Geracao Beat - Antologia - Brasiliense 1968

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Oi.

GERAABEAT
(Antologia)

"...o culto da gerao beat pelo primitivismo e pela espontaneidade mais do que
um disfarce que cobriria sua hostilidade pela inteligncia. No fundo, le provm
mesmo de uma pattica pobreza de sentimentos. Os hipsters e seus simpatizantes da
gerao beat so revoltados, est certo, mas no contra algo de to sociolgico e his-
trico quanto a classe mdia ou o capitalismo ou ainda a respeitabilidade. Trata-se
de uma revolta dos espiritualmente no privilegiados e dos mutilados da alma
jovens que no conseguem pensar normalmente e odeiam qualquer pessoa que o
consiga; jovens que no conseguem sair do atoleiro de si prprios..."

Norman Podhoret
z"... a gerao beat, qualquer que seja o nome que se lhe d, a expresso natural de
nossos tempos: internacional no carter e profundamente arraigada no caos de nos-
sa sociedade. Apesar de todos os seus defeitos, o hipster um heri de nossos
tempos por se ter rebelado contra uma sociedade que apenas racional e se
encaminha rapidamente para a insanidade; uma sociedade a qual, por ter divorciado o
homem da pura intuio de si mesmo, pode discutir tranqilamente sobre a guerra
nuclear. A capacidade do hipster de agir espontaneamente em uma sociedade que
se baseia na desperso- nalizao em si mesma uma afirmao da capacidade do
ser humano em determinar o rumo de suas prprias aes."

DAVID MCREYNOLDS
OS LIVROS NO ENCONTRADOS NAS LIVRARIAS PODEM SER PEDIDOS PELO
REEMBOLSO POSTAL
LIVROS NACIONAIS E ESTRANGEIROS
Rua Baro de Itapetininga, 93 12. andar Caixa Postal
30.644 So Paul
o
A energia, a fria, a franqueza que imprimiu
em seus escritos fizeram da gerao beat o
movimento literrio mais violentamente
discutido deste sculo.

Aqui est o mundo beat: o mundo que levou os


crticos aos mais chocantes ultrajes ou aos mais
altos elogios. o jazz, a droga, a gria e, acima
de tudo, a clera.

Apresentamos aqui uma coleo cruelmente


honesta de seus escritos,

juntamente com algumas contribuies de crtica mordaz ao seu


deliberado sensacionalismo e sua guerra santa contra a sociedade.

Ted loans
R,chard Barker Ray Gregory Corso
Jac |, Kerouoc
an
Bremier Chandler ence Ferlinghel"
lawr
Seymour Krim philip Herman
Brassard Anatole n n Ginsberg
A e PodhoreH Dion.
Herbert lamanlio Day,d
Brayard William
James Oraar MocReynold*
Di Prima
Don Propper Hubert
Burroughs
Jack Mormon lock Mich.line Selby >'
Green ,ohn
Brigid Gary
Clellon
Murnagh Snyde
Holmes

IDITRA brasiliense soc- an


reviso ortogrfica
MARIA L1NA DE CARVALHO

capisla
TIDE HELLMEISTER
,
brasiliense soe. *
EDITRA
N
-

Eua Baro de

Itapetininga, 93
12." andar Sio PAULO

GERAO BEAT
BRASIL

apresentao e compilao de SEYMOUR KRIM

traduo de MARCELLO CORO

EDITORA BRASILIENSE
1968
Ttulo do Original Norte-Americano

THE BEATS

Fawcett Publications, inc. Greenwich, Conn.


Desejo expressar meu agradecimento a todos aqules que consultei durante a traduo dste livro e muito especialmente
ao professor e poeta norte- americano Mr. Edward Donovan guia inestimvel nessa viagem pelos subterrneos beat.
Os possveis lapsos que existam so de minha inteira responsabilidade.
O Tradutor. N D I C E

Introduo .................................................................................................................. 11
JOHN CLELLON HOLMES
A Filosofia da Gerao Beat ......................................................................................... 15
DAN PROPPER
A Fbula da Hora Final ................................................................................................. 30
JACK KEROUAC
Trs Episdios do Romance "Visions of Cody" ........................................................ 38
CRECORY CORSO
Rquiem Espontneo para o ndio Norte-Americano ............................................. 49
RICHARD BARKER
Torneio de Saxofone no Curral da Misso ---------- - -------'.'................................... 55
JAMES GRADY
A Grana Minha Bno .............................................................................................. 64
SEYMOUR KRIM
Uma Ponta de Loucura .................................................................................................. 66
DIANE Dl PRIMA
13 Pesadelos ..................................................................................................................... 84
CHANDLER BROSSARD
Batillcs............................................................................................................................91
JACK GREEN
Peiote .............................................................................................................................. 100
RAY BREMSER
Pedgio ........................................................................................................................... 115
NORMAN PODHORETZ
Os Ignorantes Bomios ............................................................................................... 118
WILLIAM BURROUGHS
Dois Episdios do Livro "The Naked Lunch" ......................................................... 132
PHILIP LAMANTIA
Silenciem a Prostituta de Babilnia .......................................................................... 139
HUBERT SELBY, JR.
Verso e Reverso ............................................................................................................ 141
GARY SNYDER
Carta de Quioto ....................................................................................................... 152
ALLEN GINSBERG
Morte para a Orelha de Van Gogh ....................................................................... 157
HERBERT GOLD
A Mistificao Beat ................................................................................................. 162
JACK MICHELINE
Vozes da Rua em Nova Orleans ........................................................................... 175
NORMAN MAILER
Cenas da Pea "The Deer Park" ............................................................................ 179
DAVID McREYNOLDS
Bomios em Liberdade ........................................................................................... 220

TED JOANS

Gravao no Bar "The Five Spot" ......................................................................... 230

BRIGID MURNAGHAN

George Washington: Um Dilogo Entre a Me & a Filha .... 234 ANATOLE BROYARD
A Escolha .................................................................................................................. 235
LAWRENCE FERLINGHETTI
Do Livro "A Coney Island of tlv; Mind: 5"
242Introduo

No dia 4 de outubro de 1959, ocorreu algo inusitado na pgina literria


dominical do jornal New York Times, conhecido at ento por seus
artigos conservadores e indulgentes o tipo de crtica que no incomoda
a ningum. Karl Shapiro, conceituado poeta e crtico literrio norte-
americano, ps um fim a esta situao publicando um artigo decisivo
sbre a poesia narcisista e obscura de Marianne Moore que estava em
voga na poca! e que hoje em dia quase ningum mais l. Sua crtica
continha observaes mais penetrantes do que tdas as banalidades com
aparncia literria que haviam sido publicadas tio suplemento dominical
do New York Times nos ltimos dez anos. Aos leitores "no-informados"
(e isto no tem nenhuma importncia), convm lembrar que Marianne
Moore , ou era, a Primeira Dama do Pas da Poesia Pretensiosa. Por
outro lado, Shapiro havia sido educado em um ambiente de
condescendncia e idolatria literria que vinha envenenando, nos ltimos
anos, a sensibilidade dos novos poetas norte-americanos, pelo menos
daqueles que levavam a poesia a srio. evidente que tudo isto fermentava
h muito tempo em sua cabea, tal a fra com que explodiu subitamente.
Ouam o que diz Shapiro: " com razo que a moderna poesia norte-
americana considerada acadmica; poesia de antologia escolar, boa para
as aulas de ingls... Ningum a l a no ser nas pocas de exame... A era
da poesia acadmica, dos intelectuais de domingo da Nova Crtica (a
anlise microscpica de um texto literrio S. K.) parece ter chegado
ao fim. Pelo menos, so os votos que fazemos. Se assim fr, se no estamos
presenciando um falso despertar na recente poesia da revolta, assistimos
sem dvida alguma aos ltimos instantes de uma literatura que durante
tantos anos orgulhou-se de ser a poesia oficial do sculo vinte."
Este nosso livro corresponde precisamente expectativa de Shapiro.
literatura de protesto, literatura de gente nova, literatura fantstica,
excntrica, atordoante, sincera, violenta, libertadora e fecudante, palavras
e pensamentos que no foram envernizados pelas manicuras-robs de
Madison Avenue (com excesso talvez de um nico caso), mas que
decorrem da experincia que todos ns partilhamos em comum e que nossa
timidez impediu admitir e exteriorizar. inegvel a autenticidade do mo-
vimento beat no que diz respeito expresso literria; no apenas le est
longe de esmorecer por falta de estmulo como sua expanso cresce dia a
dia, e ningum pode prever quando e como ir terminar. Impossvel saber,
inclusive, como le ser julgado pela Histria. Seja como fr, um fato
incontestvel: nenhum outro movimento na literatura mundial desperta
tanto intersse, no momento presente, quanto o movimento beat. a
prpria estrutura da literatura que foi abalada. Na Inglaterra, literatos
plidos e anmicos de colarinho alto esto tomando transfuso de sangue

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com a leitura de Gregory Corso, Allen Ginsberg e Jack Kerouac, da mesma
forma que ouvem e apreciam nossa msica de jazz. Na Europa, o crtico
conservador Orville Prescot no esconde sua curiosidade por Norman
Mailer e sua filosofia do movimento hip, como deixam transparecer os
artigos escritos aps sua viagem ao exterior. Richard Watts, crtico
teatral, confessa ter tido uma experincia semelhante em sua estadia na
Polnia e nos pases nraicos.
A literatura beat e hip com sua combinao, ocorrida sbi-
tamente em 1960, de realismo e surrealismo, feitos drsticos e pblicos de
amor e crime que fazem justia ao que havia sido mrbidamente recalcado
durante sculos, com suas frases musicais maneira do jazz, com sua
pssima gramtica ou nenhuma gramtica, ou ainda com sua nova
gramtica essa recente literatura, por conseguinte, possui todos os
excessos e as cruezas das revolues no planejadas. Mas por que razo
haveramos de nos deter nas suas falhas em vez de considerar a fra e a
Voz imensamente positivas do movimento que at um surdo pode ouvirP
(Convm esclarecer brevemente que no h no movimento beat nenhum
tipo de irmandade semelhante ao da Igreja Catlica ou do Partido
Comunista; provvel que nenhum dos escritores includos nesta
antologia pense da mesma forma; a unio que existe entre les prende-se
ao geral e no ao particular; possvel ainda que o nico elemento que os
una seja de pertencerem todos "minha gerao revoltada", segundo a
demonstrao dada por Norman Mailer.) No que se refere aos autores
cautelosos, na sua maioria literatos respeitveis, de nariz torcido, que
olham com expresso de escrnio para a revolta beat les se acreditam
protegidos atrs de seus preconceitos livrescos de qualquer possvel
participao que resultaria talvez em uma. iniciao tudo o que se pode
dizer dles que esto perdendo, lastimvelmente, a experincia mais
eletrizante que ocorre atualmente nos Estados Unidos.
A literatura beat, empregando ste trmo meio imprprio na sua
acepo mais genrica, no se originou do nada, como poderia parecer
primeira vista; ela surgiu, cresceu e derrubou os lugares comuns do bom
gsto e da inibio graas sua espantosa necessidade vital, sem se deixar
seduzir pelas promessas da psicanlise. Transformaes radicais haviam
ocorrido, desde a Segunda Guerra Mundial, com o sistevw de vida norte-
americano e com o do resto do mundo; a expresso literria contudo
conservava-se a mesma, prsa s suas prticas padronizadas e
subservientes (a revista TTie New Yorker sendo o exemplo por excelncia
da maneira senil de descrever a vida) enquanto a realidade brutal e
irrefrevel do ano de 1950 punha abaixo muitas das tradicionais
consolaes oferecidas pela literatura, pela vida, pelo prprio mundo.
Algum tinha que ceder. E foi o que aconteceu. Alguns jovens que no
tinham nada a perder uma vez que tudo lhes parecia definitivamente
perdido! dotados da perigosa virtude de ousar acreditar naquilo que
haviam vivido, mesmo que isso pudesse lev-los cadeia ou ao hospcio,
comearam a divulgar seus escritos com a convico de estarem fazendo
algo absolutamente AUTNTICO.

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E era. To autntico, na verdade, que um pblico estupefato (que no
fazia idia que se podia ser 100 por cento livre ao escrever) comeou a
devorar ste novo man de literatura beat como fariam com um delicioso
doce numa confeitaria fina. (Os primeiros a se manifestar foram os demais
autores que se em- bruteciam mortalmente numa sombria atividade
mecnica enquanto ansiavam secretamente que algo acontecesse que
tornasse a literatura merecedora de crdito). "Assim lia enquanto
caminhava, lendo como algum que estivesse morta de fome, mastigando
cada palavra como se ela saciasse o vazio de meu sofrimento
inexprimvel," escreveu uma jovem me, de sensibilidade moderna, para o
editor dste livro a respeito de uma narrativa beat que ambos apreciamos.
Essa era a literatura que comunicava algo verdadeiramente crucial, como
se fosse uma questo de vida ou de morte (uma vez que vivemos na Idade
do Suicdio), alguma coisa de valor imediato para o leitor, e no mais uma
remota lenga-lenga literria. Tratava-se de algo ntimo como um bilhete
de amor, como uma fantasia ertica pessoal, como o aparte do saxofone
tenor numa seo de jazz era a comunicao direta de uma pessoa viva
para uma outra entusistica pessoa viva, era enfim uma literatura que
desprezava solenemente tdas as limitaes formais das pocas passadas,
bem como suas convenes literrias ridculas, irremedivelmente
deplorveis, tmidas e bem comportadas.
Os leitores encontraro neste livro uma expressiva coletnea de
material literrio beat, bem como uma crtica inteligente do que h de pior
no movimento ("Voc deve abordar ste assunto com o mximo da
imparcialidade", disseram-me os editres, acenando com o cheque diante
de minha magra conta bancria); encontraro algumas pginas de poesia
altamente explosiva (os escritores beat reintroduziram a poesia no
cotidiano cinco anos antes das declaraes pronunciadas por Shapiro com
respeito ao futuro da literatura norte-americana), algumas pginas de
fico, alguns trechos da pea The Deer Park de Norman Mailer, dois ou
trs textos ligeiramente birutas como uma gravao de fita e uma carta do
Japo, etc. Convm lembrar, porm, que ste livro, por mais suculento que
seja, apenas um aperitivo. Boa parte do material mais alucinado, e mais
autntico, no foi possvel publicar, tanto por falta de espao quanto pelo
temor compreensvel, mas de qualquer forma deprimente, dos donos da
bola. Seja como fr, esperamos que haja o suficiente neste volume para
saciar a fome daqueles que anseiam por alguma coisa concreta, sem
brincadeira, algo verdadeiramente genuno, a verdadeira escrita jazstica
do mundo atual, que se case de fato com o universo em que vivemos e
giramos.
O que se segue realmente para agora, para hoje, ste minuto, ste
segundo. Na verdade, soou a hora, e mais do que tempo do apresentador
dar o fora.
SEYMOUR KRIM

P.S. Agradeo a Le Roi Jones e Allen Ginsberg por terem me ajudado no lanamento
deste livro. Agradeo a Jack Micheline por ser o que , e por ter-me aberto as portas da
f e do reino beat. Uma bolinha para Nancy Macdonald e Knox Burger por haverem

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chamado minha ateno para certos valores atuais. (Nancy, j lhe disseram que voc faz
parte do movimento apesar de ter se formado pela Universidade de Vassar em 1932?)
Os demais erros e acertos do livro pertencem exclusivamente ao apresentador. Que seus
64 ex-psicanalistas regozijem-se com o fato dele no temer mais aceitar a
responsabilidade de seus atos e estar disposto a colaborar com a demolio do
quadrado mundo literrio contemporneo.
JOHN CLELLON HOLMES

A Filosofia da Gerao Beat

MENOS FASCINANTE como personalidade e menos promovido do que


Kerouac & Cia., Holmes foi um dos primeiros escritores verda-
deiramente beat; escreveu o excelente livro "Go" e fz o papel de
contrapso conservador ao lado dos jovens frenticos que lanaram as
primeiras notas do movimento. Gosta, conhece e entende de jazz, leva
a vida sbria e suburbana de um escritor esforado que mora em
Connecticut, e est ao mesmo tempo por dentro e por fora da atual
agitao beat; assumiu algumas vzes a funo de contraponto
intelectual nas cenas mais exaltadas (e condenveis) em que tomaram
parte certos elementos da vanguarda beat. Holmes no daqueles que
gostam de sujar as mos. Possui, contudo, um extraordinrio poder de
sntese, tem uma "intuio aguda" do que se passa, para usar a
expresso do grande romancista norte- americano Henry James, e tudo
indica que poder vir a escrever a fantstica e tremenda histria do
movimento beat na dcada de 1950. Por outro lado, Holmes introduz
no clima intelectual do Harlem o temperamento da Nova Inglaterra
a tradio frente a um ambiente frentico e no conhecemos outro
autor que alcance como le, dentro de seu estilo, resultados to
convincentes. O artigo que reproduzimos foi escrito por volta de
1957/58, poca em que o movimento no estava fervendo tanto quanto
hoje. Ainda assim, le sobrevive como um testemunho honesto e
sbrio, apesar de certas notas ocasionais soarem em nossos ouvidos
como uma justificativa desnecessria do movimento perante a socie-
dade burguesa.

Em setembro dste ano (1957) foi publicado um romance que o


jornal New York Times saudou como "a mais bela criao, a mais
lmpida e importante revelao" de autoria de um autor jovem; um
livro, aparentemente, com a funo de representar a gerao atual,
dizia o artigo, como o romance The Sim Also Rises representou a
gerao de 1920. O livro em questo intitulava-se On The Road, e seu
autor era Jack Kerouac. O romance narrava as experincias e atitudes

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de um grupo de agitados jovens norte-americanos, "loucos para viver,
loucos para conversar, loucos para serem salvos," cujos interesses
principais na vida giravam em trno de carros-esporte, festas malucas,
jazz moderno, sexo, marijuana e outras "emoes fortes" no gnero.
Kerouac declarou que les eram os representantes da gerao beat.
Como porta- voz deste movimento, Kerouac viu-se repentinamente,
para sua grande consternao, centro de uma violenta controvrsia.
Jornalistas corriam atrs dele; os crticos literrios dependendo da
atitude que haviam adotado em suas apreciaes anteriores, elo-
giavam-no ou ridicularizavam-no. Em uma entrevista feita pela
televiso, um pblico fascinado de nova-iorquinos ouviu trechos de
uma conversa quase incompreensvel que se desenrolou mais ou
menos nestes termos:
APRESENTADOR Voc disse, meio brincando, que voc
passou dois dias completamente bbedo...
KEROUAC Rem, no foi bem assim... eu no passei dois dias
bbedo... passei dois dias bebendo.
Mais adiante:
APRESENTADOR A gerao beat tem sido denominada, com
freqncia, uma gerao que busca. O que voc est procurando
exatamente?
KEROUAC Deus. Quero que Deus me mostre Sua face.
Ningum parece ter entendido claramente o que Kerouac
pretendia dizer; alguns crticos insistiam em afirmar que sses jovens
hedonistas selvagens no eram absolutamente representantes de coisa
alguma, e que no passavam de "cabotinos', de "dbeis mentais sem
moralidade alguma", de "burgueses revoltados com sua prpria
condio." Entretanto, existia algo no livro e no trmo que os definia
que no podia ser psto de lado to fcil- cilmente. O romance tornou-
se assunto ae calorosa discusso, o que fz suas vendas subirem,
conseqentemente, e o trmo ficou para grande irritao daqueles
que negavam a existncia do fenmeno.
A verdade que Kerouac, de certa forma, fornecia a explicao
para as atitudes e comportamentos de uma juventude
[ue deixavam as pessoas de idade inteiramente perplexas. De ato, as
preocupaes principais dos personagens apresentados por Kerouac
diziam respeito ao rock and roll, ao uso de drogas, delinqncia
juvenil, atitude amoral em relao ao sexo e a todos os fenmenos
eorrelatos que caracterizam o jovem norte- americano atual nas suas
manifestaes extremas.
Criar uma palavra que defina as caractersticas de uma gerao foi
sempre uma tarefa ingrata. Por outro lado, as geraes que surgem ao
aps-guerra necessitam, mais do que outras, de um termo que as
defina, e a razo disto que seus membros possuem em comum uma
experincia excepcionalmente unificadora, partilhada por todos em

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uma idade especialmente impressionvel. Encontrar, no entanto, uma
palavra que caracterize o
frupo que se situa hoje em dia, a grosso modo, entre as idades de ezoito
e vinte e oito anos, uma tarefa ainda mais rdua, uma vez que ste
grupo inclui veteranos de trs espcies distintas de guerra moderna: a
guerra declarada, a guerra fria e a guerra a que temos negado
obstinadamente o nome de guerra, considerando-a em vez disso como
uma represso policial.
Alguns anos atrs, a revista Time denominou a juventude de hoje de
Gerao Silenciosa, isto talvez porque o Time no estivesse realmente
prestando ateno. Outros batizaram-na, de Gerao Expectante,
outros de Gerao Caminhante, se bem que tdas estas denominaes
pareciam inadequadas. Agora, com a palavra "beat", possumos
finalmente um trmo apropriado. Todos aqules que passaram por
uma guerra, de qualquer espcie que seja, sabem que a palavra beat
significa, no tanto esgotamento nervoso, como ter os nervos flor da
pele; no tanto se sentir "cheio" como se sentir vazio. A palavra beat
define um estado de esprito no qual tdas as coisas no-essenciais
foram arrancadas para fora, deixando-o receptvel a tudo aquilo que o
rodeia, se bem que impaciente com os obstculos vulgares da vida. Ser
beat estar no fundo da personalidade, com os olhos voltados para
cima; ser existencial no sentido em que Kierkegaard dava a esta
palavra, e no necessariamente no sentido que lhe d Jean Paul Sartre.
O que diferencia os personagens do romance On The Road dos
criminosos comuns, oriundos de meios miserveis, e das hordas de
vndalos que ocuparam um lugar proeminente em uma extensa
literatura moderna norte-americana o que os torna beat, em suma
algo que parece haver irritado especialmente os crticos literrios.
Refiro-me insistncia com que Kerouac acentua o esprito de busca,
frisando ainda que o principal objetivo dessa procura de ordem
espiritual. Embora os personagens de seu romance atravessem o pas
de um lado para o outro por pretextos fteis, gozando vivas emoes
nestas jornadas, a verdadeira viagem dl les de ordem interior.
Ainda mesmo quando ultrapassam todos os limites, legais e morais,
fazem-no unicamente com a esperana de encontrar uma crena no
outro lado da experincia. "A gerao beat", diz le, " bsicamente
uma gerao religiosa." Em uma outra entrevista, Kerouac amplia
ainda mais sua declarao: "Ela inclui qualquer pessoa de quinze a
cinqenta e cinco anos que se interessa por tudo. bom lembrar que
no somos bomios. Beat significa beatitude e no um sentimento de
fracasso. A gente sente isso. Sente-se isso no ritmo de uma batucada,
no jazz no genuno cool jazz ou numa animada seo de rock no
meio da rua."
Diante de uma tal declarao, parece absurdo que os pais, os
homens polticos, os representantes da lei e at mesmo os crticos
literrios tenham-se mostrados surpresos, irritados ou decididamente
indignados com o comportamento dessa gerao. les afirmam ser ela

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responsvel, mais do que qualquer outra gerao do passado, por um
maior ndice de criminalidade, por maiores excessos de conduta, e por
uma maior irresponsabilidade social; acusam-na, por outro lado, de
manifestar um desintersse quase total pela poltica, pela vida em
sociedade e pelas crenas religiosas ortodoxas. Sentem-se ofendidos
pelo culto prestado memria de James Dean, vendo nle sintomas de
uma perigosa morbidez, da mesma forma que consideram as
homenagens prestadas a Elvis Presley o sinal de uma perigosa
sensualidade. Essas pessoas leram as estatsticas publicadas sobre o
consumo de drogas, promiscuidade sexual e consumo de bebidas
alcolicas entre os jovens e empalideceram. Elas lamentam
igualmente o fato de que as "produes literrias mais originais,
editadas nos Estados Unidos, tenham sido produzidas graas ao
estmulo de fenmenos bizarros e fora do comum"; manifestam ainda
um sentimento de terror pela nova modalidade inquietante da
delinqncia juvenil: a violncia sem uma razo determinada,
fenmeno que irrompeu na maior parte das grandes capitais.
Essas pessoas no vem nenhuma busca de valores espirituais
numa gerao cujos inmeros heris trgicos incluem o saxofonista
Charlie Parker, o ator James Dean e o poeta Dylan Thomas, e
O cool jazz originou-se na West Coast por volta de 1950. Seu maior representante foi
Charlie Parker, o grande saxofonista que introduziu tcnicas extraordinriamente
avanadas, exigindo muitas vezes uma incrvel habilidade instrumental e um profundo
conhecimento musical. O estilo cool muito apreciado por suas harmonias ntimas e
complexas, suas improvisaes e fraseados. Posteriormente, a palavra cool passou a
significar tudo que agrada ou d prazer, fora muitos outros sentidos difundidos pelos
jovens beat. (N. do T.) cujos interesses principais circulam entre o bebop e o
rock and roll, o hipsterism e o Zen budismo, drogas que provocam
alucina- es e o Method Acting." O fato de algum afirmar que o
interesse quase exclusivo dessa gerao a descoberta de algo em que
se possa de fato acreditar, parece a estas pessoas uma negao absurda
da prpria evidncia.

Entretanto, embora todos aqules que lem os jornais, assistem


televiso ou vo aos cinemas estejam provvelmente bem fami-
liarizados com o comportamento da juventude beat, pouca ateno
tem-se dado s razes ocultas que esto por trs deste comportamento.
E isso apesar do fato de ser o que as pessoas pensam, e nas o que elas
fazem, o que nos d a compreenso do
realmente so.
Possivelmente tdas as geraes passadas acreditavam terem
herdado "o pior de todos os mundos possveis"; a juventude beat, no
entanto, tem maiores razes para isso do que qualquer outra gerao
anterior. O ambiente histrico que formou a personalidade dessa
juventude no podia ser mais violento, e esta Violncia atingiu tanto as
teorias quanto os indivduos qe acreditavam nelas. Qualquer pessoa

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esclarecida sente isso, mesmo que no tenha sofrido pessoalmente os
horrores desta destruio generalizada. As crenas convencionais da
moral pblica e privada foram constantemente abaladas nos ltimos
dez ou quinze anos pela divulgao da corrupo governamental, da
explorao no sistema de trabalho e pela ocorrncia de grandes
negociatas, para no mencionar os escndalos notrios entre as
personalidades mais em evidncia nos meios teatrais e
cinematogrficos. As doutrinas polticas que haviam, em outras
pocas, justificado as guerras, caram pouco a pouco no descrdito,
quando o massacre de populaes inteiras provoca vertigem mesmo
entre as mentes acostumadas a clculos matemticos. Os conceitos
religiosos ortodoxos, que faziam uma distino bem determinada entre
o bem e o mal, tornaram-se cada vez mais inadequados para justificar
ou explicar uma alucinao coletiva tornada realidade, inimigos
recentes que se transformaram repentinamente em aliados ntimos,
uma respeitvel diplomacia que serve de estopim para a guerra. As
gera-

( ) Bebop a forma arcaica de hop. Estilo de jazz caracterizado por um ritmo


rpido, frases curtas, dissonncias, etc., numa ampla escala tonai. Hipsterism a
ideologia do indivduo hipster (tambm hip ou h e p ) , isto , o membro da gerao
beat. Method Acting, escola de atres em Nova Iorque, onde estiveram Marlon Brando,
James Dean, etc. (N. do T.) es mais velhas podem sentir-se angustiadas,
cnicas ou apticas com respeito ao curso dos acontecimentos, ou
podem ainda adotar uma atitude de conformismo. A gerao beat,
contudo, o produto especfico dste mundo e ste o nico mundo
que seus membros conheceram.

a primeira gerao na histria da Amrica do Norte que presta


o servio militar em poca de paz como um fato normal ao cotidiano.
a primeira gerao para quem as frases feitas da psicanlise
tornaram-se um alimento intelectual to imprescindvel que assumem
quase a aparncia da ltima medida da alma humana. a primeira
gerao para quem o genocdio, a lavagem cerebral, a ciberntica, a
pesquisa motivacional e a resultante limitao do conceito do livre
arbtrio que decorre inevitvelmente disso so fenmenos to
familiares quanto a casa onde mora. ainda a primeira gerao que
surgiu desde o momento em que a destruio nuclear do mundo foi
cogitada como a resposta final para todos os problemas.
E no lugar do cinismo e da apatia que acompanham geralmente o
fim dos ideais, e que deu gerao de 1920 uma certa qualidade
potica e outonal, denominada com razo a Gerao Perdida, a atual
gerao beat demasiado enrgica, atenta, in- fatigvel e curiosa para
adaptar-se aos padres antigos. Nada parece satisfaz-la ou interess-
la a no ser as situaes extremas: de um lado a criminalidade dos
narcticos, do outro lado a santidade dos mosteiros. Em tda parte a
gerao beat est ocupada febrilmente com a apresentao de
respostas algumas delas assustadoras, outras apenas infantis

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7
para a seguinte pergunta: como ser nossa viaa? E se isto no um
fato imediatamente reconhecvel nos motociclistas de casacos de couro
e nos hipsters que vagueiam pelas ruas, porque acreditamos que
smente as respostas que reconhecem o homem como um animal
social possuem uma verdadeira validade. No percebemos que esta
gerao s entende a pergunta quando feita numa forma pessoal, uma
vez que ela acredita que a nica resposta aceitvel h de vir da noite
escura da alma individual.
Se Hemingway e Fitzgerald escreveram os livros da Gerao
Perdida, porque viveram uma existncia em que o sabor do lcool e
do exlio eram temperados por uma comicidade desesperada e por um
cinismo custico. Kerouac, alis, fz o mesmo com sua gerao. Anos
atrs, na ocasio em que um de seus primeiros romances foi
publicado, absorvendo-o durante algum tempo na vida literria ae
Nova Iorque, ouvi dle essas palavras desanimadas: "Tenho que
escolher entre isso aqui e os caminhes que andam chacoalhando pelas
estradas afora. Creio que minha escolha ser para os caminhes, onde
no sou obrigado a explicar nada e onde nada explicado, mas real"
Kerouac manteve-se, desde ento, fiel sua escolha. O que se seguiu
depois foram os anos de vida errante caronas, bicos aqui e ali,
pginas escritas em So Francisco, Denver, Nova Iorque e no Mexico
("Ah, John, Ernest Hemingway estava errado, e como podamos ns
saber se nunca havamos assistido a uma touraaa?"). O que decorreu
disso foi a descoberta de uma nova atitude a que os jovens de tda
parte participam cada um sua maneira.
Na ocasio em que o romance On The Road foi publicado,
Kerouac conhecia o outro lado da Amrica do Norte (suas estradas e
seus freqentadores) como talvez nenhum outro escritor antes dle
houvesse conhecido. Esta a razo porque le no est interessado em
"explicar" sua gerao nos trmos de uma fria cincia sociolgica ou
psicolgica. le sabe que a verdade sbre ela encontra-se em outra
parte. le ouviu a conversa febril nos carros que corriam; le viu os
rostos jovens, coradqgj' Voltados com ateno para o saxofonista; le
agora pode \ dizer das atitudes literrias mais antigas: "A vida
continua... Nas ruas estreitas da Filadlfia, os homens ouvem o
futebol e depois saem e matam suas mulheres. Nas ruas de Baltimore,
tdas iguais com as entradas das casas pintadas de branco, algum
est de fato realmente morrendo... Assim, so apenas nossos literatos
que vem tragdia em tudo isso, no o mundo."
Em suas viagens, le encontra outros caminhantes que esto
escrevendo "histrias incrveis", poetas de mochila nas costas que
caminham em direo "outra costa" onde lero suas poesias para os
amigos. desta troca de informaes, na sua opinio, que nascer
uma possvel literatura. E quando isto acontecer, esta ser a literatura
da Gerao Beat.
Antes mesmo de considerar as respostas que uma tal literatura
possa fornecer, interessante lembrar o que Norman Mailer disse
sbre a linguagem hip em um recente artigo a respeito dos hipsters:

1
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"O que a torna uma linguagem especial o rato dela no poder ser
realmente ensinada se uma pessoa no participa das experincias
de exaltao e exausto que ela procura descrever, ela no passa de
uma linguagem engraada, vulgar ou irritante." Isto se aplica
igualmente a uma grande parte da realidade global na qual os
membros da gerao beat evoluram. Se no vemos as coisas como
les vem, no entendemos a razo de seus atos. Uma das maneiras
de compreender isto, talvez a mais simples, analisar a imagem que
les fazem de si mesmos.

Uma grande parte desta gerao identificou-se com a carreira


curta e turbulenta do ator James Dean. le foi seu dolo da mesma
forma que Rodolfo Valentino o foi da gerao de 1920, e Clark Gable
da gerao de 1930. H, no entanto, uma ntida diferena entre les, e
essa a explicao para muitas atitudes aparentemente
incompreensveis. A juventude atual no via em James Dean um
sonhador de olhos abertos, mais atraente, mais rico e misterioso do que
os demais jovens; tampouco via nle o homem viril e ativo com quem
gostaria de se identificar a fim de superar o sentimento de impotncia
que sentia; ela via nle, porm, um jovem pensativo, reticente, que
olhava por cima do abismo que o separava das pessoas mais velhas
com um olhar tranqilo e melanclico; que vivia intensamente em
crises sucessivas de ternura e violncia; vido de amor e de um sentido
para as coisas, descrente de tudo que no correspondesse sua
experincia pessoal: era isso que os jovens viam em James Dean; no
fundo, seus prprios problemas.
Para muitas pessoas, a maneira murmurante como James Dean
falava, seus silncios prolongados e seus gestos bruscos significavam
apenas a expresso de um maneirismo exterior e vazio; a gerao
jovem, no entanto, percebeu que no se tratava de afetao ou falta de
expresso dramtica, mas sim de sua incapacidade em levar a srio
certas exigncias do argumento cinematogrfico. Era como se o ator
quisesse se comunicar com os jovens, atravs de produes que
custavam milhes de dlares, e dissesse com seus suspiros e sua lenta
gesticulao: "Rem, pelo jeito no h uma maneira de sair disso, mas
ns todos sabemos como a coisa realmente ..." Os jovens sabiam que
James Dean sentia-se desamparado, que le tinha suas falhas, sabiam
que le estava desorientado. Mas sabiam igualmente que le "entendia"
a situao, e por isso adoravam suas roupas surradas, seus cabelos
desgrenhados, sua indiferena s honrarias da fama. le no era o que
os jovens queriam ser: le era o que les eram. le vivia em meio a
dificuldades sem se queixar, e le morreu como havia vivido, correndo
a tda velocidade. Ou ento como diz um personagem de Kerouac:
Temos que ir e no parar nunca at chegar l.
E para onde ns vamos?

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No sei. Mas temos que ir.
Somente os mopes podem julgar esta necessidade ambulatria
(que uma das caractersticas dominantes da gerao beat) como uma
fuga e no como uma busca.
James Dean foi o produto de uma d'sciplina teatral conhecida
como The Method (disciplina esta ensinada em Nova Iorque no Actors'
Studio) que atraiu d" forma irresistvel os atres jovens e que tem
fornecido tela e 'ios teatros da Amrica do Norte, nos ltimos anos,
jovens lacnicos e desleixados que repentinamente irrompem em
manifestaes to inesperadas de fra emocional que o pblico sente-
se abalado e comovido, como se lhe fsse dado ouvir uma confisso. A
preocupao principal do "Mtodo" encontrar a essncia de um
personagem, sua alma mais profunda, e o ator encorajado a fazer
isso lanando mo de suas prprias emoes que correspondam com
as do argumento do filme. Os atres que Ho pertencem a esta escola
criticam, muitas vzes, os atres do "Mtodo"; dizem que les se
poupam durante a maior parte do papel, guardando suas reservas
emocionais para as cenas principais. Os atres do "Mtodo" poderiam
responder a esta objeo fazendo ver que somente as cenas principais,
na maior parte das peas e dos filmes, possuem uma profunda
realidade humana e que iO restante apenas um dilogo vazio
construdo em Vista do momento em que os personagens revelam sua
verdadeira individualidade.
Um exemplo tpico o filme Sindicato de Ladres; tanto o autor da
historia, Budd Schulberg, quanta o diretor do filme, Elia Kazan,
pretendiam fazer um documentrio social sbre as condies de vida e
de trabalho entre porturios; o intersse
rincipal do filme giraria em tmo de urr jovem doqueiro, ex- oxeador,
que acabava sendo envolvido por um sindicato corrompido. O
extraordinrio desempenho de MArlon Brando, porm, interiorizou
de tal forma o drama do personagem principal que os aspectos sociais
do problema tornaram-se insignificantes: o grande drama passou a ser
o conflito de u*ia nica criatura humana envolvida nas contradies e
absurdos da vida moderna. Era exatamente como se Marlon Brando
repetisse cena aps cena: "O homem no apenas um animal social,
uma vtima, um produto da sociedade. Mais do que isso, o homer**
um ser espiritual." Neste sentido, o "Mtodo" predominantemente o
estilo cnico da gerao beat.
Os crticos expressam constantemente s*ia perplexidade pela
complacncia, para no dizer deleite, com qiAe a juventude aceita o
que (para os crticos) uma imagem preffundamente desfavorvel
dela mesma. Observou-se, por exemplo, que os maiores entusiastas do
filme O Selvagem (que narrava ae forma brutal e crtica a brbara
invaso de uma pequena cidade da Califrnia por um bando de
motociclistas) eram os prprios motociclistas.

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Da mesma forma, a maior parte dos delinqentes juvenis pro-
vvelmente assistiu, e aprovou, o retrato que foi feito dles no filme
Sementes da Violncia, mesmo que hajam ridicularizado as motivaes
de carter social que, segundo o argumento do filme, explicava o
comportamento dos jovens perversos. A concluso a que se chega
que o mesmo filme visto diferentemente pelos jovens e pelos adultos.
Os padres segundo os quais os adultos se baseiam possuem um
mnimo de realidade para os jovens, uma vez que esses padres
admitem valores morais e sociais que no levam em considerao o
grande dilema da juventude que a vontade de acreditar em alguma
coisa mesmo que no seja de acordo com os padres convencionais.
As pessoas mais velhas cometem freqentemente o rro de
concluir que o que est por trs de todo ste movimento dos jovens
uma profunda indiferena a qualquer espcie de valor, quando quase
sempre o contrrio que a verdade. At mesmo os elementos mais
selvagens e niilistas da gerao beat, que so os jovens marginais
delinqentes, preocupam-se quase que exclusivamente com o
problema da crena, ainda que seja de forma inconsciente. Parece
inacreditvel ningum haver percebido que a nica maneira de
explicar de forma coerente os aterrorizantes crimes juvenis
compreender que se tratam, especificamente, de crimes morais. O
jovem que no vero passado esfaqueou um outro jovem de sua idade e
foi visto dizer para sua vtima: "Muito obrigado, eu s queria saber
como isso era", no era um louco nem mesmo um indivduo perverso.
No havia justificativa para seu crime: no se tratava de roubo, nem de
um repente histrico de dio; no estava nem mesmo em cogitao o
egosmo desenfreado de um Loeb ou de um Leopold que matavam
unicamente para provar que seriam capazes de faz-lo. O crime
daquele jovem da mesma espcie dos crimes imaginados pelo
Marqus de Sade cento e cinqenta anos atrs: um crime que a cruel
ausncia de Deus torna obrigatrio se o homem deseja provar ser um
homem e no apenas um monte de matria. Tais crimes, que no so
mais raridade e que so cometidos por jovens com menos de vinte e
cinco anos, no podem ser compreendidos se continuamos repetindo
as eternas lamentaes a respeito de lares desfeitos, bairros miserveis
e ms companhias, uma vez que so crimes espirituais, crimes
cometidos contra a identidade de um outro ser numano, crimes que
revelam com uma clareza chocante e aterrorizante os extremos a que
pode levar, entre os jovens, a busca desesperada de valores autnticos.
De fato, o desejo ansioso por valres genunos que gera tais crimes, e
de forma alguma o dio destes mesmos valores. o desejo angustiado
para fazer ou sentir algo verdadeiro o que dita a conduta destes jovens;
isso mostra at que ponto os cataclismas deste sculo cegaram os
conceitos racionais e humanos do Homem sbre o qual foi edificada a
sociedade moderna.
Como reagiram os jovens diante dessa situao? No o foi
certamente na forma de uma imoralidade calculada, mas no regresso a
um cdigo de tica bem mais antigo, bem mais pessoal, se bem que

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no menos rigoroso; refiro-me inviolabilidade da camaradagem, ao
respeito pelas confidncias, a uma considerao quase mstica pela
coragem aspectos estes que fazem parte da tica da tribo, mais do
que da comunidade em que vivem. ste por conseguinte o cdigo
tico de um pequeno grupo que reside dentro de um ambiente hostil
ou indiferente, que o grupo no pretende conquistar nem modificar,
mas nicamente despistar.

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Numa forma ligeiramente mais antiga, ste anseio primitivo pela
sobrevivncia deu origem aos hipsters, indivduos que percorrem
nossas cidades como membros de uma sociedade secreta, misteriosa e
pacfica, conservando viva uma filosofia existencial impopular, como
era a dos cristos do primeiro sculo. les encontram na msica bop,
nos entorpecentes leves e na prpria noite sua linguagem secreta, bem
como a afirmao de sua individualidade cada dia mais ameaada
pelo convencionalismo de nossa vida nacional; muitas vzes isto s
encontra expresso numa franca manifestao de excentricidade. A
inteno deles estarem margem da sociedade, e no contra ela. A
paixo exaltada elo jazz, sexo ou marijuana, significa um esfro de
libertao o prprio ser, e no uma demonstrao de poder sbre os
outros. Os mais esclarecidos entre os hipsters sabem que a discusso, a
violncia e os partidarismos so atitudes definitivamente burguesas, e
les esto de pleno acrdo com a doutrina budista segundo a qual a
maior parte das misrias humanas origina-se nestas emoes. Ouvi
certa vez um jovem hipster, revelando fadiga, dizer para um
antagonista em uma dicusso de bar: "Escuta aqui, voc no vai querer
interferir com o que le sente, com a sensao dle. Seria o fim!"O
hipster pratica, por conseguinte, uma espcie de resistncia passiva
dentro da sociedade na qual le vive; o mximo que le proporia como
programa de vida seria o afastamento de todos os obstculos sociais
ou intelectuais que poderiam prejudicar a plena realizao e prazer de
sua propria individualidade, e as emoes decorrentes de suas
descobertas existenciais. Alis, como observou Norman Mailer no
artigo citado "A afirmao que est implcita nesta ideologia que o
homem se revelaria mais criador do que destruidor, no correndo
assim o risco de vir a se destruir." Seja como fr, ela uma concepo
mais espiritual e religiosa da natureza humana do que a daqueles que
s percebem os excessos da gerao beat.
A convico no poder criador da alma individual, livre dos
preconceitos, a base em que se apoiam os interesses principais desta
juventude. Assim, a curiosidade que revelam pelos entorpecentes tem
uma dupla razo: primeiramente, investigar o mundo desconhecido
que existe dentro dles; e, em segundo lugar, escapar ao insuportvel
mundo exterior. "Na noite passada", dizem les, "fui to longe que
entendi tudo. Entendi o por qu das coisas."
Nas artes, o jazz moderno quase exclusivamente a msica da
gerao beat, como a poesia (pelo menos at o momento em que foi
publicado o livro de Kerouac) sua literatura. Se les ouvem os
lamentos de um saxofone com a mesma devoo com que antigamente
os homens costumavam ouvir as palavras e os exemplos dos sbios,
porque o jazz antes de tudo a msica da liberdade interior, da
improvisao, do poder criador do indivduo mais do que do grupo
que acompanha. a msica de um povo submerso que se sente livre, e
assim exatamente que se sente o jovem de hoje. Por esta razo, a
existncia breve e agitada do saxofonista Charlie Parker (juntamente

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com a de James Dean e Dylan Thomas) exerce uma atrao especial sbre a juventude: todos os trs
trilharam seus caminhos sem abdicar de suas liberdades, ouvindo a voz interior, celebrando tudo
aquilo que lhes parecia justo celebrar e pagando depois, voluntria- mente, o preo da auto-
destruio. Mas se por um lado os jovens os idolatram, por outro lado les no tm iluso a respeito
dles como mrtires, porquanto sabem (e quase esticamente aceitam) que um dos riscos de andar to
velozmente, e ir to longe, a morte.
Talvez seja na poesia que a atitude da gerao beat, e seu anseio imoderado em encontrar uma
crena a qualquer preo, encontre sua expresso mais apropriada. Na cidade de So Francisco (que ,
de certo modo, a Paris desta gerao) um grupo de poetas rompeu definitivamente com seus elegantes
precursores de formao universitria. Alguns dles praticam o Zen budismo, que uma psicologia
da revelao altamente complexa e irracional, enquanto aguardam o satori (sinnimo de sabedoria,
compreenso, reconciliao). Alguns so leigos de crena catlica, outros so monges que rezam pela
redeno do mundo. Muitos deles assemelham-se aos frades mendicantes, ou aos peregrinos
goliardos da Idade Mdia, carregando tudo o que possuem nas costas, inclusive cpias datilografadas
de seus poemas que sero depositadas em galerias de arte, mictrios pblicos, "e outros locais onde se
renem os poetas". Todos les acreditam que somente o que urge ser dito, por menos "potico" que
seja, somente aquilo que inaltervelmente verdadeiro para quem o diz, e irrompe dle como um
dilvio, encontrando sua forma literria medida mesmo em que surge, digno de ser dito antes do
mais. Atitudes literrias, preocupaes com mtrica ou gramtica, tudo que fr auto-consciente e
artificial e separe a literatura da vida (afirmam les) deve ser abandonado. Como resultado disso, as
leituras pblicas dos poemas assemelham-se mais a sesses de jazz do que a reunies "culturais"
maneira antiga; os ouvintes, com suas camisas-esporte vistosas, misturam os apartes com goles de
bebida, enquanto um saxofonista modula um acompanhamento. Um dstes poetas, de nome Allen
Ginsberg, que a revista Life apontou como o mais interessante poeta jovem da Amrica do Norte,
escreveu um longo, brilhante e. catico poema intitulado Howl. Muitas das expresses e situaes
dste poema so absolutamente inditas do ponto de vista potico; apesar disso, seu objetivo to
visivelmente uma defesa do esprito humano perante uma civilizao disposta a destru-lo que o
efeito da leitura tonificante "O poema Howl', diz Ginsberg, " uma afirmao, pela experincia
pessoal, de Deus, do sexo, das drogas e do absurdo."
O mesmo pode ser dito do romance On The Road. Alguns crticos perderam tanto tempo
expressando uma educada averso pela sordidez de certos trechos que se esqueceram completamente
de mencionar que no mundo da gerao beat, nesse mundo aparentemente to srdido, Kerouac
encontrou muitas vzes a ternura, a humildade, a alegria e mesmo a reverncia. E apesar dle haver
vivido o pesadelo selvtico da sensao vazia, como batizaram alguns crticos sua experincia, seus
personagens no se cansam de repetir: "Ningum nos convence de que no existe Deus. Passamos por
tdas as situaes... Tudo belo, Deus existe, conhecemos nossa poca... Alm do mais conhecemos a
Amrica, estamos em casa... Damos, recebemos e caminhamos numa suavidade incrivelmente
complexa..."
Estas no so palavras de uma gerao consumida pela auto- compaixo diante da perda de suas
iluses; nem so as palavras de uma juventude consumida pelo dio de um mundo que no criaram.
Soam antes como as palavras de uma gerao que luta pela f como conseqncia de um desespero
intelectual e de um caos moral no qual ela se debate para no se perder. Para muitas pessoas essas
palavras podem parecer estranhas, ditas por um jovem sentado atrs do volante de um carro que
corre velozmente pela noite norte-americana, da mesma forma que parece bizarra a resposta de
Kerouac a John Wingate, autor do Nightbeat, quando interrogado para quem dirigia suas oraes. "Eu
rezo para meu irmozinho que morreu, para meu pai e para o Buda, tambm para Jesus Cristo e a
Virgem Maria', disse Kerouac, e depois acrescentou: "Eu rezo para estas cinco pessoas..."
E se essa reunio de um santo, um sbio e um salvador, ao lado de dois americanos do sculo
vinte, possa parecer estranha unicamente porque muitos de ns esquecemos (ou nunca chegamos a
saber) quo real pode ser a experincia espiritual quando tdas as outras experincias revelaram-se
insatisfatrias para saciar nossa fome. O que se deduz, pelo menos do livro de Kerouac, que alm da
violncia, dos txicos, do jazz e de tdas as outras "emoes fortes" nas quais ela busca
desesperadamente sua identidade, essa nova gerao encontrar uma f e se tornar conscientemente
Kerouac acredita que ela j seja inconscientemente uma gerao religiosa.
Seja como fr, h indicaes de que a gerao beat no um fenmeno exclusivamente norte-
americano. A Inglaterra possui seus Teddy Boys, o Japo seus Sun Tribers e mesmo na Rssia existe
uma classe de hipster. Em tda parte os jovens esto reagindo contra a crescente coletivizao da vida
moderna e contra a ameaa constante de uma mortandade coletiva com o mesmo surpreendente

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paroxismo de individualismo. Em tda parte parecem estar dizendo aos mais velhos: "Somos
diferentes de vocs e no podemos acreditar no que vocs acreditam nem que seja unicamente pelo
fato de vocs serem os construtores dste mundo".
Para muitos dles, o ponto final a cadeia, a loucura ou a morte. Talvez no encontrem nunca a
f que Kerouac diz estar no fim da estrada. Mas todos so unnimes num ponto: a vida atual,
desprovida de valres, insuportvel. E se outras geraes lamentaram o fato de que o mundo em
que viviam "era o pior de todos os mundos possveis", os jovens de hoje sabem perfeitamente que o
nico mundo que jamais vero, e que a maneira como uma pessoa vive, e no a razo pela qual ela
vive, o que realmente importa acima de tudo. A concluso a que les che garam que as bases de
todos os sistemas, morais ou sociais, dependem da indestrutibilidade do indivduo isolado pode
no ter outro significado seno o de uma revolta contra uma poca em que essa crena caiu no
descrdito. Por outro lado, a descoberta deles de que o que mantm o indivduo a f e a crescente
convico de que somente as doutrinas espirituais possuem alguma validez em um mundo como o
nosso situa sob uma nova luz o comportamento exaltado que lhes freqente, e acreditamos que
essa crena haver de ocupar uma posio privilegiada no futuro deles, qualquer que le seja.
DAN PROPPER

A Fbula da Hora Final

O FENMENO, no caso presente, tratar-se de um autor de 22 anos. le ainda tem muito que aprender,
o que se diz usualmente; por meu lado, preferia sugerir: le ainda tem muito que esquecer. A menos
que, como observou William Morris, poeta- pintor do fim do sculo passado (e a prpria contribuio
de Morris foi prejudicada pela moralidade aa poca), s esquecem aqules que no tm mais essa
idade. Propper possui uma lucidez fora do comum, com o brilhantismo amargo ae um talento pre coce
na idade dos foguetes.

ooe

No 1. minuto da hora final Walt Whitman foi encontrado num antigo tnel de metr, embaixo da
Rua 52, onde jazia em xtase desde o momento em que os primeiros compassos de jazz
haviam penetrado ali. Os guarda-linhas que o descobriram pegaram imediatamente em suas
alavancas e partiram-lhe o crnio, recebendo ento dois meses de ordenado da Prefeitura
reconhecida, alm da promoo ao psto de maquinista;

No 2. minuto da hora final o arcebispo de Hollywood decretou que Moiss e Maom seriam
doravante considerados cristos, enquanto o Buda seria riscado dos arquivos, em vista de
suas tendncias comunistas;

No 3. minuto da hora final o Washington Monument atravessou solenemente o pas em direo


cidade de Nova Iorque, onde apoderou-se fra do Washington Square Arch, com a
inteno de terminar para sempre com o reino do sofrimento e da alquimia;
No 4. minuto da hora final milhares de poetas frenticos entregaram-se a uma orgia danante no alto
do terrao do Sutton Place:

No 5. minuto da hora final Bud Powell foi eleito presidente da recm criada Federao dos Msicos
de Jazz pelo fato de haver conseguido, com imenso sucesso, fazer com que 3 sucessivos LP
estereofnicos de Lawrence Welk rico- cheteassem sbre as guas borbulhantes da baa de
Chesapeake: 17 ricochtes para cada LP;

No 6. minuto da hora final dois vndalos roubaram um helicptero e substituram o facho da


Esttua da Liberdade por um letreiro com dizeres obscenos. Ao ser interrogada sbre a
veracidade da acusao, a esttua sorriu maliciosamente e balanou a cabea de maneira
afirmativa;

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No 7. minuto da hora final uma orgia monstro teve lugar nos escritrios principais do New York
Times, no fim da qual uma gigantesca edio-extra encadernada saiu s ruas contendo
notcias que jamais haviam sido divulgadas anteriormente;

No 8. minuto da hora final o Dirio Oficial desenterrou o corpo do Soldado Desconhecido e


descobriu, para surpresa geral, tratar-se do de Adolf Hitler;
No 9. minuto da hora final trs psiquiatras praticaram uma copulao subliminal simultanea com
um aparelho de televiso em cres;

No 10. minuto da hora final as Filhas da Revoluo Norte-Ame- ricana passaram batom em suas e
rimei em suas . Ao observarem os resultados, matricularam-se num curso por
correspondncia de ventriloquismo;

No 11. minuto da hora final uma delegao de viciados em drogas ofereceu-se voluntriamente para
experincias mdicas, com a condio de que novas drogas e o vrus do cncer fssem
injetados em seus olhos;

No 12. minuto da hora final a Associao dos Publicitrios Nor- te-Americar.os proclamou a
Dignidade do Homem, pu- /
blicando na ocasio um impresso com 1.000 tpicos diversos sbre o assunto, todo le escrito
em verso livre;
No 13. minuto da hora final o gasto piso do Yucca Flats desabou, revelando uma gloriosa e at ento
desconhecida civilizao subterrnea, bem como os remanescentes de seu povo: os corpos
contorcidos conservavam ainda uma atitude suplicante;
No 14. minuto da hora final 14 milionrios foram atrados, com seus cadilaques, para um psto de
servio aparentemente inofensivo onde foram rpidamente desmontados, os carros e os
donos, aparecendo seis minutos mais tarde, transformados em 42 caixotes de comida para
cachorro;
No 15. minuto da hora final o segrdo do simbolismo de Salvador Dali foi inconscientemente
revelado a uma famlia de surdos-mudos;
No 16. minuto da hora final um bando de ndios de fisionomia insondvel, vestidos com seus trajes
guerreiros, desfilou silenciosamente diante de uma cabina telefnica situada em frente
Sociedade Protetora dos Animais;
No 17. minuto da hora final o melhor saxofone tenor do mundo foi descoberto e tocado por um
obscuro congressista republicano da Artsia, Nvo Mxico;
No 18. minuto da hora final seis delinqentes juvenis embriagados desmaiaram dentro do metr e
foram levados para Canarsie, onde despertaram para a incerteza da noite. Apoderaram-se de
um barco a remo e rumaram para alto mar: foram vistos pela ltima vez saindo da baa de
Sheepshead, remando sem destino e murmurando preces ardentes a Jean Genet;
No 19. minuto da hora final um grupo de atres prtos, que estavam na lista negra, pintaram os
rostos de branco e representaram "Tobacco Road" para um pblico de Legionrios
Americanos que soluava histricamente;
No 20. minuto da hora final um arrojado proprietrio de estradas de ferro instalou clandestinamente
sinais vermelhos e
prostitutas nas balsas que servem Staten Island, provocando um engarrafamento monstro no
ancoradouro de Nova Iorque, fato que marcou o renascimento da locomotiva;

No 21. minuto da hora final as mquinas de lavar roupa de Le- vittown "encantaram-se",
transformando tdas as roupas em meias curtas vermelhas;

No 22. minuto da hora final um entusistico jovem de barba comprida deixou de bca aberta a
devota multido reunida em Lourdes: le se materializou a sete metros acima do solo e
anunciou ser o Cristo. Ao descer das alturas, para ser submetido aos testes do observador da

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Junta Mdica Norte-Americana, um jovem sacerdote precipitou-se sbre le e o manietou
com seu rosrio, devolvendo assim a paz e a tranqilidade ao pacato lugarejo: o sacerdote foi
condecorado mais tarde com uma medalha especial do Papa; \

No 23. minuto da hora final tun objeto voador misteriosamente iluminado foi forado a descer na
Terra graas energia do pilto de um avio a jato: feitos os exames de praxe, descobriu-se
tratar-se do fantasma de Cirano de Bergerac;

No 24. minuto da hora final um bando de pombos sofrendo de diarria sobrevoou e bombardeou a
praia de Miami;

No 25. minuto da hora final o fogo alastrou-se em uma plantao de maconha na floresta de
Madison, no Wisconsin, pondo completamente em transe o grupo de bombeiros voluntrios
que se arriscou na tarefa: diante disso, rumaram diretamente para Folkston, na Georgia,
onde entraram empurrando o carro de bombeiro no meio de risadas e manifestaes de
jbilo;

No 26. minuto da hora final os ndios apareceram espontnea- mente no banheiro das senhoras da
Junta Nacional Para Incentivo s Pessoas de Cr, vestidos de smoking e carregando nos
ombros incompreensveis cartazes;

No 27. minuto da hora final o Readers Digest, a revista Life e a Lista Telefnica de Los Angeles
brincaram de cabra-cega;
No 28. minuto da hora final descobriu-se que um remdio popular patenteado continha herona.
17.000 pessoas foram esmagadas e 300 drugstores foram reduzidos a cacos em conseqncia
do pnico provocado por essa notcia;

No 29. minuto da hora final a mulher de um carteiro deu luz uma sala de cinema;

No 30. minuto da hora final um plano de obras pblicas foi aprovado na Cidade Sonhadora;

No 31. minuto da hora final um feitio realizado pelo esprito de Franois Villon tampou tdas as
entradas do metr com concreto, dando origem a uma nova religio que adorava o cavalo e
tinha como hino a melodia "Deep In The Womb of Texas";

No 32. minuto da hora final 36 discos desconhecidos de Charlie Parker foram desenterrados em uma
adega na Filadlfia. Felizmente foram apreendidos pela polcia antes que pudessem espalhar
a Desordem e a Incerteza;

No 33. minuto da hora final todos os homens acariciavam as de suas espsas com seus ,
desculpando isso cinco minutos depois como conseqncia da alucinao e do so-
nambulismo;

No 34. minuto da hora final a Lei do Cercado pelo Avsso foi redescoberta e uma caixa de fsforos
foi declarada a priso do universo, com duas pulgas postas dentro como guardis;

No 35. minuto da hora final tdas as revistas de science-fiction transformaram-se mgicamente em


unhas rodas;

No 36. minuto da hora final os nacionalistas porto-riquenhos atacaram os estdios de televiso da


CBS com furadores de glo, no momento em que estava no ar o programa que d 64.000
dlares de prmio por uma pergunta respondida certa;
No 37. minuto da hora final uma verso Bop do Hino Nacional Norte-Americano foi proclamada a
melodia oficial dos Fuzileiros Navais:

No 38. minuto da hora final um batalho de formigas famintas penetrou na Casa da Moeda e
devorou todo o dinheiro que encontrou, recusando-se a matar a fome com os passes verdes
de nibus;
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No 39. minuto da hora final o Presidente da Repblica teve um sonho molhado e a Marinha foi
enviada para Algiers;

No 40. minuto da hora final tdas as latrinas foram encontradas viradas de cabea para baixo e a
populao ficou envergonhada;

No 41. minuto da hora final tdas as crianas futuramente pederastas foram castradas como medida
de emergncia contra o aumento assustador da gravidez intestinal;

No 42. minuto da hora final os ndios fizeram sua ltima apario, dirigindo-se ao balco de doces do
cinema Paramount vestidos com uniformes de futebol. Apanharam ento alguns punhados
de pipocas e subiram resmungando para a sacada do segundo andar, onde desapareceram;

No 43. minuto da hora final James Dean apareceu em sonho a 40 milhes de norte-americanos,
sorrindo com doura e falando com ternura de insurreio;

No 44. minuto da hora final um trem expresso, repleto de exibicionistas, entrou na estao de Times
Square;

No 45. minuto da hora final ocorreu uma abundncia de nudez e de esperanosa incerteza;

No 46. minuto da hora final a primeira roupa transparente foi usada na rua;

No 47. minuto da hora final a prostituio tornou-se desnecessria;


No 48. minuto da hora final tdas as placas de estradas de rodagem foram substitudas por outras
com dizeres "Siga em frente!";

No 49. minuto da hora final tdas as revistas femininas foram transformadas em smen;

No 50. minuto da hora final os escoteiros uniram-se s bandeirantes numa nova era de alegria e
experincia;

No 51. minuto da hora final o Estado do Texas foi declarado Incapaz e psto sob tutela;

No 52. minuto da hora final uma das bombas de hidrognio jogadas no Pacfico derramou no ar uma
chuva de papis impressos onde se lia: "BUUUMI";

No 53. minuto da hora final Jesus Cristo apareceu na capa da revista Time, juntamente com o Pato
Donald e J. Edgar Hoover;

No 54. minuto da hora final Nelson Rockfeller inaugurou uma plantao de haxixe em Nutley, Nova
Jersey, e os Super Mercados A&P abriram balces para venda de narcticos distribuindo
tales de sorteio com novos e maravilhosos prmios;

No 55. minuto da hora final os Dodgers de Brooklyn queimaram a Disneylndia em sinal de ltimo
protesto, depois do que se dispersaram mantendo uma relativa insanidade;

No 56. minuto da hora final tdas as pessoas com ndice de inteligncia abaixo de 90 foram castradas
sem dor e a populao resultante comeou a receber ajuda dos Institutos;

No 57. minuto da hora final o uso da caixa registradora foi abolido;

No 58. minuto da hora final os funcionrios de escritrios do mundo inteiro retiraram-se de


circulao por motivo de doena;
No 59. minuto da hora final tdas as portas foram arrancadas de seus batentes e amontoadas em uma
ruidosa fogueira, e smente as dobradias foram poupadas para servirem de muda
recordao a uma historia triste e assustadora;

No 60. minuto da hora final a Amrica foi descoberta e o renascimento final da beleza e do amor
iniciou sua eternidade;
JACK KEROUAC

28
Trs Episdios do Romance "Visions of Cody"

KEROUAC NO necessita introduo; le possui o fertilizante bom senso que torna o infantil alegremente
adulto, como fariam os Trs Patetas se escrevessem, sabendo ser terno, lrico ou meio louco
dependendo de seu estado de esprito. A prosa de Kerouac escorre como uma torneira que no fecha;
nessa fluncia, contudo, le atinge uma tonalidade to ntima e natural (no gnero conversa de
namorado) que muitos escritores, ao lc-lo, sentem- se envergonhados com sua prpria artificialidade.
Apenas para servir de lembrete: Kerouac foi um aluno brilhante na escola ultra-moderna de Horace
Mann, em Manhattan, antes de entrar na Universidade de Columbia onde diplomou-se com notas
altas. Esta informao fornecida para desfazer o preconceito, que circula entre alguns pseudo-
literatos, segundo o qual Kerouac no passaria de um autor truculento sem nenhuma sutileza inte-
lectual. A realidade outra: Kerouac possui uma enorme compreenso das criaturas humanas e de
suas necessidades. Os trechos que inclumos neste volume pertencem ao romance Visions of Cody; o
personagem principal o mesmo do romance On The Road, se bem que desta vez Kerouac nos oferece
uma viso mais intimista do grande caminhante que le tanto ama. O livro foi publicado no Natal de
1959, em edio limitada, pela editra New Directions. Os fragmentos que vo ler no possuem uma
seqncia lgica; no queiram por isso encontrar continuidade, mas apenas sabor.
oPo

1.
As estradas que Cody Pomeray conheceu no Oeste e que eu percorri com le mais tarde so
aquelas estradas de pista dupla, cheias de buracos e tremendamente perigosas com barrancos de
ambos os lados, cercas caindo aos pedaos, mais adiante estacas fincadas no cho, ou ento um
simples corte de terra, de quando em quando tufos de capim em cima de algum monte de areia,
depois uma extenso interminvel de terra conduzindo em direo a montanhas que pertencem
muitas vzes a outros estados estradas que parecem destinadas a nos jogar no precipcio com suas
curvas inclinadas a sensao que se tem do carro andar sbre duas rodas, beira do abismo,
talvez um buraco na estrada v precipit-lo l embaixo esta a razo porque as estradas do Oeste
so to desertas. L na frente compridas jamantas avanam numa noite de sbado comum ver
cinco ou seis carros que vm na direo oposta a alguns quilmetros de distncia, os faris
diminuindo seu halo luminoso e criando aquela iluso de gua na estrada os faris dos que esto
mais distantes so absorvidos provvelmente pelo sereno noturno a miragem da noite
atravessando grandes espaos planos Cody, como qualquer outro motorista que dirigia naquela
estrada, apoiava o cotovelo na janela, e mais do que ningum le dava a impresso de sentir-se
particularmente calmo, tranqilo e vontade atrs da direo, com seu pescoo grosso, musculoso,
erguido e eficiente (como so os pescoos dos grandes motoristas de nibus), era assim que o via
quando olhava por cima do seu ombro para a estrada que noite mostra apenas uma pequena parte
de si mesma, a mais visvel sendo o trecho iluminado pelos faris dos carros que vm na direo
contrria e que vo passar a noite de sbado em Denver e ste feixe de luz, o facho dos faris
iluminando os barrancos de ambos os lados da estrada e urna parte das crcas que a protegem,
banhando tudo de luz como uma vaga cobre um quebra-mar, esta luz por conseguinte ilumina moitas
desoladas de capim em cima de montes de terra ressequida, surgindo e desaparecendo numa rpida e
vertiginosa sucesso ao mesmo tempo, ocorre-nos que existe, ou existem, os limites da terra sus-
ensos alm daquelas plancies, dos relmpagos secos de vero, o deserto, alm dos buracos cavados
na terra pelos roedores, alm das moitas, matas, rochas, pequenas pedras que refletem as maiores
estrias (que so na realidade galxias), e at mesmo os inevitveis chapades que terminam os
horizontes do oeste confirmam que o mundo possui contornos e que a plancie deve terminar tudo
passa rapidamente, as estrelas esto distantes, e se apagamos os faris eis que surge de repente o que
pressentamos existir Cody dirigiu assim aquela noite crca de 120 quilmetros e repetiu sse feito
muitas e muitas vzes, em direo ao norte, ao sul, a leste e oeste, perfeitamente tranqilo atrs da
direo durante uma hora inteira, fazendo uma calma mdia horria de 120 quilmetros nas estradas
desertas, parando apenas em uma ou outra cidadezinha onde os motoristas se reuniam, conversavam,
bebiam cerveja e depois atiravam para longe as latas vazias que rolavam ruidosamente pelo negro
precipcio.
29
Agora as garotas. A casa ficava prxima estrada de ferro Union Pacific, embaixo de um
reservatrio de gua, na esquina de um aglomerado de construes de aspecto lamentvel, inclusive
uma pequena igreja que estava separada dos outros prdios (os ingleses e os loucos noruegueses
capturaram Moby Dickl capturaram-na cem anos depois!) e um enorme silo pintado de amarelo claro
com o nome da estao em letras de forma, local to desolado que no convinha nem mesmo ao
maquinista se quisesse urinar ali quando o trem pra e se abastece de gua, carvo e cargas
costumeiras. A casa estava coberta de fuligem e por isso mesmo as janelas haviam sido pintadas de
um vermelho vivo as paredes estavam revestidas de lminas de madeira cr de areia, sendo que as
do teto eram verde-claro uma chamin de um modlo antigo, de tijolos cinza, subia pelo lado de
fora da casa atravessando o telhado de abas cadas na frente da casa havia um alpendre
transformado em varanda, pintado de cinza, repleto de bicicletas, cadeiras, portas reforadas com
trancas e sem maantas na parte de trs da casa, em uma srie de cubculos que diminuam
progressivamente de tamanho, lugares para guardar galochas, capas, guarda-chuvas, camas de
dobrar no lado de fora havia uma privada minscula com uma lamparina de querosene pendurada
no teto no ptio, um armrio velho e arrebentado encostado ao muro da casa, com um balde e uma
cesta de vime virada de cabea para baixo jogados em cima montes de lixo e coisas velhas,
inclusive um antigo aparelho de calefao afundado no meio do capim, restos de comida para
cachorro (biscoitos em rodela) espalhados pelo cho e encharcados de umidade e, alm disso tudo,
um carro antiqs- simo e caindo aos pedaos levantado em cima de uns tocos de madeira, como se
estivesse exposto numa vitrina, sem capota, esvaziado de tudo com exceo das abas de couro das
janelas, das molas dos bancos balanando livremente, do frro de capim dos assentos, do velho painel
vermelho comido pela ferrugem, do volante quebrado com risco de ferir algum, dos faris
queimados, da mala traseira onde as aves haviam feita um ninho e a neve e a primavera haviam
trabalhado juntas para formar um pequeno canteiro batatas velhas rolavam de um saco e
apodreciam junto roda direita da frente lugar onde as crianas brincavam o mictrio predileto
dos cachorros o ccho de vacas saudosas nas chuvas de vero.
Era sbado noite e se um trem passasse pela estao, a nica soluo era largar tudo o que se
estava fazendo, ficar imvel e esperar. As duas jovens no pertenciam classificao usual "uma
bonita e a outra feia", porque nesse caso a mais Velha, que seria a feia, era extremamente atraente,
embora isso no aparecesse primeira vista, a no ser talvez para olhos entendidos no assunto,
prontos a ver nela o que se desejava realmente aquela noite, a saber uma fomicao apaixonada, uma
verdadeira fria de paixo na escurido da noite e isso era possvel descobrir pela maneira
decidida com que ela afastava os olhos da pessoa com quem falava, como se fsse uma profes- sra
que tivesse ordens a dar, imbuda de uma auto-disciplina que era to mais pattica e to mais forada
quanto se percebia que ela haveria de explodir de uma hora para a outra, e bem- aventurado o
homem que estivesse por perto nesta ocasio para receber tda aquela fria acumulada E eis que
Cody, embora tivesse apenas quinze anos nesta poca, percebeu imediatamente isto nela, pelo
costume que tinha em procurar entender as coisas to instantaneamente quanto possvel, de forma a
no perder tempo com ninharias ol como est voc eu sou Joe le Bill e assim por diante no
momento em que le desceu do carro e ficou em p no meio do quintal enlameado (chovera naquela
parte do Wyoming), no momento em que le viu as duas pequenas preparadas para o ataque,
imediatamente le fz sua escolha rico com a melhor. A mais ma cujo apelido era Jacky, era a
prpria encarnao da dourinha linda e sensual, de cabelos dourados e sedosos como se v nos
anncios da Coca-Cola, mas lindas ao lado de rapazes igualmente lindos e rosados, se que no so
mais bonitos do que elas, e elas correspondiam to espantosamente ao desejo dles que pareciam
aterrados ao v-las em carne e osso, com uma moeda de 25 cents na mo braos rolios que faziam
crer serem genunos os dois belos seios que se projetavam para fora de um suter de cashmere
deliciosamente macio, as sobrancelhas arqueadas e uma boquinha maliciosa e rechonchuda. Vou
recomear de nvo...

2.
Velhos tarados. Todos sses velhos repugnantes que ficam no Times Square e que nenhum de
ns suporta, alguns correm atrs de mas e rapazes indiferentemente, detestveis libidinosos que nos
fazem pensar no provrbio rabe "As jovens fogem dos velhos como da peste"' usam chapu, sem
brincadeira, usam chapu o ano inteiro! fazem ponto nas sadas do metr, peque nas livrarias,
bibliotecas pblicas, passagens estreitas onde se joga xadrez vadiam para cima e para baixo nas
avenidas alguns tm uma aparncia to inofensiva que no se percebe o

30
?
ue pretendem at o momento em que param na nossa frente por exemplo, quando nos encostamos em
uma esquina) e ficam ali calmamente, dando ares de naturalidade, mas mesmo assim com o nojento
vinco da cala virado diretamente para a nossa direo, como um velho feiticeiro apontando para o
homem que est descendo a Rua Dauphine e que est condenado a morrer Acontece que Cody e eu
sabemos perfeitamente do que les so capazes, estivemos ao lado dles em tdas as vitrinas de
fotografias obscenas que existem pela Amrica inteira Bem, agora entramos finalmente no assunto,
tudo que veio antes era um prembulo justificativo, e agora passo a enumerar (pelo menos no que me
diz respeito) meus pratos favoritos: (enchovas com alcaparra banhadas no azeite um alimento to
substancial que chega a empanturrar, to salgado que afoga a gente, to forte que parece embeber e
perfumar a lata mesma onde vm, at que a prpria lata parece mais salgada do que o prprio sal, um
gsto de sal metlico por assim dizer, o sal de Armagedom) (ste foi um exemplo de comida)
Cody e eu sempre nos interessamos pelas fotografias de pernas femininas os livros com
fotografias em branco-e-prto que se amontoam nas bancas das livrarias do Times Square ou da Rua
Curtis exercem um verdadeiro fascnio sbre ns, todos aqules corpos de um branco leitoso, de certa
forma essas foto-
frafias nos atraem mais do que as coloridas na fotografia em ranco-e-prto a coxa mais alva, o
fundo mais escuro e pecaminoso.
Cody costumava dizer para mim "segura essa foto, j tirei tudo que tinha." Tenho na mo uma
fotografia de Ruth Maytime (a clebre artista de Hollywood) ao lado de Ella Wynn e eu adoro essa
fotografia que seios opulentos e adorveis possui Ruth, uma ala do mai est cada por cima do
brao, a outra fina e delicada, as duas alas se encontram muito embaixo porque seus seios so
volumosos, pesados e exuberantes de forma a esticar ainda mais a ala do mai (ah essa ala!) seu
seio esquerdo ocupou- me durante cinco minutos de completa ausncia e inconscincia na calada do
Times Square, e no foi nem seu seio verdadeiro, mas apenas uma fotografia dle, era to imenso, to
pesado, 3/R partes dele esto escondidas da vista, o que me parece prefervel a qualquer outra
porcentagem, o bico do seio no corre perigo de aparecer, o que corre perigo, isso sim, o ponto em
que a macia salincia ofegante pode pular para fora do mai, ou quase
o de Ella, por outro lado, est bem comportadamente protegido da vista, mas d mesmo assim para
se perceber o vale cheio de vida, deliciosamente macio e farto, com a salincia do tecido
acompanhando os contornos sagrados que todos ns conhecemos
o de Ruth, precisando mais ainda, seria a segunda etapa de um stripteaser no qual Ella teria
comeado a tirar a roupa e Ruth teria continuado a funo interrompida o tecido est puxado para
baixo de um nico lado de sorte que em lugar de se ver 1/4 do seio esquerdo aparecendo (com seu vo
costumeiro) a gente est vendo 3/s partes do alto do seio com o vale crescendo em tamanho,
expandindo-se ah sses seios esplndidos
fico parado no meio dstes devotos velhos tarados do mundo inteiro, mastigando chicletes como
les, o corao batendo horrivelmente mal posso pensar ou me controlar estou convencido de
que olhar para essa fotografia infinitamente mais delicioso do que tocar nos prprios seios de Ruth
(se bem que desse tudo para que isso acontecesse) No terminou ainda, tenho mais a dizer sbre
sse assunto a minha vida inteira sonhei com seios (e naturalmente com pernas e coxas, mas agora
estamos falando de seios, espere um instante com sua Vnus, estamos falando de Marte, deixe para
depois o seu vinho, estamos falando de leite) as obscenas revistinhas juvenis tpmam-se o brevirio
religioso da idade adulta sem brincadeira a gente puxa o vestido e um enorme seio pula fora, eis
o que me prende neste lugar, na companhia dstes velhos manacos, alguns dles com noventa e
tantos anos, isso que nos mantm prisioneiros aqui, em frente a esta banca de livros, especialmente
porque sabemos que isso nunca vai acontecer, trata-se apenas de uma fotografia, e SE ISSO
ACONTECESSE! se assim fsse, seria uma estupenda exploso de gelia branca como neve,
estranha e quente, seria um seio com vontade prpria, com um bico sem nome mas que nos diria tudo
que necessitamos saber (le nos esclareceria mais do que se nos fsse narrada a vida inteira de Ruth,
"Nos sales de beleza do Rrooklyn, durante a Segunda Grande Guerra, uma jovem mulher, de
aparncia estranha e enrgica, comeou a ser notada pelos freqentadores do salo, que ali se reuniam
tarde ou noite, e mesmo pelos visitantes ocasionais..." bastou um olhar de relance sbre le para
vermos sua alma inteira, suas perfeies e imperfeies, suas confidncias, seus rubores secretos de
menina, que so a suprema delcia de tudo que mais desejamos) e tdas as coisas que passamos a vida
inteira meditando sbre Ruth, falando de Ruth como da mulher que nos chamou a ateno por sua

31
fama de estrela, suas fotos, seus inmeros maridos, no h razo para queixas, eu no lhe pedi que me
desse 8/s partes do seu seio vivo que desejo apertar contra meus lbios, foi ela quem o ofereceu
espontneamente e tenho certeza que Deus a recompensar por isso ah estes seiosl so dois seios
to vontade, to sem-cerimnia, ela acabou de nadar com les, seus cabelos ainda esto molhados no
momento em que ela partiu um blo no iate de Orrin Wynn, enquanto Edgar Bones, o idiota, est
sentado a seu lado como um maridinho bem comportado Ruth est com a bca entreaberta, o que
poderia parecer, primeira vista, um sorriso, mas que na realidade a expresso de um desejo
ardente e de uma arrepiante amargura sensual (ela est realmente cortando o blo) e seus dentes se
parecem com os meus quando esfrego o nariz no nariz delicado de uma jovem A fotografia em
branco-e-prto, e o seio de um tom acinzentado a razo porque h mais realidade nos tons cinzas
para mim (e para Cody tambm) porque eu em criana no saa dos cinemas poeiras. Ah os santos
contornos que todos ns conhecemos Bem, no abandonemos ainda definitivamente ste assunto,
mas voltemos um instante nossa ateno para os joelhos. Os joelhos de Ella esto descobertos os de
Ruth esto embaixo de uma toalha. E agora todos ns, incurveis tarados, voltemos ao mesmo tempo
nossa imensa e estrondosa ateno, sem que haja bandinha militar tocando, saudao ou bandeira
exceto a dos piratas, para os joelhos de Ella Wynn les esto cruzados, o que seria uma infelicidade
no fsse pela deliciosa ondulao que se formou na parte de trs do joelho que est por cima do
outro quero dizer embaixo da perna (a barriga da perna doce e macia como a barriga de um peixe
de sangue quente, se bem que muito melhor). Essa ondulao, que apenas uma dobra entre a carne
posterior do joelho e a suavidade mais distante da coxa, essa ondulao especialmente adorvel
porquanto acentua, como nada mais o faria, o joelho que est por baixo do outro o que h de mais
extraordinrio nesse joelho seu brilho acetinado, indicao suprema da delcia de sua carnao e dos
segredos que esto por trs dsse brilho (meu corao comeou a bater de nvo!) e que se estendem s
reas da coxa, mas mais para dentro, mais estonteante, mais atordoante como escalar uma montanha,
at o momento em que os jardins de sua alma esto ao alcance da vista, e a gente se encontra numa
posio privilegiada para procurar o rosto dela por entre a cordilheira de montanhas para ver como
combinam com ela os cabelos compridos presos com uma fita larga e ns, libidinosos incurveis,
estamos agora violando a pobre garota, ali mesmo em cima da calada, tanto mais que Ruth no nos
deu essa oportunidade e nos deixou frustrados, essa a razo porque pulamos em cima de sua amiga
numa vingana covarde. Olhamos para Orrin Wynn como se o conhecessemos de longa data e o
cumprimentamos com um sorriso, ou sorrimos quando percebemos que seus olhos esto
mergulhados na contemplao dos seios de Ruth, e no esto voltados absolutamente para Edgar,
como poderia parecer primeira vista, e Ella, sem suspeitar coisa alguma, est sorrindo para a faca
que corta o blo, o que estranho e talvez infinitamente mais sdico, como atitude, do que Ruth com
seus dentes cerrados seja como fr, Ella geralmente encarna a doura e apesar de que a violentamos
h pouco, ou pelo menos ameaamos faz-lo, no lhe queremos mal no fundo. Gostaramos de saber
se depois houve orgias e sesses de troca-troca com stes quatro no iate, e fazemos votos que sim, to
honestamente quanto desejamos, por exemplo, a Paz Mundial.
As fotografias fantsticas de mulheres de coxas imensas, estrias dos teatros de revista, que ficam
penduradas nas bancas de jornais, fazem-nos interromper dia e noite o trnsito nas caladas. Minha
prxima parada a Frana (cartes postais nos bulevares?)
isso porm fica para depois.

3.
Em Pueblo Colorado, no meio do inverno, Cody sentou-se em um banco de bar s trs horas da
madrugada na triste situao de quem est sendo procurado pela policia na Amrica do Norte, ou
pelo menos procurado durante a noite (batendo com a moeda no balco como algum que mata uma
msca com a mo)
Amrica, a palavra, o som dessa palavra a entonao da minha infelicidade, a expresso do meu
amargo e estpido sofrimento entre minhas recordaes felizes no consta o nome da Amrica, elas
possuem um nome bem mais ntimo, mais pessoal, mais secreto, um nome apenas balbuciado
Amrica ser procurado pela polcia, ser perseguido atravs do Kentucky e do Ohio, dormir em
estbulos cheios de ratos ouvindo os gemidos do vento nos telhados de zinco dos silos sombrios, o
retrato de um heri nas revistas policiais, a hora impessoal da noite quando as pessoas se sentem
perdidas nas encruzilhadas das estradas e ningum se importa Amrica o pas onde ningum tem
o direito de chorar consigo mesmo onde os gregos lutam para serem aceitos, se bem que muitas

32
vezes venham de Malta ou de Chipre Amrica o que ficou colado alma de Cody Pome- ray, o

S
onus e o estigma isso quando um enorme sujeito vestido
aisana surrou-o em um quarto dos fundos at que le falou e alguma coisa que j no tem mais
importncia alguma Amrica (QUADRILHA DE JOVENS SEXO ENTORPECENTES E CARROS!)
tambm a luz neon vermelha e as coxas num hotel barato onde noite os bbedos trpegos saem
fiara as ruas, como um enxame de baratas, quando os bares se echam onde as pessoas, milhares
de pessoas, esto chorando e mordendo os lbios nos bares e nas camas vazias, onde h sempre
algum se masturbando em algum canto escuro Existem caminhos malditos atrs dos postos de
gasolina onde cachorros assassinos rosnam atrs de crcas de arame farpado e onde surgem de
repente carros da polcia, como se fugissem de algum crime inconfessvel, mais vergonhoso do que as
palavras podem expressar onde Cody Pomeray aprendeu que as pessoas no so boas, elas
querem ser ms, elas gostam de apanhar e bater
onde as cenas do amor transcorrem em meio a gemidos de raiva e de dor a Amrica
transformou o rosto de um jovem em algo doloroso de se ver, rodeou suas plpebras de olheiras
fundas e negras, tingiu seu rosto de uma cr desbotada, cresceu plos na testa que antes era lisa como
o mrmore, transformou seu desejo ardente em uma sabedoria silenciosa e muda (le no conversa
mais, nem consigo mesmo, no meio da noite maldita)
ah os rudos das xcaras de caf na tristeza infinita da noite
Algum est lavando a loua na pia a essa hora da manh (e tudo isso para nada, para nada, num
Colorado desrtico e ven- toso) Ah e ningum se importa mas o corao no centro da Amrica
haver de pulsar novamente quando todos os vendedores morrerem...
Amrica onde um jornaleiro miservel e raqutico dorme num bar, seu rosto amassado como se
houvesse sido repetidamente esmurrado contra o meio-fio em frente sua banca onde marginais
com cara de fuinha trabalham parte do dia como assadores de drogas, roubam os bbedos,
prostituem-se com omens e vagam pelas ruas sem destino certo onde as pessoas esperam,
cansam de esperar, onde os casais pobres dormem abraados em velhos bancos de madeira enquanto
os ventiladores, os aparelhos de ar condicionado e os motores todos da Amrica zumbem na noite
morta Onde os prtos bbedos, esfarrapados, exaustos apoiam os rostos sombrios nos braos duros
dos bancos e dormem com as mos cadas para os lados, os beios espichados para a frente como
faziam em criana numa noite de luar na casa de tbuas em que moravam no Alabama ou ento
numa casinha no bairro de Jamaica, em Nova Iorque, rodeados de negrinhos e cachorros, as ruas
animadas num sbado noite com o movimento dos carros, os bares repletos de gente, prtos bem
vestidos passeando de cabea erguida pelas ruas, a alegria de todos transbordando exteriormente
America onde o jovem trabalhador que andava antigamente de cala cqui, botinas do exrcito,
bon do psto de gasolina na cabea e um bluso de duas cores como usava a "turma" dez anos atrs,
cochila agora de cabea baixa no ponto final do bonde com a camisa suja de um trabalhador notumo,
a palma da mo virada para cima como se fsse receber alguma coisa da noite a outra mo cada,
forte, musculosa, pattica, tornada trgica por circunstncias inconfessveis a mo direita aberta
parece a de um mendigo, os dedos sugerindo o que le merece e deseja receber, formulando seus
desejos secretos, o polegar quase encostando nas unhas, como se estivesse dizendo no sonho o que
no ousa confessar acordado "Por que vocs tomaram tudo isso de mim, impedindo que eu descanse
na paz e na suavidade da minha cama em lugar de vestir essa roupa nojenta e sentar nesses bancos
duros de madeira esperando a hora que sse negcio se decida a andar" e mais adiante "No quero
mostrar minha mo mas no sono a gente no sabe o que faz e por isso a levanta, vamos aproveite esta
oportunidade para ouvir minha queixa, eu estou sozinho, estou doente, estou morrendo" (um outro
que est dormindo geme em voz alta, le no deveria estar nesta sala de espera, antes numa en -
fermaria, num pronto socorro, numa sala de operao, num campo de batalha, nas portas do juzo
final) "veja minha mo erguida, leia o segrdo do meu corao, d-me o que lhe peo, d-me sua
mo, leve-me para um local seguro, seja bom comigo, seja delicado, sorria; estou exausto, desisto de
lutar, confesso-me vencido, quero ir para casa, leve-me para casa irmo encon trado na noite, leve-
me para casa, guarde-me num lugar seguro leve-me para onde no exista mais casa, onde tudo seja
paz e tranqilidade, leve-me para o lugar que nunca existiu ou que nunca foi conhecido, leve-me para
a famlia da vida Minha me, meu pai, minha irm, minha mulher e voc meu irmo e voc meu
amigo leve-me para a famlia que no existe mas no adianta, no adianta, no adianta, acordo e

33
daria tudo para estar na minha cama, meu Deus ajudai-me." sse sonho se repete todos os dias
ouo os passos de mais um que se aproxima, escuto a litania das vozes que se lamentam, as portas
que rangem
GREGORY CORSO

Rquiem Espontneo para o ndio Norte-Americano

CORSO um homem com rosto de criana que foi acostumado desde cedo liberdade da rua;
verdadeiro cantor amante das palavras, dotado de um extraordinrio senso de humor e de um estilo
suntuoso. O imenso tesouro que existe dentro dle, e que le mesmo no sabe muito bem como
expressar, surge numa linguagem brbara e rude, maneira do "mim-nun-sabe-ingls", quando sua
poesia abandona momentneamente seu estilo vontade e sem-cerimnia. Tudo nle imprevisvel e
inclassificvel: possui uma imaginao fora do comum, e um dos trs grandes que comeou a
chamar a ateno do pblico por volta de 1954; Kerouac e Ginsberg so os outros dois. Contraditrio
em tudo, Corso rene um inacreditvel refinamento verbal e um talento excepcional ao encanto
endiabrado de um moleque da rua. Segundo a ltima notcia, foi visto em Atenas, vivendo
intensamente, jogando roleta e rejubilando-se com o doce mistrio da vida. Duas vzes mais fra e
alegria para le!
ooo
WAKONDA! Talako! peru alcoolizado para a morte fazendo glu-
gluglu na noite de passos macios! Penas de pontas azuis amarelas vermelhas tingidas com arando
balanam na dana louca do fogo hahaha hahaha homens mortos homens de pele vermelha homens-
com-penas-na-cabe- a na noite!
Fria animal de carne no osso no terreiro quente de fumo! Cantos de rquiem para a confederao dos
ndios do sudeste
norte-americano! Ah a morte dos Creeks, dos Choctaws, Do guerreiro Brave, transbordante de
juventude e pranto, segurando uma truta na sua mo moribunda, uma truta orgulhosa apanhada com
sabedoria,
O mais leve dos ps, o mais veloz, ah lamento da amrica, amrica dos noruegueses e suecos, do
tabaco de mascar, dos crimes, saques e massacres, de Deus e dos tratados desfeitos, Ah relincho dos
cavalos pampas! Ah canto fnebre do tren indgena pranteando o chefe moribundo! Morangos
silvestres, abeto, uva-do-monte, milho caboclo, trigo
do mato oh escassez de homens! Mulher pele-vermelha de pescoo comprido, irm guerreira,
moa de tenda, amante de cicatrizes, no despedaces mais o rato almiscarado com tua mo
carnuda, mas desespera-te, con- torce-te e esmurra tua terra indgena com o ltimo tormento do
amor do amor, Oh amrica, oh cantos de rquiem

O tropel nas plancies dos rebanhos fantasmas de animais no


comidos apodrecendo ao relento Perseguindo o esprito da Inglaterra pelas plancies afora eterna
eternamente, a imponente tribo Kiwago devastando os tranqilos Dakotas, oh amrica Amrica
amrica de minrio escasso oh amrica petrificada oh
alga do que j foi outrcra a grande e adorvel confederao das tribos do Golfo, oh amrica sugadora
de petrleo em vez disso, petrleo de dias melhores, lebres para caar, peixes para fisgar, ps velozes
correm as tribos dali sobrepujada a terra para comer para amar para morrer ah cantos fnebres, o
deus Hator h muito profetizou Wakonda,

trombetas herldicas de sisal branco afinadas segundo a melodia coiote para lamentar a morte do sol
poente a partida em tren de cada moribundo, triste e exangue, o tremor dos homens, de cada
um dos chefes morrendo lentamente, vermelho e quente na sua roupagem de couro Balancem
lentamente o chocalho, os dentes do falco, os sinos de casca, entoem lentamente o lamento,
rquiem, sacudam lentamente o vento dos ventos, ah as penas murchas levadas pelas brisas da
tarde, Lamentem o ltimo tren arrastado pelo cavalo pampa, o triste

34
rei perplexo e ferido dos Montanas, Emudeam os caadores franceses de peles que zombam nas
suas embarcaes fluviais, que no se oua nenhum canto de guerra perante umu tal abundncia de
ratos almiscarados e cas- tores, desprezein-nos,
Que a histeria da mulher pele-vermelha abata-se sbre a amrica, a amrica carroa coberta dos
pioneiros, as carroas da conquista incendiadas por flechas, a ltima resistncia dos qua- kers, antes
de perecerem, das bruxas de capuz branco nas cabeas, dos orgulhosos conquistadores, jovens e
mortos, Jernimo! Washington Bolivar de rosto duro como nquel de uma cidade moribunda que
nunca existiu, sse monstro-mor- to, que os demnios se reuniram para pilhar e pilharam, Touro
Sentado! homem cr-de-ameixa Jefferson Lnine Lincoln homem pele-vermelha morto, obrigue teu
esprito a bater asas, encubra a terra de nuvens, ah o condor, o abutre, o falco os dias da abundncia
passaram e tu tambm, oh amrica, oh cantos de rquiem, Vales secos, marcos de caveiras, territrios
Apache, terra de sol
vermelho, tren indgena, O relincho chorado dos cavalos, a noite das guas e dos potros, o lento
chefe da morte, enrugado, triste e sem vigor, sem horizonte, sem fumaa, triste e orgulhoso morrendo
Em direo ao territrio coiote da montanha e da lua, a algazarra exultante, o riso orgulhoso de
homens sem conta, Ps- negros, Mohawks, Algonquianos, Senecas, todos homens, ob americano,
homens reunidos no alto que inclinam Suas cabeas brancas cobertas de palha e morrem maneira
dos cavalos pampas com a lua nascente, na noite quente, perdida, vazia, nunca vista, sem msica,
indiferente; sem vento

Na luz sombria e terrvel do Terreno da Caa Feliz Trs geraes de chefes exibem seus trofus
inmeros de cabeas humanas, batendo as tranas louras de uma criana contra o pano sujo,
encardido e spero da tenda; Ela desaba em meio a uma montoeira de coisas espalhadas, destruda,
acabada, devastada, as costas livres do cais, trans- forma-se na carcaa vazia dos crnios sem cabelo
dos mortos que procuram na sepultura dos brancos a criana de cabelos arrancados; Ah a tristeza
inelutvel nessa eternidade indgena, Ela justifica, oh amrica, teus urros, teus brados, teus gritos,
teus relinchos e exploses de chro! Calamidade indinica! no foi a cabeleira arrancada dos
homens a primeira faca que penetrou no corao de uma idade selvagem, devastadora de terras
virgens, oh cantos fnebres,
Oh nuvem de tempestade, trovoadas provocadas por pssaros
fantsticos, chuva-no-rosto, grito nas trevas, morte, E mantas e plantaes de milho, e pegadas
tranqilas do homem procura de Kiwago, amrica, Kiwago, amrica, amrica milho, cano
singela de um triste menino pele-vermelha cano na noite sob o olhar da cabea que espia com
curiosidade de cabea intrusa de Zeus trovejante e zombeteiro, ah essa angstia, essa morte, essa
noite, Rquiem, amrica, entoe um lamento fnebre que faa o trigo preto e branco tremular
altivamente em louvor do ndio que nunca mais haver de nascer, desaparecido, desolado,
extinto;
Oua as plancies, as grandes cordilheiras de montanhas, oua o vento desta noite raa de Oklahoma
primeira a chorar no lamento das montanhas, das correntezas, das rvores, dos pssaros, do dia e
da noite, do brilhante e contudo desaparecido tren fantstico, A cabea curvada de um ndio
suficiente para curvar a cabea de um cavalo e os dois juntos morrem morrem morrem e nunca
mais morrem definitivamente, a noite devora os moribundos, devora o sofrimento e no h mais
sofrimento para o ndio, no h mais nenhuma ndia grvida, no h mais menino de olhos
grandes e ps selvagens, no h mais chefes cobertos de brancos ornamentos de couro, exalando
o aroma mido de tabaco e coisas doces, ah amrica amrica
Todos os anos Kiwago v seus bezerros emagrecerem, v sem franzir o cenho seus matadores mortos,
os novos atiradores, de pontaria certeira, com suas espingardas e balas, atiram e derrubam o
mais velho dos touros, o rei, o Kiwago da plancie remanescente Todos os anos Kiwago v o
deserto imvel, o deserto sco sem lgrimas e sem filhos, o deserto sem fumaa, o deserto triste e
sem ndios
Todos os anos Talako v o pssaro voar sem flecha perseguindo-o na sua paz do cu, na sua
liberdade de devorar tudo que existe da velha amrica, da amrica virgem calma selvagem, Ah
amrica, ah canto de rquiem, oh vegetao rasteira, cu do Oeste, cada ano um outro ano,
no se perde uma partida de bola, o brao delgado e musculoso que segura a lana no se levanta
mais, o sbio conselho dos reis reunidos no est mais quente com vida, com peles, umidade,
calor, milho assado e carne sca, agora a ndia no trocar mais sorrizinhos com seu bem amado,
no conversar mais de amor difcil e da necessidade do homem e da mulher viverem juntos, da

35
necessidade dos filhos, filhos, no haver mais filhos nos anos vindouros, no haver mais
aparncia de vida, de vida aprazvel, no, no mais, amrica, mas em lugar disso as pedras
mortas, as rvores scas, as nuvens de poeira percorrendo a terra de uma extremidade outra
rquiem.

Os bacamartes dos pioneiros, as fivelas largas que usavam, os chapus altos, holandeses, inglses,
sapatos de couro patenteados, Bblias, rezam, esfriam os nimos, so circunspectos, circunspectos,
nada lhes comove a no ser festas, perus assados, milho, frutas saborosas, doces e gelias que
saboreiam rodeados de uma multido de convidados felizes e surpresos, os Iroqueses, os Mohawks,
os Oneidas, os Onondagas, que lhes do graas! Oh alegria! oh anjos! oh paz! oh terra! terra terra
terra, oh morte

Ah as balas, as flechas, o chumbo grosso, o usque, o rum, a morte e a terra,


Ah feiticeiras, tavemas, homens quakers, Salem e Nova Amsterd, as plantaes de milho,
E a noite, ps ligeiros, morte, massacre, massacre, oh amrica, oh rquiem
Casas de madeira, fortes, postos avanados, entrepostos de comrcio, lugares distantes, nuvens,
Poeiras, hordas, tribos, morte, morte, jovens louras que morrem, vestidos que queimam, homens
de jaquetas vermelhas e de jaquetas azuis que morrem, jovens que rufam os tambores, que tocam
os pfaros, que praguejam, gritam e morrem, cavalos... que morrem, crianas pequenas... que
morrem;

liiiiiiiuuuuuuuuuuuuuuuu! Hhhhhhaaaaaaaaaaaaa!
EEEEEEEEEeeeeeeeeeEEEEEEEEaaaaaaaaaaaaaaa!

Morrer morrer morrer morrer morrer morrer... amrica, rquiem. Rude, desajeitado, molenga, l vai o
ndio na sua roupa de sa-
cristo, desengonado, risvel, bbedo, Cansado, desleixado as antigas indumentrias e as
botas brancas se perdem, a alegria das festas e das danas terminou, acabou, o ndio Seneca
dorme, sem tren, sem cavalo pampa, sem fim, dorme apenas, e uma nova era, um nvo dia,
uma nova luz, o milho nasce com fartura e a noite eterna, assim como o dia;

36
O avio a jato risca velozmente o cu do Texas
,
Rquiem.

noite o motociclista ndio P-negro com um cinturo largo

assento e arregala
assado na cintura mais selvagem do que os olhos luminosos o falco senta em te motocicleta
preta ajeita-se no

esperana de loucas aventuras


saindo numa disparada pela rua abaixo mais veloz do que a correria de
seus antepassados a cavalo pelos desfiladeiros cobertos de fumaa e
pelas cabanas embandeiradas Ah a tmida sombra de Kiwago agora! o
ronco louco do cano de escapamento de sua moto Indian ecoa nas
ruas como o rudo ensurdecedor de ferro e lata explodindo
brrrrrummmmm no h penas no seu capacete oleoso Ah le uma
mquina veloz a vapor correndo na disparada sem banda de msica
para o receber uma pena le ser estpido a ponto de sentar-se no
Horn & Hardart em sua visita Nova Iorque e sentir-se feliz na
companhia de garotas de faces rosadas e cabelos louros que
conversam sbre a sua enorme moto e a moto enorme delas, Ah le se
comporta como um anjo no meio delas embora sua aparncia citadina
seja sinistra sinistra quando fuma noite um cigarro numa ruela
deserta, esperando, amrica, esperando o fim, o ltimo ndio, ndio
louco sem peixe nem ps descalos nem caa na floresta altiva, louco
nos joelhos que cavalgam a motocicleta, dele o ltimo canto de
rquiem a ltima amrica A FESTANA DO FUNERAL EST SAINDO os
votos de boa sorte so acenados, os pneus so cheios, os culos de
corrida j foram colocados, o motor, a gasolina, os freios est tudo
em ordem! ndios de 1958, vestidos da cabea aos ps com roupas de
couro ARRANCAM na disparada pela estrada cr de terra da Morte, o
pequeno Richard ouve a trom- beta prodigiosa e no desastre ocorrido a
tda velocidade seu bluso de couro, cheio de ar, relincha como nos
velhos tempos

37
!
RICHARD BARKER

Torneio de Saxofone no Curral da Misso

BARKER um bateria profissional, radicado na West Coast, com uma


excelente bagagem literria; diplomou-se na Universidade de Cornell
em 1953, quando defendeu uma tese baseada na obra do grande
precursor dos beats que Henry Miller; residiu depois disso algum
tempo em Paris com o intuito de ventilar as idias. Tem 30 anos
atualmente e freqentou a cena bomia nas duas costas da Amrica. A
pea que reproduzimos um belo exemplo de escrita jazstica.
(Nota do Editor: Esta crnica narra um acontecimento musical que teve lugar no
dia 4 de outubro de 1958, aps a seo oficial de jazz de sbado noite, durante o
Festival de Jazz de Monterey. O local foi o "Mission Ranch", localizado na cidade de
Carmcl, Estado da Califrnia).

ooo

O pblico aplaudiu ruidosamente ao ver Gerry Mulligan subir no


tablado com o saxofone bartono levantado em cima da cabea. O
pistonista Dickie Mills desceu do estrado para que Gerry e Brew
Moore, o grande saxofonista tenor de So Francisco, pudessem tocar
vontade. Ernie Sheriff, bateria do conjunto de Claude Gilroy,
acomodou-se em frente a seu instrumento.
Os dois saxofonistas iniciaram uma breve troca de notas em trno
do primeiro tema musical. The Blues.
Brew ainda estava com a imaginao voltada para o que tocara
anteriormente; continuou a modular um tema lrico sem nenhuma
intensidade e com pouco entusiasmo.
Gerry no ia permitir que le continuasse a tocar daquela forma.
le queria entusiasmo e procurou estimular Brew com algumas
pequenas frases musicais cheias de vida durante os coros da abertura,
olhando com o canto dos olhos para le enquanto mantinha a boquilha
do instrumento entre os lbios.
Depois abaixou o saxofone e conversou com Brew, animan- do-o
a tocar com maior entusiasmo. " assim que voc sabe tocar?" disse
para le com ironia. "Vamos, mostre o que voc capaz!"

38
Brew reagiu a seu pedido tocando alguns coros lentos que se
repetiam montonamente, se bem que num ritmo ligeiramente mais
marcado.
Mulligan iniciou por sua vez uma melodia, tocando uma frase
ondulante com notas longas e melodiosas. Enquanto tocava, olhava de
lado para Brew. Veja, assim que se deve tocar," parecia dizer.
Brew ouviu, fascinado, os olhos cerrados, absorto num mundo de
msica, um sorriso de contentamento nos lbios.
O segundo blues foi tocado em ritmo mais lento. Antes de
comear, Mulligan tirou o casaco. Seguiu-se uma pequena pausa. A
assistncia gritava encorajando os msicos, prejudicando inclusive as
primeiras frases que Gerry tocou com o intuito de estimular Brew.
Gerry conduziu a princpio a msica; Brew contentou-se em tocar
um acompanhamento para o solo de bartono.
Pouco a pouco o pblico compreendeu que algo inusual estava
acontecendo e fz silncio. Os outros msicos estavam atentos,
solenes. A platia estava mais ainda.
Gerry tocou cro aps cro, cada vez tornando-se mais furioso e
mais exigente consigo mesmo, como se fsse explodir num acesso de
clera.
Como num sonho Brew levantou seu saxofone, apertou-o contra
os lbios e entrou na melodia, exatamente como Mulligan havia feito
minutos antes quando haviam tocado juntos a primeira msica.
Durante trs coros os dois tocaram juntos, Gerry inclinado para a
frente e batendo com o p no cho do tablado como um ndio numa
dana guerreira. Os olhos de Brew continuavam cerrados, a cabea
levantada como a de um anjo contemplativo. A platia comeou a
gritar, mas os outros msicos permaneceram inalterveis.
Gerry parou. As notas de Brew flutuaram solitriamente pelo ar,
to insistentes e afirmativas como o pedido de uma criana quando
sabe exatamente o que quer. O som do seu instrumento era radiante
como a chama de uma vela num quarto escuro.
Mulligan ouviu-o e balanou a cabea, mas os gritos da
assistncia estavam prejudicando a execuo. le colocou o sax na
bca e soprou sua raiva durante os ltimos coros como faria um touro
bravio bufando e escavando o terreno; enquanto isso Brew
cavalgava como uma criancinha nas costas do touro imenso. E assim
terminou esse nmero.
O pblico explodiu com uma salva de palmas ensurdecedora. Era
isso que tinham vindo ouvir em Monterey. Brew permaneceu com a
ponta do saxofone em cima do ombro, as mos cruzadas sbre a
campana, os olhos cerrados e um sorriso de xtase nos lbios.
Gerry no. A princpio le procurou acalmar a assistncia
fazendo gestos para que aplaudissem com modos. Muitos pensaram

39
que le estivesse solicitando aplausos e redobraram a algazarra.
Alguns idiotas gritavam pedindo certas msicas favoritas.
Gerry Mulligan caminhou para a frente do tablado, com as mos
levantadas. A platia silenciou.
Ouam, disse le, estamos contentes que vocs tenham
gostado da msica, mas gostaramos que no nos ajudassem na
escolha. . ;
Houve alguns aplausos isolados e algum na assistncia pediu
para que tocassem Westwood Walk, um dos sucessos de Mulligan.
Escutem, continuou Mulligan, Brew e eu no tocamos juntos h mais
de dez anos. Isso quer dizer que temos que ir afinando pouco a pouco.
Alm do mais, Brew e eu nunca tocamos com ste conjunto.
Comentrios em voz baixa se fizeram ouvir no salo. Alguns
estranhavam a razo dle estar to furioso. Uma mulher, uma dessas
exibicionistas idiotas que se sentem atradas pelos festivais de jazz,
gritou do seu lugar:
De onde voc , de Nova Iorque ou de Filadlfia?
Gerry voltou-se em direo a ela, furioso com a interrupo
Qual foi a pergunta?
Voc de Filadlfia? gritou a mulher.
Gerrv voltou as costas para o pblico. "Isso o tipo da pergunta
imbecil..." murmurou le. A pergunta da mulher havia provocado
exclamaes em vrias partes do auditrio repleto. Pessoas
comearam a gritar: "Chega de conversa mole e toquem alguma
coisa!"
Mulligan respondeu ao insulto levando o saxofone bca e
tocando uma frase to crua, to suculenta, to insultante e to
barulhenta que os outros msicos ficaram encabulados.
Depois baixou o saxofone.
Bem, se vocs ficarem em silncio apenas um minuto...
Algum gritou alguma coisa. Gerry voltou-se louco da vida.
Como algum pode ser to mal educado a ponto de me
interromper quando estou falando?! exclamou le.
Algumas pessoas levantaram-se para ir embora. Gerry dirigiu
um ltimo aplo assistncia.
Senhores e senhoras, Brew e eu temos um mundo de coisas
para dizer um ao outro. Mas preciso primeiro que solucionemos
alguns problemas de afinao e harmonia antes de comear a tocar.
le fz uma pequena pausa para que suas palavras penetrassem na
audincia. Pode ser que esteja enganado, continuou, mas creio que
muitos de vocs desejam ouvir o que temos a dizer. No verdade?
Suas palavras provocaram um aplauso geral, mas logo depois
ouviu-se um nvo aparte imbecil:
Vamos, Gerry, toque alguma coisa para a gente!
Mulligan perdeu a pacincia. "Est bom, raios, se voc querem

40
ouvir-nos tocar alguma coisa, calem essa bca!"
Novamente seguiu-se um aplauso geral.
O conjunto abriu com Indiana; Brew acompanhou apenas,
enquanto Cerry dirigia o conjunto, soprando com fora e violncia
seu instrumento, transferindo para o saxofone a raiva provocada pelo
pblico. Parecia extremamente contente com o resultado quando a
melodia terminou.
To logo os aplausos cessaram, Mulligan anunciou que Sonny
Rollins estava presente ao festival. A platia aplaudiu frentica-
mente. Muitos se levantaram para ver se descobriam Sonny. "Sonny
o rei," diziam uns para os outros.
Poucas pessoas perceberam quando Brew Moore deixou o
tablado. Os fanticos de jazz gostam de presenciar uma disputa
calorosa, tanto mais que os msicos de jazz esto sempre competindo
uns com os outros. Todo msico possui seus dias bons e seus dias
maus. Os verdadeiros apreciadores de jazz sentem-se gratos quando
presenciam qualquer execuo excepcional.
Sonny Rollins surgiu no tablado segurando o saxofone tenor nas
suas mos competentes. le estava sereno, no mexia nervosamente
nas chaves do instrumento e no prestou a mnima ateno platia.
Sua conversa com Mulligan e com os outros msicos do conjunto foi
breve e tranqila; Gerry balanou a cabea no final, em sinal de
assentimento.
O piano introduziu um nvo blues, de andamento rpido, e o
contra-baixo e a bateria saram atrs. Aquela era a noite dos
saxofones.
Mulligan tocou com tanto entusiasmo como fizera antes com
Brew Moore, se bem que dessa vez contentou-se apenas com uma
frase musical de dois tempos: Dahh-du-duuuhhhh. Estava talvez
ainda irritado com a assistncia. le olhava apreensivamente para
Sonny, enquanto o conjunto tecia variaes.
Sonny balanou a cabea, levou o saxofone bca e tocou uma
resposta frase musical de dois tempos: Dah-DA-de-uh-duhh.
Mulligan refletiu. Era sua vez de responder. Abaixou as notas
para que entrasse no ritmo: Deeeaaatt, de-at-duuu-at. Quatro
compassos.
Sonny sorriu. le sabia exatamente o que iria dizer em seguida.
Com uma nota ardente le levantou uma complicada construo sbre
os ecos do saxofone bartono. Quatro compassos, igualmente.
Enquanto isso, Mulligan limitou-se em comentar as variaes
introduzidas nos blues, tocando uma linha harmnica de seis com-
passos acompanhado do piano. Quando chegou sua vez de impro-
visar, soprou impetuosamente, com a fria de um touro bravo.
A resposta de Sonny foi uma frase intensa e estridente em oito
compassos.

41
Gerry abaixou a cabea, o saxofone quase encostando no
assoalho, enquanto batia com o p e acompanhava com o balanar do
corpo. Uma vez mais le soprou uma selvagem declarao de fria em
direo sala.
Sonny tocou uma nota acima da dle e durante dois coros
absolutamente inacreditveis, os dois mantiveram o desafio, im-
provisando em trno da linha meldica. Depois Sonny prosseguiu
szinho em suas variaes, enquanto Mulligan limitou-se ao
acompanhamento harmnico.
No havia raiva em Sonny, nenhum sentimento de insegurana,
nenhuma necessidade de se fazer ouvir pelo pblico. Para Sonny
Rollins no havia mais nada naquele momento seno a msica, as
notas emitidas em uma seqncia quase contnua, algumas vzes
duas linhas meldicas tocadas simultneamente e num ritmo to
rpido que parecia que o saxofone ia explodir e que suas chaves
metlicas voariam pelo salo.
Sonny permanecia imvel e tranqilo como uma esttua do
Buda. Por tda sala espalhou-se o murmrio "Sonny sabe".
Mulligan parece ter percebido o que significava competir com
aquela prodigiosa execuo. Sentia-se o esfro que fazia para
alcanar as notas que arrancariam o mesmo efeito.
A msica tocada por Sonny sugeria baladas montanhesas e
paisagens campestres. Era uma linha meldica clara e firme, quase to
singela como uma cano folclrica. Por seu lado, Gerry esforava-se
para acompanh-lo.
Sonny voltou-se sbre os calcanhares e sorriu aprovadora- mente
em direo ao bateria. le balanava a cabea, pensati- vamente,
enquanto Gerry continuava a tocar.
O ritmo acelerado e seu instrumento, obrigaram Mulligan a tocar
mais liricamente e com menor nmero de notas medida que seus
coros evoluam. Percebia-se que le desejava abandonar aquela linha.
Enfurecido agora consigo mesmo, le iniciou uma variao no estilo
antiquado dos dixies.
Sonny sorriu.
Gerry sacudiu a cabea. Tambm no era aquilo que le queria.
Seu solo terminou com uma cascata de notas, executadas de forma
impecvel e numa incrvel velocidade.
Sonny apontou-lhe ento algumas idias que le no havia
explorado. "Veja, seus coros pareciam dizer, voc esqueceu disso,
disso e disso." Tudo isso com a maior naturalidade e sem o menor
esforo.
No momento em que Sonny Rollins recomeou a tocar, o resto do
conjunto acompanhou-o com uma firmeza e uma segurana
redobradas. les agora estavam dando tudo o que sabiam. Mulligan
fz sua entrada com um cro de sustentao para Rollins.

42
Um assistente nas primeiras filas gritava e batia palmas. Mulligan
atravessou o tablado em direo platia murmurando "Silncio",
enquanto acompanhava com o dedo indicador o ritmo da msica.
Sonny tocou ainda mais dois incrveis coros 110 ritmo do
movimento do dedo, abaixando ligeiramente o andamento e os
valores das notas a fim de extrair todo o sabor possvel destas
variaes. le continuava absolutamente alheio ao pblico. No
prestava a mnima ateno para a algazarra que faziam.
Gerry desceu do tablado e voltou logo depois com o saxofone de
Rrew. O saxofone tenor mais rpido do que o bartono. Sonny
terminou seu solo e se afastou.
Mulligan comeou a tocar o saxofone tenor. Parecia dizer "Raios,
era isso que precisava, agora vou tocar como queria. Escutem s."
le fz uma pausa de quatro compassos. O piano fz uma
sustentao. Gerry levou novamente o instrumento bca e repetiu o
prembulo. Depois olhou para Sonny.
Sonny sorriu.
Diga mais alguma coisa, comentou Sonny com ironia. O quo
voc quer dizer?
Gerry mergulhou no saxofone com uma fria desesperada, como
se le mesmo no soubesse o que ia acontecer. Por alguns minutos le
deixou de existir: no era mais do que um saxofone tenor dotado de
dedos. No era mais le que tocava a msica, mas a msica que o
estava tocando. Sua execuo foi prodigiosa.
No fim do quarto cro alcanou a linha do alto e manteve-a em
suspenso, enquanto Sonny entrava numa nota abaixo como um
foguete, os dois voltando a tocar novamente frente a frente, a inflexo
meldica de Sonny rompendo a de Mulligan e conduzindo a mais
dois coros antes de evoluir para uma frase que se repetia
obstinadamente e que Mulligan se desdobrava para acompanhar.
A platia veio abaixo.
Mal o silncio se fz, a sesso rtmica introduziu Anthropology, a
pedido de Sonny, com o andamento bem rpido.
Sonny solou os primeiros coros com tanta rapidez que no se
distinguia mais as notas, mas to smente a linha meldica. Eram
cachos de notas. E mesmo assim le no aparentava o menor esforo,
a menor tenso. V
Muito pelo contrrio. Ao observar um fotgrafo, elemento bem
conhecido nos ambientes de jazz, agachado junto ao bateria, Sonny
caminhou na direo dle para facilitar-lhe o servio e tambm
porque a luz ali era mais favorvel, continuando a tocar com tda
naturalidade. O fotgrafo bateu uma fotografia de perfil, de um
ngulo baixo.
A idia musical de Sonny era to compreensvel que a impresso
que se tinha que no tocava mais frases e coros, mas um tema nico

43
que evolua continuamente. Durante o quarto cro, Mulligan entrou
na melodia (tocando novamente seu saxofone bartono) introduzindo
uma segunda linha.
O pblico animou-se na esperana de presenciar uma disputa
entre os dois, mas o solo de Gerry no provocava nenhuma resposta
de Sonny. Era apenas um solo de frases simples.
Dessa vez le tocou vontade, sem nenhuma inteno de
rivalizar com Sonny. A assistncia ficou desapontada e relaxou.
Seus coros foram excelentes, possuam um ritmo poderoso, eram
vivos e expressivos, mas no eram absolutamente os coros do melhor
msico presente ao festival. Indiscutivelmente, aquela era a noite de
Sonny.
E le provou isso com passagens to eletrizantes que os ouvintes
se levantavam das cadeiras enquanto reinava no salo o mais
profundo silncio.Apesar disso, Sonny permanecia impassvel como
sempre. No fz um nico movimento suprfluo, e seu controle impe-
cvel condizia perfeitamente com o fato de ser o maior msico vivo de
jazz.

Gerry apanhou um pisto que estava em cima do piano,


examinou-o um momen' >r fim tentou tirar alguma coisa

dle. Alguns afirmam

estava irritado porque a noite

promovera o triunfo de Sonny e no o seu. Houve um momento em


que le chegou a soprar o pisto junto ao ouvido de Sonny, enquanto
sse continuava a tocar de forma impecvel.

Finalmente, aps Sonny ter recusado duas vzes a deix-lo entrar


na msica com o pisto, Mulligan desistiu e tornou a colocar o
instrumento em cima do piano. le ficou em p, muito vontade, em
frente ao conjunto, acompanhando a msica com a cabea e com as
mos at que, bruscamente, entrou novamente com o saxofone
tocando dois coros de contraponto.

44
O piano e o contrabaixo se calaram para deix-los inteiramente
vontade; o bateria acompanhou-os num ritmo meio lento que Sonny
aproveitou para introduzir a msica Doir what comes naturally...

Foi Sonny quem introduziu tambm o ltimo nmero, uma de


suas msicas favoritas Will You Still Be Mine? Um andamento mdio,
ideal para um ritmo firme.

Cada penca de notas sugeria uma nova idia da melodia. As


pausas entre as frases evoluam to fluentemente, e eram to
eloqentes, quanto as prprias frases.

Sonny divertiu-se alegremente durante uma meia dzia de coros


antes de passar a vez a Gerry para tecer os comentrios.

Que ningum jamais diga que falta assunto a Mulligan! Seus


comentrios foram precisos, expressivos e bem calculados.

A certa altura, quando Sonny comentou alguma coisa com o


bateria, o que pareceu a Gerry uma indelicadeza, sse fz uma longa
pausa como se dissesse: "Isso no se faz." le tocou ainda mais coros
antes de passar a melodia para Sonny.

Sonny primeiramente prestou ateno aos acordes do contra-


baixo. Depois voltou-se e tocou, tocou, tocou. Mulligan afastou-se dali
e dirigiu-se para uma pequena rea que ficava atrs do conjunto.

Ao chegar ali, deitou-se de costas no cho, com as pernas


levantadas e o saxofone em cima do peito. Colocou as mos embaixo
da cabea, fechou os olhos e um sorriso de beatitude iluminou seu
rosto.

45
Algum aproximou-se dali e dcbruou-se sbre le. "Aconteceu
alguma coisa, Gerry? Precisa de alguma coisa? D a mo, deixe-me
levant-lo."

Raios, exclamou Mulligan sem abrir os olhos, ser que no


posso ficar em paz? Ser que no posso ouvir essa msica?

JAMES GRADY

A Grana Minha Bno

O BRAVO Jim Grady veio do Ohio, serviu no Exrcito, freqentou a


New School em Manhattan e agora est lutando pela glria na
Broadway escrevendo peas de teatro. le afirma sem rodeios a
necessidade de ganhar dinheiro e tece comentrios amargos sbre Sua
Majestade o Dlar. Em suma: um indivduo rijo, sar- dnico e
inteligente, possuindo ainda, surpreendentemente, uma grande alma.
Tudo isso temperado com aqule brilhante humor irlands.

ooo

A grana minha bno. Com ela no passarei necessidade.

Ela me oferece a cama de sda verdadeira,

Leva-me ao plo ou s estaes de gua,

46
Arrasta atrs de mim as mulheres que se oferecem; o artista

humilde meu assistente. Ela me introduz nas casas


decentes, onde poucos entram, J que seu nome o primeiro em
nossa terra.

Ainda que eu ande pelas veredas da pobreza miservel No afastarei


minha vista dos lugares imundos, porque ela est comigo.

Com a mo no blso contemplarei as dificuldades da existncia e


pregarei aos homens as idias universais de trabalho e higiene;

recomendarei a todos o conforto e uma vida ensolarada.

Enquanto estiver dentro das minhas possibilidades, adotarei uma


conduta extremamente generosa, ajudando aqules que se ajudam a si
mesmos. Claro que h bastante para todos ns: no possumos
porventura uma oportunidade igual de nos salvarmos?

Parti pois em direo aos grandes caminhos e procurai l pelo


Encarregado le vos far viver numa eterna fartura.

Sim, havereis de viver uma vida aprazvel, urna perfeita existncia


americana.

SEYMOUR KRlM

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Uma Ponta de Loucura

KRIM FREQENTOU a bomia literria durante um tempo excessivo; de


duas uma: ou amadurecia com os anos ou apodrecia. Felizmente os
escritores beat abriram-lhe um campo nvo e agora le tem a excelente
oportunidade de dizer o que pensa em vez de se agitar inutilmente.
Um belo escritor com um ligeiro toque de excentricidade.

At recentemente, quando uma completa reviravolta ocorreu em


todos os setores da vida humana, a loucura era considerada uma das
mais terrveis fatalidades que podiam advir a uma pessoa. Quase nada
se sabia a respeito dela e a imaginao, mal esclarecida, tecia tda
sorte de horrores: doidos andando de um lado para o outro do
hospcio em estado de total alienao, verdadeira morte em vida que
se prolongava at o momento em que o corpo da infeliz criatura
expirava e o repouso final depositava sua alma nas manses da
eternidade. Em nossa poca, porm, surgiu a necessidade de se re-
pensar e re-definir quase tdas as pressuposies anteriores sbre a
existncia humana fato ste que fz voar em mil pedaos a
realidade anterior, considerada irremovvel como uma rocha, e dessa
forma a porta trancada da insanidade foi violentamente abalada, at o
instante em que ser definitivamente arrombada. Quando isso ocorrer,
os atuais prisioneiros dste preconceito caminharo ao nosso lado,
sem outro estigma da loucura do que a prpria condio humana, que
faz com que todos ns tenhamos algo de loucos.

Tda famlia norte-americana conta com seu tio ou primo


"psictico"; todos ns j choramos, rezamos e desejamos a cura (at
sucumbirmos finalmente na indiferena) de um amigo que recebia um
choque de insulina ou um eletro-choque atrs das paredes cinzas de
um edifcio (um hospital pblico) ou atrs de uma cerca de rosas (uma
casa de sade particular). Meu irmo, Herbert J. Krim, foi internado
quando eu contava apenas vinte anos; assinei, juntamente com outras
pessoas da famlia, a autorizao para uma lobotomia prefrontal que
terminou com sua morte por hemorragia na mesa de operao do

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Rockland State Hospital. Apesar dessa experincia pessoal, a idia que
eu fazia a respeito da loucura era a mais convencional possvel,
semelhante em suma da maioria dos leitores "responsveis" do The
Neto York Times. bem verdade que, graas minha atividade de
escritor e s minhas leituras, eu havia adquirido uma grande
independncia e imparcialidade de julgamento. ste conhecimento
terico, contudo, foi prejudicado pela minha pouca idade, minha
ignorncia da realidade e por uma dificuldade pessoal em analisar
friamente as idias aceitas sem me envolver subjetivamente. Como
ocorre com a maioria dos escritores norte-americanos, desde os mais
novos at os mais famosos, minha preocupao dominante
relacionava-se com minha prpria subjetividade, que via sob uma
forma exagerada e angustiante. Refiro-me condio de judeu,
aparncia fsica, ao sexo, virilidade etc., fatores sses que
prejudicavam minha atividade de escritor preocupado, antes do mais,
em relatar a verdade. Em outras palavras: era demasiado narcisista e
autocomplacente para avaliar o terrvel equvoco que foi a morte de
meu irmo Herbert. Na minha arrogncia, comum entre os jovens
escritores norte-americanos, acreditava-me para sempre livre dos
julgamentos de uma sociedade que eu inso- lentemente ignorava, ou
virava as costas. Jamais me ocorreu que haveria de enfrentar um dia
ste mesmo problema. Como a maior parte dos intelectuais de minha
gerao, que tive a oportunidade de conhecer por volta dos meus
vinte anos, imaginava-me absolutamente protegido, santificado e
imunizado pelo meu "gnio", meu faro, minha descomunal ambio.

Vivia pois nessa iluso e por sorte ainda estou vivo para poder
contar minha experincia. No vero de 1955, estava ento com trinta e
trs anos de idade, uma crise violenta eclodiu, resultado de uma srie
de conflitos de ordem humana (no literria!) que existiam
inconscientemente dentro de mim. Corri de ps descalos pelas ruas,
ofendi pessoas da minha famlia, agi incon- sideradamente, fui quase
expulso da casa de um autor laureado com o prmio Nobel e acreditei
que Deus havia me ordenado conduzir-me em tudo sem a mais leve
sombra de hipocrisia. Reconheo hoje que, se meu instinto era sadio,
minha maneira de pensar era falsa. No era Deus que havia dito para
eu fazer tais e tais coisas; era eu que havia invocado Deus para
satisfao de meus prprios desejos ocultos. Necessitava de um
pretexto para criar uma espcie de equilbrio entre minha explosiva
vida interior e meu tmido comportamento exterior. Recorri por isso
ao mais sagrado e confortante dos smbolos humanos. le era minha
lana e meu escudo quando me arremetia pelas ruas de Nova Iorque,
compensando, dessa forma, um mundo de decepes e de frustraes

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que no podia mais controlar. Fui "cercado" finalmente no 14. andar
do Hotel St. Regis por dois amigos aterrorizados e meu outro irmo
e com um par de algemas, passado meio sria meio
brincalhonamente nos meus punhos por dois policiais, fui levado
para o Hospital Bellevue, convencido, durante todo sse tempo, que
no havia nada de errado no meu comportamento. Tolerava os que
me arrastavam fra com a bondosa condescendncia de um falso
Jesus.

Da Casa de Sade Rellevue fui transferido, pouco depois, para


uma clnica particular de doenas mentais em Westchester, onde
recebi choques de insulina. No houve, nessa ocasio, nenhuma
preocupao realmente sria em diagnosticar meu "caso" a no ser
o parecer superficial e inexato de que eu estava "alucinado". Ora, isso
no era verdade; no tivera nenhuma alu- cinao visual de pessoas
ou objetos; acreditava apenas com o maravilhoso alvio que o
esprito humano encontra na justia absoluta quando a vida se torna
insuportvel que Deus havia dado autorizao para eu fazer
abertamente o que, durante anos, desejara fazer secretamente. Essa
sutil distino, contudo, no foi levada em considerao pelos meus
juizes e captores. les no tinham tempo, pacincia e talvez nem
mesmo interesse, tanto mais que o trabalho, em uma fbrica de doidos,
determinado pela matemtica: o importante encontrar um
denominador comum que sirva para classificar e tratar o batalho de
sres humanos, das mais variadas condies, que passam em fila
diante de uma mesa com idias mirabolantes na cabea.

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Como os demais pacientes, consideraram-me incapaz de uma
discusso sria e trataram-me como uma criana: sem brutalidade,
certo, mas com eficincia, firmeza e com uma atitude paternalista.
Dentro daquelas paredes havia perdido os direitos de um ser humano
adulto. As causas da minha crise no foram nem mesmo
superficialmente analisadas; alis, no creio que o bem- -humorado
psicanalista da casa com uma flor na lapela do seu escovado terno
de trabalho estivesse realmente apto a faz-lo ainda mesmo que
houvesse se esforado, o que no foi o caso.As casas de sade
particulares e as instituies do Estado, como verifiquei mais tarde,
so mais celas de isolamento do que hospitais no sentido tradicional
da palavra; os tratamentos mecnicos por que passei, dentro de um
sistema de disciplina frrea, como no exrcito ou na penitenciria,
fazem com que 75% dos internados aceitem pouco a pouco uma viso
mais modesta da realidade, pelo menos temporariamente. Tambm
comigo aconteceu o mesmo aps umas nove ou dez semanas:
humilhado, envergonhado, de cabea baixa, estava disposto a ficar em
p no meio da classe e repetir o credo da burguesia no que se refere ao
valor do dinheiro e aos meios de expresso humana contanto que
me pusessem em liberdade.

f
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Trs meses depois sa do hospital e fui morar em um hotel barato
da Broadway, sentindo-me desorientado e completamente szinho
(tinha vergonha de voltar para meu antigo bairro de Greenwich
Village); para tranqilidade da minha conscincia e para satisfao da
minha famlia, comecei a ir regularmente a um psicanalista (era o
terceiro que consultava nos ltimos dez anos). Havia ultrapassado os
limites da realidade e voltava assim situao anterior. (Essa
constatao o lugar-comum usado pela maior parte dos analistas
quando no querem encontrar uma explicao mais complexa, e mais
verdadeira, para a necessidade que nos ocorre de dar vos mais altos).
De sorte que nada foi feito no sentido de esclarecer as razes
profundas que haviam agido sbre mim anteriormente, e que
continuavam ainda uma vez a me corroer intimamente. Tmido
sexualmente, freqentava as prostitutas, tomava as refeies szinho e
forava-me a escrever alguma coisa no mais desolado de todos os
locais que um pequeno quarto de hotel no meio de uma cidade
enorme. Pela primeira vez na vida perdi completamente o estmulo e
senti a terrvel isolao e frustrao da minha existncia. Enquanto o
psicanalista sorria e fumava seu cachimbo comportando-se como
um ser humano educado, correto e civilizado atrs de sua bela
escrivaninha, de onde proferia banalidades eu guardava
cuidadosamente os comprimidos para dormir que le me fornecia.
Quando reuni uma quantidade que me pareceu suficiente, queimei as
cartas recebidas nos ltimos anos de meus melhores amigos, homens e
mulheres, rasguei o dirio que j tinha quinze anos de existncia e
mudei-me, durante a noite, para um hotel em Newark, no Estado da
Nova Jersey.Minha inteno era tomar os comprimidos e depois me
deitar na banheira cheia d'gua; caso os comprimidos no
produzissem efeito, morreria afogado, como Thomas Heggen. Escolhi
um belo quarto morturio em um hotel moderno, certificando-me
antes que possua a maior banheira da casa. A maior banheira
contudo, era demasiado curta para caber meu comprido corpo. O
receio de no me afogar e de sobreviver aos comprimidos, com a
ameaa de me tornar um peso morto ou um invlido, comeou a
embaar o brilho do que antes havia me parecido o melhor dos
suicdios. Dirigi-me por conseguinte para um bar polons que ficava
na zona pobre de Newark. Tinha uma vaga esperana que o lcool,
com seu poder habitual, apaziguasse momentaneamente meu esprito
enquanto no me decidia a respeito do que faria da minha vida.

Pouco depois, j meio bbedo, vi uma ma polonesa, de aparncia


grosseira e inculta, dar uma exibio to soberba e fantstica de dana

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popular (na pequena pista direita do bar) que explodi em soluos de
amor. Era como se balbuciasse palavras de adorao em cima do meu
copo de bebida. O sol da vida irradiou dela para meu corao
agradecido. Voltei para o belo quarto do hotel, joguei os comprimidos
na privada, aeitei-me na cama e adormeci. Na manh seguinte voltei
para Manhattan com o esprito compungido, meditando comigo quo
perto havia chegado do no-ser

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.Quando contei minha aventura ao dr. Pipe, meu psicanalista, le
me encaminhou apressadamente a um neurologista que me aplicou
um calmante aguardando o momento em que uma ambulncia viria
buscar-me. Embora estivesse plenamente consciente do que me
ocorria, no tinha foras para me mover; assim, uma segunda vez, fui
levado minha revelia para uma outra casa de sade em Long Island.
No podia protestar, tanto mais que me sentia envergonhado, e com
sentimento de culpa, por haver cogitado do suicdio. Evidentemente
no estava louco, doido, psictico, fora do meu juzo normal,
esquizofrnico ou paranico. Meu problema era simplesmente o de
um homem imaturo e atormentado que no havia sabido enfrentar
com firmeza as dificuldades da vida adulta que no havia sabido
lutar por suas convices nas situaes adversas, e que acreditava que
o valor humano e a verdadeira liberdade so coisas que caem do cu,
como fazem crer os filmes mentirosos a que nos habituamos. Durante
minha vida de escritor e de crtico literrio tivera tido momentos de
maturidade e compreenso da vida; enquanto homem real, porm,
vivia em um mundo fictcio e artificial, voltado para os prazeres
infantis da adolescncia, e isso at mesmo quando me acreditava um
outro Ibsen ou um outro Dreiser. inacreditvel a iluso em que vive o
romntico escritor moderno norte- americano; le habita um mundo
de sonhos to fantsticos e ilusrios como jamais foi sonhado por
ningum!

Ainda uma vez voltava linha de montagem humana: os eletro-


choques reduziram-me a uma total inconscincia (caminhava
obedientemente para as inmeras execues como um me- nininho
corajoso, sem jamais pr em dvida a validade delas) e era governado,
como os outros membros do nosso pequeno clube, por uma autoridade
desptica e todo-poderosa, como no Antigo Testamento. Enfermeiros
simpticos, mas na sua maioria sem nenhuma instruo, obedeciam
cegamente s ordens vindas de cima. parte o tratamento de choque e
a tediosa terapia ocupa- cional, os pacientes eram inteiramente
abandonados no resto do tempo, o que me parecia algo bastante
lastimvel e deplorvel, uma vez que as famlias dos internados
estavam pagando 125 dlares por semana

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.Foi quando descobri que 90? das pessoas internadas no eram
"doentes mentais", pelo menos de acordo com os padres de uma
pessoa medianamente inteligente; a mair parte havia perdido a
confiana na sua prpria capacidade de sobrevivncia no mundo
exterior. Outras haviam sido encaminhadas para "especialistas" por
recomendao das famlias que estavam assustadas com o
comportamento delas. Seja como fr, nenhum esforo real havia sido
feito no sentido de torn-las responsveis e adultas. E no entanto era
sse o direito que tinham como criaturas humanas,
independentemente do pas ou sociedade a que pertencessem. Era
quase como um dever religioso. Em lugar disso, eram tratadas base
de comprimidos e de choques. Se enfureciam- se com isso, era mais
um "sintoma" de que estavam "alienadas". Algumas pelo menos
deveriam estar doentes, ouo dizerem. Ao que respondo: Haver
algum porventura que escape a essa classificao num mundo to
complexo como o nosso? ("A verdade haver uma verdade de cada
lado" Richard Eberhart). Num mundo onde cada grupo humano
tem sua maneira prpria de julgar os hbitos, os comportamentos, as
idias e at mesmo os valres humanos? A descoberta mais
importante que fiz, porm, foi outra. Percebi que eu, um indivduo de
um ambiente bomio, possuidor de uma escala de valres bem diversa
da mdia das pessoas, podia avaliar melhor a possvel enfermidade
dos pacientes do que os prprios mdicos. E isso graas a uma sensibi-
lidade humana que me havia sido fornecida pela literatura. Quando
mais tarde constatei o esprito provinciano de muitos psicanalistas
especialmente naqueles setores do comportamento humano que
explicam a conduta dos internados sem se recorrer a uma classificao
"psictica" cheguei concluso que o pensador independente e o
artista de nossos dias devem ser implacveis com relao a uma
imagem paterna, sutil e socialmente poderosa que assume ares de
paternalismo. Refiro-me especificamente classe recentemente
entronizada dos psicanalistas que assumiu uma perigosa posio de
"autoridade" em face dos problemas crucian- tes da mente humana, da
personalidade e do conceito de sanidade.

Foi nessa ocasio que comecei a lutar com insistncia embora


ainda de forma acanhada para ser liberado do hospital. Minha vida
me pertencia, ela no pertencia certamente ao psicanalista da casa, um
prspero judeu refugiado (meu irmo, meu inimigo!) que pretendia
impor-se aos doentes usando a terminologia de um vendedor

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agressivo; nem pertencia tampouco ao meu psicanalista particular,
um indivduo inexpressivo e nulo, que me fazia regularmente visitas
insondveis e diplomticas como um embaixador japons. Estava
disposto a lutar pela minha liberdade a qualquer preo. No me
assustava mais o fato de ter sido um "louco varrido" se que exista
um tal fenmeno, o que estou inclinado a crer ser uma total
impossibilidade em nossos dias. Uma pessoa que no passou por esta
situao no pode compreender que um indivduo, imaginativo e
sensvel, permanece sempre o mesmo em qualquer parte onde esteja,
inclusive em uma casa de sade para doentes mentais. E o resultado
que o ambiente comea a exercer uma influncia profundamente
negativa sbre le. Um hospital para doenas mentais, hoje em dia,
no mais o asilo ou o santurio dos tempos antigos; le no passa de
um beco da existncia moderna, repleto de tantas contradies, meias-
verdades e prdios imundos como a prpria vida.

Os dois sanatrios onde estive eram destinados especialmente a


pessoas abastadas da ciasse mdia sem nenhuma preocupao
intelectual muito definida. Sob todos os pontos de vista, minha
estadia em ambos foi uma resposta sarcstica da vida a meus ideais
romnticos de justia. Desde a idade de 19 anos, havia levado
deliberadamente uma vida de experincias, busca da verdade, bomia
e no-comercialismo; o castigo que o destino me reservou era o
contrrio de tudo isso: deveria recuperar minha sade mental,
pretensamente abalada, num ambiente de autoridade absoluta e de
falsas-verdades perfumadas e rosadas. Sem falar na coluna mestra
que sustentava o edifcio: o culto que a classe mdia presta
propriedade privada e ao dinheiro. Estaria eu disposto a admitir que
minha vida passada, durante a qual havia produzido bons trabalhos,
era um total equvoco? Eis o que pretendia ouvir de mim o
psicanalista do casa na nica VPZ em que debateu comigo ste assunto.
Eu jamais poderia admitir isso. No era apenas eu que estava em jgo,
mas os grandes princpios e as obras realizadas por outros, vivos ou
mortos, que haviam sido meus guias espirituais at a idade adulta. De
que me serviria, alis, continuar vivendo se numa crise estava deci-
dido a renegar no apenas meus anos passados como as conquistas
morais de pessoas que estimava, que haviam participado de minhas
emoes e descobertas, e cujas contribuies para a vida estavam
tambm ameaadas?

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Ao ouvir ste segundo psicanalista estabelecer uma equivalncia
entre sanidade e adaptao realidade, quando o ouvi descrever o
ambiente de Greenwich Village como uma "comunidade de
psicticos" percebi claramente que os conceitos de insanidade e
psicose no podiam mais ser levados em considerao como definies
exatas e verdadeiras. Se ainda possuem alguma serventia para os
indivduos de mente estreita que definem dessa forma os
comportamentos ou modos de pensar que lhes parecem estranhos,
perigosos ou ameaadores. (Um ano mais tarde, quando levei uma
psicanalista conhecida minha a San Remo, ela disse notar uma estreita
semelhana entre os freqentadores daquele local e os doentes de
Bellevue, onde ela havia trabalhado como interna. Era essa a analogia
que lhe fornecia sua experincia pessoal, limitada apenas a um
aspecto da questo. Acredito ser sse o motivo que faz com que duas
pessoas inteligentes no se compreendam uma outra. Este fato
assumiu propores ainda maiores quando me lembrei que algumas
semanas antes havia estado em San Remo na companhia de um poeta
que goza de um enorme prestgio nos meios literrios. Havia um
contraste flagrante entre estas duas situaes. O poeta estava
vontade naquele meio bomio; a psicanalista, sentindo- -se fora de seu
ambiente normal, pronunciou um comentrio superficial e
desprezvel, no gnero psico-sociolgico. Assim, essas duas pessoas,
que eram criaturas humanas inteligentes e honestas, e que haviam
contribudo cada uma por seu lado para minha vida, possuam pouca
ou nenhuma possibilidade de se comunicarem uma com a outra).

Voltando aos meus quatro meses de casa de sade: tanto lutei e


argumentei pelos meus direitos liberdade que finalmente um amigo
meu assumiu a desagradvel incumbncia de me retirar dali. Creio
que se ste episdio se repetisse novamente teria coragem agora para
agir legalmente contra aquela instituio ou contra o psicanalista
encarregado dos internados. E faria isso apesar dos riscos que um tal
procedimento pudesse oferecer a uma pessoa que fra legalmente
fichada como um "caso psictico" e que havia cogitado no criminoso
ato do suicdio. Naquela ocasio, porm, agi de maneira tmida e
acanhada, como fazem muitos personagens subterrneos de Jack
Kerouac quando se vem forados a enfrentar a mquina oficial da
sociedade. Ora, nessas situaes que devemos ser de ferro e ao, por
mais frgil que seja nossa natureza. claro que os mdicos que
cuidam da vida mental das pessoas no usam de torturas, como
vemos nas fitas de terror; o que quero dizer que existem pontos de
vista absolutamente irreconciliveis no que se refere ao sentido da
vida humana. isso que nos ensina a experincia. Aprendi que

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prefervel morrer livre no mundo, se sse fr o caso, do que ser
privado da possibilidade de uma escolha existencial atrs das portas e
trancas de uma autoridade duvidosa. A maioria das pessoas que
passam algum tempo internadas numa casa de sade para doentes
mentais no desejam voltar para as condies incertas do mundo l
fora, que em nossa poca se denominam: estados de anarquia
emocional multidimensional, crises e depresses nervosas, angstias
sem fim. Se bem que tudo isso acreditem-me pela experincia de
um ano! possa resultar finalmente em uma existncia divina e
maravilhosa.

2.

Voltei para meu bairro para o mesmo Greenwich Village que


ouvira o psicanalista colocar, com seu jargo profissional, nas
profundezas do inferno freudiano, como se pretendesse ocultar, com
esta linguagem pseudo-cientifica, uma moral privada bem limitada
e procurei reunir com ternura os pedaos partidos da minha vida
social anterior. Verifiquei que mesmo meus amigos mais ntimos e
inteligentes no compreendiam realmente, ou tinham receio de
entender, o fenmeno contemporneo da leve insanidade. A maior
parte dles havia, mais cedo ou mais tarde, recorrido psicanalise, e
tinham um verdadeiro pavor da loucura. Teoricamente, estavam
dispostos a admitir que a loucura no tinha nada de assustador, mas
sculos de um terror herdado dos antepassados, juntamente com as
crises dirias que ocorriam nessa poca (1950), impediam que les
aceitassem minha experincia pessoal como um prolongamento da
dles.

Certa vez, um poeta-filsofo que admiro deu-me uma pal-


madinha nas costas e disse, como se manifestasse um profundo
espanto, que eu havia "voltado, como Lzaro, do mundo dos mortos".
ste comentrio soou-me profundamente melodramtico, falso e
triste; imaginava que os intelectuais, e especialmente os artistas,
seriam os primeiros a perceber que o conceito de loucura em nossos
dias est sujeito a ser reformulado; um problema terico e no uma
realidade material; no existe mais um critrio fixo que se possa
empregar, da mesma forma que no existe mais uma realidade como
a que foi descrita por Allen Ginsberg no seu poema "Howl" (uma obra

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fascinante), onde le v "as melhores inteligncias da minha gerao
destrudas pela loucura".

Acredito que isto seja puro sentimentalismo. Ginsberg pode ter


presenciado os indivduos mais dotados de sua gerao destrudos
por uma interpretao da loucura, que uma ameaa muito mais real
em nossa poca, quando se pe prova tda sorte de experincias
alucinantes. Isso explica a urgncia com que as autoridades
trancafiam em celas sem janelas os que pem em dvida certas
definies. a prpria estrutura moral dles que corre o risco de
desabar. A loucura hoje em dia uma mera expresso literria; a
insanidade tem a data legal de uma outra poca, como uma pea de
Ibsen; e a "psicose", essa palavra antisstica moderna que provoca
calafrios entre os meus amigos, tornou-se to inexpressiva pelo seu
uso abusivo (apesar de sua aparncia impressionante ae avental de
mdico) que deve ser mantida distncia, como um rato morto, para
uma compreenso sensata. Quando isso ocorrer, acredito que essa
palavra e o estado psquico que ela pretende definir sero submetidos
s mais srias objees. Como, por exemplo, o grau de liberdade que
se deve permitir comunicao humana, ou, mais importante ainda, o
que exige a liberdade para sobreviver numa poca em que exigncias
to inusitadas so feitas s criaturas humanas. As normas cedem
quando no podem mais conter as novas exigncias de um
comportamento "sadio" preciso que sejam elsticas para
englobarem as novas modalidades de vida.

Duas semanas antes de voltar a caminhar pela Rua Oito, na


condio de um neurtico livre e agradecido, havia sido julgado pelos
meus amigos compassivos, mas mal informados, como um perfeito
psictico exaltado. O fato de ter sido internado provocou uma
cegueira momentnea entre les; no admitiam que pudesse ser a
mesma pessoa de antes. O falso temor da loucura influenciou at
mesmo aqules que deveriam considerar esta palavra, agora apenas
um smbolo, com uma viso clara, tranqila e profundamente ctica.
Eu no tinha estado entre "os mortos" a menos que passar o tempo
assistindo programas de televiso, jogando bridge, lendo Tolstoy,
Nathanael West e outros seja considerado uma forma de morte. Eu
no havia sido "destrudo pela loucura", meu caro GinsbergI Pelo
contrrio, a internao fz-me ver quo importante (verdadeiramente
insubstituvel) a liberdade individual. Minhas convices no foram
abaladas, mas solidificadas. Ao reatar com minha antiga existncia na

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nova moradia em Greenwich Village, descobri que outros escritores e
intelectuais conhecidos haviam passado algumas "frias" em um
hospital ou casa de sade para doentes mentais; les guardavam,
contudo, silncio a respeito disso, indecisos se deveriam ou no
confessar semelhante humilhao.

Entendi a razo do sigilo que mantinham, mas percebi que


viviam em um estado permanente de sentimento de culpa, temor e
ansiedade. No conseguiam resolver, de uma vez por tdas, aberta e
claramente, a angustiante dvida que tinham. "Voc me acha
normal?" Ouvia essa pergunta ser feita constantemente por aqules
indivduos brilhantes (um pobre diabo assustado para o outro!) que
haviam negado, com mdo das conseqncias, suas convices mais
importantes, as nicas que podem criar conceitos novos e concretos de
sanidade ou sentido para as coisas em nossos dias. No que me dizia
respeito, a questo do sigilo foi brutalmente resolvida quando ouvi
um escritor conhecido dizer para uma encantadora anfitri, a quem
tinha sido apresentado naquele instante, que eu havia estado em "dois
manicmios".

Senti-me ferido e magoado no porque considerasse minha


possvel excentricidade como uma marca vergonhosa, mas porque o
escritor em questo havia escamoteado sua prpria experincia (que
eu sabia perfeitamente incluir aspectos semelhantes aos da minha
crise, quando havia corrido pelas ruas como um foguete humano)
pretendendo no haver ocorrido com le nada parecido. Estava
magoado porque acreditava que meus amigos intelectuais deveriam
ser os primeiros a entender e admitir a natureza dos golpes que havia
recebido sob aprovao da sociedade. Mas eu estava enganado. H
verdades to espinhosas que, por mais comuns que sejam ao restante
da humanidade sofredora, os indivduos preferem mentir a admitir
que as conhecem, mesmo quando isso indispensvel sobrevivncia
dos outros. uma traio que cometem contra o sentido humano e
realmente precioso da vida. E no entanto, mesmo entre os pequenos
grupos de vanguarda a busca da verdade muitas vzes abandonada
mediante esta dbil desculpa: "precisamos conservar o sentido da
realidade".

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Aps esta traio cometida por um membro do meu grupo, no
via soluo para meu caso. No podia, como os outros, guardar sigilo
porque minha histria havia se tornado comentrio pblico entre o
pequeno grupo que freqentava. Aps ter rido amargamente de mim
mesmo ao constatar que minha crise no seria considerada com a
seriedade que merecia nos meios intelectuais, como imaginava na
minha ingenuidade, resolvi aceitar de bom nimo o fato de ser uma
cobaia ou uma vtima. Pessoalmente, tinha conscincia de haver
representado um papel importante no atual drama norte-americano,
mesmo que sse papel no fsse reconhecido imediatamente. A
verdade que nossa poca , para as pessoas imaginativas e sensveis,
o verdadeiro sculo das alucinaes. H um excesso de vida e uma
infinidade de possibilidades que superam de muito o que nossa
natureza nos permite usufruir. Alguns tipos de personalidade tm
necessidade de exteriorizar suas emoes, enquanto outros sentem
apenas interiormente.

Em sntese, o que se passou comigo foi o seguinte: primei-


ramente, o internamento de uma pessoa poupa a seus familiares e
amigos situaes desagradveis e humilhantes (por mais banal que
isso possa parecer, um dos fatores que mais conta num
internamento). Por outro lado, o internamento impede a pessoa
"doente" de cometer alguma ao irreparvel durante sua crise.
Considerado sob esta perspectiva, o internamento forado de um
indivduo triste mas compreensvel. Devemos convir, porm, que os
adultos atuais, por mais perturbados que estejam (muitas vzes com
razo!) no so crianas. Da minha dvida em saber se temos o
direito, deixando de lado um egosmo desmedido, de trancar uma
pessoa numa casa de sade para que se cure ainda que isso seja
feito por um esprito humanitrio. Minha experincia pessoal serve de
exemplo. Quando fui considerado fora do meu juzo normal, por
haver dado provas de uma falta total de inibio, eu tinha plena
conscincia da "audcia" do meu comportamento. Sabia que le era
mais o resultado de uma escolha existencial do que de uma exploso
mental alucinada. Um tal comportamento no podia, evidentemente,
ser tolerado pela sociedade e fui punido por isso com o internamento.
Mas tambm o tratamento por que passei foi um castigo e no uma
terapia clnica. E no entanto, durante minha crise, se bem que de forma
exibicionista e dramtica, eu estava me rebelando instintivamente
contra um fato que me parece objetivamente condenvel na nossa
poca e na nossa sociedade. Refiro-me ao abismo existente entre um
imenso mundo interior e um mundo exterior que ainda no legalizou,
ou reconheceu oficialmente, as formas que podem existir entre um
desejo intenso de comunicao e as correspondentes aes.

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Segundo uma tradio universalmente aceita, o artista deve
comunicar sua vida interior intensa com seus meios habituais de
expresso, sejam les a talhadeira ou a mquina de escrever. Na teoria
isso pode ser correto, mas com a riqueza incalculvel de experincias
humanas que existe em nosso mundo atual, seria incompreensvel
no se querer participar mais entusisticamen- te nesta abundncia de
vida. As alegrias atrofiadas que os artistas antigos sentiam e que lhes
servia de tema para suas obras no so mais suficientes para a grande
maioria dos homens contemporneos. Surgiu ento a necessidade,
entre os indivduos mais imaginativos, de encontrar meios adequados
para a expresso de um mundo interior imensamente rico uma vez
que a mente humana no pode mais conter no seu interior o volume
global de sua experincia. Mas h um tal abismo entre nossa
fascinante vida subjetiva com concepes to altas quanto os vos
interplanetrios e a realidade exterior mumificada que quando
uma pessoa imaginativa exprime publicamente seus pensamentos
mais genunos, ela se sente como se houvesse cometido um crime
irreparvel. As autoridades competentes ainda no cederam uma rea
livre para as acrobacias aa imaginao que ocorrem nas mentes
surrealistas dos mais vigorosos artistas contemporneos. De forma
simples e crua, a noo livresca do que constitui a "normalidade"
nesta poca supremamente anormal faz com que os espritos mais
criadores, na sociedade norte-americana, vol- tem-se para dentro de si
mesmos criando presses que terminaro por prejudic-los de uma
forma ou de outra. Seria indispensvel que les compreendessem que
a maior exigncia do momento por uma forma de imaginao que
surgisse gloriosamente no campo aberto, desfazendo a separao que
existe entre a mente e a vida exterior. (Essa tentativa , na minha
opinio, uma das mais importantes realizaes da gerao beat, por
mais que os moralistas conservadores digam o contrrio.)

Eu tentava, por conseguinte, transpor essa distncia entre o eu e


o outro, entre as condies externas e internas, quando ocorreu a crise
de 1955, gerada pelo afogamento do meu mundo interior. No podia
mais viver com meus desejos insatisfeitos. Hoje em dia estou
convencido de que os regulamentos sociais devem ser
suficientemente flexveis para darem lugar, no seu interior, aos
comportamentos extravagantes que eram antes, es- tupidamente,
considerados anormais. A imaginao dos seres vivos, e no a de
heris mortos, deve ser levada em considerao para se estabelecer
uma harmonia racional entre aquilo que as pessoas realmente so e
aquilo que aparentam ser exteriormente. Como tdas as grandes
trasformaes, estes novos conceitos custaro a vida de muitos antes

12
que sejam aceitos pelos psicanalistas, socilogos, legisladores e
demais instrumentos de represso social. Por curioso que seja, foram
os "psicticos" das casas de sade os primeiros a dar o grande passo
no sentido de uma tomada de conscincia, mais imaginativa e mais
arejada, do que seja um comportamento autntico. Alguns
psicanalistas mais perspicazes, ao tratarem dsses indivduos, esto
comeando a perceber os significados simblicos de certas atitudes
que antes lhes pareciam inteiramente sem explicao. Abandonando
uma viso estreita, les no exigem mais de uma pessoa, que teve
imaginao bastante para ficar "louca", o comportamento de um
indivduo normal. Est se formando, pois, entre les uma idia bem
mais justa do que seja a "sanidade". somente desta forma que se far
justia ao estado emocional das pessoas que vivem atualmente. No
se justificam mais os preconceitos de cem anos atrs; o que importa
considerar o estado de esprito atual, na sua realidade, crueza,
multiplicidade, confuso e desequilbrio. Podemos afirmar, sem
pretenso, que o pioneirista "psictico" o poeta do futuro, enquanto
os mais lcidos entre os psicanalistas so os Novos Crticos que esto
aprendendo a ler os significados complexos e inesperados de certos
fenmenos que eram considerados anteriormente obscuras aberraes
humanas.

3.

No meu caso pessoal, em conseqncia do tratamente pelo


choque (tanto eltrico quanto humano), fui psto diante de uma
cruciante realidade que durante muito tempo havia procurado evitar.
Refiro-me situao do artista no mundo moderno, sua luta pela
sobrevivncia caso le queira assumir as grandes tradies do
passado que consideravam a procuia da verdade, atravs da arte,
como o grandioso objetivo da vida. Contudo, lutar por ste ideal hoje
em dia uma tarefa mais rdua do que jamais foi e existem razes
especficas para isso. Antes do mais, est a crescente desvalorizao
social do poeta (a encarnao suprema do artista) como "o legislador
indicutvel da raa"; isso sobretudo evidente numa poca em que o
crescimento assustador da sociedade faz com que os indivduos
comuns procurem auxlio em orculos mais imediatos e prticos
(psicanalistas, socilogos, qumicos) do que na verdade potica que o
artista possa oferecer. Em segundo lugai, o artista na sociedade atual
no mais um indivduo "privilegiado", se que le o foi algum dia.
As leis e regulamentos da imensa tribo democrtica julgam-no to

13
severamente quanto o primeiro sapateiro da esquina. Os estmulos
que o artista recebia da sociedade, no passado, tornaram-se agora
motivo de escrnio, uma vez que todos, artistas e no-artistas, lutam
com a mesma fria em vista dos mesmos objetivos: sucesso, amantes,
posio social, dinheiro, prestgio popular, emoes, segurana, etc.

O aparecimento de uma democracia emocionalmente amotinada


provocou uma reviravolta nas velhas categorias humanas e nos
envolveu a todos na tempestade da existncia. Ficou faltando, porm,
ao artista, os benefcios que gozam as outras classes sociais, como por
exemplo a certeza a respeito do valor de sua obra, como ocorria nas
hierarquias bem definidas do passado. E se por um lado ste nvo
estado de coisas possui um extraordinrio fascnio para o verdadeiro
artista, uma vez que seus riscos e perigos so mais altos, por outro
lado cria uma situao de temores e angstia absolutamente indita.
Por exemplo: pode o escritor, o pintor ou o escultor isto ,
indivduos que possuem uma concepo da vida inteiramente pessoal
e que acreditam ser a verdadeira permanecerem indiferentes ao
clima social reinante e arriscarem tudo mantendo-se inabalveis numa
convico que lhes far entrar em conflito com as emoes humanas
consideradas normais (isto , aceitas pela grande maioria das pessoas)
?

sse um problema realmente grave e que traz consigo uma


ameaa muito maior do que no passado. Uma vez que o artista faz
parte integrante da sociedade como qualquer outra criatura humana
e provavelmente dentro da massa democrtica que reside sua
maior fra seus desvios sero considerados pelas autoridades com
a mesma severidade com que so julgadas as demais pessoas. le ser
processado e castigado pela mesma lei. E o resultado disso, como
observei freqentemente, a diminuio do seu estmulo e da sua
combatividade, alm da inevitvel transformao de suas convices
bsicas. Assim, no h mais nenhum terreno firme para o artista na
sociedade atual.

Para conseguir alguma segurana, le deve lutar com uma resoluo


fantica. Porquanto tudo sujeito dvida hoje em dia, tudo jgo;
aln: disso, o artista no possui a segurana "oficial" das profisses
reconhecidas, como tampouco existe uma unidade de pensamento
dentro de suas prprias fileiras. Diante disso, a situao do artista na

14
Amrica do Norte atual no nada invejvel. Se por um lado le faz
parte da sociedade, por outro lado, segundo seu instinto e tradio,
le no faz parte dela. Torna-se indispensvel, pois, que le tenha
uma viso bem clara de sua situao se deseja sobreviver intacto s
influncias exteriores. O maior risco que o artista corre atualmente o
de confundir seu papel eterno na histria com as dvidas pessoais
que so comuns a todos.

Aprendi, por experincia prpria, a pr em dvida a validade da


autoridade social, tal como existe hoje em dia, no que se refere a
indivduos que possuam uma atividade artstica bem definida. No
admissvel etiquet-los com tanta facilidade como eu fui
diagnosticado no Hospital Bellevue. Os psiquiatras que me
apalparam a cabea para ver se descobriam nela alguma coisa errada,
no estavam suficientemente informados com meus objetivos e
valres para me serem de alguma utilidade, embora reconhea a
competncia deles diante de casos tpicos.

Essa foi a lio que aprendi na minha luta e derrota com as


autoridades mdicas. Como disse antes, acreditava infantilmente,
como muitos escritores jovens ou artistas norte-americanos, que a luta
pelos ideais humanos era algo completamente diferente, da mesma
forma que fazia uma idia completamente falsa da autoridade,
exagerando ora sua debilidade ora sua agressividade. De uma
maneira geral, comportei-me como a caricatura de um "gnio",
maneira de Hollywood, e no como um indivduo que possusse o
desejo invencvel de segurar a chama imortal da arte em sua pequena
mo.

Depois que fui algemado, levado numa ambulncia, narcoti-


zado, psto em fila e que recebi uma comadre, como se fsse um
velho senil e no um jovem na plena fra da idade, cheguei
concluso que discordava basicamente do conceito tradicional de
loucura. unicamente pela afirmao da nossa prpria indi-
vidualidade que podemos transformar certos conceitos que perderam
sua razo de ser. Em outras palavras, se a maioria das pessoas admitir
que o que era antes batizado confiantemente com o nome de
insanidade no tem mais nenhuma existncia real, uma vez que
hoje em dia qualquer pessoa um pouco mais imaginativa seria

15
considerada um luntico amador diante dos conceitos acadmicos da
"racionalidade" uma vez isso admitido est rompida a dependncia
palavra e ao seu significado. A razo porque discordei do conceito
de sanidade no foi apenas porque meu esprito se recusava a aceitar
uma limitao exagerada de minha individualidade a um nico
aspecto dela isto , a ctiquta patolgica mas sobretudo porque
no me convenci, nos dois sanatrios onde estive, da realidade que se
d palavra "doente".

Em resumo, no podia mais admitir que a loucura fsse algo real


como o trovo ou o cncer. Ela me parecia ser antes uma interpretao
do pensamento e do comportamento humano condicionada por
preconceitos do passado: temores, noes duvidosas a respeito aos
objetivos da existncia, uma idia de liberdade do tipo policial, bem
como intersses econmicos, responsabilidades e convenincias da
classe mdica. (A palavra convenincia ("expediency") definida da
seguinte forma: 1. Apto e conforme a um objetivo em vista, como uma
soluo conveniente, logo vantajosa. 2. Em vista de uma vantagem
especial mais do que um direito universal. Webster.) Diante disso,
passei a no aceitar mais a autoridade de um conceito que parecia se
beneficiar especialmente com uma situao dada. Conclu igualmente
que tdas as pessoas que ousam enfrentar as convenes intelectuais
de nossa poca sero, mais dia menos dia, classifiqadas em alguma
forma de "psicose" parania, esquizofrenia, ou neurose. A
interpretao patolgica da natureza humana tornou-se um hbito em
nossa poca (acentuado pela psicanlise) e ela tem sido utilizada mais
freqentemente para refletir os temores, ansiedades e valores
daqueles que ocupam uma situao de domnio, do que daqueles que
esto internados em hospitais e casas de sade. Dentro dessa arma-
dura de ferro que evidentemente fere at o mais ntimo da alma
o indivduo independente ou o artista no tm outra escolha seno
confiar cegamente no que percebem com sua inteligncia ou
imaginao. Uma vez que essa situao atual passar, somente a viso
individual permanecer inabalvel, j que ela se apoia numa
experincia concreta.

Acredito mesmo que o temor e at mesmo a experincia pessoal


do que se convencionou chamar "insanidade" sejam uma necessidade
emocional quase indispensvel a uma pessoa sensvel e imaginativa
na Amrica de hoje. somente atravs de uma experincia dste tipo
que ela poder dar o devido valor s palavras e aos conceitos que

16
utiliza. O vocabulrio e as definies da psicanlise, que antes
pareciam ser um instrumento de libertao do homem moderno,
tornaram-se uma espcie de corda passada em volta do pescoo da
mente humana. A alma, porm, possui seus recursos: ela se
desembaraa, graas sua surpreendente necessidade vital, dos
conceitos que eram tidos por verdadeiros e cria um nvo mundo onde
ela possa respirar. Uma ltima palavra: se alguns leitores suspeitarem
nesse artigo uma tentativa de auto-justificao, dou-lhes razo de
certa forma; mas convm lembrar tambm que somente atravs das
idias e das experincias pessoais (mesmo que haja malogrado na
minha tentativa) que surgem esclarecimentos que se esforam em
tornar a vida mais tolervel, inclusive nos seus aspectos mais difceis.

DIANE DI PRIMA

13 Pesadelos

DIANE DI PRIMA, de olhos devoradores, quis certa vez estudar fsica e foi
para a Universidade de Swarthmore. Chegando l, entregou-se musa
bomia e comeou a escrever seus poemas em prosa num estilo
pessoal, verdadeiro, requintado e fatal. Entre crca de vinte e cinco
escritoras jovens da atualidade, Diane se sobressai por sua genuna
modernidade. Inteligente e lcida, ela possui alm do mais um esprito
sincero, tenso e dolorido. Suas histrias so cortantes como a ponta de
um bis- turi, e seu futuro to importante para a literatura em geral
quanto para o movimento especificamente beat. Diane uma escritora
fascinante que conseguiu, jovem ainda, o que outros escritores mais
velhos lutam para alcanar se que alcanam. Embora Diane
passeie de mos dadas com a preciosidade, ela jamais se deixa cativar
a ponto de perder a conscincia do que faz: sinal evidente de que
presenciamos algo surpreendente com esta jovem de raras qualidades.

PESADELO 1

17
Bem, vim passar fome num lugar mais quente por causa da praia e me
parecia que tudo estaria perfeito se tivesse um ou outro livro comigo.
Escrevi pois minha me (encontrei papel) e disse para ela Posta
Restante e depois voltei para a praia e esperei. Noites bastante quentes
para dormir e pescar tudo timo um poema escrito de tempos em
tempos e depois pareceu tempo suficiente e voltei ao correio.

Uma encomenda disse um livro em meu nome e les disseram


identidade por favor. Procurei pelos bolsos mas uma onda de sorte
levara os papis com meu nome.

Por favor, disse, por favor por favor por favor. Um livro dentro,
Rimbaud, abram e vejam abram pelo amor de deus por favor.

Desculpe disseram mas por que no vai em casa disseram e apanha


sua identidade.

Est certo disse vou pedir quela onda na prxima vez que a encontrar
mas agora me dem sse embrulho.

Desculpem disseram e puseram-no na estante

no alto

atrs de uma tela de arame. Rimbaud ali e talvez comida enfiada


provvelmente cm volta. Imagina voc salame e latas com comida.

Por favor disse por favor bom at logo.

18
At logo disseram.

PESADELO 2

Tendo uma casa mais limpa do que a usual lavei os pratos. Juntando
aquelas minhocas compridas, espaguete do dia anterior, joguei-as da
pia dentro da lata de lixo quando uma escorregou e caiu no cho e ali
ficou rindo-se de mim.

Rrruuu disse mas tendo um cho mais limpo do que o usual tentei
peg-la e foi quando ela me escapuliu molemente para um lado e
novamente riu-se de mim. Aps dez minutos de tentativas desisti, com
as mos mais sujas do que o usual.

Ah bom disse debaixo da torneira aberta ela estar dura como um


prego essa noite a porca e eu a catarei como um palito.

Foi quando olhando novamente para o cho vi uma fileira de baratas


luzidias transportando a minhoca e cantando Para A Frente Raratas
Crists.

A algazarra era insuportvel e fiquei apavorada olhando para a cena


at que uma barata maior, a chefe indiscutivelmente, encostou em mim
para ver se tambm eu podia ser arrastada

19
.PESADELO 3

Passei horas fascinadas observando uma jovem mariposa aquecer-se


na chama de minha dispensvel vela bomia.

O que estava perfeito at que ela desistiu das voltas e resultou disso
um estalido sco encaracolado no interior de uma pequena fumaa.

O que estava perfeito at que uma segunda mariposa saltou voando


do teto e gritando "Dido" seguiu o destino da primeira.

PESADELO 4

Muitos dias com fome despejei num prato a carne picada de aspecto
duvidoso provavelmente comvel, espero que sim, e sa procura de
um fsforo.

Volto com a frigideira mais ou menos lavada e no encontro a carne, a


gata sim, a carne no. Sua nojenta disse e a esbor- rachei com a
frigideira esmaguei seus ossos praticamente morta e deixei-a para me
entregar s lgrimas. Chorei na cama pio- Ihenta gritei e chorei para
t-la de volta e na ponta dos ps fui cozinha apenas para ver e ter
certeza.

Em cima da mesa ainda achatada agora dura est a gata morta


totalmente no mais com fome agora, e as marcas de sangue
coagulado no cho indicam que ela saiu para apanhar o que est
agora alm de sua refeio (ela pensou) para mim, um camundongo
que ela matou e morreu.
PESADELO 5

Ban ban ban Quem

perguntei

A pessoa diz le que veio desligar o gs


Desculpe disse mas estou na cama volte mais tarde por favor. 86Eu
espero disse le.

Est bom disse e lhe dou 57 horas e 40 minutos para le desistir. Saio
ento, apressadamente, em direo ao banheiro.

Ol diz le Ol digo

Desculpe ser obrigado a desligar o relgio diz le. Tenho que ganhar a
vida diz le. Tenho uma famlia.

Eu sei disse sempre o que vocs dizem e vo em frente. Quando


voc sair vou arrancar sse maldito slo.

No vai conseguir diz le agora feito de uma nova liga. Gastaram 30


milhes de dlares para fazer essa liga. No h jeito de arrancar diz
le.

Est bom disse faa seu servio e v para casa. Vou ao banheiro.

Eu fui, le fz, foi embora, subi numa cadeira. E tentei cortar o slo
martelo formo tentei de nvo escorregou quebrei as unhas tentei
tentei cortar tentei. Sopa para cozinhar.
Doze horas depois fui ao farmacutico. Ol disse tenho uma conta a
pagar de uns comprimidos de benzedrina d-me um vidrinho de
cido fluordrico.

Olha disse le no sei se posso. Comprimidos uma coisa disse le


mas sse negcio de cido outra coisa.

Seja bonzinho disse preciso fazer a comida e les selaram o relgio do


gs voc sabe comida voc entende.

Est bom disse le mas cuidado.

Pingo

Buraco tambm na mesa, no cho, talvez no andar de baixo no sei


mas buraco no slo tambm lata de sopa aberta. ba.

Mas vejam s no tenho fsforo uma piada o gs ligado e no tenho


fsforos no faz mal. Gs no falta mas no tenho apetite,

PESADELO 6

Tire seu pescoo cortado da minha faca.

PESADELO 7

23
Um dia esqueci-me da manga do casaco e meu corao espetado no
meu brao fazia um buraco ali.

Descobri 50 cents no blso no mais; na Rua 42 procurei um filme que


agradasse.

At que o mais belo deus que existe eu creio postou-se na minha


frente e sorriu sabendo de tudo e mais do que tudo.

Voc est com pressa disse le e eu sorri porque ningum com pressa
teria mais pressa do que em v-lo e le sabia disso.

E le sorriu sabendo de tudo e reconhecendo simplesmente sim isto


sei que existe gente espalhafatosa e sofrida mas no ns.

E andamos os trs, le eu e nossas mos entre os dois e le tinha um


quarto onde o teto danava para mim danou a noite inteira.

At que acordando na manh seguinte e bocejando com dentes mal


tratados le disse ento boneca quanto voc quer?

PESADELO 8

Estava pois na fila dos desempregados verde instituio sala verde


gente verde vagaroso avano. Ento para o homem na minha frente
disse o funcionrio atrs do balco, dobrando os papis chateado e
colando selos.

Aqui esto senhor suas vinte razes para viver.

24
PESADELO 9

Vamos andando disse o guarda. O jardim fecha s nove vamos


andando santo deus. O que voc est pensando que o jardim seu?

No diz nada hein no quer sair hcin? Veremos. Mando-a para a


clnica uma semana de choque lhe far bem aposto. E dito isso apita.

Depois do que um carro branco surge, brancos assistentes

que pem mos obra sem nenhuma emoo.

No era a primeira vez que viam uma rvore catatnica.

PESADELO 10

n'

Eu vi com meus olhos, eu li nos seus nojentos jornais:

"Estao aberta para pessoas de mais de 21 anos de calas blue jeans


ou sapatos de tnis, homens com batom, mulheres de cabelos curtos,
atores desempregados, poetas de tdas as condies. Gratificao por
pessoa 10 dlares. Viciados cm drogas e msicos de jazz cinco dlares
extra."

25
Voc pode dizer que estou louca mas isso no quer dizer que esteja
maluca. Pergunte a qualquer chofer de txi.

PESADELO 11

Preciso realmente de um nvo ralador. Tda vez que me esqueo e


passo-o no rosto os legumes que ralo no dia seguinte ficam
amarelados e esquisitos...

PESADELO 12

Fui ao pronto socorro. Torci o p disse.

Qual seu nome disseram e a idade e quanto ganha e quem o


dentista de sua famlia.

Respondi e disseram para esperar e eu esperei e les disseram pode


entrar e eu entrei.

Abra o olho disse o mdico voc tem alguma coisa na vista. Eu torci o

p disse.

Abra o lho disse le e eu abri e le tirou o globo ocular e lavou-o na


pia.

26
Toma disse le e ponha-o no lugar sente-se melhor no verdade.

Creio que sim disse. Est tudo escuro no sei. Torci o p disse. Pisque

por favor disse le uma de suas plpebras est slta. Acho que disse

que tem alguma coisa errada com meu p. Ah disse le. Talvez voc

tenha razo. Vou amput-lo.

PESADELO 13

Di ser assassinado.

CHANDLER BROSSARD

Batilles

CHANDLER NO acompanha a febre atual, no fantico pela "action


painting", casacos Loden, moas de meias pretas compridas ou outros
sinais exteriores da atual juventude beat. um independente feroz,
por assim dizer. Seu primeiro romance "Who Walk In Darkness" foi
escrito com a preciso de um campeo de tiro; o segundo nunca
recebeu a ateno que merecia; suas peas, por outro lado, no
causaram furor junto crtica nem junto ao pblico. le mantm uma
relao curiosa com sua gerao: torna-se dia a dia mais interiorizado,
mais cansado, mais velho, mais tranqilo do que na poca do seu lan-
amento, por volta de 1940. Sua maturidade interior contrasta com sua
fisionomia jovem e aberta. Chandler um autor muito especial que
ainda no deu o melhor de si mesmo na literatura. Possui a viso
alerta de um mergulhador e j deixou sua marca na atual gerao.
Pode e deve descer mais fundo. O trecho que reproduzimos de um
romance ainda no publicado "The Double Dealers".

27
BiATILLES so todos os ingredientes que podem ser
includos na preparao de uma torta, tais como cristas de
galo, cascas, rins, midos de vitela, cogumelos, coraes de
alcachofra, etc.

- LA VA

Alguma coisa se passa com le, disse Roberta Johns vendo


Rand roar-se contra ela indo em direo cozinha.

O que foi?

Disse que alguma coisa...

Eu ouvi, mas o que ? Que coisa...

Realmente no sei. le est to irrequieto.

A festa est tima, disse o convidado a seu lado. Em um preto alto e


de barbieha que havia sido apresentado a Roberta alguns minutos
atrs. le estava sbrio.

Hum, foi a resposta dela.

Como dar o fora nle? pensou consigo. Agarra-se em mim como


uma criana assustada. O que fazer?...

28
Voc me d licena um instante, exclamou ela vendo passar
um rosto conhecido. Preciso falar com algum que est ali. E assim
ela escapou.

Essa no pega, pensou le, andando sem rumo pela sala, o copo
de bebida erguido na mo, na altura do queixo. le sentia-se bem,
contudo, no meio daquelas pessoas, e deu um suspiro fundo, com
uma atitude de tolerncia. Cavalo dado no se pergunta a idade. Por
mais desprezvel que lhe parecesse sse comportamento, no podia
impedi-lo. Pelo menos no intimamente, para desconforto seu.
Algumas vzes surpreendia-se desejando ardentemente manifestar
um desprzo verdadeiro pelas pessoa6 em volta. Alguns minutos
atrs, esforara-se em manter uma conversa animada com um casal
insuportvelmente bem vestido como se chamavam mesmo? Tanto
o homem como a mulher haviam procurado manter uma atitude
exageradamente correta e vontade com le "No simplesmente
detestvel, dissera um dos dois, a maneira como o Departamento de
Estado procede com Paul Robeson?!"... Aquela conversa, pelo jeito,
acabaria lhe dando urticria. Sorriu mesmo assim. Era mais fcil.

Em um canto da sala, prximo de onde estava, viu dois rapazes


que gostaria de conhecer. les chamavam-se Rand e Harry; havia
ouvido falar dles durante a festa. Sua timidez, porm, impedia-o que
se aproximasse dles sem apresentao, de sorte que permaneceu
onde estava (sentia-se como um minsculo satlite negro suspenso
em um frio espao branco) e prestou ateno ao que diziam.

Rochedo, Assalto ou Decepo, eis os nomes que daria a meu


filho, disse Harry para Rand.

Por que?

Porque seria mais moderno e realista. Com um nome dsses,


le comearia a vida com o p direito. Voc j imaginou batizar um
menino, na idade atmica, com o nome de Luciano ou Bobby?

29
Rand foi obrigado a sorrir. Um camarada engraado, sse Harry.

E antes de mais nada, continuou Harry, ensinaria a le o valor


do dinheiro e a arte de mentir.

Harry sorriu embevecido com seu prprio senso de humor.

Sabe de uma coisa, disse Rand aps um instante, voc usa a


ironia como uma granada de mo.

O rosto de Harry estava banhado de prazer.

Que beleza de frase! exclamou. Mas, pondo de lado a poesia, o


que voc pretende dizer exatamente?

Simplesmente que voc atira seus comentrios espirituosos,


como uma granada, no meio de um grupo de pessoas que conver-
sam ... na esperana de atingir algum com um estilhao... na es-
perana que algum saia ferido.

E da?

Nada.

Sabe qual o drama com voc, comeou Harry, colocando


paternalmente a mo no ombro de Rand. Voc delicado demais, e
isso um mal. Voc no se importa se lhe der um conselho?

30
O prto de barbicha redobrou de ateno, voltando a cabea em
direo aos dois.

Pode dar, exclamou Rand. le respeitava Harry, le ouviria seu


conselho.

Primeiramente, pare de pensar em trmos de verdades


absolutas. Isso s lhe prejudica.

O que tem isso a ver com o fato de ser delicado?

Muita coisa, continuou Harry. Pense um pouco. Sua deli-


cadeza excessiva como uma verdade absoluta. Fico nervoso s de
pensar nisso. Pode crer no que lhe digo.

Que mal h em ser delicado? insistiu Rand.

Nada, se voc no exagera. Mas no isso que queria dizer. O


que me preocupa sua filosofia da delicadeza. Ela no se adapta
vida moderna, uma atitude doentia, neurtica e, muito ao contrrio
do que voc pensa, ela no nada humana.

Ouvia-se um alarido em tda a extenso da sala, risadas, con-


versas em voz alta e uma trepidao coletiva, como a vibrao de uma
mquina eltrica. Num outro canto da sala, Phillips acariciava uma
bela jovem reclinada num sof. Rand, refletindo no que Harry lhe
havia dito, observou-o durante um instante, depois voltou-se e viu o
prto de barbicha perto de seu lugar.

Harry tambm percebeu-o.

31
Quem o babilnio? perguntou a Rand.

O prto recuou instintivamente.

um escritor.

Todos les escrevem hoje cm dia. uma nova forma de


escravido.

O preto gostaria assim mesmo de entrar na conversa, mas sua


timidez o impedia e por outro lado no conseguia afastar-se da rbita
daqueles olhares inquisidores que estavam voltados fixamente para
le.

Acho que le ouviu o que voc disse, comentou Rand em voz


baixa, afastando os olhos do prto.

Quem manda le ficar parado ali, ouvindo nossa conversa? le


pode andar, no pode?

Coitado, pensou Rand. No queria estender-se mais sbre sse


assunto isto , pessoas infelizes porque sabia perfeitamente qual
seria a reao de Harry. Um tubaro no meio de carpas.

Em outro local da espaosa sala, Janine segurava o copo de


bebida com as duas mos, girando-o sbre o colo, como faria um
viajante semi-congelado que fsse retirado da neve e a quem dessem
uma bebida quente. Ela olhou para Rand, que estava na outra
extremidade, com o canto dos olhos (como le simptico) e afastou
rapidamente a vista ao se perceber observada por Roberta Johns.
Apanhada cm flagrante? No, apenas sentimento de culpa. Se Carter

32
estivesse agora ali, como nos velhos tempos, ela estaria irritada, sem
jeito, vendo-o discutir violentamente com algum, como era seu
costume, ou fazendo desajeitadamente a crte a uma mulher com
sua falta de tato habitual. Ou ento, terceira possibilidade, le a
criticaria por sua atitude depressiva, sua falta de entusiasmo pelas
coisas algo que le tanto necessitava. Essa a razo que o levava a
procurar outras pessoas. Por que motivo no consigo mais interessar-
me por reunies desse gnero? perguntou Janine a si mesma, bebendo
um nvo gole.

Gostaria que voc morasse uns tempos conosco, Janine


querida, disse Roberta. Ns cuidaramos de voc.

Obrigada pelo convite, respondeu Janine, como se repetisse as


palavras de uma outra pessoa. Mas eu preciso aprender a viver
sozinha.

No sei por que dei esta resposta, pensou ela. Foi mais forte do
que eu. Estou me tornando uma hipcrita.

Eu sei perfeitamente como voc se sente, minha querida, disse


Roberta com seriedade, apertando sua mo. Eu sei perfeitamente. ..

O que foi mesmo que voc disse outro dia a respeito de


cultivar a esquizofrenia? perguntou Rand a Harry na outra ex-
tremidade da sala.

Harry sorriu, envaidecido pela pergunta.

Ah, sim. Bem, o que eu queria dizer o seguinte. Por que


devemos nos angustiar terrivelmente, reprimindo certos impulsos que

33
contrariam a moral convencional, quando poderamos perfeitamente
satisfaz-los? Por exemplo. Digamos que voc

ossua desejos criminosos... Pois bem, torne-se um ladro ama- or ou


pelo menos permita que a emoo do roubo se exercite livremente.
sse exerccio far bem a ela. Entende o que eu falo?

Rand pensou entender. Harry era uma pessoa interessante, por


momentos, mas o deixava to confuso... Podia lev-lo a srio? At que
ponto sua idia podia ser posta em prtica?

Seria o caos, disse alto.

No, no seria. Seria, isso sim, uma forma completamente


nova de liberdade. "D a si mesmo umas frias" eis o lema que
aconselho para nossa poca.

Seu olhar vagou pela sala, encontrou novamente o do prto,


passou adiante, demorou-se em Phillips.

Veja como Phillips cheira aquela raiva, olhe si

(O prto, naturalmente, olhou tambm).

Meu bem, voc me faz sentir mole como uma gelia,


murmurava Phillips, enquanto roava a orelha da jovem com a ponta
do nariz.

Fao mesmo? Que coisa mais feia...

34
No, maravilhoso, absolutamente maravilhoso... no sei
como lhe agradecer. Por que no vamos embora? perguntou le
depois, enquanto continuava roando o nariz no ouvido da jovem.

Voc me ensina a jogar tnis? perguntou ela.

Essa noite mesmo. Vamos embora ento?

S mais um pouquinho, sim? Por que voc no bebe um outro


copo?

le resmungou, fingindo impacincia, enquanto continuava seu


passeio com a ponta do nariz.

Revoltante!

O qu?

le, exclamou Margaret, apontando o dedo em direo a


Phillips. No tem a menor dignidade.

Seu acompanhante, um homem calvo que caminhava para a


idade adulta, sacudiu os ombros. "Como pode algum ter dignidade
com uma garota dessas? E qual o bbo que gostaria de ter?"

Phillips e a jovem raiva estavam de sada. Phillips segurava- lhe a


pequena mo branca como se fsse uma flor, frgil e preciosa, que
acabara de ser colhida no bosque por um nativo do lugar.

35
Voc o conhece? perguntou o homem calvo para Margaret.

Bastante. Fomos namorados.

Ah, entendo.

Voc entende? Pois eu no entendo.

Ela acompanhou Phillips com a vista; foi quando observou o


prto de barbicha que se aproximava. le passou na frente de Phillips
e dirigia-se provvelmente para o lugar vazio no sof ao lado dela. O
prto se aproximava inexoravelmente.

Desculpe-me, mas tem algum sentado aqui?

Ser ingls? pensou ela. Seu sotaque... O rosto no tem nada de


ingls, talvez a barba.

No, no tem ningum. Pode sentar-se.

Quem sabe um homossexual? pensou Margaret. Isso explicaria


muita coisa. Mas seria bvio demais. Ou ele est tentando se passar
por um afeminado? Talvez, talvez. Mas por que razo? Por que
macaquear um fresco?

Posso lhe buscar uma outra bebida? perguntou o prto


bruscamente.

36
Muito obrigada, disse Margaret. Mas eu tomaria um gole do
seu copo, acrescentou ela, olhando com ateno para o prto, a fim de
constatar a surprsa que seu pedido ia provocar.

Curiosa combinao, disse Rand olhando para o prto sentado


ao lado de Margaret. Voc no acha?

Nem mesmo Rimbaud teria sonhado com isso, exclamou


Harry. Mas no fundo eu gosto de Margaret.

Eu tambm. S que ela meio pretensiosa.

Devo levantar-me e trocar algumas palavras com Janine? pensou


Harry, enquanto sua vista vagava pela sala. Conseguiria conversar
sriamente com ela? Seria horrvel trocarmos banalidades. A menos
que ela no se importasse. Ser possvel? Oh logo agora ela foi
abordada por aqules dois sorridentes mon- golides. Aposto que
esto discutindo sbre arte. Rrraaa. Cultura, como odeio essa palavra!
O que foi mesmo que algum disse? "Quando ouo a palavra cultura,
saco o revlver." H ocasies em que gostaria de ser um tira. Vou
esperar at mais tarde para falar-lhe. Flecha jogada num terreno baldio
quando ningum est olhando.

Rand viu Roberta saindo da cozinha com uma bandeja enorme


repleta de frios, salgadinhos, queijos e outras iguarias. H um
momento atrs, havia resolvido ir embora, uma vez que encontrara as
pessoas que pretendia encontrar (pensava, alm do mais, dar um pulo
em casa de Freda antes de ficar muito tarde); agora, porm, mudou de
idia e verificou, observando a aproximao da bandeja de frios, que
estava realmente com fome.

Harry observava pensativamente o movimento na sala. A


impresso que tenho, refletia le, estar segurando na mo um
abacaxi podre que encontrei tempos atrs no meu estdio, aps vinte

37
anos de vida folgada, e desde ento le me vem incomodando a vida,
como um credor. Vim para esta festa com todos os apetrechos de
minha profisso, inclusive uma srie de disfarces e fantasias
psicolgicas. Vesti as fantasias umas por cima das outras e agora estou
me sentindo inchado como um elefante.

A dona da casa, uma vampiro gasta, arrasta-me em direo a um


grupo que adula um crtico literrio pso-pesado. Quando cheguei, le
havia acabado de derrubar Tolstoy com um sco. O mundo no
bastante grande para caber le e a literatura, e essa a razo porque
le est tentando derrub-la com um direto no queixo.

Sento-me na minha cadeira de pista, com as pernas trmulas, e


observo ste sujeito que meio lerdo no jgo dos ps mas que
possui uma terrvel direita surrar trs jovens poetas e um
romancista ingls que, na opinio dle, no entende patavina de coisa
nenhuma. No intervalo, antes da luta principal, tapeio o vizinho da
direita com meus disfarces e labirintos psicolgicos. Mas nesse
momento anunciam a grande luta, cujo adversrio Cervantes. Saio
vacilante, sentindo-me tonto e frustrado.

Parece que faz dias que estou em p, sentado ou encostado nos


sofs, gritando, rindo e me aborrecendo enquanto aguardo a
oportunidade para meu grande feito da noite. Percebo, repenti-
namente, que j faz alguns minutos que um velho conhecido meu est
me sacudindo a mo, enquanto conta um de seus problemas pessoais
que reserva para estas ocasies. le no percebe que sua mo machuca
como um trno. Sua histria, alis, no podia ser mais sensacional: ela
diz respeito aos prejuzos que le causou a si mesmo em criana. Dou-
lhe delicadamente o fora dizendo que vou fazer pipi.

Observo um grupo extasiado em volta de um palhao que vive do


passado. le progride na vida voltando para trs. Ouo-o contar em
voz alta o que lhe sucedeu h duas semanas atrs. s agora que le
comea a perceber a importncia dsse fato. le precisa de tempo para
dar realidade uma forma digervel, se bem que falsa, e para se
imaginar o vencedor ou o perdedor em uma determinada situao:

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dessa maneira que le controla a realidade. A mentira e a re-avaliao
so suas especialidades.

Nada lhe acontecer hoje noite. Acontecer ontem, ou anteontem.


le dsses indivduos que no consultrio do analista fala de si
mesmo na terceira pessoa.

Abro caminho em direo a um outro canto da sala onde algum


est fazendo um discurso, se bem que mantenha a aparncia
disfarada de uma conversa de salo. Ouo-o pensando que talvez seja
essa a ocasio de realizar meu grande feito. O discursador est falando
sbre algo bastante ntimo, uma recente aventura sentimental, e narra-
a como se se tratasse da conquista do Peru por Prescott. sua maneira
de conversar. le usa a linguagem como uma tcnica de exorcismo.
Agora ri s gargalhadas, e ao voltar tristemente a cabea em direo a
outro ponto da sala ouo sua gargalhada ecoando atravs de centenas
de salas vazias.

A minha direita, um exibicionista intelectual est dando seu


show. le j esparramou diante dos ouvintes tudo que sabe ou que
pensa e agora, decidido a seduzir definitivamente o seu

mblico, est prestes a espalhar suas vsceras no cho. No vou icar


para ver isso.

Alguma coisa passa roando pela minha perna. um organismo


raro e recente que est circulando pelos vrios grupos. algo entre a
orqudea e o caranguejo. le o Blha. Sua funo na vida caminhar
de um lado para o outro, em qualquer lugar que se encontre, espera
de uma opinio ser emitida. Nesse momento le pra para ouvir
algum contar suas impresses sbre um filme nvo. Um sorriso
atravessa seu rosto. Imediatamente le comea a assumir as emoes
do narrador, apropria-se delas e imagino-o calando os chinelos e
acendendo o cachimbo para sabore-las mais vontade. De repente
le corre ara outro grupo, onde pessoas discutem uma teoria que

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acabou e ser inventada e para a qual le j tem vrias aplicaes
prticas, aguardando apenas o incio da conversa.

Passo com dificuldade entre "amadores" de tda espcie,


professores, crticos literrios, cronistas etc.; esto todos tentando
impressionar uns aos outros com seus hbitos de vida, verdadeiras
pardias da normalidade. Um dles declara dogmticamente que o
ltimo livro que leu foi na infncia. Um outro conta aos brados que
sua nica ocupao na vida jogar palitinho com os moleques na rua.
Em suma, um grupo de indivduos normais. No existe nenhum
alienado entre cies. Abro caminho por entre esta luxuriante
demonstrao de mediocridade e dirijo-me para um terrao fresco e
agradvel, ou pelo menos assim me parece.

Vrias pessoas esto deitadas no cho em posies que lembram


esttuas. Apostaram, aparentemente, para ver quem era o mais aptico
de todos e quem passaria o maior tempo sem pronunciar uma palavra.
Trs, entre les, esto prticamente congelados no perfeito silncio da
ausncia. Dois esto se transformando lentamente em pedra.
Nenhuma palavra foi dita, nenhum gesto foi esboado nas ltimas
horas. Fujo desta brisa gelada, trmulo de frio.

Esbarro contra dois cabotinos imberbes e aproximo-me de uma


jovem manequim. Ela perfeita. A maneira como anda, os gestos que
faz, o movimento de sua bea, sua maneira de conversar, seu vestido
tudo nela absolutamente estilizado e sincronizado. O objetivo
um s: uma total impermeabilidade. Nada pode penetrar dentro dela e
nada de muito desagradvel ocorre dentro de sua zona de influncia.
Mesmo os vulces explodem com um sussurro de desculpa e as piores
tragdias afastam-se mil lguas para desabarem.

Cansado, abatido, desanimado, afastei-me das linhas de frente e


entrei na cozinha, onde comecei a preparar-me uma bebida. Dois
rapazes, impediam que me aproximasse da geladeira. Dissertavam
sbre mil banalidades, com uma voz doce e afeminada, como quem
no leva nada muito a srio. Em dado momento, um dles levantou as
sobrancelhas de maneira sofisticada e sussurrou Marlene em direo

40
ao outro. Conclu que um pacto obsceno havia sido assinado naquele
instante.

Um ltimo olhar antes de ir embora. A sala est numa desordem


atroz. Exclamaes, contores, novos Saaras interiores descobertos,
passes arriscados. Horrvel.

Por que voc acha que o Carter largou a mulher? perguntou


Harry, enquanto se reabastecia de salsicha e usque.

Per uma srie de coisas, respondeu Rand, apanhando presunto


e po prto em fatia. le no estava com o menor apetite e comia
nicamente para agradar a Roberta. Esperava que ela apreciasse seu
gesto.

le no agentava mais aqule clima, prosseguiu Rand.

Eu sempre achei que le iria dar o fora, disse Harry. Tudo


indicava.

Mais dia menos dia, todos ns faremos o mesmo.

Ns j fizemos, meu caro. No se esquea disso.

JACK GREEN

41
peiote

ATENCIOSO, IRREQUIETO, a barba comprida, Jack Green lana de seu


estdio, situado na parte baixa de Manhattan, uma publicao louca a
que denomina "jornal". Interrogado a respeito de dados biogrficos',
respondeu: 'Jadk Green um velho praticante dos costumes beat. le se
diverte, viaja e trabalha como um beat. Fora isso, tem muitos anos de
idade."

peiote

uma das coisas mais belas que j aconteceu comigo pensei que no
fosse sentir nada com excitantes vendo a felicidade de dois conhecidos
meus, durante o peiote, decidi experimentar

pei-o-te peyotl, palavra nauatle que significa lagarta "por analogia com
o centro peludo do lho da planta" (webster) lophophora williamsii,
planta da famlia do cacto cresce perto do rio grande usada pelos
ndios do mxico e do sudoeste dos estados unidos a igreja nativa
norte-americana, que a principal igreja dos ndios norte-americanos,
possui ritual peiote o uso do peiote legal, le pode ser adquirido pelo
correio por uma soma mdica a droga principal no peiote a
mescalina (a bebida denominada mescal ou pulque produzida a
partir da planta maguei, no peiote, no contm mescalina)

uma planta peiote com a raiz parece com um sorvete de pistache em


casquinha a parte verae de cima o lho da planta, contm a maior
quantidade de produto txico para ingerir o peiote, lava-se crca de 2
a 8 plantas, limpa-se a raiz de sua casca, depois tira-se a penugem do
boto & come-se o efeito mximo ocorre dentro de uma hora & dura
crca de 8 horas, aumentando & diminuindo lentamente para muitas
pessoas o gsto da planta enjoativo pode acontecer sentirem-se
cansadas & algum tanto angustiadas na primeira hora o peiote no d
ressaca e no vicia ocorrem poucos efeitos colaterais txicos & muitas

42
vzes nenhum, durante a experincia eu geralmente no durmo
durante a noite que se segue ingesto da droga fico deitado & muitas
vzes rodando de um lado para o outro da cama, com uma certa
inquietao

ateno: conheo duas pessoas que passaram algum tempo internadas


no hospital bellevue por terem tomado peiote no encontrei muitos
casos dste tipo mencionados na literatura mdica especializada talvez
sejam raros o indivduo que tenha uma predisposio psictica & que
no possua slidas defesas contra a esquizofrenia, pode apresentar
repentinas reaes psicticas com a ingesto do peiote isto no ocorre
contudo durante a experincia, mas depois a droga perde o efeito, as
defesas no se refazem, segue-se um estado de confuso total no
convm tomar peiote quando se est deprimido, mas quando se est
com boa disposio

a l.a vez que tomei mescalina (droga derivada do peiote ou obtida


sintticamente, tem quase o mesmo efeito da planta mas muito mais
cara) minha inquietao na l.a hora decorreu da impresso que havia
engolido um "comprimido de herona" & estava perdido para sempre
depois apareceram os efeitos habituais do peiote mas eu s ganhei
realmente coragem quando tomei peiote vrias vzes por semana nos
2 meses seguintes no tenho um dirio das experincias com peiote,
estou escrevendo de memria houve vzes em que o efeito foi
pequeno vou contar as grandes sensaes

as cores eram muito mais intensas t ricas durante a experincia as


cres claras que produziam o maior efeito sbre meus sentidos tudo
assumia um aspecto fascinante e belo & isso me fazia feliz fiquei
durante uns vinte minutos olhando fascinado para um pssego, no
para a parte mais clara da pele, mas para os matizes sutis que
ocorriam com o plido amarelo esverdeado da fruta os objetos, por
exemplo uma lata de lixo, possuam um valor visual intrnseco que
no tinha nada a ver com as palavras, aspectos atraentes dles etc.
quanto mais olhava para determinada coisa tanto mais ela me interes-
sava uma conhecida minha, durante a experincia, no reconheceu
uma rua que lhe era familiar porque havia um mundo de coisas novas
que ela nunca tinha visto anteriormente no como na viso "normal",
quando a gente registra estpida- mente somente aquilo que possui,
muitas vzes errneamente, uma relao direta com alguma finalidade
"prtica" vi cores vivas nas asas de pombos que voavam as cores

43
haviam estado sempre nas penas mas nunca as tinha percebido antes
durante o peiote, observa-se tudo o que percebido pelos sentidos,
sem nenhum esforo sentado no meu galpo, vi que no existe a cr
branca as paredes brancas do meu estdio estavam manchadas de
laranja proveniente das lmpadas acesas & havia alm disso um verde
profundo que pertencia antiga pintura da parede um carto com
letras para exame da vista possua uma qualidade inusitada, como se
fsse um antigo manuscrito chins, isso porque o papel estava
amarelecido pelo tempo

minha l.a experincia com peiote foi em nova iorque, noite cooper
square parecia iluminada efusivamente, como nas noites de sbado
em coney-island ou no times square fantstico por que tudo parecia
to estranho? a viso com peiote a viso normal ou uma viso
alucinada? penso que meu olhos com peiote eram os normais & meus
olhos "normais", sem peiote, sofriam de alucinao se a cidade parecia
estranha noite porque ela estranha, com suas milhares de luzes
neon & nenhuma escurido em parte alguma a cidade parecia to
fantstica & festiva porque no estava habituado normalmente a ver
as coisas com aquela intensidade era a transformao da viso banal
para a viso com peiote que era estranha, como seria se algum
voltasse a ouvir subitamente aps ter estado surdo durante anos a
percepo verdadeira, mas a mente fica surprsa & lembra a
diferena minha perda das cres vivas em criana deve ter se dado de
forma to lenta que no dei conta dela quando tomei peiote durante o
dia, luz do sol, lembrei-me que h vinte anos atrs, e no mais desde
ento, o sol brilhava daquela forma clara & quente, banhando de uma
luz rica & de um calor visvel tudo que dourava gostava de tomar
peiote tardinha & observar o sol tornar-se cada vez mais luminoso
medida que se punha acreditando que nunca mais perderia minha
nova viso & sentia o entardecer da minha vida ser mais luminoso do
que havia sido seu meio-dia observando uma calada esburacada no
me parecia uma coisa insignificante & suja, mas como se fsse uma
gravura em madeira os buracos pareciam duas vzes mais profundos
do que habitualmente ocorreu-me que minha percepo "normal"
diminua o sentido da distncia, enquanto que o peiote revelava as
verdadeiras profundidades uma fatia de po da uai havia arrancado o
miolo parecia uma caverna quando vista e uma certa distncia fiquei
fascinado pelas transformaes que ocorriam medida que o miolo
voltava lentamente a ocupar o lugar de onde fra extrado geralmente
via a parte exterior de uma janela como um simples retngulo, agora
vejo dentro olhei para prdios no crepsculo, os mais distantes pare-
ciam estar a uma distncia muito maior as formas & perspectivas
contavam histrias sem palavras, como os rostos contam a pintura
nunca foi meu forte com peiote olhava atravs de uma janela (a

44
moldura) para uma cena real em trs dimenses que era o universo de
uma outra pessoa numa pintura abstrata a tinta no cobria apenas a
superfcie plana do quadro mas possua uma perspectiva, como era a
inteno do artista expressar

provvelmente se eu j possusse uma viso anterior desenvolvida,


como a do pintor, o peiote no causaria um efeito to acentuado no
teria possivelmente nenhum efeito, ou teria um efeito desagradvel,
para olhos no-tapados, olhos no-pre- judicados pela vida de todos
os dias

tive poucas vises ou alucinaes, tanto com os olhos abertos quanto


fechados (mas vejam o que diz henri michaux, misrable miracle
mnaco 1956; I'infini turbulent, paris 1957; trechos publicados na
evergreen review 4= 1,1957, 37; new world writing =(= 15,1959, 96)
experimentei doses mais fortes para ver o que aconteceria mas houve
resistncia da minha parte, defendi-me contra a experincia & sa fora
da onda senti-me deprimido por isso, confuso, sem coragem para sair
do meu estdio sou a favor das doses menores que mantm a
experincia como parte da vida de todos os dias

o peiote provoca em mim um colosso de vitalidade, ando pelas ruas &


vejo mil coisas depois me acalmo, volto para casa & deito-me com os
olhos fechados(1) vejo desenhos de luzes coloridas ou estruturas
organizadas, difceis de serem descritas com palavras no me
pareciam angustiantes ou repugnantes, como michaux conta serem as
dle (provvelmente le defendia-se delas) pareciam-me antes
interessantes, algumas outras vzes divertidas as vises no me eram
familiares, por vzes sentia como se o peiote fsse uma pessoa vinda
de um outro planta que houvesse tomado posse de mim & que
recordasse dentro de mim as lembranas visuais de seu planta de
origem parece-me que uma vez que meus olhos estavam "bem
abertos" (embora fechados) & ativos, as vises eram fenmenos reais
resultantes de uma sbita energia que atuava sbre os olhos & no

1 Quando saio de casa & ando pelas ruas a experincia pode ganhar em intensidade se
me divirto ou encontro algum conhecido que j tomou peiote, ou pode malograr
completamente, consumida em distraes exteriores mas quando me deito & fico
parado, o efeito aumenta lenta

45
uma inveno de minha imaginao, embora pudessem ser
influenciados pela sugesto

sou mope & vejo imagens mltiplas antes de tomar peiote, olhando a
uma distncia de meio quarteiro para um anncio luminoso de neon,
em forma de crculo, avistava apenas um crculo vermelho, bastante
fora de foco, rodeado de outros crculos menos embaados durante a
experincia com peiote, sur- preendia-me ao ver vinte ou trinta
crculos perfeitamente definidos creio que o dr wm h bates (autor do
livro veja melhor sem culos) est certo quando afirma que a miopia
causada por uma tenso muscular a tenso muscular contnua
("defesas" segundo a terminologia de wilhelm reich) pode
eventualmente provocar defeitos estruturais acredito que o peiote
alivia a tenso da minha vista, permitindo-me ver com maior nitidez,
se bem que as imagens mltiplas sejam conseqncia de um defeito
estrutural incorrigvel ou difcil de ser corrigido, resultado de anos de
tenso ocular

durante a experincia, a maioria dos objetos eram vistos por mim


ainda de uma forma confusa, fora de foco, uma vez que as imagens
mltiplas sobrepem-se umas s outras, a menos que sejam
extremamente delgadas mas no me importava com isso & gostava
mesmo do efeito que meu defeito visual provocava nas estrias outras
vzes, porm, preocupava-me ter apenas uma viso "finita" as nuvens
& as estrelas pareciam ainda estar espalhadas sbre um fundo esfrico
plano em vez de se afastarem cada vez mais no espao sentia o desejo
de ultrapassar o pano do fundo & olhar mesmo assim para as estrelas,
ao invs de olhar apenas em direo a elas como quando se estende a
mo & o gesto no suficiente para alcanar o que se deseja

naturalmente podia colocar os culos & ver as imagens nitidamente,


mas o peiote ento dizia, falso! os culos estavam vendo
corretamente, mas eu no a realidade na viso depende do que a
gente v com os prprios olhos & no da imagem que se recebe dles

uma observao curiosa a respeito do finito & infinito as vises que


me ocorriam quando fechava os olhos via formas em um espao finito
& bastante plano mas as imagens continuavam passando, fugindo &

46
voltando, repetindo-se sempre de maneira diferente, muitas & muitas
vzes, "interminvelmente" (isto , com durao maior do cjue a
prevista) a frao de segundo que levava para "olhar' para uma parte
da viso era tempo suficiente para ela se transformar, ou ocupar um
outro local o que fazia com que o espao parecesse ser, de certa forma,
infinito talvez seja biolgicamente normal no se ver objetos fixos
(fixos pelas palavras na mente) mas num fluxo em perptuo
movimento

olhei para os gatos com os olhos do peiote & perdi minhas iluses a
respeito de suas "qualidades humanas" les no se pareciam com
pessoas & no possuam personalidade quando muito eram animais
fantsticamente alertas, reagindo violentamente diante de tudo olhei
nos olhos dles, no havia nada l dentro olhando para mim o
ronronar dles uma reao animal que no tem nada a ver com a
"afeio" natural para um gato pular repentinamente do nosso colo
quando ouve a porta da geladeira abrir isso no significa que seja
ingratido por parte dle les no so nem mesmo "independentes"
essa qualidade no se aplica absolutamente a les

meu ouvido normal bastante bom o peiote transformou-o li-


geiramente uma msica indgena peiote com tambores (grande!)
parecia sair do local mesmo onde havia sido gravada & no do alto
falante do meu toca-disco geralmente odeio msica popular comercial
para mim uma experincia equivalente a encontrar uma pessoa
desagradvel e chata pois bem, durante o peiote qualquer msica
servia um rock and roll diferia de uma msica clssica, beethoven por
exemplo, unicamente pelo fato de ser mais animada possvel que a
execuo da msica de beethoven fsse medocre sabido que muitos
msicos profissionais no tocam com entusiasmo durante o peiote
no fazia distino entre a execuo & a msica, no praticava o
trabalho inconsciente de ouvir atravs da execuo o "autntico
beethoven" existem outras explicaes, eu sei, mas elas no me
agradam

a audio teve poucas surprsas para mim, mas o olfato & o paladar
me surpreenderam! conheo uma ma que mora num apartamento
com 10 gatos & 4 janelas fechadas sempre me queixei do forte odor
desagradvel que pairava em seu apartamento ao entrar ali durante o

47
peiote, no somente minha reao ao odor foi diferente como o
prprio cheiro me pareceu diferente! entia agora um odor forte &
capitoso de terra, como o aroma de um estbuio, no era nada
desagradvel sse odor creio que o odor de "curral" era o verdadeiro,
& o odor desagradvel sentido anteriormente era conseqncia de
lembranas infantis de privadas

em criana era obrigado, por imposies de ordem fsica ou moral, a


comer certos alimentos "nutritivos" mais tarde no tolerava nenhum
dsses alimentos alguns anos atrs, numa tentativa de vencer certos
condicionamentos & reaver a liberdade, forava-me a comer, digamos,
um prato de chucrute, procurando evitar interferncias subjetivas a
princpio, cuspia o que mastigava, fazia caretas, mal tinha tempo para
perceber o gsto real do alimento pouco a pouco o nojo inicial
diminuiu & comecei a sentir o verdadeiro paladar da comida o nico
defeito com essa experincia que me tornava mais consciente de
mim mesmo & mais dividido entre o "dever" e a "rebeldia" no fundo
era uma aceitao da autoridade numa idade adulta, ainda que me
desse tda sorte de razes para agir daquela forma comia o chucrute
porque me parecia bom para a sade & no porque me agradasse
especialmente a nica diferena entre uma atitude & outra estava no
fato de haver perdido a repugnncia por certas comidas mas elas se
pareciam enquanto aceitava um sofrimento presente em vista de um
benefcio futuro como se tratava de uma experincia "partida", ela no
foi adiante, permaneceu isolada, no deu frutos a mesma experincia
com peiote foi simples & benfica na hora do jantar serviram-me
abbora fazia vinte anos que me recusava a comer ste legume
lembrei-me da poca em que me foravam a com-lo ocorreu-me
ento que era inteiramente ridculo imaginar que os adultos se
foravam a comer abbora, se fsse um alimento de sabor
desagradvel ao pensar isso, imediatamente senti seu verdadeiro
paladar livre do condicionamento & da repugnncia infantil percebi
ento que a abbora tinha um sabor delicado, leve e agradvel & no
provocava absolutamente aquela sensao de engulho quando descia
pela garganta

quando comi pssegos adoro pssegos pareceram-me ainda


mais deliciosos do que habitualmente no os mastiguei, porm, com
uma eficincia & prtica puramente automticas, como costumava
fazer, mas saboreei-os lentamente, chupando-os de uma maneira to

48
apreciativa que teria provocado escndalo caso o fizesse nas ruas de
nosso pas civilizado

o olfato & o paladar tornaram-se tambm mais vivos e precisos uma


gcleia que parecia aos outros levemente "azeda", & que assim teria me
parecido normalmente, exalava durante o peiote um tal odor de podre
que no pude com-la distinguia tambm mais nitidamente o gosto
dos aditivos qumicos que so adicionados aos alimentos em conserva
os aditivos possuam um sabor esquisito que no era o da comida,
mas mesmo assim a comida em conserva era tolervel

tenho o tato sensvel & o peiote pouco afetou-o em compensao,


sentia-me menos bloqueado para avaliar meus prprios movimentos
movia-me com maior naturalidade, com maior confiana & elegncia
certa vez estava deitado com os olhos fechados olhando para uma
viso grotesca que dava a impresso de uma coisa enroscada, de
desconforto & deformidade (em experincias posteriores, mais tristes,
vi lgrimas de sangue) repentinamente descobri que a viso
representava meu prprio corpo eu estava deitado todo encolhido, o
que acentuava a sensao habitual de desconforto & dormncia nos
membros (defesas) assumi uma atitude mais relaxada & a viso
mudou em conseqncia disso fiquei surprso de poder mover a
regio pl- vica independentemente das pernas & das costas, com
facilidade & sem nenhum esforo normalmente no consigo fazer isso
tinha aprendido durante anos de tratamento com um psiquiatra
reichiano que se pode relaxar os msculos tensos, especialmente os da
regio plvica, sem uma grande preparao anterior aprendera
tambm que a tenso no se afrouxa sem a ruptura violenta das
emoes que a provocam o relaxamento com peiote porm no
provocou nenhuma crise ou descarga emocional era sentido como
algo agradvel sem ser uma libertao total minha concluso que o
peiote diminui o impulso de energia proveniente do organismo, de
sorte que quando a resistncia abandonada no ocorrem grandes
alteraes essa a razo porque a energia liberada( 1) isso con-
firmado pelo fato de apreciar mais a comida durante o peiote & no
sentir to presente a obrigao de comer provvel que, desprovido

1pela mesma razo, um paciente da terapia reichiana que tomar peiote no romper
definitivamente as tenses o efeito passa, as emoes repimidas no foram liberadas, a
tenso volta a formar-se o peiote pode, quando muito, facilitar o diagnstico das
tenses.

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de alimentos, teria preferido morrer alegremente de fome do que me
dar ao trabalho de conseguir comida

o mesmo ocorreu em relao necessidade sexual houve um aumento


no prazer & na espontaneidade do ato & uma diminuio nos desejos
sexuais assunto sse que( ainda no foi analisado pelos meus
companheiros eruditos de peiote sentia-me mais feliz nas relaes
sexuais, menos inibido, mais vontade & espontneo a mudana foi
ainda mais marcante no que se refere masturbao hbitos
estereotipados como "depois disso faa aquilo" desapareceram por
completo sentia-me livre para fazer o que me agradava a soma de
energia liberada no orgasmo foi provavelmente menor

a perda da necessidade no ter que respirar, comer, dominar, amar


uma perda da liberdade e, de certa forma, no humana
pareceu-me porm que essas perdas eram ilusrias & assim pensam
muitos outros isto , muitas pessoas escapam da necessidade mesmo
no seu estado "normal" o impulso sexual catico, complicado &
forado para dentro do inconsciente e "tudo vaidade" durante o
peiote no senti falta da maior parte das coisas que no havia
possudo

efeitos do peiote na personalidade havelock ellis( 1) descre- creveu os


efeitos do peiote sbre a viso & afirmou que no h transformaes
na personalidade (os efeitos do peiote variam de pessoa para pessoa,
de dose para dose, de uma circunstncia para a outra minhas
experincias no so idnticas a de outros escritores ou amigos
alguns, por exemplo, interessaram-se especialmente pelos aspectos
telepticos) no meu caso pessoal o efeito do peiote foi o de me fazer
sentir feliz, simples, bom, confiante & disponvel a abrir as "portas da
percepo"

o sentimento de euforia foi maravilhoso o lcool produz em mim um


sentimento agradvel de alegria mas sinto-me limitado, alm de existir
sempre uma separao entre eu & o mundo com peiote ocorre o
contrrio de limitao ou separao um grupo de conhecidos, durante

1mescal: a new artificial paradise, 1898.

50
uma experincia com peiote, quase nada tinha em comum com um
grupo que fumava marijuana os fumantes de marijuana discutiam
assuntos da mais grave importncia, enquanto ns, os do peiote
covamos a barriga & ramos

a cincia explicou-me que minha euforia era produzida por um


alcalide, mas de um ponto de vista mais verdadeiro sabia que era eu
o responsvel por aquela euforia, e no o fato de haver ingerido uma
certa planta mais verdadeiro, sse ponto de vista, porque s o
momento presente verdadeiro

minha personalidade, durante o peiote, pode ter sido afetada pela


influncia do grupo na sua simplicidade & espontaneidade, ela se
assemelha personalidade de um esquizofrnico, sem a

Esicose (vejam wilhelm reich, character-analysis 3.a ed. cap. 16; itz
peters, the world next door; lannie madison, no livro de norman mailer
barbary shore; d.j. na histria de truman capote the headless hawk; esme
no livro de william gaddis the recognitions todos sses excelentes
livros) mais semelhante ainda a sally, no fascinante livro de morton
prince The dissociation of personality (1908) histria semelhante a 3
faces of eve, sally uma segunda personalidade que vive no interior de
christine beauchamp sally uma jovem alegre, infantil e
despreocupada porque ela pode perder o sentido do tato tda vez que
fecna os olhos, "nunca tem fome ou sde" & "no conhece o significado
das palavras fadiga, dor ou doena" (pags. 147-149)

E
eiote o oposto da seriedade, pelo menos da minha forma abitual de
seriedade no me preocupei em ler & escrever no via graa nisso
certa vez sentei-me para escrever & rabisquei infantilmente num
pedao de papel "Meu nome Jack Green tenho 6 anos de idade" mas
mesmo isso dava trabalho & comecei a desenhar linhas onduladas se
algumas pessoas sentiam-se deprimidas, procurava anim-las, em vez
de "respeitar" a tristeza delas se no era bem sucedido, tentava o
mesmo com outras pessoas

51
embora evitando assuntos literrios, falava & pensava muito melhor
do que habitualmente com bom senso! muitas vzes meus
pensamentos eram muito simples & decorriam diretamente das
experincias do momento, sem nenhum trao de frieza ou raciocnio
era um alvio poder utilizar minha intuio penetrante para ter uma
resposta certa de uso imediato & no para descobrir alguma idia
engenhosa que no me serviria naquele exato momento

fui a uma festa no meu estado "normal" & vi uma ma que havia
gostado & que tinha se separado de mim ela parecia triste, infeliz
conclu que, sem minha companhia, a tristeza era uma conseqncia
necessria & inevitvel para ela pensei "coitada, ela no consegue nem
mesmo sorrir no adianta tentar conversar com ela, elo s me far
(mais) infeliz" uma semana depois, tendo tomado peiote, encontrei-a
numa outra festa com a fisionomia tristonha & desanimada apro-
ximei-me de onde ela estava, sorri para ela & ela sorriu de volta para
mim

percebi que estivera at ento envolvido num tipo de condicio-


namento & comportamento estereotipados na minha relao com as
pessoas, onde no havia lugar para sensaes novas & agradveis
percebia agora que no existiam problemas & conflitos insolveis,
mas to somente mal entendidos ridculos que odiam ser desfeitos a
qualquer momento "no existem pro- lemas, apenas equvocos" eis a
mensagem peiote depois disso caminhei pelas ruas perplexo &
agradecido

o peiote dizia-me com freqncia para no "me apaixonar" pela minha


namorada mas unicamente apreciar sua companhia & no desejar
mais nada alm disso no dava ouvidos a seu conselho, estava
demasiado habituado a no viver o momento presente, desejava
sempre mais do que tinha, a ponto de perder o contato com o que
possua, sempre esperando mais & desejando mais tudo se resolvia
mais fcilmente com pessoas que me eram indiferentes porquanto
havia menor condicionamento & hbito

algum disse brincando uma coisa que me deu a entender que minha
namorada havia me deixado essa notcia no abalou minha boa

52
disposio do momento uma vez que ela no estava presente, seu
sentimento em relao a mim deixava-me indiferente o "futuro" era
apenas uma suposio que no podia ter o menor efeito emocional
sbre mim senti contudo a dor fsica da perda apertando-me o peito

queimei acidentalmente o dedo com a ponta do cigarro no meu estado


"normal", teria me contorcido de dor, daria uma importncia
exagerada a sse acidente, perderia a esperana de me sentir
novamente bem at que a dor houvesse passado com o peiote, a dor
foi imediatamente localizada, voltei a me sentir bem, uma vez que a
dor estava limitada apenas ao dedo queimado

no concordo com o valor mstico de gurdjieff segundo o qual "as


emoes negativas" no devem ser expressadas exteriormente
concordo antes com reich que prefervel sentir medo, raiva & tristeza
do que reprimir essas emoes no porque o sofrimento seja benfico,
le s provoca uma dor maior, mas porque no adianta nos iludirmos
a respeito do que no pode ser evitado a fuga de uma emoo provoca
um sofrimento maior do que sentir a prpria emoo o mesmo que
guardar a raiva durante horas em vez de livrar-se dela em alguns
breves instantes

no peiote porm concordei com gurdjieff no havia razo para


"emoes negativas" se no podia ter alguma cjoisa que desejava, por
que haveria de me irritar quando havia outras coisas to boas quanto
aquelas que me eram oferecidas

geralmente sentia-me acanhado em tocar violo na frente de pessoas


que sabiam toc-lo bem durante o peiote, tocava sem cerimnia,
divertia-me, no pretendi ser um exmio violonista nem tive a
inteno de tocar uma msica at o fim, alis ningum estava
prestando a mnima ateno ao tocar piano,

53
instrumento que pratico normalmente senti-me algum tanto en-
tediado, era como se estivesse cumprindo uma obrigao parei de
tocar por conseguinte

sou um bom conhecedor de expresses fisionmicas durante o peiote,


lia com maior facilidade ainda as expresses do rosto, assim como
percebia melhor as personalidades dos outros atravs de seus fsicos
algumas vzes via o corpo das pessoas deformado pelas suas
enfermidades, especialmente uma espcie de gordura ou magreza
local que no tem nada a ver com o "pso normal" outras vzes, a
parte doente da pessoa parecia-me insignificante quando comparada
com o que nela funcionava bem pareceu-me que as pessoas davam
uma importncia exagerada a suas partes doentes elas viviam,
respiravam, moviam-se, no era isso o suficiente?

durante uma festa, surgiu uma discusso entre um grupo de


quadrados que tomavam conta de um acampamento para jovens &
um grupo de bomios convictos fiquei perplexo com o excesso de
individualidade que havia entre os quadrados cada um dles agia,
falava & gesticulava de maneira totalmente diferente do outro os
bomios se pareciam todos uns com os outros creio que a razo disso
est no fato dos quadrados no se conhecerem uns aos outros,
enquanto os bomios comunicam- -se perfeitamente entre si &
participam de tudo igualmente

o "cotidiano" no me pareceu tedioso as luzes do trnsito & coisas


semelhantes distraam uma parte de minha ateno que no me fazia
falta foi-me fcil manter-me distante da confuso geral

tenho o vcio de fumar & odeio essa necessidade em mim durante o


peiote, fumava tda vez que sentia falta de nicotina no organismo &
no me condenava por isso tinha uma conscincia perfeita do poder
txico da nicotina & de seus efeitos nocivos, mas me parecia que
dependia de minha vontade sofr-los ou no

54
a experincia com peiote genuna? o uso de drogas no liberta
ningum completamente mas durante o peiote eu estava realmente
livre uma contradio curiosa uma citao bem conhecida de hegel
ilustra a transformao que ocorre de uma mudana na quantidade
para uma mudana na qualidade

Assim, por exemplo, a temperatura da gua no influi a


princpio no seu estado de lquido; mas se aumentarmos ou
diminuirmos a temperatura, ocorre o momento em que o
estado de coeso se altera e a gua sofre uma transformao
que pode ser para vapor d'gua ou para o estado slido de
gelo.

(encyclopedia, obras reunidas 6:217) limites precisos de mudanas de


estado so uma parte importante da conscincia humana les explicam
a realidade subjetiva, e por conseguinte verdadeira, do satori no zen
budismo bem como aa experincia com peiote

satori um momento perfeito e infinito de iluminao interior que no


pode ser descrito com palavras a no ser atravs de comparaes com
os melhores momentos de nossa vida o monge zen passa anos
preparando-se em vista dste momento parece-me impossvel que sse
treinamento, que no atinge as tenses musculares ou as emoes
reprimidas, e que no tem nada a ver com sexo ou amor, possa
produzir objetivamente uma liberdade verdadeira, ainda que
momentnea a tenso muscular, que o obstculo para a iluminao,
no pode ser superada em um momento ou durante um momento
contudo, subjetivamente, a experincia do satori inegvelmente
genuna como o vermelho vermelho, e to indiscutivelmente valiosa
quanto o prprio amor

pode ser que a preparao exaustiva, especialmente a preparao


inconsciente praticada durante a meditao, provoque uma repentina
diviso na personalidade, a qual sentida como uma sbita unidade a
maioria das enfermidades humanas so invisveis, so inconscientes o
que est prximo superfcie (mais prximo da natureza do ser & dos
sintomas) pode sofrer uma diviso, a parte livre junta-se a qualquer
outra que j est livre e a parte coente recalcada para o inconsciente

55
onde no mais percebida a fuga zen aos problemas da vida diria
ajuda essa operao, no existem conflitos que unem a parte doente &
sadia em um todo no-iluminado o que o monge no pode aceitar com
facilidade, le rejeita em determinado momento a diviso completa
tudo que no livre enterrado, e por conseguinte tudo que
percebido livre ste o momento do satori na minha experincia, o
peiote libera a personalidade em etapas sucessivas & bem definidas
no tinha conscincia de haver algo errado comigo at o momento em
que houve uma "mudana de estado" & tudo se acertou aps cada
etapa, o que ainda no estava livre continuava existindo, mas no era
mais visvel, logo no existia subjetivamente essa uma outra razo
para no intervir conscientemente com os efeitos do peiote prefervel
deixar que corram espontaneamente

aps 2 meses de experincia comecei a relutar mais & mais em tomar


peiote comeou a ter um gosto cada vez pior at que no conseguia
mais engolir tentei evitar o sabor, transformando-o em comprimidos
os efeitos porm diminuram & a felicidade deu lugar tristeza,
desintersse por mim mesmo & pelos outros tudo que restou foi uma
pequena excitao visual & um dilvio de auto-indagaes que no
me agradava nada j faz 9 meses que no tenho uma experincia
genuna com o peiote, se bem que no tenha recorrido a le com muita
freqncia

acredito que perdi os benefcios do peiote porque les ameaavam


minha personalidade doente ela encontrou os meios de se proteger
dle certos efeitos agora duram mais, mas a melhor parte da
experincia desapareceu o peiote rompe certos hbitos, que mais tarde
se refazem o que eu aprendi do peiote ainda est comigo sou um
pouco mais simples & mais sensvel

no concordo com a atitude de aldous huxley no seu livro as portas da


percepo le aprova com reservas sua experincia com peiote creio
que era uma pessoa melhor durante o peiote do que sou agora

RAY BREMSER

56
pedgio

ALTO, MAGRO, de bluso de couro e barba crescida, Ray Bremser profere


fanhosamente suas poesias beat, de imagens luxuriantes e
imaginativas, nos bares cie Nova Iorque e nas universidades. Sabe ser
custico e irnico; aprendeu o valor do sofrimento e conheceu algumas
das desonestidades do mundo ao passar seis anos em uma priso da
Nova Jersey por haver praticado um assalto mo armada. Sua
astcia anda de par com sua generosidade; ao mesmo tempo tmido
como uma sombra, com repentes de uma alegria perversa,
conseqncia talvez de uma solido c individualidade arduamente
conquistadas atrs das paredes da priso. Raramente se pode ver o
brilho de seus olhos protegidos por um eterno culos escuro. Uma
autntica assombrao enfim, ste Ray Bremser! Ms notcias nos
chegam no momento em que ste livro vai para a tipografia: Bremser
est de volta ao xadrez por ter violado sua palavra le apaixonou-se
e casou, o que evidentemente um crime contra as leis penais de uma
democracia.

zuuummm depressa demais, sim!

mais veloz do que o velocssimo Gonzalez!

zuuummm no meio da manh

corrida fantstica pelas estradas congestionadas

em direo a Delaware!

zuumm zuumm pelo Chevrolet

57
zuumm para o pedgio

para o miasma

para a arcdia

para a dvida

zuuummm

uma camioneta na frente

raios, por que no sai pelo porto nmero 6!

Mercury

o pedgio no humano! o pedgio uma chatice um nvo


impedimento senil de unio estadual um contato rompido com o
vazio!

Vejam a Nova Jersey

tda emocionada com seu pedgio!

por que no constri estradas?

58
dinamitem esses portes!

recuso-me a pagar o pedgio!

passarei pelos portes a 100 kms por hora!

Satans conhece o pedgio!

o pedgio o grande agiota!

Pound nunca perdoar o pedgio!

No gosto de ti, pedgio!

Odeio tuas tabuletas azuis & outros horrveis sinais

O Servio da Cidade no oferece vantagens!

por que vocs apoiaram Howard Johnson

cujos poemas salsichados escritos em guardanapos

realmente me apavoram?

59
uma banana para tuas tabuletas, pedgio!

uma delas diz

PARE - RETIRE UM TALO

Isso me apavora!

que significa essa tabuleta?

quem quer um talo de passagem?

Que loucura essa?!

abaixo com teu arco de concreto

morram tuas faixas brancas!

pedgio, como apostas corrida com o radar? est tirando tda a alegria
do meu thunderbird! logo vou comprar um plymouth passarei do
porto 2 para o porto 1 onde viajarei com tda calma! ou ento
comprarei sapatos & andarei a p! pedgio

duzentos & cinqenta quilmetros

de malditos faris!

60
& teu rosto no pressagia

nada de bom!

Blake previu teu advento

& destruio final!

quando h greves, contratas

os operrios que furam o movimento!

pedgio,

tu nunca te tornars uma estrela...

Viajarei pelo pas noite

passarei por cidades & estradas impedidas

esperarei nos sinaleiros

cruzarei carros de polcia & farristas com mulheres nos automveis

61
prefiro isso do que aceitar

tua chata imponderabilidade!

alis, quem faz questo de ir a Delaware?

Delaware no existe!

quem que gosta de Delaware?

Monk no gosta de Delaware!

pedgio

minha fria justa!

algum deveria derrubar-te no cho!

pedgio,

quero que tu morras, sumas, desapareas da minha frente,

toma aqui essa banana & arranca-te da

62
pedgio,

estou realmente farto de ti!

NORMAN PODHORETZ

Os Ignorantes Bomios

PODHORETZ um jovem extremamente brilhante que alcanou uma


slida posio literria muito cedo na vida talvez cedo demais;
posio significa responsabilidade, cabelos brancos e nada de
aventuras literrias.

Norman algum tanto dogmtico para sua idade, mas, seja como
fr, suas idias tm pso sem que le exagere seu prprio valor. um
homem maduro, com mulher e filhos. Suas intuies so fantsticas e
realmente penetrantes quando no se deixam cegar por preconceitos;
no caso presente, le est demasiado envolvido num ataque anti-beat,
o que limita um pouco sua capacidade crtica, mas ainda assim sua
viso aguda. ste artigo foi escrito no como de 1958.

O pequeno livro de poesias de Allen Ginsberg, intitulado "Howl", que


provocou gritos de alegria entre os jovens escritores de So Francisco,
h crca de um ou dois anos atrs, era dedicado aos seguintes autores:
Jack Kerouac ("o nvo Buda da prosa norte- americana que deu uma
ampla exibio de inteligncia em onze livros escritos na metade do
nmero de anos... criando uma prosdia bop espontnea e uma
literatura clssica original") William Seward Burroughs ("autor do
livro "Naked Lunch", um romance interminvel que vai deixar todo
mundo louco") e Neal Cassady ("autor do romance "The First Third",
uma autobiografia... que esclareceu o Buda"). At o presente momento,
a sade mental de todos foi poupada graas ao fato do livro "Naked
Lunch" no ter encontrado um editor^1) Talvez no tenhamos tambm
a oportunidade de saber o que o Buda aprendeu lendo a autobiografia

63
de Neal Cassady, mas, graas s editoras Vicking e Grove, dois
clssicos originais de Kerouac foram revelados ao mundo: so

( 1 ) J encontrou: a Olympia Press cm Paris. S K- les os romances On


The Road e The Subterraneans. Quando On The Road apareceu no ano
passado, Gilbert Milstein comemorou o acontecimento no jornal New
York Times, declarando tratar-se de uma "ocasio histrica"
comparvel publicao do romance The Sun Also Rises, de
Hemingway, em 1920. Antes mesmo do romance ser publicado,
divulgou-se a notcia de que Kerouac era o porta-voz de um nvo
grupo de rebeldes e bomios que se denominavam a si mesmos a
gerao beat; logo depois, seu rosto fotognico (de barba crescida,
naturalmente, com os cabelos prtos e brilhantes caindo sbre a testa)
foi reproduzido em vrias revistas de grandes tiragens. Na mesma
ocasio, Kerouac deu entrevistas a canais de televiso e foi
apresentado em uma boate de Greenwich Village, em Nova Iorque,
onde, maneira de So Francisco, leu trechos de sua prosdia bop
espontnea com o acompanhamento de uma msica de jazz.

Embora o programa na boate tenha sido um fracasso, seu livro


On The Road vendeu o bastante para permanecer durante algumas
semanas na lista dos best-sellers. O que no de admirar. Os norte-
americanos tm verdadeira mania de documentos representativos de
um grupo ou de uma mentalidade, e no podia haver nada mais
fascinante, em nossa Idade da Sociologia, do que um livro que se dizia
o porta-voz da juventude. (O fato de Kerouac estar com crca de trinta
e cinco anos no entrou em cogitao). Acredito alm disso que o
aparecimento da gerao beat foi recebido com um suspiro de alvio
por um pblico que se sentia importunado pela excessiva
respeitabilidade e "maturidade" da literatura que surgiu depois da
guerra. Em lugar dos magros, calvos e dignos autores que escreviam
versos irnicos com uma das mos enquanto com a outra trocavam a
fralda do beb, surgiu repentinamente uma juventude irrequieta,
rebelde, cheia de vida. E por mais que a bomia no seja
especialmente apreciada em nossos dias, sua imagem exerce ainda
uma poderosa fascinao, sobretudo nos bairros afastados e pobres
onde vive uma populao de homens e mulheres que no aceitam de
bom grado sua condio social de conformistas, vendo na bomia uma
forma de herosmo diante da vida. essa, alis, a idia dominante do
romance Marjorie Morningstar convencer os jovens casais que
residem nos subrbios das grandes capitais que a condio dles
bem superior a dos habitantes aparentemente privilegiados de
Greenwich Village, os denominados luftmenschen (folgados). O fato
mesmo de Herman Wouk ter se esforado tanto para tornar esta idia

64
convincente uma boa indicao da descrena existente a respeito
dela.

primeira vista, pelo menos, a atitude bomia presente no


romance On The Road deveras atraente. Vemos um bando de jovens
entusiastas cruzando o pas em tdas as direes (a maior parte das
vzes pegando carona de carros e caminhes, outras vzes em seus
prprios carros usados), organizando festas "terrveis" em Nova
Iorque, Denver e So Francisco, vivendo de pouqussimo dinheiro
(fundos educativos para filhos de combatentes, uma nota
providencial de cinqenta dlares de uma tia generosa, biscates
eventuais como datilgrafo, apanhador de fruta, guarda de
estacionamento), conversando entusisticamente sbre amor, Deus e
salvao, fumando marijuana (mas nunca tomando herona ou
cocana), ouvindo em transe msicas de jazz tocadas em pequenos
locais abarrotados de gente e dormindo, sem nenhum problema, com
jovens lindas e disponveis. Vez por outra h uma referncia
melancolia e tristeza, mas o clima caracterstico de Kerouac o de
exuberncia:
Paramos um momento na estrada para comer alguma coisa. O cowboy foi ver se
consertava a cmara de ar do pneu sobressalente, enquanto Eddie e eu nos sentamos
para tomar nossa merenda. Foi quando ouvi uma enorme gargalhada, a maior
gargalhada dsse mundo e eis que me aparece um rstico fazendeiro dos velhos tempos
do Nebraska acompanhado de um bando de rapazolas. Podia-se ouvir seus berros
cristalinos e rudes atravessando o campo, atravessando tda aquela extenso de terra
cinza que o mundo dles. Todos les em cro riam com o fazendeiro. Um tipo curioso,
que no se preocupava com nada e tinha o maior respeito pelos outros. Pensei comigo,
Puxa, veja como sse homem ri. Isso o Oeste, eis-me no Oeste. le aproximou-se
esfuziante, gritando por Maw, a mulher, que fazia as tortas mais deliciosas do
Nebraska, e eu fui servido com uma fatia que tinha uma montanha de sorvete em cima.
"Maw, v me buscar alguma coisa para comer antes que eu coma as minha mos ou faa
alguma besteira parecida." E le sentou-se num banco enquanto gargalhava sem parar
hahaha hahaha. "E ponha tambm uma colher de feijo no prato!" berrou le para a
mulher. Era o esprito do Oeste que estava sentado ao meu lado. Desejei conhecer sua
vida inteira e saber o que mais le fizera durante todos sses anos alm de gritar e rir
daquele jeito. Iuuuu, exclamei comigo mesmo, e foi quando o cowboy voltou com o
pneu e partimos em direo a Grand Island

65
.O entusiasmo de Kerouac pelo fazendeiro do Nebraska faz parte de uma
idia sua segundo a qual a origem da vitalidade e das virtudes humanas
encontra-se entre os indivduos simples do campo e os grupos urbanos da
classe pobre (negros, vadios e prostitutas). Segundo le, a vida em Nova
Iorque a de "milhes e milhes de pessoas que se agitam incessantemente s
voltas com o dinheiro... agarrando, tomando, dando, suspirando, morrendo,
at o momento de serem enterradas naqueles horrendos cemitrios que esto
situados depois de Long Island", enquanto que o restante da Amrica do
Norte povoado quase que exclusivamente pelos eleitos. Essa sua atitude tem
muito em comum com uma superstio popular generalizada, se bem que por
outros aspectos ela se assemelha opinio de Nelson Algren segundo a qual
os vadios, as prostitutas e os marginais viciados em drogas so gente mais
interessante do que os funcionrios dc escritrio ou os operrios em geral. A
diferena entre um e outro, est no fato de que Algrcn detesta a
respeitabilidade da classe mdia por razes polticas e morais a classe
mdia explora e persegue os mais desfavorecidos enquanto que Kerouac,
que inteiramente apoltico, parece acreditar que a respeitabilidade um
indcio de morte espiritual e no de corrupo moral. "As nicas pessoas que
contam para mim," diz Sal Paradise, o narrador de On The Roacl, "so os
loucos, os loucos pela vida, os loucos por uma conversa, os loucos para serem
salvos, que desejam tudo ao mesmo tempo, os que nunca bocejam ou dizem
alguma coisa banal, mas ardem, ardem, ardem maneira de fabulosos fogos
de artifcio que explodem como aranhas coloridas por entre as estrias..." Essa
t remenda nfase na intensidade emocional, a afirmao de que o estado de
euforia provocado por excitantes a mais desejvel de tdas as condies
humanas faz parte integrante da ideologia da gerao beat, e a distingue
radicalmente do esprito bomio do passado.

19.1
A bomia de 1920 representava uma negao do provincialis- mo, do
patriotismo excessivo c da hipocrisia moral da vida norte- americana vida
essa que, de fato, era ainda, nas suas caractersticas culturais, a de uma
pequena cidade do interior. A bomia, por conseguinte, era um movimento
criado em nome da civilizao; seus ideais eram a inteligncia, a cultura e os
refinamentos espirituais da existncia. A figura literria tpica de 1920 era a do
homem do centro-oeste (fsse le Hemingway, Fitzgerald, Sinclair Lewis,
Eliot, Pound) que havia fugido de sua cidadc natal para Nova Iorque ou Paris
cm busca de uma forma de vida mais livre, mais expansiva e esclarecida do
que era possvel nos estados do Ohio, Minnesota ou Michigan. O radicalismo
poltico que forneceu o clima caracterstico do movimento bomio de 1930 no
alterou fundamentalmente o aspecto urbano e cosmopolita do de 1920. No que
tinha de melhor, o radicalismo de 1930 estava marcado por uma profunda
seriedade intelectual e seu objetivo era tuna sociedade na qual os frutos da
civilizao seriam repartidos de forma mais equitativa por um nmero cada
vez maior de pessoas at que finalmente por todos.

O esprito bomio de 1950 algo totalmente diverso. le inimigo da


civilizao, adora o primitivismo, o instinto, a energia, o "sangue". Seus raros
aspectos intelectuais limitam-se a algumas doutrinas msticas, filosofias
irracionais e psicologia reichiana de esquerda. A nica forma de arle que os
novos bomios praticam o jazz, especialmente na sua variedade cool. A
predileo que revelam pela linguagem bop uma forma de demonstrar
solidariedade com a primitiva vitalidade e espontaneidade que encontram no
jazz. Desprezam, por isso, a linguagem coerente e racional, uma vez que,
sendo um produto da mente, segundo les uma forma de morte. Ser racional
admitir que no se possui sentimento (pois como poderiam os sentimentos
autnticos serem expressos por uma linguagem correta?), confessar-se
incapaz de maravilhar-se diante de tudo (Kerouac maravilha-se diante de
tudo dizendo "ba!"), admitir que se provvelmente impotente.

Em uma das extremidades da linha, sse frenesi transforma-se em violncia e


criminalidade, enquanto a parte central dominada pelo vcio de txicos e pela
loucura. A poesia de Allen Ginsberg, com sua lgubre orgia apocalptica de
"jovens bomios com cabeas de anjo", revela o lado mais sombrio do nvo
esprito bomio. Kerouac mais ameno. le no demonstra grande interesse
pela violncia. A criminalidade que admira a do tipo inofensivo. O heri do
romance On The Road, Dean Moriarty, possui uma curiosa flha corrida: "Dos
onze aos dezessete anos, le passou a maior parte do tempo em refonnatrios.
Sua especialidade era roubar automveis, correr atrs de garotas que saam das
universidades tarde, lev-las para lugares distantes, possu-las e voltar para a
cidade onde dormia em qualquer banheira de hotel". A criminalidade de Dean,
porm, como o autor nos confessa, "no era do tipo amarga ou revoltada; pelo
contrrio, era o resultado de um excesso de vitalidade, de uma alegria tipica-
mente norte-americana, era bem oeste, como o vento oeste, uma ode s
plancies americanas, algo nvo, h muito profetizado, h muito esperado (le

67
s roubava carros com a inteno de dar alegres passeios)". De fato, os bomios
que encontramos nos romances de Kerouac comportam-se geralmente dentro
da lei. No romance The Subterraneans, um bando de rapazes embriagados
rouba uma carrocinha durante a noite e deixam-na em frente ao- edifcio onde
mora um conhecido dles. O narrador da histria os critica severamente por
"ameaarem a tranqilidade do meu amigo". Quando Sal Paradise (no romance
On The Road) furta alguns alimentos da cozinha de um grupo de trabalhadores
itineran- tes, junto aos quais trabalhou algum tempo como guardador de bar-
raca, o narrador comenta: "De repente me ocorreu que todo mundo na Amrica
nasce com esprito de ladro" o que , evidentemente, uma maneira bem
curiosa do autor desculpar o roubo cometido como sendo uma travessura de
criana. Seja como fr, Kerouac sente-se atrado pela criminalidade, o que nos
parece um fenmeno mais significativo do que le tentar pr um freio nos seus
impulsos destrutivos

68
.O sexo ocupou sempre um lugar privilegiado na bomia: fazer amor foi
sempre uma das mais enfticas demonstraes de liberdade bomia frente ao
convencionalismo dos padres morais burgueses; isso inclui, naturalmente, a
negao tcita do conceito social segundo o qual o sexo s permitido no
casamento e com a finalidade da procriao. Ao mesmo tempo, levar uma
vida sexual "promscua" correspondia a afirmar a validade da experincia
sexual independente de quaisquer outros fatores. O "significado" do sexo para
o esprito bomio, por conseguinte, era ao mesmo tempo social e individual,
um elemento bsico na ideologia bomia da civilizao. Ainda uma vez, existe
um contraste acentuado entre essa concepo anterior e a da atual gerao
beat. Os exemplos de atividade sexual ocorrem abundantemente nos dois ro-
mances de Kerouac, anteriormente citados. Dean Moriarty uma "nova
espcie de santo norte-americano" e isso em parte graas sua prodigiosa
vitalidade sexual: le pode satisfazer a trs mulheres simultaneamente e est
sempre disposto para o amor (certa vez le possuiu uma jovem no banco
traseiro do carro enquanto o pobre Sal Paradise tentava dormir no banco da
frente). Sal, por outro lado, no fica atrs, e se bem que le no seja sempre to
bem sucedido quanto o grande Dean, seu comportamento sexual dos mais
brilhantes. Ocorre-me de memria uma aventura com uma jovem em Denver,
com uma outra num nibus e com uma terceira em Nova Iorque. Isso no
quer dizer, evidentemente, que no ocorram outras muitas aventuras pelo
livro afora. A herona do romance The Subterraneans, uma jovem preta de
nome Mardou Fox, troca freqentemente de parceiros dentro do mesmo
grupo, voltando mais tarde ao primeiro ("sse grupo foi no seu tempo
bastante incestuoso"), e o autor nos d a entender que no h nada de muito
inusitado nessas mudanas. O tema principal, porm, dessas situaes sexuais
no afirmar uma maior liberdade frente s proibies sociais comuns (exceto
no que diz respeito homossexualidade, prato favorito de Ginsberg: entre "os
melhores espritos" da gerao de Ginsberg que foram destrudos pela
Amrica do Norte encontram-se aqules "que se deixaram pelos sagrados
motociclistas e gritavam de alegria, que amaram e foram amados por stes
serafins humanos que so os marinheiros, carcias do Atlntico e do Mar de
Caribe." O sexo nos romances de Kerouac vem sempre acompanhado de
conversas interminveis a respeito de se criar laos permanentes de amizade
("embora eu me sinta tremendamente atrado sexualmente por ela", diz o
poeta Adam Moorad no romance The Subterraneans, "eu realmente no quero
ir adiante com sse caso no apenas por essas razes mas sobretudo porque, e
essa a razo principal, se eu me envolver com uma mulher agora quero que
a coisa seja realmente permanente, sria e duradoura, e no estou em
condies no momento para ter uma relao dsse tipo com ela"). Fora isso, os
livros contam muitos casos de separaes e unies, e ocorrem tantos
casamentos e divrcios no romance On The Road como nos meios
cinematogrficos de Hollywood. (Talvez seja conseqncia do clima quente da
Califrnia). Ouam o que diz Sal Paradise: "Durante todos sses anos procurei
a mulher com quem gostaria de casar. No encontrava uma jovem sem pensar
comigo: Que espcie de mulher ela ser?" Mais interessante ainda a recusa
de Kerouac em admitir que um de seus personagens, qualquer que le seja,
faa amor de maneira devassa ou lasciva. Por mais casual que seja a aventura
ertica, ela est sempre ligada a sentimentos de ternura em relao mulher.

69
Sal, por exemplo, tem um caso com Rita Bettencourt, em Denver. le a havia
conhecido pouco antes. "Levei-a para meu quarto aps uma longa conversa,
no escuro, na sala da frente. Ela era uma jovem delicada, simples e verdadeira
[evidentemente] e tremendamente assustada com relao ao sexo. Disse para
ela que era lindo. Gostaria de provar isso a ela. Ela deixou, mas eu estava
demasiado impaciente e no provei nada. Ela soluava no escuro. "O que voc
espera da vida?" perguntei. Costumava fazer essa pergunta a tdas as jovens
que encontrava." Essa cena me parece bastante tocante. Sobretudo porque o
narrador tem tanto mdo do sexo quanto sua ingnua companheira. le tem
mdo de um fiasco e preocupa-se apreensivamente com seu desempenho. Isto
porque o desempenho sexual o alvo mirado desempenho e "bons
orgasmos". So stes os primeiros deveres do homem e as nicas obrigaes
da mulher. Tudo isso revela, como no caso citado.

uma ansiedade sexual de propores gigantescas ansiedade essa que surge


nitidamente no romance The Subterraneans, onde se narra a histria de amor
ocorrida entre o jovem escritor Leo Percepied e a jovem mulata Mardou Fox.
Por mais que o autor afirme o contrrio, o livro no mais do que uma
interminvel agonia de mdo e tremor sexual:
Passei noites sem conta e horas sem fim preparando-a e finalmente aconteceu,
rezei para que isso acontecesse, podia ouvi-la respirando mais forte, esperei contra a
esperana que desta vez ela seria bem sucedida quando um rudo no corredor (ou
uma algazarra de bbedos no quarto pegado) distraiu-a, ela perdeu a vontade e riu
para mim mas quando ela conseguiu finalmente terminar, ouo-a soluar,
choramingar e o sobressalto provocado pelo orgasmo feminino intenso faz com que
ela chore como uma criana, gemendo dentro da noite, at que quando tudo passa ela
lamenta "Ah por que no durou mais" e "Quando vamos terminar juntos?" "Logo,
logo, tenho certeza," disse para ela, "estamos chegando cada vez mais perto"

Bem primitivo, bem espontneo, bem elementar, bem beat.

Para os novos bomios, as amizades e os casos de amor entre raas


representam aparentemente o mesmo papel de rebeldia social que o sexo
representava nos crculos bomios do passado. Os brancos e os prtos juntam-
se livremente numa base de completa igualdade humana, sem nenhum
vestgio de hostilidade racial. E h mais ainda: no somente o problema racial
inexiste nestes encontros, como nota-se uma verdadeira adulao dirigida aos
"prtos felizes, sinceros e ardentes da Amrica":
No crepsculo azulado caminhava com todos os msculos do corpo doloridos por
entre as luzes das ruas Vinte e Sete e Welton, no bairro prto de Denver, desejando
ser um prto, pensando que o melhor que o mundo dos brancos havia me oferecido
no era bastante ardente para mim, no era bastante vida, alegria, emoes, msica,
no era bastante noite... Desejei ser um mexicano de Denver, ou mesmo um pobre
japons sobrecarregado de trabalho, tudo menos ser o que me fazia sentir to
amargurado, um "homem branco" desiludido. Durante minha vida inteira tivera
ambies de branco... Passei em frente s casas dos mexicanos e dos prtos; vozes

70
melodiosas se ouviam, vez por outra surgia, por uma porta entreaberta, o joelho
castanho de uma jovem misteriosa e sensual. Por trs de roseiras apareciam os rostos
escuros dos homens. Crianas pequenas estavam sentadas, como sbios, em velhas
cadeiras de balano.

Os prtos devem ter ficado surpresos ao saber que so to felizes e


contemplativos. No tenho conhecimento de uma outra pintura mais idlica da
vida dos prtos desde a poca em que certos ideologistas do sul tentaram
convencer o mundo que a vida dos escravos, nas antigas plantaes, oferecia
tda espcie de conforto e bem estar. De qualquer forma, o amor de Kerouac
pelos prtos e outros grupos tnicos de cr est ligado sua adorao por tudo
que primitivo; le no decorre em absoluto de atitudes sociais radicais. H,
porm, uma curiosa ironia no fato dle considerar os prtos indivduos mais
primitivos do que os brancos, porquanto, como observou agudamente Ned
Polsky, isso corresponde a "uma forma invertida de manter o prto no seu lu -
gar." Mas mesmo admitindo que os prtos norte-americanos, graas a posio
que ocupam em nossa cultura, preservaram um certo grau de espontaneidade
primitiva, o ltimo lugar para se encontrar uma prova disso entre os negros
bomios. A bomia, antes de tudo, a oportunidade para o prto entrar no
mundo dos brancos, e nenhum prto bomio gostaria de ser identificado com
os prtos do Harlem ou da Dixieland. O nico personagem prto importante
nos dois romances de Kerouac Mardou Fox, e ela to primitiva quanto o
prprio Wilhelm Reich.

A grande verdade que o primitivismo da gerao beat serve acima de


tudo como pretexto para uma atitude tipicamente anti-intelectual. Diante
dsse sentimento to amargo e revoltado, a repulsa que os norte-americanos
manifestam geralmente pelos intelectuais pedantes assume ares de delicadeza.
bem verdade que Kerouac e seus companheiros consideram-se intelectuais
("les so tremendamente intelectuais, sabem tudo sbre Pound sem serem
pretensiosos e no passam os dias falando a respeito disso"), mas essa
declarao no passa de uma atitude. A prova aqui est: eis um exemplo
verdadeiro do que Kerouac considera uma linguagem inteligente "formal,
brilhante e inteira, sem nenhuma tediosa intelectualidade":
Deixamos para trs na estrada um menininho que jogava pedras nos carros que
passavam. "Veja isso," disse Dean. "Um dia sse menino vai atirar uma pedra no
parabrisa de um carro, o motorista vai sofrer um acidente e vai morrer e tudo isso
por causa dsse gurizinho. Voc percebe o que eu digo? Deus existe sem dvida
alguma. Enquanto viajamos nessa estrada estou abso- latamente convencido de que
tudo existe para nossa proteo que mesmo voc, guiando sse carro, preocupado
com o volant e . . . o carro conserva a direo por si mesmo e voc no sair da estrada,
de forma que posso dormir sossegado. Alm disso ns conhecemos a America,
estamos em casa; posso ir em qualquer lugar da Amrica e conseguir o que quiser
porque em tda parte sempre a mesma coisa, conheo as pessoas, sei o que elas
fazem. Damos, recebemos e prosseguimos nosso caminho em meio a uma ternura
incrivelmente complicada, ziguezagueando para todo os lados".

71
O leitor entendeu que o autor quiz dizer? le formal, brilhante e inteiro. Sem
nenhuma tediosa intelectualidade; inteiramente despretensioso. "No havia
nenhuma clareza nas coisas que le dizia mas o que pretendia dizer era de
certa forma puro e claro." De certa forma. Evidentemente. Se o que le
pretendia dizer houvesse sido cuidadosamente pensado ou precisamente ex-
presso, o resultado teria sido cansativo e pretensioso e sem dvida de certa
forma obscuro e claramente impuro. Mas enquanto le profere essas
banalidades com sua voz de gago, sem prestar nenhuma importncia ao
significado que possam ter, atento rnica- mente aos rudos que se originam na
sua alma (uma vez que no podem ter se originado na sua mente), le
aprovado nos testes da verdadeira intelectualidade.

Analisemos agora a prosdia espontnea bop de Kerouac. Essa prosdia


no deve ser confundida com a prpria linguagem bop que possui um
vocabulrio to limitado (o Ingls Bsico um tesouro de palavras comparado
com ela) que no daria para escrever um recado para o leiteiro, muito menos
um romance. Kerouac, no entanto, permanece fiel ao esprito da gria hipster,
embora faa, de quando em quando, incurses em territrio inimigo (isto , na
lngua inglsa), revelando uma total incapacidade de se comunicar
normalmente por meio das palavras. Seu recurso habitual, quando necessita
descrever alguma coisa, consiste em recorrer incansavelmente mesma meia
dzia de adjetivos que conhece: "o mximo", "tremendo", "louco", "doido",
"fantstico" e talvez mais um ou dois. Quando alguma coisa mais do que
simplesmente louca, doida ou fantstica, ela passa categoria de 'realmente
louca", "realmente doida" ou "realmente fantstica". (Tdas as quantidades
acima de trs so definidas como "inumerveis", que uma palavra usada
"inumerveis" vzes no seu romance On The Road, e no to inumervelmente
no The Subterraneans). A mesma pobreza de recursos torna-se evidente tda
vez que Kerouac introduz uma situao que envolve sentimentos, mesmo
quando no apresentam nenhuma complexidade especial. Sua ttica usual
consiste em esconder-se atrs de lugares comuns, dirigindo aluses ao leitor.
Um exemplo: "Olhei para le; meus olhos estavam midos de
constrangimento e lgrimas. le ainda olhava para mim. Agora seus olhos
estavam inexpressivos e olhavam atravs de mim... Algo estalou dentro de ns
dois. Comigo foi o sbito intersse por um homem que era alguns anos mais
moo do que eu, cinco anos, e cujo destino estava ligado ao meu durante os
ltimos anos; o que ocorreu com le s fiquei sabendo ao certo pelo que le fz
mais tarde." Se o leitor no tem nenhuma dvida do que trata essa cena, seja
antes, durante ou depois, pode dar-se por feliz de no ser um quadrado.

Levando-se em conta seus aspectos populares, o estilo do romance On


The Road folclrico e lrico. A prosa do The Subterraneans, entretanto,
assemelha-se a uma pardia do que h pior em Faulkner. A diferena
principal consiste no fato de que Faulkner geralmente produz uma prosa ruim
quando le se deixa levar pelo impulso de rebuscar os lugares comuns,
enquanto que Kerouac se perde exatamente quando tenta uma certa "esponta-
neidade" de linguagem. Rigorosamente falando, a espontaneidade uma
qualidade do sentimento e no da linguagem escrita; quando denominamos

72
espontneo um trecho literrio, procuramos traduzir nossa impresso de que o
autor encontrou as palavras exatas sem nenhum esforo especial; que no
lanou mo de "artifcios" ou intenes premeditadas, que seus sentimentos se
expressaram livremente, como se houvessem fluido da pena no momento da
composio. Kerouac acredita, aparentemente, que ser espontneo significa
dizer tudo que lhe passa pela cabea, no importa a ordem ou a desordem em
que as palavras ocorram. No so as palavras exatas que le procura (mesmo
quando as conhece perfeitamente), mas as primeiras palavras que surgem, ou
pelo menos as palavras que melhor traduzam a emoo diretamente, sem a
intelectualizao, palavras que brotam diretamente da "vida" e no da
"literatura", que saem do estmago e no da mente. (A mente, esto
lembrados, o anjo da morte). Por outro lado, a prosa que surge fcil e
"espontaneamente" como resultado de sentimentos fortes, no nunca vaga;
muito pelo contrrio, ela sempre aguda e precisa porque est na natureza
dos sentimentos fortes serem provocados por objetos especficos. Essa idia de
que um entusiasmo confuso, generalizado e permanente a marca de uma
grande sensibilidade e permeabilidade, uma concepo inteiramente
fantstica, uma idia to absurda quanto imaginar que a embriaguez ou a
toxicomania so estados de perfeito vigor emocional. O resultado de um tal
entusiasmo abolir completamente a realidade exterior. Se um posto de ga -
solina provoca o mesmo sentimento de pasmo e admirao que as Montanhas
Rochosas de se supor que tanto um quanto o outro perderam sua realidade
prpria. A idia que Kerouac faz do sentimento to absurda que somente um
solipsista acreditaria nela c um solipsista, convm lembrar, o indivduo
que no se relaciona com nada exterior a si mesmo.

O solipsismo a caracterstica mais fundamental da literatura de


Kerouac. Seus romances On The Road e The Subterraneans so to
evidentemente autobiogrficos que quase impossvel analis-los como fico.
Se a espontaneidade fsse realmente uma tentativa de desfazer a distino
existente entre vida e literatura esses dois livros seriam um testemunho
inegvel disso. "Quando nos dirigamos para o carro, Babe escorregou e caiu
com o rosto no cho. A pobrezinha estava exausta. O irmo dela, Tim, e eu
ajudamo-la a levantar-se. Entramos no carro; Major e Betty se reuniram a ns.
Assim teve incio a triste viagem de volta para Denver." Babe uma ma que
mencionada raramente durante o decorrer da histria; no sabemos porque
ela estava exausta nessa ocasio, e mesmo que soubssemos isso no nos
esclareceria nada, uma vez que no h nenhuma razo para sua presena no
romance. Mas Kerouac nos conta que ela caiu de bruos no cho quando se
dirigia para o carro. impossvel acreditai que Kerouac tenha imaginado sse
episdio, que sua imaginao haja criado um mundo suficientemente real para
incluir elementos inteiramente gratuitos. E se ste fsse o caso, Babe teria
adquirido vida como um ser humano. Mas ela apenas um nome: Kerouac
no nos diz mais nada a seu respeito. Ela entra na histria unicamente porque
a irm de um dos amigos de Kerouac estava presente quando le fz uma
viagem para Central City, no Colorado, e se ela escorrega no romance
porque ela escorregou de fato aqule dia quando se encaminhava para o carro.
Podemos dizer o mesmo de quase todos os outros acidentes que ocorrem nos
dois romances de Kerouac. Tudo acontece acidentalmente. Nada possui uma
razo dramtica para acontecer. Sal Paradise encontra com tais e tais pessoas

73
na estrada, com algumas simpatiza, com outras (mais raramente) antipatiza;
trocam algumas palavras, bebem uma garrafa de cerveja juntos, e depois se
despedem. Tudo bem desinteressante e comum, mas para Kerouac e sempre
o mximo, fantstico, incrvel. A voz que se ouve nestes dois livros a de um
homem exclamando a todo instante que le est vivo, enquanto oferece aos
leitores as experincias banais que lhe ocorreram realmente na vida. Uma vez
eu fiz isso, outra vez fiz aquilo (diz le) e, juro por Deus, tudo isso teve impor-
tncia para mim. Teve importncia porque senti. Se a experincia em questo
teve tanta importncia para le, ento por que le no consegue explicar a
razo porque foi importante, e porque insistir nesse caso?

Acredito que o culto da gerao beat pelo que primitivo e espontneo


mais do que um mero disfarce de sua hostilidade contra a inteligncia; le
decorre sobretudo de uma pattica pobreza de sentimentos. Os membros e os
adeptos da juventude beat so rebeldes, como se afirma, mas a revolta dles
no diz respeito s condies sociolgicas ou histricas da classe mdia, do
capitalismo ou at mesmo da respeitabilidade humana. Ela antes a revolta de
uma espiritualidade subdesenvolvida e de uma alma atrofiada ela o
patrimnio de jovens que no sabem pensar corretamente e que odeiam todos
aqules que o fazem; jovens que no conseguem superar o marasmo do
egosmo e que por isso constrem definies de sentimento de onde excluem
todos os demais sres humanos que conseguem viver, mesmo que
miservelmente, em um mundo real; jovens que se sentem angustiados at a
morte com a pungente ansiedade sexual fomentada pela Amrica do Norte
na sua promessa eterna de um erotismo glorioso e na sua desdenhosa negao
de um relacionamento ertico real; jovens que sonham com um orgasmo
perfeito e inatingvel que compense todos os fracassos sexuais do mundo real.

H algum tempo atrs, Norman Mailer sugeriu que o movimento hipster


representa o "primeiro passo em direo segunda grande revoluo em nosso
sculo, a revoluo que no caminha para a frente, em vista da ao e de uma
distribuio de bens mais racional e justa, mas que caminha para trs, em
direo ao ser e aos segredos da energia humana. Para dizer a verdade, irrito-
me violentamente tda vez que ouo algum falar sbre instinto, ser e
segredos da energia humana. Tdas essas idias conduzem geralmente ao
mesmo resultado: aceitar a prtica da violncia. A questo saber se a pessoa
que defende esse ponto de vista admira o fato de algum dar uma surra no
outro ou enterrar-lhe uma faca na barriga. A histria e especialmente a
histria dos tempos modernos ensina-nos que existe uma relao estreita
entre ideologias de vitalidade primitiva e uma certa propenso a considerar a
crueldade e o derramamento de sangue com complacncia, seno com um
inteiro entusiasmo. A razo pela qual cito stes exemplos que a gerao beat
me surpreende como possuidora do mesmo esprito que anima os jovens
selvagens com bluses de couro que tantos vandalismos cometeram nos
ltimos anos com seus canivetes e armas de fogo. O que pensa Norman Mailer
desses delinqentes? O que pensa le do bando que apedrejou um menino de
nove anos at le morrer? Isso ocorreu no Central Park, em pleno dia, alguns
meses atrs. Ou do outro adolescente que ateou fogo em um pobre velho

74
adormecido em um banco, perto do cais do Brooklyn num dia de vero? Ou
daquele que agarrou uma criana aleijada e a esfaqueou dezenas de vzes,
barbaramente, mesmo depois dela estar inteiramente morta? isto que le
entende por liberao dos instintos e pelos mistrios do ser? Talvez seja. Pelo
menos le diz, em outro trecho de seu artigo, que dois marginais de dezoito
anos que mataram o vigia de uma confeitaria estariam com isso assassinando
uma instituio, cometendo um ato que "viola a propriedade privada", idia
essa que me pareceu terrivelmente assustadora do ponto de vista moral e . que
indica para onde pode levar a ideologia do hipsterism. Sou levado a acreditar
que existe uma relao direta entre a apatia vital da classe mdia norte-
americana e a expanso da criminalidade juvenil durante a dcada de 1950,
mas creio igualmente que o crime juvenil pode ser explicado em parte como o
ressentimento dos jovens contra os sentimentos normais, alm da tentativa de
negar o mundo da inteligncia, tentativa essa comum a Kerouac e Allen
Ginsberg. Mesmo o ambiente relativamente ameno dos livros de Kerouac pode
facilmente passar brutalidade, uma vez que existe um grito abafado nesses
livros: "Matem os intelectuais que falam coerentemente, matem as pessoas que
ficam sentadas durante cinco minutos a fio, matem os indivduos que se
apaixonam seriamente por uma mulher, por um trabalho, por uma idia."
Como pode algum pretender, em perfeito juzo, que isso tem alguma coisa a
ver com a propriedade privada ou com a classe mdia? No. O que a gerao
beat visa antes do mais afirmar a superioridade da incoerncia sbre a
preciso, da ignorncia sbre a inteligncia, enquanto declara que o exerccio
da mente e a racionalizao so formas de morte. Da mesma forma, essa
gerao pretende justificar os atos srdidos de violncia na medida em que so
cometidos em nome do "instinto". Ela responsvel ainda pela glorificao
deplorvel do adolescente na cultura popular norte-americana. Sua
responsabilidade principal, cm outras palavras, consiste em haver criado o
antagonismo entre estar-se contra ou a favor da inteligncia.

WILLIAM BURROUGHS

Dois Episdios do Livro "The Naked Lunch"

BURROUCHS uma lenda nos meios beat; serviu de guru, ou mestre, para
Kerouac e Ginsberg, esteve envolvido com narcticos, armas de fogo, vidas
humanas, conscincias humanas; em suma, um homem arrojado e temerrio
com uma genialidade fora do comum. le faz o seguinte comentrio a respeito
de sua obra: "Escrevo sbre o que est diante dos meus sentidos no momento
mesmo em que escrevo. No tenho a pretenso de fabricar uma "histria", um
"argumento" ou "continuidade". Seu romance do mundo subterrneo, do qual
apresentamos dois episdios, uma verdadeira roda-viva do mundo
moderno. Sua viso, banhada de feroz humor negro, revela aspectos de horror
tecnolgico que ultrapassam os de Orwell. Mas apesar do seu exotismo,
Burroughs mais realista do que o realismo acadmico, se bem que seu

75
desintersse em narrar uma histria seguida acarreta certas repeties no
decorrer do livro. Vigoroso nas cenas curtas, seu forte consiste em
desmascarar, com uma viso grotesca que lhe natural, os aspectos alucinados
e para alm da imaginao de nosso mundo contemporneo aparentemente
to agradvel de se habitar.

a carne preta

Tudo certo, ento?

O pequeno engraxate deu um sorriso confiante e levantou a cabea cm direo


aos olhos do marinheiro, olhos mortos, frios, submarinos, sem nenhum vestgio
de calor humano, desejo ou dio, sem nenhum dos sentimentos que o menino
conhecia em si mesmo ou nos outros, como o aroma mofado de quartos
desertos e trancados. O marinheiro examinava suas unhas com uma in-
tensidade ardente

76
.Coisa boa aqui, Gordo. Posso arrumar vinte. Mas preciso de um
dinheiro adiantado.

Para arranjar?

... no estou ainda com os vinte fininhos no blso. Mas negcio


sopa. Basta dar uma corridinha e pronto.

O marinheiro olhava para as unhas como se examinasse um mapa.

Arruma trinta. Dou dez adiantado. Essa mesma hora amanh.

Escuta, Gordo, preciso de um dinheiro agora.

D uma volta que voc arruma.

O marinheiro dirigiu-se lentamente para a praa. Um moleque balanava


um jornal no seu rosto enquanto com a outra mo lhe furtava a caneta. O
marinheiro continuou andando. Tirou a caneta do blso e partiu-a como uma
noz entre seus dedos vermelhos, grossos e musculosos. Tirou em seguida um
tubinho de chumbo do blso. Cortou uma das extremidades do tubo com uma
pequena faca curva. Um vapor negro saiu do interior e ficou suspenso no ar
como uma pele fervendo. O rosto do marinheiro se liquefz. Sua bca
espichou para frente com a forma de um tubo comprido e sorveu a penugem
negra que boiava no ar. Vibrando em seguida com um movimento peris-
tltico supersnico ela desapareceu no meio de uma exploso silenciosa e
rosa. Seu rosto voltou a entrar em foco, um foco insuportavelmente claro e
cortante, enquanto a erva amarelada que ardia devorava as ndegas
pardacentas de milhes de viciados que gritavam.

"Isso vai durar um ms", pensou consigo, consultando um espelho


invisvel.
Tdas as ruas da cidade correm por entre gargantas profundas em
direo a uma praa imensa, em forma de rim, mergulhada na escurido. Os
muros da cidade e da praa so perfurados por cubculos habitveis e por
bares, alguns com apenas poucos ps de profundidade, outros perdendo-se de
vista numa confuso de quartos e corredores.

Em tdas as alturas, existem cruzamentos de pontes, passagens estreitas,


bondinhos suspensos em cabos. Jovens catatnicos, vestidos como mulheres,
esbarram nos passantes com uma silenciosa insistncia pegajosa. Usam roupas
grosseiras de saco, velhas e gastas, e trazem os rostos exageradamente
pintados; as cres vivas da pintura cobrem marcas de batida, arabescos do
cicatrizes interrompidas e supuradas que atingem os ossos cr de prola.

Traficantes de Carne Preta, carne do gigantesco centipede aqutico


atingindo algumas vzes o comprimento de seis ps encontrado em um
caminho existente entre rochas negras e lagoas pardacentas e iridescentes,
exibem crustceos imobilizados em redutos clandestinos da praa, visveis
apenas para os Comedores da Carne...

O Caf do Encontro ocupa um lado da praa, um labirinto de cozinhas,


restaurantes, cubculos para dormir, sacadas perigosas de ferro batido e
pores que levam s salas de banho subterrneas.

Em bancos cobertos de cetim branco esto sentados nus os


Mugwumps^1) sorvendo refrescos translcidos e coloridos em canudos de
alabastro. Os Mugwumps no tm fgado e alimentam-se exclusivamente de
doces. Lbios finos, azul-prpura, cobrem os bicos de osso prto, afiados
como navalha, com os quais les se despedaam freqentemente uns aos
outros em brigas que surgem por causa dos clientes. Essas criaturas secretam,
de seus pnis eretos, um lquido que vicia e que prolonga a vida, tornando
mais lentas as funes do metabolismo. (Alis, todos os agentes que
prolongam a vida viciam na razo direta de sua eficincia). Os viciados no
lquido dos Mugwumps so conhecidos como Rpteis. Alguns dles voam por
cima das cadeiras com seus ossos flexveis e sua carne rosa-prto. Por trs de
cada uma das orelhas dos Rpteis sai um leque de cartilagem verde, coberto
de cabelos ocos e erteis com os quais les absorvem o lquido. Os leques que
so balanados de tempos em tempos por correntes invisveis servem tambm
para uma forma de comunicao conhecida apenas dos Rpteis.

Durante os Pnicos bienais, quando a andrajosa e escorchada Polcia do


Sonho devasta a cidade, os Mugwumps refugiam-se nas cavidades mais
profundas das paredes, fecham-se no interior dos cubculos da massa argilosa
e permanecem durante semanas em bioestase. Nesses dias de terror cinza, os

78
Rpteis voam de um lado para o outro com uma rapidez cada vez maior e
passam gritando em frente um do outro em velocidade supersnica, enquanto
seus crnios flexveis sopram os ventos negros da agonia de um inseto.
O) Membro de um partido poltico norte-americano que arvora o direito de uma ao
poltica independente; originalmente simbolizava uma pessoa importante. (N. do T.)

A Polcia do Sonho desintegra-se ento em glbulos de ecto- plasma


podre que so expelidos por um velho viciado que tosse e cospe na manh
doentia. O Homem Mugwump aparece com jarros de alabastro contendo o
lquido e os Rpteis saem mansamente.

O ar torna-se de nvo parado e claro como glicerina.

O marinheiro descobriu seu Rptil. le continuou avanando lentamente


e pediu um refresco verde. O Rptil tinha uma bca pequena, em forma de
disco, de cartilagem marrom, e os olhos verdes inexpressivos estavam quase
recobertos pela fina membrana da plpebra. O marinheiro esperou uma hora
antes que a criatura desse pela sua presena.

Nenhuma muamba para o Gordo? perguntou o marinheiro, enquanto


suas palavras agitavam os cabelos em leque do Rptil.

O Rptil levou duas horas para levantar trs dedos rosados e


transparentes cobertos com uma penugem negra.

Muitos Comedores de Carne ficam deitados em cima do vmito,


excessivamente debilitados para se moverem. (A Carne Preta como um
queijo passado, irresistivelmente deliciosa e enjoativa, de sorte que os
apreciadores comem e vomitam, e comem novamente at carem exaustos no
cho.)

Um jovem com o rosto pintado entrou no caf e apanhou uma das


grandes tenazes pretas do crustceo um odor adocicado e doentio
espalhou-se em ondas pela sala.

79
o mercado

Panorama da Cidade da Interzona. Notas de abertura da msica East St. Louis


Toodleoo... por momentos altas e cristalinas, depois distantes e intermitentes,
como msica ouvida em uma rua ventosa...

A sala parece balanar e vibrar. O sangue de muitas raas, negra,


polinsia, monglica, inontanhesa, nmade do deserto, poliglota do oriente,
hindu raas at ento inconcebidas e no geradas, misturas ainda no
realizadas, desfilam pela sala. Emi-

?
raes, viagens inacreditveis por desertos, florestas e montanhas estase e
morte em vales cercados de montanhas onde brotam plantas dos rgos
genitais, onde enormes crustceos esto chocando para depois quebrarem a
casca do corpo) navegaes atravs do Pacfico em barcos com flutuadores
laterais que vo em direo Ilha de Pscoa. A cidade heterognea onde tdas
as potencialidades humanas so exibidas em um imenso mercado silencioso.

Minaretes, palmeiras, montanhas, selvas... Um rio indolente com peixes


malficos saltando flor da gua, imenses jardins invadidos por ervas
daninhas onde adolescentes esto deitados na grama, entregues prtica de
jogos clandestinos. No h uma nica porta trancada na cidade. Qualquer
pessoa entra nos quartos a qualquer momento. O Chefe de Polcia um chins
que palita os dentes enquanto ouve as denncias feitas por um luntico. De
quando em quando, o chins tira o palito da bca e olha atentamente para sua
ponta. Jovens ociosos, cujo rostos so lisos e da cr do cobre, movem-se
indolentemente em frente s pontas das casas contorcendo suas cabeas
raquticas dentro de correntes de ouro, as fisionomias paradas com uma calma
nunca vista de inseto.

Atrs dles, pelas portas abertas, avistam-se mesas, reservados, balces de


bar, cozinhas e banheiros, casais que copulam em camas de metal amarelo
postas lado a lado, um emaranhado de milhares de rdes penduradas,
viciados amarrando os braos para uma picada, fumantes de pio, haxixe,
pessoas comendo, conversando e banhando-se envoltas numa nvoa de
fumaa e vapor.

Mesas de jgo onde so feitas apostas inacreditveis. De tempos em


tempos, um jogador levanta-se com um grito de deses- pro, tendo perdido
sua mocidade para um velho, ou tendo-se tornado Latah de seu adversrio^ 1)
Existem contudo apostas mais arriscadas do que a juventude ou Latah, jogos

80
em que somente os dois jogadores que se enfrentam sabem o valor das
apostas.

Tdas as casas na Cidade so geminadas. Casas de terra batida onde


mongis das altas montanhas piscam os olhos nas portas enfumaadas
casas de bambu e de madeira, casas de adbe, de pedra e de tijolos, casas do
sul do Pacfico e de Maori, casas em cima de rvores e sbre barcos fluviais,
barraces de madeira com cem ps de comprimento que abrigam tribos
inteiras, casas de caixotes e de barras torcidas de ferro, onde velhos andrajosos
passam os dias sentados cozinhando metanol, grandes arma-
1 ) I.atah unia condio existente no sudeste da sia. Sadios quanto ao resto, os Latahs
imitam involuntariamente todos os movimentos e gestos dc um outro, uma vez que sua ateno
atrada pelo estalar dos dedos ou por um grito agudo. uma forma de hipnose compulsria invo-
luntria. Os Latahs muitas vzes ferem-se a si mesmos quando tentam imitar, sinndtneamente,
os gestos de v'm'nc pcsso:is presentes.

es de ferro enferrujado levantam-se a uma altura de duzentos ps sbre


pntanos e entulhos de lixo, com perigosas divises e plataformas de vrias
alturas, onde redes balanam entre os vos.

Expedies partem para regies desconhecidas com propsitos


desconhecidos. Estrangeiros chegam em jangadas feitas de velhos engradados
amarrados com cordas podres; saem camba- leantes da floresta com os olhos
inchados e fechados pelas mordidas dos mosquitos, descem pelos atalhos da
floresta com os ps feridos, passam pelos arredores poeirentos e ventosos da
cidade, onde pessoas defecam em fila ao longo das paredes de barro enquanto
abutres disputam cabeas de peixes. Alguns descem em jardins com
paraquedas remendados... So escoltados ento por um guarda bbedo que os
conduz a um imenso mictrio pblico, onde so registrados. Os dados obtidos
so anotados em lascas de madeira que sero utilizadas mais tarde como
papel higinico.

Odores de comida do mundo inteiro sobrevoam a Cidade, neblina de


pio, haxixe, a fumaa vermelha e resinosa do Y age, cheiro de selva e gua
salgada, exalaes do rio de guas poludas e dos excrementos secos
misturadas a suor e esperma.

Flautas montanhesas, jazz e bebop, instrumentos mong- licos de uma


nica corda, xilofones ciganos, bongs africanos, gaitas de fole rabes...

81
A Cidade visitada por epidemias de violncia e os mortos abandonados
so comidos por abutres nas ruas. Albinos piscam ao sol. Adolescentes ficam
trepados nas rvores, masturbando-se lnguidamente. Pessoas devoradas por
doenas desconhecidas observam os passantes com olhos dc conhecimento e
maldade.

82
No Mercado da Cidade encontra-se o Caf do Encontro. Ali reunem-se
pessoas que se dedicam a comrcios obsoletos e inimaginveis com anotaes
rabiscadas em lngua ctrusca, viciados em drogas que ainda no foram
sintetizadas quimicamente, traficantes de Harmalina ultra-forte, viciados
reduzidos a hbitos normais que apresentam uma precria serenidade
vegetal, lquidos que provocam Latah, soros de longevidade Titoniano,
contrabandistas da Terceira Guerra Mundial, amputadores da sensibilidade
teleptica, osteopatas do esprito, fiscais denunciados por jogadores de xadrez
levemente paranicos, sacadores dc garantias incompletas que so anotadas
numa forma taquigrfica demente e cujos riscos so insuspeitveis mutilaes
do esprito, burocratas de departamentos fantasmas, funcionrios pblicos de
estados ainda no constitudos, uma an lsbica que aperfeioou a
operaoBang-utot(1), a ereo do pulmo que asfixia um inimigo ador-
mecido, vendedores de tanques de orgone e mquinas tranqilizantes,
corretores de sonhos e lembranas fabulosas testados nas clulas
sensibilizadas da toxicomania, mercadoria essa negociada pelos produtos
brutos da vontade, mdicos especializados no tratamento de doenas
adormecidas na poeira negra das cidades em runas, virulncia encontrada no
sangue branco dos vermes sem olhos que apalpam cuidadosamente a
superfcie dos objetos e das criaturas humanas, doenas do fundo do mar e da
estratosfera, doenas dos laboratrios qumicos e das guerras atmicas... Local
onde o passado desconhecido e o futuro prximo encon- tram-se em um
zumbido de vibraes inaudveis... Entidades larvais espera de um Vivo...

1 Bang-utot, literalmente "uma tentativa para se levantar e gemer .. ." Morte que ocorre durante o
pesadelo... sse fenmeno atinge os homens originrios do sudeste asitico... Em Manilha, foi
registrada uma mdia anual de doze casos de morte por Bang-utot,

m
PHILIP LAMANTIA

Silenciem a Prostituta de Babilnia

PHILIP LAMANTIA um flamejante catlico romano que, vez por outra, acerta no
alvo e acende tdas as luzes de seu potico papa-nquel. Sua mais forte
tendncia para o misticismo, para o xtase, para tudo enfim que sensual e
perigoso. Quando acerta, o resultado excelente. Mas por vzes sua poesia
torna-se vaga e desafinada; suas falhas, porm, fazem parte do risco que corre
para atingir os picos altos e preciosos que entram na memria como um
exrcito cristo de luzes de neon. Um texto ardente, o que inclumos aqui, se
bem que marginando os excessos do gnero. Por momentos, contudo, sua
poesia nos arranca um calafrio.

SILENCIEM

a prostituta da Babilnia

Lama de alta voltagem entrou na sua bca

quando ela se inclinou reverentemente diante de Mamon

Nas encostas da Sierra Madre de Chihauhau danam


luz de fogueiras fazem cruzes diante de espelhos

sangrias empalideceram os homens que les prprios nos dizem

CARAM DO CU!

1
danas fogueiras comem o fruto amargo da terra que se parece
com o man homem! homem! a secreo dos piolhos das
plantas ou mercados negros em uma prola de som inaudvel

Por causa dos lamentos da auto-compaixo dos


histricos vendedores de idias

dos destruidores zelosos de palavras

TDAS ESSAS COISAS

devem ser SILENCIADAS

uma vez que esto dentro de ns e multiplicam as


prostitutas doces como sacarma como esta AQUI Danando

ao ritmo de drogas traioeiras que envenenam a sade que fazem minha


cabea suar excremento! que cospem saliva nos meus ossos! que acenam
com infinitas possibilidades de xtases erticos simulados!

NO! NO! NO!

no para ste pnico de dolos que persuadem nossa poca

com falsos relgios de anjos que haveremos de viver mas para a


pomba descida do cu!

HUBERT SELBY, JR.

2
Verso e Reverso

HUBERT SELBY um dos escritores mais espontneos e vigorosos da nova


gerao, um autor truculento cujas histrias se constrem como uma
tempestade e cuja obra mais exuberante s- mente agora est comeando a
aparecer. Um mo do Brooklyn com seis olhos e um corao que no mente.
Algumas de suas histrias erticas so to vigorosas quanto as de Henry
Miller e abriro fra seu caminho para o pblico. Um exemplo dsse gnero
o conto publicado no anurio de 1960 da revista New Directions, intitulado
"Another Day, Another Dollar." A histria que publicamos aqui das boas,
com muitas gargalhadas e hilariantes surpresas. V em frente, Hubert, v em
frente!

No havia nenhuma razo palpvel para le sentir-se to bem (a menos que


desse crdito astrologia, mas le no dava e no tinha idia das posies
ocupadas pelos signos do zodaco ou pelas fases da lua). No poderia
tampouco atribuir seu bem estar ao fato de ser sexta-feira, com dois dias de
descanso pela frente e trs noites inteiras para se divertir... Embora isso, e a
temperatura agradvel do como do vero, contribuissem pro- vvelmente
para a disposio excelente que experimentava. le no fazia nenhum esforo
no entanto para encontrar explicao. Sentia-se bem, era tudo que importava.
No uma sensao que se pode prever ou preparar; quando muito podemos
usufru-la, relaxando os msculos e nos deixando levar pela corrente, com um
sorriso de beatitude no rosto. Sim, ste o segrdo, gozar com medida o bem
estar presente, sem exageros, seno le nos deixa...

Dessa vez le saberia controlar-se. Subiria a avenida e encontraria


Chubby, talvez fossem a uma cinema, mais tarde dariam uma passada no
CHARLIE'S para ouvir o conjunto tocar, bebe- riam algumas cervejas e... quem
sabe? Quando uma pessoa se sente to bem, no h necessidade de correr
atrs de aventuras.

Subiu sorrindo a Rua 69, em direo Quarta Avenida, e encontrou


Chubby em frente ao salo de bilhar. Quais so as novidades, Chub? disse le,
balanando os braos e danando na ponta dos ps, como no boxe. Que se
passa com voc Harry... andou tomando umas bolinhas? exclamou o outro
rindo, enquanto balanava a mo esquerda diante do rosto de Harry. Pois .
Nenhum conhecido l dentro? No, ningum. les esto na casa do Phil
discutindo sbre o jgo dessa tarde. Aposto que Phil deve estar comemorando.
Os Giants deram uma surra nos Dodgers. Comemorando? le est rindo
como um louco desde que a partida terminou. Eu imagino...

3
Aps darem umas boas risadas, Chubby tirou o mao de cigarros do
blso, ps um na bea e estendeu o mao para Harry, que apanhou um cigarro
e acendeu-o. O que voc est pensando fazer esta noite, Chub? Olha, no tenho
a menor idia. Que tal a gente ir a um cinema? Pode ser. Tem alguma fita boa
levando? Tem uma comdia no Bay Ridge. Vi o trailer na semana passada.
Parece que bem divertida. sim, uns conhecidos viram e disseram que
tima. Tem um cara na fita que toma o maior pifa. E uma ruiva tem um
nmero de dana que enche as medidas. Est com tda a pinta dc ser boa. Que
tal a gente ir? Bem, vamos ento.

Afastaram-se da avenida e tomaram a Rua 69, caminhando pela calada


escura em direo Terceira Avenida. Quem vai tocar no CHARLIE'S hoje
noite? No sei ao certo. Encontrei agora h pouco com o Mitch, o contrabaixo
do conjunto, e le disse que Buck Clayton vai estar l essa noite. No diga?!
Vai ser uma sesso fantstica ento. Parece que sim. Geralmente le timo.
Mitch disse ainda que o rapaz que tocou trombone na semana passada talvez
volte essa noite. Grande! verdade que s vzes le se perde, quando tenta
tirar algum efeito especial, mas fora isso le realmente bom. Vai ser dos
grandes, provvelmente. Lembra daquele solo que le tocou da msica A
Small Hotel? Claro que lembro. le improvisou maravilhas com essa melodia!
No perdeu em nenhum instante a calma, tocou sempre muito vontade, sem
nenhuma afobao. Mas em compensao le se embaralhou todo na msica
How High The Moon. eee. Ele se atrapalhou todo com essa msica. Willie
dedilhava como um louco as cordas do seu contrabaixo, tentando ajud-lo.
Mas fora isso le grande. Espero que aparea hoje noite.

Gostaria de ouvi-lo tocar junto com Clayton. Talvez toquem. Com tda
certeza, ao lado de Clayton, le vai querer dar tudo que sabe. eee. Vai ser
grande.

Dobraram esquerda na Terceira Avenida e dirigiram-se para o cinema.


A um quarteiro de l, Chubby sugeriu que tomassem antes uma cerveja.
Entraram no bar da esquina, tomaram duas cervejas e comeram um saquinho
de amendoim, depois saram e caminharam em direo ao cinema. Alguns
minutos depois, Harry segurou Chubby pelo brao e sugeriu que levassem
alguma coisa para beber no cinema. Uma meia garrafa de vinho, disse Harry.
S para animar. Chubby sorriu, e balanou os ombros animado com a idia.
Por que no?

Riam um para o outro ao comprar a garrafa e um canudo de copos de


papel. Agora, nada de brincadeiras, seno vo

4
pensar que estamos no fogo. Chubby colocou a meia garrafa no bolso da cala
e andou na frente de Harry para ter certeza de que estava escondida pelo
casaco.

Quanto mais perto estavam do cinema, mais fantstico lhes parecia entrar
na sala com uma garrafa de vinho. Excitante como algo proibido. Procuraram,
no entanto, manter a fisionomia impassvel. Chubby afastou-se alguns passos
enquanto Harry comprava as entradas; depois entrou atrs dle no saguo do
cinema, olhando para o outro lado ao passar pelo bilheteiro. Subiram as
escadas de dois em dois degraus, como duas crianas, e procuraram lugar na
sala escura.

Encontraram duas poltronas vazias na ltima filpira e permaneceram


tranqilos durante alguns minutos. At que Harry pediu a Chubby, em voz
baixa, para abrir o canudo com os copos de papel. Chubby comeou a rasgar
lentamente o papel celofane e, pouco a pouco, o rudo do papel amassado
tornou-se cada vez mais audvel. Chubby fz uma pequena pausa e seguiu-se
um silncio de alguns segundos; imediatamente depois le rasgou com
violncia o restante do papel. Ajeitou-se ento na cadeira e aguardou um
momento antes de estender a garrafa de vinho para Harry. sse, no momento
em que se viu com a garrafa na mo, abaixou-se prontamente para a frente do
banco, enquanto Chubby olhava para os lados, ambos rindo sem parar. Harry
conseguiu finalmente abrir a garrafa e Chubby lhe estendeu dois copos que le
rapidamente encheu; tornou a tampar a garrafa e colocou-a embaixo do banco;
depois ajeitou-se na cadeira. les abaixavam o ombro para um lado, olhavam
para a tela com a cabea enviesada e bebiam um gole de vinho.

A maior parte dos outros espectadores riam e comentavam alto o filme.


Harry e Chubby, no entanto, abafavam o riso e faziam comentrios em voz
baixa. Quando os copos se esvaziaram Ilarry inclinou-se novamente para a
frente e, sem tomar grandes precaues dessa vez, tornou a ench-los. Na
terceira rodada, sua nica preocupao era no derramar o vinho no cho.
Recostados nas poltronas, seguravam tranqilamente os copos apoiados no
assento, por entre as pernas; levantavam em seguida o brao, olhando sempre
para a tela, e tomavam um gole; vez por outra inclinavam-se para o lado e
murmuravam um comentrio, como ocorreu quando uma mulher semi-nua
atravessou de um lado ao outro a enorme tela panormica... e riam sem parar.
Ao terminar o terceiro copo, estavam to vontade e rindo to alto quanto os
demais espectadores, mas no a ponto de chamar a ateno ou incomodar
algum. Acontecia tambm rirem durante o gole e o vinho respingava e
escorria pelo queixo. A mulher semi-nua continuava a passear pela tela e les
no paravam de rir, sacudindo o corpo, tossindo, procurando no fazer
barulho demais e no derramar vinho no cno...

5
Quando Harry encheu o ltimo copo, deitou a garrafa no cho com o
rudo sco de vidro vazio; brindaram depois a sade um do outro e beberam
lentamente o ltimo gole. Jogaram os copos vazios no cho e acenderam um
cigarro. Enquanto isso olhavam para o filme e davam risadinhas. Pouco depois
Chubby disse que ainda estava com sde. Eu tambm, disse Harry. Que tal
uma outra garrafa? Por que no. Voc acha que les vo deixar a gente sair e
voltar? Claro, por que no. Digo que vou buscar alguma coisa no carro. Escuta,
que tal trazer tambm alguma coisa para se comer? Umas pipocas, umas
batatinhas fritas, o que voc acha? Pelo jeito voc gostaria que lhe trouxesse
uns frios e alguns salgadinhos.

Harry riu. Logo depois que Chubby saiu, le semicerrou os olhos e olhou
em direo ao facho de luz que saa do projetor, vendo a nuvem de fumaa
que subia em direo ao feixe de luz clarear repentinamente, rodopiar e flutuar
por entre os raios luminosos... Isso lhe causou uma forte impresso. No
estava bbedo, embora sua cabea estivesse ligeiramente leve, como alis a de
Chubby tambm: era o resultado de haver bebido o vinho, to rapidamente, na
sala abafada. De qualquer forma, sua excelente disposio perdurava e sentia-
se suficientemente calmo para no pensar nem se preocupar com nada. Logo
comearia a rir novamente e seria uma noite divertida. No havia perigo de
ficar deprimido de repente. Deixou-se estar olhando calmamente para o feixe
de luz, para a fumaa, a tela grande, uma das artistas que aparecia no filme,
pensando no bar do CHARLIE, em Clayton e no trombonista... afundava-se
mais e mais no seu bem estar, a imaginao sorrindo (o que dava a seu rosto
uma expresso idiota), dizendo que seria uma noite maravilhosa, um
maravilhoso fim de semana. Nada de loucuras. Apenas umas boas risadas...

Enquanto Harry vagava longe, inconsciente do lugar e do tempo, as


pessoas que estavam sentadas nos bancos em volta comearam a se perguntar
por que o outro demorava tanto. Elas tinham ouvido a conversa entre os dois e
sabiam o que Chubby fra fazer. Algumas indagavam se Chubby voltaria para
a sala com uma nova garrafa de vinho ou se entraria acompanhado pelo
gerente ou por um policial; outras diziam que le ia gritar pelo amigo do lado
de fora do cinema. Foi quando Chubby surgiu, sentou-se ao lado de Harry e
tirou duas garrafas do bolso, que estendeu para o amigo. Achei melhor trazer
uma de reserva. Nunca se sabe.

Harry riu e segurou as garrafas, colocou uma, delas embaixo do banco,


abriu a outra e encheu um copo. Enquanto isso, Chubby tirou um enorme
sanduche de po francs que estava escondido embaixo do casaco. Harry no
o viu imediatamente, ocupado que estava em abrir a garrafa e servir o vinho;
pareceu-lhe contudo, olhando com o canto dos olhos, que Chubby segurava
alguma coisa branca na mo. Quando le se voltou para oferecer ao amigo o
copo de vinho, Chubby estava segurando o sanduche horizontalmente, dando
umas mordidas na salsicha que saa pelos lados do po, enquanto cantarolava
baixinho "Clair de Lune" e mexia com os dedos como se tocasse uma gaita. As
pessoas em volta, acotovelavam-se e riam; outras chamavam a ateno dos que

6
estavam sentados nos bancos da frente e apontavam para Chubby segurando
seu imenso sanduche. Harry, completamente estupefato, olhava de bca
aberta para o amigo, segurando o copo de vinho na mo. As risadas e as
cabeas voltadas para trs foram aumentando num crescendo at que tda a
assistncia do balco havia se desinteressado do filme para observar a
brincadeira com o sanduche. Chubby voltou a cabea em direo a Harry,
revi- rou os olhos e tremulou as plpebras, enquanto balanava o sanduche de
um lado para o outro e acompanhava o ritmo da msica com os ombros. Harry
continuava olhando boquiaberto, com o copo de vinho estendido para
Chubby; depois teve um acesso de riso e respingou boa parte do vinho em
cima da cala de Chu11 *'' 1
do completamente o controle, der

ramo
u

como um esguicho. Os dois riam

s gargalhadas. Agora um maior nmero de espectadores voltavam-se nos


seus bancos, olhavam o que estava acontecendo e caam na risada, exatamente
como os dois riam. Chubby continuava a tocar o sanduche como se fsse uma
gaita e a gargalhada dele, abafada pelo sanduche, soava ainda mais fantstica;
comeou ento a encolher-se lentamente na cadeira, afundando-se cada vez
mais, at virar uma bola e rolar pelos degraus da escada abaixo, rindo s
gargalhadas e sem parar de tocar o sanduche. Harry, sem se conter, jogou
com tda fora o copo no cho, debruou-se sbre Chubby, cado nos degraus
da escada e passou os braos em volta de seu tronco, tentando arrancar-lhe o
sanduche-^ bca. Dobrado pelo riso, le enfiava o rosto no casaco de Chubby.

Continuaram abraados no meio da escada at que pouco a pouco o


acesso de riso passou, no por vontade dles, mas por exausto. Levantaram-
se ento e voltaram a sentar nas suas cadeiras, ainda ofegantes e suspirando a
breves intervalos. Pouco a pouco a ateno dos espectadores dirigiu-se
novamente para a tela e os dois continuaram sentados em silncio (a no ser
por uma sbita e involuntria crise de riso), querendo, e ao mesmo tempo no
querendo, olhar um para o outro. Mantinham-se por isso ligeiramente virados
de lado (o sanduche estava agora no colo de Chubby) e cobriam o rosto com a
palma da mo a fim de evitar um nvo acesso de riso.

Harry deu um suspiro fundo e sem olhar para Chubby pediu-lhe que
terminasse de uma vez com a brincadeira. Chubby balbuciou algo
incompreensvel, levantou o sanduche do colo e disse, Est bom terminou.
les se ajeitaram nos bancos, de perfil um para o outro, e voltaram a olhar
para a tela. Harry apanhou a garrafa embaixo da cadeira e encheu dois copos;
depois, sem dizer um palavra, estendeu um copo para Chubby. Foi somente
depois da segunda rodada que recomearam a falar um com o outro. O vazio

7
criado pela gargalhada foi sendo lentamente desfeito pelo vinho, e medida
que se sentiam mais vontade e mais relaxados, voltaram a rir e a fazer
comentrios em voz baixa como anteriormente.

Bebiam mais rpidamente agora (a garrafa vazia foi logo substituda pela
cheia), com as cabeas roando uma na outra, os cotovelos apoiados nos
braos das cadeiras. No faziam outra coisa seno levantar o copo cheio e virar
a cabea para trs, sem parar. medida que bebiam, os sussurros, as
risadinhas e as gargalhadas aumentavam de volume, mas no a ponto de inco-
modar ou aborrecer os vizinhos; pelo contrrio, les se divertiam com os dois.

No satisfeitos em comentar apenas o que se passava no filme,


comearam a fazer previses e a dirigir os atores: aconselhavam o mocinho a
beijar a mocinha, que le podia fazer isso sem susto porque ela no morderia...
depois eram risinhos abafados, risadas altas, passavam a mo na garrafa (plin),
olhavam com a bca aberta para o vinho que enchia os copos (glu glu glu),
colocavam a garrafa novamente no cho (plin) que se passa com sse cara?
ser que le ficou biruta? Se eu tivesse uma boa como essa correndo atrs de
mim, nem sei os braos balanando, o vinho derramando dos copos,
risadas, goles, gor- gulhos, tremores de riso, vinho respingando no nariz,
escorrendo pelo queixo, manchas escuras nas camisas e nas calas de nvo a
garrafa (plin), apenas um restinho no fundo, olhando de bca aberta para as
ltimas gtas viradas nos copos; ainda havia uma garrafa cheia (plin). Duas j
foram. Bom filme, hein Chub? Os copos cheios de nvo (comearam a ficar
tontos e moles, a voz pastosa, no tora demais, por favor, no tora demais o
pepino segurando a garrafa pelo fundo na palma da mo); onde esto as
outras duas garrafas j foram bebidas s tem mais hahaha s tem mais
(plin) essa (uma garrafa deitada no colo) vamos, encha meu copo com sse
bom licor da famlia HUHUIU a mocinha se dirige furtivamente, semi-
nua, em direo ao mocinho; os cabelos cobrindo um lado do rosto; os quadris
ondulantes; acaricia o rosto dle, depois enfia os dedos por entre seus cabelos,
acaricia seu pescoo, suas costas; balana o corpo diante dle, oferecendo todos
seus talentos e encantos (quase todos); a voz rouca, suplicante... e le pergunta
o que ela quer HO HO HO ei o que foi? le ficou louco? HA HA HA
Era melhor le ir pra Dinamarca HU HU HU HU HU (copos amassados e
jogados no cho, a garrafa que passa de um lado para o outro), goles grandes,
gtas escorrendo pelo rosto e descendo para o queixo a mocinha empurra o
mocinho para cima de um sof, debrua-se sbre le, olha-o demoradamente e
depois beija-o... le se debate e agita os braos eu disse para voc que les
eram todos uns frescos em Hollywood a luta entre os dois cessa pouco a
pouco, msica suave no lute seu burro, aproveita HA HA HA HA a
garrafa na mo; agora s tem um pouco no fundo; bebe mais um gole
Hoooo v l, no vai beber tudo; s mais um gole; guarda um ra mim; um
gole, hannn, toma enxuga a bca com as costas a mo, a garrafa vazia passa
de volta (plin) fim; acabou tudo; trs garrafas vazias HA HA HA HA
ei papai, eu quero um sorvete. Cala essa boca e toma sua cerveja HI HI HI HI,
ste cara est completamente louco - HU HU HU HU HU

8
no agento mais HA HA HA HA como le se chama HI HI HI HI a
tela balanando e desfocando, imagens de cabea para baixo - HA HA IIA HA
HI HI HI HO HO HU HU HU...

Por favor, no faam barulho. Os senhores esto incomodando os outros.


O lanterninha havia cumprido sua obrigao e voltava ara seu lugar quando
Chubby levantou-se repentinamente, randiu seu enorme sanduche e comeou
a esgrimar contra le.

Em guarda!!! le balanava o sanduche na cara do lanterninha e simulava


aparar os golpes; deu um salto para o lado como se uma espada imaginaria
houvesse passado rente a seu peito e defendeu-se novamente de uma possvel
estocada, com uma percia e uma elegncia perfeitas; em seguida, dobrando o
joelho direito e jogando a perna esquerda para trs, aparou uma ltima
estocada e mergulhou a espada no adversrio. TOUCH! exclamou,
atingindo o lanterninha na altura do seu segundo boto dourado. Chubby
observou-o cair no cho, orgulhoso de sua vitria, por mais que lastimasse ter
sido forado a matar um to nobre adversrio... O sanduche estava
ligeiramente torto, graas ltima estocada, e um pedao de salsicha havia
cado em cima do sapato do lanterninha. O homem olhou um momento para o
p (le no contava com isso; sua inteno tinha sido pr uma certa ordem na
sala e agora estava diante de um bbedo que balanava um sanduche na mo
e havia mesmo um pedao de salsicha em cima do seu sapato); antes mesmo
que le desse conta da situao, sua cabea estava sendo erguida pela espada
de Chubby. Harry levantou-se da cadeira e tentou impressionar o lanterninha
falando com a voz empostada; havia um engulho, porm, na sua garganta que
dava sua voz uma aparncia curiosa de gagueira. Meu HEE-E-RI gritou le
por fim, encostando-se no ombro de Chubby. Chubby explodiu na gargalhada;
o sanduche balanava na sua mo, uma salsicha escorregou de dentro e caiu
sbre a passadeira. Harry tropeou nas garrafas enquanto empurrava Chubby
em direo ao corredor e os dois saram cam- baleantes da sala.

Harry no enxergava nada e chocou-se contra o corrimo ao descer as


escadas; Chubby seguia-o. Chegaram ao primeiro patamar e deram a volta na
escada para continuar descendo; riam s gargalhadas, tropeavam, caam a
todo instante... Chubby ficou de joelhos no cho, segurando a barriga com as
mos, rindo convulsivamente, a saliva escorrendo pelos cantos da bca; Harry
parecia pisar em cima de areia; levantou-se com muito custo, ouviu um baque
surdo atrs de si e continuou descendo trpegamente as escadas. Passou
correndo pela porta da frente (voltava-se de quando em quando procura de
Chubby, esperando v-lo descer rolando as escadas, como uma bola, como
uma bola) e encontrou-se na rua. Dirigiu-se instintivamente para a esquina
onde se encostou no pra-lama de um automvel, rindo ainda... apenas
rindo... no fazendo mais fra para parar ou achar graa, sem mesmo
perguntar-se onde Chubby poderia estar. No se lembrava mais da cena de
csgrima, do CHARLIE'S, nem do grupo de amigos que ficara de encontrar; no
sabia nem mesmo como se sentia; no percebia a saliva que escorria de seu

9
queixo, no tinha mais vontade de beber um outro copo de vinho; no fazia
mais do que rir...

Foi quando surgiram sombras, vozes e... pessoas. ste o outro. Bom,
vamos andando. Um policial segurou-o pelo brao. Acompanharam o
lanterninha e o gerente em direo ao cinema, passaram pela sala de espera e
entraram no escritrio. Chubby estava sentado num canto; na sua frente,
estava um outro guarda. le continuava com um sorriso no rosto e segurava
um cigarro na mo. Tem certeza que so stes dois? Claro que sim, seu

f
uarda. So sses mesmos. Tenho certeza. No sei qual dos dois errubou o
cinzeiro da sala, mas estou certo que so sses dois. Eu ouvi uma dis Est
bom, est bom. Basta. Pode sair agora.

O lanterninha retirou-se e o guarda postou-se em frente a Chubby e


Harry; esfregou as articulaes dos dedos de sua mo direita contra a palma
de sua mo esquerda e perguntou furioso que raios estavam pensando que
um cinema era um ginsio de boxe ou o qu afinal?! Estava irritadssimo
por ter sido chamado de urgncia e mais ainda pelo sorriso estpido de Chub-
by, (o que lhe parecia uma insolncia), mas desejava causar boa impresso ao
gerente, sabendo que le nunca se esquecia de certos favores. Ficou pois em p
na frente de Chubby e arrancou-lhe o cigarro da Dea com um tapa. Sua
pontaria no foi das melhores e le se queimou. Praguejou e apertou a mo
queimada; quando tornou a olhar para Chubby viu-o novamente com o
mesmo riso idiota na face. Agarrou-o pela lapela do casaco e bateu a cabea
dle contra a parede; depois deu-lhe uma meia dzia de bofetes e tornou a
afund-lo na cadeira.

Harry observava a cena, vendo verdade, mas no compreendendo nada.


No conseguia pr em ordem suas idias. Ouvia rudos confusos que pareciam
vir de longe e a nica coisa absolutamente definida era a risada, sim, a
gargalhada. Estava apoiado contra o carro e ria s gargalhadas. No era uma
lembrana. Lembrana era o que estava acontecendo agora e que no
conseguia entender. O que estava errado afinal? Aquele l era o Chubby.
Reconhecia-o. le ainda est rindo e um fio de vinho est escorrendo de seu
queixo. No h nada de mais nisso. Estamos os dois rindo... le fz meno de
dar um passo em direo a Chubby mas o outro guarda golpeou-o, na barriga,
com seu cassetete.

Harry protegeu-se instintivamente; continuava confuso e sem entender o


que estava acontecendo. O guarda voltou-se para Chubby e pediu-lhe a
carteira de identidade. Chubby estendeu-lhe sua carteira de dinheiro. O
guarda golpeou-o no peito com ela e repetiu que queria a carteira de

10
identidade e no a de dinheiro. Quem voc est pensando que vai comprar
aqui? exclamou. E arrancou a carteira de identidade da mo de Chubby. Era
um certificado de servio militar. Ah mais um desses sujeitinhos que pensam
que so muita coisa s porque possuem um certificado de servio militar. No
tem nada melhor para fazer do que ir ao cinema, beber vinho ordinrio e
depois fazer todo sse estrago? O guarda proferiu seu sermo habitual,
vociferando sempre, enquanto permanecia de p na frente de Chubby; olhava
fixamente para le como teria feito com qualquer outra pessoa na mesma
situao; esperava talvez que o rosto dle abaixasse e que le murmurasse uma
desculpa qualquer, o que lhe daria ensejo para gritar e ordenar que falasse
mais alto; se isso porventura acontecesse, le o chamaria por todos os nomes e
diria

3
ue le tinha muita sorte em no ser prso; para terminar, man- aria-o
diretamente para casa. A primeira resposta de Chubby foi incoerente e
balbuciante. O que? No foi com vinho ordinrio. O guarda no perdeu tempo
saboreando a realizao de seu desejo; esbofeteou-o imediatamente,
derrubando-o da cadeira no cho. Chubby tornou a levantar-se, lentamente,
sentindo tudo girar em sua volta. O guarda dirigiu-se a Harry e perguntou-lhe
que idade tinha. Talvez Harry no haja compreendido a pergunta, ou talvez
ela no tenha feito mais do que tonitruar na sua cabea. le no sabia por que
(nem haveria de lembrar-se mais tarde), mas por alguma razo misteriosa (se
que havia uma razo) respondeu que tinha 76. (Havia ainda um resto dc risada
dentro dle que necessitava apenas ouvir um outro rir para recomear tudo de
nvo; felizmente les estariam logo na rua (no creio que a gente esteja na rua
agora) e poderiam recomear tudo de nvo, encostados no carro, ou ento ir ao
CHARLIE'S.) le ouviu o bofeto, depois um outro. No compreendia nada,
mas tinha uma vaga conscincia de que agora o riso terminara defi-
nitivamente. Pareceu-lhe ouvir um rudo conhecido. Ou era apenas
imaginao?

O que fazemos com sses dois, seu Mark? O gerente, perturbado com os
tapas e os bofetes, vendo-os cados no cho, refletindo sbre as declaraes
que deveriam ser feitas, as explicaes e garantias que teria que dar caso les
fossem presos Nada, Jim. les no quebraram o cinzeiro. No houve
prejuzos srios. Mande-os embora e esquea o que aconteceu.

les foram prontamente postos de p, levados para a rua e arrastados at


a esquina. Disseram a Chubby que tomasse a Quarta Avenida e a Harry que
descesse em direo ao Bulevar Ridge. ltimo aviso: caso aquilo se repetisse
novamente, no sairiam com a cabea inteira.

Ao chegar no Bulevar Ridge, Harry subiu trpegamente alguns degraus


da escada do colgio e sentou-se. Apoiou a cabea nas mos, depois levantou o
rosto e olhou com ateno a pequena mancha de sangue na palma da mo.

11
No podia sentir seu gosto, mas lhe pareceu verdadeira. Seja como fr, tudo
aquilo no fazia sentido absolutamente nenhum. No haviam brigado com
ningum. Apenas dado gargalhadas. No estavam sequer bbedos... Como
aconteceu tudo isso? No havia nem mesmo um como que pudesse lembrar.
No sabia nem mesmo que horas podiam ser...

Esfregou o rosto, a nuca, depois observou a rvore que estava a alguns


metros na sua frente e procurou ver se descobria uma nesga de cu. As luzes
do sinal luminoso que ficava na esquina pareciam piscar.

Procurou nos bolsos por um cigarro mas no achou nenhum. Oh merda!


Olhou fixamente para a calada durante um momento, depois levantou
vagarosamente, apoiando-se na grade de ferro, e recomeou a caminhar em
direo de casa...

GARY SNYDER

Carta de Quioto

RESIDINDO ATUALMENTE 110 Japo de onde escreveu esta deliciosa carta


Snyder uma das figuras mais importantes na sociedade beat da Califrnia;
sua atitude potica, levemente mstica, influenciou Kerouac e muitos outros.
le possui o dom de se manter superior, ou afastar para longe de si, as
rivalidades mesquinhas. Sua linguagem, que se equipara dos melhores
talentos da West Coast, sensvel sem ser sentimental, e no possui a
agressividade crua dos hipsters de Nova Iorque. Numa forma modesta, Snyder
nos reconcilia com a humanidade, como disse certa vez o cronista esportivo
Jimmy Cannon de Joe Louis. Alm da carta, inclumos um breve comentrio
seu a respeito da atitude religiosa beat; aconselhamos aos leitores que apreciem
com naturalidade seus escritos, sem se prenderem a mincias. Para um poeta,
le escreve prosa de primeira qualidade.

"Como vocs vem, no temos com que nos preocupar," disse Will Petersen,
enquanto ns quatro caminhvamos em direo a uma pastelaria no centro da
cidade, "les enterraram na colina um general que viveu 300 anos & o Monte
Iliei, situado no nordeste da cidade, afugenta os maus espritos". Assim, no
havia muito com que nos preocupar: Quioto um quadrado cortado em tdas
as direes como a velha cidade de Ch'ang-an; morros verdejantes cercam seus
trs lados, com clareiras abertas aqui e ali como numa pintura cubista; dois
riachos ao gosto das trutas atravessam a cidade; no possuem trutas,

12
porm, e so chamados de rios pelos habitantes do lugar. uma cidade do
tamanho de Portland, no Estado do Oregon; nunca foi bombardeada, as casas
so feitas de madeira slida, as ruas so estreitas & sujas, cobertas de pedras,
os telhados baixos & inclinados, de vrias alturas, geralmente cr de chumbo,
recebendo luz de todos os lados; fora isso, h uma quantidade de pinheiros
plantados por tda parte. O centro da cidade animado como em qualquer
outra cidade, porm mais divertido, repleto de txis, filas interminveis de
estudantes, vestidas com roupa de marinheiro, que vm do interior, ou que
esto visitando a cidade; sem falar nas velhas camponesas que vm a passeio.
Flanam pelas ruas repletas de cafs e bares vistosos, que se parecem
exteriormente com os de Stratford-on-Avon & por dentro com a sala de visita
de Christina Rossetti (influncia ocidental) mas o que tdas essas pessoas
visitam realmente so os santurios & templos japonses antigos & Quioto tem
milhares dles. Se bem que muita gente no leva mais a srio o aspecto
religioso da cidade. Em Tquio, um conhecido nos contou a seguinte histria:
quando um turista vai a uma casa de famlia em Quioto, o dono da casa sente-
se orgulhoso em lhe esclarecer que a escva de dente que le comprou na
cidade foi feita mo em uma fbrica que existe h 500 anos e que passou de
pai para filho durante sse tempo. Todos os habitantes da cidade, com exceo
das mas que servem nos bares, continuam a fazer o mesmo trabalho de nove
geraes anteriores.

No se v muitos brancos na cidade, mas os poucos que a residem esto


apaixonados pelo lugar & todos por diferentes razes. Petersen (um pintor
originrio de Berkeley) est hospedado num colgio de mas onde descobriu
o beisebol graas a essas jovens de dezoito anos, com aparncia de doze, que
passam os dias fazendo ginstica em baixo de sua janela. Lindley Hubbell, o
poeta, est encantado com o teatro N; no perde um espetculo & no d
uma palavra enquanto a pea est sendo representada: so geralmente cinco
horas de expectativa & ateno girando em trno do amor, clera ou remorso,
ao som de flautas, tambores, com nmeros de dana & cantos. A pea s
termina quando tudo foi visto e revisto. Burton Watson conhece atalhos que
levam a templos escondidos & que se acham espalhados entre Quioto e Nara;
le se ocupa tambm na traduo de antigas histrias chinesas, aproveitando o
conhecimento que possui do idioma japons. Phil Yampolsky, tambm
historiador, adora falar no dialeto de Quioto; provoca o riso nos velhos mais
sisudos com uma repentina gria introduzida na conversa. Walter Nowick
ensina piano para ganhar a vida & j faz sete anos que se levanta todos os dias
de madrugada para ir visitar seu idoso mestre Zen.

Quioto possui tambm, entre seus nativos, alguns tipos fantsticos. Um


escultor moderno, de nome Tsuji, com crca de cinqenta anos de idade, vive
com a mulher & as filhas em uma minscula casa repleta de mscaras dos
mares do sul & da Africa, sem falar nos livros Sutra devorados pelas traas.
Por intermdio dle, ficamos sabendo da existncia de um sacerdote budista
chamado Mokujiki "Comedor de Madeira", descoberto recentemente, & que
viveu crca de duzentos anos atrs. Era um velho feliz que fazia uma grande
escultura de madeira por dia, durante anos. As lascas voavam de suas

13
ferramentas & surgiam sbios. um prazer comparar essas esculturas com as
obras elegantes e inexpressivas da mesma poca. No alto do Monte Hiei, no
fundo de um bosque povoado de feitiarias, umidade & sapos, existe um
velho templo de paredes escuras & de odor agradvel; ali mora um jovem
monge que antes estudava economia poltica & que agora l livros de filosofia
Tendai. Se bem que na ltima vez que o encontrei, le estava descansando dos
estudos lendo a autobiografia de Charles Darwin, em ingls. le fz voto de
no deixar a montanha durante doze anos. Na cidade, h uma quantidade de
jovens que estudam literatura inglsa. Moas que escrevem estudos sbre
Shelley. Outras que apresentam teses sbre O Amante de Lady Chatterley.
Pouco numerosas so as que folheiam a revista Vogue & que se vestem no
rigor da moda. Muitos estudantes universitrios, do gnero bomio, vestem
roupas pretas ultra surradas com botes dourados pregados de qualquer jeito.
So todos pobres a maioria dos estudantes vive com 20 dlares por ms
e, no entanto, algumas livrarias possuem as obras de Donne editadas por
Grierson, textos crticos de Shakespeare, romances de Graham Greene,
Faulkner, livros de Pound. Alguns dsses estudantes compreendem tambm o
japons antigo; mas so uma minoria. Se les forem at Nara, regressando no
tempo, & visitarem o templo de Horyuji, onde existem doze esttuas
realmente antigas esculpidas em madeira, pequenas figuras de olhares
sonhadores & sorrisos misteriosos, maneira dos hipsters, possvel que les
no se sintam to desamparados.

Alguns praticantes da doutrina Zen conhecem essa cultura do passado,


mas a religio Zen exerce pouca atrao junto aos jovens. Ela foi durante
muito tempo a religio oficial do Govmo, enriqueceu-se & tornou-se
mesquinha. H cinco sculos atrs, o fundador do templo Daitoku, um
religioso de nome Daito, viveu embaixo de uma ponte de Quioto durante
trinta anos. Hoje em dia, os monges Zen possuem belos templos particulares.
Alm disso, sentar numa sala de meditao atualmente como se exibir num
circo.

Havia visto tantas fotografias de cerejeiras em flor, nos folhetos de


viagens, que acabei adquirindo uma enorme preveno contra elas. Mas agora
o inverno terminou, as pessoas esto tomando sol no esto mais
amontoadas & trancadas o dia inteiro em quartos gelados & as cerejeiras esto
florindo. Os homens do

{
>ovo tomam enormes bebedeiras, divertem-se grande & cochi- am nos
parques (formas remanescentes dos antigos ritos da fertilidade, diz Marcel
Grannet), & as crianas esto brincando novamente com as pernas de fora.
Ningum poderia ficar indiferente a isso, de sorte que samos a noite passada
para comer uns bolinhos de carne & tomar saqu. Um francs de nome
Chamaille, homem alto com uma imponente barba preta e que estava pas-
sando frias na cidade, chamou a ateno, desfavorvehnente, da ma que
nos servia saqu nos pequenos reservados. Ela apontou com o dedo em
direo a le e exclamou: "Mais um maldito missionrio!" (influncia das

14
gravuras de livros infantis que representam os missionrios vitorianos que
vieram ao Japo e construram as igrejas, como homens grosseiros e de barba
comprida). Pode ficar sossegada, dissemos, le veio aqui estudar a religio
Zen. Era como se a roda do tempo houvesse dado uma volta inteira.

OBSERVAES SBRE AS TENDNCIAS RELIGIOSAS

A religiosidade a que nos referimos mais o resultado da prtica e da


experincia pessoal do que de uma teoria aprendida. A afirmao que se ouve
geralmente em certos crculos segundo a qual "taas as religies levam ao
mesmo fim" conseqncia de um pensamento totalmente falso que no
justificado por nenhuma prtica. bom lembrar que tdas as religies contm
noventa por cento de fraude e so responsveis por numerosos males sociais.

Dentro da gerao beat verifica-se a existncia de trs tendncias:

1. Procura da viso e da iluminao. sse resultado obtido geralmente


pelo uso sistemtico de narcticos. A marijuana um recurso de consumo
dirio e o peiote o verdadeiro estimulante da percepo. Tanto um como o
outro so complementados s vzes por prticas iogas, lcool e similares.
Embora uma boa parte de auto-conscincia possa ser obtida pelo uso
inteligente de drogas, o hbito de estar "dopado" no conduz a nada porque
falta exatamente inteligncia, vontade e compreenso. Uma sensao
puramente pessoal, obtida s custas de um narctico, no beneficia ningum.

2. Amor, respeito pela vida, abandono, Whitman, pacifismo, anarquismo,


etc. Tdas essas tendncias so provenientes de inmeras tradies, entre as
quais a religio Quakers, o Budismo Shinshu, o Sufismo, etc. Tdas elas so
frutos de um corao generoso e amante. Em suas manifestaes mais dignas,
essas tendncias levaram algumas pessoas a condenarem ativamente as
guerras, fundar comunidades e amarem-se umas s outras. Em parte, elas so
responsveis tambm pela mstica dos "anjos", a glorificao das viagens a p
e das caronas, bem como por uma forma de entusiasmo inconsciente. Se
respeitam a vida, no respeitam a sabedoria da impassibilidade e a morte. E
isso uma falha delas.

3. Disciplina, esttica e tradio. Essas tendncias so bem anteriores ao


aparecimento oficial da gerao beat. Diferenciam-se da doutrina "Tudo um"
na medida em que seus praticantes estabeleceram uma religio tradicional,
tentaram incorporar o sentimento de sua arte e de sua histria, e praticam
qualquer ascese que fr necessria. Uma pessoa pode tornar-se um danarino

15
aimu ou um xam yurok, ou at mesmo um monge trapista, se ela realmente o
deseja. O que falta neste tpico, e o que os dois primeiros possuem, ou seja
uma existncia perfeitamente adaptada realidade do mundo e percepes
realmente verdadeiras do inconsciente.

A concluso prosaica a seguinte: se uma pessoa no fr capaz de


compreender todos sses aspectos contemplao (que no seja pelo uso de
drogas), moralidade (que significa para mim protesto social) e sabedoria ela
no estar altura de levar uma autntica vida beat. Mesmo assim, ela poder
ir bastante longe nessa direo, o que prefervel a ficar rodando pelas salas
de aula ou escrever tratados sbre o budismo e a felicidade das massas, como
fazem os quadrados com tanto sucesso.

ALLEN GINSBERG

Morte para a Orelha de Van Gogh

ALLEN GINSBERG, autor de "Howl", livro de poesias de um tom custico,


moderno e tenso, uma das vozes lunares mais verdadeiras que se levantam
por entre os arranha-cus modernos; le possui a coragem de sua imaginao e
sua poesia uma cano poderosa e pungente para sua gerao. Ginsberg , ao
mesmo tempo, um poeta fascinante e comunicativo. Sua febre comum a
milhares dc pessoas, mas ningum antes dle havia abordado com tamanha
bravura as enfermidades da existncia, e, ao fazer isso le se redimiu e ns
juntamente com le. A sociedade reagiu ferozmente contra suas belas canes
fantasma- ricas, o que confirma o valor delas; era natural que o Shelley a
idade atmica fsse perseguido. a regra do jgo. O talento de Ginsberg tem
algo de milagroso.

O poeta sacerdote o dinheiro avaliou a alma da Amrica o Congresso


desabou no precipcio da Eternidade o Presidente construiu uma mquina de
guerra que vomitar a

Rssia para longe do Kansas O Sculo Norte-Americano foi trado


por um Senado em delrio

que no dorme mais com sua esposa Franco assassinou Lorca o filho
mimado de Whitman

16
da mesma forma que Maiakovski suicidou-se para evitar a Rssia

Hart Crane clebre discpulo de Plato cometeu suicdio por

ter nascido na Amrica errada da mesma forma que milhes de toneladas de


trigo humano foram queimadas em cavernas secretas nos pores da Casa
Branca enquanto a ndia morria de fome, gritava e comia cachorros loucos
encharcados de chuva, e montanhas de ovos eram reduzidas a p branco e
cinzas ardentes nos corredores do Congresso nenhum homem temente a Deus
caminhar novamente por ali

por causa do fedor dos ovos podres da Amrica e os ndios de


Chiapas continuam a mastigar suas broas sem vitaminas

aborgenes da Austrlia talvez tagarelem no deserto sem vo e eu raramente


como um vo no caf da manh embora meu trabalho exija ovos infinitos que
devem nascer na Eternidade os ovos devem ser comidos ou devolvidos a suas
mes e a dor das incontveis galinhas da Amrica expressa-se nos gritos

de seus atres atravs das estaes ae rdio Detroite construiu agora


um milho de automveis de seringueiras e de fantasmas

mas eu caminho, caminho, e o Oriente caminha comigo, e a

frica inteira caminha e mais cedo ou mais tarde a Amrica


caminhar tambm porque como expulsamos o Anjo Chins de nossas portas,
le

nos expulsar da porta dourada do futuro e ns no demonstramos


piedade em Tanganica Einstein em vida foi zombado por sua poltica celeste
Bertrand Russel expulso de Nova Iorque por estar fazendo amor e o imortal
Chaplin foi banido de nossas praias com a rosa entre os dentes

e uma conspirao secreta organizada pela Igreja Catlica nos lavatrios do


Congresso negou o uso dos preservativos s populaes da ndia que no
param de crescer Ningum publica uma palavra que no seja o delrio covarde

17
de um rob de uma mentalidade depravada o dia da publicao da
verdadeira literatura norte-americana ser

o dia da Revoluo a revoluo do cordeiro sexual a nica revoluo


sem sangue que produz milho o pobre Genet ainda haver de iluminar os
colhedores do Ohio Marijuana um narctico benevolente mas J. Edgar
Hoover prefere seu scotch mortal E a herona de Lao-Ts & do Sexto Patriarca
castigada com

a cadeira eltrica de sorte que os pobres viciados no tm onde


repousar a cabea homens perversos em nosso govrno inventaram uma cura
torturante para o vcio, to antiquada como a instalao de radar para a defesa
antiarea eu sou a instalao de radar para defesa antiarea s vejo bombas na
minha frente

\
no estou interessado em impedir a sia de ser sia e os governos da Rssia e
da sia subiro e cairo mas a

sia e a Rssia no cairo o governo da Amrica tambm haver de


cair mas como pode

a Amrica cair duvido que mais algum caia a no ser


os governos felizmente todos os governos havero de cair os
nicos que no cairo so os bons e os bons ainda no existem

Mas les tm que comear a existir, les existem nos meus poemas les existem
na morte dos governos da Rssia e da America les existem nas mortes de
Hart Crane & Maiakovski Agora o momento de profetizar sem morte como
conseqncia o universo haver finalmente de desaparecer Hollywood
apodrecer nos moinhos da Eternidade Hollywood cujos filmes no descem
pela garganta de Deus Sim Hollywood receber o castigo que merece em seu
tempo

como tambm as baboseiras que escorrem dos rdios A Histria tornar essa
poesia proftica e sua horrvel estupidez

18
uma hedionda msica espiritual eu possuo o arrulho das pombas e as
penas do xtase o homem no pode suportar por muito tempo a fome do
canibal

abstrato a guerra
abstrata o mundo ser destrudo

mas eu morrerei unicamente pela poesia que haver de salvar o mundo

O monumento para Sacco & Vanzetti ainda no foi financiado

para enobrecer Boston os nativos do Qunia atormentados por loucos


criminosos da Inglaterra

a frica do Sul nas garras dos brancos alucinados

Vachel Lindsay Ministro do Interior

Poe Ministro da Imaginao

Pound Ministro das Finanas

e Kra pertence a Kra e Putki a Putki

fertilizao cruzada de Blok e Artaud

o Sudo irrigado e tambm as belas cidades do Saara

a orelha de Van Gogh como moeda corrente

19
no mais propaganda para monstros

os poetas devem permanecer fora da poltica ou se tornarem monstros

eu me tornei monstruoso com a poltica

o poeta russo certamente monstruoso nos seus dirios secretos

o Tibete deve ser deixado em paz

Estas so profecias evidentes

A Amrica ser destruda

os poetas russos lutaro contra a Rssia

Whitman advertiu contra a "maldita fbula das naes"

Onde estava Theodore Roosevelt quando Whitman enviou seus

ultimatos de seu castelo em Camden Onde est 1


" itantes quando
Crane deu leitura

O que planejava Wall Street quando Lindsay anunciou o fim do dinneiro

o fim da sadstica bca financista do ouro? Estariam les ouvindo meus


delrios nas salas trancadas da Agncia de Empregos Bickford? Ouviram les
os gemidos da minha alma quando lutava com as estatsticas de pesquisas de

20
mercado no Frum em Roma? No, les estavam lutando em escritrios
luxuosos, em cima de taptes macios, gritando e negociando com o Destino
lutando contra a Morte com espadas, mosquetes, mordidas, in- digestes,
bombas de furto, prostituio, foguetes, pede- rastia,

bem protegidos a fim de construir suas esposas e apartamentos,

seus gramados, subrbios, reinos encantados, Os porto-riquenhos


reuniram-se para um massacre na Rua 114 por causa de uma geladeira
chinesa-moderna falsificada Os elefantes da misericrdia foram mortos por
causa de uma

f
aiola elizabetana

e fanticos exaltados esto no hospcio por causa da desafinada


soprano da indstria anncios cantados de sabonetes macacos escovando os
dentes nos aparelhos de televiso desodorantes em cadeiras hipnticas

negociantes de petrleo no Texas avio a jato passa tda

velocidade entre as nuvens aviadores que escrevem mentiras na


face da Divindade, exploradores cruis de gravata e chapu, todos
Proprietrios! Proprietrios! Proprietrios! com obsesso na
propriedade e na individualidade evanescente! e seus longos artigos
indiferentes a respeito do negro que gritava ao ser atacado por
formigas que nos agridem na pri

meira pgina dos jornais!

A maquinaria de um sonho eltrico das massas! A prostituta de Babilnia


provocadora de guerras rugindo por cima dos Capitlios e das
Academias!

21
Dinheiro! Dinheiro! Dinheiro! berros loucos do dinheiro da iluso celeste!
Dinheiro feito de nada, de fome, de suicdio! Dinheiro do fracasso!
Dinheiro da morte!

Dinheiro contra a Eternidade! e os poderosos moinhos da eternidade moem os


imensos papis da Iluso!

HERBERT GOLD

A Mistificao Beat

GOLD um dos escritores mais brilhantes do momento; seus romances, no


entanto, nem sempre esto altura de sua incan- descncia verbal; fora isso le
incorre, algumas vzes, em verdadeiras faltas, como vero nessas pginas de
luta violenta em ue le no hesita golpear o adversrio abaixo da cintura.
Apesar isso, um autor inteligente, bem informado e seus contos possuem um
timo ritmo. 'Em suma, um indivduo extremamente talentoso que se sai bem
de qualquer situao embaraosa. Um colhedor de talentos isolados, como o
apresentador dste livro, acredita que se Gold adicionasse nas suas histrias
desabusadas um pouco da crena sagrada de Dreiser, le s sairia ganhando
com isso. E provvel que por trs da poderosa ironia glacial dste incansvel
trabalhador, encontre-se um esprito ardente e apaixonado.

Em Greenwich Village, um jovem mendigo de aparncia sono- lenta, vestido


com um terno de vero surrado e imundo que havia passado pela
universidade, e uma camisa de colarinho alto com os dois botes faltando,
aproxima-se de um casal bem vestido e lhe pede: "Me d um dinheiro para um
Cadilaque?"

Em Nova Orleans, uma bela manequim de uma loja de artigos femininos


aborda um homem numa festa, tira o suter, depois o soutien e diz para le:
"Vamos nos divertir, t?" expresso essa que significa para ela: Que tal a
gente ouvir sse nvo disco legal no toca-disco, hein? Se o homem arrisca tocar
em alguma outra coisa alm do brao do aparelho, a jovem lhe dir: "Voc
um selvagem, um homem sem modos. S mesmo lhe podando". O que
significa que le no constar mais nas futuras listas de convidados.

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Em Denver, um bando de rapazes, sem saberem o que fazer numa noite
quente de primavera, resolvem roubar um carro cada um dles; dirigem-se
ento para a outra extremidade da cidade onde estacionam os carros roubados;
roubam em seguida outros carros e colocam-nos no lugar dos primeiros. Feito
isso, acomodam-se em um local prximo e assistem com um sorriso de
satisfao enorme confuso criada entre os donos dos carros roubados e a
polcia. Silncio. Nova onda de tdio. Finalmente um dles diz, com a voz da
preguia: "Ei, por que no nos lembramos de pegar umas gurias?"

Em St. Louis, uma ma e seu namorado, que tocava anteriormente


bateria em um conjunto de jazz, comeam a ter problemas de dinheiro com a
vida desocupada que levam. Aps algumas tentativas do rapaz em prostituir
sua companheira, resolvem recorrer a um velho conhecido, pedindo-lhe casa e
comida por alguns dias. O que lhes concedido. Enquanto o dono da casa
estava no trabalho os dois telefonam para um amigo em So Francisco, contam
o ocorrido e sugerem, aps terem conversado algum tempo, que o conhecido
de So Francisco deixe o telefone fora do gancho, prendendo assim a ligao
interurbana. Como o dono da casa s receberia a conta no fim do ms, no
haveria perigo para les. Ao serem interrogados por que haviam feito isso,
responderam: "Porque le to quadrado, meu Deus, to quadrado!"

Em Detroite, um engenheiro eletrnico interessa-se pelas dificuldades por


que passa um jovem casal de estudantes. Sim, amor verdadeiro o que sentem
um pelo outro, mas o diabo que no tm lugar para ir. O banco traseiro do
carro s serve para brincadeiras de adolescentes e alm disso d dor nas
costas. Est certo, les podem usar seu apartamento. O que o jovem casal no
sabe que existe um microfone instalado no interior do colcho. Dias mais
tarde, o amigo que cedeu o apartamento convida os dois a uma festa onde
passa a gravao.

Em So Francisco, um grupo de jovens poetas anuncia a Noite da Poesia


Religiosa, atraindo um mundo de senhoras devotas e gorduchas que adoram
essas coisas. H de tudo: chapus vermelhos, vus no rosto, bustos pesados e
imponentes. O primeiro poeta levanta-se para fazer sua leitura. "C de P !"
grita le para a assistncia.

Em uma rua de Chicago, um sujeito com cara-de-pau pra um transeunte


na calada, aperta-lhe a mo e diz: "Ol meu chapa, aperta aqui essa mo.

Desculpe, mas no lhe conheo.

23
Eu tambm no lhe conheo, mas que tal uma farrinha?" E o estranho
se afasta lentamente; sua aparncia sonolenta, feminina e passiva no desperta
nenhuma confiana; pelo contrrio, sugere baixezas impensveis, coisas enfim
que o fazem sentir-se importante. le no conhece ningum e diz "meu chapa"
para qualquer pessoa, porque no quer se aborrecer lembrando nomes.

Em Nova Iorque um escritor, Jack Kerouac, prepara-se para uma


entrevista na televiso. "Somos beat, meu velho", diz le. "Beat significa
beatfico, significa que voc est por dentro, significa muita coisa. Fui eu que
inventei sse trmo". le declara em seguida para os espectadores da televiso:
"Gostamos de tudo, de Billy Granam, dos Big Ten, do rock and roll, do Zen
budismo, de tortas de ma, do Presidente Eisenhower vibramos com tudo
isso. Estamos na vanguarda de uma nova religio". Jack Kerouac refere-se
constantemente, em seus livros, a Charlie Parker como Deus e a si mesmo
como o Profeta.

stes so os hipsters.

Quem o hipster, o que significa ser hipster? O animal puro to difcil


de ser encontrado como o "estudante" puro ou o puro "homem do centro
oeste". De qualquer forma, tentemos acompanhar o rasto de sua histria e de
seus sintomas. Descobriremos provvelmente que a expresso "puro hipster"
equivalente a "100%" americano isto , um produto instvel de contedo
indefinido.

O hipsterism originou-se com o esfro complexo do homem prto em


recusar o papel que lhe era imposto de animal feliz e sorridente. Alguns pretos
das capitais, dotados de uma elevada autoconscincia, comearam a imitar a
atitude reservada do homem branco, sua maneira distante e reticente. Dessa
forma, criaram um estilo de comportamento que era tanto uma crtica aos seus
antepassados que cantavam passagens da Bblia e que adoravam o jazz,
quanto uma pardia dos brancos distantes e indiferentes. les improvisaram
assim sbre um tema livre como fazia a msica bop exigindo dos
ouvintes uma partici-

24
E ao ntima e total. Caso contrrio, ouvia-se apenas uma terrvel arulheira
de instrumentos. Os culos dos intelectuais, com seus aros de chifre, passaram
a ser conhecidos como "culos bop". Isso porque provocavam belas vises. A
piada tinha sua razo de ser.Foi a partir dessa poca que alguns brancos
adotaram a moda dos prtos, complicando a piada pelo fato de parodiarem
uma araia dles mesmos. A msica cool foi a expresso artstica essa frieza
aguda. Entretanto, para que os adeptos se abstives- sem da dana, da gritaria e
das emoes fortes, surgiu a necessidade de um elemento tranqilizante, e le
foi encontrado na herona. Alguns msicos da velha guarda, adeptos do hot
jazz, haviam feito uso da marijuana, outros do lcool; esses excitantes atuavam
como molas que os jogavam para o alto durante uma sesso. Contudo, havia
um forte preconceito nessa poca contra os msicos que tomavam drogas
injetveis; acreditavam muitos que havia o perigo de se injetar uma blha de
ar na veia. He he, isso no, diziam les. Alm disso, afirmavam, os drogados
tocavam mal seus instrumentos, fssem les bateria ou saxofone. No tinham
idia do que estavam fazendo.

A nova gerao contudo deu preferncia a uma msica ntima, super-


celestial. A herona dissolvia o esprito de grupo e cada qual tocava sozinho,
ou voava solitriamente em direo a seu paraso artificial. E sem perder o
ritmo da msica, que era o principal.

E como muitos outros jovens norte-americanos sentiam-se atrados pelo


esprito beat e apreciavam manifestar uma atitude distante ("cool"), eis que
surgiram trs hordas rebeldes nas fileiras da primeira sociedade hipster, essa
espsa ainda virgem da tranqilidade bop: 1. os freqentadores das ruas
principais da cidade, com suas costeletas compridas, motocicletas e calas blue
jeans; 2. estudantes e alguns literatos, que encontravam na atitude distante do
drogado uma expresso visvel da frustrao dos que esto acostumados a
viver na abastana e que ficam a zero de repente; 3. a classe bomia mais
elevada, cansada de Van Gogh, filmes italianos, testes de inteligncia e sexo,
disposta por conseguinte a experimentar a anti-arte, o anti-sexo, o no-
movimento do anti-delrio. Entre sses ltimos encontram-se os esnobes da
Madison Avenue, as jovens manequins que se despem nica- mente para
manifestar seu desagrado pelas revistas de moda, os publicitrios e advogados
que se casam com prostitutas de classe ("call-girls"), o batalho dos
privilegiados manipu- ladores de smbolos, abarrotados de dinheiro e de
dvidas, corados por fora graas aos banhos de luz dos aparelhos General
Electric e vermelhos de vergonha por dentro, e que manifestam suas
depresses de benzedrina criticando tudo luz de um poste. "Sabe de uma
coisa... Albert Schweitzer no me convence com seu ar de santo... verdade
que le fugiu de casa com a Kim Novak?"

If
Todo mundo diz, comenta uma linda jovem que est sem programa para a
noite, que eu sou tremendamente enjoada... Pois bem, fale a verdade: voc
gostaria que a gente fizesse uma bobagem essa noite? Por mim, eu no me
importaria... Meu nome Uvinha, e o seu

If
?Examinemos agora, mais de perto, o corao de guia do jovem hipster.
Quando o hipster tem uma relao sexual com uma mulher, le no admite
gostar dela. Mostra-se indiferente. Sugere a ela que d os primeiros passos. O
prazer mximo para le consiste em no pensar em nada, permanecer
inteiramente ausente, um cidado da Cidade-do-xtase, enquanto a mulher
brinca de gangorra em cima dle. Se por outro lado o hipster tem uma
aventura com um homem, no porque seja um homossexual convicto, mas
unicamente por dinheiro, para pegar uma carona at em casa, ou ento para
passar o tempo enquanto espera seu grupo de amigos. Quando o hipster rouba
um carro, le no foge com le, nem tampouco o vende: le o esconde num
lugar onde os quadrados vo suar para encontr-lo, e escreve com sabo no
parabrisa essa mensagem "Mort Louis A". Quando o hipster ouve msica, l
Proust ou estuda religio, le o faz somente para ter assunto de conversa, para
ter alguma coisa na mo ou no blso da cala, quando no apenas para
exibir-se diante dos amigos; tdas essas ocupaes no fazem o menor sentido
para le. Mas no faz mal, diz le, tanto melhor quanto menos sentido
fizerem.

Em outras palavras: o hipster o exemplo acabado da fuga da emoo.


como uma geladeira que funciona mal: ela trabalha sem parar, faz um barulho
dos infernos e esquenta tremendamente, e tudo isso com uma nica finalidade
produzir frio. Essa geladeira acionada pelo crime sem nenhuma
necessidade econmica. Um editor lamenta-se com um escritor hipster: "Veja
voc, quando eu dormia nos bancos e me alimentava de cachor- ro-quente, eu
agia assim porque era obrigado. Meu problema era simples: precisava comer e
dormir. No fazia isso para contar

E
ara os outros". Essa geladeira acionada pelo sexo sem que aja paixo; a nica
paixo existente matar o sentimento, exterminar as ansiedades. Essa
geladeira acionada pela religio sem haver f; o hipster atormenta-se a si
mesmo procura da escurido total do esquecimento, e todos os alvios que a
religio forneceu aos msticos do passado s serviriam para importunar a
colossal apatia que le busca. Ao contrrio de On, que jogou a semente do
homem na terra, o hipster atira fora sua mente e considera isso um ato
religioso. le usa igualmente da msica, da arte e da religio como se fssem
emblemas de identificao. Em lugar dos apertos de mo clandestinos que o
teriam introduzido nas sociedades secretas do passado, como o "Uncle Don's
Boys Club" ou a "Orphan Annie Secret Society", sua senha agora : "Voc
manja Charlie Parker? Proust? Zen budismo?"

Eu sou hip diz o amigo. Essa resposta significa: No precisa explicar


mais. Moro nessa jogada. Estou de acordo. Entendo o que voc diz. Muita
calma. Vai pela sombra. At mais, ento.

1
A linguagem dos jovens hipsters um meio em vista da no-comunicao.
Um sinal de silncio. A verdadeira conversa tomar drogas. Isso porque os
narcticos, mais do que qualquer outra coisa, do aos rapazes beat exatamente
o que precisam: relaxamento do corpo e da imaginao, a iluso de um
mergulho fora do tempo na eternidade. No um sentimento de onipotncia
que les buscam, como poderia parecer. Em outras palavras, eles anseiam por
uma tranqila simulao da morte. tolice pensar que as drogas geram
manacos sexuais, como do a entender certas histrias sensacionalistas e
sentimentalides. O homem viciado no deseja outra coisa na vida seno sua
dose de excitante. le indiferente a tudo mais. Tranqilo, tranqilo. le pode
praticar terrveis violncias para conseguir sua rao de droga, mas no por
razes sexuais: o prazer sensual no tem nada a ver com os sonhos da herona.
O rosto delicado e desbotado do viciado, com seus olhos apagados e
submissos, a bca entreaber- ta, tem algo de feminino na sua doura. No
existe agressividade ou amor nle.

2
A herona permite ao lpster tornar-se a sentinela de sua alma, sonhando
com um tranqilo nada, um belo e indiferente nada, enquanto seus ps
tamborilam no cho de nervosismo e le abre e fecha o canivete de mola, estala
sem parar as articulaes dos dedos, ou folheia agitadamente um exemplar de
Proust. No preciso dizer que os hipters mais moderados no tomam
herona.A voga atual por tudo que hipster linguagem, maneiras e
costumes indica que no se trata de "um fenmeno isolado". Jack Kerouac
proclamou: "Mesmo os estudantes das grandes universidades esto se
tornando hips." Originrios da msica bop, do uso de narcticos e da suti
revolta dos prtos contra a acusao de serem "felizes, ardentes e emotivos", os
hipsters adotaram como um de seus modelos principais um dos mais tpicos
fenmenos norte-americanos: o cinema. O hipster ignora o conselho dado por
John de Garland, moralista religioso do sculo XIII, que disse: "No peque
contra a carne, estudante! Tenha modos quando estiver em p ou sentado,
no se coce!" Os hipsters da escola de Stanislavsky vivem se coando, como se
a angstia da alma que sentem fsse proveniente de mordidas de pulga;
andam com a cabea inclinada sbre o peito como se fssem catar alguma
palavra de Marlon Brando cada no cho, ou alguma notcia do paraso
subterrneo de James Dean. A sombra cinematogrfica de James Dean, ou do
Marlon Brando do filme "O Selvagem", parte da imagem do hipster, quer seja
le o hipster corado e boa pinta das universidades, que se contempla a si
mesmo na vitrina de uma dessas lojas ortopdicas que operam os ossos do
ombro, quer seja o hipster subnutrido e cabeludo que anda com uma garota se
balanando no assento traseiro de sua ruidosa motocicleta Harley Davidson,
modlo 74. Em muitos cinemas onde o filme "O Selvagem" foi exibido, houve
verdadeiras reunies no banheiro dos homens depois da sesso; filas de
motociclistas, com seus bluses de couro arranhados de unha, miravam-se
com adorao diante dos espelhos como se repetissem essa ou aquela cena do
filme. Cada um dles julgava-se um outro Brando, distante ou violento. Ou um
outro Marlon, frio e impassvel. Ficavam em fila sem se envergonharem, quase
sem se envaidecerem (to puro era o sentimento!) como proslitos que se
preparam para a cerimnia expiatria em seus hbitos de penitncia, as
costeletas compridas, correntes de prata balanando nas mos e no peito,
cabelos compridos aparados na nuca, como a cauda de certas aves. No se
cocem, turma!

3
Assim, as linhas de comunicao dos hipsters estendem-se desde os
cinemas poeiras das cidadezinhas do centro-oeste at os sales elegantes de
Nova Iorque ou So Francisco. les nos lembram os teddy boys da Inglaterra,
os jovens rebeldes do Japo derrotado, os existencialistas anmicos de Saint-
Germain-des Prs, em Paris, cantarolando as velhas msicas de jazz ouvidas
nos antigos discos de 78 rotaes. Os apologistas do movimento beat,
especialmente os jovens literatos de So Francisco e Nova Iorque, recorrem
freqentemente histria a fim de exumar os gnios criminosos da poesia
francesa Rimbaud, que desapareceu misteriosamente na frica, Villon que
terminou a vida danando numa frca, Genet, que est fazendo atualmente
um grande sucesso na literatura e no teatro em Paris, aps uma carreira de
latrocnio, chantagem e prostituio masculina. A diferena fundamental entre
o hipster literato da Amrica do Norte e seus modelos estrangeiros est no fato
de que os grandes artistas criminosos do passado eram verdadeiros prias
sociais: no eram les que se expulsavam a si mesmos do convvio da
sociedade. les eram expulsos por preconceitos de classe e presses
econmicas. Alguns hipsters norte-americanos tiveram realmente um
comportamento espetacular sobretudo no hospcio; um dles brincou de
Guilherme Tell com sua mulher e estourou-lhe os miolos. So exem- pios
isolados, porm, e no so de forma alguma o produto de uma perseguio
social em grandes propores. Alis, quem no tem seus dramas pessoais? Eu
entendo os de vocs, rapazes, mas eu tambm tenho os meus.

De qualquer forma, o hipster de 1958 no o arrojado trovador medieval,


prncipe da poesia e das prises sem conta, nem o poeta aventureiro e
romntico das geraes seguintes, nem tampouco o desempregado revoltado
da poca da Depresso: o liipster de hoje o verdadeiro rebelde sem motivo.
Ou melhor, le tem certamente um motivo: seu ego destrudo, ainda que seja
um ego sem necessidades ou relaes humanas. O hipster norte-americano
um vagabundo silencioso com uma grande tendncia para a criminalidade,
um andarilho que reluta em aceitar as obrigaes dos homens, um flanador
levemente afeminado que ronda as cenas de violncia. Se no pode ser um
grande heri nos tiroteios de guerra, como Gary Cooper, le se consola tirando
o escapamento de sua motocicleta, como Marlon Brando. Acima de tudo, le
est possudo pelas trs grandes doenas do homem norte-americano: a
passividade, a ansiedade e o tdio. Individualistas sem individualidade,
rebanho sonolento de pensadores que no pensam, turba solitria na sua
solido mais la- murienta, era natural que os jovens hipsters recorressem
herona como uma forma de submisso absoluta. Como ocorre na submisso
pelo tdio televiso e ocupaes similares, substitutos da inventividade
pessoal, o uso dos narcticos supe a abdicao do senso comum entre
pessoas que no tm a coragem de trilhar os prprios caminhos.

Eu experimentei de tudo, meu chapa.

4
E o que voc pretende fazer agora?

No sei, meu chapa. Inventar uma novidade qualquer, quem sabe...

Se a descrio do hipster como um tipo "passivo" parecer severa ao leitor,


veja o que diz o dicionrio a respeito dessa palavra: "Em medicina:
pertencente a certas condies mrbidas caracterizadas por deficincia de
vitalidade e reflexos."

A palavra hipster surgiu com o movimento bop; significava musicalmente


uma atitude calma, relaxada, associada ao mesmo tempo com o consumo de
narcticos uma forma de se manter calmo sexualmente. O hipster que toma
um entorpecente no um anarquista sexual: le um zero sexual, e a herona
sua mame e seu papai. (O passador de narcticos, no romance A Hatful Of
Rain, chamado de "mame"). No todo hipster naturalmente que espeta
uma agulha na tatuagem do seu brao, mas so os que assim agem que do a
nota ao movimento. Os rapazes mais "avanados" na turma chamam-se uns
aos outros pelo nome de "paizinho", como se a passividade dles chegasse ao
ponto de confundir qualquer homem com a imagem do pai protetor.
verdade que o msico ambulante no se pode dar ao trabalho de lembrar o
nome de cada pessoa que conhece, da chamar a todos, indistintamente, de
"meu chapa", "velhinho", "paizinho". No fundo les adoram a fantasia da
brutalidade masculina criada por Tennessee Williams, William Inge e outros,
que foram os inventores de um nvo heri teatral: o grande macho.
Deliciosamente brutais, desprovidos dos principais atributos da verdadeira
virilidade inteligncia, finalidade e controle sses fantoches masculinos
so as ondulantes Mae West do melodrama popular. Depois da morte, James
Dean e Charlie Parker foram considerados imortais. Tendo sobrevivido e
passado um pouco da idade, Marlon Brando foi julgado um traidor do mito
dos suicdios sagrados com carros-esporte ou herona. les teriam talvez
perdoado a Marlon Brando seu recente desintersse pelo bong; sua calvcie
precoce, contudo, um crime imperdovel. O nvo heri, forte e silencioso,
deve ser tambm frgil e lindinho.

Uma das veredas mais curiosas do hipsterism a que leva aos distantes
acampamentos religiosos. Jack Kerouac diz: "Estamos na vanguarda de uma
nova religio'. Essa frase soa mais ou menos como a do franciscano cpe
declarava ser o campeo mundial da humildade. Os jovens ' santos"
cultivaram So Joo da Cruz durante uma poca, depois se apaixonaram pelo
cerimonial da Igreja Catlica, mais tarde tornaram-se admiradores ferventes
de So Francisco de Assis; em seguida passaram para as fantasias religiosas
bizantinas, gregas e ortodoxas, com cones e incenso queimando, cenrio em
tudo igual ao de um romance de Dostoievsky. Recentemente, alguns dentre
les comearam a chamar-se Zen hipsters e o Zen budismo alastrou-se como a
gripe asitica. Assim comum hoje em dia encontrar num restaurante chins

5
de So Francisco no lugar da tradicional sorte que embrulhava os pauzinhos
com que se come, essa mensagem: "Prove o nosso tre- mento Sukiyaki Zen. S
um quadrado gosta de comida chinesa". A promiscuidade na religio significa,
como no caso da herona, um sinal de desespro, um recurso desesperado
num momento de aprto, um mergulho passivo na irracionalidade. A doutrina
Zen, como as demais religies, possui seus aspectos admirveis, mas o hipster
passa atravs dles como um acrobata de circo passa por um crculo de papel:
le vai cair na eterna falta de confiana em si mesmo que o espera dentro da
tina gelada. As atividades religiosas dos hipsters curam a angstia que lhes
causa o mundo da mesma forma que danar de rosto colado cura a halitose.

No de espantar que le diga: "Ah estou na onda... estou bem no alto da


onda... sou o mais religioso, o mais humilde dos homens... estou no alto, meu
velho." Se le gagueja porque alguma coisa est faltando, talvez a parte vital,
as operaes centrais da mente. Sua alma, o significado das coisas, sua
dignidade individual (chamem pelo nome que quiserem) foi extirpada como
desnecessria por uma civilizao que produz muitas coisas sem uma
finalidade recomendvel. le sente que o amor no mais amor, o trabalho
no mais trabalho, at mesmo o protesto perdeu a razo de ser. Diante da
enorme diversidade de produtos postos a venda o hipster escolhe o pior de
todos os produtos da ansiedade: o tdio. Essa sua reao diante de tudo que
a existncia moderna lhe oferece como bens de consumo, conforto, segurana
no futuro. Sua ansiedade pelas perspectivas da vida gera o tdio. E o tdio por
seu lado provoca uma maior ansiedade. Enquanto o homem da classe mdia
compra um tijolo para a nova igreja do seu bairro (Ser que Deus precisa dessa
pista de boliche?), o hipster procura resolver seus problemas pessoais
adquirindo livros de histrias Zen, ou coisas no gnero que estejam na moda.
Naturalmente le agueja ao comentar o que leu: "Legal, velhinho, muito legal",
eu desejo, ao folhear sses livros, parar com a inquietao, com o tamborilar
de mos e pernas, com a trepidao do corpo. le se julga um gnio de
sabedoria porque no tem mulher, filhos, nem responsabilidades. Como
tambm no trabalha nem pertence a nenhum partido poltico. O homem
mdio tambm possui e no possui essas coisas. Quem pode chamar de
trabalho o fato de passar adiante tiras de papel? A maioria dos norte-
americanos so passadores de tiras de papel. Como pode ser o amor da mulher
e dos filhos mais do que um hbito social se o homem sente, na sua condio
de homem (e no enquanto marido ou pai), que le no possui nenhuma
autoridade fora de sua casa?

Quando o lar o nico castelo do homem, sinal que le no possui um


castelo.

Tanto a elegncia de maneiras quanto a ambio so caractersticas do ser


humano, e no dos animais, ainda que os ratos e os coelhos aprendam o
sentido do desespro graas a repetidos choques eltricos. Diante da ameaa
de uma absoluta manipulao social, o hipster lana mo de seu ltimo

6
recurso: le dana dentro da jaula, abana o rabo e salta sbre os fios
eletrizados.

A afirmao generalizada segundo a qual os norte-americanos tm


verdadeiro culto pela posse de objetos ou bens de consumo no suficiente
para explicar sse fenmeno. Os norte- americanos exigem tambm
manifestaes de fra, sejam elas vividas pessoalmente ou assistidas pela
televiso. sse fato poderia ser considerado uma necessidade natural se a
miragem obsessiva do poder no perturbasse a tranqilidade que d um
sentido vida e permite ao homem enfrentar seus problemas pessoais, sejam
les o trabalho, o afeto dos seus, a educao dos filhos, a morte. Certas
experincias afastam-se mais do objetivo que temos em vista do que dle se
aproximam, e cada vez isso ocorre a uma velocidade maior. A experincia no
deu resultado, tentamos experincias mais violentas; elas ainda no o foram
suficientemente, recorremos a outras mais violentas e assim sucessivamente.
A televiso como meio de distrao algo to pouco condenvel quanto um
bom usque: ambos podem ser bons amigos. O que prejudicial ficar na
dependncia de um ou de outro, como ocorre com os espritos debilitados.
Viver uma experincia imaginria, como meio de distrao e relaxamento,
uma grande experincia que nossa fantasia nos permite. Ficar atordoado,
porm, com a experincia algo completamente diferente: o desespro pelo
choque eltrico.

Sensvel a tudo isso, o hipster decidiu dar o fora abandonar essa vida
no ter mais nada com isso. Em lugar de ser um dos membros da massa
humana que passa horas sem conta diante dos aparelhos de televiso, le se
transforma numa audincia isolada e individualista diante de uma ampola de
narctico. le desistiu de ser uma criatura humana nos moldes sociais
contemporneos. Chegou concluso que os problemas dessa sociedade no
lhe dizem respeito. le simplesmente se desinteressa, afasta-se. E o homem
que se ocupa com essas ninharias denominado pelo hipster de "alienado".

Seja como fr, o hipster um membro dessa alucinada Amrica onde um


Tab Hunter declara, numa entrevista, que s conse- ue dormir abraado ao
seu ursinho Teddy. O hipster a vtima a mais desesperada condio de
escravido a do escravo que no sabe que escravo e orgulha-se de sua
dependncia, deno- minando-a "liberdade". uma doena incurvel? Quase.
Sua atitude de negao e passividade batizada com os nomes de religio e
revolta, quando se trata simplesmente de um fenmeno de massa. sses
niilistas navegam sonhadoramente pelo Nilo das estradas norte-americanas,
consumindo a maior parte do dia fazendo programas para a noite, e terminam
por convencer-se a si mesmos, como aconteceu com Jack Kerouac, que Charlie
Parker Deus. Os jovens personagens do romance On The Road anseiam por
uma paz interior dentro de sua existncia beat, uma "beatitude" que se
harmonize com suas calas blue jeans e seus cabelos sujos, sonhando com
aventuras fantsticas na companhia de jovens maravilhosas (que tambm
usam calas blue jeans e andam com os cabelos imundos). Ocasionalmente,

7
como ocorre com alguns fanticos do tipo sub-hipster apresentados por
Kerouac, o sexo substitui-se aos entorpecentes. No fundo, trata-se de mais um
substituto para uma vida sexual normal. A mesma gulodice que certos
homens revelam pela posse de bens, Kerouac empresta aos delrios erticos de
seus personagens, esquecendo-se que se um boiadeiro usa do sexo como
ferro, cada espetada torna mais rombuda sua ponta.

O hipster um fenmeno tpico das esquinas, dos bares e das festas, uma
criatura dos aglomeramentos humanos. Um Rimbaud isolado pode ser um
gnio uma multido de Rimbauds apenas uma moda passageira. A voga
anterior da psicanlise tinha pelo menos uma coisa a seu favor. Freud
acreditava no valor excepcional das emoes humanas, por mais que
afirmasse a necessidade de serem controladas pela inteligncia. Em outras
palavras: le aceitava a sociedade independentemente dos prejuzos trazidos
pela civilizao. O hipster desiste da sociedade, abandona a inteligncia e
acredita estar beneficiando suas emoes ao agir assim: le no percebe que
sua passividade liquida exatamente com sua personalidade. O que resulta
um indivduo abobalhado e irrequieto, apesar de alguns lderes do movimento
possurem um talento vivaz. No devemos nos espantar pois se os "melhores
representantes" dessa gerao esto no manicmio. Catatonia, estamos
chegando!

sses barulhentos pssaros lunares assemelham-se a satlites artificiais


que os burocratas houvessem lanado no ar da realidade espacial, onde giram
dentro de uma rbita predeterminada, mandam sinais cada vez mais fracos
terra, perdem pouco a pouco altura, incendeiam-se, explodem e desaparecem.

Quando Yeats olhou para o futuro na esperana de descobrir um


poderoso salvador, que houvesse evoludo da animalidade para alguma forma
bizarra e maravilhosa e escreveu sses versos

Que animal selvagem sse

sua hora tendo soado finalmente que caminha de


cabea baixa em direo a Belm onde h de nascer?

le no se referia certamente a James Dean. Talvez, como pretendem alguns,


a absteno dos sentimentos humanos pregada subtcrrneamente pelos
hipsters gere uma nova sinceridade da emoo. Talvez o gamb aprenda um
dia a voar, mas se o mesmo acontecer com o homem admito, "meu chapa", que
h de ser um pssaro bem estranho.

8
JACK MICHELINE

vozes da rua em nova Orleans

JACK um pedao da vida: priso em So Francisco, lutas e correrias contra os


rabes em Israel, vida e poesia no bairro negro do Harlem. le um cantor de
rua. Suas calas esto sempre uns cinco dedos acima do sapato mas em
compensao, como le mesmo diria, sua vida valeu a pena. E isso significa
para le ver poesia nas coisas e escrever como quem toca msica, e de fato a
musica escorre dle como de uma fonte. Sentimental algumas vzes, excelente
em outras ocasies. Mich estve em gestao no bairro do Bronx, em Nova
Iorque, e descobriu-se a si mesmo na Humanidade Ocidental, no pas do Eu.
Seu futuro uma incgnita, mas seu presente inspiradamente real. Preserve
seu talento a qualquer preo, irmo Jack! le grande, meu velho.

rua abaixo

bairro pobre

misria

Mary Lou

preta bonita

lavando janelas

lata de lixo

tristeza

9
misria

bairro pobre

rua abaixo

preta bonita

tristeza

homem da carrocinha

bondes

fim da linha

bar tristeza

apostador de cavalo

charrete passando

rua abaixo

bairro pobre

roda de carroa tristeza

10
rosto prto

preta bonita

charrete passando

Rua Prager

tristeza

Nova Orleans

po francs

fatia de broa

gasolina

benzedrina

noite louca

amante louco

tristeza

Nova Orleans

11
ma gorda

ma magra

rosto feio

misria

sotaque do sul

risada de prto

tristeza

olhos prtos

dentes de ouro

sapato brilhando

Nova Orleans

gafieiras

salas de jazz

academia Newcombe

12
rosto de boneca

tristeza

bairro pobre

misria

quarteiro francs

Rua Decatur

noite aflita

tristeza

Carteiro

poca do Natal

copo d'gua

Tulane

nada de trem

tristeza

13
Lojas populares

Rua do Canal

So Charles

Dauphine

Beco dos Piratas Rabino


tristeza

Noite fria

rvore alta

gosto de voc meu bem

escola de brancos

escola de prtos

escola nenhuma tristeza

Mulata

bolinhas na bebida

garota quente

14
noite inteira

bairro pobre

misria

vou andando tristeza

sentado na rua

rosto meigo

grande garota

mulher velha

moleques na esquina risadas


tristeza

Olhos negros

dentes de ouro

sapatos brilhando

Pastor gordo

gente pobre

15
bebendo cerveja

pastor diz

esperem pelo paraso gente


pobre

cantando tristeza

Olhos negros

Dentes de ouro

Sapatos brilhando

Rua abaixo

bairro pobre

misria

preta bonita

tristeza

Olhos negros

Dentes de ouro

16
Sapatos brilhando

Sapatos brilhando

NORMAN MAILER

Cenas da Pea "The Deer Park"

MAILER EST muitssimo ocupado sses dias tentando harmonizar sua verso
pessoal do fenmeno beat com sua filosofia Hip que , na sua opinio, a
semente de uma nova religio equivalente ao judasmo ou cristianismo. O
fenmeno hip para Mailer significa um grande perodo de transio
caracterizado pela "violncia, histeria coletiva, confuso e revolta". A
finalidade dsse movimento liquidar com a moral puritana dos brancos, de
efeito inibitrio, que fz da Amrica do Norte um "pas doentio, proliferando o
cncer em tdas as criaturas vivas". Mailer possui uma imaginao
exuberante, ao mesmo tempo nobre e sinistra, impiedosa e brilhante. Na pea
"The Deer Park" adaptada do romance com o mesmo nome que foi
considerado demasiado obsceno at mesmo para uma poca obscena como a
nossa sua imaginao encontra terreno propcio em alguns personagens
fascinantes: Eitel, o diretor de cinema de Hollywood que foi prso por no ter
querido debater seu passado comunista perante uma junta de inqurito;
Marion Faye, o cften hip; Elena, a jovem desiludida que deseja ser uma
prostituta de classe ("call-

f
irl"); e Colhe Munshin (que no aparece no palco), produtor os filmes que Eitel
dirige e colecionador de mulheres jovens e elegantes. Mailer aborda sses
personagens de maneira madura e consciente, ao contrrio de muitos outros
escritores beat; le conhece intimamente o mundo das finanas e do sexo nas
altas camadas sociais. E deve isso a seu estrondoso sucesso, com 25 anos,
quando da publicao do romance "The Naked and The Dead". Embora Mailer
critique vez por outra alguns tipos bomios no que possuem de excntrico e
risvel, inegvel que le aprendeu muito com os autores beat, por mais que
tenha em- restado ao material apropriado o cunho dramtico que lhe pessoal.
Contudo, o talento de Mailer revela-se realmente pujante e aterrorizante
quando le aborda certas situaes criadas pelo mundo atual. Como so, por
exemplo, os conflitos que surgem na relao homem/mulher quando se
chocam contra um ambiente noturno e melodramtico, onde pulula o
dinheiro, o suicdio e a prostituio temas esses to explorados pelos
programas de rdio, revistas e jornais escandalosos. Mailer revela ento uma
maestria surpreendente para sua idade. le possui qualidades enormes como

17
escritor, se bem que uma certa leviandade, facilidade e presuno
prejudiquem-no s vzes. O que d, porm, a seu mundo a aparncia
assustadora de serpente, sempre preparada para o bote, sua fantstica
imaginao aveludada e mortal que transforma qualquer situao
convencional em uma arriscada e perigosa possibilidade nova

CENA 2

Casa de fazenda alugada por Eitel em um local afastado.

Quando a cena comea, Eitel est fumando um cigarro no ptio em frente


casa. le est de robe de chambre. Elena sai do quarto de dormir e entra na sala
de estar. Ela seria um tipo de beleza, se essa impresso no fsse enganadora,
porquanto ela mais sensual do que propriamente bela. Seus gestos so ligei-
ramente bruscos e sua voz no seu maior predicado, embora seja por
momentos rica e musical; por momentos porm, ela deixa transparecer os
acentos nasais, os desafinamentos, as lamrias e os sorrisos irnicos de uma
infncia sofrida. Agora, com um vestido de noite sem cinto que acentua a
aparncia de ressaca matinal, ela d a impresso de algum que se sente
inconfortvel e de mau humor.

"Vamos tomar caf", diz Eitel. Ao v-la balanar a cabea


desanimadamente, le insiste com uma certa animao fora de momento.

EITEL

Depois que tivermos tomado caf e nos sentirmos mais humanos, vou dar um
pulo ao hotel para apanhar suas roupas. Voc se sentir melhor ento.

ELENA
No se preocupe comigo. Eu vou embora

18
EITEL .Eu no pedi para voc ir embora.

ELENA

(Com firmeza) Eu sei...


Foi bom.

(Aps um momento de silncio inconfortvel) Eu no


quero tomar caf.

EITEL

De qualquer forma, ns no vamos nos despedir nessa correria.

ELENA

Nada d certo pela manh.

EITEL

Bem, tomemos o caf.

(Estende uma xcara para ela) verdade... Temos uma poro de


coisas para conversar ainda.

19
ELENA.

ELENA

No sei se gostaria de conversar. Tudo muda na conversa.

EITEL

Eu sei disso... Alis, as danarinas no costumam conversar muito. Por falar


nisso, voc era uma boa danarina?

ELENA

(Hesitante, com a xcara na mo) Bem, eu gostaria de ter sido. Uma


vez ou outra, meu empresrio encontrava trabalho para mim... por uma ou
duas semanas.

EITEL

Voc modesta.

Pelo contrrio, sou muito orgulhosa. Acredito ainda que tudo teria dado certo
se no houvesse conhecido Collie. le exigia que eu ficasse presa em casa na
esperana dle ter uma hora livre.

EITEL

E foi assim que voc parou de danar.

20
ELENA

Foi, fui forada... Eu sou muito preguiosa. (Suspira)

Sou preguiosa e Colhe terrivelmente mesquinho. Fazamos um belo par.

EITEL

Pelo jeito vocs descobriram o que havia de melhor um no outro.

ELENA

Pois , o melhor.

(Vencida pela depresso) Foi bem cruel aa parte de Collie ter-me dado o
fora nesse lugarejo.

EITEL

E existe alguma coisa que a impede de voltar para a cidade?

ELENA

No conheo ningum na cidade.

EITEL

21
ELENA.

Voc no conhece ningum?! Voc me contou que viveu l a vida inteira...

ELENA

Eu no fao amizades. As mulheres no fazem a menor questo de sair


comigo... sobretudo se h um homem por perto. Por outro lado, os homens
ficam excitados na minha companhia. E os que no ficam, no se interessam
por mim a menos que diga sim, a menos que consinta est bom, essa noite. E
esses programas no me do nenhuma vontade de v-los uma segunda vez.
Eis a razo porque no conheo ningum na cidade.

EITEL

E voc tem famlia?

ELENA

Claro que tenho e uma famlia at bem numerosa. Mas acontece que quando a
gente pertence a uma famlia grande como a minha, a luta so dura um minuto
e o mais fraco se rende... les descobriram que Collie estava me sustentando...
Prefiro morrer a procur-los novamente.

EITEL

, no h dvida, voc uma jovem bem orgulhosa a seu modo.

ELENA

22
Escuta, no me impressiona a mnima o fato de voc ter sido uma celebridade.
Por isso no me fale com sse tom de superioridade, como se eu tivesse vindo
lhe pedir um emprgo.

EITEL

Perdo... no me pareceu que falava em tom de superioridade.

ELENA

Mas falou. Voc se comporta exatamente como uni ingls.

EITEL

Estava curioso em saber que opinio voc faz de mim.

ELENA

23
(Sua voz revela emoo pela primeira vez) Eu no o criticaria jamais
diante dos outros.(Eitel desvia o olhar mas a pergunta, mesmo assim, feita) E
voc, falaria de mim diante dos outros?

EITEL

S se estivesse no meu psicanalista.

(le lhe d uma palmadinha na ndega)

ELENA

(Rindo alegremente, pela primeira vez) Eu sei como isso. Consultava


sempre o meu analista a respeito de Colhe. Queria aprender uma maneira de
fazer Collie acreditar que eu o amava.

EITEL

E voc conseguiu?

ELENA

No.

EITEL

E sua anlise... voc terminou?

ELENA

24
ELENA.

Eu no fui mais ao analista.

(Um brilho passa pelo seu olhar) Sabe, eu fazia muita coisa extravagante
s para me tomar mais interessante ao analista. (Ela ri)

Acreditava que assim le me classificaria como um caso fora do comum...

EITEL

(Procurando no revelar surprsa com essa explicao) E Collie, como


reagiu diante disso?

le teria me perdoado se lhe permitisse presenciar minhas aventuras.

EITEL

Pelo jeito voc se julga superior a Collie.

' . ELENA

Olha, no sei.

(Com um olhar malicioso nos seus olhos verdes) Eu fiz


coisas inacreditveis.

EITEL

Mais inacreditveis do que na noite passada?

ELENA

25
ELENA.

(Dando-lhe um tapinha no rosto) No


seja convencido.

EITEL

Tenho minhas razes para me sentir convencido, no?

ELENA

Os homens pensam sempre assim. Os homens so todos...

EITEL

So todos?

ELENA

Uns tolos, fcilmente enganveis.

EITEL

Obrigado pelo que me toca.

Oh no, voc bom. Voc sabe que bom... que um homem bacana.

EITEL

De qualquer modo, sou um profissional.

26
ELENA.

(Com um sorriso) Tome cuidado. Voc no gostaria de se apaixonar


por mim, no verdade?

ELENA

(Desviando o olhar) Eu no me
apaixono por ningum.

ELENA

Narcisista?

EITEL

Pois .

EITEL

No deixa de ser uma bela forma de gostar.

(Em voz baixa) Passemos


alguns dias juntos.

ELENA

27
ELENA.

No creio que possa.

EITEL

Por qu?

ELENA

28
Quero ver se consigo viver s minhas custas, agora que estou livre de Collie.
EITEL essa a verdadeira razo?

ELENA

No daria certo com voc, alm do mais.

EITEL

Por que no podemos experimentar?

ELENA

(Com ironia) Claro, por que no


experimentar?

EITEL

(Contendo-se) Est certo... Voc pretende ficar na


cidade? (Elena assente)

Nos veremos ento... Mesmo tdas as noites se nada impedir.

ELENA

Combinado. A gente se procura quando der vontade.

EITEL

29
Voc est precisando de dinheiro?...

EITEL ELENA

(Ela est junto porta que separa a sala de estar do ptio) Tenho o
suficiente para viver algum tempo.

EITEL

30
ELENA

Lembre-se que sou um homem muito frio.(Ela j abriu a porta) Voc me


pareceu pelo contrrio um homem muito ardente... (Ela se volta para sair)

Durante a ltima fala, Marion Faye atravessou o ptio vindo da rua. No


momento em que Elena cruza a porta da sala, ela encontra-se face a face com
Marion. le um jovem de altura mediana, ou pouca coisa mais baixo,
aparncia agradvel, gestos precisos e graciosos de felino. Deve ter uns vinte e
quatro anos aproximadamente.

MARION

(Para Elena os dois esto szinhos na entrada da casa) No v embora


j.

ELENA

(Chamando Eitel, com a voz algum tanto assustada) Eitel, visita para
voc!

EITEL

(Reunindo-se a les no ptio) Elena, apresento-lhe Marion Faye... Marion,


esta Elena Esposito.

(Eitel perdeu ligeiramente a naturalidade anterior com a chegada


inesperada de Marion)

MARION

(Repetindo lentamente) Elena


Esposito...
ELENA

ELENA

Voc j me conhecia?

MARION
ELENA.

Ouvi falar de voc. 188(Mais calma)

Bem, no acredite em tudo que ouviu, porque eu tambm ouvi falar de


voc.

MARION

Tudo o que voc ouviu contar de mim verdade.

ELENA

(Intrigada, mas se contendo) Creio ter visto


voc em alguns filmes.

EITEL

Marion era um artista de talento.

MARION

Um artista de traos talentosos, para ser exato.

ELENA

Ah sim, agora me lembro... Eu li algo a seu respeito. Voc sofreu um


acidente de automvel... havia uma moa com voc.

MARION

1
ELENA.

(Sem emoo) Ela morreu.

ELENA

(Abalada)

Eu jamais teria foras para resistir a um choque desses...

MARION

2
Voc acabaria tendo.Marion acredita que j pagou seu
EITEL
dbito. (Elena parece surprsa)

MARION

(Sem emoo)

Eu estava dirigindo sem licena. Fui mandado para a priso onde estava
Eitel.

EITEL

Fomos, por assim dizer, companheiros de cela.

MARION

Se bem que a priso foi mais estimulante para mim do que para le.

ELENA

Marion, voc uma pessoa estranha.

MARION
Eu sei o que eu quero. Voc entende?

EITEL
ELENA

(Ofendida, ela se volta para Eitel) Eu vou


para o hotel.

EITEL

Aguarde meu telefonema.

ELENA

At amanh ento... como combinamos.

(Friamente) Adeus, Marion.


Ela sai. 190(Aps Elena ter sado) Que visita repentina! Fazia
EITEL semanas que no o via...

MARION

Ouvi dizer que voc andou circulando com Elena a noite passada. Queria ver
como era a pequena de Collie.

EITEL

E por que motivo, posso saber?

MARION

Collie um colecionador. Fiquei curioso em conhecer uma garta que le


guardou durante trs anos.

EITEL

No vou lhe pedir para deix-la em paz... No creio que voc conseguiria
nada com ela, mesmo querendo.

MARION

Oh, voc se engana. Basta eu assobiar para ela ouvir a uma milha de
distncia. Vamos, meu caro, respeite um pouco mais a experincia humana.

EITEL

A experincia humana de um cafeto?

1
MARION

MARION

Charley, eu sei mais a sse respeito do que o Presidente dos Estados Unidos,
assim como sabe qualquer reles prostituta.

EITEL

Ser que voc no exagera os benefcios da cafetinagem a fim de ocultar de


voc mesmo a causa verdadeira de sua... angstia?

Qual ?

EITEL

Pnico, pnico homossexual.

MARION

Pnico homossexual. Veja quem fala.

EITEL

Pois . Para mim o pior da priso era o sexo. Fiz questo de me manter
afastado de tdas aquelas histrias. No vejo razo por que haveria de
comear agora, com a minha idade.

MARION

2
E graas a isso voc virou um homem antiquado, meu querido.

EITEL

Em compensao, voc virou uma fera na priso.

MARION

porque eu me preocupava com o fato de ser um pederasta. Agora eu sei que


sou apenas um meio-pederasta.

EITEL

Meio pederasta e sem nenhum respeito por si mesmo.

MARION

E voc se respeita a si mesmo mas se sente... como direi... castrado.

EITEL

Eu me sentia assim. Eu me sentia assim at a noite passada. (le se volta, como


se falasse consigo mesmo)

Mas na noite passada alguma coisa aconteceu.

3
MARION

(Sua voz ecoa como um sussurro) Foi


extraordinrio.

MARION

No exagere, Charley. Durante quinze anos voc no fz um filme sem estar


rodeado de mulheres e agora voc se entusiasma todo por uma pequena que
calava os chinelos de Collie Munshin.

EITEL

Gostaria que voc no falasse dela nesse tom.

MARION

Meu caro, voc est prestes a cometer um tremendo equvoco!

EITEL

Quando eu era mais mo, eu arriscava tudo a torto e a direito. E nunca nada
teve o menor significado para mim. Havia muitas partes de mim que estavam
mortas. Eu no fazia mais do que us-las. Mas hoje... hoje eu sei que existe
algo diferente dentro de mim.

MARION Que

talento Elena deve ter...

EITEL

Voc no saberia jamais apreciar seu talento.

4
MARION

5
EITEL

Talvez eu no tivesse tanta pacincia quanto voc para ouvir seu bl-bl-bl,

mas tenho certeza que saberia desenvolver o talento dela. Enquanto que sua

preocupao saber se possui ou no meios suficientes para desenvolver sse

talento.Nunca tive tanto na minha vida quanto agora.

MARION

Sabe qual seu mal?... Voc foi durante muito tempo um sujeito famoso.
Antigamente voc amava uma mulher e o gsto de mel de sua fama fazia ela
se sentir tda excitada... fazia ela se entregar a voc. Agora voc um ex-
presidirio que no consegue trabalho e que no tem dinheiro no banco. E
mesmo assim voc quer manter uma mulher que nasceu para ser milionria.
Voc tem um futuro negro pela frente, Charley, e talvez seja eu mesmo que
haverei de provar isso a voc.

FIM DA CENA 2

TRECHOS DA CENA 3

(Aps a despedida de Sergius, Eitel faz meno de abraar Elena; ela mostra-se
indiferente. le se afasta e deixa transparecer, pela fala seguinte, que est
furioso).

EITEL

Onde voc estve ontem noite?

6
EITEL
ELENA

ELENA

Eu queria mesmo conversar com voc sbre isso. Seu amigo me convidou para
sair.

EITEL

Que amigo?

ELENA

Marion Faye.

E voc aceitou?

Eu no imaginava que voc e eu fssemos sair juntos tdas as noites.

EITEL

De forma que vocs tiveram um encontro casual?

ELENA Um
pouco mais do que isso.

EITEL

ELENA
7
Voc quer dizer muito mais do que isso, no ?

EITEL ELENA

EITEL

Evidentemente eu no lhe bastava e voc procurou um outro.

ELENA

8
ELENA

Como voc se ilude.

EITEL

Claro, mas mesmo assim voc ainda esconde alguma coisa.

ELENA

O que lhe d um certo prazer, no?

EITEL

Elena! Por que voc fz isso?

Fiquei curiosa. Queria...

No precisa contar. Sou um especialista em psicologia feminina.

ELENA

Voc sempre tem que ser um especialista em tudo... Eu no sabia e queria


saber se...

EITEL

ELENA
9
... se sse desabrochamento da carne era algo que voc s podia cultivar
comigo, ou se o mesmo ocorreria com uma pessoa qualquer. No foi isso?

EITEL
ELENA

(Num murmrio) Mais ou


menos.

EITEL

Mais ou menos. Eu deveria mat-la.

ELENA

Mas eu quero lhe contar...

EITEL

O qu?

ELENA

Eu me senti como uma esttua nas mos dle.

10
ELENA

EITEL

S que provvelmente voc no se comportou como uma esttua.

ELENA

ELENA
11
Bem... Eu pensei em voc o tempo inteiro.Sua vaca!
EITEL

ELENA

(Ela comea a chorar) Voc no se importa comigo. Eu no sou nada


para voc. smente seu orgulho que est ferido.

EITEL

Elena, como voc pde fazer isto?

ELENA Voc

me acha uma estpida.

EITEL

O que tem uma coisa a ver com a outra?

ELENA

Quando uma mulher infiel, ela mais atraente para os homens.

EITEL

ELENA
12
ELENA

Sua idiota! Quem lhe disse isso?

ELENA

No foi ningum que disse. Eu sei...

EITEL

Ser que voc no percebeu? Eu gostava de voc.

Voc no me ama.

(Corrigindo-se) Eu a
amo.

ELENA

E eu adoro voc. Nunca senti com ningum o que sinto com voc. FIM DA
CENA 3

TRECHOS DA CENA 4

Quando comea a cena, Elena est szinha na sala de estar fazendo


arrumao. Marion entra pela porta da frente, atravessa o ptio e v
Elena. Os dois se observam durante um momento.

ELENA

ELENA
13
Charley no est em casa.

EITEL
MARION

com voc que eu vim conversar.

ELENA

Marion, ns no temos muito o que dizer um para o outro.

MARION

Voc uma mentirosa. Foi fantstico a ltima vez e voc sentiu certamente o
mesmo.

ELENA

No queira dizer para mim o que eu sinto.

MARION

Voc no pode negar o que aconteceu. Essa a verdade, pura e simples.

14
ELENA

Voc acha? Pois olha, nunca me senti to mal na minha vida. Foi o fim. E agora
eu quero que voc me deixe em paz. Charley o nico homem com que eu
gosto de fazer amor.

MARION

Voc est apenas representando um teatrinho com Eitel... O

Eapel da ingnua, linda e boazinha, que tem loucura pelo seu omem. Mas sse
papel no combina nada com voce, minha querida. Voc nasceu para viver
grandes emoes. Venha morar comigo.

ELENA

Seria timo!

(Com ironia, naturalmente)

MARION

No estou brincando.

ELENA

Eu acredito.

MARION

Eu precisaria de uma mquina de somar para contar tdas as minhas


aventuras... E no entanto, voc a nica que desejo, voc pode ser tudo para
mim e eu posso ser tudo para voc. Porque voc louca, meu bem, voce to
louca quanto eu.

ELENA
15
ELENA

EITEL
Voc um cften.

MARION

Sim, e por isso mesmo encontrei algum como voc.

16
MARION

Voc me d nojo.Oua uma coisa Elena, eu desci muito fundo em voc. Caso
nossa relao houvesse sido um fracasso, juro que teria me matado.

ELENA

Voc teria antes me matado.

MARION

Matado voc?

ELENA

Meu pai era um delinqente nas suas horas vagas. Eu conheo o cheiro do
crime.

MARION

Sim... talvez eu lhe matasse. Voc covarde. Voc est pre 7 parando seu ninho
na companhia de um homem de meia idade.

ELENA

Voc acredita mesmo que fico com Charley porque le bom e terno comigo?

2 00
MARION

MARION

le seu enfermeiro.

ELENA

le meu amante.

MARION

No acredito nisso.

ELENA

2 00
MARION

le meu amante... Eu nunca usei esta palavra anteriormente. Nem com os

outros homens, nem com voc. Mas s com le. Quando le me toca...... voc se

prepara para receber a carcia seguinte.

ELENA

Seu idiota.

MARION

E a carcia seguinte no exatamente como voc esperava, mas um pouco mais


intensa e numa nova direo, e voc se abandona ...

ELENA

Voc sabe tudo do amor.

MARION

Eu sei tudo do sexo, minha querida. Sinto o mesmo que voc disse por mil
homens e mil mulheres.

ELENA

1
E por um ou outro animal.

MARION

Sim, e por um ou outro animal. Em compensao voc, minha cara, voc se


animaliza a si mesma... E Eitel responsvel por isso, por sua transformao.
S que daqui mais um pouco le vai abandon-la. Voc no tem nenhum
futuro com Eitel.

ELENA

le me ama.

MARION

Mais cedo ou mais tarde le vai detestar voc, como alis le sempre fz com
tudo que teve ou possuiu, porque le se odeia a si mesmo. le um
insatisfeito. No fundo le est espera de uma princesa encantada.

(Nesse momento Eitel entra pelo porto da frente. Elena e Marion se


calam ao ouvirem o porto fechar. Eitel entra na sala. Silncio.)

EITEL

uma agradvel surprsa a sua visita, Marion.

MARION Os

velhos amigos se visitam.

2
EITEL

(Com um gesto em direo a Elena) Amigos?

MARION

Charley, voc viveu o bastante para saber que quando uma mulher passa a
noite com um homem, ela volta enriquecida para seu amante.

ELENA

(Com um riso irnico) Nem sempre,


Marion, nem sempre.

MARION

(Olhando-a fixamente) No vamos entrar em detalhes. De qualquer


forma, foi bom voc ter chegado, Charley, porque sua amiga estava
comeando a ficar nervosa.

Marion sai.

CENA 7

Sala de estar na casa de Eitel, depois da festa em casa de Dorothea.


quase de madrugada. Eitel e Elena entram silenciosamente. Elena est
muito excitada, no precisamente embriagada, mas bem alta. Ela apanha
um cigarro fino, como so feitos os cigarros de marijuana, acende-o e
aspira a fumaa com sofreguido, murmurando "Ah, fazia muito
tempo..." Em seguida comea a assobiar uma melodia que Beda can-
tarolava na cena precedente. Eitel no lhe d ateno. Elena aproxima-se
dle por trs e d uma risada, mas le continua indiferente. Ela ia dar
uma nova tragada quando pra no meio do gesto e oferece, em lugar

3
disso, o cigarro a Eitel, que o coloca delicadamente no cinzeiro. Elena,
levemente tonta, tenta beij-lo. le a afasta.

ELENA

Eu te amo, Charley... eu te amo.

EITEL

No encoste em mim.

ELENA

Eu s queria dar vazo a alguma coisa que estava dentro de mim.

EITEL

Que ainda estar a amanh.

ELENA

Charley... eu te amo. Eu sou a nica que te ama.

4
EITEL

Voc me ama?

ELENA

Sim, eu te amo. Mas eu no te amo totalmente. Voc demasiado

insacivel. Voc no me quer realmente e no entanto voc deseja

at o ltimo pedacinho de mim.

EITEL

5
ELENA.

Sua puta, voc adora a estupidez como se fsse sua santa padroeira.Voc me
chama de puta, mas se a noite lhe houvesse sido favorvel, voc estaria agora
me fazendo carinho, voc estaria agora me dizendo quo adorvel eu sou. Pois
bem, oua o que vou lhe dizer... Talvez eu necessite de outras carcias alm das
que voc me d.

EITEL

Eu nunca mais tocarei em voc.

ELENA

(Ela est indecisa se deve ou no falar. Repentinamente a hesitao passa


le a seduz ainda) Oh, Charley, abrace-me... abrace-me meu querido... ah
meu amor, eu te peo... acredite em mim, acredite que estou apaixonada por
teus abraos.

(Eitel no responde)

Ah Charley, voc no percebe, les queriam dar, les fariam tudo para me
possuir, eu era o centro da ateno dles. Venha aqui, meu bem, venha para
perto de mim.

(Eitel no se move; percebendo sua recusa, ela afasta-se dle e acende um


outro cigarro de marijuana) Voc queria ir embora, no verdade? Voc
tomou a mulher de Don Beda, no verdade?

(Ela agarra a cabea dle e segura-o pelos cabelos obrigan- do-o a voltar-
se e fix-la) Oua, eu no te amo. Eu nunca amei ningum. Eu sou demasiado
orgulhosa para isso. No se sinta culpado portanto. Voc no me deve nada...

6
EITEL

Sua estpida!

ELENA

Voc quer realmente saber quo estpida eu sou? Eu tentei me matar no dia
em que Collie disse que estava tudo acabado. Foi.

le disse, Doura, dessa vez o fim, e de fato era. Fiquei sentada naquele
nojento quarto de hotel que le havia alugado para mim e comecei a beber...
sozinha... e bebi at o momento em que o quarto comeou a balanar... pensei
que ia morrer se o quarto no parasse de balanar. "Collie", repetia comigo,
baixinho, "voc e eu ramos dois velhos canos de esgoto".

EITEL

Cale essa bca!

ELENA

Eu estou apenas no incio, Charley querido. Como lhe soam minhas palavras
cruas, hein doura do corao?

EITEL

Eu as odeio.

7
ELENA

Pois bem, quem podia adivinhar?... "Collie" disse pelo telefone, eu liguei para
le de sua casa dessa sala 'Collie", disse para le, "eu gostaria de ter uma
conversa bem calma, bem sofisticada com voc... eu tomei um vidro de
comprimidos para dormir... eu vou morrer, meu bonito," haaaaaa, e depois eu
comecei a gritar. Quando le entrou no quarto, eu vi nle o homem que faz e
desfaz, o amante magnfico... le disse para mim, Al beleza, e me deu uma
meia dzia de tapas no rosto. Depois perguntou, "Onde voc ps o vidro de
comprimidos?". Mas no foi preciso eu dizer, le encontrou szinho, comeou
a rir e disse, "Sua burra voc no sabe nem mesmo como se matar" ... as plulas
eram sedativos, no eram comprimidos para dormir. .. e depois le me levou
ao banheiro...

(Eitel levanta-se da cadeira e se dirige para a porta da sala, mas Elena o


segura pelo brao) No, voc no vai sair, agora voc vai escutar at o fim...
Collie me fz vomitar, enquanto continuava de p ao meu lado, obser- vando-
me como se eu fsse um velho trapo... e sabe o que aconteceu?... O olhar dle
me excitou. Estava tonta com os sedativos, le me trouxe uma xcara de caf,
deu-me para tomar um comprimido de benzedrina, e me fz andar pelo quarto
para acordar... e durante sse tempo eu pensava na maneira como le tinha me
visto vomitar... e isso me parecia excitante ao extremo... terrvel, no,
Charley?... Sempre pensei que estava satisfeita com minha nova liberdade, mas
acho que no era verdade, pela maneira como fui para a cama com Collie... E
tivemos uma relao aqui depois de termos terminado tudo um com o outro...
Ah, eu nunca lhe contei como eram nossas relaes ... Collie era entendido
nesses assuntos e eu sempre fingia que nossas relaes eram fantsticas, como
fazia usualmente com os outros homens... at a noite em que encontrei voc...

(Ao ver o olhar de descrena no rosto dle, ela sorri com crueldade)

... a menos que seja tudo uma mentira e voc tenha razo, Charlie, porque
justamente na vspera de conhec-lo, eu dormi com Colhe como nunca dormi
na minha vida com ningum... pensei que estava pairando no ar... era como se
vomitasse para longe ae mim todo o veneno que bebera na vida e a coisa mais
engraada que no gostava de Collie e jamais gostei menos dle do que
nessa noite... apesar disso tivemos uma conversa e ficou resolvido que nos
veramos de tempos em tempos... e le me pagaria as vzes que dormisse
comigo. Voc entende agora, meu querido?

EITEL

8
Terminou?

ELENA

Por que, voc no agenta mais, meu caro?

EITEL

Continue.

ELENA

Imagina agora meus sentimentos delicados de mulher educada. Pensa nisso e


depois na minha grande noite com Collie e no momento em que termina, le
deixa bem claro que quer eu o ame, o deteste ou no sinta nada por le, ns
no temos mais nada a ver um com o outro... e depois me anuncia que voc
vai chegar no dia seguinte, voc, Chaney, meu primeiro macho, meu
banheiro privado... (1) Collie est me iniciando na profisso ... ah seus filhos da
puta... e sabe o que se passou comigo? ... eu fiquei tremendamente excitada,
no sei se por sua causa ou por causa da situao, ou se simplesmente pelo
fato de me sentir uma verdadeira prostituta... seja como fr, meu querido
Charley, eu estava louca por voc e foi tudo maravilhoso. Na manh seguinte,
ao acordar, quando comecei a perceber que voc no me tratava como uma
prostituta, que Collie no lhe havia dito uma palavra a meu respeito... ah,
Charley, eu me senti deprimida e feliz ao mesmo tempo...voc era bom
comigo, decente e eu fiquei confusa, sem saber o que pensar. Eu deveria ter
ido embora nesse momento, porque eu amo minha independncia, mas voc
comeou a me dar mil atenes como se se tratasse realmente de um caso de
amor... e no pense voc que eu no desejei isso loucamente, s que eu sabia
que nada podia contrariar meu desejo de viver e ser livre.

EITEL

1 No original "my first John, my bathroom...". Sentido duvidoso. Talvez se refira limpeza
mental. (N. do T.)

9
i~

Esta noite pelo menos voc est livre.

10
ELENAEu sei, Charley, que agora estou livre. Estou livre e isso assustador...
ah Charley querido, aterrorizante como o inferno, porque as mulheres,
Charley, no nasceram para serem livres, nasceram para terem filhos... essa a
razo do meu mdo, do meu mal estar, da minha fria, do meu terror, porque
bom demais, Charley, eu sempre recebo demasiado das pessoas, como
aconteceu essa noite... como se nunca houvesse recebido tanto anteriormente...
ah meu Deus porque no me conveno que seria to bom deitar e morrer
quando estou me sentindo bem como agora... ah Charley, eu rui longe
demais... eu sempre digo para mim "Voc no pode enganar a vida" e mesmo
assim me parece que posso... estou falando srio, Charley. Bem, est na hora
de terminar com essa conversa. Chame um txi para mim, Charley. Eu vou
embora. Vou viver com Marion. Sim, com le que me convm viver. Com
Marion. le me convidou essa noite, sim foi isso mesmo que eu disse seu puto
pretensioso e covarde... seu petulante de terceira classe... No tem nada a dizer
agora?

(Pausa. Ela sai batendo com a porta, aps um riso e um

grito de choro).

ELENA

(Fora de cena) Adeus, adeus, Charley querido!

(Pausa comprida)

EITEL

(Num murmrio) Onde, em que cemitrio do cu, as palavras ternas dos


amantes repousam quando les no se amam mais?

FIM DA CENA 7

CENA 10

MARION
11
BEDA
Uma semana mais tarde.

Sala de estar na casa de Marion Faye. O ambiente geral de austeridade e frieza. Os mveis so
pouco numerosos mas de boa qualidade. No momento, h uma certa desordem reinante,
conseqncia evidente da mudana de Elena. Beda acabou de sair do banheiro e est
conversando com Marion. le penteia o cabelo enquanto fala.

BEDA

(Olhando para seu relgio) les vo explodir uma nova bomba atmica essa noite.

, eu ouvi falar.

Convida Elena para sair e tomar alguma coisa. Podemos assistir exploso da minha casa. Pelo que
me disseram a luz chega at a cidade.

MARION

A vista ser perfeita daqui.

BEDA

(le terminou de pentear o cabelo com hesitao; Sabe de uma coisa, Marion, sua
amiga muito corajosa.

MARION

Todo mundo corajoso hoje em dia.

12
MARION
BEDA

BEDA

No abuse dela. Ela est beira de um abismo.

( Elena aparece por trs de Beda. Ela fala desanimadamente da porta do quarto)

ELENA

(Para Marion) Aqui estou eu, Marion. Voltei enriquecida para voc.

BEDA

(Apressadamente) Meninos, eu encontro com vocs na priso. Beda sai.

ELENA

(Sorrindo) Eu quero ser uma prostituta de classe.

Est bom

13
MARION
ELENA.

.A vida mais divertida.

MARION Voc

amarrou um belo pileque.

ELENA

Vivi trs anos com Collie e le nunca me levou a uma festa.

MARION

E Eitel nunca lhe pediu em casamento.

(Elena no responde, continua tomando sua bebida; Marion olha


fixamente para ela, depois murmura) O que voc me diz, Elena, de se casar
comigo?

(No silncio que se segue, le acende um cigarro de marijuana, que os dois


fumam enquanto a conversa prossegue)

ELENA

Voc me odeia...

MARION

14
No, eu a amo... por que outro motivo eu lhe pediria em casamento?

ELENA Pelo fato

de ser uma boa piada.

MARION Voc

no gosta mais de mim?

ELENA

Quem pode gostar de voc? No fundo voc quase to infeliz quanto Charley
Eitel.

(Marion ri. Elena joga fora o cigarro, apanha o telefone e disca um


nmero. Ela pisca o olho para Marion, de maneira exagerada. Ouve-se a
voz de Eitel do outro lado da linha)

EITEL

Al?... Al... Quem est falando? ... voc, Elena? ...Al! (Elena desliga o
telefone)

ELENA

Pelo jeito meu velho amigo Charley ainda est na cidade.

MARION

E pelo jeito voc, com seu corao de pedra, ainda gosta dle.

15
ELENA

Quem sabe?

MARION

Voc realmente gosta dle. No de espantar que voc jamais tenha tido a
coragem de contar a Eitel a respeito dos homens e rapazes com quem voc
dormiu para arrumar alguns contratos micnos nas boates.

ELENA

(Com a voz cansada) Eu lhe disse para fazer de mim uma


prostituta de classe.

MARION Voc

no tem jeito para isso.

ELENA

16
MARION

Por que no? Eu poderia ser uma prostituta de alto bordo.Quando uma pessoa
conhece voc melhor, ela se decepciona. Voc no tem classe.

ELENA

Nesse caso faa de mim uma prostitutazinha ordinria.

MARION Vamos

nos casar em vez disso.

ELENA

Eu jamais me casaria com voc.

MARION

Minha querida... e se fsse eu que no quisesse me casar com voc?

ELENA Eu quero

ser uma prostituta.

MARION

17
MARION

Eu no ando com prostitutas... Mas eu poderia apresentar voc a um amigo


meu. le tem um negcio onde voc poderia trabalhar como num bordel meio-
a-meio^1)

ELENA

O que voc entende por um bordel meio-a-meio?

MARION

Um bordel na fronteira com o Mxico.

( ! ) No original: "half in a whorehouse." Sentido duvidoso. Talvez haja referncia ao


contrabando de txicos existente na fronteira com o Mxico. (N. do T.).

(Assustada) Jamais
faria isso.

MARION

No quer sujar as mos, seu doutor? No se esquea dos pobres diabos que
esto l embaixo, como les se arrastam para chegar at seu consultrio.

ELENA

(A voz sumida) Eu vou


embora.

MARION

18
MARION
ELENA.

Pode ir.

ELENA

Eu vou mesmo.

MARION Voc

vai conseguir achar a porta?

ELENA

Gostaria de me matar.

MARION

Voc no teria coragem.


ELENA

No faa pouco caso de mim. Eu teria se quisesse.

(Marion enfia a mo 110 bolso e retira um vidro com comprimidos)

Estava guardando isso para mim. So semelhantes aos comprimidos para


dormir, com a diferena que bastam apenas dois. S isso. Dois comprimidos
e adeus.

19
MARION

(le coloca dois comprimidos em cima da mesa)

ELENA

Voc duvida da minha coragem?

MARION

Acho que voc vai apenas olhar para les. (le ri)

(Elena estende o brao para apanhar a garrafa de bebida e com um


gesto repentino engole os comprimidos).

ELENA

Pronto, engoli. Eu consegui.

MARION

Voc vai adormecer logo.

ELENA

20
MARION
ELENA.

Que diferena faz isso para voc?

MARION

Voc uma pequena corajosa se fr at o fim.

(le levanta-se repentinamente) No sei se vou conseguir assistir isso


at o fim.

ELENA

H quanto tempo voc tem sses comprimidos?

21
ELENA

Eu os pus no blso hoje.Mas desde quando voc comeou a pensar neles...

para mim?

MARION

Quando fiquei deitado ao seu lado na cama. Na primeira vez. Depois, quando
voc comeou a sair com Eitel, pensei: "Essa pequena do tipo de que so
feitos os suicdios".

ELENA

Voc sabia ento.

MARION

Minha cabea nunca pra. Estou sempre ouvindo as palavras do meu desejo.
Meu desejo diz: "Voc pode fazer com que ela se mate". Sabe o que pensei em
seguida?

(Elena balana a cabea negativamente) "Por favor,


isso no, isso demais"

(Marion balana a cabea) Tudo que sabia era que se no fizesse isso com
voc, no poderia nunca fazer as outras coisas.

ELENA

(Desanimadamente como algum que procura no pensar no que fz)


O qu, Marion, que outras coisas?

22
MARION

Eu odeio o veado que existe em mim e eu sabia no existe nisso outra lgica
seno a do amor que se eu conseguisse fazer amor com Eitel... Sim, era le o
homem que me realizaria e me faria sentir um homem verdadeiro. Estava
apaixonado por Eitel quando voc apareceu... eu queria a le e a voc, ao
mesmo tempo... No di em que voc se recusou a viver comigo, eu me senti
um condenado.

ELENA

Mas eu vim viver com voc. Finalmente eu vim.

Foi tarde demais. Voc possui a crueldade dos obstinados e dos lentos. Voc
veio para mim unicamente depois de haver consumido a virilidade de Eitel.

ELENA

Eu no fiz isso!

MARION

Voc o sugou como uma sanguessuga... e agora le no pode mais curar-me


da pederastia porque le est podre para mim.

ELENA

E por causa disso voc me matou?

MARION

23
MARION

Voc apenas um detalhe... mais nada. H um dio dentro de mim que me


mata. Por causa do meu pavor. Por isso tenho que arriscar tudo. Inclusive o
crime. Acredito que s ento terei fras... dentro de mim... maiores do que as
que tenho agora. E se estiver enganado, tambm isso ficarei sabendo.

(le fuma o cigarro de marijuana) Eu fui catlico... no pense que estou


me esquecendo da eternidade que me espera no inferno por lhe ter dado sses
comprimidos.

ELENA

(Assustada com as palavras dle, fala como se pensasse alto) Foi


maravilhoso com Charley. Juro que foi. Charley e eu tivemos que andar tanto
antes de nos encontrarmos... e o amor lindo no fim de uma longa viagem.
Agora nunca mais vou sentir o amor. Ah Charley, perdoe-me, perdoe-me...
tenho tanta pena de ter sido melhor com Marion do que com voc. Ah
Charley, preciso falar com voc nesse instante.

(Ela se levanta e dirige-se ao telefone. Tonta pelo comprimido, tem


dificuldade em discar o nmero. Marion observa-a, depois se aproxima
um passo dela. Ela continua tentando,

Marion aproxima-se mais um pouco, segura o telefone como se


pretendesse tir-lo das mos dela.)

ELENA

Voc tem razo em me impedir de telefonar. Eu nunca fiz bem a ningum.

MARION

(Com dureza e frieza, a voz cheia de dio contra si mesmo, le solta o


telefone) Por inacreditvel que seja, eu tambm sinto pena dos outros.

ELENA

24
(Falando no telefone, a voz impessoal e sem emoo) Charley...
perdoe-me incomod-lo... tomei uns comprimidos... por favor ligue para
um hospital... chame uma ambulncia... estou na casa de Marion.

(Ela desliga o telefone) Desculpe, Marion, desculpe, mas eu


no quero morrer. (Ela comea a chorar)

( nesse momento que a bomba explode no meio do deserto, a uns


cento e cinqenta quilmetros de distncia. A luz que entra pela janela
intensa, branca e assustadora. Elena grita e Marion no se move. le
olha apenas para suas mos. Quando a luz se apaga, um brilho
permanece no cu. ento que Marion comea a falar, num
murmrio, consigo mesmo, como algum que perdeu o juzo).

25
MARIONDorothea, minha me, recebia dinheiro dos homens quando ma
e eu fui seu filho do acaso, uma ddiva ocasional de um prncipe em
viagem, nada mais do que isso... Claro que le no ia se humilhar pedindo
em casamento a filha do porteiro. Pois , eu fui seu filho bastarclo e cresci
enquanto ela se tornava notria na crnica local. A mais cruel cronista
social do pas. Uma assassina. Ela tinha o costume de reproduzir a bandeira
americana ao lado do seu rosto, no jornal. De forma que fiquei sabendo
como eram as coisas. Isto , fiquei sabendo bem cedo. Ela queria qtie eu
fsse padre. Eu seria seu sacrifcio expiatrio... vai ser preciso contar o
resto? Imagina o que me passa pela cabea (le bate com a mo na testa)
que o inferno deve ser aqui, sim eu me acredito um santo, eu sinto o que
Deus sente, e le est numa situao pior do que a minha porque h um
terrvel destino que le tem que cumprir, e le no sabe se vai ser bem
sucedido ou no porque le faz parte de ns. le est em apuros porque
ns estamos em apuros, porque somos demasiadamente covardes, porque
queremos andar lentamente e nos apegamos ao que possumos, quando o
mundo, a substncia tangvel de Deus est prestes a explodir nessas
radiaes de dio que nenhum de ns pode impedir. H uma angstia que
se aproxima quando a vida de ns todos depender da existncia ou no de
um homem bastante bravo, bastante corajoso, que v mais longe na sua
mente do que ningum jamais foi, e que consiga mesmo assim comunicar
sua viso. Eu no sou sse homem. Sou demasiado fraco. Eu desapontei
ainda uma vez a Deus.

Quando a cena termina, ouve-se a sereia de uma ambulncia

que se aproxima rapidamente.

CENA 11

A cortina est descida. O cenrio representa o corredor de um hospital,


noite. Quando a sereia diminui de intensidade, at silenciar por completo,
uma enfermeira passa empurrando um carrinho de comida. Aps ela ter
atravessado o palco, Eitel e Elena surgem caminhando vagarosamente, o
brao dle passado em torno da cintura dela. O dilogo dito em surdina.

ELENA

26
Charley, voc sentiu falta de mim?

EITEL

Muita.

EITEL ELENA

No minta, Charley, quero saber a verdade.

Voc sabe como eu sou. Procurei no pensar em nada. At que uma noite, eu pensei em voc. E
percebi que seria meu fim se no parasse de pensar.

ELENA

Fico feliz em saber que voc sentiu uma pequena falta de mim...

(Ela comea a chorar) Ah Charley, melhor voc ir agora. Eu sei que voc odeia hospitais.

EITEL

No, eu vou ficar com voc. No quero que voc se sinta sozinha.

ELENA

j >i * *

27
(Repentinamente) Case comigo... por favor, Charley, case comigo.

(Eitel assente com a cabea, lentamente) Voc se sente frio como uma pedra, no
verdade?

EITEL

No, no verdade. Somos amigos agora. Suas feridas aliviam minhas feridas e creio que melhor

EITEL
isso do que viver sozinho.

(LES SE AFASTAM

28
)DAVID McREYNOLDS

Bomios em Liberdade

MCREINOLDS um homem de 30 anos, ocupa cargos de responsabilidade, possui


um respeitvel passado de socialista-pacifista, foi candidato pelo Partido
Socialista ao Congresso em 1958, e um dos poucos elementos de ligao entre
os partidrios da linha conservadora e os membros da gerao beat. le
escreve de forma objetiva e inteligente e possui bastante presena de esprito e
informao para debater em pblico assuntos atuais. Um elemento excelente
para se contar com o apoio. oriundo da Califrnia.

2 20
Os liberais e os radicais, recordando com nostalgia os movimentos
polticos de sua juventude, confessam-se perplexos com a atual juventude
estudantil. les se perguntam freqentemente o que est acontecendo com os
jovens, onde est aquele entusiasmo pela construo de um mundo nvo.
aquele idealismo ingnuo e glorioso to caracterstico entre os estudantes de
outras pocas. No escondem sua surprsa diante do fato de que a maioria dos
jovens de hoje s se preocupa com sua prpria segurana, manifestando um
absoluto desinteresse pelos povos famintos, doentes e oprimidos do mundo.
Os jovens que no aceitam a sociedade atual so um fenmeno ainda mais
difcil de ser compreendido: les fazem parte do que se convencionou chamar
a juventude beat, que composta, aparentemente de delinqentes, perversos
sexuais, viciados em narcticos e confusos escritores de m poesia; em resumo,
uma juventude de niilistas irresponsveis, incompreensveis e irracionais.Na
posio de algum que simpatiza com a juventude beat e com seu elemento
mais ativo que o hipster acredito que os delinqentes juvenis, os
turbulentos poetas jovens e os bandos de desleixados bomios apreciadores de
jazz representam uma fra vital na nossa sociedade. Fra essa que. se fr
bem compreendida, esclarecer de maneira inequvoca certos problemas de
nossa poca. Para entender a razo porque muitos dos jovens mais talentosos
de nossa poca "exilaram-se" da sociedade, preciso considerar
primeiramente, com tda ateno, essa mesma sociedade que les rejeitaram.

O primeiro fator a ser analisado a bomba atmica. O advento das armas


nucleares modificou o significado de dois conceitos antigos: o conceito de
"futuro" e de "morte". O "futuro" tomou-se um termo sujeito a conjeturas. No
se trata mais de saber se o futuro ser bom ou mau, mas sim se haver de fato
um futuro. E o conceito de "morte", por outro lado, assumiu uma caracterstica
de fatalidade como jamais possuiu anteriormente.

At recentemente, todos ns admitamos que os homens deveriam


morrer um dia, mas que sobreviveriam em seus filhos, em suas obras de arte,
em seus feitos hericos nos campos de batalha; acreditvamos ainda, e acima
de tudo, na sobrevivncia da espcie humana. Atualmente, porm, a espcie
humana pode desaparecer da face da terra, e nossa morte individual assume o
o aspecto de uma morte definitiva e coletiva. Allen Ginsberg escreveu sobre
aqueles que se sentam numa mesa de bar "ouvindo a exploso do fim do
mundo na vitrola automtica de hidrognio"; e numa outra poesia, le indaga
dos norte-americanos: "Quando vocs aprendero a se verem nas sepulturas?"
Lawrence Ferlin- ghetti, por outro lado, refere-se a "uma certa ao asntica,
realizada por um certo segundo-tenente asntico que apertar um estranho
boto qualquer em algum lugar distante do oceano rtico iluminando
definitivamente o mundo de uma vez por todas". Diante dessa nova e sbita
perspectiva de morte, extremamente importante entender o significado real
da vida, e tirar o mximo partido possvel da existncia. Se tivssemos apenas
uma semana de vida, ocupar-nos-amos de poltica nesse breve espao de
tempo? Ou nos dedicaramos a afazeres que nossa rotina diria nos havia at

2
ento impedido? O amor seria importante? Passearamos pelos parques?
Colocaramos uma moeda no chapu do cego?

O segundo fator a ser analisado a revoluo que ocorre atualmente com


a cultura humana. Essa revoluo profundamente mais significativa do que
qualquer movimento poltico contemporneo. Ilouve raros momentos na
histria em que ocorreram transformaes to bsicas. No existe precedente
para a atual revoluo tecnolgica industrial a no ser outras trans-
formaes sociais igualmente sem precedentes que se deram no assado (como
o caso, por exemplo, da transformao da vida umana nmade em uma
cultura do tipo agrcola).

Essa revoluo submete a sociedade a transformaes constantes e


desagregantes. Existe apenas um nico elemento na sociedade moderna que
permanece inalterado: o processo ininterrupto da prpria transformao. To
logo o "Fora-bigode" nos afastou de nossas casas como meio de transporte
(revolucionando ao mesmo tempo nossos hbitos sexuais), a televiso nos rein-
troduziu nelas (destruindo ao mesmo tempo a arte da conversao). No
fomos ns que programamos essas transformaes e somos culturalmente
demasiado imaturos para podermos control-las.

No existem instituies estveis para onde os indivduos possam se


voltar em busca de apoio. O filho no pode mais seguir a profisso do pai
mesmo que o queira, uma vez que a tecnologia destri os mtodos antigos de
trabalho criando a cada passo processos novos. As bases culturais so
dizimadas por um sistema de produo e de comunicao em massa que,
como ltima conseqncia, nos iguala a todos: falamos a mesma linguagem,
vestimos as mesmas roupas, lemos as mesmas revistas. E ao invs de criar um
sentido de comunidade, sse processo cria unicamente uma multido de
indivduos estereotipados e annimos.

Como pode um homem hoje em dia saber realmente quem le ? Como


poder le encontrar sua verdadeira identidade? Isso no se dar certamente
atravs de um relacionamento com o solo onde nasceu, uma vez que
abandonamos o campo pela cidade e mudamos constantemente de uma
residncia para a outra como populaes saqueadas. Tampouco poder uma
pessoa encontrar sua individualidade prpria na famlia, j que essa instituio
tende a se desagregar. Ao conquistarem o direito de ingressar no mercado do
trabalho, as mulheres conquistaram um grau de liberdade econmica que
torna o casamento um ato menos necessrio e nosso elevado ndice de
divrcios o preo que pagamos pelo progresso tecnolgico. A repentina
igualdade dos sexos cria um nvo estado de tenso, tanto entre os homens
quanto entre as mulheres, na medida em que percebem que suas funes
antigas foram definitivamente abandonadas e permanecem incertos a respeito
de suas funes futuras.

3
Esta , em sntese, a sociedade das massas. Chamamos as pessoas pelos seus
primeiros nomes procurando criar uma intimidade que de fato no existe. As
famlias que vivem em prdios de apartamentos esto mais isoladas de seus
vizinhos do que as antigas famlias norte-americanas que viviam nas fronteiras
a trinta quilmetros umas das outras. O indivduo isolado nunca se sente uma
parte integrante e importante de um todo organizado

4
.. i.j. ' j i , ^r, assim no sabemos comcv nos

A solido nos e dolorosa e m^mo palavra ciue r>c\ releu

relacionar coletivamente. "SocfiU>dc e u ?? ,. _________________P , ,

. . . . r- J c /.jpdade nao sienitica comunidade

inteiramente seu significado. t>ocl -

. 6 -j j. o nao ser a que David Rievman nao existe mais


comunidade, 1 1

denomina "a multido solitri," juventude atUal a Werda O terceiro fator que
atua s^ J um cd> de

dos valores antigos. O homer, te 1_ & & em ^Deus valores que estava centraliza^
. e surgju triun fante
IU1 b

dava sentido vida. A fafilosofi, .^wnceito religioso medieval, da Revoluo


Francesa, dest^u o de racjo nalidade e

substituindo-o e verdade, pelflj O" Desiludida do paraso fectibilidade


inerentes ao ser __________/.-

recuDiuaaae inerentes ao ser n- r


uma cie de utopia

celeste, a raa humana camisa r


t o uco sobr evivera

terrestre. Se Deus havia morr^ 0 redimidos, mas ^nica-


e os homens nao necessitavain i
ma oerou em produzir os

mente educados Quando a a entaram que o defeito

resultados esperados, os martiStas & homem aindA ter

consistia no sistema social e f ho de utopfa. Bastava para esperanas de reahzar seu


antjg 3 , -

tanto realizar primeiramente X utp.co morreu envenenada A esperana


liberal por ess, es ,ado a espefana

a gas com a Primeira Guerra N(ana . ^^ dur^e Qs

revolucionaria marxista foi ais** ^^^ o de D;rchau

processos de Moscou. Aps os -


na raz 0 e na botydade

e Buchenwald, tudo o que r^a ^ ^ barras de ^

humana foi definitivamente .jitei humana

e os abajures feitos com pele e M u n d i a l , o homem pendera

Ao terminar a Segunda WJ fundamentals. Palavras

totalmente o sentado .dos val^cs ^ ^ mscaras

como liberdade e paz try* morte da espontaneidade ocultar o conformismo, a


violou sovitico colmo 0 )>orte. individual. Atualmente, tanto o " da e da democ,tacia.
americano consideram-se os l,f>J QU quecer 0s massacres Que estudante,

6
porem, pode Budapeste? Ou a fuga ato,"men- de homens e mulheres nas rua. g
br^ncas do comunismo no tada do Dalai Lama? As M^metida contra um ideal Social
podem mais ocultar a traiac co individual (e no apelas a aue pregava a
liberdade do liberdade no se aplica a

da classe operaria, uma vez de onde e]a M0 partilhada

grupos sociais no existe lip0'

pelo indivduo) _ do Ocidente"? No existe

E o que dizer das nao^S1 d Hberdade do que os Estados defensor mais ardente e
inflexi +Jcl

Unidos liberdade para os povos da Rssia, da Hungria, do Tibete. E no


entanto, os Estados Unidos traem sse ideal de liberdade exatamente naquelas
reas onde le se faz mais necessrio. Os Estados Unidos fornecem armas da
NATO aos franceses que lutam na Arglia. Na ilha de Formosa, os Estados
Unidos fingem ignorar a tirania exercida por Chiang Kai-Shek sbre a
populao nativa. Na Amrica Latina, os Estados Unidos defenderam Batista e
lhe ofereceram equipamento blico at o momento em que le foi deposto. A
prova mais evidente, contudo, do desintersse da Amrica do Norte por
qualquer princpio de "verdade" foi fornecida pela declarao oficial do
govrno norte- americano favorecendo as experincias nucleares como um
meio de "oferecer humanidade uma bomba de hidrognio limpa". Os jovens
percebem intuitivamente o absurdo e a demncia de um sistema de "valres"
que no apenas permite como exige a fabricao de bombas de hidrognio e
foguetes teleguiados.

les se afastam da sociedade porque a consideram radicalmente falsa


ela no chega nem mesmo a ser bastante "real"

S
ara merecer uma transformao. Percebi nitidamente a razo essa atitude anti-
social da juventude durante uma conversa com um delinqente juvenil. le
fazia parte de uma quadrilha que roubava carros e passava os fins de semana
se divertindo e bebendo. sse rapaz, inteligente e de boa famlia, considerava a
sociedade uma instituio absolutamente desacreditada, e a melhor maneira

7
que lhe ocorria para demonstrar seu desagrado era infringir o maior nmero
possvel de leis e obrigaes sociais. Em determinado momento, le confessou:
"Os caras que realmente no suporto so os "puxa-sacos" da escola les
ainda acreditam no sistema". Os puxa-sacos a que le se referia eram os
membros das organizaes sociais escolares. le no os invejava. les no o
haviam rejeitado era le que os repudiava. O fato trgico de tudo isso que
muitos de nossos jovens mais capazes, os possveis lderes de amanh,
voltaram-se para o crime em sinal de protesto contra uma sociedade que no
compreendem e em que no confiam. les afirmam, com muita razo, que
fazer papel de idiota algum se conduzir com responsabilidade no interior de
uma sociedade irresponsvel e corrupta.

A juventude beat est atravessando atualmente uma fase de


amadurecimento. Aps rejeitar a sociedade pela falta de valres verdadeiros, o
indivduo v-se forado a procurar por si mesmo o significado da vida e da
realidade em que vive. Essa procura, por sua prpria natureza, feita
individualmente. Sem um sistema de valres, a participao social torna-se
impossvel.

Essa atual gerao no "silenciosa", como foi dito por uma revista, nem
tampouco foi coagida a uma atitude de conformismo ela est simplesmente
atuando fora dos padres sociais.

o interesse em compreender a realidade em experimentar tdas as


possibilidades que a realidade oferece que explica o consumo crescente de
narcticos, como marijuana e peiote. A maioria dos poetas e hipsters tomam
essas drogas com a finalidade de abrir a percepo para um outro tipo de
realidade e de experincia psquica, e no apenas "pelo prazer da coisa". (Nem
a marijuana nem o peiote viciam; a marijuana tem um efeito mais brando
dependendo de pessoa para pessoa, enquanto o peiote mais forte. Ambas
essas drogas parecem possuir a virtude de levantar a barreira que existe entre
o consciente e o inconsciente. Nenhuma delas possui contra-indicaes srias
talvez no sejam to nocivas quanto o lcool se bem que seu uso abusivo
possa provocar uma ruptura psquica com a realidade).

Tambm no seu comportamento sexual o hipster procura novas


experincias. Um escritor perguntou-me se no achava assustadora a
existncia de tantos homossexuais entre os beats. sse fato me parece falso.
No creio que exista um comportamento homossexual mais acentuado entre
os beats do que encontramos na sociedade "normal"; talvez exista at em grau
menor. O que ocorre um acentuado comportamento bissexual e uma
liberdade maior nas relaes sexuais. E a razo disso no est no fato do
hipster pretender fazer da existncia uma interminvel orgia, mas sim porque
le acredita cjue as relaes humanas devem ser to profundas quanto
possvel. Essa era a opinio, alis, de uma jovem que conheci de personalidade

8
tipicamente beat. Ela considerava terrvel algum fazer amor com uma pessoa
que no amasse muito. Ela no entendia, por outro lado, como se podia dar
uma importncia to exagerada ao sexo. Ao mesmo tempo, ela acreditava que
se uma pessoa gosta muito da outra importante que durmam juntas pelo
menos uma vez, porquanto a relao ajuda a aproximar as duas pessoas. No
creio que sse comportamento seja o ideal da moralidade sexual; de qualquer
forma, essa atitude me parece muito mais sadia do que a moralidade sexual de
muitos indivduos "no-beat" para os quais o companheiro sexual serve
apenas como instrumento de uma satisfao fsica, deixando de ser uma
criatura humana merecedora de amor e de respeito.

At agora analisamos as razes evidentes para a existncia da juventude


beat. Existe ainda um outro motivo que o verdadeiro piv do movimento.
Refiro-me revolta contra a razo.

Ela inclui a tentativa feita pelos hipsters para encontrarem uma explicao para
a realidade exterior e para a vida em comunidade, aceitando os aspectos
irracionais e intuitivos de suas prprias personalidades.

Nesse particular, se desejamos compreender o significado do movimento


hipster, devemos analisar primeiramente o papel representado pelo jazz. O
jazz a linguagem internacional da juventude beat. Em tda parte em que se
renem beats, ouve-se o jazz. As ilhas britnicas esto tomadas de jovens que
tocam suas msicas em instrumentos improvisados (trata-se de uma variedade
do jazz primitivo de Nova Orleans que se utiliza de jarros, tbuas de lavar
roupa, brinquedos de spro ("kazoos") etc.). Os russos contam aos turistas
norte-americanos que os programas mais populares da "Voz da Amrica" so
os horrios dedicados msica de jazz. Na Iugoslvia, recentemente, trs mil e
quinhentos jovens esperaram durante seis horas para ouvir um con- crto de
Louis Armstrong.

No devemos pensar que a juventude adotou o jazz por ser uma msica
de protesto, mesmo admitindo que a verdadeira msica de jazz contm um
elemento de protesto especialmente o jazz primitivo que se originou como
um produto negro distinto da cultura branca. Essa explicao demasiado
bvia para ser verdadeira. A verdadeira razo, a meu ver, est no fato do jazz
ser uma msica irracional. O jazz sobretudo a msica da espontaneidade e
da improvisao. Um bom conjunto de jazz no necessita de msica escrita, de
ensaio ou preparao. Basta apenas que o conjunto inicie a sesso com alguma
melodia conhecida; graas a um ritmo bem definido, os msicos improvisam
na hora sua linguagem musical apropriada como se ela brotasse de dentro
dles.

9
O jazz parece ser o movimento social da massa no interior de uma
sociedade que teme os aspectos inconscientes de sua personalidade e que v
nles um remoinho borbulhante de incestos, crimes e desejos de auto-
destruio. Uma sociedade aterrorizada com o fato do inconsciente vir a
explodir e dominar a mente "racional". natural que uma cultura
fundamentada na cincia e na razo tema o elemento instintivo, tente neg-lo e
reprimi-lo. E ao invs de aceitar o instinto (isto , o irracional) como parte
integrante do ser humano e origem de todos os impulsos criadores, a
sociedade procura suprimi-lo definitivamente.

A exploso da irracionalidade no se limita apenas ao jazz e ao


movimento beat. Descobrimo-la tambm na arte moderna e no teatro.
natural, por conseguinte, que os escritores beat, os msicos de jazz e os
pintores abstratos reunam-se numa associao voluntria, uma vez que todos
les participam do elemento racional. No de estranhar pois que esses
grupos tenham provocado uma hostilidade to violenta por parte de certos cr-
culos intelectuais. sse antagonismo decorre do temor que uma cultura
racional manifesta por tudo aquilo que ela no compreende e que, por isso
mesmo, no consegue controlar.

A juventude beat, ao abraar o jazz, cria igualmente sua prpria


comunidade. Para muitos hipsters, o jazz algo semelhante a uma experincia
religiosa, exigindo a participao do pblico. Recebi, recentemente, de um
jovem msico de jazz a seguinte carta: "Ou bem voc agarra as notas, ou so
elas que o agarram. Mas no momento em que a gente as segura com fra,
como se pairssemos no ar, passeando, voando. A gente se sente vivo. como
se nos tornssemos as notas e os sons soprados. Tudo se transforma numa
coisa s. Nossa personalidade deixa de existir como personalidade ela se
transforma na msica que tocamos". Essa descrio aplica-se tanto ao pblico
que ouve quanto ao msico que toca. Uma assistncia de jovens que escuta
uma autntica sesso de jazz costuma interromp-la com os gritos de "Go Man
Go Go! Go! Go! Go!" e receber o fim do nmero com algazarras e aplausos.
Era mais do que uma msica que estava sendo executada ali era uma
experincia de grupo partilhada por todos, um ritual de comunidade no qual o
indivduo perde-se a si mesmo e identifica-se com o grupo inteiro.

Ao adotar o elemento instintivo da alma humana, a juventude beat


provocou alteraes culturais fundamentais. A cincia chegou a um impasse
por mais que se esforce, ela no nos fornece um padro de valores. Ela no
pode nos responder o "por qu" das coisas, mas apenas o "como . Se o homem
deseja viver em paz com sua tecnologia, indispensvel que entre num acordo
com seus instintos. (A suposio de que um critrio de valores possa ser
fundamentado no aspecto instintivo da personalidade coloca, naturalmente,
certas questes bsicas de natureza religiosa, incluindo a possibilidade de
"Deus" afinal no estar to morto quanto se supunha. Parece-me possvel que a
gerao beat ossa provocar o ressurgimento de um movimento religioso. Se

10
esse fr o caso, ser um movimento religioso bem diferente dos demais
movimentos do Ocidente, pelo menos na forma em que so praticados hoje).

11
mudamQuando as pessoas"se referem* ' gerao ocuraro novos as-
sunto beat e aos hipsters como "modas contudo, que o
s
passageiras", elas no podiam estar
cometendo um rro mais flagrante. Os
termos podero mudar les sempre

liipster _ ri-lo. E a gerao

beat, no importa com que nome seja chamada, a expresso natural de nossa
poca. Ela possui um carter internacional e est profundamente enraizada no
caos de nossa sociedade.

Apesar de todos os seus erros, o hipster o heri do nosso tempo que se


revoltou contra uma sociedade que apenas racional, mas que deixou de ser
sadia da mente; uma sociedade que, pelo fato de haver se divorciado do seu
elemento instintivo, fala tranqilamente em declarar uma guerra nuclear. A
capacidade do hipster em agir espontneamente numa sociedade que prega o
conformismo social uma prova evidente da capacidade da criatura humana
de governar suas prprias aes.

Uma ltima observao, dirigida aos liberais e radicais. Precisamos


compreender que muitos de nossos jovens mais dotados no se dedicaro a
uma atividade poltica a no ser que a poltica assuma um genuno valor
existencial. Isto , somente quando os meios forem compatveis com os fins.
Num universo em que a espcie humana pode desaparecer de um momento
para o outro, o homem esclarecido no vender sua alma ao Diabo na
esperana de que seu mal lhe sirva para adquirir um bem futuro. le exigir
que cada ao tenha um valor intrnseco.

Nossos polticos, por outro lado, devem possuir integridade, devem se


apoiar no ltimo valor que nos restou: a crena no ser humano individual
como uma criatura nica e valiosa que no devemos matar, aprisionar ou
detestar. Que nossos dogmas se adaptem realidade concreta dos indivduos
em vez de forar as pessoas a se ajustarem aos sistemas estreis das teorias
abstratas. Graas a uma ao direta num nvel comunitrio a poltica
apoiada nos indivduos estabelecemos o sentido da comunidade que est
to tragicamente ausente da vida moderna.

1
Acredito na espcie humana e no seu futuro, e estou convencido de que tambm o
hipster deseja desesperadamente acreditar nisso j que a nica grande
fraqueza aa juventude beat seja sua incapacidade em afirmar a vida. Uma
verdadeira afirmao da vida significa muito mais do que o Gary Snyder
denomina "uma espcie de entusiasmo delirante" pelas coisas significa a
alegria e a angstia de uma participao ntima na vida, de forma ativa e no
meramente passiva. E para que o jovem de hoje sinta desejo de participar
ativamente, indispensvel que le veja em ao um ideal digno de ser abraado.
O hipster seguir antes um Gandhi do que um Stevenson. A nica forma de dar
sentido vida poltica ou existncia individual, neste momento confuso e
incerto, reconhecer que, por mais que o "futuro" nos prometa, a vida poltica s
ter valor se agirmos desde o momento presente com uma absoluta
integridade.TED JOANS

Gravao no Bar "The Five Spot"

T.j. um pintor-poeta surrealista e um corajoso representante negro junto


juventude de Greenwich Village. Possui uma ironia

3
ue pode ser mortal mas que usada para a vida; um homem

inmico, ex-pistonista, formado pela universidade de Indiana e um


apaixonado pelo seu animal favorito e mtico: o rinoceronte. Ama os Estados
Unidos do fundo do corao e transpira criatividade e inventividade como os
quadrados respiram. Um homem que szinho um movimento que NUNCA
pra. Vejam s, minha gente, l vem o fantstico, orgistico e plstico T.J.!
le mesmo!

Trechos de uma gravao realizada no The Five Spot Cafe, entre a Rua 5 e a
Praa Cooper, em Nova Iorque.

1. "Quero que meus quadros tenham ritmo como os bons solos de jazz".

2. "H uns dez anos atrs vi algumas fotografias de Picasso desenhando


com uma lanterna eltrica. Caramba, com que rapidez le esboava e
gesticulava! Foi essa, realmente, minha primeira influncia".

1
3. "Na minha opinio Stuart Davis e seu discpulo, George Wettling, so
pintores estticos, sem nenhum ritmo; les no me dizem nada".

4. "Quando era mo, s gostava dos pintores europeus, mas agora


diferente; alguns pintores norte-americanos, como Joan Mitchell, Kline,
de Kooning, sem falar nos mais obscuros, esto fazendo uma tremenda
pintura".

5. "Lembro que uma vez, no bonitinho e branquinho Clube das Mulheres


em Louisville, uma velhusca rica, proprietria de uma enorme fazenda,
abordou-me com essas palavras:

"O senhor jura que pintou sse quadro? Eu no sabia que os negros
podiam pintar dsse jeito".

6. "No meu tempo de pistonista, procurava tocar como Dizzy Gillespie,


imitava exatamente tudo que le fazia e me tornei com isso um Gillespie
de terceira categoria. Com a pintura diferente: minha nica
preocupao pintar como eu sinto, dando tudo que sei,
independentemente do resultado ser bom ou ruim".

7. "Pintar! Pintar! Pintar! eis a nica maneira de aprender realmente".

8. "Eu no sei nadar mas em compensao balano o corpo como


ningum".

9. "Sim, eu reconheo que alguns brancos como Stan Getz e Gerry


Mulligan sabem tocar jazz, mas mesmo assim a gente deve primeiro
entender que..."

I. 0. "Gosto de festas grandes festas e por isso, depois da


inaugurao de minha exposio, haver uma tremenda festa com um
mundo de mulheres, bebidas e artistas".

II. "sse bar, o Five Spot, o mais avanado de todos, tanto em msica
como na decorao... veja por exemplo aquela parede ali".

2
12. "O vendeiro em frente ao meu estdio no tem esprito comercial... le
no tem mania de ganhar dinheiro".

13. "Fred McDarrah um fotgrafo profissional, o documenta- rista da


atual gerao beat. le incluiu todos os pintores- poetas e os principais
hipsters na sua reportagem".

14. "O jazz deve ser uma mulher..."

15. "Consultei certa vez um velho mdico na Libria, um autntico


feiticeiro, e seu diagnstico me pareceu totalmente errado; consultei
depois disso um jovem psiquiatra famoso da Madison Avenue e tambm
seu parecer me pareceu furado, de sorte que..."

16. "No posso negar que sou Ted Joans, preto afro-americano negro
retinto mau mau escurinho alma branca negro etc."

17. "Nunca possu um revlver e nunca matei nada... creio que meu
corao demasiado artista para ferir alguma coisa fisicamente".

3
18. "Comprar um Cadilaque? Como, se eu nem sei dirigir! Alis, quem
que precisa realmente de um?""Salvador Dali um velho amigo... mas eu
no gosto dle como gosto dos meus rinocerontes".

19. "Na minha opinio, a poesia dessa gerao um tipo de


expressionismo abstrato idntico ao da pintura chamada estilo
americano".

20. "Ser norte-americano uma vantagem para mim, mas ser um prto
norte-americano a maior desgraa que podia me acontecer".

21. "Bem, eu nunca sei de antemo o que vou pintar; primeiro eu vou
pouco a pouco esquentando e depois, quando a coisa comea a ficar boa,
diminuo a marcha e junto os pedaos sse o momento supremo".

22. "Claro que sou influenciado por sse ou por aqule, mas no copio
meus dolos. Sei que no posso pintar como Kline nem tocar piano como
Monk, por mais que goste dles".

23. "Comecei com a pintura surrealista quando tinha 14 anos e nunca


abandonei-a; ela continua sendo minha potica puta embora no pinte
mais quadros surrealistas".

24. "Me apropriei de muita coisa boa dos velhos mestres, especialmente
de Leonardo da Vinci, Uccelo e Picasso".

25. "Onde nasci no havia biblioteca para prtos, de sorte que pedia a um
menino branco para retirar livros de arte para mim com sua ficha branca
e inocente".

26. "Que Deus tenha piedade dessas pseudo-pintoras gr-finas que


estudam com Hoffman, freqentam o bar Cedar, visitam Provincetown e

2.12
que rolam dinheiro para conseguir expor na Rua 10. Depois do que
adotam uma atitude mais artista do que os prprios artistas".

27. "A Europa j teve sua vez, agora somos ns que fazemos arte pela
arte".

28. "Procuro combinar meus trs amres: jazz, pintura e mulheres".

29. "Conheo um pintor to honesto que nunca fz uma exposio, apesar


do seu estdio estar repleto de excelentes trabalhos. le diz que ainda
no hora. E le j est com 50 anos".

2.12
30. "At hoje adoro as mulheres pintadas por de Kooning. Fico tarado
tdn vez que vejo uma"."Pretendo fazer minha primeira exposio
individual em janeiro do ano que vem. Os poetas Ginsberg, Bremser e
Corso vo ler suas poesias no dia da inaugurao".

31. "Minha me no faz fora para entender minha pintura, alis, ela
tambm no faz fra para me entender; ns apenas gostamos um do
outro".

32. "Quando preciso de um estimulante, ofeream-me uma pequena do


meu gsto, uma boa msica de jazz ou uma bela pintura moderna isso
me levanta mais do que qualquer outra coisa".

33. "No ligo a mnima para o que certos bundas-sujas dizem da minha
maneira de falar".

BRIGID MURNAGHAN

George Washington: Um Dilogo Entre a Me & a Filha

BRIGID ADORA naturalmente as canes irlandesas ouvidas pelo rdio; fora


isso, ela uma corretssima dama beat que no se importa com o que dizem
os guardas na rua, a menos que sejam bonitos.

A ME:

Pelo amor de deus como possvel


sse homem ter feito nossa
independncia? Pelo jeito le passou a
vida inteira posando!

ANNIE:

1
Vai ver que le deu ao ingls um
retrato como modlo.

ANATOLE BROYARD

A Escolha

O TRANQILO Anatole Broyard um beat de escritrio: no despreza o dinheiro,


gosta de andar na estrada larga da vida e veste-se s vzes com uma impecvel
elegncia; nada disso contudo faz com que perca o olhar penetrante e fixo de
cientista. Uma inteligncia viva e um gosto especial pela bomia em meio aos
horrores da existncia moderna. Seus contos tornam-se dia a dia mais agudos e
mais sugestivos e seus amigos bomios aguardam com intersse o momento
em que le v soltar-se realmente e dar tudo que sabe. Estve anteriormente
em Nova Orleans e no Brooklyn e lecionou na New School em Nova Iorque.
Seu sucesso com as pequenas foi to grande que resolveu declarar guerra ao
resto da humanidade.

Independentemente das concluses a que meu pai chegava, eu

2
or meu lado tomava certas providncias. Uma delas sobretudo eixou-me
bastante apreensivo, uma vez que exigia de mim uma grave deciso. De uma
forma geral, at aquela data, minhas resolues eram sempre no sentido de
no fazer alguma coisa. Dessa vez era diferente. Indaguei a mim mesmo, um
sem-nmero de vzes, se no estava agindo precipitadamente e recebia sem-
pre a mesma resposta. Na situao em que havia chegado, era impossvel
voltar atrs ou esquecer, e no entanto essa deciso era to contrria a minha
maneira habitual de ser que no conseguia imaginar-me pondo-a em execuo.
bem verdade, pensava comigo, que se trata de uma situao excepcional.Eis
a razo porque ao sair certa noite do hospital, parti procura de Jimmy
Blandon. Como no sabia onde le morava a maior parte do tempo le
tambm no sabia procurei-o inicialmente no bar do Joe, situado Rua 4.
Joe no o tinha visto aqule dia. Na esperana de que Jimmy aparecesse ainda
por ali, sentei-me numa mesa e, durante uma hora, consumi trs xcaras de
caf enquanto olhava pela janela para dentro de mim mesmo.

Depois levantei-me e paguei a consumao; deixei um recado com Joe


para que Jimmy se comunicasse comigo. Ao chegar porta, voltei-me e
acrescentei: "Diga-lhe que importante". Notei um leve embarao na
fisionomia aberta de Joe; le estava surprso porque nunca havia tratado
nenhum assunto importante com Jimmy anteriormente.

Entrei na livraria de Pete e perguntei-lhe se havia visto Jimmy. Pete


estava debruado sobre a lista dos pedidos novos; sem levantar a cabea,
repetiu para si mesmo a pergunta.

O que voc quer com ele? disse em seguida.

Nada muito importante. Voc o viu?

H uma meia hora atrs, disse le, fazendo sinal com o dedo polegar
em direo Sexta Avenida.

le est provvelmente no bar do Salvatore, pensei comigo; de fato,


alguns minutos depois encontrei-o l. O bar do Salvatore ficava situado entre
um Departamento de Sade Pblica e um sapateiro; essa localizao dava-lhe
um aspecto absurdamente moderno. As vidraas da frente desciam em ngulo

3
oblquo at pouco acima do cho, onde se avistavam plantas ornamentais
saindo do interior de vasos de alumnio. A facnada de tijolos vermelhos e a
bela porta de madeira faziam tambm parte de uma reforma recente; o
interior, porm, havia permanecido idntico, com seu ambiente sombrio e
antiquado, cheirando a cerveja.

Jimmy estava sozinho no interior de um reservado, o que no era costume


no bar; os outros freqentadores apinhavam-se geralmente junto ao balco. O
copo dle estava vazio; apanhei em vista disso mais dois copos cheios no
balco e sentei-me na sua frente.

Seus olhos de coruja manifestaram uma alterao indefinvel que quis


acreditar ser de alegria. Sem dar uma palavra, le apanhou o copo cheio que
havia trazido e derramou o contedo no seu copo, em vez de beber
diretamente dle. Quando a espuma chegou no alto, le bebeu exatamente o
que havia sobrado no outro e depois tornou a encher novamente o seu copo.

Exclamaes e conversas em voz alta ressoavam pela sala; na minha


preocupao no havia percebido imediatamente que uma luta de boxe estava
sendo transmitida pelos dois aparelhos de televiso situados em cada uma das
extremidades do balco, at o momento em que Jimmy deu uma risadinha e
comentou consigo mesmo "Grande, meu velho".

No aparelho de televiso que estava na minha frente, na outra


extremidade do balco e na direo oposta que Jimmy olhava, vi um homem
cado no tablado, o adversrio junto s cordas num canto do ringue e o juiz
contando at dez.

Escuta, Jimmy, disse, procurando chamar sua ateno, queria lhe pedir
um favor.

le deixou que olhasse para seus olhos um bom momento, depois


levantou o copo na mo e, observando a espuma, virou a cabea para trs.
Quando voltou a colocar o copo em cima da mesa, fora da rodela de papelo, a
espuma cobria seus lbios finos e, por um instante, pareceu-me que via na
minha frente um cachorro louco entediado.

Gostaria que voc me arrumasse alguns comprimidos para dormir,


disse, sem dar ao pedido o ar de naturalidade que havia desejado.

4
le tornou a olhar para o aparelho de televiso; involunt- riamente voltei
a vista para o outro, como se fsse receber sua resposta nle.

Voc no consegue dormir? perguntou le.

...

Est deprimido?

Estou.

O que voc quer?

Uma coisa forte.

Percebi minha falta de tato quando vi uma sombra passar sbre seu rosto.

Forte como?

Sei l... o suficiente para poder dormir.

Durante quanto tempo?

At passar a depresso, disse, irritado com minha falta de tato.

Nunca soube que voc fsse dado a essas coisas.

Eu no sou dado a essas coisas. S no consigo dormir, tudo.

5
Por que voc no d uma puxada?

Escuta, Jimmy, eu no estou atrs disso, exclamei. Meu problema


unicamente no conseguir dormir.

Quantos voc precisa?

Oh, umas trs ou quatro dzias, sei l!... disse isso contudo sem
nenhuma naturalidade.

le no respondeu. Por um momento pensei que a partida estava perdida.


Perguntei, porm, como se fsse um negcio resolvido:

Para quando voc arruma?

Eu no disse que ia arrumar.

Prometo guardar segredo.

Estou pouco ligando para isso.

Ento por que voc faz todo sse mistrio? exclamei, meio irritado.
Voc os toma como se fossem gua.

Escuta, disse le, num tom repentino de negcio, no estou


entendendo o que se passa com voc. Nunca soube que voc fsse de nada e
agora voc quer que lhe arrume quatro dzias de comprimidos. Qual o
galho?

Pressenti que nada, a no ser a verdade, o convenceria.

6
Preciso dsses comprimidos para o meu pai, disse.

le havia levantado o copo de chope na altura da bca e continuou


segurando-o naquela posio sem beber, enquanto me observava por cima do
copo, como se fsse oferecer um brinde minha extravagncia.

Estou falando srio, disse, com mpeto, contente em desabafar, em


confiar meu segrdo a algum. Voc sabe que o velho est no hospital, voc
deve ter ouvido falar. Pois bem, le no tem cura, est com cncer no osso, o
pior que existe. le passa os dias deitado, gemendo. As injees no surtem
mais efeito e le j est todo furado de tanto que tomou. le est morrendo
lentamente e isso est acabando comigo tambm. Gostaria que le tivesse uma
escolha mo. Entende o que eu digo? Acho que le tem o direito a ter uma
escolha...

Sem beber do copo levantado, le tornou a deit-lo em cima da mesa.

Voc o cara mais louco que j conheci! disse le aps um momento.

No fiquei sabendo se suas palavras eram de crtica ou elogio.

Trs dias mais tarde, dirigi-me ao hospital com os comprimidos no blso,


quarenta e oito olhinhos vermelhos embrulhados em papel celofane de onde
tdas as impresses digitais haviam sido removidas; iam dentro de uma
caixinha de lenos de papel.

Encontrei a enfermeira na portaria; antes de subir para o quarto, dirigi-me


a ela e lhe perguntei, esperando um milagre:

Como le passou o dia?

Est na mesma, disse ela, com uma voz que no deixava dvidas.

7
Olhei irritado para ela, mas seu rosto j estava dirigido para outra parte.
No havia outro remdio: tinha que ir at o fim. Ao entrar no quarto, apressei
o passo em direo sua cama.

O sofrimento transparecia no seu rosto. Ao ver-me, le procurou disfar-lo


com um sorriso, exatamente como minha me fazia ao pr uma colher de
acar no leo de rcino.

O sorriso que lhe dei em resposta no foi tambm dos mais alegres; estava
profundamente angustiado com a deciso que tomara.

Ol papai, disse, rompendo um silncio que se prolongava


penosamente.

le levantou a mo e colocou-a sbre a minha na beira da cama; depois


retirou-a com vivacidade, envergonhado com sua magreza.

Voc est precisando cortar as unhas, disse, segurando-lhe a mo e


passando o dedo nas extremidades das unhas.

Na mesinha de cabeceira havia um cortador de unha que minha me


havia trazido a pedido seu. Antes de cair doente, era seu costume aparar as
unhas semanalmente; revia-o na imaginao sentado na sua cadeira predileta
com o cortador na mo, indiferente s pontas que pulavam em cima do
assoalho.

Apanhei o alicatezinho na gaveta e segurei sua mo dentro da minha.


Comecei pelo dedo menor: suas unhas estavam amareladas e estranhamente
enrugadas. Enquanto isso, pensava comigo uma maneira de abordar o assunto
dos comprimidos.

Fiquei surprso com o fato de suas unhas estarem to limpas, se bem que
no havia muita ocasio para suj-las numa cama de hospital. De repente sua
mo se contorceu dentro da minha, alertando-me para sua dor, fazendo-me
sentir extremamente desajeitado e estpido.

8
Estou lhe machucando, pai?

No, disse le, procurando no deixar transparecer nenhum incmodo


na voz.

Voc tem tomado o analgsico? perguntei, sabendo que fazia uma


semana que no lhe produzia mais efeito. Continua dando resultado?

No muito, disse le aps um instante de hesitao, quase a


contragosto, sua voz revelando tudo o que sentia.

Eu falei com a enfermeira. Ela disse que infelizmente no possvel


aumentar a dose... no lhe faria bem... Eu lhe trouxe por isso um remdio de
casa, disse para le, tirando o embrulho do blso.

le olhou surprso para os lenos de papel. Verificando que ningum nos


observava, segurei a caixinha na mo e fiz com a ponta dos dedos uma
pequena abertura, entre os lenos, para que le visse os comprimidos no
fundo. Pequenas bolinhas vermelhas num frro branco de papel; senti-me
confuso e envergonhado como se lhe mostrasse alguma coisa obscena.

So comprimidos para dormir, disse. Se acontecer da dor apertar, voc


toma alguns comprimidos e dorme sossegado.

Ao dizer isso, olhei diretamente nos seus olhos, para no haver dvida
que le havia entendido. Queria perceber algum sinal, por mais momentneo e
passageiro que fsse, que me certificasse uma compreenso exata das minhas
palavras.

le olhou para o embrulho.

Quantos comprimidos so? perguntou.

9
O suficiente para passar a dor, caso seja necessrio, disse, fixando
ainda seus olhos.

preciso ter cuidado com essas coisas, disse le, aps ter olhado ainda
uma vez para o embrulho. Pode ser perigoso tomar muitos de uma vez.

No sabia o que responder. A hesitao se prolongou durante alguns


instantes. Vou ser obrigado a dizer tudo, pensei.

verdade, papai. Voc no deve tomar muitos de uma vez.

Observei, aguardei e nenhum sinal de evidncia surgiu. Como

era possvel le no entender? Mas havia tantas outras coisas que le nunca
havia entendido! Precisava ter certeza mas como? No ousaria jamais
pronunciar aquelas palavras decisivas.

Fixei meu olhar no seu como se fsse um hipnotizador e procurei enviar-


lhe a mensagem; le estava distrado, porm, olhando para o teto. Comecei a
sentir o desespro da situao. Sabia que se no fsse at o fim, jamais teria
coragem de recomear. Ajeitando-me na beira da cama para observ-lo mais
de frente, concentrei-me intensamente, como um homem que vi certa vez, no
zoolgico do Central Park, tentando hipnotizar um leo. Assim fiz,
esforando-me para que seus olhos encontrassem os meus.

le voltou lentamente a cabea e nossos olhares se encontraram. Ento,


enquanto mergulhava dentro de seus olhos, as profundidades se abriram no
interior de suas pupilas e, debruado sbre le, olhando para baixo, ca no
abismo sem fim de um ser humano...

No havia mais dvida: le sabia perfeitamente a finalidade dos


comprimidos. Mas, ao mesmo tempo, seus olhos diziam que no era verdade,
que eu no os trouxera com aqule objetivo, que seu filho jamais faria uma
coisas daquelas.

10
Debruado sbre le, procurando no piscar nem respirar para no perd-
lo de vista, esperei que le entendesse, tentei mergulhar novamente no interior
de suas pupilas e depositar l meu pesado fardo. para seu bem! Estou
fazendo isso para seu benefcio! gritava dentro delas, tentando
desesperadamente comunicar-me com le atravs de seus olhos, como um
farol cujo faroleiro houvesse enlouquecido. Estou fazendo isso por voc! Voc
no percebe?

Mas le jamais entenderia, nem em um milho de anos, embora a


realidade estivesse ali, diante de seus olhos, inelutvel como a morte. Gritava
isso dentro da minha cabea a ponto de enlouquecer, mas le no queria ouvir.
Seu filho no faria jamais uma coisa daquelas.

Permaneci naquela posio um tempo incontvel, at o momento em que


as profundidades de suas pupilas comearam a diminuir, como se olhasse
atravs de um telescpio que se fechasse lentamente, deixando-nos to perto
um do outro que nossos olhos se cruzavam.

Durante todo sse tempo minha mo apertava com fra o embrulho em


cima da cama. Aps t-lo guardado no blso do casaco, retomei o corte das
unhas. Foi somente horas depois, quando voltei para casa, em Greenwich
Village, que me lembrei dos comprimicfos. Seria preciso jog-los fora em
alguma sarjeta de rua.

LAWRENCE FERLINGHETTI

Do Livro "A Coney Island of the Mind: # 5"

FERLINGHETTI um homem tremendamente ocupado desde que abriu sua


livraria em So Francisco. Sua poesia agora ardente, com uma melodia
selvagem e pessoal, reservando extravagantes surpresas surrealistas. H
muito colorido em tudo que faz, como alis nle mesmo. Ouvi-lo ler seus
poemas algo muito especial. le jovem e importante, faz parte do
movimento beat e um de seus principais divulgadores no pas. Centro de
atividade do movimento, le possui muito encanto bomio e uma viva
encarnao do ambiente atual. Poeta audacioso mas extremamente sensvel.

Algumas vzes durante a eternidade

11
alguns camaradas se exibem

e um dles

que apresenta seu nmero bem tarde

uma espcie de carpinteiro

de um lugar meio quadrado

chamado Galilia sse camarada ento comea a se


agitar

e a gritar que ele um iniciado para quem


foi feito o cu e a terra

e que o sujeito que nos jogou


com ela em cima seu velho

E fora isso le acrescenta

Est tudo escrito

em pergaminhos enrolados que alguns de seus


homens de confiana

deixaram em alguma parte do Mar Morto h muito


tempo atrs

12
e que no sero encontrados durante dois mil
anos aproximadamente ou pelo menos durante
mil novecentos e quarenta e sete anos

para ser exato

e mesmo ento

ningum h de acreditar nles

ou em mim

a respeito dsse assunto

Voc est no fogo

dizem para le

E les o esfriam

les o estendem na rvore para que se acalme E todo


mundo desde ento

comeou a fazer modelos dessa


rvore

com le pendurado e esto


sempre cantarolando Seu nome

e chamando-o para que desa de l e sente-


se

13
no meio dles como se le
fsse o rei da banda

que vai tocar seu instrumento caso contrrio


les no se animam Mas acontece que le no desce de Sua rvore le fica
calmamente pendurado nela

parecendo realmente um Drogado


inteiramente calmo e ausente e tambm de
acordo com o apanhado

das ltimas notcias mundiais


provenientes das duvidosas fontes usuais

realmente mort

14
o
W? "

19
ste livro foi composto e impresso na GRAFICA URUPES

Rua Cadiriri, 1181 Fone 92-9729 So Paulo - Brasil 196


8& paulatinamente no obedecia a nenhuma regra, fazia o que o corpo me ditava programar
experincias com peiote, usar peiote como forma de auto-conhecimento & coisas no gnero s
serve para atrapalhar uma atitude anti-peiote tambm passar a noite inteira sentado na mesma
posio, como no ritual nativo da igreja norte-americana no algo espontneo.

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