plano Projetivo fosse algo como uma bola com uma torção
por dentro, da qual bastaria fazer um furo, e retirar um pequeno círculo e ela se
transformaria numa contrabanda. A contrabanda é, portanto, a asfera com um
furo, a asfera menos um pedaço mais ou menos circular. Posso até fingir que
taparei este furo. Procuro o perímetro dessa margem, construo uma circunfe-
rência com mesmo perímetro, depois vou suturando. Não conseguirei, pois pre-
cisaria de uma elasticidade quase infinita. Mas é como se pudesse tapar o furo
reconstituindo o Plano Projetivo.

Observem ainda que, sobre uma superfície euclidiana – uma estrada,


por exemplo –, posso separar duas faixas. Passo uma linha amarela no meio e
divido em mão e contramão. Poderei perfeitamente, se o guarda não estiver
olhando, passar para a contramão. Por isso, há que colocar algo muito vigoroso,

68
A contrabanda

como uma mureta forte, para me impedir de passar. Mas imaginem que eu
esteja sobre aquela contrabanda dividida entre pontilhado e cinza. Aí, também
nada impede que atravesse de uma à outra divisão, pois o trajeto é contínuo
numa única face. Mas se cortar pelo meio, como fiz antes, um lado ficará
pontilhado e outro cinza por inteiro. Já não terei mais como passar continua-
mente de mão para contramão. Só me restará percorrer o pontilhado ou o
cinza.
Todos estes raciocínios indicam que, tomando a superfície unilátera
como uma espécie de modelo metafórico para pensar o psiquismo, tiraremos
inferências as mais variadas das lógicas que vimos. Então, para o desenvolvi-
mento dos meus teoremas, tal como os apresento aqui, preciso afirmar que a
estrutura de última instância de nosso psiquismo é uma contrabanda.
Lacan já utilizara a contrabanda para falar do que ele chama de sujeito. Não
estou falando disto, e sim dizendo que o modo de funcionamento do psiquismo
humano, nossa estrutura psíquica, se constitui como uma contrabanda. Temos,
pois, que pensar quais operações são feitas por nosso psiquismo e podemos
utilizar esse modelo como guia para pensar as lógicas desta operação. Para
tanto, não ficarei sempre me referindo à contrabanda construída do modo que
lhes mostrei, mas procurarei algo que possa representá-la sobre uma superfície
plana. Assim, poderei escrevê-la num papel, colocar num quadro-negro, etc. Se
tomar uma superfície euclidiana como a que cortei no meio e traçar seu percur-
so longitudinal sobre uma de suas faces, vejam abaixo a figura que tenho. O
pontilhado é para indicar que tem outro lado, como se sua espessura fosse
muito grande, que faço dois percursos – por cima / por baixo, por dentro / por
fora – e os dois ficam parecidos como uma rodinha.

69
A Psicanálise, Novamente

Agora, que figura desenho ao fazer um percurso longitudinal sobre


a contrabanda? Podemos usar um arame, colocando-o sobre o meio da
superfície até chegar ao ponto de partida. Teremos, então, uma curva que
os matemáticos chamam oito interior. Notem que há uma passagem por
cima e outra por baixo. Quando considero a curva projetivamente sobre o
papel terei o desenho abaixo como representante do percurso sobre a
contrabanda, assim como pude considerar a rodinha como representante do
percurso de Euclides.

A partir de agora posso pensar com este desenho, bastando que


conjeture todas as regras que existem sobre a superfície de Moebius. É, pois,
o que se chama oito interior que, para uso em psicanálise, apelidei Revirão.
Por quê? Relembro que não estou considerando que habito este espaço. Se
assim fizesse, não poderia dizer matematicamente o que vou dizer. Esta su-
perfície assim constituída, penso-a como a máquina lógica que tomo como
metáfora dos movimentos do psiquismo humano. Ela só tem um lado, só tem
uma face, mas posso pensar que – ao contrário da superfície euclidiana, onde
tenho um e outro lados e só passo de um para outro mediante agressão –, por
continuidade, passo de qualquer ponto a qualquer outro. Marcarei um ponto
como primeira passagem (+). Continuo, dou meia-volta e esbarro com o mes-
mo ponto – como vimos, a distância não interessa aqui –, mas é a segunda
passagem, que marco (-). Se desenho um ponto orientado para direita, quan-
do chegar à segunda passagem, se o observo como máquina externa, ele está
para a esquerda. Então, virou ao contrário e posso considerar a primeira
passagem, direita, e a segunda, esquerda, como opostas.

70
A contrabanda

Vamos conversar em regime psicanalítico, e não matemático. Para mar-


car a passagem de uma posição à sua oposta – porque é oposta: virou ao
contrário em algum lugar que nunca saberei onde fica –, posso fingir que foi
onde fiz o furo com a tesoura. Ou seja, em algum lugar mais ou menos media-
no, isso virou ao contrário. Repetindo, então, como espaço habitável, não vira
ao contrário, não é demarcável, mas, como máquina, marco um ponto e posso
dizer que a primeira passagem do percurso é (+) e a segunda inverte (-). O
terceiro não é nem (+) nem (-). É o lugar onde revirei e que chamo de Neutro.
É o ponto não-orientável dos matemáticos, que chamo de Ponto Bífido – pode-se
escolher qualquer lado para ele –, e é uma passagem do positivo para o nega-
tivo – e vice-versa. Uso este objeto matemático porque nosso psiquismo,
comprovadamente através dos milênios de estudo, de declaração das pessoas,
etc., funciona exatamente assim. Diferentemente dos animais, que têm demar-
cações fixas, o que quer que seja colocado para nossa espécie, ela pode pensar
o contrário. Pode mesmo querer e produzir esse contrário. Por exemplo, agora
é noite, mas estamos aqui com tudo iluminado nesta sala. Algo na mente huma-
na fez um percurso longo, através de movimentos simbólicos, etc., de maneira
a poder intervir na ordem dita natural e reverter as coisas – o que, em última
instância, aparece como resultado na tecnologia.
Podemos perfeitamente fazer uma barreira qualquer e não querer con-
siderar um dos pontos, um dos lados da questão – como, aliás, costumamos
fazer e também a natureza se apresenta assim. Podemos colocar uma linha no
meio da banda e dizer “é proibido passar”, como podemos fazer um muro e
dizer “não dá para passar, porque é muro” e só considerar um lado de toda e
qualquer questão.

71
A Psicanálise, Novamente

Na chamada Natureza, no que nos é apresentado espontaneamente,


está tudo demarcado assim: dia/noite, preto/branco, rosa/azul, macho/fêmea –
aí tudo é opositivo. Quando é noite, é noite, não tem dia, e vice-versa, mas
nossa cabeça não é constituída como uma banda bilátera, em que se é isso, não
tem outro lado. Para nós, se é isso, é isso sim, mas não podia ser justo o contrá-
rio? Está muito escuro, eu queria que fosse claro... Levamos milênios recla-
mando no escuro até conseguir descobrir como se faz o fogo. Mais alguns
milênios, e temos luz elétrica. Já pensaram como um troglodita ficaria besta
com todo mundo na praia à noite e tudo claro? Ter essa cabecinha maluquete
como a nossa é o que cria todos os problemas da humanidade, mas também
muitas soluções desses problemas. Se na concretude dos objetos que chamo de
primários – os objetos corporais, naturais, etc. –, as coisas já vêm marcadas,
mão e contramão já estão estabelecidas, nossa mente diz: “isso é relativo, isso
muda”. Vocês poderiam argumentar que é, por exemplo, impossível atravessar
uma parede. Mas não se inventou a porta, mediante a qual passamos de um
lado para o outro?
A história da humanidade é essa brincadeira de dizer não às realida-
des. Muitas pessoas morreram tentando voar, mas um dia levantamos vôo.
Não nascemos passarinhos, mas queremos voar e voamos. Resta saber quanto
custa. Podemos pagar o custo de nossa rebeldia? Às vezes sim, às vezes não,
mas continuamos insistindo. Morrem trezentos, mas o trezentos-e-um faz. A
única impossibilidade absoluta é passar a não-Haver, pois não-Haver não
há. Todas as outras impossibilidades são modais. É muito caro hoje mudar o

72
A contrabanda

sol de lugar quando ele nos atrapalha, não temos técnica e potência de força
para deslocá-lo, mas quem sabe? A humanidade resta dilacerada entre a caretice
da obediência às formas constituídas e a revolta contra essas formas, a mudan-
ça e a construção de coisas novas. Esta humanidade que conhecemos não é
necessariamente da espécie dos primatas. É um bicho doido, maluco, mais
parecido com um ET do que com um macaco, que já deformou a face do
planeta. Se não, estaríamos aqui no escuro cheio de mosquitos e sem esta boa
temperatura refrigerada... Já fizemos muito, mas há muito por fazer, muito
mais do que já fizemos.
Então, para organizar tudo isto, uma vez que somos macacos porta-
dores da máquina Revirão que vira tudo ao contrário, nossa espécie, ao invés
de evoluir biologicamente e se transformar corporalmente num monstro capaz
de ter todas as faces, trocar de cor, de sexo, de cabelo a qualquer hora, como
gostaria um Darwin, ela começa a secretar um postiço, capaz de mapear as
coisas mesmo que não possa transformá-las. Este postiço são as linguagens,
as línguas que falamos, os aparelhos discursivos, as invenções de ciência,
filosofia, religião, etc. É a isto que chamo de Secundário, o qual tem a mes-
ma estrutura do Primário que a Natureza deu espontaneamente, com a dife-
rença de que é soft. Secretando esse soft, esse postiço, podemos fazer mil
conjeturas, até acharmos uma linguagem que fica parecida com o funciona-
mento duro, hard, do Primário e nele intervir mediante este conhecimento,
esta linguagem. É assim que vimos funcionando: como macacos primaria-
mente constituídos, mas piradinhos, querendo o assim e o assado também, e
secretando um postiço que, aplicado sobre o Primário dado, quando temos
poder, potência, força, condições e podemos pagar o preço exigido, consegui-
mos transformar esse Primário.
Nossa espécie é, portanto, portadora de um psiquismo, por sua vez,
cheio de formações secundárias – que chamamos de cultura: um entulho de
milênios –, que, também ele, começa a fazer peso, a atrapalhar a vida. Ou seja,
acreditamos tanto numa dessas invenções – secretadas secundariamente por-
que temos o Originário, o Revirão –, que, de repente, começamos a achar que

73
A Psicanálise, Novamente

é natural e não conseguimos mais passar por cima: viramos neuróticos sinto-
máticos e achando que não podemos mudar uma regra que é só uma regra de
comportamento, por exemplo. Acostumamo-nos a determinados comportamen-
tos e passamos a tomá-los por naturais, quando são apenas um vício nosso,
uma neura, um recalque, que não nos deixa maleabilidade para transitar à von-
tade de um lado para outro. Mas o específico desta espécie é a possibilidade,
pelo menos, de revirar. Qual a diferença entre uma interdição e uma impossibi-
lidade – modal que seja – dada? Temos que organizar a vida social de algum
modo. Se qualquer coisa valer, fica tudo meio perdido. Aliás, nem adianta valer
qualquer coisa, pois o empuxo do Primário, da carne, etc., é de uma forte im-
becilidade, então, sempre tendemos a cair na repetição das coisas dadas. Há,
portanto, que ter um processo de regragem que permita tanto nos afastar do
natural construindo coisas novas, quanto levar em consideração, às vezes
como necessárias, as imposições do natural. Ou seja, que permita um jogo de
duas faces.
Para que serve uma lei? Para interditar, proibir. Não se faz uma lei
para dizer que “você tem o direito”, mas sim para afirmar que “você não pode
isto ou aquilo”. A lei vem tentar traçar a fronteira que não existe no Revirão,
vem tentar fazer uma barreira para dizer que “só pode de um lado, e não do
outro”. Uma interdição serve para quê? Para imitar a ordem do Primário: fingir
que há algo meio natural que proíbe. Mas se acreditarmos em interdição como
se fosse natural, não há mais crescimento possível, pois há momentos em que
há exigência de variação. E mais, uma interdição, se imita o que é da ordem da
impossibilidade, não cria uma impossibilidade, mas só uma proibição mesmo.
“É proibido casar com a mamãe” – chama-se a isto “interdição do incesto”,
mas isto não é impossível, como tampouco é impossível desejá-la. Não é proi-
bido desejar a mãe, e sim ter filho com ela. Aí vêm todos os problemas da
psicanálise. Nossa mente tem movimentos pulsionais vigorosos que esbarram
em certas impossibilidades naturais, espontâneas, ou em certas proibições que
o grupo ordenou para sua sobrevivência. Devemos ser obedientes? Mais ou
menos, para funcionar... Mas se acreditássemos piamente na obediência, esta-
ríamos até hoje morando em cavernas. Não devo, de modo algum, acreditar em

74
A contrabanda

interdições, nem em impossibilidades. Devo, sim, usá-las. Então, como fazer?


Vamos ver. Se quiser muito passar para o outro lado da estrada, quem sabe,
damos um jeito, fazemos um percurso meio lateral, damos a volta sem bater, e,
assim, constitui-se um novo modo de percurso da estrada que, depois, vira
moda para todos.
Espero que tenham acompanhado o percurso lógico que apresentei,
pois vamos partir desses raciocínios para entender o que é um recalque, o que
são as formações culturais, as formações nosológicas, as neuroses, psicoses,
morfoses enfim, essas coisas de que sofremos.

• Pergunta – Há gente que ainda está vivendo no escuro e com mosquito.


Como é o psiquismo nas sociedades ditas primitivas? Eles não têm Revirão?
Se são de nossa espécie, têm Revirão. Se não, não fariam nada. Não
haveria construção cultural alguma, por mais primitiva que fosse. Mas se a
humanidade partiu de condições muito precárias, paupérrimas e mesmo assim
foi construindo e acumulando invenções, poesia, arte, atos inventivos, é porque
o Revirão lá estava, só que extremamente recalcado. O simples fato de termos
um corpo de macaco, mesmo que privilegiado e inclua a máquina de reviramento,
já faz com que tenhamos essa máquina calada em noventa por cento, pois há
que fazer concessão demais ao macaco para ele conseguir sobreviver. Se ele
morrer, leva a máquina junto. Já pensaram na quantidade enorme de limitações
que uma pessoa tem, só no seu corpo? Por exemplo, não nasci com asas, mas
quero voar. Quantos milênios custou à chamada cultura, à história da humani-
dade, conseguir pagar o preço, arrolar a tecnologia necessária para dizer que
também sou um passarinho? E naqueles que você está considerando tão primiti-
vos, por piores e estúpidas que sejam suas culturas – e algumas são estupidís-
simas, levam séculos funcionando do mesmo jeito –, encontramos muitas
tecnologias pequenas, mas bem montadas: sabem fazer fogo, casa, costurar.
• P – Como você vê o aumento das intervenções químicas sobre os com-
portamentos? O caso dos medicamentos?
É moda. É uma fase mesmo necessária. O último período de produção
intelectual deste século foi votado demais à ordem simbólica, e o desenvolvi-

75
A Psicanálise, Novamente

mento da intervenção direta no nível Primário ficou meio parado. Esta mesma
implicação simbólica que durou três, quatro décadas, muito acelerada, conduziu
a pensar o óbvio: por que não pensar isso no nível da intervenção direta no
Primário? O esquisito é algumas pessoas suporem que as coisas já foram en-
contradas, quando não foram. Nem de um lado, nem do outro. Precisamos dos
dois lados. Um problema sério de hoje é o da transmissão pela mídia. Abre-se
o jornal e lemos as coisas mais estapafúrdias que o cientista nunca disse. O que
temos é, na verdade, o entendimento precário de algum jornalista e a vontade
de fazer escândalo, pois vende jornal. O cientista nunca disse as tolices que
vemos publicadas, não é assim tão estúpido. Quando lemos seus livros vemos
que, no máximo, o que disse foi que determinada coisa talvez esteja
correlacionada com determinada outra numa porcentagem x, o que é mera
correlação, e não determinação. Alguns jornalistas acham que falar fácil para o
povo é mentir, omitir, dizer que foi encontrado o não-sei-o-quê do hormônio que
causa x. Portanto, não há que coibir a pesquisa. Há, sim, que mapear o cérebro
todo. Quem sabe, no futuro, isto, no trato psicológico do neurótico, venha ajudar
a propiciar-lhe uma soltura sem grandes efeitos secundários. Quanto mais con-
seguirmos, melhor. Só não é possível acreditar que se cura câncer com
psicoterapia, ou que se elimina psicose com injeção.
• P – Como fica a relação das transformações contínuas da cultura com
as concessões que sempre temos que fazer?
Fica aos trambolhos. É o sopapo que acontece hoje. Estamos no ritmo
do sopapo e sobrevivendo ao ritmo do tropeço. Isto porque o crescimento
tecnológico de conhecimento, o acúmulo e a massa de produção secundária
cada vez são maiores e mais rápidos, mas a preparação das pessoas é lenta
demais. Em função mesmo do ritmo veloz de produção orientada pela visão
capitalista – e não há outra, hoje –, poucas pessoas estão na frente mani-
pulando a tecnologia, com a cabeça adequada a esta riqueza e a maioria não
tem acesso. E não porque alguém tenha proibido, mas porque o ritmo não deu.
As grandes questões de nossa época, nossas questões políticas contemporâ-
neas sérias, são como manter a economia na relação estapafúrdia – em nível

76
A contrabanda

interpessoal ou internacional – de termos verdadeiros macacos humanos convi-


vendo com o satélite artificial. Não há condição de operação educativa rápida
para isto. E mais, há o fenômeno de que, para as pessoas se adequarem ao
mundo e às condições de vida em que vivem, começam por ser recalcadas,
mapeadas, por sintomas e perdem completamente a flexibilidade que teriam se
fossem educadas de modo menos estagnado, o que não acontece. Nasce o
bebê e, com o passar dos anos, assim como na etologia do zoológico, do comporta-
mento de cada espécie animal, a espécie humana começa a ser subdividida. Ou
seja, embora nossa espécie tenha a possibilidade de reviramento, está tudo tão
estagnado, tão localizado, que já começa a aparecer como novas espécies –
que chamo de neo-etológicas – que não mais conseguem se afastar de seu
design cultural. Passada certa idade, vira um costume, o cérebro fica mais
lento, e não se revira tanto mais. Não que se tenha perdido a possibilidade de
revirar, mas a massa de recalques que está em cima pesa tanto que aquilo não
mexe mais.
Como disse, para todos revirarem rapidinho desde sempre, seria preci-
so uma infância extremamente educada. Ser bem educado no regime da cultu-
ra mediana, é aprender determinado tipo de repressão e recalque e se transfor-
mar num bicho de tal espécie, de tal classe, ao passo que ser educado para
valer, com riqueza, é sermos tratados com o máximo de diferenças informa-
cionais. Aí, então, fica-se com disponibilidade cada vez maior. É preciso fazer
análise desde o útero, sem parar e continuar trabalhando... Isto porque a dispo-
nibilidade se fecha. Há recalque demais. Não pensem que a disponibilidade
está solta. Ao contrário, é soterrada por uma quantidade enorme de recalques
do Primário, da matéria, da natureza, da vida, do biológico, e, depois, soterrada
pelo lixo cultural que, quando nascemos, já encontramos, e por uma porção de
gente achando que aquilo é de verdade. Para atravessarmos isso tudo e sair do
outro lado, quanto custa? Custa muito estudo, muita análise...
• P – Parece que quando você comenta que não pertencemos a esse con-
junto, é como se fossemos ETs. Então, desobedecemos. Aí é que vem o nó.

77
A Psicanálise, Novamente

Talvez a desobediência seja a obediência, justamente porque o mecanis-


mo de reviramento faz parte, e não há como deixar de obedecê-lo e é isto
que faz a coisa funcionar.
Seria assim e eu aplaudiria você até o final da noite... se não houvesse
o recalque. O reviramento existe como disponibilidade, mas não constitui um
imperativo moral. Temos a possibilidade, mas nada obriga. Não há exigência
alguma de fazer isso. O que se tem é um desejo desvairado que, de repente, se
encaminha para lados poéticos. De modo geral, se encaminharia mais se não
déssemos tanta bola a tantos recalques. A obediência, como você diz, seria
desobedecer ao recalque. Acho mesmo que ser da minha espécie é obedecer
ao reviramento, e não o contrário. Mas não é fácil assim, pois não é imperativo,
e sim disponibilidade, possibilidade. E a maior parte de nossa história, no tempo
e no espaço, está é cheia do recalcamento disso. A psicanálise, que trouxe um
pouco de visão da nossa bobagem cotidiana, só tem cem anos. Estou aqui me
esforçando para ver se ela entra em outro século, mas podem não deixar, ela
pode acabar...
• P – No entanto, aos trancos, obedecemos porque evoluímos...
Nós não, alguns obedecem, os chamamos poetas, como aliás todos
devíamos ser.
• P – Ao que você atribuiria o atual interesse exacerbado pelas práticas
esotéricas?
Em primeiro lugar, temos que perguntar o que estão chamando de
esotérico. O termo está adequado aí? Esotérico, diferente de exotérico, é algo
oculto, que não se diz, não se sabe. Portanto, as práticas que vemos não são
muito bem esotéricas, pois há pessoas que sabem absolutamente e até dizem
que são científicas. Como elas sabem do que estão falando, não há esoterismo
algum. Esotérico é o Inconsciente, pois não se sabe tudo que há lá dentro.
Talvez seja melhor perguntar: por que, neste momento de crise total, de
deslanchamento absurdo da velocidade comunicacional, da ascensão parabóli-
ca, vertiginosa, de descobertas de conhecimento, uma grande quantidade de
pessoas está se voltando para aparelhos velhos, puramente de construção de

78
A contrabanda

cabeça, de repetição de modelos religiosos? Como não têm condições de acom-


panhar o procedimento para a frente, ficam em pânico, sentem-se angustiadas
com esse movimento crescente e correm para trás, para se segurar em qual-
quer coisa, não importa se funciona ou não, agarram-se ali e constituem reba-
nho para sobreviver psiquicamente. Mas esta fase vai passar, pois não se sus-
tenta e, em última instância, resulta em cada vez mais conflitos.
Portanto, repetindo, esotérico mesmo é o Inconsciente, já que não se
sabe tudo que há lá dentro. Esotérico é o átomo que pensamos que conhece-
mos, mas não conhecemos. O que temos são multidões assustadas sem conse-
guir acompanhar o movimento da quebra de reconhecimento absoluto de fun-
damentos. Tudo se relativizou, e não porque é moda, mas porque descobriu-se
que é relativo. Por exemplo, constituo uma teoria, escrevo-a, é para ter fé nela?
É só uma ferramenta, não façam disso alguma religião. Se esta ferramenta não
ajudar a operar o mundo, que vá para o lixo. Mas não é assim que as pessoas
funcionam mais comumente. Elas sintomatizam, fazem de qualquer coisa um
fundamentalismo qualquer e acreditam tanto naquilo que, quando um outro que
não acredita naquilo passa do seu lado, elas acham que o outro deve morrer. É
a situação em que estamos: desenvolvimento exacerbado e estupidez exacer-
bada – ao mesmo tempo. A saída é procurar alguma cura. Não será fácil. A
tecnologia tem duas faces, tudo que inventamos movidos por uma vontade po-
ética de criar o novo, imediatamente cai na cultura, vira uma batata quente e
começa a pesar sobre nós. O movimento de se manter no surfe da situação é
que é o importante. Se acharmos que só porque o avião foi inventado, isto é o
máximo do máximo e, a partir de então, temos que fazer do avião um deus que
não nos possibilita mais pensar outras formas de vôo, estamos ferrados. Mas é
o que se costuma fazer: os objetos produzidos por nós caem na cultura com a
mesma força dos objetos naturais e começam a pesar em nossas costas. Te-
mos que ter liberdade diante deles, se é que esta palavra serve.
• P – Uma definição esotérica de idolatria é transformação de meio em fim.
Tem sido dito desta maneira, embora devo confessar-lhes que, uma
vez que começo a pensar no regime do Revirão, uma série de conceitos e

79
A Psicanálise, Novamente

maneiras de dizer fica prejudicada para sempre. Neste caso, por exemplo, não
sei o que é meio ou o que é fim. Essas fórmulas têm nos ajudado a sobreviver,
mas com o pensamento analítico de assunção do processo de Revirão, já não
nos ajudam muito mais. A palavra paradoxo, por exemplo, muito cara ao pen-
samento filosófico, refere-se a algo que não existe. Costumamos chamar assim
a um emperramento fraseológico, mas um bom poeta é capaz de desemperrar
na frase e na ordem lógica das coisas, pois sabe que paradoxo é simplesmente
não conseguirmos continuar o processo e vermos que uma coisa pode revirar
ao contrário. Não há paradoxo algum, nem na língua, nem no Haver, o que há,
sim, é Revirão.

27/MAI

80
O recalque

4
O RECALQUE

Da vez anterior, falei que sobre a máquina topológica da contrabanda:


num percurso longitudinal mais ou menos mediano, desenha-se um oito interior
que pode ser assim projetado numa superfície plana:

Esta figura nos serve de protótipo para a suposição que fazemos de


como é basicamente a estrutura psíquica, pois justamente podemos surpreen-
der um ponto (+), como uma estada de nosso percurso, e caminharmos o sufi-
ciente, em continuidade, de maneira a virmos ocupar o segundo lugar (–). Mes-
mo que um ponto continue percorrendo orientado, digamos, destrogiramente,
na direita, quando comparece na outra posição em relação à sua posição ante-
rior, virou ao contrário, como se houvesse um radical avessamento dos vetores.
Também não interessa pensar isto como um aparelho matemático para o qual,
a superfície sendo a mesma, em qualquer lugar o ponto é o mesmo, e, portanto,
não-orientável.

81
A Psicanálise, Novamente

O que interessa são as passagens e as relações recíprocas. Efeti-


vamente, a orientação parece ter sido trocada e podemos supor que esta troca
se deu, em algum lugar, em algum ponto solto por ali, marcado como terceiro,
neutro (n). Marco este ponto, mas é claro que não é lá onde o marco, pois não
sei onde marcá-lo. Recolho, então, de novo, aí onde fica ambíguo – nem para
um lado, nem para o outro –, o ponto não-orientado dos matemáticos, dizendo
entretanto que é um ponto bífido, pois posso tomá-lo para um ou outro lado.
Assim, posso (não vivendo dentro deste espaço, mas), convivendo com essa
maquininha como aparelho de produção, ter aí um protótipo em contrabanda
que se projetou no que chamo de Revirão, que é o aparelho por inteiro, no qual,
para cada posição, bastando uma continuidade de percurso, encontramos justa-
mente a posição contrária, o avesso radical e, em algum lugar, teremos virado.
O Revirão, como que desenhando, apresentando, esses movimentos
sobre a contrabanda, vem me oferecer um gráfico bastante facilitador para
pensar e anotar acontecimentos do psiquismo. Isto me orienta cada vez melhor
à medida que o gráfico representa algo cuja lógica pode segurar toda a constru-
ção do edifício. Se tomar a contrabanda como uma estrada, tendo-a dividido
longitudinalmente pelo meio passando uma linha, posso colorir um lado de uma
cor e outro de outra, percorrê-la por inteiro – digamos, em mão e contramão –
em cima de uma única cor, sem passar para o outro lado ou para a outra cor, e
estabelecer condições de não-travessia para não transgredir e bater de frente
com quem viesse na contramão. Ora, de que maneiras posso evitar que alguém
passe da mão para a contramão? Fazendo um impedimento concreto, um muro,
por exemplo, para que ninguém possa passar: se não quebrá-lo, não teremos
corporalmente condições de atravessar. Outra maneira é fazer uma interdição
na regra simbólica dizendo: “É proibido passar”. Posso até forçar a barra: “Quem
passar pagará multa”. Ou pior, se o guarda estiver vendo – e colocam-se guar-
das durante todo o percurso, pois o simbólico é muito frágil e precisa da polícia
–, afirmar: “O primeiro que atravessar não só leva multa como vai preso”. Eis
aí uma maneira entre concreta e simbólica de interditar a passagem.

82
O recalque

Aproveitando, então, esta colocação sobre interdições e possibilidades


de passagem ou não-passagem, introduzo nesta série de palestras o conceito
que, para Freud, era a pedra angular – ele poderia ter dito “pedra fundamental”
– de todo o edifício da psicanálise. Pedra angular, como sabem, numa constru-
ção em pedras na qual umas estejam escorando as outras, é aquela que, dada
sua posição, está segurando as demais. Se a puxarmos, toda a estrutura desa-
ba. Freud achava que seu conceito de Recalque (Verdrängung) era a pedra
angular de todo o edifício da psicanálise. Depois dele, isto foi deturpado, cada
um enveredando por um caminho. O próprio Freud, apesar de ter colocado
assim, fez alguns resvalos em relação a essa tal pedra angular quando teve,
sobretudo, que pensar a psicose. Deixou margem para os que vieram depois
heterogeneizarem radicalmente o campo. Lacan, por exemplo, concebe a psi-
cose como heterogênea em relação à neurose, propondo para ela um conceito
radicalmente diverso, que não inclui necessariamente o recalque. Como verão,
estou retornando a tomar o conceito de recalque com Freud e o recompondo,
num aparelho renovado, como efetivamente a pedra angular da psicanálise.
Freud supunha que recalque decorria de que havia algo chamado In-
consciente, um grande campo, que não só estava cheio de algumas coisas das
quais não temos consciência porque não temos mesmo, como também estava
repleto de outras que, em nosso percurso, tenhamos delas tido ou não direta
consciência, foram tomadas por um processo repressivo tal que se esconde-
ram, se isolaram, sem mais acesso à consciência. Seria preciso, então, realizar
um trabalho enorme de análise e de elaboração para desentulhar o caminho e
possibilitar a esse recalcado retornar de maneira consciente. Isto porque, de
maneira inconsciente ou não-consciente, ele apostava que o que quer que fosse
empurrado para lá tendia a retornar. É a idéia princeps de retorno do
recalcado. Mas, segundo dizia, isso não retorna conscientemente, porque há
muita coisa barrando esse retorno. Então, isso retorna fazendo acordos, tecen-
do compromissos, e outras transações possíveis, de maneira que, mais freqüen-
temente, retorna como sintomas, dos mais diversos tipos: ritual obsessivo, para-
lisia histérica, etc. Era preciso, portanto, não se interessar tanto pela leitura do

83
A Psicanálise, Novamente

sintoma, que só aparecia como indício do que estaria recalcado por trás dele
para que viesse à tona.
Contudo, para fundar o conceito de recalque tout court, esse recal-
quezinho de nossa neurose cotidiana, o protocolo teórico de Freud exigia uma
razão ou um precursor, algo originário por trás e antes desse recalque, como
sendo o que facilitaria, ou mesmo seria condição de seu aparecimento. Ele se
perguntava: Por que esta nossa espécie que pode deixar de tudo passar pela
sua cabeça acaba recalcando algumas coisas? Há que haver um modelo ante-
rior, uma possibilidade já dada de recalcamento. Freud, então, inventa o concei-
to de recalque originário, embora nunca tenha conseguido explicar muito
bem o que ele fosse e não nos desse idéia alguma que bem servisse para
explicar, em relação pelo menos ao recalque, a verdadeira razão de haver um
recalque secundariamente surgido. Pensou, então, em fazer do recalque origi-
nário simplesmente uma idéia abstrata, mais ou menos mítica, que pudesse
servir como fundamento, mediante um postulado, e nos pedindo que o aceitás-
semos. Com outras pinceladas, pode até ter inventado várias coisas para con-
figurar esse recalque originário, mas nunca o definiu direta e logicamente. É
claro que, em outros teoremas, de outros analistas, cada um inventou o seu
recalque originário. A meu ver, não muito satisfatórios. E, não tendo gostado
deles, propus o meu.
No percurso que fiz, fundamentando-me não no conceito freudiano de
recalque, mas no mais ulterior de pulsão de morte, deparei-me com uma
única frase lógica que me parece sustentar o edifício inteiro – não só com os
fundamentos, mas também com a pedra angular – numa única configuração do
conceito de Pulsão, que escrevo, em última instância, como: A→Ã ou Haver
quer não-Haver. Ora, como já disse diversas vezes, se Haver quer não-Ha-
ver, está pedindo o impossível, já que o não-Haver, como seu nome está di-
zendo, simplesmente não há, mas, enquanto o deseja, enquanto pedinte ou aquele
que demanda algo, o Haver requer de qualquer maneira esse impossível. Sendo
entretanto impossível, certamente que o Haver vai quebrar a cara, retornar
como Haver e continuar pedindo esse impossível e sempre quebrando a cara e

84
O recalque

retornando, assim por diante e infinitamente. O importante no esquema que


apresento é que o movimento libidinal não demanda senão o seu próprio
desaparecimento. Em linguagem vulgar, ele pede a própria morte. Por isso,
Freud o chamou pulsão “de morte”. Mas a palavra “morte” não é necessária
aí, pois o que o movimento libidinal quer é extinguir-se, ter sumiço pleno, gozo
absoluto, paz para sempre, per omnia secula seculorum. Ora, extinguir-se
não é possível, mas passar por outras vicissitudes sim. Então, retorna, continua
requerendo o mesmo que requeria antes, e fracassando, eternamente.
Se o movimento existe dentro da máquina e lhe é imanente, não é
porque o não-Haver é um Deus transcendente, e sim porque simplesmente ele
não há. Se não há de fato, por que permanecemos requisitando-o, digamos
assim, de direito? Por que nossa mente fica como que tolamente requisitando
algo que não há? É simples de explicar se compreendermos a estrutura do
psiquismo como estrutura em Revirão: ao que quer que se coloque para nossa
mente, ela sempre tem a possibilidade – volitivamente se não mesmo como
deslize espontâneo – de requerer o seu avesso, em enantiomorfismo, catoptria.
Isto, diferentemente de todas as espécies conhecidas, que não fazem esta ope-
ração mental e que, ao contrário, convivem com a presença agoraqui de deter-
minações etológicas, de origem etossomática (ou mesmo determinações
autossomáticas), comportando-se segundo um etograma mesmo se com alguns
deslizes que lhes são internos. Não há para eles a maquininha de exigir a possibi-
lidade do não-isto – e é aí que surge o nosso não – e esse não-isto, como puro
e simples avessamento de uma afirmação, ser muito freqüentemente e
efetivamente um oposto: dia/noite, claro/escuro, branco/preto, pesado/leve, etc.
Os vetores, para nós, estão sempre em oposição, tal como costuma acontecer
sobre o Revirão, a insistência em determinado pensamento fazendo-o, às ve-
zes, deslizar insopitavelmente para seu oposto. E esta máquina, existindo, pede
a última instância desse avessamento. Há, então, um princípio de catoptria,
de espelho, de enantiomorfismo, funcionando em nossa mente, a qual, encami-
nhando-se para a sua última instância, pode requisitar o quê como avessamento?
Pode avessar o que quer que compareça, mas em última instância exigirá avessar

85
A Psicanálise, Novamente

o próprio Haver, cujo avesso é o não-Haver, assim requerido porque o Haver


avessou em sua demanda interna. Mas, este, não há e, se não há, se é impos-
sível, além de esta força libidinal ter que retornar para o campo do possível, do
que há, passa também por um breve momento em que, perante o não-Haver,
terá fracassado sem conseguir o que pedira. Mas esta é uma maneira vulgar e
simplória de explicar. O que aconteceu formalmente é que a simetria, em
enantiomorfismo permanente, dessa demanda da Pulsão, sempre podendo de-
mandar algo em avesso do que se apresenta, encontrou um lugar de absoluta
Quebra de Simetria.
Nossa mente, assim desenhada, também encontra, em seu próprio in-
terior e fora dele, outras formações que parecem de avessamento impossível,
mas que, insistindo bem neles, pode modificá-los. A maioria das formações
estritamente mentais não é nem impossível agoraqui, está apenas bloqueada.
Digamos mesmo que, diante de uma parede que não posso atravessar – como
é o caso do muro de concreto que ergui no meio da estrada para não se passar
de uma mão para outra –, estejamos agoraqui diante de um impossível que
chamo de modal. Há um impossibilidade modal, localizada, mas, quem sabe,
com financiamento e investimento adequados, com trabalho mental e ciência,
arrebentamos a parede, inventamos a porta e passamos. Há sempre a espera
de que uma impossibilidade modal possa ser deslocada, mas, quando o movi-
mento dá de frente com o Impossível Absoluto, não estamos mais diante de
algo que possa ser deslocado, pois não se trata aí de um impossível modal. Fica
então, dentro do próprio aparelho, quebrada de uma vez por todas a simetria
absoluta que ele propunha motivado por sua razão catóptrica. Como disse, isto
é a Quebra de Simetria e o que Freud chamou – e agora posso juntar duas
máquinas freudianas num aparelho só – de castração e de recalque originá-
rio. Quebra-se a simetria no que o movimento libidinal do Haver se depara
com a impossibilidade absoluta de passar a não-Haver. Ou seja, por um instan-
te, esse movimento sofre repressão e recalque concretos diante desta impossi-
bilidade. O Haver sai dessa aventura como que ‘um pouco menor’, por assim

86
O recalque

dizer, um pouco recalcado – o que é só maneira de dizer, pois não há como


medir o seu tamanho, uma vez que tudo que há é nele que está. Com esta
lógica, a partir do movimento da Pulsão segundo o aparelho do Revirão, cons-
truo, então, uma razão quase concreta, porque palpável em cima de uma
Contrabanda, do recalque originário de Freud. Chamo de Recalque Originá-
rio o fato concreto de que não adianta, por mais direito que tenha, o Haver
desejar o não-Haver, porque não o conseguirá: terá que recalcar e ceder este
desejo, ainda que por átimo, um brevíssimo instante.
Este modelo de Recalque Originário nos dá, de maneira absoluta, de
ultimíssima instância, o desenho mesmo do que pode ser qualquer outro recalque,
em qualquer outro nível ou instância. Isto responde à questão de Freud de que
deve haver um originário qualquer que seja o atrator, o fundador, dos outros
recalques. Se a máquina, em sua última instância de movimento, encontra uma
impossibilidade absoluta, quebra sua simetria, tem que retornar, e assim por
diante, eis aí o modelo: tanto do que, em outra configuração, Freud chamou de
castração, quanto, sobretudo – e isto pertence ao âmbito da castração em Freud
– do Recalque Originário, o qual ressoa em tudo e por tudo que há ‘dentro’ do
Haver, sendo o atrator de toda e qualquer possibilidade de recalque. Mesmo
quando o recalque é da ordem de uma impossibilidade modal – pois que, dali
para baixo, nada é impossível absolutamente –, essas impossibilidades, ditas
modais, já são ressonâncias do próprio Recalque Originário. Em outros níveis,
mesmo no nível soft do psiquismo, é também este o modelo que serve sempre
em qualquer fato de recalque. Portanto há recalque porque a máquina encontra
seu limite e se fecha em sua absoluta imanência, passando pelo momento de
reconhecimento de impossível absoluto, de quebra de simetria, e assim por
diante. É claro que ela imediatamente ‘esquece’ essa quebra e continua a de-
sejar... novamente. É a repetição, não só compulsiva, mas compulsoriamente
se exercendo.
Mesmo que encontremos oportunidades de conceber este funcio-
namento em alguns discursos científicos, da física, da química, e alhures, não
nos fica bem apropriarmo-nos deles com tamanha desfaçatez. Então, se a eles

87
A Psicanálise, Novamente

me reporto, é mais como uma fábula que pode nos servir de modelo de ficção.
Temos hoje na cosmologia moderna vários modelos ficcionais – que os cientis-
tas consideram modelos científicos – que servem perfeitamente (se não para
garantir, pelo menos) para inspirar um modelo ficcional que gosto de fazer em
relação ao Revirão. Poderia tomá-lo com razão psicológica ou psicanalítica
apenas, como sendo a máquina do pensamento para a qual o Haver há e o não-
Haver não há – o Haver se deparando com o real ou com as realidades segun-
do este modelo –, mas gosto de supor mais, que, para o próprio Haver em sua
realidade, a multidão de universos que estão por aí em todas as suas possibilida-
des faz uma imanência só. Ou seja, não há nada fora d’isso: só há Isso. Faço,
então, a ficção de que o Haver funciona assim. Donde os físicos pensarem em
Big Bang, o momento em que, digamos, uma matéria absolutamente neutra se
condensa, se condensa e explode de tanta condensação. E, se explode em
cacos, ocorre uma fractalização radical de fragmentos que agora são configu-
rados. Aparecem estrelas, galáxias, etc., que, zilênios depois, condensam-se,
vão perdendo a força, tornando-se matéria neutra de novo e sofrendo outra
compressão. Chamo a isto de Nada que, para mim, não é coisa alguma, e sim o
Haver em neutralidade, sem diferença. Então, este Nada amassado, empaco-
tado, explode de novo em outras formações de universo. Esta é a ficção. Os
cientistas que descubram se é ou não verdadeira, porque, no nível do psiquismo,
ela me serve perfeitamente. Portanto, o psiquismo, que surgiu ele próprio den-
tro do Haver, no que tem a funcionalidade de, melhor do que espelhar, espe-
cular sobre o avesso, olhar algo e passar ao contrário, rebater
enantiomorficamente, etc., encontra coisas dadas. Assim – e agora lanço um
termo para nomear o que quer que compareça no Haver em qualquer nível,
formato, tamanho, situação –, ao que quer que apareça já desenhado e, portan-
to, já configurado como diferente de algo que está ao seu lado, a tudo isto de
cambulhada chamo de Formações do Haver. Há uma galáxia, é uma forma-
ção do Haver em nível estelar. Há uma árvore, é uma formação do Haver em
nível botânico. Há um pensamento, é uma formação do Haver em nível psíqui-
co. E assim por diante.

88
O recalque

Nossa presença como emergentes no seio do próprio Haver, absoluta-


mente imanentes, diante de suas configurações, das formações que nos ofere-
ce, é uma experiência bastante dolorosa, pois se nossa mente, diferentemente
da de outras espécies, está sempre sugerindo ou desejando, às vezes evidente-
mente, um avessamento radical, é porque essa mente é uma coisa muito (diga-
mos entre aspas) “livre”: o que aparecer ela topa, inclusive seu contrário. Freud
dizia que não existe não no inconsciente, que é preciso construí-lo. Estou di-
zendo que a maquininha não diz diretamente não, mas avessa e, se o faz, nos
dá condições desse não que produzimos. Ou seja, não apenas dá as condições
do contrário, como a contrário de sim diz não. Ela produz um não, mesmo que
não esteja previamente ali inscrito. Isto porque não há não algum quando pas-
samos de uma situação para outra. Passamos continuamente de uma coisa
para o contrário, mas, se sugiro afirmação aqui, posso sugerir negação ali. A
maquininha está disposta a construir isto mesmo no nível da linguagem, tanto
que constrói mesmo e dizemos não. No entanto, essa máquina desvairada que
é a estrutura mental de nossa espécie, que não encontramos até hoje em outra
entidade – os ETs ainda não desceram, nem subimos até eles –, quando funci-
ona, mesmo tendo emergido dentro da cabeça do próprio macaco, não tem
mais compromisso com ele. Esta é a questão da espécie humana: tem tudo de
macaco, todas as suas vantagens e desvantagens, mas, dentro dele – sabe-se
lá por que, alguma ciência (quem sabe, da pesquisa cerebral) ainda fará um
mapa da emergência desse espelho em nossa mente –, porta essa máquina e,
uma vez referida a ela ou operando segundo ela, anula qualquer compromisso
com seu macaco. Ela é louca, fala sozinha e vira... Anjo. Mas esse Anjo que
revira à vontade, que topa qualquer parada, que consegue dizer amém para o
que der e vier, não fica assim tão solto, porque até segunda ordem não sobrevi-
ve sem o... macaco. O Anjo se dá conta de que sucumbirá junto com o macaco
se fizer coisas capazes de mutilá-lo ou destruí-lo. O único jeito, portanto, é
fazer uma diplomacia com o macaco, fazer-lhe muitíssimas concessões, ser
capaz de aceitar, ainda que provisoriamente, as repressões por ele impostas,
aceitar enfim recalcamento e castração.

89
A Psicanálise, Novamente

Não nos adianta subir num morro e dizer: ‘Tenho vontade de voar’. Se
saltarmos dali, cairemos e talvez morreremos. Para ter sucesso é preciso al-
gum Santos Dumont repetir isso, no entanto com quantidade enorme de recur-
sos, de investimentos em dinheiro, de inteligência, de saberes acumulados. Ele
acaba voando, pois o impossível com que os voadores loucos, seus antecessores,
se deparavam não era absoluto, mas simplesmente modal. Em havendo condi-
ções de pagar o preço – em todos os sentidos: de tempo, saber, dinheiro –,
consegue-se reduzir um impossível modal. Há, então, esse Anjo liberto pensan-
do tudo quanto é loucura, e tolhido, não só pela própria formação biótica que o
sustenta como também pelas demais formações de que ele também não pode
prescindir por inteiro. E o Anjo não se conforma por quê? Porque, assim como
o modelo da castração é a quebra de simetria, o modelo do desejo é a exi-
gência de simetria. Então ele irá querer eternamente soçobrar no nível do
Impossível Absoluto, com o consolo de que, no nível do Impossível Modal, de
vez em quando, consegue algum sucesso. Se, então, somos livres do ponto de
vista da estrutura psíquica, mas inteiramente enjaulados dentro do macaco, o
próprio macaco, as coisas, as pedras, as estrelas, etc., passam a ser o quê?
Segundo o modelo do Recalque Originário, passam a ser Recalques Primári-
os: da existência de nossa corporeidade. Se não conseguíssemos construir a
quantidade enorme de próteses de que estamos aqui cercados – roupa, micro-
fone, mesa, cadeira, luz –, nosso corpo, que pode servir para muita coisa, seria
incompetente, de uma imbecilidade quase que total, e nos deixaria com muito
mais mal-estar do que o que já temos aqui no Haver. Aliás, mesmo assim ainda
nos deixa, pois sempre queremos mais, segundo o modelo de desejar o Impos-
sível, embora possa parecer que vamos aos poucos eliminando impossibilidades
e enriquecendo supostamente o bem-estar. Para a frente, para onde a máquina
desejante nos empurra, sempre há muito mais do que o que quer que já tenha-
mos conseguido.
Mostrei então como o Recalque Originário pode ser concebido lógica e
psicanaliticamente e, depois, afirmei que há Recalque Primário, que são as
formações espontâneas do Haver, as quais, pelo simples fato de existirem como

90
O recalque

tais, não permitem qualquer variação: são configurações limitadas e, enquanto


puras e simples formações, recalcantes e limitadoras da máquina do Revirão.
Assim, de tanto sofrer porradas cada vez mais violentas, quando abusamos e
queremos o que essas formações não permitem, acabamos recalcando, transfor-
mando em sintoma e nem querendo pensar mais naquilo: porque dói. Mas há
sempre um ou outro bem mais atirado que diz: ‘Que se dane, deixa doer. Quero
porque quero mais e até morro ou gozo disso!’ São poucos os que o fazem, pois
a imensa maioria simplesmente não só se esquece como não quer nem lembrar
de sua disponibilidade ao Revirão. É a isto que se chama recalque – o que
significa que aí compareceu uma massa enormíssima de formações recalcantes
de nosso movimento essencialmente liberto de Revirão. É o ‘mal-estar na Natu-
reza’, com o qual o homem sempre lutou no começo de sua história, e que
oprime coisas que ele imagina e quer como, por exemplo, iluminar a noite, tendo
portanto que inventar o fogo, a luz elétrica, e o que mais vier. Um mero animal
simplesmente deita num canto, dorme, e espera o sol raiar.
O Primário é espontâneo, é dado. No nível primário de nosso corpo, há
o que chamo de Autossoma, que é sua constituição, sua arquitetura biótica.
Embutido no autossoma, há uma grande formação etossomática, um Etossoma,
como nos outros animais. São modelos de comportamento inscritos num pro-
grama qualquer do próprio autossoma: uma espécie de grande arquivo instala-
do nalgum ‘disco rígido’ dos animais, o qual pode ser muito elástico mas tem
limitações estritas e permanentes. Nós também portamos uma quantidade enorme
de formações etossomáticas. Etólogos contemporâneos, pesquisando em seus
laboratórios, têm achado que descobrem algo de etológico em nossos comporta-
mentos. É o que Freud chamava de predisposições – e os analistas
subseqüentes, não sabendo como dar conta daquilo, não quiseram falar no as-
sunto. Mas esses etólogos estão finalmente descobrindo que há formações
etossomáticas mais ou menos graves instaladas em nossa espécie, mas que são
tão subvertidas e misturadas com os produtos culturais que já não sabemos
mais traçar as fronteiros entre as que são dadas e as que são produzidas. Como
não sabemos mais onde fica essa fronteira, esquecemo-nos freqüentemente

91
A Psicanálise, Novamente

que somos macacos, do ponto de vista autossomático, e também bastante maca-


cos, do ponto de vista etossomático. E isto tem nos causado grandes confusões.
Observem então que, ao contrário do que os autores estruturalistas
afirmaram, inclusive Lacan – que chegava a dizer que ‘a linguagem é condição
do Inconsciente’ –, estou dizendo que esse animal, autossomática e
etossomaticamente dado no seio de um Haver prenhe de formações e portando
a máquina revirante, acaba por produzir, como uma sua verdadeira secreção,
um outro aparelho que resulta em simbólico, em linguagem. Ou seja, a máquina,
porque revira o que se lhe apresenta e porque, tal qual o computador hoje nosso
conhecido, tem como arquivar essas inscrições, acaba por produzir um grande
software que, aqui para nosso uso, eu chamo de Secundário. É isto que deter-
mina a linguagem, que faz com que falemos, com todas as suas conseqüências.
As formações secundárias, estritamente psíquicas, linguageiras, mentais, cultu-
rais, portanto, só estão aí porque são produzidas como secreção por um ma-
caco afetado de Revirão. O que é o Secundário? Podem chamar de simbóli-
co, de linguagem, embora talvez mesmo tudo seja linguagem, nosso corpo in-
clusive, seu autossoma e seu etossoma. O que é a linguagem culturalmente
produzida, artificial ou artificiosa – não gosto de falar assim porque para mim o
que quer que haja é artifício –, que não é dada ou espontânea e que, em cada
recanto, nossa espécie inventa de um diferente jeito? Aliás, quem sabe, Chomsky
não tem razão, e até mais genericamente do que se pensa, ao afirmar que há
uma gramática de base que é a mesma para todos – se não for mesmo para
tudo? Quem sabe, não é a mesma para os átomos e não a saibamos traduzir
ainda? Essa tal linguagem, queremos dizer, não passa de uma secreção produ-
zida por um certo macaco que tem o seu Primário afetado de Originário. Quan-
do, em uma estrutura primária – de base carbono ou não, pois não sei se o ET
é base silício, por exemplo –, aparece a máquina de Revirão, quem quer que a
porte é nosso colega. Pode ser de lata, de carne, não importa, ele é nosso
parceiro. Quem sabe, no futuro, não inventaremos um parceiro aqui mesmo,
um computador ou seu descendente amelhorado, que pense, que deseje?

92
O recalque

Aproveitei, então, a idéia de Recalque, partindo do conceito de Pulsão,


para desenhar três grandes formações, repletas elas mesmas de outros zilhões
de formações, que são as Formações Primárias, as Formações Secundári-
as e a Formação Originária, esta sendo singular. Cada uma delas inclui, em
seu próprio porte, a conseqüência de um Recalque Primário, um Recalque
Secundário e um Recalque Originário. Repetindo: se há um Originário que
não é senão o próprio movimento que há no Haver e em nossa Mente, ele
gerou a quebra de simetria que resulta no Recalque Originário, donde tudo se
espatifar em formações isoladas, cada qual mantendo sua própria consistência,
seu próprio rosto, aparecendo então como formações que, pelo simples fato de
serem formações e terem desenho próprio, já são em si mesmas recalcantes da
absoluta espontaneidade de reviramento do Originário. E quando o Originário
funciona no interior de uma formação primária, ela secreta um Secundário,
como um seu software suposto. É mediante as articulações do Originário na
relação com o Primário que têm nascimento as formações do Secundário. Fa-
zendo um parêntese, é aliás onde poderíamos situar, em ultimíssima instância, o
velho conceito de mímesis. O Secundário simplesmente imita o Primário ao ser
secretado como massa de anotações, disquetes e programas possíveis que ope-
ram inscrições, marcações absolutamente soft, e constituindo novas forma-
ções na imitação do modo de composição das formações do Primário.
Retomemos o exemplo de que falei no início a respeito da estrada.
Posso levantar um muro para não se passar – e estarei aí imitando uma impos-
sibilidade modal. Utilizei-me então de minhas formações secundárias de pensa-
mento, articulação – “é possível passar sim, mas não queremos que passem” –
, para mexer no Primário e construir algo que tenha a consistência de um im-
possível modal que aí reside. Mas posso também deixar tudo vigorar no Secun-
dário e apenas dizer que é proibido, que não se passe, que a quem passar se
cobrará uma multa. Ou também posso chegar mais perto do Primário, chamar
a polícia e levar preso quem passar. São essas arrumações que estão na região
da produção da interdição, do proibido, a qual existe porque, se pudéssemos
criar o bicho solto, ou seja, simplesmente deixar revirar à vontade, a loucura

93
A Psicanálise, Novamente

seria genérica, não haveria limites para nada e nos perderíamos completamen-
te. Mas não sonhemos autoritariamente que por isso é necessário exercer mai-
ores repressões, pois o Primário já reprime espontaneamente e por sua própria
conta. Tampouco é necessário inventar mais e mais interdição, nem Deus trans-
cendente, nem Pai-Orangotango (como no mito de Freud). Quando a espécie
surge, já vem com Revirão disponível – e, também, com uma enorme carga de
opressões espontâneas, de impossibilidades modais, mas não com registro de
proibições. Mesmo a partir dos recalques primários já se começa a ter que
‘castrar’ possibilidades secundárias. Mas de qualquer modo, ainda por cima
inventamos mais e novos recalcantes secundários. O Recalque Secundário é,
portanto, em última instância, conseqüência do Recalque Originário, mas imi-
tação do Recalque Primário, de tal maneira que uma proibição não é senão
um fingimento de impossibilidade. Os antropólogos se desesperam há dé-
cadas para explicar a famosa “interdição do incesto”, a qual é apenas uma
bobagem, embora utilíssima no seu tempo, inventada no Neolítico para imitar
alguma impossibilidade na série das reproduções. Isto porque não é impossível
nem indesejável cometer incesto. Parecendo tão freqüente, Lévi-Strauss supôs
que essa interdição fosse universal e servisse para embrear a passagem de
Natureza a Cultura – como se simplesmente abrir a boca e dizer uma palavra já
não fosse passagem para aquilo.
Estamos, então, diante do Haver com suas formações, o Revirão como
Originário, o Recalque Originário como modelo de qualquer recalque e os
Recalques Primário e Secundário. Há Recalque Secundário porque, para orga-
nizar nossas possibilidades de ação baseadas no pensamento, digamos assim,
ou melhor, no Secundário, é necessário constituir e organizar as formações
secundárias. Vemos certas pequenas possibilidades de início de organização
nos animais, numa base dada em nível etológico. Os etólogos, e mesmo Lacan,
dizem que devemos conceber que há tentativa de emergência simbólica no
animal, o qual, no entanto, não consegue levá-la adiante: porque não revira,
explico eu, mesmo que haja certas substituições, preparadas por outras cir-
cunstâncias na maioria das vezes. Mas começamos a produzir nosso nicho de

94
O recalque

vida, nosso lugar de existência – que chamamos de cultura, ou seja, toda a


parafernália que não havia espontaneamente na face da Terra –, porque nossa
espécie, de tão maluca e capaz de revirar até o próprio Primário por sofrer do
Originário, começou a secretar a grande lata de lixo da cultura gerações após
gerações, cada uma delas legando às seguintes um lixo cada vez maior. Entre-
tanto, o simples fato, por exemplo, de secretarmos uma língua – mesmo que
seja sobre formações etológicas que desconheçamos ainda – exige que ela se
configure em pequenas formações, tal como acontece com o Primário. Isto,
para que possa ser compatível com as formações espontâneas do Haver a
ponto de poder designá-las e supostamente falar delas, pois a língua não é
absolutamente solta. Configuradas, essas formações viram hábitos nossos, sin-
tomas estagnados: haja vista a dificuldade que temos de aprender uma língua
nova, por estarmos habituados com formações da nossa própria língua, aliás
dita materna. Como as formações não são paralelas, imediatamente traduzíveis
ponto a ponto, é necessário grande esforço arrumar outra formação, outra lín-
gua, cheia de formações sintáticas, lexicais, etc., as quais, por sua vez, também
são bastante fechadas. Do mesmo modo para as formações primárias. Por
exemplo, ter apenas cinco dedos é algo que empecilha e atrapalha o pleno
desenvolvimento de nossas possibilidades, de tal maneira que às vezes gostarí-
amos de ter cem ou muitos mais dedos. É muito pouco dedo para enfiar nos
buracos ou nas teclas deste mundo. Por isso mesmo é que há alguns virtuoses
que, com apenas os dez dedos comuns, tocam deslumbrantemente algum instru-
mento, cobrindo, apesar da penúria anatômica, uma coisa com outra. Mas se é
um virtuose, já não tem mais só dez dedos, pois subdividiu, em termos de funci-
onalidade, seus dez dedos em centenas.
As formações por nós secretadas – o resto cultural dentro do qual
vivemos –, por se repetirem e com elas nos acostumarmos, acabam por se
tornar quase ou tão pregnantes quanto as formações primárias. Mas é melhor
lembrar que aquilo tudo foi, num determinado momento, uma criação resultada
de uma referência ao Originário que requisita outra coisa, algum contrário, e
que, quando se decanta e aparece como produto, nós nos apegamos ao produto

95
A Psicanálise, Novamente

e esquecemos da produção e de seu périplo. Quando esquecemos da produção,


o produto começa a nos recalcar, nos oprimir. Se a cultura é uma grande
vantagem para nossa sobrevivência, é também uma grande opressão. Mas
fomos nós mesmos que a fizemos. Recalque Secundário é o seguinte:
formações do Secundário que passam a ser, também elas, recalcantes da
desenvoltura do Revirão.
Desde que nasce com essa possibilidade plena, a criança de nossa es-
pécie, essa Idioformação, já começa a ser recalcada pelo Primário, já começa
a ser demarcada e embargada na sua possibilidade futura de plenamente pen-
sar. Depois, sobrevém a cultura com toda a sua massa também recalcante.
Espantoso é que alguns, apesar disso, ainda pensam muito bem e deixam funcio-
nar a máquina essencial da espécie e, com isso, continuam a criar. Infelizmente
são poucos, sempre são muito poucos, pois deveriam ser todos já que são todos
os que têm a mesma disponibilidade. Mas é difícil levantar a massa de recalque
– quanto mais levantá-la toda, nem não há análise ainda competente para fazê-
lo. Ninguém consegue essa proeza, apenas se consegue levantar certa gama
de recalques de modo a se darem alguns pequenos passos.
A partir do empacotamento conjunto da pedra angular do Dr. Freud
com a pedra fundamental, porque há Revirão e Originário, posso pensar um
conceito de recalque não só inteiramente elástico, como cabalmente polivalente
e dinâmico. Se determinada formação, diante da possibilidade do Revirão, é de
ser considerada recalcante, contudo, diante de outras formações que estão
contra ela, pode ser considerada recalcada. Nunca se sabe de saída em que
situação está uma formação, senão considerando cada caso e caso a caso. As
formações primárias espontaneamente dadas são todas recalcantes do Origi-
nário. Mas acontece de uma cultura, por sua loucura especial, resolver repri-
mir, não uma formação cultural secundária, mas a existência mesma de uma
formação primária e afirmar, por exemplo, que os Negros devem ser excluídos
de algum modo. Trata-se aí de querer recalcar uma espontaneidade do Primá-
rio mediante pressões do Secundário. Por outro lado, as formações secundári-
as, só por existirem, são logo recalcantes do Originário. E ainda por cima, no

96
O recalque

seio de uma formação secundária que não gosta de certas outras formações
secundárias, arrolam-se motivos, modelos e poderes para reprimi-las ou excluí-
las. Sabemos quantos, na história da humanidade, foram para a fogueira porque
inventaram, por exemplo, algo tão abstrato quanto um teorema. Estamos, en-
tão, diante de formações secundárias que são necessariamente recalcantes do
Originário e depois podem passar a sê-lo de outras formações secundárias.
Considerem por alguns instantes que coisa terrível pode ser a maré dos
recalques sobre nossas vidas. Não é só porque eventualmente a odiemos, mas
sim porque ela contém coisas que nos recalcam, nos reprimem, simplesmente
pelo fato de existirem – e assim estão embargando nossos movimentos. Por-
tanto, entre recalcantes e recalcados nos três níveis – sobretudo nos que pode-
mos manipular, o Primário e o Secundário –, tudo é questão de formações
como constituição de poder, o que torna o Haver um grande campo de batalha,
em cuja agonística temos obrigatoriamente que viver. Em última instância, o
que temos que entender é o que seja o Poder.
O Poder não é algo misterioso constituído nunca se sabe onde e sem-
pre sem a nossa permissão. Podemos muito bem reconhecer e encontrar suas
forças constituintes. E antes de mais nada devemos lembrar – questão que foi
aberta definitivamente por Foucault – que qualquer formação tem seu po-
der próprio, simplesmente pelo fato de existir. Pode se encontrar momentane-
amente em situação de inadimplência diante de outros poderes mais potentes,
mais avantajados, e eventualmente sucumbirá ou perderá uma ou outra batalha
ou mesmo a guerra por inteiro. Mas qualquer formação sempre tem o seu
próprio, isto é, algum poder. Quando, por sua vez, consegue juntar-se a diversas
outras formações e agrupar seus poderes, produz-se uma nova e maior forma-
ção com poder superior ao daquele que antes a estava oprimindo. E esta nova
formação pode vencer aquela outra e afirmar ser ela agora a que será recalcada.
Esta tem sido a história do homem, bem como as lutas pelos interesses de cada
um, mediante os poderes que pode ter e os que pode aglutinar a seu favor. E
isto vai da fundação de uma religião à criação e disseminação de uma filosofia,
da fundação de um partido político à simples hegemonia dentro de uma família.

97
A Psicanálise, Novamente

Se alguma coisa deu certo no nível do poder e se tal formação venceu, não foi
necessariamente por ela ser a melhor, mas sim porque conseguiu arrolar e
aglutinar poder de vencer, ainda que seja em algum sentido pior do que a outra
que não venceu. Um dia, talvez, outra maior quantidade de pessoas, outra mai-
or aglutinação de formações, venha a achar que aquela então vencida era a
melhor – e se una em torno disto para tentar substituí-la à anterior.
Esta dinâmica da guerra é a mesmíssima da tentativa de cura do psicana-
lista, metido que está no mesmo campo de batalha. Ele opera auxiliando na
organização de forças e sendo coadjuvante de seu analisando, para que este
venha a manejar as potências arrumando-as de um jeito mais compatível com
sua disponibilidade. Mas para tanto o psicanalista precisa tentar induzir que o
analisando rememore o Originário, o qual está soterrado e esquecido debaixo
de todo o entulho Primário e Secundário de sua história pessoal. Quando o
Originário deixa de ser nossa referência, restamos soterrados pelos escombros
culturais e das formações espontâneas, esquecidos de que nossa potência de
última instância é simplesmente dizer não e começar uma nova constituição de
nossas formações.

• Pergunta – Você disse que há uma idéia genérica de recalque, que serve
para o entendimento do que são os Recalques Originário, Primário e Se-
cundário. Mas é preciso fazer distinções minimamente relativas entre
Recalques Primário e Secundário. O modo como você os distinguiu diz
respeito mais ao modo como as formações se constituem?
Não temos como fazer idéia de onde fica a fronteira. Ninguém sabe.
Mesmo porque nossa espécie é aquela que costuma transgredir as fronteiras,
tal como no exemplo que dei sobre a estrada. Disse que considero espontâneas
as formações que pertencem ao campo do Primário, isto é, tudo que não foi
feito pelo homem. Chamo de primárias porque envolvem a formação de nosso
corpo e das demais materialidades. No entanto, algo revira ao avesso e a espé-
cie começa a produzir, digamos assim, secundariedades – linguagens, inscri-
ções, simbolizações –, que são todas de aparência soft, e logo começam a

98
O recalque

agredir o próprio Primário e a fazer marcas sobre ele. Isto acontece assim de
tal maneira que nós só acreditamos mesmo na potência de um pensamento
quando ele se materializa em tecnologia, quando produzimos um aparelho se-
cundário que efetivamente invade e modifica concretamente as densas forma-
ções do Primário. Do contrário, sempre teremos a chance de o acharmos um
delírio, coisa de poeta, sonho de filósofo. Milagre significa deslocar o Primário.
Por exemplo, a invenção de um remédio, a cura do câncer, a cura da AIDS, e
agora, mais recente e intrigante, a produção de um clone. Justamente porque,
segundo o que proponho em meu esquema, as formações não são heterogêneas
umas às outras, e sim apenas campos fechados por locks, cadeados, fechadu-
ras no sentido cibernético, se nos esforçarmos e tivermos sorte, encontraremos
as chaves e entraremos. É o que acontece, por exemplo, no caso dos aparelhos
científicos e sobretudo tecnológicos, onde, mediante muito investimento e tra-
balho, encontra-se um meio de romper a barreira, entrar numa formação e até
modificá-la. Consegue-se porque o campo é homogêneo, mesmo porque a for-
mação é simplesmente modal, não é o Impossível Absoluto. Este, não tem jeito.
Mas conseguimos borrar a fronteira entre Primário e Secundário, invadir forma-
ções primárias e secundárias que, às vezes, são tão duras que já se reificaram
talmente como aquelas primárias. Formações culturais, preconceitos, idéias,
que estão tão arraigadas no uso e crença de que são primariamente alguma
coisa, que as co-naturalizamos e começamos a obedecer a elas sintomatica-
mente a ponto de passarmos mal e irmos parar na psiquiatria se as contestar-
mos. Por exemplo, a interdição do incesto foi reificada: deixa de ser uma
interdição de formação dentro da cultura e vira simplesmente uma formação
concreta dentro do peito da pessoa que até sofre de angina só por pensar na
sua possível relatividade. É assim que se forma um sintoma que vai à carne.
Então, não há como precisar distinção de fronteira nem para um lado nem para
outro porque, mediante formações secundárias, com grandes investimentos,
acaba-se invadindo o Primário, mas também, mediante a reificação de forma-
ções secundárias, o Primário acaba invadindo sintomaticamente o Secundário.
Coisas que inventamos começam a parecer que são naturais. Deus, por exem-

99
A Psicanálise, Novamente

plo: há milênios nossa cultura tem sofrido os agravos dessa figura, que não
existe, por exemplo, no budismo, que dela não teve a menor necessidade para
ser mesmo assim uma religião. Se Deus fosse primário, por que não compare-
ceria sempre, sempre?
• P – Se você aceitar o conceito de castração, a fundação de uma língua, as
“estruturas elementares do parentesco”, de Lévi-Strauss, como algo sem
conteúdo ou uma representação deste ponto de impossibilidade em relação
ao não-Haver, qual seria, então, a crítica possível a estes construtos?
Uma coisa é reconhecermos que qualquer formação, indicando a
construtividade de outra, é descendente dessa impossibilidade absoluta; ou-
tra, é supor que é universal em si mesma. Não há, por exemplo, universalida-
de alguma na interdição do incesto. O único argumento – que está na edição
de 1949 e repetido por mim tantas vezes – é que nove, entre dez estrelas da
antropologia, acham que a interdição do incesto é universal. O estrutu-
ralismo nos serviu muito, mas isto é reconhecivelmente uma bobagem, pois
nem no tempo nem no espaço posso garantir essa universalidade. Se ela
tem aparência de freqüência (e não de universal), veremos mais adiante como
pode ter sido inventada no Neolítico. Alguns autores já o demonstraram à
sua maneira antropológica. Segundo nosso ponto de vista, quando tratarmos
dos Cinco Impérios, veremos que há um momento em que isto se facilita.
Logo, ser um creodo – um caminho que não posso não percorrer no meu
périplo – não é nenhuma universalidade porque para trás, não era assim, e
para a frente, pode não ser mais. Como fazemos com uma produção secun-
dária quando há quantidade suficiente de tolos, pessoas mal informadas, etc.,
e queremos tomar o poder absoluto em relação a essa invenção? Naturaliza-
mos a invenção e dizemos haver, lá no céu, um Deus que disse isto e aquilo.
Isto é da ordem da palavra divina e está incluída na carne do homem. Se
reificarmos, quase vira Primário.
Ora, a passagem de Natureza a Cultura – que não é na verdade ne-
nhuma passagem porque co-natural à espécie – é o surgimento do Revirão, no
seio mesmo disso que chamamos de natureza, se produzindo como origem do

100
O recalque

artifício, o nosso, o artifício industrial. Na verdade, não há nenhuma diferença


substancial entre natureza e artifício, é apenas uma diferença de disposição.
Não há afastamento ou distinção alguma entre homem e natureza, porque não
há natureza, e sim apenas Haver. E se, ali em outro planeta ou num recanto
mesmo do nosso – não estamos livres disto –, no fundo da selva amazônica por
exemplo, acontecer uma teratologia qualquer, aparecer um outro ser, não ne-
cessariamente mamífero, que sofre uma transformação e começa a revirar em
si mesmo e por si mesmo? Uma civilização de lagartos ali na Amazônia? Claro
que os modelos recalcantes da atual configuração do planeta dão muito pouca
ou quase nenhuma condição para isto acontecer. Mas, mesmo assim, quem
sabe já não estão vivendo por aí no estágio recém-saído do macaco em que
viveu outrora a chamada humanidade? Vai ver estão lá incipientemente secre-
tando a culturinha deles, tão distante da nossa que não prestamos a ela nenhu-
ma atenção. Ou a Civilização Manati, quem sabe, a cultura emergente do nos-
so esquisitíssimo Peixe-Boi. Isto seria engraçado.

29/JUN

101
A Psicanálise, Novamente

102
Poder de cura e avatares do falicismo

5
PODER DE CURA E
AVATARES DO FALICISMO
Já lhes trouxe as questões d’ALEI compatível com o teorema funda-
mental da psicanálise, que é o da Pulsão, Haver desejo de não-Haver (A Ã),
desenvolvendo-o na relação da imanência com o transcendental sem transcen-
dente e na dos Impossíveis Modais com o Impossível Absoluto (o não-Haver).
Depois, falei da banda de Moebius, da Contrabanda, para, a partir dela, explicar
os movimentos lógicos da mente e a produção do Revirão como Oito Interior.
Por último, coloquei o Recalque, utilizando justamente a contrabanda para pen-
sar as formações recalcantes e recalcadas, tudo se resumindo numa agonística
entre formações, onde nenhuma é absoluta, e cada qual constitui uma grande
cristalização sintomática. Hoje, falarei da questão da Cura, que está estrei-
tamente ligada à do Poder. Cura e poder, ou, quem sabe, o poder da cura.
Na agonística entre formações recalcantes e formações recalcadas,
tudo se joga na possibilidade de se conseguir revirar, tornar reversível ou não,
determinada formação. Por formação considero, em qualquer nível, ordem ou
perspectiva, todo e qualquer conjunto material – vozes, símbolos, etc., tudo é
material, pois não há heterogeneidade no aparelho que lhes apresento – que se
organize com alguma coalescência, que consiga constituir um fechamento, um
lock, e subsistir resistentemente enquanto formação, seja por pouco ou longo
tempo. Em última instância, em qualquer ordem que pensarem – estrelas, pla-
netas, sociedades, línguas, tesões, idéias –, são todas formações da mesma
‘natureza’. Contudo, basta sair da última instância para que elas tenham conteú-

103
A Psicanálise, Novamente

dos, materiais, modos específicos de se organizar, o que, então, torna tudo


uma questão de Análise das Formações. Análise, talvez a importação
deste termo para a psicanálise tenha vindo da química ao tempo de Freud,
ou seja, de como entender quimicamente determinada formação dividindo-
a em seus constituintes.
A idéia de Freud foi precisa quando pensou em análise para nomear o
que queria fazer. Isto porque qualquer formação que se nos apresente tem sua
força e mesmo seu poder dependentes de sua resistência enquanto formação.
Quando separamos uma formação qualquer em seus constituintes, certamente
ela perde o poder de formação que era, e seus constituintes, outrora coadjuvan-
tes, poderão agora melhor revelar seus próprios poderes. Analisar uma forma-
ção significa reduzir, ainda que provisoriamente, seu poder. Como a psicanálise
ousa supor que pode analisar uma formação a ponto de reduzir seu poder? O
que lhe dá esta autoridade, ou poder, de tentar arrostar analiticamente qualquer
poder? Se esta psicanálise está dizendo que a ALEI, apoiada no único conceito
de Pulsão, é Haver desejo de Não-Haver, há portanto, para além das forma-
ções que comparecem no Haver – às vezes com suas impossibilidades modais
de análise, que são agoraqui poderosíssimas, sem encontrar formações que
possam derribá-las ou um ato analítico que possa dissolvê-las em suas partes
constituintes –, a suposição de uma “relação” entre esse Haver, com suas
oposições internas entre formações, e a radicalidade do não-Haver, que não é
atingível, mas que, quando aproximado, obriga a uma indiferenciação em rela-
ção àquelas oposições “internas” (entre aspas, porque não há nada fora), assim
como obriga também pensarmos a radicalidade da oposição entre Haver e
simplesmente não-Haver.
Está de volta aí o Revirão. O ponto n do esquema que lhes desenhei,
notado por neutro e Real, é conjeturalmente o lugar desde onde se pode
indiferenciar quanto a assumir posição positiva (+) ou posição negativa (–) das
polaridades que eventualmente são opostas quando comparecem com seus po-
deres. Ao indiferenciar essas formações, nos situamos num lugar neutro a par-
tir do qual podemos considerar indiferentemente essas formações polares, bem

104
Poder de cura e avatares do falicismo

como podemos virar para o outro lado e considerar esta outra havência em
polaridade no confronto com não-Haver. Esse lugar neutro nos deixa à vontade
e o chamo, tomando um termo de Fernando Pessoa em sua Ode Marítima, de
Cais Absoluto, porque, lá assentado, nos confins desta Pólis Total que é o
Haver e à beira desse oceano de Coisalguma, que é o não-Haver, podemos
indiferenciar o que se passa no seio da Pólis do Haver. Se podemos nos colocar
neste lugar paralém do conjunto enorme de determinações ‘internas’ do Haver
que, emprestando-lhes a resistência que as mantém, forcejam as formações
para que se constituam e se mantenham, podemos invocar a hiperdeter-
minação – justamente para carregar, com este termo, a ambigüidade que a
coisa oferece, pois parece que algo, forçosa e forçadamente determina para
mais ainda do que as sobredeterminações ‘internas’ das formações. É
exatamente este o lugar desde onde tudo se re-considera com indiferença: o
Cais Absoluto onde se dá a relação entre Haver e não-Haver, a relação de
hiperdeterminação. Não podemos nele permanecer, mas podemos invocá-lo
como referência. E com esta referência, na indiferenciação das ‘internalidades’
opositivas do Haver, temos condição de passar a conceber, se não mesmo
perceber, o que para nós não estava presente para o entendimento de nossa
história – pelo menos isto.
Toda e qualquer operação de Cura, segundo a Nova Psicanálise, de-
pende de uma passagem, por breve que seja, uma referência ao lugar de
hiperderterminação. Depende de indiferença para com as internalidades, de
modo que, no olhar distanciado e indiferente sobre o Haver, algo se
hiperdetermine, ou seja, que um acontecimento possa ali nos mostrar algo que
antes não tínhamos como ver. Isto se costuma chamar de Criação. Não que se
vá criar algo que absolutamente não haja, que já não tenha havido ou não terá
havido no seio do Haver, pois nossa liberdade não é tanta, mas há possibilidade
de se destacar, acolher, de ‘dentro’ do próprio Haver, algo que dantes jamais
tivera sido acolhido, isto é, algo que agora, por nossa intervenção passará para
nós a existir. Toda operação de cura passa necessariamente, primeiro, por re-
experimentar essa indiferenciação; segundo, pela possibilidade de, a partir da

105
A Psicanálise, Novamente

indiferenciação, colher algo que dantes não se colhia para existir. É simples
isto, mas praticamente dificílimo. Simples, aliás, não é o sinônimo de fácil. A
hiperdeterminação e o que ela propicia é tudo que poderíamos chamar de li-
berdade. Não sei se é liberdade de ou para, mas é toda a liberdade possível.
Se é que alguma liberdade é. Trata-se portanto de indiferenciar, isto é, hiperde-
terminar-se, e não mais apenas sobredeterminar-se conforme a rotina das de-
terminações. É recair de novo abruptamente no seio do Haver, mas podendo
arrancar algum tasco do antes ainda não atingível. Este máximo de ‘liberdade’
que nos é possível não depende de nenhuma volição, mas sim, quem sabe, no
processo de Cura, do exercício dessa indiferenciação. Exercício – askésis, em
grego – extremamente difícil sim, mas não impossível de freqüentar. Se a Psi-
canálise ainda serve para alguma coisa, estou agoraqui lhes garantindo que seja
esta a sua serventia.
Assim, a possibilidade de Cura é possibilidade de Revirão, a possibilidade
de, mediante hiperdeterminação, suspender a imposição que agoraqui algu-
mas formações exercem sobre nós: esses sintomas, enfim, que ao mesmo tem-
po asseguram e estragam nossas vidas de bocós. Possibilidade, portanto, em
última instância, de anamnese, ou seja, de rememoração de uma experiência
que é nossa, que é a experiência fundamental de nossa espécie, que certamen-
te a tivemos em alguns momentos, mas que vem soterrada pela massa enorme
dos recalques dados pela ordem do Primário assim como daqueles Secundários
que a cultura, que nós mesmos fabricamos, torna a fazer desabar sobre nós.
Quando falo em anamnese, rememoração, não se trata aí de nenhum platonismo.
Não se trata de rememorar as formas arquetípicas do universo, mas
sim lembrar algo que, mesmo se também constitucional, é uma experiência
nossa, uma experiência da nossa espécie, que ela tem porque funciona assim, e
pela qual eventualmente sempre terá passado, ainda que na sua mais tenra
infância, pelo menos uma vez. Ela fica esquecida, dado o excesso de Primário
e Secundário, mas podemos conseguir alguma ana-lise, dissociar algumas for-
mações e forçar sua rememoração. É para isto que pode servir a psicanálise. É

106
Poder de cura e avatares do falicismo

claro que, imediatamente, tudo nos cai em cima novamente e de chofre, dada a
enormidadede das formações recalcantes de que sofremos todos os dias. Mas
podemos também contar com algo que chamamos Retorno do Recalcado,
uma oportunidade para a nossa vingança, pois o recalcado sempre poderá even-
tualmente ter a boa chance de dar um jeito de retornar e nos salvar das aparen-
temente definitivas fechaduras enclausurantes.
Para partir do conceito de hiperdeterminação e continuar a observar a
patologia psicanalítica, a cultura e suas formações, é preciso perguntar acerca
do por quê, do quanto e do como da própria psicanálise até hoje produzida como
aparelho teórico capaz de ser ensinado e eventualmente transmitido em seu
status de conhecimento e de saber. Não necessariamente acerca da prática
analítica, porque, às vezes, o talento do analista é maior que a estupidez da
teoria e consegue vencê-la, dado que a teoria é tão formação como qualquer
outra coisa e, como tal, sintomática, seja quem for que a esteja produzindo.
Pode ser uma formação sintomática de boa serventia no atual momento de sua
exposição, mas certamente em breve, antes ainda de um bom lixo, merecerá
análise, pois a própria teoria é também uma formação neurotizante. Em nossas
lides com o Haver, a referência à hiperdeterminação é capaz de nos permitir
momentos de liberdade e “criação”. Coloco entre aspas, pois o que é produzido
é imediatamente um novo trambolho, com serventias para várias coisas, mas
que, por simplesmente estar ali, recomeça sua história de aparelho recalcante
de outras possíveis formações. Vivemos, então, no drama de criarmos coisas
interessantíssimas... que logo em seguida começam a nos oprimir. Entre essas
coisas, ainda que da melhor qualidade, estão as teorias psicanalíticas, que nin-
guém ainda bem disse ou bem sabe o que são. Podemos apenas projetar uma
idéia sugerindo que, no presente momento, considerem que possam servir para
indicar os passos de aprendizado compatíveis com nossa época e nossa prática
atual. Mas logo-logo, como sempre fazemos com qualquer outra formação,
começamos a adorá-las, porque as achamos bonitinhas ou porque simplesmen-
te nos foi dada a chance de conhecê-las. Portanto, cada teoria que suponho

107
A Psicanálise, Novamente

conhecer começa a me oprimir, sobretudo porque a amo, mesmo que se trate


de uma imbecilidade em seu sentido mais genérico, de imbecilidade cósmica,
como dizia Nietzsche.
Restamos com a maior dificuldade de não podermos manter em exer-
cício a produção perene da análise da própria produção da análise. Trata-se de
um impossível que se modaliza na cultura, em suas construções de crença,
fazendo muita força, peso e opressão. Observem que, mesmo sem ter feito o
encaminhamento das histórias da filosofia ou da religião, em psicanálise, que é
uma ideiazinha recente, com só cem anos e que ousa ter a pretensão de um
discurso próprio diverso da filosofia ou da ciência, pensa-se já que ela seja
estritamente aquilo que disseram. Não tem nem mil anos de reconhecimento e
crítica para ver se realmente presta para alguma coisa, se funciona, se tem
possibilidade de crescer, e já se está crente de que ela é mesmo aquilo que já
disseram. Justamente porque disseram, não deve sê-lo, pois, se a psicanálise é
a intenção de análise de qualquer formação, se disseram, então já não o é.
Precisamos, portanto, continuar dizendo para esgotar o campo do que ela não é
e, na tentativa de fazê-lo, acabamos até dizendo algumas coisas que agoraqui
podem estar momentaneamente certas, mas que não a são. Do contrário, não
haveria análise ou ela não serviria para nada. Isto porque sua existência não
está garantida pelos construtos teóricos que se dizem a respeito desta prática e
intenção, e sim pela prática que faz funcionar o movimento perene de ana-lise.
As explicações são as que conseguimos dar, provisórias mesmo desde o tempo
daquele que acreditamos ter criado a psicanálise, ou seja, que, nalgum processo
de hiperdeterminação, terá colhido sua disponibilidade, arrematado algo que aí
estava e com o qual ninguém mais soube o que fazer. Logo, esse não criou
psicanálise nenhuma. Não se pode provar que antes de Freud a psicanálise não
existisse avant la lettre. Existia certamente sem nome próprio ou precisa defi-
nição, tendo funcionado por aí durante milênios talvez. Mas Freud, dadas sua
situação histórica e condições de vida, dados os sintomas específicos que sua
época, sua cultura e ele próprio portavam, dado tudo isto, e mediante um pe-

108
Poder de cura e avatares do falicismo

queno ato de indiferenciação, pôde colher um campo que, de lá para cá, tem
sido bastante fecundo, mas nem por isso menos cheio de defeitos e sintomas
por vezes da pior espécie. No entanto, tantas vezes útil e até mesmo agradável,
haja vista a quantas pessoas se vangloriam de nele viver e mesmo colher grana,
nomeada, amizade, prestígio, etc. e tal.
Depois de cem anos, o campo da psicanálise conseguiu uma massa
considerável de produções livrescas, de supostas análises, de organizações insti-
tucionais, de congressos, de lutas e de arranjos. Porém, nas sucessivas produ-
ções que tentam reequacionar sua bobagem – que é a nossa mesma de cada
dia, de inventar estilos, construir catedrais, fazer ruas, fabricar automóveis,
aparelhos de uma estupidez impressionante que, apenas por terem serventia,
não temos que achar serem tão importantes –, comete-se a tolice de acreditar
que aquilo é uma formação definitiva. E, indefectivelmente, toda vez que um
discurso se apronta, que uma formação discursiva de produção de saber se
propicia, isto carrega necessariamente as mazelas do seu tempo, das forma-
ções que possibilitaram esse dizer, pois não se pode fazê-lo sem uma língua e as
significações que ela porta naquele momento, sem a indicação de outros cam-
pos de saber que servem metafórica ou diretamente de referência para dizer o
que se diz. Assim, se não for uma velharia que se possa lançar ao lixo, por não
servir mais para nada, o que digo agoraqui na tentativa de equacionar a psica-
nálise tem, na melhor das hipóteses, que estar compatível com as necessidades
de revisão do campo, em função do desgaste dos aparelhos anteriormente
construídos e de um tempo que exige outras soluções. Isto porque já nos demos
conta de que as anteriores eram algo precárias, se não mesmo algumas vezes
falsas. E não podemos esquecer que todo campo de conhecimento passa ne-
cessariamente por este problema, caso contrário restamos ajoelhados beata-
mente diante do dito de alguém que foi sagrado Deus porque se chama Freud
ou Lacan depois de suas respectivas entronizações. Nenhuma destas pessoas
era assim tão pequena e simplesmente não poderia admitir nos ver ajoelhados
diante de sua própria limitação. No entanto, é o que se faz com mais freqüência.

109
A Psicanálise, Novamente

Eis senão quando podemos nos dar conta de que os próprios construtos
da teoria que procura o saber curativo, liberador para nós, se enrascaram, por
seu cordão umbilical, num determinado aparelho que parecia lhe dar garantia
de existência, derrocando por completo quase todo o edifício da sua própria
produção. Apesar destas impregnações e aprisionamentos sintomáticos, con-
seguiu-se, por um esforço perene de análise, produzir coisas interessantíssi-
mas, um aparelho que, em sua maior generalidade, constitui um modo novo de
abordar o que há. Mas tal aparelho pode estar infectado de algum vírus capaz
de destruí-lo em todos os seus arquivos: talvez só porque, por uma questão de
pusilanimidade, ou de vaidade, fica-se apegado a algum conceito tão querido
que se fabricou quando jovem. Ou simplesmente porque se tem um sintoma tão
grave e ainda não analisado, que esse tal conceito ou pequeno aparelho oferece
uma satisfação tal que não se consegue abrir mão dele. Parece que há isto de
inarredável em nossa espécie: talvez não fizéssemos nem mesmo a parte boa
se não fôssemos de algum modo alugados a essa baixaria que acaba sendo
condição sine qua non para produzir alguma grandeza. Isto porque somos
neuróticos e restamos no interior de um processo de recalcamento exercido
por uma força poderosa que não conseguimos ainda deslocar. Basta
pesquisarmos e veremos que isto está presente em todas as estórias da histó-
ria. Na história das ciências, por exemplo, vê-se com que facilidade a impreg-
nação da teoria newtoniana foi capaz de engessar a física por longo tempo, até
que alguém ousasse deslocá-la e alguns percebessem que o deslocamento era
analítico, capaz de curar determinado sintoma e dar a condição de se enxergar
o que estava bem ali e ninguém via. Einstein, por exemplo. Não fora a fixação
da neurose chamada Teoria Newtoniana, talvez não viéssemos a ser tomados
por outra neurose chamada Teoria Einsteiniana, com um pouco mais de serventia
em seu momento e atualidade.
A mesma coisa na psicanálise. Freud constrói um belo teorema
possibilitador de bons truques e facililidades de realmente analisarem-se as
formações sintomáticas graves de sua época. Só que não se fazem mais neuró-
ticos como antigamente. Hoje, os neuróticos são outros e não adianta disparar

110
Poder de cura e avatares do falicismo

mísseis de Édipo contra as pessoas pois elas só morrerão é de rir e têm a


resposta já pronta, pois que já conhecem a anedota de antemão. Tudo isto já
ficou banal.
Depois de muitas guerras internas, discussões, tentativas de deslocar
sintomas graves, surge Jacques Lacan – que está com a bola toda hoje, mereci-
damente até –, faz uma crítica geral, rearruma toda a teoria e, como dizia,
retomando o Freud fundamental contra os seus supostos desvios ocorridos,
consegue entronizar-se em muitos lugares como o nome referente. Isto não no
mundo todo. No Brasil, bastante. Na Europa, já está entrando em decadência
e, na América, nunca entrou direito. É uma potência mental, analítica e de
pensamento, que, num momento brilhante e dando um grande passo, refaz a
construção de todo campo, modifica a ordem conceitual, toma algumas coisas
emprestadas de ciências paralelas, como a antropologia, a matemática, mesmo
certas coisas da física e, sobretudo, a imposição lingüística que, como estrutu-
ralismo, existe bem escondidinha por debaixo de todos os aparelhos que vigo-
ram no século 60-70 dos anos mil (como sabem, os séculos agora andam muito
curtos). Ora, Lacan conseguiu, por fim, constituir sua própria igreja, com papado,
cardeais, e tudo, e já é hora de perguntar se aquilo continua compatível com a
reflexão, com o próprio movimento analítico e com o mundo contemporâneo.
Desde nosso ponto de vista, o aparelho lacaniano é incompatível com
a derrocada total dos fundamentos e das grandes construções sintomáticas
que estavam em vigor no planeta e efetivamente não estão mais. Além disso,
estamos perdidos neste final de século, sem entender por que certas forma-
ções derrocaram. Às vezes, não é necessário um ato analítico para colocar
algo em derrocada, pois as formações caem de podre, não agüentam o emba-
te e desabam porque outras tomam o poder. Estamos numa época em que as
pessoas estão muito assustadas com esse verdadeiro terremoto de idéias.
Quanto a mim, acho divertidíssimo, acho ótimo que a explosão esteja fun-
cionando, pois não é possível que não haja um mundo possível melhor do que
esta joça em que vivemos.

111
A Psicanálise, Novamente

A tal psicanálise tem erros que foram disponibilidades de momento,


mas que, às vezes, são graves, que só comparecem quando se consegue
efetivamente aplicar sobre eles uma vontade analítica ou quando o mundo os
denuncia pelo simples derrisório de sua situação atual. É preciso apontar, então,
pelo menos em seus termos gerais, a crítica efetiva de um conceito, um termo
– que seria significante do desejo, como Lacan gosta de dizer –, que me parece
mal gestado e mal gerido no campo da psicanálise e que faz com que ela não
tenha condições de compatibilidade com nossa época e com o que parece estar
vindo por aí. Incompatibilidade que surge de um erro que provavelmente o
século XX não conseguiu corrigir e, quem sabe, o próximo século venha a
conseguir. Isto corre em torno daquilo que, no campo geral da psicanálise, cha-
ma-se Falo, tornado aí um conceito fundamental. Se me permitem um jeito
simplório, brasileiro e de espontaneidade inconsciente, na verdade o nome disso
é ‘caralho’, palavra bastante usada em nosso cotidiano, mesmo que ainda não
tenha ocupado o território científico ou o erudito. Ora, Freud o erigiu, é o caso
de dizer, em sustentáculo da organização psíquica infantil, criando até um nome
– que nos parece hoje abominável, mas que temos que manter por enquanto,
senão se perde o sentido – que é castração, um hábito violento de se cortar
pedaços importantes dos outros. Tudo isso armando um conceito de grande
pregnância e serventia em seu projeto teórico ou em seu protocolo científico, e
de enorme presença na cultura e nas intervenções psicanalíticas.
Nossa questão é perguntar, como tantos já fizeram, com respostas bas-
tante interessantes, se este conceito ou significante é para valer mesmo ou se
não há algo errado com seu aparecimento. Quando determinado aparelho teó-
rico ou narrativa tem sucesso, devemos suspeitar, como fazia o rei Frederico II
da Prússia que, ao proferir um discurso que o povo aplaudia demais, pergunta-
va qual teria sido a besteira que dissera. Ora, se algo tem sucesso, devemos
pensar se já não há algo errado pelo simples fato de aquilo ser uma formação,
e portanto sintomática, e ainda por cima vencedora, quer dizer, muito bem
conectada e apoiada por outras, quiçá em maioria, formações também vence-
doras. Ou seja, qualquer sucesso deve imediatamente nos lembrar que tem que

112
Poder de cura e avatares do falicismo

estar compartilhando com os sintomas vigentes, caso contrário não seria assim
aplaudido. Esquecemo-nos disto quando aplaudimos os ídolos da arte, por
exemplo. Se realmente estivessem dizendo algo, entenderíamos para aplaudir
desse modo? Isto deveria ser, para cada um de nós, o reconhecimento de
que, se está compatível com nosso sintoma, podemos até repousar com o
aplauso, num momento de sossego dentro desta horrível vida, mas imedia-
tamente é preciso perguntar sobre o que ali não está dito – e muito menos
bem-dito. Esse sucesso da psicanálise hoje, com Freud, fulano, sicrano,
beltrano e Lacan, não será devido ao fato de estarem dizendo justamente o
que as pessoas queriam ouvir? Esta não é uma boa pergunta? Freud, no
início, não teve muito sucesso porque as pessoas não queriam escutá-lo e,
contudo, de tanto repetir, colocando, como conteúdo de sua repetição, coisas
tão pregnantes e agradáveis para os ouvidos, acabaram por reconhecê-lo. O
mesmo acontecendo com Lacan. Se tão rapidamente a igreja lacaniana se
instalou não é porque, certamente – como acontece em qualquer outro lugar –, o
lacanismo estava dizendo o que se queria ouvir? Mantenhamos esta pergunta.
Sucesso, aliás, democrático, coisa relativamente incompatível com a psicanálise,
a ciência e o saber, campos que não podem viver do voto de qualquer maioria que
não entende nada da invenção solitária de algo realmente novo. Precisamos lembrar,
então, que há outros campos de pensamento, outras reflexões, que questionam
veementemente e, com razão, certas posturas de nosso campo, entre elas a de
que estou falando hoje.
Terá Freud, seus subseqüentes, seus subsequazes, inclusive Lacan, des-
coberto efetivamente o Falo imaginariamente posto como conceito ou estrutura
inarredável, em última instância, da espécie humana, regendo, como uma bela
varinha de condão, todos os processos fundamentais da humanidade? Ou sim-
plesmente descobriu ele um óbvio ululante: que, em sua própria formação e na
de sua própria cultura, esse tal Falo estava assim colocado por mera produção
cultural? Estou descobrindo uma construção psíquica originária ou estou sim-
plesmente reproduzindo minha neurose e a de minha gente no momento em que
estou vivendo? Sabemos que Freud dizia ser evidente para todos que há uma

113
A Psicanálise, Novamente

diferença anatômica entre os sexos, embora as crianças não achem assim.


Para elas, os meninos têm um pipi e as meninas não, o que, segundo Freud, é o
que faz diferença, pois a diferença é entre ter ou não o mesmíssimo pipi. Em
primeiro lugar: as crianças acham mesmo isto? A experiência com as crianças
leva mesmo a esta conclusão? Não creio. Grande quantidade de pessoas que
lida com crianças pode perceber que não. Grande quantidade de analistas con-
temporâneos de Freud achava que não. Eram analistas de nome, incluindo o
puxa-saco fundamental da psicanálise, Ernest Jones, que tinha a audácia de
discordar, preferindo acompanhar Karen Horney – uma mulher –, para quem
as coisas não funcionavam bem assim como Freud dizia. Ora, é possível desco-
brir em crianças e até mesmo em fases bem primárias ou a ignorância de
qualquer diferença ou o reconhecimento de que há um troço completamente
diferente para cá e outro para lá. Mas não a mesma coisa positiva ou negativa.
Logo, é preciso a criança ‘brincar de médico’, como num laboratório científico
qualquer, para pesquisar e sacar que há algo diferente.
Houve um tempo, em certas regiões da burguesia, em que era proibido
pôr a mão nessas coisas, sobretudo nas coisas de outrem. Ora, de modo geral,
sobretudo no passado, eram os homens que, majoritariamente, narravam suas
experiências dizendo besteiras como ‘eu tenho, ela não – quem foi que tirou o
dela – que terá ela feito de mau para lhe cortarem o seu? – portanto eu preciso
me conter se não cortam o meu’ – e todo o bobajal subseqüente. É este o
raciocínio que Freud apresenta. Donde o menino ter complexo de castração,
isto é, medo de cortarem o dele, e a menina ser sem-vergonha, pois já lhe
cortaram o dela. Isto é uma teoria parecida com ciência do século XII, se é que
havia tal ciência, e alguns analistas, se não a maioria, continuam acreditando
até hoje. É esta bobagem que vai constituir o tal Falo como coisa única que aqui
está presente, ali ausente, sem verdadeira diferença sexual. Ora, para construir
um aparelho como este, afirmando que os meninos têm e as meninas não,
explicadamente porque lhes tiraram, deixando o complexo de castração no ar, é
preciso – e Freud o fez – dizer que quando nascemos, do ponto de vista do
inconsciente, somos todos meninos. A mulher, portanto, vai ter que ser construída,

114
Poder de cura e avatares do falicismo

porque, de começo, não existe. Será isto verdadeiro em nossa experiência?


Precisamos hoje perguntar se isto, em Freud, não é outra coisa senão um mo-
mento sintomático do século XIX, de um aparelho cultural dominantemente
bíblico no geral e cristão no particular, o qual, diferentemente de outras vias
religiosas, sempre teve horror, medo, pavor, terror, da pura e simples sexuali-
dade. Além disso, Freud era judeu, o que torna a situação grave, pois pesa na
vida de alguém estar metido na civilização ocidental, num determinado século,
regida por um cristianismo vigoroso, e ainda ser herdeiro de algo antecedente à
revolução cristã, com muito a ver com a pregnância religiosa do macho.
Estelle Roith, do Instituto de Psicanálise de Londres, publicou um livro
interessante, intitulado O Enigma de Freud: influências judaicas em sua
teoria sobre a sexualidade feminina (Rio de Janeiro: Imago, 1989), onde
demonstra a forte influência da cultura judaica no pensamento freudiano. Quando
mais adiante tratarmos da cultura e de suas possibilidades de desenvolvimento,
veremos como esse aparelho judeu-cristão dominou a cultura ocidental com os
paradigmas, por exemplo, de assunção, aceitação, impregnação, dominação, do
masculino – categorizado efetivamente como macho. Desde a grande revolu-
ção neolítica, há milênios as culturas vêm decantando a hipervalorização do
macho em detrimento da fêmea, de todos os elementos que eventualmente
podem estar arrolados no campo do masculino, dos comportamentos em fun-
ção dos códigos que designam ponto a ponto a macheza do macho, etc., etc.,
etc. Estamos soterrados, portanto, sob milênios de ordem sintomática que
hipervaloriza determinado argumento que funciona, sim, no seio de nossa cultu-
ra, mas não funcionou sempre assim, nem o fará para sempre. Antes não havia,
agora começa a ser questionado e pode mesmo vir a desaparecer.
A psicanálise, então, ao constituir o Falo, fez isto como o achado de
algo universal da espécie, ou simplesmente não pôde escapar da jurisdição e do
poder recalcante da ordem já instalada com a pregnância desse mesmo Falo?
Façam jogo! Opto pela segunda hipótese. Freud entendeu claramente tratar-se
de um sintoma que vigorava no seio de sua cultura, dito e repetido pelas pesso-
as em análise, mas fez dele um conceito genérico da psicanálise, em que pese

115
A Psicanálise, Novamente

a discordância de algumas pessoas, teóricas ou não, não conseguindo – e come-


çamos a fazê-lo hoje com mais possibilidade de argumentação – dar-se conta
de que uma postura analítica competente ultrapassa a vocação deste sintoma,
pois o toma apenas como repetitivo e permanente dentro da cultura em ques-
tão. Foi um erro grave de Freud, que Lacan não aboliu, mas ressuscitou com
fingimento de abstração, chamando-o de Significante-Falo e inventando, bem
assentado em cima dele, o seu famoso Nome-do-Pai, como se a sua simples
abstração pudesse lhe dar um desempenho melhor. Afirmo que este truque não
lhe dá um desempenho compatível com a vigência do movimento psíquico con-
temporâneo em sua obviedade de confronto com as neuroses culturais. As
culturas não só estão sendo relativizadas como estão explodindo espontanea-
mente por baixo – maneira de dizer, porque há sua produção por trás – talvez
pela velocidade de comunicação, pela super-produção de tecnologias, etc. O
analista portanto não deve manter-se compatível com tal sintoma estagnado,
mas sim com o movimento mesmo da análise.
O neolítico da cultura – não só ocidental – em que vivemos venceu, o
que nos dá um planeta mais genericamente racista, machista, falicista e, pior,
heterossexualista no discurso, mas masculinamente homossexual em sua con-
sideração reflexiva, e que ainda encontra uma psicanálise que também é falicista
e compatível com esses sintomas fascistóides. Freud bateu de frente com coi-
sas terríveis, pois – se o seu protocolo está errado como digo que está – não
podia não se deparar com seu próprio erro teórico internalizado em suas análi-
ses. Se o protocolo está errado, quando a análise não funciona, é porque bateu
no limite teórico criado pelo próprio analista. Como foi o caso, por exemplo, de
Freud afirmar que as análises podem caminhar, caminhar, mas acabam esbar-
rando, como um transatlântico, no rochedo intransponível da castração: para os
homens, o tal protesto macho; para as mulheres, a inveja do pênis que eles têm
e elas não. Ora, Freud se desesperava com o fato de que suas análises não
conseguiam passar daí, mas era ele mesmo e seus teoremas mal montados que
o incapacitavam de passar. Pelo menos foi o que Lacan supôs, embora erro-
neamente como se pôde ver depois, ao instituir o seu “Passe” para além do

116
Poder de cura e avatares do falicismo

impasse de Freud. Pois, se construo uma psicanálise que reduz tudo a esse
falicismo, quando ele comparece devo ficar abismado? Há pelo menos uma
burrice de Freud – perfeitamente compatível com sua neurose e a de seu tem-
po. Ele foi mal analisado, também analisou mal a situação e, apesar disto, ape-
sar de ser apenas Freud, mesmo assim fez coisas incríveis, da maior importân-
cia e da maior eficácia. Então, na paixão neolítica pelo Falo, o processo se
homossexualiza machamente, a ponto de as meninas terem que ser meninos
antes de serem meninas; de tudo ser julgado em função da presença e ausência
do tal Falo; de tudo ser analisado em função de tê-lo e de não tê-lo; e de as
mulheres terem obrigação de ter inveja do pênis; e de os homens não terem
mais o que fazer a vida toda senão viverem defendendo o seu.
O falicismo a que a psicanálise foi reduzida, também não está resolvido
na psicanálise de Lacan. Ao contrário, numa certa vertente bastante vitoriosa
porque democraticamente aceita, acabou por tornar o falo verdadeiro fetiche
de sua estrutura teórica, ainda que com sérias aparências de plena abstração,
de significante do desejo que, em últimas instância, vira o Nome-do-Pai,
compatibilíssimo com a ordem patriarcal do macho, branco, ocidental, com to-
das as vocações racistas da cultura em que vivemos e onde a psicanálise cos-
tuma sobreviver enquanto neolítico não ultrapassado. Ao mesmo tempo, as
mulheres não valem quase nada – artigos de segunda, se não de terceira –,
servindo apenas quando referidas à macheza do macho em sua competência
reprodutiva, com seus corpos geridos pela postura dos machos e seus ciúmes,
ainda que muito recentemente tenham resolvido o contrário sem que até hoje
consigam, mesmo escrevendo livros, demonstrá-lo. Como dizia Freud: essas
mulheres maravilhosas que tenho ao meu redor, que são boas analistas e que
produzem livros de teoria, elas são masculinas. Ou seja, se pensou, ou é sapatão
ou é macho, mesmo se indevidamente castrado...
Logo, a crítica de sociólogos, antropólogos, cientistas sociais é válida
quando afirma que a psicanálise propõe como aparelho fundamental o que é
processo de decantação sintomática do social e da cultura. Por isso, estou
tentando, bem ou mal às minhas custas, um aparelho abstrato que independa

117
A Psicanálise, Novamente

cada vez mais basicamente desses construtos compromissados com o sintoma


da cultura, embora o reconheça como neurose cultural e saiba que isto neces-
sariamente reaparecerá em análise. Como vivemos uma época em que cada
vez mais se demonstra que coisas como isto são simplesmente aparelhos da
cultura, cujos fundamentos sintomáticos estão explodindo e vão explodir cada
vez mais, aos analistas restaram perguntas absolutamente cretinas em função
de seus protocolos teóricos. Por exemplo, o que quer uma mulher? É o “conti-
nente negro” da psicanálise? Ou será que estas perguntas é que são oriundas
do ‘continente grego’ da psicanálise? Qualquer Teatro de Revista do Brasil
sabe muito bem o que elas querem, como diz o título saboroso de um antigo
grande show: Elas Querem é Poder. Iam querer o quê se estão sem? Ou
ainda, “A Mulher não existe”, formulação teórica bastante inteligente, mas inva-
dida pelo sintoma prévio que, em vez de dar outro e novo nome àquilo que
equaciona, mesmo se muito bem, a partir de outra postura teórica, chama isto
de Mulher e aquilo de Homem – mesmo que tenha logologo que se haver com
a sua própria franca relativização de sua idiota confissão.

• Pergunta – Você concordaria com o fato de que este falicismo da psica-


nálise estava na base da construção ou renovação de outros saberes que
dela foram contemporâneos, como a antropologia estrutural de Claude
Lévi-Strauss, de quem um certo Lacan fez alguns empréstimos teóricos?
O sucesso de Lévi-Strauss é impressionante, é quase de massa. Sua
obra é de uma articulação brilhante, de um virtuosismo intelectual exuberante,
só que o colosso tem os pés de barro. Em primeiro lugar, a famigerada interdi-
ção do incesto, ela é mesmo universal, em toda e qualquer formação cultural,
no passado, no presente e no futuro? Em segundo lugar, ela parece universal
porque é mesmo universal, ou porque o sistema em vigor ainda é neolítico?
Duas perguntas que a fazem desmoronar completamente de sua pretensão. O
mesmo valendo para a psicanálise. Lacan tinha um grande respeito e reve-
rência por Lévi-Strauss, sempre dizendo que lhe devia muito, se não quase
tudo. É evidente, pois, como ficaria sua postura de querer tornar a garantir a

118
Poder de cura e avatares do falicismo

pregnância fálica de Freud diante, por exemplo, de uma importante facção da


psicanálise inglesa, se não tivesse Lévi-Strauss vencido no hit parade francês
e depois mundial? Basta lermos os textos de Freud e veremos que toda e qual-
quer observação é feita desde o seu próprio ponto de vista masculino, pois ele
não tem nem mesmo a gentileza de se neutralizar, admirando narcisicamente a
sua própria piroquinha e fazendo dela a lente através da qual o mundo se vê.
Algumas mulheres, entre as quais Ernest Jones veio a se encontrar, se rebela-
ram decisivamente contra isto.
Apesar desta força sintomática embargando seus movimentos, a psi-
canálise, desde Freud, conseguiu propor conceitos e reconhecer acontecimen-
tos que, de saída, extrapolaram radicalmente o encontrado sintomaticamente
no percurso: como, por exemplo, o conceito de Pulsão-de-Morte, que Freud
não pôde deixar de topar já para os seus sessenta anos de idade. Embora tenha
tornado vigoroso este conceito, creio que Freud não o aplicou adequadamente
de modo a rever sua obra anterior, a qual, com isto, teria se reconfigurado
inteiramente. Um certo Lacan privilegiou aquele falicismo e, à medida que foi
desenvolvendo seus teoremas, abstraiu-o de tal maneira que praticamente o
desfez. Mas numa teoria rigorosa, os desenvolvimentos ulteriores e de mais
alta abstração, têm obrigatoriamente que questionar teórica e sintomaticamen-
te os anteriores, como Lacan, por exemplo, perguntando, em seu seminário
terminal, pelo Terceiro Sexo que jamais encontrou. Isto necessariamente fazia
questão, em absoluta incompatibilidade com seus seminários da década de
cinqüenta ou sessenta. Ocorre, no entanto, que Freud estava mais interessado
em que a psicanálise adquirisse poder no Mundo do que na Verdade. Logo, não
abria mão do que já havia dantes encontrado, e pagou um preço alto demais por
tamanha mesquinhez. Lacan, por sua vez, ao elevar, é o caso de dizer, o Falo à
categoria de Significante, pretendeu ter abstraído a pregnância primária de seu
nascimento, por ele indicada com todas as letras como imaginário do Pênis.
Ora, o tal Falo, que em tal grau de abstração poderia parecer indiferenciante,
não indiferencia coisa alguma, e continua sendo mesmo assim, como já estava
em Freud, o distribuidor não-indiferenciado das diferenças, uma carta forçada.

119
A Psicanálise, Novamente

Aliás, é Otto Fenichel quem constrói a equação simbólica garota=falo –


que Lacan declaradamente utiliza em seus Escritos –, onde as mulheres são
o falo e os homens têm o falo, sempre segundo uma homossexuação
masculina generalizada.

26/AGO

120
O sexo e a morte

6
O SEXO E A MORTE

Dentro do mesmo escopo teórico que venho desenvolvendo, hoje vou


falar de Morte e Sexuação. Coisa difícil para esta nossa espécie saber o que
é e como funciona a sexualidade, ou mesmo o sexo enquanto tal – e a morte à
qual ele sempre se atrela.
Sexo, secção, partição – como isso se distribui? Costumamos achar
óbvio existirem homens e mulheres do ponto de vista sexual – esta distribuição
sendo feita por caracteres sexuais primários e secundários, como se diz: carac-
teres sexuais primários, que são os órgãos sexuais propriamente ditos, e outros,
que a biologia costuma chamar de secundários. Mas isso não é apenas assim:
há também o comportamento sexual, que é muito variado. Nossa espécie, bem
mais enlouquecida do que as outras conhecidas, é capaz de fazer as maiores
diabruras com essa comichão que acontece em seu corpo e em sua alma. Daí
acontecerem coisas as mais espantosas, teorias as mais estapafúrdias, para
explicar o que é o comportamento sexual humano – o que aliás foi fundamental
quando da produção da teoria psicanalítica. Freud dizia que a realidade do in-
consciente é sexual. Isto significando que a psicanálise se orienta pela sexuali-
dade, e também pela sexuação. Ou seja, a distribuição dos sexos, e a sexualida-
de dos comportamentos inconscientes ou conscientes. Só que este campo é
uma balbúrdia, pois tudo que cientistas procuraram ‘desvendar’, ‘revelar’, du-
rante séculos e mesmo durante grande parte do século XX, pode ser uma mon-

121
A Psicanálise, Novamente

tanha de erros. Sobretudo de mal-entendidos que se devem ao olhar que o


cientista aplica em cada caso, olhar este que está informado por sintomas cul-
turais muito bem estabelecidos e decantados há séculos, quando não há milênios.
De vez em quando, então, flagramos cientistas em erros graves porque não há
suficiente isenção sua diante dos acontecimentos sexuais e já parte de
malformulados conceitos pré-estabelecidos, os quais costumamos chamar de
preconceitos. Muitas vezes não enxergam muito bem o que está acontecendo e
projetam o que têm na própria cabeça sobre os acontecimentos.
Terá sido, na história da psicanálise, bem conduzida a questão da sexu-
alidade? Será que Freud a resolveu de bom jeito? Ele se supunha cientista –
hojendia, ninguém mais supõe que ele o fosse –, mas terá sido um ‘cientista’
adequado, isto é, sem maiores preconceitos? Parece que não. Sua construção
é prenhe de disparidades e incongruências. Digamos que, talvez, a idéia mais
fecunda que teve a respeito da sexuação e da sexualidade humanas, pelo que
podia entender de sua escuta dos seus analisandos e do que podia pensar como
funcionamento do inconsciente, foi o que chamou de bi-sexualidade. Ele su-
punha que todos os humanos tinham a potencialidade – ou mesmo a disponibi-
lidade – para transar com qualquer sexo: que eram todos psiquicamente bi-
sexuados. Que era preciso algum processo recalcante para que a pessoa ‘esco-
lhesse’ uma postura sexual, que necessariamente seria homo ou hétero quanto
à escolha do sexo do parceiro. Ou seja, embora existam outras escolhas impor-
tantes do ponto de vista psicanalítico – quem bate/quem apanha, quem fica em
cima/quem fica embaixo, ou mesmo como punha Freud com mais veemência,
quem é ativo/quem é passivo, etc. –, ele ficou bem mais impressionado com a
questão da chamada diferença sexual anatômica e seus efeitos sobre o
psiquismo. Então, achou que os machos e fêmeas da nossa espécie transariam
para qualquer lado, desde que não houvesse nenhuma repressão produzindo
recalque, e que a cultura – interessada nos progressos da fabricação de seus
filhotes – certamente empurraria as pessoas para os lugares adequados à sim-
ples reprodução. Contudo, apesar disto – algo que tem certa necessidade ób-

122
O sexo e a morte

via, e cada vez mais óbvia hojendia –, ele acaba produzindo um núcleo teórico
quanto à diferença sexual que é aceito por grande parte dos psicanalistas, não
o é por outra grande parte, e acaba sendo bastante consentâneo com a sinto-
mática social. Assim, quando se busca produzir um aparelho teórico relativo ao
psiquismo, supostamente filiado ao campo da psicanálise, há que fazer a opção
de seguir ou não esta perspectiva freudiana da diferença sexual.
Qual é a perspectiva para além da chamada bissexualidade (esta, aos
poucos, Freud foi deixando de lado para fazer a teoria da diferença sexual e da
opção sexual sobre o que chamou de complexo de castração)? Tudo no
psiquismo – mesmo as conhecidas funções de neurose, perversão e psicose –
se organizaria ou, pelo menos, teria a ver necessariamente com a sexuação.
Isto significando que estava de acordo com o complexo de castração e suas
resoluções. Complexo este absolutamente aderido ao complexo de Édipo – ou
seja, àquela estorinha caseira: quero-mamãe-não-pode, quero-papai-não-pode,
em que muita gente acredita até hoje –, o qual está ligado à ordem neolítica da
interdição do incesto. Esta também é outra estória, produzida no seio da for-
mação cultural, em relação à qual temos que fazer escolha: é a interdição do
incesto como algo estrutural que funda a cultura ou é a cultura, em seus pro-
cessos históricos, que funda a interdição, a proibição, do incesto? Poderíamos
dizer que a antropologia estrutural, de Lévi-Strauss – que Lacan veio a retomar
inteiramente –, é bastante amiga da idéia do complexo de castração, em Freud.
Mas há, por outro lado, aqueles que acreditam que a interdição do incesto é
estritamente histórica, que foi criada num certo momento, certamente no
Neolítico, e que, ao invés de ter sido ela a criadora da cultura, ela é que foi
criada pela cultura. Do mesmo modo que não existe complexo de castração,
pois, evidentemente, a diferenciação sexual não se dá assim.
Como devem lembrar, o complexo de castração era Freud, observando
em análise a sexualidade das pessoas durante a sua suposta construção do tal
Édipo, fazendo a suposição de que primordialmente não existiam meninas. Isto
porque elas seriam ignorantes, tanto quanto os meninos, a respeito da verdadei-

123
A Psicanálise, Novamente

ra diferença sexual. Elas não teriam vagina, e sim um clitóris que não era senão
algo meio peniano mas muito pequeninho, que elas usavam prazerosamente em
sua masturbação, assim como os meninos podiam usar os seus também ainda
tão pouco desenvolvidos. Ele achava que não se encaixa no psiquismo humano
nenhuma idéia de diferença sexual, que isso não está marcado em nenhum
arquivo do inconsciente. Parece que, realmente, não trazemos nenhuma distin-
ção psíquica pré-dada quanto a pertencer a tal ou qual sexo, sobretudo do ponto
de vista dos comportamentos sexuais. Por isso mesmo é que ele falou em bi-
sexualidade. Resta saber se não haver marcação de sexualidade significa ne-
cessariamente complexo de castração. Mas ele inventou aquela estorinha nar-
rando que os meninos nascem meninos e as meninas também nascem meninos:
que só existe um sexo na primeira infância. As meninas vão passar por um
processo, até mesmo doloroso, para descobrir que não são mais meninos como
foram dantes e que têm que de algum modo virar mulheres para se normaliza-
rem nesta vida de loucuras. Como vêem, ficou muito difícil para as pobrezinhas:
os meninos existem, as meninas não, os homens já nascem feitos, as mulheres
tem que ser self-made-men, desculpem, self-made-women. Temos engolido
tudo isto durante muito tempo. Alguns ainda engolem, até hoje, como se isto se
tratasse de uma perfeição teórica absoluta.
Assim, quando um se deparava com outro, se é que se deparavam, os
meninos achavam que as meninas não tinham o que eles tinham e, portanto,
quem sabe?, alguém o teria tirado. Vai ver estavam se masturbando e o pai foi
lá e cortou o piu-piu delas! E as meninas, justamente pelo lado do avesso,
quando descobriam que os meninos tinham, achavam isto um absurdo e pensa-
vam: ‘Cortaram o meu, sou uma castrada’. Como eles também achavam que
elas eram umas castradas, ficaram vantagens e desvantagens do tipo: os meni-
nos tinham o que as meninas não tinham, portanto, eram machos, potentes,
proprietários, e elas despossuídas; a única compensação sendo que, fazendo
certo esforço, elas podiam conseguir algum, ou mesmo todos os deles, ou, tam-
bém, talvez pudessem vir a ter algum bebê para substituir aquela falta terrível.

124
O sexo e a morte

Contudo, por outro lado, de certa forma, eles viveriam ameaçados a vida intei-
ra, porque, se cortaram os delas, a qualquer momento poderiam cortar os deles
também. Por isso os meninos são tão moralistas, tão certinhos, obedientes e
covardes. Ao passo que as mulheres, por sua vez, não são assim tão medrosas,
mesmo quando afirmam o contrário. Elas seriam, sim, é meio sem-vergonha,
pois nada tinham a perder quanto àquilo – já lhes tinham cortado mesmo – e, no
fundo, se os meninos não tomarem conta, elas seriam mesmo umas putinhas...
É claro que estou fazendo uma caricatura, mas é exatamente assim a famigerada
teoria da castração. Eles, coitados, teriam que passar o resto de suas vidas
mostrando o pau precário e ameaçado que supõem ter, botando o pau na mesa,
como se diz em brasileiro, e elas, também coitadinhas, com inveja do pau que
não têm para mostrar nem para botar na mesa. Protesto macho e inveja do
pênis – a estas duas coisas conjuminadas Freud chamava: o rochedo da cas-
tração. Ele achava que é impossível conduzir suficientemente longe qualquer
análise, porque os rapazes jamais vão abrir mão de mostrar o seu e dizer ‘sou
eu que mando’, ou ‘não aceito sua interpretação’, e porque as moças sempre
ficarão com inveja daquilo e dizendo ‘você está dizendo assim só porque você
é macho – e se eu também tivesse um pênis você então ia ver como é que
ficava’. E, segundo Freud, isto acabava com a possibilidade de uma análise
chegar até o seu fim.
É claro que um grupo considerável de pessoas ligadas à psicanálise, no
próprio registro da sociedade psicanalítica, até com Freud ainda vivo, sobretudo
mulheres brilhantes como Melanie Klein, Karen Horney e outras – inclusive
Ernest Jones, que é um espanto que tivesse se arrostado com Freud –, se
rebelou e contestou que não é assim que funciona, pois as meninas sabem
muito bem que têm vagina, e que algumas até mesmo se masturbam
vaginalmente, etc., etc., etc. Para estes, Freud estava se referindo a algo da
ordem de uma neurose já ali instalada, e não a algo primário (primário, no
sentido deles, não no meu). Mas os argumentos que propunham contra, eles
eram, a meu ver, tão ruins quanto os argumentos de Freud: tem/não- tem, elas-

125
A Psicanálise, Novamente

sabem-que-têm/eles-sabem-que-não-têm, ou muito pelo contrário – numa bri-


ga que não tinha a menor chance de sair do mesmo lugar. Como o poder estava
por inteiro na mão de Freud, a coisa não teve outro jeito senão descambar
definitivamente para o seu lado. Na verdade, aqueles outros nunca abriram
mão de uma vez por todas de suas posições e continuam até hoje com alguns
poderes no estado psicanalítico.
Passados algum pouco tempo e centenas de psicanalistas, eis que apa-
rece um chamado Jacques Lacan, que vive participantemente um momento de
grande florescência intelectual e política na Europa, eclodido sobretudo na França
com a criação de um pensamento novo chamado estruturalismo. Ele resolve
refazer inteiramente o modo de leitura do projeto psicanalítico sobre os apare-
lhos disponibilizados pelo estruturalismo antropológico, lingüístico, etc., e faz
uma reforma radical, mesmo brilhante, conseguindo tornar mais abstratas as
colocações freudianas, como se fosse uma retomada ipsis litteris, como ele
mesmo dizia, à la lettre, dos escritos de Freud. Abandona bastante a idéia de
Édipo, reescreve o conceito de diferença sexual, toma o inconsciente como
linguagem, mas acaba por aderir ao mesmo partido do velho Freud.
Em seu projeto, Lacan afirmava mesmo que, como as coisas estavam
sendo desviadas em relação ao que Freud efetivamente dissera, ele estava
colocando tudo no lugar em que Freud verdadeiramente colocara, e não como
faziam, e erroneamente, aqueles que desde então o contestavam. Assim, Lacan
rearrumava tudo, entretanto, como disse, re-sustentando a diferença anatômica
como capaz de forçar no psiquismo a pregnância maior de determinado ele-
mento, que não é senão o chamado pênis, que comparece mais pregnantemente,
que é o manda-chuva e que as meninas efetivamente não têm. Freud supunha
que esta era a teoria sexual que as crianças faziam e que, portanto, esta era a
idéia que lhes ficava no psiquismo. A diferença sexual era isto, o complexo de
castração, e, para arrumar tudo, teríamos a prevalência, a preeminência, a su-
perioridade, pelo menos como pregnância visual, do invencível pênis imaginá-
rio, que ele então apelida com o nome grego de Falo. A idéia não era de que se
estivesse falando diretamente do órgão sexual, mas sim do imaginário do pênis

126
O sexo e a morte

em ereção, novo pithecanthropos erectus substituto, elevado à categoria de


indicador do homo psychologicus. Sem ereção, aliás, não vale, pois aquilo não
tem muito caráter, fica sem a pregnância imaginária, e depois simbólica, que ele
queria que tivesse. Então, hojendia, toda a questão gira em torno desse troço. A
estrutura analítica do próprio Freud vai centrar-se nesta questão e, embora haja
muitos com outras linhagens, isso vai bater ponto a ponto no Doutor Lacan, que
foi meu mestre e analista, e que hoje está em plena e grande moda no Brasil
(não sem clara mea culpa), com a roupagem da mesmíssima fantasia.
Lacan faz um trabalho inteligentíssimo partindo da mesma pregnância
visual do tal Falo imaginário. Ele porá que isso com que nos deparamos é o falo
imaginário, que os meninos têm e as meninas não. A diferença sexual se daria
aí estritamente na relação: tem o Falo / não tem o Falo. Aquelas mulheres e
outros analistas se rebelaram porque pensavam que se os meninos têm um
pênis, as meninas têm uma vagina, mas, em Freud, é presença e ausência da
mesma coisa, ou seja, atribuição de presença e ausência ao Falo. Esta é, aliás,
a idéia fundamental do que Lacan chama de Simbólico, em contraposição ao
Imaginário das figuras, das pregnâncias diretas, e ao Real das coisas que
pegamos. Eu, não sei se podemos chamar a isso de Real. Não sei – e ninguém
sabe – onde passa a fronteira entre Real e Imaginário, mas Lacan finge que
sabe. E o que chama mesmo de simbólico, lingüisticizando um pouco a psicaná-
lise, é essa atribuição de presença e ausência ao Falo. Simbólico é sinal (+)
para os homens e sinal (-) para as mulheres, ou também seus simples nomes ou
figuras representativas inscritos nas portas dos mictórios. Mais e menos o quê?
O tal Falo. Entender isto é fundamental, é crucial, na escolha de um teorema
psicanalítico, pois aceita-se isto, ou simplesmente não. Para não restar tenden-
cioso por trás do que estou dizendo, adianto logo que fui freudiano, fui aluno de
Lacan, acreditei nisso tudo e, depois de muita experiência, não acredito mais.
Não aceito o teorema da castração como é colocado, mas os meus não são os
argumentos daqueles e daquelas que foram contra Freud, e afirmo que o Falo,
assim colocado, na verdade acabou por se tornar um fetiche da psicanálise.
Se retornarmos isso para Freud e Lacan, poder-se-ia dizer que a psicanálise

127
A Psicanálise, Novamente

pode parecer uma atividade perversa cujo fetiche é esse Falo mais ou menos
obsceno que comparece o tempo todo como eixo, pivô fetichista do discurso
psicanalítico.
Vivemos, então, uma situação social historicamente posta que, como
todos sabem, é cheia de afetações relacionadas a séculos, se não milênios, de
repetição sintomática e que, mais recentemente, com a ajuda do desenvolvi-
mento tecnológico, começa a implodir. As mulheres, por exemplo, foram domi-
nadas durante longo tempo, não necessariamente pelos homens, mas por uma
idéia ou uma inadimplência de força. Precisamos lembrar que elas estiveram
milênios sem poder ter uma ação efetiva porque deviam estar sempre grávidas;
e além disso, morria-se muito cedo. Fica difícil ter capacidade de luta, qualquer
outra ou política, carregando aquela barriga e morrendo tão jovem.
De tal maneira que nos encontramos hoje numa civilização nitidamente
racista por ter feito a suposição de que certas formações biológicas são piores
do que outras só porque perderam alguma guerra por questões de tempo, de
força, de posse de armamento, e outras tantas coisas que tais. Assim, podemos
dizer que quanto a essas coisas há três sintomas graves em nossa cultura:
racismo; machismo (que podemos chamar de falicismo: os homens são, as
mulheres não); e heterossexualismo (a idéia de que o sexo existe estrita-
mente para a reprodução – aliás, qual seria mesmo o seu oposto?). São três
grandes sintomas da cultura nesses milênios últimos vividos por nós.
Estamos agora num momento em que tudo isso está implodindo, e cada
vez mais. E uma das objeções que se pode fazer aos teóricos, mesmo a Freud
e Lacan, é que uma teoria construída sobre o complexo de castração pode ser,
não o erro redondo de se mentir a respeito da repetição de um sintoma – ou
seja, é provável que, com muita freqüência, encontremos o sintoma assim des-
crito (o que não significa que seja estrutural e muito menos natural) –, mas
simplesmente um sintoma que está historicamente fundado por aí. Ele é tão
pregnante que é claro que o encontremos como sintoma. Portanto, é para ser
analisado, e não para se acreditar que é mesmo assim. É apenas mais uma
neura na humanidade. Estamos vivendo, então, um momento em que, por exem-

128
O sexo e a morte

plo, as reações das mulheres, as ondas feministas, cada vez se tornam mais
sutis ao mesmo tempo que mais fortes. Há evidência de que, quando se dá a
mesma oportunidade, elas se realizam em igualdade de potência. Dada a
tecnologia correta, não há diferença entre as competências das mulheres e
dos homens. Elas podem perfeitamente ir para a guerra e dirigir um submari-
no atômico. Há também a idéia, que as feministas ajudaram muito a fazer
comparecer, mas que também outros modos de comportamento, como a cha-
mada revolução sexual dos anos 60, trouxeram à tona, de que a sexualidade
não é algo feito para reproduzir. Depois que houve a queda do conceito de
instinto na etologia e se viu que os ditos instintos materno ou de reprodução
são programas que se deslancham, cada vez se descobrem coisas mais múl-
tiplas de que éramos ignorantes a respeito dos animais. Imaginem, então, a
respeito da espécie humana.
Muitos biólogos entendem que o modo de reprodução sexuada é uma
das coisas mais idiotas que já aconteceram na face do planeta. Custa caríssi-
mo, é um desperdício enorme, e não se sabe por que esse modo acabou ven-
cendo numa espécie tão diferente como a nossa. Do ponto de vista biológico, é
um modo meio perdulário, mesmo porque estamos a ponto de, mais economica-
mente, poder abolir a reprodução sexuada nos laboratórios. Mais algum tempo
de pesquisa, não só poderemos produzir clones, como faremos filhote de fulano
com sicrano ou beltrano, à vontade, sem nenhuma participação de sexualidade
no sentido do nhéco-nhéco conhecido. Estamos então num momento em que
tudo isso tem que ser questionado. Há hoje pesquisas de campo que nos dei-
xam estarrecidos. Vejamos uma, que ajuda a derrogar a idéia de complexo de
castração e que atinge as causas admitidas de perversão sexual, fetiche, ho-
mossexualidade, etc., em que não podemos mais acreditar com a mesma faci-
lidade e tontice de antigamente. Um livro saído agora no EUA, há dois ou três
meses, Biological exuberance: animal homosexuality and natural diversity,
de um cientista chamado Bruce Bagemihl, vem demonstrar inúmeras falhas
quanto ao que se pensava sobre o programa etológico dos comportamentos dos
animais. Pensávamos que, em todas as espécies, havia um etograma referido à

129
A Psicanálise, Novamente

reprodução da espécie e que, por exemplo, não haveria homossexualidade ani-


mal. Poderia, muito raramente, ocorrer, mediante um defeito cerebral ou coisa
assim. Mas esse autor demonstra que a homossexualidade é amplamente dis-
tribuída pelo mundo animal. Portanto, o programa não é necessariamente
reprodutivo. Parece uma bobagem, mas balança inteiramente o velho coreto,
porque as formações na espécie humana não são necessariamente perversas,
podendo ser formações disponíveis mesmo no que chamo de Primário.
Freud já acreditava em bissexualidade (herdada de Krafft-Ebing) e em
‘predisposições’ para várias coisas, mas, ao mesmo tempo, acaba fundando a
teoria da castração – e sobre o material precário que encontrou – e congelando
o sistema. Ele chega mesmo a chamar a homossexualidade, por exemplo, não
de uma formação como outra qualquer, mas de formação perversa em função
dessa teoria tão precária da sua ‘castração’. E não dá mais para aceitar isto
hojendia, sobretudo diante de pesquisas que demonstram que a coisa é assim
disseminada mesmo entre os animais. Por que ninguém notava isso antes?
Porque ninguém estava interessado em saber, era feio tocar naquilo. Um cien-
tista macho – e a maioria era de machos – ficava preocupado em tratar de
homossexualidade animal e o seu pessoal achar, por exemplo, que ele fosse
veado. Então, não se falava no assunto para ninguém notar que eventualmente
o próprio cientista poderia estar pordemais envolvido. Ou então tinha o precon-
ceito de tal maneira assentado na cabeça que, quando encontrava uma transa
homossexual entre animais, chamava de heterossexual, denegando mesmo por
vezes a evidente diferença anatômica. A lógica facilitadora de tal denegação
era a seguinte: se há um animal trepado por cima do outro, logo o de cima é
macho e o de baixo é fêmea – o que era facilitado, quem sabe, pelo hábito (ou
será vício?) sexual daquelas épocas em que mesmo um cientista ‘bem forma-
do’, em matéria de posições, não ousava a imaginação para além do papai-e-
mamãe moralmente recomendado. Logo, não ia olhar bem de perto para ver se
era mesmo de sexos diferentes que se tratavam: era assim, por definição. Nem
com as posições se pode mais brincar, porque a posição define o sexo... Como
vemos, trata-se de uma ‘ciência’ da pior qualidade. Mostra-se, então, que, uma

130
O sexo e a morte

vez detectado o fenômeno de distribuição ampla de um comportamento que


parece estar mais disseminado do que se esperava e que não obedece à nossa
suposição de programa, isto desinstala todo o processo no próprio campo da
humanidade: não pode ser pelas razões que os tais cientistas afirmavam.
Nossa posição é a de derrogar o Falicismo. Não é possível uma soci-
edade deixar de ser racista se, no âmago de sua própria idéia do que seja, por
exemplo, diferença sexual, ela continua viciosamente machista. Há um sintoma
que finalmente empuxa todas as coisas: portanto, uma sociedade machista, em
última instância, terá o viés de ser coerentemente racista. Há, então, na con-
cepção teórica, que acabar com o Falicismo – o qual não é, afinal, outra coisa
senão o racismo de tal teoria psicanalítica. Não acabar com ele no folclore
social porque, propriamente, é uma invenção teórica e política, logo tem condi-
ção de acabar sozinho pelas lutas políticas, mas sim retirar sua pressão do seio
da teoria para que se possa pensar melhor o do que ele aparentemente tratara.
Há, como disse, argumentos de inúmeros psicanalistas contra o Falicismo, mas
são argumentos que valem tanto quanto os de Freud: fica difícil operar por aí,
pois é a palavra de um contra a do outro. Mas, nós outros, não precisamos
desses (mesmos) argumentos. Em primeiro lugar, não há prova de campo so-
bre a preeminência do Falo em lugar algum. A psicanálise tem só cem anos, é
muito jovem, e se juntarmos os psicanalistas do mundo, mesmo que digam ter
encontrado o que Freud disse na maioria de seus casos clínicos, podemos acre-
ditar, já que o campo social está politicamente subdito a essa ordem de pensa-
mento. Ou seja, encontram o sintoma que existe por aí mais disponível, e, além
disso, o grosso dos psicanalistas é uma minoria, de modo geral pertencente à
média burguesia, com todos os seus cacoetes, como de sobejo se sabe. Pergun-
tem, por exemplo, quantos analisandos negros eles têm. No Brasil, os negros
vão ao Candomblé falar com o Pai-de-Santo, e não ao Psicanalista. É, portanto,
uma experiência que não temos muito bem percorrida e formulada.
A estatística é ruim e, mais, a definição da preeminência do Falo se
baseia na declaração querigmática de Freud de que de fato era assim. Não
encontramos em texto de analista algum do mundo a prova disso. O que fazem

131
A Psicanálise, Novamente

é um processamento teórico onde mostram casos de análise em que o analisan-


do supostamente se comportou direitinho segundo a ordem da castração
freudiana. Mas terá o analisando se comportado assim, ou o analista forçou a
escuta para que o analisando coubesse na teoria? Este é um problema sério,
pois é preciso isenção a respeito do que se está ouvindo numa análise, e não
reduzir imediatamente o que (não) se ouve ao esquema teórico pré-dado e pré-
datado. Mesmo em Freud – e um dia teremos acesso a seus arquivos – pode-
mos já ver que o que se escreve como teoria não tem muito a ver com o que se
faz no consultório. Mas a intenção de luta política para fazer a psicanálise
vencer era maior do que a intenção de precisão a respeito do acontecido. A
humanidade é assim, e não sei por que ele seria pior do que os outros. Há que
ter cuidado extremo porque somos sempre tendenciosos, sobretudo quando
estamos numa luta política de implantação de pensamento novo. Forçamos
bastante a situação para que se afigure como queremos, e as análises ficam
constituídas de tal modo que parece que não há a menor chance de saída. Ou
seja, se o aparelho está fechado, as interpretações se dão na base do “se correr
o bicho pega, se ficar o bicho come”. Tudo depende do aparelho que se utiliza.
Em primeiro lugar, então, não há prova de que, mesmo a cultura funci-
onando de modo a dar preeminência ao Falo e ao machismo, todas as análises
sejam assim. Logo, não é universal. Em segundo lugar, não é reconhecido uni-
versalmente pelos analistas, portanto, menos universal ainda. Em terceiro lugar,
mesmo que compareça na maioria, pode fazê-lo pelos seguintes motivos: por
saturação cultural, o que é uma verdade; como função analisável, sua rein-
cidência não sendo por estrutura, e sim por falta de análise (se analisada para
valer, pode mudar). Mas como pode um analista, ele próprio gerido em sua
neurose pela estrutura da castração, modificar isto no analisando? É o caso de
Freud, que falou em “rochedo da castração”. O rochedo é da castração do
analisando ou da dele? Ou seja, nesse terceiro lugar, temos que o sintoma pode
ser do analista. Dado tudo isto, não acreditamos na universalidade da estrutura
da castração e, do ponto de vista da postura que chamamos , ainda
há um quarto argumento. Para nós, pouco importa toda e qualquer sintoma-

132
O sexo e a morte

ção, inclusive esta da ordem da castração, porque o projeto é, como mostrei,


partir de um conceito fundamental que se propõe como axioma – o conceito de
Pulsão, ‘Haver desejo de não-Haver’, A→Ã –, o que faz uma reversão de
vetor, e considerar toda formação como sintomática. Ou seja, a Nova Psicaná-
lise não tem compromisso com a ordem sintomática porque inverte a questão e
parte do recurso último, que chamamos de Originário, e do conceito de Revirão.
Portanto, o significante do desejo não se chama Falo, como quis Lacan.
Chama-se Desejo mesmo, Tesão, Libido, o que quiserem neste sentido. Se a
estrutura que Lacan chama de simbólico é, em última instância, da ordem do
positivo e do negativo – ele diz que é presença e ausência da mesma coisa, o
Falo, o que não cabe em nosso caso –, a estrutura mínima que daí podemos
tirar é, sim, de uma postura e seu contrário. Isto não é presença e ausência de
algo que mora no interior das pessoas, o Falo, mas simplesmente o avesso
catóptrico de duas posições, algo e seu radical oposto, em função de seu Ter-
ceiro lugar, que não tem nenhuma configuração interna em nossos corpos. É
simplesmente o lugar desde onde as duas posições são vistas com isenção em
sua pura diferença opositiva. Então, não há um Falo presente ou ausente, mas
sim uma Pulsão, um Tesão, que se afirma em defrontação com algo que não-
Há. Tudo se unifica porque o outro lado não há. E no que se unifica aí
dentro, temos sim presença e ausência dessa afirmação, seja qual for a anato-
mia. Isto faz uma diferença radical, pois não se trata de um Falo com sua
presença e ausência, e sim a positividade da Pulsão, que não tem avesso por-
que o não-Haver não há, e sua distribuição opositiva na ‘internalidade’ do mun-
do, seja qual for a configuração que tenha no Primário das coisas (nas carnes,
etc.). Os argumentos dos analistas anteriores que também se contrapunham a
isto se baseavam, como Freud, na anatomia e não servem para muita coisa.
Nossa leitura é da última instância para cá. Se há formação, é sintomática. Se
há oposição, é porque há um avesso radical de diferenças entre uma única
vertente positiva, que não se desenha anatomicamente e se chama Tesão. Te-
são não tem retrato, não tem configuração. Isto faz uma mudança radical em
todo o aparelho teórico, o que é bom para sermos menos ridículos. A psicanáli-

133
A Psicanálise, Novamente

se está se tornando ridícula neste final de século – que nos traz tantas mani-
festações a porem em crise essas tolas afirmações anteriores. Precisamos,
sim, de um aparelho teórico que torne a psicanálise consentânea com o mundo
que está vindo por aí.
Estamos assim novamente diante da questão da sexuação. Se não é a
diferença anatômica que a sustenta, então como fazer? O desenvolvimento do
próprio Lacan em relação à sexuação, que é algo tardio em seu teorema, se dá
na sustentação dos teoremas do Falo e da castração, mas no que aí se abstrai
a sexuação, mesmo em relação à própria castração, ele não pode não se perder
da configuração anatômica. Ou seja, continua insistindo na preeminência, na
maior pregnância, do Falo, do tal penis erectus, para a partir dele equacionar
presença e ausência – isto é, entrar no regime do simbólico – e organizar a
sexuação. Mas quando organiza logicamente a sexuação, mesmo partindo dessa
configuração básica do imaginário do sexo, ele abstrai de tal forma que, por
causa dessa abstração da referência anatômica, não pode não se perder. Os
lacanianos dizem que ele partiu da mesma estrutura de Freud, mas que abstraiu
de tal maneira que não há mais a pregnância anatômica e os comportamentos
de homens e mulheres já não têm uma fronteira nítida. Isto, digo eu, pouco
importa porque o princípio continua sendo o mesmo. Por isto, por mais que seja
uma fórmula abstrata, quase matemática, ele chama os divididos por sua nova
sexuação de homens e mulheres, porque, no fundo, a configuração é imaginá-
ria e continua se tratando de pênis e não-pênis, erectus de preferência. Lacan,
então, depois de Freud, baseado na mesma fórmula – presença e ausência de
pênis –, diz que isto é o que configura o nosso simbólico, digamos o psiquismo.
Chamo atenção para isto, pois é daí que sai todo o erro.
Se esse tal simbólico pode se configurar como positivo e negativo,
não é necessariamente como presença e ausência. Pode simplesmente ser
afirmação de algo e seu radical oposto enantiomórfico. É a radical simetria de
duas formas, tal qual se coloca para a física moderna e para quantos místicos e
filósofos. Mas Lacan parte do mesmo lugar de Freud e tenta formular uma
lógica nova, estritamente da psicanálise, para arrumar a sexuação. Ou seja, em

134
O sexo e a morte

emulação com Aristóteles, procura constituir uma lógica da psicanálise com


fundamento na castração. Como sabem, Aristóteles diz que, se “existe cane-
ta”, quando pudermos dizer “toda e qualquer caneta”, o universal será uma
generalização dessa primeira existência. Isto é, generaliza-se a idéia de que
“existe pelo menos uma caneta” e funda-se um universal, que é “existe cane-
ta”. Lacan por sua vez diz que a lógica da psicanálise não pode ser esta, pois
não é a generalização da existência que para ela põe o universal. Para ele, a
lógica da psicanálise é a lógica da castração tal como Freud a colocou. Vol-
tando à estorinha do menino-tem-pipi / menina-não-tem-pipi, esta lógica da cas-
tração se imporia em função de os homens – e é assim mesmo que Lacan o diz
– serem aqueles que têm medo da castração. Como têm o famigerado pintinho
e morrem de medo que lhes arranquem, eles acham que “existe pelo menos um
que diz não à função fálica”, ou seja, ao seu tesão, e conseqüentemente à sua
masturbação. Como têm o pipi e o papai diz “se você continuar com a mão aí,
eu o corto fora!”, existe pelo menos um que diz “não” para que todos possam
usar o tesão à vontade, mas dentro desta lei de proibição. Eles passam a vida
inteira com medo disto e só se cria o universal todo x é função fálica ( x Φx)
porque existe pelo menos um que diz não a essa função (∃x~Φx). E para as
mulheres, que já perderam mesmo, não existe ninguém que diga não
(~∃x~Φx), com a conseqüência de que o universal não existe, é negado, não-
todo é função fálica (~ x Φx). Assim, A Mulher não existe, só existem
mulheres (quer dizer, no plural: é a lógica do serralho). Não podemos dizer A
Mulher porque as mulheres não fazem um universal. Isto tudo se escreve assim:
Homem: ∃x~Φx → xΦx
Mulher : ~∃x~Φx→~ xΦx
Esta é a lógica do paradoxo de Bertrand Russell que formula o seguin-
te: uma pequena cidade tem um barbeiro que faz a barba daqueles que não
fazem a própria barba, então, quem faz a barba do barbeiro? O paradoxo é: se
fizer a própria barba, não estará fazendo a própria barba, já que faz a barba de
quem não a faz. E se não fizer, então faz, pela mesma razão? Então isto não
tem solução. E é este paradoxo de Russell que organiza tanto a fórmula Ho-

135
A Psicanálise, Novamente

mem: todo homem, tendo um externo que diz não, que fecha o circuito, faz
um universal; quanto a fórmula Mulher: se as mulheres não têm um de fora
para fechar o circuito, não existe toda mulher, pois não se pode fechar o
seu conjunto.


H M

Mas como Lacan chamou estas fórmulas de homens e mulheres, mesmo que a
idéia inicial seja referência à castração, ele fica numa situação difícil, pois tem
que reconhecer que muitos que têm pênis são mulheres e muitos que não o têm
são homens, dada a relação que tais indivíduos tiverem com a castração. Ele se
dá conta, por exemplo, de que alguns grandes místicos, alguns pensadores,
alguns artistas, alguns escritores, São João da Cruz, por exemplo, são mulheres,
e ainda mais como ele diz: coloquem na lista o próprio Jacques Lacan. Racio-
cinando assim, na medida que extrapola essa configuração da lei, ele mesmo é
mais uma mulher. Aí Philippe Sollers escreve um romance, Femmes, que já
está traduzido em português, Mulheres, cujos personagens principais são Lacan,
Foucault, Barthes, ...etc.
Afinal, Lacan não podia não cair nessa, já que partiu daquela lógica de
castração. É justamente este raciocínio que para meu uso não quero mais, pois
se suspendermos a teoria (neurótica) infantil da castração, tudo isto vai para o
beleléu. Nossa posição é o teorema da Pulsão: o que há é desejo de não-Haver,
no psiquismo. E não-Haver não há. Então, não adianta desejá-lo, a não ser por
insistência no Impossível, mas este jamais comparecerá. A libido quer o Impos-
sível para conseguir (tudo) o que é possível – mas justamente não conseguirá o
Impossível. Não há passagem a não-Haver com presença gozosa nessa passa-
gem. Se fizermos a idéia absurda de a conseguir, então seria o Gozo Absoluto
que às vezes alguns supõem ser o gozo na (ou da) morte. Na morte, se a
gozássemos absolutamente, conseguiríamos (tudo) o que desejamos, que é o

136
O sexo e a morte

não-Haver, mas não há o lugar desde onde se possa conseguir tamanha proeza,
tamanha façanha.
Em não havendo esse lugar, mantendo-se os elementos das fórmulas
de Lacan e chamando a função fálica de Tesão, vamos supor que realmente
passássemos a não-Haver. Como seria a estrutura desse gozo? Depois dele
teríamos que dizer que não existe mais Tesão (~∃xTx). E se aí não existe mais
Tesão, podemos concluir que, neste caso, todo Tesão, isto não existe, aí todo
Tesão é nulo ( x~Tx). Está aí o universal do não-Tesão. Como só se goza-
ria desse modo na Morte (se ela houvesse), e isto não acontece, posso dizer: A
Morte Não Há.
Vocês podem ficar um tanto perplexos, pois estão cansados de ver
necrotérios, cemitérios, gente que morre, atestados de óbito, mas que experiên-
cia efetiva algum de nós tem mesmo da Morte? O que chamamos de Morte é
na verdade uma experiência de perda, quando notamos que um ente querido
apagou, não diz mais nada, não se mexe, e sobretudo não respira. Mas experi-
ência de Morte nem mesmo o morto a tem. Antes de chegar a Ela, ele já se
ausentou. É claro que a humanidade, não sabendo resolver a questão, inventa
todo tipo de passagem para supor a esta ocasião: vai-se para algum Céu, para
algum Inferno, para algum Purgatório, ou se resta perdido nalgum Limbo, ou se
fica no espaço e se baixa quando invocado, mas nunca tivemos realmente algu-
ma experiência de um morto efetivamente nos falar – com provas e tudo.
Quando algum ‘baixa’ e lhe diz algo ‘que só você sabia’, é preciso considerar
que existem muitas questões difíceis quanto ao psiquismo e que não sabemos
ainda nada sobre os nível de transmissão e de reconhecimento entre duas pes-
soas. Uma coisa é certa: não conhecemos a Morte. Então, na pujança, no
Tesão de querer não-Haver, o que aí há é uma sexualidade, uma secção (es-
crevam sexão), isto é, um tipo de gozo a que aspiramos mas que jamais com-
parece, que depende do Sexo da Morte – e do suposto gozo, aliás absoluto,
que deste sexo teremos podido obter, caso atingíssemos mesmo, em presença,
a Morte que se requer. Se Ela não comparece, o que comparece então? Se ao
invés de o Tesão acabar, – ‘não existe mais tesão’ –, se simplesmente existir

137
A Psicanálise, Novamente

Tesão, Libido, Pulsão, que resultado teremos então? Lembrem que a lógica
que estou aqui aplicando não é aristotélica (se o fosse, o que se diria neste
caso é: ‘se existe tesão, todo tesão é tesão’), pois o princípio agoraqui em
exercício é o de que o Tesão está voltado para o que não-Há e que, portanto,
não vai comparecer e subseqüentemente não será alcançado e conseqüente-
mente o Tesão permanece, o mesmo Tesão (∃xTx: aquela afirmação que
Aristóteles supunha fundamentar a possibilidade de universal), quase que ne-
gado (segundo seu empenho em não-Haver), mas só negado em sua intenção
e portanto eternamente re-tornado: para o mesmo não-Haver jamais en-
contrado. Assim, o que efetivamente comparece só se escreve logicamente
como: o Tesão pode ser negado, mas não-todo (~ x~Tx). O tesão pode
ser negado no nível do desejo dessa negação, mas não efetivamente para
aquele que assim desejar. E é fácil de se ver que isto não faz nenhum uni-
versal. Ou seja, podemos colocar anteparos, proibições, desvios à Libido,
mesmo desejarmos o seu fim, em conformidade com ALEI, mas não consegui-
remos eliminá-la, eternamente, jamais. E estes são o sexo e o gozo funda-
mentais de qualquer um de nós. Em outro lugar eu já disse que o nosso é
O Sexo dos Anjos: os anjos somos nós, independentemente do sexo que
portemos como diferença anatômica: fundamentalmente, nosso sexo é este,
angelical. A sexualidade de nossa espécie, no sentido de seu modo funda-
mental de gozo, é esta, qualquer outra é sua derivação. Se quiserem, podem
também chamar de Sexo da Gente ou Sexo Resistente, como prefiro, (isto
é, aquele que resiste à própria vontade de extinção).
Como se manifesta mais efetivamente em nossos gozos cotidianos esta
sexualidade em aberto, que pode ser negada, mas não-toda? De duas manei-
ras, que se escrevem, agora sim, com as fórmulas de Lacan para a sexuação.
Ou bem, primeiro caso, existe uma negação de certo Tesão. Isto se faz medi-
ante posição de um limite por uma marcação, que é dizer: meu Tesão está
nisto, gozo com isto e, quando gozo, a coisa termina (∃x~Tx). Com isto se
consegue aparência de universalidade em torno do pivô de que todo Tesão é
Tesão ( xTx). Pura afirmação. Este, que é o sexo Homem, de Lacan, é o que
chamo de Sexo Consistente. Ou bem, segundo caso, não demarco muito

138
O sexo e a morte

bem meu gozo, gozo pelas tangentes, a coisa fica em aberto e não sei nem
dizer, com alguma certeza, se gozei ou não gozei. As Mulheres, segundo Lacan,
só dizíveis no plural, pois não fazem nenhum universal, seriam as titulares deste
sexo. Mas que mulheres? Não necessariamente as reconhecíveis pela anato-
mia, pois muitos homens, no sentido anatômico, é assim que eles gozam com
freqüência. Aí, o que logicamente se escreve é que não existe nenhum limite
que circunscreva este gozo (~∃x~Tx), portanto, fico numa situação absoluta-
mente aberta (~ x Tx). A este, chamo de Sexo Inconsistente.
Na formulação de Lacan, por causa da teoria (infantil) da castração
embasando o desenvolvimento de sua lógica, confundem-se formas, modos de
gozo, que podem ser para mulheres e para homens, e se chama um de Homem
e outro de Mulher. É isto que nossa posição vem derrogar, pois isto nada tem a
ver com Homem e com Mulher. Gente é assim. E, sendo assim – porque é
assim –, subdivide-se esse gozo que pode ser limitado, mas não-todo, em duas
maneiras: com Consistência e com Inconsistência. Nas experiências de gozo,
inclusive no nível orgásmico – pois gozo passa por muitos níveis: psíquico, esté-
tico, etc. –, notamos que há uma tendência mais para um lado do que para
outro, mas não é pouco freqüente que se reconheça que há uns gozos meio
dispersivos e outros muito concentrados. No tempo de Freud, chamava-se um
de meio feminino ou místico e o outro de perverso, mas não mais precisamos
destas palavras, pois homens e mulheres são da espécie que goza do (ou no)
Sexo Resistente, pois do (ou no) Sexo da Morte, o que chamo de Sexo
Desistente, simplesmente não dá para gozar. Nosso gozo, Resistente, se ma-
nifesta, então, necessariamente, ou bem consistente ou bem inconsistente-
mente. Então, escrevamos assim:

139
A Psicanálise, Novamente

Homens e Mulheres não são senão o animal que somos, o qual, por
uma questão de ordenação na história biológica de sua produção, apareceu por
aí como Macho e Fêmea. Na concepção de nosso psiquismo, que está liberto
disto e é capaz de produzir cada vez mais próteses, o que temos nós a ver com
isto? O que tem a ver com isto a mente que é capaz de, mesmo sem conseguir,
requisitar o que quiser? Que limitação é essa que nos impuseram? Na verdade
ou, como se diz, no fundo no fundo, ninguém da espécie humana a aceitou até
hoje. Tanto é que se inventam comportamentos sexuais que não estão limitados
nem pelo sexo anatômico, nem por esses modos de gozo. Usamos dos sexos
anatômicos, desses tais modos de gozo, e de mais zilhões de coisicas da cultura,
da verve da inteligência, da multifariedade das formações disponíveis, e de
todas as próteses que conseguimos inventar. Já visitaram uma sexshop? São
ruins, são pobres, não têm quase nada de boa invenção. Mas elas existem, e o
que lá se encontra não foi produzido por cães ou gatos, mas por gente como
nós. Mas nota-se ali, de qualquer forma, uma redundante falta de imaginação.
Esquecemo-nos, por exemplo, de que uma sinfonia pode fazer parte dos artigos
de uma sexshop. Um Beethoven pode ser um tesão, faz parte dos interesses
da sexualidade humana. Aliás, que música vocês colocam para transar? As
pessoas sempre sabem qual música as leva onde querem. E a cor, qual é? São
fenômenos estéticos, culturais, no sentido mais geral, de que nos esquecemos e
pensamos que se trata apenas daquela anatomia idiota, a qual, na verdade, é
até mesmo dispensável. Alguns são tão refinados que a dispensam de fato – e
procuram outras vias para gozar.
Assim, a sexualidade humana, em seu modus operandi, vigora nas
múltiplas interseções entre as formações do sexo anatômico, da sexuação do
gozo e de quantas outras formações intervenientes em cada caso sexual. Seria
preciso analisar caso a caso, pois na verdade não há regra pré-estabelecida. Só
há todo esse jogo. Então, a disponibilidade, até segunda ordem, é de que temos
dois aspectos anatômicos, esses modos de gozo e uma porção de outras coisas,
mormente de caráter estético. Isto que aqui coloco, obriga a psicanálise a mu-
dar de rumo e não mais aplicar previamente, antes de qualquer consideração

140
O sexo e a morte

de caso, aparelhos edipianos, ou de diferença sexual, seja para que lado for.
Não pode permanecer sem se dar conta de como funciona efetivamente a
cada caso, inclusive com a sintomática e as pressões da cultura, com os sinto-
mas pessoais, etc. Repetindo: cada caso é um caso. E cabeça de analista
não é lata de lixo das formações culturais. Ele tem que ter a mente capaz
de abertura suficiente para poder escutar cada sintoma em sua peculiaridade –
e não projetar Édipos e outras estorietas sobre pessoas que eventualmente
nada têm a ver com isso.

• Pergunta – Como é isso na prática?


Na prática, é muitas coisas. Se retomarmos a história da prática analí-
tica, encontraremos algo detestável porque não leva a lugar nenhum, que é uma
grande quantidades de analistas, Lacan inclusive, retomar casos freudianos
para re-analisar em função de seu próprio aparelho teórico. Cada vez mais
podemos verificar que Freud não anotava nada durante suas sessões, anotava
depois, com sua memória e naturalmente com suas intervenções. Ou seja, ao
anotar, já o fazia dentro, a partir de seus princípios, e aí já houve deformação.
Muitos analisandos seus, quando narram seus próprios casos a pesquisadores,
mostram que Freud disse algo a respeito deles que não lhes parece que foi
aquilo mesmo que aconteceu. Eles podem ter-se enganado, é claro, mas Freud
também. Então estamos lendo casos narrados por Freud com interesse em
demonstrar suas idéias. Não que ele fosse desonesto, mas a pressão sintomá-
tica o levaria certamente para lá. Além do mais, não temos o depoimento do
cliente, só temos o que Freud disse. Não terá ele feito escolhas dentre os aconte-
cimentos da análise para melhor encaixá-los? Ele nos repassa tudo que aconte-
ceu ou nos passou, e até mesmo já escutou, do jeito que pôde ? Então, se já é
precário o texto de Freud a respeito de um analisando, imaginem o texto de
alguém a respeito do texto de Freud a respeito do texto do analisando...
Lacan, por exemplo, toma um caso de Freud sobre homossexualidade
feminina e empurra a demonstração para a questão da castração. Quando
lemos seu texto podemos verificar que ele passa rapidamente por cima de

141
A Psicanálise, Novamente

algumas coisas sem a menor explicação. Diz ele, por exemplo, deste caso, que
“há uma completa reversão: o pai simbólico passa a pai imaginário” e vai em
frente. Mas que reversão é essa? O que aconteceu no psiquismo? Chama-se
Revirão. E não foi talvez reversão de pai simbólico a pai imaginário. Foi,
sim, mais provavelmente talvez, uma moça que parecia funcionar segundo o
gosto da família – com tendências heterossexuais no sentido de vir a se casar,
ter filhos, dar netos para seu papai e sua mamãe – e que, de repente, pela
pressão de desencanto com a família, com o pai e com tantas outras coisas,
mostra paixão por uma senhora. Isso é reversão da figura paterna ou simples-
mente alguma coisa que estava sendo encaminhada historicamente para um
lugar, sofre um impacto, talvez muito forte, para a moça pelo menos, e ela dá
uma guinada e vai ficar com as mulheres, pois os homens são para ela, pelo
menos provisoriamente, umas boas porcarias? Ela não sabe disto, mas fez um
processo de Revirão no que Freud chamava de bissexualidade. Ou seja, as
coisas se encaminharam de tal maneira que ela teve disponibilidade de virar. E
foi uma coisa passageira, pois não era uma moça efetiva e permanentemente
homossexual, como aliás talvez ninguém o seja. Ela ficou danada da vida com
a situação, decepcionou-se e virou para outro lado. Não é, aliás, o que fazemos
todo dia? Quando nos decepcionamos, se tivermos potência, viramos para ou-
tro lado, mudamos de vizinho... Há uma série de formações e, entre outras,
uma pessoa que tem uma formação que, se precisar, ajudará em seu processo
de desvencilhamento de uma situação. Então, ela vai. Eis aí algo que, na práti-
ca, muda o entendimento e tira a complexidade absurda da função da castra-
ção num processo analítico. Mas de qualquer modo estou também ficcionando:
nada mais.
• P – Do ponto de vista de Lacan, o par presença/ausência do falo cons-
titui a idéia de simbólico no psiquismo. Quando você propõe um vetor
teórico que aponta uma referência de análise que coloca para a espécie
o puro Tesão – a propulsão de requerer, em última instância, seu
desaparecimento absoluto –, o que acontece daí para baixo é funciona-

142
O sexo e a morte

mento opositivo. Logo, presença/ausência é apenas um caso do funciona-


mento interno da mente.
E um caso extremamente repetitivo, uma vez que a dominação mascu-
lina data do Neolítico e ainda não foi extirpada. Logo, reaparece. Queremos
que uma criança faça o quê? Ela é só criança e não necessariamente um
imbecil, mas, desde pequena percebe a hipervalorização do masculino, do ma-
cho, do pênis, etc., e a desvalorização do feminino, do fêmeo, da vulva. Imedi-
atamente, aquilo vai a ela, não é preciso ninguém dizer, pois está no mundo.
Qualquer sociólogo sabe disso, quanto mais um psicanalista. Quando um sinto-
ma é vencedor, seja qual for – e a cultura é assim: o que há no mundo são
sintomas vencedores e vencidos (se a força modificar, a guerra muda) –, os
vencidos ficam con-vencidos por esse sintoma e começam a pensar com a
cabeça do vencedor. Qualquer feminista sabe que foi isto que aconteceu com
as mulheres: elas pensam com a cabeça dos homens e se acham umas titicas.
O machismo não é a opressão dos homens sobre as mulheres, e sim a opres-
são, sobre homens e mulheres, de uma idéia que diz que os homens são melho-
res, no que eles acreditam – e elas também acreditam. Ambos restam subme-
tidos. Às vezes o homem é apenas uma boneca, mas lhe disseram que ele é
macho, e pronto. Em última instância, ele pode mandar cortar o que lhe parece
sobrar. Como vemos, não é que os homens oprimam as mulheres, mas sim que,
no processo histórico, lhes aconteceu a dominação, a hipervalorização do apa-
relho macho, o que acabou por também fazer a cabeça das mulheres.
Hojendia, qual é a nova luta das mulheres? Acabar com a idéia de que
os homens as estão oprimindo. Eles efetivamente estavam, já que todos acredi-
tavam nisto. Diziam que “lugar de mulher é na cozinha”, elas também acredita-
vam e iam obedientes para lá. Isto até algumas contestarem que eram, por
exemplo, capazes de gerenciar os negócios melhor que eles. Eles não gostaram
de ouvir isto, mas elas começaram a lutar a favor disto. Este foi o primeiro
feminismo: elas achavam que vencer aquela guerra era se tornarem iguais aos
homens, ter os mesmos direitos de trabalho, etc., etc. Hoje, estão percebendo

143
A Psicanálise, Novamente

que não se trata bem de serem iguais a eles. Pelo contrário, elas dizem agora:
“somos diferentes e não queremos aceitar esse princípio de dominação porque
não é verdadeiro”. Portanto, estão lutando contra a própria idéia da dominação,
e não mais contra os homens. Isto porque eles estão tão submetidos a esta idéia
quanto elas – e também perdem muito com isto: perdem a inteligência, por
exemplo; tornam-se estúpidos por acreditarem numa tal imbecilidade.
• P – Você disse que uma sociedade machista não pode não ser racista.
Por que o machismo tem o vetor que traria consigo o sintoma do racismo?
Se imaginarmos grupos isolados antes ainda das formações históricas
da humanidade, certamente que eram da mesma etnia, da mesma raça. Qual é,
então, no interior desses grupos, o primeiro racismo no mundo neolítico? O das
duas raças: homens e mulheres. O falicismo é, em última instância, o primeiro
sustentador de qualquer racismo. Por ser falicismo, se outorga o direito de
distribuir as diferenças. Tanto é verdade que, se tomamos o nível do racismo
propriamente dito, em relação aos negros no tempos da escravidão, por exem-
plo, quando o branco era o mais macho quanto à detenção do poder, etc., vere-
mos que os negros eram reduzidos à condição de mulher. Num processo de luta
contra o racismo, se não atacarmos diretamente o falicismo, não há como sub-
trair a sustentação desse racismo, pois o primeiro racismo é entre homens e
mulheres que vigora. Qualquer um sabe, em nossa cultura, pois está nos jornais
e nos livros, que os homens são assim e as mulheres são assado. As mulheres
falam de novela e os homens de futebol. Mas isto é espontâneo nelas ou neles?
Não: isto é induzido culturalmente. E mais, é sim uma pressão terrível, mas
nada tendo a ver com testículos e ovários. Aliás, já notaram que a invenção
tecnológica do corno é uma liberação para as mulheres? A invenção da pílula
anti-concepcional tem uma influência muito importante na explosão do mundo
contemporâneo, pois foi a dominação das gravidezes e das fornicações que
organizou o Neolítico. Quando o chifre sobrevem e não há como administrá-lo
porque a mulher não mais engravida aleatoriamente, tudo muda na sociedade.
• P – Você acha que existe orientação sexual? E a bissexualidade não é
sempre evocada para justificar uma homossexualidade?

144
O sexo e a morte

Existe sim orientação sexual, mas não a que eu queira dar a outros. Há
que descobrir qual é. A bissexualidade justificar a homossexualidade, isto talvez
seja verdadeiro nos níveis jornalístico e sociológico, dada a sintomática do mun-
do atual. Quando um homem ou mulher querem dizer que não são homossexu-
ais, dizem que são bi, mas isto não é verdadeiro. Se supusermos que alguém é
hétero – mesmo porque não se é coisa alguma –, ou seja, que tem o hábito de
ser hétero e até tenha certo nojo de qualquer coisa homo, isto é apenas um
sintoma. Por outro lado, existem muitas pessoas que transam com todos os
sexos, e destes não podemos dizer que são homo ou hétero, e sim que circulam
à vontade. Aliás, gostar só dos dois sexos não é tudo. Pode-se gostar de poste,
galinha, cabra, égua barranqueira, jumento, cavalo, cachorro... A questão para
a postura psicanalítica é saber como, para cada um, se viabiliza sustentar sua
posição sintomática tendo, pelo menos, disponibilidade de aceitação do outro
que acaso tenha sintoma diferente. Mas é aceitação verdadeira, franca, de
conviver numa boa, não se ficar cheio de dedos só porque o outro é sexualmen-
te diferente.
Mais um passo adiante na questão: até onde vai uma análise em sua
competência de indiferenciar o sintoma da própria pessoa? Há uma coisa que
talvez não se saiba que acontece em análise. Se recebemos um analisando
macho, branco, bem empregado, classe A, todo por cima e absolutamente hete-
rossexual, vai-se tratá-lo durante muito tempo sem nunca questionar por que
ele tem que ser assim. Isto porque ele é supostamente normal. No entanto,
quando aparece um dito homossexual, os “analistas” querem corrigi-lo. Como
ele está por baixo, literalmente, na situação não só sexual, mas social, sentem-
se à vontade para induzi-lo ao outro lado. Às vezes, empurra-se a análise a tal
ponto que se consegue que alguém estritamente homossexual, com horror das
mulheres, comece a gostar e achá-las interessantes. Há aí, portanto, um parti-
pris absolutamente preconceituoso no analista e na situação analítica por cau-
sa das estases culturais. Se temos a audácia de dizer ao homo que devia, pelo
menos também, ser hétero, por que não dizemos ao hétero que devia, pelo
menos também, ser homo? Então, quando se diz que bissexualidade é desculpa

145
A Psicanálise, Novamente

para esconder a homossexualidade, isto é balela porque não se tem condições


de comprovação disto, em psicanálise nem em qualquer outro lugar. Trata-se
de mais uma maneira de pressão de certo grupo sobre outro afirmando que
“esse negócio de bi é coisa de veado”. Não é, porque veado que é sério só
gosta do mesmo lado, afirma isto, e está encerrado.

30/SET

146
Os cinco impérios

7
OS CINCO IMPÉRIOS

Para finalizar o tema da sexuação, vou retomar algumas coisas que


tratei da vez anterior. Disse que, em termos de referência ao gozo, poderíamos
supor a existência de quatro posições sexuais. Fazendo a crítica da sexuação
segundo Lacan, re-apresentei o sexo que faz referência ao Gozo Absoluto, que
seria o Sexo da Morte, se ele houvesse, e que chamo de Sexo Desistente.
Este sexo simplesmente não comparece jamais e, saindo do radical latino e
tomando o grego, digo que ele é EXO, que salta fora, não existe. O que compa-
rece é o que chamo de Sexo Resistente. Se existe Tesão, pode ser negado,
mas não inteiramente – por isso, disse que este sexo resiste a qualquer invectiva
e é o que poderíamos chamar propriamente de SEXO. O Sexo Resistente não
designa sexualidade anatômica nem funcional de ninguém, apenas sua relação
ao gozo: ele insiste, persiste, resiste. Poderíamos dizer que é anfi-sexual, ou
seja, o que Freud chamava de bissexual e que não é apenas o folclore da transa
com qualquer tipo de anatomia simplesmente humana. É, sobretudo, a indife-
rença em relação aos ditos objetos, ou melhor, formações sintomaticamente
requisitadas, implicadas nesse gozo. Os outros são os dois Sexos que Lacan
desenhou como Homem e Mulher, mas que, para nós, não só não se sustentam
como tais, como derivam do Sexo resistente.
Chamo um de Sexo Consistente e o outro de Sexo Inconsistente.
O primeiro, que também podemos chamar de PLEXO, faz um fechamento por

147
A Psicanálise, Novamente

ter uma referência externa – a castração operada pelo pai, no sentido freudo-
lacaniano – e que, sobretudo, faz a lógica da consistência. É, na verdade, o
que podemos chamar de Homo-Sexo, ou seja, a estrutura do que se chama de
homossexualidade. Para Freud e Lacan, a vocação dos homens, enquanto re-
ferentes ao Sexo Consistente, é nitidamente homossexual. Não estou di-
zendo que seja sexo masculino, mas no sentido deles é homossexual porque
não considera nenhum outro sexo. Como as mulheres, também para eles, são
apenas um homem que não tem pênis, aí estamos no regime da homossexuali-
dade aberta. Podemos dizer que este sexo constitui a visão Clássica de mun-
do. O idealismo classicista, que propõe algo que lhe é externo, que se organiza
como fechamento, concentração, verticalidade, é a idéia formal da consistên-
cia. Na medida em que a consistência só aparece porque há algo externo – o
pelo-menos-um que faz barreira ao e nega o destino do Tesão, para criar a
consistência –, podemos dizer que aí está a lógica da Transcendência. Toda
vez que alguma lógica propõe uma externalidade que organiza, comanda e fe-
cha a unidade e a universalidade de um conjunto, o múltiplo que ela rege, estamos
diante da idéia de transcendente com todos os tipos de imperialismo que esta
vontade de transcendência cria e sustenta. É daí mesmo que Lacan, mergulha-
do no sintoma da cultura, chamou este sexo de masculino. Isto porque, desde
o Neolítico, vivemos no que podemos chamar de dominação masculina, que é
essa coisa homossexual, transcendentalista, classicista (em todos os sentidos,
sobretudo o da exclusão fundadora de classes).
O segundo que, na cabeça de Lacan, é justamente o Outro Sexo, que
ele chama de feminino, chamo de Sexo Inconsistente. Este faz NEXO – e
não plexo, ou puramente sexo, e também não é fora, exo –, vai de ligação em
ligação, vai se ligando no que funcionando. Se não existe nenhuma negação
sobrevinda de fora, o conjunto fica em aberto – e temos um não-universal
desse Tesão. É o que podemos chamar de Hetero-Sexo, a vontade de
heterogeneidade, de heterossexualidade, de diferenciação. Heterossexualidade
que é a aparência formal do Barroco, do formalismo em espiral.

148
Os cinco impérios

Notem que, no meio do esquema acima, desenhei um círculo com


algo do lado de fora, que o fecha, para o Consistente – e para o Incon-
sistente, desenhei uma ‘margem’ em aberto, ou melhor, uma espiral, a qual,
como sabem, vai abrindo para sempre. Esta é a mentalidade barroca, represen-
tada aliás dessa forma espiralada na sua arquitetura, no movimento da sua
composição pictural, na sua música: sempre infinitizando. É a idéia do múltiplo
sem unidade, da imanência pura. Como não tem nenhum transcendente, tudo
vige no interior mesmo do campo da sua pura imanência.

149
A Psicanálise, Novamente

Junto com a Transcendência e o Hum, coloquei os nomes de Freud e


Lacan. Na verdade, Lacan não é propriamente um transcendentalista puro,
mas como insiste na manutenção do Nome-do-Pai, podemos dizer que tem
uma vocação para a transcendência. No caso da Multiplicidade e da Imanência,
coloquei o nome de Deleuze. O núcleo de seu pensamento é o chafurdar na
imanência, no barroquismo pleno, na idéia de salvação pela revolução por ele
dita ‘esquizofrênica’. Não coloco minha produção do lado da transcendência
nem da imanência, da consistência do sexo ou de sua inconsistência. O que
proponho como teorema, para além da dualidade escrita por Lacan, é um Qua-
terno, do qual um – o mortal, o desistente – é eliminado e faz sobrar o que é
a função de gozo de qualquer Idioformação, antes ainda e acima de qualquer
possibilidade de virarmos de um lado para outro na consistência e na inconsis-
tência. É o Sexo Resistente, que é o Sexo propriamente dito, pois é a relação
de nosso projeto de gozo com a externalidade, a qual é uma transcendência que
não há, diferente daquela da consistência, que existe, garantindo lugar para o
Pai, o Nome, o significante, essas coisas que vocês já conhecem. Aí no que
lhes apresento não há nada do lado de fora, ou melhor, não há lado de fora. O
que há é, do lado de ‘dentro’, uma vontade, um Tesão específico de conseguir
chegar Lá, nesse lugar que não há, onde não há Coisalguma, mas que é, mesmo
assim, suposto um lugar onde não-Haver possa ser alcançado. Este sexo so-
bra como pura resistência. É uma tentativa de transcendentação, mas sa-
bendo que não há nada lá senão o suposto não-Haver. Então, o jeito é ‘retor-
nar’, tornar-se morfologicamente, formalmente, maneirista. A arte maneirista
é a arte da passagem de um lado para outro, a uni-lateralidade que lhes mostrei
na banda de Moebius e que se escreve como o oito-interior que desenhei ali.
Não é, portanto, nem imanência nem transcendência, e sim transiência: a
possibilidade de revirar, de virar outra coisa, sempre podendo estar numa posi-
ção e passar para a posição contrária. A referência de gozo é ali indiferente:
tanto faz, pode ser consistente ou inconsistente, ou, como dizia Fernando Pes-
soa, “pode ser igual ou diferente”.
Hoje, vou falar sobre a relação do aparelho teórico que lhes apresentei,
com a Cultura. As modalidades de gozo em nossa maneira de existir, que é

150
Os cinco impérios

como defino cultura, são as que acabo de retomar acima. É como se dissésse-
mos que, do ponto de vista da estrutura mental, em sua relação com o gozo, o
que podemos são essas quatro possibilidades. Os objetos nada têm a ver com
isto: cada um se esfrega naquele que achar mais interessante – o que é da
ordem de fixações, freqüentemente estéticas, que não têm ligação direta com
essa estrutura lógica. Pode-se gozar de qualquer modo, seja qual for o objeto
no qual se roce. O que podemos pensar quanto à relação deste teorema com a
cultura, a qual faz história, tem sucessivos arranjos, etc., dependerá do entendi-
mento do que já lhes falei sobre o Primário, com suas formações
autossomáticas e etossomáticas; e sobre o Secundário, como a estrutura
do simbolizante e do simbolizado, de organização branda (soft) de nossas transpo-
sições artificiosas; e sobre o Originário, como o aparelho de reviramento, de
Revirão, que é nossa estrutura específica, a própria de nossa espécie. Mi-
nhas suposição e proposta têm sido de que há um verdadeiro encaminhamento
necessário no desenvolvimento da espécie humana, isto é, quando esse desen-
volvimento há. Não se trata de nenhuma psicologia desenvolvimentista, ou uma
sociologia de fases, nem de nenhuma necessidade histórica, mas é como se
pudéssemos dizer que nossa espécie se encaminha para macro-organizações
principais que, é claro, incluem uma infinidade de organizações menores com
pequenas diferenças de formação. Isto, é claro, se e quando ela efetivamente
se encaminhar, pois pode não fazê-lo e paralisar-se durante séculos ou milênios
– se não mesmo regredir, acidental ou acintosamente. É de se supor que, em
seus primórdios, a formação da cultura tenha restado milênios paralisada num
mesmo processo, sem a velocidade que temos podido observar recentemente,
de rápidas mudanças, mesmo se regionais. Mas, como disse, nada obriga que a
espécie dê passos adiante; pode mesmo estacionar durante longo tempo em
alguma estupidez local ou regredir para outra.
Entretanto, se esta espécie se movimenta, a suposição é de que nossa
constituição macromórfica inicial seja o Primário, o qual é a base e a massa
que recalca profunda e extensivamente a possibilidade de reviramento, isto é, o
Originário, o qual, embora seja de surgimento mais recente, é o que qualifica
realmente quem somos nós. Não somos propriamente a espécie homem, e sim

151
A Psicanálise, Novamente

espécie Idioformação. Em qualquer parte do universo, mesmo que a forma-


ção encontrada não seja biótica, se há espécies capazes desse mesmo movi-
mento mental que é o nosso – podem ser de lata, silicone, do que quer que seja
– é deles que somos parentes de fato, mediante o comum Originário. Para
nós humanos, a situação do Originário é de base carbono, uma base por nós
reconhecida como biótica. Em outro tempo ou lugar, pode ser, quem sabe, outra
coisa, ou mesmo um biótico completamente diferente, não-sexuado, bissexuado,
anfi-sexuado, andrógino, por exemplo. De repente, num planeta vizinho, há la-
gartos pensantes, dentre os quais qualquer um põe ovos e faz filhotes. A histó-
ria deles será bem diferente da nossa, por lidar com um Primário diferente. O
que importa é que o Primário tenha visto brotar dentro de si mesmo esse Origi-
nário, o qual imediatamente começa a produzir um Secundário, que é o campo
do brando (soft) mediante o qual produzimos a cultura, a linguagem inclusive.
O encaminhamento seria igual em qualquer caso. Ou seja, uma vez que o ET
tenha Originário, há que procurar qual seja o seu Primário e como, nesse conúbio,
se organiza o seu Secundário. Nome tirado de uma idéia de René Thom, chamo
a esse caminho de Creodo – do grego cre (obrigatório) mais odos (caminho)
– o que significa que, se a coisa andar, o caminho será este. Em nosso caso,
chamo de Creodo Antrópico. Aliás, este tem sido o caminho obrigatório do
homem, do anthropos, em seus avanços culturais.
O caminho de desenvolvimento, se o tomarmos pelo peso maior das
formações recalcantes, mesmo havendo um Originário completamente liberto,
capaz de revirar à vontade, veremos que é imediatamente reprimido, recalcado,
limitado pelo Primário. Assim, ainda que, junto com os darwinistas, imaginemos
que nossa espécie tenha provindo do macaco, houve um momento em que,
dentro desse primata, brotou o Originário: a capacidade de revirar plenamente,
que os outros animais não tinham. Seja isto pelo motivo que for: emergência
genética, complexidade cerebral, etc. etc. Mas, como disse, o Originário está
inteiramente sufocado pela pressão recalcante das formações primárias. Não
adianta delirar e achar que temos asas porque, se tentarmos voar, cairemos.
Então, já se começa sob um recalque pesadíssimo da ordem primária. Com

152
Os cinco impérios

muito esforço, inventa-se um Secundário e começa-se a questionar o Primário:


inventa-se uma pequena tecnologia, uma língua, um machado, uma lança, uma
pedra para cortar carne, uma organização social incipiente, uma arquitetura
primitiva (escolher uma caverna para morar já é uma idéia de arquitetura, uma
escolha, um entendimento do espaço), etc. Faço, então, a suposição de que
nosso processo de crescimento, de enriquecimento, uma vez surgido o Originá-
rio – pois depende da pulsação do Originário questionador das outras bases –,
encaminha-se do Primário para o Secundário e deste para o Originário.
De começo, por mais que haja o Originário, a referência é ligada ao Primário,
às formações dadas no corpo, no biótico, etc. São estas referências que
organizam primeiramente o que chamamos cultura. Em seguida, pode ser
que a produção do Secundário se avolume de tal maneira que este passe a ser
uma referência maior, mais direta, mais poderosa.
Nunca se perde a referência do Primário mas, quando passa a haver
produção no Secundário, começamos a perguntar: – ‘Quem é eu?’ (Não é
‘quem sou eu?’), pois algo ali se torna redundante e parece a nós que sabemos
que somos – mas não sabemos quem somos. Quando alguém se pergunta
‘quem é eu?’, ninguém que possa refletir à vontade sabe responder, a não ser
pelas referências que esteja usando, no momento, para qualificar a si mesmo.
Podemos citar a carteira de identidade, a família, as coisas que fazemos, etc.
Nada disso é eu, mas, como se está mais ou menos amarrado nessa ordem
recalcante de referência, fica-se na suposição de que eu é isso, e isto passa a
valer para a relação social de identificação. Mas acontece que, num momento
muito primitivo de situação na cultura, quando alguém se pergunta ‘quem é
eu?’, a resposta primeira é de que é algo a que se possa referenciar no Primá-
rio. Com um pouco mais de crescimento, a resposta vai para que eu é algo a
que se possa referenciar no nível do simbólico, do Secundário. Indo muito longe
– o que é difícil, pois parece que as pessoas o mais freqüentemente não vão lá
–, pode-se dizer que a referência é ao Originário: eu é puramente o movimento
de viração, de reviramento, enfim de Revirão, sem apego e prisão a coisíssima
alguma de Secundário ou de Primário.

153
A Psicanálise, Novamente

Fazendo, então, a suposição de que o encaminhamento do crescimento,


da abertura, da abstração, do enlarguecimento das possibilidades vai do Pri-
mário para o Originário passando pelo Secundário, podemos pensar a hipóte-
se de que o périplo da humanidade através do que pensamos ser sua história
passa por Cinco Impérios sucessivos. Chamo-os assim porque realmente a
referência é que impera sobre nossa condição de ser. Além do mais, estou
tomando emprestado de Fernando Pessoa e de outros – e usando de maneira
algo diferente – sua idéia antiga sobre os Cinco Impérios da humanidade.
Digo, portanto, que a humanidade parece poder crescer, desenvolver-se, se-
gundo Cinco Impérios que têm referência nos registros Primário, Secundário
e Originário:

Creodo Antrópico:
os Cinco Impérios do Périplo Cultural

154
Os cinco impérios

O primeiro, chamo-o de Império d’AMÃE, pois a suposição é de


que, numa fase muito primitiva, o mais provável – se pudermos sugerir um
denominador comum para a antropologia, a sociologia, etc. – é imaginar que a
referência de Eu era o corpo da mãe, a presença da mãe, a instância materna
dentro do grupo social. Como naquela coisa primária, simples e pobre não
havia instituição para dizer quem é uma criança, uma possibilidade bastante
fácil de se comprovar, marcar, localizar uma pessoa é por seu nascimento: é o
filho... da mãe. Sabe-se que até segunda ordem ninguém existe que não tenha
saído de dentro de uma fêmea, a qual, em qualquer língua ou situação, chama-
se: mãe. É algo fácil de comprovar porque pode-se acompanhar a mulher de
barriga, sua gravidez. De repente, ela sentia dores de parto e a horda ou tribo,
que vivia sempre junto, via o filhote sair lá de dentro. Havia, portanto, o teste-
munho, algumas marcas simbólicas que se começavam a fazer e, assim, a
referência de eudade de qualquer um era a mãe que se tinha. Por isso, muitos
estudiosos fizeram confusão com a idéia de algum matriarcado nas primevas
eras da humanidade. Não acredito nisto, pois as mulheres, por questões óbvias,
sempre estiveram em posição difícil de sustentar com grande freqüência a
empolgação do poder dentro do seu grupo. Basta imaginar que, naquela época,
as meninas mal menstruavam, já estavam grávidas e talvez nunca mais paras-
sem de ficar grávidas, até a morte freqüentemente muito cedo. Dava até para
elas realizarem muitos trabalhos, mas sustentar algum estado de guerra com
aqueles que estavam mais livres para fazerem a baderna que quisessem... – e
com a vocação homossexual de patota, de clube do Bolinha, excludente das
fêmeas, certamente que foram sempre eles a tomar o poder. Ave Adão! – é o
caso de dizer.
O Império d’AMÃE é aquele onde a referência de alguém é ser...
filho da mãe. Há até a conjetura antropológica de que, sendo nômades esses
bandos, certamente se deslocavam mais ou menos em grupos que eram orga-
nizados em torno das mães. Sou filho desta mãe, você é filho daquela. Isso
pode dar uma aparência de matriarcado, que não é, ou de formação matrili-
near, que também não é, pois não havia tal marcação de parentesco naquelas

155
A Psicanálise, Novamente

circunstâncias. Alguns falam em organização matrifocal, o que parece mais


aceitável, pois o foco de reconhecimento de cada grupo era a mãe comum.
Isto podia passar de geração em geração. Podia haver uma velha senhora,
bisavó daquele grupo que tinha várias mães, e que se tornasse quem sabe uma
arqui referência ainda materna. Foi isto que pôde dar a impressão de
matriarcado. Mas nunca aconteceu esse comando, esse domínio das mães ou
das mulheres. Prefiro dizer que é o Primeiro Império – não no que diz res-
peito à tomada de poder, pois o poder devia ser algo existente mais ou menos
em fluxo entre os machos e na relação com as fêmeas, cheio de macaquices,
de funções herdadas de nossa etologia, tudo funcionando como sintoma dado,
gratuito, emprestado da espécie. Mas certamente há um primeiro esboço de
organização do Primário dos corpos pelo Secundário, o qual está esteado numa
simbolização da referência pessoal de cada um, baseado no corpo materno
que o pariu. Ou seja, a base não é de referência secundária, e sim do Primário
do corpo que nasce de outro corpo.
Podemos supor que isto deve ter levado alguns milênios até aparecer o
momento que os historiadores costumam chamar de Neolítico, em que al-
guém, multidões talvez, milhares de ‘gênios’ da época, a longuíssimo prazo,
foram inventando um outro modo de referência. Deve ter custado muito, mas
acabou pegando. Para-se de ser nômade, faz-se um assentamento sobre um
terreno que se divide em partes apropriáveis, começa-se a plantar, ao invés de
simplesmente colher, começa-se a criar os animais, ao invés de simplesmente
caçar, desenvolvendo-se, então, a agricultura e a pecuária. Ora, isto deve ter
ajudado ou vindo junto com uma invenção genial de algo que certamente não
existia antes. Inventa-se o Pai. Por isso, chamo o Segundo de Império
d’OPAI. Observem que ele está situado entre o Primário e o Secundário.
Ou seja, numa referência que liga o Primário ao Secundário aparece a inven-
ção chamada Segundo Império e a referência de cada um passa a ser o seu
Pai, este também recém inventado. Mas um pai nesse momento é algo que
descobriram dentro da própria relação dos corpos no Primário. Começam a
criar animais e, talvez antes ainda de observar que sua própria sexualidade

156
Os cinco impérios

humana resulta em contaminação no momento da cópula e acaba por produzir


filhotes, devem ter descoberto este funcionamento nos animais e, só depois,
neles próprios, no sentido de sustentar a criação. São milênios de estudos,
pesquisas, altos laboratórios, altas instituições de financiamento, quem sabe os
órgãos financiadores daquela época davam um pouco mais de ração para aquele
que pensava mais um minuto por século... Isto, tal qual se faz com os cientistas
de hoje... Só que eles fazem mais depressa. Mas é a mesma coisa.
Inventa-se, então, nesse momento, O Pai. Mas é um pai apenas reco-
nhecível mediante expedientes de limitação, pois como se iria saber, uma vez
que a coisa corria solta, sem ninguém talvez fazer idéia precisa de que fosse
conseqüência da transa sexual nascerem os bebês? Mesmo porque eles eram
inteligentes ao pensar assim. Para estabelecerem uma precisa correlação, se-
ria preciso que a cada vez que se copulasse nascesse um bebê, o que
efetivamente não é nem nunca foi o caso. Eles podiam até verificar que havia
alguma relação, que as virgens, por exemplo, não pariam, mas do restante não
faziam a menor idéia. Foi, talvez, organizando a criação dos animais, agrupan-
do-os em lugares cercados onde podiam agora ser observados, que se concluiu
que sua cópula dá filhote e que, ao separá-los, se não há mistura, tal filhote
pode ser certificado como filho de tal fêmea com tal macho. É preciso ser
gênio para inventar isto numa época como aquela. Alguém inventa um sistema
laboratorial complexíssimo, um vasto aparelho científico da melhor qualidade:
uma cerca e umas pessoas tomando conta durante meses, anos talvez. Desco-
bre-se, então, O Pai do Filho da Mãe – este é o nome científico do Pai do
pimpolho. Se fazemos uma cerca, isolamos a fêmea para, mediante alguma
regra, deixá-la copular com um único macho – seja a fêmea de lá de dentro
uma vaca, uma cabra, ou uma mulher –, colocamos gente tomando conta e
todo mundo de olho, e mais ainda decretamos: “se transar com outro, apedre-
jamos você até a morte” (como os judeus, por exemplo, costumavam fazer,
segundo ordenação religiosa), fica difícil não seguir a regra. É claro que havia
umas heroínas do tesão que não obedeciam só porque mandaram, mas a mai-
oria, geralmente, sendo bem paga e com a ração adequada, acaba obedecen-

157
A Psicanálise, Novamente

do. Em suma, apedrejando algumas, linchando outras, tenham transado ou não


– pode ser ciúme de um que dedurou para se vingar (é mais ou menos assim
que começa toda a chicana do crime, a chicana jurídica, por exemplo) –, a
maioria parece que se adequou a essa invenção histórica.
É preciso bem saber que a invenção do Pai é datada, não foi sempre
assim, não é nenhum universal. Aparece o Pai como conceito que fica entre
o Primário e o Secundário, pois não há prova alguma de quem seja – realmente
– o pai. A prova é testemunhal: é de não se deixar nenhum outro macho chegar
perto da fêmea, mas prova como aquela da fêmea, no Primário, ainda não se
tem. Como há apenas evitação de contágio primário, é preciso uma estância
secundária como garantia. É então no simbólico, no Secundário, que se nomeia
alguém de Pai, uma vez que pareça que tudo funcionou direitinho, que a fêmea
só teve um único macho reconhecível. Mas ele mesmo, o suposto pai, sempre
pode ficar meio desconfiado, pois já tem certo complexo de corno por causa
daquele seu passado homossexual, e pode não acreditar muito nessa estória.
Cria-se, então, todo um aparelho de estado, com rituais e constrições, para
convencer que aquele era o pai – ao próprio e aos demais. Contudo, mesmo
assim, podem restar desconfianças pois mesmo a fêmea não tendo transado
com outro macho, algum Deus poderia ter entrado ali e tê-la emprenhado...
como no caso do tal José... Chamo então a este de Império d’OPAI, porque
aí se cria esse aparelho, quando se deixa de referir a uma relação de afeto
direto, de reconhecimento carnal e se passa a instaurar a referência como lei.
Tal macho, dado que houve um aparelho mais ou menos adequado segundo
certas regras, pode ser reconhecido como pai daquele filho daquela mãe. A
partir de certo momento, a criança já pode dizer: ‘Eu sou o filho do Pai’.
Trata-se portanto de puro testemunho. Mas continua em vigor alguma
lei regrando que as moças não podem copular com outros homens que não o
seu e que, se a transgredirem, serão apedrejadas. Os homens jamais seriam
apedrejados, pois eram as mulheres que constituíam o lugar primário de onde
se obtinham as crianças. Elas é que tinham que se preservar para saber quem

158
Os cinco impérios

era o pai. As responsáveis eram elas. É da mesma canalhice de hoje, quando


eventualmente uma menina engravida e o seu homem diz que é problema dela.
Eis senão quando, passado um tempo, o gênio da espécie continua
funcionando, surgem críticas ao sistema violento de reconhecimento mediante
o apedrejamento das adúlteras e, já no Império d’OPAI, começa-se a inventar
um Deus. Não que não houvesse deuses antes. Havia vários tipos e mesmo
deuses femininos poderosos, pois a referência era materna. Mas, no Segundo
Império, inventa-se um deus compatível com esse Pai do filho da mãe. Vejam
que, nesse momento histórico, ainda que se invente um monoteísmo baseado
nisto, um Jeová, por exemplo, ele não é alguém simpático a qualquer filiação.
Ele é interessado nos filhos que possam ser tidos como dele. Então, em todos
os processos religiosos que têm fundamentação no Segundo Império, encon-
tramos um Deus sendo Deus de tal povo, naturalmente que inimigo de outro
povo e do Deus dele. Fazem mesmo a guerra para decidir qual dos deuses é o
melhor. É este tipo de coisa que podemos ler no Velho Testamento dos judeus.
Já é um passo adiante, pois, além de ser o Deus ou Pai de tal família – mesmo
porque ele podia ser pai dos filhos de muitas mulheres –, era um patriarca tão
velho que poderia ser considerado o pai de um povo inteiro e mesmo ter um
representante celeste. Mas, como disse, não é o Deus pai de outro povo, o
qual povo é tido como um bando de bastardos, dos quais não se sabe quem é o
Pai, se é que o tem, dado que esse Pai não pode ser o mesmo Deus.
Um passo genial parece ter sido a invenção do Terceiro Império. Como
estou chamando os impérios com nomes tirados dos hábitos culturais de nossa
vivência, de nossa orientação histórica, a este chamo Império d’OFILHO.
Uma vez que aqueles que estão vivendo longamente no Segundo Império reco-
nhecem a paternidade e têm como referência essa paternidade, eles se dão
conta de que, por mais que seja organizada no sentido de coibir a copulação de
tal fêmea com outros machos, essa paternidade é de índole secundária, ou
seja, enquanto paternidade, não tem outra garantia a não ser a materna. Então,
cada vez mais a coisa vai se encaminhado no sentido de um pai estritamente
simbólico, sobretudo por causa daquele Deus que inventaram como pai de

159
A Psicanálise, Novamente

todos desse povo, um deus superior, único, etc. Por que esse deus maravilhoso
seria tão idiossincrásico a ponto de ter que ser nomeado pelas aparências do
Primário? Ele começa a ganhar status cada vez mais abstratos, espirituais.
Assim, mediante longo processo de criação e revolução, inventa-se o Terceiro
Império, com um Pai que tem agora referência estritamente simbólica. Na
cultura, ainda restam Pais de Segundo Império, com as Mães corresponden-
tes, pois estas são entidades renitentes: uma vez aparecidas é modalmente
impossível eliminar e sobram como sintomas em repetição. Contudo, por cima
e para além do sintoma, inventa-se que a referência é que temos um Pai no
Céu, abstrato, puramente espiritual, simbólico, que independe de saber-se quem
seja a mãe carnal – e portanto de quem seja o pai carnal. Isto porque Ele é
absolutamente Pai de Todos e faz a todos Irmãos na referência a esta constru-
ção simbolizada, puramente secundária.
A revolução de Jesus Cristo é um exemplo do que pode acontecer em
quantos lugares, do mesmo modo, mesmo se com diferenças relativas. A dife-
rença do Cristianismo face ao Judaísmo, nessa época, nesse âmbito – e só
nesse, pois os Romanos há muito já sabiam que a coisa aí é de nível puramente
simbólico, que a filiação se dá por pura adoção (e nem mesmo sabemos se a
suposta invenção ou aceitação disso pelos cristãos não é já influência da convi-
vência com o Império Romano) –, é Jesus (seja ele histórico ou mítico, tanto
faz) ter tido a idéia genial de dizer que não se deve apedrejar nenhuma adúlte-
ra, pois todos temos pecados também – e com a intenção de eliminar qualquer
necessidade de prova de paternidade biológica, uma vez que decreta que a
verdadeira paternidade é a do Pai que está no Céu. Com que pretensão um
menino daquele – e ele o é, morre jovem aos trinta e poucos anos –, mesmo
sendo rabi ou coisa parecida, enfrenta a poderosa Igreja judaica? Seja qual for
a frase que tenha dito, no quê está baseado para coibir o apedrejamento? Em
que o Pai que está no Céu é pai de todos. Portanto, os filhos daquela que
chamam adúltera são também filhos d’Ele. Logo, não se é adúltero em relação
ao Pai verdadeiro, que é puramente simbólico. Isto é uma revolução enorme,

160
Os cinco impérios

seja onde for que tenha ocorrido – e de quantos modos ou quantas vezes tenha
ocorrido. No mundo judaico, aparece com estas características. Assim, está aí
inventado o Terceiro Império que é este em que temos vivido. Um império de
referência celestial, onde cabem idéias como fraternidade universal, democra-
cia, direitos do homem, etc. e tal.
O fato de se ter produzido a revolução d’OFILHO não significa que se
aboliu os Impérios d’OPAI ou d’AMÃE, que continuam a existir por aí, regio-
nalmente recalcitrantes. O importante é que a idéia de referência de si próprio,
de referência de Eu, essa idéia mudou. Somos todos irmãos, filhos de Deus...
É claro que, como disse, cá embaixo, para aquém da questão espiritu-
al, em cada e todo cotidiano os outros impérios continuam a existir, com seus
privilégios e apropriações, com o jogo de capitalismo de Segundo Império, etc.,
etc. De qualquer forma, as referências começam a mudar. Assim, mesmo que,
dentro do Terceiro, grande parte da cultura continue regida pelos Primeiro e
Segundo Impérios, agora, neste momento históricos que estamos vivendo, com
grande acúmulo de processamentos, de invenções tecnológicas, de acelera-
ções comunicacionais, de críticas do pensamento, etc., já terminamos o Século
XX em crise radical desses valores. Não precisamos ficar atônitos com o fato
de haver tantos retrocessos, grandes reentonações religiosas, parecendo con-
servadoras ou reformistas, pois isto é apenas o grito de socorro de muitos de
um tempo que está na pior, que não sabe mais o que fazer para a frente – e
então não acha outra saída senão correr para trás. As massas estão em pânico
e há sempre aproveitadores para apregoarem que, se voltarmos uns três sécu-
los, a coisa fica melhor. Podia até funcionar, se desse mesmo para voltar...
Mas agora não dá mais. Ou bem retornamos e nos estupidificamos em forma-
ções pregressas, ou bem sustentamos a tecnologia de ponta que todos desejam
consumir. Os dois movimentos são incompatíveis. Além disso, não se conse-
guirá facilmente frear o movimento do capital – e subseqüentemente o da
tecnologia. Só esses movimentos por si mesmos acabarão por dissolver o Ter-
ceiro Império ainda em vigor.

161
A Psicanálise, Novamente

Bem diante de nós, já está emergindo um Quarto Império, situado en-


tre o Secundário e o Originário. Apenas emergindo. E não sabemos ainda
como lidar com ele. Chamo-o Império d’OESPÍRITO porque, para ele, não
mais é preciso entronizar nenhum Pai, mesmo que more no céu como um Deus
figurativo e conteudizado, regulado por uma religião de preceitos fixados. É
simplesmente o Império que, afetado pelo Originário, se qualifica pela movi-
mentação plena do Secundário e, portanto, por sua mais acessível e maior
intervenção também no Primário – que é o que está acontecendo com a dispa-
rada de todas as tecnologias de hoje. Se estamos todos desvairados é porque
as referências de Segundo e Terceiro Impérios já estão se esgotando.
Efetivamente, não mais encontramos condições de nelas acreditar, de nelas
nos assegurarmos. Os rituais que as mantinham eram meio lentos e não supor-
tam a velocidade de transação e produção de todas as próteses presentes,
sejam elas Secundárias ou Primárias. O Secundário se movimenta e cria tec-
nologia rapidamente. Já não é mais a falta de tecnologia que nos deixa sem
apetrechos, e sim a lentidão do mercado, pois podemos usar muito mais tecnologia
do que essa a que estamos acostumados. Vejamos, por exemplo, o fato de
sermos uma espécie que deu o azar – ou a sorte, nunca se sabe – de ter um
modo sexuado de reprodução. Talvez outro meio custasse biologicamente mais
barato, fosse mais simples, menos cansativo, mais eficaz, menos viscoso do
que essa complicação de diferença anatômica de sexo com sua necessária
esfregação sempre mal controlada e que funciona tão mal. Ocorre que esta-
mos entrando num momento de aceleração em que a própria idéia de reprodu-
ção está se desvinculando da de fornicação. Será preciso cada vez menos de
sexo, no sentido copulatório, para se reproduzir a espécie. As pessoas se horro-
rizam com medo de clonagem, a qual pode não fazer mal a ninguém, chegando
talvez mesmo a ser melhor para a vida de todos nós e em vários sentidos.
Comportam-se assim porque ainda estão amedrontadas com sua referência ao
Papai do Céu do Terceiro Império – o qual ainda de uma vez por todas não se
foi. Mas para os que já começam a habitar o Quarto Império, Ele está cada
vez mais abstrato, já não castiga ninguém, e é muito mais um lugar do que um

162
Os cinco impérios

nome, e menos ainda uma figuração. O que importa é que estamos cada vez
mais nos dando conta de que estamos ficando independentes da sexualidade
para a reprodução, bem como da paternidade para nossa própria identificação.
Justo quando já podemos, por via de ADN, comprovar com certeza a paterni-
dade de alguém, basta que seja possível a reprodução sem ato sexual e a
inserção social sem referência necessária à paternidade (mesmo que agora
comprovável), para, mentalmente, podermos desvincular mais fácil uma coisa
da outra. E a sexualidade, no bom e velho sentido carnal, que nos sobrou, serve
mesmo é para a gente brincar, como dizia inocentemente Macunaíma, para a
gente se divertir. Assim como a paternidade nada mais tem a ver com nenhum
gosto sexual (haja vista para o empréstimo de óvulos e espermatozóides entre
homossexuais de ambos os sexos).
O que se torna assustador quanto à chegada do Quarto Império é que,
ao invés de sermos aqueles que têm uma referência de última instância – que
pode ser um Deus transcendente, que acaba se representando, como diz por
exemplo a Igreja Católica, no seu Papa, no seu Padre, no seu Pai, na sua
(sagrada) Família afinal –, a referência fundamental de cada um agora tem
que ser a sua própria competência – e perfórmance – de articulação. Tome-
mos exemplo no campo das profissões. Cada vez mais, o que se requisita – nas
grandes empresas, na indústria, no comércio mundial – é que se tenha uma
formação, acadêmica ou qualquer outra, que seja cada vez mais elástica, mais
diversificada, mais abstrata também. Até ontem alguém podia dizer: – “Sou o
engenheiro tal”. Hoje, sabemos que não é mais assim, pois aquele saber, ama-
nhã, pode não valer mais nada ou muito pouco e elimina-se automaticamente
esse tal profissional. Então, como tenho que ser hoje? Alguém que articula
rapidamente e passa rapidamente de função para função. Como que eletroni-
camente, como que em franca computação. As empresas estão pedindo isto e
investindo muito dinheiro na reformulação da formação de seus quadros, e não
necessariamente reformulação acadêmica, universitária, para que seu funcio-
nário não seja lá tanto assim engenheiro, que seja mais ou menos engenheiro,
mas também muito mais, pois não sabem se amanhã não terão que mudar

163
A Psicanálise, Novamente

rapidamente de lugar e de função. Como não se pode estar a toda hora trocan-
do de quadros, é preciso haver pessoas com adaptabilidade funcional e com
rápida rearticulação de seus saberes e competências. O que aqui chamo de
OESPÍRITO é simplesmente a articulação do campo do Secundário. E que
seja cada vez mais desembaraçada – tanto do Primário quanto das estases
sintomáticas do próprio Secundário, cada vez mais leve, cada vez mais rápida,
cada vez mais em disponibilidade para o que vier.
Portanto, dada esta situação, não dá para voltar. Só mesmo se sobre-
vier algum ingovernável cataclismo. A Bomba Atômica anda meio desmorali-
zada, não é mais ela que vai nos remeter de volta ao Neolítico. Então, ficamos
imaginando se não vai acontecer um cataclismo para não termos que andar
para a frente. Quem sabe, um asteróide não bate na terra? São sonhos
denegatórios de procurar um jeito de não ter que pensar para adiante, de ar-
ranjar algo supostamente conhecido que nos reconforte para trás. Contudo,
queiramos ou não, se não houver cataclismo e retrogressão, o Quarto Império
aí está começando aparecer. Qualquer pesquisa séria demonstra que a grande
família já se foi, e a família nuclear está se transformando – se é que ainda se
trata de família. Alguns dizem na mídia que paradoxalmente a família está
ficando cada vez mais forte. Mas que família? O que melhor parece é que o
Império d’OFILHO, o Terceiro, que para se sustentar vivia da idéia de amor,
está talvez em seus últimos estertores. Justo quando seu canto do cisne só fala
de amor, de amor, de amor... Ou senão é a idéia de amor que está inteiramente
se transformando. Mantendo o nome, mas mudando de significação. Não é a
primeira vez que isto acontece: na passagem de Império para Império, e mes-
mo na passagem de fase para fase dentro do mesmo Império, isto sempre se
viu. Mas ainda se fala tanto em amor aí porque a única relação que faz susten-
tação é essa vinculação transferencial entre as pessoas, e com a referência
transcendente da qual ainda não se quer definitivamente largar mão. Mas ain-
da é uma postura masculina, ou melhor, homossexualizante, no sentido de do-
minação e redução de tudo a um sexo só. Como lhes disse, em nossa cultura,
as mulheres não são senão homens castrados, não têm verdadeiro reconheci-

164
Os cinco impérios

mento social. Homossexual, aqui, não significa transar com alguém do mesmo
sexo, mas sim ter um só sexo como referência. No Quarto Império, algo aí se
substitui – e já vemos isto surgindo nas novas gerações, em sua relação com a
tecnologia, com a internet, etc. – substitui-se o amor pela pura e simples con-
sideração, não só do outro como outro, mas sobretudo do outro como mes-
mo, não como o mero irmão ou o semelhante, ou o próximo (de quem se dizia,
ora hipocritamente ora ingenuamente, que devíamos amar como a nós mes-
mo), mas sim como alguém com quem nos relacionemos independentemente
de amores ou ódios, mas por mero reconhecimento das inarredáveis vinculações
tecidas a partir de um Vínculo Absoluto.
Se conseguirmos andar ainda mais para a frente, talvez tenhamos – o
que é ainda impensável, de tão distante para nós – a possibilidade de um Quin-
to Império. A passagem, o intervalo, o interregno do Secundário para o Originá-
rio é o que acontece no Quarto Império como referência. Ou seja, para ele, o
Primário é simplesmente o que se organiza como Secundário, então, há que
pensar no Secundário e em sua passagem para a absoluta possibilidade aí
dentro, que seria a idéia do Originário. O Quarto Império está hoje começando
a emergir, está na passagem, e não sabemos quanto tempo vai durar. Assim,
não temos condições de imaginar o que seria um Quinto Império, aquele em
que Eu é referido por simplesmente ser aquele que revira, que não tem pegas
obrigatórias, que não é ninguém senão possibilidades. No Quarto Império, Eu
ainda é alguém em função de suas alocações ad hoc: estou sendo isto agoraqui.
No Quinto Império, é Ninguém. Vemos isto, de antigo, no pensamento dos
grandes místicos, que indiferem toda possibilidade de Eu. Sou apenas possibi-
lidade, pensam eles. Na melhor das hipóteses, sou Deus, ou seja, Nada, Nin-
guém. Isto, ainda não sabemos bem pensar. Seria o Império do AMÉM: o
que der e vier está bom, ou melhor, não é bom nem mau, é tudo aceitável, tudo
bendito. Estamos começando a aceitar muita coisa, mas uma a uma, a cada
caso a cada momento. No Quinto Império não seria assim. É o que podemos
chamar de Valetudo em seus dois sentidos, no Português atual e no Latim –
onde quer dizer saúde. É O Império da Saúde, porque não se tem mais como

165
A Psicanálise, Novamente

distinguir o que é ou não saúde na mente. Tudo é absolutamente aceitável,


acolhível, mesmo se devendo ser controlado em função da sobrevivência neces-
sária de certas formações. Talvez o índice de loucura no sentido nosológico
diminua muito, porque nós é que fabricamos na maior parte nossos loucos com
as exclusões que fazemos. Se forem aceitáveis em suas ‘loucuras’, que talvez
não sejam loucuras em nova perspectiva, muitos deles serão novos normais.
O Quinto Império seria, portanto, aquele em que podemos conjeturar
tudo a partir de cada um tendo como referência sua própria estrutura de
reviramento. Eu, aí, é puramente aquele que revira, e não simplesmente aquele
que articula (como é o caso do seu reconhecimento no Quarto Império). A
referência de Eu é a capacidade de revirar, daqui para o oposto, rapidinho. Eu
é indiferente. Mas estamos longe de pensarmos mesmo isto. Estamos mal e
mal tentando entrar no Quarto Império, sair do empacotamento egóico desse
racismo, desse sexismo, desse machismo, desse falicismo, desse estupidismo,
e dessa logomania de todo mundo e cada um achar que é mesmo alguma
coisa. Essa gente toda – e é maioria de quase todos – vai morrer disso mesmo
daqui a pouco. Esse tipo de mentalidade vai sobrar da referência de vida, pois
cada vez mais isso vai se tornar um processo meramente articulatório. Todas
as pieguices que cada um de nós tem por dentro – quem sou, como sou, como
sinto, meus amados sintomas, minha família, minha pátria –, tudo isso vai logologo
para o brejo, mais depressa ou mais devagar, como parece que já está indo. O
que é a tal globalização? É o brejo para onde a vaca costuma ir. Só que agora
é bem maior e um pouco mais fundo. Como já lhes disse, a vaca sempre vai
para o brejo. Não por nenhum motivo especial, mas simplesmente porque, por
fim, o brejo é o seu lugar.
Arrolei, acima, um tanto a sentimento, faltariam muitas indicações,
uma série de idéias que me parecem compatíveis com cada um dos Impérios.
Vejam que passamos de Afeto, para Lei, para Amor, para Consideração, e
estamos no caminho do Valetudo. O Sentimento, no Primeiro Império; o Tabu,
no Segundo; a Ideologia, no Terceiro; a Indiferença, no Quarto, que é o que
está começando a acontecer – tanto faz essa ou aquela ideologia, só interessa

166
Os cinco impérios

saber se funciona segundo os interesses do momento –; e a Positividade


absoluta, no Quinto Império. Se fizermos alguma idéia dos modos de orga-
nização, teremos a Horda no Primeiro Império; um exemplo do Segundo é o
Judaísmo da época de Jesus; no Terceiro, é o Cristianismo; no Quarto, é o
que chamo de , que está começando a vir por aí; e no Quinto,
teríamos a Saúde, que nem sabemos pensar ainda. Temos também Mãe, Pai,
Filho e Espírito, depois, não se sabe. Em termos de deuses, temos Gaia;
Deus Pai; o Nome-do-Pai, do Dr. Lacan; a Nominação pura e simples,
agoraqui; e, em última instância, o Anonimato. Para quê se precisa ter nome?
Pode-se ter um apelido de acordo com o momento ou simplesmente um
número, uma senha. Procurando deuses arcaicos, nomearíamos o Primeiro
Império de Urano, que é praticamente materno junto com Gaia; o Segundo,
de Saturno, versão romana do Cronos grego, que castra seu pai Urano; o
Terceiro, de Júpiter, versão romana de Zeus, que, por sua vez, castra Satur-
no... Essa mania de amputar os outros, na psicanálise, vai acabar no grotesco
chamado castração, de que Freud não conseguiu se libertar. O Quarto, é o
Império de Métis (Astúcia em grego). E o Quinto é a capacidade que a
gente tem de se virar, de revirar, nossa competência de Revirão. É a báscula
entre os opostos: uma coisa vira outra, vira seu contrário – é o Império da
polaridade solta à vontade. E mais, é pactual e competente para lidar com as
emergências do eventual. No Quinto Império, quem sabe, chegaremos final-
mente à plena Hybris, ao excessivo absoluto: toda e qualquer potenciali-
dade nossa estará então à nossa disposição para nossa maior eficácia em
tentarmos perenemente exceder curativamente o já dado.

28/OUT

167
A Psicanálise, Novamente

168
Teoria do eu: a pessoa

8
TEORIA DO EU: A PESSOA1

De um tempo para cá, do ponto de vista de uso da língua, de


apropriação de certas idéias do campo do conhecimento e também para fazer
uma diferença específica, achei facilitador usar o termo Pessoa. Para mim,
Pessoas são as IdioFormações do nosso caso. Mas não podemos pensar
que sejam um corpo humano; um indivíduo, do ponto de vista do recorte
social; ou um sujeito, do ponto de vista da reflexão filosófica em vigor.
Evidentemente, uma Pessoa tem alguma corporeidade biológica, a qual é
apenas uma de suas formações, que chamamos de Primário. É preciso
entender que as categorias que utilizamos aqui não são as utilizadas em outro
campo. Categoria é uma palavra que significa simplesmente ‘afirmação’ (o
verbo kategorein, em grego, é: ‘afirmar’). Então, o que aqui se afirma não é
o que se afirma ali. Não estou, portanto, falando de sujeito, indivíduo ou de
ser humano, e sim de uma formação que chamo Pessoa, que é uma
IdioFormação composta de seus elementos Primários, Secundários e do
Originário que, este, é único. Isso é algo amplo, pois não podemos dizer que
o Primário de uma Pessoa termine no limite de sua corporeidade, já que não
podemos dizer que o próprio Primário termina neste limite.
Como a estupidez humana é ilimitada, à medida que desenvolvemos as
coisas, desenvolvemos a partir de precariedades extremas. Os pensamentos
1
Texto retirado do Falatório 2005, de MD Magno, Clavis Universalis: Da Cura em Psicanálise
ou Revisão da Clínica (Rio de Janeiro: NovaMente, 2007), p. 109-118.

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A Psicanálise, Novamente

anteriores podem ser brilhantes, mas é preciso corrigi-los a toda hora. Por
exemplo, pensar em termos de indivíduo já é estúpido por si. É como se
pudéssemos recortar essa formação de dentro do Haver e deslocá-la até das
injunções primárias que ela tem aí dentro. Começa-se a entender que não há
indivíduo com a moda da ecologia, por exemplo.

• Pergunta – Se toda Pessoa é uma IdioFormação, não é qualquer


IdioFormação que é uma Pessoa.
Se não pensarmos assim, teremos que fazer como os católicos e chamar
a Deus, o Haver, de Pessoa. Quando pesquisamos a IdioFormação que é o
Haver, em função das condições de sua constituição que é outra, talvez não
encontremos a mesma configuração das Pessoas que somos nós. Ou se baixar
um ET de outro lugar, talvez ele não pareça uma IdioFormação para estas
Pessoas. Limito, pois, o conceito de Pessoa a ser a IdioFormação de
nosso caso (nem digo de nossa espécie).
• P – Ano passado, quando se perguntou se a Internet era uma Pessoa,
você disse sim.
Estava mal delimitado naquele momento. Ela não deixa de se configurar
como Pessoa, pois é feita por pessoas, o que a faz incorporar uma configuração
de Pessoa, ou seja, ela se contagia da pessoalidade daqueles que a constituem.
Não existe uma Internet autônoma como robô. Por enquanto, ela é uma coisa
de Pessoas. Quando inventamos robôs, levamos muitos cacoetes nossos para
eles. Isto é dispensável, pois podemos ter robôs a nosso serviço com
configurações radicalmente diversas, mas nossas formações, por via secundária,
contaminam sua produção. É interessante observar, por exemplo, na história
dos objetos tecnológicos, o caso dos primeiros automóveis. Como não se sabia
o que era um automóvel, eles imitaram carruagens ou trens. Hoje, já não imitam
mais, e no futuro não se parecerão nem com o automóvel de hoje. A estupidez
contamina a produção.
Algo que vejo ser muito difícil é nos afastarmos dos modelos a que
estamos acostumados. Sobretudo o modelo básico da filosofia – a qual é a joça

170
Teoria do eu: a pessoa

ocidental, mediterrânea, já que não há filosofia oriental – que, mesmo fingindo


escapar dele, tem o cacoete do tal sujeito. Por mais limpeza que se faça nesta
categoria, ela acaba invadindo o pensamento. Digamos que Lacan fez o esforço
de manter a idéia de sujeito, portanto de manter-se no campo da filosofia, de
onde, aliás, nunca saiu, e, ao mesmo tempo, de dar uma distorcida dizendo que
Freud mostrou que ele é dividido por ter inconsciente; que é partido; ou que, na
melhor das hipóteses, é representado de um significante para outro; é um
intervalo, um vazio, etc. Entretanto, toda vez que o tal sujeito comparece em
análise ou em outro lugar, é indexado pelo S1, o significante mestre, que é um
enxame de constituintes. Ou seja, não é possível lidar com o sujeito, pois lidamos
com sujeitos indexados, os quais e ego são a mesma coisa, embora Lacan faça
uma diferença. Isto porque continua-se a pensar em sujeito, mesmo que se o
fracione e se o represente de significante para significante, mantém-se a barra
não só de divisão do sujeito, mas também entre sujeito e objeto, os quais, junto
com os significantes que vão indexar, S1 e S2, são as categorias que seguram
suas formulações.
O importante é que, na concepção de sujeito (que não é a de indivíduo,
o qual é a suposição de recorte para fora do Haver de algo que não é possível
ser recortado) pela filosofia e em sua tomada por Lacan – lembrem-se de que,
para mostrar como a máquina funciona, Freud não fala de sujeito, mas de Eu
em sua tópica (Ich, Überich, Es) –, insiste-se, junto com o pensamento filosófico
do Ocidente, em que há sujeito e há objeto. Foi a partir desta insistência que
Lacan nomeou suas categorias. É este o pensamento que habita nossa vida
desde a primeira infância, e, do ponto de vista de escolaridade, desde a escola
primária. Somos escolarizados em todos os campos do saber, principalmente
no da língua, segundo a concepção de sujeito. Isto a ponto de o sujeito gramatical
tomar conta de nossa existência: já não somos mais ninguém, apenas um sujeito
gramatical. Nossa língua se constituiu assim por herança do latim, do grego, do
mesmo lugar de onde a filosofia foi produzida. Como é essa a língua que uso, o
sintoma me força a fazer a suposição de que digo “eu”, de que há objeto e
outras pessoas, tu, ele, etc., e pior, de que há a distinção entre sujeito e objeto.

171
A Psicanálise, Novamente

Isto está na língua, que se constitui assim. Mas a gente se constitui assim? As
línguas existentes que não se realizam mediante a oposição sujeito / objeto,
assim como a língua dos ETs ou mesmo a dos computadores, exigirão a divisão
sujeito / objeto? Minha questão fundamental com a história da filosofia e da
psicanálise tal como se deu ultimamente, sobretudo na mão de Lacan, continua
sendo: quem é Eu? E não adianta virem com a gramatiquice de Jakobson –
sujeito da enunciação, do enunciado, etc.
• P – Quando se fala em enunciação, fala-se em algo que está por trás,
que subjaz.
Esse por trás, por dentro, por baixo, subjectum, é o que seria o miolo
da gente, onde há um homenzinho que se exprime. Acaba sendo sempre o
homúnculo dentro do homão. O Ocidente é infectado da idéia absurda de alma
ou de agalma, por exemplo. Tudo faz parte dessa mesma configuração, com a
qual estou implicando por não corresponder (mais) aos acontecimentos de
mundo, que a dissolveram. Em seu tempo, Lacan chegou a entender essa
dissolução como mera fração, como interstício, mas a coisa está se multiplicando
demais. E no movimento de comunicação tecnológica dentro do que é a
globalidade do mundo, precisamos sair do Mediterrâneo e da Europa. Coisa
que não só está ficando visível como sendo abalada e dissolvida pela intervenção
do mundo que não é isso. Portanto, é preciso inteligir de outra maneira. Sei que
é difícil pensar assim. Não foi fácil também para mim.
• P – Schrödinger diz que essa questão nunca existiu. Embora as últimas
questões científicas mostrem isso mais claramente, não foi porque se
descobriu a mecânica quântica que se dissolveu a relação sujeito / objeto.
Ela nunca houve. Era forçada por um modo de articular, que é o
Mediterrâneo. Não é preciso nem falar de filosofia ou de monoteísmo, pois
ficamos infectados por aquela joça ocorrida entre os rios Reno e Hindu. Pode-
se manter a resistência dessa formação por muito tempo, só que esta resistência
(não será, mas) já foi rompida, e continuamos a abordar com ela o mundo que
está disponível. Lacan, em 1981, morreu junto com seus últimos estertores.
Depois dele, lacanianos ainda repetem isso, que já não dá conta de nada, e

172
Teoria do eu: a pessoa

escolas de filosofia ficam bostejando, pois não se vêem capazes de retomar a


história da filosofia e transmitir não mais o questionamento dentro de filosofias,
e sim o questionamento dessa história. É claro que filósofos de alto nível tentaram
sair deste problema de diversas maneiras, mas acabam mais ou menos
aprisionados no Ocidente.
Estou dizendo não tanto ao sujeito, com a herança que tem, quanto ao
objeto, objeto a ou qualquer outro. Então, se digo “nem sujeito nem objeto”,
estou falando, relativamente a quem faz a prolação de sujeito e objeto, que são
as Pessoas, que elas são um imenso aglomerado de formações, e muito
resistente, pois toda formação é resistente e tem característica da neurose, ou
seja, quer ser estacionária. Não consegue, mas resiste o máximo que pode.
Temos, pois, um aglomerado complexo de formações, que, dado o fato de
serem formações, e portanto resistentes à sua própria transformação em
qualquer outra coisa ou a qualquer invasão, tornam-se necessariamente Pólos,
configurados como formação e como resistência. Como já lhes disse, as duas
características de um Pólo são: Foco e Franja. Numa grande formação que
seja um Pólo, temos certa zona focal, que é sua força maior, e a franja, que
nem sabemos onde termina. Quando recortamos a formação, já estamos fazendo
uma mutilação, pois não temos como saber onde acaba sua franja. E mais, no
pólo, a focalização pode se deslocar e se desloca com freqüência. Por exemplo,
na história do Ocidente, vemos aparentes transformações que são apenas um
pequeno deslocamento do foco. Parecem uma revolução, mas a resistência
continua a mesma. Tomem o livro Il Gattopardo, de Tomasi di Lampedusa, e
vejam sua inteligência em mostrar que, para ficar no mesmo pólo, é só mudar
um pouquinho o foco: todos caem na conversa e nada muda (“bisogna che
tutto cambi perché tutto rimanga com’è”). Revolução e Garibaldi são a mesma
titica, só mais para lá. Por isso, o movimento dito da história é tão devagar: faz-
se um esforço enorme às vezes só para deslocar um pouco o foco.
O que tenho a criticar naqueles que trabalham com a teoria dos sistemas
é pensarem de maneira individuante. Seja Ludwig von Bertalanffy, Niklas
Luhmann ou Humberto Maturana, todos pensam em termos de fronteira. É

173
A Psicanálise, Novamente

quase um vício – que todos temos, aliás – de pensar com a teoria dos conjuntos.
Então, o que qualifica o sistema, ou melhor, a formação, é o perímetro externo.
Ou seja, formação com sua resistência terminam em seu limite de fronteira: o
limite é externo. Podemos utilizar a teoria dos sistemas para pensar muita
coisa, mas aqui não estou pensando em termos de fronteira, pois elas se
demonstraram eliminadas. Hoje, há que pensar em termos de força e poderes.
Se tenho um pólo com o foco situado, jamais saberei onde termina a franja.
Pode ser que termine intricada com outras franjas. Portanto, o que tenho para
pensar são muitas formações:

É um aglomerado de formações, em que a formação maior encontra


seus limites não numa fronteira, e sim no limite, no sentido matemático, que vai
para o infinito a partir de um foco de força. A teoria dos sistemas é um
pensamento espacial, e mesmo que fosse em termos topológicos ainda seria
euclidiano demais. O nosso é um pensamento em que as formações são campos
de força, que se tornam pólos e em que podemos distinguir seu foco e elementos
de sua franja, mas não ela toda. Se pensarmos com fronteiras, nada mais tem
a ver conosco.
• P – A idéia de sistema é equivalente à idéia de recalque?
O recalque existe quando, mediante outra formação, recorta-se e só
se considera aquela parte. Mas há o retorno do recalcado, o qual é a prova de
que o recorte está errado.
• P – O difícil não é pensar o jogo de forças das formações, mas pensar
o Haver assim.

174
Teoria do eu: a pessoa

É impossível. Por isso, recorro à topologia e digo que é um plano


projetivo. Retomo o que, com outras intenções, já era dito pelos religiosos antigos
e afirmo que o pólo está em toda parte e o foco em parte alguma. Onde
apontarmos, será verdadeiro. Só conseguimos mais ou menos apreender um
pólo pela descoberta de um foco e pela descrição aproximada da franja. Daí,
ser uma loucura lidar com o psiquismo. Mas não só com ele, pois tudo é
assim. Onde termina o limite desta caneca que está diante de mim? Aqui ou
no sol que determina as forças de gravidade que a mantém sobre a mesa?
Há um pedaço de sol nela? Sim. Se não, como estaria ela parada aí? Foi a
estupidez humana de dois mil anos de focalização no Mediterrâneo que nos
deixou com o vício de eu / objeto, mas isso não existe. Quem é Eu? É certa
formação complexa, composta de inúmeras formações, que eventualmente
se focaliza em tal situação. Se digo “eu e a caneca”, quem é Eu? Estou
falando do quê? Só posso dizer que há algumas formações que com-sideram
a caneca, mas com-siderar não é “eu considerando a caneca”, e sim os dois
siderando juntos. Isto elimina indivíduo e sujeito. São formações em sideração
com formações que resultam nessa contingência. Basta deformar qualquer
formação que faça parte dessa suposição de transa que imediatamente a
resultante se move. Podemos fazer todas as conjeturas a respeito da estrutura
do psiquismo, mas se alguém enlouquecer ou bater a cabeça e fizer um
coágulo, veremos muito bem como (não) fica a tal estrutura. O mesmo
acontece se deformarmos a formação que está em jogo com outra formação.
Outra formação não é eu, mim ou pessoa: são formações aí dentro, e aí não
estão todas as formações em jogo quando, no sentido lacaniano, proponho
um objeto como tal. Quando proponho que tal coisa é um objeto meu, aquilo
é um zilhão de formações. Então, temos tesão no quê? Naquilo que o objeto
tem tesão em nós. Não é óbvio que quem tem tesão em nós é o objeto? O
objeto tem tesão com as formações que estão aqui: elas se entendem.
• P – A questão é: quem assedia quem?
Lacan deixou claro que, para ele, agente é o objeto: o objeto é que nos
assedia. Eu não diria isto, pois não separo sujeito ou objeto. Digo que formações

175
A Psicanálise, Novamente

entram em sideração e se assediam. O pensamento no mundo inteiro está


agravado pela noção ocidental, donde vem culpa, imputação de pena, etc. É
tudo forçado, é a injustiça absoluta. Não estou reclamando de justiça, pois não
acredito nisso, mas é preciso saber que a consideração da ordem do mundo a
partir das noções de sujeito e objeto e fazer juízos e imputações a partir daí é
absoluta loucura e total injustiça.
A gata comeu o pinto, ou foi o pinto que comeu a gata? A gata comeu
o pinto – cadê sujeito e objeto aí? A fome, positiva ou negativa, sempre vem
junto com a vontade de comer, positiva ou negativa. É disto que se trata quanto
ao assédio. Observem as metáforas do Ocidente: “os homens comem as
mulheres”. Como o verbo comer pode ser metafórico, não se sabe quem come
quem. Segundo a pressão ocidental de sujeito / objeto, quem é sujeito aí? Só
pode ser o homem e a mulher é objeto – e Lacan ainda repetiu esta indecência.
Confundem-se os poderes situados focalmente em determinado momento
histórico com a estrutura da coisa. Por que, é verdade, as mulheres têm sido
objeto? Porque os poderes focalizam o homem, mas, se prestarmos atenção,
veremos que são uns babacas que elas manipulam com golpes de boceta. Ou
seja, é uma farsa que nem realidade é.
• P – Quando alguém usa uma droga alucinógena acaba o eu?
Sim. O movimento sobre drogas feito da década de 1960 para cá é a
tentativa de escapar da prisão ocidental, sem conseguir. Timothy Leary e William
Burroughs, já velhos, chegaram à conclusão de que era preciso tudo aquilo,
mas sem a droga. Se não, não escapa. Ou seja, descobriram a psicanálise –
que na verdade não existe, pois tem sido a joça ocidental dentro dos consultórios.
Mesmo o sujeito gramatical das línguas ocidentais (indo-européias),
com seus objetos direto e indireto, pode ser alternado. Toda vez que dissermos
Eu, é preciso lembrar que podemos eliminar esse termo. Por exemplo, se me
fechar nesta sala e uma pessoa de fora me perguntar o que acho de determinada
coisa, alguém me dirá o que acho, pois “eu” não posso achar nada. Como não
sou uma formação inteira, e esta sala é minha cabeça, ao invés de dizer “eu
acho”, o que posso responder é: “por aqui estão dizendo que...” Façam este

176
Teoria do eu: a pessoa

exercício e verão que, se Eu é um conjunto enorme de formações, Eu e nada


são a mesma coisa.
• P – McLuhan, citando Ortega y Gasset, diz que, na língua japonesa,
não se utiliza o eu, que utilizá-lo seria “injetar minha personalidade em
meu vizinho”, seria imposição demais sobre o outro.
Ele está lendo assim com fronteiras porque também é sistêmico. Não
estaremos fazendo imposição alguma sobre outro, e sim sendo estúpidos de
pensar que há eu aqui. O que temos são resistências de formações: a coisa
está polarizada, focalizada e franjada. Aquele que chamo de outro tem também
uma força central de focalização, mas, no meio, já não sei quem é eu e quem é
outro. Donde, todas as confusões mentais quanto ao entendimento da mente.
Se não focalizar o pólo, fico meio perdido. E não só com outra pessoa, pode ser
com outra coisa. Vejam que as tentativas de estudo, científicas, artísticas, etc.,
de nossa situação no mundo acabam nesse lusco-fusco. A mente não é
renascentista, mas a formação chamada ocidental está tão impregnada nesse
pedaço do Haver que a resistência é fabulosa.
• P – O pólo é sempre resistência?
Todo pólo é um poder, portanto, é resistente. O que não sabemos é
desenhar todo o pólo: percebemos com mais nitidez os focos, que são
poderosíssimos. Nosso problema em análise é desfocar a pessoa que nos procura
e sugerir-lhe outros pólos.
• P – A impressão que se tem é de que a desfocalização é a loucura,
quando é justo a focalização.
O que há de ruim na cultura ocidental não é ser essa loucura, e sim
supor que ela é coincidente com a realidade.
• P – Quando você utiliza a teoria dos conjuntos, identifica bem
Consistência e Inconsistência. No que você está dizendo hoje, mesmo
focalmente, por mais resistência que percebamos, a questão do limite está
mais presente.
Hoje podemos substituir o que disse sobre o Sexo Resistente, que é o
Sexo que Há e que costuma se comportar de duas maneiras: existe um modo
recortado sistêmico e existe um modo polar de fazer sexo. Substituam

177
A Psicanálise, Novamente

Consistência por fronteira e Inconsistência por pólo que funciona. E isto nada
tem a ver com macho e fêmea.
• P – Não podemos pensar que o Consistente tem a ver com o foco e o
Inconsistente com a franja?
É outra metáfora, mas a consistência fálica de que falam os analistas
é de recorte: homem que é homem não tem beiras. Podemos pensar o Sexo
Consistente como uma tentativa de demarcação de fronteiras onde tudo acaba,
e o Sexo Inconsistente como aquele que tem um foco, mas se espalha. Se
quisermos harmonizar as coisas com esse raciocínio, serve.

20/AGO/2005

178
As morfoses (ou psicomorfoses)

9
AS MORFOSES (OU PSICOMORFOSES)1

A partir de agora, é exigível que retomem, para estudos e comparações,


o texto do Seminário de 1992, Pedagogia Freudiana. Vamos re-considerar
os fatos psíquicos e as formações do Haver em geral – ou as formações do
Inconsciente, se quiserem – como quaisquer. Tudo isso no sentido de: nos
afastar radicalmente dos discursos a respeito de saúde ou doença mental, como
o da psiquiatria, da psicologia, etc.; radicalizar a diferença de postura; e procurar,
de modo minimalista, formações patemáticas de base. Já lhes falei dos
Patemas da Psicanálise e se conseguirmos distinguir as formações patemáticas
de base, teremos condições de, a cada caso, a cada momento, distinguir estas
formações do que podemos chamar de formações-conteúdo, que estão metidas
e embutidas nessas formações de base, o que, sem a distinção, resulta em
enorme confusão na clínica. Esclareço desde já que não é o caso e nem quero
tratar de matemas, pois estou dizendo que estas pequenas formações mínimas
da estrutura psíquica que acontecem para o psiquismo são da ordem do pathos,
não necessariamente patológico, mas patético, pura e simplesmente. Por isso,
chamo estas formações de patemas (como chamam fonemas, matemas,
mitemas, etc.). Essas afetações é que constituem a Patemática da Psicanálise.
Já lhes disse que o que há de exemplar para nós num texto como o I
Ching, é ser sem palavras, sem letras de língua alguma e, no entanto, ser um
1
Texto retirado do Falatório 2003, de MD Magno, Ars Gaudendi: A Arte do Gozo (Rio de
Janeiro: NovaMente, 2006), p. 71-91.

179
A Psicanálise, Novamente

texto que estabelece formações, relações entre formações que podem ser
acompanhadas das mais diversas maneiras. Ao considerarmos seus tracinhos
sobrepostos, vemos que existe um processo de leitura – que os ocidentais
chamam de interpretação, mas que não o é – das possibilidades de entendimento
que se abrem. Trata-se de um texto milenar que tem servido para grandes
reflexões e para produção de outros textos, isto é, de outros fatos textuais, que
procurariam lhe dar prosseguimento. É algo assim que precisamos pensar como
base para a psicanálise. Isto, para largar mão da nomenclatura exacerbada
que: 1) veio da ordem social; 2) passou à ordem jurídica; 3) foi conquistada
pela ordem médica; e 4) foi adaptada ao pensamento psicanalítico. Ou seja, é
uma lata de lixo da pior qualidade. Em alguns casos, continua funcionando até
hoje. Quando abrimos um texto legal e comparamos com um texto psicológico,
psiquiátrico ou dito psicanalítico, o que temos é o samba do crioulo doido. Vemos
classificações que são da ordem da moral social, que, em certo momento, são
elevadas à categoria de lei e passam à ordem jurídica. Depois, a ordem médica
acha que não é bem assim, que aquilo não é crime, e sim doença, então resolvem
tratar da doença. E isso vai bater na psicanálise. Então, quando tomamos um
fato policial na sociedade, vemos que se utilizam ao mesmo tempo essas diversas
abordagens absolutamente enlouquecidas. Isto, a respeito de um fato policial.
A mesma ordem que diz que determinadas ações jurídicas têm a ver com a
ordem médica – por exemplo, que o sujeito não cometeu tal ato porque é mau,
e sim porque é doente – estabelece, no entanto, uma sanção freqüentemente
da ordem do policial sobre essa pessoa. A coisa não faz sentido, é uma loucura.
É preciso, portanto, nos afastar definitivamente de toda essa conversa
do passado e perguntar, após cem anos de consideração do chamado
Inconsciente segundo as formulações da chamada psicanálise, se é possível
passar uma peneira e, sem correlação com essas formações maledicentes,
situar o que está acontecendo. E, com isso, diferir radicalmente as formações
de base da quantidade enorme de conteúdos que as pessoas nelas inserem.
Conteúdos psiquiátricos, por exemplo. Se não, continuaremos sem saber se
aquilo é descritivo ou estrutural, pois não faz sentido.

180
As morfoses (ou psicomorfoses)

Já lhes recomendei, sejam vocês psiquiatras ou não, que lessem, do


começo ao fim, a DSM IV (Porto Alegre: Artmed, 2002).

• Pergunta – Nesta classificação psiquiátrica, houve a tentativa de


mapear síndromes, justo para sair da ordem policialesca.
E ficou a mesma coisa... Leiam, pois é um romance divertidíssimo,
em que se fala muita besteira. O que acontece no texto da resolução
psiquiátrica em vigor? Pessoas se reúnem, e como deve haver um jogo de
poder (quanto a quem tem mais força de produção de texto, por exemplo),
aquilo resulta num arranjo textual. A respeito do quê? Dá a impressão de ser
algo descritivo de uma longa experiência de hospital, de consultório, em suma,
uma longa experiência que vem sendo descrita há séculos pelos mais diversos
psiquiatras. Lacan, inclusive. No começo, ele era um psiquiatrão da estirpe
de Clérambault e tinha aqueles desvios psiquiátricos todos. Mas vemos a
descrição passar sem nunca saber do que estão falando, pois, quando
descrevem um síndrome ou sintoma, como chamam conforme o caso, não
temos como saber se estão falando de algo observado como repetição
estrutural ou de algo que é um conteúdo específico que alguém trouxe em
algum momento. O que faz com que haja uma enorme proliferação de índices
psiquiátricos, verbetes numerados, síndromes de não-sei-o-quê. Não falam
em doença, mas dizem que são transtornos, inclusive com número: transtorno
de ansiedade, de personalidade, afetivo... Dá a impressão de que querem
tirar a nomenclatura da ordem social e jurídica, que era um pouco de
xingamento. Por exemplo, não há mais psicopatas, e sim transtorno de
personalidade anti-social. O pior de todos é o borderline, que antes
chamávamos de PP.
• P – A história dessa classificação é péssima. Há livros publicados
sobre as brigas entre as escolas. Existiu uma escola psicanalítica,
herdeira de Fenichel, que queria manter o termo neurose...
Otto Fenichel é alguém que, às vezes, é até inteligentíssimo.

181
A Psicanálise, Novamente

• P – ...mas resolveram não manter o termo com a justificativa de não


poder incluir na classificação nenhum critério teórico de alguma
escola. Como se, na descrição, não entrassem os conteúdos
sintomáticos dessas escolas.
Eles não chamam de neurose obsessiva, mas está lá toda a neurose
obsessiva descrita com o nome de transtorno obsessivo compulsivo. Não é
neurose, é só um transtorno... Além do horroroso, do mau gosto, da falta de
rigor, da influência política exagerada, de tudo que há de erro no texto e de que
ele vale oficialmente no mundo inteiro, o pior é que não tem um aparelho rigoroso
para refletir sobre a coisa. Amanhã, dez psiquiatras do mundo resolvem se
entender a respeito da repetição de certo sintoma nas pessoas e aquilo
certamente vai entrar na DSM como uma categoria. Ora, isso é conteudístico,
é casuística, é fazer a ciência do particular, como Lacan falava.
• P – A história do termo personalidade múltipla demonstra bem isso. Existia
um transtorno de personalidade múltipla, depois, chegaram à conclusão
de que era um fenômeno estritamente americano e que o transtorno teria
que ser mais genérico para não ser uma casuística. Então transformaram-
no em transtorno dissociativo da personalidade.
Mas quem não tem personalidade múltipla?! Aliás, o conceito de
personalidade é uma besteira, tanto na psicologia quanto na psiquiatria.
Nossa pergunta deve ser: existem formações genéricas? Como
podemos descrevê-las? Dentro dessas formações genéricas, podemos incluir
a casuística, e, então, aparecerão as diferenças de caso, descritíveis, mas que
não precisam entrar na formação de síndromes. Quero arranjar um jeito de
extrapolar e cair fora dessa selva, para não mais repetirmos palavras como
neurose, histeria ou transtorno. Para termos algo enxuto que sirva como
referencial mínimo de formações do psiquismo. Quanto ao resto, podemos
fazer anotações a respeito de um analisando em que a conteudística entre e,
como fazemos parte da mesma cultura, veremos esse conteúdo se repetir.
Mas é conteúdo. É a mesma besteira que o Édipo, que é conteúdo de uma
cultura. Se Freud não tivesse sido gênio, estávamos presos naquela historinha

182
As morfoses (ou psicomorfoses)

caseira tipicamente neolítica, como se fosse estrutural. Mas por mais que se
repita e pareça universal do ponto de vista da situação presente no mundo,
podendo até ser um creodo cultural, não é estrutural nem universal, com
nenhuma categoria que se possa atribuir à palavra universal. Tampouco
temos que recobrir ponto a ponto as nosografias disponíveis como a da DSM
IV, em que a palavra nosografia foi proibida, pois preferem falar em
classificação dos transtornos. E nada nos impede de utilizar toda a literatura
disponível, psiquiátrica ou outra qualquer, inclusive a literária, como descrições
aproveitáveis da casuística patemática no mundo. Os psiquiatras
freqüentemente buscaram nos romances, nas peças de teatro, na obra
pictórica, etc., exemplos do que estavam suspeitando encontrar no consultório
ou no hospital. Mas não vamos transformar isso em descrição ou mesmo
nomenclatura de síndromes psicológicos.
Não confundir, portanto, formações casuísticas e/ou conteúdos
narrativos e/ou acontecimentais com formações patemáticas específicas. As
formações casuísticas ou conteudísticas serão consideradas, mas caso a caso.
Não confundir a descrição que fazemos de algo que encontramos pela frente
com a classificação em que podemos meter uma pessoa. O esforço é no sentido
de conseguir uma classificação minimalista e, quando considerarmos cada caso,
podermos ler em qualquer lugar – por exemplo, numa peça de Shakespeare,
ver que ele descreveu um caso parecido –, mas só introduzir a descrição
casuística numa classificação a mais abstrata possível. Cada caso pode ser
reconhecível como inserto, inserido na Patemática da Psicanálise e suas
formações-conteúdo constituirão a particularidade do caso. Nosso método de
trabalho é tentar entender a partir do estrutural quais são as estruturas mínimas,
quais são as formações de base – se não quisermos usar a palavra estrutura –
que a psicanálise, pelo menos esta de que estou falando, pode reconhecer.
Depois é que vem como entendemos a história, a casuística, os acontecimentos,
mesmo repetidos, entre pessoas que vamos colocar ali dentro.
Não precisamos repetir nomenclatura herdada. Para nós, não há transtornos,
e sim patemas. São as Formas de Gozo, é a Morfologia do Gozo. É por onde

183
A Psicanálise, Novamente

se goza, e não há transtorno algum – só se reconhecermos que o gozo seja um


transtorno... Trata-se, então, de não repetir nomenclatura herdada: 1) das
formações preconceituais da sociedade, isso é fofoca de madame; 2) das
formações legiferantes da ordem jurídica, isso é problema entre policial e textual;
3) das formações corretivas ou curativas da ordem médica; 4) das formações
herdadas desses campos, ou mesmo os filosofantes, da psicanálise anterior.
Há que fazer uma faxina e entender o que acontece, procurar uma nomenclatura
que tenha o mínimo de palavras, saber que há essas formas e que, dentro
delas, cabe muito conteúdo.
Com muita freqüência, vemos psiquiatras se ‘pseudo’-enganarem a
respeito de um diagnóstico, em função da transa social ou política que está
vivendo no momento. Por exemplo, se atenderem um “transtornado” de classe
alta, o diagnóstico muda. Ele é diagnosticado como algo que é chique dizer:
TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade). Como há psiquiatra
aqui, peço que diga o que é isto.
• P – TDAH descreve uma atenção não focada, uma dispersividade. Já
existem provas de que há um hipofuncionamento na região frontal, no
córtex pré-frontal, sobretudo em crianças. Não se trata de lesão
estrutural, e sim funcional, que melhora com uso de medicação. Essa
região é a parte executiva do cérebro, responsável pela tomada de
decisão e gerenciamento de situações, funcionando como o maestro de
uma orquestra.
Aliás, não é preciso pensar em hiperatividade ou transtorno de atenção
reconhecíveis para constatarmos a quantidade enorme de pessoas em que
esse maestro é débil mental. Elas só conseguem o compasso dois por dois...
• P – Por outro lado, há dois neurologistas americanos chamados Eugene
d’Aquili e Andrew B. Newberg (The Mystical Mind. Probing the Biology of
Religious Experience. Minneapolis: Fortress Press, 1999) que afirmam que
é nessa região frontal que se propicia uma experiência mística.
Se esse maestro for excepcionalmente brilhante, não há outra saída a
não ser ir lá em Cima.

184
As morfoses (ou psicomorfoses)

• P – Podemos até dizer que a maioria das pessoas é seqüelada, tem essa
falta de referência extrema.
Seqüela do transtorno ou da falta de educação? Isto nem a psiquiatria
nem a neurologia sabem dizer. Ora, se temos uma disfunção frontal, do que ela
resulta? De um defeito do cérebro? Ele é mal construído?
• P – Eles dizem que é genético.
Acho que é destrambelhamento na maioria dos casos.
Destrambelhamento familiar, falta de educação. A pessoa não recebe formação
adequada ou tem dissociações dentro de casa e aquilo não funciona direito.
Vamos supor que, em alguns casos, exista disfunção cerebral pura e simples.
Acredito que exista, mas penso que sua freqüência é muito maior pela disfunção
produzida na relação mórfica com o mundo. É por isto que, por enquanto, nem
psiquiatras nem neurologistas têm condição de se desfazer de nosso trabalho.
O processo é de mão dupla: há disfunções cerebrais, digamos, endógenas e
exógenas (e estas são produzidas na relação entre formações).
Retornando ao que dizia, é freqüente o caso de um psiquiatra, às vezes
de boa qualidade, diagnosticar como TDAH alguém que, na linguagem deles, é
borderline. Estou falando de um caso concreto, em que vi que o psiquiatra
estava acochambrando as questões, dada a importância da pessoa diagnosticada.
Não fica bem a uma pessoa de tal estirpe ter o outro diagnóstico. Se fosse o
pobrezinho da favela, era considerado delinqüente, 171, fdp. Nem de borderline
o chamariam. Quero mostrar é a quantidade de truques que há nisso. Aliás,
nada temos a ver com a nomenclatura borderline. Isto não nos interessa.
Desde 1986 (O Sexo dos Anjos. A Sexualidade Humana em
Psicanálise [Seminários 86-87]. Rio de Janeiro: Aoutra, 1988. p. 29-38), falo
em neurose, psicose e morfose, utilizando a terminologia e a descrição velhas.
Quero jogar no lixo os dois primeiros termos e chamar a tudo de Morfoses,
isto é: casuística de formações. Assim, tratamos das morfoses do psiquismo,
as quais são, elas próprias, consideradas através dos patemas da
psicanálise, que descrevem as formas do gozo. Coloco tudo num só
pacote, pois a canalhice anterior – que misturava os discursos social, jurídico,

185
A Psicanálise, Novamente

médico, etc. – utilizava o viés que interessava no momento e a coisa passava,


à vontade, de doença para problema moral, de acordo com freguês, com a
hora e com o interesse, por exemplo, jurídico de acompanhamento de um
caso policial. Nossa classificação trata das Morfoses – ou PsicoMorfoses,
se quiserem generalizar –, isto é, das formações secundárias de uma
IdioFormação enquanto supostamente patológicas ou patéticas. Falo em
formações secundárias, pois tratamos do Secundário, o qual tem suas relações
e bases necessárias no Primário.
Consultem o Seminário Pedagogia Freudiana. Lá temos uma boa
arrumação, mas ainda com uma nomenclatura antiga e mal desenhada, e quero
passar a limpo de uma vez por todas. Fiz a descrição do que poderia ser tomado
como as Fundações Mórficas e mostrei que poderíamos considerar que todo o
processo são os avatares dessas fundações. Retomaremos tudo em nosso
trabalho, mas hoje vamos começar a descrever as formações como
classificação.
• P – Georges Lanteri-Laura, em seu livro (Leitura das perversões: história
de sua apropriação médica. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1984, 180p.), faz o
percurso dessa passagem de discurso para discurso em relação à idéia
de perversão.
Já citei várias vezes esse livro. Embora todas as formações tenham
passado por esses discursos, na assim chamada perversão vemos com clareza.
Lacan dizia que o perverso sabe, tem o know-how, pois é o lugar da pura e
simples insistência da fundação mórfica. Vocês devem se lembrar que no texto
da Pedagogia Freudiana resolvi que perversão é tudo. Então, quando falo de
perversão, não estou falando de perversidade (aliás, quero também jogar fora
este termo). Desde que Freud começou a tomar contato com a estrutura do
psiquismo, mostrou que este é perverso polimorfo.
Embora dissesse que era a criança, estava falando do psiquismo.
Perversão é a co-naturalidade do psiquismo dentro do Haver, ou seja, a
insistência pura e simples das fundações mórficas de qualquer um. Só que uns
têm uma fundação, outros têm outra. Como sabem, só há positividade, não há
negatividade no psiquismo, portanto as fundações são positivas. Mas serão

186
As morfoses (ou psicomorfoses)

elas tratadas positiva ou negativamente? Qual interesse será colocado sobre


elas no jogo com o mundo (onde essa coisa necessariamente positiva será
positivizada ou negativizada)?
Como disse, os Patemas da Psicanálise são as formas do gozo, ou
seja, a morfologia do gozo. Vejam, abaixo, a classificação (em quatro
modalidades) das Morfoses (ou PsicoMorfoses), isto é, das Formações
(Secundárias) de uma IdioFormação enquanto supostamente patológicas. São
os Avatares das Fundações Mórficas:

As Morfoses (ou PsicoMorfoses)

1. (P) = PROGRESSIVAS
(+P) = Positivas (Perversões)
(+P+) = Ativas (sadismo, exibicionismo, etc.)
(+P-) = Reativas (masoquismo, voyeurismo)
(-P) = Negativas (Fobias)
(-P+) = Ativas
(-P-) = Reativas (atos contrafóbicos)

2. (E) = ESTACIONÁRIAS (Neuroses)


(+E) = Positivas (Histerias) (por ser + foi considerada fundamental)
(+E+) = Ativas
(+E-) = Reativas
(-E) = Negativas (Obsessivas)
(-E+) = Ativas
(-E-) = Reativas

3. (R) = REGRESSIVAS (Psicoses)


(+R) = Positivas (Paranóias)
(+R+) = Ativas
(+R-) = Reativas

187
A Psicanálise, Novamente

(-R) = Negativas (Esquizofrenia) (não há sem paranóia anterior ou


concomitante)
(-R+) = Ativas
(-R-) = Reativas

4. (T) = TANÁTICAS

Em primeiro lugar, as Formações Progressivas. Não vamos mais


falar em perversão, perversidade ou fobia, pois são Formações Progressivas,
que podem ser positivas (+P) ou negativas (-P). Não esqueçamos que todas as
formações são positivas originalmente – elas serão tratadas positiva ou
negativamente. Faço a ressalva de que positivo (+) e negativo (-), neste
esquema, referem-se à face afirmativa ou negativa da afecção. Uma face
afirmativa é uma afecção que diz sim, que parte do sim. A negativa, é a afecção
que diz não, que parte do não. Por exemplo, em nosso conhecimento antigo,
sabemos perfeitamente que a famosa histérica parte da postura de dizer sim, e
que o obsessivo é tão obsessivo que, antes de falar qualquer frase, diz não,
pois parte de negar para poder afirmar. Todas as afecções podem ser entendidas
assim: enquanto formação, partem do sim ou da negação disso. O começo da
entrada é assim, e temos que criar ouvidos para escutar. Trata-se de uma
questão realmente musical: o maestro precisa funcionar, quer dizer, quem tiver
o maestro prejudicado não vai ouvir.
Na Patemática da Psicanálise, segundo este pensamento, as Formações
Progressivas, primeira categoria da classificação, são progressivas das
fundações mórficas. As fundações mórficas lá estão e são tratadas carregadas
para a frente em seu movimento histórico e em seu movimento de afirmação.
Não são bloqueadas nem postas para trás, e isso comparece positiva ou
negativamente. Positivamente, é o que antigamente chamávamos de perversão,
e que, depois, chamei de perversidade. Negativamente, é o que sempre foi
engolido como mosca na história das afecções psíquicas: o fato de tratarem as
fobias como neurose. Não é o caso desta classificação, em que fobia é o

188
As morfoses (ou psicomorfoses)

negativo da positividade da perversão. Aliás, fobia e perversão são nomes que


podemos jogar fora. Então, o negativo da Progressiva Positiva (+P) é a
Progressiva Negativa (-P). O processo continua progressivo, sendo, entretanto,
o avesso do processo básico, que é a perversão, a positividade da progressão.
Seja Positivo ou Negativo, o Progressivo se apresenta com caráter, no
mínimo, duplo: Positivo Ativo (+P+) ou Positivo Reativo (+P-) e Negativo
Ativo (-P+) ou Negativo Reativo (-P-). Como isto é algo que as pessoas
têm dificuldade de entender, vou retomar do começo. O que chamo de
Progressivo é uma fundação mórfica que é carregada para a frente, que continua
no empuxo. O Positivo, repito, é partir do sim, da afirmatividade. O Negativo,
é pôr primeiro a negação. Agora, consideremos a pessoa, a IdioFormação ali
presente. Ela é Ativo, quando parte de seu próprio movimento no sentido de
outrem, de querer agir sobre outra IdioFormação. O contrário, que chamo de
Reativo, é o mesmo movimento – e não pensem que é passivo –, só que age
sobre outra formação para que esta devolva a reação a seu movimento:

Fundação Mórfica: Progressiva

+/–

Ativo Reativo

Não há passividade aí. Por isso, estou modificando o que coloquei ano
passado quando falei em ativo/passivo. O Ativo é quando, por exemplo, estamos
diante de uma situação clínica e vemos nitidamente como as ações de uma
pessoa são no sentido de interferir no outro. É Reativo quando suas ações são
no sentido de provocar a reação no outro. Isto é muito nítido nas Progressivas
quanto ao que, por exemplo, chamam de sadismo e masoquismo (os textos de
Sade e de Masoch). No caso das Progressivas Ativas, a pessoa é sádica para

189
A Psicanálise, Novamente

com o outro. No das Progressivas Reativas, a pessoa provoca o outro a ser


sádico para com ela. Ela é masoch porque quer que o outro seja o agente,
mas é mentira, pois o agente é ela. O masoch provoca o contrato com o
outro para que o outro aja assim sobre ele. Ele espera que o outro reaja
conforme a sua ação, mas o que está valendo é o vetor da reação, e não o
da ação.
• P – Mas não é difícil separar uma coisa da outra?
Para isto, temos escuta, observação. E podemos notar o que é o
mais freqüente na atitude da pessoa. É o que vemos em todas as afetações,
pois todas têm isto. Por exemplo, na própria relação erótica, como a pessoa
age? Ativa ou reativamente? Ela quer comer o outro ou quer provocar o
outro para comê-la?
• P – É nesse sentido que se diz que a mulher escolhe quem vai escolhê-la?
Estão dizendo que ela é reativa, o que não é verdade. Isto nada tem
a ver com a mulher. Simplesmente, há pessoas assim. Em nossa cultura, as
mulheres foram ensinadas a ser reativas. Felizmente, não aprendem sempre.
Elas não podem tomar a iniciativa, quer dizer, elas tomam a iniciativa de
maneira a incriminar o outro. São péssimas no trânsito, mas são ótimas,
pois não fazem nada... só fazem o outro bater com o carro.
Mas por que o masoch precisa do contrato? Porque não pode
provocar no outro a função ativa, não pode pegar uma pessoa e jogar
naquela posição ativa. Às vezes, não funciona, pois não é a do outro.
Então, precisa estatuir, institucionalizar um contrato para o outro funcionar
como ele quer. Por outro lado, se acha um que entra na brincadeira, aí é
a felicidade...
• P – Em psicanálise, continua em voga fazer o “contrato inicial”...
Na verdade, se a transferência funcionou não é preciso contratar
nada. Pode-se contratar o ritual, mas não a análise.
Não esquecer que Positivo/Negativo e Ativo/Reativo são inscritíveis
sobre o Revirão, como avessamentos da mesma formação.

190
As morfoses (ou psicomorfoses)

Então, temos uma formação, uma afecção, uma afetação, o que


quiserem, ou seja, um patema progressivo que pode se apresentar como positivo
ou negativo, sendo que, no interior da positividade ou da negatividade, podemos
ter atividade ou reatividade. Tomem a casuística do passado em relação aos
progressivos, e verão que cabe aí. Mas não adianta tomar o texto e colocá-lo
ali dentro, é preciso a escuta do analisando. Trata-se de tentar colocá-lo dentro
da classificação apenas para nos orientar um pouco. Ele não é obrigado a se
comportar segundo ela, mas, para nós, pode ter uma configuração aproximada.
Considerem, por exemplo, o que está na DSM como transtorno borderline.
Em nossos termos, é: Progressivo Positivo Ativo (+P+).
• P – Isso pode revirar?
Tudo pode revirar, já que há Revirão. Por isso, quando estamos tratando
da chamada histérica, vemos que ela começa a obsessivar. No caso do
obsessivo, vemos ele começar a histericizar. Portanto, o que temos na
Patemática é uma malha, um escantilhão para acompanhar os movimentos.
Tudo aí, inclusive os nomes, é absolutamente abstrato. Aliás, nem é preciso
falar com esses nomes, basta dizer: +P, -P, +P+, +P-. Fica até parecido com o
I Ching, mas não deu ainda para tirar a letra e colocar outro sinal, pois ficaria
complicado para decorar. Falo do I Ching como exemplo de que podemos

191
A Psicanálise, Novamente

constituir um texto altamente significativo e proliferante apenas com pequenas


marcas, que é o que estou tentando. No caso do borderline (+P+), durante o
processo, ele pode se tornar reativo. Facilmente, um +P, pressionado por alguma
força, pula para -P. Já citei várias vezes o caso de Gilles de Rais. Não conheço
nenhum que, quando pressionado, não vire um culpado e peça perdão.
• P – O engraçado é que Sade não vira.
Sade é um cientista, não é sádico.
• P – Sade mostrou esse Revirão em 120 dias de Sodoma com um personagem
chamado Duque de Blangis. Ao descrever os quatro personagens do livro,
descreve toda a progressividade das fundações mórficas e diz que, no
exército e nas armas, o duque era um covarde, pois aí se apresentava
numa situação mais poderosa que ele. Tirante isto, ele fazia todo o resto.
Sade viu tudo. Ele é, na terminologia anterior, um perverso, e não
um perversista. Ele escreve sobre isto. Mas como era um sacana que
gostava de todas as sacanagens, as pessoas não agüentavam – de inveja –
e queriam destruí-lo.
O segundo caso, vamos chamar de Morfoses Estacionárias (E). É
o mesmo entendimento das Progressivas, mas aí as fundações mórficas são
estacionadas por alguma força repressiva, recalcante, que as empacota e
não as deixa mexer nem para a frente nem para trás. Elas, então, ficam se
repetindo como um cacoete. Aquilo que antigamente chamavam de neurose
cabe aqui, mas aqui cabe mais do que aquilo. Façam o exercício, que nos
ajudaria muito a compreender melhor, de estudar a DSM e irem qualificando.
Então, verão a diferença entre estrutura e conteúdo. Quando olhamos o texto
com atenção, fica claro como eles misturam tudo de cambulhada. As pessoas
devem ficar confusas no começo, pois, por exemplo, no caso da histeria, lá
pode ser transtorno conversivo, dissociativo, factício, alimentar... Ela está
em todos esses lugares.
Os Estacionários, também eles, podem ser Positivos (+E) ou Negativos
(-E), o que é mais fácil de reconhecer, pois a histérica evidentemente parte do

192
As morfoses (ou psicomorfoses)

sim e o obsessivo do não. Podemos abandonar a loucura do próprio Freud e da


psiquiatria de, a cada diferença conteudística que achavam, inventar um nome
novo. Era chique na ordem médica criar categorias nosográficas. Em nosso
caso, vira besteira. O que temos é positividade ou negatividade da Morfose
Estacionária, o resto é conteúdo. É preciso não dar bola ao conteúdo. Não é
preciso jogá-lo fora. Basta deixá-lo de lado para ver só o movimento. Tampouco
temos que interpretar a pessoa, mas apenas fazer um movimento junto com
ou contrário a ela. Aí, é freqüente vermos nada acontecer na sessão de análise,
mas a pessoa se modificar. O que interessa é dar cutucadas para cá e para lá
e a pessoa ir aprendendo a dançar.
O que pode ser uma Morfose Estacionária Positiva Reativa (+E-)?
Talvez achem difícil entender, pois, na nomenclatura, não há distinções dentro
do campo da histeria, mas elas existem. Estamos lidando com uma histérica
ativa ou reativa? Ela histericiza para o ativo ou para o reativo? Freqüentemente,
isto muda de um lado para outro, mas é preciso acompanhar o movimento.
Está ativando ou reativando? Não é que uma pessoa caiba ali, e sim buscar
onde está o movimento do processo. Se não entendemos, não podemos empurrar
para o outro lado. Lembrem-se de que estamos tentando sacar os vetores.
Vetores são direções e forças. Por exemplo, nos dois vetores aplicados abaixo,
a resultante será a seta do meio:

Tomem isto e multipliquem por mil. Espera-se que a resultante final


tenha certo rosto a cada momento da vida. Mas é claro que também existe o
fato de que acompanhamos uma pessoa anos a fio em análise e vemos que a
resultante é constante. Trata-se de uma Estacionária Positiva de coturno, que
não sai do lugar. Os Estacionários são muito mais fiéis porque são...
estacionários. Já notaram que o famoso neurótico é muito fiel à sua neurose?

193
A Psicanálise, Novamente

Portanto, é preciso sacar qual é o vetor resultante a cada momento. E vejam


que isso nada tem a ver com ficar escutando significantes. Trata-se do
entendimento dos poderes que estão em jogo.
• P – Sacar a resultante é importante, pois, no caso da Estacionária
Positiva Ativa, vê-se que ela faz muito movimento, dando a impressão de
que está saindo do lugar, mas está com o rabo totalmente preso.
Ela girando, girando... e o rabo está lá. Vocês verão que isso é muito
pior na Morfose Regressiva.
• P – A questão é o Recalque em relação a uma fundação mórfica. O
perverso não tem recalque, ele está afirmando uma fixação. O Estacionário
é estacionário porque a fixação pode ser abordada por retorno do
recalcado.
Na progressividade, enquanto progressividade, não há distinção entre
recalque e retorno.
• P – No Seminário de 1996, Psychopathia Sexualis, você diz que, no
neurótico, por conta do embargo do sintoma, o vetor progressivo não
atinge o Originário.
E é praticamente impossível que o Progressivo também atinja, pois
quer atingi-lo com o conteúdo dele.
Como disse, no Progressivo não há distinção entre recalque e retorno
do recalcado. Não confundir uma fundação mórfica com características
progressivas latentes por trás de uma Estacionária. Há que entender que a
pessoa pode se apresentar como Estacionária e, mediante análise, ocorrer o
retorno de sua perversão pura e simples, a qual freqüentemente não é uma
Morfose Progressiva, mas apenas sua perversão com todos os seus direitos,
como cada um tem direito às suas perversões. Isso é diferente de uma Morfose
Progressiva, que é legiferante, tem uma exclusividade e domina o mundo com
sua lei. No caso da Estacionária, só há uma sacanagem por onde a pessoa
goza e que nada tem a ver com os outros. Na Progressiva, isso se torna lei. A
mera perversão é a fundação mórfica funcionando, e não legiferando. Mas, na
Morfose Progressiva, legifera sobre o outro e sobre si mesmo, é uma obrigação.

194
As morfoses (ou psicomorfoses)

Não há aqueles que perseguem a perversão dos outros policialmente? Cuidado


com eles! Por que estão perseguindo o gozo do outro, se não é da conta deles?!
Outro dia, eu conversava pela Internet com um intelectual gay que me dizia
que tal grupo psicanalítico era homofóbico. Disse-lhe que homofobia, desde
Freud, é nada mais nada menos do que medo da própria homossexualidade.
Então, é coisa de veado, pois homem que é homem não liga para isso.
As Morfoses Regressivas (R) são o terceiro caso da Patemática.
Nelas cabe tudo que se chamava antigamente de psicoses. O que é Regressivo?
A reificação. Toma-se a afirmatividade genérica da fundação mórfica, que
passa por um processo Secundário, onde a coisa retorna para a vocação do
Primário. Não se esqueçam de que as fundações mórficas, instituídas junto
com o Primário, por vias que não nos cabe descrever – estéticas, sensitivas,
etc. –, estão sendo consideradas em sua relação com o Secundário. É, pois, o
estatuto da fundação mórfica em sua relação secundária. Então, quando isso
está sendo considerado secundariamente, nem anda para a frente, nem estaciona,
e pretende regredir, o que significa? Que regressivo é o Secundário ser tratado
como Primário. Por exemplo, a oscilação sexual entre hetero e homo sempre
receberá um tratamento secundário. No tratamento secundário de gozo que aí
colocamos, seremos Progressivo ou Estacionário, isto é, as neuroses entram
em sua relação homo-hetero que todos têm. (É o que está em Freud com a
idéia de bissexualidade, que não é masculino e feminino, mas homo-hetero – e
homo e hetero também é asneira, mas vamos manter os termos por enquanto).
Já o Regressivo, este, trata suas impulsões contrárias à pertinência do discurso
ao redor como se fossem impossíveis de comparecer, porque seu oposto é
Primário. Basta ver Schreber que, no jogo com o Secundário, trata sua
homossexualidade altamente desejada como se ele fosse obrigatoriamente hetero
na primarização do Secundário. Ele pira, enlouquece e vai ter que transar com
Deus, não há outra saída. E ele tinha que virar mulher, pois, se não virasse
mulher no Primário, como poderia negociar com o Secundário primarizado?
A Morfose Regressiva pode ser Positiva ou Negativa. Havia a
generalidade de paranóia e esquizofrenia, sobre a qual inventaram coisas

195
A Psicanálise, Novamente

como maníaco-depressivo, bipolaridade, etc. Mas isso é conteúdo, é viragem.


Encontramos bipolaridade em todo lugar, ela não é conceito de Morfose, e sim
casuística. Há pessoas que reviram com facilidade. A bipolaridade não vale
como conceito, pois qualquer caso é bipolar. Não é preciso, portanto, proliferar
categorias de psicose como se fazia antigamente. Basta verificar que é possível
colocar toda essa casuística nas Regressivas. E não confundir a formação de
base com os conteúdos eventuais, com os avatares da situação, os movimentos,
reviramentos, etc.
• P – Por que nas Regressivas Negativas (Esquizofrenias) você coloca que
“não há sem paranóia anterior ou concomitante”?
É o que acho. Por isso, os psiquiatras falavam em esquizofrenia
paranóide. Aquilo não pode surgir de começo paranoicamente. Há umas coisas
assim, que são dissimétricas. Por exemplo, masoquismo é anterior a sadismo,
ou seja, o terror negativo vem antes do positivo: estar no mundo é um horror.
Além do mais, a ALEI é masoquista, pois o masoquismo originário é o
masoquismo da ALEI, Haver quer não-Haver. Querer nossa destruição é tudo
o que desejamos. Só permanecemos por resistência.
• P – Podemos dizer que, pelo masoquismo d’ALEI ser primordial, só
podemos tratar do Morfótico Positivo quando ele revira e fica fóbico?
Ele descobre que a fobia era original, que ele sempre foi fóbico.
Ele foi fóbico antes. Entretanto, de nada adianta tratar da fobia, temos
que bater na Morfose Positiva. Observem a quantidade de pessoas que chega
ao consultório com uma fobia e diz que ela começou tardiamente, aos trinta
anos de idade. Há um que me mostrou sua fotografia em cima do Grand
Canyon com os braços abertos. Atualmente, se ele entrar no andar alto de um
prédio, não pode se soltar muito da parede, senão... Isto nunca lhe tinha
acontecido antes, como ele diz, porque estava absolutamente tamponado pelo
Positivo, o que é uma evidência em sua história. Mas não há que mexer no
Negativo, e sim no Positivo. O que ele não está aceitando para apresentar uma
fobia? Seu masoquismo. Que ele está aí para se danar, para morrer. Estamos,
pois, lidando com um Progressivo Negativo, cuja negatividade é anterior à

196
As morfoses (ou psicomorfoses)

própria positividade, mas não há que ligar para o anterior, e sim para o que está
segurando a Negativa, que é a positividade. Se derrubarmos o positivo, ou seja,
que ele possa entender que está aí para morrer, que não há saída, ele começa
a morrer numa boa. Aí somem os sintomas, pois aceitou que é mortal. Antes,
ele achava que era imortal. Coloca-se alguém assim na Academia, ele será um
ditador. Depois, ainda temos que convencê-lo de que é imortal mesmo, mas
esse é outro trabalho...
• P – Podemos dizer que a Morfose Progressiva é imperativa na insistência
de sua própria morfose, que a Estacionária o é no conteúdo recalcado, e
que a Regressiva o é no conteúdo hiper-recalcado?
Sim. E aí confunde-se a cabeça dos filósofos e daqueles que tratam
dos filósofos. Lacan jurava que Kant era um Progressivo. Acho-o
simplesmente um Estacionário. Quando Lacan considera o Sade do texto – e
ele não diz que Sade seja isso, e sim que no texto de Sade está isso –, o qual
realmente está descrevendo o Progressivo, diz: Kant com Sade. Mas Kant
não se canta junto com Sade, pois ele mora nas Estacionárias. Kant não está
produzindo um imperativo categórico com base numa progressividade positiva.
O que ele faz é: olhar para dentro de sua neura, ver que não suporta o
Progressivo, chamar seu sintoma de imperativo categórico, e achar que todos
devem tê-lo. Ora, isso é papo de neurótico. Lacan acha que o imperativo
categórico de Kant está inscrito em Sade. Como Kant legifera em cima
disso, Lacan fica com uma boa razão para dizer o que diz, mas ele legifera
em cima de uma impressão tipicamente neurótica, de que temos sentimentos
e não suportamos aquilo. É como Betinho que, numa reunião de que eu
participava, dizia ter descoberto um universal da espécie humana: a
solidariedade. Vejam a situação em que ele estava...
• P – A formulação de Lacan é parecida com a de Freud sobre a neurose
ser o negativo da perversão. Mas é apenas a questão da fantasia, que é
mostrada e atuada na Morfose Positiva, e que, na Estacionária, é sonhada...
Mas Freud tem alguma razão, pois o negativo de que fala não é o
avesso de que falo. Ele está dizendo no sentido que você está colocando. E
nesse sentido Kant vai muito bem como Estacionário.

197
A Psicanálise, Novamente

• P – Mas no aparelho legiferante, não podemos esperar a vocação


Progressiva Positiva?
É aí que Lacan diz o que disse sobre Kant com Sade. Mas é de
uma ambigüidade enorme, pois Kant não está legiferando sobre o mundo
em sua ação. Ele está, sim, dizendo que há dentro de nós um imperativo
categórico que funciona. Isto é coisa de neurótico, pois ele não toma seu
tesão e diz que o mundo tem que ser assim. Aí é superego mesmo, logo é
Estacionário, e não Progressivo.
• P – E há toda a dificuldade de Kant em construir esse aparelho, uma
dificuldade que o Progressivo não teria.
O Progressivo age: pega, mata e come, é imediato. Kant, não. Fica
tirando as minhocas da cabeça porque quer legitimar. O Progressivo não tem
que legitimar coisa alguma, pois ele é a lei e está submisso à lei que ele é. Só a
tentativa esforçada de Kant de legitimar o que ele está dizendo já dá para
demonstrar que é coisa de neurótico.
Para encerrar por hoje, vamos às Tanáticas (T). O Tanático, às vezes,
surge até no meio dos outros, pois é o natural da espécie. Não havendo embargo,
o que se deseja? O não-Haver. E quando isso se multiplica junto com as outras
formações, é uma complicação dos diabos. Aí temos o melancólico, o maníaco,
etc., o que é meramente casuístico. É a força de expressão do vetor: a konstante
Kraft se manifestando, apegada a uma dessas formações. Portanto, não é
preciso categorizar mania ou depressão. A biporalidade aparece aí dentro. É
só procurar que encaixa. Em última instância, para onde se vai? Só não saímos
correndo para o não-Haver porque estamos com rabo preso nisso tudo, temos
formas de gozo anteriores. Mas quando o Tanático se imiscui nas outras
morfoses, fica muito complicado, vira aquela coisa do neurótico que quer morrer,
mas não quer morrer; quer gozar, mas não fode nem sai de cima... É a Morfose
Tanática ou Tanatose se exprimindo, mas é ela que é o normal.
• P – É ela que mostra o pathos.
O pathos da ALEI: Haver quer não-Haver. Tomem um tanático típico,
que já citei várias vezes: Rothko, um dos maiores pintores do século XX. Ele

198
As morfoses (ou psicomorfoses)

tem um trabalho enorme para exprimir sua Tanatose e, no final, acaba achando
que não exprimiu e se mata. Observem sua obra e acompanharão o figurativo
sumindo, passando a um abstrato repetitivo, cujas cores vão sumindo e o preto
virando cor, depois sumindo, e quando some, ele se mata.
• P – Essa maneira de apresentar deixa bem claro que o trauma por si só
não tem conteúdo algum.
O conteúdo do trauma é o conteúdo da ALEI. É o excessivo que não
se entende e sobre o que não se sabe falar. A psicologia é que começou com
isso de que a criança é traumatizada porque a mãe gritou, etc. Mas o trauma
é estar no mundo.
Temos, então, que estudar, discutir muito e, sobretudo, conseguir falar
essa linguagem com facilidade, simplicidade, e sacar, descrever, acompanhar
os movimentos de alguém que está em análise saltando de um lugar para outro.
Trata-se, por exemplo, de descobrir que, por trás de uma Estacionária, começa
a brotar um fingimento de Progressiva. Às vezes, a pessoa não entende sua
fundação mórfica necessariamente perversa e o tal superego lhe diz que ele é
um fdp, aí ela pensa que é perversista, mas só porque o superego lhe disse.
Acompanhar isto é muito difícil. A pessoa não é um Progressivo, e sim um
perverso como qualquer um de nós. Então, quando em análise mexemos ali,
descobre-se que há a perversão atrás. Aí o superego fica xingando a pessoa
de Progressiva.
É preciso entender que ninguém escapa dos Patemas, que são as formas
do gozo. Não existe o homem curado, mas existe aquele que aprende a dançar
e que vai gozar por essas formas, pois não há outro lugar. Por isso, digo que
perversão é o normal e pode se tornar a Morfose Progressiva em última
instância, lá no rabinho da coisa. Mas aí vem a questão quantitativa e o aspecto
intensivo, ou seja, os vetores serão leves ou não. Entendem por que faço questão
do quantitativo? Os vetores podem ser muitos pesados, com muito investimento,
ou leves, com pouco investimento. Na verdade, não existe quem não esteja
numa categoria dessas, mas é di cum força ou di levinho? Vemos pessoas se
apresentarem Estacionárias e, de repente, brotar por trás um Progressivo muito

199
A Psicanálise, Novamente

leve, que é função do superego. Ou, se não, brotar um Progressivo da pior


capacidade, que estava ocultado, porque, além de haver essa fundação, ainda
veio o mundo em cima dele com tal porrada que ele segurou ali. Portanto, não
me venham com histórias fakes. O que estou propondo é um escantilhão a ser
aplicado sobre os acontecimentos, e não uma regra de jogo. É um escantilhão
de aplicação permanente. E, durante todo o processo de um analisando, isso
tem que ser repensado para se poder sentir a pressão das forças e poderes em
jogo. Também não estou falando de fronteiras entre as categorias, e sim de
polaridades. A estrutura de que falo é dinâmica, com polaridades e focalizações.
Há ainda o franjal e a passagem para o outro lado. Ou seja, há o Revirão.
Como vêem, tudo isso está funcionando dentro da teoria.

27/SET/2003

200
Agonística das formações

10
AGONÍSTICA DAS FORMAÇÕES

Na seqüência de conferências que vim fazendo como resumo de uma


produção teórica, hoje, dia de encerramento, era a vez de falar da Patologia,
ou, se quiserem o mau termo, de Nosologia. Mas não farei isto1. Embora
tenha construído alguns pequenos aparelhos de reorganização do tema, com
nomenclatura um tanto diferente da habitual, dado o que acontece no mundo
presente, e que certamente vai disparar daqui para a frente com mais precisão
e mais veemência, já está na hora de se fazer uma reforma bem mais radical
do que a que tenho feito até agora. Talvez, para abandonar o contato com
certas formações viciosas, fosse preciso começar a pensar de outra maneira,
com mais soltura em relação a termos que, às vezes, nos obrigam a certas
fixações meio ruins, pois foram importados da história inicial da psicanálise,
quando ela estava imiscuída em problemas médicos, jurídicos e outros que,
efetivamente, não têm a ver diretamente com ela. Termos como neurose,
histeria, neurose obsessiva, perversão, psicose, que estamos acostumados
a usar até mesmo no nível do folclore contemporâneo, são comprometidos
demais com um passado de má qualidade. Mesmo medicamente falando, tudo
isso é muito mal situado, mal resolvido, mal pensado e, mesmo quando se pen-
sava tudo isso até mesmo com a melhor inteligência, muito mal assessorado do
ponto de vista do conhecimento de outras áreas que hoje começam a derrogar
em muitos aspectos essas supostas descrições ditas patológicas ou, pior ainda,
1
Cf. rodapé da “Nota” de apresentação deste livro, p. 11 acima.

201
A Psicanálise, Novamente

nosológicas. Assim, melhor ainda do que reformular conceitos ou nomes, aplicar


o mesmo nome a um conceito modificado, talvez seja melhor mandar esses
nomes para o lixo ou deixar que fiquem guardados nalgum sarcófago, juntos
com a múmia médico-jurídica de onde foram tirados.
A psicanálise nasceu mal, foi malparida a coitada. Contudo, apesar
disto, conseguiu algumas coisas bem importantes. Sua historinha caseira do
início foi tão vigorosa e caiu de tal maneira no goto do folclore mundial que,
hoje, atrapalha demais a sustentação da reflexão. A ignorância crassa da épo-
ca – em matérias que hoje já começam a ser fartamente disseminadas, sobre-
tudo no campo da neurologia – fez com que Freud praticasse erros grotescos
quando não colossais. Daí por diante, numa espécie de cabala psicanalítica,
ficam sendo repetidos e repetidos velhos textos, sem se retirar deles apenas
aquilo que, como nata, sobrasse na superfície do seu processamento através
dos tempos. Repetem-se meras casuísticas que, fora de caso, só se demons-
tram sem pé nem cabeça. São casos fracassados e freqüentemente nada exem-
plares que se repetem e se repetem, permitindo que o pessoal da neurologia,
por exemplo, erroneamente é claro, mas não sem alguma chance de acerto
quanto a pretensa reaplicação, acuse Freud (se não de charlatão, pelo menos)
de certa condescendência para com alguns tipos de charlatanismo. Hoje já
sabemos que, em sua maioria e na maior parte de sua fenomenologia, casos
chamados de histeria, por exemplo, na verdade não passavam de lesões cere-
brais, algumas epilepsias, y otras cositas más. Contudo, mesmo lidando com
essas formações de maneira precária, ignorante mesmo, às vezes tendenciosa,
apesar disso tudo, conseguiu-se começar a entender, efetivamente, certo fenô-
meno sobre o qual muitos dantes já pensaram, não era novo, sempre existiu e
sempre se manifestou – não era a primeira vez. Começou-se a entender esse
fenômeno de maneira bem diferente e a prometer para ela um percurso. Hoje
já dura cem anos. É cheio de percalços, entulhado de bobagens, de repetições
tontas, de briguinhas tolas e puramente de política caseira entre grupelhos e
capelas. Dentre tudo isto, talvez o que constitui um dos defeitos mais graves
da história da psicanálise, desde Freud, passando por muitos e chegando a

202
Agonística das formações

Lacan, é a tentativa desesperada de constituir para ela um campo que possa


ser reconhecido como científico. Tentativa sempre frustre, sempre atofalhada
– que a deixa afinal com certo sabor (nem mesmo de ciência humana, mas) de
seita religiosa. Esta é uma crítica que se faz muito pouco e acaba-se endos-
sando e engrossando o cordão eclesiástico e de clero das chamadas institui-
ções psicanalíticas. No futuro, se houver tempo, hei de retomar mais seria-
mente esta questão a bem dizer religiosa. É melhor enfrentá-la e reconsiderá-
la, talvez acolhê-la, do que deixá-la imiscuir-se, com postura denegatória, as-
sim tão evidente em nossos afazeres cotidianos.
No melhor dos casos, a coisa vira apenas uma questão partidária, uma
questão política de comportamento institucional. Na pior das hipóteses, muito
freqüente, toma odor de beatice, de vocação cabalística, de invocação de espí-
rito, de psicagogia disfarçada. Parece que já não andamos com as próprias
pernas e ficamos a invocar os espíritos, dos antepassados, nem que seja
apenasmente através dos textos, para se perguntar se o xangô de tal caso
analítico estará certo ou estará errado. Mas dá ainda para se aproveitar da
Psicanálise o que a mim parece ser o seu essencial e, com ele, fazer uma boa
reforma para o futuro. Em seus primeiros cem anos, houve um desenvolvimento
abstrativo da psicanálise, uma força de desconteudização cada vez mais dili-
gente, começando mesmo com Freud e terminando o século com Lacan. Como
já disse, considero Lacan um pensamento terminal. Ele não abre um novo ciclo
– ele fecha o primeiro –, embora, tanto quanto Freud, deixe muitas indicações
para um novo salto para a frente. Esse desenvolvimento, tornando os concei-
tos e as visões cada vez mais abstratas, não conseguiu fazer com que os
referenciais deixassem de ser gravemente míticos, repressivos e normativos.
Continua-se insistindo num referencial mítico, se não mitológico, em formas
repressivas de determinação de comportamentos e, portanto, resultando em
ser um discurso normativo – o que nada tem a ver com os desígnios da Psicaná-
lise. Se fosse para isso, a psicanálise seria absolutamente inútil, inócua, além
de desnecessária, pois já havia o governo, as ciências humanas, a polícia, as
religiões, as mitologias e... as psicologias. Por detrás de todo o seu movimento

203
A Psicanálise, Novamente

abstrativo permanece, então, a dificuldade de escolher entre os achados es-


senciais, potentes, que têm futuro. Infelizmente, parece que a maioria investe
na representação mítica, na possibilidade do poder de repressão e, portanto, de
determinação social de comportamentos.
Acontece que tudo isso está comparecendo hoje em frontal disparidade
para com o próprio desenvolvimento histórico da cultura. A psicanálise foi pega
em delito de atraso, não por alguns saberes que fossem melhores do que ela,
mas pelo caso, pelo acontecimento da cultura no mundo. Ou ela corre atrás de
alguma postura capaz de lidar com a contemporaneidade, ou, além de não
passar de ser uma pequena igreja, ainda vai virar a igreja de uma religião falida
– que não consegue acompanhar sua própria época e, dentro dela, nem mesmo
as conseqüências de sua própria existência.
Há coisas acontecendo na cultura à revelia de qualquer determinante
politicamente inserido e com poderes às vezes fora do controle de quem quer
que seja – embora haja aqueles que querem novamente se apoderar das possi-
bilidades de controle desses poderes. O avanço, ou melhor, a explosão
tecnológica, a dissolução informativa – é algo francamente dissoluto hoje –, a
transação telemática, as redes eletrônicas e outras mais ou menos obscuras,
tudo isso teve a virtude de trazer à tona, em muitos campos, a “cara da bestei-
ra”, como diz a letra de uma canção carioca. Como estamos tratando da ques-
tão da existência e da sobrevivência da psicanálise, acho que, tomada em suas
bases mais abstratas, é um pensamento ao mesmo tempo fundamental e de
ponta para o próximo século, que será o século II da Era Freudiana.
Temos que nos perguntar sobre os operadores do aparelho psicanalítico,
os chamados psicanalistas. Terão futuro os novos analistas, ou novos psicólo-
gos, ou novos terapeutas, como poderíamos chamá-los com uma permissão
que Lacan quis eliminar? Eu mesmo preferia chamá-los de psiconomistas,
assim como já chamei, há algum tempo, a própria Psicanálise de Psiconomia,
isto é a Economia Pulsional, pretendendo com isto ajustar melhor o seu nome
com sua verdadeira tarefa. Cada vez mais a cultura, a sociedade no mundo
planetizado, global, vai precisar de muitos terapeutas, de muita Psiconomia

204
Agonística das formações

para poder sustentar seu movimento na situação caótica e na transposição


para novas formulações que irão chegar em breve e certamente de chofre.
Diria que os novos terapeutas são os operadores da . Lacan nos
havia inibido de falar em terapia, pois a psicanálise, para ele, não era nem uma
terapia nem uma psicologia, embora Freud a tenha chamado de Metapsi-
cologia. Terapia e terapeuta são termos gregos que significam algo da ordem
da conversão, e isto parecia a Lacan ser da ordem do mito ou mesmo da
religião, alguém ser convertido para outra seita – o que, aliás, faz bastante
sentido no seio das chamadas Instituições Psicanalíticas, tal como elas existem
de fato: de vez em quando alguém recebe uma luz quem sabe se divina, opera
uma conversão, geralmente em dólar, e passa de uma instituição para outra.
Mas insisto em chamar os analistas que virão de Novos Terapeutas porque
acho que se trata mesmo de conversão, não necessariamente no sentido religi-
oso de conversão de uma fé para outra, mas no de operação permanente a
se fazer, uma verdadeira conversão das formações. Não também o Sinto-
ma como conversão, como era o caso antigo da suposição da Histeria enquan-
to Neurose de Conversão, mas sim a conversão dos sintomas. Poder con-
verter mais facilmente os sintomas é poder referi-los à hiperdeterminação.
Conversão mesmo, como se diz a respeito de moedas. Troca-se uma moeda
sintomática por outra, o que já é da ordem de alguma hiperdeterminação. Quando
troco de formação, já fiz alguma transa. É uma conversão de moedas a qual-
quer momento, com qualquer valor e restando qualquer troco que tenha que
restar, mas assumindo que estamos fazendo a conversão dos valores em jogo,
o ato simbólico por excelência, como repetiu Lacan de Mallarmé: “a moeda
que corre de mão em mão”.
É a operação de se exercitar, perenemente, converter mais facilmente
os sintomas, torná-los moedas correntes, subdivisíveis, adicionáveis, cambiáveis,
negociáveis, enfim. Sintomas não são conversíveis de uma vez por todas. Há
que viver para sempre em processo de trocas, de conversões, pois ninguém é
de ferro, ninguém vive em estado assintomático angelical. O campo de opera-
ções dessas conversões é simplesmente o campo que vai se tornar o mais

205
A Psicanálise, Novamente

abrangente, o mais forte, o de maior necessidade de trabalho, o que vai preci-


sar de mais operadores daqui para a frente na história dessa nossa pobrezinha
de humanidade, que é simplesmente o campo inarredável do mal-estar no
Haver. Isto cada vez fica mais evidente. Houve um tempo em que a psicaná-
lise se achava muito sabidinha porque começou a nos mostrar, mesmo a nos
denunciar Das Unbehagen in der Kultur, o Mal-estar na Cultura, do velho
Freud. Hoje, por mera vivência das formações deparáveis no meio da rua,
todos já sabemos que há um mal-estar no Haver, que todos pulam feito pipoca
para sair desta, que isto se generaliza, toma o planeta com a consciência do
mal-estar entre formações, entre posições culturais, estéticas, políticas, étni-
cas e tudo vira motivo para qualquer guerra em qualquer esquina. São posi-
ções mesmo diante do próprio clima, que também está doido, vem enlouquecendo
junto com as loucuras da humanidade. É o mal-estar generalizado, do qual as
pessoas estão cada vez mais se dando conta – e será preciso um árduo traba-
lho, e uma grande quantidade de operadores, para uns ajudarem os outros na
sobrevivência dentro dessa enorme joça cada vez mais ingovernável.
É o mal-estar no Haver tanto no caso do espontâneo, quanto no do
industrial. Há tempo, traduzi assim as idéias de Natura e de Cultura. Para nós
desta espécie, isto é, da espécie das Idioformações, Natureza não é mais do
que um artificio espontâneo, e Cultura, um artificio industrial, produzido por
nós. Com nossa entrada numa nova era, ou meramente numa nova época, está
evidentemente se instalando isto que aponto e que encontro também indicado,
por exemplo, no que diz um antropólogo contemporâneo, Paul Rabinow, no
livro Antropologia da Razão (Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1999). Se-
gundo ele, página 144, estamos entrando numa época em que “a natureza
será modelada na cultura compreendida como prática; ela será conhe-
cida e refeita através da técnica, a natureza finalmente se tornará artifi-
cial, exatamente como a cultura se tornou natural”. Isto é grave, porque é
exclusivo. Primeiro, a Cultura, resolveu-se naturalizá-la, torná-la natural – e
esta foi uma das grandes desgraças de nossa atuação. Quando se fez o esfor-
ço, que durou até recentemente, de tornar a cultura natural, estava-se elabo-

206
Agonística das formações

rando um processo de loucura, se não de psicose (aliás um termo velho da


nosologia), ou seja, estava-se reificando, primarizando a cultura como se ela
fosse posta por nós como da mesma ordem dos ovos da galinha, por exemplo.
Mas agora que, ao invés de naturalizar a Cultura, estamos artificializando am-
pla e definitivamente a Natureza – ou seja, estamos percebendo que nossa
ação protética faz parte da própria estrutura do conhecimento, que já é em si
mesmo a atividade de produzir próteses para tentar abordar de qualquer ma-
neira as formações supostamente naturais –, temos então a artificialização
radical. Assim, isto deslancha a emergência das possibilidades para a frente
sem a imposição, nem que seja por questão de velocidade, de processos de
reificação. Isso é até saudável..., mas é preciso ter cabeça feita para acompa-
nhar. E não adianta querer frear o processo, pois, para tanto, seria preciso
primeiro fazer parar toda a economia e, junto com ela, todo movimento de
produção. Ao invés de fazermos volitivamente revoluções, foram as re-evolu-
ções que se fizeram à nossa revelia – e nós hoje que corramos atrás. Temos
então que instituir academias de ginástica-psíquica – e é este o caso da
– para todos vivermos em perene malhação e conseguirmos força
cerebral suficiente para podermos conviver com o futuro que rapidamente já
está a nos chegar.
Há portanto uma luta permanente a se sustentar em prol da Cura, para
se conseguir conviver com o que vem por aí. Cura é faina de ANA-LISE, na
possibilidade de se conseguir abrir as formações, romper as cascas dos cocos
formativos para poder entender do que são e como são constituídos – a cada
vez, a cada caso, a cada manifestação sintomática, de modo a se poder jogar
sem estar trancafiado na casca grossa de uma formação sintomática. É a ana-
lise das formações, o tempo todo, e também o embate das formações com as
formações. Assim – com todas as letras – teoria e prática da Psicanálise são a
permanente e infinita consideração e reconsideração do Poder das forma-
ções. Sejam quais elas forem, há que defrontar as formações e viver na
reconsideração do poder de cada uma delas a cada momento, do modo como
estão constituídas. Já estamos entrando definitivamente numa época em que

207
A Psicanálise, Novamente

não se trata mais de lutas de classes. Não adianta mais apontar detentores do
poder para, com isso, estabelecer a luta política interna a determinado grupo
social, pois sabemos que os supostos detentores de certos poderes, ou de todos
os poderes disponíveis, são tão apoderados quanto aqueles que os massacram.
Às vezes, se sentindo muito mal, porque o sintoma é deles também. Em seu
livro A Dominação Masculina (Rio de Janeiro: Bertrand, 1999), o sociólogo
Pierre Bourdieu, com muita perspicácia, mostra como o lado masculino da
cultura se apoderou das forças, constituiu poderes que massacram o feminino,
etc. Não há mais condição, em termos de futuro, para se repetir assim: o poder
cai na cabeça de qualquer um e de todos. Resta saber que poder, quando e
como. Começamos a nos dar conta de que o suposto dono do poder é ele
mesmo massacrado pelo poder que se supõe estar arbitrariamente em suas
mãos. É também um trabalho danado para ele ter que se comportar segundo o
design sintomático que lhe coube.
Há grandes formações constitutivas que se apoderam das pessoas e
as aprisionam ‘em seus respectivos’ lugares – é o caso de dizer. Mesmo quan-
do esses lugares são bem remunerados, há uma sobretaxa que pode ser
destrutiva. Assim, do ponto de vista metodológico, há que pensar fora da supo-
sição de que os poderes são apoderados por alguém. Freqüentemente é o
contrário, são as pessoas que são apoderadas pelos poderes. Os poderes exis-
tem como formações que se deram e se impuseram, assim aprisionam e é
preciso dissolvê-las analiticamente a cada momento na política genérica do
mundo. A política não pode, portanto, acreditar simplesmente em
“luta de classes”, pois cada vez é mais claro que muita coisa escapa da supo-
sição de que classes em conflito conduzam à resolução de algum problema. As
tais classes não são apenasmente classificantes, são principalmente classifica-
das. O que há indiscutivelmente é luta permanente entre formações, o que tem
que ser tratado como perene operação anti-recalque, no sentido de se aviar o
reconhecimento das formações embutidas nessas formações. É esta abstração
o caminho futuro. Luta política deste tipo é prática da cura, exercício de aná-

208
Agonística das formações

lise, . Luta anti-recalque nas formações e das formações: isto é,


entre formações e no interior de cada uma delas. A prática analítica olha com
indiferença as formações, concebe que poderes são meramente formações,
que ser uma formação já é ser sintomático e que cada uma delas tem o poder
de sua própria constituição. E não adianta fingir que se está lutando com algu-
ma outra formação, que se suponha ser consideração secundária, terciária, n-
ária de uma formação anterior. Há que entrar em cada uma e, o tempo todo,
dissolver seus processos de formação de formações. E é claro que elas vão se
coalescer de novo, e que nós teremos que as dissolver outra vez... Aí está a
ginástica psíquica. Esta idéia começou pelo corpo, mas vai ter que terminar é
na mente.
É a luta política permanente contra o Recalque, o qual é da ordem da
pressão de formações coligadas contra determinadas outras formações, crian-
do assim formações policiais, dentro e fora de nossa mente, que sustentam o
trabalho do recalcamento e resultam facilmente em racismos, lutas de grupos,
ação assassina contra minorias, etc., etc. A luta contra o recalque pode se
apoiar perfeitamente na possibilidade de juízos, no sentido freudiano de Juízo
Foraclusivo (Urteilsverwerfung). Há Juízo Foraclusivo (escolha sem imposi-
ção de recalque) quando deixamos de praticar tal ou qual ação, não porque
sejamos neuróticos, incapazes portanto de praticá-la, mas porque agoraqui,
baseados em alguma convencionalidade interessada, de momento, ad-hoc,
podemos suspender determinada formação e escolher provisoriamente aque-
loutra que nos pareça mais adequada: experimentalismo político, poderia
ser o nome desta prática. Não que estejamos (neuroticamente) impossibilita-
dos de agir conforme a formação que foi posta fora, mas sim porque, como na
mais simples operação matemática, agoraqui não nos parece ser a hora nem o
lugar de aplicação daquela variável que optamos por suspender. É claro que
estamos muito longe de agir assim diuturnamente, o que não significa que seja
impossível chegarmos a fazê-lo. É o que temos a construir, a começar
vigorosamente junto com o também começo do próximo milênio que já está aí

209
A Psicanálise, Novamente

à porta de nossa habitual incompetência. Empenho permanente contra o


Recalque e a favor do Juízo Foraclusivo, continuando a operar com nossas
questões mais corriqueiras de milênios, séculos, décadas, em nossa conturba-
da e feiosa convivência política.
Por exemplo, a evidência da inarredável imposição do capitalismo ao
mundo. Vemos hoje claramente como aqueles que não queriam ser capita-
listas, e mesmo colocavam um nome contra o capitalismo em sua ação de
socialistas – como se o capitalismo não o fosse... –, andam meio em pânico e
à procura de saber finalmente para que servem as esquerdas.
Nosso presidente da República, do Brasil, o Professor Fernando
Henrique Cardoso, outro dia, numa mesa redonda, em Florença, discutia com
luminares do poder sobre que rumos dar à política mundial. Sobretudo, o que
fazer com qualquer possibilidade de idéia de algum socialismo. Disse ele, quanto
à idéia de terceira via, do risonho Tony Blair – que é a tentativa de um soci-
alismo que pareça com o capitalismo, mas que tenha a cara da esquerda –, que
já estamos nela há muito tempo, e mesmo que, praticamente, essa tal via é uma
invenção sua... Quanto a mim, o que quero dizer é que alguma Terceira Via
que valha a pena, que eventualmente funcionasse, não é de fundamento
economicista, ou economista, no sentido corriqueiro. É, sim, como outra, a
economia enquanto possibilidade de afirmação de um efetivo Terceiro Lugar.
Ou seja, Terceira Via é a da perene Análise e Juízo Foraclusivo das Forma-
ções (quaisquer formações), e não a de determinar qual tipo de formação
econômica governará doravante o mundo. A Terceira Via que prestar, esta vai
nascer sozinha, por si mesma, no meio desta baita confusão, talvez mesmo já
esteja nascendo, apesar dos governantes deste mundo. É a da economia no
sentido da Economia Pulsional Freudiana, da análise das formações e da
anamnese do Revirão. É efetivamente um terceiro lugar para o mundo,
uma real possibilidade de transformação.
Não precisamos mais de revoluções. Falando em nível escatológico,
no sentido em que a Psicanálise lida em ligação direta com as formações –

210
Agonística das formações

sempre tão grotescas – do corpo e da mente, podemos dizer que o capitalismo


sofre de constipação, de retenção intestinal. E dizendo ainda de maneira vul-
gar, chula mesmo, nós outros, os terapeutas, talqualmente quando tratamos de
criancinhas que se recusam a fazer, temos que fazer o capitalismo fazer. De-
pois, se possível, fazê-lo mostrar as próprias tripas. Aí sim, talvez ele se torne
tão dissoluto, ao mesmo tempo que dissolvente, coisa que ainda não se permite
que ele seja, plena e corretamente, que ele sozinho produza a transformação:
desde que analisado e curado de sua defecção. O ruim do capitalismo, como já
apontou Deleuze, não é ser capitalismo, e sim não soltar todas as suas amarras
e funcionar plenamente como tal. Isto pode parecer tolice, mas não é, pois no
que se mantém em sua retenção (anal, como diria Freud), não permite o franco
desenvolvimento capitalista das formações que estão em jogo no interior de
sua macro-formação. São moralismos e preconceitos que sufocam os movi-
mentos da livre transação nas conversões das ‘moedas’, sejam elas quais fo-
rem, no processo de cura de suas relações.
Estamos então, como disse, de entrada no Quarto Império que lhes
mostrei. Mas, na verdade, não somos só nós que estamos de entrada nele, é
ele que está mais de entrada em nós: estamos sendo pegos de surpresa por
efeitos inesperados de nossos comportamentos culturais. Temos que nos virar
e revirar para acompanhar o que nos chega. Nossa área de trabalho, a prática
analítica, bem assumida, é portanto de grande futuro. Há muito trabalho a
fazer. Bem entendidas as coisas, não parece haver possibilidade de desempre-
go para a Psicanálise. Cada vez precisaremos de mais operadores para a infi-
nita terapia dos tempos vindouros. As novas gerações não têm motivos para
ficarem perplexas e descorçoadas, como parecem estar agora. Ao contrário,
provavelmente há uma imensa tarefa de cura e de recuperação pela frente –
talvez como nunca tenha havido até hoje. A esta tarefa podemos chamar de
Política. Estamos meio aturdidos por ainda pensarmos nos moldes dos velhos
tempos em que se fazia parte – ou não, era-se contra – de um certo Partido
que prometia revolução pela luta de classes e pela ditadura do proletariado.
Ninguém mais tem esses encantamentos. Sabe-se que tudo isso ruiu e que, nas

211
A Psicanálise, Novamente

condições atuais, não dá para reconceber esse tipo de processo. Assim, alguns
pensam que não há nada a fazer. Ao contrário, há uma trabalheira enorme.
Mas não é a de constituir grandes Partidos dominantes. Mas sim a faina de, no
cotidiano de cada um – no processo completo das pessoas acuadas pelas for-
mações espontâneas e industriais, acuadas enfim por sua própria vida, e ne-
cessitando absoluta disponibilização para o que der e vier –, produzir-se a pe-
rene desconfiguração das formações neuróticas, dos processos recalcantes,
para cada existência poder vir a ser, também ela, moeda corrente em todos os
níveis, sentidos e direções. Como as pessoas não estão preparadas para este
novo Novo Mundo que está caindo sobre nossas cabeças, prepará-las é uma
tarefa de cura que, em última instância, é uma tarefa política.
Diante do quadro que lhes apresento, todas as reivindicações sintomá-
ticas da cultura são igualmente válidas, dado que podem ser referidas à
hiperdeterminação. A idéia das chamadas “minorias” está à beira da morte.
Minorias ou maiorias não se definem mais quantitativamente. Minoria não é
um conceito quantitativo – é um conceito exclusivo. A virulência das suas
próprias formações, associada à ruína das fundamentações, está obrigando
que elas sejam tomadas como de valor equivalente a quaisquer outras no con-
fronto entre as formações. A virulência corre sozinha pelos meios eletrônicos
e pelas redes em geral.
Os mais jovens não precisam se apavorar, só precisam é trocar de
cabeça o mais depressa possível. Estão com a impressão de que seu mundo
caiu. Mas não caiu, apenas está com novíssimas configurações. Aqueles anti-
gos ideais já não servem mais, temos que partir para novas imaginações. A
visualização da questão de hoje tem que ser completamente outra. Basta come-
çarmos a nos engajar nos problemas que nos estão efetivamente acuando e
veremos que são a questão política do momento e que essa postura nova a ser
tomada é a formação da cura para o futuro. As novas gerações de terapeutas
(talvez num certo futuro todos de algum modo tenham que se tornar terapeutas)
já foram convocadas para o trabalho contemporâneo e urgente da plena disponi-
bilização. Assim é o novo século, o Segundo Século da Era Freudiana, de que
lhes falei.

212
Agonística das formações

• Pergunta – O sentido em que você está usando o termo conversão é o de


promover a suspensão dos conteúdos e conduzi-los a uma maior abstração,
à sua promoção a uma outra lógica, a outro sentido?
Usei a metáfora da moeda, mas, como estamos falando de conversão
de sintoma para sintoma, poderíamos usar a metáfora da língua. Trata-se de
uma espécie de poliglossia, de tradução simultânea permanente. É algo pareci-
do com estar falando uma língua com alguém que fala outra língua e conver-
sarmos muito bem, cada um entendo o outro. Entende-se o que o outro diz,
mas não se fala obrigatoriamente sua língua. Parece um teatro maluco, mas
que pode figurar a abertura para o fato de converter-se rapidamente uma
situação em outra. Converter e conversar são verbos que podem significar
quase a mesma coisa: são dois sintomas diversos transando um com o outro. É
o entendimento de que cada um funciona segundo seu próprio sintoma. Cada
um goza com a língua que tem. Trata-se é de viabilizar os processos de con-
versão. Resta sempre algum malentendido, mas isto é infinito. Joga-se para a
frente, põe-se na conta dos futuros. E sem suposição de nenhuma meta-tradu-
ção, o que absolutamente não existe: desde sempre e para sempre. As supos-
tas meta-traduções só são invocadas no regime do poder constituído, quando
requisitada por alguma instância que, por ter o poder de oprimir, se acha em
condições de arrogar para si o direito à tradução universal. É isto que dá a
falsa impressão de haver meta-linguagem, de haver meta-tradução. Tal como
acontece hojendia com o inglês.
• P – O ponto de Revirão não seria o de tradução absoluta? E o que
muda nos atendimentos clínicos nesse futuro iminente?
O Revirão é o ponto de plena disponibilização para o que der e vier.
Ele não traduz nada, pois não tem sentido algum. E também não se oferece de
graça, nem há nenhum “imperativo categórico” que o disponha facilmente para
nós: temos que lutar por ele. Aí está a política do futuro. E se há esta postura
de disponibilização na técnica, nosso trabalho terapêutico muda de postura
radicalmente. Por exemplo, não se acredita mais na tal “interpretação”. Se
lançarmos mão de qualquer intervenção supostamente interpretativa, manten-

213
A Psicanálise, Novamente

do apenas o sentido de que se trata de um expediente momentâneo, para se


continuar a conversa, aí não se faz mal a ninguém, nem à nossa inteligência.
Mas, de modo geral, cada uma das formações teóricas a respeito de um traba-
lho clínico, seja a política geral da clínica do mundo, ou de um tratamento
isolado, os conjuntos, as formações de teoremas, que se pretendem aplicáveis
têm essa vontade de interpretação. A psicanálise nasceu assim. Este mês, dia
4 de novembro, completaram-se cem anos da Traumdeutung, A Interpreta-
ção dos Sonhos, de Freud, que foi algo explosivo, mas somente décadas
depois, pois ninguém lhe deu a menor importância quando de sua publicação.
Contudo, penetrou no mundo aos poucos, colou, e até já virou folclore. Todos
começaram a acreditar que sonhamos para dormir, para realizar um desejo,
minimamente de dormir, e que isso é farta, fina e precisamente interpretável.
Na verdade, é quase tudo bobagem. Os acontecimentos deste final de século
não nos deixam mais pensar assim. A Traumdeutung é um sonho de Freud.
No entanto, verificar que sonhar é produzir algo, é importante. Sonhar é da
ordem de alguma fabricação. Do quê? De saída não sabemos, a cada caso,
vamos ver. Sonhar é uma produção como outra qualquer, é sonhação. Sonha-
se para dormir ou se dorme para sonhar? Acho que na maior parte, dormimos
para sonhar. Mas se alguém conta um sonho e o “analista” remete às estorinhas
caseiras do Édipo de Papai-Freud, ou de um falecido Nome-do-Pai – que o
próprio Lacan abstraiu e aos poucos largou mão dessa coisa infantil do início
de sua obra –, começa-se, como se diz em bom português, a cagar regra na
cabeça dos outros. E tudo acaba no esgoto da banca de jornal, que é o destino
correto dessas coisas. Aliás, diante dos livros de “chave dos sonhos”, que se
publicam popularmente por aí, é costume dizer que o autor está delirando, que
é um pobre diabo ignorante usando da crendice popular para escrever. E na
Traumdeutung, o que está escrito é melhor, pior ou igual?
Não se pode mais acreditar na hermenêutica freudiana. Freud, porque
tinha, como todo mundo, seus próprios sintomas de pertinência étnica, cultural,
religiosa, etc., sentia e pensava certas coisas em relação aos sonhos, seus e de
outrem. E por que teríamos que sentir e pensar o mesmo? Esta diferença não

214
Agonística das formações

tira nada do gênio e da força dele: qualquer um, para pensar uma pequena coisa
de grande importância, pensa junto com ela zil ninharias. O difícil é conseguir
discernir: jogar fora as ninharias e guardar o importante. Podemos até cometer
grandes erros: guardar ninharias e jogar fora o importante: isto acontece, na
produção de pensamento, muito mais freqüentemente do que se pensa.
Vejam então que nossa postura clínica também muda radicalmente.
Uma coisa é supor saber o que alguém significa. Outra, entender que produz
significações, está inserido num campo vastíssimo de pequenas e grandes for-
mações que têm ou não interseções, e poder movimentar as peças do xadrez
das formações para que certas formações venham à tona, sejam eventual-
mente reconhecidas e possam até mesmo abrir seus acessos. É só isto que há
para fazer. E, quanto a nós, é preciso todo um trabalho de limpeza, de faxina da
mente, para não estarmos a toda hora projetando delírios nossos sobre a igno-
rância dos outros. É preciso um longo e intenso trabalho de análise para nos
tornarmos mais indiferentes, neutros, diante das situações que a clínica nos
apresente. É preciso um trabalho mental enorme e permanente para estarmos
efetivamente disponíveis, de modo a podermos operar no sentido de disponibilizar
o próximo.
• P – Você pode falar um pouco mais sobre a Hiperdeterminação?
Para além de todas as sobredeterminações sintomáticas que um Freud
pôde entender com clareza e que vigem do mesmo modo até hoje no pensa-
mento psicanalítico, a Hiperdeterminação é a possibilidade que temos nós, dada
nossa estrutura mental em Revirão, de escapar da oposição “interna” – o que
é maneira de dizer, pois não há nenhum externo – a todas as formações, sem-
pre de polaridade binária, partir para o Terceiro lugar, onde se indiferenciar
essa oposição e lidar direto com a relação de impossibilidade entre Haver
sobredeterminação (de qualquer tipo) e simplesmente não-Haver coisa algu-
ma (o que, na verdade, não há). Este lugar neutraliza absolutamente qualquer
posição nossa e nos deixa disponíveis para colher qualquer coisa que compare-
ça, mesmo que dela nunca tenhamos dantes tido qualquer condição de percep-
ção. É este lugar que suponho ter encontrado freqüentemente – e que tantos

215
A Psicanálise, Novamente

outros parece que também encontraram e deram testemunho de sua existên-


cia – pelo menos em nossa mente. Nesta posição, à beira de um “Cais Abso-
luto” podemos indiferenciar qualquer oposição – e sermos capazes de acolher
o que der e vier à nossa disposição.
• P – É isto que alguns, como Brecht, por exemplo, chamam de
distanciamento crítico?
Efeito de Distanciamento como dizia Brecht. Ou suspensão do Juízo,
como diziam outros, como Bertrand Russell, por exemplo. Mas não é o mesmo
que estou dizendo. Para eles, trata-se de procurar equi-librar as oposições
dentro do campo. Eles não têm a disponibilidade que a psicanálise tem em sua
prática. Aliás, muitas outras práticas – poéticas, místicas e mesmo intelectuais,
como o pensamento Zen – embora não tenham entendido assim como a Psica-
nálise pode designar , não deixam de algum modo de apontar vaga-
mente para esse lugar em que não apenas suspendemos equilibrando os valo-
res de duas coisas em oposição, mas dispensamos a oposição corriqueira e
focalizamos a Grande Oposição: entre Haver (qualquer coisa) e simplesmente
não-Haver. É nosso lugar radical, onde não tomamos simplesmente “distân-
cia” em relação a nada, onde não procuramos apenas “suspensão”. Vamos a
zero e ficamos disponíveis: para o pleno exercício do Revirão.

Muito agradecido pela atenção de vocês, espero reencontrá-los em


algum momento, em algum lugar. Amém.

25/NOV

216
Ensino de MD Magno

SOBRE O AUTOR

MD Magno (Prof. Dr. Magno Machado Dias):


Nascido em Campos dos Goitacazes, Rio de Janeiro, Brasil, em 1938.
PSICANALISTA.
Bacharel e Licenciado em Arte. Bacharel e Licenciado em Psicologia.
Psicólogo Clínico.
Mestre em Comunicação; Doutor em Letras; Pós-Doutor em Comunicação –
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (RJ, Brasil).
Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Santa Maria (RS, Brasil).
Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Univer-
sidade do Estado do Rio de Janeiro.
Ex-Professor Associado do Departamento de Psicanálise da Universidade de
Paris VIII (Vincennes), quando era dirigido por Jacques Lacan.
Fundador do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro (instituição psicanalítica).
Fundador da UniverCidadeDeDeus (instituição cultural sob a égide da
psicanálise). Criador e Orientador de , Centro de Estudos e Pesquisas,
Clínica e Editora para o desenvolvimento e a divulgação da Nova Psicanálise.
Atualmente, além de sua atividade como Psicanalista, continua o desenvolvimento de
sua produção teórico-clínica (work in progress) em Falatórios e Oficinas Clínicas,
realizados na sede da UniverCidadeDeDeus e publicados regularmente.

217
A Psicanálise, Novamente

218
Ensino de MD Magno

ENSINO DE MD MAGNO

MD Magno vem desenvolvendo ininterruptamente seu Ensino de psicaná-


lise desde 1976, ano seguinte à fundação oficial do Colégio Freudiano do
Rio de Janeiro.

1. 1976: Senso Contra Censo: da Obra de Arte


Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978. 216 p.

2. 1976/77: Marchando ao Céu


Seminário sobre Marcel Duchamp. Proferido na Escola de Artes Visuais do
Rio de Janeiro (Parque Laje). Inédito.

3. 1977/78: Rosa Rosae: Leitura das Primeiras Estórias de João Guimarães Rosa
3ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1985. 220 p.

4. 1978: Ad Sorores Quatuor: Os Quatro Discursos de Lacan


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2007. 276 p.

5. 1979: O Pato Lógico


2ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 252 p.

6. 1980: Acesso à Lida de Fi-Menina


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 316 p.

219
A Psicanálise, Novamente

7. 1981: Psicanálise & Polética


Quatro sessões, sobre Las Meninas, de Velázquez, reunidas em Corte Real,
1982, esgotado. Texto integral publicado por Rio de Janeiro: Aoutra Editora,
1986. 498 p.

8. 1982: A Música
2ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 329 p.

9. 1983: Ordem e Progresso / Por Dom e Regresso


2ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1987. 264 p.

10. 1984: Escólios


Parcialmente publicado em Revirão: Revista da Prática Freudiana, n° 1. Rio
de Janeiro: Aoutra editora, jul. 1985.

11. 1985: Grande Ser Tão Veredas


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2006. 292 p.

12. 1986: Ha-Ley: Cometa Poema // Pleroma: Tratado dos Anjos


Publicados em O Sexo dos Anjos: A Sexualidade Humana em Psicanálise. Rio
de Janeiro: Aoutra Editora, 1988. 249 p.

13. 1987: “Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise”, Ainda //


Juízo Final
Publicados em O Sexo dos Anjos: A Sexualidade Humana em Psicanálise. Rio
de Janeiro: Aoutra Editora, 1988. 249 p.

14. 1988: De Mysterio Magno: A Nova Psicanálise


Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1990. 208 p.

15. 1989: Est’Ética da Psicanálise: Introdução


Rio de Janeiro: Imago Editora, 1992. 238 p.

220
Ensino de MD Magno

16. 1990: Arte&Fato: A Nova Psicanálise, da Arte Total à Clínica Geral


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2001. 520 p., 2 vols.

17. 1991: Est’Ética da Psicanálise (Parte 2)


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2002. 392 p., 2 vols.

18. 1992: Pedagogia Freudiana


Rio de Janeiro: Imago Editora, 1993. 172 p.

19. 1993: A Natureza do Vínculo


Rio de Janeiro: Imago Editora, 1994. 274 p.

20. 1994: Velut Luna: A Clínica Geral da Nova Psicanálise


2ª ed. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 310 p.

21. 1995: Arte e Psicanálise: Estética e Clínica Geral


2ª ed. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 264 p.

22. 1996: “Psychopathia Sexualis”


Santa Maria: Editora UFSM, 2000. 453 p.

23. 1997: Comunicação e Cultura na Era Global


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2005. 408 p.

24. 1998: Introdução à Transformática: Por uma Teoria Psicanalítica da


Comunicação
Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2004. 156 p.

25. 1999: A Psicanálise, Novamente: Um Pensamento para o Século II da Era


Freudiana: Conferências Introdutórias à Nova Psicanálise.
2ª ed. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 224 p.

221
A Psicanálise, Novamente

26. 2000: “Arte da Fuga”


Revirão 2000/2001: “Arte da Fuga”; Clínica da Razão Prática. Rio de Janeiro:
NovaMente Editora, 2003. 656 p.

27. 2001: Clínica da Razão Prática: Psicanálise, Política, Ética, Direito.


Revirão 2000/2001: “Arte da Fuga”; Clínica da Razão Prática. Rio de Janeiro:
NovaMente Editora, 2003. 656 p.

28. 2002: Psicanálise: Arreligião


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2005. 248 p.

29. 2003: Ars Gaudendi: A Arte do Gozo.


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2006. 340 p.

30. 2004: Economia Fundamental: MetaMorfoses da Pulsão


Proferido na UniverCidadeDeDeus [a sair].

31. 2005: Clavis Universalis: Da cura em Psicanálise ou Revisão da Clínica.


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2007. 224 p.

32. 2006: AmaZonas: A Psicanálise de A a Z.


Proferido na UniverCidadeDeDeus [a sair].

33. 2007: A Rebelião dos Anjos: Eleutéria e Exousía.


Proferido na UniverCidadeDeDeus [a sair].

34. 2008: AdRem: Gnômica ou MetaPsicologia do Conhecimento [em andamento].

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Ensino de MD Magno

223
A Psicanálise, Novamente

Impressão e Acabamento
Artes Gráficas Edil

Formato
16 x 23 cm

Mancha
12 x 19 cm

Tipologia
Times New Roman e Amerigo BT

Corpo
11,0 | 16,5

Número de Páginas
224

Tiragem
500 exemplares

Papel
Capa – Supremo 250 g
Miolo – Pólen Soft 80 g

www.novamenteeditora.com.br

224

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