NUNES, Benedito. Oswald Canibal

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Coleo ELOS

Dirigida por J. Guins.burg

Equipe de realizao - Planejamento Visual: A. Lizrraga;


Produo: Plinio Martins Filho.
Benedito Nunes
Oswald Canibal

~\\1~
~ ~ EDITORA PERSPECTIVA
~/\\~
Copyright Editora Perspectiva, 1979

Direitos reservados
EDITORA PERSPECfiVA S .A.
Av. Brigadeiro Lus Antnio, 3025
01401 - So Paulo - Brasil
Telefone: 288-8388
1979
SUMARIO

1. Antropofagia e Vanguarda - Acerca do Cani-


balismo Literrio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
2. Homem de Muita F . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
3 . O Retorno Antropofagia . . . . . . . . . . . . . . . . 51
4. A Crise da Filosofia Messinica . . . . . . . . . . . . 59
5 . A Marcha das Utopias . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69
1 . ANTROPOFAGIA E VANGUARDA -
ACERCA DO CANIBALISMO LITERRIO

A histria do Modernismo brasileiro, que apenas


comeou a ser traada, ainda se ressente da falta de
um estudo metdico das relaes desse movimento com
as correntes da vanguarda literria e artstica europia
de que se aproximou. Freqentes tm sido, nos esboos
da histria do Modernismo, as referncias ao Futurismo,
como bandeira das manifestaes estticas dos jovens
participantes da Semana, agrupados, desde 1917, em torno
do expressionismo de Anita Malfatti. Raramente se alude
porm ao interesse especial do grupo de 22 pela esttica
do Cubismo, a que se acharam ligados os nomes de
Apollinaire, Max Jacob, Blaise Cendrars, Jean Cocteau,
Pierre Reverdy e Paul Derme.
J em 1925, Tristo de Athayde lamentava que
Oswald de Andrade estivesse sob a influncia do dadasmo,
condenado pelo crtico como uma das formas negati"
"' Os captulos deste livro foram anteriormente publicados como
artigos, agora refundidos, nos Stld)lementos Literrios de o Estado
de Sdo Paulo e Minas Gerai8, 7
vistas do esprito europeu 1 E Mrio de Andrade quali-
ficava de quase dada a prosa descontnua de Memrias
Sentimentais de Joo Miramar, para ele "a mais alegre
das destruies" 2. Trs anos depois, o experimento po-
tico que foi a antropofagia incorporava o Surrealismo.
Todos esses degraus da modernidade - Cubismo,
Dadasmo e Surrealismo - galgou o movimento de 22
por obra de Mrio e Oswald de Andrade. Ambos jamais
ocultaram a convivncia intelectual que mantiveram com
os escritos representativos das correntes renovadoras de
ento, e que eram, como se pode ver hoje, as alas de
um s movimento sensveis situao problemtica da
literatura e da arte.
Admite-se de um modo geral que o movimento de
22 foi, na sua fase aguda e polmica, caudatrio dos
diversos ismos da poca. De acordo com semelhante pon-
to de vista, a interferncia das correntes europias no
desenvolvimento do nosso Modernismo deu-se como um
mal necessrio, ou como uma espcie de ritual de passagem
que a literatura brasileira teve de cumprir, antes de alcan-
ar a normalidade da vida adulta. S restariam do perodo
experimental e polmico, que terminou em 30, - perodo
que tambm se qualificou de anrquico e imitativo - as
ousadias e exageros do Futurismo e do Dadasmo nacionais
a ttulo de curiosidades da histria literria, que pouco
interesse ofereceriam ao crtico em busca de obras srias
e verdadeiramente originais.
Sero sempre bem-vindos, por isso, todos os estudos
que, procedendo ao balano das idias, das tcnicas, das
1. TRISTO DE ATHAYDE, Literatura Suicida, Estudos, Rio de Ja
neiro, Companhia Aguilar Editores, 1925/III 914/923, 1966.
2. MRio DE ANDMDE, Oswa.ld de An<trade, Revista do Brasil, So
8 Paulo, set., 1924.
formas, dos temas, do pensamento e dos modos de ao
hauridos pelos rebeldes de 22 nas fontes da revoluo
esttica de que foram coetneos, no esqueam de referir
certos pontos essenciais, cuja omisso prejudicar qual-
quer juzo de valor acerca do que se produziu no perodo
a que nos referimos. Assim, por exemplo, o pecado de
abstrao comumente praticado nesse assunto tem consis-
tido em destacar-se a presena dos ismos estrangeiros,
sem que se diga porm o que deles fizeram os nossos
escritores modernistas. Omite-se, em conseqncia, um
dado fundamental: a prtica desses escritores arregimen-
tados, que tambm formavam uma vanguarda, com o
estilo de ao e de criao que caracterizou a poca.
Ser preciso no esquecer igualmente o quanto va-
riou a atitude receptiva dos principais chefes do nosso
movimento s mensagens tericas e ao estmulos estticos
procedentes das metrpoles europias. Numa viso global
da vanguarda de 22, pode-se dizer que o grau de recepti-
vidade e de resposta a esses estmulos e mensagens esteve
condicionado aos diferentes momentos da dialtica interna
do Modernismo, segundo a ordem de seus problemas
estticos, sociais e polticos.
O mais tenso de tais momentos, no qual as relaes
com as vanguardas europias se tornaram complexas,
foi o antropofagisnw 3.
A ele Heitor Martins dedicou um longo ensaio,
Canibais Europeus e Antropfagos Brasileiros (Intro-
duo ao estudo das origens da Antropofagia) 4, em

3, HAROLDO DE CaMPOS, "Uma. potica. da radica.Udade", Poesia


e Oswal e Anrae, So Paulo, Difuso Europia do Livro, p. 50.
4. HEITOR MARTINS, Canibil-is Europeus e Antropfagos Brasileiros
(Introduo ao estudo das origens da antropofa-gia), I e li, Minas 9
G-erais, Suplemento Literrio, Belo Horizonte, 9 e 16 de nov. de 1968.
que procurou identificar, no terreno movedio dessas van-
guardas, os veios literrios daquela inveno oswaldiana.
Estamos de acordo com Heitor Martins quanto
identidade dos veios principais da antropofagia, que so
o Futurismo, o Dadasmo e o Surrealismo. Seguimos
tambm o esforado ensasta em sua tentativa de recom-
por a carreira ou a correria parisiense de Oswald de
Andrade, ao encalo das personalidades e das obras lite-
rrias do momento 5 Vemos o futuro bigrafo de Serafim
Ponte Grande Au Sans Pareil, diante do balco de novi-
dades dessa livraria, que editaria Pau-Brasil graas aos
bons ofcios de Blaise Cendrars. Podemos at imaginar
que acaba de vir do ateli de Tarcila do Amaral, a essa
poca freqentado por Fernand Lger, Gleizes, Valry-
Larbaud, Picasso e Cocteau. Estamos em 1923, um ano
"de grandes decises na literatura francesa" a. Oswald
ainda tem por companheiro Maximilien Gauthier, o Max
Goth, colaborador dos primeiros nmeros da revista 391
- os da fase espanhola, no perodo da guerra de 14
que conhecera desde os tempos da juvenil viagem de
1912 7

5. As viagens de Oswald a Paris, no perodo a que se refere Heitor


Martins, distribuem-se dos fins de 22 aos fins de 1925. Ento, sua
mais longa permanncia em Paris vai de janeiro de 1923 a dezembro
do mesmo ano. Oswald permanece no Brasil durante quase todo o
ano de 1924, quando Cendrars nos visita. S em dezembro de 24
retorna a Paris, onde j Tarsila o esperava. Desta vez so trs
meses de permanncia, pois que volta ao Brasil em maro de 25.
E j em junho do mesmo ano ei-lo retomando Europa para ai
permanecer at setembro do mesmo ano. Vide .ARACY AMARAL, Corres-
pondncia indita, 1 e 2, Numa Bela poca. e Oswald em 1925,
Correio da Manh, 2 e 3 de abr. de 1968.
6. Quanto freqentao do atelier de Tarsila, em Paris, ver
SERGIO Mn.LIET, Dirio Critico, So Paulo, Livraria Martins Editores.
9.o vol., 1953-1954.
7. Max Gauthier citado por oswald nas suas memrias. Vide
lO Um Homem sem profisso, Sob as OrtLens de Mame, Jos Qlympio
Editora, p, 125.
Nosso poeta devia sentir ento a enorme diferena
entre a Paris de que ele tivera uma rpida impresso
turstica naqueles idos - entre a Paris que festejava a
sagrao de Paul Fort, como prncipe dos poetas, e que
abria para os cubistas as portas do Salon d' Automne -
e a Paris do Dadasmo, sobre a qual choviam panfletos
e revistas, publicaes festivas e provocadoras, como
Le Cog, Cannibale, Le Coeur Barbe, Proverbe, 3 91
e Littrature 8. Predisposto a simpatizar com todas as
rebelies estticas e a conhecer todos os programas de
revoluo artstica e literria, Oswald de Andrade ter
recebido as vibraes desse clima tenso, que lhe parecia
o prolongamento das recentes escaramuas da Semana
brasileira. de supor que Maximilien Gauthier, seu cons-
tante companheiro, apresentou-o a Francis Picabia, autor
de Penses sans langage, de Le Christ Rastaquoere e do
Manifeste Cannibale9 Cada encontro, nessa trajetria
intelectual por entre idias, personalidades e obras, pode
ter sido, para a receptividade atmosfrica de Oswald,
uma fonte estimuladora poderosa. Com a sua impa-
cincia terica, com a sua particular avidez do novo e
da novidade, ele foi, dos nossos modernistas, aquele que
mais intimamente comungou do esprito inquieto das van-
guardas europias.
Desse ponto de vista, que interessa histria literria;
Oswald trouxe, para o nosso Modernismo, ento em
andamento, uma experincia por participao - de todo
diferente da experincia de Mrio de Andrade - no
8. OannibaZe, com dois nmeros, de 1920. Tambm de 1920:
Le Ooq (4 n.O), Proverbe (6 n.o) de 1921: Le Ooeur Barbe (1 n.o).
A 391, de Pica.bla, comeou a. ser publicada. em Barcelona. (1916),
continuou em Nova. York e, com interrupes, em Paris, at 1924.
9. Penses sans Zangage (1919), Jsus-Cbrist Ra.sta.quoure (1920) ll
Manifeste Cannibale (Dadaphone, n. 7, Paris, mars 1920).
clima de atrito e desafio, na atmosfera de rebeldia e de
renovao criados conjuntamente pelos manifestos futu-
ristas, pelos ecos da teorizao cubista e pelas expresses
circunstanciais do humor dada.
O ano de 1923, vspera do Surrealismo, que viu
refluir dada, ter sido to importante para a literatura
francesa quanto o foi para Oswald de Andrade e para a
marcha de nossa revoluo artstica e literria. Em 1924,
quando Cendrars visitou o Brasil pela primeira vez, Oswald
publicaria Memrias Sentimentais de Joo Miramar e
lanaria o Manifesto Pau-Brasil, enquanto Mrio de An-
drade conclua A Escrava que no Isaura. O visitante
estrangeiro e os dois poetas brasileiros partiriam depois,
na companhia de Tarsila, D. Olivia Guedes Penteado,
Ren Thiollier e Gofredo da Silva Telles, em busca do
Aleijadinho e do barroco mineiro.
Oswald entrara em contacto com "a comunidade
vanguardista de Paris", principalmente por intermdio de
Blaise Cendrars, que sobre ele exerceu duradoura in-
fluncia. Por que no poder ter cado sob o olhar do
viajante literrio, entre velhos exemplares das revistas
Nord-Sud (1917), de Sic (1916) ou de recentes n-
meros de Littrature e de 391, misturados a volumes de
Apollinaire, de Max Jacob, de Reverdy e de Andr Bre-
ton, o Manifeste Cannibale, de Picabia? Com a vaga do
exotismo etnogrfico, que invadia museus, atelis e lojas
de curiosidades, o canibal, que no assustara o humanismo
de Montaigne, e que havia passado ao Dicionrio Filo-
sfico de Voltaire, antes de se tornar um quase herbvoro
no Discours sur l' origine et les fondements de l'inngalit,
era ento menos e mais do que um tema. Amostra de
12 uma sociedade outra, de um outro homem que ainda nos
assombra, e que a cincia antropolgica se esforou ento
por relegar aos noturnos desvos da mentalidade pr-l-
gica, essencialmente mgica, o canibal foi tambm uma
dessas imagens fortes, de forte prestgio onrico, favo-
rveis condensao de impulsos agressivos, silhuetados
de encontro m-conscincia burguesa, da qual Nietzsche
j falara, antes que Freud houvesse estabelecido a filo-
gnese da conscincia. Abriu-se, de Nietzsche a Freud,
o caminho que fez do canibalismo o signo de um sn-
drome ancestral, ou, para usarmos a linguagem de Oswald,
uma semfora da condio humana, fincada no delicado
intercruzamento da Natureza com a Cultura.
No nos admiremos pois, que Oswald tenha pescado
nas guas no-territoriais desse mare nostrum da poca.
Nossa discordncia com Heitor Martins comea justa-
mente quando o ensasta de Canibais Europeus e Antro-
pfagos Brasileiros transforma essa pescaria num pecado,
e diminui, em razo dela, at total liquidao de sua
originalidade, o contedo especfico das formulaes an-
tropofagsticas de Oswald de Andrade. Aceitamos os
fatos principais do roteiro intelectual oswaldiano e dis-
cordamos da interpretao segundo a qual a antropo-
fagia de 1928 se reduz s matrizes do canibalismo europeu
(modelo culinrio-ertico das novelas de Marinetti e mo-
delo agressivo antiburgus do Manifesto Canibal de Pi-
cabia), e que, portanto, Oswald de Andrade se afirmaria
apenas como divulgador de "certos experimentalismos
europeus", quanto funo de sua obra no processo do
movimento modernista.
Esconjurando previamente as sugestes homicidas do
tema antropofgico, procuraremos, num esprito de di-
logo, to vegetariano quanto universitrio, explicar por 13
que no nos parece que o antropfago brasileiro tenha
copiado os canibais europeus com os quais confraternizou,
no ciclo das relaes do nosso Modernismo com as corren~
tes de vanguarda das duas primeiras dcadas do sculo XX.

II
Precedendo a antropofagia oswaldiana, cujo mani~
festa data de 1928, h toda uma temtica do canibalismo
na literatura europia da dcada de 20. Essa temtica,
associada a motivaes psicolgicas e sociais, exteriori-
zou-se por certas metforas e imagens violentas, usadas,
como meio de agresso verbal, pela retrica de choque
do Futurismo e do Dadasmo. Em Il Negro, de Mari-
netti, um repasto antropofgico completa o erotismo
desenfreado do personagem 10 Edita-se a revista Canni-
bale. Picabia assina manifesto de igual nome, que se
publicou em Dadaphone.
Tais antecedentes, se bem entendemos o pensamento
de Heitor Martins, no somente constituem elementos do
contexto ideolgico onde o antropofagismo nacional pode
ser situado, mas explicam, mecanicamente, a matria, a
forma e o sentido da construo oswaldiana. Dir-se~ia que
o procedimento metodolgico que leva o ensasta a essa
concluso obedece a uma sumria aplicao do princpio
de causalidade. Dados os antecedentes a e b de C (a
"antropofagia" oswaldiana), C o efeito anlogo de que
a e b so as causas necessrias, portanto originais, no
cabendo a C, que delas resulta, seno a categoria de reflexo
ou decalque.
10. HEITOR MARTINS, Canibais EUl'opeus e Antropfagos Brasileiros
(Introduo ao estudo das origens da antropofagia), Minas Gerais,
14 Suplemento Literrio, 9 de novembro de 1968, pp. 1/3.
Esse mtodo de explicao causalista pelos antece-
dentes, em histria da literatura, bastante traioeiro:
aparenta levar-nos muito longe, mas a nenhuma parte
conduz. Conceber-se os antecedentes como possveis ou
provveis foras a que esteve mentalmente sujeito deter-
minado autor - foras externas tambm chamadas in-
fluncias, sem a ao das quais no teria ele produzido
o que produziu, idia acertada, desde que nos apressemos
a esclarecer que as influncias, quando profcuas, equi-
valem a um sistema de confluncias, dentro do processo
intercomunicativo que se chama histria da literatura. E
foi esse o sistema que prevaleceu entre os canibais
europeus.
Como bem percebeu Heitor Martins, a imagem do
canibal estava no ar. Por isso, quem se aventura a esta-
belecer os antecedentes literrios privilegiados que ela
teve, ser obrigado a recuar de autor a autor, indefinida-
mente. Essa imagem, que a nenhum autor pertenceu,
fez parte de repertrio comum a todos, e a todos serviu,
de acordo com as intenes especficas de cada qual.
Mas, para tirar a prova disso, pratiquemos o recuo que
nos levaria aos antecedentes causais primeiros. J comea
a dificuldade no ponto de partida. De onde partiremos?
De Cendrars? Seja. De qual porm dos Cendrars? Do
que se interessou pelos faits divers do canibalismo em
em ao no Congo 11 , ou do autor de Anthologie Ngre 12,
onde o canibalismo aparece fundido substncia mtica
dos contos africanos? Mas Cendrars leva-nos a Apollinaire:
11. !IErrOR MARTINS, idem.
12. BLAISE CENDRARS, Anthologie Ngre (nouvelle ditiOn), AU
Eans Paxeil, 1927. Ver sobretudo Histoire de l'oiSeau qui fait du lS
lait e Kommapa et Litaolan (!e grand cannibale).
Madame Salmajour avait appris en Ocanie tirer
les cartes
C'est l-bas qu'elle avait eu l'occasion de participer
une scene savoureuse d'anthropophagie
Elle n'en parlait pas tout le monde 13,

Como Madame Salmajour, vemos outro personagem,


de um conto de Apollinaire, Cox-City, regalar-se com
tenros nacos de carne feminina. Mas seria errneo ver
nisso um antecedente da manducao ertica de Il Negro,
de Marinetti, que de 1922, da mesma forma que no
podemos explicar este ltimo pela metfora da deglu-
tio como posse completa, largamente consumida entre
1917 e 1919.
":E: mais certo possuir algum pelo corao ou pelo
estmago?", perguntava Ribemont-Dessaignes, que igual-
mente descreveu, em termos antropofgicos, os incidentes
de um Salon d'Automne 14,
Irnico-pitoresco em Apollinaire, instintivo e nar-
cisista em Marinetti, etnogrfico em Cendrars, a antropo-
fagia integra o vocabulrio da agresso dadasta, como
hiprbole gestual. No percamos de vista, ainda, nos
escritos da poca, o recurso a termos de fisiologia, sobre-
tudo a digestiva, para exprimir o conhecimento ou a
experincia artstica. ainda Ribemont-Dessaignes quem
escreve:
Ainsi le mang connait par l'intrieur - ce n'est pas ici
le tube digestif - la substance du mangeur 15*.
13. APOLLINAIRE, Ca.lligra.mmes (Sur les prophties.}.
14. "n est aver desorma.is que le plus pur moyen de tmolgner
de l'amour son prochaln est blen de le manger .. " Oivilisa.tion,
1n 391, n. 3, 1917, Barcelona. - "Au cours de la scene anthro-
pophag1que qUi se droUla ao Grand Pala1s ... , in 391, 16 dcembre,
1919, Paris.
16 15. GEoRGES RmEMON'l', Dessa.ignes, OiviLisation, clt.
Um Cocteau tambm no escapa ascendncia da
terminologia digestiva, que se harmoniza com a culinria
intelectual canibalstica.
Notre esprit digere bien. L'objet profondement assimil
se mue en force et provoque un ralisme suprieur la simples
copie infidele, u

escreveu o autor de Parade, que muito mais tarde, em


La di/icult d' tre, falaria da voracidade e do vampirismo
da Natureza e da Arte 16.
A fortuna da terminologia digestiva, cruzando-se com
a antropofgica, j vigorava, desde 1917, nas procla-
maes anti-estticas de dada:
Tous ceux qui regardent et qui comprennent se rangent
ai.sement entre la posie et l'amour, entre le beafteck et la
peinture. Ils seront digrs, ils seront digrs 17***.

E ainda podemos ir mais longe, ainda podemos


recuar, nessa busca dos antecedentes, at ao repositrio
da sabedoria patafsica, que so os Almanaques do Pere
Ubu, um dos quais registra guloseimas para os amateurs
anthropophages 18
De recuo em recuo, tudo se embaralha e se confunde.
Onde, pois, devemos parar? Provavelmente em Sade,
se no for em Charles Perrault ...
A imagem do canibal, nos limites da poca que nos
interessa, dependia de uma fonte mais ampla e profunda,
16. CocTEAu, Le Coq et L'Arlequin, Paris, Ed. stock, 1948, p. 39.
17. TRISTAN TZARA, Sept Manifestes Dada, Lampisteries, Paris,
Jea.n-Jacques Pa.uvert, 1963, pp. 45/46.
lS. JARRY, Almanach du Fere Ubu, Tout Ubu, Le Livre de 17
Poche, p, 409.
de cujas guas muita gente bebeu. Era apenas a mais
ostensiva e gritante, mas no a nica da emanando. O
pano de fundo de encontro ao qual ela aparece e trans-
parece na literatura de vanguarda das primeiras dcadas
do sculo, a enorme tela colorida do primitivismo, que
a ao conjunta da arqueologia e da etnologia modernas
- uma trazendo as revelaes da arte pr-histrica, outra
o impacto da arte africana - desdobrou sobre o racio-
nalismo da cultura europia.
A imagem antropofgica, que estava no ar, per-
tencia ao mesmo conjunto, ao mesmo sistema de idias,
ao mesmo repertrio comum, que resultou da primitividade
descoberta e valorizada, e a que se integravam, igualmente,
na ordem dos conceitos, a mentalidade mgica, de Levy-
Bruhl e o inconsciente freudiano. : muito significativo
que ento a vanguarda literria, em boa parte sob a
influncia de Nietzsche, pensador que marcou a fonnao
intelectual de Oswald de Andrade, e para quem a cons-
cincia do homem sem ressentimento equivalia capa-
cidade fisiolgica de bem digerir - se tivesse apossado
do canibal, dele fazendo um smbolo, no mesmo momento
em que a Psicanlise comearia a desnudar, no homem
normal, civilizado, comportamentos neurticos, que po-
dem gravitar em torno da mesma simbologia da inter-
dio, presente nos atos de antropofagia ritual.
Totem e Tabu, que sai em 1912, associa o parricdio
ao canibalismo, na transio hipottica da horda ao cl.
So inmeras, nesse perodo, as descries e hipteses
explicativas que as diversas formas de antropofagia ritual,
do endocanibalismo aos sacrifcios humanos de carter
expiatrio, vo suscitar. Na bibliografia sobre o assunto,
18 vm somar-se aos relatos de viajantes e coleta de ma-
teria! etnogrfico, tratados e monografias do ponto de vista
psicolgico e mdico 19,
A fonte da "antropofagia literria" manava pois
desse territrio da primitividade, que recama todos os
territrios geogrfico-polticos, e com o qual a civilizao
tcnica vinha de encontrar-se. O encontro, de conseqn-
cias profundas e duradouras, e que colocou a Etnologia
num dos focos do pensamento contemporneo, verificou-se
no momento em que a reflexo filosfica tentava, sob o
empenho das correntes vitalistas, racionalizar o irracionaL
Comeava, ento, esse dilogo, que at hoje continua,
entre o pensamento lgico e o upensamento selvagem",
a cujo desenvolvimento se deve, em parte, a tremenda auto-
anlise do homem contemporneo, que se dilacera a si
mesmo, dilacerando os seus mitos.
Por que no admitirmos que Oswald de Andrade
pudesse se aproximar dessa fonte de que todos bebiam,
e retirar, com igual direito, o seu quinho, que assentaria
o compromisso do Modernismo brasileiro com uma pro-
priedade comum da poca moderna? Fixou-se, em torno
dos signos da primitividade, que jorravam do manancial
descoberto, o ponto de convergncia de nossa vanguarda
modernista com as vanguardas europias. Queremos dizer
que tais signos, enquanto elementos vivos daquela parte
da cultura brasileira, qualificada de "brbara" por Graa
Aranha, cumpriram funo mediadora, ligando o senti-
mento nativo, intensificado em 22, valorizao, levada
a efeito pelos movimentos europeus, do Futurismo ao
Surrealismo, dos componentes mgicos, instintivos e irra-
cionais da existncia humana.
19. Ver a bibliografia. estabelecida. por Roland Villeneuve em
Histoire du Cannibalisme, Le Livre Club du Libralre. Desta obra
convm destacar o captulo "Canniba.lisme et Littra.ture." 19
Para avaliarmos o aproveitamento que Oswald de
Andrade fez disso tudo, preciso, portanto, que o situe-
mos, a ele e sua obra, perante o sentido que a vida
primitiva e a primitividade em geral alcanaram nas
experincias vanguardistas da poca.
O segundo ponto de referncia, que semelhante ava-
liao exige, a prpria obra de Oswald de Andrade, da
qual fazem parte os dois Manifestos, o Pau-Brasil, de
1924 e o Antropfago, de 1928, insubstituveis peas de
convico no levantamento das idias oswaldianas e na
prpria dialtica do Modernismo. Finalmente, como ter-
ceiro ponto de referncia, temos o Modernismo mesmo,
que contrabalanou, na sua fase militante, com o anteparo
do esprito crtico, a natural receptividade ao esprito das
vanguardas europias, que o caracterizou. :g o que vere-
mos em seguida.

III

A vanguarda intelectual do Modernismo brasileiro,


sobretudo na fase herica e militante desse movimento,
nunca perdeu contacto com as correntes vanguardistas
europias do primeiro quarto do sculo XX. Foi um
contacto ativo, que se produziu, em diferentes nveis, de
acordo com intenes diversas. Ora distncia, pela
recepo de mensagens tericas vindas dos arraiais futu-
ristas, expressionistas, cubistas, dadastas e surrealistas,
ou pela leitura das obras representativas de tais correntes,
ora mediante participao direta no clima intelectual
europeu, Mrio e Oswald de Andrade jamais deixaram
de acompanhar a marcha da revoluo artstica mundial.
20 Fizeram-no, entretanto, utilizando a combinao, ausente
do epigonismo e da subservincia eufrica dos seguidores
da moda, da receptividade generosa e do senso crtico
que rejeita, seleciona e assimila.
O mapa da poesia moderna, que A Escrava que
no Isaura, inspira-se nessa combinao. Paraso po-
tico, onde aparecem, conciliados, seguidores de tendncias
diferentes e opostas, A Escrava. . . pode ser tambm o
paraso do historiador da literatura interessado em iden-
tificar as preferncias, os pactos, os amores, as "relaes
perigosas" que alimentaram a flama de nossa revoluo
literria. Nesse catlogo de exemplares poticos e de
conceitos compreensivos do novo lirismo, encontram-se
reunidos, num gape enciclopdico-literrio, de carter
internacionalista, poetas como Andr Salmon e Cocteau,
Cendrars, Marinetti, Max Jacob, Folgori, Govani, Rui-
dobro, Ivan Goll, Hans Becher, Palazzeschi, Baudouin,
Amy Lowell, Vidrac, Picabia, Tzara, Paul Morand, Drieu
de la Rochelle, Aragon e Soupault. Figuram, ao lado
desses, os crticos da poca, Paul Derme, Thibaudet,
Epstein, nos quais Mrio de Andrade foi buscar os con-
ceitos tericos, sociolgicos uns, psicolgicos outros, de
que necessitava para interpretar a origem e o alcance da
linguagem lrica dos tempos modernos.
Mas no exulte o historiador da literatura com a
descoberta de influncias assim to a descoberto, to
obstinadamente reveladas pelo prprio autor. Mrio de
Andrade corrige e escolhe o que recebe. Reage contra
as sedues da moda, desconfiando da qualidade da mer-
cadoria parisiense importada. Assim que, citando Paul
Derme, que definiu a poesia como soma do lirismo
e da arte, acrescenta definio do colaborador de
Nord-Sud, dois outros elementos, a inteligncia crtica, 21
que decanta a experincia subjetiva, e o circuito da
palavra, "solta, fecundante", que garante expresso
o seu poder comunicativo 2. Irnico diante da versatili-
dade potica de Cocteau, Mrio de Andrade sorri, de
longe, como receio de ferir o que muito venera, das
atraes que a grande feira literria de Paris oferece:
No se importar Paris que eu lhe envie de minha imvel
So Paulo um sorriso meio irnico. . . Portanto, coloque-se nesse
lugar um sorriso meio irnico dirigido cidade de Paris.

A Escrava que no Jsaura, continuao do "Pre-


fcio Interessantssimo", de Paulicia Desvairada (1922),
ilustra bem, independentemente do valor que possamos
atribuir ao polifonismo ou harmonismo com que Mrio
de Andrade recobriu o realismo psicolgico de sua poe-
sia, o sentido ativo das relaes de nossa vanguarda mo-
dernista com a europia. Embora sob o peso da fama
de certos nomes, embora recorrendo s fontes autorizadas
do momento - as poticas de Apollinaire, de Max J acob,
e de Cendrars, a crtica de Nord-Sud, de Sic ou de
L'Esprit Nouveau, - Mrio de Andrade soube utilizar
os reflexos recebidos como matria de reflexo, que a
reflexo assimilou e transformou 21.
bem verdade que o historiador de literatura, j
com a vantagem da distncia temporal que lhe permite

20. Paul Derme: Lirismo + Arte = Poesia. "Quem conhece os


estudos de Derme sabe que no fundo ele tem razo. Mas errou
a frmula ... " - MIUo DE ANDRADE, A Escrava ... , Livraria Martins
Editora, p. 205.
21. "Sei que dizem de mim que imito Oocteau, e Papini. Ser
j um mrito ligar esses dois homens diferentissimos como grcil
lagoa de impetuoso mar. verdade que movo com eles as mesmas
guas da modernidade. Isso no imitar: seguir o espirlto de
uma poca." - MRIO DE ANDRADE, Cartas a Manuel Bandeira, Edio
22 de Ouro, p.l24.
uma viso de conjunto dos movimentos por meio dos
quais a modernidade literria se manifestou, acabar reco~
nhecendo o quanto inadequado e insuficiente o conceito
de reflexo para explicar o aparecimento, quase que simul
tneo, na produo literria do primeiro quarto de sculo,
de formas, proces-sos e valores comuns, que se reduzem
aos seguintes aspectos de uma s problemtica: a procura
de uma nova linguagem, o ajustamento da expresso
sensibilidade da poca, a crtica da literatura pela litera
tura, a revolta contra o realismo do sculo XIX, o uso
consciente da literatura como instrumento de revolta so
cial, a defesa de um estatuto especfico da linguagem
potica, o advento de um novo sentido da mimese que
se exprime como impossibilidade de copiar uma realidade
mltipla, fugidia e mutvel. Futurismo, Cubismo, Da-
dasmo, Surrealismo, como ondulaes da impetuosa mar
montante da modernidade, produziram a inquietude est
tica de que surge, por um movimento reflexivo de auto
fundao, a literatura contempornea.
O esprito de vanguarda, no perodo a que nos refe-
rimos, impulsivo e incoerente. A retrica turbilhonante
da vida moderna, trazida pelos futuristas, ope-se a ne
gao ctica de todo valor artstico e literrio pelo
Dadasmo. O recuo pirrnico de uma tendncia corrige
o progressismo impiedoso da outra. Alternam-se os ritmos
da destruio e da construo; o senso do futuro mo-
difica o entendimento do passado. Faz-se apelo at
mesmo a um passado trans-histrico, que confina com o
futuro utpico, como aquele passado pr-cabralino a que,
paradoxalmente, a "antropofagia" oswaldiana, em 1928,
antepe e pospe ao presente, e no qual o tempo sem
memria de um mito mergulha no tempo esperanoso 23
de uma utopia a realizar. No nos admiremos, portanto,
que o esprito de vanguarda, atento para as realidades
atuais e para as realidades possveis, invertesse o seu
prospectivismo e fosse levado a interpretar-se, enquanto
atividade fundadora, como um novo primitivismo. Somos
os primitivos de uma futura perfeio, afirmava Mrio 22.
Assumem esse novo primitivismo a viso pura do
Cubismo, a imagination sans fil do futurismo - que
condizia com a idia do selvagismo tcnico ou da barbrie
tecnizada de Keyserling 23 - a agressividade dadasta e
a livre associao programtica do Surrealismo, que apro-
veitou conscientemente a explorao freudiana do incons-
ciente. Nosso primitivismo modernista, que corresponde
a essas tendncias das vanguardas europias, no reedita
nenhuma de suas espcies. Compreende-as a todas, com-
preendendo as dimenses popular, etnogrfica e folclrica
da primitividade brasileira. Nessas condies, uma vez
que a sensibilidade moderna se encurvava na direo do
arcaico, entre ns existindo em estado de cultura ativa,
a descoberta da primitividade situava-nos no mesmo terri-
trio comum e suprageogrfico, onde a fuso do origi-
nrio com o novo situava os prprios rebeldes europeus.
Foi atravs da ptica do primitivismo assim com-
preendido, que Oswald de Andrade interpretou e assi-
milou sua prpria obra as conquistas formais, as ousadias
tericas e o estilo de ao prtica da literatura e da
arte novas, que se acumulavam, s vsperas do advento
do Surrealismo, na ambincia intelectual da Paris agitada

22. No Prefcio Interessantssimo j dissera: "Somos na reali


dade os primitivos de uma nova era."
23. O brbaro tecnizado de Keyserliug referncia fundamental
24 do Manlfseto Antropfago.
pelos ltimos fogos cruzados das pequenas e irreverentes
revistas adversas, a que ligaram seus nomes Cocteau e
Radiguet, Picabia, Eluard e Tzara.
Mrio de Andrade acompanhava de So Paulo, lendo
e anotando, os ecos dessa batalha campal, de que Oswald
de Andrade assistia o coroamento, que foi o solene Te-deum
surrealista celebrado pelo profeta Breton. Foram eles,
Mrio e Oswald, duas formas, dois estilos de participao
dos nossos modernistas nas fontes europias: o primeiro
to-somente pela viagem meditativa atravs dos textos,
que se completou por duas outras viagens pelo Brasil, a
Minas e ao Norte; o segundo, mais por impregnao
atmosfrica, por essa captao intuitiva que se faz atravs
da convivncia com pessoas e coisas. Tanto um como
outro, e cada qual dentro de seu irredutvel modo de ser,
concentrado em Mrio, dispersivo em Oswald - tanto
um como outro, naturezas opostas e complementares, que
se completaram no empreendimento de 22, assumiram,
diante do movimento europeu, a atitude de dialogao,
que implica em receptividade crtica. Mas convergindo,
por via do "estilo de vida social internacional" 24, que
ento comeava, na direo das vanguardas do Velho
Mundo, eles foram ao encontro das alas distantes de um
mesmo movimento, geograficamente repartido, que os fios
tensos de uma s problemtica uniam.
Para Oswald de Andrade sobretudo, era o primiti-
vismo que nos capacitaria a encontrar nas descobertas e
formulaes artsticas do estrangeiro aquele misto de in-
genuidade e de pureza, de rebeldia instintiva e de ela-
borao mtica, que formavam o depsito psicolgico e
24. A expresso de Mrio de Andrade em O Empa~hador de 25
Passarinhos (Literatura Nacional).
tico da cultura brasileira. Na famosa conferncia que
pronunciou na Sorbonne, to destoante do esprito re-
belde de 22 quanto benvola e conciliatria, Oswald de
Andrade, que parecia ter esquecido o rompimento, ento
recente, do qual ele fora um dos promotores, no esquece
de assinalar o parentesco que ligava, pelos laos da valo-
rizao da herana ancestral e primitiva, as novas incli-
naes da literatura brasileira com o impulso renovador
que a arte negra havia transmitido arte europia.
Nunca, [diz Oswald), se pde sentir to bem, na ambincia
de Paris, o encontro sugestivo do tambor negro e do canto
indgena. Essas foras tnicas esto em plena modernidade 25,

A conferncia de Oswald valia como ato pblico


declaratrio das afinidades profundas que existiam, pelo
lado da vivncia direta das foras primitivas da nossa
cultura, entre o Modernismo brasileiro e o Modernismo
europeu. Muito daquilo que os nossos poetas vo retirar
do movimentado campo das vanguardas parisienses est
impregnado por um esprito que tambm nos pertence,
e que continha possibilidades de expresso latentes em
nossa herana culturaL
As terrveis ousadias de um Picasso, um Brancusi, um Max
Jacob, um Tristan Tzara, eram no fundo, mais coerentes com
a nossa herana cultural do que com a deles. O hbito em
que estvamos do fetichismo negro, dos calungas, dos ex-votos,
da poesia folclrica nos predispunha a aceitar e a assimilar pro-
cessos artsticos que na Europa representavam ruptura profunda
com o meio social e as tradies espirituais 26,

25. OSWALD nE ANDRADE, L'effort intellectuel du Brsil contem-


porain, Revue de l'Amrique Latine, 1-7-1!123, pp, 197/207.
26. ANTNio CNDIDO, Literatura e Sociedade, So Paulo, Editora
26 Nacional, p, 145.
Parece-nos, pois, que o estudo das influncias no
Modernismo brasileiro no pode ser orientado segundo
uma perspectiva unilateral, que atribua ao nosso movi-
mento a posio de receptor passivo de emprstimos de
fora. Quando os receptores tambm so agentes, quando
a obra que realizam atesta um ndice de originalidade
irredutvel, que o emprstimo gerou uma relao bila-
teral mais profunda, por obra da qual o devedor tambm
se torna credor. A tese da congenialidade do Modernismo
brasileiro, defendida por Antnio Cndido, atende a essa
perspectiva bilateral que devemos usar como principio
metodolgico.

Os nossos modernistas, ensina a esse propsito Antnio Cn~


dido, se informaram pois rapidamente da arte europia de van~
guarda, aprenderam a psicanlise e plasmaram um tipo ao mesmo
tempo local e universal de expresso, reencontrando a influncia
europia por um mergulho no detalhe brasileiro. impressionante
a concordncia com que um Apollinaire e um Cocteau ressurgem,
por exemplo, em Oswald de Andrade 27.

Ningum mais do que Oswald de Andrade acentuou,


e s vezes at exageradamente, as ntimas relaes entre
a atividade do grupo de 22 e as correntes renovadoras
da poca28. Ter-se-ia repetido em 22, no plano literrio
e artstico, o que se deu em 1789 no poltico-ideolgico:

27. ANTNio CNDIDO, idem.


28. "Trouxe para c essa inquietao, es81t vontade de renovao
que grassava intensamente na Europa e procurei atrair os intelectuais
no empedernidos nas ovelhas correntes estticas para um movimento
srio que nos conduzisse a novos rumos. Devo dizer mais que,
embora intimamente ligado ao pensamento francs dominante
(Cocteau, Cend.rars, Valry~Larba.ud, Jules Romains), instalamos aqui
uma revoluo esttica que se pode chamar de colateral do movi~
mento francs, porquanto teve seus rumos originais" - oswald
fala posteridade, Quincas Bora, n.0 5, So Paulo. 27
o mesmo contacto subversivo com a Europa se estabeleceu
para dar fora e direo aos anseios subjetivos nacionais, autori-
zados agora pela primeira indstria, como o outro o fora pela
primeira minerao 29,

No que diz respeito sua prpria obra, Oswald no


esconde com que autores sintonizava e para onde iam
as suas preferncias. Abra-se Joo Miramar: Machado
Penumbra, que fala nas sugestes do Salon d'Automne,
confessa-se adepto da esttica do Cubismo. Leia-se a
dedicatria de Pau-Brasil a Blaise Cendrars, reconheci-
mento do dbito que o autor contrara com o "pirata
do Lago Leman".
Na ptica do primitivismo, - do primitivismo que
foi "o nosso nico achado de 22" 30 - e que a linha
de coerncia intelectual de Oswald de Andrade - o
Manifesto Pau-Brasil e o Manifesto Antropfago fundem
e assimilam os estmulos que ele recebeu da atmosfera
intelectual parisiense. Tanto o primeiro como o segundo
desses documentos exprimem a conscincia de uma assi-
milao produtiva das contribuies do estrangeiro, que
Gonalves Dias e Jos de Alencar foram os primeiros
a praticar. Oswald concebe essa conscincia maneira
de um princpio ativo de nossa vida intelectual, que
deveria vigorar tanto no aproveitamento literrio dos
aspectos "brbaros" da cultura brasileira, quanto na absor-
o potica dos aspectos ultracivilizados do mundo
tcnico-industrial.
no Manifesto Antropfago que se percebe porm
que o princpio da assimilao, teoricamente formulado,
29. OSWALD DE ANDRADE, "0 Caminho Percorrido", in Ponta de
Lana, So Paulo, Livraria Martins Editora, p, 118.
28 30. 0SWALD DE ANDRADE, idem,
se integrou, tanto quanto o primitivismo, dialtica do
movimento modernista.

IV
No so das vertentes dadastas que saem as guas
nutrizes dos principais conceitos estticos empregados no
Manifesto Pau-Brasil. Dir-se-ia at mesmo que Oswald
de Andrade se voltava, nesse momento, para as alas
mais conservadoras da vanguarda europia que j consti-
tuam uma espcie de sedimentao histrica do moderno.
Salvo Cendrars, que expressamente mencionado, os
demais contribuintes a esse Manifesto s aparecem, ao
contrrio do que se passa em A Escrava que no Isaura,
de Mrio de Andrade, por trs de certos conceitos, ento
largamente difundidos.
Blaise Cendrars, com quem Oswald de Andrade
privou no perodo que vai de 23 a 25, aparece no Mani-
festo Pau-Brasil autenticando a experincia de sntese, na
literatura nacional, por parte dos revolucionrios de 22,
do primitivo e do moderno, aspectos contrastantes da
cultura nacional 31 O primitivo era a imprevisibilidade, o
irracional, que "ao menor descuido vos far partir na
direo oposta ao vosso destino"; o moderno, a previso
que ordena, a razo que organiza, a "prtica culta da
vida", cujo regime a civilizao tcnico-industrial impunha.
Engenheiros em vez de jurisconsultos perdidos na genealogia
das idias 32.

31. "Uma sugesto de Blaise Cendrars: Tendes as locomotivas


cheias, ides partir. Um negro gira a manivela do desvio rotativo
em que estais. O menor descuido vos far partir na direo oposta
ao vosso destino." - Manifesto Pau-Brasil.
32. Manifesto Pau-Brasil 29
Blaise Cendrars insistiria, numa de suas conferncias
pronunciadas em So Paulo, sobre a afinidade do poeta
com o engenheiro, do artista com o tcnico 33. Segundo
ento afirmara o poeta francs, o estilo novo da poesia,
aberto s novas formas. da linguagem e da comunicao,
sensvel ao cartaz e ao anncio, ao cinema e ao jornal
luminoso, no podia prescindir nem da colaborao dos
engenheiros nem da anlise lingstica. Essas verdades,
que j tinham sido proclamadas pelos futuristas, integram
a nova escala da sensibilidade contempornea, de que
falava o Manifesto de 1924:

O reclame produzindo letras maiores que torres. E as novas


formas da indstria, da viao, da aviao. Postes. Gasmetro.
Rails. Laboratrios e oficinas tcnicas. Vozes e tiques de fios
e ondas e fulguraes. Estrelas familiarizadas com negativos
fotogrficos. O correspondente da surpresa fsica em arte 34.

Substituindo o detalhe naturalista pela sntese, vi-


sando ao equilbrio gemetra e ao acabamento tcnico,
o trabalho do poeta, ajustado a essa nova escala, susten-
tava-se, para Oswald de Andrade, na inveno e produ-
ziria a surpresa. A primeira se confunde com a atividade
do poeta, que jamais copia uma pretensa realidade natu-
ral; a segunda o efeito que essa atividade produz quando
de tudo, do banal e do risvel, sabe extrair uma im-
presso nova. Apollinaire havia falado de uma e de
outra em L'Esprit Nouveau:
33. ". . . nous qui voulons crer un style nouvea.u en colla-
boration a.vec les ingnieurs" Blause Cendrars, Le pote moderna
dans l'ensemble de la Vie contemporaine, Aujourd'hui, Potes (de-
di Paul Prado) in Oeuvres Completes, Quatrime Volume (La
perle fivreuse et autres), Chez Denol, 1960.
30 34. Manifesto Pau-Brasil.
C'est par la surprise, par la place importante qu'il fait la
surprise, que l'esprit nouveau se distingue de tous Ies mouvements
artistiques et littraires qui l'ont prcd 35*.
Cendrars, franco-atirador, que execrava as corvias
impostas pelas capelas e igrejas literrias 36, absorvera um
pouco de todas as escolas, inclusive e principalmente do
Cubismo, de que Apollinaire se apropriou, tentando uni-
ficar, em Les Peintres Cubistes 37, numa s formulao,
os princpios essenciais da linguagem potica e da lin-
guagem plstica. Oswald, ponta-de-lana do nosso Mo-
dernismo, a todas tambm deveu um pouco - e devendo
a Cendrars, deveu a Apollinaire tanto quanto este ao
Cubismo, que o autor de Miramar assimilou ao fragmen-
tarismo de sua prosa. O sentido puro das coisas e dos
materiais, a que o artista, conforme anunciava o Manifesto
Pau-Brasil tenderia a voltar, tem a ver com a pureza
que, para Apollinaire, constitua, ao lado da verdade e
da unidade, a primeira das trs virtudes plsticas funda-
mentais 38
Os princpios gerais da esttica Pau-Brasil descen-
dem mais dos herdeiros espirituais de Apollinaire, que se
entrincheiraram nas pginas de Nord-Sud, onde apare-
35. ArottiNAIRE, L'Esprit Nouveau et zes Potes, Paris, Chez
Jacque Haumont, 1946.
36. CENORARS, "La voix du sang", in Trop c'est trop.
37. "Les vertues plastiques: Ia. purt, l'unit et la vrit
maintiennent sous leurs pieds Ia. nature terrasse" - APOLLINAIRE,
Les peintres cubistes, Genve, 1950, p. 7.
38. "Nossa poca anuncia a volta ao sentido puro" - Ma-
nifesto Pau-B.rasll. - Haroldo de Campos mostra, a propsito da.
prosa. de Miramar, que oswald de Andrade procede como pintor
cubista, "que junta um olho a uma perna ... " - in OswALD nE
ANORAOE, Trechos Escolhidos, Rio, Agir Editora, 1967. - Recente-
mente Angel Crespo, em trabalho do qual s tivemos conhecimento
aps a concluso destes artigos, que insiste nas ligaes entre a
esttica de Oswa.Id e a esttica do Cubismo. Vide a esse respeito
Introduo Breve a. Oswaid de Andrade, Revista da Cultura Bra-
siLeia, Madri, n. 0 26, tomo vn, sept., 1968. 31
ceram artigos tericos de Pierre Reverdy, Max Jacob,
Georges Braque, Paul Derme (este lido e apreciado
por Mrio de Andrade), do que da estirpe dadasta.
Enquanto esta denegava validade ao conceito de obra
de arte, os colaboradores daquela publicao defendiam
uma esttica "feita de concentrao, de composio e de
pureza" 39. Nesse sentido, a obra de arte, que deveria
ser concebida tal como um operrio concebe o cachlmbo
ou o chapu de sua fabricao, obedeceria ao requisito
de "acabamento tcnico'', exigido por Oswald de
Andrade 40
No se limitando porm a divulgar essas proposies
da vanguarda esttica, o Manifesto Pau-Brasil sinteti-
za-se numa concepo da cultura brasileira, to esque-
mtica quanto ousada, e que tambm uma apologia da
forma que expresso dos fatos dessa cultura devia ser
dada. Semelhante projeto era, em parte, decorrncia da
reflexo de Oswald sobre a sua prpria obra. Mas a
tese fundamental daquele documento, que a originali-
dade nativa, transcende esse projeto individual, para corres-
ponder, atravs do primitivismo, contradio, inerente
dialtica do Modernismo, entre a cultura intelectual
e a cultura no sentido antropolgico amplo 41.
39. PAu.t. DERME, Quand le symboUsme fut mort, Nor-Su, n. 0 1,
mar. 1917.
40. "O acabamento de carosserie" e "acabamento tcnico" so
termos do Manifesto Pau-Brasil. O mesmo conceito em Pa-ul Derme
(Nor-Sud, art. clt.) e em ALIIERT-BIROT: "Un oeuvre d'art doit tre
compose comme une machine de prec1sion" - Sic. n.0 s 8, 9, 10,
1916. - Em Mrio de Andrade, igUalmente: "A arte uma mquina
de produzir comoes" (A Escrava que nti,o Isaura).
41. Trata-se, para Antnio Cndido, de uma ambigidade fun-
damental: "a de sermos um povo latino, de herana cultuxal
europia, mas etnicamente mestio, situado no trpico, influenciado
por culturas primltivas, amerndias e africanas". "Literatura e Cul-
tura de 1900 a 1945" (Panorama para estrangeiros) in Literatura e
32 Sociedade, So Paulo, Editora Nacional.
Para Oswald, a originaUdade nativa compreendia os
elementos populares e etnogrficos da cultura brasileira,
outrora marginalizados pelo idealismo doutoresco da in-
telligentsia nacional no sculo XIX. Mas inclua tambm
"o melhor de nossa tradio lrica", forosamente romn-
tica - e a inteira tradio lingstica que o uso ideo-
lgico da lngua portuguesa no Brasil neutralizara 42
Seria ento preciso liberar a originalidade nativa das
camadas idealizantes e ideolgicas que a recobrem e re-
calcam, para encontr-la j, em estado de pureza, nos
fatos significativos da vida social e cultural, que consti-
tuem a matria-prima da poesia Pau-Brasil. Essa mesma
originalidade deveria impregnar os produtos da civilizao
tcnico-industrial para assimil-los paisagem, s con-
dies locais. Depois de intelectualmente digeridos, tor-
nar-se-iam tambm fatos de nossa cultura, esteticamente
significativos 43.
O primitivismo de Oswald de Andrade em Pau-Brasil,
tende para uma esttica do equilbrio. Ele pretende rea-
lizar, na expresso, o mesmo acordo harmonioso que se
produziria na realidade, graas a um processo de assimi-
lao espontnea, entre a cultura nativa e a cultura in-
telectual, entre "a floresta e a escola" 44.
No se pode dizer que Oswald de Andrade tenha
de todo abandonado, no Manifesto Antropfago, essa
idia de assimilao espontnea, com a qual procurou
42. "A lngua sem arcaismos, sem erudio. Natural e neolgica.
A contribuio m1Uonria de todos os erros. Como falamos, Como
somos." - Manifesto Pau-Brasil.
43. "Apenas brasileiros de nossa poca. O necessrio de qui-
mica, de mecnica, de economia e de balistica. Tudo dierido." Do
Manifesto Pau-Brasil.
44. "Temos a base dupla e presente - a floresta e a escola" -
Do Manifesto Pau-Brasil. 33
resolver, no Manifesto Pau-Brasil, a contradio entre as
duas culturas. Mas o Manifesto Antropfago, que submete
a cultura intelectual, descrita no documento anterior, a
uma crtica mordaz e destrutiva, reabre a contradio.
O pensamento selvagem, sob a forma de inconsciente
coletivo, antropofgico, torna-se nele, como fonte de
valores metafsicos, ticos, estticos e polticos, um meio
de violenta transparncia, luz do qual sobressaem outras
mais profundas contradies, que dependem das estru-
turas sociais e da origem colonial de nossa histria 45
A idia de assimilao amplia-se nesse novo con-
texto, alcanando o sentido de ao vital, de rebeldia
espontnea e permanente, que se entronca a uma anti-
histria e a uma anti-sociedade de que a antropofagia
ritual o smbolo, e cujos antecedentes unem o huma-
nismo crtico de Montaigne revoluo surrealista do
imaginrio contra a inteligncia lgica, do inconsciente
contra o poder de censura do superego 46 Como se v,
o primitivismo tende a tornar-se aqui o instrumento
agressivo, a arma crtica impiedosa com que se pretende
atingir, de uma s vez, o arcabouo - tico, social, reli-
gioso e poltico, - que resultou do passado colonial da
histria brasileira.
No "antropofagismo" tudo contraditrio, e tudo
significativo por ser contraditrio. Mitifica-se a antropo-
45. O Manifesto Antropofgico nivela a influncia dos jesutas
(moral catequtica) influncia da mentaHdade doutoresca de
Coimbra. Ambas teriam sido de carter paternalista dentro da so-
ciedade patriarcal, cuja superestrutura abriga a moral sexual da
Cegonha, a. autoridade do senhor de escravos, o regime da grande
propriedade (por oposio propriedade coletiva indgena).
46. "Flliao. O contacto com o Brasil caraiba. Ou Vlllegaignon
print terre. Montaigne. O homem natural. Rousseau. Da Revoluo
Francesa ao Romantismo, Revoluo Bolchevista, Revoluo
surrealista e ao brbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos" -
34 Do Manifesto Antropofgico.
fagia, e utiliza-se o mito, que irracional, tanto para
criticar a histria do Brasil - para desmistific-la -
quanto para abrir-lhe, com o apelo igualitarista da socie-
dade natural e primitiva, um horizonte utpico, em que
o matriarcado, smbolo da liberdade sexual, substitui o
sistema de sublimaes do patriarcado rural 47. Mas essa
contraditoriedade, que se mantm em suspenso, bem a
resultante do impasse do Modernismo, em 1928, quando
chegara encruzilhada dos caminhos que o levariam da
revoluo esttica revoluo poltica e conseqente
exausto da fase militante do movimento, em 1930.
Muitas formulaes do Manifesto Antropfago tm
um sentimento polmico, dentro do processo intelectual
desse movimento. Assim, por exemplo, a esquematizao
de uma metafsica brbara rplica improvisada metaf-
sica europeizante de Graa Aranha 48. Por outro lado,
culmina nesse Manifesto, por um golpe voluntrio de
inverso do curso das influncias modeladoras de nossa
vida intelectual, a conscincia da originalidade do pri-
mitivismo nativo. Atribuindo-se condio de herdeiro dos
instintos ancestrais da espcie, o primitivismo antropo-
fagstico, que se faz remontar ao manancial do imaginrio
e da vida impulsiva, seria a nascente de todas as revo-
lues, sem excetuar a surrealista. Vanguarda de todas
as vanguardas, o antropofagismo passaria da Amrica
Europa. . . A herana caraba reencontrava, assim, o

47. Esse horizonte utpico se precisaria nos escritos posteriores


de Oswald d-e Andrade (A Crise da. Filosofia Messidnica., A Marcha
das Utopias) e nas entrevistas dadas pelo autor entre 1950 e 1954.
48. GRAA ARANHA, A Esttica da VieZa, Livraria Garnier, 1921.
O Manifesto .Antropof.gico inverte a equao csmica de Graa Aranha.:
"Morte e vida das hipteses. Da equao eu parte do Kosmos ao
axioma Kosmos parte do eu." 35
mundo civilizado e devia fertiliz~lo. Nosso Modernismo,
cronologicamente atrasado, era um comeo, uma origem 49,
A imagem oswaldiana do antropfago e o conceito
respectivo de assimilao subordinam-se, portanto, a uma
forma de concepo que os vrios canibalismos literrios
da poca reunidos no podem preencher. H muita riqueza
nessa loucura sem mtodo ...
Longe de ns a inteno de negar que o canibalismo
dada e seus derivados no tenham ingressado todos pela
porta larga da receptividade de Oswald de Andrade. Mas
h uma distncia enorme quer na forma, quer no conjunto
de suas idias, entre o Manifesto Antropfago e o Mani-
festo Canibal de Picabia 50 Longe de ns, tambm, o
propsito de negar que o estilo de ao verbal dos
antropfagos brasileiros, na segunda fase da Revista de
Antropofagia, no tenha tido afinidades com o estilo
de agresso dadasta e com a rebeldia surrealista.
Defendemos, isto sim, o carter especfico da "an-
tropofagia" oswaldiana, como ensaio de crtica virulenta,
que atinge, ao mesmo tempo, visando desmitificao
da histria escrita, sociedade patriarcal e cultura
intelectual a que esta deu nascimento. Inconfundvel
tambm, o antropofagismo, que antecipou intuitivamente,

49. "Queremos a. revlouo Ca.raiba. Maior que a Revoluo


Francesa. A unificao de todas as revoltas eficazes na d1reo
do homem. Sem ns a Europa no teria sequer a sua pobre decla
rao dos direitos do homem" - "J tnhamos o comunismo. J
tnhamos a linguagem surrealista. A idade de ouro." - Do Mani-
festo Antropofgico.
50. Como h entre Memrias Sentimentais de Joo Miramar e
Jesus Christ Restaquouere, de Picabia. Nas duas obras existem
entrechos de prosa e pequenos poemas intercala.dos, o que poderia.
induzir-nos a concluir de seu parentesco por uma. falsa analogia.
Elas diferem tanto na :!'orma quanto nas intenes, na ordem dos
36 problemas, no processo de concepo,
em muitos pontos, a matria conceptual de Casa-Grande
e Senzala, de Gilberto Freyre, foi o momento final da
dialtica do nosso Modernismo, enquanto movimento
arregimentado.
H coerncia na loucura antropofgica - e sentido
no no-senso de Oswald de Andrade.

37
2. HOMEM DE MUITA F~

Numa longa entrevista, em 1947, ao Dirio Carioca,


Oswald de Andrade, como a traar um novo programa
de vida intelectual, dizia que suas leituras, mais filosficas
do que literrias, abrangiam, naquele momento, Plato e
Kierkegaard, os "existencialistas alemes", Scheller, Sartre,
Simone de Beauvoir, Camus, Lefebvre, Jaspers e Chestov 1
Rompidos os laos polticos atados em 30, poca
da experincia jornalstica de O Homem do Povo, sobre
a qual sempre pairou o "sarampo antropofgico" que
nosso autor repudiaria em 34, Oswald se dispunha, j
em 1947, a fazer "uma reviso em tudo". E repensou
da por diante, sob o influxo dos chamados existencia-
listas, muitos dos quais discutidos nas sesses do Colgio
de Vicente Ferreira da Silva, de que ele participou z, a
posio "antropofagstica" adotada em 1928, e cujo mo
saico doutrinrio ficou disperso nas pginas da Revista
de Antropofagia (2.a fase).

1. Dirio Carioca, Rio, Domingo, 12 out., 1947.


2. RENATO CIRELL CZERNA, Bastidores de Filsofos, Mirante das
Artes, So Paulo, n.o 3. 39
a filosofia que agora interessa a Oswald. E inte-
ressa-lhe a tal ponto, e de maneira to absorvente, que
o insacivel deglutidor de idias, para estarrecimento de
Antnio Cndido, d por interrompida a elaborao de
Marco Zero. Romance, dizia, explicando-se, num mali-
cioso improviso, o pai de Serafim, qualquer um pode
fazer. "Agora s quero cuidar da filosofia, que o mais
importante" 3.
Aparentemente tardia caprichosa, essa atitude filo-
sofante, nova paixo do poeta e romancista, levava-o de
volta aos tempos de sua primeira juventude. Muito novo
ainda, quisera ele estudar, s custas de padrinho rico,
filosofia em Paris 4 Oswald foi a Paris, mas no chegou
filosofia. Quando voltou, em 1912, dessa primeira
viagem Europa, abriu-se, para ele, no grande vazio
da morte de D. Ins, sua me, a possibilidade de conflito
religioso. Com o sentimento de insegurana existencial
que sobreveio, experimentou tambm o vcuo do cato-
licismo domstico, de que D. Ins tinha sido fiadora.
Nesse momento, Oswald rebelou-se contra Deus, mas no
rompeu com a Igreja Catlica. Apegou-se antiga f,
como a uma tbua de salvao.
Entreguei-me, dizia ele, ao inimigo, aderi vencido f de
meus pais. Como adere um prisioneiro no fundo de uma
masmorras.
Foi depois dessa crise que o poeta, tentando recu-
perar o seu catolicismo abalado, tornou-se fervoroso
3. ANTNio CNDIDO, "Digresso Sentimental sobre Oswald de
Andraqe", Vrios Escritores, So Paulo, Livraria Duas Cidades, 1970,
p. 73.
4. OSWALD DE ANDllADE, "Um Homem sem Profisso (Sob as
Ordens de Mame)", Memrias e Confisses, Rio, Jos Olympio,
40 1954, p. 138.
5. Idem, p. 138.
crente. Ainda no perodo pr-modernista, recebe, por
volta de 1915, lies de M. Sentroul com quem estudou
filosofia de Louvain 6,
Monsenhor Charles Sentroul, autor de tese famosa,
Kant e Aristteles} comentada numa resenha por Hei-
degger 7, e que at 1917 lecionou, a convite de D. Miguel
Kruise, na Faculdade de Filosofia de So Bento, onde
pronunciou a aula magna de instalao s, preocupou -se
em harmonizar, de acordo com a orientao do grupo de
Louvain ao qual se filiava, o aristotelismo tomista com
a cincia moderna. Mas a posio doutrinria de Oswald
de Andrade, certamente catlico e provavelmente tomista,
est, a julgarmos pelas cartas que escreveu a Teodolindo
Castiglione 9, e que datam de 1914, mais prxima do
antimodernismo condenatrio de Pio X, do que do neo-
tomismo compreensivo de Sentroul, que vinha, como o
de Cardeal Mercier, de uma interpretao ampla da
Aeterni Patris, de Leo XIII.
Podemos aquilatar o alcance do compromisso reli-
gioso de Oswald, nessa poca, examinando as idias a
respeito do homem, do mundo e da histria, por ele
esposadas nas cartas a Teodolindo. Catlico, apostlico,
romano, zeloso e cheio de ardor apologtico, rebate o
poeta o liberalismo progressista do seu correspondente.
Teodolindo apela para o progresso cientfico e intelectual

6. Ibidem, p, 139.
7. J. A. MACDOWELL, A Genese da Ontologia Fundamenta! de
Heidegger (Ensaio de caracterizao do modo de pensar do Sein
und Zeit), So Paulo, Herder, 1970, p. 25.
8. FERNANDO ARRUDA CAMPOS, Tomismo e Neotomismo no Brasil,
So Paulo, Grijalbo, 1968, p. 73.
9. JOS GERALDO NOGUEIRA MOUTINHO, Outra Vertente do Esprito
Violento de Oswald de Andrade, Folha de So Paulo, 23-10-64, re-
produzindo as dua.s cartas de Oswald a T. Cast1gl1one, datadas de
23 e 28 de setembro de 1914. 41
da humanidade. Oswald ope-lhe a verdade absoluta, por
ele representada num esquema grfico, em que se v, de
um lado, e a partir do alto, a ordem sobrenatural, que
se irradia no mundo para reintegrar o homem em Deus,
mediante o auxlio sacramental da Igreja; e de outro,
o que teria sido, talvez, um lapso maniquesta, a desordem
eterna, que comea em Sat e, ligando-se histria, ter-
mina s portas do inferno. Divisado do alto da ordem
sobrenatural, o destino do homem, contra o qual no
prevalecem os progressos, apenas materiais e exteriores,
da histria, eterno. Evoca seu interlocutor o carter
fustico do homem moderno? Deveria saber que Fausto
personagem e no autoridade.
Contesto in totum o que se refere ao progresso da humani~
dade, iluso em que caiu naturalmente a cincia, por querer
sair de sua esfera prpria - a observao fenomenal e a afir~
mao do aperfeioamento material.
Igual sempre em toda parte, substancialmente o mes-
mo, o ser humano no muda e nem mudar. Civilizado,
constri catedrais no sculo XII; mais civilizado, as destri
no sculo XX. E assim, citando trechos de Horcio e
Luciano (em francs) e Rabelais, Oswald argumenta com
as permanentes atitudes morais do homem, que inde-
pendem da sociedade e da poca, para comprovar que
h, em nossa espcie, um fundo inaltervel, inclume
ao do tempo, e que s fora do tempo pode ser resgatado.
Vou agora lhe dar alguns trechos de autores antigos, per~
feitamente demonstrativos de que a essncia humana no mudou
at hoje, nem os costumes humanos e mesmo o que faz a vida
real dos povos e indivduos.

No somos hoje mais humanos do que fomos ontem.


42 O progresso material e exterior, de que a cincia o
principal agente, em nada influi sobre o nosso destino
espiritual. Oswald v na Histria a histria de uma
continuada distoro, diablica, a cargo do homem, favo-
rvel desordem, como aumento do mal objetivo, culmi-
nando na inverso dos valores, gigantesca e catastrfica,
de que a Primeira Grande Guerra constitua exemplar
conseqncia. Ser preciso chamar os culpados, dentre
eles Rousseau, responsabilidade.
Diz mais o meu timo adversrio que eu detesto o povo,
que erro, e que contrario os princpios de minha religio. Como
frmula, detesto a canalha, por necessria reao inverso de
valores assentada no mundo depois dos infamssimos resultados
da obra de Rousseau e de seus infames companheiros. E se
reajo contra ela, cristrnente e catolicamente.

Mas no a histria que vai julgar a sua prpria


causa, num tribunal hegeliano. As setenas oswaldianas,
sem recurso, porvm da instncia suprema, a ordem sobre-
natural e divina. So os espritos eleitos, depositrios da
verdade, que julgam e condenam. Escolhidos pelo pr-
prio Cristo, os apstolos foram essa aristocracia do esp-
rito que a Igreja preserva, e da qual, trazendo-nos o
Evangelho, o filho de Deus foi modelo inexcedvel. Para
a aristocracia da verdade assim compreendida, a ordem,
reflexo da prpria verdade, valor absoluto. Espiritual-
mente prolfica, em harmonia com a lei divina, contra
ela no podem prevalecer o igualitarismo e o libertarismo
dos tempos novos.
Cristo Deus, antes de tudo, o supremo aristocrata, o Sal
do novo sistema vital. "Le Verbe a t fait chair et i1 a habit
parmi nous" (si c.). S. Joo quem o diz. E como supremo
aristocrata, como o criador da harmonia do mundo, onde os
princpios democratas no entram seno como princpios de de- 43
sordem, ele no podia de modo algum inverter o seu papel de
Verbo feito carne. Foi assim que ele escolheu a sua aristocracia
- doze apstolos apenas, fundando o mais aristocrtico dos sis~
temas - a Igreja Catlica Romana.

Antiliberal e aristocratizante, a posio filosfica de


Oswald de Andrade, por uma espcie de irnica anteci-
pao, condensa, nesse momento, as sementes da ideo-
logia da ordem 10, que caracterizou a atuao de J ackson
de Figueiredo, um dos principais alvos polmicos do movi-
mento antropofagista, em sua curta fase aguerrida de 1929.
Se a primeira carta a Teodolindo Castiglione faz
do catolicismo a ideologia da ordem, j a segunda revela,
talvez melhor, a influncia do tomismo de Monsenhor
Sentroul.
Insistir voc nos programas da cincia. A humanidade de
hoje sabe que morre de uremia e de apendicite, que h a
constelao de Hrcules e o rdium.. Isso, porm, lhe trouxe
uma soluo nova para o mistrio que lhe cerca. as origens e o
destino?
Nas duas cartas, o mesmo rigor, a mesma rigidez.
No entanto, se o catolicismo oswaldiano tinha sido aba-
lado em 1912, prudente, desconfiar-se da paixo reli-
giosa que assim to violentamente se manifesta. Parece
que a argumentao de Oswald contra Teodolindo mais
uma autojustificao; o apologeta que discorre, argumenta
mais contra si mesmo do que contra o adversrio.
J sem o lastro da adeso firme sua primeira
crena, sem o apoio espiritual de D. Ins, Oswald, fora
do tranqilo mundo materno e de seus numes familiares,
10. Vide, a respeito, "Estudo sobre o Pensamento Reacionrio:
Jackson de Figueiredo", de FRANCISco IGLSIAS, in H'!stria e Ideologia,
44 So Paulo, Editora Perspectiva, 1971, p. 109/158.
precisou de, pelo menos, manter viva a retrica da f,
que pode ser exercitada como linguagem. Quando isso
acontece, a ortodoxia transforma-se num estilo.
Dessa retrica da f h indcios suficientes nas cartas.
Um deles a utilizao, por parte de Oswald, de con-
ceitos de Nietzsche, citado numa das missivas, e que,
estranhos filosofia tomista, to exaltada 11 , comprome-
tem a pureza da doutrina. Leitor de Nietzsche, o poeta
transfere, para o cristianismo, com a inteno de ressal-
tar-lhe a origem divina, a idia de aristocracia do esprito,
idia polmica que o pensador de Anti-Cristo ops s
religies de salvao. O manifesto antiliberalismo de
Oswald assimila a condenao nietzschiana moral do
rebanho. Tambm, como se lhe fosse insuficiente a ga-
rantia da ordem sobrenatural, o catlico Oswald recorre
repetio cclica da histria, lei do corso i ricorso,
que passaria, depois, a sustentar, em A Crise da Filosofia
Messinica, o esquema da evoluo dialtica da humani-
dade1 retornando cultura antropofgica das origens, aps
o momento negativo, antittico, da civilizao patriarcal.
Outro indcio de que a ortodoxia catlica de Oswald
talvez fosse uma afetao retrica da f que ela j
perdera, est no estilo mesmo de determinadas passagens
das cartas, que trazem o germe do realismo humorstico
de seu autor. Uma delas, particularmente, merece especial
ateno.
Recapitulando, na primeira carta, as razes que tinha
para admitir a falta de nexo entre o progresso material
11. "Diz voc: 'A razo humana progride em outros territrios'.
No progride, meu caro, explora apenas outros terrenos, mas no
passar nunca o termo fixado, na arte, pelos gregos e pela Renas-
cena, na filosofia pela Idade Mdia. Conhece hoje muito maior
nmero de detalhes, no h dvida. :Mas isso lhe d a chave de
incgnita que Aristteles e Santo Toms lhe deram?" 45
e o desenvolvimento moral da humanidade, Oswald
escreve, numa perorao:
Mil outros trechos de mil outros escritores convencero
voc de que o mundo de hoje o mundo de Pricles, Augusto,
o mundo medieval, e o mundo das utopias cientfico-revolucio-
nrias que acabou com o sculo passado. H apenas intermi-
tncias de progresso e regresso, crculos e princpios que formam
a base de novas babis, novas confuses de lnguas e novos re-
banhos voltando a velhos caminhos. Nem se explicaria a unidade
de vistas no julgamento da histria e da arte de todo o tempo
sem a unidade imutvel da essncia humana.

Dez anos depois, essa mesma passagem reaparece,


invertida, em Memrias Sentimentais de Joo Miramar,
como discurso do jornalista Machado Penumbra:
Mil outros trechos de mil outros escritores convencer-vos-o,
senhores, que o mundo de hoje anda no s pior que o mundo
debochado de Pricles e Aspsia, mas pior que o mundo ignaro
do Medievo trevoso e pior at que o mundo das utopias cien-
tficas e revolucionrias de Revoluo Francesa. Nessas intermi-
tncias de progresso e regresso, crculos de princpios que formam
a base de novas babis, novas confuses de lnguas e novos
rebanhos voltando a velhos apriscos, s uma lio nos assoberba,
a lio severa da Histria!

A quem quer que conhecendo as Memrias, seja


dado ler a carta de 1914, que contm a forma germinai
da alocuo de Penumbra, h de parecer, com justificadas
razes, que Oswald parodiou hiperbolicamente, no ro-
mance, uma atitude mental e um estilo que tinham sido
inerentes fase de seu catolicismo. Mas por uma reverso
do efeito sobre a causa, poder-se- tambm supor que,
ento com 24 anos, o apologeta, pela necessidade de
converter-se a si mesmo, afetava uma convico que no
46 lhe nascia mais espontaneamente, oferecendo-se, distan-
ciado, o espetculo do seu prprio pensamento. As idias
no seriam mais do que imagens adventcias; a dialtica
era retrica. O leitor incauto, que tentar identificar o
catlico Oswald, s consegue agarrar o estilo de Machado
Penumbra. To catlico quanto humorista, na medida
em que praticou o jogo da ortodoxia, afetando o ardor
e o rigor de uma crena que j entrava em crise, Oswald
de Andrade, - Joo Miramar avant la lettre, - ante-
cessor espiritual e pai de Serafim, escreveu nas cartas a
Teodolindo, por baixo da estranha retrica de um fiel
cristo aristocratizado por Nietzsche, um subtexto de ima-
gens "Pau-Brasil". A respeito disso, Oswald foi, com a
sinceridade da paixo intelectual, catlico e tomista nessa
fase, como seria antropfago em outra, marxista numa
terceira, para voltar, depois, ao antropofagismo, em A
Crise da Filosofia Messinica, que data de 1950. De seu
catolicismo arrebatado ele guardar ento, conforme ve-
remos, um ncleo teolgico irredutvel, relacionado com
o que chamar, autorizado pelas leituras filosficas abun-
dantes a que se dedica j em 1947, de "sentimento
rfico".
Defendendo, pois, em 1914, a idia da essncia espi-
ritual do homem, destinado a realizar-se no plano divino,
Oswald defronta-se, desde o perodo tomista, com a
oposio entre natureza humana e histria, que, nesse
momento, se resolve pela absoro de ambas no plano
trans-histrico da ordem sobrenatural. Essa oposio
substituda, em A Crise da Filosofia Messinica, pela
contradio dialtica entre a cultura antropofgica, mo-
mento positivo que corresponde Natureza, e a cultura
patriarcal, momento negativo que corresponde Histria,
enquanto processo de civilizao. Nas condies da 47
sociedade industrial, favorveis ao tribalismo da vida co-
letiva, quando os mecanismos psicolgicos e sociais de
represso deixassem de funcionar, liberando as potncias
do instinto de posse e de domnio, e canalizando-as para
a atividade criadora, artstica e ertica ao mesmo tempo,
dar-se-ia o retorno cultura antropofgica, verdadeira
suspenso da Histria, devolutiva da essncia humana. Se
a humanidade "descreve aquela diagonal do instinto para
a razo", admitida pelo iluminismo de Castiglione, para
reconquistar o instinto. Como princpio de prazer, o
instinto, que constitui a natureza humana, o corretivo
da razo, como princpio de realidade. Tangenciando a
hiptese marcusiana, porque assim concebida a devo-
luo do homem sua essncia significa a conciliao
do princpio de prazer com o de realidade, Oswald en-
tende, contudo, que o advento da cultura antropofgica
liberaria tambm o sentimento rfico, que , como elo
efetivo e afetivo do indivduo com os outros e com o mun-
do, o sentimento do Sagrado.
No limiar da nova cultura antropofgica, que assi-
nala o fim da Histria, o indivduo se reintegra sua
essncia, encontrando, no sentimento rfico, o mediador
das relaes humanas. A sociedade ingressa na fase da
utopia realizada. E a utopia, possibilidade de trans-
formar a Histria em Natureza, de substituir o tempo
linear dos acontecimentos pelo tempo csmico e mtico
da repetio, abrange, numa s ordem, a cultura natura-
lizada e a natureza socializada.
Mas no se poder dizer que Oswald absorveu
nessa totalidade indivisa e utpica do natural e do hu-
mano a ordem divina de sua primeira concepo. Tal
48 ordem subsiste, mas como instncia metafsica. No
mais, por certo, a esfera decisria suprema da vida social
nem o tribunal tico da humanidade. o limite da
conscincia conflitiva, aps a cessao dos antagonismos
coletivos. Mantendo o primado da ordem utpica, por
ele fundada e nele sustentada, o homem reconhece, atravs
da percepo do Sagrado que o sentimento rfico lhe
propicia, o transcendente, que lhe estranho e que
aceita na qualidade de seu nico e definitivo antagonista.
Entre a existncia humana e a transcendncia viria, por
conseguinte, a estabelecer-se, no mbito da utopia rea-
lizada, um novo relacionamento, de rebeldia espiritual,
de transgresso voluntria, como desafio metafsico e como
disputa tica do homem com Deus, seu eterno adversrio.
Smula do antitesmo prtico de quem a concebeu,
est nessa idia, do reconhecimento agnico ou agonal
de Deus, o elemento teolgico irredutvel da concepo
oswaldiana, elaborada na fase de maior e de quase ex-
clusivo interesse do poeta pela filosofia. E o meridiano
da devorao, da ansiedade ancestral, referido em A
Crise da Filosofia Messinica, e de que Oswald tambm
falou no final da sua comunicao ao 1. Congresso Brasi-
leiro de Filosofia:
A angstia de Kierkegaard, o "cuidado" de Heidegger, o
sentimento de "naufrgio", tanto em Mallarm como em Karl
J aspers, o "Nada" de Sartre no so seno sinais de que volta
a Filosofia ao medo ancestral ante a vida que devorao.
Trata-se de uma concepo rnatriarcal do mundo sem Deus 12.

12. 0SWALD DE ANDRADE, "Um Aspecto Antropofgico da Cultura


Brasileira - o Homem Cordial", in Anais do Primeiro Congresso
Brasileiro de Filosofia, So Paulo, vol. 1.0 , pp. 229/231, mar., 1950. 49
3. O RETORNO ANTROPOFAGIA

A Antropofagia, que transportou para o campo das


das idias polticas e sociais o esprito de insurreio arts~
tica e literria do Modernismo, teve um estilo de ao
- a agressividade verbal sistematizada, que revelam as
descomposturas, os ataques pessoais, as frases-choque,
os provrbios e fbulas, publicados nos 15 nmeros da
Revista de Antropofagia (2. a fase), ento sob o controle
exclusivo do grupo que Oswald de Andrade liderava.
Afetando o desprezo dadasta pela literatura, mas usando
a literatura como instrumento de rebelio individual,
maneira dos surrealistas, os nossos antropfagos foram
crticos da sociedade, da cultura e da histria brasileiras.
Ideologicamente, eram contra as ideologias; opunham, se-
gundo a frmula do Manifesto de 28, que se insurgia contra
as idias "cadaverizadas", a liberdade individual ao dogma
e a existncia concreta ao sistema. Em declarado con-
flito com os padres de comportamento coletivo, os an~
tropfagos chegaram ao problema poltico pelo ideal ut-
pico da renovao da vida em sua totalidade.
Oswald de Andrade conservaria, durante o perodo de
sua militncia poltico~partidria, como adepto do mar- 51
xismo, o estilo de ao do movimento antropofgico que
ele abjurou no famoso prefcio de Serafim Ponte Grande.
Nos seis nmeros do jornal O Homem do Povo - apa-
recido em 31, e que j pertencem a esse perodo, ressurgem
as frases-choque, as provocaes zombeteiras, as cenas
satricas, que prolongam a violncia verbal da extinta re-
vista. A rebeldia do homem natural, mito forjado pelo
movimento antropofgico, a linha de pregao revolu-
cionria do escritor convertido em "casaca de ferro" do
proletariado. Mas com esse estilo de ao, que acom-
panhou, vida afora, a atividade do poeta, subsistem ainda,
como a arder em fogo brando, as idias daquele movi-
mento, mesmo depois do antema lanado sobre aquele
de seus romances, Serafim Ponte Grande, que melhor as
representava. Salvo A Escada (1934), em que Jorge de
Alvelos se converte, depois de liquidar suas ltimas iluses
romnticas, num servidor do povo, e a A Morta (1937),
denuncia do ersatz burgus do sexo, as outras produes
oswaldianas do perodo que se estende at 1946, rein-
corporam, como O Rei da Vela (1937), e O Homem e
o Cavalo ( 1934), a substncia tica e esttica do Mani-
festo de 28, ou reconsideram-no, como Cho (1945) e
Ponta de Lana (1945), de maneira crtica e objetiva.
No meio do movimento modernista apareceu alguma coisa
to rica e to fecunda que at hoje admite vrias interpretaes,

diz um dos personagens do Cho referindo-se Antro-


pofagia. O que parece enigmtico, queles que a discutem
nessa cena do romance, que a Antropofagia, potencial-
mente aberta exaltao da fora, barbrie tcnica e
a Hitler, tenha levado os seus adeptos doutrina marxista.
52 Oswald j se manifestara surpreso diante do mesmo fato,
ao dizer, em 1943, numa entrevista a Justino Martins 1,
que a posio assumida em 28 "me jogou para o lado
esquerdo, onde me tenho conservado com inteira cons-
cincia e inteira razo". Desde a ele ver na Antropo-
fagia o divisor de guas poltico do Modernismo. E
precisando esse juzo, na conferncia O Caminho Per-
corrido, que pronunciou um ano depois em Belo Hori-
zonte, j poderia Oswald, recapitulando a sua experincia
passada e integrando-a histria do Modernismo, afirmar
que a Antropofagia
foi, na primeira dcada do modernismo, o pice ideolgico, o
primeiro contato com a nossa realidade poltica porque dividiu
e orientou no sentido do futuro 2.

A simpatia por esse episdio, a que se atribui, no


processo do modernismo brasileiro, o relevante papel de
diferenciador poltico, que descompartimentou a atividade
literria e artstica, pondo-a em conexo com a existncia
social como um todo, vem substituir a repulsa contra o
"sarampo antropofgico", alardeado no prefcio de Sera-
fim Ponte Grande. Mas Oswald de Andrade ainda nos
fala do assunto em termos de experincia historicamente
superada. E s depois de Ponta de Lana, depois de
ter rompido abertamente com a orientao partidria a
que se mantivera fiel desde 1930, que ele vai reabrir o
veio antropofgico de sua experincia passada, com a
inteno expressa de atualiz-lo, dando-lhe a forma de
uma concepo do mundo, destinada a absorver dialeti-
camente o prprio marxismo, e cuja sntese podemos
1. "Anda depressa, Timoschenko", "Entrevista com oswald de
Andrade, o Rabela1s brasileiro", Revista do GLobo, 9-10-1943.
2. "O Caminho Percorrido", Ponta. de Lana, 2.a ed., Rio, Civi-
lizao Brasileira, 1971. 53
encontrar na tese de concurso de 1950, A Crise da Filo-
sofia Messinica.
As razes circunstanciais que motivaram o rompi-
mento de Oswald de Andrade com o marxismo ortodoxo
por si s no explicam o retorno do poeta velha
antropofagia de 1928. E muito menos se pode com-
preender esse retorno, admitindo-se que foi simplesmente
uma reviravolta "reacionria" dele, estimulado pelos fil-
sofos existenciais que ento comeou a ler, quando i
freqentava o "Colgio" de Vicente Ferreira da Silva.
No era caprichosa a volta Antropofagia. Psico-
logicamente, o retorno concepo basicamente definida
no Manifesto de 28, foi uma espcie de volta compensa~
tria ao tempo histrico do Modernismo, por meio da
qual Oswald de Andrade, inseguro quanto ao destino de
sua obra literria, quis afirmar-se perante a nova gerao
de intelectuais paulistas da dcada de 40, reconstituindo
e retificando as linhas gerais do movimento de que fora
o lder 17 anos antes. Era o modo de mostrar aos jovens,
que j tinham outros mestres, e que liam Spengler aos
vinte anos 3, o lado srio, estudioso do seu esprito. Quem
criara Serafim Ponte Grande seria capaz de produzir A
Crise da Filosofia Messinica. Ressurgia nessa atitude,
mas sob outra forma, a duplicidade da atividade literria
de Oswald, dividida em duas linhas de criao em prosa
- a srie e a burlesca, a realista e a no realista, a
psicologista e a humorstica, alternando uma com a outra
- Joo Miramar com A Estrela do Absinto} Serafim
3. A Paulo Emllio Sales Gomes: "A sua gerao l desde os
trs anos. Aos vinte tem Spengler no intestino. E perde cada
coisa". Ver ANTONio CNDIDO, "Digresso Sentimental sobre Oswald de
54 Andrade". Vrios escritos, So Paulo, Livraria Duas Cid&des, 1970.
Ponte Grande com A Escada. A mesma necessidade de
ser levado a srio, que lhe ditou o tom reverente e o
contedo acadmico de sua Conferncia na Sorbone, O
Esforo Intelectual do Brasil Contemporneo, em 1923,
levam-no ento a escrever teses de concurso para ingressar
no ensino universitrio. O romancista e o poeta que
ele era no apenas desapareceriam por trs de uma nova
mscara - a do pensador e a do filsofo; mas refun-
diriam com essa mscara a imagem do passado. Era a
tentativa para recuperar, em 1945, numa repetio
kierkegaardiana, a rebeldia impetuosa de 22. A partir
de 1945 e at 1950, data de A Crise da Filosofia Messi-
nica, as declaraes e entrevistas de Oswald realam, como
em Ponta de Lana, alis com certeira viso crtica e
sem falsa modstia, a decisiva participao que teve nos
principais lances histricos do Modernismo brasileiro, e
procuram estabelecer uma continuidade, impessoal e obje-
tiva, que teria sido acidentalmente interrompida durante
o perodo de militncia poltico-partidria, entre o mo-
mento insurrecional de 1928 e o neo-antropofagismo
recm-assumido.
Mas se Oswald pretendia essa recuperao no tem-
po, criando um artifcio de durao latente para o antro-
pofagismo - pedra de toque unificadora de todas as
suas tentativas, de todos os seus caminhos percorridos, e
que subsistiria, a despeito e atravs das ondulaes de
sua atividade intelectual -, estava ele, como homem
de atitudes extremadas, comprometendo, numa ltima
jogada, a sua prpria existncia. A necessidade de ser
levado a srio pela nova gerao era apenas uma razo
psicolgica limitada, que mobilizou o motivo da escolha,
mas que no foi determinante do seu sentido. Na ver- 55
dade, essa escolha j estava feita no momento mesmo em
que Oswald se escolheu marxista. Era uma possibilidade
latente, seno uma tentao contnua, para esse contra-
ditrio exemplar de animal poltico - capaz de aliar o
fervor religioso de um missionrio indisciplina de um
rebelde profissional - desde o momento em que repu-
diara Serafim Ponte Grande para servir causa do
proletariado, num prefcio autoflagelante. O autor se des-
culpava por haver escrito o romance e vinha ao mesmo
tempo exibi-lo, para maior escarmento de sua culpa, sob
o pretexto de que nele gravara o epitfio do palhao da
burguesia que tinha sido. Mas o ato de contrio deixava
inclume o objeto do repdio. Ambguo como toda culpa
publicamente alardeada, valorizava a Antropofagia e,
sub-repticiamente, a conservava na espontnea revelao
do romance censurado. Foi o mecanismo que Geraldo
Ferraz bem compreendeu, quando afirmou que o ato revo-
lucionrio de Oswald no era a explicao do Prefcio,
mas a "publicao do livro em sua forma autntica" 4
Essa transigncia inconsciente, no ato de publicao de
Serafim, j franqueava ao romancista um caminho de
retorno Antropofagia, da qual nunca se desprendera
completamente. Quando a ela retomou, representando
a comdia do filsofo que sempre quis ser, e para, coisa
to a seu gosto, dar resposta aos ex-companheiros de
luta poltica, Oswald de Andrade apenas retomava por
uma via tortuosa, e sem abdicar do pensamento dialtico
que o marcara, a inquietao metafsica, seno religiosa
dos anos de juventude, que brotava de "seu fundamental
anarquismo".
4. GERALDO FERRAZ, Oswald de Andrade, Uma apologia e um
56 libelo, Jornal de Notcias, 202-50.
Na ltima verso do antropofagismo, sintetizado em
A Crise da Filosofia Messinica, essa inquietao reli-
giosa, completamente secularizada, converte-se na base
impulsiva do ideal poltico de renovao da vida. Inte-
rioriza-se o estilo de ao do militante, unindo, num
mesmo ato de F, a crena mtica no homem naturalJ
fadado liberdade, e a Esperana de realizao iminente,
sempre possvel porque utpica, do reino da justia e de
amor sobre a terra. Era um desfecho irnico, que contra-
riava a to ambicionada serenidade filosfica formal.
Sem o saber, Oswald atingia-lhe o avesso potico: esse
outro lado da filosofia, que confina com o pensamento
selvagem.
Medida heterodoxa de uma inteligncia, afeita a
teorizaes esquemticas, a Antropofagia selou a defini-
tiva aliana entre o inconformismo poltico de Oswald
de Andrade e o fundo religioso e mstico do seu esprito.

57
4. A CRISE DA FILOSOFIA MESSIANICA

Dois conceitos bastaram a Oswald de Andrade para


traar a esquemtica filosofia de histria que exps em
sua tese de concurso, A Crise da Filosofia Messinica
(1950) 1 : o Matriarcado e o Patriarcado como totalidades
scio-histricas. O Matriarcado inclui determinadas re-
laes de parentesco (o filho de direito materno) e de
produo (a propriedade coletiva do solo), correspon-
dendo a relaes sociais abertas (sociedade sem classes),
incompatveis com a existncia do Estado. E um aforma
orgnica de convivncia, mais prxima da Natureza, aten-
dendo aos valores vitais sintetizados na atitude antropo-
fgica - a transformao do tabu em totem, como ex-
presso afirmativa da prxis guiada por impulsos pri-
mrios, ainda no reprimidos, e que se exteriorizariam,
em sua natural pujana, na antropofagia ritual das socie-
dades primitivas. Como essa atitude considerada b-
sica, Oswald de Andrade associou o Matriarcado a uma
cultura antropofgica, de ndole orgistica ou dionisaca.

1. Jos Oswald de Souza Andrade (Oswald de Andrade), A


Orise da FUosotia Messic1nica - Tese para concurso da cadeira
de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da Uni-
versidade de S. Paulo, s. Paulo, 1950. 59
J o Patriarcado forma o complexo cultural oposto; nasce
do casamento monogmico, da diviso do trabalho e da
apropriao privada dos frutos do esforo coletivo; a
sociedade que lhe corresponde uma sociedade fechada,
onde o Estado aparece e comea o ciclo da histria como
luta de classes 2.
E tudo se prende, diz Oswald de Andrade, existncia de
dois hemisfrios culturais que dividiram a histria em Matriarcado
e Patriarcado. Aquele o mundo do homem primitivo. Este
o do civilizado. Aquele produziu uma cultura antropofgica,
este uma cultura messinica 3,

A cultura no desempenharia a mesma funo nesses


dois hemisfrios. Na sociedade primitiva, uma espcie
de sntese vital, que exprime a totalidade das relaes
imperantes, sem a elas sobrepor-se. No mundo civilizado,
porm, j se pode falar na existncia de uma superestru-
tura cultural, que no somente se eleva muito acima das
relaes sociais afetivas, como tambm constitui o reflexo
invertido dessas relaes, gerando o sistema ideolgico
que tem por fim justific-las e perpetu-las.
De fato, enquanto a antropofagia a Weltans-
chauung natural que exprime o Matriarcado, a cultura
messinica, correlato ideolgico do outro sistema, dis-
fara e deforma, como o fazem as ideologias, aquilo que
atravs delas se exprime. O messianismo uma delivao
2. Oswald de Andrade segue de };lerto Engels, que, por sua
vez, seguia. Bachofen: A derrubada. do direito materno foi a. grande
derrota histrica do sexo feminino" (ENGELS, Da Origem da Famlia,
da Propriedade Privada e do Estado, Rio, Editora Calvino, 1944, p. 79).
Na. mesma obra, Engels escreve que a. monogamia, associada escra-
vido e propriedade privada, "a forma. clula. ela. sociedade
civilizada. sobre a qual podemos estudar a. natureza. das contradies
dos antagonismos que tm ai seu pleno desenvolvimento" (p. 90).
60 3. A Crise da FHosotia Mess.i4nica, de Oswald de Andrade (p. 6).
intelectual ou espiritual da ascendncia paterna, do poder
do pai, que assegura o domnio de uma classe sobre outra
e a autoridade poltica do Estado. Como reflexo dessa
transferncia na mente dos homens, surge a idia da
divindade providencial, do ser eterno criador ou garan-
tidor, ao mesmo tempo, da ordem do universo e da
ordem da sociedade, idia que fundamentou a metafsica
tradicional e que, antes desta, j triunfara com as religies
monotestas, de onde proveio a moral da Obedincia,
depois convertida, sob o influxo da mensagem evanglica,
na moral de escravos de que Nietzsche falou, e cujo
poder revolucionrio destruiu a estrutura do mundo an-
tigo. Mas essa nova tica no se imporia, se das relaes
inerentes ao Patriarcado, que continham os germes do
capitalismo e da moralidade burguesa, no tivesse de-
corrido a represso dos impulsos agressivos, livremente
exteriorizados no regime scio-cultural do Matriarcado 4
Foi exaltando a monogamia e praticando a ascese,
aspectos que se conjugam com os elementos escatolgicos
e soteriolgicos do cristianismo, que o sacerdcio, contra
o qual Oswald de Andrade repete as crticas de Nietzsche,
orientou e conduziu esse processo de represso. A ope-
rao metafsica - a transformao do tabu em totem

4. O leitor deve ter notado que O. de A. emprega livremente,


sem disciplina cientfica, os termos Patriarcado e :Ma.triarcado. Sua
liberdade maior em relao ao Matriarca.do, no qual engloba
tanto o matriarcado propriamente dito quanto o sistema matrilinear
do parentesco. O primeiro, como fase pr-histrica da organizao
social e politica, era postulado da antropologia de inspirao evo-
lucionista, hoje superada. A matrilinearidade aparece, entre as popu-
laes primitivas, com menos freqncia que a. patriUnearida.de, e,
quando aparece, ni.o envolve necessariamente o prestgio exorbitante
da mulher ou o exerccio de mando e de poderes de chefia por
parte dela., como pressupunha a hiptese do matriarcado primitivo.
Vide RoBERT LowiE, Primitive Socety, Nova York, Harper & Brothers, 6l
1961, p. 189.
- substituda pelo recalcamento oriundo das instncias
censoras do Superego. Imagem aumentada da autoridade
paterna, o Superego projeta-se, como no monotesmo he-
breu, num plano transcendente, tornando-se o contedo
real do Ser verdadeiro de Plato e Aristteles, na sntese
do pensamento cristo elaborada do sculo IV ao XIII.
A um mundo sem compromissos com Deus, sucedeu um
mundo dependente de um Ser supremo, distribuidor de recom-
pensas e punies. Sem a idia de uma vida futura, seria difcil
ao homem suportar a sua condio de escravo. Da a impor-
tncia do messianismo na histria do patriarcado.
Essncia sublimada do Patriarcado, o messianismo
abrange, na extenso com que Oswald de Andrade em-
prega esse termo, todas as concepes-do-mundo, de sen-
tido religioso ou poltico, em que a recuperao da
existncia humana alienada fica dependendo de um ter-
mo mediador que a transcende, impondo-lhe uma sobre-
vivncia de carter sobrenatural (escatolgico) ou cole-
tivo (histrico). So messinicas, pois, as filosofias
comprometidas com a idia de Deus ou aquelas que,
embora se divorciando dessa idia, inventam sucedneos
para ela, como "a dogmtica obreira" da URSS, "que
lembra, em sntese, a Reforma e a Contra-reforma", e
que constitui "o ltimo refgio da filosofia messinica,
trazida do cu para a terra" s.
luz desse conceito amplo de messianismo adquire
sentido o balano crtico da histria da filosofia, levado
a efeito na tese de Oswald de Andrade, para mostrar
5. "Quem poderia .prever, quem ousaria sonhar, que o messia-
nismo em que se biprtiu a religio do Crlsto (Reforma e contra"'
Reforma) iria medrar no terreno sfaro das reivindicaes mate
rialistas do marxismo?" - O. de A. A Crise da Filosofia Messidnica
62 (p. 71).
que a filosofia messinica, abalada por crises sucessivas,
est prestes a desaparecer, em proveito de uma nova
cultura antropofgica, cuja funo reintegrar no seio
da sociedade industrial tecnizada, as estruturas primitivas
do Matriarcado 6, As condies da prpria sociedade
industrial impulsionam essa negao do Patriarcado e
da cultura messinica que o acompanha.
O primeiro indcio de tal mudana foi a regresso
do prestgio religioso do sacerdcio, consumado pela Re-
forma, que deu fora moral ao capitalismo com o qual
se associou, facilitando-lhe a ascenso, conforme, alis, o
ponto de vista desenvolvido por Max Weber 7 Por outro
lado, a crescente socializao (incluindo as tcnicas e as
legislaes sociais a que se refere Oswald de Andrade),
a decadncia do casamento monogmico, que a burguesia
sustenta com as muletas da prostituio e do adultrio,
a crise do sistema de parentesco que da se origina, a
tecnocracia prenunciando a substituio do Estado como
governo pelo Estado administrador dos bens coletivos, e
o imprio da economia planificada por um colegiado de
diretores, nos moldes de A Revoluo dos Gerentes, de
James Burnham - tudo isso leva Oswald de Andrade
a profetizar "a restaurao tecnizada" da cultura an-
tropofgica.
A histria, assim, divide-se no movimento em trs
tempos de uma dialtica simplificada e simplista, em que
a negao do Matriarcado pelo Patriarcado encontra sua
6. Com tudo o que essas estruturas conteriam, segundo o. de
A. Como se v, ele fez do Matriarcado, - e isso arbitrariamente -
uma forma. cultural, um pafeuma, cujos aspectos, a. propriedade
coletiva. do solo, a liberdade sexual, etc, seriam partes correspondentes
de uma tota.Udade scio-histrica..
7. MAx WEBER, La Etica protestante y el espiritu del ca.]Jitalismo,
Madri, Ed, Revista dei DerechO Privado. 63
sntese final no advento futuro e inevitvel de uma nova
antropofgica. O primeiro momento corresponde tese
do homem natural, o segundo antitese do homem civi~
lizado, e a negao da negao ao novo tipo que se
chama o homem natural tecnizado. Nesse aparente movi~
mente dialtico, cada corrente social e filosfica cumpre
o papel que as circunstncias objetivas histricas lhe
destinaram.
O misticismo plotiniano, a filosofia da Natureza, no
Renascimento, Spinoza, e, em nossa poca, a dialtica
viva, mas no o marxismo-Ieninismo como filosofia esta-
tal, so os resduos da Weltanschauung matriarcal. Dentre
os movimentos filosficos mais recentes Oswald de An-
drade, que reconhece a importncia de Hegel, por ter
ele introduzido, na filosofia, com o processo de negati~
vidade, a dimenso do tempo, acusa a fenomenologia
de tentar, atravs do essencialismo e da egologia de
Husserl, a restaurao do Ser absoluto, ao contrrio do
existencialismo, que recoloca o homem "em sua ansie-
dade ancestral", e tem, por isso, mais afinidade com a
cultura antropofgica a.
Nessa transformao social e ideologica, movida por
uma dialtica descarnada, que mais um processo evo~
lutivo, gradual e necessrio, o marxismo e a psicanlise
cumprem uma mesma funo de desmascaramento, o
primeiro revelando a infra-estrutura econmica da reali-
dade social e o segundo a infra-estrutura psicolgica dos
impulsos primrios, recalcados ou transformados. V-se
que o estado da poltica da Rssia, poca da elaborao
da tese de Oswald, afetou profundamente o julgamento
do autor a respeito do marxismo. Oswald reduz o pensa-
64 a. A Crise da Filosofia Messidnica (p, 66 e ss.).
mento de Marx elaborao terica do Partido Comu-
nista da Unio Sovitica e diz que no h mais nada a
esperar dessa doutrina. Entretanto, continuaro sendo
marxistas as principais categorias de que nosso roman-
cista filsofo se vale para interpretar a histria. Quanto
psicanlise, que no chegou s ltimas conseqncias
das descobertas do superego, paternalista em sua essen-
cia, e no poder subsistir fora dos limites da cultura
patriarcal e messinica.
Duas linhas diferentes de pensamento se entrecruzam
nessa curiosa tese de concurso e acabam por confundir-se:
uma crtico-histrica, dependente de Hegel, Marx, Engels,
Dilthey, Max Weber e Mannheim; outra, mtica, de
consistncia ideolgica, condensada numa utopia, que nos
traz de volta o movimento antropofgico, ao qual Oswald
pretendeu dar um sentido universal, dentro de uma
perspectiva no s histrica, mas tambm, segundo vere-
mos, psicologista e esteticista. Mas na convergncia
dessas duas linhas, estranha associao de pensamento
mtico e de pensamento crtico, que podemos encontrar
o justo valor do ensaio filosfico do nosso poeta.
Em A Crise da Filosofia Messinica Oswald miti-
ficou os conceitos de Patriarcado e Matriarcado, e con-
ceptualizou o mito da Antropofagia, que o fundamento
de sua tese - o a priori emocional em que ela se
baseia inteiramente 9.
9. A tese comea. pelos conceitos de antropofagia ritual e
Matriarcado, As idias -essenciais continuam sendo as do Manifesto
Antropfago de 1928 (.Revista do Livro, n.o 16, dezembro, 1959). A
respeito da. persistncia. da atitude antropofglca em O. de A.,
veja-se de Olivel.re. Bastos, Oswaldo de Andrade e a Antropofagia,
Suplemento Literrio do Jornal do Brasil, 20-10-57. A simples Ugao
do Matriarcado com a. antropofagia basta para mostrar o duplo pro-
cesso de conceptualiza.o e mitiflcao. Os tuplnamb, que pratica-
vam a a.ntropofagia ritual (MTRAUX, La .Rligion des Tupinam'ba, 65
A atitude antropofgica, firmada no Manifesto de
1928, sofreu em Crise da Filosofia Messinica, uma
forte influncia do esteticismo nietzschiano. Muito pr-
ximo do Nietzsche de A Origem da Tragdia, para quem
a existncia, em sua tragicidade, torna-se um fenmeno
esttico, e a arte um meio de "devorar" o contedo
trgico da vida, a antropofagia, nessa verso de 1950,,
uma filosofia trgica, que incorpora a psicologia orgis-
tica integrante dos ritos de sacrifcio, ligados s matrizes
primordiais das relaes religiosas entre o homem e o
universo 10 O homem da cultura antropofgica, assu-
mindo a dureza de Zaratustra, afirma dionisiacamente a
sua vontade de poder; "devorando" o que h de trgico
na existncia, transforma todos os tabus em totens, isto
, em valores humanos e em obras de arte.
Sob o aspecto ideolgico, A Crise da Filosofia M essi-
nica assinala um recuo da atitude revolucionria nitida-
mente assumida por Oswald de Andrade nas peas do
seu teatro de vanguarda, sobretudo em O Rei da Vela
( 1937), para uma posio reformista, que se traduz no
singular transformismo histrico por ele esposado. Talvez
que esse retrocesso, que o fez buscar apoio em A Re-

Paris, 1928, p. 125), no conheciam nem o matriarcado nem o paren


tesco matrilinear, nem deram mulher posi.o de relevncia social
(FLoRESTAN FERNANDES, A Organizao Social dos Tupinambs, Inst.
Progresso Edlt. p. 132/134).
10. S como fenmeno esttico a existncia e o mundo se
justificam eternamente, exclama Nletzsche em A Origem da Tragdia.
Nietzsche, que no figurava em 1928, nos antecedentes do movimento
antropofglco, contr1)::m1u, para a nova formulao, com o dionisi1l.co
de A Origem da Tragdia, a domesticao do homem, em A Genea
logia. a Moral, a idia de justia como desenvolvimento do af de
vingana., em A Vontade de Potncia, a psicologia. orgistica Ugade.
filosofia da tragdia em O Crepsculo dos !dolos, e a vida. como
a.ssassinio permanente, em A Gaia Cincia. Por outro lado em
Nietzsche que Oswald de Andrade foi buscar o seu desprezo por
66 Scrates e e. inspirao para a sua critica do sa~rd6c1o ocidental.
voluo dos Gerentes, de J ames Burnham, o mstico do
imperialismo norte-americano, tenha sido produto de uma
reao extrema e justificvel contra o patriarcalismo sta-
linista, que exacerbou o fundo messinico do marxismo.
Mito de restaurao, o Matriarcado de Oswald de
Andrade, tambm sintetiza o horizonte utpico das possi-
bilidades humanas condicionadas pelo desenvolvimento da
mquina em nosso tempo. Numa sociedade planificada,
em que o progresso material assegure a todos uma grande
margem de cio, a existncia humana, desafogada da
luta pela satisfao de suas necessidades primrias, passar
a ser atividade gratuita e criadora. O homem natural
tecnizado ser o homo ludens, detetar do ocium cum
dignitate 11.
Com isso, Oswald de Andrade ultrapassa a reao
antimecanicista, o repdio tcnica de que se fizeram
arautos os melhores poetas do Modernismo, procurando
pensar a mquina como elemento da nossa realidade em
mudana. No prprio Manifesto Antropfago j havia
um claro esforo nesse sentido.

11. Pierre Ducass mostra-nos que a. civilizao tcnica poder


trazer-nos o conforto relacionado com o aproveitamento do tempo.
Afirma. (Technocra.tie ou sagesse? in L'Invention humaine, Paris,
Albin Michel), que o fim da civiUzao mOd-erna. o cio. "Notre
technique ne nous libre que si elle nous apprend le bon usage
du temps", pp. 230/31. 67
5. A MARCHA DAS UTOPIAS

Responsvel por dois importantes manifestos do nosso


Modernismo, o Pau-Brasil (1924) e o Antropfago
( 1928), Oswald de Andrade deixou-nos uma trilha de
inquietao intelectual, que vai da poesia ao romance,
do artigo polmico ao ensaio filosfico. em A Crise
da Filosofia Messinica ( 19 5O) que ele, aps examinar
a decadncia simultnea do Patriarcado e do pensamento
filosfico ocidental, prev o advento de uma sociedade
em que a tcnica, libertando o homem do trabalho ma-
terial, devolve-o ao estado de comunho com a Natureza,
que o primitivo viveu, no cio das florestas do Novo
Mundo ...
A sociedade que advir do pleno domnio da tcnica
, paradoxalmente, muito nova e muito velha: muito
nova, porque viria substituir as at aqui perdurveis
instituies patriarcais, que formam o ciclo de cultura mar-
cado pela concepo messinica do mundo, paralela
civilizao; muito velha porque, graas absoro da fora
de trabalho pelas mquinas, que se pem a funcionar
sozinhas, como os fusos de Aristteles, essa sociedade
traria de volta o parentesco materno, a propriedade cole-
tiva, o cio ldico e festivo, partes da mesma atitudedo 69
primitivo, geradora dos tabus, dos totens e da antropo-
fagia, que correspondeu a outro ciclo de cultura, repri-
mido e soterrado pela civilizao,
A ltima armadilha da Histria servir-se da civili-
zao para transportar-nos pr-histria. Assim, a dia-
ltica do trabalho conduziria ao cio; a acumulao de
riquezas, no auge de suas possibilidades, foraria o apare-
cimento de esquemas coletivistas, que lembram a mtica
Idade do Ouro, retrojetada num passado imemorial.
No fundo de todas as religies, como de todas as dema-
gogias, escreve o criador de Serafim Ponte Grande, est o cio.
O homem aceita o trabalho para conquistar o cio. E hoje,
quando pela tcnica e pelo progresso social e poltico, atingimos
a era em que no dizer de Aristteles, os fusos trabalham sozinhos,
o homem deixa a sua condio de escravo e penetra de novo
no limiar da Idade do cio. um outro Matriarcado que se
avizinha.
A Idade do cio a Idade de Ouro transposta do
passado mtico para o futuro utpico. Na tese de Oswald
de Andrade, A Crise da Filosofia Messinica, mito e
utopia se unem sob a mediao do Matriarcado, da an-
tropofagia e da tcnica.
O Matriarcado representa a unidade social da vida
primitiva, sem propriedade privada, sem classes sociais e
sem Estado; a antropofagia define o impulso religioso
que espontaneamente produz, como sentimento rfico que
, os tabus e os totens. As relaes matriarcais e antro-
pofgicas comporiam ento o status do homem natural,
que a diviso do trabalho rompeu, dando origem ao
Patriarcado. Encontramo-nos ainda no ciclo do Patriar-
cado, onde o messianismo, o individualismo e a acumu-
lao capitalista, condicionaram o surto industrial e tcnico
70 do mundo. Mas so as foras crescentes da prpria
industrializao que escavam os alicerces desse ciclo, ace-
nando~nos com a promessa, j materializada nos indcios
de unificao fsica e mental da humanidade pelos mesmos
meios de transporte, comunicao e informao, de uma
nova era em que, cessados os antagnimos entre o tra-
balho e a propriedade, as normas sociais e as aspiraes
individuais, a autoridade do Estado e a liberdade do
indivduo, o homem reconquista, atravs da produo
planificada e socializada, o cio inerente ao primitivo
matriarcado. Com o advento do homem natural tecnizado,
que a sntese dialtica do tipo ancestral, antropofgico
e do tipo civilizado, messinico, fecha-se uma longa fase
da aventura humana. A nova era, sujeita a maiores riscos,
conseguiria harmonizar a sempiterna herana primitiva com
as ilimitadas possibilidades de transformao do planeta
e da espcie, pela ao conjunta das cincias e da tcnica.
A Crise da Filosofia Messinica baseia todo esse
processo, que vai do Matriarcado primitivo ao Patriar-
cado, para depois da superao deste retornar a uma
diferente e renovada expresso daquele, no esquema
tridico abstrato de tese, anttese, e sntese. Mas v-se
bem que a tese, o Matriarcado do homem natural, a
funciona como mito de origem, do qual o movimento
dialtico nos afastou, desenrolando as suas contradies,
at cessar na utopia da existncia social plenamente recu-
perada. Tal recuperao importa num retorno ao estado
de natureza e, portanto, numa volta s origens. Pela
reconquista do cio primitivo, que o progresso tcnico
assegura, as duas perspectivas, a mtica e a utpica, ter-
minam coincidindo.
O pensamento de Oswald de Andrade, que j nesse
ensaio de 1950, onde Matriarcado e Patriarcado so 71
categorias histricas decisivas, era deliberadamente ut
pico, deixava porm de lado a anlise do valor e do
papel desse elemento projetivo das idias sociais, a utopia,
que transcende o presente, em razo de expectativas ra-
cionais quanto ao futuro da sociedade. E foi s nos
artigos da srie A Marcha das Utopias que Oswald de
Andrade, como legtimo explorador de idias, busca
de conceitos que lhe permitissem circunscrever por outros
ngulos os princpios de sua concepo social e poltica,
dedicou-se ao exame desse assunto, que estava desde
1928 integrado, como tendncia fundamental, ao movi-
mento antropofgico.
As idias desses artigos so basicamente as mesmas
da tese de 1950. O que muda o ngulo escolhido
para anlise dos movimentos e tendncias histricas, de
cujo embate dialtico resulta a perspectiva utpica da
vitria do cio sobre o negcio. Afirmando a existncia de
um ciclo das utopias, que durou do sculo XVI at
segunda metade do sculo XIX, Oswald de Andrade si-
tua-lhe a origem nas prprias nascentes do Humanismo
moderno e na experincia da descoberta do Novo Mundo.
A descoberta do Novo Mundo foi a descoberta desse
outro homem, nu e primitivo, de que as cartas de Ves-
pcio, avidamente lidas na Europa, traaram a imagem,
aproveitada por Montaigne e pela Utopia de Thomas
Morus: um ser que vivia "sem lei, sem rei, sem f", na
ignorncia do pecado e em estado de natureza. Assim,
o Humanismo, que "sempre se liga idia de uma volta
da cultura ao humano, de um retomo do homem a si
mesmo", impregnou-se dessa imagem, que passou a exem-
plificar a vinculao originria da nossa espcie com
72 a Natureza, cujas leis, mais prximas das exigncias da
razo do que as normas e convenes da vida civilizada,
no poderiam inclinar-nos ao Mal. Ora satirizando pelo
riso de Rabelais e de Erasmo, ora compreendendo, como
em Montaigne, as imperfeies e loucuras da espcie, o
Humanismo sempre ops realidade humana tal corno
, a idia do homem tal como deveria ser. Desse modo,
a concepo humanstica, que cr na liberdade e que ao
homem prov dos meios intelectuais para libertar-se dos
preconceitos, dos ido la, da coao social e da opresso
poltica, est a servio da tendncia utopista, a qual,
muito embora tenha despontado na Antiguidade Clssica
(Plato) e Hebraica (os profetas), renasceu sob o im-
pacto da descoberta da Amrica.
Tenho a impresso, pondera Oswald de Andrade, referin-
do-se ao sculo XVI, de que o encontro da humanidade nua
da descoberta muito influiu sobre o movimento geral das idias
naquele instante histrico. Saber que do outro lado da terra
se tinha visto um homem sem pecado nem redeno, sem
teologia e sem inferno, produziria no s6 os sonhos utpicos,
cujo desenvolvimento estamos estudando, mas um abalo geral
na conscincia e na cultura europias.
Semelhante amplitude na concepo do Humanismo
levar o nosso poeta a idealizar o contedo utpico de
determinadas correntes, a exemplo da Contra-Reforma,
e a atribuir sentido, na marcha das utopias, a episdios,
como
nossa luta nacional contra a Holanda e o tratado de Westfalia
que, depois da Guerra dos Trinta Anos, jogava por terra as
pretenses da ustria de absorver a Alemanha, abrindo, para
a Reforma, os horizontes estatais do imperialismo germnico;
que no sculo XVI, e a partir da, ter-se-ia veri-
ficado o confronto entre duas concepes do mundo, 73
uma, com razes utpicas, gerada na velha sementeira do
Matriarcado, outra messinica, ligada ao Patriarcalismo,
a que a Reforma, herdeira da inflexibilidade tica e reli"
giosa dos hebreus, deu novo vigor. Enquanto, no hori-
zonte da histria europia, a Reforma, favorvel ao
individualismo, propcia ao esprito de acumulao dos
bens terrenos, constituir-se-ia num fator tico do Capita-
lismo, o que significa afirmar que ela tambm foi uma
fora do progresso industrial e tcnico, a Contra-Reforma,
refletindo os traos polticos e sociais da vida comunitria
da Idade Mdia, bem como os vestgios da presena
rabe na Europa, propagou, ao mesmo tempo, a religio
e a utopia.
Os jesutas trouxeram-nos uma "religio de caravela";
eles teriam assimilado a capacidade de adaptao dos
rabes, empregando-a na obra de catequese. Fundadores
da "repblica comunista crist do Paraguai", estimularam
os brasileiros mestios, numa luta que se tornou simblica,
a derrotar os holandeses, louros e protestantes. Foi essa
guerra, afirma-o Oswald, o campo de batalha no qual
a tendncia luterana, representante da economia, da pou-
pana e do negcio, perdeu para a concepo nativa que,
dado o aparente cio dos nossos primitivos, que a ima-
ginao de Vespcio interpretou como disponibilidade
ednica ou propenso epicurista, j era naturalmente
etpica.
Na guerra holandesa vencia, evidentemente uma compreenso
ldica e amvel da vida, em face dum conceito utilitrio e
comerciante. O Brasil compusera-se de raas matriarcais que
no estavam distantes das concepes libertrias de Plato e
dos sonhos de Morus e de Campanella. Era o cio em face do
74 negcio.
A opostao entre cio e negcio, mais uma das
muitas oposies conceptuais em que Oswald mostrou-se
frtil (matriarcado/patriarcado, antropofagia/messianismo,
cultura jesutica/cultura reformista, individualismo I cole-
tivismo) transforma-se, como as utopias clssicas ilus-
tram, numa das contradies vitais da histria, enfeixando
a possibilidade dialtica da sntese social de que estaramos
nos aproximando: a industrializao, refinada pelo pro-
gresso tcnico da automa-o, cria a pletora dos bens e
poupa a fora de trabalho, desviada do grosso das ativi..
dades produtivas para o recreativo, o lcido e o artstico.
Essa curiosa contradio, que a condio do cio o tra-
balho, figurou no miolo das utopias.

A contradio tende a resolver-se hoje, ao mesmo


tempo em que se decide a sorte do Patriarcado, prestes
a ceder lugar s estruturas matriarcais e a outros ele-
mentos da vida primitiva, valorizados pela conscincia
artstica moderna.
Trata-se apenas de resolver um problema - o da conquista
do cio.
Seduzido pelas analogias que entre si apresentam
certas idias, correntes religiosas e tendncias filosficas,
analogias rapidamente convertidas em relaes essenciais,
Oswald de Andrade corre de generalizao a generalizao,
numa dana de conceitos, extremamente clebre e suges-
tiva, mas que abstrai as exigncias do mtodo histrico e
despreza. as lacunas lgicas que vai deixando pelo caminho.
Os jesutas passam, na imaginao de Oswald, situao
de herdeiros espirituais dos rabes. O Brasil, onde aportou
a "religio das caravelas", a primeira promessa de utopia 75
realizvel, quando no a "utopia realizada, bem ou mal,
em face do utilitarismo mercenrio e mecnico do Norte".
No devemos, porm, incriminar Oswald de Andrade,
que no foi um filsofo puro, nem socilogo ou histo-
riador, por esses pecados de inconsistncia lgica e de
improvisao intelectual. Ele foi, tal como se disse de
Fernando Pessoa, um "indisciplinador de almas", um agi-
tador de idias, que participava emocionalmente dos temas
de que se ocupou, que os vivia, na forma de problemas
urgentes e imediatos interligados, problemas que trans-
grediam a reflexo pura para exigir atitudes prticas do
teorizador social, tambm romancista e poeta, atento
rapidez das transformaes da vida humana em nossa
poca. Por outro lado tambm, o que muito importante
considerar, Oswald de Andrade reconhecia a impossibili-
dade da reflexo terica que desatendesse s condies
a priori de ordem emotiva, a que o pensamento est
sujeito, a primeira das quais o sentimento rfico, gerador
de mitos, constante da existncia individual e social.
Parece que Oswald de Andrade abriu-se consciente-
mente a esse sentimento rfico, no hesitando em utili-
z-lo como um instrumento de sondagem, quer do passado,
de onde procurou extrair os sinais do compromisso do
homem com uma concepo do mundo arcaica, sinte-
tizada na antropofagia, quer do futuro, onde ele projetou,
na forma da sociedade do cio tecnicamente obtido, o
escopo de todas as utopias, que , do ponto de vista
sociolgico, "o fenmeno social que faz marchar para
frente a prpria sociedade". Importava-lhe justamente
essa marcha para a frente, impulsionada por todos aqueles
movimentos, como o profetismo hebreu, a promessa
76 evanglica, as heresias, o milenarismo de Joaquim de Fiori
e a revolta de Thomaz Mnzer, que o nosso autor no
esqueceu de referir.
A utopia sempre um sinal de inconformao e um pre-
nncio de revolta.

O inconformista Oswald, apegado antropofagia,


por ele formulada em 1928 no Manifesto, e reformulada
em 1950 em A Crise da Filosofia Messinica- o inquieto
Oswald que escolheu o Matriarcado, no poderia tratar
da marcha das utopias, sem que o seu prprio pensamento
no se fizesse utpico para acompanh-la.

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Col~o ELOS

1. Estrutura e Problemas da Obra Literria, Anatol Rosenfeld.


2. O Prazer do Texto, Roland Barthes.
3. Mistificaes Literrias: "Os Protocolos dos Sbios de Sio",
Anatol Rosenfeld.
4. Poder, Sexo e Letras na Repblica, Sergio Miceli.
5. Do Grotesco e do Sublime. (Traduo do "Prefcio" de
Cromwell), Victor Hugo (Trad. e Notas de Clia. Berrettini).
6. Ruptura dos Gneros na Literatura Latino-Americana, Haroldo
de Campos.
7. Claude Lvi-Strauss ou o Novo Festim de Esopo, Octavio
Paz.
8. Comrcio e Relaes Internacionais, Celso Lafer.
9. Guia Hist6rico da Literatura Hebraica, J. Guinsburg.
10. O Cenrio no Avesso (Gide e Pirandello), Sbato Magaldi.
I 1 . O Pequeno Exrcito Paulista, Dalmo de Abreu Dallari.
12. Projees: Rssia/Brasil/Itlia, Bris Schnaiderman.
13. Marcel Duchamp ou o Castelo da Pureza, Octvio Paz.
14. Os Mitos Amaznicos da Tartaruga, Charles Frederik Hartt
(Trad. e Notas de Lus da Cmara Cascudo).
15. Galut, Izack Baer.
16. Lenin: Capitalismo de Estado e Burocracia, Lencio Martins
Rodrigues e Ottaviano De Piore.
17. Crculo Lingstico de Praga.
18. O Texto Estranho, Lucrcia D'Alsio Ferrara.
19. O Desencantamento do Mundo, Pierre Bourdieu.
20. Teorias da Administrao de Empresas, Carlos Daniel Coradi.
21. Duas Leituras Semiticas, Eduardo Pefiuela Cafi.izal.
22. Em Busca das Linguagens Perdidas, Anita Cevidalli Salmoni.
23. A Linguagem de Beckett, Clia Berrettini.
24. Poltica, Jornalismo e Participao, Jos Eduardo Faria.
25. Idia do Teatro, Jos Ortega y Gasset.
26. Oswald Canibal, Benedito Nunes.
27. Mrio de Andrade/Borges, Emir Rodrguez Monegal.
28. Potica e Estruturalismo em Israel, Ziva Ben Porat e Benja-
min Hrushovski.
29. A Prosa Vanguardista na Literatura Brasileira: Oswald de An-
drade, Kenneth David Jackson.
30. Estruturalismo: Russos x Franceses, N. I. Balachov.

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