GROSSI, Miriam. Identidade de Gênero e Sexualidade. Antropologia em Primeira Mão, N. 24, PPGASUFSC, Florianópolis, 1998 (Revisado em 2010) PDF
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Miriam Grossi
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1
I. Das lutas libertrias dos anos 60 aos estudos de gnero dos anos 90
Os estudos de gnero so uma das consequncias das lutas libertrias dos anos 60,
1
Agradeo particularmente minha ex-bolsista e orientanda Angela Clia Sacchi, com quem
dialoguei intensamente durante vrios anos, e tambm aos alunos de diferentes cursos de gnero
que ministrei em diferentes instituies. Sou grata tambm aos convites de Elisete Schwade, da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, para a realizao de um curso sobre Gnero em
outubro de 1995 em Natal; de Margareth Arilha, do NEPO/UNICAMP, para o V Curso de Sade
e Direitos Reprodutivos, realizado em maio de 1996 em Campinas; e das amigas do CESEP de So
Paulo para ministrar, por dois anos consecutivos (em 1995 e 1996), no curso de Pastoral e
Relaes de Gnero.
2
2
Este momento poltico foi retratado em inmeros filmes, como, por exemplo, "A insustentvel
leveza do ser" , baseado no livro de Milan Kundera sobre a Primavera de Praga, e "Hair", sobre o
movimento hippie e a guerra do Vietn, alm da minissrie "Anos Rebeldes", da Rede Globo, sobre
as lutas estudantis e a guerrilha urbana do final dos anos 60 no Brasil.
3
Num segundo momento destes estudos, a partir dos anos 1980, deixa-se de falar
de "condio feminina" e se passa aos estudos sobre as mulheres. A partir das pesquisas
feitas na dcada anterior, percebe-se que no possvel falar de uma nica condio
feminina no Brasil, uma vez que existem inmeras diferenas, no apenas de classe, mas
tambm regionais, de classes etrias, de ethos, entre as mulheres brasileiras.3
Ser nos anos 1980 que se observar um grande desenvolvimento de pesquisas
sobre as mulheres brasileiras. Em muitos cursos de ps-graduao, so oferecidos cursos
sobre a questo, que resultam em um grande nmero de teses sobre as mulheres
brasileiras. No entanto, apesar do avano em relao aos estudos sobre a condio
feminina, neste perodo permanece a referncia quase que unnime a uma unidade
biolgica das mulheres, ou seja, a de que todas as mulheres, independente de sua
condio social, se reconhecem pela morfologia do sexo feminino (vagina, tero, seios). O
3
O que significa ser uma mulher brasileira? Apesar dos esteretipos que preenchem o imaginrio
estrangeiro sobre o Brasil, no qual as mulheres brasileiras so morenas e sensuais, sabemos
concretamente que nem todas nos encaixamos neste modelo.
4
Os Estudos de Gnero
4
O texto de Joan Scott intitulado Gnero: uma categoria til de anlise histrica a
referncia bsica para esta concepo. Elizabeth de Souza Lobo foi quem o divulgou inicialmente
no Brasil atravs de um texto apresentado na ANPOCS em 1987.
5
Grande parte das mulheres queimadas como bruxas pela Inquisio eram mulheres que faziam
cincia e lidavam com plantas e processos de cura.
5
Papel aqui entendido no sentido que se usa no teatro, ou seja, uma representao
de um personagem. Tudo aquilo que associado ao sexo biolgico fmea ou macho em
determinada cultura considerado papel de gnero. Estes papis mudam de uma cultura
para outra. A Antropologia, que tem como objetivo estudar a diversidade cultural
humana, tem mostrado que os papis de gnero so muito diferentes de um lugar para
outro do planeta.
Num livro escrito em 1950 e j clssico para os estudos de gnero, chamado Sexo
e Temperamento, uma antroploga norte-americana, Margareth Mead, mostrou que,
numa mesma ilha da Nova Guin, trs tribos os Arapesh, os Mundugumor e os Tchambuli
atribuam papis muito diferentes para homens e mulheres. Agressividade e
passividade, por exemplo, comportamentos que, em nossa cultura ocidental, esto
fortemente associados, respectivamente, a homens e a mulheres quase como uma
7
determinao biolgica, entre estas tribos lhes eram associados de outra forma. Num
destes grupos, homens e mulheres eram cordiais e dceis; no outro ambos eram
agressivos e violentos; e no terceiro as mulheres eram aguerridas, enquanto os homens
eram mais passivos e caseiros. A partir deste estudo, muitos outros foram feitos em
outros grupos humanos, mostrando que os papis atribudos a homens e a mulheres no
eram sempre os mesmos. O que acontecia at muito recentemente era que muitos
antroplogos olhavam para outras culturas com sua viso ocidental, contexto em que as
mulheres so vistas culturalmente como passivas, o que os impedia de perceber variantes
culturais do comportamento de homens e de mulheres.
Mas, alm de mudarem de uma cultura para outra, os papis associados a machos e
a fmeas tambm mudam no interior de uma mesma cultura. No caso da cultura ocidental,
na qual vivemos, podemos observar a enorme importncia dos movimentos sociais da
segunda metade do sculo XX para a transformao de modelos esperados at ento
para homens e mulheres modelos que se consolidaram no Ocidente com o Iluminismo e
com a Revoluo Francesa.
Muitos textos acadmicos e panfletos feministas produzidos no Brasil apresentam
uma viso "neo-evolucionista" da situao das mulheres no Ocidente6. Nesta perspectiva,
parece que as mulheres estariam evoluindo de uma situao de grande opresso para uma
de libertao. Estes textos comeam, por exemplo, falando da mulher no tempo do
homem das cavernas, quando eram puxadas pelos cabelos; depois falam do tempo de
Jesus Cristo, quando as mulheres eram apedrejadas, como Maria Madalena; passam pela
Idade Mdia, com exemplos das bruxas queimadas nas fogueiras; e finalmente chegam
aos dias de hoje, falando dos avanos que as mulheres conseguiram a partir de suas lutas.
Estes textos, que seguidamente so divulgados em datas comemorativas, como o dia
Internacional da Mulher, o 8 de maro, acabam, de alguma forma reificando ideias neo-
evolucionistas, segundo as quais haveria uma linha evolutiva na histria das mulheres.
Mesmo reconhecendo as inmeras situaes de opresso das quais as mulheres
seguidamente foram vtimas ao longo da Histria, creio que no possvel pens-las
independentemente de outros dados histricos e culturais. Muitas historiadoras nos tm
mostrado que, mesmo em pocas de grande opresso das mulheres, havia situaes e
prticas nas quais elas detinham poder e reconhecimento social. No campo da
Antropologia, o mesmo tem sido feito quando se reflete sobre a particularidade de cada
sociedade, sendo possvel perceber que, em muitas delas, h espaos de poder
6
Desenvolvo melhor minha anlise sobre o uso da problemtica do gnero por diferentes
autores(as) das diferentes escolas antropolgicas (neo-evolucionistas, culturalistas,
estruturalistas e ps-estruturalistas) no texto intitulado Gnero, violncia e sofrimento,
publicado pela coletnea Antropologia em Primeira Mo, n. 6, em 1995, pelo PPGAS/UFSC
(segunda verso publicada em 1998).
8
Sexualidade e Reproduo
claro que, com as descobertas cientficas a respeito da formao do embrio, nossas crenas
7
9
Para uma excelente classificao dos inmeros tipos de prticas sexuais homo e heteroerticas
no planeta, ver os trabalhos de meu colega Dennis Werner, entre eles Introduo s Culturas
Humanas, publicado em 1990.
10
Sobre a bissexualidade e psicanlise, sugiro a leitura de Joyce Mc Dougall (1983) ou de
Christian David (1997).
11
Homossexualidade ou Homoerotismo?
Ainda segundo Stoller (1978), a escolha do objeto sexual, de desejo, d-se a partir
da adolescncia e no interfere na identidade de gnero do indivduo "normal", criado
segundo sua rotulao de macho ou fmea, portanto masculino ou feminina. Um homem
que no deseje mulheres e que se sinta atrado por homens no deixa de se sentir homem.
Mas claro que, devido a presses sociais, algum que no heterossexual se sente
"diferente" daquilo que aprendeu como o comportamento sexual correto. Mesmo as
travestis sabem que so homens, e algumas chegam mesmo a dizer que esto apenas
"brincando" de ser mulheres ao se vestirem e se portarem corporalmente enquanto tais.
Muitas delas parecem reproduzir muito mais o modelo de feminilidade ocidental do que as
prprias mulheres, como atesta, por exemplo, o estudo sobre travestis da Lapa no Rio de
Janeiro, feito por meu colega Hlio R. S. Silva (1993). Para Stoller (1978), ao travestir-
se o indivduo joga um jogo em que diz "agora sou feminina", tendo, no entanto, o ncleo
arcaico que lhe afirma "sou homem".11
As prprias mulheres se sentem intimidadas ou provocadas com este "excesso de
feminilidade" que as travestis fazem questo de ostentar. Um exemplo disto foi dado
pela provocadora ps-feminista norte-americana Camille Paglia, numa entrevista ao
caderno Mais da Folha de So Paulo em 1994, em que ela afirmava: "aprendi a ser mulher
com as drag-queens. Me fantasio para ser mulher e consigo representar este papel por
um dia. Mas depois volto para casa, coloco uma roupa velha e no me sinto nada sexy".
A experincia de transexuais tem inspirado uma srie de pesquisadores da
sociedade contempornea, como Jean Baudrillard, que ousadamente afirmava, em 1987,
num pequeno artigo publicado no jornal francs Libration, que, em tempos de ps-
modernidade", somos todos simbolicamente transexuais", porque vivemos numa era em
que o corpo no deve mais ser protegido como um santurio, mas sim tem o destino de
modificar-se, de tornar-se prtese, ou seja, um simulacro de si mesmo.
Como classificar, ento, segundo o gnero, por exemplo, os homossexuais
masculinos, as travestis, as drag queens? Se no so "homens", como se costuma dizer,
so, ento, "mulheres"? E as lsbicas, as mulheres travestidas os travestis , os drag
kings? A que gnero pertenceriam? Existiria um terceiro gnero, no qual se poderiam
colocar todos estes indivduos "desviantes"? Como se sentem estes indivduos? Do gnero
11
A travesti uma personagem ambgua que tem provocado intensamente o imaginrio brasileiro.
A prpria definio de travesti, na nova edio do Minidicionrio Aurlio da Lngua Portuguesa
Editora Nova Fronteira, 1993, 3 edio, pp. 546), reflete esta ambiguidade: Travesti: s2g.1.
Pessoa que, geralmente em espetculos teatrais, se traja com roupas do sexo oposto. 2.
Homossexual que se veste com roupas do sexo oposto ao seu.
12
***************
Bibliografia Citada
12
H um vasto debate sobre a possibilidade de se pensar um terceiro gnero na literatura da
rea. Entre os inmeros textos disponveis, sugiro a leitura dos diferentes artigos publicados em
Third Sex, Third Gender: beyond sexual dimorphism in culture and history, organizados por
Gilbert Herdt (1996).
13
FOUCAULT, Michel. Dits et Ecrits (vol. I, II, III et IV). Paris: Gallimard, 1994.
HERDT, Gilbert (ed.). Thrid Sex, Third Gender: beyond sexual dimorphism in culture
and history. New York: Zone Books, 1996.
SCOTT, Joan. Gnero: uma categoria til de anlise histrica. In: Revista Educao e
Realidade. Porto Alegre: UFRGS, 1990.
STOLLER, Robert. Recherches sur lIdentit Sexuelle. Paris: Gallimard, 1978 (traduo
de Sex and Gender, cuja primeira edio de 1968).
STRATHERN, Marilyn. Reproducing the Future. Anthropology, kinship and the new
reproductive technologies). New York: Routledge, 1992.