GIUMBELLI Emerson SCOLA Jorge.
GIUMBELLI Emerson SCOLA Jorge.
GIUMBELLI Emerson SCOLA Jorge.
CONFLITO
Religio e Conflito
Melvina Arajo
Christina Vital da Cunha
(Organizadoras)
Religio e Conflito
Melvina Arajo & Christina Vital da Cunha (Orgs.)
Religio e Conflito
R382 organizao de Melvina Arajo, Christina Vital da Cunha - 1.ed. - Curitiba: Editora Prismas,
2016.
336p.; 23cm
Vrios colaboradores
ISBN 978-85-5507-293-2
1. Religio. 2. Relao Estado - Religio. 3. Conflitos religiosos. I. Arajo, Melvina (org.).
II. Vital da Cunha, Christina (org.).
CDD 200.1 (22.ed)
CDU 200
Consultores editoriais
Alejandro Frigerio
Religio e Conflito 17
Religio e Conflito foi impulsionada, especialmente, pelas discusses
ocorridas no GT Religio e conflito, durante a 29 Reunio Brasileira
de Antropologia, no GT Prticas religiosas em interface com violncia,
poltica e etnia, no seio das XVII Jornadas sobre Alternativas Religiosas
na Amrica Latina, ambos organizados por Christina Vital da Cunha e
Melvina Arajo. Devemos fazer tambm meno importncia que o
GT Religio no mundo da vida, realizado no mbito da 28 Reunio
Brasileira de Antropologia, organizado por Melvina Arajo e Patrcia
Birman tiveram para os encontros que o sucederam.
Tendo como norte a reflexo sobre os modos pelos quais a re-
ligio, fenmenos e atores considerados religiosos se inserem na cons-
tituio de acordos sobre a regulao da vida pblica, os artigos reuni-
dos neste volume tratam do estatuto do religioso em nossa sociedade;
dos conflitos relativos ao que se convencionou chamar de intolerncia
religiosa; dos papis de agentes religiosos na definio de polticas p-
blicas; de disputas no interior de instituies ou entre denominaes
religiosas; do debate pblico sobre o aborto; das polticas de reconhe-
cimento identitrio (tnico e/ou religioso).
A questo do estatuto do religioso trabalhada no primeiro ca-
ptulo, Definindo a liberdade religiosa: projetos acerca do estatuto de
instituies religiosas no Congresso Nacional brasileiro, de autoria de
Emerson Giumbelli e Jorge Scola. Nele os autores versam sobre a emer-
gncia da ideia de liberdade religiosa em projetos de lei apresentados no
mbito do Congresso Nacional. Ao analisar esses projetos, Giumbelli e
Scola sublinham que, em virtude dos pertencimentos religiosos da maio-
ria dos seus autores, os argumentos utilizados na definio do que seria
a liberdade religiosa relacionam-se ao cristianismo de corte evanglico.
Assim como Giumbelli e Scola, Izabella Bosisio tambm se de-
brua sobre o tema da definio dos limites e das operaes pblicas
do religioso. Para fazer isso, a autora analisa, no captulo intitulado Fe-
riados no Brasil: a presena da religio no calendrio oficial e sua re-
gulao, a maneira como a categoria religio acionada e , ao mesmo
tempo, objeto de regulao e controle do Estado a partir da definio
dos feriados presentes no calendrio nacional. Nesse sentido, a autora
assinala que a fronteira existente entre Estado e religio construda
para regular relaes, ou seja, definida nas e pelas disputas dos agen-
tes envolvidos nesse processo.
18 Melvina Arajo & Christina Vital da Cunha (Orgs.)
Ainda no intuito de pensar os limites do religioso, Carlos Gu-
tierrez discute a relao entre partidos polticos e denominaes reli-
giosas, tratando, especialmente, das relaes entre o PRB (Partido Re-
publicano Brasileiro) e a IURD (Igreja Universal do Reino de Deus), no
captulo A Igreja Universal e o Partido Republicano Brasileiro: confli-
tos em torno do secularismo. Aqui o autor analisa o debate acerca das
acusaes de atrelamento do PRB IURD, ressaltando os argumentos
dos atores vinculados a essas instituies acerca do secularismo.
Saindo da chave da definio dos limites da religio e passan-
do s discusses sobre o que se convencionou chamar de intolerncia
religiosa, Victor Rangel, no captulo O Direito, o Bl Bl Bl e a Reli-
gio: uma anlise sobre a administrao de conflitos religiosos pelos
mediadores em um JECrim, se volta anlise da maneira como os me-
diadores lidam com os temas da justia e da religio. Ao fazer isso, o
autor demonstra a existncia de diversas moralidades envolvidas nos
casos classificados como pertencentes ao mbito da intolerncia re-
ligiosa, tanto da parte dos envolvidos nos processos quanto daqueles
que tentam mediar os conflitos.
Intolerncia religiosa, UPPs e traficantes em foco: processos
e prticas performadas pelo Estado em favelas cariocas o captu-
lo escrito por Christina Vital da Cunha. Nele, a partir de reportagens
sobre casos de intolerncia religiosa praticados por traficantes e de
dados de pesquisas de campo realizadas em favelas na cidade do Rio
de Janeiro, a autora busca refletir sobre o papel do Estado na resolu-
o, conteno ou ampliao da prtica de crimes contra religiosos da
umbanda e candombl em favelas. Ao realizar essa anlise, Christina
ressalta a centralidade do pentecostalismo na definio de gramticas,
valores e prticas que orientam moradores de favelas, praas da po-
lcia militar e traficantes de drogas, todos socializados a partir dessas
referncias cultural-religiosas. Nesse sentido, a autora reflete sobre as
conformaes sociais forjadas no seio de uma cultura pentecostal
dramatizada, especialmente, em favelas e periferias.
A insero de agentes religiosos na definio de polticas p-
blicas discutida por Eva Scheliga no artigo intitulado Incidncia pol-
tica crist: notas etnogrficas a partir da RENAS. Nele a autora discor-
re sobre o modo como um segmento evanglico pretende disseminar
determinadas concepes e prticas polticas na relao com outros
Religio e Conflito 19
atores sociais em determinados circuitos estatais. Para tanto, a autora
tomou como objeto de anlise a campanha bola na rede e, a partir
da, sublinhou a existncia de noes como ciclo de vida e dignidade
humana subjacentes s disputas em torno da definio da vida e
do que poderia ser considerado bem viver como integrantes da gra-
mtica de direitos para a regulao de relaes entre religio e esfera
pblica no Brasil contemporneo.
Assim como Eva Scheliga, Melvina Arajo, em seu artigo Con-
trovrsias em torno do infanticdio indgena: religiosos e antroplo-
gos em ao, tambm pretende pensar sobre relaes entre religio e
esfera pblica no Brasil contemporneo. Para tanto, a autora se debru-
ou sobre os eventos envolvendo a elaborao da Campanha nacional
a favor da vida e contra o infanticdio e do Projeto de Lei 1057 (Lei
Muwaji) buscando analisar as justificativas dos atores envolvidos nes-
ses eventos sobre suas posies. Nesse sentido, tanto no decorrer da
campanha quanto no das discusses sobre o projeto de lei na Cmara,
a apresentao dos argumentos dos atores em pauta coloca em dispu-
ta, de modo geral, antroplogos e evanglicos, sendo que estes cons-
tantemente se apresentavam como detentores de um conhecimento
antropolgico que embasava suas posies.
Delcides Marques, no captulo Missionrios da antropologia,
analisa as percepes de missionrios evanglicos sobre a antropolo-
gia discutindo alguns aspectos relativos ao modo como a antropologia
missionria tomada como objeto antropolgico universitrio.
Se, por um lado, agentes religiosos disputam a insero de
seus valores na esfera pblica, por outro, alguns deles tambm dis-
putam a definio de valores e prticas consideradas verdadeira-
mente religiosas no interior de instituies ou entre denominaes
religiosas. Nesse sentido, o artigo de Clayton Guerreiro, Do circo
macumba pentecostal: sobre categorias acusatrias e justificaes,
apresenta uma discusso sobre os embates internos ao campo pente-
costal em relao veracidade ou adequao religiosa de certos
ritos pentecostais denominados retet.
Do mesmo modo que Clayton Guerreiro, mas voltado ao cato-
licismo, Asher Brum, em seu captulo O Opus Dei na Jornada Mundial
da Juventude: disputas acerca do que ser catlico analisa as dispu-
tas sobre o que ser catlico, a partir da descrio da atuao de ato-
20 Melvina Arajo & Christina Vital da Cunha (Orgs.)
res pertencentes Opus Dei na JMJ. Nesse sentido, Asher demonstra
como as crticas dirigidas por esses atores s condutas e prticas de
catlicos ligados a outras correntes no interior da prpria igreja cat-
lica conformam um determinado modo de tentar definir que tipo de
prtica seria adequada aos verdadeiramente catlicos.
Tambm se voltando anlise de evento ocorrido durante a
Jornada Mundial da Juventude, Naara Luna, em seu artigo Marcha das
vadias e a Jornada Mundial da Juventude: uma performance de pro-
testo pela legalizao do aborto, pe em pauta o debate pblico sobre
o aborto no Brasil, ressaltando controvrsias envolvendo o movimento
feminista e a Igreja Catlica. Para tanto, a autora se vale da anlise de
uma performance realizada por integrantes da Marcha das vadias e do
manual de biotica produzido por setores da Igreja Catlica e distribu-
do durante a JMJ.
O debate pblico sobre o aborto tambm analisado por Ja-
nine Trevisan, em seu artigo O enfrentamento evanglico legislao
do aborto no Brasil e no Canad. Nesse, Janine faz uma anlise com-
parativa do enfrentamento evanglico legislao do aborto no Brasil
e no Canad, enfocando, especificamente, a proposio da lei em cada
pas. A autora ressalta que, ao contrrio do Brasil, onde muitas organi-
zaes religiosas esto inseridas no Congresso Nacional, compondo a
Frente Parlamentar Evanglica e trabalhando para eleger seus deputa-
dos, no outro contexto estudado, a Irmandade Evanglica do Canad
trabalha para sensibilizar os parlamentares para suas demandas, ten-
tando conciliar e acomodar interesses diversos.
O ltimo dos temas tratados neste livro refere-se s polticas
de reconhecimento identitrio (tnico e/ou religioso) e, nesse quadro
se inserem os artigos de Luca Copelotti, Henrique Antunes e Sabrina
DAlmeida. A primeira, em seu texto intitulado Controvrsias em tor-
no do uso do meio ambiente em rituais religiosos afro-brasileiros na
Regio Metropolitana de Porto Alegre/RS, pretende discutir as no-
vas formas de ao coletiva na definio dos usos do espao pblico
pautadas na articulao de demandas fundamentadas em direitos de
cidadania e de demandas por reconhecimento de identidades. Nesse
sentido, a autora busca demonstrar como a emergncia do discurso
ecolgico no campo afro-religioso da Regio Metropolitana de Porto
Alegre se relaciona produo de justificaes que, a partir da positi-
Religio e Conflito 21
vao da identidade religiosa, conferem legitimidade a um projeto de
educao ambiental, proposto por esses religiosos.
Henrique Antunes, em seu artigo Categorias e normativida-
des em disputa: contrapondo os processos de regulamentao da
ayahuasca no Brasil e nos EUA, busca apreender os desdobramentos
e as implicaes das diferentes respostas dadas aos posicionamentos
e demandas apresentadas por instituies ayahuasqueiras e pelos pro-
cessos de regulamentao da bebida a partir dos contextos brasileiro
e americano. Ao fazer isso, o autor assinala que as reivindicaes pelo
reconhecimento legal enquanto religies apresentam elementos im-
portantes para apreender as configuraes que assumem as democra-
cias liberais na atualidade.
O ltimo artigo, Missionrios, ONGs e trabalho social: o ser
quilombola em questo, escrito por Sabrina DAlmeida, versa sobre
definies do que seria um verdadeiro quilombo a partir das propostas
de duas organizaes que, ao proporem formas de gesto do territrio
quilombola, ou seja, dos usos que os moradores deveriam fazer desse
territrio, elegem determinados traos culturais que caracterizariam a
verdadeira forma de ser quilombola.
Os debates presentes nesta coletnea apontam em direo
necessidade de se incentivar a continuidade de estudos que tencio-
nem a noo de religio como constituindo um domnio autnomo.
Nesse sentido, torna-se viva a necessidade de ampliarmos os estudos
e as interfaces entre variadas reas do conhecimento a fim de com-
preender processos que envolvem diferentes atores, gramticas e in-
teresses que esto socialmente identificados como religiosos, mas que
tangenciam, entre outros, a poltica, economia, direitos, crime. Esses,
notadamente, tomados aqui no como domnios, mas como contextos
sociais em constante interface.
Por fim, gostaramos de agradecer aos colaboradores desta
coletnea, destacando que o contato com todos vocs foi muito esti-
mulante em todos os momentos desta caminhada que no se encerra
com esta publicao, mas que com ela estabelece um marco intelectu-
al e afetivo importantes.
Religio e Conflito 23
Definindo a liberdade religiosa:
Projetos acerca do estatuto de instituies
religiosas no Congresso Nacional brasileiro
Temas %
Impostos e tributos 22%
Leis urbanas 18%
Patrimnio 17%
Previdncia Social 13%
Tarifas 10%
Direitos religiosos 8%
Capacidade jurdica 4%
Relao com fieis 4%
Outros 4%
Religio e Conflito 37
Procedemos tambm a uma classificao dos projetos de lei
quanto postura adotada em relao s prerrogativas das instituies
religiosas se estes tendiam a aumentar ou a restringir as capacidades
jurdicas e condies materiais de manuteno. Dos 49 projetos de lei
analisados, uma esmagadora maioria, 42 projetos, aumenta as prerro-
gativas das instituies religiosas. Os sete demais projetos as restrin-
gem. Isso significa que no Congresso Nacional brasileiro predominam
iniciativas, geralmente baseadas no princpio da liberdade religiosa,
que buscam expandir as capacidades jurdicas ou amenizar os custos
de manuteno de instituies religiosas.
Analisemos cada categoria temtica para conformarmos um
painel mais especfico da situao. Entre os projetos de lei acerca impos-
tos e tributos, apenas um, da Cmara, pode ser considerado restritivo. A
PEC 176/1993 institua a supresso dos dispositivos que probem todas
as instncias do governo brasileiro em instituir impostos sobre templos
de qualquer culto. Este projeto pode ser visto como a exceo que con-
firma a regra: todos os demais projetos visavam concesso de distintas
isenes fiscais em especial imunidade tributria aos templos propria-
mente ditos e a impostos menores para aquisio de bens pelas igrejas.
No que tange s leis urbanas, os projetos que aumentam as prerrogati-
vas religiosas quase sempre propem a dispensa de alvars aos templos
ou das exigncias de estudo de impacto de vizinhana, em tentativas de
blindar as igrejas frente a essas burocracias. Os projetos relacionadas
temtica do patrimnio material tambm se empenham neste sentido,
por exemplo, propondo, quando querem aumentar as prerrogativas re-
ligiosas, a impenhorabilidade dos templos religiosos.
Caso flagrante de consenso so os projetos sobre previdn-
cia social. Todos eles ampliam as prerrogativas religiosas, e quase todos
versam sobre a dispensa do recolhimento da contribuio previdenci-
ria incidente sobre o valor pago aos ministros de confisso religiosa.
Os projetos sobre tarifas pblicas tambm so todos favorveis ao au-
mento das prerrogativas de instituies religiosas, produzindo condi-
es diferenciadas quanto a direitos autorais de msicas utilizadas nas
cerimnias e, sobretudo, quanto cobrana de tarifas telefnicas ou
de energia eltrica.
As iniciativas de projetos sobre direitos religiosos trazem ape-
nas uma voz dissonante o PL 1785/2007, restritivo, que previa vedar a
38 Melvina Arajo & Christina Vital da Cunha (Orgs.)
propaganda partidria ou de candidato realizada em templos religiosos.
Os outros projetos sobre o tema tentam produzir excees para flexibilizar
as datas de aplicao de provas para candidatos cujas religies impedis-
sem o seu comparecimento. Uma das iniciativas sobre capacidade jurdica
propunha, por meio do PL 3227/2004, a legitimidade das organizaes
religiosas para a propositura de ao civil pblica.8 Se o contrapormos ao
contedo do citado PL 1785/2007, temos a uma flagrante disputa acerca
do lugar esperado para as instituies religiosas na grande poltica.
A categoria enfeixada pela rubrica de outros traz duas inicia-
tivas, uma sobre o repasse de verbas pblicas s instituies religiosas,
qualificando-as como de interesse da sociedade civil (o PL 916/1999)
aumentando as prerrogativas religiosas, portanto. Um segundo proje-
to est nesta categoria restritivo, j que veda s instituies religiosas
e partidos polticos a explorao exclusiva do servio de radiodifuso co-
munitria. No que tange relao com fieis, por fim, temos duas inicia-
tivas, vindas da Cmara, que pretendem blindar as instituies religiosas
garantindo-lhes a recusa membresia de pessoas que no se adequem
a seus perfis e esclarecendo o regime voluntrio de certas prestaes
de servio pelos fieis.Outro ponto que atraiu nosso interesse foi a ca-
racterizao dos parlamentares registrados como autores dos projetos
de lei, considerando seu pertencimento religioso.9 Analisamos as autode-
claraes dos autores de iniciativa legislativa e encontramos um cenrio
em que predominam cristos. A isso corresponde o nmero de 28 dos
49 projetos (ver tabela 3), assim especificados: um padre catlico, cinco
membros de Igrejas Batistas, sete membros de Assembleia de Deus, qua-
tro membros da Igreja Internacional da Graa de Deus, dois da Igreja do
Evangelho Quadrangular, dois da Igreja Universal do Reino de Deus, alm
de sete evanglicos sem vinculao institucional conhecida.
10 Para uma apresentao dos temas contidos na Lei Geral das Religies, ver
Giumbelli (2011).
Religio e Conflito 41
Consideraes finais
Referncias bibliogrficas
Religio e Conflito 43
GOMES, Edlaine; NATIVIDADE, Marcelo; MENEZES, Raquel Aisengart. Proposies de
leis e valores religiosos: controvrsias no espao pblico. In: DUARTE, L. F. D.
MARIANO, R.. A reao dos evanglicos brasileiros ao novo Cdigo Civil. Sociedad y
Religin, v. XVII, p. 41-60, 2007.
ORO, Ari Pedro et al (orgs). A Religio no Espao Pblico: atores e objetos. So Paulo:
Terceiro Nome, 2012.
Izabella Bosisio1
Introduo
Consideraes finais
Religio e Conflito 59
construindo-se mutuamente. A normatizao sobre a instituio de
feriados religiosos pode ser um exemplo disso, podendo dialogar com
outras contribuies que vm sendo produzidas em torno dessa pro-
blemtica mais ampla da presena da religio no espao pblico.
Referncias bibliogrficas
Religio e Conflito 61
A Igreja Universal e o Partido
Republicano Brasileiro: Conflitos em
torno do secularismo
Carlos Gutierrez1
3 Disponvel em http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2012-07-15/voz-da-
universal-no-congresso-prb-quer-dobrar-numero-de-prefeitos-e-mira-2014.html
Acesso em 10/02/2014
4 Disponvel em http://noticias.terra.com.br/brasil/politica/eleicoes/prb-de-
russomanno-tem-66-dos-dirigentes-ligados-a-universal,9cb99782ac66b310VgnCLD
200000bbcceb0aRCRD.html Acesso em 18/02/2014
5Disponvel em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/65365-russomanno-usa-
estrutura-da-universal-na-campanha.shtml Acesso em 19/02/2014
6 Disponvel em: http://noticias.terra.com.br/brasil/politica/eleicoes/giannazi-
critica-igrejas-e-diz-russomanno-39instrumentaliza39-religioes,3c999782ac66b310
VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html Acesso em 17/02/2014
64 Melvina Arajo & Christina Vital da Cunha (Orgs.)
igreja Universal, do bispo Edir Macedo. Fernando Haddad (PT-SP) de-
clarou, poca, que a introduo de um debate doutrinrio no debate
poltico um equvoco grave e que falta responsabilidade de quem
precisa defender o estado laico. J para Jos Serra, a Igreja Universal
fez a campanha de Russomano7.
Em situaes de disputa, temas se tornam no consensuais,
no que Boltanski e Thvenot (2006) chamam de momentos crticos.
De acordo com os autores, o consenso se desfaz e os agentes se sen-
tem coagidos a justificar suas posies, a fim de estabelecer um acordo
em torno de um tema e no valor a ser atribudo a pessoas, objetos e
situaes. Para constituio dessas justificativas necessrio o estabe-
lecimento de princpios de equivalncia, ou seja, uma medida comum
que torne possvel a comparao entre pessoas, objetos e ideias.
Durante o momento crtico, Russomano disse acreditar no
princpio de laicidade e que conta com coordenadores de campanha
de diversas religies e que a Universal no deu dinheiro para sua can-
didatura e tampouco influenciaria em seu governo. O coordenador de
campanha de Russomano e tambm presidente nacional do PRB, o ad-
vogado Marcos Pereira, confirmou que a Universal apoiava o candidato
e que permitira a distribuio de santinhos eleitorais nas portas da Igre-
ja. O coordenador tambm condenou a presena das vans de Russoma-
no no templo. Segundo ele, as vans faziam a campanha do candidato
a vereador, Pastor Jean Madeira, e pediram para estacionar ali, pois os
panfleteiros precisavam ir ao banheiro. Porm, afirma que deixou claro
ao candidato que o espao no poderia ser utilizado e que acreditava
que Madeira no estava usando o local como base de campanha. Des-
sa forma, a medida comum operacionalizada pelos agentes envolvidos
para atribuir valor e comparar pessoas e situaes foi a prpria noo
de laicidade. Por meio dela, agentes criticaram o que encararam como
uma presena religiosa imprpria, enquanto que outros se valeram des-
sa presena para justificar a pluralidade e diversidade da base eleitoral
e reafirmar sua crena na separao entre religio e poltica.
A capacidade de dessingularizao, isto , quanto mais se con-
segue generalizar um argumento, possibilita maior poder de conven-
7 Disponvel em http://www.valor.com.br/eleicoes2012/2845694/serra-acusa-
record-e-igreja-universal-de-protegerem-russomanno Acesso em 19/02/2014
Religio e Conflito 65
cimento e mobilizao. De acordo com Boltanski e Thvenot (2006),
quando agentes apresentam crticas e defendem um ponto de vista,
os modos de justificao aparecem, a fim de garantir argumentos
convincentes para justificar suas prticas e legitimar suas aes. Os
membros do PRB, ligados Universal, pautam sua justificao no di-
reito de liberdade religiosa e tambm questionam a filiao religiosa
que lhes imputada, por meio de comparaes: seria errado dizer
que o PT dos sindicalistas, assim como equivocado dizer que o PRB
dos evanglicos, afirma o senador Eduardo Lopes (PRB-RJ).
Encerrado o primeiro turno, o TRE Tribunal Regional Elei-
toral de So Paulo aplicou multa de R$ 5 mil a Russomano e DUrso,
seu vice, aps denncias sobre a pregao de um pastor da Universal
que teria incitado o voto em Russomano. Aps reunio da Fora Jovem
Universal, no incio de 2013, obreiros e jovens questionaram a avalia-
o feita pela mdia e pelo Tribunal Eleitoral sobre o candidato do PRB.
De acordo com os participantes, dois pesos e duas medidas. O Chalita
catlico, a Igreja apoiou abertamente, distribuam material dele e
ningum falou nada. Os catlicos mandam no pas e ningum percebe.
Agora, com a gente [Universal] essa perseguio.8
A presena da Universal na militncia jovem do PRB tambm
questionada pela mdia. Em reportagem intitulada Na campanha, Rus-
somanno liga mquina de promessas9, do jornal Folha de S. Paulo, o
jornal denuncia a participao da Universal nas campanhas de rua:
Concluso
Referncias bibliogrficas
Religio e Conflito 73
__________. Trying to understand French Secularism. In: H. de Vries e L. Sullivan
(orgs.). Political Theologies public religions in a post-secular world. Nova Iorque:
Fordham University Press, 2006.
CASANOVA, J. Public Religion in the modern world. The University of Chicago Press,
1994.
__________. Public Religions Revisited. In: Hent de Vries, ed. Religion: Beyond the
Concept (Fordham U.P., 2008) pp. 101-119.
MONTERO, Paula. 2006. Religio, Pluralismo e esfera pblica no Brasil. IN: Novos
estudos Cebrap, n.74. p. 47-65.
Religio e Conflito 75
O Direito, o Bl Bl Bl e a Religio:
uma anlise sobre a administrao de
conflitos religiosos pelos mediadores em
um JECrim
4 A CCIR foi criada em 2008 na cidade do Rio de Janeiro a partir de diversos casos
envolvendo agresses e ameaas aos praticantes das religies de matriz afro-
brasileiras. A comisso foi criada inicialmente por religiosos da Umbanda e do
Candombl, no possuindo fins lucrativos. Tem por objetivo denunciar crimes contra
os praticantes das religies de matriz afro-brasileiras, invisibilizados no sistema de
justia criminal. Aps algum tempo, outros segmentos religiosos se juntaram ao
grupo, que hoje formado por umbandistas, candomblecistas, espritas, judeus,
catlicos, muulmanos, mals, bahs, evanglicos, hare krishnas, budistas, ciganos,
wiccanos, seguidores do santo daime, presbiterianos, ateus e agnsticos, alm de
membros do Tribunal de Justia do Rio de Janeiro - TJRJ, o Ministrio Pblico e a
Polcia Civil. Fonte: http://www.eutenhofe.org.br/quem-somos/ccirrj. Acessado em
10/01/2014.
78 Melvina Arajo & Christina Vital da Cunha (Orgs.)
perodos em que optei por atuar como conciliador e mediador crimi-
nal. Essa forma de entrada no campo, como conciliador e mediador,
proporcionou-me alguns elementos positivos, e tambm outros tantos
negativos para a pesquisa. Se por um lado, consegui maior acesso a
ambientes e objetos restritos, tais como cartrio, sala da juza, defen-
soria e processos, por outro, minha posio enquanto conciliador e
mediador dificultou maior aproximao em relao a alguns atores no
campo, como os usurios e advogados.
Por isso, escolhi centrar minha anlise nos conciliadores e me-
diadores, preocupando-me em observar quais os valores, estratgias
e cdigos de conduta por eles empregados na conduo desses casos.
A mudana de juizado e da conciliao para a mediao teve
um carter estratgico, j que, segundo a CCIR, a maioria desses casos
oriunda de brigas entre vizinhos ou parentes. Ou seja, so exatamente
esses casos que so encaminhados mediao, nomeados pelos opera-
dores do Direito, como conflitos de proximidade. Tambm pelo fato da
cidade de So Gonalo possuir um grande nmero de terreiros e igrejas
evanglicas, alm de ser considerado o bero da umbanda no Brasil5.
Segundo a CCIR, a maioria dos casos de intolerncia religiosa no Rio de
Janeiro envolve religiosos evanglicos e de matriz afro-brasileiras.
Em relao aos procedimentos dos juizados especiais criminais,
o primeiro contato entre o reclamante e o reclamado6 nos Juizados Es-
peciais Criminais acontece na audincia de conciliao, que tambm
chamada de audincia preliminar. Aps o registro de ocorrncia na de-
legacia pela suposta vtima ou pela autoridade policial competente7 e o
envio deste ao JECrim, um funcionrio do cartrio marca o dia e horrio
da audincia de acordo com a disponibilidade do rgo.
O objetivo da audincia de conciliao nos casos envolvendo
aes pblicas condicionadas representao quando algum entra
5 http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/o-pai-da-umbanda
6 As partes ou supostas vtimas e supostos agressores, tambm so chamadas
de reclamante e reclamado. Ao analisar semanticamente essas palavras, podemos
observar como opera a lgica do litgio (caracterstica da nossa tradio jurdica da
civil Law), tendo em vista que os atores presentes aparecerem como dois polos
(vtima e autor do fato) opostos. A palavra reclamar, segundo o Novo Dicionrio
Aurlio de Lngua Portuguesa, significa fazer impugnao ou protesto (verbal ou
por escrito); opor-se; reivindicar; exigir.
7 O primeiro, no caso de aes condicionadas representao e o segundo, nos
casos de aes incondicionadas representao. Explicarei esses termos a seguir.
Religio e Conflito 79
com uma ao contra outrem fazer com que o conciliador tente ao
mximo que a suposta vtima desista do processo. Isto se processa de
trs modos: 1) pela desistncia da suposta vtima em continuar com o
feito - estas desistncias podem ser explicadas por inmeros motivos, os
argumentos mais comuns que presenciei foram: a desistncia da supos-
ta vtima pelas consecutivas ausncias do autor do fato (AF) s audin-
cias; arrependimento em ter registrado o fato; o uso do registro como
uma forma de dar apenas um susto na outra parte; a orientao de
alguns advogados de que o tempo gasto, indo s audincias, no vale a
pena frente multa pecuniria que o autor do fato ir receber. 2) pela
conciliao entre as partes - A conciliao mais comum entre as partes
concretizada a partir do pedido de desculpas do autor do fato vtima
ou desculpas mtuas. Existem outros tipos de retratao, como a pu-
blicao de notas em jornais reconhecendo o erro do autor do fato, por
exemplo. S vi este tipo de retratao em um caso tipificado como cal-
nia envolvendo um patro e um empregado. 3) ou pelo acordo civil - O
acordo civil tambm pode ser feito de inmeras formas, as mais comuns
que presenciei foram: o pagamento de algum valor em dinheiro do au-
tor do fato vtima para tentar recompor algum prejuzo causado; e o
compromisso de que o autor do fato no se aproxime mais da vtima.
comum nesses acordos a discusso de questes relativas ao Juizado
Especial Cvel, uma vez que permitido, neste espao, a resoluo de
questes financeiras, alm dos contedos criminais.
Nos casos em que as partes possuam algum vnculo geogrfico
ou sentimental (como entre vizinhos e parentes), comunicado, duran-
te a audincia de conciliao, que o juiz entendeu que as partes devam
passar por sesses de mediaes. A conciliao e a mediao apresen-
tam caractersticas distintas. Explicarei essas diferenas mais a frente.
Caso no haja nenhum tipo de entendimento na conciliao ou
na mediao, normalmente marcada uma nova audincia - em alguns
casos aberto um prazo para a juntada8 de documentos relativos ao
processo. Nessa nova audincia busca-se outra vez a conciliao. Se a
conciliao novamente no se realizar, oferecido ao suposto autor do
9 O reclamado tem o direito de utilizar esse benefcio a cada cinco anos, o qual
consiste no pagamento de um valor estipulado pelo Ministrio Pblico a ser doado
em favor de uma instituio de caridade ou a prestao de servio comunitrio por
algum tempo delimitado.
10 Os casos mais comuns no juizado pesquisado da cidade do Rio de janeiro so:
porte de drogas para consumo prprio, contraveno (jogo do bicho, bingos),
desobedincia, desacato, entre outros.
11 Em alguns casos envolvendo o porte de drogas para consumo prprio, no eram
oferecidos a transao penal, mas uma advertncia - os conciliadores perguntavam
se os autores do fato eram viciados em alguma substncia e, caso a resposta fosse
negativa (como aconteceu em todos os casos que presenciei) era recomendado aos
conciliadores dar uma lio de moral nos supostos autores do fato, que muitas das
vezes prometiam que no iriam voltar a fazer uso de tal substncia.
12 Termo utilizado pela linguagem jurdica para se referir ao advogado representante
das partes envolvidas.
Religio e Conflito 81
com que a mediao seja vista, por advogados e conciliadores, como
algo, por assim dizer, fora do Direito. Se por um lado, o conciliador se
volta quase que mecanicamente para o processo, o mediador o igno-
ra. Segundo uma mediadora, o processo aqui no vale nada, o que
vale o que falado e acordado pelas partes. Sobretudo, pelo fato
de que provas e testemunhas, to valorizadas no meio jurdico, no
possuem qualquer validade naquele espao. Um advogado, que tra-
balhava como conciliador, descreveu a mediao como uma terapia.
A diferena que de graa. Outro conciliador resumiu, quando per-
guntado sobre a diferena entre a conciliao e a mediao, que esse
lance da mediao muito bl bl bl13, coisa de psiclogo.
Outra diferena marcante se refere ao perfil de conciliadores
e mediadores. Dos sete conciliadores com quem tive contato em um
juizado da cidade do Rio de Janeiro, todos eram estudantes ou bacha-
ris em Direito. Na mediao, no entanto, apenas recomendado que
o mediador tenha formao superior (em qualquer rea). No juizado de
So Gonalo, os mediadores so psiclogos, assistentes sociais, serven-
turios e (poucos) advogados. A maioria de funcionrios do Frum.
O tempo das audincias tambm outro fator distintivo. Na
conciliao, as audincias so marcadas de quinze em quinze minutos,
o que demonstra sua preocupao mais quantitativa do que qualitati-
va no tratamento dos conflitos. Enquanto que, a sesso de mediao
dura duas horas ou mais, com a possibilidade de serem realizados ou-
tros encontros, conforme a necessidade dos casos.
Tambm existem diferentes orientaes para o trato dos casos
nesses dois espaos. Na mediao se busca achar, usando as palavras de
uma mediadora, a raiz do desentendimento, ou seja, as motivaes
iniciais para o surgimento do conflito. J na conciliao no h oportuni-
dade para a discusso sobre as motivaes referentes ao conflito, nem
mesmo para qualquer outro tipo de dilogo entre as partes. A orienta-
o da supervisora aos conciliadores, no juizado onde trabalhei, era de
no entrarem no mrito do conflito, focando a audincia para o daqui
para frente.
16 O autor define esse mundo do Direito como uma esfera parte das relaes
sociais, onde s penetram aqueles fatos que, de acordo com critrios formulados
internamente, so considerados jurdicos. Essa identidade formal do objeto a que
devo dirigir minha reflexo tem consequncias imediatas. evidente o fato de que
seus contornos ntidos apontam para facilidades empricas na definio preliminar
de meu campo de anlise, como representado pelos nativos: o Direito ensinado
em Faculdades de Direito, que usam tratados didticos sistemticos em que se
inscreve seu saber e formam profissionais que praticaro atividades classificadas
como jurdicas, em lugares determinados e especficos, como tribunais, delegacias,
cartrios, etc. (Kant de Lima, 2008: 13).
84 Melvina Arajo & Christina Vital da Cunha (Orgs.)
gente e em muitos setores no Judicirio da cidade e, apesar de no atuar
como advogado, possui grande conhecimento sobre a prtica jurdica.
Ele tambm trabalhou alguns anos como conciliador antes de ir para
a mediao. Disse que ficou mais tempo do que precisava para obter a
certificao, pois, na poca, o juizado estava muito escasso de concilia-
dores. As mediaes que realizei com ele demoravam, em mdia, me-
nos de uma hora e meia. Joel tambm afirmou, em outra ocasio, que o
segredo da mediao era identificar, junto com a suposta vtima, o que
causou o conflito e levar isso para o suposto autor do fato. Em seguida,
tu v qual a da vtima, se ela se mostrar flexvel certo que vai ter
acordo. Criticava os mediadores que demoram muito na mediao,
pois, para ele, no conseguimos resolver todos os problemas gerados
em anos (...) temos que ir ao foco especfico que gerou o processo. Joel
ainda considera que mediao no terapia.
Daniela tinha menos de trinta anos e trabalhava como assisten-
te social no Frum de So Gonalo h cerca de trs anos. Formou-se em
servio social e logo em seguida foi aprovada nesse concurso. Daniela, ao
contrrio de Joel, sempre escutava as partes sem interromp-las. Ela dizia
que era importante elas desabafarem sobre o ocorrido e que tambm
importante [o mediador] escutar tudo o que elas [as partes] trazem
para c. Joel certa vez a criticou por no ter um pulso firme. Ele me con-
tou que quase saiu briga em uma audincia de mediao porque ela no
consegue mostrar autoridade para as partes. Daniela, nos casos que en-
volvem conflitos entre parentes, sempre demonstrava se preocupar com
a famlia. Certa vez, me contou que em So Gonalo as famlias so muito
desestruturadas, pai que no fala com filho e irmo que mata irmo.
Perguntei se ela sabia o porqu disso. Ela respondeu que a cidade muito
pobre e as famlias desestruturadas. Por isso ela repetia que sempre
bom ressaltar a importncia da famlia nas audincias, pois considera que
isso toca o sentimental das pessoas e ajuda uma a perdoar a outra.
Joana psicloga, aparentava ter menos de quarenta anos
e trabalhava no Frum da cidade h quase uma dcada. Joana, como
Daniela, sempre escutava as partes sem interromp-las, entretanto,
apresentava uma postura mais austera com as partes, quando no
concordava com elas. Em algumas audincias, censurava os argumen-
tos explicitados por alguma das partes, como certa vez em que alertou
um suposto autor do fato que ele tem que respeitar seu tio por ser
Religio e Conflito 85
mais velho e ser seu familiar. Joana se preocupava muito com os de-
talhes dos casos, pois, em suas palavras, muitas dessas pessoas no
tm muita instruo e no conseguem se comunicar de forma clara.
Alm disso, Joana considerava que tem assuntos que as partes tm
vergonha de falar ou coisas que as partes no tinham pensado antes
e s comearam a pensar depois de ouvir o relato do outro e o relato
delas mesmas. Joana observou tambm que existem muitos motivos
ocultos para o conflito e o mediador tem que pescar esses fatos.
Apesar dos diferentes perfis, os mediadores sempre busca-
vam encontrar o que motivou o conflito. uma espcie de flash back,
uma volta momentnea ao passado buscando a gnese do conflito.
importante sublinhar que logo aps ser identificada a origem des-
se conflito - depois de as partes ficarem muito tempo expondo seus
argumentos e sentimentos, lembrando-se de situaes ocorridas no
passado - os mediadores pediam para que as partes esquecessem o
que ocorreu e pensassem no daqui para frente. Parece algo meio
contraditrio. Trazer tona todo o histrico dos conflitos e no final da
audincia, como comentou um mediador, falar: o que aconteceu at
agora no d para voltar no tempo. E agora? Como vai ser de agora em
diante? As partes foram escutadas, falaram, emocionaram-se, trou-
xeram suas representaes sobre o conflito, elencaram os motivos que
causaram a denncia e, aps tudo isso, so orientadas a esquecer o
que ocorreu e pensar no agora em diante.
Quando percebi que sempre era realizado esse flash back
nas audincias e depois, como num passe de mgica, o mediador pe-
dia que a suposta vtima esquecesse tudo, perguntei aos mediadores
quais eram as motivaes para essa dinmica. Joel me revelou que re-
solvemos o que est no processo. Perguntei como, j que os media-
dores no possuem acesso ao processo. Ele me explicou que as partes
relatam o processo para os mediadores e que estes teriam que fazer
essa retrospectiva a fim de identificar o problema. Indaguei por que
os mediadores perguntam como vai ser de agora em diante e pedem
s partes para esquecer o ocorrido. Joel respondeu que a mediao
no consegue resolver tudo, mas vlida no sentido de que as partes
podem falar e, assim, tentar resolver o problema pontual do pro-
cesso. possvel perceber a preocupao de Joel, usando as palavras
17 Segundo o jurista Hlio Bicudo: sem a proximidade com as pessoas as quais ele
[o juiz] vai julgar, no h justia. O juiz acaba decidindo s sobre papel, e papel no
vida. Fonte: http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2011/06/20/acesso-ao-
sistema-judiciario-muito-dificil-387490.asp Acessado 20/02/2012. Essa frase resume
algumas das diretrizes da mediao: A proximidade seria aumentar o dilogo entre
as partes e diminuir a distncia - causada pela formalidade habitual da justia - dos
operadores do Direito em relao s partes; e tirar o valor do papel, que simboliza
o processo judicial.
Religio e Conflito 87
trao Judiciria ESAJ e tambm em algumas audincias de mediao.
No primeiro momento, durante o curso, uma das instrutoras,
uma psicloga, mencionou um livro sobre o perdo utilizado como
tcnica de resoluo de conflitos nas audincias de mediao em um
juizado da cidade do Rio de Janeiro. De acordo com ela, essa tcnica
seria muito produtiva para conflitos conjugais ou entre parentes. Em
seguida, esclareceu que foi criada por um padre colombiano para ajudar
na resoluo de conflitos.
Pesquisando sobre essa tcnica e esse padre colombiano na
internet, descobri que ele se chama Leonel Narvez Gmes, doutor
em sociologia pela Havard University e criador das Escolas de Perdo
e Reconciliao ESPERE18, que tem por objetivo recuperar as insufi-
cincias da justia punitiva, complementadas atravs do perdo e da
reconciliao19. O perdo, neste caso, usado no sentido cristo da
palavra, como um ato de remisso, de libertao, pois, segundo a con-
cepo da ESPERE, somente atravs do perdo e da reconciliao, as
pessoas e as comunidades recuperam o esprito e a espiritualidade20.
Esta mesma instrutora do curso de formao considera que o per-
do importante para resolver o problema entre as partes e o mediador
pode auxiliar nisso. Um dos alunos participantes desse curso, Joca, que
pastor de uma igreja localizada em uma cidade da regio metropolitana do
Rio de Janeiro, comentou que os valores cristos tambm so importantes
de serem ressaltados durante a audincia. A psicloga concordou, entre-
tanto, alertou que apesar desses valores serem bons no sentido moral, no
caso de uma mediao entre um evanglico e um esprita, por exemplo, no
se deve entrar na questo religiosa. Joca retrucou dizendo que podemos
falar sobre Deus, no sobre religio. Segundo ele, o perdo uma ideia
crist. Os valores religiosos, independente da religio, so coisas que unem
os homens. Acho que esse ponto pode ajudar na mediao. E sob esse as-
pecto ento, a instrutora concordou com sua argumentao.
A fala de Joca, a anuncia da psicloga, alm da indicao dessa
tcnica que utiliza conceitos cristos para a resoluo dos conflitos, so
Tipificao: Injria
Consideraes finais
Religio e Conflito 95
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Religio e Conflito 97
Intolerncia religiosa, UPPs e
traficantes em foco: processos e
prticas performadas pelo Estado em
favelas cariocas1
Introduo
resumidamente apresentadas.
100 Melvina Arajo & Christina Vital da Cunha (Orgs.)
Crescimento evanglico em favelas e periferias
15 http://recheiodalinguica.blogspot.com.br/2009/09/trafico-e-acusado-de-vetar-
umbanda-no.html de 21 de setembro de 2009. Acesso em 10 de outubro de 2012
16 http://recheiodalinguica.blogspot.com.br/2009/09/trafico-e-acusado-de-vetar-
umbanda-no.html de 21 de setembro de 2009. Acesso em 10 de outubro de 2012.
104 Melvina Arajo & Christina Vital da Cunha (Orgs.)
presidente da associao de moradores, suspeito de ligao
com o trfico, dizem lderes comunitrios17.
No morro da Fazendinha, no complexo do Alemo (zona nor-
te), os traficantes mandaram fechar dois terreiros no ano
passado, porque o som dos atabaques atrapalhava o mo-
vimento de drogas e a percepo deles sobre uma possvel
ao da polcia. No ano passado, um centro de umbanda foi
fechado em Piedade (zona norte) por ordem do trfico por-
que estava havendo uma guerra entre quadrilhas rivais, que
temiam a infiltrao policial. Fonte: Folha Online18.
17 http://recheiodalinguica.blogspot.com.br/2009/09/trafico-e-acusado-de-vetar-
umbanda-no.html de 21 de setembro de 2009. Acesso em 10 de outubro de 2012.
18 http://recheiodalinguica.blogspot.com.br/2009/09/trafico-e-acusado-de-vetar-
umbanda-no.html de 21 de setembro de 2009. Acesso em 10 de outubro de 2012.
Religio e Conflito 105
des (disputas territoriais e aes policiais repentinas) que afastariam
os frequentadores que residem fora da favela.
21 Zaluar, 1985; Lins, 1988; Alvito, 2001, Maggie, 1977, 1992; Vital da Cunha, 2009,
entre outros.
Religio e Conflito 107
vil recebem ligaes com queixas de moradores de toda a
cidade. Moradores de vrios bairros vizinhos s favelas da
cidade acordaram assustados com fogos e tiros de metralha-
doras que comearam aos primeiros minutos de ontem. No
se tratava de nenhuma guerra pelo controle do trfico. Era
a comemorao do Dia de So Jorge, que comeou pontu-
almente meia-noite. De Sul a Norte da cidade, traficantes
dos morros cariocas soltaram fogos e aproveitaram o barulho
para dar rajadas de metralhadoras. Alm dos tiros, o som dos
atabaques dos terreiros de umbanda e candombl no alto
dos morros se misturavam aos dos tiros disparados. No Mor-
ro dos Macacos, em Vila Isabel, os traficantes comemoraram
disparando tiros das 11h s 4h, no deixando os moradores
do morro e dos prdios vizinhos dormirem. So Jorge na
Igreja Catlica e Ogum para os umbandistas sempre reve-
renciado com muito fervor pelos traficantes. As delegacias
de polcia e os batalhes da PM receberam telefonemas de
moradores. (Fonte: Jornal O Globo de 24 de abril de 1997)
23 Nome fictcio.
24 Radiotransmissor muito utilizado em favelas cariocas por integrantes de diferentes
postos da hierarquia do trfico para comunicao rpida sobre entrada, sada e
movimentao de pessoas estranhas localidade, da chegada de policiais etc..
25 Vital da Cunha, 2014.
26 A agenda foi encontrada pela Polcia Civil em operao na favela. O contedo foi
noticiado no jornal Extra, em 11 de junho 2008, sob o ttulo Traficante Atormentado.
27 Em matria veiculada na Revista poca de 2011 o traficante Nem na Rocinha
expressou igualmente o desejo de viver uma vida diferente. Nas palavras do traficante
registradas na revista l-se: No vou para o inferno. Leio a Bblia sempre, pergunto
Religio e Conflito 109
A percepo (ou desejo) da vida no crime como transitria
tal como aparece na mensagem acima, o agradecimento pela prote-
o alcanada, a promessa/sugesto de converso a Cristo no futuro
so noes partilhadas por outros traficantes locais como no caso de
Cacau28. Cacau tem 48 anos de idade e desde os 16 anos atua no trfi-
co de drogas em uma das favelas do chamado Complexo de Acari. Na
data da entrevista, em 2009, planejava deixar as atividades no trfico
naquele ano, embora esteja em atividade at hoje. Desde 1997/1998
Cacau frequenta os cultos da Igreja Universal do Reino de Deus numa
das favelas de Acari. Sua trajetria na IURD teve incio na priso. Em
suas palavras: Foi logo que eu sa da cadeia mesmo. A Brbara [sua es-
posa] me levou. Ela me levou... a primeira vez que eu fui foi na Univer-
sal. A dali eu gostei. Eu conheci l dentro da priso e depois comecei a
ir com ela mesmo. Sobre sua companheira diz: Ela crist mesmo. S
no batizada porque a gente ainda no casamos. Cacau dizimista
da IURD, por ms contribua (em 2009) com uma quantia que variava
entre R$ 1.600,00 e R$ 2.400,00, dependendo do pagamento obtido
semanalmente. Sobre a religio dos traficantes ou as suas formas de
expresso de f observa mudanas desde a dcada de 1980 at agora
e, como outros moradores e traficantes, associava essas mudanas
influncia exercida por Jeremias.
a meus filhos todo dia se foram escola, tento impedir garotos de entrar no crime,
dou dinheiros para comida, aluguel, escola, para sumir daqui. Fao cultos na minha
casa, chamo pastores. Mas no tenho ligao com nenhuma igreja. Minha ligao
com Deus. Aprendi a rezar criancinha, com meu pai. Mas s de uns sete anos para c
comecei a entender melhor os crentes. Acho que Deus tem algum plano para mim.
Ele vai abrir alguma porta. Revista poca, 14 de novembro de 2011.
28 Nome fictcio.
110 Melvina Arajo & Christina Vital da Cunha (Orgs.)
culto. Faz culto. Ah, vou te falar, tem muita gente que vive
essa vida a, mas no porque quer no. por necessidade
mesmo. O pessoal pensa que por safadeza, mas no no.
por necessidade mesmo. Muito lugar que as pessoas vo
a pensa: A favela tal isso, a favela tal aquilo, mas chega
aqui e v que no nada disso. Tem gente que chega e no
quer mais ir embora. J vi muito disso aqui.
31 http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/10/1352600-operacao-no-lins-
de-vasconcelos-para-implementacao-de-upp-interdita-vias-no-rj.shtml. Acesso em
09 de dezembro de 13.
114 Melvina Arajo & Christina Vital da Cunha (Orgs.)
da mata. Na semana passada, durante mais uma operao no
local, o sargento Marco Antnio Gripp, do Bope (Batalho de
Operaes Especiais) foi morto ali.O Lins acabou passando na
frente da Mar em termos de prioridade para implantao de
uma UPP por causa de seu tamanho menor que o complexo de
15 favelas que fica entre a avenida Brasil e a Linha Vermelha,
tambm na zona norte32.
32 http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/10/06/autoestrada-
grajau-jacarepagua-rj-e-fechada-para-ocupacao-do-complexo-do-lins.htm. Acesso
em 09 de dezembro de 13.
33 http://007bondeblogbrasil.blogspot.com.br/2013/01/grande-meier-ganha-upp-
no-complexo-de.html Acesso em 08 de julho de 2013.
Religio e Conflito 115
ciais da Polcia Militar do Rio de Janeiro), do prprio reordenamento
das aes dos traficantes que teriam concentrado fora blica e vendas
e armazenamento de drogas nesse conjunto, a estratgia teria sido an-
tecipar a ocupao da localidade.
34 http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,operacao-da-pm-que-antecede-
upp-no-lins-tem-dois-mortos,1081167,0.htm. Acesso em 09 de dezembro de 13.
35 As expectativas locais e supralocais quanto instalao das UPPs foram
mudando ao longo do seu processo de rotinizao. Na matria citada e em outra
veiculada no portal Viva Favela (www.vivafavela.com.br) evidenciado o clima de
medo, desconfiana, insegurana. Entre 2009 e incio de 2012, ao contrrio, era
possvel notar as matrias entusiasmadas e que apresentavam o clima esperanoso
nas favelas quanto chegada de uma nova UPP. Vital da Cunha 2015b.
36http://www.jb.com.br/rio/noticias/2013/10/05/conjunto-de-favelas-do-lins-
aguarda-upp-neste-domingo-em-clima-de-inseguranca/. Acesso em 09 de dezembro
de 13.
116 Melvina Arajo & Christina Vital da Cunha (Orgs.)
negativamente na expectativa dos moradores quanto chegada das
novas Unidades de Polcia Pacificadora.
O destaque da matria do JB para as anlises de Paulo Sto-
rani, ex-capito do BOPE e atual consultor e palestrante da rea de
segurana pblica e privada37.
41http://oglobo.globo.com/rio/traficantes-proibem-candomble-ate-roupa-branca-
em-favelas-9892892#ixzz2eWKcjbyA Acesso em 09 de dezembro de 13.
42 Idem.
43 Falecido por atropelamento em 01 de outubro de 2013.
44 http://oglobo.globo.com/rio/traficantes-proibem-candomble-ate-roupa-
branca-em-favelas-9892892#ixzz2eWKcjbyA Acesso em 09 de dezembro de 13
Religio e Conflito 119
de episdios de violncia ocorridos na regio. No entanto, a colagem
produzida na matria entre a presena do Estado via polcia e combate
intolerncia no local ganha destaque na anlise que proponho. A fina-
lizao da reportagem do jornal O Globo com a palavra de um conheci-
do lder do movimento negro e integrante de um conselho estadual de
combate e preveno intolerncia tnica/cultural/religiosa enfatizan-
do que a presena do Estado garantir a promoo da liberdade religiosa
nesses espaos curiosa.
Palavras finais
45 Maggie, 1977; 1992; Santos, Esteves Filho, 2009; Silva, 2007, entre outros.
46 tambm desse perodo a Lei Federal n. 6.292 de 15 de novembro de 1975,
assinada pelo ento presidente Ernesto Geisel, que protege os terreiros de candombl
no Brasil contra alterao de sua formao material ou imaterial.
47Giumbelli 2012; Leite 2010; entre outros.
48 Fischmann 2009; Giumbelli 2011; entre outros.
120 Melvina Arajo & Christina Vital da Cunha (Orgs.)
anunciados como parceiros de prefeituras e estados no combate s
drogas e na assistncia ao usurio dessas substncias como revelam
inmeros trabalhos acadmicos recentes49.
Por outro lado, mesmo em momentos de intensas alianas
governamentais e legislativas que privilegiam nominalmente catli-
cos e evanglicos, em mbito nacional e estadual, observa-se aes
em prol do combate intolerncia religiosa tais como a formao do
Comit Nacional de Respeito Diversidade Religiosa, 2012, na ento
Secretaria Nacional de Direitos Humanos, o Comit de Combate In-
tolerncia Religiosa, 2014, no mbito do Ministrio da Justia, assim
como a formao de conselhos, grupos de trabalho e centros de refe-
rncia em diferentes estados e municpios da federao. A tentativa de
implementao de um plano nacional, assim como de planos estaduais
de combate intolerncia religiosa somam-se a essas iniciativas que
visam promover aes pblicas efetivas na reduo dos conflitos reli-
giosos presentes na sociedade. Esses avanos e retrocessos na poltica
pblica so importantes para refletirmos sobre o Estado no como um
monlito para confrontarmos iluses produzidas em torno do Estado e
para observarmos a no linearidade nesse processo de conquistas de
direitos de minorias.
Embora reconheamos todas essas nuances no que tange
ao do Estado em favelas e periferias, na figura das suas foras policiais,
observamos mais continuidades no prestgio ao cristianismo e suas insti-
tuies. Exemplos empricos apontam nesse sentido: no Batan, localida-
de que at 18 de fevereiro de 2009, data da inaugurao da UPP na rea,
era anunciada como de domnio de milicianos, tinha em seu comando
um policial evanglico. O presidente da associao de moradores local
era igualmente evanglico e diversas reunies pblicas eram precedidas
de oraes, quando no era a prpria sede da UPP o local de realizao
de cultos evanglicos50; em outras favelas foram registrados convnios
diretos de UPPs com o centro de recuperao de uma igreja pentecos-
tal51; nas reunies do Frum das UPPs que acompanhei por ocasio da
pesquisa no CEVIS no morro do Cantagalo e nos Macacos lderes evang-
licos tinham grande espao para intervenes pblicas com acento pr-
52 Mafra, 2003.
53 Ocupao policial das reas vermelhas da cidade em 1995. Em 2001 a
implementao do Grupamento de Policiamento em reas Especiais GPAE. Em
2008 a implementao das Unidades de Polcia Pacificadora UPPs.
54 Alvito 2001; Vital da Cunha 2014.
122 Melvina Arajo & Christina Vital da Cunha (Orgs.)
drogas, so socializados numa cultura pentecostal. Esse um desafio
a mais posto para a implementao, na ponta, de polticas pblicas de
combate intolerncia religiosa, assim como, no mbito do judicirio,
a formao catlica de boa parte de seus integrantes, igualmente um
desafio justia diante das demandas por direitos ligadas intolerncia
religiosa contra a populao majoritariamente solicitante composta
por negras e negros, moradores de subrbios, favelas e periferias das
grandes cidades brasileiras (Miranda 2012, 2014).
Embora reconheamos diferenas no que tange ao posicio-
namento de diferentes rgos do Estado, o aumento do prestgio so-
cial das religies afro na mdia e no mercado, assim como tambm
na poltica mais recentemente, persiste uma desigualdade brutal entre
os atores em situao no tocante ao acesso a bens culturais, sociais,
polticos e econmicos e as aes estatais violentas e/ou que poten-
cializam violncias ativando elementos religiosos. Essas prticas con-
tinuam a conformar mecanismos e tcnicas de poder historicamente
mobilizados na direo dos mais pobres no Brasil.
Referncias bibliogrficas
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SOUZA LIMA, Antonio Carlos de. Tutela: formao de Estado e tradies de gesto no
Brasil. 1. ed. Rio de Janeiro: E-papers, 2014b. 428p.
Eva L. Scheliga1
possvel ento supor que a criana que lhe sucederia nas boas-
vindas ao Ministro representava, pois, o que a prpria jovem fora no
Welinton
7 Cabe destacar que alm de Welinton, outros participantes tambm tinham fortes
vnculos com esta organizao. Joo Helder era, poca deste evento, o Diretor
Executivo da ONG. Carlos Queiroz e Ariovaldo Ramos, que haviam sido convidados
para compor esta mesa, tambm exerceram funes diversas: Queiroz comeou a
trabalhar na Viso Mundial em 1981, entre 1991 e 1993 foi diretor da Viso Mundial
em Angola e por quatro anos atuou como Diretor Executivo na Viso Mundial Brasil;
Ariovaldo Ramos, por sua vez, presidiu o Conselho da Viso Mundial entre 2002 e
2008, reassumindo esta posio em 2013.
134 Melvina Arajo & Christina Vital da Cunha (Orgs.)
dos direitos de crianas e adolescentes e o envolvimento da socieda-
de civil na elaborao de polticas pblicas. Parcerias com a UNICEF,
conversa com a Critas, audincia com o Ministro foram sucessiva-
mente mencionadas por Welinton a fim de destacar sua nova rotina de
trabalho. Foi justamente esta nova rotina, em seu entendimento, que
tambm abriu novas perspectivas de trabalho para a RENAS - em um
duplo sentido, como pretendo sublinhar. De um lado, a rede evanglica
- por intermdio de Welinton, diga-se de passagem - tambm passou
a ser conhecida por estas outras organizaes e nestes espaos polti-
cos. Ao ganhar maior visibilidade a RENAS adquiriu, por consequncia,
novo estatuto: a de potencial parceira na execuo tanto de projetos
que envolvem rgos de cooperao internacional e aes inter-reli-
giosas, quanto em programas governamentais. De outro lado, ao vis-
lumbrar-se como potencial parceira, um universo de possibilidades
at ento pouco conhecidas ou exploradas passou a ser apresentado
RENAS, obrigando-a a reavaliar seu plano de ao e at mesmo seu
estatuto jurdico8.
primeira vista poder-se-ia inferir que a nova posio assu-
mida por Welinton no interior da Viso Mundial reforou a relao
(um tanto assimtrica) estabelecida entre a ONG e a rede evanglica.
A Viso Mundial, reconhecida pela RENAS como umas das trs organi-
zaes responsveis pela articulao da rede evanglica (ver Scheliga,
2010), sempre ofereceu RENAS importantes aportes: de contrapar-
tidas financeiras para a organizao de eventos a concepes acerca
de como desenvolver a ao social evanglica, seja por meio de suas
metodologias de elaborao e monitoramento de projetos, seja pela
8 Boa parte da reunio das filiadas ocorrida no primeiro semestre de 2013 foi
dedicada discusso acerca da criao ou no de uma estrutura jurdica paralela a
RENAS a princpio, uma associao que espelharia a estrutura da rede. A constituio
da associao tinha por objetivo sanar algumas das dificuldades enfrentadas pela
RENAS: dado ela no possuir personalidade jurdica prpria e, por esta razo, no
estar legalmente apta nem a obter recursos, nem a formalizar convnios com
outras instituies, pblicas ou no, so organizaes e redes filiadas que assumem
formalmente alguns compromissos em nome da rede, o que muitas vezes onera
as parceiras. A proposta de constituio da associao gerou, contudo, algumas
tenses pois, se por um lado, ela poderia resolver algumas das questes legais acima
mencionadas, por outro, temia-se engessar a rede e perder o foco do trabalho.
Ao cabo da longa discusso optou-se por manter temporariamente o atual arranjo e
retomar a discusso em momento futuro.
Religio e Conflito 135
eleio de determinados eixos de trabalho, notadamente, o desenvol-
vimento comunitrio e a proteo de direitos de crianas e adoles-
centes. A circulao de Welinton pelos diversos escritrios de Braslia
de algum modo reiterou, portanto, a posio da Viso Mundial como
disseminadora de um modo especfico de enunciao e presena reli-
giosa na esfera pblica, ao qual a RENAS, em alguma medida, pode ser
levada a aderir.
Ter representao em espaos de articulao poltica, exigin-
do e ocupando os espaos participativos, como se destaca na Carta
de Luzinia, passa assim a ser compreendido por estes protestantes
como atividade central da rede. Entende-se que a ocupao de espa-
os governamentais permite a sugesto de pautas, ou seja, a partici-
pao na formulao de questes que merecem interveno; faculta
tambm a participao nas reunies decisrias, nas quais so defini-
das as solues para os problemas em debate; possibilita, por fim, o
acompanhamento da implementao das polticas pblicas, de modo
a monitorar e avaliar os resultados das aes estatais. O ciclo das pol-
ticas pblicas, como destaca Castro, no resulta de um mero processo
lgico e racional da ponderao e escolha de alternativas (Castro,
2013, p. 10), mas sim de de horas de pesquisa, tenses, discusses,
debates, conflitos, estabelecimento de controvrsias e elaborao de
consensos (idem, p. 11); os agentes evanglicos aqui em tela esto
interessados em envolver-se ativamente neste processo.
Dbora
Petrucia
14 De acordo com o Censo 2010 cerca de seiscentas mil crianas de at dez anos,
isto , 2% do total de indivduos desta faixa etria, no tiveram o nascimento
notificado em cartrio. A ausncia de registro impede a emisso de diversos outros
documentos, tais como carteira de identidade, cadastro de pessoa fsica, carteira de
trabalho e ttulo de eleitor. Todo este conjunto de documentos necessrio para
existir plenamente diante do Estado e ter acesso aos servios de ateno sade
e educao, como vacinao e matrcula nas escolas, alm de obter benefcios
sociais. Em 2007 o Presidente Lula instituiu, por decreto, o Compromisso Nacional
pela Erradicao do Sub-registro Civil de Nascimento e Ampliao do Acesso
Documentao Bsica (Decreto n 6289 de 06 de dezembro). Seu objetivo explcito
era ampliar o acesso documentao civil bsica para todos os brasileiros, acabando
com o sub-registro civil de nascimento.
15 Luna (2013), por exemplo, tem abordado as controvrsias sobre o direito
vida em contextos que envolvem a autorizao da pesquisa com clulas-tronco
embrionrias e a autorizao para o aborto, salientando a participao de atores
religiosos e a explicitao de valores religiosos nestas controvrsias. Santos-Granero
(2011), por sua vez, explorou o debate a respeito do infanticdio na Amaznia,
prtica contestada por missionrios da ONG ATINI - Voz pela Vida (que participaram
do Encontro Nacional da RENAS promovido em 2007, recebendo ampla adeso
campanha iniciada contra a prtica por eles denunciada) em virtude, justamente, de
uma associao imediata entre as noes de humanidade e pessoa.
146 Melvina Arajo & Christina Vital da Cunha (Orgs.)
Vimos que a incidncia poltica promovida por este segmento
evanglico visa o centro da formulao das polticas pblicas relativas
a estes temas, sendo os Conselhos Nacionais os espaos compreendidos
pela RENAS como lugares estratgicos para realizar incidncia. Esta
leitura que a rede evanglica faz das dinmicas de participao social
tem respaldo na prpria organizao dos Conselhos das reas de polti-
cas sociais e garantia de direitos, que, mais que os de outras reas16,
abrem-se formalmente participao de segmentos da sociedade civil
historicamente interessados em resguardar os direitos dos vulnerveis.
Tendo-se em conta que instituies de carter religioso tm, no apenas
no Brasil, larga trajetria de atuao em prol dos direitos humanos (Cf.
Steil e Toniol, 2012), na mediao de processos envolvendo demandas
de reconhecimento tnico (como destaca Morais, 2012) e na presta-
o de servios a populaes marginalizadas e pobres (conforme j
discutido por diversos pesquisadores, dentre eles Novaes, 1995), no
incomum, portanto, que organizaes religiosas candidatem-se a um
assento nos Conselhos na qualidade de representantes da sociedade ci-
vil organizada, com anuncia de seus pares em pleitos organizados es-
pecificamente para este fim. No caso da RENAS, desde 2007 ela ocupa
uma vaga no Conselho Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional
(Consea) e, por meio de suas filiadas, tambm tem acesso aos debates
promovidos no Conjuve e no Conanda, respectivamente atravs da Rede
FALE e Viso Mundial, como destacado.
Mas como, afinal, se forja a legitimidade para assegurar esta
representao? A este respeito cabe retomar a interveno do Minis-
tro na mesa de abertura do evento promovido pela RENAS, visto Car-
valho ter reproduzido em sua fala um certo entendimento acerca do
lugar das organizaes religiosas que convm sublinhar. J em trabalho
anterior pude destacar como a RENAS - assim como diversas outras
igrejas e organizaes de carter religioso - ressalta a extensa capilari-
dade de sua rede e a consequente capacidade de seus agentes chega-
rem a localidades onde o Estado no chega como argumento central
para legitimar-se como interlocutora preferencial do poder pblico.
A prestao sistemtica, gratuita e contnua de ajuda a mem-
bros da comunidade religiosa e, sobretudo, s comunidades po-
Referncias bibliogrficas
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DE MORI, Geraldo (orgs.). Mobilidade religiosa linguagens juventude, poltica. So
Paulo: Paulinas, 2012. p. 75 - 98.
Melvina Arajo2
Introduo
1 A pesquisa que sustentou a elaborao deste captulo foi financiada pela Fapesp
(processo n. 2008/10758-0). Agradeo aos participantes do GT Religio e conflito
pelos comentrios feitos primeira verso deste texto, em especial a Christina Vital,
Eva Scheliga, Janine Trevisan, Naara Luna, Carly Machado e Emerson Giumbelli.
Agradeo tambm a Aramis Lus Silva pela leitura generosa e comentrios instigantes.
2 Professora do Departamento de Cincias Sociais da Universidade Federal de
So Paulo UNIFESP e pesquisadora associada do Centro Brasileiro de Anlise e
Pesquisa CEBRAP.
3 Tomaremos a noo de controvrsia tal como proposto por Latour (2005), como
matria social em construo, capturada antes da estabilizao. Nesse sentido, as
controvrsias supem uma multiplicidade de posies e de pontos de vista, o que
nos ajuda a superar a ideologia da antropologia como tradutora da alteridade, j que
nesse caso no se tem mais o antroplogo como tradutor.
4Na poca da apresentao deste projeto, Henrique Afonso era membro do Partido
dos Trabalhadores PT. No entanto, desde 2009 passou a integrar os quadros do
Partido Verde PV.
Religio e Conflito 155
srie de matrias sobre o assunto. Tendo por base o material produ-
zido em torno das discusses sobre o tema ao qual se volta o referido
projeto de lei, pretendo analisar os argumentos postos em ao pelos
partcipes desse debate, as formas escolhidas por esses atores para
exp-los, bem como o contexto no qual a controvrsia est inserida.
Ao tomarmos como objeto de reflexo o que foi dito e/ou fei-
to em relao ao infanticdio entre indgenas, no Brasil, interessa pen-
sar sobre a configurao do modelo democrtico brasileiro hodierno,
em que o secularismo se coloca sob a forma de confrontao entre
ideias advindas de diversas perspectivas religiosas, a partir da anli-
se dos argumentos utilizados pelos atores envolvidos na controvrsia
em questo e as justificaes que os sustentam. Vale ressaltar que,
conforme Boltanski (2002), a justificao seria a forma como o ator
explica sua ao e para que uma interpretao seja suficiente faz-se
necessrio incluir os valores morais que os atores mobilizam em suas
aes. Desse modo, seria necessrio, para realizar uma boa interpreta-
o, tentar observar nos discursos suas referncias morais.
Buscar seguir e analisar os argumentos dos envolvidos nos de-
bates em torno do chamado infanticdio indgena requer a descrio
das estratgias utilizadas pelos atores envolvidos na controvrsia na
formatao dos debates nos quais foram expostos os elementos que
servem como justificativas para as posies adotadas. Esses debates
tiveram, de maneira geral, a forma de audincia pblica ou a discusso
de artigos, monografias e dissertaes publicadas ou defendidas. No
primeiro caso, foram selecionados expositores que tinham por funo
dirigi-los ou orient-los e os deputados presentes puderam participar
fazendo perguntas ou comentrios. J no que diz respeito aos artigos
publicados ou monografias e dissertaes defendidas, estes ou resu-
mos destes foram replicados em blogs, pginas do facebook, de asso-
ciaes e/ou organizaes ligadas aos atores envolvidos na controvr-
sia e, nesses ambientes, houve diversos tipos de manifestao acerca
do que foi exposto.
Alm disso, faz-se necessrio descrever as posies ocupadas
pelos organizadores e demais participantes dos debates que deram
origem controvrsia. Isso ser feito medida que cada ator entrar
em cena. A maior ou menor descrio das posies ocupadas por esses
atores se deve maior ou menor disponibilidade de dados sobre eles.
156 Melvina Arajo & Christina Vital da Cunha (Orgs.)
Assim, se tivermos alguns atores cujas posies sero melhor descritas
que outros, isso se deve disponibilidade pblica de dados sobre eles.
Ainda no que concerne posio dos atores participantes da
controvrsia em torno do tema infanticdio indgena vale ressaltar
que, de modo geral, foram chamados a participar como conferencistas
nas audincias pblicas que tiveram lugar na Cmara dos deputados
ou foram citados como referncia nos artigos publicados sobre o tema
atores e/ou autores vinculados ao meio acadmico. Como veremos
no decorrer do texto, a chancela acadmico-cientfica tomada como
uma espcie de autorizao mais ou menos incontestvel em relao
fundamentao do que dito ou escrito.
Estes foram, grosso modo, os artifcios usados na construo
de justificativas para as posies adotadas pelos partcipes dos deba-
tes. Buscaremos descrev-los e analis-los a seguir.
Mbiles da controvrsia
5 rgo anexo CNBB Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil, criado em 1972.
Trata-se do espao privilegiado, no interior da Igreja Catlica, para discusso de
questes relacionadas s populaes indgenas brasileiras. No entanto, apesar de ser
um anexo da CNBB, o Cimi agrega tambm missionrios advindos do meio protestante.
158 Melvina Arajo & Christina Vital da Cunha (Orgs.)
A suspenso da cirurgia e a indefinio de quando seria re-
alizada teriam deixado os pais dessa criana muito nervosos. Nesse
nterim, teria aparecido, de acordo com Suzuki e Pinezi (2008), uma
equipe do Fantstico solicitando a realizao de uma reportagem com
os ndios. Essa reportagem foi ao ar em 25/09/2005. No entanto, uma
semana depois o mesmo programa teria veiculado uma matria se-
gundo a qual os Suruwah tinham sido trazidos para So Paulo sem
autorizao e que a Funasa ia assumir o tratamento mdico deles, ti-
rando-os das mos dos missionrios (Pinezi e Suzuki, 2008: 12).
A reportagem da Agncia Cmara intitulada Missionria ex-
plica razes de retirada de ndios de aldeia, de 14/12/2005, tambm
afirma que a realizao da audincia pblica teria sido motivada por
uma reportagem do Fantstico sobre duas crianas Suruwah retira-
das, juntamente com quatro de seus familiares, de sua aldeia e levadas
a So Paulo por missionrios da Jocum.
Alm disso, na mesma reportagem da Agncia Cmara consta
a afirmao de que a ao do Ministrio Pblico Federal teria sido so-
licitada pelo Cimi:
8 A autora nota tambm que a apresentao do projeto foi feita tendo como um de
seus motes a comemorao do dia das mes.
Religio e Conflito 165
luta contra o infanticdio. No apenas no Brasil. Essa a me
que eu quero homenagear nesta tarde. Muito obrigado, Mr-
cia. Muito obrigado, Kamiru e Amal. E a nossa homenagem
a Muwaji. Essa lei vai ser chamada Lei Muwaji, a me que
resolveu na aldeia Suruwah, se levantar contra esse cdigo
(Afonso, 2007, apud Rosa, 2013: 49 50).
***
PINEZI, Ana Keila Mosca e SUZUKI, Mrcia. Infanticdio e direito de viver: um debate
sobre infanticdio Suruwah, recentes mudanas culturais e direitos humanos. Anais
da 26 Reunio Brasileira de Antropologia. Porto Seguro, 01 a 04/06/2008.
Documentos
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=351362
TEIXEIRA, Paulo. Por que continuar permitindo que crianas indgenas brasileiras
continuem sendo assassinadas em nome da cultura da morte?. Holofote Net
enfoque cristo, 18/08/2009. http://holofote.net/por-que-continuar-permitindo-
que-criancas-indigenas-brasileiras-continuem-sendo-assassinadas-em-nome-da-
cultura-da-morte/. Visto em 04/03/2015.
Lei Muwaji Entrar na pauta nesta quarta-feira 01/06. Eu Sou Htero. Contra o
preconceito. Contra PL122, 31/05/2011. http://campanhaeusouhetero.blogspot.
com.br/2011_05_01_archive.html
Delcides Marques2
7 Ibidem, p. 96. E o argumento prossegue: nada sabem dos ndios, a no ser que
eles representam um estgio reversvel de vida nas trevas do desconhecimento
de Deus. Como se o carter pragmtico do trabalho missionrio evidenciasse
naturalmente um desinteresse pelas particularidades culturais dos povos a serem
atingidos. Como indicou Michel Foucault, um dos princpios de excluso a vontade
de verdade que opera na distino entre o verdadeiro e o falso (cf. Michel FOUCAULT,
2002 [1971], A ordem do discurso (Aula inaugural no Collge de France), trad. Laura
Fraga de Almeida Sampaio, So Paulo, Loyola, 8 ed., p. 13s). A vontade de verdade
a vontade de dizer o discurso verdadeiro (Foucault, 2002 [1971], idem, p. 20). Assim,
a vontade de verdade tomada em seu suporte e distribuio institucional, lida com
a presso do poder de coero exercido, de modo que a verdade se torna o que
constrange (Ibidem, p.18).
8 Dominique Tilkin GALLOIS e Lus Donisete Benzi GRUPIONI, 1999, idem, p. 105.
Contudo, se assim com os missionrios em relao antropologia, seria o caso de
considerar a patente dificuldade dos etnlogos em lidar com noes rudimentares
da teologia?
9 Ibidem, p. 109. Soa bastante estranho a afirmao dos autores de que a salvao
da humanidade como um todo s existir quando forem apagadas suas diferenas
(p. 84). Essa assertiva no cabe na soteriologia protestante conservadora: no
haver salvao da humanidade como um todo. Portanto, as diferenas sempre
existiro, mesmo no alm. E mais, a tentativa de encontro e produo de conceitos
universais realmente inviabiliza o reconhecimento e a aceitao de diferenas?
No seminrio teolgico, em linhas gerais, aprende-se a respeitar as diferenas
doutrinrias, considerando-as sob o prisma da universalidade dos particulares.
Aprende-se igualmente a tratar as diferenas culturais sob a perspectiva de que so
particularidades do universal. Desde o seminrio eles se habituam a reconhecer as
diferenas entre si. No se trata, portanto, de se verem apenas como iguais. Como se
sabe, no caso protestante, pequenas diferenas so suficientes para grandes cises,
discordncias, afastamentos.
10 Ibidem, p. 107. E os parmetros utilizados para julgamento no se referenciariam
lgica interna da sociedade em observao. Trata-se, de certo modo, do tabu do
objeto, bem como do direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala em nome
do outro.
11 Ibidem, p. 107.
184 Melvina Arajo & Christina Vital da Cunha (Orgs.)
A ltima coisa de que os Arawet precisam de um missio-
nrio que, sob o pretexto da alfabetizao ou do ensino bi-
lingue, venha retirar, de forma particularmente prfida, a tal
redoma inexistente: os Arawet precisam de fato aprender
a falar portugus, mas no para dizer aquilo que os missio-
nrios querem que eles digam. De resto, a competncia dos
missionrios da ALEM na rea da educao indgena nula,
servindo para acobertar a inteno de destruio scio-cul-
tural dos povos visados por esta organizao12.
14 Claude LVI-STRAUSS, 1976 [1950], Raa e histria, in: Seleo de textos, trad.
Incia Canelas, So Paulo: Abril Cultural (Coleo Os pensadores), p. 59.
15 Claude LVI-STRAUSS, 1976 [1950], idem, p. 60: O brbaro em primeiro lugar
o homem que cr na barbrie.
16 Duas possibilidades podem ser aventadas aqui: uma pela negatividade, somos
todos etnocntricos, e outra pela positividade, somos todos antroplogos. As
186 Melvina Arajo & Christina Vital da Cunha (Orgs.)
Nesse sentido, relativizar seria o oposto de essencializar a
diferena. Deveramos abrir mo da acusao simplria e prvia que
parte do grupo ao qual estamos vinculados e caminhar, nesse exerc-
cio propriamente antropolgico, em direo ao ponto de vista nati-
vo. No para concordar irremediavelmente com ele. No para falar
em nome dele17.
Nada mais terrvel para um etnlogo do que, ao retornar para
a aldeia depois de um tempo de afastamento, encontrar seus nativos
convertidos e propensos a converter18. Tristeza amarga, pois no era
isso que deveria ter acontecido. Ele fica acometido de reaes com
certo teor de fundamentalismo antropolgico19. A vontade tomar as
rdeas e redefinir os rumos corretos a serem trilhados.
O desafio, contudo, : no falar em nome do missionrio,
mas tambm no falar em nome dos indgenas. O que pode inviabili-
zar posturas como: No h qualquer benefcio a esperar da presena
de agncia religiosa como a ALEM (Associao Lingustica Evanglica
Missionria). O autor ainda afirma que os indgenas necessitam de de-
marcao de terras, apoio na rea da sade e um mnimo de proteo
econmica. No limite, os Arawet precisam de topgrafos e no de
missionrios. E continua defendendo que os indgenas certamente
no carecem de doutrinao religiosa, disfarada ou no por um assis-
tencialismo suprfluo. Eles no tem a mnima necessidade de consolo
espiritual, particularmente de um consolo paternalista, autoritrio e
messinico que acha ser preciso destruir valores coletivos para fabricar
bons cristos, e entristecer os homens para formar bons cidados20.
ao presidente da ABA, 17/01/89, in: Beto RICARDO & Fany RICARDO [orgs.], Povos
indgenas no Brasil (1987-1990), So Paulo, CEDI / Instituto Socioambiental, p. 345.
21 Dominique Tilkin GALLOIS e Lus Donisete Benzi GRUPIONI, idem, p. 105.
188 Melvina Arajo & Christina Vital da Cunha (Orgs.)
lao s religies (mas tambm frente a seus objetos de estudo em ge-
ral)22. Algumas religies, costumeiramente as tidas como majoritrias,
impositivas ou maiores, so desprivilegiadas diante daquelas tomadas
e tratadas como minoritrias, tolerantes ou menores. Praxe acadmi-
co-antropolgica: na obrigao de preferir entre indgenas e catolicis-
mo, opta-se pelos indgenas. E na necessidade de optar entre catolicis-
mo e protestantismo, fica-se com o primeiro. Nesse caso, considera-se
que os protestantes so mais propensos intolerncia do que aquele
catolicismo da inculturao, por exemplo.
Em relao misso catlica, mormente a censura dirigida
ao trabalho dos jesutas que catequizaram os nativos indgenas nos pri-
meiros sculos aps a chegada europia s suas terras. Os jesutas te-
riam sido incapazes de compreender a constante inconstncia da alma
selvagem23. E quando possvel comparar os missionrios protestan-
tes da transculturao em contraste com os missionrios catlicos da
inculturao, marca-se que os primeiros estariam mais prximos dos
jesutas que os segundos24. Jesutas e protestantes evangelizariam a
partir de um mtodo de pregao conversionista, invasivo, civilizatrio
e demonizante. Inculcar e anunciar ao invs de inculturar e calar. Nada
mais justo: procedimentos distintos, ressalvas distintas.
Concluso
Referncias bibliogrficas
Clayton Guerreiro2
A macumba pentecostal
Ricardo Mariano (2003), Vagner Silva (2005), Bruno Reinhardt (2006) e Ronaldo
Almeida (2009). Estas pesquisas ora apontam a existncia de uma guerra santa, ora
focam na relao ambgua que incluiriam combate e, ao mesmo tempo, apropriao
de elementos afro-brasileiros, por parte dos pentecostais. Os temas destes trabalhos,
quase que invariavelmente, passam pela ideia de intolerncia ou da aluso negativa
ao panteo afro-brasileiro nas sesses de exorcismo realizadas em determinadas
denominaes, tais como Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Neste trabalho,
entretanto, pretendo privilegiar a anlise dos conflitos existentes entre os prprios
evanglicos em decorrncia dos apontamentos sobre a semelhana dos rituais
pentecostais com os cultos afro-brasileiros.
12 Tais como tvpentecostal.com, blogdosilas.com, sidneimoura.blogspot.com
206 Melvina Arajo & Christina Vital da Cunha (Orgs.)
vimentar impulsionados pelo Esprito Santo, atravs dos toques de
instrumentos musicais, por isso, marcham segundo o ritmo da msi-
ca. A suposta circular ainda nomeia o tipo de culto proibido e diz que
se trata de vento de doutrina, [que] dizem que se chama retet e
canela de fogo. Esta circular ainda teria determinado que, caso fiis e
pastores persistam em realizar as manifestaes do retet, podero
sofrer sanes disciplinares, observando-se as punies previstas no
Regimento Interno da referida denominao religiosa.
Vemos, desse modo que, assim como na pesquisa de Rabe-
lo (2005), os fiis do vigilho parecem perder o controle de seus
corpos, quando entram no retet. Ao dar lugar ao Esprito Santo,
que toma o seu corpo, o fiel se sujeita a realizar gesticulaes que
parecem escapar ao seu controle, tais como girar, fazer movimentos
circulares com as mos, movimentar a cintura e os ps, correr, mar-
char, cair no cho, pular ou mesmo rodopiar com os braos abertos,
no importando assim, a possvel acusao sobre a semelhana com
os ritos afro-brasileiros, pois, quando o vaso13 tomado e entra
no mistrio, o poder do Esprito Santo pode fluir livremente em seu
corpo, sendo vedado ao crente reclamar ou questionar a atuao do
Esprito em sua vida.
Ao analisar os corinhos de fogo e a relao destes com as di-
nmicas dos cultos pentecostais, Valdevino Albuquerque Jnior (2014)
faz uma descrio deveras interessante sobre o que ele presenciou em
seu campo de pesquisa. De acordo com ele, os fiis
Referncias bibliogrficas
ZIBORDI, Ciro Sanches. Mais erros que os pregadores devem evitar. Rio de Janeiro:
CPAD, 2007.
Asher Brum1
Os lderes pastorais
***
4http://www.opusdei.org.br/pt-br/article/a-minha-vivencia-ao-lado-de-sao-
josemaria-representou-o-fator-preponderante-da-minha-vocacao/ - acessado em 03
de junho de 2014.
Religio e Conflito 223
brando as palavras do Papa na abertura da JMJ: Eu vos trago Jesus Cristo
vivo!. Disse que essa a misso de todos os jovens catlicos, porque as
pessoas que se entregam aos prazeres do pecado, no o fazem porque so
pessoas ruins, mas porque so carentes de amor. Desse modo, se deve
resgatar pessoas atravs do amor. Como comum entre as pessoas do
Opus Dei, Dom Rafael citou vrios filsofos, entre eles Kierkgard, quando
este dizia que o indispensvel o absoluto. No entendimento de Dom
Rafael, Deus o indispensvel, pois, sem ele, o homem se sente vazio.
Depois citou Victor Frankl, que sucedeu Freud na psicanlise
austraca, interpretando que a trade neurtica formulada pelo autor,
trata-se da angstia existencial pela falta de Deus. Falou, ainda, que os
jovens tm que saber dar Deus aos outros, comunicar a sua f, pois,
assim, fortalecem a prpria f. Lembrou que esse era o lema da JMJ:
ide e evangelizai. Falava: no tenhais medo, o mundo est crtico!.
Mas, para isso, as pessoas no poderiam ter vergonha de comunicar
a sua f, mas, contagiar os demais com ela. Deviam aprender, portan-
to, como abordar um tema com simpatia, atribuindo sentido cristo
sobrenatural para todas as coisas. Para ensinar, dizia, preciso antes
viver o que se pretende transmitir ser um exemplo de virtudes. Mas,
acima de tudo, saber comunicar com amor e alegria e, principalmente,
amar as coisas pequenas, ver Deus em cada mnima atividade cotidia-
na. Ao mesmo tempo, os jovens deveriam tornar agradvel a sua f e
transmiti-la com alegria. Essa era, segundo ele, a misso dos leigos.
Aps sua fala, respondeu a algumas perguntas das pessoas. A
primeira pergunta foi sobre como os catlicos deveriam lidar com algum
poltico que fosse nomeadamente catlico e usasse isso para angariar vo-
tos. Segundo Dom Rafael, um candidato ser catlico e usar isso para an-
gariar votos de catlicos em uma eleio seria instrumentalizar a religio.
O importante, segundo ele, seria agir como catlico, ter virtudes, ser o
exemplo. preciso que o candidato difunda valores cristos, mais do que
ser catolico. Aps, respondeu uma pergunta sobre o sacerdcio femini-
no. Frisou que as mulheres no precisam do sacerdcio para ter espao, j
que a Presidenta do Brasil era uma mulher. Sua resposta, embora retrica,
foi ovacionada e a autora da pergunta vaiada. A ltima questo foi de um
rapaz que perguntou como a Igreja deveria se comportar em relao aos
homossexuais. A resposta foi a seguinte: homem homem e mulher
mulher. Mas, devemos am-los [os homossexuais].
Na grande maioria das falas de numerrios do Opus Dei, seno
em todas, a figura de Escriv sempre evocada como um modelo de con-
***
As prticas de Z.
***
***
***
Referncias bibliogrficas
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A minha vivncia ao lado de So Josemaria representou o fator preponderante
da minha vocao http://www.opusdei.org.br/pt-br/article/a-minha-vivencia-
ao-lado-de-sao-josemaria-representou-o-fator-preponderante-da-minha-vocacao/
- acessado em 03 de junho de 2014.
Dom Rafael Cifuentes: No tenhais medo de evangelizar! - http://www.
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html - acessado em 02 de junho de 2014.
Naara Luna2
Introduo
A performance registrada
O manual
Consideraes finais
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Janine Trevisan1
3http://www.morgentalerdecision.ca/what-the-court-decided/reasons-of-
wilson-j/. Traduo prpria.
266 Melvina Arajo & Christina Vital da Cunha (Orgs.)
A preponderncia da evidncia mdica consistente com a
declarao da subseo 223 (1) de que a criana somente
um ser humano a partir do momento do completo nasci-
mento?
Quais so os impactos legais e as consequncias da sub-
seo 223 (1) para os direitos humanos fundamentais da
criana antes do momento do completo nascimento?
Quais so as opes disponveis para o Parlamento no
exerccio de sua autoridade legislativa de acordo com a
Constituio e decises da Suprema Corte do Canad para
afirmar, alterar, ou substituir a subseo 223 (1)?4
Tabela 1: Voc acha que a vida inicia na concepo, quando o feto j consegue
sobreviver por conta prpria ou somente aps o nascimento?
2008 2007
A partir da concepo 28% 30%
Depois dos trs meses de gestao 20% 21%
Depois dos seis meses de gestao 9% 11%
A partir do nascimento 33% 33%
No sabe/ no respondeu 10% 5%
Total 100% 100%
DUARTE, Luiz Fernando Dias et al. (orgs.). Valores religiosos e legislao no Brasil:
a tramitao de projetos de lei sobre temas morais controversos. Rio de Janeiro:
Garamond, FAPERJ. 2009
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Luca Copelotti1
Introduo
5Fonte:http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/geral/noticia/2011/01/moradores-
da-zona-sul-reclamam-de-restos-de-despachos-acumulados-na-orla-do-
guaiba-3178841
6 Fonte: http://ideiascondensadas.blogspot.com.br/2011/05/primeira-materia-
cais-maua-e-oferendas.html
280 Melvina Arajo & Christina Vital da Cunha (Orgs.)
de rituais religiosos7, os garis se negavam a realizar seu trabalho, pois,
em muitos casos, tal tarefa implicava em agir contrariamente a suas
prprias crenas religiosas.
Por parte do segmento afro-religioso, as respostas a essas
acusaes se configuraram a partir de dois pontos: por um lado, des-
tacavam o fato de que os religiosos no so os nicos que poluem o
planeta; por outro, alertavam para os cuidados relacionados colo-
cao das oferendas nas vias pblicas. Como expresso na fala do Pai
ureo de Ogum: o senhor levaria um presente para seu irmo, para
seu pai, e atiraria no meio da rua?. Ou ainda, na fala de Everton Al-
fonsin, Presidente da FAUERS: Oferenda nunca foi e nunca vai ser em
cima de asfalto. Oferenda tem que ser em cho batido, para absorver,
para desmanchar.
As religies afro-brasileiras expressam, no espao pblico, algo
que no consensual. H diferentes linhas8 e diferentes modos de fazer
as oferendas. Cada pai e me-de-santo lder de sua comunidade e
ele, com o auxilio da entidade, quem determina como e onde as oferen-
das ou despachos devem ser realizados. Contudo, para muitos desses
lderes, essa autonomia acaba, muitas vezes, provocando certos exces-
sos, bem como uma exposio indevida do sagrado pautada muito
mais por uma lgica de mercantilizao da religio9, do que no funda-
Consideraes finais
Referncias bibliogrficas
Consideraes Finais
Referncias bibliogrficas
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Sabrina DAlmeida1
Doutoranda PPGAS/USP
Pesquisadora CEBRAP
Introduo
suas particularidades.
316 Melvina Arajo & Christina Vital da Cunha (Orgs.)
aes permitiu que emergissem divergncias a respeito do que cada
uma concebe como sendo o projeto mais adequado de gesto territo-
rial e atividade produtiva, o que revela, por sua vez, suas respectivas
concepes sobre o que o quilombo. Por esse motivo, o eixo da pre-
sente anlise trata da relao entre identidade quilombola e trabalho.
Essas divergncias tornaram-se visveis quando passei a ob-
servar o carter e as dinmicas de trabalho praticadas pelas diferentes
comunidades quilombolas com as quais atuam. Os moradores se refe-
rem frequentemente determinada atividade econmica que desen-
volveram ou esto desenvolvendo como sendo projeto do ISA, ou
projeto do Itesp ou trabalho das irms. Assim, por exemplo, a pisci-
cultura desenvolvida numa comunidade pode ser um projeto encabe-
ado por uma dessas instituies. O mesmo pode ocorrer com a roa
comunitria, com a horta comunitria, com a criao de vveres (ga-
linha e frango), com o cultivo de espcies florestais (palmito, rvores
frutferas), artesanato, turismo, somente para citar alguns exemplos.
Antes de prosseguir, vale mencionar que o fato de haver dis-
putas no significa que as duas organizaes assumam posies an-
tagnicas em todos os aspectos que dizem respeito s comunidades
quilombolas. Pelo contrrio, em muitos momentos so parceiras na
execuo de determinados trabalhos e, principalmente, no apoio des-
tinado a esses grupos na busca pelo reconhecimento de seus direitos
tnicos e territoriais junto ao Estado. Prova disso so alguns eventos
pblicos organizados em parceria pelas duas instituies, como o
caso do Encontro de Lideranas Quilombolas do Vale do Ribeira que
ocorreu em 2011 e 2013, bem como participaes em eventos como
audincias pblicas e manifestaes em prol de direitos.
Tendo em vista esses objetivos, o artigo est estruturado de
uma maneira em que, num primeiro momento, o leitor tome conheci-
mento da trajetria de cada uma dessas duas organizaes (fundadores,
linha de atuao, projetos, etc). Num segundo momento, buscarei apre-
sentar as premissas e concepes que norteiam a execuo desses pro-
jetos e o que, na prtica, aparece como distintivo entre as duas, plano
no qual se pode observar as divergncias anteriormente mencionadas.
Histrico
8 Disponvel em <http://www.socioambiental.org/pt-br/o-isa/programas/vale-do-
ribeira>. Consulta realizada em 01/11/2014.
322 Melvina Arajo & Christina Vital da Cunha (Orgs.)
participao do turista na vida cotidiana da comunidade, conhecendo
suas tradies, suas histrias e os cenrios naturais que apresenta a
regio (ISA, s/d). Como exemplo de turismo de base comunitria pode-
mos recorrer novamente ao caso de Ivaporunduva. No interior dessa
comunidade h uma pousada que gerenciada pelos prprios mora-
dores e onde costumam se hospedar os visitantes. No so todos que
participam da administrao da pousada, alguns podem ser funcion-
rios, outros podem ser monitores ambientais encarregados de guiar os
passeios dos turistas e assim por diante. O importante no turismo de
base comunitria que a comunidade como um todo possa participar
na gesto do negcio de uma maneira ou de outra e que os maiores
beneficirios sejam os prprios moradores.
No so todas as comunidades com as quais o ISA trabalha
que esto envolvidas nos projetos de turismo, assim como no so
todas que contam com um projeto de apicultura, ou de artesanato, ou
de produo de banana, por exemplo. Cada quilombo pode possuir
um ou mais projetos, o que quer dizer que alguns esto envolvidos
simultaneamente com artesanato, turismo comunitrio e produo de
banana, enquanto outros esto envolvidos somente com a produo e
comercializao do palmito.
No que se refere maneira pela qual esses projetos so elabora-
dos e implementados podemos dizer que o ISA frisa o carter participativo
dos mesmos. Isso quer dizer que, segundo os agentes ligados essa ONG,
um projeto jamais pensado sem que antes se saiba se aquela uma
demanda real da comunidade, ou seja, eles no proporiam um projeto
de cultivo de palmeira juara numa comunidade que consideraria como
prioridade a implantao de um projeto de apicultura. Nesse sentido,
preciso salientar que, segundo esses agentes, para ser participativo um
projeto no deve vir de fora para dentro, mas ser gestado junto queles
com os quais ser desenvolvido. Assim, caberia comunidade apresentar
o que considera como prioritrio para ser trabalhado e essas demandas
so feitas por ocasio de visitas, reunies e encontros entre os tcnicos
e os moradores. Desse modo, o adjetivo participativo pode ser visto nos
nomes e na definio de alguns dos projetos, como o caso do Planeja-
Histrico
Referncias bibliogrficas