Thomas Nagel - Como Sabemos Alguma Coisa PDF

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Uma breve introduo Como sabemos

filosofia alguma coisa?


Thomas Nagel

Se voc pensar bem, ver que o interior da sua


mente a nica coisa da qual pode ter certeza.
Qualquer coisa em que voc acredite - seja
a respeito do Sol, da Lua, das estrelas, da casa e
da vizinhana em que voc vive, seja sobre his-
Traduo
SILVANA VIEIRA tria, cincia, outros povos, at sobre a existn-
cia de seu prprio corpo - est baseada em suas
experincias e pensamentos, sentimentos e im-
presses sensoriais. Essas so as nicas evidncias
em que voc pode se basear diretamente, seja ao
ver o livro em suas mos, ao sentir o cho sob
seus ps, ou ao lembrar que George Washington
foi o primeiro presidente dos Estados Unidos,
ou que a gua HaO. Todo o resto est mais
distante de voc do que suas experincias inter-
nas e seus pensamentos, e somente chega a voc
atravs deles.
Geralmente voc no duvida da existncia
do cho sob seus ps, ou da rvore que v pela
janela, ou dos seus dentes. Na verdade, na maior

Martins Fontes
So Pauto 2001
UMA BRlVli INTRODUO FILOSOFIA COMO SABEMOS ALGUMA COISA?

parte das vezes voc nem sequer pensa nos es- peitar. Logo, no seria exatamente igual a um so-
tados de esprito que o fazem perceber essas coi- nho ou alucinao normal. Costumamos pensar
sas: parece que voc as percebe diretamente. Mas nos sonhos como algo que acontece na mente
como sabe que elas realmente existem? das pessoas quando elas esto deitadas numa
Se tentar argumentar que deve existir um cama real, numa casa real, mesmo que no sonho
mundo fsico externo, porque, se no houvesse estejam fugindo de um cortador de grama assas-
coisas l fora que refletissem ou difundissem luz sino pelas ruas de Kansas City. Tambm pressu-
nos seus olhos, produzindo suas experincias vi- pomos que os sonhos normais tm a ver com o
suais, voc no poderia ver os edifcios, as pes- que est acontecendo no crebro do sonhador
soas ou as estrelas, a resposta bvia: Como sa- enquanto ele dorme.
be disso? E apenas mais uma afirmao sobre o Mas ser que todas as nossas experincias
mundo externo e sua relao com ele, e precisa no poderiam ser um sonho gigante, sem ne-
estar baseada nas evidncias dos seus sentidos. nhum mundo fora dele? Como voc pode saber
Mas voc s poder confiar nessas evidncias que no assim? Se todas as suas experincias
especficas sobre como se produzem as experin- fossem um sonho e no houvesse nada do lado
cias visuais seja puder confiar, de maneira ge- de fora, ento qualquer evidncia que voc ten-
ral, no contedo da sua mente para lhe dizer tasse utilizar para provar a si mesmo que ha um
como o mundo externo. E exatamente isso mundo externo apenas faria parte do sonho. Se
que esta em questo. Se tentar provar a credibili- voc batesse na mesa ou se beliscasse, ouviria a
dade das suas impresses recorrendo a suas im- batida e sentiria o belisco, mas isso seria ape-
presses, estar argumentando em crculo e no nas mais uma coisa acontecendo dentro da sua
chegar a lugar algum. mente, como tudo o mais. No adianta: se voc
Ser que as coisas lhe pareceriam diferentes quer descobrir se o que h dentro da sua mente
se, de fato, todas elas existissem apenas na sua serve de guia para o que est fora dela, no pode
mente - se tudo o que voc julgasse ser o mun- apoiar-se no que as coisas parecem ser - a partir
do externo real fosse apenas um sonho ou aluci- do interior da sua mente - para obter uma res-
nao gigante, de que voc jamais fosse desper- posta.
tar? Se assim fosse, ento claro que voc nunca Mas onde mais se apoiar? Todas as evidn-
poderia despertar, como faz quando sonha, pois cias acerca de qualquer coisa tm de vir atravs
significaria que no h mundo "real" no qual des- da sua mente - seja na forma de percepo, seja
UMA BREVE INTRODUO FILOSOFIA COMO SABEMOS ALGUMA COISA?

como testemunhos de livros e de outras pessoas, Talvez voc seja um solipsista: nesse caso,
seja como memria -, e tudo aquilo de que voc pensar que este livro produto de sua prpria
tem cincia inteiramente compatvel com a ideia mente, ganhando existncia em sua experincia
de que no existe absolutamente nada que no medida que voc o l. bvio que nada do
seja o interior da sua mente. que eu disser poder provar-lhe que eu real-
possvel at que voc no tenha corpo nem mente existo, ou que o livro, como objeto fsi-
crebro - j que suas crenas sobre isso vm da co, existe.
evidncia fornecida pelos seus sentidos. Voc Por outro lado, concluir que voc a nica
nunca viu seu crebro - simplesmente admite que coisa que existe est alm do que a evidncia
todos tm um crebro -, mas, ainda que o tenha pode comprovar. Voc no pode saber, com base
visto, ou pense que o viu, seria apenas mais uma no que se passa dentro da sua mente, que no
experincia visual. Talvez voc, o sujeito da ex- existe nenhum mundo fora dela. Talvez a con-
perincia, seja a nica coisa que existe, e no haja cluso correia seja a mais modesta, a de que voc
absolutamente nenhum mundo fsico - nem es- no conhece nada alm de suas impresses e
trelas, nem Terra, nem corpos humanos. Talvez experincias. Pode existir ou no um mundo ex-
nem mesmo o espao exista. terno, e, se existe, ele pode ser ou no comple-
concluso mais radical que se poderia tirar tamente diferente do que lhe parece - voc no
disso tudo que sua mente a nica coisa que
tem como saber. Essa viso denominada ceti-
existe. Essa viso chamada de solipsismo. uma
viso muito solitria, e poucas pessoas a susten- cismo acerca do mundo externo.
tam. Como voc pode perceber por esse comen- possvel uma forma ainda mais acentuada
trio, nem mesmo eu a sustento. Se eu fosse um de ceticismo. Argumentos similares parecem de-
solipsista, provavelmente no escreveria este li- monstrar que voc no sabe nada nem mesmo
vro, pois no acreditaria que houvesse outra pes- acerca de sua prpria existncia ou experincia
soa para l-lo. Por outro lado, talvez o escrevesse passada, uma vez que tudo em que voc pode
para tornar minha vida interior mais interessan- se apoiar so os contedos presentes na sua
te, ao incluir a impresso de ter o livro publica- mente, incluindo as impresses da memria. Se
do, de haver outras pessoas que poderiam l-lo no pode ter certeza de que o mundo fora da sua
e contar-me suas reaes, e assim por diante. Se mente existe agora, como pode ter certeza de que
tivesse sorte, poderia at ter a impresso de re- voc mesmo existia antes? Como sabe que no
ceber direitos autorais. passou a existir alguns minutos atrs, j comple-

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UMA BREVE INTRODUO A FILOSOFIA COMO SABEMOS ALGUMA COISA?

to, com todas as suas memrias presentes? A ni- mal e no filosfica do mundo, processos como
ca evidncia de que voc no poderia ter come- os que se desenrolam em sua mente so ocasio-
ado a existir h alguns minutos baseia-se em nados, pelo menos em parte, por coisas exter-
crenas sobre como as pessoas e suas memrias nas. Mas voc no pode pressupor que isso seja
so produzidas, o que, por sua vez, baseia-se em verdade, se o que est tentando descobrir
crenas sobre o que aconteceu no passado. Mas como sabe alguma coisa sobre o mundo fora da
apoiar-se nessas crenas para provar que voc sua mente. No h como provar tal princpio sim-
existia no passado seria, mais uma vez, argumen- plesmente examinando o que vai dentro da sua
tar em crculo. Seria pressupor a realidade do pas- mente. Por mais plausvel que o princpio possa
sado para provar a realidade do passado, parecer, que razes voc tem para acreditar que
Parece que voc no consegue livrar-se do ele se aplica ao mundo?
fato de que no pode ter certeza de nada, a no A cincia tambm no nos ajudar a resolver
ser dos contedos da sua prpria mente no mo- esse problema, ao contrario do que pode pare-
mento presente. E parece que qualquer argumen- cer. No pensamento cientfico usual, confiamos
to que voc tente usar para sair desse impasse em princpios gerais de explicao para passar-
ir falhar, pois o argumento ter de pressupor o mos da maneira como o mundo nos parece pri-
que voc est tentando provar - a existncia do meira vista para uma concepo diferente sobre
mundo externo sua mente. aquilo que ele realmente . Tentamos explicar
Suponha, por exemplo, que voc argumente as aparncias em termos de uma teoria que des-
que deve haver um mundo externo, porque creva a realidade por trs delas, uma realidade
impossvel acreditar que voc tenha todas essas que no podemos observar diretamente. assim
experincias sem que haja alguma explicao que a fsica e a qumica concluem que todas as
em termos de causas externas. O ctico pode coisas que vemos nossa volta so compostas
responder a isso de duas formas. Primeiro, mes- de tomos invisivelmente pequenos. Poderamos
mo que existam causas externas, como voc pode argumentar que a crena geral no mundo exter-
saber, pelo contedo da sua experincia, que no tem o mesmo tipo de respaldo cientfico que
causas so essas? Voc nunca observou nenhu- a crena nos tomos?
ma delas diretamente. Segundo, em que se ba- O ctico responderia que o processo do ra-
seia sua ideia de que deve haver uma explicao ciocnio cientfico levanta o mesmo problema c-
para tudo? verdade que, em sua concepo nor- tico que estivemos examinando desde o incio: a

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UMA BREVE INTRODUO FILOSOFIA

cincia to vulnervel quanto a percepo. Co- Algumas vezes, nossas observaes so equivo-
mo saber que o mundo fora de nossas mentes cadas, mas isso significa que podem ser corrigi-
corresponde a nossas ideias do que seria uma das por outras observaes - como acontece
boa explicao terica para nossas observaes? quando voc desperta de um sonho ou descobre
Se no podemos estabelecer a confiabilidade de que o que pensava ser uma cobra era apenas
nossas experincias sensoriais em relao ao mun- uma sombra na relva. Contudo, se no houver
do externo, tambm no h razo para pensarmos alguma possibilidade de existir uma viso corre-
que podemos confiar em nossas teorias cientficas. ta (sua ou de outra pessoa) acerca de como as
H uma outra resposta, muito diferente, para coisas so, no far sentido a ideia de que suas
o problema. Alguns diriam que esse tipo de ceti- impresses do mundo no so verdadeiras.
cismo radical que mencionei no faz sentido, Se isso est certo, ento o ctico se ilude ao
pois a ideia de uma realidade externa que nin- imaginar que a nica coisa que existe sua pr-
gum nunca pudesse descobrir no faz sentido. pria mente. Ele se ilude porque no poderia ser
Argumenta-se que o sonho, por exemplo, tem de verdade que o mundo fsico realmente no exis-
ser algo do qual voc possa acordar para desco- te, a menos que algum pudesse observar que
brir que esteve dormindo; uma alucinao tem no existe. E o que o ctico tenta imaginar pre-
cisamente que no ha ningum para observar isso
- de ser algo que os outros (ou voc, mais tarde)
possam ver que no est ali de fato. As impres- ou qualquer outra coisa - exceto, claro, o pr-
prio ctico, e tudo o que ele pode observar o
ses e aparncias que no correspondem rea-
lidade tm de ser comparadas com outras que interior de sua prpria mente. Assim, o solipsismo
correspondam de fato realidade; do contrrio, no faz sentido. Ele tenta subtrair o mundo ex-
a distino entre aparncia e realidade no faz terno da totalidade das minhas impresses; mas
fracassa, porque, se o mundo externo suprimido,
sentido.
Segundo esse ponto de vista, a ideia de um elas deixam de ser meras impresses para tor-
sonho do qual nunca se pode acordar no , em nar-se, em vez disso, percepes da realidade,
absoluto, a ideia de sonho: a ideia de realida- Esse argumento contra o solipsismo e o ceti-
de- o mundo real em que se vive. Nossa ideia cismo tem alguma serventia? No, a menos que
acerca das coisas que existem simplesmente a realidade possa ser definida como aquilo que
nossa ideia do que podemos observar. (Essa vi- podemos observar. Mas seremos mesmo incapa-
so chamada, s vezes, de verificacionismo.) zes de entender a ideia de um mundo real, ou

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UMA BREVE INTRODUO FILOSOFIA COMO SABEMOS ALGUMA COISA?

um fato acerca da realidade, que no pode ser sem: acreditamos que existem mesmo depois de
observado por ningum, humano ou no? termos aceitado argumentos que paream mos-
O ctico dir que, se existe um mundo ex- trar que no temos razo para sustentar tal cren-
terno, as coisas nele so observveis porque exis- a. (No mbito do nosso sistema geral de crenas
tem, e no o contrrio: existncia no o mes- sobre o mundo, podemos ter razes para susten-
mo que observabilidade. E, embora nossa ideia tar crenas mais particulares sobre a existncia
sobre sonhos e alucinaes se baseie em situa- de coisas particulares, como um rato numa cesta
es nas quais julgamos poder observar o con- de po, por exemplo. Mas isso outra coi-sa. Tal
traste entre as nossas experincias e a realidade, crena pressupe a existncia do mundo externo.)
temos a impresso de que a mesma ideia pode Se uma crena no mundo fora de nossas
estender-se a situaes nas quais a realidade no mentes se apresenta a ns de maneira to natu-
observvel. ral, talvez no necessitemos de razes para sus-
Se assim, no parece ento absurdo pensar tent-la. Podemos simplesmente aceit-la e es-
que o mundo pode consistir apenas no interior perar que estejamos certos. isso que a maioria
da sua mente, ainda que nem voc nem ningum das pessoas faz, na verdade, depois que desis-
possa descobrir se isso verdade, E, se isso no tem de tentar prov-la: embora no possam opor
absurdo, mas uma possibilidade a ser conside- razes ao ceticismo, tambm no conseguem
rada, parece que no existe maneira de provar aceit-lo. Isso quer dizer, porm, que nos agarra-
que ela falsa sem argumentar em crculo. Por- mos s nossas crenas habituais sobre o mundo
tanto, talvez no haja como escapar da priso de a despeito do fato de que (a) elas podem ser to-
sua mente. Isso o que se chama, s vezes, de talmente falsas, e (b) no temos fundamento
dilema egocntrico. para descartar essa possibilidade.
Dito tudo isso, no entanto, tenho de admitir Restam-nos, portanto, trs questes:
que praticamente impossvel levar a srio a ideia
de que todas as coisas que vemos no mundo 1. Existe uma possibilidade significativa de
nossa volta na realidade podem no existir. Nos- que o interior da sua mente seja a nica coi-
sa aceitao do mundo externo instintiva e po- sa que existe? Ou, mesmo que exista um
derosa: argumentaes filosficas no bastam mundo fora da sua mente, que ele seja
para livrar-nos dela. No apenas continuamos a completamente diferente daquilo em que
agir como se as outras pessoas e coisas existis- voc acredita?

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UMA BREVE INTRODUO FILOSOFIA

2. Se essas coisas so possveis, h alguma


maneira de provar para voc mesmo que
elas no so, de fato, verdadeiras?
3. Se voc no pode provar que existe algu-
Outras mentes
ma coisa fora da sua mente, certo conti-
nuar acreditando no mundo externo, mes-
mo assim?

H um tipo especial de ceticismo que conti-


nua a ser um problema mesmo que voc admita
que sua mente no a nica coisa que existe -
que o mundo fsico que voc aparentemente v
e sente ao seu redor, at mesmo seu prprio cor-
po, de fato existe. Trata-se do ceticismo quanto
natureza ou mesmo quanto existncia de ou-
tras mentes ou experincias alm da sua.
O que voc sabe, de fato, sobre o que se pas-
sa na mente de outra pessoa? A nica coisa que
voc observa com clareza so os corpos dos
outros seres vivos, incluindo as pessoas. Voc v
o que eles fazem, ouve o que dizem e os outros
sons que produzem, e observa o modo como
respondem ao ambiente que os cerca - que tipo
de coisas os atrai e repele, o que comem, e as-
sim por diante. Voc pode tambm abrir os cor-
pos de outros seres vivos e examin-los por den-
tro, talvez at comparar a anatomia deles com
a sua.

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