2015 EdilzaCorreiaSotero VCorr
2015 EdilzaCorreiaSotero VCorr
2015 EdilzaCorreiaSotero VCorr
PS-ESTADO NOVO
So Paulo
Junho de 2015
EDILZA CORREIA SOTERO
So Paulo
Junho de 2015
A atual situao dos homens de cor do Brasil o mesmo panorama que
envolve os negros de todo o mundo, especialmente nas regies onde
existe um elevado nmero de descendentes de africanos. As mesmas
aspiraes e os mesmos problemas, aqui no Brasil, existem em todos os
pases da Amrica do Sul e da Amrica Central.
[...]
O progresso do Negro brasileiro, de um modo mais positivo e acelerado,
s pode ser conseguido de duas formas distintas: Negros no Legislativo
Nacional, que lutem pela consecuo dos ideais dos negros brasileiros,
no campo socioeconmico. Uma imprensa negra em que militem os
negros mais esclarecidos e brancos amigos dos negros dentro de um
plano educacional de regenerao de costumes.
(Jornal Himalaya, 12/08/1950.)
Sankofa (Sanko = voltar; fa = buscar, trazer), smbolo
tradicional entre os povos de lngua Akan, que habitam
a frica Ocidental, frequentemente associado ao
provrbio Se wo were fi na wosan kofa a yenki, que
pode ser traduzido por no tabu voltar atrs e buscar
o que esqueceu.
Este trabalho prope uma anlise de experincias polticas de lideranas do Partido Comunista
do Brasil (PCB) e de ativistas ligados aos movimentos sociais negros, com o objetivo de
compreender os processos relacionados ao surgimento de interpretaes sobre raa e
nacionalidade que foram operacionalizadas no campo da poltica pelos dois grupos, durante o
perodo de abertura democrtica seguinte ao final do Estado Novo, resultando em estratgias
diferenciadas. De um lado, ativistas negros tenderam a enfatizar sua prpria condio racial ao
se apresentarem como representantes dos negros, esperando atrair o voto dessa parcela de
eleitores, o que resultaria no surgimento do voto racial, enquanto fenmeno eleitoral no pas.
Por outro, comunistas se apoiaram no discurso voltado para o povo na construo de sua
atuao poltico-partidria, sem, contudo, ignorar o debate sobre a situao da populao negra
na sociedade brasileira. A hiptese central para investigao das experincias de comunistas e
ativista negros foi de que eles concorreram na cena poltica nacional com variaes da noo
que negro povo no Brasil. As fontes utilizadas para realizar a pesquisa foram exclusivamente
documentais: jornais, revistas, correspondncias, registros elaborados ou arquivados por rgos
do Estado (a exemplo do Superior Tribunal Eleitoral e do Departamento de Ordem Poltica e
Social), documentos de circulao interna e de divulgao tanto de partidos polticos quanto de
organizaes negras. O uso de variadas fontes podem contribuir para a revelao de como
alguns acontecimentos foram reforados e outros apagados do passado, assim como a forma
que processos relacionados composio e percepo da histria influenciam o presente.
SOTERO, E. C. Black Political Representation in Brazil after the Estado Novo. Tese
(Doutorado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia Letras e Cincias Humanas, Universidade
de So Paulo, So Paulo, 2015.
This work intends to analyze the political experiences of the Communist Party of Brazil leaders
and the black movements activists. It aims to understand the processes related to the emergence
of interpretations on race and nationality, as well as the way both groups used these
interpretations to support different strategies in the field of politics, during the democratic
opening following the end of the dictatorship period named Estado Novo (1937-1945). On the
one hand, black activists tended to emphasize their own racial condition in order to present
themselves as representatives of blacks, hoping to attract this segment of voters, which would
result in the emergence of the race-oriented voting in Brazil as electoral phenomenon. On the
other hand, Communists employed a focused discourse on the idea of "Brazilian people" to
formulate their political platform, without ignoring, however, the debate on the situation of
blacks in Brazilian society. The central hypothesis of this dissertation is that both Communists
and Black activists showed up in the national political scene with competing meanings for the
notion: blacks are the people in Brazil. The sources used in this research were newspapers,
magazines, correspondences, documents elaborated or reunited by authorities of the Brazilian
State (such as the Superior Electoral Court or the Department of Political and Social Order), as
well as documents of internal circulation and disclosure of political parties and black
organizations in Brazil. The use of a wide range of sources helped to disclose how certain events
have been reinforced and others virtually deleted in the construction of the past, but also how
processes related to the composition and perception of history affect the present.
Keywords: Brazilian Black Movement, the Brazilian Communist Party, Race, Nation, Political
Representation.
Lista de quadros
TABELA 1- LISTA DOS "CANDIDATOS OPERRIOS" DO PCB BAIANO NAS ELEIES DE JANEIRO
DE 1947 263
TABELA 2 - OS CINCO CANDIDATOS DO PCB MAIS VOTADOS NAS ELEIES DE 19 DE JANEIRO
DE 1947 - BAHIA 273
Lista de abreviaturas e siglas
Introduo
1
A poltica internacional brasileira frente aos mais de cinquenta pases agrupados na ONU pode ser resumida no
seguinte trecho da comunicao proferida pelo Embaixador Luiz Martins de Souza Dantas, em Londres, no dia 10
de janeiro de 1946: Antes que as armas se calem para sempre, o corao do homem deve ser desarmado; deve ser
drenado de todos os preconceitos quanto raa, nacionalidade e religio; deve ser purgado dos pecados da ambio
e do orgulho; devendo ser preenchido, em lugar disso, de esperana e sentimento fraterno. Segundo Skidmore
(1989), mesmo com falas veementes e repetidas no combate ao preconceito racial feitas em Assembleias da ONU,
no houveram medidas na poltica interna de combate ao racismo no pas, pelo menos at o incio da dcada de
1950, quando foi aprovada a lei Afonso Arinos.
2
A partir da dcada de 1930, O Brasil passou a atrair um nmero significativo de pesquisadores estrangeiros.
Cidades como Salvador, com alto ndice de populao negra, passaram a ser consideradas laboratrios raciais e
tiveram afluncia de pesquisadores como Franklin Frazier, Donald Pierson, Melville Herskovits, Ruth Landes,
Alfred Mtraux e outros. Um exemplo da insero destes intelectuais na sociedade brasileira no perodo pode ser
observado nas ligaes que o antroplogo estadunidense Charles Wagley mantinha tanto em nvel de pesquisa, no
16
estudo de comunidades, quanto no apoio relao de Estado entre o Brasil e os Estados Unidos, em assuntos
relacionados Segunda Guerra Mundial (MAIO, 1999).
3
A Frente Negra Brasileira foi fundada em 1931 na cidade de So Paulo e alcanou um grande nmero de filiados.
Em 1936 a entidade recebeu autorizao para se registrar como partido poltico, contudo foi extinta no ano
seguinte. Logo no incio do Estado Novo. Tratarei com mais detalhes da FNB e de outras organizaes negras dos
anos 1920 e 1930 no Captulo 1.
17
O grande desafio dos partidos polticos no perodo aps 1945 foi o de se adequar nova
realidade eleitoral e social, principalmente no que se referia ao crescimento da participao da
classe trabalhadora, que antes estava quase excluda do processo poltico. Segundo Glucio
Soares (1974), apesar de ainda no contarem como parte significativa dos votantes, a ampliao
do eleitorado s poderia se dar no sentido da classe trabalhadora, j que as classes mdias e
altas j estavam participando praticamente na sua totalidade4. O poder de barganha do
eleitorado das classes trabalhadoras foi um ingrediente potente para modificao da estrutura
da poltica e do fazer poltico brasileiro.
A crescente participao do trabalhador no processo poltico, principalmente aqueles
residentes em reas urbanas e com ocupaes nos setores da indstria e comrcio, no havia
passado despercebida aos grupos polticos atuantes durante o Estado Novo. O regime ditatorial
liderado por Getlio Vargas deu ateno especial s questes relacionadas aos trabalhadores,
ao introduzir, durante mais de dez anos, um conjunto de normas que regulamentou a relao
entre empregados e empregadores, promoveu a estatizao da previdncia social e deu origem
a Consolidao das Leis do Trabalho (CLT), de 1943. As aes tomadas durante o Estado Novo
consubstanciaram a introduo na cena poltica nacional de uma ideologia que gozou de longa
vida: o trabalhismo5.
O trabalhismo tornou-se um legado varguista do qual os partidos polticos formados no
perodo de redemocratizao no puderam ignorar. Em maior ou menor grau, houve a
4
Levando-se em considerao que o Cdigo Eleitoral impedia o alistamento de pessoas com menos de 18 anos,
analfabetos e sem domiclio, a eleio presidencial de 1945, primeira aps o fim do Estado Novo, contou com a
participao de seis milhes de eleitores, cerca de vinte e cinco por cento do total de adultos no pas. Com base
em dados do censo, a estimativa era de que aproximadamente dezoito milhes de adultos estavam empregados em
trabalhos manuais nas zonas rurais e urbanas. Para Glucio Soares (1974), o mximo de participao que a classe
trabalhadora teve nesta eleio foi de dois milhes de eleitores.
5
O trabalhismo no deve ser entendido como a nica via de incluso do direito dos trabalhadores na poltica
brasileira. As ideias trabalhistas no pas no foram criadas durante a ditadura Vargas, apesar de ser o trabalhismo
varguista o mais reconhecido na cena pblica. A ao poltica dos prprios trabalhadores foi o principal fator
depois da abolio e at as primeiras dcadas do sculo XX, para a efetivao de seus direitos sociais. O
trabalhismo naquele momento representava uma bandeira empunhada por trabalhadores e seus representantes na
luta pela garantia de seus direitos. A historiografia tem se ocupado, nos ltimos anos, em desvendar o mundo do
trabalho brasileiro no perodo ps-abolio, possibilitando a construo de um panorama mais amplo das
demandas por melhores condies de trabalho, feitas por grupos de trabalhadores, organizados em sociedades,
ligas e sindicatos, e sua negociao com os empregadores. (REIS, 2000; FRAGA FILHO, 2006; CRUZ, 2000).
Estudos tambm mostram que a partir de 1918 comearam a surgir um conjunto de leis significativas, que podem
ser compreendidas como a gnese da legislao trabalhista no Brasil (GOMES, 1994). A partir de 1934, delineou-
se um novo momento das classes trabalhadoras em relao ao acesso cidadania. A interveno estatal na
formulao de leis e no desenvolvimento do sindicalismo corporativista estabeleceu o padro de estruturao do
trabalho no Brasil que, em boa parte, perdura at os dias atuais.
18
6
A partir de 1945, o processo de constituio de partidos polticos contava com duas fases. A primeira compreendia
o registro em cartrio da organizao como pessoa jurdica e depois uma requisio de registro provisrio junto
ao Tribunal Superior Eleitoral. Depois de um perodo, se cumprissem todos os requisitos de funcionamento, os
partidos recebiam registro definitivo.
7
Em 1946 acresceu-se um artigo a essa legislao, prevendo o cancelamento do registro do partido, se houvesse
denncia de que este recebesse orientao, contribuio financeira ou de qualquer outra alada de procedncia
estrangeira; ou que promovessem atividades contra os princpios democrticos ou contra os direitos de cidadania,
definidos na Constituio.
19
formar coletivamente a oposio ao governo Vargas; o Partido Social Democrtico (PSD) foi
organizado sob a orientao inicial de Getlio e era composto por grupos heterogneos (como
interventores estaduais, proprietrios de terra e representantes de setores empresariais), e
inicialmente tinha um discurso de adeso ao Estado Novo; j o Partido Trabalhista Brasileiro
(PTB) foi construdo em grande parte por articulaes dentro do Ministrio do Trabalho.
Segundo Thomas Skidmore, o PTB representava o esforo de Vargas para atalhar a marcha
dos comunistas e da esquerda, assegurando em seu prprio benefcio o voto da classe operria,
de importncia crescente (SKIDMORE, 2003, p. 83).
Outro partido de abrangncia nacional, com uma estrutura organizacional com base nas
capitais e principais cidades do pas era o Partido Comunista do Brasil8 (SOARES, 1974). O
PCB, quando legalizado, em meados de 1945, foi projetado por seus dirigentes para se tornar
um partido de base popular, ou como ficou melhor conhecido, um partido de massas 9
(SEGATTO, 1981; PANDOLFI, 1995).
Apesar das diferenas programticas entre os maiores partidos naquele perodo PTB,
UDN, PSD, PCB , um fator assinalado em diversos estudos a semelhana da composio
social dos dirigentes, recrutados, na sua maioria, em setores de classe mdia (MICELI, 1986;
RODRIGUES, 2007; BRANDO, 1988). Mesmo o PCB que, de acordo com Lencio
Rodrigues, contava com uma composio social heterognea e policlassista, tinha o seu grupo
dirigente majoritariamente formado por homens brancos de classe mdia10 (RODRIGUES,
2007, p. 519-521).
Os quatro principais partidos do perodo tambm exerceram atuao fundamental no
processo de sucesso presidencial que deu fim ao Estado Novo. Desde meados de 1944, a
sucesso passou a ter centralidade nos embates polticos do pas. Dado que o processo de
transio democrtica foi iniciado de dentro do governo e de forma verticalizada, existia a
8
Em agosto de 1943, aconteceu a II Conferncia Nacional do PCB, que ficou mais conhecida como Conferncia
da Mantiqueira, ainda quando o partido se encontrava na ilegalidade poltica. A Conferncia contou com a
participao de militantes de So Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paran, Rio Grande do Sul, Bahia, Par e
do Distrito Federal. Alm de promover a reorganizao do PCB, com a eleio de um Comit Nacional, o evento
estabeleceu a linha poltica que o PCB seguiria at sua cassao, em 1947: a Unidade Nacional (SENA JR.,
2007).
9
A expresso partido de massas geralmente faz referncia ao quadro analtico montado por Maurice Duverger,
em sua obra Les partis politiques, publicada em 1951. Duverger props a distino entre partidos de quadros e
partidos de massas, esses ltimos mais caractersticos das democracias modernas, que tomaram lugar na
Europa no sculo XX (DUVERGER, 1970).
10
De acordo com Rodrigues, o grupo dominante entre os dirigentes comunistas foi o dos brasileiros de famlias
h muito radicadas no Brasil, havendo, especialmente no perodo anterior a 1945, forte proporo de dirigentes
originrios dos velhos troncos oligrquicos. Depois dos brasileiros houve forte participao de judeus [...] a
proporo de negros e mulatos entre os principais dirigentes do PCB foi bastante baixa e, se considerarmos a
proporo de negros e mulatos na populao brasileira, ela parece ainda menor (RODRIGUES, 2007, p. 521).
20
expectativa de que este prosseguisse realiz-la sem maiores problemas. Mas, um conjunto de
medidas, que no agradaram nem mesmo os aliados polticos do ditador, gerou um temor de
que a transio no se efetivasse, em parte porque se desenhava a possibilidade de que Vargas
articulasse sua permanncia no poder. Assim, grupos militares se mobilizaram e foraram o
encerramento do Estado Novo, via golpe, nos ltimos dias de outubro de 1945.
Mesmo com a deposio de Vargas, existia bastante expectativa de que o PTB fosse o
partido a liderar a transio democrtica brasileira. Muitos desejavam a permanncia de Getlio
Vargas no poder, inclusive defendendo sua candidatura nas eleies que viriam a se realizar. O
movimento mais expressivo de adeso a Vargas nesse perodo foi o queremismo, devido ao
refro utilizado por eles Queremos Getlio!. Alm dos grupos polticos diretamente
relacionados a Getlio e interessados em sua permanncia frente do governo, o queremismo
teve grade adeso de trabalhadores e do povo em geral, recebendo apoio inclusive do PCB
(PANDOLFI, 1995). Em verdade, a permanncia de Vargas ou de seus aliados no poder naquele
momento tambm significava a possibilidade do fortalecimento do trabalhismo em um contexto
democrtico. Isto era algo que no s o PCB, mas outros grupos partidrios desejavam. O
discurso em torno da defesa do trabalhador era tema central e estratgico do Partido
Comunista11.
Pouco antes das eleies presidenciais de 1945, o PTB se resolveu pelo apoio a eleio
do general Eurico Gaspar Dutra, candidato do PSD. Outros que concorriam eram Eduardo
Gomes da UDN e Yedo Fiuza do PCB. A aliana entre PTB e PSD, o primeiro com base poltica
entre trabalhadores urbanos e o segundo alicerado nas foras oligrquicas tradicionais, deu a
vitria a Dutra, com 55% dos votos, enquanto Eduardo Gomes obteve 35% dos votos vlidos e
Yedo Fiza, 10%12.
Apesar de no promover uma ruptura brusca com o getulismo, que era a proposta da
UDN naquele momento, o PSD realizou um gradual distanciamento de Vargas quando alcanou
a direo do poder executivo, sem, contudo, abandonar completamente aspectos da poltica do
governo anterior, como o discurso trabalhista (DULLES, 1967; SKIDMORE, 2003).
11
O Programa do PCB elaborada no contexto de 1945 iniciado da seguinte forma: O Partido Comunista do
Brasil, partido da classe operria, luta pela conquista da completa emancipao econmica, poltica e social do
Brasil; por conseguir para o povo as garantias da mais ampla e efetiva democracia; por melhorar as condies de
vida, trabalho e cultura da classe operaria e de toda a populao laboriosa, at chegar a abolir todas as formas de
explorao e opresso; e por assegurar o sempre maior desenvolvimento e progresso do pas e de suas foras de
produo.
12
A eleio de Dutra pelo PSD e a frustrao de PTB e UDN so abordados amplamente pela literatura
historiogrfica. Cito, entre muitos, Gomes e DArajo (1987) e Skidmore (2003).
21
13
Os nmeros precisos do percentual de votos recebidos por PSD, UDN, o PTB e PCB para o Senado foram
61,9%, 23,8%, 4,7% e 2,3%, respectivamente; e 52,7%, 26,9%, 7,6% e 4,8% para a Cmara dos Deputados.
14
Outro fator relevante para o perodo foi a formao de partidos de forte representao regional, a exemplo do
Partido Social Progressista (PSP), muito influente no estado de So Paulo, sob a liderana de Adhemar de Barros.
22
II. Novos atores em cena: busca por incorporao de demandas na poltica aps 1945
15
Segundo dados do Censo de 1940, o total de brancos analfabetos no Brasil era de 52,8%. Entre pretos e pardos,
o percentual chegava a 81,4% e 74,3%, respectivamente.
16
Nos estatutos da entidade, o plano de ao previa a difuso de escolas profissionais e culturais exclusivas para
mulheres. Apesar de ter sido indicado no documento que a diretoria nacional deveria contar com vinte e dois
membros, apenas as trs fundadoras assinam a requisio: Universina Berenice da Silveira Lamaison, dentista e
moradora do Rio de Janeiro; Elza Soares Ribeiro e Dulce Soares, funcionrias pblicas e tambm residentes no
Rio de Janeiro.
23
17
Fonte: Tribunal Superior Eleitoral. Parecer n 23 do Procurador-Geral Eleitoral: Hahnemann Guimares Data:
22.09.1945. Disponvel em: http://www.tse.jus.br/hotSites/registro_partidario/popsf/arquivos/parecer_p.e.pdf.
18
Antes do encerramento do Estado Novo, ativistas negros retomaram ou iniciaram atividades na formao de
entidade e/ou jornais. Entre as iniciativas estava o Teatro Experimental do Negro - TEN, fundado em 1944 na
cidade do Rio de Janeiro, por Abdias do Nascimento e um grupo de amigos. No ano seguinte, cerca de oito meses
antes do fim da ditadura, surgiu a Associao dos Negros Brasileiros em So Paulo, encabeada por Jos Correia
Leite, Fernando Ges e Raul Joviano do Amaral. Esse mesmo grupo fundou o jornal Alvorada, em 1945. Apesar
de serem So Paulo e Rio de Janeiro os principais locais de mobilizao, outras organizaes relevantes nasceram
e foram crescendo em importncia fora desse eixo, a exemplo da Unio dos Homens de Cor, com sede em Porto
Alegre e filial em mais 12 estados, segundo declarou o seu presidente, Joo Alves (Cf. Dirio Trabalhista,
15/02/1946, p.5).
24
Naquele perodo, o conjunto discursivo que apontava para a crescente denncia das
injustias raciais tinha o intuito de dotar tanto a ideia de democracia racial quanto a de
democracia em geral, de um contedo no somente simblico e ideolgico, como tambm de
um sentido prtico para a ao organizada e consciente de indivduos mobilizados para sua
conquista. Uma ilustrao desse pensamento o texto Que liberdade, Que democracia,
assinado por Aristides Negreiros e publicado no jornal Alvorada, em 1946: Democracia! Que
democracia esta que no permite aos elementos negros ingressarem na carreira diplomtica?
[...] Que democracia esta? Uma democracia igual dos Estados Unidos, que permitiram
ainda recentemente o criminoso linchamento de quatro jovens negros na Georgia? Democracia
pobre, tola, politicamente falando (Alvorada, 28/09/1946, p. 4).
Os ativistas negros que concebiam a poltica como um espao estratgico para a
introduo de uma agenda de reivindicaes, representando os problemas e aspiraes da
populao negra, elegeram, prioritariamente, a interao com partidos polticos. Como explicou
Aguinaldo Camargo, presidente da Conveno do Negro, realizada em 1945, na cidade de So
Paulo: Estaremos, individualmente, em todos os partidos. Mas, estaremos fiscalizando a sua
atitude em relao aos negros, mulatos e mestios. Apresentaremos a todos eles nossas
reivindicaes mnimas e seremos as sentinelas dessas reivindicaes (Senzala, janeiro de
1946, p. 11).
De acordo com Ruscheinsky (1999), movimentos sociais fundamentados em demandas
que envolvem maior participao institucional tendem a buscar integrao no espao da
representao poltica, e em busca de tal objetivo, fluem para relacionar-se inevitavelmente com
os partidos polticos. Ainda segundo o autor, esses movimentos assentam-se no consenso
sobre demandas, aliceram-se na solidariedade, tendem a estruturar-se juridicamente, atuam
pela presso poltica exercida atravs da ao coletiva e tendem a estabelecer negociaes para
implementar a pauta colocada na agenda19 (RUSCHEINSKY, 1999, p. 36).
Dessa forma, a tendncia institucionalizao presente no movimento negro durante o
perodo de abertura democrtica do Estado, aps 1945, aparece como uma das estratgias para
acessar os canais de participao poltica que se ampliavam.
Em relao aos partidos polticos, a anlise da influncia de fatores raciais no processo
poltico brasileiro no interregno democrtico de 1946 a 1964, feita em trabalhos realizados a
19
Anlises das teorias de ao coletiva e dos movimentos sociais pode ser encontrada em Gohn (1997) e Alonso
(2009). Ao trabalhar com a ideia da institucionalizao, utilizei a investigao de Rios (2010) Institucionalizao
do movimento negro no Brasil contemporneo como parmetro comparativo para a o movimento na dcada de
1940.
25
partir da dcada de 1970, constatou uma identificao de eleitores negros com certas
agremiaes, bem como o interesse de partidos pelo voto da populao negra. Amaury de Souza
(1971), investigando as eleies estaduais do Rio de Janeiro de 1960, concluiu que havia uma
preferncia entre eleitores negros por polticos de tendncia populista e trabalhista,
especialmente os pertencentes ao Partido Trabalhista Brasileiro20. Entre os argumentos
utilizados por Souza para explicar o fenmeno, estavam as ideias de que a poltica de
mobilizao dos trabalhadores urbanos, iniciada ainda durante o Estado Novo, e o
crescimento da importncia poltica da massa urbana teriam resultado, nos vinte anos
seguidos redemocratizao, na correlao de intercmbio entre negro e povo (SOUZA,
1971, p. 63).
Outro autor que se dedicou anlise da relao entre raa e poltica no perodo posterior
ao Estado Novo foi o historiador George Andrews. Com base em fontes documentais e
analisando a questo da perspectiva dos partidos polticos, Andrews afirmou que os
trabalhadores negros eram cortejados pelos partidos polticos de base trabalhista que
competiam pelo poder na nova Repblica (ANDREWS, 1991, p. 36). Na formulao de
Andrews, o interesse desses partidos estava associado ao crescente ingresso de negros no
trabalho industrial, o que os tornava atrativos tambm ao movimento operrio, controlado
majoritariamente pelo Estado.
Pesquisas como as realizadas por Andrews e por Souza, tratando da conjuntura poltica
do ps-Estado Novo, so muito relevantes, tanto por reforarem aspectos da correlao entre
raa e poltica quanto por indicarem a forma como alguns partidos polticos se relacionavam
com a populao negra. Entretanto, ao centrar a anlise no padro de relao entre alguns
partidos polticos e o eleitorado negro, deixaram de fora outros atores, a exemplo dos
movimentos sociais, o que poderia complexificar a compreenso dessa correlao.
Considerando que o incio da abertura democrtica foi um perodo de tentativa de
insero e consolidao na cena poltica de atores antes pouco presentes, decidi centrar ateno
na perspectiva de dois grupos que tiveram atuao destacada, mas ainda pouco analisada nos
estudos que tratam do perodo: ativistas ligadas organizaes negras e lideranas comunistas
20
A pesquisa emprica de Amaury de Souza sobre comportamento eleitoral e raa foi precedida das anlises de
Gilberto Freyre (1956) e Bolvar Lamounier (1968), nas quais os autores procuraram levantar hipteses e
interpretaes sobre comportamento eleitoral de negros e brancos no Brasil (GUIMARES, 2001). A partir da
dcada de 1980, especialmente aps o fim da Ditadura Militar, surgiram novas pesquisas e interpretaes sobre
raa e poltica, das quais destaco Soares e Silva (1985), Valente (1986), Prandi (1996), Oliveira (1997), Johnson
III (2000) e Rios (2014).
26
que ascenderam posio de representantes polticos do PCB, durante o perodo que o partido
esteve na legalidade (1945-1947).
Muitos estudos j fizeram a anlise da atuao de lideranas negras na formao de
organizaes no ps-Estado Novo (COSTA PINTO, 1998 [1953]; FERNANDES, 2008a
[1965]; MACEDO, 2005; SILVA, 2005); porm, so escassas as interpretaes que atentam
para a relao entre essas lideranas e partidos polticos, para os discursos sobre a presena e
participao de negros na poltica, assim como para as estratgias de acesso a cargos eletivos
no legislativo estatal.
Em relao ao PCB, apesar do surgimento recente de pesquisas interessadas na
interpretao comunista sobre relaes raciais e racismo no Brasil (CHADAREVIAN, 2006;
GRAHAM, 2014), necessrio empreender uma investigao sobre como essas interpretaes
foram incorporadas prtica poltica do Partido, no perodo em que esteve na legalidade,
participando de eleies e inserindo parlamentares em espaos decisrios tanto em nvel
nacional quanto nos estados.
A hiptese central, norteadora da anlise das duas experincias estudadas na pesquisa,
foi que comunistas e ativista negros concorreram na cena poltica nacional com variaes
interpretativas da noo que negro povo no Brasil.
A disputa tanto pela definio quanto pela prerrogativa de representao do povo
compreendida por Pierre Bourdieu (1990) como um importante alvo nas lutas internas dos
intelectuais de diferentes campos, tais quais o religioso, o artstico, mas, principalmente o
poltico. De acordo com a explicao do autor, no campo poltico que o uso do povo e do
popular mais diretamente rentvel, ele ainda destaca a eficcia simblica no discurso dos
partidos progressistas e sindicatos operrios, por se apresentarem como detentores de uma
espcie de direito de preempo sobre o povo e, desse modo, de uma misso exclusiva, que
lhes permite simultaneamente assumir e reivindicar tudo o que os separa de seus concorrentes
e mascarar - em primeiro lugar para si mesmos - o corte com o povo que est inscrito no
acesso ao papel de porta-voz (BOURDIEU, 1990, p. 181;184).
O socilogo Alberto Guerreiro Ramos foi um dos primeiros a fazer uma sntese do
significado da correlao entre negro e povo. Ramos, em um texto com crticas forma como
era construdo sociologicamente o problema do negro no Brasil, arguiu que O negro povo,
no Brasil. No um componente estranho de nossa demografia. Ao contrrio, a sua mais
27
importante matriz demogrfica. E este fato tem de ser erigido categoria de valor, como o exige
a nossa dignidade e o nosso orgulho de povo independente. O negro no Brasil no anedota,
um parmetro da realidade nacional (RAMOS, 1957, p. 157).
A perspectiva de Guerreiro Ramos foi retomada anos depois por Joel Rufino dos Santos,
que interpretou a formulao negro povo levando em considerao aspectos culturais,
demogrficos e sociais. Para Joel Rufino, Guerreiro Ramos descobriu que o negro ele prprio
um lugar de onde descrever o Brasil, um lugar derivado da configurao social em que
convergiam elementos como cor, cultura popular nacional e esttica social negra (SANTOS,
1995, p. 28). Em outra passagem, Joel Rufino descreveu quais seriam as coordenadas que
davam a configurao social do negro como lugar: o fentipo (crioulo), a condio social
(pobre), o patrimnio cultural (popular), a origem histrica (ascendncia africana) e identidade
(autodefinio e definio pelo outro)21 (SANTOS, 1996, p. 220).
Utilizei, durante a elaborao deste trabalho, as interpretaes de Guerreiro Ramos e
Joel Rufino menos como um modelo conceitual e mais como um indicativo do arranjo de
contedos que podiam estar associados noo negro povo, que assumia variados
significados medida que era enunciada por diferentes indivduos e grupos22.
Nesse sentido, um ponto destacado na anlise foi o investimento de ativistas negros e
dirigentes do PCB na apresentao de candidatos negros para participar em campanhas
eleitorais. No entanto, esse fator em si no era uma especificidade, uma vez que, nos primeiros
anos aps o fim do Estado Novo, diversos partidos polticos se interessaram em apresentar
candidatos negros, o que considero ter sido uma entre as estratgias para atrair novos eleitores
e construir uma base poltica slida. O aspecto que imprimiu singularidade s candidaturas tanto
de ativistas negros quanto de comunistas foi o discurso a elas associado. No PCB, interpretaes
sobre o negro que vinham sendo negociadas no interior do Partido ganharam destaque durante
o perodo em que esteve na legalidade poltica. Ao passo que no ativismo negro, o discurso para
inserir uma agenda negra na esfera poltica nacional foi acompanhado da tentativa de algumas
lideranas de se estabelecer como representantes polticos.
21
A abordagem do negro como lugar, enquanto expresso de um espao topolgico tambm foi realizada por
Muniz Sodr (2012). Para o autor, o lugar uma configurao de pontos ou de foras, um campo de fluxos que
polariza diferenas e orienta identificaes. Negro, na interpretao de Sodr, assume um lugar lgico poltico
no interior da dinmica das relaes sociais.
22
Na explicao de Bourdieu povo, assim como classes populares ou trabalhadores so conceitos de
geometria varivel cujas virtudes polticas se devem ao fato de que se pode ampliar vontade o referente at incluir
nele em perodo eleitoral, por exemplo os camponeses, os executivos e os gerentes ou, ao contrrio, restringi-
lo somente aos operrios da indstria (BOURDIEU, 1996, p. 17).
28
PARTE I
30
Entre os anos de 1897 e 1930, existiu quase uma centena de associaes negras na
capital paulista, classificadas como danantes (25), cvicas (4), esportivas (14), grmios
recreativos, dramticos e literrios (21) e cordes carnavalescos (12)23. De acordo com essa
categorizao, as entidades que tinham como objetivo a reunio de negros se enquadravam nos
campos assistencialista, recreativo e cultural24. Quando a Frente Negra Brasileira (FNB) foi
fundada, em outubro de 1931, estava entre os objetivos includos nos Estatutos da entidade
propugnar pela elevao moral, intelectual, artstica, tcnica, profissional e fsica; assistncia,
proteo e defesa social, jurdica, econmica e do trabalho da Gente Negra25. A proposta
beneficente da FNB no era o que a tornava singular em relao a outras associaes negras de
So Paulo, que surgiram no perodo posterior abolio.
A Frente Negra herdou o legado das movimentaes associativas de negros da dcada
de 1920, e assumiu a tarefa de congregar as propostas polticas que circulavam no interior da
mobilizao negra. Nos seus estatutos, aprovados em 1931, a proposta era que a entidade se
constitusse uma fora poltica organizada, mas no ainda no formato de partido poltico, como
viria a se tornar em 1937:
Art. 1 Fica fundada nesta cidade de So Paulo, para se irradiar por todo o Brasil, a
FRENTE NEGRA BRASILEIRA, unio poltica e social da Gente Negra Nacional,
para afirmao dos direitos histricos da mesma, em virtude da sua atividade material
e moral no passado e para reivindicao de seus direitos sociais e polticos, atuais, na
Comunho Brasileira.
[...]
23
Cf. DOMINGUES, 2004a; PINTO, 1993.
24
O estudo da mobilizao negra em So Paulo nas trs primeiras dcadas do sculo XX uma rea muito prolfica
no campo das relaes raciais. As pesquisas tm sido desenvolvidas com diferentes abordagens e variadas
temticas desde aquelas que lanaram fundamentos para estudos das relaes raciais no Brasil (BASTIDE e
FERNANDES, 1959; FERNANDES, 1965). Uma vertente significativa de pesquisas foi desenvolvida por
investigadores estrangeiros, identificados como brasilianistas, a exemplo de MITCHELL, 1977; ANDREWS,
1998; BUTLER, 1998; HANCHARD, 2001; e ALBERTO, 2011. Pesquisadores tm se ocupado com o estudo das
organizaes que marcaram o perodo (MOURA, 1980; PINTO, 1993; CARDOSO, 1993), e se aprofundado em
algumas, tais como a Frente Negra Brasileira (DOMINGUES, 2005; OLIVEIRA, 2002; FELIX, 2001). A imprensa
negra tambm tem sido abordada de forma geral (FERRARA, 1982; CARVALHO, 2009); ou com foco em jornais
especficos como O Clarim dAlvorada (FERREIRA, 2011) ou A Voz da Raa (SILVA, 2003). Ainda h os estudos
de trajetria de ativistas e intelectuais (FERREIRA, 2005). Recentemente, pesquisas tm investido no carter
internacional da mobilizao no perodo, quer seja pela interpretao que faziam da situao do negro em outros
pases, especialmente nos Estados Unidos (FRANCISCO, 2014b); ou pelo ateno que atraiam de ativistas e
organizaes estrangeiras (DOMINGUES, 2013; FRANCISCO, 2014a). Outra significativa linhagem na produo
sobre o assunto so os textos escritos por ativistas, ou resultado de entrevistas com os envolvidos na mobilizao
(LEITE e CUTI, 1992; BARBOSA, 1998; MOREIRA e LEITE, [1951]).
25
Estatutos da Frente Negra Brasileira. Fonte: Dirio Oficial do Estado de So Paulo, 04/11/1931, p 12.
31
26
Estatutos da Frente Negra Brasileira. Fonte: Dirio Oficial do Estado de So Paulo, 04/11/1931, p 12.
27
Na interpretao de Boris Fausto, a Revoluo de 1930 provocou um vazio de poder, pelo deslocamento dos
grupos polticos dominantes, especialmente da oligarquia cafeeira paulista conjugado com a incapacidade das
demais fraes de classe para assumi-lo, em carter exclusivo. Mas, rapidamente aps esse momento de vazio se
estabeleceram outros grupos, promovidos pelo Estado, na maior parte elites regionais menos influentes que
conseguiram ascender a foras polticas em nvel nacional (FAUSTO, 1975, p. 113) .
28
Em sua tese de doutorado Domingues apresenta uma explicao mais detalhada que explica esse sentimento de
abandono. Segundo o autor: em 1931, foi organizada a Frente nica Paulista (unio do Partido Republicano
Paulista, partido Democrtico e da Liga de Defesa Paulista), devido s divergncias de So Paulo com o governo
Getlio Vargas. Mas, segundo Pedro Paulo Barbosa, os negros no foram convidados para participar de nada. Da
a ideia de se organizar uma Frente Negra Brasileira. [...] A proposta era formar uma frente (ou coalizo) poltica
que unificasse todos os negros do pas em uma nica organizao (DOMINGUES, 2005, p. 82).
29
Essa interpretao de Bastide integra uma tese maior sobre a periodizao da imprensa negra paulista que se
tornou um pressuposto organizador de grande parte dos estudos feitos tanto sobre a imprensa quanto sobre a
mobilizao negra em geral. Cerca de duas dcadas depois dos escritos de Bastide, Miriam Ferrara (1973) fez bom
32
uso do acesso a maior quantidade de fontes e props uma reformulao da periodizao. A atualizao permitiu
corrigir o agrupamento dos jornais que fariam parte de cada perodo, mas no atacou o ncleo da tese que a
defesa da existncia dos perodos da imprensa negra marcados por temticas e posturas compartilhadas entre os
jornais.
30
Recentemente essa categorizao do perodo de formao da FNB vem recebendo crticas. Em um de seus
trabalhos, Domingues criticou o uso do termo poltico pelo fato de o negro se colocar como grupo desde os
primeiros jornais, com reivindicaes e problemas especficos, j se configura como um ato poltico
(DOMINGUES, 2008, p. 29). Apesar de ser uma crtica relevante, por problematizar o uso do termo poltico, o
sentido empregado por Bastide no o mesmo de Domingues. Alm da crtica categorizao, Domingues alarga
a periodizao e evidencia que a imprensa negra no ps-abolio teve incio em 1889, e no em meados da primeira
dcada do sculo XX, como afirmou Bastide e vrios autores depois da publicao de sua pesquisa.
31
Fernandes utiliza a o termo realisticamente para explicar que a atuao da FNB convergia para fins imediatistas
e praticveis coletivamente, mas que no exclua a esperana de uma alterao radical da estratgia seguida,
quando o prprio negro tivesse chances de pr em prtica comportamentos polticos de maior envergadura, o que
s aconteceria quando o negro tivesse conscincia dos movimentos reivindicatrios (FERNANDES, 2008b
[1965], p. 63-64)
33
Virgnia Bicudo32 (1947) afirmou sobre a Frente Negra que ainda que existindo o sentimento
de unio, surgiram obstculos para a efetivao da agremiao, em funo de sentimentos de
rivalidade e antagonismo entre os pretos33 (BICUDO, 1947, p. 212). Mas, ainda assim, as
barreiras sociais impostas aos pretos e pardos em So Paulo os compeliam ao movimento
coletivo, baseado no enaltecimento da raa, na promoo da educao e no desenvolvimento
da instruo (idem, p. 213).
Seguindo o entendimento do surgimento da FNB como um processo, estudiosos da
mobilizao negra nas duas primeiras dcadas do sculo XX destacam duas associaes como
as principais influncias: o Grupo Dramtico e Recreativo Kosmos (1908)34 e o Centro Cvico
Palmares (1926)35. O Kosmos tinha uma atuao voltada para a promoo de bailes,
convescotes, saraus e sesses teatrais. Das atividades promovidas pelo grupo, os bailes tinham
maior destaque, como geralmente acontecia nos clubes negros, muitos deles dedicados
exclusivamente realizao desse tipo de evento (PINTO, 1993; DOMINGUES, 2009).
O Centro Cvico Palmares surgiu com uma proposta diferente daquela j desenvolvida
pelos clubes danantes. O plano inicial era funcionar como uma biblioteca cooperativa para a
comunidade negra de So Paulo. Mas o centro teve logo suas atividades ampliadas e passou a
patrocinar encontros e conferncias sobre questes de interesse pblico, e em 1928 lanou uma
campanha para derrubar um decreto que proibia aos negros ingressar na milcia do Estado, a
Guarda Civil (ANDREWS, 1998, p. 227). Aps ter tido suas reivindicaes atendidas nessa
campanha inicial, a entidade iniciou outras em que tambm foi bem sucedida36. A mobilizao
32
Apesar de no ter declarado textualmente que a associao estudada em sua investigao tenha sido a Frente
Negra, consenso entre os analistas que esta foi a entidade foco da pesquisa. Silva (2011) tambm afirma que o
estudo de Bicudo foi o primeiro sobre a Frente Negra e sobre o seu jornal, A Voz da Raa.
33
Virginia Bicudo diferencia em seu estudo pretos e mulatos. Sobre os ltimos declarou: o mulato das classes
intermediarias no participou da Frente Negra, no sentiu necessidade de agremiar talvez por se incorporar, mais
facilmente de que o preto, ao grupo dominante (BICUDO, 1947, p. 214).
34
Sobre o Grupo Dramtico e Recreativo Kosmos, Domingues coletou informaes de que foi fundado por
iniciativa de um grupo de jovens negros que, cientes do racismo praticado por vrios clubes de brancos, resolveram
investir energia, tempo e vontade na construo de um espao prprio para animar as atividades sociais da
comunidade negra. A partir de 1909, quando a primeira diretoria tomou posse, o Kosmos como era mais
conhecido comeou a despertar a ateno de uma parcela da populao de cor e, aos poucos, tornou-se uma
espcie de referncia a ser seguida pelas demais (DOMINGUES, 2009, p. 1).
35
De acordo com Ferreira: Relatos de antigos militantes informam que o Centro Cvico Palmares surgiu em So
Paulo, no ano de 1926, por iniciativa de um sargento da Fora Pblica chamado Antnio Carlos. A ideia inicial
era organizar uma biblioteca, espao de leitura e tambm ponto de encontro, diferente dos j existentes: os clubes
danantes. [...] No Palmares ocorriam palestras, cursos e atividades culturais ligadas ao teatro e a poesia. Todas
tinham como objetivo concorrer para a instruo e fortalecimento conscientizao dos participantes no sentido de
faz-los sabedores de seus papis de cidados (FERREIRA, 2005, p. 80).
36
George Andrews informou que o centro foi bem sucedido ao requerer do governador Jlio Prestes que
suspendesse o decreto, e depois o convenceu a derrubar uma proibio similar que impedia as crianas negras de
participar de uma competio patrocinada pelo Servio Sanitrio de So Paulo para encontrar o beb mais
robusto e eugenicamente desejvel do Estado (ANDREWS, 1998, p. 227).
34
poltica contra a discriminao iniciada no Centro Cvico Palmares apontada como uma das
bases para a criao da FNB, inclusive pelos ativistas que fizeram parte da primeira entidade e
depois atuaram na formao da segunda (ANDREWS, 1998; FERREIRA, 2005). O princpio
da unificao promoveu o encontro de pessoas que j atuavam em diferentes associaes - como
os diretores do recm-extinto Getulino, os campineiros Lino Guedes, Gervsio de Moraes e
Benedito Florncio e de jovens que comeavam a aparecer na mobilizao negra paulistana,
como os irmos Arlindo e Isaltino Veiga dos Santos. Nesse sentido, Domingues (2005) reuniu
entre os motivos para o surgimento da FNB a vontade de ativistas que estavam atuando de
forma no articulada desde o desaparecimento do Centro Cvico Palmares, em 1929, de voltar
a se reunir em uma nica entidade.
Alguns jornais tambm receberam crdito pela contribuio para a mobilizao
engendrada pela Frente Negra. Regina Pinto (1993) destacou especialmente a atuao do jornal
O Clarim dAlvorada37, fundado em 1924 por Jayme de Aguiar e Jos Correia Leite (1900 -
1989 )38, tanto pela campanha que fizeram em prol do surgimento da FNB quanto pelo
envolvimento de seus diretores na fundao daquela entidade. A partir de 1928, esse peridico
abrigou como colaboradores alguns ativistas que tinham participado das atividades do Centro
Cvico Palmares39. Outro jornal que tambm colaborou com a Frente Negra foi Progresso,
inclusive por ter atribudo uma seo especfica para divulgao de suas atividades, chamada
de Comunicados da Frente Negra Brasileira (PINTO, 1993, p. 317). Mas, a importncia de O
Clarim dAlvorada est, em grande parte, associada aos debates que promovia e s denncias
das condies de vida e de excluso social em que se encontrava a populao negra em So
Paulo e no restante do pas (FERREIRA, 2011, p. 7). Apesar de j ter surgido com o carter
combativo, a proposta poltica do jornal foi sendo aprimorada. Como observa Ferreira, O
Clarim d'Alvorada surge com finalidades mais modestas, entretanto seus editores com o passar
dos anos vo desenvolvendo mais acuradamente suas reflexes, incorporando s pginas do
peridico temticas polticas e propondo prticas mais combativas (idem).
37
Maria Ferreira (2011) fez um levantamento dos nmeros disponveis do jornal e apurou que este teve trs fases:
a primeira, que foi de 06 de janeiro de 1924 a 06 de outubro de 1927, compreende um conjunto de 31 peridicos1;
a segunda, de 05 de fevereiro de 1928 at o ano de 1933 contm 26 exemplares. Em 1933, aps desavena com
militantes da Frente Negra O Clarim d' Alvorada extinto, s voltando a existir em 1940, data de incio de sua
terceira fase (FERREIRA, 2011, p. 1).
38
Sobre a relao de Jayme de Aguiar e Jos Correia Leite, Maria Ferreira (2005) apurou que tiveram amizade
desde a infncia, perderam contato por alguns anos quando Aguiar foi acolhido por uma famlia proeminente para
que pudesse se dedicar aos estudos. Quando retomaram a amizade na juventude, resolveram iniciar o jornal juntos,
depois que Correia Leite foi plenamente alfabetizado por seu amigo que era tcnico em contabilidade (FERREIRA,
2005, p. 15-16).
39
Esse foi o caso de Gervsio de Moraes, que declarou no incio de 1929 que passava a integrar a fileira de frente
de O Clarim dAlvorada (Aos negros sensatos de So Paulo. O Clarim dAlvorada, 03/02/1929, p.4)
35
J em 1925, o jovem Jos Correia Leite escrevia com entusiasmo no jornal que se
cogitava a fundao na capital paulista de um grande partido poltico composto
exclusivamente de homens de cor, denominado de Congresso da Mocidade dos Homens de
Cor (O Clarim dAlvorada, 15/11/1925, p.1). Para Leite, o partido corresponderia
organizao de um centro que trate dos nossos interesses, da nossa unio, para promover a
verdadeira evoluo. Uma associao da qual surgiriam outros ramos de Progresso para os
nossos irmos para a nossa mocidade de hoje, que parece querer doravante labutar com intento
de cooperar muito para a elevao dos nossos brios. No faltaram palavras ao articulista para
descrever o que seria esse partido, o esteio principal do grande edifcio que de h muito
projectamos architetctar e que at presentemente est desamparado (O Clarim dAlvorada,
15/11/1925, p.1). Pela leitura das pginas do peridico no possvel saber maiores detalhes
sobre a tentativa de formao do partido, nem quem eram as pessoas que cogitavam a fundao
dele, alm de Correia Leite. Alm disso, no registrei mais informaes sobre o assunto nos
nmeros posteriores de O Clarim. Ficamos com a curiosidade de saber como seria formado esse
partido poltico de negros em 1925, especialmente em seu carter jurdico, j que o Brasil
possua partidos, mas ainda no tinha uma legislao que regulasse sua atuao40.
A proposta de realizao do Congresso tambm recebeu outros modelos que no o de
partido poltico. No ano seguinte, 1926, o jornal lanou a proposta de formao da Associao
Crist de Moos de Cor e tentou organizar o Primeiro Congresso de Pretos do Brasil. Nenhum
dos dois se concretizou (OLIVEIRA, 2008, p. 106). Em 1929, foi lanada outra campanha no
O Clarim dAlvorada, nesse caso para a realizao do 1 Congresso da Mocidade Negra, no
primeiro momento apenas de So Paulo, logo depois passando a receber a designao
Brasileira. O congresso da mocidade era uma iniciativa que visava a reunio dos mobilizados
em torno da causa negra, ou como publicado em O Clarim d`Alvorada, a nata dos intellectuaes
da raa. Aqueles que se consideravam com a misso de ser arautos das ideias moas, que
tiveram a temeridade de cogitar a realizao de um evento desse tipo, com carter social
pela raa. (O Clarim dAlvorada, 03/02/29, p. 4). Correia Leite liderava o grupo que se reuniu
para realizao do Congresso. Sobre o redator de O Clarim dAlvorada, bem poca em que
se agitava a realizao do Congresso, foi dito em Progresso que tinha a estima e considerao
de seus pares por um conjunto de qualidades que lhe asseguram elevado conceito no meio em
que vive, e que apesar de moo, sua Raa deve-lhe inestimveis servios (Progresso,
23/06/1929, p.4).
40
Sobre a inexistncia de legislao partidria no Brasil durante a Repblica Velha, ver: Soares (1974).
36
Correia Leite convocou a mocidade negra, dando nfase aos moos de cor sensatos,
para participar do Congresso em um artigo de O Clarim dAlvorada, no dia 13 de maio de 1929.
Na ocasio ele escreveu: a poca dos congressos, e ns iremos, custe o que custar, realizar o
nosso I Congresso da Mocidade Negra. Deve-se congregar nessa afirmao patritica, dando
ao Brasil, uma nova demonstrao; levantando o lbaro da nossa reabilitao no conceito
nacional. O congresso deveria ser parte de uma tarefa que, segundo o articulista, j era de
conhecimento do negro, a consecuo da integralizao moral e material, por isso, uma
conquista imprescindvel e uma necessidade inadivel (O Clarim dAlvorada, 13/05/29, p. 6).
Outro grande entusiasta e apoiador do Congresso foi Arlindo Veiga dos Santos (1902-
1978). Formado em Filosofia e Letras pela Faculdade de So Bento41, ele foi convidado para
participar da comisso intelectual do evento e assumiu a responsabilidade de sintetizar as ideias
norteadoras e escrever um Manifesto42 (FERREIRA, 2005, p. 179).
Para que um Congresso Negro Brasileiro? Temos interesses especiais para cuidar? J
vol-o respondestes afirmativamente.
[...] Vdes imensa misria da Gente Negra do Brasil, considervel parte integrante
da Raa Brasileira. intelectual, moral, econmica e at physica essa misria.
Vivemos somente das baldas glrias do nosso passado homrico, as taes no bastam
para desfazer a nossa desgraa e impormos integral e absolutamente no conceito
nacional, contra o preconceito omnmodo e contra a situao vil de simples
instrumentos de dissoluo, degradao e humilhao nacional e de trastes esmoldos
sob o peso da cegueira poltica e sob o alude dissolvente das ondas estrangeiras e
estrangeirizantes.
O Clarim dAlvorada, 9/06/1929, p.1
41
Arlindo foi diplomado pela Faculdade de So Bento em 1925. Segundo Ferreira, instituio foi fundada em
1908, posteriormente tornou-se Faculdade de Filosofia e Letras de So Paulo e, em 1959, integrou-se a Pontifcia
Universidade Catlica de So Paulo (FERREIRA, 2005, p. 17).
42
Ferreira (2005) tambm analisou o Manifesto. Para a historiadora, o Manifesto tem a autoria de Arlindo Veiga
dos Santos, que assumiu a postura de intelectual pblico e adotou a estratgia poltica do documento de promover
o dilogo com negros no militantes. Ela ainda destaca trechos em que aparecem endereamentos: "Negros de So
Paulo e qui do Brasil", tidos como "bons negros humildes e soffredores silenciosos" (FERREIRA, 2005, p. 184).
Eu discordo da verso de autoria exclusiva de Arlindo Veiga, e prefiro trabalhar com a ideia de que tenha sido
fruto de um debate, que teria envolvido no mnimo Veiga dos Santos e Correia Leite, j que o segundo se
apresentava como principal idealizador do evento.
37
A escrita do texto sugere que a atuao de Arlindo Veiga foi alm da sntese das ideias
da Comisso Intelectual do Congresso. As questes colocadas no Manifesto correspondem a
temticas que tiveram maior vulto na Frente Negra anos depois, presidida nos primeiros anos
por Arlindo, como apresentarei mais adiante. Entretanto, no se deve desconsiderar que o
Manifesto foi tambm uma construo coletiva e, certamente, passou pelo crivo da aprovao
dos envolvidos em O Clarim dAlvorada para que fosse publicado naquele jornal. Alm disso,
o prprio Congresso da Mocidade Negra era um empreendimento do grupo que se agrupava no
Clarim.
De volta ao Manifesto, aquele poderia ter sido um bom recurso para a promoo de uma
mobilizao de massa em So Paulo. Sobretudo pela repercusso do argumento de que a
coletividade negra estaria lutando para a concretizao de um direito que j lhe pertencia, mas
que era sonegado. Contudo, apesar do esforo de que falavam os idealizadores na campanha
para a realizao do Congresso, este no aconteceu.
Em outubro, poucos meses depois de lanado o Manifesto, Jayme de Aguiar j admitia
que o Congresso da Mocidade Negra no aconteceria. Para ele, o fracasso na realizao no se
devia falta de dedicao dos organizadores, que dizia terem feito:
Ferreira (2005) atribuiu o fracasso na realizao do evento a trs fatores: baixa aceitao
da populao negra paulistana; controvrsias no meio associativo sobre como deveria ser
organizado o Congresso43; e a proximidade com a eleio presidencial de 1929, cercada da
agitao poltica que desencadeou a Revoluo de 1930, que permitiu a chegada de Getlio
Vargas presidncia.
Aconteceu tambm naquele contexto, a quebra da bolsa de valores de Nova York, em
1929, que iniciou uma crise econmica em nvel internacional, atingindo tambm a economia
brasileira, especialmente o sistema agroexportador44. No plano interno, os primeiros sintomas
da crise foram acompanhados da implementao de um processo de modernizao que
impactou tanto a economia quanto a poltica do pas. So Paulo era um dos epicentros dos
acontecimentos. A cidade passava por um acelerado crescimento econmico industrial e
populacional, o que dotava a sua elite poltica e intelectual do sentimento de empunhar a
bandeira da modernidade para o Brasil (MOTOYAMA, 2006, p. 23) ou, de acordo com outra
verso menos otimista e muito mais popularizada, ser a locomotiva da nao, a puxar vages
vazios (LOVE, 1982, p. 300).
A crena na superioridade de So Paulo em relao ao restante do pas foi incorporada
no projeto urbanstico e arquitetnico da cidade, descrito por Nicolau Sevcenko como um
quadro ao mesmo tempo deslumbrante e desorientador (SEVCENKO, 1992, p. 116). No meio
intelectual paulista tambm predominava a crena na superioridade e modernidade, a exemplo
do discurso da especificidade modernista da Semana de Arte de 1922, assim como o projeto da
Comunho Paulista45, que resultou na criao da Universidade de So Paulo.
Os fatores rapidamente elencados acima marcam o regionalismo paulista que, de acordo
com Barbara Weinstein, emerge junto com a prpria disseminao desigual da modernidade e
do desenvolvimento capitalista e se fundamentava na afirmao da diferena regional como
o equivalente de superioridade (WEINSTEIN, 2006, p. 283). Ainda segundo Weinstein, essa
superioridade regional, que se construa naquele momento no nvel do discurso, tinha tambm
43
Ferreira percebeu a partir da leitura de O Clarim dAlvorada divergncias entre os envolvidos na realizao do
Congresso. Segundo a autora, discutiam no jornal se deveriam participar s a juventude negra ou no seria melhor
que fosse um encontro aberto a todos os brasileiros. Alm disso, polemizavam sobre a legitimidade e capacidade
intelectual dos congressistas, uma vez que o Congresso se propunha a convidar um conjunto de intelectuais, de
preferncia negros para expor suas consideraes (FERREIRA, 2005, p. 22).
44
James Woodard realiza uma interessante anlise da crise do caf em So Paulo no livro: A place in politics: So
Paulo, Brazil, from Seigneurial Republicanism to Regionalist Revolt. Durham: Duke University Press, 2009. A
singularidade do trabalho de Woodard est na ateno para como se comportaram diferentes atores polticos no
contexto da crise que atingiu a produo de caf em So Paulo no ano de 1929.
45
Sobre a Comunho Paulista e o projeto de criao da Universidade de So Paulo, ver: CARDOSO, Irene. A
universidade da comunho paulista. So Paulo: Autores Associados/Cortez, 1982.
40
No texto, assinado por Frederico Baptista de Sousa46, possvel perceber o uso do termo
poltica, no sentido semelhante ao que foi empregado por Bastide (1951) para tratar da
passagem do primeiro para o segundo perodo reivindicatrio da imprensa negra. O articulista
descreveu precisamente o anseio de grande parte dos ativistas negros em So Paulo no final dos
anos 1920: o estabelecimento de uma organizao com carter de reivindicao poltica coletiva
para a populao negra. As propostas iniciais de construo de partido ou de um congresso, que
promovesse a construo de uma pauta e de onde se tirassem resolues, demonstram que esse
grupo estava convencido da necessidade de mobilizar a comunidade negra, de forma a torn-la
uma fora poltica tal que permitisse a demanda por direitos. Mas, a falta de apoio que a
proposta recebeu provocou certo abatimento e recuo. Ainda assim, fortalecia a certeza de que a
soluo para alcanar sucesso nesse tipo de mobilizao seria formar um grande bloco, ou
uma grande Frente, como se escolheu chamar.
O maior sucesso da agitao negra47, antes dos anos 1930, ficou por conta da campanha
em prol da construo de um monumento em homenagem Me Preta. Em So Paulo,
Correia Leite iniciou a campanha em O Clarim dAlvorada. Alm da criao do monumento,
havia tambm a demanda pelo estabelecimento de uma data comemorativa para a figura
simblica, 28 de setembro, dia de assinatura da Lei do Ventre Livre48. A construo do discurso
sobre a Me Preta foi de grande valor na mobilizao negra, no somente por ela representar
a possibilidade de conciliao entre negros e brancos, com base no arranjo secular que garantiu
s amas de leite o trnsito entre senhores e escravos; mas, tambm porque era um smbolo que
conseguia expressar a harmonia desejada e tambm garantia a construo de uma ideologia em
46
Paulina Alberto (2011) caracterizou Frederico Batista de Sousa como um membro particularmente ativo de
sociedades literrias e recreativas de So Paulo, e um zeloso guardio da respeitabilidade da classe de cor
(ALBERTO, 2011, p. 34). Ele, ainda em 1918, assumiu o cargo de diretor do Grupo Dramtico e Recreativo
Kosmos e, no mesmo perodo, passou a atuar como colaborador de diversos jornais da imprensa negra paulista.
Nos anos 1920, manteve participao em entidades recreativas, fez parte do Centro Cvico Palmares e integrou o
grupo que buscou realizar o Congresso da Mocidade Negra. Segundo Domingues (2004), Frederico trabalhava
como funcionrio subalterno da Faculdade de Direito do largo de So Francisco (DOMINGUES, 2004a, p. 331).
47
Agitao, como bem explicou Fernandes (2008b), foi o termo usado na mobilizao negra para designar os
movimentos reivindicatrios, e as lideranas eram chamadas de agitadores (FERNANDES, 2008b [1965], p. 110).
48
O simbolismo em torno da imagem da Me Preta no foi uma criao da mobilizao negra paulista, na
verdade, esse discurso era bem aceito e propagado at por grupos de elite. Alberto (2011) investigou campanhas
pelo monumento da Me Preta no Rio de Janeiro e em So Paulo. No caso da capital da Repblica, houve uma
movimentao em 1926, resultado da aliana entre lideranas negras e intelectuais que buscavam se distanciar da
ideologia do embranquecimento e do racismo cientfico (ALBERTO, 2011, p. 78-85). Em sua pesquisa, Alberto
tambm identificou que a influncia sobre Correia Leite para que esse passasse a reivindicar a Me Preta como
um dos smbolos centrais da mobilizao negra paulista foi Vicente Ferreira. Um dos principais entusiastas do
monumento da Me Preta no Rio, Ferreira migrou para So Paulo em 1927, por perceber maior possibilidade de
desenvolver na cidade sua atuao poltica, de cunho racial ( (ALBERTO, 2011, p. 92)
42
torno do protagonismo negro, que, mesmo sofrendo de uma espoliao secular, conquistou a
plenitude cvica, como chama a ateno Fernandes (2008b [1965], p. 120) 49.
1.1. Frente Negra e outras frentes Organizaes Negras nos anos 1930
Quando a Frente Negra foi fundada, em 1931, So Paulo estava vivendo uma agitao
poltica na expectativa de que o governo do presidente Vargas, iniciado em 1930, convocasse
uma Constituinte. A preocupao de como a formulao de uma nova carta constitucional
poderia afetar a populao negra, apareceu nas pginas do jornal Progresso, que publicou um
texto intitulado Frente nica, no dia 15 de novembro de 1931, que conclamava homens e
mulheres da raa negra para exigir, dentro do Brasil, os direitos que as leis que no lhes
negam mas que o [erro] moral e espiritual do Brasil lhes recusa poeticamente por um vil
preconceito contra uma raa a que o Brasil deve a sua formao como povo e raa, mas a que
ele tudo nega porque so negros (Progresso, 15/11/1931, p.3). Diante dessa situao, a frente
nica de homens e mulheres da raa negra teria o papel de eleger representantes na poltica,
para interferir na formulao e na aplicao das leis:
Na hora em que o Brasil vae reunir o seu Congresso Constituinte, dando uma nota ao
Brasil novo os homens e mulheres da raa negra devem compreender e batalhar para
que nesse Congresso o negro tenha sua representao de seus legtimos irmos da
raa, para pensarem e realizarem por fora da lei, tendo quanto ao homem e a mulher
de raa negra [venha] at hoje faltado por haver vozes que se levantem no parlamento
nacional em defesa dos seus grandes anseios de cultura e perfeio.
Homens e mulheres da raa negra, batalhae com ardor para que no alto conselho da
nao a voz do negro se levante como uma tuba de guerra impondo ao Brasil, para a
raa, os esplendores da Justia (Progresso, 15/11/1931, p.3)
Textos como esse que davam nfase poltica, associada convocao de uma Frente,
podem ter contribudo para que, a princpio, a proposta poltica da FNB no fosse bem
compreendida em espaos fora da mobilizao negra. Certos setores da imprensa noticiaram o
surgimento da entidade como a fundao de um partido poltico50. Outro equvoco que
aconteceu na poca foi a suposio de a entidade ser um brao poltico de um partido.
Segundo declarou um dos fundadores da Frente Negra os ideais frentenegrinos ecoaram por
49
Paulina Alberto analisou a atuao de intelectuais e ativistas negros para introduo da Me Preta como um
smbolo nacional. Ver: Alberto, Paulina. A Me Preta entre sentimento, cincia e mito: intelectuais negros e as
metforas cambiantes de incluso racial, 1920-1980. In: Gomes, Flavio; Domingues, Petrnio (orgs). Polticas da
Raa: Experincias e legados da abolio e da ps-emancipao no Brasil. So Paulo: Selo Negro Edies, 2014,
p. 377-402.
50
Cf. Dirio de So Paulo, 29/09/1931, p.5
43
todo o territrio ptrio, a ponto de os espritos incautos e cheios de zelo balofo em salvaguardar
as instituies nacionais, taxarem logo de incio e sem o menor escrpulo que: a Frente Negra
Brasileira era comunista e assalariada pela terceira Internacional. (A Voz da Raa, 09/1936,
p.4). A confuso inicial sobre a finalidade da FNB parece ter relao com a novidade como era
vista a tarefa de soerguimento da raa negra, como usualmente era chamado o
empreendimento associativo negro no incio dos anos 1930.
Ainda que cercada de percepes imprecisas sobre as motivaes que levaram ao
surgimento da Frente Negra Brasileira, esta chamou a ateno de diversos grupos polticos,
quer seja pela proposta inovadora quer seja pela expressiva adeso da populao negra
entidade51. Em termos numricos, a Frente Negra nos seus primeiros anos de funcionamento
conseguiu mobilizar muito mais pessoas do que o Partido Comunista, por exemplo, que tinha,
no mesmo perodo, cerca de oito anos de existncia e, estima-se, no mais que mil filiados.
No PCB, como demonstrarei na segunda parte desta tese, houve a percepo do poder
de mobilizao da FNB, contudo, o partido condenou a postura dos seus lderes, considerados
por eles negros aburguesados e influenciados pelos Estados Unidos. Jessica Graham (2014)
tambm analisou o interesse dos comunistas pela Frente Negra e destacou que o carter urbano
da entidade foi provavelmente o que despertou o interesse dos dirigentes do PCB. Esses
dirigentes ao mesmo tempo que percebiam um potencial revolucionrio tambm temiam o teor
reformista da mobilizao que poderia subverter a agitao comunista entre o proletariado
brasileiro (GRAHAM, 2014, p. 359). Essa concepo alimentou uma postura muito crtica do
PCB em relao Frente Negra, que Graham nomeou de competio. Mas, se era uma
competio, ficava mais no campo das ideias do que em aes efetivas que resultassem na
arregimentao de adeptos.
Da parte dos envolvidos na mobilizao negra, em So Paulo, no havia muita simpatia
pelos comunistas naquele perodo. Antes mesmo do surgimento da Frente Negra possvel
perceber traos de resistncia aproximao entre a luta negra e a proposta poltica comunista,
como aparece na pergunta publicada em um artigo no jornal O Progresso: ser que os sovietes
realmente acreditam que os negros embarcam em canoa furada?. No decorrer do texto o
articulista apresenta justificativas para explicar sua posio:
51
Domingues (2005) apresentou vrias estimativas da quantidade de scios que a Frente Negra alcanou e concluiu
que, apesar da impreciso das informaes, os nmeros so impressionantes para o perodo, considerando-se a
concentrao urbana e o nvel relativamente baixo de mobilizao poltica na sociedade brasileira
(DOMINGUES, 2005, p. 85).
44
Os soviets tem cada uma! Essa faco poltica russa, apesar de radicada pelo Mundo,
ainda no conseguiu estabilidade, na sua terra de origem.
Canada (sic) de lanar sizania (sic) em todas as classes sociais, e em particular na
operria, assestou suas baterias para a Raa Negra.
Deseja a Unio Vermelha, que os filhos de Cham, espalhados pelo universo, se tornem
independentes e filiados as organizaes russas, conforme uma deciso tomada pelo
comit central executivo.
Se acaso houvesse sinceridade nesse desejo, torna-se-ia um co (sic) aberto, a situao
mundial dos pretos.
Atravs das linhas do telegrama distribudo pela Under Press v-se, a olhos nus, uma
segunda inteno (O Progresso, 28/04/1929, p.5)
O tom ora jocoso ora irnico revela a pouca crena que alguns ativistas negros
atribuam s ideias comunistas. No texto no se explica qual seria esse cu aberto da
associao dos negros com os comunistas nem qual a segunda inteno desses. Talvez, dizer
que os comunistas no eram um grupo poltico estvel, fosse uma sugesto para implicar que
eles estavam procura dos negros para aumentar fileiras do partido, sem um comprometimento
real na incorporao da questo racial.
No entender de Andrews (1991), a tendncia anticomunista da mobilizao negra tinha
relao com a situao de classe mdia da sua liderana. No caso da Frente Negra, conforme o
autor, embora a maior parte dos membros parea ter sido de origem pobre e da classe operria,
somente aqueles que ascenderam para empregos de colarinho branco ou profissionais liberais
podiam aspirar a se juntar liderana (ANDREWS, 1998, p. 233). Contudo, Andrews tratava
como classe mdia negra e que estavam na direo da mobilizao negra eram pessoas com
ocupaes quase exclusivamente concentradas em atividades no manuais que requeriam
pequena especializao, como funcionrios de escritrio, quase sempre empregados em
cargos pblicos52. Na verdade, estudiosos do PCB indicam que foram exatamente setores da
classe mdia que tiveram maior influncia no partido. Contudo, a composio social dos negros
de classe mdia identificados por Andrews era bastante diversa dos setores de classe mdia
que lideraram o Partido Comunista do Brasil, com maior participao da intelligentsia brasileira
(a exemplo de Professores e estudantes universitrios e Jornalistas), profissionais liberais
(Advogados e Mdicos) e, durante a dcada de 1930, das Foras Armadas (Capites, Tenentes,
Sargentos e Cabos do Exrcito). Ainda analisando a influncia do PCB entre classes
profissionais, foi exatamente entre os trabalhadores manuais de baixa qualificao que o
52
Em uma entrevista publicada recentemente, mas realizada em meados dos anos 1980, uma das lideranas negras
da dcada de 1930 descreveu a situao social dos negros paulistas envolvidos com ativismo na dcada de 1930:
Naquela poca todos estavam desempregados. O Arlindo Veiga dos Santos era professor no So Bento e s tinha
uma cala e um palet. Ele era chefe de um movimento internacional, e s tinha uma cala, um palet e um sapato
desbeiado. Tanta dificuldade at com a alimentao (PEREIRA e VALENTE, 2014)
45
Partido teve pouca influncia e dificuldades para recrutar membros e dirigentes (RODRIGUES,
2007, p. 519-520).
Cabe aqui apresentar alguns dos envolvidos na Frente Negra que influenciaram os
rumos que seguiu a entidade. Desde a fundao, os irmos Arlindo e Isaltino Veiga dos Santos,
ocuparam os cargos de presidente e secretrio, respectivamente, as principais posies na
complexa estrutura administrativa dominada por um Grande Conselho 53. Domingues (2005)
assinalou que as funes do presidente se enquadravam na lgica autoritria com que a FNB
foi concebida, garantindo a ltima palavra em todas as questes. Os dois irmos j tinham
histrico de atuao na mobilizao negra em So Paulo e fizeram parte do Centro Cvico
Palmares. Apesar de Isaltino ter sido o primeiro dos irmos a se mobilizar para a formao da
Frente Negra, junto com outro militante, Francisco Costa Santos, a escolha da presidncia foi
dada para Arlindo, provavelmente, por ele ter formao universitria e, naquela poca, j gozar
de certo prestgio intelectual na sociedade paulistana54 (FERREIRA, 2005, p. 86).
Desde o incio, a concepo ideolgica que os irmos Veiga dos Santos imprimiram na
Frente Negra encontrou resistncias. Jos Correia Leite, que havia sido um dos 16 indicados
para fazer parte do Grande Conselho55, foi destitudo logo na primeira reunio, aps discordar
do processo de formulao do estatuto da entidade, escrito apenas por Arlindo Veiga. Dentro
da Frente Negra, Correia Leite liderava o grupo ligado ao jornal O Clarim dAlvorada, que
deixou a entidade junto com ele56. Depois de ser desligado, o prprio ativista pediu demisso
do cargo por via de uma carta enviada para o Grande Conselho. Na missiva ele afirmou que
53
Domingues (2005) explica que o funcionamento organizacional da Frente Negra se baseava na hierarquia e
centralizao de poder. A autoridade mxima ficava no Grande Conselho, composto pelo presidente,
conselheiros, secretrio geral, Conselho Auxiliar ou Administrativo, 1 e 2 secretrios, fiscais e o tesoureiro geral.
O Conselho Auxiliar (ou Administrativo) era constitudo pelos cabos e comissrios (DOMINGUES, 2005, p. 88).
Sobre o trabalho dos cabos e comissrios o autor explicou que eram os representantes de rua do grande
conselho. O recrutamento para esses cargos era feito entre os desempregados, pois era necessrio tempo e
dedicao para desempenhar as atividades do trabalho, que envolviam sada pelos bairros procura de novos
afiliados. Eles tambm cumpriam a funo de cobradores e recebiam uma porcentagem do montante de dinheiro
recolhido das mensalidades dos associados (DOMINGUES, 2005, p. 91).
54
Domingues (2006) apurou as seguintes informaes concernentes a Arlindo Veiga dos Santos: era culto,
dominava vrias lnguas. Traduziu alguns livros. Foi professor de latim, ingls, portugus, histria, sociologia e
filosofia. Lecionou em algumas escolas particulares e faculdades como, por exemplo, na Faculdade So Bento,
que se transformou posteriormente na Pontifcia Universidade Catlica (PUC) de So Paulo. [...] Em 1923, publica
o livro Amar... e amor depois, que mereceu a meno honrosa da Academia Brasileira de Letras (DOMINGUES,
2006, p. 530).
55
Os outros membros do Grande Conselho eram: Alfredo Eugnio da Silva, Vitor de Souza, Sebastio Costa,
Justiniano Costa, Irineu B. Silva, David Soares, Joo Francisco P. de Arajo, Horcio de Arruda, Dimas de
Campos, Antnio Alves, Cristovam Brasil, Alberto de Barros, Jos Celestino Franco, Hovanir da Silva Paranhos
e Alberto Orlando (DOMINGUES, 2005, p. 92).
56
Dcadas depois do ocorrido, Correia Leite declarou que sua postura sectria naquele episdio especfico se deu
pela suspeita de Arlindo Veiga dos Santos se aproveitar da posio de presidente da Frente Negra para usar a
entidade na divulgao de suas ideias patrianovistas, e integralistas (LEITE e CUTI, 1992, p. 94).
46
estava em pleno desacordo com as ideologias polticas e o clericalismo do sr. Presidente dessa
instituio ultra-nacionalista. E prosseguiu enfaticamente: nasci e morro republicano. Como
negro, condeno a monarquia, a religio e a repblica aristocrtica. Ganho o po para a minha
prole, com rduos trabalhos, no meio dessa burguesia estrangeira que sonha como eu, com uma
repblica socialista democrtica57.
Na carta notrio que a crtica de Correia Leite a Arlindo Veiga era fundamentada em
contrariedades poltico-ideolgicas, o que nos anos seguintes foi intensificado. No obstante, o
desentendimento na Frente Negra entre os dois ativistas parece tambm configurar a disputa
por espao e liderana da entidade em particular, e dos rumos da mobilizao negra, como um
todo. De toda forma, o afastamento de Correia Leite e seu grupo promoveu oposio Frente
Negra logo do incio e resultou em intensos debates e na diversificao de propostas polticas
no ativismo negro dos anos 1930, como mostrarei mais adiante.
No ano de 1932, a carta acima citada e enviada por Correia Leite foi usada como
pretexto para que os irmos Veiga dos Santos o denunciassem ao delegado do DEOPS/SP, com
acusao de que ele tinha assumido ser comunista, ao dizer que sonhava cm uma repblica
socialista democrtica. Aquele ano foi bem agitado entre alguns ativistas que desejavam galgar
lugares de liderana na mobilizao negra em So Paulo. Alm da carta de Correia Leite, vrias
outras, annimas ou assinadas, foram entregues polcia, com a inteno de desmoralizar e
denunciar. No foram s os irmos Veiga dos Santos que agiram dessa forma. Outros ativistas
tambm serviram-se dessa ttica arriscada, pois ao colocar o holofote sobre os outros,
inevitavelmente, o colocavam sobre si mesmos58.
A controvrsia no ficou somente no campo da denncia policial, em certas situaes
foram abertas aes judiciais. O baiano Joaquim Guaran Santana integrava a Frente Negra e
foi advogado dos irmos Veiga dos Santos no processo iniciado por Correia Leite, acusando-
os de ter mandado empastelar os jornais que funcionavam em sua casa 59. Poucos meses aps
esse ocorrido, Guaran Santana rompeu com a FNB e fundou o Partido Radical Nacionalista
57
Cpia fiel da carta enviada pelo Sr. Jos Correia Leite aos membros do Conselho da Frente Negra Brasileira,
So Paulo, 23/12/1931. (DEOPS/SP, Pronturio 1538 - Frente Negra Brasileira).
58
Pelo depoimento de Correia Leite, o episdio da entrega de sua carta ao delegado do DEOPS/SP serviu
exatamente para que a Frente Negra passasse a ser observada com mais ateno pela polcia (LEITE e CUTI, 1992,
p. 100).
59
Em 1932 vrios conflitos tiveram incio e foram alimentados nos jornais da imprensa negra. Uma grande
polmica envolveu um caso extraconjugal de Isaltino Veiga dos Santos. Para satirizar os dirigentes da Frente
Negra, o grupo de O Clarim dAlvorada criou um segundo jornal, Chibata, que provocou a ira dos frentenegrinos.
Quando estava no seu segundo nmero, a edio do jornal, que funcionava na casa de Correia Leite, sofreu um
empastelamento orquestrado por Arlindo Veiga e seu irmo, Isaltino (FERREIRA, 2005; DOMINGUES, 2004b).
47
(PRN)60. Segundo Ferreira (2005), a sada do advogado foi motivada pelo pouco espao que
tinha na Frente Negra para que alcanasse seu intento de ocupar um lugar de destaque na
mobilizao negra paulista. Outra verso para a sada foi apresentada por Isaltino Veiga em
carta que escreveu para o delegado do DEOPS/SP pedindo uma medida da polcia contra
Guaran Santana. Na condio de secretrio geral da entidade, Isaltino alegou que o advogado
tinha sido expulso por incapacidade moral, pois recebendo dinheiro dos seus associados no
lhe deu o fim necessrio61.
A carta tambm trazia alegaes de que Guaran Santana era perigoso a coletividade
porque tinha formado a Legio Negra para arregimentar homens negros para a Revoluo
Constitucionalista, ganhando com esse gesto vantagens pecunirias do governo revolucionrio
que tinha se estabelecido em So Paulo. De fato, Guaran Santana foi lder do grupo que decidiu
apoiar as foras que se levantavam contra o Governo Vargas, no movimento deflagrado em 9
de julho de 1932.
Os lderes da Frente Negra tiveram postura poltica oposta e mantiveram o apoio a
Vargas62. Apoio reconhecido pelo prprio presidente e pelo ento governador do Estado de So
Paulo, Armando de Salles Oliveira, que receberam em audincia dirigentes da FNB naquele
mesmo ano. Desses contatos a entidade auferiu algumas conquistas concretas no campo dos
direitos civis, como eliminar a prtica de proibir o ingresso de negros nos rinques de patinao
e impedimentos no acesso a posies na Guarda Civil de So Paulo. Um dos argumentos
utilizados pelos frentenegrinos foi baseado no Decreto n 19.482 de 1930, que obrigava
indivduos, empresas, associaes, companhias e firmas comerciais a empregar, pelo menos,
dois teros de brasileiros natos63.
No campo da oposio ao regime, a Legio Negra foi criada no dia 14 de julho, com a
inteno de ser um batalho especfico para o alistamento de negros dispostos a se juntar as
60
H duas verses sobre o Partido Radical Nacionalista. Segundo Kim Butler (1998), o PRN era um grupo
socialista e no se distinguiu da Legio Negra, em suas palavras: J. Guaran Santana fundou um grupo socialista,
conhecido como Partido Radical Nacionalista, comumente conhecido com Legio Negra (BUTLER, 1998, p.
124, traduo minha). J Domingues (2003) afirmou que o PRN tinha orientao ideolgica ultranacionalista cuja
inspirao era o modelo fascista em voga na Europa (DOMINGUES, 2003, p. 232).
61
(Pronturio DEOPS/SP, n 1538)
62
Em um documento apreendido pelo DEOPS/SP com data de 9 de maio de 1932, assinado por Arlindo Veiga dos
Santos e endereado aos Irmos Negros, o presidente da FNB expe a sua posio e da entidade: Quando demos
apoio a Ditadura, ao Exrcito Nacional na pessoa do Sr. General Ges Monteiro e quando apoiamos o programa
do Clube 3 de outubro, no foi, no, para sermos de novo escravos como desejam alguns que nos querem coarctar
a liberdade, que nos querem vender aos interesses particulares: foi porque vimos que a Nao estava ameaada
pela voracidade dos partidaristas ambiciosos, dos separatistas e bairristas e tambm dos internacionalistas,
inimigos da Unidade da Ptria que em suma parte obra dos Nossos Avs Africanos e Bugres (Pronturio
DEOPS/SP, n 1538).
63
Publicado originalmente no Dirio Oficial da Unio - Seo 1 - 19/12/1930, p. 22585. Esse decreto foi revogado
oficialmente em 1991, segundo consta no Dirio Oficial da Unio - Seo 1 - 21/1/1991, p. 1513.
48
tropas que faziam resistncia ao governo provisrio de Getlio Vargas. Alm de Guaran
Santana, que ocupou os cargos de chefe civil e capito da Fora Pblica, estiveram na direo
do movimento: Gasto Goulart, o chefe militar. Os dois eram auxiliados pelo tenente Arlindo
Ribeiro, tambm da Fora Pblica, e por Vicente Ferreira, uma das maiores lideranas do
movimento negro na poca. O tenente Cunha Glria era o secretrio 64. (DOMINGUES, 2003,
p. 209).
A Campanha Constitucionalista foi amplamente apoiada pela imprensa paulista65. O
surgimento da Legio Negra recebeu destaque nos jornais, inclusive com notcias sobre o
cotidiano das atividades que aconteciam na sede da entidade. Domingues (2003) observou na
leitura dos textos publicados nos jornais que a reao da elite poltica do estado demonstrava
certo assombro pela iniciativa do grupo que queria ser identificado racialmente, como negro, e
que se dispunha a lutar no movimento. Como bem chama ateno Flavio Gomes, a
participao negra em 1932 no era exclusividade da Legio Negra. Era, sim, seu discurso e
apelo racial explicito (GOMES, 2005, p. 73). Mas, como argumenta Weinstein (2006), a
existncia da Legio Negra no impediu que a Revoluo Constitucionalista reforasse, no
nvel de representao, ideias de hierarquia regional brasileira assentadas em noes
racializadas de superioridade paulista que no compreendia esse grupo de negros, to disposto
a se unir causa.
Na direo da entidade, Guaran Santana conseguiu valer-se do prestigio da Legio
Negra na grande imprensa e lanou um Manifesto, publicado no jornal Correio de So Paulo.
No documento, o advogado defendia que os negros deveriam fazer parte da Campanha
Constitucionalista em So Paulo para defender o imenso patrimnio que durante trs sculos
e meio acumulamos. Por isso, a afluncia de soldados descendentes da Raa Negra, bravos
como Henrique Dias, intemeratos como Patrocnio e sbios como os Rebouas, era mostra de
coerncia com o passado (Correio de So Paulo, em 21/7/1932).
64
Domingues (2003) investigou que a Legio Negra chegou a ter um efetivo de aproximadamente mil
combatentes, reunidos em trs batalhes de infantaria. Em relao s frentes de batalha, Domingues explicou: as
cinco principais frentes de combate da guerra foram a frente leste, na divisa com o Rio de Janeiro; a frente norte,
na divisa com Minas Gerais; a frente sul, na divisa com o Paran; a frente oeste, na divisa com Mato Grosso e a
frente litornea. A Legio Negra denominada s vezes de Henrique Dias atuou, mormente na Frente Norte e
na Frente Sul (ou do Paran). Ela era composta por batalhes (tendo como um das principais o Marclio Franco,
que tambm incidiu militarmente no setor Norte e Sul) e algumas tropas menores (DOMINGUES, 2003, p. 210).
Recentemente, as pesquisas sobre a Legio Negra receberam uma contribuio valiosa para a reconstruo da
histria do batalho: o estudo da participao de mulheres negras nas frentes de batalha, para maiores detalhes,
ver: FERREIRA, Jhonatan Uilly Gomes; CAMPOS, Paulo Fernando de Souza. Prolas Negras: a participao de
mulheres negras na Revoluo Constitucionalista de 1932. Revista Trilhas da Histria. Trs Lagoas, v.3, n6 jan-
jun, 2014, p.121-148.
65
Cf. BAHIA, Benedito Juarez. Histria, jornal e tcnica: histria da imprensa brasileira. 5. ed. Rio de Janeiro:
Mauad X, 2009. Vol. 1.
49
66
Transcrio de documento realizada em cartrio. Carta do capito Gasto Goulart, endereada ao General
Klinger, com data de 24 de setembro de 1932 (Pronturio DEOPS/SP, n 2029).
67
Carta de Isaltino Veiga dos Santos, endereada ao Illmo. Sr. Dr. Delegado de Ordem poltica e Social. So Paulo,
9 de novembro de 1932 (Pronturio DEOPS/SP, n 2029).
68
A Frente Negra no foi a nica organizao no meio negro a se envolver naquelas eleies. De um grupo ainda
mobilizado em torno da proposta da extinta Legio Negra foi apresentada a candidatura de Jos Bento Assis, um
dos comandantes civis (GOMES, 2005, p. 64). Outro diretor da Legio Negra e destacado ativista negro, Vicente
Ferreira, publicou um artigo no jornal Correio da Manh, no dia 15 de abril, conclamando os negros para tomar
parte nas eleies: e se a raa negra no despertar agora, ter sobre ella o mesmo silencio que a condenou at
hoje, irmos negros do Brasil, levantae-vos para o despertar vigoroso, tocando a rebate, para glorificar as cinzas
dos nossos antepassados, na esperana que a raa palpita, na esperana de ser respeitada nos direitos humanos [...]
chegada a hora de vos reunirdes em torno de uma bandeira, para a defesa e reivindicao dos vossos direitos.
Para a Constituinte! (A Voz da Raa, 22/04/1933, p.1)
69
O resumo das propostas de campanha de Arlindo Veiga dos Santos foi feito por Gomes (2005): fazia um ataque
ao bolchevismo numa perspectiva fortemente nacionalista do uso da terra e do acesso ao mercado de trabalho.
Produzia um discurso contra o internacionalismo da poltica e de estratgias de desenvolvimento econmico.
50
Declarava repudio onda imigrantista e defendia a concesso e terra aos brasileiros. Quanto ao problema do
negro, repetia as palavras do manifesto lanado em 1931, quando da criao da FNB: integralizao absoluta
poltica, social, religiosa, econmica, operria, militar, diplomtica etc.; o negro brasileiro deve ter toda aceitao
em tudo e toda parte, dadas as condies competentes (que devem ser favorecidas) fsicas, tcnicas, intelectuais,
morais exigidas para a igualdade perante a lei (GOMES, 2005, p. 63).
70
Pouco se sabe sobre a Frente Negra Socialista. Jos Correia Leite em entrevista a Marcio Barbosa, publicada no
livro Frente Negra Brasileira: depoimentos, explicou que o grupo dissidente que formou a Frente Negra Socialista
era de esquerda e saiu da FNB quando viram que as ideias de Isaltino e do Arlindo estavam prevalecendo, que
era um negcio de direita (BARBOSA, 1998, p. 70). O livro tambm traz excertos dos estatutos da Frente Negra
Socialista, publicados no Dirio Oficial, em 21 de junho de 1933.
71
Apesar das acusaes feitas pelos irmos Veiga dos Santos estarem em maior nmero nos arquivos do
DEOPS/SP, h tambm algumas cartas e depoimentos contra eles. Guaran Santana, que parece ter sido o principal
alvo das denncias dos irmos tambm delatava atividades ilcitas dos irmos. Em um depoimento concedido
ao delegado do DEOPS/SP e transcrito por um escrivo, em abril de 1933, Guaran declarou que os Veiga dos
Santos so declaradamente monarchistas (ptria-louvistas) (sic); que como a responsabilidade de lder da raa
negra tem que orientar os seus irmos da raa afim de que os mesmos no se lancem na loucura do ptria-louvismo
(sic), isto , a restaurao da monarchia no Brasil (Pronturio DEOPS/SP, n 2029).
72
Domingues (2004b) destacou uma lista de integrantes do CNCS, no perodo de sua inaugurao, que considerou
mais relevantes, como: Jos de Assis Barbosa, o diretor, Jos Correia Leite, Osvaldo Santiago, Raul Joviano
Amaral, Benedito Vaz Costa, tila J. Gonalves, Lus Gonzaga Braga, Benedito C. Toledo, Sebastiao Gentil de
Castro, Manoel Antnio dos Santos e Antunes Cunha.
73
O CNCS tentava associar atividades desportivas ou culturais com questes raciais. Por exemplo, anualmente
organizava uma corrida que tinha como ponto de partida o local onde estava o busto de Luiz Gama, no Largo do
Arouche (DOMINGUES, 2004b).
51
ideias polticas l (BARBOSA, 1998, p. 73). Correia Leite empregou o termo poltica com
uma acepo ideolgico-partidria, dado que prossegue afirmando que a poltica naquela
poca era uma coisa... se voc no fosse comunista, voc era fascista. Ento no tinha jeito de
se fazer poltica, porque a ideia democrtica, republicana, essas ideias estavam fora de questo
(idem).
A avaliao de Correia Leite sobre a poltica na dcada de 1930 encontra paralelo na
anlise da historiadora Lucia Lippi Oliveira (1982) quando ela afirma que, a despeito do debate
poltico naquele perodo comportar o confronto de diferentes projetos, os contendores,
partilhavam o mesmo universo de temas comuns ao pensamento poltico, inseridos em trs
grandes eixos: o elitismo, o conservadorismo e o autoritarismo (OLIVEIRA, 1982, p. 15)
Essas declaraes de Correia Leite revelam sua preocupao com as consequncias da
partidarizao no seio da mobilizao negra. Tambm podem ser indcio de uma mudana de
concepo em relao ao tipo de atuao que o associativismo negro deveria ter na poltica.
Lembrando que, em 1925, Correia Leite foi o primeiro a divulgar e apoiar na imprensa negra a
ideia de criao de um partido de negros em seu jornal O Clarim dAlvorada. Irei desenvolver
essa ideia mais adiante.
Nos primeiros anos da dcada de 1930, como assinalou Correia Leite, havia uma
oposio entre antifascistas - especialmente comunistas e comunistas - e integralistas, que
alimentou vrias tenses internas na mobilizao negra. Do perodo, ficou marcada mais
fortemente a simpatia da de lderes da Frente Negra pelo integralismo e pelo fascismo. Mas
dada a proporo que alcanou a oposio acima mencionada, at a FNB teve que lidar com
diferenas ideolgicas no mbito interno - no por acaso surgiu a Frente Negra Brasileira
Socialista, a partir de um grupo dissidente.
A Frente Negra Brasileira Socialista foi fundada em maro de 1933, dirigida por
Sebastio Schiffini, no cargo de secretrio geral, e Manoel Passos74. Uma mensagem publicada
no Jornal do Estado (Dirio Oficial de So Paulo), no dia 21 de junho de 1933, apresentava a
Frente Negra Brasileira Socialista como uma organizao revolucionria, cujo programa o
mesmo do Partido Socialista. Segundo Castro (2002), alm de gravitar em torno do Partido
74
Embora no tenha encontrado registros da participao de Manoel Passos, Flavio Gomes (2005) indica que este
no s participou, mas liderou a Frente Negra Brasileira Socialista.
52
Esta coisa de raa est no livro de Lothrop Stoddaris, mais uma das edies cbulas
da Revista de Occidente, do reacionarssimo Ortega y Gasset. ele o pai e a me
da neo-aristocracia [...] E para formar essa neo-aristocracia pede uma seleo racial,
de tipos puro sangue, espcimes apurados de capacidade fsica, mental, etc., como
Hitler pretende realizar. Mas nessa neo-aristocracia no haver lugar para a Frente
Negra, embora a boa gente que a dirige pense desse mesmo geitinho. (O Homem
Livre, 27/5/1933, p.3).
75
A FUA, organizao criada em So Paulo, era composta por diversas foras polticas, como a esquerda
tenentista, socialistas brasileiros e socialistas italianos, anarquistas e trotskistas. Da formao estava ausente o
PCB, que procurou se ausentar da proposta frentista. O ncleo duro da FUA era a Liga Comunista
Internacionalista (LCI), formada por dissidentes do Partido Comunista, e o ncleo mole era o Partido Socialista
Brasileiro de So Paulo. (CASTRO, 2002).
76
O redator-chefe de O Homem Livre era Geraldo Ferraz, que trabalhava tambm como secretrio de redao do
Correio da Tarde; o diretor-gerente era o advogado Jos Prez; e Mrio Pedrosa, era secretrio de redao
(CASTRO, 2005).
77
O primeiro nmero do jornal incluiu o artigo: Frente Negra, problema do negro, fascismo e as concluses de
Stoddard (O Homem Livre, 27 de maio de 1933, p.3). No segundo nmero foi publicada uma nota na primeira
pgina: A Frana, paiz negro: qual seria a opinio de Hitler sobre o Brasil?; e um artigo na quarta pgina: Frente
Negra: unio poltica e social da raa (O Homem Livre, 3 de junho de 1933). Em 22 de agosto o jornal publicou
um artigo com trechos de textos de lderes nazistas, um deles com o ttulo: Sobre a pureza da raa: contra a
igualdade das raas. Abaixo do ttulo foi acrescentada a mensagem: dedicado aos negros patrianovistas e
integralistas (O Homem Livre, 22 de agosto de 1933, p.3).
53
Na segunda edio O Homem Livre voltou a publicar um artigo sobre a Frente Negra
iniciado com a seguinte pergunta: o que pode pretender uma unio poltica e social da raa,
como define a Frente Negra Brasileira, num pais como nosso?. A resposta foi dada em seguida:
a autovalorizao da raa, em oposio ao valor da outra raa, ou das raas existentes e em
fuso no amlgama tnico do paiz. (O Homem Livre, 3/6/1933, p.3). Segundo a matria, o
curso de ao para realizar essa pretendida autovalorizao deveria incluir: influncia poltica
- traduzida como fora eleitoral -, desenvolvimento cultural, e organizao mstica de uma
nova maonaria. Segundo o articulista, isso de nada adiantaria, pois a situao em que se
encontrava a populao negra se devia aos resqucios do perodo da escravido. Na verdade, a
situao dos negros era percebida como bem encaminhada, pois julgava que, no perodo de
liberdade (45 anos), os negros j tinham feito muito e se adaptado de uma forma
extraordinria a sua nova situao (idem).
A grande interrogao para os militantes socialistas responsveis por O Homem Livre,
era como os lderes da FNB conseguiam conciliar um discurso de valorizao racial do negro e
de denncia contra o preconceito de cor com ideias de pureza racial, por causa da simpatia
por Hitler ou pelos Hitlers indgenas, como se referiam aos integralistas.
Para resolver indagaes semelhantes a essa, o antroplogo Andreas Hofbauer (2006)
props uma interpretao interessante sobre como se dava o arranjo dessas ideias conflitantes
no discurso de Arlindo Veiga, presidente da Frente Negra. Segundo o autor, a FNB tentava
fundir o projeto negro ao projeto nacional, e para isso, utilizava a poltica de Hitler na
Alemanha como modelo de poltica racial. Repito aqui a citao feita por Hofbauer de um
artigo publicado por Arlindo Veiga dos Santos no jornal da Frente Negra, A Voz da Raa, como
ilustrao:
Qu nos importa que Hitler no queira, na sua terra, o sangue negro? Isso mostra
unicamente que a Alemanha Nova se orgulha de sua raa. Ns tambm, ns
Brasileiros, temos RAA. No queremos saber de arianos. QUEREMOS O
BRASILEIRO NEGRO E MESTIO que nunca traiu nem trair a Nao.
Ns somos contra a importao do sangue estrangeiro que vem somente atrapalhar a
vida do Brasil, a sua unidade da nossa Ptria, da nossa raa, da nossa lngua. Hitler
afirma a raa alem. Ns afirmamos a Raa Brasileira, sobretudo no seu elemento
mais forte: O NEGRO BRASILEIRO. Basta de explorao (A Voz da Raa,
9/12/1933, p.1, maisculas no original).
Outra passagem de Arlindo Veiga dos Santos em A Voz da Raa ilustra bem suas
posies, em defesa das polticas nazista e fascista por terem uma caracterstica poltico-
ideolgica nacionalista, e na oposio a ideias comunistas ou socialistas. No artigo, com tom
54
Naes que se prezam, que tem uma doutrina nova e sria como a Itlia e a Alemanha
atuais, no podem permitir que uns pndegos da democracia liberal, os ladres que
at hoje vivem gritando os imortais princpios da revoluo Francesa, os socialistas
anarquizadores e os comunistas criminosos que preguem libertariamente a sua
estupidez. Tambm os bolchevistas russos, os malucos que inventaram uma
infinidade de abstraes lunticas querendo a toda fora e baldamente aplica-las neste
mundo com uma fria de brutalidade materialista e satnica, tambm os russos no
admitem em sua terra a pregao de coisa alguma que no seja comunista. Quem
tentar morre. (A Voz da Raa, 6/1/1934, p.1).
78
Arlindo Veiga dos Santos foi um dos grandes idealizadores do patrianovismo. Em 1928, em conjunto com alguns
amigos, fundou o Centro Monarquista de Cultura Social e Poltica Ptria-Nova (CMCSP Ptria Nova). As bases
da entidade foram estabelecidas em um programa poltico-filosfico-religioso de construo da Ptria-Nova,
fundada no princpio de que a instaurao do III Imprio seria a salvao para todos problemas do Brasil. Veiga
dos Santos se manteve na direo do grupo at 1934, que tinha passado a se chamar Ao Imperial Patrianovista
Brasileira. A partir de 1929, o grupo iniciou a edio da revista Ptria-Nova: Religio, Ptria e Raa
(DOMINGUES, 2006, p. 522).
79
No jornal foi publicada a acusao de os irmos Veiga dos Santos terem inescrupulosamente alterado um
balancete da Frente Negra. No documento foi declarado que a organizao contava com 50.000 mil membros
somente na cidade de So Paulo, em 1933. O nmero de associados foi comparado ao valor declarado em um
balancete, como proveniente de arrecadao e, segundo Brasil Novo, era muito inferior ao que deveria ser (Brasil
Novo, 10/04/1933, p. 1-2).
80
O jornal tinha uma equipe pequena. O expediente era formado por trs pessoas: J. Guaran Santana, Alfredo
Thom e W. Cardoso. Alm disso, todo nmero trazia textos assinados por colaboradores.
55
A raa negra no quer a monarchia porque essa megera distruiu-lhe o futuro, maculou-
lhe o lar, victimizou sua gerao, aniquilou sua mocidade e manchou de ignominia as
cans duma velhice sacrificada.
A Raa Negra quer a Republica na sua expresso liberal consciente, na sua magnitude
universalmente concessora de direitos conquistados por capacidades individual e
coletiva.
A raa negra quer salvar-se por si e para a ptria, mas, na Repblica, com a Repblica,
pelo Brasil.
A Raa Negra no patrianovista e no ser Lacaia de Magestades.
Morra o Rei!
(Brasil Novo, 17/7/1933, p.1)
81
Segundo Florencio, A Frente Negra Socialista crescia e j tinha alcanado milhares de scios em So Paulo e
em cidades do interior do estado, especialmente em Santos, provavelmente pela forte presena operria, mais
simptica a discursos de esquerda. Na cidade, a filial da Frente Negra se desvinculou da matriz e se associou
Frente Negra Socialista. Gomes (2005) explicou que ainda quando era parte da FNB, o ncleo de Santos apoiava
o partido Socialista nas eleies e mantinha fortes ligaes com o Sindicato dos Porturios (GOMES, 2005, p.
60). Tavares (2007, p. 99-103) investigou a penetrao da Frente Negra e da Frente Negra Socialista em Santos e
a aceitao das ideias frentegrinas entre comunistas e operrios negros. Em relao estrutura, se comparada
FNB, a Frente Negra Socialista era muito pequena. Naquele perodo, a Frente Negra tinha filiais distribudas no
interior de So Paulo e em Estados, como Rio de Janeiro, Minas Gerais, Esprito Santo, e tambm mantinha vnculo
com organizaes homnimas no Rio Grande do Sul, Bahia e Pernambuco (DOMINGUES, 2007b).
82
curioso que entre os nmeros de abril e julho tenha sido acrescentada ao subttulo do jornal rgo socialista,
a palavra independente. Provavelmente para demarcar que, apesar de socialista, o jornal no representava
nenhuma tendncia ou grupo socialista especfico. A independncia no representava isolacionismo, visto que
Brasil Novo aderiu Frente nica Antifascista em julho de 1933. (O Homem Livre, 07/08/1933, p.8)
83
Domingues (2007b) levantou fontes que explicam o desligamento, em abril daquele ano, Isaltino escreveu em
A Voz da Raa uma defesa contra acusaes de ter desviado recursos da FNB. Uma investigao realizada pela
seo de investigao do DEOPS/SP concluiu que Isaltino foi desligado da Frente Negra Brasileira, por imposio
da quase totalidade dos scios e de seus diretores, por ter se afastado das diretrizes da FNB, que ento s tinha este
ideal: defender o Brasil, instruir os brasileiros negros, e desenvolver uma grande ao nacionalista, combatendo
ideologias extranhas a vida brasileira (Ordem de Servio n 63. Pronturio no 1538, Frente Negra Brasileira.
DEOPS/SP).
57
direcionamento especifico para a populao negra, como demonstrei no captulo 1. Aps alguns
anos tentando promover aproximao com a mobilizao negra, os comunistas parecem ter
encontrado uma tima oportunidade em um grupo de ativistas negros interessados em integrar
aes antifascistas, mesmo aps a ANL ser considerada ilegal pelo Governo Vargas 84. Esse
grupo de ativistas fundaria uma organizao em 4 de novembro de 1935, a Federao dos
Negros do Brasil.
Domingues (2011) realizou um trabalho de cotejamento de fontes que permite fazer
algumas afirmaes sobre a atuao desse grupo. A primeira informao importante que a
Federao dos Negros do Brasil foi atentamente observada pela polcia poltica do DEOPS/SP,
que tinha um pronturio especificamente voltado para arquivar informaes sobre a
organizao e seus membros85. Segundo apurou um investigador do DEOPS/SP, no dia 9 de
novembro, 32 pessoas faziam parte da organizao, 6 mulheres e 26 homens. Entre os
identificados estavam Isaltino Veiga dos Santos e Jos Correia Leite, alm de outros dissidentes
da Frente Negra86.
Isaltino Veiga demonstrava estar muito interessado em participar como articulador da
organizao. Em agosto de 1935, o ex-secretrio da Frente Negra concedia depoimento em A
Plata, jornal ligado ANL e ao PCB, instando os negros mobilizao87 (CARNEIRO e
KOSSOY, 2004, p. 92). O surgimento da Federao dos Negros tambm foi noticiado por A
Plata, que informou sobre reunio realizada pelos elementos negros foi fundada a Federao
nacional do Brasil, movimento nacionalista da raa negra (A Plata, 5/11/1935).
Como j mencionei, a designao nacionalista nada tinha de conflitante com o
antifascismo da ANL, dado que esta havia formulado uma verso do nacionalismo que
contemplava a perspectiva de luta contra o imperialismo. Na verdade, como explica
84
Consta no depoimento de Jos Correia Leite a Renato Jardim Moreira que a Aliana Nacional Libertadora
como organizao de base popular, procurou envolver os negros. Assim, a Frente, a Legio e o Cultura foram
assediados por ela (MOREIRA e LEITE, [1951], p. 170).
85
Um investigador do DEOPS/SP relatou sobre a Federao dos Negros que a entidade nunca recebeu e nem
mereceu a ateno da FNB, porque esta somente soube de sua existncia por ligeiras informaes. Isaltino B.
Veiga, procurou articular a Federao dos Negros do Brasil com as suas congneres do Rio de Janeiro, mas
sabedora disso, a Unio Negra do Brasil, oficiou aqueles negando a Isaltino a qualidade de representante dos
negros de S. Paulo. Depois extingui-as. Outro dado importante que a Federao dos Negros do Brasil no foi a
nica a receber ateno do DEOPS/SP. Durante a dcada de 1930 o movimento associativo da gente negra, []
acusado de ser dotado de um potencial conspiratrio e de tentar criar um problema que supostamente no existia
no Brasil (DOMINGUES, 2011).
86
Segundo o investigador faziam parte da Federao Nacional dos Negros do Brasil: Isaltino Veiga dos Santos,
Benedicto Sodr, Estefanio Benedicto, Eustachio de Almeida, Manoel da Rosa Lima, Estella Silva de Miranda,
Antonio Almeida Prado, Sinval Neves, Jos de Almeida, Milton de Castro Santos, Benedicta Augusta de Almeida,
Maria Augusta de Almeida, Darcy Maria de Almeida, Dulce dos Santos, Benedicta Nazareth dos Santos, Jos
Correia Leite, Sebastio de Oliveira, Oscar de Barros Leite, Jos Igncio do Rosrio, Sebastio da Silva, Jos
Almeida, entre outros (DEOPS/SP, Pronturio 2018).
87
O negro brasileiro desperta e fecha os punhos num movimento de protesto. A Plata, 22/08/2015.
59
88
Manifesto da Federao dos Negros do Brasil. Fonte: DEOPS/SP, Pronturio 40.509.
60
antepassados. Um protesto moral que poderia causar a reunio das foras perdidas, para
um trabalho construtivo de base moral, social e econmica. Mas, Correia Leite pedia
previdncia ao homem negro brasileiro para que no fosse levado por tapeaes nessas
manobras de baixos interesses pessoais, daqueles que faziam a obra do negro em troca de
favores da poltica partidria. Naquele momento, o ativista defendia que a obra do negro
deveria ser realizada nos prprios arraiaes da raa. O que demonstrava um posicionamento
bem crtico ao envolvimento dos lderes da mobilizao negra com partidos. Postura que o iria
acompanhar por muito tempo e viria a ser uma grande influncia em seu ativismo, o que irei
demonstrar em detalhes no captulo 4, sobre a mobilizao negra em So Paulo aps 1945 (O
Clarim, 03/1935, p.1).
Voltando agitao poltica em torno da questo da Abissnia, apesar do momento ter
parecido muito propcio, a mobilizao intencionada pela Federao dos Negros teve pouca
expresso. Logo depois da organizao de um comcio, no dia 15 de novembro, a represso do
Governo Vargas contra grupos que estavam, at marginalmente, envolvidos com o comunismo
e com a Intentona Comunista foi severa. A ainda nascente Federao sofreu baixas com a
priso de diversos membros. Isaltino Veiga dos Santos foi considerado pelo DEOPS/SP como
fundador e mentor da Federao dos Negros, e indicado como o formulador do Manifesto da
entidade (DOMINGUES, 2011). Naqueles dias, Isaltino estava muito envolvido com a
mobilizao antifascista, mostra disso sua participao na divulgao do Manifesto da Frente
Popular pela Liberdade, assinado por ele em conjunto com o General Miguel Costa, o Coronel
Colombo de Melo Matos, o advogado Danton Vampr, Caio Prado Jnior, e os cientistas Jos
Maria Gomes e Waldemar Rangel Belfort de Mattos89. A proximidade entre a data da
publicao do Manifesto da Frente Popular pela Liberdade e a deflagrao dos levantes da
Intentona Comunista foi um dos fatores que provocou a priso dos envolvidos na divulgao
do documento, sob a suspeita de envolvimento com os levantes armados. Isaltino Veiga dos
Santos foi preso em 27 de novembro de 1935, ganhando liberdade somente depois de mais de
um ano de priso, em dezembro de 1936. Outro assinante do manifesto que tambm foi preso,
Caio Prado Jnior, naquele momento um jovem intelectual filiado ao PCB, recebeu soltura
ainda depois de Isaltino, em junho de 1937. Caio Prado exilou-se na Frana depois de sair da
priso. J Isaltino continuou a morar em So Paulo por um tempo aps ser liberado, mas nos
primeiros anos da dcada de 1940 j tinha fixado residncia no Rio de Janeiro, onde fundaria a
89
O Manifesto foi publicado no jornal Dirio da Noite, de So Paulo, em 23 de novembro de 1935, no mesmo dia
em que irrompeu o primeiro levante da Intentona Comunista, em Natal/RN.
61
Unio Negra Brasileira (unio poltico-social, cultural, artstica, cientfica e recreativa da gente
negra brasileira), entre os anos de 1944 e 1945.
Nos primeiros anos depois do fracasso da intentona comunista e do aumento da
perseguio e represso no governo de Vargas, a Frente Negra Brasileira, que apoiara o regime
desde seu estabelecimento, no incio dos anos 1930, continuou a operar sem impedimentos.
Tanto que, em 1936, registrou-se como partido poltico, sob a direo de Justiniano Costa, na
presidncia, e Francisco Lucrcio (1909-2001), como secretrio geral.
Em maio de 1937, Marcos Rodrigues dos Santos, fundador da filial da Frente Negra
Brasileira em Salvador (1932-1933), escrevia um artigo para A Voz da Raa, com o ttulo O
que pretendem os Negros Frentenegrinos com o nome de "Frente Negra Brasileira"90. No texto
explicou que a Frente Negra tinha sido reconhecida como partido poltico no somente em So
Paulo, mas em todo o territrio nacional e que naquele momento, os legisladores da raa
trabalhavam no campo poltico, dando provas de que so capazes de competir em todo terreno
das atividades humanas (A Voz da Raa, 06/02/1937, p.4).
Outro integrante da FNB que se destacava naquele perodo era o jovem Raul Joviano
Amaral (1914-1988). Amaral tinha participado da fundao do Clube Negro de Cultura Social,
em 1932, mas depois foi atrado pela FNB, chegando a ser capito da milcia frentenegrina,
uma organizao paramilitar que funcionava no interior da entidade (FERNANDES, 2008b
[1965], p. 56) . No artigo Representao Poltica, o jovem Raul escreveu ser tema nas rodas de
conversas dos negros que pensam em melhores dias para a sua classe, a possibilidade de se
apresentar candidatos, isto , deputados negros a prxima Legislatura em maio vindouro
[1938] (A Voz da Raa, 06/1937, p.4).
Apesar do anseio que artigos publicados em A Voz da Raa, ao longo do ano de 1937,
demonstravam pela apresentao de candidaturas para o Partido da Frente Negra, esse desejo
nunca veio a se realizar. Em novembro de 1937 Vargas fechou o Congresso Nacional e outorgou
uma nova Constituio, ficando assim decretado o incio do Estado Novo. Pouco tempo depois,
um decreto aboliu todos os partidos polticos; com isso a Frente Negra foi obrigada a encerrar
suas atividades. Raul Joviano Amaral e outros associados da FNB tentaram manter a entidade
utilizando outro nome, Unio Negra Brasileira, mas com vida curta; desapareceu em 1938, no
mesmo perodo em que se comemorava o cinquentenrio da Abolio em So Paulo.
90
Sobre a Frente Negra Brasileira na Bahia e seu fundador, Marcos Rodrigues dos Santos, ver: Barcelar, Jeferson.
A Frente Negra Brasileira na Bahia. Afro-sia, n 17, 1996.
62
91
Durante a dcada de 1930, apesar dos conflitos, o discurso sobre a necessidade de unificao era presente no
meio negro paulista. Em meados de 1933, por exemplo, Correia Leite, um dos primeiros a afastar-se da Frente
Negra advogava pela formao de uma Frente nica Negra, pedindo para cessar as pequenas intrigas e os
despeitos (Evoluo, 13/05/1933, p.9).
92
Campinas parece ter sido uma cidade paulista onde conflitos raciais eram bastante acentuados. Segundo
Hofbauer, naquela cidade, com forte presena de populao negra, os atos de discriminao se mostravam mais
formalizados aparecendo at em avisos escritos (HOFBAUER, 2006, p. 345).
93
Cf. NASCIMENTO, 2008, p. 109.
94
Segundo consta em um documento apreendido pelo DEOPS/SP, a proposta para mudana de local foi feita pelo
Secretrio de Segurana Pblica de So Paulo, que sugeriu o deslocamento do ponto de encontro para a Praa das
Bandeiras, no incio da Avenida Nove de Julho ou para o Parque D. Pedro II (DEOPS/SP, Pronturio 50Z-127-
54). George Andrews explicou que a rua Direita passou a ser um espao frequentado por negros pobres e da classe
trabalhadora em finais da dcada de 1930. Nas tardes e noites dos domingos a rua se transformava em um territrio
livre onde eles podiam socializar, danar e relaxar dos rigores da semana (ANDREWS, 1998, p. 281).
95
Carta de Rubens Ribeiro Costa, presidente da Associao Beneficente e Cultural Palmares, endereada ao
presidente Getlio Vargas. So Paulo, 11 de maio de 1944. DEOPS/SP/, Pronturio 50Z-127-54.
63
96
Documento do Servio Secreto. Assunto: Agitao provocada por elementos comunistas. DEOPS/SP,
Pronturio 50Z-127-54.
97
Um relato que pode estar associado a agitao investigada pelo DEOPS/SP foi feito por Abdias do Nascimento
na dcada de 1970. Segundo o ativista, uma comisso formada por ele prprio, Fernando Ges, Rossini Camargo
Guarnieri e Jos Galdino resolveu ir ao rio de Janeiro, ento Distrito Federal, protestar contra a proibio do footing
na Rua Direita. Abdias tambm explicou que o protesto da comisso teve pouca repercusso por causa da censura
a que estavam submetidos os jornais na poca (NASCIMENTO, 1976, p. 29).
98
A capa da revista Seiva e os ttulos dos textos publicados na edio de 13 de maio de 1939 esto no Anexo B.5.
Agradeo a Rafael Oliveira Fontes pela prontido e simpatia no envio de uma cpia digital desse nmero de Seiva.
64
Os ltimos anos do Governo Vargas foram marcados por uma agitao poltica
caracterizada por crescente participao popular. Os estudos que procuram entender as
mobilizaes do perodo geralmente apresentam a campanha antifascista, que ganhou vulto
com o ingresso do Brasil na II Guerra, em 1942, como o grande marco de uma srie de protestos
que fortaleceu especialmente a organizao estudantil e sindical. Na sada da ditadura varguista,
a movimentao dos grupos polticos crticos ao regime ficou concentrada em dois grandes
blocos: de um lado, grupos polticos j estabelecidos (liberais, conservadores ou oligrquicos),
que estavam na oposio ao regime de Vargas e desejavam retomar a situao poltica anterior,
de fragmentao, o que garantiria o controle regional e lhes dava possibilidades de disputar o
poder em nvel nacional. Do outro lado, grupos fortalecidos pela mobilizao popular (partidos
e organizaes) reivindicavam que a redemocratizao atingisse vrias instncias da sociedade
brasileira e no ficasse concentrada apenas no executivo estatal (CALIL, 2001)99.
Nesse contexto, surgiram tambm algumas organizaes que elegeram como finalidade
principal a reivindicao por melhoria das condies socioeconmicas da populao negra.
Certamente, o aparecimento desses grupos negros no lhes conferia singularidade per si, outros
coletivos de representao de trabalhadores, estudantes e mulheres, por exemplo, surgiram no
perodo. A particularidade na organizao negra tinha relao com o histrico prvio de
marcante mobilizao, particularmente em So Paulo. No meio negro100, os primeiros grupos
logo estabeleceram critrios de reconhecimento e legitimao; e em pouco tempo, apareceram
99
A abordagem proposta por Calil (2001) prope a anlise do fim do Estado Novo como um processo de declnio
com participao de diversas frentes. Sobre os grupos criados e fortalecidos na crise do Estado Novo, ver:
ALMEIDA JR., Antnio Mendes de. Do declnio do Estado Novo ao suicdio de Vargas. In: FAUSTO, Boris
(direo). Histria Geral da Civilizao Brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, tomo III, volume 10, p.
276-283
100
A expresso meio negro tem longa vida em seu uso na sociologia brasileira. Roger Bastide e Florestan
Fernandes empregam o conceito na primeira verso dos resultados da pesquisa UNESCO, publicada na Revista
Anhembi, X-XI:30-34, em 1953. Depois dessa publicao, as seguintes feitas por Florestan e Bastide, como
Relaes Raciais entre Negros e Brancos em So Paulo (1955) - e somente por Florestan Fernandes, como os dois
volumes de A Integrao do Negro na Sociedade de Classes (1965) -, tambm utilizam o conceito, sempre entre
aspas ou em uma citao do depoimento de um informante/colaborador. Por exemplo, em A Integrao, registrei
o uso de meio negro 172 vezes. No prefcio do autor para o livro Circuito Fechado, publicado em 1976,
Florestan abordou o processo de escolha dos conceitos a ser adotados nas pesquisas sobre relaes raciais feita a
partir da dcada de 1950. O socilogo explicou que dos conceitos descritivos utilizados (branco, negro, mulato,
meio negro), apenas meio negro era aplicado em uma dimenso inclusiva e totalizadora (FERNANDES, 2010
[1976]). Muitos estudiosos tambm fazem uso do conceito. Gomes (2005) compreende meio negro como o
pblico especfico dos intelectuais, grupos, associaes e entidades negras de So Paulo. A ideia de meio negro
circulava na imprensa negra paulista desde o final da dcada de 1920, em jornais como Progresso e Clarim
dAlvorada. A partir de 1945, o uso da expresso ficou mais usual que no perodo anterior. Jos Correia Leite foi
um dos ativistas que mais descrevia o meio de mobilizao negra em So Paulo como meio negro.
65
Seo 2.1 Ser Poltico e Ser Partidrio: o negro em questo no ps-Estado Novo em So
Paulo
Aps o fim do Estado Novo, a atuao de ativistas negros, que consideravam a abertura
poltica como um momento privilegiado para interveno, fundamentou-se na crtica a
problemas da sociedade brasileira. Das vrias organizaes de cunho reivindicativo que
surgiam em diversas regies do pas, formou-se uma articulao de lideranas, o que imprimiu
ao movimento um ritmo de constante agitao intelectual e poltica, especialmente entre os anos
de 1945 a 1948 (GUIMARES e MACEDO, 2008). Com o discurso focado na denncia e luta
contra barreiras raciais impostas aos negros brasileiros, especialmente relacionadas a vida nos
centros urbanos, grande parte dos ativistas que tiveram suas aes documentadas no perodo se
concentrava nos centros de deciso poltica e econmica do pas, especialmente nas cidades de
So Paulo e Rio de Janeiro.
Do dilogo entre ativistas com variadas posies, emergiram dois discursos divergentes
sobre qual deveria ser o carter do movimento associativo negro: um que privilegiava o
associativismo como principal forma de ao para construo e amadurecimento das demandas
em prol da populao negra; e outro que no descartava o associativismo negro, mas via na
poltica partidria um espao fundamental para introduzir reivindicaes em um ambiente
capital para sua resoluo, o Estado.
Logo nos primeiros meses de reestabelecimento da democracia, dirigentes de
organizaes negras lanaram uma proposta de unificao e de proposio de reivindicaes,
escolhendo So Paulo como o local para o primeiro grande ato pblico. Isso se deu
provavelmente pelo legado histrico de organizaes negras - como o Centro Cvico Palmares
(1926-1929), a Frente Negra Brasileira (1931-1937) e o Clube Negro de Cultura Social (1932-
1938) - e dos jornais da imprensa negra101.
O primeiro evento de maior visibilidade foi arquitetado para influenciar o processo de
disputas eleitorais para sucesso presidencial e para elaborao de uma nova Carta
Constitucional. A Conveno Poltica do Negro Brasileiro, que depois passou a ser chamada de
Conveno do Negro Brasileiro, foi realizada na capital paulista, no ms de novembro de
1945102.
101
A exemplo de O Clarim dAlvorada (1924-1932), Progresso (1928-1931) e A Voz da Raa (1933-1937).
102
A retirada da palavra Poltica do nome da Conveno deve ter ocorrido pelas crticas de que esta tinha finalidade
eleitoreira. Um panfleto da Conveno arquivado no DEOPS/SP tem a seguinte mensagem: A Conveno
Nacional do Negro Brasileiro no um partido poltico/ A Conveno Nacional do negro Brasileiro no apoia
67
nenhum partido poltico/ A Conveno Nacional do Negro Brasileiro no tem candidato algum/ A Conveno
Nacional do Negro Brasileiro no apoia candidato algum. Alm desse panfleto, outros da Conveno foram
arquivados pelo DEOPS/SP. Todos tm teor explicativo sobre a proposta da Conveno. Ainda sobre as dvidas
que pareciam existir outro panfleto traz a mensagem: procure compreender a nossa luta no sentido da Unidade.
preciso no se deixar iludir pela falsa propaganda em torno da Conveno Nacional do Negro Brasileiro
(DEOPS/SP, Dossi 50-Z-127).
103
A Revista Senzala surgiu em So Paulo, em 1946, com a inteno de congregar lideranas que atuavam em So
Paulo e do Rio de Janeiro. Os diretores de Senzala eram Geraldo Campos Oliveira e Sebastio Batista Ramos. Os
colaboradores do jornal compunham uma lista com 27 nomes, dentre eles Jos Correia Leite, Lino Guedes, Abdias
do Nascimento, Aguinaldo Camargo, Isaltino Veigas dos Santos, Jos Pomplio da Hora e Sebastio Rodrigues
Alves.
104
Alm de ter sido divulgado em diversos jornais e revistas, o Manifesto foi apresentado a Partidos e lderes
polticos, sendo recebido com simpatia por legendas como PSD, PTB, UDN, e PCB. Entretanto, quando o
manifesto e suas reivindicaes foram apresentados em forma de projeto na Assembleia Constituinte, em 1946,
pelo senador da UDN, Hamilton Nogueira, todos os pontos foram rejeitados pelo conjunto de senadores e
deputados.
68
105
Um panfleto da Conveno do negro arquivado no DEOPS/SP tem a seguinte mensagem: A Conveno
Nacional do Negro Brasileiro no um partido poltico/ A Conveno Nacional do negro Brasileiro no apoia
nenhum partido poltico/ A Conveno Nacional do Negro Brasileiro no tem candidato algum/ A Conveno
Nacional do Negro Brasileiro no apoia candidato algum. Alm desse panfleto, outros foram arquivados pelo
DEOPS/SP. Todos tm teor explicativo sobre a proposta da Conveno. Ainda sobre as dvidas que pareciam
existir outro panfleto traz a mensagem: procure compreender a nossa luta no sentido da Unidade. preciso no
se deixar iludir pela falta propaganda em torno da Conveno Nacional do Negro Brasileiro (DEOPS/SP, Dossi
50-Z-127).
106
Folha da Noite no se limitou a divulgar apenas a posio de Correia Leite em relao Conveno. No ms
de novembro de 1945, o jornal publicou matrias com informaes sobre o evento que se realizava em So Paulo,
a exemplo do artigo: Preconceitos raciais e constrangimentos de cor focalizados durante a Conveno Poltica do
Negro Brasileiro (Folha da Noite, 12/11/1945, p. 20). Essas reportagens sobre a Conveno centravam ateno
nos dirigentes do evento, o que indica que estes transitavam no meio da imprensa paulista tal qual acontecia com
Correia Leite. Outros jornais tambm fizeram cobertura da Conveno, O Dirio da Noite publicou artigo em
9/11/1945 e o Dirio de So Paulo nos dias 11/11/1945 e 13/11/1945.
107
Dentre os envolvidos com a mobilizao negra em So Paulo no perodo anterior ao Estado Novo, e que
desempenharam papel de liderana, Correia Leite foi o que conseguiu ingressar no perodo de abertura
democrtica, a partir de 1945, mantendo papel de destaque. Outros que tiveram papel importante antes que o direito
de organizao fosse restringido, como Arlindo Veiga dos Santos, primeiro presidente da Frente Negra Brasileira,
havia perdido influncia no meio negro e passou a se dedicar ao movimento patrianovista (DOMINGUES,
2006). Outra liderana importante na mobilizao negra, Isaltino Veiga dos Santos, mudou-se para o Rio de
Janeiro, onde fundou a Unio Negra Brasileira, em 1945. Ainda que outros militantes, que iniciaram suas
trajetrias na dcada de 1920, a exemplo de Jayme de Aguiar, Francisco Lucrcio, Raul Joviano do Amaral e
Fernando Ges, tenham se mantido atuantes na mobilizao negra, Correia Leite se estabeleceu como o nome mais
expressivo, sempre ocupando os cargos de maior destaque nas entidades em que participava.
69
situar a posio de Correia Leite em um lugar de legitimidade, ao afirmar que ele era um dos
mais autorizados a fazer comentrios, por sua atuao no passado como presidente do Clube
Negro de Cultura Social, na fundao da Associao do Negro Brasileiro (ANB), da qual era
presidente do Comit Organizador, e no jornal Alvorada (1945), onde ocupava o cargo de
diretor108.
Os motivos que Correia Leite utilizou para justificar sua desconfiana com os
envolvidos na mobilizao, que resultou na Conveno, foram baseados na incompatibilidade
das demandas expostas naquela ocasio com as dos negros mais humildes, com os quais ele
afirmava conviver. Na poca em que o depoimento foi publicado, Correia leite trabalhava como
funcionrio pblico, no cargo de encarregado do almoxarifado do departamento de Urbanismo
da Prefeitura de So Paulo, posio que ocupava desde 1937. Em uma entrevista realizada
alguns anos depois, em 1951, o ativista explicou que trabalhava desde os dez anos, e que j
tinha atuado como servente de pedreiro, carroceiro e em vrios ramos do comrcio, sempre
desempenhando servios braais109. Ao chamar ateno para a prpria condio
socioeconmica, Leite demonstrava estar em uma posio privilegiada para reconhecer na
proposta dos realizadores da Conveno do Negro uma perspectiva de classe no
correspondente populao que diziam representar110.
108
Alm de Correia Leite, Fernando Ges e Raul Joviano do Amaral estavam na direo do jornal Alvorada. Em
outubro de 1945, Alvorada divulgou o nome dos membros da comisso diretora da Associao dos Negros
Brasileiros, que tinha Correia Leite como presidente; Raul Joviano do Amaral como secretrio geral; Mario Silva
Junior, Roque Antnio dos Santos e Ablio Justino Costa, como tesoureiros; Fernando Ges como consultor e
Edgard Ferreira, Jos Barbosa, Francisco Lucrcio (antigo secretrio-geral da Frente Negra) e Manuel Antnio
dos Santos, atuando como assistentes. Paulina Alberto (2011) credita a Raul Joviano do Amaral, que havia
participado tanto da Frente Negra quanto do Clube negro de Cultura Social, o sucesso em reunir lideranas negras
que se encontravam em campos opostos antes da Ditadura Vargas, a exemplo de Correia Leite e Francisco Lucrcio
(ALBERTO, 2011, p. 156).
109
Fonte: Fundo Florestan Fernandes/UFScar, p. 245. 02.04.4526.
110
A lista dos signatrios do Manifesto divulgado ao final da Conveno Nacional do Negro continha 25 nomes,
de indivduos com trajetrias diversas, a maioria com relativa circulao em ambientes de classe mdia e no meio
intelectual de So Paulo e Rio de Janeiro. Seguem os nomes: Abdias do Nascimento, Francisco Lucrcio, tenente
Francisco das Chagas Printes, Geraldo Campos de Oliveira, Salatiel dos Santos, Jos Bento ngelo Abatayguara,
Emlio Silva Arajo, Aguinaldo Oliveira Camargo, Sebastio Rodrigues Alves, Ernani Martins da Silva, Benedito
Juvenal de Souza, Ruth Pinto de Souza, Lus Lobato, Nestor Borges, Manoel Vieira de Andrade, Sebastio Baptista
Ramos, Benedito Custdio de Almeida, Paulo Morais, Jos Pomplio da Hora, Ren Noni, Sofia Campos Teixeira,
Cilia Ambrsio, Jos Herbel e Walter Jos Cardoso (NASCIMENTO, 1982, p. 113).
70
Ns, os negros de So Paulo, nesta altura da nossa liberdade civil e poltica que
data de mais de meio sculo, sabemos bem distinguir quando se trata de ventilar
os problemas de nossa condio e quais os nossos verdadeiros e falsos lderes.
Eu, pelo menos, nasci e fui criado nesta Capital, sou um homem do povo e por
essa condio, a minha convivncia com os negros mais humildes.
[...]
Depois de toda essa confuso que se tem verificado no panorama poltico de nossa
terra, nunca pensei em entrar num movimento de agitao da massa negra de uma
maneira to inslita como essa que, apesar das boas intenes, no partiu de um
princpio bsico. Fao essa afirmao porque entendo que uma Conveno, na
sua verdadeira expresso de anlise e indagao de estudos de problemas to
complexos como esse do negro brasileiro no pode ser sustentada, em suas teses,
apenas pela orientao de quatro ou cinco indivduos, que no Rio deram vrias
entrevistas aos jornais.
[...]
Outra coisa que tem causado espanto a todos os negros de So Paulo essa
Conveno no se ter instalado no Rio, uma vez que ela rene ali, conforme
consta do seu diretrio nacional, representantes de vrios Estados da nossa
federao.
Para Correia Leite, em vez de se basear na vida da populao negra mais humilde, a
Conveno tinha sido estruturada em exploraes de sentimentalismo, certamente, no por
ms intenes, mas por certa ingenuidade dos propositores. Os principais motivos para os
equvocos da Conveno estariam atrelados incapacidade de suas propostas atrarem base
popular. Alm disso, outro ponto parece central para a posio de Correia Leite em relao ao
evento: o local de atuao poltica de seus idealizadores, o Rio de Janeiro111.
O prprio Correia Leite tratou do assunto anos depois, quando concedeu depoimentos
para elaborao do livro com suas memrias biogrficas:
Nesse nterim reapareceu em So Paulo o Isaltino Veiga dos Santos. Ele veio do Rio
de Janeiro dizendo estar em misso de um grupo de negros que pretendia realizar aqui
em So Paulo uma conveno de fundo poltico, voltada para a Constituinte que estava
prestes a ser convocada. Eu expliquei a ele que no podia participar porque j estava
comprometido (LEITE e CUTI, 1992, p. 144).
111
Sobre a procedncia dos organizadores da Conveno, os nomes dos membros do primeiro diretrio foram
registrados na ata da reunio de 28 de setembro de 1945, em reunio realizada na Unio Negra Brasileira,
localizada no Rio de Janeiro. Seguem os empossados: Presidente: Abdias do Nascimento; 1 Secretrio: Isaltino
Veiga dos Santos; 2 Secretrio: Synval Silva; Secretrio de Relaes Culturais: Jos Pomplio da Hora; Secretrio
de Assuntos Eleitorais: Sebastio Rodrigues Alves; Secretrio do Expediente Acadmico: Ironildes Rodrigues;
Secretrio de Propaganda: Jos Herbel; Secretrio de Finanas: Hemes di Ccero; Secretria Assistente de
Finanas: Ruth de Souza; Secretrio de Relaes Polticas: Aguinaldo de Camargo (Fonte: Dossi da Conveno
Poltica do Negro, IPEAFRO)
71
112
Carta de Geraldo Campos de Oliveira. (Fonte: Dossi da Conveno Poltica do Negro, IPEAFRO)
113
Um exemplo dessa perspectiva aparece na pesquisa de Michael Hanchard (2001). Para o autor a dificuldade de
insero da poltica racial no Brasil, desde 1945, se deveu s limitaes dos grupos polticos brasileiros, tanto os
de direita quanto os de esquerda, de inserir as demandas do movimento negro em suas pautas. Entretanto, Hanchard
no faz meno a multiplicidade de propostas em relao a poltica partidria no meio da mobilizao negra.
Assim, um conjunto de implicaes que poderiam apontar os motivos para dificuldade de insero da agenda do
movimento negro na poltica no so sequer cogitadas. Outro aspecto da anlise de Hanchard que grande parte
das fontes utilizadas para construir a histria social do movimento negro, entre os anos de 1945 e 1950, so
72
memrias de Abdias do Nascimento e documentos sobre o Teatro Experimental do negro, que, apesar de muito
relevante, foi apenas uma das organizaes daquele perodo.
114
Em termos de tiragem, Alvorada no tinha grande alcance, especialmente se comparado aos grandes jornais
paulistas em circulao, que, na dcada de 1930 j beiravam os 100 mil exemplares. Mas, o jornal circulava em
espaos considerados pelos seus idealizadores como estratgicos, alm de ser distribudo no meio negro de So
Paulo, era celebrado, por exemplo, o fato de Alvorada circular na Faculdade de Letras e Cincias Humanas (USP)
e no Instituto Histrico e Geogrfico.
73
O grupo que se reuniu na velha e tradicional cidade (Ribeiro Preto) e que a si mesmo
denominava-se, pomposamente, de Congresso, deliberou a fundao de um Partido
poltico (est nos jornais)... ser preciso mais? Ser. Ser preciso ainda, ns vermos
o espetculo doloroso e deprimente de sempre meia dzia de homens de nossa raa
se apresentarem aos principais chefes das agremiaes polticas e oferecerem o seu
prestgio de lderesda massa negra, medindo tais e tais concesses de benefcios,
que no fim resultam em alguns mseros contos, ou antes, mil cruzeiros, que
escorregam nos bolsos de cada um dos ditos lderes (Alvorada, outubro de 1945, p
4).
Para o grupo liderado por Correia Leite, a mobilizao negra deveria ser dissociada de
qualquer envolvimento com a poltica partidria. A defesa do associativismo como principal
curso de ao aparece em diversas publicaes de Alvorada116. Essa postura no era, contudo,
uma negao poltica como um todo, mas a crena de que a democracia que se estabelecia
trazia consigo espaos para discusso e resoluo de problemas de grupos especficos, dentre
115
Guimares e Macedo (2008) chamam ateno para a legitimidade intelectual que figuras como Gilberto Freyre
e Arthur Ramos tinham no movimento negro naquele perodo, especialmente em formulaes que contribuam
para o que os autores conceituaram como democracia racial negra, que pode ser resumida em um construto
utpico nascido da colaborao tensa entre radicais negros e progressistas brancos (GUIMARES e MACEDO,
2008, p. 174).
116
. Por exemplo, em dezembro de 1945, em um trecho do artigo intitulado Civismo e Compreenso, Raul Joviano
do Amaral afirma que: A associao em organizao social uma forma de contribuir patrioticamente para a
garantia das liberdades pela qual todos pugnamos. E uma frmula de levar ao Governo o amparo e o apoio que
necessariamente lhe devem os governados coletivamente, os negros estaro cooperando para que se consolidem
os pontos cardiais da democracia, engrandecendo-se a si mesmos pelo civismo e compreenso (Alvorada,
dezembro de 1945, p. 1).
74
eles a populao negra no Brasil. Nesse sentido, a posio apartidria em Alvorada era
associada defesa pelo fortalecimento da democracia, como modelo de Estado mais desejvel.
No do nosso programa dar conselhos polticos, orientar quem quer que seja a sse
respeito. Mas podemos dizer lealmente para quem nos honra com a sua ateno, que
este nao o momento dos negros se agruparem em organizaes polticas particulares,
ou, em grupos, nos Partidos existentes. preciso, por um instante apenas, at as
eleies democrticas de 2 de dezembro, pensarmos no Brasil. At l, trabalharemos
com afinco e com todo o nosso esforo, pela redemocratizao do pas. E depois,
confiemos na democracia, que ela nos permitir debater os nossos casos e problemas
e, assim, resolv-los (Alvorada, outubro de 1945, p. 4).
Parece incrvel a falta de viso de certos negros que trazem a luz meridiana destes
tempos de tantas renovaes, os velhos recalques de um capanguismo intelectual, para
satisfazer em nome da raa negra, as suas pobres pretenses, a liderana de tticas
incompreendidas. Nunca tiveram palavra macia e apresentao de uma ideia sequer
em favor de nossas massas. E desejam ser deputados... (Alvorada, janeiro de 1946, p.
4).
117
A exemplo dos artigos publicados sobre Abigail de Moura e sua Orquestra Afro-brasileira; sobre o TEN (O
Imperador Jones interpretado no Rio por artistas negros; O Negro no Teatro Brasileiro), sobre a associao Jos
do Patrocnio, alm das notas sobre o surgimento de novos jornais na Imprensa Negra (Senzala e Novo Horizonte
em So Paulo; e Palmares, no Rio de Janeiro), a divulgao de bailes carnavalescos, entre outros.
118
Um dos exemplos de discurso pr-unificao aparece no texto publicado por Raul Joviano do Amaral, intitulado
Unificao Transcendental, j de incio o autor menciona que: No a primeira tentativa, e certamente no ser
a ltima, a que no momento se verifica em todos os quadrantes do pas mas especialmente em So Paulo em
torno da unificao dos anseios do Negro brasileiro, unificao de pontos essenciais do seu programa de
valorizao, autovalorizao e integrao na sociedade brasileira (Alvorada, maro de 1946).
75
A crtica ao uso da justificativa racial por negros para a insero na poltica partidria
tambm era constante nas pginas de Alvorada. Mas, em novembro de 1947, o jornal apresentou
uma modificao em sua linha de argumentao ao dar espao para a veiculao da denncia
de discriminao racial por qual passou um candidato a vereador, pelo Partido Social
119
Outro artigo, publicado em Alvorada, na edio de setembro de 1946, aborda o oportunismo: Principiamos a
nossa jornada numa fase de intensa agitao poltica e de efervescncias partidrias. As miragens de certas
situaes no conseguiram nos demover e muito menos seduzir a nossa compostura ou quebrar os nossos
princpios. Atravessamos at aqui boa parte da mar e, nessa travessia, assistimos ao soobrar das primeiras
investidas atiradas pelas ambies oportunistas (p. 4)
120
Leader, por exemplo, foi o termo escolhido pelo antroplogo Arthur Ramos para se referir a necessidade do
surgimento de um legtimo representante negro para disputar a poltica eletiva, durante o contexto de
redemocratizao ps-Estado Novo. O comentrio foi realizado em uma demonstrao de apoio de Ramos
iniciativa de realizao da Conveno do Negro Brasileiro. O trecho da fala de Arthur Ramos foi publicado no
Jornal Dirio Trabalhista, em 15 de janeiro de 1947: compete a uma elite negra, com seus leaders traarem
normas, diretrizes, para o futuro do seu povo de cor...
76
O Sr. Jos Ribeiro que um brasileiro de pele escura quando foi includo na chapa
do Partido do Sr. Nereu Ramos, por certo, foi por seu merecimento.
No entanto, desde logo foi molestado e alvo de ataques, apenas porque um negro.
E quando se faz isso, procura-se logo, ridicularizar a pessoa, deslustrando a condio
de sua origem.
Ns que no tratamos de assuntos polticos e, muito menos, quando se trata de um
caso de contenda eleitoral: no podemos silenciar diante de um fato em que se
enquadra a intolerncia de prurido racial dessa gente fascistizada que desconhece a
histria poltica deste pas (Alvorada, novembro de 1947, p. 3).
121
A candidatura de Jos Ribeiro gerou intenso debate na imprensa catarinense. Nacionalmente, o PSD era o
Partido em maior evidncia, por ter eleito o presidente da Repblica, General Dutra, em 1945. No contexto local,
o PSD tambm era o Partido de maior sucesso eleitoral aps ter ganho os cargos de governador, vice-governador,
as duas vagas no senado e a vaga na cmara federal do estado. Alm disso, a maior bancada de deputados estaduais
era do Partido.
122
Jos Ribeiro j havia sido citado nas pginas de Alvorada, em setembro de 1946, no artigo intitulado Os
Negros de Florianpolis. O texto pode ser compreendido no conjunto das notcias de divulgao de iniciativas e
organizaes negras que apareciam periodicamente em Alvorada. Alm disso, a partir de dezembro de 1946, o
jornal tambm passou a ser distribudo na capital catarinense, atravs do contato com Jos Ribeiro e outros lderes
da mobilizao negra na cidade.
123
Os lderes do PSD em Santa Catarina prontamente acusaram os udenistas de serem preconceituosos e
antidemocrticos, em artigo publicado no jornal A Gazeta, no dia 24 de outubro de 1947. Em resposta, os udenistas
de Dirio da Tarde defenderam no ter feito nada condenvel e que Jos Ribeiro por ser de cor, no pode sofrer
tambm uma crtica, sem que ela envolva uma questo de raa? . Alm disso, afirmaram que por inocncia e
vaidade, Ribeiro estaria sendo usado pelo PSD para conseguir votos para eleger outros candidatos do Partido.
(Dirio da Tarde, 25/10/1947, p. 1)
77
Apesar de os editores de Alvorada terem sado em defesa de Jos Ribeiro, como foi
demonstrado anteriormente, e de o caracterizarem como um homem do povo, envolvido na
evoluo do tempo, no se furtaram crtica ao carnavalesco catarinense. Segundo eles,
Ribeiro, por ser lder de uma associao recreativa e gozar de certo prestgio popular, estaria
sendo instrumentalizado para usos polticos.
O episdio envolvendo Jos Ribeiro reforou uma postura que vinha sendo assinalada
por Alvorada desde seu surgimento: a ideia de que a poltica partidria no constava como uma
possibilidade vivel para realizao do que eles denominavam de levantamento cultural e
econmico dos negros. Isso porque, para eles, de um lado estavam os partidos que
intencionavam apenas se aproveitar e instrumentalizar as lideranas negras e, do outro lado, as
lideranas (ou pretensas lideranas) que se lanavam carreira poltica apenas por ganhos
pessoais, por vaidade ou por certa ingenuidade.
Outro ponto apresentado no texto, publicado em defesa de Jos Ribeiro, sugere que,
para o grupo encabeado por Correia Leite, no era simplesmente a presena de negros na
poltica que resolveria o problema negro no Brasil. Para justificar essa ideia argumentaram, por
exemplo, que: a presena de descendentes da raa negra nos altos postos de representao
poltica, uma questo remota. Prosseguiram explicando que:
O ncleo formado por Jos Correia Leite, Raul Joviano Amaral e Fernando Ges
manteve firme a posio de dissociao do movimento associativo da poltica partidria.
Entretanto, medida que o processo de redemocratizao ps-Estado Novo se completava,
tanto a Associao do Negro Brasileiro quanto o jornal Alvorada foram ganhando mais adeptos,
cujos projetos pessoais nem sempre confluam em todos os pontos com o que era defendido
pela cpula central, formada pelos trs ativistas mais experientes125.
Entre os anos de 1945 e 1947, tiveram lugar trs pleitos eleitorais em So Paulo. A
repetio do jogo eleitoral dentro do modelo democrtico aumentou a presso para que os
defensores do apartidarismo dentro da mobilizao negra redefinissem sua posio. A eleio
124
Forma como eram chamados os membros do Partido Republicano Paulista, surgido ainda durante o Imprio,
em 1873.
125
Em outubro de 1945, poucos meses aps a fundao da ANB, Alvorada j divulgava que a associao contava
com mais de 500 inscritos.
78
Dentre aqueles que passaram a colaborar com a ANB e com Alvorada durante, o perodo
de restabelecimento da democracia, estava Luiz Lobato, que contribuiria para o aumento da
tenso para adoo de uma postura diferenciada na relao com partidos polticos. Maranhense,
chegado ao Rio de Janeiro em meados da dcada de 1930, Lobato viria fixar moradia em So
Paulo, quando passou a colaborar mais ativamente com Alvorada em 1947. No ms de
dezembro, em um artigo intitulado Construamos Nossa Sede, ele fugiu censura imposta
79
pelos lderes da entidade e deixou registrado que havia participado como candidato das eleies
para vereador, realizadas em 9 de novembro daquele mesmo ano.
Correia Leite informou, em seu livro de memrias, que Luiz Lobato iniciou sua atuao
no meio negro paulista no grupo Jabaquara, do qual tinha sido uma das principais lideranas.
Sobre o grupo, Correia Leite registrou que este surgiu como uma entidade negra meio
clandestina durante a ditadura Vargas (LEITE e CUTI, 1992, p. 139). Provavelmente essa
caracterizao de Jabaquara tem relao com o fato da entidade ter sido investigada pelo
Departamento de Ordem Poltica e Social de So Paulo (DEOPS/SP) no perodo de intensa
represso poltica126. Alm disso, Correia Leite relatou que Luiz Lobato tinha sido ligado ao
Partido Comunista antes de se associar ao Partido Socialista.
Pouco se sabe sobre Luiz Lobato, apesar de ele ter se tornado uma destacada liderana
na mobilizao negra aps o fim do Estado Novo. Algumas pesquisas que tratam do perodo
utilizam o livro de memrias de Correia Leite como fonte para identificar Lobato 127. No livro,
126
A investigao foi realizada em 1944, com objetivo de descobrir a finalidade da Sociedade e a idoneidade
moral de seus fundadores e dirigentes. No relatrio da investigao consta a informao de que: a Organizao
de Cultura e Beneficncia Jabaquara uma sociedade legalmente constituda, que tem por finalidade elevar o nvel
moral, cultural e social dos seus associados. Alm disso, os documentos da investigao mencionam que
Jabaquara era uma sociedade de pretos, com fins culturais e beneficentes. Os investigadores concluram que a
pretenso dos responsveis pela organizao era de criar, no Brasil, a questo racial, problema gravssimo que,
felizmente, desconhecemos/ No se justifica a finalidade de tal associao, pois, no Brasil, pas essencialmente
democrtico, todas as carreiras e profisses esto abertas aos capazes, seja qual for a pigmentao de sua
epiderme. O relatrio finaliza com a indicao de que Jabaquara era perniciosa segurana pblica, pois o seu
programa de ao se presta admiravelmente para agitaes de modo [que] ser, infalivelmente, uma presa fcil
para os demagogos profissionais (Dossi 50-J-46-8, DEOPS/SP). O relatrio sobre Jabaquara tambm foi
analisado por: KSSLING, Karin SantAnna. O Discurso Policial sobre o Afro-descendente: Estigmas e
Esteretipos. Revista Histrica, n 15, p. 4-10, 2004.
127
A exemplo de COSTA, Diogo. A intelectualidade negra de So Paulo e o projeto Unesco: a construo de uma
contra ideologia racial. Recife: SBS, 2007; ALBERTO, Paulina. Terms of Inclusion: Black Intellectuals in
Twentieth-Century Brazil. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2011.
80
alm de explicar que o maranhense migrou primeiro para o Rio de Janeiro e depois para So
Paulo, o depoimento o caracteriza da seguinte forma:
O jornal Dirio Trabalhista do Rio de Janeiro, fonte utilizada por Guimares e Macedo
(2008), descreve Lobato como professor, alm de indicar outras atividades por ele
desempenhadas:
Professor Luiz Lobato, Secretrio geral do Diretrio Nacional da Conveno do
Negro Brasileiro, diretor tcnico do Instituto 13 de maio, sua responsabilidade
enorme na conduo do movimento negro cultural e artstico a que estamos assistindo
presentemente. A cultura do professor Lobato, a sua atuao - principalmente em So
Paulo - no sentido de elevar a gente negra a um padro cultural e humano mais digno,
o situam como uma das grandes esperanas desses milhes de brasileiros infelizes
os negros. (Dirio Trabalhista, 18/7/1946, p. 4)
Das duas fontes citadas, uma refora o perfil profissional de Lobato, professor, e a outra
se atem sua posio poltico- filosfica terico marxista. Outra fonte que, at o momento no
se encontrava integrada com essas que tratam da atuao de Lobato junto ao meio negro,
proveniente do partido poltico a que pertencia128. O Partido Socialista Brasileiro surgiu em
1947129, mesmo ano em que Luiz Lobato se candidatou a vereador em So Paulo. Desse fato,
pode-se concluir que ele participou do processo de fundao da entidade, o que seria uma rica
fonte de informao pela farta documentao que envolve esse processo. Entretanto, existe
pouca informao sobre Lobato nas pesquisas que tratam do surgimento do PSB. Hecker
(1998), por exemplo, reconstri a histria de surgimento do Partido Socialista com base em
depoimentos de antigos membros. Em seu livro, depois de afirmar que Lobato foi uma das 14
128
Em sua dissertao, Campos (2014) faz uso de Leite e Cuti (1992) e Hecker (1998) na inteno de montar um
perfil sobre Lobato, mas, quando trata da profisso, a autora utiliza apenas as informaes do livro de Alexandre
Hecker.
129
Sobre o processo de formao do PSB, especialmente em relao aos grupos sociais que compuseram a primeira
formao do Partido, Paul Singer nota que: O PSB paulista foi criado por um amlgama de grupos que
representavam um amplo arco de fraes distintas: ex-trotsquistas oriundos de vrios momentos da histria desta
tendncia, dissidentes do PCB, simpatizantes deste, estudantes e ex-estudantes do movimento de resistncia
ditadura do Estado Novo, remanescentes do Partido Socialista que atuou em So Paulo nos anos 30. Formava um
conjunto expressivo da esquerda no-stalinista do Estado. Quase de imediato, sobressaiu-se um conjunto de
intelectuais brilhantes, que assumiram a liderana ideolgica do Partido no s em So Paulo, mas tambm no
Brasil, em competio com outro conjunto de intelectuais, no menos brilhante mas provavelmente menos
homogneo e coeso, do Rio. (HECKER, 1998, p. 10)
81
pessoas que assinou o Manifesto da Unio Democrtica Socialista, que instituiu o PSB, o autor
o cita em duas passagens rpidas:
curioso que o mesmo Lobato identificado como professor e terico marxista no meio
da militncia negra tenha se convertido em operrio, adulado exclusivamente por ser o nico
nessa condio de trabalho, entre seus companheiros de Partido. Sobre a formao de Lobato,
existe a informao dada por Correia Leite (1992), de que ele tinha migrado do Maranho junto
com uma leva de estudantes (LEITE e CUTI, 1992, p. 139). A respeito de sua ocupao, um
anncio publicado na revista Senzala, em 1946, d cincia de que ele era tcnico em questes
fiscais e possua uma empresa: a Sociedade de Assistncia Tcnica em Assuntos Fiscais, com
dois escritrios, um em So Paulo e outro no Rio de Janeiro130.
Sem recair em uma investigao apenas com foco na busca do que verdico sobre a
trajetria de Luiz Lobato, basta saber que os dois perfis bem serviam aos seus interesses e dos
grupos em que se inseriu, Movimento e Partido. O prprio Lobato chama a ateno para um
aspecto que parece estar no centro do dilema que vivia, ao afirmar que, no Brasil, negro
povo, em uma entrevista publicada no jornal Dirio Trabalhista.
Em outro ponto da entrevista, Lobato apresenta uma explicao de como os Partidos
polticos se utilizavam do conhecimento de que o negro estava em maior quantidade entre as
camadas populares.
Os grandes Partidos, pelos seus chefes inteligentes, apoiam economicamente essas
organizaes [Diretrios Negros] para obterem, por intermdio delas, o apoio do
negro. Mas que benefcio real existe nessa transao para o negro, como coletividade?
Nenhum. Os benefcios concretamente sero para os Partidos polticos em geral e para
os seus cabos eleitorais, em particular. Que os negros se alertem, no me canso de
dizer contra esses lderes que jogando com a condio econmica do negro e com seus
sentimentos de haver sido escravo, no fazem outra coisa seno resolver
temporariamente sua situao pessoal (Luiz Lobato, Dirio Trabalhista, 18/7/1946,
p. 4).
130
O anncio foi publicado na pgina 6 da Revista Senzala, em maro de 1946.
82
apresentada por Correia Leite e seus companheiros que dirigiam o jornal Alvorada131.
Entretanto, a dualidade em que vivia Lobato, exige que se verifique sua atuao tambm dentro
do Partido, para a compreenso de como ele operava com as categorias que diziam respeito
sua militncia racial no seio da agremiao partidria.
Apesar da posio de pouco prestgio intelectual que parecia gozar no interior da
militncia poltico partidria principalmente por ser um grupo socialmente reconhecido como
pertencente a intelectualidade urbana132 , Lobato foi convidado para ser colaborador do
semanrio Vanguarda Socialista, fundado por Mrio Pedrosa, em 1945. Na poca de fundao
do jornal, Pedrosa, j reconhecido como crtico de arte, idealizou um rgo de imprensa com a
proposta de agrupar diversas tendncias da esquerda marxista crticas ao bolchevismo e, em
particular, ao Partido Comunista do Brasil (LOUREIRO, 1984). O jornal foi prontamente
abraado por intelectuais que despontavam na cena nacional, inclusive os ligados Esquerda
Democrtica133.
Segundo Correia Leite (1992), Lobato foi convidado para escrever no jornal pelo
prprio Mrio Pedrosa, de quem era amigo ntimo. De fato, Pedrosa e Lobato tinham militado
no mesmo grupo trotskista, que durante a ditadura Vargas sofreu represso e foi investigado
pelo DOPS. Em janeiro de 1938, Lobato chegou a ser preso, junto com outras sete pessoas,
dentre elas a mulher de Pedrosa, Mary Houston134. As prises foram feitas em uma tentativa de
desarticular a clula comunista constituda pelo grupo, que se reunia em Niteri. A notcia da
desarticulao da clula dirigida por Pedrosa foi veiculada em vrios jornais da poca, inclusive
131
Luiz Lobato demonstra concordar com a dissociao entre mobilizao negra e poltica partidria quando afirma
que: Todas as organizaes de negros em que sou filiado ou dou meio apoio, so de carter estritamente cultural.
Destacando-se, entre elas, a Conveno Nacional do Nego, pelo seu rumo imprimido de organizao sem poltica
partidria, sem racismos, sem demagogia e de um cunho elevado nos estudos os mais variados que tem
empreendido sobre o problema negro do Brasil (Dirio Trabalhista, 18/7/1946, p. 4).
132
Hecker (1998) explica que o PSB foi gerado no contexto de derrocada da Segunda Guerra Mundial, como
resultado das crticas patrocinadas por intelectuais de classe mdia, insatisfeitos com os rumos da poltica nacional
e esperanosos em participar no que entendiam ser a construo de um mundo novo (p. 221). O grupo que
conseguiu o controle ideolgico do Partido, considerado guardio das propostas socialistas, era constitudo por
nomes como Antnio Candido, Arnaldo Pedroso D'Horta, Azis Mathias Simo, Mrio Neme, Lourival Gomes
Machado, Dcio de Almeida Prado, Patrcia Galvo (Pagu), Srgio Buarque de Hollanda, Srgio Milliet, Paulo
Emlio Salles Gomes, Oliveiros Ferreira, Maurcio Tragtenberg, Perseu Abramo, entre outros.
133
Mario Pedrosa foi uma das maiores lideranas do trotskismo no Brasil durante a dcada de 1930. Devido a sua
atuao poltica, foi submetido a exlio entre os anos de 1937 e 1945, durante a Ditadura Vargas. No exlio Pedrosa
se afastou do trotskismo e passou a defender um socialismo democrtico, com proposta anti-stalinista e
anticapitalista. Pedrosa fundou Vanguarda Socialista, com a colaborao de outros intelectuais de tendncia
marxista que se encontravam no Rio de Janeiro, como Nelson Veloso Borges, Hilcar Leite, Edmundo Moniz e
Geraldo Ferraz. Alm de outros como Aristides Lobo, Flvio Abramo, Febus Gikovate e Aziz Simo, em So
Paulo, esses ltimos ligados a Esquerda Democrtica.
134
Outros presos na mesma ocasio foram: lvaro de Sousa Abreu, conhecido como Paes Leme, Elias Mariano
da Silva Lobo (irmo de Aristides Lobo), Luiz Cingolani, Carlos Alexandres Tamangui, Felipo Ferri e Pasquale
Petraccone.
83
Nos artigos dos jornais, assim como na ficha do DEOPS feita naquela ocasio 135, o
maranhense citado por seu nome completo, Luiz Hermenegildo Lobato, e so dadas algumas
informaes sobre ele: comunista professo, com antecedentes na polcia do estado do
Maranho, onde respondeu a inqurito policial militar, ficando exuberadamente provada a sua
responsabilidade nas tarefas subversivas da Juventude Comunista (Dirio da Noite,
14/1/1938). Nos jornais em que as prises foram narradas, Lobato foi descrito como algum
muito ativo, esperto e com a necessria retrica para imbuir os desavisados (Correio da
Manh, 14/1/1938). Alm disso, havia a informao de que ele fazia parte do Grupo B do
Partido Operrio Leninista, tambm chamado nas reportagens de Ala trotskista do Partido
Comunista ou de Partido Comunista do Trotskismo136. A priso de Lobato resultou em uma
135
Nos arquivos do DOPS existem duas fichas referentes a Lobato. provvel que a primeira ficha tenha sido
feita no perodo da priso de sua priso. Na primeira, constam as seguintes informaes: Luiz Hermenegildo
Lobato, 19 anos, natural de Maranho, Solteiro, Operrio, residente na Rua Tavares de Macedo, 194 - Niteroi /RJ.
Na segunda ficha, com data de 1951, o nome que consta apenas Luiz Lobato, nascido em 16/05/1916, natural de
So Bento / MA, Casado, Industririo, residente na Estrada do Vergueiro, 2889, SP. O nome da me e do pai de
Lobato tambm sofreram modificaes da primeira ficha para a segunda. Na primeira os nomes de seus
progenitores eram Luiz Augusto Lobato e Raymunda Lobato, e na segunda Luiz Antnio Lobato e Raimunda
Silvina de M. Lobato. Outra diferena a anotao, COMUNISTA (grifado em vermelho e com letras maisculas),
no quesito Atividade, que consta na primeira e no aparece na segunda (Cf. Anexo A.1).
136
O Partido Operrio Leninista (POL), fundado em 1936, sob a liderana de Mario Pedrosa. Sobre o POL ver
KAREPOVS, Dainis. Luta subterrnea, O PCB em 1937-1938, So Paulo, Hucitec, UNESP, 2003.
84
sentena de 3 meses de recluso. Com exceo de lvaro Abreu, julgado condenado, todos os
outros envolvidos foram absolvidos, inclusive Mrio Pedrosa137.
Em 1946, Lobato se tornou colunista de Vanguarda Socialista e voltou a morar no Rio
de Janeiro, integrando-se a mobilizao na cidade, ento capital da Repblica, sem contudo
desligar-se totalmente de suas redes de relaes em So Paulo. A coluna assinada por Lobato
recebeu o ttulo de O Negro e o Socialismo e tinha como proposta tratar de vrios temas de
interesse da populao negra. Um dos destaques da coluna ficou por conta do codinome
escolhido por Lobato para assin-la: Imperador Jones138.
A coluna comeou a ser publicada em 5 de julho de 1946. No texto, Lobato deu mostras
de como combinava a mobilizao em prol da causa dos negros com a necessidade de
implantao do regime socialista. Segundo o autor, o preconceito de cor se intensificava
medida que o capitalismo avanava na sociedade brasileira. A condio de classe proletria da
maioria dos negros brasileiros seria o fator que tornaria essa parcela da populao de
fundamental importncia para superao das contradies do modo de produo vigente. Mas,
isso no seria possvel se os negros ficassem a margem no movimento socialista. Para Lobato,
os interlocutores entre o socialismo e a populao negra deveriam ser as organizaes
associativas dos negros: Cabe, pois, aos negros do Brasil, por suas organizaes, baterem-se
pelo socialismo, difundi-lo o quanto puderem, afim de que seja abreviado o seu sofrimento e
uma nova aurora lhes surja - o socialismo (Vanguarda Socialista, 5/7/1946, p. 6).
Alm da relao entre os negros do Brasil e o socialismo, tema de seu primeiro artigo,
Luiz Lobato tratou de diversos assuntos em sua coluna, todos concernentes situao do negro
no Brasil. Por vezes tambm introduzia assuntos do panorama internacional, especialmente
acontecimentos ocorridos nos Estados Unidos. Nos textos publicados, alternava seu lugar de
enunciao, certas vezes marcava-se como socialista, chamando os negros para se organizar em
torno dessa perspectiva poltico-ideolgica; outras vezes se punha no lugar de ativista negro,
mas especificamente daqueles que denominava como jovens negros democratas e socialistas.
Nossa gerao de Fernando Ges, Solano Trindade, Agnaldo Camargo, Abdias
Nascimento, Geraldo Campos de Oliveira, Cristina Julieta Arago, Jos Borda, Maria
Jos Arago, Clia Ambroso, Sofia Campos, Laponsio Batista, Antnio Cndido de
Melo, Abigail Moura, nossa gerao no suportar mais o engodo, o embuste e outras
137
Segundo documentos arquivados do DOPS, Lobato foi sentenciado a um ano de priso em 5 de julho de 1938.
No dia 25 de julho do mesmo ano, a pena foi reduzida para trs meses, depois de uma apelao movida pelo
prprio Lobato.
138
Imperador Jones o nome de uma pea teatral de autoria do dramaturgo estadunidense Eugene O'Neill (1888-
1953). No Brasil, Imperador Jones foi o primeiro espetculo encenado pelo Teatro Experimental do Negro, em
1945. A curiosidade fica por conta do teor da obra, que conta a histria de Jones, um escravo negro que comete
assassinato e foge para uma das ilhas das Antilhas, onde ascende ao poder escravizando outros negros. Os
escravizados planejam uma revolta e matam o Imperador Jones.
85
artimanhas que se inventarem para vender-nos novamente nos balces dos grandes
Partidos polticos. Reagiremos, podem confiar. Porque o que nos alimenta a continuar
lutando em benefcio da coletividade no fruto da artimanha para proveitos pessoais,
mas a necessidade que temos de ajudar a libertao do povo brasileiro da explorao
do homem pelo homem (Vanguarda Socialista, 26/7/1946, p. 8).
139
O autor prossegue explicando que contra tudo que possa parecer um racismo de cor, eles se entendem quanto
distino entre as reivindicaes da classe proletria, na qual brancos e pretos devem trabalhar juntos, e quanto
aos obstculos que mais particularmente se oferecem aos homens de cor, que justificam a criao de grupos
especiais (BASTIDE, 1951, p. 54).
140
Quando falou sobre o grupo Jabaquara, Correia Leite lembrou-se de poucos nomes, os dos irmos Vaz Costas
e da filha do Tenente Rosrio, professora e irm mais velha da ex-deputada Theodosina Ribeiro, que se chamava
Maria do Rosrio Ribeiro (LEITE e CUTI, 1992, p. 139).
141
O relatrio arquivado no DEOPS/SP tem as seguintes informaes sobre os membros da Associao Jabaquara:
Consta que seu presidente, Jos Incio Rosrio, funcionrio do Frum. Alm do nome de Jos Incio Rosrio,
como presidente da associao, a lista de dirigentes era formada por: Benedito Vaz Costa (vice-presidente); Jarbas
dos Santos (secretrio geral); Maria de Lourdes Rosrio (1 secretria); Mario Vaz Costa (2 secretrio); Andr
86
feito com base em depoimentos de pessoas que no eram membros da Associao. Entre as
informaes recolhidas sobre o perfil dos associados ao Jabaquara, consta a de que, embora
pretos, mantm uma atitude correta, vestem-se decentemente e em suas reunies, que tm cunho
literrio, cantam e declamam (Dossi 50-J-46-8, DEOPS/SP). Sobre as profisses dos scios
da organizao informaram que figuram guarda-livros, dentistas, funcionrios pblicos,
operrios e empregados do comrcio (idem).
A proposta associativa de Jabaquara no resistiu por muito tempo depois do fim do
Estado Novo (LEITE e CUTI, 1992, p. 148) e, ainda que tenha fracassado em seu projeto de se
tornar uma entidade associativa para negros, a articulao de seus membros com os grupos
polticos com quem tinham relao, de certo, no se extinguiu. Tudo indica que, a exemplo do
que ocorreu com Luiz Lobato, outros associados se aproximaram do grupo que fundou a
Esquerda Democrtica em So Paulo, em 1945, e que deu origem ao Partido Socialista
Brasileiro, em 1947.
Nas eleies de 19 de janeiro de 1947, a primeira participao da Esquerda
Democrtica, constam, pelo menos, quatro nomes de candidatos negros apresentados pelo
partido: Sofia de Campos Teixeira, Francisco Lucrcio, Sebastio Francisco e Eurides de
Oliveira. Dos quatro, os dois primeiros tiveram atuao de destaque na mobilizao negra
durante o processo de redemocratizao142.
Francisco Lucrcio era um militante atuante desde a poca de formao da Frente Negra.
Sofia Campos foi citada na lista em que Lobato computou a gerao jovem na mobilizao
negra. Sem dvida, a presena dela na lista j um motivo relevante para que ele tenha se
comprometido a promover sua campanha em Vanguarda Socialista.
Sofia foi apresentada, na coluna assinada pelo Imperador Jones, no dia 27 de dezembro
de 1946, ainda no como uma candidata oficial do Partido, mas na condio de nome indicado
pelo diretrio da capital para deliberao do diretrio estadual. Lobato defendeu a indicao e
declarou que se tratava de uma socialista consciente, e a nica mulher que acompanhava
todo o desenvolvimento da Esquerda Democrtica143. Outro argumento utilizado em defesa da
Bueno de Oliveira (1 tesoureiro); Rubens Garcia (2 tesoureiro); Nestor Borges (provedor); Lafayete dos Santos,
Laponsio Batista e Jos Assuno (conselho fiscal) (Dossi 50-J-46-8, DEOPS/SP).
142
Sofia de Campos e Francisco Lucrcio, assim como Lobato, fizeram parte do grupo que assinou o manifesto da
Conveno Nacional do Negro, em 1945. Tambm participavam como colaboradores dos jornais e revistas da
imprensa negra paulista iniciados naquele perodo. Os dois tambm eram membros da Associao do Negro
Brasileiro, dirigida por Correia Leite e Raul J. Amaral.
143
De fato, Sofia de Campos teve atuao destacada durante a formao da Esquerda Democrtica, que depois se
tornaria o PSB. Hecker (1998), no livro em que reconstri a trajetria de Esquerda Democrtica de So Paulo
explicou que a professora negra participou do primeiro Diretrio do Partido em So Paulo, eleito em 6 de abril de
1948. O diretrio era presidido por Flvio Abramo e composto, alm de Sofia de Campos, por Antnio Costa
87
candidatura foi de que esta seria uma vitria moral, pelo ineditismo que sua eleio poderia
representar.
Pela primeira vez no Brasil, exceo feita ao Estado do Maranho, uma mulher negra
concorre com seu nome a um pleito eleitoral. E o fato se torna mais expressivo porque
se passar em So Paulo, em cujo Estado, embora tenha muitos negros, o preconceito
de cor atinge propores desconcertantes, contribuindo, para isso, o baixo ndice
econmico em que se encontram os mesmos (Vanguarda Socialista, 27/12/1946, p.
4).
Nesse mesmo texto, Lobato revelou uma tenso na disputa por espao dentro do Partido.
Como j mencionei, Francisco Lucrcio foi tambm candidato a deputado estadual, pela
Esquerda Democrtica naquelas eleies. No entanto, mesmo que existam fontes documentais
que atestem que Lucrcio, Lobato e Sofia de Campos participavam do mesmo crculo no meio
negro, no campo da poltica eles eram concorrentes. Pelo menos, isso que sugere a crtica
forte e de carter pessoal que fez Lobato escolha de Lucrcio como candidato pelo Partido.
A primeira observao que parece muito relevante sobre a situao questionar quais
seriam os motivos que levaram o partido a indicar Lucrcio antes de Sofia, j que ela era, como
Lobato afirmou, uma das fundadoras da agremiao. Ser que os motivos da escolha no
estariam relacionados a uma tentativa dos dirigentes de escolher um candidato negro que
poderia atrair mais votos? Se assim o fosse, era uma prtica que Lobato mesmo declarou ser
comum, mas reprovvel, embora estivesse sendo utilizada por seu prprio partido.
Entre Lobato e Lucrcio me parece que estava em jogo tambm a biografia do ltimo,
sua participao na Frente Negra Brasileira (FNB) e atuao como secretrio-geral da entidade,
a partir de 1934. Lobato era um ardoroso crtico da Frente Negra, no por sua proposta
associativa de cunho racial, mas pela linha poltico partidria que seguiu144.
Corra, Mximo Cardoso, Hozair Mota Marcondes, e Azis Mathias Simo. Hecker, ao fazer referncia a Sofia de
Campos a definiu como mulher negra smbolo para a democracia socialista (p. 96).
144
A postura de Lobato em relao a FNB aparece logo em seu primeiro artigo publicado em Vanguarda Socialista
quando afirma que: Nem mesmo a Frente Negra Brasileira, que o integralismo desejou manobrar seu belo prazer,
nem mesmo essa organizao fomentou racismo entre ns. (Vanguarda Socialista, 5/7/1946, p.6). Pouco tempo
depois, no texto publicado em 26/7/1946, ele afirma ter sido a Frente Negra quem iniciou a venda de negros aos
Partidos polticos. A crtica, portanto, direcionada ao uso partidrio da entidade, que, segundo ele, s ao
fascismo interessa.
88
145
A escolha de Francisco Lucrcio como candidato pelo PSB parece se enquadrar no critrio de admisso pouco
exigente explicado, segundo Hecker (1998), pela premncia em formar quadros e a insuficincia de candidatos
para organizar chapas completas. Essa situao resultou em constante admisso de indivduos dos quais o Partido
exigia pouco em termos de definio ideolgica (p.124).
146
Os textos foram publicados na seo Um ponto de vista, que divulgava junto com os textos o seguinte aviso:
Um ponto de vista a coluna destinada a receber a manifestao do pensamento de todo pensador negro que
queira dar livremente o seu parecer sobre a situao do negro em face da sociedade brasileira, no sentido
econmico, poltico, social e moral. uma pgina de debates em plano elevado sem visar pessoal e de qual
esperamos um corpo de princpios doutrinrios que possam orientar as atividades culturais e poltico-sociais da
coletividade negra do Brasil (Senzala, maro de 1946, p. 8).
147
A postura de Francisco Lucrcio em prol da criao de um partido negro naquele contexto representava tambm
a experincia da existncia do Partido criado pela Frente Negra Brasileira. O prprio Lucrcio trata do assunto em
entrevista concedida a Marcio Barbosa e Vera Benedito, publicada no livro: BARBOSA, Mrcio. Frente Negra
Brasileira: depoimentos/ entrevistas e textos; organizador Quilombhoje. So Paulo, 1998, p. 58-60.
89
compreendia que a questo racial deveria ser limitada ao programa do partido e no dominar
toda sua estrutura148.
Embora reconhea questes peculiares aos negros, repudio a separao de raas, quer
em forma de Partidos, quer como uma doutrina. Mesmo porque o problema do negro
sob aspecto econmico, social e at poltico, um problema de classe e jamais poder
ser resolvido sob o prisma racial.
[...]
O Partido poltico da raa negra no resolveria sua situao posto que seria um Partido
de meia dzia que iria negociar em nome dos negros para obter uma pretensa
melhoria. Tratar da elevao cultural, econmica e educao social e poltica da
coletividade negra captulo de programa partidrio. E nada mais. A sua estrutura
deve ser filosfica, afim de que sintamos realmente a necessidade de levar os negros
para um Partido poltico. O programa, repito, para este caso tem importncia
secundria (Luiz Lobato, Um ponto de vista: Partidos Polticos da Raa Negra, In:
Senzala, maro de 1946, p. 9/10).
Alm de suas opinies contra a criao de Partidos Polticos de Negros, Lobato fazia
crticas aos candidatos negros que se apresentavam nas eleies de 1947. Pouco antes de iniciar
sua campanha pela candidatura de Sofia de Campos, o articulista publicou um texto em
Vanguarda Socialista com o ttulo Candidatos Negros. Nesse artigo ele arguiu que, naquelas
eleies, os Partidos iriam apresentar negros candidatos e candidatos negros. Lobato utilizou
o trocadilho para enfatizar que, em sua opinio, ser negro no era motivo suficiente para que
um candidato merecesse o voto dos negros (Vanguarda Socialista, 6/12/1946, p.4). Assim,
alm de ser negro, o candidato deveria ter qualidades como inteligncia, cultura, carter e
deciso149.
Sofia Campos era, nas palavras de Lobato, uma mulher inteligente, culta, decidida e
de carter inatacvel. Incansvel na luta pela elevao do nvel econmico e cultural dos negros
brasileiros (Vanguarda Socialista, 27/12/1946, p. 4). Ainda segundo o articulista, a candidata,
que atuava como professora, tinha como bandeiras a luta contra o preconceito de cor e era a
148
A opinio de Lobato sobre a insero de assuntos relacionados aos negros em programas partidrios parece ter
tido ressonncia entre os membros do partido ao qual era filiado, o PSB. Em abril de 1947, o PSB divulgou um
Manifesto que figurou a luta contra o preconceito racial entre os princpios orientadores do partido. O item 8 da
carta de princpios tratava de cultura, educao, classe e raa: No terreno cultural, o objetivo do Partido a
educao do povo em bases democrticas, visando a fraternidade humana e a abolio de todos os privilgios de
classe e preconceito de raa (CHACON, 1981, p. 386). Antes da luta contra o preconceito racial passar a fazer
parte do programa do PSB, o PTB havia tratado do assunto em seu programa, divulgado em 1945. No texto do
PTB, a abordagem contra as dificuldades de acesso de cidados na vida pblica com causa no preconceito de
cor e no no critrio da competncia (CHACON, 1981, p. 446).
149
No mesmo texto, ele apontou um exemplo de um candidato que havia sido eleito, mas que no reunia as
qualidades que considerava fundamentais, Claudino da Silva deputado federal do PCB, em 1945. Ele explicou
que quando o deputado teve a oportunidade de se posicionar em defesa dos negros, apoiando uma emenda que
havia sido apresentada pelo senador Hamilton Nogueira (UDN), Claudino limitou-se a dizer que a emenda do
Senador era restritiva, mas no apresentou um substitutivo (Vanguarda Socialista, 6/12/1946, p.4). Na verdade,
o deputado federal Claudino da Silva apresentou um projeto de emenda constitucional versando sobre o assunto.
Tratarei do episdio com mais detalhes no Captulo 5.
90
favor dos direitos das mulheres150. Eram mostras do seu comprometimento com o cargo que
ocupava na direo do departamento feminino do Diretrio Estadual de So Paulo da
Conveno Nacional do Negro, o nico departamento que na realidade funcionou: a
colaborao na criao da Associao das Empregadas Domsticas e a defesa da sindicalizao
da categoria, que apresentou durante o I Congresso da Mulher que Trabalha. Lobato transcreveu
o que teria sido um trecho da fala que Sofia Campos apresentou durante o evento151:
150
Uma das muitas colaboraes de Sofia de Campos Teixeira em jornais da imprensa negra paulista consiste em
textos escritos na seo feminina da Revista Senzala. Em janeiro de 1946, em Algo Feminino, ela escreve o
seguinte: Considerando que o mundo no pertence s aos homens e sim tambm a mulher, e que a felicidade e a
desgraa quando sobre a humanidade no respeitam sexo, e que a mulher aceitando com resignao toda qualquer
responsabilidade decorrente das dificuldades da vida, ela julga ter direito de aceitar ou no as ideias daqueles que
se arrogam em diretores, que discutem a questo de ser a mulher indispensvel a tutela masculina, privilgio e
prazer de to falado sexo forte./ Entretanto, preciso que os homens sejam menos egostas para que as mulheres,
uma vez que j tem dado sobejas provas de cooperao tambm lhes caiba o direito da sua liberdade, como
humanas que so (Senzala, janeiro de 1946, p. 21).
151
A atuao de Sofia de Campos junto ao movimento de mulheres foi seguida de perto pelo DEOPS/SP. Nos
arquivos do Departamento encontrei 17 documentos que fazem referncia ao nome da ativista, que tambm tinha
uma ficha com informaes da investigao que foi feita sobre ela (Cf. Anexo A.2).
91
Assim como nas bandeiras os negros tiveram uma grande atuao, deixando, em cada
local por onde passaram, o marco de uma cidade, assim tambm em 1946, a mulher
negra deixa de ser a simples Me Negra que amamentou os filhos do sinh branco
e vai para as urnas reivindicar o lugar que lhe pertence (Vanguarda Socialista,
3/1/1947, p. 4).
Com sua observao sobre a Me Preta, Lobato propunha o rompimento com uma
tradio incrustada no seio da mobilizao negra do perodo, antecipando a quebra do discurso
de conciliao em tornos das tenses raciais na formao da sociedade brasileira, rompimento
esse que s viria a ser realizado de forma mais completa dcadas depois, por volta dos anos
1980 (GUIMARES, 2003, p. 99).
Retornando ao tema da candidatura de Sofia Campos, os artigos publicados em
Vanguarda Socialista so de divulgao de sua campanha, mas sem uma apresentao
detalhada das propostas. Ficou registrado apenas o que foi apontado por Lobato como sendo
suas prioridades. Sofia pareceu estar de acordo com o que foi publicado. Em uma nota
divulgada dois dias antes das eleies, externou agradecimento pela atuao do jornal em prol
de sua candidatura.
No h possibilidade de saber qual o impacto das publicaes de Lobato sobre o
desempenho eleitoral de Sofia de Campos, especialmente porque ele escrevia em um jornal do
Rio de Janeiro, enquanto ela era uma candidata em So Paulo. Ainda assim, o material oferece
uma rica documentao que destaca o pensamento sobre a candidatura de uma representante
negra com definida posio partidrio-ideolgica, de tendncia socialista.
Segundo o resultado das apuraes, a votao que Sofia recebeu no foi suficiente para
que fosse eleita. Alm disso, a Esquerda Democrtica, partido pelo qual se candidatou, no
atingiu quociente eleitoral, e, por isso, no elegeu nenhum deputado estadual. Sofia Campos foi
152
A figura da Me Preta era constantemente utilizada pela imprensa negra, especialmente no dia 28 de setembro,
data reservada para este fim, por ter sido o dia da assinatura da Lei do Ventre Livre. Curiosamente, Sofia de
Campos Teixeira publicou o artigo 28 de Setembro, no jornal Alvorada, no mesmo ano em que foi candidata a
deputada estadual, 1947. No texto, ela defendia a Me Preta como um smbolo imortal, no qual mulheres brancas
negras e mulatas deveriam se inspirar ao abraar o papel social de luta contra o preconceito na educao dos filhos
(Alvorada, outubro de 1947, p. 3). Sobre a construo simblica em torno da figura da Me Preta, ver: SEIGEL,
Micol. Mes pretas, filhos cidados. In: CUNHA, Olvia Maria Gomes da & GOMES, Flvio dos Santos. Quase
cidado: histrias e antropologias da ps-emancipao no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2007. p. 62-90.
92
a mais votada entre os candidatos negros da legenda (306 votos), seguida por Francisco
Lucrcio (182), Eurides de Oliveira (49) e Sebastio Francisco (18)153.
Aps as eleies de janeiro de 1947, Luiz Lobato continuou com sua coluna em
Vanguarda Socialista. Entretanto, naquele perodo houve uma modificao nos temas
abordados por ele, que passaram a tratar basicamente de denncias contra ativistas e
organizaes negras do Rio de Janeiro e de So Paulo. Um dos embates que travou teve relao
com o envolvimento de associaes negras nas eleies de 19 de janeiro154. O artigo Um grito
de alerta comeava com uma crtica Unio dos Homens de Cor do Paran, com a alegao
de que esta teria se envolvido em disputas poltico partidrias. Lobato defendeu que as
organizaes negras fomentassem o discurso poltico, mas no aderissem a qualquer
agremiao partidria, o que seria uma prtica repreensvel. Dito em suas palavras: se todas as
organizaes de negros no Brasil tiverem uma bandeira poltica partidria, jamais teremos, na
realidade, alcanado o objetivo que almejamos: a extino do preconceito de cor e as facilidades
a todos nos mais variados setores da vida pblica do pas (Vanguarda Socialista, 7/2/1947, p.
4).
A crtica feita Unio dos Homens de Cor do Paran funcionou mais como um preldio
para introduzir a questo que parece ter sido a fomentadora do texto, uma acusao contra a
Associao do Negro Brasileiro. Segundo Lobato, a ANB saindo fora de seu programa,
prestigiou, aberta e desassombradamente, um s candidato negro, quando no estado de So
Paulo existiam mais de cinco (idem). Os candidatos foram citados em seguida: Mario
Henrique de Almeida, do PSD; Arthur Albino da Rocha, do PTB; Sebastio Francisco, Eurides
153
A Esquerda Democrtica teve 45 candidatos, ao todo. O candidato mais votado foi Alpio Correia Netto, mdico
e professor da Universidade de So Paulo, com 2.22 votos. Sofia de Campos foi a 15 mais votada e Sebastiao
Francisco foi o candidato menos votado da legenda (CONOLLY, 2008). A maior parte dos candidatos do Partido
naquelas eleies era formada por escritores, pensadores, professores, profissionais liberais, artistas, como
assinala Hecker (1998), ao explicar que o PSB (nessa poca com nome de Esquerda Democrtica) manteve-se ao
longo do tempo como uma criatura disforme, cuja volumosa cabea mal se sustentava em um corpo franzino de
militantes (p. 90).
154
No tratarei com mais detalhes aqui das muitas polmicas iniciadas por Lobato em sua seo de Vanguarda
Socialista. Como exemplo, cito o texto Resposta a um negro comunista, no qual afirmou que na Rssia existia
preconceito de raa ou de cor e que, enquanto ns [negros socialistas] dizemos claramente que o preconceito
de cor no Brasil um problema de classe social, os comunistas [negros] calam-se sobre o assunto, naturalmente
para no espantar as branquinhas ou branquinhos de seu Partido (Vanguarda Socialista, 14/3/1947, p. 3-4)
93
de Oliveira e Sofia Campos Teixeira, da Esquerda Democrtica; Joo Vicente Ferreira155, oficial
do Exrcito, candidato pelo PSP (ibidem).
Lobato no citou Francisco Lucrcio, candidato da Esquerda Democrtica, o que leva a
crer que a pessoa de quem trata quando se refere ao candidato apoiado pela ANB. Alm disso,
Lucrcio compunha o ncleo diretor da entidade desde sua fundao, em 1945.
O Imperador Jones, no poupou crticas ao procedimento da ANB, que, segundo ele,
no teria feito o que era a obrigao de uma entidade que se dizia apoltica, na verdade,
apartidria. Assim, o certo teria sido chamar todos os candidatos negros para uma reunio e se
inteirar de seus projetos em relao a situao do negro no Brasil, independente de filiao
partidria. Em dado momento, o indignado articulista chega a afirmar que a atitude dos
dirigentes da ANB se igualava a de lderes decados, com um passado de ao que no
correspondia ao comportamento pelo qual eram acusados.
A denncia de Lobato, bem abrigado sob as asas da esquerda intelectual, tinha como
alvo o grupo liderado por Correia Leite. O texto finalizava com o que parecia uma sugesto de
rompimento entre o negro socialista e os dirigentes da ANB:
155
Vicente Ferreira foi uma importante liderana negra paulista no incio da dcada de 1930 por causa de sua
atuao na da Legio Negra (DOMINGUES, 2003). Oswaldo Faustino (2011) transformou Vicente Ferreira em
uma personagem no seu romance histrico sobre a Legio Negra. Ver: FAUSTINO, Oswaldo. A Legio Negra: a
luta dos afro-brasileiros na Revoluo Constitucionalista de 1932. So Paulo: Selo Negro, 2011.
94
156
Apesar de a sequncia de publicao do jornal estar incompleta, foi possvel encontrar os seguintes textos
assinados por Lobato: Os negros devem organizar-se, em junho de 1947; Como difcil educar, em julho de
1947; O Negro e o Humanismo, em setembro de 1947; Um programa a realizar-se, em novembro de 1947; e
Construamos nossa sede, j citado anteriormente, em dezembro de 1947. O retorno de Luiz Lobato a So Paulo
coincidiu com uma grande polmica em torno da publicao do artigo, Negros do Brasil, por Paulo Duarte, no
jornal O Estado de S. Paulo (16/04/1947, p. 5). O artigo de Paulo Duarte, associava o afrouxamento do Estado,
aps o fim do regime ditatorial, com uma desordem moral, que tinha no negro seu principal agente. Segundo
Bastos (2007), essa publicao gerou vrias manifestaes de estudiosos dos problemas sociais, alguns
contrrios e outros a favor do articulista (p. 251). No meio negro, houve manifestaes tambm, como no caso
de Alvorada, que publicou em sua edio de maio de 1947 o artigo, O esgar do Sr. Paulo Duarte, que denominou
as declaraes de ranos do arianismo, provenientes de um apavorado e lgubre, tresandado a miasma do
escravagismo, como contra o fantasma de uma imaginao retrograda (Alvorada, maio de 1947, p. 8). Entre os
defensores de Paulo Duarte estava o companheiro de partido de Lobato, Sergio Milliet. Sobre a polmica, Milliet
publicou o texto O preconceito de cor, tambm em O Estado de So Paulo (10/05/1947, p.7). No texto o escritor
afirma que as declaraes de Duarte foram mal compreendidas, e que no so uma expresso de racismo. Seus
comentrios seriam, ao contrrio, uma crtica a uma inteno de brancura, que sem chegar a constituir um
preconceito bastante forte para repelir uma poltica de valorizao excessiva do mulato, em maior nmero na
composio da populao brasileira (O Estado de So Paulo, 10/05/1947, p.7).
95
contou que de l ele [Lobato] comeava a criticar as nossas ideias, que eram contrrias as
ideias socialistas (p. 148). Na verdade, apesar das crticas, Lobato tambm atuou na promoo
de organizaes negras, especialmente a Conveno Nacional do Negro, o Centro de Cultura
Afro-Brasileiro (dirigido por Solano Trindade) e a Associao do Negro Brasileiro. Alm disso,
nos primeiros meses de sua coluna, o maranhense fez sistematicamente divulgao de Alvorada,
inclusive repercutindo notcias que haviam sido publicadas no jornal157.
Os atritos causados pelas divergncias de posio e opinio poltica, entre os envolvidos
na militncia negra paulista, so demonstraes de que esta vivia, naquele momento, uma
correlao de foras entre os congregados no que era por eles denominado de meio negro.
Nas diversas posturas, raa e classe operavam em arranjos particulares e atuavam na construo
de diferentes concepes polticas. Para Lobato e outros adeptos do socialismo, o
associativismo negro deveria ter fins raciais, mas em termos de organizao poltica, uma vez
que a populao negra, em sua maioria pobre, deveria aderir proposta socialista. Francisco
Lucrcio parecia acreditar na soluo frentenegrina de que a organizao poltica partidarizada
por parmetros raciais daria conta de resolver os problemas de natureza econmica dos negros.
J Correia Leite e seu grupo defendiam que o movimento associativo por si teria os
instrumentos necessrios para dar autonomia aos negros e tambm pressionar o poder pblico
no sentido da resoluo dos problemas da populao negra.
Mesmo levando em conta as disputas, no se pode desconsiderar a existncia da
cooperao, como tambm de um projeto de unificao engendrado pela mobilizao negra. O
desejo de unificao, quer tenha sido fruto de uma ideologia compartilhada ou da percepo da
fragilidade poltica por qual passava o movimento, permitiu que as trajetrias de ativismo se
construssem em proximidade.
No caso dos desentendimentos entre Luiz Lobato e os lderes da ANB, por exemplo,
pouco tempo depois o articulista de Vanguarda Socialista j fazia comentrios positivos sobre
a Associao do Negro Brasileiro, assegurando sua idoneidade, frente a outras entidades que
tratavam os negros paulistas como mercadorias, comportando-se tal quais capites do mato.
157
Por exemplo, em 9 de agosto de 1946, o Imperador Jones reproduziu uma denncia anteriormente publicada
em Alvorada sobre um titular que se outorgou o direito de representar aos negros paulistas num determinado
Partido poltico. A nota termina com votos de que os companheiros de Alvorada continuem vigilantes contra o
abuso desses pretensos lderes (Vanguarda Socialista, 38/9/1946, p. 8).
96
Nos primeiros meses de 1948, Alvorada passou a trazer textos mais crticos ao
desenvolvimento da democracia brasileira, que estaria sendo ameaada pelas prticas pouco
ticas da poltica partidria159. Associada desiluso com a democracia brasileira, o jornal
tambm trazia crticas forma como o associativismo negro estava sendo organizado em So
Paulo. Raul Joviano Amaral, que estava na direo da ANB e de Alvorada quando fecharam as
portas, no poupou crticas aos negros que davam pouca ateno aos soldados que tentavam
honrar a memria dos antepassados.
No penltimo nmero que se tem notcia da circulao de Alvorada, foi dito que a sorte
est lanada, e oxal venha a coletividade a unir-se no compromisso moral de fazer prosseguir
o processo histrico da emancipao. Para o seu diretor, ficava a certeza da previso: ns
158
Guilln foi um dos maiores representantes do negrismo cubano (OLIVEIRA, 2012). Em sua visita ao Brasil, o
poeta cubano recebeu homenagens da Academia Brasileira de Letras e da Sociedade Brasileira de Escritores.
159
Segue trecho do texto Momento Poltico, publicado em maro de 1948: Diante de tanto barulho que a poltica
vem fazendo, deixando o povo paulista estarrecido e sobressaltado, com tantas incoerncias de tica partidria e,
mesmo, dos postulados at h pouco apregoados e firmados no diapaso da eterna vigilncia. Deste jeito a nossa
nascente democracia, no s corre perigo, como, se ela sobreviver, tem que lutar para sair do atolamento das
paixes tortas e camesinhas desses homens que lutam pela ambio do mando (Alvorada, maro de 1948).
97
160
Depoimento de Jos Correria Leite a Renato Moreira Jardim, Fonte: Fundo Florestan Fernandes -
BCo/UFSCAR, 02.04.4526, p. 246.
99
Seo 2.2 Negros Polticos e Polticos Negros: Partidos e Campanhas Eleitorais no ps-
Estado Novo
No perodo posterior ao fim do Estado Novo, diversos aspectos da questo racial foram
mobilizados por grupos polticos, perceptveis tanto na abertura de espao para a candidatura
de negros quanto no enfrentamento de temas pouco debatidos na poltica at aquele momento,
mais presentes no discurso do movimento social, como o preconceito de cor161. Essa tendncia
aparecia nos partidos, que operavam com estratgias comumente denominadas de populista
ou trabalhista e naqueles grupos que se encontravam no campo da esquerda.
Dos partidos surgidos aps 1945, os programas do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB)
e do Partido Socialista Brasileiro (PSB) abordavam a questo do preconceito contra negros.
Nos dois casos, os tpicos que tratavam do assunto indicavam a existncia do fenmeno em
carter contextual e individualizado, o que no seria estrutural, mas localizado em certas
manifestaes que precisavam ser combatidas para a realizao da fraternidade ou solidariedade
que estavam na vocao do Brasil enquanto sociedade multirracial162.
Um fato significativo aconteceu em So Paulo, quando o ento governador Adhemar de
Barros, lder do Partido Social Progressista (PSP)163, nomeou um advogado negro como prefeito
da cidade. Paulo Lauro (1907-1983) ocupou a posio entre agosto de 1947 e agosto de 1948.
O advogado assumiu cargos na poltica desde o Estado Novo e se tornou uma figura notria em
1938, quando conseguiu a absolvio de um cliente, no episdio que ficou conhecido como o
Crime do Restaurante Chins164. Segundo Francisco Lucrcio, foi a Frente Negra Brasileira
161
A exemplo da Lei 1390/51, mais conhecida como Lei Afonso Arinos, que tornou contraveno penal a
discriminao racial ou, como expresso na letra da lei, atos resultantes de preconceitos de raa ou de cor.
162
Os programa de PTB e PSB encontram-se reproduzidos integralmente na Histria dos Partidos Polticos, livro
organizado por Vamireh Chacon (CHACON, 1981).
163
O PSP foi formado da fuso entre o Partido Republicano Progressista (PRP) - fundado em setembro de 1945,
por Adhemar de Barros (1901-1969) aps seu rompimento com a UDN -, e dois pequenos partidos de So Paulo,
o Partido Agrrio Nacional (PAN) e o Partido Popular Sindicalista (PPS). Segundo a categorizao de Fleischer
(2007), o PSP era um partido mdio que funcionou como um veculo poltico pessoal de Adhemar de Barros e
na arena poltica situava-se entre os partidos populistas de direita (FLEISCHER, 2007, p. 306). Para uma anlise
detalhada sobre a trajetria poltica de Adhemar de Barros e do PSP, entre os anos de 1956 e 1965, ver: Sampaio,
Regina. Adhemar de Barros e o PSP. So Paulo, Global, 1982.
164
Paulo Lauro nasceu em Descalvado, interior de So Paulo e formou-se em Direito do Largo So Francisco, em
1932. Tornou-se muito conhecido ao atuar como advogado de defesa de Arias Oliveira, acusada de quatro
homicdios, no caso que ficou conhecido como O crime do restaurante Chins. Durante o julgamento Paulo
Lauro usou o argumento de que seu cliente havia sido acusado em virtude do uso de tcnicas racistas, o que lhe
concedeu absolvio. Sobre o Crime do restaurante Chins ver: FAUSTO, Boris. O crime do restaurante
chins. So Paulo: Companhia das Letras, 2009). poca de sua designao, Paulo Lauro ocupava o cargo de
secretrio dos Negcios Jurdicos da Municipalidade (Folha da Manh, 31/08/1947, p. 11). Em sua gesto como
prefeito, inaugurou obras de grande expresso, como a Av. 9 de julho, alm de ter atuado na ampliao de feiras
livres e criao de restaurantes populares. Entretanto, Paulo Lauro teve uma administrao muito criticada e suas
100
que articulou a atuao de Paulo Lauro como advogado de defesa de Arias Oliveira, scio da
entidade acusado pelo crime (BARBOSA, 1998, p. 48).
O quadro de receptividade dos partidos polticos poderia ser bem aproveitado pelas
lideranas do meio negro de So Paulo dispostas a realizar o ingresso em cargos poltico-
eletivos. Mas, para isso, tinham que lidar tanto com foras polticas oligrquicas, que acabaram
se reforando ao longo das dcadas de 30 e 40, atravs da aliana que lderes de peso do
empresariado industrial firmaram com o regime de Vargas (MICELI, 1986, p. 572), quanto com
uma classe de polticos profissionais, que conseguiu maior acesso na poltica em todo o Brasil
durante o Estado Novo, especialmente em So Paulo, em substituio a oligarquia estadual
antivarguista165. Segundo Adriano Codato, durante e aps o fim do Regime, o recrutamento
desses polticos profissionais era feito por mecanismos menos elitistas que os da Repblica
Velha, mas, mesmo assim, ficou concentrado em bacharis, na maior parte provenientes da
classe mdia. (CODATO, 2008, p. 103). Assim, mesmo com maiores oportunidades, o
mercado da poltica , sem dvida, um dos menos livres que existem, como bem enunciou
Pierre Bourdieu (BOURDIEU, 1998, p. 166). No farei uma anlise no presente trabalho sobre
a presena de polticos profissionais na poltica paulista no ps-Estado Novo, embora apresente
esse fator para indicar que o campo em que lideranas do meio negro paulista queriam se
inserir era bem disputado.
Pouco tempo depois da posse de Paulo Lauro no cargo de prefeito, houve eleies para
composio da cmara de vereadores da cidade de So Paulo. Naquela ocasio, Geraldo
Campos de Oliveira concorreu pelo Partido Socialista Brasileiro. O jornal O Novo Horizonte
publicou material relacionado candidatura166. O primeiro texto no jornal foi dedicado a
contas de governo no foram aceitas pela Cmara de Vereadores, o que resultou em um processo judicial que levou
anos para ser finalizado. Sobre a gesto de Paulo Lauro na prefeitura de So Paulo ver: PRESTES FILHO, U. D.
F. Prefeitos e vereadores na Primeira Legislatura: nuances da relao entre os dois poderes. In: MANECHINI, C.
So Paulo na Tribuna: primeira legislatura (1948-1951). So Paulo: Imprensa Oficial do Estado de So Paulo,
2012. p. 97-102). Verbete com informaes biogrficas de Paulo Lauro: DUARTE, Nestor. Centenrio de Paulo
Lauro: o primeiro prefeito negro de So Paulo. Notcias do TRE. Novembro/Dezembro de 2007.
165
Para Bourdieu, no campo poltico, a legitimidade se encontra como monoplio dos profissionais, aqueles que
dominam os cdigos ou corpus de saberes especficos. Na teoria do campo de Bourdieu, o domnio do corpus
de saberes especficos est circunscrito no habitus poltico, fundamentado tanto na aprendizagem de teorias,
problemticas, conceitos, tradies histricas, dados econmicos, etc., quanto no acmulo do trabalho poltico
que permite o domnio de uma certa linguagem e de uma certa retrica poltica, a do tribuno, indispensvel nas
relaes com os profanos, ou a do debatedor, necessria nas relaes entre profissionais. (BOURDIEU, 1998).
166
O Novo Horizonte, que circulava desde 1946, sob a direo de Arnaldo de Camargo, tinha Aristides Barbosa
como redator-chefe. Segundo Miriam Ferrara, O Novo Horizonte se diferenciava de Senzala e Alvorada que
centravam ateno em reivindicaes e na tentativa da unificao negra por uma causa comum por se voltar para
promoo de atividades culturais, como expresso em seu subttulo: para seres bom negro, s culto o futuro de
nossa raa o exige. (FERRARA, 1985, p. 204). J Florestan Fernandes caracterizou O Novo Horizonte como um
jornal de agitao intelectual e de comunicao no meio negro, que se dedicava a seu modo, ao esforo de
congregar e de unir o negro e o mulato em causa comum (FERNANDES, 2008b [1965], p. 100). Elisa Nascimento
destaca em O Novo Horizonte seu carter excepcional por ser uma publicao independente, no de um clube ou
101
apresentar a trajetria de Geraldo Campos, com destaque para sua atuao na mobilizao negra
contra o racismo e para sua carreira profissional, como jornalista e professor.
De h muito que o prof. Geraldo Campos de Oliveira, vem lutando em todos os setores
e de todos os modos possveis pelo reerguimento do elemento afro em nossa terra.
Tendo-se iniciado muito jovem na luta que empreendemos contra os preconceitos de
cor e contra o racismo, militou nas organizaes culturais do negro em Franca,
Ribeiro Preto, Campinas, Rio de Janeiro e em nossa Capital. Tomou a iniciativa de
editar a revista negra mais aprimorada que se editou no Brasil, Senzala, cuja
circulao, no obstante todos os seus esforos se encontra paralisada. Exerce ainda a
profisso de jornalista nos dirios associados. Exerce h 12 anos o magistrio
secundrio, que um longo caminho de dedicao ao ensino da mocidade do Rio e de
So Paulo. Atualmente faz parte do corpo de professores do Liceu Siqueira Campos,
onde largamente estimado. Temos ainda o prazer de incluir o nome do prof. Geraldo
Campos de Oliveira entre os nossos colaboradores.
Ao fazermos circular essa informao queremos crer que o prof. Geraldo Campos de
Oliveira ser efetivamente um candidato altura de representar os trabalhadores de
So Paulo, fazendo-lhes votos de muito xito, desejando que possa merecer os votos
do eleitorado negro de So Paulo167.
entidade, esse jornal se mantinha por meio de contribuies da comunidade (NASCIMENTO, 2008, p. 118). Em
relao ao envolvimento de O Novo Horizonte com poltica partidria, Michael Mitchell (1977), afirmou que este
foi um dos poucos jornais da imprensa negra que publicamente se envolveu com disputas eleitorais, ao apoiar a
candidatura de Adhemar de Barros ao governo de So Paulo. (MITCHELL, 1977, p. 156-157)166.
167
Seo livre: Ser candidato o prof. Geraldo Campos de Oliveira, O Novo Horizonte, setembro de 1947, p. 1
168
Assim como aconteceu no caso do Teatro Experimental do Negro no Rio de Janeiro, a criao do TEN em So
Paulo recebeu ateno tambm da grande mdia. A Folha da Manh, por exemplo, publicou em 30 de setembro de
1945 o artigo intitulado: Novas possibilidades para a carreira artstica da raa negra: declaraes do Prof. Geraldo
Campos de Oliveira, diretor do Teatro Experimental do Negro de So Paulo, p. 22. Durante a entrevista publicada
no artigo do jornal, Geraldo Campos alinha os Teatros Experimentais do Rio e de So Paulo em uma proposta
nica, segundo ele: [...] o Experimental de So Paulo como o do Rio ou outros que possivelmente surjam
estar contribuindo para aumentar o capital humano dos nossos conjuntos teatrais, onde o negro poder ter sua
presena assinalada com o xito que marcou o surgimento do Experimental do Rio.
102
por sinal, tinham relao de parentesco, eram primos169. Provavelmente pelo fato de a maior
parte dos dirigentes da Conveno Nacional do Negro se encontrar no Rio de Janeiro, Geraldo
Campos reclamava de no ser devidamente informado das atividades do coletivo. Em uma carta
enviada em maio de 1946 para o Rio de Janeiro, acusa o diretor nacional da Conveno, Abdias,
de incontestvel incria e negligncia pela falha na comunicao de detalhes da realizao
da Conveno que se realizaria no Rio de Janeiro, naquele mesmo ms. Segundo Campos, o
diretrio de So Paulo desconhecia tudo, e mesmo se haver a realizao do Conclave. No
sabemos da data do seu incio. No sabemos do seu programa. No sabemos do seu local, no
sabemos se nos ser permitido participar do mesmo e nem se devemos convidar, especialmente,
elementos que do mesmo desejariam participar170.
A insatisfao de Geraldo Campos revela a instabilidade do arranjo pretendido entre
atividades de So Paulo e do Rio de Janeiro. Em setembro de 1947, quando comea sua
campanha como candidato a vereador no trata mais do assunto, o que sugere que a proposta
da Conveno, e possivelmente de uma mobilizao mais conjunta, no havia sido bem
sucedida. Como candidato, Geraldo parece ter optado por se apresentar como um indivduo que
participava e era apoiado por diversas organizaes do meio negro, mas no como o
representante de um grupo especfico.
Na edio seguinte de O Novo Horizonte, a candidatura de Geraldo Campos recebeu
mais espao, com um artigo na primeira pgina e outro na ltima. A grande ateno que a
candidatura de Geraldo de Campos recebe nesse nmero de O Novo Horizonte, onde escrevia
para o jornal como colaborador, deve-se provavelmente ao fato deste ter custeado a confeco
do jornal, fato admitido pelo ento redator-chefe, Aristides Barbosa171. No primeiro artigo, com
formato de entrevista, Geraldo trata de sua campanha e do apoio de associaes negras. Sobre
as associaes, recebe destaque a seo que trata da politizao do negro.
169
O artigo Dois primos e duas teorias no Teatro Experimental do Negro, publicado no jornal Dirio da Noite,
em 24 de janeiro de 1958, pelo jornalista Elias Raide trata do parentesco e das diferenas entre Abdias e Geraldo.
Fonte: Fonte: Fundo Florestan Fernandes. BCo/UFSCAR 02.04.6589, p. 2
170
Carta de Geraldo Campos de Oliveira, 6 de maio de 1946. Fonte: Dossi da Conveno Poltica do Negro,
IPEAFRO.
171
Como o jornal circulava com base em doaes, a admisso que Geraldo Campos pagou para publicao de
matrias em apoio a sua campanha no parece ser um problema para Aristides Barbosa, que disse sobre esse
nmero especfico Fizemos um jornal muito bonito (BARBOSA, 1998)
103
leite e todos os gneros de primeira necessidade. Luta contra a instruo cara. Contra
o transporte deficiente e caro. Luta, verdade, contra determinados fatores
especficos, como sejam a intolerncia racial e o preconceito de cor. Mas a luta maior
deve ser para a soluo dos problemas gerais do nosso povo. O negro no pode ficar
indiferente ante esses problemas, que lhe dizem respeito bem de perto, como
povo que 172.
Geraldo Campos demonstra concordar com o que parece ser um consenso, ao menos
discursivo, entre os integrantes do meio negro em So Paulo naquele momento, a dissociao
entre associaes negras e poltica partidria. Mas, ao mesmo tempo, enfatizava o papel das
associaes para promover a politizao do negro. Em sua concepo, o processo de politizao
do negro passaria pela compreenso de que povo, parte integrante da nacionalidade brasileira.
O candidato prosseguiu explicando detalhes do que seria essa caracterstica ontolgica do negro
brasileiro, sua condio de povo.
A partir da compreenso de que negro povo, Geraldo Campos afirmou que o programa
de seu partido, o PSB, tinha condies de solucionar problemas dos negros, visto que no se
poder imaginar socialista que no lute contra as injustias sociais, contra as intolerncias
raciais e contra o preconceito de cor (O Novo Horizonte, outubro de 1947, p.2). O prprio
programa do PSB para aquelas eleies no apresentou um compromisso especial endereado
populao negra de So Paulo. No documento, foram abordadas as questes mais tradicionais
da luta socialista, como a oposio ao capitalismo e ao totalitarismo, com destaque para o lema:
socialismo e liberdade174
Alm de seu compromisso como socialista, Geraldo reafirma seu compromisso como
ativista em prol da populao negra: depois de longos anos de luta pela valorizao do negro
e sua integrao na comunidade nacional, no seria agora, quando a minha eleio poderia me
172
Depoimento de Geraldo Campos de Oliveira, Contra a explorao do voto: a luta do negro a minha luta, O
Novo Horizonte, outubro de 1947, p.1, grifos meus.
173
Id.
174
Ver cartaz com propostas do partido e lista dos candidatos (Cf. Anexo A.3).
104
colocar em posio muito mais favorvel, que eu iria deixar de lutar nesse sentido. A luta do
negro a minha luta (O Novo Horizonte, outubro de 1947, p.2).
O artigo publicado na ltima pgina desse mesmo nmero de O Novo Horizonte traz
uma carta endereada aos negros de S. Paulo, que os conclama a escolher um candidato a
vereador que seja do prprio meio social, com capacidade de defender as legtimas
aspiraes e tenha sofrido as mesmas necessidades. O texto finaliza com o seguinte apelo:
Principalmente voc, que brasileiro de cor, no pode, no deve e no deixar de cumprir o
teu dever cvico, votando no nosso candidato. E estaremos certos de que teremos assim um dos
nossos legtimos defensores, capaz, culto e inteligente, a nos defender na Cmara (O Novo
Horizonte, outubro de 1947, p.4)175.
O resultado das eleies de 9 de novembro de 1947 reafirmou o lugar do PSB como um
partido com fraco desempenho eleitoral em So Paulo176. Segundo Hecker, naquele perodo
no se escondiam as carncias devidas pequenez de um partido para o qual faltavam pessoal
e recursos (HECKER, 1998, p. 91). Entretanto, o autor detectou que pairava entre seus
dirigentes um sentimento difuso de onipotncia, fruto da convico de que as ideias socialistas
em si mesmas carregavam uma fora inaudita (idem).
Apesar de no ter sido bem sucedido a ponto de conseguir xito eleitoral, Geraldo
Campos foi o stimo mais votado dos 44 candidatos do PSB. Recebeu 189 votos, mais do que
os 90 de Luiz Lobato, tambm candidato a vereador pelo partido nas mesmas eleies. Foi mais
votado tambm que Joo da Costa Pimenta (73 votos), um dos fundadores do PCB em 1922, e
consagrados intelectuais, tais como, Lourival Gomes Machado (54 votos), Sergio Buarque de
Holanda (7 votos) e Sergio Milliet (109 votos). O nico candidato eleito da agremiao
partidria foi Cid Franco, com mais de 1.500 sufrgios177.
175
A carta assinada pela seguinte comisso: Mario Vaz Costa, Mario de Lima, B. Zanelo, Ernesto Ludgero Maria,
Paulo Vaz Costa, Avelino Traves, Francisco Lucrcio, Lino Guedes, Aristteles Paranhos, Aristides Barbosa,
Ovdio P. dos Santos, Hildebrando A. Paranhos.
176
O PSB foi o stimo mais votado dos dez partidos da capital paulista, o partido recebeu 13.443 dos quase 300
mil votos computados entre os eleitores.
177
As informaes sobre o resultado das eleies em So Paulo foram retiradas do jornal Folha da Manh,
16/11/1947, p. 4 e 11.
105
A conscincia de que pela poltica pode-se dar uma soluo pondervel o problema
negro, est evidenciado pelas inmeras candidaturas de negros, lutadores militantes
pelo engrandecimento da raa. Infelizmente no vimos ainda nenhum membro do
grupo conseguir votao suficiente para se tornar representante do povo. Refiro-me s
candidaturas s deputaes federal e estadual e vereana na Capital. E a razo disso
est em que o eleitor negro est longe de compreender o bem que far para a
comunidade, dando preferncia par a candidatos negros.
O candidato branco recebe indistintamente os votos de brancos e negros, mas o
candidato negro tem que contar exclusivamente com o voto de seus patrcios, e esses
votos so escassos e bem maleveis, eis que, a troco de ninharia, o eleitor negro
descamba-se para o candidato branco, e para ele tudo faz. Tenho ouvido, bem
constrangido, o dizerem nos Partidos polticos, que voto negro se compra com
cachaa.
Desde [1]888 que nossa gente encontra-se abandonada, e nada se tem feito para o seu
ajustamento na sociedade.
Personalidades negras que, atravs de esforos insanos conseguiram sair da cortina
envolvente da degradao negra, tem procurado, atravs de planificaes de cunho
relevantssimo, de verdadeiro esprito de solidariedade humana, dar soluo a esse
problema magno da nacionalidade. Frmulas e mais frmulas tm sido aplicadas, com
o objetivo de dar soluo ao problema. De norte a sul do pas, os negros tm procurado
arregimentar-se de maneira a, dentro de um esforo conjugado, resolver seus
problemas locais. Todavia, todas as iniciativas, todos os movimentos associativos tm
sido frustrados pelo peso da responsabilidade econmica.
Com exceo da Frente Negra, nenhum outro movimento no Brasil pde arregimentar
os negros de maneira a fazer com que at os poderes pblicos lhe sentissem a fora. E
vemos ento o quadro triste e sombrio da nossa incapacidade como grupo.
178
Florestan Fernandes faz uso desse documento em Integrao do Negro na Sociedade de Classes. No livro, o
autor afirmou que se tratava de um documento divulgado de modo restrito e que se destinava a servir de fulcro
seleo de um candidato poltico negro e organizao da campanha eleitoral correspondente (Fernandes, 2008,
p. 415, nota 114). Sobre a autoria, Florestan palpitou que o texto tinha sido escrito pelo prof. Jorge Prado Teixeira,
promissor intelectual jovem do meio negro, que morreu prematuramente e que prestou construtiva colaborao
nossa pesquisa (FERNANDES, 2008a [1965], p. 108-109). A suposio de Florestan se fortalece por ser Jorge
Prado presidente da Associao Jos do Patrocnio. Essa entidade possua uma subdiviso, o Movimento Afro-
brasileiro de Educao e Cultura (MABEC), que, segundo Mitchell (2011) com base em uma entrevista com
Raul Joviano Amaral -, atuava como comisso de triagem, composta de figuras notveis da comunidade afro-
brasileira paulistana, que aprovava, os candidatos a eleies que mostrassem ter um forte comprometimento com
as causas dos negros. Ainda de acordo com Mitchell, embora tenha habilitado muitos candidatos a diversas
eleies em meados dos anos 1950, a MABEC logo foi extinta por causa da natureza elitista de seu procedimento.
107
Contar com as instituies privadas para virem em nosso socorro, no podemos. [...]
Qualquer organizao com o objetivo de arregimentador de modo a orientar a massa
para destinos melhores, ter que depender exclusivamente do elemento visado, que,
j desconfiado em virtude de logros sofridos durante muito tempo, no se dispe agora
a colaborar moral e materialmente, antes de ver alguma coisa feita em seu benefcio,
a qual possa desfrutar. Assim, teramos que apelar to somente para os poderes
pblicos. Esses no se dispem a nos ajudar porque politicamente nada representamos.
Somos a minoria mais desunida da histria de que h notcia. O dia em que pudermos
elevar no Parlamento Nacional e nas Cmaras Estaduais e Municipais, negros que
vieram da luta e tm conscincia do seu dever para com a raa, ento poderemos nos
dispor a conquistas maiores, com a ajuda dos poderes governamentais.
Para resolver o problema do insucesso eleitoral dos candidatos negros, foi convocada
uma reunio com as maiores expresses que se encontram no nosso meio. O projeto era
desenvolver uma ao conciliatria em que as divergncias de carter pessoal tm que ser
colocadas de lado em benefcio do conjunto e em que, o desprendimento pessoal tem que ser a
maior virtude. A proposta foi apresentada como um movimento de opinio, especialmente
dirigido ao negro, de carter poltico, fechado, independente com relao aos partidos. Para
dar o pontap inicial do projeto, a primeira ao que serviria para testar a fora do grupo seria
a escolha de um candidato, que representasse o trao de unio (02.04.4539, p.11).
A proposta feita ao grupo, listado anteriormente, era a escolha de um cidado negro
que se enquadrasse dentro das exigncias morais, polticas e intelectuais de todos. Como um
candidato dessa coletividade, exigia-se do grupo o envolvimento e o comprometimento para
que o escolhido tivesse uma votao expressiva. Em relao ao significado dessa candidatura,
defendia-se que, apesar de negro, este no seria representante do negro, mas um representante
negro disposto a trabalhar, com a assistncia de seus pares e criar um motivo de estmulo
para introduzir as lutas especficas do negro na poltica (02.04.4539, p.13).
179
A ao de indivduos inescrupulosos que, em nome da raa, se abeiram nos partidos e nas portas dos polticos
mais abastados, constituindo-se em lderes, possuidores de cem, duzentos e at quinhentos mil votos
arregimentados, vendendo o voto negro, era uma das preocupaes do grupo. Esse tipo de acusao era uma
constante entre os envolvidos na mobilizao negra paulista, desde 1945 (02.04.4539, p.11).
108
Um organismo jurdico que, oficialmente poderia ser uma sociedade civil, de objetivo
educacional, mas que, entre ns, entre outros, teria os objetivos seguintes:
a) A arregimentao de eleitores negros, e de brancos que queiram seguir os seus
postulados;
b) trabalho intenso no sentido de formao de eleitores;
c) alfabetizao intensiva para a formao de eleitores;
d) orientao educacional e profissional;
e) politizao das massas;
f) assistncia social.
Raul Joviano Amaral havia participado da direo de umas das primeiras entidades
negras surgidas em So Paulo aps o fim do Estado Novo, a Associao dos Negros Brasileiros.
Em 1950, com 36 anos, tinha uma extensa trajetria na mobilizao negra paulista, desde sua
participao na fundao da Frente Negra Brasileira, em 1927, no incio dos anos 1930 como
capito da milcia fretenegrina e aps a extino da FNB como presidente da Unio Negra
Brasileira, criada em 1937 (FERNANDES, 2008b [1965], p. 56-57); alm de fazer parte
tambm do Clube Negro de Cultura Social, em 1932 (DOMINGUES, 2004b, p. 63)180.
Diplomado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Brasil, em 1937,
Raul Joviano ainda tinha formao nos cursos de Economia e Estatstica, e tambm dedicava-
se a escrita de temas que abrangiam reas como sociologia, histria, poesia, direito, estatstica
e economia181. Na dcada de 1930, trabalhava como jornalista, inicialmente como redator
do So Paulo Jornal (OLIVEIRA, 1998, p. 240). No livro Brancos e Negros em So Paulo,
Roger Bastide agradeceu em uma nota de rodap a colaborao especial de Raul Joviano, com
o estudo O Negro na populao de So Paulo (1947). Bastide descreveu o estudo como um
trabalho de anlise estatstica e histrica, comprovado e ampliado pelo trabalho que ele havia
desenvolvido em conjunto com Florestan Fernandes. O prprio Amaral contou que, no seu
primeiro encontro com Bastide, o socilogo francs teria se impressionado com seu
conhecimento sobre os fundamentos bsicos das Cincias Sociais. O francs teria at indagado
se Amaral era socilogo, a que respondeu ser autodidata em Sociologia, isso porque, apesar de
ter cursado a Escola de Sociologia e Poltica, o fez pelo fascnio que nutria por Estatstica182.
Mas, de forma semelhante ao que acontecia com uma boa parcela da populao negra
com alto nvel de escolaridade e residente em grandes centros urbanos naquele perodo, Raul
180
Alm das citadas associaes, Raul Joviano desempenhava no meio negro atividades como Consultor Jurdico
e Diretor Cultural do Centro de Cultura "LUIZ GAMA", tambm tinha sido Presidente da Unio Negra Brasileira;
professor do Curso de Formao Social da Frente Negra Brasileira; Diretor e redator de "Alvorada"; ex-professor
da Escola de Comrcio "Cruz e Sousa"; professor do Colgio Palmares; e redator de "A Voz da Raa" e "O
Clarim"(02.04.4539, p. 18).
181
Alguns dos ttulos que constam da produo bibliogrfica de Raul do Amaral: Silncio (poesia, 1935); Vozes
e lamentos (poesia 1938); Thobias Barreto e a Escola Germnica (1939); Crimes e Contravenes (1940);
Tradies Populares (folclore, 1943); O Negro na populao de So Paulo (1947); Os pretos do Rosrio de So
Paulo: subsdios histricos (1953); Direito Penal do Futuro (1955); Estudos de Sociologia Jurdica (1960); A
Estatstica no Estudo da Criminalidade (1964); Smbolos Nacionais do Brasil (1967).
182
Essa admisso de Raul Joviano do Amaral foi feita em uma publicao da Revista do IEB em homenagem
pstuma a Roger Bastide. No texto Amaral conta sobre seu primeiro encontro com Bastide, que teria o procurado
em um curso que ministrava na Associao Jos do Patrocnio. Cf. AMARAL, Raul J. Roger Bastide No
corao do negro, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 20, So Paulo, USP, 1978, p. 126-129.
111
Joviano ingressou no funcionalismo pblico e, desde o final de 1948, passou a ocupar o cargo
de assistente no Departamento de Estatstica do Estado de So Paulo183.
O folheto da campanha de Raul Joviano de 1950, conservado no Fundo Florestan
Fernandes, permite perceber que alm do apoio dos negros de So Paulo, eram visados tambm
aos votos dos funcionrios pblicos, inclusive porque Joviano participava da direo de
associaes da categoria184.
AO POVO DE SO PAULO
AO FUNCIONALISMO PBLICO
Pelo PARTIDO TRABALHISTA BRASILEIRO, recomendamos ao
sufrgio popular o nome simptico de RAUL JOVIANO AMARAL que,
de sobejo tem dado provas da sua capacidade de trabalho; e, se honrado pelo
voto dos seus concidados, que no desmerecer na CMARA
ESTADUAL a confiana dos que lhe outorgam a representao.
Funcionrio pblico (advogado, professor e jornalista) RAUL JOVIANO
AMARAL uma legtima expresso popular que, por mritos prprios,
dedicao extraordinria s causas humanitrias, tenacidade e desinteresse,
faz jus ao VOTO consciente dos seus compatriotas.
[...]
Figura 4- Raul Joviano Nesse apostolado de salvao, de recuperao dos primeiros construtores
Amaral da grandeza ptria, RAUL JOVIANO AMARAL tem sido dos mais
persistentes batalhadores dos novos tempos. Com inabalvel f,
combatendo preconceitos, dogmas e msticas, RAUL JOVIANO AMARAL
vem pregando na Escola, na Imprensa, nos Clubes o imperativo do
congraamento popular; a valorizao crescente do homem do campo e das
cidades; o efetivo amparo da infncia desvalida; a proteo e a assistncia
da mulher desamparada e da velhice abandonada; a disseminao da
instruo, enfim, vem se batendo pela melhoria real das classes
trabalhadoras, pela instituio de uma justa, poderosa e inadivel e
equnime JUSTIA SOCIAL.
183
Dirio Oficial [do estado de So Paulo], n. 292, ano 58, 30 de Dezembro de 1948. Caderno Executivo, p. 5.
184
No perodo de sua candidatura, Raul Joviano era Secretrio Geral e consultor da Liga Eleitoral dos Servidores
Pblicos, tambm tinha sido presidente da Associao dos Funcionrios Extranumerrios e do Conselho
Consultivo da Unio dos Servidores Pblicos (02.04.4539, p. 18).
185
Refiro-me especificamente ao sucesso eleitoral nos primeiros anos do PTB. Isso porque, segundo Benevides
(1989), embora o PTB tenha sido, no perodo 46-64, o partido de maior crescimento nacional, o PTB paulista
sofreu crises e baixas, quase ao ponto do desaparecimento no estado (p. 140). Sobre a histria do PTB no perodo
anterior a Ditadura Militar, ver: BENEVIDES, Maria Victoria. O velho PTB paulista (partido, sindicato e governo
em So Paulo -1945/1964). Lua Nova, So Paulo, n. 17, Junho de 1989.
112
eleitoralmente por partidos com pequena expresso eleitoral, a exemplo dos que se
candidataram pelo PSB. O Partido Trabalhista se valia do peso simblico de Getlio Vargas
que, segundo escrito no folheto de campanha, recomendava pessoalmente a candidatura de Raul
Joviano.
Em um trecho do folheto foi feita a afirmao de que o candidato era uma legtima
expresso popular, isso logo depois de ter sido citado ser ele advogado, professor e jornalista,
alm de funcionrio pblico. O sentido empregado ao termo popular parece carregar aspectos
que mobilizavam sentidos relacionados classe e raa, quando na sequncia do documento
aparece a explicao que de procedncia modesta, desde cedo Raul Joviano Amaral dedicou-
se tarefa realmente imprescindvel de pugnar pelo alevantamento do Negro brasileiro. No
texto, o contingente da populao negra caracterizado como robusta e honrosa representao
do trabalhador nacional e os primeiros construtores da grandeza da ptria (02.04.4539, p.18).
Dessa forma, a construo de popular se revela na articulao em torno dos elementos
negro e trabalhador, ou ainda do povo humilde e bom de So Paulo a qual Raul Joviano
dedicava-se de forma quase sacerdotal, notvel no uso das expresses: apostolado da salvao
e inabalvel f distribudas ao longo do texto (02.04.4539, p.18).
Ao final das eleies estaduais, realizadas em 03 de outubro de 1950, Raul Joviano
Amaral tornou-se o candidato do meio negro paulista com melhor desempenho eleitoral, ao
receber um total de 2.031 votos. Se analisado em relao ao total de votos que recebeu o PTB,
223.314, ou ao candidato mais bem votado do partido, Jos Porphyrio da Paz com 16.122, a
quantidade de votos que recebeu pode no ser muito expressiva186. Mas, comparando com os
214 votos que recebeu Sofia de Campos Teixeira, para o cargo de deputada federal, e os 748 de
Geraldo Campos de Oliveira, para deputado estadual, o desempenho de Raul Joviano deve ter
causado certo entusiasmo. Porm, essa comparao entre os candidatos do meio negro no
deve ser feita levando em considerao apenas os ativistas, pois os partidos com suas estruturas
e capacidade de investimentos tinham bastante relevncia na definio do resultado das
eleies. Alm disso, o interesse desta anlise mais a construo do discurso em torno das
candidaturas do que a tentativa de medir sua efetividade.
Em termos de discurso, as campanhas dos candidatos negros do PSB tambm eram
direcionadas em primeiro lugar ao povo de So Paulo, no caso de Sofia de Campos, o apelo
tinha nveis de especificidade, primeiro ao povo, depois aos negros de So Paulo e por ltimo
mulher negra, como aparece no texto publicado em 23 de setembro de 1950. A imprensa negra
186
O PTB elegeu 12 candidatos para a Cmara Estadual, Raul Joviano Amaral foi o quadragsimo mais votado
entre os 78 candidatos do PTB. Fonte: (CONOLLY, 2008)
113
foi novamente utilizada como veculo de divulgao do contedo da campanha eleitoral dos
candidatos negros do PSB, dessa vez no jornal Mundo Novo, dirigido por Armando de Castro187.
O texto publicado no jornal em apoio candidatura de Sofia de Campos foi escrito na forma de
uma carta e assinada por um comit188.
No texto de 1950, de forma semelhante a sua campanha para as eleies de 1947, foi
destacado na trajetria de Sofia de Campos seu envolvimento na fundao do PSB, sua carreira
como professora e sua dedicao na luta em prol dos direitos de sua raa, to menosprezados.
Alm disso, outro aspecto de sua militncia destacado foi sua dedicao em evidenciar a
situao da mulher trabalhadora, concitando-a luta em defesa dos seus mais sagrados
187
Em minha pesquisa, encontrei apenas dois exemplares do jornal Mundo Novo (o nmero 1, de 26 de agosto de
1950; e o nmero 3, de 23 de setembro de 1950). A literatura que trata do assunto tambm faz poucas referncias
tanto sobre o jornal quanto sobre seu diretor, Armando de Castro, que havia sido secretrio de Senzala, em 1946,
revista dirigida por Geraldo Campos de Oliveira. Um verbete produzido pelo Centro de Documentao e Apoio a
Pesquisa (CEDAP) para o Catlogo da Imprensa Negra (1903-1963) traz as seguintes informaes sobre o jornal
Mundo Novo: apresenta colunas e ilustraes ligadas poltica, com propagandas e apoio a alguns polticos. Suas
colunas esto diretamente relacionadas a assuntos de interesse da comunidade negra. O peridico contm pequenas
notas publicitrias, manifestos estudantis e uma pgina esportiva. Em sua grande maioria os destaques, tanto em
forma ilustrativa quanto nos artigos, vo para os movimentos polticos da dcada de 1950 (SILVA, 2008). Alm
da campanha eleitoral dos candidatos do PSB, Mundo Novo tambm publicava propaganda de outros candidatos
negros e brancos, em geral no formato de anncio. O jornal se enquadra no que descreveu Paulina Alberto sobre
alguns veculos da imprensa negra que passaram vender espao para a publicao de propaganda eleitoral paga
(ALBERTO, 2011, p. 166). Os dois nmeros do jornal a que tive acesso possuem propagandas do candidato a
governador pelo PTN, Hugo Borghi; e tambm dos candidatos do PSB, Joo Mangabeira (presidente) e Joo da
Costa Pimenta (senador). Outro candidato negro tambm teve propaganda publicada no jornal, Arlindo Ribeiro
concorria ao cargo de deputado federal pelo PSD, primeiro tenete reformado da polcia militar, alm de presidente
de honra da Legio Negra de So Paulo e comandante da Legio Negra na revoluo constitucionalista de 1932
(Mundo Novo, 26/08/1950, p. 5).
188
Assinaram o documento: Pedro Paulo Barbosa, Arlindo Alves, Aurea Maria Campos de Oliveira, Maria Jos
dos Santos, Aracy de Campos Teixeira, Waldomiro Machado, Hevelson de Oliveira, Modesto Gabriel de Oliveira,
Teodoro Gonalves, Samuel Santos, Alfredo Sutherband White, Aristides Barbosa (Mundo Novo, 23/09/1950, p.
5).
114
direitos189. Por isso, seus apoiadores afirmaram que ela seria na cmara federal legtima porta-
voz no s dos negros, mas ainda da mulher que trabalha, defendendo os seus direitos e
preparando o caminho da sua emancipao (Mundo Novo, 23/09/1950, p. 5).
Naquele momento, as formulaes no meio negro paulista sobre a democracia e sua
efetivao no mundo da poltica passam a receber argumentos mais contundentes,
especialmente em relao aos artigos esperanosos e confiantes publicados na imprensa negra
no perodo imediatamente aps o fim da Ditadura Vargas.
A reivindicao por uma democracia ampla e real apareceu tambm na campanha de
Sofia de Campos. No entanto, esta somente aconteceria com bases de liberdade e oportunidade
para todos, nos bens materiais de vida dentro de uma sociedade efetivamente livre e organizada,
dentro de um mundo verdadeiramente humano e civilizado (Mundo Novo, 23/09/1950, p. 5).
Na maioria das vezes, a descrena com a democracia estava relacionada a um
descontentamento com a poltica partidria, a exemplo do artigo A campanha deve ser
iniciada, assinado por Ovdio P. dos Santos, que na poca ocupava o cargo de diretor do jornal
O Novo Horizonte, problematizando algumas questes que acreditava que deveriam ser tratadas
na campanha para as eleies de 03 de outubro de 1950. Para ele, pouco ou quase nada evoluiu-
se do regime democrtico no Brasil, desde a arrancada de [19]45 a esta parte [1950], isso
devido a m orientao partidria que contamina a conscincia do povo (O Novo Horizonte,
junho de 1950, p. 2). Ainda em sua avaliao, a populao negra estaria duplamente
prejudicada, por sofrer com os desmandos que acreditava haver na poltica partidria e tambm
por no conseguir participar da poltica em sua integralidade190.
189
Sofia de Campos foi presidente da Federao de Mulheres do Estado de So Paulo, entre 1948 e 1949. No
perodo ela esteve na direo de algumas campanhas da entidade, como a Campanha Pr-Paz e Campanha Contra
a Carestia. O desligamento do cargo de presidncia e da entidade se deu por iniciativa prpria. Segundo apurou
uma investigao do DEOPS/SP, a sada foi pela motivada por uma infiltrao comunista na Federao
(DEOPS/SP 50-J-104-159). Sofia foi substituda na presidncia da Federao por Helena Maria Nioac, esposa de
Caio Prado Jr (DEOPS/SP 50-J-104-119).
190
Ovdio P. Santos finalizou o texto com uma reivindicao para quem pudesse levar avante na campanha
eleitoral: a instruo e orientao das domsticas pr-melhoria do elemento que serve sociedade paulistana.
Luta contra os vcios, luta pelo erguimento moral e social das domsticas, so indispensveis (O Novo Horizonte,
junho de 1950, p. 2). A mobilizao em prol das empregadas domsticas era umas das principais bandeiras da
Associao Jos do Patrocnio, fundada em 1941, da qual Ovdio era integrante e chefiava uma de suas subdivises,
o Movimento Afro-brasileiro de Educao e Cultura (MABEC), que atuava fazendo uma espcie de seleo dos
candidatos que estariam aptos a receber apoio do meio negro em So Paulo (MITCHELL , 2011). A postura em
relao a poltica partidria de Ovdio expressa no texto de 1950 tem diferenas com a de outro artigo por ele
assinado e publicado tambm em O Novo Horizonte, em 1947. Na ocasio, ele criticava os lderes de associaes
negras que tinha na carreira poltica uma meta e declarava no ser apoltico, mas defendia que antes de
lanarmos nomes de pessoas deputao do estado ou a vereana municipal, devemos criar escolas e orfanatos a
juventude pobre e abandonada, temos ns a incumbncia, mesmo primria, ocuparmos da instruo de todos
aqueles que se acham alheios ao conhecimento da alfabetizao, o amparo aos mais desditosos, ministrando-lhes
escolas e encaminhando-os a lides profissionais (O Novo Horizonte, setembro de 1947).
115
191
Segundo publicado no jornal O Estado de So Paulo Hugo Borghi teria dito que se elegeria com os votos dos
talo-brasileiros e por isso no precisava dos votos de negros, caboclos, japoneses, judeus, srios e outros levantinos
aos quais consagrou palavras de profundo desprezo (Os negros respondero a 3 de outubro. O Estado de S. Paulo.
So Paulo, 07/09/1950, p. 9). Em sua tese de doutorado, Maria Lopes analisa o episdio envolvendo os comentrios
de Borghi. A historiadora argumenta que ele, assim como outros polticos contemporneos, agiam com a inteno
de formar e classificar os cidados teis a ptria brasileira (LOPES, 2007, p. 42). Considero que Andrews (1998)
oferea um aparato analtico interessante ao observar as relaes entre negros e brancos em So Paulo a partir do
ps-abolio. Assim como Andrews adota em sua anlise, os negros paulistas aparecem no episdio Borghi
como um grupo com uma especificidade tal a ponto de ser compreendido em termos tnicos, como os grupos
imigrantes. Alm disso, as ideias que orientam o suposto comentrio seriam a expresso do resultado do processo
de subordinao econmica e poltica a que tinha sido submetida a populao negra, especialmente em So Paulo.
192
Contra a explorao eleitoral do negro. Mundo Novo, So Paulo, 26/08/2950, p.4.
193
Em seu livro de memrias, Borghi contou ter criado a frase que caracterizou Eduardo Gomes como antipopular
a partir da seguinte declarao, pronunciada pelo candidato da UDN em um comcio no Rio de Janeiro: No
necessito dos votos dessa malta de desocupados que apoia o ditador para eleger-me Presidente da Repblica!.
Durante a campanha de 1945, Borghi, que era membro do PTB e opositor poltico de Gomes, ainda distribuiu
panfletos e broches impressos com a frase supostamente dita pelo candidato. Para mais informaes sobre o
episdio dos marmiteiros ver: BORGHI, Hugo, A fora de um destino, Editora Forense Universitria, So Paulo,
1995).
116
Como resposta aos comentrios de Borghi, foi organizado um ato de desagravo pela
Comisso da Federao das Associaes Negras do Estado de So Paulo 194. Em um convite para
o ato, convocado para o dia 07 de agosto de 1950, pedia-se a presena dos negros e o povo em
geral que se orgulha de sua nacionalidade brasileira. A passeata deveria ser encerrada na herma
de Luiz Gama, localizada no Largo do Arouche na regio central da capital paulista. Dois nomes
foram citados entre os oradores, Francisco Morais, indicado como lder da Federao das
Associaes Negras e o ex-prefeito de So Paulo, Paulo Lauro.
Esse ato organizado em So Paulo e outras manifestaes contrrias ao candidato Hugo
Borghi, veiculadas especialmente em rgos da imprensa que tinha relao oficial ou oficiosa
com partidos de oposio a ele, o pressionaram a declarar sua posio em relao aos negros
publicamente195.
Em entrevista ao jornal Mundo Novo, Geraldo Campos de Oliveira, que na poca era
candidato a deputado estadual pelo PSB, declarou que a fala atribuda a Borghi, de que este no
necessitava do voto dos negros, era suspeita. Para ele, era difcil acreditar que no momento em
que Borghi luta desesperadamente na sua campanha de somar votos, o candidato tivesse
esquecido a forma como liquidou definitivamente para sempre o brigadeiro Eduardo Gomes
como expresso poltica no seio das massas populares. Para Geraldo Campos, apesar de o caso
servir para confirmar a existncia de preconceitos de raa e de cor, ardorosamente negado por
muita gente boa, ele foi criado para explorar o homem negro politicamente. Isso porque,
segundo ele, nunca tinha visto uma passeata-protesto contra o fato de um negro ter sido
recusado num hotel ou ter sido humilhado num salo de barbeiro. Sua avaliao sobre o grupo
que se reuniu para organizar o protesto contra as declaraes de Borghi era de que se tratava de
representantes de um movimento eleitorista, organizado por aproveitadores do elemento
negro, que se serviram lderes bem contemplados com empregos e propinas, que se prestam ao
194
Cf. Passeata de Protesto. Folha da Manh. So Paulo, 05/08/1950; Protestam os negros contra o Sr. Hugo
Borghi. Dirio Carioca. So Paulo,06/08/1950, p.2.
195
O jornal Folha da Manh era um dos que operava oficiosamente em campanha pr coligao PSP-PTB. Segundo
artigo publicado no peridico sobre a declarao divulgada por Hugo Borghi, a emenda que saiu pior do que o
soneto. Segue trecho da declarao de Borghi: No sou e nem poderia ser contra a raa negra a que tanto deve a
nossa ptria. O que combato com energia e sinceridade a degenerescncia dos negros, em consequncia de
alcoolismo, da sfilis e da promiscuidade. plano de meu governo mobilizar e valorizar o trabalho dos negros,
encaminhando-os para colnias agrcolas, onde no entrar uma s gota de lcool, nem haver jogo de bicho e
carnaval, com a sua promiscuidade luxuriosa. Nessas colnias mesmo fora de So Paulo, como em Gois, onde j
estou em negociaes com a fundao Rockefeller, os negros tero maternidade para suas esposas, instruo e boa
alimentao para seus filhos, tornando-se desse modo realmente teis nossa Ptria e trocando definitivamente o
pandeiro, o tamborim e a cuca pelos instrumentos de trabalho (Colnias agrcolas para os negros. Borghi
positivamente contra os homens de cr. Folha da Manh, 03/09/1950, Seo livre, p. 4).
117
triste papel de porta-estandarte dos interesses eleitorais de indivduos e grupos, custa do nosso
homem negro, do trabalhador negro (Mundo Novo, 26/08/1950, p.4).
O ex-prefeito de So Paulo, Paulo Lauro, deveria ser um daqueles que Geraldo Campos
criticava por ter uma forma interesseira de conduzir o problema da elevao econmico-social
do negro brasileiro. A luta deveria ser no sentido de uma reforma que liquide todas as
posies que se baseiam na manuteno das injustias sociais e na permanncia da explorao
do homem pelo homem (idem).
A posio de Geraldo Campos de Oliveira demonstra que para ele, e possivelmente
para o grupo de ativistas negros e socialistas de So Paulo, a reprovao aos lderes negros de
ocasio, surgidos numa abundncia espantosa nos perodos eleitorais, era duplamente
fundamentada na ausncia de compromisso verdadeiro com a resoluo dos problemas da
populao negra e na prtica poltica conservadora para os parmetros socialistas.
Outro aspecto da crtica de Geraldo Campos que sugere que os polticos negros, alvo de
sua crtica, estariam sendo usados para satisfazer os interesses eleitorais de seus partidos,
poderia ser ampliada para todo e qualquer poltico, inclusive para ele mesmo. Afinal, a inteno
de qualquer partido ao apoiar candidatos angariar votos. O julgamento moral nesse caso
parece ser pouco autocrtico, quando feito por algum que se encontrava inserido na disputa
partidria e eleitoral.
Nas eleies de 3 de outubro de 1950, Paulo Lauro foi eleito para o cargo de Deputado
Federal, pelo Partido Social Progressista196. Durante a campanha, polticos ligados ao PSP
utilizaram amplamente a polmica envolvendo os comentrios de Borghi, carregando nas tintas
de um discurso antirracista e anti-xenfobico, na defesa de uma democracia universalista,
associada a ideia de brasilidade197.
A campanha eleitoral de Geraldo Campos de Oliveira, em 1950, no deu maior ateno
polmica envolvendo a declarao de Borghi nem deu enfoque a um argumento
196
Paulo Lauro foi o stimo candidato mais votado do PSP, que elegeu ao todo 13 candidatos, a maior bancada do
estado de So Paulo (Fonte: CONOLLY, 2008).
197
Em 13 de setembro de 1950, o jornal Folha da Manh trouxe estampada na sua primeira pgina a foto do
candidato a governador de So Paulo pelo PSP, Lucas Garcez, apertando cordialmente a mo de um homem negro.
Acompanhava a foto um texto, com o ttulo Garcez no tem preconceitos raciais, que defendia que o candidato
do PSP no alimentava mesquinhos preconceitos raciais e que reconhecia a contribuio de sangue e suor de
negros e imigrantes para a elaborao da nossa raa e engrandecimento da nossa terra. Os argumentos do texto
fundamentavam-se nos valores para dirigir o povo brasileiro, formado com o sangue de vrias raas, preciso ser
bastante democrata e cristo para ver em todo homem um concidado e um irmo, seja ele branco, preto, japons,
judeu ou srio (Folha da Manh, 13/09/1950, p. 1). Assim como fez o PSP, a UDN tambm publicou declaraes
contra o preconceito racial, na esteira dos supostos comentrios de Borghi. Somente no dia 08 de agosto, por
exemplo, a seo Momento Poltico trouxe trs textos que abordavam o ocorrido: A semente maldita do
preconceito racial; A UDN contra os preconceitos de raa e cor; e Preconceitos de raa e de cor (O Estado de S.
Paulo, 08/08/1950, p.3).
118
especificamente voltado crtica ao preconceito de cor ou de raa para atrair voto dos negros
paulistas. A estratgia utilizada enfatizava a ideia de que a soluo do problema do negro estava
na soluo democrtica do Partido Socialista Brasileiro, ou melhor, na soluo do problema
social, da superao das relaes de produo capitalistas e do aniquilamento da explorao do
homem pelo homem.
Homem negro: a soluo do seu problema racial depende da soluo do teu problema
como assalariado do capitalismo. A luta de classe maior que a luta de cor. Quando
venceres a tua luta de classe, ters vencido a tua luta de cor. No te refugies numa
casta, mas luta pela tua igualdade fundamental do homem. No te iludas com os
demagogos populistas, dos quais escravo e com os seus slogans mistificadores de
ltima hora (Mundo Novo, So Paulo, 23/9/1950, p. 3.)
O texto bastante assertivo ao ressaltar que o socialismo seria a soluo definitiva para
a mobilizao negra. A forma mais radical na apresentao das ideias provavelmente se deve
ao fato de ter sido assinado por trs estudantes do curso de Cincias Sociais da Universidade de
So Paulo, o Comit Universitrio, composto por: Wilson Cantoni, Lolio L. de Oliveira e
Zilah Sayo Wendel, provavelmente membros do PSB198. Mas, uma afirmao de Armando de
Castro no texto um representante negro no legislativo bandeirante sugere que os debates sobre
o binmio raa e classe estavam na ordem do dia, no incio da dcada de 1950: das muitas
definies expendidas em certos meios conhecedores dos problemas do negro, avulta aquela
afirmativa de que a questo racial no Brasil antes um caso de classes (Mundo Novo,
23/09/1950, p. 2).
Apesar de concordar que os problemas do negro tenham um carter econmico,
Armando de Castro usa uma explicao diferenciada. Para ele, em comparao com o negro
estadunidense, ou com os imigrantes japoneses e seus descendentes, a assimilao social e o
status de igualdade jurdica do negro brasileiro teriam impossibilitado sua ascenso
econmica199. As ideias apresentadas por Castro de forma bem bsica nesse texto so, contudo,
198
A minha suposio da participao do grupo no PSB baseia-se nas indicaes expressas no texto em trechos
como o seguinte: Lutar por uma candidatura verdadeiramente socialista representa um imperativo histrico e um
dever moral para qualquer universitrio que merea esse ttulo, que tenha aprendido a pensar as cincias do homem
como tcnicas de autoconscincia social (Mundo Novo, 23/09/1950, p. 3). Sobre a formao universitria, alm
do que indicado no texto, os nomes de Wilson Cantoni (turma 949) e Zilah Wendel (turma 947) aparecem na
lista dos inscritos para o I Congresso de ex-alunos da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da USP, ocorrido
em julho de 1950.
199
Chama a ateno o uso do imigrante japons como base comparativa para o negro brasileiro. Armando de
Castro argumentou que esses homens de raa extica eram bem aceitos devido a sua boa situao econmica,
mas que social e culturalmente estavam descolados da sociedade brasileira. Ele entendia que os nipnicos e seus
descendentes brasileiros tem a sua sociedade a parte, a sua religio, a sua comunidade, o seu modus vivendi
(Mundo Novo, 23/09/1950, p. 2). Penso que ateno devotada por Castro a situao dos japoneses estava
relacionada ao sucesso que tiveram na poltica. A populao japonesa de So Paulo conseguiu eleger seu primeiro
representante ainda em 1947, Yukishigue Tamura, vereador pelo Partido Democrata Cristo (PDC). Para saber
119
Quanto ao negro brasileiro, devido a lei que os considera oficialmente cidados, com
direitos civis e jurdicos, mal grado a guerra subterrnea dos particulares, no teve o
mesmo incentivo, o mesmo esprito de luta para se fortalecer economicamente como
os seus irmos da terra dos dlares [Estados Unidos], como os judeus em todo o
mundo. E, pois, fundamentalmente, um caso de classes o problema que nos assoberba
h mais de 60 anos. (Mundo Novo, 23/09/1950, p. 2)
Aps apresentar sua interpretao sobre o problema do negro, Castro defendeu que sua
soluo seria a presena de legtimos representantes da raa em todas as cmaras estaduais do
Brasil, afim de que, problemas negros no precisem das mal compreendidas iniciativas de um
bem intencionado Afonso Arinos201. A legitimidade desses representantes estaria no fato de
serem cultos pelo trato do esprito, mas calejados pela luta a descoberto pela causa dos seus,
ademais seriam homens de ambiente negro, de famlias negras, continuadores da obra de
profundo e mordaz Getulino e do temido Tigre da Abolio (Mundo Novo, 23/09/1950, p.
2).
Ainda que o texto de Armando de Castro seja uma rica fonte, que permite variadas
possibilidades de anlise, no percamos de vista que se trata de uma publicao em apoio a um
candidato em meio a uma campanha eleitoral, por isso foi construdo de modo a apresentar
Geraldo Campos de Oliveira como a alternativa de legtimo representante negro. Para o diretor
de Mundo Novo, mesmo que Geraldo Campos fosse um moo de partido, ele seria no
mais detalhes sobre a trajetria de Tamura e a atuao poltica da comunidade japonesa em So Paulo, ver:
SALVADORI FILHO, Fausto. Perfil Yukishigue Tamura. Revista Apartes. So Paulo, janeiro-fevereiro/2014, p.
17-24.
200
Florestan conceitua como dilema racial brasileiro a crena de que existe uma democracia racial no Brasil, a
qual escamoteia a desigualdade racial da arena poltica e cria uma situao nica, que s atinge o negro
(FERNANDES, 2007, p. 299).
201
Armando de Castro referia-se ao projeto de lei apresentado pelo deputado federal Afonso Arinos (UDN), em
julho de 1950, com artigos que visavam tornar contraveno penal a discriminao racial, chamadas poca de
preconceito de raa ou de cor (Cf. Contra o preconceito de raa e de cor. O Deputado Afonso Arinos apresentou
na Cmara o projeto visando colocar fora da lei qualquer manifestao no pas, de carter racista. O Estado de So
Paulo, 18/07/1950/ p.3). O projeto de lei de Arinos foi apresentado pouco tempos depois da recusa do hotel
Esplanada, localizado em So Paulo, em hospedar a bailarina negra americana, Katherine Dunham, o que gerou
grande repercusso na imprensa nacional. Florestan Fernandes construiu uma categorizao dos argumentos de
personalidades negras com crticas Lei Afonso, para maiores detalhes, ver: (FERNANDES, 1955, p. 216).
Maio e Grin (2013) analisaram o contexto de elaborao da lei. No artigo, os autores abordam a recepo da lei e
tambm o ceticismo com que sua elaborao foi recebida entre algumas lideranas do movimento negro na poca.
120
legislativo bandeirante, o ponto de partida para a nova arrancada dos negros em busca de sua
independncia moral, poltica e social. Em relao ao PSB, Castro afirmou que as diretrizes
da agremiao poltica que o lanou na arena eleitoral, ao invs de prejudicar os interesses
negros, pelo contrrio os reforar202.
Na campanha de Geraldo Campos em 1950, a defesa da proeminncia de classe sobre
raa na estruturao da sociedade brasileira parece ser o ponto central. Apesar das fontes a que
tive acesso e utilizei os textos da Comisso Universitria e de Armando de Castro no serem
de autoria do prprio candidato, no significa que tenham deixado de passar pelo crivo de sua
aprovao ou que at tenham sido escritas sem sua colaborao. A anlise desse momento
eleitoral e uma reportagem publicada no jornal Dirio da Noite, em 24 de janeiro de 1958,
parecem sugerir que Geraldo Campos passou a enfatizar a militncia socialista em detrimento
da mobilizao negra per si. No texto de 1958, o jornalista Elias Raide compara o Teatro
Experimental do Negro em So Paulo ao do Rio de Janeiro e conclui que as diferenas entre
eles se devem as teses diversas defendidas por Geraldo e Abdias [do Nascimento], respectivos
diretores.
Segundo Raide, a linha do Teatro Experimental do Negro de So Paulo se apoia na
afirmao de que o preconceito de classe; [enquanto] o contedo do teatro de Abdias
Nascimento se funda na tese de que o preconceito de cor. Sobre o TEN de So Paulo, o
jornalista escreveu que este no se prende a peas especificamente para negros, nem sobre
problemas do negro. Preocupa-se mais com a sociedade, criticando os desnveis econmicos, a
diferena de classes 203 (Dirio da Noite, 24/01/1958, p. 12).
202
Armando de Castro no exps quais fatores que, em sua opinio, fariam as diretrizes do PCB serem um reforo
aos interesses dos negros. No rgo de imprensa do PSB, o jornal Folha Socialista, a questo racial no Brasil no
recebeu grande ateno. Destaco um dos slogans da campanha com uma imagem que traz em primeiro plano a
representao de um homem negro e um instrumento de construo civil (Cf. Anexo A.4). O jornal tambm
divulgou uma rpida biografia de Geraldo Campos durante a campanha eleitoral - assim como fez com os demais
candidatos do PSB em So Paulo. No texto o candidato negro foi apresentado ao eleitor como professor e
jornalista, sua destacada atuao em prol do negro brasileiro valeu-lhe a simpatia e o reconhecimento de todos os
que o problema do negro do Brasil com olhos desapaixonados. Militante sindical denodado, presidente da
Associao dos revisores de jornais, tem participado de movimentos reivindicatrios de jornalistas e grficos de
So Paulo (Folha Socialista, 2/9/1950).
203
possvel que a tentativa de supor uma linha de continuidade entre a atuao poltica e teatral de Geraldo
Campos no seja a ideal, por tratar-se de dois campos diversos, mas a aproximao entre os dois momentos de sua
trajetria podem ajudar a dar mais inteligibilidade s suas ideias.
121
204
Essa uma situao que no est limitada apenas ao campo da representao poltica. Outro exemplo que penso
ser representativo da minha crtica sobre o discurso de legitimidade de representao pode ser observado na relao
da escritora Carolina Maria de Jesus com ativistas negros na dcada de 1950. Carolina tornou-se um fenmeno
literrio com a publicao de seu livro Quarto de Despejo, mas foi vista com certa desconfiana por parte de
alguns ativistas, que a pensavam como uma inocente til de aproveitadores brancos, portanto, sem muito
proveito para a mobilizao. Sobre esse episdio, ver: Santos, Joel Rufino dos. Carolina Maria de Jesus: uma
escritora improvvel. Rio de Janeiro: Garamond, 2009, p.47-48.
205
Reconheo a existncia de valiosos trabalhos acadmicos sobre polticos negros no sculo XX, a exemplo de:
NOGUEIRA, Oracy. Negro poltico, poltico negro. So Paulo, Edusp, 1992; DANTAS, Carolina Vianna.
Monteiro Lopes (1867-1910), um lder da raa negra na capital da repblica. Afro-sia, v. 41, p. 168-209, 2011; e
WOODARD, James. Negro poltico, sociedade branca: Alfredo Casemiro da Rocha como exceo e estudo de
caso (So Paulo, dcadas de 1880 a 1930). In: Gomes, Flavio; Domingues, Petrnio (orgs). Polticas da Raa:
122
Experincias e legados da abolio e da ps-emancipao no Brasil. So Paulo: Selo Negro Edies, 2014, p. 231-
262. Meu argumento de que trabalhos como esses tm sido regularmente compreendidos como estudos de casos
de exceo, uma vez que se pressupe o espao poltico brasileiro dominado por uma elite branca, e no como a
representao de uma forma de insero do negro na poltica.
206
Segundo Bourdieu, os porta-vozes na poltica agiriam de forma a se apropriar das palavras e do silncio
daqueles que representa, como tambm da fora desse mesmo grupo, para cuja produo ele contribui ao prestar-
lhe uma palavra reconhecida como legtima no campo poltico (BOURDIEU, 1998, p. 185).
123
No prximo captulo tratarei mais detidamente do que interpreto como uma estratgia
de partidos de orientao populista para atrair o voto da populao negra, a promoo de
lideranas negras de grande vulto na mobilizao. Foi o caso de Raul Joviano Amaral, em So
Paulo. No Rio de Janeiro, o Partido Trabalhista estabeleceu negociaes com um grupo
encabeado por Abdias do Nascimento, resultando na criao de um Diretrio Negro do PTB,
em 1946.
As eleies em So Paulo apresentadas neste captulo parecem se encaixar facilmente
no quadro apresentado por Andrews (1991):
Andrews prossegue afirmando que a receptividade dos partidos populistas aos eleitores
negros reduziu substancialmente o sentimento, na comunidade negra, em favor de uma
atividade poltica segundo a linha da Frente Negra207 (ANDREWS, 1991, p. 36). Discordo,
porm, da sequncia argumentativa do autor quando afirma que, como resultado daquele novo
momento poltico do negro, no perodo de 1946-1964, as organizaes tiveram uma orientao
exclusivamente cultural, focalizando-se na alfabetizao e outros projetos educacionais, no
patrocnio de atividades nas reas literria, teatral e artstica, e assim por diante (idem).
Meus achados de pesquisa me permitem afirmar que existia um projeto de insero
negra na poltica no perodo posterior ao fim da Ditadura Vargas. Apesar das divergncias
internas, esse projeto foi encampado por lideranas negras que exerciam militncia em
associaes que tinham, de fato, uma orientao cultural utilizando os termos empregados por
Andrews -, mas que viam na poltica partidria, quer seja nas candidaturas de representantes
prprios ou no dilogo com partidos polticos, um meio de atuao estratgico para o alcance
de seus objetivos.
207
A observao de Andrews sobre o crescimento de interesse dos partidos populistas pelo apoio da populao
negra ainda durante a dcada de 1940 foi muito acertada. Um exemplo de como era feita a arregimentao desses
partidos junto aos negros pode ser visto no panfleto Festa da Me Presta (Cf. Anexo A.5), de 31 de dezembro
de 1949. No documento, ilustrado com as fotografias de Adhemar de Barros e Nestor Macedo, este ltimo era
organizador de festas e comcios, normalmente voltados para propaganda de candidatos e partidos, direcionados a
comunidade negra. O panfleto tambm indica a existncia de uma entidade denominada Ala Negra Progressista,
provavelmente ligada ao Partido Social Progressista, de Adhemar de Barros. Carneiro e Kossoy (2008) analisam
o panfleto da Festa da Me Preta e outros tambm distribudo pela Ala Negra Progressita.
124
Outro aspecto dessa questo desenvolvido por Michael Hanchard (2001), ao concluir
que, entre os anos de 1945 e 1964, o movimento negro foi cunhado em uma perspectiva
culturalista. Para o autor, isso seria resultado da excluso no campo da poltica dos problemas
afro-brasileiros, tanto por parte da esquerda quanto da direita, causando nos ativistas negros a
necessidade de revestir sua linguagem e sua prtica de formas indiretas, ambguas e
fragmentadas, sob o vu da prtica cultural (HANCHARD, 2001, p. 124-125). Esse tipo de
anlise muito relevante por permitir a criao de grandes panoramas, mas com pouca
capacidade para a compreenso do processo, marcado no s pela continuidade que pode
afirmar o quadro geral, como por cises, rupturas e contradies.
Em minha investigao, a anlise detida da atuao de ativistas negros visando insero
na poltica partidria, nos cinco primeiros anos aps o fim da Ditadura Vargas, permite a
observao do processo, que pode ter resultado na circunscrio da mobilizao negra no Brasil
no campo da cultura; mas tambm possibilita acompanhar a emergncia de um discurso sobre
o negro, alicerado em uma concepo de poder, ainda que latente, de interferncia nos rumos
da sociedade brasileira. O negro povo, ao qual se dirigiam os candidatos negros (como Luiz
Lobato, Geraldo Campos, Raul Joviano, Sofia de Campos, entre outros), a chave da concepo
do pas identificado com base no seu contingente mais explorado socioeconomicamente, mas
que constitui tambm uma comunidade imaginada pelo seu contedo simblico
(ANDERSON, 2008; HALL, 2003, p. 47-63); e ainda uma comunidade de destino, posto em
termos weberianos, como prope Guimares (2003), pela sua utilidade prtica, no campo
eleitoral.
Considero que o uso intercambiado de negro e povo no era somente um recurso
retrico, seno um argumento de fundo ideolgico que tinha a pretenso de afincar
definitivamente o negro nao e potencializar a disputa por espao nos ambientes de deciso
poltica. Nesse sentido, o negro povo no discurso desses ativistas candidatos era a representao
do brasileiro, no moda paulistana, que se queria branca, mas ao modelo que se inaugurava
no Brasil, mestio, por vezes, negro.
125
Nos primeiros anos da dcada de 1940, ainda durante o Estado Novo, surgiram variadas
propostas associativas e culturais empreendidas por lideranas negras no Rio de Janeiro, ento
Distrito Federal. O ambiente que se constitua permitiu constante dilogo entre as lideranas, e
teve como um dos resultados a formao de uma coalizo de ativistas interessados em promover
a insero na cena pblica brasileira de uma pauta de reivindicaes voltada para a populao
negra. Para tanto, ativistas negros compuseram alianas com intelectuais das cincias sociais, a
exemplo de Arthur Ramos e Gilberto Freyre, bem como com outros intelectuais e polticos, que
defendiam a necessidade de integrao do negro na sociedade sem descartar o iderio de nao
pautado na ideia de democracia racial208. Alm disso, no contexto do Ps-Segunda Guerra
(1939-1945), o governo brasileiro procurava afirmao internacional utilizando a propaganda
da democracia racial como uma caracterstica nacional, com capacidade de harmonizar os
conflitos raciais (SKIDMORE, 1989; MAIO, 1999).
Apoiado no consenso sobre a democracia racial, o protesto negro, em emergncia no
Rio de Janeiro tinha como uma das principais bandeiras a demanda por uma efetivao da
justia racial durante o processo de reestabelecimento da democracia (GUIMARES e
MACEDO, 2008). Dessa forma, a poltica partidria representava no ps-Estado Novo um
campo privilegiado de atuao e construo de alianas entre ativistas negros no Rio de Janeiro
e polticos, em sua maioria brancos, dispostos a discutir e, por vezes, inserir a agenda do
movimento, ou parte das demandas, em seus partidos e no legislativo do Estado. Alm do
contato com polticos, ativistas negros tambm passaram a se organizar para indicar
candidaturas prprias, com a expectativa de que o movimento pudesse utilizar-se da poltica,
no apenas como um espao de presso, mas tambm de participao do jogo por dentro.
As redes de relaes que viabilizaram a presena de negros no mainstream intelectual e
poltico da sociedade carioca no foi uma especificidade do ps-Estado Novo. Isso pode ser
visto na anlise de Paulina Alberto, que comparou a experincia do ativismo negro no Rio de
Janeiro e em So Paulo, nas dcadas de 1910 e 1920. Sobre o perodo, a autora explicou que
em contraste com o que ocorria em So Paulo, negros com aspirao intelectual ou poltica no
208
Compartilho da perspectiva de Antonio Srgio Guimares, segundo a qual democracia racial constituiu mais
que uma ideologia. Segundo o autor, no ps-guerra ela era uma construo utpica nascida da colaborao entre
ativistas e intelectuais negros e intelectuais brancos interessados na integrao dos negros vida social brasileira
(GUIMARAES, 2006).
126
Rio parecem ter tido outras alternativas alm das organizaes e imprensa negras independentes
(ALBERTO, 2011, p. 85, traduo minha).
A especificidade do perodo aps 1945, no que tange insero poltica, parece ter sido
a pretenso de alguns ativistas negros em se estabelecerem como uma fora poltica distinta,
no necessariamente autnoma, pois se concebia em relao a certos partidos polticos e dentro
deles. Ademais, assim como ativistas negros de So Paulo, as lideranas frente de
organizaes no Rio de Janeiro como o Teatro Experimental do Negro (TEN), a Orquestra
Afro-Brasileira e o Centro de Cultura Afro-Brasileiro assumiram a posio de legtimos
representantes de uma coletividade, a populao negra. Dessa forma, no era incomum, entre
os ativistas negros interessados em ingressar na carreira poltica local do Rio de Janeiro, o uso
do argumento de serem representantes da populao negra como plataforma eleitoral.
Do ponto de vista da dinmica do campo poltico, o Rio de Janeiro no ps-Estado Novo
era o centro de articulao da poltica nacional, sede do Distrito Federal at sua transferncia
para Braslia em 1960, e interpretado por muitos como uma cidade que reunia o que havia de
mais moderno e modelar da cultura poltica no pas, um espao-sntese da nacionalidade
(MOTTA, 2007, p. 176). Por outro lado, a cidade tambm possua uma poltica local que
precisava responder a demandas de uma das maiores cidades brasileiras, ainda em fase de
acelerado crescimento urbano. Os polticos interessados na esfera local tinham que se
candidatar exclusivamente vaga de vereador e procuravam representar interesses de grupos
especficos, como categorias profissionais, de grupos religiosos e, principalmente, de
localidades e regies da cidade (FREIRE e SARMENTO, 2004, p. 44). Nesse sentido, a capital
do Brasil tornou-se espao privilegiado para compreender as formas de atuao dos ativistas
negros, tanto nas associaes como nas agremiaes partidrias, seja no plano local, seja na
esfera nacional.
Este captulo est dividido em duas sees, a primeira trata da organizao poltica com
fins partidrios de setores do movimento negro no Rio de Janeiro, especialmente, as iniciativas
orquestradas por lideranas ligadas ao TEN. A segunda seo aborda as tentativas de ingresso
na carreira poltica do ativista negro Abdias do Nascimento, cujas campanhas eleitorais
conseguiam reunir, a despeito de diferentes posicionamentos polticos, apoios interessados em
promover a candidatura de um representante do movimento negro no legislativo do Estado.
127
209
Costa Pinto (1953) criou uma tipologia para classificar as associaes negras que existiam no Rio de Janeiro
na dcada de 1940. A partir da anlise das mudanas sociais que aconteciam no perodo, o autor dividiu as
entidades entre associaes tradicionais e novo tipo.
128
210
O caf Vermelhinho estava localizado na Rua Arajo Porto Alegre, em frente Academia Brasileira de
Imprensa (ABI), onde a Orquestra Afro-brasileira se apresentava com regularidade.
211
O trabalho de copista envolve o manuseio de arquivos musicais, para produo de cpias, transposies ou
codificaes e resumos de partituras para serem executados por msicos de uma orquestra ou conjunto.
212
Alguns anos aps o surgimento da Orquestra, Abigail de Moura ainda tentava explicar os seus objetivos, como
na entrevista concedida ao jornal Dirio Trabalhista: Procuramos descobrir e interpretar os anseios da nossa
gente, anseios esses soterrados e diludos nas tradies religiosas, projetando-os depois de estilizados porm no
sofisticados no panorama artstico e folclrico [brasileiro]. Moura tambm disse que a proposta da Orquestra
era mal compreendida at no meio artstico, a exemplo dos diretores do rdio que no permitiam a execuo das
msicas do grupo utilizando a justificativa de que se tratava de macumba (Dirio Trabalhista, 29/06/1946, p.5).
213
Solano foi um dos fundadores da Frente Negra em Pernambuco, em 1936, que pouco tempo depois passou a se
chamar Centro de Cultura Afro-Brasileiro de Recife (CCAB). Solano passou a ter sua atuao reconhecida em
nvel nacional aps sua participao nos Congressos Afro-Brasileiros, realizados na dcada de 1930, em Recife e
Salvador. No incio de 1940 Solano se mudou, inicialmente, para Belo Horizonte, depois para Pelotas, onde atuou
em um grupo de cultura popular. Em 1941, dirigiu-se ao Rio de Janeiro, iniciando militncia poltica ligada ao
PCB e uma carreira artstica, fortemente baseada na cultura popular brasileira.
214
O engajamento de Solano Trindade com o comunismo era grande, a ponto de abrigar reunies de uma clula
em sua casa, situada em Duque de Caxias, Baixada Fluminense. As clulas eram organizaes de base do PCB,
com reunies permanentes responsveis por transmitir para os membros do partido as decises dos diretrios
centrais no Brasil e na Rssia.
129
215
Abdias do Nascimento teve uma vida longa (1914-2011) e conectada com grande parte da mobilizao negra
no Brasil ao longo do sculo XX. Procurarei me concentrar aqui apenas ao perodo de sua trajetria diretamente
relacionados a essa investigao. Sobre a biografia de Abdias Nascimento ver: (SEMOG, 2006; MACEDO, 2005;
CUSTODIO, 2011; ALMADA, 2009).
216
Sebastio Rodrigues Alves serviu no Exrcito brasileiro junto com Abdias. Os amigos se envolveram em uma
briga de rua em 1936 o que resultou na expulso dos dois das foras armadas (SEMOG, 2006).
217
Abdias escreveu sua primeira pea na priso, intitulada de Z Bacoco. Outros trabalhos de escrita a que se
dedicou no perodo foram o romance Z Capetinha e um dirio, intitulado Sub mundo. (MACEDO, 2005, p. 57).
218
Abdias era filho de pai sapateiro e me que trabalhava como cozinheira, doceira e costureira, e eventualmente
como ama-de-leite, para filhos de fazendeiros locais. Em 1930, deixa Franca e parte para So Paulo, com 16 anos,
para se alistar como voluntrio do exrcito.
219
Antes da formao em Economia Nascimento havia cursado Contabilidade, no ginasial, no Ateneu Francano.
Nascimento conclui o curso de Economia em 1938.
220
Nascimento descreve essa experincia como um permanente seminrio poltico, por conta da populao
carcerria. Todos presos foram detidos por agirem na oposio ao Estado Novo, recm-iniciado. Logo aps sair
da priso, Abdias se engajou na organizao do Congresso Afro-Campineiro, junto com Geraldo Campos de
Oliveira, que fora seu companheiro de crcere, Aguinaldo Camargo, Agur Sampaio, Joo Gualberto, Jos Alberto
Ferreira e o tipgrafo Jernimo. (SEMOG, 2006)
130
O Caf Vermelhinho era ponto de encontro dos membros do TEN, e foi nesse espao
que o grupo procurou fazer contatos e tecer alianas com artistas e intelectuais, em sua maioria,
brancos e bem estabelecidos no Distrito Federal. Na fase do protesto negro brasileiro,
desencadeada pelo declnio do Estado Novo, o TEN logo se tornaria uma das organizaes mais
proeminentes.
Alm do teatro, o TEN desenvolvia diversas outras atividades, como a de formao
escolar, na criao da Cruzada Afro-Brasileira de Alfabetizao. No mesmo perodo, parece
tambm ter havido a primeira tentativa de criao de um jornal entre os militantes do TEN,
denominado Palmares221. Na edio de dezembro de 1945, o jornal Alvorada, sediado em So
Paulo, noticiou a seguinte informao:
221
Segundo Macedo, O TEN foi muito mais do que um grupo teatral composto s por negros. Alm da parte
artstica com vrias peas centradas na temtica racial , organizou concursos de beleza e artes plsticas,
promoveu intensa atuao poltico-social em convenes, conferncias, congressos, seminrios, cursos de
alfabetizao e iniciao artsticas culturais para negros, editou um jornal intitulado Quilombo e alguns livros.
Entre 1944 e 1968, perodo de existncia do grupo, consta em torno de cinquenta e uma atividades realizadas
(MACEDO, 2006).
131
Apesar de ter sido dado como coisa certa, o jornal Palmares nunca saiu do papel. Pode
ser que a notcia tenha sido veiculada apenas como estratgia para dar mais visibilidade ao
conjunto de ativistas do teatro negro na capital do pas ou se tratou de um projeto real que foi
frustrado. Mas, a ideia de um jornal negro demonstra que, j naquele momento, os envolvidos
no TEN consideravam importante a existncia de um veculo de imprensa que pudesse ser
utilizado para expanso de sua rea de influncia entre a populao negra.
A apesar de no terem tido xito em realizar esse primeiro intento de produo de um
jornal negro, isso no impediu que os lderes do TEN fizessem uso constante dos rgos de
imprensa que suas redes os permitissem utilizar. Abdias tambm admitiu que, naquela poca,
as indicaes de conhecidos com influncia viabilizaram sua insero no mtier da imprensa
escrita do Distrito Federal (SEMOG, 2006)222.
222
Desde sua primeira passagem pelo Rio de Janeiro, na dcada de 1930, Abdias utilizava o trabalho na imprensa
como forma de sustento. No ano de 1944, comeou a trabalhar como revisor de jornais, e em 1946 foi contratado
para seu primeiro trabalho como reprter de jornal.
223
Alm de Abdias, estavam envolvidos na criao do Comit Democrtico Afro-brasileiro o escritor e jornalista
Raimundo Souza Dantas, os poetas Aladir Custdio e Corsino de Brito, que dirigiam junto com Solano Trindade
o Centro de Cultura Afro-Brasileiro, Sebastio Rodrigues Alves e Aguinaldo Camargo, do TEN.
132
224
Em 1940 a UNE tinha formado seu prprio grupo de teatro, que atraia jovens talentos, como o ator Srgio
Cardoso (SEGANFREDDO, 1963)
225
A ata da reunio, assim como muitos documentos daquele perodo, est disponvel no acervo do Instituto de
Pesquisas e Estudos Afro Brasileiros (IPEAFRO), fundado por Abdias do Nascimento em 1981.
226
Fonte: IPEAFRO, Dossi Conveno Poltica do Negro Brasileiro.
227
Aps a extino da Frente Negra Brasileira foi criada a Unio Negra Brasileira em So Paulo, registrada como
uma associao com objetivo caritativo-cultural-patritico. A Unio Negra de So Paulo existiu por menos de 1
ano, dirigida por Raul Joviano Amaral, Marcos Rangel, Abercio Pereira Barbosa, Mario Silva Junior, e Rubens
Ribeiro Costa (DEOPS/SP, Pronturio 1538).
133
delas tocou no problema do negro... umas por ignorncia, outras por considerarem-no
pouco digno de ateno, outras pela convico de que ele no existe. Mas ns, os
negros, muito branco sincero e esclarecido, vrios intelectuais e estudiosos dos nossos
problemas, sabemos que, alm de existir, o problema do negro, ele um dos mais
importantes e complexos que a nossa sociologia e a poltica tem pela frente.
E a organizao poltica do negro s pode causar espanto e receio aos totalitrios,
tanto da direita como da esquerda, porquanto ela existiu antes de 1937. A Frente Negra
Brasileira, com sede em S. Paulo, nunca mereceu o ataque da democracia, porque de
negro brasileiro ningum tem o direito de esperar gestos que no sejam para uma
melhor compreenso e fuso das raas. As entidades negras, tais como o Teatro
Experimental do Negro, que dirijo, a Orquestra Afro-Brasileira, a Cruzada Afro-
Brasileira de Alfabetizao, a Associao dos Negros Brasileiros (de S. Paulo), esto
todas ligadas espiritualmente por uma mesma linha de reivindicaes, cuja base se
assenta numa maior aproximao de negros e brancos (O Globo, 27/09/1945).
O depoimento de Abdias constituiu uma base lapidar para o seu discurso sobre o
movimento de negros naquele perodo, trazendo a ideia de que havia unicidade de
reivindicaes, compartilhamento de pautas, e de que o movimento no se iniciava naquele
momento, mas que tinha uma histria.
Em relao organizao poltica negra, Abdias explicou que a Unio Negra Brasileira
tentava se tornar um partido poltico, contudo no deu muitos detalhes, com a justificativa de
que no era um projeto coletivo, mas o desejo de uma liderana em particular. A outra iniciativa
que abordou foi a Conveno Poltica do Negro Brasileiro, a ser realizada em So Paulo, Abdias
assumiu que a Conveno era uma articulao sua, mas que no refletiria somente suas
posies, pois seria um espao democrtico de construo de um Cdigo do Negro para as
eleies que se aproximavam.
228
Algumas das matrias publicadas nos jornais no perodo de realizao da Conveno: Contra o preconceito de
cor! Como falou o presidente da Conveno Poltica do Negro. Democracia, Rio de Janeiro, 12/10/1945; Os negros
de todo o Brasil abrem luta contra o preconceito de cor. Dirio da Noite, Rio de Janeiro, 12/11/1945; No
precisamos consultar ningum para concluir do acumpliciamento de foras interessadas do nosso
desaparecimento! Encerrada a Conveno Nacional do Negro Brasileiro Um manifesto e seis reivindicaes.
A Gazeta, So Paulo, 13/11/1945; A Conveno Nacional do negro apresenta seu manifesto Nao. Correio
Paulistano. 13/11/1945; A conveno Nacional do Negro - O que nos faltou at hoje foi a coragem de nos
utilizarmos de nossa fora. Jornal de So Paulo, 13/11/1945; Encerrada a conveno Poltica do Negro com um
Manifesto Nao. Folha da Noite, So Paulo, 13/11/1945; Conveno Nacional do Negro Brasileiro Em So
Paulo o importante conclave dos homens de cor, reivindicando direitos legtimos. O Radical, Rio de Janeiro,
17/11/1945.
136
Tambm tratou dos impedimentos para que negros acessassem alguns locais elegantes e da
alta participao de negros entre os mais pobres.
Sobre a publicao veiculada em A Notcia, explicou que a inteno da Conveno no
era se tornar um partido poltico, mas apoiar o partido (de brancos e negros) que reconhecem
as reivindicaes especficas do homem de cor229. Tambm informou que a Conveno j tinha
recebido o apoio do ento candidato a presidente General Eurico Gaspar Dutra, desejando-lhe
pleno xito em seus trabalhos e do presidente da UDN, Otvio Mangabeira, que, em reunio
com os membros do Diretrio Nacional da Conveno, teria declarado estou com vocs
totalmente.
No mesmo texto, Abdias tambm assegurou que a Conveno no tinha se decidido por
nenhuma corrente ou candidato, que o apoio estava condicionado adeso dos trs princpios
considerados fundamentais:
229
No encontrei registro de que esse documento tenha sido publicado ou lido em algum evento. O ttulo do
documento Declaraes de Abdias do nascimento, presidente do Diretrio Nacional da Conveno Poltica do
negro Brasileiro, est datilografado e se encontra disponvel nos arquivos do IPEAFRO, Dossi Conveno
poltica do Negro Brasileiro.
230
A formulao do Manifesto data do dia 11 de outubro de 1945, segundo documento manuscrito disponvel no
acervo do IPEAFRO. A primeira parte do documento so os trs itens citados, que formam os princpios
fundamentais. A segunda parte no foi publicada na verso oficial do Manifesto divulgada na Conveno do Negro
em So Paulo, em novembro daquele ano. O trecho excludo tratava das obrigaes prticas que garantiriam o
cumprimento de fato das dos 3 itens do manifesto para os partidos que resolvessem adot-los: o partido
assegurar, por tempo indeterminado, Conveno Poltica do Negro Brasileiro e por sua indicao, o seguinte:
a) nas chapas para a representao federal dos Estados do Cear, paraba, Pernambuco, Distrito Federal, Rio de
Janeiro, uma cadeira; nas dos Estados da Bahia e Rio Grande do Sul, duas cadeiras; nas dos Estados de Minas
Gerais e So Paulo, trs cadeiras. B) as Assembleias Legislativas de cada Estado, em proporo a ser determinada
no momento oportuno, bem assim como nas Cmaras Municipais.
137
Apesar de ter sido excludo, esse trecho muito relevante por ser uma demonstrao de
que havia o interesse entre os ativistas envolvidos na Conveno do Negro de ingressar no jogo
poltico e no apenas de fazer com que as reivindicaes em prol do negro fossem inseridas na
poltica partidria.
Poucos dias depois da crtica de A Notcia Conveno, o jornal Democracia publicou
o artigo: Primeira vitria dos negros, em que citava o apoio dos partidos polticos. Alm de
fazer referncia a Otvio Mangabeira e ao general Dutra, tambm afirmou que a Esquerda
Democrtica teve tambm palavras de elogios aos negros. O general Rabelo, pela Sociedade
Amigos da Amrica, tambm se manifestou favorvel. O Partido Trabalhista Brasileiro at
chegou a fazer um desdobramento do seu programa. Segundo a publicao, o desdobramento
do programa tinha sido uma resposta s demandas da Conveno do Negro. Segue abaixo o
artigo 24 do Programa do PTB e o desdobramento em 7 itens:
231
Alm das trs reivindicaes citadas anteriormente como os princpios fundamentais da Conveno do Negro,
foram acrescentados os seguintes pontos no texto final do Manifesto Nao: 4) Enquanto no for tornado gratuito
o ensino em todos os graus, sejam admitidos brasileiros negros, como pensionistas do Estado, em todos os
estabelecimentos particulares e oficiais de ensino secundrio e superior do pas, inclusive nos estabelecimentos
militares; 5) iseno de impostos e taxas, tanto federais como estaduais e municipais, a todos os brasileiros que
desejarem se estabelecer com qualquer ramo comercial, industrial e agrcola, com o capital no superior a Cr$
20.000,00; 6) Considerar como problema urgente a adoo de medidas governamentais visando a elevao do
nvel econmico, cultural e social dos brasileiros.
232
IPEAFRO, Acervo Abdias Nascimento, Seo Teatro Experimental do Negro.
139
233
Guimares e Macedo (2008) explicaram que o gesto do senador da UDN, Hamilton Nogueira, de inserir o
problema racial brasileiro na Constituinte no foi pontual, mas foi uma demonstrao da aliana deste com vrias
organizaes negras do perodo, em especial o TEN. O senador Nogueira dava mostras de um dilogo prximo
com ativistas negros naquele perodo, inclusive reproduzindo termos e argumentos caractersticos dos ativistas
negros, como na entrevista concedida ao jornal Dirio da Noite, de So Paulo, no dia 14 de maro de 1946. Na
ocasio afirmou ter participado da Conveno do Negro, realizada em So Paulo, em 1945 e declarou que havia
restries ao preto no Brasil nas carreiras pblicas, principalmente nas foras armadas, no oficialato, da
Aeronutica, da marinha e do Exrcito. Quanto ao Itamarati nem se fala, os seus servidores so todos de puro
sangue ariano... na atividade privada so inmeros os casos de restries que decorrem naturalmente da
140
pensamento de seu partido e que confiava que aquele tambm fosse o pensamento dos
participantes da Assembleia sobre a questo racista no Brasil. Em seguida se props a
responder a questo234:
Existe no Brasil uma questo racista? possvel que no exista nas leis, mas existe
de fato, no somente em relao aos nossos irmos pretos como em relao aos nossos
irmos israelitas. Aps leitura do texto com inteno de explicar o surgimento do
racismo no mundo moderno, Nogueira fez a proposta de que se estabelecesse na
Constituio a igualdade de todas as raas e considerando crime de lesa-humanidade
a contraveno a essa lei (Dirio Trabalhista, 15/03/1946, p. 6).
Alm do contato com polticos, no interior do movimento social negro reunido no Rio
de Janeiro, havia lideranas com variadas tendncias partidrias. Mostra disso foi o grupo que
se reuniu para realizar a Conveno do Negro realizada naquela cidade, em maio de 1946. O
escolhido como secretrio geral do evento foi Lus Lobato, militante socialista de tendncia
trotskista e integrante da Esquerda Democrtica, que depois viria a se tornar o Partido Socialista
Brasileiro (PSB)235. Alm de Lobato, a Conveno era presidida por Aguinaldo Camargo, e
tinha Jos Pomplio da Hora na vice-presidncia, ambos membros do TEN236.
A Conveno do Negro do Rio de Janeiro contou com a participao de ativistas
ligados a diferentes partidos polticos, como foi noticiado no jornal Dirio Trabalhista: seus
associados enfileiram-se nas hostes da UDN, PSD, PCB, PTB, indistintamente (Dirio
Trabalhista, 03/04/1946). A presena de pessoas com posies polticas diversas tambm foi
registrada por Jos Vicente Rodrigues de Lima237, um amigo pernambucano de Solano
Trindade, convidado para participar do evento:
mentalidade dominante nas esferas oficiais (Dirio da Noite, 14/03/1946. p. 1-2). A historiadora Paulina Alberto
acessou variadas fontes que demonstraram em detalhes a aliana entre Nogueira e ativistas negros de So Paulo e
do Rio de Janeiro, no perodo de 1945 a 1950 (ALBERTO, 2011, p. 174-176).
234
A ntegra do discurso bem como a repercusso durante a sesso na Assembleia Constituinte est disponvel nas
atas da 25 Sesso, realizada em 14 de maro de 1946, ver: (BRASIL, 1946, p. 408-414, v. 9).
235
Lus Lobato participou tambm da Conveno do Negro em So Paulo, em 1945, e foi um dos signatrios do
Manifesto divulgado naquela ocasio. Outros ativistas envolvidos com grupo socialista formador da Esquerda, que
Democrtica participaram do evento e que assinaram o manifesto foram Sofia Campos Teixeira, Geraldo Campos
de Oliveira e o ex-frentenegrino Francisco Lucrcio.
236
Outros membros do Diretrio Nacional da Conveno do Negro foram: Rubens Barbosa, tesoureiro; Sebastio
Rodrigues Alves, secretrio de arregimentao; Jos Herbel, secretrio de Propaganda; Synval Silva, secretrio de
relaes artsticas; Ruth de Souza, secretria de assuntos femininos; e Ironildes Rodrigues, secretrio de relaes
culturais.
237
Jos Vicente foi fundador, junto com Solano Trindade, Gerson Monteiro de Lima e Miguel Barros, do Centro
de Cultura Afro-Brasileiro de Recife. Tinha formao acadmica nas reas de Contabilidade e Economia. Durante
o Congresso Afro-brasileiro, realizado em 1934 no Recife, apresentou os trabalhos: Atividades Culturais do
Negro no Brasil e Estudos sobre o Pantesmo, que, segundo ele, chamaram a ateno de diversos intelectuais
como Gilberto Freyre e Arthur Ramos, este ltimo inclusive props, em 1941, que Jos Vicente fosse aceito como
membro da Sociedade Brasileira de Etnologia. (SILVA, 2008).
141
Chego ao Rio para uma conversa, aps a realizao de uma Conveno Negra na
Associao Brasileira de Imprensa. Os nimos esto inflamados. Solano Trindade
ainda lidera, mas grande a oposio, cada um com suas tendncias, Aguinaldo
Camargo e Abdias do Nascimento representam uma tendncia poltica de direita,
Solano Trindade est na esquerda, conheci Raimundo Dantas, Abigail Moura, neutros
e moderados, Ruth de Souza era apenas uma estreante como outros negros, ficaram
nos meios termos. (LIMA, 1979 Apud Silva, 2008b).
Como amigo do pernambucano Solano Trindade, Jos Vicente ainda afirmou que o
comprometimento de Solano com o comunismo estava dividido com a expectativa da formao
de um partido poltico negro, o que poderia significar uma organizao com a capacidade de
suplantar as divergncias de posicionamento poltico dentro do movimento negro.
Ruth de Souza, classificada por Vicente de Lima como uma estreante sem muita
definio poltica, tinha contudo uma posio crtica sobre a interferncia partidria no
movimento negro. Em um depoimento sobre uma homenagem ao senador Hamilton Nogueira,
realizada dias antes da Conveno do Negro no Rio de Janeiro, a atriz disse no ter gostado das
atitudes extremamente partidrias de alguns irmos negros. Segundo ela, a homenagem
estava sendo prestada a um defensor da raa e no a um partido. Por isso, os protestos teriam
quebrado o esprito da unio que deve presidir a nossa luta (Dirio Trabalhista, 05/04/1946,
p. 5).
Provavelmente, parte da opinio de Vicente de Lima estava influenciada por sua relao
com Solano Trindade, que o apresentou ao meio da militncia negra carioca. Mas, o interessante
perceber que mesmo para um forasteiro, ficava patente que o grupo de ativistas negros do Rio
de Janeiro, que optou por unir foras no perodo de redemocratizao, precisou amalgamar as
diversas posies poltico-ideolgicas em um discurso coeso sobre o negro brasileiro.
238
Ainda que anteriormente fizesse trabalhos espordicos em jornais, principalmente como revisor, parece que
somente ao ingressar no Dirio Trabalhista foi que Nascimento passou a vislumbrar uma carreira no jornalismo.
Mostra disso que deu entrada em um pedido de registro no Sindicato de Jornalistas Profissionais do Rio de
Janeiro em 22 de fevereiro de 1946, pouco mais de um ms depois que tinha comeado seu trabalho no jornal.
Nascimento conseguiu insero na carreira jornalstica em um momento bem favorvel. Em meados da dcada de
1940, o processo de transformao no setor se intensificou, no sentido de estabelecer um carter mais comercial,
que, associado ao fim das polticas de cerceamento promovidas pelo Estado Novo, promoveu o surgimento da
imprensa nacional com estrutura empresarial. Alm da modernizao do parque grfico, o aumento da
profissionalizao permitiu a diviso do trabalho, demarcando as funes de reprteres, fotgrafos, redatores,
grficos e colunistas. Sobre esse assunto, ver: BAHIA, Juarez. Jornal, histria e tcnica. Histria da imprensa
brasileira. 4. ed. So Paulo: tica, 1990; e LATTMAN-WELTMAN, Fernando. Imprensa Carioca nos anos 50.
In: ABREU, Alzira Alves de (org.). Imprensa em transio: o jornalismo brasileiro nos anos 50. Rio de Janeiro:
FGV, 1996.
239
Os assuntos essenciais que seriam tratados na coluna foram apresentados na primeira publicao: I Finalidade
essencial: valorizao social do negro brasileiro, esclarecendo-se e harmonizando-se as divergncias espirituais e
sociais de brancos e pretos. Os assuntos sero localizados objetivamente estudando-se a situao dos pretos tal
qual ; II Campanha intensa pela alfabetizao do preto e do povo em geral. Incitamento a abertura de novas
escolas pela Prefeitura, mormente nas proximidades dos morros. Auxlio material e financeiro dos cursos
particulares. Cursos noturnos para adultos; III Campanha permanente s restries impostas nas atividades
privadas e pblicas por motivo de cor; IV Amplo noticirio geral das atividades afro-brasileiras; V
Demonstrao, fundamentada em estatsticas, do concurso do negro em maior percentagem aos trabalhos mais
rduos, particularmente os braais, desmentindo-se a fama injusta da indolncia do preto (Dirio Trabalhista,
15/01/1946, p.5).
143
pessoas, classificadas por Guimares e Macedo (2008) como: ativistas negros que estiveram
ligados Conveno Nacional do Negro, intelectuais e artistas negros, negros do povo e
intelectuais e polticos brancos.
Antes de tratar com mais detalhes da coluna, especialmente sobre um debate travado
entre alguns entrevistados a respeito da pertinncia da criao de um partido poltico de negros,
tratarei rapidamente sobre o jornal Dirio Trabalhista. Considero que a presena de Abdias
entre os funcionrios do jornal pode ser explicada com base nas alianas que tinha nos meios
intelectuais no Rio de Janeiro, mas tambm da aproximao poltica com grupos de tendncia
trabalhista.
Desde sua fundao no Rio de Janeiro, o jornal Dirio Trabalhista deu mostras de ser
mais uma expresso do imbricado jogo de foras que se equilibravam em torno da poltica de
tendncia trabalhista no perodo ps-Estado Novo, j que tinha uma abordagem trabalhista
alinhada ao governo do ento presidente Eurico Gaspar Dutra240. Entre 1946 e 1948, o jornal
esteve sob a direo de Eurico de Oliveira e, nesse perodo, foi mais do que um canal de
relacionamento do governo com os trabalhadores, pois tratava de questes relacionadas
diretamente ao interesse do trabalhador, seus sindicatos e diversos acontecimentos polticos e
culturais. Alm disso, uma coluna diria ocupava o espao de pelo menos uma pgina com
diversas informaes consideradas importantes para trabalhadores de diversas reas, as mais
recorrentes eram: marmoristas, funcionrios da light, professores, pescadores, trabalhadores
dos transportes, trabalhadores da hotelaria, mineiros de carvo, eletricistas, trabalhadores em
frigorficos, padeiros, empregados em empresas teatrais e cinematogrficas, trabalhadores em
fiao e tecelagem, servidores pblicos, marceneiros e comercirios.
Alguns acontecimentos permitem observar a posio da direo do jornal sobre as
relaes raciais no Brasil. Trago o exemplo de um episdio que ganhou bastante repercusso
no incio de 1947, quando um hotel luxuoso do Rio de Janeiro recusou como hspede a
estadunidense Irene Diggs, jornalista e acadmica negra. Eurico de Oliveira apresentou sua
opinio no editorial Brancos, pretos, mulatos, mamelucos, somos todos irmos. Apesar de
240
Um verbete encontrado no Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do Brasil (CPDOC)
aponta que: O Dirio Trabalhista foi fundado por Eurico de Oliveira, que, por no contar com recursos
suficientes, se associou a Antnio Vieira de Melo, Mauro Renault Leite (genro do presidente Eurico Dutra) e Jos
Pedroso Teixeira da Silva. Enquanto os dois primeiros se responsabilizaram pelo funcionamento do jornal, os dois
ltimos forneceram o capital. Exibindo uma orientao poltica de carter trabalhista, o jornal visava na verdade
garantir um respaldo popular para o governo do presidente Eurico Dutra, com o qual possua ligaes. Embora
Eurico de Oliveira tivesse realmente compromissos com o trabalhismo, chegando a candidatar-se deputado
estadual pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), o jornal fazia, no fundo, restries s posies petebistas,
preocupando-se basicamente em defender o governo. O fim do mandato de Dutra na presidncia foi de fato
acompanhado da sada de Mrio Renault Leite e de Jos Pedroso Teixeira da Silva do jornal. (FERREIRA,
CPDOC).
144
Estou aqui falando como negro. Represento um desses 20 milhes de brasileiros que
at hoje vivem amordaados por uma escravido branca, que a pior de todas, porque
nos nega at o direito de lutar pelos nossos direitos, sob a alegao de que no Brasil
no h problema do negro. Mas ns, os negros, sabemos que em nossa terra,
infelizmente, existe o preconceito de cr. Existe uma bem dissimulada linha de
restrio ao negro242.
241
Sobre discursos relacionados existncia de preconceito, racismo e discriminao no Brasil e a percepo como
fenmenos individuais ou estruturais ver: GUIMARES, Antnio Srgio. Preconceito e discriminao: queixas e
ofensas no tratamento desigual dos negros no Brasil. Salvador: Novos Toques, 1998; SCHWARCZ, Lilia M. Nem
preto nem branco, muito pelo contrrio: cor e raa na intimidade. In: Histria da Vida Privada. So Paulo, Cia das
Letras, 1998.
242
Fonte: IPEAFRO, Dossi Candidatura de Abdias Nascimento.
145
j declaravam: somos o nico rgo da imprensa carioca que mantm uma seo permanente
de estudos e debates de assuntos referentes ao negro brasileiro. Nossa campanha contra o
preconceito de cor e de raa revelou fartamente as injustas restries que o preto sofre em vrios
setores da vida nacional, uma flagrante negao da nossa democracia, da nossa instituio
jurdica e da prpria linha da nossa evoluo tnica toda alicerada na mestiagem 243 (Dirio
Trabalhista, 15/03/1946).
Entre os assuntos destacados na coluna e os debates que promovia, estava a discusso
sobre a criao de um partido poltico de negros. Esse tpico passou a ocupar as pginas da
coluna com mais constncia no segundo semestre de 1946. Dois dos inquritos feitos com
lideranas negras centralizaram o assunto, quais sejam, uma entrevista realizada com Lus
Lobato, em 18 de julho, e um depoimento de Raimundo Souza Dantas, no dia 01 de agosto.
Lus Lobato, maranhense radicado em So Paulo, tinha se transferido para o Rio de
Janeiro para integrar a equipe do jornal, dirigido por Mario Pedrosa, Vanguarda Socialista,
onde manteve a coluna O Negro e Socialismo, em que assinava como Imperador Jones, o
nome do primeiro espetculo produzido pelo Teatro Experimental do Negro. Na entrevista
concedida a Abdias no Dirio Trabalhista, Lobato foi apresentado como professor e secretrio
da Conveno do Negro, mas no foi mencionada sua posio em Vanguarda Socialista e nem
sua filiao Esquerda Democrtica, partido que seria a base do Partido Socialista Brasileiro,
fundado no ano seguinte. Outro expediente usado para apresentao foi chamar ateno de
que Lobato atuava em So Paulo.
O debate sobre a pertinncia da criao de um partido poltico de negros tinha
acontecido meses antes nas pginas da revista Senzala, que reuniu muitos ativistas negros que
atuavam no Rio de Janeiro e em So Paulo, a exemplo do prprio Lobato, de Abdias e seus
companheiros na coluna Problemas e aspiraes do negro brasileiro244. Nos meses de fevereiro
e maro de 1946, Senzala trouxe em suas pginas o debate entre Lus Lobato e Francisco
243
Apesar de aludirem ao jornal Dirio Trabalhista como um todo, Abdias do Nascimento e seus associados, na
verdade, estavam reclamando para si autoria da campanha contra o preconceito de cor. O protagonismo era
apontado por aqueles indivduos como uma caracterstica histrica dos negros, como aparece na formulao: os
negros quem desde muito tempo vem malhando o ferro frio da indiferena do Estado e da sociedade e atravs de
inmeras organizaes, lutam contra a ignorncia da raa, e contra o preconceito de cor (Dirio Trabalhista,
15/02/1946).
244
Os responsveis pela revista foram Geraldo Campos de Oliveira (diretor); Sebastio Batista Ramos (gerente);
e Armando de Castro (secretrio). Entre os colaboradores estavam: 1) de So Paulo, Aristides Barbosa; Ccero
Pereira dos Santos; Francisco Lucrcio; Francisco de C. Printes; Jayme Aguiar; Jos Antnio de Oliveira; Jos
Correia Leite; Lino Guedes; Luiz Lobato; Nestor Borges; Pedro Paulo Barbosa; Raul Joviano do Amaral; Paulo
Moraes; Paulo Santos; Rubens Alves Pinheiro; Salatiel de Campos; Sofia Campos Teixeira; 2) do Rio de Janeiro,
Abdias Nascimento; Aguinaldo Camargo; Eronides Silva; Isaltino Veiga dos Santos; Jos Pompilio da Hora;
Sebastio Rodrigues Alves; 3) de Campinas, Jernimo Sebastio da Silva; Jos Alberto Ferreira; Julio Mariano
(Senzala, fevereiro de 1946, p. 1).
146
Lucrcio, o primeiro contra a ideia de um partido formado somente por negros e o segundo
favorvel criao de um partido nos moldes do que havia sido criada pela Frente Negra
Brasileira em meados dos anos 1930.
No Dirio Trabalhista, Lobato reafirmou sua posio e declarou que o partido poltico
da raa negra seria, como o so os seus embries regionais, apndices dos grandes partidos. No
fundo, no so coisa alguma: so simplesmente chamariz de negros para serem vendidos nos
balces dos partidos que precisam de apoio popular (Dirio Trabalhista, 18/07/1946, p. 4).
Lobato explicou que no considerava raa um princpio organizativo no campo partidrio, pelo
fato de ser socialista e por defender entidades associativas negras com finalidade estritamente
culturais.
Outro depoimento onde foi abordado detidamente a relao entre movimento negro e
partidos foi dado por Raimundo Souza Dantas (1923-2002), sergipano e morador do Rio de
Janeiro desde 1942. Na capital do pas, ele trabalhou inicialmente como contnuo, depois como
redator em diversos jornais e, como escritor, lanou seu primeiro livro em 1944245. Em sua
entrevista ao Dirio Trabalhista, Souza Dantas declarou: A questo do negro no Brasil no
obra para partidos. Alm disso, negou que houvesse um problema especifico do negro no
Brasil, antes o preconceito racial era praticado em alguns setores, por organizaes oficiais e
particulares (Dirio Trabalhista, 01/08/1946, p. 6). Tambm defendeu que o preconceito no
existia na mesma intensidade nos diferentes locais do pas, era mais agudo em So Paulo, mas
operava de forma mais branda no norte do pas, por exemplo. Para ele, a questo do negro no
Brasil tem que ser resolvida pelo povo. E afirmava isso na qualidade de membro de um grande
partido do povo (Dirio Trabalhista, 01/08/1946, p. 6). O partido a que Souza Dantas se referia
era o PCB, do qual era membro, pelo menos, desde 1945. Naquele ano participou, junto com
Abdias, Aguinaldo Camargo e Sebastio Rodrigues Alves, do Comits Democrtico Afro-
Brasileiro, do qual os trs ltimos foram expulsos. Segundo Abdias, a expulso se deu porque
outros membros do Comit alegavam que seu grupo tinha inteno de dividir racialmente a
classe trabalhadora.
A posio de Lus Lobato e Raimundo Souza Dantas, contrrios criao de um partido
negro no surpreende, j que os dois eram membros de partidos polticos, PCB e Esquerda
Democrtica que depois formaria o PSB que tinham, em seus programas, polticas de forte
245
No livro Um comeo de vida (1949), Souza Dantas escreveu um relato biogrfico em que contou ter sido
alfabetizado apenas na idade adulta, quando foi contratado como tipgrafo no Jornal de Sergipe. Nei Lopes (2004)
fez uma breve biografia de Raimundo Souza Dantas em sua Enciclopdia Brasileira da Dispora Africana. Souza
Dantas foi nomeado embaixador em Gana, em 1961, pelo ento presidente Jnio Quadros. A nomeao causou
polmica em Gana e no Brasil, sobre o assunto ver: Dvila (2010, p. 43-51).
147
apelo popular, que pretendiam atender os anseios do povo brasileiro, independente da cor.
Entretanto, eles no foram os nicos a se opor criao de um partido de negros. Tambm
declarou-se em desacordo com a ideia Aladir Custdio, presidente do sindicato dos
ascensoristas246, poeta e diretor do Centro de Cultura Afro-Brasileira, junto com Solano
Trindade e Corsino de Brito. Acredito que Custdio, se no era membro, era prximo do PCB,
pois fazia parte de organizaes que gravitavam em torno do partido, como o Comit
Democrtico Afro-Brasileiro, do qual Abdias e seu grupo foi expulso, e do Centro de Cultura
Afro-Brasileira.
Uma interrogao sobre o debate a respeito da polmica envolvendo a criao de um
partido negro a ausncia na coluna Problemas de aspiraes do negro brasileiro de opinies
favorveis. Nessa investigao encontrei duas lideranas em defesa do partido negro aps 1945
que tinham associao com os responsveis pela coluna: Isaltino Veiga dos Santos, no Rio de
Janeiro, e Francisco Lucrcio, em So Paulo. Isaltino Veiga tinha at tentado formar um partido
negro a partir da Unio Negra Brasileira, que criou em 1944.
Pelo que foi exposto, parece que a ideia de criao de um partido negro, surgida no
perodo ps-Estado Novo, tinha poucas chances de sucesso. Parte dos ativistas negros estava
comprometida com seus partidos polticos, mas mantinham aliana no movimento negro,
situao que se modificaria anos depois. Tratarei com mais detalhes do assunto na prxima
sesso. Por ora, adianto que a polarizao ocorreu entre grupos de esquerda nacionalista, de
que faziam parte os ativistas negros de tendncia comunista e socialista; e os de centro-direita
populista reformista, entre os quais Abdias do Nascimento era um dos principais
representantes (MACEDO, 2005, p. 245).
Dizer que as tenses entre os grupos do movimento negro carioca de diferentes bases
poltico-ideolgicas produziram rompimentos no incio da dcada de 1950, no significa que
em meados dos anos 1940 no houve conflitos. Mas, defendo que no ps-Estado Novo uma das
estratgias centrais de atuao negra era a reunio de foras no combate s restries e barreiras
que resultavam em desigualdades raciais. No caso especifico da poltica partidria, houve
tambm uma tentativa de construir um Diretrio Negro no interior do Partido Trabalhista para
indicao de uma liderana que fosse uma representao poltica vivel para disputar cargos
eletivos.
246
Cf. Tribuna popular, 25/05/1945, p.8.
148
O Diretrio Negro do PTB foi fundando em novembro de 1946 247. Antes mesmo do
surgimento, do Diretrio houve tentativas de aproximao de ativistas negros com aquele
partido, como as j citadas cartas enviadas ao comit executivo do partido e a participao de
Abdias do Nascimento em um comcio eleitoral. Outro momento em que foi demonstrada
simpatia pelo Partido Trabalhista foi a publicao, em 08 de fevereiro de 1946, de um artigo
intitulado A Bancada Trabalhista d todo seu apoio s reivindicaes do negro, na coluna
Problemas e aspiraes do negro brasileiro. O Partido Trabalhista foi o primeiro procurado,
mas no seria o nico. De acordo com os responsveis pela coluna, seriam ouvidos
parlamentares de todos os partidos polticos, pois acreditavam que o problema do negro
brasileiro era amplo e no deveria ser subordinado a tendncias poltico partidrias.
No artigo, o PTB foi apresentado como o nico partido que havia contemplado em seu
programa o combate ao preconceito de cor de maneira explcita. A reportagem consistiu em
uma narrativa sobre uma visita sede do partido e a tentativa de colher declaraes de
deputados eleitos para a Assembleia Nacional Constituinte pelo partido, a exemplo de Jos
Segadas Viana, Manoel Bencio Fontenele, Rubens de Melo Braga, Paulo Baeta Neves e
Benjamin Farah. Apesar do elogio feito forma como o PTB enfrentava o problema do negro
brasileiro e das vrias entrevistas realizadas, a reportagem sugeriu que os polticos do partido
no estavam muito comprometidos com a questo. Alguns esquivaram-se de responder, outros
responderam apressadamente. Baeta Neves, um dos principais lderes do partido naquele
momento, declarou estar dispostos a apresentar Cmara dos deputados uma legislao que
coibisse o preconceito de cor, mas, como j mencionei, quem apresentou uma proposta de
criminalizao da discriminao por cor ou raa foi o deputado da UDN, Hamilton Nogueira248.
A visita feita em nome da coluna Problemas e aspiraes do negro brasileiro sede do
PTB, no Rio de Janeiro, parece ter sido uma tentativa de expor a dificuldade que os polticos
do partido tinham para lidar com agenda racial. Porm, se foi realmente essa a inteno dos
responsveis pela coluna, esta no teve sentido o de deslegitimar a atuao daquele partido em
247
Apesar de no ter conseguido uma data precisa, possvel acompanhar nos arquivos do IPEAFRO os primeiros
passos da entidade. Entre as atas de reunies realizadas, o registro mais antigo datado de 18 de novembro de
1946.
248
Segundo Maria Celina DArajo, em uma pesquisa sobre o PTB entre os anos de 1945 a 1965, o perodo da
Constituinte foi de muitas disputas internas no partido, o que pode ter enfraquecido sua capacidade de influncia
e de disputa pela proposio de temas que eram do interesse de alas do partido. Uma das crticas contundentes ao
PTB foi feita por Segadas Viana, lder do partido na Constituinte, ao declarar que o partido estava adormecido,
sem rumos e sem orientao. Dizia tambm que a bancada de 22 membros na Constituinte pouco se
pronunciava (ARAUJO, 1996, p. 40).
149
relao populao negra, apenas de demarcar que no era somente importante tratar do
problema do negro, e sim criar mecanismos para que os prprios negros, ou melhor suas
lideranas, representassem suas demandas.
O registro mais antigo de uma reunio do Diretrio Negro, realizada no dia 18 de
novembro de 1946, revela que o encontro aconteceu na sede do PTB no Rio de Janeiro e teve
como pauta a discusso dos estatutos do Diretrio e a organizao da primeira sesso pblica,
marcada para o dia 21 de novembro. Essa ata no indicou todos os participantes dessa reunio,
mas foi inserida a informao de que tomaram parte os membros do Diretrio e outros
interessados no problema do afro-brasileiro e o representante da Conveno Nacional do
Negro. O nico citado nominalmente foi Abdias do Nascimento, que fez a sugesto de que
fosse enviado um telegrama a Getlio Vargas informando da criao do Diretrio. No
encontrei informaes sobre o recebimento do telegrama por Vargas, mas, nos arquivos do
IPEAFRO, consta o texto escrito e assinado por Abdias, Sebastio Rodrigues Alves e Maria
Lourdes Valle, primeira esposa de Abdias249.
Fonte: IPEAFRO,
Fonte: IPEAFRO, Dossi
Dossi Diretrio
Movimento Negro
Negro Petebista
PTB
249
Transcrio do Telegrama: Exmo. Snr. Senador Getlio Vargas/ So Borja Santos Reis/ Trabalhistas afro-
brasileiros, em entendimento presidentes Baeta e Antonio Silva (vg) tm honra comunicar vossencia instalao
Diretorio Negro Petebista afim concorrer eleies municipais objetivando valorisao social gente de cr (vg)
combate discriminaes raciais (vg) elevao standard vida e cultura classes operarias (pt) Nestas circunstncias
solicitam palavra ordem do eminente chefe (pt) Respeitosas saudaes/ Abdias Nascimento/ Sebastio Rodrigues
Alves/ Maria Lourdes Valle.
150
250
Os dois jornais tinham orientao trabalhista, mas A Democracia, fundado em 1945, pertencia efetivamente ao
PTB desde junho de 1946 (GOMES e ARAJO, 1987, p. 50).
251
Guimares e Macedo (2008) transcreveram integralmente e analisaram o artigo da coluna Problemas e
aspiraes do negro brasileiro, publicado em Dirio Trabalhista, em 28 de novembro de 1946.
252
Fonte: IPEAFRO, Dossi Diretrio Negro PTB.
151
de Janeiro, mas estava imerso em uma crise organizacional, alimentada pela contradio de ser
um partido de trabalhadores e sindicalistas e ao mesmo tempo o partido de Getlio Vargas.
Na direo de Baeta Neves (1945-1948), o direcionamento principal era a proximidade e o
recrutamento de lideranas sindicais, para que se estabelecesse em um partido com um grupo
dirigente proveniente da classe trabalhadora. Mas, outros polticos influentes como Hugo
Borghi e Salgado Filho, defendiam que o partido tivesse uma estrutura organizacional mais
tradicional, composta majoritariamente por polticos profissionais, que nutrissem simpatia entre
a classe trabalhadora, porm com base em um discurso nacionalista e no apenas de uma classe
(GOMES e ARAJO, 1987; ARAUJO, 1996).
possvel que o grupo que formou o Diretrio Negro petebista tenha buscado ganhar
visibilidade no espao pblico como uma tentativa de se legitimar no partido mesmo com a
crise interna por qual passava. Entretanto, mesmo com toda a divulgao, a adeso proposta
foi pequena, se observado o nmero de presentes nas reunies. Na primeira reunio aberta do
Diretrio Negro, realizada no dia 21 de novembro, consta o comparecimento de 16 pessoas253;
na segunda reunio, 14 pessoas assinaram presena254.
Na reunio do dia 21 de novembro, foi oficializada a indicao de Abdias do
Nascimento como candidato a vereador do Diretrio Negro. No dia seguinte, Sebastio
Rodrigues Alves e Maria de Lourdes Valle enviaram, na condio de membros da comisso
executiva e em nome do Diretrio Negro, uma carta endereada ao deputado Antonio Jos da
Silva, presidente do diretrio regional do PTB, para tratar do assunto da candidatura de Abdias:
253
Assinaram a lista de presena no dia 21 de novembro de 1946: Abdias do Nascimento, Maria de Lourdes Vale,
Efraim Tomas B, Eneias Laurindo de Azevedo, Lucilla Santiago, Lourdes Batista, Antonio Pereira de Arajo,
Augusto Conceio de Souza, Jos Raimundo da Silva, Raul Soares, Solano Trindade, Aguinaldo Camargo,
Rubens do Nascimento, Antonio Fraga, Isaltino Veiga dos Santos e Theodorico dos Santos Arajo. Fonte: Acervo
Adbias do Nascimento, IPEAFRO.
254
Os assinantes da lista de presena da reunio do Diretrio Negro no dia 28 de novembro foram: Wanda Montes
Santos, Alexandrina Silva, Maria de Lourdes Vale, [Manoel de Oliveira], Alberto Ribeiro, Procpio dos Santos,
Abdias do Nascimento, Abigail Moura, Francisco Jos dos Santos, Manoel Cezar de Albuquerque, Antonio Pereira
de Arajo, Aguinaldo Camargo, Rubens do Nascimento e Arinda Serafim. Fonte: Acervo Adbias do Nascimento,
IPEAFRO
152
Nesta
Excelentssimo Senhor:
Apesar de ter sido citada na carta a presena de Sebastiao Rodrigues Alves e Wilson
Tibrio na reunio, as assinaturas no constam na lista. Acredito que a insero dos nomes na
carta tenha sido menos pela inteno de inflar o nmero dos presentes e mais para assinalar o
acordo com a indicao de Abdias para a candidatura pelo PTB. Outro ativista negro que,
segundo encontra-se na ata da reunio, apoiou a candidatura de Abdias foi Jos Pomplio da
Hora. A ata tambm inclui a informao de que Pomplio da Hora seria candidato a vereador
pelo Partido Comunista do Brasil nas eleies de janeiro, mas que acharia justo a candidatura
[de Abdias] pelos inmeros esforos que este tem apresentado em relao valorizao da
reivindicao do negro no Brasil255.
Na verdade, Pomplio da Hora foi escolhido candidato pela Unio Democrtica
Nacional, mesmo partido do senador Hamilton Nogueira256. Em termos de ideologia partidria,
255
Ata de Reunio do Diretrio Negro do PTB, indicando a apresentao de candidatos a vereador. Fonte:
IPEAFRO, Dossi Movimento Negro Petebista.
256
Cf.: A Noite, 16/11/1946, p.7.
153
a UDN se diferenciava substancialmente do PTB, tanto pela inspirao nas tradies liberais
brasileiras, quanto pela identificao como um partido dos notveis, em oposio ao partido
de massas, que era a representao buscada pelo Partido Trabalhista (BENEVIDES, 1981, p.
225). Possivelmente, um dos quesitos considerados para a vaga de Jos Pomplio da Hora entre
os candidatos da UDN era sua condio de notvel no movimento negro no Rio de Janeiro.
A ttulo de exemplo, um dos lderes da Unio Democrtica Afro-Brasileira, uma organizao
negra do perodo, situou-o como parte da constelao de moos cultos, negros que
contribuam para o engrandecimento do pas (Dirio Trabalhista, 12/02/1946, p. 5). Guimares
e Macedo tambm fizeram uma breve anlise da participao de Pomplio no movimento e o
caracterizaram como um dos homens negros mais bem reputados ainda que no estabelecido
no Rio de Janeiro de ento (GUIMARES e MACEDO, 2008, p. 150). Sobre sua trajetria
informaram que era:
[...] formado em direito pela Universidade de Npoles e ensinava latim e grego em
colgios secundrios do Rio de Janeiro. Sua formao escolar aprimorada garantia-
lhe no apenas circulao nos meios profissionais da capital, mas tambm a admirao
dos membros da Conveno. O que levaria um negro to bem-educado e, portanto,
com reais chances de aceitao no mundo dos brancos, a unir-se a manifestantes
poltico-raciais? Afinal, desde a Colnia, no apenas os mulatos claros, mas os
escuros, e at mesmo alguns poucos pretos bem-educados, evitavam mobilizar-se e
protestar contra o preconceito de que eram vtimas, possivelmente porque tais
percalos no bloqueavam irremediavelmente suas carreiras. Havia vias abertas de
integrao e mobilidade.
Abdias do Nascimento no teve o mesmo sucesso que Jos Pomplio da Hora ao ser
indicado candidato na chapa de um grande partido. A despeito de toda movimentao em prol
da construo do Diretrio Negro do PTB e de sua indicao pelo rgo recm-criado, ele no
foi aceito como candidato a vereador por aquele partido. No final de dezembro, a candidatura
do fundador do TEN seria lanada por outra agremiao, o Partido Republicano Democrtico
(PRD).
Cerca de 30 anos depois, Abdias do Nascimento abordou o ocorrido em um livro de
memrias de ativistas que viviam a experincia de exlio, durante a Ditadura Militar Brasileira,
e a sua avaliao sobre aquele momento foi que os partidos faziam trapaa, no contra ele
pessoalmente, mas contra o negro, ao criar expectativas sobre candidatura e no ltimo
momento usar de algum subterfgio para negar espao na chapa. Teria sido esse o caso com o
PTB:
154
257
Marcio Macedo em sua pesq1uisa constatou que outras lideranas prximas de Abdias tinham se envolvido
com o movimento integralista na juventude, a exemplo de outro fundador do TEN, Sebastio Rodrigues Alves
(MACEDO, 2005, p. 205; 232).
155
258
Analisar o uso dessa expresso muito interessante, pois de forma bem prtica ela d um sentido de
independncia ao candidato. A condio sine qua non para Nascimento representar o pensamento do negro
brasileiro seria a existncia autnoma deste. Esse tipo de reivindicao da contribuio dos negros como
formuladores de conhecimento no foi inserido por acidente, ao contrrio, indicava a relevncia do assunto para
os ativistas negros no perodo.
156
tendncias polticas no movimento negro carioca foi se reduzindo medida que se acirrava a
disputa no campo poltico nos anos seguintes, o que demonstrarei ao longo dessa seo.
Ainda que a anlise da candidatura de Abdias do Nascimento no Rio de Janeiro
apresente especificidades que permitem entender mais detalhadamente a situao do
movimento negro e da poltica partidria em nvel local, no se pode perder de vista que,
naquele momento, existia a inteno da construo de um movimento negro de mbito nacional.
Utilizando intensamente dos veculos de comunicao e da promoo do encontro de lideranas
negras e brancas, ativistas comeavam uma tentativa de atender a complexidade da situao do
negro em diversas regies do pas. O momento em que se processou a mobilizao foi oportuno
para a construo do discurso de um movimento de carter nacional, como chama ateno
Guimares (2002): O federalismo poltico foi, de certo modo, fortalecido pela nacionalizao
dos diversos regionalismos culturais, todos de cunho racial, e temperados agora pela grande
mobilidade espacial da populao e pela integrao dos negros na sociedade de classes, ou
seja, como trabalhadores e brasileiros negros (GUIMARES, 2002, p. 88).
Os negros que conseguiram se estabelecer nos grandes centros econmicos e polticos
do pas, como o Rio de Janeiro, foram os principais agentes na construo de uma mobilizao
que correspondia ao novo momento da sociedade brasileira. Esses ativistas atentaram para a
possibilidade de utilizar politicamente a percepo de que o povo brasileiro era uma
representao da populao negra. Numa posio que contrariava a alienao de que eram
repetidamente acusados, procuraram se defrontar com temticas a que se dedicavam os setores
polticos e intelectuais no perodo, temticas da identidade nacional e de um projeto de nao.
Voltava baila a pergunta: o que vem a ser o Brasil? (MACEDO, 2005, p. 73).
O debate dessas questes no mbito da poltica partidria no era uma transposio da
forma como apareciam no movimento negro nem mesmo de setores deste. Isso porque outros
fatores so relevantes para configurar o discurso poltico utilizado para cumprir com a estratgia
eleitoral em cada candidatura especfica.
157
Em janeiro de 1947, Abdias Nascimento tinha estabelecido sua posio como jornalista
no Dirio Trabalhista e atuava em diversas reas. Alm da coluna Teatro, fazia cobertura de
eventos que aconteciam na cidade e recebia representantes de trabalhadores e de sindicatos. A
foto abaixo mostra Abdias sentado na redao do jornal, entre alguns colegas de trabalho.
259
Aps Nascimento, esto Bercelino de Maria, Manoel Rodrigues Pereira Filho, Franklin Lette, Ademar Nbrega,
Celius Auliaus, Joo Chaves, Walter, Jair e Ney.
158
Alegre. Em 1946, a maior conquista daquela articulao de ativistas parece ter sido a insero
do debate sobre a situao do negro brasileiro na Assembleia Constituinte, por meio do contato
com o Senador da UDN, Hamilton Nogueira. Entre os envolvidos na negociao para a
apresentao da proposta, os responsveis pela coluna afirmavam ser aquela a primeira vez,
depois da abolio, que o tema do negro foi abordado no Parlamento260.
Aquela gerao de ativistas negros demonstrava estar ainda muito impactada pela
experincia de mobilizao em So Paulo na dcada de 1930, especialmente na Frente Negra
Brasileira, e pelo vcuo de mobilizao que se seguiu aps o fechamento daquela entidade. O
reconhecimento da importncia da experincia de So Paulo foi expresso em diversas ocasies,
como no texto O negro em marcha, que anunciava: Em So Paulo onde o movimento negro
brasileiro atingiu maior amplitude, congregando nos quadros sociais das entidades verdadeiras
massas de elementos afro-brasileiros (Dirio Trabalhista, 18/12/1946, p. 4). Muitas narrativas
naquele perodo procuravam estabelecer conexes que os pusessem como sucessores da
gerao anterior. Foi essa estratgia, por exemplo, que Aguinaldo Camargo escolheu para
apresentar suas primeiras realizaes como membro do movimento negro:
Esse movimento foi iniciado em 1930, mais ou menos, em todo o territrio nacional.
Tanto no norte como no sul, moos negros procuraram estudar as causas e solucionar
mesmo o problema do negro brasileiro. Como participante do grupo sul do lado de
Abdias do Nascimento, Geraldo Campos de Oliveira, Jeronimo Sebastio da Silva,
Jos Alberto Ferreira, Lino Guedes, Arguro Sampaio de Aguiar e outros valores da
gerao nova de So Paulo e Minas, fizemos o primeiro Congresso Afro-Campineiro.
Mais tarde, aqui no Rio, fundamos, aps muita luta e incompreenso, o Teatro
Experimental do Negro, hoje j plenamente reconhecido como a maior organizao
cultural-artstica do negro brasileiro. Ainda mais uma vez ao lado de Abdias e ajudado
grandemente pela fibra e cultura do Dr. Jos Pomplio da Hora e outros prceres de
real valor tais como Sebastio Rodrigues Alves, desta vez num esforo de unio
nacional, com elementos representantes de vrios estados, realizamos a Conveno
Nacional do Negro Brasileiro (Dirio Trabalhista, 17/02/1946).
260
A questo racial brasileira foi abordada outras vezes durante a Constituinte de 1946, alm da primeira proposta
feita por Hamilton Nogueira, em 14 de maro. Em maio, numa sesso comemorativa do aniversrio da Lei urea,
Claudino da Silva, deputado federal do PCB tratou da situao social precria que viveram os negros desde a
Abolio e do preconceito de cor. Claudino props que ficasse garantido no texto da constituio a garantia do
direito de todos os cidados, independentemente da cor (BRASIL, 1946, p. 33). Em agosto a Assembleia
Constituinte voltou a tratar do assunto, dessa vez o senador Hamilton Nogueira apresentou um projeto de emenda
(1089) para que fosse acrescentado ao artigo 141 da Constituio Todos os brasileiros so iguais perante a lei, a
qualificadora: sem distino de raa ou de cor (BRASIL, 1946, p. 411-412). O projeto de emenda constitucional
de Hamilton Nogueira recebeu apoio de polticos como Claudinho Silva (PCB) e Segadas Viana (PTB). Porm, a
resistncia a emenda era forte entre polticos da UDN, como o deputado Mrio Masago, de So Paulo, que
compreendia que o acrscimo ao texto constitua em si uma discriminao e que aquele no seria assunto de lei,
mas de opinio (BRASIL, 1946, p. 412).
159
com a mais viva satisfao que os negros brasileiros se dirigem ao Sr. Eurico de
Oliveira, diretor do DIRIO TRABALHISTA, na data em que este vibrante
matutino completa o seu primeiro aniversrio de existncia. No s no calendrio
das lutas operrias, como tambm no spero roteiro das reivindicaes do homem
de cor em nossa terra, o nome desse jornal est inscrito com letras de ouro e de
sangue pela corajosa intrpida e nica posio de combate a todas as formas de
opresso e sonegao dos direitos das classes menos favorecidas.
[... ][O DIRIO TRABALHISTA] amparou e estimulou o movimento de
valorizao da gente negra, prestigiando suas organizaes culturais e artsticas,
bem como suas manifestaes polticas. Jornal democrata de verdade, permitiu que
a voz amargurada do preto se fizesse ouvir, sem policiar suas ideias, sem travar a
sua lngua. Por seu intermdio o negro pode falar e adquirir novas esperanas, e
no resta dvida que estamos no limiar de uma nova era nas relaes de raas de
pretos e brancos no Brasil. Nova era que h de ser de igualdade real, respeito
personalidade do brasileiro de cor, estes com um padro mais elevado de instruo,
cultural e de meios de vida. Dirio Trabalhista est ligado em alma e corpo a estas
reivindicaes, e ao seu inteligente, dinmico e amigo diretor cumprimentamos
com um afetuoso abrao de felicitaes e votos de muita prosperidade.
utilizada para sua construo, reforam a ideia de que o grupo de ativistas negros em torno de
Abdias se apresentava como autntico representante do povo negro e da causa negra.
Alm disso, outro recurso que parece ter sido usado com finalidade de expressar
representao foi associar cada pessoa a uma organizao. Aguinaldo Camargo, por exemplo,
foi estrategicamente indicado como presidente da Conveno Nacional do Negro Brasileiro,
mas tambm tinha sido um dos fundadores do TEN, onde atuava como ator e diretor.
A representao feminina era uma caracterstica importante do movimento naquele
perodo, tendo grande valor a presena de Ruth de Souza entre os assinantes do documento. O
reconhecimento participao de mulheres apareceu em um texto publicado na coluna
Problemas e Aspiraes do Negro Brasileiro: o atual movimento pr reivindicao da raa
conta com o apoio e o trabalho eficiente da mulher. Ela est profundamente vinculada s
aspiraes dos seus irmos de cor de todo o pas. No TEN, formou-se um grupo significativo
de mulheres que trabalhava no servio domstico e que atuava em prol dos direitos de trabalho
da categoria. Ruth, entretanto, estava menos associada ao discurso sobre o emprego domstico,
e tinha mais destaque por sua atuao como atriz que sempre recebia boa recepo da crtica261.
A Mensagem dos negros foi publicada no jornal Dirio Trabalhista em meio
campanha eleitoral de Abdias do Nascimento, candidato a uma vaga de vereador na Cmara
Municipal do Distrito Federal. No dia 29 de novembro de 1946, Abdias foi apresentado no
jornal como candidato do Partido Republicano Democrtico (PRD) depois de frustrada a
tentativa de candidatura pelo Partido Trabalhista Brasileiro e um dos mais ardorosos
defensores da raa negra no Brasil. Em outro artigo, publicado no dia 5 de janeiro de 1947, o
candidato Abdias foi apresentado como o redator da seo Problemas e aspiraes do negro
brasileiro, que:
[...] desde longa data vem se dedicando ao trabalho de valorizar seus patrcios de cor,
quer realizando conclaves, como o Congresso Afro-Campineiro (1938), quer
fundando outras entidades como o Teatro Experimental do Negro (1944), o Comit
Democrtico Afro-brasileiro, a Conveno Nacional do Negro Brasileiro (1945) e
cuja existncia um passado de luta sem trguas pela elevao do nvel educacional,
econmico e social de sua gente, e sua desassombrada afirmao anti-racista,
combatendo todas as formas de reacionarismo anti-democrtico encastelado no
preconceito de cor (Dirio Trabalhista, 5/1/1947).
261
Apesar de ser mais identificada como atriz, Ruth de Souza atuava como militante em prol do trabalho domstico.
Em um depoimento concedido ao jornal carioca A Manh, Ruth foi descrita como dedicada defensora da causa
das domsticas. Com um discurso em defesa da criao de um sindicato da categoria, Ruth afirmou: o que temos
a fazer unirmo-nos em torno da necessidade de criao de nosso Sindicato. Ao governo cumpre velar por todos
os direitos, e no podemos continuar vivendo assim merc da sorte. ( preciso regulamentar o trabalho
domstico. A Manh, 20/01/1946).
161
No se diga que os negros esto querendo criar por conta prpria um problema
negro no Brasil. No. Este problema j est criado. S atravs de uma organizao
integrada pelos elementos da prpria raa negra e at mesmo com finalidade
eleitoral, - podero os negros combater a srie de restries que pesam contra eles.
Essa acusao de que os negros esto querendo criar um problema negro , ainda, no
fundo, uma demonstrao de preconceito, por parte daqueles que tudo recusam ao
negro e que desejam v-lo reduzido ignorncia, misria e servido. Se h
liberdade de reunio e de organizao poltica para todos, deve haver tambm para os
pretos. S o fato de serem eles pretos e se declararem negros no podem servir de
pretexto para que lhe casse essa prerrogativa. Adquirindo uma conscincia poltica,
passando a valer eleitoralmente, os negros no tardaro a encontrar advogados e
defensores, - interesseiros, verdade, mas que a troca de votos os ajudar a vencer os
obstculos atuais. Mas o melhor ser escolherem eles prprios os seus lderes, porque
estes sabero, sem dvida, o que que mais fundamente os aflige ( noite, 7/1/1946).
Seria Abdias esse lder negro inquirido pelos intelectuais citados acima? Cabia
campanha do candidato a tarefa de trabalhar na construo dessa ideia. No dia 16 de janeiro, o
artigo Os negros vo mostrar que tm expresso poltica trouxe um registro de uma reunio
realizada no comit eleitoral do candidato. No encontro, estava presente o dramaturgo J.
Santos, a atriz Ruth de Souza, Sebastio Rodrigues Alves, indicado naquele momento como o
162
lder operrio262, e as representantes das domsticas Neusa Paladino e Arinda Serafim. Um dos
presentes a dar depoimento, J. Santos, citou o poltico negro Monteiro Lopes e sua carreira
poltica no Rio de Janeiro263. O depoente introduziu um sentido de tradio candidatura de
Abdias, ao afirmar que Monteiro Lopes foi um brilhante parlamentar negro no governo Afonso
Pena. Hoje podemos ter muitos Monteiros Lopes. Por coincidncia ou no, a sigla do partido
que lanou a candidatura de Abdias, o Partido Republicano Democrtico, tinha a mesma sigla
(PRD) daquele que Monteiro Lopes foi eleito quase 30 anos antes.
O PRD de Abdias foi fundado em junho de 1945. Era um partido de pouca
expresso, e apesar de ter entre suas finalidades precpuas a defesa de
direitos do trabalhador, naquele perodo no pode ser considerado como
um partido de orientao trabalhista264. O partido era presidido pelo
advogado negro Jos de Souza Marques (1894-1974) desde sua fundao.
Com anos de experincia na carreira poltica, Souza Marques j tinha sido
vereador pelo Distrito Federal em 1935265, e tambm era pastor da Igreja
Figura 7 - Jos de Batista, destacado membro da maonaria, professor e fundador, em 1929,
Souza Marques
do Colgio Souza Marques, em Cascadura no subrbio carioca266.
262
A estratgia de adjetivar os envolvidos na militncia negra de diferentes formas, conforme fosse conveniente
no momento, pode causar confuso. O Sebastio Rodrigues Alves apontado aqui como lder operrio o mesmo
que j foi citado como fundador do TEN e presidente da Cruzada Afro-Brasileira de Alfabetizao em outras
ocasies.
263
Manoel da Motta Monteiro Lopes (PE, 1867- RJ, 1910) foi um poltico que alcanou reconhecimento pblico
no Rio de Janeiro, foi o primeiro que assumiu, em pblico, ser orgulhosamente negro. Sobre Monteiro Lopes
ver: ABREU, Martha; DANTAS, Carolina Vianna. chegada "a ocasio da negrada bumbar": comemoraes
da abolio, msica e poltica na Primeira Repblica. Varia hist., Belo Horizonte, v. 27, n. 45, 2011.
264
Entre as finalidades do partido esto: combate pobreza, ao desemprego; apoio agricultura, indstria e
comercio; defesa da propriedade privada; participao dos funcionrios dos lucros das empresas; defesa ao direito
de greve; reforma agrria; oportunidades iguais de educao para todos. Em 1948 o PRD passou a se chamar PRT,
Partido Republicano Trabalhista, e assumiu um discurso mais prximo ao trabalhismo.
265
Cf. Dirio Carioca, 13/10/1934, p.11; Dirio Carioca, 8/12/1934, p.3.
266
Segundo consta nas poucas informaes biogrficas disponveis, Jos de Souza Marques nasceu no Rio de
Janeiro em 1983, neto de escravos, filho de um pai marceneiro e me lavadeira. Depois de converter-se ao
protestantismo na Igreja Batista, trabalhou como faxineiro e passou a estudar no Colgio mantido pela Igreja.
Formou-se em Letras no Seminrio Teolgico Batista e, em 1922, tornou-se vice-diretor do Colgio Batista. Foi
por algum tempo pastor no Paran. Em 1929 j estava de volta ao Rio de Janeiro, naquele ano fundou a Escola
Primria, que logo se transformou no Colgio Souza Marques, e se formou no curso de Direito. Tambm continuou
a desempenhar a funo de pastor e fundou vrias igrejas no subrbio carioca. Ocupou por diversas vezes o cargo
de presidente da Conveno Batista carioca e brasileira. Tambm foi presidente do Superior Tribunal Maom do
Rio de Janeiro (BAA, 2013; MAGALHES e SILVA, 2012; LOPES, 2004, p. 224)
163
protestantes na direo, mas que foram indicados nos Estatutos apenas como profissionais
liberais 267.
Para as eleies de 19 de janeiro de 1947, o PRD tinha uma chapa com 33 candidatos,
composta por Abdias do Nascimento, como j mencionei, e tambm pelo presidente do partido,
Souza Marques. Todos os candidatos da agremiao foram apresentados em um manifesto
endereado ao nobre povo do Distrito Federal e publicado no jornal Diretrizes. O texto
publicado fazia votos ao livre exerccio de escolha dos candidatos nas eleies, mas contava
tambm que os nomes apresentados pelo partido fossem bem aceitos pelos eleitores. Mesmo
assim, as expectativas sobre as chances eleitorais do partido eram modestas: no se
impressionando com os votos de candidatos, prezando o valor da opinio pblica, desejosa de
sua aprovao com voto qualificado, movido por uma conscincia cvica esclarecida
(Diretrizes, 13/01/1947, p.14).
O discurso apresentado no manifesto do PRD parece ser uma demonstrao da
compreenso de como estava organizando a poltica eleitoral no ps-Estado Novo. Lavareda
(1999) explica que no perodo que se seguiu imediatamente abertura democrtica de 1945, a
tendncia foi de domnio de poucos partidos, como o PTB, o PSD e a UDN. Em cidades como
o Rio de Janeiro, em que o PCB tambm tinha muita influncia, a competio entre os partidos
ficava ainda mais acirrada. O PRD, assim como inmeros partidos de pouca expresso, s
viriam a comear a ter sucesso nas urnas em pleitos posteriores, com o aumento do
fracionamento, devido maior competio268.
De qualquer modo, a campanha de Abdias procurou fugir da polmica em torno do
partido em que se candidatou. No Dirio Trabalhista, o candidato foi insistente em negar uma
associao partidria para alm da necessidade de uma sigla para a candidatura. Sem contar
com o apoio de um partido forte, a estratgia foi de demonstrar que o candidato Abdias do
Nascimento tinha sustentao no meio poltico por outras vias, como no artigo que reuniu os
nomes do presidente Eurico Dutra, do ex-candidato a presidente pela UDN, Eduardo Gomes, e
de Luiz Carlos Prestes, lder do Partido Comunista do Brasil. Alm disso, tambm foi feito
267
Dos 14 diretores, 5 eram advogados, 2 jornalistas, 2 funcionrios pblicos, 2 professores, 2 mdicos e 1
engenheiro. Os lderes religiosos alm de Souza Marques eram: Sinesio Lira, 2 Vice-Presidente, era reverendo da
Igreja Presbiteriana; Ernesto Soren, 1 Secretrio e pastor da Igreja Batista; Euclides Deslandes, 3 vice-presidente,
era reverendo da Igreja Anglicana.
268
Na primeira eleio no Distrito Federal para cargos legislativos aps o fim do Estado Novo, somente PTB,
UDN, PCB e PSD conseguiram xito nas urnas. Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral, para as duas vagas
de senador da Assembleia Constituinte, PCB e UDN somaram juntos quase 65% do total de votos. Dos dezessete
deputados federais eleitos, nove eram do PTB, trs da UDN, trs do PCB e 2 do PSD. O PRD, que inscreveu
candidatos apenas para as vagas de deputado federal, foi o sexto partido mais votado, recebendo pouco mais de
onze mil votos, do total de quase quinhentos mil apurados.
164
certo investimento em demonstrar que existia uma base popular endossando a campanha, que
deu enfoque para sua atuao pela resoluo do problema racial no pas, sem a defesa de uma
bandeira poltico-partidria.
O movimento negro, como no poderia deixar de ser, o movimento do povo que luta
por melhores dias. um movimento de homens explorados, marchando ombro a
ombro com os homens explorados de outras raas, tais como os judeus e os ciganos.
O movimento tem suas razes nas dores do povo brasileiro, secularmente sugado e
escravizado pelas foras reacionrias do capital, que no permitem ao negro a
conquista do lugar que lhe compete neste Brasil construdo a poder do seu sangue, do
seu suor, e das suas lgrimas. A mulher negra na cidade normalmente uma
empregada domstica que em outras palavras significa um pobre diabo sem direito
algum. [...] Assim sendo, ser entregar o pescoo ao algoz, votar num candidato que
no conhea as necessidades do negro e do povo, ou que as conhecendo, no se
disponha a defend-las (Dirio Trabalhista, 5/1/1947, p. 2).
categoria era colocar na Cmara Municipal um negro, justamente porque temos certeza de que
ele defender a soluo dos nossos problemas, que so os problemas de todo mundo, agravados
ainda pelas restries decorrentes do preconceito de cor269 (Dirio Trabalhista, 16/1/1947, p.
4).
A categoria domstica tinha muita necessidade de representao poltica, visto que o
setor no havia sido contemplado pelas leis trabalhistas. Entretanto, representar esse grupo no
seria um feito fcil de realizar. A primeira dificuldade seria alcan-las enquanto categoria
ocupacional, pois no existia qualquer entidade que as congregasse. Naquele momento, j havia
a tentativa de construo da Associao das Empregadas Domsticas, mas o intento s veio a
se concretizar em 1950270.
Apesar das possveis dificuldades de arregimentao eleitoral, a quantidade de pessoas
atuando no emprego domstico no Rio de Janeiro no era nada desprezvel, numericamente. No
censo de 1940, 63.964 mulheres foram registradas como trabalhadoras dos servios domsticos,
o que correspondia a 9,03% da populao feminina do Rio de Janeiro com 10 anos ou mais de
idade. As funes que as mulheres negras desempenhavam no servio domstico eram,
geralmente, as menos qualificadas, como lavadeiras, arrumadeiras, cozinheiras, especialmente
em casas particulares271. Quando tratou do status social que envolvia a condio de trabalho no
servio domstico, Costa Pinto afirmou que a conjuno de fatores ligados condio de sexo,
269
Arinda Serafim atuava em prol dos direitos de trabalho das empregadas domsticas desde o incio da dcada de
1930. Em um texto, publicado no jornal Vanguarda Socialista, com o ttulo Problemas das Empregadas
Domsticas, Arinda abordou a variedade de dilemas vividos pelas mulheres que trabalhavam no servio
domstico naquele perodo relacionados com a baixa remunerao, o alto nmero de horas trabalhadas e as
barreiras que lhes dificultavam a extenso de direitos trabalhistas e de sindicalizao. O texto ainda trata de uma
tenso entre as Donas de Casa e as empregadas domsticas. Segundo Arinda, a Associao das Donas de Casa
queixava-se da dificuldade em encontrar empregadas domsticas. Para ela, devido falta de garantias legais para
a categoria, muitas mulheres estavam buscando outras colocaes, nas reas de comrcio e indstria. Para Arinda,
a luta contra o analfabetismo era fundamental para que as mulheres que trabalhavam no servio domstico tivessem
acesso a mais oportunidades. Em suas palavras: creio na educao como base da evoluo dum povo. A
empregada, integrante deste povo, precisa aprender a valorizar-se a si mesma (Vanguarda Socialista, 28/06/1946,
p. 6). Seu ativismo a levava a ter uma atuao prtica que consistia no compromisso de voluntariamente trabalhar
ensinando outras mulheres a ler e escrever. A denncia contra o preconceito que sofriam as empregadas domsticas
tambm fazia parte das aes de Arinda Serafim. Em um depoimento concedido a Abdias do Nascimento, que
trabalhava como reprter do jornal Dirio Trabalhista, no Rio de Janeiro, Arinda fez a seguinte declarao sobre
as empregadas domsticas: merecemos considerao e respeito, pois somos trabalhadoras to boas como as que
melhor produzem para o bem do Brasil (Dirio Trabalhista, 07/02/1947, p.1). Em outra ocasio ela questionou
o fato das bailarinas terem conseguido direito sindicalizao, o mesmo que a justia trabalhista negava s
domsticas.
270
Algumas das envolvidas na construo da entidade, durante os ltimos anos da dcada de 1940, eram tambm
ativistas atuantes na mobilizao negra no Rio de Janeiro, como as j citadas Arinda Serafim e Neusa Paladino.
271
Costa Pinto (1953) tratou da hierarquia de posies no servio domstico carioca, com base nas linhas de sexo
e de cor. Os que se encontravam em melhor posio eram os homens brancos, geralmente contratados para
funes de mordomo, copeiro, chofer de carros particulares, jardineiro ou certas funes no servio domstico de
hotis de maior preo [que] exigem certas habilidades, mesmo aprendizagem (COSTA PINTO, 1998 [1953], p.
119).
167
classe, cor e instruo, determinavam para a mulher de cor uma situao particularmente
inferior dentro do sistema de estratificao social (COSTA PINTO, 1998 [1953], p. 120).
A percepo do potencial de mobilizao das mulheres envolvidas no emprego
domstico e o enfoque na campanha de Abdias para essa classe trabalhadora especfica foi
uma estratgia que parece fazer muito sentido. A eleio seria garantida se o nicho eleitoral
em questo respondesse positivamente promessa de que o candidato ao se eleger vereador
seria o representante na esfera poltica de seus anseios por melhores condies de trabalho.
Sem dvida, Nascimento tinha altas expectativas em relao a sua candidatura. Como
j citado, a construo de sua imagem nas pginas do peridico era a de uma personalidade
pblica de destaque, que tinha grande confiana no apoio de seus pares no pleito eleitoral que
se aproximava. Entretanto, mesmo com todo o investimento feito em sua imagem, Abdias foi
categrico ao afirmar que no era sua pessoa que importava e sim a luta da defesa de direitos
sempre espezinhados dos negros. Adiante no texto, quando se prope a falar da possibilidade
de no ser eleito, afirma que continuar a sua luta no jornal ou na praa pblica. Nesse
momento, Nascimento defende que sua motivao no alcanar um cargo poltico, mas
desempenhar sua militncia numa esfera estratgica. O candidato tenta tambm escapar das
acusaes que apontavam sua militncia como oportunismo, para ganhos prprios; essas
acusaes eram constantes, desde a fundao do TEN (MACEDO, 2005).
Se a inteno da candidatura de Abdias foi mostrar que negros tinham expresso
poltica, o resultado das eleies de 19 de janeiro de 1947 foi frustrante. O PRD no atingiu o
coeficiente eleitoral e, assim, no elegeu nenhum vereador. De um total de 589.972 eleitores e
441.086 votos apurados, o partido recebeu 6.038 votos, somando todos seus 32 candidatos,
segundo a contagem do Tribunal Superior Eleitoral. Ainda segundo a contagem oficial,
publicada pelo jornal Correio da Noite, o candidato Abdias do Nascimento recebeu ao todo 37
votos. O candidato mais votado do partido foi Jos de Souza Marques, com 1.328 votos272.
O artifcio utilizado por Abdias e pelos demais responsveis por sua campanha,
registrada nas pginas do jornal Dirio Trabalhista, de que o candidato tinha grande adeso
popular no estranho na poltica partidria. Mas, no caso da tentativa de eleio de Abdias,
h a possibilidade de que a campanha no tivesse foco principal nas eleies, mas que tenha
sido uma tentativa para mobilizar a populao negra, mais um entre os outros meios utilizados
para agitao poltica no Rio de Janeiro.
272
Cf. Resultados Oficiais das eleies no Distrito Federal. Correio da Manh, 06/02/1947, p.12.
168
Ainda que a candidatura tivesse sido pensada apenas na inteno de chamar a ateno
da classe poltica, e da sociedade carioca em geral, para as demandas da populao negra, as
propostas de campanha no foram apenas alegricas. A incorporao das demandas das
empregadas domsticas marcou uma tentativa de incluir a categoria entre as beneficiadas dos
direitos trabalhistas ampliados durante o governo Vargas. Ainda que seja compreendida como
uma poltica de carter reformista, a luta pelo direito das domsticas era uma demanda que se
fortalecia no interior do movimento, que tinha muitas mulheres empregadas naquela funo,
mas que no era incorporada por outros setores, como os trabalhistas ou os grupos de
esquerda.
Essa primeira tentativa eleitoral de Abdias do Nascimento parece ter atrado pouca
ateno do eleitorado negro. A literatura que trata do tema constatou no perodo, entre 1945 e
1964, uma expressiva adeso da populao negra a candidatos do trabalhismo varguista,
principalmente aquele que era representado pelo PTB, e nos anos posteriores a polticos de
carter populista.
Amaury de Souza (1971) realizou um estudo buscando compreender como as
desigualdades sociais e raciais poderiam estar associadas a determinado comportamento
poltico dos eleitores. Em suas concluses, o autor afirmou que a tentativa de Vargas de criar
uma nova base poltica para o Estado Novo, atravs da mobilizao dos trabalhadores urbanos
e a importncia poltica da massa urbana, criou um efeito significativo nas duas dcadas
seguintes redemocratizao e estabeleceu a correlao de intercmbio entre negro e povo
(SOUZA, 1971, p. 63). Souza apresentou dois pontos que sustentavam sua afirmao: o fato
inequvoco de que a populao negra foi grandemente beneficiada pela legislao de proteo
ao trabalhador, implementada durante o Estado Novo e o uso da correlao entre negro e povo
feito pela prpria oposio a Vargas durante e aps o Estado Novo, num esforo de transferir
para um movimento poltico os esteretipos imputados ao negro e ao mulato (idem, p. 64).
Abdias no desistiu depois da primeira tentativa, no interregno democrtico tentou
candidatar-se novamente em 1950, 1954 e 1962. A anlise de outras tentativas para ingresso
em um cargo eletivo pode dar mais indcios de qual o lugar da poltica partidria na atuao de
Abdias do Nascimento e de outros ativistas negros reunidos no Rio de Janeiro nos anos
seguintes ao reestabelecimento da democracia no Brasil.
169
Vimos sustentando desde muitos anos, com vigor da nossa alma e do nosso corpo, a
urgncia do negro desenvolver seus valores prprios, suas virtudes intrnsecas de
homem. Hoje, e no amanh, ele deve, precisa intervir na vida pblica, sem timidez e
sem humildade, mas ao contrrio, transfigurado pela grande ambio de servir Ptria
no cumprimento do mandato cvico conferido pelas urnas. [...]
Incitamos calorosamente aos negros e mulatos a se filiarem a partidos nacionais a fim
de que dentro de qualquer organizao poltica legal sejam os primeiros a dar
motivao popular, nobreza e ardor campanha cvica que est ocupando neste
momento a ateno do pas. Em nossa atuao, em nossa palavra, os partidos
encontraro a mais poderoso argumento dessa necessidade urgente de se franquear a
vida poltica aos brasileiros de cr (Nascimento, 2003 [fevereiro de 1950], p. 71 e 78).
273
Segundo o registro feito no jornal Quilombo, alguns dos candidatos negros que concorreram as eleies no Rio
de Janeiro, em 1950, foram: Jos Bernardo, pleiteante a uma vaga de deputado federal pelo PTB; Isaltino Veiga
dos Santos, candidato a vereador pelo PDC e Jos Alcides, candidato a vereador pelo PSD (Quilombo, 2003
[junho/julho, 1950], p.111). Dos candidatos citados, Jos Bernardo teve campanha registrada no jornal Himalaya,
ligado a Unio dos Homens de Cor em Niteri e ao Centro Esprita Jesus do Himalaya, todos sob sua direo.
Outro candidato ligado a Unio dos Homens de Cor foi Mrio Bruno, eleito vereador da cidade de Terespolis
pela legenda do PTB, nas eleies de 1950 (Cf. Himalaya, 21/10/1950, p.2; 28/10/1950, p.8).
170
274
Em 1945, somente 16% do total da populao brasileira se registrou nas eleies. Nos anos seguintes o
percentual cresceu, mas em 1962 ainda no havia passado dos 25%. (ALBERTO, 2011). O censo de 1940 registrou
uma taxa de analfabetismo de 61,6% para a populao brasileira de 5 anos e mais (54,5% para a populao com
15 anos e mais); quando separados por cor, a taxa para a populao que se declarava branca caia para 52,8%, entre
os pardos subia para 74,3%, e entre os pretos chegava a 81,4% (ROSEMBERG e PIZA, 95/96, p. 117).
275
Cf. Escolhidos os candidatos do PSD carioca s Cmaras Federal e Municipal. A Manh, 21 de julho de 1950.
276
Cf. Escolhidos os candidatos do PSD carioca aos rgos legislativos. A Manh, 22/08/1950.
277
O envolvimento de Jael Oliveira na campanha de Abdias foi anotado por Costa Pinto (1998) [1953]: durante
os preparativos e a propaganda eleitoral toda a publicidade de Abdias preparava sua eleio para vereador
municipal; para isso um industrial branco candidato a deputado, principal financiador das atividades do TEN, neste
perodo, montou juntamente com Abdias, um escritrio eleitoral (COSTA PINTO, 1998 [1953], p. 267).
278
Quilombo teve dez edies entre dezembro de 1948 e julho de 1950. O jornal tambm contava com a
colaborao de intelectuais negros, a exemplo do socilogo Guerreiro Ramos; e de intelectuais brancos renomados,
como Gilberto Freyre, Arthur Ramos, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Raquel de Queiroz e Roger
Bastide. Para uma anlise detalhada sobre o jornal Quilombo ver: (MACEDO, 2005, p. 150-195; OLIVEIRA,
2008, p. 140-147).
171
compreenso e por dar inmeras provas de lealdade causa negra279 (Quilombo, 2003 [maio
de 1950], p. 98).
O papel de patrono desempenhado por Jael de Oliveira concedeu um lugar de destaque
nas pginas de Quilombo. Assim, quando o jornal passou a dedicar ateno para questes
polticas, especialmente relacionadas s eleies que se aproximavam, o empresrio foi o
primeiro a ser convidado a deixar um depoimento na coluna Frum Poltico, em janeiro de
1950. Na condio de pr-candidato, Jael recebeu um aceno positivo no Quilombo por meio da
afirmao: os candidatos da gente de cor sero aqueles, negros ou brancos que alm do seu
manifesto sentimento democrtico estejam vinculados realmente aos problemas das massas
(Quilombo, 2003 [janeiro de 1950], p. 63).
Na declarao feita em Quilombo pode ser percebida uma nova postura de Abdias em
relao representao poltica da populao negra. Enquanto em 1947 ele enfatizava a
necessidade de que os eleitores negros optassem por candidatos negros, utilizando expresses
como legtimo representante dos brasileiros de cor, em 1950, o discurso da representao
passa a ser associado ao comprometimento do candidato com a resoluo dos problemas dessa
parcela da populao. Essa mudana pode ser resultado de uma nova compreenso sobre a
questo da representao poltica, mas penso que estava relacionada a dois fatores: 1. O fraco
desempenho eleitoral que Abdias e outros candidatos negros tiveram nas eleies de 1947, um
indicativo da inexistncia de voto negro no Brasil naquele momento280; e 2. O compromisso
causado pela benevolncia que Jael Oliveira vinha demonstrando ao suportar financeiramente
as aes do TEN. Em todo caso, a incluso de candidatos brancos entre os que poderiam ser
apoiados por eleitores negros condiz com o que era pregado por Abdias e seus companheiros
desde meados dos anos 1940, quando afirmavam que o movimento que intencionavam construir
era de carter antirracista e anti-isolacionaista281.
279
Naquele ano Jael de Oliveira patrocinou a criao da Escola Profissional para os Brasileiros de Cor, ofereceu o
financiar o prmio de 10.000 cruzeiros para o concurso Boneca de Pixe, e tambm emprestou um imvel para
ser sede das atividades do TEN no segundo andar da rua Mayrink Veiga, como por exemplo a Escola Profissional
e a Associao Profissional das Empregadas Domsticas, alm e diversos cursos (MACEDO, 2005, p. 98;
OLIVEIRA, 2008, p. 189).
280
Mesmo que minha interpretao sobre a compreenso de Abdias sobre o voto negro seja acertada, saliento
que o ativista negro continuava a tratar da questo como uma possibilidade. Isso aparece, por exemplo, em um dos
artigos que publicou no Quilombo: chegou, pois, o instante de perguntar ao Brasil: o negro deve ter voz poderosa
e autnoma nessa eleio? Saibam os partidos e os candidatos que mais de um milho de votos da massa negra
pode e quer decidir a vitria (Quilombo, 2003 [junho de 1949]:35).
281
A declarao em favor dos candidatos brancos comprometidos no excluiu o questionamento sobre o baixo
percentual de candidatos negros nos partidos polticos e crticas aqueles que no enfrentavam o preconceito de
cor em seus programas. Uma demanda por maior representao de negros foi feita no Manifesto Poltico dos
Negros Fluminenses, que reivindicava que os partidos inclussem nas eleies de 1950 ao menos trs brasileiros
de cor, de reconhecida competncia em suas legendas (Quilombo, 2003 [maro/abril1950]:87; MACEDO, 2006,
189).
172
282
Apesar do entendimento do problema do negro como um problema nacional, havia diferentes nuanas na
percepo. Jael Oliveira, por exemplo, reproduzia o discurso dominante na poca, de ausncia de problema racial
e de conflitos, ressaltando o convvio harmnico: do No Brasil no h problema racial. Aqui vivem
harmoniosamente pessoas de todas as raas, misturando sangue, suor e trabalho para o bem comum da Ptria. As
teorias sobre inferioridade e superioridade de raas esto mortas. [...]A gente negra de uma vitalidade espantosa,
de uma vivacidade espiritual e mental admirveis. Precisamos ajudar essa gente boa e simples no com o olho da
boca da urna, mas realizando uma obra eficiente e prtica (Quilombo, 2003 [janeiro de 1950]:63).
283
Sobre a Cerimnia de lanamento da candidatura de Abdias do Nascimento em 1950 ver: (MACEDO, 2005, p.
189; OLIVEIRA, 2008, p. 186-187).
173
desinteressou-se de sua propaganda j nas vsperas do pleito e nem sequer foi ao Tribunal
Eleitoral fazer a regularizao final de sua inscrio (COSTA PINTO, 1998 [1953], p. 187).
Na verdade, a mudana do PSD foi feita em agosto, no to s vsperas das eleies, que seriam
realizadas no dia 03 de outubro284. Mas, independentemente do tempo, a possibilidade de Abdias
construir uma candidatura bem sucedida para deputado federal parecia pouco provvel.
A narrativa de Abdias sobre o ocorrido foi apresentada anos depois, num momento em
que ele se props analisar a prpria trajetria. Na ocasio, declarou: Sempre ocorria idntica
trapaa contra o negro. A ltima hora o PSD tambm me torpedeou. [...] Tudo no passava de
um embuste, um jogo para drenar o voto negro (NASCIMENTO, 1976, p. 35). Pode se notar
que a forma escolhida por Abdias para narrar o ocorrido significativa, dado que ele no
afirmou que os problemas com o PSD foram um intento especfico contra ele, mas contra o
negro285. Foi nesse sentido tambm que ele avaliou a sua seguinte tentativa de candidatura
fracassada, em 1954, uma exigncia arbitrria que o tirou da disputa (idem, p. 34).
Na campanha de Abdias para vereador na legenda do PSD, em 1954, teve destaque a
propaganda utilizada No vote em branco, vote no preto. O slogan logo criou polmica,
chegando a ser criticado pelo renomado cronista poltico, Herclio Salles286. Alm do debate
que suscitou, a campanha de Abdias em 1954, demonstra uma mudana de estratgia, que no
considero ser meramente do contexto eleitoral, mas um reflexo da introduo de um tema que
foi muito valioso para alguns envolvidos no movimento negro no Rio de Janeiro no incio dos
anos 1950: a Ngritude.
Ngritude foi um movimento francfono de carter artstico, esttico e poltico dos
anos de 1940 e 1950, baseado no ativismo de poetas negros de expresso francesa, como Lon-
Damas, A. Csaire, S. Senghor, . Lro, A. Diop e outros (BARBOSA, 2013, p. 172). Segundo
Antonio Srgio Guimares, a negritude que se estabeleceu em Paris nos anos 1940 deve ser
compreendida como um ato de aceitao de si, por parte dos negros, crioulos e mulatos,
impulsionadas pelas ideologias literrias, cientficas e filosficas do momento: o surrealismo,
a psicanlise, o marxismo, o existencialismo (GUIMARES, 2004, p. 13). No Brasil, ativistas
negros reunidos no Teatro Experimental do Negro recepcionaram a negritude francfona e
284
Cf. A Manh, 22/08/1950, p.1.
285
Um ocorrido que merece nota, mas sobre o qual tenho pouca informao sobre a repercusso na campanha de
Abdias, em 1950, foi a reprovao de sua candidatura pela Liga Eleitoral Catlica (LEC). Abdias foi includo
numa lista com outros 622 candidatos a vagas no Senado, na Cmara Federal e na Cmara de Vereadores do Rio
de Janeiro, publicada no jornal O Globo. Segundo publicado na matria do jornal, esses candidatos tiveram a vida
pblica e privada analisada, ficando reprovados aqueles que tinham demonstrado algum apoio ou simpatia a
comunistas ou que no contribuam para a elevao do nvel moral e poltico do pas (O Globo, 22/7/1950, p. 1
e 3).
286
Cf. Candidato Preto. Jornal do Brasil, 28/05/1954.
174
desenvolveram, nos discursos, nas peas do teatro e nos artigos publicados no jornal Quilombo
uma proposta de negritude brasileira e nacionalista, representada pela negociao de uma
identidade racial e cultural que, embora se subjugasse nacionalidade brasileira, mantinha-se
singular (idem, p. 36). Dessa forma, a tomada de conscincia287, fundamental para a
negritude, foi concebida por lderes e idelogos do TEN no incio dos anos 1950, como Abdias
do Nascimento e o socilogo Alberto Guerreiro Ramos, inicialmente numa perspectiva
conciliadora e no diferencialista, e depois de certo tempo como um racismo antirracista, com
forte influncia do pensamento de J. Paul Sartre (BARBOSA, 2013).
A influncia de Sartre no pensamento de Guerreiro Ramos ficou expressa na dialtica
que ele adotou para tratar da negritude, ainda que o socilogo brasileiro tenha usado em sua
verso alguns elementos diferentes dos que foram desenvolvidos por Sartre288. Segundo Barbosa
(2013), a viso dialtica de Guerreiro Ramos tinha trs elementos complementares:
a) niger sum, a assuno da negritude pelo homem de pele escura (tese); b) suspenso
da brancura como ideologia dominante (anttese); c) compreenso humanstica do
valor objetivo da negrura e da luta negra (sntese). Em suma, estava traado o caminho
pelo qual o homem e a mulher de pele escura poderiam tornar-se uma pessoa. Ou
seja, um indivduo que se percebe e age para alm da unidimencionalizao social (e
racial) (BARBOSA, 2013, p. 181).
Nas eleies de 1954, a campanha de Abdias parece ter incorporado um discurso prprio
da negritude. No Manifesto ao povo do Distrito Federal, que acompanhava o panfleto da
campanha (Quadro 15), a mensagem principal era um apelo conscincia: Chegou a
oportunidade de o negro demonstrar conscincia do seu papel preponderante na formao social
brasileira, no apenas como nmero, mas tambm, e principalmente, como fator de Progresso,
que realmente . Diferente das campanhas anteriores, o apelo ao eleitorado negro no tinha
como argumento principal a luta contra as discriminaes causadas pelo preconceito de cor,
em vez disso, foi utilizado o smbolo da Me Preta, eficiente por imprimir um tom conciliatrio
e por situar a contribuio negra na formao da nao. A mudana de estratgia pode ser
associada existncia da lei 1.390 de 1951, que tornou o preconceito de cor ou raa
contraveno penal, o que respondia em parte s demandas apresentadas desde o Manifesto
287
Expresso empregrada por Aim Cesire, como explica Barbosa (2013): [a negritude] tratava-se de uma
"tomada de conscincia" da especificidade do ser negro. Em suas palavras: "negro estou, negro permanecerei"
(CSAIRE, 2005, p. 28 apud BARBOSA, 2013). Todavia, diz o autor, a conscincia desta especificidade no era
um enclausuramento, mas uma abertura para o universal e para a valorizao do Homem, ao mesmo tempo em
que carregava uma dimenso revolucionria ao afirmar a presena de uma parte antes ignorada da humanidade
(BARBOSA, 2013, p. 172).
288
Sartre, em Reflexes sobre o racismo, concebeu uma dialtica em que a supremacia branca a tese; a negritude
a anttese; e o racismo antirracista, o processo para a criao da sntese: uma sociedade a-racial (BARBOSA,
2013).
175
Outro aspecto que pode ser observado a partir dessa campanha eleitoral de Abdias o
grupo que colaborava com a empreitada poltica do ativista naquele momento. O Manifesto ao
povo do Distrito Federal foi assinado por 26 pessoas, jornalistas, operrios, escritores, artistas,
trabalhadores de todas as categorias e profisses, de qualquer cor, origem racial dirigentes do
Comit pr Abdias do Nascimento. Alguns deles eram companheiros e colaboradores das
atividades empreendidas por Abdias no Rio de Janeiro desde a fundao do TEN, como
Sebastio Rodrigues Alves, Jos Pomplio da Hora, Arinda Serafim e Ironides Rodrigues.
Outros eram colaboradores mais recentes, como a diretora do Ballet Folclrico, Mercedes
Batista; os atores Claudiano Filho, Jca, La Garcia e Frediman Ribeiro; os advogados,
Guiomar Ferreira de Matos e Pyramo Moura Brando; os compositores Ataulfo Alves e Boror;
entre outros289.
A ausncia de colaboradores ligados a partidos de esquerda, a exemplo de comunistas
ou socialistas, na campanha de Abdias, em 1954, tambm uma demonstrao da extenso das
divergncias deflagradas durante o I Congresso do Negro Brasileiro, realizado em 1950, e
promovido pelo Teatro Experimental do Negro. O evento deveria representar o xito de criao
de uma ampla frente antirracista e pr-melhoria da populao afro-brasileira (MACEDO,
2005, p. 244), entretanto foi palco de um embate entre grupos com perspectivas sobre os
direcionamentos do movimento negro naquele momento. De um lado, foi feita a defesa da
negritude apresentada na tese apresentada por Ironides Rodrigues, A Esttica da Negritude,
apoiada por Abdias, Guerreiro Ramos, Sebastio Rodrigues Alves, Aguinaldo Camargo e
outras lideranas ligadas ao TEN. Contra essa perspectiva, estavam participantes do Congresso,
negros e brancos, alguns deles com relaes com o Partido Comunista, que produziram um
documento que ficou conhecido como Declarao dos Cientistas290. No documento, os
289
Os demais dirigentes do Comit eram: Joo Cabral Alves, presidente da Unio dos Homens de Cor; Eloy de
Freitas Guimares, qumico industrial; Romeu Cruzoe, escritor e funcionrio do Banco do Brasil; Maria Luiza
Castello Branco Silva, funcionria pblica; Jos Medeiros, fotgrafo da Revista O Cruzeiro; Waldomiro Machado,
funcionrio pblico; Walter Lima Cruz, serventurio da justia Armada; Walter Bastos, Assistente Social; Nilza
Silva, domstica; Edwiges da Silva Rodrigues Alves, dona de casa; Darcy Gabriel da Silva, comerciria.
290
Um dos participantes do Congresso do Negro oposto a tese da Negritude, e que no tinha relao com o PCB,
foi Jos Bernardo, presidente da Unio dos Homens de Cor. A crtica de Bernardo ao Congresso de 1950 foi
apresentada durante o evento e publicada alguns meses depois no jornal que dirigia. Segue trecho: Este
Congresso, senhores, um primor de estudos cientficos e literrios acerca do negro e seus problemas. Mas ainda
se no objetivou no Brasil, atravs de solues adequadas, a mnima parte do que o negro necessita para sair dos
laos fatais da misria e da fome, do analfabetismo e dos vcios. O que se h feito neste sentido to pouco que
parece nada. Negro no se libertar desses laos com aquarelas cantadas e pintadas, com escritos romnticos e esse
cientismo lrico que por a anda. Negro tem fome e precisa comer (Himalaya, 30/12/1950, p.5). No mesmo jornal
foram publicados alguns textos com crticas aos organizadores do Congresso (Cf. O Congresso Negro e o
Esperanto, Himalaya, 14/10/1950, p. 8; Guerreiro Ramos, a Unio e eu, Himalaya, 21/10/1950, p.2). Costa Pinto
(1998 [1953]) trata do conflito entre Jos Bernardo e os organizadores do Congresso do Negro, ligados ao TEN,
resultando na excluso da tese do primeiro dos Anais do evento (1998 [1953], p. 261-265).
177
291
Quando parte das teses e de debates do Congresso foram publicados no livro O Negro Revoltado, pouco mais
de 15 anos aps sua realizao, Abdias tratou dos embates que aconteceram no conclave como expresso da
emergncia de duas correntes, com divergncias sobre a respeito dos estudos e dos comportamentos do homem
de cor. Segundo ele, de um lado estava o povo negro, que representava a maior parte dos participantes do
Congresso e era constitudo por pessoas destitudas de ttulos acadmicos e honorficos; do outro, estavam
aqueles que se autodeclaravam homens da cincia (Nascimento, 1982 [1968]:59).
292
O estado da Guanabara existiu entre 1960 e 1975, e ocupou o territrio do atual municpio do Rio de Janeiro,
aps a transferncia do Distrito Federal da cidade carioca para Braslia.
293
Cinco vezes favela, produzido pelo Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE, visto pela crtica de cinema
como um dos filmes que definiu os parmetros do cinema nacional nos anos seguintes, por colocar na linguagem
cinematogrfica uma reflexo sobre povo e nao, o que era uma novidade para aquele setor naquela poca. Ver
mais em: GARCIA, Estevo. Cinco vezes favela. Contracampo Revista de Cinema, 01 out. 2004; NETTO,
178
Guilherme. Em busca de um cinema popular: Cinco Vezes Favela do CPC e das ONGs. Revista Altejor. Ano:
03. Volume: 01. Jan-Jun. 2012.
294
As reformas de base eram o carro chefe do governo do presidente Joo Goulart (1961-1964), que as apresentava
como uma continuao das transformaes que Vargas tinha iniciado na dcada de 1930. Essa reforma deveria
incluir medidas voltadas para soluo de problemas em reas como: reforma agrria, educao, urbanizao,
poltica-eleitoral, fiscal, entre outras (GOMES e FERREIRA, 2007).
295
As propostas em destaque estavam comprometidas com a soluo de problemas relacionados a: Favelas, com
um princpio similar ao da reforma agrria das Reformas de Base, propondo a construo de casas populares para
os moradores de favelas; Escolas de Samba, com uma proposta de institucionalizao por serem autntica
manifestao de arte popular e instrumento de educao social e cvica do povo; Liberdade e Igualdade de cultos,
uma demanda por igualdade de tratamento de cultos afro-brasileiros, cristos e judaicos; e Artes, com propostas
para reas de cinema, teatro, galerias de arte e msica (Fonte: IPEAFRO. Dossi Candidatura de Abdias
Nascimento).
296
Sobre Brizola e o que ficou conhecido como a esquerda brizolista, ver: Tavares, Tnia dos Santos. Grupo
de Onze: a esquerda brizolista (1963-1964). Dissertao (Mestrado em Histria Social). UERJ, 2013.
297
Outros candidatos negros na legenda do PTB naquelas eleies foram: o socilogo Alberto Guerreiro Ramos,
que concorreu a uma vaga na Cmara Federal, recebeu 2.623 votos e ficou como segundo suplente entre os
candidatos no eleitos; e Jos de Souza Marques, fundador do partido da primeira candidatura de Abdias (PRD
1947), recebeu 3.320 e tambm ocupou a segunda suplncia entre os candidatos no eleitos para o cargo de
deputado estadual. Guerreiro Ramos fazia parte do Diretrio Nacional do PTB, desde 1959, e conseguiu ocupar o
cargo de deputado federal entre agosto de 1963 e abril de 1964 na vaga Leonel Brizola, que tinha sido licenciado
(PIZZA JUNIOR, 1997; AZEVDO e ALBERNAZ, 2013).
179
(CONOLLY, 2008). Mesmo sem ter tido sucesso eleitoral, o prprio Abdias tratou a
experincia no PTB de 1962, em uma entrevista concedida em 2009, de forma bem positiva:
Na histrica ocasio em que Leonel de Moura Brizola se elegeu deputado federal com
um tero dos votos do estado da Guanabara, maior votao da histria poltica do
Brasil em 1962, eu me candidatei a deputado estadual e pela primeira vez me senti
realmente identificado com a proposta de um partido poltico. O PTB de Joo Goulart
e de Brizola tinha tudo a ver com minha orientao poltica, embora a questo racial
ainda no ganhasse ressonncia (NASCIMENTO, 2009, p. 10).
As eleies de 1962 inauguraram uma colaborao poltica entre Abdias e Brizola que
perduraria durante e aps a Ditadura Militar298. Naquele ano, Brizola foi o convidado especial
na comemorao do dia da Me Preta promovida pelo TEN, poucos dias antes das eleies
realizadas em 07 de outubro.
298
Para saber mais sobre a relao e a colaborao de Abdias na formao do Partido Democrtico Trabalhista
(PDT) sob a direo de Brizola, ver Rios (2014, p. 126-136).
299
Ver no Anexo A.5 o panfleto do Convite da Festa da Me Preta, realizada na cidade de So Paulo, em 1950, e
promovida pelo representante da Ala Negra Progressista Nestor Macedo, em homenagem ao governador
Adhemar de Barros do Partido Social Progressista de So Paulo.
180
negros que recebiam severas crticas de lideranas do meio negro de So Paulo, que ficou
demonstrado na seo 4.2 (Negros Polticos e Polticos Negros). De acordo com Florestan
Fernandes, a condenao dos ativistas negros paulistas s relaes de troca de favores e
proteo com a elite branca era grande, especialmente, porque formara-se a conscincia de
que o negro tem de resolver por si mesmo os seus problemas e que no deve se contentar com
as migalhas, lagaradas aqui ou ali por uma generosidade que foi largamente identificada com
a falta de empenho em ajudar o negro (FERNANDES, 2008b [1965], p. 195).
A situao poltica e social de Rio de Janeiro e So Paulo no eram semelhantes. No
Rio, o ativismo negro vinha se desenvolvendo desde o incio do sculo XX em proximidades
com setores da intelectualidade e do meio poltico branco (ALBERTO, 2011). J em So Paulo,
o meio negro se constituiu de forma mais independente, somente no incio dos anos 1950 o
grupo que estava em atuao comeou a estabelecer uma relao prxima com intelectuais
pesquisadores das relaes raciais. Na poltica, algumas lideranas mantinham relaes
prximas com partidos e polticos, contudo, existia um conflito sobre a melhor forma de
relacionamento do movimento associativo no meio negro com os grupos dirigentes do
sistema partidrio. No Rio de Janeiro, os conflitos se deram mais entre os grupos que se
encontravam abrigados em legendas partidrias concorrentes, sendo assim, salve melhor juzo,
pouco relevantes as posies pelo apartidarismo.
No caso especfico na insero no meio partidrio de Abdias do Nascimento, ele
utilizou, sempre que possvel, de relaes de apadrinhamento com polticos bem estabelecidos
e do apoio de variadas lideranas negras. No decorrer dos anos de existncia da democracia,
Abdias se consolidou como uma respeitada liderana no movimento negro, reconhecido a nvel
nacional, mas no conseguiu sucesso como representante poltico dessa coletividade. Mesmo
que isso tenha ocorrido por diversos fatores, a mudana de estratgia nas campanhas de Abdias
sugere que houve tentativas de adaptao aos diferentes contextos. As propostas, por exemplo,
deixaram de ter um contedo endereado especificamente para a populao negra e passaram a
se valer de uma plataforma de propostas populares mais genricas, sem muitos contornos
raciais.
A mudana no discurso de Abdias nas situaes em que se apresentou como candidato
em 1947, 1950, 1954 e 1962 , pode ter acontecido em decorrncia do entendimento de que
o voto negro no tinha se constitudo nem estava em fase de formao e que tratar do negro
pela sua condio de povo poderia render mais sucesso eleitoral. Outra hiptese que levanto
para a mudana, a possibilidade de que a ideia de negritude brasileira mudou a percepo da
questo racial do grupo envolvido em sua formulao e defesa, repercutindo tambm na
181
apresentao poltica de Abdias. Nessa perspectiva, o uso da Me Preta seria, para esse grupo,
um instrumento para a incorporao da conscincia da negritude brasileira, o smbolo que
permitiria a afirmao da contribuio negra para a formao da nao, carregado do sentimento
de conciliao por seu trnsito entre o mundo dos negros e o mundo dos brancos, a Casa Grande
e a Senzala.
182
PARTE II
183
300
Levine, Robert M. The Vargas Regime: the Critical Years, 1934-1938. New York: Columbia University Press,
1970, p 73; Dulles, John W. F. Anarchists and Communists in Brazil, 1900-1935. Austin: University of Texas
Press, 1973, p. 473-474; FLYNN, Peter. Brazil: A Political Analysis. Boulder, CO.: Westview Press, 1979, p. 78.
301
CARONE, Edgard (ed). O PCB (1922-1943). So Paulo, DIFEL, 1982, p. 167 e CARONE, Edgard (ed).
Movimento Operario no Brasil, 1877-1944. Rio de Janeiro: Difel, 1979, P. 333-336.
184
questo negra era abordada por dirigentes do PCB, em reunies com lderes do comunismo
internacional302. Prestes, por exemplo, depois de analisar registros de uma conferncia em
Moscou, afirmou que j em 1934, os comunistas brasileiros estavam preocupados com o
problema racial no pas e, em particular, com a questo do negro na sociedade brasileira
(Prestes, 2006, p.137).
A pesquisa que apresenta investigao mais substancial, at o momento, foi realizada
pelo economista Pedro Caldas Chadarevian, que defendeu a tese de doutorado, Des theories du
racisme a lanlyse economique actuelle de ses consequences sur le marche du travail au
Brsil, em 2006. Na tese, o autor dedica um captulo ao estudo dos temas Raa, Classe e
Revoluo no Partido Comunista do Brasil, entre os anos de 1922 a 1964303. Para analisar a
interpretao comunista sobre o problema racial brasileiro, Chadarevian fez uso de uma
diversificada fonte de dados, passando pela anlise de documentos de circulao interna do
Partido, documentos de divulgao, publicaes em jornais e produo de intelectuais
comunistas. Em suas concluses, o autor argumentou que a persistncia comunista no uso da
concepo etapista da evoluo econmica dos pases foi responsvel por uma anlise
inadequada da realidade nacional, inclusive em relao a questo racial304.
Nessa investigao, segui algumas indicaes encontradas nos trabalhos acima citados.
Assim, foi necessrio realizar uma ampla pesquisa em documentos, tanto de circulao interna,
quanto de divulgao do Partido, que abrangeu comits regionais, o comit nacional, o
secretariado sul-americano e a Internacional Comunista (IC)305. Essas diferentes instncias de
deciso do PCB so importantes e interdependentes. No perodo abordado, de 1922 a 1945, o
direcionamento das linhas de ao do partido estava subordinado, em grande parte, ao que era
decidido no mbito da Internacional Comunista. Entretanto, apesar da centralizao, existiam
conflitos, que s podem ser melhor compreendidos se for feita uma anlise do PCB como uma
agremiao com poder centralizado, composta por diversas sees, que nem sempre se
302
Ver: Karepovis (2001, p. 605-606,623) e Prestes (2006, p. 136-137)
303
Desde a defesa de sua tese, Chadarevian publicou artigos com temas relacionados ao PCB e a questo racial
em revistas brasileiras, a exemplo de: CHADAREVIAN, Pedro. Os precursores da interpretao marxista do
problema racial, Crtica Marxista, n. 24, 2008; ________. Raa, classe e revoluo no Partido Comunista do
Brasil (1922-1964). Poltica & Sociedade - Florianpolis - Volume 11 - N 20 - abril de 2012.
304
O racismo, preocupao central na investigao de Chadarevian, teria sido compreendido no PCB como uma
mera reminiscncia de uma estrutura social arcaica, originria da escravido, da ideologia do colonialismo, que
impedia a ascenso social do negro, mantendo-os como servos no campo (CHADAREVIAN, 2012, p. 276)
305
A partir de 1922, o PCB concentrava suas instncias de deciso no pas em comits regionais e em um comit
nacional. A III Internacional Comunista, fundada em Moscou, no ano de 1919, tinha a funo de determinar as
diretrizes centrais a serem seguidas por Partido Comunista em todo o mundo. A IC manteve um Secretariado
Latino, na Frana, at 1925. A partir de 1926 criado o Secretariado Sul-Americano, na Argentina, onde funcionou
at 1930, quando foi transferido para Montevidu. A IC foi dissolvida em 1943.
185
posicionavam de forma consensual, o que pode ser verificado em divergncias sobre a questo
racial no Brasil.
Procurei desenvolver uma anlise que ressalte a posio dos sujeitos no interior do
PCB, o que pode oferecer mais recursos para a anlise das mudanas de interpretao no partido
ao longo dos anos. Outro recurso empregado foi a periodizao, para marcar a predominncia
de tendncias associadas aos diferentes momentos do partido em suas primeiras dcadas de
existncia. Acompanho, com algumas modificaes, a periodizao proposta por Chadarevian
(2006): 1922 a 1933, correspondente ao perodo de negao da questo negra; e 1934 a 1964,
quando formulada no PCB uma crtica ao racismo. Para o perodo que me interessa na anlise,
1922 a 1945, procurei assinalar o perodo de negao da questo racial pelo PCB (1922-1928);
o perodo que o partido comeou a ser pressionado pela IC para tratar de assuntos relacionados
populao negra brasileira (1928-1930); e a fase inicial da mudana de interpretao no PCB
sobre a questo negra brasileira (1930-1934). Depois disso, investigo como os diferentes
contedos associados questo negra foram incorporados na estratgia poltica do PCB, a
partir de meados dos anos 1930.
Diferente do caso dos estudos desenvolvidos sobre o Partido Comunista no Brasil,
outros pases possuem uma literatura extensa sobre a relao entre comunismo e questo racial.
O maior contraponto talvez sejam pesquisas sobre o Partido Comunista dos Estados Unidos
(PCUSA). Naquele pas possvel encontrar publicaes como de Kennedy e Leary na revista
Phylon, em 1947, afirmando que um estudo das relaes raciais nos Estados Unidos,
especialmente os relacionados ao negro, no seria completo sem uma anlise do programa do
Partido Comunista. Dentre as justificativas utilizadas pelos autores est a de que muitos
negros norte-americanos, especialmente os elementos mais ativos politicamente e inteligentes,
pertencem ou so profundamente solidrios com as propostas do programa do Partido
Comunista (KENNEDY e LEARY, 1947, p. 116, traduo minha.). De forma comparativa,
irei utilizar as anlises sobre os PCs em outros pases, especialmente os Estados Unidos, pelo
papel que desempenhou ao se tornar modelo nas diretrizes sobre a questo racial divulgadas
pela Internacional Comunista.
Este captulo est dividido em duas sees, a primeira seo est circunscrita ao perodo
de 1922 a 1935 e tem enfoque na linha poltica do PCB, por isso, as fontes principais so os
documentos do Partido e da Internacional Comunista. A segunda seo apresenta algumas
formulaes de intelectuais comunistas sobre o negro brasileiro, nos anos 1930 e incio da
dcada de 1940, durante o Estado Novo, quando o PCB se encontrava virtualmente excludo da
cena poltica nacional.
186
Seo 4.1 Dilemas sobre a formulao de uma interpretao sobre o negro brasileiro no PCB
O PCB foi fundado oficialmente durante o seu primeiro Congresso, na cidade de Niteri,
no ms de maro de 1922306, data estratgica para garantir participao no IV Congresso da
Internacional Comunista (IC)307, que aconteceria em Moscou naquele mesmo ano.
Dois dias aps a realizao do Congresso em Niteri, a direo do recm-fundado
partido enviou uma carta endereada ao Comit Executivo da Internacional Comunista (IC),
apresentando Mario Barrel e Antnio Canellas308 como delegados do Partido para participar do
IV Congresso. A tarefa de Barrel e Canellas consistia em entregar um relatrio sobre os
antecedentes e a realizao, nos dias 25 a 27 de maro, do congresso de delegados dos grupos
comunistas do Brasil, de onde surgiu o Partido Comunista, organizado sobre a base das 21
condies309 de admisso na Internacional Comunista.
306
O I Congresso do PCB contou com 9 delegados: Ablio de Nequete (barbeiro de origem libanesa, residente
em Porto Alegre), Astrojildo Pereira (jornalista, do Rio de Janeiro), Cristiano Cordeiro (funcionrio pblico em
Recife), Hermognio da Silva Fernandes (eletricista, de Cruzeiro, interior de So Paulo), Joo da Costa Pimenta
(grfico paulista), Joaquim Barbosa (alfaiate, natural do Rio de Janeiro), Jos Elias da Silva (funcionrio pblico
no Rio de Janeiro), Lus Peres (trabalhador da Industria vassoureira, do Rio de Janeiro) e Manuel Cendn (alfaiate
espanhol). Dos citados acima, somente Cendn no provinha do anarcossindicalismo. No momento de sua
fundao o PCB contava com 73 membros. Antes da realizao do Congresso de fundao do PCB existiam grupos
comunistas espalhados por algumas cidades brasileiras. Em 1920, dois grupos (Grupo Literrio em So Paulo e
Grupo Comunista Brasileiro no Rio de Janeiro) receberam o nome Zumbi, considerado por eles uma representao
brasileira de Spartacus (Carone, 1982, p. 333-334; Del Roio, 2004, p. 118). A comparao entre Zumbi e Spartacus
revela que, naquele caso, o lder negro foi utilizado como uma metfora da luta pela liberdade que dialogava
com o contexto mundial de enfrentamento contra o capitalismo - e no de luta contra discriminao, como ele
mobilizado atualmente pelo Movimento Negro. Sobre o processo de fundao do PCB, ver: (VINHAS, 1982; DEL
ROIO, 2007).
307
A III Internacional Comunista foi fundada como resultado da Revoluo Russa. A direo da Internacional era
do Partido Comunista da Unio Sovitica e tinha Lnin como principal liderana. Esta buscava unificar todas as
sees da Internacional, nos vrios pases que possuam Partidos Comunistas, por meio de diretrizes formuladas
e/ou divulgadas em plenrias e congressos, frequentados por membros indicados pelos partidos nacionais.
308
Canellas (1898-1936) e Barrel residiam na Frana e j tinham proximidade com o PC francs. Somente Canellas
compareceu como representante do PCB no IV Congresso da IC. Mesmo residindo fora do pas na poca de
fundao do partido, Canellas integrou a primeira Comisso Central Executiva do Partido (CCE), estrategicamente
escolhido para a funo de Secretrio Internacional.
309
Sobre as 21 condies para participar da Internacional Comunista citadas na carta do PCB ao Comit Executivo
da IC, ver: (DOMINIQUE, 1969, p. 73; CARONE, 1981, p. 96-97).
187
310
CANELLAS, A. Rapport presente par les delegues des groupes communistes du Brsil lExecutif de
lInteernationale Communiste Moscou, 1922, traduo minha. (Coleo Internacional Comunista, Arquivo
Edgard Leuenroth/Unicamp, Campinas, SP.)
311
Um ponto importante sobre o surgimento do PCB, e que pode contribuir para a compreenso das posies dos
dirigentes do partido, est relacionado ao fato de que sua formao no foi um acontecimento isolado, como afirma
Muniz Ferreira (2012b). Alm dos acontecimentos internacionais, que serviram para divulgar o comunismo pelo
mundo e o recrudescimento da luta operria no Brasil, a criao do PCB foi concomitante a dois eventos, de fundo
poltico-cultural: A Semana de Arte Moderna e o Levante do Forte de Copacabana, que marcou o incio do
Tenentismo. Ainda segundo Ferreira, comunistas e modernistas logo estabeleceram dilogos. Nem todos os
modernistas de aproximaram do PCB; e os que o fizeram faziam parte de um segmento minoritrio, mas
altamente representativo, estes constituram desde aproximaes transitrias at relacionamentos orgnicos e
duradouros, passando por ligaes de durao e importncia intermedirias (FERREIRA, 2012b, p. 20). Os
autores citam nomes de modernistas prximos ao PCB como Mario de Andrade, Di Cavalcanti, Djanira, Oswald
de Andrade e Patrcia Galvo, a Pagu.
188
312
CANELLAS, A. Quelques aspects de la vie politique au Brsil,1922, traduo minha. (Coleo Internacional
Comunista, Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp, Campinas, SP.)
313
A interpretao de Canellas parece seguir a linha de pensadores brasileiros a exemplo de Slvio Romero, Nina
Rodrigues e Euclides da Cunha, que escreviam desde a dcada de 80 do sculo XIX. Sobre o assunto, entre outros,
ver (SCHNEIDER, 2005, passim).
314
Esse tipo de abordagem sobre raa no era especfico dos comunistas na poca. Maria Veloso (2000) analisou
que artistas e intelectuais ligados ao Modernismo e concluiu que como resultado da compreenso que tinham sobre
raa, promoveram uma renovao interpretativa da cultura brasileira, tais como a substituio (pelo menos
tentativa) do conceito de raa pelo de cultura (p. 362).
315
No retorno ao Brasil, Canellas continuou a defender sua posio em relao aos temas que causaram polmica
durante o Congresso da IC, o que ocasionou em sua expulso do partido em 1923 (DEL ROIO, 2007). Para saber
189
mais sobre Antonio Canellas e sua trajetria no PCB, ver Salles, 2005. O PCB s foi aceito como partido integrante
da IC aps a interveno de Rodolfo Ghioldi, lder do PC da Argentina, em janeiro de 1924.
316
Pedro Chadarevian (2008) chama ateno para o fato de que desde 1914, Lenin, principal liderana comunista
nos primeiros anos aps a Revoluo Russa, formulava ideias sobre como nacionalidades oprimidas deveriam agir
com relao a ameaas a sua autonomia poltica, defendendo o direito de autodeterminao dos povos. O direito
de autodeterminao sempre seria legtimo se houvesse uma desigualdade do poder poltico ou econmico entre
naes. Naquele momento tambm foi formulada uma tese de apoio a burguesias nacionalistas, que teriam um
papel importante em livrar naes oprimidas do poder do capital financeiro imperialista. Dois tipos de opresso
nacionais eram distinguidos: em primeiro plano, a opresso entre naes no contexto colonial; e em segundo plano,
a opresso em nvel nacional, na qual se compreendia que as minorias eram as mais atingidas. No II Congresso da
IC, em 1920, os negros dos Estados Unidos foram apontados, junto a judeus, irlandeses, alsacianos e colnias com
os problemas nacionais mais sensveis, por serem exemplos de povos dependentes e subordinados, e que
deveriam ter direito a formar sua prpria nao (CHADAREVIAN, 2008, p. 83).
317
Max Shachtman tambm escreveu uma narrativa sobre a introduo da questo negra nos Congressos da IC
antes de 1928, no livro Communism and the Negro, escrito no incio da dcada de 1930 e publicaddo pela primeira
vez em 2003.
190
No IV Congresso da IC, as teses sobre a questo negra foram introduzidas por Otto
Huiswoud318 e Claude McKay319, ambos dos Estados Unidos. Em seu discurso, Huiswoud
defendeu que o problema do negro era principalmente econmico, com o passar do tempo
agravado pelas disputas entre trabalhadores negros e brancos. Para ele, a questo racial seria
derivada dos preconceitos de classe de alguns grupos. J McKay, fez crticas pouca ateno
do Partido Comunista questo racial e aos equvocos de interpretaes formulada at aquele
momento. Segundo ele, os prprios comunistas e socialistas dos Estados Unidos praticavam
preconceito racial, por isso no se mostravam dispostos a enfrentar com seriedade a questo do
negro. Dessa forma, os comunistas precisariam primeiro se emancipar de ideias preconceituosas
sobre os negros, para depois alcan-los com qualquer tipo de propaganda radical. Ao final da
sesso, as teses apresentadas foram aprovadas por unanimidade320.
No conjunto das resolues do IV Congresso o tpico recebeu o ttulo de Teses sobre a
questo negra, segue trecho321:
A histria reservou aos negros dos EUA um papel importante na libertao de toda a raa
africana. H trezentos anos os negros norte-americanos foram arrancados de seu pas natal, a
frica, e arrastados para a Amrica onde tem sido objeto dos mais abjetos tratamentos e
vendidos como escravos.
[...]
A Internacional Comunista observa com satisfao que os operrios negros explorados
resistem aos ataques dos exploradores, pois o inimigo da raa negra tambm dos
trabalhadores brancos. Este inimigo o capitalismo, o imperialismo. A luta internacional da
raa negra uma luta contra o capitalismo e o imperialismo. Com base nesta luta deve
organizar-se o movimento negro: na Amrica, como centro de cultura negra e centro da
cristalizao dos protestos dos negros; na frica, como reserva de mo de obra para o
desenvolvimento do capitalismo; na Amrica Central (Costa Rica, Guatemala, Colmbia,
Nicargua e as demais repblicas independentes onde predomina o imperialismo norte-
americano), em Porto Rico, no Haiti, em San Domingo e nas demais ilhas do Caribe, onde os
maus tratos infligidos aos negros pelos invasores norte-americanos provocaram protestos dos
negros conscientes e dos operrios brancos revolucionrios. Na frica do Sul e no Congo, a
crescente industrializao da populao negra originou diversas formas de sublevao. Na
frica oriental, a recente penetrao do capital mundial impulsiona a populao local a resistir
ativamente ao imperialismo.
318
Otto Huiswoud (1893 - 1961) nasceu no Suriname. Neto de escravos, mudou-se para os Estados Unidos em
1912, onde trabalhou inicialmente no comrcio de produtos tropicais e depois na imprensa, no Harlem. Aps sua
chegada aos Estados Unidos, Huiswoud se envolveu com organizaes socialistas que promoviam reivindicaes
de cunho racial.
319
Claude Mckay (1889 1948) tinha origem jamaicana e desempenhou papel de destaque durante a Harlem
Renaissance. Escritor e poeta, Mckay, se tornou prximo do comunismo ainda jovem, mas nunca se filiou ao
PCUSA.
320
A ntegra do discurso foi publicada em Bulletin of the IV Congress of the Communist International, n. 22, 2
dezembro de 1922, p. 17-23.
321
O texto integral da tese aprovada no IV Congresso da IC foi publicado na Revista Princpios de outubro de
1984.
191
322
A literatura que trata da relao do Partido Comunista nos Estados Unidos e a populao negra no pas bastante
extensa, com abordagens voltadas para diversos aspectos. Sem a pretenso de esgotar todos os pontos de anlise
das pesquisas, aponto a relevncia dos seguintes trabalhos: Naison (2005) trata dos comunistas no Harlem durante
a depresso, apresenta tambm um quadro de como se deu a relao entre os comunistas negros e outras
organizaes negras, principalmente durante a dcada de 1920. Uma anlise documental da relao entre negros e
comunismo foi feita no livro editado por Foner e Allen (1987). A trajetria de um negro americano dentro do PC
foi reconstruda em profundidade por Haywood (1978) em sua autobiografia.
323
Fredrickson explica que houve um percurso de mais de 20 anos dentro do pensamento socialista estadunidense
para que chegassem s formulaes de 1922. O autor explicou que em 1901, Eugene Debs, lder do Partido
Socialista Americano defendeu que este no tinha nada de especial para os negros, pois o socialismo no poderia
fazer ofertas especiais para todas as raas. E concluiu: O Partido Socialista o partido de toda classe
trabalhadoras, independente da cor (FREDRICKSON, 2005, p. 188). Somente com a reviso da doutrina marxista
feita por Lnin, e aps a experincia do comunismo na Rssia, houve incentivos para o surgimento de novas
maneiras de pensar raa, etnia e nacionalidade. Naquele momento, ento, os comunistas estavam aptos para ir alm
do nada de especial para oferecer ou de outras abordagens completamente segregacionistas dos socialistas de
antes da guerra.
192
As teses sobre a questo do negro foram alteradas somente no VI Congresso da IC, entre
julho e setembro de 1928. Esse Congresso decretou a mudana de estratgia da IC em sua
orientao poltica, que passou a preconizar a mxima de classe contra classe325. Naquele
perodo, estava em processo a primeira inflexo stalinista (ANTUNES, 1995), marcada pela
lgica de uniformizao do modelo de revoluo326. Com a nova orientao poltica, a IC passou
a recomendar aos PCs em todo o mundo que, em vez de utilizar a ttica de frente nica e
coaliso aliancista com progressistas, passassem desempenhar papel de liderana na revoluo,
que deveria ser realizada prioritariamente por operrios.
Segundo a avaliao da IC durante o Congresso de 1928, o Brasil estava entre os pases
independentes, mas com situao poltica, econmica e social muito prxima das semicolnias,
e precisava formar um Governo Operrio e Campons327. O PCB deveria ser o condutor de todas
as etapas do processo, baseando sua liderana na aliana entre operrios e camponeses. A nova
orientao tambm restringia acordos com a pequena-burguesia. Essa nova resoluo da IC
trouxe muitas dificuldades ao PCB, culminando na substituio da quase totalidade de seu
quadro dirigente nacional nos anos seguintes.
Antes de tratar mais detidamente da mudana de posicionamento poltico adotado a
partir do VI Congresso da IC, e de como esta afetou a organizao do PCB e obrigou o partido
324
A Conferncia que aparece na proposta nunca chegou a acontecer (FONER e ALLEN, 1987).
325
A nova posio da IC modificou intensamente as resolues do V Congresso, realizado em 1924. A posio
anterior era do incentivo a formao de uma poltica de alianas para os pases coloniais e semicoloniais, intitulada
bloco das quatro classes - formado pelo proletariado, por camponeses, pela intelectualidade pequeno-burguesa e
por democratas urbanos - baseada em modelos de alianas que o PC desenvolveu na Inglaterra e na China.
326
Claudin informou que: A teoria do socialismo num s pas se converte em doutrina oficial da IC (uma vez que
o trotskismo foi posto para fora da lei na Unio Sovitica e nos partidos comunistas de todos os pases) e passa a
ser o princpio diretor da concepo da revoluo mundial formulada no programa aprovado no VI Congresso.
(CLAUDIN apud ANTUNES, 1995).
327
Nestes pases, a luta contra o feudalismo, contra formas de explorao pr-capitalistas, a busca constante da
revoluo camponesa e a luta contra o imperialismo estrangeiro e independncia nacional so de importncia
decisiva. Aqui, a transio para a ditadura do proletariado ser possvel somente atravs de uma srie de etapas
preparatrias, e como o resultado de todo um perodo de transformao da democracia-burguesa em revoluo
socialista (Programme of the Communist International Adopted at its Sixth Congress, In: DEGRAS, 1959).
193
a modificar seu posicionamento em relao questo racial, irei dedicar certa ateno s
resolues aprovadas sobre a questo do negro durante o Congresso.
Aps as teses de 1922, o interesse da IC sobre a questo negra cresceu, especialmente
os assuntos relacionados a acontecimentos nos Estados Unidos. O Comit Executivo da IC
(Komintern) enviou, nos seis anos entre a realizao do IV e do VI Congresso, dezenove
resolues e documentos especficos para o PCUSA a respeito dos negros nos Estados Unidos
(DEGRAS, 1959, p. 564)328. Alm de pressionar os PCs nacionais, o Comit Executivo da IC
passou a promover a ida de comunistas negros a Moscou para treinamento especial na
Universidade Comunista dos Trabalhadores do Oriente (FREDRICKSON, 2005)
A grande mudana adotada pela IC em 1928 foi a introduo de polticas diferenciadas
por pas, atendendo ao percentual de negros na populao. Assim, passou-se a compreender a
populao negra em alguns pases no como uma minoria oprimida, como ficou determinado
nas resolues da IC de 1922, mas como uma nao oprimida. Essa mudana de perspectiva
determinava que, nos pases com significativo contingente populacional de negros e que
tivessem situaes de conflito, a reivindicao por autodeterminao deveria ser a principal
bandeira comunista para tratar da questo negra.
A comisso que trabalhou na formulao da questo negra para o VI Congresso da IC
foi formada no ano anterior a sua realizao, em 1927, e presidida pelo prprio Stalin, lder da
Unio Sovitica, e por Bukharin, ento presidente do Comit Executivo da IC
(FREDRICKSON, 1995)329.
No conjunto das resolues do VI Congresso, a questo negra era parte integrante das
teses sobre o movimento revolucionrio em pases coloniais e semicoloniais, e estava entre as
tarefas de ordem imediata. A diviso da populao negra em regies, que j tinha sido indicada
no IV Congresso, foi reelaborada e apresentada com mais detalhes. Alm de definir as regies,
a III IC determinou o tratamento especfico que deveria ser dado a cada uma delas, vinculando-
as sempre luta contra o imperialismo330. Chadarevian (2006) chamou ateno para a mudana
de percepo de quais condicionantes teriam implicado ao negro uma posio subordinada na
sociedade. Antes, os negros eram interpretados pela IC como vtimas do capitalismo, tanto
328
Segundo um militante, no identificado no livro The Communist International, a despeito da demonstrao de
interesse da IC sobre a questo, o partido dos Estados Unidos no havia demonstrado qualquer inteno em discutir
o assunto. O Comit Executivo da IC tambm enviava resolues e outros documentos para PCs de outros pases.
Pedro Chadarevian (2006) descreveu o caso de uma carta recebida, em 1923, pelo PCB com um questionrio sobre
o negro no Brasil. O secretrio geral do Partido respondeu que havia negros no Brasil, mas que no havia uma
questo negra especfica no pas.
329
A maior parte dos integrantes da Comisso da Questo Negra era formada por estadunidenses e sul-africanos.
No encontrei registro da participao de brasileiros.
330
O texto integral da resoluo do VI Congresso est disponvel no Anexo B.1.
194
quanto brancos. A partir do VI Congresso, comea a ser elaborada uma interpretao comunista
sobre a existncia de um mecanismo particular, que atingia a populao negra em todas as partes
do mundo.
Aps nova definio sobre a questo negra adotada no IV Congresso da IC, a Comisso
foi mantida e trabalhou na elaborao de uma resoluo posteriormente aprovada pelo
secretariado poltico da IC e publicada em 26 de outubro de 1928. A resoluo tratava
basicamente da situao do negro estadunidense, apesar de projetar aes diferentes para trs
tipos de situaes vivenciadas pelos negros no mundo. Novamente, a justificativa apresentada
foi que a questo negra nos Estados Unidos poderia ser um modelo para o resto do mundo.
A questo negra nos Estados Unidos deve ser tratada em sua relao com questes
negras e lutas em outras partes do mundo. A raa negra em todos os lugares uma
raa oprimida. Quer se trate de uma minoria (U.S.A. etc), maioria (frica do Sul) ou
de um chamado Estado independente (Libria etc), os negros so oprimidos pelo
imperialismo. Assim, um lao comum de interesse ser estabelecido pela luta
revolucionria da raa e da libertao nacional do domnio imperialista sobre os
negros em vrias partes do mundo. Um forte movimento negro revolucionrio nos
EUA ser capaz de influenciar e dirigir o movimento revolucionrio em todas as
partes do mundo onde h negros331.
Na resoluo a IC deposita grande expectativa nos negros, pelo menos naqueles que
estavam nos Estados Unidos, que seriam os agentes revolucionrios na luta de classe. Assim,
os negros teriam dupla funo, a libertao negra e a luta proletria.
331
Extracts from an Ecci Resolution on the Negro Question. In: DEGRAS, 1959, p.555, traduo minha.
332
Ibid. p.552, traduo minha.
333
O diferencial do movimento por autodeterminao do PCUSA de outros grupos que defendiam a
autodeterminao negra nos Estados Unidos naquele perodo era a demanda por independncia poltica para negros
dentro do territrio dos Estados Unidos. Segundo o pensamento comunista, a regio conhecida como Black Belt,
que ia da parte central do Alabama at o norte do Mississpi, poderia ser compreendida como uma nao oprimida.
Sobre os envolvidos e o processo de construo da formulao sobre autodeterminao comunista ver Haywood,
1978. O termo black belt surgiu no sculo XIX nos Estados Unidos, sobre o assunto ver Karen E. Fields, Barbara
J. Fields, Racecraft: The Soul of Inequality in American Life. London: Verso Books, 2012, especialmente o
captulo 5: Origins of the New South and the Negro Question; e Phillips, Ulrich B. The Origin and Growth of the
Southern Black Belts. American Historical Review, 11 (July, 1906), p. 798-816.
195
Para realizar essa tarefa, o Partido Comunista deve liderar o movimento pelo direito
da raa negra oprimida pela emancipao integral. Enquanto prosseguir e intensificar
a luta sob o slogan de pleno desenvolvimento social e poltico de igualdade para os
negros, que pode se torna o lema central do nosso Partido para o trabalho entre as
massas, o partido deve sair abertamente e sem reservas pelo direito de negros a
autodeterminao nacional nos estados do sul, onde formam uma maioria da
populao. A luta pela igualdade de direitos e o slogan da autodeterminao devem
estar vinculados s demandas econmicas das massas negras 336.
334
Marcus Garvey (1887-1940) nasceu na Jamaica, o mais novo de 11 filhos. Garvey fundou a Universal Negro
Improvement Association (UNIA), em 1914. Em 1916, Garvey mudou-se para o Harlem, em Nova York, e
transferia a UNIA para seu novo local de moradia. Nos Estados Unidos Garvey alcanou milhares de negros com
um discurso em torno da elevao do orgulho da raa e o retorno para a frica, a terra ancestral.
335
O relato sobre como a priso de Garvey afetou seus seguidores aparece na fala do ativista da UNIA, Samuel
Haynes. Este escreveu em 14 janeiro de 1928, na edio do jornal Negro World: Garvey, vivo ou morto, o
nosso patro santo, nosso lder supremo e conselheiro, e nem o canho do dio nem o chicote do preconceito pode
nos desviar da nossa lealdade a ele e ao grande ideal do nacionalismo Africano (HILL, 1990).
336
Extracts from an ecci resolution on the Negro Question. In: DEGRAS, 1959, p.553, traduo minha.
337
A African Blood Brotherhood defendia o direito de auto determinao apenas em pases onde o negro era a
maioria.
196
338
At o V Congresso da IC os problemas relativos aos pases coloniais ou neocoloniais eram determinados pelo
que se passava na sia (ZAIDAN, 1988). At 1925, os assuntos referentes a Amrica Latina eram discutidos no
Secretariado Latino da Internacional, com sede na Frana. O Secretariado ficava incumbido de todos os pases de
lngua latina, pases como Frana, Itlia eram os que tinham mais destaque nas discusses. Em 1926 foi formado
o Secretariado Sul Americano da Internacional, subordinado ao Secretariado Latino, com sede em Buenos Aires.
Mesmo contando com a publicao quinzenal seu imprenso oficial, a revista La Correspondencia Sudamericana,
o Secretariado teve muitas dificuldades de funciona de forma orgnica, principalmente por conta de instabilidades
polticas na Argentina. Em 1930, depois da instaurao de uma ditadura militar na Argentina, o Secretariado foi
transferido para Montevidu e passou a se chamar Bureau Sul-Americano.
339
LACERDA, F. El Frente popular antiimperialista en Brasil. CONGRESSO DA INTERNACIONAL
COMUNISTA, traduo minha. (Coleo Internacional Comunista, Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp,
Campinas, SP.)
197
340
Rapport sur la situation du Brsil au VI Congrs, 1928, traduo minha. (Coleo Internacional Comunista,
Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp, Campinas, SP.)
341
Id.
342
Segundo Quartim: Se clara e indiscutvel a natureza terrorista da ditadura staliniana na Unio Sovitica, sua
capacidade coercitiva variou, no plano internacional, na razo inversa de sua distncia [...] O comunismo latino-
americano, inclusive o brasileiro, escapou a esse controle policial-terrorista no apenas devido distncia
geogrfica que o separava do centro moscovita, mas tambm por sua posio perifrica relativamente ao prprio
movimento revolucionrio dos povos oprimidos pelo imperialismo, cujo epicentro se situava na sia, notadamente
na China (QUARTIM DE MORAES, 1991, p. 69-70).
198
343
Dos partidos citados, alguns eram considerados como simpatizantes da IC outros estavam em processo de
adaptao estrutura de poltica comunista.
344
Nascido em 1894, no Peru, Jos Carlos Maritegui trabalhou com jornalismo at 1919. Considerado um dos
maiores pensadores da Amrica Latina, Maritegui participou da fundao do Partido Socialista Peruano, em 1928.
O Partido Socialista Peruano passou a integrar a Internacional Comunista. Dentro do movimento comunista,
199
defendia que os povos indgenas da Amrica Latina deveriam passar a ter um papel ativo na luta revolucionria,
inclusive de liderana desta (MARITEGUI, 2005). Maritegui faleceu em 1930, dessa forma, apesar das
propostas inovadoras, as ideias de Maritegui e sua influncia nos rumos da poltica na Amrica Latina foram
perdendo influncia aps seu desaparecimento.
345
Lencio Basbaum nasceu em Recife, em 1907, filho de imigrantes judeus da Moldvia. Basbaum ingressou no
PCB em 1925. Em 1927 foi indicado como Secretrio Geral da recm-funda Juventude Comunista Brasileira
(JCB), tornando-se editor do jornal O Jovem Proletrio. Antes da participao na I Conferncia Comunista da
Amrica Latina, Basbaum j havia sido indicado para representar o PCB, junto com outras lideranas, no VI
Congresso da Internacional Comunista, em 1928. Alm de Basbaum, a delegao brasileira era composta por
Cassini e Gubinelli.
346
Discurso de Lencio Basbaum, publicado em El Movimiento Revolucionario Latino Americano, 1929, traduo
minha.
347
Naquele perodo, o PCB no tinha muito sucesso em circular as ideias e anlise do partido acerca da realidade
brasileira. A nica referncia terica para a interpretao comunista da realidade nacional no perodo era o livro
de Octvio Brando (com o pseudnimo Fritz Mayer), Agrarismo e Industrialismo: Ensaio marxista-leninista
sobre a revolta de So Paulo e a guerra de classes no Brasil-1924, publicado em 1926. Outra via de divulgao
de ideias, a publicao de instrumentos de imprensa, no vinha sendo feita ocm muito xito. Publicaes
comunistas sofriam constante represso, muitas vezes sendo extintas, como no caso da revista Movimento (1922-
1923), ou passavam por proibio como o jornal A Classe Operria, que deixou de circular entre os anos de 1925
e 1928. Quando ressurge, em 1928, A Classe Operria se torna orgo oficial do PCB.
200
O preconceito de cor
A questo de raas, nos termos como ela se apresenta nos Estados Unidos, no existe
entre os latino americanos. O cruzamento de raas tem sido incessante desde que estas se
puseram em contato, e por regra geral, a misria econmica e a opresso poltica nivelam os
trabalhadores brancos e negros.
O negro no Brasil
Grande parte da populao do litoral brasileiro composta por mulatos. O tipo negro puro
muito raro atualmente. O cruzamento se faz cada dia mais intensamente, produzindo tipos
cada vez mais claros, j que imigrantes negros no vm ao pas h mais de meio sculo. O
preconceito contra o negro atinge caractersticas de propores reduzidas. No meio do
proletariado [o preconceito] no existe em absoluto. Na burguesia e em certas camadas
da pequena burguesia, se percebem preconceitos. Isso se traduz no fato de que essas
esferas veem com simpatia a influncia do ndio nos costumes do pas e com m vontade a
influncia do negro. Tal atitude no provm, sem dvida, de um verdadeiro dio de raas,
como o caso dos Estados Unidos, seno que no estrangeiro se referem ao pas chamando-
o depreciativamente: pas de negros. Isto excita a vaidade patritica do pequeno burgus
que protesta, esforando-se por demonstrar o contrrio. Entretanto, comum tambm
encontrar esse pequeno burgus exaltando o valor de seus ascendentes africanos. Se deve
fazer notar, igualmente, que muitos negros e mulatos ocupam postos elevados no seio da
burguesia nacional.
Pode se deduzir pelo que foi dito que no Brasil no se poder falar do preconceito de cor?
claro que o partido deve combat-lo no momento que aparea, necessria uma ao
permanente e sistemtica, mesmo que ele se manifeste muito raramente.
Concluses
1. No se pode falar, na generalidade dos pases da Amrica Latina sobre uma questo de
raas semelhante a que existe nos Estados Unidos, por que entre os latino americanos o
preconceito de cor no existe em pureza de verdade, seno somente em escala muito
pequena.
[...]
6. A situao dos negros no Brasil no de natureza tal que exige que nosso partido organize
campanhas reivindicatrias para os negros com slogans especiais.
Fonte: El Movimiento Revolucionario Latino Americano, 1929, p. 294-29, traduo minha, grifos meus.
Basbaum foi para a existncia de uma espcie de racismo cultural348 ou tnico, que se manifestaria
nos brasileiros devido interao com estrangeiros.
Chadarevian (2006) analisou os debates da Conferncia sobre o problema racial e a
repercusso da interveno de Basbaum entre os demais delegados. Durante os debates, os pontos
mais polmicos estavam relacionados demanda por autodeterminao para os povos oprimidos e
a forma como os partidos comunistas da Amrica Latina lidariam com as resolues do VI
Congresso da IC sobre a questo negra como um todo.
A postura dos delegados do Brasil, em negar a existncia de um problema racial no Brasil
e na Amrica Latina, recebeu vrias mais crticas. As duas delegaes que demonstraram maior
incmodo em relao s ideias expostas pelos representantes do PCB foram Cuba e Guatemala.
Braceras, delegado de Cuba, contrariou Basbaum e exps sua posio, informando que em
seu pas a candidatura presidncia havia sido historicamente vedada a negros e que estes sofriam
uma severa discriminao no mercado de trabalho349. A contrariedade de Braceras em relao ao
que foi exposto por Basbaum em sua comunicao no se limitou somente ao que o representante
brasileiro exps e no correspondia a realidade em Cuba. O delegado cubano tambm fez um longo
comentrio sobre o Brasil em sua argumentao. Sem receio de apresentar uma posio contrria
delegao do PCB, ele apresentou informaes que davam indcios sobre a existncia de
preconceito contra negros no Brasil. Segue trecho da fala de Braceras:
Eu tambm quero dizer que no Brasil, mesmo contra a informao dos companheiros
do pas no VI Congresso da Internacional Comunista, o problema existe. Em
organizaes desportivas e culturais no so permitidos homens de origem negra. At
mesmo nos sindicatos de classe existem certos preconceitos com respeito a esse
problema, preconceitos contra quais todos ns devemos lutar ferozmente; mas as
organizaes trabalhistas j previram este preconceito e estabelecem que pode entrar
nas fileiras dos sindicatos todo trabalhador, de cor, religio ou convices polticas
que seja.
Nota-se esse preconceito de forma mais acentuada na classe mdia e o perigo de nosso
movimento que a classe de trabalhadores se contagie com este flagelo. No a
situao, por exemplo, a mesma que observamos nos Estados Unidos, mas o problema
existe em todos seus caracteres350.
348
Sobre racismo cultural e representao nacional, ver: GILROY, Paul. There Ain't No Black in the Union Jack':
The Cultural Politics of Race and Nation. Chicago: Chicago University Press, 1987.
349
Chadarevian (2006) explicou que Cuba fugia a regra dos Partidos da Amrica Latina com relao questo
racial: No por forma manifesta problema racial, mas sim pelo modo como o Partido Comunista do pas colocou
o problema. [No PC de Cuba] o interesse na questo dos negros foi bastante precoce, nasceu a partir da anlise
dos fundadores do partido (CHADAREVIAN, 2006, p. 117).
350
El Movimiento Revolucionario Latino Americano, 1929, p. 302, traduo minha.
202
351
A leitura das atas das reunies permite perceber que o PCB queria lanar a candidatura de Luiz Carlos Prestes
presidncia, mas com sua recusa, o escolhido foi Minervino de Oliveira, lder marmorista e secretrio-geral da
Confederao Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB), criada em 1929. Minervino era negro e foi o primeiro
candidato operrio a uma eleio presidencial no Brasil. (Coleo Internacional Comunista, Arquivo Edgard
Leuenroth/Unicamp, Campinas, SP.)
352
A IC denominava reformistas os partidos polticos e grupos identificados como social-democratas ou
socialistas. Alm disso, nos pases da Amrica Latina, caracterizavam as burguesias nacionais como reformistas
(HENN, 2012)
353
Segundo Del Roio (1988): A conjuntura poltica havia criado para o BOC duas funes que tendiam a se
confundir: o de organizador da frente nica das massas, propositor de alianas sociais e polticas e faxe legal do
PCB; nessa confuso o BOC poderia limitar-se a ser um organismo eleitoral no qual o PCB se diluiria, caso a
direo do BOC escorregasse das mos dos comunistas (DEL ROIO, 1988, p. 87)
203
354
Codovilla, V. Reunion del dia 15 de junio de 1929. Orden del da: QUESTION BRASILEA, p.4, traduo
minha. (Coleo Internacional Comunista, Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp, Campinas, SP.)
355
Dainis Karepovs (1991) analisou atas taquigrficas e conseguiu informaes de que as reunies foram chefiadas
pelo Secretariado da Amrica Latina da Internacional Comunista, que tinha como responsvel o italiano Ruggero
Grieco (Garlandi). Alm de Astrojildo Pereira, que estava em Moscou desde abril, ocupando o cargo de membro
suplente do Comit Executivo da IC, outros membros do PCB presentes eram o metargico russo Hermann
Berezin e trs estudantes das escolas de formao de quadros da IC e da ISV: o alfaiate Heitor Ferreira Lima, que
em 1931 se tornaria secretrio geral do PCB, Carlos Augusto da Silva e o trabalhador da construo civil Russildo
Magalhes. Secretariado e convidados (entre eles Dimitri Manuilsky, um dos principais dirigentes da IC e porta-
voz do Partido Comunista da Unio Sovitica na IC). Apesar de Karepovs ter conseguido registros da presena de
29 pessoas, uma das atas trazia a informao dos membros do Comit Expandido, responsvel pelas reunies:
Garlandi, Ledo (Astrojildo Pereira), Humert-Droz, Stepanov, Guralsky, Stirner, Ramirez, Banderas, Yacobson,
Michard, Lo, Martinez (Profint), Prestes, Lesof, Lounin, Griochin, Martinez (Ecole Leniniste), Looris, Silva,
Perez, Kraftchinko, Tilge.
204
negra no Brasil no so comunistas brasileiros. Segue trecho da fala de Silva, em que pede mais
esclarecimentos sobre o assunto356:
Agora eu vou me ater a uma pergunta que alguns companheiros fizeram, mas que
ainda no foi tocada. Eu tenho uma opinio que muitos camaradas consideram
equivocada. Eu, independentemente, no a julgo errada. a questo do negro. Alguns
camaradas, incluindo Humbert-Droz veem no Brasil uma questo racial entre
trabalhadores brancos e negros, e o argumento que apresentam a luta armada que
ocorreu entre brancos e negros nas empresas Ford, no Par. Eu no acho que este
argumento suficiente e , por isso, que eu tenho dvidas sobre a questo do negro,
tanto que no h nenhum outro argumento mais convincente. At agora, os
argumentos so muito fracos e, no por acaso, que os camaradas brasileiros tm
dvidas sobre esta questo. Quero que os companheiros aqui presentes e que
conhecem exemplos mais marcantes do que este os apresentem, a fim de obter uma
ideia mais precisa e mais clara desta questo357.
356
O conflito citado por Silva parece ter relao com Fordlndia, cidade criada por Henry Ford (1863-1947) no
interior do Par, em 1927, e abandonada aps o fim da Segunda Guerra Mundial. Greg Grandim escreve sobre o
assunto no livro Fordlandia: The Rise and Fall of Henry Ford's Forgotten Jungle City, publicado em 2010. A
criao da cidade envolve vrias motivaes, como: a vontade da Ford Motor Company de diversificar o
fornecimento de borracha para fabricao de seus automveis; uma tentativa de aproximao do governo
brasileiro, que ofereceu o acesso rea para a construo da cidade no interior da Amaznia brasileira; e uma
espcie de experimento social, com a transplantao para terras brasileiras do modelo de subrbio Americano.
Elaine Loureno (1999) d ateno especial aos conflitos surgidos na Fordlandia, em sua tese: Americanos e
Caboclos: Encontros e Desencontros em Fordlndia e Belterra/PA.
357
Interveno de Silva, Secrtariat Latino-Amricain, Comission brsilienne, 27 octobre, 1929. p. 69, traduo
minha. (Coleo Internacional Comunista, Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp, Campinas, SP.)
358
Jules Humbert-Droz (1891-1971) era dirigente do Secretariado Latino Americano e participou intensamente
dos debates sobre a questo negra no Brasil durante as reunies em Moscou. Humbert-Droz foi pastor, jornalista
e ativista do movimento comunista da Sua e membro da Internacional Comunista. Em 1921, foi eleito Secretrio
do Comit Executivo da IC, quando ainda era liderado por Lnin. Suas atividades envolviam a organizao e
consolidao das sees comunistas dos pases latinos. Entre 1921 e 1931 Humbert-Droz viveu em vrios pases
no desempenho atividades designadas pela IC, por isso foi apelidado de olho de Moscou (CABALLERO, 1986,
p. 158). Em 1929, Humbert-Droz participou da I Conferncia Comunista da Amrica Latina, ocorrida em junho
de 1929 na cidade de Buenos Aires, o evento promoveu a discusso sobre as raas na Amrica Latina, o que
abordei em detalhes no tpico anterior.
205
Eu comeo com uma as ltimas questes respondidas por Silva, a dos negros. Silva
disse que ele e Ledo e todos os militantes brasileiros negam a existncia da questo
da forma como ns a colocamos. [Disse que] Havia negros escravagistas que viviam
da venda de negros. Eles negam a existncia da questo negra. Eu vejo na tese
defendida pelo camarada Silva, em nome dos camaradas brasileiros, [a ideia de que
havia nos negros] a tendncia de "escravo".
[...]
Eu acho que h entre os camaradas brasileiros uma falsa apreciao da realidade e que
eles permanecem no campo da democracia formal. Camarada Ledo nos disse que os
negros podem at se tornar presidentes da repblica, que podem ocupar qualquer
posio, ainda que vejamos que 7/8 da populao no Brasil so analfabetos e a maioria
destes analfabetos, se no todos, so negros. Formalmente os analfabetos no tm
direitos polticos. Isso justo? Quando vocs persistem na defesa das ideias que os
negros podem se tornar presidentes da repblica, que no existe questo negra, eu
acho que isto perigoso. Eu nunca estive no Brasil, mas ao olhar para o que tem sido
escrito por viajantes burgueses sobre o modo de vida dos diversos segmentos da
populao, fico impressionado com os relatos que fazem sobre a situao dos negros.
A populao negra era inicialmente a camada de escravos, aps a abolio legal da
escravido, vive em condies de extrema pobreza360.
359
nome verdadeiro de Stepanov, tambm conhecido como O Moreno, era Stoian Minev (1891-1959).
Stepanov nasceu na Bulgria e foi um dos dirigentes operativos mais importantes do Komintern, apesar de nunca
ter sido mencionado em um documento oficial. Dirigiu o Secretariado dos Pases Latinos no Comit Executivo da
IC, tambm esteve encarregado do trabalho orgnico do partido mundial. (ULIANOVA e RIQUELME, 2009, p.
109; DRACHKOVITCH, 1966, p. 197-198).
360
Interveno de Stepanov. Secrtariat Latino-Amricain, Comission brsilienne, 27 octobre, 1929. p. 70,
traduo minha. (Coleo Internacional Comunista, Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp, Campinas, SP.)
206
estaria ligada ao tratamento dispensado aos negros. O tipo de argumentao desenvolvida por
Stepanov permite a compreenso da questo negra como um fenmeno identificado pela
existncia de discriminao racial.
Eu no posso negar que nos distritos de Berlim h uma populao trabalhadora que
tem uma vida muito dura e miservel, que se assemelha a dos negros, mas isso no
significa que no exista uma questo negra. No existem negros que so
constantemente insultados, que so maltratados sem parar, que so
desmoralizados? Este um fato, e se eu soubesse que em nossas reunies se
levantaria esta questo [se existe ou no uma questo negra], eu teria trazido
descries de viajantes, escravagistas e tambm de escravos 361.
361
Id.
362
O comunista apresentado durante as reunies do Secretariado Sul Americano em Moscou como Ledo era, na
verdade, a maior liderana do PCB na poca, Astrojildo Pereira. Antonio Candido (1982) narra o episdio do
encontro de Sergio Buarque de Holanda com Ledo em Moscou, e uma pequena confuso em torno do uso do
pseudnimo por Astrojildo. Candido afirma que do encontro dos dois em Moscou nasceu uma boa amizade para
toda a vida (CANDIDO, 1982, p. 6). Sergio Buarque esteve em Moscou entre 1929 e 1930 como jornalista, na
funo de correspondente de O Jornal, do Rio de Janeiro. Astrojildo morou em Moscou no mesmo perodo e
trabalhava no Secretariado para a Amrica Latina da IC.
363
Interveno de Ledo (Astrojildo Pereira) Secrtariat Latino-Amricain, Comission brsilienne, 5 de novembre
de 1929. p. 46, traduo minha. (Coleo Internacional Comunista, Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp,
Campinas, SP).
207
formulao. Por exemplo, quando se referiu aos trabalhadores das foras armadas brasileiras
admitiu a existncia de discriminao racial. Mas, como compreendia que as foras armadas
incorporavam indivduos pertencentes s classes mdias, associava as desigualdades raciais
condio de classe364.
364
Outro trecho da interveno de Astrojildo Pereira ajuda a entender a posio do dirigente do PCB sobre a
relao entre luta de classes e questo racial: Obviamente, se no h essa tradio de luta que no h
antagonismo entre negros e brancos. Atualmente no Brasil no h nenhum problema especfico de negros. O que
existe uma luta de classe de trabalhadores fraternos brancos e negros contra as condies de explorao de
opresso que os atinge igualmente. Quando peo prova em contrrio eu ouo a concessionria Ford, e esta a
nica prova concreta me foi dada a chamada luta "entre negros e brancos" no Brasil. Eu j disse que isto no prova
nada: primeiramente isso uma coisa nova, deste ano; segundo, o que mais importante que os trabalhadores
que anteriormente estavam na Ford e eram contrrios que a Ford importasse negros da Jamaica, no eram brancos.
Entre eles, havia uma maioria de negros. Foi, portanto, uma luta entre negros e negros e no uma luta entre negros
e brancos.
365
Interveno de Ledo (Astrojildo Pereira) Secrtariat Latino-Amricain, Comission brsilienne, 5 de novembre
de 1929. p. 46, traduo minha. (Coleo Internacional Comunista, Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp,
Campinas, SP).
208
Apesar das divergncias nas reunies de 1929, pouco tempo depois, aes tomadas pelo
PCB indicam que houve uma reviso de posicionamento, quer seja para simplesmente atender
s exigncias da Internacional Comunista ou por convencimento, de fato366.
Em abril de 1930, o jornal A Classe Operria divulgou a Resoluo da Internacional
Comunista sobre a Questo Brasileira. Segundo texto publicado no jornal, a resoluo foi o
366
O impacto que as reunies de Moscou teve sobre os dirigentes e demais membros do PCB pode ser percebido
no depoimento de Heitor Ferreira Lima, um dos presentes na ocasio: Fomos acusados de orientar toda a ttica e
estratgia do PCB na espera da terceira revolta., colocando-nos desse modo a reboque da pequena burguesia; de
menosprezarmos as reivindicaes especficas do proletariado; de abandonarmos a questo camponesa [...]; de no
cuidarmos devidamente da formao de um PCB independente, altura das necessidades nacionais; de no nos
preocuparmos com os problemas dos negros e dos ndios, enfim de adotarmos uma poltica pequeno-burguesa,
contrria ao leninismo e s recomendaes da IC. Em resumo: fomos totalmente arrasados na ideologia e na ao
prtica que seguamos. Tal contestao, em forma to severa, nos deixou, a ns brasileiros, perplexos, atnitos,
quase aniquilados, pois eram esforos, trabalhos e sacrifcios de tantos anos que vamos desmoronar
irremediavelmente, ante nosso espanto e inconscincia, como se o mundo viesse abaixo. Foi uma espcie de
desiluso. No podamos deixar de reconhecer, porm, que naquela anlise aguda e forte havia muito de
verdadeiro, embora contivesse tambm muito exagero (Heitor Ferreira Lima. Caminhos percorridos. Memrias
de militncia apud KAREPOVS, 2001, p. 623-624).
209
Quadro 19 Aos trabalhadores das cidades e dos campos, a todos os explorados do Brazil
NO DIA 1 DE AGOSTO as massas provaro que querem lutar contra os perigos da Guerra
e por suas reivindicaes.
Basta de escravido ! Viva a luta decidida e corajosa contra todos os exploradores e
opressores !
OPERRIOS ! organizai comits de luta em todas as fbricas ; organizai a frente nica de
otod o proletariado ; manifestai no dia 1 de agosto fazendo greves e demonstraes de rua !
TRABALHADORES AGRICOLAS, COLONOS, PEQUENOS LAVRADORES!
organizao comits de luta em todas as fazendas e localidades do interior ; manifestai no dia
1 de agosto contra os senhores feudais e o governo, contra a polcia e os fazendeiros;
TOMAI A TERRA, recusai-vos a pagar impostos; RESISTI POLCIA DOS
NEGREIROS!
SOLDADOS E MARINHEIROS! preparai-vos para a luta; fraternizai com os
trabalhadores!
TRABALHADORES NEGROS! a vossa escravido continua! lutai em conjunto com
os demais trabalhadores contra a explorao feudal, por vossa libertao definitiva!
NDIOS organizai-vos para reconquistar pela luta as terras que vos roubaram e para vossa
completa emancipao!
DESEMPREGADOS ! organizai os vossos comits de luta em todos os bairros e em todas
as localidades, e manifestai juntamente com os demais trabalhadores no dia 1 de agosto
O Bureau Poltico do PCB.
Fonte: A Classe Operria, 19 de julho de 1930, p.1. Caps lock no original, grifos meus.
367
No mesmo perodo em que foram registradas as primeiras aes do PCB no sentido de reconhecer
especificidade nas demandas da populao negra no Brasil, acontecia uma conferncia internacional de
trabalhadores negros organizada pela IC. Segundo Degras (1964), a conferncia foi realizada em Hamburgo, na
Alemanha e presidida James Ford (1893 1957), do PCUSA. Ainda segundo a autora, compareceram
conferncia negros da Nigria, da frica do Sul, Gold Coast (Gana), de Serra Leoa, Senegal , Gmbia, Trinidad,
e dos Estados Unidos . A idia dessa conferncia foi sugerida em julho de 1929 - presumivelmente por iniciativa
do Bureau Negro, criado aps o Sexto Congresso da IC -, para resolver o problema da pequena conexo entre os
negros comunistas de diferentes pases. At aquele perodo, as organizaes de negros que tinham alcanado
relevncia iternacional estavam ligadas ao Garveyismo, Panafricanismo (DEGRAS, 1964, p. 124). Um dos
resultados da conferncia foi a criao, em novembro de 1930, da "Unio de Luta pelos Direitos dos Negros, que
tinha o programa centrado na autodeterminao negra na regio conhecida como Black Belt nos Estados Unidos.
210
Benedicto
368
Dessa vez, apenas uma pessoa assina o texto, Benedicto. O nome , provavelmente, uma alcunha utilizada por
um membro do Partido, mas at o momento no encontrei qualquer meno ou associao com qualquer militante
do PCB no perodo.
369
A proletarizao ou obrerismo uma orientao que prega a constituio essencialmente proletria dos partidos
comunistas e o afastamento de lideranas com perfil intelectual, supostamente responsveis por seu
direcionamento conservador (ou contrarrevolucionrio) (HENN, 2012).
211
propositores das interpretaes sobre a situao racial no Brasil e sua relao com outras
temticas pertinentes aos comunistas, estavam os novos dirigentes do Partido, os dirigentes
afastados que permaneceram nas fileiras do PCB e outros afastados que optaram por sair do
partido ou foram expulsos.
Em novembro de 1930, Astrojildo Pereira (chamado de Ledo durante as reunies de
1929) foi destitudo do cargo de secretrio geral do Comit Central do PCB e substitudo por
Heitor Ferreira Lima, primeiro brasileiro a participar da Escola Leninista Internacional de
Moscou, onde residiu de 1927 a 1930. Na mesma reunio em que foi selada a sada de Astrojildo
do Comit Central do PCB, oficializou-se a sada de todos os dirigentes do partido considerados
intelectuais de origem burguesa, ou seja, quase a totalidade foi afastada370.
O processo de proletarizao ao qual o PCB foi submetido resultou tambm no de um
grupo de oposio, o Grupo Comunista Lenine (GCL), formado por militantes que haviam
abandonado o partido ou que tinham sido expulsos. Inicialmente o GCL denominava-se um
grupo de oposio no interior do PCB, mesmo com a recusa do Partido371. Em vista disso, para
compreender melhor as mudanas de posio do comunismo no Brasil em relao questo
negra, ao longo da dcada de 1930, preciso prestar ateno para a origem do discurso e os
interlocutores com quem o autor, ou autores, pretendiam dialogar.
Em relao ao grupo de militantes que se manteve no PCB, a movimentao em torno
da insero da questo negra s bandeiras do partido, durante o ano de 1930, parece no ter sido
considerada suficiente pelos representantes do Komintern na Amrica Latina. Em 1931, o
Bureau Sul-Americano (BSA)372 divulgou um conjunto de teses sobre a situao do Brasil e as
tarefas do Partido Comunista. Um dos tpicos do texto endereado ao PCB foi intitulado de O
trabalho entre os negros e ndios. Apesar de endereada a um grupo de dirigentes diferentes
370
Del Roio (1990) explicou que o processo de depurao da direo do PCB promoveu mais do que a modificao
da composio social dos quadros dirigentes. O historiador defendeu que parte do objetivo da depurao foi a
adoo de uma nova linha poltica. Isso porque, dois lderes operrios foram tambm afastados, o metalrgico Jos
Casini e o grfico Manoel da Silva. Alm desses, outros dirigentes considerados intelectuais foram afastados, como
Octvio Brando, Lencio Basbaum, Rodolfo Coutinho, Paulo de Lacerda e Fernando de Lacerda.
371
Segundo Ferreira (2005), O Grupo Comunista Lenine esboou o que foi imediatamente o primeiro setor
oposicionista de vis trotskista no Brasil, a denominada Liga Comunista Internacionalista (Bolchevique-
Leninista), composta por Mrio Pedrosa, Lvio Xavier, Aristides Lobo, Plnio Gomes de Melo, Joo Mateus,
Benjamin Pret, Victor Azevedo Pinheiro, Joo da Costa Pimenta, Flvio Abramo, Raquel de Queiroz, Dalla Da
e outros, organizada em So Paulo em janeiro de 1931. Inicialmente a organizao no pretendia um rompimento
com o PCB e, de certa forma, acompanhava as expectativas de L.Trotsky, que acreditava na regenerescncia do
Partido Comunista Russo, do socialismo na Unio Sovitica, no reconhecimento da necessidade de um novo
trabalho por parte da IC, desde que Stlin e sua frao fossem politicamente derrotados (FERREIRA, 2005, p.
16).
372
Em 1930, o Secretariado Sul Americano da IC foi transferido de Buenos Aires para Montevidu, a transferncia
foi motivada pela instaurao de uma ditadura militar na Argentina. Com a transferncia, o Secretariado Sul
Americano passou a ser denominado de Bureau Sul-Americano.
212
As organizaes chauvinistas dos negros se estendem cada vez mais por todo o pas e
o Partido no assinala seu perigo para as massas de trabalhadores negros. Em toda sua
existncia, o PCB no tomou nenhuma medida para penetrar nos clubes e
organizaes culturais dos negros a fim de conquistar a massa trabalhadora que aflui
a elas. O Partido no compreende que a aproximao das nossas tarefas entre as
massas negras e indgenas um dos aspectos do problema da conquista da maioria da
373
Abraham Iakovlevitch Heifetz (Guralsky) era o secretrio do Bureau Sul-Americano no momento em que as
teses sobre o Brasil foram divulgadas. Guralsky esteve na direo do Bureau Sul-Americano entre 1930 e 1935,
nesse perodo morou no Brasil, no Chile e na Argentina (CABALLERO, 1986, p. 158). Em 1929, Guralsky
participou do comit estendido nas reunies de Moscou sobre a questo brasileira realizadas.
374
Teses do Bureau Sul-Americano sobre a situao do Brasil e as tarefas do Partido Comunista, 1931. Traduo
minha.
375
Outras organizaes negras existiram em So Paulo, antes do surgimento da Frente Negra. O Centro Cvico
Palmares (1926-1929) visto como o predecessor da Frente Negra (Domingues, 2008, p. 521). Butler (1998)
caracterizou Palmares como a primeira organizao ativista afrobrasileira em So Paulo (BUTLER, 1998, p. 103).
No estatuto da entidade, sua misso zelar pelos interesses dos homens pretos, facilitando-lhe instruo physica,
moral e intellectual, manter um bibliotheca, finalmente incentivar por todos os meios possveis o gosto pelo
aperfeioamento do negro (Projeto de Estatuto do Centro Cvico Palmares apud LUCINDO, 2013). Dentre os
envolvidos nessa organizao estavam os futuros lderes da Frente Negra Brasileira, os irmos Arlindo e Isaltino
Veiga dos Santos, alm de escritores e responsveis por jornais da imprensa negra, que j existia na cidade desde
a primeira dcada do sculo XX. Levine (1980) e Andrews (1991) expem que tentativas de aproximao do PCB
com a populao negra e com envolvidos na mobilizao paulista no foram bem sucedidas. O jornal O Progresso,
que tinha ligao com o Centro Cvico Palmares, era partidrio da viso de que a proposta comunista para a
populao negra no era vivel, como indica um texto publicado em 1929: Ser que os sovietes realmente
acreditam que os negros os negros embarcam em canoa furada? (O Progresso, 24/03/1929, p.5)
213
Eu acho que esta questo de negros no pode ser liquidada declarando que os negros
tm os mesmos direitos que o resto da populao. Os direitos formais? Todo mundo
tem direitos formais. A questo dos negros est associada com outra questo que no
se deu exatamente no mesmo perodo, mas que o Partido Comunista do Brasil deve
examinar completamente e concretamente, porque ela tambm deve determinar os
slogans utilizados pelo partido nas diferentes camadas da populao trabalhadora: a
heterogeneidade tnica da populao. No Brasil, diferente de outros pases, desde
1860 houve toda uma poltica de imigrao e sobre a base desta "poltica" de
imigrao, se produziu uma crise que continua at hoje377.
376
Teses do Bureau Sul-Americano sobre a situao do Brasil e as tarefas do Partido Comunista, 1931. Traduo
minha. (Coleo Internacional Comunista, Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp, Campinas, SP.)
377
Interveno de Stepanov. Secrtariat Latino-Amricain, Comission brsilienne, 27 octobre, 1929. p. 70,
traduo minha. (Coleo Internacional Comunista, Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp, Campinas, SP.)
214
polticos do perodo. De certa forma, o PCB ficou a reboque das mobilizaes deflagradas em
1930. Dulce Pandolfi chegou a afirmar que o Partido Comunista ficou margem do processo,
por considerar uma mera quartelada pequeno-burguesa contra os interesses do proletariado
(PANDOLFI, 1995, p. 100).
A orientao do Bureau Sul-Americano para aproximao do PCB com organizaes
negras parece ter sido uma tarefa difcil de ser realizada no incio dos anos 1930. Especialmente
por causa da stalinizao a que foi submetido o partido, exigindo uma mudana radical em sua
estrutura, a substituio de suas lideranas e a desarticulao do Bloco Operrio e Campons 378.
Para o BSA, era fundamental que o PCB ganhasse a confiana das massas negras e indgenas
para, assim, organizar as lutas pela autodeterminao, pela liquidao dos privilgios dos
brancos e a devoluo das terras roubadas pelos colonizadores.
Por isso, o BSA prope a formao de comisses especiais de trabalho entre os negros
e indgenas, que elaborem suas reivindicaes econmicas e polticas especficas, que
os impulsione a participar e integrar as organizaes revolucionrias do proletariado
(Socorro Vermelho, Sindicatos, Partido). Essas comisses devem elaborar um plano
especial de recrutamento de trabalhadores negros e indgenas para o Partido. Os
melhores militantes negros, que so membros do partido, devem ingressar na direo
e, por ltimo, deve se fazer um plano concreto de formao de quadros de
trabalhadores negros e indgenas capazes de realizar este trabalho entre as mas amplas
massas dessas raas oprimidas379.
De todas as tarefas dadas pelo BSA para o PCB realizar em relao aos negros no Brasil,
parece que a nica levada a cabo com eficcia foi a defesa pelo direito autodeterminao. As
formulaes do PCB em torno da ideia de autodeterminao foram um esforo que o Partido
fez para colocar em prtica as resolues sobre a questo negra determinadas pela IC, ainda que
no incio tivessem sido formuladas especialmente para o contexto dos Estados Unidos.
Entretanto, no caso brasileiro, as demandas no passavam de formulaes genricas e bem
superficiais. Bem diferente do que o PCUSA elaborava no mesmo perodo em reivindicaes
similares. Entre os anos de 1931 e 1932 o PCUSA, em associao com a IC, promoveu diversos
encontros liderados por dirigentes negros do partido no pas. Como resultado desses encontros
378
A dependncia do BOC foi uma crtica constante da direo do IC aos dirigentes do PCB aps o VI Congresso
da entidade, realizado em 1928. Nos anos de sua existncia, foi o Bloco Operrio a grande ponte entre o Partido e
o movimento sindical. Para o IC manter o BOC seria muito arriscado para o PCB, que poderia passar a funcionar
apenas em funo da poltica aliancista e partidria. A poltica de Classe contra Classe, resultante da tese do
terceiro perodo, que indicava o comeo de um perodo de instabilidade no ocidente, com crescimento das lutas
proletrias, com possibilidade de surgimento de contextos revolucionrios. Os dirigentes do PCB foram instrudos
a abandonar alianas em nome da disputa pela liderana na conduo da revoluo da classe operria
(KAREPOVS, 2006).
379
Teses do Bureau Sul-Americano sobre a situao do Brasil e as tarefas do Partido Comunista, 1931. Traduo
minha.
215
foi divulgada uma resoluo sobre o direito de autodeterminao dos negros americanos na
regio que ficou conhecida como Black Belt380.
Um dos grupos que mais questionou as formulaes do PCB a partir de 1930 foi a Liga
Comunista, surgida a partir do grupo Comunista Lenine. A Liga tinha como tarefa desempenhar
uma Oposio de Esquerda ao Partido Comunista no Brasil. A divulgao das ideias da Liga,
formada em grande parte por militantes expulsos do PCB, era feita nas pginas do jornal A Luta
de Classe381. A defesa do direito de autodeterminao feita pelo Partido em favor de negros e
ndios no Brasil, recebeu crticas do jornal. Em 1931, a demanda foi incorporada s teses
elaboradas para a Conferncia Regional de So Paulo382.
380
A ntegra da resoluo da IC sobre o Black Belt nos Estados Unidos pode ser encontrada em Jane Degras (1964,
p. 129-135). Em 1932, o PCUSA lanou James W. Ford como candidato a vice-presidente, um dos responsveis
por elaborar a resoluo da IC tratando detalhadamente do direito de autodeterminao na regio chamada de
Black Belt. Um dos principais slogans da campanha foi: Self Determinationfor the Black Belt (PHELPS, 2003).
381
A primeira edio de A Luta de Classes foi publicada em 8 de maio de 1930. Nesse nmero, os editores
explicaram que o que impulsionou o surgimento do jornal foi o agravamento dos erros da direo do partido
Comunista. O mesmo texto prossegue mais adiante com a afirmao de que A luta de Classe no visa combater
o partido Comunista, porque que urge reintegr-lo na linha que se traou na ocasio de sua fundao.
382
A avaliao das teses para a Conferncia Regional do PCB foi feita em tom de severa crtica, s vezes quase de
troa, como na passagem a seguir: a de dificuldade de uma crtica a respeito est em no se saber por onde
comear, tal o amontoado de asneiras que, do princpio ao fim, se concentram naquele documento. Mas
desejamos citar aqui as principais monstruosidades para que os operrios do Partido verifiquem at que ponto
podem conduzir a ignorncia e a m f da burocracia dirigente. Deixamos para mais tarde. A Luta de Classe,
31/05/1931, p. 4.
383
O livro foi publicado em 2003 com mudana no ttulo para Race and Revolution (SHACHTMAN, 2003).
216
eram constitutivos da histria, sociedade e poltica dos Estados Unidos. Apesar de no ser
possvel considerar os escritos de Shachtman como a posio oficial da Oposio de Esquerda
sobre a questo negra, o autor, que era um dos intelectuais do grupo, realizou o exerccio de
submeter as resolues da IC sobre a questo negra a um detalhado escrutnio. Para Shachtman,
o slogan por autodeterminao no era adequado, alm de no ser eficiente para atrair o negro
proletrio. Em vez disso, o foco do comunismo deveria ser a igualdade econmica, social e
poltica para os negros em relao aos brancos384.
No Brasil, alm das diferentes interpretaes sobre a ao necessria para mobilizar a
populao negra, outro assunto que alimentava as discordncias entre PCB e Oposio de
Esquerda envolvia a anlise da revoluo de 1930. Para os comunistas do PCB, esta era um
reflexo das disputas entre os imperialismos yankee e ingls385. J os oposicionistas
acreditavam que as disputas entre fraes da burguesia nacional eram mais relevantes para
entender os acontecimentos que envolveram a sucesso presidencial naquele ano (ABRAMO e
KAREPOVS, 1987).
A tnica dos comunistas na influncia do imperialismo sobre a sociedade brasileira pode
ajudar melhor a compreenso do texto publicado em A Classe Operria, em dezembro de 1931,
de que o racismo estava sendo introduzido no Brasil por meio da influncia da burguesia
americana.
A burguesia paulista to lacaia dos americanos que anda a copiar o que fazem nos
Estados Unidos contra os negros. Assim que, nos rinks de S. Paulo no se consente
que os negros entrem.
A Frente Negra, sociedade fundada por burgueses para tapear nossos companheiros
negros, protesta contra isso: mas apela para o humanitrio e positivista Rabello.
Rabello foi posto no governo por um golpe dado por gente que serve a burguesia
americana, a mesma que lincha os negros nas ruas.
Os negros oprimidos no devem se fiar nessa cambada! Devem tomar a direo da
Frente Negra. Devem unir-se aos seus companheiros, os trabalhadores brancos e
lutarem juntos contra todos os opressores de qualquer raa.
Devem entrar para o Partido Comunista, o unico partido que no distingue raas
nem cor e que reconhece nos negros os mesmos direitos que tm os brancos. O
unico Partido que luta em defesa de todos os oprimidos brancos e negros. (A Classe
Operria, 15/12/1931, p.2)
384
Existiam muitas dvidas na Oposio de Esquerda nos Estados Unidos sobre a questo da autodeterminao.
Os dirigentes do grupo consideravam o trabalho organizao da populao negra uma das prioridades e tinham
perspectiva similar a apresentada por Shachtman (PHELPS, 2003, p.XXXVI). Entretanto, Trotsky tinha uma
opinio divergente: Autodeterminao uma exigncia democrtica. Os nossos camaradas americanos colocam
contra essa demanda democrtica, uma demanda liberal. Essa demanda liberal , alis, complicada. Eu entendo o
que a "igualdade poltica" significa. Mas qual o significado da igualdade econmica e social na sociedade
capitalista? Eu me baseio apenas nos argumentos apresentados pelos companheiros americanos. Acho-os
insuficientes e considero uma certa concesso ao ponto de vista do chauvinismo americano, que me parece ser
perigoso (The Negro Question in America Minutes of discussion between comrades Trtsky and Swabeck,
publicado, publicado em Breitman (BREITMAN, 1967, p. 20-31).
385
Cf. A classe Operria de 17/04/1930 e 19/07/1930
217
Na sua atividade, o partido deve dar uma ateno especial ao trabalho no seio dos
negros e ndios nacionalmente oprimidos, conduzindo o trabalho entre os camponeses
ndios na lngua materna, elaborando reivindicaes parciais que decorram das
condies especficas de sua vida e que se liguem a luta pela sua autodeterminao
nacional at a completa separao (por exemplo, abolio de todas as limitaes
jurdicas e de fato estabelecidas para os ndios e negros, restituio as tribos ndias
das terras que lhes foram roubadas pelos grandes proprietrios; extino das misses
indgenas das ordens religiosas e entrega de suas terras aos ndios, etc.) 387.
386
Lencio Rodrigues explicou que o crescimento do PCB foi modesto, durante a dcada de 1920. At 1925, o
Partido tinha 300 membros registrados, a maioria no Rio de Janeiro e em Niteri. O autor prosseguiu afirmando
que Em 1928, o nmero de filiados ao PCB aumentou para 700, dos quais 400 no Rio, 80 em So Paulo, 80 no
Rio Grande do Sul, 60 em Pernambuco e o restante espalhado em pequenos grupos na Bahia, Vitria, Campos,
Juiz de Fora e outras localidades. Outros 700 membros que se haviam inscrito no perodo de 1922-1927
abandonaram o Partido (RODRIGUES,2007, 434).
387
Resoluo da comisso poltica da CE da IC, 07/07/1933. (Coleo Internacional Comunista, Arquivo Edgard
Leuenroth/Unicamp, Campinas, SP).
218
388
Os primeiros anos da dcada de 1930 foram de constante ateno em relao ascenso de movimentos
nacionalistas na Europa, em especial na Alemanha e Itlia. Em 1933, Hitler chegou ao poder na Alemanha, atravs
do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemes. Enquanto isso, Benito Mussolini j comandava o
governo italiano desde meados dos anos 1920. O fascismo italiano e o nazismo alemo se transformaram nos anos
seguintes no inimigo comum de vrios pases, dentre eles a Unio Sovitica, e por conseguinte, de todo
comunismo internacional (HOBSBAWM, 1995). No Brasil, uma organizao que recebeu crditos por
propagandear ideias fascistas foi Ao Integralista Brasileira (AIB), fundada em 1932. Fundamentada em ideias
nacionalistas, a AIB tinha como slogan os dizeres: Deus, Ptria e Famlia.
389
Segue trecho do tpico dedicado a questo nordestina: [...] considerando que as lutas que sustentais contra os
coronis, contra os grandes proprietrios de terras e empresas imperialistas, contra os representantes dos
governos centrais lutas s quais se ligam e tm tambm idnticas expresses as heroicas guerrilhas dos
cangaceiros possuem rasgos profundos de nacionalidade oprimida, apoiando cada uma das vossas lutas
econmicas e polticas, o Partido Comunista apoia decididamente e luta junto convosco pelo direito de dispordes
de vs mesmos como nacionalidade em formao, isto , a lutar para que tenhais o direito de possuir vossos
prprios costumes, vossa prpria lngua e de viver como bem entenderdes e resolverdes, sem dar satisfao a
ningum, inclusive o direito de vos separardes em nacionalidade parte do governo federal e constituirdes vosso
prprio governo (A Classe Operria, 01/08/1934, p.7).
390
Cf. Prestes, (PRESTES, 2006, p. 136-138).
219
por vossa libertao, desde as lutas pela devoluo das terras roubadas e pela
igualdade de direitos econmicos, polticos e sociais, at a luta pelo direito de
constituirdes vossos prprios governos separados do governo federal e estaduais,
caminho pelo qual vs podereis desenvolver como nacionalidades com territrio,
governo, costumes, religio, lngua e cultura prprios391.
A questo das minorias nacionais oprimidas volta a aparecer pouco tempo depois nas
pginas de A Classe Operria. O PCB publicou no jornal a sua plataforma para as eleies para
as Assembleias Constituintes estaduais, que seriam realizadas em outubro . O texto
praticamente o mesmo do Manifesto:
391
Manifesto da I Conferncia Nacional do PCB, publicado em A Classe Operria, 01/08/1934, p.7.
392
A Conferncia aconteceu para aproveitar a presena dos delegados latino-americanos que estavam em Moscou
para participar do VII Congresso da IC, que tinha sido adiado para 1935. Representaram o PCB na conferncia:
Antnio Maciel Bonfim (Miranda ou Queiroz), Lauro Reginaldo da Rocha (Bangu), Jos Caetano Machado
(Alencar ou Almeida), Elias Reinaldo da Silva (Andr ou Souza) e Valdevino de Oliveira (Mrquez). Tambm
estiveram presentes Luiz Carlos Prestes (Fernandez) e Otvio Brando, ex-dirigente do PCB, exilado em Moscou
desde 1931 (PRESTES, 2006).
220
393
De acordo com Anita Prestes: Chamam ateno os informes feitos pelo ento secretrio-geral do PCB, Antnio
Maciel Bonfim (Miranda), codinome Queiroz, adotado durante os encontros de Moscou. O triunfalismo e o carter
fantasioso das informaes transmitidas por esse personagem so reveladores de que, tendo empolgado havia
pouco tempo a direo mxima do PCB, tratava-se, na verdade, de um parlapato, bem-falante, vaidoso e
aventureiro, que, num momento de grave crise do partido, conseguira ser promovido rapidamente ao seu cargo
mximo, sem um exame criterioso da trajetria anterior desse militante recm-ingresso nas fileiras comunistas
(PRESTES, 2006, p. 134).
394
Cf. Pinheiro (1991).
395
Luiz Carlos Prestes (1898-1990) era uma liderana de grande alcance popular desde o movimento conhecido
como Coluna Prestes. Depois de frustrada a Coluna, Prestes esteve fora do Brasil desde 1927 e aderiu formalmente
ao comunismo no incio dos anos 1930. Sobre a Coluna Prestes, ver: SODR, Nelson Werneck. A Coluna Prestes.
Anlise e Depoimentos. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1978.
396
A atuao das organizaes contra o fascismo chegou a registrar alguns confrontos violentos com membros de
grupos considerados por elas como fascistas. Um deles aconteceu na cidade de So Paulo, em outubro de 1933,
quando a Frente nica Antifascista organizou um ato contrrio a um evento em comemorao do aniversrio de
fundao da Ao Integralista Brasileira (CASTRO, 2007, p. 434).
221
que, segundo ele, tinha sido escrito por Prestes. O documento foi endereado ao povo
brasileiro.
A ttica da frente popular era central para promover o fortalecimento da ANL. Logo no
incio do documento vinha a afirmao que s as grandes massas juntamente com a parte da
burguesia nacional, no vendida ao imperialismo, sero capazes de, atravs de um governo
popular revolucionrio, acabar com esse regionalismo, com a desigualdade monstruosa que a
dominao dos fazendeiros e imperialistas imps ao pas397. Parte do Manifesto aborda os
Privilgios da Raa, Cor e Nacionalidade. No documento de Prestes, a questo do negro
entendida como parte da nacionalidade brasileira e no como uma demanda de uma nao
oprimida.
Com a Aliana estaro os pequenos comerciantes, os pequenos industriais, que,
comprimidos entre os impostos e monoplios imperialistas de um lado e a misria
cada vez maior da massa popular do outro, ganham cada dia menos e, medida que
se pauperizam vo passando a simples intermedirios mal remunerados da explorao
do povo pelo imperialismo e pelos impostos indiretos. Com a Aliana estaro todos
os homens de cor do Brasil, os herdeiros das tradies gloriosas das Palmares,
porque s a ampla democracia, de um governo realmente popular, ser capaz de
acabar para sempre com todos os privilgios de raa, de cor ou de nacionalidade,
e de dar aos pretos no Brasil a imensa perspectiva da liberdade e igualdade, livre
de quaisquer preconceitos reacionrios, pela qual lutam com denodo h mais de
trs sculos398.
397
Luiz Carlos Prestes. Manifesto da Aliana Nacional Libertadora, 5 de Julho de 1935. Publicado em A Plata,
06/07/1935.
398
Id.
399
Cf. Prestes (2006, p. 106)
400
Em 1935, a Itlia concretizou a invaso da Abssnia (atual Etipia). A expanso colonial italiana e a guerra
deflagrada nos anos seguintes no pas africano causaram comoo mundial. Esses acontecimentos foram
observados com ateno pelos grupos organizados contra o fascismo no Brasil. No contexto internacional, muitas
mobilizaes contrrias invaso italiana foram realizadas, como a criao da International Friends of Abyssinia,
que contava com a participao de lideranas negras como o lder queniano Jomo Kenyatta, do lder trotskista C.
222
A ANL precisa utilizar o mais possvel, no momento atual, a grande vontade de luta
dos negros, despertada pela guerra imperialista contra a Abssnia. Para isso devem ser
enviados os maiores esforos e empregados todos os mtodos e recursos.
Nos lugares onde houver organizaes negras, cham-las frente com a ANL contra
a guerra, o imperialismo e contra o fascismo pela defesa dos interesses especficos
dos negros em cada localidade.
Nas localidades e principalmente nas capitais nas quais no existem organizaes
negras como a Frente Negra, os aliancistas devem imediatamente tomar iniciativa de
sua organizao, sem fazer questo de programas radicais, nem de imediata adeso
formal a ANL. Tais organizaes devem surgir especialmente para a defesa dos
interesses dos pretos contra os preconceitos raciais e contra a Abssnia 401.
O apelo da ANL s organizaes negras foi feito de forma menos condenatria como
tinha feito o PCB em outras tentativas de aproximao com os envolvidos naquele tipo de
mobilizao402. Alm da circular da ANL sobre a organizao negra em solidariedade
Abissnia, Primo (2006) identificou que a Aliana organizou outras aes abordando a questo
negra, como campanhas pela igualdade dos negros, publicou uma srie de artigos exaltando
Joo Candido e no 13 de maio ela organizou um grande ato comemorativo da abolio da
escravatura, levantando a bandeira do combate ao racismo (PRIMO, 2006, p. 65).
A lembrana do 13 de maio parece ter sido repercutida pela ANL em nvel nacional,
como aparece no panfleto Salve, 13 de Maio!, distribudo no Maranho, no dia 13 de maio
de 1935. No folheto feita uma comparao entre a explorao senhorial, durante a escravido,
e a explorao imperialista que escravizava os maranhenses naquela etapa do regime
capitalista.
R. L. James e de Amy Garvey, esposa de Marcus Garvey (Marques, 2008, p. 169). No Brasil tambm aconteceram
mobilizaes negras contra a invaso da Etipia. Marques (2008) acompanhou protestos publicados no jornal A
Alvorada, de Pelotas, no Rio Grande do Sul. Especificamente sobre a invaso italiana na Etipia ver: Berhe, A.
Revisiting resistance in Italian-occupied Ethiopia: the Patriots' Movement (1936-1941) and the redefinition of
post-war Ethiopia in Rethinking Resistance Revolt and Violence in African History, edited by Abbink, Jan, de
Bruijn, Mirjam and van Walraven, Klaas, 87-113. Leiden The Netherlands: Beill. 2003.
401
Circular 31. Centro de Documentao e Informao da Cmara dos Deputados (CEDI), seco legislativa, caixa
14 (sem data) apud PRIMO, 2006, p. 64.
402
O PCB tinha muita influncia na organizao da ANL, como aparece em uma circular do Partido, obtida por
Primo (2006), com instrues sobre como a Aliana deveria atrair negros para suas fileiras: A Aliana popular
deve transformar-se ao mesmo tempo no paladino de lutas pelas reivindicaes elementares e pela completa
igualdade de direito das massas negras, racial e nacionalmente oprimidas, atraindo Aliana no somente as
organizaes revolucionrias locais dos negros, seno tambm firmando um ato sobre a luta conjunta com a
chamada frente negra, organizao esta que romper abertamente com o governo reacionrio de Vargas e
orientar suas atividades com o objetivos revolucionrios da Aliana Aperj, Fundo Polcia Poltica, Setor
Comunismo, pasta 18, fls 207 apud PRIMO (2006, p.65).
223
403
Comit Provisrio de Organizao da ANL. Salv, 13 de Maio!, p. 17 (Coleo Internacional Comunista,
IC/0008, filme 495, assunto 116, dossi 29, Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp, Campinas, SP). A ntegra do
panfleto est disponvel no Anexo B.2.
404
Em 1938, por exemplo, a Federao da Juventude Comunista da Brasil teve um folheto apreendido pelo DEOPS
que tratava do 13 de maio. O folheto foi endereado gloriosa raa negra do Brasil! A todo o povo oprimido
pela ditadura de Getlio! valente mocidade brasileira!. Distribudo no contexto da Ditadura Vargas, o folheto
trazia uma analogia entre Vargas e um feitor, a servio dos modernos senhores feudais - os banqueiros
estrangeiros de Berlim, de Roma, de Tkio, de Nova-York e de Londres (DEOPS/SP, Pronturio n: 1271)
405
A Frente nica Antifascista teve no jornal O Homem Livre seu principal porta-voz. Segundo Castro (2005), O
Homem Livre que era hegemonizado pelos trotskistas da Liga Comunista que conheciam muito bem o PCB e sua
importncia para a luta antifascista, se preocupou, desde o incio, a travar um combate propagandstico contra o
fascismo em geral e os integralistas em particular, mas tambm e, no menos importante, combater a posio da
Internacional Comunista e do PCB de no se preocupar em lutar diretamente contra os fascistas (p. 70). Os
fundadores do jornal trabalhavam como jornalistas do Dirio da Noite, de Assis Chateaubriand. Ainda de acordo
com Castro, o primeiro nmero do jornal, publicado em 27 de maio de 1933, teve colaboraes de Jos Prez,
Mrio Pedrosa, Lvio Xavier, Aristides Lobo, Goffredo Rosini, Geraldo Ferraz e Miguel Macedo (p. 67).
224
A Frente Negra Brasileira est nucleando, com alguns milhares de scios, a afirmao
da existncia de um problema social e poltico da raa negra no Brasil. A associao
da rua Liberdade, explorando o filo do preconceito, que s existe na imaginao dos
seus lderes, cria um caso, que pode dar o que fazer aos futuros governos. Resolvendo
organizar uma questo da raa, sob aspecto social e poltico, os elementos
formadores da Frente Negra Brasileira comeam a criar a barreira para a absoro do
negro no amalgama que se verifica no pas, referentemente a assimilao das raas,
que aqui se cruzam, numa mestiagem violenta, quotidiana, solucionadora e
indiferente as desigualdades tnicas.
O problema do negro, possvel que venha a preocupar um dia, quando a Frente Negra
Brasileira tiver concretizado em toda a plenitude o que tem por finalidade realizar:
separar o negro do branco, do mulato e do japons, fazer bairros de negros, fazer
cidades, organizar escolas primrias, secundrias e superiores s de negros...
(O Homem Livre, 27/5/1933, p. 3)
Ainda que defendessem diferentes posies, a luta contra o fascismo foi uma bandeira
que agregou tanto os comunistas bolcheviques do PCB, quanto as dissidncias trotskistas.
Depois do primeiro momento de unificao antifascista, a escalada na tenso entre o governo
Vargas e os grupos organizados, principalmente os ligados Aliana Nacional Libertadora,
resultou numa srie de levantes militares ocorridos em novembro de 1935 e rapidamente
contidos pelo Estado406. O perodo seguinte aos levantes foi de intensa represso, marcado pela
perseguio contra pessoas ligadas a ANL, como membros do Partido Comunista, intelectuais,
polticos, sindicalistas, militares, como tambm os simpatizantes da organizao.
Os acontecimentos de 1935 contriburam para o endurecimento do Regime Varguista,
que j era muito questionado em seu carter democrtico, o que resultou na instituio de um
governo ditatorial em 1937 que s teve fim em 1945.
406
Os levantes militares ocorridos em Natal, Recife e Rio de Janeiro ficaram conhecidos como Intentona
Comunista. Segundo Prestes (2005), as pesquisas que afirmam que o objetivo da Intentona era a de implantao
de um governo comunista no Brasil esto equivocadas. A autora apresenta documentos que apontam o interesse
de constituio de um Governo Popular Nacional Revolucionrio (GPNR). Este no seria um governo comunista,
nem poria fim propriedade privada. O GNPR surgiu como uma proposta de governo formado pelo (PRESTES,
2005, p. 109-111)). Ainda segundo Prestes, desde meados de 1935 as diretivas do PCB e, sob a sua influncia, as
da ANL, estavam voltadas para o desencadeamento de lutas armadas parciais, que deveriam permitir s massas
populares chegarem a uma insurreio nacional. Essa insurreio derrubaria o Governo Vargas, estabelecendo o
GPNR com Prestes frente, ou seja, o poder da ANL, que realizaria os seus objetivos programticos. No se
tratava, portanto, de uma insurreio para estabelecer o comunismo no Brasil, conforme a Histria Oficial sempre
difundiu, consagrando a designao de Intentona Comunista para os levantes de novembro de 1935 (PRESTES,
2005, p. 114).
225
407
A primeira interpretao sobre a realidade brasileira que circulou entre os meios comunistas e recebeu destaque
foi publicada por Octvio Brando (1896-1980), alagoano e com formao em Farmcia, pela Universidade do
Recife. Brando converteu-se de militante anarco-sindicalista em um dos maiores lderes do Partido Comunista na
dcada de 1920 e um dos principais redatores do jornal A Classe Operria. Sua obra Agrarismo e Industrialismo:
Ensaio marxista-leninista sobre a revolta de So Paulo e a guerra de classes no Brasil-1924, foi publicada em
1926, no Rio de Janeiro. Vrios temas foram abordados no livro. O autor fez referncia a populao negra quando
tratou da definio do povo brasileiro, que para ele no constitua um tipo especfico, mas uma mistura desordenada
de raas e sub-raas.
408
Basbaum foi afastado do Secretariado Poltico do Comit Central do PCB em 1930 e, menos de um ano depois,
foi oficialmente expulso do CC, juntamente com Astrojildo Pereira e Paulo de Lacerda. Em 1932, foi escolhido
Secretrio-Geral do Comit Regional Paulista e depois voltou a integrar o Secretariado Poltico. Em 1934, foi
expulso do partido, voltando a ser readmitido em 1936.
226
Em todo caso, porm, o ideal poltico primeiro das nacionalidades oprimidas a sua
autodeterminao, o direito de dispor de si mesmos, sua constituio em Estado
independente, podendo livremente continuar os seus costumes, lnguas, tradies, etc.
A luta pela autodeterminao se realiza, pois, antes da Revoluo operria e
camponesa (e tambm durante). Pois, esta, pela prpria natureza, encerra em seu
programa a autodeterminao (MACHADO, 1934, p. 174).
No mesmo ano em que Basbaum publicou sua interpretao sobre a questo negra no
Brasil aconteceu o I Congresso Afrobrasileiro, em Recife. Organizado por Gilberto Freyre, o
Congresso de 1934 contou com a participao de diversos intelectuais envolvidos no
estabelecimento do campo de estudo das relaes raciais no Brasil, especialmente interessados
em qestes negras e/ou africanas, alm de representantes de organizaes negras410. Para
409
Para Basbaum, a organizao da Frente Negra no Brasil tinha relao com o surgimento da mobilizao negra
por Marcus Garvey e seus adeptos: H nos Estados Unidos um negro chamado Garvey, principal dirigente da
emancipao negra... na frica. O ideal por ele pregado a volta dos negros para a frica. Em tudo o mais um
lacaio dos brancos, dos capitalistas norte-americanos. [...] Praticamente a Frente Negra, se no o ainda, se
transformar num forte instrumento do imperialismo americano, por intermdio desse Garvey (Machado, 1934,
p. 186).
410
Gilberto Freyre foi o grande nome do Congresso de Recife, este passou a ter muito prestgio depois da
publicao de seu Casa Grande e Senzala, em 1933, especialmente pela abordagem culturalista do livro. Durante
o Congresso, o trabalho de Freyre foi destacado por alguns, a exemplo de Roquettte-Pinto (1884-1954), como o
mais importante expoente dos estudos sobre o negro no Brasil. Outros estudiosos do tema, especialmente Arthur
Ramos, no concordaram que Freyre tivesse primazia e reforaram as contribuies de Nina Rodrigues. As figuras
de Arthur Ramos e Gilberto Freyre so expresses do confronto de duas abordagens sobre a questo do negro no
Brasil naquele momento: uma devota e herdeira de conhecimentos mdicos e psicanalticos, envolta nos discursos
racialistas e evolucionistas; e outra atenta as mesmas questes, mas com enfoque e treino nos usos cientfico da
cultura (ROMO, 2007). Para saber mais sobre as disputas no campo da nascente antropologia brasileira ver:
CORREA, Mariza. As Iluses da Liberdade: A Escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil. Bragana
Paulista: Editora da Universidade So Francisco, 2001. Sobre os estudos a respeito dos negros no Brasil do perodo
ver: SKIDMORE, Thomas E. Preto no Branco. Rio de Janeiro-So Paulo, Paz e Terra, 1989.
228
Anadelia Romo (2007), o Congresso se desenrolou em torno de trs figuras centrais: Gilberto
Freyre, Arthur Ramos e dison Carneiro411. Dos trs intelectuais destacados por Romo, dison
Carneiro era o mais jovem, com 22 anos, e profundamente envolvido com o Partido Comunista.
Carneiro tinha como ocupao principal no perodo o jornalismo e como colunista de vrios
peridicos abordava temas como povo e nacionalidade, principalmente por meio de seus
estudos sobre cultos afro-brasileiros, folclore e cultura popular, especialmente a baiana412.
Gustavo Rossi (2011) atentou para a associao entre a militncia comunista de dison e sua
atividade intelectual:
Pelo menos desde 1933, portanto, comea a ser quase impossvel dissociar as atividades
intelectuais de dison Carneiro dos encargos polticos e simblicos que ele comeou a
assumir como quadro de clula comunista e, mais tarde, membro do ncleo da Aliana
Nacional Libertadora (ANL). Entre alguns destes encargos estavam aqueles de
representao e liderana da juventude estudantil baiana, cujos esforos em muito se
voltavam para a organizao de reunies e eventos com finalidades de propaganda e
doutrinamento ideolgicos junto aos grupos de potenciais interesses ao raio de ao do
Partido: notadamente, nos bairros, sindicatos e associaes proletrias ou
populares, onde disputavam espao com a Ao Integralista e a igreja catlica que
ali tambm se faziam presentes atravs de empreendimentos educacionais e
assistenciais (ROSSI, 2011, p. 142).
411
O argumento de Romo (2007) sobre a importncia da participao dos trs intelectuais no Congresso baseia-se
no envolvimento deles na rejeio do determinismo biolgico em favor do conceito de cultura para anlise das
categorias raciais. O Congresso de Recife percebido por muitos estudiosos como o espao de fundao do campo
de estudos de relaes raciais no Brasil. Segundo Rossi (2011), os participantes do Congresso de Recife so uma
ilustrao de como se encontrava o campo de estudo de relaes raciais no momento. Foram convidados toda
sorte de curiosos e autodidatas, cujos interesses pela cultura africana e popular se ajustavam, em maior ou menor
medida, s suas atividades como escritores, jornalistas, militantes polticos, romancistas e historiadores amadores
ou regionais. Assim, no que dizia respeito aos autores que se debruaram com maior nfase nos aspectos histricos,
polticos, sociolgicos e/ou etnogrficos, o congresso de Recife dava feio profuso de demandas sociais,
ideolgicas e pessoais que orientavam as abordagens e a atuao destes letrados autodidatas na rea dos estudos
afro-brasileiros (ROSSI, 2011, p. 164).
412
Durante a dcada de 1930, dison Carneiro era contratado primeiro como colaborador e depois como redator
do jornal Estado da Bahia, onde escrevia sobre os ritos e festas dos candombls baianos. Carneiro tambm
colaborava em jornais da imprensa comunista como os peridicos O Momento, Revista Flama, Revista Seiva,
Diretrizes, entre outros. Ainda sobre a atuao intelectual conjugada com militncia poltica, Rossi afirma que:
[...] as prticas de dison como comunista e intelectual interessado nos destinos da cultura negra eram
sensivelmente articuladas. Dito de uma melhor maneira: na medida em que passava a justificar as tomadas de
posio intelectuais e polticas como efeitos de sua vinculao aos interesses dos explorados e do proletariado,
dison ajustou tambm seu olhar ao problema das raas oprimidas na Bahia e no Brasil: o qual, sob o disfarce
da luta das culturas desiguais, se afirmava, antes de qualquer coisa, como a expresso das relaes de dominao
mais abrangentes que a sociedade de classes impunha ao negro, assim como do antagonismo entre os opressores
e os oprimidos (ROSSI, 2011, p. 143)
229
argumento geral de que o fim da escravido teria sido benfico para o branco e no para o negro,
ao concender a igualdade legal e no na prtica.
A anlise de Carneiro sobre o negro no Brasil estava bastante enquadrada em uma lgica
de pensamento marxista, inclusive na utilizao de conceitos-chave como : "crise de super-
produo do capitalismo" e "superestrutura"413. Assim, mesmo que aponte a existncia de
especificidades de uma questo negra, especialmente em uma perspectiva culturalista, a diviso
social mais relevante para ele entre burguses e proletrios. Ou seja, o negro na condio de
proletrio deveria se aliar a outros proletrios, brancos e ndios.
Para Rossi (2007), a anlise do problema negro no Brasil proposta por Carneiro, a partir
do Congresso de Recife, que conjugava as categorias raa e classe, foi bem original, comparada
s abordagens que vinham sendo produzidas no campo das Cincias Sociais no pas. Mas, em
relao ao que havia sido formulado pelo pensamento comunista at aquele momento, as ideias
de Carneiro reproduziam as linhas gerais de interpretao, tratando da populao negra como
raa oprimida, que deveriam lutar junto com outros proletrios para a superao das
desigualdades no mundo capitalista e a quem era oferecido o direito de autodeterminao.
413
Apesar da presente referncia de Carneiro a teoria marxista em seus textos, Rossi (2007) chama ateno que
a produo de dison Carneiro na poca do Congresso foi tachada como pouco cientfica e muito ideolgica (p.
165). Romo classificou a comunicao de Carneiro como carente de [linguagem] acadmica formal e afiliaes
cientficas, diferente de muitos outros participantes do Congresso (ROMO, 2007, p. 47, traduo minha).
230
414
Rossi (2011) evidenciou em sua tese sobre dison Carneiro que jovens intelectuais comunistas passaram a se
dedicar com mais intensidade a temtica racial a partir de meados da dcada de 1930: Certamente no foi por
acaso ou por razes unicamente associadas ao redescobrimento cientfico da temtica racial que, tal como dison,
outros jovens escritores e militantes do PCB se mostraram igualmente dispostos a construrem seus retratos do
negro brasileiro [...] E embora fossem poucos, no deixaram de ser extremamente significativos e dignos de nota
ensaios como Insurreies negras no Brasil, de Aderbal Jurema, e romances, como Jubiab, de Jorge Amado, e O
quilombo de Manoel Congo, de Carlos Lacerda (1914-1977). Todos os trs publicados no ano de 1935, no
momento em que seus autores, vinculados ao PCB, passavam a canalizar o melhor de seus esforos para a
231
Outra mudana introduzida pela nova abordagem comunista acerca da questo negra,
representada pela produo de Carneiro em meados dos anos 1930, a preocupao dedicada
cultura negra. Antes apenas citada nas resolues comunistas como um dos direitos de
autodeterminao das raas oprimidas, a religio passa a configurar um aspecto relevante
para compreenso da expresso negra que, para o baiano, precisa ser percebida em seu sentido
humano415:
A vida intelectual do negro aparece, s classes dominantes, como qualquer coisa de
brbaro, de imoral. A religio negra ridicularizada e desrespeitada pelos prepostos
policiais que, em nome da moral, destroem objetos do culto africano, sem
compreender o sentido humano dessa religio.
[...]
Toda a vida do negro material, social e poltica tem sido sistematicamente
destruda em benefcio do branco, por meio dessa incorporao forada do elemento
negro a massa da populao nacional. Os resultados desse mtodo dacroniano a esto
na criminalidade, no analfabetismo, no raquitismo e na mortalidade infantil do negro
(dison Carneiro, As Raas Oprimidas do Brasil. A Bahia, 14/11/1934).
viabilizao da ampla frente popular preconizada pela ANL; sendo que os dois primeiros haviam participado, no
ano anterior, do congresso afro-brasileiro de Recife (ROSSI, 2011, p. 180).
415
Carneiro citou as resolues comunistas quando tratou dos estudos que, em sua opinio, traavam a histria
social do negro e do indgena: Alm dos estudos particularizados de Couto de Magalhes e Roquette Pinto sobre
o indgena e dos de Nina Rodrigues, Manuel Querino e Arthur Ramos sobre o negro brasileiro, s temos a
contribuio maravilhosa de Gilberto Freyre e alguns manifestos do Partido Comunista para a resoluo do
problema. Estamos no escuro sobre o assunto, na mais deplorvel das cabras-cegas (dison Carneiro, As Raas
Oprimidas do Brasil. A Bahia, 13/11/1934).
232
416
Alm de dison Carneiro, o Congresso contou com a participao de outros intelectuais ligados ao Partido
Comunista, como o tambm baiano Jorge Amado, Aderbal Jurema, Jovelino M. de Camargo (ROSSI, 2011). Paz
(2007) apontou a participao de Astrojildo Pereira Duarte Silva, uma das principais lideranas do PCB na dcada
de 1920, naquele momento j desligado do Partido.
417
O comentrio de Gonsalves de Mello parte da apresentao da edio fac-similar dos textos apresentados no
Congresso de Recife, publicada pela editora Massangana, em 1988.
418
A divulgao e crtica tanto de recentes trabalhos quanto daqueles considerados clssicos na rea de estudos
sobre o negro comeou a ser feita de forma mais intensa por Carneiro a partir de 1934, principalmente em jornais
de Salvador, Recife, So Paulo e Rio de Janeiro. Outros artigos publicados por ele no mesmo perodo foram:
Aderbal Jurema e Odorico Tavares. Rio de Janeiro, Literatura, 20/06/1934; Escritores da Bahia. Recife, Dirio
da Tarde, 08/08/1934; Sobre dois livros novos. So Paulo, Hoje, nov/1934; Nota sobre O Negro Brasileiro. Rio
de Janeiro, Boletim de Ariel, abr/1935. Uma lista de artigos de Edison Carneiro publicados em peridicos foi
elaborada por Ana Carolina Nascimento em sua dissertao O sexto sentido do pesquisador: a experincia
etnogrfica de Edison Carneiro (NASCIMENTO, 2010).
419
Gilberto Freyre no foi o nico a receber crticas no artigo de Carneiro, tambm foram citados Nina Rodrigues,
Arthur Ramos e Manuel Querino, alcunhado de negro que aderiu ideologicamente burguesia. At o comunista
Ardhebal Jurema foi acusado de ter pouca profundidade na abordagem do tema em seu livro Insurreies Negras
no Brasil, lanado em 1935. Para Carneiro o negro em Ardhebal Jurema no um fim, um meio. Nestas
condies, o estudo do negro vira demagogia, no arma de combate srio e honesto (A Manh, 14/11/1935). Esse
texto de Carneiro corrobora a anlise feita por Rossi de que muitas das lgicas de sentido que orientavam as aes
de dison Carneiro em Salvador, naquele momento, revelavam as pretenses de um militante buscando se projetar
233
Carneiro constituiu uma liderana entre intelectuais na Bahia que, apesar de jovens,
evocavam o discurso da tradio ao se referir a uma escola baiana de "estudos africanos",
iniciada por Nina Rodrigues e secundada por Arthur Ramos e pelo prprio dison (OLIVEIRA,
2004, p. 127). A base do grupo era formada principalmente, por ex-integrantes da Academia
de Rebeldes420.
A crena na abordagem original, o apoio de intelectuais de renome como Arthur Ramos
e o peso da tradio da escola baiana de Nina Rodrigues, de que se acreditavam herdeiros,
possibilitou que eles realizassem o II Congresso Afro-Brasileiro, em 1937, na Bahia. A equipe
de novos, termo que usavam para se autodenominar, organizou o Congresso em Salvador em
um desafio aos donos do assunto, dentre os quais estava Gilberto Freyre (CARNEIRO e
FERRAZ, 1940, p. 7-8)421.
Ao mesmo tempo que se desenrolaram os trmites que conduziram a realizao do
Congresso na Bahia, o PCB era atingido fortemente pelas repercusses dos levantes militares,
orquestrados pela ANL, em 1935. Nesse perodo o estado da Bahia se tornou um reduto para
como uma jovem liderana na vida intelectual e poltica baiana, ao mesmo tempo em que comeava a se firmar
como um escritor e jornalista combativo na imprensa local e mesmo nacional (ROSSI, 2011, p. 142).
420
A Academia de Rebeldes foi o nome recebido por um grupo de jovens em busca de projeo intelectual e
literria, que tinha inteno de colocar Salvador na cena do debate sobre a modernizao brasileira e o
modernismo literrio que, pelo menos desde a Semana de Arte Moderna de 1922, em So Paulo, vinha ganhando
forma e substncia nos diferentes ambientes intelectuais do pas (Rossi, 2011, p.89). Apesar de muito jovens, em
sua maioria recm-formados da escola secundria, os participantes da Academia dos Rebeldes conseguiram forjar
uma parceria que, em alguns casos, como entre dison Carneiro e Jorge Amado, perdurou muitos anos. Alm de
Carneiro e Amado, fizeram parte do grupo: Aydano do Couto Ferraz (1914-1985), Clvis Amorim (1912-1970),
Joo Cordeiro (1905-1938), Guilherme Freitas Dias Gomes (1912-1943), Jos Alves Ribeiro (1909-1968),
Sosgenes Costa (1901-1968), Walter da Silveira (1915-1970), Jos Bastos (1905-1937) e Pinheiro Viegas (1865-
1937) (Idem).
421
Os organizadores do II Congresso no evitaram polmicas ao tratar das desconfianas que a proposta de
realizao do evento gerou na apresentao do livro com os textos que foram apresentados durante o evento:
Pensaram que um congresso de africanologia, para ser levado a efeito com reais proveitos para esses estudos,
precisava ter a frente Gilberto Freyre. Achavam que um grupo de rapazes, os dois que assinam esta nota (dison
Carneiro e Aydano Ferraz) mais o secretrio do Congresso, aquela poca doutorando Reginaldo Guimares, no
conseguiria reunir um conclave cientfico igual ou, ao menos, parecido com o realizado no Recife em 1934, que
vinha precedido de tanta fama. E no eram somente os incrdulos da Bahia que assim pensavam. O principal
organizador do Congresso do Recife, o socilogo Gilberto Freyre, chegou mesmo a dar uma entrevista ao Dirio
de Pernambucano prevendo o insucesso do Congresso da Bahia. (CARNEIRO e FERRAZ, 1940, p. 7).
234
os comunistas perseguidos e que conseguiam escapar das prises em outros locais do pas, como
explicou Joo Falco422:
O fato de ter se constitudo como um refgio para comunistas no significa que inexistiu
represso no estado da Bahia. dison Carneiro, por exemplo, devido a ameaa de priso, no
conseguiu terminar o curso na Faculdade de Direito da Bahia no ano de 1935, formando-se no
ano seguinte423. Apesar das narrativas de constantes perseguies, aquele foi um perodo de
intensa produo para Carneiro, que lanou os livros Religies Negras (1936), Castro Alves
(1937) e Negros Bantos (1937), alm de atuar intensamente na imprensa como jornalista
contratado de O Estado da Bahia.
As mesmas condies que permitiram que muitos comunistas perseguidos encontrassem
esconderijo na Bahia, contriburam para o crescimento da importncia dos militantes do PCB
naquele estado para o funcionamento do partido em nvel nacional. Como resultado, vrios
militantes comunistas baianos, ou que se fixaram na Bahia, foram alavancados para posies
de destaque que os conduziu a cargos no Comit Central (CC) do Partido, especialmente a partir
de 1937, quando teve incio o Estado Novo424.
O Congresso Afro-Brasileiro realizado em Salvador, em janeiro de 1937, foi um evento
marcado pela disputa em nome da cincia, mas tambm da poltica. Isso no quer dizer que
cincia e poltica no estivessem intimamente relacionados. Por exemplo, ao mesmo tempo em
que se definiam os temas e formas de endereamento da questo negra no campo intelectual
brasileiro, esses temas estavam sendo reinterpretados no PCB. A confluncia dessas duas
422
Para mais detalhes sobre as prises e sanes direcionadas a membros do PCB depois dos levantes de 1935 ver:
(PRESTES, 2001; VIANNA, 2003; WAACK, 1993; SENA JR., 2007). Sobre o movimento integralista na Bahia,
ver: (FERREIRA, 2009).
423
Temendo ser preso, ele teria ficado escondido na casa de parentes de Joo Ubaldo Ribeiro, na ilha de Mar
Grande (NASCIMENTO, 2010, p. 88).
424
Sena Jr (2007) explicou que, a partir de 1936, o PCB baiano comeou a dar mostra que se tornaria uma fora
poltica, tanto no plano da luta de classe no estado quanto na poltica comunista em nvel federal. Naquele ano, o
comit Regional passou a contar com a colaborao de dirigentes do Partido que fixaram residncia em Salvador,
capital do estado da Bahia. Dentre eles estavam Lencio Basbaum, Aldeno Decola dos Santos (Tampinha),
Moiss Vinhas, Alberto Passos Guimares e Corifeu de Azevedo Marques. Para completar o quadro, a Juventude
Comunista baiana contava com jovens estudantes e militantes com poucos anos de Partido, como Carlos
Marighella, Milton Cayres de Brito, Armnio Guedes, Digenes de Arruda Cmara, Rui Fac, dison Carneiro,
Aristeu Nogueira, Fernando Santana, entre outros (SENA JR, 2007, p.68). Alm dos j citados, faziam parte do
grupo comunista baiano: Jorge Amado (1912-2001), Joo Falco (1919-2011), Giocondo Dias (1913-1987), e
posteriormente, Mrio Alves (1923-1970) e Jacob Gorender (1923-2013).
235
ordens resultou numa simbiose, em que Partido e Academia foram tendo seus espaos ocupados
por intelectuais militantes, comprometidos em fazer com que as duas lgicas ganhassem
gradualmente um corpo nico425.
O Congresso de Salvador contou com a participao ativa de intelectuais comunistas,
especialmente na liderana de dison Carneiro, foi um registro de como o problema negro foi
ganhando forma, sob influncia tanto de perspectivas provenientes do campo acadmico quanto
do pensamento marxista426. O discurso sobre o negro como uma nacionalidade oprimida, por
exemplo, foi se transformando no discurso sobre o negro como formador da nao Brasil. Os
responsveis pela comisso executiva, Carneiro, Martiniano Bomfim, Aydano Couto Ferraz,
Azevedo Marques e Reginaldo Guimares, fizeram a apresentao do evento nesses termos:
425
A represso por qual passava o PCB tambm pode ter tido sua parcela de contribuio para uma fala menos
proselitista dos militantes e simpatizantes do Partido. Em meados dos anos 1930, sob a rubrica genrica de
comunistas [...] todos aqueles que faziam oposio ao governo, tornaram-se alvos da sanha repressiva do Estado
(SENA JR., 2007, p. 45).
426
Quando me refiro a pensamento marxista trato no s dos escritos de Karl Marx (1818-1883), mas do conjunto
de intelectuais que se filiaram corrente de pensamento, especialmente os envolvidos na Revoluo Russa, como
Lnin e Stalin, e ligados Internacional Comunista.
236
esquema com hipteses da pesquisa que realizaria nos anos a seguir sobre as relaes raciais na
Bahia427.
A realizao do Congresso, em 1937, rendeu prestgio para comunistas, mas no foi a
nica iniciativa do grupo reunido naquele perodo no estado da Bahia. Em dezembro de 1938
foi lanada Seiva428, a primeira revista do PCB com distribuio nacional e internacional
majoritariamente nos pases da Amrica latina. Seiva foi definida por Joo Falco, um dos seus
principais idealizadores, como uma revista cultural e sociopoliticamente engajada, de larga
orientao esquerda (FALCO, 2008, p. 5). Devido a fiscalizao dos rgos de censura do
Governo Vargas e a represso pela qual passava o Partido, que se encontrava na ilegalidade, a
revista evitou utilizar um contedo puramente propagandista429. Mas, sua linha de orientao
foi definida pelo PCB, como apontou Joo Falco:
Em seu lanamento, Seiva contava com quatro diretores: os estudantes Joo Falco,
Emo Duarte, Vidigal Sena e Eduardo Guimares. O primeiro nmero da revista teve a
participao de mais de 20 colaboradores, que foram convidados a enviar uma Mensagem aos
Intelectuais da Amrica, como vinha na chamada de capa do peridico. Sena Junior explica
que, logo em sua primeira publicao, os idealizadores de Seiva demonstraram ter a ambio
de lanar uma ponte entre a intelligentsia intercontinental que parecia beira de se defrontar
com mais um perodo de cataclismo blico-mundial, conforme se pressentia com o avano dos
regimes nazi-fascistas, ou filo fascistas (SENA JR., 2005, p. 2).
427
Donald Pierson publicou o livro Negroes in Brazil: A Study of Race Contact at Bahia, em 1942. O livro foi
resultado da tese de doutorado defendida na University of Chicago, em 1939. Antnio Srgio Guimares analisou
o contexto da produo de Pierson sobre relaes raciais no perodo (GUIMARES, 2008b).
428
Segundo Falco, Seiva foi um nome sugerido por Digenes Arruda Cmara, para fazer referncia a uma revista
que tinha existido no comeo do sculo, e tambm por significar energia e vitalidade, substncia nutritiva que as
razes absorvem do seio da terra para a sua sobrevivncia (FALCO, 2000, p. 43)
429
Segundo Sena Junior (2005), por orientao dos dirigentes do Comit Regional baiano do Partido Comunista
do Brasil, caberia ao jovem militante Joo Falco reunir o corpo diretivo do peridico entre indivduos insuspeitos,
preferencialmente sem nenhuma ligao com o PCB, de maneira que estes nem sequer deveriam desconfiar das
ligaes da revista com o Partido Comunista (SENA JR., 2005, p. 2). Segundo Joo Falco, o responsvel pelo
departamento de censura na Bahia acreditou que a revista fosse um projeto de inofensivos jovens que tinham a
veleidade de edit-la e que esta no teria vida longa (FALCO, 2009, p. 57).
237
Seiva manteve seu carter de revista de tendncia literria com a publicao dos poemas
Negro, do escritor gacho Raul Bopp; Minha noite no candombl, do baiano Raymundo
Brito; e Xang, de Ascenso Ferreira. Tambm houve espao para anlise social, como no
texto A influncia do negro na sociedade brasileira, escrito por Antnio Osmar Gomes432. A
430
Rafael Fontes (2011) explicou que "os autores mais conhecidos ou mais publicamente ligados ao PCB ou s
causas democrticas ou anti-integralista tinham suas matrias publicadas com pseudnimos. Assim, as matrias
assinadas por Carlos de Melo e Ives Peanha so de autoria de Armnio Guedes; por Clovis Camaro e Carlos
Coutinho, so de Clvis Caldeira; por Joo Nito, Nicolau Paraguassu e Moaci Ferreira, so de Digenes Arruda
Cmara; por Antonio B. Dias e Joo Maia, so de Joo Falco; Marcos Pimenta so de Carlos Lacerda; Amrico
Albuquerque so de Eduardo Maffei; Luiz Bastos so de Lencio Basbaum (FONTES, 2011, p. 95). A capa da
revista Seiva e os ttulos dos textos publicados na edio de 13 de maio de 1939 esto no Anexo B.5
431
Daniela Ferreira (2012) analisou as publicaes da revista Seiva entre 1938 e 1943 e concluiu que Castro Alves
era um smbolo e inspirao de politizao no meio intelectual para os envolvidos na realizao do peridico.
Dessa forma, o uso da figura de Castro Alves e de sua obra literria no se restringia apenas quando a temtica era
o negro. Segundo Ferreira, eles apropriaram-se do texto de Castro Alves dando-lhe um novo sentido,
ressignificando suas ideias. O poeta muritibano tornou-se legtima inspirao no caminho da liberdade. A absoro
da poesia de Castro Alves apareceu nos textos que foram escritos em vrios espaos da Revista. Enxergavam na
poesia do poeta o caminho para seguirem lutando pela revoluo. Deveriam agora no libertar os negros da senzala,
mas todos os homens que viviam sob o jugo e o domnio dos modernos senhores, os patres (FERREIRA, 2012,
p. 86).
432
Gomes era indicado em Seiva ora como como contador ora como comercirio, sendo que alguns anos depois
ele iria se revelar um respeitado folclorista. Em 1941, publicou o livro A Chegana: contribuio folclrica do
238
Ora, de modo nenhum se poder compreender uma raa brasileira sem, na sua
formao, dar lugar de maior destaque ao negro africano que os traficantes de escravos
trouxeram para c, durante tantos anos, como mercadoria lucrativa, jamais lhes
havendo passado pela mente a suposio sequer de que assim estavam concorrendo,
nesta imensa oficina, para um caldeamento de raas que, atravs dos tempos, iriam
dar fisionomia prpria a uma nao, sob o ponto de vista de sua unidade j hoje
indiscutvel.
[...]
Nesta compreenso, pois, da influncia direta do negro na construo e na evoluo
da sociedade brasileira e tambm de uma raa tipicamente brasileira, alis ainda em
processo j muito positivo de unidade, no podemos considerar a Abolio como
sendo um fato histrico de interesse imediato apenas para o escravo negro, mas, sim,
como uma vitria dos ideais de liberdade que no eram nem s dos negros nem s dos
brancos, porque eram ideais comuns, de todos, brancos e negros, ideais do brasileiro
propriamente dito, puros ideais de brasilidade. (Antonio Osmar Gomes. Seiva,
13/05/1939, s/p).
Baixo So Francisco. Foi um dos primeiros membros da Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia
(SBAE), fundada por Arthur Ramos tambm no ano de 1941 (MIGLIEVICH RIBEIRO, 2008).
433
Domingues analisou a trajetria de Fernando Ges no perodo em que participou da criao da terceira fase de
O Clarim, junto com outros membros do Clube Negro de Cultura Social, de So Paulo, entre os anos de 1935 e
1938. O Clarim tinha uma linha editorial conciliatria, propondo que os negros abolissem os dios e
ressentimentos (O Clarim. So Paulo, maro de 1935, p.4). Entretanto, as denncias de casos de discriminao
racial eram frequentes, demonstrando que as relaes sociais entre negros e brancos em So Paulo eram
conflituosas (DOMINGUES, 2004, p. 72).
434
O Cinquentenrio foi realizado pelo Clube Negro de Cultura Social e pela Unio Negra Brasileira, com apoio
do Departamento de Cultura da Municipalidade, ento dirigido por Mrio de Andrade, entre 28 de abril e 13 de
maio. Participaram do evento representantes de organizaes do movimento negro e estudiosos das relaes raciais
no Brasil. A Revista do Arquivo do Municpio de So Paulo publicou nos meses de maio e junho de 1938 alguns
dos textos apresentados, como O negro no bandeirismo paulista, de Cassiano Ricardo; O negro e o folclore cristo
do Brasil, de Arthur Ramos; O elemento negro na populao de So Paulo, por Samuel H. Lowrie; e Literatura
dos negros e mulatos da Bahia, assinado por Jorge Amado. A comunicao de Fernando Ges no foi publicada
na Revista do Arquivo e no h muita informao sobre ela, a no ser uma crtica de Mrio de Andrade: outro
239
classificou o texto de Ges publicado em Seiva como uma crtica cida da discriminao no
mercado de trabalho (CHADAREVIAN, 2012, p. 268). No se sabe os caminhos que
colocaram Fernando Ges em contato com os editores da revista, mas a sua presena nesse
nmero de Seiva, que representou um significativo esforo do comunismo brasileiro em
problematizar a questo negra, apoiando-se em uma variedade de discursos e perspectivas,
indica que nem toda militncia no meio negro era anticomunista, como sugere parte da literatura
que trata do tema435.
Outro indcio de proximidade entre o grupo de Ges e militantes do PCB foi a
reproduo do texto publicado por Lencio Basbaum, no quarto volume de Seiva, no primeiro
e nico nmero de que se tem registro do jornal O Clarim da Alvorada, 3 fase, em 28 de
setembro de 1940. O conselho de redao de O Clarim era formado por Correia Leite, Fernando
Ges e Manoel Antnio dos Santos. Como era um militante comunista bastante conhecido e
tinha sido um dos principais dirigentes do PCB durante a dcada de 1920, Basbaum usou o
pseudnimo Luiz Bastos para evitar ter seu texto censurado pelos rgos de controle da
imprensa do Estado Novo.
No artigo, Para onde vai a Afrologia?, Basbaum faz uma anlise crtica sobre o
crescente interesse que as questes negras vinham recebendo no meio acadmico brasileiro:
escritor de origem negra, Fernando Ges, trouxe balha vrios documentos para provar essa inferioridade em que
o branco concebe o negro no Brasil. Mas a sua documentao me pareceu na realidade pouco convincente como
preconceito de cor, porque quase toda ela podia ser convertida no problema maior de classe. Eram documentao
de classe e no de cor (Revista Marioscriptor, n 2. So Paulo, novembro de 2011).
435
Ver, como exemplo, a anlise de Petrnio Domingues sobre o discurso anticomunista da Frente Negra Brasileira
(DOMINGUES, 2006).
436
Apesar da significativa presena de intelectuais comunistas entre os estudiosos de religies afro-brasileiras e
dos constantes discursos em defesa da prtica religiosa em Seiva, o nmero quatro da revista deu espao no
somente para as crticas de Basbaum, mas tambm as do mdico comunista Eduardo Maffei, sob o pseudnimo
Almrico Albuquerque, que escreveu Como compreendo a religio negra. Em certo momento Basbaum afirma
em seu texto que: No confundamos candombls com cultura negra. O candombl, apesar de sua entrosao com
o catolicismo, ainda o fetichismo, e o fetichismo ainda a mentalidade africana incapaz de desenvolver uma
240
que se abonasse a estudar a vida, nica e simplesmente a vida do negro brasileiro moderno, o
negro da cidade (Seiva, 13/5/1939). O ativista negro compreendia que para o negro na cidade
as duas questes eram centrais, a situao econmica mais do que lamentvel e a posio
moral junto ao homem branco do Brasil (idem).
Para Basbaum, os estudos sobre o negro eram reflexo do preconceito de raa e
ineficientes em seu combate, pois compreendiam o negro como uma coisa, sempre em funo
do branco. Segundo ele, os estudos eram, com raras excees, descritivos e superficiais,
preocupados com a influncia do negro sobre a lngua e os costumes do branco, mas no a
influncia do branco sobre o negro, como si este no fosse um ser vivo, capaz de ter emoes
e de reagir s influncias do branco e de sua civilizao (idem).
A soluo encontrada por Basbaum bem ao estilo comunista: os estudiosos do negro
no Brasil deveriam se engajar tambm na militncia negra. Alm disso, a preocupao que
demonstra com a necessidade de integrao do negro sociedade brasileira uma mostra de
que naquele perodo o comunismo j havia abandonado, se no de todo, mais grande parte da
luta pela autodeterminao negra:
Em vez de advogar pelo direito da populao negra brasileira de constituir sua prpria
nao, os intelectuais membros do PCB e prximos ao partido, na segunda metade da dcada
de 1930, concentraram-se em participar da formulao de um discurso acadmico em torno da
contribuio do negro para a formao da sociedade brasileira. Apesar de, por vezes,
expressarem diferentes opinies, especialmente a respeito do valor das contribuies da cultura
negra para o Brasil, como fez Basbaum na crtica excessiva ateno que davam os estudiosos
religio afro-brasileira.
cultura prpria e impermevel a qualquer espcie de cultura (Seiva, 13/05/1938, s/p). Maffei escreveu: E que
so as religies negras do Brasil? Restos de africanismo que devem ser esmagadas pelo rolo compressor do
progresso. No representa tendncia de liberdade e autodeterminao. No so progressistas e sim retrogradas. O
mdico paulista prossegue dizendo que os pesquisadores de religies negras foram fagocifados pela barbaria
mstica e infame das macumbas ou terreiros. Transformaram-se em ogs com uma facilidade que no deve existir
para quem quiser ter a conscincia de ao em bem do progresso. As pesquisas a serem feitas devem redundar
numa educao intensa dessas massas negras e lev-las para o caminho certo (Seiva, 13/05/1938, s/p).
241
437
Segundo Gustavo Rossi, a obra engajada de Jorge Amado, entre os anos de 1933 e 1954, resultou em pginas
da mais alta voltagem ideolgica e cujo vigor pode ser atestado pela ampla e volumosa produo no perodo,
distribuda entre biografias, teatro, escritos polticos e, sobretudo, romances: Cacau (1933), Suor (1934), Jubiab
(1935), Mar morto (1936), Capites da Areia (1937), ABC de Castro Alves (1941), O Cavaleiro da Esperana: a
vida de Lus Carlos Prestes (1942), Terras do sem-fim (1943), So Jorge dos Ilhus (1944), Bahia de Todos os
Santos (1945), Seara vermelha (1946), O amor do soldado (1947), O mundo da paz (1951) e a trilogia
242
foi o de perseguir a ideia de nacionalidade brasileira, com especial ateno para a construo
da ideia de povo, marcado pela miscigenao, alegria, cordialidade, sensualidade,
musicalidade, religiosidade e coragem (CALIXTO, 2011, p. 8). O prprio escritor tratou do
assunto em uma avaliao de sua carreira literria e chamou ateno para o seu compromisso
literrio associado com sua militncia poltica:
A minha literatura toda ela, do primeiro livro at o ltimo publicado [...] uma viso
do povo brasileiro, colocando-se o autor de acordo com o ponto de vista do povo,
contra os seus inimigos. [...] No decorrer do meu amadurecimento como escritor, essa
unidade adquiriu esta ou aquela caracterstica mais sensvel. Nos meus primeiros
livros busquei reforar a ao atravs do panfleto poltico e do discurso doutrinrio
acentuando a existncia dos problemas sociais expondo solues. (AMADO, 1973, p.
25 apud CALIXTO, 2011, p.19)
E vai assim correndo avisar todos os negros que esto na macumba [...] Vocs
precisam ver a greve, ir para a greve. Negro faz greve, no mais escravo. Que adianta
negro rezar, negro vir cantar para Oxossi? Os ricos manda fechar a festa de Oxossi.
[...] O que que negro pode fazer? Negro no pode fazer nada, nem danar para santo.
Pois vocs no sabem de nada. Negro faz greve, pra tudo, pra guindastes, pra
bonde, cad luz? S tem as estrelas. Negro a luz, os bondes. Negro e branco pobre,
tudo escravo, mas tem tudo na mo. s no querer, no mais escravo. Meu povo,
vamos pra greve que a greve como um colar. Tudo junto mesmo bonito. Cai uma
conta, as outras caem tambm. Gente, vamos pra l (AMADO, 1935, p. 223-224).
Subterrneos da liberdade (1954), com os volumes Os speros tempos, Agonia da noite e A luz do tnel (Rossi,
2009, p. 23).
438
Cito, como exemplo, uma das primeiras crticas literrias que Jubiab recebeu, assinada pelo escritor alagoano
Humberto Bastos e publicada no jornal Dirio de Notcias do Rio de Janeiro. No artigo, Bastos afirmou que O
nosso romance hoje brasileiro. E ningum mais brasileiro do que Antnio Balduno, esse negro extraordinrio,
fixado pelo sr. Jorge Amado no seu ltimo romance [...] O negro do sr. Jorge Amado no quer ser branco, no
quer ser poderoso. Quer lutar com a sua gente por um argumento de salrio, contra a usura (Dirio de Notcias,
3/5/1936, p. 1-2).
243
439
De 1922 a 1945 o PCB esteve na legalidade por 11 meses, entre maro e julho de 1922 e entre janeiro e agosto
de 1927 (MATTOS, 2012, p. 145).
244
sido objeto de trabalhos recentes de Pedro Chadarevian (2006; 2008; 2012) e Jessica Graham
(2010; 2014)440, um aspecto da anlise sobre a interpretao no PCB sobre a questo racial
brasileira, pouco investigado at o momento, a influncia desses debates na estrutura interna
do partido.
A composio dos quadros dirigentes do PCB no meramente um detalhe na histria
do partido. Durante boa parte da dcada de 1930, o seu grupo dirigente se defrontou com crticas
sobre seu perfil elitizado. Alm disso, no incio dos anos 1930, sob presso da Internacional
Comunista, o PCB promoveu uma poltica de recrutamento nos meios populares que afastou a
maior parte dos dirigentes no-operrios, responsabilizados por conduzir o partido a uma
poltica pequeno-burguesa (ZAIDAN, 1985; PINHEIRO, 1991).
Logo no incio da histria do PCB surgiram acusaes de que o perfil social de seus
integrantes no lhe dava legitimidade na representao da classe operria. Uma das polmicas
foi iniciada por um lder anarquista do Rio de Janeiro. Desde 1922, comunistas e anarquistas,
antes prximos, passaram a ter constantes atritos, principalmente na disputa pela liderana na
representao dos trabalhadores (DULLES, 1977).
Em 27 de maio de 1924, o lder anarquista negro Domingos Passos441, publicou no jornal
A Ptria uma acusao contra o PCB, alegando que a agremiao agia com preconceito de cor
contra operrios no-brancos (pretos e mulatos), restringindo sua participao principalmente
nos cargos de direo. Em resposta a Passos, o comunista Manoel Brana publicou o artigo
Preconceito de cor?, no jornal O Paiz afirmando que: O Sr. D. P. [Domingo Passos],
anarcide pretencioso, num artigo que se limitou a assinar - vem alegar que para pertencer a
este preciso no ser intermedirio ethnico. O articulista colocou a questo: A que raas se
refere o preconceito de cor? A amarela, a malsica e a negra. Depois de levantar dados que
comprovariam que o Partido Comunista agia sem preconceito de cor em vrios pases do
mundo, Brana concluiu que no Partido Comunista do Brasil h desde o louro, filho da
Germanha (sic), at o preto retinto, descendente das tribos mais caracteristicamente africanas.
440
Um trabalho de pesquisa e divulgao sobre a interpretao do PCB para o problema racial no Brasil foi feito
por Augusto C. Buonicore, historiador e secretrio-geral da Fundao Maurcio Grabois. O texto, O Partido
Comunista e o Problema Racial no Brasil (1922-1935), publicado no site da Fundao Maurcio Grabois, est
disponvel no seguinte endereo: http://grabois.org.br/portal/revista.php?id_sessao=21&id_publicacao=5726 .
441
Domingos Passos foi um trabalhador no ramo da construo civil no Rio de Janeiro que se tornou lder sindical.
Ocupou cargos na secretaria da Unio dos Operrios em Construo Civil (UOCC), em 1919, tambm foi
Secretrio Excursionista da Confederao Operria Brasileira (COB), em 1920. No meio anarquista, Passos ficou
conhecido como Bakunin Brasileiro (RAMOS e SAMIS, 2009).
245
para ns um dever uni-los sob a mesma bandeira, trat-los fraternalmente como dignos
companheiros de lutas442 (O Paiz, 30/5/1924, p. 7).
A resposta do PCB acusao polmica de Domingos Passos se enquadra na postura
geral dos dirigentes do Partido em toda a dcada de 1920, fundamentada no no reconhecimento
de uma especificidade racial na organizao dos trabalhadores brasileiros.
Em 1930, a mesma configurao que provocou a proletarizao do quadro dirigente e a
formulao de questes especificas para a populao negra parece ter se refletido na indicao
dos comunistas para a disputa eleitoral. Nas eleies realizadas naquele ano, o BOC disputou a
presidncia com o lder operrio negro Minervino de Oliveira443, tornando-se o primeiro
candidato comunista presidncia da Repblica (SANTOS, 2013). Dois anos antes de
concorrer presidncia, Minervino foi eleito intendente municipal no Distrito Federal
(correspondente ao cargo de vereador), junto com o tambm comunista Octvio Brando, na
legenda do BOC. Na eleio presidencial, os votos que Minervino recebeu foram inexpressivos
em relao ao percentual que alcanaram Jlio Prestes e Getlio Vargas que, mesmo derrotado
nas urnas, chegou ao poder com apoio do movimento poltico-militar, conhecido como
Revoluo de 30.
A experincia do BOC na cena poltica foi curta. Aps as eleies de 1930, o PCB
promoveu a desarticulao da frente poltico-eleitoral, valendo-se da justificativa de que este
acabaria por dissolver o PCB, especialmente porque o partido se encontrava na ilegalidade
poltica (SODR, 1984). O Partido Comunista somente voltou a concorrer em disputas
eleitorais aps o fim do Estado Novo, utilizando sua prpria legenda pela primeira vez em 1945.
442
A polmica teve incio com a publicao de dois artigos na seo intitulada No meio Operrio, do jornal O
Paiz, com a inteno de fundamentar as diferenas entre anarquismo, comunismo e sindicalismo-cooperativista
(O Paiz, 6/5/1924, p. 9; O Paiz, 14/5/1924, p. 7-8). A seo No meio Operrio ficou sob o comando do PCB entre
os anos de 1923 e 1924, quando o partido forjou uma aliana com a Confederao-Cooperativista Brasileira. A
coligao entre comunistas e a confederao, que tinha tendncia reformista, recebeu muitas crticas dos
anarquistas organizados no movimento sindical (PEIXOTO, 1994). Domingos Passos e outros lderes anarquistas
passaram a dcada de 1920 em embates com comunistas e sofrendo represso do Estado por sua atuao contra o
sindicalismo cooperativista (RAMOS e SAMIS, 2009; DULLES, 1977). Passos foi preso em julho de 1924 e
confinado na recm-inaugurada Colnia Agrcola de Clevelndia, no Amap. Quando retornou ao Rio de Janeiro,
no incio de 1927, voltou a abordar a polmica da existncia de preconceito de cor no PCB em um artigo publicado
no jornal Vanguarda. A resposta dos comunistas foi publicada em A Nao, de 15 de maro, com a transcrio
integral do texto assinado por Manoel Brana, publicado originalmente em 1924.
443
Minervino de Oliveira era operrio marmorista no Rio de Janeiro e lder operrio desde o comeo da dcada de
1910. Filiou-se ao PCB em 1920. Dirigiu o jornal A Classe Operria, rgo oficial do partido, em 1928. No ano
seguinte tornou-se secretrio-geral da recm-criada Confederao Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB) e
foi escolhido para disputar a presidncia, tendo como candidato a vice o ferrovirio Gasto Valentim Antunes.
Alm da disputa presidencial, o BOC concorreu a vagas no legislativo nos estados do Rio de Janeiro, So Paulo e
Rio Grande do Sul (ABREU e BELOCH, 2001; MAZZEO, 2014; BRANDO, 1978, p. 67).
246
444
Assim que recebeu Anistia do governo brasileiro, em abril de 1945, Prestes foi o principal orador em grandes
comcios organizados pelo PCB. Os comcios-monstro, como eram chamados na poca atraam milhares de
pessoas, os mais famosos foram realizados no estdio de So Janurio, no Rio de Janeiro, no estdio do Pacaembu,
em So Paulo, e no Parque 13 de maio, em Recife. Os discursos de Prestes e algumas de suas anlises podem ser
encontrados em: (VINHAS, 1982, p. 86-120; GIOVANETTI NETO, 1986, p. 44-47). Algumas imagens dos
comcios podem ser encontradas em: (REIS, 2014). Outro aspecto do PCB no perodo ps 1945 que comea a
receber mais ateno de estudos acadmicos a relao do partido no apoio e fomento de expresses da cultura
popular brasileira. A relao do PCB com escolas de samba no Rio de Janeiro so um bom exemplo das pesquisas
que vm sendo realizadas nessa rea, dentre as quais, destaco o livro de Valria Lima Guimares. O PCB cai no
samba: os comunistas e a cultura popular (1945-1950). Rio de Janeiro: Arquivo Pblico do Estado do Rio de
Janeiro, 2009.
445
Os nmeros precisos do percentual de votos recebidos por PSD, UDN, o PTB e PCB para o Senado foram
61,9%, 23,8%, 4,7% e 2,3%, respectivamente; e 52,7%, 26,9%, 7,6% e 4,8% para a Cmara dos Deputados.
248
Janeiro, So Paulo, Recife e Salvador. No cmputo oficial, Yedo Fiza recebeu quase 10% dos
votos para a presidncia e Luiz Carlos Prestes foi eleito senador, com mais de 500 mil votos,
em diferentes cidades do pas. Alm de Prestes, foram eleitos 14 deputados federais na legenda
do PCB: Gregrio Bezerra, Alcedo Coutinho, Agostinho Dias de Oliveira, por Pernambuco;
Carlos Marighella, pela Bahia; Claudino Jos da Silva e Alcides Rodrigues Sabena, pelo Rio
de Janeiro; Joo Amazonas, Joaquim Batista Neto e Maurcio Grabois pelo Distrito Federal;
Jorge Amado, Jos Maria Crispim, Osvaldo Pacheco da Silva, Milton Cayres de Brito446, por
So Paulo; e Ablio Fernandes pelo Rio Grande do Sul (VINHAS, 1982, p. 88).
Srgio Braga (1998), em uma anlise do perfil dos participantes da Assembleia
Constituinte, explicou que, entre os eleitos na legenda do PCB, mais da metade tinha como
ocupao atividades manuais. Esse fato ganha mais relevncia quando indicado que dos dez
deputados federais que declaram exercer profisses manuais, oito pertenciam ao Partido
Comunista447.
A maioria dos 338 parlamentares que compunham a Assembleia Constituinte atuava
como profissional liberal. Mdicos e advogados correspondiam a 15,7% e 55,3% dos deputados
e senadores da Constituinte, respectivamente. Dos 187 parlamentares diplomados em Direito,
apenas um pertencia bancada do PCB, Jorge Amado, e mesmo assim, no exercia a
profisso448. Os integrantes da bancada do PCB eram tambm aqueles com mdia de idade mais
jovem da Constituinte, a maior parte com menos de 40 anos. Alm disso, o Partido tinha a
menor porcentagem de parlamentares com curso universitrio, 62,5%.
Sete dos oito deputados federais do PCB que eram trabalhadores manuais desenvolviam
funes do trabalhador urbano nos portos, na construo civil, em empresas transporte e
metalurgia - meios onde o PCB procurou fundamentar sua influncia. A eleio deste
contingente foi considerada pelo partido como um feito histrico e o assunto era constantemente
abordado pelos seus rgos de imprensa. Dentre os eleitos um nome recebia especial ateno,
pois sua eleio foi considerada um feito ainda mais relevante: Claudino Jos da Silva era
446
Milton Cayres no conseguiu votos suficientes para se eleger por So Paulo, ficando com a primeira suplncia.
Contudo, uma deciso da direo do partido forou a renncia de seu companheiro de legenda, Mario Scott, e
ocorreu o remanejamento da vaga em favor do primeiro suplente (VINHAS, 1982, p. 91).
447
Braga (1998) denominou como profisses manuais aquelas que so socialmente qualificadas como "manuais"
e com baixo nvel de qualificao educacional formal (p.72). Seguem nomes e profisso dos outros sete deputados
federais registrados como trabalhadores manuais na legenda do PCB: Batista Neto, marinheiro; Agostinho de
Oliveira, ferrovirio e operrio mecnico; Gregrio Bezerra, campons; Ablio Fernandes, operrio metalrgico;
Alcides Sabena, operrio metalrgico e carpinteiro; Claudino da Silva, ferrovirio e carpinteiro; Jos Crispim,
So Paulo, pedreiro e alfaiate; Osvaldo Pacheco, So Paulo, estivador (BRAGA, 1998, p. 142).
448
Dos nove partidos que elegeram representantes para Assembleia Constituinte, somente PSP, PTB e PCB no
tinha maioria de parlamentares bacharis em Direito, os maiores percentuais estavam no PR (66,7%) e na UDN
(63%) (BRAGA, 1998).
249
ferrovirio e carpinteiro, liderana da Frente Sindical Operria do Rio de Janeiro, tratado por
seu partido como o nico deputado federal negro da Assembleia Constituinte449.
Jorge Amado (1977) em um texto clebre que escreveu em memria de seu conterrneo
baiano, Carlos Marighella, fez referncia a Claudino da Silva, com nfase para a sua condio
de nico negro entre os deputados em 1946:
Juntos [Jorge Amado e Carlos Marighella] escrevemos vrios discursos, lidos por
outros. Num deles, enorme, passamos em revista todos os problemas do pas.
Pronunciado com extrema dignidade por Claudino Jos da Silva, nico deputado
negro na Assembleia Constituinte de 1946, durou quatro horas. As palavras eram
pedras e raios; o tempo passava, o discurso prosseguia, eterno. Mesmo os mais
reacionrios ouviram em silncio, no tiveram coragem de abandonar a sala
(AMADO, 1977, p. 233).
De acordo com Magalhes (2012), Claudino no era o nico a receber ajuda na redao
de discursos, todos os componentes da bancada pecebista com intimidade escassa com as
letras tinham seus discursos redigidos por Marighella e Jorge Amado (MAGALHES, 2012,
449
Claudino Jos da Silva nasceu no municpio de Natividade do Carangola, localizado no extremo-norte do Rio
de Janeiro, em 23 de julho de 1902. Seus pais, Querino Jos Alfredo e Maximiana Maria da Glria, eram
lavradores. Claudino mudou-se para Niteri, capital do Estado do Rio de Janeiro, aos dezesseis anos, aps ficar
rfo e passou a trabalhar como carpinteiro (MEDEIROS, 2013, p. 29; O Momento, 7/12/1947, p.3).
250
p. 166). A situao lembrada por Jorge Amado corresponde ao primeiro discurso proferido por
Claudino na Assembleia Constituinte, em 13 de fevereiro de 1946. O texto foi lido durante uma
homenagem da Assembleia Nacional Constituintes aos combatentes das Foras
Expedicionrias Brasileiras, Foras Areas e da Marinha, que lutaram durante a Segunda
Guerra450.
O mesmo evento narrado por Jorge Amado foi descrito no jornal O Estado de So Paulo
de forma muito diversa. No trecho a seguir fica expresso o incmodo que a presena de
Claudino causava no ambiente da Assembleia Constituinte.
Um deputado comunista, sr. Claudino Jos da Silva, que leu mal o discurso que,
infelizmente, no foi escrito por ele. O orador ocupou a tribuna por um tempo
excessivo e lia imperturbavelmente, atrapalhava-se na leitura, cometia silabadas a
todo instante.
No perdoou a Assembleia nem uma vrgula, nem uma slaba. Ao discurso enorme,
com exceo do prprio orador, ningum resistiu, nem mesmo a claque comunista das
galerias, que no fim j dava evidentes sinais de cansao. Os oficiais de alta patente,
que se sentavam disciplinadamente nas tribunas, seguiram afinal o exemplo dos
constituintes, dando sua escapada para os corredores, a procura de ar e de algum
refresco.
O orador comunista, um autntico popular e crioulo, cumpriu o seu dever partidrio
at o fim, apesar dos tropeos na leitura, cujo texto era rebarbativo, mesmo para
letrados, tal o jargo em que estava escrito (O Estado de So Paulo, 14/02/1946, p.3).
curioso que Carlos Marighella no tenha passado pelos mesmos constrangimentos que
Claudino enfrentou, sendo ele um mulato que no escondia sua origem, filho de uma me negra
e pai italiano. Entretanto, diferente do lder ferrovirio, Marighella circulava no meio intelectual
da poca e trabalhava na redao de jornais, a maioria ligados ao Partido Comunista. Quando
foram eleitos deputados, Claudino e Marighella tinham militncia de mais de uma dcada no
Partido Comunista. O primeiro ingressou nas fileiras do Partido em 1928, na poca trabalhava
como carpinteiro e foi escolhido primeiro-secretrio da Liga Operria da Construo Civil de
Niteri. Em 1929, passou a trabalhar na Estrada de Ferro Leopoldina e se engajou na luta
operria daquele setor (MEDEIROS, 2013, p. 12 e 30). Marighella ingressou na Juventude
Comunista, em 1932, quando era estudante de engenharia da Escola Politcnica em Salvador
(NOVA e NVOA, 1999, p. 46).
O engajamento no PCB em tempos de ilegalidade do partido e de governo ditatorial foi
causa de perseguies e prises tanto para Marighella quanto para Claudino, que s tiveram
trgua com o fim do Estado Novo451. Os dois tambm compuseram o Comit Central do PCB,
450
O discurso se encontra na ntegra nos Anais da Assembleia Constituinte (BRASIL, 1946, p. 201-209, v. I).
451
Durante a Ditadura Vargas, Claudino da Silva foi preso por diversas vezes na dcada de 1930 e no incio dos
anos 40 nos locais onde foi designado para atuar em nome do PCB. Ficou recluso alguns meses em Recife (1931),
251
Joo Pessoa (1932), Belo Horizonte (1936 e 1939), e por dois anos no Distrito Federal (1940 -1942) (MEDEIROS,
2013, p. 21 e 30; BRAGA, 1998, p. 629).
452
A composio do Comit Central do PCB, em 1943, era a seguinte: Luiz Carlos Prestes (ainda preso foi
escolhido como secretrio-geral), Digenes Arruda Cmara, Pedro Pomar, Jos Medina Filho, Jorge Herlein,
Maurcio Grabois, Amarlio Vasconcelos, Francisco Gomes, Leivas Otero, Julio Cesar, Sergio Holmos, Lindolfo
Hill, Dinarco Reis, Jos Milito Soares, Armnnio Guedes, Jos Medina Azevedo, Milton Cayres Brito, Ivan
Ramos Ribeiro, Mrio Alves, Celso Cabral, Joo Amazonas, lvaro Ventura, Carlos Marighella (estava preso na
Ilha Grande), Claudino Jos da Silva, Ablio Fernandes, Agostinho Dias de Oliveira. Fonte: O Comit Central da
Conferncia da Mantiqueira. Disponvel em: Fundao Dinarco Reis (http://pcb.org.br/fdr).
453
Magalhes procurou demonstrar como Claudino era percebido por seus pares da Assembleia Constituinte:
Poucos ali sabiam que Claudino, deputado do estado do Rio de Janeiro, ganhara a vida como ferrovirio e
marceneiro, amargara priso e tortura e alcanara o Comit Nacional do seu partido. A reprter Yvonne Rego de
Miranda, f do brigadeiro Eduardo Gomes, tinha-o como pintor de paredes (MAGALHES, 2012, p. 127).
454
A quantidade das emendas apresentadas por parlamentar e a participao nas Comisses da Assembleia
Constituinte pode ser encontrada nos Anais da Constituinte (BRASIL, 1946) e no estudo de Srgio Braga (1998).
252
455
Tratei com mais detalhes da Conveno do Negro e da relao de ativistas negros com o senador Hamilton
Nogueira no terceiro captulo.
456
Sobre a poltica e o processo de construo da poltica de Unio Nacional do PCB, ver: PRESTES, Anita
Leocdia. Da insurreio armada (1935) unio nacional (1938-1945): a virada ttica na poltica do PCB. So
Paulo: Paz e Terra, 2001.
457
Discurso de Luiz Carlos Prestes proferido no plenrio da Assembleia Constituinte (BRASIL, 1946, p. 159,
v.19)
253
durante a Constituinte. A maior liderana do PCB, Luiz Carlos Prestes, chegou ao ponto de
desestimular movimentos grevistas dos trabalhadores, em nome da ordem e tranquilidade458
(PRESTES, 2010, p. 87; SANTANA, 2001, p. 44). Entretanto, a postura mais conciliadora no
impedia que os comunistas fizessem a defesa das questes que consideravam. Orientados por
uma viso etapista do desenvolvimento capitalista, pregavam o avano da democracia
burguesa no campo poltico e da emancipao nacional e da reforma agrria no campo
econmico459 (O Momento, 31/12/1945).
O texto lido por Claudino, em 13 de maio, um bom exemplo da poltica de Unio
Nacional. Ao mesmo tempo, reconhecia a luta negra pela abolio da escravido e condenava
o preconceito de cor, com base em um preceito democrtico pela no discriminao; e realava
a precariedade da situao social do trabalhador agrcola, mais de dois teros da populao do
Brasil, vive abandonada nos campos460. A reforma agrria, uma das principais propostas do
PCB na Constituinte, foi apresentada pelo senador Luiz Carlos Prestes no projeto de emenda n
3.258. O texto propunha que o Estado promovesse a desapropriao, para fins de reforma
agrria, das terras no aproveitadas situadas nas zonas de maior densidade demogrfica e/ou
beneficiadas por obras pblicas (BRAGA, 1998, p. 290)
Embora a proposta tenha sido rejeitada, demonstrava a preocupao do PCB com uma
questo que tinha ficado ausente da agenda poltica brasileira at aquele momento461. O
historiador Jos Murilo de Carvalho, em sua anlise sobre cidadania no Brasil, explicou que,
at a dcada de 1960, o Estado se eximiu de atuar na regulao das relaes de trabalho agrcola.
458
Apesar do discurso no PCB, comprometido com a Unidade Nacional e com a manuteno da ordem e
tranquilidade, no correto assumir que o movimento operrio sob a influncia do partido agiu como correia de
transmisso em apoio poltica adotada pelos comunistas. Alguns estudos nos ltimos anos destacam a atuao
de trabalhadores e sindicatos, nem sempre em acordo com os ditames da cpula partidria. Ver, por exemplo:
COSTA, Hlio da. Em busca da memria: comisso de fbrica, partido e sindicato no ps-guerra. So Paulo:
Editora Pgina Aberta Ltda, 1995; FORTES, Alexandre [et. al.] Na luta por direitos: leituras recentes em histria
social do trabalho. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1999; SANTANA, Marco Aurlio. Homens partidos:
comunistas e sindicatos no Brasil. So Paulo: Boitempo, 2001
459
Para uma anlise da ideia etapista na histria do PCB, ver: REZENDE, Claudinei Cssio. Suicdio
revolucionrio: a luta armada e a herana da quimrica revoluo por etapas. So Paulo: Cultura. Acadmica,
2010.
460
A reforma agrria foi proposta na emenda de n 3.258 (rejeitada), apresentada pelo senador Luiz Carlos Prestes:
facultando ao Estado a desapropriao, para fins de reforma agrria, das terras no aproveitadas situadas nas
zonas de maior densidade demogrfica e/ou beneficiadas por obras pblicas (BRAGA, 1998, p. 290). Segundo
Angelo Priori (2003) foi na dcada de 1940 que o PCB comeou a mostrar uma preocupao especfica com a
questo agrria no Brasil. Ainda de acordo com o autor O breve espao de tempo de legalidade, entre os anos de
1945 e 1947, possibilitou ao partido ampliar o debate acerca dos problemas da sociedade e inserir o tema do campo
entre suas preocupaes (PRIORI, 2003, p. 61)
461
No geral, as propostas do PCB no foram bem recebidas na Constituinte. A divergncia com os polticos que
chamavam de conservadores - fora opositora aos democratas, dos quais os comunistas compreendiam ser uma
frao - foi grande, a ponto da bancada comunista votar contra o projeto de Constituio, voto que foi vencido.
Prestes chegou a declarar que o voto do partido foi contrrio porque o projeto era uma negao do compromisso
que os parlamentares do PCB assumiram naquele trabalho (GIOVANETTI NETO, 1986, p. 122-127)
254
Hoje menos fcil, como at meio sculo ou menos atrs, pensar no negro como uma
massa homognea e indiferenciada, que em bloco se distinguia em tudo e por tudo do
estrato branco a ela superposto. Depois da Abolio, o funcionamento das instituies
republicanas e liberais, a urbanizao do negro, a crescente complexidade de uma
sociedade de base industrial em desenvolvimento criaram srias assimetrias e
profundas contradies na forma e no contedo da estrutura social dentro da qual
coexistem e convivem no Brasil pretos e brancos (COSTA PINTO, 1998 [1953], p.
236).
Sobre a libertao dos escravos, ocorrida em 1888, muitos autores tm falado e sob as mais variadas
formas. O mesmo ocorre com relao ao negro no nosso pas.
No meu entender, Srs. Constituintes, a Lei urea foi a resultante de uma luta na qual teve papel
decisivo o prprio negro.
J naquela poca havia a compreenso de que o mundo passava por uma transformao e o prprio
desenvolvimento da Inglaterra, com a consequente ampliao de seus mercados, no podia admitir
a mo de obra escrava, que constitua verdadeiro entrave colocao de suas prprias mercadorias.
Por ironia da sorte, hoje se comemora a redeno dos escravos na Assembleia Constituinte. A 13 de
maio de 1888, os escravos tiveram abertas as senzalas, mas a esses mesmos escravos no deram
terras, com as quais pudessem obter a libertao econmica.
Hoje, temos aqui reunida uma Assembleia Constituinte, aps a luta titnica que se travou pela
libertao do mundo. Bem poderia ela concorrer, e de maneira decisiva, para completar, no Brasil,
a libertao dos escravos. Agora no so apenas os negros cativos, mas toda uma populao de
trabalhadores agrrios que vive em situao muito pior que a dos escravos.
que os escravos, Srs. Representantes, ao menos tinham a senzala para morar e, como remdio, o
purgante de azeite de mamona ou carrapateira, como conhecido no norte, alm de uma
indumentria tosca e a criao de seus filhos. Em nossos dias, toda essa imensa massa de
trabalhadores, mais de dois teros da populao do Brasil, vive abandonada nos campos, mourejando
de sola a sol e abraos com toda sorte de enfermidade.
Senhores Constituintes, no texto da Carta que estamos elaborando, onde se trata dos direitos dos
cidados, bem que poderamos incluir os homens de cr. E isso porque, conforme j se acentuou
nesta tribuna, o negro no Brasil vive acesso, na carreira militar, nos postos mais elevados. No
obstante, a Constituio a primeira a assegurar a todos o regime de igualdade democrtica.
O preconceito de cr ainda predomina no Brasil, e, por desgraa nossa, j vem atingindo o prprio
negro, o que poder redundar num complexo de inferioridade.
A Assembleia Nacional Constituinte, numa homenagem verdadeiramente significativa data que
hoje se comemora, poderia fazer inserir em nossa Carta Magna um preceito democrtico, fruto da
vontade de todos os partidos aqui representados, sem distino de ideologia poltica, segundo o qual,
a todos, brancos ou negros, seria assegurada a mais ampla participao na vida nacional.
Art. 159:
Acrescente-se:
"Fica assegurado, no esprito da lei e sua redao, sem quaisquer outras exigncias, o
ingresso de qualquer cidado, sem distino de cr, nas carreiras, Diplomtica, Militar
(Escola Naval, de Guerra e Aeronutica) e Civil.
[...]
462
No texto final da Constituio, o artigo 159 recebeu a numerao 141.
463
A emenda foi assinada por: Sala das Sesses, 17 de junho de 1946. - Manuel Bencio Fontenelle (PTB/DF) -
Jos Borba (UDN/CE) - Aureliano Leite (UDN/SP) - Plnio Barreto (UDN/SP) - Antenor Boga (UDN/MA). O
texto integral com a emenda e a justificao est no Anexo B.3.
256
Art. Onde convier, de preferncia depois do art. 159: Toda restrio direta ou indireta
dos direitos contidos nesta Constituio ou, inversamente, o estabelecimento de
privilgios diretos ou indiretos em razo de raa, religio, credo filosfico ou poltico,
assim como tda propaganda de exclusivismo racial ou de luta religiosa sero punidos
por lei.
Justificao
Sala das Sesses, 24 de junho de 1946. - Claudino Jos da Silva (PCB/RJ) - Alcedo
Coutinho (PCB/PE) - Batista Neto (PCB/DF) - Gregrio Bezerra (PCB/PE)
Maurcio Grabois (PCB/DF) - Alcides Sabena (PCB/RJ) - Trifino Correia (PCB/RS)
- Carlos Marighella (PCB/BA).
(BRASIL, 1946, p. 215, vol. XVI)
464
O texto da emenda e a justificao foram transcritos integralmente no Anexo B.4.
257
V. Ex tem toda razo, o preceito deve ficar assegurado no texto, porque quando as
pessoas de cr procuram ingressar em algumas escolas superiores, no se lhes d esse
direito e eles no tm a quem recorrer, por falta de dispositivo expresso a respeito na
Constituio. Entretanto, acho que a emenda de V. Ex restritiva no que concerne
aos demais problemas sociais e de classe (BRASIL, 1946, p. 411, vol. XXII).
Depois dos debates, com diversos apartes, a emenda constitucional n 1.089 foi votada
e rejeitada pela maioria dos parlamentares presentes no plenrio da Assembleia. Pouco mais de
um ms depois foram finalizados os trabalhos de redao e votao do texto da Constituio,
promulgada em 18 de setembro de 1946467.
Nos meses seguintes promulgao da Constituio, os partidos passaram a se organizar
para as eleies estaduais que aconteceriam em janeiro de 1947. Assim como outros polticos,
os parlamentares eleitos na legenda PCB passaram a circular pelo pas, promovendo as
campanhas dos candidatos para as vagas no legislativo estadual.
Em alguns estados, como a Bahia, o sucesso eleitoral do PCB dependeria de uma
campanha que alcanasse as massas que ainda no tinham aderido proposta comunista. Isso
porque, apesar do contexto favorvel ao crescimento dos votos no partido, at aquele momento,
465
Os parlamentares que fizeram apartes contrrios emenda foram: Jurandir Pires (UDN/DF), Aureliano Leite
(UDN/SP), Eduardo Duvivier (PSD/RJ), Nestor Duarte (UDN/BA), Mario Masago (UDN/SP). Eles defendiam o
argumento que o artigo da constituio j garantia o direito de todos os cidados, sem a necessidade de discriminar
nenhum grupo especfico. Os que fizeram apartes favorveis foram: Aliomar Baleeiro (UDN/BA), Segadas Viana
(PTB/DF) e Claudino da Silva (PCB/RJ). O argumento geral consistia em afirmar que a legislao que pregava o
direito universal no garantia a efetivao do direito de todos na prtica.
466
Abdias do Nascimento incluiu em suas memrias um relato de que Claudino da Silva teria se posicionado contra
a proposta defendida por Hamilton Nogueira, que foi muito repercutido, mas que parece no condizer com os
acontecimentos. Como ficou registrado na ata da sesso, Claudino declarou ser favorvel proposta, mesmo com
algumas ressalvas. Abdias, no entanto, reiterou a narrativa construda sobre o episdio em repetidas ocasies
(NASCIMENTO e NASCIMENTO, 1997; NASCIMENTO e NASCIMENTO, 2000; SEMOG, 2006;
NASCIMENTO, 1976). Em uma das publicaes, a biografia escrita em quatro mos como le Semog, Abdias
afirmou: na Constituinte de 1946, o senador Hamilton Nogueira, tomando por base o Manifesto Nao
Brasileira, encaminhou projeto Constituinte, criminalizando a discriminao racial, que, se aprovado, integraria
o texto constitucional de 1946. A proposta do senador Hamilton Nogueira foi detonada, de forma veemente, pelo
nico representante negro na Assembleia Constituinte, o deputado federal pelo Partido Comunista, Claudino Jos
da Silva. Este, sob a orientao do Partido, afirmou que uma proposta contra o racismo restringiria o sentido mais
amplo da democracia; e recebeu, evidentemente, apoio diversos dos demais parlamentares (SEMOG, 2006, p.
150)
467
No texto final da Constituio de 1946 a meno a preconceito de raa foi feita no pargrafo 5 do artigo
141 (antigo 159): 5 - livre a manifestao do pensamento, sem que dependa de censura, salvo quanto a
espetculos e diverses pblicas, respondendo cada um, nos casos e na forma que a lei preceituar pelos abusos que
cometer. No permitido o anonimato. assegurado o direito de resposta. A publicao de livros e peridicos no
depender de licena do Poder Pblico. No ser, porm, tolerada propaganda de guerra, de processos violentos
para subverter a ordem poltica e social, ou de preconceitos de raa ou de classe (BRASIL, 1946).
258
468
Esse argumento era utilizado, inclusive, pelos dirigentes do PCB na Bahia, a exemplo de Joo Falco, um dos
lderes do partido no ps-Estado Novo, em uma entrevista concedida a Sonia Serra, Ubiratan de Arajo, Mirian
Freitas e Petilda Vasques, em 1985, citada em Serra (1987) .
469
Uma mostra da importncia da seo baiana do PCB foi a eleio de comunistas baianos na legenda do PCB
em outros estados, mostra do papel que tiveram na organizao do partido em nvel nacional. Dos 14 eleitos: Jorge
Amado e Milton Cayres de Brito, eleitos eram So Paulo, eram baianos; Maurcio Grabois, eleito no Distrito
Federal era nascido em Salvador, capital da Bahia. Outra importante liderana do PCB, o nmero dois do partido,
o alagoano Digenes Arruda, constitura-se liderana do partido durante passagem pela Bahia no Estado Novo
(NEGRO, 2012).
470
A participao de Claudino da Silva na campanha eleitoral do PCB na Bahia foi noticiada no jornal O Momento:
Especialmente para participar do grande comcio da campanha acompanhar o dirigente nacional Giocondo Dias
o deputado federal Claudino Jos da Silva que falar ao povo baiano na Praa da S. O dirigente nacional do PCB
e o deputado federal Claudino Jos da Silva foi eleito pelo proletariado e povo do Estado do Rio (O Momento.
13/12/1936, p.1).
259
A apresentao ao povo baiano dos candidatos da Chapa popular, lanada pelo Comit
Estadual do PCB, para as eleies de 19 de janeiro, constituiu uma verdadeira
afirmao do apoio que tm os candidatos populares no seio de todas as camadas
sociais.
Tomou parte na grande festa do povo, no dia 15 ltimo, uma grande massa calculada
em 25 mil pessoas, que aplaudiu entusiasticamente os seus legtimos candidatos,
mostrando a sua deciso de esmagar, pacificamente, os reacionrios e restos fascistas
que ainda tentam sobreviver em nossa terra (O Momento, 17/11/1946).
Como j tratei anteriormente, o sucesso eleitoral era naquele momento um fator muito
relevante para a consolidao do PCB na cena poltica. Para alcanar tal intento, os comunistas
baianos procuravam intensificar a organizao popular e sindical, em especial em Salvador e
nos municpios do recncavo baiano. O fato de o PCB focar suas atenes nas capitais e cidades
vizinhas era uma estratgia para atrair os principais afetados pelo descompasso entre
crescimento urbano-industrial, ainda que lento, e melhoria das condies de vida da populao.
O discurso comunista encontrava eco nas demandas do movimento operrio e, no caso de
Salvador, nos milhares de desempregados ou subempregados migrantes, que chegavam cidade
cada vez em maior nmero.
A dcada de 1940 na Bahia foi marcada por uma profunda crise, que se estendia desde
os anos 1930, quando teve incio um conjunto de modificaes da poltica econmica
empreendidas pelo governo Vargas, que dificultou a insero dos setores produtivos do
estado472 (GUIMARES, 1982, p. 40-41).
471
O Momento, 17/11/1946, p.1; 19/12/1946, p.1.
472
Guimares explica que, mesmo em decadncia desde 1850, a economia baiana manteve duas reas que
permitiram a manuteno da classe dominante: agricultura e o comrcio exterior. Contudo, a partir de 1930 outros
ramos de atividades e reas de investimento passariam a ser privilegiados, o que serviria para desmantelar ainda
mais as bases em que se fundava a economia baiana, que somente voltaria a se rearticular com a ascenso de uma
nova classe burguesa, alicerada em um discurso de regionalismo econmico (GUIMARES, 1982).
260
473
Nas palavras de um dos lderes do PCB na Bahia, Giocondo Dias: conclamamos a todos os democratas e
patriotas, pertencentes ou no aos partidos polticos, a virem juntamente com o povo e na base do seu apoio, afim
de trabalharmos conjuntamente pela realizao de eleies livres e honestas. Mesmo porque necessrio que as
foras polticas das classes dominantes, o PSD e a UDN, at o PTB, compreendam que nos tempos em que vivemos
j no mais possvel fazer poltica sem ouvir o povo e sem levar em conta a sua vontade de encontrar uma soluo
pacfica e democrtica para a situao desesperadora em que forado a viver. preciso que se compreenda que
somente com a participao efetiva das massas populares ser possvel a resoluo dos problemas que a se
encontram h muito tempo, sem soluo, e que colocam a Bahia em situao de inferioridade em face aos demais
Estados (O Momento, 10/11/1946, p.8).
474
O Momento funcionou sob a direo de Almir Matos, J. Quintino de Carvalho, Ariovaldo Matos e Aristeu
Nogueira. Entre os colaboradores do peridico figuram: Joo Falco, um dos principais lderes do PCB na Bahia,
os irmos Jos e Jacob Gorender, o historiador Lus Henrique Dias Tavares e Jorge Amado.
475
O sistema de imprensa do PCB contava inclusive com sua prpria agncia de notcias, a InterPress
(MAGALHES, 2012). Alm de O Momento, outros jornais ligados ao PCB criados no perodo e que conseguiram
boa circulao foram: A Classe Operria (1946) e Tribuna Popular (1945), no Rio de Janeiro; Hoje (1945), em
So Paulo; Folha do Povo (1945), em Pernambuco; e Tribuna Gacha (1945), no Rio Grande do Sul (MORAES,
1994, p. 65). Uma lista dos jornais surgidos no perodo, o local e os responsveis se encontra disponvel no site da
Fundao Dinarco Reis: http://pcb.org.br/fdr/index.php?option=com_content&view=article&id=202:os-jornais-
comunistas-e-seus-responsaveis&catid=1:historia-do-pcb
261
no Brasil no perodo em que gozava de forte apelo popular. O Partido Comunista compreendia
sua imprensa como um instrumento para que suas organizaes de base unificassem o momento
de luta do operrio com a ideologia do proletariado.
Dessa forma, os comunistas reunidos em O Momento procuravam fazer com que o jornal
cumprisse a funo de mobilizador das massas, voltando-se para as demandas populares e
sindicais, usando geralmente o tom conciliatrio prprio do PCB nos primeiros anos aps a
abertura democrtica de 1945476.
Alm do jornal, outra estratgia adotada pelo PCB para aproximao com os operrios
era a disputa por representao nos sindicatos, atraindo lideranas j existentes ou
impulsionando o aparecimento de novos lderes que se vinculassem ao comunismo. Entre o
operariado baiano, os dois partidos polticos que mais atraam a ateno das classes
trabalhadoras eram o PTB e o PCB. O Partido Trabalhista Brasileiro se beneficiava de ter
nascido sob a tutela de Getlio Vargas, e desfrutava dos lucros de sua poltica trabalhista. O
PCB pleiteava a representao de trabalhadores e disputava o controle de sindicatos desde a sua
fundao. Na legalidade, a disputa pela liderana do movimento convivia com um discurso de
unidade sindical, que tendia a facilitar alianas entre trabalhistas e comunistas477.
A disputa entre PCB e PTB por predominncia na influncia junto aos crculos operrios
baianos no se repetia na poltica. Os dois partidos com maior fora eleitoral no estado eram
UND e PSD, formados por elites com perfil quase similar, a exemplo de coronis,
fazendeiros, polticos de careira. A diferena entre os dois partidos foi a formao de um grupo
de intelectuais na UDN, interessados em construir um discurso particular sobre problemas
que afetavam o campo poltico e o campo econmico, dedicados busca de uma explicao
para o subdesenvolvimento do setor industrial do estado478 (GUIMARES, 1982, p. 102 e 109).
O desenvolvimento das foras produtivas na Bahia fez com que, na dcada de 1940, a
estrutura de desenvolvimento econmico no estado ainda fosse marcadamente agrria, apesar
do crescimento modesto de um parque industrial479. Ainda assim, o operariado baiano tinha
relevncia poltica e social, como explica Jos Raimundo Fontes:
476
O Momento, assim como o PCB no perodo ps 1945, vivenciou diferentes fases. Na fase inicial - que
corresponde ao maior perodo sob o escrutnio de minha anlise -, de sua fundao (1945) at maio de 1947, o
jornal era um espao de unio de intelectuais antifascistas e de esquerda, no necessariamente comunistas. A unio
desses intelectuais no perodo girava em torno da defesa dos trabalhadores e da democracia.
477
Sobre alianas forjadas entre PCB e PTB no ps-Estado Novo, ver Santana (2007).
478
Nas palavras de Guimaraes: um discurso... baseando-se nos conquistados direitos de uma constituio
federalista, defendia as garantias para que tambm a burguesia baiana conseguisse atingir o estgio industrial
(GUIMARES, 1982, p. 109)
479
Na dcada de 1940, a populao ocupada em trabalhos no agrcolas correspondia a pouco mais de 30% dos
empregados, dos quais quase 80% eram autnomos. A parcela da populao que experimentava a condio
262
operria era o principal alvo das correntes polticas pelo peso social, eleitoral e poltico-ideolgico que tinham na
sociedade baiana (FONTES, 1999).
480
Reis (2000) comparou a situao da Bahia com a do Rio de Janeiro, que, nas ltimas dcadas antes da Abolio,
tambm tinha um contingente significativo de escravos e libertos realizando trabalhos urbanos a ganho, e concluiu
que: Ao contrrio do que se passou no Rio de Janeiro, onde imigrantes europeus substituiriam, ao longo da
segunda metade do sculo XIX, urna parte dos escravos de rua africanos e afro-brasileiros - embora muito menos
na zona porturia -, na Bahia, dessa transio simplesmente no participaram imigrantes europeus. No encontrei
sequer um branco estrangeiro registrado como ganhador. Aqui os ganhadores africanos saiam paulatinamente para
dar lugar aos negros e mestios brasileiros, principalmente a gente de fora de Salvador, mas da provncia da Bahia
(REIS, 2000, p. 218). Sobre como o processo se deu no Rio de Janeiro, ver: VELASCO E CRUZ, Maria C.
Tradies negras na formao de um sindicato: sociedade de resistncia dos trabalhadores em trapiche e caf, Rio
de Janeiro, 1905-1930. Afro-sia, v. 24, 2000; _________. Da tutela ao contrato: 'homens de cor' brasileiros e o
movimento operrio carioca no ps-abolio, Topoi, vol. 11, n. 20, 2010.
263
Tabela 1- Lista dos "candidatos operrios" do PCB baiano nas eleies de janeiro de 1947
experincia em suas reas de trabalho. Durante a campanha, o carter popular desses candidatos
era utilizado como confirmao de que eles exerceriam melhor a representao poltica, que
eram os mais capazes e dispostos a solucionar os problemas que enfrentava a populao mais
pobre de Salvador (O Momento, 15/01/1947).
Frequentemente, O Momento ouvia colegas de trabalho dos candidatos operrios. Um
deles teria afirmado o seguinte sobre o candidato Dermeval Arajo481: o nico que pode
defender os nossos direitos na Cmara, pois um trabalhador, como ns e merece, pelo seu
passado, a nossa confiana. Votaremos em massa no seu nome. Uma tecel, tambm
companheira de trabalho do candidato, completou: Todos os nossos graves problemas s
podero ser satisfatoriamente resolvidos na Cmara se l estiverem verdadeiros representantes
dos trabalhadores, homens que tenham vivido com os operrios, sentindo as suas necessidades
(O Momento, 02/12/1946)482.
Uma das alegaes mais presentes nas pginas de O Momento para justificar a escolha
dos candidatos operrios era o fato de eles sentirem na prpria carne os problemas que
atingiam a populao baiana. O apelo vivncia que se revelava nas dores na carne foi
utilizado, por exemplo, para descrever a condio do candidato Jaime Maciel, em uma das
vrias vezes que aparece em O Momento durante a campanha eleitoral. Maciel tinha 33 anos no
perodo em que se candidatou e era estivador, mas j havia trabalhado como condutor de
bondes, soldado do exrcito e guarda civil. Sua trajetria de vida se confunde com a de muitos
moradores de Salvador naquele momento: vindos do interior, de uma existncia
predominantemente rural, migraram para a capital e ali se estabeleceram, na maioria das vezes
em situaes muito precrias483.
481
Sobre a trajetria de Dermeval Arajo foi publicado o seguinte texto durante a campanha: O operrio tecelo
Dermeval Arajo Silva nasceu em 1923. Comeou a estudar muito cedo, aos quatro anos, terminando com nove
anos o curso primrio... Aos 15 anos tentou ingressar na Escola de Marinheiros, porm no foi aprovado na
inspeo de sade. Aps ter trabalhado em vrias profisses, empregou-se como tecelo na Fbrica da Boa Viagem
da Cia. Emprio Industrial do Norte... Ingressou no Partido Comunista do Brasil em 1945, destacando-se como
um militante ativo e um dirigente operrio acatado pelos seus companheiros de trabalho (O Momento, 02/12/1946,
p.2).
482
Apesar de considerar os depoimentos que aparecem no jornal O Momento indcios importantes para anlise,
tambm compreendo que podem conduzir a um olhar enviesado da campanha eleitoral, j que o jornal tinha clara
tendncia favorvel aos candidatos e possua o poder de edio do material que chegava a redao por meio de
seus reprteres. Dessa forma, apresento os depoimentos como mais um recurso discursivo da campanha e menos
como uma indicao do apoio efetivo que os candidatos tinham de seus colegas de trabalho e da populao baiana
em geral.
483
O crescimento populacional na cidade de Salvador foi muito acentuado nesse perodo. Os dados dos censos
demogrficos do IBGE indicam um aumento de cerca de 7 mil habitantes na cidade entre os anos de 1920 a 1940.
J entre 1940 e 1950, o crescimento foi de mais de 100 mil habitantes, passando de 290 mil para 417 mil.
265
484
O Corta-Brao foi formado em 1946, tendo sido legalizado para moradia depois da desapropriao assinada
pelo ento governador Otvio Mangabeira, em 1947. No ano passado entre a ocupao e a desapropriao, os
moradores do Corta-Brao foram alvo de aes judiciais e policiais, tendo sido o jornal O Momento um dos
principais porta-vozes em favor da permanncia da invaso. Sobre o assunto, ver: SOUZA, Angela Maria
Gordilho. Invases, intervenes e perspectivas: o caso da cidade do Salvador. Caderno CEAS, n. 136, dez. 1991.
O jornalista Ariovaldo Matos, que trabalhava em O Momento no perodo do surgimento do Corta-Brao publicou
um romance-reportagem
266
Joo dos Passos, um dos candidatos operrios, residia na Liberdade, o mesmo bairro
do Corta Brao. Lder sindical e representante dos funcionrios da Cia Linha Circular, empresa
de transportes urbanos na cidade, Passos se destacava pelos discursos incisivos, com denncias
de irregularidades da empresa no cuidado com a segurana e demais condies de trabalho de
seus funcionrios486. Em O Momento, sua candidatura se tornou smbolo da luta contra o
imperialismo, quando a Cia. Linha Circular, a manhosa raposa de Wall Street, resolveu
instaurar um inqurito administrativo contra Passos, chegando a suspend-lo de suas funes,
durante a campanha eleitoral487.
A situao de Joo de Passos um exemplo da fragilidade da situao dos operrios
ligados ao PCB. Sonia Serra, estudando o caso baiano, explicou que o peso da represso e da
opresso social era mais severo para comunistas operrios, mesmo em perodos de maior
calmaria poltica488 (SERRA, 1987, p. 26).
Depois dos conflitos com a Cia. Linha Circular, em ordem de importncia, a campanha
de Passos enfatizava a necessidade de unio dos operrios no combate explorao das grandes
485
A posio favorvel ao PCB no era, contudo, uma unanimidade no Corta-Brao. Sena Jr. (2007) acompanhou
a cobertura do jornal A Tarde sobre o Corta-Brao em 1947 e encontrou matrias do jornal de queixas de moradores
contra os comunistas. Vale lembrar que o jornal A Tarde foi um dos maiores envolvidos na campanha
anticomunista e cassao do registro do PCB na Bahia (SENA JR., 2007, p. 398-399).
486
A Companhia Linha Circular era uma subsidiria da Eletric Bond and Share Company, do grupo tambm fazia
parte a Companhia de Energia Eltrica da Bahia. As duas empresas juntas controlavam o fornecimento de luz
eltrica, o sistema de telefones, os bondes, o Elevador Lacerda e o Plano Inclinado, que faziam a ligao entre a
parte alta e a parte baixa da cidade do Salvador. A Cia Circular envolveu-se em um episdio que marcou o incio
da dcada de 1930 em Salvador, o Quebra Bondes, que ocorreu em 4 de outubro. Sobre o assunto, ver: SAMPAIO,
Consuelo Novais. "Movimentos Sociais na Bahia de 1930: Condies de Vida do Operariado". Universitas (29),
jan./abr. 1992.
487
Cf. Toda fria da Circular contra Joo dos Passos. O Momento, 23/11/1947, p.1; Minha candidatura significa
a unidade de todos os trabalhadores da Circular. O Momento, 24/11/1946, p.1; A Circular no quer que um
operrio seu seja deputado. O Momento, 28/11/1946, p.1.
488
Diferente da situao dos militantes operrios do PCB, outros militantes do partido, oriundos das classes mdias
e elites econmicas, chegavam a ter uma convivncia cordial com os grupos dirigentes na Bahia. De acordo com
Falcn: Muitas aes da esquerda, ento, no apenas eram toleradas, como financiadas pela elite baiana.
Facilitava a cumplicidade, laos familiares, de amizade, de apreo e de admirao (FALCN, 2007, p. 100).
267
empresas, que no deveria mais se limitar ao ambiente de trabalho. O prximo passo era pontuar
que um espao propcio para a reivindicao por melhorias nas condies de trabalho era a
poltica. Um dos colegas de trabalho de Joo dos Passos estava convicto que a soluo para o
triunfo dos trabalhadores sobre a Cia. Circular era a eleio do operrio ao cargo de deputado
estadual. Disse: a minha resposta ser dada no dia 19 de janeiro. Eu votarei em Joo dos
Passos, porque sei que na Cmara ele continuar a luta pelos direitos dos trabalhadores489.
A leitura de O Momento permite observar que boa parte dos militantes operrios do PCB
tinha ingressado no partido no processo de democratizao vivido a partir de 1945. Mas, alguns
tinham uma conexo mais antiga com o Partido. Antnio Rosa, lder sindical dos padeiros,
participava do Partido Comunista desde 1925, perodo em que, segundo O Momento, ainda
despertava a luta organizada do proletariado em Salvador. Em 1935, Rosa passou a integrar
a Aliana Nacional Libertadora e ocupou o cargo de secretrio do ncleo que congregava os
trabalhadores de panificao no perodo. Rosa foi bastante perseguido pela polcia, preso e ficou
escondido por vrios anos durante o Estado Novo, principalmente por sua atuao na
organizao de greves por melhoria de salrios e condies de trabalho. Apesar das dificuldades
que enfrentou por conta da represso, o candidato se manteve no PCB, lutou pela legalidade do
partido e voltou a ser uma das lideranas de sua ala sindical.
Os militantes operrios do PCB foram importantes na organizao do movimento
sindical na Bahia, no ps-1945. Apostando no discurso de unidade sindical, a articulao entre
os diferentes sindicatos era crucial, o que poderia render ao Partido a influncia em vrias
categorias de trabalhadores. No era uma tarefa fcil para os comunistas, pois naquele momento
os trabalhistas encontravam mais facilidades na insero junto ao operariado, e se beneficiavam
do corporativismo da estruturava da representao sindical. Uma das maneiras de ganhar
visibilidade era a disputa pelo protagonismo. Assim, junto com outras lideranas, os comunistas
organizaram o II Congresso Sindical dos Trabalhadores Baianos, realizado em Salvador, no
incio de 1945, que tinha principal intuito de unificar as pautas de reivindicaes dos
trabalhadores (SENA JR., 2007, p. 278).
Os comunistas lograram xito nas propostas expostas durante o congresso e
conseguiram criar o Movimento de Unificao dos Trabalhadores (MUT)490. As lideranas que
ingressaram no PCB no processo de estabelecimento das entidades operrias ganharam
489
Baslio Bispo dos Santos, trabalhador da Cia. Circular, em O Momento, 28/11/1946.
490
Outra entidade fundada sob influncia dos comunistas foi a Confederao dos Trabalhadores do Brasil (CTB),
surgida em 1946, depois de desentendimentos com grupos ligados aos PTB e aos chamados ministerialistas
(SANTANA, 2001, p. 65).
268
rapidamente posies de destaque no interior do Partido, muitos deles formaram o grupo dos
candidatos operrios na campanha para as eleies de janeiro de 1947, a exemplo do martimo
Joo Cardoso de Souza, secretrio geral e presidente do MUT em 1945, mesmo ano em que
ingressou no Partido Comunista.
Outro candidato operrio, Cosme Ferreira, trabalhador das Docas no porto de
Salvador, indica o conflito que a unidade sindical criava com foras denominadas por ele de a
reao491. Apesar de a unidade ser crucial para alcanar as demandas do operariado, manter a
ordem e a tranquilidade tambm se fazia necessrio. Na avaliao de Ferreira sobra, ento, a
alternativa poltica como via de resoluo dos problemas.
O Congresso Sindical de 1945 foi um dos espaos para onde antigos militantes operrios
conseguiram atrair lideranas j constitudas ou em ascenso. Foi o caso de Jaime Maciel, que
participou como delegado da Estiva no Congresso e, no mesmo ano, ingressou no Partido
Comunista, de onde foi promovido para o Comit Estadual do PCB, para depois ocupar o cargo
de Secretrio Sindical no estado da Bahia. Trajetrias de insero muito parecidas com a de
Jaime Maciel foram vivenciadas por Cosme Ferreira e Joo dos Passos. Com destaque para
Ferreira, que tinha tradio familiar na luta operria, pois era filho do lder porturio Jos
Marcelino Ferreira Xexu492.
Nas eleies de janeiro de 1947, era comum aos candidatos operrios terem tido
atuao em organizaes sindicais antes do ingresso no partido. Entretanto, o fato de serem
lideranas reconhecidas pela militncia em suas reas de atuao profissional, no era certeza
de que angariariam os votos suficientes para serem vitoriosos. Um fator importante a ser
considerado a desvantagem que tinham por terem um mbito de influncia limitado quase que
491
O contedo dado ao termo a reao para denominar o grupo opositor aos interesses dos trabalhadores, variava
na medida em que diferentes atores falavam sobre o assunto. Ora estes eram caracterizados como restos fascistas,
ora eram os inimigos da democracia. A ideia que permanecia era a de que seriam uma fora da qual os
trabalhadores e o povo em geral deveriam se defender.
492
Cf. O Momento, 21/11/1946, p.1.
269
exclusivamente cidade de Salvador e a poucas cidades vizinhas, onde havia algum tipo de
desenvolvimento industrial ou atuao sindical.
Apesar de no ter encontrado nas fontes um documento de comprovao, a leitura de O
Momento d indcios que o Partido optou por investir nas campanhas daqueles candidatos que
tinham mais chances de serem eleitos. Quando se aproximava o dia das eleies, por exemplo,
dois candidatos passaram a aparecer de forma mais destacada: Jaime Maciel e Joo dos Passos.
Ao final do pleito, os dois ficaram entre os mais votados do PCB e um deles, Jaime Maciel,
alcanou votao suficiente para ocupar uma vaga na Assembleia Legislativa da Bahia
(SERRA, 1987, p. 56; CHILCOTE, 1982, p. 319).
Ainda que no seu conjunto, os candidatos do PCB tivessem perfil muito distinto, na
campanha foi construdo um discurso unificador em torno da ideia de estes serem homens e
mulheres do povo. Independente da profisso e posio social operrios, jornalistas,
advogados, mdicos, engenheiros, professores, fazendeiros tinham em comum em suas
trajetrias o fato de serem democratas e lutadores das causas dos trabalhadores, contra o grande
inimigo o imperialismo493. Alm disso, era enfatizado o compromisso que tinham, nica e
493
Alm dos 12 candidatos operrios, os outros indicados do PCB para a Assembleia Legislativa da Bahia foram:
Giocondo Dias, comercirio, ex-cabo do Exrcito, Secretrio poltico do Comit Estadual (CE) e membro efetivo
do Comits Nacional do PCB; Eusnio Lavigne, cacauicultor e ex-prefeito de Ilhus; Mrio Alves, jornalista,
antigo lder universitrio e Secretrio de Educao e Propaganda do CE do PCB; J. C. Ferreira Gomes, professor
catedrtico da Escola de Farmcia da Bahia e Conselheiro da Universidade da Bahia; Egberto Leite, advogado e
Secretrio de Massas e Eleitoral do CE do PCB; Juvencio Guedes, dentista em Santo Amaro, empregado da Usina
S. Carlos e Secretrio Poltico do Comit Municipal (CM) do PCB; Nelson Schaun, professor secundrio,
Secretrio Poltico do CM de Ilhus, suplente do CE do PCB e antigo militante comunista no sul do estado; Maria
Lopes de Melo, professora primria no interior do estado; Vale Cabral, agrnomo e funcionrio pblico estadual,
suplente do CE do PCB; Jacinta Passos Amado, escritora e militante comunista; Joo Falco, diretor de O Momento
e membro efetivo do CE do PCB; Dagmar Guedes, mdica em Maragogipe e secretria Poltica do CM do PCB;
270
exclusivamente com o povo e, por isso mesmo, os nicos com independncia para lutar com
deciso e coragem contra os inimigos do povo e da ptria, contra os exploradores gananciosos
[...] contra todos e tudo que concorra para conservar o pas no atraso. (O Momento,
15/01/1947)
Com a aproximao do pleito, alguns nomes foram ganhando mais destaque; o que era
refletido na constncia com que aparecem no jornal O Momento e na presena diria em
comcios em Salvador e no interior do Estado. O PCB fazia inmeros comcios para promover
seus candidatos e reunia multides, principalmente quando contavam com a presena de
lideranas ilustres como Luiz Carlos Prestes.
Jaime Maciel era um dos mais presentes nos comcios eleitorais494. Segundo as
lembranas do historiador baiano Cid Teixeira, um refro que marcou aquela campanha
eleitoral foi o seguinte:
O que que o povo quer?
Jaime Maciel.
Contra a carestia,
Giocondo Dias,
Luiz Carlos Prestes:
Leite Carne Po! 495
Posso falar com segurana: a Chapa popular ser vitoriosa aqui. O candidato Jaime
Maciel ter enorme votao entre os moradores de Amaralina, Rio Vermelho, Fazenda
Garcia, Campo Santo, Rua da Lama, Teixeira Mendes e todos os bairros
compreendidos pelo nosso distrital. O povo desses bairros vive cheio de problemas.
No tem nada, o menor conforto lhe falta [...] ns sabemos quem mora nesses bairros:
homens operrios submetidos a salrios de forme, que no chegam nem para fazer
Francisco Sampaio Neto, fazendeiro e criador em Rui Barbosa, militante do PCB; Aristeu Nogueira, membro
efetivo do Comit Estadual do PCB; Aurelio Rocha, mdico e ex-prefeito de Paramirim; Jaime Moura, advogado
em Prado e Secretrio Poltico do CM do PCB; Albertino Barreto, trabalhador do Departamento Nacional de
Estradas de Ferro em Urand; Joo Martins Luz, advogado e consultor jurdico da Unio Sindical dos
Trabalhadores da Bahia; Oscar Pereira Sobrinho, pequeno comerciante e industrial em Catu e dirigente municipal
do PCB; Walter da Silveira, advogado e escritor; Carmosina Nogueira, enfermeira do pronto socorro; Waldir
Oliveira, mdico; Sebastio Nunes de Oliveira, pequeno industrial em Santo Antonio de Jesus e dirigente
municipal do PCB; Edilberto Amaral, agrnomo em Jaguaquara e dirigente municipal do PCB; Delorme Martins,
mdico em Ipir e dirigente municipal do PCB (O Momento, 17/11/1946, p.1; A Tarde, 19/11/1946)
494
O PCB anunciava diariamente a realizao de comcios nos bairros de Salvador. No dia 02 de janeiro, por
exemplo, foi anunciado em O Momento a realizao de oito comcios, dos quais Maciel estaria presente em trs:
s 19h no Largo da Preguia, junto com Alosio Aguiar; s 16h no Cais Cair, junto com Jos Maria Rodrigues; e
s 20h na Baixa do campo Santo, junto com vale Cabral (O Momento, 2/1/1947, p.4).
495
Depoimento de Cid Teixeira a Joo Falco, registrado no livro Giocondo Dias, a vida de um revolucionrio.
(FALCO, 2000, p. 142)
271
frente ao que no se pode deixar de comprar, como seja: o feijo para comer e a roupa
para vestir. Ante uma situao assim, um candidato como Jaime Maciel, legtimo
operrio, que tem olhos para ver essas coisas, e que tem coragem para lutar,
transforma-se como uma esperana do povo (O Momento, 16/01/1947).
Nosso partido, que no nenhum partido eleitoreiro, sempre esteve em contato com
o povo, mesmo quando estavam muito longe as eleies. Com a campanha pela vitria
da Chapa Popular, entretanto, intensificamos encontros com o povo para lhe mostrar
os seus candidatos, dar conhecimento do Programa Mnimo e discutir os problemas
de cada bairro (O Momento, 16/01/1947).
A maior parte dos eventos da campanha dos candidatos do PCB teve lugar em Salvador,
ainda que fossem realizados comcios no interior do Estado. Grande parte dos candidatos vivia
na capital e tinha base poltica e eleitoral em segmentos da populao da cidade. O foco do PCB
era, portanto, conseguir o maior nmero de votos entre os quase 84 mil eleitores habilitados a
votar na cidade. Contando todos os municpios do estado, o nmero de eleitores era de 478 mil,
segundo dados do Tribunal Regional Eleitoral do estado da Bahia.
Dos candidatos operrios, um dos poucos que tinha redes de apoio em Salvador e em
outras cidades do interior era o prprio Jaime Maciel, que em depoimento se apresentou como
candidato dos trabalhadores de toda a Bahia:
Outro empecilho no caminho do PCB para conseguir a votao que desejava, alm da
pouca penetrao no interior do Estado, era a concorrncia com o PTB pelos votos dos
trabalhadores. Segundo contou Joao Falco, a direo estadual do Partido Comunista pensava
que seria melhor no fazer campanha contra o PTB; ao contrrio, tentavam construir uma
aliana entre os dois partidos, pois esta atrairia mais votos dos trabalhadores para as duas
legendas. Mas, a deciso sobre alianas na Bahia coube ao Comit Nacional do partido, e este
272
decidiu apoiar para o governo do estado o deputado federal Otvio Mangabeira, candidato da
coligao UDN-PSD.
Mangabeira j era o favorito, mas segundo Joo Falco (1993), desejava a aliana por
que, na Bahia, UDN e PSD estarem na oposio ao PTB. Ademais, apoiando a UDN, o Partido
Comunista iria afastar de sua candidatura qualquer resqucio antitrabalhista ou elitista que
suscitasse explorao pelo adversrio (FALCO, 2000, p. 143).
Em troca do apoio a Otvio Mangabeira, os comunistas negociaram com a UDN e o
PSD que apoiassem a legalidade do PCB, que sofria ameaas por conta de um processo de
cassao. Alm disso, Campello Souza (1976) sugere que parte da motivao do PCB em fazer
acordos como esse realizado na Bahia se devia tentativa de maior insero na organizao
sindical, que estava sob o poder do PTB.
Aps a aliana com Mangabeira, o PCB subiu o tom contra os petebistas, evidente na
forma como o jornal O Momento passou a se referir ao partido que havia se tornado a
oposio. No dia 10 de janeiro, apenas nove dias antes das eleies, a matria de capa do jornal
atacava fortemente o partido trabalhista: O PTB um partido de latifundirios e integralistas,
inimigo da classe operria, e prosseguia:
Nos primeiros dias de apurao j se desenhava qual seria o resultado das eleies.
Quatro dias depois do incio da apurao, o PCB j tinha atingido mais de 3.300 votos, com um
quociente prximo ao necessrio para eleger um deputado estadual. A lista dos quatro mais
votados era a seguinte: Giocondo Dias com 543 votos; Jaime Maciel com 467 votos; Mario
Alves contava com 180 votos; e Joo dos Passos vinha a seguir com 168 votos apurados. No
final da apurao o PCB conseguiu 12.580 votos, suficientes para eleger dois candidatos, os
mais votados foram Giocondo Dias e Jaime Maciel. Mas, o resultado foi aqum das expectativas
do Partido, que esperava a eleio de no mnimo quatro candidatos496 (FALCO, 1993).
Abaixo a lista dos seis candidatos mais votados:
Como j era esperado, a votao foi maior em Salvador. Do total de votos que Giocondo
Dias conseguiu, 1.904, quase trs-quartos, foram obtidos na cidade, 1.472 no total. O resultado
na Bahia foi inferior a outros estados onde o PCB foi muito mais bem sucedido, com destaque
para o Rio de Janeiro com a eleio de um contingente que deu ao partido a bancada majoritria.
496
Nas eleies de janeiro de 1947 foram eleitos 60 deputados estaduais na Bahia. A UDN foi o partido que
conseguiu maior nmero de votos, um total de 120.049 e 28 deputados estaduais eleitos. Em seguida vieram PSD,
PTB e PR, com 19, 7 e 3 candidatos eleitos, respectivamente.
274
497
Conforme balano das aes da bancada comunista publicado periodicamente no jornal O Momento.
275
Um dos captulos mais marcantes durante o processo de excluso dos mandatos dos
parlamentares do PCB foi a atuao da comisso de luta contra a cassao, que recebeu a misso
de incitar uma agitao popular que servisse como frente de resistncia contra a perda dos
mandatos dos comunistas.
Os apelos ao povo feitos pela comisso eram publicados na Bahia pelo jornal O
Momento, ora tratando de todos os polticos em risco de perder o mandato, ora fazendo meno
especial a um nome especifico, como o de Luiz Carlos Prestes, Carlos Marighella, Jorge
Amado, e os deputados estaduais Giocondo Dias e Jaime Maciel.
A conclamao era feita com argumentos em defesa da democracia e do respeito
vontade daqueles que tinham votado para eleger os seus candidatos. No caso de Maciel
indicavam que era o nico operrio com assento na Assembleia baiana, sado da parte mais
pobre da populao, que causava raiva na elite por discutir, votar e exigir respeito aos direitos
populares (O Momento, 22/1/1947). O conflito que os pecebistas baianos procuraram
explicitar estava assentado na condio de classe de Maciel, que diziam estar sofrendo com as
consequncias geradas pelo desejo da classe dominante de perpetuar a explorao da populao
mais pobre na Bahia.
No encontrei registros de outros apelos publicados, em prol do mandato de Maciel, que
utilizassem argumentos diferentes daqueles baseados na condio de classe, na busca da
sensibilizao do povo baiano contra as cassaes de seu mandato.
J para a defesa dos parlamentares que atuavam no legislativo federal, foram abertos
variados flancos. Uma comisso foi criada para organizar a defesa dos mandatos, esse grupo
publicava textos com uma frequncia quase diria em O Momento nos meses de novembro e
dezembro de 1947. Um dos apelos que mais se destaca dos argumentos geralmente utilizados
foi aquele montado para a defesa do deputado federal Claudino da Silva, caracterizado
repetidamente como o nico parlamentar negro na Assembleia Nacional Constituinte. Apesar
de Claudino ser lder operrio e representante eleito no Rio de Janeiro, O Momento, publicou
textos direcionados aos negros baianos para que se organizassem em defesa do parlamentar que
descreviam como um poltico comprometido com as reivindicaes da raa negra.
O chamamento ao povo baiano para defesa do mandato de Claudino da Silva permite
perceber que, no perodo em que gozaram de direitos polticos partidrios, os comunistas
concebiam a representao poltica negra como uma forma legtima de representao e que
276
estavam atuando ativamente na construo dessa via poltica quando se deu a cassao do
registro do partido e posteriormente dos mandatos dos parlamentares eleitos.
Ainda em relao a atuao da comisso contra a cassao, no encontrei nas fontes
qualquer registro de que a estratgia utilizada para tentar organizar a populao na defesa do
mandato de Claudino tenha sido estendida a outros parlamentares negros do PCB. No caso de
Jaime Maciel, por exemplo, a questo no foi tratada em nenhum momento de forma direta, a
negritude de Maciel ou dos outros candidatos operrios no foi utilizada pelos comunistas
baianos para constituir um discurso racial integrado ao da condio social nem durante a luta
contra a cassao e nem na campanha eleitoral.
O PCB na Bahia parece ter consolidado em sua organizao a presena de negros
comunistas trabalhadores em atividades urbanas, pouco versados nos discursos de raa, mas
com todos os marcadores sociais que lhe faziam referncia. De forma diferente, a composio
da direo nacional do partido tinha uma menor participao negra, o que parece ter garantido
o destaque para Claudino da Silva.
Alm disso, parece que o fato da luta contra a discriminao racial ter despontando na
poltica em nvel nacional, durante a Assembleia Constituinte, como resultado da atuao do
movimento negro e de partidos polticos, entre os quais o prprio PCB, deu legitimidade aos
comunistas para se valer dessa bandeira no seu intento de organizao popular.
O desfecho, depois de mais de 20 anos de interpretaes no PCB sobre a situao racial
no pas e suas consequncias para a formao da nacionalidade brasileira, mesmo que de forma
no sistemtica e, por vezes, pouco integrada s demais bandeiras de luta do movimento
comunista no pas. A questo racial ocupou o Partido Comunista, no tocante sua poltica
partidria de recrutamento de candidatos e sensibilizao dos eleitores, como parte de um jogo
de significados complexo, colado ideia de povo brasileiro, representado na imagem do negro
trabalhador.
277
Quadro 23 - Apelo do PCB aos negros baianos em prol da manuteno do mandato de Claudino da Silva
Negros da Bahia:
Consideraes Finais
No incio desta investigao, uma das minhas maiores motivaes para buscar
informaes na leitura detida de jornais e revistas, inicialmente das dcadas de 1940 e 1950,
era conseguir levantar elementos para responder uma inquietao de como as experincias
sobre as quais me debrucei, e me dediquei a narrar, ao longo deste trabalho teriam se inserido
na trama da histria. Embora atenta ao comportamento dos atores polticos e ao contexto,
me encontrava, s vezes, compelida a relacionar os acontecimentos abordados nesta
pesquisa com a contemporaneidade, ilustrada na problemtica apresentada pela ento
senadora Bendita da Silva, na citao acima. Ao longo do desenvolvimento da pesquisa,
compreendi que essa era uma questo que escapava ao seu alcance, pois, me dediquei a
responder e desvendar dilemas mais circunscritos ao perodo que estava investigando e no
a ampliar o escopo da pesquisa. Ainda assim, os pontos de comparao que estabeleci, como
a leitura da bibliografia que trata da temtica, permitiram situar melhor minha anlise e
perceber o quo pouco a atuao de negros, ligados ou no a organizaes do movimento
negro, era integrada explicao sobre representao poltica naquele perodo.
Nesta pesquisa, ao focalizar na atuao de ativistas do movimento negro e de
lideranas do PCB, compreendo que a pouca ateno recebida por esses atores nas anlises
talvez tenha acontecido por se tratar de tentativas de insero nos espaos de representao
poltica, de certa forma, mal sucedidas ou interrompidas, no caso do PCB em 1947, com a
cassao do partido.
279
Ainda assim, as reflexes desenvolvidas nos captulos deste trabalho permitem tecer
algumas consideraes sobre aspectos do cenrio poltico do ps-Estado Novo, a partir do
conjunto das experincias, bem como sobre questes particulares, como procurarei esboar
a seguir, ainda que de forma breve.
No geral, as experincias analisadas possibilitam compreender que existiu, no ps-
Estado Novo, uma conjuntura que favoreceu a emergncia da temtica racial na cena
poltica, fruto, em grande parte, da atuao de lideranas negras e da permeabilidade de
partidos polticos ao assunto, especialmente os de grande relevncia tanto no cenrio
eleitoral quanto pela possibilidade de interveno no Estado. importante destacar que, no
caso de partidos como o PTB e a UDN, a relao de polticos com lideranas negras foi
fundamental para a incorporao de aspectos do debate que estava sendo realizado no mbito
do movimento negro, por meio de iniciativas para construo de uma agenda comum de
reivindicaes, nas organizaes e nas Convenes do Negro Brasileiro, realizadas em So
Paulo e no Rio de Janeiro, em 1945 e 1946. Nesse contexto, boa parte das negociaes com
partidos e atores polticos foi estabelecida por ativistas organizados no Teatro Experimental
do Negro. Ainda assim, outros ativistas tambm empreenderam articulaes polticas
distintas, como ocorrido em So Paulo com lideranas vinculadas ao Partido Socialista
Brasileiro. Com base no discurso e na abordagem dos ativistas negros socialistas foi possvel
localizar e delinear a existncia de uma tradio poltica de esquerda no movimento negro
brasileiro naquele perodo.
A anlise do Partido Comunista do Brasil demonstrou que, apesar do interesse do
partido no debate da situao do negro brasileiro, houve em sua interpretao certa
autonomia em relao ao discurso elaborado por ativistas negros no perodo. As
intepretaes do PCB tanto sobre a situao racial e quanto sobre a conjuntura poltica do
pas parece ter influenciado no recrutamento poltico de lideranas negras ligadas ao
movimento sindical. Essa estratgia foi bem sucedida em alguns casos, resultando na eleio
de representantes em nvel nacional e regional, na Bahia e no Rio de Janeiro. Contudo, a
trajetria poltica dessas lideranas, que se apresentava como um fenmeno singular na
poltica partidria brasileira, foi bruscamente interrompida com a cassao dos direitos
polticos do Partido.
280
Publicaes
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Anexos
303
Anexo A.3 lista de candidatos e propostas do PSB para eleies municipais de 1947. O Estado de So Paulo, 08/11/1947.
307
Anexo B.1
Teses sobre as questes dos negros divulgadas durante o IV Congresso da IC em 1922.
Publicao da Revista Princpios, outubro de 1984 Parte I
310
Anexo B.1
Teses sobre as questes dos negros divulgadas durante o IV Congresso da IC em
1922. Publicao da Revista Princpios, outubro de 1984 Parte II
311
Anexo B.3
Proposta de Emenda Constitucional N 1. 087
Anais da Assembleia Constituinte 1946, volume 13, p. 277
Art. 159:
Acrescente-se:
"Fica assegurado, no esprito da lei e sua redao, sem quaisquer outras exigncias, o
ingresso de qualquer cidado, sem distino de cr, nas carreiras, Diplomtica, Militar
(Escola Naval, de Guerra e Aeronutica) e Civil.
Justificao
Sala das Sesses, 17 de junho de 1946. - Hamilton Nogueira (UDN/DF) - Gilberto Freyre
(UDN/PE) - Jos de Borba (UDN/CE) - Domingos Velasco (UDN/GO) Nestor Duarte
(UDN/BA) - Dolor de Andrade (UDN/MT) - Paulo Sarasate (UDN/CE) - Aureliano
Leite (UDN/SP) - Plnio Barreto (UDN/SP) - Prado Kelly (UDN/RJ).
313
Anexo B.4
Proposta de Emenda Constitucional N 1. 089
Anais da Assembleia Constituinte 1946, volume 13, p. 278
Ar.t. 159
"Todos os brasileiros, so iguais perante a lei".
Acrescente-se:
"Sem distino de raa e de cr".
Justificao
A extino da escravatura no Brasil, no colocou os elementos afro-brasileiros em posio
econmica capaz de acompanhar a evoluo social-poltica de todos os brasileiros, da o
estado atual de inferioridade social em que se encontram os negros e mestios do Pas, em
relao aos de outras naes civilizadas, como sejam Estados Unidos da Amrica do Norte,
Frana, etc.
Haja visto o que ocorre comumente entre ns, testemunhas, de que fato notrio a existncia
do preconceito de cr, que no somente devido a posio econmica, mas obedece s
condies gerais da raa no estado pauprrimo em que se encontra.
Podemos sem enfse, afirmar que palavra misria, muitas vezes sinnimo de crime.
O negro na misria est fatalmente no caminho da delinquncia, elev-lo econmicamente,
significa proporcionar os meios culturais, confortvel ambiente social, enfim, acabar com o
crime proveniente da misria.
O preconceito de cr no Brasil, uma triste realidade, na nossa Marinha de Guerra,
principalmente na Escola Naval, de Aeronutica, do Exrcito, da carreira Diplomtica,
comrcio, Teatro, meio bancrio, colgios religiosos ou no, at mesmo no funcionalismo
pblico, em geral, no que se refere a funes de representao.
So estas as maiores razes e causas, que levam aos negros e mestios o complexo de
inferioridade, impossibilitando a raa, de irmanar-se no alto ambiente social da Ptria, em
todos os seus setores, internos ou externos e criando mesmo, uma flagrante diferenciao
entre filhos da mesma, com os mesmos costumes, sujeitos as mesmas leis, com as mesmas
obrigaes, mas, nem sempre com os mesmos diretos.
Inegvel reconhecer e proclamar, sem reservas, que h 446 anos, a economia pblica
nacional, deve a sua estruturao fundamental e o seu justo desenvolvimento ao brao do
homem da senzala.
Citando os Estados Unidos, levou-nos uma legtima inteno de que l, os negros gozando
na maioria de um bem estar econmico conseguiram uma cultura de grande respeito, para
isto basta conhecer vrios escritores negros e da serem chamados a desempenhar funes
relevantes no Parlamento, no Govrno, no Exrcito, na Marinha, Aeronutica e Diplomacia.
Na Frana, o negro goza de todos os direitos sociais, como ultimamente, os homens gozam
do direito da Natureza.
L o negro sem as titnicas lutas raciais dos Estados Unidos, alcana a sua justa posio de
homem social-poltica e econmico.
preciso que isto ocorra em nossa Ptria e para tanto, apresentamos ao plenrio esta
emenda, que encerra o maior e mais digno sentimento de respeito dignidade humana. Este
o nico itinerrio para se extinguir definitivamente o preconceito de cr, integrando a
nobre e viril raa negra, dentro da nica Ptria - o Brasil.
Sala das Sesses, 17 de junho de 1946. - Manuel Bencio Fontenelle (PTB/DF) - Jos Borba
(UDN/CE) - Aureliano Leite (UDN/SP) - Plnio Barreto (UDN/SP) - Antenor Boga (UDN/MA).
314