Texto de Muniz Sodré Filosofia Diaspora
Texto de Muniz Sodré Filosofia Diaspora
Texto de Muniz Sodré Filosofia Diaspora
Brasileira
fase viii
abril-maio-junho 2016
ano v n.o 87
A c a d e m i a B ra s i l e i ra R e v i s ta B ra s i l e i ra
d e L e t ra s 2 0 1 6
D i retor ia Direto r
Presidente: Domicio Proena Filho Marco Lucchesi
Secretria-Geral: Nlida Pion
Co nse l h o E d i to ri a l
Primeira-Secretria: Ana Maria Machado
Arnaldo Niskier
Segundo-Secretrio: Merval Pereira
Merval Pereira
Tesoureiro: Marco Lucchesi
Murilo Melo Filho
Co m i ss o d e Pu bl i c a e s
M em bros e fetivo s Alfredo Bosi
Affonso Arinos de Mello Franco, Antonio Carlos Secchin
Alberto da Costa e Silva, Alberto Marco Lucchesi
Venancio Filho, Alfredo Bosi,
Ana Maria Machado, Antonio Carlos Pro d u o e d i to ri a l
Secchin, Antnio Torres, Arnaldo Niskier, Monique Cordeiro Figueiredo Mendes
Candido Mendes de Almeida, Carlos Rev i s o
Heitor Cony, Carlos Nejar, Celso Lafer, Vania Maria da Cunha Martins Santos
Ccero Sandroni, Cleonice Sera da Motta
Berardinelli, Domicio Proena Filho, Pro j eto g r f i c o
Eduardo Portella, Evaldo Cabral de Mello, Victor Burton
Evanildo Cavalcante Bechara, Evaristo Edito ra o e l et r ni c a
de Moraes Filho, Fernando Henrique Estdio Castellani
Cardoso, Ferreira Gullar, Geraldo Holanda
Cavalcanti, Helio Jaguaribe, Ivo Pitanguy, Academia Brasileira de Letras
Jos Murilo de Carvalho, Jos Sarney, Lygia Av. Presidente Wilson, 203 4.o andar
Fagundes Telles, Marco Lucchesi, Marco Rio de Janeiro RJ CEP 20030-021
Maciel, Marcos Vinicios Vilaa, Merval Telefones: Geral: (0xx21) 3974-2500
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Rosiska Darcy de Oliveira, Sbato Magaldi,
site: http://www.academia.org.br
Sergio Paulo Rouanet, Tarcsio Padilha,
As colaboraes so solicitadas.
Zuenir Ventura.
Os artigos refletem exclusivamente a opinio dos autores, sendo eles tambm responsveis pelas
exatido das citaes e referncias bibliogrficas de seus textos.
Vinhetas coligidas do acervo da Biblioteca Acadmica Lcio de Mendona.
Iconografia
Alex Senna 9
Entrevista
Faustino Teixeira Poticas do encontro 11
Marco Dal Corso e Brunetto Salvarani Por uma teologia
psmoderna do dilogo 17
Pablo Beneito Reflexes sobre a necessidade de dilogo entre as crenas,
suas modalidades e seus interlocutores 29
Ensaio
Rosiska Darcy de OLiveira Antgona, o feminino como crime
poltico 105
Felipe Pereira Rissato Machado de Assis indito, desconhecido,
annimo, surpreendente... 119
Arnaldo Niskier Joo de Scantimburgo 133
Antnio Torres Efemride: 50 anos da posse de Adonias Filho
na ABL 135
Carlos Newton Jnior A Pedra do Reino: o serto mtico e potico de
Ariano Suassuna 139
Eliana Bueno-Ribeiro As filhas da me. Uma leitura de Ciranda de pedra,
de Lygia Fagundes Telles 149
Antonio Maura Carlos Nejar, o poder da palavra 159
Helena Carvalho Buescu Alexandre Herculano: heris pblicos 161
Gilberto de Mello Kujawski Dirios da Presidncia, Fernando
Henrique Cardoso 171
Wagner Schadeck Flores sem razes 179
Rika Hagino Nigorie (Enseada de guas Turvas): a denncia da autora
Higuchi Ichiy ao sistema social de sua poca 191
Conto
Monique Revillion No rio Amarelo 201
Caligrama
Roberto Berliner Nise o corao da loucura 207
Poesia
Nei Leandro de Castro 215
Salgado Maranho 221
Ricardo Domeneck 227
Lucinda Persona 233
Lenilde Freitas 239
Poesia do Japo
Wag Ryichi 247
Memria Futura
Pontes de Miranda Espao-Tempo-Matria 263
Esta a glria que fica, eleva, honra e consola.
Machado de Assis
Editorial
Marco L u cches i
Alex Senna
Poticas do encontro
Fausti n o Tei xei r a
RB Ainda sobre o dilogo, o senhor nutre alguma relao com a mstica judaica,
particularmente Buber Scholem e Rosenzweig?
RB Mas o seu interesse pelo Isl parece mais forte ou mais urgente. Haver herdeiros que
aceitem uma herana razovel, ou ento uma convergncia mnima, dentre os filhos de Abrao?
FT Sem dvida, vejo como uma das tarefas mais essenciais a recupera-
o de alguns valores nobres, to relegados nesse tempo infeliz da so-
ciedade de mercado. Entre eles, sublinho a delicadeza, a cortesia, o res-
peito, a ateno e a hospitalidade. Deixar-se hospedar pelo outro, esse
um dos desafios fundamentais nesse limiar do sculo XXI. A grande
pensadora francesa Simone Weil dizia que a ateno revela-se como a
forma mais pura da generosidade. So valores que habitam o centro
mais ntimo da vida e experincia dos msticos de todos os tempos.
4 Tracy, por exemplo, acha que: estamos nos aproximando rapidamente do dia em que s ser poss-
vel tentar uma teologia sistemtica crist dentro de um srio dilogo com as outras grandes vias. (D.
TRACY, Dialogue with the Others: The inter-religious Dialogue, Peeters Press, Louvain 1990, IX). Claude Geffr,
por sua vez, escreve: Parece que o novo paradigma do pluralismo religioso nos convite reflexo sobre
a que poderia ser uma verdadeira teologia inter-religiosa, ou uma teologia dialgica. Ver Il senso di una teologia
interreligiosa, pargrafo do captulo Verso una teologia delle religioni, in R. GIBELLINI, a. c., Prospettive teologiche
per il XXI secolo, Queriniana, Brescia 2003, 368.
Tambm Dupuis comenta: Uma teologia crist do pluralismo religioso tem que ser uma teologia
baseada na interao da f crist com as outras e tem que ser, neste sentido, uma teologia inter-religiosa.
(J.DUPUIS, Il cristianesimo e le religioni, op. cit., 180.)
Por uma teologia psmoder na do dilogo 23
9 Sobre a importncia do dilogo, cultural e religioso, discutem principalmente os filsofos. Para uma
breve apresentao da literatura (italiana) a respeito, ver: : E. BACCARINI, La soggettivit dialogica, Aracne,
Roma 2002; P.C. BORI, Per un consenso etico tra culture, Marietti, Genova 1994; IDEM, Universalismo come
pluralit delle vie, Marietti, Genova 2004; M. BUBER, Il principio dialogico e altri saggi, San Paolo, Milano
1997; U. BECK, Il Dio personale. La nascita della religiosit personale, Laterza, Roma-Bari 2009; G. CUNICO
D. VENTURELLI, a. C., Culture e religioni, Il Melangolo, Genova 2011; A. FABRIS, Introduzione al pen-
siero dialogico, Edioffset, Pisa 1995; D. HARTMAN, Sub specie humanitatis. Elogio della diversit religiosa, a. c. de
R. Fontana, Aliberti, Reggio Emilia 2004: G. E. LESSING, Nathan il saggio, Garzanti, Milano 1992; R.
MANCINI, La struttura dialogica delluomo, in Servitium, III 166 (2006), 21-34; M. MARTINI, a.c.,
La filosofia del dialogo. Da Buber a Lvinas, Cittadella Editrice, Assisi 1995; M. PAGANO, Filosofia e teolo-
gia di fronte alla sfida del pluralismo, in Filosofia e Teologia 6 (1992), n.1, 3-12; E. PORZIO, Il pluralismo re-
ligioso, ETS, Pisa 2011; M SPANO - D. VINCI, a.c., Luomo e la parola. Pensiero dialogico e filosofia contemporanea,
Il pozzo di Giacobbe, Trapani 2007; S. ZUCAL, Lineamenti di pensiero dialogico, Morcelliana, Brescia 2004.
10 A frase oferecida por Karl Marx na Introduo Crtica da filosofia do direito de Hegel, texto aparecido pela
No se elimina pela abstinncia dos autos sacramentais e a ausncia dos lugares sacros,
assim como o desejo sexual, no se elimina pelo voto de castidade. Quando a dor bate porta e
os recursos da cincia se esgotam, nas pessoas despertam os videntes, os exorcistas, os magos, os
curandeiros, os benzedeiros, os sacerdotes, os profetas, os poetas... O mundo no se secularizou,
verdade que os deuses e as esperanas religiosas tomaram nomes novos, novos desenvolvimentos,
e seus sacerdotes e profetas novos paramentos, novos lugares e novos empregos.
11 As frases em itlico so citaes livremente colhidas no texto R. ALVES, Religione, EMI, Bologna 2007.
Elas foram juntadas para construir um discurso que no existe nestes termos na obra em questo, mas
que propem uma lgica de raciocnio sugerido pelo autor nesta e em outras obras.
12 De dilogo purificador falam por vrias razes e sob diferentes aspectos M. AMALADOSS, Costruire pace
in un mondo pluralista, EDB, Bologna 2008, A. TORRES QUEIRUGA, Dialogo delle religioni e autocomprensione
cristiana, EDB, Bologna 2007, e o mais recente J.M. PLOUX, Il dialogo cambia la fede?, Qiqajon, Magnano
(Bi) 2011.
Por uma teologia psmoder na do dilogo 27
Trecho do artigo Molte volte e in diversi modi: Manuale del dialogo interreligioso.
So Paulo, Itaquera
Reflexes sobre a
necessidade de dilogo entre
as crenas, suas modalidades
e seus interlocutores
Pablo Benei to
querer-se... Mas o certo que as suas crenas, assim como a sua condi-
o individual, por definio, nunca so idnticas. Se considerarmos as
vivncias ou interpretaes da crena (no a sua formulao dogmtica)
sujeitas a todas as limitaes e mudanas contextuais imaginveis, esti-
mamos que no pode haver duas crenas iguais em dois indivduos, nem
sequer dois instantes que possam atualizar de modo idntico determi-
nada crena no mesmo indivduo, pela simples razo ltima de que toda
manifestao no repetvel e distinta da outra (j que, se no fosse
distinta, seria a mesma manifestao). Ento, toda crenacomo toda
percepo da realidade associada a ela, necessariamente condicionada
por suas circunstncias, relativa e mutvel. Quando nos referimos
permanncia de uma crena estabelecida, isto , compartilhada, aludi-
mos na realidade a um sem-nmero de relaes pessoais com referentes
simblicos afins (mas nunca idnticos), com uma infinita gama de in-
terpretaes que correspondem aos estados e naturezas dos indivduos
e grupos que a compartilham, cada um em permanente processo de
transformao e atualizao dessa crena de forma sempre renovada.
O primeiro nvel de dilogo que se impe o intradialogal ou intra-
pessoal, isto , o dilogo no prprio foro ntimo, entre a diversidade de
vozes, discursos e crenas que confluem no interior de todo indivduo
como herdeiro da condio humana ancestral em interao com a di-
versidade humana do seu tempo e em ressonncia com outros tempos
e espaos.
Logo, o dilogo continua no mago do que considerado como a
prpria identidade: o indivduo, a famlia, o grupo mais amplo (grmio,
tribo, nao...), a religio ou crena predominante na identidade... Este
nvel, propriamente dialogal, o dilogo interpessoal, j se estabelece no
mbito confessional da prpria comunidade de identidade e crenas.
O que chamamos de dilogo inter-religioso ocorre num nvel de di
logo superior e constitui, neste sentido, uma situao interdialogal ou
interconfessional, entre confisses diferenciadas e contextualizadas.
Acima deste nvel estaria, nos sistemas de crena que permitem con-
siderar tais dimenses da experincia, o nvel superdialogal ou dilogo
supraconfessional (comunicao qualitativa de carter mstico entre se-
res espirituais), e inclusive acima, pode haver um nvel transdialogal ou
32 Pablo Beneito
O Cristianismo como
projeto civilizatrio
Frei Betto
F e poltica
Ns, ocidentais, dessacralizamos o mundo ou, como prefere Max
Weber, o desencantamos. A ponto de se decretar a morte de Deus. Se
abraamos paradigmas to cartesianos, felizmente em crise, isso no
motivo para quebrar a flauta dos povos que levam a srio suas razes
religiosas.
Hoje, erra o Oriente por ignorar a conquista moderna de laicida-
de da poltica e da autonomia recproca entre religio e Estado. Erra
o Ocidente por sacralizar a economia capitalista, endeusar a mo
invisvel do mercado e desdenhar as tradies religiosas, pretendendo
confin-las aos templos e vida privada.
Os orientais se equivocam por confessionalizar a poltica, como se as
pessoas se dividissem entre crentes e no crentes (ou adeptos da minha
f e os demais). Ora, o marco divisor da populao mundial a injustia
que segrega 4 dos 7 bilhes de habitantes.
Por sua vez, os ocidentais cometem grave erro ao pretender impor a
todos os povos, pela fora e pelo dinheiro, seu paradigma civilizatrio
fundado na acumulao da riqueza, no consumismo e na propriedade
privada acima dos direitos humanos.
O Cristianismo como projeto civilizatrio 41
Isso explica por que todos ns, cristos, somos discpulos de um pri-
sioneiro poltico. Jesus no morreu de hepatite na cama nem de de-
sastre de camelo numa rua de Jerusalm. Como tantos perseguidos
por governos autoritrios que foram presos, torturados e mortos, ele
tambm foi preso, torturado, julgado por dois poderes polticos e
condenado morte na cruz. A pergunta a se fazer esta: que qualida-
de de f tm, hoje, os cristos, que nem sequer reagem a essa desordem
estabelecida, na qual, segundo a Oxfam, 62 famlias detm em mos
fortuna equivalente soma da renda de 3,6 bilhes de pessoas, metade
da humanidade?
Ao contrrio do que muitos pensam, para Jesus o Reino de Deus no
era algo apenas l em cima, no Cu. Era, sobretudo, algo a ser conquis-
tado nesta vida e nesta Terra. Vim para que todos tenham vida e vida
em abundncia (Joo 10, 10). E ele foi, por excelncia, o homem novo,
prottipo do que devero ser todos os homens e mulheres do Reino
futuro, a civilizao do amor, da justia e da solidariedade.
As bases desse projeto civilizatrio e seus valores esto espelhados na
prtica e nas palavras de Jesus. Se agirmos como ele, esse novo mundo
haver de se tornar realidade. Esta a essncia da promessa de Jesus.
A centralidade do humano
Voc pode no ter f crist e at mesmo averso Igreja. Mas voc
trilha a senda de Jesus se uma pessoa faminta de justia, despida de
qualquer preconceito a seres humanos, capaz de partilhar seus bens com
os necessitados, preservar o meio ambiente, ter compaixo e saber per-
doar, e ser solidrio s causas que defendem os direitos dos pobres.
Jesus no veio nos abrir a porta dos cus. Veio resgatar a obra origi-
nria de Deus, que nos criou para viver em um paraso, conforme o livro
do Gnesis. Se o paraso no se realizou, porque abusamos de nossa
liberdade na nsia de tornar meu o que, de direito, de todos.
Jesus no veio como um extraterrestre que nos traria um catlogo de
verdades estranhas ao nosso mundo. Veio revelar, desvelar, tirar o vu,
ou seja, nos fazer enxergar o que j parte do nosso proceder, do nosso
cotidiano, mas que no tnhamos ideia de seu valor transcendente.
44 Frei Betto
Ele veio nos alertar: o mundo que Deus quer tem esse perfil, essas
caractersticas! Mundo no qual no h excludos, famintos, injustiados.
Mundo no qual a solidariedade reina sobre a competitividade e a recon-
ciliao sobre a vingana.
Esse projeto de Deus, anunciado por Jesus, tem a sua centralidade,
no em Deus, mas no ser humano, imagem e semelhana de Deus. S na
relao com o prximo se pode amar, servir e cultuar Deus.
Os missionrios que colonizaram a Amrica Latina queimaram in-
dgenas, como o cacique Hatuey, em Cuba, por cultuarem outro deus
que no o dos cristos. Ora, Jesus no pregou aos fariseus e saduceus
um outro Deus, diferente daquele cultuado pelos judeus no Templo de
Jerusalm. Pregou que o ser supremo para o ser humano o ser humano. Em Ma-
teus 25, 31-46, Jesus se identifica com o faminto, o sedento, o imigrante,
o desnudado, o enfermo e o prisioneiro. E frisa que serve a Deus quem
liberta o prximo de um mundo que produz essas formas de opresso
e excluso.
Portanto, o que Jesus veio introduzir entre ns no foi uma Igreja ou
uma nova religio. Foi um novo projeto civilizatrio, baseado no amor
ao prximo e natureza, e na partilha dos bens da Terra e dos frutos do
trabalho humano. Uma nova civilizao em que todos sejam includos:
coxos, cegos, hansenianos, mendigos e prostitutas. E na qual a vida,
dom maior de Deus, seja por todos desfrutada em plenitude.
Como alcanar tal projeto civilizatrio? Jesus acentuou nitidamente
que para isso preciso renunciar, como valores ou meta de vida, o ter, o
prazer e o poder, simbolizados nos episdios das tentaes sofridas por
ele no deserto (Lucas 4, 1-13). E ao contrrio do que se supe, quem o
faz encontra o que todo ser humano mais anseia, a felicidade, ou, nos
termos do Evangelho, a bem-aventurana, explicitada por Jesus em oito
vias que imprimem sentido altrusta s nossas vidas (Mateus 5, 3-12). H
que ser solidrio com os excludos, como o bom samaritano; compassi-
vo, como o pai do filho prdigo; despojado, como a viva que doou ao
Templo o dinheiro que no lhe era suprfluo. H que assegurar a todos
condies dignas de vida, como na partilha dos pes e dos peixes. H
que denunciar os que colocam a lei acima dos direitos humanos e fazem
da casa de Deus um covil de ladres. H que fazer de nossa carne e de
O Cristianismo como projeto civilizatrio 45
Y bien,
ahora
os pregunto:
No vis
estes tambores
en mis ojos?
Nicols Guilln
2 Santos, Juana Elbein dos. Os Nag e a Morte. Ed. Vozes, 1976, p. 22. Este livro, que reproduz o texto
da tese de doutoramento da autora na Sorbonne, em jri presidido por Roger Bastide, representa um
divisor de guas na histria dos estudos sobre a cultura afro-brasileira, com mais de uma dezena de
edies, tendo sido lido e discutido por etnlogos, pesquisadores de vrias reas e lideranas dos cultos
afro-brasileiros.
50 Muniz Sodr
3 Boulaga, Eboussi F. La crise Du Muntu authenticit africaine et philosophie. Prsence Africaine, 1977, p. 211.
4 Merleau-Ponty, M. Phnomnologie de la perception. Gallimard, p. 128.
54 Muniz Sodr
A esttica do despertar:
a pedagogia do olhar na
tradio budista
Clodom i r B. d e A nd r a d e
Introduo
Em dois dos mais importantes textos da tradio budista,
o Saddharmaparkastra e o Alaggadupamastta, o Buda afirma
que ele desenvolvera vrias estratgias metodolgicas de enca-
minhamento soteriolgico (upya) para responder s diferentes
6 Por exemplo, as narrativas das vidas passadas do Buda descritas nos jtkas, diretamente relacionadas
sua primeira viglia na noite do despertar, quando ele se recorda de suas inmeras vidas anteriores;
as 32 marcas principais e as 80 marcas secundrias no seu corpo, que marcavam sua diferena e o seu
destino em relao ao restante da humanidade, a sua clarividncia, clariaudincia, sua capacidade de
teletransporte, as visitas aos deuses e dos deuses etc., dentre outras caractersticas pouco palatveis ao
gosto do racionalismo ocidental.
A esttica do despertar: a pedagogia do olhar na tradio budista 59
7 Doravante, os principais conceitos do budismo sero citados em snscrito (S) e pli (P).
60 Clodomir B. de Andrade
Desenvolvimento
Me ensine o dhamma, Sugata: difcil compreender as coisas, me
ensine o dhamma, para o meu bem e minha felicidade permanente.
Bhiya estava sendo inconveniente. Era a terceira vez que ele impor-
tunava o Buda, o Sugata, com insistentes pedidos de esclarecimento.
Era a hora do almoo e o Buda estava em plena ronda de mendicncia.
Como se j no fosse difcil o suficiente mendigar o alimento e agra-
decer a ddiva com um pequeno discurso ao benfeitor ou benfeitora,
Bhiya estava azucrinando o Tathagata justamente na hora de sua nica
refeio diria. Compreende-se, porm, a sofreguido de Bhiya. Ele
estava viajando h meses em busca do Buda, desde que ele havia tido
uma revelao de que a sua realizao espiritual era medocre e que os
estados meditativos que ele alcanara, ao contrrio do que ele mesmo
62 Clodomir B. de Andrade
9 Udana I, 10.
A esttica do despertar: a pedagogia do olhar na tradio budista 63
Concluso
Melhor, monges, arrancar um olho com um ferro em brasas do
que apreender os sinais particulares de objetos visveis cognoscveis pela
viso.11 Essa passagem, que se encontra no incio do famoso Discur-
so do Fogo aponta com clareza toda a potencialidade de sofrimento
possvel numa conduo irrefletida da sensibilidade. Driblando, por
enquanto, toda a nfase asctica do sutra que no o nosso objeti-
vo imediato, apesar de servir de baliza exemplar para se pensar aque-
la discusso no ambiente budista e recordando a passagem similar
no Novo Testamento onde Jesus afirma que se nosso olho nos causa
mcula melhor arranc-lo, fica ntida a preocupao do Buda com
os mecanismos de cuidado em relao ao perigoso mundo sensvel.
Ora, um dos temas recorrentes da ampla palheta discursiva do Buda se
assenta exatamente sobre os cuidados que se deve ter em guardar os
canais de contato com o mundo sensvel. O prprio Satipahna Sutta,
j invocado acima, apresenta um verdadeiro roteiro e elenco de proce-
dimentos prticos para tutelar aquele contato. Convm recordar aqui
a noo de ateno plena, conscincia que fundamenta no somente
aquele texto como tambm boa parte das diferentes tradies medi-
tativas budistas theravadins. A ateno, como vimos acima, centrada no
corpo em suas diversas posturas e dinmicas, a ateno na mente e em
seus processos, a conscincia dos elementos que constituem a experi-
ncia, todo este leque de modalizaes da nossa estrutura psquica em
termos de uma vigilncia constante sobre esse inimigo onipresente o
arrepio da sensibilidade diagramado e exaustivamente analisado em
12 Viuddhimagga I, 53-4.
13 Idem.
66 Clodomir B. de Andrade
14 Ibidem.
A esttica do despertar: a pedagogia do olhar na tradio budista 67
Bibliografia
Dgha Nikya. The long discourses of the Buddha. Translated by Maurice WALSHE,
Sommerville: Wisdom Publications, 1995.
Majjhima Nikya: The middle length discourses of the Buddha. Trans. Bhikkhu
NAMOLI and Bhikkhu BODHI. Sommerville: Wisdom Publications, 1995.
Sayutta Nikya. Trans. by Bhikkhu Bodhi. Summerville: Wisdom Publications,
2000.
The Udna and The Itivutakka. Trans. By John Ireland. Kandy: Buddhist Publication
Society, 1997.
Viuddhimagga, The path of purification. Onalaska: Pariyatti publishing, 1999.
Seoul, Coreia do Sul
c i clo i d e n t i da d e e m qu e st o
Vias e desvios da
identidade literria
Eduardo Po rtel la
Identidade nacional e
cultura universal
Vami reh C hac o n
Identidade e Histria
Carlos Gui lher me M ota
Introduo
Agradeo o convite para rever acadmicos e amigos que Historiador,
hoje acorreram a este sodalcio voltado temtica da iden- Professor
tidade nacional. De nossa identidade. Dou-me conta das di- Emrito da
Faculdade
ficuldades crescentes envolvidas em assunto to candente,
de Filosofia
sobretudo nesta quadra na qual a Petrobras, outro cone de da USP e
nossa identidade, sobrevive enleada nos sargaos da corrupo, Professor de
em processos vergonhosos e graves desafios. No bastassem Histria da
as dificuldades que este Pas que se quer Nao enfrenta e Cultura na
enfrenta mal nas esferas da Educao, Sade, Saneamento Faculdade de
Bsico, da governana, ... e da Cultura, sobretudo na provncia Arquitetura da
Universidade
de onde venho, So Paulo, em que instituies culturais so- Presbiteriana
brevivem a incndios, desmazelo e incria, como no caso do Mackenzie.
Museu da Independncia, no alto do Ipiranga, outro cone de
nossa identidade aviltada.
Identidade, identidades
Comecemos pelo comeo. Identidade [identitate, S. f.] vem do latim
tardio. Segundo mestre Aurlio, trata-se do aspecto coletivo de um con-
junto de caractersticas pelas quais algo definitivamente reconhecvel,
ou conhecido. Em Filosofia, trata-se da qualidade do que o mesmo.
E na Matemtica, da relao de igualdade vlida para todos os valores
das variveis envolvidas. Na Psicanlise, adquiriu enorme importncia,
sobretudo em situaes em que o indivduo sofreu perda desse atributo:
Identidade.
J Histria vem do grego istoria, chega-nos pelo latim historia [S. f.].
O que histrico, vem da palavra grega historiks, e no latim historicu: o
que digno de figurar na histria. A palavra istoria tinha o sentido
original de indagao, mas tambm um sentido mais amplo relativo aos
resultados dessa indagao. E depois passou a ser referida a um relato do
conhecimento.
As duas palavras surgiram inter-relacionadas desde sempre, antes
mesmo de se tornarem conceitos, quando eram apenas vagas noes,
como se l em Homero, Tucdides e Herdoto, entre outros. Consti
tuam elementos centrais da Paideia, sobre os fundamentos da civilizao
grega, como analisou Werner Jaeger.
Identidade e Histria so palavras que se tornaram conceitos com maior
densidade ao longo da formao dos Estados Nacionais, desde D. Dinis
(1261-1325), e com maior intensidade e frequncia a partir dos sculos
XIV ao XIX. Na Histria da Cultura, Os Lusadas, de Cames, ou o
D. Quijote de la Mancha, de Cervantes, consagram as identidades dos povos
em que nasceram.
Identidade e Histria 87
No Brasil
Que me quer o Brasil que me persegue?
Gregrio de Matos
Editora Globo, 2010. Na resposta a Srgio Buarque, minha defesa foi calada em Dante Moreira Leite,
Raymundo Faoro, Florestan Fernandes, Srgio Bag e Eric J. Hobsbawm, alm de Drummond.
88 Carlos Guilher me Mota
4 Cf. Raymundo Faoro, Os donos do poder. Formao do patronato poltico brasileiro. Porto Alegre: Editora Globo,
1958, p. 269. Posteriormente, esta obra clssica (polmica) teve novas edies, ampliadas.
5 Ibidem.
90 Carlos Guilher me Mota
7 Paris:ditions du Seuil, 2004 e 2005. Suivi de La pense rechauffe, rponse de Pierre Nora. Enfim, iden-
tidades em pesada e spera disputa.
92 Carlos Guilher me Mota
latino-americano que o mexicano Leopoldo Zea, insgne historiador das ideias, realizou ao longo de
sua vida, no sculo passado. No Brasil, do mapeamento participaram Darcy Ribeiro, Candido Mendes
e eu prprio (SOLAR).
9 Ver nosso comentrio ao inquietante livro de Barbara Freitag Rouanet, Capitais migrantes e poderes pere-
grinos: o caso do Rio de Janeiro. (Campinas SP: Papirus, 2009), na Revista Brasileira, Academia Brasileira de
Letras, abril-junho 2010, Ano XVI, n. 63, pp. 169-174.
Identidade e Histria 93
de Florestan Fernandes.
14 Mrio de Andrade, no Testamento de uma Gerao. Porto Alegre: Livraria do Globo, pp. 273-279; e,
15 Cf. De ontem, de hoje, de sempre, So Paulo: Livraria Martins Editora, 1962, p. 123.
c i clo i d e n t i da d e e m qu e st o
Dialtica e Identidade
Emmanuel Car nei ro L e o
Pai no cu, que faz nascer o sol para bons e maus e chover sobre justos
e injustos. (Mt. 5, 43 ss.)
o testemunho do primeiro Evangelho, o de So Mateus. E no
ltimo dos quatro evangelhos, no Evangelho atribudo a So Joo, diz
Jesus: Um novo mandamento eu vos dou: que vos ameis uns aos ou-
tros! Como eu vos amei a vs, assim tambm vs ameis uns aos outros.
Nisto reconhecero todos que sois meus seguidores, se vos amardes
uns aos outros. (Jo. 14, 34 s.) A identidade do Cristo reside, pois, na
dialtica de amor e dio! o segundo mandamento ligado e implicado
no primeiro: acrescenta Jesus: o outro, porm o segundo, igual omoa
aut ao primeiro: amars tanto o teu prximo quanto a ti mesmo s
seautn. (Mt. 22, 38 s). importante entender aqui a partcula compara-
tiva, s, no sentido no apenas de igualdade, mas tambm de integrao
da identidade com a dialtica de igualdade e diferena: amars tanto o
teu prximo como a ti mesmo! E por que esse tanto quanto? Por-
que nas peripcias histricas e biogrficas da identidade, o ser humano
no somente ama a si mesmo, mas tambm odeia a si mesmo, embora
na vida individual seja um dio escamoteado, larvatus prodeo, caminho
mascarado, como diz Freud! Se, na biografia dos indivduos, o dio a si
mesmo anda dissimulado nos fracassos, nas doenas e na morte, na vida
histrica dos povos, nos grupos e nas comunidades, ele grita a plenos
pulmes nas guerras, nos assaltos e agresses, nos atentados e persegui-
es. Se no passado, sempre presente, a violncia, na maioria das vezes,
se revestia de atos de indivduos, hoje em dia vivemos no apenas atos
violentos, mas em estado de violncia de toda uma civilizao.
Nos primeiros sculos, a comunidade crist viveu o mandamento
do amor universal de sua identidade nas perseguies e catacumbas da
Roma Imperial.
Com a vitria em 312 sobre Maxncio na batalha da Ponte Mlvia,
Constantino I vai tomando gradativamente o poder de todo o Imp-
rio. Reza a tradio que na vspera do combate, Constantino sonhou
com uma cruz encimada pela frase: in hoc signo vinces: neste sinal ven-
cers!
Integrando, aos poucos, os cristos no exerccio do poder, Cons-
tantino criou as condies para a identidade crist ir se afastando da
Dialtica e Identidade 103
Antgona, o feminino
como crime poltico
Rosi ska Darc y de O L ivei r a
Creonte est no poder para manter a lei contra tudo e contra todos, no
se abala com o espetculo repugnante do corpo de seu sobrinho deixado
aos abutres; ao contrrio, encontra justificativa na certeza cega a tudo mais
que no seja o cumprimento do seu dever, de que no pode ceder tenta-
o do apelo afetivo que comove e enfraquece a integridade da polis.
essa certeza que tece os fios da teia em que ambos, Creonte e An-
tgona, se enredaro sem salvao possvel.
Mais alguns minutos e ei-lo diante de uma menina desgrenhada,
com as unhas sujas de terra, arrastada pelos cabelos por seus guardas
como uma delinquente qualquer, princesa insolente que escapuliu de
casa e da vida na vspera de se tornar a mulher de seu filho, Hemon, e,
mais tarde, a me de seus netos.
Face a face, Creonte e Antgona vo encenar a oposio irreconcili-
vel de contrrios, de naturezas distintas, e o enfrentamento da lgica do
masculino com a lgica do feminino, da juventude e da velhice que, ao
longo da histria humana, se mantiveram to radicalmente estrangeiras.
Para Creonte, o triunfo de Antgona o desloca de sua posio de homem:
Esta menina j mostrou sua insolncia ao passar por cima das leis estabelecidas; e, o crime
uma vez cometido, uma insolncia a mais da qual ela se vangloria. Agora, j no serei mais
eu, ser ela o homem, se tiver, impunemente, tal triunfo assegurado. Pois bem, no!
E Creonte pergunta:
Responda sem frases, com uma s palavra. Conhecias a proibio que eu havia proclamado?
Sim, eu a conhecia: como poderia ignor-la? Ela era absolutamente clara.
E ainda assim ousaste desafiar a minha lei?
Sim, porque no foi Zeus que a proclamou! No a Justia sentada ao lado dos deuses
infernais; no, estas no so as leis que eles fixaram para os homens, e eu no pensava que tuas
proibies fossem to poderosas a ponto de permitir a um mortal de transgredir outras leis, as
leis no escritas, inabalveis, dos deuses! Estas no tm data, no so de hoje nem de ontem,
ningum sabe o dia em que foram editadas.
Poderia eu, por medo de quem quer que fosse, me expor vingana dos deuses? Se eu sabia
que poderia morrer? Mas morrer antes da hora, digo em alto e bom som, para mim, uma
vantagem: Morrer, para mim no um sofrimento.
Seria um sofrimento se, ao revs, eu tivesse tolerado que um filho de minha me ficasse sem
sepultura. Daquilo, sim, eu teria sofrido; disto eu no sofro.
110 Rosiska Darcy de OLiveira
A ti eu pareo sem dvida agir como uma louca. Mas o louco poderia muito bem ser aquele
que me trata de louca.
Pausa
Jean Anouilh, na sua verso de Antgona, que veio cena em Paris
nos anos 40 do sculo passado, explicita numa fala da prisioneira uma
dramtica inverso de poder.
Creonte Rei, e como Rei, um escravo da sua prpria lei, que o
obriga a condenar morte a noiva de seu filho.
Antgona, o desafia:
Antgona, o feminino como crime poltico 111
Eu, com as minha unhas sujas de terra, com as marcas da brutalidade de seus guardas
ainda no meu corpo, com o medo que me sobe do ventre, eu, eu sou rainha!
Por isso o nosso dever defender a ordem para impedir a desordem, e no ceder jamais diante
de uma mulher, sob qualquer pretexto. prefervel sucumbir, se necessrio, sob a espada de um
homem do que ser considerado vencido por uma mulher.
Eis que abandonada de todos, miseravelmente, deso, em vida, ao refgio subterrneo dos
mortos! De que me adianta dirigir meu olhar aos deuses? No tenho aliados aos quais apelar:
minha piedade me valeu o renome de mpia.
terra de Tebas, cidade de meus pais! Deuses autores de minha raa! Vejam, filhos dos
chefes de Tebas, a nica que sobrevive das filhas de vossos reis, vejam o sofrimento que lhe
imposto por haver respeitado o dever da piedade.
Desculpas
Eu devo, minha senhora,
Pr aqui rosas e estrelas...
Depois de tanta demora,
Eu devo, minha senhora,
Pedir aos lbios da aurora
Todas as rosas, traz-las.
Eu devo, minha senhora,
Pr aqui rosas e estrelas.
3 SOUSA, J. Galante de. Bibliografia de Machado de Assis. Rio de Janeiro: INL, 1955, p. 242.
Machado de Assis indito, desconhecido, annimo, surpreendente... 127
Lembranas de minha me
Minha me morreu to cedo!...
Eu era pequeno, era feliz; porque no conhecia os enganos do mun-
do, e os pesares da vida; inocente corria por entre as campinas, colhia
flores e ia derram-las sobre a minha me, saltava os regatos que encon-
trava no meu brincar, corria atrs da borboleta azul,6 travava com ela um
combate que acabava pela minha vitria; adormecia sossegado e feliz no
meu bero inocente, embalado pelas cantigas e pelos beijos maternos
que nas faces recebia; eu dormia o sono da infncia [,] era feliz: oh!
quem me dera sempre viver assim! Ao depois cresci, quando podia re-
tribuir-lhe as suas carcias; quando mais me era precisa a sua existncia,
4 A me de Machado de Assis, d. Maria Leopoldina Machado da Cmara, ao casar-se Maria Leopoldina
Machado de Assis, falecera a 18 de janeiro de 1849, s vsperas de completar 37 anos. Contava Machado
de Assis, 9 anos e 7 meses de idade.
5 Um depoimento manuscrito de Carlota Rodrigues Lopes, irm de Jos Carlos Rodrigues, arquivado
no Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, registra a idade de 23 anos. Contudo, obiturios publi-
cados em jornais fluminenses consignam o enterro de Anna de Albuquerque Vidal Rodrigues, casada,
com 33 anos, em julho de 1858. De fato, se tivesse 23 anos em 1858, teria dado luz Jos Carlos Rodrigues
em 1844 com apenas nove, algo praticamente inconcebvel.
6 Em Memrias Pstumas de Brs Cubas (1880), ao ser atacado por uma borboleta preta, o personagem-
-ttulo se pergunta: Tambm por que diabo no era ela azul?. Na crnica A Semana (Gazeta de Notcias)
de 19 de fevereiro de 1893, Machado revela: Tenho particular amor s borboletas. Acho nelas algo das
minhas ideias, que vo com igual presteza, seno com a mesma graa. O interesse de Machado pelas
lepidpteras tambm evidente na escolha dos ttulos dos seus dois primeiros livros de poesias: Cris-
lidas (1864) e Falenas (1870).
Machado de Assis indito, desconhecido, annimo, surpreendente... 129
a cruel sorte ma roubou; oh! quanto sofro hoje que isolado do mundo,
cansado da vida, no encontro o seio para esconder as minhas lgrimas,
e nem os seus hinos para adoar-me as dores.
...Uma me!... Palavra sublime, que enche o corao de prazer e entu-
siasmo, que eleva a alma a um viver inocente e belo.
Uma me!!... nico ente que nos ama no mundo, que compreende
as nossas dores, que sofre quando sofremos, que chora quando nossa
alma triste, que se desespera quando choramos, e que morre quando o
homem deixa o mundo de iluses e prazeres para ir viver no mundo das
felicidades. Dores reais, sofrer sincero.
Oh! como triste existir sem ter o elo que nos prende vida, sem
os afagos do verdadeiro amor, sem as douras da verdadeira afeio. E
haver quem no chore uma me?
Quem no sinta um vcuo no corao quando uma lgrima se des-
liza no tmulo de uma me[?] Quem no sofra muito sem os cuidados
desse anjo que o Senhor enviou terra para ensinar-nos o amor, o dever
e a religio?
Oh! eu sou infeliz, muito infeliz...
Aos 9 anos perdi minha me, fiquei s no mundo; s como a rola
sem o ninho! Entrei no mundo das iluses e dos enganos; sofri muito,
descri muito. A sociedade egosta e corrupta fez-me descrer de todas
as felicidades, de todo o amor sincero e verdadeiro, de toda a virtude;
porque j tinha perdido o nico ente que me amava com amor sincero7,
e a crena que me fazia feliz: fugi do mundo, entreguei-me solido e
muito chorei, porque no encontrei quem me acalentasse nos braos e
mitigasse as minhas dores. No tinha me!
Como eu sofro!... minha me, l da manso dos justos, lana a bn-
o sobre teu filho, pede a Deus pela felicidade do padecente. Eu sem
ti, sem o perfume da flor que me fazia feliz e crente, chorarei sempre
sem consolao; porque uma me perde-se uma vez e nunca mais se
encontra8.
7Antes da me, Machado perdera a irm, Maria, nascida em 1841 e falecida em 1845, aos 4 anos.
Advindo a morte da me, Machado sentia-se s, mesmo com o pai, Francisco Jos de Assis, ainda vivo.
8 Uma clara aluso reprovativa ao casamento do pai, em segundas npcias, com Maria Ins da Silva,
Referncias bibliogrficas
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ACADEMIA Brasileira de Letras; BUENO, Alexei (org.). Machado Vive: exposio
comemorativa de 100 anos de morte de Machado de Assis. Rio de Janeiro: ABL,
2009.
Anais da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, v. 85, 1965.
Machado de Assis indito, desconhecido, annimo, surpreendente... 131
Joo de Scantimburgo
Ar nal d o Ni s k i er
a poca utilitria em que vive, tenta reconstruir sua volta, com a ajuda da tradio folclrica
do Nordeste, um reino de beleza e de arte no meio da desoladora pobreza do serto.1
jan. 1974.
2 SUASSUNA, Ariano. Romance dA Pedra do Reino e o prncipe do sangue do vai-e-volta. 3. ed. Rio de Janeiro:
3 MELO NETO, Joo Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. pp. 420-421.
146 Carlos Newton Jnior
1 Este texto parte do ensaio indito As meninas de suas mes: filiao e maternidade em Lygia
Fagundes Telles.
2 Ciranda de pedra (CDP, 1954). Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1974; Vero no aqurio (1963). Rio de
Janeiro, Jos Olympio, 1976; As meninas (1973). Rio de Janeiro, Rocco, 1998; As horas nuas (1989). So
Paulo, Crculo do Livro, 1989
150 Eliana Bueno-Ribeiro
3 Caroline Eliacheff et Nathalie Heinich. Mres-filles. Une relation trois. Paris, Albin Michel, 2002.
4 G.Devereux. Femme et mythe (1982). Paris, Flammarion-Champs, 1988, pp. 13-14. Apud C. Eliacheff et N.
Heinich, op. cit. pp. 385-386. Trad. minha.
5 Idem, p. 386, nota 2. Todas as tradues so minhas.
As filhas da me 151
As ideias desse autor sendo muito conhecidas, dispensamo-nos de explicit-las neste trabalho.
152 Eliana Bueno-Ribeiro
princesa. Com eles Branca de Neve se prepara para assumir seu papel de
rainha, seu papel de mulher que, dentro das convenes da poca, sig-
nifica a excelncia na conduo dos afazeres domsticos. Assim, como
a mais bela das princesas, a protagonista de CDP se protege escolhendo
uma clareira no mundo, um espao protegido no ambiente hostil, o co-
lgio religioso. entre as freiras, que vivem tambm num espao e num
tempo prprios, fora do sculo, fora de suas famlias, sem descendentes
e renunciando sexualidade, que ela se constri, escolhe uma profisso
e se prepara para a vida adulta.
Se o conto retoma seu desenvolvimento quando a princesa est pron-
ta para ser tentada pela vida, aps a adolescncia no colgio, que
Virgnia, a herona do romance, volta lia, apta a enfrentar seus ini-
migos. Mas se as duas histrias, a do conto e a do romance, terminam
em aberto sobre uma nova histria prestes a comear, aqui terminam as
semelhanas entre as duas narrativas. Branca de Neve derrotada nas
provas a que submetida, pois cedendo s tentaes salva, primeiro
pelos anes, e finalmente pelo prncipe, com quem parte para viver feliz
para sempre; Virgnia, alm de, sem ajuda, passar inclume por todas as
provas, no fim do romance destronar o prncipe, partindo sozinha para
buscar no necessariamente a felicidade, mas a autonomia.
A primeira caracterstica das personagens deste romance o fato
de serem todas marcadas pela falta. As empregadas e a preceptora ale-
m das irms ricas so construdas a partir do modelo do realismo e
dos esteretipos do empregado ressentido, a um tempo subserviente e
cruel.8 A boa me dos amigos Conrado e Letcia to vaidosa e tola
que, mope e como pode ser significativo num romance a personagem
de uma me mope recusa-se a usar culos, o que provoca o desastre
automobilstico que lhe custar a vida; a av do amigo Afonso aparecer
uma nica vez, exibindo seu egosmo senil. As irms Bruna e Otvia
8 Luciana carrega o triplo estigma da cor negra, da pobreza e do abandono. Da empregada portuguesa
do casaro, personagem calcada em personagem similar do conto Migra, pouco dito, salvo que sua
falsa solicitude, movida por uma curiosidade perversa, visaria unicamente a faz-la entrar na intimidade
dos patres. A preceptora alem, por sua vez, construda a partir do esteretipo da disciplina e dureza
alems, como viva, sem famlia e expatriada, no tem razes, sua afeio sendo posta inteiramente sobre
suas pupilas e mais precisamente sobre uma delas, por quem desenvolve um amor que deixa entrever
uma perspectiva homossexual.
As filhas da me 153
assumida por Daniel, seu verdadeiro pai, a quem chama de tio, sabendo
pertinentemente que se trata do amante de sua me, encontrando-se
este totalmente acaparado pela demanda incessante de Laura ( Quero
Daniel, Daniel...).
O conceito de castrao, elaborado por Lacan a partir da noo
de complexo de dipo, desenvolvida por Freud, pode-nos ajudar a
compreender a situao exposta no romance. Segundo Lacan, a criana
sente-se inicialmente em fuso com sua me, que a fonte de todo seu
prazer e poder. Ao dar-se conta, a partir de manifestaes da prpria
me, de que h um outro na vida desta, sente-se castrada e v sua
me sujeita igualmente a esse poder exterior, como igualmente cas-
trada, isto , desvalorizada. Volta-se ento para a fonte desse poder o
pai, na expectativa de com ele fundir-se, como o fizera com a me, mas
esse tambm, normalmente, deve rejeit-la. Para superar tal rejeio, o
menino identifica-se com o pai, a menina compreende para onde deve
voltar-se de modo a receber a satisfao que tem a me. a partir da
aceitao dessa falta inicial aceitao da castrao , que corres-
ponde ao estabelecimento de seus limites, isto , de sua definio, que a
criana entra individualmente no mundo.
A castrao corresponde assim renncia pela criana no apenas
a ser o objeto de prazer e poder da me como a renncia a possuir o
poder de dar prazer e poder a outrem. Implica a aceitao inconsciente
de que essa perda inicial a iluso de ser a fonte de poder/prazer9 da
me, no ser jamais recuperada (e ser da por diante o objeto imagi-
nrio que provocar o desejo).10
Ora, em Ciranda de pedra vemos a menina que procura o contato com
a me quer entrar em seu quarto ao qual proibida de aceder sozinha,
quer entrar em seu passado e conhecer o mistrio de sua vida e nessa
procura incessantemente rechaada. No consegue ela distinguir os
9 Para usar o vocabulrio lacaniano chamaramos esse prazer, que no se volta para a satisfao de
necessidades, de gozo.
10 Para o conceito de castrao: R. Chemama (direction). Dictionnaire de la Psychanalyse. Paris, Larousse,
1993, pp. 37-41; J. Laplanche e J.-B. Pontalis. Vocabulrio de Psicanlise. Trad. Pedro Tamen com colabora-
o de Joo Santos. So Paulo, Martins Fontes, 1983; Dictionnaire de la Psychanalyse. Paris, Encyclopdia
Universalis et Albin Michel, 2001.
As filhas da me 155
calendrio, mas com a face de louca cuja lembrana se esfora por repri-
mir. E no seria justamente a percepo da famlia constituda por Lau-
ra, Daniel e ela prpria e que lhe provoca repulsa, o que faria com que a
protagonista se prendesse ideia da paternidade de Natrcio ( Adoro
meu pai disse ela. Arrematou em seguida, num fio de voz: Mas gos-
to tambm de tio Daniel.14), de modo a justificar os sentimentos hostis
em relao quele que a separa da me?
Porque, de qualquer forma, no entremeado de fantasia e realidade,
delrio e memria, Laura e Daniel compem um casal que estabeleceu
um territrio do qual Virgnia no faz parte. Daniel arranca as razes
imaginrias que crescem entre os dedos da mulher, falando-lhe como
se fosse louco tambm, numa lngua que exclui a criana. O vnculo
entre eles mesmo hipostasiado por Virgnia na relao que entretm
Daniel e Luciana, na qual a menina tenta imiscuir-se, com perguntas e
insinuaes e, sobretudo, nela focalizando sem descanso sua ateno.
A histria de Ciranda de Pedra pode ser, assim, lida como o processo
pelo qual uma menina se desliga de sua me para viver a prpria vida.
Trata-se de uma me louca, verdade, que, como a rainha de Branca
de Neve, no d espao filha, insiste em ocupar inteiramente a cena
familiar e no espelho s v a prpria imagem numa juventude aluci-
nadamente eterna.
Mas de qualquer forma, a me tem de ser abandonada, isto , a
relao idlica entre filho e me tem de ser abandonada para que a
criana entre no mundo, e o que acontece a Virgnia. A psicanlise
nos ensina que o conceito do dipo e da castrao necessria pode ex-
plicar que, ao aceitar a perda da me como totalidade e a interveno
do pai simblico, o pai que est presente sobretudo no discurso da
me, cortando a simbiose desta com o filho, a criana aceita a ordem
do mundo e da linguagem. Pode assim, ao constituir-se (o que no
est nunca findo), aceitar a alteridade. Pode assim ver o outro desta-
cado de si mesmo e suportar o enigma do outro, do desejo do outro:
Que quer ele/ela? Entrarei nesse desejo? Como? Pois a relao
com o outro s de fato possvel ao se aceitar radicalmente a prpria
14 Id. p. 12.
As filhas da me 157
Bibliografia
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BETTELHEIM, B. A psicanlise dos contos de fadas. Trad. Arlete Caetano. Rio de Janeiro,
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_____. As horas nuas (1989). So Paulo, Crculo do Livro, 1989.
_____. Venha ver o pr do sol in Venha ver o pr do sol e outros contos. S. Paulo, tica,
2007.
ensaio
Alexandre Herculano:
heris pblicos
Helena Carvalh o Bu es c u
Dirios da Presidncia,*
Fernando Henrique Cardoso
Gi lberto d e M el lo Ku jaws k i
vistos de to perto.
O interesse imediato despertado pelos Dirios do ex-pre-
sidente est em reproduzir o cenrio poltico no no palco,
e sim nos bastidores, que onde se forja o fenmeno po-
ltico a partir dos primeiros ensaios, como processo ainda
em formao. No palco os polticos aparecem cheios de si,
aureolados de glrias merecidas ou inventadas, representan-
do um enredo j maduro e definido, com cada coisa no seu
lugar, tudo pronto para ser fotografado e conservado para
sempre nos arquivos. Nos bastidores tudo lembra os ensaios
de uma pea teatral na qual o enredo ainda no est conclu-
do, o diretor tateia no escuro, querendo acertar seu caminho,
os atores ainda decoram as falas e tudo o que se prepara
pode mudar na hora da estreia. Vemos o poltico hesitando
na hora da deciso, consultando sua equipe, meio incerto do
enredo, tudo se passando ainda nos termos do provisrio, na
II
Vejamos qual a situao de quem ganha o poder poltico mximo,
a Presidncia da Repblica. O poder ofusca. Mais ainda, catapulta o
poderoso para fora da realidade.
Entra-se num torvelinho no qual se perde o p firme no cho. J
nem existe cho. Flutua-se muito acima das coisas e das pessoas. As
diferenas entre isso e aquilo se apagam, o essencial e o acessrio se
confundem, como o inadivel e o urgente, o pblico e o privado, es-
querda e direita, justo e injusto, o homem de bem e o venal, em suma,
qualidades, valores, instituies, variedades humanas, tudo se mistura
e se confunde.
Alguns presidentes, de to ofuscados, se anulam, como Sarney, ou-
tros se perdem no desvario, como Collor, Lula descamba no populismo
mais vulgar, Dilma se anula na impotncia de governar. Nenhum deles
resiste ao teste do poder, do deslumbramento do poder, porque nenhum
deles seguiu a sabedoria do Riobaldo de Guimares Rosa: preciso
sair do serto. Mas s se sai do serto tomando conta dele a dentro...
Talvez por ser leitor de Guimares Rosa, Fernando Henrique foi o
nico dos ltimos presidentes que soube resistir impvido ofuscao
e alienao do poder. Tambm ele, ao assumir a presidncia, foi tragado
para o olho do furaco. Mas soube sair dele e recuperar o apoio perdido
no plano do mundo. Conseguiu sair do serto, tomando conta dele a
dentro, isto , procurando entender melhor o mecanismo intrincado
do poder.
Mas para tanto foi preciso tomar conscincia dele mesmo e de sua
circunstncia para reconquistar em plenitude o princpio da realidade,
no deixando que este se abalasse.
O processo de reeducao ao qual se submeteu constitui o cerne do
seu Dirio, demonstrando ao vivo e em cores como fazer para no cair
nas mltiplas e prfidas ciladas do poder, com seu cortejo de sedues,
falsos brilhos, desvios de conduta e avaliaes, enganos e, principalmen-
te, autoenganos. Aprendeu a conhecer de perto as situaes e os homens
nos seus mltiplos especismos, e a distinguir rigorosamente entre apa-
rncias e realidade, retificando-se sempre que se enganava. Exercitou-se
Dirios da Presidncia, Fer nando Henrique Cardoso 11
III
So trs as personificaes, distintas, mas inseparveis, assumidas
por FHC no seu livro: 1) o autor do script, ou do projeto de pas; 2) o
protagonista do enredo, no primeiro plano da cena; 3) o espectador da
ao e do seu prprio protagonismo. Autor, protagonista e espectador
ao mesmo tempo.
Numa avaliao distrada e superficial parece que a condio de es-
pectador seria algo de adjetivo e adicional condio de autor do enre-
do e do protagonista em ao. Mas a percepo mais funda revela outra
coisa: na condio de espectador de si mesmo que o autor dos Dirios
consegue entender o entrecho do drama que est vivendo no seu coti-
diano; o espectador de si mesmo no aqui nenhum narcisista absorto
na autorreferncia prpria imagem, e sim um homem ocupado, mo-
mento a momento, na leitura dramtica de sua circunstncia para saber
o rumo de seus passos, se est pisando em terreno firme ou em falso,
embalado no doce balano do autoengano. Sim, rumo a palavra-
-chave, com destaque central no discurso do ex-presidente. Sua preocu-
pao dominante e a mais absorvente. A prpria senha de sua autorres-
ponsabilidade. O espectador de si mesmo ao tomar certa distncia da
cena para melhor enxerg-la, completa e ntegra, a figura do autor da
trama e do seu protagonista, servindo de mediao entre o comum dos
polticos e o estadista em formao. Sim, o espectador no ningum
passivo ou inerte, ele se constitui no crtico ativo e construtivo do autor
12 Gilberto de Mello Kujawski
astutos, ele se refere ao olhar de guia que ele tem. Sarney e suas
picuinhas. Itamar e suas rabugices. Dos jornalistas, com suas manhas,
nenhum escapa. Para muitos outros no poupa elogios. Serra merece
todo respeito e apoio.
IV
Para encerrar, o animus dominante no autor dos Dirios da Presidncia
pode qualificar-se como absoro no ensimesmamento mais profundo,
com a finalidade de encontrar seu caminho, seu rumo no labirinto in-
fernal do poder, do furaco do poder.
Foi Ortega y Gasset que elevou a palavra ensimismamiento ao
nvel tcnico. Depois de algumas consideraes prvias sobre o destino
do homem como ao, e que no vivemos para pensar, sim que pensa-
mos para sobreviver, ele distingue trs momento diferentes na histria
humana, a saber:
1) O homem se sente perdido, nufrago entre as coisas: a alterao; 2) o homem, com um
enrgico esforo, retira-se em sua intimidade, para formar ideias sobre as coisas e sua possvel
dominao; o ensimesmamento, a vita contemplativa, como diziam os romanos, o theorethiks
bios dos gregos, a theora; 3) o homem volta a submergir-se no mundo para atuar em conformi-
dade com um plano preconcebido; a ao, a vita activa, a prxis.
Segundo isto, no se pode falar em ao seno na medida em que vai estar regida por uma
prvia contemplao; e vice-versa, o ensimesmamento no , seno, um projetar a ao futura
(Ortega y Gasset, Ensimismamiento y alteracin, OC, V, p. 304).
1Cf. MELLO, Mrio Vieira. Desenvolvimento e cultura: o problema do esteticismo no Brasil. Braslia: Fundao
Alexandre de Gusmo, 2009.
Flores sem razes 181
O PLENIPOTENCIRIO DA FACNDIA
De carne mole e pele bambalhona,
Ante a prpria figura se extasia.
Como oliveira ele no d azeitona,
Sendo lima parece melancia.
182 Wagner Schadeck
[...]
Perdoe, pois, o instituto
Dos sbios desta cidade,
Se indago, deste reduto
Qual a sua utilidade?
Foi lastimosa a evasiva
Da preclara academia
A honra da iniciativa
S mesmo a ela cabia.
Aguardar de outros, a deixa,
No que lhe cabe fazer,
prova que se desleixa
Desculpas no pode ter;
Volte atrs, que isto est torto,
Promova sem mais tardar,
Que os ossos do grande morto,
Venham aqui repousar!
(Iorio, 2004, p. 5)
FRONTEIRA
H o silncio das estradas
e o silncio das estrelas
e um canto de ave, to branco,
to branco, que se diria
Flores sem razes 185
Referncias
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So Paulo,
Vila Leopoldina
ensaio
Nigorie
(Enseada de guas Turvas):
a denncia da autora Higuchi Ichiy
ao sistema social de sua poca
R i ka Hag i no
E ainda:
Mesmo que eu trabalhe de manh noite, ganho,
Cenrio da obra Nigorie.
quando muito, 15 sen e no d nem para a papa de Pintura: Kaburaki Kiyokata.
arroz de ns trs (...) Estamos no perodo do Obon,
mas ontem no pudemos dar nem mesmo os bolinhos de farinha de arroz para o nosso filho.
Veste o seu filho com trapos (...) somos considerados tolos e excludos por todos. E mesmo
quando os vizinhos trocam bolinhos de arroz nos equincios da primavera e do outono entre si,
dizem que melhor no dar para a casa de Genshichi, porque eles no podem retribuir. Sei que
fazem isso por gentileza, mas das dez casas apenas a nossa excluda. (Captulo sete)
Referncias bibliogrficas
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So Paulo, Luz
(cracolndia)
conto
No rio Amarelo
Moni que Revi l l i o n
O que sei, meu caro, que a morte pode ter muitos dis- Autora dos
farces. Passar os dias junto a esta escrivaninha me en- livros Teresa,
sinou a respeit-la, embora eu tambm saiba que ela que esperava as
uvas e O Deus
interrompe o homem, no a sua vida. E, na maioria das vezes,
dos insetos, e
no chega sorrateira, ao contrrio, vai dando seus sinais bem tem contos
antes que nos surpreenda s trs horas da manh num quarto publicados
em desordem. Pode apanhar os tolos na vspera, os cautos em diversas
encontrar em pleno movimento. Tentando ser breve, comparo antologias.
minha tarefa com a do chins que pesca corpos. Meu pai me
contou esta histria h muitos anos, quando ele ainda estava
por perto e eu era um menino de calas curtas, sobre o chins
que perdeu o filho afogado e jamais encontrou seu corpo, ten-
do buscado por ele desesperadamente. Desde ento, o pobre
homem passou a pescar corpos no rio Amarelo. Saa com sua
canoa e com o remo empurrava os cadveres que encontrasse
flutuando para a segurana de uma ilhota ou canto em calma-
ria, onde os zelava at que fossem reclamados por suas fam-
lias. Para dar dignidade a eles, o direito a uma despedida, um
funeral. Os demais devolvia para a gua, apaziguado. Este vale
de lgrimas, se disser de outra forma estarei mentindo. E nin-
gum fica pra semente, tenho pra mim que cada um tem seu
prazo de validade, embora a indstria de medicamentos e todo
esse alarido de dietas, exerccios e fontes da juventude tentem
provar o contrrio. Pela fora do hbito, costumo fazer mi-
nhas prprias estatsticas e aqui, nesta cidadezinha e arredores,
202 Monique Revillion
sero quase oitenta cidados a cada ms que vamos perder para a gripe,
pneumonia, infarto, cncer ou derrame. Ou para o imprevisvel, nos
casos de acidentes sem explicao. Voc no teria como lembrar, mas
seus pais devem se recordar ou ter ouvido falar do Joo do morro da
leiteria, atropelado pelo prprio trator, ou da Lcia, a costureira, picada
de escorpio aos nove meses de gravidez. Desvios da mdia, diria um
matemtico sem corao. O inevitvel, sina, sabe-se l. Coincidncia
esta sua visita me pedindo para falar de meu ofcio, justo quando es-
tava aqui me lembrando de meus primeiros dias, pensando num jeito
de fazer este trabalho, e l se vo mais de trs dcadas. Desde cedo me
peguei um tanto emocional, melanclico at. Tanto tempo e minha me
segue perguntando as razes de nunca me promoverem para um setor
melhor ou se no pensei em escrever sobre poltica ou economia. Digo
que tenho o encargo mais importante de todo o jornal, quando ela revi-
ra os olhos e muda de assunto. J no me irrito, minha me e sou seu
nico filho, pacincia. E ela imagina, como tanta gente, que me chega
tudo pronto, como se enviassem tudo prontinho escrito num bilhete,
s copiar e imprimir na edio seguinte. Nada disso. Algumas filhas ou
vivas comovidas se dispem a responder algumas perguntas quando
vm pessoalmente, mas a maioria apenas telefona e deixa recado com o
nome do falecido. Pois vou confessar uma coisa: assim mesmo que eu
gosto. E cada morto merece maior considerao do que um papel rabis-
cado com sua graa completa, ocupao, nome dos filhos e do cnjuge.
A minha arte comea a, fazer de cada vida um acontecimento, recolorir
a tela que j se vai rumo ao desamparo. Me desculpa a falta de modstia,
mas considero mesmo uma arte falar da vida sem esquecer da morte,
e vice-versa. E no invento, apenas enfeito um pouquinho, se tanto, no
esforo de ligar os pontos com alguma simpatia. O segredo gostar,
gostar do que se faz e gostar das pessoas, gostar de verdade, e tudo se
resolve. A gente vai lembrando, imaginando, reconstruindo aquela exis-
tncia a partir do que se ouviu falar ou testemunhou, do jeito da pessoa,
do que ela fez e deixou de fazer. Claro que onde h luz estaro as som-
bras, mas se as tendncias se equilibram, j estamos no lucro e, no geral,
prenncio de inteligncia perdoar quem erra por excesso de vontade
de acertar. No frigir dos ovos, mesmo no detalhe que o fundamental
No rio Amarelo 203
Nise o corao
da loucura
Roberto Berl i ner
Nise sempre foi contra o senso comum, sempre procurou suas prprias
verdades, nunca descansou, nunca se dobrou, nunca se corrompeu. Sempre
buscou seus ideais, do incio ao fim da vida. Esse filme tinha que ser feito
para que o pblico conhecesse uma mulher extraordinria, um exemplo em
tempos de crise tica e ideolgica como a que vivemos.
Roberto Berliner
Engenho de Dentro
Still Photo por Vantoen P JR.
Engenho de Dentro
Still Photo por Vantoen P JR.
Nise o corao da loucura 211
Engenho de Dentro
Still Photo por Vantoen P JR.
Engenho de Dentro
Still Photo por Vantoen P JR.
212 Roberto Berliner
Engenho de Dentro
Still Photo por Vantoen P JR.
Engenho de Dentro
Still Photo por Vantoen P JR.
Nise o corao da loucura 213
Engenho de Dentro
Still Photo por Vantoen P JR.
Engenho de Dentro
Still Photo por Vantoen P JR.
214 Roberto Berliner
Engenho de Dentro
Still Photo por Vantoen P JR.
poesia
Confiteor
O despertar
pio
Autobiografia permitida
Salgado Maranho
Cena 31
Cena 33
Cena 34
Cena 35
Cena 52
Ningum busca
os barcos
desolados; cada um
segue o rio
da mesma foz. Onde
tudo que se nos
aja,
deixe a raiz
da voz
poesia
Ricardo Domeneck
em nossos traos
de silhuetas e membros
novos ideogramas
que assumem outros
significados, somos
juntos
a mescla perfeita
de som e sentido,
nessa lngua nova,
nica.
230 R icardo Domeneck
Querido,
em outras terras
e paragens,
eles o chamam
de bamborin,
pupu, omphalus
oumodderputjen,
na minha lngua
dizemos umbigo,
concavidade
que tu j no alagas
com teus fluidos.
Com umbigos aprendo
a amar todas
as cicatrizes.
Busco refrigrio
por tua ausncia,
que tanto queima,
em refrigerantes
e muita comida,
minha pana incha,
e meu umbigo
que vai adiante
de mim nas buscas
por ti, a primeira
parte do meu corpo,
nos abraos,
que te encontra e toca,
Maximin,
enquanto o teu,
em tua barriga de tanquinho,
parece contrair-se
Ricardo Domeneck 231
Lucinda Persona
tomos
Como se h de resistir
ronda dos vazios?
tomos perambulam no ar
tomos esto suspensos no ar
pequenssimos
inquietos
eltricos
saltam para fora de seu lugar
voltam a formar um bando
mero ponto de partida
O dia
Romance ingls
Em noite gelada
(gotculas mil do nevoeiro e tudo)
estamos num quarto de hotel em Londres
No criado-mudo o Daily Mail
de 15 de outubro de 1997
e metido em si mesmo
(na ntima festa de dedicao ao seu eu)
desaba na cama
Parece que nada se compara ao sono
que se lhe acende na escurido
O mensurvel disso tudo
que nunca vamos to longe
que a vida de dentro de casa
no nos acompanhe.
poesia
Lenilde Freitas
O mascate
Brilha
porque em suas guas
o sol se mira.
Cheira
porque toda ela recende
a mangueira.
Ri
porque esse seu disfarce:
dois rios rolam por sua face.
242 L enilde Freitas
Logro
Porque continua
no mbito da memria
o gotejar inclemente
da chuva na bacia;
e rcuas de mulas
perfazem o mesmo caminho
noite a noite
dia a dia;
porque a lembrana
das gaiolas
sombra dos telhados
vergasta o tempo e mitiga a amargura;
aceito o logro
caritativo da saudade:
claro a alumiar
a casa escura.
Lenilde Freitas 243
Achados e perdidos
Prismas
O mascate
Saudade1
1 De vez em quando sou acusado de saudosista, como se Saudade fosse uma coisa vergonhosa. Gilberto Freyre.
poesia do japo
Wag Ryichi
Aozorani ()
Cu azul
Tristeza, angstia
Secar as lgrimas
Sim, estou vivo
Eu e voc
assim,
Secando as lgrimas
252 Wag Ryichi
Akiramenai ()
Perserverar
No desistimos
Voc, de algo
Eu, de mim
Dos dias vividos
Kaze ni ()
Ao vento
Ao sentir
tristeza
dor
sussurramos
falamos
sobre a vida
sobre o hoje
sobre a raiva
sobre a vontade de chorar
sobre a felicidade
a dor a tristeza
a separao a ansiedade
a gentileza
Tudo agora
ergue-se nas alturas
da esperana
seguimos
o vento que sopra no nosso corao
sim
vamos
juntos
nas alturas
da esperana
nos tornamos palavras
seremos nuvens
que flutuam
no azul do cu
256 Wag Ryichi
Kaikou ()
Encontro casual
Anata ()
Voc
Voc
Amada
Voc agora
Que est fazendo?
Voc sou eu
Eu sou voc
Eu
no desisto
de mim
de voc
No desisto
de voc
260 Wag Ryichi
Kazoku ()
_
Wag Ryichi 261
Famlia
Um dia igual
falo com voc
comida gostosa
nossas risadas
olhamos o cu azul
um carro novo
sem perceber a famlia cresce
as primeiras palavras
Espao-Tempo-Matria
Po ntes d e M i r a nda