Murilo Mendes
Murilo Mendes
Murilo Mendes
So Paulo
2008
Livros Grtis
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Milhares de livros grtis para download.
2
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM
LNGUA E LITERATURA FRANCESA
So Paulo
2008
3
Orientadora:
Examinadores internos:
Examinadoras externas:
AGRADECIMENTOS
A um Poder Superior.
Esforo meu. Mrito dele.
Ao Claudinei Camargo,
pela companheira cumplicidade e pacincia amorosa.
Murilo Mendes
7
RESUMO
Este trabalho contm uma anlise dos poemas escritos em francs pelo poeta
Murilo Mendes e insertos na obra que recebeu o ttulo de Papiers. Os textos a
contidos abrangem as dcadas de 1930 a 1970. No percurso, procura perceber
o processo dialgico que estes escritos estabelecem com o restante da obra do
autor. Antes, porm, investiga as condies de insero da lngua francesa no
Brasil e de aproximao do escritor com o idioma. Como Murilo Mendes
tambm escreveu e publicou em italiano, o trabalho procura questionar a
relao que se estabelece entre um escritor e a lngua da expresso literria.
Por meio da leitura e da anlise de diversos trechos da obra do poeta, aponta
algumas razes para a permanncia do idioma francs na vida cotidiana do
autor e no traado de sua obra potica. Este estudo, portanto, recorre ao
mtodo comparativo para o estudo dos textos. Vale-se de diferentes conceitos
tericos ligados anlise do texto literrio e do discurso, para, ao final, propor
que os poemas em francs esto em sintonia com o restante da obra do autor.
Afirma tambm que o francs representa a possibilidade de acesso a um
mundo cultural e, concomitantemente, a possibilidade de erigir um universo
pessoal e afetivo. Alm disso, e por fim, prope ter havido o concurso de uma
interlngua na arquitetura da obra de Murilo Mendes.
ABSTRACT
This work is about the analysis of the poems written in French by the poet
Murilo Mendes, whose title is Papiers. The texts reported the period between
1930/1970. It tries to understand the dialogue process in these texts related
with the authors works remainders. Previously, it investigates the conditions
which the French language was introduced in Brazil, and the authors
relationship with the language. As Murilo Mendes has also written and
published in Italian, this work tries to question the relationship between the
author and the literary language. By reading and analyzing many parts of the
poets works, it points out some reasons for the survival of the French language
in the daily life of the author and his poetic work. This study, however, uses the
theoretical concepts related to literary text analysis and speech. At the end, it
suggests that the French poems are related to the authors work remainders. It
also affirms that the French language represents the possibility to contact a
cultural world and at the same time the possibility to create a personal and
affectionate universe. Furthermore, it suggests the concurrence of the
interlingua in the architecture of Murilo Mendes work.
RSUM
Ce travail contient une analyse des pomes crits dans Franais par le pote
Murilo Mendes et insrs dans l'oeuvre qui a reu le titre de Papiers. Les textes
contenus dans ledit livre incluent les dcennies de 1930 1970. Dans le
parcours, il cherche percevoir le processus dialogique que ces crits
tablissent avec le reste de l'oeuvre de l'auteur. Avant, nanmoins, il enqute
les conditions d'insertion de la langue franaise au Brsil et d'approche de
l'auteur avec l'idiome. Comme Murilo Mendes il a aussi crit et a publi dans
Italien, le travail cherche interroger la relation qui s'tablit entre un auteur et la
langue de l'expression littraire. Au moyen de la lecture et de l'analyse de
divers extraits de l'oeuvre du pote, il indique quelques raisons pour la
permanence de l'idiome franais dans la vie quotidienne de l'auteur et dans le
trac de son oeuvre potique. Donc, cette tude il fait appel la mthode
comparative pour l'tude des textes. Il s'est valu de diffrents concepts
thoriques lis l'analyse du texte littraire et du discours, pour, la fin,
proposer que les pomes dans Franais sont en harmonie avec le reste de
l'oeuvre de l'auteur. Il affirme aussi que le Franais reprsente la possibilit
d'accs un monde culturel et, concomitantement, la possibilit d'riger un
univers personnel et affectif. En outre et finalement, il propose avoir y eu la
concurrence d'une interlangue dans l'architecture de l'oeuvre de Murilo Mendes.
SUMRIO
1
Guimares (1993, p. 241) diz haver referncias a uma esparsa produo de Murilo Mendes
em espanhol, mas que os textos seriam inditos e/ou no estariam acessveis. O comentrio
14
literrio. Por esta razo, e para dizer o mnimo, o estudo de sua potica torna-
se intrigante, seja dentro do panorama artstico brasileiro ou mesmo europeu
do sculo XX.
Tal extrato, por si s, nos sugere a idia de um artista que merece ser
visto com um misto de reserva, estranhamento e admirao, pois as atividades
com fins literrios em lngua diferente da materna no costumam ter
desenvoltura expressiva de forma significativa. Isto ocorre porque, em tese,
impossvel a expressividade artstica em outra lngua que no a materna, em
uma lngua aprendida depois daquela adquirida desde o bero social.
de Guimares anterior a 1994, ano em que ocorreu a publicao da obra completa do poeta.
Entretanto, a observao do pesquisador continua vlida, uma vez que os textos em espanhol
no fazem parte da referida edio.
2
Trata-se de Poesia completa e prosa, cuja organizao e preparao de texto esteve a cargo
de Luciana Stegagno Picchio. As citaes referentes aos textos de Murilo Mendes, feitas ao
longo deste trabalho, salvo disposio expressa em contrrio, foram extradas da reimpresso
da 2 edio da Nova Aguilar, vinda a pblico em 1995.
15
5
No ltimo bloco de texto dA idade do serrote, diz Murilo Mendes: O prazer, a sabedoria de
ver, chegavam a justificar minha existncia. Uma curiosidade inextinguvel pelas formas me
assaltava e me assalta sempre. Ver coisas, ver pessoas na sua diversidade, ver, rever, ver,
rever. O olho armado me dava e continua a me dar fora para a vida. (MENDES, 1995, p. 974;
itlico nosso).
21
por esta razo que o livro nos interessa. A partir da leitura da obra,
percebe-se que dela saltam as figuras responsveis pela edificao do homem
Murilo Mendes em suas vrias e variadas dimenses: religiosa, tica, moral,
filosfica, potica, sexual, lingstica, entre tantas outras.
6
Sobre a obra, registra Picchio: Contemplao de Ouro Preto foi publicada em primeira edio
no Rio, em 1954, numa bela edio do Servio de documentao do Ministrio da Educao e
Cultura, Departamento da Imprensa Nacional. O livro, muito cuidado graficamente, era
acompanhado de fotografias de Humberto Moraes Franceschi e Enrique Hess. Prossegue a
pesquisadora, dizendo que o livro inaugura nova fase na poesia de MM: na ateno s coisas,
s paisagens, com sua histria, tradio, forma e sentido que frutificaria nos anos [seguintes]
com os poemas de Tempo espanhol e depois. J no fim da vida, com as prosas de Espao
espanhol, Carta geogrfica, Janelas verdes e outros textos [...] (1995, p. 1680).
23
7
Para o professor Antonio Candido, existe um movimento pendular de transfigurao, de uso
sistemtico do inslito, que consiste em fazer ver o comum como se fosse extraordinrio; o
extraordinrio como se fosse comum (1989, p. 59).
24
que A idade do serrote alcanou sucesso junto aos leitores brasileiros. Neste
sentido, Luciana Stegagno Picchio faz questo de lembrar um artigo escrito por
Carlos Drummond de Andrade, com o ttulo de Murilo Mendes, temponauta 8:
8
A publicao ocorreu no Correio da Manh (RJ), na edio de 29/12/1968.
25
9
Realmente no se trata de pargrafos. Aps o ttulo designador de cada parte, os
enunciados apresentam-se tipograficamente separados apenas por uma bolota preta. Adiante,
neste trabalho, teremos a oportunidade de discutir um pouco mais esta questo.
10
Os pais de Murilo Mendes foram Onofre Mendes e Elisa Valentina Monteiro de Barros. A
me morre quando o escritor ainda no tinha completado dois anos de idade.
27
11
Parece claro que os fatos da realidade tambm so o material da fico de modo geral. Uma
diferena entre a fico e a autobiografia estaria no grau de participao da imaginao do
autor no enredamento destes fatos.
12
Referimo-nos, aqui, ao texto escrito, mas as consideraes no so to diferentes assim
para o texto oral.
13
Discusses a respeito de historiografia, fico, autobiografia e memria so
encontradas de forma bem resumida, mas com muita preciso, em SILVA (2005), de quem nos
valemos muito nesta rpida incurso terica. Entretanto, estudos especficos destas questes
encontram-se em Philippe Lejeune.
28
Mendes. Ela no real, pois fica acertado que a linguagem impotente para
dar conta de ser o real ou de se transformar nele, mas esta mulher teve, sob
vrios e variados aspectos, existncia no real, o que pode ser comprovado, por
exemplo, por meio de documentao pblica.
Dona Col nos serviu apenas como exemplo e ponte para o que
queremos afirmar. Da mesma forma que ocorre com pessoas e
acontecimentos, o sujeito que se nos apresenta a partir da leitura de A idade do
serrote tem uma aderncia grande com o real. Este livro no se compe de um
discurso puramente ficcional; forma e contedo, nele, apontam para alm da
pertena verossimilhana. Almejam a condio de ser parte da realidade, de
ser recorte da verdade vivida pelo autor. Ainda que seja um mundo
(de)formado por uma subjetividade, no podemos enxergar esta obra como
fruto exclusivo da imaginao do poeta. Antes, a fora potica do autor reside
justamente no fato de transportar o cotidiano e o vulgar a uma condio de
literrio e de universal, sem, contudo, amputar-lhes a beleza da simplicidade
domstica.
Ainda que o narrador busque, como afirma Ribeiro, inserir o poeta e sua
histria numa tradio maior, que desbanaliza e desgeografica (o termo de
Mrio de Andrade) o local da histria vivida e, em mais de um sentido, a prpria
histria enquanto tal (2004, p. 80), os eventos selecionados pelo autor nos
labirintos de sua memria falam deles mesmos. Na discusso das Questes
sobre o contedo da arte, Luigi Pareyson (2001, p. 94) apropriadamente
lembra que
14
No captulo Origem, memria, contato, iniciao, que justamente o primeiro de A idade do
serrote, lemos um trecho que explicita um pouco a imagem potica contida no ttulo do livro.
Diz o narrador: As primeiras letras. As primeiras lutas. Perto do colgio uma serraria.
(Primeiros instrumentos hostis: serra, serrote, machado, martelo, tesoura, torqus: via-os por
toda a parte, smbolos torcionrios. (p. 896).
34
[...]
Lili de Oliveira senta-me nos seus joelhos. O fogo sobe no meu
corpo.
Temporal sobre a cidade. Chuva de granizos. O arco-ris no
morro do Imperador. O padre Matias, redentorista alemo de
alta estatura, arregaa a batina para vir casa do meu pai na
rua alagada.
Aussitt que lide du Dluge se fut rassise.
[...]
Os primeiros carnavais. Os mascarados. Driblar a vigilncia
paterna. As batalhas de confete e lana-perfume. Comeo da
vida autre.
Esse livre trnsito de uma lngua para outra parece ser um protocolo
considervel de que o uso de mais de uma lngua ser dentre outros
procedimentos uma marca constitutiva do fazer literrio de Murilo Mendes.
Paralelamente a esta afirmao, podemos sugerir, por conseguinte, que a
produo potica francesa de Murilo Mendes insere-se numa dimenso maior
do que a da pura experimentao lingstica, no obstante sabermos ter
ocorrido em alguns momentos este tipo de procedimento.
que quiseram sentir tudo e para os quais tudo parece convergir. Dito
diretamente: o autor aumentaria o elenco dos escritores de cunho universalista.
16
muito interessante notar que o captulo dedicado ao pai, mas o trecho mostra bem
como as recordaes do narrador vo compor a personalidade do Outro. Ao falar de si
mesmo, o narrador (ou Murilo Mendes) d conta de mostrar as preocupaes do pai com
relao ao destino do filho, de certa forma entrevisto em sociedades como a nossa na
verificao da mensurao das atividades escolares, na conferncia das notas recebidas pelas
crianas. Eis como aparece, de certa forma, o serrote (instrumento de tortura) nesta idade.
40
No que se refere ao destino do filho, Onofre Mendes no pensa de modo muito diferente da
maioria dos chefes de famlia da poca (e at de nossos dias), ou seja, as carreiras ligadas s
artes, de um modo bem geral, no oferecem perspectivas interessantes de vida a algum.
No entanto, sabemos que, mesmo com este tipo de pensamento, o pai de Murilo Mendes ser
o responsvel pela publicao da primeira obra potica do filho, o que, em grande medida, o
absolve da cosmoviso tradicionalista mais ortodoxa e o ala categoria dos pais mais
democrticos e progressistas.
Reparemos, ainda, que o uso do tempo verbal no presente nesta parte do livro aproxima
sobremaneira o homem o narrador adulto do adolescente, bem como este procedimento
tambm d muito mais vida narrativa. No se trata de uma recordao a partir de um
passado distante e perdido nos desvos da memria, quando se fala de algum que no mais
existe. Ficamos com a impresso de que o adolescente dentro do poeta adulto, dentro do
narrador naquele momento da escritura do texto.
17
Aos interessados em dados biogrficos pormenorizados, sugerimos a consulta a Murilo
Mendes: ensaio crtico, antologia, correspondncia, de Las Corra de Arajo. A obra da
pesquisadora e amiga do poeta mineiro, alm da parte dedicada biografia do escritor, contm
sees dedicadas iconografia, crtica, antologia e a depoimentos sobre Murilo Mendes. O
livro se enriquece ainda mais com uma seo dedicada reproduo de fac-smiles de cartas
do poeta mineiro e da esposa, Maria da Saudade Corteso Mendes, autora.
18
Las Corra de Arajo (2000, p. 12), valendo-se de um depoimento da irm de Murilo
Mendes, relata-nos um caso anedtico que d bem a dimenso deste poeta que, no dizer de
Manuel Bandeira, um conciliador de contrrios: [...] Ouvi-o dizer muitas vezes: Graas a
Deus, s sei fazer as quatro operaes.... Certa vez, ao entrar na classe um inspetor, o seu
professor de francs pediu que Murilo lesse um trecho do manual, pois era sem dvida o seu
melhor aluno. Ele pronunciou todas as palavras erradas. E ao ser interrogado depois pelo
professor (espantadssimo), respondeu: Fiz isso para no humilhar os meus colegas.
41
19
Carinho, sutileza e graa tambm se fazem presentes e vm tona em vrios momentos de
A idade do serrote. O professor Almeida Queirs coxeava de uma perna; tinha, portanto, uma
deficincia fsica, um sinal de imperfeio. Elevando o perfil do mestre, em determinado
momento, o narrador diz que depois de t-lo conhecido bem passou a achar imperfeitos os
no-coxos, isto , 99% da humanidade (1995, p. 964).
42
que tinha como fim ltimo e, certamente, causa primeira o ser humano
(MENDES, 1995, p. 963-967).
20
No estamos querendo dizer com isso que o narrador ficou mais tempo exposto quelas
circunstncias e que, por esta razo, h mais o que recordar. No se trata de ser maior o
espao no livro, segundo a quantidade de tempo cronolgico vivido pelo narrador. Estamos
dizendo que aquilo que se associa figura do professor de literatura francesa tem uma carga
afetiva de grande enraizamento, ou seja, os fatos relacionados imagem do mestre esto
impregnados de uma profundidade de sentimento de maior envergadura.
43
21
O cometa Halley (ou cometa de Halley) pde ser visto em 1910. O fato particularmente
marcante para o menino e futuro poeta. Murilo Mendes faz aluso ao astro em muitos de seus
livros. Na obra A idade do serrote, em seu primeiro captulo, diz o narrador: Passagem do
cometa Halley. A subverso da vista. A primeira idia do cosmo. (p. 897).
44
22
Trata-se do primeiro verso do soneto Artemis, de Nerval: La Treizime revient... Cest
encor la premire; / Et cest toujours la seule, - ou cest le seul moment; / Car es-tu reine, toi!
la premire ou dernire? / Es-tu roi, toi le seul ou le dernier amant?... // Aimez qui vous aima du
berceau dans la bire; / Celle que jaimai seul maime encor tendrement: / Cest la mort ou la
morte... O dlice! tourment / La rose quelle tient, cest la Rose trmire. // Sainte napolitaine
aux mains pleines de feux, / Rose au coeur violet, fleur de sainte Gudule: / As-tu trouv ta croix
dans le dsert des cieux? // Roses blanches, tombez! Vous insultez nos dieux, / Tombez,
fantmes blancs, de votre ciel qui brle: / - La sainte de labme est plus sainte ms yeux!.
23
Em outro momento do texto, ficamos sabendo que o professor, noite, observava as estrelas
e as chamava de Mariazinhas, mesmo quando faltavam as Trs Marias (p. 965).
46
24
Do excerto feito, importaria ainda destacar um determinado adjetivo empregado pelo autor:
hebetizado. O emprego desta forma em portugus incomum. No caso, estupefato,
estupidificado ou embotado seriam acolhidos com menos reserva. No entanto, a escolha
recaiu exatamente sobre um vocbulo cujo emprego muito mais largo em francs, a partir de
hbter, ainda que encontremos hebetar ou hebetizar em nossa lngua. Serve o exemplo
para ilustrar a concorrncia do francs com o portugus na formao discursiva do autor.
47
26
Ipotesi (Milo: Guanda). O autor houvera escrito os textos em italiano e j os tinha enfeixado
em forma de livro e com o ttulo com que veio a pblico. A traduo aqui transcrita pode ser
encontrada em MENDES, 1995, p. 1708.
27
A publicao da obra, com posfcio de Mia Laconte, foi feita em 2004 pela Zone Editrice, de
Roma, e faz parte de uma coleo dirigida a autores da migrao que tm produo em
italiano. Coincidentemente, a coleo foi inaugurada com um volume dedicado a um outro
brasileiro, muito pouco conhecido entre ns, que Heleno Oliveira. O segundo volume
homenageia justamente o poeta Murilo Mendes.
51
Quando Steiner fala, por exemplo, do argentino Jorge Luis Borges, ele
se refere a um escritor que estava em casa em ingls, francs, alemo,
italiano, portugus, anglo-saxo e nrdico antigo, bem como em um espanhol
que [era] constantemente entremeado com elementos argentinos (p. 36). O
crtico certamente est se referindo, no fundo e ao cabo, a uma propriedade
dos grandes escritores universalistas. Diz ele, encerrando, que o importante
a noo central do escritor como hspede, como ser humano cujo trabalho
permanecer vulnervel a mltiplas presenas estranhas, que deve manter as
portas de sua pousada momentnea abertas a todos os ventos (p. 37).
28
Em Convergncia (1970), segundo Las Corra de Arajo (2000), possvel encontrarmos
dentro da matemtica especfica da linguagem muriliana a confluncia, a concorrncia, das
retas que passam pelo mesmo ponto (proposio geomtrica), a converso de uma freqncia
outra (proposio fsica), a convivncia das construes morfolgicas (lgica simblica) e a
convexidade prismtica (proposio ptica) do texto (p. 129).
55
respeito do poeta mineiro, que tambm ajuda a esmaltar nosso raciocnio. Diz
Picchio:
Finalizando esta parte, vale a pena recorrer aos dois ltimos blocos de
texto de A idade do serrote. Neles se podem perceber, amalgamados, o
homem e o poeta Murilo Mendes. A literatura francesa continua a ser a
importante fornecedora de vozes que ajudam a enquadrar o pensamento do
escritor mineiro:
29
Em Histria do Brasil, Murilo Mendes dedica o poema Pescaria ao anedtico episdio do
grito da independncia e assim, causticamente, a ironiza: Foi nas margens do Ipiranga, / Em
meio a uma pescaria. / Sentindo-se mal, D. Pedro / Comera demais cuscuz / Desaperta a
barriguilha / E grita, roxo de raiva: / Ou me livro desta clica / Ou morro logo dua vez! / O
prncipe se aliviou, / sai no caminho cantando: / J me sinto independente. / Safa! Vi perto a
morte! / Vamos cair no fadinho / Pra celebrar o sucesso. / A Tuna de Coimbra surge / Com as
guitarras afiadas, / Mas as mulatas dengosas / Do Club Flor do Abacate / Entram, firmes, no
maxixe, / Abafam o fado com a voz, / Levantam, sorrindo, as pernas... / E a colnia brasileira /
Toma a direo da farra. (MENDES, 1995, p. 164-5).
58
Diante disso, podemos dizer que a sada da lngua por parte dos
escritores pelo menos daquela lngua representante do cnone vigente era
uma atitude no de todo inesperada. O artista tornou-se uma espcie de
migrante lingstico, que saa em busca de outra palavra para uma (a sua)
nova forma de expresso.
Para tanto, foram ao folclore, fala estropiada das vrias regies e dos
variados representantes, cultura primitiva, imagem do carnaval
proporcionado pelo processo de colonizao, numa atitude de afronta ao
mesmo tempo jocosa e sria ao institudo e protegido pela aura mgica das
belas artes30. Na boa fala de Alfredo Bosi, uma ruptura que significava abolir
o passado de ontem e sair procura de um eterno presente. O contrapeso da
originalidade nativa para inutilizar a adeso acadmica, era o que pedia o
Manifesto Pau-Brasil (2003, p. 218)31.
30
Diz Alfredo Bosi que o contemporneo, para reconhecer-se como tal, d as costas ao estilo
e ao gosto que ainda parece resistir (2003, p. 211).
31
Tambm Murilo Mendes exercitou-se na produo de poemas cujo objetivo era uma afronta
mais direta aos modelos institudos. Este parece ser o caso, por exemplo, de Histria do Brasil,
publicado em 1932. No h na obra, de fato, um discurso pessoal, um tom que individualize a
voz potica de Murilo Mendes. Trata-se de mais um exemplo da produo iconoclasta,
irreverente, satirizando Oswald de Andrade o nosso processo de descobrimento e de
colonizao.
59
33
Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra / disse: Vai, Carlos! ser gauche
na vida. (ANDRADE, 1983, p. 3).
61
34
Aprendi algumas lnguas estrangeiras apenas para enriquecer a minha prpria, diz
Guimares Rosa (MARTINS, 2001, p. x).
62
expresso por meio de uma lngua se encontram inmeras outras lnguas num
virtual dilogo permanente.
Hoje, com o material que se apresenta para anlise, podemos dizer que
Ipotesi alou Murilo Mendes galeria dos poucos escritores expressivamente
bilinges no sculo XX e representou, na trajetria literria do autor, mais um
passo rumo universalizao pretendida pelo poeta.
35
Em nossa dissertao de mestrado, procuramos mostrar que Murilo Mendes sempre foi um
autor sintonizado com o seu presente. Mas, ainda que fosse ousado muitas vezes em suas
criaes, era sempre vigiado pelo conhecimento adquirido na tradio.
36
As cartas de Murilo Mendes a Las Corra de Arajo (2000) atestam bem essa preocupao
do poeta com os seus escritos.
37
O artigo descritivo apareceu em PICCHIO, L. S. Scritti in onore di Giovanni Macchia. Milano:
Mondadori, 1981, I, IV, p. 789-802.
66
O quadro que segue tem por objetivo resumir um pouco o que se disse
at agora e propiciar uma viso mais panormica da obra. Ele serve
igualmente para percebermos o quo dessemelhantes so os textos de
Papiers, bem como quais deles trazem informaes quanto a local e data de
elaborao:
38
A pesquisa do autor anterior publicao, em 1994, da primeira edio de Poesia
completa e prosa.
71
Ora, a crtica sobre Murilo Mendes parece entender que uma das
caractersticas da escritura muriliana justamente o seu carter proteiforme
(ARAJO, 2000; FRIAS, 2002; LUCAS, 2001; NEVES, 2001). No caso do
poeta juiz-forano, portanto, tentar encontrar um ponto de estabilidade no que se
refere a sua filiao a uma determinada corrente, a um determinado grupo, a
uma determinada escola, tarefa das mais difceis. A potica de Murilo
Mendes se apresenta em permanente e rpida transformao formal.
40
Cf. Silva, 2004, p. 151 (As crnicas de Murilo Mendes aparecem editadas no livro organizado
por Maria Luiza Scher Pereira e Teresinha Vnia Zimbro da Silva, j mencionado).
41
Faremos sempre nossas observaes acerca das condies grficas do texto de Murilo
Mendes, a partir do que se encontra em PEREIRA e SILVA (2004). Partimos da premissa de
que a formatao do texto tenha tido a superviso e a convenincia do autor poca da
publicao das crnicas.
75
O poeta mineiro havia sido sincero ao dizer que achava maante uma
determinada orquestra mineira. O autor lamentava a mesmice, o atraso, a falta
de novidade de jovens embebidos no que ele denomina de velharias
42
Chronica mundana num. 199 A Tarde, Juiz de Fora, 9 de outubro de 1920, Ano I, p. 2
(Cf. SILVA, 2004, p. 153-154).
77
[...]
Essa busca pelo saber pode ser sentida ao longo de toda a trajetria do
autor mineiro e verificada no extrato cultural que possvel retirar de seus
textos. Quanto satisfao do autor em relao ao que o circunda, Garcez
quem nos fornece um resumo, a partir da leitura que fez da escrita
memorialstica:
43
Chronica mundana, num. 258 A Tarde, Juiz de Fora, 18 de dezembro de 1920, Ano I, p. 2
(Cf. SILVA, 2004, p. 179).
79
Talvez por isso tenha assinado os textos ora como De Medinacelli (na maioria
das vezes), ora M. M. M., ou, ainda, M. M. Mendes. Em uma palavra:
procurava uma identidade mais apropriada44.
Entretanto, para alm disso, podemos perceber que Murilo Mendes tinha
clara conscincia do carter efmero do contedo trabalhado nestas
publicaes. Escreveu o autor: Devo confessar que as minhas crnicas no
tm valor algum: mesmo que eu as escrevesse muito bem, no me felicitaria
por isso, porque sei que o gnero de tais escritos ultrafrvolo (MENDES apud
SILVA, 2004, p. 160).45
44
Dissemos que a maioria das crnicas foi assinada por De Medinacelli, um pseudnimo para
o escritor das crnicas mundanas, mas gostaramos de fazer um registro importante a favor
da questo da identidade do cronista Murilo Mendes. O texto de 19 de outubro de 1920 (Cf.
SILVA, 2004, p. 160-163) traz explicitamente uma espcie de endereamento: Para o poeta
Harold ler.... Trata-se, portanto, de um texto com destinatrio especfico. A crnica , com
efeito, uma crtica irnica e ferina produo de um poetastro chamado Harold e Murilo
Mendes no o poupa, chegando a sugerir ao vate, ao final da dissecao de seus versos, a
lavoura (que, segundo o Murilo cronista, necessitava de braos) como sada para o
pretendente a poeta. Murilo Mendes, entretanto, nesta crnica, assina M. M. Mendes e,
abaixo, entre parnteses, De Medinacelli, ou seja, importante destacar que Murilo no se
escondeu por trs de uma mscara para atacar o poeta Harold.
45
Este depoimento de Murilo Mendes expe um pensamento social corrente e um tanto
equivocado em relao ao gnero crnica. Se o autor estiver se referindo a um subgnero, ou
seja, especificamente a este tipo de crnica social por ele praticado, pode-se aceitar a sua
afirmao, mas, caso contrrio e hoje diante de nomes como os de Paulo Mendes Campos,
Fernando Sabino, Luiz Fernando Verssimo e tantos outros , sua declarao parece ser
injusta.
80
46
Chronica mundana num. 196 A Tarde, Juiz de Fora, 6 de outubro de 1920, Ano I, p. 2
(Cf. SILVA, 2004, p. 151).
81
49
Ainda que seja apenas a ttulo de ilustrao das idias contidas nestes pargrafos,
bastante interessante observar o lastro do francs na esfera cultural, social, literria e cotidiana
do Brasil do incio do sculo XX. Existe um texto escrito por Srgio Buarque de Holanda,
publicado, poca, em A Garoa, em sua edio de 3 de janeiro de 1922 (decorridos, portanto,
cem anos desde a Independncia de Portugal), que pode muito bem dar a dimenso da
insero do esprito francs entre ns. Com pouco mais de uma dezena de pargrafos, no
chegando a ocupar trs pginas inteiras (o livro tem formato 22 x 22 cm, com 12 x 16 cm de
mancha, impresso em Agaramond 12/17), o texto, intitulado ... il faut des barbares que ,
frise-se, uma saudao aos primeiros artistas do Modernismo brasileiro em seu empenho
iconoclasta sem mencionarmos as aluses indiretas, traz em seu corpo as expresses parti
pris e fin de sicle, a meno direta a nomes como os de Rimbaud, Gustave Kahn, Rodin,
Czanne, Coubert, Apollinaire, Marcel Proust, Romain Rolland, Albert Amier, Balzac, Ernest
Hello, Gauguin e Paul Claudel (do qual so transcritos, inclusive, dois versos na ntegra, O
pote, je ne dirai point que tu reois de la nature / aucune leon, cest toi qui lui imposes ton
ordre.), Charles-Louis Philippe (evidentemente, por ser o autor da frase que d origem ao ttulo
do artigo, maintenant il faut des barbares). H, ainda, que se falar da meno feita obra
coletiva As Noites de Mdan, da qual participam, dentre outros, Zola, Maupassant e Huymans.
O texto de Srgio Buarque de Holanda pode ser encontrado s pginas 37-39 do livro 22 por
22 : a Semana de Arte Moderna vista pelos seus contemporneos, organizado pela professora
Maria Eugenia Boaventura e publicado pela EDUSP em 2000.
84
Quando consultamos o livro Palavras sem fronteiras, de Sergio Corra da Costa, publicado
pela primeira vez em 1999, ficamos sabendo que, apesar dos fast-foods, do stress da
sociedade high tech do final do sculo XX, as expresses francesas ainda so em maior
nmero no mundo, se as compararmos com as do ingls, a segunda de maior penetrao e
permanncia nos pases. Costa, em uma das rubricas do livro (Algumas marcas hors-
concours) faz um retrospecto sucinto e interessante a respeito da penetrao do idioma
francs em nvel mundial. Vale a pena retom-lo: Na Idade Mdia e no incio da poca
moderna, os acordos internacionais eram redigidos em latim, lngua na qual se desenvolviam
as negociaes. Os debates dos tratados de Vestflia (1648), que puseram fim guerra dos
Trinta Anos, revelaram as deficincias do vocabulrio latino, que no se atualizara. Os
negociadores tiveram de voltar-se para as lnguas vivas mais praticadas. O francs se
sobreps rapidamente ao espanhol e ao italiano. No final do sculo XVIII, os tratados j haviam
passado a ser escritos habitualmente em francs. Foi o caso do tratado de Viena de 1815.
Sempre que outras lnguas eram utilizadas, o texto que fazia f era o francs (COSTA, 2000,
p. 31).
85
50
O primeiro poema do livro de Bandeira (Petit chat blanc et gris / Reste encore dans la
chambre / La nuit est si noire dehors / Et le silence pse // Ce soir je crains la nuit / Petit chat
frre du silence / Reste encore / Reste auprs de moi / Petit chat blanc et gris / Petit chat // La
nuit pse / Il ny a pas de papillons de nuit / O sont donc ces btes ? / Les mouches dorment
sur le fil de llectricit / Je suis trop seul vivant dans cette chambre / Petit chat frre du silence /
Reste mes cts / Car il faut que je sente la vie auprs de moi / Et cest toi qui fais que la
chambre nest pas vide / Petit chat blanc e gris / Reste dans la chambre / Eveill minutieux et
lucide / Petit chat blanc et gris / Petit chat.) apresenta local e data : Petrpolis, 1925 ; o
segundo (Coeur de phtisique / O mon coeur lyrique / Ton bonheur ne peut pas tre comme
celui des autres / Il faut que tu te fabriques / Un bonheur qui soit comme le piteux lustucru en
chiffon dune enfant pauvre / - Fait par elle-mme.) no traz nenhum paratexto (Cf.
BANDEIRA, 1993, p. 129-130).
86
51
Segundo Deonsio da Silva (2002, p. 447), com o sentido de vestir-se com apuro, com
elegncia, o vocbulo apareceu em um texto chamado Contrabandista, contido no livro
Contos gauchescos e lendas do sul, de Simes Lopes Neto (1865-1916). H uma publicao
autnoma de Lendas do Sul em 1913 e de Contos gauchescos em 1926. pouco provvel que
M. M. tenha lido o tal conto. No entanto, no ter lido, para ns, at mais importante do que t-
lo feito, pois comprova muito mais o zeitgeist do final do sculo XIX e incio do XX
(con)formando a dimenso lingstica.
89
52
Victor Hugo morre, mais precisamente, aos 83 anos de idade, em 22 de maio de 1885:
Durante nove dias o povo parisiense vela-lhe o corpo. Em 1o. de junho, ao nascer do dia, dois
milhes de pessoas acompanham o cortejo, na maior demonstrao pblica que a Frana
jamais prestou a qualquer de seus poetas. Seu enterro no Panteo, o monumento fnebre dos
heris nacionais, fez justia ao talento de um dos maiores escritores do pas (Encarte Vida e
obra de HUGO, Victor. Os trabalhadores do mar. Traduo [de] Machado de Assis. So Paulo:
Nova Cultural, 2002, p. 31. Coleo Obras Primas).
90
Parece certo que, na vida de Murilo Mendes, por tudo o que vimos at
esta parte do trabalho (educao formal, paixo pelo idioma, conscincia do
carter metamrfico das coisas, nsia por universalidade, integrao ao
esprito iconoclasta modernista), chegaria um momento em que a escritura
exigiria a prpria existncia de textos totalmente escritos em lngua francesa.
Foi o que aconteceu. Perscrutemos um pouco, portanto, a estrutura de
Paysage.
53
As tradues dos textos escritos em francs, quando for o caso, sero sempre livres,
meramente ilustrativas e do autor do presente trabalho, salvo indicao expressa em contrrio.
54
importante salientar que Guimares foi preciso ao falar em traduo informativa. No
caso de Ipotesi e de Papiers, no h mesmo muito sentido em se fazer uma traduo. A obra
escrita numa lngua outra que no o portugus quer-se exatamente desta forma dentro do
conjunto da obra do autor, uma vez que, em alguns casos, aparecer em portugus a verso
do prprio autor, ou seja, haver um texto autnomo em portugus e um texto autnomo em
italiano ou francs.
95
55
Em Imparcialidade, de Poemas (1995, p. 102), encontramos alguns versos muito
interessantes de Murilo Mendes, os quais parece sintetizarem, terica e praticamente, este
conceito de metfora moderna: Os espritos da noite fogem pelos olhos das mulheres / pra
outro mundo de estrelas verdes / onde o pensamento acaba, e a sombra vasta.
97
Este pendor para uma especial zombaria que caracteriza uma faceta
procedimental de Murilo Mendes e deita suas razes em Poemas (publicado em
1930) , embora no se supere, avana e se estende s duas obras que
vieram imediatamente depois: o auto Bumba-meu-poeta (com textos de 1930 e
1931) moldado no teatro popular quinhentista e o livro Histria do Brasil (de
1932), uma variao ftil mas definitiva sobre a proclamao da repblica
(MENDONA apud ARAJO, 2000, p. 160).
A FAMLIA DO POETA:
O POETA:
pobre/pobre/pobre
meus/minhas
vou/vou/vou/vou
58
Papagaio vocbulo de origem incerta. Alguns estudiosos apontam babag, do rabe, ou
pippka, do snscrito, como fontes. (Ver CUNHA, 1982, p. 577 e SILVA, 2002, p. 351).
103
arremedo da lngua estrangeira, feita por pessoas que nem o portugus sabiam
bem dominar (GALVO, 2004). A mutilao lingstica, que se deu em relao
ao francs e que se faz presente na cantiga, foi aproveitada pela sensibilidade
crtica do poeta mineiro.
59
Alm, claro, deste sentido mesmo, que ser um vocbulo oriundo de uma cantiga de
origem europia e no ter sentido!
60
A letra da cantiga pode assim ser encontrada: Eu sou pobre, pobre, pobre, / De marr,
marr, marr. / Eu sou pobre, pobre, pobre, / De marr deci. //Eu sou rica, rica, rica, /De marr,
104
marr, marr. / Eu sou rica, rica, rica, / De marr deci. // Eu queria uma de vossas filhas, / De
marr, marr, marr. / Eu queria uma de vossas filhas, / De marr deci. // Escolhei a qual
quiser, / De marr, marr, marr. / Escolhei a qual quiser, / De marr deci e, em seguida,
cantam-se as variaes.
105
1 A reverncia a Apollinaire
Rio 28-7-1942
Guimares (1993), que teve acesso ao texto original, registra por sua
vez que, entre o primeiro e o segundo verso da estrofe inicial, h um verso
desconsiderado por Murilo Mendes: Les flammes habilles en Arlequin. Este
procedimento da parte de Murilo Mendes leva Guimares, com base nos
conceitos de Leonard Forster, a afirmar que se trata claramente de uma
gnese bilnge, em que protexto e texto se apresentam em lnguas distintas
(p. 246).
fantasma / Algum me reproduz com tinta da China / Quem sou eu? // Achem-me a chave do
futuro / Odeiem-me / Com a ajuda de pianos e de bblias volantes / Enquanto os Primeiros Pais
se detm no trovo / To tranqilos quanto a bia de cortia / Fenmeno obediente.
108
62
Os versos de Apollinaire, citados em Guimares, so os seguintes: En faisant la roue, cet
oiseau, / Dont le pennage traine terre, / Apparait encore plus beau, / Mais se dcouvre le
derrire.
63
Apollinaire falece em Paris, em 1918, vtima da gripe espanhola (mas quando ainda estava
convalescendo de grave ferida na cabea, uma das conseqncias da guerra. O poeta fora
para campo de batalha, como voluntrio, em 1914).
109
64
H, evidentemente, muitos outros textos em que aparecem as dedicatrias, mas elas se
apresentam como epgrafe e no exatamente como textos-homenagem. Estamos nos
referindo a escritos que exaltam aspectos das personalidades homenageadas. Existem
tambm os textos em prosa nos quais Murilo Mendes disserta poeticamente a respeito das
obras dos artistas, poetas ou no. So escritos como os que se encontram, por exemplo, nas
duas sries de Retratos-relmpago (a primeira srie veio a pblico em 1973 e a segunda ficou
indita at 1994) e no livro A inveno do finito (1960-1970).
65
A terra edifica sobre mim como uma guia ou um beijo / Os pressgios desabam sobre a
praia / Manequins de saibro / Interessa-me a poo / Que me traduz a ruindade a violncia.
66
Expulsaram-me de minha juventude sem fotos / Expulsaram-me da morte monumento de
cristal / Perdo a estrela azul e Inventai-me a chave do futuro / Odiai-me / Com a ajuda de
pianos e de bblias voadoras.
110
d) Bem cedo me fiz rfo / Para que todos possam bicar meu corao / E
o coqueiro d violetas;
1 Dorme, mundo!
2 Estrela, deita-te a meus ps,
3 tempo, some da minha memria,
4 infncia, famlias aparvalhadas olhando pra mim,
5 sumi.
10 Desaparece,
11 bruma da criao anterior,
12 manequim da nebulosa vermelha ardendo no quarto em febre,
13 vestido e sombra da mulher primitiva me tomando nos braos,
14 apaga-te, mo de Deus me formando na manh remota,
15 som, movimento, vontade, tempo, energia, desaparecei.
67
Os versos encontram-se em MENDES, 1995, p. 34; 341; 344; 382; 402 e 419,
respectivamente.
111
68
Sem pretender ligar os versos destes poemas de Murilo Mendes escrita automtica dos
surrealistas, o certo que, em muitos casos, jorra deles uma luz particular, a luz da imagem,
qual nos mostramos infinitamente sensveis (BRETON, 2001, p. 53).
112
a) de Gastone Biggi:
114
c) de Sinisca:
69
Seria muito interessante uma pesquisa que investigasse a pertinncia, a relevncia e a
inovao dos comentrios especficos de Murilo Mendes sobre cada uma das manifestaes
artsticas humanas, bem como o cruzamento entre eles. Acreditamos que se obteria, a partir de
um estudo desta natureza, uma grande teoria potica para a arte que tambm encerraria uma
dose considervel de teoria sobre a prpria escritura muriliana. No texto (em portugus e em
francs) sobre a pintura de (Maria Helena) Vieira da Silva, diz Murilo Mendes: A maravilha do
universo consiste em que tudo nele est em germe, em devir, em expanso; que todas as
interaes mentais, poticas, musicais so, ao menos teoricamente, possveis: que h uma
correspondncia de elementos diversos no sistema csmico e, em particular, num sistema de
imagens e sinais (p.1442).
70
Em Papiers, encontramos comentrios crticos, em prosa, a respeito das obras e/ou das
seguintes personalidades artsticas: Nino Franchina, Georges Bernanos, Alberto Magnelli,
Pierre Jean Jouve, Virduzzo, Lucio Fontana, Giulio Turcato, Jean Arp, Dubuffet, Nobuya Abe,
Max Ernst, Ezra Pound, Andr Breton, Vieira da Silva, Arpad Szenes, Simona Weller e Judith
Westphalen. H ainda um texto escrito em Montreal em setembro de 1967 e indicado por
Murilo Mendes como sendo improvisation cujo ttulo Texte de Montral. Nele, o autor fala
sobre o papel do poeta dentro do mundo de ento.
116
Picchio (1995, p. 1712) nos informa que Murilo Mendes deixou uma nota
no manuscrito do original francs71 e anexou cpias do texto publicado em
1961 na revista Quadrum, de Bruxelas. Tudo leva a crer, portanto, que os
comentrios sobre o pintor Alberto Magnelli parecem ter se originado em
francs, para, depois, receberem do autor uma verso em lngua portuguesa.
71
Escreve Murilo Mendes: Pour le texte dactylographi de Goldschmidt jai fait des retouches
du point de vue rdactionnel (1995, p. 1712).
117
72
Quando lemos Retratos-relmpago, Janelas verdes, Inveno do finito, Conversa porttil, na
comparao com Papiers, alm de verses bilinges sobre Alberto Magnelli, sobre Lucio
Fontana e Giulio Turcato, encontramos tambm textos em portugus e em francs e que so
claramente duas verses de Murilo Mendes para o mesmo texto sobre Pierre Jean Jouve,
Jean Arp, Max Ernst, Ezra Pound, Andr Breton, Vieira da Silva e Judith Westphalen.
73
A Terra um fogo oval, / Uma rvore de minerais, um cubo que lana cores / a regio de
mil anamorfoses / Que variam seus rostos, se refletem / Reciprocamente. // A Terra o campo
frtil e limitado / Mesmo para o pincel que se aventura / No provvel territrio desconhecido: /
Ele busca ao mesmo tempo destruio/construo.
118
[...]
*
74
At aquela oportunidade, Murilo Mendes valia-se dos algarismos indo-arbicos, para indicar,
em alguns poemas, a separao entre as partes de uma mesma estrofe. Vejam-se os vrios
exemplos que aparecem em O visionrio, Os quatro elementos, A poesia em pnico, As
metamorfoses, Mundo enigma, e, sobretudo, Poesia e liberdade.
75
possvel comprovar a nossa afirmao recorrendo, por exemplo, a Contemplao de
Alphonsus (p. 490-501) : o poema composto de vrias partes, contendo, cada uma, um
nmero variado de estrofes. O limite entre cada parte do poema est indicado por uma
pequena linha horizontal de uns dois centmetros, impressa no centro, no espao que ficaria
em branco entre uma estrofe e outra.
119
76
Leia-se, a ttulo de ilustrao, o fragmento abaixo, que se encontra s pginas 1134 e 1135
de Poesia completa e prosa:
Propuseram ao rei diversos projetos: decidiu-se pelo que daria ao mosteiro a forma duma
grelha, alusiva ao instrumento de martrio do padroeiro.
A tradio informa-nos que So Loureno tinha sense of humor: ningum ignora o trecho da
sua paixo quando, j assado pela frente, pede ao carrasco que o assem tambm pelas
costas. Poderia ser um dito de Don Quijote, cujo pai, de resto, contemporneo de Felipe.
Don Quijote, suponhamos, divisa ao longe ...
120
77
Marta Moraes Nehring diz exatamente que os sinais grficos, situados no incio de
pargrafos organizados em blocos, constituem mais um procedimento construtivo que trabalha
a favor da potica do fragmento. Denotam as etapas no de um conhecimento progressivo ou
gradual, mas da percepo que privilegia o acmulo de pontos de vista, numa linguagem que
poderia pertencer a um quadro cubista. (2003, p. 83-84)
121
78
Embora, mais adiante, neste trabalho, falemos do processo ecfrsico, aos interessados neste
tipo de processo dialgico, sugerimos a leitura de As interfaces de Murilo Mendes ou Da
pintura ao texto potico: um exemplo de ekphrasis em Murilo Mendes, encontrado em
BARBOSA e RODRIGUES (2000).
79
No que se refere ecfrase ou parasite por excelncia em Murilo Mendes, uma linha de
pesquisa sugerida por Barbosa e Rodrigues (2000) aquela que trata das obras literrias
onde arte e artista, fictcios ou histricos, figurem de maneira central (p. 118). As autoras,
falando a respeito do poema Picasso, ressaltam que Murilo inicia pela imagem popular pegar
o touro unha, prpria das touradas de Espanha. Pas de contrastes, de tons fortes e radicais,
est no claro/escuro dos quadros, no construir/destruir do Guernica, na matria-prima do
objeto de barro (cermica), em formatos vrios releitura do real e do possvel. Ainda mais
adiante, complementam as pesquisadoras: O objeto inimigo a guerra, o rejeitvel foi
124
assimilado por Picasso e por Murilo Mendes. O bero da cultura ocidental Roma e Grcia
complementam-se pelo primitivismo estilizado que a frica lega a Picasso. (p. 119).
125
80
Haroldo de Campos (1995), tendo como ponto de referncia o Poesia Liberdade (1943-
1945), lanado em 1947, escreve um artigo partindo do aforisma muriliano Passaremos do
mundo adjetivo para o mundo substantivo cujo ttulo justamente Murilo e o mundo
substantivo (P. 41).
126
81
O casal, assim que chegou ao Rio de Janeiro, residiu na Rua Marqus de Abrantes, onde
morava tambm o poeta Murilo Mendes.
127
6 De cristaux superposs,
7 De fines pes.
8 Je te dduis
9 De la convexit des miroirs;
10 De ltoile des cristaux
11 Qui sunissent, blancs,
12 Pour um seul exemple,
13 Pour um seul silence,
14 Un amour concis,
15 Une seule ternit issue
16 De cette terre mme,
17 De cet espace dompt:
18 Atome pur
19 Dont les traces disparaissent
20 Dans les labyrinthes noirs du blanc;
21 Atome devenu gal lui-mme
22 Par lascse et la rigueur du blanc.82
82
Nas fendas do branco / Nos negros espelhos do branco, / Nos palcios negros, cinzentos e
amarelos do branco, / Esprito eu te encontro, / Sombra real, concreta, / De cristais sobrepostos
/ De finas espadas. // Eu te deduzo / Da convexidade dos espelhos; / Da estrela dos cristais /
Que se harmonizam, brancos, / Para um s exemplo, / Para um s silncio, / Um amor breve, /
Uma s eternidade sada / Desta terra mesma, / Deste espao domesticado: // tomo puro /
Cujos traos desaparecem / Nos labirintos negros do branco; / tomo reduzido a ele mesmo /
Pela ascese e o rigor do branco.
83
Este poema aparece, pgina 1569 de Poesia completa e prosa, com a indicao que aqui
se encontra (Paris, 6-5-1955), inserido imediatamente aps un peintre (datado de 1954) e
imediatamente antes de Pierre-Louis Flouquet (datado de 1957). O texto, portanto, assim
inserto, obedece a uma ordem cronolgica. Todavia, Picchio registra uma informao diferente
nas Notas e variantes. Diz a pesquisadora que o manuscrito traz a indicao Paris, 6-5-
1965. Constata-se, assim, a troca de 55 por 65. Lemos o poema a partir da indicao
1955. No h traos distintivos fortes, capazes de situ-lo num outro contexto. Acrescente-se
a isso o fato de Murilo Mendes ter estado na Europa entre 1952 e 1956, o que justificaria a
composio do poema em 1955.
128
84
O texto faz parte do Catlogo da Expo Arpad Szenes em 5 museus de Frana, 1971.
85
[Arpad Szenes] se entende nas metamorfoses e se mostra atento, seja aos signos da
matria, seja aos do mundo invisvel.
86
No incio do texto, Murilo Mendes registra: Je vois en Arpad Szenes un pote qui au lieu de
mots emploie, pour sexprimer, les couleurs et la toile [Vejo em Arpad Szenes um poeta que,
no lugar de palavras, emprega, para se exprimir, as cores e a tela].
87
um homem singular, cuja vida e obra se inscrevem nos antpodas da vulgaridade
mecanicista de nosso tempo. Sua escritura paciente, sua predileo pelos tons brancos, por
meio dos quais, paradoxalmente, ele consegue traduzir o flanco noturno das coisas, as
manchas bizarras, as transparncias, bastam para classific-lo como algum mpar, enredado
com uma linguagem pessoal de pesquisador que se ope a qualquer retrica.
129
crevasses du blanc
88
Em nossa dissertao de mestrado, tivemos a oportunidade de discutir um pouco esta
questo que envolve a construo da imagem potica. O resultado de nossa pesquisa foi
publicado em forma de livro com o ttulo de Murilo Mendes e a imagem potica do assombro:
anlise de poemas.
130
marcado por uma maior rapidez, ora, por maior demora, avano, recuo ou
pausa, segundo a facilidade ou a dificuldade encontrada para a travessia da
estrutura sinttica:
de la convexit De ltoile;
5 A Pierre-Louis Flouquet
3 O pote humain,
4 Tu connais maintenant la vaste zone dombre
5 Illumine par un point minime:
6 Mais ce point ouvre sur des galaxies
7 De nouveaux lments insouponns.
8 Voici la musique jamais oue auparavant,
9 La forme insaisissable tout pinceau.
89
A estrela que se elevou ao cu / Tinha descido dele antes. // poeta humano, / Tu
conheces agora a vasta zona de sombra / Iluminada por um ponto mnimo: / Mas este ponto
inaugura sobre galxias / Novos elementos insuspeitados. // Eis a msica jamais ouvida antes,
/ A forma imperceptvel a qualquer pincel. // Por que a estrela subiu ao cu / Se no para te
anunciar / A quinta dimenso do sofrimento, / A esperana da ressurreio? // Como nos
quadros dos antigos flamengos / Um campo de minsculas flores / Produz a perspectiva
infinita.
133
90
O texto em francs sobre Pierre-Louis Flouquet diz o seguinte: Devenu lun des chefs de file
en vue de la Plastique pure, il expose rgulirement ltranger lorsque vers 1928, revenu
avec exaltation la foi chrtienne de son enfance, il oriente sa peinture vers un expressionisme
marqu par une profonde angoisse existentielle et de puissants lans mystiques (crucifixions).
Ds les annes 30, cest toutefois la posie qui le requiert en priorit et lui permet dassouvir
une inextinguible soif spirituelle ainsi quun altruisme exceptionnel. (cf. www.idearts.com)
134
No nos parece que este poema francs tenha destoado dos demais
poemas da srie que estamos analisando, se nele forem observados os
procedimentos formais, a linguagem empregada e o mecanismo de construo
das imagens que caracterizam a poesia de Murilo Mendes. No entanto,
acreditamos que textos desta natureza, por serem muito direcionados, acabam
limitando a leitura e, por conseguinte, o carter mais universal da poesia.
91
No estamos querendo dizer, com isso, que uma obra de arte no possa ser
encomendada. Foram muitos os artistas que nos deixaram legados preciosos justamente
porque escreveram, compuseram, esculpiram, modelaram, fotografaram, pintaram, graas s
encomendas. Mas acreditamos que a deliberada interferncia externa, seja ela de que
natureza for, acaba por ser prejudicial ao esprito que preside obra de arte, ao fenmeno
esttico, liberdade de expresso que deve entranhar a criao artstica.
135
6 Toast
92
Quando eu retornar a Paris / Um homem vertical de gorro catalo / Ajudado por nove
sombras de musas / Me estender uma mo fraternal. / Ento a estrela ser repartida. // A
poesia nos ser servida diretamente, / A poesia amada de amor por este homem essencial /
Que, nada tendo pedido, tudo recebeu: / E os grandes espanhis, Apollinaire, Sponde e Scve
estaro entre ns. // Na ilha de Saint Louis, / Na Paris oval/medieval // Eu passearei com o
tipgrafo / Que sabe, magicamente, manejar as letras: / ele o arteso rigoroso / E o poeta: /
Eu nomeei Guy Lvis Mano.
136
12 Un cerf-volant jaune/bleu/rouge
13 Sauve un poisson orang/indigo/violet
14 La ralit n. 1
15 Se bat avec la ralit n. 2
93
Um vaso de vidro maiorquino / Transborda pincis e tubos de cores: // Sbito eles se
erguem enrgicos / Trocam palavras inventadas / Alm do catalo // Suscitam chamas verdes /
Que brincam de esconde-esconde / Com o vento vindo de Tarragone // Nossas estrelas-filha
manuseiam um colimador / Linhas curvas e retas / Se pem a danar a sardana // Um cervo-
voador amarelo/azul/vermelho / Salva um peixe alaranjado/anil/violeta // A realidade n 1 /
Choca-se com a realidade n 2 // A desordem se torna a ordem fantstica / Da pintura-poesia
miroana // O sol v o pintor-poeta / Pelo buraco da fechadura: // Eis Joan Mir / Rodeado de
pedras/insetos/estrelas do mar / Eis Joan Mir / Que aps 75 anos ou 3000? / Nasce e
renasce todos os dias / De si mesmo / Do passado/do presente/do futuro /De um enorme conto
de fadas / Escrito e filmado de propsito por Joan Mir.
138
O terceiro e ltimo texto que Murilo Mendes dedicou a Joan Mir foi
escrito 1973 e faz parte da 2 srie dos Retratos-relmpago. O nome do pintor
espanhol d ttulo prosa crtica que projeta um discurso esclarecedor sobre
estes dois poemas-homenagem.
Vale a pena lermos uma tela de Mir com o objetivo de nos preparar
para a compreenso das palavras de Murilo Mendes:
94
Ao falarmos desta criao especular, poderamos citar, aqui, uma das linhas de pesquisa
relacionada ao processo da ecfrase encontrado na obra de Murilo Mendes. Tratar-se-ia,
segundo a distino proposta por Barbosa e Rodrigues, daquelas suas composies literrias
que recriam a totalidade da obra de um artista plstico (p. 119), como a que pode ser
percebida, por exemplo, no poema Maria Helena Vieira da Silva, citado pelas professoras e
sobre o qual mais adiante discorreremos.
140
como olhar para o homem Mir e no ver nele seno o artista. no texto crtico
que Murilo Mendes cataloga, sua maneira, a arte daquele que por vezes
passeou pelo expressionismo, danou no cubismo, brincou no dadasmo,
sonhou no surrealismo e, assimilando-os, afastou-se deles, construindo seu
inconfundvel trao pessoal.
Tudo isto pode ser comprovado, por exemplo, quando nos deparamos
com poemas como O mundo inimigo (p. 112), de Poemas (1925-1929), e
Final e comeo (p. 703), de Convergncia (1963-1966), para ficarmos apenas
nas extremidades mais salientes da obra potica de Murilo.
O mundo inimigo
Final e comeo
8 FIM?
artista Arpad Szenes) durante o perodo de 1940 a 1947. Foi nesta poca que
ambos puderam manter contato com Murilo Mendes e diversos outros nomes
importantes ligados s artes, integrando, assim, uma rede social importante
para a divulgao da obra da pintora. Com Murilo Mendes frente, forma-se
um crculo de admiradores solidrios e de peso no cenrio artstico brasileiro.
primeira exposio de Vieira da Silva, realizada em 1942 no Rio de Janeiro,
graas, sobretudo, ao empenho do poeta, compareceram Manuel Bandeira,
Vincius de Moraes, Ceclia Meireles, Jorge de Lima, alm de, obviamente,
Murilo Mendes95. Dentre outros trabalhos, Vieira da Silva foi responsvel, por
exemplo, pela produo dos desenhos das capas de Vaga msica (1942), de
Ceclia, e de Mundo enigma (1945), de Murilo.
1 Diurno e noturno
2 Longo e breve
3 Msculo e feminino
4 Onda e serpente
5 gua metlica
6 Chama rastreante
7 o bicho que habita
8 Na escadaria do sculo
9 Entre o sibilar das granadas
10 E a saudade dos minuetos.
11 Bicho nervoso
12 Minucioso
13 Tece uma trama h mil anos
14 Que se transforma com a luz.
95
O crculo de amizades de Vieira da Silva significativo e, alm dos citados, fazem parte dele
Lcio Cardoso, Arnaldo Estrella, Rui Santos, Lasar Segall, Roberto Burle-Marx, Carlos Scliar,
Ruben Navarra, Athos Bulco, Alcides da Rocha Miranda, Arthur Bosmans, Mariuccia Iacovino,
dentre outros.
Para informaes mais detalhadas a respeito deste perodo de permanncia de Vieira da Silva
no Brasil, sugerimos a consulta ao ensaio Dois mil dias no deserto: Maria Helena Vieira da
Silva no Rio de Janeiro (1940-1947), de Valria Lamego. O texto foi publicado no catlogo
Vieira da Silva no Brasil, mas se encontra disponvel tambm em stio da internet, cuja
indicao completa se encontra no final deste trabalho.
145
15 Em contraponto s formas
16 Da cidade organizada.
17 E o bicho nervoso
18 Pesquisa sua perfeio,
19 Bicho diurno e noturno.96
96
Este texto contm os reparos feitos pelo poeta Murilo Mendes no poema que veio a pblico
em 1944. A nosso ver, as alteraes so significativas a ponto de constiturem um texto
autnomo. O poema inicial apresenta-se da seguinte forma: Diurno e noturno / Longo e breve /
Msculo e feminino / Onda e serpente / gua metlica / Chama rastreante / / E o bicho que
habita / Na escadaria do sculo / Entre o pipocar das granadas / E a saudade dos minuetos /
Bicho nervoso / Minucioso / Borda um bordado h mil anos / Que se transforma com a luz / E
que vai crescendo / At a eternidade.
146
1 Repousa na harpa-sof
2 A mulher com o filho prdigo,
3 Sirne bleue nonchalante,
4 Veio da terra de Siena
5 Talvez medieval ou chinesa.
6 Eis o grande no minsculo:
7 Da minha infncia que veio,
8 Ou do tempo que vir.
Temos aqui um outro bom exemplo de ecfrase, que pode ser resumida,
de modo bem sucinto, como um discurso dialgico exercido sobre uma leitura
j registrada de uma imagem (BARBOSA e RODRIGUES, 2000, p. 108).
97
Para casar melhor com o esprito criativo que preside o texto de Vieira da Silva,
sugeriramos Azulnguida sereia como uma possvel recriao do verso em Portugus.
149
98
O adjetivo chinesa pode fazer referncia tambm tinta (da China), utilizada pela artista.
99
Ao que tudo indica, este texto sobre Vieira da Silva, contido em Janelas Verdes (p. 1442-43
na Obra completa) teve sua origem em francs, ou seja, este, que foi inserto pelo autor em
150
8 Comprime
9 Leau
10 Trace
11 Son
12 Histoire
13 Droite.
Papiers (p. 1595-96). Para confirmar esta hiptese, veja-se o comentrio de PICCHIO (1995, p.
1711): Vieira da Silva: Texto datilografado em preto, com correes de erros de datilografia
Datado Rome, 24 mai 1969 Indicao ms. final, em tinta azul, esferogrfica (Publi dans le
catalogue de lexposition de Vieira da Silva la Fondation Calouste Gulbenkian Lisbonne,
1969).
100
Ns deciframos o labirinto cartesiano. / Da uma linha apaga uma outra. / A imaginao
critica a realidade: / Lcida, ela no a destri. / O temperamento refreado pela cultura. / O
cristal maduro medita. / Grandes planos se humilham. //Comprimida / A gua / Traa / Sua /
Histria / Reta. // O pincel tem conscincia da geometria. A geometria tem conscincia da
solido. A solido tem a conscincia do espao. O espao afronta o tempo fluido e sucessivo.
O tempo ordena problemas. Os problemas atacam o labirinto. O labirinto se conhece: ele
constri no interior dele mesmo um outro labirinto.
151
101
Valemo-nos, como j foi mencionado, de uma reimpresso da segunda edio da Poesia
completa e prosa do autor, feita em 1995 pela Editora Nova Aguilar. Trata-se de um alentado e
bem cuidado volume nico. No entanto, aqui e ali, podem surgir alguns equvocos de
impresso. Este parece ser o caso da primeira seqncia sinttica encontrada no terceiro
mo(vi)mento do poema Vieira da Silva.
Na referida edio lemos o seguinte: Le pinceau a conscience de la la [sic] gomtrie a
conscience de la solitude. Porm, a inteno do autor, subjacente estrutura posterior do
segmento, contraria esta construo inicial:
La solitude a conscience de lespace. Lespace affronte le temps fluide et successif. Le temps
dvide des problmes. Les problmes assaillent le labyrinthe. Le labyrinthe se connat: il
construit au-dedans de lui-mme un autre labyrinthe.
Observamos que a estrutura rtmica proposta a de uma forma popular de recitao: a
parlenda. As parlendas podem ser exemplificadas com textos semelhantes aos de Hoje
sbado, / p de quiabo. / Amanh domingo, / p de cachimbo. / Cachimbo de ouro, / bate
no touro. / Touro valente, / bate na gente. / A gente fraco, / cai no buraco. / Buraco fundo,
/ acabou-se o mundo.
Embora encontremos variaes de letras para as parlendas, dado o seu carter oral, popular, o
seu ritmo no tende a sofrer variaes significativas. O modo de recitao permanece, como se
fosse o esqueleto necessrio sua permanncia como parlenda: existe um esquema de rimas
paralelas entre versos curtos e a ltima palavra de um verso par retomada no incio do
primeiro verso mpar seguinte.
A seqncia Le pinceau a conscience de la gomtrie. La gomtrie a conscience de la
solitude insere-se, portanto, no ritmo de parlenda que preside o incio deste bloco textual. Por
esta razo, corrigimos o texto constante da Poesia completa e prosa.
155
No final das contas, a prova dos nove perceber que, embora todos os
segmentos do poema (e todos os componentes das telas de Vieira da Silva)
ofeream dificuldade de compreenso imediata, todos trazem uma ordem
interna e todos se integram. O prprio poema cumpre esse movimento
ininterrupto de idias que vo se expandindo e que se completam, se
complementam, se retomam, se renovam, se comunicam: Le labyrinthe se
connat: il construit au-dedans de lui-mme un autre labyrinthe. Sobre Vieira
da Silva, diz o poeta Murilo:
Silva (como a maior parte da arte vanguardista do sculo XX) preciso ir alm
da realidade plana captada pelos nossos sentidos e analisada pela nossa
inteligncia. Anular momentaneamente as linhas limtrofes entre realidade e
imaginao seria um bom comeo. O poeta nos diz que a imaginao critique
la ralit, mas com uma lucidez que no a destri.
102
Na edio de Poesia completa e prosa aparece Lar-en-ciel. Trata-se, evidentemente, de
um erro de impresso.
161
b) O tempo rodando com sua foice / Corta o meu trajo, // Atrai a tesoura de
tropos. (Grafito na lpide dum alfaiate grego, p. 645);
103
A traduo na verdade, uma recriao proposta a seguir do poeta e ensasta Paulo
de Toledo. O seu texto encontra-se disponvel em stio da internet, cujo endereo se encontra
ao final deste trabalho. O autor, num processo de criao muito interessante, procurou imprimir
ao seu poema a informao esttica proporcionada pelo poema original em francs, razo
pela qual, muitas vezes, a informao semntica inicial pode ter sido deixada de lado: A
menina Joana dArc. / O arco de Joana dArc. / A roda do arco de Joana dArc. / Os outros
jogos de Joana dArc: a madressilva, a cotovia, a cantiga, o bilboqu de Joana dArc. / O po
divino e o vinho, o queijo: os preitos de Joana dArc. / A adolescncia de Joana dArc. / A
abstinncia de Joana dArc. // O hombre de Jeanne dArc. / A sombra de Joana dArc. // O
corao de Joana dArc. / A comoo de Joana dArc. // A voz de Joana dArc. / As vozes de
Joana dArc. // A fidalga Joana dArc. / A figadal Joana dArc. // O rei de Joana dArc. / O Ubu
rei de Joana dArc. // O sim de Joana dArc. // O fogo de Joana dArc. // O lar de Joana dArc. /
O altar de Joana dArc. // O arco-ris de Joana dArc. // A arcanizao de Joana dArc. // O
advir sem Bomba. Sem espada. A paz.
104
Em Papiers, portanto, Murilo Mendes tem dois textos dedicados a Arpad Szenes: o poema
que analisamos neste trabalho, Salut Arpad Szenes (p.1569), e um escrito em prosa (p.
1598).
162
105
O fonema /d/ explorado nos exemplos a e c e o fonema /t/ no exemplo b.
163
106
Tambm encontramos em A idade do serrote (1965-1966) idntico processo criativo: [...] As
tmporas da rom, as tmporas da ma, as tmporas da hortel.
As pitangas tempors. O tempo temporo. O tempo-ser. As tmporas do tempo. O tempo da
ona. As tmporas da ona. O tampo do tempo [...] (p. 897).
107
O mundo das crianas est repleto de construes que brincam com a camada sonora da
lngua. o caso, por exemplo, de O sapo no lava o p, que, na seqncia, se desdobra em
A sapa na lava a p para, depois, repetir-se em E sepe ne leve e p, I sipi ni livi i pi e
assim por diante. Reparamos que as canes infantis, ludicamente, trabalham o princpio da
equivalncia. Haja vista o jogo que consiste em partir de um enunciado em geral
semanticamente desmotivado e servindo de mera estrutura-pretexto para projetar
sucessivamente sobre o eixo sintagmtico o paradigma constitudo pelo conjunto das vogais,
isolando-as uma a uma e tornando-as recorrentes (LARANJEIRA, 2003, p. 74).
164
No entanto, o apelo visual pode igualmente ser destacado, uma vez que
estamos falando de um tempo em que a forma da palavra e, por conseguinte,
do prprio poema ganha primazia sobre o discurso e sobre o contedo deste
discurso108. Retiremos dos exemplos dados a seqncia
O tremdescer / O subirtrem
descersubir
para o movimento do trem.
108
Embora acreditemos que a poesia seja um trabalho envolvendo forma e contedo, referimo-
nos, aqui, a um perodo em que o como dito se sobrepe a o que dito.
165
109
o Cristo que sobe aos cus mais que os aviadores. Ele detm o recorde mundial de
altura. Versos do poema Zone (Alcools). Eles aparecem contidos na seguinte estrofe do
poema de Apollinaire: Voil la jeune rue et tu n'es encore qu'un petit enfant / Ta mre ne
t'habille que de bleu et de blanc / Tu es trs pieux et avec le plus ancien de tes camarades
Ren Dalize / Vous n'aimez rien tant que les pompes de l'glise / Il est neuf heures le gaz est
baiss tout bleu vous sortez du dortoir en cachette / Vous priez toute la nuit dans la chapelle du
collge / Tandis qu'ternelle et adorable profondeur amthyste / Tourne jamais la flamboyante
gloire du Christ / C'est le beau lys que tous nous cultivons / C'est la torche aux cheveux roux
que n'teint pas le vent / C'est le fils ple et vermeil de la douloureuse mre / C'est l'arbre
toujours touffu de toutes les prires / C'est la double potence de l'honneur et de l'ternit / C'est
l'toile six branches / C'est Dieu qui meurt le vendredi et ressuscite le dimanche / C'est le
Christ qui monte au ciel mieux que les aviateurs / Il dtient le record du monde pour la hauteur
(itlico nosso).
110
Trata-se de um verso de uma das estrofes do poema Le bateau ivre, de Rimbaud: Moi qui
tremblais, sentant geindre cinquante lieues / Le rut des Bhmots et des Maelstroms pais, /
Fileur ternel des immobilits bleues, / Je regrette l'Europe aux anciens parapets!, cuja verso
para o portugus sugerida por Ivo Barroso da seguinte maneira: [Eu] Que tremia, de ouvir, a
distncias incrveis, / O cio dos Behemots e os Maelstroms suspeitos, / Eterno tecelo de azuis
inamovveis, / Da Europa eu desejava os velhos parapeitos! (1995, p. 209, itlico nosso).
166
111
Avante, filhos da poesia / O dia de luta chega a cada dia. // Avante, filhos da poesia / O dia
de glria chega a cada dia.
167
112
Os demais versos da primeira estrofe so os seguintes: Contre nous de la tyrannie /
L'tendard sanglant est lev. / Entendez vous dans les campagnes / Mugir ces froces soldats /
Ils viennent jusque dans vos bras, / gorger vos fils, vos compagnes / Aux armes citoyens!
Formez vos bataillons! / Marchons, marchons, / Qu'un sang impur abreuve nos sillons.
[Avante, filhos da Ptria, / O dia da Glria chegou. / O estandarte ensangentado da tirania /
Contra ns se levanta. / Ouvis nos campos rugirem / Esses ferozes soldados? / Vm eles at
ns / Degolar nossos filhos, nossas mulheres. / s armas cidados! / Formai vossos
batalhes! / Marchemos, marchemos! / Nossa terra do sangue impuro se saciar!].
168
Paulo de Toledo (s/d) acredita que no poema Jeanne dArc, que nos
propomos a analisar, encontramos dois dos traos que melhor caracterizam a
poesia de Murilo Mendes: humanismo e domnio da linguagem. Os traos
singularizadores da fora humana, as aes e os sentimentos prprios da
pessoa humana buscados incansavelmente pelo poeta na tentativa da
universalizao esto consubstanciados na figura da mrtir (e hoje santa)
francesa Jeanne dArc (1412-1431) e a est a razo de o texto ter sido
escrito em francs. Estes traos singularizadores esto consubstanciados na
figura da menina/adolescente/mulher crist que, aos 19 anos de idade, foi
queimada viva em nome de suas convices religiosas, aps ter liderado
tropas francesas, na luta contra os ingleses, na Guerra dos Cem anos, que
durou de 1337 a 1453.
Cunha e Cintra (1985) dizem que o uso dos pronomes definidos no texto
indica que se trata de um ser j conhecido do leitor ou ouvinte, seja por ter
sido mencionado antes, seja por ser objeto de um conhecimento de
experincia (p.199). No caso, Joana dArc , para o mundo ocidental, figura de
113
A palavra anfora tem sua origem no grego e a denominao pode ser tomada, dentre
outras, na acepo de fazer convergir para si. A sugesto de que o uso da figura de
construo se liga idia de tornar o nome prprio (Jeanne dArc) o plo convergente do todo
do poema no pode ser desprezada.
170
Tudo isto nos leva a abrir novo parntese para falar rapidamente sobre o
processo de traduo de texto potico.
Joana dArc teve vida muito breve e no parece ter havido diferena
entre a criana e a jovem, entre a infncia e a juventude (Lembremo-nos de
116
Uma das caractersticas mais marcantes da poesia de Murilo Mendes a religiosidade. Os
ttulos de algumas de suas publicaes demonstram essa relao com as questes ligadas ao
divino ou a realidades de ordem superior: Tempo e eternidade (com a colaborao de Jorge de
Lima; publicado em 1935), Parbola (publicado em 1959, com a edio de Poesias), O sinal de
Deus (pode ser considerado indito at a publicao da obra completa, pois teve apenas uma
pequena edio do autor em 1936, mas rapidamente retirada do mercado), Quatro textos
evanglicos (O paraltico de Betsaida, As npcias de Can, O Cristo aclamado, Judas Iscariote;
inditos at a publicao da obra completa) O discpulo de Emas (publicado em 1945, com
uma segunda edio j no ano seguinte).
117
Importa lembrar que nossa fonte sempre a reimpresso da segunda edio de Poesia
completa e prosa, da Editora Nova Aguilar, ocorrida em 1995.
174
que ela morre com apenas 19 anos de idade). No parece ter havido, de fato,
um rito de passagem suficientemente representativo que justificasse uma
diviso do poema. A figura de Joana dArc vista muito mais como uma jovem
criana que, tomada de sentimentos msticos inflexveis, vai lutar
impetuosamente, at a morte, por suas idias.
118
A histria narra o fato de a herona ter ajudado na vitria dos franceses em Orlans, fazendo
os combatentes ingleses levantarem o acampamento da cidade. Pelo feito, a mstica alde
recebeu a denominao de Virgem de Orlans.
119
E Joana, donzela santa dOrleans / Que os Ingleses queimaram em Ruo; / Onde eles
esto, onde, Virgem soberana? / Onde se colhem as neves de ento?.
175
120
No se trata de um sinal de erudio pura e simplesmente. J tivemos, ao longo deste
trabalho, a oportunidade de explanar a respeito deste trao muriliano.
121
Duas informaes ilustrativas: William Shakespeare (1564-1616), dramaturgo e poeta
ingls, desdenhou da figura de Joana dArc, tratando-a como bruxa. Voltaire (1694-1778) em
um de seus textos, La Pucelle dOrleans (A Donzela de Orleans), tambm a ridicularizou.
177
122
Os fiis catlicos acreditam ser So Miguel Arcanjo ocupante de uma posio de lder de
exrcito na hierarquia celestial; tambm considerado pelos crentes um anjo da justia e quem
o invoca fica protegido contra os inimigos. A sua figura facilmente se aproxima da de Joana
dArc: lutam contra inimigos e lideram exrcitos. As duas telas seguintes, a de um russo e a de
um francs, ficam aqui reproduzidas em razo da semelhana que estabelecem entre as
figuras do Arcanjo So Miguel e de Joana dArc. Impressiona a disposio das figuras em
primeiro plano, a posio dos braos e das mos, a proporo das figuras centrais em relao
s outras figuras do quadro, as cores usadas pelos artistas, a armadura de ambos, bem como
as suas vestimentas.
178
Mas se lemos com facilidade este verso, o mesmo no pode ser dito do
verso 17. Ubu Roi o nome de uma controvertida pea de teatro, escrita pelo
controvertido escritor surrealista Alfred Jarry (1873-1907), no controvertido
contexto scio-cultural europeu do final do sculo XIX e incio do sculo XX. A
citao da figura do rei Ubu, personagem central da pea, pode ser altamente
simblica no par de versos em que se encontra. Trata-se de uma personagem
ligada absurdidade presente nas relaes de poder, corrodas, na maioria
das vezes, pela vileza dos que delas participam.
Se, por um lado, o sentido presente em hotel tem efeito reduzido para
uma compreenso mais significativa do poema, por outro lado, o sentido de
183
10 Encerrando as anlises
IX CONSIDERAES FINAIS
Nosso intento foi justamente (e esperamos ter dado conta de) apresentar
um pouco as marcas que aparecem na palavra escrita, dada a conhecer
carregada de nossas vivncias, de ecos ideolgicos, de lembranas afetivas,
de traos existenciais. Para chegarmos, no entanto, a um procedimento
avaliativo, primeiramente apresentamos e discutimos as condies de insero
do idioma francs no Brasil e na vida do autor.
Mas (e, com tal guinada, obliteramos um pouco esta viso romntica do
fenmeno literrio) precisamos levar em conta que o francs deve ser visto
at porque a lngua um canal pelo qual a obra de um escritor apenas passa
(MAINGUENEAU, 2001, p. 103) como uma opo da parte do autor e, por
esta razo, a escolha deve ser lida (e compreendida) dentro do contexto maior
da enunciao literria.
125
importante lembrar que, ainda no final do sculo XX, tudo quanto tem a ver, por exemplo,
com a diplomacia, com a vida cotidiana de uma embaixada, com o cerimonial e o protocolo,
com a pompa e circunstncia da carrire se baseia em terminologia fundamentalmente
francesa (COSTA, 2000, p. 31).
195
______. Estrela da vida inteira, 20. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
198
BOSI, Alfredo. Histria concisa da literatura brasileira. [4a tiragem da] 3. ed. So
Paulo: Cultrix, 1982.
COSTA, Sergio Corra da. Palavras sem fronteiras. Prefcio de Maurice Druon.
Rio de Janeiro: Record, 2000. [Originalmente Mots sans frontires, ditions du
Rocher, 1999.]
os acervos de Murilo Mendes. Juiz de Fora, MG: Ed. UFJF, 2004. p. 105-114.
(Derivas, 1.)
LAMEGO, Valria. Dois mil dias no deserto: Maria Helena Vieira da Silva no
Rio de Janeiro (1940-1947). [2007?]. Disponvel em
<http://www.coresprimarias.com.br/ed_10/lamego/pdf>. Acesso em 27 out.
2007.
MORICONI, talo. Como e por que ler a poesia brasileira do sculo XX. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2002.
SANTANNA, Affonso Romano de. Pardia, parfrase & cia. [6a impresso da]
7. ed. So Paulo: tica, 2004. (Princpios, 1.)
______ . Lies dos mestres. Traduo de Maria Alice Mximo. Rio de Janeiro:
Record, 2005.
TOLEDO, Paulo de. Os jogos de Murilo e Joana. Zuni: revista de poesia &
debates. 2003-2005. Disponvel em
<http://www.revistazunai.com.br/ensaios/paulo_de_toledo_murilo_mendes.htm
>. Acesso em 21 jan. 2008.
ANEXOS
Dorme Alphonsus no cho elementar, / Dos homens desligado que ele amou. /
Aos seus versos polidos pelo ofcio, / Patinados no tempo, nobres versos / Que
geram em ns a lua e sua espuma, / O sete-estrelo geram, e o resplendor / Do
cu noturno, a fantasmagoria / De trgicas imagens, e de acordes / Percutidos
em cmbalo e celesta, / Geram o mito maior, mito da morte / Mais uma vez
nascido de mulher / Bem cedo extinta, cerrada magnlia / De vus sombrios,
tenra Beatriz / Que, inda o livro da vida soletrando, / Indica poesia sua
clausura / Em que to fundo a alma se contempla / Quando abaulada
carruagem a leva / Aos solavancos, na penumbra oculta / De soturnos veludos
e debruns, / Aos seus versos polidos pelo ofcio / Responde a natureza com o
silncio / E os lilases ao longo do esqueleto.
__________
126
O verso foi transcrito como aparece na Poesia completa e prosa (Aguillar, 1995, p. 495).
Talvez haja um equvoco, pois onde aparece et deveria aparecer ut. A expresso completa,
encontrada no Cntico dos Cnticos (6.9), na Vulgata latina a seguinte: Quae est ista quae
progreditur quasi aurora consurgens pulchra ut luna electa ut sol terribilis ut acies ordinata
(Quem esta que surge como a aurora, bela como a lua, brilhante como o sol, temvel como
um exrcito em ordem de batalha?)
208
Aqui foi nosso Alphonsus, que, desfeito / O provisrio molde que o guardava, /
Sobrevoa as igrejas de Ouro Preto / E Mariana: e, finalmente solto, / Nas frias
ondas do luar embarca. / Sino da catedral dobra por ele, / Dobra por mim
dobra por todos ns. / Livre de toda contingncia, a alma, / Pela prpria leveza
suspendida, / Atinge a nave altssima do azul. / No cume da colina de Mariana /
Trs poetas, terminado o obscuro rito, / Os lilases contemplam dos teus restos,
/ Concertando seis olhos tua luz. / O mesmo pensamento lhes devolve / O
sino que nos ares vai subindo / E logo gira em sbitos responsos: / Acorda
Alphonsus!, Oh, depressa! Acorda Alphonsus! / Acorda Alphonsus, que o lugar
j vem! / Acorda Alphonsus para os seus amigos, / Acorda-o para a palma que
afastou, / Para a Mariana universal dos entes / Que, lentos poesia, do
esplendor /Velado e nebuloso do seu facho / Tm de aprender, num mundo de
tambores / E exageradas reverberaes. /Sombras fichadas pela Monarquia /
Do gro terror, na mquina montada, /Movem moinhos de lamentos vos, /
Sentem-se extintos j, fingem viver... / Conhecem, no a morte sublimada, /
Lenta carruagem que conduz prenncios, / Pajem divino anunciando a Pscoa,
/ Morte que traz nos braos a esperana: / Conhecem-na selvagem e
descarada, /Conhecem a morte entregue a domiclio / Todos os dias, pronta
servidora / Do raio negro e da bomba total, / Alterando a estrutura do universo /
E esse mais forte amor que a mesma morte, / Esse amor que, esqueletos
transformando, / Suspende a eternidade nos espritos / E nos largos terraos
corporais / Solta a suava columba especiosa, / Amor que no outro amado se
transmuda, / Que notcia tm eles desse amor?...
Invocao Santssima Trindade127
127
Verso colocado parte, direita da estrofe, nos dois ltimos versos.
210
B
Cordeiro de Deus icstico
panifica
vinifica
213
pacifica
vivifica o mundo ex-mundo.
C
Santssimo cordeiro
Alfa e mega do verbo
D
Qui tollis:
Roma 1965
128
Neste poema, as barras oblquas diferentes de // pertencem ao prprio texto de Murilo
Mendes.
214
129
Aqui, as barras oblquas pertencem ao prprio texto. No se trata de barras indicadoras de
mudana de verso.
215