Carmen Miranda Entre Os Desejos de Duas Nações

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO CARLOS

CENTRO DE EDUCAO E CINCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA

CARMEN MIRANDA ENTRE OS DESEJOS DE DUAS NAES:


CULTURA DE MASSAS, PERFORMATIVIDADE E
CUMPLICIDADE SUBVERSIVA EM SUA TRAJETRIA

Fernando de Figueiredo Balieiro

SO CARLOS
Maro de 2014
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO CARLOS
CENTRO DE EDUCAO E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA

CARMEN MIRANDA ENTRE OS DESEJOS DE DUAS NAES:


CULTURA DE MASSAS, PERFORMATIVIDADE E
CUMPLICIDADE SUBVERSIVA EM SUA TRAJETRIA

Fernando de Figueiredo Balieiro

Tese apresentada para obteno do ttulo de doutor


em Sociologia ao Programa de Ps-Graduao em
Sociologia do Centro de Educao e Cincias
Humanas da Universidade Federal de So Carlos
Orientador: Prof. Dr. Richard Miskolci.

SO CARLOS
Maro de 2014
FERNANDO DE FIGUEIREDO BALIEIRO

Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia da


Universidade Federal de So Carlos, como parte dos requisitos para
obteno do ttulo de Doutor em Sociologia.

COMISSO JULGADORA

Presidente: Prof. Dr. Richard Miskolci (UFSCar - orientador)......................

1 Examinadora: Profa. Dra. Iara Beleli (UNICAMP)....................................

2 Examinadora: Profa. Dra. Meryl Adelman (UFPR)....................................

3 Examinador: Prof. Dr. Valter Roberto Silvrio (UFSCar).........................

4 Examinador: Prof. Dr. Jorge Leite Jr (UFSCar).........................................


AGRADECIMENTOS

A elaborao desta tese, resultado de quatro anos de pesquisa, foi viabilizada por
uma srie de condies institucionais e pessoais favorveis sem as quais ela no seria
possvel. Em primeiro lugar, agradeo ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia,
aos meus professores que contriburam para minha formao e aos funcionrios que me
apoiaram nas questes burocrticas que estiveram presentes em todo o perodo de
doutorado. Ao CNPq, pelo financiamento que me permitiu desenvolver pesquisa como
atividade prioritria e me possibilitou visitar arquivos no Brasil e apresentar trabalhos
em congressos nacionais e internacionais. University of California de Santa Cruz, e
especificamente, ao Programa de mestrado Social Doccumentation, em relao aos
quais me mantive ligado durante o perodo de doutorado sanduche, em um vnculo
institucional que me garantiu condies para avanar na pesquisa. CAPES que, por
meio do programa PDSE, financiou minha viagem e estadia na Califrnia no perodo
relativo ao estgio de doutorado sanduche.
Ao professor Richard Miskolci, que, alm de ter sido um profissional de
importncia mpar na minha formao enquanto socilogo desde a graduao, foi um
orientador sempre presente de modo crtico e incentivador. Para alm de seu papel
profissional, foi uma pessoa fundamental na minha adaptao e desempenho durante o
doutorado sanduche, tendo me ajudado nos primeiros contatos em Santa Cruz e me
dado dicas valiosas a respeito de como lidar com os problemas inevitveis a serem
enfrentados em uma realidade cultural e institucional distinta.
professora Karla Bessa, membro da banca de qualificao, que me ofereceu
crticas e sugestes fundamentais para o desenvolvimento da pesquisa em momento
anterior a minha viagem aos Estados Unidos. Aos professores Valter Silvrio e Jorge
Leite Jr., os quais estiveram presentes nas bancas de qualificao e de defesa,
oferecendo-me comentrios valiosos que guiaram minha pesquisa. s professoras
Miriam Adelman e Iara Beleli, membros da banca de defesa e professoras presentes em
outros momentos do desenvolvimento da pesquisa, sempre oferecendo sugestes,
reflexes e questionamentos que foram essenciais ao desenvolvimento da mesma.
minha coorientadora durante meu estgio de doutorado sanduche na UCSC,
professora B. Ruby Rich, pelas reunies riqussimas, pela recomendao de obras
centrais na temtica especializada da rea de cinema e pela sugesto de arquivos a
serem visitados e intermediao de contatos com arquivistas. Para alm das reunies,
agradeo tambm pela ajuda na minha adaptao institucional, minha incluso no
programa Social Docummentation e pelo grande incentivo que me ofereceu durante
minha estadia na Califrnia.
A todos os funcionrios, arquivistas e bibliotecrios que me receberam e
proporcionaram as condies para minha pesquisa documental. Em So Paulo, aos
funcionrios da Cinemateca Brasileira e da Biblioteca Jenny Klabin Segall. No Rio de
Janeiro, aos funcionrios da Biblioteca Nacional e do Museu Carmen Miranda, em
especial a Cesar Balbi, por me fazer refletir sobre aspectos importantes da vida de
Carmen Miranda, mostrando-me parte do acervo no disponvel ao pblico e me
auxiliando com os documentos disponveis nas pastas do museu. Em San Francisco, aos
funcionrios da San Francisco Public Library, especialmente Karen Sundheim, pela
disposio em me guiar no arquivo do Hormel Center no interior da biblioteca, e aos
funcionrios do GLTB Historical Society. Em Berkeley, aos funcionrios do Pacific
Film Archive, em especial a Nancy Goldman. Em Los Angeles, aos funcionrios dos
arquivos ONE, Film & Television Archive e da Academy of Motion Pictures Arts and
Sciences. Em Nova Iorque, aos funcionrios do Shubert Archive, em especial a Mark
Swartz, por sua disposio em me oferecer a documentao particular do arquivo.
s professoras Marcia Ochoa e Felicity Amaya Schaeffer por toda ajuda que me
deram no processo de adaptao em Santa Cruz. Marcia, pelas sugestes de leitura e
convite para apresentar minha pesquisa para seus alunos do curso de graduao em
Feminist Studies. Felicity pela companhia diria, pelas dicas sobre a cidade e apoio
nos momentos de maiores dificuldades. A Diego e Amaya pela companhia e pelos
momentos de diverso.
Aos meus amigos de Santa Cruz. Melinda, Mia e Matt, pela companhia e
acolhimento nos primeiros momentos de adaptao na cidade, pela disposio em me
mostrar a cidade e me levar aos lugares mais interessantes, pelos jantares providos de
timas comidas e discusses. Aos amigos Steve, Pablo, Catalina, Juan, Marcela e
Ricardo pelos momentos de descontrao e trocas de experincias que se revelaram
fundamentais para o meu bem-estar em Santa Cruz.
Aos meus amigos e colegas de ps-graduao, em especial Natlia, Thais,
Giordano, Jacqueline, Augusto, Samuel, Karina, Paulo, rica e muitos outros
companheiros que me estimularam no decorrer de minha formao acadmica. A
Francisco, Cida e Juliana, meus companheiros de viagem entre So Carlos e Ribeiro
Preto, que me proporcionaram timos momentos e boas conversas. Aos meus amigos e
colegas do grupo Corpo, Identidades e Subjetivaes, em especial a Tiago, Guilherme,
Marco, Lara e Juliana. Ao Alexandre, pela leitura atenciosa do texto final da tese.
Aos meus amigos com quem aprendo muito sobre a vida e as cincias sociais,
em especial Eduardo, Eliane e Raquel, com quem mantenho um dilogo frequente e
enriquecedor. Aos meus amigos de longa data Guilherme, Marco e Melina e aos meus
companheiros musicais Joo Pedro e Rafhael, responsveis por manterem vivo em mim
outros interesses e por me oferecerem muitos momentos de alegria. Ao Felipe, pela
amizade e presena nos encontros musicais e tambm pela reviso atenciosa do texto
antes de sua entrega. Aos antigos amigos de repblica, em especial a Elber e Ricardo.
minha famlia, pelo incansvel estmulo e apoio. Em especial aos meus pais,
Candido e Camo, pessoas que me instigaram ao interesse pelos temas sociais e me
mostraram a importncia de se posicionar politicamente na vida. Agradeo por todo o
apoio e incentivo durante o perodo de doutorado e, especialmente, durante os
momentos mais difceis da minha estadia nos Estados Unidos. Sem seu apoio, as
dificuldades seriam muito maiores. Estendo meus agradecimentos s minhas irms
Mariana e Carolina e aos meus sobrinhos Anna Luiza, Caetano, Cssio e Henrique, por
toda amizade, apoio e pelos tantos momentos de alegria e diverso.
Semramis, minha companheira afetiva e intelectual, com quem aprendo a ver
o mundo com outros olhos, com sua sensibilidade, perspiccia e humor. Agradeo por
todo seu incentivo, pelo apoio nas fases difceis e pelos momentos em que pudemos
esquecer um pouco as obrigaes acadmicas juntos e viver outras coisas.
RESUMO

Em 1939, Carmen Miranda j estava consagrada profissionalmente no Brasil,


embarcando para os Estados Unidos com um contrato para uma revista na Broadway,
tomando sua viagem, aos olhos do pblico brasileiro, contornos de uma misso
diplomtica: representar o pas no exterior e difundir o samba. A artista brasileira levava
ao novo contexto, uma nova forma de representar o pas que se redimensionava pela
cultura de massas. Por esse meio, as expresses culturais populares e afro-brasileiras
passavam a fazer parte da construo simblica da nao, muito embora a partir de um
filtro moral e racial que incorporava tais elementos caracterizando-os a partir da
branquitude. Deste modo, Carmen Miranda interpretou com sua pele clara, olhos verdes
chamativos e adequao moda cosmopolita, a personagem negra da baiana que
passava a ser cone nacional. Ao migrar aos Estados Unidos, em pouco tempo chegou a
ser a artista mais bem paga do cinema norte-americano, transformando-se em uma
encarnao de uma nova imagem da Amrica Latina, produzida em meio Poltica de
Boa Vizinhana. Levando consigo suas baianas, constituiu um espetculo em cores,
propiciado pelo cinema Technicolor, em uma representao una e fantasstica de alegria
e tropicalidade feminina da Amrica Latina, dentro de um clima de amizade pan-
americana no sombrio perodo da Segunda Guerra Mundial. No novo contexto, o
esteretipo da latino-americana de longa histria no cinema hollywoodiano, se
sobrepunha figura da baiana, guardando conotaes similares a ela, como a
sensualidade. Passando do rdio ao cinema e tendo ainda atuado em programas na
emergente televiso, a artista participou como protagonista do processo no qual a
identidade nacional se redefinia por meio da cultura de massas e em uma dinmica
envolvendo representaes nacionais e internacionais. Por meio do conceito de
performatividade, esta tese explora como a artista criou novos sentidos simblicos sobre
a nao e a Amrica Latina, imbricando representaes de gnero, raa e sexualidade,
em cumplicidade com significados j consolidados e embasados na colonialidade,
tanto em uma dimenso nacional como internacional. Embebida de sua trajetria na
cultura popular, o humor, o exagero e a caricatura eram elementos constitutivos da
forma como Carmen performatizava os sentidos simblicos envoltos em suas
representaes. Foram estas caractersticas, juntamente com suas interpretaes auto-
parodsticas e sua ironia, que permitiram que a carreira de Carmen fosse compreendida
como desestabilizadora das identidades enquanto essncias e questionadora das
hierarquias socialmente institudas, abrindo assim espao para recepes divergentes e
subalternas das quais se destacam a sua apropriao camp, nos Estados Unidos, e
carnavalizadora, no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: Carmen Miranda identidades cultura de massas


performatividade cumplicidade subversiva
ABSTRACT

In 1939, Carmen Miranda was a consecrated singer in Brazil, in her career on the radio
broadcasting as well as theatres and casinos. As a national idol she went to the United
States under a contract for a revue on Broadway. Her new career in the United States
was seen by Brazilians as a diplomatic mission and she was required to represent her
nation and introduce the national rhythm samba to the North-American audiences. At
that time, she performed the national identity which was remodeled through the mass
culture national dynamics, integrating popular and afro-Brazilian elements, but also
filtering them in order to produce an image based on whiteness. In this way, the white
artist, remembered for her remarkable green eyes and attuned to the Hollywoodian
fashion, featured the Baiana character, a Brazilian national type which referred to a
black woman. In her international career, however, she became the new representation
of Latin America in the midst of the Good Neighbor Policy period. Carrying her
stylized Baianas dressings, Miranda evoked a happy, cheerful, sensual, exuberantly
representation of Latin America, offering the opportunity to escapism during the World
War II. From the radio broadcasting to the Hollywood cinema, and also participating in
some TV shows, Carmen Miranda was part of a process in which the Brazilian national
identity came to be produced through the mass culture involving national and
international creations. Through the concept of performativity, this thesis explores how
Carmen Miranda created new symbolical senses about the national identity and Latin
American representations in a form of complicity, with consolidated meanings based on
coloniality, considering both national and international dimensions. Because of her
path (closely related to the Brazilian popular culture), Carmen reproduced the cultural
meanings involved in her representations through three constitutive elements: humor,
exaggeration and caricature. These characteristics, alongside with self-parody and irony,
enabled some kinds of audiences to read her performances as subversive in a sense that
she was destabilizing the comprehension of identity as essence, and, at the same time,
challenging social constructed hierarchies. These features allowed her to be
appropriated as a camp icon, in the United States, and in a carnivalesque way, in Brazil.

KEYWORDS: Carmen Miranda identities mass culture performativity


subversive complicity
SUMRIO

INTRODUO ................................................................................................................ 8

A comunidade imaginada brasileira: o corte do mercado de cultura de massas ..... 12

Visualidade, corpo e nao ......................................................................................... 25

A perspectiva interseccional: dos Estudos Culturais aos descoloniais ....................... 30

O riso e a pardia: o carnavalesco e suas recepes................................................... 40

CAPTULO 1. A EMBAIXATRIZ DO SAMBA: CARMEN MIRANDA, POLTICA


E CULTURA DE MASSAS........................................................................................... 52

1.1 A Boa Vizinhana: Brasil e Amrica Latina em representaes entrelaadas ..... 52

1.2 A Embaixatriz do Samba: branquitude e unidade nacional na baiana exportada


.................................................................................................................................... 62

CAPTULO 2: MAKING MONEY WITH BANANAS: A PERFORMATIVIDADE


DA COLONIALIDADE POR CARMEN MIRANDA .............................................. 91

2.1 A colonialidade como pano de fundo para a carreira de Carmen Miranda....... 91

2.2 Making money with bananas: movendo-se a partir dos discursos hegemnicos 113

2.3. Uma trajetria em dois contextos: performatividade, cumplicidade criativa e


deslocamentos............................................................................................................... 121

CAPTULO 3: SOUTH AMERICAN WAY: PERFORMATIVIDADE E


CUMPLICIDADE CRIATIVA .................................................................................... 128

3.1. Star System e a estrela sul-americana ................................................................ 128

3.2. Corporalidade, hipervisibilidade e humor na trajetria norte americana de Carmen


Miranda......................................................................................................................... 137

3.3. Utopias pan-americanas: a diferena racial no encontro flmico entre boa


vizinhana e romance ................................................................................................... 152

CAPTULO 4: O QUE QUE A BAIANA TEM? A MULHER BRASILEIRA NO


MERCADO DE CULTURA DE MASSAS ................................................................. 171

4.1. Cultura de massas e o feminino nacional .......................................................... 171

4.2 A Baiana de Carmen Miranda: autenticidade nacional e a mulata sensual


revisitada ................................................................................................................... 196
4.3. A baiana internacional consumida ..................................................................... 216

CAPTULO 5: PARDIAS, AUTOPARDIAS E EXAGEROS: DESLOCANDO A


IMAGEM DE CARMEN MIRANDA ......................................................................... 222

5.1. A repetio sul-americana ................................................................................. 222

5.2. Deslocamentos performativos ........................................................................... 230

5.3. Carmen Miranda alm dela mesma: personificaes de um papel .................... 240

5.4. Entre a performance do orgulho nacional e a performance estratgica da


vergonha ................................................................................................................... 246

CAPTULO 6: CARNAVAL CAMP: IRONIA E RECEPO NA TRAJETRIA DE


CARMEN MIRANDA ................................................................................................. 252

6.1. Voc se parece mais comigo do que eu: deslocamentos camp em Carmen
Miranda..................................................................................................................... 252

6.2. A branquitude entre a ridicularizao e a cumplicidade .................................... 274

6.3. O humor e suas fronteiras: do carnavalesco ao camp........................................ 288

CONSIDERAES FINAIS ....................................................................................... 296

Apontamentos para alm da carreira de Carmen Miranda: da democracia racial


materializada na branquitude s carnavalizaes ..................................................... 305

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ......................................................................... 313

FILMOGRAFIA ........................................................................................................... 324


INTRODUO

Doze de agosto de 1955 foi um dia marcado por um episdio de comoo


nacional. O corpo de Carmen Miranda chegou de Los Angeles ao Rio de Janeiro e foi
conduzido pelos bombeiros antiga cmara dos vereadores, onde fora velada. No
cortejo, uma multido de pessoas prestou homenagem quando, em seguida, foi retirado
do veculo o caixo envolto em uma bandeira do Brasil e levado ao lugar onde ficou
exposto visitao pblica por um dia. A aglomerao em frente cmara sinalizou o
desejo da populao de ver de perto e pela ltima vez o rosto de seu dolo. No dia
seguinte, os bombeiros levaram o corpo para o cemitrio de So Joo Batista,
acompanhado por milhares de pessoas.
Era a despedida de um cone nacional que mobilizou o sentimento da massa,
somente tendo alcanado comoo semelhante perante a morte do presidente Getlio
Vargas, no ano anterior. Um presidente e uma estrela do show business eram no meio
do sculo XX depositrios de identificaes e sentimentos ntimos da populao. De
acordo com o bigrafo Abel Cardoso Junior, no velrio das 13 horas desse dia at s
13 horas do dia 13, mais de 60.000 desfilaram perante seu corpo (1978, p. 30). Mais
impressionante, para seu sepultamento, houve o acompanhamento entre 500.000 a um
milho de pessoas foi o mais concorrido de toda a histria do Rio, debaixo de
profunda comoo popular [...] j transcorridos 8 dias de seu falecimento (JUNIOR,
1978, p. 30). No cortejo, a multido passou pela rdio Mayrink Veiga e pela Rdio
Nacional, cantando Pra voc gostar de mim, seu primeiro grande sucesso.
Oito dias antes, na madrugada de cinco de agosto de 1955, Carmen Miranda foi
acometida de um colapso cardaco em sua casa em Beverly Hills, horas depois de quase
desmaiar no programa televisivo de Jimmy Durante. Nascida em Portugal, transformou-
se em cone do rdio brasileiro, mas durante a maior parte de sua carreira, trabalhou nos
Estados Unidos, tornando-se uma estrela do cinema hollywoodiano, uma famosa
entertainer em nightclubs e atuante em diversos programas da nascente televiso. Trata-
se de uma personagem mpar que acompanhou o desenvolvimento dos meios de
comunicaes de massa e por meio deles difundiu uma noo moderna de identidade
nacional brasileira, vinculada msica urbana carioca: o samba.
Em dezembro de 1954, no ano anterior de sua morte, Carmen Miranda fez sua
ltima visita ao Brasil. Chegou com srios problemas de sade causados por uma
pesada rotina de trabalhos e estimulada por uma alta dosagem de calmantes e

8
barbitricos prescritas por seu mdico. Acompanhada da irm Aurora, Carmen voltou
ao Brasil para melhorar seu estado. Passando pelo aeroporto de Congonhas e depois de
farta cobertura da imprensa, ela se dirigiu ao Copacabana Palace, onde passou a ter
isolamento e acompanhamento mdico em uma internao de 48 dias. Recuperou-se e
voltou aos palcos cariocas mais de uma dcada depois da ltima vez que os frequentou.
Reencontrou amigos do crculo de artistas e compositores e foi assediada pelo pblico e
pela imprensa. Mas a alegria do reencontro foi interrompida quando Carmen teve de
voltar aos Estados Unidos para cumprir contratos assumidos.
O pblico brasileiro ficara sem a presena, desde 1940, daquela que era
considerada o maior cartaz do rdio. Em julho daquele ano, ela fez sua primeira visita
ao Brasil depois de ter embarcado para os Estados Unidos um ano antes. Nesta ocasio,
foi recebida pelo Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo. Foi
saudada por discursos do rgo de propaganda em frente ao Teatro Municipal, depois de
desfilar em carro at l, escoltada por soldados. Seu apelo ao pblico era to forte que
sua casa da Urca teve que ser cercada pela polcia. Depois de cinco dias, apresentou-se
no cassino da Urca, local onde atuava nos ltimos anos de sua carreira no Brasil.
Tratou-se de uma noite beneficente organizada pela primeira dama, dona Darcy
Vargas, em prol de um projeto filantrpico chamado Cidade das Meninas. Em sua
apresentao de volta, Carmen usou expresses em ingls para com seu pblico, junto
com sua gria propriamente carioca e apresentou seu nmero de sucesso nos Estados
Unidos, o South American Way, alm de outras msicas j famosas no Brasil, como
O que que a baiana tem?. Uma plateia de membros do governo do Estado Novo e de
empresrios industriais a recebeu friamente, entre o silncio e as palmas protocolares,
em seu espetculo no encontro black-tie.
O episdio da Urca ficou famoso ao reverberar na imprensa. Ele abriu uma
crtica nacional que se revelaria mais severa nos anos seguintes: Carmen era acusada de
ter se americanizado, descaracterizada no pas do norte, ausente de sua suposta
obrigao de representar autenticamente o pas e a msica nacional. Depois da
recepo negativa, a cantora requisitou a compositores novas msicas e se apresentou
no mesmo cassino com o Bando da Lua, conjunto brasileiro que a acompanhava nos
Estados Unidos. Dentre as msicas que interpretou estavam Disseram que voltei
americanizada e Voltei para o Morro, ambas de Luiz Peixoto e Vicente Paiva.
Tais canes salientam a vinculao entre Carmen e uma verdadeira
brasilidade, ao contrrio das acusaes de sua americanizao. Voltei pro morro narra

9
a saudade de Carmen e a tristeza derivada de sua distncia, quando diz: voltando ao
bero do samba, que em outras terras cantei, pela luz que me alumia eu juro, que sem a
nossa melodia e a cadncia dos pandeiros, muitas vezes eu chorei, chorei. Em
Disseram que voltei americanizada, a resposta direta s crticas:

mas p'r cima de mim, p'r que tanto veneno?


Eu posso l ficar americanizada? (...)
Nas rodas de malandro, minhas preferidas,
eu digo mesmo eu te amo e nunca I love you.
Enquanto houver Brasil...
na hora das comidas
eu sou do camaro ensopadinho com chuchu!.1

O Brasil cantado por Carmen Miranda o do samba, do morro, do malandro e da


comida baiana. Ao mesmo tempo em que reafirma sua brasilidade, expe o universo
simblico que h pouco mais de uma dcada passava a ser reconhecido como nacional
com sua divulgao na cultura de massas da capital. O nacional e a cantora de grande
apelo popular encontravam imbricados e, por isso, suas interpretaes eram tambm
alvo de tantas crticas e acalorados debates na imprensa de sua poca.
Carmen revela-se um objeto privilegiado de estudo acadmico ao incorporar
uma nova forma de se conceber o nacional em seus vnculos com a cultura de massas.
Muitos trabalhos em reas diversas se debruaram sobre a figura e trajetria de Carmen
Miranda, citam-se os trabalhos de Simone Pereira de S (1997), Ana Rita Mendona
(1999), Tania Garcia Costa (2004), Bianca Freire-Medeiros (2006), Alessander Kerber
(2007) e Mnica Schpun (2008). Com focos distintos, todas estas contribuies so
relevantes minha pesquisa ao tocarem na importncia de Carmen Miranda na
redefinio da identidade nacional, articulada com sua trajetria prxima cultura
popular que se desenvolvia na ento capital nacional e aos meios de comunicao de
massa, alm de sua consolidao como entertainer e atriz nos Estados Unidos.
Migrando e fazendo parte da cultura de massas dos Estados Unidos, na poca da
Segunda Guerra Mundial, foi objeto de interesse acadmico tambm no pas anglo-
saxo, onde originou parte de sua extensa bibliografia, da qual destaco os trabalhos de
Shari Roberts (1993), Jos Ligiero Coelho (1998), Charles Ramrez Berg (2002), Darin

1
Do stio <www.carmen.miranda.nom.br>, gerenciado pelo colecionador Doni Sacramento, retirei as
letras das msicas gravadas por Carmen Miranda para este texto. Tanto as letras como o udio esto
disponveis ao pblico no stio e organizadas cronologicamente.

10
J. Davis (2009), Priscilla Pea Ovalle (2011) e Melissa A. Fitch (2011), com variados
enfoques. De dentro da contribuio dos estudos brasileiros sobre Carmen Miranda,
mas em dilogo com os estudos produzidos no contexto norte-americano, minha
pesquisa tem como foco a carreira de Carmen Miranda e, em especfico, as personagens
da baiana e das latino-americanas no cinema, visando acessar como uma reconfigurao
do nacional se fazia via cultura de massas, em especial pelo cinema, a partir de
representaes que circulavam nacional e internacionalmente.
Meu ponto de partida a incorporao da figura da baiana, uma referncia a uma
personagem negra e mulher enquanto cone nacional, muito embora interpretada por
uma artista branca, de olhos verdes e de origem europeia. O sucesso de sua personagem
no Brasil, no auge de sua carreira, permitiu sua descoberta e ida aos Estados Unidos,
quando l exportou a personagem com sua indumentria e performances corporais,
primeiramente nos teatros da Broadway e, em seguida, no cinema de Hollywood. A
baiana de Carmen acabou por se tornar uma iconografia da Amrica Latina difundida
internacionalmente, ao mesmo tempo em que divulgava os sambas produzidos por
compositores populares brasileiros.
Procuro responder como se deu a inflexo histrica na qual a identidade nacional
passou pela primeira vez a ser negociada por sujeitos das camadas populares, mediada
pelo mercado de cultura de massas que, por sua vez, procurava criar um produto
genuinamente nacional. Articuladamente, pretendo abordar como uma comunidade
imaginada passou a ser negociada tambm em termos internacionais, j que os
mercados e as representaes estavam entrelaados, com a influncia cada vez mais
presente da cultura massiva norte-americana. Para tanto, tenho como foco a trajetria
privilegiada de Carmen Miranda que, de uma estrela nacional no rdio nos anos 30,
transformou-se em uma figura de destaque no cinema hollywoodiano da dcada de 40.
Com quais negociaes operaram o mercado e o Estado ao incluir nas
representaes nacionais a figura da baiana, revelando uma disposio de apresentar
uma nao unida e racialmente harmnica, mas tambm uma recusa de sua apresentao
negra de fato? Como os elementos de gnero se incorporam ao nacional, imbricados
com a problemtica racial e, aliada a ela, a representaes de sexualidade? Como tais
questes se redimensionam quando ela migra aos Estados Unidos e as representaes do
nacional passam por um circuito econmico, poltico e cultural para alm de suas
fronteiras?

11
Minha proposta abordar a trajetria de Carmen Miranda sociologicamente em
uma perspectiva crtica a uma tradio que privilegiou uma perspectiva intelectualista
de construo da identidade nacional. Carmen, em sua trajetria indissocivel com os
modernos meios de comunicao, atesta um ponto de viragem na definio do nacional
importante a ser analisado: a forma de se conceber a identidade, via cultura de massas,
transformou-se qualitativamente. Trata-se de uma identidade nacional sentida e vivida,
constituda na relao de idolatria entre uma estrela da msica e do cinema e seu
pblico que supostamente era representado por ela.
A identidade se constitua ento pela incorporao da cultura popular que, por
sua vez, para ser aceita passou por filtros morais e raciais do mercado em suas
mediaes com o Estado, revelando uma reconfigurao simblica complexa com
diversos sujeitos, espaos sociais e meios de comunicao envolvidos. Dada a
heterogeneidade da produo cultural que se difundia em vrios espaos e com
diferentes compreenses do mesmo processo, revelam-se fissuras e ambiguidades na
constituio de uma identidade nacional. Pretendo contextualizar e explorar a relevncia
sociolgica dessa mudana qualitativa para, em seguida, adentrar na perspectiva terica
que me possibilita um olhar singular sobre a trajetria da artista brasileira e ento
abordar suas ambiguidades.

A comunidade imaginada brasileira: o corte do mercado de cultura de massas

Vinculado consolidao dos Estados Nacionais, a nao pode ser pensada,


seguindo Stuart Hall (2005 p. 50), no apenas como uma entidade poltica, mas como
uma comunidade simblica. Segundo o socilogo jamaicano-ingls, trata-se de uma das
principais fontes de identidade cultural da modernidade. Hall recupera o argumento de
Benedict Anderson, segundo o qual a nao se define como uma comunidade
imaginada. Constituda sob a base de uma imagem de comunho, a despeito das
divises das desigualdades sociais, imaginada como uma agremiao horizontal e
profunda (ANDERSON, 1990, p. 25-27).
Nesse aspecto, o nacionalismo deve ser compreendido no tendo como base
doutrinas polticas, mas os quadros de referncia inquestionveis como a comunidade
religiosa e o reino dinstico, dos quais sucedeu. Em outros termos, o estudo da
identidade nacional se preza pela anlise da cultura como objeto de pesquisa
privilegiado, com o foco no papel das representaes nos processos sociais e polticos,

12
com efeitos subjetivos de amplo alcance. Trata-se de uma identidade recente, mas
assentada sobre a imaginao de um passado imemorial e um futuro infindo,
conformando uma pressuposio atemporal de lealdade, quase assentada em uma
natureza, dos membros coletividade nacional.
O que a define, portanto, o sentimento de unidade, a qualidade de no possuir
fraturas, justificando o fato de vidas se perderem em guerras pela lealdade ptria. Nas
palavras de Hall, no importa quo diferentes seus membros possam ser em termos de
classe, gnero ou raa, uma cultura nacional busca unific-los numa identidade cultural,
para represent-los todos como pertencendo mesma grande famlia nacional (HALL,
2005, p. 59). Baseadas em um territrio marcado pela hibridez e rico intercmbio
cultural de antigos grupos que a formou, tal identidade teria se constitudo
paradoxalmente na ideia de pureza, sustentada na excluso daqueles que no se incluem
nos ideais de unidade. Isso quer dizer que as naes s foram unificadas por um longo
processo de conquista violenta isto , pela supresso forada da diferena cultural;
trata-se de uma hegemonia cultural unificada (HALL, 2005, p. 59-60).
Tal reflexo terica que respalda Hall (2005) se assenta na discusso sobre a
identidade nacional inglesa que se assentou em ideias de brancura e pureza, afirmadas
em contraposio s colnias racializadas e, contemporaneamente, politicamente postas
em questo pela presena de descendentes dos ex-colonizados que se dirigem antiga
metrpole. Algo distinto ocorreu no caso brasileiro. Um espetculo das raas
(SCHWARCZ, 2003) era a forma como parte do pensamento europeu via nosso pas
caracterizado pela intensa dispora africana que, com os elementos portugueses e
autctones, produziria um pas caracterizado pela miscigenao2.
No Brasil, a diferena se constitui originalmente no prprio povo, racialmente
definido como inferior a uma elite que se reconhecia enquanto depositria do futuro da
nao, dada sua ascendncia europeia. Durante muito tempo, a grande questo interna
elite era a impossibilidade da construo de uma identidade nacional unitria e marcada
pelos signos de civilidade e modernizao. Tal elite questionava a viabilidade da nao,

2
No se trata aqui de reiterar o mito das trs raas conformadoras da nao, criado pelo naturalista
bvaro Karl Friedrich Philipp von Martius em 1844 em concurso patrocinado por Pedro II por meio do
Instituto Histrico Geogrfico Brasileiro (conf. MISKOLCI, 2012, p. 36) e consolidado em vrios
intrpretes do Brasil em dcadas posteriores. Antes, considerando a diversidade tnica indgena e dos
povos africanos que aqui vieram, com as imigraes japonesas, italianas, alems, holandesas, rabes e
muitas outras, procuro apenas reiterar a viso que se fazia do exterior sobre nosso pas no perodo.

13
ao conceber a populao nacional como pretensamente degenerada pela mistura racial
(MISKOLCI, 2012, p. 38).
um grupo de intelectuais no fim dos oitocentos, caracterizado pela atuao em
vrias reas como poltica, literatura e muitas vezes cincias, que trouxe a temtica
racial para o centro da discusso sobre o nacional. Tal grupo ficou conhecido como
gerao de 1870. Este desbanca uma identidade nacional ainda sustentada no
indianismo romntico, que trazia a ideia de uma originalidade brasileira calcada no
modelo do ndio civilizado, leia-se europeizado, e a concomitante excluso dos
elementos de origem africana. O negro passa a ser elemento crucial na discusso da
nao a partir da dcada de 1870, perodo em que a abolio da escravatura se revelava
iminente a partir da promulgao da Lei do Ventre Livre, em 1871 (ORTIZ, 1985;
VENTURA,1991; SCHWARCZ, 2003).
Entre vrias interpretaes e proposies, pode-se dizer que uma se tornou
dominante: um projeto de branqueamento da populao seja via miscigenao ou pelo
incentivo de imigrantes europeus ao pas (HOFBAUER, 2006, p. 213). A mudana de
regime de trabalho e a proclamao da repblica, na ltima dcada dos oitocentos,
apenas reforou saberes hegemnicos desejosos de controlar a pretensamente perigosa
populao negra e pobre brasileira, com um projeto sempre voltado para o modelo de
civilizao europeu. Uma repblica higienista3 e autoritria tinha como objetivo a busca
pela modernidade, o que compreendia estar em dia com a Europa, impondo um ideal
de brancura como contedo moral, rejeitando experincias outras que no as de
ascendncia europeia como distintivas da nacionalidade a se construir. Em sntese, a
questo racial poderia ser compreendida a partir de uma chave temporal: negritude
caberia o passado e branquitude, o porvir (MISKOLCI, 2012, p. 50).
Muito alm de uma preocupao cromtica, emergiam questes de ordem moral,
na qual a possibilidade de constituir-se enquanto nao era vinculada herana

3
Sobre a emergncia de uma nova ordem social coordenada pela medicina higienista no fim do sculo
XIX, consulte Jurandir Costa (1999) e Gondra (2004). Nicolau Sevcenko disserta sobre o autoritarismo da
atuao da medicina, articulada com o Estado, na virada do sculo: alm de controlar o espao social,
em nome da poltica sanitria, os exrcitos de fiscalizadores, os esquadres mata-mosquitos e os
batalhes de vacinadores eram autorizados a invadir tanto a privacidade das casas quanto a intimidade
dos corpos. As pessoas abordadas eram submetidas a questionrios sobre suas origens, suas condies
fsicas, seus familiares, seus hbitos, sua vida sexual, suas atividades e suas andanas. Um decreto de
1905 determinava que todo indivduo recolhido Casa de Deteno fosse imediatamente vacinado e
revacinado (SEVCENKO, 1998b, p. 572).

14
civilizacional europeia4. Richard Miskolci (2012) aborda como a Proclamao da
Repblica em 1889 abriu caminho para um projeto que j vinha sendo gestado no final
da ordem imperial, em especial com o crescimento de grupos polticos alheios ao status
quo imperial: do Exrcito vitorioso da Guerra do Paraguai a novos intelectuais e
polticos que surgiam dos contextos urbanos.
Com os olhos voltados para a Europa e com srias desconfianas em relao
populao pobre, a nova elite de homens brancos pensava a nao a partir de critrios
racistas articulados a uma ideia de progresso que, de um lado, sustentavam um desejo
de ordenamento da populao, vista como tendente a descaminhar a nao, e, de outro
lado, baseavam-se em uma autodisciplina rigorosa da elite. Consoante com tal acepo,
as polticas higienistas foram a expresso poltica e ideolgica dominante que se
materializou em vrias frentes: reordenando as cidades, regulando a educao dos
membros da elite, as relaes ntimas familiares, etc. Buscava-se a moralizao da
sociedade para a nao ser pretensamente includa no rol das naes civilizadas,
seguindo um modelo eurocntrico. Para tanto, visava-se extinguir os seus vnculos com
um passado visto como brbaro e primitivo, relacionado experincia da escravatura e
representado por uma parcela da populao das classes populares, marcadamente, a de
origem africana.
A nao desde a Repblica proclamada no existia enquanto tal 5, era um projeto
elitista que no considerava outras formas de se pensar o que ser brasileiro vindas de
setores populares. De outro lado, um hiato era sentido entre o povo e a Repblica, o que
se materializou evidentemente na Guerra de Canudos (1896-1897), na Revolta da
Vacina (1904) e na Revolta da Chibata (1910), caracterizando o descompasso entre a
populao pobre e negra com tal projeto de nao. Pensar em uma ideia de nao que
ultrapassasse as clivagens sociais neste momento da histria no era factvel, dado o
fosso valorativo que se estabelecia entre elite e o resto da populao a partir de um
ideal de branquitude estabelecido pelas classes privilegiadas, trata-se de:

4
Concepo de longo alcance j percebida por Andreas Hofbauer quando afirma que o iderio de
transformar negro em branco perpassou longos perodos histricos, em que o ideal do branco tem sido
(re)semantizado constantemente. Nunca se resumiu ideia de transformar uma cor/raa em outra. Na
cor branca seriam projetados, ao longo do tempo, alm de valores religioso-morais, outros ideais, tais
como liberdade e progresso civilizatrio. Esse iderio tem refletido no apenas os anseios e interesses das
elites, mas tem tido tambm respaldo no imaginrio popular (2006, p. 27).
5
Antnio Srgio Guimares, a partir do trabalho de Beatriz Resende, cita Olavo Bilac expressando tal
opinio de forma clara quando opina sobre a Revolta da Vacina: [as arruaas....] vieram mostrar que ns
ainda no somos um povo. [...] No h povo onde os analfabetos so maioria (2011, p. 31).

15
[...] um ideal criado pelas elites brasileiras entre o final do XIX e o
incio do sculo XX, o qual adquire mais importncia no regime
republicano. (...) a branquitude era um ideal presente em vrios
discursos, dos polticos aos mdicos e literrios, os quais encontravam
nela um denominador comum do desejo da nao, valor fundamental
que guiava as demandas elitistas de branqueamento de nosso povo.
Branquear no era apenas ou exatamente um projeto de transformao
demogrfica, mas tambm e principalmente de moralizao
coletiva. A despeito de seu foco em toda a populao, tratava-se de
um desejo das elites dirigentes, esmagadoramente formada por
homens, e que interpretavam a branquitude como um valor prprio
que a caracterizava e distinguia do povo. (MISKOLCI, 2012, p. 51)

O ideal de branquitude da virada do sculo impedia o pas ser pensado como


uma comunidade imaginada, algo que se transformou qualitativamente especialmente
a partir da dcada de 1930. A mudana se efetivou quando se concebeu a construo de
uma identidade nacional positiva e pretensamente no excludente, baseada na ideia de
que os brasileiros fariam parte de um pas racialmente harmnico (ORTIZ, 1985). A
nao compreendida como uma comunidade imaginada, em sua singularidade e
unidade, no se forjou a partir de uma ideia assentada na pureza branca definidora do
pas, mas a partir de uma seletiva incorporao do legado afro-brasileiro representativa
de parcela significativa da populao, bem como da valorizao do mestio e da
miscigenao como parte do carter nacional. A contribuio sociolgica sobre a
identidade nacional, com as reflexes que a tocam indiretamente mais centradas nas
relaes raciais brasileiras, comumente remete s discusses na esfera intelectual.
Tal fortuna crtica marcada por abordagens a cerca de um povo brasileiro
que se sedimentava enquanto tal nas elaboraes dos intelectuais debruados sobre uma
autenticidade cultural nativa forjada na mistura de raas e culturas. A transformao
passa por um novo olhar, oferecido pelos modernistas, caracteristicamente positivo em
relao cultura popular em busca do povo brasileiro (WISNIK, 1982), mas pesaria
especialmente sobre a importncia dos novos intrpretes do Brasil, com ateno especial
a Gilberto Freyre que consolidou a interpretao de que, citado pelo socilogo Antonio
Srgio Guimares, no somos brancos, negros ou ndios -, mas uma nao: somos um
povo mestio (GUIMARES, 2002, p. 121). Ainda se salienta que o mestio, situado
de forma ambgua entre o tipo nacional e o vetor de branqueamento, demarcava
possveis leituras nas quais a miscigenao apareceria como um caminho para o
branqueamento da populao (HOFBAUER, 2006; MOUTINHO, 2004).

16
A discusso feita pelo alto no desenvolve a questo do fosso existente entre
os intelectuais e a populao iletrada predominante do pas 6 e deixa praticamente
inexploradas algumas mudanas fundamentais da sociedade brasileira. Tal perspectiva
voltada aos intelectuais revela-se muito frutfera quando se considera o ltimo quarto
dos oitocentos. O fim do sculo XIX tem como legado o crescimento e complexificao
de centros urbanos, em especial a capital. Desde a vinda da corte portuguesa em 1808,
com investimentos em instituies de educao, formao de quadros burocrticos,
dentre outros aspectos, permitiu-se a constituio de uma esfera pblica com relativa
autonomia dos estamentos senhoriais hegemnicos (COSTA, E., 1999). Esta esfera
pblica, reduzida a uma parte pequena da populao letrada, alterou significativamente
a forma de se fazer poltica no pas e contou com o desenvolvimento de um mercado
editorial com profcua produo literria e jornalstica que permitiu uma reflexo
engajada em projetos nacionais de fundo elitista e marcado pela branquitude (ALONSO,
2002; MISKOLCI, 2012; VENTURA,1991; SCHWARCZ, 2003).
Durante o sculo XX, no se pode dizer que a representao da nao se
restringia esfera intelectual. Na capital federal, as primeiras dcadas do sculo XX so
marcadas pela efervescncia da cultura de massas, desenvolvimento do rdio,
aparecimento de teatros populares e cassinos sofisticados, alm da ocupao das ruas e
praas para exibio de uma cultura popular de origem afro-brasileira. A partir de ento,
a criao de smbolos nacionais passa por uma complexa relao entre cultura popular,
mercado de entretenimento e Estado, quando o samba desponta como msica popular
nacional. O nacional, veiculado musicalmente, passa a ser produto de uma esfera da
cultura de massas prpria do Rio de Janeiro, caracterizada por uma heterogeneidade
dialgica:

Os cassinos, o teatro de revistas, as escolas de samba influenciavam


uns aos outros, alm de outros fruns sociais, como praas citadinas,
cafs, boates, restaurantes e o carnaval ento institucionalizado. O
crescimento e diversificao da populao na cidade abasteceram o
ambiente construdo. Mais corpos trabalhando significaram mercados
mais amplos, mltiplas fontes de inspirao, oportunidades de
experimentao e ento novos fruns de atuao artstica. Isso, por sua
vez, significou mais consumo, mais produo e mais investimento,
criando um ciclo que beneficiaria o Rio de Janeiro at quando se
manteve a capital. (DAVIS, 2009, 42, traduo minha)

6
Segundo o censo de 1920, a populao analfabeta acima de 15 anos era de 64,9 por cento da populao,
enquanto que no de 1940 era de 55,9 por cento. (FERRARO, 2002, p. 34).

17
Hermano Vianna (2007) autor de uma das mais conhecidas pesquisas em que
vincula a problemtica da identidade nacional ao samba. Em seu livro, O Mistrio do
Samba, ele detalha o importante encontro, em 1926, no Rio de Janeiro, entre os
intelectuais Gilberto Freyre, Srgio Buarque de Holanda, Prudente de Morais Neto e
Villa-Lobos, com os msicos populares Pixinguinha, Donga e Patrcio Teixeira, a fim
de explorar o que considera o mistrio do samba, ou seja, a passagem da execrao
consagrao do samba, ou da nacionalizao do samba (e da cultura afro-brasileira).
Postula que se tratou no de uma passagem abrupta, mas do coroamento de uma
longa tradio de contatos entre o erudito e o popular, que coexistia com a represso.
Tal passagem estaria ligada tambm ao concomitante mistrio da mestiagem
definida ento como caracterstica nacional. Fez-se a partir do protagonismo de certos
intelectuais que, em busca de coisas nossas, interessavam-se pela msica popular que
se veiculava na capital e participavam ento da inveno de uma tradio, da eleio do
que verdadeiramente brasileiro. A valorizao do popular e sua nacionalizao
dependeu em grande parte, na viso do autor, da relao entre certos intelectuais da elite
e artistas populares7.
Sem negar a importante contribuio de Vianna, de forma a complement-lo, a
historiadora Rachel Soihet (2008) prope uma abordagem diferente, ao focar a cultura
popular e seus artistas como sujeitos histricos. Ou seja, considera-os como no sendo
objetos passveis da incorporao dos intelectuais em busca de uma produo cultural
pretensamente autntica. Em contrapartida, salienta o papel dos populares na
negociao, resistncia e criao no que se passou a se considerar como cultura popular
brasileira. Sob sua viso, trata-se de um processo concomitante do esforo de lderes
dos populares em afirmar sua participao no sistema, garantindo a presena
reconhecida de suas manifestaes nas ruas da cidade (2008, p. 158) com a atuao do
governo de Getlio Vargas ante a necessidade buscar legitimidade a seu poder a partir
de seu projeto integrador de nacionalidade.

7
Uma excelente crtica Vianna que problematiza a forma como sua pesquisa foi constituda
metodologicamente e que enfatiza sobretudo a importncia da cultura de massas na inveno do nacional,
pode ser conferida em Gomes, 2001. Jos Miguel Wisnik j abordara como boa parte dos intelectuais se
voltava em uma perspectiva romntica para o popular no urbano e se defrontava com a cultura de massas
que se desenvolvia na capital para alm de suas intenes: como emergncia dos meios modernos de
reproduo eltrica, a msica popular brasileira urbana lanava em jogo os elementos sintomticos de um
flagrante desmentido descentralizador s concepes esttico-pedaggicas do intelectual erudito,
prometendo um abalo decisivo no seu campo de atuao (WISNIK, 1982, p. 148).

18
Embora a contribuio de Soihet (2008) seja importante ao valorizar novos
sujeitos no redimensionamento da identidade nacional no sculo XX, esquivando-se de
uma viso do alto, a autora deixa de fora a mediao do mercado de cultura de
massas, citada anteriormente pelo brasilianista Drin Davis (2009). Tal mercado
possibilitou a difuso com seus limites tecnolgicos da identidade nacional para
alm da capital. Trata-se de um perodo que tinha no rdio seu principal meio de
comunicao, o qual compunha relaes com muitas outras esferas da cultura de
massas, como a indstria fonogrfica, os teatros, o cinema, etc. Uma nova identidade
nacional se criava por esses meios que, por sua vez, se relacionam com transformaes
substanciais na sociedade brasileira que se inseria desde a virada do sculo na revoluo
cientfico-tecnolgica. Observa-se a:

[...] introduo no pas de novos padres de consumo, instigados por


uma nascente mas agressiva onda publicitria, alm desse
extraordinrio dnamo cultural representado pela interao entre as
modernas revistas ilustradas, a difuso das prticas desportivas, a
criao do mercado fonogrfico voltado para as msicas ritmadas e
danas sensuais e, por ltimo mas no menos importante, a
popularizao do cinema. (SEVCENKO, 1998a, p. 37)

A capital irradiante, nos termos de Nicolau Sevcenko (1998a), sugere ao


enfatizar a corruptela do rdio, o rico processo social suscitado pela cultura de massas a
partir de fins dos anos 20, demarcando novos valores sociais e novos padres de
sociabilidade. O rdio funcionava e se difundia nos centros urbanos do pas, mas a
produo cultural que daria contornos identidade nacional se fazia centralizada na
capital federal, tornando-se mesmo atrativa a muitos compositores de outras localidades
que iam fazer carreira no Rio de Janeiro. Enquanto se consolidavam os primeiros
cartazes do rdio, pode-se dizer que este funcionava na dinmica articulada e j exposta
de um mercado de cultura de massas, envolvendo a indstria fonogrfica que, por sua
vez lanava discos s vsperas do carnaval que tomavam vrios espaos sociais e
dividiam as opes de lazer com teatros, cassinos, dentre eles internacionais e cinemas,
com acesso ao pblico em geral.
Benedict Anderson (1991) explora a importncia do florescimento do romance e
do jornal na formulao de uma identidade nacional em que seus habitantes dependeram
da ideia do viver em sincronicidade para sentirem-se parte de uma nao. Ser que na
especificidade de um pas perifrico, no qual a taxa de alfabetizao ainda era

19
baixssima, em meados do sculo XX, h a mesma importncia da escrita ou outros
elementos assumem maior importncia? Pode-se dizer que em nosso caso se tem uma
dinmica entre identidade nacional e cultura escrita especfica, na qual no se observa a
ampla difuso de uma cultura erudita nacional pela escola. Assim tal cultura no se
torna hegemnica e tem dificuldades de se sobrepor popular, contrastando-se com
outros pases europeus como a Frana (ORTIZ, 2006, p. 65).
Renato Ortiz (2006, p. 65) afirma que no Brasil, em especial a partir da dcada
de 40, atividades vinculadas cultura popular de massa so marcadas por uma aura
que em princpio deveria pertencer esfera erudita da cultura. E por meio desta
especificidade que proponho uma mudana no ngulo de reflexo sobre a identidade
nacional, sem menosprezar a discusso na esfera intelectual e os intercmbios entre ela
e a produo cultural do mercado carioca. Busco explorar como a cultura de massas no
Brasil teve um papel preponderante na construo de uma comunidade imaginada, em
que de fato as diferenas e desigualdades puderam ser simbolicamente suspensas.
Jesus Martn-Barbero (2009) oferece uma perspectiva frutfera para se pensar a
importncia da reconfigurao do popular, e do nacional, pelo massivo. Em vez de
pressupor a cultura de massas como uma forma de degradao da cultura erudita,
prope uma abordagem atenta recepo na qual compreende que o massivo gerado
lentamente a partir do popular, sendo ditado pela lgica do consumo. No caso brasileiro
na dcada de 1930, assistimos a consolidao do rdio comercial, financiado pelas
campanhas publicitrias, que por sua vez buscavam atender a audincia. A demanda da
audincia transformou a programao das estaes de rdio que a princpio baseava-se
em projetos de cunho educativo e de difuso da msica erudita. O samba passou a
predominar no rdio brasileiro garantindo a profissionalizao de msicos e cantores
que passaram a fazer parte do cast das estaes.
Seguindo uma tendncia mundial na qual ritmos danantes de origem afro-
diasprica invadiam a esfera do lazer e entretenimento, no Brasil os ouvintes do rdio
procuravam no apenas sintonizar-se com as tendncias norte-americanas que passavam
a predominar, mas tambm a ouvir aquilo que se definia como nacional, notadamente o
samba. Originalmente restrito a ambientes no qual se vinculavam atividades ldicas e
religiosas de raiz africana, o samba passou a ocupar espaos pblicos como o carnaval
da Praa Onze e a Festa da Penha, atraindo o interesse da populao em geral. Em
seguida, tornou-se a trilha sonora do carnaval carioca em geral, fez-se presente no teatro

20
de revistas e, por fim, com o auxlio governamental aos artistas brasileiros, chegou aos
cassinos cujo pblico era composto pela elite local e internacional.
Compositores negros e pobres celebravam ao ver sua cultura ser reconhecida
como sinnimo de nacional, associando a verdadeira brasilidade ao pertencimento s
classes populares e mesmo ascendncia africana, em oposio elite europeizada. A
aceitao do samba encontrou-se, na esfera poltica, com o objetivo do governo Vargas
de legitimar-se perante uma sociedade de massas que ocupava a capital federal
crescentemente densa populacionalmente e marcada por uma srie de tenses no nvel
poltico:

A conjuntura que se segue I Guerra Mundial, culminando com a


Revoluo de 1930, favoreceu o atendimento das aspiraes
populares. Politicamente, essa conjuntura caracteriza-se pela perda da
hegemonia dos setores agro-exportadores e pela ascenso de novos
grupos como a burguesia industrial, a burocracia civil e militar, o
proletariado urbano e as massas marginais, cujos interesses no
mais poderiam ser ignorados por qualquer grupo que aspirasse
hegemonia poltico sobre o conjunto da sociedade. (SOIHET, 2008, p.
189)

neste contexto que o Governo Vargas incorpora o que se produz no mercado


fonogrfico e de entretenimento, mas com olhar educativo e nacionalista, incentivando,
mas tambm visando transformar o samba e interferir nas suas letras de modo a deix-lo
simtrico aos objetivos de construir um tipo especfico de cidado nacional, baseado na
imagem do trabalhador. Adere ao samba como msica nacional, veiculando-o no
programa de rdio governamental A Hora do Brasil, ajudando-o no propsito de
consolidar a unidade nacional.
Por meio da incorporao do popular ao nacional via mercado, assistia-se uma
negociao de valores que comporiam a identidade nacional sobre os quais se destacam
a validao de certo vocabulrio popular, de elementos afro-religiosos e de termos que
aludiam positivamente negritude. por este meio que o nacional passa pela criao
dos de baixo, com uma histria de compositores populares vinculados a um universo
simblico demarcado pela negritude.
No obstante, o mercado de cultura de massas se caracterizava por um filtro
moral e racial que negociava imagens e valores apropriados ao nacional. Processo no
qual se configura a positivao da cultura popular e negra e um branqueamento na
forma de sua apresentao (DAVIS, 2009; FENERICK, 2003). Algo que ia alm do

21
meramente cromtico, mas estava ligado a um universo de valores tido como moderno e
difundido pela cultura de massas nacional.
Junto valorizao de temas como o terreiro e as baianas, assistiu-se a uma
diversificao temtica que incorporasse representaes de prticas de classe mdia,
como o botequim (FENERICK, 2003, p. 238-239). Algo que foi conquistado com a
profissionalizao por meio do rdio, garantindo a emergncia de compositores das
classes mdias. Mesmo quando valorizado o universo afro-brasileiro, a mesma
mediao do mercado fonogrfico e do rdio restringia acesso aos melhores salrios e
oportunidades de carreiras a artistas negros e mestios. Os cartazes do rdio e primeiras
figuras em um emergente star system brasileiro eram, em geral, brancos e de classe
mdia (DAVIS, 2009, p. 83).
Em suma, o popular s foi alado ao nacional mediante uma srie de
negociaes que renovaram a branquitude dentro de uma lgica de mercado de cultura
de massas. A branquitude expressava ento uma afinidade com o mundo moderno em
suas dimenses materiais e simblicas que definiam seletivamente quem tinham acesso
a determinados produtos, espaos e comportamentos que promoviam, de outro lado,
mecanismos de distino social. A posse do rdio, a incorporao da moda
hollywoodiana, a presena em bailes de gala ou cassinos eram alguns dos elementos que
vinculavam sujeitos ao moderno. O samba e os cartazes do rdio expressavam a
elegncia brasileira destes atributos culturais e materiais, ocupando as casas com os
aparelhos de som e as revistas ilustradas, e os espaos de acesso pblico, com o cinema
nacional emergente e o refinado mercado de entretenimento carioca.
A importncia progressiva do mercado de cultura de massas na construo de
uma identidade nacional se d em um perodo de aproximao da cultura massiva norte-
americana, possibilitada pelos prprios meios de comunicao como o rdio e o
cinema8. Construa-se uma dinmica marcada por uma intensa compresso tempo-
espacial das representaes que ultrapassavam rapidamente as fronteiras nacionais. O

8
Nas palavras de Nicolau Sevcenko: Com a Primeira Guerra a indstria cinematogrfica europia entrou
em colapso e nos pases latino-americanos no havia mais como comprar celulide e equipamentos
baratos no mercado europeu. Os Estados Unidos herdaram tudo, construindo uma situao de monoplio
virtual de produo, distribuio e exibio em todo o mundo. Quando surgiram os filmes falados,
aumentando enormemente os custos de produo, os pequenos estdios faliram e s sobraram as grandes
corporaes de Hollywood. Ali foi desenvolvido o sistema de estdios que racionalizava, otimizava e
reduzia significativamente os custos e foi criada tambm a sua contrapartida promocional, o star system.
Se os anos 30 foram portanto a era do cinema, cinema nessa era significava estritamente Hollywood. As
conseqncias dessa situao mudaram a histria do mundo (1998b, p. 598).

22
american way of life era difundido via publicidade, revistas ilustradas e cinema e outros
meios e passava a se referenciar como sinnimo de modernidade, influenciando as
produes culturais tidas como de carter nacional.
A presena norte-americana acabou concorrendo com a influncia europeia, algo
que se concretizou definitivamente com o fim da Segunda Guerra Mundial, tornando a
referncia do mundo moderno e capitalista ocidental globalmente. No Brasil, a
influncia norte-americana, materializada na posse de certos valores e produtos, passou
a ser relacionada branquitude, ento centrada em um estilo de vida urbano e calcada
no consumo. Equiparar-se ao pas da Amrica do Norte revelou-se um desejo a ser
seguido pela elite intelectual e, especialmente, empresarial. Os Estados Unidos
posicionavam-se na vanguarda da produo de produtos massivos e da cultura de
massas, tendo ambas as indstrias impactado de forma articulada na vida cotidiana dos
brasileiros dos grandes centros urbanos, quando uma gerava necessidades simblicas e a
outra produtos materiais9.
A branquitude tornou-se, portanto, associada distino social via mercado,
caracterizada ento pelo seu dinamismo e promessa de nivelamento social, posto que
supostamente alcanvel por meio do consumo. Antes do que atributo solidamente
constitudo pela ascendncia a certas famlias, trata-se da imposio social de um
engajamento constante, ou seja, uma busca sfrega de modelos [que] indicava
justamente a ausncia de parmetros seguros (SEVCENKO, 1998b, p. 541). Em outros
termos, o que estava em jogo era uma hierarquizao pelo gosto que institua um
dinmico mecanismo de diferenciao social:

O [novo] gosto no se refere a nenhum padro esttico ou estvel de


excelncia, tpico de uma sociedade aristocrtica, mas ao empenho
dos recm-chegados s benesses do consumo em se diferenciar e
distanciar dos menos afortunados e dos despossudos, de cujo seio
vieram. (SEVCENKO, 1998b, p. 538)

A despeito da aparncia de democratizao, hierarquizaes de classe e raa


revelavam-se importantes componentes da nova forma de se conceber enquanto

9
O cinema norte-americano atuando junto com a publicidade sugere: a possibilidade de as pessoas
manipularem suas prprias aparncias para se assemelharem aos deuses da tela. O mercado ser invadido
de xampus, condicionadores, bases, ruge, rmel, lpis, sombras, batons, um enorme repertrio de cortes,
penteados e permanentes, tinturas, clios, unhas postias, e naturalmente o sabonete das estrelas de
cinema (SEVCENKO, 1998b, p. 602).

23
moderno. Adquirir os novos elementos difundidos no mercado requisitava ter condies
materiais para tal, muito embora no estabelecida em limites intransponveis. A prpria
seletividade dos rdios para seus cartazes, representantes da modernidade nacional,
mostrava que a aparncia branca era aspecto fundamental. A carreira de Carmen
Miranda, advinda das classes populares, um exemplo no qual a aparncia branca
muitas vezes funcionava como condio de acesso aos cdigos da modernidade.
A cultura nacional que se forjava no mercado de entretenimento carioca era
sustentada em um ideal moderno, em busca de equiparar-se a outras naes civilizadas.
Embora se revelasse importante veicular uma suposta autenticidade que a cultura
popular urbana era representante, esta deveria incorporar elementos que a
modernizavam. Assim, distanciava-se de suas qualificaes contemporneas que
alocavam esfera do atrasado ou do primitivo. Para tanto, um filtro racial passou a
se materializar na cultura de massas que se definia ento por uma seletividade na forma
de apresentao esttica e valorativa da nao em busca de adequao branquitude.
Tratava-se de sofisticar o legado popular e afro-brasileiro em uma codificao prpria
do moderno, s possvel de ser levada a cabo com a representao branca da nao10.
Meu objetivo nesta tese focar como as dinmicas de representao do nacional
foram redimensionadas neste contexto a partir da figura chave de Carmen Miranda.
cone do rdio, no auge de sua carreira, no Cassino da Urca, ao incorporar a figura da
baiana, Carmen denota ao mesmo tempo uma iconografia negra em uma apresentao
calcada na branquitude. Segundo Davis (2009, p. xvii), artistas brancos vestiam-se da
cultura negra comercializando-a, ao mesmo tempo em que performavam a brasilidade
autntica em resposta s demandas de mercado por uma cultura nacional. A baiana
estilizada denota, por sua vez, os mecanismos de filtro racial, materializado pelo
mercado de cultura de massas. Os negros e seu legado cultural fariam parte da nao,
mas apenas como cenrio ou inspirao. Atualizava-se assim a branquitude que deveria
caracterizar a imagem moderna de uma nao, sem questionar a unidade nacional.

10
Embora a mestiagem passasse a ser trao definidor da nao, ela representaria um processo de
transformao, posto que, como o brasilianista Jerry Dvila afirma: a negritude era tratada em linguagem
freudiana como primitiva, pr-lgica e infantil. Mais amplamente, as elites brancas equiparavam
negritude falta de sade, preguia e criminalidade. A mistura racial simbolizava o processo histrico,
visualizado como uma trajetria da negritude brancura e do passado ao futuro (2006, p. 25). Tal
acepo perpassava vrios sujeitos e mbitos da sociedade, afirma o mesmo autor: educadores que iam
desde o ministro da Educao e Sade Gustavo Capanema at o psiclogo infantil Manoel Loureno
Filho, o compositor Heitor Villa-Lobos, o autor de livros didticos de histria Jonathas Serrano e o
antroplogo Arthur Ramos, todos abraavam explicitamente essa viso de raa. Naturalmente para eles o
futuro do Brasil era branco (p. 26).

24
Sintonizada com o cinema e a moda norte-americanos, mas tambm com a
cultura popular urbana carioca, Carmen participou da inveno de uma imagem
modernizada do nacional. Constituiu-se no mercado de cultura de massas como uma
estrela nacional, chegando a representar o pas e sua msica nos espaos mais elitizados
e mesmo no exterior. Em perodo de aproximao poltica com os Estados Unidos,
denominado de Poltica da Boa Vizinhana, migrou para o pas norte, difundindo o
samba e representando a personagem da baiana, estilizando-a de forma a se amoldar no
universo simblico norte-americano. Por meio de sua figura, as representaes da
identidade nacional passaram a extrapolar as fronteiras do Estado-Nao brasileiro. A
cultura popular de origem afro-brasileira, com todas as mediaes constitutivas, ganhou
expresso no cinema de Hollywood.
Visualidade, corpo e nao

A viagem de Carmen Miranda com sua personagem da baiana e sua carreira nos
Estados Unidos demarcaram a entrada definitiva da construo da identidade nacional
na cultura de massas em uma esfera transnacional. Apoiando-me em Nicole Fleetwood:

Por cultura de massas, eu pretendo invocar seu uso dentro dos estudos
culturais para referir escala e alcance da produo cultural e sua
disseminao direcionada para amplos setores de populaes, regies
e sociedades, tanto nacionalmente quanto internacionalmente. No
sugerindo uma homogeneidade ou uniformidade na forma de pensar
entre os pblicos e os setores da cultura de massa. Na verdade, a
noo de glocal como uma localizao global evidencia tanto a
escala da distribuio das ideias e bens de cultura de massa e as
formas na qual grupos e comunidades especficos se apropriam e
criam significados contextualmente especficos para esses bens.
(FLEETWOOD, 2011, p. 125, traduo minha)

A identidade nacional brasileira se constitua especialmente a partir da capital


federal que se desenvolvia urbanamente e com ela consolidavam os meios de
comunicao que divulgavam uma cultura popular tornada nacional. A produo
cultural samba, carnaval, teatro de revista, etc. se apropriava criativamente das
influncias estrangeiras, especialmente da msica, cinema e publicidade norte-
americanos e inventava algo prprio do caldo de culturas distintas aqui presente, com
forte impacto da cultura afro-diasprica com grande expresso no Rio de Janeiro.
A partir dos anos 30, mas especialmente nos anos 40, com a entrada do pas na
Segunda Guerra Mundial e com a aproximao poltica diplomtica entre os governos

25
Vargas e Rooselvelt, no perodo da Poltica de Boa Vizinhana, a cultura popular
nacional passou a ser cada vez mais objeto de interesse da produo cultural norte-
americana que a reinventava dentro dos seus prprios regimes de representao.
Notadamente com a viagem de Carmen Miranda e o Bando da Lua, elementos-chave da
identidade nacional como samba e a baiana, passaram pelo crivo de uma estrutura
corporativa altamente especializada dos estdios de Hollywood, sem deixar de abrir
espao criativo para os artistas brasileiros que l estavam. A identidade nacional
brasileira passou a ser reproduzida e divulgada para alm do mercado da capital
brasileira e, sobretudo, a partir de representaes visuais e sonoras.
Segundo Jess Martn-Barbero, a habilidade de conectar tempo e espao dos
meios de comunicao de massa criou a sensao de se viver em sincronicidade com os
demais habitantes de seu pas, ou seja, a partir deles permitiu-se a transmutao da
ideia poltica de nao em vivncia, em sentimento e cotidianidade (MARTIN-
BARBERO, 2009, p. 234). Mas alm disso, a identidade nacional criada a partir desses
meios correspondiam a uma mudana de sensibilidade em uma nova ordem cultural
centrada nos estmulos sensoriais das imagens e dos sons tecnicamente ampliados
(SEVCENKO, 1998, p. 38). Ou seja, a projeo de imagens mveis, luminosas e
agigantadas na tela do cinema escuro afeta de modo intenso simultaneamente a
percepo visual e a imaginao (SEVCENKO, 1998b, p. 520), mobilizando energias e
contedos inconscientes. Nicolau Sevcenko salienta:

O mecanismo pelo qual as novas tecnologias, conquanto envolvam


procedimentos e recursos que so postos e operados no espao
pblico, agenciam os desejos e as disposies psquicas mais ntimas
de cada um, influenciando a esfera mais estreita das suas deliberaes
em mbito privado e interagindo decisivamente com esta.
(SEVCENKO, 1998b, p. 520-1)

O nacional produzido via cultura de massas tinha um potencial de subjetivao11


antes desconhecido. Alcanava habitantes em diversas regies do pas, padronizando

11
Dentro da lgica de mercado de massas o apelo ao consumidor aspecto fundamental, produzindo
vnculos entre sujeitos e mercadorias com fortes implicaes emocionais, algo que se fazia com os
produtos culturais tidos como nacionais, nos quais o ouvinte se identificava com o produto e o artista. A
ideia de subjetivao inclui a superao do binarismo indivduo e sociedade, salientando sempre o
processo como algo que se situa entre estes polos que so, no fundo, abstraes. Em outros termos, a
identidade emerge entre os conceitos e definies que so representados para ns pelos discursos de uma
cultura e pelo nosso desejo (consciente ou inconsciente) de responder aos apelos feitos por estes

26
certas referncias culturais e smbolos que demarcariam a singularidade de um povo. O
encurtamento das distncias e temporalidades, materializado com a produo flmica de
Carmen Miranda nos Estados Unidos, produziu uma identidade nacional relacional
diante de outros pases. A representao flmica da nao, produzida fora de seus limites
territoriais, implicou no seu posicionamento na estrutura de poder das relaes polticas
e econmicas internacionais que atualizavam representaes do passado colonial.
Segundo Ella Shohat e Robert Stam (2006, p. 152-3), foi por meio do cinema que se
permitiram contatos visuais e sensoriais com civilizaes estranhas, transformando o
obscuro mapa-mndi em um mundo familiar e cognoscvel.
Rosemary Coombe (1996) analisa logomarcas publicitrias corporificadas,
argumentando que diferentemente da esfera pblica burguesa desenvolvida no sculo
XVIII que se caracterizaria pela importncia da mdia impressa e que se constituiria em
tese por um sujeito desincorporado e universalizado 12, o capitalismo de consumo de
massa interpela o sujeito-consumidor "com uma maior orientao visual e com mais
desejos corporais desejos encontrados tanto no consumo material como no consumo
visual dos outros incorporados (p. 207, traduo minha). por meio da mdia de
massas que se distingue nos Estados Unidos a amostra visual da corporalidade
excessiva que marca o outro no imaginrio nacional social (p. 208, traduo minha),
citando desde cigarros indianos em que se encontra a imagem da mulher sexualizada
figura super corporificada da black mommy representativa do sul. No toa, a figura
feminina um aspecto fundamental da cultura de massas, orientada para o consumo do
homem branco e burgus.
Dominando a indstria flmica de maior impacto mundial e progressivamente se
tornando o pas dominante do capitalismo mundial, produzindo marcas que se imporiam
ao mundo via publicidade, os Estados Unidos passam a se representar como herdeiro da
tradio do ocidente, consolidando-se como sua verso adaptada aos novos tempos. Da
publicidade ao cinema, uma identidade norte-americana se forjou em relao ao Outro
corporificado cuja distino cultural e corporal o torna reconhecvel e consumvel.
Chiquita Banana criada em 1944 um exemplo de corporificao da Amrica Latina

significados, de sermos interpelados por eles (HALL, 1997, p. 26). A noo ressalta o aspecto
contingente da identificao e se sobrepe a uma ideia estanque de identidade.
12
Este sujeito pretensamente universal construdo por meio de uma lgica de abstrao que no marca
os sujeitos que tm acesso a esta esfera pblica: homens brancos.

27
inscrito na logomarca da United Fruit que possibilitou a corporificao tropical de um
subcontinente na figura de uma banana feminina (ENLOE, 1999, p. 129).
A marca se baseou em Carmen Miranda que adentrou no entretenimento e, em
seguida, no cinema norte-americano, acionando e modificando uma srie de elementos
sob os quais o regime de representao norte-americano concebia a Amrica Latina. Ao
lado disso, era vista como a Embaixatriz do Samba pelo pblico brasileiro que nutria
uma forma de identificao, associada emoo e intimidade possibilitada por sua
carreira anterior no rdio brasileiro e com as revistas ilustradas que cobriam sua vida
profissional e pessoal. No pas do norte, dentro do regime de representao prprio, a
identidade nacional brasileira era reinventada, com certo grau de autoria a Carmen e ao
Bando da Lua, suscitando um grande apelo do pblico nacional, que debatia em cartas,
jornais e revistas sobre sua carreira e os descompassos entre sua atuao no novo
contexto e sua antiga imagem de cantora do mercado de cultura de massas brasileiro.
Das telas, a identidade nacional era no apenas concebida, ou cantada, mas
performada com todo um aparato tecnolgico do cinema de cores e estrutura artstica
propiciada pela 20th Century Fox, com a qual Carmen assinou contrato em 1940. A
performance do nacional assume um sentido dramatrgico da encenao, no sentido de
ritualizao de determinados elementos que, repetidos, produzem a sensao do
pertencimento a um passado distante, fixado e essencializado no ato. A performance
dentro de um regime representacional fixado por normas e relaes de poder, acaba por
se revelar performatividade, ato lingustico que produz o que enuncia (BUTLER, 2003,
p. 168). A baiana estilizada de Carmen, com sua indumentria e corporalidade, levava
s telas do cinema, bem alm das fronteiras nacionais, a identidade brasileira. A nao
era ento corporificada pela artista brasileira.
Carmen simultaneamente baiana e latino-americana, carregando os signos
representacionais de dois contextos em uma s performance. A um s tempo smbolo
de um pas, representando a figura negra da baiana e do subcontinente latino-americano,
corporificado na figura de uma mulher. Historicamente, os corpos femininos
racializados, so representados como corpos excessivos (excess flesh). Desde o
colonialismo, o corpo negro feminino foi concebido como excessivo, degenerado,
sensual e, assim, comercializado (FLEETWOOD, 2011). A latino-americana representa,
na cultura de massas norte-americana que a difundiu muito alm de suas fronteiras, um
entremeio (In-Betweeness) da brancura e da negritude, tendo sua imagem
comercializada a partir de uma sensualidade racializada, mas mais prxima norma

28
branca, comumente codificada como uma possvel experincia sexual transitria de
homens brancos, protestantes e anglo-saxes (OVALLE, 2011, p. 07).
No Brasil, a excessividade sexual da negritude foi atenuada pelo branqueamento,
via mercado. Inicialmente, a figura da baiana interpretada por Carmen materializando-
se em uma figura negra apresentada em sua brancura sinalizava a harmonia racial,
celebrada em um mercado que apostava na comercializao de produtos que
performatizavam o nacional, constitudo nos limites de uma esfera pblica voltada ao
entretenimento. O consumo de suas imagens flmicas norte-americanas na esfera
nacional era marcado pela recepo de cdigos produzidos em um universo simblico
distinto, cada vez mais intimamente relacionado. Sua performance da nao se fazia
dentro de um regime de representao anterior que racializava a latino-americana
criando um regime de visualidade, sobre o qual Nicole Fleetwood disserta:

A esfera visual um campo performativo onde ver raa no um ato


transparente; antes um fazer. Sobre isso, Judith Butler escreve: o
campo visual no neutro em relao questo racial; ele mesmo a
formao da raa, uma episteme, hegemnica e convincente. Em
outras palavras, o campo da viso uma formao que rende marca
racial, produz o sujeito espectador que , parafraseando Norman
Bryson, inserido no discurso dos sistemas visuais que vem o mundo
antes do sujeito particular vir a ser. (2008, p. 7, traduo minha)

Considerando que a visualizao (ato fisiolgico da viso) no precede a


visualidade (a visualizao concebida nos seus limites culturais), a performance de
Carmen Miranda criava formas de ver um subcontinente e tambm uma nao. Mais do
que isso, considerando o poder de subjetivao via cultura de massas, torna-se um
elemento-chave na concepo do eu e do outro em uma esfera internacional,
constituindo identidades subalternas e hegemnicas em sua imbricao com o
encurtamento do tempo e do espao, proporcionado com o desenvolvimento do
capitalismo em termos globais. Em outros termos, ela se tornava um parmetro no qual
os norte-americanos se viam e viam seus outros, como tambm uma forma na qual os
brasileiros (e latino-americanos) se compreendiam em relao aos norte-americanos.
Com a nfase na corporalidade feminina prpria do mercado de cultura de
massas, a visualidade proporcionada por Carmen Miranda baseava-se em uma
feminilidade calcada na diferena racial: em um primeiro lugar com a figura negra da
baiana, includa seletivamente na representao do nacional e em segundo lugar da
latino-americana, alteridade exterior identidade norte-americana. Em um regime de

29
representao que escapa s fronteiras nacionais, acabou por consolidar a imagem de
uma mulher brasileira (extensvel s latino-americanas) que passa a ser consumvel
dentro das fronteiras da nao e performada nos ambientes de entretenimento nos
grandes centros urbanos brasileiros. A construo do nacional definitivamente deixava
de ser monoplio de uma elite masculina que racionalizava e projetava sonhos de
modernizao e passava a ser experienciada, comercializada e desejada massivamente.
Analisar a trajetria de Carmen Miranda inclui refletir sobre as dimenses de
gnero de suas representaes das diferenas raciais em seus dois contextos. Pretendo,
no prximo subitem, me voltar a reflexes terico-metodolgicas que permitem abordar
a trajetria de Carmen Miranda a partir de uma perspectiva singular. Com nfase nas
representaes, no conceito de colonialidade e na discusso sobre como as
identidades hegemnicas e subalternas so constitudas na interseco das diferenas de
gnero, raa e sexualidade, apoio-me nos estudos descoloniais. Como um
desdobramento dos estudos culturais, tal perspectiva tambm informada pela
contribuio dos estudos feministas me permite abordar a trajetria da Carmen
Miranda em um contexto de representaes miditicas em uma arena nacional e
internacional, analisando as variadas dimenses de poder que perpassaram sua carreira.

A perspectiva interseccional: dos Estudos Culturais aos descoloniais

Dentro da tradio marxista, os Estudos Culturais Britnicos foram responsveis


por uma virada cultural, a qual atribuiu importncia esfera da cultura na anlise
social em seu vnculo com as estruturas de dominao da sociedade. Questionando o
marxismo economicista que se baseia na dicotomia entre base e superestrutura,
privilegiando a primeira, os estudos culturais surgiram de modo a valorizar a cultura
como lcus da poltica. Assim, tambm apontavam uma crtica perspectiva idealista da
cultura, cuja anlise descolava a produo de obras culturais dos conflitos da sociedade.
Tericos como Edward Thompson, Richard Hoggart e Raymond Williams produziram
obras que se tornaram clssicas e constituram uma perspectiva transdisciplinar, na qual
abordavam a cultura em seus vnculos com a luta de classes, recusando uma
hierarquizao valorativa entre alta e baixa cultura13.

13
Sobre os Estudos Culturais consulte Cevasco (2003) e Mattelart e Neveu (2004).

30
Com a institucionalizao dos Estudos Culturais em Birmigham, sob a direo
de um centro de pesquisa pelo socilogo Stuart Hall, tal perspectiva terica se nutre de
novas abordagens com a influncia da lingustica e da psicanlise. Lida ento com os
complexos meios de subjetivao a partir dos significados culturais disponveis nas
sociedades. Dando centralidade s representaes culturais, Stuart Hall (1997)
compreende a prpria distino entre infraestrutura e superestrutura como datada, na
medida em que os processos de acumulao de capital, cada vez mais globalizados,
esto articulados com a circulao mundial de informao, conhecimento e publicidade.
Boa parte do capital direcionado indstria pesada nos oitocentos, desde o incio
do sculo XX se dirige crescentemente a tecnologias de comunicao e produo
cultural de massa. Tal transformao tem importncia fundamental em um mundo no
qual as lutas pelo poder tomaram crescentemente, simblicas e discursivas, ao invs de
tornar, simplesmente, uma forma fsica e compulsiva, e que as prprias polticas
assumam progressivamente a feio de uma poltica cultural (HALL, 1997, p. 20). A
produo, trocas e disputas em torno do significado passaram a ser objeto de anlise e,
para tanto, os media se transformaram em foco privilegiado de pesquisa.
Com a anlise centrada na linguagem e nos discursos, os Estudos Culturais
participam do que se denominou de virada lingustica. Isto ocorreu em particular com
a apropriao criativa de dois tericos. Em primeiro lugar, Michel Foucault, com seu
embasamento terico sobre a relao entre uma srie de enunciados com o poder e da
compreenso do sujeito como sujeitado pelo discurso e tecnologias de poder. Em
segundo lugar, Jacques Derrida ocupou uma influncia decisiva, descrevendo os
processos de significao sob bases mveis, na medida em que o significado resultado
de uma prtica significante, nunca finalmente ou estavelmente significada (COSTA,
2006, p. 98).
Derrida compreende que no existe uma origem absoluta do significado, esse se
efetua apenas relacionalmente. Um signo no tem correspondncia direta com a
realidade material, mas se constitui em sua interdependncia com outros signos em um
sistema lingustico. Neste aspecto, o filsofo ps-estruturalista analisa as representaes
fechadas e metafsicas da modernidade, as quais so o fundamento de formas de
dominao. Crtico do estruturalismo, esboa uma proposta desconstrutivista, na qual a
metafsica do centro e suas operaes binrias so desveladas, quando interpretadas em
sua arbitrariedade interdependente (COSTA, 2006, p. 88).

31
A dinmica do poder e suas fissuras puderam ser analisadas, com sua influncia,
a partir da corrente que, na esteira dos Estudos Culturais, denominou-se de Estudos Ps-
Coloniais, caracterizada pelo mtodo da desconstruo dos essencialismos, uma
referncia epistemolgica crtica s concepes dominantes de modernidade (COSTA,
2006, p. 83). Questionando a superioridade ontolgica e imutvel da relao assimtrica
e pretensamente irreversvel entre Ocidente e seu Outro, tal corrente desviou sua
ateno para os processos simblicos que produziam do centro sua alteridade
constitutiva. Por meio do discurso se ofusca aquilo que busca elucidar, a saber, as
diferenas internas dessa multiplicidade de fenmenos sociais subsumidos nesse outro
genrico, bem como as relaes efetivas entre o Ocidente imaginado e o resto do
mundo (COSTA, 2006, p. 88).
Edward W. Said (1995), considerado um clssico dos Estudos Ps-Coloniais,
analisa os vnculos entre imperialismo e cultura. Explora como a produo de textos
artsticos, polticos e cientficos do perodo imperialista, ao mesmo tempo em que
inventava identidades nacionais para os pases europeus, criava seus Outros, referentes
s colnias (ou internos a seu territrio), que funcionavam como seu limite constitutivo.
Constitua-se a ideia de um Outro inferior, primitivo, vinculado natureza em relao a
este Ns superior, civilizado, dotado de cultura e racionalidade. Deste modo, fornecia-
se um sistema de atitudes e referncias que justificava o imperialismo e caminhava
pari passu com a dominao de ordem poltica e econmica. Sua obra contribui para a
compreenso de que o aspecto relacional fundamento das identidades nacionais e das
relaes de poder que as envolvem. Hegemnico e subalterno no so antteses, mas
complementares, ou melhor, interdependentes14.
Os feminismos e, desenvolvida deles, a teoria queer15, correntes tambm
influenciadas pela virada lingustica, com grande influncia dos mesmos filsofos
ps-estruturalistas, passaram a dialogar e agregar discusses tericas aos Estudos Ps-
Coloniais. Configuram uma perspectiva intersecional que aborda como processos
histricos constituem mutuamente as categorias de gnero, raa e sexualidade. As

14
Compreende-se hegemonia, conceito de origem gramisciana, como uma forma de poder que no se
impe diretamente atravs da fora, mas que se efetiva por meio da dimenso cultural que garante a
aquiescncia dos dominados.
15
A teoria queer surgiu como um desdobramento do feminismo e conta uma variedade de contribuies
centradas nos aspectos histricos e sociais que moldam as relaes afetivo-sexuais nos contextos
contemporneos, colocando relevo na construo discursiva da sexualidade bem como de gnero e suas
imbricaes com aspectos raciais. Para um aprofundamento, consulte Miskolci (2009).

32
diferenas16 no existem isoladamente, existem em e por meio das relaes entre elas
(...) no so idnticas entre si, mas existem em relaes, ntimas, recprocas e
contraditrias (PISCITELLI, 2008, p. 268). Nas palavras de Beatriz Preciado:

No simplesmente questo de ter em conta a especificidade racial ou


tnica da opresso como uma varivel a mais, junto da opresso
sexual ou de gnero, seno de analisar a constituio mtua do gnero
e da raa o que poderamos chamar de sexualizao da raa e
racializao do sexo como movimentos constitutivos da
modernidade sexocolonial. (PRECIADO, p. 376, traduo minha)

Joan Scott (1998), em dilogo com estas perspectivas, atenta para sua riqueza ao
constituir uma forma de interpretao das relaes de poder focalizando os sistemas de
classificao ao invs de partir das categorias identitrias enquanto dadas como os
estudos de minoria que muitas vezes essencializam ou no problematizam a constituio
histrica das identidades. Em suma, tais anlises tm a potencialidade de relativizar as
categorias, expondo os processos que constroem e posicionam os sujeitos (1998, p. 317-
8).
Adriana Piscitelli (2008), abordando autoras como Avtar Brah (2006) e Anne
McClintock (2010), analisa como tal perspectiva das diferenas interpretadas de forma
intersecional deve levar em conta as polticas de agncia diversificadas, que envolvem
coero, negociao, cumplicidade, recusa, mimesis, compromisso e revolta
(PISCITELLI, 2008, p. 268). O discurso no se constitui de forma homognea,
totalizante e em uma s dimenso, as formas especficas de discursos sobre a diferena
se constituem, so contestados, reproduzidos e (re)significados, pensando na diferena
como experincia, como relao social, como subjetividade e como identidade
(PISCITELLI, 2008, p. 269).
O encontro entre a temtica do colonialismo, com o gnero e a sexualidade,
abriu o caminho para o estudo do desejo colonial (YOUNG, 2005). Robert Young
coloca o foco do binrio colonizador/colonizado na problematizao do seu encontro.
Argumenta que a identidade nacional colonialista no apenas se formou em relao de

16
Nestas linhas tericas, a diferena concebida como algo que se constitui relacionalmente e
subalternamente s identidades hegemnicas que se configuraram em sociedades capitalistas marcadas
pela colonialidade e dominao masculina na figura do homem, branco, ocidental, heterossexual e
burgus. Trata-se do resultado de uma constituio histrica da designao do outro, da atribuio de
caractersticas que distinguem categorias de pessoas a partir de uma norma presumida (e muitas vezes no
explicitada) (SCOTT, 1998, p. 298).

33
oposio a seu Outro colonizado, mas tanto mais se fechou e se concebeu a partir da
noo de pureza, quanto mais se colocou em contato com seu outro. Em outras palavras,
o Eu se fundamentou quando se deparava com o desejo pelo Outro. O desenvolvimento
do colonialismo foi marcado pela crescente ansiedade pela diferena racial e
amalgamao racial (YOUNG, 2005, p. 5).
Toda a construo de um pensamento racialista que caracterizou o auge do
colonialismo era ento, em termos foucaultianos17, uma estimulao discursiva sobre o
sexo inter-racial, afinal teorias sobre raa, eram (...) teorias sobre o desejo
dissimuladas (YOUNG, 2005, p. 11). Robert Young completa: as teorias de raa do
sculo XIX no consistem apenas em diferenciaes absolutas entre o eu e o outro: elas
tambm estavam fascinadas com pessoas fazendo sexo sexo infindvel, adltero,
aleatrio, ilcito, inter-racial (YOUNG, 2005, p. 221). Embora no explorado pelo
autor, trata-se da interseco entre dominaes de gnero e raa expressos na esfera da
sexualidade, criando a ideia de uma mulher colonizada que embora no era passvel de
ser considerada como escolha matrimonial, era tida como acessvel sexualmente ao
homem colonizador:

O eixo ambivalente de desejo e repugnncia do homem branco foi


legitimado atravs de uma notvel dissimulao ideolgica, por meio
da qual, a despeito da forma como as mulheres pretas foram
constitudas objetos sexuais e comprovaram sua capacidade de
seduo graas prpria ao que as vitimava, elas foram tambm
ensinadas a ver-se a si prprias como sexualmente sem atrativos.
(YOUNG, 2005, p. 185)

Influenciados pela contribuio terica dos Ps-Coloniais, um grupo


heterogneo denominado estudos descoloniais latino-americanos colocou em questo
alguns de seus pressupostos. A crtica se volta pelo predomnio de intelectuais de
ascendncia sul-asitica que acabaram por dar nfase ao estudo do imperialismo
britnico, desconsiderando a importante experincia histrica do colonialismo ibrico e,
assim, privilegiando a histria anglo-sax. Outra crtica se deveu ao problemtico
prefixo ps de Ps-Colonial que, embora no signifique necessariamente um depois no

17
Michel Foucault compreende que as sociedades modernas, urbanizadas e centradas no controle
populacional se caracterizam por um dispositivo de sexualidade. Ou seja, ao invs de um suposto
mutismo puritano sobre o sexo, trata-se de um complexo mecanismo de estratgias de saber e poder que
se referem estimulao dos corpos, incitao aos discursos, formao dos conhecimentos, entre outros
atributos que visem inserir a sexualidade em sistemas de utilidade, regular para o bem de todos, fazer
funcionar segundo um padro timo (FOUCAULT, 2007, p. 31).

34
sentido cronolgico linear, ele acaba por colocar algumas limitaes e sugerir
interpretaes equivocadas.
Anne McClintock (2010) levanta uma srie de questes ao uso acrtico do ps
de ps-colonial, quando afirma que metaforicamente ele est inevitavelmente se
referindo ao tempo linear entre o pr, o colonial e o ps (p. 29). Pode sugerir uma
suspenso da histria, como se os eventos histricos definitivos fossem anteriores ao
nosso tempo e no estivessem acontecendo agora (p. 30). Talvez mais importante do
que isso, acaba reduzindo uma diversidade de histrias ao colonial, outras culturas
compartilham apenas uma relao cronolgica preposicional a uma era eurocntrica que
acabou (ps) ou que ainda nem comeou (pr) (p. 30), conferindo ao colonialismo o
papel de marcador determinante da histria. Alm disto, representa um termo pouco
nuanado, na medida em que no d conta da complexidade de relaes de poder,
envolvendo por exemplo gnero, que se constituem mutuamente. Por fim, comenta
ainda como o termo foi difundido em termos de celebrao, em algumas interpretaes
equivocadas, sugerindo uma superao absoluta do poder na contemporaneidade, com
a superao do colonialismo (MCCLINTOCK, 2010, p. 33).
Em oposio a um mito de um mundo ps-colonial, o terico porto-riquenho-
norte-americano Ramon Grosfoguel (2008), inspirado no peruano Anbal Quijano,
prope a noo de colonialidade do poder, aspecto estruturante da modernidade que a
descolonizao poltico-jurdica no desbancou. Trata-se de uma matriz de poder
colonial que afeta as demais dimenses da existncia social e que se assentou
historicamente em um pressuposto racial. A hierarquia tnico-racial, a partir da
diferenciao entre europeu e no europeu, influencia decisivamente na configurao
transversal de diversas estruturas globais do poder.
Estudar a questo da colonialidade desde a conquista da Amrica implica
considerar a raa como a face oculta da modernidade em sua origem, fundamento do
humanismo eurocntrico. A colonialidade e a modernidade no seriam mais do que
duas faces da mesma moeda, com persistncia at os dias de hoje. Considera-se,
portanto, que a opresso/explorao cultural, poltica, sexual e econmica de grupos
tnicos/racializados se efetiva com ou sem a existncia de administraes coloniais.
Inspirado nas discusses interseccionais feministas, Grosfoguel (2008) concebe a
colonialidade do poder atuando em mltiplas e heterogneas hierarquias globais,
considerando gnero, raa, classe e sexualidade.

35
A perspectiva descolonial apresenta uma crtica viso economicista da
expanso colonial europeia, reduzida a uma lgica de acumulao de capital escala
global e estrutura de classes especfica. Considerar a modernidade e colonialidade
enredadas significa explorar as dimenses do poder de forma mais ampla e heterognea,
embora entrelaada. Em especial, considera-se que a acumulao capitalista no
anterior a concepes racistas e eurocntricas e, portanto, estas no so instrumentais ou
epifenmenos. Quijano (2002), por exemplo, postula que o racismo indissocivel da
diviso internacional do trabalho e, assim, o capitalismo no pode ser interpretado
dentro um esquema evolutivo segundo o qual uma forma de explorao do trabalho
substituiria a outra cronologicamente, mas deve ser pensado como configurando
mltiplas formas de explorao, considerando a raa.
Dialogando com uma tradio marxista latino-americana, os estudos
descoloniais resgatam elemento importante dos clssicos dos estudos culturais: a
importncia da esfera material e suas vinculaes com a cultura. Recupera-se de alguma
forma a ideia marxiana do concreto como produto de mltiplas determinaes. No
obstante, com forte influncia ps-estruturalista, a interconexo de vrias esferas do
social pensada fora do esqueleto dialtico hegeliano, segundo o qual a sociedade seria
um todo unificado e bem delimitado, uma totalidade, produzindo-se atravs de
mudanas evolucionrias a partir de si mesma, como o desenvolvimento de uma flor a
partir de seu bulbo (HALL, 2005, p. 17). O mundo moderno pensado como um
heterogneo sistema mundo patriarcal/capitalista/colonial/moderno. Portanto,
entrelaando vrias formas de poder que devem ser analisados em suas formaes
contextualmente delimitadas.
A crtica reduo dos Ps-Coloniais ao imperialismo britnico, bem como o
idealismo de certas correntes dos estudos culturais contemporneas j era levantada por
Robert Young, quando considera o papel do capitalismo como um motor decisivo do
colonialismo, e a violncia material implicada no processo de colonizao (2005, p.
205). Em sua viso, a colonizao cultural no simplesmente uma operao
discursiva, mas um confisco do espao cultural (em todos os sentidos da palavra)
(2005, p. 210). A dominao ocorre a partir de operaes de desterritorializar e
reterritorializar a produo atravs da criao de formas de dependncia (2005, p. 212),
ou seja, ela opera dentro dos contextos especficos nos quais a materializao do
colonialismo lida com a imprevisibilidade e estratgias locais.

36
Em uma perspectiva descolonial, tal dinmica se atualiza mesmo quando o
colonialismo se desfaz em sua estrutura poltica e administrativa. Grosfoguel argumenta
que o nacionalismo reproduz a colonialidade dentro de suas fronteiras. Trata-se de um
desejo de modernizao que marcou uma narrativa centrada no Estado-nao ocidental
e que reduz a histria moderna a uma ocidentalizao paulatina e heroica do mundo,
sem levar em conta que, pelo menos desde a expanso colonial no sculo XVI,
diferentes temporalidades e historicidades foram irreversvel e violentamente
juntadas (COSTA, 2006, p. 87). Uma formao epistmica eurocntrica centrada na
ideia de modernizao se efetuou em diversos contextos, materializando a
colonialidade para alm do colonialismo.
O combate e a superao do colonialismo em nosso contexto no significou a
superao da colonialidade, o que se constata no ideal da branquitude que se difundiu
com e caracterizou a Primeira Repblica. A dcada de 30 redimensiona a branquitude,
quando se cria uma comunidade imaginada que incorpora a cultura e sujeitos
populares e afro-brasileiros ao nacional. A colonialidade se redimensionou
nacionalmente com a incorporao seletiva da negritude a partir do branqueamento da
apresentao e internacionalmente com a influncia da cultura massiva norte-americana
que constitui o parmetro do moderno, desejvel de ser alcanado nacionalmente.
Robert Young (2005), privilegiando o colonialismo anglo-saxo, conta a histria
da pureza na ambivalncia do encontro racial, de um hibridismo que ao mesmo tempo
se materializava e era negado (YOUNG, 2005). O Brasil apresenta uma outra histria
em que lidou de forma especfica com as ansiedades que suscitavam o contato inter-
racial, entre sua negao e o desejo. Ainda no XIX, o espetculo das raas, como era
concebido no pensamento europeu consumido por nossos intelectuais, desenvolveu uma
forma singular de lidar com a problemtica aqui denominada de miscigenao, a partir
de uma leitura que interpretou o cruzamento inter-racial como um caminho para o
branqueamento. A partir dos 30, o mestio passou a ser lido aqui no como degenerado,
mas como um produto a meio termo entre o passado negro e o futuro branco.
No segundo tero do sculo, uma identidade nacional se forjou na capital federal
por meio da cultura popular urbana de ascendncia africana e redimensionou sua
problemtica mediada pela dinmica de mercado da cultura de massas. Do caldo
cultural popular, fomentou-se a ideia de uma brasilidade em oposio ao eurocentrismo
institucional, fundamentando a concepo de um pas mestio. O negro e o mestio
eram valorizados nos sambas e outras expresses culturais como parte de uma

37
quintessncia brasileira que se definia na mistura racial. No obstante, o mercado
estruturado a partir do final da dcada de 20, com apoio do capital estrangeiro e
gerenciamento de membros da elite, mobilizou tais expresses a partir da
colonialidade, absorvendo e redefinindo tais tematizaes, amalgamadas s narrativas
hegemnicas do desejo colonial.
A valorizao do negro foi obstaculizada quando o acesso e reconhecimento
profissional apresentou um teto de vidro a posies de destaque do mercado da cultura
de massas (DAVIS, 2009, p. 83). As letras de samba poderiam se referir a eles, mas
eram cantadas por artistas brancos que ganhavam prestgio e enriqueciam. A
valorizao simblica da negritude e mestiagem tambm encontrou outros limites. No
foi o mulato que obteve destaque visual, mas a mulata em sua corporalidade sensual. O
teatro de revista foi uma de suas expresses em que atrizes mulatas ganharam espao,
enquanto em ambientes elitizados, sua presena era simblica, quando interpretadas por
entertainers brancas.
Lauta Moutinho (2004) explora como a compreenso da miscigenao envolve
valores contextuais, na interseco com hierarquias de gnero. Em suas palavras:

Na mistura entre raas os elementos em questo so dispostos de


forma hierrquica. No se trata, portanto, de uma mistura entre
elementos equitativos e eqidistantes. O mestio sempre guardar
algo das raas que o formaram seja negativa ou positivamente.
Acredito que na elaborao da noo de mestiagem, a concepo e o
peso relativo das raas consideradas, assim como as hierarquias
entre os sexos so determinantes na construo final desta idia
algo, portanto, nunca percebido como total fuso de seus elementos.
(MOUTINHO, 2004, p. 54-55)

No caso brasileiro, a miscigenao foi representada a partir do desejo colonial,


assegurando privilgios de gnero e raa, no qual o encontro racial era pensado e
configurado entre o homem branco e a mulher negra ou, preferencialmente, mulata. A
ideia de nao se fundamentou no encontro entre estes dois elementos que, no entanto,
no deveria se concretizar em unio matrimonial. Fruto das hierarquias de uma
sociedade escravocrata e patriarcal, tais representaes diziam respeito a prticas de
relaes sexuais foradas ou induzidas entre o senhor de escravos e suas mulheres
escravizadas, atualizadas com a abolio da escravatura nas relaes hierarquizadas
entre patres e empregadas.

38
No toa, as narrativas nacionais so comumente marcadas pela ausncia do
elemento masculino negro, mestio e nativo; a sensualidade da mestia, da negra
e da nativa e o lugar ora explcito, ora sugerido, valorado de forma positiva ou negativa,
da pureza da mulher branca (MOUTINHO, 2004, p. 99). A valorizao de uma
brasilidade de ascendncia africana e de caracterstica popular na cultura de massas, a
partir da dcada de 30, se encontra com as narrativas do desejo colonial. A mistura
racial celebrada no questiona tais hierarquias de gnero e raa. Antes a sancionam e
materializam na figura da mulata a ideia de um paraso tropical, caracterizado pela
singularidade do encontro racial sexualizado.
Meu foco na carreira de Carmen Miranda se justifica por representar a
consolidao da representao do nacional da figura negra da baiana, muitas vezes
associada mulata, mas com as estilizaes que a ressignificavam na branquitude,
ampliando sua aceitao social. Sua interpretao adentrou com suas performances em
espaos elitizados como os cassinos cariocas e de outros centros urbanos. Alm deles,
ela a exportou tal modelo mundialmente, por meio do cinema de Hollywood. Trata-se
do nacional performado por uma mulher branca, mas que carregava em sua
indumentria e desempenho corporal traos representacionais da negritude. No
obstante, sem deixar de atenu-los em sua proximidade com a moda difundida pelo
mercado norte-americano, dando um toque de sofisticao aos mesmos.
Trata-se da representao que se redimensionava no perodo que buscava a
integrao nacional, incluindo como corpo da nao partes marginalizadas da populao
que deveriam ento ser educadas e moralizadas. No apenas encampada por um regime
de verdade do saber mdico de carter higienista e marcada por constantes atritos com
a populao urbana pobre e negra nas dcadas anteriores. Instalava-se um regime de
representao que, via poder de subjetivao da cultura de massas, possibilitava uma
forma de legitimao poltica mais eficaz. O governo, reconhecendo a brasilidade das
expresses culturais urbanas, visto antes como parceiro do que como inimigo.
Apoiador de carnavais e da msica popular, o governo Vargas foi um incentivador e
negociador da carreira internacional de Carmen Miranda.
Carmen Miranda performa a nao, integrada na mestiagem, branqueada na
apresentao e com suas hierarquias de gnero simbolizadas em sua performance
corporal sensual e racializada para o voyeurismo do homem branco. Figura-chave no
amplo reconhecimento da cultura popular urbana, revela que a colonialidade foi
redimensionada, alcanando um grau de legitimidade popular. Tal reconhecimento

39
ainda aponta uma armadilha: a nao mestia, celebrando a integrao racial a partir da
brancura de Carmen, mascara as hierarquias raciais e de gnero contidas em sua
representao.
A viagem de Carmen Miranda aos Estados Unidos no apenas exporta um
regime de representao nacional, como o insere em uma nova relao de
colonialidade. Os Estados Unidos, atribuindo a si mesmos o status de representantes
do legado da cultura ocidental, atualiza a colonialidade em sua relao com seus
vizinhos latino-americanos. Em uma histria de hegemonia no continente, constitui uma
dominao de fundo poltico e econmico baseada em uma representao que
subalterniza os pases abaixo do Rio Grande. Trata-se de uma representao sustentada
em poderosos meios de comunicao de massa, como o cinema, que atualizava a forma
como foi concebida as relaes entre as duas partes. Notadamente, configurando uma
representao feminina e sensual que encontrava com a representao nacional,
modificando-a a partir das relaes de poder ento configuradas internacionalmente.
Em um histrico de representaes da mulher latino-americana, Carmen
Miranda as atualiza em um perodo de aproximao poltica da Boa Vizinhana que a
permite transformar-se em uma estrela de destaque nos filmes musicais. A visibilidade
que conseguiu por meio do cinema, fomentou um regime de visualidade
(FLEETWOOD, 2008) que funcionava tanto no contexto norte-americano, como era
consumido em outros mercados, como o brasileiro. Pretensamente guiados pelo objetivo
de uma representao positiva da aliana pan-americana em tempos de guerra, o cinema
norte-americano acabou por reiterar a racializao de seus vizinhos na figura corporal e
sensual de Carmen Miranda. A identidade nacional passava ento a ser produzida em
um circuito internacional, com forte apelo emocional, produzindo uma srie de leituras
de sua carreira e discusses sobre a nao.

O riso e a pardia: o carnavalesco e suas recepes

A interpretao exposta at aqui, se restrita a um esquematismo totalizante,


deixaria de fora outros sentidos que permearam a carreira de Carmen Miranda.
Considerando que os sujeitos so constitudos discursivamente, mas h conflitos entre
sistemas discursivos, contradies dentro de cada um deles, significados mltiplos
possveis para os conceitos que eles utilizam (SCOTT, 1998, p. 319-320), preciso
levar em conta as ambiguidades de sua trajetria e as distintas recepes para alm da

40
lgica dominante. O destaque que Carmen obteve na cultura de massas, sua origem
social e formao na cultura popular urbana, permitiu sentidos dissonantes, embora
fossem passveis de serem colonizados pelos valores do mercado, aos sentidos
hegemnicos que a identidade nacional se constitua. Enquanto a cultura popular era
alvo de redimensionamento disciplinar por meio do mercado e do Estado, ela no
simplesmente o obedecia, mas criava formas de resistncia e gerava ambiguidades em
suas apresentaes.
Jos Ligiero Coelho (1998) argumenta que o rico repertrio de palco
demonstrado por Carmen Miranda, com suas performances corporais e carisma, adveio
de sua ntima relao com a cultura afro-diasprica do contexto da capital federal que,
por sua vez, imbricava-se com manifestaes da cultura de massa. Nas primeiras
dcadas do sculo XX, a cultura de ascendncia africana no Rio de Janeiro era parte
constituinte da cultura de massas popular, marcadamente voltada ao carnaval e com
expresso nos teatros de revista da Praa Tiradentes.

Desde a dcada de 1920 uma srie de mtuas influncias entre o


samba e o burlesco e as revistas musicais ocorreram por causa da
participao dos msicos afro-brasileiros e compositores do teatro
carioca burlesco. Todas as formas de teatro musical se tornaram mais
afro-orientadas em termos de msicas e temas. De outro lado, o que
era inicialmente criado em torno de rituais com letras muito simples,
comeou a incorporar monlogos e outras narrativas dramticas.
(COELHO, 1998, p. 62, traduo minha).

Carmen, prxima a compositores negros e das classes populares e tendo crescido


no reduto bomio cultural da Lapa, no apenas valorizava em suas letras o brasileiro
mestio e negro, como incorporava a seu repertrio interpretativo as influncias do que
circulava no mercado de cultura de massas. Produto do incio da gravao eltrica no
pas, ela cantava nos discos e no rdio com uma caracterstica distinta das cantoras
predecessoras destacadas pela potncia vocal e grandes intervalos tonais. Ela criou, em
oposio, um modo pessoal de cantar, influenciado pelas cantoras do teatro de revista,
caracterizado por um cantar falado e pela incorporao de grias populares. Ao lado,
convivia com uma forma de expresso tpica da cultura popular baseada no humor e no
riso, como estratgias subversivas ao disciplinamento calcado na branquitude do
mercado e Estado varguista:

Parte do sucesso de sua performance recai sobre sua qualidade


subversiva, satrica. De um lado, muitas das msicas que gravou

41
visavam explicitamente o reconhecimento da legitimidade da msica
popular e ento representou uma crtica implcita aos valores culturais
burgueses. Ela nunca implorou aos pblicos que valorizassem a
msica popular, antes demandava isso de forma humorstica, em
termos mais acurados, reivindicou agressivamente autoridade
frequentemente associada com o humor. (DAVIS, 2000, p. 189,
traduo minha)

O humor de Carmen Miranda encontrava-se atrelado a uma linguagem


carnavalesca que se difundia na cultura popular urbana na capital federal. Mikhail
Bakhtin (1993), em seu estudo sobre a influncia decisiva da cultura popular na obra e
linguagem de Franois Rabelais, acabou por fundamentar uma interpretao do
fenmeno historicamente durvel da festa popular na praa pblica e, em especial, o
carnaval. O riso ocupa na linguagem do carnaval um espao central e deve ser
interpretado no contexto festivo popular. Em sua relao com o excesso, seus
destronamentos, seu carter utpico, sua vinculao com o baixo material, com o
corpo grotesco e com uma concepo de devir, o riso carnavalesco se caracteriza por
colocar em cheque os pressupostos do poder estabelecido.
Voltado ao estudo da Idade Mdia, Bakhtin (1993) considera que concebido em
relao de oposio s festas oficiais que sancionavam e consagravam o regime em
vigor, baseadas na seriedade solene, impondo medo e intimidao, o riso supe que o
medo foi dominado. O riso no impe nenhuma restrio. Jamais o poder, a violncia, a
autoridade empregam a linguagem do riso (BAKHTIN, 1993, 78). O riso das festas
populares, estudado pelo autor, democrtico e inclusivo, desbancando a autoridade
temvel, tornando-a, como todos, cmica:

em primeiro lugar patrimnio do povo (esse carter popular, como


dissemos, inerente prpria natureza do carnaval); todos riem, o riso
geral; em segundo lugar, universal, atinge a todas as coisas e
pessoas (inclusive as que participam no carnaval), o mundo inteiro
parece cmico e percebido e considerado no seu aspecto jocoso, no
seu alegre relativismo; por ltimo, esse riso ambivalente: alegre e
cheio de alvoroo, mas ao mesmo tempo burlador e sarcstico, nega e
afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente. (BAKHTIN, 1998, p.
10)

O riso tem, portanto, no s um carter de negao, mas de simultneo


renascimento, apontando para um horizonte utpico que destrona a imobilidade
conservadora da autoridade, colocando nfase na alternncia e na renovao
(BAKHTIN, 1998, p. 70). O carnaval, em sua viso, no apenas uma festa, mas um

42
modo de apreender o mundo. Bakhtin fala de um senso carnavalesco do mundo que
relativiza aquilo que apresentado como absoluto.
Robert Stam (1992) considera que a Amrica Latina e, particularmente, o Brasil
so os lugares nos quais a importncia do carnaval assume uma posio parecida
sociedade na qual Bakhtin se voltou a estudar. O estudo brasileiro mais famoso nas
Cincias Sociais foi o de Da Matta (1990), no qual foca o carnaval como um rito que
permite a suspenso temporria das normas e hierarquias, a realizao da esperana de
ver o mundo de cabea para baixo, mas que inverte e ao mesmo tempo reafirma o
sistema.
Segundo o antroplogo, enquanto um rito, o carnaval representa a dramatizao
de valores abrangentes da sociedade. Junto com outros ritos, como o dia da Ptria ou as
procisses, salienta aspectos essenciais da estrutura social. Trata-se da dramatizao de
uma sociedade estruturada em dois sistemas: o primeiro determinado pelas relaes
pessoais hierrquicas que subordina o segundo, regido pelo mundo legal igualitrio no
qual os indivduos so indiferenciados. Em uma sociedade altamente hierarquizada no
nvel das relaes pessoais, o carnaval revela-se um rito especfico, invertendo a
hierarquia em uma festa na qual elementos populares se assemelhariam ao nobre e a
mulher seria valorizada em sua sensualidade, configurando um espao de encontro
democrtico que suplanta a hierarquia. No obstante, o autor salienta que inverter no
liquidar, mas submeter a ordem a uma recombinao passageira que a reestrutura aps a
festa (DAMATTA, 1990, p. 144).
A obra de Bakhtin (1998) foca no potencial transformador da linguagem
carnavalesca que fornecera uma nova conscincia histrica captada pelo renascimento
em sua nova relao com o tempo, a mudana e o devir. O autor salienta, portanto, a
linguagem carnavalesca como complementar e potencialmente subversiva ao poder
estabelecido que, por meio da seriedade, constitua sua autoridade como ahistrica. Na
perspectiva de Da Matta (1990), o carnaval um rito que dramatiza a estrutura social,
tornando-se uma suspenso temporria da hierarquia que, ao mesmo tempo, afirmada
por meio da inverso. O carnaval, portanto, no nada mais que a outra face da mesma
ordem social. Sua viso, ao contrrio do que pretendo abordar aqui, praticamente no d
espao para apreender o movimento do social para alm de uma lgica dominante.
Em foco distinto, Rachel Soihet (2008) explora como o carnavalesco esteve
atrelado a uma cultura afro-brasileira que redefiniu a identidade nacional, redesenhando
festividades catlicas para expresses culturais prprias e usando o humor e a pardia

43
como formas de resistncia poltica e cultural. O rancho Macaco o outro que se
dirigia Festa da Penha nas primeiras dcadas do sculo um exemplo de pardia de
inverso, quando seus integrantes de pele morena vestiam mscaras de macacos e, de
repente, tiravam a mscara e gritavam ns somos gente, macaco o outro. Nesta
performance, um insulto racial destronado por meio do humor.
O episdio um exemplo de como a cultura afro-brasileira adentrava na cultura
popular nacional, participando do destronamento que se fazia do discurso oficial elitista
e calcado na branquitude. Meu intuito abordar como tais negociaes se davam dentro
da cultura de massas por meio da interpretao de Carmen Miranda que, ao mesmo
tempo em que se conformava s exigncias do mercado e suas hierarquias raciais,
carregava em suas interpretaes a possibilidade de outros sentidos que a questionavam.
Stuart Hall (2003) disserta a respeito da influncia de Bakhtin sobre os Estudos
Culturais Britnicos. Afinidades eletivas poderiam ser traadas quando se afirma a
impossibilidade de definir fronteiras rgidas entre alta e baixa cultura, no porque se
resumiriam a uma ordem social homognea, mas posto que se constituem
relacionalmente. Bakthin permite abordar a centralidade da linguagem para alm de
vises focadas em ideologias de classe como vises de mundo separadas, autnomas e
autossuficientes. Em sua viso, a ideologia no se impe a um conjunto de ideias j
definido de antemo, mas intervm na fluidez ideolgica da linguagem, tenta regul-la e
estabiliz-la. A ordem simblica dominante tenta se impor como nica plausvel,
controlando a linguagem que, no entanto, carnavalizada e posta em questo. Nesta
viso, o mundo dialgico e no dialtico:

Os termos da dialtica fundamentam a completa substituio das


distintas foras sociais, fornecendo-lhe sua lgica governante, sua
metanarrativa, o dialgico enfatiza os termos variveis do
antagonismo, a interseco de diferentes "valncias" no mesmo
terreno discursivo, em vez das "bifurcaes" da dialtica. O dialgico
expe rigorosamente a falta de garantia de uma lgica ou "lei" para o
jogo da significao, os posicionamentos infinitamente variveis dos
locais de enunciao, em contraste com as posies "dadas" do
antagonismo de classe, concebidas de forma clssica. (HALL, 2003, p.
235)

Considerar, como faz Hall, o mundo contemporneo marcado por conflitos em


torno do sentido, ou seja, dos conflitos culturais, implica em reconhecer a
interdependncia de enunciados que disputam os significados da sociedade. Bakhtin
concebe o mundo social a partir da ideia de uma heteroglossia dialgica, na qual foras

44
centrpetas (monologizantes) buscam impor certa centralizao e, em dilogo com elas,
foras centrfugas corroem suas tendncias centralizadoras, podendo a pardia ou o riso
ocupar um lugar de destaque para tal (FARACO, 2009) O processo de estabelecer
significados visto no somente como arbitrrio, mas dentro de uma lgica de no
fechamento, de movimento infindo que se constitui a partir do dialgico:

Para Bakhtin, importa menos a heteroglossia como tal e mais a


dialogizao das vozes sociais, isto , o encontro sociocultural dessas
vozes e a dinmica que a se estabelece: elas vo se apoiar
mutuamente, se interiluminar, se contrapor parcial ou totalmente, se
diluir em outras, se parodiar, se arremedar, polemizar velada ou
explicitamente e assim por diante. (FARACO, 2009, p. 58)

Analisar a trajetria de Carmen Miranda avali-la em uma fronteira de tenso


entre: a incorporao da cultura popular como nacional atravs dos filtros da
colonialidade interna que se redimensionava, disciplinando expresses culturais
subalternas que eram aladas a nacionais e a fora criativa desta mesma cultura que se
reinventava de forma a parodiar e burlar o disciplinamento. A trajetria de Carmen no
era movida diretamente por objetivos polticos, mas por estratgias de mercado que por
sua vez no estavam imunes a tais disputas simblicas.
A trajetria de uma cantora branca, maior cartaz do rdio, crescentemente aceita
no mercado e nos espaos sociais elitizados, mas tendo uma trajetria na cultura popular
que, por sua vez, se configurava em relao ao universo hegemnico de valores que se
consolidavam como nacionais, s pode ser aprendida em suas tenses. Dialogicamente,
os sujeitos so (...) seres marcados por profunda e tensa heterogeneidade (FARACO,
2009, P. 121), sendo esta inscrita necessariamente em uma dimenso relacional.
Dentro de uma acepo dialgica, no procuro interpret-la pensando o sujeito
como produto de incorporao das estruturas (monolticas) tendentes a se reproduzir,
algo talvez concebvel a partir do conceito de habitus dentro do arcabouo terico de
Pierre Bourdieu, segundo o qual as instituies socializadoras criam disposies
durveis nos agentes, atuando de modo semelhante a uma segunda natureza. Em
substituio, pretendo abord-la a partir do conceito de performatividade de Judith
Butler (2003) para quem a identidade se materializa na estilizao repetida dos cdigos
disponveis, realizando-se como uma construo dramtica e contingente do sentido
(BUTLER, 2003, p. 199).

45
Carmen performava o nacional em um perodo no qual os signos eram
consideravelmente abalados. A identidade era redimensionada via cultura de massas e
os discursos hegemnicos se ressignificavam, com considerveis deslocamentos. Sua
viagem aos Estados Unidos sobreps a representao da mulher latino-americana,
prpria do universo simblico norte-americano, baiana originria do universo
simblico brasileiro, transformando-a significativamente. A performance corporal de
Carmen, vinculando corpo e nao, no era livre, mas se inseria em um contexto aberto
a novas significaes. De um lado, representava a abertura seletiva de discursos
hegemnicos que definiam os padres de visualidade de seus Outros. Na medida em
que abriam espao para a participao do outro na cultura de massas, possibilitavam
resistncias e alteraes desses discursos.
Ao analisar o carnavalesco na trajetria de Carmen Miranda, meu intuito
focalizar como uma heterognea sociedade de massas redefinia a identidade nacional
em termos abrangentes com espaos para ambiguidades e dissonncias. A redefinio
do nacional seguiu critrios racializadores, nos quais buscou disciplinar uma
nacionalidade calcada na mestiagem em uma apresentao branca, a partir de filtros do
mercado e negociaes com o Estado. A face carnavalizante de sua trajetria nos
possibilita ver no s a lgica dominante deste processo, mas suas fissuras e
ambiguidades. Trata-se de incorporar a discusso do carnavalesco no reduzido a
poucos dias de um rito social, mas sua penetrao na cultura popular que se difundia
como cultura de massas.
Carmen Miranda estava em relao direta com a produo musical popular e sua
linguagem, mantendo contato com artistas e compositores negros e das classes
populares. Ela no comeou sua carreira nos palcos, mas nos prestigiados rdio e na
indstria fonogrfica emergentes. O humor apareceu nas letras de suas msicas, nas
expresses faladas que incorporava a elas, tambm adicionando sensualidade nas
entrelinhas de suas interpretaes vocais. Sua relao com o palco e o humor se
desenvolveu nos Estados Unidos, quando assumiu uma persona caricata de uma artista
latino-americana e, por meio do exagero lidou de forma autoral com uma personagem
prpria do universo simblico norte-americano.
As portas abertas para Carmen Miranda no mercado de cultura de massas
brasileiro e norte-americano no apenas significou o redimensionamento na clausura da
colonialidade em suas diversas dimenses de poder, mas significou tambm a
aceitao da visibilidade do Outro interno, nacionalmente, e externo, nos Estados

46
Unidos. A partir de performances racializadas, abriu as portas para a risada carnavalesca
das mesmas representaes. Carmen tirou vantagem do exagero e da caricatura que
supostamente deveriam encarnar uma alteridade autntica e abriu espao para
determinados pblicos compreenderem sua mscara.
A interpretao dos seus sentidos, hegemnicos ou subalternos, dependem de
sua recepo. Considerar os pblicos como parte constituinte da construo da imagem
miditica, significa compreender que eles podem selecionar da complexidade da
imagem, os significados e sentimentos, as variaes, inflexes e contradies que
funcionam para ele (DYER, 2004, p. 04). A trajetria de Carmen testemunhou e atuou
para a expanso do universo simblico afro-brasileiro penetrar nos espaos de elite
nacionais e ser difundido via cinema internacionalmente. Certo pblico de elite nacional
aceitava suas interpretaes por conta das estilizaes que a sofisticavam e tornavam
mais prximas do mundo tido como moderno, associado brancura. Outro pblico mais
prximo s classes populares poderia ver nela o reconhecimento de suas expresses e no
seu humor e pardia, um desbancamento do poder institudo. Os significados em torno
dela, portanto, sinalizavam ambiguidades.
No toa, o embaralhamento de significados em suas performances e carreira
foi alvo de acompanhamento, vigilncia e disputas em torno do nacional. Algo que se
tornou mais intenso com sua internacionalizao. Carmen fez sua carreira em cima do
esteretipo da latino-americana, enfatizando aspectos que a reduziam em determinadas
qualidades compreensveis ao pblico norte-americano. Explorando com humor a
reduo de sua persona a um esteretipo e exagerando tal esteretipo para efeitos
cmicos, no apenas garantiu mais espao na imprensa e apelo ao pblico convencional,
como chamou tambm a ateno de determinado pblico, notadamente homossexual,
que via em sua performance uma pardia deslocadora das identidades sociais, sejam
elas tnicas ou de gnero.
A trajetria de Carmen Miranda nos permite compreender os diversos desejos ao
entorno da nao que se manifestavam e ganhavam corpo e voz na capital federal e para
alm dela, em circuito internacional. Busco redimensionar historicamente aquilo que foi
definido por Richard Miskolci (2012, p. 50) como desejo da nao18 enquanto um
projeto poltico autoritrio conduzido por homens de elite visando criar uma populao

18
Como mestrando (2007-2009), participei do projeto de pesquisa temtico O Desejo da Nao,
coordenado pelo Prof. Dr. Richard Miskolci, elaborando a dissertao A Pedagogia do Sexo em O
Ateneu: o dispositivo de sexualidade no internato da fina flor da mocidade brasileira.

47
futura, branca e superior da poca, por meio de um ideal que hoje caracterizaramos
como reprodutivo, branco e heterossexual. Tal desejo foi rearticulado na Era Vargas, o
qual se pautou pelo objetivo de unidade nacional e integrou desejos outros que se
manifestavam na capital federal e ganhavam notoriedade com os veculos de
comunicao de massa.
O ttulo Desejo da Nao, na obra de Miskolci (2012), alude principalmente a
aspectos pouco abordados na teorizao do nacional, a dimenso do controle da
sexualidade que se difundia nos saberes da poca. Trata-se de uma rede de discursos
nacionais que buscavam a partir de um ideal reprodutivo heterossexual criar condies
de uma nao do futuro, notadamente branca. Da trama discursiva, qualificava-se como
propensa degenerao a sexualidade das classes populares, marcada pela negritude ou
miscigenao, ao mesmo tempo em que se valorizava e disciplinava a sexualidade da
elite, constituda como modelar da cidadania nacional. Saberes mdicos, jurdicos e
literrios corroboravam por estabelecer uma moral familista, androcntrica e calcada na
branquitude, diferenciada do resto da populao. Atualizavam-se os discursos coloniais
de sexualizao da raa e racializao do sexo, alocando a negritude ao papel de uma
sexualidade infrene, perigosa e antissocial.
Com a formao de um mercado de cultura de massas h um relativo
nivelamento social, em especial com a difuso da msica e das danas que antes eram
restritas a espaos sociais populares e marcados pela negritude. Ao ser incorporada
como elemento da nao, a sensualidade presente na figura da mulata passa pelo filtro
da cultura de massas, permeando os teatros populares e chegando aos espaos elitizados
de entretenimento. A apresentao renegocia o popular por meio de sua adeso
branquitude, expressa no apenas na brancura cromtica das entertainers do novo
mercado, mas na sofisticao de suas indumentrias e desempenho corporal.
Consolidada a ideia de uma comunidade imaginada, a sensualidade se torna nacional,
tendo esta para ser amplamente aceita que se distinguir daquela que se expressa em
espaos populares e associados negritude, ainda carregados de conotaes pejorativas.
A consolidao da imagem da mulher sensual brasileira esteve atrelada a outros
desejos que reconfiguravam a colonialidade. Materializada especialmente na
migrao de Carmen Miranda aos Estados Unidos, representou a atualizao do desejo
colonial nas relaes entre o pas anglo-saxo e seus vizinhos latinos. A representao
dos pases ao sul do Rio Grande como femininos e sensuais atualizava representaes
prprias quele pas e corroborava para compreend-los como espaos propcios

48
aventura neoimperialista masculina. Carmen era alvo e produto do desejo da nao do
norte tambm. As imagens reproduzidas no cinema eram consumidas dentro do
territrio brasileiro, criando uma visualidade com forte impacto subjetivo, causando em
certos casos repulsas e, em outros, assimilaes. Em longo prazo, contribuiu para o
enaltecimento da mulher sensual como cone nacional.
Mas as expresses culturais, musicais e corporais no eram mais limitadas a
objeto de apreciao intelectual valorativa e preconceituosa da elite. O corpo e a
sensualidade eram lcus de carnavalizao dos valores que, em muitos casos, punha em
cheque a branquitude expressa nos filtros raciais e morais do mercado de cultura de
massas. Outros desejos da nao surgiam para questionar a colonialidade interna com
seus vieses classistas e racistas. A brasilidade aparecia como algo mais relacionada
mestiagem, cuja corporalidade supostamente se adequava mais ao samba do que ao
branco europeizado. Criava-se uma ambiguidade ao novo produto eleito como ritmo
nacional.
Carmen Miranda a expresso destas ambiguidades, podendo se constituir como
veculo de diversos desejos da nao dentro e fora do pas. Mobilizando os valores
adequados branquitude, pde constituir sua carreira no privilegiado mercado de
cultura de massas do Rio de Janeiro e de outros centros urbanos. No deixava de
sofisticar o popular, sem deixar de se vincular a ele, com suas linguagens propcias a
inverses que acabaram por redimensionar valores morais na sociedade de forma
abrangente. Levava em suas performances a experincia da carnavalizao e, repetindo
as formas hegemnicas de representao, abria possibilidades de leituras que a
subvertiam. Em sua carreira nos Estados Unidos soube explorar ainda mais aspectos
vinculados ao riso e ironia popular, ressaltando ambiguidades nos esteretipos da
mulher latino-americana prpria aos desejos da nao anglo-sax.
Abordarei Carmen Miranda entre os desejos (diversos) de duas naes em seis
captulos. Busquei fundamentar minha tese no apenas em pesquisa bibliogrfica, mas
sustentada em pesquisa documental diversificada, compreendendo: anlise das letras
musicais gravadas por Carmen Miranda, contextualizadas luz de sua trajetria e, mais
aprofundadamente, anlise flmica, contando com um perodo de experincia no
Programa Film & Digital Media na Universidade da Califrnia, em Santa Cruz,
coorientado pela professora B. Ruby Rich, com a qual tomei contato com bibliografia
especializada, de modo a dialogar com as anlises sociolgicas.

49
Como visiting scholar tive a oportunidade no apenas de requisitar livros e teses
apropriados minha pesquisa, como tambm acesso a banco de dados especializados
com artigos acadmicos e, alm deles, o banco de dados do Proquest (BDP), atravs do
qual pude acessar a recepo de Carmen Miranda na imprensa escrita dos Estados
Unidos. A anlise da trajetria e recepo de Carmen Miranda se empreendeu a partir
de visita a quatro arquivos no Brasil e sete nos Estados Unidos.
Em So Paulo visitei os arquivos da Cinemateca Brasileira e da Biblioteca Jenny
Klabin Segall (BJKS), bem como seu arquivo digitalizado que abrange as revistas Cena
Muda e Cinearte, disponvel online. No Rio de Janeiro, visitei os acervos do Museu
Carmen Miranda (MCM) e Biblioteca Nacional (BN). Nos Estados Unidos, visitei em
San Francisco, o Pacific Film Archive (UC Berkeley), o GLBT Historical Society
Archive e o James C. Hormel Gay & Lesbian Center. Em Los Angeles, tive acesso aos
arquivos da Margareth Herrick Library (MHL) na Academy of Motion Pictures Arts
and Sciences, do One Lesbian and Gay Archive e do UCLA Film & Television Archive
(FTA). Em Nova Iorque, visitei o Shubert Archive (SA). A partir da visita destes,
abordei a relao entre Carmen Miranda e seus diversos pblicos nacionais e
internacionais, mediada pela imprensa.
No captulo 1 da tese, A Embaixatriz do Samba: Carmen Miranda, Poltica e
Cultura de Massas, meu foco no cenrio poltico nacional e internacional que,
articulado com a cultura de massas, constituiu o pano de fundo para a carreira de
Carmen Miranda, passando pela consagrao do samba como msica nacional, seu
destaque na Poltica de Boa Vizinhana e negociaes internas no mercado nacional e
com o governo Vargas. No segundo captulo, Making Money with bananas:
performatividade da colonialidade por Carmen Miranda, meu foco na dinmica
entrelaada das representaes da artista brasileira nacional e internacionalmente,
compondo negociaes de suas performances no cinema. O captulo ainda estabelece os
objetivos dos que se sucedem quando apresenta o conceito de performatividade de
Judith Butler (2003) como central, ao compreender as identidades da baiana e latino-
americana incorporadas por Carmen Miranda como uma repetio de representaes
anteriores, marcada pela cumplicidade com a colonialidade e subverses a ela.
No terceiro captulo, South American Way: performatividade e cumplicidade
criativa, foco a carreira norte-americana de Carmen Miranda e seu destaque no star
system hollywoodiano. Sua trajetria analisada a partir de sua relao com a imprensa
e a participao nos filmes musicais da dcada de 40, baseando-se e renovando

50
representaes da mulher latino americana no mercado dos Estados Unidos. O captulo
4, O que que a baiana tem?: a mulher brasileira no mercado de cultura de massas,
analisa o agenciamento de Carmen Miranda no mercado de entretenimento do Rio de
Janeiro e a forma como mobilizou signos diversos at a estilizao da personagem da
baiana, atenuando as tenses sociais, compondo uma imagem que no rompia com a
branquitude e que sinalizava a unidade nacional.
Entre a representao de uma diferena racial nos Estados Unidos e de um cone
nacional que atenua as diferenas no Brasil, surgem descompassos entre as leituras
nacionais e internacionais, demarcando uma forte crtica brasileira de sua carreira. O
esteretipo de Carmen imbricado na colonialidade do cinema norte-americano foi, por
outro lado, alvo de performatividade subversiva pela entertainer e atriz. As formas nas
quais ela lida por meio do humor com seu esteretipo, causando certos deslocamentos
em sua imagem, o que analisarei no quinto captulo, Pardias, autopardias e
exageros: deslocando a imagem de Carmen Miranda.
Deste parto para o ltimo captulo, Carnaval camp: ironia e recepo na
trajetria de Carmen Miranda, no qual trao relaes entre a experincia artstica de
Carmen desde o carnaval brasileiro ao mercado norte-americano e suas recepes
contemporneas subalternas que questionam a colonialidade em suas amplas
dimenses. Em primeiro lugar, focalizando sua apropriao homossexual
contempornea a ela que compreendia como camp suas performances, desconstruindo
essncias e normas identitrias. Em segundo, relacionando aspectos de sua performance
camp com a linguagem carnavalesca brasileira, sinalizando elementos que permitem
compreender seu apelo s camadas populares.
O desfecho da tese aponta para os mltiplos desejos que Carmen Miranda
mobilizava em sua carreira, equilibrando-se na corda bamba da colonialidade e sua
subverso. O status de estrela nacional alado por Carmen Miranda permite vislumbrar
como uma nova concepo de nao se efetivou por uma srie de negociaes no
mercado de cultura de massas. Carmen Miranda atuou em um determinado contexto
histrico e por conta dele eternizou certas representaes iconogrficas seja do Brasil ou
da Amrica Latina, mas o fez de forma criativa, lidando com os recursos que lhe
couberam e difundindo representaes em uma dinmica imprevisvel da cultura de
massas que ultrapassou os significados originalmente concebidos a ela.

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CAPTULO 1. A EMBAIXATRIZ DO SAMBA: CARMEN MIRANDA,
POLTICA E CULTURA DE MASSAS

1.1 A Boa Vizinhana: Brasil e Amrica Latina em representaes entrelaadas

Sob o som de Aquarela do Brasil, ou Brazil para os norte-americanos, surge a


imagem do navio S. S. Brazil que acaba de chegar em terras norte-americanas. Junto
com os acenos alegres de passageiros, a cmera capta a chegada de sacos de acar,
depois de caf e, por ltimo, de um enorme amontoado de frutas e legumes
diversificados: alho, cenouras, bananas e abacaxis e muitos outros, exibidos em detalhe
pela cmera desde seu pice, em movimento para baixo, quando a cmera aborda
Carmen Miranda em sua base, sugerindo ao espectador que as frutas e legumes fazem
parte de um enorme e desproporcional chapu da artista brasileira.
Carmen Miranda, tendo seu chapu reduzido ento a poucas frutas, assume os
vocais da msica brasileira no estilo de chamada e resposta com os msicos do Bando
da Lua que a seguem, enquanto ela ocupa o primeiro plano da tela danando e cantando
a msica brasileira. Sob sua famosa vestimenta da baiana estilizada, substitua a tpica
brancura da roupa, a espaosa saia rodada, o pano da costa e os balangands pela saia
justa de barriga mostra, joias, pulseiras e complementos da ltima moda, unindo de
forma original cores como roxo, branco e vermelho to bem exploradas pelo

52
Technicolor, acompanhada dos membros de sua banda, vestidos de camisa branca e
sombreiro ao estilo hollywoodiano do latino-americano com aspectos mexicanos.
Todos compem um cenrio que representa o Brasil do samba, alegria e corporalidade
trazidos potncia econmica da Amrica.
Ao seu encontro, uma banda de soldados vestidos de forma solene, sob o fundo
musical tocado por instrumentos de sopro e de dentro de um carro, homens de chapus
formais e ternos chegam para recepcion-la. Em vez de boas vindas, seu interessado
anfitrio pergunta se ela traz caf, quando ento lhe cobrada uma recepo mais
educada. Oferece-a, em nome do prefeito Fiorello, uma chave como forma de dar boas-
vindas ao pas do hemisfrio norte. A cmera recua do cenrio focado na interao entre
as personagens apresentadas, mostrando ao espectador de fora das telas que todos esto,
na verdade, em um palco. A partir de ento aparecem as cortinas vermelhas, o pblico
diegtico sentado nas mesas e uma orquestra de jazz direita dando melodiosa boas-
vindas que termina com todos os gentlemen no palco tirando os chapus para Carmen.
Carmen ento passa a cantar You discover youre in New York msica na qual
a letra compara a boemia carioca com a de Nova Iorque com sensualidade, remexendo
a cintura, quando todos param, observam e mesmo suspiram. Seus anfitries norte-
americanos, agora colegas do mundo do entretenimento situados na Meca do teatro,
olham para ela e tiram chapus quando ela passa. A harmonia musical e o ritmo que a
acompanham mesclam influncias norte-americanas e latino-americanas, fechando a
passagem com voltas e requebros na performance de Carmen, bem como sua marca
registrada na forma peculiar de mexer as mos e os olhos. Do foco na entertainer,
passa-se ao foco no pblico diegtico. Os membros do Bando da Lua descem do palco e
acompanham as mulheres nova-iorquinas que passam a cantar a mesma msica.
Em seguida, Carmen em p canta entre as mesas em dilogo com seu pblico.
Volta ao palco com acompanhamento musical, junto a mulheres de preto, contrastando-
as com a vivacidade de suas cores. O nmero musical dirige-se ao fim quando Carmen
coloca dentro do chapu do seu anfitrio um pequeno saco de caf. Ao fundo o
espectador observa uma placa da Broadway, 42th Street, rua marcada pelos teatros
famosos de Nova Iorque. Carmen deixa o palco e se dirige aos bastidores, seu colega de
palco, agora munido de caf em seu chapu, diz que agora j pode aposentar e conclui:
a Poltica de Boa Vizinhana. Convida Carmen ao palco novamente para os
aplausos e finda seu nmero.

53
A sequncia de imagens descritas se refere abertura do filme The Gang is All
Here (Entre a loura e a morena, na verso brasileira do ttulo) de Busby Berkeley,
lanado em 1943. Carmen interpreta Dorita nesse filme, embora o espectador s
informado disso muito frente e tende a relacionar a brasileira em seus nmeros
musicais com a prpria entertainer que abalara o mundo do entretenimento do teatro na
Broadway e do cinema em Hollywood, nos anos anteriores. As imagens fazem
referncia chegada de Carmen aos Estados Unidos quatro anos antes. J estrela do
rdio no Brasil, a mais bem paga e reconhecida no ramo, deslancha em uma carreira
internacional de sucesso que coincide com um momento de aproximao poltica entre
Estados Unidos e os demais pases da Amrica Latina, durante a Segunda Guerra
Mundial, concretizada com a Poltica da Boa Vizinhana.
A relao entre Estados Unidos e Amrica Latina durante este perodo se
estabelecia sob a retrica da doutrina do pan-americanismo, ou seja, da cooperao
entre as duas Amricas, tendo em vista ideais comuns: organizao republicana,
democracia, liberdade e dignidade do indivduo, soberania nacional (GARCIA, 2004,
p. 143). Carmen Miranda passou a ser vista pela imprensa norte-americana como a
encarnao da Poltica de Boa Vizinhana e da amizade pan-americana. Trata-se de um
perodo importante de refluxo da poltica intervencionista norte-americana sob o
comando do presidente Franklin Delano Roosevelt, visando mudar a imagem de vizinho
agressivo e expansionista nos pases latino-americanos.
As relaes entre Amrica Latina e Estados Unidos historicamente se deram
embasadas nas teorias do Destino Manifesto que atribua um tom civilizatrio
predestinado ao protagonismo norte-americano e da Doutrina Monroe que postulava a
no interferncia dos pases europeus no continente americano, em uma viso
paternalista dos Estados Unidos em relao a seus vizinhos, servindo em determinados
contextos para fundamentar intervenes militares. Estabeleceu-se um histrico violento
desde a conquista de sua costa oeste pela ento chamada Guerra do Mxico, passando
pela virada do sculo marcado pela gunboat diplomacy. Depois da Guerra Hispano-
Americana, os Estados Unidos passaram a ser reconhecidos mundialmente por sua
marinha poderosa. O intervencionismo ficou ainda mais explcito com Theodore
Roosevelt e sua poltica do big stick, marcada por frequentes intervenes militares no
Caribe e na Amrica Central (STEWART, 2006).
Nos anos que seguem depresso econmica, devido s custosas operaes
militares martimas e imagem desmoralizada que obtinha de seus vizinhos, tratou-se

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de se estabelecer novas bases para a diplomacia, marcada por intensificaes das
relaes econmicas e recusando uma poltica intervencionista calcada na figura dos
marines (STEWART, 2006, p. 106). Com o auxlio da indstria de cultura de massas,
buscava-se construir a imagem dos Estados Unidos como um bom vizinho e de
financiar uma publicidade de cooperao poltica e econmica, algo que ganhou mais
fora durante o perodo da Segunda Guerra Mundial.
Em 1940, foi criado o Office of the Coordinator of Inter-American Affairs
(CIAA), um rgo ligado ao Conselho de Defesa Nacional dos Estados Unidos que
visava uma aproximao poltica e econmica com os pases latino-americanos, alm de
combater a ameaa da influncia poltica dos pases do Eixo em terras tropicais. Entre
suas vrias frentes, uma delas estimulava e intervia em filmes alinhados com a Poltica
da Boa Vizinhana. Neste momento, o cinema produzido em Hollywood passou a
trabalhar cada vez mais com contextos e personagens latino-americanas. No toa,
enquanto o enredo de The Gang is All Here trata de um romance entre o soldado Andy
Mason Jr. (James Ellison) e a danarina nova-iorquina Edie Allen (Alice Faye),
imbricando uma narrativa de guerra e entretenimento, em que os nmeros musicais
salientam um encontro entre outros dois atores em festiva harmonia: os Estados Unidos
e a Amrica Latina.
Em dois momentos, o nmero musical de abertura do filme de Busby Berkeley
representa elementos-chave interligados. Em primeiro lugar, a aproximao poltica e
econmica entre os Estados Unidos e a Amrica Latina simbolizada pelo navio, nas
frutas tropicais e na figura de Carmen Miranda como representante da amizade pan-
americana em tempos de Segunda Guerra Mundial. Em segundo lugar, o mundo do
entretenimento simbolizado pela atmosfera dos teatros da Broadway, no qual a Amrica
Latina ocupa um lugar central na explorao de seus temas, ritmos e sua caracterizao
corporal sensualizada na figura da brasileira. Entretenimento, economia e poltica se
imbricam na representao da nova amizade pan-americana. Em ambos os momentos,
trata-se de uma representao latino-americana iconogrfica feminina que se consolida
em um tipo de feminilidade especfica: exuberante, corporificada e sensual.
Os musicais hollywoodianos se caracterizam pelo afastamento do realismo
cinematogrfico expresso, em especial, na relao entre dois elementos: a narrativa e os
nmeros musicais. Nesta relao, o segundo elemento pode apresentar um sentido de
intensificao, reviso ou rompimento da primeira. Os nmeros musicais eram, na
maior parte dos casos, centro da maior ateno criativa e financiamento dos estdios

55
(COHAN, 2002, p. 10). Altamente custoso, o filme musical requeria inovao artstica,
experimentao tcnica e manipulaes no espao do palco, treinamento e
especializao em vrias atividades como a coreografia (COHAN, 2002, p. 11), algo
que se encontra de forma imbricada na obra de Busby Berkeley.
Steven Cohan (2002) compara dois tipos de musicais de sucesso da poca, os
feitos por Berkeley na Warner e os realizados por Fred Astaire na RKO. Enquanto o
ltimo subordinava as cmeras sequencia de dana, o primeiro subordinava a dana ao
espetculo pelo uso das cmeras. Nos filmes de Berkeley, o afastamento dos nmeros
musicais da narrativa torna-se singularmente demarcado, por meio de seu original uso
de tcnica das cmeras que proporcionam nos nmeros musicais abordagens
fantassticas que, em paralelo com a narrativa, mas a excedendo, ofereciam um
espetculo ao pblico19. Nas palavras de Cohan, seus nmeros musicais
frequentemente apareciam para estabelecer um universo paralelo de puro espetculo
(COHAN, 2002, p. 09, traduo minha).
The Gang is All Here foi a estreia de Berkeley na 20th Century Fox, sendo sua
primeira (e nica) chance de unir suas criaes talentosas e originais ao Technicolor.
No menos importante, em um momento em que, dentro do contexto da Poltica de Boa
Vizinhana e da lgica comercial altamente competitiva do sistema de estdios, a Fox
explorava, na consolidao do filme falado e em cores, a frmula exuberantemente
musical e colorida de Carmen Miranda em paisagens tropicais. Algo que se encontra
especialmente presente no segundo nmero musical do filme, no qual o diretor explora
uma de suas especialidades: sequncias de imagens caleidoscpicas focadas em uma
inmera quantidade de mulheres, adquirindo uma especial significao neste filme.
Enquanto os filmes anteriores nos quais Carmen participou (Week-end in
Havana, That Night in Rio e Down Argentine Way) se buscou adequar cenrios prprios
de pases latino-americanos com o imaginrio colonialista do pblico norte-americano,
The Gang is All Here explora em seu primeiro nmero musical o caminho contrrio,
relembrando a chegada de Carmen Miranda em territrio norte-americano. J o segundo
nmero musical do filme explorou ao limite as fantasias do pblico norte-americano
sobre a Amrica Latina, desvinculado de qualquer pretenso de alcanar uma
19
Como exemplo: um show de Berkeley se abre em um palco de teatro perceptvel ou em um nightclub,
mas rapidamente excede o confinamento espacial deste cenrio. A edio primeiramente encontra a
perspectiva da cmera com a audincia mostrada assistindo ao nmero dentro do filme, ento com
inmeras mudanas de perspectiva se alcana o que a audincia ficcional no poderia fidedignamente ver
ou ouvir (COHAN, 2002, p. 02, traduo minha).

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correspondncia minimamente concreta desses pases, mas unindo de forma inigualvel
uma representao de feminilidade em excesso, exuberncia tropical e sensualidade.

O primeiro nmero parte do cenrio de um navio atracado, o qual se percebe em


seguida em um teatro nova-iorquino, o segundo inicia com a plateia em uma casa de
entretenimento que adentra nas fantasias de uma ilha paradisaca tropical. Uma
orquestra d o tom onde um homem com traos latino-americanos tipicamente
mexicanos carrega um realejo e um macaco, ultrapassando o pblico e chegando ao
palco, enquanto o macaco sobe em uma bananeira. A cmera avana e nos faz perceber
vrias bananeiras com seus macacos pendurados em fileira. Muda-se o ngulo da
cmera e se percebe que entre as tantas bananeiras esto jovens mulheres descalas
deitadas de barriga mostra, com saias curtas e bandanas combinando com as cores das
bananas. Esto aparentemente dormindo e quando a cmera se afasta, a proporo das
mulheres aumenta progressivamente.
Um sinal sonoro as avisa e elas levantam correndo, passando por dunas de areia,
ento se organizam em duas fileiras imensas nas quais acenam adestradamente para
algum que est a chegar. Um carro puxado por bois e dois homens, trabalhadores
braais, sem camisa, traz Carmen Miranda envolta em bananas. Os homens, esbanjando
fora, a ajudam a descer do carro, enquanto os membros de sua banda a esperam, com
seus instrumentos. Carmen veste-se com um vestido preto com o tradicional espao
descoberto em forma de losango, deixando sua barriga mostra. Seu chapu se reduz a
um cacho de bananas cercado de morangos, que tambm esto espalhados em sua roupa
tutti-frutti. Membros do Bando da Lua se ajoelham enquanto ela canta. Ao fundo e
acima, as mulheres que a recepcionaram balanam ritmicamente a cabea, seguindo-a
com sorrisos.

57
A paisagem tropical, numerosa em mulheres e com presena masculina
reduzida, apresenta o cenrio no qual Carmen Miranda canta The Lady in the Tutti
Frutti Hat, cano que versa sobre uma dama com seu chapu de frutas exageradamente
grande, mas que se acaso o tirasse para os americanos que a galanteiam (ay, ay, ay),
as reticncias explicariam as consequncias. de um lugar superior em que Carmen
atua, quase como de uma posio de realeza neste paraso tropical, no apenas em
relao s mulheres, mas aos poucos homens msicos e trabalhadores braais que
sempre esto abaixo dela e atuando em funes inferiores. Carmen supostamente seria a
rainha, ou qualquer que fosse seu equivalente simblico desse espao primitivamente
matriarcal, a partir do qual d o tom da msica que entretm a todos.
Ao fim da ltima estrofe, os msicos se abaixam e ela erguida e carregada
pelos mesmos trabalhadores braais descamisados. levada entre as danarinas e
improvisa a melodia musical tocando um enorme xilofone de bananas que a circunda
em trezentos e sessenta graus. Entremeio a jogos de cmera com inmeras edies, os
ps descalos e as mos das danarinas se aproximam at que, em nova abordagem da
cmera, as danarinas so vistas segurando enormes bananas nas mos, formando uma
nica fila. Sincronicamente, ora formando duas filas de frente, ora de costas, levantam e
abaixam as bananas em movimentos variados e, por fim, fazendo-as descer em forma de
domin. Encaminham-se ento para formar um crculo ao redor de outras danarinas
sentadas e deitadas que compem seis conjuntos de morangos em forma de losangos.
As bananas fazem o movimento para cima e para baixo, em direo aos
morangos, enquanto esses se abrem e se fecham por repetidas vezes, com bvios
sentidos sexuais contidos. Algo que foi percebido em artigo publicado no New York
Times no perodo de sua estreia (23 de dezembro de 1943, BDP, traduo minha) no
qual o autor salienta que um ou dois espetculos parecem derivar diretamente de Freud
e, se interpretados, podem trazer vermelhido a vrias bochechas no Hays Office.
Aps mais uma fila de danarinas que movimentam de cima para baixo as
inmeras e enormes bananas em domin, a filmagem alcana Carmen Miranda que j
est a se despedir no carro de boi, acompanhada pelos homens trabalhadores e msicos
enquanto as danarinas correspondem despedida. Em seguida, voltam a se deitar no
cho, como no incio, entre as bananeiras. A cmera as sobrevoa e chega novamente ao
macaco e ao homem latino-americano que se encontra com seu realejo entre o pblico
diegtico. Como com as mulheres do palco, os latino-americanos se multiplicam
aparecendo em fila com seus macacos e realejos. A cmera os acompanha at que, no

58
fim da fila, aborda Carmen Miranda que, de novo no palco, volta a cantar. Em seguida,
a mesma cmera se afasta progressivamente enquanto Carmen canta imvel em
montagem na qual seu chapu de bananas torna-se cada vez maior para o espectador. A
cena termina com sua imagem diminuda, entre um enorme cacho de bananas em sua
cabea e duas filas de morangos, tambm maiores do que a cantora, em suas laterais.
Em sntese, temos uma ilha desprovida de construes e artifcios humanos,
caracterizada pela virgindade, da flora e da fauna tropical com suas bananeiras e
macacos, mas tambm das mulheres que dormem quase nuas, nos padres cinemticos
da poca. Uma paisagem de primitivismo associa natureza e feminilidade em passagens
que conseguem transformar frutas tropicais, envoltas e manipuladas por mulheres, em
uma representao simblica de rgos e atos sexuais. No perodo havia uma forte
censura que pairava no cinema sob o Production Code que vigorou a partir de 1930,
mas que, no perodo da Poltica de Boa Vizinhana, ganhou um consultor prprio
relativo forma como a Amrica Latina era representada. Antes da produo do filme,
muitas cartas foram trocadas entre a Fox e o escritrio do Production Code (Arquivo da
MHL).
No entanto, o ltimo estava mais preocupado com referncias concretas de
sensualidade nas roupas das danarinas e mesmo de Carmen Miranda e seus decotes,
com a retirada de bebidas alcolicas, palavras proibidas, cenas sugestivas de sexo
durante a narrativa, trechos em espanhol falado errado e possvel ofensas ao pblico
catlico. Por fim, o filme foi aprovado sem tantos problemas, considerando que no era
ofensivo ao pblico latino-americano. A sexualidade no deixou de estar presente de
forma mais simblica, nas reticncias da letra de The Lady in the Tutti Frutti Hat e das
performances das danarinas, conformando uma construo de um Outro que termina na
imagem final, associando Carmen Miranda natureza quando esta se encontra em meio
a bananas e morangos, ao mesmo tempo que a diminui em uma imagem absurda de
exuberncia tropical.
A quase ausncia masculina corresponde tambm ausncia de qualquer trao
civilizacional, como construes habitacionais ou uma paisagem urbana. Trata-se de
uma atualizao dos discursos coloniais, por meio de uma dinmica de presenas e
ausncias, configurando-se em uma clssica representao da relao entre ocidente e
seu Outro. Atualiza-se no filme a ideia central das narrativas coloniais das terras
distantes como tbua rasa, sem histria, as quais esperam por um agente civilizador, no
caso, o homem norte-americano.

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Anne McClintock (2010) aborda o gnero como parte da dinmica constitutiva
do poder imperial, dentro de uma histria na qual uma longa tradio de viagens
empreendidas por homens das metrpoles se embasou em uma ertica do
alumbramento. Considerando o empreendimento colonial a partir de interseces entre
uma dominao poltica, produo econmica, dominao de gnero e diferena racial,
a Amrica e a frica so pensadas como uma construo simblica, como uma
fantstica lanterna mgica da mente na qual a Europa projetava seus temores e desejos
sexuais proibidos (MCCLINTOCK, 2010, p. 44), derivando disto representaes do
excesso sexual. Stuart Hall analisa a famosa gravura America do artista Van Der Straet,
alegorizada como mulher:

No de surpreender que na famosa gravura de van der Straet que


mostra o encontro da Europa com a Amrica (c . 1600), Amrico
Vespcio a figura masculina dominante, cercado pela insgnia do
poder, da cincia, do conhecimento e da religio: e a Amrica ,
como sempre, alegorizada como uma mulher, nua, numa rede, rodeada
pelos emblemas de uma ainda no violada paisagem extica.
(HALL, 2003, p. 30-31)

Os efeitos de gnero e raa da colonizao so muito mais concretos do que uma


metfora que simboliza a dominao, eles esto entrelaados com os desejos que
movem sujeitos e a economia em busca de novos mercados e matrias primas. Stuart
Hall (2003) e McClintock (2010) esto focados na relao entre Europa-Colnias em
suas teorizaes, enquanto meu foco recai sobre a relao entre Estados Unidos e
Amrica Latina. Neste contexto, os Estados Unidos acabam por se colocar na mesma
posio que o Ocidente europeu sculos antes. A construo cinematogrfica deste
Outro, por meio do nmero musical de Busby Berkeley, no genrica e podemos
identificar algo que se tornava smbolo da relao comercial (e tambm poltica) entre
Amrica Latina e Estados Unidos: a presena das bananas.
No ano seguinte ao filme, criava-se a personagem-smbolo comercial Chiquita
Banana, uma banana com corpo feminino que, como Carmen Miranda na origem de sua
personagem da baiana, carregava um vaso de frutas em sua cabea. Trata-se da
logomarca da United Fruit Company que desde 1930 estabelecia-se como um poderoso
monoplio na Amrica Latina na produo e venda de produtos tropicais, com lucros
muitas vezes maiores do que a receita de certos pases em que atuava, denotando os
vnculos concretos entre representaes e prticas (ENLOE, 1999, p. 133).

60
Influenciada por Carmen Miranda, Miss Chiquita, que chegara a ser
personificada tantas vezes pela porto-riquenha Elsa Miranda, era apresentada como uma
contribuio da United Fruit Poltica de Boa Vizinhana que, por sua vez, estimulava
produes sobre de livros escolares e textos para donas de casa sobre a importncia da
Amrica Latina e de sua produo de frutas em tempo de guerra (ENLOE, 1999, p.
128). A unio entre feminino e frutas tropicais, seja com Carmen Miranda em seus
filmes ou com Chiquita Banana na publicidade, acabava por criar uma representao
abstrata, ausente de qualquer elemento prprio a um pas concreto, permitindo com
maior liberdade a representao de uma fantasia colonial envolvendo aspectos de
gnero, raa e sexualidade.
Para o espectador norte-americano, trata-se de uma representao relativamente
conhecida das latino-americanas, ignorando como elementos da personagem que
Carmen levava aos Estados Unidos tinha uma histria bem anterior a sua entrada no
cinema hollywoodiano. Ao lado da representao abstrata, Carmen carregava a
brasilidade que se formava no mercado de cultura de massas carioca em sua
indumentria, performance e msica. Novos elementos adentravam na representao de
um subcontinente que, at ento, se referenciava em sua histrica proximidade
conflitiva com o Mxico. Com Carmen, elementos tpicos mexicanos e brasileiros se
juntavam nos nmeros musicais. Aos norte-americanos, tratava-se de uma representao
nova e simbolicamente mais propcia a representaes abstratas, j que se referia a uma
sul-americana, portanto, de um subcontinente distante e pouco conhecido.
Aos brasileiros, tratou-se de ver sua prpria identidade sendo forjada para alm
de seus limites territoriais e se difundindo internacionalmente. A baiana de Carmen
Miranda era consumida nacionalmente e exportada, estando vinculada a processos
polticos e econmicos que se relacionavam a questes internas e de poltica
internacional no contexto brasileiro. A brasileira representada nas telas era constitutiva
de uma diferena racial nos Estados Unidos, enquanto latino-americana, mas no Brasil
ela era resultado antes de uma sntese poltica e cultural que se concretizava a partir de
inmeras negociaes, mediada pelo mercado de cultura de massas do Rio de Janeiro.
Sua chegada aos Estados Unidos demandou uma longa histria prvia de
redimensionamento do nacional.

61
1.2 A Embaixatriz do Samba: branquitude e unidade nacional na baiana
exportada

Para a representao sensual, feminina e racializada da Amrica Latina, ao


mesmo tempo alegre e exuberante, elegeu-se uma artista da Amrica do Sul, a despeito
de um panteo de atores e atrizes latino-americanos de outras origens. Tal feito
acompanha na esfera poltica internacional o no alinhamento automtico dos pases
sul-americanos aos pases aliados na Segunda Guerra, ao contrrio do que se deu na
Amrica Central e Caribe. Trata-se de pases que mantinham estreitas relaes
econmicas e, muitas vezes, afinidades polticas com pases do Eixo (STEWART, 2006,
p. 108). A forte imigrao alem e italiana em pases como Brasil, Argentina e Chile era
vista com preocupao pelo governo norte-americano e suas agncias voltadas s
relaes interamericanas e guerra. Membros das foras militares e quadros polticos
desses pases flertavam com os regimes totalitrios europeus, sendo que o Chile apenas
rompeu relaes diplomticas com os pases do Eixo em 1943, e a Argentina, em 1944.
Um cone do rdio brasileiro, que ganhou a alcunha de Embaixatriz do Samba,
quando se apresentava na dcada de 30 na Argentina, era apropriado no contexto
poltico, sendo os pases ao sul do Equador considerados estratgicos na conjuntura
mundial afetada pela guerra e que demandava novos parceiros econmicos. Salienta-se
que o Brasil, aps perodo marcado por uma equidistncia pragmtica entre Alemanha e
Estados Unidos (CERVO; BUENO, 2008), entrou na guerra em 1942 e foi o nico pas
latino-americano que designou suas foras armadas para combater na Europa
(SADLIER, 2012, p. 05).
South American Way foi a msica que iniciou nos Estados Unidos o sucesso de
Carmen Miranda, que a princpio migrou ao pas do norte para atuar em uma revista
teatral, em Nova Iorque. Sua chegada foi fartamente coberta pela imprensa norte-
americana, que no apenas salientou com entusiasmo as caractersticas exticas da nova
estrela sul-americana na Broadway, mas ressaltou sua importncia em seu pas de
origem. Matrias versavam sobre a presena de membros do consulado brasileiro em
sua recepo e seu suposto e falso contato frequente, por meio de telefone, com o
presidente Getlio Vargas.
Sua partida do Brasil foi, por sua vez, carregada de promessas ao pblico
brasileiro. Segundo ela, iria difundir o samba ao pblico norte-americano, como j havia
feito na Argentina e no Uruguai. Carmen pde se tornar uma espcie de representante

62
nacional neste momento, pois j contava com uma histria profissional enquanto estrela
nacional em um momento no qual a cultura de massas passou a difundir a efervescente
cultura urbana que se desenvolvia na capital carioca. Para tanto, atuou como
protagonista em uma srie de negociaes culturais e morais que perpassavam
preocupaes do Estado e regiam a concorrncia do mercado de cultura de massas.
A Pequena Notvel, na alcunha atribuda pelo radialista Csar Ladeira, tornou-
se a cantora de samba mais famosa e que mais vendeu discos no Brasil da dcada de 30.
Trata-se de um perodo no qual o samba, antes vinculado a expresses culturais
populares e associado em especial a descendentes de africanos, se constituiu enquanto
msica nacional, acompanhando mudanas sociais e polticas importantes. Um perodo
poltico que sucede uma dcada de pice da crise da repblica oligrquica, com o
aparecimento de organizaes de trabalhadores de diversas feies ideolgicas, a
oposio tenentista e as disputas de hegemonia pelos estados. O governo Vargas, ao se
estabelecer por meio do golpe de estado em 1930, teve como um de seus objetivos
centrais a integrao nacional.
O presidente viu na cultura popular com grande pblico uma forma de se
legitimar perante a populao e por meio do rdio difundir no pas uma cultura
homognea para alm das diversidades regionais. De um lado, o mercado buscava
ampliar o consumo e apostava no que tinha apelo popular. O governo federal apoiou-se
no sucesso do samba e sua difuso pelo rdio para consolidar a unidade nacional,
estimulando-o ao mesmo tempo em que buscava regular os valores que permeavam as
canes. Por meio da incorporao do popular ao nacional via mercado, assistia-se a
uma negociao de valores que comporiam a identidade nacional sobre a qual se destaca
de um lado, a validao de certo vocabulrio popular, de elementos afro-religiosos e de
termos que aludiam positivamente negritude.
Trata-se de uma novidade importante na configurao do nacional que passava
ento a ser mediado pelas estratgias de mercado do rdio em busca de audincia. Com
a indstria fonogrfica e o rdio, articulados a outros espaos de diverso e
entretenimento, como os teatros e cinemas, a cultura popular, que antes era alvo de
perseguio policial durante a Primeira Repblica, passou a ser constitutiva do nacional.
Antes do rdio, a cultura popular se expressava em festividades populares, notadamente
vinculadas ao calendrio religioso e restritas a algumas localidades especficas,
marcadas pela presena massiva da populao negra.

63
Rachel Soihet (2008) explora em seu livro A Subverso pelo Riso como o
disciplinamento policial perpassava tais espaos, convivendo com perodos de maior
tolerncia, com outros de maior represso. A expresso cultural popular esteve
acompanhada da negociao de seus lderes e enfrentamentos, fazendo-se presente e
incorporando aspectos da cultura dominante. Nas palavras da autora: as manifestaes
populares no s persistiram, como tambm se difundiram e se entrelaaram com a
cultura dominante, dando lugar circularidade cultural (SOIHET, 2008, p. 156).
Roberto Moura (1995) explora o que denominou como pequena dispora
baiana que configurou uma outra face do Rio de Janeiro, em contrapartida quela que
se civilizava no centro e na zona sul, a partir das reformas urbanas do prefeito Pereira
Passos entre 1903 e 1906. Naquele perodo, criava-se um projeto hegemnico de uma
cidade idealizada no novo centro, ao entorno da avenida Central, enquanto espao de
ostentao da burguesia, consolidando uma vitrine da civilizao brasileira. Reformas
urbanas e polticas higienistas marcavam a repugnncia em relao s classes populares,
ao mesmo tempo em que se baseavam em modelos europeus. As classes populares e os
segmentos afro-brasileiros estavam excludos de um projeto da nao vinculado a ideias
de civilizao e progresso: a imagem pretendida para o Brasil era a de um pas
higinico, burgus, moderno e acima de tudo, branco (FENERICK, 2005, p. 30).
Moura (1995) aborda que, em contraposio a esse projeto, a cidade se expandia
nos subrbios e nas favelas, a partir do crescimento demogrfico progressivo desde a
segunda metade do sculo XIX. Processo ao qual acompanha o fato de que a partir da
metade do sculo XIX, com as condies de vida agravadas na Bahia, e especialmente a
partir da abolio, constituiu-se um fluxo migratrio regular de afrodescendentes em
direo capital, criando grupos de sociabilidade e de ajuda mtua. Junto com outros
que l j estavam ou viriam de outras partes do pas, fariam parte dos 66,49% da
populao que era classificada como negra no censo de 1890, sendo ainda parcela mais
expressiva se levada em conta apenas as classes subalternas.
Os arredores da Cidade Nova, Gamboa, Sade, nomeados de Pequena frica,
so tidos como um local especial na elaborao da msica popular urbana, sem dvida
sincrtica, mas com forte influncia do ritmo e estrutura musical africana, no qual se
destacam o choro, o lundu, o maxixe e o samba. Dentro de um histrico de desconfiana
e represso, apropriavam-se de datas catlicas para festejos de origem africana. Os
ranchos, agremiaes que teriam j histria em Salvador, antes saiam no dia 6 de
janeiro, durante a festa dos Reis, mas devido s resistncias e investidas policiais

64
passaram a se apresentar no perodo do carnaval, festa de origem europeia com longa
tradio, na qual se concediam liberdades, dentre elas, sexuais.
Rachel Soihet (2008) demonstra que nas primeiras dcadas do sculo, a Praa
Onze se tornou o lugar de referncia dos ranchos afro-brasileiros, como tambm um
local privilegiado para o samba improvisado. Seu carnaval passou a ser conhecido e
divulgado pela imprensa, embora com notrias crticas moralistas que os
desqualificavam enquanto expresso de um mundo primitivo e, portanto, no
civilizado. Muitas vezes, os mesmos sujeitos frequentavam festividades e espaos
distintos como o carnaval da Praa Onze, a festa da Penha, as casas das tias baianas,
configurando uma rede de sociabilidade com linguagem prpria, marcada por
expresses ldicas e religiosas de ascendncia africana.
O julgamento moral dessas manifestaes acompanhava uma crescente
curiosidade pelas mesmas, uma abertura de espao no mercado de entretenimento para
seus msicos e, em seguida, uma expressiva audincia dos seus produtos na indstria
fonogrfica nascente. Pixinguinha, Araci Cortes, Sinh e Joo da Baiana so alguns dos
nomes que se consagraram no incio da cultura de massas da capital, oriundos daquela
localidade. Os intercmbios entre a cultura popular urbana, marcadamente negra, com a
cultura de massas e os festejos nacionais se efetivaram dentro de um histrico de
mediaes culturais entre membros da elite e os das classes subalternas. Jos Wisnik
(1982) analisa os trnsitos estticos e ideolgicos entre os sinais musicais no marcados
por barreiras intransponveis, mas por biombos que representavam espaos sociais
divididos (podemos dizer racializados), mas com conexo relevante.
Para seu esquema explicativo, usa a arquitetura da casa de Tia Ciata como
metfora dos intercmbios culturais entre classes, na qual os espaos mais receptveis ao
pblico, como a sala de visitas, eram destinados s reunies e msica, enquanto o
mais restritivo aos visitantes, o quintal, era onde as atividades do candombl eram
desempenhadas. Em sua viso, h um processo recproco de apropriao e recodificao
de matrizes culturais distintas que no questionam a hierarquia social, antes se
construam a partir dela, dentro da dinmica do favor, criando algo novo, nacional:

Enquanto o negro avana para o lugar pblico onde se faz


reconhecvel e reconhecido, apropriando-se, mimetizando ou
distorcendo a seu modo formas de cultura branca de base europeia, os
polticos e intelectuais brancos vo ao candombl e apadrinham o
samba, reconhecendo nele uma fonte de autenticidade nacional que
os legitima. (WISNIK, 1982, p. 155)

65
Os trnsitos entre os signos da cultura popular e um pblico mais ampliado se
davam a princpio nas manifestaes culturais urbanas, a despeito das expresses
culturais populares afro-brasileiras conviverem com a perseguio da polcia e da Igreja.
Roberto Moura (1995) aponta a festa da Penha, enquanto uma apropriao de um ritual
originalmente catlico para expresses de origem africana, como um processo de
africanizao da cultura hegemnica, com difuso para a populao em geral, dada
sua localidade. Naquela localidade, a Tia baiana Ciata montava sua barraca,
acontecendo isso at a sua morte, em 1924, e, ali, muitos grupos e mesmo duelos
musicais sempre estavam presentes, com Donga, Caninha, Pixinguinha e Sinh, que
apresentavam msicas marcadas pela improvisao e divertimento.
O carnaval popular foi outra expresso cada vez mais aceita socialmente, sendo
o grupo dos baianos na Praa Onze importante em seu reconhecimento. No se tratava
da nica forma de carnaval. Na avenida Rio Branco, antiga avenida Central, havia o
corso, caracterizado por seus desfiles de carros e as guerras de confetes de exposio
elitista, com camarotes inacessveis (FERREIRA, 2004, p. 247). Isso no significava a
ausncia das classes populares naquele local, j que estas circulavam pela cidade
durante a festividade. Do final do sculo XIX aos anos 1920, agremiaes carnavalescas
de diversos nomes ocupavam as ruas da cidade, constituindo um circuito de trocas
culturais que chamava a ateno da imprensa em sua diversidade:

A presena das manifestaes populares nas ruas constituiu uma


constante, juntamente com aquelas consideradas prprias da elite
como as grandes sociedades e, j no sculo XX, os corsos. Eram os
cucumbis, os z-pereiras, os cordes, de incio, em plena rua do
Ouvidor. E como explicar a magnfica crnica de Joo do Rio sobre os
cordes? Segundo ele, na Rua do Ouvidor, nos primeiros anos desse
sculo (sic), era provvel que danassem 20 cordes e 40 grupos...
Depois, disseminaram-se os ranchos e os blocos. verdade que
principalmente aps a abertura da Avenida Central, o carnaval popular
concentrou-se na Praa Onze; mas nunca os populares abriram mo de
desfilar, tambm, na Avenida Central. Apesar de toda a campanha
discursiva e repressiva movida contra suas manifestaes, rotulando-
as de atrasadas, selvagens, grosseiras etc., a fim de extermin-
las, aqueles segmentos utilizaram-se dos diversos espaos. (SOIHET,
2008, p. 157-158)

66
Algo importante a ser observado que o carnaval at 1920 era baseado em
polcas, modinhas, valsas, lundus, maxixes e os ritmos. A partir da dcada de vinte que o
samba passa a predominar, relacionado com a importncia da Praa Onze e dos baianos:

A Praa Onze, nos anos 1920, funcionava como uma espcie de ponto
de convergncia de todo o mundo do samba durante o carnaval.
Ranchos, blocos e cordes que perambulavam pela cidade, em algum
momento desfilavam na Praa Onze. Os laos de samba no carnaval se
estreitavam, portanto, cada vez mais entre os sambistas de vrios
pontos da cidade, passando pela praa famosa do samba.
(FENERICK, 2005, p. 112)

Em 1932, o carnaval da Praa Onze com desfiles das recentes escolas de samba,
surgidas dos blocos carnavalescos entre o final dos anos 20 e o comeo dos 30,
passaram a competir em concurso patrocinado pelo jornal Mundo Sportivo. No ano
seguinte foi patrocinado pelo jornal O Globo e, assim, passou a fazer parte do desfile
oficial da cidade, com o aval do prefeito Pedro Ernesto que o oficializou. Com a
oficializao, passou-se a incorporar elementos artsticos e musicais em uma
apresentao moderna enquanto que os regulamentos dos desfiles contriburam na
fixao de um modelo de samba e de uma prtica do samba (MOURA, 1995, p. 118).
Tem-se o fim do improviso e o incentivo mudana das letras de vrios sambas, pois
estes tinham que se enquadrar no enredo, que cada vez mais era destinado para fins
pedaggicos, por presso de intelectuais e jornalistas (FENERICK, 2005, p. 119).
Com os concursos promovidos pelos jornais, sendo a letra um dos quesitos da
competio, constitui-se um fator importante na regulamentao ideolgica/esttica do
samba (FENERICK, 2005, p. 119). Temas como a malandragem deveriam ser
excludos e em substituio, enredos edificantes eram estimulados, com temas
nacionais. Em busca de reconhecimento tambm se criava, entre os prprios artistas, a
imagem do sambista com terno e gravata para se contrapor imagem do sambista
contraventor. O improviso de versos manteve-se somente depois do desfile, no que se
convencionou chamar de batuques, muito embora seguidamente perseguidos aps a
implementao do Estado Novo (FENERICK, 2004, p. 123).
Por meio das mediaes entre governo, compositores e membros dos grupos
carnavalescos, constitui-se na anlise de Jos Adriano Fenerick um pacto entre estes
sujeitos, e assim, valores populares eram enaltecidos como razes da nacionalidade,
legalizando ou oficializando as escolas de samba, alm da concesso de subvenes

67
para a realizao dos desfiles, ao mesmo tempo em que aponta para um reconhecimento
social do samba, [que] tambm uma forma de controle social expresso pela premiao
do sambista bem comportado, o sambista que no foge s regras (FENERICK, 2005,
p. 126). De outro lado, materializou-se a utilizao de temas permitidos oficialmente
que se encontravam com a ideologia do Estado. Rachel Soihet (2008) concorda com
essa viso que salienta a resistncia e negociao entre as partes:

Vargas, com sua ascenso, vale-se da msica popular e das


agremiaes carnavalescas como veculo para a integrao dos
populares no seu projeto de construo da nacionalidade.
Paralelamente, toma vulto o esforo de lderes dos populares em
afirmar sua participao no sistema, garantindo a presena
reconhecida de suas manifestaes nas ruas da cidade. Dessa
coincidncia de interesses, resulta o predomnio do popular no
carnaval, tornando-se o samba sua msica caracterstica. Os negros
tiveram papel preponderante na construo dessa cultura, que passou,
posteriormente, a caracterizar toda a sociedade. (SOIHET, 2008, p.
158)

A consolidao de um mercado de cultura de massas tornou a negociao mais


complexa do que uma conciliao entre os dois lados, reconfigurando a forma de
construo do nacional. Neste perodo, o carnaval e a msica popular j estavam
entrelaados, quando boa parte da produo musical prvia ao carnaval se tratava de
composies carnavalescas. O consumo na esfera do entretenimento carioca cada vez
mais incorporava a cultura popular de origem afro-brasileira. Bairros bomios, como a
Lapa, incluam a presena de msicos populares e atraiam intelectuais. Os teatros de
revista incorporavam o samba e os cinemas apresentavam os cartazes do rdio em
movimento ao pblico em geral, mesmo fora da capital federal.
Ao lado da incorporao da cultura afro-brasileira ao nacional, o rdio e o
mercado de cultura de massas se desenvolviam a partir da busca por consolidao de
amplo pblico e para isso impunham certos padres de aceitabilidade daquela cultura.
Observa-se um processo no qual emergem os dolos do rdio, quase sempre brancos e
de classe mdia. Trata-se de um processo no qual se positiva a cultura popular e negra
ou mestia, mas exige-se o branqueamento na forma de sua apresentao. Para a
aceitao ampla do samba, alguns artistas foram fundamentais:

Carmen Miranda, Francisco Alves, Custdio Mesquita, Noel Rosa,


Ari Barroso entre tantos outros, atravs principalmente do rdio, do
disco e do cinema, conseguiram tornar o samba palatvel para uma

68
grande parte da sociedade brasileira sobretudo a classe mdia que
era quem efetivamente consumia discos de msica popular, ouvia
rdio e ia ao cinema -, ao mesmo tempo em que, em certo sentido,
educavam e massificavam (e em certo grau, padronizavam) essa
msica. (FENERICK, 2005, p. 72-73)

O consumo palatvel para a classe mdia movia a busca do mercado de cultura


de massas, mas seria simplificao reduzir tal consumo aparncia branca de cantores.
Richard Miskolci (2012, p. 51) define a sociedade da virada do sculo como pautada por
um ideal de branquitude, no qual a elite, em especial seus homens, atribua um valor
prprio distintivo de superioridade em relao ao resto da populao, dada sua
ascendncia europeia e aburguesamento. Um ponto de viragem se d com a
consolidao do mercado de cultura de massas a partir de fins de 1920, imbricando a
branquitude com os valores e produtos do mercado norte-americano e incluindo as
mulheres como objeto de consumo masculino no entretenimento e publicidade.
O advento da cultura de massas positivou a cultura popular e afro-brasileira, mas
apenas o fez, na medida em que atualizou a branquitude. A apresentao branca
derivava de um filtro moral e racial imposto pelo mercado de cultura de massas. Ao
mesmo tempo em que se abria espao de divulgao do popular e da cultura afro-
brasileira, essa era incorporada ao nacional somente por meio da ocultao da negritude.
No se trata de uma questo cromtica, mas de uma concepo racialista moral
presente nas classes mdias e altas da sociedade, na qual o branco representaria o
civilizado, de cultura mais adiantada e, portanto, passvel de ser considerado como
elemento nacional. A cultura popular e afro-brasileira poderia ser valorizada enquanto
matria-prima, representativa da autenticidade a ser elaborada valorativamente e
apresentada de forma branca. Em busca de aceitao hegemnica, o filtro racial se
imps na dinmica de concorrncia da esfera do entretenimento carioca.
Em outras palavras, o processo no qual a cultura popular urbana era alada a
nacional se forjou na ideia de que o samba poderia ser aceito pela sociedade, porm,
um samba limpo, higinico, civilizado, enfim, um samba vinculado com a imagem dos
brancos. E, de acordo com esse tipo de pensamento, o agente civilizador do samba j
existia no Brasil: era o rdio (FENERICK, 2009, p. 71).
A carreira de Carmen Miranda, de seu incio consagrao, marca uma
aproximao cada vez maior com o mundo reconhecido como civilizado, marcado
pela branquitude. A despeito de nunca ter se afastado de seus msicos e compositores
iniciais ligados s classes populares, seu crescimento profissional a vinculou a

69
compositores da classe mdia, dentre eles Ary Barroso e Braguinha, e a proporcionou
parceiras em shows com outros cantores proeminentes do rdio como Francisco Alves e
Almirante. Em 1934, em uma de suas excurses para a Argentina, apresentou-se junto
com o Bando da Lua, anunciados na poca como um grupo de rapazes da nossa melhor
sociedade (CASTRO, 2005, p. 112) que recusavam pagamentos de modo a no serem
identificados como sambistas de profisso. A ligao entre o grupo e Carmen ficaria
marcada no auge de sua carreira no Brasil, quando a acompanhavam no cassino da Urca
e, especialmente, em sua carreira internacional20.

O Bando da Lua O Bando da Lua com Carmen Miranda

Sua carreira alcanou sucesso reconhecido pela elite carioca e de outras


localidades com a lei aprovada por Vargas que restringia a maior parte dos nmeros
artsticos dos cassinos a artistas brasileiros. Sua vida pessoal acompanhou a mudana de
espaos sociais marcados pela negritude e mestiagem para espaos brancos. Da Lapa
para uma casa simples e central, nos Arcos do Telles e, conforme ganhou mais dinheiro,
Carmen mudou-se com sua famlia para regies mais valorizadas: em 1931 para o
Curvelo, em 1935 transferiu-se para o Flamengo e em 1937 para a rea nobre da Urca,
prxima ao cassino do qual sairia para sua carreira internacional. Desde 1934, Carmen
namorou Carlos Alberto da Rocha Faria, de famlia rica que aceitava com resistncias o
namoro: contrastava-se a descendncia rica de Carlos Alberto com a riqueza material
efetiva de Carmen.

20
O Bando da Lua contava inicialmente em seus integrantes com o cavaquinista Stenio Ozorio, o banjista
Ivo Astolfi, o ritmista Armando Ozorio, o pandeirista Oswaldo Eboli (Vadeco) e o violonista e cantor
Aloysio de Oliveira. A banda acompanhou Carmen na maior parte de seus filmes hollywoodianos, muito
embora com mudanas em sua formao.

70
Carmen cantou e participou do processo moral, efetuado via mercado de cultura
de massas, no qual o samba desce o morro, como na cano Cabaret de Morro de
Herivelto Martins, gravada pela cantora em 1937:

E vim descendo, batucando os meus tamancos


abandonando a malandragem, o barraco
Embora sendo nascida no morro e criada na orgia
vi que essa gente no tem civilizao...
E resolvi a mim mesma de voltar
se a vida um dia, se Deus quiser, melhorar
Com um ricao pendurado no meu brao
vestido de seda, capote de forro
civilizarei o morro.

Como afirma Fenerick (2009), a diviso polarizada entre morro e cidade


simblica e no concreta. Traar uma origem do samba como o samba de morro,
revelador de sua autenticidade ou pureza, resgata uma perspectiva datada que recorre a
uma viso essencialista e estanque dos processos culturais. Ademais, a regio central do
Rio de Janeiro denominada Pequena frica, onde conviviam grupos afro-brasileiros,
foi um importante lcus de criao em perodo prvio criao individualizada para a
indstria fonogrfica. Tal passagem simblica representa antes o processo moral de
branqueamento e aburguesamento do samba, processo ao qual permitiu ao samba
aceitao social e transformao em msica nacional. Fenerick (2009) salienta que o
samba vinculado ao universo simblico e expresses prprias a grupos afro-brasileiros e
suas expresses religiosas passou a concorrer com outro citadino e do botequim, no qual
a figura de Noel Rosa aparece como exemplar.
A passagem do samba do morro cidade estava associada a um projeto j em
andamento de remodelao dos valores associados ao samba, j que se tornava uma
msica brasileira por excelncia. Assistimos a um processo que bem sintetizado na
expresso higiene potica do samba de Orestes Barbosa, um dos pioneiros a escrever
um livro sobre a msica popular carioca (Samba de 1933). Barbosa estava se referindo
ao discurso da malandragem que deveria ser excludo do samba. Em especfico, aps a
gravao em 1933 de Leno no Pescoo de Wilson Batista, interpretada por Silvio
Caldas, msica apologtica malandragem que foi censurada pela Confederao
Brasileira da Radiodifuso.
Leno no Pescoo deu origem a uma polmica musical entre Wilson Batista e
Noel Rosa. Noel Rosa respondeu a Batista com sua msica Rapaz Folgado na qual

71
prope a mudana de comportamento do malandro, alterando sua conduta marginal para
outra, de carter mais aburguesada (FENERICK, 2004, P. 69). A polmica e a censura
so um exemplo interessante de um interessante filtro racial, de cunho moral, que se
estabelecia por meio do rdio, desde sua inveno no Brasil. A primeira estao, a
Sociedade do Rdio do Rio de Janeiro, foi fundada em 1923 por intelectuais com o
propsito educativo, assentada no objetivo de civilizar o povo que pouco tinha acesso
educao. Durante a dcada de 20, o rdio se resumiu a empreendimentos no
comerciais, elitizados e de precariedade tcnica. O ponto crucial de transformao do
rdio se deu em 1932 com a autorizao oficial para veiculao de anncios, atravs do
decreto-lei 21.111 do governo de Getlio Vargas (FENERICK, 2005, p. 54).
A partir desta lei no apenas se desenvolve um mercado competitivo das
estaes de rdio, como seu contedo se altera qualitativamente. Notadamente, a partir
do predomnio da msica popular ante a msica erudita ento dominante. O que se
seguiu foi que muitas opinies divulgadas na imprensa baseavam-se na ideia de que o
negro, a pobreza e a marginalidade (...) na viso das elites e dos setores mdios da
sociedade, no poderiam de forma alguma ser os representantes brasileiros do mundo
moderno (FENERICK, 2005, p. 71). Neste contexto, a Confederao Brasileira de
Radiodifuso foi criada em 1933 como uma organizao cuja finalidade era defender os
interesses das emissoras, mas com o direito de vetar certas canes que ferissem a
moral, ainda certos de sua misso civilizatria. Em poucos anos, a tarefa de censura
passaria tambm ao Estado, com a emergncia do Departamento de Imprensa e
Propaganda (DIP).
A censura de Leno no Pescoo no acabou com a temtica do malandro,
antes a estimulou. Muitas canes versaram em torno do tema, dentre as quais se
destaca Mulatinho Bamba, de Lamartine Babo e Kid Pepe, gravada por Carmen em
1935:

que mulatinho bamba


como desacata quando samba - (...)
No anda armado de navalha
nem leno no pescoo nem chapu de palha
Mulato fino e alinhado
tem gestos e atitudes de um deputado
Por causa deste mulatinho
eu fico na janela o dia inteirinho
quando le passa na calada
parece o Clark Gable em Acorrentada.

72
Carmen Miranda, nesta cano, expressava a presena de um mulatinho que,
diferentemente do malandro, no anda com a navalha e nem leno e chapu de palha.
Ao contrrio, to higienizado que ora lembra um deputado, ora se remete estrela de
cinema Clark Gable. Por outro lado, a letra da msica acaba se configurando como uma
valorizao do popular e do afro-brasileiro como nacional. Acompanhava a prpria
busca de reconhecimento dos sambistas que ento se apresentavam de terno e gravata,
desvinculando-se das associaes pejorativas. Trata-se de uma readequao do sambista
aos critrios da branquitude da poca.
O samba se fazia ainda mais reconhecido no por meio dos prprios
compositores e seus vnculos com a Pequena frica ou dos morros e suas escolas de
samba, mas na figura dos cartazes do rdio que o divulgavam em programas ao vivo e
com auditrio, circulando no mercado de cultura de massas da capital e estampando
seus rostos nas capas das revistas ilustradas, consumidas pelos fs. por meio do rdio
e da formao de seus grandes cartazes, quase sempre brancos e provenientes da classe
mdia, que o samba pde deixar de ser associado ao atraso e passar a ser representativo
da modernidade e do porvir. O samba tornou-se msica de doutor, como registrado no
artigo Mario Reis, sambista ou bacharel? (s/d, p. 41, Arquivo do MCM) de Mozart
Araujo na Revista Carioca em que o autor salienta que o cantor do rdio se
popularizou sem se vulgarizar, sendo um interprete legtimo do samba.

O rdio projetava nacionalmente nomes como Carmen Miranda,


Orlando Silva, Francisco Alves, Mrio Reis, Noel Rosa, Dalva de
Oliveira, Slvio Caldas, Lamartine Babo, Braguinha, Gilberto Alves,
Ari Barroso entre outros tantos; fato que no ocorria frequentemente
com nomes como Bide, Maral, Cartola, Ismael Silva, Paulo da
Portela, Carlos Cachaa, Candeia, etc. (FENERICK, 2009, p. 180)

Mrio Reis e Carmen Miranda, 1935. Carmen interpretando Primavera no Rio em


Al, Al Brasil!, 1935.

73
O sambista negro e pobre, mesmo tendo o samba alcanado um reconhecimento
social considervel, passou a atuar quase que exclusivamente nos bastidores como
fornecedor de matria prima para os cantores. (...) Fornecedor de composies para os
grandes cartazes do rdio, ou como instrumentistas acompanhantes destes ltimos
(FENERICK, 2009, p. 179). Uma prtica muito comum na poca era a de sambistas de
classes populares venderem suas composies que eram gravadas como se fossem de
outros autores, j reconhecidos no mercado fonogrfico21. A aparncia branca passou a
ser um aspecto determinante no acesso a carreira de cantor de rdio, sendo que os
cartazes do rdio conquistavam padres de vida muito superiores ao dos compositores
que muitas vezes eram negros e de classes populares.
Trata-se de um processo que carrega uma ambiguidade fundamental, pois de
outro lado se valorizava a cultura popular e afro-brasileira, posto que era considerada
algo autenticamente nacional. Ao lado de canes que enalteciam a mudana do
comportamento dos sambistas e substituam o malandro e sua navalha, outras
valorizavam a autenticidade nacional encarnada nas manifestaes culturais populares.
Tal valorizao ia ao encontro de um perodo no qual a intelectualidade passou a
valorizar as coisas nossas em contraposio a estrangeirismos, em busca de uma
identidade nacional. Mesmo os defensores de uma higienizao do samba, no
discordavam de seu carter nacional, apenas demandavam que tomassem uma aparncia
considerada mais civilizada.
Para alm dos intelectuais, no perodo os sambistas buscavam ver reconhecidas
suas origens culturais e em suas composies no deixavam de relacionar o universo
cultural afro-brasileiro ao nacional. A msica popular tinha um grande apelo ao pblico
que passava a reconhecer nela seu carter nacional, j modernizada pelo rdio. A
aparncia branca dos dolos era uma forma de mediao pela qual as classes mdias
poderiam consumir as msicas, j com uma certa distncia do que era considerado
brbaro e primitivo. Nos termos de Darin Davis (2009):

Artistas brancos ou pelo menos no negros, usavam mscaras negras


para demonstrar que eles eram brasileiros autnticos. Importantes

21
Nem sempre a prtica era prejudicial a compositores. Ismael Silva, por exemplo, teve vrias de suas
canes gravadas em uma suposta coautoria de Francisco Alves que se aproveitava de sua fama e do
talento de Silva para alicerar sua carreira. Em declarao ao Museu de Imagem e Som do Rio de Janeiro,
o compositor negro ressalta como o acordo foi bom para os dois, visto que possivelmente no teria
alcanado sucesso sem a ajuda de Alves (CAYMMI, 2013, p. 84-85). O episdio apenas mais uma
constatao que a aceitao do samba passava pela branquitude.

74
cones musicais populares dos anos 30 e 40 no Brasil como Carmen
Miranda, Aurora Miranda, Francisco Alves e Mrio Reis, todos eles
brancos, celebraram as expresses populares afro-brasileiras em seus
repertrios. Em suas performances dentro e fora do rdio, alm de
suas gravaes, artistas brancos cantaram assumidamente sobre
personagens negras e assumiram personalidades negras, incluindo a
mulata ou o mulato, o malandro, sagaz trapaceiro das ruas, e a baiana,
a vendedora de rua de origem da cidade de Salvador. Eles cantaram
sobre temas sociais da negritude como: viver na favela, pagar as
contas, problemas pessoais relativos beleza e achar um par
romntico. Muitos tambm popularizam grias das classes populares
negras e interpretaram danas associadas aos afro-brasileiros. De fato,
muitos artistas brancos cresceram em bairros multiculturais e
multiraciais e viam essas manifestaes culturais no simplesmente
como expresses negras, mas tambm como expresses populares
brasileiras que influenciaram sua viso de mundo, ento eles a
reivindicavam como suas. (DAVIS, 2009, p. xvii, traduo minha)

Davis (2009) aposta na ideia de que a negritude passou a ser comercializada em


um mercado voltado valorizao do nacional. Em sua viso, a negritude se tornou
uma mscara, um mecanismo pelo qual os brasileiros [brancos] poderiam celebrar uma
cultura nacional autntica (DAVIS, 2009, p. 187, traduo minha). Na minha
interpretao, o cartaz branco do rdio representava a cultura nacional incorporando sua
negritude ou mestiagem, mas no se igualando a ela. A brancura visvel era como a
constatao, para amplos setores que passavam a consumir o samba, de que este j
estava civilizado, j poderia se tornar objeto de fruio e orgulho nacional.
Os temas populares e afro-brasileiros poderiam ento ser incorporados j que
no faziam referncia direta aos espaos e sujeitos marcados pela pobreza e negritude.
Antes, vinculavam-se a figuras que se associavam com o rdio e a modernidade que
estava nele representada. Ocupavam um espao simblico similar ao star system do
cinema norte-americano, mas que no contexto nacional se materializou em sua relao
com o rdio. E, por fim, se imbricavam com uma esfera de entretenimento que passava
a veicular tais manifestaes musicais em diversos estabelecimentos.
Trata-se da constatao de um filtro racial que se baseava em uma contradio
particular: valorizava-se a cultura popular, desde que se enquadrasse aos valores tidos
como modernos na capital irradiante e se apresentasse ocultando a negritude. As
consequncias materiais se faziam visveis. O racismo pode ser medido, dentre outras
coisas, pelas diferenas de salrios, na exibio dos funerais e nos estabelecimentos que
regulavam a entrada de seus artistas. O racismo institucionalizado impedia o acesso aos
negros aos maiores degraus da fama, alm de bons salrios. Como exemplos:

75
incomparveis eram os salrios e os pomposos e populares funerais de Francisco Alves
e Carmen Miranda com o de Sinh e outros compositores populares; Grande Othelo,
parceiro de Carmen Miranda, entrava no Cassino da Urca pelas portas dos fundos,
segundo relatou em entrevista de 1987 ao programa Roda-Viva.
Carmen Miranda, em uma representao do popular, encarnada em sua figura
branca, teve as portas abertas para suas performances em espaos nos quais a cultura
popular no entrava at ento, sendo protagonista no processo de ampla aceitao social
do samba. Com grande familiaridade com o mundo da cultura de massas e da moda,
incorporava em suas aparies pblicas e miditicas signos da modernidade. Por outro
lado, no deixou de reproduzir com maestria elementos prprios da cultura popular em
suas apresentaes, gravaes e entrevistas. Carmen Miranda equilibrava-se entre
tenses que existiam quando o popular era alado a nacional.
Em um perodo de fortes negociaes entre o que poderia e o que no poderia
ser considerado nacional, entre qual deveria ser o samba reconhecido e com a presena
de espaos de criao que contavam com vrios sujeitos de origem sociais distintas
participando da produo musical, as fronteiras estavam ainda pouco delimitadas, dando
margem a ambiguidades. Sai da toca Brasil de Joubert de Carvalho, foi gravado por
Carmen em 1938, versando sobre o Brasil que foi senzala danou na macumba batendo
o p no cho. bom que no te esqueas nunca que agora a dana no salo.
Na cano, Carmen parecia afinada com as perspectivas de civilizao do
samba, contrastando com vrias outras de suas msicas. No mesmo ano do samba de
Joubert, Carmen gravou Quem Condena a Batucada de Nelson Petersen que diz:
Quem condena a batucada dessa gente bronzeada no brasileiro. E nada mais bonito
que um corpo de mulher a sambar no terreiro. Como afirma a terica feminista Joan
Scott (1998), h conflitos entre sistemas discursivos, contradies dentro de cada um
deles, significados mltiplos possveis (p. 319-320). De fora do universo poltico,
marcado pelo discurso que se quer coerente e com determinados fins, antes dentro do
universo artstico, os significados expressavam ambiguidades e fluidez, em especial por
conta do momento de reconfiguraes simblicas em jogo.
Muitas das ambiguidades davam margem ao questionamento dos discursos
hegemnicos que buscavam higienizar ou civilizar o samba. Elogio da Raa de
Assis Valente, gravado por Carmen Miranda em 1933, valoriza como brasileiro o
ngo, supostamente o verdadeiro cidado nacional: Ngo bamba nos ataques do
fuzil. Ngo bronzeado, bronze que tem alma. A alma de guerreiro p'r defesa do

76
Brasil!. De um lado, a letra expressa expectativas da poca de homogeneidade
nacional, de uma raa brasileira, de outro lado, o produto final dessa raa no
aponta para o branqueamento, vale dizer, gravada por uma cantora branca. O brasileiro
caracterizado pelo bronze que tem alma, alma de guerreiro pr defesa do Brasil!,
denotando assim uma vinculao entre ngo e a instituio mxima da identidade
nacional: as foras armadas.
Os malandros e o morro povoam algumas de suas canes. A famosa Camisa
Listada (1937) de Assis Valente traz a perspectiva de uma esposa sobre seu marido
folio que, fazendo referncia ao smbolo maior da malandragem, por sua vez associada
negritude, levava um canivete no cinto e um pandeiro na mo, e no deixava de lado
a bebida alcolica, pois em vez de tomar ch com torrada ele bebeu parati e, por fim,
sonhava em se vestir de mulher na folia: se ele pega as minhas coisas vai dar o que
falar. Se fantasia de Antonieta e vai danar no Bola Preta at o sol raiar.
A dissidncia com a ideologia trabalhista vigente tendo como contraponto o
carnaval j aparece em suas primeiras gravaes, como em Dona Balbina de Josu de
Barros, na qual o trabalho me amofina, no nasci para sofrer (...). Vou me atirar na
gandaia. Pois s assim vivo bem (...). Mesmo sem ser libertina, gosto um pedao da
orgia. Nessa msica, como em muitas outras, Carmen introduz algumas grias prprias
do falar cotidiano popular carioca como Meu nego e no ?.
A religiosidade afro-brasileira tambm perpassa algumas de suas canes
gravadas. Em Feitio Gorado (1930) de Sinh h uma clara referncia a um
trabalho religioso, quando diz: tu amarraste num santo com minha roupa suada.
Jogaste ngua atrasada em vez da encruzilhada. Embaixo do teu colcho peguei meu
leno suado. Com trs nozinho apertado e o meu retrato amarrado e, fazendo
referncias a divindade de origem africana, completa: Mas eu que sou do Ogum filha
do corao. J despachei com Exu essa maldita paixo.
Carmen cantou tambm a aceitao do samba em O Samba moda (1929) de
Josu de Barros, associada a sua entrada nos sales e reconhecido pela alta sociedade,
algo que se concretizou em sua trajetria. Em Alvorada (1933) de Synval Silva, so
os doutores que chegam ao terreiro para sambar: P'r gozar a mocidade, fiz um samba
no terreiro. E tinha gente da Favela, de Mangueira e do Salgueiro. E at mesmo da
cidade, tinha gente que dot. E que sambavam de verdade, p'r mostrar o seu val. A
linguagem popular, distante do portugus formal, aparecia em muitas das msicas,
como em Yy, YY (1930) de Josu de Barros: Nunca vi festa to boa (Iai, Ioi).

77
Carnav memo o suco (Iai, Ioi). So trs dias de alegria (Iai, Ioi) que int faz fic
maluco.
Em muitos aspectos as letras de samba reforavam o que era entendido
hegemonicamente como atraso. No toa, a carreira da cantora foi tambm marcada por
desconfianas e crticas em relao a ela. Em matria da Revista da Semana de
novembro de 1936, comenta-se sobre o seu contrato, que acabou durando apenas um
ano, com a rdio Tupy. Diz o jornalista: Cinco contos por mez! Adivinho
perfeitamente a admirao dos leitores. Indignado pelo pagamento de uma cantora
popular em contraste com msicos formados em conservatrios, diz: Ento, uma
cantora de sambas no Brasil ganha cinco contos mensaes? (Arquivo da BN). Trata-se
de uma opinio minoritria, mas com relativa expresso, demonstrando que o samba
tambm acionava certos fantasmas da associao entre nao e primitivismo.
A aparncia branca de Carmen Miranda a permitiu cumprir um papel, enquanto
grande cartaz do rdio, de acomodar as tantas expectativas em jogo. Reconciliava os
desejos dos compositores populares que viam suas expresses adentrarem nos espaos
de elite, com o reconhecimento das altas camadas da sociedade que, embora com
algumas resistncias, a viam como representante de uma msica que se tornava nacional
a partir do moderno meio de comunicao do perodo: o rdio. Como cone do rdio,
passou a ser vista como uma artista especial pelo governo federal que se apoiava no
moderno meio de comunicao para construir uma unidade nacional.
Em 1933, o Rio de Janeiro no tinha mais quatro estaes climticas, mas As
Cinco Estaes do Ano do compositor Lamartine Babo, as estaes de rdio que
fervilhavam na capital federal e que eram cantadas por Carmen Miranda, Almirante,
Mario Reis e o prprio compositor. Para alm do Rio, o rdio espalhava a msica
carioca para outras regies do Brasil, permitindo uma conexo indita que se estabelecia
no pas entre vrias localidades, comprimindo tempo e espao, como na msica
Cantores de Rdio de Joo de Barro (Braguinha), gravada por Carmen em 1936 e
interpretada por ela e sua irm, Aurora Miranda, no filme Al, Al Carnaval: Ns
somos as cantoras do rdio, nossas canes cruzando o espao azul. Vo reunindo num
grande abrao, coraes de Norte a Sul. Com o rdio, o samba era divulgado como
ritmo nacional e podia chegar aos ouvidos e coraes de norte ao sul.
Com a lei que regulamentava anncios publicitrios em 1932, institui-se no
Brasil o modelo de radiodifuso comercial norte-americano a partir de concesses de
canais particulares. Neste perodo, o samba e o carnaval ganhavam espao na capital e a

78
indstria fonogrfica crescia exponencialmente com a gravao eltrica consolidada. O
disco coroava o samba, na medida em que as gravadoras instaladas no Rio de Janeiro
preferiam pegar o filo supostamente mais rentvel no momento e cuja matria prima
estava mais prxima, no caso, o samba carioca (FENERICK, 2009, p. 59). O mesmo
filo era apropriado pelo rdio e, no prprio ano da regulamentao, Carmen Miranda
assinou seu contrato com a rdio Mayrink Veiga (PRA-9), passando nos anos seguintes
de Rainha do Disco a Pequena Notvel.
Ao encontro desse processo, esto os objetivos do Governo Vargas: a unidade
nacional e a integrao de todas as regies por meio da criao de uma identidade
nacional. A ideia de unidade nacional se efetivou desde o comeo do governo
provisrio, quando em abril de 1931 criou-se o Conselho Nacional de Educao
(embora de alcance reduzido dado o sistema educacional pouco desenvolvido em
termos nacionais), regulamentando e uniformizando a educao nacional, no mesmo
momento em que se tornou obrigatrio o canto do Hino Nacional em todos os
estabelecimentos de ensino e associaes educativas (SIQUEIRA, 2004). Tal ideal
persistiu com mais fora com a emergncia do Estado Novo, algo que ganhou um marco
simblico com a queima das bandeiras dos estados em 19 de novembro de 1937,
buscando evitar possveis fragmentaes no pas e buscando a adeso unidade
nacional. O iderio nacionalista veiculado no perodo perceptvel no discurso
proferido no Primeiro de Maio de 1938 pelo Presidente Getlio Vargas:

Um pas no apenas uma aglomerao de indivduos em territrio,


mas principalmente, uma unidade de raa, uma unidade de lngua,
uma unidade de pensamento. Para se atingir esse ideal supremo,
necessrio, por conseguinte, que todos caminhem juntos em uma
prodigiosa ascenso... para a prosperidade e para a grandeza da nao.
(apud CAPELATO, 2004, p. 147)

O rdio veio cumprir papel essencial neste projeto de unidade nacional com a
criao do programa governamental Hora do Brasil em 1931, reestruturado em 1939
pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda). Um dos pontos principais da
preocupao era a integrao de outras regies ao nacional, em especial do interior do
pas, ou nas palavras do presidente Vargas, dos planaltos do interior, onde se caldeia a
nacionalidade do porvir (apud CAPELATO, 2004, p. 195). Em sntese, nas palavras
da historiadora Maria Helena Capelato: o rdio deveria estar voltado para o homem do

79
interior com o objetivo de colaborar para seu desenvolvimento e sua integrao na
coletividade nacional (CAPELATO, 2004, p. 89).
O empenho do Estado de criar uma identificao ao nacional aproveitou-se da
divulgao do samba que permeava os espaos culturais do mercado da capital federal e
que se tornava o ritmo predominante nas rdios, encampando o teor nacionalista do
perodo com canes que ligavam o Brasil ao samba e ao carnaval. A despeito da
diversidade de ritmos produzidos pelo pas, a msica que se difundia no Rio a partir da
indstria fonogrfica e do rdio tornava-se sinnimo de msica nacional.
Os vnculos entre msica popular e governo se estreitaram no decorrer da
dcada: o samba j estava presente no programa Hora do Brasil, em contrapartida, por
decreto de 1937, obrigava-se as escolas de samba a usarem enredos patriticos nos
desfiles de carnaval. Getlio Vargas era visto como parceiro do samba e da cultura
popular urbana e foi um grande incentivador do mercado de lazer, cultura e
entretenimento no Rio de Janeiro. Regulamentou as empresas de diverses pblicas
quando deputado federal em 1928 e, em seu governo, regulamentou uma lei de proteo
ao cinema nacional e aos artistas brasileiros nos cassinos. Tais relaes permitiram ao
governante estabelecer mecanismos de legitimao popular de profundo impacto:

O envolvimento da imagem do presidente com o cinema, o teatro, o


disco, o humor grfico, o Carnaval e a gravura popular revelava que a
prtica indita de produzir o consenso por meio de apelos sensoriais e
conotaes afetivas, se mostrava muito mais eficiente que a
racionalidade dos discursos. Ao amestrar os potenciais
desestabilizadores das novas tecnologias, o regime expunha a
inclinao conformista de suas formas de consumo e sua particular
adequao como recursos de gesto social. Interferindo na dinmica
dos instintos e dos afetos mais ntimos de cada um, o regime
consolidava a ordem poltica coletiva. (SEVCENKO, 1998, p. 38)

Devido a sua importncia como cantora, a trajetria de Carmen Miranda no se


limitou ao rdio: viajou boa parte do pas para apresentar a msica que se tornava
smbolo de brasilidade. Em 1932, Carmen iniciou suas excurses dentro do pas, indo a
quatro cidades da Bahia (Salvador, Cachoeira, So Flix e Alagoinhas) e a Recife, onde
se apresentou em teatros. Nos anos seguintes, Carmen passou por Porto Alegre, Juiz de
Fora, Belo Horizonte e outras cidades, interiorizando o samba, sempre contando com
uma plateia vida para conhec-la pessoalmente. Ao lado de suas excurses, passou a se
apresentar cada vez mais para um pblico de elite na capital carioca em novos
ambientes de sociabilidade que se criam com os cassinos. O jogo voltou legalidade em

80
1932, a partir da autorizao do governo Vargas, mas foi em 1935 que Getlio Vargas
criou uma lei que obrigava os cassinos a usarem artistas nacionais em nmero
equivalente aos estrangeiros em sua programao.
No ano seguinte, Carmen fez uma temporada no cassino do Copacabana Palace,
frequentado pela fina flor da sociedade brasileira, e em seguida firmou-se na
programao do internacional Cassino da Urca, onde se tornou conhecida tambm por
visitantes estrangeiros que passavam no Brasil. J no final da dcada de 30, a cantora
fez apresentaes pelo circuito dos cassinos e das guas em Minas Gerais,
aproveitando-se do iminente turismo de elite que se formava na dcada de 30 na regio
intermediria entre So Paulo e Rio de Janeiro.
Paralelamente ao seu sucesso na vendagem de discos, no rdio e em suas
apresentaes, Carmen apresentava-se tambm fora do pas, levando o produto
genuinamente nacional: o samba. Em setembro de 1931, foi em excurso para a
Argentina junto com Francisco Alves que j havia se apresentado anteriormente no pas
vizinho, sendo comparado a Carlos Gardel, cone da msica argentina. Nos anos
seguintes, voltou pelo menos uma vez ao ano, muitas vezes com sua irm tambm
cantora Aurora Miranda, para apresentar-se nos teatros portenhos, passando tambm
pela capital uruguaia Montevidu.
A cantora passou a ser amplamente conhecida em Buenos Aires, quando se torna
patente que o samba era msica representativa do Brasil, tal como o tango msica
argentina. Em maio de 1935, a sambista ganhou a alcunha de Embaixatriz do Samba
quando foi para uma nova temporada na Argentina seguida da viagem do presidente
Vargas em conferncia de paz envolvendo o conflito entre o Paraguai e a Bolvia pela
regio do Chaco.
Em 1937, um golpe de Estado encampado pelo prprio governo desbancou as
pretenses de democratizao do pas, constituindo-se, assim, o Estado Novo. Este
assentou sua legitimidade atravs da ideia de que a modernizao e a unidade nacional
s se efetivariam por meio de um Estado forte, visto como um condutor de uma nova
era que seria marcada no pelo confronto de ideologias e posies de classe, mas pela
complementaridade orgnica entre o operariado e os empresrios. A fomentao de uma
identidade nacional revelou-se ainda mais fundamental, divulgou-se a ideia de que todos
so trabalhadores da ptria e devem como bons cidados produzir e devotar seu corao
nao (CAPELATO, 2004).

81
A msica foi um dos elementos centrais na estratgia do governo de fomentao
da identidade nacional e os meios de comunicao serviram como instrumentos
necessrios para a amalgamao da diversidade populacional nos cantos do pas a partir
do ideal de nacionalidade. Com a criao do DIP (Departamento de Imprensa e
Publicidade) em 1939, estabeleceu-se no apenas um rgo de censura que evitasse
possveis conflitos e fraturas que afetassem a unidade nacional, como tambm
programas de difuso da identidade nacional.
Para tanto, a produo cultural passou a depender do crivo do Estado que se
elegeu como condutor da cultura nacional. O povo, enaltecido enquanto depositrio de
uma cultura genuinamente nacional, mas tambm representativo da desordem e do
atraso, deveria ser disciplinado e guiado por um Estado forte encarnado em um lder
amparado por uma estrutura estatal desenvolvida e por um grupo de intelectuais
nacionalistas. Durante o governo Vargas, os meios de comunicao, especialmente o
rdio, passaram a ter explicitamente uma importncia com vistas formao da
conscincia nacional considerada indispensvel integrao da nacionalidade; no
Estado Novo, o veculo foi valorizado como instrumento de propaganda poltica do
regime (CAPELATO, 2004, p. 88).
Como observa Renato Ortiz, h um hiato entre a inteno poltica do Estado e a
realidade social que impunha limites: o governo de Getlio, apesar de sua tendncia
centralizadora, tinha que compor com as foras sociais existentes (neste caso, o capital
privado, que possua interesses concretos no setor da radiodifuso) (ORTIZ, 2006, p.
53). O modelo norte-americano de radiodifuso se deparou com a inspirao de regimes
autoritrios europeus presente nos ideais polticos de integrantes do governo brasileiro
que buscavam tirar o mximo de proveito das tcnicas de propaganda e dos meios de
comunicao. Deste embate, surgiu o investimento na Rdio Nacional, fundada em
1936, mas que passou, em 1940, a ser encampada, em parte, pelo governo. Trata-se de
uma das cinco maiores rdios do mundo no perodo, atingindo parte significativa do
territrio brasileiro e pases vizinhos com programas orientados pelo DIP: a ambio
da Rdio Nacional no era apenas integrar o Brasil, mas tambm mostrar a civilizao
brasileira aos povos civilizados do mundo (FENERICK, 2009, p. 177).
Por meio do rdio, o samba passava a ser difundido nacional e
internacionalmente. Mas o governo no apenas estimulava o samba e a cultura popular
como passava a cobrar deles uma adeso s suas pretenses de unio nacional e seus
contornos ideolgicos. Passou-se regulamentao dos desfiles de carnaval e

82
subveno Estatal, acontecimentos que tambm produziram modificaes no universo
do samba, atravs do incentivo de enredos edificantes e de temas nacionais. Durante o
Estado Novo as escolas de samba eram obrigadas a trabalharem com temas nacionais e
muitos temas foram proibidos, constituindo uma negociao que acabou por incentivar
o chamado samba exaltao, amplamente vinculado aos ideais governamentais.
A revista Cultura e Poltica, uma revista oficial e diretamente vinculada ao DIP,
em artigo de Martins Castelo (dezembro de 1942, p. 174-176, Acervo da BN) intitulado
O samba e o conceito de trabalho, versa sobre o excesso, ao elogio da vadiagem,
exaltao do vagabundo de camisa listrada (p. 174) contida no samba devido a suas
razes histricas na escravido. Tais razes seriam responsveis pela caracterizao do
samba como veculo de repdio ao trabalho. No entanto, salienta a evoluo do samba
em seu tempo que desceu as ladeiras do morro para o asfalto das avenidas (p. 175).
Com a mudana, os sambistas teriam a sua atividade nas fbricas e nos
estabelecimentos comerciais. Somente noite, de regresso ao lar, pegam o violo,
reunem (sic) a turma no terreiro e principiam a batucada (p. 175). Trata-se de
mudanas estticas e ideolgicas justificadas em argumentos que alocavam as prticas
populares ao atraso e violncia, acompanhando uma verdadeira caa aos malandros e
prostitutas da Lapa, calcados em argumentos semelhantes, iniciando assim o declnio
desse bairro bomio (FENERICK, 2009, p. 123). Ao lado das mudanas, o samba era
divulgado no programa A Hora do Brasil, muitas vezes reproduzido por alto-falantes
instalados nas praas das cidades do interior (CAPELATO, 2004, p. 88).
Foi nesse contexto que a voz da estrela do rdio, Carmen Miranda, chegava a
pessoas de vrias regies do pas por meio das ondas eletromagnticas, enquanto sua
imagem estampava as revistas ilustradas que circulavam nos centros urbanos, bem
como sua imagem em movimento aparecia no cinema que compunha seu elenco
basicamente com os cartazes do rdio. Como dolo nacional, constitua-se enquanto
sujeito importante na configurao de um universo simblico que se institua enquanto
nacional. Participou dos filmes Carnaval Cantado (1932), Al, al Brasil (1935),
Estudantes (1935), Al, al Carnaval (1936) e Banana da Terra (1938). Seu ltimo
filme foi o primeiro passo para a internacionalizao de sua carreira, levando o seu
nmero mais famoso a apresentaes em cassinos e teatros, em especial a regulares
apresentaes no cassino da Urca.
Com incomparavelmente menos recursos que The Gang is All Here e com uma
estrutura amadora da produo distribuio quando comparada aos padres

83
hollywoodianos, Banana da Terra ofereceu tambm uma viso fantasstica do
continente americano abaixo do equador, com um enredo focado em uma ilha fictcia
chamada Bananolndia. A ideia de uma Repblica de Bananas e den tropical j est
presente neste filme. No enredo, uma monarquia fictcia, a ilha da Bananolndia,
produz mais bananas do que consegue comer; o primeiro-ministro (Oscarito) sugere que
a rainha (Linda Batista) venha ao Brasil para vender o excesso; ela chega ao Rio em
pleno Carnaval e... Downey no queria saber. O que importava era o repertrio musical
(CASTRO, 2005, p. 168)22. Diga-se de passagem, como em outros filmes, era lanado
s vsperas do carnaval e com a presena de muitos cantores e cantoras do rdio. Isso
estimulava um pblico vido por ver suas estrelas nas telas e, assim, tentava-se a duras
custas fazer de um empreendimento altamente custoso, como o cinema, algo rentvel.
Entre bananas e carnaval, o filme de grande bilheteria seria reconhecido como
um precursor da chanchada (DENNISON; SHAW, 2004), contando com roteiro escrito
por Mario Lago e Joo de Barro (Braguinha) e produzido pela Sonofilmes do norte-
americano Wallace Downey. As bananas tambm estariam presentes em muitos outros
carnavais desde o ano anterior quando Joo de Barro (o mesmo que escreveu o roteiro
do filme) e Alberto Ribeiro gravaram a msica Yes, ns temos bananas, como uma
resposta msica norte-americana de 1923 Yes, we have no bananas, apresentando
assim o pas como aquele definido pela fartura da fruta tropical. Com o sucesso
comercial de Banana da Terra no pas, acompanhado do sucesso de Carmen Miranda
no cinema norte-americano, suscitou a composio de uma trilogia de frutas tropicais
incorporando ao primeiro filme outros dois: Laranja da China (1940) e Abacaxi Azul
(1944).
A abundncia tropical associada ao paraso ednico fazia parte de uma imagtica
local constitutiva de como o Brasil passava a ser representado em determinados
contextos locais, com o desenvolvimento de um mercado de entretenimento na capital
federal, no qual se encontravam articulados a comemorao anual carnavalesca, o rdio
comercial e os teatros de revista. Parte da populao letrada e das classes privilegiadas
negava essa produo, amplamente criticada, de onde vieram os termos pejorativos de
chanchada e de abacaxi para os filmes brasileiros. O segundo termo tambm era
utilizado na crtica aos filmes que Carmen Miranda atuava em Hollywood.

22
Devido a um incndio na gravadora Sonofilmes, as cpias dos filmes acabaram. No h como ter
acesso ao filme original completo.

84
No toa, o mesmo termo abacaxi serviu de ttulo para a trilogia tropical de
Downey. Ironizando a prpria crtica nacional e parodiando as representaes
hollywoodianas, tal produtor deu outros sentidos prprios ao contexto local e com
linguagem prpria. Constitua-se uma forma de representar o pas que pouco pode ser
explorada se deixarmos de lado as representaes via meios de comunicao de massa
que circulavam internacionalmente. No entanto, as representaes nacionais carregavam
tambm uma histria anterior ao cinema, dentro do mercado de cultura de massas
carioca.
Banana da Terra foi originalmente uma personagem na pea do teatro de revista
Laranja da China, interpretada por Araci Crtes, mulata reconhecida como a
quintessncia da brasileira, por conta da cor de sua pele, alm de ser considerada a
rainha do teatro de revista e soprano afinadssima. Sua personagem dava margem para
um trocadilho. Na pea, quando se tratava de indagar como comer a banana da terra,
uma ambiguidade instaurava-se entre a fruta e a personagem (WILLIAMS, 2006).
Pode-se dizer que ambiguidade similar se dava com a personagem, j com uma histria
especfica no teatro de revista, que Araci interpretou em outra pea: a baiana, figura
sensualizada que est sempre a oferecer a seu interlocutor a provar sua comida.
Do cinema norte-americano ao entretenimento brasileiro, atesta-se que a
identidade nacional performada em um corpo feminino sensual dentro de um cenrio de
frutas tropicais se configurava em lgicas nacionais e internacionais entrelaadas, com
influncias recprocas. As consideraes de que a trajetria de Carmen Miranda nos
Estados Unidos uma fabricao daquele contexto, deixa de levar em considerao a
complexa criao que circulava mundialmente por meio de trocas culturais favorecidas
pelos meios de comunicao de massa. Carmen Miranda levou, para os Estados Unidos,
muitos aspectos da cultura popular presente no entretenimento da capital federal.
H muitos elementos semelhantes entre Araci Crtes e Carmen Miranda. A
ltima veio a adotar a personagem da baiana no filme com o nome de Banana da Terra,
mas Carmen herdou mais de Araci do que sua personagem, salienta-se: um reconhecido
linguajar brasileiro, os duplos sentidos e a sensualidade. No entanto, se Araci fez
originalmente sua carreira entre os teatros de grande apelo popular da Praa Tiradentes,
Carmen Miranda construiu sua carreira no rdio e, a partir dele, pavimentou seu sucesso
em cassinos internacionais do Rio de Janeiro, nos quais levou sua personagem da baiana
do cinema ao espetculo ao vivo e, em seguida, rumou com ela aos Estados Unidos. A
baiana com toda uma histria prpria no pas se constituiu como elemento do universo

85
simblico nacional, articulando no apenas a dimenso da raa, como tambm a de
gnero. Com Carmen Miranda, portanto, tal representao da brasilidade passa a ser
internacionalizada via meios de comunicao de massa.
A personagem da baiana na interpretao de Carmen Miranda, incorporada ao
simblico nacional, evoca a negritude e, associada a ela, a sensualidade. Desde o sculo
XIX, a baiana sinnimo da mulata no teatro de revista, atualizando as narrativas
coloniais que a sensualizavam, ao mesmo tempo em que representava a sntese nacional
concebida como racialmente harmnica. Tal personagem estilizada por Carmen
Miranda, cantora branca e de olhos claros, de forma a denotar traos cosmopolitas.
Como afirma Tania Garcia (2004, p. 111) sobre a baiana de Carmen: seus laos
identitrios eram com a cidade espetculo, com o mundo do entretenimento. Segundo
Robert Stam (2008, p. 132), Carmen Miranda surge com um papel ambguo: ela
representava ao mesmo tempo um mal disfarado desejo de embranquecimento e uma
simpatia pela cultura negra com sua vestimenta imitando as tpicas baianas negras, o
samba, o batuque, os balangands, os instrumentos musicais. Representando um
primoroso equilbrio de opostos (MENDONA, 1999, p. 53), constituiu-se no Rio de
Janeiro como um dolo que pde ser apreciado por um pblico de diferentes classes e
grupos sociais/raciais.
Carmen se equilibrava nas tenses que envolviam o redimensionamento do
nacional, sintetizando demandas contraditrias. Sua carreira, dada a proximidade com
artistas populares, era vista como representativa do reconhecimento social do samba. Ao
mesmo tempo, associava-se branquitude, entendida no apenas em termos cromticos,
embora estes fossem essenciais e tampouco era baseado em sua ascendncia europeia
que muitas vezes foi levantada contra ela, em tons antilusitanos. A branquitude de
Carmen Miranda era vinculada ao moderno meio de comunicao do perodo e com a
cultura de massas, por meio da qual soube trabalhar sua imagem de forma a vincular-se
no a manifestaes populares tidas como menos civilizadas, mas com a sofisticao
de suas aparies pblicas e miditicas e performances.
Da presena das baianas como vendedoras de quitutes na capital ou lderes
religiosas e personagens importantes nas reunies de samba, passando pela presena de
suas imagens no carnaval com a perenidade da ala das baianas e chegando s
atuaes de baianas no teatro de revista, pode-se dizer que tal figura s amplamente
aceita como smbolo nacional com a interpretao de Carmen Miranda, branca e cone
do rdio comercial brasileiro. No auge de sua carreira no Brasil, em 1939, em uma de

86
suas apresentaes no Cassino da Urca, Carmen foi descoberta por Lee Shubert, um
empresrio da Broadway que lhe abriu as portas para a internacionalizao de sua
carreira, contratando-a para seus primeiros trabalhos nos Estados Unidos.
A viagem de Carmen Miranda ao exterior tomou ares de uma expedio
diplomtica na rea cultural, sendo ainda mais reconhecida como Embaixatriz do
Samba, coincidindo com o perodo do Estado Novo, o qual aprofundava seu interesse e
apoio poltica cultural que valorizasse a unidade nacional. A trajetria de Carmen
Miranda de Pequena Notvel a Embaixatriz do Samba marca a difuso
primeiramente interna e depois no exterior da msica popular nacional. Quando migra
para os Estados Unidos assume o status de representante da nao, tendo o aval e apoio
do governo federal. Isso visvel quando, pouco antes de Carmen embarcar para os
Estados Unidos, o presidente Getlio Vargas sai de seus cuidados em Caxambu, Minas
Gerais, onde fazia uma estao de guas, para receber Carmen e o Bando da Lua que
lhe deram um show no hotel (CASTRO, 2005, p. 194).
Em entrevista publicada no Dirio de Notcias de 19 de abril de 1939, Carmen
prometia: Vou botar tempero brasileiro no gosto e no gto daquela gente. (...) E vo
comigo seis baianas repenicadas, isto , vou levar seis fantasias representando a gente
do Bonfim... Mandei caprichar nesses trajes da nossa terra. (...) (GARCIA, 2004, p.
185). O tom nacionalista que marcava sua viagem era enfatizado pela presena desta
figura, j parte do universo simblico da nao. Mantendo e remodelando sua
indumentria da baiana, Carmen fez sucesso absoluto nos teatros da Broadway,
influenciando fortemente a moda local. Sua fama, enfim, abriu caminho para sua
carreira em Hollywood.
Com sua viagem aos Estados Unidos, os turbantes, balangands e saias passaram
a compor uma representao da mulher latino-americana, personagem que tinha uma
histria especfica no pas do norte. Carmen, apelidada de Brazilian Bombshell, deu a
esta personagem novos contornos que iam alm da ento j conhecida frmula da
mulher de cabelo moreno, de racionalidade duvidosa e sexualidade enfatizada,
representada por Lupe Velez e outras atrizes do cinema hollywoodiano. Na esteira de
sua experincia no mercado de entretenimento carioca, Carmen Miranda, que tambm
contava com experincia pessoal na rea de costura e moda, comps com ajuda do staff
da Fox tantas baianas multicoloridas, representativas da tropicalidade e simtricas
alegria do discurso pan-americano da Poltica de Boa Vizinhana, reforando aspectos
centrais da mulher latino-americana como o sotaque reforado e a sensualidade.

87
Carmen exigira de Lee Shubert, atravs de uma negociao difcil por
telegramas intermediados por Ray Rice presidente da Pan American Airlines no Rio
de Janeiro a ida do grupo Bando da Lua que a acompanhou nos palcos e em seus
filmes nos Estados Unidos. O samba passou com ela a ser reconhecido, junto com a
rumba e o mango, pelo pblico norte-americano. Ela cantava em portugus,
desvinculando a associao automtica no pas do norte entre Amrica Latina e lngua
espanhola. Com sua interpretao, ela levou aspectos importantes de uma identidade
nacional que se forjava na capital brasileira via cultura de massas, dos teatros de revistas
aos cassinos regionais ou internacionais, passando pela mediao protagonista do rdio
que se estabelecia como meio de comunicao por excelncia no pas.
A ida do conjunto musical Bando da Lua, acompanhando a cantora brasileira,
dependeu da articulao de membros do governo, como Lourival Fontes do
Departamento Nacional de Propaganda a Dcio Moura, primeiro secretrio do
consulado brasileiro em Nova Iorque, devido legislao protecionista em relao aos
msicos norte-americanos. A justificativa de levar o grupo com a cantora seria de levar
a msica genuinamente nacional, apresentar a verdadeira cultura brasileira. A
carreira da cantora brasileira representa o momento pice do estreitamento das relaes
entre o governo brasileiro e o governo dos Estados Unidos no fim da dcada de 30,
quando a poltica externa brasileira se caracterizava por uma importncia regional e
posicionamento internacional independente.
O Brasil que atuou como mediador importante em situaes blicas vizinhas e
posicionava-se em jogo duplo, ou com equidistncia pragmtica em relao aos
Estados Unidos e Alemanha, no perodo antecedente Segunda Guerra, com a
finalidade de barganhar vantagens polticas e econmicas (CERVO; BUENO, 2008).
Possuindo vrios membros do governo que nutriam simpatias aos regimes totalitrios
europeus, a aproximao diplomtica com os Estados Unidos se deu com a chefia de
Oswaldo Aranha do Ministrio das Relaes Exteriores a partir de 1938. At janeiro de
1942, o pas se manteve neutro no conflito mundial, o que permitiu negociar uma srie
de pontos econmicos e comerciais com os pases rivais. Sob a direo de Aranha, uma
srie de acordos bilaterais foram cristalizados, como emprstimos para liquidao de
dvidas, ajuda financeira e tecnolgica para a construo da siderrgica nacional de
Volta Redonda, a modernizao e reequipamento das foras armadas, bem como a
autorizao para uma base norte-americana em Natal (CERVO; BUENO, 2008).

88
De um governo que flertava com Washington ao mesmo tempo que mandava
beijos a Berlim, a viagem de Carmen Miranda significou um momento de virada
importante na posio do governo brasileiro internacionalmente. Representou uma
contribuio simblica do Brasil ao pan-americanismo. Por meio de uma negociao
estratgica, smbolos que se consolidavam como nacionais passavam a ser
internacionalizados. Foi do mercado de entretenimento carioca que saiu esta
personagem e era por meio deste que ela se modificava na viso dos brasileiros.
Nas salas de cinema, assistia-se os filmes de Carmen Miranda, anos aps serem
lanados no mercado norte-americano, depois de serem aguardados e anunciados por
revistas como O Cruzeiro, Cena Muda e Cinearte, para onde se direcionavam os
comentrios dos leitores crticos e atentos carreira da brasileira. O cinema brasileiro
se apropriava da imagem dela em pardias e as baianas continuaram no teatro de
revista. Trata-se de um mercado fortemente influenciado pela cultura de massas norte-
americana que ento com Carmen Miranda e a Poltica da Boa Vizinhana que iria
incluir tambm Aurora Miranda, sua irm, e a criao do Z Carioca por Walt Disney
passava a ser um espao em que o pas se via nas produes estrangeiras.
A trajetria de Carmen Miranda evoca a transformao qualitativa da discusso
do nacional que passava a ser constitudo por meio da cultura de massas. A cultura
popular alada a nacional convivia com desejos de reconhecer-se enquanto
autenticidade prpria nao, ao mesmo tempo em que era regulada por setores da elite
e do governo a se apresentar como civilizada nos cdigos da branquitude. O mercado
de cultura de massas, no qual o Estado se apoiou, representou a materializao de um
filtro racial e moral na incorporao da cultura popular. Filtro este que foi renegociado e
burlado pelos populares que buscavam o reconhecimento de suas expresses culturais
como nacionais.
A sensualidade expressa em um corpo feminino e com caracterizaes derivadas
da diferena racial fazia parte das performances de Carmen Miranda nos dois contextos,
muito embora fosse alvo de interpretaes distintas dadas os diferentes enquadramentos
discursivos. A baiana de Carmen, no Brasil, era a expresso de uma diferena racial, a
mulata, integrada ao nacional por meio da figura branca de Carmen. A brasilidade de
Carmen levada aos Estados Unidos, longe de representar uma identidade, era
representativa da diferena racial. Tais distines sero abordadas nos prximos
captulos, considerando que a figura da latino-americana se sobreps da baiana, que ,
por sua vez, no deixou de coexistir na interpretao dos brasileiros.

89
A viagem de Carmen representou a exportao de elementos que se
consolidavam como representativos do universo simblico nacional, adentrando ento
em um novo regime de representaes que atualizava a forma como concebia a Amrica
Latina dentro de uma visualidade especfica do cinema de Hollywood. A partir de ento,
Carmen Miranda passou a responder a expectativas distintas no Brasil e nos Estados
Unidos. Acompanhando seus filmes e entrevistas na imprensa, o pblico brasileiro via
as representaes do nacional serem produzidas para alm de seus limites territoriais.
Mnica Schpun (2008) fala em um dilogo entre dois pblicos que marcou a
carreira internacional de Carmen. Busco explorar como sua imagem suscitou leituras
mais heterogneas do que apenas a de dois pblicos. Leituras que tm de ser analisadas
investigando a lgica comercial altamente competitiva do sistema de estdios
hollywoodianos e as dimenses polticas e econmicas envolvidas. Meu objetivo nos
prximos captulos compreender as relaes entre a trajetria de Carmen e suas
recepes. No captulo a seguir, busco explorar como recepes hegemnicas de sua
carreira se configuraram a partir do que se denominou de colonialidade. Em seguida,
servindo-me do conceito de performatividade, procuro lidar com a forma como
Carmen Miranda criou suas performances e sua persona a partir dos limites simblicos
que a circundavam, mas indo alm deles.

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CAPTULO 2: MAKING MONEY WITH BANANAS: A
PERFORMATIVIDADE DA COLONIALIDADE POR CARMEN MIRANDA

2.1 A colonialidade como pano de fundo para a carreira de Carmen Miranda

possvel imaginar a abertura de The Gang Is All Here vista dos cinemas
brasileiros, quando Carmen Miranda surge nas telas cantando Aquarela do Brasil, tpico
samba de exaltao do perodo do Estado Novo, em portugus para um pblico
internacional. O Brasil da me preta no cerrado, do rei congo no congado, da
morena sestrosa, do olhar indiscreto o pas de Ary Barroso que d samba.
Do outro lado do continente, salvo o ttulo da msica em ingls Brazil, pouco ou
nada o pblico norte-americano entendia, mas, ao mesmo tempo, muito bem
compreendia o Brazil de Busby Berkeley com olhar, magicamente produzido pelas
cmeras, indiscreto ao ver uma paisagem de mulheres com corpo mostra dormindo e
com a brasileira sensual tirando suspiros de seus anfitries. No difcil ver as simetrias
entre o som e a imagem produzidos nos nmeros musicais dos filmes que no se
reduziam a mesma coisa, mas que estavam, sem dvidas, entrelaados em uma
representao feminina e sensual.
Cynthia Enloe (1990) traz uma questo importante discusso aqui apresentada.
Trata-se de uma crtica feminista aos estudos de relaes internacionais, mostrando
como este ofuscou suas ntimas relaes com as dimenses de gnero. No toa, a
imagem que fecha o segundo musical j analisado, de The Gang Is All Here, com a
figura de Carmen Miranda diminuda entre as frutas tropicais, a capa de seu livro.
Embora Carmen no seja exatamente o objeto central de suas reflexes, a figura da
brasileira sintetiza a importncia de uma representao feminina dos pases latino-
americanos nos empreendimentos polticos e econmicos do pas do norte de seu tempo.
Segundo a autora, a poltica internacional foi teorizada como estritamente masculina,
invisibilizando os papis das mulheres (colonizadas ou colonizadoras) no
empreendimento colonial, ocupando funes subalternas, embora no menos
importantes para a dominao poltica e econmica23.

23
Mulheres colonizadas tm servido como objetos sexuais para os homens estrangeiros. Algumas casam
com estes homens e assim facilitam alianas entre governos estrangeiros, companhias e povos
conquistados. Outras tm trabalhado como cozinheiras ou babs para os homens estrangeiros. Elas tm
reforado o senso de superioridade moral das mulheres brancas, aceitando sua instruo religiosa e social.

91
Considerando o colonialismo como um empreendimento que depende de uma
concepo de aventura masculina (ENLOE, 1999, p. 43), a representao feminina do
colonizado vai alm apenas de uma caracterizao subalterna, ela compe um atrativo
desejante aos colonizadores de conhecerem feminilidades exticas alm mar. A
perspectiva da autora est em consonncia com a obra de Robert Young (1995) que
explora como pases com experincia colonial e escravista so marcados pelo que
denomina de desejo colonial.
A experincia colonial se d por meio da conjuno entre discursos econmicos
e sexuais e se estabelece, de forma geral, pelo desejo branco sobre o Outro, constituindo
discursivamente uma alteridade saturada de sexualidade, propensa ao intercurso sexual
(YOUNG, 1995, p. 194). Trata-se de um processo simultneo de sexualizao e
racializao em que as mulheres colonizadas foram significadas ao mesmo tempo como
sensuais e exticas. A sociloga indiano-britnica Avtar Brah (2006) descreve como
permanecem nos pases ps-coloniais e ps-escravistas processos simultneos de
sexualizao da raa e racializao do sexo.
No caso brasileiro, com um histrico colonial e escravista, reservou-se s
mulheres negras e, especialmente, s mestias, nas narrativas nacionais, a qualidade de
sensuais a partir da qual tomaram um aspecto central na construo simblica da nao.
Laura Moutinho (2004) aborda narrativas nacionais que descrevem a formao da nao
a partir da dade homem branco e mulher mulata, casal que supostamente constituiu a
especificidade nacional, baseada em um sistema de privilgios de gnero e raa
conferido ao homem branco. A esfera das relaes inter-raciais era representada como
extraconjugais, sendo a relao entre homem branco e mulher branca a esperada para as
relaes matrimoniais. A mulher branca era representada como a esposa do lar e me e,
neste sentido, classificada a partir da pureza e assexualidade. O homem negro tambm
foi excludo das representaes nacionais.
Dentro de uma histria poltica e cultural na qual o desejo pelo branqueamento
populacional foi eleito como fator essencial civilizao, a mulata se conformou como
um smbolo nacional, naturalmente sensual, denotando harmonia racial e um caminho

Elas tm sustentado os homens em suas comunidades quando o autorrespeito masculino agredido pelo
desprezo e condescendncia dos colonizadores. Elas tm plantado milho, inhame e arroz em pequenos
espaos para sustentar famlias, ento seus maridos podem ser recrutados para trabalhar milhas distantes
em minas ou plantaes de propriedade estrangeira. Mulheres como smbolos, mulheres como
trabalhadoras e mulheres como quelas que nutrem e educam so cruciais para o empreendimento
colonial como um todo (ENLOE, 1999, p. 44, traduo minha).

92
para a branquitude a ser alcanada. Com a ascenso do samba msica nacional e os
objetivos polticos integradores do contexto, a figura de uma mulher mulata como
smbolo nacional adquire ainda uma importncia maior. Carmen Miranda pde encarnar
todos estes elementos com uma ampla aceitao social ao incorporar a figura da baiana
estilizada em sua aparncia branca e sintonizada com a moda. Ao internacionalizar a
baiana, participava ento de uma dupla lgica (a prpria das representaes norte-
americanas e a brasileira) que fornecia representaes que caracterizariam a desigual
relao entre os Good Neighbors.
Hollywood j produzira inmeros filmes sobre a Amrica Latina e j consolidara
certos elementos prprios a uma representao de seus vizinhos continentais, por sua
vez atualizando narrativas anteriores. Enquanto John J. Johnson (1993) analisa as
representaes em cartoons norte-americanos durante o sculo XX em que a Amrica
Latina aparecia com feies infantis, sexualmente feminizadas e negras, Joo Feres
Junior (2004) analisa a representao dos latino-americanos na literatura acadmica
como estruturada em termos de oposio assimtrica, na qual o Eu v no Outro
somente reflexes invertidas de sua prpria auto-imagem (p. 42). O autor investigou a
historicidade do termo Latin America nos Estados Unidos que comeou a ser usado a
partir da ltima dcada do sculo XIX, herdando certas caractersticas atribudas a uma
Espanha representativa do atraso em seu iberismo e catolicismo.
Segundo Feres Jr. (2004), a Amrica Latina passou ento a ser representada
como um todo coerente, pelo saber cientfico e pela linguagem cotidiana, onde se
ressaltam muito mais semelhanas do que diferenas entre os seus diversos pases. Nos
Estados Unidos ela adquire um sentido especfico prprio ao representar a totalidade
coesa da Amrica Latina, com suas sintomticas caractersticas de atraso em relao
aos modernos personagens representativos da potncia norte-americana. A produo
acadmica ento se baseia em um raciocnio sinedquico, em que um aspecto contextual
de um pas serve para referenciar uma caracterstica generalizante ao subcontinente.
Segundo o autor, so trs tipos de oposio assimtrica: racial, cultural e temporal. Os
latino-americanos constituiriam aspectos de um povo racialmente inferior, atrasado e
no desenvolvido culturalmente. Neste aspecto, a literatura acadmica, muito vinculada
a objetivos polticos, embasara ideias do protagonismo norte-americano como essencial
ao desenvolvimento dos pases ao sul da fronteira.
Charles Ramirez Berg (2002) perfaz uma discusso aproximada focando na
especificidade do cinema norte-americano. Em termos gerais, o autor salienta que ao

93
da narrativa nos filmes hollywoodianos tende a ser branca, ocidental e masculina,
mesmo quando a presena de latino-americanos essencial ao roteiro, no qual acabam
de diversas formas por reforar o protagonismo das personagens hegemnicas. Dada a
impossibilidade de conter toda a amplitude da representao aos latino-americanos em
um personagem, Berg (2002) aponta a importncia da construo de diversos
esteretipos latino-americanos com traos denotativos e conotativos especficos: o
bandido (greaser) e a prostituta, o macho bufo e a mulher palhaa, o Latin lover e a
mulher morena (p. 39, traduo minha).
Tais elementos tornavam-se clichs de fcil retorno econmico a ponto de se
tornarem perenes em sentido conotativo, embora assumirem feies variadas conforme
perodos histricos distintos. Priscilla Ovalle (2011) atenta para um destes elementos: a
mulher latino-americana no cinema, caracterizada pela dana e corporificao. Tais
elementos se traduzem em sua sexualizao e assertividade derivada de sua racializao.
Atualizando representaes colonialistas que criaram a ideia das mulheres nativas como
sensuais e perigosas, o expansionismo dos Estados Unidos desde o sculo dezenove
atribuiu caractersticas homlogas s mulheres latino-americanas.
dentro deste histrico de representao, marcado por continuidades
representacionais relevantes, que se desenvolve a carreira de Carmen Miranda. No
entanto, trata-se de um contexto de redimensionamento da representao, tendo em vista
a Poltica de Boa Vizinhana em andamento. Darlene Sadlier (2012) qualifica este
perodo como indito ao colocar nfase na diplomacia cultural norte-americana (soft
power), algo que pde ser concretizado utilizando o cinema (mas tambm o rdio, mdia
impressa e outros meios) como estratgia principal para difundir a influncia norte-
americana ao sul da fronteira sob a retrica da amizade pan-americana.
Sob a liderana de Rockfeller, a CIAA foi o rgo que supervisionava e
financiava projetos, mas tambm contava com a participao da Motion Pictures Society
for the Americas, dirigida por diretores dos estdios de Hollywood, como tambm da
superviso do Production Code Administration, que contava de forma indita com a
participao especial para assuntos latino-americanos do supervisor cubano-americano
Addison Durland. O supervisor expe seu desafio em matria do New York Times (8 de
maio de 1941, Arquivo da MHL):

Os latinos esperam uma certa quantia de bajulao e os filmes se


apresentam como um excelente meio. Voc nunca pode fazer um

94
filme sobre uma Estrada de tabaco na Amrica Latina e fazer
sucesso com ele por l. Eles no gostam de ver esse lado de sua vida
descrito, continua: com os americanos, isso diferente. Americanos
esperam exagero e mesmo o ridculo na histria do enredo e o cmico
aceito como uma licena cinematogrfica.

Durland explicita uma mudana necessria na representao dos vizinhos, muito


embora no a justifica pelo vis colonialista e racializante das representaes
cinematogrficas e sim, a partir de uma suposta falta de capacidade de compreenso dos
expectadores latino-americanos. Para levar a cabo as transformaes objetivadas, uma
enorme estrutura foi estabelecida. De acordo com a descrio da brasilianista Darlene
Sadlier, tratou-se da:

maior ofensiva cultural objetivando o sul, administrada por uma


coalizo de funcionrios do governo, negociantes e lderes industriais,
alguns dos quais tinham interesses financeiros diretos na Amrica
Latina. Uma enorme burocracia com centros nas costas leste e oeste e
na capital federal Washington, foi criada, recrutando e guiando o
trabalho de artistas, cientistas sociais, estatsticos e diplomatas. (2012,
p. 07, traduo minha)

Neste projeto, a participao reflexiva de vrios intelectuais foi importante,


colaborando com anlises, crticas e proposies CIAA. Leonard W. Doob, doutor em
psicologia pela Harvard, professor da Yale University, especialista em pesquisa da
propaganda na Alemanha de seu tempo, prope a ideia de que a CIAA teria que
combater as propagandas da Alemanha nas Amricas. Algo que se encontra simtrico
em documentos oficiais, como o Philosophy and Organization of the Office of the
Coordinator of Inter-American Affairs que defende a ideia de que a propaganda nazista
era falsa e interesseira enquanto a norte-americana verdadeira, ou seja, de real interesse
aos latino-americanos. Propunha ento estabelecer credos compartilhados: construir
crenas por meio de um programa de informao eficiente e difundido (SADLIER,
2012, p. 19), criando um sentimento compartilhado de afinidade, reforando as
caractersticas comuns.
A CIAA foi ramificada em vrios setores e o responsvel pelo segmento do
cinema foi John Hay Whitney, multimilionrio, ento vice-presidente do MoMa
(Museum of Modern Art de Nova Iorque) e presidente da Film Library, alm de um
capitalista com muitas relaes com a indstria flmica, financiando a companhia
Technicolor e o estdio de produo de David O. Selnick (SADLIER, 2012, p. 22). Sob
sua direo, e a posterior assumida por Francis Alstock, a CIAA produzia filmes

95
educativos, informativos e documentrios difundidos tanto nos Estados Unidos como
em muitos pases latino-americanos. E alm deles, grandes projetos com estdios
comerciais reconhecidos eram levados a cabo.
A mdia impressa norte-americana publicava matrias que apoiavam com
entusiasmo as novas polticas direcionadas aos bons vizinhos. A Motion Picture
Herald (3 de dezembro de 1938, Arquivo da MHL) divulgava um projeto do governo de
1 milho de dlares para cimentar a boa-vontade para com os pases latino-americanos.
O objetivo era claro: agrupando todas as foras comerciais, culturais, cientficas e
tcnicas dos Estados Unidos em um esforo de contra atacar o nazismo e outras
propagandas de estados totalitrios na Amrica do Sul (traduo minha). De outro
lado, apontava crticas e deficincias em relao s representaes dos latino-
americanos, salientando a necessidade de supervisores qualificados e denunciando o
pouco caso de estdios em mudar a perspectiva de seus filmes.
Mesmo uma crtica brasileira em artigo de Irineu Macedo Soares, ressaltando
como o pblico sul-americano considerava distante a caracterizao que os produtores
do norte faziam, aparecia no NY Herald Tribune (15 de junho de 1941, Arquivo da
MHL). Tendo como critrio de avaliao da qualidade flmica a representao
fidedigna, o autor reclama, referindo-se a That Night in Rio e Down Argentine Way, os
dois primeiros filmes de Carmen Miranda, da falta de autenticidade na caracterizao
flmica de seu povo e seus vizinhos prximos afirmando: Hollywood demonstra que
tem pouca considerao pela importncia da fidelidade cinemtica, ou ento ignorante
a respeito do hemisfrio sul (traduo minha).
The Gangs All Here (1943) tambm foi alvo de ateno da mdia nativa em
relao a seus vizinhos. Em artigo de Marjorie Kelly no Washington Post (8 de janeiro
de 1944, BDP, traduo minha) chamado Gangs All Here But Script limps behind,
critica-se o filme no apenas em questes tcnicas e artsticas, mas em seu significado
no novo contexto de relao poltica com os pases latino-americanos: O tema, se que
se pode dizer que tal abortamento tenha um tema, seria presumivelmente o motivo da
Boa Vizinhana. As rotinas de dana so em sua maior parte baseadas na concepo
hollywoodiana da vida nas repblicas de banana.
A crtica tambm foca a contribuio de Carmen Miranda para tal representao:
Carmen Miranda tem um tipo de papel que mantm nossos vizinhos do sul se
perguntando qual seria nossa ideia sobre eles ela interpreta uma pequena namoradeira

96
mexicana ambiciosa e estpida, cuja ideia principal ganhar muito dinheiro (traduo
minha) e termina criticando a nfase em seu modo cmico de falar ingls.
As crticas eram frequentes na mdia norte-americana e embora nem todas
resultaram em mudanas significativas na forma de representao dos pases ao sul do
Rio Grande, alguns projetos demonstraram estar alinhados com objetivos prprios aos
governos e s expectativas dos pblicos aos quais se referiam. Respondendo s
resistncias e os protestos frequentes nos pases ao sul contra filmes hollywoodianos, as
agncias coordenadas pela CIAA buscavam promover representaes dos pases latino-
americanos mais condizentes com suas expectativas.
As exigncias iam da maior fidedignidade em relao a roupas, msicas e
cenrios que eram constantemente trocados de um pas para outro nos filmes a uma
representao branca e elitizada dos pases, passando por signos de modernizao
urbana destes pases, como presente na reclamao de Assis de Figueiredo, assistente do
DIP, a Rockfeller a respeito de um carro dilapidado de um personagem brasileiro no
filme Now, Voyager (1943), bem como a associao inadequada entre o Brasil e a
lngua espanhola (SADLIER, 2012, p. 40).
Para superar o que comeou a ser visto como falha interna, os estdios passaram
a contratar consultores latino-americanos para assisti-los. Como atesta matria da
Variety (29 de outubro de 1941, Arquivo da MHL) com o sugestivo ttulo de Amrica
Latina redescoberta, a boa vizinhana em sua verso cinematogrfica surgiu com
promessas de conhecer melhor os vizinhos do continente e assim intensificar as relaes
econmicas e polticas. A mesma matria afirma a presena de filmes norte-americanos
correspondendo a 76% do mercado latino-americano, contrastando com os 15% da
Europa em guerra24. Para alm de objetivos econmicos meramente circunscritos
indstria flmica, defendia-se a ideia de que o cinema abriria portas no mercado latino-
americano: o negcio na rea de cinema o nico vendedor na Amrica que hoje atua
em um front que abarca o mundo todo. Ele fez crescer nossas exportaes criando
demanda pelos bens mostrados em nossos filmes (Motion Picture Herald, 15 de abril
de 1939, Arquivo da MHL, traduo minha).

24
Nas palavras de Woll: Alguns pases conquistados pela Alemanha baniam completamente os filmes
Americanos. Outros, como a Gr-Bretanha e a Austrlia, precisavam to desesperadamente de divisas que
eles decretaram uma reduo de cinquenta por cento no total gasto para filmes americanos. Em 1940
apenas a Amrica do Sul e Central permaneceram como grandes importadores dos filmes americanos
devido a mudanas na situao poltica. (1983, p. 110, traduo minha).

97
Nesse sentido, compreendia-se o engajamento da Motion Picture Society of
Americas, uma corporao no lucrativa criada pela indstria de Hollywood em maro
de 1941 e parcialmente fundada pela CIAA (SADLIER, 2012, p. 21), contando em
1942 com uma equipe de 32 membros assalariados e mais de 2 milhes de dlares de
oramento (p. 22). Segundo Sadlier (2012) quando a Guerra comeou a Motion Picture
Society for the Americas trabalhou nestas circunstncias produzindo filmes que
mostravam a modernidade latino-americana, bem como sua classe media branca;
continua a autora a MPSA reconhecia que uma imagem sofisticada e de pele clara era
atrativa elite empresarial latino-americana que controlava a distribuio de filmes
hollywoodianos em seus pases (p.38, traduo minha).
Um relatrio de 12 de fevereiro de 1942, denominado Opinion in the United
States concerning Latin America endereado a Nelson Rockfeller e realizado pelo
psiclogo George Gallup, demonstrou que o latino-americano era compreendido pelos
habitantes dos Estados Unidos, mais significantemente por pessoas com formao
universitria, a partir de um esteretipo constitudo pelos seguintes signos: pele escura,
religioso, preguioso, supersticioso, temperamental, emocional, orgulhoso, amigvel e
atrasado. A brancura passou a ser vista como estratgia para representar os vizinhos
como caracterizados mais pela afinidade do que pela diferena (racial), muito embora as
conotaes dos filmes acabassem por caracterizar o inverso.
A questo se mostrava complexa quando se observa um histrico
representacional, sobre o qual se embasavam os filmes que levavam em conta
estratgias econmicas domsticas e internacionais. Um dilema se empunha envolvendo
os estdios hollywoodianos e as agncias governamentais: como manter o sucesso
comercial domstico baseado na frmula j conhecida de representao estereotpica
dos latino-americanos com as demandas do pblico e governos daqueles pases? Como
incorporar as especificidades de cada pas de modo a agradar os espectadores dos pases
vizinhos com um histrico de representao que aglutinava os distintos pases em um
todo coerente definido em oposio s qualidades supostamente representativas dos
Estados Unidos? Como passar uma representao de modernidade aos pases se eles se
definiam no imaginrio norte-americano justamente pelo seu oposto: o atraso?
As respostas foram variadas, mas dois exemplos paradigmticos e contrastantes
da nova poltica cinematogrfica podem ser encontrados nas viagens de Walt Disney e
seus assistentes Amrica do Sul, com uma extensa estadia no Rio de Janeiro, e a vinda
de Orson Welles ao Brasil, tambm se concentrando na capital federal. No primeiro

98
caso, o lanamento de Al Amigos se deu no Rio de Janeiro em agosto de 1942, de
forma indita, lanado apenas cinco meses depois nos Estados Unidos como Hello
Friends. O Brasil acabara de entrar na guerra e neste filme se apresentou um pas com
habitantes amigveis, compondo um cenrio que destaca o samba incorporando
compositores brasileiros em sua trilha sonora o carnaval e o exotismo tropical. A
Amrica do sul era representada em desenhos em que a flora e a fauna se sobressaiam
em relao aos humanos, apenas apresentados quando constitutivos de cenrios
pitorescos. Walt Disney utilizou trechos de filmagens de Welles em seu filme, embora
escolhesse apenas cenas de nativos sempre brancos e de elite (SADLIER, 2012, p.
48).
Em 1942, aps viagem para o Mxico e juntando o resultado colhido
anteriormente, Walt Disney produz The Three Cabaleros, trata-se de aventuras de Pato
Donald, Z Carioca e Panchito na Amrica Latina. Donald representado como
sexualmente obssessivo pelas personagens latino-americanas. Sadlier (2012, p. 55)
enfatiza como ele recupera a fascinao colonialista em relao a mulheres nativas, mas
diferentemente das narrativas coloniais oculta completamente a populao negra e
mestia do Brasil e do Mxico.
Neste filme dada a impossibilidade de se contratar Carmen Miranda em
contrato com a 20th Century Fox Aurora Miranda faz sua estreia em Hollywood,
apresentando a baiana, inspirada nas performances de sua irm, a qual atrai Donald a
ponto de faz-lo perder completamente seu controle racional. A brancura cromtica das
personagens latino-americanas adentram em descries colonialistas e, assim, elas
acabavam por tencionar ideal de branquitude nacional, vinculado a concepes anglo-
eurocntricas de civilizao, posto que representariam a alteridade constitutiva (por
oposio) das identidades hegemnicas.
No segundo caso, Welles muito prximo ao ator afro-brasileiro Grande Othelo
passou a filmar carnavais e sambas de periferia dando foco a imagens de populares e
muitos negros e mestios. Seu filme que seria denominado Its all true no passou de
um projeto, demonstrando que a fidedignidade requerida pelos espectadores e governos
dos pases latino-americanos e cobrada pelas agncias norte-americanas tinha uma cor:
a branca, vista como uma suposta forma de se igualar em termos civilizacionais ou
modernos ao pas do norte. Segundo Sadlier, uma das razes principais da RKO e da
CIAA perder f no projeto foi que Welles estava filmando os negros e despossudos no
Brasil. O governo Vargas objetou fortemente tal imaginrio; e considerando a atuao

99
conjunta de Hollywood e CIAA, ficou claro que essa imagem no era para ser vista
(2012, p. 24, traduo minha).
Em 1943, a abordagem de Welles ainda permanecia como um mau exemplo,
quando um projeto flmico levado a cabo por John Ford centrou-se novamente no
Brasil, demonstrando a importncia estratgica do pas. Tal projeto unia de forma mpar
o CIAA com o Office of Strategic Services (OSS que se transformaria na CIA no
futuro), com aprovao do DIP e do ministro da guerra, com foco na fora
expedicionria brasileira e sua importncia para os aliados. Ford fez vrios filmes curtos
dentro do projeto, dentre eles So Paulo, documentrio que agradou muito ao governo e
polticos paulistas.
So Paulo era retratada no filme como uma utopia modernista. A narrativa
documental pe nfase na cidade urbanizada com importncia mpar na economia
nacional, mas tambm foca no papel das mulheres na guerra, como enfermeiras ou no
mercado de trabalho em indstria farmacutica e suplemento cirrgico. Por fim, no
deixa de trazer um aspecto essencial do que se consolidava como parte constituinte da
identidade nacional: o samba, com passagens apenas focadas nos clubes de alta
sociedade. Na comparao com o projeto de Welles, explorando um dilogo mantido
por cartas entre o cameraman e o editor do projeto de Ford, Sadlier afirma:

Vargas repugnava a imagem do Brasil pobre e negro que Welles


estava criando em Its All True, e sua preferncia parece ter
determinado a nfase de So Paulo em um Brasil branco. Isso estava
implcito na carta de Engels de 29 de setembro de 1943, na qual ele
recomendou que apenas poucos tipos de homens, mulheres e
crianas fossem fotografados. A resposta de Toland em 9 de outubro
que remarcava que negros e a pobreza no deveriam ser mostrados
pelo menos pelo efeito meramente pitoresco uma rejeio implcita
da abordagem de Welles ao manter uma imagem desejada e
promovida pelo Brasil oficial. (2012, p. 75, traduo minha)

Pode-se dizer que a temtica de um Brasil moderno e a busca de alguns de seus


smbolos anterior institucionalizao da Poltica de Boa Vizinhana com suas
agncias. Flying Down to Rio, ainda em 1933, j trazia a temtica do Rio de Janeiro
como uma metrpole tropical, intercalando imagens da Avenida Central, do Teatro
Municipal e do Corcovado, junto com uma caracterizao que unia msica,
feminilidade e sexualidade, expressa desde o comeo da narrativa em que a brasileira
Belinha (Dolores Del Rio) assertiva, galanteia o msico Roger (Gene Raymond)
durante sua apresentao em Nova Iorque. A explicao de sua iniciativa no poderia

100
ser mais denotativa de sua ascendncia sul-americana: music makes me do the things
that I never should do. Vale dizer que o filme cuja temtica do transporte areo
interamericano era central, acompanhava a vinda no mesmo ano da empresa
Panamerican Airlines para a capital do pas.
A narrativa do filme a expresso da conexo continental a partir de um
romance entre um par de origens nacionais distintas que se concretiza no Rio de Janeiro
aps viagem de transporte areo. Na capital brasileira, o futuro casal encontra no
apenas msicos que surpreendem ao passar da imagem de preguiosos e irresponsveis
a fantasticamente talentosos, mas a baiana, interpretada pela atriz negra Moten Barnett,
cantando o nmero musical altamente sexualizado e racializado O Carioca, algo
impensvel no perodo mais forte da censura do Production Code. Os produtores norte-
americanos buscavam se respaldar de alguma forma em cenrios e personagens prprios
dos pases latino-americanos. Mas foi na dcada seguinte que Hollywood incorporou a
baiana em tantos filmes, bem como negociou o que deveria ser includo na
representao dos pases vizinhos.
A baiana, mais condizente com as novas representaes que se criavam dos
bons vizinhos, era ento representada na imagem branca de Carmen Miranda que, por
sua vez, assumia uma importncia-chave naquele contexto poltico. John Whitney
sugeriu a Walt Disney que criasse uma Miss Pan-americana, mas ao invs disso criou
personagens-chave masculinos, como o malandro Z Carioca (WOLL, 1983, p. 108).
Mas foi nos filmes em que Carmen Miranda atuou que se representou de forma mais
explcita o encontro entre as Amricas: de um lado a masculina Amrica do Norte e de
outro a feminina Amrica Latina. Carmen era caracterizada na imprensa norte-
americana no apenas por seus atributos fsicos e talento no palco, mas como um
smbolo, no toa feminino, da Amrica Latina em tempos de pan-americanismo.
Em 30 de janeiro de 1941, junto com outros artistas de Hollywood, j com seu
sucesso reconhecido, marcou presena no aniversrio de Roosevelt. Em artigo de Irving
Raymond Friedman com o significativo ttulo Carmen Miranda cant do it alone,
publicado em uma revista mensal contempornea ao momento histrico e devotada
rea de Educao (Education, 1942, UCSC Interlibrary Loan), demonstra-se o status ao
qual a entertainer brasileira foi alada. Friedman refora a importncia simblica de
Carmen Miranda para a amizade pan-americana, mas como educador prope estratgias
educacionais para sedimentar tal objetivo.

101
Carmen Miranda passou a constituir, junto com o engajamento dos estdios
naquele perodo, uma relao especial com as foras armadas norte-americanas, e mais
amplamente com os aliados, durante a Segunda Guerra. Suas relaes com as foras
armadas apareciam explicitamente em filmes como Four Jills in a Jeep (1944) e
Something for the Boys (1944), mas tambm aparece em filme informativo distribudo a
membros das foras armadas, como G.I. Movie Weekly (194?, Arquivo do FTA) em que
se apresenta, em seu estilo cmico alternando portugus e ingls, declarando seu apoio
e, em seguida, cantando com legendas para os soldados a acompanharem msicas
que a fizeram ter sucesso no pas do norte.
Tambm aparece em All Star Bond Rally (1945, Arquivo do FTA) como uma
pinup importante em tempos de guerra, em um filme produzido pela Fox para o Office
of War Information (OWI). Sua presena foi percebida, junto com tantos outros atores
e atrizes de Hollywood, no Hollywood Canteen, espao de entretenimento no qual
estrelas se encontravam com membros das foras armadas. Ela tambm lembrada por
participar da celebrao do VJ Day, na qual os Estados Unidos comemoravam a vitria
sobre o Japo. Nesse evento, ocorrido em Hollywood, Carmen performou junto a um
grupo de msicos do exrcito.
Em sua casa, uma verdadeira embaixada brasileira em Los Angeles,
costumava receber muitos soldados brasileiros, tornou-se mesmo uma tradio que
todos os soldados compatriotas que passassem pela Califrnia a visitassem. E o melhor
exemplo de seu engajamento simblico foi a visita de um especial piloto brasileiro
que afundou um submarino nazista quando este passou pelos Estados Unidos
regressando da guerra. Carmen se transformara em uma espcie de Embaixatriz do
pan-americanismo em tempos de guerra, ao mesmo tempo em que era vista como
Embaixatriz do Samba pelos brasileiros.
A artista brasileira ento assumiu uma posio de importncia dentro e fora dos
filmes no momento em que representaes colonialistas hollywoodianas passaram a ser
atualizadas e redimensionadas. neste contexto que se produz Down Argentine Way,
primeiro filme em que Carmen Miranda atuou. A cantora brasileira apenas figurava nos
palcos, em nmeros semelhantes ao que apresentava no mesmo ano na Broadway, sob o
ttulo de Brazillian Attraction, algo que pde ser considerado autntico j que o pblico
da capital portenha se acostumara em anos anteriores a receber Carmen Miranda para
suas apresentaes. O problema da recepo na Argentina se configurou na medida m
que o filme se passara em Buenos Aires e contava com uma caracterizao

102
extremamente ofensiva no que se refere aos personagens argentinos, com exceo dos
protagonistas que revelam ser de elite rural com formao na Europa.
Ruy Castro (2005, p. 266) afirma que a Fox enviou uma equipe a Buenos Aires
para filmar imagens da cidade que intercalariam com as cenas e cenrios do estdio
dando um toque mais realista ao filme. Apesar de a equipe ter voltado com trs horas e
quarenta minutos de material colorido, apenas um total de trs minutos ficou no filme
final de noventa e quatro minutos de filme: imagens da Plaza de Mayo, da Casa Rosada
e de um hipdromo. As cenas captadas na real Buenos Aires talvez no se adequassem
ao roteiro do filme que revelou a preferncia em criar uma ideia de uma capital portenha
que alternava cenrios rurais com uma enorme variedade de casas de show.
De personagens negativamente caracterizados a uma paisagem ora rural ora de
paraso urbano do entretenimento aos turistas norte-americanos, a repercusso na
Argentina foi considerada negativa, a ponto de um produtor de cinema argentino ter dito
no jornal La Nacion: To quanto Hollywood insiste em ver a Argentina como um pas
tropical ridculo, nenhum entendimento pan-americano possvel, no importa quantos
viajantes de boa vontade forem enviados para c, conforme foi reproduzido no New
York Times (8 de maio de 1941, Arquivo da MHL, traduo minha).
Atentos recepo negativa do filme no pas sul americano, muitos veculos da
imprensa escrita norte-americana salientaram o desastre em territrio argentino da
produo flmica, como o fez Variety (29 de outubro de 1941, MHL, traduo minha)
afirmando com preocupao que a 20th-Fox causou uma tempestade de protesto na
Argentina com Down Argentine Way (embora o filme fosse muito bem aceito em outras
reas da Amrica do Sul). Whitney convenceu a Fox a reeditar as cenas do filme para
uma nova verso endereada ao pblico argentino (WOLL, 1983, p. 108).
That Night in Rio (1941) foi a resposta imediata ao fracasso, unindo esforos da
20th Century Fox e exigncias do escritrio dirigido por Rockfeller e a contribuio da
Embaixada brasileira para uma representao favorvel de uma capital latino-americana
seguindo os critrios ento compartilhados. No auge da Poltica de Boa Vizinhana, a
imagem negociada entre ambos os pases, alm de contratar conselheiros tcnicos
brasileiros a Fox consultou a embaixada brasileira em Washington [que] recomendou
que fossem modificados nomes de personagens e eliminadas passagens com msica
espanhola, alm de uma cena de dana com negros (MENDONA, 1999, p. 89).
Embora com algumas crticas, o filme foi recebido positivamente no Brasil,
considerando o grande apelo do cinema norte-americano e o orgulho de por ele ser

103
representado. Foi visto como obra da amizade pan-americana ao mostrar a Bolsa de
Valores, avies e o pano de fundo peculiar tropical do Rio de Janeiro, associado a uma
performance vocal de Don Ameche cantando em portugus correto (Arquivo da BN).
J Weekend in Havana (1941), o filme seguinte em que Carmen atuou,
encontrou severas crticas que se estenderam entertainer brasileira. Carmen
interpretava ento uma personagem cubana, trocando o samba, o qual prometera levar
aos Estados Unidos, por rumbas em um cenrio caribenho no qual desempenha um
papel visto como caricatural e distante de suas performances conhecidas pelos
brasileiros. A partir de ento, a imprensa brasileira voltou-se decisivamente de forma
crtica o que perduraria at sua ltima visita ao Brasil em 1954 carreira da atriz,
acusada de no desempenhar seu papel de Embaixatriz e contribuir negativamente para
a forma como o Brasil era visto do exterior.
A bibliografia brasileira sobre a carreira de Carmen aponta para a recepo
crtica como algo caracterizado por incoerncias: ela era criticada por ser latino-
americana demais, por carregar smbolos nacionais contestados ou esquecer-se deles e,
por fim, por se americanizar. Muito embora tais argumentos aparentemente
contraditrios aparecessem em revistas brasileiras de cinema, estes podem ser
explicados analiticamente a partir de alguns aspectos. As crticas mostram que ao lado
de seu reconhecimento como dolo nacional, a carreira internacional de Carmen era
vista com desconfiana por parte do pblico brasileiro, ao combinar dois tipos de
racializao: a primeira prpria s representaes norte-americanas que
descaracterizavam os pases latino-americanos ao reduzi-los a uma unicidade
caricatural, a segunda prpria aos contornos nacionais, onde se promulgava uma
representao integradora, ao mesmo tempo em que se recusava sua imagem
enegrecida.
Trata-se de um perodo caracterizado por Hobsbawm (1990) como o apogeu do
nacionalismo no mundo. Aps a crise de 1929, combinando o colapso do modelo
econmico liberal e a emergncia do protecionismo nacional, enfatizada ainda mais
durante a Segunda Guerra Mundial, constituiu-se um perodo denominado pelo mesmo
autor como a era da catstrofe. Segundo Hobsbawm (1995), este perodo seria
marcado por uma tecnologia da morte inigualvel, quando os Estado-Naes
consolidados entram em guerras dispostos a perderem contingentes humanos em
patamares inditos. A eficincia dos exrcitos nacionais dependia de uma lealdade de

104
seus membros nao em termos absolutos; morrer pela nao torna-se sinnimo de
dignidade.
Neste sentido, caracterstica de seu tempo a adeso de Carmen ao nacionalismo
vigente em sua viagem, em um perodo no qual o governo brasileiro buscava seu
reconhecimento no exterior como uma nao civilizada. Torna-se compreensvel
como sua carreira no era entendida como uma carreira qualquer, mas estreitamente
vinculada a desejos da nao. O desejo da nao hegemnico no perodo articulava uma
representao de unidade nacional com a branquitude, compreendida em termos
morais. Neste sentido, para alm da constatao derivada das anlises do historiador
ingls, o que me interessa abordar como os desejos da nao articulam processos de
racializao, moldando a recepo brasileira caracterizada por um vis explicitamente
anglo-eurocntrico.
Como estratgia metodolgica, para acessar parte da recepo brasileira de sua
carreira, recorro a revistas brasileiras de cinema. Maria Celeste Mira (2001) demonstra
que especialmente a partir do final da segunda dcada do sculo XX h a formao de
um novo tipo de pblico leitor no Brasil, voltado s revistas ilustradas que
desenvolveram tcnicas e se profissionalizaram a partir de ento e contavam com um
pblico alfabetizado nas classes mdias e altas. Segundo a autora, difunde-se um
modelo de revista voltado famlia com uma variedade de assuntos que contemplasse
as diferenas de gnero e idade. Aliado a isso, afirma que grande parte das publicaes
que se desenvolvem no Brasil a partir dos anos 30 tem relao com o cinema (MIRA,
2001, p. 27).
Na dcada de 40, as publicaes da revista Cena Muda, especializada em
cinema, focam exaustivamente a vida e a carreira de Carmen Miranda que, a despeito de
quase no aparecer em suas capas, percorre os assuntos de suas pginas nos editoriais,
retratada em comentrios de crticos e opinies de leitores. Surgem opinies contrrias e
favorveis atriz brasileira, porm ambas as posies revelam quais os desejos de certo
pblico brasileiro em relao representao nacional levada a cabo por Carmen
Miranda. A polmica se estende a ponto da revista formular uma enquete aos leitores
em 1943 a respeito dos quatro anos da carreira de Carmen no exterior. O que o debate
demonstra que a despeito dos objetivos publicizados pelos estdios e agncias
governamentais norte-americanas, os filmes da Poltica de Boa Vizinhana,
acompanhando os pases vizinhos, frustraram em muitos aspectos boa parte das
expectativas nacionais.

105
Caricatura de Carmen publicada na Cena Muda (30 de maro de 1943,
Acervo da BJKS)

Cena Muda publicava em todas as suas edies, alm dos textos de fs e anlises
da prpria revista, caricaturas enviadas pelos leitores. Tal imagem, feita por Jos
Aristides, sintetiza a forma como os leitores brasileiros a viam: reduzida a uma figura da
baiana exagerada, descaracterizada e envolta em dinheiro. As opinies de crticos e
leitores publicadas na revista revelam o desejo de brasileiros de participar do seleto
clube das naes civilizadas, a partir da afirmao da particularidade nacional e de sua
adeso modernidade e, para tanto, exigiam uma representao condizente.
No obstante, dentro de uma representao racializada, constituindo-se enquanto
um esteretipo da mulher latino-americana marcado pelo exagero, os crticos brasileiros

106
ora culpabilizavam Carmen e ora atribuam aos diretores de seus filmes fracassos nas
interpretaes da brasileira, a despeito de seu sucesso no pas do norte. No se tratava
mais de Carmen Miranda, a cantora do rdio, mas da Miss Miranda ou La Miranda,
caricatura latino-americana ou ento artista americanizada, pois inebriada pelo perfume
do dinheiro americano. Os jornalistas e leitores que publicavam suas vises na revista
criticavam Carmen por cantar sambas cheirando a rumbas, ao contrrio do que
prometera quando embarcou no Rio de Janeiro a Nova Iorque.
Foi classificada, com seus filmes, de um autntico abacaxi, termo dbio que
remetia ao fracasso da atriz, mas tambm fazia aluso a seus turbantes cheios de frutas.
So muitos os leitores que salientam a passagem de uma adorvel e autntica brasileira
a uma caricatura artificial distante da verdadeira brasilidade. Teria sido feminina at
quando dubinhava, com uma pontinha de malcia deliciosa, chegando a ser
masculinisada, de graciosa, passou a engraada, verdadeiro monstro. Um leitor
conclui enfaticamente: fecho os olhos para no ver os requebros exagerados ou as
caretas ou a boca larga da Carmen. (Miguel de Azevedo Teixeira, Rio 18/05/1943, p.
06, Acervo da BJKS).
Alguns comentrios crticos parecem se dirigir prpria personagem da baiana,
quando um leitor afirma que a interpretao de Carmen d a impresso queles que
ainda no visitaram a nossa terra, de todos aqui andarem trajando de baiana com
verdadeiros caminhes de frutas na cabea (Durval Reis, Rio, 23/03/1943, p. 07) ou
quando uma leitora sugere: Espero que a Carmen deixe definitivamente seus acessrios
baiansticos nas Montanhas Rochosas [filme de 1942] e aparea ento com uns
vestidos e chapos (sic) elegantes como os que so usados por ns brasileiras. (Maria
Soares, Rio, 27/4/43, p. 6-7, Acervo da BJKS). Neste aspecto, a questo tambm se
refere figura da baiana como um elemento do universo simblico nacional,
relacionada ao universo afro-brasileiro, demonstrando certas resistncias sua
exportao como smbolo nacional.
Em artigo exemplar de 28 de abril de 1942, na revista Cena Muda, o jornalista
Enas Viany compara negativamente Carmen em relao intrprete lrica Bid Sayo,
defendendo que a segunda quem deveria ser nossa representante no lugar da primeira,
ao mesmo tempo em que trata com tons negativos a visita de Walt Disney ao morro da
Madureira, imprprio para ser apresentado a estrangeiros. Neste momento em que se
tornava internacionalmente patente a relao entre identidade nacional brasileira e o
samba, o artigo distingue o samba do morro, como a batucada, dana litrgica, brbara

107
e sensual, invocadora de Ogun, tipicamente africana, cujos ritmos se erguem ao cu
como um apelo aos orixs protetores, no tem beleza nenhuma, do samba dos sales,
descrito como samba de arte, suportvel no salo e no teatro nutrido pela influncia de
mais altos pendores lricos, mobilizando em torno de si inteligncias apuradas nas letras
e na msica.
Viany chega concluso de que: h uma espcie de samba que pode levar, sem
receio nosso, a etiqueta made in Brasil, este outro, porm, o do morro, a batucada
grotesca, selvagem, senegalesca, tem que ser ajustada a ambiente teatral para que possa
ser mostrada a certos hspedes. A linguagem abertamente racial da matria emoldura a
forma racializada como se avalia e hierarquiza modernidade e atraso, sendo a negritude
representativa do segundo. (16 de janeiro de 1943, p. 20). Em outro artigo do mesmo
autor, a mesma linguagem caracteriza a artista brasileira: Quanto a Carmen Miranda,
est lastimvel como artista. Duas ou trs fantasias de baiana do morro do Salgueiro ou
da extinta Praa Onze, em dia de Carnaval (...) (2 de maro de 1943, Acervo da BJKS).
A incorporao de Carmen Miranda ao cinema norte-americano mostra que a
brancura, compreendida em termos cromticos, no era sinnimo da branquitude
almejada, embora fosse requisito bsico da mesma. A baiana de Carmen era aproximada
por Viany a fantasias da ento extinta Praa Onze, com toda a sua caracterizao
comumente veiculada na imprensa com a negritude e o atraso. Muitos brasileiros
recusavam a racializao caracterizadora das personagens de Carmen no cinema
hollywoodiano, bem como resistiam presena de uma figura negra como smbolo da
nao. Estes pblicos questionavam Carmen Miranda justamente naquilo que ela se
props a fazer em sua viagem: representar o Brasil, enquanto Embaixatriz do Samba,
seja pela diferena racial que o Brasil era representado em seus filmes quando
associados aos demais pases latino-americanos, seja pela diferena racial da negritude
que compunha parte do universo simblico nacional25.
Mas no apenas crticas apareceram na revista, algumas vozes a defendiam,
apontando sua importncia na aproximao com a potncia americana, sua vinculao
com o samba e sua divulgao no exterior. Fora isso, Carmen contava com uma legio
de fs oriundos das camadas populares o que atestam os registros das multides em

25
Outras crticas, normalmente associadas para deslegitim-la, apontavam seu nascimento em Portugal,
reforando a incompatibilidade de sua atuao no cinema, nos termos da poca, em prol do Brasil. Mas
elas esto associadas s crticas de descaracterizao da personagem de Carmen que se configurava como
uma diferena racial latino-americana no contexto dos Estados Unidos.

108
suas chegadas e partidas entre o Brasil e os Estados Unidos, bem como em seu velrio
que a viam como representante da cultura popular que no apenas era alada a nacional,
mas difundida no exterior pelo veculo moderno e popular do cinema. Tal viso popular
sobre Carmen, por sua vez, inacessvel anlise documental que apenas conta com a
possibilidade de se centrar nos debates travados pela populao letrada de classe mdia
e alta nos veculos da imprensa.
A declarao de Rubens de Oliveira Mendes, no entanto, sugere que a crtica de
Carmen nunca equivaleu a desprezo em relao a ela, ao contrrio: Carmen , de fato,
um sucesso aqui em Belo Horizonte, mas de bilheteria. Eu vou assistir seus filmes na
louca esperana de v-la melhorar o conceito que os norte-americanos tinham do Brasil,
porm, confesso que (...) me decepciono (6 de abril de 1943, p. 06, Arquivo da BJKS).
As crticas demonstravam o interesse em acompanhar exaustivamente sua carreira, das
revistas ao rdio, como observa Ana Rita Mendona: durante cinco meses, duas
pginas de A Cena Muda eram ocupadas por cartas de leitores, lidas ainda em Cine-
Rdio-Jornal, programa apresentado por Celestino Silveira na Rdio Mayrink Veiga, to
vinculada a Carmen Miranda (2005, p. 137).
Carmen era um cone nacional sempre vinculado sensualidade. Em sua carreira
internacional, alguns a criticaram justamente pela sua sensualidade, outros por perd-la
em uma caricatura americanizada, ainda houve quem acentuasse sua brasilidade
justamente a partir desta caracterstica: Carmen venceu com seus requebros naturais,
tal como se v em todo o Brasil, diferenciando sempre de mulata a mulata. (...) se
Carmen cantou sambas americanisados devemos perdoar no a ela, mas aos diretores,
aos compositores de l (...), disse Celina Chaves do Rio de Janeiro (01 de junho de
1943, p. 6, Acervo da BJKS). A despeito das diferentes interpretaes, sua trajetria
demonstra que a sensualidade passava a se constituir como elemento importante da
identidade nacional. Carmen sedimentou internacionalmente a imagem de uma mulher
brasileira, extensvel Amrica Latina, atualizando narrativas coloniais em dois
contextos: o brasileiro e o norte-americano.
Em outros termos, a sensualidade de Carmen Miranda compreendida em suas
vinculaes com a problemtica racial, associadas a suas representaes nacionais e/ou
subcontinentais. No caso brasileiro, ela representaria uma figura sntese da harmonia
racial em sua baiana branca e estilizada com traos cosmopolitas, dando contornos
nacionais ao remodelar a sensualidade atribuda figura da mulata. Em sua carreira
internacional mantendo e remodelando a figura smbolo da baiana no cinema passa a

109
representar a figura sensual e racializada da latino-americana, embora com amplo
destaque e positivada em um perodo do pan-americanismo.
No primeiro caso, tem-se a incorporao da diferena racial, materializada na
figura da baiana, por sua vez expressa na brancura de Carmen Miranda e na sua
desvinculao com espaos e sujeitos marcados pela negritude. Em oposio, vincula
sua imagem aos modernos espaos da cultura de massas do Rio, representantes da
branquitude, tendo no rdio o principal meio da incorporao seletiva da diferena
racial, branqueando-a. No segundo, a partir do remodelamento da baiana em narrativas
que atualizam os desejos coloniais, sua origem brasileira, ou sul-americana, implica na
vinculao entre nacionalidade e diferena racial. Sua trajetria atesta como as
categorias de gnero, raa e sexualidade, que muitas vezes so vistas como elementos
de importncia perifrica na anlise social, so centrais para se compreender aspectos
abrangentes de hegemonia poltica e relaes de poder.
A anlise de como tais categorias se conectam tributria de discusses no
prprio cerne do(s) feminismo(s) que na esfera poltica e acadmica colocou
problematizaes desestabilizadoras a um sujeito feminista dado de antemo (a
categoria Mulheres), assim questionando a pressuposio da autonomia de gnero nas
anlises, bem como de universalizao da opresso das mulheres, demonstrando como
muitas vezes tal procedimento pode resvalar em uma anlise feminista branca e
eurocntrica. Avtar Brah (2006), dentro de uma proposta que converge estudos
feministas com Estudos Ps-Coloniais, ressalta a inviabilidade de se atribuir uma
primazia a uma das categorias.
Nas palavras de Brah: estruturas de classe, racismo, gnero e sexualidade no
podem ser tratadas como variveis independentes porque a opresso de cada uma est
inscrita dentro da outra constituda e constitutiva dela (2006, p. 351). As relaes
interseccionais na obra de Brah so compreendidas como relaes contextuais e
dependentes/contingentes em termos histricos (PISCITELLI, 2008, p. 269), o que se
revela essencial ao compreendermos os sentidos especficos que as personagens de
Carmen Miranda tomaram em seus dois distintos contextos.
Seguindo as proposies feministas contemporneas, alguns tericos dos estudos
descoloniais propem estudar as intersecionalidades a partir da ideia de colonialidade
(GROSFOGUEL, 2008; 2012). Diferentemente de uma abordagem que enfoca o
colonialismo enquanto uma experincia delimitada historicamente no passado, a ideia
de colonialidade, enquanto caracterstica chave e oculta da modernidade, atribui

110
continuidade a uma forma de hierarquizao racial para alm da administrao
colonial. Superando uma viso culturalista, mas tambm outra que se baseia no
determinismo econmico reducionista que atribui cultura e ao racismo e
androcentrismo o status de epifenmeno, a expanso colonial europeia e a posterior
norte-americana so vistas como constituintes de um sistema-mundo mais complexo do
que gerado unicamente por necessidades de acumulao de capital escala global e
conformando uma estrutura de classes especfica. Nesta viso, postula-se uma matriz
colonial que se intersecciona com outras formas de hierarquias conformando um
sistema-mundo patriarcal/capitalista/colonial/moderno (GROSFOGUEL, 2008).
A trajetria transnacional de Carmen Miranda nos permite vislumbrar como a
colonialidade era operacional nos dois contextos em que atuou. No cinema norte-
americano, em uma verso soft do Destino Manifesto, no qual a indstria flmica
hollywoodiana foi responsvel por representar uma hegemonia dentro das Amricas, a
colonialidade se expressou na figura de uma mulher subalterna em seu excesso de
sexualidade e exagero tropical, revelando caractersticas ao mesmo tempo limitadoras e
essenciais na trajetria de sucesso de Carmen Miranda, com forte apelo ao pblico
norte-americano e brasileiro.
Sua carreira nacional atesta como a colonialidade se interioriza em pases
politicamente independentes, mas subalternos como o Brasil, no s pela dependncia
econmica e poltica, mas por uma epistemologia ocidentalista que apropriada por
uma elite dominante que define aqueles que pertencem ou no nao. Em outros
termos, a colonialidade se acha presente na forma como a identidade nacional se
constitui como uma margem, a partir do domnio das elites etnorraciais dominantes
(GROSFOGUEL, 2012). A internacionalizao da carreira de Carmen deixou ainda
mais explcito como um processo de integrao nacional se fazia de forma seletiva e
racializada e sua trajetria nos Estados Unidos revelou no apenas desejos de ver o pas
representado no cinema mundial, mas tambm os fantasmas que assombravam certo
pblico de uma possvel racializao da representao nacional.
Anbal Quijano (2002), terico peruano ao qual se atribui a inveno do conceito
de colonialidade, demarca que esta deve ser compreendida de forma a questionar as
narrativas de fundo evolucionista e eurocntrico que veem os pases aps a
independncia poltica como Estado-nao independentes, propondo a mais proveitosa
abordagem da dinmica de dominao poltica internacional a partir da ideia de Estados
nacionais-dependentes e estados neo-coloniais.

111
Carmen Miranda, a representao feminina latino-americana, seria uma
amlgama de algo muito complexo e diverso, quando se aborda as relaes de poder no
que se refere poltica internacional entre Estados Unidos e Amrica Latina. Pases da
Amrica Central e Caribe so historicamente mais subordinados ao poder norte-
americano do que pases sul-americanos como Brasil, Argentina e Chile. No sem
razes, os primeiros (com outros sul-americanos) so classificados pelo termo
pejorativo de Repblica das Bananas, demarcando ao mesmo tempo a dependncia de
uma economia baseada na produo de produtos tropicais, muitas vezes controlada por
uma multinacional como a United Fruit Company, que, por sua vez, faria do governo de
tal pas submisso a seus interesses.
As bananas que compem o nmero musical de Busby Berkeley em The Gang Is
All Here, por meio de um raciocnio sinedquico, estendiam a representao da
dominao colonial norte-americana da Amrica Latina a todos os pases do
subcontinente. Muito embora a representao subalterna seja inclusiva, ela se define
pela desigualdade na visibilidade dos diversos pases do subcontinente. Pases que
possuam menor importncia econmica e poltica aos Estados Unidos so pouco ou
nada representados nos filmes. o navio atracado brasileiro, junto com o samba e
tantos produtos tropicais que chegam a compor o pano de fundo do harmnico encontro
de bons vizinhos, em um contexto no qual as capitais de grandes pases como Rio de
Janeiro, Buenos Aires e Cidade do Mxico eram partes centrais dos temas dos filmes
que buscavam represent-las de forma moderna.
A morte de Roosevelt e, em seguida, o fim da Segunda Guerra Mundial,
significou o desfecho da Poltica da Boa Vizinhana e a progressiva falta de interesse
pelos pases vizinhos, seguida de uma poltica intervencionista que tomou uma face
mais explicitamente imperialista no auge da Guerra Fria, substituindo de vez a retrica
pan-americana. A carreira de Carmen aps o final da retrica pan-americana foi
significativamente impactada. Em um perodo de alta vendagem de filmes na Frana,
Filipinas e Blgica (WOLL, 1983, p. 119), o mercado latino-americano no era mais
considerado de extrema importncia.
Em Call me sister (1946), Alice Faye simboliza o momento poltico ao cantar a
msica South America, take it Away. No mesmo ano, finda-se o contrato de Carmen
com a Fox e a artista estreia em uma iniciativa free-lancer no filme Copacabana (1946)
interpretando uma brasileira, Carmen Navarro, que necessita se fazer passar pela
francesa Madeimoselle Fifi para ser contratada em um nightclub. Nos anos seguintes at

112
sua morte, o que se percebe sua repercusso diminuda na imprensa norte-americana,
bem como a reduo de sua participao em filmes e uma virada em sua carreira que se
foca cada vez mais em nightclubs, com espordicas participaes na nascente televiso.
Parando por aqui, poderia como muito se faz apenas reforar os vnculos,
incontestveis entre a carreira de Carmen Miranda e a dominao poltica e cultural
norte-americana por meio do cinema, ou sua imbricao indelvel com a busca por uma
identidade nacional baseada na fantasia de harmonia racial, mas paradoxalmente
calcada na branquitude. No entanto, tal posio remeteria a interpretaes que a
reduzem a uma fabricao hollywoodiana ou uma adequao aos interesses
governamentais do Governo Vargas, deixando de lado a complexidade do cone que se
mantm referncia viva at os dias de hoje, alvo das mais distintas recepes e
reapropriaes em diversos momentos da histria.
Procurei ressaltar os contextos polticos e econmicos nos quais a carreira de
Carmen Miranda se inseriu, como pr-condio a compreender seu agenciamento,
contextualizando-o no tempo e no espao. Atento perspectiva descolonial proposta
por Grosfoguel, ao no apenas enfatizar a dominao, mas dar ateno ao andar pelas
brechas ou cumplicidade subversiva daqueles que ocupam posies subalternas,
centro-me agora na forma como Carmen Miranda lidou com a colonialidade, ora
redimensionando e atualizando suas caractersticas, ora demarcando ambiguidades e
brechas que permitiram deslocamentos. Para tanto, recorreremos a contribuies de
uma perspectiva da Teoria Queer, mais atenta a abordagens que se focam no
agenciamento e suas potencialidades subversivas. Antes, uma reviso bibliogrfica
voltada fortuna crtica de Carmen Miranda se impe como necessria para a
proposio de novo ngulo de abordagem de sua carreira.

2.2 Making money with bananas: movendo-se a partir dos discursos hegemnicos

I'd love to play a scene with Clark Gable


With candle lights and wine upon the table
But my producer tells me I'm not able
'Cause I make my money with bananas ()
Oh, but if I quit my job it's not disturbing
I'd use very often a liter of bourbon
'Cause I can sit and in one minute eat my turban
And still make my money with my bananas
It isn't even funny that I make a little more money
than that little Mickey Rooney with bananas!

113
I make my money with bananas era uma das msicas mais interpretadas por
Carmen Miranda em nightclubs norte-americanos a partir de 1947, quando a entertainer
passou a fazer cada vez menos filmes e atuar mais nos palcos. Bananas eram algo que
os norte-americanos diretamente relacionavam com sua figura, pelas conexes aqui
exploradas com a Amrica Latina e por ser um elemento constituinte dos chapus
originais de sua baiana estilizada, embora h muito abandonada em verses que passara
a adotar em seus filmes.
Acompanhada de seu conjunto Bando da Lua, em suas atuaes, Carmen
Miranda se autoparodiava, exagerando a imagem que construiu em sua persona nos
Estados Unidos: tirava o turbante para supostamente mostrar que no era careca, ou que
realmente tinha cabelo embaixo dos seus turbantes, e assim exibia seu cabelo loiro que,
em seguida, dizia ser tingido e, portanto, falso e, depois, retirava seus sapatos
plataforma com enormes saltos para mostrar sua diminuta estatura. Descia do palco
distribuindo bananas e cantando a msica em que dizia que fazia dinheiro com bananas,
com o cmico desfecho em que se perdesse seu emprego no teria problemas, poderia
comer seu turbante.
A caricatura de Carmen Miranda chegava ao mximo em sua carreira,
corroborando interpretaes prprias aos brasileiros de que a entertainer era na verdade
uma construo estereotpica e muito distante da autntica cantora que conheceram no
Rio de Janeiro. No Brasil, muitos a viam como uma traidora da nao ou uma vergonha
nacional. Carmen foi abordada pela revista O Cruzeiro em uma de suas apresentaes
em um nightclub no Texas em abril de 1952 (Arquivo do MCM). Assinada por David
Nasser, a matria intitulava-se Carmen volte para os bugres e salientava a falta de
autenticidade de Carmen a qual cantaria fantasiada, na viso do autor, caricaturando a
msica brasileira, alm de se recusar a receber a imprensa do seu pas, ali representada
pela revista que publicava a matria.
Quando Caetano Veloso publicou em 1991 um artigo no New York Times sobre
o sentimento ambivalente entre e vergonha e orgulho que marcava sua gerao sobre
Carmen Miranda, ele trazia uma problemtica que perpassou a carreira de Carmen
Miranda aos olhos dos brasileiros: a representao do Brasil no exterior. No
documentrio sobre Carmen feito nos Estados Unidos pela brasileira Helena Solberg
Banana is My Business, a narradora sob a perspectiva biogrfica da autora f de
Carmen Miranda indaga o que a fez to diferente quando chegou aos Estados Unidos.

114
Carmen seria ento americanizada? Reduzida a um esteretipo de mulher latino-
americana? Ou, ao contrrio, um orgulho nacional? Autenticidade ou fabricao a
definem em sua carreira norte-americana? Essas eram as questes prprias do pblico
brasileiro e foi sob o fio da ruptura que marcou a passagem da carreira nacional
internacional de Carmen Miranda que se deram suas interpretaes acadmicas.
Simone Pereira de S (1997) analisa o que denomina de Baiana Internacional,
levada aos Estados Unidos por Carmen Miranda. Como que respondendo s acusaes
de fabricao hollywoodiana de sua persona, na viso de S, Carmen levaria uma
inveno cultural da nacionalidade que se criava no Brasil, no preservando o contedo,
mas mantendo o gesto fundamental que remete cultura carnavalizante que ela ajudou
a identificar com o Rio de Janeiro na dcada de 30 (p. 174). Suas estilizaes so
assim compreendidas, na viso da autora, como um processo de mediao prprio a essa
linguagem carnavalesca, e neste sentido, ela funciona como interface entre a cultura
brasileira e Hollywood. No entanto, a autora analisa que em determinado momento de
sua carreira, posterior a seu contrato com a Fox, a autopardia assume um aspecto
central em suas performances, sendo essencialmente negativa e mesmo pejorativa.
Em abordagem distinta, Tnia Garcia (2004) analisa a internacionalizao de sua
carreira nos Estados Unidos nos moldes da Good Neighbor Policy e sob os discursos do
pan-americanismo, que embora se apresentasse como marcados pela igualdade,
proporcionaram musicais [que] foram eficazes na veiculao de representaes que
difundiam idias favorveis s intenes expansionistas dos Estados Unidos (p. 173),
nos quais Carmen foi protagonista. Suas personagens se caracterizavam sobretudo pela
exotizao e sexualizao por meio das quais Hollywood demarcava fronteira entre os
EUA como polo civilizado e Amrica Latina como selvagem.
Para Garcia, a imprensa norte-americana via Carmen como sensual, impulsiva,
engraada, pouco inteligente e desorganizada (196). Em outra perspectiva, Freire-
Medeiros (2005) analisa o cinema hollywoodiano produzido durante o perodo da
Poltica de Boa Vizinhana caracterizado por representaes positivas dos vizinhos se
comparados com a produo flmica anterior. Carmen, a figura de destaque neste
perodo, ao pblico norte-americano, seria vista como smbolo mximo de pan-
latinidade, incorporando o kitsch muito antes que este conceito fosse inventado (p. 24).
Ana Rita Mendona (1999) parece fazer uma anlise mais matizada e centrada
em negociaes, quando aborda o papel de representante nacional que tomou a carreira
da cantora e entertainer brasileira. A trajetria da Embaixatriz do Samba revela a

115
forma desigual feminina e racial da representao da Amrica Latina prpria Poltica
de Boa Vizinhana, mas sua viagem aos Estados Unidos estudada com as pretenses
diplomticas do governo brasileiro, explorando inclusive a participao da embaixada
brasileira e conselheiros tcnicos do pas na criao do enredo de That Night in Rio.
Mnica Schpun (2008), em um curto artigo, prope uma abordagem crtica e
sintetizadora, recusando uma interpretao que via na persona de Carmen Miranda no
entretenimento norte-americano uma pea no tabuleiro do imperialismo norte-
americano e prope que sua carreira se deu tendo como pano de fundo um dilogo
complexo e simultneo com dois pblicos diversos, o brasileiro e o norte-americano. De
um lado, salienta sua sexualizao como prpria da construo de um Outro na Poltica
de Boa Vizinhana, de outro lado enfatiza que sua americanizao se deu de forma
antropofgica, na qual inseria elementos da cultura brasileira mesmo em vdeos prprios
ao contexto norte-americano. Vinculado a isso, salienta que sua presena fsica e
performance corporal foram centrais na carreira, desde o Brasil, e que se de um lado
representou a figura estereotipada da latino-americana, prpria ao imaginrio dos
Estados Unidos, o fez com humor e irreverncia prpria sua trajetria, de certa forma
relativizando a estereotipizao.
De forma geral, uma leitura predominante se fez sobre a carreira de Carmen
Miranda de depois do fim da Segunda Guerra Mundial, quando os Estados Unidos
deslocam a ateno poltica da Amrica Latina para a Europa. Uma derradeira trajetria
esperou a entertainer brasileira, algo que se concretizaria no fim de seu contrato com a
20th Century Fox e no progressivo desaparecimento de Carmen no cinema. No
negando a correspondncia entre os aspectos polticos e econmicos e a carreira da
brasileira, tal perspectiva refora a ideia de que ela seria apenas uma pea estratgica
nos objetivos polticos norte-americanos, sem estabelecer mediaes entre a esfera da
produo cultural e a poltica e desconsiderando a importncia adquirida por Carmen no
entretenimento norte-americano, negligenciando sua trajetria em nightclubs, sua
presena na emergente televiso e a recepo calorosa que teve em sua extensa turn na
Europa em 1948.
Ana Rita Mendona (1999) foi uma das poucas a salientar que em 1951, Carmen
era considerada a artista de shows mais bem-remunerada dos Estados Unidos. Enquanto
sua carreira posterior ao seu contrato com a Fox foi digna de pouco interesse pela
literatura acadmica, Ruy Castro (2005) explora com detalhes sua rica vida profissional

116
que, mesmo quando no estava mais entre as principais estrelas de cinema, nunca
deixou de ser de notvel sucesso.
Chama ateno o contraste da abordagem acadmica brasileira com algumas
abordagens da bibliografia norte-americana. Na fortuna crtica brasileira, o excesso
presente na caracterizao de Carmen Miranda ou foi vista como confirmao de um
esteretipo (GARCIA, 2004), antecipao de uma produo cultural kitsch (FREIRE-
MEDEIROS, 2005) ou apenas salientado timidamente como uma forma de relativizao
do esteretipo (SCHPUN, 2008).
Nos Estados Unidos, o brilhante artigo de Shari Roberts (1993) explora este
elemento, caracterizando-o como um aspecto crucial da agncia da entertainer a partir
do qual estabeleceu uma comunicao especial com seu pblico. Segundo a autora,
Carmen tinha fs predominantemente do pblico feminino porque sua atuao no era
meramente a confirmao de um esteretipo negativo, mas um tipo de pardia deste, a
partir de seu excesso feminino e tnico. Nas palavras da autora, por que Miranda
exagerava tanto os significantes de etnicidade e feminilidade, seu texto de estrela sugere
que eles existiam apenas enquanto uma superfcie, que eles no se referiam e que desse
modo Miranda pde se tornar um puro espetculo (p. 14-15, traduo minha).
O que caracteriza sua atuao a mascarada que simula a identidade
socialmente construda no intuito de revelar (...) a ausncia que existe atrs da mscara e
em sentido ltimo, descobrir a falta de qualquer identidade de gnero natural (p. 15,
traduo minha). Sendo assim, a atuao de Carmen Miranda questiona tanto a natureza
de uma identidade tnica, quanto a de uma essncia feminina. Enquanto uma estrela que
interpelava os fs com sua atuao flmica, mas tambm via imprensa, Carmen permitia
a seus fs a perceberem como sujeito de sua autopardia: artigos e publicidade
comumente reportavam que Miranda concebia seus prprios vestidos e turbantes e
insistiam no fato dela ter trazido o conjunto musical que a acompanhava Bando da Lua,
com ela do Brasil (p. 16, traduo minha). Assim, pode-se compreender um aspecto
essencial da carreira de Carmen pouco abordada at ento: seu apelo ao pblico
feminino e tambm ao pblico homossexual.
Trechos deste artigo foram publicados na coletnea de Steven Cohan (2002)
destinada a abordar os musicais hollywoodianos, em seo destinada a discutir o apelo
camp dos musicais. Trata-se do que j foi conceituado como uma sensibilidade, um
gosto, um gnero de linguagem ou mesmo um discurso queer (CLETO, 1999, p. 03)
nomeado de camp, originalmente um termo em ingls prprio a uma subcultura

117
homossexual que por sua vez designava um meio de comunicao restrito a iniciados.
O camp se caracteriza com o oposto da valorizao do contedo, constitui-se em uma
viso do mundo em termos de estilo, o amor ao exagerado, o mundo como um
fenmeno esttico, avaliado em termos de grau de artifcio, de estilizao (SONTAG,
1999), algo que faz de estrelas de cinema de feminilidade acentuada e exacerbada os
maiores exemplos de cones gays e caracterstica presente na interpretao de drag
queens.
Carmen Miranda ento abordada na introduo desta seo e de forma sucinta
como um cone camp que, por sua vez,

[...] toma uma posio de ironia em direo normalidade de gnero,


parodiando-a por meio de um estilo excessivamente estetizado e
teatrializado que inverte ou rompe a relao da forma para o contedo,
superfcie para a profundidade, certamente, mas tambm da margem
para o centro. (COHAN, 2002, p. 103, traduo minha)

Neste sentido, a autopardia cria uma possibilidade para os fs da estrela


negociarem ou subverterem os esteretipos. Em outras palavras, possibilita-se ver
Carmen Miranda como intencionalmente produzindo sua prpria leitura camp de
gnero e etnicidade como construes culturais sobre seu figurino extravagante (p.
106, traduo minha). Continua o autor:

Essa dimenso da imagem de Miranda explica porque, quase que no


mesmo momento em que ela apareceu nos palcos de Nova Iorque e
nos musicais de Hollywood, sua figura foi to facilmente imitvel
como uma drag, sustentculo de atos de personificao feminina na
tela (como em Babes on Broadway de 1941) e em shows militares
masculinos. (COHAN, p. 106, traduo minha)

Charles Ramirez Berg (2002) j centrara sobre o estudo do que chamou de


excesso performativo desempenhado no papel da latino-americana. Em seu caso, ao
abordar Lupe Velez em sua srie de filmes em que atuou como Mexican Spitfire, Berg
aponta o quanto o angloamericano sedentrio, tedioso, aquele que obssessivamente
sendento de lucro (p. 96), v-se transposto em personagens caracterizadas por sua
humanidade e vivacidade, resolvendo todos os problemas, cabendo no papel de herona.
No entanto, na viso do autor, Carmen Miranda, a qual no analisada, mas qualificada
como um prottipo da mulher palhaa, um dos tipos frequentes latino-americanos em
filmes.

118
Partindo da pressuposio de que as personagens hegemnicas se constituem por
complexidade enquanto os esteretipos por simplificao, os atos subversivos se dariam
pelo que chama de excesso performativo. Embora use critrios muito esquemticos e
binrios (como reiterao/resistncia), alm de abordar Carmen Miranda de forma
redutora e no analis-la, considero til cit-lo por enfatizar aspectos subversivos na
repetio por excesso, ponto ao qual retornarei durante os captulos finais da tese.
Priscilla Ovalle (2011) apresenta outra perspectiva na mesma linha, ao focar a
dana como caracterstica definidora da latina hollywoodiana Enquanto a female blond
star era convidada e ensinada a danar por seu par masculino branco que desempenha
um papel de protagonismo, a latina j domina a dana de antemo, o que significaria em
termos conotativos a presena de um poder de atrao sexual. Essa caracterstica j de
antemo a coloca em um paradoxo: a latino-americana como uma danarina, ela
frequentemente exibe uma agncia narrativa que desafia a passividade branca feminina,
mas o ato de danar amide a confina nos papeis que reiteram mitos racializados e
sexualizados (OVALLE, p. 11, traduo minha). Uma ambiguidade caracterizaria a
carreira de Carmen Miranda, algo perceptvel em uma descrio de um jornalista como
brbara e brilhante, extica, mas radiante e genial em seus movimentos.
Carmen, enquanto pessoa treinada em costura e moda, desempenha um papel
ativo na construo de sua baiana estilizada e desenvolve suas plataformas que
constroem, por sua vez, a iluso da altura, comprimida a saia para dar relevo a sua
cintura e adicionado um excedente de grandes colares e uma roupa que deixava
mostra seu umbigo para amplificar seu estilo (OVALLE, p. 58, traduo minha). A
autora considera que sua agncia limitada a repetir papis de comdia e sempre
requerida a desempenhar performances corporais. Mas entre o extico e o brilhante,
Carmen constri uma viso que se distancia de uma feminilidade passiva e impacta
profundamente na moda. Suas roupas so suntuosas e neste aspecto ela no apenas
uma nfase hiperblica e pejorativa, h algo que a engrandece tambm valorativamente,
sendo explicativo seu apelo ao pblico feminino.
A performance criativa e a agncia de Carmen Miranda em sua carreira
brasileira melhor explorada pela fortuna crtica nacional. Para S (1997), Carmen
com sua baiana atua como alegoria carnavalesca imagem inacabada, aberta e
fragmentada e seria, tal como na linguagem do carnaval, um jogo livre de aluses.
Uma de suas caractersticas centrais seria a pardia, algo prprio cultura brasileira,

119
significando, em sua interpretao inspirada em Bakhtin, a possibilidade subversiva de
dessacralizao atravs do riso, da zombaria, da ironia, do grotesco (S, 1997, p. 190).
Para Mendona (1999), Carmen, por seu talento, era a figura que soube como
ningum encarnar uma identidade nacional que se forjava na rainha branca do samba
atendendo ao figurino estado-novista em suas pretenses nacionalistas, ao mesmo
tempo em que representava a populao negra e pobre e sua ginga e grias prprias das
favelas, configurando-se em um equilbrio de opostos oportuno ao governo com
pretenses integrativas de Getlio Vargas. Garcia (2004) de um lado, enfatiza a
passagem pela cantora por um processo de branqueamento do samba, junto com outros
cantores e compositores, constituindo por meio de negociaes uma identidade
nacional, calcada na sntese entre Casa Grande e Senzala, incorporando aquilo que se
relacionava culturalmente com o negro sob feio branca.
De outro lado, tal identidade se forja na msica, fazendo emergir temas que
comprometiam esta unidade imaginada, planejada pelos grupos no poder. Desordenando
e desorganizando, a cano popular urbana apresentava um outro universo simblico
(GARCIA, 2004, p. 43), expondo as hierarquias prprias da sociedade brasileira. Neste
aspecto, a figura de Carmen Miranda, ao mesmo tempo em que se aproxima das
expectativas dominantes de representao branca da msica que se estabelecia enquanto
nacional, mostrava sua ambiguidade, no uso do humor enquanto caracterstica
fundamental: parodiar os costumes socialmente estabelecidos, questionar suas
definies foi uma das grandes qualidades de Carmen Miranda (...) Sua performance
no tinha por objetivo definir, mas indagar (GARCIA, 2004, p. 49).
Tal nfase na agncia criativa to abordada pela literatura brasileira sobre
Carmen Miranda pouco explorada a respeito de sua fase norte-americana e apenas por
meio da leitura da bibliografia norte-americana possvel acessar aspectos importantes
da agncia em sua carreira internacional. Se a bibliografia norte-americana pouco
acrescenta s negociaes e tenses raciais por que passava a reelaborao da identidade
nacional na figura da Embaixatriz do Samba, a brasileira muito centrada na ruptura
entre suas performances no Brasil e nos Estados Unidos no consegue mais do que
esboar certos elementos de deslocamentos e negociaes em sua carreira internacional.
Carmen Miranda morreu em agosto de 1955, quase um ano aps sua ltima volta
ao Brasil, pela qual pde reconquistar fs brasileiros em aparies pblicas. No seu
retorno aos Estados Unidos, assumiu muitos compromissos em casas de show, contando
com uma turn em Cuba e com projetos para a televiso. Carmen, como em sua msica,

120
fazia dinheiro com bananas, sabia ser estrategista ao usar a imagem que construiu a
partir dos discursos em que se inseriu no contexto norte-americano, dentro de uma
genealogia de latino-americanas, no perodo de transformao paradigmtica da Poltica
de Boa Vizinhana e para alm dele.
Ela soube explorar os significados histricos nos enquadramentos culturais
distintos em que atuou. Tais significados serviram de limites sua caracterizao, mas
isso no significou que ela se tornou uma refm passiva dos contextos discursivos em
que se inseria. A pardia um dos elementos centrais em sua trajetria e, junto com
outros aspectos, pode ser lida como uma estratgia pessoal em suas performances para
lidar com discursos hegemnicos nos contextos brasileiro e norte-americano. Para alm
dos amplos contextos polticos e econmicos que a circundavam, torna-se necessrio
analisar o modo como ela negociava com talento certas representaes, muitas vezes
deslocando-as e possibilitando leituras subversivas.

2.3. Uma trajetria em dois contextos: performatividade, cumplicidade criativa e


deslocamentos

Proponho uma nova abordagem a partir da refutao de duas interpretaes que


se configuram em modelos de anlise da trajetria da artista brasileira. A primeira a de
Simone Pereira de S (1997) que analisa as continuidades na carreira de Carmen
Miranda nacional e internacional, em que ela carrega a mesma caracterstica de, por
meio do gesto carnavalizante e da alegoria, incorporar novos elementos em uma
linguagem j prpria da cultura popular que se consolidava no Brasil. A segunda a de
Tnia Garcia (2004) que enfatiza a ruptura na carreira internacional de Carmen
Miranda, sendo a primeira marcada por indagar os discursos por meio do humor e da
pardia e a segunda notadamente reduzida a um esteretipo.
Como lidar com a trajetria de Carmen Miranda a partir de seu acmulo de
experincias profissionais e conceber estratgias que apresentam continuidades, mas
esto enquadradas em contextos distintos? Como considerar sua insero nestes
contextos poltico-discursivos fortemente demarcados sem reduzi-la a um objeto? E
como interpretar a questo da repetio, dentro de uma genealogia das latino-
americanas no cinema, sem transform-la em reproduo fechada? Ou, nas palavras de
Judith Butler, como escapar da armadilha do binarismo desnecessrio do livre-arbtrio
e do determinismo (2003, p. 211)?

121
Estamos diante de uma questo sociolgica clssica sobre o sujeito e a
problemtica do assujeitamento, sobre a relao entre estrutura e ao, ou ento sobre os
vnculos entre indivduo e sociedade. H muito tempo que se coloca a questo na
sociologia de como se pensar o sujeito para alm daquele que reprodutor da estrutura,
sem torn-lo soberano e no contextualizado. So muitas as estratgias e perspectivas
que procuram responder de alguma forma a esta questo para a qual recorremos s
contribuies de Judith Butler (2003) e seu conceito de performatividade.
Na perspectiva de Butler, possvel pensar a identidade para alm de uma
simples alternncia entre reproduo na qual o sujeito somente reitera as normas e
discursos e, de outro lado, soberania do sujeito, na qual este se move alheio ao discurso
e ao social. Dentro de uma perspectiva inovadora para se pensar identidade para alm de
uma reduo binria e unilateral entre indivduo-sociedade, a autora concebe o gnero
(e aqui estendo s identidades nacionais e raciais incorporadas por Carmen Miranda)
como performativo: ele se realiza a partir da repetio estilizada de atos ao longo do
tempo (BUTLER, 2003, p. 200), melhor colocado, o gnero um conjunto de atos
repetidos no interior de um quadro regulatrio altamente rgido (SALIH, 2012, p. 89).
A identidade envolve a estilizao do sujeito dentro das normas sociais, por sua
vez anteriores a ele. Assim, pensar em uma identidade enquanto performativa inclui
negar a ideia de que exista um sujeito de antemo: Butler argumenta que a identidade
de gnero uma sequncia de atos (uma ideia que assenta em teorias existencialistas),
mas ela tambm argumenta que no existe um ator (um performer) preexistente que
pratica esses atos, que no existe nenhum fazedor por trs do feito (SALIH, 2012, p.
65).
Considera-se ento que nos tornamos sujeitos ao assumir as identidades
sexuadas/generificadas/racializadas que so construdas para ns (e, em certa medida,
por ns) no interior das estruturas de poder existentes (SALIH, 2012, p. 10). Trata-se
de um processo dinmico no qual em vez de partir da premissa de que o sujeito um
viajante metafsico preexistente, Butler descreve-o como um sujeito-em-processo que
construdo no discurso pelos atos que executa (SALIH, 2012, p. 65). Nas palavras da
prpria autora:

a questo da ao no deve ser respondida mediante um recurso a um


eu que preexista significao. Em outras palavras, as condies
que possibilitam a afirmao do eu so providas pela estrutura de
significao, pelas normas que regulam a invocao legtima ou

122
ilegtima desse pronome, pelas prticas que estabelecem os termos de
inteligibilidade pelos quais ele pode circular. A linguagem no um
meio ou instrumento externo em que despejo um eu e onde vislumbro
um reflexo desse eu. (BUTLER, 2003, p. 207)

Tal perspectiva deriva especialmente da incorporao criativa de dois tericos


ps-estruturalistas fundamentais. Em primeiro lugar, parte de Michel Foucault que
elabora uma interpretao distinta de uma viso puramente repressiva do poder. Ao
contrrio, para ele o poder , antes de tudo, produtivo. por meio do poder que o
sujeito se viabiliza enquanto tal. Neste aspecto, o sujeito antes de tudo sujeitado, se
constitui em meio a discursos que, por sua vez, se configuram em relaes de poder. Da
obra de Jacques Derrida incorpora a ideia de que a estrutura depende de sua repetio
para configurar sua estruturalidade. No entanto, sua repetio tende a falhar j que o
sistema lingustico no fechado e os signos lingusticos so sujeitos apropriao.
Sendo assim, a possibilidade de fracasso intrnseca e necessria ao signo. Da a ideia
de que os sujeitos se constituem pelo discurso, mas podem desloc-los.

Se no reduzirmos o poder vontade, e se recusarmos o modelo


liberal e existencialista clssico da liberdade, poderemos entender as
relaes de poder, como penso que devem ser entendidas, como
relaes restritivas e constituintes das prprias possibilidades de
volio. Consequentemente, o poder no pode ser retirado nem
recusado, mas somente deslocado. (BUTLER, 2003, p. 179)

Na perspectiva da autora, considerar o sujeito dentro das malhas do discurso e


do poder, no significa transform-lo em pura reiterao. Ao contrrio, uma de suas
preocupaes dar ateno a subverses que muitas teorias no conseguem captar, pois
do demasiada nfase na estrutura. No entanto, a subverso das normas no se d para
alm do discurso e do poder, ela s pode ser pensada como algo que se realiza dentro
das normas e dos discursos e por meio de sua repetio subversiva ou deslocadora.
Coloca-se a dificuldade de se dizer o que subversivo e, para Butler, a despeito da
dificuldade inerente dado que as produes de significados podem ser sempre
apropriadas e assim mesmo quando deslocadoras podem ser redirecionadas a afirmar a
ordem cultural dominante sua reflexo se d a partir da conceituao de uma matriz
heteronormativa de gnero.
Para Butler, a construo de gnero em sociedades modernas se efetiva pela
coerncia discursivamente imposta entre anatomia sexual, gnero, desejo e prticas
sexuais e, portanto, desta matriz que se constri performativamente o gnero. Por sua

123
vez, a performatividade de gnero s se realiza em ato e por meio dele sua repetio
est suscetvel de ser deslocado e subvertido. Em minha pesquisa, o foco recai sobre a
performatividade de Carmen Miranda, de forma a se pensar nas representaes que
envolvem interseccionalmente as categorias de gnero, raa, sexualidade (e, muitas
vezes nao e subcontinente) (BRAH, 2006). Apenas em Bodies That Matter, Butler
(2002) explora tais conexes entre gnero, sexualidade e raa, quando diz:

Na constituio do sujeito, a ordem da diferena sexual no anterior


a da raa ou a da classe; em realidade, o simblico tambm um
conjunto de normas relativas a raa e as normas de autenticidade
mediante as quais se produz um sujeito so concepes do sexo
influenciadas pela raa. (BUTLER, 2002, p. 191, traduo minha)

Carmen Miranda desenvolveu sua carreira dentro das malhas dos discursos
hegemnicos vigentes em ambos os contextos em que atuou, tendo sua trajetria uma
certa cumplicidade com eles, como no poderia deixar de ser. Sua carreira em seus dois
momentos se encontra com redimensionamentos simblicos importantes, tanto no caso
da constituio de uma comunidade imaginada brasileira que atualizava o ideal de
branquitude, como no caso norte-americano marcado pela aproximao diplomtica
entre Estados Unidos e Amrica Latina. O perodo de transformao permitia que,
performando a nao enquanto comunidade imaginada, no Brasil, e enquanto
diferena racial, nos Estados Unidos, desse novos contornos s representaes
institudas historicamente.
A entertainer brasileira pde no apenas reiterar esteretipos, mas torcer seus
significados. No negando sua vinculao com discursos hegemnicos coloniais em
ambos os contextos, busco captar as ambiguidades de suas atuaes no que se
materializou em uma coexistncia instvel entre uma reiterao dos discursos
hegemnicos e seus deslocamentos, s acessveis na forma como manipulou a partir do
palco certos significados, bem como na forma em que se relacionou com diversos
pblicos. Em outros termos, e baseado na interpretao de Butler (2003), meu objetivo
interpretar a trajetria de Carmen Miranda dentro de discursos hegemnicos em que
pde perform-los de forma a repeti-los, mas, muitas vezes, fazendo-os adquirir outros
significados. O empreendimento se torna rico de possibilidades na medida em que
supomos que:

124
Toda significao ocorre na rbita da compulso a repetio; a ao,
portanto, deve ser situada na possibilidade de uma variao dessa
repetio. Se as regras que governam a significao no s restringem,
mas permitem a afirmao de campos alternativos de inteligibilidade
cultural, i. e., novas possibilidades de gnero que contestem os
cdigos rgidos dos binarismos hierrquicos, ento somente no
interior das prticas de significao repetitiva que se torna possvel a
subverso da identidade. (BUTLER, 2003, p. 209)

A pardia aparece como lcus fundamental na primeira acepo de


performances subversivas que Butler explora em Gender Trouble. No toa, seu ponto
de partida extrado do livro etnogrfico de Esther Newton em uma citao em que se
compara a performance cinematogrfica de Greta Garbo a uma drag. A conceituao da
performatividade e suas subverses por meio de referncias ao mundo drag abriu
crticas que levaram a autora a fazer distines importantes entre performance e
performatividade, evitando uma leitura redutora que equivalesse o fazer gnero com
uma performance artstica na qual se pressupe uma elaborao racional anterior do
sujeito.
Judith Butler (2002) responde a essas crticas em Bodies That Matter, ainda
recusando uma leitura literal na qual a interpretao drag vista como necessariamente
subversiva, quando pode ter um sentido contrrio, de reforo das normas, por exemplo,
em filmes hegemnicos heterossexuais. Criticando a interpretao prpria de algumas
feministas, segundo as quais a performance drag baseada na degradao do feminino,
o que Butler salienta o espao de ambiguidade da interpretao drag que denuncia a
estrutura imitativa de gnero e, por conseguinte, da identidade:

Afirmar que todo gnero como o travesti (sic) ou est travestido


sugere que a imitao est no corao mesmo do projeto
heterossexual e seus binarismos de gnero, que o travestismo no
uma imitao secundria que supe um gnero anterior e original,
seno que a heterossexualidade hegemnica mesma um esforo
constante e repetido de imitar suas prprias idealizaes. (BUTLER,
2002, p. 184, traduo minha)

Tomar como ponto de partida o palco til em sua similaridade entre a anlise
inicial de Butler e o objeto de estudo presente. Carmen Miranda tinha um vnculo
especial com o palco, j estabelecido no Brasil, mas consolidado desde que se tornou
uma estrela do show business norte-americano com suas apresentaes na Broadway.
Considerar Carmen Miranda no palco analisar suas performances no espao criativo

125
artstico em que se insere, mas no o transformando em um espao de livre criao
atemporal e desprovido de relaes de poder. Lisa Shaw exps a ambiguidade
necessria em uma anlise matizada de Carmen Miranda:

Quando moldava sua persona de estrela, ela astutamente baseou-se nas


dinmicas polticas entre as Amricas do Norte e do Sul de sua era, e
seus clichs culturais e esteretipos anexos (...) tanto capitalizando
quanto subvertendo suas hierarquias implcitas e agendas escondidas
da Poltica de Boa Vizinhana. (2013, p. 76, traduo minha)

Carmen fez o mesmo em sua carreira nacional, respaldando a nova identidade


nacional que se criava na juno paradoxal entre unidade nacional e branquitude, no
deixando de questionar as bases da mesma por meio do humor e da pardia. Nos dois
contextos, a artista brasileira compunha suas interpretaes a partir de uma
cumplicidade criativa, prpria aos tempos de redimensionamento simblico tanto da
nao, nos anos 30, quando das relaes entre os Estados Unidos e a Amrica Latina
durante o perodo da Poltica de Boa Vizinhana. A cumplicidade, denotando a
aceitao dos parmetros de representao previamente definidos, representou a
possibilidade de reconhecimento de Carmen Miranda abrindo espaos para criaes
que, ao lado de reiterar as hierarquias definidas, muitas vezes as colocavam em questo.
Como constatou sua fortuna crtica nacional, a pardia fez parte de sua
consagrao como dolo nacional por meio do mercado de entretenimento da capital
federal. Trata-se de elemento importante da cultura popular urbana carioca, o qual
impactou na formao artstica de Carmen, tambm trazendo outros elementos como a
inverso (racial e de gnero) e o exagero. As habilidades de Carmen Miranda de
estilizar a figura da baiana exagerando em seus vestidos extravagantes e de se
autoparodiar pode ser vista como uma construo deslocadora de sentido.
Sendo assim, explorar o exagero e a pardia revelam-se estratgias importantes.
Visando suprir um gap entre a literatura norte-americana e a brasileira, proponho
explorar o que conecta a pardia brasileira com a norte-americana nas performances de
Carmen Miranda. Antes, no entanto, centrarei minha ateno na forma como Carmen
Miranda negociou tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil com os discursos
hegemnicos e mobilizou sua carreira a partir de certa cumplicidade criativa, abrindo
espaos para ela no mercado de cultura de massas em ambos os contextos.
No prximo captulo, o foco recair sobre a insero de Carmen dentro da
engrenagem econmica e cultural do star system, explorando as negociaes da cantora

126
e entertainer brasileira a partir de sua relao com a imprensa e em suas aparies
pblicas. O excesso corporal de Carmen e a imbricao entre sua nacionalidade e a
diferena racial sero abordados. A entrada em territrio norte-americano fez com que
Carmen Miranda participasse da renegociao de cdigos de gnero daquele pas, como
uma figura calcada no exotismo da diferena racial.
Sua atuao pblica e nos filmes deram margem ao redimensionamento das
representaes latino-americanas, ao que ser abordado em especial no que toca s
negociaes que Carmen efetuou com a exportao da figura da baiana. As divergncias
entre as recepes brasileiras e norte-americanas sero abordadas, em especial, quando
se consome a baiana internacional de Carmen no contexto carioca. Em uma arena
internacional de representaes, a trajetria da entertainer acaba por solidificar a
imagem da mulher brasileira sensual, o que no se d sem renegociaes internas de
fundo racial e classista.

127
CAPTULO 3: SOUTH AMERICAN WAY: PERFORMATIVIDADE E
CUMPLICIDADE CRIATIVA

3.1. Star System e a estrela sul-americana

Mesmo em conversas casuais ela fala da mesma forma que canta, do


jeito que atua nas telas com seus olhos flertando, suas sobrancelhas
fazendo hulas, com seus dedos da mo duplamente tingidos
preenchendo os espaos. (PMs Weekly, 7 de setembro de 1941,
Arquivo da MHL, traduo minha)

E digo apenas que lamento ela, para se adaptar a certos gostos e


circunstncias, ter-se feito uma caricata de gestos exagerados e cujo
ingls deve ser o mais errado possvel, para assim fazer graa e
provocar hilaridade que o que, parece, dela exigem... pelo que me
disseram pessoas vindas da A. do Norte. De graciosa, passou a
engraada e quem ainda se lembrar de Carmen quando, na Urca se
mostrava ingnua e maliciosa em O que que a baiana tem, s pode
sentir pena, vendo-a num grande esforo para ser o que no era. (Cena
Muda, Silvia Maria, Rio, 13 de abril de 1943, p. 37)

As declaraes de contextos distintos parecem evocar duas pessoas antagnicas,


quando se referem mesma Carmen Miranda. Uma vista dos Estados Unidos, como
uma artista autntica que praticamente se iguala na vida privada entertainer dos palcos
e do cinema. Outra, na viso de uma brasileira, como completamente artificial,
ajustando-se s expectativas do pblico norte-americano. Quando Carmen migrou aos
Estados Unidos com sua personagem da baiana, o esteretipo da latino-americana o
sobreps, passando ento a fazer parte de duas narrativas concomitantemente: o
autntico cone nacional, cuja autenticidade foi produto de longa negociao, adentra
em outro universo simblico e ressignificado.
O contraste elucida a insero de Carmen Miranda nesses dois sistemas
simblicos distintos, construindo uma histria especfica nos dois pases, com
percepes distintas, quando no antagnicas. Neste captulo, pretendo analisar como a
entrada de Carmen Miranda no contexto norte-americano significou uma cumplicidade
criativa no que tange o sistema simblico que a classificava como uma latino-
americana. Em seu jeito sul-americano, como era concebida, foi capaz de permitir
com ajuda da distncia geogrfica a entrada de novos elementos que comporiam a
forma de se conceber os pases ao sul do Rio Grande, representados em uma suposta
unicidade. Para tanto, Carmen levou elementos prprios ao universo simblico

128
brasileiro, causando conflitos com os significados anteriores que delimitavam sua
personagem da baiana, a partir da qual se constituiu como estrela nacional.
A anlise de Carmen Miranda se figuraria incompleta se restrita a suas atuaes
flmicas conjugadas a amplas conjunturas polticas e representaes. Um aspecto crucial
seria deixado de fora. Carmen era uma estrela nacional no mercado de entretenimento
que se forjava na capital brasileira e, depois, uma estrela na Broadway e em Hollywood.
Como tal, negociou valores culturais abrangentes mediada por veculos de comunicao
com histria e lgicas prprias. a partir de seus vnculos com uma esfera pblica
baseada na cultura de massas, por meio da qual difundiu globalmente suas imagens e
performances, que sua carreira pode ser abordada.
Como explorei nos captulos anteriores, as representaes via cinema se faziam,
embora com uma lgica prpria do mercado, amplamente mediadas pela interveno
Estatal com a presena de agncias governamentais e de negociaes entre
representantes dos pases latino-americanos. Mais atento s negociaes e brechas nas
formas de representao, este captulo pretende abordar de que maneira o agenciamento
de Carmen Miranda foi possvel dentro de certos condicionantes prprios da cultura de
massas norte-americana.
Em primeiro lugar, o auge de sua carreira norte-americana na esteira dos filmes
musicais hollywoodianos se efetivou dentro do que se chama de sistema de estdios
(studio system), no qual trustes verticais, os cinco maiores estdios (MGM, Paramount,
Warner Bros., Fox e RKO) controlavam de forma integrada a produo, distribuio e
exibio dos filmes (COHAN, 2002, p. 05) at 1948, quando uma lei federal obrigou a
desmembrar a cadeia dos cinemas, uma das maiores fontes de renda dos estdios.
Sendo assim, as concesses feitas pelos estdios Poltica de Boa Vizinhana e
a um cinema que se dedicava a criticar os regimes totalitrios e difundir o American
way of life se desenvolveram em um momento no qual o governo ainda fazia vista
grossa a um procedimento que ia de encontro a supostamente um dos pilares da
democracia capitalista norte-americana: a livre concorrncia. Tais estratgias
econmicas se faziam presentes ao se defrontar com um empreendimento extremamente
custoso e competitivo e estruturado em termos industriais:

Os estdios manufaturavam filmes por meio de prticas de trabalho


racionalizadas e de trabalho especializado (trabalhadores contratados
responsveis por vrias tarefas, de atuar e dirigir a projetar e construir
a montagem), e com produto prprio distinguvel como de um estdio

129
particular de acordo com um estilo flmico consistente, a presena
repetitiva de certas estrelas, especializao genrica, desenvolvimento
de valores de produo (uso seletivo da cor, por exemplo) e
publicidade. O musical era um dos mais prestigiados e confiveis
produtos desta indstria (COHAN, 2002, p. 06, traduo minha) [...]
porque envolve amplo elenco, vestimentas e cenrios elaborados, mais
pessoal fora das cmeras, tempo de preparao extensiva e agenda de
filmagens mais longas do que o usual, um musical requer mais
despesas de trabalho e capital, o que resulta em prticas concebidas
para garantir maior controle do estdio. (COHAN, 2002, p. 13,
traduo minha)

Neste sentido, voltando-me reflexo que encerrou o captulo anterior, cabe


perguntar sobre as estratgias e posicionamentos de Carmen Miranda. Dentro de tal
estrutura industrial, qual seria seu espao de agenciamento enquanto uma estrela
conceituada e muito bem paga pela 20th Century Fox? Richard Dyer (1979) contrape
dois tipos de abordagem comuns em relao a estrelas. A primeira, embora muito
prxima do senso comum, ainda aceita em vrias abordagens acadmicas, equivale
estrelas a talento, ou seja, uma estrela se torna tal por conta de habilidades pessoais
atemporais. Algo que encontra objees ao constatarmos, em nvel mais superficial, que
nem todos os artistas talentosos se tornam estrelas e que nem todas as estrelas so
talentosas e, de forma mais aprofundada, que talento um atributo histrico e
culturalmente especfico.
De outro lado, temos a ideia da estrela como fabricao, pura manipulao, uma
pea dentro de uma maquinaria de produo. Em um sistema industrial, a autoria dos
filmes se resumiria a objetivos corporativos, escapando ao controle dos diretores e,
assim, o escopo de criao estaria ainda mais longe das estrelas. Estrelas fariam parte de
uma engrenagem muito maior do que elas, embora no seriam coadjuvantes, j que o
sistema de estdios se baseia em grande parte no star system. Algo que o prprio autor
contesta com argumentos que concordo, como desenvolverei a seguir.
Inegvel que a indstria flmica, em especial em relao ao perodo em questo,
dedica enorme tempo na construo da imagem da estrela por meio da publicidade,
promoo, f clubes, incentivo a matrias em jornais e revistas, etc. (DYER, 1979). A
presena de estrelas essencial para atrair audincia, gerar lucro em filmes e tambm,
indiretamente, para revistas e outros produtos de consumo. Em relao aos musicais,
podemos afirmar que:

130
os vrios exemplos de catlogo de musicais e biografias sugerem
tambm a extenso a qual o musical era, acima de tudo, um gnero
impulsionado por estrelas. A afiliao prxima de certas estrelas com
seu estdio ajudou a estabelecer uma marca companhia para
diferenciao de seu produto, tanto assim que a histria cronolgica
do filme musical em um estdio particular pode ser traado por meio
de suas principais estrelas. (COHAN, 2002, p. 12, traduo minha)

Distanciando-se de anlises estruturais e economicistas, Dyer (1979) salienta


que se os estdios de fato constroem a imagem da estrela e seus contornos e estimulam
seu apelo em relao ao pblico, essa criao no se d de forma unilateral, mas sim de
forma mais complexa e matizada. Nestes termos, as estrelas no so criadas apenas a
partir de uma lgica vertical imposta pelos estdios, mas se realizam no consumo,
dependem da audincia. O que atesta tal afirmao a prpria oscilao na carreira das
estrelas, superando qualquer modelo baseado em uma manipulao soberana que
considera a recepo como passiva, como somente uma resposta.
Uma abordagem mais sofisticada teria que dar conta das complexas operaes
de codificao e decodificao que fazem parte da construo da imagem da estrela.
Outro aspecto que no pode ser menorizado a participao ativa da estrela neste
processo de autoproduo enquanto mercadoria:

As estrelas esto envolvidas em se fazerem mercadorias, elas so tanto


trabalho como a coisa que o trabalho produz (...) Essas pessoas que
fazem esse trabalho incluem a estrela to como maquiadores,
cabeleireiros, estilistas, nutricionistas, personal trainers, professores
de atuao, dana e outros, publicitrios, fotgrafos, colunistas de
fofocas e por a vai. (COHAN, p. 05, traduo minha)

Em obra mais recente, Richard Dyer (2004) explora a complexidade desta


relao entre a produo e a recepo da imagem das estrelas, concluindo que as
imagens de estrelas so sempre extensivas, multimdia e intertextuais (p. 03, traduo
minha):

O fenmeno da estrela consiste em tudo o que publicamente


disponvel sobre estrelas. Uma imagem de estrela de cinema no
apenas seus filmes, mas a promoo destes filmes e da estrela como
pin-up, em aparies pblicas, distribuies dos estdios e por a vai,
to como entrevistas, biografias e cobertura da impressa sobre o que
est fazendo em sua vida privada. (DYER, 2004, p. 02, traduo
minha)

131
Acrescenta ainda o autor que: a imagem da estrela tambm o que as pessoas
fazem ou escrevem a seu respeito, como crticos ou comentaristas, o jeito como sua
imagem usada em outros contextos como publicidade, novelas, msicas pop e
finalmente o jeito que a estrela se torna parte da fala cotidiana (DYER, 2004, p. 03,
traduo minha). Explorando as formas complexas de codificao e decodificao,
evitando uma anlise da produo de cima para baixo, Martin-Barbero (2009)
concebe o star system como um dispositivo comercial sobre mecanismos de percepo
e reconhecimento popular (2009, p. 203), ou seja, parte da ideia de que a construo da
imagem da estrela dependia de sua simetria com a identificao do pblico: era a
identificao sentida e o desejo mobilizado pela estrela o que permitia a rentabilidade
dos filmes (2009, p. 204).
No contexto dos musicais dos anos 40, pode-se dizer que o apelo ao pblico era
to mais forte quanto mais se produzia uma ideia de indistino entre ator e
personagem, ou uma verossimilhana entre ambos que permitisse ao pblico alcanar a
autenticidade no da personagem, mas da estrela, assistindo seus filmes. No sistema de
estrelas, busca-se a pessoa por de trs da superfcie, dentro de uma retrica de
autenticidade, intenta-se alcanar uma pessoa de carne osso para alm do papel
desempenhado (DYER, 2004, p. 10). Algo construdo estrategicamente nos nmeros
musicais, nos quais os pblicos diegticos e extra-diegticos se confundem, como
podemos acessar nos momentos nos quais um ator ou uma atriz olha para o pblico no
filme e, a partir de efeitos de cmera e edio parece olhar para o espectador para alm
das cmeras.

Quando um musical se move para trs e para frente entre o realismo


diegtico da estria e a conscincia extra-diegtica da performance da
estrela nos nmeros, a oscilao entre enderear diretamente e
indiretamente o pblico, aumenta o seu sentido de no estar
observando uma estrela interpretar um personagem, mas estar
testemunhando ela ou ele em sua prpria autenticidade, carisma e
talento sem a mediao de uma narrativa ficcional ou tecnologia
cinematogrfica. (COHAN, 2002, p. 13, traduo minha)

H um vnculo ainda mais direto entre personagem e estrela quando se aborda


Carmen Miranda. A brasileira atua como ela mesma, em boa parte de seus filmes
comea suas performances dos palcos sem que o espectador conhea sua personagem.
Desta forma, ela recupera sua imagem de entertainer que trouxe da Broadway, antes de
ser atriz da Fox. Mas no apenas nos filmes que se produz a verossimilhana entre a

132
Carmen estrela e suas personagens. A imagem da estrela brasileira, naquele contexto
mais reconhecida como latino ou sul-americana, foi produzida de forma extensa pela
imprensa norte-americana, com uma participao significativa dos setores de imprensa
da Fox e, antes disso, da companhia de teatro dos Shubert em Nova Iorque.
Dyer (1979) salienta a complexidade na qual se constri a imagem das estrelas
na esfera pblica voltada ao consumo de massas. Uma estrela rene caractersticas que
se baseiam em uma individualidade complexa, com historicidade, interioridade e
consistncia. No obstante, normalmente as imagens so construdas dentro de tipos
pr-concebidos com suas idiossincrasias, essenciais para alcanar reconhecimento do
pblico. De forma geral, a imagem das estrelas combina as duas caractersticas,
atribuindo singularidade estrela, mas tendo como ponto de partida um tipo, o que
significa que ser sua variao individual, reforando certos aspectos, exagerando
outros ou adicionando certos elementos. Pensando que os estdios tm as estrelas como
fonte essencial na busca de audincia, muitas vezes demandam que repitam certos
estilos j construdos em relao estrela, certos maneirismos que se tornam parte
definidora da estrela (DYER, 1979).
A construo semitica da estrela, que carrega sentidos conotativos de seu tipo,
tem uma lgica prpria s engrenagens da indstria flmica dentro de uma economia
capitalista, muito embora no se restrinja a problemticas econmicas. Como vimos,
forjou-se uma imagem de Carmen Miranda a partir do esteretipo de latino-americana
com um histrico no cinema hollywoodiano prprio a representaes que a
subalternizavam. Mas, como tambm abordei, sua carreira se desenrolou em um perodo
marcado pela aproximao poltica entre Estados Unidos e os pases latino-americanos,
no contexto da Poltica de Boa Vizinhana, no qual foram criadas agncias
governamentais, por sua vez atentas a anseios dos outros governos, que interferiram na
forma como se produzia os filmes no que se refere representao da Amrica Latina.
Por fim, a construo da imagem de Carmen Miranda no se tratou de algo
passivo, mas contou com uma participao ativa da cantora e entertainer, a qual, dentro
de certas margens de manobra propiciadas pelo contexto de redimensionamento
simblico por conta das relaes diplomticas entre Estados Unidos e Amrica Latina,
conseguiu, a partir de uma cumplicidade criativa com a colonialidade representada,
alter-la e tornar-se mesmo um smbolo iconogrfico de longa durao. Considerar seu
agenciamento no consider-la sujeito soberano, subestimando a fora sedimentada
historicamente das representaes e a lgica capitalista opressiva dos estdios.

133
Neste sentido, busco compreender seu agenciamento a partir do conceito de
performatividade de Judith Butler (2003). Em uma conceituao do gnero como
construo performativa, Butler (2003) parte no de uma estrutura que determina o
sujeito de cima para baixo e de uma vez por todas, mas de uma construo que se d
na ao do sujeito, dentro dos limites das normas sociais e na malha dos discursos
disponveis. Em suas palavras: o sujeito no determinado pelas regras pelas quais
gerado, porque a significao no um ato fundador, mas antes um processo regulado
de repetio que tanto se oculta quanto impe suas regras, precisamente por meio da
produo de efeitos substancializantes (BUTLER, 2003, p. 209). Segundo a autora:

O gnero [aqui extensvel identidade interseccional de gnero e raa


da latino-americana] uma identidade tenuamente constituda no
tempo, institudo num espao externo por meio de uma repetio
estilizada de atos. O efeito do gnero se produz pela estilizao do
corpo e deve ser entendido, consequentemente, como a forma
corriqueira pela qual os gestos, movimentos e estilos corporais de
vrios tipos constituem a iluso de um eu permanente marcado pelo
gnero. (BUTLER, 2003, p. 200)

Considerando que o gnero no se constitui independentemente da raa, busco


interpretar a latino-americana nesta viso que versa sobre sujeito e identidade.
Utilizando o conceito de performatividade, possvel pensar a forma como por meio da
repetio do tipo da latino-americana, Carmen pde alterar seus significados, muito
embora dentro de certas limitaes impostas. Carmen lidou em sua trajetria desde o
Brasil com elementos marcantes nas representaes nacionais e depois subcontinentais,
caracterizadas pela interseco entre as categorias de gnero, raa e sexualidade. Da
baiana sua sobreposio pela latino-americana, Carmen a partir da repetio de
elementos simblicos com histria prpria, acaba por desloc-los e dar-lhes novos
sentidos. Por meio de suas negociaes com a imprensa e aparies pblicas, seja em
apresentaes ou em sua vida particular, enquanto uma estrela acabou por sedimentar
outros significados que se tornaram parte da iconografia brasileira e latino-americana.
A estilizao uma caracterstica fundamental de sua personagem, essencial ao
incorporar a baiana em um procedimento artstico que a permite lidar criativamente com
o sistema simblico previamente constitudo. No contexto brasileiro, a figura da baiana
era composta por muitos elementos (balangands, joias, sandlias, etc.) que em sua
diversidade permitiram a Carmen elaboraes criativas, referindo-se forma anterior da

134
figura, mas dando-lhe novos contornos. Nas palavras de Tnia Garcia (2004, p, 11), o
aspecto sincrtico e fragmentrio que caracteriza a baiana:

Se o princpio o fragmento, a baiana permite ser constantemente


reinventada, bricolada em novas verses de acordo com um tempo e
espao determinados. Por isso, quando a baiana emigrou para os
Estados Unidos, foi possvel acrescentar-lhe outros pedaos
caractersticos de outras culturas, atendendo no mais s
identificaes e projees do receptor do cinema nacional Banana da
Terra mas ampla difuso dos filmes de Hollywood que, nos anos
quarenta, preocupava-se em ampliar seu mercado na Amrica Latina e
ainda colaborar com a Poltica de Boa Vizinhana. (GARCIA, 2004,
p. 111)

Nos Estados Unidos, mantida a forma da baiana, esse princpio fragmentrio,


associado ao exotismo de uma sul-americana, pde faz-la tomar outras dimenses sem
deixar de referir-se a caracterizaes tpicas das latino-americanas. Trazia elementos
novos a ela e, dentro dos limites que a permitiram, constituiu certos maneirismos que a
imprensa soube explorar. No momento histrico da Poltica de Boa Vizinhana, no qual
pretensamente se buscava uma representao positiva dos pases latino-americanos e no
qual os pases sul-americanos eram vistos como estratgicos por conta da disputa de
hegemonia com os pases do Eixo, Carmen pde trazer uma nova representao latino
(sul)-americana, que aglutinava caractersticas prprias trajetria brasileira da cantora,
compondo sua imagem com novos elementos sobrepostos personagem da baiana.
neste contexto que Carmen Miranda desenvolve uma relao especial com a imprensa,
negociando com a imagem que se criava.
Carmen Miranda tornou-se estrela antes de assinar o contrato com a 20th
Century Fox, quando chegou ao pas do norte, fartamente coberta pela imprensa local,
para sua estreia no teatro da Broadway. Lee Shubert, rico empresrio em Nova Iorque,
assinou um contrato de um ano para sua nova aposta, depois de viagem ao Brasil e
garantiu comisses em todos os outros servios prestados pela cantora e entertainer em
territrio norte-americano, sob a vigncia do mesmo (Arquivo do SA). Para tanto,
contava com uma estrutura de pessoal qualificado para lidar com contratos e
negociaes como, de outro lado, de um setor somente voltado promoo da nova
estrela. Sob o contrato com a Fox, o setor de imprensa destinado ao mesmo objetivo j
contava com uma estrela construda com caractersticas singulares j difundidas pela
mdia e ento explorou tais elementos em um novo cenrio, notadamente, em
Hollywood, Los Angeles.

135
No se tratava de uma artista novata a ser explorada pelos negcios do teatro e
cinema norte-americano de forma a simplesmente encaix-la em suas disposies
prvias. Carmen Miranda j era, antes de chegar nos Estados Unidos, uma estrela
nacional no Brasil, com reconhecimento e patrimnio conquistados e, assim, pde
negociar certas condies de sua carreira no exterior. Mais do que isto, tinha
experincia em relao a gerenciar sua imagem pblica e sua relao com imprensa e
com sua audincia.
Em realidade bem distinta da do show business norte-americano, no Brasil no
contava com uma estrutura de pessoal a criar e negociar sua imagem com a imprensa.
Ao invs disto, adiantou-se ela mesma a fazer tal criao, dentro de um mercado de
cultura de massas que se desenvolvia na capital carioca, respondendo a certas
expectativas locais e sintonizada com a moda ditada pelo cinema hollywoodiano, mas
aclimatada aos trpicos. Segundo Jos Adriano Fenerick:

Carmen considerada a primeira grande star brasileira, uma pioneira,


por assim dizer, daquilo que muitos anos depois viria a ser chamado
de pop-star. A Pequena Notvel soube, talvez mais do que qualquer
outro artista de sua poca, trabalhar sua prpria imagem, num perodo
onde os artistas no dispunham de profissionais posteriormente
chamados de empresrios especializados nessa tarefa. Carmen,
mesmo no incio de sua extraordinria carreira, se fazia ser vista a
todo o momento nas ruas do Rio de Janeiro, desfilando em seu
automvel, e seus fs a reconheciam rapidamente quando ela
passeava pelas ruas da cidade. Como conta Dorival Caymmi, um dos
grandes amigos da cantora no era raro ouvir-se pelo Rio de Janeiro o
seguinte comentrio: Olha l! L vai a Carmen Miranda. (2009, p.
62)

No novo pas, a criao de uma estrela sul-americana se fez com amplo e rpido
sucesso. Carmen chegou Nova Iorque em 17 de maio de 1939, em 19 de junho de
1939 estreou em Streets of Paris no Broadhurst Theatre e em 17 de julho do mesmo ano
foi aprovada em teste Fox, tendo lanado, no incio de 1940, Down Argentine Way.
Carmen Miranda era ento uma estrela de cinema. Diga-se de passagem, ela se tornou
uma estrela paradigmtica ao saber negociar sua imagem no cinema em seu auge, em
termos de audincia. Parte da negociao em seu agenciamento pode ser aferida do fato
de que Carmen Miranda levava expectativas do pblico brasileiro, para o qual criou
tambm uma imagem de estrela no mercado de cultura de massas que se consolidava na
capital federal. Parte mais importante, devia-se a sua insero em outro mercado
mobilizando sentidos outros.

136
3.2. Corporalidade, hipervisibilidade e humor na trajetria norte americana de
Carmen Miranda

I say money [pronunciando mnei], money, money. I say money,


money, money, and I say hot dog. I say yes, and I say no, and I say
money, money, money. And I say turkey sandwich, and I say grape
juice e por a foi, como uma matraca, acrescentando em outra
resposta: I say mens, mens, mens. (CASTRO, 2005, p. 201)

Logo no desembarque de Carmen Miranda em Nova Iorque, ela responde de


forma cmica aos entrevistadores, sentada em um ba, de pernas cruzadas, blusa
listrada e turbante preto. J distante da figura da baiana que incorporara em seu pas, a
despeito de carregar traos de sua imagem, Carmen assume um esteretipo prprio ao
contexto de latino-americana, caracterizado por sua pouca habilidade com a lngua,
interesse declarado em homens e insacivel fome. Sua baiana tomava imediatamente
outros contornos. Se os fs norte-americanos poderiam acessar a histria da personagem
da baiana nos jornais, seu significado se transformou radicalmente, passando a ser
representativo de uma nova estrela sul-americana que abalara o mercado de
entretenimento nova-iorquino em poucos dias.
O novo visual de Carmen Miranda com seus turbantes e adereos impactaram
assim que estreou no teatro norte-americano, possibilitando muitos contratos, mediados
pela companhia de Lee Shubert, que foram efetivados com as indstrias de roupas.
Alm de ter gerado uma apropriao clandestina de sua imagem por vrios setores da
moda da metrpole norte-americana (CASTRO, 2005, p. 223), a empresa de Shubert
soube aproveitar e investir na imagem de criadora de indumentrias de Carmen, ao
mesmo tempo em que tornava mais reconhecida sua persona, exibindo os elementos
caractersticos de seus vesturios em aparies pblicas com turbantes:

Carmen, que vestia simples turbantes de pano em suas aparies


pessoais e entrevistas em Nova Iorque, rapidamente atraiu ateno do
manufatureiro de roupas Bem Kanrich que em 1939 assinou um
contrato com a Shubert Corporation para usar o nome de Carmen,
promovendo uma linha de turbantes. De acordo com a campanha de
publicidade, os turbantes que eram vendidos pela acessvel quantia de
$2,77 dlares, eram criados pela prpria Carmen e eram descritos
como tendo a mesma personalidade extica que a estrela. (SHAW,
2013, p. 88-90, traduo minha)

137
Em pouco tempo, sua moda invadia as lojas de departamento, a Macys usou o
nome de Carmen em sua campanha publicitria em 1939 e a Teller criou manequins
com poses e faces inspiradas na prpria entertainer brasileira. O designer italiano
Ferragamo foi contratado por Carmen em Nova Iorque para confeccionar seus sapatos
plataformas, que usava desde 1934 no Rio de Janeiro. Carmen Miranda no os inventou,
antes apostou em uma moda pouco difundida at ento para aumentar sua estatura. O
italiano Ferragamo passou a promover os sapatos depois do uso pela estrela em
territrio norte-americano. Como afirma Lisa Shaw: at Carmen se tornar associada a
eles, os sapatos plataforma eram considerados pelas lojas locais como muito exticas
para serem usados por mulheres americanas (2013, p. 91, traduo minha).
As plataformas foram depois exploradas pelo manufatureiro de luxo Delman na
loja de departamento Bergdorf Goodman (SHAW, 2013, p. 91). O seu apelo na moda se
relacionava com o fato de que Carmen criava em torno de sua persona aspectos
indumentrios que a caracterizariam publicamente: ela no criava seus prprios
colares, mas suas inovaes se baseavam no jeito em que ela combinava o excesso de
jias em suas vestimentas feitas de materiais contrastantes, variando de madeira e metal
a vidros e porcelanas, alm de diferentes texturas e tamanhos (SHAW, 2013, p. 91,
traduo minha). Carmen construa assim, no novo contexto, uma referncia de moda
exotizada que chamava ateno do pblico feminino norte-americano.
Em um perodo no qual a estrela loura era referncia esttica, protagonista dos
filmes romnticos, Carmen Miranda assumia um destaque crescente do teatro ao cinema
dos Estados Unidos. O esteretipo pode ser definido como um elemento caracterizador
que reduz a personalidade de algum a partir de alguns poucos atributos. A trajetria de
Carmen Miranda demonstra como o mesmo pode conviver combinando com glamour,
riqueza e prestgio. Interpretando a baiana, tambm deslocou o esteretipo da latino-
americana, torcendo seus significados em uma cumplicidade criativa, partindo do
sistema simblico norte-americano que subalternizava tal imagem.
O exotismo, j parte das representaes sobre a Amrica Latina, reforado com
os trajes da baiana que Carmen atualizou no novo contexto, muitas vezes acentuando o
excesso e a tropicalidade de suas caracterizaes. Crescentemente criava modelos
cada vez mais trabalhados da baiana estilizada que tomavam apresentaes muito
sofisticadas, chegando a usar vrias vestimentas distintas com os elementos formais da
baiana que se destacavam em um mesmo filme. No cinema, trabalhou com vrios
estilistas renomados como Travis Banton e Earl Luick que estilizavam e sofisticavam

138
suas baianas. Sua roupa era caracterizada por Robert Sullivan no Sunday News (16 de
novembro de 1941, Arquivo do SA, traduo minha) como brbara e brilhante,
deixando homens aturdidos e mulheres perturbadas.
A estilizao como trao de sua personagem latino-americana sobreposta
baiana acabava por demonstrar o alcance criativo de sua performatizao, criando
prestgio em cima de algo que supostamente a diminuiria. Como descrito no Greatest
Evening Newspaper: seis meses atrs Carmen Miranda era apenas um nome, hoje ela
uma tendncia da moda (2 de dezembro de 1939, SA, traduo minha). Segundo
Ovalle, o impacto de Carmen Miranda na moda contribuiu para uma reapropriao
deslocadora da feminilidade nos Estados Unidos: A aparncia extica de Miranda
provia um visual fcil de se adotar pra mulheres ansiosas para apimentar seus
uniformes de trabalho com lenos florais coloridos... batons vermelhos brilhantes e
bijuterias(Berry 2000, 126) (OVALLE, 2011, p. 68, traduo minha).
Ovalle (2011) explora as ambiguidades concernentes ao esteretipo da mulher
latino-americana no cinema de Hollywood, caracterizada, sobretudo pela corporalidade
e pela habilidade de danar. Em uma posio intermediria (In-Betweenness) entre a
estrela branca, loira, e a atriz negra, estas ocupariam um espao ambiguamente
racializado: oscilando entre a normalidade da brancura e o exotismo da negritude,
Latinas funcionam como corpos intermedirios para mediar e manter o status quo
racial (p. 07, traduo minha). No transfervel ao homem latino-americano, sua
agncia se caracterizaria como paradoxal: como uma danarina, ela frenquentemente
exibe uma agncia narrativa que desafia a tradicional passividade feminina branca, mas
o ato de danar a confina em papis que reiteram mitos racializados e sexualizados (p.
11, traduo minha).
neste espao ambguo que possvel encontrar o agenciamento de Carmen
Miranda, como uma figura que transgride definies tradicionais de feminilidade,
explorando elementos racializantes de uma nova ordem poltica que incentivava o
consumo de imagens e produtos associados tropicalidade latino-americana. O
consumo do exoticismo se mesclava a aparncias sofisticadas que marcavam certos
deslocamentos de Carmen do esteretipo, conferindo a ela uma certa posio de
destaque. Elemento que atesta, vindo do Brasil j devidamente renomada, a
possibilidade de negociar algumas condies para sua viagem e sua carreira no novo
contexto nacional.

139
A ento cantora brasileira foi descoberta pelo rico empresrio Lee Shubert,
acompanhado da patinadora e estrela de Hollywood Sonja Henie, no Cassino da Urca
em fevereiro de 1939. Recomendado pela ex-atriz de teatro Clairborne Foster e, com
intermediao do proprietrio Joaquim Rolla, entraram em acordo em poucos dias,
fechando contrato para a revista musical Streets of Paris na Broadway, ainda no mesmo
ano. A primeira reunio com Shubert se deu nos dias seguintes no navio Normandie
que trouxe o empresrio norte-americano ao Brasil.
Em maro de 1939, Shubert requisita, nos telegramas que troca com o
intermediador Maxwell Jay Rice, msicas, fotografias e biografia de Carmen.
Diferentemente de sua carreira no Brasil, nos Estados Unidos Carmen passa a ser
assessorada por um setor altamente especializado. Desde sua chegada, o setor de
imprensa da companhia de Shubert torna-se um intermedirio entre Carmen e o pblico,
trabalhando para construir uma persona coerente, seguindo as expectativas prprias do
pblico norte-americano e explorando comercialmente a novidade sul-americana.
As negociaes que a permitiram levar o Bando da Lua foram importantes j que
a presena do grupo musical e, em especial, de Aloysio Oliveira, foram fundamentais na
apresentao de uma estrela construda como autenticamente sul-americana, na medida
em que o artista refazia arranjos e tradues, alm de, junto com os demais, acompanhar
a cantora em ritmo no conhecido pelos msicos do norte. A negociao foi tensa, via
telegramas, em certo momento com Shubert pedindo para Carmen embarcar sozinha,
mas no final, sob a presso do empresrio mediador Jay Rice, e mesmo de carta anexada
escrita a punho pela prpria Carmen, Shubert aceitou, com a restrio de pagar apenas
quatro membros do grupo. Seis deles embarcaram, com ajuda do governo federal e sob
o compromisso da cantora de suprir seus salrios nos Estados Unidos.
Retrospectivamente, Carmen sugere que a ida do grupo significou mais do que
apenas um apoio pessoal no novo ambiente, tendo um impacto decisivo na novidade
musical que suas interpretaes apresentaram ao novo pblico. Em 13 de novembro de
1948, disse revista O Cruzeiro:

Tive a grande sorte de vir acompanhada pelos rapazes do antigo


Bando da Lua. Eles trouxeram o ritmo brasileiro que a maioria
absoluta das orquestras ainda hoje confunde com o cubano e o
mexicano. Sem esse ritmo, eu teria sido apenas mais uma cantora
latino-americana. Voc bem sabe como as msicas brasileiras ficam
acubanadas e amexicanadas quando caem nas mos das orquestras
americanas. Imagine s, eu cantar Tico-Tico com compasso de

140
rumba! No possvel! preciso haver pandeiro, tamborim, cuca e
violo! (apud JUNIOR, 1978, p. 193)

A chegada da nova atrao da Amrica do Sul foi anunciada pela imprensa local.
Em artigo sobre sua chegada, ressaltava-se: a considerao que a Sra. Miranda possui
em seu pas Brasil era evidente na ocasio de sua chegada em Nova Iorque ms
passado, continua o artigo, ressaltando o tom poltico assumido em sua viagem: O
consulado brasileiro enviou seis de seu quadro de funcionrios para dar as boas vindas
no cais e oferecer a ela os melhores desejos do governo para sua estreia nos palcos
americanos (s/ data, s/ veculo, SA, traduo minha). Embora a msica latino-
americana j estivesse em voga, em especial com a rumba e a conga, Carmen Miranda
representou e foi propagandeada como um novo ar que vinha do sul do Equador,
trazendo consigo um novo ritmo, desconhecido dos ouvidos norte-americanos: o samba.
O New York Post de 23 de junho de 1939 (SA, traduo minha) anunciou: Pelos
ltimos tantos anos ela tem sido a estrela de musicais de palco no apenas no Rio de
Janeiro, mas em todas as capitais sul-americanas.
South American Way foi sua primeira marca nos Estados Unidos, uma msica
de McHugh e Al Dubin, adaptada ao samba pelo Bando da Lua e ao portugus por
Aloysio de Oliveira. O ttulo da msica era a nica parte compreensvel pelo pblico e
pronunciado de forma errada pela entertainer, causando efeito cmico. Trata-se de um
erro de pronncia que foi incorporado como parte da apresentao, Carmen trocava
South por Souse traduzvel por bbado, desta forma corroborando pela boca de
uma sul-americana uma caracterizao do modo de ser sul-americano associado ao
alcoolismo.
Humor e sensualidade eram a marca de Carmen em seu jeito de ser sul-
americano, materializado na entrada do famoso Gramauns Chinese Theather de Los
Angeles em 24 de maro de 1941, onde se torna a primeira atriz latino-americana que
assinou seu nome, completando com a expresso ttulo da msica que lhe abriu sucesso.
O sul de Carmen expressava algo novo dentro do panteo de latino-americanas
reconhecidas no cinema norte-americano em seus vnculos com o Mxico. No toa, a
apresentao do nmero South American Way foi gravada, no mesmo ano de sua
estreia da Broadway, no cinema em Down Argentine Way (1940), na Fox, onde Carmen
Miranda fez sucesso partindo de sua imagem de entertainer nos palcos.

141
Um ano antes, quando Carmen viajava com sua banda no navio S. S. Uruguay
em direo aos Estados Unidos, segundo Ruy Castro (2005, p. 200) a cantora de cabelo
castanho claro o tingira de preto na viagem, antes de chegar terra em que a dark-
haired woman era um trao caracterstico da representao da mulher latino-americana,
com todos os seus sentidos conotativos. Ainda de acordo com o bigrafo, na acepo de
Carmen, o tingido ficou muito forte e ela optou pelo uso do turbante, em sua chegada,
quando era esperada com entusiasmo pela imprensa local. Difcil avaliar as apreciaes
exatas de Carmen Miranda e suas escolhas, bem como o que foi sugerido pelo prprio
Shubert nos poucos encontros que tiveram no Brasil e o que foi criao baseada na
prpria experincia no Brasil. O que se pode aferir como Carmen Miranda sempre
estava a negociar com a imagem da estrela que se criava para e com ela.
Em sua pr-estreia em Boston, seu nome no contava no cartaz de Streets of
Paris, causando, no entanto, uma boa recepo logo na primeira atuao. J em sua
estreia ela era a maior atrao, responsvel por salvar a Broadway da famosa Feira
Internacional que ocorria em Nova Iorque. A quantidade de matrias na imprensa sobre
a brasileira foi notvel tanto quanto as classificaes que circularam na imprensa para
defini-la: a lana-chamas brasileira, o melhor negcio entre as Amricas desde o
Canal do Panam, sem remover uma pea de roupa, mais sedutora do que qualquer
rainha do strip-tease, o melhor bem da Poltica de Boa Vizinhana. estimada a ter
mais solidariedade hemisfrica do que qualquer centenas de diplomatas (Arquivo do
SA, tradues minhas) e, por fim, a alcunha que realmente ficou foi a de Earl Wilson do
Daily News, chamando-a de Brazilian Bombshell. O surpreendente de seu impacto era
que sua apresentao se resumia a seis minutos de palco.
Nos palcos, no rdio e na rua, Carmen Miranda torna coerente a sua persona,
reverberando em suas entrevistas as caractersticas a partir das quais passava a ser vista
pelo pblico norte-americano. Carmen Miranda j possua familiaridade com os palcos
brasileiros, mas era reconhecida como uma estrela do rdio. No se trata de afirmar que
sua carreira era voltada para suas habilidades vocais, posto que uma das caractersticas
centrais de suas apresentaes e mesmo gravaes eram a interpretao cnica. Carmen
recheava de expresses autorais os sambas que gravava e, tendo se transformado em
uma estrela de destaque no cinema nacional, sabia como poucos artistas no Brasil se
portar diante das cmeras com seu corpo.
Os nmeros musicais de Carmen Miranda no filme nacional Al, Al Carnaval
de 1936 contrastam a forma como a artista brasileira se movimentava no palco com as

142
outras performances estticas dos demais artistas, dada a precariedade tcnica do
cinema emergente e da falta de habilidade diante das cmeras dos artistas. Suas
primeiras aparies no cinema j denotavam a facilidade com a qual incorporava
elementos prprios das interpretaes cnicas em suas atuaes, derivadas de sua
familiaridade com a linguagem dos palcos teatrais do Rio de Janeiro e tambm dos
musicais hollywoodianos:

Alegadamente instruda para no se mover pelo palco para facilitar a


filmagem, ela parece incapaz de restringir o prazer que deriva se sua
performance e seus movimentos constantes de lado a lado, dando
pequenos passos seguindo a msica, obrigando o camerman a se
mover com ela. Seus braos estavam permanentemente em
movimento, transmitindo um senso de entusiasmo, ela apontava seus
dedos indicadores nos pontos chave do tempo da msica e os close-
ups revelam que seus olhos atiravam-se da esquerda para a direita em
movimentos constantes que espelhavam aqueles de seu corpo. Mesmo
quando ela brevemente parava em um lugar, o espectador percebe
uma mexida sutil de sua cintura, enfatizada pela reflexo da luz em
suas calas de tecido cetim. (SHAW, 2013, p. 31-32, traduo minha)

O mesmo amadorismo era presente em Banana da Terra (1939), na descrio de


Ruy Castro, trata-se de tempos hericos do cinema brasileiro. Dinheiro curto e
improvisao. As cenas eram filmadas uma s vez. Carmen levaria para Hollywood
essas experincias do cinema nacional, causando admirao por dispensar repeties de
tomadas de cena (CASTRO, 2005, p. 447). A habilidade em performances de palco e
em frente s telas foi facilmente incorporada na continuidade de sua carreira nos
Estados Unidos. Carmen Miranda consolidava o indito ao ter o primeiro contrato da
Fox de uma artista que no dominava o ingls, mas para a surpresa dos diretores,
pblico e estdio, ela ficou reconhecida como a one take girl, gravando sempre na
primeira filmagem seus nmeros musicais e aparies na narrativa (CASTRO, 2005, p.
182).
A mudana para os Estados Unidos representou uma transformao essencial
que acentua sua corporalidade. Como abordarei no captulo 6, suas performances
corporais no Brasil se associam com os duplos sentidos da letra, suas interpretaes so
profcuas em piscadelas e gestos que se destacam os sentidos cmicos da letra. Nos
Estados Unidos as letras em portugus no eram compreensveis ao novo pblico e seu
desempenho corporal passou a compor um aspecto privilegiado de sua sensualidade.
Ruy Castro (2005, p. 207) salienta um aspecto essencial em suas apresentaes: Carmen

143
tinha mais liberdade de movimento nos palcos norte-americanos, onde os microfones
estavam camuflados no cho do palco.
Aloysio de Oliveira do Bando da Lua, em retrospectiva, salienta o papel autoral
de Carmen Miranda nos palcos dos filmes:

Nos filmes, nunca houve interferncia dos coregrafos enquanto a Carmen


cantava sozinha ou conosco do Bando. Evidentemente, havia uma pequena
marcao quando ela danava com outra pessoa, como naquele nmero de
jitterbug com o Cesar Romero. Mesmo quando a Carmen tomava parte num
nmero maior, eu me lembro que o Hermes Pan s indicava certas
movimentaes em torno dos danarinos, mas nunca dizendo o que ela tinha
de fazer. Nunca ningum interferiu com a pessoa de Carmen, se devia botar
mo pra l ou pra c, se devia dar o passo assim ou mais assim... (VIANY,
1974, p. 37)

Tais passagens atestam a habilidade de Carmen Miranda de incorporar os signos


culturais do novo contexto e inovar a partir deles, em oposio a uma interpretao que
a compreendesse como comandada por interesses corporativos. Elaborando suas roupas,
em contato com reconhecidos estilistas e trabalhando suas performances, enfatizava a
sensualidade requerida ao papel representado. Aliado a isso, ela explorou do teatro ao
cinema o aspecto rtmico de suas habilidades vocais, aumentando a velocidade do seu
canto, adicionando expresses onomatopeicas e rtmicas, assim tornando atrativo seu
desempenho vocal a uma plateia que no compreendia o sentido de suas letras:

Tanto em ingls como em portugus ela usou sua voz como um


instrumento de percusso, transformando-a em letras trava-lngua e
em um estilo de cantar falado, incorporando a ideia de que lugares
como a Amrica Latina as experincias (com o significado literal de
adquiridas atravs dos sentidos) eram to central que a comunicao
verbal era desnecessria. (SHAW, 2013, p. 79, traduo minha)

Apresentaes em teatros, hotis, nightclubs e em seus filmes tm sua figura


corporal enfaticamente sensualizada como marca caracterizadora, de certa forma
distanciando sua imagem de sua trajetria nacional, cuja sensualidade era matizada de
modo a ser aceita como cone nacional, conforme abordarei no captulo a seguir. Nos
Estados Unidos, como diferena racial, ela poderia realar a sensualidade, posto que
deste modo seria mais condizente ao esteretipo no qual era reconhecida. A
sensualidade da latino-americana apontava, com toda caracterizao da imprensa que a

144
seguia, para uma transgresso, algo que a distinguia da mulher norte-americana
normativa.
Carmen Miranda ento se constituiu como uma referncia a performers cuja
histria nos leva de seu nome a estrelas contemporneas como Madonna, que inclusive
j declarou sua influncia, e Lady Gaga. Tendo na performance corporal sensualizada
sua marca principal, dificilmente ela poderia ser incorporada por uma estrela all
american nos anos quarenta. Recuperando o argumento de Priscilla Ovalle (2001) de
que a latinidade servia como uma mediao entre a sensualidade, imaginada como
associada negritude, e o consumo branco, Carmen Miranda, considerando seu impacto
na moda e no show business, abriu o caminho para outras futuras performers norte-
americanas, impactando ento nos limites morais socialmente aceitos da feminilidade.
No possuindo a princpio habilidade com a lngua inglesa, passou a explorar
suas limitaes como algo a seu favor nas suas caracterizaes cmicas e a
corporalidade apareceu como caracterstica distintiva a compensar. Carmen Miranda
danar a qualquer momento, em qualquer lugar, para qualquer msica ou mesmo sem
(Look, 13 de janeiro de 1942, Arquivo da MHL, traduo minha). No Greatest Evening
Newspaper de 2 de dezembro de 1939, enfatiza-se Ela simplesmente no consegue
fazer suas mos se comportarem (traduo minha). No Wall Street Journal (21 de
junho de 1939, BDP, traduo minha), sua descrio aponta para como ela canta com
seus dedos, seus olhos e sua cintura (...) Ela deve cantar em portugus, mas isso
realmente no importa.
Carmen convencionou apresentar seus nmeros com parte de sua barriga
mostra, classificada na imprensa de zona trrida, destacada junto com os movimentos
de suas mos e dos olhos. Carmen no era danarina treinada, como muitas outras
atrizes de Hollywood, e foi incentivando certos maneirismos que pde destacar sua
corporalidade. Desde quando incorpora a baiana, remexe suas mos de forma sensual,
poca ajudada por Dorival Caymmi, prpria personagem brasileira no mercado de
massas que incorporava a cultura popular de forte influncia afro-brasileira. Jos
Ligiro Coelho (1998) salienta este aspecto como parte da presena de caractersticas de
uma cultura afro-diasprica em suas performances, com fortes continuidades de sua
carreira brasileira a suas atuaes no cinema norte-americano. Os braos levantados, em
uma acepo fortemente embasada em crenas religiosas, tinha o sentido de
agradecimento ao ter recebido ajuda, originria da cultura bantu.

145
No entanto, quando no contexto norte-americano, observa-se uma intensificao
e sofisticao do uso das mos em suas performances, de modo a acentuar a
sensualidade, como na descrio de jornalista, na qual Carmen balana suas mos de
um jeito que preenche a maior parte das emoes de meus colegas os quais
subsequentemente provaram ser mais do que difcil colocar isso no papel
discretamente (s/ veculo, s/ data, SA, traduo minha). So comuns fotos publicitrias
e na imprensa de Carmen com as mos em destaque levantadas, perto do rosto,
valorizando sua sensualidade, ao mesmo tempo sugerindo que a entertainer poderia
avanar sexualmente nos homens norte-americanos.

New York Times (6 de agosto de 1939, BDP)

possvel inferir que o movimento com as mos se relacionava no outro


contexto, com forte impacto no pblico norte-americano, no mais ao sentido afro
religioso. Priscilla Ovalle (2011, p. 01) demonstra que a primeira mulher latina j
presente no cinema a espanhola Carmencita, em vdeo gravado por Thomas Edison em
1894. Trata-se de uma danarina cuja performance corporal a destacava, em especial a
partir de seus movimentos com as mos26.
Carmen um nome fortemente associado Espanha, ao menos desde o conto
Carmen (1845) do parisiense Prosper Merime que se tornou famoso quando adaptado
pera por Georges Bizet e exibida na capital francesa em 1875. A narrativa de uma
26
possvel acessar o vdeo a partir do seguinte link:
<http://www.youtube.com/watch?v=DAlOZ4U3VpE>.

146
femme fatale cigana andaluza marca um olhar da Espanha como um espao muulmano,
extico e estrangeiro. A Espanha era percebida como um oriente dentro da Europa.
Muito embora a cristandade fosse elemento identitrio essencial Espanha, o perodo
de convivncia e de domnio dos mouros criou uma leitura externa que fundamentou um
orientalismo hispnico (TOFIO-QUESADA, 2003).
Muitos reprteres confundiam a lngua de Carmen Miranda e ela mesma assumia
algumas expresses em espanhol em entrevistas, aproveitando da associao entre
Amrica Latina e lngua espanhola. sugestivo pensar na hiptese de que o prprio
apelido Carmen da entertainer brasileira possa ter suscitado a explorao de suas mos,
como forma de ressignificar a sensualidade extica contida na histria do nome.
O impacto de sua presena nos filmes, na imprensa e na moda deve ir alm da
questo simplista de avaliar se a recepo positiva ou negativa, considerando que a
visibilidade em si mesma no apaga a histria de silncio ou no desafia a estrutura de
poder e dominao, simblica e material, que determina o que pode e o que no pode
ser visto (HAMMONDS apud FLEETWOOD, 2008, p. 122). A aceitao de Carmen
Miranda na cultura de massas norte-americana estava condicionada a sua adequao
forma na qual as latino-americanas eram reduzidas ao corporal e, portanto, questionadas
em suas habilidades racionais e mesmo de conteno do que se concebia como
instintivo. Sua imagem servia de contraponto norma de gnero que concebia que
mulheres (brancas) se caracterizassem pela passividade e subservincia aos homens.
A importncia atribuda s representaes culturais latino-americanas no perodo
estudado, aliada ao talento de Carmen a reunir os signos que diziam respeito ao
esteretipo ao qual estava circunscrita, ainda adicionando elementos novos que a
exotizavam, constituam a forma na qual pde desenvolver sua carreira, demarcada pelo
que Nicole Fleetwood denomina de hipervisibilidade:

Hipervisibilidade, usado frequentemente nos estudos culturais negros,


um termo intervencionista para descrever processos que produzem a
sobrerepresentao de certas imagens de negros e a circulao visual
dessas imagens na cultura pblica. Ela simultaneamente anuncia a
invisibilidade contnua dos negros como sujeitos ticos e encarnados
em vrios reinos do governo, economia e discurso, ento a negritude
permanece alinhada com a negao e decadncia. (FLEETWOOD,
2008, p. 16, traduo minha)

Por hipervisibilidade eu pretendo referir a conceitualizaes histricas


e contemporneas da negritude como simultaneamente invisvel e
sempre visvel, como subexposta e sempre exposta, os nuances os

147
quais tm sido descritos na arte, literatura e teoria. O conceito de
hipervisibilidade tem particular ressonncia na cultura popular
contempornea e entretenimento de massa onde o corpo negro como
fetiche da mercadoria tem intensificada salincia. Como os tericos da
mercadoria tem argumentado, o fetiche da mercadoria mascara as
relaes de poder e os contextos histricos que produzem sistemas de
desigualdade e consumo da diferena. (FLEETWOOD, 2008, p. 111,
traduo minha)

A anlise de Nicole Fleetwood (2008) sobre o corpo negro e a cultura de massas


encontra aqui correspondncias interessantes com a figura de Carmen Miranda no
mercado norte-americano. Sua hipervisibilidade tambm se constitui como excesso
corporal, tendo como pr-requisito para a ocupao na esfera pblica a nfase em seus
atributos corporais que se sobressaem e mesmo anulam outras caractersticas para alm
do corpo. a latino-americana fetichizada que produz uma imagem consumida em sua
suposta autenticidade para o mercado de moda, ocultando as relaes de poder que a
constituram por meio de tecnologias visuais.
O excesso corporal da latino-americana em sua diferena racial constitui uma
visualidade que transforma sinedoquicamente uma expresso particular em
caracterizao generalizvel s latino-americanas. A visibilidade implica no estado de
estar disponvel a ser visto, enquanto visualizao se refere mediao do campo da
viso e a produo de objetos e seres visuais (FLEEWWOOD, 2008, p. 16, traduo
minha). O lugar ocupado por Carmen Miranda de uma expoente no star system norte-
americano acabava por recuperar e remodelar aspectos reconhecveis de um esteretipo
que se reinventava historicamente. Tal reinveno limitava o agenciamento de Carmen,
mas no impedia suas negociaes. O prprio perodo da Poltica de Boa Vizinhana
facilitiava uma construo mais rica em relao Amrica Latina, dado o destaque que
se dava ao conhecer elementos culturais dos bons vizinhos.
Pamela Robertson (1996) analisa uma estratgia de mascarada do feminino,
como uma personificao do feminino em uma pardia burlesca que acaba por criar
uma distncia com os esteretipos de gnero e, ao mesmo tempo, possibilita s
mulheres leituras que questionam o rgido controle moral da feminilidade. Seu foco
Mae West e suas performances no cinema derivadas de sua experincia no teatro
vaudeville, muitas vezes interpretando personagens prostitutas, tornando-se alvo
constante do Production Code. Carmen Miranda, tambm observada pelo mesmo
rgo regulador, usou dos artifcios de humor e ironia em relao persona que criara,
podendo mobilizar caractersticas sensuais. Em outros termos, ela, com toda a

148
experincia que trazia do mercado de entretenimento brasileiro, participou na
construo de sua persona a partir de elementos que aparentemente a desqualificavam,
mas que a partir do seu agenciamento no a reduziram a objeto.
O agenciamento de Carmen Miranda se efetivou a partir da reiterao de suas
caractersticas sexuais em cumplicidade criativa com a imagem j reconhecida da
latino-americana. A criao de Carmen operava justamente em sua iniciativa,
reforando as caractersticas em que era reconhecida. A reprter Alice Hughes constata
que Carmen, antes do que simplesmente objeto do interesse sexual dos reprteres,
sugeria a iniciativa sexual em suas entrevistas:

O que me atraiu a Miranda, junto com outros reprteres masculinos,


seu alto astral e ansiedade para agradar. A maioria das apresentaes
de palco so marcadas pelo desnimo e complexo de Garbo, mas no
o caso de nossa jovem amiga Carmen. Ela postou sorrindo para os
cameramen visando retratos com suas pernas cruzadas mostrando
suas meias extensas. (Washington Post, 27 de maio de 1939, BDP,
traduo minha)

Em uma matria sobre Carmen, possvel apreender vrios aspectos em que se


constitua sua imagem como uma caricatura cmica, a qual a prpria reiterava em suas
entrevistas: marcada pelo exagero, pelo interesse sexual por homens, pela falta de
domnio da nova lngua e falta de civilidade. Durante as filmagens de That Night in Rio,
a revista Modern Screen (20 de dezembro de 1940, Arquivo da MHL, traduo minha)
trazia as seguintes passagens de Carmen: Eu beijo o Sr. Don Ameche, tambm [depois
de dizer que faria o mesmo com o diretor Irving Cummings], quando eu no tenho que
beij-lo para uma cena de amor. Mas eu fao porque ele, tambm, to gentil. Esse o
modo de ser sulamericano.
Sobre os homens, Carmen teria dito (aqui em ingls para realar a abordagem de
seu sotaque na imprensa): In Hollywood, there are beeg, stromg beaufiful men,
really Miranda gesticulava com seus braos e mos carregadas de jias; piscando
impiamente as jias brbaras e negras de seus olhos, dizendo e rindo really, ummmm,
beeg!. Carmen completaria, por fim, dizendo que diferentemente de si e da Amrica
do Sul, os romances em Hollywood so mais civilizados:

Would I marry the Nors American man, you ask, the Hollywood
mans? Si, yes, yes, si. I might marry one of them after two, three
years. When I am more sure I have affinity with their ways. But now,
I would be too afraid. I am too jealous. Because I have notice the

149
Hollywood men are very free too talk to every woman () I was
almost engaged once laughed Miranda, I was so jealous I could kill
him, (she pronounces keel heem) that was the principle reason we
broke in two. (Arquivo da MHL)

Nesse aspecto, a sensualidade exagerada de Carmen Miranda assume uma


caracterizao cmica, com a qual a prpria artista brinca. Trata-se, de fato, de uma
caracterstica que Carmen Miranda trouxe do Brasil. Algo que no se resume a sua
extroverso pessoal, mas se relaciona com uma linguagem prpria que fazia parte do
entretenimento carioca que combinava exagero, ironia e improviso. Uma linguagem
carnavalesca, a qual vou analisar no ltimo captulo da tese, que fazia parte da trajetria
de Carmen Miranda tendo aprendido com as estrelas do teatro de revista.
O riso, outro elemento prprio da linguagem que trazia da cultura popular, era
uma forma de negociao de Carmen com a imprensa. Ruy Castro salienta tal elemento
desde sua chegada ao novo contexto: quando Carmen falava em portugus, todos riam
e ela tambm ria fazendo com que, desde o comeo, os americanos rissem com ela,
no dela (CASTRO, 2005, p. 219). Aloysio de Oliveira teria dito: qualquer tipo de
auditrio de teatro, de rdio ou televiso achava Carmen muito engraada, no pela
aparncia das suas roupas, turbantes e sapatos, mas pelo que ela dizia de improviso,
quase sempre fazendo uma gozao da sua prpria pessoa (apud JUNIOR, 1978, p.
196). Carmen assim repetia o j reconhecido esteretipo, mas passava a se apropriar
dele.
Muitas vezes, as entrevistas so, na verdade, construes baseadas em um
roteiro formulado por funcionrios de Shubert e, posteriormente, da Fox, de forma a
construir uma caricatura vendvel para o pblico norte-americano. No obstante,
Carmen participava da construo de tal persona que aproximava a entertainer dos
palcos com a estrela de fora deles. Os estdios comumente negociavam tais imagens das
estrelas com outras mais tradicionais e palatveis ao pblico em geral e o mesmo foi
feito com Carmen. Tais caractersticas eram contrabalanadas com negociaes que, de
alguma forma, neutralizavam a sexualidade transgressora de Carmen, posto que essa
representava uma ameaa ao regime de gnero e sexualidade do pas do norte.
O esteretipo, teorizado por Hommi Bhabha (2005), no se constitui a priori
partindo de uma disposio racional de dominao. Seguindo formulao de Franz
Fanon, Bhabha compreende o esteretipo como vinculado a um dispositivo colonial de
poder que opera a partir dos protocolos ambivalentes da fantasia e desejo. O contato

150
com o Outro, no caso a latino-americana, seria marcado pela ambivalncia entre a
ansiedade e defesa e a dominao e o prazer. Assim, o esteretipo seria uma estratgia,
marcada por uma fantasia narcsica27 caracterizada por uma forma de conhecimento e
identificao que vacila entre o que est sempre no lugar, j conhecido, e algo que
deve ser ansiosamente repetido (BHABHA, 2005, p. 105). Neste sentido, o
esteretipo um modo de representao complexo, ambivalente e contraditrio, ansioso
na mesma proporo que afirmativo (p. 110).
Da contradio constitutiva do esteretipo da latino-americana, Carmen demarca
certas atenuaes na caracterizao de sua persona. Ela era descrita como aquela que
no andava desacompanhada na vida social de Los Angeles, onde sempre estava com
sua me, como na histria na qual o ator George Sanders a convidou a um jantar e logo
foi informado de que sua me tambm l estaria e, assim, desmarcou o jantar. Tais
aspectos acabavam por valorizar a artista do estdio da Fox, em perodo no qual um
rgido controle moral era visvel nas carreiras das estrelas. Contrabalanava suas
descries corporais, com a sua descrio como uma mulher de negcios sagaz bem
sucedida e que durante a maior parte de sua vida, no bebia e nem fumava. Mais
importante ainda, era sempre lembrada como uma representante do pan-americanismo
em tempos de Poltica da Boa Vizinhana.
Outras mulheres j faziam parte da histria da latino-americana no cinema: Lupe
Velez, Dolores Del Rio, Rita Hayworth estavam entre as mais famosas atrizes que
representaram a latino-americana sexualizada e passional. Cabelo moreno, ausncia de
pensamento racional, danas sexuais, corpo chamativo, atos instintivos estavam entre as
principais caractersticas do esteretipo. Um aspecto diferenciador de Carmen era seus
grandes olhos verdes que no correspondiam s expectativas que associavam as latinas
aos olhos castanhos ou negros. As cores de seus olhos atenuavam sua racializao e
eram mais impactantes se considerada a importncia do Technicolor do perodo que
sabia bem explorar a imagem de Carmen Miranda.
Em realidade, os filmes a cores utilizavam a imagem de Carmen Miranda para
seu proveito. Em um perodo no qual se tratava de uma tcnica consideravelmente cara,
o exagero na utilizao de cores compondo um tom fantasstico se aproveitava da figura
tropical da artista brasileira. Carmen Miranda, em vez do cabelo moreno, tornou-se a

27
Bhabha (2005) conceitualiza o esteretipo a partir de uma interpretao social do conceito freudiano de
fetichismo. O esteretipo, como o fetichismo, a cena da reativao da repetio da fantasia primria
(BHABHA, 2005, p. 116). Volta-se a um ego ideal branco e inteiro. Ver, Bhabha, 2005. p. 115-118.

151
Lady in the tutti-frutti hat, trazendo a figura extica da baiana com seu exuberante
turbante com muitas frutas sobre a cabea. Fazendo aluso aos produtos tropicais cada
vez mais importantes para o comrcio internacional norte-americano em tempos de
guerra, Carmen trazia com o samba uma personagem tpica de uma potncia sul-
americana. Aliada busca de uma recepo positiva nos pases do sul, a baiana de
Carmen suscitava ao pblico norte-americano a ideia de uma autenticidade exotizada
para atender s representaes j consolidadas do mercado norte-americano.
Nos filmes, Carmen Miranda atua remarcando a sensualidade e corporalidade
tanto nos palcos que constituem o espao privilegiado dos nmeros musicais, quanto
nas narrativas, muito embora nos seus primeiros filmes ela atenue a sexualizao nos
palcos em prol de uma performance mais sofisticada, positivando suas vestimentas
representativas da vanguarda da moda. Nas narrativas, a sensualidade de uma latino-
americana no poderia tocar na delicada questo da mistura racial, quando posta em
contato com homens norte-americanos. Tal impedimento se dava justamente em
enredos marcados por romances em terras tropicais, nos quais a materializao do amor
significava a realizao do pan-americanismo.

3.3. Utopias pan-americanas: a diferena racial no encontro flmico entre boa


vizinhana e romance

Entre fogos de artifcio e paisagem natural com coqueiros, oceano e o


corcovado, acrescido de uma Igreja Catlica ao fundo, entra Carmen Miranda com sua
baiana prateada, com barriga mostra e lantejoulas sofisticadas, acompanhada de seu
Bando da Lua e interpretando a msica Chica Chica Boom Chic. Da festiva paisagem
tropical, letra de ttulo percussivo e onomatopico, cantada em portugus, faz aluso
Bahia, ao samba, ao canjer e a batucada. Em cenrio tipicamente carioca, baianas
coloridas e homens de terno recebem um automvel com homens com uniformes da
marinha, trazidos por cariocas caracterizados pelos chapus e camisas listradas.
A msica interrompida quando um dos membros das foras armadas (Don
Ameche), revelando-se cidado dos Estados Unidos, levanta-se para cantar em melodia
lenta e serena a aproximao entre os povos americanos, explcita na letra: My friends
I extend felicitations, to our South American relations. May we never leave behind us
all the common ties that bind us. A melodiosa aproximao d lugar rtmica Chica
Chica Boom Chic, cantada agora em ingls pelo visitante norte-americano que de um

152
lugar superior, em p de dentro do carro, contrasta com Carmen Miranda bem abaixo
dele a seu lado esquerdo, acompanhando-o e respondendo com vocalizaes rtmicas. A
estranha expresso Chica Chica Boom Chic explicada melodicamente pelo norte-
americano como de origem selvagem amaznica e, embora sem sentido, agrada aos
brasileiros e utilizada pelas damas, servindo supersticiosamente para a necessidade de
tirar o mau agouro e, assim, pertinente ao momento de encontro pan-americano.
O nmero melodioso d lugar a uma apresentao unicamente rtmica do Bando
da Lua, em performance percussiva que se constituiu em pano de fundo musical para a
dana entre homens locais e baianas estilizadas com saias de cores fortes que lembram
flora e fauna tropical. Novamente, performance rtmica brasileira se sobrepem
harmonia e melodia em orquestra de sopros acompanhada de casais de danarinos em
movimentos sincrnicos. Em seguida, o afastamento da cmera permite o espectador
extra-diegtico perceber que se trata de um espetculo cnico, admirado por um pblico
visivelmente bem trajado em casa de luxo brasileira. O espetculo termina com as
personagens de Carmen e do marine norte-americano cercados das bailarinas e
bailarinos no palco.
Aps a apresentao, os dois artistas no filme (cujos nomes das personagens so
Larry e a homnima Carmen) travam um dilogo bilngue, no qual se revelam um casal,
com a personagem de Carmen falando em portugus exageradamente rpido,
expressando cimes de seu namorado por esse supostamente flertar com uma mulher na
plateia. Em seguida, o prprio ator volta ao palco e identificando-se como norte-
americano, agradece a recepo positiva que obteve no Rio de Janeiro, comeando sua
fala em bom portugus com senhoras e senhores e avisando que no prximo nmero
personificaria uma famosa personalidade local, que em breve chegaria ao recinto: trata-
se de Dom Manoel Duarte.
De volta ao camarim, quando se prepara para o nmero, Larry comea uma nova
discusso com sua namorada que acabara de voltar de uma apresentao solo. Ela
anunciada por funcionrio de Larry, Alfonso, segundo o qual ela est, como sempre,
brava. Larry emenda de forma condescendente: sweet girl. A briga comea com a
atriz arremessando um sapato em sua direo, acertando seu chapu. Nervosa, Carmen
gesticula muito e fala em portugus. Caracterizando-a como supersticiosa, sugere que
seu arremesso poderia ter alcanado o espelho, trazendo-lhe azar. A despeito de estarem
no Brasil, seu namorado procura a acalmar e a incentiva a falar em ingls, dizendo que a
ensinou a lngua por seis meses, mas que no consegue praticar quando est

153
emocionalmente alterada. Em seguida, corrige e a auxilia comicamente a conjugar uma
simples frase, em que ofendido por ela, em ingls correto.
Larry recebe uma encomenda atravs de seu funcionrio. Desta vez o ltimo o
alvo do arremesso de sapato da namorada ciumenta, ento desconfiada. Em seguida, h
uma disputa entre o casal para ficar com a mercadoria. Carmen vence aps arranhar seu
namorado, deixando marcas em sua munheca. Larry pede para seu funcionrio iodo,
segundo ele para evitar ficar com febre, depois de Carmen ser comparada por ela
mesma com uma cobra venenosa. Carmen abre a encomenda e encontra um presente
com a assinatura de Larry, agradece, torna-se amvel e se desculpa pelo ocorrido,
dizendo-se m, ao que seu namorado complementa: m e bela. Em seguida, o
namorado afirma provocativamente que talvez possa ser o culpado pelo mal entendido,
sugerindo infidelidade. Antes da briga recomear, so interrompidos com a informao
de que o prprio Baro Duarte chegou ao estabelecimento.
Trata-se dos calorosos primeiros minutos de Uma Noite no Rio de Irving
Cummings, lanado em 1941 pela Fox. Aprovado pela embaixada do Brasil em
Washington, o filme um dos maiores exemplos do que significou a Poltica de Boa
Vizinhana aplicada ao cinema comercial. O encontro amigvel entre Brasil e Estados
Unidos representado na unio entre as personagens no nmero musical, nas msicas e
lnguas proferidas pelas personagens que se intercambiam nos nmeros musicais e na
narrativa. Parte elementar dos roteiros dos filmes musicais em que Carmen Miranda
atua, so os romances em terras latino-americanas, selando por meio do encontro
amoroso a harmonia pan-americana a ser exibida nas Amricas, ao mesmo tempo
caracterizando de forma humorstica esteretipos latino-americanos j consolidados nas
representaes flmicas das dcadas anteriores.
Em That Night in Rio, Carmen Miranda traz a baiana estilizada e a letra de um
samba adaptado que, por sua vez, faz referncias em portugus, acessvel somente ao
pblico brasileiro, ao universo simblico que se criava como nacional a partir do samba,
versando sobre seus instrumentos e a comida baiana. Na narrativa, baiana se sobrepe
um esteretipo da mulher latino-americana explorada pelo cinema norte-americano, que
a aproxima da srie contempornea na qual Lupe Velez interpreta sua Mexican
Spitfire com quem Carmen, associada sensualidade, compartilha a agressividade,
cime e falta de domnio emocional e racional.
Em filme endereado a plateias brasileiras (estendidas s latino-americanas) e
norte-americanas, ambas personagens atuam sobrepostas. Embora o lcus de produo

154
seja a indstria cultural norte-americana, enfatiza-se o carter de negociao da
representao dos pases latino-americanos que de dentro de um histrico de
representaes prprias ao contexto do pas do norte, redimensionam certos aspectos de
sua apresentao nas telas, sugerindo uma afinidade entre os pases do sul e norte, no
obstante caracterizada pela hierarquizao e liderana norte-americana. Em outros
termos, no deixando de atuar como a tpica latino-americana, Carmen Miranda
continua a representar a figura da sambista, explorando comercialmente no mercado
norte-americano tais caractersticas tidas como peculiares e autnticas da brasileira.
O filme de Cummings lanado um ano aps Down Argentine Way (1940),
primeiro filme em que Carmen Miranda atuou nos Estados Unidos, tambm pela Fox e
do mesmo diretor. Serenata Tropical, como traduzido no Brasil, desenvolveu-se a partir
de um romance concretizado na cidade portenha entre uma jovem norte-americana
obstinada e corajosa, Glenda Crawford (Betty Grable), e um jovem afortunado
argentino, Ricardo Quintana (Don Ameche). O filme foi severamente criticado na
Argentina e nos Estados Unidos por fazer, em tempos nos quais se enfatizava nos
discursos polticos a amizade pan-americana, uma representao considerada ofensiva
aos vizinhos do sul.
Don Diego Quintana (Henry Stephenson), homem rico e fazendeiro, muito bem
trajado, formado na Frana e dono de uma linhagem de cavalos que se destacam, e seu
filho Ricardo Quintana, jovem com boa formao na Inglaterra e sucesso profissional na
venda de cavalos, encarnando valores mais modernos, racionais e flexveis (anglo-
saxnicos) que seu pai, so as nicas personagens constitudas elogiosamente. As
demais personagens so centradas nas classes populares e representadas
pejorativamente. Vestimentas sujas, dentes sujos, falta de honestidade, associaes com
animais, falta de racionalidade, preguia so algumas das caractersticas que encarnam
as personagens com as quais as norte-americanas Glenda Crawford e Binnie (Charlotte
Greenwood), sua tia, se deparam em terras tropicais.
A narrativa se desenvolve pela paixo de Glenda por cavalos e tambm seu
interesse por Ricardo, mobilizando sua ida Argentina. O romance que d o tom ao
enredo entre dois jovens obstaculizados por vnculos parentais, seja por Don Diego
que no tolera a famlia Crawford ou pela tia Binnie, que emperra o relacionamento dos
dois em vrios momentos. O filme termina com a unio amorosa e com o sucesso em
corridas de cavalo dos proprietrios argentinos, sucesso esse antes impedido por

155
relutncia e conservadorismo de Don Diego que buscava preservar a vida de seus
animais aps sofrer com a morte de seu preferido em uma corrida.
O sucesso enfim se realiza a partir da articulao da persuaso apaixonada e
feminina de Glenda e a flexibilidade e ponderao masculina e anglo-saxnica de
Ricardo. Por de trs do enredo, h uma metfora de que o sucesso da Amrica Latina
depende, j que as classes populares so preguiosas e desonestas, da racionalidade da
elite modernizada que, embora inativa, pode ser incentivada por agentes ativos e
voltados ao progresso norte-americano.
Em todo o filme, a narrativa alterna cenrios rurais com ambientes de lazer
diurnos, como os hipdromos e uma enorme variedade de casas de entretenimento de
Buenos Aires. Carmen Miranda, atuando como ela mesma e descrita como Brazilian
Attraction, compe o pano de fundo de entretenimento no qual as personagens dos
distintos pases findam em romance bem sucedido. O desfecho desenha um final feliz
deixando o espectador sem saber como o amor entre pessoas que moram em pases to
distantes poderia perdurar. O que parece importar mais no a durabilidade do
romance, mas sua intensidade estimulada pelo ambiente sul-americano, com luares
apaixonantes e entretenimento disposio que atualiza a viso paradisaca das terras
latino-americanas e aponta para a unio pan-americana.
Dada a recepo negativa latino-americana por conta de sua caracterizao
estruturada em termos de oposio assimtrica, na qual o norte-americano v no Outro
somente reflexes invertidas de sua prpria auto-imagem (FERES JR, 2004, p. 42),
That Night in Rio surge como uma tentativa de representao do Brasil em termos de
afinidade com o pas do norte ou ao menos minimizar os contrastes e, para tanto, h
uma nfase em um Brasil urbano e moderno com personagens brancos e de classes
altas.
O humor da narrativa flmica se baseia nas confuses que se desdobram a partir
da similaridade entre dois personagens masculinos interpretados por Don Ameche. A
trama principal do filme se passa entre os dois casais: Carmen (Carmen Miranda) e
Larry Martin e Baro Duarte (Don Ameche) e Ceclia (Alice Faye), em cenrios de elite
que vo da empresa area de Baro Duarte a um cassino, de uma festa de gala bolsa de
valores, lugares que compunham a caracterizao seletiva do Rio de Janeiro do filme.
O clima carioca do romance, a sensualidade das mulheres numerosamente
presentes e a expectativa da conquista masculina que permeia a narrativa flmica, fazem
com que os relacionamentos estejam assombrados pela possibilidade da traio. Desde a

156
personificao artstica de Baro Duarte por Larry, ambos se fazem passar pelo outro
em vrias situaes, dando margem para um tentar se aproveitar da similaridade para
conquistar a mulher alheia. A trama profcua em aventura e diverso, ao final, a
despeito de tantos testes de fidelidade, concretiza o fortalecimento dos relacionamentos
e a possibilidade de traio espantada. O ltimo nmero musical finda com ambos os
casais juntos em celebrao.
Prprio esttica dos musicais, That Night in Rio, como outros filmes nos quais
Carmen Miranda atuou, tem como elemento central o entretenimento que, por sua vez,
est entrelaado com um tipo de utopia. Nas palavras de Richard Dyer:

O entretenimento oferece a imagem de fugirmos para algo melhor,


ou alguma coisa que ns desejamos profundamente e que nosso
cotidiano no nos prov. Alternativas, desejos, sonhos aqueles que
constituem o material da utopia, o senso de que as coisas poderiam ser
melhores, que alguma coisa outra do que pode ser imaginada e quem
sabe realizada. (DYER, 2002, p. 20, traduo minha)

Em um perodo marcado pela Segunda Guerra Mundial e devido s ameaas dos


pases do Eixo por conta de sua influncia na Amrica Latina, em especial do Sul, os
cenrios de entretenimento latino-americanos apareciam como um desejo de suspenso
das ameaas como tambm da unio entre os pases americanos em tempos de guerra.
Para alm dos cassinos, casas de show e luares tropicais, o entretenimento latino-
americano apontava para a superao de questes polticas de fundo, com todas as
ambiguidades em jogo simbolicamente equacionadas:

O que eu tenho em mente a capacidade do entretenimento de


apresentar sentimentos complexos e desprazerosos (como o
envolvimento em eventos pessoais ou polticos, o cimes, a perda de
um amor, a frustrao) de um jeito que os faam ser vistos como
descomplicados, diretos e vividos, no qualificados ou ambguos
(...). (DYER, 2002, p. 22, traduo minha)

Nos filmes aqui analisados, o romance atua como um elemento essencial,


representando o mote que mobiliza as narrativas das quais se espera uma resoluo
feliz. Os enredos movidos por problemas amorosos encontram obstculos, ento
facilitados pelo ambiente tropical considerado propcio ao amor tido como autntico.
Adquirindo uma significao e abrangncia muito maior do que uma relao entre duas
personagens, sua resoluo representa a superao de outras questes que so abordadas

157
de forma indireta. A superao de problemas amorosos desvela um pano de fundo de
questes polticas, sendo que o desfecho aponta para uma soluo na qual o casal desta
vez unido representa metaforicamente a unio pan-americana.
Na narrativa, foca-se em problemas pessoais entre as personagens que se
desdobram em um romance sob o fundo de questes polticas ampliadas. Os nmeros
musicais, por sua vez, complementam a narrativa, evocando de forma solene e festiva o
encontro entre pases, desta forma aparecendo como uma resoluo mais explcita de
problemas que esto alm da narrativa, prprios Poltica de Boa Vizinhana. Um ator
hollywoodiano poderia encarnar outro ator diegtico em busca de um verdadeiro amor,
mas que em suas atuaes artsticas representam algum de importncia poltica.
Eva Illouz (1997) v o surgimento do que denominou de utopia romntica
articulada a uma mudana substancial no que se refere aos padres e intensidade do
consumo, com a formao de indstrias do entretenimento, na qual o setor flmico
ocupou um lugar privilegiado. Em sociedades altamente urbanizadas, o cinema atua no
apenas como uma das fontes mais expressivas de lucro, mas de representao de
prticas e inculcao de valores que associavam consumo, com destaque para atividades
de lazer, com romance e felicidade. A utopia romntica se define como um ideal de
felicidade calcada na promessa de harmonia e excitao na vida amorosa que, por sua
vez, s se realizaria por meio de atividades de lazer e consumo, constituindo um
processo recproco de mercadorizao do romance e romancizao das mercadorias.
O amor romntico passou a ser redimensionado a partir da emergncia de uma
zona heterossocial do lazer, marcada por maiores liberdades de namoro e explorao
sexual anteriores ao casamento, mais livres do controle parental e ento mediado pelo
mercado de entretenimento. Segundo Eva Illouz (1997, p. 30), neste momento, o amor
passa a ser representado no como um valor em si mesmo cuja vivncia poderia estar
estreitamente vinculada ao sofrimento, mas como um importante motor para a
felicidade. neste pano de fundo que o cinema fomentou enredos que tinham como
centralidade o romance que, embora obstaculizado por atribulaes provindas do
entorno social, encontrava um cenrio urbano propcio realizao amorosa, rico em
atividades de lazer, e acabava em um final feliz, vencendo as adversidades.
O filme norte-americano explorou o backstage plot, caracterizado pela presena
do mundo artstico do entretenimento que aborda, prprio s demandas do star system, a
vida de artistas (no caso, diegticos) por detrs dos palcos. Tais roteiros eram marcados
por cenrios nos quais o mundo de entretenimento era visto como uma sada tediosa

158
vida puritana em direo a expresso amorosa tida como genuna. Nos filmes que
atuavam Carmen Miranda, o entretenimento tem destaque especial, articulado
temtica poltica da Boa Vizinhana.
So as casas noturnas latino-americanas, seus teatros e cassinos, ambos
vinculados atividade do turismo, que possibilitam a realizao do romance, com a
caracterizao extica e propensa paixo das terras tropicais. A Amrica Latina
expresso de parasos de lazer prontos a receberem turistas norte-americanos em um
cenrio apimentado com luares, msica e danas prprias experincia do romance e
distante do universo do trabalho metdico e racional representado como estritamente
norte-americano.
A presena da temtica da utopia romntica em terras latino-americanas atesta
a existncia de processos alinhados: uma intensificao das relaes comerciais
interamericanas, uma maior conexo entre sujeitos de distintos pases, simbolizados na
presena de avies nos filmes e, por fim, a constituio de uma visualidade dos pases
latino-americanos produzida e amplamente consumida para alm de suas fronteiras e
vivenciada em forma de sonho romntico.
They Met in Rio (A midnight serenade) a cano que embala os momentos
romnticos do filme de Cummings sobre o Rio. Enquanto a letra versa sobre um amor
fortuito impossvel, mas genuno, que surgiu no Rio, a narrativa sugere a possibilidade
de Ceclia viver um amor de verdade com Larry, j que seu esposo brasileiro infiel e
no lhe d ateno. Frente s representaes paradisacas do amor no Rio, o casal
brasileiro no separado, antes o Baro aprende com o ator norte-americano Larry
como valorizar sua esposa.
O vnculo conjugal ento solidificado, tal como as relaes entre os bons
vizinhos. A utopia romntica era ento associada a uma utopia pan-americana, na
qual, os vizinhos, a despeito do histrico imperialista nas relaes entre Estados Unidos
e Amrica Latina, eram caracterizados como bons amigos, ao mesmo tempo em que tal
representao se fazia acentuando a liderana norte-americana e a parceria subalterna
dos pases latino-americanos. A desigualdade era expressa quando se conformavam os
parasos tropicais como um espao marcado pela presena de mulheres sensuais ao
encontro de homens norte-americanos.
De uma imagem do Rio de Janeiro moderno, em seu prximo filme Carmen
Miranda atuou como cubana, a partir das representaes que se faziam da ilha em sua
proximidade geogrfica e ideolgica com os Estados Unidos daquele tempo. Em

159
Weekend in Havana (1941), de Walter Lang, rodado no mesmo ano que o filme
anterior, a celebrao entre os good neighbors refora a hierarquia a partir de uma
utopia romntica latina, vivenciada no paraso hoteleiro e dos cassinos: Havana.
O filme inicia com uma cena em que a neve encobre a paisagem urbana de Nova
Iorque, contrastando com as imagens sobrepostas de propagandas tursticas de Havana:
Havana Wet Indies Line Cuba, mostra um desenho de uma mulher negra com
turbante e vestido listrado moderno, j The year-round playground, da fictcia
companhia McCracken de navios a vapor, mostra uma mulher branca com short
curtssimo e um top, com turbante na cabea, em referncias claras Carmen Miranda.
Por fim, em outdoor da mesma empresa com a legenda Sail To Romance traz a
imagem de Carmen Miranda e o Bando da Lua, contrastando com homens e mulheres
vestidos com roupas de inverno formais que caminhavam nas ruas nova-iorquinas.
A cmera aproxima a imagem do cartaz que ganha vida, quando Carmen
Miranda e o Bando cantam a msica Week-end in Havana, com a letra cantada em
ingls: Se voc quiser passar um fim de semana em Havana (...) Voc nunca voltar o
mesmo (...) Que tal ir para onde as noites so to romnticas? Onde as estrelas danam
rumba no cu? (traduo da verso brasileira do filme). A msica suscita o sonho que
movimenta a trama de Ms. Nan Spencer (Alice Faye), uma garota da classe trabalhadora
que juntou todo seu dinheiro para pagar por um cruzeiro com destino capital cubana
em busca de um romance. No entanto, por falha do comandante que estava envolvido
em caso amoroso durante a viagem, o navio Cuba Queen encalhou.
Representando a empresa de Mr. McCracken (George Barbier), seu futuro genro
Jay Williams (John Paine), abortando o plano de se casar na mesma semana com Terry
McCracken (Cobina Wright), a filha de seu patro, enviado ao navio para conseguir
um acordo no qual os passageiros ganhariam outra viagem no navio Caribean Queen.
Todos os passageiros assinam o acordo, exceto Ms. Spencer (Alice Faye) que sabia o
motivo pelo qual o navio afundara e que no poderia viajar nos dias programados por
ter que voltar em breve ao seu trabalho na loja de departamentos Macys.
Com medo de ser processado, Mr. McCracker, sob os protestos de sua filha
Terry que queria se casar com Jay Williams na mesma semana, encarrega seu futuro
genro da misso de prover as frias que Ms. Spencer requisitava. Em seguida, ela
afirmou s assinar um acordo depois da viagem em que ela deveria se divertir tal como
anunciado na propaganda da empresa. Jay ento acompanha a moa em Havana e

160
passam momentos em que so sensivelmente tocados pela msica e atmosfera
romntica cubana.
Havana no filme uma mistura de praias, plantaes de cana de acar,
cassinos, igrejas catlicas, jqueis clubes e hotis. E foi no mais caro dos hotis e na
sute presidencial que Ms. Spencer se hospedou com as despesas pagas pela companhia
McCracker. Na narrativa, a moa de classe trabalhadora norte-americana busca e
encontra um verdadeiro romance e seu acompanhante, a princpio estritamente pautado
em uma tica puritana do trabalho, tocado pela msica e atmosfera cubana,
conhecendo, na cena metafrica da quebra de seus culos, um homem sensvel s
paixes. Havana descrita, aproximando-se de Down Argentine Way, como uma cidade
que varia da vida rural da cana de acar aos hotis e cassinos que oferecem
entretenimento e paixes a turistas norte-americanos.
A atmosfera dos trpicos corroborava com o ideal de romance veiculado pelo
cinema do perodo. Havana representa a possibilidade de vivncias excitantes e
imprevisveis, como quando Ms. Spencer anda sozinha pelo cassino e volta ao hotel
acompanhada do desconhecido e encantador Monte Blanca (Cesar Romero). Os riscos
tornam a experincia turstica uma aventura que se desdobra em um j esperado
romance. No obstante, o romance no se concretiza com a personagem cubano-
americana de Monte Blanca, antes entre Ms. Spencer e Jay Williams que abandona seu
casamento j planejado e suas promessas de ascenso na empresa de seu futuro ex-sogro
para viver pela primeira vez um grande amor, propiciado pelo ambiente tropical cubano.
Ao lado do romance, sobressaltam as representaes sobre os cubanos. As
personagens masculinas cubanas so descritas como interesseiras, desregradas e no
racionais. Os funcionrios do hotel ora esto empenhados em buscar meios de tirar
dinheiro de seus clientes, ao mesmo tempo em que so incapazes de entender seus
hspedes ou de efetuar tarefas simples, como repassar telegramas. Monte Blanca,
funcionrio oportunista, viciado nos jogos dos cassinos, galanteador com domnio na
arte da conquista, usa seus dotes de persuaso para tirar dinheiro das turistas. Neste
filme, Carmen Miranda no representa a si mesma e sua personagem no tem o mesmo
nome que o seu, ela agora nomeada de Dorita Rivas.
Ela mantm a iconografia da baiana, mas desta descola-se por atuar como uma
personagem cubana. A passagem de um filme no Rio para outro em Havana demonstra
como a caracterizao das latinas era feita de modo generalizvel, posto que carregavam
caractersticas conotativas semelhantes: uma personagem enciumada, com os nervos a

161
flor da pele e que movida por interesses amorosos ou sexuais, no resistindo a um
homem atraente, fosse ele Blanca ou Jay, sendo que o desenrolar da narrativa a leva a
ficar com seu partner latino-americano Monte Blanca. O filme se fecha com nmero
musical no qual Rosita protagonista e os dois casais, Jay e Ms. Spencer e Rosita e
Monte Blanca terminam danando sobre o palco e cantando sobre o paraso tropical de
Havana que convida os norte-americanos a desfrutarem de um fim de semana.
A caracterizao dos pases latino-americanos como parasos do romance
atualiza narrativas coloniais que atribuem aos territrios conquistados caracterizaes
de dens tropicais, mas est articulada neste caso utopia pan-americana prpria aos
tempos da Poltica de Boa Vizinhana, sob o protagonismo dos Estados Unidos. No
obstante, o encontro amoroso e a sugesto da possibilidade de um casal de diferentes
naes poderia ser sugestivo de uma mistura inter-racial em um perodo no qual as leis
segregacionistas atuavam em muitos estados dos Estados Unidos, tendo a questo racial
um foco de ateno especial do Production Code Administration.
Para tanto, uma srie de negociaes foram necessrias para a apresentao
desta problemtica para o pblico norte-americano. Muito embora distinta da
personagem da mulher negra, a mulher latino-americana tambm se caracterizava por
uma sexualizao que a racializava e, neste sentido, era uma ameaa famlia
tradicional WASP (branca, anglo-saxnica e protestante). A representao da mulher
latino-americana no cinema carregava ansiedades em relao a dois sistemas
intersectados de gnero e raa:

Desde a conquista hispnica e o destino manifesto, a histria de


expanso sugeriu que para o colonizador a terra e a mulher morena
que a habitava estavam prontos a serem colhidas pelo conquistador. O
legado colonial reiterado no casal representacional dos homens
brancos e mulheres no brancas (mas no vice-versa), uma conveno
cinemtica que ilustra como casais racializados e heterossexuais eram
centrais para esse processo de construo mtica (...) Mas onde a latina
hollywoodiana era codificada como desejvel e disponvel na tela, sua
imagem inconstante desde que ela no pode legitimamente
reproduzir a nao quando em presena da mulher branca. (OVALLE,
2011, p. 05)

A despeito dos pases latino-americanos representarem o lugar sine qua non do


romance e os enlaces destes vistos como a sedimentao das relaes pan-americanas, a
insero da mulher latino-americana nos filmes fazia referncia, mesmo que indireta, a
questes raciais prprias dos Estados Unidos. Em especial no que tange localizao

162
dos estdios ao sul da Califrnia, onde a dinmica de contatos inter-racial era intensa. A
histria de colonizao do oeste norte-americano a histria da conquista de terras
antes pertencentes ao Mxico, conquista masculina que incentivava, por meio da
violncia ou de arranjos familiares, a relao entre homens anglo-americanos e
mulheres de origem latina ou indgena.
O contato sexual, visto como inter-racial, seja concreto ou simblico, no apenas
se restringiu a esse perodo histrico, mas se acentuou com a onda de migraes aps a
Revoluo Mexicana para os Estados Unidos e com a busca de bares mexicanos
prximos fronteira no perodo da Prohibition (1920-1933), lei federal que proibia o
consumo de lcool no pas. Deste histrico, consolidou-se a representao da mulher
mexicana, extensvel s demais latino-americanas, como hipersexualizadas, desviantes
sexuais e potenciais amantes temporrias. Representao que se materializou no cinema
norte-americano, mesmo em perodos de forte censura:

Tais expectativas vieram tona mesmo quando o Production Code


comeou a policiar as representaes de miscigenao. Enquanto as
unies explcitas entre brancos e negros eram patentemente proibidas,
os casais das Latinas permaneceram como uma exceo ambgua ou
intermediria, levando em conta que a narrativa em uma forma de
negao histria no descrevia evidncias de suas procriaes.
(OVALLE, 2011, p. 29)

Considerando os filmes que participou Carmen Miranda como uma atualizao


da colonialidade, trata-se de analisar como sua verso cinematogrfica comps uma
visualidade marcada por aspectos que sustentam formas desejveis e no-desejveis de
relacionamentos, compondo a ambiguidade do esteretipo da latina-americana. Trata-se
de uma perspectiva que redimensiona a temtica racial a partir de uma nova hegemonia
continental: os Estados Unidos se assumem como herdeiros de tudo o que se concebe
como civilizao ocidental e a Amrica Latina, como seu oposto, o resto.
O branco e, portanto no socialmente marcado, no dizia respeito a
caractersticas cromticas que se assemelhavam nos filmes abordados. Caracterizava-se
como civilizado concebendo-se no contraste e estabelecendo fronteiras com seu
Outro, caracterizado sempre pela falta ou pelo atraso. Atrelada classificao racial, a
dominao masculina acaba por sugerir aproximaes entre homens norte-americanos e
mulheres latino-americanas, resguardando as mulheres norte-americanas na esfera
domstica e neutralizando o potencial ertico dos homens latino-americanos. Como um

163
pressuposto tcito, no tematizado, as relaes desejveis se do sempre na esfera
heterossexual. A colonialidade caracterizava-se cinematograficamente a partir destas
conjunes das esferas de gnero, raa e sexualidade.
Em Down Argentine Way, o romance de Glenda e Ricardo aparentemente rompe
com a colonialidade da representao, na medida em que uma norte-americana que
se envolve com um argentino. Nota-se, entretanto, redimensionamentos raciais que
permitem tal representao cinematogrfica. Em primeiro lugar, Ricardo Quintana tem
sua educao e carter anglo-saxnicos. Acrescenta-se que, em um perodo marcado
pelo star system, a forma como o pblico compreende as personagens estreitamente
vinculada s estrelas que os interpretam. A atuao das estrelas hollywoodianas como
Betty Grable e Don Ameche neutraliza a mistura racial, na medida em que representam
o padro hegemnico do star system norte-americano, uma blondie star em seu auge e
um ator branco, ausentes, portanto, de qualquer signo que os inferiorizasse racialmente.
Algo distinto seria, por exemplo, se o casal principal do filme fosse interpretado por
Carmen Miranda ou Cesar Romero.
Em That Night in Rio, a personagem Carmen, interpretada por Carmen Miranda,
de forma indita constitui um par com a personagem de Don Ameche, Larry. Trata-se
de um casal entre um norte-americano e uma brasileira, caracterizada como uma tpica
latino-americana sensual e impulsiva. No obstante, Don Ameche interpretava dois
papis no mesmo filme e enquanto o par brasileiro composto por Baro Duarte e Ceclia
eram formalmente casados, Larry e Carmen eram apenas namorados. Alice Faye e Don
Ameche constituram uma representao branca de um casal brasileiro em um filme
disposto a agradar o pblico dos bons vizinhos. A recepo nacional positiva do filme
corrobora o fato de como a colonialidade estruturava a forma como no Brasil se
desejava ver representada a nao, a partir da interpretao das protagonistas por
membros do star system norte-americano.
As estrelas hollywoodianas, por sua vez, encontravam-se no desfecho do filme
ao lado do casal Larry e Carmen. O par inter-nacional e racial dos ltimos neutralizava
conotaes racializantes ao pblico norte-americano que via o par realmente casado de
Ceclia e Baro Duarte interpretados na tela por Don Ameche e Alice Faye. A ausncia
do matrimnio do primeiro par sinalizava a suposta no possibilidade de constituio de
descendentes inter-raciais. De outro lado, os dois casais juntos, em um filme
caracterizado por uma representao moderna e branca do Brasil e provido de inmeros

164
sambas e passagens em lngua portuguesa, acabava por insinuar, com as devidas
diferenciaes, uma similaridade entre os pases amigos.
Em Weekend in Havana, a narrativa de uma moa norte-americana de classe
trabalhadora em busca de um amor na ilha tropical prxima costa oriental norte-
americana. Passando pela aproximao marcante de Monte Blanca, interpretado pelo
Latin Lover Cesar Romero, Ms. Spencer acaba se apaixonando por Jay Williams em um
cenrio que os propicia ao verdadeiro amor: a ilha caribenha tropical que, poca, era
tambm o paraso para o capital norte-americano.
Rosita, interpretada por Carmen Miranda, a despeito de sua queda e iniciativa
por homens atraentes, acaba junto com o galanteador cubano-americano Monte Blanca.
Ambas as personagens latino-americanas eram caracterizadas por critrios
depreciativos: sexualidade descontrolada, no caso da primeira e falta de carter, no
segundo. Ainda assim, o desfecho aponta para ambos os casais juntos em um nmero
musical, selando a amizade pan-americana.
O filme prova no ter, ao contrrio do anterior, muitas intenes de agradar o
pblico cubano, demarcando que a despeito das similaridades que se atribuam aos
pases latino-americanos nas representaes cinematogrficas, faziam-se distines. O
Brasil pode ser considerado um dos alvos principais das tentativas de representao
cinematogrfica positiva no perodo da Boa Vizinhana. No obstante, foi a partir de
Weekend in Havana que a recepo brasileira expressa nas revistas de cinema passou a
se voltar mais enfaticamente contra Carmen Miranda e suas personagens racializadas,
conforme abordado no captulo anterior.
O filme seguinte gravado por Carmen Miranda abandonou o cenrio latino-
americano, embora no a temtica do pan-americanismo. Springtimes in the Rockies
(1942), de Irving Cummings, encerra as narrativas das viagens interamericanas nos
filmes em que Carmen atua, mas se volta desta vez para o norte. O cenrio no qual uma
narrativa romntica se delineia so as montanhas rochosas canadenses. Trata-se de uma
alteridade mais prxima simbolicamente, pois branca, concebida como tambm digna
do legado ocidental, anglo-saxo ou francs, em oposio ao ibrico. Proximidade
tambm geogrfica, materializada pelas constantes viagens das personagens entre Nova
Iorque e o cenrio canadense.
Com a presena quase decorativa, embora comicamente estereotipada de
indgenas e tambm de estrelas e personagens latino-americanos, desdobra-se a
narrativa na qual o ator da Broadway Danny Christy (John Payne) busca reconquistar

165
seu par amoroso e profissional Vicky Lane (Betty Grable). Cansada das infidelidades de
seu noivo, ela resolve apresentar seu nmero com o galanteador e tambm ator Victor
Prince (Cesar Romero) em meio a paisagens naturais.
Embriagado, Danny decide buscar seu amor, superando sua relutncia inicial,
especialmente quando lhe oferecida uma oportunidade de trabalho desde que
reconquiste seu par. apenas no dia seguinte, j no Canad, que o ator norte-americano
descobre que havia contratado um criado particular erudito, Mactavish (Edward Everett
Horton) e uma secretria brasileira, Rosita (Carmen Miranda) com seus seis irmos
(interpretados pelos membros do Bando da Lua). Rosita, brasileira com descendncia
paterna irlandesa caracterstica historicamente racializada e associada em termos
pejorativos ao alcoolismo no cinema norte-americano (BERG, 2004, p. 26) , se
caracteriza pela acessibilidade sexual, bem como uma comicidade natural que escapa
a seu controle, indo da pronncia errada do ingls a atitudes sociais consideradas
impertinentes.
Enquanto Vicky se compromete em noivado com Victor, Danny deixa
enciumada sua ex-noiva, quando se aproxima de sua secretria Rosita. O desfecho
permite a revelao de que as personagens norte-americanas, para alm da resistncia de
Vicky e da suposta motivao econmica de Danny, tinham um amor verdadeiro.
Embora abandonado, Victor, com todas as outras personagens, estimula a realizao do
amor de ambos que, por sua vez, s se concretizou com a astcia e iniciativa de Rosita,
driblando todos os mal entendidos que o obstaculizavam. A potencialidade de um par
internacional e racial entre Vicky e Ricardo foi afastada, mas a realizao do romance
entre o casal norte-americano chegou ao pice no desfecho do filme em nmero musical
protagonizado por Carmen Miranda no qual a letra versa sobre o jubileu pan-americano,
uma grande festa profcua em brindes aos vizinhos, enquanto todas as personagens se
alinham danando.
Carmen Miranda possui uma importncia ambgua nos filmes: era central nos
nmeros musicais, com presena notvel no desenrolar das narrativas e excluda do
elemento central dos filmes em que atuou: o casal protagonista. Nada mais explcito
sobre o papel repetitivamente desempenhado por Carmen na narrativa flmica norte-
americana do que Give me a band and a bandana, um nmero musical do filme
Greenwich Village (1944) no qual ela canta: Give me a band and a bandana, Cause I
don't want a Romeo, I don't want a romance. No, I only want to dance, dance.

166
Sua sensualidade era constituda por meio da dana nos nmeros musicais,
recuperando a representao j consolidada no cinema hollywoodiano. Diferentemente
das mulheres brancas ingnuas e inocentes que eram ensinadas a danar por seus
parceiros, as latino-americanas testam o homem branco em sua conjugalidade
heterossexual hegemnica, conformando-se em uma caracterizao perigosa e desejante
(OVALLE, 2011, p. 06). Neste aspecto, a dana acentua a sensualidade que muitas
vezes aparece nas narrativas como acessibilidade e iniciativa sexual, sempre em forma
de sugesto. Carmen Miranda explorava tais aspectos em suas performances musicais,
ao movimentar as mos de forma singular e, ao mesmo tempo, remexendo sua cintura
ao cantar e interpretar sambas.
Segundo Ovalle, o corpo de Miranda era to sensual, to poderoso que era
regularmente escrutinizado pelo Production Code Administration (PCA), tanto em
relao a suas vestimentas ou simplesmente por seu estilo expressivo de performance
(2011, p. 53). Por outro lado, seu humor e alegria era algo presente, tambm nos
nmeros musicais e na narrativa, servindo para relaxar rgidas normas sociais,
convidando personagens a danarem, ressaltando uma comicidade que muitas vezes
reiterava o seu lugar de objeto, desta vez do riso coletivo e, por fim, acabava por
neutralizar sua sexualizao. A sensualidade de Carmen, portanto, passava nas
narrativas por uma regulao que a tornava no desejante em termos de relacionamento.
Neste aspecto, h uma diferena crucial entre a funo de Carmen Miranda nos
nmeros musicais e na narrativa flmica, j abordada por outros pesquisadores. A
sensualidade dos nmeros (e dos palcos) muitas vezes a engrandecia, corroborando a
ideia de um extico chique. Como afirma Jos Ligiro Coelho:

As saias de Carmen Miranda em Streets of Paris (1939) mostravam


quatro recortes por meio dos quais partes de sua barriga e cintura
poderiam ser vistas, um estilo considerado muito sensual para o
perodo. O artifcio do recorte tambm foi usado nas saias de Down
Argentine Way (1940) e em Weekend in Havana (1941). Saias longas
a dotavam, sem dvidas, de nobre e nica elegncia. No importando
que tipo de tecido foi usado, por exemplo, lam muito fino em That
Night In Rio (1941), ou pano de algodo com impresso de luz em
Weekend in Havana (1941). (COELHO, 1998, p. 97-98, traduo
minha)

Suas vestimentas, em especial as feitas por Travis Banton em seus primeiros


filmes, eram elaboradas de modo a ganharem destaque pelo uso do Technicolor:

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Elas so caracterizadas sobretudo pelo uso de cores que maximizam o
potencial do Technicolor, com brincos e colares de grandes
dimenses, tecidos de lam e lantejoulas que captam a luz e turbantes
extravagantes, variadamente decorados com folhas, flores artificais e
frutas brilhamente coloridas. Ela ento criada em bvia oposio ao
branco e de cortes de cabelos sofisticados, de no menos que a dama
Alice Faye. (2013, SHAW, p. 47, traduo minha)

O uso do Technicolor valorizava ainda mais a sofisticao extica de Carmen


Miranda e era, de fato, algo que explorado de forma diferencial em suas atuaes. Vale
lembrar que entre 1940 e 1944, Carmen gravou todos os setes filmes comerciais em
colorido (com a exceo de sua rpida participao em preto-e-branco em Four Jills in
a Jeep), quando apenas por volta de dez por cento das produes feitas pelos maiores
estdios de Hollywood nesses quarto anos eram filmados com estoque de cores, devido
ao alto custo envolvido e a colega de Carmen na Fox, Betty Grable, foi obrigada a fazer
vrios filmes preto-e-branco nesse perodo (SHAW, 2013, p. 76-77, traduo minha). O
uso do filme a cores, na poca enfaticamente colorido, acabava por dar um tom de
fantasia aos filmes, algo buscado nas utopias pan-americanas que Carmen participava.
A exotizao de Carmen Miranda em suas performances e vestimentas vinculava-se
intimamente com o auge do Technicolor.
Os nmeros tambm se refereiam estrela do show business norte-americano e
fazia com que o pblico extra-diegtico pudesse sentir um compartilhamento de
experincias com as personagens flmicas que assistiam as apresentaes da artista.
Trata-se, portanto, de uma sensualidade refinada dos palcos de uma estrela. Ao mesmo
tempo, seus nmeros representavam supostamente de forma positiva os bons vizinhos
em encontro. Nas narrativas, por sua vez, a sensualidade relacionava-se a sua persona
caricata que se referia forma como aparecia na imprensa. Ao contrrio dos palcos, a
exotizao sensual de Carmen Miranda durante o enredo no a engrandecia, mas sempre
a caracterizava em termos ridicularizantes, com seus erros de ingls e sotaque reforado
e seu temperamento incontrolvel.
Lisa Shaw (2013, p. 45) salienta para os duplos sentidos que apenas eram
compreensveis ao pblico norte-americano, quando ela trocava as palavras, dotando s
vezes sentidos sexuais no intencionais. Em Uma Noite no Rio, por exemplo, quando
convidada pelo Baro para ir beber ela respondeu: You are making love to me?. Em
sntese, o tempo cmico de Carmen excelente em seu papel pastelo, o qual difere
marcadamente de suas performances dos nmeros musicais e de dana que so

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altamente polidos e no intentavam ser cmicos (SHAW, 2013, p. 45). A narrativa,
diferente de uma experincia da fruio de suas performances artsticas dos palcos,
acabava por neutralizar seu atrativo sexual, constituindo-a como uma diferena racial
impeditiva de constituir um casal com uma personagem dominante.
Progressivamente, os nmeros musicais de Carmen Miranda deixaram de ser
novidade e ela passou a atuar como atriz coadjuvante, ao invs da entertainer principal.
Em seus ltimos filmes pela Fox, como sempre de fora da trama amorosa na narrativa,
Carmen passou a desempenhar cada vez um papel de elemento auxiliar no
desenvolvimento do enredo e seu desfecho de uma forma particular. No desenrolar das
narrativas, transformava-se definitivamente na latino-americana excluda da busca
amorosa que era estruturada relacionalmente entre a racionalidade e iniciativa masculina
e a ingenuidade e passividade feminina.
As personagens da brasileira no precisavam se ajustar aos cdigos
representacionais de gnero, na medida em que se situavam fora do binrio que se
concretiza na unio branca heterossexual. Sendo assim, elas se caracterizavam por
auxiliar ativamente a busca amorosa alheia por meio de qualidades especiais como:
intuio, sabedoria e sagacidade. Aparte da racionalidade anglo-saxnica e
superficialidade emocional do mundo capitalista, as personagens de Carmen revelam-se
conselheiras do corao para personagens femininos e masculinos, captando
sentimentos nas entrelinhas e atuando para o bom desfecho amoroso.
Carmen em sua vida pessoal, embora desejasse se casar e ter filhos, foi muitas
vezes abandonada por possveis pretendentes. Difcil no pensar no peso do esteretipo
vinculado hipersexualidade em sua vida pessoal. B. Ruby Rich (2004) analisa
aspectos semelhantes na trajetria da primeira atriz asitica a fazer sucesso em
Hollywood, Anna May Wong. Tambm caracterizada pelo exotismo e sexualidade, as
personagens de Wong no encontravam par amoroso, como a atriz que as interpretaram,
que ainda carregava em similaridade com Carmen a forte critica de sua audincia
chinesa. A hipersexualizao racializante acabava por destacar certas mulheres em uma
lgica androcntrica que, a despeito de valoriz-las na cultura de massas, acabava por
desvaloriz-las na busca matrimonial.
Entre suas atuaes flmicas e aparies na imprensa, Carmen Miranda era, a
partir de sua nacionalidade brasileira, constituda enquanto diferena racial. De forma
sinedquica, uma brasileira era representante do jeito sul-americano que nada mais
era do que uma variao de uma performance latino-americana j conhecida do pblico

169
norte-americano. Trata-se de uma representao genrica que ganhava hipervisibilidade
em suas atuaes e era, por sua vez, consumida tambm em seu pas de origem. De
forma ambgua, as caractersticas que tornavam Carmen Miranda uma imagem cada vez
mais visvel e de destaque no cinema norte-americano que abusava do Techinicolor
eram justamente aquilo que delimitava os limites nos quais poderia ser representada. A
carreira de Carmen se fez nos limites de uma cumplicidade criativa com os elementos
simblicos norte-americanos que reinterpretava em suas atuaes.
Embora a imagem de Carmen estivesse atrelada a seu apelo ao pblico norte-
americano, ela se difundiu para alm das fronteiras daquele pas, sendo incorporada no
pas de origem, posto que sua personagem j carregava uma histria nacional. Em seu
pas Carmen no se caracterizava pela hipervisibilidade calcada no excesso corporal
de suas personagens no cinema norte-americano. Antes, era representativa da
branquitude que se redimensionava incorporando a diferena racial negra na figura da
baiana. No prximo captulo, apresentarei como Carmen Miranda foi protagonismo
neste processo de incorporao central na discusso da identidade nacional, negociando
com os limites raciais na representao do nacional e se caracterizando pela importncia
dada ao corpo feminino. Em uma dinmica internacional, a imagem hollywoodiana de
Carmen era consumida no Brasil, consolindando a imagem da mulher brasileira como
cone nacional e internacional.

170
CAPTULO 4: O QUE QUE A BAIANA TEM? A MULHER BRASILEIRA NO
MERCADO DE CULTURA DE MASSAS

4.1. Cultura de massas e o feminino nacional

No ano de 1909, na pequena cidade portuguesa Marco de Canaveses, nasceu


Maria do Carmo da Cunha, moa de famlia sem grandes recursos que viria a se
transformar em um smbolo nacional do outro lado do Oceano Atlntico, em terras antes
colonizadas pelos seus compatriotas. Filha de barbeiro e de dona de casa pensionista,
ambos portugueses, veio habitar a capital brasileira logo no ano seguinte de seu
nascimento, com sua famlia que tentava a sorte nos trpicos. Um promissor e marcante
destino no esperava seus pais, mas acolheu Carmen Miranda que no apenas
enriqueceu, mas se tornou a mais proeminente cantora de msica popular no mercado de
entretenimento e nos modernos meios de comunicao de massa da capital federal.
Neste captulo, meu foco se volta para a carreira nacional de Carmen e a
inveno da personagem da baiana antes de sua migrao e transformao no
esteretipo da latino-americana que se sobreps a ela. Enquanto Carmen Miranda, a
partir da estilizao da baiana, constitui-se como diferena racial nos Estados Unidos,
no Brasil ela representava as expectativas de unidade nacional, fazendo referncia a
uma personagem autntica que poderia se referir ora a um Brasil profundo, colonial,
da Bahia, ora a uma personagem negra que compunha as ruas da capital federal, com
notvel importncia para os sambistas da Praa Onze.
A incorporao de uma figura negra, representada em sua corporalidade e
sensualidade prprias diferena racial no contexto brasileiro, demandou de Carmen
lidar com uma moralidade presente nos cdigos de gnero de seu tempo. Apropriava-se
de elementos associados negritude, mas filtrada por cdigos dos modernos meios de
comunicao de massa, no caso, o cinema. Trata-se, novamente, de um
redimensionamento da negritude a partir da branquitude de Carmen que denotava ao
mesmo tempo uma sofisticao aceita pelas classes mdias e altas e apontava para o
reconhecimento de expresses populares. Tudo isso no perodo auge do nacionalismo
do regime varguista, acentuado no Estado Novo.
As negociaes de Carmen Miranda em relao a sua corporalidade, vestimentas
e performances, seguidas de sua viagem para os Estados Unidos e a constituio de uma
visualidade internacional da brasilidade, ajudaram a constituir a ideia de uma mulher

171
nacional. A mulher nacional valorizada carregava em si uma pontinha de malcia
tropical e sensualidade cuja origem remonta simbolicamente negritude. No obstante,
ela constituda a partir do filtro da cultura de massas, filtro este baseado na
corporificao e na diferena cuja imagem que se difunde feminina para o consumo
masculino. Trata-se de um feminino que para se definir como nacional ao mesmo tempo
faz referncias autenticidade nacional, mas tambm a uma almejada modernidade
que s poderia ser expressa na aparncia branca de Carmen Miranda.
Crescida em bairros populares e centrais da capital, incorporou naqueles meios
os valores negociados que adentravam ento nas representaes da nao, bem como
lidou com valores morais que eram renegociados. Em sntese, Carmen Miranda era uma
mulher branca que passou a ser um cone nacional ao ocupar os espaos do mercado de
entretenimento, do rdio a revistas, passando por cassinos e teatros, com suas
performances marcadas pela sensualidade e representando uma cultura associada
populao afro-brasileira. Devido a seu grande impacto no pblico feminino, aumentado
com sua migrao para os Estados Unidos, pretendo analisar como Carmen Miranda
forjou a ideia de uma mulher nacional, redimensionando os cdigos de gnero vigentes.
A cidade do Rio de Janeiro tomava outra face desde a virada do sculo. Entre
1903 e 1906, inspiradas em modelo urbano francs, reformas tomavam conta da cidade
sob o governo do prefeito Pereira Passos com novas praas, parques e prdios, alm da
novssima avenida Central (atual Rio Branco) toda cercada de palcios de mrmore,
no melhor estilo Art Noveau -, um imenso bulevar que botou abaixo as antigas
construes coloniais e rapidamente se transformou na coqueluche da burguesia
carioca (FENERICK, 2005, p. 30).
Para tanto foram expulsos todos os habitantes de cortios e malocas, os
frequentadores de botequins e freges (bares populares), alm das barracas, carroes e
carrinhos de rua, alm disto, perseguia-se o seresteiro e instrumentos populares como
o violo e o pandeiro, os ps descalos e os sem camisas, os macumbeiros, os
curandeiros populares, alm das tradicionais festas da Glria e da Penha (FENERICK,
2005, p. 31). Concebida como vitrine da civilizao brasileira, a cidade tomava uma
face higienista, burguesa e branca.
Aos olhos das classes mdias e altas, a moderna capital abrigava novos
ambientes de sociabilidade e modelos de intimidade que atualizavam os padres de
comportamento e cdigos de gnero. A exposio pblica torna-se central na vida de
cada um e, relacionada a ela, a necessidade de apresentar-se bem aparentado e vestido.

172
A preocupao esttica visvel nas campanhas publicitrias da poca que vo de
cremes e loes a modos de se vestir. As mulheres passaram a ocupar as pginas das
revistas com seus novos looks, baseados especialmente no modelo das estrelas
hollywoodianas e a cidade deu lugar s passarelas dos concursos de beleza feminina.
A sociabilidade masculina passou a ser cada vez mais mediada pela prtica de
esportes, visvel com a formao de diversos clubes na poca, sendo o pioneiro o Club
de Regatas do Flamengo, formando uma equipe de remo vida para exibir os msculos
no espao pblico. Na nsia de se mostrarem, os homens de elite ostentavam seus
automveis, base da vaidade masculina (diga-se das classes abastadas), que se tornou
um emblema de poder e fora, indispensvel para atrair as mulheres (SEVCENKO,
1998b, p. 559). Dentro deste contexto de culto juventude e sade, os lares passaram a
ser marcados por uma nova disposio arquitetnica que privilegiava o cuidar de si,
amparados pelos conselhos mdicos, formavam-se casas com salas bem arejadas e
banheiros amplamente espelhados e ricos em cosmticos.
Eva Illouz (1997) explora a reconfigurao das relaes sociais com a
urbanizao e formao de mercados culturais e de entretenimento nos Estados Unidos
(que se expandiu globalmente com peculiaridades locais), ampliando fortemente o
espectro de possibilidades para alm dos vnculos comunais e de parentesco e
intensificando as relaes interpessoais na esfera pblica. Com a criao de centros
urbanos no sculo XX, as vidas individuais passaram a ser mediadas pelo mercado e
constituiu-se um padro de vida voltado esfera pblica na qual os encontros
interpessoais eram intersectados com o consumo de atividades comerciais de lazer
(restaurantes, cassinos, cinemas) e compra de mercadorias para cuidar da apresentao
pblica (xampus, sabonetes, cremes, loes etc.).
Neste processo, criou-se um ethos antimodernista, em seu sentido calvinista
clssico, que ao contrrio da valorizao do trabalho e da poupana, baseava-se no
consumo e na diverso. De um lado, este mercado constituiu uma arena heterossocial na
qual prticas sociais e expresses culturais das classes populares se encontravam com o
estilo de vida das classes mdias e altas e o modificavam. De outro lado, o mercado de
lazer e bens culturais se constituiu de forma estratificada, definindo acessos e limites
queles que poderiam ou no desfrutar ou investir em bens e produtos.
A urbanizada capital brasileira acompanhava as transformaes globais de
ordem econmica e cultural, estruturando um mercado de lazer e entretenimento de rica
produo cultural, ao mesmo tempo em que no perodo passava-se por uma mudana da

173
referncia cultural francesa predominante para a norte-americana, em especial, via
cultura de massas, por meio da qual foram difundidos hbitos e prticas de consumo. O
acesso ao novo estilo de vida era marcado por fronteiras de classe social, definindo
certos tipos de diverso para grupos sociais privilegiados, como cassinos e clubes, e
outros mais acessveis s camadas mdias e baixas, como os cinemas e botequins.
No espao interior das casas de classe mdia e alta se difundiam as revistas,
porta de entrada dos novos comportamentos sancionados socialmente, nas quais se
estampavam alm das estrelas norte-americanas e suas vidas em Hollywood, os cartazes
do rdio brasileiro, suas apresentaes de samba e atuaes em carnavais que passavam
a ocorrer nos teatros e nos clubes da sociedade. Os sons eram captados pelo aparelho,
cada vez mais presente nos lares, e as imagens, as opinies e a vida pessoal das novas
estrelas eram impressas nas pginas das revistas. Por todos estes meios, as
representaes e as prticas produziam a figura da mulher moderna:

[...] com o marketing agressivo de exportao cultural dos Estados


Unidos, principalmente de filmes, a imagem da nova mulher decidida
e independente representada nas produes de Hollywood tornou-se
um smbolo importante do lazer moderno para a gerao do perodo
ps-Primeira Guerra Mundial no Rio de Janeiro. (CAULFIELD, 2000,
p. 141)

Tal imagem tornou-se difundida naquele contexto, mas no sem oposies e


matizes. A constituio de espaos heterossociais na moderna Rio de Janeiro trazia
redimensionamentos das relaes raciais e mudanas de uma moralidade que ditava
cdigos de gnero que s podem ser abordadas de forma interseccional. Em primeiro
lugar, o mercado de lazer trazia aspectos de uma cultura afrodiasprica, seguindo uma
tendncia que tambm se dava em outros centros urbanos como Nova Iorque e Paris.
Jazz, ragtime, samba, choro dentre outros ritmos circulavam globalmente, com
predominncia para a msica afro-norte-americana.
Tais ritmos internacionais eram difundidos em nosso pas e influenciavam as
estticas musicais locais que se consolidavam no mercado de entretenimento que, por
sua vez, centrava-se na ideia de uma msica autenticamente nacional. As msicas e
danas que mesclavam a influncia norte-americana e afro-brasileira tomavam conta de
novas e criativas facetas do capitalismo no Rio de Janeiro que se tornava uma Meca
nacional do mercado de entretenimento, com seus diversificados locais em contato, dos
teatros de revistas, aos cafs, boates, cassinos e o esperado carnaval.

174
Ritmos, danas e performances corporais passaram a ser objeto de ateno
privilegiada, destacando os corpos femininos. Incentivaram-se comercialmente novos
padres e valores relativos diverso, esfera pblica e cultura de massas que
ressignificaram os espaos urbanos que, por sua vez, foram progressivamente ocupados
por mulheres. De outro lado, Sueann Caulfield (2000) explora como o surgimento da
imagem da mulher moderna atualizou formas de controle social das mulheres, sob o
argumento de defesa da honra, contendo juzos de valor que eram marcados por
diferenciaes de raa e de classe.
Dentro de um histrico colonial no qual se valorizava a castidade feminina e
baseava-se na ideia de que a recluso das mulheres da elite fazia-as moralmente
superiores s mulheres do povo (CAULFIED, 2000, p. 29) ao mesmo tempo em que o
casamento era predeterminado por estratgias poltico-econmicas, a modernizao
trouxe novas questes de como controlar as mulheres em um novo contexto
heterossocial, com menor superviso familiar e marcado pela escolha individual dos
pares amorosos. Tratava-se da problemtica de como diferenciar moralmente as
mulheres provenientes da elite alocadas a uma esfera de respeitabilidade social das
da classe populares, boa parte negras e mestias.
Tiago Gomes (2004) demonstra como se estabelece certa crtica na dcada de 20
modernidade, comparando-a a uma barbrie racializada. Nessa viso racializada, com
o forte impacto da msica afro-americana e afro-brasileira, a figura da mulher moderna
era criticada porque se assemelhava s de origem africana, ao mesmo tempo em que a
modernidade era vista como enegrecida. Naquele perodo, formou-se um pnico
perante o que parecia a muitos observadores a sexualizao, a feminilizao e a
dissoluo de fronteiras de raa e classe no espao pblico das grandes cidades
(GOMES, 2004, p. 146-7).
Segundo Caulfield (2000, p. 167), havia na poca um amplo consenso na esfera
jurdica de que os estmulos sensuais modernos traziam a degenerao moral. Algo
que fazia frente a uma certa democratizao advinda da estruturao de um mercado de
cultura de massas j que, segundo Gomes (2004), os novos valores traziam algum
nivelamento social e o que era visto como crtico era a aproximao das moas de elite
das mulatinhas, suas criadas, seja no vocabulrio, seja na suposta permissibilidade
sexual. A tudo isso, soma-se a influncia considerada potencialmente nociva do cinema,
algo presente na viso de um jornalista como Antnio Torres que, no artigo Se o
Cinema til (Gazeta de Notcias, 1-5-20), disserta sobre a preocupao com o cinema

175
e estilos de vida modernos que no mais estabelecem fronteiras entre corpos
respeitveis e no respeitveis, que eram antes supostamente delimitados (GOMES,
2004, p. 135).
Partindo da anlise de discursos jurdicos e processos criminais sobre
defloramento, Caulfield (2000) constata que a despeito das mudanas histricas da
virada do sculo dcada de 40, permanece uma moral na qual a honra sexual da
mulher, tambm concebida como honestidade sexual, era considerada base da famlia,
por sua vez sustentculo da nao. Assim sendo, a ideia de uma liberalizao sexual
feminina em certos aspectos promovida pela reestruturao social por meio das novas
arenas heterossociais da modernidade calcada nos mercados de entretenimento urbanos
sofria uma sria restrio moral a ser controlada para o bem da nao. A despeito
das transformaes sociais substanciais, continuava-se a atribuir s mulheres um papel
principal em relao ao qual deveria subordinar suas outras atividades: o da
maternidade. O controle moral da sexualidade tinha bvios contornos de gnero. Aos
homens, permitia-se o uso do espao pblico e no se cobrava recato sexual, s
mulheres exigia-se domesticidade e salvaguarda de sua honra.
Mulheres consideradas emancipadas, livres ou modernas eram responsabilizadas
nos julgamentos, assim retirando dos homens a obrigao de assumir a paternidade de
um filho j que se tratava de uma mulher desonesta 28. Honestidade, neste caso,
significava submisso vigilncia dos pais, enquanto que seu oposto poderia ser
constatado na presena da mulher na esfera pblica andando em bondes, em atividades
de entretenimento como a dana desacompanhada, dentre outras que denotavam sua
autonomia. Neste sentido, o que se percebe que as leis e direitos sexuais eram
centrados na misso reprodutiva e moralizadora da mulher ao invs da defesa de seus
direitos individuais.
Os processos por defloramento partiam de acusaes em geral a homens que
pertenciam a uma categoria racial e social equivalente, reforando a prevalncia da
endogamia racial. No entanto, a autora se debrua sobre o problema das heranas do

28
A honra sexual, sinnimo de virgindade, passou no saber jurdico de valor a ser defendido na virada do
sculo a algo anacrnico que incentivava as tendncias populares de exageros sexuais. A jurisprudncia, a
partir dos anos 30, passou a defender ento uma integridade moral. Neste aspecto, a perda da
virgindade feminina poderia ser justificada quando associada a intenes de casamento. Os discursos de
defesa de processos sobre o crime contra a honra, analisado pela autora, baseavam-se
predominantemente no argumento do consentimento sob promessa de casamento. Sendo assim, em
instncias jurdicas a valorizao da mulher se d em termos de oposio imagem da mulher moderna
propagandeada nos meios de comunicao de massa e publicidade (CAULFIELD, 2000).

176
desejo colonial brasileiro focado na figura sexualizada da mulata, as narrativas de
iniciao sexual com trabalhadoras domsticas e seu contraste com o fato de que poucas
empregadas levavam o patro a juzo. Demonstra ento aspecto emprico importante de
que nas fontes consultadas, nenhum dos 19 patres acusados de crime sexual contra
empregadas foi condenado (CAULFIELD, 2000, p.296). Reforava-se a ideia, de
forma implcita, de que as mulheres mestias e negras eram permissivas sexualmente e,
acompanhando a moral do perodo, menos respeitveis do que as brancas e de classe
mdia e alta que mereciam ento a tutela da justia.
Tais aspectos do discurso e prtica jurdica elucidam a existncia de um controle
moral de mudanas comportamentais estimuladas na poca pela cultura de massas. Em
especial, a partir dos espaos que davam visibilidade s danas tidas como sensuais,
com destaque para o samba enquanto dana que se tornava representativa do nacional.
Em direo oposta a esses discursos e prticas que visavam o controle comportamental,
a esfera do lazer na capital federal com as emergentes indstrias fonogrficas,
cinematogrficas e do rdio apropriou-se da cultura popular urbana, expandindo e
modificando prticas sociais e culturais vigentes. Assim, alteravam-se os valores e
padres morais, constituindo novas formas de diverso, novos gostos musicais,
chegando a impactar at nas formas de se relacionar amorosa e sexualmente.
Illouz (2007) explora como a partir da formao de um mercado de
entretenimento nos Estados Unidos as classes privilegiadas adotaram, de forma
negociada, costumes prprios cultura popular. No caso brasileiro, difundia-se, com a
presena do rdio dentro das casas, mas tambm nos clubes, teatros e cassinos, canes
e danas que valorizavam costumes e uma tradio popular e afro-brasileira. Criavam
certos cones como a figura da mulata, vista como aquela que dominava as artes da
dana e da corporalidade, estabelecendo-se como modelo dos cdigos modernos de
sociabilidade, ao mesmo tempo em que era vista como desviante da funo maternal e
domstica exemplar da feminilidade vista pelo saber jurdico e por um pensamento
conservador que tinha sua expresso na imprensa.
Carmen Miranda desenvolveu sua carreira levando em conta a moralidade de seu
perodo, ora se vinculando mulher moderna, ora atribuindo sua ligao com a figura
da morena e da mulata e, muitas vezes, reivindicando um lugar da respeitabilidade nos
termos em que era concebida em sua poca para mulheres honestas. Ao mesmo
tempo, tornou-se um cone nacional e um novo tipo de mulher moderna nacional,

177
caracterizada por estar sintonizada com as modas ditadas pelo cinema norte-americano e
por sua vinculao com os ritmos que se reproduziam no entretenimento carioca.
Cantava sambas de forma autoral, marcada por suas grias e modo de cantar
falado, incorporando a msica popular que se fazia na ento capital nacional, j com
algumas influncias disseminadas no teatro de revista. Fenerick (2009) aborda como o
cantor era dotado de uma importncia central no processo de gravao das msicas dada
sua importncia em um iminente star system brasileira, sendo que a interpretao
pessoal deste muitas vezes alterava o produto final. Nesse quesito, Carmen Miranda era
uma personagem parte, com a iminncia da gravao eltrica foi a cantora que se
notabilizou por um cantar falado cotidiano29.
Trata-se de um elemento importante, pois como afirma Lisa Shaw: seu estilo de
interpretao cativante j sugeria a facilidade com que ela fez sua transio s telas
(2013, p. 14, traduo minha). Jos Ligiro Coelho descreve com preciso as
qualidades especficas da estrela nacional:

Desde o comeo de sua carreira no comeo da dcada de 1930,


Miranda desenvolveu um estilo vocal pessoal verdadeiramente
semelhante fala. Ela era capaz de projetar sua voz em suas
apresentaes com o suporte dos microfones de alta qualidade que
importava da Alemanha. Seu estilo contrastava com muitos de seus
contemporneos que tentavam impressionar o pblico com o volume
de suas vozes. Como ela no tinha uma abertura vocal ampla, ela
tentava um artifcio teatral de recriar uma imagem vocal elusiva para
cada palavra, transmitindo seu contedo a partir de impresses
sensrias. Enquanto cantava, ela frequentemente adicionava
exclamaes e comentrios que se vinculavam ao cantar e narrar,
ambos inseparveis da tradio africana. Ela complementava suas
canes-histrias variando com expresses faciais, movimentos de
olhos e sorrisos, inspirados pela tradio oral do samba. (COELHO,
1998, p. 69, traduo minha)

Equilibrando-se nos valores morais e negociaes que envolviam a definio de


nacionalidade, pde se estabelecer como um dolo admirado por fs de diversas origens
sociais. Nas palavras de Sevcenko, como uma marca deste novo perodo, as rdios
incentivavam primeiro criar mitos, depois penetrar e divulgar com estardalhao os

29
Sobre sua interpretao, em 1930, grava Os home implica comigo de Josu de Barros, a primeira e uma
das poucas msicas cuja letra dela, e diz:. Eles pensa que eu sou dessas garotas de arengao, mas
esto muito enganado. Comigo no violo!. A revista Phono-Arte de 30 de setembro do mesmo ano
traz uma matria que salienta: Esta ltima frase (Comigo no, violo) est dita com uma entonao
bem picante e, quem sabe, intencional.

178
detalhes mais palpitantes de suas vidas privadas. Isso estabelecia o circuito dolos-fs-
dramas-lances bombsticos-recordes de audincia como o projeto ideal (SEVCENKO,
1998b, p. 591). Aliado ao rdio, como afirma o historiador Jos Adriano Fenerick
(2009, p. 62): o ser visto, juntamente com o ser ouvido, tornam-se questes
fundamentais para aqueles que queriam galgar os degraus da fama, e os meios de
comunicao de massa levam rotineiramente tanto a imagem quanto o som (a msica)
para todo o pblico, quase exausto.
Carmen Miranda no apenas participou deste florescimento do estrelato, como
apontou enquanto figura chave lidando de maneira diferencial com o entrelaamento
das diversas mdias presentes na capital carioca, bem como valorizando sua apario no
espao pblico, inovando a partir de valores que ganhavam centralidade no perodo e
ditando comportamentos sancionados como modernos. De fato, Carmen Miranda esteve
mesmo antes de sua consagrao como cantora, muito prxima ao cinema, seja em seus
looks como em suas tentativas de participar do emergente cinema nacional. Nas
palavras de Lisa Shaw, ela posava incessantemente para fotografias em uma srie de
roupas de sua criao inspiradas em Hollywood (2013, p. 12, traduo minha).
Trs anos antes de Carmen colocar os ps em uma gravadora, ela j estampava
seu sorriso na revista Selecta, em julho de 1926, na matria Quem ser a rainha do
cinema brasileiro?, a despeito de seu nome no ter sido mencionado (CASTRO, 2005,
p. 46). Em pouco tempo, Carmen tambm teve foto publicada na revista Cinearte
candidatando-se a participar de filme que se anunciava como o mais ambicioso do
cinema brasileiro (CASTRO, 2005, p. 46).
Tendo o pleito recusado, sua trajetria no cinema s se iniciou depois de firmada
como um cartaz do rdio, na medida em que o cinema nacional em seus primrdios
tinha em seu elenco as estrelas do broadcasting nacional. A cantora atuou em Carnaval
Cantado (1932), Al, al Brasil! (1935), Estudantes (1935), Al, al, Carnava!l (1936)
e Banana da Terra (1938), filmes os quais rodaram nos cinemas brasileiros de diversas
regies que davam aos espectadores a oportunidade de ver a imagem de sua estrela em
movimento. Para alm do cinema, Carmen exibiu sua voz e performance em eventos
solenes, nos cassinos cariocas e em vrios outros ambientes.

179
Vida Domstica, 1930. A Noite Ilustrada, 1933. Cinearte, 1936.

A imagem de Carmen dirigindo seu carro emblemtica. O carro era um


smbolo do reino do consumo, clich iconogrfico do cinema hollywoodiano e ligado ao
referencial cultural norte-americano. Associado masculinidade e ao poder, o
automvel vinculava-se a valores hegemnicos da sociedade de consumo, quais sejam:
intensidade, velocidade, excitao e aventura. Tornou-se parte da reestruturao do
espao pblico e privado, sendo vinculado liberdade sexual dado que seria o cone
mais representativo das ilhas de privacidade (ILLOUZ, 1997, p. 56) que se
constituem no espao pblico, remodelando os padres de namoro, considerado na
poca uma ameaa a formas de controle tradicionais dos pais.
Foi em um dos passeios motorizados para bairros desertos com seu namorado
Mario Cunha, fascinado por carros, que Carmen Miranda teria perdido sua virgindade
segundo o bigrafo Ruy Castro (2005, p. 29). A posse de um carro alava Carmen
expresso de uma feminilidade modernizada avant-garde. Caracterstica que se
complementava com suas imagens em revistas e no cinema esbanjando beleza e
sensualidade, algo que talvez motivou seu squito de fs do sexo feminino (CASTRO,
2005).

180
Carmen Miranda e seu carro na dcada de 1930

No se trata de valores que poderiam ser incorporados por qualquer mulher, j


que facilmente deporiam contra a honestidade feminina que requeria domesticidade e
superviso parental. Carmen, como cone do rdio, ocupava um lugar privilegiado que a
possibilitava um posicionamento avant-garde em um contexto no qual desde o perodo
entre-guerras, mais e mais mulheres de projeo das classes mdia e alta rejeitavam os
limites conceituais que as excluam do espao pblico (CAULFIELD, 2000, p. 138).
Naquele perodo, ao lado de mulheres que se organizavam e lutavam e faziam lobby
para defender seus direitos, notabilizavam-se Patricia Galvo (Pagu), Tarsila do Amaral
e muitas outras que criticavam a famlia patriarcal e defendiam a liberdade sexual para
as mulheres. Alm delas, outras figurariam importantes na mudana dos cdigos de
gnero:

Muitas mulheres das classes mdia e alta estavam menos interessadas


em organizaes feministas ou em polticas radicais que em garantir
sua prpria subsistncia ou seguir os costumes e os comportamentos
da mulher moderna que elas viam nos filmes e nos anncios europeus
e norte-americanos. Qualquer que fosse sua motivao prtica ou
ideolgica, muitas mulheres das classes mdia e alta ocupavam
fisicamente reas cada vez maiores do espao pblico, juntando-se a
homens no trabalho e no lazer. (CAULFIELD, 2000, p. 139)

Enquanto a imagem pblica de Carmen incorporava tais valores modernos,


sensualidade e romance eram temas recorrentes em suas msicas. Illouz (1997)
demonstra como uma utopia romntica estruturou e impulsionou um mercado de bens
e servios de consumo. O consumo de bens e servios criava novas demandas ideais de

181
feminidade, de masculinidade e de relacionamento. Aos homens, caberia sustentar o
investimento em entretenimento e diverso, levando suas namoradas ou mulheres em
seus carros a restaurantes, cinemas, cassinos, etc. s mulheres, caberia investir em sua
aparncia, moldadas em padres ditadas pelas revistas ilustradas e pelo cinema.
Esperava-se que um romance no se bastaria por si s, o seu sucesso se tornava
dependente de investimentos no novo mercado de lazer e entretenimento, garantindo
que no se tornasse tedioso.
Carmen cantava novas formas de se vivenciar a feminilidade conectando o
popular com o moderno. Em Eu preciso me pintar (1930), das canonetas cmicas de
Desmond Gerald, versa com humor sobre as novas exigncias e expectativas em relao
ao cuidado da beleza entre as mulheres. Diante de um naufrgio de um navio, o
comandante chegou e disse "Depressa Srta., sua vida a salvar!. Fiquei indignada e
respondi assim: Espere a so Capito, Oh! que eu preciso me pintar!. Em Por causa
de voc YoY (1934), de Assis Valente, a temtica do cuidado com a beleza reaparece
voltada a um caso amoroso em linguagem popular: por causa de voc Ioi que eu
agora vou desacatar. E vou andar toda bonita, meu bem p'r todo mundo ver tudo o que
voc me d. por causa de voc que os outros morenos s olham p'r mim, parece que
querem me roubar.
Em All, All Carnaval (1935), de Herv Cordovil e Janeiro Ramos, a msica
se volta para a festa popular e as possibilidades amorosas vivenciadas a partir de um eu
lrico feminino: Dizem que Pierr se apaixonou por mim. P'r fazer inveja ao meu
querido Arlequim. Dizem que Arlequim o meu melhor fregus. Eu engano os dois
querendo os dois de uma vez. Em Espera um pouquinho (1932), de Andr Filho, a
folia vem antes do casamento: Casar agora uma dificuldade. Tenho muito medo de
passar necessidade (...) A vida curta, quero aproveitar. Porque depois, mais tarde, j
no posso mais brincar.
s novas expectativas de comportamentos de gnero e de relacionamentos que
pairavam sobre as letras das msicas, somava-se a linguagem que incorporava padres
de sociabilidade das classes populares e aspectos raciais, da qual o interlocutor do caso
amoroso o moreno ou o mulato e o pano de fundo da diverso o carnaval. em
congruncia com esses elementos, que novos padres de sensualidade so tecidos,
articulados com o feminino em algumas canes, como Sou da Pontinha (1930) de
Ary Barroso. Meu bem, eu dei, no sei em quem. Um beijinho que me fez (muito) mal

182
numa noite de carnaval (...) todos dizem que eu sou da pontinha na rua andando me
requebrando.
Em Beijo Bamba (1936), de Andr Filho, a temtica do beijo volta: Todo
beijo p'r ser bamba Tem que ser dado na boca! E o beijo dado na boca, num recanto
beira-mar. Faz uma sensao louca (e nos deixa a delirar!). Em Eu dei (1937), de
Ary Barroso, a temtica extrapola o beijo em um dilogo sexual sugestivo ao ouvinte:
CM: Eu dei... Coro: O que foi que voc deu meu bem? CM: Eu dei... Coro: Guarde um
pouco para mim tambm. No sei se voc fala por falar sem meditar. CM: No digo... e
adivinhe se capaz... At a revelao: Coro: Foi um terno e longo beijo? CM: Se foi,
se foi... Coro: Desses beijos que eu desejo? CM: Pois foi, pois foi...!.
A Pequena Notvel, cantando sempre a partir do eu lrico feminino,
apresentava-se como um ideal moderno nacional de feminilidade que se constitua via
mercado de produtos culturais como a indstria fonogrfica, o cinema e as revistas.
Dentro de um perodo no qual a msica popular adentrava-se na esfera da cultura de
massas, o referencial da linguagem de Carmen remetia mulher popular e sua forma de
falar coloquial, seu amor pelo moreno bamba e sua paixo pela folia. Assim, a cantora
se associava ao popular, vinculando-se autenticidade nacional e reforando sua
sintonia com a vida cotidiana urbana. Mas ela tambm se vinculava aos hbitos
modernos, posto que o eu lrico cuidava de sua beleza, segundo os critrios da moda,
paquerava e tomava liberdades de rejeitar o casamento pela brincadeira de carnaval.
O maior cartaz nunca foi s uma voz, era ademais uma imagem marcada pela
corporeidade30, imagem essa que, por sua vez, era carregada de elementos que se
constituam no universo simblico nacional: a sensualidade feminina, a malcia e a
modernidade. As mulheres das canes gravadas pela maior cartaz do rdio
representavam um novo tipo da mulher brasileira, morena e sensual, que embora
enfrentasse oposies, caracterizava-se por sua imerso na vida moderna e folia, com
acesso ao espao pblico e tornava-se senhora de seu destino amoroso.

30
Ruy Castro comenta o impacto contemporneo da recepo de Carmen quando ouvida pela primeira
por aquele que ajudaria a al-la a carreira de sucesso no Brasil, o compositor de Pra voc gostar de
mim: Conforme a histria j muito contada, o educado e retrado Joubert de Carvalho, ento famoso
pela cano Tutu maramb, passava pela rua Gonalves Dias quando foi chamado pelo Sr. Abreu,
gerente de A Melodia, loja de discos e partituras ao lado da Confeitaria Colombo, para ouvir um disco
que acabara de sair. O disco era Triste jandaia, com a desconhecida Carmen Miranda. Segundo Joubert,
a audio lhe provocou uma sensao indita: a de estar vendo a cantora, como se ela estivesse dentro da
vitrola (CASTRO, 2004, p. 51).

183
Embora suas canes enfatizassem uma feminilidade supostamente livre e
democrtica, j que vivenciada a partir de um eu lrico feminino da morena e da mulata,
na prtica como demonstrou Caulfield (2000) percebe-se que se trata de uma
experincia histrica privilegiada de se viver a feminilidade como o fez Carmen, a partir
de seu prestgio. No obstante, sua carreira foi marcada por certas correspondncias na
vida pblica a uma moralidade que prescreviam cdigos de gnero. Carmen Miranda
no frequentava ento os locais de sociabilidade masculina dos sambistas, como Caf
Nice e o Caf do Papagaio, antes era procurada em sua casa por sambistas que
buscavam legitimar sua carreira com a cantora amplamente reconhecida.
Carmen era acompanhada de seu pai em suas apresentaes, muitas vezes at em
viagens pelo pas. Ela tambm no se dispunha a participar de peas no teatro de revista.
Nas palavras do bigrafo Abel Cardoso Junior: nessa poca, Carmen ainda tinha
preconceitos contra o teatro e achava que no devia descer do seu pedestal radiofnico e
representar cenas de comdia em revistas (1978, p. 68).
Na anlise de Davis (2009, p. 124) ela aprendeu como separar suas
performances de vida privada de sua persona pblica. Tanto Carmen quanto sua irm
Aurora, tambm estrela do rdio, no frequentavam a vida bomia salvo em algumas
situaes quando acompanhadas em um momento no qual mulheres que se envolviam
com carreira musical poderiam ser associadas a prostitutas. Afastar-se da boemia e
reiterar sua vinculao com a famlia eram estratgias para se afirmar como garota
descente.
Um contraste entre Carmen e Araci Cortes, considerada a rainha do teatro de
revista, faz-se interessante para se compreender as perspectivas e limitaes impostas s
carreiras de ambas. Como Carmen, mas antes dela, Araci incorporou signos de
brasilidade associados ao universo simblico nacional que se difundia por meio da
cultura de massas: era uma mulata vista como o tipo da mulher nacional no teatro. A
esttica do teatro de revista era marcada pela presena de favelas e de personagens
como a mulata e o malandro, as narrativas eram cmicas, cheias de duplos sentidos e
insinuaes sexuais, alm de conter crticas morais e polticas (WILLIAMS, 2006, p.
11). Pode-se dizer que Araci Cortes adiantou muitas coisas que ficariam como marcas
de Carmen Miranda, como a forma de cantar cheia de humor e sensualidade, as
personagens que interpretou como Boneca de Piche, Banana da Terra e a Baiana,
salientando o fato de que em seu funeral estava vestida de baiana.

184
Cabe a indagao de por que o sucesso de Carmen foi muito mais amplo do que
o de Araci, com abertura para ela em casas de entretenimento de elite e viagem
internacional. Parte disso pode ser explicado pela construo de suas personas pblicas
relacionadas com expectativas de gnero e raa. Araci Cortes era reconhecidamente
uma mulata, o que garantia uma aceitao de parte da populao, mas uma possvel
rejeio de outros. Ela tambm fez sua carreira nos teatros populares da Praa
Tiradentes, bem como transgrediu a distncia requerida s mulheres da vida noturna e
da esfera pblica e mais do que isso, exps-se publicamente seminua.
Carmen Miranda, diferentemente de Araci, no comeou sua carreira no teatro
de revista e em seguida migrou para o rdio. Antes comeou sua vida profissional no
rdio, descoberta na penso familiar dirigida por sua me na regio central do Arco
do Telles no Rio de Janeiro pelo compositor Josu de Barros. Alm dele, Carmen
manteve laos com muitos compositores populares, como Pixinguinha, Donga e Joo da
Bahiana que tambm frequentavam a penso de seus pais (JUNIOR, 1978, p. 47). Sua
branquitude a possibilitou incorporar, sem uma resistncia que obstaculizasse sua
carreira, elementos relacionados cultura popular e afro-brasileira difundidos no
mercado de entretenimento carioca e encontrar maior recepo em ambientes de elite.
Muito alm de Araci, Carmen levou tais elementos ao radio e se diferenciou das
cantoras de rdio anteriores, com feio lrica, colocando nfase na zombaria,
sensualidade e brincadeira. Assim, Carmen era vista como algum que representava os
valores populares que com ela se expandiam para alm dos teatros populares da Praa
Tiradentes:

[...] as performances de Carmen Miranda eram metforas do


divertimento da classe popular e recentemente alcanaram
respeitabilidade. O pblico poderia ver e ouvir as classes populares
em sua voz, linguagem e maneirismos quando ela performava gnero,
raa e nao. Suas performances eram tambm celebraes da esttica
e estilo popular, particularmente nos movimentos de seu corpo e sua
apresentao e atitude geral. (DAVIS, 2009, p. 124, traduo minha)

Carmen conseguira fazer tudo isso, sendo ao mesmo tempo considerada estrela
do rdio, em sintonia com a moda difundida por Hollywood, a qual incorporava
criativamente, vestindo terninhos imortalizados por Marlene Dietrich no cinema norte-
americano. Criava uma moda prpria, ao inventar seus sapatos plataformas. Em um
processo de mo dupla: incorporava elementos da cultura de massas dos Estados

185
Unidos, dando um tom nacional e incorporava os elementos populares, sofisticando-os a
partir das influncias estrangeiras.
Com seu sucesso, era cada vez mais aceita em cassinos e espaos de
entretenimento de elite, aprendendo a manejar signos e performances para distintas
plateias, tornando-se o que Ana Rita Mendona chamou de um primoroso equilbrio de
opostos, correspondendo a expectativas de pblicos distintos, antes conflitantes e que
comeavam a adquirir feies compartilhadas. Neste sentido, compreende-se como foi
um cone importante durante o governo Vargas, que buscava exatamente uma
integrao nacional para alm das divises sociais e raciais da sociedade brasileira e
encontrou no samba, mas particularmente na figura de Carmen, uma representao
sntese da harmonia racial que caracterizaria a singularidade nacional.
Cantora de sambas no rdio, ajudou a difundir a cultura popular urbana que se
expandia no Rio de Janeiro e adentrava nos espaos de classe mdia, tornando certos
valores e comportamentos modelos a serem incorporados como nacionais. Carmen
Miranda esbanjava sensualidade em suas interpretaes maliciosas, no dizer da poca.
Indaga seu bigrafo Ruy Castro Carmen Miranda s vezes se dizia sambista de favela
e alegava ter aprendido a rebolar com as mulatas dos morros. Mas teria um dia subido
a algum? (CASTRO, 2005, p. 92). A ida concreta de Carmen importa menos do que os
significados simblicos para estas questes que floresciam.
Carmen cantou em seus sambas e incorporou em suas interpretaes a morena
que sofre de amor pelo mulato bamba, mas que no deixa de esbanjar sensualidade e,
com sua ginga, arranjar meios de esquecer seus sofrimentos na folia, ou adiar o
casamento por conta dela. A cantora morava em seu incio de carreira em regio central,
prxima a Lapa onde viveu parte de sua juventude, frequentando um ambiente
caracterizado por intensos intercmbios culturais que devam margem a uma
sociabilidade que unia cultura popular e crculos intelectuais:

Bairro bomio, a Lapa concentrava vrios cabars, sales,


restaurantes, livrarias, cafs e botequins. Centro de um meretrcio todo
especial, a Lapa era a bomia artstica de literatos e msicos, artistas
plsticos e jornalistas que, junto com o ambiente geral do lugar
(igrejas, Arcos, velhos sobrados etc.), os tipos populares (meninos de
rua, malandros, macumbeiros etc.) e os artistas oriundos das camadas
baixas da populao, definem um panorama de realidades e espaos
mesclados. (GARDEL apud FENERICK, 2009, p. 33)

186
Ambiente que garantiu a Carmen que numa poca em que se exigia das moas
um recato de porcelana, inclusive lingustico, ela trouxera da Lapa um farto repertrio
de gria (CASTRO, 2005, p. 21), visivelmente presente em suas apresentaes,
entrevistas e muitas vezes inclusas nas letras das msicas que gravara. Sua carreira de
sucesso tributria desse contexto e sua projeo dependeu de um talento individual ao
incorporar cdigos e linguagens que marcariam sua poca. possvel pensar o
extraordinrio sucesso de Carmen, observando a alcunha que recebera de cantora do
It31, denotando um carisma especial no olhar de seus contemporneos, destacando-a
dos demais. Aspecto que estava relacionado a uma trajetria da cantora que se embebia
de um caldo de cultura popular que permeava a moderna sociabilidade carioca:

Carmen tinha a interpretao, a bossa da cantora de rua um talento


para enxergar nas entrelinhas das frases, tomar liberdades com a
melodia e surpreender o ouvinte com seus achados. No precisava ser
vista para agradar embora quando isso acontecesse, nas fotos e nas
apresentaes em pblico, sua beleza e vivacidade e o fato de cantar
sorrindo pudessem torn-la muito popular. (CASTRO, 2005, p. 50)

A passagem de Carmen pela Lapa era marcada por restries, j que se tratava
um espao de sociabilidade masculino, de lazer ertico e prostituio, onde os homens
podiam satisfazer seus anseios por camaradagem ou convvio masculino, buscando a
sexualidade transgressora fora da famlia sem ameaar o controle da sexualidade
feminina dentro dela (CAULFIELD, 2000, p. 138). Neste sentido, trata-se de um
espao marcado pelo afastamento das mulheres honestas.

A fama da Lapa (...) derivava de seus malandros de terno branco, de


suas mulatas e do samba tudo aquilo que mais tarde se tornariam
cones da cultura popular brasileira. Na Lapa, os smbolos do erotismo
europeu misturavam-se com o espao para a transgresso moral
tipicamente carioca, no qual os homens das classes mdia e mdia
alta, incluindo muitos intelectuais, artistas, jornalistas e polticos
importantes da cidade escapavam do confinamento da vida familiar
burguesa. O bairro representava a identidade sensual do Rio de
Janeiro para os homens que se reuniam para beber, comer, ouvir

31
O It era uma expresso hollywoodiana atribuda atriz Clara Bow pela escritora Elinor Glyn; uma
expresso que denotava algo que algum possua, como um carisma especial, que a diferenciava de outras
pessoas. No Brasil, dada a originalidade de Carmen no seu modo de cantar, interpretar e se apresentar em
pblico, passou a ser considerada a cantora do It, como aparecia em jornais e revistas que a descreviam.
A expresso denotava como se relacionava a valorizao de artistas nacionais a partir de referncias ao
cinema norte-americano.

187
samba, conviver com malandros e se divertir em companhia das
garonetes e prostitutas. (CAULFIELD, 2000, p. 136)

Carmen Miranda, apesar de ex-moradora, certamente no participava da boemia


da Lapa, mas soube reunir os cdigos culturais que pairavam no ar da irradiante
capital brasileira, nos termos de Nicolau Sevcenko, e que se destacavam no ambiente
cultural da Lapa. O mercado fonogrfico e o rdio no perodo buscavam reproduzir o
que era vendvel no contexto da capital e acabaram por definir a feio de uma msica
nacional em seu repertrio. A gravadora Victor contava com a participao indita de
um msico brasileiro negro para arranjos e regncia, com sua formao musical
prxima s produes populares. Trata-se de Pixinguinha que tambm atuava como
msico e compositor e com quem Carmen tinha proximidade.
Em 1929, Carmen assinou contrato com a RCA Victor, quando a Odeon j tinha
como maior cartaz, o cantor Francisco Alves. Em entrevista para O Pas, em 22 de
junho de 1930, Carmen perguntada sobre o seu amor ao tango, ela responde que
embora aprecie o ritmo argentino, seu pblico poderia no gostar, seria ingratido
grav-los (JUNIOR, 1978, p. 55-58). Em 1930, A Victor estimou a venda de Ta ou
Pra voc gostar de mim em 35 mil discos somente no primeiro ano, algo
incomparvel s estimativas prvias na vendagem de disco. Enquanto a Victor
explorava a msica nacional, Carmen a transformou na maior companhia de gravao
do perodo (COELHO, 1998, P. 43).
Em agosto de 1933, assinou contrato com a Rdio Mayrink Veiga, fato indito
que demarcou o incio da profissionalizao no rdio que antes trabalhava com o
pagamento de cachs. Ao lado disto, apresentava-se em clubes, teatros, cinemas e
festivais, como o de 19 de junho de 1930, com o nome de Festival Carmen Miranda,
com vrios artistas lotando o Teatro Lrico. Carmen ento fazia suas performances de
palco serem conhecidas na capital (JUNIOR, 1978, p. 84-87).
Carmen se transformava em cone nacional tambm a partir da relao que se
criava com o pblico, basicamente restrito capital federal, dos palcos. Em 23 de
fevereiro de 1930, o jornal O Pas j defina um aspecto marcante em sua trajetria: a
simpatia comunicante de Carmen Miranda (JUNIOR, 1978, p. 292), ou a facilidade
com que criava empatia com a audincia. O mesmo jornal, em 1 de junho de 1930,
salienta: Carmen uma estrela interessante e que tem o mgico poder de conquistar o
auditrio, mal inicia o disco a reproduo de sua maviosa voz, plena de vida e de calor

188
(JUNIOR, 1978, p. 297). A partir destes espaos a cantora brasileira passa a divulgar
uma forma ento valorizada de identidade nacional por meio de suas interpretaes.
Com forte contedo nacional pairando sobre a produo de cultura de massas na
capital, sua trajetria passou a moldar as representaes de brasilidade e, em especial,
de um smbolo fundamental: a morena, o tipo da brasileira.

A uma coisa interessante, disse Carmen ao reprter. Todos que me


conhecem pensam que sou brasileira, nascida no Rio. Como se v, sou
morena e tenho o verdadeiro tipo da brasileira. Mas sou filha de
Portugal. Nasci em Marco de Canavezes e vim para o Brasil com um
ano de idade [na verdade menos]. Mas meu corao brasileiro e, se
assim no fosse, eu no compreenderia to bem a msica desta
maravilhosa e encantadora terra. (CASTRO, 2005, p. 63)

Carmen assim responde em entrevista a Magalhes Jr. na revista Vida Domstica


de julho de 1930 quando perguntada se nasceu aqui mesmo, no Rio. O acordo de
Carmen com a gravadora Victor de 1930 previa que ela no revelasse sua origem
portuguesa, visando o mercado que se baseava na ideia de que era importante criar uma
estrela nacional. Ruy Castro (2005) diz que Randoval Montenegro era um compositor
pau para toda obra do cast da Victor e comps a msica Eu Gosto da Minha Terra a
pedido da gravadora para reafirmar a nacionalidade de sua cantora.
Em tempos de forte antilusitanismo, declarar-se portuguesa poderia ser
contraproducente carreira de Carmen Miranda. O contemporneo Orestes Barbosa, em
seu livro Samba (1933), fala de um choque e decepo na revelao do local de
nascena por Carmen Miranda. Tais situaes atestam a formao de um mercado de
cultura de massas que buscava se caracterizar como singularmente nacional. Dito isso,
Carmen Miranda buscava salientar seu enquadramento com o ideal de uma estrela
nacional, o que de outro lado, considerando seu destaque, acabava por influenciar uma
nova maneira de se conceber a mulher nacional, vinculada ao samba.
Na entrevista citada, a nova cantora que embalava as multides na capital
carioca com a marchinha carnavalesca Pra voc gostar de mim exortava suas
qualidades que definiam sua nao do corao: sua morenidade tipicamente brasileira e
a musicalidade prpria a uma terra exuberante em beleza. No foi o bastante. Em
seguida, gravou o samba de Randoval Montenegro Eu Gosto da Minha Terra como
que para provar que sua real nacionalidade pode ser percebida no seu olhar, no seu
danar e no seu feitio de brasileira.

189
Deste Brasil to formoso eu filha sou, vivo feliz
Tenho orgulho da raa, da gente pura do meu pas
Sou brasileira reparem, no meu olhar, que ele diz
E o meu sambar denuncia que eu filha sou deste pas

Sou brasileira, tenho feitio


Gosto do samba, nasci p'r isso
O "fox-trot" no se compara
com o nosso samba, que coisa rara
Eu sei dizer como ningum
toda a beleza que o samba tem
Sou brasileira, vivo feliz
Gosto das coisas do meu pas.

Carmen Miranda atualizava as narrativas da mulher brasileira, a mulata que tem


feitio e se transforma progressivamente, com passagens anteriores pelo teatro de
revista, em cone nacional e do samba. A cantora do rdio, com sua habilidade peculiar
de incorporar os signos culturais relevantes de seu tempo, representava a morena
inventada pela indstria fonogrfica, rdio e esfera do entretenimento: acrescentando sal
e canela a sua origem e aparncia branca, dava materialidade definio do tipo
feminino nacional.
Segundo Laura Moutinho (2004), a mulata ocupa um lugar central nas
narrativas fundacionais da nao, articulada com o homem branco32. Por meio deste
casal, funda-se uma nao mestia e tendente ao branqueamento. Nestas representaes
frequente a classificao do homem branco como civilizador e da mulher mulata como
sensualizada. A figura da mulata perpassa a obra de autores que pensam a
especificidade da nao brasileira, como Nina Rodrigues, Paulo Prado, Gilberto Freyre
e Srgio Buarque de Holanda, para os quais ela definida pelo sexo, pela sensualidade
e pelo desejo infrene seja para ameaar a nao, seja para constitu-la (MOUTINHO,
2004, p. 345). Na literatura brasileira do final do sculo XIX, a personagem Rita Baiana
j ganhava as pginas do romance O Cortio de Alusio de Azevedo, representando a
mulata sensual e ligada dana e msica. O mesmo autor, em parceira com seu irmo

32
Nas palavras da autora: na mistura entre raas os elementos em questo so dispostos de forma
hierrquica. No se trata, portanto, de uma mistura entre elementos equitativos e eqidistantes. O
mestio sempre guardar algo das raas que o formaram seja negativa ou positivamente. Acredito
que na elaborao da noo de mestiagem, a concepo e o peso relativo das raas consideradas, assim
como as hierarquias entre os sexos so determinantes na construo final desta idia algo, portanto,
nunca percebido como total fuso de seus elementos (MOUTINHO, 2004, p. 54-55).

190
Arthur Azevedo, foi responsvel por inserir a mulata sempre interpretada por uma
atriz branca nos teatros de revista.
A morena nacional de Carmen permitia agrupar em uma s pessoa a cultura
popular e a branquitude coincidindo com as promessas de unidade nacional e harmonia
racial vigentes na esfera poltica daquele contexto. No obstante, o termo morena
repleto de ambiguidades tambm coincide com uma ideia de estar sintonizado com a
modernidade, na medida em que est ligada a um espao especial na construo de
boom do lazer heterossexual cosmopolita, bem mais receptivo presena das
mulheres do que a Lapa dos anos anteriores: a morenidade, neste sentido, est ligada ao
novo hbito de se bronzear na praia.

As idas praia e os mais, que poucos anos antes teriam causado um


escndalo, tornaram-se rotina nas dcadas de 1920 e 1930. A praia
tornava evidente que as noes modernas sobre o lazer pblico
saudvel estavam substituindo o isolamento tradicional das mulheres
honestas, da mesma forma como as crticas sobre a moralidade dbia
da famlia patriarcal tradicional comeavam a ficar comuns.
(CAULFIELD, 2000, p. 140)

Acessvel a mulheres das classes mdias, os espaos de sociabilidade das praias


cariocas que se formaram nas dcadas de vinte e trinta j eram racializados e
demarcados por posies de classe. O acesso a praias com amplas faixas de areia, para o
novo espao de sociabilidade, era restrito nos anos 30 a certas praias como Copacabana
e Ipanema. As dificuldades de utilizao dessas praias por populaes pobres era
notria pela distncia, custos de transporte e falta de acesso a locais para vestir as
roupas de banho (BARICKMAN, 2011).
B. J. Barickman (2011) demonstra como neste perodo passou-se a valorizar na
sociedade carioca a morenidade por meio do bronzeamento, invertendo o modo de
distino social anterior caracterizado pela valorizao da alvura nas elites, demandando
ento s classes sociais altas despenderem tempo e participarem da nova sociabilidade
das praias cariocas. O autor explora ainda que alm de distino social, a prtica de
pegar um bronzeado, que se tornara uma tendncia mundial, ganhava no contexto
nacional um sentido intrinsecamente vinculado ao ideal de nao.
O ideal de morenidade se estabeleceu em um perodo de transformao da esfera
pblica, no qual se difunde um ethos hedonista e individualista que passa a demandar
novos comportamentos e formas de apresentao em pblico consideradas modernas,

191
demarcando mecanismos de distino social erguidos a partir das fronteiras raciais e de
classe social que exigiam tempo e dinheiro investido em produtos, servios ou prticas
culturais e esportivas.
A morenidade uma designao marcada pela polissemia e ambiguidade. Diz-se
que cicrano moreno quando no se quer acentuar sua negritude, refere-se tambm a
algum branco de cabelos escuros e por fim, a partir deste momento histrico, usa-se o
termo quando se quer enfatizar a brasilidade de algum. No obstante, tornar-se
moreno, ou morena, passou a ser, naquele perodo, a marca da nacionalidade brasileira,
sendo que se estabeleciam mecanismos de diferenciao entre uma morenidade
natural e uma adquirida pelos banhos de sol.
Tal diferenciao j era perceptvel na poca de Carmen, quando uma das
formas de diferenciao do perodo entre morenidade natural (mulata) e adquirida
pelos banhos de sol era o tipo de cabelo. A msica de Lamartine Babo O teu cabelo
no nega gravada em 1932 corrobora com a ideia de que algo que poderia ser
confundido pela cor da pele, passava a ser diferenciado por outras caractersticas
fenotpicas. A despeito da diferenciao no nvel das relaes sociais que demarcaram
processos de racializao, no mbito simblico nacional difunde-se o moreno como um
tipo homogneo e genuinamente brasileiro, alcanvel seja pela ascendncia racial ou
pelo bronzeamento, corroborando a ideia de longa data de que a nacionalidade brasileira
se constitui por sua localizao nos trpicos e pela miscigenao33.
Barickman (2011) ainda explora como a caracterizao de morenidade quando
feminina tinha uma carga semntica distinta. Dentro de um histrico colonial e
escravista que reservou s mulheres negras e mestias nas narrativas nacionais a
qualidade de exacerbadamente sensuais, a morenidade quando feminina tomou
emprestado uma pontinha de sensualidade. neste contexto que surge a nova
personagem nacional, dialogando e se diferenciando da mulata, a morena bronzeada
uniu distino social de sua origem branca com o sex appeal da mulata. A partir de
ento se associava o bronzeamento com a ideia de uma mulher verdadeiramente
brasileira, o que tornou a morena uma interlocutora privilegiada (e desejada) nas letras
do que se convencionou chamar de msica popular brasileira.

33
Para uma discusso sobre as origens de uma ideia de identidade nacional vinculada a explicaes
raciais e climticas no sculo XIX, consulte Ventura, 1993.

192
Carmen Miranda, ao tornar-se cone da msica popular nacional, no podia se
apresentar de forma melhor do que como uma morena, o tipo da brasileira. A
morenidade, no seu caso, estava vinculada branquitude e seu acesso s praias,
constituindo mais uma forma de vinculao com os modernos meios de sociabilidade
em voga. Fazia-se presente nas distintas praias cariocas, como frequentava espaos
pblicos marcados por uma esfera de consumo de bens e servios culturais nos quais a
ideia de morena como tipo nacional passou a ser explorada. A ambiguidade do termo
morena permitia ironicamente que uma forma de distino social se apresentasse como
um ideal democrtico caracterizador da mulher nacional. Como se nota, a morenidade
de Carmen se constitua de forma no problemtica com sua tez muito clara. Ao
contrrio, sua brancura fazia de sua morenidade um aspecto mais valorizado.

Fotos de Carmen Miranda em praias do Rio de Janeiro durante a dcada de 30.

A trajetria de Carmen Miranda tributria da abertura s mulheres de novos


espaos sociais. Alm das praias, salienta-se a importncia de sua insero no mercado
de trabalho quando desde o comeo do sculo XX muitas jovens de boa aparncia
(um eufemismo para cor branca) da classe trabalhadora podiam conseguir emprego
como vendedoras nas confeces e nas novas lojas, que atendiam principalmente s
consumidoras mais ricas (CAULFIELD, 2000, p. 121). (JUNIOR, 1978, p. 36).
Carmen trabalhara na loja de roupas e gravatas A Principal e, em seguida, na loja de
modas e chapus La Femme Chic, onde costumava cantar para as clientes e colegas
de trabalho e onde aperfeioou seu tato para a moda, adquirindo talento para a costura,
algo que foi fundamental no auge de sua carreira no Brasil e, em especial, em sua
carreira internacional.

193
O gosto de Miranda para a moda e sua preocupao a respeito de quo
bom estava em uma roupa era evidente mesmo antes de ela comear
sua carreira. Em suas primeiras fotos fcil ver sua preocupao com
qual pose e como explorar os recursos visuais de suas vestimentas.
Suas roupas tambm no refletiam mais sua famlia de classe mdia
baixa, mas deu a ela a aparncia de uma garota de famlia rica.
Ela tambm demonstrou seu interesse na moda quando escolheu seus
primeiros empregos. Aos dezesseis, enquanto trabalhava como
atendente em uma loja cara de gravadas, Miranda encontrou seu
primeiro amor, Mrio da Cunha, um renomado atleta que participou
em duas olimpadas e era membro das classes altas cariocas.
O segundo emprego de Miranda foi em uma loja de chapus chamada
La Femme Chic. L ela aprendeu como elaborar e fazer todos estilos
de chapus femininos, to bem como vend-los. Nesse emprego, ela
aprendeu como explorar todas as possibilidades de criao de chapu:
materiais, texturas, cores, tamanhos. (COELHO, 1998, p. 40, traduo
minha)

Com tais caractersticas, aliadas a seu prestgio, passou a representar uma


brasilidade moderna, vinculada cultura popular e a uma nova figura da mulher
nacional, respeitando certos elementos dos cdigos de gnero de seu tempo. A insero
nestes padres visuais do perodo a adequavam ao modelo moderno de branquitude, que
a possibilitou levar elementos populares a apresentaes para diversos pblicos: de
carnavais a cassinos de elite, ampliando a aceitao dos novos signos da nao que
alavam a cultura popular urbana a nacional. O baterista Joo de Freitas Ferreira,
conhecido como Jonjoca, explica como ela conseguia conectar um carisma s classes
populares, representando uma simplicidade valorizada, ao mesmo tempo que no
deixava de apresentar sua sofisticao, dependendo dos contextos em que se inseria:

aquela que eu via de tarde, na penso, cum um vestidinho simples, via,


num estdio de rdio ou num palco, com um vestido elegante e uns
sapatos espetaculares, com uma maquillage perfeita e um turbante
vistoso, com gestos artsticos e andar importante. Mas, se na ribalta
era assim, por dentro era a mesma alma, pura, boa, sadia. (JUNIOR,
1978, p. 325)

O talento de Carmen ia muito alm do que aspectos tcnicos vocais de uma


cantora, podendo-se antever j na carreira brasileira sua habilidade em agrupar signos e
equilibrar tenses. Muito mais do que um reflexo de um determinado contexto scio-
poltico, trata-se de uma elaborao artstica sofisticada, presente em seu agenciamento.
Ela captava e incorporava o que se constitua como nacional entre o moderno e o
popular, na complexidade que isto significava, conforme bem descrito por Nicolau
Sevcenko, de modo a sintetizar o que foi aqui apresentado:

194
Segundo seus prprios depoimentos, desde pequena ela era
extremamente fascinada por cinema e s pensava em ser estrela (...).
Com seu talento e esforo pessoal, assistindo a filmes, estudando
fotografias, pesquisando modas, ouvindo discos, ela se tornou mestra
em todo tipo de linguagem no verbal: risos, olhares, gestos, poses,
movimentao corporal, coreografias, maquiagem, penteados, roupas,
chapus, adereos, saltos altos, gritos, gemidos, sussurros, canto e
encanto. Quando chegou aos grandes veculos de comunicao j era
praticamente uma estrela completa. No s entendeu a natureza da
cultura moderna, mas usava as tecnologias para o mximo proveito de
suas qualidades expressivas. (1998b, p. 615)

A figura da mulher nacional era anterior a Carmen, j presente nas peas do


teatro de revista, sempre em torno da mulata, em que as negociaes raciais tomavam
corpo. Antonio Herculano Lopes (2009) demonstra como se passou de uma
interpretao da mulata por atrizes brancas como Pepa Ruiz e Ana Maranezzi (ambas
estrangeiras) para as mestias Jlia Ribeiro, Otlia Amorim e Araci Crtes. A ideia de
uma quintessncia da mulher brasileira era fincada na figura da mulata, uma
possibilidade de apresentar um tipo que denotasse a harmonia racial e ao mesmo tempo
recuperasse as narrativas coloniais que sensualizavam a mulher escravizada. Trata-se de
peas que se passavam em torno da Praa Tiradentes, caracterizadas pela frequncia de
camadas mais populares da populao, por conta dos ingressos considerados baratos.
Desde a Primeira Guerra, tais teatros passaram de uma influncia lusfona, por
conta da vinda de companhias portuguesas, a um abrasileiramento. Por conseguinte,
essas manifestaes teatrais estiveram ligadas msica popular, persistente influncia
da cultura francesa, com seus toques de sensualizao, e ao cinema norte-americano,
incorporados dentro de uma esttica prpria ao humor escrachado e duplos sentidos
carnavalescos da cultura popular urbana (VENEZIANO, 1991). A associao ao
popular e a falta de respeito moralidade da poca marcavam esses ambientes que, por
sua vez, recebiam crticas conservadoras. As expresses culturais que ganhavam
materialidade nos teatros populares encontravam barreiras que impediam sua
apresentao em espaos com pblicos mais elitizados algo estendido s chanchadas
do cinema por sua familiaridade esttica.
Segundo Ruy Castro (2005, p. 58), Carmen Miranda apenas se apresentou uma
vez no Teatro de Revista, em 1930 na revista Vai dar o que falar, quando j era estrela
do rdio, em uma apresentao marcada por um cenrio fortemente caracterizado pela
expresso do popular, de uma zona de meretrcio, com presena de personagens

195
prostitutas e malandros, alm de uma forte crtica ao prefeito de ento. O espetculo
acabou sob as vaias da plateia. No obstante, conforme angariou fama e
reconhecimento, Carmen acabou ocupando espaos cada vez mais elitizados, como os
cassinos onde se apresentou no Rio de Janeiro e em outras localidades. Os cassinos

[...] representavam os mais glamorosos e assim os mais restritivos em termos


de classe e raa. Mesmo assim, os cassinos no eram totalmente fechados
aos negros e apresentavam um nmero de artistas morenos. Os palcos
musicais dos cassinos eram bem financiados j que os cassinos costumam ter
um grupo estvel de investidores que os frequentavam para jogar. Eles eram
tambm os mais internacionais dos fruns, chamativos e acessveis para
turistas nacionais e internacionais, bem como para cariocas ricos. (DAVIS,
2009, p. 56, traduo minha)

O auge de sua carreira nacional foi marcado por um contrato entre Carmen e o
Cassino da Urca, comandado pelo empresrio Joaquim Rolla. Neste ambiente, Carmen
apresentava os sons e as performances que atualizavam as representaes nacionais e a
figura da mulher nacional j difundida nos teatros de revista, mas a outro pblico e a
partir de sua incorporao estilizada da personagem da baiana.
Devido ao sucesso de sua personagem no filme Banana da Terra de 1938,
Carmen a levou para os palcos e transformou-se de uma cantora a uma entertainer para
o pblico nacional e internacional que frequentava a Urca. Foi em uma das
apresentaes de sua baiana que foi descoberta por Lee Shubert e, de imediato,
passaram-se as negociaes para contrat-la para atuar na Broadway. Do cassino de
elite, a personagem negra da baiana, estilizada e branqueada por Carmen, tornar-se-ia
um cone nacional com sua viagem aos Estados Unidos.

4.2 A Baiana de Carmen Miranda: autenticidade nacional e a mulata sensual


revisitada

Tem graa como ningum


Como ela requebra bem!
Quando voc se requebrar
Caia por cima de mim
Caia por cima de mim
(Dorival Caymmi, 1938)

Os olhares fixos dos homens sentados em posio inferior a Carmen Miranda em


Banana da Terra complementam a letra da baiana que tem graa, requebra como

196
ningum e que convidada a cair por cima de algum. Trata-se do nmero musical do
filme Banana da Terra, lanado em 1939 pela Sonofilms de Wallace Downey. Como de
costume, o cinema nacional era um meio de divulgao dos cartazes do rdio e da festa
popular por excelncia: o carnaval. Aliado a ele, havia uma nova personagem que
chamara ateno da plateia e que constituiria uma histria prpria no mundo da cultura
de massas: trata-se de baiana estilizada de Carmen Miranda.
Ary Barroso era o compositor para os nmeros de Carmen que interpretaria as
msicas Boneca de Pixe, pintada de negra em um cenrio que remeteria a uma
senzala, e Na Baixa do Sapateiro, com um cenrio em uma rua enluarada e com
coqueiros. No entanto, o compositor no concordou com o preo oferecido por Downey,
obrigando o diretor a procurar por outras msicas em substituio que correspondessem
ao cenrio j montado. As msicas escolhidas foram Pirolito de Braguinha e Alberto
Ribeiro e O que que a baiana tem? do baiano novato e recm conhecido no mercado
carioca, Dorival Caymmi.
Caymmi estava no Rio de Janeiro para tentar carreira desde abril do ano anterior,
buscando se profissionalizar como compositor e msico. Para o filme, foi descoberto
por Alberto Ribeiro, Mrio Lago e Almirante quando assistiam outra apresentao na
Rdio Transmissora e por acaso ouviram com admirao a cano depois utilizada no
filme de Downey. O que que a baiana tem?, gravada tambm em disco na Odeon no
ano seguinte na parceria entre Caymmi e Carmen, foi o nmero e msica que mais
impactou no mercado carioca naquele ano. Caymmi trazia para o samba que se
nacionalizava a figura da baiana de partido alto, prpria s festividades de Salvador, de
onde vinha. Mas por que o interesse nessa personagem?
Trata-se, na verdade, de uma personagem j antiga que mobilizava os olhares da
capital federal. Como atestam as pinturas de Jean-Baptiste Debret, dentre outros
registros, ao menos desde o sculo XIX, as baianas faziam parte do retrato das ruas do
Rio de Janeiro, vendendo seus quitutes. Aliado a isso, a baiana tinha seu significado
simblico relacionado a um Brasil inventado como autntico, reservatrio social e
cultural que deu origem a expresso mais genuna de seu povo: o samba. Evento curioso
e pouco conhecido que antecede ao primeiro samba reconhecido como tal Pelo
Telefone, com toda a polmica sobre sua autoria, um outro baseado na figura da
baiana. Trata-se da gravao de Alfredo Carlos Brcio de Em casa de baiana, em
1913, reiterando a importncia da personagem, bem como de sua casa (MOURA, 1995).

197
Como j abordei no primeiro captulo, o grupo dos baianos estava radicado no
Rio de Janeiro e organizado social e culturalmente desde as primeiras dcadas do sculo
XX. Os homens, excludos do mercado de trabalho formal que se consolidava na capital
que se industrializava e se modernizava, encontravam trabalhos pesados como
estivadores no porto ou provisrios, sem segurana e proteo trabalhista, tais como
pedreiros, carpinteiros, pintores, marceneiros, etc. Da zona porturia, surgiram as
primeiras organizaes de trabalhadores, sendo boa parte composta por negros. Mas
outro tipo de liderana surgiu, ocupando os espaos pblicos: mulheres que trabalhavam
nos mbitos privados, os cortios, como lavadeiras, quituteiras, ou saam dele para
servios domsticos e comrcio. Dentre elas, as baianas desempenhavam um papel de
destaque em uma esfera pblica especfica34.
A histria das expresses culturais afro-brasileiras no Rio de Janeiro tributria
de muitas das baianas, dentre as quais citam-se tia Ciata, tia Bebiana, tia Perptua
e tia Veridiana. Hilria Batista de Almeida, tia Ciata, considerada a mais
influente, tendo em sua casa um espao fundamental de criao do samba, antes
entendido como uma produo comunal que abrigava festas a cerimoniais religiosos, na
mesma reunio (FENERICK, 2005). O carnaval tambm gozava de vnculo com a
religiosidade, como afirma Rachel Soihet sobre os momentos que antecediam os
ranchos e a importncia da tia Bibiana e outras baianas desde o princpio do sculo:

[...] estavam, de tal forma, ligados s razes originrias que ainda no se


dissociavam do elemento religioso. Assim, os desfiles presididos pela tia
eram feitos diante dos prespios. Essa reverncia figura da tia
permanece, mesmo mais tarde, quando os ranchos ganham o espao das ruas
e perdem a conotao religiosa. Pediam-se proteo e beno s tias antes
do incio da folia, e esse compromisso era to srio que, se os ranchos no o
cumprissem risca, eram desconsiderados. (SOIHET, 2008, p. 114-115)

Como afirma Moura, os principais candombls desde a Bahia eram chefiados


por mulheres, mantenedoras das festas realizadas em homenagem aos santos que

34
O depoimento de dona Carmen, tia baiana, d pistas sobre a importncia econmica e social das
mulheres que preenchiam um vazio deixado pela falta de espao aos homens negros no mercado: Quem
trabalhava mais mesmo era portugus, essa gente, espanhis, era mais essa gente mesmo. No era fcil
no, eles no gostavam de dar emprego pro pessoal assim que era preto, da frica, que pertencia Bahia,
eles tinham aquele preconceito. Mas mulher baiana arranjava trabalho. Porque sabe, a mulher baiana elas
tm assim aquelas quedas, chegavam assim iai, que h? e sempre se empregavam nas casas de famlia
pra fazer um banquete, uma coisa. Tinha fbrica, j tinha a pra Bangu, j tinha, mas eram os brancos que
trabalhavam. Muitas mulheres trabalhavam em casa lavando pra fora, criando as crianas delas e dos
outros, mais dos outros do que delas. (MOURA, 1995, p. 168).

198
depois se profanizavam em encontros de msica e conversa, onde se expandia a
afetividade do corpo, atualizando o prazer e a funcionalidade da coeso (1995, p. 92).
A importncia simblica da personagem passou a ser to evidente que:

alm da venda dos doces, Ciata passa tambm a alugar roupas de


baiana feitas pelas negras com requinte para os teatros, e no Carnaval
para as cocotes chiques sarem nos Democrticos, Tenentes e
Fenianos, as associaes carnavalescas da pequena classe mdia
carioca. (MOURA, 1995, p. 99)

No entorno da Pequena frica, novas expresses culturais tomavam corpo, em


centros ldicos e religiosos (as casas das tias baianas) e organizaes festeiras, nos
quais mulheres negras assumiam posio central. Dentre os papis adotados por elas,
destaca-se a habilidade para negociao, a preocupao em legitimar seu grupo social e,
por fim, o estabelecimento de alianas estratgicas com membros de outros setores da
sociedade, buscando assim o reconhecimento de suas vidas e expresses culturais. Por
conta de seu destaque, as baianas passaram a ser objeto de interesse artstico, tanto dos
msicos originrios dos grupos baianos que buscavam legitimar suas expresses
culturais, como de artistas intelectualizados em busca de expresses folclricas para
peas de teatro e composies musicais que versavam sobre o autenticamente
nacional.
Segundo o historiador Durval Albuquerque Jr. (2009), as imagens e textos
regionais so fortemente produzidos no perodo, integrados identidade nacional,
criando sistemas de visibilidade sobre determinadas regies do pas. Os modernistas
paulistas se debruavam sobre os elementos regionais como signos a serem arquivados
para poder posteriormente rearrum-los numa nova imagem, em um novo texto para o
pas sob o protagonismo paulista na linguagem e viso modernistas
(ALBUQUERQUE JUNIOR, 2009, p. 69).
No mesmo perodo, h uma efervescncia cultural com a fundao do Centro
Regionalista do Nordeste em Recife cuja referncia central era Gilberto Freyre. Entre
obras literrias do romance de 30 e sociolgicas como o Nordeste de Freyre, formulou-
se uma srie de imagens nostlgicas a um passado dos engenhos, das Casas-Grandes e
da Zona da Mata aucareira pernambucana, reelaboradas no perodo, inventando uma
nova regio, o Nordeste, e dignificando sua importncia nacional. Estava estabelecida
uma busca pelo regional como representativo de expresses culturais autnticas,

199
construindo discursivamente comunidades imaginadas que pertencem a uma
comunidade imaginada abrangente: a nao brasileira.
A indstria fonogrfica e o rdio tambm apostaram no regionalismo, criando
imagens e esteretipos das regies do pas com traos culturais esboados em termos
essencialistas nas canes da msica popular brasileira, indo ao encontro dos interesses
governamentais de integrar a diversidade regional em um quebra-cabea que formava
um todo harmnico nacional. O pernambucano Luiz Gonzaga um exemplo desta
valorizao do regional no mercado musical carioca: contratado na dcada de quarenta
pela Rdio Nacional, teve o sucesso de sua carreira atrelada nostalgia do nordestino
migrante, com sua indumentria que reunia a roupa do vaqueiro nordestino e o chapu
usado pelos cangaceiros (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2009, p. 174).
Dorival Caymmi outro exemplo do cantor regional que construiu sua carreira a
partir de representaes sobre a Bahia, suas praias, sua religiosidade e elementos
simblicos que se destacavam. Caymmi ainda teve uma importncia chave na
construo da baiana de Carmen Miranda que se internacionalizou, ajudando-a em suas
vestimentas e gestualidades no filme Banana da Terra, mas tambm elaborando a
caracterizao da personagem a partir de seu olhar baiano. Sua carreira no Rio de
Janeiro foi precedida pelo baiano Assis Valente, considerado um compositor carioca por
excelncia (e no baiano), com quem estabeleceu relaes quando chegou capital. Mas
o que facilitou o deslanchar da carreira de Caymmi foi a anterior explorao da temtica
da baiana e da Bahia, realizada especialmente por Ary Barroso, e o grande sucesso de
Carmen Miranda interpretando sua composio O que que a baiana tem?.
A Bahia ocupava um lugar privilegiado nas canes cariocas do perodo e com
Ary Barroso que ela se transformou em uma frmula musical (CASTRO, 2005, p. 164).
Aps uma viagem a Bahia em 1929, Ary comps com Luiz Barbosa No tabuleiro da
baiana em 1936, com Sylvio Caldas, Quando eu penso na Bahia em 1937, e sozinho,
Na Baixa do Sapateiro em 1938. Todas as canes foram gravadas por Carmen
Miranda que tambm gravou Canjiquinha quente em 1937 do carioca Roberto
Martins, Baiana do tabuleiro de Andr Filho, Nas cadeiras da baiana de Portello
Juno e Leo Cardoso, em dupla com Nuno Roland e, Na Bahia de Herivelto Martins e
Humbero Porto. Como salientara seu bigrafo, Carmen gravara sete canes baianas
em menos de dois anos (CASTRO, 2005, p. 166).
A baiana nas letras das msicas gravadas por Carmen aparece como a que tem
candombl, tem feitio, Canjer, tem seduo, iluso, tem amor to fugaz e

200
enganador. O Brasil autntico localizvel na Bahia e resgatado na esfera do cinema e
do entretenimento ganhava uma personagem central, a baiana, marcada pela
feminilidade expressa no amor, seduo e sensualidade e perpassada por elementos
vinculados negritude em sua religiosidade do candombl ao sincretismo do Bonfim,
em suas vestimentas e comidas tpicas e ocupando um cenrio com luar propcio ao
romance e permeado por coqueiros ou frutas tropicais.
No mercado de cultura de massas, a importncia simblica da Bahia era especial
naquele momento de reconfigurao do nacional. A Bahia evocava a origem da nao, o
descobrimento, fazendo parte da mtica brasileira, recuperando a carta do escrivo
Pero Vaz de Caminha em que revela a autenticidade e ingenuidade dos povos que aqui
se encontravam e a exuberncia tropical da Terra de Vera Cruz. Nas canes de 30, a
Bahia aparece como o lugar natural do samba, apartada do mundo real, a terra da
felicidade. A Bahia, idealizada na cano, nega seu passado escravocrata e reafirma o
mito de origem do paraso ednico (GARCIA, 2004, p. 130). A Bahia tambm era
associada ao Brasil colonial autntico, tendo sido Salvador a primeira capital do pas.
Na interpretao da baiana em Banana da Terra, Carmen Miranda canta a
msica de Caymmi em um cenrio constitudo por uma pequena rua marcada pela
tropicalidade com uma grande lua cheia, casas de tipo colonial e um coqueiro. Um
aspecto interessante a imagem que antecede o nmero interpretado de Carmen:
quando o violo e a percusso entram, a imagem mostrada distncia e separada pelo
mar a do Corcovado com o Cristo Redentor e, logo em seguida, entra a cena da baiana
na rua colonial. A Bahia e o Rio so ligadas em planos seguidos, nos quais as
distncias geogrficas e temporais so eliminadas (a imagem do Cristo, recente no Rio,
pois instalado em 1931, contrasta com a imagem representativa da rua).
Trata-se de uma representao de um Brasil genuno e originrio de um passado
colonial, alocado na Bahia, que se encontra ligado ao Rio de Janeiro atual, tendo sua
imagem relacionada paisagem natural do Corcovado e do oceano, ambas remetendo
religiosidade: na letra da msica que faz referncia Igreja do Nosso Senhor do Bonfim
de Salvador e na imagem do Cristo Redentor na capital federal. Associada a essa
representao mtica do nacional, emerge uma apresentao calcada na centralidade do
feminino, com Carmen representando a baiana:

ela aparece no palco cercada por cantores de apoios masculinos, com


quem ela interage com flertes sutis, expresses e gestos, tais como

201
olhadas laterais, sorrisos tmidos e braos estendidos. Seu charme e
abrao aberto so igualmente direcionados cmera e ento para o
espectator, com piscadas, olhares tmidios e sedutivos cabisbaixos e
amplos sorrisos, (SHAW, 2013, p. 33, traduo minha)

Em sntese, no mercado de cultura de massas a baiana se refere a histrias que se


encontram: a de um Brasil mtico e imemorial que se apresenta de forma homognea da
Bahia ao Rio de Janeiro, a do reconhecimento relativo a uma cultura popular afro-
brasileira alada ao nacional, e a do desejo colonial, atualizando formas de
sexualizao da figura negra, especialmente quando transformada em mulata,
atualizando a ideia de um pas que se forja a partir de relaes raciais harmnicas. Isto
feito a partir da interpretao singular de Carmen Miranda, na qual ela substitui o lugar
de objeto sexual para um papel de sujeito, visvel em sua forma de comunicar com o
pblico, trao que permaneceu durante toda sua carreira.
A histria teatral da baiana data de 1890, quando a personagem da Sabina
aparece na revista A Repblica de Arthur Azevedo e seu irmo Alosio de Azevedo.
Contendo uma referncia a Sabina uma baiana real que ficou famosa porque um grupo
de estudantes de medicina na capital se solidarizou em protesto no ano anterior ao ter
sido proibida de vender seus quitutes em frente Imperial Escola de Medicina foi
interpretada por Ana Menarezi, soprano branca e de origem grega. Apresentar uma
mulher negra no teatro requeria certo tato ao pblico, na viso dos autores, para tanto
utilizaram de uma atriz branca estrangeira que, por sua vez, se associava sensualidade
muito vinculada s mulatas nas representaes vigentes (GOMES; SEIGEL, 2002).
Em 1892, foi a vez da atriz espanhola Pepa Ruiz interpretar a baiana na revista
Tim Tim por Tim Tim, na qual o lundo-baiano Mungunz deu o tom da
caracterizao da baiana que era descrita no cruzamento do talento culinrio e malcia
feminina, algo que ficou imortalizado em muitos sambas gravados na dcada de 30,
muitos deles por Carmen Miranda. Em 1915, a personagem da Sabina voltou,
interpretada desta vez pela italiana Maria Lino. Em seguida, passou-se a incorporar
atrizes brasileiras, muitas delas mulatas ao papel, das quais se destacam Otlia Amorim,
Araci Crtes, Helosa Helena e Do Maia (CASTRO, 2005, p. 172). A baiana se
constituiu definitivamente como um tipo sensual do teatro de revista:

Se atualmente a mulata comumente representada como mestia


desejvel sexualmente, enquanto a baiana retratada como reserva de
uma autenticidade cultural afro-brasileira, muitas vezes aparecendo
como uma mulher de idade avanada e assexuada, na virada do sculo

202
XIX as duas figuras poderiam estar bem prximas, ambas
funcionando como tipificaes altamente erotizadas da mulher afro-
descendente. (GOMES; SEIGEL, 2002, p. 181)

Desde a dcada de 10, h ecos de sua presena no carnaval. Em um primeiro


momento, eram os homens que se vestiam de baianas nos cordes, mas em seguida
passaram a ser a ala composta por mulheres e que se tornou obrigatria nas escolas de
samba (GARCIA, 2004, p. 113). Sinh dirigia o Grupo das Sabinas na primeira dcada
do sculo XX e uma msica carnavalesca de sucesso da dcada de 20 era As Sabinas
do Poleiro, musicando o desfile de homens de alta extrao social cuja performance
fazia jus s tradies de travestimento do carnaval, incorporando uma figura j marcada
simbolicamente pela sensualidade.
Na anlise de Seigel e Gomes (2002), o carnaval brasileiro fundiu nesta poca o
mito romano das sabinas, ao enfatizar simbolicamente o sequestro de mulheres nos
dias do carnaval, com a imagem afro-brasileira da baiana Sabina, mediada pela cultura
de massas, que associava a imagem da mulher afro-brasileira sensualidade. Para alm
da baiana da cidade, do teatro de revista e do carnaval, a presena da figura da baiana
tornou-se to impactante no Rio de Janeiro que chegou a aparecer no cinema norte-
americano como uma personagem tpica da capital no filme Voando para o Rio (1934).
No auge desta histria de incorporao, Carmen Miranda interpretou a baiana no
cinema com a cano O que que a baiana tem?, uma pergunta que tinha um sentido
especial ao morador carioca, familiar aos quitutes da baiana e de seu papel de
protagonista no perodo em que samba e outras expresses afro-brasileiras passavam a
ocupar lugar de destaque na capital. Na letra de Caymmi, cantada e interpretada por
Carmen, ela tem torso de seda, pano da costa, brinco de ouro, pulseira de ouro,
saia engomada, sandlia enfeitada, balangands e outros adereos.
Trata-se de elementos abordados por Helosa Alberto Torres, em tese de 1950
reproduzida nos cadernos pagu (2004), em suas pesquisas iconogrficas em Salvador,
um estudo sobre os elementos da vestimenta da baiana, na qual destaca o pano da Costa.
Literalmente, Costa significava o que vinha importado da frica, tecelagem africana,
por sua vez, desenvolvida em contato com o mundo oriental e navegaes, com
caractersticas prprias. No entanto, a importao era coisa rara e as caractersticas de
tal pano no pas eram sui generis, dadas as possibilidades materiais locais a partir de
uma tecelagem que se desenvolveu com os afrodescendentes em Salvador, na qual se

203
destaca a inovao de cores no Brasil, relacionada s prticas religiosas afro-brasileiras
e aos orixs, por sua vez, inspirados no colorido vivo dos paramentos eclesisticos.
Assim, o pano da costa mais do que uma vestimenta, um smbolo, vincula-se
ao passado, terra de origem imaginada. A autora destaca seus mltiplos usos e suas
posies distintas a partir da atividade que realiza. Alm dele, enumera outros
elementos como a saia, traje de beca, sandlia de luxo ou de couro (dependendo da
ocasio), torso, balangands e jias em geral (brincos, pulseiras e anis). Vestidas em
grande gala, as baianas participavam dos festejos catlicos, uma possibilidade de
ausncia temporria dos grilhes e apresentao prpria em termos de riqueza, beleza,
felicidade e prestgio.
Era essa baiana do partido alto que Dorival Caymmi inovava ao trazer elementos
concretos em sua letra, ante a uma definio prvia muito idealizada da personagem.
Com Caymmi, ela descrita a partir de elementos novos ao contexto e com termos
baianos, como toro ao invs de turbante. Caymmi se apropria do contato com seu tio
Non, e incorpora o ditado que ouvia deste, no qual quem no tem balangands no vai
ao Bonfim. Trata-se em sntese de uma descrio que o compositor faz pensando no
pblico carioca, posto que na Bahia no recebiam a mesma designao, chamadas antes
de crioulas (CAYMMI, 2013, p. 123).
Frequentador de candombls, como o de Gantois e Ax p Afonj, descreve as
baianas, nos dias de festa, de forma a enaltec-las. Ele inovou ao trazer um estilo
especfico de samba, embora tenha negado a existncia de um samba propriamente
baiano, o definia: e o samba na Bahia era um estilo de samba de mote e glosa, voc
abrir um estribilho e o outro responder, o samba de umbigada, samba de rua, com
influncia portuguesa e africana (CAYMMI, 2013, p. 122).
Seguido ao trabalho de criao da letra, tratou-se da criao visual para a
construo da personagem flmica, tarefa que foi compartilhada por Carmen e Caymmi.
Deu-se incio estilizao da baiana, caracterstica fundamental da carreira de Carmen a
partir de ento no Brasil e nos Estados Unidos, proporcionada pela prpria letra que deu
origem personagem. Com estrofes construdas em resposta ao que a baiana tem, a
letra aponta para uma infinidade e riqueza da vestimenta, possibilitando uma criao
artstica infindvel que pudesse manter a forma, mas deslocar os contedos. Algo que
comeou por iniciativa prpria da cantora, com habilidades prvias no mundo da moda:

204
A prpria Carmen ligou para a penso e buscou Caymmi para irem
juntos ao ateli de J. Luiz, figurinista da Fon-Fon, uma revista muito
popular na poca. L, Caymmi procurou explicar o traje tpico da
baiana toro, pano da costa, bata rendada, balangands para o
figurinista, que foi criando uma concepo estilizada, apropriada para
o filme. (CAYMMI, 2013, p. 121)

Depois de acompanhar Carmen Miranda na peregrinao pelos


inmeros lugares que ela percorreu, em busca dos acessrios para
compor sua baiana desde a casa da sua costureira, mulher do
compositor Vicente Paiva, para que o artista opinasse sobre uns
tecidos argentinos adquiridos por ela recentemente, at a Casa Turuna,
especializada em artigos para carnaval e teatro, localizada na Avenida
Passos, no centro do Rio, em busca de componentes para improvisar
um balangand , Caymmi participou da filmagem a pedido da
cantora, servindo-lhe de ponto. (CAYMMI, 2013, p. 128-129)

Dorival Caymmi ento auxilia Carmen Miranda na gravao, mostrando a ela os


elementos da roupa que ela deveria expor em sua performance, alm de ajudar em sua
coreografia, buscando uma aproximao com as performances das baianas que conhecia
de Salvador. Carmen Miranda, sempre prxima dos costureiros e mesmo criando ou
acompanhando suas prprias vestimentas de show e sociais, gerenciava sua imagem
pblica. Desde o Brasil, mas especialmente nos Estados Unidos, construiu parcerias
com reconhecidos estilistas que a ajudavam a valorizar suas vestimentas:

Treinada como costureira e chapeleira, Miranda exagerou e maximizou o


estilo baiana para criar um visual com assinatura que complementava seu
corpo; ela aprimorava seu pequeno tamanho com um turbante, usava
influncias europeias para desenvolver sandlias plataformas que criavam a
iluso de altura, apertava as saias para destacar sua cintura e adicionava um
excedente de colares e blusa com abertura na rea do umbigo para amplificar
seu estilo. (OVALLE, 2011, p. 58, traduo minha)

O resultado da criao artstica singular foi o recorde de audincia no Cine


Metro-Passeio, templo dos cinemas e confeitarias da poca, onde estreou em 10 de
fevereiro de 1939 (CAYMMI, 2013, p. 130). J em 27 de fevereiro, ambos os artistas
gravaram a msica na Odeon em So Paulo. Na avaliao de Stella Caymmi (2013), O
que que a baiana tem? teve uma importncia similar a Ta na trajetria da cantora,
cano que consagrou definitivamente Carmen Miranda como dolo nacional. A
composio de Caymmi, por sua vez, abriu caminho para o auge de sua carreira no
Brasil e para sua carreira internacional.
Segundo a mesma autora (2013, p. 130), Carmen antes mesmo do filme ser
lanado, j incorporava outra roupa de baiana para seu guarda-roupa. A partir de ento,

205
a baiana se tornou seu principal nmero em apresentaes nos cassinos brasileiros,
apreciada pela elite e reverenciada at mesmo por atores e atrizes hollywoodianos,
como Tyrone Power, de passagem pela capital carioca. A baiana de Dorival Caymmi
remetia a uma singularidade nacional, uma autenticidade de uma personagem que s
poderia ser encontrada na prpria Bahia colonial. A baiana de Carmen, por sua vez,
passava pelo procedimento da estilizao que a transformava substancialmente:

A cantora vestiu uma saia de veludo, nas cores dourada, verde e rosa-claro,
com listras em diagonal, com uma pequena bata do mesmo tecido, deixando
a barriga mostra e um pano da costa difano e brilhante, alm de muitos
colares no pescoo, frutas na cabea e balangands nos braos.
Lamentavelmente o filme era em preto e branco, pois a roupa tinha um
colorido lindo lembra Dorival. (CAYMMI, 2013, p. 129)

Estilizada com brocados e brilhantes e um arranjo na cabea que pouco se


assemelhava s vestes e adereos das negras do partido alto descrita pela
msica de Caymmi, resgatava a raiz negra da nossa cultura, dissimulada na
cor branca de sua pele europia. A baiana, embora inspirada na cultura
nativa, tinha o brilho e o glamour das estrelas de cinema; (GARCIA, 2004,
p. 61)

Trata-se de uma operao complexa que combinava a mercadorizao da cultura


afro-brasileira, a ideia de uma cultura genuinamente nacional, ambas calcadas na
branquitude que mediava seletivamente a forma de integrao dos elementos simblicos
que no perodo eram tidos como controversos. A cantora, ao mesmo tempo em que
sabia do apelo da baiana no mercado de cultura de massas e de como no perodo era
importante vestir-se da negritude para representar e vender o nacional, buscava uma
distino do universo simblico negro e o fazia a partir do glamour inspirado e depois
transportado ao cinema hollywoodiano. Algo que fica visvel no depoimento
retrospectivo de Carmen revista O Mundo Ilustrado, em 19 de dezembro de 195435:

A Urca foi o meu trampolim. Nessa poca nem sonhava em vestir uma
baiana. Alis, no Baile do Municipal desses tempos saudosos, marinheiros e
baianas eram fantasias proibidas, vulgares demais.
Acontece que eu tinha de me apresentar cantando O que que a bahiana
tem e a letra da msica explicava que ela tinha isto, tinha aquilo, coisas que
a minha fantasia precisava ter. Ento, pedi ao Tropowski que desenhasse
uma baiana para mim. Foi a minha primeira fantasia. Era branca, com uma

35
Carmen se confundiu na entrevista, com a baiana de Tropowski se apresentou para Shubert em 1939,
mas a primeira baiana foi produzida por J. Luiz, a mesma usada em Banana da Terra, e usada em
apresentao ainda em 1938, quando vista por Tyrone Power.

206
barra preta e um po de acar ao lado. Para complet-la, comprei na
avenida Passos uns colares de 1$500 e duas cestinhas de 7$000.
Sentindo o sucesso que a originalidade da vestimenta e a beleza da msica
brasileira faria nos EEUU, Sonja Henie a madrinha do meu sucesso
insistia tenazmente com Shubert para contratar-me. Ele no queria, mas
acabou vencido pela perseverana da minha amiga e de um dia para outro vi-
me em palcos americanos, cercada de aplausos por todos os lados.
O curioso que eu temia botar aquela baiana. Pedi at a um reprter que
explicasse o motivo por que eu botava uma fantasia to vulgar. (apud
JUNIOR, 1978, p. 133)36

A estilizao de Carmen Miranda, portanto, respondia vulgaridade da fantasia.


Vulgaridade perfeitamente relacionada a seus vnculos com as baianas da Praa Onze,
conforme abordei na crtica de Viany carreira internacional de Carmen que a criticava
comparando-a a vestimentas da localidade vinculada s heranas africanas. Carmen
repete a baiana, j presente na cultura de massas nacional, performando a nacionalidade
autntica expressa na negritude da personagem, mas a partir da branquitude. O autntico
ainda inclui um elemento novo: a Bahia de Caymmi e seus balangands, adereos
prprios das negras do Bonfim que passam a ser mercadoria consumida por uma elite
vida pelo nacional autntico.
A importncia do novo termo ficou patente em Joujoux e Balangands, um
espetculo beneficente organizado por Darcy Vargas no Teatro Municipal em dois de
maro de 1939, visando levantar fundo para duas instituies de caridade, a Cidade das
Meninas e a Casa do Pequeno Jornaleiro (CAYMMI, 2013, p. 222). Trata-se de duas
palavras com o mesmo sentido, as joias, uma remetendo ao nacional autntico e negro e
outra ao civilizado francs, denotando o encontro entre branquitude e unidade
nacional. Na ausncia de Carmen Miranda, contou com a presena de Dorival Caymmi,
sendo transmitido ao vivo pela Rdio Nacional e transformado em filme pela Cindia.
Fato curioso, no foyer do Theatro Municipal foi organizada uma exposio de
balangands autnticos, que remontavam ao tempo da escravido do pas, alguns
exemplares em ouro e prata, emprestados de colecionadores (CAYMMI, 2013, p. 216).
Celebrava-se ento o passado colonial com os mesmos adereos da baiana que
impactavam no mercado da moda norte-americano. Quando Carmen Miranda voltou ao

36
interessante como a mesma entrevista foi reproduzida por Stella Caymmi (2013, p. 165), mas
retirando os trechos iniciais e finais nos quais Carmen aponta a problemtica racial, ou a vulgaridade,
de vestir uma baiana. Caymmi (2013) assim esquiva-se de tratar da incorporao via branquitude por
Carmen, em procedimento comum no qual a msica popular vista como celebrao da harmonia racial,
escondendo os procedimentos nos quais a racializao evidente.

207
pas, depois da recepo negativa em sua primeira apresentao na Urca, passou a se
defender musicalmente das acusaes de que havia se americanizado. Foi quando
Carmen Miranda encomendou os sambas Disseram que voltei americanizada, de Luiz
Peixoto e Vicente Paiva, e Diz que tem, tambm de Vicente Paiva com Anbal Cruz.
Ambos citavam os balangands, tornados peas de defesa da brasilidade da artista,
entre outros elementos citados na msica: aparentemente, de uma hora para outra, os
balangands haviam se tornado smbolo do pas, e no somente da Bahia (CAYMMI,
2013, p. 212). A baiana carregava a negritude para uma plateia vida em comercializ-
la, expresso de uma nacionalidade autntica e, ao mesmo tempo, passava a
redimensionar o nacional por meio da sensualidade.
Em Banana da Terra, a msica O que que a baiana tem? cantada em forma
de dilogo por ela e pelo Bando da Lua, interpretada por danarinos profissionais do
cassino da Urca que se vestiam de camisas listradas e chapus brancos. Carmen atua
com sensualidade, deixando os ombros e a barriga desnudos, temperando a msica
com suas expresses coloquiais (tem?, ahh!, que bom, que demais),
gesticulando ao mostrar os elementos de sua vestimenta e mexendo as mos num
prottipo de suas interpretaes mais aprimoradas no cinema hollywoodiano. Sua
posio central em relao s figuras masculinas que sentados mantm seus olhares
afixados nela, levantando para tocar nos elementos de suas vestimentas que esto sendo
citados na msica. Trata-se de uma figura nacional centrada no feminino e, aliada a ele,
sensualidade em sua suposta origem negra.
Rosemary Coombe (1996) demonstra como o sculo XX substituiu uma esfera
pblica do sculo XIX onde o sujeito universal e descorporificado do homem branco e
burgus invisibilizava seus outros, sejam eles femininos, das classes populares ou
hierarquicamente racializados. No sculo da difuso ampliada da cultura de massas,
elabora-se uma esfera pblica com maior orientao visual e para o consumo dos
outros corporificados (p. 207). Tal transformao colocou em destaque os produtos
culturais massivos centrados nas figuras corporais de mulheres, negros, indgenas para o
consumo do homem branco e burgus.
No captulo anterior, meu foco foi como a corporificao de Carmen Miranda
funcionava como um Outro no mercado norte-americano, no qual em contraste com
suas personagens flmicas, as personagens anglo-saxnicas se caracterizavam pela
discrio corporal e racionalidade. No mercado brasileiro, dentro de uma lgica prpria
das narrativas nacionais, mas tambm carregando vnculos com as dinmicas polticas

208
internacionais e suas representaes, o Outro corporificado passa a fazer parte da
identidade nacional. Em especial, vinculado figura da mulata que apontava para uma
narrativa histrica na qual o pas se fundara na relao harmnica entre as raas,
materializado na miscigenao entre o homem branco e a mulher mulata.
Na interpretao de Carmen Miranda tal figura sofisticada e modernizada,
podendo ser amplamente aceita como um cone nacional. Muito ligado ao samba e
esttica do teatro de revista, o cinema emergente nacional, na anlise de Robert Stam
(2008), incorpora o negro como um pano de fundo para o protagonismo branco: a
presena velada da dana e da msica afro-brasileira em inmeros filmes marca,
paradoxalmente, a ausncia afro-brasileira da tela (STAM, 2008, p. 132). De outro
lado, o autor salienta uma dvida multidimensional cultura afro-brasileira de Carmen
em suas performances desde sua linguagem corporal ao uso da voz.

Almirante e Carmen Miranda Carmen Miranda e Almirante em


interpretando Pirolito maquiados de apresentao em Campinas com a baiana
negros em Banana da Terra, 1939. estilizada, 1939.

O nmero de Boneca de Piche (1938), de Ary Barroso e Luiz Iglesias, foi


substituda por Pirolito (1938) em Banana da Terra, ambos nmeros nos quais
Carmen contracenava com Almirante. Trata-se de uma letra em dilogo entre um casal
de pretos no qual a mulher declarava a seu parceiro trajado de branco, tal qual a figura
do malandro, que muitos homens brancos tambm a assediavam. No nmero, o qual foi
apresentado em outras ocasies em teatros pelos dois artistas, Carmen se pintava de
preta. Trata-se da tematizao do desejo colonial em um nmero muito interpretado

209
antes e depois de Carmen. Na Revista de 1930, com o nome Eh! Eh!, chegou a ser
apresentado no Teatro Recreio com Joo Martins e Araci Crtes.
Da passagem da figura da baiana, lder social de grupos afro-brasileiros a sua
incorporao pela cultura de massas, h mudanas fundamentais que a constituem: ela
se transforma na mulata, com um histrico de representaes nas narrativas
hegemnicas nacionais. A sensualidade e o amor passavam por uma caracterstica
central que une gnero e raa: a baiana, acessvel desde a narrativa de O Cortio do
mesmo autor Alosio de Azevedo que incorporou a baiana no teatro de revista em 1890
na figura de Rita Baiana, uma mulata, a qual era (e ) descrita nos discursos mais
diversos por meio de um procedimento paradoxal que faz de seu amor, fugaz e
enganador, e de sua seduo uma iluso, como nas letras sobre a Bahia gravadas por
Carmen Miranda.
Mariza Corra (1996) oferece estudo pioneiro ao analisar a mulata como
construo discursiva heterognea dos oitocentos a perodos recentes, dentro de uma
perspectiva inovadora de unir estudos de relaes raciais com estudos feministas. A
mulata, na perspectiva da autora, adentraria em dois sistemas hierarquizantes (gnero e
raa), produzindo hierarquizaes internas, ou seja, a raa seria constitutiva do campo
semntico das relaes de gnero e vice-versa. Historicamente, a mulata foi construda
como um objeto social com estatuto prprio, a meio termo entre os polos branco e
negro, sexualizada, transformada em smbolo de uma sociedade mestia. A autora
aborda de passagem um deslocamento progressivo nos discursos nacionais de uma
mulata baiana para a mulata carioca como personagens centrais na construo simblica
da nacionalidade brasileira.
Em texto mais recente, partindo de uma crtica psicanlise freudiana e nfase
na triangulao edpica na formao subjetiva que exclui a figura da bab,
ostensivamente presente nas classes mdias modernas, Corra (2007) prope uma
reflexo sociohistrica das classes altas brasileiras caracterizadas em sua origem pela
presena das amas de leite (e recentemente pelas empregadas ou babs), fornecendo
elementos sociais para se pensar na produo discursiva sobre o sexo que alocou a
mulata como uma figura sensual.
As babs brasileiras, na virada do sculo dezenove para o vinte, eram figuras
centrais nas famlias burguesas, estigmatizadas e vistas como ameaa de contaminao e
corrupo moral, ao mesmo tempo objeto de desejo dos patres e de iniciao sexual de
seus filhos. Trata-se de uma experincia sociohistrica de origem escravocrata de uma

210
intimidade constituda a partir de uma figura entendida como ambgua: boa, pois levava
carinho e doava seu leite e m, pois carregava os males que poderia ser portadora.
Sedimentou-se uma convivncia ntima entre brancos e negras que raramente se
verificou no caso oposto (mulheres brancas e homens negros), sendo que essa atrao
parece ter se cristalizado no mito brasileiro da mulata gostosa (CORRA, 2007, p.
82).
Trata-se de um processo comum a contextos histricos de colonialismo e
escravismo que o socilogo Robert Young denominou de desejo colonial, no qual as
mulheres negras (no caso brasileiro, as mulatas) foram significadas ao mesmo tempo
como sensuais e repugnantes (YOUNG, 1995, p. 185) ou, nos termos de Avtar Brah
(2006), de processos de sexualizao da raa e racializao do sexo.
A obra A redeno de Cam de 1895 do pintor espanhol radicado no Brasil
Modesto Brocos y Gmez revela as expectativas sociais na virada do sculo,
descrevendo uma tela na qual a av negra comemora, ao lado da filha mulata, o
nascimento do filho branco. Trata-se de uma representao que repercutia nos meios
discursivos mais heterogneos e que estruturou vrias dimenses da compreenso da
nacionalidade brasileira: uma valorizao da miscigenao articulada a um otimismo
embranquecedor, uma definio do que seria o bom sexo dimensionando uma
distribuio do que ou no ertico, com contornos bem especificados sobre gnero e
raa, dentro de uma matriz heterossexista e, por fim, um sistema hierrquico
androcntrico amparado na dupla moral sexual masculina e na submisso feminina com
contornos raciais especficos.
De forma geral, as narrativas nacionais sexualizam a mulata, enquanto que o
elemento masculino negro quase sempre ausente. Neste sentido, Laura Moutinho
aponta a existncia de uma relao entre cor negra e erotismo, algo, entretanto, que
somente foi enfatizado em relao lbrica mulata ou operando um gnero
indeterminado (2004, p. 344-5). Era a mulata e o elemento civilizador branco que
seriam fundacionais nao. No entanto, a esfera das relaes inter-raciais era
representada (e praticada com expressividade) como extraconjugais, sendo a relao
homem branco e mulher branca a esperada para as relaes matrimoniais. A mulher
branca era representada como a esposa do lar e me e, neste sentido, classificada a partir
da pureza e assexualidade. As assimetrias das relaes de gnero se imbricam com as
assimetrias raciais constituindo a gramtica da sexualidade inter-racial presente nas

211
narrativas nacionais, algo que pode ser acessado com uma leitura crtica da contribuio
de Gilberto Freyre:

A imagem do pater familias funciona em Freyre (e nas anlises que a


tomam como modelo) como a representao da virilidade como
dupla moral sexual e, ainda, como um modelo nacional de
dominao, vide o sadismo de mando algo que abarca desde a
conduta mais individual at uma representao nacional. s mulheres
cabe, nesse modelo, atuar no espao domstico e zelar, atravs de uma
conduta moral e sexual retilneas e da educao das crianas, pela
honra da famlia. Aos homens, no patriarcalismo poligmico,
concedida a autoridade mxima como pai e marido. O pater familias
no vivia com a esposa branca a satisfao do desejo sexual, e sim,
com a amante negra. O casamento, alis, no o espao para a
vivncia da sexualidade: nem para o homem, nem para a mulher.
(MOUTINHO, 2004, p. 164)

Esta reconstituio sociohistrica nos permite entender a escolha da personagem


da baiana que coincide com o auge da carreira de Carmen Miranda no Brasil. A
baiana branca interpretada por Carmen Miranda, por sua vez, vinculava-se
branquitude da modernidade, apontando para a possibilidade de apresentar um tipo
nacional de forma mais abrangente, ausente de conflitos morais. Sendo a mestiagem e
a sensualidade, dentro da ideologia do Brasil mestio, caractersticas fundamentais de
um Brasil harmnico e inclusivo racialmente, a figura que a representasse s poderia ser
uma mulher. Nos termos de Monica Schpun:

Ser uma mulher algo essencial no sucesso que viveu, no fato de ter-
se tornado um verdadeiro fenmeno. Um homem no poderia
representar com tamanha perfeio (e, de fato, nenhum o fez) o
consenso criado no Brasil em torno dos ingredientes que compem a
cultura nacional: a festa, a alegria, o riso fcil, o humor, a
sensualidade e o erotismo. (2008, p. 467)

Antonio Lopes coloca a seguinte pergunta: Por que no apareceram no primeiro


quartel do sculo XX os correspondentes masculinos a Jlia Martins, Otlia Amorim e,
mais tarde, Araci Cortes, ou seja, atores reconhecidos e celebrados enquanto mulatos
nos palcos da praa Tiradentes? (2009, p. 81). O autor constata que:

O mulato, enquanto personagem, apareceu de diversas formas no teatro


musical ligeiro: o capadcio, o malandro, o capoeira, o povo da lira. Mas
esses tipos no tinham o mesmo grau de celebrao que tinha a mulata,
enquanto cone da nacionalidade O ator masculino costumava encarnar o
bufo a conduzir a comicidade e a crtica ferina, alm de apresentar a

212
personagem central feminina, portadora de majestade, sensualidade e graa
para uma platia masculina apreciativa. (LOPES, 2009, p. 81)

Tal constatao dos autores, embora pertinente, exige uma explicao histrico-
analtica. Em primeiro lugar, sinalizava para a importncia da figura feminina no
mercado de cultura de massas, voltada a uma plateia de consumidores masculinos.
Trata-se de uma representao histrica de longo alcance que intersectava problemticas
raciais e de gnero. Um homem no poderia incorporar a sensualidade e mestiagem,
pois estaria colocando em xeque os sistemas hierrquicos de gnero e raa constituintes
da inteligibilidade cultural da nao brasileira. A erotizao estava atrelada negritude
e associ-la ao masculino implicaria em questionar a viabilidade do branqueamento, o
caminho civilizacional brasileiro visto como resultado do encontro entre homem branco
e mulher mulata.
De outro lado, erotiz-lo implicaria em questionar o sistema hierrquico que
privilegia a dupla moral sexual do homem branco, deixando intocvel a sexualidade da
mulher branca e considerando a sexualidade da mulata sua disposio. Neste sentido,
compreensvel que Grande Otelo, ator negro do cinema nacional emergente e partner
de Carmen em algumas de suas apresentaes, seja caracterizado como comicamente
assexuado com o nico papel de ajudar nas intrigas amorosas de seus parceiros brancos
(STAM, 2008, p. 159).
Uma srie de negociaes se efetuaram at o reconhecimento da baiana como
cone nacional. As primeiras foram interpretadas no teatro de revista por atrizes brancas
e europeias, seguidas por atrizes brasileiras mulatas nos teatros populares. A baiana de
Carmen Miranda representa a consagrao dessa figura chegando a se apresentar em
diversos teatros e cassinos brasileiros frequentados pela elite e, em seguida, migrando
aos Estados Unidos como uma representante nacional.
A branquitude de Carmen Miranda, chave para sua ampla aceitao, pode ser
compreendida no apenas na cor de sua pele, a despeito de tambm ser algo essencial.
Carmen Miranda ligava-se ao mundo do entretenimento e dos meios de comunicao de
massa, compreendidos na lente da poca como representativos da modernidade. A
morena sensual, antenada e influente nos novos cdigos culturais pde assim ser
representativa de um Brasil moderno, uno e autntico em suas caractersticas nacionais.
Sua sensualidade era negociada, compreendida na poca como uma
sensualidade brejeira, uma suposta malcia ingnua. Dentro das filmagens

213
acessveis, o rebolado de Carmen matizado, no intensificado como em performances
comuns no carnaval. Mesmo porque o uso dos ps limitado por conta das plataformas
que vestia (COELHO, 1998, p. 152). As caracterizaes de sua sensualidade atentam
para aloca-la no a uma sensualidade brbara, vinculada s expresses de rua das
classes populares e marcadas pela negritude. Ao contrrio, era vista como representante
de uma sofisticao, passvel de incorporao do popular e transform-lo em nacional.
Mediada pela esfera do mercado cultural carioca, valoriza a mestiagem, mas no deixa
de insinuar que est distante da vulgaridade da fantasia da baiana, ento sofisticada.
No se tratando de uma operao unvoca, a incorporao do popular e da
negritude por Carmen Miranda abria a possibilidade de outras interpretaes. Seguindo
as pistas de Martn-Barbero (2009), compreendo que a baiana, tal como outros
elementos simblicos afro-brasileiros da poca, eram socialmente reconhecidos de
forma ampla no contexto de industrializao e urbanizao que se iniciava na sociedade
brasileira, mediados pela produo de cultura de massas atravs dos meios de
comunicao e do mercado de entretenimento da capital federal que a partir da lgica do
consumo reconfigurou os elementos do nacional pelo massivo. Atuando junto com o
mercado, por sua vez heterogneo e lidando com diversos pblicos, o Estado buscava a
possibilidade de representao nacional una e coesa, alcanvel atravs do samba e da
figura da baiana incorporada por Carmen e com amplo sucesso no mercado carioca.
Para alm da branquitude, quando se trata da cultura de massas percebem-se
diferentes lgicas em conflito tanto na produo quanto no consumo (MARTN-
BARBERO, 2009, p. 176). Dentro de tais lgicas, as narrativas nacionais passam a ser
produzidas entre diversos atores e espaos sociais, muito embora dentro de um filtro
moral e racial do mercado que estabelecia um teto de vidro s pretenses de carreira de
vrios artistas negros e pobres (DAVIS, 2009) e, alm disso, buscando uma
representao nacional integrativa e harmnica, mas restringindo uma representao
negra do pas. A entrada dos elementos afro-brasileiros nos circuitos mais abrangentes
da cultura de massas tambm representava para parte da populao das classes baixas e
de origem africana a sua participao no universo simblico nacional.
O estrelato vivido por ela requereu negociaes com uma esfera pblica da
cultura de massas, mediado pelas gravadoras, estaes de rdio e demais meios nos
quais atuou sob contrato, mas se comparado sua carreira norte-americana gozou de
relativa autonomia a partir da qual negociando cdigos raciais e de gnero constitui-se
como estrela nacional e dotada de experincia na negociao da sua imagem com o

214
pblico, mediada pela imprensa. A estrela levava ento consigo ao cinema norte-
americano elementos que, a partir de sua trajetria, passavam a fazer parte da identidade
nacional e, dentro de uma engrenagem prpria do star system norte-americano, soube
renegoci-los, mas em outro enquadramento simblico.
Transformada naquele contexto em uma diferena racial, Carmen Miranda
passou a representar um outro tipo de sensualidade, marcada pela hipervisibilidade em
seu excesso corporal. Tal mudana acabou por alocar Carmen Miranda a uma
sensualidade acentuada, talvez homloga no contexto brasileiro quela muito vinculada
simbolicamente s classes populares e negritude, causando uma recepo fortemente
negativa entre seu pblico das classes mdias e alta que versavam sobre sua carreira nas
revistas ilustradas. A Cena Muda trouxe uma srie de exemplos nos quais leitores e
leitoras contrastam as performances de Carmen Miranda no Brasil e nos Estados Unidos
(Acervo da BJKS).
Na viso dos leitores da revista, Carmen no novo contexto na convico de
possuir umsex-appeal quando, na verdade, com as fantasias exticas um mixto de
baiana e ind e com seus graves erros de pronuncia nos d a impresso de um boneco
movido a corda de relgio (Vera Margarida Faria, Rio, 23 de janeiro de 1943 p. 20).
Passou de nossa meiga e delicada Carmen Miranda, encantadora sem ser bela para
caricata de gestos exagerados, de graciosa a engraada (Silvia Maria, Rio, 13 de
abril de 1943, p. 37). Tornou-se uma figura extica e sem sal, verdadeiro monstro
(Arnaldo Avila Campos, 16/03/1943, p. 06). No mais a garota maliciosa e brejeira,
seria ento seu oposto, at gorda ela apareceu, feita, desajeitada (Jos Giroto, S.
Paulo, 27 de abril de 1943, p. 6-7). Perdeu seu geitinho brejeiro, dando lugar a
requebros exagerados ou as caretas ou a boca larga. (Miguel de Azevedo Teixeira,
Rio 18 de maio de 1943, p. 06).
Carmen Miranda estava direcionada a sua carreira no novo mercado norte-
americano e, para tanto, correspondia s expectativas daquele contexto que no a viam
como uma representante nacional. Antes, compreendiam-na como um novo tipo da
latino-americana vinda do sul do equador. Diferente dos fs que queriam de volta a
sensualidade brejeira de Carmen, outros fs, ao contrrio, salientavam com orgulho as
interpretaes de Carmen naquele contexto. Celina Chaves, do Rio de Janeiro, em 1 de
junho de 1943, ressaltou os vnculos entre a sensualidade e brasilidade de Carmen, com
seus requebros naturais, vinculando-a a figura da mulata.

215
Independente das polmicas, ou at mesmo por meio delas, tornava-se patente,
em uma arena internacional, a relao entre a brasilidade e a feminilidade sensual. O
sucesso de Carmen Miranda e seu impacto na moda acabou no apenas por gerar
crticas nacionais, mas tambm estimulou a reverberao de sua fantasia nos contextos
de elite. Muitas mulheres incorporavam, estimuladas pela publicidade e mercado de
fantasias do carnaval, a baiana de Carmen Miranda inspirando-se na ideia de uma
feminilidade nacional, prestigiada e refletida nos filmes produzidos em Hollywood.

4.3. A baiana internacional consumida

Mesmo no baile do Municipal, o mais selecto de quantos se realizam


no Rio de Janeiro(...) houve sensvel maioria de bahianas. Este
aspecto realmente curioso, que fixamos nas presentes pginas, onde
vemos as mais bellas baianas que dansaram na festa do nosso maior
theatro. (Revista O Cruzeiro, 17 de fevereiro de 1940, Arquivo da
BN)

A matria As bahianas invadiram o Theatro Municipal da revista O Cruzeiro


registra a disseminao de uma fantasia antes renegada nos bailes carnavalescos de gala
cariocas, o que pode ser captado pelo texto que demarca este aspecto realmente
curioso. Registra-se desde o ano anterior a presena das baianas nos bailes de carnaval
e em pginas que antecedem a poca carnavalesca, v-se seu destaque nas sees de
fantasias sugeridas ao baile. Tal incorporao foi seletiva e passageira, segundo Tania
Garcia: se nos Estados Unidos a baiana vestia os manequins das vitrines de Nova
York, influenciando a moda e o comportamento das mulheres de l, no Brasil a
indumentria era apenas uma fantasia para ser usada durante os quatro dias de carnaval
(GARCIA, 2004, p. 118).

216
(Revista O Cruzeiro, 17 de fevereiro de 1940, Arquivo da BN)37

A influncia da moda norte-americana baseada no impacto de Carmen Miranda


no alterou no dia-a-dia a racializao da vestimenta e todos os significados e valores
atribudos a ela: considerando que uma das funes da moda demarcar fronteiras
sociais, o traje da baiana, aps o carnaval, continuou entre ns a vestir somente as
negras que ganhavam a vida com seu comrcio de iguarias e frutas nas ruas da capital
da Repblica (GARCIA, 2004, p. 118). Em outros termos, os turbantes e adereos que
tanto impactaram no comrcio da moda norte-americana, aqui no fizeram o mesmo
sucesso devido ao universo simblico ao qual estava relacionado.
Mesmo que delimitada, a aceitao da fantasia da baiana no carnaval de elite se
concretizou com uma srie de negociaes, perpassando o estratificado mercado de
produtos culturais e entretenimento do perodo: das revistas ilustradas, ao que tudo
indica tambm as lojas de roupas, adereos e fantasias de carnaval, aos teatros e clubes
que ofereciam bailes de carnaval. Na contracapa da mesma revista O Cruzeiro que
descrevia o aspecto curioso da invaso das baianas nos bailes de carnaval, havia

37
Agradeo ao Acervo Jornal Estado de Minas, Revista O Cruzeiro e ao fotgrafo pela autorizao para
a utilizao das imagens.

217
uma propaganda da revista A Cigarra com um desenho no qual se contrastava ao fundo
uma baiana negra com um tabuleiro tpico das baianas e uma jovem branca fantasiada
de baiana na frente com um chapu feito do tabuleiro da baiana reverso. Abaixo da
imagem, seguia-se o seguinte texto:

O taboleiro da bahiana... (desenho) serve para muita coisa. As garotas


bonitas de Copacabana descobriram que com certo jeito elle se
transforma at num chapeo elegante, e se, um chapo elegante lhe
interessa, procure-o nas pginas da mais completa revista mensal
brasileira A Cigarra-Magazine. (Revista O Cruzeiro, 17 de fevereiro
de 1940, Arquivo da BN)

(Revista O Cruzeiro, 17 de fevereiro de


1940, Arquivo da BN)38

Em uma revista direcionada a um pblico de classe mdia e alta, verifica-se uma


diferenciao radical entre dois tipos de baiana. A primeira negra e representante dos
estratos populares seria o anti-modelo e para tanto, ofuscada pela figura sua frente. A
figura jovem e branca, destacada frente, seria um modelo s garotas bonitas de
Copacabana. A representao da baiana negra passava a concorrer com outra viso
sofisticada da mesma, em concomitncia com sua influncia na moda e revistas norte-

38
Agradeo ao Acervo Jornal Estado de Minas, Revista O Cruzeiro e ao fotgrafo pela autorizao para
a utilizao das imagens.

218
americanas, com o sucesso de Carmen Miranda. Vestir-se da distinta baiana significava
incorporar durante o baile do carnaval elementos que se referiam a uma caracterizao
da mulher moderna nacional, difundida por Carmen no cinema de Hollywood, com a
sensualidade descrita nas pginas da mesma edio da revista O Cruzeiro:

Mos que acompanham num rythmo indefinivel aquella dansa exotica


que Carmen levou para as ribaltas americanas. Mos introduziveis,
mos que dizem o que a 'pequena notvel' tem de poesia e encanto na
alma exquisita, cheia dos perfumes tropicais, que levou para as terras
de Tio Sam toda a alegria carioca. (Arquivo da BN)

A matria sobre o sucesso de Carmen Miranda na Broadway trazia como assunto


principal sua performance com as mos, com o ttulo A magia de duas mos. Vestir-
se de baiana era incorporar a sensualidade, o exotismo e a tropicalidade que
caracterizariam a mulher moderna peculiarmente nacional. A baiana incorporada nos
carnavais de gala deixava para trs seu passado negro, com todos os seus sentidos
conotativos, e apontava para sua relao ntima com o cinema mais reconhecido
mundialmente: o dos estdios de Hollywood. A negritude pertencia ento ao passado e
a figura no Brasil se associava a uma brasilidade calcada na branquitude.
Tal apropriao se fazia no momento especfico do carnaval, no qual mulheres
usualmente recatadas, aproximao do carnaval, [deixavam ] aflorar, mesmo de forma
sub-reptcia, seus desejos ocultos (SOIHET, 2008, p. 218). Antes de uma leitura
essencialista da sexualidade, trata-se de enfatizar um perodo no qual as mulheres
poderiam ter maior liberdade em relao sexualidade. Trata-se de uma liberdade
relativa, dado que eram alvo de discusso e controle presente na imprensa e nos saberes
jurdicos do perodo. As mulheres da elite nacional poderiam escapar dos rgidos
controles de gnero, incorporando novos valores que passavam a associar brasilidade
com uma feminilidade nacional.
O tabuleiro da baiana se transformou em um elegante chapu, temperando a
mulher branca, que nas narrativas nacionais aparecem como assexuais, de uma
sensualidade apimentada prpria s mulheres latino-americanas ou, em nosso contexto,
das mulatas, mas que por meio da mediao de Carmen, poderiam se afastar dos termos
pejorativos associados a ela. A incorporao da baiana nos bailes de carnaval articulava-
se com novos padres de brasilidade que se impunham s mulheres, deixando visvel a
demarcao das diferenas raciais. Carmen Miranda foi figura chave, pelos modernos

219
meios de comunicao de massa, deste processo no qual a sensualidade feminina
tornou-se uma caracterstica nacional e no caracterstica de determinado grupo.
Tal processo se estruturou no nos contornos das fronteiras nacionais, mas para
alm delas, nas representaes pelos meios de comunicao que influam na forma de se
conceber a identidade nacional. Processo marcado pela colonialidade, ou seja, por
uma matriz de poder colonial caracterizada pela racializao, na qual em dois momentos
se incorpora a sensualidade e feminilidade identidade nacional, atualizando as
narrativas coloniais em prol da submisso masculina Amrica do Norte, ao mesmo
tempo em que internamente, elegeu-se uma representao branca como produto
genuinamente nacional. A mulher nacional caracterizada pela sensualidade e
sedimentada nas figuras da mulata e de sua verso branqueada da morena, corrobora a
ideia da harmonia racial brasileira, paradoxalmente sedimentando algo que Mariza
Corra (1996, p. 50) argutamente sinalizou: a rejeio da negra preta da esfera ertica
nacional.
Da baiana de Carmen vemos o prottipo da morena ou da mulata carioca que
como na sua interpretao em Banana da Terra continuam a ser o centro das atenes
dos olhares masculinos, seja em programas de televiso ou como rainhas de bateria nas
escolas de samba. A imagem progressivamente se dissociou da baiana, que continuou
com a persistncia da ala das baianas nos carnavais vinculada negritude. E tornou-se
smbolo nacional: a morena ou a mulata brasileira cujo habitat natural seria o carto
postal do pas: o Rio de Janeiro.
Longe de significar caracterizao que nivelava as mulheres de diferentes
origens sociais, a sensualidade feminina sempre se caracterizou por distines sociais.
Da mulata a ser apresentada aos turistas estrangeiros no carnaval morena do corpo
dourado e do sol de Ipanema a ser valorizada desde os anos 60 com a bossa nova, a
mulher nacional era simbolicamente representada como algo homogneo, mas na
prtica se configurava a partir de uma sensualidade diferenciada, antes demarcada pelo
bronzeamento do que pela ascendncia afro-brasileira. O desejo colonial mostrou-se
pronto a ser reelaborado, mas no superado no fim do sculo XX e comeo do XXI, em
representaes dinmicas que visam o pblico nacional e internacional e movimentam o
mercado interno e externo.
A carreira de Carmen Miranda teve uma importncia crucial na valorizao
deste tipo de representao feminina e desejante da nao, em cumplicidade criativa
com os elementos simblicos que a precederam e foram redimensionados por ela.

220
Adentrando em dois contextos, sua trajetria rica em continuidades e criaes de
representaes caracterizadas pela colonialidade. No entanto, sua carreira no se
resume a isso, entre os desejos de duas naes, acessveis por meio dos deslocamentos e
repeties subversivas do hegemnico. Nos prximos captulos, abordarei como suas
interpretaes davam vazo a outros sentidos para determinados pblicos. Para tanto,
analiso no prximo captulo a importncia da pardia, do exagero e do humor em suas
atuaes no cinema norte-americano.

221
CAPTULO 5: PARDIAS, AUTOPARDIAS E EXAGEROS: DESLOCANDO
A IMAGEM DE CARMEN MIRANDA

5.1. A repetio sul-americana

Uma apresentao das Copa girls no nightclub Copacabana


entusiasticamente saudada pela plateia, enquanto o diretor Steve Hunt e seus assistentes
reclamam da repetio enfadonha dos nmeros apresentados na casa de entretenimento.
Concomitantemente, Lionel Deveraux (Grouxo Marx) e Carmen Navarro (Carmen
Miranda) chegam ao recinto para tentar um espao para uma apresentao artstica.
Deveraux almeja ser recebido pelo proprietrio para convenc-lo, mas rejeitado por
seu anonimato e acaba sendo expulso do local depois de sua insistncia. Trata-se das
cenas iniciais do filme Copacabana (Alfred E. Green, 1947), nas quais a plateia extra-
diegtica ainda no identifica os nomes das personagens de Marx e Miranda, causando
efeito humorstico: trata-se de Carmen Miranda sendo recusada de atuar em uma casa de
entretenimento norte-americana chamada Copacabana.
Copacabana foi o primeiro filme realizado por Carmen depois de sair da Fox, em
que dividiu o protagonismo do filme com o comediante Grouxo Marx. Segundo o
bigrafo Ruy Castro, o ator norte-americano buscou reduzir a importncia de sua colega
no filme: Grouxo fez com que a produo demitisse trs roteiristas at que o roteiro
final reduzisse Carmen a simples escada e deixasse todo o humor por sua conta
(CASTRO, 2005, p. 419).
O filme pensado para ser lanado em Technicolor, com material publicitrio em
cores, acabou materializado em preto-e-branco na busca de antecipar sua estreia. O
adiantamento tinha o propsito de acompanhar em tempo o lanamento do nightclub
Copacabana de Monte Proser em Los Angeles, uma filial de sua casa de entretenimento
de Nova Iorque, uma das mais reconhecidas, tendo sido inaugurada com apresentao
de Aurora Miranda (CASTRO, 2005, p. 418). Como detalhe importante, consta que
apenas Carmen e Monte Proser patrocinaram o filme, enquanto Grouxo Marx no
(CASTRO, 2005, p. 418).
A fico revela elementos da realidade, com destaque para transformaes que
j se operavam em relao figura de Carmen Miranda no mercado de cultura de
massas norte-americana. O filme foi lanado pela United Artists e contava com a
participao artstica das verdadeiras danarinas do Copa, revelando que a marca do

222
Brasil, e particularmente do Rio de Janeiro, definitivamente invadia o mercado de
entretenimento norte-americano, aproveitando o sucesso de Carmen. Com a proposta de
uma casa de shows em Hollywood com uma sala inspirada em Carmen Miranda, o filme
acabou por sinalizar a passagem da entertainer das telas de cinema aos palcos do
entretenimento. Um paradoxo da realidade pano de fundo da narrativa flmica em
forma de pardia: a mesma Carmen que sustentava o crescimento da comercializao da
imagem brasileira nos Estados Unidos, tinha seus nmeros latino-americanos, que
poucos anos atrs tiveram notvel sucesso, alcanado relativo esgotamento comercial.
De volta ao filme, em uma segunda tentativa, Sr. Deveraux consegue um meio
para entrar e conversar com Steve Hunt e, decidido a promover sua noiva, a descreve
como a maior estrela do Brasil que acabara de chegar aos Estados Unidos. Um dos
assistentes do proprietrio desdenha da proposta, contando que possui em sua lista de
talentos mais de dezesseis sul-americanas. Mesmo assim, o produtor consegue
convenc-lo a assistir uma de suas apresentaes. Em seguida, Navarro apresenta o j
reconhecido nmero Tico-Tico no Fub de Miranda, com seu turbante composto por
frutas e plantas. Steve no se empolga, pede outros nomes em uma fictcia lista de
talentos que trazia Deveraux, que por sua vez, tenta persuadi-lo que sua maior estrela
era a brasileira Navarro.
Andy Russel, interpretando ele mesmo como artista do Copacabana, l em voz
alta o nome de Madeimoselle Fifi na lista de Deveraux. Steve demonstra-se
entusiasmado em test-la no dia seguinte, buscando alguma atrao para seu sofisticado
salo de coquetis. Pressionada pelo companheiro, Carmen Navarro ento passa a
representar a personagem francesa. Ela se fantasia de Madeimoselle Fifi, expressando
um toque orientalista, ao usar um vu inspirado em uma propaganda pregada na parede
do hotel em que se hospedava. Tal propaganda trazia uma mulher indiana com vu para
a marca de cigarro chamada Mahatma cigarettes. A fantasia serviu para disfar-la
afim de que Steve no a reconhecesse como a mesma cantora do dia anterior.
A escolha do nome de Madeimoselle Fifi no parece ser fortuita. O exotismo e
sensualidade se voltam para o outro lado do Atlntico, em uma representao
orientalista da Frana no ps-guerra, quando os Estados Unidos passavam a investir
economicamente naquele continente com o Plano Marshall. No obstante, tal
personagem tinha uma histria curiosa no entretenimento norte-americano. Trata-se do
pseudnimo da atriz canadense Marie-Rose Angelina Yvonne Lussier, conhecida como
Fifi D'Orsay que se tornou famosa em Nova Iorque depois da Greenwich Village Follie,

223
cantando em francs a msica Yes, we have no bananas, msica esta que fazia aluso
falta de bananas no mercado norte-americano.
No lugar das bananas, Fifi canta em francs e supostamente impedida de tirar
seu vu por conta de suas tradies, sendo apresentada como uma marroquino-francesa.
Ao final de sua apresentao tenta, com Deveraux, convencer Steve a contratar Navarro.
Steve retruca dizendo que a brasileira boa, mas Fifi diferente. Uma personagem
homnima, apenas com o sobrenome distinto, contribui para a associao com a atriz.
Dizer que Fifi diferente equivalia a dizer que Carmen j era repetitiva. Ao fim das
contas, Steve Hunt decide contratar ambas e o efeito cmico do filme reside ento no
desafio de uma personagem interpretar a si mesma e a outra personagem
simultaneamente em uma mesma casa de show.
Em dilogo dentro do camarim com Lionel, Carmen demonstra-se preocupada
em relao a como interpretar as duas durante a mesma noite de apresentaes. Lionel
responde que simples e tira uma tabela de horrios sobre os shows e alternncias
aparentemente impossveis de serem cumpridos. Trata-se, outra vez, de uma referncia
carreira da prpria entertainer nos Estados Unidos, marcada por uma rotina de
trabalho com inmeros e diversificados compromissos profissionais.
Os jornalistas Earl Wilson e Luis Sobol e Abel Green interpretam eles mesmos
no filme, assistindo a uma apresentao de Fifi. No dia seguinte, os jornais e revistas
importantes so tomados por matrias como Fifi incendeia os fs, Nova Estrela
Francesa Lota o Copa, Furaco em Nova Iorque, O melhor que nos deu desde a
Esttua da Liberdade, Se sua temperatura continua a mesma depois de ver Fifi, ento
consulte um mdico. Matrias que parodiam a prpria recepo de Carmen,
ressaltando que foi o prprio Earl Wilson quem publicou seu apelido Brazilian
Bombshell em sua chegada nos Estados Unidos.
A novidade anunciada no era mais uma estrela sul-americana que no filme era
personificada por Navarro mas uma francesa que, para acentuar sua exotizao e
sensualidade, tinha ascendncia marroquina. H dois camarins para as artistas Carmen
Navarro e Mademoiselle Fifi. Steve Hunt avisa ambas com antecedncia prvia ao
primeiro show de cada uma, Navarro o atende e, quando este se volta para a francesa,
Navarro adverte que Fifi est descansando, para no fazer barulho. Nesta passagem,
Lionel faz papel de Fifi, deitado com perucas e de costas para a porta, enquanto Navarro
se compromete a avis-la, no lugar de Steve.

224
Em outro momento do filme, Lionel senta mesa com Steve e Anne, sua
secretria, e diz que tem outra atrao, desta vez um artista. Steve aceita test-lo e ele
decide por conta prpria apresent-lo ali mesmo, com a casa cheia, para desespero do
proprietrio. A estrela interpretada por Grouxo Marx duplicado, posto que tambm
estava presente assistindo e aproveitando da performance com Steve, Anne e a plateia.
A simultaneidade das personagens refora o no realismo flmico da narrativa,
sublinhando a temtica da iluso do cinema e colocando nfase na criao artstica
arbitrria das personagens.
A troca das personagens entre Fifi e Navarro comea a apresentar problemas
quando Steve Hunt passa a dar ateno especial a ambas, chegando a cortej-las. Como
Lionel se apresenta como namorado de Navarro, Steve passa a se dedicar a Fifi,
causando desentendimentos com Sr. Deveraux. Para complicar ainda mais a situao, o
ltimo acabou fazendo um pssimo negcio vendendo o contrato de Fifi por baixo
preo. Ento Lionel e Navarro decidem que a situao ficou insustentvel. Lionel diz
que Fifi virou a Sra. Frankenstein. A ideia de que a criatura se volta contra o criador
tambm encontra ressonncias na carreira de Carmen Miranda que, como no filme,
criou uma personagem para si da qual no conseguiu se livrar.
Deveraux e Navarro resolvem que Fifi desparea a partir de um plano de briga
entre ambas para dar cabo ao sumio. As duas personagens esperam a presena de
testemunhas no corredor dos camarins e ento Carmen, fazendo barulho, supostamente
agride Madeimoselle Fifi. Steve, Anne e muitas outras personagens se juntam para
ouvir a briga fictcia do outro lado da porta. Lionel ajuda Navarro a derrubar os mveis
no quarto e quebrar objetos, reiterando uma caracterstica das personagens de Carmen
em outros filmes: atirar objetos. Com a preocupao das demais personagens, a porta
arrombada e elas se deparam com Navarro que, perguntada sobre Fifi, avisa que esta
fugiu pela janela. Como parte do plano, Lionel simula uma morte afogada de sua
criao marroquino-francesa, jogando seu vu em um rio.
Deveraux acaba sendo acusado do crime de t-la afogado e de volta ao
Copacabana se v obrigado a fugir dos policiais que o procuram. Adentra no camarim
das Copa Girls e despista um policial, vestindo um chapu de abacaxi usado pelas
danarinas da casa. Em seguida capturado e interrogado. Lionel ento tenta, em vo,
explicar toda a criao da personagem. Mas a confuso s se desfaz quando Navarro,
vestida de Fifi chega ao local. Um policial afirmou que viu Carmen entrar no camarim e
sair como Fifi. Todos passam a acreditar que Navarro personifica a francesa quando esta

225
beija um por um e eles, j tendo sido beijados por Fifi em outra ocasio, admitem a
histria de Lionel. Por fim, a artista e sua criao acabam sendo contratadas por um
empresrio de Hollywood, seguindo os passos da real artista brasileira, quando se supe
um inevitvel sucesso no cinema da artista diegtica.
Passar-se por algum que no se revelou-se o mote humorstico da narrativa.
Navarro interpretava Madeimoselle Fifi, uma criao extica e sensual, tal como a
persona da prpria Miranda e suas personagens. Copacabana no se soma aos filmes
cuja narrativa voltada amizade pan-americana, mas centra-se parodicamente na
irnica histria de uma talentosa artista brasileira que por meio da criao de uma
persona caricatural, acaba por criar uma criatura que se volta contra ela mesma. No
resumindo a isto, essa criatura passou a tomar uma vida prpria, afastando-se da prpria
artista. No filme, Carmen tornava alvo de pardias que deslocavam a autenticidade de
uma estrela sul-americana, quando na vida real j era personificada por muitos outros
artistas do cinema e teatro nos Estados Unidos.
Carmen, finalmente saa de seus papeis em que a figura da baiana predominava
em suas vestimentas. Com o cabelo tingido de louro, no perodo da hegemonia absoluta
da blondie star, encontrou como par a personagem do comediante Grouxo Marx. Lionel
Deveraux no exatamente o melhor dos parceiros amorosos, esquivando-se de cumprir
obrigaes socialmente atribudas aos homens. Lionel est em noivado com Navarro h
dez anos e, ainda assim, no toma providncias para efetuar o casamento o que obriga
os dois a ficarem em quartos separados e, portanto, com mais despesas e, alm disso,
esquiva-se da obrigao de pagar as contas do hotel. Alm disso, galanteia mulheres em
sua presena. Trata-se, evidentemente, de um relacionamento por interesse, Deveraux
quer se aproveitar financeiramente do talento de sua artista.
Ao contrrio de seus filmes anteriores, o partner masculino no era interpretado
por algum considerado um gal do cinema. Ambos acabam por constituir um casal
cmico, bem distinto do padro hegemnico de Hollywood, sinalizando que a sada de
Carmen da Fox, provida de expectativas de abandonar seu esteretipo, revelou sua
influncia mais duradoura do que um contrato com um estdio. Sua viabilidade
profissional se mostrou atrelada a uma imagem marcada pelo excesso corporal e
comicidade.
Ironicamente, foi Copacabana que garantiu a Carmen encontrar o homem com
quem se casou, David Sebastian, muito embora com muitos rumores de que tal escolha
lhe trouxe infelicidades pessoais e profissionais. Para uma estrela que colecionara gals

226
namorados e affairs desde o Brasil com o esportista de elite Mrio Cunha e passando
por John Payne, casar-se com um assistente de produo desconhecido, inexperiente e
desprovido de dinheiro, suscita a interpretao de que tal escolha levou em conta sua
idade j avanada para o casamento, nos padres da poca, e o perodo em que sua fama
decaa no entretenimento norte-americano. Carmen Miranda fracassava em tentar
modificar sua imagem nos Estados Unidos, tornando-se refm de seu esteretipo.
Em contraste, Priscilla Ovalle (2011) analisa a mobilidade racial de Rita
Hayworth nos Estados Unidos. Margarita Carmen Cansino, filha de pai espanhol e me
descendente de ingleses e irlandeses, nasceu em Nova Iorque e foi descoberta por
produtores de Hollywood em uma casa de shows mexicana. Fez sua carreira em
apresentaes espanholas, como seu pai, na fronteira entre a Califrnia e o Mxico.
Nesse perodo, tingia seu cabelo de preto, para acentuar sua latinidade. Em 1937, a
Columbia a fez tingir seu cabelo de vermelho, buscando evitar uma estrela racializada
para os papeis que precisava, criando uma ambgua strawberry blondie. Sua persona
explorava uma ambiguidade racial que ao mesmo tempo em que a americanizava,
acentuava sua origem irlandesa e ainda com traos sensuais que persistiam em sua
caracterizao sexual, compondo filmes de cenrios latino-americanos ou espanhis.
Sua americanizao se torna patente quando em Youll Never Get Rich (1941)
ela representa a mulher de interesse do protagonista Robert Curtis (Fred Astaire) cujas
habilidades artsticas eram similares, proporcionando uma representao mais
equiparada entre os gneros. O erotismo era constitudo suavizando progressivamente
sua racializao, embora esta fosse aspecto importante para diferenci-la da blondie
star. Torna-se um prottipo de femme fatale em Gilda (1946) e mais ainda em The Lady
From Shanghai (1947), de Orson Welles, com o cabelo tingido de loura. As
negociaes raciais que mobilizaram sua negociao no mercado a integrando imagem
da mulher norte-americana, acabaram por influenciar mudanas nos padres de gnero
difundidos no cinema no que tange s representaes relativas mulher branca norte-
americana (OVALLE, 2011). Nas palavras da autora,

Diferentemente de Carmen Miranda, cujas tentativas de mobilidade


racial eram, em ltima instncia, limitadas por seu exotismo e
estrangeirismo, Rita facilitou sua simultaneidade semitica atravs
de mudanas de nome e anglicizao da cor de seu cabelo. Por meio
da dana, a persona de Rita reteve um tipo de exotismo racializado e
sensualidade que era simultaneamente glamorosa e americanizada.
(OVALLE, 2011, p. 71, traduo minha)

227
Em Springtime in the Rockies (1942) e outros filmes, as personagens de Carmen
tm ascendncia brasileira e irlandesa, sendo a ltima uma identidade intermediria,
mas mais prxima da identidade norte-americana. No obstante, Carmen no tinha o
ingls como primeira lngua e seu sotaque acentuado foi um dos aspectos centrais de
sua persona e personagens, bem exploradas pela Fox. O cabelo era um aspecto racial
distintivo na medida em que servia como caracterstica constituinte das latino-
americanas na representao flmica, da qual Carmen era uma exceo.
Em seu caso, a mobilidade racial por meio da transformao do cabelo era
limitada, visto que sua imagem racializada se sustentava no no cabelo moreno, mas nos
enormes turbantes que a fizeram reconhecida, desde que impactou na moda em Nova
Iorque. No incorporada imagem cannica da mulher do cinema norte-americano,
Carmen viu suas expectativas fracassarem de se tornar uma artista para alm do
esteretipo e prxima do modelo hegemnico.
Tais personagens interpretados por Carmen poderiam representar uma forma do
pblico acessar uma outra Carmen, por detrs de suas atuaes exticas e sensuais nos
nmeros musicais. Richard Dyer (2004, p. 14) argumenta que a percepo do pblico de
suas estrelas se baseia, historicamente, sob uma tenso entre a ideia de que h uma
produo das estrelas pelos estdios e que, em contraposio, h uma verdadeira pessoa
por detrs dessa produo, o que move seus fs a buscarem por detalhes de sua vida
privada.
Um deslocamento de sua imagem era possvel de ser lida quando reivindicava
aos estdios e deixava claro aos brasileiros que buscava outros papeis, mas lhe eram
negados. Carmen reivindicava uma imagem mais verdadeira de si, mas tambm do
Brasil, o que significava uma representao para alm da exotizao de Hollywood e
mais sintonizada com o universo cultural que se constitua como nacional no mercado
carioca. Declarava sua insatisfao com a representao do Brasil e seus vizinhos,
quando disse em entrevista para o Hollywood Citizen-News em 25 de julho de 1947 e
tambm na revista comoedia em agosto de 1946, respectivamente:

O que me incomoda nos quase dez anos em que estou neste pas a
maneira como a Amrica do Sul mostrada nos filmes. Somos
apresentados como um povo desligado, meio selvagem, que deixa
tudo para maana (amanh) e que canta msicas sensuais em cenrios
de luxo. No somos absolutamente desse jeito. Damos duro em tudo
que fazemos. Se dormimos a siesta, porque o clima obriga. Mas

228
comeamos a trabalhar todos os dias muito cedo e trabalhamos at
mais tarde do que as pessoas aqui. Os estdios deveriam pesquisar
melhor a Amrica do Sul para tentar mostr-la como realmente . As
pessoas na Amrica do Sul no gostam do jeito que aparecem na tela.
No as culpo. (CASTRO, 2005, p.439, traduo do autor)

Como eu no concordava com os enredos de meus dois ltimos filmes


e eu os fiz contra minha vontade, obrigada pelo contrato que me
prendia Fox, eu decidi que quando o contrato acabasse, eu no o
renovaria. (SHAW, 2013, p. 68, traduo minha)

Carmen carregou esta expectativa por muito tempo, publicada tanto na imprensa
brasileira como na norte-americana. Algo que parecia se concretizar com um suposto
filme Rio a ser filmado no Rio de Janeiro, com trilha sonora de Ary Barroso, filme
esse anunciado por vrios veculos. Chegou a ser noticiado como o filme de despedida
da brasileira do estdio em que trabalhava, por conta de sua insatisfao com seu
trabalho na Fox (Los Angeles Times, 17 de outubro de 1945, BDP). O filme acabou no
saindo e os cenrios sul-americanos foram substitudos por outros, com destaque para os
backstage plots baseados em Nova Iorque.
A expectativa de que conforme angariasse mais fama e reconhecimento, mais
poder teria sobre sua autoria e negociao sobre seus papeis tambm se revelou falso.
Seus ltimos filmes na Fox lhe reservaram menor espao na narrativa e diminuram seus
nmeros musicais, alm de substiturem as cores vivas do Technicolor que a
destacavam pelos filmes em preto-e-branco. A ampla fama de Carmen nos Estados
Unidos esteve atrelada sua reduo ao esteretipo, tornando-a alvo de crticas
incisivas em seu pas e tambm acarretando em certo esgotamento de sua carreira e no
fim de sua estadia em um dos estdios mais reconhecidos de Hollywood. Um retrato
triste, mas incompleto se no analisado em relao a suas estratgias que a deslocavam
do papel de vtima e colocavam nfase em seu agenciamento.
Ao lado das declaraes em que demonstrava sua expectativa de representar de
forma verdadeira seu pas, Carmen negociava com a imagem que se criava dela
atravs do humor e da pardia, imagem essa que se acentuara progressivamente. Desde
que chegou aos Estados Unidos, construiu sua persona a partir de uma caricatura
cmica. Ruy Castro (2005, p. 219) salienta como ela usou de forma consciente do
humor para lidar com a imprensa, no sendo objeto do riso alheio, mas rindo junto com
todos e acentuando o que se tornava maneirismos de sua persona.
O mesmo humor que a ajudou a construir uma persona na esfera pblica da
cultura de massas norte-americana, permitiu-lhe, em determinado momento de sua

229
carreira, o questionamento de seus limites ontolgicos, destacando-os como uma
construo arbitrria. Copacabana (1946) expe como o humor pode se tornar
deslocador quando baseado na autopardia, permitindo a Carmen certo distanciamento
do seu esteretipo, deixando claro os mecanismos pelos quais o poder o naturalizava.
I make my money with bananas (1947) foi uma das msicas que se destacavam
nas performances de Carmen em nightclubs. Neste nmero, em performance
humorstica, ela encarnava parodicamente seu esteretipo, enquanto cantava: I'd love
to play a scene with Clark Gable, With candle lights and wine upon the table, But my
producer tells me I'm not able, 'Cause I make my money with bananas. Assim,
expunha o mecanismo excludente calcado no amor branco heterossexual da
representao flmica, ao mesmo tempo em que adquiria uma certa distncia irnica em
relao a sua suposta autenticidade exotizada.
Judith Butler (2003) encontra na pardia um meio de subverso de normas
identitrias, quando esta expe a arbitrariedade social daquilo que se naturaliza por
meio de discursos e prticas. No se trata de qualquer pardia: o deslocamento
parodstico, o riso da pardia, depende de um contexto e de uma recepo em que se
possam fomentar confuses subversivas (BUTLER, 2003, p. 198). Nesse captulo,
volto meu olhar para aspectos deslocadores da trajetria de Carmen, enquanto no
seguinte exploro as leituras divergentes sobre a artista brasileira. Meu objetivo abordar
os elementos que do conta da complexidade da figura da Carmen Miranda, para alm
de seus vnculos com representaes hegemnicas, abordadas nos captulos anteriores.
Seguindo a orientao de Martn-Barbero (2009, p. 176) de deslocar a leitura
do campo ideolgico para ler no s a lgica dominante, mas tambm as diferentes
lgicas em conflito tanto na produo quanto no consumo, busco evidenciar o
entrelaamento de submisses e resistncias, impugnaes e cumplicidades
(MARTN-BARBERO, 2009, p. 268) presentes em sua trajetria. Questionando o
essencialismo na viso do autor hispano-colombiano em sua viso centrada nas
dinmicas de classe (SCOTT, 1998), exploro as dimenses de raa, gnero e
sexualidade deslocadas nas performances de Carmen Miranda.

5.2. Deslocamentos performativos

Em Doll Face (Lewis Seiler, 1945), Michael Hannegan (Dennis O'Keefe) aposta
que seu grupo deveria unir esforos para se apresentar na Meca do teatro de sua cidade.

230
Chita Chula (Carmen Miranda) ento pergunta ao produtor do Teatro Gayety burlesco e
popular de revistas: Voc acha que eu farei sucesso na Broadway tambm?.
Hannegan responde que ela provavelmente ser a prxima Carmen Miranda. Ela retruca
com surpresa e desdm: Carmen Miranda? Aquela do tico-tico c, tico-tico l?
gesticulando com as mos. E emenda: O que ela tem que eu no tenho? (traduo da
verso brasileira do filme).
Trata-se de Carmen Miranda interpretando ela mesma. Um papel j
supostamente repetitivo naquele momento, a ponto de causar desdm a Chita. Ser mais
uma Carmen Miranda no seria uma vantagem para a aspirante no teatro. No filme
preto-e-branco Doll Face, o nome da personagem, associando-a ao selvagem, revela o
prestgio decrescente que a estrela chegou naquele momento na Fox, mas ao mesmo
tempo, a performance propicia tambm uma leitura deslocadora: Carmen Miranda a
persona criada nos Estados Unidos era um papel a ser interpretado.
Passada a temtica pan-americana, o mote dos filmes no mais residia nos
nmeros latino-americanos de Carmen Miranda, com o exotismo de suas roupas e sua
performance corporal. Mas o estdio passara a apropriar-se comicamente da repetio
reconhecida no pblico das caractersticas das personagens de Carmen. Em uma viso
restrita, a autopardia de Carmen apenas reiterava, e de forma ampliada, sua reduo a
um esteretipo. No obstante, ao faz-lo afirmava o carter arbitrrio e construdo de
sua persona. Em outras palavras, de to marcantes e enfatizados, sua repetio
articulada com sua caracterizao exagerada e humor direcionado a ela mesma
causava a sensao do absurdo, ao invs da confirmao de uma essncia.
Tal questo nos leva discusso sobre as subverses performativas de Judith
Butler (2003), quando ela afirma sobre identidades dissidentes de gnero, que as
categorias parodsticas servem ao propsito de desnaturalizar o sexo [ou, no caso de
Carmen, a identidade da latino-americana] (2003, p. 177). Enquanto o gnero
naturalizado como objeto do discurso cientfico, notadamente com a hegemonia da rea
das cincias biolgicas, as representaes que lido a partir de Carmen Miranda atuam
pelo mercado de cultura de massas.
Neste quesito, trata-se de uma performatividade que calcou sua repetio, como
abordei nos captulos anteriores, em um histrico de representaes sobre a Amrica
Latina. Tratou-se de representaes que objetivavam a conquista de mercado,
orientando-se pelas demandas de certas representaes, cientes de se afastarem de um
suposto realismo. A performativizao da latino-americana por Carmen Miranda atravs

231
de suas performances criou uma visualidade que, por sua vez, comps formas de
subjetivao identitrias de seu tempo.
Considerando Carmen Miranda partcipe da criao de tal visualidade, sua
construo se deu a partir da repetio estilizada de certos aspectos que conferiram a
suas atuaes uma marca registrada, considerando que a estilizao um ato que tanto
intencional como performativo, onde performativo sugere uma construo dramtica
e contingente do sentido (BUTLER, 2003, p. 199). Neste sentido, a repetio a um
s tempo reencenao e nova experincia de um conjunto de significados j
estabelecidos socialmente; e tambm a forma mundana e ritualizada de sua
legitimao (BUTLER, 2003, p. 200). Para Butler,

Como organizaes historicamente especficas da linguagem, os


discursos se apresentam no plural, coexistindo em contextos temporais
e instituindo convergncias imprevisveis e inadvertidas, a partir das
quais so geradas modalidades especficas de possibilidades
discursivas. (2003, p. 208)

Em sua perspectiva, no h um eu que seja anterior convergncia [dos


mltiplos discursos] ou que mantenha uma integridade anterior sua entrada nesse
campo cultural conflituoso. H apenas um pegar as ferramentas onde elas esto, sendo
esse prprio pegar facultado pela ferramenta que ali est (2003, p. 209). E nessa
ao, de estilizar a partir do existente que se constituem os atos corporais subversivos
que assim o so por revelar a estrutura imitativa da identidade e sua contingncia.
Portanto, a subverso no anterior ao discurso, mas quando o discurso se vira contra
si, apresentando suas fissuras. Nestes atos, h a dramatizao do mecanismo cultural
que naturaliza as identidades, questionando sua pretensa essncia por de trs da
performance:

Como efeito de uma performatividade sutil e politicamente imposta, o


gnero um ato, por assim dizer, que est aberto a cises, sujeito a
pardias de si mesmo, a auto-crticas e quelas exibies hiperblicas
do natural que, em seu exagero, revelam seu status
fundamentalmente fantasstico. (BUTLER, 2003, p. 211)

Butler (2003) toca em um aspecto fundamental da caracterizao de Carmen


Miranda: o hiperblico e o fantasstico, reunidos na construo de sua imagem
extravagante. Carmen era mais do que uma representao de uma tpica mulher latino-
americana morena. Acompanhando o auge do Technicolor, representava a encarnao

232
de uma fantasia, nos dois sentidos que a palavra em portugus denota: a fantasia
colonial de nvel psquico e cultural, relacionada exotizao, alegria e sensualidade,
compondo as representaes dos territrios colonizveis; e uma fantasia tambm no
sentido de vestimenta, tal como no carnaval. A baiana estilizada permitia que Carmen
incorporasse literalmente, tornasse corpo elementos prprios a representaes de um
continente, em especial unindo sensualidade com as frutas tropicais.
Carmen Miranda, portanto, acabava por denunciar em vrios momentos a
prpria performance como artifcio, em tese contrariando a busca de uma representao
ideal que carregasse como objetivo a fidedignidade:

[...] porque uma boa atuao significa que j no possvel fazer uma leitura
ou que a leitura, a interpretao, se apresente como uma espcie de olhar
transparente, em que coincide o que aparece e o que significa. Em
contraposio, quando divergem o que aparece e o modo em que se l, o
artifcio da representao pode ser interpretado como artifcio. Os
distanciamentos ideais de sua apropriao. Porm a impossibilidade da
leitura significa que seu artifcio surte efeito, parece que se logra a
aproximao autenticidade, o corpo que representa e o ideal representado
se fazem indistinguveis. (BUTLER, 2002, p. 190, traduo minha)

O aspecto fantasstico de suas atuaes e vestimentas, sempre constitudo de


forma hiperblica, denunciava um contraste com a ideia de uma autntica latino-
americana identificada em suas performances corporais. A estilizao da baiana, que
inclua e substitua os elementos da vestimenta, permitia que se explorasse a imagem
hiperblica de formas distintas, dentro da esttica do filme em cores, aumentando e
sofisticando sua exotizao. Se, em um primeiro momento, sua interpretao extica era
contrabalanada com uma sofisticao, expressa nas diferentes indumentrias
elaboradas por Travis Banton, ela progressivamente encarna o excesso, a exuberncia e
a ostentao visualizada em suas roupas e performances.
Em seus primeiros filmes, suscitava uma representao que de alguma forma
engrandecia os bons vizinhos da Amrica Latina. A repetio do exagero de suas
personagens, sua forma hiperblica mxima no filme The Gangs All Here (1943) de
Busby Berkeley, acabou por realar o artifcio e a fantasia de sua construo:

Em 1943, em The Gangs All Here, suas verses da fantasia da baiana


alcanaram o absurdo, com propores altamente camp,
particularmente em seus turbantes crescentemente bizarros. No
nmero musical de abertura, quando Carmen aparece desembarcando
em um cais de Nova Iorque do navio SS Brazil com outras cargas

233
brasileiras, ela veste um turbante ornamentado o qual parece ser um
grande prato de frutas, uma colheita acima e uma saia decorada com
pompoms brilhantemente coloridos, uma fantasia que claramente
objetiva evocar conotaes de alegria de viver e tropicalidade.
(SHAW, 2013, p. 52-53, traduo minha)

Ao lado de sua indumentria, Carmen Miranda criou maneirismos que iam de


sua forma singular e sensual de mover as mos danando ao sotaque reforado, criando
um papel facilmente identificvel e mesmo repetvel. Algo que passou a ser utilizado,
argutamente, nas criaes flmicas em que no atuava para efeitos cmicos.
Descontextualizando a baiana que no fazia mais sentido no pas anglo-saxo e
participando de um universo simblico facilmente compreendido como arbitrrio, posto
que igualava elementos culturais de pases distintos em uma s representao, Carmen
Miranda pde cada vez mais inventar uma persona com certa distncia irnica dela.
Neste sentido, Carmen desenvolveu uma conscincia da pardia que representava e
criou situaes cmicas em cima de sua persona. De outro lado, a produo flmica de
suas personagens soube lidar com este elemento de forma a comercializ-lo.
O humor da pardia reside no questionamento do suposto original e autntico.
Nas palavras de Butler, conceber a identidade como performativa entender que o
original uma cpia e, pior, uma cpia inevitavelmente falha, um ideal que ningum
pode incorporar. Nesse sentido, o riso surge com a percepo de que o original foi
sempre um derivado (BUTLER, 2003, p. 198). A dramatizao artstica passa a ser um
espao no qual a performatividade coloca em cheque seus prprios mecanismos,
solapando a crena em uma autenticidade anterior criao. E o exagero surge como
uma ferramenta disponvel para tal, aproximando o que tido como natural ao absurdo.
A repetio do exagero j causava efeito cmico em Springtime in the Rockies
(1942), no dilogo entre Rosita e McTavish (Edward Everett Horton): em uma cena na
qual ela est usando uma vestimenta da baiana branca e lisa, ela deixa claro que ela
prefere um estilo muito mais elaborado, declarando: Ele precisa de mais prolas,
algumas flores, frutas, balangands, adereos e bugigandas (SHAW, 2013, p. 52,
traduo minha). Na cena seguinte, ela aparece socialmente com a baiana exoticamente
produzida para a apreciao dos demais.
Em outro momento do mesmo filme, Rosita representa uma autoparodia de
Carmen, quando diz, conversando no banheiro com a personagem Vicky Lane (Betty
Grable): Eu gosto dos seus cabelos louros, so bonitos. Acho que vou tingi-los como
os seus. Vicky responde: Que espirituosa, Mas meu cabelo louro natural. Rosita

234
ento sugere: Pois ento feche sua boca, no diga nada e ningum saber a diferena
(traduo da verso brasileira do filme). O dilogo sugere o artifcio, questionando a
ideia de uma naturalidade que caracterizaria o ator, em contraste com a crena difudida
pelo star system de uma coerncia entre a persona da estrela e sua vida pessoal.
Ao mesmo tempo em que Rosita salienta a artificialidade da criao da imagem
de Carmen, valendo mo da prtica de tingir os cabelos, ela coloca em questo, atravs
do humor, o modelo de beleza hollywoodiano. Conforme abordei no captulo 3, o
humor era parte constitutiva da persona que criava em sua relao com a imprensa e seu
pblico. O agenciamento de Carmen carregava aspectos prprios da cultura popular
carioca na qual fez sua trajetria, conforme abordarei no prximo captulo, e enquanto
elemento que a caracterizava, foi habilmente utilizado pelo cinema na construo de
suas personagens, acabando por criar leituras deslocadoras do esteretipo de latino-
americana desempenhado por Carmen.
Em Greenwich Village (1944, Walter Lang), sua personagem Princess Querida
O'Toole, uma cigana que l a sorte em uma casa de entretenimento de baixo calo,
visivelmente disposta a enganar seus clientes, apresenta-se com identidades diferentes
em cada situao. Em um primeiro momento se apresenta como uma princesa
indgena do grupo Black Foots e ressalta ser uma autntica ndia norte-americana.
Em outro momento, diz ser da ilha polinsia do Samoa, quando Bonnie Watson (Vivian
Blaine) a desmente, contando que ela natural de Buffalo, NY, sendo filha de me
portuguesa.
A pretensa autenticidade da princesa indgena aparece no filme como uma piada,
j que Querida representa uma alteridade intercambiante que acaba por tornar qualquer
uma das representaes estereotipadas objeto de humor. Em muitos filmes, estrelas
latino-americanas, como Lupe Velez, Dolores Del Rio e Rita Hayworth, interpretam
personagens de contextos distantes, constitudos tambm pela exotizao, racializao e
sensualidade. Em Greenwich Village, a personagem de Carmen, ao se apresentar como
uma alteridade de diversos contextos, acaba por destacar-se de seu esteretipo ao
equipar-lo com os demais, todos vistos ento enquanto fices cinematogrficas.
Concomitantemente, aponta de forma humorstica a construo arbitrria e homloga de
um Outro do modelo hegemnico norte-americano no cinema.
Enquanto na narrativa ela se desloca de seu esteretipo, transformando a
alteridade em artifcio, no nmero musical Give me a band and a bandana ela cria um
sofisticado dilogo com o pblico brasileiro. Em um pout-pourri que finaliza o nmero,

235
ela canta O que que a Bahiana tem?, Quando penso na Bahia e volta msica
inicial norte-americana. Nessa passagem, canta sobre suas saudades da Bahia e termina
dizendo E se eu pudesse eu ia para l! e, para completar ela emenda: I don't care for
a hoochie-coochie, and I don't like the shimmy, trick my feet to a tropical fit.
Em um perodo auge das crticas brasileiras que, em grande parte se baseavam
na sua descaracterizao musical do samba que se incorporava no cinema misturando-se
com outros ritmos latinos, como se estivesse dizendo que no gosta dos ritmos norte-
americanos e sim do Brasil e do ritmo brasileiro: o samba dos baianos. Uma mensagem
que s compreendida pelo pblico brasileiro que tem acesso ao que fala em portugus
e legenda da parte em ingls, podendo fazer a ponte entre as letras. Enquanto o
pblico norte-americano via a repetio de um nmero musical que a associava
latinidade e sua racializao, o pblico brasileiro estava apto a captar a artimanha da
artista, negociando com seu esteretipo.
O sentido era possvel j que a autoria de seus nmeros ficava relativamente em
sua mo e a criao harmnica e de letras passava pelo crivo do Bando da Lua. Esse
apenas um exemplo de vrios nos quais Carmen Miranda parece dialogar com o pblico
de seu pas, seja atravs de letras de msicas ou de dilogos nos quais aparecia trocando
o ingls pelo portugus. Para o pblico dos Estados Unidos, a troca ainda tinha um
sentido cmico, enfatizando a falta de controle racional da personagem. Torna-se
relevante lembrar que muitas das expresses eram dificilmente traduzveis ao ingls,
posto que se tratasse de grias do portugus falado na capital carioca e que tendia a se
difundir pelo pas via msica e cinema. Neste aspecto, h um dilogo privilegiado entre
os iniciados. Ou seja, entre Carmen e o pblico brasleiro. Nas palavras de Lisa Shaw:

Enquanto que para norte-americanos e outros pblico alheios lngua-


portuguesa essas msicas simplesmente adicionavam um toque
extico ao nmero Latino, que apresentavam danarinos
sapateando ao fundo vestindo sombreiros vermelhos de estilo
mexicano, para os brasileiros, eles significavam muito mais. (SHAW,
2013, p. 60, traduo minha)

quando o filme foi exibido no Brasil, entretanto, essas letras teriam


apelado ao pblico local por meio do recurso que predispunham para
entender expresses coloquiais e referncias cultura popular
brasileira (samba e carnaval, por exemplo), especialmente os
elementos afro-brasileiros. (SHAW, 2013, p. 59, traduo minha)

236
A autora inglesa salienta que a tcnica de mudana do cdigo lingustico j era
abordada por Carmen Miranda antes de migrar aos Estados Unidos, quando muitas das
canes em portugus eram recheadas de expresses em ingls. Cita-se a letra de 1932
Goodbye de Assis Valente, na qual satirizava a influncia do ingls ao cantar:
Goodbye, goodbye boy. Deixe a mania do ingls. Lisa Shaw salienta que era
obviamente consciente das possibilidades lingusticas da troca de cdigo, uma tcnica
que ela aperfeioaria nos papeis hollywoodianos (2013, p. 15, traduo minha).
Para alm de recurso cmico, trata-se de um procedimento carnavalesco, o qual
abordarei em detalhes no captulo a seguir, caracterizado pela inverso da branquitude
materializada pelo domnio da lngua inglesa. Na inverso, o ingls que ditava moda no
Brasil era substitudo por expresses em portugus. Carmen leva o mesmo
procedimento para os Estados Unidos, quando certo pblico afinado com as estratgias
de inverso na capital poderia compreend-la como algum que trapaceava o
entendimento do pblico norte-americano, o mesmo que a reduzia a um esteretipo.
Enquanto tal procedimento dependia do compartilhamento de um mesmo cdigo
lingustico entre os iniciados restritos lngua portuguesa, Carmen tambm estabelecia
um dilogo deslocador com o pblico norte-americano em outros momentos.
As pardias, o humor e o exagero eram algo constituinte da persona e das
personagens flmicas de Carmen, explorados comercialmente pelos estdios. Aps o
fim do contrato com a Fox, Carmen inaugurou uma carreira de apresentaes em
nightclubs por todos os Estados Unidos, tambm passando pela Europa e por Cuba.
Chegou a ser considerada pelo Daily Mirror N. Y, em 8 de junho de 1955 a mais
entertainer mulher mais bem paga em 1951(traduo minha). O sucesso dos palcos
est atrelado ao desenvolvimento acentuado de tais atributos humorsticos. Em 1947, no
ano seguinte de seu filme com Grouxo Marx, apresentou-se no verdadeiro Copacabana,
em Nova Iorque. A Carmen Miranda entertainer cantava I make my money with
bananas de Ray Gilbert e se auto-parodiava nos palcos:

Foi ali, no Copacabana, que (...) Carmen inaugurou a prtica de soltar


as melenas no palco, para mostrar que estava longe de ser careca e
que, ao contrrio, tinha abundante cabelo. Se sentisse que a platia no
estava acreditando, pedia a algum da orquestra que o puxasse com
fora e gritava Ai!. Aos que se espantavam de v-la loura,
apressava-se em informar: tingido como se ningum soubesse.
(CASTRO, 2005, p. 435)

237
A stira sobre si mesma, apontando a falsidade da cor de seu cabelo, atingia o
ponto mximo quando mostrava o que antes fazia esforo para esconder em suas
performances, como cita o bigrafo Ruy Castro: Olhem s. minha cicatriz favorita. E
justamente onde aparece mais! Nos filmes, aplico uma borboleta ou uma flor em cima,
para disfarar. Mas, no show, fao questo de mostrar para todo mundo. Gosto que
saibam que estive doente, para que fiquem com pena de mim (CASTRO, 2005, p.
435). Carmen adquirira tal cicatriz em uma operao em 1943 e passou a escond-la em
suas aparies e filmes, at o momento em que decidiu us-la a seu proveito. O cansao
derivado de uma rotina pesada de shows resultou que Carmen desabou no palco e, em
seguida, foi diagnosticada com infeco intestinal e encerrou a temporada, seguida de
uma briga judicial com o nightclub Copacabana.
Carmen Miranda fez sua carreira nos Estados Unidos nos palcos, sejam eles dos
teatros da Broadway ou dos filmes de Hollywood em seus nmeros musicais. Uma
caracterstica marcante era predominante em suas apresentaes: a sensualidade,
demarcada na cadncia de sua cintura, em parte de sua barriga e pernas vista e,
especialmente, na forma de mexer suas mos. No fim da dcada de 40, j chegando aos
quarenta anos, a sensualidade passou a no ser mais um diferencial de suas atuaes,
quando sua imagem j estava atrelada caricatura que fez de si. A estratgia de Carmen
foi potencializar o humor:

Carmen calculava que sua carreira teria de passar por uma


reformulao em pouco tempo, porque seu estilo de danar, gil,
dinmico e malicioso, comeava a ficar imprprio para uma mulher j
perto dos quarenta. O que era propositadamente uma caricatura
perigava reduzir-se a uma caricatura da caricatura. E no Brasil, onde
ela tanto gostaria de ser aceita, j havia quem achasse isso. (CASTRO,
2005, p. 426)

As crticas brasileiras continuavam a requerer que Carmen cumprisse sua


pretensa misso de Embaixatriz do Samba. Carmen, ao se ver impedida, soube
potencializar sua verve humorstica ressaltando ainda mais sua caricatura. Em 3 de
junho de 1948, no Citizen-News (Arquivo da MHL), a matria Carmen est cheia das
saladas de fruta (traduo minha) comenta sobre o compositor Ray Gilbert, sua
msica I Make My Money with Bananas e Carmen Miranda. De forma cmica, conta
que embora a entertainer, como na msica, ganhasse muito dinheiro, boa parte dele era
para gastar com alfaiates, turbantes e sapatos de plataforma.

238
Em 1951, duas matrias sobre Carmen foram publicadas no L. A. Daily News
(Arquivo da MHL). Em 22 de maio, Darr Smith contrasta as roupas de Carmen nos
palcos e em sua casa, enfatizando que sua face quase no reconhecida sem o turbante.
Em 20 de janeiro, Erskine Johnson diz que ela fala ingls perfeito. Atribui isso a seu
marido, Dave Sebastian, que supostamente a corrigiria insistentemente. O reprter diz
que Carmen implorou a ele para no falar que ela tem um bom nvel de ingls, caso
contrrio a arruinaria sua carreira. E emenda, nobody quotes Carmen Miranda without
an accent. Passa ento a falar com o jornalista a partir de seu velho e conhecido
sotaque, contando como seu ingls melhorou desde que chegou: They give me ticher.
Im oct in Ingliss and theeenk in Portuguese. My head, she got big ache. Ao fim da
reportagem, Johnson completa com a frase da brasileira: Sobre o sotaque, ningum vai
acreditar se voc disser que eu no tenho, querido (traduo minha).
Muito provvel que o tpico da entrevista de Johnson sobre o sotaque foi
sugerido pela prpria Carmen, reproduzindo o que ela fazia em palco: apropriar-se
comicamente do prprio esteretipo. A ltima frase da matria acaba por colocar a
nfase na autoria de Carmen sobre sua imagem, afinal no era o reprter que controlava
o que se compreendia dela. Tal aspecto caracterizador do final da carreira de Carmen,
quando esta passava a perceber que o controle de seus papeis nos Estados Unidos
estavam cada vez mais distantes de sua mo.
Nesse perodo, j participante da televiso norte-americana, Carmen requerida
por um reprter a retirar seu chapu e mostrar seu cabelo, como que para provar a
existncia dele. Em seguida, ela mostra seus cabelos cacheados e louros. Diz ento que
quando anda nas ruas as pessoas dizem que ela se parece com Carmen Miranda. Ela
responde, em erro proposital e cmico: dont be silly, shes to young to be Carmen
Miranda. Em seguida, diz que seu cabelo no est na cor natural, mas que foi tingido
(bleached) em Hollywood. Ento, fala para o pblico no esquecer que ela faz
dinheiro com bananas e termina dizendo: very glad to bleach you, ou seja, trocando o
meet por bleach na expresso em ingls que denota prazer em conhecer o
interlocutor (SOLBERG, 1995).
Todas as entrevistas so a constatao de que a imagem de Carmen Miranda
passava por sua autoria, renegociando os limites nos quais era apresentada, tendo certo
domnio sobre seu esteretipo. Ela ento desenvolvia outros sentidos que acentuavam
seu agenciamento por meio do humor, fazendo circular tal imagem em pblico e torna-
la acessvel a seus fs. A essa altura de sua carreira, a autopardia era dominante em

239
suas atuaes artsticas, revelando-se um elemento que contribua ainda mais para
questionar sua autenticidade e fazer de Carmen no mais que um papel.

5.3. Carmen Miranda alm dela mesma: personificaes de um papel

A pardia algo definidor de Carmen Miranda desde que chegou aos Estados
Unidos e passou a interpretar a persona que criava dentro das limitaes do novo
contexto. Isso no significa dizer que o pblico compreendia desde sempre sua
autopardia. A recepo via cultura de massas abre para vrios sentidos e a percepo
inicial muito difundida era de se tratar de uma entertainer autenticamente sul-
americana. Nada atesta tambm que Carmen Miranda no incio de sua carreira se
autoparodiava com a finalidade de deslocar os sentidos do esteretipo em que estava
circunscrita. Antes, ela o mobilizou comercialmente at o momento em que viu sua
persona e personagens relativamente esgotadas comercialmente.
Facilitada por estar includa em um universo simblico novo, do qual tomava
certo distanciamento irnico, posto que participava da criao arbitrria de uma
personagem no compartilhando os mesmos significados que seus interlocutores,
Carmen adquiria maior conscincia de seu agenciamento enquanto pardia. Quando
encontrou sua persona e personagens menos valorizadas no cinema norte-americano,
aproveitou do exagero de suas personagens e persona e explorou-as caricaturalmente.
Tais estratgias circulavam entre um seleto pblico interessado em acessar a
vida e trajetria da entertainer brasileira. Quando o significado da pardia se difundia, o
arbitrrio no processo de significao poderia saltar aos olhos e, junto com ele, as
hierarquias no processo de representao. Para alm de suas performances, o
distanciamento entre a persona e a artista deriva ainda de um processo que Carmen
empenhou com outros atores. Carmen passou a ser alvo de interpretao cmica na
cultura de massas norte-americana, tornando-se mesmo um papel a ser interpretado.
A ideia de Carmen Miranda como um papel tem incio no perodo em que
migrava para o mercado norte-americano. Sonja Henje ganhara uma fantasia da baiana
quando estivera no Brasil, auxiliando Lee Shubert a contrat-la. A atriz fez sucesso
vestindo a baiana na sua volta aos Estados Unidos em alto mar. No mesmo 1939 que
levou Carmen Miranda Broadway, Josephine Baker fez uma interpretao da baiana
quando passava pelo Rio de Janeiro, em temporada no Cassino da Urca (CAYMMI,
2013, p. 167). No entanto, ambas estavam interpretando uma personagem brasileira,

240
distinta da comicidade que veio a se caracterizar no pas do norte. Sua caracterizao
pardica se difundia no mercado norte-americano quando ela passava a ser reconhecida
na Broadway a partir de seu tipo cmico e sensual.
Em 22 de outubro de 1939, o New York Herald Tribune publicou matria sobre a
personificao de Carmen por Imogene Coca, em atuao que contou com a ajuda da
entertainer brasileira. Alm da seduo corporal ensinada a Coca, segundo o jornal, o
depoimento da artista norte-americana a caracteriza da seguinte forma: Miranda tem
um timo senso de humor (...). Ela no se leva nem um pouquinho a srio, ela se
apresenta mais burlescamente para meu benefcio do que eu poderia imaginar (SA,
traduo minha) e continua a falar sobre a msica O que que a baiana tem? a qual
foi ensinada a cantar, embora no faa ideia do sentido da letra. Os sentidos que Carmen
trazia ao pblico norte-americano no derivavam de suas letras, como no Brasil, mas de
certos maneirismos que eram aprendidos pelos personificadores.
A primeira personificao no cinema foi feita por Mickey Rooney em Babies on
Broadway (1941), filme de Busby Berkeley pela MGM. Na parte final do filme, a
companhia de teatro liderada por Tommy Williams (Mickey Rooney) apresenta vrios
nmeros, dentre eles a cmica interpretao da Carmen Miranda. No auge da celebrao
cinematogrfica da Boa Vizinhana, Williams apresentado para a plateia diegtica por
Penny Morris (Judy Garland) como a a Bombshell[that] just fell over Brazil!.
Tommy entra ento no palco vestido de Carmen Miranda com colares, pulseiras
e balangands e com o tradicional vaso de frutas, ento ao lado da cabea. Junto com
grupo que imita o Bando da Lua, canta em mal portugus Mame eu quero, rebolando
de forma cmica e com o desfecho no qual repete mama, mama, mama, como que
perdendo o controle sob a msica e ento grita enfaticamente: Hey, ma!, levando a
plateia diegtica ao riso. O nmero apresenta uma comdia com a persona de Carmen
Miranda e refora o engajamento flmico com a Poltica de Boa Vizinhana,
remetendo personagem de primeira importncia no cinema do perodo.
Rooney levou a plateia aos aplausos na estreia no Graumans Chinese Theater
(Los Angeles Times, 23 de janeiro de 1942, BDP), em especial por sua personificao
da atriz sul-americana. Para tanto, Carmen Miranda participou dos ensaios da filmagem,
ensinando o ator a interpret-la a partir das caractersticas que a fizeram conhecida e
reconhecida pela plateia. Trata-se de um momento no qual se encontram pessoalmente
Berkeley e Carmen Miranda antes de The Gangs All Here. Nas imagens a seguir,
observa-se Carmen Miranda ensinando o ator norte-americano a como interpreta-la:

241
Em Road to Rio (1947, Norman Z. McLeod) Hop Lips Barton (Bob Hope)
quem interpreta Carmen Miranda. Na narrativa, Barton e Scat Sweeney (Bing Crosby)
chegam a Campinas, aps passagem pelo Rio, em busca de salvar a magnata Lucia
Maria de Andrade (Dorothy Lamour) de sua tutora Catherine Vail (Gale Sondergaard)
que a controlava por meio da hipnose com o objetivo de faz-la casar com seu irmo. O
cenrio da cidade do interior paulista rural e as personagens se definem pelas saias
rodadas femininas e chapus mexicanos masculinos pretensamente prprios ao lugar,
enquanto a trilha sonora que acompanha a trama quando as personagens esto na cidade
Batuque no Morro de Humberto Porto, Herivelto Martins e Ozon de 1938.
Em uma interpretao cmica, Hope se transveste, remexendo as mos e com
um cesto de frutas na cabea, quando localizado no Brasil fazia bvias referncia
Carmen Miranda. A comicidade se desenvolvia na interao entre Hope e Crosby
participando do mesmo nmero sob o fundo musical de samba, enquanto suas
personagens fugiam, disfarando-se dos seguranas de Catherine.
Em Scared Stiff (1953, George Marshall) Jerry Lewis quem interpreta Carmen
Miranda que, por sua vez, acompanha a personificao atuando como Carmelita
Castinha no filme. Lewis apresenta-a de modo ainda mais caricatural, realando
caractersticas da persona de Carmen acessveis ao preto-e-branco, deixando toda sua
barriga mostra e caracterizada pelo turbante cheio de frutas. O humor se baseia
especialmente no fato de que a apresentao era uma dublagem e o disco apresentava
problemas, repetindo trechos, adiantando e atrasando o tempo, levando o personificador

242
a se esforar para seguir a msica Mame eu quero que interpretava. No meio da
apresentao, tira uma banana do seu chapu e, comendo, continua a cantar.
A pardia no apenas se referia a Carmen Miranda, mas a outras pardias j
conhecidas. O artifcio cmico de retirar as bananas era prprio das interpretaes
autoparodsticas da prpria entertainer em nightclubs. O final da apresentao remete,
por sua vez, personificao de Mickey Rooney em Babies on Broadway, quando no
fim da msica o personificador em Scared Stiff se perde no tempo e no dubla com a
voz de Rooney a expresso hey ma! inventada por ele em sua pardia e reproduzida
no filme. Outra referncia o episdio televisivo de I Love Lucy de 1951 em que Lucile
Ball dublava a prpria Carmen cantando Mame eu quero e tambm lidava
comicamente com o defeito do disco que adiantava e atrasava o tempo da msica. A
interpretao de Lewis, portanto, uma pardia da pardia de Carmen, com a presena
diegtica da prpria artista na plateia.
Arthur Blake, com um enorme chapu de frutas (Los Angeles Times, 6 de
outubro de 1953, BDP), e Jimmy Durante (Los Angeles Times, 27 de novembro de
1949, BDP) com seu chapu de abacaxi e orqudeas, tambm personificaram Carmen
Miranda respectivamente no teatro e na televiso. A pardia se estendia aos desenhos
animados, quando a imagem de Carmen compe com Pernalonga e Patolino os
episdios Whats cookin, Doc? (1944) e Slick Hare (1947) e com Tom e Jerry o Baby
Puss (1943). A imagem de Carmen Miranda passava ento a representar um papel a ser
encarnado na cultura de massas norte-americana, destacando-se da prpria artista.
Carmen seria a partir de uma pesquisa da revista Variety em 1951, a pessoa mais
imitada por profissionais e amadores nos Estados Unidos (CASTRO, 2005, p. 488).
Carmen Miranda se tornou uma imagem paradigmtica do sculo XX, pois
facilmente reconhecvel e altamente vendvel. Ainda hoje a figura de Carmen Miranda,
cujos direitos autorais so dominados por seus herdeiros, recorrentemente procurada
para fins comerciais (SHAW, 2013, p. 85-86) De fato, esteve associada a muitas
marcas, desde o Brasil. Carmen era garota propaganda da marca de desodorante
feminino Leite de rosas e do sabonete e pasta de dente Eucalol. Nos Estados Unidos,
alm de sua influncia na moda feminina, dos turbantes aos sapatos plataformas,
apareceu na publicidade de carros da Ford, dentifrcio Kolynos, cerveja Rheingold,
empresa Braniff International Airways, General Electric rdios e da Barbizon Language
School. Alm delas, influenciou a Chiquita Banana da United Fruit Company.

243
A perenidade de sua imagem fora do pas est ligada menos a sua histria
enquanto artista do que a imagem que criou a partir de sua indumentria e maneirismos,
crescentemente personificados. Sua trajetria nos Estados Unidos criou uma imagem
frequentemente associada a uma fantasia que permeia o universo simblico
contemporneo dos Estados Unidos. No meu perodo de estgio na Universidade da
Califrnia de Santa Cruz, foram vrios os testemunhos que ouvi de pessoas que j se
vestiram de Carmen Miranda no Halloween. Aps uma apresentao da minha pesquisa
para estudantes de graduao na UCSC, um aluno chegou a comentar que agora
entendia a histria do que ele apenas conhecia como uma fantasia nos Estados Unidos.
Em conversas com Ana Maria Seara, professora de portugus daquele campus,
ela relevou discutir Carmen Miranda com seus alunos que, a prncipio, dizem no
conhece-la, mas logo que tomam contato com a Lady In the Tutti-Frutti Hat, a
reconhecem. A mesma resposta de alunos teve a professora da Universidade do
Arizona, Melissa Fitch (2011, p. 57) e mesmo a autora inglesa Lisa Shaw:

Como uma professora de cultura popular brasileira, eu frequentemente


apresento aos estudantes uma imagem de Carmen e no cesso de ficar
surpresa quando muitos jovens britnicos, nascidos nas dcadas de
1980 e 90 so familiares com a imagem, mas so geralmente
incapazes de explicar porque ou mesmo de identifica-la. (2013, p. 02,
traduo minha)

A explicao para tal automizao da imagem de Carmen Miranda, recuperando


sempre o grande apelo ao pblico e capacidade de comercializao por meio de sua
imagem, pode ser aferida em seu agenciamento, como descreve a mesma autora:

o texto de estrela de Carmen era facilmente comercializvel por conta de sua


caricaturizao consciente, do tipo cartoon, derivada em parte do papel ativo
que a prpria Carmen desempenhou em gerar imitaes de sua persona nas
telas. Em essncia, ela transformou a si mesma em um tipo de franquia ou
marca registrada que poderia ser infindavelmente reproduzida tanto por
personificadores como por executivos de marketing e, assim, em um jogo de
espelhos sua assinatura visual continuou a se multiplicar e permear toda a
cultura de massas e popular, principalmente nos Estados Unidos, mas
tambm alm deste pas. Como uma consequncia a marca Carmen
Miranda ainda instantaneamente reconhecvel hoje por todo o mundo e
permanece uma evocativa e poderosa ferramenta de negcios. (SHAW,
2013, p. 86, traduo minha)

A difuso de sua imagem, portanto, refere-se habilidade mpar de Carmen


Miranda, em sua poca, de lidar com o mercado de cultura de massas no qual

244
participava. Carmen Miranda possua um feeling dos constrangimentos prprios ao
mercado, para alm de sua alegada liberdade, e sabia explorar os sentidos possveis de
sua insero nele. Em toda sua trajetria, passando pelo rdio, teatro, cinema, nightclubs
e televiso soube valorizar comercialmente sua imagem de forma assemelhada s
estrelas das dcadas mais recentes do show business.
A construo de uma imagem de tanto apelo e calcada na caricatura possibilitou
sua autonomia quando o prprio mercado de cultura de massas soube explorar sua
imagem sem precisar da artista, parodiando-a de forma a torn-la o que se convencionou
chamar de kitsch dcadas depois, enquanto um sistema de reproduo industrial. Algo
que Melissa Fitch (2011), ao fazer uma busca virtual a partir do nome de Carmen
Miranda, compreende como caracterizador de sua imagem que ainda hoje circula de
forma completamente autnoma em relao histria e contribuio da prpria artista:

importante sublinhar que no Miranda e sim a imitao de Miranda, na


forma de Lucy ou Pernalonga que o ponto de referncia para a maioria nos
Estados Unidos hoje. A imitao suplantou e se tornou mais real que o
original. (FITCH, 2011, p. 57)

A cultura comercial norte-americana hoje re-circula ela mesma. A cultura


existente que ela parodia e sistematiza no apenas inclui, mas
frequentemente dominada pela cultura de massas prvia. A cultura popular
atual , em sua essncia, obssessivamente auto-reflexiva. (FITCH, 2011, p.
58)

Seria uma reduo considerar as performances deslocadoras de Carmen Miranda


como absolutamente domadas pelo mercado e apenas servindo acumulao. Dada a
complexidade de universos e estratgias simblicas com as quais a artista brasileira
lidou, ela constituiu diferentes tipos de recepo, relacionadas com as experincias
sociais que constituam relaes distintas com sua imagem e performances. Para outros
pblicos, seu exagero, pardia e mesmo as personificaes constituam sentidos
especiais, muitas vezes a forma de suas interpretaes adquiriam conotaes polticas.
Assim, tornou-se mesmo objeto de apropriao de sujeitos subalternos, como as
camadas populares no Brasil e os homossexuais norte-americanos. E, para acessar como
tais recepes foram possveis, preciso antes compreender os aspectos subversivos de
sua prpria trajetria nos limites do mercado de cultura de massas norte-americano.

245
5.4. Entre a performance do orgulho nacional e a performance estratgica da
vergonha

Um aspecto central na trajetria de Carmen Miranda seu talento em mobilizar


signos com apelo ao pblico e negociar com eles, dentro de uma lgica de mercado.
Tendo passado por dois mercados distintos, o brasileiro e o norte-americano, Carmen
teve que usar estratgias adequadas a cada um deles. No caso brasileiro, a cultura de
massas do Rio de Janeiro estava vinculada a ideais nacionalistas, prprios do perodo
poltico. Em um momento histrico no qual se forjava uma comunidade imaginada,
negociava-se simbolicamente uma nao sem fraturas e buscava-se um lugar especial ao
pas em relao a outras naes tidas como civilizadas, obrigando-a a um equilbrio
entre a branquitude e a unidade nacional tematizada na harmonia racial.
Nos Estados Unidos, a ento entertainer brasileira se depara com um pblico
vido por v-la performar a alteridade racial. Em outros termos, enquanto a
colonialidade interna brasileira delimitou as possibilidades de Carmen no contexto
nacional a vinculando ao mundo branco e burgus, sua verso norte-americana a
posicionou no espao oposto. Naquele contexto, ela era marcada no pela atenuao da
diferena racial, mas por sua hipersexualizao racializada. De fato, o corpo foi seu
primeiro veculo de comunicao com um pblico em relao ao qual no dominava a
lngua, quando no acentuava sua inabilidade lingustica.
Carmen Miranda levara baianas para o pas anglo-saxo e junto com elas os
sambas que prometera difundir e temperar o gosto norte-americano. Levava consigo
tambm, durante sua estada naquele pas, a esperana de no somente interpretar papeis
que a reduziam a um esteretipo e as angstias de perceber no estar correspondendo
aos anseios brasileiros, que chegavam a ela nas crticas publicadas nas revistas
nacionais. Percebia, talvez mais do que no Brasil, que estava autoparodiando uma
persona que criara com ajuda dos especialistas das empresas onde trabalhava em Nova
Iorque e Los Angeles e que pouco podia fazer para abandonar a caricatura que criara.
Tomava ironia diante do papel que personificava, ciente da forma distante do
realismo no qual se concebia o pas que era representado nas telas, conjugando
elementos prprios que ela levava com o Bando da Lua, com elementos identificveis
ao pblico norte-americano, em sua proximidade com as representaes genricas,
quando no explicitamente mexicanas. A entertainer, com a habilidade que adquirira
em sua relao com o pblico, passou a enfatizar os aspectos cmicos de sua persona e

246
personagens. Ao invs de insistir em uma representao supostamente autntica do
orgulho nacional que no encontrava espao, passou a performar aquilo que era digno
de vergonha para sua plateia original e, muitas vezes, para si. No vendo outra sada,
escolheu como estratgia a performance da vergonha.
Performing Shame o tema que David Halperin e Valerie Traub (2011)
exploram em uma coletnea queer na qual me apoio, redimensionando o conceito39. A
obra visa a uma autocrtica aos movimentos orientados pelo orgulho gay, bem como
apontando novas formas de mobilizao que enfatizam, ao invs de evitar, aquilo que
experienciado socialmente como vergonha. Os autores abordam como a luta por
reconhecimento e por direitos gays nas ltimas dcadas no se fizeram sem certos
ajustes morais com os quais se verificou uma forma de assimilao ao status quo,
revelada pela adequao a um modelo branco, masculino, burgus, heterossexual e
centrada na monogamia. A partir de vrias perspectivas autorais, a coletnea enfoca a
potencialidade da performance da vergonha como questionadora das normas sociais
implcitas na heteronormatividade.
O que suscitou o tema foi a prpria organizao poltica de movimentos em
grandes cidades norte-americanas que se intitulavam Gay Shame, em oposio e
concomitantes ao Gay Pride. Ao invs de uma bandeira poltica voltada a tornar gays e
lsbicas iguais ou semelhantes ao modelo heterossexual, a performance na vergonha
apostava na presena da diferena em suas variadas expresses, contando com negros,
latinos e deficientes fsicos, excludos de uma perspectiva assimilacionista. Para alm
das mobilizaes explicitamente polticas, a coletnea d conta de uma variedade de
expresses culturais focadas na performance da vergonha como solvente moral, capaz
de estender democraticamente a humanidade para aqueles que no compartilham dos
pressupostos normativos socialmente impostos.
Pretendo usar aqui o conceito de performar a vergonha no sentido de que
Carmen Miranda desempenhou, dentro das possibilidades apresentadas em seu
contexto, o reforo do esteretipo no qual estava delimitada no universo simblico
norte-americano. Carmen no representou como gostaria uma suposta autenticidade
brasileira, que se relevou impossvel de ser interpretada no mercado dos Estados
Unidos, e que corresponderia a aproximar o Brasil do referencial moderno e civilizado
do pas anglo-saxo. No se aproximou da figura da blondie star nas narrativas flmicas

39
Para uma resenha do livro, consulte Balieiro (2012).

247
e, portanto, esteve longe de desempenhar a unidade nacional calcada na branquitude, tal
como desejada em seu pas (e pretensamente buscada nas negociaes mediadas pelo
CIAA).
Com uma distncia irnica de sua persona norte-americana, Carmen acentuava
traos que a caricaturava, se autoparodiando e fazendo uso do humor ao demonstrar
parcela de seu pblico que tinha conscincia do papel que representava na Amrica do
Norte. Com este fazer, tornou seu esteretipo objeto de sua prpria criao, explorando
comercialmente os limites simblicos aos quais estava restrita, em cumplicidade com o
pblico. Ela enfatizou a arbitrariedade do esteretipo ao ponto de permitir que o pblico
visse seu agenciamento por detrs dele. Exps assim as normas que regiam as
representaes hegemnicas hollywoodianas e fez disso seu sucesso comercial.
Ao contrrio de Rita Hayworth que comps personagens que se aproximaram
cada vez mais do branco hegemnico dos Estados Unidos, Carmen Miranda orientou-se
de forma inversa, tornando-se a entertainer que assumidamente faz dinheiro com
bananas. As mudanas estticas e a associao com personagens de gals do cinema
norte-americano permitiram a incorporao de Rita ao hegemnico, provando sua
americanizao. Ao contrrio, Carmen Miranda nunca se aproximou destes, conforme
ironizava em suas performances em nightclubs.
Ao invs de se aproximar da lngua inglesa, ela reforava seus dilogos
bilngues, com expresses que a aproximavam de certo pblico brasileiro, mas tambm
criando uma possvel afinidade com o pblico latino-americano que compartilhava com
ela da situao de estrangeiridade no contexto dos Estados Unidos:

Quando passava ao portugus no dilogo de quase todos os seus filmes de


Hollywood, bem como em certas msicas, Carmen afirma sua distino
tnico-lingustica, fazendo uma escolha simblica que sinaliza sua afiliao
tnica pan-latina, representando algo alm do que apenas uma reverso
para sua lngua nativa com vistas a um efeito cmico. (SHAW, 2013, p. 61,
traduo minha)

Sua corporalidade latino-americana em sua carreira internacional remetia a


transgresso de cdigos de gnero, posto que desempenhava performances no
condizentes mulher branca anglo-sax, ao mesmo tempo em que influenciava a moda
naquele pas. Corroborando com a transgresso, toma-se como exemplo o episdio
reconhecido ainda em 1942 no qual atuou com os entertainers negros Nicholas Brothers
no Roxy em Nova Iorque. Do mercado carioca, a negritude passava a compor valores

248
prprios da comunidade imaginada que se consolidava e sua presena, subalternizada
ou estilizada, era importante para ressaltar a integrao da nao. Nos Estados Unidos,
com as leis segregacionistas em voga em muitos estados, a proximidade inter-racial no
palco se revelava mais problemtica.
Carmen Miranda danou com eles, entre eles e de mos dadas, com a presena
ao fundo do Bando da Lua. Em uma cena que chama ateno, Carmen e um dos dois
artistas saem de mos dadas do palco para dentro das cortinas (Arquivo do FTA).
Priscilla Ovalle (2011) demonstrou em sua pesquisa como a latino-americana ficava em
uma posio intermediria entre a brancura e a negritude, podendo acionar certas
mudanas estticas para se aproximar da primeira. Carmen Miranda fez o contrrio
nessa ocasio, aproximando-se da negritude e ainda ironizou as crticas racistas que a
sua apresentao. Conforme descreve Ruy Castro:

Ei, o que isso? O que voc est fazendo?, berrou um homem com
sotaque sulista e pescoo vermelho, nas primeiras filas do Roxy, em
Nova York, numa matin. Carmen estava danando abraada aos
elegantssimos Nicholas Brothers, um de cada lado. Virou-se para o
lado de onde vinha o som: Qual o problema?, ela disse sorrindo.
Est com cimes, Yes?. (CASTRO, 2005, p. 343)

Na dcada de 40, no era normal que uma artista branca (mesmo


latina) tocasse ou fosse tocada fisicamente por um negro num palco
de Nova York. E menos ainda por dois negros. Ou, ainda pior, alm
de tocar e ser tocada, se enroscasse com eles ao danar. Levaria
dcadas para que, mesmo em Nova York, tais prticas passassem
desapercebidas no teatro. (CASTRO, 2005, p. 343)

Carmen, ciente ou no, estava mais uma vez performando uma diferena racial
em cena de transgresso do decoro de gnero. A ironia utilizada pela entertainer era
apenas mais um exemplo de seu procedimento usual que acabava por deslocar a partir
do humor as normas estabelecidas A transgresso ainda se repetiu em 1951, quando
recebeu Synval Silva em sua casa em Beverly Hills e foi questionada por um policial
quando este guiava seu carro. No era comum, mesmo na Califrnia, que um negro
dirigisse um carro com uma branca o acompanhando no banco da frente. A situao
terminou sem maiores problemas quando Carmen se identificou e contou ao policial que
se tratava de um de seus compositores.
Em Copacabana, quando Carmen Miranda atuou, pela primeira vez, ao compor
um casal protagonista, ela o fez com um cone do humor judeu, Grouxo Marx. O
comediante de origem judaica certamente era marcado racialmente no contexto norte-

249
americano, mesmo que de forma atenuada. Carmen ainda travara relaes e parcerias no
cinema com Jerry Lewis, em Scared Stiff (1953), e na televiso com Milton Berle,
ambos comediantes de origem judaica. As associaes se davam em um perodo no qual
Carmen se aproximava da comdia, quando passava a fazer humor de si mesma.
Reflexes sobre a relao entre a autoironia de Carmen e o humor judeu no cinema vo
alm dos objetivos da tese, embora sinalizem aspectos interessantes na medida em que
se trata de artistas racialmente subalternizados. Em sntese, cabe aqui ressaltar mais uma
vez uma associao entre Carmen e uma racializao subalterna, abrangendo justamente
o perodo em que ressaltava suas caractersticas estereotpicas.
Carmen Miranda nos Estados Unidos evocava o que se distanciava do
hegemnico, das normas calcadas na dominao masculina heterossexual e branca
(expressas na excluso dos romances de sua narrativa) e de forma ambgua alcanava a
fama e uma posio de destaque ao performar a diferena. No se trata da simples
afirmao da diferena em sua subalternizao. A pardia, o humor e o exagero
acabavam por expor os mecanismos excludentes das representaes as quais
participava. Como descreve Lisa Shaw:

Carmen, que era uma talentosa mmica, era claramente versada nas
mecnicas da pardia e sua persona flmica, que era articulada na
ultraextravagncia e no excesso, tanto visual como snica, envolveu uma
forma de consciente autopardia, que exps o artifcio da performatividade
de seu texto, assim enfraquecendo o esteretipo redutivo da mulher genrica
latino-americana. (SHAW, 2013, p. 79-80, traduo minha)

A trajetria de Carmen se definia a partir de uma cumplicidade subversiva,


possibilitando leituras tanto hegemnicas quanto subalternas. A cumplicidade atuava
como pr-condio de sua carreira, na medida em que dialogava com um pblico que
esperava ver em suas performances a diferena racial latino-americana. Suas
performances, aparies pblicas e entrevistas no deixavam de ressaltar os aspectos
estereotipados de sua persona. Carmen os afirmava, jogando com e contra eles,
tornando sua caracterizao absurda, ao mesmo tempo em que sublinhava sua
construo arbitrria. Tais aspectos no eram necessariamente perceptveis a todos,
muitos poderiam simplesmente ver em Carmen apenas a mesma cumplicidade,
enquanto outros poderiam compreender suas negociaes e ver nelas questionamentos e
indagaes a normas sociais abrangentes.

250
Para alm das leituras convencionais de Carmen Miranda que apenas
visualizavam a relao de Carmen Miranda em sua reduo ao esteretipo, outras
percepes e apropriaes de sua imagem foram tomando corpo de determinados
sujeitos contemporneos a sua carreira. Enquanto meu foco neste captulo centrou nos
deslocamentos possveis de serem captados na trajetria de Carmen, no prximo meu
objetivo ser analisar como se deram suas outras recepes, considerando o vnculo
estreito entre a forma de ver determinados produtos da cultura de massa e a experincia
social daqueles que o veem.

251
CAPTULO 6: CARNAVAL CAMP: IRONIA E RECEPO NA TRAJETRIA
DE CARMEN MIRANDA

6.1. Voc se parece mais comigo do que eu: deslocamentos camp em Carmen
Miranda

Some people say


I dress too gay,
But every day,
I feel so gay;
And when I'm gay,
I dress that way,
Is something wrong with that?
(The Lady in the Tutti-Frutti Hat)

No excerto da letra da cano The Lady in The Tutti-Frutti Hat, interpretada por
Carmen Miranda em The Gangs All Here, a entertainer se defende de uma suposta
acusao de que se veste de forma exageradamente alegre, alegando que tal vestimenta
corresponde a seu natural estado de esprito. A iconografia de sua personagem, por sua
vez, afasta-se daquilo que tido como razovel para uma vestimenta comum,
associando uma sensualidade transgressora, supostamente natural s latino-
americanas, com sua performance baseada no exagero e artificialidade na composio
de sua roupa. Assim, temos a expresso vocal e corporal da autenticidade (natural)
contrastando com a sua vestimenta exagerada (cultural), conjugando de forma
paradoxal espontaneidade e despropsito artificial.
A ambiguidade sugestiva da letra compe outro paradoxo, insinuado tambm no
subttulo de uma foto sua, In Gay Days, publicada em revista ilustrada daquela poca.
Os dias felizes sugeriam o escapismo e a utopia, via entretenimento materializado nos
musicais nos quais Carmen Miranda atuava, justamente no sombrio perodo da Segunda
Guerra. A felicidade estampada na performance de Carmen parece ora sugerir uma
ingenuidade absoluta dos tempos em que vive, ora pura fabricao sustentada pela
nfase no exagero, podendo ser confundida com uma performance drag.
Tal possibilidade de leitura se acentua na utilizao ambgua, em possveis
leituras do termo gay que d margem interpretao do excerto como uma liberdade
de se vestir no simplesmente de modo feliz, mas de forma associada
homossexualidade. A tenso novamente se estabelece entre a alegria da performance

252
teatralizada da homossexualidade e a vivida na realidade, marcada pela clandestinidade
e ameaa explcita de criminalizao ou patologizao de seu tempo.
A nfase na ambiguidade dissolve os significados estabelecidos e os coloca sob
tenso. sob essa potencialidade demolidora de significados estabelecidos que Carmen
Miranda participava e tambm assistia de outro tipo de gay days durante a sua vida
artstica. Allan Brub (1990), em um projeto de reconstituio de experincias
homossexuais nas foras armadas norte-americanas durante a Segunda Guerra Mundial,
por meio da histria oral, de entrevistas e de pesquisa documental, narra um interessante
testemunho do soldado Robert Fleisher, colhido em entrevista, sobre um show de
variedades no campo de guerra Hulen, no Texas, em 1943:

A experincia civil de Fleisher como um costureiro em Manhattan


caiu como uma luva no campo Hulen. No havia uma mulher no
show, ele explicou. Ns fizemos todas nossas roupas e cenrios.
Alguns companheiros decidiram fazer a parte de imitao do sexo
feminino, e Fleisher se tornou uma estrela. Eu nunca me montei
como drag na minha vida at ento, mas l eu fui a encarnao de
Carmen Miranda! Eles me chamavam de Carmelita Ack-Ack,
porque a artilharia soava como ack-ack. Ns arrebentvamos! O lugar
desmoronava. Eu sambava em uma fantasia bizarra de miangas
vermelhas, amarelas e verdes e algum tecido e com frutas colocadas
em cima de minha cabea. Isso deve ter acontecido em todos os
campos dos Estados Unidos. (BRUB, 1990, p. 67, traduo minha)

O entretenimento era aspecto considerado importante nas foras armadas. Havia


at mesmo uma escola para ensinar membros do Special Service Division e especialistas
em teatros para assistir e comandar tais empreendimentos que ocorriam dentro e fora do
pas, contando com roteiristas, pessoas especializadas em fazer as vestimentas e
cenrios, dirigir, responsveis pela maquiagem etc. Tais aspectos buscavam
simultaneamente produzir relaxamento e diverso, senso de comunidade e patriotismo.
No se tratava, portanto, de apenas entretenimento, mas de enfatizar por meio das
narrativas a subordinao da individualidade nao, sobrepondo s obrigaes de
soldado a adeso do cidado (BRUB, 1990; CALDWELL-OKEEFE, 2011).
Pela primeira vez, o entretenimento se fazia desde uma burocracia institucional
do prprio exrcito, tamanha a importncia que se atribua a tais funes durante a
Segunda Grande Guerra, apoiando-se na experincia de civis especialistas em
entretenimento. Para alm dos shows da USO, que contavam com a presena de
celebridades do cinema e da msica nacional, os shows amadores contavam com

253
predicativos especiais. Marcados por componentes didticos que suportavam a
experincia de ser soldado na guerra, bem como favorecia adeso moral do exrcito,
promoviam o envolvimento dos membros das foras armadas e eram muito mais
acessveis em qualquer lugar onde se encontravam campos e bases aliados. Incentivar a
moral militar significava como contrapartida estimular a mquina de guerra,
colaborando para a coeso dos membros e fortalecendo assim a integrao destes a uma
instituio maior. Por fim, colaborava-se com uma viso hegemnica da instituio das
foras armadas como branca, masculina e heterossexual (CALDWELL-OKEEFE,
2011).
Nas bases e campos masculinos, com a falta de mulheres, homens faziam no
apenas servios tidos como femininos, como as interpretavam nos palcos. Blueprint
Specials era uma revista publicada e distribuda pelo exrcito, na qual se incluam
homens vestidos de mulheres como exemplos de interpretaes variadas dos shows. A
recepo predominante na mdia e nas foras armadas, dentro uma tica mainstream,
interpretava tais espetculos como humorsticos, compondo a estratgia de promover
entretenimento, elevar a moral e a integrao necessria aos soldados (BRUB, 1990).
Nesta viso tradicional, os descompassos na performance da feminilidade por homens,
os contrastes entre corpos masculinizados do exrcito exercendo funes e vestindo
roupas femininas tinham efeito cmico e acabavam por reforar a norma heterossexual e
masculina (CALDWELL-OKEEFE, 2011).
Acidentalmente, acabou-se por produzir um refgio temporrio onde soldados
gays poderiam soltar seus cabelos para entreter seus companheiros (BRUB, 1990, p.
67-68, traduo minha). As relaes entre atores e espectadores produziram leituras de
tais interpretaes como performances drag, alm de sugerir sentidos homossexuais s
narrativas. Um entertainer homossexual

[...] poderia curtir, ver ou ser um homem de verdade sob um


vestido, beijando, danando com, ou cantando msicas de amor com
outros homens e ento aproveitar a riqueza subsequente dos duplos
sentidos, transformando cada aspecto da performance em uma
subtrama homossexual. Quando ele sabia que havia outros homens
gays atuando ou na plateia, com uma piscadela ou com uma troca de
olhares, podia compartilhar seu prazer secreto com eles, expandindo
sua apreciao solitria para uma experincia de grupo. Nesse sentido,
as performances drag, onde quer que tenham se dado, abriram
inadvertidamente espao social no qual os homens gays difundiram
sua cultura secreta. A graa estava no desconhecimento dos membros
da plateia uma subtrama sobre homossexualidade estava sendo

254
criada bem abaixo dos olhos deles e ningum percebia. (BRUB,
1990, p. 72, traduo minha)

No se trata de algo espacialmente delimitado, antes amplamente difundido. Em


especial, um espetculo teve sucesso surpreendente, This is the Army, e se tornou
imensamente popular nos Estados Unidos, foi apresentado na Broadway por quase dois
meses e com imitaes em outros campos, mesmo fora do pas. Consta que entre
outubro de 1942 a agosto de 1943 o espetculo rodou os Estados Unidos, com destaque
para uma apresentao ao presidente Roosevelt, que declarou seu prazer em ver um
soldado personificando a cigana Rose Lee, em performance de strip-tease (BRUB,
1990, p. 78).
Aparentemente paradoxal e no representativa, a relao entre
homossexualidade e foras armadas teve uma significao especial naquele contexto
histrico. Uma distino especial se faz entre a Primeira e a Segunda Grande Guerras:
enquanto a primeira foi caracterizada pela condenao e punio esparsa da sodomia, a
segunda, com o aumento da importncia da autoridade psiquitrica na instituio, se
caracterizou por um profundo e contnuo procedimento de rastreio da
homossexualidade, introduzindo o conceito do homossexual como um tipo.
Consolidou-se um aparato administrativo para gerenciar os funcionrios
homossexuais, baseando-se em diagnsticos, hospitalizao, vigilncia, interrogao,
dispensa e doutrinao de massa (BRUB, 1990, p. 02, traduo minha). O
rastreamento tomou formas diferentes durante a guerra, muitas vezes sendo mais
tolerante com a homossexualidade, desde que no declarada, e em outros perodos as
dispensas, com inmeros danos pessoais ou profissionais ao ex-soldado, foram
incentivadas.
Tais procedimentos podem ser considerados parte constituinte da histria
contempornea da sexualidade, em termos foucaultianos40. Foucault (2007) data do final
do sculo XIX a inveno de uma personagem mdico-jurdica do homossexual,
sobrepondo-se punio da sodomia que se definia pela perseguio ao ato, e era ento
substituda por uma busca incessante de uma natureza definidora de carter produto

40
Segundo Foucault, A sexualidade o nome que se pode dar a um dispositivo histrico: no realidade
subterrnea que se apreende com dificuldade, mas grande rede da superfcie em que a estimulao dos
corpos, a intensificao dos prazeres, a incitao ao discurso, a formao dos conhecimentos, o reforo
dos controles e das resistncias, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratgias de
saber e de poder (2007, p.116-117).

255
de desvio congnito ou ambiental, que a sociedade deveria regulamentar de modo a se
preservar. Risco coletividade, a homossexualidade foi ento concebida como uma
ameaa organizao da sociedade, no pensamento hegemnico da poca, podendo ser
um vetor de desintegrao moral.
Alguns autores, como David Halperin (2000), argumentam que a construo da
homossexualidade equivaleu, subsequentemente, inveno da heterossexualidade:
como uma identidade coerente, supostamente natural e tida como pr-condio
civilizao. A homossexualidade como efeito de um discurso psiquitrico do fim do
sculo XIX era uma construo que dependeu de uma materializao via instituies
(desde escolas a hospcios e prises), garantindo aos sujeitos progressivamente durante
o sculo XX a compreenderem a si mesmos a partir da polarizao heterossexual e
homossexual como identidades estanques e no-problemticas, constituindo uma
sociedade heteronormativa41. Pensando a subjetivao como algo que se realiza a partir
das categorias disponveis em determinada cultura, considera-se que tal forma de
identificao, a partir da dade htero/homo, histrica e, mais precisamente,
contempornea.
Da necessidade de historicizao, o estudo de Brub (1990) sugere que uma
forma importante da materializao norte-americana da homossexualidade se deu dentro
das foras armadas. Considerando o perodo do auge de recrutamento, entre 1940 e
1941, dezesseis milhes de alistados (12% da populao estadunidense de 1941) de
diversas origens geogrficas e sociais se confrontaram com a noo, muitas vezes por
eles desconhecida, de homossexualidade. Dentro das foras armadas, entretanto,
vivenciavam relaes prximas e, s vezes, ntimas com outros homens, proibitivas de
se realizarem em termos erticos. As foras militares so caracterizadas por aquilo que
Eve Sedgwick (1985) denominou de desejo homossocial, uma forte liga entre homens

41
Concebida a partir da inveno histrica do binmio heterossexual-homossexual, o qual deu prioridade
heterossexualidade considerada ento natural e socialmente desejada, a heteronormatividade constituiu-
se como uma caracterstica marcante da sexualidade contempornea. Esta, por sua vez, se sobreps ao
dispositivo de aliana, regulador das relaes familiares (FOUCAULT, 2007), tendo ento a
heteronormatividade se constitudo como um sistema de normas conectado com uma forma de vida
particular, uma forma de vida que compreende um nmero de elementos inter-relacionados, todos eles
fundidos em um estilo singular de existncia social. Esse sistema de normas no faz mais do que
descrever como as pessoas vivem ou devem viver, to como definem um horizonte de expectativas para a
vida humana, um conjunto de ideais para os quais as pessoas aspiram e contra os quais elas medem o
valor delas prprias e da vida de outras pessoas (HALPERIN, 2012, p. 450, traduo minha). Tal
horizonte de expectativas se delineou a partir da valorizao do casamento com pessoa do outro gnero e
sexo, impactando em normas no que diz respeito intimidade, amor, amizade, solidariedade, educar
crianas, diviso do espao da casa, finanas, sucesso geracional etc.

256
prpria a sociedades de dominao masculina, tratando-se aqui de uma instituio que a
representa de forma mxima. Tal desejo configurou-se historicamente nas sociedades
contemporneas a partir da recusa internalizada, com suas tenses constitutivas, do
desejo ertico (homofobia).
Considerando que as normas falham e que o poder, em seu sentido positivo, cria
muitas vezes o que a norma busca evitar, Foucault (2007) fala de uma proliferao de
sexualidades dissidentes, o que pode ser encontrado nas leituras subalternas das foras
armadas. Brub (1990) demonstra como aquele espao era muitas vezes um espao de
troca de experincias e de constituio da identidade mutuamente a partir delas.
Perceber-se longe das comunidades tradicionais e do controle parental permitiu tambm
explorar estratgias para fazer valer o amor entre iguais, buscando espaos, bares e
hotis nas cidades prximas s bases militares, conformando, de forma irnica, aspectos
essenciais nas cidades que cresceram depois da guerra, marcadas por ambientes de
sociabilidade homossexual.
Sedgwick (2007) explora como as sociedades contemporneas se definem por
um regime de controle e opresso com caractersticas singulares ao que ela denominou
de epistemologia do armrio. Recusa considerar o armrio como uma escolha
individual, segundo o pressuposto de que a superao da opresso social dependeria de
um esforo pessoal concretizado pelo coming out. Antes, compreende o armrio como
um regime de conhecimento marcado por alocar a homossexualidade ao privado, ao
segredo, enquanto que garante o espao pblico heterossexualidade.
No se trata apenas de proibir certas expresses pblicas de amor entre iguais,
mas tambm de um complexo controle de expresses de gnero. Butler (2003)
considera que as sociedades contemporneas so caracterizadas por uma compreenso
de gnero baseada em uma matriz heterossexual na qual se exige uma coerncia entre
sexo anatmico, gnero, desejos e prticas sexuais. Gneros inteligveis so aqueles que
se performatizam a partir desta coerncia, sendo alocados abjeo aqueles que
rompem o continuum socialmente imposto, como homens que se portam socialmente
como mulheres. Nas palavras de Esther Newton, em seu clssico estudo sobre a cultura
drag do ps-guerra, em uma perspectiva contempornea hegemnica,

A homossexualidade consiste em desvio do papel sexual constitudo


por duas partes relacionadas, porm distintas: escolhas de objeto
sexual erradas e apresentao do self a partir de um papel sexual
errado. O primeiro desvio compartilhado pelos homossexuais, mas

257
pode ser bem escondido. O segundo desvio logicamente (nesta
cultura) corresponde ao primeiro, o qual simboliza. Mas ele no pode
ser escondido e, na verdade, compe o estigma. (NEWTON, 1999,
101, traduo minha)

Os shows nos quais homens homossexuais participavam nas foras armadas no


apenas apresentavam publicamente aquilo que deveria estar na clandestinidade da esfera
privada, mas o exibiam de forma exuberante, sob a pressuposio de que o objetivo ali
era meramente cmico. Tal como nos shows drag do ps-guerra, tratava-se de ostentar
o armrio (NEWTON, 1999), performando no apenas o encontro amoroso entre dois
homens, mas a incorporao de uma feminilidade enfatizada, a qual muitas vezes se
referenciou, por motivos que sero explorados, na figura de Carmen Miranda:

A personagem feminina mais interpretada por soldados, fossem eles


gays ou no, era tambm a estrela de cinema mais camp do comeo da
dcada de 1940 Carmen Miranda. Participando do filme Technicolor
de 1943 The Gangs All Here como uma cantora sulamericana de
saias rodadas, de barriga mostra, com imensos brincos pendurados e
turbantes de frutas amontoados muitos centmetros acima, Carmen
Miranda se tornou um dolo de drag queens e de soldados artistas
tambm. (BRUB, 1990, p. 89, traduo minha)

Brub (1990) aponta a existncia de um Blueprint Special em 1944 sobre o


show Hi Hank! no qual eram includos cinco pginas de personificaes masculinas
de Carmen Miranda. Segundo o autor, em abril de 1941, um escritor da revista Theather
Arts Magazine ainda reportou que os funcionrios das foras armadas no mais
aguentavam interpretaes masculinas de Carmen Miranda e declaravam
desesperadamente a necessidade por mais variedade (BRUB, 1990, p. 89). O autor
qualifica a entertainer brasileira como a mais camp do incio dos anos 40, mas no
explica qual a relao entre artista e seu pblico e nem explora o que caracteriza essa
linguagem ou esttica camp.
Busco explorar a relao entre recepo entre homens homossexuais daquele
contexto e cultura de massas, para adentrar em seguida na questo da personificao
particular da figura de Carmen Miranda. A questo que este subcaptulo coloca : como
uma personagem que foi caracterizada como um esteretipo de latino-americana,
prprio aos discursos hegemnicos e conservadores marcados pela colonialidade,
pde ser reapropriada por sujeitos subalternos em uma lgica heteronormativa? Como

258
tais sujeitos puderam, a partir da personificao de Carmen, colocar em questo normas
sociais abrangentes?
Analisei, no captulo 3, como a retrica da autenticidade permeava a busca da
audincia por estrelas de musicais. Em outros termos, o pblico em geral era marcado
por um discurso que buscava coerncia na persona das estrelas, em mecanismos que
muitas vezes aproximavam a estrela de suas personagens. Carmen Miranda, por sua vez,
teve sua carreira marcada pela autopardia, o que salientava sua construo arbitrria.
Como tal, fez parte de um rol de estrelas que era alvo de uma audincia especfica que
se caracterizava no pela simples busca da autenticidade, mas pela identificao com o
artifcio e o exagero. Tal recepo foi encontrada por muitos autores (BABUSCIO,
1999; DYER, 2004; HALPERIN, 2012) entre o pblico homossexual masculino, para o
qual, por sua vez, em ambientes de sociabilidade prprios, a personificao de certas
estrelas adquire uma importncia especial, na qual se destacam as perfomances de drag
queens.
A interpretao drag de Greta Garbo abre o subcaptulo de Judith Butler (2003)
sobre os atos corporais subversivos de Gender Trouble. Na lgica da autora, gnero
uma construo performativa que, portanto, no existe em estado natural ou original
fruto da repetio estilizada, por sua vez regulada por normas sociais. A subverso das
normas de gnero, praticada por sujeitos situados social e historicamente, depende de
sua repetio deslocadora, j que o ponto de partida da agncia no pode ser retirado do
tempo e do espao.
Butler (2003) parte da descrio da personificao de Garbo de um texto muito
anterior, de Esther Newton (1999), centrado na anlise etnogrfica do mundo drag do
ps-guerra norte-americano. Neste espao, a performance da incoerncia tida como
um ponto central no palco, quando um sujeito de sexo anatmico masculino interpreta o
feminino, enfatizando aspectos ambguos de gnero, transformando o gnero de uma
suposta prioridade ontolgica em uma fabricao performativa. So esses espaos,
abstrados na anlise de Butler, que permitem sujeitos ostentarem o que alocado
privacidade: o armrio.
Tem-se uma aparente contradio: os sujeitos que so obrigados a ocultar o que
visto como incoerncia de gnero e sexualidade, ou passar-se por quem no se , so
os mesmos que potencialmente se caracterizam pela ostentao explcita do que tido
socialmente como incoerncia. Aparentemente contraditrio, o dispositivo do armrio
marca sensibilidades que, por sua vez, se traduzem em estratgicas polticas. Viver sob

259
tal dispositivo pode suscitar a intuio sociolgica da vida como um papel, ou, em
termos mais contemporneos, possibilita a conscincia da performatividade de gnero.
Algo perceptvel na anlise de Jack Babuscio, quando ele diz que:

A experincia de passar por frequentemente produz uma


sensibilidade gay. Ela pode, e muitas vezes o faz levar a uma
conscincia elevada e apreciao para o disfarce, personificao,
projeo de personalidade e s distines a serem feitas entre
comportamento instintivo e teatral. (BABUSCIO, 1999, 124)42

Considera-se que a experincia social produz uma sensibilidade gay,


caracterizada de forma complexa e alvo de discusso acadmica profcua. Susan Sontag
(1999) foi a primeira a explorar academicamente o que definiu como uma sensibilidade
ou uma esttica camp43 na dcada de 60. A autora analisa tal sensibilidade como
caracterizada pela valorizao da forma ao invs do contedo; constitui-se em uma
viso do mundo em termos de estilo, o mundo como um fenmeno esttico, avaliado
em termos de grau de artifcio, de estilizao. Camp ver a beleza no que
definitivamente no bonito, baseado no amor ao exagerado.
O que se valoriza no camp no o realismo, a fidedignidade ao real, mas, ao
contrrio, as coisas serem o que elas no so. Enquanto a verdade no pensamento
ocidental cannico, desde o pensamento platnico, aquilo que se alcana por meio da
refutao da falsidade, o camp v o mundo rejeitando sua coerncia ltima, ou melhor, a
partir do riso desmonta sua coerncia. Enquanto a sociedade ocidental elabora a ideia de

42
A relao entre armrio e personificao foi abordada por vrios autores depois de Babuscio (1999).
David Halperin a sofistica na citao a seguir: Queers [ou gays] tm que fazer o melhor que podem para
esconder a aparncia de sua condio queer, para esconder o estigma visvel da homossexualidade e para
se passarem como hteros, pelo menos em algumas situaes. Isso significa que queers que desejam se
manter escondidos precisam refletir sobre como personificar pessoas normais. Eles tm que agir como
hteros. Eles tem que se fazer enquanto uma drag htero (2012, p. 196, traduo minha). Em outros
termos, eles performam a masculinidade heterosexual, mas de forma consciente, o que no se d com
homens heterossexuais, pois estes tm seu gnero e orientao sexual naturalizados: parte do que est
envolvido em ser htero aprender a imitar homens htero, performar a masculinidade heterossexial e
esquecer o que voc aprendeu, bem como esquecer o fato de que voc est performando (2012, p. 197,
traduo minha).
43
Palavra de origem anglo-saxnica, usado como adjetivo, uso nominal, substantivo abstrato ou
adjetivacional, advrbio, verbo transitivo e intransitivo. No tem traduo do ingls para outras lnguas,
mas h semelhanas em outros contextos ao que se refere. No fim do sculo XIX, era definido
formalmente pela nfase no exagero e falta de carter, ganhando vida nas grias dos teatros, alta
sociedade, mundo da moda e showbiz e na vida underground das cidades (CLETO, 1999, p. 09,
traduo minha). Presente em crculos aristocrticos, marcadamente lembrada por Oscar Wilde, como
tambm no mundo underground dos shows drag. Trata-se, desde ento, de um cdigo entre iniciados,
caracterizado por tal ambiguidade: uma necessidade de reconhecimento clandestino e comunicao
entre pares, e tal modo indireto era desenvolvido em lugares mais prudentes do submundo (CLETO,
1999, p. 10, traduo minha).

260
um self coerente e linear e de identidades estveis, dentro do camp as pessoas no so
essncias: elas interpretam papis; o mundo visto atravs da metfora da vida como
um teatro.
O camp, na viso da autora, pode ser genuno ou intencional. No entanto, uma
eficcia maior parece recair na ideia de genuno, aquilo que no pretende mostrar suas
intenes de falsear; pelo contrrio, a seriedade que falha. Ou seja, o camp aquele
que, mostrando autenticidade, revela sua arbitrariedade, desmistifica a artificialidade do
que tido como natural. O camp v as coisas de forma a dar nfase a elas, como no uso
entre parnteses, assim ele enxerga uma mulher, incorporada por estrelas femininas
do cinema, por exemplo, ao invs de uma mulher comum.
O camp baseia-se na ideia de extravagncia, como em uma mulher andando com
um vestido feito de trs milhes de folhas. O excesso conota incongruncia realidade,
demolidor de ideias estabelecidas fundamentalmente atravs do humor. Camp ,
acima de tudo, uma experincia esttica, a vitria do estilo sobre o contedo, da esttica
sobre a moralidade e da ironia sobre a tragdia. Se a tragdia uma experincia de
superenvolvimento, a comdia do camp uma experincia de subenvolvimento e, acima
de tudo, de deslocamento (SONTAG, 1999).
Incongruncia, teatralidade e humor parecem ser facilmente identificveis
imagem da Lady in the Tutti-Frutti Hat, cuja performance est longe da
verossimilhana, cujo exagero desvela em humor e aponta para a artificialidade de uma
caricatura. Em uma viso simplista, nada mais seria necessrio para analisar a relao
entre Carmen Miranda e o camp. Notes on Carmen (DIBELL, 1991) um texto
publicado no qual a imagem da entertainer diminuta entre bananas e morangos, no
filme de Busby Berkeley autor considerado essencialmente camp por Sontag , ilustra
um texto em que a autora adequa a caricatura extravagante de Carmen s descries de
Sontag. Deixa de fora, no entanto, um aspecto importante do camp: a recepo, the
eyes of the beholder, ou os olhos de quem o v. Um aspecto central na definio do
camp sua dimenso relacional. O valor do camp no existe em si, mas depende de um
contexto e uma leitura especfica.
Associado a uma forma especial de ler e decodificar o mundo, o camp se define
por uma combinao paradoxal entre deslocamento aristocrtico e nivelamento
democrtico. S os iniciados compartilham cdigos que atravs do humor demolem
as hierarquias sociais. A relao entre sensibilidade ou esttica camp quase ignorada e
apenas aparece de forma superficial nas ltimas notas de Sontag (1999), quando a

261
autora interpreta o camp como de natureza essencialmente apoltica. A bibliografia
recente o explora como este pode se constituir numa forma de subverso por meio da
nfase no artifcio que expe a arbitrariedade daquilo que naturalizado por meio da
cultura: em especial, das normas de gnero.
A nova interpretao fruto de um novo momento histrico ps Stonewall, no
meio da dcada de 1970, dentro de um contexto marcado pelo movimento liberacionista
gay e de luta por direitos de cidadania. A partir de ento, coloca-se a questo de se o
camp deveria ser usado ou abandonado. Seria uma forma de resistncia ou reforo do
esteretipo? Nesse contexto, vrios autores se debruam sobre o camp e ele passa
imediatamente a ser teorizado como uma forma de lidar com a opresso social no
contexto pr-Stonewall. Jack Babuscio sugere que o humor constitui uma estratgia do
camp: um meio de lidar com um ambiente hostil e, nesse processo, de definir uma
identidade (1999, p. 126, traduo minha); essa viso de mundo cmica. Rir, antes
de chorar, o meio de lidar com uma situao dolorosamente incongruente dos gays na
sociedade (1999, p. 127, traduo minha).
Concebendo o camp como uma sensibilidade gay, tericos como Babuscio
(1999), Dyer (2004) e Doty (1993), exploram uma relao tida como especial entre o
camp e o cinema. No filme Celluloid Closet (EPSTEIN; FRIEDMAN, 1995), aborda-se
a histria do cinema norte-americano, demonstrando como a homossexualidade apenas
apareceu de forma explcita e positivada a partir da dcada de 90, com raras excees
anteriores. No perodo estudado, um forte controle de sugestes homossexuais ainda era
regido pelo Hays Office. No entanto, a no representao literal no impediu que se
estabelecessem formas de identificao. Sob o regime do armrio, a homossexualidade
no deixou de se expressar no cinema, de forma conotativa. Segundo Alexander Doty a
conotao tem sido o armrio representacional e interpretativo da cultura queer por
muito tempo (1993, p. xi, traduo minha), gerando por sua vez uma consequncia
imprevista, a tendncia de fazer nascer fantasmas (da homossexualidade) em todos os
lugares (1993, p. vii, traduo minha).
Na anlise do autor, aspectos no normativos de sexualidade esto veladamente
presentes na produo, texto e recepo do cinema mainstream norte-americano,
salientando a importncia de autores e outros trabalhadores homossexuais,
especialmente na histria dos filmes de horror e nos musicais (DOTY, 1993, p. 14). De
outro lado, Richard Dyer (2004, p. 164) aborda a importncia do cinema como um
escape para homens gays, tornando-se mesmo um espao de sociabilidade prprio.

262
Salienta-se a importncia que a esttica dos musicais j desempenhou entre
homens gays. David Halperin (2012) disserta sobre a questo da forma dos musicais da
Broadway e sua relao com a recepo entre homens gays, o que pode ser comparado
aos musicais dos estdios de Hollywood. O contraste entre narrativa e nmeros
musicais, entre dilogos e performances de canto e dana, traduzem certas expectativas
especficas, na anlise do autor:

O efeito imediato nos desprender de uma realidade familiar e nos


catapultar dentro de um universo mais lrico, mais vital, vvido e
excntrico. Nessa determinao emocionante de parar o show para
enviar todo um mundo empacotado e essa celebrao
desavergonhada de uma realidade alternativa, do mundo mgico
Technicolor em algum lugar depois do arco-ris, mais teatral do que
realista, onde pessoas normais (mesmo os principais times de
baseball) de forma inesperada irrompem cantando e danando o ethos
lrico do musical da Broadway em sua forma interruptiva, na forma
de deslocamento baseada na suspenso da realidade expressa o
desejo gay, as respostas para o que os homens gays querem, muito
melhor do que qualquer um que denota literalmente ou incorpora o
modo de ser gay. (2012, p. 104, traduo minha)

Compreende-se ento como o prprio musical foi interpretado como camp,


atravs de sua esttica que combina extravagncia, utopia e humor. Aliados ao musical,
as relaes ntimas entre um pblico homossexual masculino e o cinema estabeleceram-
se tambm por meio de seu vnculo com estrelas. No captulo trs expus a relao entre
as estrelas e determinados tipos que so a chave a partir da qual os estdios trabalhavam
comercialmente a persona e as personagens da estrela.
Em especial, estrelas femininas44 e suas personagens incorporam certos
maneirismos que as tornam atraentes para o pblico e, ao mesmo tempo, favorecem
uma leitura camp para determinadas plateias. Babuscio salienta a intensa teatralidade de
Bette Davis: sua voz cortada, caminhar estridente, risada rouca, suas mos que
golpeiam pelo espao com seus cigarros soltando fumaa; continua: seus toques
estilizados projetam uma imagem de autoridade emocional, inteligncia e

44
Uma ambiguidade camp caracteriza a recepo gay de estrelas mulheres, afirma David Halperin, ao
mesmo tempo reduzidas caricatura e aladas fama: Divas podem ser mulheres caricaturais, mas elas
no so sem um certo poder e autoridade sobre elas mesmas. Alm de tudo, divas so superestrelas. Elas
no so apenas caricaturas da feminilidade e eptomes do que nossa sociedade considera como no srio
(...). Feminilidade nelas compreende fora, intensidade, autoridade e prestgio (...). Ao invs de contestar
ou subverter a feminilidade convencional, elas adquirem poder atravs de uma performance exagerada,
excessiva e hiperblica (HALPERIN, 2012, p. 252, traduo minha).

263
autossuficincia masculina (BABUSCIO, 1999, p. 125, traduo minha), tudo isso
sugerindo uma possibilidade de ler suas personagens como construo pardica de si
mesmas.
Richard Dyer (2004, p. x) leva adiante uma interpretao mais completa da
recepo gay da figura de Judy Garland, sobre como homens gays usaram a imagem da
mdia dominante como um meio de comunicao sobre suas prprias experincias.
Explorando a ideia de que as estrelas so intertextuais e que o pblico tambm tem um
papel ativo em sua imagem, salienta que o pblico no pode fazer com que as imagens
miditicas sejam o que ele quer, mas pode selecionar da complexidade da imagem os
significados e sentimentos, as variaes, inflexes e contradies que funcionam para
ele (2004, p. 04, traduo minha). O autor analisa como Judy Garland, durante os anos
50, depois de tentativa de suicdio, produziu uma ruptura com sua persona vinculada a
suas personagens na MGM caracterizadas pela simplicidade e provincianismo do tipo
girl next door.
Rompendo com a retrica realista que vincula estrela e suas personagens,
Garland acabou causando ento uma percepo de que ela se autoparodiava nos filmes,
apresentando sua normalidade como produzida. A identificao entre estrela e seu
pblico se deu por meio da relao especial com o suposto provincianismo de Garland,
relao esta marcadamente conflituosa e no-normativa. Vinculada tentativa de
suicdio e ao uso abusivo de lcool e cantando msicas de superao e felicidade, sua
imagem no apenas se dissociou de sua persona e personagens como permitiu uma
identificao com a ideia de se conseguir viver a despeito de uma opressora ordem
normativa. O distanciamento de papis glamorosos e sua androginia nas telas, em
determinados personagens, tambm puderam ser lidos como uma falha em representar a
feminilidade. A androginia estilizada tambm se relaciona com o camp, pois
facilmente objeto de personificao.
A combinao entre fora e sofrimento, poder e vulnerabilidade, abjeo e
glamour, novamente tocada em uma anlise do pblico gay, desta vez em relao a
Joan Crawford, empreendida por David Halperin (2012). Dentro de uma perspectiva
afinada com os estudos queer, busca evidenciar antes processos normativos e suas
fissuras do que processos de reconhecimento via identidade sexual que muitas vezes
foram constitudos em direo normatizao de sexualidades dissidentes. Nesta linha,
seu interesse por objetos culturais central, na medida em que estes no representam
explicitamente gays, mas tm a capacidade de represent-los mais intensamente, por

264
denotarem potencialidades de desafio normalidade. Em vez de lutar por uma
identidade mais aceita socialmente, os produtos flmicos, em especial relacionados a
estrelas de cinema, tm como norte utpico um outro mundo.
Diferentemente de tericos anteriores que interpretam o camp como uma
sensibilidade pr-Stonewall em um perodo no qual a poltica identitria no teria
espao de expresso, Halperin (2012) pontua que o que ocorreu foi distinto:
experincias subjetivas (ainda constitutivas de homens gays) entraram no armrio
depois da emergncia de Stonewall e da luta por reconhecimento. O centro de sua
discusso a existncia de outra forma de recepo da cultura de massas, ainda vigente,
perceptvel muitas vezes desde a infncia de sujeitos no heterossexuais, que busca
dissidncia na forma de ler a cultura heteronormativa. Na viso do autor, o camp um
gnero de discurso situado historicamente, mas que se desenvolve no apenas como
resultado de uma subcultura, mas como processo de subjetivao mais amplo que marca
aqueles que no se adequam s normas de gnero e sexualidade.
Halperin (2012, p. 31-32) compreende ento o camp como gnero tal como o
literrio, com certas convenes de discurso e comportamento que governam as
interaes pessoais em contextos particulares, definem tpicos importantes e estilos de
comunicao. Constituindo respostas irnicas cultura straight, em divergncia com
outras subculturas, caracterizado por uma longa histria sobre rir de situaes que para
outros so trgicas. Joan Crawford identificada a partir destas circunstncias em que
humilhada, trada e exposta, de forma histrica e fora de controle. Reinterpretando tais
experincias prprias dominao masculina que subordina mulheres e homens gays,
dentro de uma percepo esttica do mundo, a cultura gay rearticula e descontextualiza
tais situaes, dando outros sentidos. No se ri sobre algo aqui a partir de uma
superioridade moral, mas antes em um impulso democrtico dissolvente das convenes
morais. Nas palavras de Halperin, a identificao com as estrelas de cinema se faz de
uma forma especial:

[Homens gays] no fazem isso de forma direta ou no irnica. A


identificao deles [...] necessariamente acompanhada por um grau
de desidentificao e distncia e inevitavelmente filtrada pela ironia
[...]. O que ns estamos lidando aqui, de novo, o complexo jogo da
identidade e da diferena, uma oscilante duplicidade irnica o exato
tipo de duplicidade irnica que essencial sensibilidade camp.
Trata-se dessa simultnea coincidncia de investimento apaixonado e
espanto alienado, to tpicas da cultura gay masculina. (HALPERIN,
2012, p. 265, traduo minha)

265
Os diversos estudos revelam que a recepo de uma estrela e seu vnculo com o
camp devem ser situados historicamente. Diante da diversidade de anlises, Fbio Cleto
(1999) prope que o camp pode ter vrias utilizaes e interpretaes porque uma
arquitetura discursiva retorcida, uma construo provisria erguida, por assim dizer,
em areias discursivas (CLETO, 1999, p. 09, traduo minha). Carmen Miranda
estava longe de representar o provincianismo das personagens de Judy Garland e muito
menos suas personagens se baseavam no profundo sofrimento das de Joan Crawford, ao
menos no auge de sua carreira, quando Carmen j comeava a ser parodiada. No
entanto, tais contribuies nos ajudam a situar no rol de atrizes que foram importantes
como cones de um pblico homossexual masculino, bem como compreender, para
situar as afinidades e diferenas, na relao especfica que cada estrela construiu com
seu pblico. No obstante, centrado na carreira de Carmen, busco esquivar da anlise a
partir da relao quase de mo nica entre a recepo que recodifica as performances de
uma determinada artista.
Pamela Robertson (1996) muda a perspectiva de anlise ao propor uma
abordagem feminista camp. O interesse de Robertson compreender a relao entre
mulheres e homens gays de forma no unvoca, focando o agenciamento feminino tanto
na atuao quanto na recepo. Sua anlise parte da carreira de Mae West, que tinha
uma experincia no teatro vaudeville e na esttica burlesca, por sua vez baseados na
esttica da transgresso sexual, da comicidade das pardias, da inverso e do grotesco,
tendo, portanto, muitas afinidades com o camp.
Suas atuaes lembram um homem interpretando mulher porque ela aparece
grotesca, um homem em drag, uma piada sobre mulheres e no uma mulher
(ROBERTSON, 1996, p. 29). A autora enfatiza a proximidade entre Mae West e o
artista homossexual Bert Savoy, artista que interpreta mulheres, que a influenciou.
Como escritora de peas, ela muitas vezes sugeria uma afinidade entre homens
homossexuais e mulheres em um mundo androcntrico. Quando atuava nos filmes, ela
compreendia seu estilo como camp, exagerando, tornando burlesco e expondo mulheres
de forma estereotpica45. Tais caracterizaes remetem prpria atuao deslocadora de
Carmen Miranda no mercado norte-americano, conforme abordado no captulo anterior.

45
Roberton (1996) tambm prov anlises desde Gold Diggers (1933) de Busby Berkeley a Madonna,
enfatizando tanto como entertainers tambm se apropriavam de performances camp, bem como

266
Mas a leitura camp de Carmen Miranda contextualizada remete a uma
apropriao singular, posto que materializou-se nas foras armadas. Durante a Segunda
Guerra, Carmen Miranda tinha uma importncia especial, tendo participado inclusive de
filmes elaborados pelo estdio da Fox para elevar a moral dos soldados e estabelecer
contatos prximos com os soldados, apresentando-se com eles ou frequentando o
Hollywood Canteen. Seu prestgio entre soldados tambm acompanhava sua incurso
em filmes comerciais cuja temtica era a Segunda Guerra Mundial.
Em Something for the Boys (1944, Lewis Seiler), ainda na 20th Century Fox,
Carmen Miranda usada na narrativa no mais para descrever as relaes diplomticas
entre vizinhos, mas a prpria dinmica do treinamento para a guerra nos Estados
Unidos. Interpretando Chiquita Hart, herda junto com outros primos uma propriedade
em uma cidade texana que, por sua vez, alvo de interesse das foras armadas para
receber as mulheres dos soldados que esto em treinamento na cidade. Chiquita atua no
apenas como mediadora no desenvolvimento do amor desinteressado e verdadeiro entre
sua prima Blossom Hart (Vivian Blaine) e o soldado cantor Rocky Fulton (Michael
OShea), mas tambm em favor da prpria coeso das foras armadas, resolvendo
tenses pessoais entre militares e nos nmeros musicais, trazendo alegria ao histrico
momento blico.
Naquele perodo, a interpretao de Carmen Miranda pelos soldados era
difundida, visto que era um papel j interpretado na cultura de massas do perodo e com
relativa facilidade de personificao. A identificao com Carmen Miranda no ocorreu
sem razes. Seu exagero, estilizao e autopardia produziram um distanciamento do
esteretipo das mulheres latino-americanas e, em um sentido maior, desestabilizaram
ideias essencialistas de identidades, na viso desse pblico. Suas personagens
estilizadas que mantm a forma original da baiana com caracterizaes distintas
ressaltavam a estilizao como trao presente na construo de identidades e ento
sugeriam a percepo intuitiva da construo cultural e arbitrria das identidades. Se
Carmen Miranda poderia interpretar um papel e parodiar-se, por que homens no
poderiam? Melhor colocado, se homens no cinema j no o faziam, por que no os
homossexuais?

explorando as recepes femininas de filmes basicamente misginos, marcados pela nfase na


objetificao e caricaturizao das mulheres. Recepes femininas alternativas so marcadas pelo riso que
causa a interpretao de papis femininos tambm por mulheres, enfatizando um deslocamento por meio
do exagero.

267
Uma personificao camp carregava naquele espao militar um deslocamento
simblico importante, pois se tratava de uma dramatizao da feminilidade dentro de
uma instituio a qual considerada veculo exemplar da masculinidade heterossexual.
Sascha Brastoff, naquele perodo um soldado, fez a mais reconhecida personificao de
Carmen Miranda nas foras armadas, em uma pea dirigida por Moss Hart, aparecendo
fartamente na imprensa norte-americana. Devido ao sucesso, foi contratado pela Fox
para refazer sua famosa interpretao de Carmen Miranda no filme Winged Victory
(1944, George Cukor). O ator permitiu que se gravasse aspecto importante de uma
leitura subalterna de Carmen Miranda que se repetia nas bases militares no perodo da
guerra.

268
No canto, esquerda, possvel ver Brastoff interpretando Carmen
Miranda na pea (Chicago Daily Tribune, 10 de dezembro de 1944,
BDP).

Alexander Doty (1993, p. 19-38) aborda como o diretor George Cukor (1899-
1983) deixou muitas passagens flmicas conotativas de homossexualidade dentro do
cinema mainstream hollywoodiano de sua poca. Alia-se ao fato de que a interpretao
de Carmen Miranda foi feita por um artista homossexual. Samuel Brostofsky nasceu em
Cleveland, Ohio, onde participou da equipe do Cleveland Ballet. Mudou-se ainda jovem
para Nova Iorque, sendo vitrinista da loja de departamento da Macys e terminou sua
carreira como um ceramista e designer famoso, no sem antes passar por suas incurses
no teatro e no cinema. Neste caso, Cukor e Brastoff permitem a conotao da
homossexualidade em um filme notadamente caracterizado pela apologia s foras
armadas dos Estados Unidos em guerra. Nas foras armadas, j conhecido como Sascha
Brastoff, entrou para o Special Services, onde elaborou vestimentas e cenrios para
apresentao de variedades e participou como entertainer em Winged Victory. A pea
de Moss Hart foi um sucesso na Broadway e foi apresentada em diversas localidades
nos Estados Unidos. A mensagem de camaradagem e patriotismo convivia com as
performances supostamente cmicas, entre as quais Brastoff se destacava. As
vestimentas da pea foram realizadas por Howard Shoup, um estilista que trabalhava
para o cinema norte-americano e que curiosamente veio a ser ento companheiro
amoroso definitivo de Sascha Brastoff. Na fantasia de Shoup, Brastoff mantinha os
gestos com as mos j conhecidos de Carmen Miranda, mas imprimindo outras
caracterizaes.
De forma distinta de outras interpretaes de Carmen Miranda, por atores
masculinos no cinema, abordados no captulo anterior, Sascha Brastoff no a interpreta
ressaltando elementos de contedo tpicos imagem latino-americana extica,
imortalizada por Carmen Miranda com seus chapus de frutas tropicais. Em vez de um
nmero que a caricaturava comicamente, o artista explora um dos seus elementos
artsticos caractersticos: a estilizao. Brastoff mantm a forma da indumentria, mas
sua fantasia substitui as frutas por talheres e um uniforme do exrcito norte-americano,
ressaltando ainda a plataforma exagerada acentuada pelo ator tpica da entertainer.
Troca-se a objetificao simbolizada nas frutas pelo agenciamento, expresso em sua
substituio por talheres. Argutamente, Carmen Miranda fazia ento parte do exrcito
norte-americano em uma interpretao drag.

269
No se trata exatamente de uma performance identitria de coming out,
localizando-se em um perodo no qual a expresso da homossexualidade passava por
um rigoroso controle e sua politizao na esfera pblica era impossibilitada. A dinmica
do armrio deve ser contextualizada e torna-se anacrnico comparar o que se
convencionou chamar de sair do armrio previamente politizao que se configurou
a partir da rebelio de Stonewall. Dentro das foras armadas, assumir-se como
homossexual em pblico e, de forma ampliada, pelo pas, nos teatros e massificada pelo
cinema, era no s uma impossibilidade pessoal com consequncias nefastas e
duradouras, mas tambm impeditiva de uma recepo positivada.
O que a performance de Sascha Brastoff sinaliza a possibilidade de uma
linguagem deslocadora, compreendida apenas entre pares, que se utiliza dos meios de
expresso mainstream para subvert-los. Trata-se de uma leitura subversiva prpria a
uma experincia homossexual em uma sociedade heteronormativa. Dentro de uma
instituio chave da masculinidade heterossexual e por meio da divulgao do cinema
hollywoodiano. Em outros termos, as prprias instituies que produzem a
heteronormatividade esto abertas a sua subverso, no se tratando de um sistema
fechado e imune a questionamentos.
Carmen Miranda representava na cultura de massas a atualizao da
colonialidade redimensionada da Poltica de Boa Vizinhana. Nas representaes

270
flmicas, tais valores eram expressos na utopia romntica pan-americana que se
realizava a partir dos pressupostos raciais e sexuais, materializados nos encontros
amorosos heterossexuais dos casais brancos norte-americanos, rejeitando a problemtica
da mistura racial. As personagens de Carmen Miranda, caracterizadas pela sensualidade
e caricatura humorstica, eram ao mesmo tempo alvo de desejo sexual e excludas do
romance protagonista, denotavam os limites (raciais) da aproximao pan-americana.
Ao mesmo tempo, a hiprbole fantasstica que representava sua persona, as pardias e
autopardias de seu papel, acabavam por denunciar os essencialismos que justificavam
a hierarquia da colonialidade, tornando Carmen alvo de reapropriao subversiva. De
forma inusitada, a despeito dos sistemticos controles do Estado e dos filtros de
mercado, Carmen Miranda, enquanto figura sntese da unio pan-americana em uma
imagem quase oficial, acaba por se tornar um cone da transgresso sexual e de gnero.
A apropriao subversiva de Carmen Miranda tem uma histria que diz respeito
a sua prpria trajetria deslocadora nos Estados Unidos, j abordada no captulo
anterior. Alm da participao de Carmen nas interpretaes parodsticas de outros
artistas, ela estabeleceu vnculos com Sascha Brastoff desde que o conheceu em uma de
suas apresentaes. Nesta ocasio, teria dito a ele, segundo o soldado: Voc se parece
mais comigo do que eu (The Washington Post, 24 de maio de 1945, BDP, traduo
minha). Carmen mostrava a determinadas audincias que no apenas uma mulher latino-
americana poderia ser Carmen Miranda, mas que Carmen Miranda era, na verdade, um
papel. A relao entre os dois se aprofundou quando Brastoff foi contratado pela Fox e
trabalhou como designer das roupas da atriz em If Im Lucky (1946, Lewis Seiler). Seu
agenciamento era especialmente deslocador, questionava os limites identitrios e os
fechamentos das representaes oficiais.

271
No filme, Carmen Miranda vestia-se elegantemente, carregando indcios da
baiana, mas com uma estilizao que afastava referncias concretas da figura brasileira.
Junto a suas sofisticadas roupas formais, Carmen Miranda substitui os turbantes, com
penteados elaborados que mantm sua forma. O olhar acurado de Brastoff, que pela
prpria profisso sabia explorar com profundidade o superficial, encontra uma artista
talentosa que desde sua carreira brasileira sabia trabalhar e buscar parcerias na
elaborao estilizada de suas vestimentas.
Trabalhar agenciamento via o conceito de performatividade de Judith Butler
inclui superar a dualidade entre camp intencional ou ingnuo, tratando-a como uma
falsa questo. A trajetria de Carmen Miranda pode ser qualificada como camp se
compreendermos o termo como um gnero de linguagem que no se resume a uma
apropriao de mo nica por um pblico gay com olhar especfico. pertinente
lembrar que Carmen Miranda no endereava suas interpretaes a um pblico
homossexual, mas apostava nas pardias, exageros, deslocamentos como estratgias de
lidar com o esteretipo no qual estava circunscrita, materializando-se como uma
estratgia camp antiessencialista.
Como j abordei em outros captulos, a carreira de Carmen Miranda tinha um
espao essencial: o palco. Deste lugar, Carmen tornou-se parte de uma genealogia de
performers com apelo ao pblico gay que viria no fim do sculo XX ser representado
por Madonna, e j no XXI por Lady Gaga, apenas citando alguns nomes. David
Halperin (2012, p. 113) aborda como tal apelo no necessita de referncias diretas ao

272
reconhecimento gay, mas antes funciona melhor quando o tema no aparece. O que
caracteriza a relao entre as estrelas do palco e seu pblico justamente o visual
escandaloso, a transgresso e o desafio normalidade que representam.
Esther Newton (1999, p. 96) salienta a importncia das estrelas de palco
femininas enquanto referncia essencial a performances drag de sua pesquisa nos
Estados Unidos do ps-guerra. Enquanto Susan Sontag revelava o carter do mundo
como um teatro, um aspecto fundamental do camp, Fbio Cleto explora o carter
importante que o palco tem para os rompimentos normativos queer:

Temos visto que as condies para produzir um efeito camp so em


geral a construo impermanente do palco teatral interpretativo e que
essas condies tambm produzem o status de camp, compartilhando
as mesmas premissas provisionais, performativas e processuais e
acabando por se tornar uma arquitetura discursiva queer (instvel,
torcida, inorgnica) nmade, insubstancial e efmera: em resumo, um
efeito da performatividade. (CLETO, 1999, p. 32, traduo minha)

Estilizao e performance no palco so caractersticas da carreira de Carmen


Miranda, bem como de suas apropriaes. dos palcos que criou seus traos
caractersticos, sejam indumentrios como os turbantes e adereos, sejam os
movimentos de suas mos e cintura, facilmente reproduzidos. Carmen e seus
personificadores poderiam mesmo acentuar tais ou quais aspectos de suas
caractersticas, gerando efeitos cmicos, brincando com uma suposta autenticidade
construda da artista. Vestir-se de Carmen revelou-se uma forma de explorar o mundo
como um teatro, a identidade como uma pardia e a autenticidade como arbitrariedade.
No obstante, isso no significava necessariamente a subverso das normas como uma
compreenso socialmente compartilhada e de forma consensual.
As apropriaes subversivas devem ser compreendidas a partir da relao entre
Carmen Miranda e seu pblico: uma relao que se estabelece em sua complexidade,
no a reduzindo a objeto da recepo. No captulo anterior, abordei como suas
apropriaes eram difundidas pela cultura mainstream sem nenhum enfoque subversivo.
J neste subcaptulo o objetivo foi abordar como ela tambm propiciou leituras
deslocadoras. A partir de agora, pretendo abordar como tais caractersticas se
relacionam com sua trajetria no Brasil. Afinal, foi do palco do Cassino da Urca que
Carmen estilizou e performou a baiana descoberta pelo empresrio Lee Shubert.

273
No Brasil, a artista estava performando um cone nacional que, como abordei no
captulo anterior, distanciava-se da performance da diferena racial levada a cabo por
ela no pas do norte. No obstante, Carmen tambm estava envolta numa linguagem
marcada por pardia, humor e inverses. Trata-se de uma esttica prpria cultura
popular carnavalizante expressa em diversos meios da cultura de massas na capital e
captada por Carmen. A questo que se coloca ento a relao entre a linguagem camp
e a carnavalizao, pouco abordada, mas j levantada pelos tericos do tema:

Tem sido possvel [...] traar uma convergncia entre a cena camp e a
carnavalizao bakhtiniana, j que as duas compartilham a inverso
hierrquica, a zombaria paradoxal, as insinuaes e trocadilhos
sexuais e mais significantemente a relao de poder de mltiplas
camadas entre o dominante e o subordinado (ou desviante), e
finalmente todo o problema de quo longe a libertao permitida
pode efetivamente ser transgressiva ou subversiva. (CLETO, 1999, p.
32, traduo minha)

6.2. A branquitude entre a ridicularizao e a cumplicidade

Ado, meu querido Ado


todo mundo sabe que perdeste o juzo
Por causa da serpente tentadora
o Nosso Mestre te expulsou do paraso

Mas em compensao o teu pobre corao


que era pobre, pobre, muito pobre de amor
cresceu e eternizou, meu Ado
o teu pecado encantador

A marcha Querido Ado, de Benedicto Lacerda e Oswaldo Santiago, foi


lanada em novembro de 1935 e interpretada no filme Al, Al, Carnaval!, do ano
seguinte, por Carmen Miranda. A letra versa humoristicamente sobre a queda do paraso
de Ado, no como um lamento, antes como uma ode ao pecado sexual insinuado.
Trata-se de um privilgio o fato de ser parte do nico filme brasileiro de Carmen
Miranda preservado integralmente, no qual possvel analisar como a cantora do rdio
conjugava seus dotes vocais com interpretao cnica no palco, antes de viajar para os
Estados Unidos.
Jos Ligiero Coelho (1998, p. 74, traduo minha) analisa com acuidade o
humor em jogo: porque a cano sobre o amor entre Ado e Eva e seus problemas
com a serpente encantadora, Miranda ri constantemente, criando um tipo de

274
cumplicidade com a audincia/espectador que era tpica do burlesco e teatro de revista
no Brasil de seu tempo. Lisa Shaw descreve pormenorizadamente alguns aspectos
caracterizadores de Carmen Miranda na mesma interpretao:

De tempo em tempo ela abre seus olhos amplamente, bem como olha
para cima e para baixo, de um lado a outro e direto para a cmera, seu
sorriso constante e animadas expresses faciais chamam ateno em
cmica adaptao com as insinuaes das letras [...] e criando uma
conexo e senso de cumplicidade com o espectador. Para sugerir
duplos sentidos nas letras ela desempenha tcnicas de performances,
tais como revirar os olhos, sorrisos atrevidos e outros gestos faciais
que eram associados com o teatro de revista e seriam usadas nas
populares chanchadas das dcadas de 1940 e 50, as quais apostam
fortemente no humor fsico e insinuaes do teatro popular. (SHAW,
2013, p. 32, traduo minha)

Trata-se de uma esttica anterior Carmen dos teatros populares, que, como
abordarei, influenciaram suas atuaes no cinema norte-americano e que tiveram
histria prpria no contexto brasileiro subsequente. Al, Al, Carnaval! considerado
um dos precursores da chanchada, baseado em um roteiro feito por Joo de Barro
(Braguinha) e Alberto Ribeiro e com participao de vrios cantores de samba. O nome
de Carmen Miranda se encontra acima de todos na apresentao do filme, e seus
nmeros demoravam a aparecer, tendo o pblico que esperar com expectativa, enquanto
se desenrolava o enredo e outros nmeros musicais tomavam corpo. A estria parte da
tentativa de dois revisteiros, Tom e Prata, de convencer o proprietrio do cassino
Mosca Azul a apresentar sua revista carnavalesca e humorstica Banana da Terra. A
proposta recusada pelo dono, que j contava com uma companhia europeia em sua
programao.
Em uma narrativa cheia de inverses a companhia estrangeira presa e o
proprietrio se v obrigado a contratar a revista de Tom e Prata. So vrias as situaes
em que os protagonistas se envolvem em problemas e acabam saindo por cima a partir
de artimanhas, invertendo-as a seu benefcio. Palavras em ingls como boys e girls
so pronunciadas como se l em portugus, gerando efeito cmico e proporcionando
uma leitura da incorporao do vocabulrio do pas que se tornava smbolo da
modernidade, mas parodiado e substitudo pela fala popular:

O tom predominantemente jocoso deste gnero cinematogrfico,


herdado da malandragem presente na cano popular urbana,
terminava por corromper a construo de uma esttica idealizada

275
comprometida com a propagao de imagens de um povo e um pas
civilizado. (GARCIA, 2004, p. 77)

Seu pblico alvo no eram as camadas cultas, os intelectuais ou os


crticos de arte, mas aqueles segmentos da sociedade urbana que
buscavam o cinema para se divertir e debochar subterraneamente
consciente ou inconscientemente daqueles que no cotidiano se
afirmavam como dominantes por serem os portadores de uma cultura
dita superior. (GARCIA, 2004, p. 77)

Um elemento aparecia como central no filme: o riso. Trata-se de um riso


especial, vinculado cultura popular que preza por uma viso unitria do mundo que
recusa as hierarquias socialmente estabelecidas. O riso expressa, pois, a ambivalncia,
ou seja, aponta as fissuras das relaes de poder e das posies de dominncia na
sociedade que so abaladas pela possibilidade de serem alocadas ao ridculo. Em
Querido Ado, o riso est ligado ao rebaixamento, com a transferncia ao plano
material e corporal de tudo que elevado no caso, uma cano de fundo religioso
aponta para duplos sentidos sexuais.
Al, Al, Carnaval! demonstra a trama cultural na qual o riso ocupava um lugar
central. O roteiro foi feito por dois tambm autores de sambas e fazia referncia a uma
revista famosa dos teatros populares e ao espao do cassino que incorporava os sucessos
da cultura popular. Em relao produo do filme, os principais artistas esperados pelo
pblico eram os cartazes do rdio, as msicas eram lanadas em vspera de carnaval, tal
como os filmes carnavalescos. No perodo, os artistas que participavam das revistas
tambm colaboravam com os filmes, muitas vezes tendo como principal fonte de renda
o rdio. Carmen Miranda no participava das revistas, mas muitas das msicas que
gravou tambm compunham a trilha sonora dos teatros populares cariocas.
Al, al, Brasil! de 1935 da Waldow Filmes e Cindia foi lanado pouco tempo
antes do carnaval, em 4 de fevereiro do mesmo ano. Ficou em cartaz por trs semanas,
considerado na poca muito tempo, e com alta procura do pblico. Al, Al, Carnaval!
foi lanado em 20 de janeiro de 1936. Ficou em cartaz pelo resto do ms, quebrando os
recordes de bilheteria, apenas ultrapassado no futuro por Bonequinha de Seda (1936) e
Banana da Terra (1939) (DENNISON; SHAW, 2004). Todo um mercado de cultura de
massas se fazia articulado na capital federal e fortemente relacionado festa que se
tornava constituinte da nao: o carnaval.
Segundo Stella Caymmi (CAYMMI, 2013, p. 72), a msica vendida pela
indstria fonogrfica e difundida pelo rdio estava estreitamente vinculada aos festejos

276
e normalmente era classificada ora como msica de carnaval, ora msica de meio de
ano. O sucesso do cantor ou cantora era aferido quando a msica pegasse no carnaval,
ou seja, quando ela estivesse na boca do povo durante a festa. A msica popular j
estava incorporada aos teatros populares da Praa Tiradentes desde a Primeira Guerra
Mundial e cada vez mais presente nos cassinos, enquanto o carnaval baseado na msica
popular adentrava o Theatro Municipal.
Wallace Downey, um empresrio norte-americano radicado no Brasil, foi o
primeiro a investir na relao lucrativa entre carnaval e msica popular no cinema
emergente. dele o primeiro filme musical brasileiro, Coisas Nossas, e tantos outros,
cuja temtica de fundo o carnaval:

No carnaval de 1933, a Cine-Som e a Cindia, duas produtoras


cariocas, lanaram os primeiros musicais de carnaval do cinema
brasileiro, respectivamente, Carnaval de 1933, um mdia-metragem, e
A Voz do Carnaval, um longa. Este ltimo, um semidocumentrio,
teve recorde de pblico e contava com um grande atrativo: a estreia no
cinema de Carmen Miranda, que aparecia cantando na Rdio Mayrink
Veiga Goodbye (Assis Valente) e Moleque Indigesto (Lamartine
Babo). (CAYMMI, 2013, p. 75)

Foi a partir da sociedade entre Ademar Gonzaga e Wallace Downey,


com a empresa Waldow-Cindia, com o filme Al, Al Brasil, de
1935, que se tornou uma prtica do perodo o lanamento dos
musicais dias antes do carnaval. O sucesso das marchas carnavalescas
era tal que das 11 msicas que o filme apresentava dez eram do
gnero. (CAYMMI, 2013, p. 76)

Considerando a experincia social e histrica do espectador, Dennison e Shaw


(2004) revelam como o cinema partiu da experincia dos teatros de revista e, antes dele,
dos circo-teatros, que ditaram certas caractersticas do comportamento no cinema. As
noes de como assistir estavam marcadas por uma ideia de comunicao entre ator e
pblico, na qual o papel do palhao aparecia como importante. Trata-se de uma
influncia de longa durao na qual o palhao-ator emerge como uma figura de
destaque no cinema. Entre seus representantes esto Oscarito, Grande Otelo e, no
futuro, estariam Mazzaropi e Mussum. O que se destaca, dentre os artistas, o papel do
humor pastelo, baseado em expresses faciais, com trocadilhos e metforas ultrajantes.
Mikhail Bakhtin (1993) referncia fundamental no estudo do riso festivo e do
jocoso vinculado cultura popular. Sua obra foca a cultura popular europeia na Idade
Mdia e suas influncias na literatura renascentista de Rabelais. Bakhtin aborda o

277
carnaval como uma linguagem popular cujas hiprboles, inverses e destronamentos
proporcionavam uma viso e experincia de mundo singular, oposta, em relao
cultura dominante que se institua a partir da seriedade.

A praa pblica era o ponto de convergncia de tudo que no era


oficial, de certa forma gozava de um direito de exterritorialidade no
mundo da ordem e da ideologia oficiais, e o povo a tinha sempre a
ltima palavra. Claro, esses aspectos s se revelavam inteiramente nos
dias de festa. (BAKHTIN, 1993, p. 132)

Para alm da festa historicamente delimitada no calendrio cristo, a linguagem


familiar converteu-se, de certa forma, em um reservatrio onde se acumularam as
expresses verbais proibidas e eliminadas da comunicao oficial (BAKHTIN, 1993,
p. 15). Na perspectiva bakthiniana, o carnaval s pode ser compreendido levando-se em
conta o dialogismo, aspecto relacional no qual os discursos se referem mutuamente na
sociedade; portanto, numa interpretao prpria aos Estudos Culturais, pode-se dizer
que tratam-se de disputas pelo significado inseridas em relaes de poder:

Os enunciados no so indiferentes uns aos outros, nem auto-


suficientes; so mutuamente conscientes e refletem um ao outro ...
Cada enunciado pleno de ecos e reverberaes de outros enunciados,
com os quais se relaciona pela comunho da esfera da comunicao
verbal [...] Cada enunciado refuta, confirma, complementa e depende
dos outros; pressupe que j so conhecidos, e de alguma forma os
leva em conta. (STAM, 1992, p. 73)

A cultura oficial era caracterizada pela seriedade, segundo o autor, constituindo


uma forma de preservar as hierarquias sociais como ordem natural das coisas. Para
tanto, evitava-se o riso: nos palcios, nos templos, nas instituies, nas casas
particulares reinava um princpio de comunicao hierrquica, uma etiqueta, regras de
polidez (BAKHTIN, 1993, p. 133). Em oposio polidez, a cultura popular baseava-
se nos princpios da vida material e corporal: imagens do corpo, da bebida, da comida,
da satisfao de necessidades naturais, e da vida sexual. So imagens exageradas e
hipertrofiadas (BAKHTIN, 1993, p. 16). Em outras palavras, o princpio material e
corporal o princpio da festa, do banquete, da alegria, da festana (BAKHTIN,
1993, p. 17).
Do popular emergia a valorizao do rebaixamento e, assim, o questionamento
das dimenses sacralizadas: o trao marcante do realismo grotesco o rebaixamento,

278
isto , a transferncia ao plano material e corporal, o da terra e do corpo na sua
indissolvel unidade, de tudo o que elevado, espiritual, ideal e abstrato (BAKHTIN,
1993, p. 17). Segundo o autor, a valorizao do rebaixamento carregava a promessa do
devir: a degradao cava o tmulo corporal para dar lugar a um novo nascimento. E
por isso no tem somente um valor destrutivo, negativo, mas tambm positivo,
regenerador: ambivalente, ao mesmo tempo negao e afirmao (BAKHTIN, 1993,
p. 19).
A valorizao do corpo e da mortalidade, ao invs da imortalidade e do esprito,
acompanhava uma concepo de mundo essencialmente histrica, na qual a vida se
revela no seu processo ambivalente, interiormente contraditrio. No h nada perfeito
nem completo, a quintessncia da incompletude. Essa precisamente a concepo
grotesca do corpo (BAKHTIN, 1993, p. 23). Exagero, hiperbolismo, profuso e o
excesso eram marcas dessa cultura, articuladas com a inverso: desmistificar, traduzir
na lngua do baixo material e corporal (na sua acepo ambivalente), os pensamentos,
imagens e smbolos cruciais das culturas oficiais (BAKHTIN, 1993, p. 346). Muito
alm de uma festa, o carnaval englobava, portanto, uma viso de mundo:

O carnaval celebra o aniquilamento do velho mundo e o nascimento


do novo, do novo ano, da nova primavera, do novo reino. O velho
mundo aniquilado apresentado juntamente com o novo, representado
com ele, como a parte agonizante do mundo bicorporal nico. por
essa razo que as imagens de carnaval oferecem tantas coisas ao
avesso, rostos invertidos, propores violadas de propsito. Isso se
manifesta sobretudo nas vestimentas das pessoas: homens fantasiados
de mulheres e vice-versa, roupas vestidas do avesso, roupas do alto
postas no lugar das de baixo, etc. (BAKHTIN, 1993, p. 360)

Dada a necessidade de historicizar o carnaval, no pretendo simplesmente


transpor a conceituao de Mikhail Bakhtin (1993) do contexto europeu e da Idade
Mdia a meu objeto de estudo. O prprio autor salientava como o carnaval se
transformava historicamente na Europa, domesticando-se e perdendo em seus
desenvolvimentos histricos posteriores sua concepo de devir, embora tenha sido
fundamental na concepo dessacralizada e histrica das expresses culturais
renascentistas. Robert Stam (1992), no entanto, salienta que a perda da importncia no
se d na Amrica Latina, em que o carnaval ainda persiste com destaque na cultura
popular. No caso brasileiro, o carnaval ganhava importncia fundamental ao se
constituir a partir da cultura popular como parte da identidade nacional.

279
Contrrio a uma generalizao da experincia heterognea do carnaval carioca,
imprescindvel ressaltar a existncia de vrios carnavais com caractersticas prprias,
que disputavam o espao da capital federal desde o fim do sculo XIX. Com o advento
da Avenida Central, posteriormente chamada de Rio Branco, instituiu-se o que se
convencionou chamar de batalha das flores. Importada da Frana, consistia em um
grupo de folies de elites que desfilavam com carros abertos e aplausos da populao
(FERREIRA, 2004, p. 238-239). Trata-se de um costume no qual grupos de pessoas
encarapitadas sobre carruagens ou automveis desfilam a elegncia e o charme da
burguesia endinheirada para o deleite da populao (FERREIRA, 2004, p. 141).
No entanto, no era essa faceta do carnaval que se institucionalizaria como
nacional na dcada de 30 e 40, vinculada ao samba. Antes, era a de um carnaval que
surgia vinculado ao mundo afro-brasileiro, que ocupava a Praa Onze e que participava
das festividades tradicionais catlicas, incorporando e transformando seus significados.
O carnaval, na acepo bakhtiniana do termo, encontrou-se durante o sculo XX com a
cultura diasprica africana.
Nas primeiras dcadas do sculo, as festas populares, como a Festa da Penha,
com toda resistncia que criaram, foram espao central de intercmbios culturais e
ocupadas por populares e negros que compunham outros sentidos, alm do religioso,
presente naquele contexto. Um exemplo o rancho conhecido como Macaco o outro
que ocupava a festa da Penha, sado da casa da Tia Ciata. Chegando l, os membros
tiravam a mscara e gritavam ns somos gente, macaco o outro, invertendo o
esteretipo racial hegemnico que vinculava negritude a selvageria.
A festa tomava a frente da Igreja Nossa Senhora da Penha e, ao lado da missa e
romaria, caracterizava-se por excessos na avaliao da poca, profcua em danas,
msicas e bebidas. De origem portuguesa, seu desenvolvimento acompanha a
substituio do fado e outras manifestaes culturais pelo samba. Contava com a
presena das tias baianas com barracas de comida, capoeira, batucadas e rodas de
samba, sendo que muitas das msicas lanadas na festa transformaram-se em sucessos
populares durante o carnaval, funcionando a Penha como sua avant-premire
(SOIHET, 2008, p. 51). A represso policial e matrias na imprensa tratavam tais
expresses culturais como brbaras e selvagens, e a sua permanncia advm da
resistncia dos sujeitos que ocupavam tais espaos.
Alm da Penha, no perodo do carnaval, concorrentes ao da Avenida Central ou
Rio Branco estavam as expresses populares da Praa da Repblica e da Praa Onze.

280
Vrias agremiaes com diversos nomes, como os z-pereiras, afoxs e cucumbis,
ranchos e cordes, cada qual com sua msica prpria, ocupavam as ruas da cidade.
Antecedem a formao das escolas de samba em um perodo no qual o carnaval j
estaria explicitamente vinculado ao novo ritmo que se definia como nacional. Entre as
caractersticas das manifestaes culturais carnavalescas, estavam

[...] o deboche, a irreverncia, a subverso dos valores oficiais, a


inexistncia de distino entre atores e espectadores que no
assistem simplesmente ao carnaval, mas o vivem , a valorizao do
corpo, da comida, da bebida e da sexualidade so dos aspectos da
cultura cmica popular que tambm se podem vislumbrar nessa festa
que no Rio se revestiu, alm disso, de forte influncia africana.
(SOIHET, 2008, p. 204)

O riso festivo passara a fazer parte da vida cultural carioca e se transformaria


em expresso constitutiva da nao. O carnaval atraa o interesse de intelectuais que
estavam em busca das coisas nossas no perodo no qual o modernismo estava em
voga, assim como a pretenso de se encontrar o suposto autenticamente nacional:
temas e artistas eruditos estavam presentes nessas agremiaes; e suas melodias
inspiravam compositores dos segmentos mdios a produzirem msicas de idntico
estilo (SOIHET, 2008, p. 123). Tambm atraa a ateno de turistas estrangeiros que
buscavam conhecer algo que se passava como um exotismo nacional.
Porm, o que caracteriza fundamentalmente o carnaval da dcada de 30 sua
entrada na cultura de massas. Enquanto uma linguagem, passou a circular nas
composies musicais gravadas nos discos e difundidas no rdio, interpretadas no teatro
de revista e filmadas no cinema emergente. O mercado de cultura de massas
incorporava aquilo que era antes considerado brbaro a partir de um filtro racial e
moral. A sensualidade brbara ento incorporada ao nacional, mas, sofisticada aos
sales, substituam-se seus vnculos com a negritude pela face branca dos cantores e
intrpretes que, muito embora no deixassem de ressaltar seus vnculos com o universo
simblico popular tido como genuinamente nacional.
Uma incorporao seletiva do popular levada a cabo por emergentes capitalistas
do mundo do lazer e entretenimento no Rio de Janeiro passou a fundamentar os limites
do nacional. A festa, o riso e a msica popular adentravam no circuito comercial, no
sem delimitar os discursos possveis e os proibidos em determinados espaos sociais.
Em um perodo no qual se fundamentava uma nova forma de hegemonia poltica pelo

281
Estado, que se baseava no consentimento das massas, antes excludas do que se definia
ou projetava como nao, a incorporao da linguagem popular acompanhou crticas
que se expressavam na imprensa, bem como regulaes do Estado.
Uma produo cultural que visasse obter maior audincia, sob a perspectiva de
um pblico heterogneo, como o era do cinema nacional, necessitava de incorporar a
linguagem carnavalizante questionadora das hierarquias, sem romper com a
branquitude. Neste sentido, observa-se em Al, Al, Carnaval! a presena de artistas
que no eram apenas brancos cromaticamente, mas que incorporavam signos da
branquitude, frequentando espaos de elite como cassinos e trajados formalmente. O
questionamento das hierarquias desta forma encontra-se limitado ao mundo burgus,
mas no deixa de apresentar a possibilidade da ambivalncia e da inverso dos valores.
Em outros termos, cultuavam-se formas de burlar as hierarquias ali impostas por meio
da malandragem algo que fica patente nas ambiguidades do prprio enredo do filme,
na descrio de Shaw:

As aluses visuais modernidade inerente nos vesturios e nos


cenrios de palco (ecoado tambm nas letras das canes, com louvor
ao poder da tecnologia de rdio), contrastam marcadamente com as
cenas narrativas do filme que apresenta dois pobretes da revista,
onde a mise en scne inintencionalmente esparsa e pobre. (2013, p.
22, traduo minha)

Carmen Miranda, cone nacional, atuava equilibrando-se entre as tenses postas


em jogo. Na interpretao de Querido Ado, em Al, Al Carnaval!, a artista usa do
humor popular ao versar sobre a sexualidade como pecado encantador, sublinhando a
transformao dos cdigos de feminilidade e sexuais de seu tempo. De uma sexualidade
associada moralmente como uma barbrie moderna e com vnculos com a negritude,
apresenta uma inverso que positiva uma viso popular da sensualidade. A branquitude
como elemento moral inclua uma fronteira estabelecida entre as mulheres brancas das
classes privilegiadas com as negras, mulatas e pobres, caracterizando as primeiras como
mais contidas sexualmente, algo que a cultura de massas e a trajetria de Carmen com
suas negociaes ajudou a redimensionar.
No nmero musical do filme, sua performance corporal no aponta relaes com
a negritude e a dana popular, expressas supostamente no rebolado e na nfase na
cintura. Carmen Miranda, no deixando de se movimentar no palco, enfatiza
interpretaes cnicas que reforam o sentido da letra usando as mos, olhares e

282
movimentos com a cabea. No se porta como objeto de deleite sexual voyeurstico aos
homens, antes estabelece dilogo visual com seu pblico. Em vez de ressaltar um
feminino sensual, veste-se com uma roupa carnavalesca moderna, aproximada do
masculino, com calas compridas e uma gravata. No mesmo filme, quando interpreta
com Aurora Miranda Cantoras do Rdio, veste, juntamente com sua irm, um terno e
cartola ao estilo difundido por Marlene Dietrich no cinema. Nas palavras de Shaw:
nesse nmero musical, sua performance, as vestimentas ao estilo hollywoodiano e o
cenrio modernista conspiravam para criar um dos pontos altos do filme (2013, p. 21-
22, traduo minha).
Desta forma, Carmen negociava com limites da branquitude, garantindo sua
admisso como estrela nacional. Ao mesmo tempo, em sua carreira, no deixava de
apresentar ambiguidades, expressas nas letras das msicas que gravara e em suas
interpretaes. A malandragem no carnaval aparece na letra de Camisa Listada, na
qual o eu lrico feminino lamenta que seu marido saa com canivete no cinto e vestido
de mulher. Em E o mundo no se acabou, como no carnaval, mas de forma
radicalizada, sob a expectativa de o mundo acabar, concretizam-se inmeras
possibilidades de prazer, desconsiderando as convenes sociais.
A valorizao do carnaval significou tambm um redimensionamento dos
cdigos de gnero que eram disciplinados nas normas da branquitude, as quais
valorizavam o matrimnio e racializavam expresses de sexualidade para alm do
controle parental. Muitas msicas de Carmen valorizavam a folia em relao ao
comprometimento, invertendo as expectativas normativas. Em Espera um Pouquinho,
uma aluso expectativa de sexualidade pr-matrimonial em um carro era insinuada
com: cuidado, muito cuidadinho, no se afoite tanto, olha a curva no caminho. A
curva era associada ao sexo, mas tambm metfora para o casamento que atrapalharia os
planos porque depois, mais tarde, j no posso mais brincar.
Em Endereo Errado, o protagonismo feminino maior quando, j prevendo a
malandragem masculina, o eu lrico feminino tambm passava um endereo qualquer
para seu pretendente. Na cano Al, Al, Carnaval, o eu lrico feminino revela estar
saindo tanto com Pierrot quanto com Arlequim. O que se observa nesses casos uma
ode malandragem tambm feminina, deslocada do smbolo masculinizado que se
nacionalizou do malandro. Em Se o samba moda, h uma inverso do popular que
passa a ser cada vez mais aceito nos espaos elitizados ou procurados por sujeitos da

283
elite: Ainda h quem diga que o samba no tem valor Mas l se encontra o deputado e
o senador.
A carnavalizao permitia inverter o filtro da branquitude em alguns sentidos e
questionar os mecanismos da dominao que subalternizavam as camadas populares.
Recorrendo imagem da malandragem e da malcia em suas interpretaes, Carmen
Miranda dava espao para ambiguidades na branquitude nacional da qual participava,
no sem torcer seus significados:

nesse sentido que Carmen Miranda, como intrprete desse samba e


de tantos outros, fez valer a sua imagem malandra. Tal caracterstica
esteve presente na sua forma singular de questionar a realidade atravs
da msica, de fazer a crtica s convenes, de apropriar-se do mundo
ao seu redor e dar-lhe outros significados. A letra de uma cano, o
personagem de um filme ou entrevistas com a imprensa: tudo era
pretexto, matria-prima para o riso. Parodiar os costumes socialmente
estabelecidos, questionar suas definies foi uma das grandes
qualidades de Carmen Miranda. Conferia sempre um sentido ambguo
interpretao, ao criar ou acentuar a picardia alterando a modulao
da voz, acrescentando uma palavra a mais cano, introduzindo um
breque. Uma piscadela de olhos, um sorriso maroto, alm de todo um
jeito de corpo que ora complementava, ora negava os sentidos das
palavras. Sua performance no tinha por objetivo definir, mas indagar.
(GARCIA, 2004, p. 49)

A inverso presente em suas canes poderia apontar tambm para aspectos


raciais. A msica O Ngo no samba (1929), de Ary Barroso, Marques Prto e Luiz
Peixoto, um exemplo, trazendo uma corporeidade especial quando vinculam-se
negritude e masculinidade: Samba de ngo, meu bem, me deixa tonta [...]. No samba
branco no tem jeito, meu bem. No samba ngo nasce feito. O samba msica
genuinamente de ngo (e no de branco), aquele que traz j de nascena a qualidade
de sambar. A inverso impe a caracterizao do nacional imbricada com a negritude,
justamente aquela que at h pouco tempo era excluda da ideia de nacionalidade.
Prxima a compositores negros e pobres que foram importantes em muitos
momentos de sua carreira de sucesso, gravou e interpretou canes com concepes
divergentes aos discursos hegemnicos de modernizao calcada na branquitude.
Incorporou a linguagem popular discordante ao portugus formal, elementos religiosos
de origem africana, valores contrrios ideologia trabalhista que denotam fissuras e
ambiguidades no processo de branqueamento e higienizao do samba. Um dos
aspectos importantes de divergncias so as msicas em que a partir de um eu lrico

284
feminino, interpretando a mulata ou a morena, acabou por erotizar uma figura ausente
das narrativas nacionais hegemnicas at o perodo: o moreno, ou mulato.
No obstante, a negritude s teria espao simblico no cinema a partir da
aparncia branca, o que atestado na presena dominante dos cartazes brancos do rdio
nas imagens do cinema nacional emergente. Sobre os musicais carnavalescos do perodo
e da dcada seguinte, Robert Stam (2008) caracteriza: a maioria dos musicais
empregava negros em boa medida como pano de fundo e como contraponto para as
intrigas de amor de estrelas brancas (p. 131); a presena velada da dana e da msica
afro-brasileira em inmeros filmes marca, paradoxalmente, a ausncia afro-brasileira da
tela (p. 132). A presena negra servia para atestar a autenticidade nacional, performada
ao fundo do protagonismo branco. O mesmo autor disserta sobre o papel de Grande
Othelo, ator negro que se tornou muito reconhecido a partir da dcada de 40, nos filmes
nacionais:

Em geral ele era tratado como comicamente assexuado; seu papel era
ajudar nas intrigas amorosas de seus parceiros brancos (Oscarito, Z
Trindade), um padro dessexualizador que Donald Bogle observou
nos filmes protagonizados por duplas masculinas em que um ator
negro e outro branco, um subgnero hollywoodiano. De fato, a
persona de Grande Otelo possui algo de uma criana esperta,
inteligente, mas de certo modo pr-sexual, infantilizada, como se o
pblico branco de classe-mdia pudesse ter dificuldade em aceitar um
negro sexualmente assertivo. (STAM, 2008, p. 159)

Muito embora a prpria linguagem carnavalesca permitisse a inverso


hierrquica (o que demandaria um estudo parte, relativo s representaes negras no
cinema nacional do perodo), a pardia deslocadora apresentava um limite racial mais
evidente na imagem de brasilidade difundida. Isso no significa dizer que se tratava de
um limite absoluto na cultura de massas que se definia pela heterogeneidade. Os valores
culturais e o humor constituinte da esttica da cultura popular circulavam por ambientes
diversos cuja seletividade variava de acordo com o pblico. A mestiagem e/ou a
negritude poderiam aparecer no teatro de revistas populares, enquanto no cinema
caracterizado por um pblico mais abrangente ela era no mximo simbolizada, mas no
expressa concretamente.
Tiago Gomes (2007, p. 39) explora a importncia da revista Tudo Preto em 1926
e 1927, realizada pela Companhia Negra de Revistas, por sua vez, composta por artistas
negros como Pixinguinha, Bonfiglio de Oliveria, Sebastio Cirino e De Chocolat. A

285
revista obteve sucesso tanto no Rio de Janeiro quanto em So Paulo, debatendo temas
relativos identidade nacional e reforando vises da harmonia racial brasileira. Desta
forma, o autor pe nfase nos negros enquanto sujeitos histricos importantes na
construo de uma ideia de nao que se consolidaria nas dcadas seguintes.
Meu ponto divergente ao do autor, j que minha discusso aponta para como,
ao lado da busca de reconhecimento dos artistas negros, filtros raciais eram
estabelecidos para alm da vontade destes sujeitos subalternos, incorporando a
negritude como autenticidade nacional, mas dando uma feio final branca,
especialmente em espaos e produes mais valorizadas socialmente. No entanto, a
contribuio de Gomes (2007) importante, ao sinalizar que os valores e a esttica que
tematizavam sobre o nacional circulavam em espaos distintos e apontavam
ambiguidades.
Em Al, Al Carnaval!, a branquitude no impedia que alguns signos da
colonialidade fossem ridicularizados, como nas passagens de Al, Al Carnaval! em
que o grupo artstico europeu preferido do dono do cassino Mosca Azul preso. Outro
exemplo a forma jocosa em que os termos em ingls eram pronunciados pelas
personagens. A inverso que permitia os revisteiros nacionais conquistarem seu espao
representava a possibilidade de questionar as hierarquias sociais, valorizando as
artimanhas populares da malandragem.
No enredo, os revisteiros revelam-se comicamente picaretas e no conseguem
organizar a revista, com a desistncia de todos os artistas que disseram fazer parte dela
ao proprietrio do cassino. Isso no os diminui; trata-se, ao contrrio, de uma inverso
do iderio trabalhista que se criava. Quase no final, em um dos nmeros musicais o
proprietrio transveste-se de mulher, cantando em agudo cmico, quando retira a peruca
e corre atrs dos revisteiros para faz-los apanhar. A narrativa termina com os dois
artistas em um navio, quando se aproxima o proprietrio do lado de fora ainda com as
vestes femininas e os chama de Bananas, ao que respondem que agora so Laranjas,
e a cena termina em uma ode malandragem dos dois, que conseguiram dinheiro para
fugir, ao mesmo tempo em que o proprietrio aparecia raivoso e ridicularizado.
Al, Al Carnaval! trazia um elemento central das chanchadas: os anti-heris em
tempos de valorizao oficial do trabalho: os anti-heris desses filmes ganhavam
dinheiro ou acesso vida luxuosa, mas no pegavam no pesado, antes por um golpe de
sorte ou jogada levemente clandestina ou fraude ilegal (DENNISON; SHAW, 2004, p.
22, traduo minha). Trazia em seu roteiro inverses de classe social que sublinhavam

286
como as hierarquias eram passveis de transformao. Tambm trazia inverso de
gnero que, no entanto, nada tinha de camp no sentido subversivo; antes, se pautava na
reiterao de esteretipos. Por fim, nada trazia de inverses raciais, excluindo de fato a
representao negra do filme, e, assim, revelando o filtro racial constitutivo da
incorporao da cultura popular e seu humor.
Embora a colonialidade fosse questionada e alvo da ridicularizao, o
elemento negro estava ausente dos filmes de ento. A aparncia branca revelava-se uma
pr-condio na representao da nao, ao menos em termos abrangentes. A negritude
fazia-se presente para reforar a ideia de uma comunidade imaginada, de uma nao
sem fraturas que alava o popular a nacional. As pardias criticavam, de um ponto de
vista popular, a valorizao do estrangeiro em prol do nacional. Consolidava-se a viso
de um pas racialmente harmnico e caracterizado pela unidade nacional que, no
entanto, no questionava a branquitude, mas a redimensionava.
Os filmes, embora demarcassem recordes de audincia, no eram caracterizados
por uma recepo amplamente positiva. A viso popular que desbancava o mundo
burgus brasileiro que, por sua vez, projetava suas esperanas nacionais na semelhana
civilizatria com os pases do norte, causava repdios a este cinema expressos na
imprensa. Criticados com os nomes pejorativos de abacaxis e futuramente
chanchadas, nomes apropriados pela prpria produo flmica parodicamente,
carregavam semelhante recepo negativa a Carmen Miranda em sua carreira norte-
americana. As crticas no impediam a consolidao de uma representao nacional
sustentada na imagem do carnaval, na harmonia racial e na cultura popular; antes,
representavam esforos de filtros da branquitude que regulavam tais representaes.
Carmen Miranda tambm era criticada por seus excessos performativos em sua
carreira internacional, por sua forma de acentuar gestos e olhares, transformada em
caricatura no cinema hollywoodiano (Arquivo da BJKS). Tais caractersticas da
brasileira carregam semelhanas com o teatro de revistas e as chanchadas nacionais,
permitindo uma anlise mais aprofundada das relaes do camp que permearam sua
recepo norte-americana com sua experincia brasileira com o carnavalesco, por meio
de seu contato e participao na cultura popular massiva. Enquanto no Brasil ela sabia
atenuar performances associadas ao popular com certos aspectos que a vinculavam
branquitude, nos Estados Unidos ela soube ressalt-los, desvinculando-se de
expectativas que garantiam sua boa aceitao dentre parcela significativa do pblico da
elite brasileira.

287
6.3. O humor e suas fronteiras: do carnavalesco ao camp

Considerar que o humor nem sempre faz o mesmo sentido quando atravessa
fronteiras perceber as tenses entre as recepes norte-americanas e brasileiras na
carreira de Carmen Miranda. O humor em sua carreira brasileira passava a ser parte da
identidade nacional que Carmen ajudava a criar, equilibrando-se nas tenses entre a
unidade nacional que se constitua, redimensionando a branquitude via mercado de
cultura de massas. Seu humor na carreira internacional lidava com sua caracterizao
como diferena racial naquele contexto, mobilizando seu esteretipo a seu favor
comercialmente e, quando pertinente, exagerando-o, visibilizando traos de uma
construo arbitrria ao pblico e, assim, deslocando-se dele.
O humor em suas interpretaes poderia apontar para vrios sentidos,
dependendo do olhar de quem o via, marcando consequentemente uma srie de
ambiguidades. Algumas de suas recepes no Brasil poderiam compreend-la como
confirmao da branquitude como ideal nacional, no qual o humor seria conotativo da
alegria da harmonia racial que comporia a brasilidade. Recepes nos Estados Unidos
poderiam reiterar seus vnculos com uma figura caricata e cmica, ratificadora de uma
alteridade racialmente inferior. As mesmas recepes brasileiras poderiam ento recusar
tal caracterizao humorstica que se afastava da branquitude constituda, associando-se
ao humor da cultura popular.
A ambiguidade prpria do humor de Carmen Miranda abria as portas para
recepes no hegemnicas que no contexto norte-americano via sua caracterizao
hiperblica e cmica como um questionamento de essencialismos. No Brasil, parte de
seu pblico a idolatrava por seus vnculos com o riso festivo da cultura popular que
colocava em cheque as vises do nacional calcadas na branquitude. A despeito de o
humor funcionar de forma diversa em ambos os contextos, cabe perguntar sobre suas
relaes. Ou seja, como o humor foi desempenhado e compreendido de forma
contextualmente distinta, mas carregando a experincia contida na trajetria de Carmen
Miranda nos mercados de cultura de massa brasileiro e norte-americano? Quais as
afinidades entre a linguagem carnavalesca e o camp em Carmen?
A primeira e mais concreta dimenso a ser sublinhada a prpria recepo camp
no Brasil de Carmen Miranda, notadamente expressa no carnaval, quando homens
interpretavam a baiana de Carmen que fazia sucesso em Hollywood:

288
Os homens usavam o mesmo tipo de fantasia no carnaval mesmo
antes da primeira apario cinematogrfica de Carmen Miranda como
baiana, em 1938, mas os bichas brasileiros logo captaram o
componente camp na representao da Pequena Notvel, com seus
balangands excessivos e o sortido turbante de frutas tropicais.
(GREEN, 2000, p. 336)

A citao acima sugere que Carmen Miranda teria sido, como uma estrela da
cultura de massas nacional, tambm incorporada como um cone camp no Brasil. James
Green (2000) compreende que uma das caractersticas fundamentais do carnaval a
intensificao das prprias experincias dos indivduos que transgridem as normas de
gnero e sexualidade que se tornam mais pblicas: o que havia sido discretamente
dissimulado numa infinidade de exerccios dirios de ocultao torna-se uma
apresentao aberta sem as sanes sociais (GREEN, 2000, p. 335). Neste sentido, v
as performances camp tendo naquele contexto um lugar para serem desempenhadas:

As imitaes camp de mulheres, com seu vesturio exagerado, seus


enchimentos excessivos e sua divertida bufonaria podem no fim de
tudo reforar os esteretipos de gnero tradicionais, diminuindo a
fora ou eliminando completamente a eficcia da pardia enquanto
crtica de normas sociais rgidas. (GREEN, 2000, p. 337)

A interpretao do historiador brasilianista est de certa forma se referindo


prpria interpretao de Da Matta (1990) sobre o carnaval, abordada por mim na
introduo desse trabalho. Nesta acepo, o carnaval funcionaria como um rito social
calcado na suspenso temporria das regras e hierarquias sociais. Tal suspenso
representaria o limite apenas a confirmao das mesmas regras e hierarquias, posto que
elas quase necessariamente se reestruturariam depois da festa. No pretendo aqui, ao
refutar o argumento de Da Matta, constatar o mesmo uso camp da figura de Carmen
Miranda no contexto brasileiro, visto que ela desempenhou papis distintos em cada
contexto. Analisar como tambm foi parodiada no Brasil exigiria constatar que

A pardia no subversiva em si mesma, e deve haver um meio de


compreender o que torna certos tipos de repetio parodstica efetivamente
disruptivos, verdadeiramente perturbadores, e que repeties so
domesticadas e redifundidas como instrumentos da hegemonia cultural.
(BUTLER, 2003, p. 198)

Tal objetivo escapa ao alcance desta pesquisa, posto que no encontrei material
documental suficiente para estudar suas recepes camp que necessitariam tambm

289
ser traduzidas contextualmente no Brasil. Antes, busco compreender os antecedentes
artsticos de Carmen Miranda que facilitaram sua atuao camp nos Estados Unidos.
Ressalto, assim, as afinidades no campo esttico entre carnavalizao e camp, algo que
permite conceber Carmen como passvel de leituras abertas e no apenas reiteradoras da
colonialidade em suas variadas dimenses. Para tanto, sua insero na cultura de
massas carnavalesca foi fundamental, em uma leitura que capte sua complexidade e
ambiguidades.
Em uma interpretao antropolgica marcada pela anlise sincrnica, escapam a
Da Matta as caracterizaes diacrnicas, revelando-se de fato uma viso a-histrica do
fenmeno carnavalesco e restrito ao rito social. Desta forma, escapa-lhe todo o processo
de resistncia que garantiu aos populares transformarem suas expresses culturais em
sinnimo de nacional, muitas vezes fazendo uso do riso festivo da festa popular. Sobre a
resistncia calcada no humor que garantiu a ampla difuso do carnaval popular nas
primeiras dcadas do sculo XX, Rachel Soihet critica o autor:

At o significado do termo brincar no explorado em todas as suas


sutilezas, em termos da importncia do deboche, da irreverncia, da
crtica aos poderosos. As brincadeiras guardam um contedo
poltico considervel, explicitando a conscincia, por parte dos
populares, da relatividade das verdades e das autoridades no poder. A
impossibilidade concreta de superao imediata de suas dificuldades
cotidianas levam-nos a privilegiar o campo cultural e as formas
metafricas como cerne de sua resistncia. A hegemonia de uma
forma musical vinda de baixo, o samba, como uma forma ideal de
relacionamento social, por si s j uma vitria que Da Matta no
consegue valorizar. (2008, p. 168)

Concordando com a autora, e respaldado por uma leitura dos carnavais cariocas
de Robert Stam (1992), que valoriza a heteroglossia dialgica de Bakhtin e compreende
as expresses contextuais diversas no tempo, no espao e na diversidade das
experincias sociais, considero com o autor norte-americano que

Qualquer teoria do carnaval que se pretenda fiel realidade teria de


levar em conta tambm as ambigidades polticas do carnaval. A
teoria do carnavalesco tem de ser relacionada tambm com a noo
bakhtiniana de heteroglossia, das diversas linguagens sociais que
fariam parte do carnaval. Qualquer que seja o impulso utpico
expresso pelo carnaval, o carnaval, o carnaval real, social, enquanto
"enunciado historicamente situado", como ele vivido, por exemplo,
numa sociedade contempornea como a brasileira, inevitavelmente
influenciado pelas hierarquias sociais, pelas assimetrias de poder.

290
Branco e negro, homem e mulher, operrio e patro, heterossexual e
homossexual, neste sentido, vivem carnavais distintos. (STAM, 1992,
p. 51)

Ademais, o sentido bakhtiniano de carnaval no o reduz a um rito que se


concretiza anualmente, mas a uma linguagem que perpassa a cultura popular. No
contexto estudado, a linguagem carnavalesca parte constituinte da cultura popular
massiva que circulava por diversos espaos sociais como os teatros de revista, o cinema
nacional, a msica popular e o prprio carnaval. Carmen Miranda perpassou por estes
espaos em sua trajetria, demarcando confluncias entre esta linguagem e seu
agenciamento e recepo camp nos Estados Unidos, trazendo em sua experincia o riso,
a ironia, o exagero, a pardia, dentre outros elementos, que permitiam em sua figura a
emergncia de significados no fechados, mas profcuos em ambiguidades.
Os deslocamentos propiciados em suas autopardias e performances
hiperblicas carregavam a impresso camp de um mundo visto na metfora de um teatro
algo prprio ao carnaval que tambm se situa na fronteira entre a arte e a vida. No se
trata do palco em si, mas da prpria vivncia do palco compartilhada: durante o
carnaval a prpria vida que representa, e por um certo tempo o jogo se transforma em
vida real. Essa a natureza especfica do carnaval, seu modo particular de existncia
(BAKHTIN, 1993, p. 07). Em outros termos,

O carnaval, no de maneira alguma a forma puramente artstica do


espetculo teatral e, de forma geral, no entra no domnio da arte. Ele se
situa nas fronteiras entre a arte e a vida. Na realidade, a prpria vida
apresentada com os elementos caractersticos da representao. (BAKHTIN,
1993, p. 06)

No caso da cultura popular alada ao nacional, os espetculos teatrais eram


compostos pela linguagem carnavalesca que, por sua vez, se estendia para alm do
palco e era compartilhada pelos inmeros fs da msica popular veiculada no rdio,
cantada ento nas ruas enquanto se fantasiavam. As fantasias revelam a valorizao do
ser o que no se , quando a linguagem carnavalesca

Caracteriza-se, principalmente, pela lgica original das coisas ao avesso,


ao contrrio, das permutaes constantes do alto e do baixo (a roda), da
face e do traseiro, e pelas diversas formas de pardias, travestis,
degradaes, profanaes, coroamentos e destronamentos bufes.
(BAKHTIN, 1993, p. 10)

291
O exagero, o hiperbolismo e o excesso so caractersticas que definem a carreira
de Carmen Miranda nos Estados Unidos e carregam sua proximidade com o carnaval
que compartilha dos mesmos atributos. O camp por meio destas caractersticas afirma o
artifcio, a construo arbitrria por detrs das normas sociais. O carnaval afirma o
visceral que incorpora ambivalncia entre negativo e positivo por meio do baixo
material e corporal. Em ambos os casos, trata-se de uma performance caracterizada pela
nfase democrtica que rejeita as normas e hierarquias sociais.
Sua ironia, no entanto, dependia das audincias capazes de capt-la. Carmen
Miranda obteve muitas crticas de seu pas, seja por reduzi-lo a uma alteridade
racializada generalizvel na Amrica Latina de Hollywood, ou por performar o pas na
corporalidade associada negritude. Ela tambm foi alvo de reduo caricatura que
obstaculizou sua carreira no cinema dos Estados Unidos. Ao lado disso, muitos foram
capazes de v-la e ouvi-la a partir de suas ambiguidades deslocadoras, o que mostra sua
recepo homossexual nos Estados Unidos e o apelo popular constatado em seu velrio
com apelo pblico destacado. Sujeitos subalternos, situados fora das normas sexuais e
abaixo das posies de dominncia social viam em Carmen uma possibilidade de
inverter os valores que os subalternizavam socialmente.
Para tanto, Carmen utilizou-se de tcnicas que lhe eram familiares e as
desenvolveu no mercado norte-americano. Salientava visualmente certas gestualidades e
expresses faciais, destacando-se de outras personagens dos filmes, como caractersticas
marcantes nas narrativas flmicas que participou. Comunicava-se com a plateia por meio
de olhares e piscadelas, como no nmero musical The Lady in The Tutti-Frutti Hat, no
qual pisca olhando para as cmeras (SHAW, 2013, p. 56) como um sinal para a plateia
extra-diegtica, que denota que est brincando com o papel que desempenha.
Como outro exemplo, Jos Gatti (2006) explora as inverses carnavalescas
presentes em vrios momentos em outro filme na atuao de Carmen: Em vrios
dilogos de Springtimes in the Rockies, Rosita capaz de inverter as intenes das
outras personagens, em uma operao carnavalesca. Christy no queria contrat-la, mas
o faz. Vicky no confiava nela, mas torna sua cmplice (GATTI, 2006, p. 104,
traduo minha). Em outros termos, ora o estdio dava liberdade para Carmen
desenvolver autoralmente sua forma de desempenhar suas personagens, ora ele mesmo
explorava aspectos que j constituam parte da persona da artista.

292
Tais caractersticas que eram centrais no deslocamento do esteretipo de Carmen
Miranda nos anos 40 encontram ressonncias na esttica desenvolvida nas chanchadas
no mesmo perodo, conforme descreve Coelho:

O estilo cmico que ela desenvolveu nos seus filmes americanos da


dcada de 40 foi de fato derivado da chanchada. Muitas similaridades
podem ser observadas do estilo popular brasileiro desenvolvido pelos
colegas de Miranda como Grande Othelo, Oscarito e Dercy
Gonalves. Eles faziam uso exagerado das expresses corporais e
faciais e eram mestres de ironia e duplo sentido, e empregavam uma
intimidade e cumplicidade com as cmeras/audincia. O estilo
pessoal de Miranda de mexer os olhos e pontuar suas frases ditas com
malcia estava diretamente relacionado com o estilo cmico brasileiro.
(COELHO, 1998, p. 76, traduo minha)

No se trata de algo derivado exatamente das chanchadas, as quais Carmen, ao


que se sabe, no acompanhava dos Estados Unidos. Pode-se pensar em um caminho que
vai das estticas circenses e teatros populares ao cinema carnavalesco, chegando ao
cinema hollywoodiano com Carmen Miranda que, em suas estratgias performticas,
lida com o texto das narrativas e nmeros musicais de forma irnica, dando margem a
possveis leituras questionadoras. Carmen Miranda possibilita tambm o
questionamento da branquitude que ela encarna ao se tornar cone nacional. Robert
Stam salienta uma dvida da artista com a cultura afro-brasileira, resultando em certos
crticos hostis a Carmen Miranda que sublinhavam o lado negro de sua performance
(2008, p. 134):

Essa dvida multidimensional, relacionada com sua linguagem


corporal e seus movimentos, com seus passos de samba, com o uso de
sua voz como instrumento, com sua abordagem percussiva das letras
de cantar (como no blues) e com sua capacidade para a improvisao.
(STAM, 2008, p. 133)

Carmen Miranda, em sua proximidade com compositores e valores culturais


populares e afro-brasileiros, permitia que estes a vissem com bons olhos o que era
atestado em seu grande apelo popular contrastado com a crtica presente nas revistas e
jornais como uma representante de sua cultura que era alada a nacional. O uso do
humor, das pardias e da cumplicidade com o pblico em suas apresentaes acabava
reiterando sua associao com a esttica carnavalesca dos teatros populares. Sua
experincia nacional foi levada aos Estados Unidos, dando-lhe artifcios para lidar com
um novo universo simblico no qual ela ressignificava, parodiava e invertia situaes

293
que a subalternizavam, proporcionando-lhe uma esttica camp, ou, antes, demonstrando
as similaridades e encontros entre o camp e o carnavalesco brasileiro.
A cantora, entertainer e atriz brasileira pode ser definida por conter em suas
interpretaes uma cumplicidade subversiva com os regimes de representao em que
se inseriu. A cumplicidade era pr-requisito para seu sucesso no mercado, representando
criativamente aspectos j reconhecidos no pblico, seja enquanto estrela nacional ou
como diferena racial nos Estados Unidos. A subverso se localiza na forma com que
ela, repetindo certos elementos simblicos, acrescentava novos sentidos, seja os
estilizando, como tambm os parodiando e exagerando, ou ainda com uso do humor,
colocando em questo os prprios significados que afirmava, dependendo do momento
e do contexto apresentado. Carmen Miranda assim deslocava sentidos e permitia que
eles vivessem sob tenso, acionando possveis leituras subalternas.
Carmen se situava entre os desejos das duas naes, no apenas por reiterar sua
posio entre a colonialidade norte-americana e sua contrapartida brasileira,
expressando os desejos hegemnicos de uma dominao poltica continental ou de uma
insero brasileira no rol das naes civilizadas com sua msica. Sem deixar de
representar aspectos da hegemonia norte-americana no continente em seu esteretipo e
dos desejos da branquitude nacional, ela dava margens a outros desejos.
A colonialidade se definia por um padro branco, masculino e heterossexual
que era difundido em termos internacionais desde o empreendimento colonial e
reafirmado nas antigas colnias que buscavam se assemelhar valorativamente aos
antigos pases metropolitanos. Carmen Miranda afirmava tal padro, com sua trajetria
no mercado brasileiro, incorporando seletivamente a negritude para uma representao
supostamente mais sofisticada do nacional com sua baiana estilizada. Representando
o esteretipo da latino-americana, ela tambm reforava a norma hegemnica, em uma
apresentao sensual e cmica, excluda dos romances da narrativa.
Seus deslocamentos, porm, permitiam outros sentidos que se defrontavam com
os valores contidos nas narrativas e performances que atuava. Rindo, parodiando,
exagerando e tendo certo controle de sua persona, Carmen possibilitava que outros
desejos fossem expressos na recepo e incorporao de sua imagem. Enxergar a
Carmen camp e carnavalesca conceber as inmeras leituras possveis da cultura de
massas para alm dos significados hegemnicos que predominam nela e compreender
como, a despeito das hierarquias e dominao evidentes, os sentidos propagados do
margem a ambiguidades e oposies.

294
O cinema e as foras armadas norte-americanas produziam a homossexualidade
que desejariam controlar e o carnaval e a identidade nacional brasileira produziam a
valorizao da negritude e a ironia da branquitude que desejaria reiterar. A disputa,
embora no igualitria, estava colocada. Carmen estava em sua carreira entre os
mltiplos desejos de duas naes. E, consequentemente, seus significados
ultrapassavam qualquer inteno de conteno ou regulao seja do mercado ou do
Estado na recriao da identidade nacional que se redimensionava durante o perodo de
sua vida para alm das fronteiras nacionais. A multiplicidade de sentidos que acionava,
invadindo as vidas privadas via meios de comunicao de massa, permitia que fosse lida
e fruda de diversas maneiras e por sujeitos distintos, constituindo-se como um cone
cultural paradigmtico e transnacional.

295
CONSIDERAES FINAIS

Como a figura negra da baiana, em seus vnculos com o que era considerado
primitivo ou atrasado, pde se tornar um cone nacional? O que fez com que a diferena
racial e de gnero (entendida em oposio norma masculina e branca) se tornasse um
referencial da nacionalidade brasileira? Quais disputas simblicas e mediaes polticas
entraram em jogo? Como a dinmica do mercado de cultura de massas e o prestgio
crescente da cultura popular na capital federal permitiram a constituio de uma
comunidade imaginada brasileira, baseada na alegria, na sensualidade, na
feminilidade e na harmonia racial? Estas questes permearam as reflexes da minha
tese, que buscou respond-las a partir da trajetria de um cone paradigmtico da cultura
de massas: Carmen Miranda.
Um dos aspectos centrais abordados na anlise da carreira de Carmen Miranda
foi o ponto de viragem na discusso da identidade nacional nas dcadas de 30 e 40, pela
mudana de escopo da esfera da inveno de o que nacional, antes restrita a crculos
intelectuais. A trajetria de Carmen Miranda nos chama a ateno para a importncia
dos meios de comunicao de massa, para o seu imenso apelo em relao ao pblico e
tambm para as engrenagens econmicas e mediaes polticas que influenciavam
nacionalmente e internacionalmente as representaes sobre brasilidade.
Sua vida foi marcada pelo entrelaamento com os meios de comunicao de
massa nacionais e internacionais. Carmen, que nasceu em Portugal e veio para o Brasil
com pouco menos de um ano de idade, transformou-se na cantora de sambas e
marchinhas que mais vendeu discos no Brasil na dcada de 30, dcada que representa o
auge do rdio brasileiro e na qual o samba se torna a msica nacional por excelncia. Na
dcada seguinte, ela se tornou no apenas uma estrela do cinema hollywoodiano, mas
chegou a ser at a atriz mais bem paga em 1944. Por fim, Carmen ainda chegou a atuar
na nascente televiso norte-americana.
Abordei a trajetria de Carmen por esses meios, levando em conta as
representaes de brasilidade e tambm de Amrica Latina em seus filmes e atuaes
que, por conta de sua importncia enquanto cone nacional e estrela de cinema, tinham
um impacto muito forte no que diz respeito esfera dos sentimentos, produziam
identificaes e subjetivaes prprias aos meios de comunicao de massa.
No momento pice da carreira de Carmen Miranda, no apenas o samba passava
a ser aceito como msica nacional, mas o universo simblico nacional se

296
redimensionava, quando a cultura afro-brasileira passava a fazer parte dele. Isso
acontecia por meio do mercado de cultura de massas no Rio de Janeiro, que se
desenvolvia de forma significativa a partir da dcada de 1930, considerando o
aparecimento de teatros populares, bares, o desenvolvimento da indstria fonogrfica e
do rdio comercial e o aparecimento de cassinos com pblico elitizado e internacional
na capital federal, o Rio de Janeiro. Havia uma nova paisagem sociocultural que marcou
o pano de fundo da carreira de Carmen, que diz respeito incluso da cultura afro-
brasileira identidade nacional. Criava-se a ideia de uma comunidade imaginada
brasileira, pretensamente caracterizada pela harmonia racial. Essa incluso se fazia por
meio da mediao do Estado e do mercado, representando uma incorporao seletiva: a
cultura popular era alada ao nacional por meio do recurso branquitude.
Os cartazes do rdio eram em sua grande maioria compostos por artistas brancos
e das classes mdias, que transformavam-se em figuras de referncia aos ouvintes que
passavam a seguir, em um emergente star system, os signos comportamentais aos quais
passavam a se identificar. No se trata apenas de uma questo cromtica, mas de uma
diviso moral e simblica que associava a branquitude com a modernidade e a negritude
com o atraso. Ou seja, enquanto manifestaes culturais populares eram criticadas em
termos pejorativos na imprensa, os cartazes do rdio, associados elegncia e moda
transformavam-se em cones nacionais.
Carmen Miranda foi, enquanto artista de maior destaque de seu tempo, sujeito
importante desse processo que no deixou de se configurar em meio a ambiguidades.
No auge de sua carreira brasileira, Carmen incorporava a personagem da baiana. A
baiana referia-se a um Brasil profundo, colonial da Bahia e, ao mesmo tempo, uma
personagem histrica negra da capital federal que ocupava as ruas vendendo quitutes, ao
mesmo tempo em que era liderana religiosa nos espaos nascentes do samba. A baiana
de Carmen foi criada para o filme Banana da Terra; com o sucesso da personagem nos
cinemas, a artista passou a represent-la nos teatros e cassinos cariocas e de diversas
localidades.
A criao da personagem da baiana contou com a participao do compositor
baiano Dorival Caymmi, que comps a msica O que que a baiana tem? e ajudou
Carmen a compor os traos fundamentais da personagem, com as gestualidades e
indumentria da baiana. Mas a baiana j era uma personagem recorrente do teatro de
revistas desde o fim do sculo XX na capital federal e simbolizava a mulata sensual, em
representaes que se tornaram perenes com sua atualizao na cultura de massas.

297
Todas essas narrativas eram redimensionadas na nova personagem interpretada por
Carmen Miranda, que viria a ser reconhecida internacionalmente.
A baiana de Carmen Miranda representava as expectativas centrais de unidade
do perodo no qual Getlio Vargas comandava o pas, visando a integrao e
modernizao nacional. Carmen Miranda era originria das classes populares, chegou a
morar na Lapa e no centro do Rio, e, portanto, estava prxima e sintonizada com a
cultura popular, as grias e expresses da ordem do dia e com uma esttica prpria que
muitas vezes se chocava com os valores dominantes. No entanto, pode-se dizer que foi a
branquitude de Carmen, aqui pensada em seus sentidos simblicos, que permitiram que
ela pudesse incorporar uma personagem negra que se tornava smbolo nacional.
Enquanto a negritude, ou a mulata, eram vinculadas simbolicamente
acessibilidade sexual, a incorporao da baiana demandou a Carmen a lidar com uma
moralidade presente nos cdigos de gnero e raciais de seu tempo. A baiana de Carmen
uma baiana estilizada, que incorporava os elementos da vestimenta da figura negra,
mas retirava o que considerava ser vulgar por sua associao com a negritude. Na
vida pessoal, Carmen no frequentava os ambientes de sociabilidade noturna dos
sambistas, no participava dos teatros de revista populares, antes teve como ponto de
partida o rdio, representativo do que havia de mais moderno no perodo.
A baiana de Carmen no era, portanto, equivalente simbolicamente s baianas da
Praa Onze, local por excelncia de expresso da cultura afro-brasileira. Sua baiana era
estilizada e carregava o glamour de uma esttica hollywoodiana, em relao a qual
sempre esteve associada. Alm de ser branca e de olhos verdes chamativos, ela
incorporava elementos prximos ao mundo moderno, ligados simbolicamente
branquitude, em especial com sua associao ao mundo da moda. Tais cuidados
garantiam sua aceitao ampliada na sociedade. Desse modo, Carmen pde participar
como protagonista da emergncia de um star system brasileiro, sendo sua imagem
constantemente presente em vrias mdias: no rdio, no cinema e nas revistas ilustradas.
Em um perodo de modernizao dos costumes, Carmen como estrela do rdio
se vinculava figura da mulher moderna, apresentando em muitos momentos certos
comportamentos de vanguarda para a poca, alm de influenciar a moda feminina de
seu tempo. Incorporando uma figura negra a partir de sua branquitude, ela pde
conciliar as promessas de unidade e harmonia racial com um desejo prprio de seu
tempo de branqueamento da populao. Com as negociaes, Carmen ajudou a

298
sedimentar a morena como o tipo da brasileira e fez parte da histria importante da
construo simblica da mulher brasileira como sensual.
Era uma representao abrangente e, ao mesmo tempo, seletiva da
nacionalidade, equilibrando-se nas tenses raciais e sociais de seu tempo e garantindo
adeso de pblicos de variados espaos sociais e simblicos: desde as classes populares
elite, passando pela classe mdia. Progressivamente ela passou a atuar em espaos
mais elitizados, como o Cassino da Urca, onde, j no auge de seu reconhecimento
nacional, foi descoberta em 1939 pelo empresrio Lee Shubert, na poca um dos
maiores empresrios da Broadway, que a contratou para uma revista ainda no mesmo
ano em Nova Iorque.
Carmen Miranda migrou para os Estados Unidos com suas baianas e levou o
grupo musical que a acompanhava: o Bando da Lua. . Em menos de um ano assinara um
contrato com a Fox e nos anos seguintes gravou inmeros filmes com a temtica da
Amrica Latina, reinventada a partir do universo simblico do samba que Carmen e seu
conjunto levaram do Brasil. A identidade nacional, com os sambas, a baiana e outros
elementos simblicos, passou ento a ser produzida para alm das fronteiras nacionais e
com a mediao do setor corporativo especializado do estdio da 20th Century Fox.
A partir de ento, Carmen era simultaneamente baiana e latino-americana. Ou
seja, ao mesmo tempo em que levou certos elementos simblicos pertinentes
comunidade imaginada brasileira, ela o fez em um contexto no qual a Amrica Latina
j possua um histrico de representao de longa data, ao lado do esteretipo da mulher
latino-americana no cinema norte-americano, cujos sentidos conotativos remetiam
corporalidade e sensualidade excessivos. Baseado no conceito de visualidade
desenvolvido por Nicole Fleetwood (2011) analisei a esfera visual como um campo
performativo, ou seja, ela no apenas retrata, mas produz aquilo que representa. As
representaes flmicas no so um ato neutro, transparente, mas criam formas de se
ver, de se conceber uma nao ou a Amrica Latina como um todo.
importante ressaltar que o perodo em que Carmen Miranda desempenhou sua
carreira nos Estados Unidos caracterizado pela Poltica de Boa Vizinhana, ou seja,
um perodo de aproximao diplomtica prprio do contexto da Segunda Guerra
Mundial. Em um perodo em que o mercado europeu estava fechado aos filmes norte-
americanos e a ameaa poltica e econmica dos pases do eixo era visvel nos pases
sul-americano, assim, o interesse pelos pases latino-americanos se imps como algo
relevante. A trajetria de Carmen Miranda coincidiu com interesses polticos, tanto do

299
governo norte-americano de construir uma representao da amizade pan-americana,
quanto do governo brasileiro, que via na difuso de sua cultura um meio de projeo do
pas no exterior.
O governo norte-americano e suas agncias investiam na mudana das
representaes dos pases latino-americanos, para um retrato positivo de seus vizinhos.
Dotados de grandes projetos e de interferncias diretas nos estdios, incentivavam a
produo de filmes que promovessem a amizade pan-americana, produzindo
representaes positivas dos pases latino-americanos. Os estdios, j acostumados com
os clichs sobre a Amrica Latina com apelo comercial no mercado interno, no
mudavam os sentidos conotativos dos filmes e personagens, mas eles acabaram
incorporando uma demanda dos pases latino-americanos: a apresentao dos pases
como brancos e modernos.
Os filmes do perodo se caracterizavam pela utopia romntica latino-
americana, divididos entre a narrativa flmica e os nmeros musicais. Nas narrativas, o
romance atua como elemento essencial, os enredos so movidos por problemas
amorosos que encontram obstculos e os desfechos apontam para a realizao amorosa
no ambiente tropical, considerado propcio ao amor autntico. A realizao amorosa no
desfecho dos filmes se apresenta como uma superao dos problemas polticos e
representa metaforicamente a unio pan-americana. J os nmeros musicais
complementam a narrativa, evocando de forma solene e festiva o encontro entre a
Amrica Latina, representada na figura feminina e sensual de Carmen Miranda, e os
Estados Unidos, incorporados por uma personagem masculina formalmente trajada. O
final feliz a consagrao da solidez do pan-americanismo, ou seja, da representao da
relao entre os pases como bons amigos.
As narrativas flmicas davam destaque para a elite dos pases, condizente a uma
imagem branca e moderna requerida, mas a representao desses pases era
caracterizada no sentido de racializar a caracterizao das personagens e dos cenrios,
mantendo descries que inferiorizavam as personagens latino-americanas
caracterizadas por critrios depreciativos. Carmen Miranda desempenhava um papel de
destaque nos filmes e, especialmente, nos nmeros musicais, nos quais, nos palcos,
representava a si mesma: uma estrela que j tinha sucesso reconhecido no show business
norte-americano, que, por sua vez, sedimentara a imagem de Carmen associada a uma
sensualidade refinada ou um exotismo sofisticado. De outro lado, nas narrativas, ela
representava alguma personagem adequada ao esteretipo da latino-americana, uma

300
caricatura, sempre enciumada, com os nervos flor da pele, marcada pela acessibilidade
sexual, no resistindo a um homem atraente. Dessa forma, ela se constitua em oposio
s representaes de feminilidade hegemnicas, marcadas pelo recato e passividade.
Carmen Miranda transformou-se em uma atualizao da figura da latino-
americana sensual, substituindo o tpico cabelo moreno pelo chapu de frutas, mantendo
seus sentidos conotativos, mas tendo um destaque prprio ao perodo de valorizao da
Amrica Latina. No entanto, as leituras internas do mercado norte-americano
contrastavam com as expectativas do seu pblico brasileiro de longa data. Carmen
Miranda era considerada no Brasil a Embaixatriz do samba, tendo se comprometido,
antes de embarcar, a representar o Brasil nos Estados Unidos, divulgando o samba e a
cultura popular da capital federal que se tornava sinnimo de nacional.
Para parte significativa do pblico brasileiro, no entanto, suas atuaes estavam
em desacordo com sua promessa e ela haveria se inebriado pelo perfume do dinheiro
norte-americano. Observa-se especialmente o crescimento das crticas depois do filme
Aconteceu em Havana em que ela atuou como uma cubana e cantou rumbas, ao invs de
sambas. As crticas ora se relacionavam com as representaes genricas e
estereotipadas da Amrica Latina, muitas vezes misturando caractersticas prprias de
um pas por outro, bem como tambm revelavam uma oposio associao entre
brasilidade e elementos da negritude, presente na figura da baiana.
Dentro de uma perspectiva terica dos estudos descoloniais e feministas,
procurei analisar a interseco das categorias de gnero, raa e sexualidade que
envolviam tanto a representao da nacionalidade, com a figura da baiana, como a
representao da latino-americanidade, com a ida de Carmen aos Estados Unidos.
Busquei explorar como as representaes culturais so marcadas pela colonialidade,
ou seja, por assimetrias de poder em nvel nacional e internacional que se definem por
adotarem como modelo civilizatrio os pases da Europa ocidental e seu sucessor, os
Estados Unidos. Em outros termos, a colonialidade se perpetua independentemente do
colonialismo ter se desfeito em sua estrutura poltica e administrativa. Em sntese e de
forma simplicada, pode-se dizer que a colonialidade do poder se caracteriza por uma
ordem poltica, econmica e cultural que se baseia no desenvolvimento do capitalismo,
mas tambm nas expresses do racismo articulado subalternizao das mulheres.
Carmen Miranda encarnava a diferena racial feminina em dois contextos,
ambos marcados pela sensualidade. Ela atualizava o desejo colonial, ou seja, a
representao de hiperssexualidade em relao a mulheres marcadas racialmente em

301
oposio branquitude. No contexto brasileiro com a baiana, a marcao racial era
suavizada em sua estilizao, integrando esta figura identidade nacional por meio de
seu branqueamento. No segundo caso, a diferena racial era a latino-americana que, por
sua vez, era representativa de uma alteridade feminina. Em imagens que se tornaram
reconhecidas de sua figura no cinema, patente a representao da Amrica Latina
associada com a natureza, bem como insinuaes da disponibilidade sexual das
mulheres latino-americanas, aguardando a chegada dos homens norte-americanos, em
fantasias coloniais (e masculinas) atualizadas.
A partir destes elementos, busquei interpretar Carmen Miranda entre os desejos
de duas naes em seus amplos sentidos. Em primeiro lugar, no que se refere aos
desejos polticos, dos governos de Vargas e de Roosevelt: no caso brasileiro, os desejos
da unidade nacional calcada na ideia de harmonia racial e branquitude; em relao ao
pan-americanismo, os desejos eram expressos em relaes diplomticas, prprios
Poltica da Boa Vizinhana e s representaes hegemnicas do cinema norte-
americano. Contudo, tambm procurei abordar a relao entre estes desejos e seus
efeitos subjetivos, estabelecendo vnculos entre dinmicas polticas e econmicas com a
sexualidade. Pensar em desejos da nao considerar que ordem social tambm uma
ordem sexual, levando em conta processos de racializao do sexo e sexualizao da
raa, nas palavras de Avtar Brah (2006).
Analisei como Carmen no era apenas refm de discursos e representaes de
seu tempo, bem como a esfera artstica no se traduz em mero reflexo das questes
polticas. Por outro lado, a carreira de Carmen Miranda era caracterizada pela intensa
autoria no que diz respeito a suas performances e interpretaes. Ela muitas vezes
torcia os significados hegemnicos, em suas performances e interpretaes que
questionavam valores por meio do riso, da pardia e da ironia em relao aos papeis que
desempenhava. Carmen Miranda, no deixando de representar os sentidos prprios da
colonialidade, tambm abria possibilidade de interpretaes que subvertiam os
sentidos iniciais. Assim, a trajetria de Carmen Miranda pode ser pensada como
marcada por uma cumplicidade subversiva.
Para compreender a cumplicidade subversiva de Carmen, lancei mo do conceito
de performatividade, de Judith Butler (2003). O conceito de performatividade parte no
de uma estrutura ou de um sistema cultural que se impe de forma definitiva aos
sujeitos, mas da compreenso de como os significados se constroem por meio da
estilizao repetida em ato e, desta forma, esto abertos ressignificao. O sujeito-em-

302
processo nessa viso se constitui dentro das normas sociais e a partir do sistema cultural
dominante, ou seja, ele no preexiste significao. No entanto, os discursos, ou
sistemas de significao, no so fechados: eles so sujeitos apropriao. Neste
sentido, os sujeitos se constituem pelo discurso, mas podem desloc-los. Assim, busquei
me esquivar de interpretaes correntes calcadas na ideia de fabricao, ou seja, que a
carreira de Carmen Miranda reflexo direto e sem mediaes dos contextos scio-
polticos e, de outro lado da perspectiva que a v como sujeito soberano, ou seja, que
suas criaes esto alheias aos discursos da poca.
Carmen Miranda pde negociar com a imagem criada para ela, pois chegava aos
Estados Unidos j com fama no Brasil e patrimnio. Ela imps ao empresrio Shubert a
ida de seu grupo O Bando da Lua, o que permitiu que ela tivesse controle da autoria das
composies ou verses, alm de uma banda que dominasse um ritmo novo nos Estados
Unidos, o samba. Com a figura da baiana que no tinha nenhum significado simblico
nos Estados Unidos, alm de um exotismo de uma estrela do continente sul-americano
ela teve um impacto decisivo na moda com seus turbantes e adereos. Em sua persona
convivia o esteretipo da latino-americana, acrescido de prestgio e riqueza.
Sua trajetria nos Estados Unidos esteve ligada ao palco e, no dominando a
lngua, reforou aspectos ligados corporalidade, em especial com o uso de suas mos
em suas performances sensuais. O humor tambm fez parte de sua trajetria desde o
primeiro momento em que chegou ao pas, nas entrevistas, nos palcos e nos filmes. Ela
assumia o esteretipo prprio da latino-americana, brincando com sua inabilidade de
falar na lngua inglesa, seu interesse declarado em homens norte-americanos e
insacivel fome. Carmen se aproveitava de seus erros de ingls para efeitos cmicos.
Mesmo quando ela j dominava o ingls, ela reforava o sotaque e os erros de
pronncia. Originria de outro contexto nacional, ela pde tomar distncia irnica do
esteretipo e compreender que estava desempenhando um papel.
Com a reduo da participao em filmes e com a percepo de que ela no faria
filmes mais condizentes com representaes da identidade nacional (especialmente com
o fim da Segunda Guerra e declnio da Poltica de Boa Vizinhana), Carmen passou a
ter uma distncia irnica maior em relao sua persona e suas personagens. Nesse
momento, ela comeou a se autoparodiar nos filmes; suas personagens faziam
referncias cmicas prpria artista. Em apresentaes nos nightclubs ela passava a
cantar e interpretar a msica I make my money with bananas, no qual ela zomba do
prprio papel que desempenhava. Com a crescente personificao de Carmen Miranda

303
por outros artistas, ela progressivamente se transformava em um papel que qualquer
pessoa poderia interpretar.
Ao enfatizar a construo arbitrria de sua persona, ela acabava por questionar a
suposta latino-americana autntica das representaes do cinema, bem como as
hierarquias nestas representaes. Isso permitiu a identificao de certos pblicos com
Carmen Miranda, dos quais eu destaco o pblico homossexual contemporneo a ela,
que via em sua performance uma pardia deslocadora das identidades sociais. Seu
exagero, estilizao, e autopardia produziram um distanciamento do esteretipo das
mulheres latino-americanas e, em um sentido maior, desestabilizaram ideias
essencialistas de identidades, na viso deste pblico. Carmen Miranda se aproximava de
uma esttica camp e, com isso, a mesma personagem que servia para representar a unio
poltica pan-americana ento, entre um grupo social especfico, era ironicamente
representativa da transgresso sexual.
Carmen Miranda no se dirigia ao pblico homossexual, mas foi incorporada por
ele em seu tempo. Seu humor, ironia e pardias antes se relacionam com suas
influncias da cultura popular, das revistas musicais, do burlesco. No Brasil, o humor
era trao fundamental no apenas das msicas que gravava, mas de suas interpretaes,
das expresses que inclua nas msicas, na forma cmica como se relacionava com seu
pblico. Neste sentido, a despeito das crticas nacionais, Carmen tinha notria
identificao das classes populares no Brasil em suas performances deslocadoras no
cinema brasileiro, mas tambm norte-americano.
Na cultura popular, era por meio do riso, das inverses, das pardias e dos
destronamentos que se colocava em questo o socialmente institudo: em especial a
referncia a um modelo burgus e calcado na branquitude. possvel conceber como
traos das performances de Carmen se vinculavam a expresses prprias da cultura
popular da capital federal tanto em sua carreira nacional como a internacional. Assim,
ela acabava por deslocar, na viso de certos pblicos, uma identidade nacional que se
constitua baseada na branquitude. Carmen Miranda, em suas ambiguidades, apontava
para os mltiplos desejos de duas naes, dentro de uma complexa dinmica da
produo de significados em disputa e sua recepo heterognea das representaes
prprias da cultura de massas.

304
Apontamentos para alm da carreira de Carmen Miranda: da democracia racial
materializada na branquitude s carnavalizaes

E o mundo se diverte (1948, Watson Macedo) produzido no Brasil no perodo


em que a presena de Carmen Miranda decrescia no cinema norte-americano. No
obstante, sua imagem e reverberaes dela se difundiam pela cultura de massas do pas
da Amrica do Norte. No Brasil, sua baiana era reapropriada pelo cinema nacional. As
representaes latino-americanas de Hollywood passavam a ter uma visvel influncia
dos musicais nacionais, constituindo uma esttica reelaborada ao se debruar sobre uma
concepo de brasilidade que se consolidava.
Em um nmero musical do filme, Eliana Macedo interpreta No tabuleiro da
Baiana de Sylvio Caldas gravada pela prpria Carmen Miranda em 1936. Trata-se de
uma cidade colonial baiana, em um cenrio que recorda o que Carmen interpretou O
que que a baiana tem?, em Banana da Terra. Eliana canta rodeada de homens de
camisa listradas com tambores, formando uma melodia de vrias vozes, alternando a
feminina com as masculinas algo que guardava uma lembrana das performances de
Carmen com o Bando da Lua. A alvura da atriz combina com sua vestimenta toda de
branco, inclusive colares, pulseiras, turbante e saia rodada at o cho.
A brancura de sua roupa a faria assemelhar-se a uma baiana que
contemporaneamente compe as ruas tursticas de Salvador, no fosse a estilizao que
a elitizava, composta no apenas nos adereos de sua roupa, mas em suas expresses
marcadas pela suavidade e nfase no movimento suave de suas mos. Eliana no deixa
sua barriga mostra e a cmera foca predominantemente imagens acima de sua cintura,
destacando seu rosto. Ela protagonista na narrativa, interpretando a filha do diretor do
teatro que mobiliza seu pai a investir em uma revista teatral, da qual participa com
destaque.
As referncias a Carmen Miranda so facilmente identificveis, mas elas no se
restringem a esse nmero. Antes, em paisagem outonal noturna, entre rvores que
remexem seus galhos ao vento, surge a mulata Horacina Correa interpretando a cano
Ave Sem Ninho de Luiz Soberano e Oswaldo Fonseca. Horacina tambm carrega
elementos da baiana, a exotizada difundida por Carmen em Hollywood, com saia preta
brilhante, turbante de penas pretas e brancas e lenos da mesma cor cobrindo a parte
superior de seu corpo, deixando boa parte de sua barriga mostra e tambm dando
destaque aos movimentos de suas mos.

305
A melodia triste cantada pela artista, acompanhada de vocal masculino
percussivo ao fundo. De repente, a msica interrompida por batuques que so
percebidos com estranhamento pela cantora. Ento sombria paisagem do nmero
musical acrescenta-se a negritude, com homens descamisados e mulheres com pouca
roupa descontrolados em seus movimentos. Em seguida, presenciam-se homens brancos
de cartola e terno descendo uma escada onde se encontram mulheres brancas de saias
rodadas com as quais danam em um salo. A performance une, ao mesmo tempo que
distingue, o primitivismo com a civilidade, ressaltando os contrastes entre a ordem e a
desordem, a melodia e a percusso, que so homlogas branquitude e negritude.
Os nmeros musicais atestam a definio de brasilidade que se consolidava no
cinema nacional. Com forte influncia do cinema norte-americano e com a brasilidade
performada por Carmen Miranda nele, apropriava-se seletivamente de seus elementos
simblicos para recomp-los a partir de uma perspectiva nacional. A baiana de Carmen
poderia ser reapropriada em sua branquitude ou associada exotizao da diferena
racial que, por sua vez, tambm era parte constituinte da nao. Ambas compunham a
harmonia racial cujo elemento integrador seria materializado na figura da baiana, a qual
todas independentemente das origens sociais e raciais poderiam interpretar.
Trata-se de um processo pouco abordado, que est na origem da consolidao da
ideia de democracia racial, configurada como trao definidor da nao nas dcadas
subsequentes. No cito o termo na tese, pois este, como abordou Antonio Srgio
Alfredo Guimares (2002), tem sua origem muito posterior, passou a ocupar o debate
intelectual especialmente nos anos 50 e 60. Mesmo quando se refere a quem
supostamente teria a inventado, o intelectual Gilberto Freyre, pode-se dizer que a
expresso, atribuda a Gilberto Freyre, no ser encontrada em suas obras mais
importantes e de no aparecer na literatura a no ser tardiamente, nos anos 1950
(GUIMARES, 2002, p. 137).
Antes, nos idos de 1944, Freyre falava de democracia tnica, oriunda do
carter ibrico da civilizao brasileira. Trata-se de uma ideia gestada durante a
Segunda Guerra Mundial. O termo democracia, em um perodo no qual se estabelecia
uma disputa mundial supostamente calcada na oposio entre democracia versus
fascismo, respaldava a ideia de que se o Brasil no tinha uma democracia formal,
calcada nos direitos civis, isso era desimportante. Concebia-se que o pas era
caracterizado por uma democracia social, gestada no amalgamento harmnico das raas.
Consolidou-se, neste perodo, um debate intelectual que compreendia o pas como

306
radicalmente distinto do fascismo em sua busca pela pureza e, muitas vezes, tambm
profundamente distante do segregacionismo racial expresso nas leis norte-americanas.
O perodo posterior guerra e normalmente no abordado pela fortuna crtica,
de difuso da imagem da cultura brasileira por Hollywood via Carmen Miranda e o
Bando da Lua gera uma campanha da UNESCO para combater o dio racial e, ligada
a ela, uma percepo compartilhada internacionalmente de que o pas era caracterizado
pela harmonia racial. A UNESCO patrocinou pesquisas sobre as relaes raciais
brasileiras, com a presena de pesquisadores nacionais e estrangeiros que, por sua vez,
atestaram o contrrio: a presena instituda do racismo. A democracia racial passa a
ser pensada progressivamente como mistificao pelo saber acadmico e militncia.
Em uma interpretao corrente, a denncia do mito de democracia racial s foi
levada a cabo quando se rompeu um pacto entre cultura popular e o Estado. Pacto que
garantia legitimidade poltica e unidade nacional por um lado e reconhecimento social
de outro. Nas palavras de Antonio Srgio Alfredo Guimares,

Entre 1930 e 1964, vigeu no Brasil o que os cientistas polticos


chamam de pacto populista ou pacto nacional-desenvolvimentista.
Neste pacto, os negros brasileiros foram inteiramente integrados
nao brasileira, em termos simblicos, atravs da adoo de uma
cultura nacional mestia ou sincrtica, e em termos materiais, pelo
menos parcialmente, atravs da regulamentao do mercado de
trabalho e da securidade social urbanos, revertendo o quadro de
excluso e descompromisso patrocinado pela Primeira Repblica.
Nesse perodo, o movimento negro organizado concentrou-se na luta
contra o preconceito racial, atravs de uma poltica eminentemente
universalista de integrao social do negro sociedade moderna, que
tinha a democracia racial brasileira como um ideal a ser atingido.
(2002, p. 166)

A interpretao da democracia racial nesta perspectiva concebe que as idias


e o nome de democracia racial longe de serem o logro forjado pelas classes
dominantes brancas, como querem hoje alguns ativistas e socilogos, foi durante muito
tempo uma forma de integrao pactuada da militncia negra (GUIMARES, 2002, p.
167). Em sntese, do pacto entre determinados sujeitos sociais e o Estado surgiria uma
forma de se conceber a nao que seria sustentada por certos intelectuais, com destaque
para Gilberto Freyre, tanto no debate acadmico como difundido na imprensa, que
imporiam uma forma de se pensar a nao, consolidando valores sociais abrangentes.
Em texto mais recente, Guimares (2011) ainda prope a interpretao de que, ao lado
do pensamento autoritrio, eurocntrico e elitista, um grupo de intelectuais mestios e

307
negros, desde a luta pela abolio, defendia uma ideia que associava brasilidade e
negritude ou mestiagem.
Tal abordagem deixa de fora um elemento central na minha anlise: a dinmica
de mercado que marcou a consolidao desta viso nos anos 30 e 40. O mercado
estruturou um filtro racial na incorporao seletiva da cultura popular e afro-brasileira
que constituiria a forma de se pensar a brasilidade. Em seu primeiro momento, de forma
paradoxal, foi a partir da branquitude que se possibilitou pensar a nao como
caracterizada pela harmonia e integrao racial. Buscando uma ampla aceitao social,
com destaque para os consumidores das classes mdias e altas, o rdio investia em
artistas que representavam um ideal para cartazes do rdio.
No se trata apenas da aparncia branca, em termos cromticos, embora essa
fosse uma condio essencial para o estrelato. A branquitude tambm se definia pela
adoo de cdigos associados civilidade, que eram difundidos no mercado de
cultura de massas, com forte influncia da nao moderna da Amrica do Norte. Em
oposio, como aparecia nos discursos crticos do perodo que redimensionavam a
forma de conceber a nao, estava a negritude associada ao primitivismo e
pretensamente demandando uma atitude civilizatria por parte do Estado e da elite.
Nesse aspecto, no se pode dizer que os negros foram inteiramente integrados
nao brasileira, em termos simblicos, sem explorar as ambiguidades e as importantes
estratgias de distino que privilegiavam a branquitude. A integrao em termos
materiais era ainda mais contestvel, quando mesmo com o destaque das produes
culturais de origem afro-brasileira se faziam muitas vezes ocultando seus autores, ou
privilegiando uma apresentao branca. As diferenas salariais e de reconhecimento no
meio artstico atestam como a incorporao dos negros enquanto trabalhadores na rea
artstica se deu, de forma geral, diferenciando-os negativamente em relao aos brancos.
Considerar o mercado significa tambm enfatizar o apelo dos meios de
comunicao de massa e seu poder persuasivo. Pela primeira vez, as classes populares
do Rio de Janeiro (boa parte dela de negros e mestios) sentiam-se parte da nao, com
suas expresses culturais aladas ao nacional. Mesmo com os filtros raciais do mercado
de cultura de massas, os significados que perpassavam as canes, filmes e peas
teatrais no eram fechados, em especial lidando com um mercado amplo e heterogneo
da capital federal. Negros, mestios e pobres poderiam ver seus talentos e ideias serem
difundidos, mesmo com alguns acessos sociais negados, e construir interpretaes que
os inclussem, ou questionassem valores dominantes, parodiando-os.

308
No entanto, essa no era a interpretao hegemnica. Com os meios de
comunicao de massa constituiu-se uma comunidade imaginada difundida da capital
para outras regies do pas. As classes mdias e altas tambm eram persuadidas a
sentirem-se nacionais e incorporarem aspectos da cultura popular em seus gostos e
prticas. A negritude ou a mestiagem atestavam a autenticidade nao, mas no
deixavam de ser consideradas, em estado bruto, como associadas a um primitivismo.
Disso advinha a necessidade de estiliz-las, de lhes dar um toque de sofisticao,
compondo um star system que herdava relaes prximas com os msicos populares,
mas se apresentava de forma tida como mais civilizada.
A comunidade imaginada brasileira era sentida e vivida no entretenimento dos
grandes centros urbanos por meio da difuso do samba. Muito alm das fronteiras
nacionais, ela foi difundida na figura de Carmen Miranda para o mundo via Hollywood,
que passava a ver na imagem da artista uma elaborada, extica cantora e entertainer
ligada msica popular de seu pas. Com traos da cultura negra, mas sofisticando-a
com suas estilizaes, Carmen Miranda possibilitou uma imagem sntese que ia alm
das divises sociais e raciais brasileiras e permitia uma fcil identificao do pblico e
uma difuso dessa imagem democratizada globalmente.
Carmen Miranda conseguia se equilibrar entre a autenticidade e a
sofisticao, muito embora sua caracterizao como diferena racial nos Estados
Unidos a aproximava da primeira, causando fortes crticas brasileiras a sua carreira
internacional. A ideia de um pas marcado pela harmonia racial tinha na figura da
mulata, atualizando o desejo colonial, um elemento fundamental. Tratava-se de uma
sntese da proximidade entre raas e mesmo da interao racial supostamente positiva e
no excludente. Carmen Miranda reiterou tal viso incorporando suas performances na
branquitude de suas intepretaes. Em seguida a difundiu internacionalmente, em uma
imagem que cabia bem s relaes de colonialidade entre Amrica Latina e Estados
Unidos, metaforizando a primeira como feminina e sensual.
Em uma arena internacional, participou da consolidao da imagem da mulher
brasileira como sensual. Excluda a negra, tanto a mulata como a morena se tornaram
a imagem de um feminino sensual que representava a nao. No entanto, so
demarcadas as distines, quando a morena carrega traos da mulata em sua
sensualidade, mas a ela no se iguala j que a pele branca a confere distino. Em E o
mundo se diverte, de 1943, contrastam-se as performances das baianas Eliana Macedo e
Horacina Correa. Ambas incorporam a brasilidade, mas participam de representaes

309
distintas, dos cenrios s vestimentas, dos focos da cmera ora no rosto, ora no corpo,
que associam as personagens de Eliana civilidade e de Horacina ao primitivismo
em seus nmeros musicais.
A imagem feminina sensual tornou-se perene no universo simblico nacional,
atestado pela cano tambm de sucesso internacional Garota de Ipanema de Tom
Jobim e Vinicius de Morais, de 1962. A morena da cano se caracteriza pela
distino social manifestada no bronzeamento solar. A moa do corpo dourado foi
inspirada na loura Hel Pinheiro, que frequentava as praias elitizadas de Ipanema. Uma
ambiguidade constitua a forma de se pensar a nao, quando a branquitude permanecia
como distino social em um pas que se pensava como racialmente democrtico.
A representao do Brasil a partir da mulher sensual e da harmonia racial
continuam presentes na mdia, na publicidade oficial ou no oficial e, nos tempos
recentes, atualizadas nas solenidades dos grandes eventos esportivos que esto para
acontecer no pas. No raro, a branquitude ainda a chave pela qual o pas se apresenta,
mesmo que compondo um cenrio musical e imagtico de fundo no qual a negritude
predominante. No entanto, como ocorreu em evento recente ligado Copa do Mundo de
futebol, a aparente democracia racial no escondeu as tenses raciais prprias a um
momento poltico de questionamento da forma como a nao concebida. Contestaes
parte, patente a perenidade da representao nacional negra na msica e no cenrio,
convivendo com a distinta apresentao branca46.
O legado de Carmen Miranda, devido a sua forma criativa e deslocadora de criar
significados em suas performances, no se resume reiterao hegemnica da
identidade nacional concebida a partir da harmonia racial e branquitude. Um dos
exemplos mais evidentes disso sua apropriao tropicalista. Carmen Miranda dada
o desfecho da cano-manifesto Tropiclia, de 1967, e ttulo do artigo publicado por
Caetano Veloso em 1991, no New York Times, e, em seguida, traduzido na Folha de
S.Paulo. A cantora, dizia o autor, significava um misto de orgulho e vergonha para

46
Refiro-me ao sorteio que definiu os grupos dos times da Copa realizado em 6 de dezembro de 2013 na
Costa do Sauipe, na Bahia. No evento, repercutiu-se a ampla visibilidade mundial do Brasil por meio da
televiso que deu destaque ao pas, associado a outro aspecto definidor da nao, para alm do samba e da
mulher sensual ali tambm presentes; trata-se do futebol. As tenses raciais se tornaram evidentes na
polmica escolha do casal branco composto por Fernanda Lima e Rodrigo Hilbert como mestres de
cerimnias no sorteio. A indicao suscitou reclames pela notcia de que FIFA teria negado a indicao
da dupla negra Camila Pitanga e Lzaro Ramos para a mesma ocasio.

310
sua gerao e um arcasmo em relao difuso e estabelecimento de um padro
musical pela Bossa Nova.
A irreverncia e o deboche faziam parte das performances e letras do cantor e
compositor naquele momento importante de sua carreira. Tal como Carmen, o artista
tinha na pardia um recurso fundamental, como para citar um exemplo em Panis et
Circenses, cujo foco era a famlia burguesa. Conectado contracultura, Caetano
questionava tambm padres aceitveis na forma de se exibir no palco. Na volta do
exlio em Londres, o astro do Recncavo Baiano recusava o esteretipo do heri
subversivo e fazia shows rebolando e vestindo roupas ao estilo de Carmen Miranda
(BORIM, 2002, p. 497). Em direo oposta realada seriedade da produo cultural de
esquerda de seu tempo, ele propunha construes cubistas, concretistas,
carnavalizadas, cinematogrficas e, sobretudo, sincrticas, que hoje, depois de mais de
quatro dcadas, parecem fascinar certa faixa do mercado internacional da msica
(BORIM, 2002, p. 495).
A inspirao de Carmen Miranda para o tropicalismo de Caetano Veloso
vinculava-se a sua percepo dos prprios deslocamentos e carnavalizaes (ou camp?)
produzidos pela cantora e entertainer brasileira. A irreverncia e o escracho, associados
androginia, tambm caracterizavam o grupo vanguardista e underground de
danarinos/atores da dcada de 70 Dzi Croquettes, cujos shows remetiam s
performances de Carmen Miranda e sua baiana.
A anlise de suas apropriaes pela contracultura, sintonizada com toda uma
contestao global aos padres morais rgidos e tradicionais, e sua relao com os
deslocamentos, pardias e inverses apropriados esto alm dos objetivos desta
pesquisa. Sua rpida descrio atenta, no entanto, para os mltiplos desejos da nao
que Carmen Miranda evocou, em sua cumplicidade subversiva com os discursos
hegemnicos, permitindo leituras outras de sua carreira, para alm de sua reduo
colonialidade. Analisar sua trajetria inclui pensar que mesmo na reproduo dos
desejos hegemnicos, no se deve perder de vista que estes sempre se encontram com
os outros desejos que os disputam e, muitas vezes, os modificam.
Cabe ainda uma histria subalterna que atente para os outros significados do
samba para alm do hegemnico, enfatizando seus vnculos com a negritude e rituais
afro-brasileiros, escapando aos filtros do mercado e ao controle do Estado em prol da
consolidao de uma ideia de unidade nacional. Tambm ficam a se pensar as relaes
entre o carnaval brasileiro e o camp, sempre obscurecidas com leituras que predominam

311
sobre os sentidos hegemnicos, esquivando de pensar na relao entre seus estilistas, as
estilizaes e pardias contendo outros sentidos que ultrapassam os previsveis. Outra
histria h de ser contada tambm sobre as mulheres (ou homens) negras que se
reapropriam e agenciam um desejo que nem sempre reproduz a branquitude. Tais
histrias vm sendo contadas em muitas pesquisas que partem de perspectivas
subalternas e que nos permitem continuar a colocar a questo: quais so os outros
desejos (ocultados nos discursos dominantes) que mobilizam a nao?

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Four Jills in a Jeep (Quatro moas num jipe). William A. Seiter, Estados Unidos, 1944.

Greenwich Village (Serenata Bomia). Walter Lang, Estados Unidos, 1944.

Something for the Boys (Alegria, Rapazes!). Lewis Seiler, Estados Unidos, 1944.

Winged Victory (Encontro nos cus). George Cukor, Estados Unidos, 1944.

Doll Face (Sonhos de estrela). Lewis Seiler, Estados Unidos, 1945.

If Im Lucky (Se eu fosse feliz). Lewis Seiler, Estados Unidos, 1946.

Copacabana. Alfred E. Green, Estados Unidos, 1947.

Road to Rio (A Caminho do Rio). Norman Z. Leonard, Estados Unidos, 1947.

E o mundo se diverte. Watson Macedo, Brasil, 1948.

A Date with Judy (O Prncipe Encantado). Richard Thorpe, Estados Unidos, 1950.

Nancy Goes to Rio (Romance Carioca). Robert Z. Leonard, Estados Unidos, 1950.

Scared Stiff (Morrendo de Medo). George Marshall, Estados Unidos, 1953.

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Celluloid Closet (O outro lado de Hollywood). Rob Epstein e Jeffrey Friedman, Estados
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