Voce Tem Fome de Quê PDF
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Natureza-morta com bananas e goiabas, albert eckhout. leo sobre tela, 103 x 89 cm, c. 1640. reproduo do livro albert eckhout / vises do paraso selvagem obra completa, ed. capivara, 2010
P
egar a histria pelo estmago. Es-
sa a estratgia da historiadora Leila
Algranti, professora da Universida-
de Estadual de Campinas (Unicamp),
para ter mais uma chave de leitura do
Imprio Portugus. Meu interesse a histria
colonial. A comida foi mais uma forma que en-
contrei de entender a dinmica desse Imprio,
explica. Afinal, se entender a colonizao da
Amrica captar as formas de comunicao en-
tre conquistadores e conquistados, de integrao
e modificao entre o Velho e o Novo Mundo, a
alimentao permite ao historiador entender no
s os resultados desse intercmbio cultural, mas
o seu processo, afirma.
Foi esse interesse que a levou a desenvolver a
pesquisa As especiarias na cozinha e na botica
Um estudo de histria da alimentao na Amrica
portuguesa, que analisa a alimentao no mun-
do lusitano entre os sculos XVI e XVIII, para
refletir sobre as trocas culturais, apropriaes e
ressignificaes de elementos entre os habitantes
de diferentes regies do Imprio, um fantstico
intercmbio cultural.
Alimentao no um tema suprfluo: a fo- A exuberncia
das frutas foi
me ainda est no centro das polticas governa- retratada por
mentais. Comida no s sustento, mas es- Albert Eckhout
truturante na organizao social de um grupo no sculo XVII
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histria
caf, debret. aquarela e lpis, 24 x 18,9 cm, c. 1818. reproduo do livro debret e o brasil obra completa, ed. capivara, 2009
lusitanos, a aventura das plantas. Era,
porm, um movimento contraditrio:
havia avidez por novidades e diversida-
de, mas a empreitada era dominada pela
tradio de enquadrar o desconhecido
em padres familiares, como se ver.
humores
As clebres especiarias tinham origem na
palavra latina drogas e, apesar do sen-
so comum, no eram desejveis apenas
como forma de conservar alimentos ou
disfarar sabores de carnes apodrecidas.
Elas representavam a associao entre
culinria e cura baseada na farmacologia
galnica dos humores, cujas alteraes
se ligavam ao que se comia. Para corri-
gir desequilbrios comiam-se pratos que
Caf chega teriam qualidades contrrias ao humor
ao Brasil num
fora de balano. Receitas culinrias e me-
processo de
intercmbio dicinais eram iguais e a comida, alm
de espcies de um gosto, era uma questo de sa-
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Comidas do
senhor e do de, observa Leila. Isso tao, em vez de adotar o trivial da terra: taurada (Topbooks, 1998): a aceitao
escravo eram
igualmente
transparece no primeiro feijo, farinha e carne-seca, nota Leila. dos gneros nativos pela elite aucareira
pobres em valor livro portugus de culi- Prover colonizadores com alimentos de da Colnia s ocorreu com a instabilida-
nutricional nria, Arte de cozinha seus pases de origem levou reproduo de do abastecimento de importados nas
(1680), de Domingos no Novo Mundo da alimentao: tudo o guerras holandesas. S quando a nica
Rodrigues, com receitas que fosse transportvel em termos de co- opo possvel contra a fome era usar a
de uma comida condimentada ao gosto mida foi introduzido na Amrica. farinha de mandioca, que tinha status
da poca e que tambm seria boa para a Quando os europeus chegaram aqui, inferior ao trigo, a elite se submeteu.
sade. A exuberncia do Novo Mundo, a populao autctone tinha o milho e a A eterna culpa da monocultura ou-
onde indgenas usavam a fartura da terra mandioca como alimentos de base. Mais tro ponto a ser refinado. Se a coloniza-
reproduo do livro debret e o brasil obra completa, ed. capivara, 2009
em caa, peixes, razes e tubrculos como tarde, os dois tambm seriam a base da o do Brasil foi marcada pelo cultivo de
um jantar brasileiro, debret. aquarela sobre papel, 15,9 x 21,9 cm, 1827.
a mandioca, que o nativo aprendeu a do- alimentao na Amrica portuguesa. Mas produtos para a demanda europeia, em
minar, e o milho, deveria ter feito, como cada um procurou manter seu modo de detrimento do abastecimento interno,
preconizava a antiga gerao historiogr- vida: os nativos usaram tcnicas de pre- no dia a dia, a alimentao foi motivo de
fica, com que os portugueses abrissem paro estrangeiras, embora em alimentos ateno e cuidado permanentes, avisa
mo da dieta natal pelo novo. j conhecidos. Os europeus s aceita- Rubens. Afinal, a ideia de uma Colnia
Mas o colonizador se manteve fiel vam a alimentao vinda do reino, s monocultora no representa a Amrica
a sua dieta de trigo, vinho e azeite at quando no se pde manter esse card- portuguesa em sua totalidade. Regies
quando foi possvel. A incorporao de pio que se optou por substitutos, como no sul dos grandes centros produtores
prticas alimentares na Amrica foi mais a mandioca no lugar do trigo, explica de cana-de-acar, e no norte, no esta-
rpida do que o processo inverso, j que o historiador Rubens Panegassi, da Uni- vam to ligadas ao comrcio externo e se
os europeus opuseram resistncia a pro- versidade Federal de Viosa. a tese de dedicavam agricultura. No Maranho,
dutos americanos, com o custo da impor- Evaldo Cabral de Mello em Olinda res- a produo local permitia o consumo
loja di carne secca, jean-baptiste debret. aquarela sobre papel, 15,2 x 20,4 cm, 1825.
reproduo do livro debret e o brasil obra completa, ed. capivara, 2009
fermentavam. O destilado era novidade
para os europeus, acostumados ao vinho.
Reprimida por no pagar impostos e rou-
bar mercado das bebidas do Reino, seu
consumo foi perseguido pelos jesutas.
A aguardente foi usada para conquistar
coraes e mentes de ndios, moeda de
troca pelos conhecimentos da terra que
os nativos possuam. Os negros eram
acalmados com a bebida. Mas no se
pode ignorar o valor calrico das aguar-
dentes e a importncia na dieta pobre e
insatisfatria dos escravos, nota Leila.
DOces
Foi outro o caso das frutas, evitadas pe-
los europeus, que temiam seus efeitos, e
destinadas aos escravos. Os senhores s
comiam frutas cozidas com acar, em
compotas, geleias, doces secos e crista-
Venda de produtos lizados. A doaria revela a adaptao de
para alimentao: de gneros ainda Havia tambm as hortas feitas, s frutas tropicais ao cotidiano europeu,
desenho de Debret
mostra pouca
frescos, afirma a escondidas, pelos escravos negros. A exemplo notvel do ajuste cultural nas
diversidade da historiadora Paula contribuio africana deu-se em vrios cozinhas dos engenhos, afirma Paula.
cozinha da poca Pinto e Silva, auto- aspectos, mas preciso uma biografia Nos doces via-se tambm a preocu-
ra de Farinha, fei- mais detalhada dos pratos que se acre- pao com a sade. Registros de poca
jo e carne-seca: dita africanos. A sua influncia se deu mostram a presena de doces mesa dos
um trip culinrio mais pelo gosto e pela forma de preparar colonos e na cabeceira dos doentes, diz
no Brasil colonial (Senac, 2005). alimentos do que pela feitura de comi- Leila. A doaria a tradio mais ori-
Tambm a distncia entre So Paulo e das nativas, avisa Leila. ginal da cozinha portuguesa, um para-
as regies centrais estimulou a autossu- Eles no trouxeram elementos de digma da mediao cultural. No um
ficincia: a independncia aos importa- seus sistemas alimentares, mas esses segmento secundrio da alimentao
dos, somada ao contato com os indgenas elementos foram introduzidos no Bra- na Amrica portuguesa, mas a mais im-
e opo pelo milho como alimento de sil e marcaram nossa comida por meio portante produo colonial, que alte-
base, foi repertrio alimentar particular dos comerciantes, ou seja, fazendo parte rou hbitos alimentares e de nutrio
da regio, nota Rubens. conhecido o do comrcio atlntico Portugal-Brasil- na idade moderna, analisa. Se nas co-
empenho paulista em ser fornecedor de frica, que inclua o trfico de escra- midas salgadas a refeio do senhor e a
alimentos para as Minas, cuja obsesso vos, afirma a antroploga Maria Euni- do escravo eram algo semelhantes em
pela minerao, reza a historiografia, ce Maciel, da Universidade Federal do pobreza, os doces so de outra esfera.
levou a um desinteresse pela agricultu- Rio Grande do Sul (UFRGS) e autora Especiaria rara e preciosa, o acar de
ra de subsistncia, com crises de fome. do estudo Uma cozinha brasileira. A incio era usado nas farmcias e s no
Hoje sabemos de cintures verdes em permanncia de receitas africanas no sculo XV provocou o renascimento na
torno da minerao e a produo de ali- s a persistncia de hbitos alimenta- era das guloseimas. Antigamente s ti-
mentos. Mesmo no Nordeste houve, sim, res, assim como as mudanas que ocor- nha acar nas boticas para os doentes.
produo de subsistncia, sem negar a reram nestas receitas no resultaram s Hoje o devoram por gulodice. O que era
falta crnica de alimentao, observa da falta de ingredientes. Ambas so parte remdio agora gula, observou o ge-
Leila. Ficaram esquecidas por estudos de uma dinmica cultural de constante grafo Ortelius em 1572.
generalizantes as hortas que cercavam recriao da maneira de viver.
os engenhos, feitas para a aclimatao Mesmo a origem da feijoada revela
de espcies europeias e o cultivo de ou- uma luta simblica. Se a verso do sur-
tras nacionais. gimento nas senzalas um mito, vale
As espcies aclimatadas cresciam, lembrar que o mito fala. Assim, haver
mas logo verduras e legumes da terra essa narrativa revela as relaes de classe
invadiram as hortas europeias e se ini- e raa no Brasil. O mesmo vale para as A monocultura da cana
ciou, na cozinha das casas-grandes, um verses que a negam. Nisso entra tam- (ao lado) enriqueceu a
Metrpole; em conjunto
processo de substituio dos ingredien- bm a cachaa, originalmente a escuma com frutas (acima), deu
tes originais da receita por equivalentes formada pelas impurezas que subiam dos origem aos doces, marca
locais, nota Paula. tachos em que se fervia o sumo da cana, cultural da Colnia
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Leila. Um salto desde o relato do padre
Natureza-morta com melancia, abacaxi e outras frutas, albert eckhout. leo sobre tela, 91 x 91 cm, c. 1640.
reproduo do livro albert eckhout / vises do paraso selvagem obra completa, ed. capivara, 2010