Geracao Beat - Antologia - Brasiliense 1968
Geracao Beat - Antologia - Brasiliense 1968
Geracao Beat - Antologia - Brasiliense 1968
GERAABEAT
(Antologia)
"...o culto da gerao beat pelo primitivismo e pela espontaneidade mais do que
um disfarce que cobriria sua hostilidade pela inteligncia. No fundo, le provm
mesmo de uma pattica pobreza de sentimentos. Os hipsters e seus simpatizantes da
gerao beat so revoltados, est certo, mas no contra algo de to sociolgico e his-
trico quanto a classe mdia ou o capitalismo ou ainda a respeitabilidade. Trata-se
de uma revolta dos espiritualmente no privilegiados e dos mutilados da alma
jovens que no conseguem pensar normalmente e odeiam qualquer pessoa que o
consiga; jovens que no conseguem sair do atoleiro de si prprios..."
Norman Podhoret
z"... a gerao beat, qualquer que seja o nome que se lhe d, a expresso natural de
nossos tempos: internacional no carter e profundamente arraigada no caos de nos-
sa sociedade. Apesar de todos os seus defeitos, o hipster um heri de nossos
tempos por se ter rebelado contra uma sociedade que apenas racional e se
encaminha rapidamente para a insanidade; uma sociedade a qual, por ter divorciado o
homem da pura intuio de si mesmo, pode discutir tranqilamente sobre a guerra
nuclear. A capacidade do hipster de agir espontaneamente em uma sociedade que
se baseia na desperso- nalizao em si mesma uma afirmao da capacidade do
ser humano em determinar o rumo de suas prprias aes."
DAVID MCREYNOLDS
OS LIVROS NO ENCONTRADOS NAS LIVRARIAS PODEM SER PEDIDOS PELO
REEMBOLSO POSTAL
LIVROS NACIONAIS E ESTRANGEIROS
Rua Baro de Itapetininga, 93 12. andar Caixa Postal
30.644 So Paul
o
A energia, a fria, a franqueza que imprimiu
em seus escritos fizeram da gerao beat o
movimento literrio mais violentamente
discutido deste sculo.
Ted loans
R,chard Barker Ray Gregory Corso
Jac |, Kerouoc
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Bremier Chandler ence Ferlinghel"
lawr
Seymour Krim philip Herman
Brassard Anatole n n Ginsberg
A e PodhoreH Dion.
Herbert lamanlio Day,d
Brayard William
James Oraar MocReynold*
Di Prima
Don Propper Hubert
Burroughs
Jack Mormon lock Mich.line Selby >'
Green ,ohn
Brigid Gary
Clellon
Murnagh Snyde
Holmes
capisla
TIDE HELLMEISTER
,
brasiliense soe. *
EDITRA
N
-
Eua Baro de
Itapetininga, 93
12." andar Sio PAULO
GERAO BEAT
BRASIL
EDITORA BRASILIENSE
1968
Ttulo do Original Norte-Americano
THE BEATS
Introduo .................................................................................................................. 11
JOHN CLELLON HOLMES
A Filosofia da Gerao Beat ......................................................................................... 15
DAN PROPPER
A Fbula da Hora Final ................................................................................................. 30
JACK KEROUAC
Trs Episdios do Romance "Visions of Cody" ........................................................ 38
CRECORY CORSO
Rquiem Espontneo para o ndio Norte-Americano ............................................. 49
RICHARD BARKER
Torneio de Saxofone no Curral da Misso ---------- - -------'.'................................... 55
JAMES GRADY
A Grana Minha Bno .............................................................................................. 64
SEYMOUR KRIM
Uma Ponta de Loucura .................................................................................................. 66
DIANE Dl PRIMA
13 Pesadelos ..................................................................................................................... 84
CHANDLER BROSSARD
Batillcs............................................................................................................................91
JACK GREEN
Peiote .............................................................................................................................. 100
RAY BREMSER
Pedgio ........................................................................................................................... 115
NORMAN PODHORETZ
Os Ignorantes Bomios ............................................................................................... 118
WILLIAM BURROUGHS
Dois Episdios do Livro "The Naked Lunch" ......................................................... 132
PHILIP LAMANTIA
Silenciem a Prostituta de Babilnia .......................................................................... 139
HUBERT SELBY, JR.
Verso e Reverso ............................................................................................................ 141
GARY SNYDER
Carta de Quioto ....................................................................................................... 152
ALLEN GINSBERG
Morte para a Orelha de Van Gogh ....................................................................... 157
HERBERT GOLD
A Mistificao Beat ................................................................................................. 162
JACK MICHELINE
Vozes da Rua em Nova Orleans ........................................................................... 175
NORMAN MAILER
Cenas da Pea "The Deer Park" ............................................................................ 179
DAVID McREYNOLDS
Bomios em Liberdade ........................................................................................... 220
TED JOANS
BRIGID MURNAGHAN
George Washington: Um Dilogo Entre a Me & a Filha .... 234 ANATOLE BROYARD
A Escolha .................................................................................................................. 235
LAWRENCE FERLINGHETTI
Do Livro "A Coney Island of tlv; Mind: 5"
242Introduo
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com a leitura de Gregory Corso, Allen Ginsberg e Jack Kerouac, da mesma
forma que ouvem e apreciam nossa msica de jazz. Na Europa, o crtico
conservador Orville Prescot no esconde sua curiosidade por Norman
Mailer e sua filosofia do movimento hip, como deixam transparecer os
artigos escritos aps sua viagem ao exterior. Richard Watts, crtico
teatral, confessa ter tido uma experincia semelhante em sua estadia na
Polnia e nos pases nraicos.
A literatura beat e hip com sua combinao, ocorrida sbi-
tamente em 1960, de realismo e surrealismo, feitos drsticos e pblicos de
amor e crime que fazem justia ao que havia sido mrbidamente recalcado
durante sculos, com suas frases musicais maneira do jazz, com sua
pssima gramtica ou nenhuma gramtica, ou ainda com sua nova
gramtica essa recente literatura, por conseguinte, possui todos os
excessos e as cruezas das revolues no planejadas. Mas por que razo
haveramos de nos deter nas suas falhas em vez de considerar a fra e a
Voz imensamente positivas do movimento que at um surdo pode ouvirP
(Convm esclarecer brevemente que no h no movimento beat nenhum
tipo de irmandade semelhante ao da Igreja Catlica ou do Partido
Comunista; provvel que nenhum dos escritores includos nesta
antologia pense da mesma forma; a unio que existe entre les prende-se
ao geral e no ao particular; possvel ainda que o nico elemento que os
una seja de pertencerem todos "minha gerao revoltada", segundo a
demonstrao dada por Norman Mailer.) No que se refere aos autores
cautelosos, na sua maioria literatos respeitveis, de nariz torcido, que
olham com expresso de escrnio para a revolta beat les se acreditam
protegidos atrs de seus preconceitos livrescos de qualquer possvel
participao que resultaria talvez em uma. iniciao tudo o que se pode
dizer dles que esto perdendo, lastimvelmente, a experincia mais
eletrizante que ocorre atualmente nos Estados Unidos.
A literatura beat, empregando ste trmo meio imprprio na sua
acepo mais genrica, no se originou do nada, como poderia parecer
primeira vista; ela surgiu, cresceu e derrubou os lugares comuns do bom
gsto e da inibio graas sua espantosa necessidade vital, sem se deixar
seduzir pelas promessas da psicanlise. Transformaes radicais haviam
ocorrido, desde a Segunda Guerra Mundial, com o sistevw de vida norte-
americano e com o do resto do mundo; a expresso literria contudo
conservava-se a mesma, prsa s suas prticas padronizadas e
subservientes (a revista TTie New Yorker sendo o exemplo por excelncia
da maneira senil de descrever a vida) enquanto a realidade brutal e
irrefrevel do ano de 1950 punha abaixo muitas das tradicionais
consolaes oferecidas pela literatura, pela vida, pelo prprio mundo.
Algum tinha que ceder. E foi o que aconteceu. Alguns jovens que no
tinham nada a perder uma vez que tudo lhes parecia definitivamente
perdido! dotados da perigosa virtude de ousar acreditar naquilo que
haviam vivido, mesmo que isso pudesse lev-los cadeia ou ao hospcio,
comearam a divulgar seus escritos com a convico de estarem fazendo
algo absolutamente AUTNTICO.
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E era. To autntico, na verdade, que um pblico estupefato (que no
fazia idia que se podia ser 100 por cento livre ao escrever) comeou a
devorar ste novo man de literatura beat como fariam com um delicioso
doce numa confeitaria fina. (Os primeiros a se manifestar foram os demais
autores que se em- bruteciam mortalmente numa sombria atividade
mecnica enquanto ansiavam secretamente que algo acontecesse que
tornasse a literatura merecedora de crdito). "Assim lia enquanto
caminhava, lendo como algum que estivesse morta de fome, mastigando
cada palavra como se ela saciasse o vazio de meu sofrimento
inexprimvel," escreveu uma jovem me, de sensibilidade moderna, para o
editor dste livro a respeito de uma narrativa beat que ambos apreciamos.
Essa era a literatura que comunicava algo verdadeiramente crucial, como
se fosse uma questo de vida ou de morte (uma vez que vivemos na Idade
do Suicdio), alguma coisa de valor imediato para o leitor, e no mais uma
remota lenga-lenga literria. Tratava-se de algo ntimo como um bilhete
de amor, como uma fantasia ertica pessoal, como o aparte do saxofone
tenor numa seo de jazz era a comunicao direta de uma pessoa viva
para uma outra entusistica pessoa viva, era enfim uma literatura que
desprezava solenemente tdas as limitaes formais das pocas passadas,
bem como suas convenes literrias ridculas, irremedivelmente
deplorveis, tmidas e bem comportadas.
Os leitores encontraro neste livro uma expressiva coletnea de
material literrio beat, bem como uma crtica inteligente do que h de pior
no movimento ("Voc deve abordar ste assunto com o mximo da
imparcialidade", disseram-me os editres, acenando com o cheque diante
de minha magra conta bancria); encontraro algumas pginas de poesia
altamente explosiva (os escritores beat reintroduziram a poesia no
cotidiano cinco anos antes das declaraes pronunciadas por Shapiro com
respeito ao futuro da literatura norte-americana), algumas pginas de
fico, alguns trechos da pea The Deer Park de Norman Mailer, dois ou
trs textos ligeiramente birutas como uma gravao de fita e uma carta do
Japo, etc. Convm lembrar, porm, que ste livro, por mais suculento que
seja, apenas um aperitivo. Boa parte do material mais alucinado, e mais
autntico, no foi possvel publicar, tanto por falta de espao quanto pelo
temor compreensvel, mas de qualquer forma deprimente, dos donos da
bola. Seja como fr, esperamos que haja o suficiente neste volume para
saciar a fome daqueles que anseiam por alguma coisa concreta, sem
brincadeira, algo verdadeiramente genuno, a verdadeira escrita jazstica
do mundo atual, que se case de fato com o universo em que vivemos e
giramos.
O que se segue realmente para agora, para hoje, ste minuto, ste
segundo. Na verdade, soou a hora, e mais do que tempo do apresentador
dar o fora.
SEYMOUR KRIM
P.S. Agradeo a Le Roi Jones e Allen Ginsberg por terem me ajudado no lanamento
deste livro. Agradeo a Jack Micheline por ser o que , e por ter-me aberto as portas da
f e do reino beat. Uma bolinha para Nancy Macdonald e Knox Burger por haverem
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chamado minha ateno para certos valores atuais. (Nancy, j lhe disseram que voc faz
parte do movimento apesar de ter se formado pela Universidade de Vassar em 1932?)
Os demais erros e acertos do livro pertencem exclusivamente ao apresentador. Que seus
64 ex-psicanalistas regozijem-se com o fato dele no temer mais aceitar a
responsabilidade de seus atos e estar disposto a colaborar com a demolio do
quadrado mundo literrio contemporneo.
JOHN CLELLON HOLMES
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de um grupo de agitados jovens norte-americanos, "loucos para viver,
loucos para conversar, loucos para serem salvos," cujos interesses
principais na vida giravam em trno de carros-esporte, festas malucas,
jazz moderno, sexo, marijuana e outras "emoes fortes" no gnero.
Kerouac declarou que les eram os representantes da gerao beat.
Como porta- voz deste movimento, Kerouac viu-se repentinamente,
para sua grande consternao, centro de uma violenta controvrsia.
Jornalistas corriam atrs dele; os crticos literrios dependendo da
atitude que haviam adotado em suas apreciaes anteriores, elo-
giavam-no ou ridicularizavam-no. Em uma entrevista feita pela
televiso, um pblico fascinado de nova-iorquinos ouviu trechos de
uma conversa quase incompreensvel que se desenrolou mais ou
menos nestes termos:
APRESENTADOR Voc disse, meio brincando, que voc
passou dois dias completamente bbedo...
KEROUAC Rem, no foi bem assim... eu no passei dois dias
bbedo... passei dois dias bebendo.
Mais adiante:
APRESENTADOR A gerao beat tem sido denominada, com
freqncia, uma gerao que busca. O que voc est procurando
exatamente?
KEROUAC Deus. Quero que Deus me mostre Sua face.
Ningum parece ter entendido claramente o que Kerouac
pretendia dizer; alguns crticos insistiam em afirmar que sses jovens
hedonistas selvagens no eram absolutamente representantes de coisa
alguma, e que no passavam de "cabotinos', de "dbeis mentais sem
moralidade alguma", de "burgueses revoltados com sua prpria
condio." Entretanto, existia algo no livro e no trmo que os definia
que no podia ser psto de lado to fcil- cilmente. O romance tornou-
se assunto ae calorosa discusso, o que fz suas vendas subirem,
conseqentemente, e o trmo ficou para grande irritao daqueles
que negavam a existncia do fenmeno.
A verdade que Kerouac, de certa forma, fornecia a explicao
para as atitudes e comportamentos de uma juventude
[ue deixavam as pessoas de idade inteiramente perplexas. De ato, as
preocupaes principais dos personagens apresentados por Kerouac
diziam respeito ao rock and roll, ao uso de drogas, delinqncia
juvenil, atitude amoral em relao ao sexo e a todos os fenmenos
eorrelatos que caracterizam o jovem norte- americano atual nas suas
manifestaes extremas.
Criar uma palavra que defina as caractersticas de uma gerao foi
sempre uma tarefa ingrata. Por outro lado, as geraes que surgem ao
aps-guerra necessitam, mais do que outras, de um termo que as
defina, e a razo disto que seus membros possuem em comum uma
experincia excepcionalmente unificadora, partilhada por todos em
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uma idade especialmente impressionvel. Encontrar, no entanto, uma
palavra que caracterize o
frupo que se situa hoje em dia, a grosso modo, entre as idades de ezoito
e vinte e oito anos, uma tarefa ainda mais rdua, uma vez que ste
grupo inclui veteranos de trs espcies distintas de guerra moderna: a
guerra declarada, a guerra fria e a guerra a que temos negado
obstinadamente o nome de guerra, considerando-a em vez disso como
uma represso policial.
Alguns anos atrs, a revista Time denominou a juventude de hoje de
Gerao Silenciosa, isto talvez porque o Time no estivesse realmente
prestando ateno. Outros batizaram-na, de Gerao Expectante,
outros de Gerao Caminhante, se bem que tdas estas denominaes
pareciam inadequadas. Agora, com a palavra "beat", possumos
finalmente um trmo apropriado. Todos aqules que passaram por
uma guerra, de qualquer espcie que seja, sabem que a palavra beat
significa, no tanto esgotamento nervoso, como ter os nervos flor da
pele; no tanto se sentir "cheio" como se sentir vazio. A palavra beat
define um estado de esprito no qual tdas as coisas no-essenciais
foram arrancadas para fora, deixando-o receptvel a tudo aquilo que o
rodeia, se bem que impaciente com os obstculos vulgares da vida. Ser
beat estar no fundo da personalidade, com os olhos voltados para
cima; ser existencial no sentido em que Kierkegaard dava a esta
palavra, e no necessariamente no sentido que lhe d Jean Paul Sartre.
O que diferencia os personagens do romance On The Road dos
criminosos comuns, oriundos de meios miserveis, e das hordas de
vndalos que ocuparam um lugar proeminente em uma extensa
literatura moderna norte-americana o que os torna beat, em suma
algo que parece haver irritado especialmente os crticos literrios.
Refiro-me insistncia com que Kerouac acentua o esprito de busca,
frisando ainda que o principal objetivo dessa procura de ordem
espiritual. Embora os personagens de seu romance atravessem o pas
de um lado para o outro por pretextos fteis, gozando vivas emoes
nestas jornadas, a verdadeira viagem dl les de ordem interior.
Ainda mesmo quando ultrapassam todos os limites, legais e morais,
fazem-no unicamente com a esperana de encontrar uma crena no
outro lado da experincia. "A gerao beat", diz le, " bsicamente
uma gerao religiosa." Em uma outra entrevista, Kerouac amplia
ainda mais sua declarao: "Ela inclui qualquer pessoa de quinze a
cinqenta e cinco anos que se interessa por tudo. bom lembrar que
no somos bomios. Beat significa beatitude e no um sentimento de
fracasso. A gente sente isso. Sente-se isso no ritmo de uma batucada,
no jazz no genuno cool jazz ou numa animada seo de rock no
meio da rua."
Diante de uma tal declarao, parece absurdo que os pais, os
homens polticos, os representantes da lei e at mesmo os crticos
literrios tenham-se mostrados surpresos, irritados ou decididamente
indignados com o comportamento dessa gerao. les afirmam ser ela
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responsvel, mais do que qualquer outra gerao do passado, por um
maior ndice de criminalidade, por maiores excessos de conduta, e por
uma maior irresponsabilidade social; acusam-na, por outro lado, de
manifestar um desintersse quase total pela poltica, pela vida em
sociedade e pelas crenas religiosas ortodoxas. Sentem-se ofendidos
pelo culto prestado memria de James Dean, vendo nle sintomas de
uma perigosa morbidez, da mesma forma que consideram as
homenagens prestadas a Elvis Presley o sinal de uma perigosa
sensualidade. Essas pessoas leram as estatsticas publicadas sobre o
consumo de drogas, promiscuidade sexual e consumo de bebidas
alcolicas entre os jovens e empalideceram. Elas lamentam
igualmente o fato de que as "produes literrias mais originais,
editadas nos Estados Unidos, tenham sido produzidas graas ao
estmulo de fenmenos bizarros e fora do comum"; manifestam ainda
um sentimento de terror pela nova modalidade inquietante da
delinqncia juvenil: a violncia sem uma razo determinada,
fenmeno que irrompeu na maior parte das grandes capitais.
Essas pessoas no vem nenhuma busca de valores espirituais
numa gerao cujos inmeros heris trgicos incluem o saxofonista
Charlie Parker, o ator James Dean e o poeta Dylan Thomas, e
O cool jazz originou-se na West Coast por volta de 1950. Seu maior representante foi
Charlie Parker, o grande saxofonista que introduziu tcnicas extraordinriamente
avanadas, exigindo muitas vezes uma incrvel habilidade instrumental e um profundo
conhecimento musical. O estilo cool muito apreciado por suas harmonias ntimas e
complexas, suas improvisaes e fraseados. Posteriormente, a palavra cool passou a
significar tudo que agrada ou d prazer, fora muitos outros sentidos difundidos pelos
jovens beat. (N. do T.) cujos interesses principais circulam entre o bebop e o
rock and roll, o hipsterism e o Zen budismo, drogas que provocam
alucina- es e o Method Acting." O fato de algum afirmar que o
interesse quase exclusivo dessa gerao a descoberta de algo em que
se possa de fato acreditar, parece a estas pessoas uma negao absurda
da prpria evidncia.
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esclarecida sente isso, mesmo que no tenha sofrido pessoalmente os
horrores desta destruio generalizada. As crenas convencionais da
moral pblica e privada foram constantemente abaladas nos ltimos
dez ou quinze anos pela divulgao da corrupo governamental, da
explorao no sistema de trabalho e pela ocorrncia de grandes
negociatas, para no mencionar os escndalos notrios entre as
personalidades mais em evidncia nos meios teatrais e
cinematogrficos. As doutrinas polticas que haviam, em outras
pocas, justificado as guerras, caram pouco a pouco no descrdito,
quando o massacre de populaes inteiras provoca vertigem mesmo
entre as mentes acostumadas a clculos matemticos. Os conceitos
religiosos ortodoxos, que faziam uma distino bem determinada entre
o bem e o mal, tornaram-se cada vez mais inadequados para justificar
ou explicar uma alucinao coletiva tornada realidade, inimigos
recentes que se transformaram repentinamente em aliados ntimos,
uma respeitvel diplomacia que serve de estopim para a guerra. As
gera-
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para a seguinte pergunta: como ser nossa viaa? E se isto no um
fato imediatamente reconhecvel nos motociclistas de casacos de couro
e nos hipsters que vagueiam pelas ruas, porque acreditamos que
smente as respostas que reconhecem o homem como um animal
social possuem uma verdadeira validade. No percebemos que esta
gerao s entende a pergunta quando feita numa forma pessoal, uma
vez que ela acredita que a nica resposta aceitvel h de vir da noite
escura da alma individual.
Se Hemingway e Fitzgerald escreveram os livros da Gerao
Perdida, porque viveram uma existncia em que o sabor do lcool e
do exlio eram temperados por uma comicidade desesperada e por um
cinismo custico. Kerouac, alis, fz o mesmo com sua gerao. Anos
atrs, na ocasio em que um de seus primeiros romances foi
publicado, absorvendo-o durante algum tempo na vida literria ae
Nova Iorque, ouvi dle essas palavras desanimadas: "Tenho que
escolher entre isso aqui e os caminhes que andam chacoalhando pelas
estradas afora. Creio que minha escolha ser para os caminhes, onde
no sou obrigado a explicar nada e onde nada explicado, mas real"
Kerouac manteve-se, desde ento, fiel sua escolha. O que se seguiu
depois foram os anos de vida errante caronas, bicos aqui e ali,
pginas escritas em So Francisco, Denver, Nova Iorque e no Mexico
("Ah, John, Ernest Hemingway estava errado, e como podamos ns
saber se nunca havamos assistido a uma touraaa?"). O que decorreu
disso foi a descoberta de uma nova atitude a que os jovens de tda
parte participam cada um sua maneira.
Na ocasio em que o romance On The Road foi publicado,
Kerouac conhecia o outro lado da Amrica do Norte (suas estradas e
seus freqentadores) como talvez nenhum outro escritor antes dle
houvesse conhecido. Esta a razo porque le no est interessado em
"explicar" sua gerao nos trmos de uma fria cincia sociolgica ou
psicolgica. le sabe que a verdade sbre ela encontra-se em outra
parte. le ouviu a conversa febril nos carros que corriam; le viu os
rostos jovens, coradqgj' Voltados com ateno para o saxofonista; le
agora pode \ dizer das atitudes literrias mais antigas: "A vida
continua... Nas ruas estreitas da Filadlfia, os homens ouvem o
futebol e depois saem e matam suas mulheres. Nas ruas de Baltimore,
tdas iguais com as entradas das casas pintadas de branco, algum
est de fato realmente morrendo... Assim, so apenas nossos literatos
que vem tragdia em tudo isso, no o mundo."
Em suas viagens, le encontra outros caminhantes que esto
escrevendo "histrias incrveis", poetas de mochila nas costas que
caminham em direo "outra costa" onde lero suas poesias para os
amigos. desta troca de informaes, na sua opinio, que nascer
uma possvel literatura. E quando isto acontecer, esta ser a literatura
da Gerao Beat.
Antes mesmo de considerar as respostas que uma tal literatura
possa fornecer, interessante lembrar o que Norman Mailer disse
sbre a linguagem hip em um recente artigo a respeito dos hipsters:
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"O que a torna uma linguagem especial o rato dela no poder ser
realmente ensinada se uma pessoa no participa das experincias
de exaltao e exausto que ela procura descrever, ela no passa de
uma linguagem engraada, vulgar ou irritante." Isto se aplica
igualmente a uma grande parte da realidade global na qual os
membros da gerao beat evoluram. Se no vemos as coisas como
les vem, no entendemos a razo de seus atos. Uma das maneiras
de compreender isto, talvez a mais simples, analisar a imagem que
les fazem de si mesmos.
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No sei. Mas temos que ir.
Somente os mopes podem julgar esta necessidade ambulatria
(que uma das caractersticas dominantes da gerao beat) como uma
fuga e no como uma busca.
James Dean foi o produto de uma d'sciplina teatral conhecida
como The Method (disciplina esta ensinada em Nova Iorque no Actors'
Studio) que atraiu d" forma irresistvel os atres jovens e que tem
fornecido tela e 'ios teatros da Amrica do Norte, nos ltimos anos,
jovens lacnicos e desleixados que repentinamente irrompem em
manifestaes to inesperadas de fra emocional que o pblico sente-
se abalado e comovido, como se lhe fsse dado ouvir uma confisso. A
preocupao principal do "Mtodo" encontrar a essncia de um
personagem, sua alma mais profunda, e o ator encorajado a fazer
isso lanando mo de suas prprias emoes que correspondam com
as do argumento do filme. Os atres que Ho pertencem a esta escola
criticam, muitas vzes, os atres do "Mtodo"; dizem que les se
poupam durante a maior parte do papel, guardando suas reservas
emocionais para as cenas principais. Os atres do "Mtodo" poderiam
responder a esta objeo fazendo ver que somente as cenas principais,
na maior parte das peas e dos filmes, possuem uma profunda
realidade humana e que iO restante apenas um dilogo vazio
construdo em Vista do momento em que os personagens revelam sua
verdadeira individualidade.
Um exemplo tpico o filme Sindicato de Ladres; tanto o autor da
historia, Budd Schulberg, quanta o diretor do filme, Elia Kazan,
pretendiam fazer um documentrio social sbre as condies de vida e
de trabalho entre porturios; o intersse
rincipal do filme giraria em tmo de urr jovem doqueiro, ex- oxeador,
que acabava sendo envolvido por um sindicato corrompido. O
extraordinrio desempenho de MArlon Brando, porm, interiorizou
de tal forma o drama do personagem principal que os aspectos sociais
do problema tornaram-se insignificantes: o grande drama passou a ser
o conflito de u*ia nica criatura humana envolvida nas contradies e
absurdos da vida moderna. Era exatamente como se Marlon Brando
repetisse cena aps cena: "O homem no apenas um animal social,
uma vtima, um produto da sociedade. Mais do que isso, o homer**
um ser espiritual." Neste sentido, o "Mtodo" predominantemente o
estilo cnico da gerao beat.
Os crticos expressam constantemente s*ia perplexidade pela
complacncia, para no dizer deleite, com qiAe a juventude aceita o
que (para os crticos) uma imagem preffundamente desfavorvel
dela mesma. Observou-se, por exemplo, que os maiores entusiastas do
filme O Selvagem (que narrava ae forma brutal e crtica a brbara
invaso de uma pequena cidade da Califrnia por um bando de
motociclistas) eram os prprios motociclistas.
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Da mesma forma, a maior parte dos delinqentes juvenis pro-
vvelmente assistiu, e aprovou, o retrato que foi feito dles no filme
Sementes da Violncia, mesmo que hajam ridicularizado as motivaes
de carter social que, segundo o argumento do filme, explicava o
comportamento dos jovens perversos. A concluso a que se chega
que o mesmo filme visto diferentemente pelos jovens e pelos adultos.
Os padres segundo os quais os adultos se baseiam possuem um
mnimo de realidade para os jovens, uma vez que esses padres
admitem valores morais e sociais que no levam em considerao o
grande dilema da juventude que a vontade de acreditar em alguma
coisa mesmo que no seja de acordo com os padres convencionais.
As pessoas mais velhas cometem freqentemente o rro de
concluir que o que est por trs de todo ste movimento dos jovens
uma profunda indiferena a qualquer espcie de valor, quando quase
sempre o contrrio que a verdade. At mesmo os elementos mais
selvagens e niilistas da gerao beat, que so os jovens marginais
delinqentes, preocupam-se quase que exclusivamente com o
problema da crena, ainda que seja de forma inconsciente. Parece
inacreditvel ningum haver percebido que a nica maneira de
explicar de forma coerente os aterrorizantes crimes juvenis
compreender que se tratam, especificamente, de crimes morais. O
jovem que no vero passado esfaqueou um outro jovem de sua idade e
foi visto dizer para sua vtima: "Muito obrigado, eu s queria saber
como isso era", no era um louco nem mesmo um indivduo perverso.
No havia justificativa para seu crime: no se tratava de roubo, nem de
um repente histrico de dio; no estava nem mesmo em cogitao o
egosmo desenfreado de um Loeb ou de um Leopold que matavam
unicamente para provar que seriam capazes de faz-lo. O crime
daquele jovem da mesma espcie dos crimes imaginados pelo
Marqus de Sade cento e cinqenta anos atrs: um crime que a cruel
ausncia de Deus torna obrigatrio se o homem deseja provar ser um
homem e no apenas um monte de matria. Tais crimes, que no so
mais raridade e que so cometidos por jovens com menos de vinte e
cinco anos, no podem ser compreendidos se continuamos repetindo
as eternas lamentaes a respeito de lares desfeitos, bairros miserveis
e ms companhias, uma vez que so crimes espirituais, crimes
cometidos contra a identidade de um outro ser numano, crimes que
revelam com uma clareza chocante e aterrorizante os extremos a que
pode levar, entre os jovens, a busca desesperada de valores autnticos.
De fato, o desejo ansioso por valres genunos que gera tais crimes, e
de forma alguma o dio destes mesmos valores. o desejo angustiado
para fazer ou sentir algo verdadeiro o que dita a conduta destes jovens;
isso mostra at que ponto os cataclismas deste sculo cegaram os
conceitos racionais e humanos do Homem sbre o qual foi edificada a
sociedade moderna.
Como reagiram os jovens diante dessa situao? No o foi
certamente na forma de uma imoralidade calculada, mas no regresso a
um cdigo de tica bem mais antigo, bem mais pessoal, se bem que
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no menos rigoroso; refiro-me inviolabilidade da camaradagem, ao
respeito pelas confidncias, a uma considerao quase mstica pela
coragem aspectos estes que fazem parte da tica da tribo, mais do
que da comunidade em que vivem. ste por conseguinte o cdigo
tico de um pequeno grupo que reside dentro de um ambiente hostil
ou indiferente, que o grupo no pretende conquistar nem modificar,
mas nicamente despistar.
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Numa forma ligeiramente mais antiga, ste anseio primitivo pela
sobrevivncia deu origem aos hipsters, indivduos que percorrem
nossas cidades como membros de uma sociedade secreta, misteriosa e
pacfica, conservando viva uma filosofia existencial impopular, como
era a dos cristos do primeiro sculo. les encontram na msica bop,
nos entorpecentes leves e na prpria noite sua linguagem secreta, bem
como a afirmao de sua individualidade cada dia mais ameaada
pelo convencionalismo de nossa vida nacional; muitas vzes isto s
encontra expresso numa franca manifestao de excentricidade. A
inteno deles estarem margem da sociedade, e no contra ela. A
paixo exaltada elo jazz, sexo ou marijuana, significa um esfro de
libertao o prprio ser, e no uma demonstrao de poder sbre os
outros. Os mais esclarecidos entre os hipsters sabem que a discusso, a
violncia e os partidarismos so atitudes definitivamente burguesas, e
les esto de pleno acrdo com a doutrina budista segundo a qual a
maior parte das misrias humanas origina-se nestas emoes. Ouvi
certa vez um jovem hipster, revelando fadiga, dizer para um
antagonista em uma dicusso de bar: "Escuta aqui, voc no vai querer
interferir com o que le sente, com a sensao dle. Seria o fim!"O
hipster pratica, por conseguinte, uma espcie de resistncia passiva
dentro da sociedade na qual le vive; o mximo que le proporia como
programa de vida seria o afastamento de todos os obstculos sociais
ou intelectuais que poderiam prejudicar a plena realizao e prazer de
sua propria individualidade, e as emoes decorrentes de suas
descobertas existenciais. Alis, como observou Norman Mailer no
artigo citado "A afirmao que est implcita nesta ideologia que o
homem se revelaria mais criador do que destruidor, no correndo
assim o risco de vir a se destruir." Seja como fr, ela uma concepo
mais espiritual e religiosa da natureza humana do que a daqueles que
s percebem os excessos da gerao beat.
A convico no poder criador da alma individual, livre dos
preconceitos, a base em que se apoiam os interesses principais desta
juventude. Assim, a curiosidade que revelam pelos entorpecentes tem
uma dupla razo: primeiramente, investigar o mundo desconhecido
que existe dentro dles; e, em segundo lugar, escapar ao insuportvel
mundo exterior. "Na noite passada", dizem les, "fui to longe que
entendi tudo. Entendi o por qu das coisas."
Nas artes, o jazz moderno quase exclusivamente a msica da
gerao beat, como a poesia (pelo menos at o momento em que foi
publicado o livro de Kerouac) sua literatura. Se les ouvem os
lamentos de um saxofone com a mesma devoo com que antigamente
os homens costumavam ouvir as palavras e os exemplos dos sbios,
porque o jazz antes de tudo a msica da liberdade interior, da
improvisao, do poder criador do indivduo mais do que do grupo
que acompanha. a msica de um povo submerso que se sente livre, e
assim exatamente que se sente o jovem de hoje. Por esta razo, a
existncia breve e agitada do saxofonista Charlie Parker (juntamente
.23
com a de James Dean e Dylan Thomas) exerce uma atrao especial sbre a juventude: todos os trs
trilharam seus caminhos sem abdicar de suas liberdades, ouvindo a voz interior, celebrando tudo
aquilo que lhes parecia justo celebrar e pagando depois, voluntria- mente, o preo da auto-
destruio. Mas se por um lado os jovens os idolatram, por outro lado les no tm iluso a respeito
dles como mrtires, porquanto sabem (e quase esticamente aceitam) que um dos riscos de andar to
velozmente, e ir to longe, a morte.
Talvez seja na poesia que a atitude da gerao beat, e seu anseio imoderado em encontrar uma
crena a qualquer preo, encontre sua expresso mais apropriada. Na cidade de So Francisco (que ,
de certo modo, a Paris desta gerao) um grupo de poetas rompeu definitivamente com seus elegantes
precursores de formao universitria. Alguns dles praticam o Zen budismo, que uma psicologia
da revelao altamente complexa e irracional, enquanto aguardam o satori (sinnimo de sabedoria,
compreenso, reconciliao). Alguns so leigos de crena catlica, outros so monges que rezam pela
redeno do mundo. Muitos deles assemelham-se aos frades mendicantes, ou aos peregrinos
goliardos da Idade Mdia, carregando tudo o que possuem nas costas, inclusive cpias datilografadas
de seus poemas que sero depositadas em galerias de arte, mictrios pblicos, "e outros locais onde se
renem os poetas". Todos les acreditam que somente o que urge ser dito, por menos "potico" que
seja, somente aquilo que inaltervelmente verdadeiro para quem o diz, e irrompe dle como um
dilvio, encontrando sua forma literria medida mesmo em que surge, digno de ser dito antes do
mais. Atitudes literrias, preocupaes com mtrica ou gramtica, tudo que fr auto-consciente e
artificial e separe a literatura da vida (afirmam les) deve ser abandonado. Como resultado disso, as
leituras pblicas dos poemas assemelham-se mais a sesses de jazz do que a reunies "culturais"
maneira antiga; os ouvintes, com suas camisas-esporte vistosas, misturam os apartes com goles de
bebida, enquanto um saxofonista modula um acompanhamento. Um dstes poetas, de nome Allen
Ginsberg, que a revista Life apontou como o mais interessante poeta jovem da Amrica do Norte,
escreveu um longo, brilhante e. catico poema intitulado Howl. Muitas das expresses e situaes
dste poema so absolutamente inditas do ponto de vista potico; apesar disso, seu objetivo to
visivelmente uma defesa do esprito humano perante uma civilizao disposta a destru-lo que o
efeito da leitura tonificante "O poema Howl', diz Ginsberg, " uma afirmao, pela experincia
pessoal, de Deus, do sexo, das drogas e do absurdo."
O mesmo pode ser dito do romance On The Road. Alguns crticos perderam tanto tempo
expressando uma educada averso pela sordidez de certos trechos que se esqueceram completamente
de mencionar que no mundo da gerao beat, nesse mundo aparentemente to srdido, Kerouac
encontrou muitas vzes a ternura, a humildade, a alegria e mesmo a reverncia. E apesar dle haver
vivido o pesadelo selvtico da sensao vazia, como batizaram alguns crticos sua experincia, seus
personagens no se cansam de repetir: "Ningum nos convence de que no existe Deus. Passamos por
tdas as situaes... Tudo belo, Deus existe, conhecemos nossa poca... Alm do mais conhecemos a
Amrica, estamos em casa... Damos, recebemos e caminhamos numa suavidade incrivelmente
complexa..."
Estas no so palavras de uma gerao consumida pela auto- compaixo diante da perda de suas
iluses; nem so as palavras de uma juventude consumida pelo dio de um mundo que no criaram.
Soam antes como as palavras de uma gerao que luta pela f como conseqncia de um desespero
intelectual e de um caos moral no qual ela se debate para no se perder. Para muitas pessoas essas
palavras podem parecer estranhas, ditas por um jovem sentado atrs do volante de um carro que
corre velozmente pela noite norte-americana, da mesma forma que parece bizarra a resposta de
Kerouac a John Wingate, autor do Nightbeat, quando interrogado para quem dirigia suas oraes. "Eu
rezo para meu irmozinho que morreu, para meu pai e para o Buda, tambm para Jesus Cristo e a
Virgem Maria', disse Kerouac, e depois acrescentou: "Eu rezo para estas cinco pessoas..."
E se essa reunio de um santo, um sbio e um salvador, ao lado de dois americanos do sculo
vinte, possa parecer estranha unicamente porque muitos de ns esquecemos (ou nunca chegamos a
saber) quo real pode ser a experincia espiritual quando tdas as outras experincias revelaram-se
insatisfatrias para saciar nossa fome. O que se deduz, pelo menos do livro de Kerouac, que alm da
violncia, dos txicos, do jazz e de tdas as outras "emoes fortes" nas quais ela busca
desesperadamente sua identidade, essa nova gerao encontrar uma f e se tornar conscientemente
Kerouac acredita que ela j seja inconscientemente uma gerao religiosa.
Seja como fr, h indicaes de que a gerao beat no um fenmeno exclusivamente norte-
americano. A Inglaterra possui seus Teddy Boys, o Japo seus Sun Tribers e mesmo na Rssia existe
uma classe de hipster. Em tda parte os jovens esto reagindo contra a crescente coletivizao da vida
moderna e contra a ameaa constante de uma mortandade coletiva com o mesmo surpreendente
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paroxismo de individualismo. Em tda parte parecem estar dizendo aos mais velhos: "Somos
diferentes de vocs e no podemos acreditar no que vocs acreditam nem que seja unicamente pelo
fato de vocs serem os construtores dste mundo".
Para muitos dles, o ponto final a cadeia, a loucura ou a morte. Talvez no encontrem nunca a
f que Kerouac diz estar no fim da estrada. Mas todos so unnimes num ponto: a vida atual,
desprovida de valres, insuportvel. E se outras geraes lamentaram o fato de que o mundo em
que viviam "era o pior de todos os mundos possveis", os jovens de hoje sabem perfeitamente que o
nico mundo que jamais vero, e que a maneira como uma pessoa vive, e no a razo pela qual ela
vive, o que realmente importa acima de tudo. A concluso a que les che garam que as bases de
todos os sistemas, morais ou sociais, dependem da indestrutibilidade do indivduo isolado pode
no ter outro significado seno o de uma revolta contra uma poca em que essa crena caiu no
descrdito. Por outro lado, a descoberta deles de que o que mantm o indivduo a f e a crescente
convico de que somente as doutrinas espirituais possuem alguma validez em um mundo como o
nosso situa sob uma nova luz o comportamento exaltado que lhes freqente, e acreditamos que
essa crena haver de ocupar uma posio privilegiada no futuro deles, qualquer que le seja.
DAN PROPPER
O FENMENO, no caso presente, tratar-se de um autor de 22 anos. le ainda tem muito que aprender,
o que se diz usualmente; por meu lado, preferia sugerir: le ainda tem muito que esquecer. A menos
que, como observou William Morris, poeta- pintor do fim do sculo passado (e a prpria contribuio
de Morris foi prejudicada pela moralidade aa poca), s esquecem aqules que no tm mais essa
idade. Propper possui uma lucidez fora do comum, com o brilhantismo amargo ae um talento pre coce
na idade dos foguetes.
ooe
No 1. minuto da hora final Walt Whitman foi encontrado num antigo tnel de metr, embaixo da
Rua 52, onde jazia em xtase desde o momento em que os primeiros compassos de jazz
haviam penetrado ali. Os guarda-linhas que o descobriram pegaram imediatamente em suas
alavancas e partiram-lhe o crnio, recebendo ento dois meses de ordenado da Prefeitura
reconhecida, alm da promoo ao psto de maquinista;
No 2. minuto da hora final o arcebispo de Hollywood decretou que Moiss e Maom seriam
doravante considerados cristos, enquanto o Buda seria riscado dos arquivos, em vista de
suas tendncias comunistas;
No 5. minuto da hora final Bud Powell foi eleito presidente da recm criada Federao dos Msicos
de Jazz pelo fato de haver conseguido, com imenso sucesso, fazer com que 3 sucessivos LP
estereofnicos de Lawrence Welk rico- cheteassem sbre as guas borbulhantes da baa de
Chesapeake: 17 ricochtes para cada LP;
25
No 7. minuto da hora final uma orgia monstro teve lugar nos escritrios principais do New York
Times, no fim da qual uma gigantesca edio-extra encadernada saiu s ruas contendo
notcias que jamais haviam sido divulgadas anteriormente;
No 10. minuto da hora final as Filhas da Revoluo Norte-Ame- ricana passaram batom em suas e
rimei em suas . Ao observarem os resultados, matricularam-se num curso por
correspondncia de ventriloquismo;
No 11. minuto da hora final uma delegao de viciados em drogas ofereceu-se voluntriamente para
experincias mdicas, com a condio de que novas drogas e o vrus do cncer fssem
injetados em seus olhos;
No 12. minuto da hora final a Associao dos Publicitrios Nor- te-Americar.os proclamou a
Dignidade do Homem, pu- /
blicando na ocasio um impresso com 1.000 tpicos diversos sbre o assunto, todo le escrito
em verso livre;
No 13. minuto da hora final o gasto piso do Yucca Flats desabou, revelando uma gloriosa e at ento
desconhecida civilizao subterrnea, bem como os remanescentes de seu povo: os corpos
contorcidos conservavam ainda uma atitude suplicante;
No 14. minuto da hora final 14 milionrios foram atrados, com seus cadilaques, para um psto de
servio aparentemente inofensivo onde foram rpidamente desmontados, os carros e os
donos, aparecendo seis minutos mais tarde, transformados em 42 caixotes de comida para
cachorro;
No 15. minuto da hora final o segrdo do simbolismo de Salvador Dali foi inconscientemente
revelado a uma famlia de surdos-mudos;
No 16. minuto da hora final um bando de ndios de fisionomia insondvel, vestidos com seus trajes
guerreiros, desfilou silenciosamente diante de uma cabina telefnica situada em frente
Sociedade Protetora dos Animais;
No 17. minuto da hora final o melhor saxofone tenor do mundo foi descoberto e tocado por um
obscuro congressista republicano da Artsia, Nvo Mxico;
No 18. minuto da hora final seis delinqentes juvenis embriagados desmaiaram dentro do metr e
foram levados para Canarsie, onde despertaram para a incerteza da noite. Apoderaram-se de
um barco a remo e rumaram para alto mar: foram vistos pela ltima vez saindo da baa de
Sheepshead, remando sem destino e murmurando preces ardentes a Jean Genet;
No 19. minuto da hora final um grupo de atres prtos, que estavam na lista negra, pintaram os
rostos de branco e representaram "Tobacco Road" para um pblico de Legionrios
Americanos que soluava histricamente;
No 20. minuto da hora final um arrojado proprietrio de estradas de ferro instalou clandestinamente
sinais vermelhos e
prostitutas nas balsas que servem Staten Island, provocando um engarrafamento monstro no
ancoradouro de Nova Iorque, fato que marcou o renascimento da locomotiva;
No 21. minuto da hora final as mquinas de lavar roupa de Le- vittown "encantaram-se",
transformando tdas as roupas em meias curtas vermelhas;
No 22. minuto da hora final um entusistico jovem de barba comprida deixou de bca aberta a
devota multido reunida em Lourdes: le se materializou a sete metros acima do solo e
anunciou ser o Cristo. Ao descer das alturas, para ser submetido aos testes do observador da
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Junta Mdica Norte-Americana, um jovem sacerdote precipitou-se sbre le e o manietou
com seu rosrio, devolvendo assim a paz e a tranqilidade ao pacato lugarejo: o sacerdote foi
condecorado mais tarde com uma medalha especial do Papa; \
No 23. minuto da hora final tun objeto voador misteriosamente iluminado foi forado a descer na
Terra graas energia do pilto de um avio a jato: feitos os exames de praxe, descobriu-se
tratar-se do fantasma de Cirano de Bergerac;
No 24. minuto da hora final um bando de pombos sofrendo de diarria sobrevoou e bombardeou a
praia de Miami;
No 25. minuto da hora final o fogo alastrou-se em uma plantao de maconha na floresta de
Madison, no Wisconsin, pondo completamente em transe o grupo de bombeiros voluntrios
que se arriscou na tarefa: diante disso, rumaram diretamente para Folkston, na Georgia,
onde entraram empurrando o carro de bombeiro no meio de risadas e manifestaes de
jbilo;
No 26. minuto da hora final os ndios apareceram espontnea- mente no banheiro das senhoras da
Junta Nacional Para Incentivo s Pessoas de Cr, vestidos de smoking e carregando nos
ombros incompreensveis cartazes;
No 27. minuto da hora final o Readers Digest, a revista Life e a Lista Telefnica de Los Angeles
brincaram de cabra-cega;
No 28. minuto da hora final descobriu-se que um remdio popular patenteado continha herona.
17.000 pessoas foram esmagadas e 300 drugstores foram reduzidos a cacos em conseqncia
do pnico provocado por essa notcia;
No 29. minuto da hora final a mulher de um carteiro deu luz uma sala de cinema;
No 30. minuto da hora final um plano de obras pblicas foi aprovado na Cidade Sonhadora;
No 31. minuto da hora final um feitio realizado pelo esprito de Franois Villon tampou tdas as
entradas do metr com concreto, dando origem a uma nova religio que adorava o cavalo e
tinha como hino a melodia "Deep In The Womb of Texas";
No 32. minuto da hora final 36 discos desconhecidos de Charlie Parker foram desenterrados em uma
adega na Filadlfia. Felizmente foram apreendidos pela polcia antes que pudessem espalhar
a Desordem e a Incerteza;
No 33. minuto da hora final todos os homens acariciavam as de suas espsas com seus ,
desculpando isso cinco minutos depois como conseqncia da alucinao e do so-
nambulismo;
No 34. minuto da hora final a Lei do Cercado pelo Avsso foi redescoberta e uma caixa de fsforos
foi declarada a priso do universo, com duas pulgas postas dentro como guardis;
No 38. minuto da hora final um batalho de formigas famintas penetrou na Casa da Moeda e
devorou todo o dinheiro que encontrou, recusando-se a matar a fome com os passes verdes
de nibus;
27
No 39. minuto da hora final o Presidente da Repblica teve um sonho molhado e a Marinha foi
enviada para Algiers;
No 40. minuto da hora final tdas as latrinas foram encontradas viradas de cabea para baixo e a
populao ficou envergonhada;
No 41. minuto da hora final tdas as crianas futuramente pederastas foram castradas como medida
de emergncia contra o aumento assustador da gravidez intestinal;
No 42. minuto da hora final os ndios fizeram sua ltima apario, dirigindo-se ao balco de doces do
cinema Paramount vestidos com uniformes de futebol. Apanharam ento alguns punhados
de pipocas e subiram resmungando para a sacada do segundo andar, onde desapareceram;
No 43. minuto da hora final James Dean apareceu em sonho a 40 milhes de norte-americanos,
sorrindo com doura e falando com ternura de insurreio;
No 44. minuto da hora final um trem expresso, repleto de exibicionistas, entrou na estao de Times
Square;
No 45. minuto da hora final ocorreu uma abundncia de nudez e de esperanosa incerteza;
No 46. minuto da hora final a primeira roupa transparente foi usada na rua;
No 49. minuto da hora final tdas as revistas femininas foram transformadas em smen;
No 50. minuto da hora final os escoteiros uniram-se s bandeirantes numa nova era de alegria e
experincia;
No 51. minuto da hora final o Estado do Texas foi declarado Incapaz e psto sob tutela;
No 52. minuto da hora final uma das bombas de hidrognio jogadas no Pacfico derramou no ar uma
chuva de papis impressos onde se lia: "BUUUMI";
No 53. minuto da hora final Jesus Cristo apareceu na capa da revista Time, juntamente com o Pato
Donald e J. Edgar Hoover;
No 54. minuto da hora final Nelson Rockfeller inaugurou uma plantao de haxixe em Nutley, Nova
Jersey, e os Super Mercados A&P abriram balces para venda de narcticos distribuindo
tales de sorteio com novos e maravilhosos prmios;
No 55. minuto da hora final os Dodgers de Brooklyn queimaram a Disneylndia em sinal de ltimo
protesto, depois do que se dispersaram mantendo uma relativa insanidade;
No 56. minuto da hora final tdas as pessoas com ndice de inteligncia abaixo de 90 foram castradas
sem dor e a populao resultante comeou a receber ajuda dos Institutos;
No 60. minuto da hora final a Amrica foi descoberta e o renascimento final da beleza e do amor
iniciou sua eternidade;
JACK KEROUAC
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Trs Episdios do Romance "Visions of Cody"
KEROUAC NO necessita introduo; le possui o fertilizante bom senso que torna o infantil alegremente
adulto, como fariam os Trs Patetas se escrevessem, sabendo ser terno, lrico ou meio louco
dependendo de seu estado de esprito. A prosa de Kerouac escorre como uma torneira que no fecha;
nessa fluncia, contudo, le atinge uma tonalidade to ntima e natural (no gnero conversa de
namorado) que muitos escritores, ao lc-lo, sentem- se envergonhados com sua prpria artificialidade.
Apenas para servir de lembrete: Kerouac foi um aluno brilhante na escola ultra-moderna de Horace
Mann, em Manhattan, antes de entrar na Universidade de Columbia onde diplomou-se com notas
altas. Esta informao fornecida para desfazer o preconceito, que circula entre alguns pseudo-
literatos, segundo o qual Kerouac no passaria de um autor truculento sem nenhuma sutileza inte-
lectual. A realidade outra: Kerouac possui uma enorme compreenso das criaturas humanas e de
suas necessidades. Os trechos que inclumos neste volume pertencem ao romance Visions of Cody; o
personagem principal o mesmo do romance On The Road, se bem que desta vez Kerouac nos oferece
uma viso mais intimista do grande caminhante que le tanto ama. O livro foi publicado no Natal de
1959, em edio limitada, pela editra New Directions. Os fragmentos que vo ler no possuem uma
seqncia lgica; no queiram por isso encontrar continuidade, mas apenas sabor.
oPo
1.
As estradas que Cody Pomeray conheceu no Oeste e que eu percorri com le mais tarde so
aquelas estradas de pista dupla, cheias de buracos e tremendamente perigosas com barrancos de
ambos os lados, cercas caindo aos pedaos, mais adiante estacas fincadas no cho, ou ento um
simples corte de terra, de quando em quando tufos de capim em cima de algum monte de areia,
depois uma extenso interminvel de terra conduzindo em direo a montanhas que pertencem
muitas vzes a outros estados estradas que parecem destinadas a nos jogar no precipcio com suas
curvas inclinadas a sensao que se tem do carro andar sbre duas rodas, beira do abismo,
talvez um buraco na estrada v precipit-lo l embaixo esta a razo porque as estradas do Oeste
so to desertas. L na frente compridas jamantas avanam numa noite de sbado comum ver
cinco ou seis carros que vm na direo oposta a alguns quilmetros de distncia, os faris
diminuindo seu halo luminoso e criando aquela iluso de gua na estrada os faris dos que esto
mais distantes so absorvidos provvelmente pelo sereno noturno a miragem da noite
atravessando grandes espaos planos Cody, como qualquer outro motorista que dirigia naquela
estrada, apoiava o cotovelo na janela, e mais do que ningum le dava a impresso de sentir-se
particularmente calmo, tranqilo e vontade atrs da direo, com seu pescoo grosso, musculoso,
erguido e eficiente (como so os pescoos dos grandes motoristas de nibus), era assim que o via
quando olhava por cima do seu ombro para a estrada que noite mostra apenas uma pequena parte
de si mesma, a mais visvel sendo o trecho iluminado pelos faris dos carros que vm na direo
contrria e que vo passar a noite de sbado em Denver e ste feixe de luz, o facho dos faris
iluminando os barrancos de ambos os lados da estrada e urna parte das crcas que a protegem,
banhando tudo de luz como uma vaga cobre um quebra-mar, esta luz por conseguinte ilumina moitas
desoladas de capim em cima de montes de terra ressequida, surgindo e desaparecendo numa rpida e
vertiginosa sucesso ao mesmo tempo, ocorre-nos que existe, ou existem, os limites da terra sus-
ensos alm daquelas plancies, dos relmpagos secos de vero, o deserto, alm dos buracos cavados
na terra pelos roedores, alm das moitas, matas, rochas, pequenas pedras que refletem as maiores
estrias (que so na realidade galxias), e at mesmo os inevitveis chapades que terminam os
horizontes do oeste confirmam que o mundo possui contornos e que a plancie deve terminar tudo
passa rapidamente, as estrelas esto distantes, e se apagamos os faris eis que surge de repente o que
pressentamos existir Cody dirigiu assim aquela noite crca de 120 quilmetros e repetiu sse feito
muitas e muitas vzes, em direo ao norte, ao sul, a leste e oeste, perfeitamente tranqilo atrs da
direo durante uma hora inteira, fazendo uma calma mdia horria de 120 quilmetros nas estradas
desertas, parando apenas em uma ou outra cidadezinha onde os motoristas se reuniam, conversavam,
bebiam cerveja e depois atiravam para longe as latas vazias que rolavam ruidosamente pelo negro
precipcio.
29
Agora as garotas. A casa ficava prxima estrada de ferro Union Pacific, embaixo de um
reservatrio de gua, na esquina de um aglomerado de construes de aspecto lamentvel, inclusive
uma pequena igreja que estava separada dos outros prdios (os ingleses e os loucos noruegueses
capturaram Moby Dickl capturaram-na cem anos depois!) e um enorme silo pintado de amarelo claro
com o nome da estao em letras de forma, local to desolado que no convinha nem mesmo ao
maquinista se quisesse urinar ali quando o trem pra e se abastece de gua, carvo e cargas
costumeiras. A casa estava coberta de fuligem e por isso mesmo as janelas haviam sido pintadas de
um vermelho vivo as paredes estavam revestidas de lminas de madeira cr de areia, sendo que as
do teto eram verde-claro uma chamin de um modlo antigo, de tijolos cinza, subia pelo lado de
fora da casa atravessando o telhado de abas cadas na frente da casa havia um alpendre
transformado em varanda, pintado de cinza, repleto de bicicletas, cadeiras, portas reforadas com
trancas e sem maantas na parte de trs da casa, em uma srie de cubculos que diminuam
progressivamente de tamanho, lugares para guardar galochas, capas, guarda-chuvas, camas de
dobrar no lado de fora havia uma privada minscula com uma lamparina de querosene pendurada
no teto no ptio, um armrio velho e arrebentado encostado ao muro da casa, com um balde e uma
cesta de vime virada de cabea para baixo jogados em cima montes de lixo e coisas velhas,
inclusive um antigo aparelho de calefao afundado no meio do capim, restos de comida para
cachorro (biscoitos em rodela) espalhados pelo cho e encharcados de umidade e, alm disso tudo,
um carro antiqs- simo e caindo aos pedaos levantado em cima de uns tocos de madeira, como se
estivesse exposto numa vitrina, sem capota, esvaziado de tudo com exceo das abas de couro das
janelas, das molas dos bancos balanando livremente, do frro de capim dos assentos, do velho painel
vermelho comido pela ferrugem, do volante quebrado com risco de ferir algum, dos faris
queimados, da mala traseira onde as aves haviam feita um ninho e a neve e a primavera haviam
trabalhado juntas para formar um pequeno canteiro batatas velhas rolavam de um saco e
apodreciam junto roda direita da frente lugar onde as crianas brincavam o mictrio predileto
dos cachorros o ccho de vacas saudosas nas chuvas de vero.
Era sbado noite e se um trem passasse pela estao, a nica soluo era largar tudo o que se
estava fazendo, ficar imvel e esperar. As duas jovens no pertenciam classificao usual "uma
bonita e a outra feia", porque nesse caso a mais Velha, que seria a feia, era extremamente atraente,
embora isso no aparecesse primeira vista, a no ser talvez para olhos entendidos no assunto,
prontos a ver nela o que se desejava realmente aquela noite, a saber uma fomicao apaixonada, uma
verdadeira fria de paixo na escurido da noite e isso era possvel descobrir pela maneira
decidida com que ela afastava os olhos da pessoa com quem falava, como se fsse uma profes- sra
que tivesse ordens a dar, imbuda de uma auto-disciplina que era to mais pattica e to mais forada
quanto se percebia que ela haveria de explodir de uma hora para a outra, e bem- aventurado o
homem que estivesse por perto nesta ocasio para receber tda aquela fria acumulada E eis que
Cody, embora tivesse apenas quinze anos nesta poca, percebeu imediatamente isto nela, pelo
costume que tinha em procurar entender as coisas to instantaneamente quanto possvel, de forma a
no perder tempo com ninharias ol como est voc eu sou Joe le Bill e assim por diante no
momento em que le desceu do carro e ficou em p no meio do quintal enlameado (chovera naquela
parte do Wyoming), no momento em que le viu as duas pequenas preparadas para o ataque,
imediatamente le fz sua escolha rico com a melhor. A mais ma cujo apelido era Jacky, era a
prpria encarnao da dourinha linda e sensual, de cabelos dourados e sedosos como se v nos
anncios da Coca-Cola, mas lindas ao lado de rapazes igualmente lindos e rosados, se que no so
mais bonitos do que elas, e elas correspondiam to espantosamente ao desejo dles que pareciam
aterrados ao v-las em carne e osso, com uma moeda de 25 cents na mo braos rolios que faziam
crer serem genunos os dois belos seios que se projetavam para fora de um suter de cashmere
deliciosamente macio, as sobrancelhas arqueadas e uma boquinha maliciosa e rechonchuda. Vou
recomear de nvo...
2.
Velhos tarados. Todos sses velhos repugnantes que ficam no Times Square e que nenhum de
ns suporta, alguns correm atrs de mas e rapazes indiferentemente, detestveis libidinosos que nos
fazem pensar no provrbio rabe "As jovens fogem dos velhos como da peste"' usam chapu, sem
brincadeira, usam chapu o ano inteiro! fazem ponto nas sadas do metr, peque nas livrarias,
bibliotecas pblicas, passagens estreitas onde se joga xadrez vadiam para cima e para baixo nas
avenidas alguns tm uma aparncia to inofensiva que no se percebe o
30
?
ue pretendem at o momento em que param na nossa frente por exemplo, quando nos encostamos em
uma esquina) e ficam ali calmamente, dando ares de naturalidade, mas mesmo assim com o nojento
vinco da cala virado diretamente para a nossa direo, como um velho feiticeiro apontando para o
homem que est descendo a Rua Dauphine e que est condenado a morrer Acontece que Cody e eu
sabemos perfeitamente do que les so capazes, estivemos ao lado dles em tdas as vitrinas de
fotografias obscenas que existem pela Amrica inteira Bem, agora entramos finalmente no assunto,
tudo que veio antes era um prembulo justificativo, e agora passo a enumerar (pelo menos no que me
diz respeito) meus pratos favoritos: (enchovas com alcaparra banhadas no azeite um alimento to
substancial que chega a empanturrar, to salgado que afoga a gente, to forte que parece embeber e
perfumar a lata mesma onde vm, at que a prpria lata parece mais salgada do que o prprio sal, um
gsto de sal metlico por assim dizer, o sal de Armagedom) (ste foi um exemplo de comida)
Cody e eu sempre nos interessamos pelas fotografias de pernas femininas os livros com
fotografias em branco-e-prto que se amontoam nas bancas das livrarias do Times Square ou da Rua
Curtis exercem um verdadeiro fascnio sbre ns, todos aqules corpos de um branco leitoso, de certa
forma essas foto-
frafias nos atraem mais do que as coloridas na fotografia em ranco-e-prto a coxa mais alva, o
fundo mais escuro e pecaminoso.
Cody costumava dizer para mim "segura essa foto, j tirei tudo que tinha." Tenho na mo uma
fotografia de Ruth Maytime (a clebre artista de Hollywood) ao lado de Ella Wynn e eu adoro essa
fotografia que seios opulentos e adorveis possui Ruth, uma ala do mai est cada por cima do
brao, a outra fina e delicada, as duas alas se encontram muito embaixo porque seus seios so
volumosos, pesados e exuberantes de forma a esticar ainda mais a ala do mai (ah essa ala!) seu
seio esquerdo ocupou- me durante cinco minutos de completa ausncia e inconscincia na calada do
Times Square, e no foi nem seu seio verdadeiro, mas apenas uma fotografia dle, era to imenso, to
pesado, 3/R partes dele esto escondidas da vista, o que me parece prefervel a qualquer outra
porcentagem, o bico do seio no corre perigo de aparecer, o que corre perigo, isso sim, o ponto em
que a macia salincia ofegante pode pular para fora do mai, ou quase
o de Ella, por outro lado, est bem comportadamente protegido da vista, mas d mesmo assim para
se perceber o vale cheio de vida, deliciosamente macio e farto, com a salincia do tecido
acompanhando os contornos sagrados que todos ns conhecemos
o de Ruth, precisando mais ainda, seria a segunda etapa de um stripteaser no qual Ella teria
comeado a tirar a roupa e Ruth teria continuado a funo interrompida o tecido est puxado para
baixo de um nico lado de sorte que em lugar de se ver 1/4 do seio esquerdo aparecendo (com seu vo
costumeiro) a gente est vendo 3/s partes do alto do seio com o vale crescendo em tamanho,
expandindo-se ah sses seios esplndidos
fico parado no meio dstes devotos velhos tarados do mundo inteiro, mastigando chicletes como
les, o corao batendo horrivelmente mal posso pensar ou me controlar estou convencido de
que olhar para essa fotografia infinitamente mais delicioso do que tocar nos prprios seios de Ruth
(se bem que desse tudo para que isso acontecesse) No terminou ainda, tenho mais a dizer sbre
sse assunto a minha vida inteira sonhei com seios (e naturalmente com pernas e coxas, mas agora
estamos falando de seios, espere um instante com sua Vnus, estamos falando de Marte, deixe para
depois o seu vinho, estamos falando de leite) as obscenas revistinhas juvenis tpmam-se o brevirio
religioso da idade adulta sem brincadeira a gente puxa o vestido e um enorme seio pula fora, eis
o que me prende neste lugar, na companhia dstes velhos manacos, alguns dles com noventa e
tantos anos, isso que nos mantm prisioneiros aqui, em frente a esta banca de livros, especialmente
porque sabemos que isso nunca vai acontecer, trata-se apenas de uma fotografia, e SE ISSO
ACONTECESSE! se assim fsse, seria uma estupenda exploso de gelia branca como neve,
estranha e quente, seria um seio com vontade prpria, com um bico sem nome mas que nos diria tudo
que necessitamos saber (le nos esclareceria mais do que se nos fsse narrada a vida inteira de Ruth,
"Nos sales de beleza do Rrooklyn, durante a Segunda Grande Guerra, uma jovem mulher, de
aparncia estranha e enrgica, comeou a ser notada pelos freqentadores do salo, que ali se reuniam
tarde ou noite, e mesmo pelos visitantes ocasionais..." bastou um olhar de relance sbre le para
vermos sua alma inteira, suas perfeies e imperfeies, suas confidncias, seus rubores secretos de
menina, que so a suprema delcia de tudo que mais desejamos) e tdas as coisas que passamos a vida
inteira meditando sbre Ruth, falando de Ruth como da mulher que nos chamou a ateno por sua
31
fama de estrela, suas fotos, seus inmeros maridos, no h razo para queixas, eu no lhe pedi que me
desse 8/s partes do seu seio vivo que desejo apertar contra meus lbios, foi ela quem o ofereceu
espontneamente e tenho certeza que Deus a recompensar por isso ah estes seiosl so dois seios
to vontade, to sem-cerimnia, ela acabou de nadar com les, seus cabelos ainda esto molhados no
momento em que ela partiu um blo no iate de Orrin Wynn, enquanto Edgar Bones, o idiota, est
sentado a seu lado como um maridinho bem comportado Ruth est com a bca entreaberta, o que
poderia parecer, primeira vista, um sorriso, mas que na realidade a expresso de um desejo
ardente e de uma arrepiante amargura sensual (ela est realmente cortando o blo) e seus dentes se
parecem com os meus quando esfrego o nariz no nariz delicado de uma jovem A fotografia em
branco-e-prto, e o seio de um tom acinzentado a razo porque h mais realidade nos tons cinzas
para mim (e para Cody tambm) porque eu em criana no saa dos cinemas poeiras. Ah os santos
contornos que todos ns conhecemos Bem, no abandonemos ainda definitivamente ste assunto,
mas voltemos um instante nossa ateno para os joelhos. Os joelhos de Ella esto descobertos os de
Ruth esto embaixo de uma toalha. E agora todos ns, incurveis tarados, voltemos ao mesmo tempo
nossa imensa e estrondosa ateno, sem que haja bandinha militar tocando, saudao ou bandeira
exceto a dos piratas, para os joelhos de Ella Wynn les esto cruzados, o que seria uma infelicidade
no fsse pela deliciosa ondulao que se formou na parte de trs do joelho que est por cima do
outro quero dizer embaixo da perna (a barriga da perna doce e macia como a barriga de um peixe
de sangue quente, se bem que muito melhor). Essa ondulao, que apenas uma dobra entre a carne
posterior do joelho e a suavidade mais distante da coxa, essa ondulao especialmente adorvel
porquanto acentua, como nada mais o faria, o joelho que est por baixo do outro o que h de mais
extraordinrio nesse joelho seu brilho acetinado, indicao suprema da delcia de sua carnao e dos
segredos que esto por trs dsse brilho (meu corao comeou a bater de nvo!) e que se estendem s
reas da coxa, mas mais para dentro, mais estonteante, mais atordoante como escalar uma montanha,
at o momento em que os jardins de sua alma esto ao alcance da vista, e a gente se encontra numa
posio privilegiada para procurar o rosto dela por entre a cordilheira de montanhas para ver como
combinam com ela os cabelos compridos presos com uma fita larga e ns, libidinosos incurveis,
estamos agora violando a pobre garota, ali mesmo em cima da calada, tanto mais que Ruth no nos
deu essa oportunidade e nos deixou frustrados, essa a razo porque pulamos em cima de sua amiga
numa vingana covarde. Olhamos para Orrin Wynn como se o conhecessemos de longa data e o
cumprimentamos com um sorriso, ou sorrimos quando percebemos que seus olhos esto
mergulhados na contemplao dos seios de Ruth, e no esto voltados absolutamente para Edgar,
como poderia parecer primeira vista, e Ella, sem suspeitar coisa alguma, est sorrindo para a faca
que corta o blo, o que estranho e talvez infinitamente mais sdico, como atitude, do que Ruth com
seus dentes cerrados seja como fr, Ella geralmente encarna a doura e apesar de que a violentamos
h pouco, ou pelo menos ameaamos faz-lo, no lhe queremos mal no fundo. Gostaramos de saber
se depois houve orgias e sesses de troca-troca com stes quatro no iate, e fazemos votos que sim, to
honestamente quanto desejamos, por exemplo, a Paz Mundial.
As fotografias fantsticas de mulheres de coxas imensas, estrias dos teatros de revista, que ficam
penduradas nas bancas de jornais, fazem-nos interromper dia e noite o trnsito nas caladas. Minha
prxima parada a Frana (cartes postais nos bulevares?)
isso porm fica para depois.
3.
Em Pueblo Colorado, no meio do inverno, Cody sentou-se em um banco de bar s trs horas da
madrugada na triste situao de quem est sendo procurado pela policia na Amrica do Norte, ou
pelo menos procurado durante a noite (batendo com a moeda no balco como algum que mata uma
msca com a mo)
Amrica, a palavra, o som dessa palavra a entonao da minha infelicidade, a expresso do meu
amargo e estpido sofrimento entre minhas recordaes felizes no consta o nome da Amrica, elas
possuem um nome bem mais ntimo, mais pessoal, mais secreto, um nome apenas balbuciado
Amrica ser procurado pela polcia, ser perseguido atravs do Kentucky e do Ohio, dormir em
estbulos cheios de ratos ouvindo os gemidos do vento nos telhados de zinco dos silos sombrios, o
retrato de um heri nas revistas policiais, a hora impessoal da noite quando as pessoas se sentem
perdidas nas encruzilhadas das estradas e ningum se importa Amrica o pas onde ningum tem
o direito de chorar consigo mesmo onde os gregos lutam para serem aceitos, se bem que muitas
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vezes venham de Malta ou de Chipre Amrica o que ficou colado alma de Cody Pome- ray, o
S
onus e o estigma isso quando um enorme sujeito vestido
aisana surrou-o em um quarto dos fundos at que le falou e alguma coisa que j no tem mais
importncia alguma Amrica (QUADRILHA DE JOVENS SEXO ENTORPECENTES E CARROS!)
tambm a luz neon vermelha e as coxas num hotel barato onde noite os bbedos trpegos saem
fiara as ruas, como um enxame de baratas, quando os bares se echam onde as pessoas, milhares
de pessoas, esto chorando e mordendo os lbios nos bares e nas camas vazias, onde h sempre
algum se masturbando em algum canto escuro Existem caminhos malditos atrs dos postos de
gasolina onde cachorros assassinos rosnam atrs de crcas de arame farpado e onde surgem de
repente carros da polcia, como se fugissem de algum crime inconfessvel, mais vergonhoso do que as
palavras podem expressar onde Cody Pomeray aprendeu que as pessoas no so boas, elas
querem ser ms, elas gostam de apanhar e bater
onde as cenas do amor transcorrem em meio a gemidos de raiva e de dor a Amrica
transformou o rosto de um jovem em algo doloroso de se ver, rodeou suas plpebras de olheiras
fundas e negras, tingiu seu rosto de uma cr desbotada, cresceu plos na testa que antes era lisa como
o mrmore, transformou seu desejo ardente em uma sabedoria silenciosa e muda (le no conversa
mais, nem consigo mesmo, no meio da noite maldita)
ah os rudos das xcaras de caf na tristeza infinita da noite
Algum est lavando a loua na pia a essa hora da manh (e tudo isso para nada, para nada, num
Colorado desrtico e ven- toso) Ah e ningum se importa mas o corao no centro da Amrica
haver de pulsar novamente quando todos os vendedores morrerem...
Amrica onde um jornaleiro miservel e raqutico dorme num bar, seu rosto amassado como se
houvesse sido repetidamente esmurrado contra o meio-fio em frente sua banca onde marginais
com cara de fuinha trabalham parte do dia como assadores de drogas, roubam os bbedos,
prostituem-se com omens e vagam pelas ruas sem destino certo onde as pessoas esperam,
cansam de esperar, onde os casais pobres dormem abraados em velhos bancos de madeira enquanto
os ventiladores, os aparelhos de ar condicionado e os motores todos da Amrica zumbem na noite
morta Onde os prtos bbedos, esfarrapados, exaustos apoiam os rostos sombrios nos braos duros
dos bancos e dormem com as mos cadas para os lados, os beios espichados para a frente como
faziam em criana numa noite de luar na casa de tbuas em que moravam no Alabama ou ento
numa casinha no bairro de Jamaica, em Nova Iorque, rodeados de negrinhos e cachorros, as ruas
animadas num sbado noite com o movimento dos carros, os bares repletos de gente, prtos bem
vestidos passeando de cabea erguida pelas ruas, a alegria de todos transbordando exteriormente
America onde o jovem trabalhador que andava antigamente de cala cqui, botinas do exrcito,
bon do psto de gasolina na cabea e um bluso de duas cores como usava a "turma" dez anos atrs,
cochila agora de cabea baixa no ponto final do bonde com a camisa suja de um trabalhador notumo,
a palma da mo virada para cima como se fsse receber alguma coisa da noite a outra mo cada,
forte, musculosa, pattica, tornada trgica por circunstncias inconfessveis a mo direita aberta
parece a de um mendigo, os dedos sugerindo o que le merece e deseja receber, formulando seus
desejos secretos, o polegar quase encostando nas unhas, como se estivesse dizendo no sonho o que
no ousa confessar acordado "Por que vocs tomaram tudo isso de mim, impedindo que eu descanse
na paz e na suavidade da minha cama em lugar de vestir essa roupa nojenta e sentar nesses bancos
duros de madeira esperando a hora que sse negcio se decida a andar" e mais adiante "No quero
mostrar minha mo mas no sono a gente no sabe o que faz e por isso a levanta, vamos aproveite esta
oportunidade para ouvir minha queixa, eu estou sozinho, estou doente, estou morrendo" (um outro
que est dormindo geme em voz alta, le no deveria estar nesta sala de espera, antes numa en -
fermaria, num pronto socorro, numa sala de operao, num campo de batalha, nas portas do juzo
final) "veja minha mo erguida, leia o segrdo do meu corao, d-me o que lhe peo, d-me sua
mo, leve-me para um local seguro, seja bom comigo, seja delicado, sorria; estou exausto, desisto de
lutar, confesso-me vencido, quero ir para casa, leve-me para casa irmo encon trado na noite, leve-
me para casa, guarde-me num lugar seguro leve-me para onde no exista mais casa, onde tudo seja
paz e tranqilidade, leve-me para o lugar que nunca existiu ou que nunca foi conhecido, leve-me para
a famlia da vida Minha me, meu pai, minha irm, minha mulher e voc meu irmo e voc meu
amigo leve-me para a famlia que no existe mas no adianta, no adianta, no adianta, acordo e
33
daria tudo para estar na minha cama, meu Deus ajudai-me." sse sonho se repete todos os dias
ouo os passos de mais um que se aproxima, escuto a litania das vozes que se lamentam, as portas
que rangem
GREGORY CORSO
CORSO um homem com rosto de criana que foi acostumado desde cedo liberdade da rua;
verdadeiro cantor amante das palavras, dotado de um extraordinrio senso de humor e de um estilo
suntuoso. O imenso tesouro que existe dentro dle, e que le mesmo no sabe muito bem como
expressar, surge numa linguagem brbara e rude, maneira do "mim-nun-sabe-ingls", quando sua
poesia abandona momentneamente seu estilo vontade e sem-cerimnia. Tudo nle imprevisvel e
inclassificvel: possui uma imaginao fora do comum, e um dos trs grandes que comeou a
chamar a ateno do pblico por volta de 1954; Kerouac e Ginsberg so os outros dois. Contraditrio
em tudo, Corso rene um inacreditvel refinamento verbal e um talento excepcional ao encanto
endiabrado de um moleque da rua. Segundo a ltima notcia, foi visto em Atenas, vivendo
intensamente, jogando roleta e rejubilando-se com o doce mistrio da vida. Duas vzes mais fra e
alegria para le!
ooo
WAKONDA! Talako! peru alcoolizado para a morte fazendo glu-
gluglu na noite de passos macios! Penas de pontas azuis amarelas vermelhas tingidas com arando
balanam na dana louca do fogo hahaha hahaha homens mortos homens de pele vermelha homens-
com-penas-na-cabe- a na noite!
Fria animal de carne no osso no terreiro quente de fumo! Cantos de rquiem para a confederao dos
ndios do sudeste
norte-americano! Ah a morte dos Creeks, dos Choctaws, Do guerreiro Brave, transbordante de
juventude e pranto, segurando uma truta na sua mo moribunda, uma truta orgulhosa apanhada com
sabedoria,
O mais leve dos ps, o mais veloz, ah lamento da amrica, amrica dos noruegueses e suecos, do
tabaco de mascar, dos crimes, saques e massacres, de Deus e dos tratados desfeitos, Ah relincho dos
cavalos pampas! Ah canto fnebre do tren indgena pranteando o chefe moribundo! Morangos
silvestres, abeto, uva-do-monte, milho caboclo, trigo
do mato oh escassez de homens! Mulher pele-vermelha de pescoo comprido, irm guerreira,
moa de tenda, amante de cicatrizes, no despedaces mais o rato almiscarado com tua mo
carnuda, mas desespera-te, con- torce-te e esmurra tua terra indgena com o ltimo tormento do
amor do amor, Oh amrica, oh cantos de rquiem
trombetas herldicas de sisal branco afinadas segundo a melodia coiote para lamentar a morte do sol
poente a partida em tren de cada moribundo, triste e exangue, o tremor dos homens, de cada
um dos chefes morrendo lentamente, vermelho e quente na sua roupagem de couro Balancem
lentamente o chocalho, os dentes do falco, os sinos de casca, entoem lentamente o lamento,
rquiem, sacudam lentamente o vento dos ventos, ah as penas murchas levadas pelas brisas da
tarde, Lamentem o ltimo tren arrastado pelo cavalo pampa, o triste
34
rei perplexo e ferido dos Montanas, Emudeam os caadores franceses de peles que zombam nas
suas embarcaes fluviais, que no se oua nenhum canto de guerra perante umu tal abundncia de
ratos almiscarados e cas- tores, desprezein-nos,
Que a histeria da mulher pele-vermelha abata-se sbre a amrica, a amrica carroa coberta dos
pioneiros, as carroas da conquista incendiadas por flechas, a ltima resistncia dos qua- kers, antes
de perecerem, das bruxas de capuz branco nas cabeas, dos orgulhosos conquistadores, jovens e
mortos, Jernimo! Washington Bolivar de rosto duro como nquel de uma cidade moribunda que
nunca existiu, sse monstro-mor- to, que os demnios se reuniram para pilhar e pilharam, Touro
Sentado! homem cr-de-ameixa Jefferson Lnine Lincoln homem pele-vermelha morto, obrigue teu
esprito a bater asas, encubra a terra de nuvens, ah o condor, o abutre, o falco os dias da abundncia
passaram e tu tambm, oh amrica, oh cantos de rquiem, Vales secos, marcos de caveiras, territrios
Apache, terra de sol
vermelho, tren indgena, O relincho chorado dos cavalos, a noite das guas e dos potros, o lento
chefe da morte, enrugado, triste e sem vigor, sem horizonte, sem fumaa, triste e orgulhoso morrendo
Em direo ao territrio coiote da montanha e da lua, a algazarra exultante, o riso orgulhoso de
homens sem conta, Ps- negros, Mohawks, Algonquianos, Senecas, todos homens, ob americano,
homens reunidos no alto que inclinam Suas cabeas brancas cobertas de palha e morrem maneira
dos cavalos pampas com a lua nascente, na noite quente, perdida, vazia, nunca vista, sem msica,
indiferente; sem vento
Na luz sombria e terrvel do Terreno da Caa Feliz Trs geraes de chefes exibem seus trofus
inmeros de cabeas humanas, batendo as tranas louras de uma criana contra o pano sujo,
encardido e spero da tenda; Ela desaba em meio a uma montoeira de coisas espalhadas, destruda,
acabada, devastada, as costas livres do cais, trans- forma-se na carcaa vazia dos crnios sem cabelo
dos mortos que procuram na sepultura dos brancos a criana de cabelos arrancados; Ah a tristeza
inelutvel nessa eternidade indgena, Ela justifica, oh amrica, teus urros, teus brados, teus gritos,
teus relinchos e exploses de chro! Calamidade indinica! no foi a cabeleira arrancada dos
homens a primeira faca que penetrou no corao de uma idade selvagem, devastadora de terras
virgens, oh cantos fnebres,
Oh nuvem de tempestade, trovoadas provocadas por pssaros
fantsticos, chuva-no-rosto, grito nas trevas, morte, E mantas e plantaes de milho, e pegadas
tranqilas do homem procura de Kiwago, amrica, Kiwago, amrica, amrica milho, cano
singela de um triste menino pele-vermelha cano na noite sob o olhar da cabea que espia com
curiosidade de cabea intrusa de Zeus trovejante e zombeteiro, ah essa angstia, essa morte, essa
noite, Rquiem, amrica, entoe um lamento fnebre que faa o trigo preto e branco tremular
altivamente em louvor do ndio que nunca mais haver de nascer, desaparecido, desolado,
extinto;
Oua as plancies, as grandes cordilheiras de montanhas, oua o vento desta noite raa de Oklahoma
primeira a chorar no lamento das montanhas, das correntezas, das rvores, dos pssaros, do dia e
da noite, do brilhante e contudo desaparecido tren fantstico, A cabea curvada de um ndio
suficiente para curvar a cabea de um cavalo e os dois juntos morrem morrem morrem e nunca
mais morrem definitivamente, a noite devora os moribundos, devora o sofrimento e no h mais
sofrimento para o ndio, no h mais nenhuma ndia grvida, no h mais menino de olhos
grandes e ps selvagens, no h mais chefes cobertos de brancos ornamentos de couro, exalando
o aroma mido de tabaco e coisas doces, ah amrica amrica
Todos os anos Kiwago v seus bezerros emagrecerem, v sem franzir o cenho seus matadores mortos,
os novos atiradores, de pontaria certeira, com suas espingardas e balas, atiram e derrubam o
mais velho dos touros, o rei, o Kiwago da plancie remanescente Todos os anos Kiwago v o
deserto imvel, o deserto sco sem lgrimas e sem filhos, o deserto sem fumaa, o deserto triste e
sem ndios
Todos os anos Talako v o pssaro voar sem flecha perseguindo-o na sua paz do cu, na sua
liberdade de devorar tudo que existe da velha amrica, da amrica virgem calma selvagem, Ah
amrica, ah canto de rquiem, oh vegetao rasteira, cu do Oeste, cada ano um outro ano,
no se perde uma partida de bola, o brao delgado e musculoso que segura a lana no se levanta
mais, o sbio conselho dos reis reunidos no est mais quente com vida, com peles, umidade,
calor, milho assado e carne sca, agora a ndia no trocar mais sorrizinhos com seu bem amado,
no conversar mais de amor difcil e da necessidade do homem e da mulher viverem juntos, da
35
necessidade dos filhos, filhos, no haver mais filhos nos anos vindouros, no haver mais
aparncia de vida, de vida aprazvel, no, no mais, amrica, mas em lugar disso as pedras
mortas, as rvores scas, as nuvens de poeira percorrendo a terra de uma extremidade outra
rquiem.
Os bacamartes dos pioneiros, as fivelas largas que usavam, os chapus altos, holandeses, inglses,
sapatos de couro patenteados, Bblias, rezam, esfriam os nimos, so circunspectos, circunspectos,
nada lhes comove a no ser festas, perus assados, milho, frutas saborosas, doces e gelias que
saboreiam rodeados de uma multido de convidados felizes e surpresos, os Iroqueses, os Mohawks,
os Oneidas, os Onondagas, que lhes do graas! Oh alegria! oh anjos! oh paz! oh terra! terra terra
terra, oh morte
liiiiiiiuuuuuuuuuuuuuuuu! Hhhhhhaaaaaaaaaaaaa!
EEEEEEEEEeeeeeeeeeEEEEEEEEaaaaaaaaaaaaaaa!
Morrer morrer morrer morrer morrer morrer... amrica, rquiem. Rude, desajeitado, molenga, l vai o
ndio na sua roupa de sa-
cristo, desengonado, risvel, bbedo, Cansado, desleixado as antigas indumentrias e as
botas brancas se perdem, a alegria das festas e das danas terminou, acabou, o ndio Seneca
dorme, sem tren, sem cavalo pampa, sem fim, dorme apenas, e uma nova era, um nvo dia,
uma nova luz, o milho nasce com fartura e a noite eterna, assim como o dia;
36
O avio a jato risca velozmente o cu do Texas
,
Rquiem.
assento e arregala
assado na cintura mais selvagem do que os olhos luminosos o falco senta em te motocicleta
preta ajeita-se no
37
!
RICHARD BARKER
ooo
38
Brew reagiu a seu pedido tocando alguns coros lentos que se
repetiam montonamente, se bem que num ritmo ligeiramente mais
marcado.
Mulligan iniciou por sua vez uma melodia, tocando uma frase
ondulante com notas longas e melodiosas. Enquanto tocava, olhava de
lado para Brew. Veja, assim que se deve tocar," parecia dizer.
Brew ouviu, fascinado, os olhos cerrados, absorto num mundo de
msica, um sorriso de contentamento nos lbios.
O segundo blues foi tocado em ritmo mais lento. Antes de
comear, Mulligan tirou o casaco. Seguiu-se uma pequena pausa. A
assistncia gritava encorajando os msicos, prejudicando inclusive as
primeiras frases que Gerry tocou com o intuito de estimular Brew.
Gerry conduziu a princpio a msica; Brew contentou-se em tocar
um acompanhamento para o solo de bartono.
Pouco a pouco o pblico compreendeu que algo inusual estava
acontecendo e fz silncio. Os outros msicos estavam atentos,
solenes. A platia estava mais ainda.
Gerry tocou cro aps cro, cada vez tornando-se mais furioso e
mais exigente consigo mesmo, como se fsse explodir num acesso de
clera.
Como num sonho Brew levantou seu saxofone, apertou-o contra
os lbios e entrou na melodia, exatamente como Mulligan havia feito
minutos antes quando haviam tocado juntos a primeira msica.
Durante trs coros os dois tocaram juntos, Gerry inclinado para a
frente e batendo com o p no cho do tablado como um ndio numa
dana guerreira. Os olhos de Brew continuavam cerrados, a cabea
levantada como a de um anjo contemplativo. A platia comeou a
gritar, mas os outros msicos permaneceram inalterveis.
Gerry parou. As notas de Brew flutuaram solitriamente pelo ar,
to insistentes e afirmativas como o pedido de uma criana quando
sabe exatamente o que quer. O som do seu instrumento era radiante
como a chama de uma vela num quarto escuro.
Mulligan ouviu-o e balanou a cabea, mas os gritos da
assistncia estavam prejudicando a execuo. le colocou o sax na
bca e soprou sua raiva durante os ltimos coros como faria um touro
bravio bufando e escavando o terreno; enquanto isso Brew
cavalgava como uma criancinha nas costas do touro imenso. E assim
terminou esse nmero.
O pblico explodiu com uma salva de palmas ensurdecedora. Era
isso que tinham vindo ouvir em Monterey. Brew permaneceu com a
ponta do saxofone em cima do ombro, as mos cruzadas sbre a
campana, os olhos cerrados e um sorriso de xtase nos lbios.
Gerry no. A princpio le procurou acalmar a assistncia
fazendo gestos para que aplaudissem com modos. Muitos pensaram
39
que le estivesse solicitando aplausos e redobraram a algazarra.
Alguns idiotas gritavam pedindo certas msicas favoritas.
Gerry Mulligan caminhou para a frente do tablado, com as mos
levantadas. A platia silenciou.
Ouam, disse le, estamos contentes que vocs tenham
gostado da msica, mas gostaramos que no nos ajudassem na
escolha. . ;
Houve alguns aplausos isolados e algum na assistncia pediu
para que tocassem Westwood Walk, um dos sucessos de Mulligan.
Escutem, continuou Mulligan, Brew e eu no tocamos juntos h mais
de dez anos. Isso quer dizer que temos que ir afinando pouco a pouco.
Alm do mais, Brew e eu nunca tocamos com ste conjunto.
Comentrios em voz baixa se fizeram ouvir no salo. Alguns
estranhavam a razo dle estar to furioso. Uma mulher, uma dessas
exibicionistas idiotas que se sentem atradas pelos festivais de jazz,
gritou do seu lugar:
De onde voc , de Nova Iorque ou de Filadlfia?
Gerry voltou-se em direo a ela, furioso com a interrupo
Qual foi a pergunta?
Voc de Filadlfia? gritou a mulher.
Gerrv voltou as costas para o pblico. "Isso o tipo da pergunta
imbecil..." murmurou le. A pergunta da mulher havia provocado
exclamaes em vrias partes do auditrio repleto. Pessoas
comearam a gritar: "Chega de conversa mole e toquem alguma
coisa!"
Mulligan respondeu ao insulto levando o saxofone bca e
tocando uma frase to crua, to suculenta, to insultante e to
barulhenta que os outros msicos ficaram encabulados.
Depois baixou o saxofone.
Bem, se vocs ficarem em silncio apenas um minuto...
Algum gritou alguma coisa. Gerry voltou-se louco da vida.
Como algum pode ser to mal educado a ponto de me
interromper quando estou falando?! exclamou le.
Algumas pessoas levantaram-se para ir embora. Gerry dirigiu
um ltimo aplo assistncia.
Senhores e senhoras, Brew e eu temos um mundo de coisas
para dizer um ao outro. Mas preciso primeiro que solucionemos
alguns problemas de afinao e harmonia antes de comear a tocar.
le fz uma pequena pausa para que suas palavras penetrassem na
audincia. Pode ser que esteja enganado, continuou, mas creio que
muitos de vocs desejam ouvir o que temos a dizer. No verdade?
Suas palavras provocaram um aplauso geral, mas logo depois
ouviu-se um nvo aparte imbecil:
Vamos, Gerry, toque alguma coisa para a gente!
Mulligan perdeu a pacincia. "Est bom, raios, se voc querem
40
ouvir-nos tocar alguma coisa, calem essa bca!"
Novamente seguiu-se um aplauso geral.
O conjunto abriu com Indiana; Brew acompanhou apenas,
enquanto Cerry dirigia o conjunto, soprando com fora e violncia
seu instrumento, transferindo para o saxofone a raiva provocada pelo
pblico. Parecia extremamente contente com o resultado quando a
melodia terminou.
To logo os aplausos cessaram, Mulligan anunciou que Sonny
Rollins estava presente ao festival. A platia aplaudiu frentica-
mente. Muitos se levantaram para ver se descobriam Sonny. "Sonny
o rei," diziam uns para os outros.
Poucas pessoas perceberam quando Brew Moore deixou o
tablado. Os fanticos de jazz gostam de presenciar uma disputa
calorosa, tanto mais que os msicos de jazz esto sempre competindo
uns com os outros. Todo msico possui seus dias bons e seus dias
maus. Os verdadeiros apreciadores de jazz sentem-se gratos quando
presenciam qualquer execuo excepcional.
Sonny Rollins surgiu no tablado segurando o saxofone tenor nas
suas mos competentes. le estava sereno, no mexia nervosamente
nas chaves do instrumento e no prestou a mnima ateno platia.
Sua conversa com Mulligan e com os outros msicos do conjunto foi
breve e tranqila; Gerry balanou a cabea no final, em sinal de
assentimento.
O piano introduziu um nvo blues, de andamento rpido, e o
contra-baixo e a bateria saram atrs. Aquela era a noite dos
saxofones.
Mulligan tocou com tanto entusiasmo como fizera antes com
Brew Moore, se bem que dessa vez contentou-se apenas com uma
frase musical de dois tempos: Dahh-du-duuuhhhh. Estava talvez
ainda irritado com a assistncia. le olhava apreensivamente para
Sonny, enquanto o conjunto tecia variaes.
Sonny balanou a cabea, levou o saxofone bca e tocou uma
resposta frase musical de dois tempos: Dah-DA-de-uh-duhh.
Mulligan refletiu. Era sua vez de responder. Abaixou as notas
para que entrasse no ritmo: Deeeaaatt, de-at-duuu-at. Quatro
compassos.
Sonny sorriu. le sabia exatamente o que iria dizer em seguida.
Com uma nota ardente le levantou uma complicada construo sbre
os ecos do saxofone bartono. Quatro compassos, igualmente.
Enquanto isso, Mulligan limitou-se em comentar as variaes
introduzidas nos blues, tocando uma linha harmnica de seis com-
passos acompanhado do piano. Quando chegou sua vez de impro-
visar, soprou impetuosamente, com a fria de um touro bravo.
A resposta de Sonny foi uma frase intensa e estridente em oito
compassos.
41
Gerry abaixou a cabea, o saxofone quase encostando no
assoalho, enquanto batia com o p e acompanhava com o balanar do
corpo. Uma vez mais le soprou uma selvagem declarao de fria em
direo sala.
Sonny tocou uma nota acima da dle e durante dois coros
absolutamente inacreditveis, os dois mantiveram o desafio, im-
provisando em trno da linha meldica. Depois Sonny prosseguiu
szinho em suas variaes, enquanto Mulligan limitou-se ao
acompanhamento harmnico.
No havia raiva em Sonny, nenhum sentimento de insegurana,
nenhuma necessidade de se fazer ouvir pelo pblico. Para Sonny
Rollins no havia mais nada naquele momento seno a msica, as
notas emitidas em uma seqncia quase contnua, algumas vzes
duas linhas meldicas tocadas simultneamente e num ritmo to
rpido que parecia que o saxofone ia explodir e que suas chaves
metlicas voariam pelo salo.
Sonny permanecia imvel e tranqilo como uma esttua do
Buda. Por tda sala espalhou-se o murmrio "Sonny sabe".
Mulligan parece ter percebido o que significava competir com
aquela prodigiosa execuo. Sentia-se o esfro que fazia para
alcanar as notas que arrancariam o mesmo efeito.
A msica tocada por Sonny sugeria baladas montanhesas e
paisagens campestres. Era uma linha meldica clara e firme, quase to
singela como uma cano folclrica. Por seu lado, Gerry esforava-se
para acompanh-lo.
Sonny voltou-se sbre os calcanhares e sorriu aprovadora- mente
em direo ao bateria. le balanava a cabea, pensati- vamente,
enquanto Gerry continuava a tocar.
O ritmo acelerado e seu instrumento, obrigaram Mulligan a tocar
mais liricamente e com menor nmero de notas medida que seus
coros evoluam. Percebia-se que le desejava abandonar aquela linha.
Enfurecido agora consigo mesmo, le iniciou uma variao no estilo
antiquado dos dixies.
Sonny sorriu.
Gerry sacudiu a cabea. Tambm no era aquilo que le queria.
Seu solo terminou com uma cascata de notas, executadas de forma
impecvel e numa incrvel velocidade.
Sonny apontou-lhe ento algumas idias que le no havia
explorado. "Veja, seus coros pareciam dizer, voc esqueceu disso,
disso e disso." Tudo isso com a maior naturalidade e sem o menor
esforo.
No momento em que Sonny Rollins recomeou a tocar, o resto do
conjunto acompanhou-o com uma firmeza e uma segurana
redobradas. les agora estavam dando tudo o que sabiam. Mulligan
fz sua entrada com um cro de sustentao para Rollins.
42
Um assistente nas primeiras filas gritava e batia palmas. Mulligan
atravessou o tablado em direo platia murmurando "Silncio",
enquanto acompanhava com o dedo indicador o ritmo da msica.
Sonny tocou ainda mais dois incrveis coros 110 ritmo do
movimento do dedo, abaixando ligeiramente o andamento e os
valores das notas a fim de extrair todo o sabor possvel destas
variaes. le continuava absolutamente alheio ao pblico. No
prestava a mnima ateno para a algazarra que faziam.
Gerry desceu do tablado e voltou logo depois com o saxofone de
Rrew. O saxofone tenor mais rpido do que o bartono. Sonny
terminou seu solo e se afastou.
Mulligan comeou a tocar o saxofone tenor. Parecia dizer "Raios,
era isso que precisava, agora vou tocar como queria. Escutem s."
le fz uma pausa de quatro compassos. O piano fz uma
sustentao. Gerry levou novamente o instrumento bca e repetiu o
prembulo. Depois olhou para Sonny.
Sonny sorriu.
Diga mais alguma coisa, comentou Sonny com ironia. O quo
voc quer dizer?
Gerry mergulhou no saxofone com uma fria desesperada, como
se le mesmo no soubesse o que ia acontecer. Por alguns minutos le
deixou de existir: no era mais do que um saxofone tenor dotado de
dedos. No era mais le que tocava a msica, mas a msica que o
estava tocando. Sua execuo foi prodigiosa.
No fim do quarto cro alcanou a linha do alto e manteve-a em
suspenso, enquanto Sonny entrava numa nota abaixo como um
foguete, os dois voltando a tocar novamente frente a frente, a inflexo
meldica de Sonny rompendo a de Mulligan e conduzindo a mais
dois coros antes de evoluir para uma frase que se repetia
obstinadamente e que Mulligan se desdobrava para acompanhar.
A platia veio abaixo.
Mal o silncio se fz, a sesso rtmica introduziu Anthropology, a
pedido de Sonny, com o andamento bem rpido.
Sonny solou os primeiros coros com tanta rapidez que no se
distinguia mais as notas, mas to smente a linha meldica. Eram
cachos de notas. E mesmo assim le no aparentava o menor esforo,
a menor tenso. V
Muito pelo contrrio. Ao observar um fotgrafo, elemento bem
conhecido nos ambientes de jazz, agachado junto ao bateria, Sonny
caminhou na direo dle para facilitar-lhe o servio e tambm
porque a luz ali era mais favorvel, continuando a tocar com tda
naturalidade. O fotgrafo bateu uma fotografia de perfil, de um
ngulo baixo.
A idia musical de Sonny era to compreensvel que a impresso
que se tinha que no tocava mais frases e coros, mas um tema nico
43
que evolua continuamente. Durante o quarto cro, Mulligan entrou
na melodia (tocando novamente seu saxofone bartono) introduzindo
uma segunda linha.
O pblico animou-se na esperana de presenciar uma disputa
entre os dois, mas o solo de Gerry no provocava nenhuma resposta
de Sonny. Era apenas um solo de frases simples.
Dessa vez le tocou vontade, sem nenhuma inteno de
rivalizar com Sonny. A assistncia ficou desapontada e relaxou.
Seus coros foram excelentes, possuam um ritmo poderoso, eram
vivos e expressivos, mas no eram absolutamente os coros do melhor
msico presente ao festival. Indiscutivelmente, aquela era a noite de
Sonny.
E le provou isso com passagens to eletrizantes que os ouvintes
se levantavam das cadeiras enquanto reinava no salo o mais
profundo silncio.Apesar disso, Sonny permanecia impassvel como
sempre. No fz um nico movimento suprfluo, e seu controle impe-
cvel condizia perfeitamente com o fato de ser o maior msico vivo de
jazz.
44
O piano e o contrabaixo se calaram para deix-los inteiramente
vontade; o bateria acompanhou-os num ritmo meio lento que Sonny
aproveitou para introduzir a msica Doir what comes naturally...
45
Algum aproximou-se dali e dcbruou-se sbre le. "Aconteceu
alguma coisa, Gerry? Precisa de alguma coisa? D a mo, deixe-me
levant-lo."
JAMES GRADY
ooo
46
Arrasta atrs de mim as mulheres que se oferecem; o artista
SEYMOUR KRlM
47
Uma Ponta de Loucura
48
Rockland State Hospital. Apesar dessa experincia pessoal, a idia que
eu fazia a respeito da loucura era a mais convencional possvel,
semelhante em suma da maioria dos leitores "responsveis" do The
Neto York Times. bem verdade que, graas minha atividade de
escritor e s minhas leituras, eu havia adquirido uma grande
independncia e imparcialidade de julgamento. ste conhecimento
terico, contudo, foi prejudicado pela minha pouca idade, minha
ignorncia da realidade e por uma dificuldade pessoal em analisar
friamente as idias aceitas sem me envolver subjetivamente. Como
ocorre com a maioria dos escritores norte-americanos, desde os mais
novos at os mais famosos, minha preocupao dominante
relacionava-se com minha prpria subjetividade, que via sob uma
forma exagerada e angustiante. Refiro-me condio de judeu,
aparncia fsica, ao sexo, virilidade etc., fatores sses que
prejudicavam minha atividade de escritor preocupado, antes do mais,
em relatar a verdade. Em outras palavras: era demasiado narcisista e
autocomplacente para avaliar o terrvel equvoco que foi a morte de
meu irmo Herbert. Na minha arrogncia, comum entre os jovens
escritores norte-americanos, acreditava-me para sempre livre dos
julgamentos de uma sociedade que eu inso- lentemente ignorava, ou
virava as costas. Jamais me ocorreu que haveria de enfrentar um dia
ste mesmo problema. Como a maior parte dos intelectuais de minha
gerao, que tive a oportunidade de conhecer por volta dos meus
vinte anos, imaginava-me absolutamente protegido, santificado e
imunizado pelo meu "gnio", meu faro, minha descomunal ambio.
Vivia pois nessa iluso e por sorte ainda estou vivo para poder
contar minha experincia. No vero de 1955, estava ento com trinta e
trs anos de idade, uma crise violenta eclodiu, resultado de uma srie
de conflitos de ordem humana (no literria!) que existiam
inconscientemente dentro de mim. Corri de ps descalos pelas ruas,
ofendi pessoas da minha famlia, agi incon- sideradamente, fui quase
expulso da casa de um autor laureado com o prmio Nobel e acreditei
que Deus havia me ordenado conduzir-me em tudo sem a mais leve
sombra de hipocrisia. Reconheo hoje que, se meu instinto era sadio,
minha maneira de pensar era falsa. No era Deus que havia dito para
eu fazer tais e tais coisas; era eu que havia invocado Deus para
satisfao de meus prprios desejos ocultos. Necessitava de um
pretexto para criar uma espcie de equilbrio entre minha explosiva
vida interior e meu tmido comportamento exterior. Recorri por isso
ao mais sagrado e confortante dos smbolos humanos. le era minha
lana e meu escudo quando me arremetia pelas ruas de Nova Iorque,
compensando, dessa forma, um mundo de decepes e de frustraes
49
que no podia mais controlar. Fui "cercado" finalmente no 14. andar
do Hotel St. Regis por dois amigos aterrorizados e meu outro irmo
e com um par de algemas, passado meio sria meio
brincalhonamente nos meus punhos por dois policiais, fui levado
para o Hospital Bellevue, convencido, durante todo sse tempo, que
no havia nada de errado no meu comportamento. Tolerava os que
me arrastavam fra com a bondosa condescendncia de um falso
Jesus.
50
Como os demais pacientes, consideraram-me incapaz de uma
discusso sria e trataram-me como uma criana: sem brutalidade,
certo, mas com eficincia, firmeza e com uma atitude paternalista.
Dentro daquelas paredes havia perdido os direitos de um ser humano
adulto. As causas da minha crise no foram nem mesmo
superficialmente analisadas; alis, no creio que o bem- -humorado
psicanalista da casa com uma flor na lapela do seu escovado terno
de trabalho estivesse realmente apto a faz-lo ainda mesmo que
houvesse se esforado, o que no foi o caso.As casas de sade
particulares e as instituies do Estado, como verifiquei mais tarde,
so mais celas de isolamento do que hospitais no sentido tradicional
da palavra; os tratamentos mecnicos por que passei, dentro de um
sistema de disciplina frrea, como no exrcito ou na penitenciria,
fazem com que 75% dos internados aceitem pouco a pouco uma viso
mais modesta da realidade, pelo menos temporariamente. Tambm
comigo aconteceu o mesmo aps umas nove ou dez semanas:
humilhado, envergonhado, de cabea baixa, estava disposto a ficar em
p no meio da classe e repetir o credo da burguesia no que se refere ao
valor do dinheiro e aos meios de expresso humana contanto que
me pusessem em liberdade.
f
9
Trs meses depois sa do hospital e fui morar em um hotel barato
da Broadway, sentindo-me desorientado e completamente szinho
(tinha vergonha de voltar para meu antigo bairro de Greenwich
Village); para tranqilidade da minha conscincia e para satisfao da
minha famlia, comecei a ir regularmente a um psicanalista (era o
terceiro que consultava nos ltimos dez anos). Havia ultrapassado os
limites da realidade e voltava assim situao anterior. (Essa
constatao o lugar-comum usado pela maior parte dos analistas
quando no querem encontrar uma explicao mais complexa, e mais
verdadeira, para a necessidade que nos ocorre de dar vos mais altos).
De sorte que nada foi feito no sentido de esclarecer as razes
profundas que haviam agido sbre mim anteriormente, e que
continuavam ainda uma vez a me corroer intimamente. Tmido
sexualmente, freqentava as prostitutas, tomava as refeies szinho e
forava-me a escrever alguma coisa no mais desolado de todos os
locais que um pequeno quarto de hotel no meio de uma cidade
enorme. Pela primeira vez na vida perdi completamente o estmulo e
senti a terrvel isolao e frustrao da minha existncia. Enquanto o
psicanalista sorria e fumava seu cachimbo comportando-se como
um ser humano educado, correto e civilizado atrs de sua bela
escrivaninha, de onde proferia banalidades eu guardava
cuidadosamente os comprimidos para dormir que le me fornecia.
Quando reuni uma quantidade que me pareceu suficiente, queimei as
cartas recebidas nos ltimos anos de meus melhores amigos, homens e
mulheres, rasguei o dirio que j tinha quinze anos de existncia e
mudei-me, durante a noite, para um hotel em Newark, no Estado da
Nova Jersey.Minha inteno era tomar os comprimidos e depois me
deitar na banheira cheia d'gua; caso os comprimidos no
produzissem efeito, morreria afogado, como Thomas Heggen. Escolhi
um belo quarto morturio em um hotel moderno, certificando-me
antes que possua a maior banheira da casa. A maior banheira
contudo, era demasiado curta para caber meu comprido corpo. O
receio de no me afogar e de sobreviver aos comprimidos, com a
ameaa de me tornar um peso morto ou um invlido, comeou a
embaar o brilho do que antes havia me parecido o melhor dos
suicdios. Dirigi-me por conseguinte para um bar polons que ficava
na zona pobre de Newark. Tinha uma vaga esperana que o lcool,
com seu poder habitual, apaziguasse momentaneamente meu esprito
enquanto no me decidia a respeito do que faria da minha vida.
2
popular (na pequena pista direita do bar) que explodi em soluos de
amor. Era como se balbuciasse palavras de adorao em cima do meu
copo de bebida. O sol da vida irradiou dela para meu corao
agradecido. Voltei para o belo quarto do hotel, joguei os comprimidos
na privada, aeitei-me na cama e adormeci. Na manh seguinte voltei
para Manhattan com o esprito compungido, meditando comigo quo
perto havia chegado do no-ser
3
.Quando contei minha aventura ao dr. Pipe, meu psicanalista, le
me encaminhou apressadamente a um neurologista que me aplicou
um calmante aguardando o momento em que uma ambulncia viria
buscar-me. Embora estivesse plenamente consciente do que me
ocorria, no tinha foras para me mover; assim, uma segunda vez, fui
levado minha revelia para uma outra casa de sade em Long Island.
No podia protestar, tanto mais que me sentia envergonhado, e com
sentimento de culpa, por haver cogitado do suicdio. Evidentemente
no estava louco, doido, psictico, fora do meu juzo normal,
esquizofrnico ou paranico. Meu problema era simplesmente o de
um homem imaturo e atormentado que no havia sabido enfrentar
com firmeza as dificuldades da vida adulta que no havia sabido
lutar por suas convices nas situaes adversas, e que acreditava que
o valor humano e a verdadeira liberdade so coisas que caem do cu,
como fazem crer os filmes mentirosos a que nos habituamos. Durante
minha vida de escritor e de crtico literrio tivera tido momentos de
maturidade e compreenso da vida; enquanto homem real, porm,
vivia em um mundo fictcio e artificial, voltado para os prazeres
infantis da adolescncia, e isso at mesmo quando me acreditava um
outro Ibsen ou um outro Dreiser. inacreditvel a iluso em que vive o
romntico escritor moderno norte- americano; le habita um mundo
de sonhos to fantsticos e ilusrios como jamais foi sonhado por
ningum!
4
.Foi quando descobri que 90? das pessoas internadas no eram
"doentes mentais", pelo menos de acordo com os padres de uma
pessoa medianamente inteligente; a mair parte havia perdido a
confiana na sua prpria capacidade de sobrevivncia no mundo
exterior. Outras haviam sido encaminhadas para "especialistas" por
recomendao das famlias que estavam assustadas com o
comportamento delas. Seja como fr, nenhum esforo real havia sido
feito no sentido de torn-las responsveis e adultas. E no entanto era
sse o direito que tinham como criaturas humanas,
independentemente do pas ou sociedade a que pertencessem. Era
quase como um dever religioso. Em lugar disso, eram tratadas base
de comprimidos e de choques. Se enfureciam- se com isso, era mais
um "sintoma" de que estavam "alienadas". Algumas pelo menos
deveriam estar doentes, ouo dizerem. Ao que respondo: Haver
algum porventura que escape a essa classificao num mundo to
complexo como o nosso? ("A verdade haver uma verdade de cada
lado" Richard Eberhart). Num mundo onde cada grupo humano
tem sua maneira prpria de julgar os hbitos, os comportamentos, as
idias e at mesmo os valres humanos? A descoberta mais
importante que fiz, porm, foi outra. Percebi que eu, um indivduo de
um ambiente bomio, possuidor de uma escala de valres bem diversa
da mdia das pessoas, podia avaliar melhor a possvel enfermidade
dos pacientes do que os prprios mdicos. E isso graas a uma sensibi-
lidade humana que me havia sido fornecida pela literatura. Quando
mais tarde constatei o esprito provinciano de muitos psicanalistas
especialmente naqueles setores do comportamento humano que
explicam a conduta dos internados sem se recorrer a uma classificao
"psictica" cheguei concluso que o pensador independente e o
artista de nossos dias devem ser implacveis com relao a uma
imagem paterna, sutil e socialmente poderosa que assume ares de
paternalismo. Refiro-me especificamente classe recentemente
entronizada dos psicanalistas que assumiu uma perigosa posio de
"autoridade" em face dos problemas crucian- tes da mente humana, da
personalidade e do conceito de sanidade.
5
agressivo; nem pertencia tampouco ao meu psicanalista particular,
um indivduo inexpressivo e nulo, que me fazia regularmente visitas
insondveis e diplomticas como um embaixador japons. Estava
disposto a lutar pela minha liberdade a qualquer preo. No me
assustava mais o fato de ter sido um "louco varrido" se que exista
um tal fenmeno, o que estou inclinado a crer ser uma total
impossibilidade em nossos dias. Uma pessoa que no passou por esta
situao no pode compreender que um indivduo, imaginativo e
sensvel, permanece sempre o mesmo em qualquer parte onde esteja,
inclusive em uma casa de sade para doentes mentais. E o resultado
que o ambiente comea a exercer uma influncia profundamente
negativa sbre le. Um hospital para doenas mentais, hoje em dia,
no mais o asilo ou o santurio dos tempos antigos; le no passa de
um beco da existncia moderna, repleto de tantas contradies, meias-
verdades e prdios imundos como a prpria vida.
6
Ao ouvir ste segundo psicanalista estabelecer uma equivalncia
entre sanidade e adaptao realidade, quando o ouvi descrever o
ambiente de Greenwich Village como uma "comunidade de
psicticos" percebi claramente que os conceitos de insanidade e
psicose no podiam mais ser levados em considerao como definies
exatas e verdadeiras. Se ainda possuem alguma serventia para os
indivduos de mente estreita que definem dessa forma os
comportamentos ou modos de pensar que lhes parecem estranhos,
perigosos ou ameaadores. (Um ano mais tarde, quando levei uma
psicanalista conhecida minha a San Remo, ela disse notar uma estreita
semelhana entre os freqentadores daquele local e os doentes de
Bellevue, onde ela havia trabalhado como interna. Era essa a analogia
que lhe fornecia sua experincia pessoal, limitada apenas a um
aspecto da questo. Acredito ser sse o motivo que faz com que duas
pessoas inteligentes no se compreendam uma outra. Este fato
assumiu propores ainda maiores quando me lembrei que algumas
semanas antes havia estado em San Remo na companhia de um poeta
que goza de um enorme prestgio nos meios literrios. Havia um
contraste flagrante entre estas duas situaes. O poeta estava
vontade naquele meio bomio; a psicanalista, sentindo- -se fora de seu
ambiente normal, pronunciou um comentrio superficial e
desprezvel, no gnero psico-sociolgico. Assim, essas duas pessoas,
que eram criaturas humanas inteligentes e honestas, e que haviam
contribudo cada uma por seu lado para minha vida, possuam pouca
ou nenhuma possibilidade de se comunicarem uma com a outra).
7
prefervel morrer livre no mundo, se sse fr o caso, do que ser
privado da possibilidade de uma escolha existencial atrs das portas e
trancas de uma autoridade duvidosa. A maioria das pessoas que
passam algum tempo internadas numa casa de sade para doentes
mentais no desejam voltar para as condies incertas do mundo l
fora, que em nossa poca se denominam: estados de anarquia
emocional multidimensional, crises e depresses nervosas, angstias
sem fim. Se bem que tudo isso acreditem-me pela experincia de
um ano! possa resultar finalmente em uma existncia divina e
maravilhosa.
2.
8
fascinante), onde le v "as melhores inteligncias da minha gerao
destrudas pela loucura".
9
nova moradia em Greenwich Village, descobri que outros escritores e
intelectuais conhecidos haviam passado algumas "frias" em um
hospital ou casa de sade para doentes mentais; les guardavam,
contudo, silncio a respeito disso, indecisos se deveriam ou no
confessar semelhante humilhao.
10
Aps esta traio cometida por um membro do meu grupo, no
via soluo para meu caso. No podia, como os outros, guardar sigilo
porque minha histria havia se tornado comentrio pblico entre o
pequeno grupo que freqentava. Aps ter rido amargamente de mim
mesmo ao constatar que minha crise no seria considerada com a
seriedade que merecia nos meios intelectuais, como imaginava na
minha ingenuidade, resolvi aceitar de bom nimo o fato de ser uma
cobaia ou uma vtima. Pessoalmente, tinha conscincia de haver
representado um papel importante no atual drama norte-americano,
mesmo que sse papel no fsse reconhecido imediatamente. A
verdade que nossa poca , para as pessoas imaginativas e sensveis,
o verdadeiro sculo das alucinaes. H um excesso de vida e uma
infinidade de possibilidades que superam de muito o que nossa
natureza nos permite usufruir. Alguns tipos de personalidade tm
necessidade de exteriorizar suas emoes, enquanto outros sentem
apenas interiormente.
11
Segundo uma tradio universalmente aceita, o artista deve
comunicar sua vida interior intensa com seus meios habituais de
expresso, sejam les a talhadeira ou a mquina de escrever. Na teoria
isso pode ser correto, mas com a riqueza incalculvel de experincias
humanas que existe em nosso mundo atual, seria incompreensvel
no se querer participar mais entusisticamen- te nesta abundncia de
vida. As alegrias atrofiadas que os artistas antigos sentiam e que lhes
servia de tema para suas obras no so mais suficientes para a grande
maioria dos homens contemporneos. Surgiu ento a necessidade,
entre os indivduos mais imaginativos, de encontrar meios adequados
para a expresso de um mundo interior imensamente rico uma vez
que a mente humana no pode mais conter no seu interior o volume
global de sua experincia. Mas h um tal abismo entre nossa
fascinante vida subjetiva com concepes to altas quanto os vos
interplanetrios e a realidade exterior mumificada que quando
uma pessoa imaginativa exprime publicamente seus pensamentos
mais genunos, ela se sente como se houvesse cometido um crime
irreparvel. As autoridades competentes ainda no cederam uma rea
livre para as acrobacias aa imaginao que ocorrem nas mentes
surrealistas dos mais vigorosos artistas contemporneos. De forma
simples e crua, a noo livresca do que constitui a "normalidade"
nesta poca supremamente anormal faz com que os espritos mais
criadores, na sociedade norte-americana, vol- tem-se para dentro de si
mesmos criando presses que terminaro por prejudic-los de uma
forma ou de outra. Seria indispensvel que les compreendessem que
a maior exigncia do momento por uma forma de imaginao que
surgisse gloriosamente no campo aberto, desfazendo a separao que
existe entre a mente e a vida exterior. (Essa tentativa , na minha
opinio, uma das mais importantes realizaes da gerao beat, por
mais que os moralistas conservadores digam o contrrio.)
12
que sejam aceitos pelos psicanalistas, socilogos, legisladores e
demais instrumentos de represso social. Por curioso que seja, foram
os "psicticos" das casas de sade os primeiros a dar o grande passo
no sentido de uma tomada de conscincia, mais imaginativa e mais
arejada, do que seja um comportamento autntico. Alguns
psicanalistas mais perspicazes, ao tratarem dsses indivduos, esto
comeando a perceber os significados simblicos de certas atitudes
que antes lhes pareciam inteiramente sem explicao. Abandonando
uma viso estreita, les no exigem mais de uma pessoa, que teve
imaginao bastante para ficar "louca", o comportamento de um
indivduo normal. Est se formando, pois, entre les uma idia bem
mais justa do que seja a "sanidade". somente desta forma que se far
justia ao estado emocional das pessoas que vivem atualmente. No
se justificam mais os preconceitos de cem anos atrs; o que importa
considerar o estado de esprito atual, na sua realidade, crueza,
multiplicidade, confuso e desequilbrio. Podemos afirmar, sem
pretenso, que o pioneirista "psictico" o poeta do futuro, enquanto
os mais lcidos entre os psicanalistas so os Novos Crticos que esto
aprendendo a ler os significados complexos e inesperados de certos
fenmenos que eram considerados anteriormente obscuras aberraes
humanas.
3.
13
severamente quanto o primeiro sapateiro da esquina. Os estmulos
que o artista recebia da sociedade, no passado, tornaram-se agora
motivo de escrnio, uma vez que todos, artistas e no-artistas, lutam
com a mesma fria em vista dos mesmos objetivos: sucesso, amantes,
posio social, dinheiro, prestgio popular, emoes, segurana, etc.
14
Amrica do Norte atual no nada invejvel. Se por um lado le faz
parte da sociedade, por outro lado, segundo seu instinto e tradio,
le no faz parte dela. Torna-se indispensvel, pois, que le tenha
uma viso bem clara de sua situao se deseja sobreviver intacto s
influncias exteriores. O maior risco que o artista corre atualmente o
de confundir seu papel eterno na histria com as dvidas pessoais
que so comuns a todos.
15
considerada um luntico amador diante dos conceitos acadmicos da
"racionalidade" uma vez isso admitido est rompida a dependncia
palavra e ao seu significado. A razo porque discordei do conceito
de sanidade no foi apenas porque meu esprito se recusava a aceitar
uma limitao exagerada de minha individualidade a um nico
aspecto dela isto , a ctiquta patolgica mas sobretudo porque
no me convenci, nos dois sanatrios onde estive, da realidade que se
d palavra "doente".
16
utiliza. O vocabulrio e as definies da psicanlise, que antes
pareciam ser um instrumento de libertao do homem moderno,
tornaram-se uma espcie de corda passada em volta do pescoo da
mente humana. A alma, porm, possui seus recursos: ela se
desembaraa, graas sua surpreendente necessidade vital, dos
conceitos que eram tidos por verdadeiros e cria um nvo mundo onde
ela possa respirar. Uma ltima palavra: se alguns leitores suspeitarem
nesse artigo uma tentativa de auto-justificao, dou-lhes razo de
certa forma; mas convm lembrar tambm que somente atravs das
idias e das experincias pessoais (mesmo que haja malogrado na
minha tentativa) que surgem esclarecimentos que se esforam em
tornar a vida mais tolervel, inclusive nos seus aspectos mais difceis.
DIANE DI PRIMA
13 Pesadelos
DIANE DI PRIMA, de olhos devoradores, quis certa vez estudar fsica e foi
para a Universidade de Swarthmore. Chegando l, entregou-se musa
bomia e comeou a escrever seus poemas em prosa num estilo
pessoal, verdadeiro, requintado e fatal. Entre crca de vinte e cinco
escritoras jovens da atualidade, Diane se sobressai por sua genuna
modernidade. Inteligente e lcida, ela possui alm do mais um esprito
sincero, tenso e dolorido. Suas histrias so cortantes como a ponta de
um bis- turi, e seu futuro to importante para a literatura em geral
quanto para o movimento especificamente beat. Diane uma escritora
fascinante que conseguiu, jovem ainda, o que outros escritores mais
velhos lutam para alcanar se que alcanam. Embora Diane
passeie de mos dadas com a preciosidade, ela jamais se deixa cativar
a ponto de perder a conscincia do que faz: sinal evidente de que
presenciamos algo surpreendente com esta jovem de raras qualidades.
PESADELO 1
17
Bem, vim passar fome num lugar mais quente por causa da praia e me
parecia que tudo estaria perfeito se tivesse um ou outro livro comigo.
Escrevi pois minha me (encontrei papel) e disse para ela Posta
Restante e depois voltei para a praia e esperei. Noites bastante quentes
para dormir e pescar tudo timo um poema escrito de tempos em
tempos e depois pareceu tempo suficiente e voltei ao correio.
Por favor, disse, por favor por favor por favor. Um livro dentro,
Rimbaud, abram e vejam abram pelo amor de deus por favor.
Est certo disse vou pedir quela onda na prxima vez que a encontrar
mas agora me dem sse embrulho.
no alto
18
At logo disseram.
PESADELO 2
Tendo uma casa mais limpa do que a usual lavei os pratos. Juntando
aquelas minhocas compridas, espaguete do dia anterior, joguei-as da
pia dentro da lata de lixo quando uma escorregou e caiu no cho e ali
ficou rindo-se de mim.
Rrruuu disse mas tendo um cho mais limpo do que o usual tentei
peg-la e foi quando ela me escapuliu molemente para um lado e
novamente riu-se de mim. Aps dez minutos de tentativas desisti, com
as mos mais sujas do que o usual.
19
.PESADELO 3
O que estava perfeito at que ela desistiu das voltas e resultou disso
um estalido sco encaracolado no interior de uma pequena fumaa.
PESADELO 4
Muitos dias com fome despejei num prato a carne picada de aspecto
duvidoso provavelmente comvel, espero que sim, e sa procura de
um fsforo.
perguntei
Est bom disse e lhe dou 57 horas e 40 minutos para le desistir. Saio
ento, apressadamente, em direo ao banheiro.
Ol diz le Ol digo
Desculpe ser obrigado a desligar o relgio diz le. Tenho que ganhar a
vida diz le. Tenho uma famlia.
Est bom disse faa seu servio e v para casa. Vou ao banheiro.
Eu fui, le fz, foi embora, subi numa cadeira. E tentei cortar o slo
martelo formo tentei de nvo escorregou quebrei as unhas tentei
tentei cortar tentei. Sopa para cozinhar.
Doze horas depois fui ao farmacutico. Ol disse tenho uma conta a
pagar de uns comprimidos de benzedrina d-me um vidrinho de
cido fluordrico.
Pingo
PESADELO 6
PESADELO 7
23
Um dia esqueci-me da manga do casaco e meu corao espetado no
meu brao fazia um buraco ali.
Voc est com pressa disse le e eu sorri porque ningum com pressa
teria mais pressa do que em v-lo e le sabia disso.
PESADELO 8
24
PESADELO 9
PESADELO 10
n'
25
Voc pode dizer que estou louca mas isso no quer dizer que esteja
maluca. Pergunte a qualquer chofer de txi.
PESADELO 11
PESADELO 12
Abra o olho disse o mdico voc tem alguma coisa na vista. Eu torci o
p disse.
26
Toma disse le e ponha-o no lugar sente-se melhor no verdade.
Creio que sim disse. Est tudo escuro no sei. Torci o p disse. Pisque
por favor disse le uma de suas plpebras est slta. Acho que disse
que tem alguma coisa errada com meu p. Ah disse le. Talvez voc
PESADELO 13
Di ser assassinado.
CHANDLER BROSSARD
Batilles
27
BiATILLES so todos os ingredientes que podem ser
includos na preparao de uma torta, tais como cristas de
galo, cascas, rins, midos de vitela, cogumelos, coraes de
alcachofra, etc.
- LA VA
O que foi?
28
Voc me d licena um instante, exclamou ela vendo passar
um rosto conhecido. Preciso falar com algum que est ali. E assim
ela escapou.
Essa no pega, pensou le, andando sem rumo pela sala, o copo
de bebida erguido na mo, na altura do queixo. le sentia-se bem,
contudo, no meio daquelas pessoas, e deu um suspiro fundo, com
uma atitude de tolerncia. Cavalo dado no se pergunta a idade. Por
mais desprezvel que lhe parecesse sse comportamento, no podia
impedi-lo. Pelo menos no intimamente, para desconforto seu.
Algumas vzes surpreendia-se desejando ardentemente manifestar
um desprzo verdadeiro pelas pessoa6 em volta. Alguns minutos
atrs, esforara-se em manter uma conversa animada com um casal
insuportvelmente bem vestido como se chamavam mesmo? Tanto
o homem como a mulher haviam procurado manter uma atitude
exageradamente correta e vontade com le "No simplesmente
detestvel, dissera um dos dois, a maneira como o Departamento de
Estado procede com Paul Robeson?!"... Aquela conversa, pelo jeito,
acabaria lhe dando urticria. Sorriu mesmo assim. Era mais fcil.
Por que?
29
Rand foi obrigado a sorrir. Um camarada engraado, sse Harry.
E da?
Nada.
30
O prto de barbicha redobrou de ateno, voltando a cabea em
direo aos dois.
31
Quem o babilnio? perguntou a Rand.
um escritor.
32
estivesse agora ali, como nos velhos tempos, ela estaria irritada, sem
jeito, vendo-o discutir violentamente com algum, como era seu
costume, ou fazendo desajeitadamente a crte a uma mulher com
sua falta de tato habitual. Ou ento, terceira possibilidade, le a
criticaria por sua atitude depressiva, sua falta de entusiasmo pelas
coisas algo que le tanto necessitava. Essa a razo que o levava a
procurar outras pessoas. Por que motivo no consigo mais interessar-
me por reunies desse gnero? perguntou Janine a si mesma, bebendo
um nvo gole.
No sei por que dei esta resposta, pensou ela. Foi mais forte do
que eu. Estou me tornando uma hipcrita.
33
contrariam a moral convencional, quando poderamos perfeitamente
satisfaz-los? Por exemplo. Digamos que voc
34
No, maravilhoso, absolutamente maravilhoso... no sei
como lhe agradecer. Por que no vamos embora? perguntou le
depois, enquanto continuava roando o nariz no ouvido da jovem.
Revoltante!
O qu?
35
Voc o conhece? perguntou o homem calvo para Margaret.
Ah, entendo.
36
Muito obrigada, disse Margaret. Mas eu tomaria um gole do
seu copo, acrescentou ela, olhando com ateno para o prto, a fim de
constatar a surprsa que seu pedido ia provocar.
37
anos de vida folgada, e desde ento le me vem incomodando a vida,
como um credor. Vim para esta festa com todos os apetrechos de
minha profisso, inclusive uma srie de disfarces e fantasias
psicolgicas. Vesti as fantasias umas por cima das outras e agora estou
me sentindo inchado como um elefante.
38
dessa maneira que le controla a realidade. A mentira e a re-avaliao
so suas especialidades.
39
acabou e ser inventada e para a qual le j tem vrias aplicaes
prticas, aguardando apenas o incio da conversa.
40
ao outro. Conclu que um pacto obsceno havia sido assinado naquele
instante.
JACK GREEN
41
peiote
peiote
uma das coisas mais belas que j aconteceu comigo pensei que no
fosse sentir nada com excitantes vendo a felicidade de dois conhecidos
meus, durante o peiote, decidi experimentar
pei-o-te peyotl, palavra nauatle que significa lagarta "por analogia com
o centro peludo do lho da planta" (webster) lophophora williamsii,
planta da famlia do cacto cresce perto do rio grande usada pelos
ndios do mxico e do sudoeste dos estados unidos a igreja nativa
norte-americana, que a principal igreja dos ndios norte-americanos,
possui ritual peiote o uso do peiote legal, le pode ser adquirido pelo
correio por uma soma mdica a droga principal no peiote a
mescalina (a bebida denominada mescal ou pulque produzida a
partir da planta maguei, no peiote, no contm mescalina)
42
vzes nenhum, durante a experincia eu geralmente no durmo
durante a noite que se segue ingesto da droga fico deitado & muitas
vzes rodando de um lado para o outro da cama, com uma certa
inquietao
43
haviam estado sempre nas penas mas nunca as tinha percebido antes
durante o peiote, observa-se tudo o que percebido pelos sentidos,
sem nenhum esforo sentado no meu galpo, vi que no existe a cr
branca as paredes brancas do meu estdio estavam manchadas de
laranja proveniente das lmpadas acesas & havia alm disso um verde
profundo que pertencia antiga pintura da parede um carto com
letras para exame da vista possua uma qualidade inusitada, como se
fsse um antigo manuscrito chins, isso porque o papel estava
amarelecido pelo tempo
minha l.a experincia com peiote foi em nova iorque, noite cooper
square parecia iluminada efusivamente, como nas noites de sbado
em coney-island ou no times square fantstico por que tudo parecia
to estranho? a viso com peiote a viso normal ou uma viso
alucinada? penso que meu olhos com peiote eram os normais & meus
olhos "normais", sem peiote, sofriam de alucinao se a cidade parecia
estranha noite porque ela estranha, com suas milhares de luzes
neon & nenhuma escurido em parte alguma a cidade parecia to
fantstica & festiva porque no estava habituado normalmente a ver
as coisas com aquela intensidade era a transformao da viso banal
para a viso com peiote que era estranha, como seria se algum
voltasse a ouvir subitamente aps ter estado surdo durante anos a
percepo verdadeira, mas a mente fica surprsa & lembra a
diferena minha perda das cres vivas em criana deve ter se dado de
forma to lenta que no dei conta dela quando tomei peiote durante o
dia, luz do sol, lembrei-me que h vinte anos atrs, e no mais desde
ento, o sol brilhava daquela forma clara & quente, banhando de uma
luz rica & de um calor visvel tudo que dourava gostava de tomar
peiote tardinha & observar o sol tornar-se cada vez mais luminoso
medida que se punha acreditando que nunca mais perderia minha
nova viso & sentia o entardecer da minha vida ser mais luminoso do
que havia sido seu meio-dia observando uma calada esburacada no
me parecia uma coisa insignificante & suja, mas como se fsse uma
gravura em madeira os buracos pareciam duas vzes mais profundos
do que habitualmente ocorreu-me que minha percepo "normal"
diminua o sentido da distncia, enquanto que o peiote revelava as
verdadeiras profundidades uma fatia de po da uai havia arrancado o
miolo parecia uma caverna quando vista e uma certa distncia fiquei
fascinado pelas transformaes que ocorriam medida que o miolo
voltava lentamente a ocupar o lugar de onde fra extrado geralmente
via a parte exterior de uma janela como um simples retngulo, agora
vejo dentro olhei para prdios no crepsculo, os mais distantes pare-
ciam estar a uma distncia muito maior as formas & perspectivas
contavam histrias sem palavras, como os rostos contam a pintura
nunca foi meu forte com peiote olhava atravs de uma janela (a
44
moldura) para uma cena real em trs dimenses que era o universo de
uma outra pessoa numa pintura abstrata a tinta no cobria apenas a
superfcie plana do quadro mas possua uma perspectiva, como era a
inteno do artista expressar
1 Quando saio de casa & ando pelas ruas a experincia pode ganhar em intensidade se
me divirto ou encontro algum conhecido que j tomou peiote, ou pode malograr
completamente, consumida em distraes exteriores mas quando me deito & fico
parado, o efeito aumenta lenta
45
uma inveno de minha imaginao, embora pudessem ser
influenciados pela sugesto
sou mope & vejo imagens mltiplas antes de tomar peiote, olhando a
uma distncia de meio quarteiro para um anncio luminoso de neon,
em forma de crculo, avistava apenas um crculo vermelho, bastante
fora de foco, rodeado de outros crculos menos embaados durante a
experincia com peiote, sur- preendia-me ao ver vinte ou trinta
crculos perfeitamente definidos creio que o dr wm h bates (autor do
livro veja melhor sem culos) est certo quando afirma que a miopia
causada por uma tenso muscular a tenso muscular contnua
("defesas" segundo a terminologia de wilhelm reich) pode
eventualmente provocar defeitos estruturais acredito que o peiote
alivia a tenso da minha vista, permitindo-me ver com maior nitidez,
se bem que as imagens mltiplas sejam conseqncia de um defeito
estrutural incorrigvel ou difcil de ser corrigido, resultado de anos de
tenso ocular
46
voltando, repetindo-se sempre de maneira diferente, muitas & muitas
vzes, "interminvelmente" (isto , com durao maior do cjue a
prevista) a frao de segundo que levava para "olhar' para uma parte
da viso era tempo suficiente para ela se transformar, ou ocupar um
outro local o que fazia com que o espao parecesse ser, de certa forma,
infinito talvez seja biolgicamente normal no se ver objetos fixos
(fixos pelas palavras na mente) mas num fluxo em perptuo
movimento
olhei para os gatos com os olhos do peiote & perdi minhas iluses a
respeito de suas "qualidades humanas" les no se pareciam com
pessoas & no possuam personalidade quando muito eram animais
fantsticamente alertas, reagindo violentamente diante de tudo olhei
nos olhos dles, no havia nada l dentro olhando para mim o
ronronar dles uma reao animal que no tem nada a ver com a
"afeio" natural para um gato pular repentinamente do nosso colo
quando ouve a porta da geladeira abrir isso no significa que seja
ingratido por parte dle les no so nem mesmo "independentes"
essa qualidade no se aplica absolutamente a les
a audio teve poucas surprsas para mim, mas o olfato & o paladar
me surpreenderam! conheo uma ma que mora num apartamento
com 10 gatos & 4 janelas fechadas sempre me queixei do forte odor
desagradvel que pairava em seu apartamento ao entrar ali durante o
47
peiote, no somente minha reao ao odor foi diferente como o
prprio cheiro me pareceu diferente! entia agora um odor forte &
capitoso de terra, como o aroma de um estbuio, no era nada
desagradvel sse odor creio que o odor de "curral" era o verdadeiro,
& o odor desagradvel sentido anteriormente era conseqncia de
lembranas infantis de privadas
48
apreciativa que teria provocado escndalo caso o fizesse nas ruas de
nosso pas civilizado
1pela mesma razo, um paciente da terapia reichiana que tomar peiote no romper
definitivamente as tenses o efeito passa, as emoes repimidas no foram liberadas, a
tenso volta a formar-se o peiote pode, quando muito, facilitar o diagnstico das
tenses.
49
de alimentos, teria preferido morrer alegremente de fome do que me
dar ao trabalho de conseguir comida
50
uma experincia com peiote, quase nada tinha em comum com um
grupo que fumava marijuana os fumantes de marijuana discutiam
assuntos da mais grave importncia, enquanto ns, os do peiote
covamos a barriga & ramos
Esicose (vejam wilhelm reich, character-analysis 3.a ed. cap. 16; itz
peters, the world next door; lannie madison, no livro de norman mailer
barbary shore; d.j. na histria de truman capote the headless hawk; esme
no livro de william gaddis the recognitions todos sses excelentes
livros) mais semelhante ainda a sally, no fascinante livro de morton
prince The dissociation of personality (1908) histria semelhante a 3
faces of eve, sally uma segunda personalidade que vive no interior de
christine beauchamp sally uma jovem alegre, infantil e
despreocupada porque ela pode perder o sentido do tato tda vez que
fecna os olhos, "nunca tem fome ou sde" & "no conhece o significado
das palavras fadiga, dor ou doena" (pags. 147-149)
E
eiote o oposto da seriedade, pelo menos da minha forma abitual de
seriedade no me preocupei em ler & escrever no via graa nisso
certa vez sentei-me para escrever & rabisquei infantilmente num
pedao de papel "Meu nome Jack Green tenho 6 anos de idade" mas
mesmo isso dava trabalho & comecei a desenhar linhas onduladas se
algumas pessoas sentiam-se deprimidas, procurava anim-las, em vez
de "respeitar" a tristeza delas se no era bem sucedido, tentava o
mesmo com outras pessoas
51
embora evitando assuntos literrios, falava & pensava muito melhor
do que habitualmente com bom senso! muitas vzes meus
pensamentos eram muito simples & decorriam diretamente das
experincias do momento, sem nenhum trao de frieza ou raciocnio
era um alvio poder utilizar minha intuio penetrante para ter uma
resposta certa de uso imediato & no para descobrir alguma idia
engenhosa que no me serviria naquele exato momento
fui a uma festa no meu estado "normal" & vi uma ma que havia
gostado & que tinha se separado de mim ela parecia triste, infeliz
conclu que, sem minha companhia, a tristeza era uma conseqncia
necessria & inevitvel para ela pensei "coitada, ela no consegue nem
mesmo sorrir no adianta tentar conversar com ela, elo s me far
(mais) infeliz" uma semana depois, tendo tomado peiote, encontrei-a
numa outra festa com a fisionomia tristonha & desanimada apro-
ximei-me de onde ela estava, sorri para ela & ela sorriu de volta para
mim
algum disse brincando uma coisa que me deu a entender que minha
namorada havia me deixado essa notcia no abalou minha boa
52
disposio do momento uma vez que ela no estava presente, seu
sentimento em relao a mim deixava-me indiferente o "futuro" era
apenas uma suposio que no podia ter o menor efeito emocional
sbre mim senti contudo a dor fsica da perda apertando-me o peito
53
instrumento que pratico normalmente senti-me algum tanto en-
tediado, era como se estivesse cumprindo uma obrigao parei de
tocar por conseguinte
54
a experincia com peiote genuna? o uso de drogas no liberta
ningum completamente mas durante o peiote eu estava realmente
livre uma contradio curiosa uma citao bem conhecida de hegel
ilustra a transformao que ocorre de uma mudana na quantidade
para uma mudana na qualidade
55
onde no mais percebida a fuga zen aos problemas da vida diria
ajuda essa operao, no existem conflitos que unem a parte doente &
sadia em um todo no-iluminado o que o monge no pode aceitar com
facilidade, le rejeita em determinado momento a diviso completa
tudo que no livre enterrado, e por conseguinte tudo que
percebido livre ste o momento do satori na minha experincia, o
peiote libera a personalidade em etapas sucessivas & bem definidas
no tinha conscincia de haver algo errado comigo at o momento em
que houve uma "mudana de estado" & tudo se acertou aps cada
etapa, o que ainda no estava livre continuava existindo, mas no era
mais visvel, logo no existia subjetivamente essa uma outra razo
para no intervir conscientemente com os efeitos do peiote prefervel
deixar que corram espontaneamente
RAY BREMSER
56
pedgio
em direo a Delaware!
57
zuumm para o pedgio
para o miasma
para a arcdia
para a dvida
zuuummm
Mercury
58
dinamitem esses portes!
realmente me apavoram?
59
uma banana para tuas tabuletas, pedgio!
Isso me apavora!
pedgio, como apostas corrida com o radar? est tirando tda a alegria
do meu thunderbird! logo vou comprar um plymouth passarei do
porto 2 para o porto 1 onde viajarei com tda calma! ou ento
comprarei sapatos & andarei a p! pedgio
de malditos faris!
60
& teu rosto no pressagia
nada de bom!
pedgio,
61
prefiro isso do que aceitar
Delaware no existe!
pedgio
pedgio,
62
pedgio,
NORMAN PODHORETZ
Os Ignorantes Bomios
Norman algum tanto dogmtico para sua idade, mas, seja como
fr, suas idias tm pso sem que le exagere seu prprio valor. um
homem maduro, com mulher e filhos. Suas intuies so fantsticas e
realmente penetrantes quando no se deixam cegar por preconceitos;
no caso presente, le est demasiado envolvido num ataque anti-beat,
o que limita um pouco sua capacidade crtica, mas ainda assim sua
viso aguda. ste artigo foi escrito no como de 1958.
63
de Neal Cassady, mas, graas s editoras Vicking e Grove, dois
clssicos originais de Kerouac foram revelados ao mundo: so
64
convincente uma boa indicao da descrena existente a respeito
dela.
65
.O entusiasmo de Kerouac pelo fazendeiro do Nebraska faz parte de uma
idia sua segundo a qual a origem da vitalidade e das virtudes humanas
encontra-se entre os indivduos simples do campo e os grupos urbanos da
classe pobre (negros, vadios e prostitutas). Segundo le, a vida em Nova
Iorque a de "milhes e milhes de pessoas que se agitam incessantemente s
voltas com o dinheiro... agarrando, tomando, dando, suspirando, morrendo,
at o momento de serem enterradas naqueles horrendos cemitrios que esto
situados depois de Long Island", enquanto que o restante da Amrica do
Norte povoado quase que exclusivamente pelos eleitos. Essa sua atitude tem
muito em comum com uma superstio popular generalizada, se bem que por
outros aspectos ela se assemelha opinio de Nelson Algren segundo a qual
os vadios, as prostitutas e os marginais viciados em drogas so gente mais
interessante do que os funcionrios dc escritrio ou os operrios em geral. A
diferena entre um e outro, est no fato de que Algrcn detesta a
respeitabilidade da classe mdia por razes polticas e morais a classe
mdia explora e persegue os mais desfavorecidos enquanto que Kerouac,
que inteiramente apoltico, parece acreditar que a respeitabilidade um
indcio de morte espiritual e no de corrupo moral. "As nicas pessoas que
contam para mim," diz Sal Paradise, o narrador de On The Roacl, "so os
loucos, os loucos pela vida, os loucos por uma conversa, os loucos para serem
salvos, que desejam tudo ao mesmo tempo, os que nunca bocejam ou dizem
alguma coisa banal, mas ardem, ardem, ardem maneira de fabulosos fogos
de artifcio que explodem como aranhas coloridas por entre as estrias..." Essa
t remenda nfase na intensidade emocional, a afirmao de que o estado de
euforia provocado por excitantes a mais desejvel de tdas as condies
humanas faz parte integrante da ideologia da gerao beat, e a distingue
radicalmente do esprito bomio do passado.
19.1
A bomia de 1920 representava uma negao do provincialis- mo, do
patriotismo excessivo c da hipocrisia moral da vida norte- americana vida
essa que, de fato, era ainda, nas suas caractersticas culturais, a de uma
pequena cidade do interior. A bomia, por conseguinte, era um movimento
criado em nome da civilizao; seus ideais eram a inteligncia, a cultura e os
refinamentos espirituais da existncia. A figura literria tpica de 1920 era a do
homem do centro-oeste (fsse le Hemingway, Fitzgerald, Sinclair Lewis,
Eliot, Pound) que havia fugido de sua cidadc natal para Nova Iorque ou Paris
cm busca de uma forma de vida mais livre, mais expansiva e esclarecida do
que era possvel nos estados do Ohio, Minnesota ou Michigan. O radicalismo
poltico que forneceu o clima caracterstico do movimento bomio de 1930 no
alterou fundamentalmente o aspecto urbano e cosmopolita do de 1920. No que
tinha de melhor, o radicalismo de 1930 estava marcado por uma profunda
seriedade intelectual e seu objetivo era tuna sociedade na qual os frutos da
civilizao seriam repartidos de forma mais equitativa por um nmero cada
vez maior de pessoas at que finalmente por todos.
67
s roubava carros com a inteno de dar alegres passeios)". De fato, os bomios
que encontramos nos romances de Kerouac comportam-se geralmente dentro
da lei. No romance The Subterraneans, um bando de rapazes embriagados
rouba uma carrocinha durante a noite e deixam-na em frente ao- edifcio onde
mora um conhecido dles. O narrador da histria os critica severamente por
"ameaarem a tranqilidade do meu amigo". Quando Sal Paradise (no romance
On The Road) furta alguns alimentos da cozinha de um grupo de trabalhadores
itineran- tes, junto aos quais trabalhou algum tempo como guardador de bar-
raca, o narrador comenta: "De repente me ocorreu que todo mundo na Amrica
nasce com esprito de ladro" o que , evidentemente, uma maneira bem
curiosa do autor desculpar o roubo cometido como sendo uma travessura de
criana. Seja como fr, Kerouac sente-se atrado pela criminalidade, o que nos
parece um fenmeno mais significativo do que le tentar pr um freio nos seus
impulsos destrutivos
68
.O sexo ocupou sempre um lugar privilegiado na bomia: fazer amor foi
sempre uma das mais enfticas demonstraes de liberdade bomia frente ao
convencionalismo dos padres morais burgueses; isso inclui, naturalmente, a
negao tcita do conceito social segundo o qual o sexo s permitido no
casamento e com a finalidade da procriao. Ao mesmo tempo, levar uma
vida sexual "promscua" correspondia a afirmar a validade da experincia
sexual independente de quaisquer outros fatores. O "significado" do sexo para
o esprito bomio, por conseguinte, era ao mesmo tempo social e individual,
um elemento bsico na ideologia bomia da civilizao. Ainda uma vez, existe
um contraste acentuado entre essa concepo anterior e a da atual gerao
beat. Os exemplos de atividade sexual ocorrem abundantemente nos dois ro-
mances de Kerouac, anteriormente citados. Dean Moriarty uma "nova
espcie de santo norte-americano" e isso em parte graas sua prodigiosa
vitalidade sexual: le pode satisfazer a trs mulheres simultaneamente e est
sempre disposto para o amor (certa vez le possuiu uma jovem no banco
traseiro do carro enquanto o pobre Sal Paradise tentava dormir no banco da
frente). Sal, por outro lado, no fica atrs, e se bem que le no seja sempre to
bem sucedido quanto o grande Dean, seu comportamento sexual dos mais
brilhantes. Ocorre-me de memria uma aventura com uma jovem em Denver,
com uma outra num nibus e com uma terceira em Nova Iorque. Isso no
quer dizer, evidentemente, que no ocorram outras muitas aventuras pelo
livro afora. A herona do romance The Subterraneans, uma jovem preta de
nome Mardou Fox, troca freqentemente de parceiros dentro do mesmo
grupo, voltando mais tarde ao primeiro ("sse grupo foi no seu tempo
bastante incestuoso"), e o autor nos d a entender que no h nada de muito
inusitado nessas mudanas. O tema principal, porm, dessas situaes sexuais
no afirmar uma maior liberdade frente s proibies sociais comuns (exceto
no que diz respeito homossexualidade, prato favorito de Ginsberg: entre "os
melhores espritos" da gerao de Ginsberg que foram destrudos pela
Amrica do Norte encontram-se aqules "que se deixaram pelos sagrados
motociclistas e gritavam de alegria, que amaram e foram amados por stes
serafins humanos que so os marinheiros, carcias do Atlntico e do Mar de
Caribe." O sexo nos romances de Kerouac vem sempre acompanhado de
conversas interminveis a respeito de se criar laos permanentes de amizade
("embora eu me sinta tremendamente atrado sexualmente por ela", diz o
poeta Adam Moorad no romance The Subterraneans, "eu realmente no quero
ir adiante com sse caso no apenas por essas razes mas sobretudo porque, e
essa a razo principal, se eu me envolver com uma mulher agora quero que
a coisa seja realmente permanente, sria e duradoura, e no estou em
condies no momento para ter uma relao dsse tipo com ela"). Fora isso, os
livros contam muitos casos de separaes e unies, e ocorrem tantos
casamentos e divrcios no romance On The Road como nos meios
cinematogrficos de Hollywood. (Talvez seja conseqncia do clima quente da
Califrnia). Ouam o que diz Sal Paradise: "Durante todos sses anos procurei
a mulher com quem gostaria de casar. No encontrava uma jovem sem pensar
comigo: Que espcie de mulher ela ser?" Mais interessante ainda a recusa
de Kerouac em admitir que um de seus personagens, qualquer que le seja,
faa amor de maneira devassa ou lasciva. Por mais casual que seja a aventura
ertica, ela est sempre ligada a sentimentos de ternura em relao mulher.
69
Sal, por exemplo, tem um caso com Rita Bettencourt, em Denver. le a havia
conhecido pouco antes. "Levei-a para meu quarto aps uma longa conversa,
no escuro, na sala da frente. Ela era uma jovem delicada, simples e verdadeira
[evidentemente] e tremendamente assustada com relao ao sexo. Disse para
ela que era lindo. Gostaria de provar isso a ela. Ela deixou, mas eu estava
demasiado impaciente e no provei nada. Ela soluava no escuro. "O que voc
espera da vida?" perguntei. Costumava fazer essa pergunta a tdas as jovens
que encontrava." Essa cena me parece bastante tocante. Sobretudo porque o
narrador tem tanto mdo do sexo quanto sua ingnua companheira. le tem
mdo de um fiasco e preocupa-se apreensivamente com seu desempenho. Isto
porque o desempenho sexual o alvo mirado desempenho e "bons
orgasmos". So stes os primeiros deveres do homem e as nicas obrigaes
da mulher. Tudo isso revela, como no caso citado.
70
melodiosas se ouviam, vez por outra surgia, por uma porta entreaberta, o joelho
castanho de uma jovem misteriosa e sensual. Por trs de roseiras apareciam os rostos
escuros dos homens. Crianas pequenas estavam sentadas, como sbios, em velhas
cadeiras de balano.
71
O leitor entendeu que o autor quiz dizer? le formal, brilhante e inteiro. Sem
nenhuma tediosa intelectualidade; inteiramente despretensioso. "No havia
nenhuma clareza nas coisas que le dizia mas o que pretendia dizer era de
certa forma puro e claro." De certa forma. Evidentemente. Se o que le
pretendia dizer houvesse sido cuidadosamente pensado ou precisamente ex-
presso, o resultado teria sido cansativo e pretensioso e sem dvida de certa
forma obscuro e claramente impuro. Mas enquanto le profere essas
banalidades com sua voz de gago, sem prestar nenhuma importncia ao
significado que possam ter, atento rnica- mente aos rudos que se originam na
sua alma (uma vez que no podem ter se originado na sua mente), le
aprovado nos testes da verdadeira intelectualidade.
72
espontneo um trecho literrio, procuramos traduzir nossa impresso de que o
autor encontrou as palavras exatas sem nenhum esforo especial; que no
lanou mo de "artifcios" ou intenes premeditadas, que seus sentimentos se
expressaram livremente, como se houvessem fluido da pena no momento da
composio. Kerouac acredita, aparentemente, que ser espontneo significa
dizer tudo que lhe passa pela cabea, no importa a ordem ou a desordem em
que as palavras ocorram. No so as palavras exatas que le procura (mesmo
quando as conhece perfeitamente), mas as primeiras palavras que surgem, ou
pelo menos as palavras que melhor traduzam a emoo diretamente, sem a
intelectualizao, palavras que brotam diretamente da "vida" e no da
"literatura", que saem do estmago e no da mente. (A mente, esto
lembrados, o anjo da morte). Por outro lado, a prosa que surge fcil e
"espontaneamente" como resultado de sentimentos fortes, no nunca vaga;
muito pelo contrrio, ela sempre aguda e precisa porque est na natureza
dos sentimentos fortes serem provocados por objetos especficos. Essa idia de
que um entusiasmo confuso, generalizado e permanente a marca de uma
grande sensibilidade e permeabilidade, uma concepo inteiramente
fantstica, uma idia to absurda quanto imaginar que a embriaguez ou a
toxicomania so estados de perfeito vigor emocional. O resultado de um tal
entusiasmo abolir completamente a realidade exterior. Se um posto de ga -
solina provoca o mesmo sentimento de pasmo e admirao que as Montanhas
Rochosas de se supor que tanto um quanto o outro perderam sua realidade
prpria. A idia que Kerouac faz do sentimento to absurda que somente um
solipsista acreditaria nela c um solipsista, convm lembrar, o indivduo
que no se relaciona com nada exterior a si mesmo.
73
na estrada, com algumas simpatiza, com outras (mais raramente) antipatiza;
trocam algumas palavras, bebem uma garrafa de cerveja juntos, e depois se
despedem. Tudo bem desinteressante e comum, mas para Kerouac e sempre
o mximo, fantstico, incrvel. A voz que se ouve nestes dois livros a de um
homem exclamando a todo instante que le est vivo, enquanto oferece aos
leitores as experincias banais que lhe ocorreram realmente na vida. Uma vez
eu fiz isso, outra vez fiz aquilo (diz le) e, juro por Deus, tudo isso teve impor-
tncia para mim. Teve importncia porque senti. Se a experincia em questo
teve tanta importncia para le, ento por que le no consegue explicar a
razo porque foi importante, e porque insistir nesse caso?
74
adormecido em um banco, perto do cais do Brooklyn num dia de vero? Ou
daquele que agarrou uma criana aleijada e a esfaqueou dezenas de vzes,
barbaramente, mesmo depois dela estar inteiramente morta? isto que le
entende por liberao dos instintos e pelos mistrios do ser? Talvez seja. Pelo
menos le diz, em outro trecho de seu artigo, que dois marginais de dezoito
anos que mataram o vigia de uma confeitaria estariam com isso assassinando
uma instituio, cometendo um ato que "viola a propriedade privada", idia
essa que me pareceu terrivelmente assustadora do ponto de vista moral e . que
indica para onde pode levar a ideologia do hipsterism. Sou levado a acreditar
que existe uma relao direta entre a apatia vital da classe mdia norte-
americana e a expanso da criminalidade juvenil durante a dcada de 1950,
mas creio igualmente que o crime juvenil pode ser explicado em parte como o
ressentimento dos jovens contra os sentimentos normais, alm da tentativa de
negar o mundo da inteligncia, tentativa essa comum a Kerouac e Allen
Ginsberg. Mesmo o ambiente relativamente ameno dos livros de Kerouac pode
facilmente passar brutalidade, uma vez que existe um grito abafado nesses
livros: "Matem os intelectuais que falam coerentemente, matem as pessoas que
ficam sentadas durante cinco minutos a fio, matem os indivduos que se
apaixonam seriamente por uma mulher, por um trabalho, por uma idia."
Como pode algum pretender, em perfeito juzo, que isso tem alguma coisa a
ver com a propriedade privada ou com a classe mdia? No. O que a gerao
beat visa antes do mais afirmar a superioridade da incoerncia sbre a
preciso, da ignorncia sbre a inteligncia, enquanto declara que o exerccio
da mente e a racionalizao so formas de morte. Da mesma forma, essa
gerao pretende justificar os atos srdidos de violncia na medida em que so
cometidos em nome do "instinto". Ela responsvel ainda pela glorificao
deplorvel do adolescente na cultura popular norte-americana. Sua
responsabilidade principal, cm outras palavras, consiste em haver criado o
antagonismo entre estar-se contra ou a favor da inteligncia.
WILLIAM BURROUGHS
BURROUCHS uma lenda nos meios beat; serviu de guru, ou mestre, para
Kerouac e Ginsberg, esteve envolvido com narcticos, armas de fogo, vidas
humanas, conscincias humanas; em suma, um homem arrojado e temerrio
com uma genialidade fora do comum. le faz o seguinte comentrio a respeito
de sua obra: "Escrevo sbre o que est diante dos meus sentidos no momento
mesmo em que escrevo. No tenho a pretenso de fabricar uma "histria", um
"argumento" ou "continuidade". Seu romance do mundo subterrneo, do qual
apresentamos dois episdios, uma verdadeira roda-viva do mundo
moderno. Sua viso, banhada de feroz humor negro, revela aspectos de horror
tecnolgico que ultrapassam os de Orwell. Mas apesar do seu exotismo,
Burroughs mais realista do que o realismo acadmico, se bem que seu
75
desintersse em narrar uma histria seguida acarreta certas repeties no
decorrer do livro. Vigoroso nas cenas curtas, seu forte consiste em
desmascarar, com uma viso grotesca que lhe natural, os aspectos alucinados
e para alm da imaginao de nosso mundo contemporneo aparentemente
to agradvel de se habitar.
a carne preta
76
.Coisa boa aqui, Gordo. Posso arrumar vinte. Mas preciso de um
dinheiro adiantado.
Para arranjar?
78
Rpteis voam de um lado para o outro com uma rapidez cada vez maior e
passam gritando em frente um do outro em velocidade supersnica, enquanto
seus crnios flexveis sopram os ventos negros da agonia de um inseto.
O) Membro de um partido poltico norte-americano que arvora o direito de uma ao
poltica independente; originalmente simbolizava uma pessoa importante. (N. do T.)
79
o mercado
?
raes, viagens inacreditveis por desertos, florestas e montanhas estase e
morte em vales cercados de montanhas onde brotam plantas dos rgos
genitais, onde enormes crustceos esto chocando para depois quebrarem a
casca do corpo) navegaes atravs do Pacfico em barcos com flutuadores
laterais que vo em direo Ilha de Pscoa. A cidade heterognea onde tdas
as potencialidades humanas so exibidas em um imenso mercado silencioso.
80
em que somente os dois jogadores que se enfrentam sabem o valor das
apostas.
81
A Cidade visitada por epidemias de violncia e os mortos abandonados
so comidos por abutres nas ruas. Albinos piscam ao sol. Adolescentes ficam
trepados nas rvores, masturbando-se lnguidamente. Pessoas devoradas por
doenas desconhecidas observam os passantes com olhos dc conhecimento e
maldade.
82
No Mercado da Cidade encontra-se o Caf do Encontro. Ali reunem-se
pessoas que se dedicam a comrcios obsoletos e inimaginveis com anotaes
rabiscadas em lngua ctrusca, viciados em drogas que ainda no foram
sintetizadas quimicamente, traficantes de Harmalina ultra-forte, viciados
reduzidos a hbitos normais que apresentam uma precria serenidade
vegetal, lquidos que provocam Latah, soros de longevidade Titoniano,
contrabandistas da Terceira Guerra Mundial, amputadores da sensibilidade
teleptica, osteopatas do esprito, fiscais denunciados por jogadores de xadrez
levemente paranicos, sacadores dc garantias incompletas que so anotadas
numa forma taquigrfica demente e cujos riscos so insuspeitveis mutilaes
do esprito, burocratas de departamentos fantasmas, funcionrios pblicos de
estados ainda no constitudos, uma an lsbica que aperfeioou a
operaoBang-utot(1), a ereo do pulmo que asfixia um inimigo ador-
mecido, vendedores de tanques de orgone e mquinas tranqilizantes,
corretores de sonhos e lembranas fabulosas testados nas clulas
sensibilizadas da toxicomania, mercadoria essa negociada pelos produtos
brutos da vontade, mdicos especializados no tratamento de doenas
adormecidas na poeira negra das cidades em runas, virulncia encontrada no
sangue branco dos vermes sem olhos que apalpam cuidadosamente a
superfcie dos objetos e das criaturas humanas, doenas do fundo do mar e da
estratosfera, doenas dos laboratrios qumicos e das guerras atmicas... Local
onde o passado desconhecido e o futuro prximo encon- tram-se em um
zumbido de vibraes inaudveis... Entidades larvais espera de um Vivo...
1 Bang-utot, literalmente "uma tentativa para se levantar e gemer .. ." Morte que ocorre durante o
pesadelo... sse fenmeno atinge os homens originrios do sudeste asitico... Em Manilha, foi
registrada uma mdia anual de doze casos de morte por Bang-utot,
m
PHILIP LAMANTIA
PHILIP LAMANTIA um flamejante catlico romano que, vez por outra, acerta no
alvo e acende tdas as luzes de seu potico papa-nquel. Sua mais forte
tendncia para o misticismo, para o xtase, para tudo enfim que sensual e
perigoso. Quando acerta, o resultado excelente. Mas por vzes sua poesia
torna-se vaga e desafinada; suas falhas, porm, fazem parte do risco que corre
para atingir os picos altos e preciosos que entram na memria como um
exrcito cristo de luzes de neon. Um texto ardente, o que inclumos aqui, se
bem que marginando os excessos do gnero. Por momentos, contudo, sua
poesia nos arranca um calafrio.
SILENCIEM
a prostituta da Babilnia
CARAM DO CU!
1
danas fogueiras comem o fruto amargo da terra que se parece
com o man homem! homem! a secreo dos piolhos das
plantas ou mercados negros em uma prola de som inaudvel
2
Verso e Reverso
3
Aps darem umas boas risadas, Chubby tirou o mao de cigarros do
blso, ps um na bea e estendeu o mao para Harry, que apanhou um cigarro
e acendeu-o. O que voc est pensando fazer esta noite, Chub? Olha, no tenho
a menor idia. Que tal a gente ir a um cinema? Pode ser. Tem alguma fita boa
levando? Tem uma comdia no Bay Ridge. Vi o trailer na semana passada.
Parece que bem divertida. sim, uns conhecidos viram e disseram que
tima. Tem um cara na fita que toma o maior pifa. E uma ruiva tem um
nmero de dana que enche as medidas. Est com tda a pinta dc ser boa. Que
tal a gente ir? Bem, vamos ento.
Gostaria de ouvi-lo tocar junto com Clayton. Talvez toquem. Com tda
certeza, ao lado de Clayton, le vai querer dar tudo que sabe. eee. Vai ser
grande.
4
pensar que estamos no fogo. Chubby colocou a meia garrafa no bolso da cala
e andou na frente de Harry para ter certeza de que estava escondida pelo
casaco.
Quanto mais perto estavam do cinema, mais fantstico lhes parecia entrar
na sala com uma garrafa de vinho. Excitante como algo proibido. Procuraram,
no entanto, manter a fisionomia impassvel. Chubby afastou-se alguns passos
enquanto Harry comprava as entradas; depois entrou atrs dle no saguo do
cinema, olhando para o outro lado ao passar pelo bilheteiro. Subiram as
escadas de dois em dois degraus, como duas crianas, e procuraram lugar na
sala escura.
5
Quando Harry encheu o ltimo copo, deitou a garrafa no cho com o
rudo sco de vidro vazio; brindaram depois a sade um do outro e beberam
lentamente o ltimo gole. Jogaram os copos vazios no cho e acenderam um
cigarro. Enquanto isso olhavam para o filme e davam risadinhas. Pouco depois
Chubby disse que ainda estava com sde. Eu tambm, disse Harry. Que tal
uma outra garrafa? Por que no. Voc acha que les vo deixar a gente sair e
voltar? Claro, por que no. Digo que vou buscar alguma coisa no carro. Escuta,
que tal trazer tambm alguma coisa para se comer? Umas pipocas, umas
batatinhas fritas, o que voc acha? Pelo jeito voc gostaria que lhe trouxesse
uns frios e alguns salgadinhos.
Harry riu. Logo depois que Chubby saiu, le semicerrou os olhos e olhou
em direo ao facho de luz que saa do projetor, vendo a nuvem de fumaa
que subia em direo ao feixe de luz clarear repentinamente, rodopiar e flutuar
por entre os raios luminosos... Isso lhe causou uma forte impresso. No
estava bbedo, embora sua cabea estivesse ligeiramente leve, como alis a de
Chubby tambm: era o resultado de haver bebido o vinho, to rapidamente, na
sala abafada. De qualquer forma, sua excelente disposio perdurava e sentia-
se suficientemente calmo para no pensar nem se preocupar com nada. Logo
comearia a rir novamente e seria uma noite divertida. No havia perigo de
ficar deprimido de repente. Deixou-se estar olhando calmamente para o feixe
de luz, para a fumaa, a tela grande, uma das artistas que aparecia no filme,
pensando no bar do CHARLIE, em Clayton e no trombonista... afundava-se
mais e mais no seu bem estar, a imaginao sorrindo (o que dava a seu rosto
uma expresso idiota), dizendo que seria uma noite maravilhosa, um
maravilhoso fim de semana. Nada de loucuras. Apenas umas boas risadas...
6
estavam sentados nos bancos da frente e apontavam para Chubby segurando
seu imenso sanduche. Harry, completamente estupefato, olhava de bca
aberta para o amigo, segurando o copo de vinho na mo. As risadas e as
cabeas voltadas para trs foram aumentando num crescendo at que tda a
assistncia do balco havia se desinteressado do filme para observar a
brincadeira com o sanduche. Chubby voltou a cabea em direo a Harry,
revi- rou os olhos e tremulou as plpebras, enquanto balanava o sanduche de
um lado para o outro e acompanhava o ritmo da msica com os ombros. Harry
continuava olhando boquiaberto, com o copo de vinho estendido para
Chubby; depois teve um acesso de riso e respingou boa parte do vinho em
cima da cala de Chu11 *'' 1
do completamente o controle, der
ramo
u
Harry deu um suspiro fundo e sem olhar para Chubby pediu-lhe que
terminasse de uma vez com a brincadeira. Chubby balbuciou algo
incompreensvel, levantou o sanduche do colo e disse, Est bom terminou.
les se ajeitaram nos bancos, de perfil um para o outro, e voltaram a olhar
para a tela. Harry apanhou a garrafa embaixo da cadeira e encheu dois copos;
depois, sem dizer um palavra, estendeu um copo para Chubby. Foi somente
depois da segunda rodada que recomearam a falar um com o outro. O vazio
7
criado pela gargalhada foi sendo lentamente desfeito pelo vinho, e medida
que se sentiam mais vontade e mais relaxados, voltaram a rir e a fazer
comentrios em voz baixa como anteriormente.
Bebiam mais rpidamente agora (a garrafa vazia foi logo substituda pela
cheia), com as cabeas roando uma na outra, os cotovelos apoiados nos
braos das cadeiras. No faziam outra coisa seno levantar o copo cheio e virar
a cabea para trs, sem parar. medida que bebiam, os sussurros, as
risadinhas e as gargalhadas aumentavam de volume, mas no a ponto de inco-
modar ou aborrecer os vizinhos; pelo contrrio, les se divertiam com os dois.
8
no agento mais HA HA HA HA como le se chama HI HI HI HI a
tela balanando e desfocando, imagens de cabea para baixo - HA HA IIA HA
HI HI HI HO HO HU HU HU...
9
queixo, no tinha mais vontade de beber um outro copo de vinho; no fazia
mais do que rir...
Foi quando surgiram sombras, vozes e... pessoas. ste o outro. Bom,
vamos andando. Um policial segurou-o pelo brao. Acompanharam o
lanterninha e o gerente em direo ao cinema, passaram pela sala de espera e
entraram no escritrio. Chubby estava sentado num canto; na sua frente,
estava um outro guarda. le continuava com um sorriso no rosto e segurava
um cigarro na mo. Tem certeza que so stes dois? Claro que sim, seu
f
uarda. So sses mesmos. Tenho certeza. No sei qual dos dois errubou o
cinzeiro da sala, mas estou certo que so sses dois. Eu ouvi uma dis Est
bom, est bom. Basta. Pode sair agora.
10
identidade e no a de dinheiro. Quem voc est pensando que vai comprar
aqui? exclamou. E arrancou a carteira de identidade da mo de Chubby. Era
um certificado de servio militar. Ah mais um desses sujeitinhos que pensam
que so muita coisa s porque possuem um certificado de servio militar. No
tem nada melhor para fazer do que ir ao cinema, beber vinho ordinrio e
depois fazer todo sse estrago? O guarda proferiu seu sermo habitual,
vociferando sempre, enquanto permanecia de p na frente de Chubby; olhava
fixamente para le como teria feito com qualquer outra pessoa na mesma
situao; esperava talvez que o rosto dle abaixasse e que le murmurasse uma
desculpa qualquer, o que lhe daria ensejo para gritar e ordenar que falasse
mais alto; se isso porventura acontecesse, le o chamaria por todos os nomes e
diria
3
ue le tinha muita sorte em no ser prso; para terminar, man- aria-o
diretamente para casa. A primeira resposta de Chubby foi incoerente e
balbuciante. O que? No foi com vinho ordinrio. O guarda no perdeu tempo
saboreando a realizao de seu desejo; esbofeteou-o imediatamente,
derrubando-o da cadeira no cho. Chubby tornou a levantar-se, lentamente,
sentindo tudo girar em sua volta. O guarda dirigiu-se a Harry e perguntou-lhe
que idade tinha. Talvez Harry no haja compreendido a pergunta, ou talvez
ela no tenha feito mais do que tonitruar na sua cabea. le no sabia por que
(nem haveria de lembrar-se mais tarde), mas por alguma razo misteriosa (se
que havia uma razo) respondeu que tinha 76. (Havia ainda um resto dc risada
dentro dle que necessitava apenas ouvir um outro rir para recomear tudo de
nvo; felizmente les estariam logo na rua (no creio que a gente esteja na rua
agora) e poderiam recomear tudo de nvo, encostados no carro, ou ento ir ao
CHARLIE'S.) le ouviu o bofeto, depois um outro. No compreendia nada,
mas tinha uma vaga conscincia de que agora o riso terminara defi-
nitivamente. Pareceu-lhe ouvir um rudo conhecido. Ou era apenas
imaginao?
O que fazemos com sses dois, seu Mark? O gerente, perturbado com os
tapas e os bofetes, vendo-os cados no cho, refletindo sbre as declaraes
que deveriam ser feitas, as explicaes e garantias que teria que dar caso les
fossem presos Nada, Jim. les no quebraram o cinzeiro. No houve
prejuzos srios. Mande-os embora e esquea o que aconteceu.
11
No podia sentir seu gosto, mas lhe pareceu verdadeira. Seja como fr, tudo
aquilo no fazia sentido absolutamente nenhum. No haviam brigado com
ningum. Apenas dado gargalhadas. No estavam sequer bbedos... Como
aconteceu tudo isso? No havia nem mesmo um como que pudesse lembrar.
No sabia nem mesmo que horas podiam ser...
GARY SNYDER
Carta de Quioto
"Como vocs vem, no temos com que nos preocupar," disse Will Petersen,
enquanto ns quatro caminhvamos em direo a uma pastelaria no centro da
cidade, "les enterraram na colina um general que viveu 300 anos & o Monte
Iliei, situado no nordeste da cidade, afugenta os maus espritos". Assim, no
havia muito com que nos preocupar: Quioto um quadrado cortado em tdas
as direes como a velha cidade de Ch'ang-an; morros verdejantes cercam seus
trs lados, com clareiras abertas aqui e ali como numa pintura cubista; dois
riachos ao gosto das trutas atravessam a cidade; no possuem trutas,
12
porm, e so chamados de rios pelos habitantes do lugar. uma cidade do
tamanho de Portland, no Estado do Oregon; nunca foi bombardeada, as casas
so feitas de madeira slida, as ruas so estreitas & sujas, cobertas de pedras,
os telhados baixos & inclinados, de vrias alturas, geralmente cr de chumbo,
recebendo luz de todos os lados; fora isso, h uma quantidade de pinheiros
plantados por tda parte. O centro da cidade animado como em qualquer
outra cidade, porm mais divertido, repleto de txis, filas interminveis de
estudantes, vestidas com roupa de marinheiro, que vm do interior, ou que
esto visitando a cidade; sem falar nas velhas camponesas que vm a passeio.
Flanam pelas ruas repletas de cafs e bares vistosos, que se parecem
exteriormente com os de Stratford-on-Avon & por dentro com a sala de visita
de Christina Rossetti (influncia ocidental) mas o que tdas essas pessoas
visitam realmente so os santurios & templos japonses antigos & Quioto tem
milhares dles. Se bem que muita gente no leva mais a srio o aspecto
religioso da cidade. Em Tquio, um conhecido nos contou a seguinte histria:
quando um turista vai a uma casa de famlia em Quioto, o dono da casa sente-
se orgulhoso em lhe esclarecer que a escva de dente que le comprou na
cidade foi feita mo em uma fbrica que existe h 500 anos e que passou de
pai para filho durante sse tempo. Todos os habitantes da cidade, com exceo
das mas que servem nos bares, continuam a fazer o mesmo trabalho de nove
geraes anteriores.
13
ferramentas & surgiam sbios. um prazer comparar essas esculturas com as
obras elegantes e inexpressivas da mesma poca. No alto do Monte Hiei, no
fundo de um bosque povoado de feitiarias, umidade & sapos, existe um
velho templo de paredes escuras & de odor agradvel; ali mora um jovem
monge que antes estudava economia poltica & que agora l livros de filosofia
Tendai. Se bem que na ltima vez que o encontrei, le estava descansando dos
estudos lendo a autobiografia de Charles Darwin, em ingls. le fz voto de
no deixar a montanha durante doze anos. Na cidade, h uma quantidade de
jovens que estudam literatura inglsa. Moas que escrevem estudos sbre
Shelley. Outras que apresentam teses sbre O Amante de Lady Chatterley.
Pouco numerosas so as que folheiam a revista Vogue & que se vestem no
rigor da moda. Muitos estudantes universitrios, do gnero bomio, vestem
roupas pretas ultra surradas com botes dourados pregados de qualquer jeito.
So todos pobres a maioria dos estudantes vive com 20 dlares por ms
e, no entanto, algumas livrarias possuem as obras de Donne editadas por
Grierson, textos crticos de Shakespeare, romances de Graham Greene,
Faulkner, livros de Pound. Alguns dsses estudantes compreendem tambm o
japons antigo; mas so uma minoria. Se les forem at Nara, regressando no
tempo, & visitarem o templo de Horyuji, onde existem doze esttuas
realmente antigas esculpidas em madeira, pequenas figuras de olhares
sonhadores & sorrisos misteriosos, maneira dos hipsters, possvel que les
no se sintam to desamparados.
{
>ovo tomam enormes bebedeiras, divertem-se grande & cochi- am nos
parques (formas remanescentes dos antigos ritos da fertilidade, diz Marcel
Grannet), & as crianas esto brincando novamente com as pernas de fora.
Ningum poderia ficar indiferente a isso, de sorte que samos a noite passada
para comer uns bolinhos de carne & tomar saqu. Um francs de nome
Chamaille, homem alto com uma imponente barba preta e que estava pas-
sando frias na cidade, chamou a ateno, desfavorvehnente, da ma que
nos servia saqu nos pequenos reservados. Ela apontou com o dedo em
direo a le e exclamou: "Mais um maldito missionrio!" (influncia das
14
gravuras de livros infantis que representam os missionrios vitorianos que
vieram ao Japo e construram as igrejas, como homens grosseiros e de barba
comprida). Pode ficar sossegada, dissemos, le veio aqui estudar a religio
Zen. Era como se a roda do tempo houvesse dado uma volta inteira.
15
aimu ou um xam yurok, ou at mesmo um monge trapista, se ela realmente o
deseja. O que falta neste tpico, e o que os dois primeiros possuem, ou seja
uma existncia perfeitamente adaptada realidade do mundo e percepes
realmente verdadeiras do inconsciente.
ALLEN GINSBERG
que no dorme mais com sua esposa Franco assassinou Lorca o filho
mimado de Whitman
16
da mesma forma que Maiakovski suicidou-se para evitar a Rssia
17
de um rob de uma mentalidade depravada o dia da publicao da
verdadeira literatura norte-americana ser
\
no estou interessado em impedir a sia de ser sia e os governos da Rssia e
da sia subiro e cairo mas a
Mas les tm que comear a existir, les existem nos meus poemas les existem
na morte dos governos da Rssia e da America les existem nas mortes de
Hart Crane & Maiakovski Agora o momento de profetizar sem morte como
conseqncia o universo haver finalmente de desaparecer Hollywood
apodrecer nos moinhos da Eternidade Hollywood cujos filmes no descem
pela garganta de Deus Sim Hollywood receber o castigo que merece em seu
tempo
como tambm as baboseiras que escorrem dos rdios A Histria tornar essa
poesia proftica e sua horrvel estupidez
18
uma hedionda msica espiritual eu possuo o arrulho das pombas e as
penas do xtase o homem no pode suportar por muito tempo a fome do
canibal
abstrato a guerra
abstrata o mundo ser destrudo
19
no mais propaganda para monstros
20
mercado no Frum em Roma? No, les estavam lutando em escritrios
luxuosos, em cima de taptes macios, gritando e negociando com o Destino
lutando contra a Morte com espadas, mosquetes, mordidas, in- digestes,
bombas de furto, prostituio, foguetes, pede- rastia,
f
aiola elizabetana
21
Dinheiro! Dinheiro! Dinheiro! berros loucos do dinheiro da iluso celeste!
Dinheiro feito de nada, de fome, de suicdio! Dinheiro do fracasso!
Dinheiro da morte!
HERBERT GOLD
A Mistificao Beat
22
Em Denver, um bando de rapazes, sem saberem o que fazer numa noite
quente de primavera, resolvem roubar um carro cada um dles; dirigem-se
ento para a outra extremidade da cidade onde estacionam os carros roubados;
roubam em seguida outros carros e colocam-nos no lugar dos primeiros. Feito
isso, acomodam-se em um local prximo e assistem com um sorriso de
satisfao enorme confuso criada entre os donos dos carros roubados e a
polcia. Silncio. Nova onda de tdio. Finalmente um dles diz, com a voz da
preguia: "Ei, por que no nos lembramos de pegar umas gurias?"
23
Eu tambm no lhe conheo, mas que tal uma farrinha?" E o estranho
se afasta lentamente; sua aparncia sonolenta, feminina e passiva no desperta
nenhuma confiana; pelo contrrio, sugere baixezas impensveis, coisas enfim
que o fazem sentir-se importante. le no conhece ningum e diz "meu chapa"
para qualquer pessoa, porque no quer se aborrecer lembrando nomes.
stes so os hipsters.
24
E ao ntima e total. Caso contrrio, ouvia-se apenas uma terrvel arulheira
de instrumentos. Os culos dos intelectuais, com seus aros de chifre, passaram
a ser conhecidos como "culos bop". Isso porque provocavam belas vises. A
piada tinha sua razo de ser.Foi a partir dessa poca que alguns brancos
adotaram a moda dos prtos, complicando a piada pelo fato de parodiarem
uma araia dles mesmos. A msica cool foi a expresso artstica essa frieza
aguda. Entretanto, para que os adeptos se abstives- sem da dana, da gritaria e
das emoes fortes, surgiu a necessidade de um elemento tranqilizante, e le
foi encontrado na herona. Alguns msicos da velha guarda, adeptos do hot
jazz, haviam feito uso da marijuana, outros do lcool; esses excitantes atuavam
como molas que os jogavam para o alto durante uma sesso. Contudo, havia
um forte preconceito nessa poca contra os msicos que tomavam drogas
injetveis; acreditavam muitos que havia o perigo de se injetar uma blha de
ar na veia. He he, isso no, diziam les. Alm disso, afirmavam, os drogados
tocavam mal seus instrumentos, fssem les bateria ou saxofone. No tinham
idia do que estavam fazendo.
If
Todo mundo diz, comenta uma linda jovem que est sem programa para a
noite, que eu sou tremendamente enjoada... Pois bem, fale a verdade: voc
gostaria que a gente fizesse uma bobagem essa noite? Por mim, eu no me
importaria... Meu nome Uvinha, e o seu
If
?Examinemos agora, mais de perto, o corao de guia do jovem hipster.
Quando o hipster tem uma relao sexual com uma mulher, le no admite
gostar dela. Mostra-se indiferente. Sugere a ela que d os primeiros passos. O
prazer mximo para le consiste em no pensar em nada, permanecer
inteiramente ausente, um cidado da Cidade-do-xtase, enquanto a mulher
brinca de gangorra em cima dle. Se por outro lado o hipster tem uma
aventura com um homem, no porque seja um homossexual convicto, mas
unicamente por dinheiro, para pegar uma carona at em casa, ou ento para
passar o tempo enquanto espera seu grupo de amigos. Quando o hipster rouba
um carro, le no foge com le, nem tampouco o vende: le o esconde num
lugar onde os quadrados vo suar para encontr-lo, e escreve com sabo no
parabrisa essa mensagem "Mort Louis A". Quando o hipster ouve msica, l
Proust ou estuda religio, le o faz somente para ter assunto de conversa, para
ter alguma coisa na mo ou no blso da cala, quando no apenas para
exibir-se diante dos amigos; tdas essas ocupaes no fazem o menor sentido
para le. Mas no faz mal, diz le, tanto melhor quanto menos sentido
fizerem.
E
ara os outros". Essa geladeira acionada pelo sexo sem que aja paixo; a nica
paixo existente matar o sentimento, exterminar as ansiedades. Essa
geladeira acionada pela religio sem haver f; o hipster atormenta-se a si
mesmo procura da escurido total do esquecimento, e todos os alvios que a
religio forneceu aos msticos do passado s serviriam para importunar a
colossal apatia que le busca. Ao contrrio de On, que jogou a semente do
homem na terra, o hipster atira fora sua mente e considera isso um ato
religioso. le usa igualmente da msica, da arte e da religio como se fssem
emblemas de identificao. Em lugar dos apertos de mo clandestinos que o
teriam introduzido nas sociedades secretas do passado, como o "Uncle Don's
Boys Club" ou a "Orphan Annie Secret Society", sua senha agora : "Voc
manja Charlie Parker? Proust? Zen budismo?"
1
A linguagem dos jovens hipsters um meio em vista da no-comunicao.
Um sinal de silncio. A verdadeira conversa tomar drogas. Isso porque os
narcticos, mais do que qualquer outra coisa, do aos rapazes beat exatamente
o que precisam: relaxamento do corpo e da imaginao, a iluso de um
mergulho fora do tempo na eternidade. No um sentimento de onipotncia
que les buscam, como poderia parecer. Em outras palavras, eles anseiam por
uma tranqila simulao da morte. tolice pensar que as drogas geram
manacos sexuais, como do a entender certas histrias sensacionalistas e
sentimentalides. O homem viciado no deseja outra coisa na vida seno sua
dose de excitante. le indiferente a tudo mais. Tranqilo, tranqilo. le pode
praticar terrveis violncias para conseguir sua rao de droga, mas no por
razes sexuais: o prazer sensual no tem nada a ver com os sonhos da herona.
O rosto delicado e desbotado do viciado, com seus olhos apagados e
submissos, a bca entreaber- ta, tem algo de feminino na sua doura. No
existe agressividade ou amor nle.
2
A herona permite ao lpster tornar-se a sentinela de sua alma, sonhando
com um tranqilo nada, um belo e indiferente nada, enquanto seus ps
tamborilam no cho de nervosismo e le abre e fecha o canivete de mola, estala
sem parar as articulaes dos dedos, ou folheia agitadamente um exemplar de
Proust. No preciso dizer que os hipters mais moderados no tomam
herona.A voga atual por tudo que hipster linguagem, maneiras e
costumes indica que no se trata de "um fenmeno isolado". Jack Kerouac
proclamou: "Mesmo os estudantes das grandes universidades esto se
tornando hips." Originrios da msica bop, do uso de narcticos e da suti
revolta dos prtos contra a acusao de serem "felizes, ardentes e emotivos", os
hipsters adotaram como um de seus modelos principais um dos mais tpicos
fenmenos norte-americanos: o cinema. O hipster ignora o conselho dado por
John de Garland, moralista religioso do sculo XIII, que disse: "No peque
contra a carne, estudante! Tenha modos quando estiver em p ou sentado,
no se coce!" Os hipsters da escola de Stanislavsky vivem se coando, como se
a angstia da alma que sentem fsse proveniente de mordidas de pulga;
andam com a cabea inclinada sbre o peito como se fssem catar alguma
palavra de Marlon Brando cada no cho, ou alguma notcia do paraso
subterrneo de James Dean. A sombra cinematogrfica de James Dean, ou do
Marlon Brando do filme "O Selvagem", parte da imagem do hipster, quer seja
le o hipster corado e boa pinta das universidades, que se contempla a si
mesmo na vitrina de uma dessas lojas ortopdicas que operam os ossos do
ombro, quer seja o hipster subnutrido e cabeludo que anda com uma garota se
balanando no assento traseiro de sua ruidosa motocicleta Harley Davidson,
modlo 74. Em muitos cinemas onde o filme "O Selvagem" foi exibido, houve
verdadeiras reunies no banheiro dos homens depois da sesso; filas de
motociclistas, com seus bluses de couro arranhados de unha, miravam-se
com adorao diante dos espelhos como se repetissem essa ou aquela cena do
filme. Cada um dles julgava-se um outro Brando, distante ou violento. Ou um
outro Marlon, frio e impassvel. Ficavam em fila sem se envergonharem, quase
sem se envaidecerem (to puro era o sentimento!) como proslitos que se
preparam para a cerimnia expiatria em seus hbitos de penitncia, as
costeletas compridas, correntes de prata balanando nas mos e no peito,
cabelos compridos aparados na nuca, como a cauda de certas aves. No se
cocem, turma!
3
Assim, as linhas de comunicao dos hipsters estendem-se desde os
cinemas poeiras das cidadezinhas do centro-oeste at os sales elegantes de
Nova Iorque ou So Francisco. les nos lembram os teddy boys da Inglaterra,
os jovens rebeldes do Japo derrotado, os existencialistas anmicos de Saint-
Germain-des Prs, em Paris, cantarolando as velhas msicas de jazz ouvidas
nos antigos discos de 78 rotaes. Os apologistas do movimento beat,
especialmente os jovens literatos de So Francisco e Nova Iorque, recorrem
freqentemente histria a fim de exumar os gnios criminosos da poesia
francesa Rimbaud, que desapareceu misteriosamente na frica, Villon que
terminou a vida danando numa frca, Genet, que est fazendo atualmente
um grande sucesso na literatura e no teatro em Paris, aps uma carreira de
latrocnio, chantagem e prostituio masculina. A diferena fundamental entre
o hipster literato da Amrica do Norte e seus modelos estrangeiros est no fato
de que os grandes artistas criminosos do passado eram verdadeiros prias
sociais: no eram les que se expulsavam a si mesmos do convvio da
sociedade. les eram expulsos por preconceitos de classe e presses
econmicas. Alguns hipsters norte-americanos tiveram realmente um
comportamento espetacular sobretudo no hospcio; um dles brincou de
Guilherme Tell com sua mulher e estourou-lhe os miolos. So exem- pios
isolados, porm, e no so de forma alguma o produto de uma perseguio
social em grandes propores. Alis, quem no tem seus dramas pessoais? Eu
entendo os de vocs, rapazes, mas eu tambm tenho os meus.
4
E o que voc pretende fazer agora?
Uma das veredas mais curiosas do hipsterism a que leva aos distantes
acampamentos religiosos. Jack Kerouac diz: "Estamos na vanguarda de uma
nova religio'. Essa frase soa mais ou menos como a do franciscano cpe
declarava ser o campeo mundial da humildade. Os jovens ' santos"
cultivaram So Joo da Cruz durante uma poca, depois se apaixonaram pelo
cerimonial da Igreja Catlica, mais tarde tornaram-se admiradores ferventes
de So Francisco de Assis; em seguida passaram para as fantasias religiosas
bizantinas, gregas e ortodoxas, com cones e incenso queimando, cenrio em
tudo igual ao de um romance de Dostoievsky. Recentemente, alguns dentre
les comearam a chamar-se Zen hipsters e o Zen budismo alastrou-se como a
gripe asitica. Assim comum hoje em dia encontrar num restaurante chins
5
de So Francisco no lugar da tradicional sorte que embrulhava os pauzinhos
com que se come, essa mensagem: "Prove o nosso tre- mento Sukiyaki Zen. S
um quadrado gosta de comida chinesa". A promiscuidade na religio significa,
como no caso da herona, um sinal de desespro, um recurso desesperado
num momento de aprto, um mergulho passivo na irracionalidade. A doutrina
Zen, como as demais religies, possui seus aspectos admirveis, mas o hipster
passa atravs dles como um acrobata de circo passa por um crculo de papel:
le vai cair na eterna falta de confiana em si mesmo que o espera dentro da
tina gelada. As atividades religiosas dos hipsters curam a angstia que lhes
causa o mundo da mesma forma que danar de rosto colado cura a halitose.
6
recurso: le dana dentro da jaula, abana o rabo e salta sbre os fios
eletrizados.
Sensvel a tudo isso, o hipster decidiu dar o fora abandonar essa vida
no ter mais nada com isso. Em lugar de ser um dos membros da massa
humana que passa horas sem conta diante dos aparelhos de televiso, le se
transforma numa audincia isolada e individualista diante de uma ampola de
narctico. le desistiu de ser uma criatura humana nos moldes sociais
contemporneos. Chegou concluso que os problemas dessa sociedade no
lhe dizem respeito. le simplesmente se desinteressa, afasta-se. E o homem
que se ocupa com essas ninharias denominado pelo hipster de "alienado".
7
como ocorre com alguns fanticos do tipo sub-hipster apresentados por
Kerouac, o sexo substitui-se aos entorpecentes. No fundo, trata-se de mais um
substituto para uma vida sexual normal. A mesma gulodice que certos
homens revelam pela posse de bens, Kerouac empresta aos delrios erticos de
seus personagens, esquecendo-se que se um boiadeiro usa do sexo como
ferro, cada espetada torna mais rombuda sua ponta.
O hipster um fenmeno tpico das esquinas, dos bares e das festas, uma
criatura dos aglomeramentos humanos. Um Rimbaud isolado pode ser um
gnio uma multido de Rimbauds apenas uma moda passageira. A voga
anterior da psicanlise tinha pelo menos uma coisa a seu favor. Freud
acreditava no valor excepcional das emoes humanas, por mais que
afirmasse a necessidade de serem controladas pela inteligncia. Em outras
palavras: le aceitava a sociedade independentemente dos prejuzos trazidos
pela civilizao. O hipster desiste da sociedade, abandona a inteligncia e
acredita estar beneficiando suas emoes ao agir assim: le no percebe que
sua passividade liquida exatamente com sua personalidade. O que resulta
um indivduo abobalhado e irrequieto, apesar de alguns lderes do movimento
possurem um talento vivaz. No devemos nos espantar pois se os "melhores
representantes" dessa gerao esto no manicmio. Catatonia, estamos
chegando!
8
JACK MICHELINE
rua abaixo
bairro pobre
misria
Mary Lou
preta bonita
lavando janelas
lata de lixo
tristeza
9
misria
bairro pobre
rua abaixo
preta bonita
tristeza
homem da carrocinha
bondes
fim da linha
bar tristeza
apostador de cavalo
charrete passando
rua abaixo
bairro pobre
10
rosto prto
preta bonita
charrete passando
Rua Prager
tristeza
Nova Orleans
po francs
fatia de broa
gasolina
benzedrina
noite louca
amante louco
tristeza
Nova Orleans
11
ma gorda
ma magra
rosto feio
misria
sotaque do sul
risada de prto
tristeza
olhos prtos
dentes de ouro
sapato brilhando
Nova Orleans
gafieiras
salas de jazz
academia Newcombe
12
rosto de boneca
tristeza
bairro pobre
misria
quarteiro francs
Rua Decatur
noite aflita
tristeza
Carteiro
poca do Natal
copo d'gua
Tulane
nada de trem
tristeza
13
Lojas populares
Rua do Canal
So Charles
Dauphine
Noite fria
rvore alta
escola de brancos
escola de prtos
Mulata
bolinhas na bebida
garota quente
14
noite inteira
bairro pobre
misria
sentado na rua
rosto meigo
grande garota
mulher velha
Olhos negros
dentes de ouro
sapatos brilhando
Pastor gordo
gente pobre
15
bebendo cerveja
pastor diz
cantando tristeza
Olhos negros
Dentes de ouro
Sapatos brilhando
Rua abaixo
bairro pobre
misria
preta bonita
tristeza
Olhos negros
Dentes de ouro
16
Sapatos brilhando
Sapatos brilhando
NORMAN MAILER
MAILER EST muitssimo ocupado sses dias tentando harmonizar sua verso
pessoal do fenmeno beat com sua filosofia Hip que , na sua opinio, a
semente de uma nova religio equivalente ao judasmo ou cristianismo. O
fenmeno hip para Mailer significa um grande perodo de transio
caracterizado pela "violncia, histeria coletiva, confuso e revolta". A
finalidade dsse movimento liquidar com a moral puritana dos brancos, de
efeito inibitrio, que fz da Amrica do Norte um "pas doentio, proliferando o
cncer em tdas as criaturas vivas". Mailer possui uma imaginao
exuberante, ao mesmo tempo nobre e sinistra, impiedosa e brilhante. Na pea
"The Deer Park" adaptada do romance com o mesmo nome que foi
considerado demasiado obsceno at mesmo para uma poca obscena como a
nossa sua imaginao encontra terreno propcio em alguns personagens
fascinantes: Eitel, o diretor de cinema de Hollywood que foi prso por no ter
querido debater seu passado comunista perante uma junta de inqurito;
Marion Faye, o cften hip; Elena, a jovem desiludida que deseja ser uma
prostituta de classe ("call-
f
irl"); e Colhe Munshin (que no aparece no palco), produtor os filmes que Eitel
dirige e colecionador de mulheres jovens e elegantes. Mailer aborda sses
personagens de maneira madura e consciente, ao contrrio de muitos outros
escritores beat; le conhece intimamente o mundo das finanas e do sexo nas
altas camadas sociais. E deve isso a seu estrondoso sucesso, com 25 anos,
quando da publicao do romance "The Naked and The Dead". Embora Mailer
critique vez por outra alguns tipos bomios no que possuem de excntrico e
risvel, inegvel que le aprendeu muito com os autores beat, por mais que
tenha em- restado ao material apropriado o cunho dramtico que lhe pessoal.
Contudo, o talento de Mailer revela-se realmente pujante e aterrorizante
quando le aborda certas situaes criadas pelo mundo atual. Como so, por
exemplo, os conflitos que surgem na relao homem/mulher quando se
chocam contra um ambiente noturno e melodramtico, onde pulula o
dinheiro, o suicdio e a prostituio temas esses to explorados pelos
programas de rdio, revistas e jornais escandalosos. Mailer revela ento uma
maestria surpreendente para sua idade. le possui qualidades enormes como
17
escritor, se bem que uma certa leviandade, facilidade e presuno
prejudiquem-no s vzes. O que d, porm, a seu mundo a aparncia
assustadora de serpente, sempre preparada para o bote, sua fantstica
imaginao aveludada e mortal que transforma qualquer situao
convencional em uma arriscada e perigosa possibilidade nova
CENA 2
EITEL
Depois que tivermos tomado caf e nos sentirmos mais humanos, vou dar um
pulo ao hotel para apanhar suas roupas. Voc se sentir melhor ento.
ELENA
No se preocupe comigo. Eu vou embora
18
EITEL .Eu no pedi para voc ir embora.
ELENA
EITEL
ELENA
EITEL
19
ELENA.
ELENA
EITEL
ELENA
EITEL
Voc modesta.
Pelo contrrio, sou muito orgulhosa. Acredito ainda que tudo teria dado certo
se no houvesse conhecido Collie. le exigia que eu ficasse presa em casa na
esperana dle ter uma hora livre.
EITEL
20
ELENA
EITEL
ELENA
Pois , o melhor.
(Vencida pela depresso) Foi bem cruel aa parte de Collie ter-me dado o
fora nesse lugarejo.
EITEL
ELENA
EITEL
21
ELENA.
ELENA
EITEL
ELENA
Claro que tenho e uma famlia at bem numerosa. Mas acontece que quando a
gente pertence a uma famlia grande como a minha, a luta so dura um minuto
e o mais fraco se rende... les descobriram que Collie estava me sustentando...
Prefiro morrer a procur-los novamente.
EITEL
ELENA
22
Escuta, no me impressiona a mnima o fato de voc ter sido uma celebridade.
Por isso no me fale com sse tom de superioridade, como se eu tivesse vindo
lhe pedir um emprgo.
EITEL
ELENA
EITEL
ELENA
23
(Sua voz revela emoo pela primeira vez) Eu no o criticaria jamais
diante dos outros.(Eitel desvia o olhar mas a pergunta, mesmo assim, feita) E
voc, falaria de mim diante dos outros?
EITEL
ELENA
EITEL
E voc conseguiu?
ELENA
No.
EITEL
ELENA
24
ELENA.
(Um brilho passa pelo seu olhar) Sabe, eu fazia muita coisa extravagante
s para me tomar mais interessante ao analista. (Ela ri)
EITEL
EITEL
' . ELENA
Olha, no sei.
EITEL
ELENA
25
ELENA.
EITEL
ELENA
EITEL
So todos?
ELENA
EITEL
Oh no, voc bom. Voc sabe que bom... que um homem bacana.
EITEL
26
ELENA.
ELENA
(Desviando o olhar) Eu no me
apaixono por ningum.
ELENA
Narcisista?
EITEL
Pois .
EITEL
ELENA
27
ELENA.
EITEL
Por qu?
ELENA
28
Quero ver se consigo viver s minhas custas, agora que estou livre de Collie.
EITEL essa a verdadeira razo?
ELENA
EITEL
ELENA
EITEL
ELENA
EITEL
29
Voc est precisando de dinheiro?...
EITEL ELENA
(Ela est junto porta que separa a sala de estar do ptio) Tenho o
suficiente para viver algum tempo.
EITEL
30
ELENA
MARION
ELENA
(Chamando Eitel, com a voz algum tanto assustada) Eitel, visita para
voc!
EITEL
MARION
ELENA
Voc j me conhecia?
MARION
ELENA.
MARION
ELENA
EITEL
MARION
ELENA
MARION
1
ELENA.
ELENA
(Abalada)
MARION
2
Voc acabaria tendo.Marion acredita que j pagou seu
EITEL
dbito. (Elena parece surprsa)
MARION
(Sem emoo)
Eu estava dirigindo sem licena. Fui mandado para a priso onde estava
Eitel.
EITEL
MARION
Se bem que a priso foi mais estimulante para mim do que para le.
ELENA
MARION
Eu sei o que eu quero. Voc entende?
EITEL
ELENA
EITEL
ELENA
MARION
Ouvi dizer que voc andou circulando com Elena a noite passada. Queria ver
como era a pequena de Collie.
EITEL
MARION
EITEL
No vou lhe pedir para deix-la em paz... No creio que voc conseguiria
nada com ela, mesmo querendo.
MARION
Oh, voc se engana. Basta eu assobiar para ela ouvir a uma milha de
distncia. Vamos, meu caro, respeite um pouco mais a experincia humana.
EITEL
1
MARION
MARION
Charley, eu sei mais a sse respeito do que o Presidente dos Estados Unidos,
assim como sabe qualquer reles prostituta.
EITEL
Qual ?
EITEL
MARION
EITEL
Pois . Para mim o pior da priso era o sexo. Fiz questo de me manter
afastado de tdas aquelas histrias. No vejo razo por que haveria de
comear agora, com a minha idade.
MARION
2
E graas a isso voc virou um homem antiquado, meu querido.
EITEL
MARION
EITEL
MARION
EITEL
3
MARION
MARION
EITEL
MARION
EITEL
Quando eu era mais mo, eu arriscava tudo a torto e a direito. E nunca nada
teve o menor significado para mim. Havia muitas partes de mim que estavam
mortas. Eu no fazia mais do que us-las. Mas hoje... hoje eu sei que existe
algo diferente dentro de mim.
MARION Que
EITEL
4
MARION
5
EITEL
Talvez eu no tivesse tanta pacincia quanto voc para ouvir seu bl-bl-bl,
mas tenho certeza que saberia desenvolver o talento dela. Enquanto que sua
MARION
Sabe qual seu mal?... Voc foi durante muito tempo um sujeito famoso.
Antigamente voc amava uma mulher e o gsto de mel de sua fama fazia ela
se sentir tda excitada... fazia ela se entregar a voc. Agora voc um ex-
presidirio que no consegue trabalho e que no tem dinheiro no banco. E
mesmo assim voc quer manter uma mulher que nasceu para ser milionria.
Voc tem um futuro negro pela frente, Charley, e talvez seja eu mesmo que
haverei de provar isso a voc.
FIM DA CENA 2
TRECHOS DA CENA 3
(Aps a despedida de Sergius, Eitel faz meno de abraar Elena; ela mostra-se
indiferente. le se afasta e deixa transparecer, pela fala seguinte, que est
furioso).
EITEL
6
EITEL
ELENA
ELENA
Eu queria mesmo conversar com voc sbre isso. Seu amigo me convidou para
sair.
EITEL
Que amigo?
ELENA
Marion Faye.
E voc aceitou?
EITEL
ELENA Um
pouco mais do que isso.
EITEL
ELENA
7
Voc quer dizer muito mais do que isso, no ?
EITEL ELENA
EITEL
ELENA
8
ELENA
EITEL
ELENA
EITEL
ELENA
EITEL
ELENA
9
... se sse desabrochamento da carne era algo que voc s podia cultivar
comigo, ou se o mesmo ocorreria com uma pessoa qualquer. No foi isso?
EITEL
ELENA
EITEL
ELENA
EITEL
O qu?
ELENA
10
ELENA
EITEL
ELENA
ELENA
11
Bem... Eu pensei em voc o tempo inteiro.Sua vaca!
EITEL
ELENA
EITEL
ELENA Voc
EITEL
ELENA
EITEL
ELENA
12
ELENA
ELENA
EITEL
Voc no me ama.
(Corrigindo-se) Eu a
amo.
ELENA
E eu adoro voc. Nunca senti com ningum o que sinto com voc. FIM DA
CENA 3
TRECHOS DA CENA 4
ELENA
ELENA
13
Charley no est em casa.
EITEL
MARION
ELENA
MARION
Voc uma mentirosa. Foi fantstico a ltima vez e voc sentiu certamente o
mesmo.
ELENA
MARION
14
ELENA
Voc acha? Pois olha, nunca me senti to mal na minha vida. Foi o fim. E agora
eu quero que voc me deixe em paz. Charley o nico homem com que eu
gosto de fazer amor.
MARION
Eapel da ingnua, linda e boazinha, que tem loucura pelo seu omem. Mas sse
papel no combina nada com voce, minha querida. Voc nasceu para viver
grandes emoes. Venha morar comigo.
ELENA
Seria timo!
MARION
No estou brincando.
ELENA
Eu acredito.
MARION
ELENA
15
ELENA
EITEL
Voc um cften.
MARION
16
MARION
Voc me d nojo.Oua uma coisa Elena, eu desci muito fundo em voc. Caso
nossa relao houvesse sido um fracasso, juro que teria me matado.
ELENA
MARION
Matado voc?
ELENA
Meu pai era um delinqente nas suas horas vagas. Eu conheo o cheiro do
crime.
MARION
Sim... talvez eu lhe matasse. Voc covarde. Voc est pre 7 parando seu ninho
na companhia de um homem de meia idade.
ELENA
Voc acredita mesmo que fico com Charley porque le bom e terno comigo?
2 00
MARION
MARION
le seu enfermeiro.
ELENA
le meu amante.
MARION
No acredito nisso.
ELENA
2 00
MARION
outros homens, nem com voc. Mas s com le. Quando le me toca...... voc se
ELENA
Seu idiota.
MARION
ELENA
MARION
Eu sei tudo do sexo, minha querida. Sinto o mesmo que voc disse por mil
homens e mil mulheres.
ELENA
1
E por um ou outro animal.
MARION
ELENA
le me ama.
MARION
Mais cedo ou mais tarde le vai detestar voc, como alis le sempre fz com
tudo que teve ou possuiu, porque le se odeia a si mesmo. le um
insatisfeito. No fundo le est espera de uma princesa encantada.
EITEL
MARION Os
2
EITEL
MARION
Charley, voc viveu o bastante para saber que quando uma mulher passa a
noite com um homem, ela volta enriquecida para seu amante.
ELENA
MARION
Marion sai.
CENA 7
3
disso, o cigarro a Eitel, que o coloca delicadamente no cinzeiro. Elena,
levemente tonta, tenta beij-lo. le a afasta.
ELENA
EITEL
No encoste em mim.
ELENA
EITEL
ELENA
4
EITEL
Voc me ama?
ELENA
EITEL
5
ELENA.
Sua puta, voc adora a estupidez como se fsse sua santa padroeira.Voc me
chama de puta, mas se a noite lhe houvesse sido favorvel, voc estaria agora
me fazendo carinho, voc estaria agora me dizendo quo adorvel eu sou. Pois
bem, oua o que vou lhe dizer... Talvez eu necessite de outras carcias alm das
que voc me d.
EITEL
ELENA
(Eitel no responde)
Ah Charley, voc no percebe, les queriam dar, les fariam tudo para me
possuir, eu era o centro da ateno dles. Venha aqui, meu bem, venha para
perto de mim.
(Ela agarra a cabea dle e segura-o pelos cabelos obrigan- do-o a voltar-
se e fix-la) Oua, eu no te amo. Eu nunca amei ningum. Eu sou demasiado
orgulhosa para isso. No se sinta culpado portanto. Voc no me deve nada...
6
EITEL
Sua estpida!
ELENA
Voc quer realmente saber quo estpida eu sou? Eu tentei me matar no dia
em que Collie disse que estava tudo acabado. Foi.
le disse, Doura, dessa vez o fim, e de fato era. Fiquei sentada naquele
nojento quarto de hotel que le havia alugado para mim e comecei a beber...
sozinha... e bebi at o momento em que o quarto comeou a balanar... pensei
que ia morrer se o quarto no parasse de balanar. "Collie", repetia comigo,
baixinho, "voc e eu ramos dois velhos canos de esgoto".
EITEL
ELENA
Eu estou apenas no incio, Charley querido. Como lhe soam minhas palavras
cruas, hein doura do corao?
EITEL
Eu as odeio.
7
ELENA
Pois bem, quem podia adivinhar?... "Collie" disse pelo telefone, eu liguei para
le de sua casa dessa sala 'Collie", disse para le, "eu gostaria de ter uma
conversa bem calma, bem sofisticada com voc... eu tomei um vidro de
comprimidos para dormir... eu vou morrer, meu bonito," haaaaaa, e depois eu
comecei a gritar. Quando le entrou no quarto, eu vi nle o homem que faz e
desfaz, o amante magnfico... le disse para mim, Al beleza, e me deu uma
meia dzia de tapas no rosto. Depois perguntou, "Onde voc ps o vidro de
comprimidos?". Mas no foi preciso eu dizer, le encontrou szinho, comeou
a rir e disse, "Sua burra voc no sabe nem mesmo como se matar" ... as plulas
eram sedativos, no eram comprimidos para dormir. .. e depois le me levou
ao banheiro...
(Ao ver o olhar de descrena no rosto dle, ela sorri com crueldade)
... a menos que seja tudo uma mentira e voc tenha razo, Charlie, porque
justamente na vspera de conhec-lo, eu dormi com Colhe como nunca dormi
na minha vida com ningum... pensei que estava pairando no ar... era como se
vomitasse para longe ae mim todo o veneno que bebera na vida e a coisa mais
engraada que no gostava de Collie e jamais gostei menos dle do que
nessa noite... apesar disso tivemos uma conversa e ficou resolvido que nos
veramos de tempos em tempos... e le me pagaria as vzes que dormisse
comigo. Voc entende agora, meu querido?
EITEL
8
Terminou?
ELENA
EITEL
Continue.
ELENA
EITEL
1 No original "my first John, my bathroom...". Sentido duvidoso. Talvez se refira limpeza
mental. (N. do T.)
9
i~
10
ELENAEu sei, Charley, que agora estou livre. Estou livre e isso assustador...
ah Charley querido, aterrorizante como o inferno, porque as mulheres,
Charley, no nasceram para serem livres, nasceram para terem filhos... essa a
razo do meu mdo, do meu mal estar, da minha fria, do meu terror, porque
bom demais, Charley, eu sempre recebo demasiado das pessoas, como
aconteceu essa noite... como se nunca houvesse recebido tanto anteriormente...
ah meu Deus porque no me conveno que seria to bom deitar e morrer
quando estou me sentindo bem como agora... ah Charley, eu rui longe
demais... eu sempre digo para mim "Voc no pode enganar a vida" e mesmo
assim me parece que posso... estou falando srio, Charley. Bem, est na hora
de terminar com essa conversa. Chame um txi para mim, Charley. Eu vou
embora. Vou viver com Marion. Sim, com le que me convm viver. Com
Marion. le me convidou essa noite, sim foi isso mesmo que eu disse seu puto
pretensioso e covarde... seu petulante de terceira classe... No tem nada a dizer
agora?
grito de choro).
ELENA
(Pausa comprida)
EITEL
FIM DA CENA 7
CENA 10
MARION
11
BEDA
Uma semana mais tarde.
Sala de estar na casa de Marion Faye. O ambiente geral de austeridade e frieza. Os mveis so
pouco numerosos mas de boa qualidade. No momento, h uma certa desordem reinante,
conseqncia evidente da mudana de Elena. Beda acabou de sair do banheiro e est
conversando com Marion. le penteia o cabelo enquanto fala.
BEDA
(Olhando para seu relgio) les vo explodir uma nova bomba atmica essa noite.
, eu ouvi falar.
Convida Elena para sair e tomar alguma coisa. Podemos assistir exploso da minha casa. Pelo que
me disseram a luz chega at a cidade.
MARION
BEDA
(le terminou de pentear o cabelo com hesitao; Sabe de uma coisa, Marion, sua
amiga muito corajosa.
MARION
12
MARION
BEDA
BEDA
( Elena aparece por trs de Beda. Ela fala desanimadamente da porta do quarto)
ELENA
(Para Marion) Aqui estou eu, Marion. Voltei enriquecida para voc.
BEDA
ELENA
Est bom
13
MARION
ELENA.
MARION Voc
ELENA
MARION
ELENA
Voc me odeia...
MARION
14
No, eu a amo... por que outro motivo eu lhe pediria em casamento?
MARION Voc
ELENA
Quem pode gostar de voc? No fundo voc quase to infeliz quanto Charley
Eitel.
EITEL
Al?... Al... Quem est falando? ... voc, Elena? ...Al! (Elena desliga o
telefone)
ELENA
MARION
E pelo jeito voc, com seu corao de pedra, ainda gosta dle.
15
ELENA
Quem sabe?
MARION
Voc realmente gosta dle. No de espantar que voc jamais tenha tido a
coragem de contar a Eitel a respeito dos homens e rapazes com quem voc
dormiu para arrumar alguns contratos micnos nas boates.
ELENA
MARION Voc
ELENA
16
MARION
Por que no? Eu poderia ser uma prostituta de alto bordo.Quando uma pessoa
conhece voc melhor, ela se decepciona. Voc no tem classe.
ELENA
MARION Vamos
ELENA
MARION
ELENA Eu quero
MARION
17
MARION
ELENA
MARION
(Assustada) Jamais
faria isso.
MARION
No quer sujar as mos, seu doutor? No se esquea dos pobres diabos que
esto l embaixo, como les se arrastam para chegar at seu consultrio.
ELENA
MARION
18
MARION
ELENA.
Pode ir.
ELENA
Eu vou mesmo.
MARION Voc
ELENA
Gostaria de me matar.
MARION
ELENA
19
MARION
ELENA
MARION
Acho que voc vai apenas olhar para les. (le ri)
ELENA
MARION
ELENA
20
MARION
ELENA.
MARION
ELENA
21
ELENA
para mim?
MARION
Quando fiquei deitado ao seu lado na cama. Na primeira vez. Depois, quando
voc comeou a sair com Eitel, pensei: "Essa pequena do tipo de que so
feitos os suicdios".
ELENA
MARION
Minha cabea nunca pra. Estou sempre ouvindo as palavras do meu desejo.
Meu desejo diz: "Voc pode fazer com que ela se mate". Sabe o que pensei em
seguida?
(Marion balana a cabea) Tudo que sabia era que se no fizesse isso com
voc, no poderia nunca fazer as outras coisas.
ELENA
22
MARION
Eu odeio o veado que existe em mim e eu sabia no existe nisso outra lgica
seno a do amor que se eu conseguisse fazer amor com Eitel... Sim, era le o
homem que me realizaria e me faria sentir um homem verdadeiro. Estava
apaixonado por Eitel quando voc apareceu... eu queria a le e a voc, ao
mesmo tempo... No di em que voc se recusou a viver comigo, eu me senti
um condenado.
ELENA
Foi tarde demais. Voc possui a crueldade dos obstinados e dos lentos. Voc
veio para mim unicamente depois de haver consumido a virilidade de Eitel.
ELENA
Eu no fiz isso!
MARION
ELENA
MARION
23
MARION
ELENA
ELENA
MARION
ELENA
24
(Falando no telefone, a voz impessoal e sem emoo) Charley...
perdoe-me incomod-lo... tomei uns comprimidos... por favor ligue para
um hospital... chame uma ambulncia... estou na casa de Marion.
25
MARIONDorothea, minha me, recebia dinheiro dos homens quando ma
e eu fui seu filho do acaso, uma ddiva ocasional de um prncipe em
viagem, nada mais do que isso... Claro que le no ia se humilhar pedindo
em casamento a filha do porteiro. Pois , eu fui seu filho bastarclo e cresci
enquanto ela se tornava notria na crnica local. A mais cruel cronista
social do pas. Uma assassina. Ela tinha o costume de reproduzir a bandeira
americana ao lado do seu rosto, no jornal. De forma que fiquei sabendo
como eram as coisas. Isto , fiquei sabendo bem cedo. Ela queria qtie eu
fsse padre. Eu seria seu sacrifcio expiatrio... vai ser preciso contar o
resto? Imagina o que me passa pela cabea (le bate com a mo na testa)
que o inferno deve ser aqui, sim eu me acredito um santo, eu sinto o que
Deus sente, e le est numa situao pior do que a minha porque h um
terrvel destino que le tem que cumprir, e le no sabe se vai ser bem
sucedido ou no porque le faz parte de ns. le est em apuros porque
ns estamos em apuros, porque somos demasiadamente covardes, porque
queremos andar lentamente e nos apegamos ao que possumos, quando o
mundo, a substncia tangvel de Deus est prestes a explodir nessas
radiaes de dio que nenhum de ns pode impedir. H uma angstia que
se aproxima quando a vida de ns todos depender da existncia ou no de
um homem bastante bravo, bastante corajoso, que v mais longe na sua
mente do que ningum jamais foi, e que consiga mesmo assim comunicar
sua viso. Eu no sou sse homem. Sou demasiado fraco. Eu desapontei
ainda uma vez a Deus.
CENA 11
ELENA
26
Charley, voc sentiu falta de mim?
EITEL
Muita.
EITEL ELENA
Voc sabe como eu sou. Procurei no pensar em nada. At que uma noite, eu pensei em voc. E
percebi que seria meu fim se no parasse de pensar.
ELENA
Fico feliz em saber que voc sentiu uma pequena falta de mim...
(Ela comea a chorar) Ah Charley, melhor voc ir agora. Eu sei que voc odeia hospitais.
EITEL
No, eu vou ficar com voc. No quero que voc se sinta sozinha.
ELENA
j >i * *
27
(Repentinamente) Case comigo... por favor, Charley, case comigo.
(Eitel assente com a cabea, lentamente) Voc se sente frio como uma pedra, no
verdade?
EITEL
No, no verdade. Somos amigos agora. Suas feridas aliviam minhas feridas e creio que melhor
EITEL
isso do que viver sozinho.
(LES SE AFASTAM
28
)DAVID McREYNOLDS
Bomios em Liberdade
2 20
Os liberais e os radicais, recordando com nostalgia os movimentos
polticos de sua juventude, confessam-se perplexos com a atual juventude
estudantil. les se perguntam freqentemente o que est acontecendo com os
jovens, onde est aquele entusiasmo pela construo de um mundo nvo.
aquele idealismo ingnuo e glorioso to caracterstico entre os estudantes de
outras pocas. No escondem sua surprsa diante do fato de que a maioria dos
jovens de hoje s se preocupa com sua prpria segurana, manifestando um
absoluto desinteresse pelos povos famintos, doentes e oprimidos do mundo.
Os jovens que no aceitam a sociedade atual so um fenmeno ainda mais
difcil de ser compreendido: les fazem parte do que se convencionou chamar
a juventude beat, que composta, aparentemente de delinqentes, perversos
sexuais, viciados em narcticos e confusos escritores de m poesia; em resumo,
uma juventude de niilistas irresponsveis, incompreensveis e irracionais.Na
posio de algum que simpatiza com a juventude beat e com seu elemento
mais ativo que o hipster acredito que os delinqentes juvenis, os
turbulentos poetas jovens e os bandos de desleixados bomios apreciadores de
jazz representam uma fra vital na nossa sociedade. Fra essa que. se fr
bem compreendida, esclarecer de maneira inequvoca certos problemas de
nossa poca. Para entender a razo porque muitos dos jovens mais talentosos
de nossa poca "exilaram-se" da sociedade, preciso considerar
primeiramente, com tda ateno, essa mesma sociedade que les rejeitaram.
2
ento impedido? O amor seria importante? Passearamos pelos parques?
Colocaramos uma moeda no chapu do cego?
3
Esta , em sntese, a sociedade das massas. Chamamos as pessoas pelos seus
primeiros nomes procurando criar uma intimidade que de fato no existe. As
famlias que vivem em prdios de apartamentos esto mais isoladas de seus
vizinhos do que as antigas famlias norte-americanas que viviam nas fronteiras
a trinta quilmetros umas das outras. O indivduo isolado nunca se sente uma
parte integrante e importante de um todo organizado
4
.. i.j. ' j i , ^r, assim no sabemos comcv nos
denomina "a multido solitri," juventude atUal a Werda O terceiro fator que
atua s^ J um cd> de
dos valores antigos. O homer, te 1_ & & em ^Deus valores que estava centraliza^
. e surgju triun fante
IU1 b
6
porem, pode Budapeste? Ou a fuga ato,"men- de homens e mulheres nas rua. g
br^ncas do comunismo no tada do Dalai Lama? As M^metida contra um ideal Social
podem mais ocultar a traiac co individual (e no apelas a aue pregava a
liberdade do liberdade no se aplica a
E o que dizer das nao^S1 d Hberdade do que os Estados defensor mais ardente e
inflexi +Jcl
S
ara merecer uma transformao. Percebi nitidamente a razo essa atitude anti-
social da juventude durante uma conversa com um delinqente juvenil. le
fazia parte de uma quadrilha que roubava carros e passava os fins de semana
se divertindo e bebendo. sse rapaz, inteligente e de boa famlia, considerava a
sociedade uma instituio absolutamente desacreditada, e a melhor maneira
7
que lhe ocorria para demonstrar seu desagrado era infringir o maior nmero
possvel de leis e obrigaes sociais. Em determinado momento, le confessou:
"Os caras que realmente no suporto so os "puxa-sacos" da escola les
ainda acreditam no sistema". Os puxa-sacos a que le se referia eram os
membros das organizaes sociais escolares. le no os invejava. les no o
haviam rejeitado era le que os repudiava. O fato trgico de tudo isso que
muitos de nossos jovens mais capazes, os possveis lderes de amanh,
voltaram-se para o crime em sinal de protesto contra uma sociedade que no
compreendem e em que no confiam. les afirmam, com muita razo, que
fazer papel de idiota algum se conduzir com responsabilidade no interior de
uma sociedade irresponsvel e corrupta.
Essa atual gerao no "silenciosa", como foi dito por uma revista, nem
tampouco foi coagida a uma atitude de conformismo ela est simplesmente
atuando fora dos padres sociais.
8
tipicamente beat. Ela considerava terrvel algum fazer amor com uma pessoa
que no amasse muito. Ela no entendia, por outro lado, como se podia dar
uma importncia to exagerada ao sexo. Ao mesmo tempo, ela acreditava que
se uma pessoa gosta muito da outra importante que durmam juntas pelo
menos uma vez, porquanto a relao ajuda a aproximar as duas pessoas. No
creio que sse comportamento seja o ideal da moralidade sexual; de qualquer
forma, essa atitude me parece muito mais sadia do que a moralidade sexual de
muitos indivduos "no-beat" para os quais o companheiro sexual serve
apenas como instrumento de uma satisfao fsica, deixando de ser uma
criatura humana merecedora de amor e de respeito.
Ela inclui a tentativa feita pelos hipsters para encontrarem uma explicao para
a realidade exterior e para a vida em comunidade, aceitando os aspectos
irracionais e intuitivos de suas prprias personalidades.
No devemos pensar que a juventude adotou o jazz por ser uma msica
de protesto, mesmo admitindo que a verdadeira msica de jazz contm um
elemento de protesto especialmente o jazz primitivo que se originou como
um produto negro distinto da cultura branca. Essa explicao demasiado
bvia para ser verdadeira. A verdadeira razo, a meu ver, est no fato do jazz
ser uma msica irracional. O jazz sobretudo a msica da espontaneidade e
da improvisao. Um bom conjunto de jazz no necessita de msica escrita, de
ensaio ou preparao. Basta apenas que o conjunto inicie a sesso com alguma
melodia conhecida; graas a um ritmo bem definido, os msicos improvisam
na hora sua linguagem musical apropriada como se ela brotasse de dentro
dles.
9
O jazz parece ser o movimento social da massa no interior de uma
sociedade que teme os aspectos inconscientes de sua personalidade e que v
nles um remoinho borbulhante de incestos, crimes e desejos de auto-
destruio. Uma sociedade aterrorizada com o fato do inconsciente vir a
explodir e dominar a mente "racional". natural que uma cultura
fundamentada na cincia e na razo tema o elemento instintivo, tente neg-lo e
reprimi-lo. E ao invs de aceitar o instinto (isto , o irracional) como parte
integrante do ser humano e origem de todos os impulsos criadores, a
sociedade procura suprimi-lo definitivamente.
10
esse fr o caso, ser um movimento religioso bem diferente dos demais
movimentos do Ocidente, pelo menos na forma em que so praticados hoje).
11
mudamQuando as pessoas"se referem* ' gerao ocuraro novos as-
sunto beat e aos hipsters como "modas contudo, que o
s
passageiras", elas no podiam estar
cometendo um rro mais flagrante. Os
termos podero mudar les sempre
beat, no importa com que nome seja chamada, a expresso natural de nossa
poca. Ela possui um carter internacional e est profundamente enraizada no
caos de nossa sociedade.
1
Acredito na espcie humana e no seu futuro, e estou convencido de que tambm o
hipster deseja desesperadamente acreditar nisso j que a nica grande
fraqueza aa juventude beat seja sua incapacidade em afirmar a vida. Uma
verdadeira afirmao da vida significa muito mais do que o Gary Snyder
denomina "uma espcie de entusiasmo delirante" pelas coisas significa a
alegria e a angstia de uma participao ntima na vida, de forma ativa e no
meramente passiva. E para que o jovem de hoje sinta desejo de participar
ativamente, indispensvel que le veja em ao um ideal digno de ser abraado.
O hipster seguir antes um Gandhi do que um Stevenson. A nica forma de dar
sentido vida poltica ou existncia individual, neste momento confuso e
incerto, reconhecer que, por mais que o "futuro" nos prometa, a vida poltica s
ter valor se agirmos desde o momento presente com uma absoluta
integridade.TED JOANS
3
ue pode ser mortal mas que usada para a vida; um homem
Trechos de uma gravao realizada no The Five Spot Cafe, entre a Rua 5 e a
Praa Cooper, em Nova Iorque.
1. "Quero que meus quadros tenham ritmo como os bons solos de jazz".
1
3. "Na minha opinio Stuart Davis e seu discpulo, George Wettling, so
pintores estticos, sem nenhum ritmo; les no me dizem nada".
"O senhor jura que pintou sse quadro? Eu no sabia que os negros
podiam pintar dsse jeito".
II. "sse bar, o Five Spot, o mais avanado de todos, tanto em msica
como na decorao... veja por exemplo aquela parede ali".
2
12. "O vendeiro em frente ao meu estdio no tem esprito comercial... le
no tem mania de ganhar dinheiro".
16. "No posso negar que sou Ted Joans, preto afro-americano negro
retinto mau mau escurinho alma branca negro etc."
17. "Nunca possu um revlver e nunca matei nada... creio que meu
corao demasiado artista para ferir alguma coisa fisicamente".
3
18. "Comprar um Cadilaque? Como, se eu nem sei dirigir! Alis, quem
que precisa realmente de um?""Salvador Dali um velho amigo... mas eu
no gosto dle como gosto dos meus rinocerontes".
20. "Ser norte-americano uma vantagem para mim, mas ser um prto
norte-americano a maior desgraa que podia me acontecer".
21. "Bem, eu nunca sei de antemo o que vou pintar; primeiro eu vou
pouco a pouco esquentando e depois, quando a coisa comea a ficar boa,
diminuo a marcha e junto os pedaos sse o momento supremo".
22. "Claro que sou influenciado por sse ou por aqule, mas no copio
meus dolos. Sei que no posso pintar como Kline nem tocar piano como
Monk, por mais que goste dles".
24. "Me apropriei de muita coisa boa dos velhos mestres, especialmente
de Leonardo da Vinci, Uccelo e Picasso".
25. "Onde nasci no havia biblioteca para prtos, de sorte que pedia a um
menino branco para retirar livros de arte para mim com sua ficha branca
e inocente".
2.12
que rolam dinheiro para conseguir expor na Rua 10. Depois do que
adotam uma atitude mais artista do que os prprios artistas".
27. "A Europa j teve sua vez, agora somos ns que fazemos arte pela
arte".
2.12
30. "At hoje adoro as mulheres pintadas por de Kooning. Fico tarado
tdn vez que vejo uma"."Pretendo fazer minha primeira exposio
individual em janeiro do ano que vem. Os poetas Ginsberg, Bremser e
Corso vo ler suas poesias no dia da inaugurao".
31. "Minha me no faz fora para entender minha pintura, alis, ela
tambm no faz fra para me entender; ns apenas gostamos um do
outro".
33. "No ligo a mnima para o que certos bundas-sujas dizem da minha
maneira de falar".
BRIGID MURNAGHAN
A ME:
ANNIE:
1
Vai ver que le deu ao ingls um
retrato como modlo.
ANATOLE BROYARD
A Escolha
2
or meu lado tomava certas providncias. Uma delas sobretudo eixou-me
bastante apreensivo, uma vez que exigia de mim uma grave deciso. De uma
forma geral, at aquela data, minhas resolues eram sempre no sentido de
no fazer alguma coisa. Dessa vez era diferente. Indaguei a mim mesmo, um
sem-nmero de vzes, se no estava agindo precipitadamente e recebia sem-
pre a mesma resposta. Na situao em que havia chegado, era impossvel
voltar atrs ou esquecer, e no entanto essa deciso era to contrria a minha
maneira habitual de ser que no conseguia imaginar-me pondo-a em execuo.
bem verdade, pensava comigo, que se trata de uma situao excepcional.Eis
a razo porque ao sair certa noite do hospital, parti procura de Jimmy
Blandon. Como no sabia onde le morava a maior parte do tempo le
tambm no sabia procurei-o inicialmente no bar do Joe, situado Rua 4.
Joe no o tinha visto aqule dia. Na esperana de que Jimmy aparecesse ainda
por ali, sentei-me numa mesa e, durante uma hora, consumi trs xcaras de
caf enquanto olhava pela janela para dentro de mim mesmo.
H uma meia hora atrs, disse le, fazendo sinal com o dedo polegar
em direo Sexta Avenida.
3
oblquo at pouco acima do cho, onde se avistavam plantas ornamentais
saindo do interior de vasos de alumnio. A facnada de tijolos vermelhos e a
bela porta de madeira faziam tambm parte de uma reforma recente; o
interior, porm, havia permanecido idntico, com seu ambiente sombrio e
antiquado, cheirando a cerveja.
Escuta, Jimmy, disse, procurando chamar sua ateno, queria lhe pedir
um favor.
4
le tornou a olhar para o aparelho de televiso; involunt- riamente voltei
a vista para o outro, como se fsse receber sua resposta nle.
...
Est deprimido?
Estou.
Percebi minha falta de tato quando vi uma sombra passar sbre seu rosto.
Forte como?
5
Por que voc no d uma puxada?
Oh, umas trs ou quatro dzias, sei l!... disse isso contudo sem
nenhuma naturalidade.
Ento por que voc faz todo sse mistrio? exclamei, meio irritado.
Voc os toma como se fossem gua.
6
Preciso dsses comprimidos para o meu pai, disse.
Est na mesma, disse ela, com uma voz que no deixava dvidas.
7
Olhei irritado para ela, mas seu rosto j estava dirigido para outra parte.
No havia outro remdio: tinha que ir at o fim. Ao entrar no quarto, apressei
o passo em direo sua cama.
O sorriso que lhe dei em resposta no foi tambm dos mais alegres; estava
profundamente angustiado com a deciso que tomara.
Fiquei surprso com o fato de suas unhas estarem to limpas, se bem que
no havia muita ocasio para suj-las numa cama de hospital. De repente sua
mo se contorceu dentro da minha, alertando-me para sua dor, fazendo-me
sentir extremamente desajeitado e estpido.
8
Estou lhe machucando, pai?
Ao dizer isso, olhei diretamente nos seus olhos, para no haver dvida
que le havia entendido. Queria perceber algum sinal, por mais momentneo e
passageiro que fsse, que me certificasse uma compreenso exata das minhas
palavras.
9
O suficiente para passar a dor, caso seja necessrio, disse, fixando
ainda seus olhos.
preciso ter cuidado com essas coisas, disse le, aps ter olhado ainda
uma vez para o embrulho. Pode ser perigoso tomar muitos de uma vez.
era possvel le no entender? Mas havia tantas outras coisas que le nunca
havia entendido! Precisava ter certeza mas como? No ousaria jamais
pronunciar aquelas palavras decisivas.
10
Debruado sbre le, procurando no piscar nem respirar para no perd-
lo de vista, esperei que le entendesse, tentei mergulhar novamente no interior
de suas pupilas e depositar l meu pesado fardo. para seu bem! Estou
fazendo isso para seu benefcio! gritava dentro delas, tentando
desesperadamente comunicar-me com le atravs de seus olhos, como um
farol cujo faroleiro houvesse enlouquecido. Estou fazendo isso por voc! Voc
no percebe?
LAWRENCE FERLINGHETTI
11
alguns camaradas se exibem
e um dles
12
e que no sero encontrados durante dois mil
anos aproximadamente ou pelo menos durante
mil novecentos e quarenta e sete anos
e mesmo ento
ou em mim
dizem para le
E les o esfriam
13
no meio dles como se le
fsse o rei da banda
realmente mort
14
o
W? "
19
ste livro foi composto e impresso na GRAFICA URUPES