Jorge Caleiras
Jorge Caleiras
Jorge Caleiras
DESEMPREGO
Trajectrias de Excluso e Estratgias de
Enfrentamento *
JORGE CALEIRAS
SOCILOGO. CENTRO DISTRITAL DE SOLIDARIEDADE E SEGURANA
SOCIAL DE LEIRIA
RESUMO
Este texto projecta uma anlise do recente recrudescimento do desemprego em Portugal e pretende
estudar as consequncias deste fenmeno.
Partindo de um contexto internacional marcado por profundas mudanas e por um momento particular
de recesso econmica, procura-se situar a as determinantes do desemprego, para depois, escala dos
indivduos e das famlias, problematizar os efeitos e os padres de comportamento que ele suscita junto
de quem o experimenta.
dada tambm ateno especial anlise do papel protector do Estado e dinmica das polticas
pblicas que visam atenuar as situaes de risco social mais corrosivas.
*
Este texto tem um carcter exploratrio e condensa o essencial de um projecto de investigao, que
visa o doutoramento, apresentado Fundao para a Cincia e Tecnologia e Faculdade de
Economia da Universidade de Coimbra.
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1. INTRODUO: O SENTIDO DE UMA ANLISE
O ponto de partida deste texto, cujo carcter essencialmente exploratrio, assenta
em duas constataes. Uma primeira a de que Portugal tem historicamente nveis de
pobreza e de excluso que no so de todo aceitveis luz dos parmetros das
sociedades desenvolvidas. A acrescer a esta inaceitabilidade estrutural, uma segunda
constatao, esta de natureza mais conjuntural, est conjugadamente na gnese deste
projecto: em resultado do abrandamento da actividade econmica, o recente
encerramento de empresas e as consequentes vagas de reduo de pessoal esto a
gerar nveis de desemprego a que o pas no estava habituado, ao contrrio da maioria
dos parceiros comunitrios, j familiarizados com taxas de desemprego mais elevadas.
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em conta a actual situao da economia e ainda alguma incerteza quanto sua
evoluo num futuro prximo, os prximos meses no se mostram favorveis.
Significa isto que estamos em presena de valores a que o pas no estava habituado.
E destes valores, dados os baixos nveis de habilitaes e de qualificaes
profissionais, bem como as debilidades estruturais dos sistemas de proteco, no
difcil supor que uma fatia significativa apresente um elevado nvel de complexidade
quanto probabilidade de regresso ao mercado de trabalho. A ser assim, estamos
perante casos que do ponto de vista do seu enquadramento social tm, para alm de
consequncias pessoais, efeitos multiplicadores danosos para as clulas familiares e
para as comunidades e redes sociais em que estas se inserem. Do ponto vista do seu
enquadramento econmico estes casos representam tambm, por um lado, sub-
aproveitamento e mesmo desperdcio de potencial humano e, por outro, afastamento
de um volume significativo de indivduos dos processos produtivos, com reflexos ao
nvel da diminuio do poder de compra.
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activo, seja ainda pouco antes da sada do mercado de trabalho, com durao mais ou
menos prolongada.
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especialmente, se no forem (re)inventados e ajustados aos novos pblicos
desempregados.
em torno desta questo que se propem trs reflexes crticas: i) uma primeira
acerca de macroprocessos exgenos que crescentemente explicam o recrudescimento
do desemprego, como sejam os processos de globalizao e de integrao europeia; ii)
uma segunda, de natureza fenomenolgica, sobre a dimenso compreeniva das
vulnerabilidades e dos riscos de excluso vividos em quadro recessivo; iii) e uma
terceira reflexo sobre as vias de regulao social, sobre as dinmicas reactivas dos
mecanismos protectores do risco social e sobre os mecanismos de (re)activao
designadamente as aces operadas no vasto espao compreendido entre o Estado e o
mercado, no mbito do que se convencionou chamar Terceiro Sector.
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envelhecimento demogrfico, os sistemas de emprego tm experimentado crises mais
ou menos profundas que se manifestam no aumento do desemprego de longa durao
e na generalizao de precaridades e descontinuidades nas relaes laborais.
Ora, daqui resulta uma reflexo acerca dos impactes da globalizao e da integrao
europeia na economia portuguesa e pressuposio de que tanto uns como outros
tm, grosso modo, dado nome a uma forte presso do mercado mundial e ao
predomnio de uma lgica de normalizao sobre uma lgica de articulao de
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racionalidades diversas. Em resultado, a economia portuguesa tem visto a sua aco
condicionada por opes polticas restritivas, assumidas no sentido do funcionamento
liberalizado do mercado, do controlo da inflao e do dfice pblico.
Mas o momento actual tambm, tal como h uma dcada atrs, um momento de
recesso que se tem traduzido, de forma muito mediatizada, em processos de down
sizing e reengeneering, ou mesmo de encerramento de empresas, muitas delas
deslocadas para outros territrios onde o factor trabalho constitui menor custo. A vaga
de mo-de-obra descartvel daqui resultante tem sido de tal ordem significativa que
tem gerado inclusivamente intervenes pblicas da parte do Presidente da
Repblica2.
1
A Lei n 99/2003, de 27 de Agosto, aprovou o Cdigo do Trabalho. Posteriormente, entrou em vigor
em 1 de Dezembro de 2003. Com a aprovao deste Cdigo foram transpostas para a ordem jurdica
nacional, de forma parcial ou total, um conjunto vasto de Directivas comunitrias sobre condies
aplicveis aos contratos e s relaes de trabalho.
2
Refira-se, a ttulo de exemplo, a Declarao proferida, no dia 12 de Fevereiro de 2003, a propsito de
uma audincia concedida s trabalhadoras de um empresa encerrada na zona de Aveiro; ou o Discurso
proferido na Assembleia da Repblica, no dia 25 de Abril de 2003.
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O conceito de empregabilidade aqui entendido, de forma simples, como a probabilidade que um
indivduo tem em sair da situao de desemprego e de se (re)inserir profissionalmente.
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Postos margem do sistema produtivo, estes segmentos tendem a acumular
desvantagens e a ver-se excludos da possibilidade de participar plenamente na vida
em sociedade e de direitos de cidadania elementares.
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da modernizao tecnolgica, os empregos eram estveis e as situaes de
desemprego eram passageiras e estavam confinadas a valores relativamente baixos.
Este modelo assegurava o pleno emprego e as medidas de redistribuio de riqueza e
de segurana de rendimentos eram garantidas pelo Estado-Providncia, apresentado
como o garante do bem-estar.
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do Estado pela via do trabalho, de ocupaes (socialmente) teis. No quadro europeu,
estas polticas rapidamente se estenderam e disseminaram.
Neste sentido, foi delineada uma estratgia global de luta contra a excluso e de
regresso ao trabalho, considerado este como a principal via para a incluso,
particularmente dos grupos mais desfavorecidos. A definio dessa estratgia passou
pelo fomento da competitividade e da inovao, atravs da transio para uma
sociedade assente no conhecimento; pela revitalizao e modernizao do Modelo
Social Europeu, investindo nas pessoas e combatendo a excluso; pela reduo da
presso fiscal sobre o trabalho, em particular sobre os trabalhadores pouco
qualificados e com baixos salrios; pela melhoria dos regimes de incentivo ao
emprego; pelo prolongamento e melhoria da escolaridade dos jovens entre os 18 e os
24 anos; e pelo aumento gradual da taxa mdia de emprego para valores prximos dos
70% at 2010 (CE, 2001).
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No caso portugus, como sabido, a taxa de feminizao do mercado de trabalho apresenta valores
relativamente elevados.
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espao de potencial interventivo, compreendido entre o Estado e o mercado que o
Terceiro Sector. A luta contra o desemprego e a excluso deixou de ser vista apenas
como um problema de equilbrio econmico. Passou a ser vista tambm como um
desafio no combate aos factores de risco da coeso social, transformando esta numa
constante do discurso poltico europeu (Hespanha, 2002). No entanto, dados recentes
do Eurostat continuam a mostrar a situao do desemprego na Europa: em Janeiro
ltimo, 12,3 milhes de pessoas, na zona Euro, estavam desempregadas, enquanto no
conjunto da Unio Europeia, esse valor era de 14,2 milhes pessoas.
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Embora, como se disse acima, por via do discurso emergente que responsabiliza o desempregado
pela sua condio, este risco possa vir a ocorrer, tal como acontece nas sociedades salariais
desenvolvidas, onde o estatuto social do desemprego mais desfavorvel e estigmatizante.
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Conhecidos estes factos, ento de considerar, partida, que o estatuto e a vivncia
do desemprego sero menos difceis de suportar do que noutras sociedades centrais da
Europa, dada a maior densidade dos laos sociais e a forte integrao social, em geral,
conjugada com a tendncia para o exerccio de actividades informais e a (ainda) fraca
estigmatizao na relao com as instituies.
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4. CONSEQUNCIAS PESSOAIS DO DESEMPREGO
As consequncias do desemprego podem ser analisadas em dois planos. No plano
macro, global e econmico, no mbito do qual emergem diversos temas, como sejam,
a recomposio das estruturas de poder econmico, a nova diviso internacional do
trabalho e os factores de competitividade, as alteraes no paradigma do trabalho ou o
papel protector do Estado e da Sociedade nestas circunstncias.
Mas podem igualmente ser analisadas no plano micro, pessoal e compreensivo, isto ,
no plano concreto da vida dos indivduos e das suas famlias, das suas condies de
existncia, quer materiais, quer simblicas. Aqui, aqueles que no se adaptam ao
ritmo das mudanas, que no se adaptam s competncias e qualificaes exigidas
pelos novos modos de produo (o just-in-time, o out-sourcing ou a flexibilidade
funcional), aqueles que no apresentam perfomances ajustadas, que no so rentveis
nem competitivos, que no so capazes de conviver com as novas regras impostas
pelo mercado, so relegados para a margem do sistema produtivo, engrossando os
nmeros do desemprego. Desta forma, so as prprias modalidades de insero e de
participao na vida social dos indivduos e das famlias pela via do trabalho que so
colocadas em causa, com as consequncias que da decorrem: consequncias na
relao mantida com a sociedade, consequncias na construo da prpria identidade.
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Outra questo relevante aqui diz respeito s estratgias e s representaes que os
indivduos e as famlias fazem accionar face condio de desemprego. A este
propsito, o que particularmente nos interessa a anlise das formas de se adaptar, de
reagir e de gerir as tenses ligadas a esta condio, que para muitos indita.
Podemos questionar como que os indivduos e as famlias desenvolvem, na prtica,
a sua adaptao e a sua reaco experincia? Quais as formas concretas que
materializam essa adaptao e essa reaco? Como que as podemos caracterizar?
Quais os processos utilizados para gerir as tenses existenciais que resultam desta
vivncia? Ou, quais os recursos (princpios, modelos, imagens, atributos,
solidariedades) a que os indivduos e as famlias fazem apelo nestas circunstncias?
Este conjunto de questes sugere que o desemprego afecta indivduos e famlias com
recursos e atributos diferenciados. Da a condio de desemprego no ser vivida da
mesma maneira por todos os indivduos ou famlias, nem suscitar deles e delas o
mesmo tipo de comportamento. Na medida em que os recursos so diferentes,
tambm as vivncias da condio de desemprego so diferenciadas. Num processo de
progressiva dualizao social, os indivduos e as famlias possuidores de fracos
recursos tendem a experimentar a condio de desemprego e a geri-la com uma carga
dramtica bem mais elevada do que os indivduos e famlias possuidores de fortes
recursos.
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Nas situaes em que se conjugam desemprego de carcter prolongado, debilidade
dos mecanismos pblicos de proteco, fracos recursos pessoais reactivos e
fragilidade das redes de solidariedade, as consequncias pessoais e familiares so
mais corrosivas e, portanto, o risco de serem gerados, a jusante, crculos viciosos de
excluso potenciado.
5. (IR)RACIONALIDADES DA ACTIVAO
certo que as situaes de pobreza e de excluso s podem ser verdadeiramente
combatidas atravs da participao activa de quem experimenta o desemprego na vida
social e de trabalho, e no apenas atravs do usufruto de um rendimento sem
contrapartida. Neste sentido as medidas de activao funcionam como uma espcie de
trampolim entre situaes de excluso e situaes efectivas de insero (Hansen e
Hespanha, 1998). Neste aspecto parece existir hoje um consenso generalizado.
Contudo, o mesmo j no se poder afirmar relativamente a um conjunto de questes
que as polticas de activao levantam e que se prendem com aquela levantada a
propsito do conceito de empregabilidade.
Uma primeira questo respeita ao facto de que estas medidas se fazem acompanhar de
elevadas obrigaes para os utilizadores, o que levanta o problema do seu grau de
compulso, assim como o seu carcter disciplinador e punitivo (Geldof, 1999; Berkel,
1999). Uma segunda respeita tendncia para estas polticas criarem um mercado de
trabalho secundrio, caracterizado por tarefas temporrias e inapropriadas insero
profissional, no qual os utilizadores no gozam dos mesmos direitos laborais dos
trabalhadores regulares, nem de liberdade e autonomia individuais (Hvinden, 1999;
Heikkila, 1999). Outra tem a ver com a relativa incapacidade de estas polticas
fazerem aceder a empregos, no evitando assim a permanncia de nveis elevados de
desemprego. E, finalmente, outra questo que respeita ao facto de, nestas
circunstncias, o estatuto de desempregado, sobretudo o de longa durao, estar a ser
associado a situaes de marginalizao social (Lind, 1995).
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polticas ou a presso institucional, fruto do discurso sobre o controlo oramental,
parecem para isso contribuir.
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Este tipo de utilizao gerou inclusivamente uma recomendao pblica recente do Provedor de
Justia.
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da produo dos recursos necessrios). S com a maior explorao deste amplo
espao, funo que a nosso ver continua a caber ao Estado, se podero (re)criar
formas que permitam alargar a base da participao nos processos produtivos e
potenciar a coeso social.
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