As Reações Psicológicas À Doença e Ao Adoecer
As Reações Psicológicas À Doença e Ao Adoecer
As Reações Psicológicas À Doença e Ao Adoecer
Lucia Spitz *
INTRODUO
O presente artigo baseia-se em experincias vividas pela autora como membro do Servio
de Psicologia Mdica e Sade Mental do Hospital Universitrio Clementino Fraga Filho e
professora da disciplina de Psicologia Mdica para os alunos da Faculdade de Medicina da
UFRJ.
Na primeira parte do trabalho, ser feita uma breve exposio de algumas idias sobre as
repercusses emocionais produzidas pela enfermidade e alguns modos habitualmente
encontrados de lidar com a doena.
A EXPERINCIA DO ADOECER
" do conhecimento de todos, e eu o aceito como coisa natural, que uma pessoa
atormentada por dor e mal-estar orgnico deixa de se interessar pelas coisas do mundo
externo, na medida em que no dizem respeito a seu sofrimento. Uma observao mais
detida nos ensina que ela tambm retira o interesse libidinal de seus objetos amorosos:
enquanto sofre, deixa de amar. (..) Devemos ento dizer: o homem enfermo retira suas
catexias libidinais de volta para seu prprio ego, e as pe para fora novamente quando
se recupera" (Freud, 1914, "Sobre o narcisismo - Uma introduo", vol. XIV, pg. 98).
_________________
# Sade Mental no Hospital Geral. Cadernos do IPUB n 6, Instituto de Psiquiatria/UFRJ,
1997.
* Professora de Psicologia Mdica do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da
Faculdade de Medicina/UFRJ
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Podemos afirmar que qualquer que seja a natureza de uma doena, ela sempre
representa uma avaria ao nosso narcisismo, uma ferida no sentimento de onipotncia e
imortalidade e uma vivncia de fragilidade e dependncia em relao aos outros. Alm da
injria narcsica, a doena envolve tambm sofrimento, frustraes e, dependendo da sua
gravidade, limitaes dos nossos projetos de vida. A doena nos torna conscientes de nossa
fragilidade e nos surpreende com o sentimento ameaador, raramente presente no nosso
cotidiano, de que somos mortais e que devemos morrer um dia.
H aqueles que frente a uma enfermidade entregam-se a ela, ficando dominados pela
dor e desespero, paralisados na sua capacidade de luta, enquanto outros conseguem fazer da
doena uma possibilidade de repensar a prpria existncia, de empreender mudanas - ainda
em tempo! - enfim, de colocar a vida em questo. E ainda h aqueles que frente doena,
sintomas ou sinais, tendem a atuar sempre como se sua afeco fosse banal, mesmo quando
ela grave.
Vale lembrar que s vezes a prpria doena que pode ser compreendida como uma
resposta do organismo a uma situao vivida como traumtica. Na impossibilidade de
encontrar uma outra sada para situaes conflitivas inconscientes, que no a via somtica, o
indivduo adoece. Mas no nossa pretenso discutir aqui os possveis mecanismos
envolvidos na gnese do fenmeno do adoecer, muito embora saibamos o quanto est sempre
presente na cabea da pessoa que adoece, a pergunta: "Por que isto aconteceu? Por que isto
me aconteceu? Por que isto me aconteceu agora?" (Chiozza, 1986).
Segundo Balint (1975), com o comeo da doena pe-se em movimento uma srie de
processos secundrios enfermidade, criando uma "situao -vital", qual o paciente dever
se adaptar. A doena pe em jogo no s mecanismos fisiolgicos que tendem a restabelecer
a homeostase, como do ponto de vista psquico, mobiliza defesas psicolgicas no intuito de
enfrentar a ruptura do equilbrio que acarretada pela ecloso da doena.
A REGRESSO
trazer-lhe bastante prejuzo (Jeammet, Reynaud e Consoli 1982). Ou, ento, o paciente julga
no estar doente e recusa-se a ser tratado ou abandona o hospital.
O mdico tem um papel muito importante, na medida em que, com sua atitude,
possibilita que aspectos mais sos do paciente, aqueles com mais capacidade de autonomia,
recuperem a iniciativa diminuda pela enfermidade, ao invs de cronificar-se num
comportamento regressivo.
A DEPRESSO
Uma doena somtica, pelo que representa de ataque imagem corporal, autoestima e
ao sentimento de identidade, sempre potencialmente capaz de suscitar afetos depressivos e
h uma relao inegvel entre a severidade da enfermidade e a freqncia de depresso (sejam
sintomas ou sndromes). Em contrapartida, o psiquiatra no deve permitir que uma depresso
seja rotulada a priori como "apropriada", deixando de trat-la como merece e, com isso, no
aliviando o paciente (Furlanetto, 1995; Cassem, 1995).
Por outro lado, sintomas de depresso tais como fadiga, apatia, anorexia, perda de peso e
insnia, podem ser confundidos com sintomas resultantes da prpria doena fsica, e
importante que se tenha outros elementos para se firmar um diagnstico de sndrome
depressiva moderada ou grave, de modo que no se prive o paciente do beneficio de uma
interveno adequada (Rodin e Vohart, 1986).
Uma ocorrncia comum o fato do choro de um paciente em uma enfermaria ser capaz
de rapidamente mobilizar o mdico a enviar um parecer com uma solicitao implcita de
prescrio de antidepressivo, enquanto passa desapercebida uma depresso profunda de outro
paciente, pelo simples fato de ser "quietinho", "no dar trabalho", "no questionar"...
Manifestaes como a recusa em tomar a medicao, de colaborar nos exames ou pedidos
de alta " revelia" (que podem estar ligados a quadros depressivos), tambm costumam atrair
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a ateno da equipe mdica e com isto permitir a interveno da Psicologia Mdica junto a
estes pacientes.
A maneira como cada indivduo vivencia a sua doena crnica absolutamente pessoal e
funo de sua personalidade, de sua tolerncia s frustraes, das vantagens e desvantagens da
condio de doente, assim como de sua relao com o mdico e com a equipe de sade. H
aqueles que apesar de acometidos por uma ou vrias doenas crnicas, conseguem readaptar-
se (fora das eventuais fases de agravamento) a uma vida quase normal, a despeito de
limitaes ou cuidados impostos pela doena. J outros indivduos se sentem to
profundamente atingidos, que nunca mais conseguem levar uma existncia normal, ou pelo
menos, to normal quanto as restries somticas ou psquicas o permitirem.
A adaptao no significa uma aceitao passiva nem uma submisso doena, mas
um processo dinmico, permanente, de tentar buscar uma "convivncia razovel" com a
doena, atravs de um trabalho emocional complexo e doloroso de elaborao da profunda
ferida narcsica representada pela enfermidade.
A adaptao, portanto, subentende que a reao depressiva provocada pela doena pode
ser elaborada e controlada pelo paciente e que ele aceitou receber ajuda dos que o rodeiam
sem, porm, abrir mo da autonomia compatvel com a sua condio. Tambm implica ser
capaz de fazer uma avaliao mais realista de sua doena e das perspectivas para o futuro.
A Negao
Como exemplo de urna situao em que a negao nas fases iniciais de um diagnstico
bastante comum, h o caso de pacientes que sofrem acidentes e ficam irreversivelmente
paraplgicos. como se fosse necessrio um tempo maior para a aceitao desta terrvel
verdade, sob o risco de uma desestruturao grave. J presenciamos situaes dramticas em
que, quanto mais o mdico insistia em mostrar ao paciente (quase que num confronto... ) que
as chances de nunca mais voltar a andar eram de 1000/, mais o paciente se refugiava numa
posio de dizer que "tinha f em Deus, que com sua fora de vontade ia certamente voltar a
andar um dia". Ainda que seja funo do mdico ir mostrando ao paciente as perspectivas
reais que existem quanto sua recuperao, preciso, simultaneamente, respeitar este "tempo
interno" do paciente e no for-lo a aceitar toda a verdade de uma vez.
Cumprida a tarefa a que me propus, de tentar sistematizar aquilo que estaria dentro do
tema "Reaes psicolgicas doena e ao adoecer" - e ao mesmo tempo buscando escapar de
uma sistematizao excessiva que contradiz o nosso prprio discurso, que se baseia na
singularizao dos pacientes -, gostaria agora de relatar alguns casos clnicos atendidos por
mim e mostrar como, na prtica, absolutamente impossvel falar em reaes dos pacientes,
sem imediatamente nos remetermos ao "parceiro" do paciente quando ele enfrenta a sua
doena: o mdico. Ou seja: o mdico tambm apresenta reaes psicolgicas doena de seu
paciente...
Para comear, relato uma situao curiosa sobre um pedido de parecer solicitado
Psicologia Mdica, onde o mdico quem duvida do fato do paciente estar bem adaptado
sua doena.
lidar com a doena bastante bem. Sabe da malignidade do seu tumor e fala com
naturalidade sobre a sua doena. Teve um excelente ps-operatrio e no
momento est fazendo planos para a colocao de uma prtese.
Sem dvida, trata-se de um pedido de parecer incomum, j que o mdico quem est
estranhando o fato do paciente estar bem. Qual ter sido o motivo desta solicitao?
H uma clara oposio entre aquilo que o paciente sente neste momento da sua doena -
ele parece bem - e aquilo que o mdico parece achar que o paciente deveria estar sentindo (no
caso, depresso). Frisamos a questo do momento, tendo em vista o que falamos
anteriormente sobre a adaptao ser sempre um processo dinmico, sujeito a altos e baixos e
nunca uma aquisio definitiva e garantida.
Ser que este mdico no capaz de reconhecer como "legtimo" aquilo que o paciente
est sentindo (e dizendo!) porque ele, na situao do paciente, estaria deprimido? Estar ele
culpado inconscientemente por ter mutilado o paciente e precisando se assegurar de que este
no vai se voltar furiosa e vingativamente contra ele?
Ter sido a aplicao automtica da noo de que por trs de um paciente que evolui
bem, mas que portador de uma doena "ruim", esconde-se sempre uma negao?
AVALIAAO: Paciente sofreu uma queda num bueiro h cerca de um ano, foi
internado em um hospital pblico onde foi pessimamente tratado, tendo um leve
corte na perna evoludo durante esta internao para um quadro de extensa
necrose dos tecidos. Transferido para este hospital, j sofreu vrios enxertos,
ainda sem resultado, devido rejeio do tecido. Sua "alterao de conduta"
parecem ser os gritos que no consegue deixar de dar durante a realizao dos
curativos, que so extremamente dolorosos. As pernas esto fletidas
permanentemente (cicatrizao viciosa devido posio antlgica?) e isto
angustia muito o paciente. A "no colaborao no xito do tratamento" no ficou
muito clara, j que o problema que est ocorrendo uma rejeio dos enxertos.
(...).
Aqui o paciente quem faz, sem o menor apoio ou compreenso do mdico, um enorme
esforo para se adaptar s seqelas terrveis de uma doena aguda e que desperta o dio do
mdico por no estar melhorando.
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Por que ser que a dor do paciente desqualificada a ponto de ser denominada de
"alterao de conduta"? H uma ntida tentativa de psiquiatrizar este paciente, talvez para
castig-lo ("alterao de conduta") e culpabiliz-lo pelo fracasso do tratamento cirrgico.
No deixa de ser, novamente, uma m utilizao dos conhecimentos psicolgicos ( o
paciente com o seu "lado psicolgico" que atrapalha o xito do tratamento... ) para encobrir o
insucesso das cirurgias ou os limites especficos de cada caso, assim como a impossibilidade
de alguns mdicos lidarem de uma forma mais satisfatria com o seu narcisismo ferido pela
evoluo desfavorvel do tratamento.
O caso seguinte revela como a adaptao doena foi possvel em uma situao de
amputao e como so criativas as solues encontradas pelos pacientes...
Neste pedido de parecer, ocorre mais uma vez uma discrepncia entre a maneira como
o mdico v a paciente ("evoluindo com quadro depressivo e no aceitao da amputao") e
aquilo que aflora na fala da paciente quando vamos conversar com ela. O que o mdico
chama de "quadro depressivo" neste caso? Ter sido o fato da paciente ter ficado triste ou ter
chorado em algum momento da sua internao? No era de se esperar que uma paciente de
33 anos (ou de qualquer idade), a quem se amputasse parte de um membro, fosse sentir a falta
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dele? Percebe-se uma falha de comunicao da equipe com a paciente, na medida em que se
fala de algo to estranho como um "fantasma", sem que ningum explique o que esta palavra
significa naquela situao. E ela fica com medo do fantasma!...
Enfim, todas essas situaes nos remetem dificuldade dos mdicos e, na verdade, de
toda equipe que assiste ao paciente - eventualmente at dos psiquiatras -, de acolher e
responder adequadamente diversidade de reaes emocionais de seus pacientes (Eizirik,
1994).
Neste outro caso, a mdica que solicitou o parecer chama a ateno para o
comportamento de negao da paciente.
(Esta paciente veio a falecer poucos dias depois devido a uma grave complicao
hematolgica).
Neste caso, a motivao do pedido de avaliao pela Psicologia Mdica parece ter sido o
desconforto provocado na mdica pelo grau de negao que a paciente exibiu. Alm claro,
do fato de ser uma moa jovem em estgio terminal de cncer (Zaidhaft, 1990, Mannoni,
1995).
Embora seja evidente o uso da negao no caso dessa paciente, caberia nos
questionarmos: existe um "nvel ideal" de negao, uma "faixa de normalidade" de reaes de
negao fora da qual o paciente no est bem?! Na verdade, cada paciente reage doena do
jeito que lhe possvel e no do jeito que o mdico esperaria que ele reagisse!...
saber como lidar com a situao, ou ento intimidasse, considerando que h algo de
"patolgico" nesse paciente.
Nesse ltimo caso, ficam patentes os esforos empreendidos pela paciente para negar a
possibilidade de ter um cncer.
Foi sugerido ao mdico que as informaes deveriam ser dadas paciente gradualmente,
para que no se corresse o risco de quebrar muito abruptamente as suas defesas.
CONCLUSO
Na primeira parte deste trabalho procurei abordar algumas maneiras pelas quais os
pacientes reagem psicologicamente s doenas fsicas. Na segunda parte, procurei discutir
casos atendidos num hospital geral, mostrando o quanto as tentativas de generalizao e
categorizao das manifestaes da subjetividade dos pacientes tm um alcance limitado,
considerando-se que cada ser humano tem um modo absolutamente nico de lidar com a sua
doena.
Nem tanto poder ao ' mdico, nem o poder absoluto ao paciente, mas estamos com
Balint quando ele diz que 44 as respostas do mdico podem e freqentemente contribuem
consideravelmente para a ltima e definitiva forma da doena qual o paciente se acomodar"
(Balint, 1975).
Para finalizar, deixo em aberto a questo esboada neste trabalho sobre a possibilidade
do discurso psicolgico acerca das reaes emocionais ao adoecer ser incorporado
criativamente pelos mdicos, sem correr o risco de ser transformado to somente em um
"Manual de Conduta para Pessoas Doentes". Isto resultaria num empobrecimento da nossa
proposta de interao com as equipes mdicas, que visa, acima de tudo, valorizar a relao
mdico-paciente enquanto processo dinmico e singular, contribuindo dessa forma para uma
melhor atuao do mdico (Cassorla, 1996).
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