Rodrigo Corrêa Diniz Peixoto-Memória Social Da Guerrilha Do Araguaia e Da Guerra Que Veio Depois

Bol. Mus. Para. Emlio Goeldi. Cienc. Hum., Belm, v. 6, n. 3, p. 479-499, set.-dez.
2011
Memria social da Guerrilha do Araguaia e da guerra que veio depois

Guerrilha do Araguaia and the afterwards wars social memory
Rodrigo Corra Diniz Peixoto

Museu Paraense Emlio Goeldi. Belm, Par, Brasil
Resumo: A Guerrilha do Araguaia teve lugar nas regies sudeste do Par e norte do ento estado de Gois (atual Tocantins),
tambm abrangendo terras do Maranho, na rea conhecida como Bico do Papagaio. Ocorreu entre meados dos
anos 1960, quando os primeiros militantes do Partido Comunista do Brasil chegaram regio, e 1974, quando os
ltimos guerrilheiros foram caados e abatidos por militares, treinados para combater a guerrilha e determinados
a no fazer prisioneiros. Execues, eliminao de vestgios e tortura esto nos relatos colhidos, assim como na
literatura existente sobre a guerrilha. As provveis operaes de limpeza teriam sido realizadas de diversas maneiras,
a confiar nos relatos colhidos pela ouvidoria do Grupo de Trabalho Tocantins, criado pelo Ministrio da Defesa para
cumprir sentena da Justia Federal. Alm de reaver a memria sobre a guerrilha, a partir de narrativas de quem
viveu a experincia, importante jogar luz sobre o que popularmente se conhece como a segunda guerra. Na
regio, os governos da Ditadura Militar (1964-1985) montaram um intenso sistema de represso e controle poltico,
e um modelo de ocupao pela pecuria que devastou as florestas, de forma que, quando falamos da guerrilha,
precisamos tambm falar da guerra que veio depois.
Palavras-chave: Guerrilha do Araguaia. Par. Maranho. Tocantins. Memria social. Represso poltica.
Abstract: The Guerrilha do Araguaia had place in southern Par and north of Gois (nowadays, state of Tocantins), encompassing
also areas of Maranho, in the region known as Bico do Papagaio. The guerrilla occurred between the middle
1960s, when the first activists of Communist Party of Brazil (PC do B) arrived in the region, and 1974, when the last
guerrillas were hunted and killed by militaries, trained to combat the guerrilla and determined not to do prisoners.
Executions, elimination of vestiges and torture are in the narratives collected, as well as in the existing literature on
the guerrilla. The probable operaes limpeza (operations to eliminate traces of evidence) were realized in many
manners, to rely on the narratives collected by the team created by the Ministry of Defense to fulfill federal sentence
produced in response to demand moved by the guerrillas relatives. In addition to recovering the guerrillas memory,
from the narratives of who lived the experience, it is important to send light on what popularly is known as the
second war. In the region, the military governments set an intense system of repression and political control, and
a model of occupation based on cattle ranching which destroyed the forests. So, when we tell on the guerrilla, we
need also tell on the war that came afterwards.
Keywords: Guerrilha do Araguaia. Par. Maranho. Tocantins. Social Memory. Political repression.
PEIXOTO, Rodrigo Corra Diniz. Memria social da Guerrilha do Araguaia e da guerra que veio depois. Boletim do Museu Paraense
Emlio Goeldi. Cincias Humanas, v. 6, n. 3, p. 479-499, set.-dez. 2011.
Autor para correspondncia: Rodrigo Corra Diniz Peixoto. Museu Paraense Emlio Goeldi. Coordenao de Cincias Humanas. Avenida
Perimetral, 1901. Terra Firme. Belm, PA, Brasil. CEP 66077-830 ([email protected]).
Recebido em 14/03/2011
Aprovado em 10/11/2011
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Introduo que acatou ao movida por familiares de desaparecidos

A Guerrilha do Araguaia teve lugar nas regies sudeste no episdio da Guerrilha do Araguaia e colocou a Unio
do Par e norte do ento estado de Gois (atual como r, na obrigao de mobilizar meios para localizar
Tocantins), abrangendo tambm terras do Maranho, os restos mortais e explicitar as circunstncias das mortes.
na rea conhecida como Bico do Papagaio. Ocorreu O artigo, ao passo que prope interpretaes sobre
entre meados da dcada de 1960, quando os primeiros a memria social da Guerrilha e as consequncias do
militantes do Partido Comunista do Brasil (PC do B) episdio no clima repressivo que perdurou na regio
chegaram regio1 o lendrio Osvaldo, em 19662 , (a guerra que veio depois), objetiva tambm informar
e 1974, quando os ltimos guerrilheiros foram caados sobre a utilizao do material reunido mediante o nosso
e abatidos por militares, especialmente treinados trabalho como ouvidores do GTT, quando realizamos
para combater a guerrilha e determinados a no dezenas de entrevistas com ex-guerrilheiros, ex-guias
fazer prisioneiros3. Mateiros, convertidos em guias do do Exrcito, ex-militares, moradores e camponeses,
Exrcito coagidos para isso e alguns recompensados compondo um acervo que est sendo organizado no
com lotes de terra , cumpriram importante papel mbito do Projeto Memrias Reveladas, do Arquivo
naquele processo4. Alguns deles agora colaboram com Nacional (RJ), ao qual o Museu Paraense Emlio Goeldi
as buscas dos vestgios humanos da guerrilha, iniciadas (MPEG) se integrou formalmente.
em 2009 por determinao da Justia Federal, relatando O mapa, datado de maio de 1973 6, mostra a
eventos e circunstncias5. conturbada regio sudeste do Par (Figura 1). Ele teria
O objetivo desse artigo veicular informaes pertencido ao general linha-dura Antonio Bandeira,
levantadas a partir do nosso envolvimento no Grupo de comandante na primeira (1972) e na segunda (1973)
Trabalho Tocantins (GTT), coordenado pelo Ministrio da campanhas contra a Guerrilha do Araguaia. O general
Defesa e criado para atender sentena da Justia Federal, Bandeira, depois da guerrilha, veio a ser diretor geral
1
Segundo Moura Clovis (1985, p. 18): No dia de Natal, 25 de dezembro de 1967, um motor corta as guas tranquilas do Araguaia
(...). O barco aproxima-se da margem esquerda, encosta num lugar denominado Faveira. Dele desembarcam trs pessoas: um
homem de seus cinquenta e poucos anos, Mrio; uma mulher tambm idosa, dona Maria; e um jovem de feies modestas e olhos
brilhantes, Joca. (...) Semanas, meses aps o Natal, novos moradores vo chegando a Faveira. Jos Carlos, de vinte e dois anos;
Alice, que cursou a Escola de Enfermagem Ana Nery; Beto e Luis, este ex-estudante de arquitetura, aquele, engenheiro eletrnico.
Sempre viveram nas cidades. Tudo novidade para eles.
2
Segundo a Secretaria Especial dos Direitos Humanos: Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldo, foi o primeiro integrante do PC do
B a se instalar na regio, em 1966. Em 1968, j se compunha um grupo de 15 militantes. No incio de 1972, s vsperas da primeira
expedio do Exrcito, eram quase 70... Boa parte desses homens e mulheres que se embrenharam nas matas do Araguaia era
composta de lideranas estudantis que haviam participado de importantes manifestaes contra a ditadura militar, nas grandes cidades
do pas, entre 1967 e 1969. Vrios deles j tinham sido presos por outras atividades de oposio ao regime. Os que chegaram a
partir de 1969 e 1970 foram deslocados pelo PC do B ao Araguaia tambm porque tinham contra si inquritos policiais, processos
judiciais e mandados de priso, vrios deles por participao no 30 Congresso da UNE, em Ibina (Brasil, 2007, p. 195).
3
Segundo Studart (2009), partiu do prprio general-presidente Emlio Garrastazu Mdici a ordem para no fazer prisioneiros no Araguaia.
4
Hilrio Clovis Costa, atualmente coordenador da Comisso Pastoral da Terra (CPT) em Tucuru, era morador de So Geraldo do
Araguaia na poca da guerrilha. Ele define o papel dos mateiros: Na verdade, (...) na segunda fase da guerrilha, pra eles poderem
capturar os guerrilheiros, tiveram mesmo que apelar para os trabalhadores da regio. Os chamados mateiros, que conheciam a mata,
que conheciam mais ou menos os pontos estratgicos na mata, onde os guerrilheiros poderiam estar. Na verdade, quem venceu a
guerrilha acabou sendo os mateiros mesmo, mais do que os prprios militares. Eles acabaram entregando os guerrilheiros, j sabiam
os pontos, as famlias que tinham mais contatos com eles, toda essa ligao (depoimento pessoal, agosto de 2010).
5
O Grupo de Trabalho Tocantins, do qual o autor faz parte, realizou 13 expedies em 2009 e, at a preparao deste artigo, outras
seis em 2010.
6
A Carta Regio SE Par foi obtida com militares participantes do Grupo de Trabalho Tocantins, organizado pelo Ministrio da Defesa
em cumprimento de sentena da Justia Federal. A mesma carta aparece no livro de Studart (2009).
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Bol. Mus. Para. Emlio Goeldi. Cienc. Hum., Belm, v. 6, n. 3, p. 479-499, set.-dez. 2011
Em meados de 1973, o presidente Emlio

Garrastazu Mdici convocou uma reunio secreta
com o ministro do Exrcito, general Orlando
Geisel, e seu futuro sucessor na Presidncia,
Ernesto Geisel, no Palcio do Planalto, para discutir
o combate aos opositores do regime (...) decidiram
que era necessria a utilizao de todos os meios
para eliminar, sem deixar vestgios, as guerrilhas
rurais e urbanas, de qualquer jeito, a qualquer
preo, como explicita um dos 17 itens de um
documento datilografado que relata a reunio.
Para o encontro, Orlando Geisel levou o general
Antnio Bandeira (...). A cpia da ata da reunio foi
encontrada em 1998, entre as roupas da viva do
general, Lea, junto com o relatrio Hugo Abreu,
mais importante dossi sobre a Guerrilha do
Araguaia e ainda indito. (...) A reunio, confirmada
pelo coronel Sebastio Curi Rodrigues, do
Centro de Informaes do Exrcito (CIE), mudou
a postura do governo. A partir do final de 1973,
no restariam mais sobreviventes nas guerrilhas
(Ribeiro Jr., 2004).
A carta, na escala 1:200.000, mostra detalhes da

geografia, a Serra das Andorinhas de um lado e a Serra
Rica de outro, alm de dezenas e dezenas de pequenas
vilas, stios e grotas com nomes peculiares, como Chega
Figura 1. Mapa do sudeste do Par, datado de maio de 1973, doado com Jeito, Mal Arrumado, Castanhal da Viva, Matrich,
ao autor por um militar, e que teria pertencido ao comandante das
operaes militares contra a Guerrilha do Araguaia. No livro de
Bacaba, Brejo Grande, lugares que foram percorridos
Studart (2009), o mapa aparece com a seguinte qualificao: Mapa em busca de informaes, muitos dos quais no existem
de 1973, preparado pelas equipes da inteligncia para orientar os
comandantes na caada final aos guerrilheiros.
mais e devem estar assinalados apenas nesse mapa
histrico. A rodovia Transamaznica j estava l, mas
a rodovia PA-150, sobre a qual a Comisso Pastoral da
da Polcia Federal, onde atuou como ferrenho censor Terra (CPT) produzia o boletim O Grito da PA-150
de filmes e composies musicais7. O general Bandeira para relatar a violncia dos conflitos fundirios, e as
foi substitudo no Araguaia pelo general Hugo Abreu, da estradas operacionais OP1, OP2 e OP3, abertas para a
Brigada de Pra-quedistas, enquanto o general Milton movimentao das tropas, ainda no aparecem.
Tavares, a partir do Centro de Informaes do Exrcito Essa regio de trplice divisa, nas bordas da floresta e nos
(CIE), comandava as aes de extermnio, segundo o confins da civilizao, onde o Araguaia encontra o Tocantins,
jornalista Amaury Ribeiro Jr. Na matria A ordem antes mesmo de os guerrilheiros do PC do B se instalarem
matar, o jornalista informa que em trs destacamentos e iniciarem esforos para ganhar a
7
Na gesto do general Bandeira na Polcia Federal, pela primeira vez no apenas um mas dez filmes eram retirados de cartaz ao
mesmo tempo e passavam a ter sua exibio proibida em todo o pas. (...) A portaria [313, de 22 de junho de 1973] foi baixada em
Braslia numa sexta feira tarde (...) Entre a ordem e o cumprimento da ordem as salas de exibio promoveram sesses especiais
no sbado e no domingo, dez da manh, meio-dia, meia-noite, duas da madrugada, e muita gente pde ver os filmes. (...) Essa
tragicmica proibio foi relativamente bem noticiada pela imprensa, e por isso a Censura decidiu reforar a censura a notcias sobre
a Censura (Avellar, 2005, p. 338).
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confiana da populao, despertava o interesse de vrios infiltrados na regio para mapear a guerrilha. Seguiu-se, em
grupos de esquerda na expresso de Elio Gaspari, havia na outubro do mesmo ano, a decisiva Operao Marajoara,
regio uma abundncia de projetos revolucionrios (Gaspari, desencadeada com menos de 300 militares (Morais e
2002, p. 414) e tambm do governo militar, que realizou Silva, 2005, p. 449), sem farda, comandados por oficiais
ali operaes militares de contraguerrilha: que se faziam chamar de doutores como o Dr. Luchini,
ento na Operao Sucuri, disfarado de agrnomo do
O relatrio final da Operao Mesopotmia Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria
contm referncias a um militante de nome Juca,
residente em Porto Franco (MA), que corresponde
(INCRA), na verdade Sebastio Rodrigues de Moura,
ao guerrilheiro Joo Carlos Haas Sobrinho, quem, na violenta represso que se seguiu guerrilha, viria
desaparecido no Araguaia, que trabalhou como
mdico e criou o primeiro hospital daquele
a se transformar no mtico major Curi.
municpio maranhense, entre 1967 e 1969, Inspirada na guerra popular e civil que levara
transferindo-se ento para a regio da guerrilha,
no muito distante dali (Brasil, 2007, p. 196).
Revoluo Chinesa de 1949 dos 15 militantes iniciais,
chegados regio at 1968, sete teriam feito cursos de
Hoje, o Bico do Papagaio, no ritmo de um capacitao na China (Gaspari, 2002, p. 409) , a guerrilha
progresso que no respeita a floresta nem a populao, objetivou lutar contra a ditadura militar e fomentar, a partir
continua sendo palco de grandes violncias. Ali, a pecuria do campo, uma democracia popular no Brasil. Sezostrys
e a metalurgia de ferro-gusa, direta e indiretamente, usam Alves, da Associao dos Torturados da Guerrilha do
trabalho escravo para a abertura de pastos e a produo Araguaia, proporciona guerrilha a relevncia de ter sido
de carvo vegetal. O padro agrrio concentrador a maior guerra do Brasil rural no Sculo XX (Alves,
e as relaes trabalhistas so degradantes, resultando 2010). Contudo, a maior dimenso da guerrilha tem a ver,
disso um contexto violento, marcado por assassinatos, principalmente, com o massacre promovido pelo Estado
tentativas de assassinato, ameaas de morte, famlias ainda que executado pelo relativamente autnomo setor
expulsas e despejadas, casas e roas destrudas, famlias de informaes , ao torturar impiedosamente centenas de
ameaadas pela ao de pistoleiros, para listar algumas camponeses da regio e executar prisioneiros rendidos, em
das agresses sofridas por camponeses e trabalhadores clara violao aos direitos humanos e em total desacordo
do campo. Os conflitos crescem porque, apesar da com tratados internacionais.
violncia, os movimentos no recuam, aumentando ano Nessa sua espantosa face, a Guerrilha do Araguaia
a ano o nmero de acampamentos e ocupaes de terra, se assemelha com a Guerra de Canudos (1896-1897),
assim como o nmero de pessoas envolvidas. Isso o inclusive quanto a barbaridades cometidas nos seus
que chamamos a guerra que veio depois, ou a segunda estertores, como a decapitao de prisioneiros de guerra.
guerra, no dizer de moradores locais. Os quase oitenta anos que separam os dois episdios no
Para a represso da guerrilha, no incio, grandes foram suficientes para abrandar a violncia do Estado contra
contingentes das trs Foras Armadas foram empregados humildes brasileiros, camponeses massacrados tanto numa
em manobra que embutiu a ineficaz Operao Papagaio. ocasio como na outra.
A partir de abril de 1973, com o comando da represso A execuo de Walquria, a ltima guerrilheira, no
agora subordinado ao CIE, a Operao Sucuri, de fato campo de concentrao que foi a base militar de Xambio,
uma misso para colher informaes, utilizou-se de poucos marcou o fim da guerrilha, mas no das operaes
agentes disfarados em compradores de arroz e madeira, militares, que se seguiram com a ocultao dos cadveres.
proprietrios de bodegas, roceiros e outros tipos comuns As provveis operaes de limpeza foram realizadas
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de diversas maneiras, a confiar nos relatos colhidos pela apagar a guerrilha da histria. O silncio e a omisso dos
ouvidoria do Grupo de Trabalho Tocantins, criado pelo militares fazem contemporneo o adgio segundo o qual
Ministrio da Defesa8 para cumprir a sentena da juza a luta do homem contra o poder a luta da memria
federal Solange Salgado9. contra o esquecimento (Santos, 2003, p. 23). Alguns
jornalistas, como Tais Morais e Eumano Silva, articulam
A luta da memria contra o memria e presente e revelam o esquecimento que
esquecimento perdura: A presena dos guerrilheiros na Amaznia fez
Execues de prisioneiros, operaes de eliminao de a ditadura olhar para a regio abandonada. O governo
vestgios da guerrilha e prtica de torturas esto nos relatos militar construiu estradas e realizou Aes Cvico Sociais
colhidos, assim como na ampla literatura existente sobre espordicas e ineficientes. O povo continuou abandonado
a guerrilha. Literatura que conta essa histria de diversas (Morais e Silva, 2005, p. 14).
maneiras, mas quase sempre do mesmo ngulo, a partir Com relao omisso dos militares, vale a pena
de reminiscncias de pessoas, os camponeses, mateiros mencionar trs excees. Uma est no livro do coronel Lcio
e soldados, que sofreram e relatam a experincia. A Maciel, ento major do CIE, quando atuou no combate
omisso dos relatos dos militares contraria o preceito de Guerrilha do Araguaia, que contou sua histria ao jornalista
que a histria normalmente contada pelos vencedores. A Luiz Maklouf Carvalho, depois de 30 anos de silncio
depender desses, no fosse a tradio oral, que a mantm (Carvalho, 2004). Outra est no livro do capito-aviador
viva, a memria da guerrilha estaria apagada10. Pedro Cabral, piloto de helicptero, que publicou Xambio
Muito das informaes disponveis hoje sobre a Guerrilha do Araguaia (Cabral, 1993). Quando o
guerrilha se deve a matrias jornalsticas, que revelaram a entrevistamos, em So Geraldo do Araguaia (PA), ele
memria e evitaram o esquecimento. Inclusive a primeira confirmou ter participado das chamadas operaes limpeza,
dessas matrias, de Fernando Portela, que publicou, em transportando corpos para serem queimados na Serra das
24 de setembro de 1972, em O Estado de S. Paulo, a Andorinhas. A terceira exceo o tenente da reserva Jos
reportagem Em Xambio, a luta contra a misria e a Vargas Jimnez, que conta suas faanhas de quando, como
guerrilha, texto que depois, em 1979, quando o silncio sargento, combateu junto com Curi. Torturador confesso11,
era acachapante, resultou no livro Guerra de Guerrilhas o ex-sargento foi promovido e condecorado com a Medalha
no Brasil (Portela, 1986). Os jornalistas exercitaram seu do Pacificador com Palma. Contudo, o prprio Curi
ofcio na conjuntura de um governo que fazia tudo para lacnico e pouco contribui para aclarar o sombrio episdio.
8
Portaria n. 567/MD, de 29 de abril de 2009, posteriormente alterada pela Portaria n. 993/MD, de 10 de julho de 2009.
9
Em 20/07/2003, a juza federal Solange Salgado, da 1. Vara da Justia Federal, proferiu sentena relativa a uma causa iniciada em 1982
e determinou a quebra de sigilo de todas as informaes oficiais existentes sobre a Guerrilha do Araguaia. A ao judicial foi instaurada
por familiares de 22 desaparecidos (Brasil, 2007, p. 202).
10
O texto da sentena bate frontalmente contra o silncio imposto pelos militares: De fato, ante s inmeras provas constantes dos autos
acerca da Guerrilha do Araguaia, tem-se que a sua ocorrncia fato incontestvel. Tambm no cabe negar-lhe a importncia histrica.
Tempos como aqueles, de represso poltica deliberada e violao sistemtica de direitos fundamentais, no devem ser esquecidos ou
ignorados. Ao contrrio, uma nao no pode tentar tornar-se livre, justa e solidria, pretender construir seus alicerces sobre os pilares
da democracia e do respeito dignidade da pessoa humana, sem antes enfrentar seu passado. imperioso analisar e tentar compreender
os fatos tristes de sua histria que no deseja ver repetidos (Salgado, 2003, p. 10).
11
Em depoimento Comisso Especial de Anistia (CEA), da Cmara dos Deputados, o tenente da reserva Jos Vargas Jimnez declarou ter,
durante a Guerrilha do Araguaia, torturado pessoas para arrancar confisses. O ento sargento detalha seus mtodos, conforme consta
no texto do jornalista Vasconcelo Quadros, do Jornal do Brasil: (...) como o preso se recusava a abrir o que sabia sobre a guerrilha,
amarrou-o num pau viveiro de formiga, com o corpo lambuzado de acar e a boca cheia de sal. Quando as formigas comearam a
picar, o campons no aguentou e comeou a contar tudo (Quadros, 2009).
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O silncio esconde informaes que s os militares atuantes localidade em que a caravana foi saudada com
fogos de artifcio. Com farto material gravado e
naquele contexto detm. grande nmero de informaes foi divulgada uma
A prpria existncia da Associao dos Torturados da carta-denncia nao: 22 famlias entraram com
uma ao contra o Estado brasileiro para saber
Guerrilha do Araguaia, na localidade de So Domingos do a localizao dos corpos de 25 guerrilheiros. O
Araguaia (PA), evidencia a violncia cometida pelo Estado, governo brasileiro impetrou 16 recursos e s em
1996 fez a sua primeira incurso oficial regio
fato sobre o qual no se pode simplesmente passar uma (Grabois, 2010).
borracha, como ainda querem setores do Estado. Signatrio
de convenes e pactos internacionais, o Brasil hoje regido Um dos resultados daquela primeira expedio ao
pelo Estado de Direito. A jurisprudncia internacional lembra Araguaia em busca de restos mortais dos guerrilheiros foi a
que o pas precisa conhecer seu passado e o Estado precisa constatao de que a guerrilha realmente existiu, a despeito da
assumir suas culpas. Esse um aspecto de uma histria que atitude evasiva do Estado brasileiro. Segundo Paulo Fonteles
continua aberta. Com a inteno de se fazer justia, em 18 Filho, a primeira verificao dos caravaneiros foi o fato de
de junho de 2009, em ato pblico que reuniu centenas de que realmente houve a guerrilha do Araguaia (Fonteles Filho,
pessoas nas ruas de So Domingos do Araguaia, a Comisso 2011). Outro resultado foi a proposio pelos familiares de
da Anistia do Ministrio da Justia anunciou a concesso de ao para compelir a Unio Federal a indicar a sepultura dos
anistia poltica a 44 camponeses perseguidos pela represso seus mortos. A juza Solange Salgado acolheu a ao impetrada
militar durante a Guerrilha do Araguaia. por aqueles familiares e, em 19 de fevereiro de 1982, autuou
a Unio, determinando:
A Caravana de 1980
Fundamental na luta da memria contra o esquecimento foi a (...) R que, no prazo de 120 (cento e vinte)
dias, informe a este Juzo onde esto sepultados os
herica Caravana de 1980. Assim como acontecia em outros restos mortais dos familiares dos Autores, mortos na
pases da Amrica do Sul, assolados por ditaduras, as mes Guerrilha do Araguaia, bem como para que proceda
ao traslado das ossadas, o sepultamento destas em
dos desaparecidos na Guerrilha do Araguaia procuravam local a ser indicado pelos Autores, fornecendo-lhes,
notcias dos seus filhos ou dos corpos deles. Inicialmente ainda, as informaes necessrias lavratura das
certides de bito (Salgado, 2003, p. 45).
de forma isolada, mas logo reunidas em um II Congresso
Nacional pela Anistia (realizado em novembro de 1979, em A Justia Federal ainda determinou a quebra de sigilo das
Salvador, BA, de onde se lanou o Manifesto dos Familiares informaes militares relativas a todas as operaes realizadas
dos Mortos e Desaparecidos do Araguaia), mes e outros no combate Guerrilha do Araguaia e informaes relativas
familiares organizaram a Caravana dos Familiares dos
Desaparecidos do Araguaia, a qual contou com a presena captura e deteno dos civis com vida, ao
recolhimento de corpos de guerrilheiros mortos
do advogado Paulo Fonteles. Tambm integrava a caravana (...) incluindo-se (...) as informaes relativas ao
Victoria Grabois, hoje professora e vice-presidente do grupo destino dado a esses corpos e todas as informaes
relativas transferncia de civis vivos ou mortos
Tortura Nunca Mais, que relata a sua experincia e ressalta para quaisquer reas (Salgado, 2003, p. 45).
a relutncia do Estado brasileiro em patrocinar buscas das
vtimas da Guerrilha do Araguaia: O texto da sentena ratifica a demanda dos familiares
pelo fornecimento de informaes contidas no Relatrio
Durante 15 dias, vasculhamos o passado e oficial do Ministrio da Guerra datado de 5 de janeiro de 1975
constatamos que na populao local a coragem e
a solidariedade daquele grupo ainda estavam vivas.
(Salgado, 2003, p. 45). Este documento continua inacessvel,
Fomos recebidos como celebridades e houve uma em local desconhecido.
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A sentena da juza, quando pauta elementos Uma histria aberta

probatrios acerca da responsabilidade do Estado A penria da populao em contexto de latifndio continua
no desaparecimento forado de pessoas, traz luz o marcando o terreno, a despeito e em funo do
importante trabalho realizado pela Caravana no comeo progresso que a regio provou desde ento. Progresso
do inverno de 1980. Vale notar a observao sobre o clima que subjugou a natureza a ponto de deixar poucas rvores
de terror que oprime os moradores da regio: em p, exceo da Reserva Soror, dos ndios Suru,
tambm injuriados como caadores de gente e cortadores
Tendo percorrido a regio em que se desenvolveu de cabeas. O progresso transformou roas em pasto, no
a luta armada, visitando locais como So
Domingos das Latas, Vila So Jos, Metade,
trouxe civilizao e no valorizou pessoas, e, no entanto,
Palestina, Brejo Grande, Castanhal da Viva, mais progresso o que alguns continuam a querer.
as Estradas Operacionais 2 e 3, Araguatins,
Araguana, Xambio, So Geraldo, Vila Nova,
Quando, em atividade do grupo de trabalho criado para
Pau Preto, Ponto Firme, Piarra, Marcelinense, buscar restos mortais uma vez que a recomendao
Boa Vista e Araguan e tendo ouvido centenas de
pessoas e colhido inmeros relatos, a Caravana
de tambm levantar as circunstncias das mortes dos
diz ter se deparado com um clima de terror guerrilheiros consta apenas na sentena da juza e no
apavorante que ainda hoje oprime os moradores
da regio (Salgado, 2003, p. 23).
na portaria do Ministrio da Defesa , sobrevovamos a
regio de helicptero, a observao muita floresta para
Observe-se tambm como a violncia campeou pouco ndio teve amplo assentimento entre os tripulantes
sobre a populao: daquele equipamento militar. Essa a viso de progresso
de quem considera que o importante pensar para frente,
A Caravana terminou com a firme convico em aluso Lei da Anistia, que impede a investigao de
de que muitos dos guerrilheiros foram
capturados com vida, deslocados do ponto
graves violaes de direitos humanos.
de sua priso e ento desapareceram (fl. Numa viso ampliada, acrescentando direitos sociais,
402); de que foram presos e torturados no
apenas combatentes da guerrilha, mas tambm
polticos e econmicos aos direitos civis, para dar inteireza
numerosos elementos da populao que no noo de cidadania, a situao de penria da populao
participavam da guerrilha, tendo desaparecido
muitos dos habitantes locais; de que foram
pobre, ou seja, da ampla maioria da populao, uma
violados e sonegados cadveres, havendo evidente violao dos direitos humanos. Uma vez que a
inmeras indicaes de tmulos ocultos nas
florestas (Salgado, 2003, p. 23).
pecuria expulsou o trabalhador da terra, falta emprego.
Os servios pblicos de sade e educao so precrios.
A Caravana de 1980 mobilizou setores crticos da E o prprio direito memria sonegado, visto que, na
sociedade e reabriu a histria da guerrilha, que os militares sociedade e nas escolas, a guerrilha e a represso que se
queriam encerrada nos seus arquivos secretos: seguiu so temas reprimidos. Nesse contexto, a noo
de histria aberta significa a possibilidade de referenciar-
Vale dizer que a Caravana realizada entre 25 se na memria para a busca da justia social. A histria
de outubro e 04 de novembro de 1980 no se
constituiu numa iniciativa isolada dos familiares.
est aberta para movimentos emancipadores porque ela
Ao contrrio, contou com o apoio e a participao decorre da prpria natureza da poltica como atividade
de setores importantes da sociedade civil, como
a Comisso de Direitos Humanos da Ordem
humana coletiva e plural, certamente condicionada pelas
dos Advogados do Brasil, os Movimentos de estruturas sociais e econmicas existentes, mas capaz de
Anistia, setores da Igreja Catlica, parlamentares
de vrios estados e a imprensa (fl. 420) (Salgado,
ultrapass-las, de transform-las, de perturb-las, criando o
2003, p. 22). novo (Lowy, 2005, p. 150). Assim, para Walter Benjamin,
485
a histria uma construo referenciada num tempo soltos. Durante todo esse tempo e em funo de todas
saturado de agoras (Benjamin, 1994, p. 229-230). essas mortes, aconteceram apenas nove julgamentos.
A memria se alimenta de reminiscncias de quem, A guerrilha uma histria suspensa no tempo,
como morador, campons, mateiro ou soldado, viveu a porque tanto seu desfecho, infamado por execues e
traumtica experincia para contar a histria. Uma histria desaparecimentos, como seus ideais, sintetizados em 27
do presente, j que a guerrilha um tema de agora. pontos13 que falavam de direitos, entre os quais o de terra
Alguns antigos moradores a evocam a partir do presente, para trabalhar, continuam abertos. Uma histria pendente,
inconformados com o avano das pastagens e a derrubada enquanto o pas, 36 anos depois de os chamados setores
das matas, esse modelo de ocupao pela pata do boi que de inteligncia tentarem silenciar o episdio sem deixar
caracteriza, desde ento, o sul e o sudeste do Par, com vestgios, condenado pela Corte Interamericana
todas as facilidades oferecidas pelo Estado, preocupado de Direitos Humanos, da Organizao dos Estados
em reprimir o movimento campons com todo o seu Americanos (OEA), pelo desaparecimento de 62 pessoas
aparato atuando de maneira parcial, da se popularizando e por no ter punido os responsveis.
a expresso injustia institucionalizada. Junto com as Nenhum vestgio de ossadas foi encontrado,
memrias da guerrilha vm as histrias da segunda guerra embora o grupo de trabalho, partindo das suposies de
ou da guerra que veio depois, que narradores no moradores, camponeses, mateiros e antigos soldados,
conformados com o progresso que maltrata natureza e arregimentados como colaboradores para os trabalhos
gente dividiram com a equipe de ouvidoria do grupo de de busca de restos mortais, tenha pesquisado e escavado
trabalho, criado para atender expressiva sentena da juza em vrios lugares. Sete Barracas, Pimenteira, Taboco,
federal Solange Salgado, que colocou a Unio como r12. Gameleira, Bacaba, Base de Xambio, Base Cabo Rosa,
O Estado est sendo implicado, no entanto, apenas Mutuma, Matrich, Caador, Serra das Andorinhas, Reserva
nos fatos relacionados guerrilha. Os crimes da chamada Soror, Remanso dos Botos, Denit, Chega com Jeito,
segunda guerra continuam impunes e quase esquecidos, Castanhal da Viva, Dois Coqueiros e inmeras grotas
no fossem os relatrios anuais da Comisso Pastoral da perdidas cujos remotos nomes constam no histrico
Terra (CPT) sobre a violncia no campo. Logo aps a mapa apresentado no incio desse artigo: em todos esses
guerrilha, j em 1976, intensificaram-se muito as ocupaes lugares, como se fosse um ritual, o grupo de trabalho se
de terra na regio. E os conflitos e assassinatos tambm. reuniu para contextualizar o ocorrido. Ento se evocavam
Quase mil trabalhadores foram assassinados desde 1975. ocorrncias e nomes de guerrilheiros que se supunha
Lideranas sindicais, padres, freiras, advogados, todos os enterrados no local, retornando o tempo da guerrilha em
que se envolveram e apoiaram a luta camponesa foram ambiente totalmente transformado. Onde era floresta,
perseguidos. H apenas um mandante preso, o Bida, agora apenas pasto. Centenas de buracos cavados e
envolvido no assassinato da irm Dorothy. Os outros esto nenhuma materialidade nas buscas.
12
Conforme consta na sentena: A entrega dos restos mortais das vtimas a seus familiares, a fim de que possam ser dignamente sepultados, e o
fornecimento das informaes sobre a morte, constituem providncias capazes de dar cumprimento obrigao estatal (Salgado, 2003, p. 38).
13
Elio Gaspari, em seu livro A Ditadura Escancarada, relatando as consequncias das operaes de 1972, avaliadas como um fiasco,
qualifica tambm criticamente esse programa de 27 pontos, da seguinte maneira: Retirada a tropa e desfeito o segredo para os
moradores da regio, o PC do B lanou-se na propaganda. Produziu uma Proclamao da Unio pela Liberdade e pelos Direitos do
Povo. Anunciado como um documento simples, acessvel s pessoas mais atrasadas, o manifesto tinha 4 mil palavras, entre as quais
estagnado, urbanizao e ramos da administrao. Seu texto traa o propsito propagandstico, destinado a criar nas grandes cidades a
impresso de que comeara uma revoluo na selva (Gaspari, 2002, p. 428).
486
O campo de concentrao de Xambio sido enterrados guerrilheiros e camponeses, embora as

A base militar de Xambio (Figura 2) foi instalada ao lado escavaes realizadas no tenham achado nenhum vestgio
de pista de pouso j existente, utilizada para dar sada de restos mortais. Apenas latas de alimentos, cpsulas de
produo de cristal de rocha que dera origem cidade balas e outros resduos foram encontrados num buraco
de Xambio (PA). Ali, entre a pista de pouso e o rio aberto pelo grupo de trabalho, constatando-se que, de
Araguaia, funcionou o comando das operaes militares de fato, ali funcionou uma base militar.
represso guerrilha. Era dali que partiam os helicpteros Segundo os relatos, houve execues na base. Tanto
e os avies monomotores conhecidos como paqueras, Sinsio Ribeiro como Vicente Taveira, ex-guias do Exrcito,
para sobrevoos de reconhecimento e para o transporte descrevem a execuo de Walquria Afonso Costa naquele
de prisioneiros, capturados na selva ou tirados das suas campo de concentrao. Vicente Taveira mora, atualmente,
casas, como aconteceu com muitos camponeses. Para a em Marab (PA), onde remenda pneus de bicicleta numa
base de Xambio foi levado o corpo de Osvaldo, em abril pequena oficina na parte da frente de sua casa. Ele nos
de 1974, pendurado em helicptero, de modo a todos acompanhou em diversas ocasies, ajudou na reconstituio
verem que finalmente aquela lenda viva estava morta. da base militar de Xambio e nos contou o que provavelmente
O livro-relatrio Direito Memria e Verdade foi o fim de Walquria, a ltima guerrilheira, ali mesmo:
descreve o furor que o corpo de Osvaldo despertou na
base de Xambio: (...) posteriormente, sua cabea foi Ela chegou 9 horas do dia. Eu vi ela chegar com
uma roupinha suja, fedendo, porque na mata a
decepada e exposta em pblico (Brasil, 2007, p. 250). gente no toma banho, magra. Demos um banho
Nesse caso, por puro barbarismo, j que no carecia a nela. Fizeram uma sopa magra. Ela sentou no banco
onde a gente pegava refeio. Isso foi em outubro
degola como recurso de identificao, como acontecia com de 1974. Teve um sargento que era mineiro, de
guerrilheiros mortos na mata (Gaspari, 2002). Uberaba, e ela tambm era de Uberaba. Ele
perguntou a ela por que ela no se entregou. - Eu
no me entregaria porque eu vou lutar. Lutamos o
Na base militar de Xambio, seu cadver foi que ns pudemos. Ns vamos morrer, mas nossa
violado por chutes, pedradas e pauladas dadas luta vai continuar. Quando ela continuar no vai ser
pelos militares, sendo finalmente queimado e na selva, vai ser na rua. A luta nunca vai morrer. Eu
jogado no buraco conhecido como Vietn (vala sei que vou morrer, mas a nossa luta no morre.
situada ao final da pista de pouso da Base Militar Ns lutamos por um Brasil melhor. Ento o
de Xambio), onde eram lanados os mortos helicptero chegou de novo com o carrasco, o
e moribundos. Com o trmino das operaes Louro. Era o Louro mais dois oficiais. Saram e
militares, foi feita uma grande terraplanagem para voltaram em meia hora. Eu no ouvi o tiro (Vicente
descaracterizar o local (Brasil, 2007, p. 250). Taveira, depoimento pessoal, agosto de 2010).
A base militar de Xambio foi tambm um campo Diferindo apenas nos detalhes, em depoimento
de concentrao, com cercas de arame farpado, que prestado nove anos antes, em 2001, ao Ministrio Pblico
delimitavam uma rea chamada de curral, onde ficavam Federal, Sinsio conta a mesma histria:
os prisioneiros14. Eles ficavam tambm em buracos cavados
no cho e cobertos com arame farpado. Conforme os O ex-colaborador do Exrcito, Sinsio Martins
Ribeiro, lembrou (...) que viu a Valquria viva
relatos, havia na base uma casa de tortura, ou judiaria, no dentro da base de Xambio; que a Valquria contou
dizer de camponeses que passaram por ali. Na base teriam aos militares que estava com o Osvaldo quando
14
As tropas, especializadas em combate na selva, espancaram centenas de pessoas. Quase todos os homens vlidos da rea rural
foram levados para prises em Marab, Xambio e Belm. (...) Ficaram nas roas apenas mulheres e crianas (Morais e Silva,
2005, p. 465).
487
Figura 2. Croquis da Base Militar de Xambio, no Par, tal como existia no incio da dcada de 1970, segundo desenho feito por ex-soldados
que serviram na base poca.
este foi morto; que a mesma perdeu a espingarda diz no ter visto ningum ser enterrado na base de Xambio.
nesta vez, pois a mesma ficou enganchada num
pau; (...) que na base de Xambio viu ela ser
Diz tambm no ter visto ningum ser exumado: Estvamos
levada por um soldado do Exrcito para o rumo baseados em Xambio e eu no vi ningum ser exumado l.
do jatob; que o carrasco (sic) levava uma arma
curta; que a arma era surda e no se escutava
Mas no posso garantir que no tenha sido enterrado (Pedro
o tiro; que atrs ia outro soldado levando uma Cabral, depoimento pessoal, junho 2010).
lata grande de bolacha com cal virgem; que
dias depois ele perguntou ao soldado por ela e
teve como resposta j era, que esta resposta Histrias de cabeas cortadas
significava que tinha sido morta (...) (Brasil,
2007, p. 264).
Sobre a base de Xambio, ouvimos narrativas de que vrios
corpos foram levados para l e ali ficaram. Ouvimos que
Ouvimos muitos relatos apontando a base de Xambio Osvaldo estava enterrado l, distante cerca de 30 metros
como um lugar onde se enterravam guerrilheiros e, no da enfermaria. Por isso, tentamos reconstituir a estrutura da
entanto, as escavaes nada encontraram, a no ser evidncias base, desenhando suas instalaes, a fim de, a partir dessas
de que ali efetivamente existiu uma base militar. O fato de no referncias, definir um ponto mais provvel para as buscas
se encontrar nenhum vestgio de inumao ali, a despeito dos (Figura 2). O campons Beca conta que cavou ali, prximo
testemunhos, indcio de que a rea foi submetida chamada da casa de judiaria, um buraco at a altura do seu pescoo,
operao limpeza. O coronel-aviador Pedro Cabral, no no fundo do qual ele viu depois a cabea do guerrilheiro
entanto, servindo ali de janeiro de 1974 a fevereiro de 1975, Ari15. Chegou-nos a informao de que nos ps de duas
Arildo Arton Valado, segundo consta no relatrio Arroyo, foi morto em 24 de novembro de 1973. O ex-guia Sinsio Ribeiro detalha
15
o que se viu: que o primeiro tiroteio do Exrcito foi no Pau Preto, onde foi morto o Ari; que o depoente estava presente; que Ari no
atirou; que Ari teve sua cabea cortada e levada para a base do Exrcito em Xambio (...) (Brasil, 2007, p. 223).
488
palmeiras de macaba gmeas estaria enterrado um saco para colaboradores, os chamados guias formados, nas
com cabeas. Encontramos as palmeiras gmeas, mas no estradas operacionais (OP1, OP2 e OP3); a decretao
o saco. A histria de cabeas cortadas e metidas em saco da regio como rea de segurana nacional; a nomeao
recorrente, em vrias verses. No livro de Tas Morais e de prefeitos; o assassinato de lideranas sindicais e de
Eumano Silva h uma passagem que exemplifica a prtica: agentes religiosos, a chamada injustia institucionalizada;
a onipresena de Sebastio Curi; e, enfim, um modelo
Uma equipe do Exrcito segue pela mata por volta de ocupao pela pata do boi, que devastou as florestas
das cinco da tarde. O oficial comandante da misso
apresenta-se como Doutor Silva. O mateiro Ccero
da regio. De forma que, quando falamos da guerrilha,
e outro morador, Raimundo Severino, guiam a precisamos tambm falar da guerra que veio depois.
patrulha. Em uma curva do caminho, aparece um
guerrilheiro. Raimundo aponta a espingarda e puxa
Alguns antigos moradores da regio chamam de a
o gatilho. (...) Chico morre na hora. Orientado pelo segunda guerra o prolongado estado de stio imposto
Doutor Silva, Raimundo Severino avana com um
faco na direo do corpo. A lmina corta o pescoo
pela ditadura, com a supresso da liberdade de reunio
e separa a cabea do combatente. O sangue quente e associao. Pior, o que se seguiu atentou contra
do comunista escorre pelo cho do Araguaia. (...)
Doutor Silva manda Ccero colocar a cabea do
a integridade pessoal de camponeses, moradores e
guerrilheiro em um saco e carregar at outro ponto lideranas sociais, inclusive religiosos ligados Teologia
da floresta. Com os nervos abalados pela cena,
o mateiro tem a sensao de carregar um corpo
da Libertao. Em fins de 1980, quando eu mesmo fazia
inteiro (Morais e Silva, 2005, p. 464). pesquisa de campo na regio, vi que no era permitido
ao sindicato de professores reunir-se em So Geraldo
Quando entrevistamos Dona Domingas em Araguana do Araguaia (PA). Nessa localidade, dona Oneide, viva
(TO), em agosto de 2009, ela nos contou que certa vez do agente da Comisso Pastoral da Terra, Raimundo
viu, na porta da sua casa, um saco cheio de cabeas, que Ferreira Lima, o Gringo, assassinado pelo latifndio em
foi levado para Xambio: maio de 1980, conta que, em 2004, os estudantes da
escola em que ela era ento diretora quiseram fazer
O compadre Arlindo, que matou Osvaldo, eles uma representao da guerrilha, na parada de Sete de
mataram um grupo e cortaram as cabeas. Seis
ou mais cabeas. Passaram na minha casa com
Setembro. A iniciativa dos estudantes foi, no entanto,
um major, com o saco de cabeas. O compadre severamente reprimida por parte das autoridades civis e
Arlindo disse: - Repara o que eu tenho a dentro.
Eram as cabeas. Pegaram o helicptero e foram
militares do municpio.
para Xambio com as cabeas (Dona Domingas, Ou seja, a memria da guerrilha est viva, mas
depoimento pessoal, agosto de 2009).
reprimida, inclusive fora dos currculos escolares, quando
se trata de fato histrico de grande relevncia para o
A guerra que veio depois entendimento do que hoje a regio. A Guerrilha do
Alm de reaver a memria sobre a guerrilha, a partir de Araguaia foi um fato seminal na histria, quase tudo o
narrativas de quem viveu a experincia, importante saber que aconteceu depois na regio se relaciona ao episdio.
o que veio depois. No Bico do Papagaio, os governos A disciplina militar e o controle ideolgico exercido
militares montaram um intenso sistema de represso sobre Serra Pelada, rea de segurana nacional, que nos
e controle poltico, com operaes para a criao de anos 1980 recebeu visita do general-presidente Joo
mentalidade, conhecidas como Ao Cvico-Social do Figueiredo, um exemplo de mobilizao de meios para
Exrcito (ACISO); a criao do Grupo Executivo de Terras se contrapor ao fantasma da guerrilha, mesmo depois de
do Araguaia-Tocantins (GETAT); a concesso de lotes o movimento ter sido aniquilado em 1974. O prprio
489
Curi, entrevistado no filme Serra Pelada Esperana Pois bem, o rio banzeirava e principiava a guerra
(Figueira, 1986, p. 28).
no sonho, da cineasta Priscilla Brasil, diz, em fala
relativa aos garimpeiros: (...) era preciso criar uma outra A guerra que veio depois alinhava, de um lado, o
massa oposta quela massa da guerrilha (Serra..., 2007). movimento campons e a luta para conquistar os sindicatos
O que veio depois da guerrilha, com a ordem de trabalhadores rurais, por meio das chapas de oposio16.
repressora que se instalou na regio, foi o progresso, Do outro lado, uma intensa represso, comandada no
rpido no que diz respeito dominao da natureza, a campo pelo mesmo Curi que havia atuado como um
ponto de transform-la quase toda em pasto. E rpido dos expoentes na represso guerrilha, respaldada desde
tambm na concesso de facilidades pelo Estado, por meio Braslia pelo Conselho de Segurana Nacional, que criara
da Superintendncia do Desenvolvimento da Amaznia o GETAT e mobilizava estruturas e meios estatais para
(SUDAM) e de outros agentes, a projetos agropecurios, desmobilizar o movimento:
que se instalaram com crditos bancrios fartos, incentivos
fiscais e desrespeito a obrigaes trabalhistas. O padre A ao do governo, atravs do GETAT,
excludente, tem como meta marginalizar os
Ricardo Rezende, coordenador da CPT nos anos 1980, posseiros, favorecendo os grandes projetos. Para
denuncia o avano do progresso no seu livro A justia isso, busca minar a coeso dos lavradores, indispor
trabalhador contra trabalhador e abrir rea para
do lobo: Derrubam-se florestas indiscriminadamente, o latifndio. Atendendo a esse objetivo, no Baixo
expulsam-se posseiros das terras com violncia e instaura- Araguaia tenta, com o auxlio da Polcia Federal,
fora, remarcar e reduzir os lotes dos agricultores,
se o trabalho escravo, atravs de empreiteiros (gatos), criando grande confuso. Mas busca igualmente
dos quais muitos so mais conhecidos como chefes de incluir e absorver os bolses de resistncia, os
grupos que esto dispostos a se defender mesmo
pistoleiros (Figueira, 1986, p. 23). armados para garantir o direito terra, ao trabalho.
A outra face do descomedido favorecimento Entrega-lhes o ttulo da rea que ocupam, mas
no cria qualquer condio ou facilidade de
abertura de pastagens foi uma severa represso ao permanncia (Figueira, 1986, p. 101-102).
movimento campons. Formado por milhares de
imigrantes, provenientes em grande parte do Maranho, So muitos os episdios marcantes da guerra que
que vinham em busca de supostas terras livres, das veio depois, e aqui s possvel mencionar alguns. Em
guas grandes e das bandeiras verdes da Amaznia, o 1976, logo aps a guerrilha, aconteceu o Conflito de
movimento campons contou com decisivo apoio da Perdidos, que culminou em confronto dos trabalhadores
Igreja Catlica: rurais com a Polcia Militar, que, na poca, atuava em
estreita colaborao com fazendeiros e grileiros. O conflito
Rezam as lendas que o Pe. Ccero teria previsto se deu em funo da tentativa de um grileiro, dizendo-se
que para se salvar carecia atravessar o Rio Araguaia
em busca da Bandeira Verde, terra da promisso e
representante da Fundao Brasil Central17, retirar fora
de esperana. Que surgiria a era do Capa-Verde, 300 famlias de trabalhadores que ocupavam as terras. Os
prncipe maligno. O rio iria banzeirar (ter ondas) na
metade e na outra metade ferver. Travar-se-ia uma
trabalhadores se entrincheiraram para resistir e fizeram
grande guerra e as foras do bem prevaleceriam. fogo contra os policiais militares, matando dois e ferindo
16
Os lavradores, apoiados pela CPT, recomeam um movimento de Oposio Sindical, com a realizao de um encontro no Centro de
Treinamento Diocesano (CTD), do dia 28 de abril a 1 de maio de 1979. (...) A primeira reunio em que os associados se organizam e se
articulam como oposio em janeiro de 1980 (Figueira, 1986, p. 61-62).
17
Na verdade, a rea havia sido adquirida em 1972, da antiga Fundao Brasil Central, pelo ex-presidente Jnio Quadros, pelo ex-deputado
paulista Roberto Cardoso Alves e por Jos Aparecido de Oliveira (Figueira, 1986, p. 35).
490
mais dois. Ainda no rescaldo da guerrilha, o Conflito de sujo e pesado. No relato da Pimenteira, um ex-guia,
Perdidos repercutiu intensamente na imprensa, mobilizou ento colaborador do grupo de trabalho, afirmou que ele
autoridades civis, militares e eclesisticas, e resultou na prprio participara da abertura de uma cova rasa, cavada
priso de, pelos menos, cem trabalhadores, alm do padre com faco: Raimundinho diz que o guerrilheiro conhecido
Maboni e do seminarista Hilrio, que foram torturados como Fogoi provavelmente Jos Huberto Bronca,
juntamente com os trabalhadores. vice-comandante do Destacamento B estaria na beira
Na sequncia, houve o Caso Cajueiro, em 1978, do rio Soror, na rea do Cajueiro. O lugar se chama
tambm de grande repercusso, que envolveu os Pimenteira. Fica nas terras do Z Almeida, fazendeiro
padres franceses Aristides Camio e Francisco Goriou, grande. Raimundinho diz que acerta o ponto. Uma verso
que foram presos pelo prprio Curi, juntamente com diz que Fogoi morrera envenenado com o pesticida
13 posseiros. Esse perodo de extrema tenso marcou Aldrim, misturado aos ovos oferecidos por uma moradora.
um confronto aberto entre Igreja e Estado. Houve a Uma patrulha, guiada por Raimundinho, teria encontrado
chacina da fazenda Ub, no municpio de Marab (PA), seu corpo e o enterrado prximo do local, justamente na
em rea de castanhais, onde atuou o pistoleiro de triste vertente de uma grota.
fama conhecido como Sebastio da Terezona. Outro Fomos Pimenteira com o ex-guia para apurar as
acontecimento que assinala essa histria de violncia foi informaes e depois retornamos ao lugar com todo
o assassinato do Gringo (Raimundo Ferreira Lima), em o aparato do grupo de trabalho. Mas, como apontar
maio de 1980, em Araguana. Gringo liderava importante o local exato, depois de tanto tempo, num ambiente
luta para conquistar o Sindicato de Trabalhadores Rurais totalmente transformado? O ex-guia gira por ali, vai e
de Conceio do Araguaia, retirando-o do controle do vem sem conseguir indicar o local exato. O grupo de
pelego Bertoldo. Recentemente, houve o assassinato trabalho delimita uma rea extensa e os gelogos passam
da irm Dorothy, que resultou no, at ento, nico o radar de solo para detectar sinais do que poderiam ser
mandante preso de toda essa srie de barbaridades, cujo restos mortais e, assim, orientar as escavaes. A mquina
percurso inclui tantos outros casos, como os assassinatos detecta tudo que slido debaixo da terra. As reas de
do advogado Paulo Fonteles, do padre Josimo Tavares, escavao so demarcadas e o grupo nutre expectativas.
dos sindicalistas Expedito Ribeiro de Souza e Joo Canuto Vrios buracos so abertos no terreno, mas tudo que o
e de tantos outros. radar de solo tinha registrado eram apenas pedras e razes.
Cerca de mil mortes nessa guerra, da qual a CPT O ex-guia fica decepcionado, e ns tambm.
destacou 50 casos ainda abertos com o trabalho de Vagas informaes, covas rasas em solo cido,
advogados. Cabe notar que, embora o contexto ditatorial submetido anualmente a inundaes, queimadas e
dos anos 1970 e 1980 seja politicamente diverso do aragens: como, por exemplo, localizar um lugar chamado
atual, quando o pas experimenta uma lenta construo Dois Coqueiros se, em vez deles, o que est l, sobre
democrtica, a regio que foi palco da guerrilha continua o pasto, so muitas palmeiras babaus, que com vigor
assombrada pelo clima de violncia. incrvel brotam em solo desmatado? Alm das provveis
operaes limpeza, algumas descritas com riqueza de
O arquivo da memria social um detalhes, precariamente evidenciadas, contudo, em relatos
saldo do trabalho da ouvidoria de ex-soldados e oficiais, que os faziam com lapsos de
Simples soldados normalmente no deviam participar de memria e voluntrios acrscimos e omisses. Tudo isso
inumaes, mas aos mateiros correspondia o trabalho fez difcil o sucesso nas buscas.
491
Percebendo que, mais do que informaes las? E os arquivos em poder do Estado, negados
acuradas, estvamos, no trabalho da ouvidoria, colhendo memria da guerrilha, quando sero abertos? No texto
narrativas e estrias, tpicas de uma tradio oral que da sentena proferida pela Justia Federal consta que
transformou a guerrilha numa lenda, permeada de os familiares que impetraram a ao contra a Unio
psicologias que combinam o fato real com elementos da sustentam, contudo, que os mortos eram identificados
imaginao social, continuamos a ouvir atentamente e a pelo Exrcito antes de serem enterrados, que mantm
registrar essas estrias. Realizamos dezenas de entrevistas arquivados os dados relativos identificao e
com esse teor, em udio e vdeo. Algumas com grande sepultamento dos mortos, compilados em um Relatrio
carga de emoo, quando, narrando atrocidades, o Oficial datado de janeiro de 1975, instrudo com o
narrador no conseguia continuar e simplesmente nome e a qualificao de todos os guerrilheiros que
chorava18. Esse material compe agora um arquivo que participaram do movimento (Salgado, 2003, p. 5)19.
est sendo sistematizado no Museu Paraense Emlio A sentena do tribunal da OEA condenou o Brasil pela
Goeldi, dentro dos critrios do Projeto Memrias violao do direito de acesso informao, uma vez
Reveladas, coordenado pelo Arquivo Nacional. que aqui se continua a negar a divulgao e a liberao
O arquivo Memria social da Guerrilha e da guerra dos arquivos com informaes sobre crimes cometidos
que veio depois saldo de um ano e meio de trabalho, durante a ditadura militar. Continua a sentena:
que atenua nosso sentimento de um resultado pouco
alentador quanto ao objetivo para o qual o grupo de imperioso indagar-se das autoridades que
reprimiram a guerrilha quem eram tais pessoas e o
trabalho fora criado, o de encontrar os restos mortais dos que foi feito de seus corpos. Em que circunstncias
guerrilheiros para que as famlias pudessem enterrar seus morreram? Onde esto arquivadas as informaes
a respeito delas? Tratava-se de guerrilheiros ou
entes queridos, conforme nossa tradio cultural. Nesses de moradores da regio? No pode o Exrcito,
termos, pfio resultado, anunciado, alis, desde o incio, por sob pretexto algum, esquivar-se de prestar tais
esclarecimentos, sob pena de confirmar ter atuado
Aldo Arantes, na condio de observador independente na ilegalidade da clandestinidade. Dispositivo legal
do grupo de trabalho: se os oficiais, que se faziam chamar algum, nem nenhuma situao de risco segurana
nacional, faculta s Foras Armadas o extermnio,
doutores, envolvidos nos ltimos momentos da represso a execuo sumria, de pessoas de sua prpria
guerrilha, na reta final, como ele se referia, de alguma nao (Salgado, 2003, p. 28).
maneira, no fossem arrolados a prestar informaes sobre
a execuo e a ocultao de cadveres. Vieses e verses
A histria, que os doutores da guerrilha quiseram Nas vrias expedies efetuadas pelo Grupo de Trabalho
enterrar, continua aberta. As secas informaes, de Tocantins, realizamos dezenas de entrevistas com mateiros,
quem realmente sabe dos fatos, como se pode obt- compelidos a servir como guias do Exrcito, ex-combatentes,
18
O medo, o espancamento por meio de socos e pontaps, a humilhao e a violncia moral foram prticas comuns contra os moradores,
pessoas simples que no tinham uma ideia clara dos motivos pelos quais estavam sofrendo tamanha violncia. Em virtude desses fatos,
ainda impera o medo entre os moradores muitos tm vergonha de relatar o tipo de constrangimento e violncia que sofreram e
poucos aceitam o uso do gravador para a coleta de depoimentos (Nascimento, 2000, p. 151).
19
E, ainda, sobre informaes retidas, continua o texto da sentena: O Relatrio da Caravana dos Familiares dos Mortos e Desaparecidos
na Guerrilha do Araguaia, que se encontra s fls. 399/424, contm diversas informaes que corroboram suas alegaes. H fortes
indcios de que as foras do governo fizeram um levantamento fotogrfico completo de todas as suas atividades no combate guerrilha
(fl. 386), desde as operaes nos acampamentos, a vida nas cidades e lugarejos, at o registro fotogrfico dos corpos de guerrilheiros
mortos (fotos de fls. 543/554), que, segundo prova testemunhal, destinava-se a abalar moralmente os presos que com eles colaboravam
(Salgado, 2003, p. 28).
492
camponeses e moradores locais20, procurando alcanar os informao, repetindo, assombrado, que Curi passava
objetivos estabelecidos pelas portarias do Ministrio da por ali, sobrevoando.
Defesa, centradas na busca dos restos mortais, e pela Outro ex-guia, buscado em Serra Pelada (PA),
sentena da juza Solange Salgado, que demanda tambm conhecido como Z Catingueiro, disse ter recebido por
as circunstncias das mortes. Essas entrevistas, realizadas telefone autorizao de Curi para revelar um ponto de
com equipamento de vdeo, renem histrias da guerrilha sepultamento em Taboco. A participao de Catingueiro
narradas por pessoas que viveram o episdio. So narrativas encheu de expectativas o grupo de trabalho, mas no
de valor documental e histrico na medida em que revelam local que ele apontou nada foi encontrado. J na oitiva de
suas feias faces, como torturas contra camponeses e o Sebastio Curi, realizada dia 28 de outubro de 2009, na 1
aviltamento dos ndios Suru, por exemplo. Vara Federal em Braslia, esse protagonista das duas guerras,
Em torno de evento to traumtico, principalmente a prpria guerrilha e a represso que se seguiu, disse que
da parte de ex-guias e soldados, colhemos muitos silncios, iria ligar para o general, coordenador da logstica do grupo
j que naquele contexto de brutalidade e barbarismo h de trabalho, para comunicar a autorizao dada a Z
fatos inconfessveis. Entre os processos de indenizao Catingueiro para que este finalmente passasse informaes
deferidos pela Comisso de Anistia, do Ministrio da Justia, seguras sobre inumaes. Curi, mesmo debilitado, ainda
h casos chocantes: exerce influncia sobre seus antigos comandados, muitos
tratados na taca, nome regional para surra. Outros
O pai da Requerente, Frederico Lopes, foi alcanaram o status de compadres e amigos e assumem
preso e levado para Araguana/TO. Os soldados
tocaram fogo em sua casa e em tudo que
dvida de gratido por concesses, de terra inclusive, e
possuam, obrigando a famlia a se mudar para favores proporcionados por esse chefe poderoso.
a cidade e a abandonar a sua terra. Ainda, o
seu pai foi barbaramente torturado, o que o
O ex-guia Pedo inclui-se na categoria dos
inabilitou para o trabalho. Alm disso, enquanto que voluntariamente aderiram caada empreendida
o seu pai esteve preso, a Requerente e sua irm,
Maria Creuza Morais da Silva, foram obrigadas
aos guerrilheiros. Entre os ex-guias h uma categoria
pelos soldados a trabalhar para o exrcito no diferente, daqueles mateiros obrigados a emprestar seus
alojamento, sofrendo inclusive abusos sexuais
(Brasil, 2009).
conhecimentos sobre a mata, e alguns at constrangidos
ao horror de cortar e carregar cabeas. Pedo tornou-
O mito do Curi, uma espcie de semideus para se, depois da guerrilha, a partir de 1975, uma espcie
muitos que se subordinaram s suas ordens e ainda hoje de delegado e prefeito de So Geraldo do Araguaia. De
lhe so fiis, estabelece um obstculo para revelaes. fato, um preposto de Curi, atualmente fazendeiro, que
Alguns ex-guias do Exrcito mantm uma relao de tem rechaado qualquer possibilidade de contato com o
cumplicidade e obedincia para com ele. Curi uma grupo de trabalho. Outro ex-guia, o Z Guedes, quando
onipresena nesse meio. Fomos a Esperantina, no estado perguntado sobre um suposto cemitrio prximo casa
de Tocantins, tentar informaes com Arlindo Balela, um do Curi, desconversou e disse estar meio surdo e
antigo adepto de Curi. Encontramos um senhor senil, meio cego. Mas parece que apenas quando a questo
solitrio, em uma casa imunda, que nos negou qualquer diz respeito a um possvel segredo de Curi, pois, na
No incio dos anos 1990, buscando informaes para sua dissertao de mestrado, Romualdo Pessoa Campos Filho colheu vrios
20
depoimentos de moradores presos e brutalmente torturados pela represso guerrilha. Esses depoimentos, que informam o livro que
resultou dessa pesquisa (Campos Filho, 1997), coincidem com relatos que obtivemos sobre tortura na base militar de Xambio, assim
como execues ocorridas ali e no interior da mata a partir do final de 1973, quando se iniciou a terceira campanha.
493
entrevista, o ex-guia revelou que seus sentidos no estavam Com relao quele grupo de ex-guias, percebemos
to deficientes assim, ao continuar a conversa e catar no que as circunstncias e os processos do presente influenciaram
cho um pequeno papel de cigarro. O ex-guia Veloso, por muito tanto a forma quanto o contedo das narrativas.
sua vez, definiu a afamada crueldade de Curi, que sustenta Vimos, na prtica, como a memria de cada um, ou sua
o mito e seu poder: (...) no lugar do corao, Curi tem revelao, pode ser afetada pelas circunstncias, psicologias
uma bola de arame farpado (depoimento pessoal, 2010). e interesses dados pelo momento presente. Ecla Bosi,
Quem faz o que ele no quer entra na peia, outro nome escrevendo sobre pesquisa em memria social, observa
regional para surra. E o vigor da regra parece perdurar. que tal como o tempo social acaba engolindo o individual, a
Na atmosfera de um acontecimento histrico que percepo coletiva abrange a pessoal, dela tira sua substncia
ainda reverbera fortemente, colhemos alguns relatos singular e a estereotipa num caminho sem volta (Bosi,
eivados de interesses ligados aos processos em curso. 2003, p. 53). Importante nesse ponto, para a interpretao
Em 2009, a Comisso de Anistia tomava depoimentos que desejamos fazer, no tratar as reticncias, omisses
para efeito de reparaes e indenizaes21. Certa ocasio, e verses contraditrias como meras subjetividades. Em
na sede da Associao dos Torturados da Guerrilha vez disso, importante relacionar narrativa e grupo de
do Araguaia, em So Geraldo do Araguaia, com a pertencimento, dentro das circunstncias de uma histria
presena de representante da Comisso de Anistia, um que continua aberta, na medida em que esto abertas
encontro foi organizado com ex-guias, muitos dos as possibilidades de punies e reparaes. Para Bosi
quais nutrindo expectativas quanto possibilidade de (2003, p.54), o conjunto das lembranas tambm uma
serem favoravelmente enquadrados no processo das construo social do grupo em que a pessoa vive e onde
indenizaes. Cerca de cinquenta ex-guias compareceram coexistem elementos da escolha e rejeio em relao
e muitos fizeram o seu relato. Naquele encontro, do ao que ser lembrado. Assim, algumas narrativas no se
ponto de vista dos ex-guias, algumas coisas valiam a referem apenas ao fato em si, mas dizem respeito tambm
pena ser ditas, enquanto outras nem tanto, e os ex-guias ao vnculo existente entre memria, pertencimento de
mediam seus relatos conforme essa avaliao interativa. grupo social e consequncias de sua revelao.
O grau de envolvimento com os militares, na caada Essas percepes encontram eco nas observaes
humana que se tornou a guerrilha, parecia ser um dado do socilogo Maurice Halbwachs, para quem memria
que contava naquele contexto. Quase todos afirmaram , antes de tudo, memria coletiva, assim como nas do
ter sido fortemente constrangidos a colaborar como psiclogo Frederic Bartlett, que viu os processos mentais
guias: era aceitar ou entrar na taca. Alguns, valorizando de lembrana e esquecimento como decisivamente
atuaes, afirmaram ter viajado de helicptero, mas se influenciados por interaes sociais. Como nos informa
contradisseram depois, avaliando que voar de helicptero Myrian Seplveda dos Santos (2003, p. 22), ambos os
junto com os militares no somava para os propsitos de autores tiveram o mrito de mostrar, pela primeira vez, a
uma possvel indenizao. Fato foi que muitas contradies importncia de estruturas coletivas e processos interativos
se tornaram patentes naquele encontro. nas formas individuais de lembrar.
Em 18 de junho de 2009, em ato pblico, a Comisso da Anistia do Ministrio da Justia anunciava, em So Domingos do Araguaia,
21
a concesso de anistia poltica a 44 camponeses perseguidos pela represso militar durante a Guerrilha do Araguaia. Os camponeses
anistiados recebero uma prestao mensal vitalcia no valor de dois salrios mnimos, alm de valor retroativo que varia entre R$ 80
mil e R$ 142 mil. Entre os processos indeferidos pela Comisso da Anistia esto os de soldados que faziam o servio militar obrigatrio,
situao que a Comisso considerou no justificar anistia (Ministrio..., 2009).
494
com fome, pediam de comer e eu dava. A eles

Relatos da guerrilha procuraram se eu dava coisas para eles. Eu disse
que dava no. O que eu fazia com eles era s
quando eles chegavam com fome e eu dava de
O suplcio do campons Dotorzinho comer, mas mantimento eu no dava no. (...) A
na base de Xambio toda manh era uma pisa, uma taca, com talo de
coco. Ns ia cortar os talos de coco, cada um, para
Em agosto de 2010, encontramos o campons Dotorzinho cada um cortar a sua. Depois era aoitado com ela
roando a terra numa fazenda no municpio de So mesmo (depoimento pessoal, agosto de 2010).
Domingos do Araguaia. Ele nos contou o que sofreu na
base militar de Xambio: Obrigado a se deitar ao lado da cabea decepada do
guerrilheiro Ari, Dotorzinho confirma a histria contada
Fiquei 23 dias preso, apanhando, bebendo gua de pelo campons Beca:
sal, no formigueiro, junto com o Beca, Z Maria,
Z Novato, Domiciano, Z Graa e Raimundo
Preto. Fui preso em casa, no Centro Novo, A, quando tava com trs dias, chegou essa cabea.
regio do Cajueiro, na regio de So Geraldo. Ei, Dotorzinho, vem c. Olha aqui. A cabea
Chegaram s 10 horas do dia e a procuraram se tava bem no cho. Deita do lado da cabea,
o pessoal da mata tinha andado na minha casa. Eu bem encostadinho. Tudo que eles mandavam
disse: Andaram... (...) A eles falaram se eu podia fazer, tinha que fazer. A mandaram abrir o olho
dar uma palavra na Base de Xambio. Eram mais da cabea com o dedo. Fedendo. A perguntaram
ou menos uns 15 soldados, sargento, o doutor se eu conhecia aquele cara. Eu falei que conhecia,
chefe, o doutor Jardim. Eu disse: Posso sim. que era o Ari. Eles falaram: seu grande amigo.
A telefonaram para l, para o helicptero me No, eu disse. Eles andaram l em casa, mas meu
buscar. (...) Troquei a roupa, foi quando ligeiro amigo no era no. T conversando ainda cara!
o helicptero veio chegando. Embarquei no A comearam a meter o brao de novo, e pontap
helicptero. Quando chegou em Xambio, com a de todo jeito, me chutando. Dr. Csar, Magno,
distncia de uma braa do cho, me empurraram. Romeu, o Magro e o Joo. Pararam e mandaram
J ca nos ps dos homens. Do Romeu, do Magno eu pegar a cabea e colocar l no buraco. O
e do Joo. Esses eram que ficavam na base s buraco era bem ao lado da cerca de arame da casa
pra bater em gente. Da pra c eu no falei mais que a gente ficava prisioneiro, o curral. Nessa hora,
nada. Era s na pancada e na pesada (depoimento o Beca no estava. A, quando eu botei a cabea
pessoal, agosto de 2010). do Ari no buraco, a chamaram o Beca. A o Beca
veio e perguntaram para ele se conhecia aquele
cara. Ento voc no conhece seu amigo? O
Sentado, nu, sobre um formigueiro e obrigado a Beca disse que no conhecia. Conhece ou no
cortar o talo com que ia ser aoitado, Dotorzinho pagou conhece? E perguntaram pra mim. Eu disse, fulano
de tal. E a mandaram eu e o Beca botar terra por
caro por ter conhecido os guerrilheiros: cima, j tinha mosca voando, tava fedendo, tava
podre demais. A deixaram l, da pra c eu no
sei se botaram outra cabea. Foi o Beca que cavou
A, quando eles me deixaram estirado no
o buraco, era fundo, mais ou menos um metro
cho, assanharam um formigueiro de fogo, me
e meio (depoimento pessoal, agosto de 2010).
mandaram tirar a roupa e me fizeram sentar
dentro, amarrado, com os braos pra trs, pra
no matar nenhuma. O formigueiro era desse
tamanho assim, no p do pau, e me fizeram nu,
Motorista de Curi fala de viagens complicadas
amarrado no pau, abraado pra trs. E a eles foram carregando sacos fedorentos numa Rural.
me identificar. Eles sentaram l fora, eu sentado no
formigueiro, e o dr. Csar foi me identificar, me
Valdim Pereira de Souza foi entrevistado em So
investigar. Foi procurar se eu conhecia o pessoal Geraldo do Araguaia, em maio de 2010:
da mata, se eu conhecia eles. Eu falei que conhecia
um bocado deles. Eu conheci o Ari, conheci a
Dina, conheci o Osvaldo, e conheci Daniel, o Minha participao foi a partir de junho de
Peri e o Batista tambm. A urea e a Walquria. 1975, como militar, soldado, como motorista.
Esse pessoal que eu conheci. A eles perguntaram Transportei tropas em caminhes do Exrcito,
o que eu fazia com eles. S que eles chegavam s vezes tambm em carro particular, militares
495
fardados e paisana. (...) Fiquei na regio at 1986. de helicptero da comunidade de informaes

O que eu sei o que eu vi. Participei, em 1975- que sabiam onde estavam enterrados. Eles
1976, de algumas viagens meio complicadas, fora pegavam esses corpos, metiam em sacos e
de hora, com o Dr. Luchini, que chegava no quartel levavam para a Serra das Andorinhas, sempre
barbudo. Lugar prximo a Brejo Grande, outro no mesmo local de difcil acesso. Eu mesmo
lugar perto da balsa. Ia sempre com ele, em carro transportei para a Serra das Andorinhas vrios
descaracterizado. Numa dessas viagens, j em 1976, corpos, vrias vezes. A gente tocava fogo e
ns chegamos em Bacaba, noite, e estava l o voltava para Xambio e de l via a fumaa. Foi
Santa Cruz. Era outro o nome que ele usava que eu na parte norte da Serra das Andorinhas. Isso foi
no lembro. E eles colocaram dentro do carro um em janeiro/fevereiro de 1975. (...) Eu falo isso
saco do Exrcito, saco VO, verde oliva, uma lona, at com certa emoo. Eu sou evanglico. Se
colocaram na Rural e aquele material fedia muito. eu disser que no sei, que eu no vi... Porque se
Aquele cheiro horrvel dentro do carro. Passamos eu estiver mentindo no para o general... mas
direto no quartel e a balsa j estava esperando em para Deus. As coisas mudaram de tal forma
Marab, meia-noite, e foi levado esse material para que eu no achei o local. Mas o local numa
a casa azul. Nessa primeira viagem, era um saco. regio da serra, na parte mais norte da serra,
Na base de Bacaba. O lugar era atrs da casa onde onde os paredes so abruptos (Pedro Cabral,
morava o Santa Cruz. Isso foi em 1976, no primeiro depoimento pessoal, 2010).
semestre. Depois eu fiz mais duas viagens. Ento
atravessamos e levamos esse saco para a casa azul,
onde j tinha um pessoal l para receber. Naquele
Os ndios Suru entraram na guerra
tempo, a gente era cego, surdo e mudo. O Luchini Um documento impressionante foi-nos fornecido pela
foi junto s a primeira vez. Depois eram outras
pessoas. Eu j imaginava que fosse osso humano.
antroploga Iara Ferraz. Trata-se de transcrio de
A gente no bobo. Tinha sempre uma pessoa entrevista feita em 1975 com os ndios Suru, na qual
que abria o porto para a gente entrar. Era o p
na cova. Era funcionrio do DNER. J morreu.
eles relatam como foram utilizados pelas foras de
Curiosamente, ele disse: Sabe o que isso a? represso para caar guerrilheiros na floresta e depois
osso de gente e jogado l no inflamvel. [O
inflamvel] uma regio no rio Tocantins. Era o
cortar cabeas:
lugar mais fundo do rio. Tinha at uma lenda de
Boina, de cobra grande. (...) Nessa primeira vez
Como foi que Suru entrou?
era um saco maior, das outras duas os sacos eram
menores. Sempre de Bacaba. Acho que no primeiro Rapaz, vocs conhece a mata, no ?
saco tinha mais de uma pessoa. (...) Curi falava:
Ns conhece.
Voc no viu nada, cego, surdo e mudo. Todas
as viagens foram em 1976. Em 1975 a gente levava Voc sabe onde t terrorista?, ele falou.
prisioneiros (Valdim Pereira de Souza, depoimento
Sabe sim!
pessoal, maio de 2010).
(...)
A operao limpeza, segundo o coronel Eles matava e muito... Carregava pro So
Raimundo, enterrava l, bem a. Mas j carregou
Cabral osso, levou agora o osso deles. Era homem,
O coronel aviador Pedro Cabral relata viagens de helicptero mulher, tudo misturado. A Dina... diz que era
baiana, sei no. Ela foi pegada l em Marab. Ela
transportando corpos para serem queimados na Serra das ia atravessar pro So Flix. O Osvaldo morreu
Andorinhas. Mas nunca precisou o local exato. Ele afirma sozinho, foi ali. Ns vimo l no So Raimundo,
morto, pendurado pela perna no haricopi, por
que viu desenterrar Chica, a japonesinha, em Bacaba: corda. Rapaz! Era fogo mesmo!
(...)
Quando chegou o final da caada humana que Ns tava l no So Raimundo. Matava primeiro
houve aqui, faltava um guerrilheiro que no se e depois cortava o pescoo, soldado. Arekasu
conseguiu pegar, que foi o ngelo Arroyo. Veio mesmo, ele ajudou ele. Arekasu pegou na mo
a ordem de Braslia para encerrar operaes e dele pra cortar... mas feio, rapaz! Foi ele mesmo
fazer uma limpeza para evitar que jornalistas que mandou: cortava a cabea e levava pro So
e outros interessados viessem a descobrir os Raimundo pra tirar retrato.
corpos. Eu fui o ltimo a sair daqui. A gente saa (...)
496
Foi tudo preso, tudinho, tudinho... Bateram, forma digitalizada. Esse arquivo deve estar conectado com
bateram... A ns amarremo ele no pescoo, e assim
na mo, cruza at aqui nas perna. A amarremo l
outros arquivos e centros de memria que j existem ou
em cima. A o cara tava altura conversando. que esto sendo implantados no pas, como o caso do
O que tu deu pra ele? Memorial da Anistia Poltica, em Belo Horizonte. E deve
(...) Soldado falou pra ele e levou logo peixeira na articular-se com esforos de preservao da memria que
testa dele. Tec! Da comeou:
esto sendo empreendidos na regio, como so os casos
Conta a, nego velho, pra mim o que que tu deu? do pequeno Museu da Guerrilha do Araguaia, em So
Ele convidou pra mim fazer paiol na mata pra Geraldo do Araguaia, e do Instituto de Apoio aos Povos
ele, paiol de farinha, ele disse.
do Araguaia (IAPA), em Xambio.
Foi!! Como que tu tava mentindo pra mim, A Guerrilha do Araguaia marca um forte fator de
rapaz? Tu disse que num teve nada! (...) A bateu
com o chicote, t... t... A ele contou tudinho22.
identidade na regio. Xambio, So Geraldo do Araguaia, So
Domingos do Araguaia, Brejo Grande, Palestina e mesmo
Consideraes finais Marab tm identidade para com a guerrilha e suas vrias
A guerrilha e o que a ela se seguiu so histrias abertas, histrias e personagens. Quando as pessoas rememoram
conforme o conceito de Walter Benjamin, no sentido de o fato, que significou para elas uma experincia psicolgica
que seus fatos, memrias e interpretaes ensejam novas profunda, parecem praticar uma espcie de terapia, ao jogar
histrias. Qui as memrias e as interpretaes ensejem luz sobre uma histria que pblica e tambm biogrfica.
aes capazes de romper o continuum da histria. So Alguns se emocionam, no conseguem continuar quando
muitos os que no se conformam com o curso linear falam de atrocidades. Outros mostram certa perplexidade,
e devastador do progresso, assim como ele avana na porque depois da guerra, que como eles se referem
regio que foi palco da guerrilha e continua sendo palco guerrilha, houve outra guerra, que mobilizou intensa
de uma guerra. A segunda guerra, conforme nos ensina represso contra posseiros, sindicalistas, advogados e
dona Domingas, antiga moradora de So Geraldo do religiosos, com muitos mortos e desaparecidos. E estes,
Araguaia, impe uma rotina de sofrimentos na forma de que somam centenas, ficaro esquecidos? O progresso
perseguies, ameaas, trabalho escravo e assassinatos, avana na regio e a seus patrocinadores interessa olhar s
para quem se coloca no caminho do progresso. para frente. Para a maioria da populao, a realidade hoje
Uma segunda guerra sucedeu a guerrilha, inclusive continua ligada ao passado, e no boa.
com severa represso da sua memria. A recuperao da Fatos infames da guerrilha, como torturas, execues,
memria social da guerrilha e da guerra que veio depois, ocultao e eliminao de restos mortais, dificilmente sero
assim como a difuso desse conhecimento, agora intento confessados por quem os cometeu, mesmo porque
do arquivo organizado no Museu Paraense Emlio Goeldi, ningum obrigado a criar provas contra si mesmo.
que vem se somar ao esforo de jornalistas, pesquisadores Entretanto, sentindo-se acobertado por uma polmica Lei
e outros centros de memria. Esse artigo procura trazer da Anistia, o tenente Vargas, condecorado com a Medalha
tona o trabalho que gerou um acervo e os contedos do Pacificador com Palma, mostra recorte de jornal onde
de algumas das suas narrativas. A ideia do arquivo ele conta detalhes da tortura que comandou sobre um
disponibilizar para o pblico em geral todo o material campons. Numa oitiva em So Geraldo do Araguaia,
coletado entrevistas, mapas, croquis e documentos , em o tenente contradisse o coronel aviador Cabral, a quem
Trechos de entrevista colhida pela antroploga Iara Ferraz, provavelmente em 1985.

22
497
chamou de mentiroso, dizendo que no havia pista de BOSI, Ecla. O Tempo Vivo da Memria. Ensaios de Psicologia
Social. So Paulo: Ateli Editorial, 2003.
pouso na base de Bacaba. Contudo, imagens do Landsat,
de 3 de agosto de 1973, mostram que a pista estava l. O BRASIL. Ministrio da Justia. Comisso de Anistia. Processos de
Deferimento. Braslia: Ministrio da Justia, 2009.
tenente diz que Curi era prximo dele: ele adorou meu
grupo. Diz que est escrevendo um segundo livro, onde BRASIL. Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidncia
da Repblica. Direito Memria e Verdade. Comisso Especial
revelar coisas inditas. A guerrilha continuar ensejando sobre Mortos e Desaparecidos Polticos. Braslia: Secretaria Especial
estrias duvidosas. de Direitos Humanos, 2007.
O tempo, covas rasas, corpos insepultos conforme CABRAL, Pedro Corra. Xambio: Guerrilha do Araguaia. Rio de
certos relatos, diversionismos preparados pelas equipes Janeiro: Record, 1993.
militares, informaes no gnero eu ouvi dizer, meras CAMPOS FILHO, Romualdo Pessoa. Guerrilha do Araguaia: a
suposies, mas tambm constrangimentos, medos, esquerda em armas. Goinia: Editora UFG, 1997.
interesses pessoais, intrigas, omisses, imprecises e CARVALHO, Luiz Maklouf. O coronel rompe o silncio. Rio de
reticncias minam a confiabilidade de muitas das narrativas Janeiro: Objetiva, 2004.
colhidas de mais de cem colaboradores ouvidos sobre CLOVIS, Moura. Dirio da Guerrilha do Araguaia. So Paulo:
os supostos locais de sepultamento e as circunstncias Editora Alfa-Omega, 1985.
das mortes. preciso relativizar as falas, assim como FIGUEIRA, Ricardo Rezende. A justia do lobo: posseiros e padres
importante enquadrar as narrativas no contexto histrico do Araguaia. Petrpolis: Vozes, 1986.
de agora, que confere novos significados aos fatos. Os FONTELES FILHO, Paulo. A Primeira Caravana ao Araguaia. Parte
filtros ideolgicos de hoje so diferentes daqueles que I, 16 fev. 2011. Disponvel em: <http://paulofontelesfilho.blogspot.
com/2011/02/primeira-caravana-ao-araguaia.html>. Acesso em:
foram impostos na taca e na peia, quarenta anos 16 fev. 2011.
atrs. De um episdio to traumtico, que vincula
GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. So Paulo: Companhia
memria e ideologia, memria e interesses, memria das Letras, 2002.
e receios, inclusive quanto a circunstncias do presente,
GRABOIS, Victria. A verdade sob os refletores. Jornal do Grupo
difcil extrair uma Verdade, assim, com o V maisculo. Tortura Nunca Mais, Rio de Janeiro, ano 24, n. 72, jul. 2010.
Conseguimos vrias verses e sabemos de algumas coisas. Disponvel em: <http:/www.torturanuncamais-rj.org.br/jornal/
gtnm_72/artigo.html>. Acesso em: 10 jan. 2011.
A guerrilha existiu e nela foram cometidos crimes ignbeis.
Mas no sabemos se haver meios legais para punir os LOWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incndio. Uma leitura
das teses Sobre o conceito de histria. So Paulo: Boitempo, 2005.
torturadores. Restar a indignao.
MINISTRIO da Justia concede anistia a 44 camponeses
perseguidos pela ditadura durante a Guerrilha do Araguaia. So
Referncias Paulo, 18 jun. 2009. Disponvel em: <http://noticias.uol.com.br/
ALVES, Sezostrys. Documentos comprovam o sistema de controle cotidiano/2009/06/18/ult5772u4396.jhtm>. Acesso em: 9 dez.
imposto aos camponeses do Araguaia. Blog do Paulo Fonteles 2009.
Filho, 25 nov. 2010. Disponvel em: <http://paulofontelesfilho.
blogspot.com/2010/11/documentos-comprovam-o-sistema-de. MORAIS, Tas; SILVA, Eumano. Operao Araguaia: os arquivos
html>. Acesso em: 15 jan. 2011. secretos da guerrilha. 2. ed. So Paulo: Gerao Editorial, 2005.
AVELLAR, Jos Carlos. A teoria da relatividade. In: NOVAES, Adauto NASCIMENTO, Durbens Martins. A Guerrilha do Araguaia:
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SENAC, 2005. p. 337-373. Planejamento do Desenvolvimento) Universidade Federal do
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BENJAMIN, Walter. Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre
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prefcio Jeanne Marie Gagnebin. So Paulo: Brasiliense, 1994. Global, 1986.
498
QUADROS, Vasconcelo. Araguaia. Tenente admite na Cmara que SANTOS, Myrian Seplveda dos. Memria coletiva e teoria social.
torturou guerrilheiros. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 fev. 2009. So Paulo: Annablume, 2003.
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SALGADO, Solange. Sentena: Guerrilha do Araguaia. Indicao
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Judicirio. Justia Federal de 1. Instncia. Seo Judiciria do Distrito
Federal. 30 jun. 2003. Disponvel em: <http://www.derechos.org/
nizkor/brazil/doc/araguaia.html>. Acesso em: 25 nov. 2009.
499

Rodrigo Corrêa Diniz Peixoto-Memória Social Da Guerrilha Do Araguaia e Da Guerra Que Veio Depois

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Bol. Mus. Para. Emlio Goeldi. Cienc. Hum., Belm, v. 6, n. 3, p. 479-499, set.-dez.

Memria social da Guerrilha do Araguaia e da guerra que veio depois

Rodrigo Corra Diniz Peixoto

Introduo que acatou ao movida por familiares de desaparecidos

Em meados de 1973, o presidente Emlio

A carta, na escala 1:200.000, mostra detalhes da

A sentena da juza, quando pauta elementos Uma histria aberta

O campo de concentrao de Xambio sido enterrados guerrilheiros e camponeses, embora as

com fome, pediam de comer e eu dava. A eles

fardados e paisana. (...) Fiquei na regio at 1986. de helicptero da comunidade de informaes

Trechos de entrevista colhida pela antroploga Iara Ferraz, provavelmente em 1985.

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