Prost - A Familia e o Indivduo
Prost - A Familia e o Indivduo
Prost - A Familia e o Indivduo
'*'-.'. No incio do sculo e at o comeo dos anos 50, havia um grande con-
' *v, traste separando os lares burgueses e os populares. Os primeiros eram am-
o S pios: salas de visitas, u m a cozinha e dependncias de emprcgada(s), u m
> q u a r t o para cada m e m b r o da famlia, e muitas vezes alguns aposentos a
mais. O vestbulo e os corredores garantiam a independncia desses diver-
>
sos espaos. A essas residncias amplas, a essascasas "burguesas", opunham-
A FAMJLt.i O ISDIl CK'0 0 j
Estamos em Ausergne. por volta de Lyon, Angcrs ou Limoges moravam cm casas dc um nico aposento. As me-
1960. A moblia indica uma rerdadeira
mrias d e j e a n Guchenno nos oferecem uma imagem concreta dessas mo-
aba: lana leito com colunas, mesinha
de cabeceira. relgio Mas as paredes radias: " U n h a m o s apenas u m cmodo. L trabalhvamos, comamos, e de
eulo um pou:o estragadas. E das vigas vez em quando, noite, at recebamos amigos. Dentro dessas paredes, ti-
do quarto, onde um enfermo guarda
o leito, pendem carnes salgada:.
n h a m de caber duas camas, u m a mesa, dois armrios, uma cmoda, u m
suporte para o fogo a gs, espao para as panelas, as fotos de famlia, as
do czar c do presidente da Repblica. (...) Havia cordas estendidas de u m
lado a outro do aposento, onde sempre ficavam secando as roupas da lti-
ma lavagem. (...) Debaixo dela (uma janela alta], ficara a 'oficina', a m-
q u i n a de costura dc minha me, o ba dc meu pai e um grande balde de
gua o n d e sempre havia solas e palmilhas de molho". 2
Aqui ainda estamos na situao relativamente favorvel de uma casa
de construo recente, numa pequena vila. As moradias antigas das vilas
grandes eram ainda mais exguas.
A aglomerao, portanto, era a regra; alis, chegava a tal nvel q u e
um h o m e m como Bcrtillon definiu o limite dc duas pessoas por aposento.
No recenscamento dc 1906, 26% das pessoas que moram cm cidades com
mais dc 5 mil habitantes ocupam um cmodo com, no mnimo, mais duas
A FAMLIA E O ISDUDL'0 6i
tivos, mas os rgos de habitao popular, previstos por uma lei de 1912,
no dispunham dos financiamentos indispensveis para proceder a opera-
es imobilirias na medida das necessidades. Mesmo assim, registraram-
se algumas realizaes: as 200 mil casas populares financiadas pela Lei Lou-
cheur (1928), os prdios de Villeurbanne, os imveis construdos em Paris
nas fortificaes; mas, ce modo genl, a questo da habitao popular, posta
desde o final do sculo XJX, at o comeo da dcada de 1950 nunca foi to-
talmente resolvida. Para as cidades e a habitao, o sculo XX ainda no ti-
nha comeado. <?'
'Naturalmente, o conforto e os equipamentos das casas no se altera- >
ram em quase nada nesses cinqenta anos. A nica evoluo importante
o fornecimento de energia eltrica: em 1939, quase todos os povoados e
a maioria dos imveis nas cidades j dispem de eletricidade. Mas o abas-
tecimento de gua est longe de se: abundante. No ano de 1949, ero Rouen,- - Dois ptios de imtfveii popular*! em
no bairro Saint-Sauveur. mais da metade dos imveis mais de 1300 so- 1959. ttlf \ "
bre 2233 no tm gua encarada.* As fontes pblicas e os^raajcos nas A7' arrondisim. nftesfnos paredes
eitragjdai. manto calamento irregular.
ruas ainda so muito freqentados. Metade das ruas no possui esgoto. As Os banheiros comuns. Importncia das
instalaes sanitrias so mais do que rudimentares. Evidentemente, on- bacias e das bicicletas. Desgaste e asseio.
A F.VCLW O ISDIllDUO 69
I
12 FZO.VniRAS ESPAOS DO PRIVADO
dc, pelo menos para o povo: o direito de cada membro da famlia sua pr-
pria vida privada. Assim, a vida privada se desdobra: dentro da vida priva-
da familiar, aparece a individual^'"
O ESPAO DO INDIVDUO
vale dizer, coisas silenciadas, inclusive aos filhos. Segredos pessoais: sonhos,
desejos, temores, saudades, pensamentos efmeros ou constantes, mas ge-
ralmente informulados. D a a importncia de certas figuras, externas fa-
mlia, capazes d e se tornar os confidentes dessas coisas cultas. No o mdi-
co, pois os meios populares raramente recebem a visita de u m mdico c
ainda mais raro q u e c h e g u e m a procur-lo: ele vem apenas cm casos gra-
ves, e sua visita se inscreve n u m q u a d r o domstico pouco propcio a confi-
dncias. A enfermeira ou a assistente social t a m b m recebem confidencias,
em geral femininas, e os ambulatrios, criados em grande n m e r o na pri-
meira m e t a d e d o sculo XX, lhes oferecem u m local neutro. Mas os gran-
des confidentes d a vida privada so o notrio e o padre. Ao notrio so con-
74 FROSTEJR.\S E ESPAOS DO PRIVADO
Incrvel aglomerao de pessoas mal fiadas as estratgias familiares de camponeses e burgueses, grandes e pe-
alojadas ainda por volta de 1960.
quenos: casamentos, compras, vendas e arrendamentos, partilhas e doa-
A roupa seca numa corda estendida
no quarto. O rdio fica relegado es. O padre ouve as confisses principalmente das mulheres e
ao armrio. Quinquilharias no canto no hesita em formular as perguntas mais ntimas. Os mais pobres, sem
Ja janela, recuada como uma
mansarda. patrimnio e portanto sem estratgia familiar, os ateus ou os devotos que
no querem q u e o padre interfira em sua vida privada u m a das razes
Sarcelles-Iochres, 1961. O grande f u n d a m e n t a i s do antidericalismo , todos eles guardam seus segredos
conjunto habitacional ainda nio repele.
Seu conforto, seus equipamentos, seus para si e enterram sua vida privada sob a m u d a monotonia do trabalho
materiais modernos so cobiados. cotidiano j j
E o principal que grande. At que
burguesia tinha u m a vida privada muito mais ampla. Mais espao
enfim, espao para a famlia*....
privado: ela tem sua cama, seu quarto, sua penteadeira, e logo seu vesti-
rio. E t a m b m u m maior nmero de possveis confidentes, alm do tabe-
lio e d o padre: os criados, o mdico de famlia, que conhece todos os
membros desta e que pode ser consultado a ss, alm de u m a rede mais
ampla de relaes com parentes e amigos; o tempo livre permite visitar
um tio, u m a tia, um padrinho, um antigo colega de escola.._.Os lojistas
e artesos no tinham esse tempo livre nem esse espao; a vida privada
76 FROyrtlXAS t ESPAOS DO PRIVADO
OS ANTIGOS PODERES
crianas dc dois anos. sendo que um tero delas j vai escola. A opo Cn-d<t HtMniipj/ cm R< una. I9SO.
clara: a escola e melhor que a famlia, e passa a ocupar seu lugar. A mirmj <//i iuslituifi'1 <///!' Molhem
J Cnjnjt i- ,/, >/,-rrm jpreitJtr
Essa rpida evoluo ela se d no prazo de uma gerao traduz j rirer , m nrttf>n
o fechamento da famlia sobre a vida privada. Se a famlia e substituda
pela escola, e com seu prprio consentimento, c porque ela tem conscincia
Cc uma incapacidade estatutria: como toda educao e educao para
a vida pblica, a famlia, ao se tornar puramente privada, deixa dc ser
plenamente educativa. Os pais constatam o fato sua maneira, mais con-
creta, ao dizer que no sabem como entreter os filhos.
O exemplo das colnias dc ferias confirma isso. Originalmente, as
preocupaes eram de ordem higinica: os filantropos queriam que os pe-
quenos c franzinos moradores da cidade aspirassem uma boa golfada de
ar puro. Hoje. so os pais q u e procuram as colnias para que seus filhos
pissem frias interessantes: a seu? olhos, a colnia constitui um meio mais
r::o c mais educativo do q u e a famlia.
E verdade que os adolescentes no gostam de ir para a colnia de
ferias, c a partir dos anos 60 os movimentos dc jovens comeam a entrar
cm crise. Mas e porque os jovens reivindicam sua maneira o direito de
ter uma vida privada. A transferncia da funo educativa da famlia para
S4 FXOXTEIRAS E ESPAOS DO PRIVADO
Voltando da praia para a colnia de a cscola s u p u n h a que a famlia reconhecesse a legitimidade e o valor das
f ".a. na Bretanha. A preocupao
relaes extrafamiliares. Considerando-se a nica realmente capaz de edu-
hsfinua com o ar puro Uva eisei
j-irens citadin j/ a panar ai finai car seus filhos, a famlia antiga mostrava uma grande reticncia q u a n t o
CI-R colegae HJO em famlia s amizades extrafamiliares. O movimento q u e generaliza o recurso ao
jardim de infncia procede de um norma inversa: bom que os filhos
tenham contato com filhos de outras famlias. O aprendizado da vida em
sociedade passa por a. '
A partir d o m o m e n t o cm q u e os filhos tem suas prprias relaes,
formam-se grupos de amigos ou colegas. Por um paradoxo apenas apa-
rente. a transferncia da educao para uma instncia pblica, a cscola,
gera outros centros de vida privada, que concorrem com a famlia. Os
adolescentes recusam ter seu lazer organizado por entidades estruturadas,
regidas pelas normas da vida pblica. Eles aceitam instituies como a
escola porque sabem que uma necessidade social, mas, a seus olhos,
ela deriva d o universo do trabalho, o mais pblico dentre todos. O
universo do lazer, o da vida privada, no pode se inscrever cm institui-
es q u e i m p o n h a m regras de vida coletiva. A partir de uma deter-
minada idade, as colnias de ferias c os movimentos de jovens, para
sobreviver, deveriam deixar de ser instituies. E nessa contradio q u e
reside sua crise.
A FAMLIA E O 1\D1VDV0 8
L trj riufjdorj unitirij nos jnm .?(). o c reconhcccrnm que aos filhos que cabe escolher seu prprio f u t u -
Contjto direto t>itre dou mundos.
ro. 16 Mas a enorme presso da orientao vocacional sobre os alunos assu-
A frcxuf>J{io cnt J higiene e J
sj.i./e contribui pjrj j diru/gjji) me o lugar dos pais, dispensando-os dc exercer pessoalmente u m a presso
d-: noro usos d.trt- tieos. anloga, q u e dificultaria ainda mais as relaes familiares.
Alem disso, a interveno pblica na educao dos filhos no sc limi-
ta escolaridade; cia sc fortaleceu em outros domnios. Mal c concebida,
a criana j interessa ao Estado, e o servio de atendimento materno c in-
fantil s u b m e t e a me a trs visitas mdicas antes do parto, caso ela queira
se beneficiar dos subsdios previstos (1946). Tem-se o mesmo acompanha-
m e n t o mdico d u r a n t e a amamentao c o perodo de lactao. As vacinas
so obrigatrias. Em suma, com a generalizao dos abonos-famlias, da
lei dc 1932 ao Cdigo da Famlia de 1939 e lei de 19-46, o acompanha-
m e n t o mdico da gravidez e da infncia sc fortalece.
E mais: toda a educao pode ser controlada por instncias pblicas.
No entreguerras, em nome da sade pblica e da luta contra a tuberculo-
se. comeam as visitas das enfermeiras s residncias familiares. Em alguns
casos, como em Surcsncs, com o incentivo do prefeito socialista Henri Sel-
lier. a ao delas sistemtica e permite montar um arquivo de todas as
casas da localidade. Logo a seguir, as caixas previdencirias enviam assis-
\ F\X:;A f o ;vD/r/wo
A FAMLIA informal
viso das tarefas e preocupaes (92%). Casar era, antes de tudo, formar
uma dupla. ! - ) :
...AO CASAMENTO As coisas comeam a mudar provavelmente na dcada de 1930, mas
POR AMOR ' * *
impossvel situar a data dessa mudana com preciso, pois ela vem ini-
cialmente recoberta por um discurso que continua a ser tradicional. Nos
meios catlicos, um ponto de referencia o surgimento da "espirituali-
dade conjugai"; no entanto, durante a Ocupao que se d i f u n d e m os
grupos de "jovens casais". Formam-se movimentos que logo f u n d a m u m
rgo de imprensa. O primeiro nmero de VAnneju d'Or aparece cm
janeiro de 1945, c o segundo publica um verdadeiro hino ao amor (con-
jugai), assinado por um respeitvel sacerdote. Poderamos pensar cm Edith
Piai, sc a comparao, cronologicamente possvel, no fosse irreverente...
Os meios catlicos estariam atrasados cm relao evoluo geral? N o
parece ser o caso, pois aqui se somam outros sinais. N u m notvel artigo
de 1953, Philippe Aris aponta como fato novo a valorizao do amor con-
jugai sob todos os seus aspectos, principalmente o sexual (c a palavra
utilizada), c ele observa que, em 19-S. 12% dos estudantes so casados; 20
Aris v a, e com razo, o sinal de uma mudana importante, pois sc
casar antes de ter uma situao estabelecida constitui uma grande novi-
dade, e os casamentos de estudantes so casamentos por amor..
A norma social, alis, muda. As revistas femininas do a palavra a
mdicos e psiclogos, que legitimam os sentimentos e vulgarizam os prin-
' cipais conceitos freudianos. Em 1953. por exemplo, apresentam-se pales-
. trs de preparao pr-nupcial nas escolas para formao de professores
na regio parisiense: elas mostram o casamento como uma etapa de u m
processo de amadurecimento afetivo que se consuma com a realizao do
desejo de ter filhos.-'' Considera-se que os filhos, para serem bem cria-
dos. precisam no s do amor dos pais. mas tambm do amor entre os
pa:s. : : O termo "casal" passa a ser utilizado cm expresses como " v i d a
de casal", "problemas de casal". Em suma, agora o amor ocupa u m lu-
gar central no casamento: seu prprio fundamento.
Essa nova norma legitima a sexualidade o termo se vulgariza pelo
final dos anos 50 , pela sinceridade dos sentimentos por ela expressos:
ela sc torna a prpria linguagem do amor E a gide de Lunion cies poux
[A unio dos esposos], para retomar o ttulo de um livro do padre Orai-
son. mdico, q u e introduz a nova norma nos meios catlicos, onde o as-
cetismo tradicional at ento tolerava o ato sexual como uma concesso
fraqueza masculina e com a finalidade de reproduo da espcie. Nu-
ma revista de inspirao muito diversa, pode-se ler a histria de uma " m u -
lher de m r m o r e " que o marido no transformara numa "verdadeira
mulher", c que descobre o prazer nos braos de outro, antes de retomar
o " e n f a d o n h o dever conjugai". 1 ' Em outra parte, uma outra mulher es-
creve: "Era mais imoral viver juntos sem amor do que viver separados".' 1
H ..IA E O IS DVDUO
Mas nem por isso ela deixa de traduzir um profundo abalo do casa-
m e n t o como instituio. 0 casamento, de fato, no altera nada na vida
dos parceiros que j moravam juntos. No lhes traz n e n h u m reconheci-
m e n t o social a mais, visto que j existiam enquanto tal para os amigos
e os parentes. N o plano jurdico, para os abonos familiares e a Previdn-
cia Social, u m a coabitao comprovada tem os mesmos efeitos do casa-
mento/Os coabitantes no ganham nada em se casar. Pelo contrrio, muitas
vezes tm a sensao de perder: casar se comprometer, inscrever a vida
n u m projeto; ora, a coabitao se contenta com um presente intenso c
desconfia do futuro. A aposta lhes parece temerria. Casar no tambm
abandonar a liberdade, sacrificar algumas possibilidades, em suma, limi-
tar a prpria pessoa?/
Em termos mais profundos, os coabitantes temem que o casamento
estrague a relao. Receiam que o sentimento se transforme em hbito
e rotina: seria envelhecer e se aburguesar. Parece-lhes impossvel amar
por contrato: prometer afeto no ser transform-lo num dever? Eles que-
rem ser amados pelo que so. c no por obrigao. Insistem cm preservar
a espontaneidade, o frescor, a intensidade da unio, e alguns crem q u e
a falta de compromisso, a precariedade institucional de sua relao a
garantia mesma de sua qualidade. 2 6
Assim, a afirmao da vida privada de cada indivduo corri inter-
namente a instituio matrimonial. Lugar privilegiado da realizao in-
dividual, a relao a dois um assunto puramente privado, que diz res-
peito apenas aos envolvidos. A sano jurdica do casamento se torna ao
mesmo tempo mais frgil e mais rara. De um lado, a lei de 1975 introduz
o divrcio por acordo mtuo. O nmero de divrcios, alis, aumenta com
vigor e rapidez, antes mesmo dessa lei: em 1960, so concedidos 28 600
divrcios; em 1970. 37 400; cm 1975. 54 300; cm 19S0, 79 700. A fre-
qncia do divrcio nos primeiros anos de casamento aumenta visivel-
mente: no resta dvida q u e o casamento se torna cada vez mais frgil.
Torna-se igualmente mais raro. Em 1971, foram celebrados 416 500
casamentos, numa cifra sem precedentes. Dez anos depois, so 100 mil
a menos. Aumenta o nmero de solteiros: em 1981, entre trinta e 34 anos,
16% dos homens e 43% das mulheres vivem oficialmente ss. Ao mesmo
tempo, as coabitaes perduram sem resultar em casamento. Em 1981.
11% dos casais em q u e o homem t[nha menos de 35 anos eram simples
casais de fato, no casados, contra 5% apenas seis anos antes. O celibato
e a unio livre, simultneos ou alternados, se difundem sobretudo nas
A eojbiUfJo um eitdo de rida. categorias superiores da sociedade: executivos, profissionais liberais, e mes-
A recuu Jjt comenfet. das meus. mo empregados de escritrio. E um modo de vida urbano, de pessoas cul-
JJS cjdeirjs. JJ mobilu disticj. tas c instrudas. Em Paris, segundo o recenseamento de 1982, mais da me-
tade dos lares so de pessoas solitrias.
Fjmihj urbju. indissocirtl de um
toro modo de ridj e de uma novj Alm do casamento, a prpria famlia abalada. O lar formado por
altura. um casal e filhos j no a norma exclusiva: as famlias com apenas um
M.W/iM O I.VO/1 IDL O >.i
9-1 fROSTBKAS S PAOS DO PRIVADO
genitor so cada vez mais freqentes. Em 1981, 10.o dos filhos so cria-
dos por apenas um dos pais, a me em 75% dos casos. As divorciadas
com a guarda dos filhos soma-se o nmero crescente das mes voluntaria-
m e n t e solteiras. A proporo de filhos naturais nos nascimentos duplica
desde 1970: em 1981, para oito nascidos, um filho natural. Porm, mais
da metade deles so reconhecidos pelo pai. em vez dos 20% antes de 1970:
com a contracepo, as mes solteiras abusadas e abandonadas pelo sedu-
tor so substitudas por solteiras que escolhem ter filhos sem se casar e
sem criar conflitos com o companheiro por causa disso. Mas so as nicas
a deter autoridade sobre o filho: o lao entre a me e o filho tende assim
a se tornar a nica relao familiar slida e estvel.
O CASAL NO MAIS Esses casos extremos so ainda, com certeza, muito minoritrios, e
A NORMA EXCLUSIVA a evoluo pode se interromper ou mudar de rumo. Resta o fato de que
as transformaes do espao domstico, a socializao do trabalho e de
u m a grande parte da educao, a reduo das obrigaes cotidianas e a
evoluo determinante dos costumes geraram uma autentica mutao. H
meio sculo, a famlia passava na frente do indivduo; agora, o indiv-
d u o q u e passa na frente da famlia. O indivduo era incorporado fam-
lia; sua vida privada pessoal, quando no sc confundia com sua vida fa-
miliar, era secundria, subordinada, e no raro clandestina ou marginal.
A relao do indivduo com a famlia se inverteu. Hoje, exceto na mater-
nidade, a famlia no seno a reunio dos indivduos que a compem
nesse momento; cada indivduo tem sua prpria vida privada e espera que
esta seja favorecida por uma famlia de tipo informal. E sc. pelo contr-
rio, cie sc sentir asfixiado por ela? Nesse caso, vira-lhe as costas c vai pro-
curar contatos mais "cnriquecedores". A vida privada sc confundia com
a vida familiar; agora c a famlia q u e julgada em funo da contribui-
o q u e oferece realizao das. vidas privadas individuais.
O INDIVIDUO-REI
O CORPO REABILITADO
esses conselhos que exigiam demais das mulheres: isso no estava no con-
trato q u e f u n d a r a o casamento da gerao anterior. 3 0 Os cuidados com
a beleza, a maquilagem, o batom j no so apangio das coquetes e das
mulheres fceis: agora so maneiras honestas de valorizar os prprios en-
cantos. '
Para expor a difuso dessas novas atitudes entre o conjunto da socie-
dade, seriam necessrias muitas pesquisas que ainda no foram feitas. Ar-
risquemos, porm, algumas hipteses, Esse modelo se d i f u n d e dc incio,
no entreguerras, entre u m a burguesia preferencialmente m u n d a n a e pa-
risiense, q u e freqenta as praias e as estaes de guas. Ciosa de moder-
nidade, ela lana as modas. Os estilos dc vida anglo-saxes so, na ccrta,
conhecidos e apreciados. A burguesia do interior, ancorada em suas tra-
dies, se modifica mais tarde, por volta da guerra, e os movimentos de
ao catlica, os escoteiros, os guias certamente desempenharam u m pa-
pel importante para a legitimao dos novos hbitos.
/ N o s outros meios, a difuso foi mais tardia. As empregadas de co-
mrcio e escritrio sc adiantam s operrias e s camponesas, mas todos,
homens c mulheres, so arrastados pelo desenvolvimento da sociedade de
consumo. C o m efeito, a exploso publicitria acelerou bruscamente cm
todo o conjunto da populao a adoo dc prticas fsicas preconizadas
por mdicos e moralistas burgueses, em alguns casos desde o comeo do
Pijina ao lado sculo.( Para vender xampus ( " D o p , dop. dop, todo m u n d o adota D o p " ,
0; <u:JjJ.>! o W O corpo cio so repetia a rdio dos anos 50...), para lanar perfumes, desodorantes, cre-
JpenJi /egiliwjs. PJU j rr.jher. _ .
mcSl
ser b.>n:.t t^mj uma rerJjJeirj nltros solares, uma firma como a LOreal sustentou um esforo pu-
on^Jo. blicitrio macio. Seu primeiro sucesso, alis, foi o lanamento d o bron-
zeador A m b r e em 1937. Os fabricantes de lingerie c roupas ntimas, os
.V primeiro nmero mjrzj poca: , .
. . ... _ comerciantes dc artigos de praia e estaes
3 de aguas nao ficaram atras.
' ./e mjryo Je / > > ris umj novj o r
Kultr... Com as fotos sugestivas das revistas que servem de suporte especfico a
essas propagandas, com o reforo do cinema e principalmente da televi-
u um; ci. mu:, so. os profissionais dos cuidados com o corpo vieram a impor suas ima-
gens. E, com essas imagens, prticas novas: vender um xampu ou u m a
pasta de dentes , cm primeiro lugar, impor ao pblico, com a imagem
da cabeleira ou do sorriso de uma estrela de cinema, a idia de q u e pre- (
P k\ v J H - i r t *
- - ** > I V OM1X-VMS
f I . . . <Ityyet yue i>*uJ X t U v W ^ mtirSirtum
' ! '*'" >''"/*" V *// , /V7// t f/*t<Vl .
1 8 ' IUi1 I U 3 - W *
... e / u A-it/nUt/ / v v / t o r a< /u^atte
w n i t KAIN
r tuztct Que PiKtJ U fCij Ju^Cjtl /'t-// / rt/
(t* /T\cmtnteu rrn/tie'/ttlYr /r ritae/r.
^(inJ^lfie. f / a n j echt trk. cie csirntW
'( // eJ fetn/iJe/r ftHV *(* en ecuit
hiSJ<lnl e*.J.-u*/icJCrm-rt f .
rV
dcs. entre elas Paris, mostraram q u e as m u l h e r e s consagravam a m -
dia de u m a hora diria aos c u i d a d o s com o corpo, e os h o m e n s u m
p o u c o menos. O i t o anos depois, o t e m p o d e d i c a d o toalete a u m e n t o u
d e 3 0 % a 40v para as mulheres e d e 20% a 3 0 % para os h o m e n s .
Nossos c o n t e m p o r n e o s d e d i c a m d c oito a nove horas p o r s e m a n a
sua toalete. c. sc os executivos d o sexo masculino c o n s a g r a m u m p o u c o
m e n o s d c tempo, as mulheres d e escritrio o u d e escalo m d i o , por
sua vez, dedicam cerca d c 9.5 horas. Mais exigentes, mais m i n u c i o s o s
c t a m b m mais diversificados, os cuidados com o c o r p o h o j e d e m a n d a m
mais t e m p o .
* N o c a m p o da diettica, os alimentos de susrana c o n t i n u a m s e n d o
os preferidos pelos verdadeiros trabalhadores, m a s por o u t r o l a d o as refei-
es se t o r n a m , d e m o d o geral, mais leves. U m a prova disso c o peso d o s
franceses: entre 1970 e 1980, as m u l h e r e s p e r d e r a m u m q u i l o c m m d i a ,
c os h o m e n s , para o m e s m o peso. m e d e m 1.5 c e n t m e t r o a mais. N u m
c a m p o e m q u e as transformaes levam sculos, essas diferenas e m a p e -
nas u m a dcada so o sinal e l o q e n t e d c u m a a t e n o crescente para c o m
o corpo.
SER ESPORTIVO N o terceiro campo, o da cultura fsica, a evoluo i g u a l m e n t e
sensvel. C o m o vimos, antes d c 1940 a ginstica j passa a fazer p a r t e
dos preceitos das revistas femininas. Mas n o das prticas: era difcil
seguir i n d i v i d u a l m e n t e esses conselhos, q u e alis n e m d i z i a m respeito
aos h o m e n s . E impossvel saber q u a n t a s mulheres os s e g u i r a m : p o d e m o s
supor q u e muitas t e n h a m t e n t a d o e depois desistido. Para q u e h o m e n s
c m u l h e r e s comeassem a fazer ginstica, era preciso u m e s t m u l o p o -
deroso. Ele surge q u a n d o sc m u l t i p l i c a m as ocasies d c m o s t r a r o f-
sico. N a m e t a d e dos anos 60. as p r o p a g a n d a s das residncias d e exc-
A fo-mjpcf Axorj i UMA CJUU cutiTOS m0Stram u m casal jovem, e m traje d e b a n h o , ao l a d o d c u m a
Hj. ioui. t Jnj. . .
piscina, com u m a q u a d r a d c tnis ao f u n d o : a transposio p a r a o
cotidiano d e prticas prprias das frias, ento generalizadas e n t r e essa
categoria e q u e passam a se d i f u n d i r para as demais a partir d e 1956. c o m
a
y.?> terceira semana d c frias r e m u n e r a d a s . A p e n a s 4 0 % d o s franceses
I fifcj. saem de frias na m e t a d e dos anos 60. mas. c o m a g r a n d e exploso
c a m p i n g . a praia sc torna acessvel a jovens d c todas as c a m a d a s :
reeardei-VOUS ^ \ ' m i l h o d c pessoas a c a m p a m e m 1956. 3 m i l h e s e m 1959. q u a s e 5
|l|i milhes c m 1962. 7 257 000 c m 1964. Em m e n o s d c dez anos. o q u e
ocorre u m a espcie d e revoluo d e veraneio.
, Aos cuidados com o corpo para o vero vm sc acrescentar, ccrca d c
O CORPO AMEAADO
NOTAS
(1) R. 11. Gucrrand. Les origines t/n hge-Kent social cr. Frjnce. Pan>. Ed. OuwicrcJ. 1966.
(2) J. Guhcnno. op. cit.. pp. 57-S
(3) R 11. Gucrrand, op. cit.. conforme o dr. J Bcnillon. na Recue Jllygine et Je
Poltce Sjniuire dc maio dc 1908. pp. J77-99.
(4) O. I lardy-l Icmery. De I j croissjnce J IJ JesinJasna/tsJtion. L'n sicle Jsns te Vj
lenciennois. Paris, Presses dc la INSP. 1984. p 39.
(5) M. Quoisc. Li rille et 1'homme. Paris. d. Ouvrircs. 19)2.
(6) P. El. Chombart dc Lauc, la rie ifuoliJienne Jes fjmilles ourrires, Paris, Ed
du CNRS. 1956.
(7) Loc. <ii pp 64-5.
(8)L Bcrnot. R. Blaruard. Keutile. un ru/jge frjnfjis. Paris. Institui d'Ethnologie, 1953.
(9) A. dc Foville. Les maisons types. 19S4. citado por R H. Gucrrand. op. cit . p 218.
(10) L Frapic. op cit.
(11) S. C. Rogers. "Fcmalc forms of p^wcr and lhe myth of malc dominar.ee a modei
of fcmalc malc intcraciion in pcasant socicty". American f.thnologist. t. II, n" 4. novembro
dc 1975. pp. 727-56
(12) M. Segalen. Man et femme Juns li tocitpjysjnne. Paris. Flammarion. 1980.
(13) M. VCblfcnstcin. "Frer.ch parenu talcc their children to the parle", in M. Mcad.
M. VXblfcnstcin. ChiUhooJm contemporary culture. Chicago. Chicago University Press. 1955.
pp. 99-117.
(14)11. Mendras. tui/es Je toeiolo&ie nsrjle. Soviset Vtrgin. Paris. Armand Colin, 1953-
(15) "Commcnt elever les enfants". pesquisa dc ConfiJences. 29 dc julho dc 1938
(resultados em 14 dc outubro dc 1938).
(16) A mesma resista aceitou refazer a pesquisa em 1977. A mesma pergunta agora
recebeu uma grande maioria dc negativas, com 89% das respostas, e as afirmativas no ultra-
passaram 4.4%.
(17) M. Martin. "Images du mari et dc Ia f c m m e au x x c side. Les annonces de ma-
ria<e du Chjsset/rfijnjis", Revue dHistoire Moderne et Contemporaine, 2-I9SO. pp. 295-3II.
Para 50% dos homens e 67% das mulheres, os editais de 1930 especificam um dote ou "es-
peranas" dele; em 90% e 38%. respectivamente, eles indicam a profisso ou situao social
dos noivos.
(1$) A. M. Sohn. "Les roles fminins dans la vie prive. approche mthodologique
et bilan de recherches", Revue d'histoire moderne et contemporaine. 4-1981. pp. 597-623
jl9) " C o m m e n t conccvcz-vous le bonheur conjugai", pesquisa de Confidentes. 17 dc
junho de 193S (resultados em 26 de agosto).
(20) P. Aris. "Familles du demi-side". Renouveau cies iJes sur l j fjmi/te, sob a
direo de R Prigent. Paris. PIF. 1953. p p 162-70.
(21) Ver o texto dessas conferncias apresentadas por A. LeGall. S. Lebovici. M. Cenac.
A. Berge. J. Boutonier-Favez, C. Launay em I.cole dei pjrents. novembro de 1953.
(22) Cito aqui a legenda de uma foto publicada em Ls croix de 5 de maio de 1954.
mostrando um casal jovem, em que o pai segura o filho.
(23) "La femme de marbre". Confidentes. 17 de maro de 1950.
(24) Femmes fijnjises, 12 de agosto de 1950.
(25) L. Roussel. "La cohabitation juvnile en France", Popu/jtion. 1-1978. pp. 15-41.
As anlises precedentes do casamento devem muito aos trabalhos de L. Roussel. notadamen-
te Le mjrjjge (Unsh socit frjniue Faits depopulation. faits dopinion, Paris, PtjF. 1975.
e, em colabora-lo com O. Bourguignon. Li famUle jprs le mariage des enfjnts. tude des
relatuns entre gnrjtions. Paris. K.F. 1976. e Gnrjtiom noucelles et mariage tradition-
nel. enifutes Juprs des jeunes de dix-huittrente ans. Paris. PL'F. 19"9.
(26) F. de Singly. "Le mariage informei. Sur la cohabitation", Recherches sociologi-
qus. 11981. pp 61-90.
(2") G. Thuillier, Pour une histoire du quotidien au XIX* siide en Kirenuis, Paris.
Mouton. 1 9 " : E. Vleber, Lifin des terroirs. Paris. Fayard, 1983 (1? ed. nos Estados Unidos.
1 9 " I.
(28) Devo essa anedota a meu colega Michel Vovelle. filho dessa diretora.
(29) O. Mirbcau .Journal d" une femme de chambre, citado por G. Vigarello. Le pro-
pre et l< u/c. Lbjgiine du corps depuis te Moyen Age. Paris. d. du Scuil. 1985. p. 231.
(30) Ver a seo de canas de Marie-Claire. a cargo de Marcelle Auclair. em 7 de maio
de 193": "Lima av de Ncuilly-sur-Seine me censura por encorajar o egosmo masculino,
quando aconselho que as mulheres se esforcem em se manter bonitas para agradar aos mari-
dos por bastante tempo...".
(31) G Lipovetslcy. Lire du ride. ESSJsur1'indtviduahsme contemporain. Paris, Gal-
limard. I9S3. p 191; P. Ory, Lentre deux-mai. histoire culturelle de l j France. mai 1%8-mai
1981. Paris. d. du Scuil. 1983. p 129.
(32) P. ttjnnct. " D e s modes ct des looks". Le Dbat. n 34. maro de 1985. pp. 113-29.
(33) Um parisiense morto durante uma manifestao. um delegado dc polcia em Lyon.
pont dc la Guillotire. o estudante Gilles Tautin, afogado no Sena pcrco de Flins, e dois
operrios em Sochaux. Essas linhas j estavam escritas quando o movimento estudantil de
dezembro dc 1936 veio confirm-las de maneira espetacular.
(34) Op cit.. p 223.
(35)11. Ilatzfeld. I* grand tournant de !a mdectne libera/e. Paris. Ed. Ouvrires. 1963.
ressalta que a taxa dc responsabilidade, prevista pela !ci dc 1930. no atinge os mdicos,
ao contrrio dc sua inteno originria, mas determina apenas o q u e reembolsado pelas
caixas de Previdncia Social. Agora, cientes de que no causaro problemas a seus clientes
mais pobres exigindo-lhes essa taxa. os mdicos j no hesitam em cobr-la.
,'De repente, o cuidado com o corpo muda de estatuto: como o pra-
zer se une higiene, ele no s legtimo, como tambm necessrio. Ser
esportista se converte em dever, para q u e m quiser ficar em sintonia com
seu tempo: j no uma questo de gosto pessoal. Sinal dos novos tem-
pos, as roupas esportivas, antes reservadas a locais e momentos especficos
as pistas, as ferias . invadem as cidades. O sportsuejr se d i f u n d e a
partir de 1976, e n q u a n t o o anoraque expulsa o impermevel, cujas ven-
das caem cm 2 5 % . O melhor indicador do novo estatuto do esporte:
pode-se usar roupa esportiva na rua ou no escritrio.
O DESABROCHAR DO CORPO