Viver Como Porcos

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Querid@s Tr@ns.

Compartilho com vocs um texto que me fez lembrar as nossas


experimentaes coletivas. Espero que gostem do meu amigo Pelbart. Ele tem
me acompanhado bastante nos ltimos 2 anos. (Risos!) Ah! As imagens
fazem parte do meu exerccio imagtico.

TR@nsboletim convida:
ENCONTRO COM PELBART. 25/10/2010
ONDE? Aqui mesmo!
Rejane Guedes Pedroza61

Ol, Tr@nspensadores,

Meu nome Peter Pl-Pelbart. Filsofo e ensasta. Tradutor da obra


de Gilles Deleuze. Professor do Departamento de Filosofia e do Ncleo
de Estudos da Subjetividade da Ps-Graduao em Psicologia Clnica
da PUC-SP. Coordeno uma trupe de teatro com usurios de sade
mental na cidade de So Paulo (Cia Teatral Ueinzz).

Trago para o grupo alguns fragmentos do texto DIREITOS HUMANOS


E CYBER-ZUMBIS, que vocs podem encontrar na parte II (p.23- 28)
do meu livro A vertigem por um fio. Polticas da subjetividade
contempornea. Editora Iluminuras, So Paulo, publicado em 2000.

Vamos ao texto:

Viver e pensar como porcos. esse o ttulo de um dos textos mais


virulentos sobre as condies de vida contemporneas62. Gilles Chtelet no
faz referncia ao Carandir, Rocinha ou vale do Jequitinhonha, nem aos
meninos de rua, trabalho escravo, prostituio infantil, e sim s sociedades
afluentes do Primeiro mundo, s democracias-mercado que respeitam os

61
Doutoranda PPGCS/UFRN, [email protected]
62
Gilles Chtelet. Vivre et penseI' comme des porcs. Paris, Exils d., 1998.
chamados direitos humanos e onde, no obstante, se vive e se pensa
como porcos. Bem ou mal, essa a miragem com a qual a Contra-Reforma
neoliberal pensa hipnotizar-nos. Caberia examinar brevemente em que medida
essa miragem, no contexto do capitalismo tardio, da sociedade ps-industrial
ou ps-moderna, nos obriga a repensar a idia de direitos humanos e traz
tona sua insuficincia.
A equao contempornea, diz Chtelet, de uma clareza matemtica:
Mercado = Democracia = Homem mdio. Ou, em outros termos, a Mo
invisvel do Mercado no s dirige o Consenso democrtico, mas faz de
todos ns esse gado ciberntico que pasta mansamente entre os servios
e mercadorias ofertadas. (isso me lembra Bauman)

Assistimos com um estranho deleite fluidificao absoluta das fronteiras,


dos mercados, das informaes. Fazemos a apologia da flexibilizao total,
desde as condies de contratao e de trabalho at as relaes conjugais.
Acabamos nos admirando com a volatizao final, no s do capital, dos
servios, do trabalho, mas at do homem. O homem fluido, o trabalho
flexvel, o capital voltil. Desmaterializao universal e consensual, num
grande magma feito de turbulncia e equilbrio, de volpia e desencanto.
O resultado uma extraordinria operao de anestesia social, fundada na
unidade atmica indispensvel, o homem mdio estatstico, o consumidor
ideal, de bens e servios, de entretenimento, de poltica, de informao, o
cyber-zumbi. O homem mdio resultado dessa fabulosa engenharia social:
eis nosso encontro com a modernidade, a capitulao elegante aos ditames da
Mo invisvel, o contra-ataque planetrio dos imbecis.
Diz ainda o autor: passar de bucha de canho a bucha de consenso e
massa de informao talvez seja um progresso, mas risvel. O socius torna-se
um megavdeogame em que alguns poucos jogadores invisveis brincam
com seus milhes, de dlares, de empregos, de vidas alheias. Diante
disso, o humanismo universalista bem palatvel, e at mesmo
desejvel, necessrio, porm absolutamente impotente e
ornamental: no d conta do que de fato hoje est em
jogo, a saber, o tipo de existncia que esse mercado da
vida oferece e impe em escala planetria. Como o diz
Deleuze, os direitos humanos no dizem nada sobre os modos de existncia
imanentes do homem dotado de direitos. deles que seria preciso tratar, das
formas de vida vigentes.

A vida pobre

Ora, a mais recente expresso dessa urgncia encontrei numa revista


editada em Portugal, intitulada Elipse, cujo primeiro nmero tem por tema A
vida pobre. Depois de afirmar que a cultura est em eroso, e tambm o
esprito, a bailarina Vera Mantero63 escreve: "O esprito pode entreter-se
com coisas ricas ou pode entreter-se com coisas pobres. O esprito uma
criatura muito vida de ocupao. precisa de se ocupar constantemente.
O esprito deve ser o nico pedao de ns que ficou criana e que precisa
de estar sempre entretido com qualquer coisa. Se dissermos a coisa assim,
a palavra 'entretenimento' torna.-se muito menos pecaminosa. Enquanto me
entretenho com o Glenn Gould e as suas variaes Goldberg eu no morro e
nada morre minha volta. Necessitamos das artes para no morrermos. As

63
Vera Mantero In Elipse - Uma Gazeta Improvvel, Lisboa, 1998.
artes falam conosco, as artes dizem-nos coisas, no se calam. No nos
deixam no silncio, no nos deixam naquele silncio em que se morre de
tdio... vejo as artes como um resduo, aquilo que resta de uma srie de
coisas que o ser humano gosta de fazer para manter o seu esprito num
determinado ponto de possibilidade. Talvez no s de possibilidade como de
interesse. Um ponto em que possvel e interessante existir... o ser humano
precisa no estar sempre no cotidiano, precisa sair do cotidiano e entrar
noutros nveis, noutra sensao do mundo. Precisa fazer coisas no
produtivas, sair da lgica da produo, ter objetivos diferentes desses,
precisa voltar a saber que no h s um caminho entorpecedor e
mecnico, que a vida mais sutil do que isso, mais rica de redes e ns de
sentidos e sensaes, de linhas que se cruzam e que baralham e
iluminam. preciso reconhecer essas coisas, assinal-las, sublinh-las,
no s atravs do discurso mas tambm com o corpo, em aes,
associando sentidos e elementos, virando de vez em quando as coisas ao
contrrio, desorganizando e reorganizando. preciso olear o esprito,
olear o ser. preciso tambm pensar com o corpo, deixar o corpo falar,
pobre corpo. preciso sair de dentro do porta-moedas e entrar na
associao, no delrio, na sujidade... na acoplagem, acoplagem de
elementos ao nosso corpo, acoplagem de sentidos ao nosso corpo, ou
acoplagem de objetos e sentidos entre si, preciso entrar na
transformao, preciso entrar no xtase, na contemplao, na calma,
nos sentidos do corpo, no corpo, na poesia, em vises, no espanto, no
assombro, no gozo, no inconsciente, na perda, no esvaziamento, no
desprendimento, na queda, preciso tirar os sapatos, preciso deitar no
cho, preciso entrar na imaginao, nas histrias, no pensamento, nas
palavras, no humor, no pensamento, nas palavras, no humor, no
pensamento, na relao com os outros. (REGISTRO QUE AQUI LEMBREI
MUITO DOS DILOGOS TR@NS).
Ns precisamos muito disto, precisamos muito disto tudo, e estamos a ter
muito pouco disto e por isso que, como disse no incio, o esprito est em
eroso, a cultura est em eroso e ns s vezes estamos muito tristes ou
temos a sensao de que a vida desapareceu de c de dentro.(Pg 25)
Chamo a ateno para esse ponto de possibilidade e de interesse em que
um esprito deveria estar para que fosse possvel e interessante existir, como
diz Mantero, e que justamente o que viver e pensar como porcos nos impede.
Jos Gil, como que em eco aos termos empregados por Mantero, escreve em
seu artigo, no mesmo nmero: "Aqui h tempos atingi aquele ponto central
de onde descobri a verdade: que a minha vida irremediavelmente pobre.
No h nada a fazer-lhe. Alis, j tentei de tudo, e quanto mais me agitava
para contrariar a tendncia, mais me aproximava daquele ponto terrvel.
[...] No que me falte alguma coisa. Vou a concertos e a exposies, leio
muitos livros e revistas, tenho uma discoteca e biblioteca razoveis,
tenho amigos e relaes, em suma nada me falta para ter uma bela vida.
Mas criou-se uma espcie de fosso minha volta. invisvel, mas est l,
e faz-se sentir mesmo no meio do concerto mais empolgante. O que ouo
toca-me, mas como se no me tocasse, se olho bem; o que leio fica
apenas em mim, no passa de mim, e acaba por amarelecer, sem eco; o
que vejo nas galerias de arte e o que l se diz, como se no tivessem a
ver com a minha vida. E tudo o resto assim. H um grande buraco no
meio das pessoas que lhes abafa a fala e absorve as vozes que vm dos
outros... O buraco alastra como o do oznio. Vai comendo o cu. como
se a pouco e pouco me comesse o corpo. Noto agora que h muito tempo
a vida se me empobrecia. Muitas coisas comearam a desaparecer dos
meus hbitos, sem que desse por isso. Primeiro, as palavras. Algumas,
para comear, depois muitas, numa torrente imensa, desapareceram do
meu vocabulrio... Com as palavras foram-se idias, sensaes,
sentimentos. Gostava imenso de uma ria de pera [...] Ento chorava.
Era a melhor maneira de me exprimir. Hoje, j nada disso acontece. que j
no preciso de me exprimir. Tudo me exprime, e muito melhor do que poderia
faz-lo. Para comear, h o Plcido Domingo, e os outros, e as vozes que
porventura nascessem na garganta, seriam logo canalizadas, moldadas por
esses timos cantores de pera. Logo ali, no fundo da garganta, quando eu
quisesse dizer a minha solido e o abandono em que me deixou o amor, eu
ouviria, tenho certeza, o fulgor e o luxo da voz de Plcido Domingo... E quem
sou eu para pretender assim exprimir emoes to fortes, mais fortes do que
todas aquelas de que sou capaz? Por isso calo-me."
Certa contemporaneidade, na sua fosforescncia perfeita e esvaziada, nos
teria despossudo do poder de cantar, gaguejar, chorar ou sentir. Privados do
canto, das palavras, do corpo, da vida, viveramos um pouco aquela
depauperao da experincia de que nos fala Walter Benjamin, quando
mostra que diante da guerra, da inflao, da fome e da humilhao, o "frgil e
minsculo corpo humano", que de repente se viu no centro de uma
"paisagem diferente em tudo", em que a nica coisa reconhecvel eram as
nuvens, parecia afinal mais pobre em experincias comunicveis do que
antes, no mais rico. Se j no estamos diante da guerra, inflao, humilhao
e pobreza tal como os combatentes de 14, preciso dizer que num certo
sentido a depauperao mencionada parece apenas aumentar. Sobretudo num
aspecto que Benjamin evoca, e que a revista portuguesa em que foram
publicados os textos de Mantero e Gil parece ter levado ao seu ponto extremo,
mesmo sem cit-la: " hoje em dia uma prova de honradez confessar nossa
pobreza"64.

64
Walter Benjamin. Experincia e pobreza. In Obras Escolhidas. So Paulo, Brasiliense, 1987.

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