Ponta de Lanca. Oswald de Andrade Obras - Completas Vol5
Ponta de Lanca. Oswald de Andrade Obras - Completas Vol5
Ponta de Lanca. Oswald de Andrade Obras - Completas Vol5
v. Ponta de Lana
Polmica
2? edio
civilizao
brasileira
233 ^
Exemplar n?
Desenho de capa:
DOUN
Diagramao:
LA CAULLIRAUX
19 7 1
Impresso no Brasil
Printed in Brasil
Obras Completas de Oswald de Andrade
O. A.
Sumrio
xv ii
de ser atual e, em tantos casos, permanente, e ainda o poder de
transcender o momento, o episdico e at de antever o futuro,
a marcha dos acontecimentos e sua transformao. Nles esto
os seus entusiasmos, idiossincrasias, erros, implicncias e fra-
quezas, o diagrama de suas vacilaes e veemncia, inquietudes
e inabalveis convices. Mais: a coragem de se desdizer, de
retratar-se, de dialticamente contradizer-se, de rever-se a si mes-
mo, corrigindo enganos, equvocos e s vzes irritada viso de
pessoas, fatos e circunstncias. Um exemplo: se em Ponta de
Lana ataca ferozmente Cassiano Ricardo, no hesitaria, mais
tarde, pela via de um Telefonema, em exaltar os mritos do livro
de poemas Um Dia Depois do Outro, em que o poeta dava uma
violenta guinada nos seus processos poticos. A obra de arte,
que tocara, sobreps-se aos ressentimentos que lhe ditaram o
artigo virulento de outrora. Outro exemplo: se em Ponta de
Lana, sentindo-se incompreendido por Antnio Cndido, o trata
com jovial acrimnia, ao crtico paulista que acabou seu
compadre e amigo ntimo dedicaria, em mais de uma oportu-
nidade, elogiosas referncias, desvanecedores juzos. Assim fz
tambm com Monteiro Lobato e outras figuras.
Ponta de Lana rene artigos e conferncias de Oswald
de Andrade escritos durante 1943 e 1944. Essa seleo de
trabalhos, feita por le mesmo naquele perodo, constitui valiosa
embora pequena amostra do seu iderio esttico e poltico, e
documenta-lhe o estilo crispado, gil, de inesperados efeitos.
A est um pouco do Oswald discutidor e panfletrio, que res-
taura a agressividade polmica de Camilo atravs de uma escri-
tura renovada, irrigada de humor, graa e ironia. Por ela perpas-
sam a todo instante frmitos de emoo e poesia, e sempre,
e antes de mais nada exibe-se uma inteligncia perturbadora,
intranqila, inconformada e rebelde. Uma inteligncia em ansiosa
busca de fixar rumos mais fecundos para o desenvolvimento e
progresso da cultura brasileira, empenhada em abrir horizontes
para o descortino de uma civilizao mais humana, fraterna e
justa, aqui e l fora.
Nesse livro Oswald defende a sua obra e atitudes de artista,
reclamando para si a prioridade de muitas posies; rev ou
debate as coordenadas polticas e artsticas que adotou, e tenta
apreender e apontar os caminhos que o Brasil e o mundo esto
seguindo ou podem vir a seguir; faz, a tda hora, um balano
do patrimnio de esprito e de cultura ento ameaados pelo
nazismo e pelo Estado Nvo policial e opressor, em artigos e
conferncias escritos ou pronunciadas em plena vigncia da
Ditadura Vargas, o que lhe valeu muitas vzes severas adver-
tncias dos rgos censrios, como ocorreu com o de ttulo
O Coisa, sibilino e alusivo; discute as proposies da Tecnologia
e as rotas que se anunciavam em plena guerra. Tudo isso decor-
ria de um acendrado amor, de um candente desejo, de uma
incontida aspirao de liberdade. Era em nome da liberdade
que falava. A liberdade de criao artstica e de escolher os
roteiros mais proveitosos para o progresso do homem brasileiro
ou universal.
"S seremos felizes sbre a terra quando tda a huma-
nidade, num mundo redimido, comer mesma mesa, com a
mesma fome justa satisfeita, sob o mesmo tendal de fraternidade
e de democracia" escreve Oswald, que tambm concita inte-
lectuais e artistas, naquelas horas apreensivas e incertas, a man-
terem a sua luta, "cujo mximo prmio a liberdade". o
Oswald que pede a todos que se mantenham "num estado de
vigilncia a fim de que o inimigo que, com nossas idias e
nossas armas derrotamos, no venha a renascer amanh, revi-
gorado pelos que sonham ainda com um mundo escravo e por
le trabalham."
Ponta de Lana um livro corajoso, amplo e tantas vzes
proftico. Ao lado do culto liberdade e defesa dos ideais
democrticos, sua tnica principal, est iluminado tambm pela
esperana de dias melhores. Esperana de que, desde ento,
a humanidade estava precisando.
Ponta de Lana
Carta a Monteiro Lobato
K
Bilhete Aberto
(De So Paulo)
! M E U fotognico C. R.
No se envaidea com o qualificativo. le transcende da
iconografia pessoal. Fotognico aqui vai como sinalao de
indivduo de precisos contornos, de acentuadas feies tpicas,
de robustas formas psicolgicas e morais. Quer dizer sujeito
nada evasivo, impressionista ou enervado de hesitaes, pro-
blemas e hamlticos escrpulos. No. Voc quando , .
mais que o princpio de identidade. o princpio de adeso.
E por isso daqui dste modesto canto paulista do Correio, estou
certo de que voc assumir a inteira responsabilidade da cam-
panha que, sob sua oficiosa frula, se vem fazendo contra a
liberdade de expresso literria no Brasil. E que no se possa
dizer depois que nada teve de participao nesse crime contra
o esprito, que s a pororoca mundial dum sistema pode criar
na renitente cabea de seus crentes e batizados. Para que nSo
se queixe voc depois da injustia de lhe vestirem uma camisola
colorida, em voc que sempre se disse um adepto emburrado
da tanga, do cocar e do tacape.
Ns sabemos, porm, que esses utenslios da ferocidade
nativa fazem parte duma barraquinha de vaticnios amveis que
h anos voc carrega nas costas como o homem do periquito.
E que as suas canes nativas so como sses bonecos de cer-
mica que representam Pai Joo e Peri, Anhangera e D. Pedro
II, mas que vm da Alemanha, fabricados em srie. Porque a
sua literatura, rotulada de nativismo, no passa de macumba
para turistas. E uma vez desatada a fitinha verde-amarela que
recobre o seu pacote de smbolos, s se encontram nle o Martim
Cerer, o Caapora, o Saci e outros rates que nunca penetraram
na corrente folclrica da imagiria nacional. Se sua prosa lite-
rria melhor que a sua poesia, no sente ela nenhuma vocao
para os roteiros da liberdade e para os caminhos do futuro. E
por isso, dela restar apenas um estilo duro, robusto e pedre-
goso a servio dum oportunismo mole e adulo. Que adianta
isso, meu feliz e vitorioso c. R.?
Sabendo disso, por que lhe escrevo? que minha ingenui-
dade das mais tenazes do mundo. Quando voc iniciava seu
jornalismo no Rio, fz para mim profisses quase que liberais.
Se aodadamente convidou alguns fidelssimos servidores do
nazismo, para honrar o seu suplemento, tambm nle agentou,
do rosicler ao bordeaux, as cores espectrais do levante em ascen-
so. Eu mesmo seria aceito na confusa mnagerie que voc
sbiamente confiou guarda de um Leo amvel e ecltico.
No entanto, abre voc agora bulhentamente as baterias
ocultas do seu dio liberdade e procura fazer com que se
consuma uma incomensurvel traio literatura que deu Castro
Alves e Euclides da Cunha, e que se consolide um crime contra
o patrimnio intelectual do Brasil.
Reflita na sua slida longevidade. Voc pode viver de
cento e cinco a cento e vinte anos, sem o auxlio de nenhum
soro russo. Basta a gente ver voc de fardo na Academia, para
sentir que sua natureza participa da dos paquidermes diluvianos
e da tartaruga de gua-doce. Voc pode, um dia, mais tarde,
vir a convencer-se de que Jpiter ensandece mesmo os homens
que deseja castigar. E castigo no pode haver maior do que
a marca da traio ao esprito.
Sou sempre o
O. A
Carta a um Torcida
k
se comprazem os sessenta de Picasso? Ser preciso citar Winston
Churchill?
Voc sabe pois que a idade no cronolgica. De modo
que, quando lhe devolvo o epteto de velho, no porque voc
esteja quase me alcanando na casa dos cinqenta ou dos setenta,
nem me lembro mais... porque, desde que teve bigode,
voc foi o maior ancio de nossas letras e o cacte mais tene-
broso do Nordeste de livraria. Voc quando escreve artigos,
vira at velha, tal a insuportabilidade dos seus cacoetes vulgares,
dos seus domsticos pontos de vista e dos seus rancorosos e
insolveis transes de idade-crtica.
No li a grosseira diatribe que voc publicou contra mim,
mas no me faltaram as boas almas que trazem sempre nos
abraos o pso do coice que recebemos distncia.
Foram lhe dizer, consta, que eu envenenara aqui a brilhan-
te polmica que voc manteve com um cronista esportivo sobre
um beque do Corintians. Eu teria dito que, no calor da contro-
vrsia, voc ofendera So Paulo, o que deixava de ser plausvel,
pois voc possui uma tal finura que quando abraa produz
equimoses e quando quer valorizar o nome arrevesado do seu
grande amigo, aqule que foi secretrio do primeiro ditador da
Europa moderna, chama-o de Otto Rino Laringo Maria Car-
peaux...
Vou, antes de mais nada, lhe contar o que faz um homem
educado, quando sabe que uma pessoa de suas boas relaes de
livraria, de rua e de mesa, poderia ter dito qualquer coisa de
ofensivo ou maldoso a seu respeito. Pega no telefone, interpela
pessoalmente num encontro, escreve uma carta ou verifica por
terceiros se ou no autntico o aleive ou se se trata da simples
manobra mentirosa de um caluniador. Ser por acaso voc um
otrio de ptio de estao que agarra o primeiro paco imagi-
nrio que lhe oferecem? No. Voc j chegou h muito tempo.
Acredito mais numa segunda hiptese. Voc inventou essa
briga comigo para distrair a responsabilidade das pueris inj-
rias que dirigiu a So Paulo por causa de um jogador de futebol.
Seno vejamos!
Verifiquei agora, por um jornal daqui que voc escreveu
isto: "So Paulo h de ficar com os campos despovoados, co-
bertos de mato, quando vier a broca financeira"...
Era naturalmente uma bomba! Vista e examinada a bes-
teira que fra pesada pelo seu justo valor, teria voc recorrido
ao compatriota de Hitler que lhe serve de tony, o qual, depois
de esgares, gestos e estalidos, sugeriria aquela gozada interpre-
tao: campos? Voc falara dos campos de futebol e a broca
no era evidentemente a dos cafzais!... A platia paulista
riria muito se no houvesse ficado por aqui um amargo gsto
de pedrada na bca. Voltou voc, em seguida, a perguntar ao
seu diligente lago de picadeiro, como diminuir os efeitos da de-
sastrada aventura e le, depois de dois meses de telemorse, ter-
se-ia feito compreender:
O-O-O-O-O-O-x-wold! E passaria eu salvadora-
mente, a ser o objeto de suas cafajestadas e o bode expiatrio
de suas ratas!
Porque, primeiramente, tenho o natural descuido de um
homem que trabalha, pelos seus arrazoados, mesmo quando
versem sobre o ilustre zagueiro Domingos da Guia. Portanto,
no seria eu quem fsse azedar a morna coca-cola que voc
oferece pelas colunas dos jornais. Que tempo tenho para cons-
tatar que voc, como excelente torcida uniformizada, pulou a
crca no jgo de interesses Flamengo-Corintians? E que culpa
tenho de voc fazer do futebol uma espcie de nu-artstico, por
cujas poses e quadros-vivos se desfalece na idade que caracteriza
os seus entusiasmos?
Voc faz do futebol uma cantrida emocional para essa
prematura velhice que cobre de teias de aranha a casa cada do
seu talento de romancista. (Peo vnia aos amigos comuns para
no dar a ste trecho uma interpretao escabrosa e a voc que
se certifique que seria idiota quem depreciar a fisiologia tempes-
tuosa que sua truculncia fsica autntica.)
Perfeito de funes, voc, no entanto, nasceu velho de ca-
bea e ficou campnio de destino, s conseguindo juvenilizar-se
atravs de excitantes urbanos como foi, na sua primeira fase, o
Integralismo e como na atual, o futebol. A admirao que
voc, aodadamente vestindo a camisa-verde, descarregava sobre
Plnio Salgado a mesma que o faz urrar de braos erguidos na
Avenida Rio Branco, diante de um feito espetacular do Flamengo.
O que interessa sua alma tsca e primria o espetculo, o mo-
vimento e o aleguai, nunca o sentido e a essncia.
E seria at muito salutar que voc indicasse to til cami-
nho de sublimaes ao seu particular amigo Maria, cujo senti-
mento de culpa deve ser maior e estar mais encurralado que o
seu, pois, na histria do fascismo, a figura sinistra do pseudo-
mrtir Dollfuss muito mais importante que a do fracassado
galinha-verde a quem voc dedicou os seus primeiros arroubos
polticos. Assim, iriam ambos nas efemrides, dentro dum txi
espantoso, para o campo do Vasco le gago de emoo, voc
aos berros e aos pinchos, nesse dionisaco delrio que, dentro do
mundo em fogo, ainda conseguem levantar para os eleitos, os
ps de ferro de Domingos e o couro mgico de Lenidas.
Apesar de indicar isso tudo que voc cada vez mais se afas-
ta da literatura e se atola no futebol, sei que no deixou de ter
sido motivo das suas malcriaes o fato de, num recente Tele-
fonema para o Rio, haver eu colocado diante de suas suadas
condecoraes de violeiro, a figura de mestre do romance que
vai sendo Jos Geraldo Vieira. Para le, a maturidade serena e
a velhice s podem ampliar a posio de humanista e firmar o
clmax da criao. Para voc, para os seus sessenta anos, sobra-
ro os abraos dos craques, a carona na chopada dos clubes, a
rouquido e o espasmo dos estdios. Quem negar ao futebol
sse condo da catarse circense com que os velhos sabidos de
Roma lambuzavam o po triste das massas? No podendo xingar
o patro que o rouba, o operrio xinga os juizes da partida e pro-
cura espanc-los, como se o bandeirinha mais prximo fosse o
procurador da prepotncia, do arbtrio e dos outros sinais do
mundo injusto que o oprime. E voc, o homem de esquerda,
que deu, no nego, aquela srie de romances teis, os quais no
fundo so a homeopatia gatafunhada de Casa Grande & Senzala,
voc que tem procurado ter nos ltimos tempos diretivas progres-
sistas, quem pactua, na exaltao mrbida dsse novo pio,
descoberto e enviado para c pelos neo-romanos, amveis civi-
lizadores sados do conbio imperialista de Disraeli com a Rainha
Vitria. voc quem defende, histrico e incisivo, a explorao
de rapazes pobres, bruscamente retirados de seu meio laborioso,
para o esplendor precrio dos grandes cartazes e dos grossos
cachs, a fim de despencarem depois de l e ficarem como os
potros quebrados nas corridas dos prados milionrios.
Que resta aos futebolers em declnio, seno o mesmo fu-
turo de invalidez e de fome que faz, em Portugal, os toureiros
aposentados, pedincharem tostes, de muleta, no crepsculo agi-
tado dos redondis?
No sei qual a soluo social que se d ao caso dos joga-
dores inutilizados nos encontros e aos quais se nega qualquer
renovao de contrato ou qualquer garantia que os socorra e
indenize. Sei apenas que les penosamente se mexem com
gua-no-joelho, canela furada, equimoses, tuberculoses e trau-
mas, sem amparo e sem emprgo, encostados muitas vzes dra-
maticamente famlia pobre, donde os arrancaram. E voc,
com uma invejvel alegria, um dos mais alentados padrinhos
dessa transferncia nervosa que faz escoar para os gramados as
energias do povo, narcotizado nas parcas horas que lhe sobra-
riam para assuntar. Eis a orgulhosa f de ofcio com que voc
se apresenta, olhando com desaforo os que, como eu, nunca
arranjaram assim, popularidade, xito ou fixao nas prateleiras
hierrquicas dste fim de mundo.
Nas letras, tambm est voc definitivamente colocado. A
posteridade j o julgou. No h prefcio, concurso de Miss
Literatura ou banquete que possa reacender o fogo-morto de
sua obra de fico. Voc o Coronel Lula do romance na-
cional.
Destino da Tcnica
Comprarei
O pincel do Douanier
Pra te pintar
Levo pro nosso lar
O piano periquito
E o Reaefs Digest
Pra no tremer
Quando morrer
E te deixar
Eu quero nunca te deixar
Quero ficar
Prso ao teu amanhecer.
Te apresentarei
Toms Moras
Frederico Garcia Lorca,
A sombra dos enforcados
O sangue dos fuzilados
Na calada
Das cidades inacessveis.
Transcontinental ictiossauro
Lambe o mar
Voa e revoa
A ma enastra
Enforca, empala
espera eterna
Do Natal
Pesventra p ventre donde nasceu
A neutra equipe dos sem luar
No fundo fundo
Po fundo maj:
Da podrido
As sereias
Anunciaro as searas.