Uma Cultura Bíblica - Resenha
Uma Cultura Bíblica - Resenha
Uma Cultura Bíblica - Resenha
Qual a importncia da imprensa nos processos polticos? Essa uma pergunta que pode
ter uma srie de respostas distintas, que variariam conforme a poca, o local, os agente sociais,
entre outros fatores. De qualquer forma, desde a sua inveno no sculo XV, em todas as
sociedades que passaram a adot-la, impossvel ignorar a importncia da imprensa no apenas
nos processos polticos, mas tambm no desenvolvimento de certos tipos de atividades culturais,
sua funo socioeconmica, etc.
O estudo de Christopher Hill buscou explicar de que forma a imprensa se insere em um
processo que a historiografia denominou Revolues Inglesas, no sculo XVII. Estes eventos
tiveram como principal consequncia a desarticulao do regime absolutista na Inglaterra,
destituindo do poder a antiga aristocracia e clero anglicano, que foram substitudos pela
burguesia e pela gentry.
Christopher Hill nasceu em fevereiro de 1912 na cidade de Iorque, no Reino Unido, e
faleceu em fevereiro de 2003 em Chipping Norton, tambm no Reino Unido. Destacou-se por ser
um dos principais nomes da renovao da historiografia marxista britnica, ao lado dos
expoentes Edward Palmer Thompson e Eric Hobsbwam. Entre seus livros principais, esto O
Mundo de Ponta Cabea1, O Sculo das Revolues2 e A Bblia Inglesa e as Revolues do
Sculo XVII. sobre este ltimo que dedico esta resenha, em especial o captulo intitulado
Uma cultura bblica.
1 HILL, Christopher. O mundo de ponta cabea: ideias radicais durante a revoluo inglesa de 1640. So Paulo:
Companhia das Letras, 1987. Disponvel em:
<https://professordiegodelpasso.files.wordpress.com/2016/05/christopher-hill-o-mundo-de-ponta-cabec3a7a.pdf>.
Acesso em: 5 nov. 2017.
2 HILL, Christopher. O Sculo das Revolues: (1603-1714). So Paulo: Editora Unesp, 2012.
Hill inicia seu texto apontando a importncia dos textos bblicos para os diversos grupos
polticos envolvidos nas revolues do sculo XVII. Para o autor, a bblia tinha uma centralidade
na vida social inglesa que no poderia ser negligenciada. Ela tinha relevncia nas rea da
literatura, da teoria poltica, e at mesmo no entretenimento e na agricultura. No que diz respeito
especificamente poltica, afirma que os adeptos de diferente ideologias buscavam na Bblia a
justificativa para as suas aspiraes. Como a escritura sagrada do cristianismo uma compilao
bastante plural, e por vezes contraditria, era comum surgirem controvrsias sobre uma
determinada temtica entre os grupos polticos baseadas em passagens distintas da Bblia.
Portanto, havia uma pluralidade de leituras possveis, levadas a cabo por catlicos,
presbiterianos, puritanos e anglicanos.
Essa variedade de leituras que poderiam ser empreendidas s foi possvel por conta de
dois fatores que ocorreram nos sculos anteriores: a inveno da imprensa, no sculo XV que
continuou a desenvolver-se e aprimorar-se nos sculos posteriores e a reforma protestante, no
sculo XVI. As vertentes protestantes passaram a defender a traduo da Bblia para as lnguas
vernculas, de tal forma que a interpretao dos textos sagrados poderia ser feita por pessoas
alfabetizadas que no necessariamente tivessem alguma insero nos meios eclesisticos. Ou
seja, a reforma protestante propiciou uma ampliao do escopo de leitores da Bblia. Mas,
segundo Hill, isso s foi possvel por conta da ampliao e disseminao das produes
impressas, sendo a Bblia a mais famosa delas.
Seria possvel minimizar a abordagem de Hill, uma vez que os impressos s eram
acessveis para aqueles que faziam parte de um certo circuito cultural letrado. Entretanto, ele
ressalta que certos leitores tinham o hbito de ler em voz alta, de tal forma que mesmo pessoas
iletradas pudessem ter acesso s leituras da Bblia e fazer a sua prpria interpretao. Esta
dinmica, em uma sociedade extremamente fragmentada do ponto de vista religioso-ideolgico,
trazia possibilidades at ento inditas. Portanto, Hill trabalha com a ideia de circularidade
cultural para que tenhamos em mente que os textos da Bblia, quando lidos, jamais se
encerravam em um nico indivduo.
Sobre a relao entre a leitura da Bblia e os processos polticos da Inglaterra do sculo
XVII, Hill destaca que a escritura sagrada dos cristos servia no apenas como fonte de
inspirao transcendental e da palavra de Deus, mas tambm como teoria poltica. A Bblia, mais
do que um livro religioso, tinha suas influncias nos mais diversos nveis da vida social. O autor
destaca que as revolues inglesas careciam de antecedentes ideolgicos. Ele promove uma
comparao deste processo poltico com outros que atravessaram a histria da Europa. A
Revoluo Francesa, por exemplo, se valeu muito dos escritos iluministas de Voltaire e
Montesquieu, por exemplo, enquanto a Revoluo Russa teve como anteparo a vasta obra de
Karl Marx e Friedrich Engels. Sendo assim, os revolucionrios recorriam a textos bblicos para
justificar suas movimentaes polticas. Entretanto, o conceito de ideologia pode aparecer nos
estudos acadmicos de diferentes formas, e no fica exatamente claro no texto de Hill o que ele
quer dizer quando afirma a ausncia de antepassados ideolgicos nas revolues inglesas. De
qualquer forma, o que a obra do autor nos ajuda a entender que, na sociedade inglesa do sculo
XVII, era impossvel distinguir poltica de religio, de tal forma que no existiria a noo
moderna de Estado Laico, s desenvolvida no sculo XVIII.
Desta forma, possvel verificar que o texto de Hill possui uma dupla contribuio para
os estudos histricos: ele permite ao historiador ou ao profissional da comunicao identificar
como a imprensa possui importante relevncia ainda que no absoluta no desenvolvimento
das disputas polticas em um dado contexto histrico e, ao mesmo tempo, atravs de um
criterioso estudo da produo e da circulao de impressos bblicos no sculo XVII, permite que
se analise a importncia das crenas religiosas para a conformao das demais dinmicas sociais
culturais, econmicas e polticas. Aqueles que se interessarem pela relao entre imprensa e
poltica e religio e poltica na histria, certamente encontraro no texto de Hill, um estudo bem
fundamentado e profundamente interessante.