O Traço Como Marca Do Sujeito (Rinaldi)
O Traço Como Marca Do Sujeito (Rinaldi)
O Traço Como Marca Do Sujeito (Rinaldi)
Resumo: Este ensaio parte do conceito lacaniano de trao unrio, como marca primordial
da constituio do sujeito, para discutir as marcas do sujeito no caso das psicoses. A partir
da reflexo suscitada por dois documentrios brasileiros Moacir, arte bruta e Estamira
levanta-se a hiptese de que a arte em Moacir e a significao delirante em Estamira,
ambas acolhidas pela arte do cinema, revelam um savoir faire com o real que d notcias
das marcas da singularidade do sujeito em sua diferena absoluta.
*
Este trabalho foi apresentado no I Colquio Psicanlise e Arte Saber Fazer com o Real, promovido pelo
Programa de Ps-graduao em Psicanlise do Instituto de Psicologia da UERJ em 29 e 30 de outubro de 2007.
**
Psicanalista; membro de Interseco Psicanaltica do Brasil; Doutora em Antropologia Social pelo Museu
Nacional (UFRJ); Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da UERJ; Coordenadora do Programa de Ps-
Graduao em Psicanlise do Instituto de Psicologia da UERJ; Procientista da UERJ; Pesquisadora do CNPq;
autora do livro A tica da diferena: um debate entre psicanlise e antropologia ( Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996).
1
Essa expresso utilizada por Jacques Lacan no Seminrio 23, O Sinthoma, 1975-1976. (Jorge Zahar Ed., 2007).
2
LACAN, Jacques. Seminrio 9: A Identificao (CEF, 2003).
nem mesmo ns, diz ela sem roupa. Gramacho, a sua palavra. ela que
Seus desenhos no derivam da viso de faz o filme, construindo uma persona-
algo externo, tanto que ele desenhava gem que nos apresentada em sua ver-
inicialmente no escuro, podendo ser dade singular e brutal que, com sua
tomados como expresso bruta do in- veemncia, nos toca no que h de mais
consciente, como diz Antonio Quinet, ntimo e ao mesmo tempo mais estra-
em um pequeno comentrio sobre o fil- nho em ns mesmos. Impressiona como
me, o diretor do filme pode captar o discur-
[....] o que Moacir desenha so ima- so de Estamira com tamanha autenti-
gens onricas fortes, sensuais, vio- cidade, o que nos leva a concordar com
lentas que parecem virem luz sem Musso Greco, em um dos inmeros ar-
disfarce diretamente das obscuridades tigos escritos sobre o filme, ao dizer que
do ser. Moacir nos entrega, na sua Marcos Prado realiza seu filme sob o
particularidade, a brutalidade e pu- risco do real4 , neste ltimo limite, na
reza das pulses sexuais, as fantasias beira do mundo como diz a prpria
escabrosas e exuberantes que no es- Estamira. Ele no a toma como objeto
to coladas na realidade chapada de de seu filme. Simplesmente testemu-
um cotidiano banal.3 nha, acompanha ou secretaria, como
Moacir analfabeto, mas assina seu diz Jacques Lacan a respeito de quem
nome em todos os trabalhos. A assina- se dispe a escutar um psictico, o que
tura a marca do sujeito, sua identida- faz de Estamira co-autora do filme e,
de, inscrio do nome prprio, como portanto, sujeito.
tal nica, no precisando ser sequer Estamira o resto, como so as mu-
entendida, apenas atestada ou reco- lheres pobres, negras e loucas. Estupra-
nhecida. A assinatura vem nomear a da, prostituda, trada e abandonada, ela
singularidade de Moacir, que se eviden- faz do resto outra coisa, ao trabalhar in-
cia pelo trao que inventa a partir da cessantemente no lixo, onde identifica
coisa apagada, em um processo de cria- os restos, mas tambm o descuido,
o que faz dele Moacir. O longo de- assinalando a importncia do cuidado
poimento de seu pai emociona pelo para se ter as coisas. Cuidado este que
modo como reconhece o filho e sua evidencia em sua pequena, frgil, mas
diferena, ao dizer, entre muitas falas bem cuidada casa, onde encontra um lu-
tranqilas e cheias de sabedoria, que gar para viver de forma independente.
Moacir faz coisas que ele (pai) no sabe atravs da linguagem, contudo, que afir-
fazer, ao mesmo tempo em que ele (pai) ma o seu lugar no mundo, a sua existn-
faz coisas que Moacir no sabe fazer. cia: na maneira como usa as palavras,
Quanto loucura, diz sabiamente a como questiona as suas significaes, in-
Moacir: no repita ou no se importe ventando novas significaes, no discur-
com isso, porque algo que j fez sua so que elabora a partir de seus conflitos
me sofrer muito. com Deus e com os homens, na luta com
Em Estamira, o que onipresente o Trocadilo modo como designa
no filme, alm das belas e fortes ima- significativamente esta entidade com a
gens de Marcos Prado sobre o lixo de qual se debate assim como com os es-
3
QUINET. A. Comentrios sobre o filme In: Moacir, arte bruta. Disponvel em: http://www.republicapureza.com.br/
moacir/antonio.htm. Acesso em: 2006.
4
GRECO, M. Na beira do mundo, a viso da verdade. Disponvel em: http://www.cinemaencena.com.br/
estamira/blog.asp. Acesso em: 30 set. 2006.
pertos ao contrrio atravs dos quais de- sujeito filmado/ analisado encontre,
nuncia a hipocrisia dos homens no mun- de fato, um lugar no mundo: a ins-
do. Ela diz: no tem inocente, s esper- crio do seu nome prprio, com uma
to ao contrrio. Sua fala - em diversos significao nica e absoluta. Nessa
momentos extremamente lcida - denun- parceria, este documentarista brilhan-
cia as prticas psiquitricas que tomam o te sabe tambm se eclipsar (eclipsar,
sujeito como objeto, ao acusar os psiqui- mas no desaparecer), para que o dis-
atras de copiadores de receitas. atra- curso de Estamira se imponha, e con-
vs de seu nome Estamira, que pronun- duza a narrativa.5
cia de modo enftico como Esta-mira, que Esses dois exemplos que trouxe para
ela se sustenta como sujeito que no discutirmos o que chamei inicialmente
comum. Em seu delrio, diz: Minha mis- de marca do sujeito, conduzem, a meu
so, alm de ser Estamira, mostrar a ver- ver, aos desenvolvimentos que Lacan
dade e capturar a mentira.... Voc co- far, j no final de sua obra, em especi-
mum. Eu no sou comum...Eu s a viso al no Seminrio 23, O Sinthoma, quan-
de cada um. Ningum pode viver sem do d ao trao unrio uma outra sus-
mim, sem Estamira. tentao a partir do n borromeano. O
Da beira do mundo, do lixo, do ma- homem um conjunto trinitrio... do
nicmio, Estamira retorna em sua recons- que chamamos elemento. Um elemen-
truo, ao afirmar, assumindo um lugar: to o que faz um dito de outro modo,
Eu sou a beira do mundo, estou em todo o trao unrio [...]. A caracterstica de
lugar. Est em todo lugar, porque abs- um elemento que instauramos a
trata (a criao toda abstrata. A gua combinatria de elementos. Real, imagi-
abstrata [...], o fogo abstrato. A nrio, simblico6 . a partir da articula-
Estamira tambm abstrata). Quanto ao o dos trs registros no n borromeano,
homem, o nico condicional. ao qual acrescenta um quarto elo que
Nessa operao discursiva, pode- amarra estes registros, que possvel
mos pensar que ela se inscreve no real, repensar a questo do sujeito.
como pura letra que inventa a partir do Ainda que a noo freudiana de
apagamento ou da ausncia de trao, Verwerfung seja tomada por Lacan para
lembrando Lacan, ao se referir aos mo- caracterizar a psicose, ao defini-la como
dos capitais de manifestao do sujei- mecanismo especfico que determina
to. Ao contrrio de James Joyce, que esta estrutura clnica, traduzindo-a
faz da letra lixo, Estamira faz do lixo le- como foracluso do Nome-do-Pai, o
tra. No se pode esquecer o papel do di- prprio Lacan indica a possibilidade de
retor do filme que, tal como um analista, se pensar outros modos de amarrao
a acompanhou durante quatro anos, es- dos trs registros, para alm do Nome-
cutando e acolhendo o discurso deliran- do-pai, que sustentem o sujeito na sua
te. Citando mais uma vez o artigo de diferena absoluta. A noo de Sinthoma,
Greco, na montagem do filme, Marcos desenvolvida por ele no seminrio aci-
Prado acolhe o delrio, ma citado, abre caminho para pensarmos,
[...] sem tentar reduzi-lo, contest-lo, pela via do n borromeano, um quarto
explic-lo, ou aderir a ele. Com isso, elo que amarre os registros real, simb-
potencializa e amplifica a voz e o dis- lico e imaginrio , que venha em supln-
curso de Estamira, permitindo que o cia foracluso do Nome-do-pai, como
5
Id., ibid.
6
LACAN, J. O seminrio, livro 23. Op.cit., p.142.
foi o caso de Joyce, com sua arte. A arte, The trait as a mark of the subject
como savoir-faire com o real, faz surgir a
letra como litoral de gozo, marca que se Key-words: unarytrait;subject; psychosis; art.
situa no mais do lado do simblico, mas Abstract
do real. Nos casos apresentados, pode- This essay parts from the Lacanian
mos supor que, assim como Joyce, Moa- concept of unary trait, as a mark of the
cir com sua arte constri um nome, arti- primary constitution of the subject, to
culando o trao, como letra, ao gozo, no discuss the marks of the subject in the case
Sinthoma. J Estamira, do alto de seu de- of psychoses. From the discussion raised
lrio, evidencia o que Lacan enfatiza em by two Brazilians documentaries: Moacir,
Lituraterra7 , o carter litoral da letra: crude art and Estamira, there is a chance
Estamira este prprio litoral, quando that art in Moacir and meaning in
diz eu sou a beira do mundo, estou delirious Estamira, both treated by film
em todo lugar. Em sua inveno, por art, show a savoir faire with the real which
meio do discurso delirante, ela mostra give news of the marks of the uniqueness
a letra em sua face real, tal como Lacan of the subject in its absolute difference.
a concebe, sendo um exemplo vivo do
que podemos elaborar a partir da teo-
ria psicanaltica a respeito do que mar-
ca um sujeito em sua mais primitiva Referncias
origem. Sem esquecer que foi por meio
da arte cinematogrfica que pudemos GRECO, M. Nabeiradomundo,avisodaverdade.
ter acesso a estes sujeitos. Disponvel em: http://www.cinemaencena.com.br/
estamira/blog.asp. Acesso em 30 set. 2006.
LACAN, J. A identificao: seminrio 1961-1962.
Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife,
Publicao para circulao interna, out. 2003. 443 p.
LACAN, J. Lituraterra [1971]. In:___. Outros
escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p.15-25.
LACAN, J. O seminrio, livro 23: o sinthoma, 1975-
1976. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. 249 p.
QUINET, A. Comentrios ao filme . In: Moacir, arte
bruta. Disponvel em: http://
www.republicapureza.com.br/moacir/antonio.htm.
Acesso em: 2006.
7
LACAN, J. Lituraterra. In: ___. Outros Escritos. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2003.