Aforismos e Máximas em La Rochefoucauld, Pascal, Nietzsche e Cioran
Aforismos e Máximas em La Rochefoucauld, Pascal, Nietzsche e Cioran
Aforismos e Máximas em La Rochefoucauld, Pascal, Nietzsche e Cioran
INTRODUÇÃO
humanos. Não se trata ainda de uma psicologia científica como aquela que
nascerá no século seguinte com Christian Wolff (1679-1754), mas de uma
instigação ao conhecimento do homem por mecanismos estritamente racionais,
sem recurso à experimentação empírica e à comprovação estatística. Tratava-se
de um exercício intelectual sagaz e de uma desconfiança perspicaz quanto aos
verdadeiros motivos, intenções, sentimentos do homem, escondidos por ele em
função de sua vida em sociedade, dos costumes, da moral, do próprio desejo de
estima social. 1 Tratam-se de textos de poucas linhas. Além da preocupação
psicológica, havia a preocupação moral, isto é, com os costumes. Uma página,
no máximo. Nunca, portanto, um sistema completo de idéias, de uma exposição
exaustiva de um conceito ou de um pensamento. São apenas lances de dados.
Nestes relâmpagos, os autores tinham por intenção fazer seus leitores pensarem
por si mesmos, mais que lhes dar um pensamento pronto. São textos de
pensamento propositalmente inacabado, lacunar, evasivo e sedutor. No século
XIX, Nietzsche fez-se herdeiro desta tradição francesa. Os seus textos trazidos
aqui são conhecidos como "aforismos". A meu ver, "máximas morais" e
"aforismos" constituem-se em um tipo de escritura muito propícia ao
desabrochar da capacidade reflexiva dos alunos.
Para que todos aprendamos algo com estes textos, é preciso que se
compreenda que a posição crítica é a única possível. Não se trata de procurar
cativar os alunos para uma corrente de pensamento, para o discipulado de algum
filósofo ou de algumas idéias. Trata-se de ler coisas que nos ajudem a pensar
criticamente. Trata-se de ler criticamente idéias que podem ser incorporadas em
nossa visão de mundo, de maneiras tão diferentes quanto o número de seus
leitores. O objetivo não é destruir nossos mais nobres valores, mas, fazendo-os
passar pelo crivo da crítica, oferecer-lhes possibilidades de alicerces mais
sólidos ou de referências teóricas de contradição, confronto e distanciamento.
1
Ver MACHADO, Alcântara. Introdução. In: LA ROCHEFOUCAULD. Reflexões e máximas morais. Cultrix,
6
s/d.
7
2
Já discutimos (turma de Introdução à Filosofia) o paradoxal contraste, no texto A Defesa de Sócrates, escrito
por Platão, entre a racionalidade dos argumentos socráticos e o modo como o filósofo ateniense aferrar-se
obstinadamente na posição que o conduz à pena capital. Impressionante falta de assimilação do princípio
apolínio da medida, em nome do cuprimento de um dito particular do mesmo deus Apolo: Sócrates é o mais
sábio dos homens."
8
Sem pretender sufocar a explosiva força crítica deste texto, anoto aqui
algumas reflexões que vêm me perseguindo desde que o li pela primeira vez em
1995. Pretendo apenas instigar mais a leitura crítica de vocês.
outro a paixão. Pensa que a idéia seja ou deva ser neutra. Mas e se a idéia não
for neutra, se não houver esta distinção entre idéia e paixão e se uma idéia for,
em si mesma, uma paixão? E se uma idéia for uma vontade de interpretar, uma
vontade de verdade que não pode nascer sem a chama ou a energia da paixão?
De que forma poder-se-ia separar radicalmente o que é uma idéia e o que é uma
crença?
Se o homem é idólatra por instinto, como ele pode produzir uma idéia sem
fazer dela um ídolo? Como considerar as idéias intercamibáveis? Como evitar
que o simples fato de ter idéias não conduza o homem a discuti-las e,
naturalmente, a inflamar-se por elas? A questão é que, se é verdade que "sob as
resoluções firmes ergue-se um punhal", não se segue que é necessário nivelar
todas as idéias. Se é verdade que o espírito hesitante, não dispõe de uma
verdade, não tem uma resolução firme, não significa que não tenha nenhuma
idéia. Se hesita, é por ter, diante de si, uma pluralidade de idéias. Aquele que
hesita, detém-se frente o desafio da eleição. Uma coisa é hesitar, outra é não
eleger nada, mantendo-se em estado permanente de pusilanimidade. Este seria o
estado ideal do ser humano para Cioran.
Este caminho de discussão pode ir longe, mas não é esta a melhor forma
de ler este texto cioraniano. Sua força reside exatamente na sua não
neutralidade, no calor retórico do discurso, que não está livre de fanatismo. O
modo de tratar o tema não tem a frieza da neutralidade que requisita para toda
idéia. Também está desprovido de uma criticidade e um modo científico de
proceder que lide com a dúvida, com o processo do raciocínio lógico-
demonstrativo. É por isso que o texto congela, no impacto.
§ 2 Minha Intrerpretação. Cioran enfoca o homem. Diz que este é idólatra
por instinto, que tem necessidade de ficção, de mitologia e de deuses para
adorar. Um pouco à moda do sofista, considera nossos incondicionados, nossos
dogmas, verdades absolutas, como meros objetos de nossos desejos e interesses.
Temos, na sequência, a apresentação dos problemas de Cioran, daquilo que o faz
escrever. Preocupa-se com o aviltamento do espírito, a submissão do homem ao
dogmatismo. Preocupa-se com os crimes praticados pelo homem, em toda a
história, em nome dos "falsos Absolutos", com intolerância, intransigência
ideológica e com proselitismo. Depois de escancarados os muros do regime
socialista romeno, no qual viveu Cioran, pôde-se compreender a raiz biográfica
de seu pensamento.
Contra isto tudo que o homem é e tem, seu instinto de adorar ele tem
também uma faculdade de indifença, que pode ser perdida. Então, estamos
diante do assassino virtual: o homem pode transformar sua idéia em deus. E é aí
que surgem todas as coisas com as quais Cioram se preocupa: a fartura de
crimes que abarrotam a história.
não sabemos o que é uma "faculcade de indiferença" e qual seja exatamente sua
relação com o "instinto de idolatria". Mas o fato é que ambas as categorias
parecem, efetivamente, iluminar algo do que seja o homem, tal como nós o
conhecemos, neste tempo que chamamos de "história do homem". Parece difícil
contestar a idéia de que o homem só mate em nome de uma crença ou de seus
sucedâneos. Os exemplos históricos a que se refere o autor são particularmente
eloqüentes.
Na sequência o texto ganha mais clareza: o idólatra que ele tem em vista é
aquele que "dispõe de uma verdade, de sua verdade". Dispor de uma verdade é
ter posse dela, é ter a possibilidade de usá-la como espada, de empunhá-la. E
isto é possível por ser "uma verdade". É aquele que dispõe de uma verdade que é
o mais perigoso.
Parece o homem que dispõe de muitas já não é tão nocivo. Aquele que
dispõe de muitas verdades começa a não ter como lidar com elas tão facilmente.
Sua mente se dispersa nesta pluralidade. Por vezes, as verdades começam a
confliturar-se entre si e ele já não pode mais dispor delas.
Ao colocar os crimes dos Neros e Tibérios em segundo plano em relação
aos fautores do conceito de herético, Cioran não está desculpando os primeiros.
Mas está invertendo uma ordem de valoração histórica consagrada no Ocidente.
Os Neros e os Tibérios foram perseguidores dos cristãos. Foram responsáveis
por milhares de mortes. Cioran considera que a mortalidade e as ondas de crime
em nome das divisões religiosas, das divisões entre ortodoxos e heréticos é
muito mais volumosa. Mais que isto, considera a demência dos Neros e dos
Tibérios uma demência circunscrita a indivíduos, enquanto os fanatismos
religiosos e políticos como demências que se apoderam de massas inteiras,
estruturas sociais e políticas. Aquele que secciona a verdade em verdade
ortodoxa e verdade sismática, erige-se em juiz dos homens. Daí à condenação à
fogueira, ao banimento, ao ostracismo, é um passo.
12
"Indispensável à disputa. Quem não sabe pôr suas idéias no gelo não deve
engajar-se no fogo da discussão." (MAI/HHI § 315).
"Fiéis às suas convicções. Quem tem muito a fazer conserva suas idéias e
opiniões gerais quase imutáveis. Do mesmo modo, quem trabalha a serviço de
um ideal: não submete jamais este ideal a exame. Não tem tempo para isto. É
contrário a seu interesse crer que ele seja se quer discutível." (MAI/HHI § 511)
não faz mais que experimentar e julgar; enquanto que Sólon, que não foi nunca
homem de partido, mas dque perseguiu seu fim ao lado e acima dos partidos, e
ainda contra eles, converteu-se no autor (e isto é significativo) desta simples
palavra, que revela toda saúde inesgotável de Atenas: 'Eu me aperfeiçoei, mas
continuo aprendendo.'" (VM/OS § 301)
cumpriu) de que esses seres a quem nós temos nos consagrado fossem realmente
o que parecia ser na nossa imaginação? Estamos obrigados a ser fiéis a nossos
erros, ainda sabendo que com esta fidelidade danificamos nosso eu superior?
Não, não há tal lei, não há tal obrigação; devemos ser traidores, abandonar
sempre nosso ideal. Não passamos de um período da vida a outro sem causar e,
por isso, sem sentir as dores da traição. Acaso por livrarmos dessas dores
haveríamos de nos colocar em guarda contra os transportes de nosso
sentimento? Não resultaria então o mundo muito vazio, muito espectral?
Melhor, temos que nos perguntar se estas dores, quando se opera uma mudança
de convicção, são 'necessárias' ou se não dependem de uma opinião e de uma
apreciação 'errôneas'. Por que se admira aquele que permanece fiel a sua
convicção e se despreza ao que muda? Temo que a resposta seja esta: que cada
qual supõe que só se produz tal mudança por motivos vis, por baixo interesse ou
por temor pessoal. Dito de outro modo: no fundo, se acredita que ninguém
modifica suas opiniões enquanto lhe são proveitosas, ou pelo menos, enquanto
não lhe prejudicam. Porém, se é assim, não pode haver testemunho mais
contrário à 'importância intelectual' de todas as convicções. Examinemos um
momento como nascem as convicções, e, vejamos se não é que lhes concedemos
demasiada estima; isto nos ensinará que a 'mudança' de convicções tem sido
sempre medida com o olhar voltado a uma escala falsa e que até aqui tínhamos o
costume de sofrer 'demasiadamente' por esta mudança. (Nietzsche, F., Humano,
demasiado humano, § 629). (Traduzido pela acadêmica de filosofia Marcione F.
da Silva. Revisão: E. Sugizaki)
"O espírito adere, por preguiça e por constância, ao que lhe é fácil ou
agradável: esta inclinação coloca sempre limites ao conhecimento e jamais
alguém deu-se ao trabalho de desenvolver e de conduzir seu espírito tão longe
17
quanto ele poderia ir." (La Rochefoucauld, Reflexões e máximas morais, n. 482)
"É difícil definir o amor; o que dele se pode dizer é que, na alma, é uma
paixão de reinar; nos espíritos, uma simpatia; e no corpo não passa dum desejo
disfarçado e delicado, de possuir o que se ama, após muitos mistérios." (La
Rochefoucauld, Reflexões e Máximas Morais, 68)
"Não há disfarce algum que possa, por muito tempo, ocultar o amor onde
ele existe, nem fingi-lo onde não existe." (Id., ib., 70)
"O amor, como o fogo, não pode subsistir em movimento contínuo e cessa
de existir desde que deixa de almejar ou de temer." (Id., ib., 75)
"No amor, o engano vai quase sempre mais longe que a suspeita." (Id., ib.,
335).
"O que se pode prometer. Pode-se prometer ações, mas não sentimentos,
pois estes são involuntários. Aquele que promete a alguém amar-lhe sempre ou
odiar-lhe ou ser-lhe sempre fiel promete algo que não está em seu poder; o que
se pode prometer são ações que, em verdade, são ordinariamente as
conseqüências do amor, do ódio, da felicidade, mas que podem também provir
de outros sentimentos, pois a uma mesma ação conduzem caminhos e motivos
diferentes. Por conseguinte, a promessa de amar sempre a uma pessoa
significará: enquanto eu te ame, prodigarizarei por ti as ações do amor; se deixo
de amar-te, continuarás recebendo de mim as mesmas ações, ainda que por
outros motivos, de sorte que na cabeça dos demais homens persista a aparência
de que o amor será imutável e sempre o mesmo. Promete-se também a
persistência da aparência do amor quando, sem cegar-se a si mesmo, se promete
a alguém um amor eterno." (Nietzsche, MAI/HHI § 58).
19
"O que é o eu? Um homem que se põe à janela para ver os passantes, se
eu estiver passando, posso dizer que se pôs á janela para ver-me? Quem gosta de
uma pessoa por causa de sua beleza, gostará dela? Não, pois a varíola, que tiratá
a beleza sem matar a pessoa, fará que não goste mais; e, quando se gosta de mim
por meu juízo (por minha inteligência), ou por minha memória (capacidade de
memorizar), gosta-se de mim? Não; pois posso perder essas qualidades sem me
perder. Onde está, pois, esse eu, se não se encontra no corpo nem na alma? E
como amar o corpo ou a alma, senão por essas qualidades, que não são o que faz
o eu, de vez que são perecíveis? Com efeito, amaríamos a substância da alma de
uma pessoa abstratamente, e algumas qualidades que nela existissem? Isso não é
possível, e seria injusto. Portanto, não amamos nunca a pessoa, mas somente as
qualidades. / Que não se zombe mais, pois, dos que se fazem homenagear por
seus cargos e funções, porquanto só se ama alguém por qualidades de
empréstimo" (Pascal, Pensamentos, 323. Os pensadores. São Paulo: Abril
Cultural, 1973, p. 121).
François de La Rochefoucauld foi um nobre que escreveu apenas dois livros. Um de memórias e outro
de máximas. Filho do duque de Poitou, foi criado no campo, onde recebeu uma fraca educação, sem jamais ter
frequentado colégio ou universidade. Foi educado pelo poeta Julien Colardeau. Aos dezesseis anos, lutou no
regimento de Auvergne (de 1635 a 1648). Em 1656, frequenta os salão de Mme. de Sablé. Nesta época, outros
famosos salões parisienses destacavam-se como os de Mlle. de Scudéry, Mme. de La Fayette, Mme de Plessis-
Guénégaud, frequentados pelas personalidades do mundo da artes, da política, da nobreza e da literatura. No
salão de Mme. de Sablé, La Rochefoucauld compôs a maioria de suas máximas. Enquantos salões criavam-se
retratos, aí compunham-se máximas. Propunha-se um tema de moral com e dada cada um o discutia com espírito
e argúcia. Depois procurava-se reduzir as conversas a um escrito, dando-lhe uma forma breve, atrativa e mordaz.
As máximas de La Rochefoucauld foram publicadas pela primeira vez em 1664, anônimas. Retrabalhadas,
reapareceram em 1678.
La Rochefoucauld faleceu em 17 de março de 1680, nos braços do bispo e filósofo Bossuet.
23