Filosofar e Educar I
Filosofar e Educar I
Filosofar e Educar I
&
EDUCAR
Inquietaes Pensantes
2a Edio
FILOSOFAR
&
EDUCAR
Volume I
INQUIETAES PENSANTES
2a Edio
SUMRIO:
Prefcio
O livro, ora editado, tem como base o trabalho de pesquisa do autor desenvol-
vido no perodo de 1999-2002, a partir do projeto Regimes Epistemolgicos nas
Pesquisas em Educao: sentidos, contextos, validades e possibilidades.
A publicao constitui-se de palestras, trabalhos apresentados em encontros a-
cadmicos, participao em mesa-redonda, artigos publicados em revistas e reflexes
desenvolvidas ao longo do projeto de pesquisa.
Dante Galeffi caminha em uma aventura aberta ao seu acontecimento e suspei-
ta da prpria filosofia, enquanto conhecimento institudo. No pretende substituir a
que est instituda por outra filosofia, mas na tenso instituinte-institudo aprender
sempre mais o filosofar, ou seja, sair da nominao substantiva para a ao do verbo
que, como afirma o autor, uma realizao perene do que sem ocaso, nunca teve
origem.
Nesse sentido, enfatiza o estado aprendente como atitude fenomenolgica
permanente, implicando na necessidade, no caso da educao, da ao do educar.
Aprender passa a ser o mesmo que aprender a viver junto, aprender a fazer, a-
prender a pensar, aprender a ver, aprender a falar, aprender a escrever, aprender a
aprender.
A vida em primeiro lugar, o que nos dirige para um educar com a vida. Isto
significa aprender a ser, isto , aprender a cuidar da vida na vida, com a vida, em
vida.
O autor desenvolve uma crtica radical cincia, afirmando que a tragicidade
da espcie humana continuar vinculada arcaica luta de opostos, se a atual forma
crtica da produo do conhecimento dominante no se dedicar a criar novas possi-
bilidades aprendentes.
Estas novas possibilidades encontram caminho na abordagem poemtico-
pedaggica que se define como um fazer inventivo, que inventa no prprio ato do
fazer.
Prope ento o caminho fenomenolgico-hermenutico prprio e apropriado,
baseado em Husserl, em Heidegger e em Gadamer, mas que no se esgotam neles.
com esse caminho que emerge a diferena para propiciar jogos ainda no jo-
gados e colocar a pedagogia da diferena para problematizar o discurso pedaggico
contemporneo.
Homem e ser encontram-se imbricados no sem-fundamento, pois um e outro
devem responder ao apelo da igualdade originante.
5
1
TENSES FILOSFICAS CONTEMPORNEAS:
UMA DESCRIO EM PERSPECTIVA1
1
Palestra realizada na V Semana de Filosofia promovida pelo Centro Acadmico de Filo-
sofia e pelo Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da
UCSal, no dia 06/06/2002. Texto publicado na Revista GERE 6, 2002.
7
preciso, agora, saber em que medida esta afirmao faz sentido para ns. Po-
demos, de forma filosfica, dizer tal coisa sem uma concreta argumentao
discursiva? Esta afirmao de per si universal e verdadeira, portanto incontes-
tvel?
assim que, tanto para Nietzsche como para Heidegger, uma concilia-
o dialtica entre as polaridades se torna risvel. No se trata, em base dife-
rena descrita, de conciliar e superar a luta dos opostos, mas de compreender
que o pensar mesmo em sua constituio depende deste jogo tensivo dos o-
postos. Deste modo, a diferena pensada como des-tituio do carter defini-
tivo da presena torna-se essencial ao pensamento para que este se constitua
como pensamento crtico (Vattimo, p. 12). E isto contra qualquer tentativa
de pensamento dialtico conciliador; contra igualmente ideia de uma ordem
13
Porque sei que este discurso tambm uma aventura aberta ao seu a-
contecimento, encerro esta fala com a convico de que precisamos, para a-
prender a filosofar, comear por suspeitar severamente da prpria filosofia em
sua inteno instituda, no para depor um rei e substitui-lo por outro, mas
para abandonar em definitivo qualquer pretenso de sobre-determinao do
ser-a, e para que se aprenda a alcionizar sempre mais o filosofar como realiza-
o duradoura do que, sem ocaso, nunca teve origem. E as tenses sociais?
Bem, estas dependem de uma outra atitude aprendente para serem equaciona-
das em favor de uma revoluo cultural de longo alcance. De novo o papel do
filsofo parece ser o de ultrapassar-se no movimento de seu prprio pensar. O
resto apenas conversa para fazer dormir o menino assustado. Vamos, ento,
ouvir as tenses porventura provocadas a partir da minha fala infilosfica. O-
brigado pela ateno.
Referncia Bibliogrfica:
2
DELINEAMENTOS DE UMA FILOSOFIA DO
EDUCAR POLILGICA: NO CAMINHO DE UMA
ONTOLOGIA RADICAL2
Introduo
2
Trabalho apresentado no I Encontro do GT de Filosofia da Educao do Norte e Nor-
deste; realizado em Recife, de 4 a 6 de setembro de 2002, promovido pela UFPE.
18
Pelo visto ficamos ainda no que pode ser tomado como simples produ-
o de sentido singular. O nosso ponto de radicalidade pode fazer pensar que
permanecemos no limiar das filosofias da conscincia. Afinal, como usar
Husserl como inspirao e no praticar uma estrita filosofia da conscincia? A
questo, nos parece, tangencia o conceito de conscincia e suas implicaes
de sentido j institudos historicamente. Entretanto, podemos ainda tomar a
conscincia como pertencente ao campo pr-reflexivo, o que nos permite sair
da ideia de conscincia como conscincia intelectual. Deste modo, ousamos a sa-
da, para ns uma evidncia, do ego transcendental, isto , no aceitamos co-
mo dada a existncia do eu natural e nem do eu transcendental, mas apenas
abarcamos a egoidade e a naturalidade enquanto nos inscrevemos no fluxo
da conscincia em seu infinito campo de possibilidades focais. A conscincia,
assim, sempre uma implicao existencial, ou seja, pressupe o ser capaz de
conscincia, a partir de uma conscincia de conscincia. Deste modo, o im-
24
gio de uma das partes sobre a outra. Assim, entre o ser e o pensar passou a
existir uma relao de derivao fundada em uma igualdade desigual, porque,
na identidade da relao, uma das partes acabou aparecendo como dominante e
a outra como dominada.
O pensar mesmo ele mesmo o ser. Isto em hiptese alguma quer di-
zer que um deriva do outro, mas que ambos se encontram na relao de co-
pertencimento originrio e igual, isto , ambos se do a saber um pelo outro
enquanto so o mesmo, ou melhor, se do a saber no pensar como ser-no-
mundeo-com. Esta proposio pode parecer arbitrria e enigmtica, mas ela est
dizendo que o educar e o filosofar so apenas distintos como traos de uma
mesma identidade: a relao de co-pertencimento. Esta afirmao nos abisma
em um universo de sentidos ainda desconhecidos, o que nos convoca a apren-
der a aprender a ser-pensante.
porque ele mesmo um modo de fazer arte. A filosofia, portanto, nesta nossa
visada, um modo peculiar de fazer arte. Este modo peculiar encontra-se fun-
dado na prpria necessidade humana de fazer e de agir para poder-ser.
isto o que queremos que seja esta filosofia do educar polilgica ligei-
ramente delineada: uma abertura aprendente lanada na infinita investigao
criadora de si mesmo. Isto de espantar at mesmo os mais cticos interlocu-
tores, ainda mais espantar os que se sentirem convocados a este mergulho
radical nas absolutas e turvas fontes do conhecimento humano. Educar, en-
to, uma questo de raa e grima, sendo a grima a forja necessria para o sur-
gimento de realizaes do prprio ser na incompletude do acontecimento in-
cessante da vida-sendo: um ato de metaconscincia crtica no acontecimento
transcendente de nosso ser de passagem. O trabalho, ento se mostra longo e
rduo, no sendo larga a passagem que pode levar ao ego transcendental e
sada do mesmo em si mesmo, sem que haja a perda de sua diferena ontol-
gica originante. Eis, talvez algo digno ainda para poder merecer a teno filo-
sfica dos que se buscam a si mesmos. Um convite ao pensar sempre aberto
ao inesperado e ao indizvel. Entretanto, um pensar capaz de se indignar pela
perpetuao do estado humano de submisso e de bestialidade. Um pensar
que tambm um saber-ser prprio e apropriado, pela desapropriao de si
mesmo e do mundo. Um pensar livre de donos e comandantes: absoluto de-
sinteresse pela vida dissociada.
Referncias
3
EDUCAO: TECENDO SONHOS, HUMANI-
ZANDO O MUNDO HOMENAGEANDO PAU-
LO FREIRE 3
3
Trata-se do tema da mesa-redonda includa nas atividades da VIII Jornada Pedaggica do
SIMPRO-BA, em 20/09/2002.
36
Entre outras coisas, as palavras de Paulo Freire indicam para uma dife-
rena de atitude diante dos fenmenos que nos constituem. Trata-se de sair-
mos da atitude ingnua em que comumente nos inserimos e adentrarmos na
atitude crtica. preciso no apenas mirar o sentido do educar, mas ad-mirar o
campo da mira em sua ecloso e recolhimento. Ou seja, preciso que, alm de
professores, possamos ser tambm educadores. preciso, assim, que apren-
damos a ad-mirar o que se encontra na mira do nosso desejo: o educar. Portan-
to, no basta apenas mirar, como diz Freire, preciso, antes de tudo, ad-mirar
o educar, isto , saber-ser prprio e apropriado partir sempre do acolhimento de
si mesmo, e em si mesmo permanecer alm de si mesmo. O ad-mirar implica o
ser que ns mesmos podemos ser na clareira do evento humanidade. E porque
no sabemos ainda ad-mirar, apenas miramos o educar na perspectiva da pro-
fisso: tornamo-nos meros professores de conhecimentos adquiridos pela hu-
manidade ao longo de sua historicidade dominante. E a educao humana,
onde fica a educao humana? Ou melhor, o educar, onde fica ele? Somos
professores ou somos educadores? Ou ainda, somos professores- educadores?
Sabemos apenas mirar, ou sabemos j ad-mirar? Ou ainda, sabemos mirar-ad-
mirando?
Para que a expresso aprender a ser se torne algo vivo e vital, preciso
considerar as coisas para alm do ego. A impessoalidade deste aprender a
chave de sua perene singularidade. O acontecimento da vida no precisa de
explicaes, e nem melhor entendido por meio destas. O acontecimento da
vida da ordem do aprender a ser. Ora, o que isto significa? Significa, entre ou-
tras coisas, na inspirao de Paulo Freire, um cuidado radical com o aconteci-
mento da vida em sua florescncia e fenecncia infindveis. O aprender a ser,
assim, no reprope egosmos condicionados, mas, pelo contrrio, convoca
para uma revoluo ontolgica no mbito do ser-coletivo que somos como
ente-espcie humanidade ente ontologicamente livre, porm onticamente
determinado pela historicidade do sensvel: mbito do vivo.
Talvez seja desagradvel ouvir isto. Mas, o que diria Paulo Freire em
uma ocasio semelhante? Por ventura falaria ele de consolaes metafsicas, ou
convocaria para aes revolucionrias? E como possvel ser revolucionrio,
no sentido freireano, se apenas poucos so os senhores e muitos os escravos?
Em homenagem a Paulo Freire, afirmo aqui uma pedagogia da vida, e no uma
simples pedagogia de bancos escolares. Neste sentido, a escola deve ad-mirar a
vida para realizar sua transformao. Entretanto, isto , sem dvida, uma uto-
pia, ou melhor uma heterotopia. claro, portanto, que algo que ainda no ,
mas pode tornar-se.
Decidir pela vida: eis o nosso mais premente desafio pedaggico! En-
tretanto, um tal desafio no pode ser adiado em sua advenincia. No se trata
de vivermos para um futuro ideal, e sim, justamente, de aprendermos a sair
desta iluso coletiva de um tempo alm da vida-instante. E se levarmos a srio
a diferena entre ser professor ser educador, isto no quer dizer deixar de ser
professor, o que, no nosso caso, implicaria em estado de desemprego.
Referncias Bibliogrficas
FREIRE, Paulo. Ao cultural para a liberdade: e outros escritos. 9 ed. So
Paulo: Paz e Terra, 2001. (O Mundo, Hoje, v.10)
4
A CONSTRUO DO CONHECIMENTO CIEN-
TFICO EM QUESTO: CONSIDERAES PO-
LILGICAS SOBRE A AMBIGIDADE DA CIN-
CIA4
cimento cientfico. Em toda parte h cincia. Toda a nossa vida, afinal, depen-
de cada vez mais de cincia. Esta , ao meu ver, a imagem imperial da cincia:
em toda parte ela impera soberana e implacvel. A cincia to imperativa que
j se transformou em senso comum. Todos sabem que a nossa a era da tec-
nocincia. Esta afirmao tornou-se domnio pblico, um percepto coletivo
global. Em toda parte, em todo canto, a cincia a palavra de ordem, o motivo
dominante da era da globalizao imperativa. Em um sentido muito estrito, a
cincia confunde-se hoje com o fenmeno arrasador da
globalizao planetria. No h como separar uma coisa da outra. E justa-
mente a que mora o perigo. A questo que o tempo virtual do fenmeno da
globalizao se confunde, agora, com a conscincia metafsica da cincia con-
tempornea. O acontecimento de uma grande rede mundial midiatizada parece
ser hoje a prpria meta-conscincia da imperativa tecnocincia.
E pelo fato de ser algo que no se discute, este modo de conceber a ci-
ncia pertence hoje ao domnio comum, requisitando uma atitude crtica para
ser devidamente contestado e desmascarado em seus efeitos impositivos, coisa
que sempre depender de uma nova formao para a cincia que saiba elevar a
qualidade do esprito humano livre e empreendedor, a partir de um ordena-
mento ontolgico abissalmente novo, totalmente outro. E isto nunca poder
ocorrer se no for devidamente construdo e cultivado, a partir de ambientes
de pesquisa e convivncia que no se submetam ordem imperativa da acefalia
crnica dos discursos hoje institudos de validade e validao, de autoridade e
autorizao, de mais qualificado e menos qualificado etc., segundo regras fixa-
das por comunidades cientficas imperiais e nada cordiais e integradoras.
5
A EPISTEMOLOGIA DO EDUCAR NA PERSPEC-
TIVA DA INTERDISCIPLINARIDADE5
Abertura
Diante dessa questo logo se levanta uma outra: o que mesmo que se
pode fazer-aprender? Com este questionamento alcanamos o cerne de uma
crtica radical de todas as nossas crenas e atitudes diante do mundo dado. Tra-
zendo isto para a nossa proximidade, alcanamos o ponto de partida para a
efetuao de uma crtica radical de nossas atitudes pedaggicas, sejam elas do-
centes ou discentes. Como mesmo que cada um se comporta sendo professor
e sendo aluno? O que que cada um pensa sobre educao? O que significa
educar para cada um? Em outras palavras, para iniciarmos uma investigao
sobre as condies de possibilidades relativas construo de uma epistemolo-
gia do educar interdisciplinar e polilgica, preciso que os participantes se dis-
ponham a realizar um retorno radical sobre si mesmos. Este o principal fun-
damento da prtica aprendente aqui proposta.
Com isso eu quero dizer muitas coisas. Sobretudo quero dizer que
preciso aprender a ser. At aqui, porm, parece que no sa de uma tautologia;
no disse muita coisa. Afinal, o que significa aprender a ser? Em que sentido
tomamos e interpretamos o ser em questo? Diante de uma tamanha generali-
dade, como fazer com que cada um seja tocado por um sentido do ser que a
tudo une no mesmo um? Esta me parece a questo mais difcil: fazer ver que
no se trata de um ser genrico e vazio, mas do ser que cada um enquanto
existe, isto , do ser Joo ou Pedro, Maria ou Ana, Joaquina ou Jos. Claro,
trata-se do ser pessoa, ou melhor, do ser indivduo de uma determinada coleti-
vidade, de uma especfica sociedade.
tido comum que a tudo une no mesmo um? Assim, pode-se falar em um a-
prender a ser comum sem que seja preciso modelar este aprender em um com-
portamento padronizado e normatizado, isto , em um comportamento igual e
mecanicamente repetido? Afinal, no a norma que estabelece o sentido de
comunidade entre os seres humanos? E sem a norma, o que seria do sentido
comum do aprender a ser?
Edgar Morin, em seu livro Cincia com Conscincia (1996), nos ajuda a
compreender melhor o que aqui foi articulado como necessidade transdiscipli-
nar para a unificao da produo do sentido das cincias humanas, base, por-
tanto, de toda trama interdisciplinar efetiva. Para Morin, preciso ir alm do
66
Aqui, h que observar que uma revoluo se opera sob nossos olhos.
Enquanto o saber, na tradio grega clssica at a Era das Luzes e at o fim do
sculo 19 era efetivamente para ser compreendido, pensado e refletido, hoje,
ns, indivduos, nos vemos privados do direito reflexo.
Nesse fenmeno de concentrao em que os indivduos so despos-
sudos do direito de pensar, cria-se um sobrepensamento que um subpensa-
mento, porque lhe faltam algumas das propriedades de reflexo e de conscin-
cia prprias do esprito, do crebro humano. Como ressituar ento o proble-
ma do saber? Percebe-se que o paradigma que sustm o nosso conhecimento
cientfico incapaz de responder, visto que a cincia se baseou na excluso do
sujeito. certo que o sujeito existe pelo modo que tem de filtrar as mensa-
gens do mundo exterior, enquanto ser que tem o crebro inscrito numa cultu-
ra, numa sociedade dada. Em nossas observaes mais objetivas entra sempre
um componente subjetivo.
Hoje, a questo do retorno do sujeito fundamental e est na ordem
do dia. Mas, neste momento, h que formular a questo dessa separao total
sujeito/objeto em que o monoplio do sujeito entregue especulao filos-
fica.
Precisamos de pensar-repensar o saber, no com base numa pequena
quantidade de conhecimentos, como nos sculos 17-18, mas no estado atual
de proliferao, disperso, parcelamento dos conhecimentos. Mas como faze-
lo? (1996: 136-137)
Como se pode ver, Morin uma das vozes que conclamam para uma
nova unificao epistemolgica das cincias do esprito. Seguramente, a sua
voz importante mas no a nica. No se trata, no caso,de seguirmos a risca
o pensamento epistemolgico de um grande pensador, mas de realizarmos o
alcance metodolgico de uma nova cincia humana unificada, sem a perda das
inevitveis complexidades e diferenas na produo e reconhecimento deste
saber. Isto s pode ser feito por meio de uma deciso irrevogvel. Esta deci-
so nos deve empenhar na construo de um sentido comum para a atividade
cientfica de uma nova pedagogia crtica, fruto no de especulaes meramente
filosfica, mas de aes implicadas e conseqentes que garantam uma forma-
o humana pensante e altiva, e no um mero simulacro de cincia que s faz
67
ende, projeta, age, memoriza, recorda, sonha, trabalha, come, relaciona-se, con-
figura-se, representa-se, constitui-se, transmuta-se, desaparece, reaparece etc.
Este ser esprito faz toda a diferena. mesmo um problema de diferena ontol-
gica. Ser esprito a prpria diferena ontolgica. No limito aqui o esprito ao
campo da conscincia e da autoconscincia. O esprito no se define pela cons-
cincia ou autoconscincia do ser humano histrico. O esprito antecede a
conscincia ou a autoconscincia e seria tolice imagin-lo categorizado deste ou
daquele modo. O esprito por definio o transcendens: no possvel atribuir-
lhe atributos que explicariam sua essncia incriada. O esprito se vive, e nunca
pode ser confundido com um ente simplesmente dado. Dissociar o esprito do
mundo da vida o que me parece o grande problema. At aqui ao falar de es-
prito no o dissociei do mundo da vida. No d para separar o esprito do
mundo. O esprito, justamente, o dnamo do mundo, e por isto que ele no
apenas o homem, mas o homem que se reconhece esprito enquanto ek-
siste no mundo. O esprito ultrapassa o homem, mas o homem esprito em
seu prprio modo de ser-viver.
Referncias:
6
HERMENUTICA E FENOMENOLOGIA DO
EDUCAR: TRAOS DE UM FILOSOFAR POLI-
LGICO PRPRIO E APROPRIADO6
Abertura
6
Texto escrito para o Encontro de Fenomenologia e Hermenutica, promovido pelo Mes-
trado em Filosofia da UFBA, Salvador, dias 11, 12 e 13 de dezembro de 2002. O mesmo foi
apresentado, de forma resumida, na mesa-redonda do mesmo encontro Gramtica e Cons-
truo do Sentido.
73
filosfica realizada por Husserl no h lugar para falsos problemas filosficos. Nesta
visada, os verdadeiros problemas filosficos so verdadeiros na medida de seu desco-
lamento dos fatos naturais. Assim, um verdadeiro problema filosfico aquele
que alcana o desvelamento de algo em seu prprio discurso, permanecendo,
deste modo, um fenmeno da fenomenologia. O saber filosfico verdadeiro o
saber que se desvela e se constri no discurso e pelo discurso de pensamento.
Claro, a verdade absoluta que se alcana por meio de uma intuio ei-
dtica desse gnero est fora do jogo demonstrativo das cincias positivas, e
s se pode comunicar aos outros, mas nunca imaginar que seja possvel dizer
ao outro do que se trata, se esse outro no tiver em si mesmo uma experincia
do mesmo gnero. Entretanto, quando se realiza uma descrio como esta,
algo tambm se prefigura atravs do prprio discurso, e esse algo de algum
modo percebido pelos que entram no fluxo de sua apario e de sua aparncia.
Portanto, no acredito na possibilidade de ser compreendido, exceto no mbito
daquilo mesmo que no discurso rasga o velamento do sentido-sendo, para logo
em seguida proteger-se de novo no silncio da fala. Assim, a contaminao
fenomenolgica descrita nada tem a ver com opinies pessoais sobre o qu
75
De certo modo, hoje como hoje, olho para Heidegger com admirao e
suspeita simultaneamente. A admirao vem do reconhecimento da sua obra
monumental e de grande flego criador. A suspeita provm do fato de sua
excessiva melancolia em relao a origem, para no dizer obsesso. Talvez
tivesse sido para ele salutar afastar-se um pouco mais vigorosamente de suas
convices filosficas, aprendendo, assim, a falar com mais desenvoltura a
lngua do pensamento em seu silncio rasgante. Ora, mas isto ele sempre deu
provas de saber fazer com maestria indiscutvel. Neste caso, no estou aqui
procurando diminuir o seu valor como pensador autntico, mas simplesmente
dando provas do reconhecimento da diferena entre a pessoa de Heidegger e o
seu dizer de pensador radical. Afinal, para quem falava Heidegger? Por ventura
pode-se medir os efeitos da propagao de um dizer filosfico como aquele de
Heidegger? Trata-se de manter-se fiel fonte original do seu pensar, ou essa
fonte no pertence mesmo a ningum, e Heidegger teria simplesmente bebido
dela e se embriagado, a ponto de no mais saber o caminho de volta para casa?
(1991). Assim, quando Husserl diz que ... poderemos definir o carter bilateral
da investigao da conscincia, descrevendo-o como uma coordenao insepa-
rvel (2001, p. 57), isto revela uma de-ciso irrevogvel de plenitude no ato
minucioso e metdico da descrio fenomenolgica da conscincia como um
retorno radical a si mesmo. Pleno de potncia e esperanoso pela possibilidade
de um conhecimento universal do ser que -sendo, conclui suas Meditaes
dizendo:
Temos diante de ns um sistema de disciplinas fenomenolgicas, do qual a
base fundamental no o axioma ego cogito, mas uma plena, inteira e universal tomada
de conscincia de si mesmo.
Em outros termos, a via que conduz a um conhecimento dos fundamen-
tos ltimos , no mais alto sentido do termo, ou seja, a uma cincia filosfica, aquele
em direo a uma tomada de conscincia universal de si mesmo, de incio mondica e
depois intermondica. Podemos igualmente afirmar que a prpria filosofia um de-
senvolvimento radical e universal das meditaes cartesianas , ou seja, um conheci-
mento universal de si mesmo, e abrange toda cincia autntica, responsvel por si
mesma.
O orculo dlfico conhece-te a ti mesmo adquiriu um novo sentido. A
cincia positiva uma cincia do ser, a qual se perdeu no mundo. preciso de incio
perder o mundo pela epoch, para reencontra-lo em seguida numa tomada de conscin-
cia universal de si mesmo. Noli foras ire, disse Santo Agostinho, in te redi, in interiore ho-
mine habitat veritas. (2001, p. 170)
Ento, quem devo, afinal, escolher como a melhor fonte filosfica para
continuar pensando, Husserl ou Heidegger? Bem, j falei desta de-ciso: nem
Husserl e nem Heidegger, mas o pensar mesmo, em si mesmo, alm de si
mesmo. isto, porm, possvel, dadas as condies adversas ao pensar mes-
mo, to marcantes nos tempos hodiernos? Afirmativamente, digo ser possvel
83
Diante de toda essa saga pensante, resta ainda enfrentar, de modo radi-
cal, a conformao da falsa conscincia histrica que vem determinando o estado
de submisso ontolgica de alguns povos do planeta e de algumas naes do
mundo. A falsa conscincia histrica nos captura pelo lado de nossa pretenso do
alcance de um conhecimento intelectual apartado dos acontecimentos concre-
tos do existir. O mundo da vida reclama cuidados redobrados. A vida humana
requer ateno absoluta. Isto algo que a humanidade haver de aprender se
quiser vencer a barbrie por ela mesma criada e perpetuada desde a origem dos
tempos. O ser que se pode apreender no diz respeito apenas ao indivduo
isolado ou s sociedades histricas nacionalizadas. Trata-se de uma revoluo
que alcana toda a espcie humana e diz respeito a todos sem exceo. preci-
so cuidar da vida na vida e com a vida. preciso aprender a cuidar da vida em
vida. O bem maior, portanto, deste caminho fenomenolgico-hermenutico
a vida-sendo: o educar com a vida, o cuidar do que sem ocaso, na diversidade
de suas interminveis flutuaes criadoras.
problema com as demais vozes acolhidas. Nenhuma delas pode servir para
resolver nossos problemas em definitivo, do ponto de vista do aprendizado de
nossa comum pertena ao primado do que no tendo incio, no tem por isso
mesmo ocaso. Entretanto, culturalmente nada seramos sem a presena dos
que nos antecederam e realizaram, igualmente, uma de-ciso de plenitude.
Referncias Bibliogrficas:
7
A CONSTRUO CULTURAL DA DIFERENA 7
que entendem a lei da diferena como algo de uso exclusivo dos seus identifi-
cados, a luta por um regime poltico fundado na diferena como diferena deve
ser travada em outra dimenso, onde no basta apenas levantar bandeiras pr
ou contra isto ou aquilo, mas preciso ultrapassar o prprio assujeitamento ao
que quer que seja. Enquanto perdurar a psicologia do assujeitamento a estabe-
lecida, a lei do diferente da diferena no ter sido ultrapassada. O seu ultrapassa-
mento s pode ocorrer atravs de uma revoluo cultural de longo alcance,
onde o singular humano seja acolhido em sua prpria humanidade criadora e
diferente.
8
PEDAGOGIA DA DIFERENA: NOTAS IMPLI-
CADAS I 8
Na zona dos efeitos de um discurso como este, devo dizer que o que
tenho em mira no um simples jogo de efeitos persuasivos, mas um jogo que
disponha o pensar ao pensar mesmo: um jogo implicado, interrogante e aberto,
inconclusvel, polifnico, polilgico, polissmico. Este jogo, ao dispor-se co-
mo pensar mesmo, no delega seu acontecimento s vozes autorizadas do co-
nhecimento pedaggico, mas procura pensar exclusivamente a partir do que se
mostra como o que h para ser pensado como pedagogia da diferena. Peda-
gogia da diferena, o que mesmo isto? Se no modismo, do que se trata?
8
Artigo publicado na Revista GERE 4, 2001.
96
no aponta para uma igualdade e sim para um movimento. O que est sendo,
no foi e nem ser. Pensar ser, ento, diz: ser faz pensar, pensar faz ser. O
o que est sendo. Assim, o pensar est sendo o ser e o ser s no pensar.
Ou melhor, o pensar acolhe o que como ser. Mas, o que o que acolhido
como ser pelo pensar?
Com esse discurso algo de estranho se nos apresenta. Aonde nos leva
este questionamento ontolgico? Qual o seu nexo com a nossa realidade
instituda e com a nossa possibilidade instituinte? Indo direto ao assunto, com
este discurso ontolgico recolocamos a questo pedaggica a partir de um sen-
tido radicalmente simples e originrio. A questo da diferena, ento, passa a
ser o eixo gerador de uma nova articulao crtica para a investigao e mudan-
a de regime do nosso prprio estado pedaggico. Qual a conscincia que
possumos do educar? Somos seres pensantes, como educadores, ou simples-
mente mquinas programadas que se limitam a expelir o que se impe como
norma e como dever? Se somos seres pensantes em nossas prticas e teorias
pedaggicas, por que que no somos capazes de transformar o mundo? O
que nos falta para transformar o mundo?
Gramsci etc. como referenciais pedaggicos, mas poucos so aqueles que ou-
sam fazer destes grandes apenas um motivo para ir adiante, dar continuidade
criativa ao que ofereceram como obra. O dado que no precisamos de dou-
trinas pedaggicas, e sim de aes pedaggicas criticamente instrudas. Os
grandes autores so nossos interlocutores no nossos mandatrios. Afinal, s
se pode compreender um grande quando nos tornamos da sua altitude. O di-
logo s existe entre iguais. A desigualdade geradora de submisso e de covar-
dia. No h grandeza na desigualdade e submisso, apenas assujeitamento.
so. Nenhuma consolao metafsica e nenhuma migalha social podem nos bas-
tar, caso desejemos realizar a vontade de potncia de uma humanidade de i-
guais e no de desiguais.
muito comum que o atual estado de misria humana nos torne pes-
simistas incorrigveis. O mais difcil fazer brotar uma pedagogia da diferena
em um terreno j ocupado e j indiferente. O dado que para mudar este es-
tado de indigncia indiferente preciso mudar todas as relaes de poder vi-
gentes. Isto significa, a rigor, uma mudana radical de atitudes em relao ao
que est a imposto pelos poderosos autorizados. Isto significa uma revoluo
cultural de longo alcance. Infelizmente, talvez isto ainda no nos alcance, por-
que estamos muito comprometidos com as estruturas vigentes de poder, e j
no possumos potncia para salinizar a indiferena. Nos tornamos demasia-
damente assujeitados para que de ns possa nascer algo de grande. isto
mesmo? Somos impotentes diante das estruturas de poder dominantes e impe-
rantes? esta a nossa atitude diante do educar: silenciamos frente indiferen-
a e como rebanho de desalmados cumprimos a lei do diferente da diferena?
Seria possvel para ns, seres assujeitados, romper esta cadeia de indiferena e
desamor? Se possvel, como fazer isto?
Penso que s pode haver uma pedagogia da diferena quando nos dis-
pusermos a aprender a aprender entre iguais. Isto muda tudo. Mas este mudar
ainda porvir, porque no estamos ainda sendo iguais em nossas prticas e
hbitos pedaggicos. Nos comportamos, de uma maneira geral, como diferen-
tes da diferena: pretendemos ensinar aos outros o que apenas pode ser apren-
dido conjuntamente. Nos esquecemos do cuidar da diferena que todo apren-
dizado requisita. No se aprende o que ensinado. Aprende-se o que apre-
endido em um ambiente de interaes abertas e iguais. A igualdade, no caso,
no o que se conhece, mas o que se pode saber. Igual somente aquele que
sabe. O que apenas conhece no igual, pois o conhecer impe hierarquias
desiguais e anula a diferena como diferena.
Penso que a surpresa e possvel indignao que este modo de falar pro-
vocam atesta o nosso estado geral de assujeitamento ordem tirnica estabele-
cida. Como mudar esta ordem? Que poder possumos para um tamanho feito?
No esta uma aspirao impossvel diante do quadro geral da submisso rei-
nante? Como aprender a ser em um mundo marcado pelo diferente da dife-
rena? A que serve, ento, o aprendizado do pensar? Serve para nos enquadrar
ordem estabelecida, ou serve para nos acostumar no submisso a qualquer
que seja o argumento indiferente? O que podemos fazer diante deste estado
patolgico onde a igualdade no ainda vivenciada como diferena?
A minha questo, agora, saber como que algo deste quilate pode vir
a tornar-se tema de interesse nos discursos pedaggicos e filosficos da con-
temporaneidade. Como , afinal, que vamos aprender a aprender, j que esta
a mxima desta pedagogia da diferena? Este desafio deveras desafiante. Ele
pressupe uma sistemtica desconstruo de todo o edifcio da metafsica oci-
dental e de toda crena dogmtica na cincia imperante e na tcnica dominante.
Trata-se, sem dvida, do aprendizado do pensar prprio e apropriado. No h
frmulas para isto e nem sistemas filosficos ou pedaggicos que possam ser
adotados como modelos garantidos de interveno metodolgica, por que o
que est em jogo o ser humano em sua igualdade singular. Isto, ento, pres-
supe pessoas preparadas para lidar com a polifonia e a polissemia do aprendi-
zado, isto , pressupe pessoas abertas ao acontecimento da diferena, pessoas
responsveis e efetivamente crticas, pessoas dedicadas ao cuidado dos iguais
em suas possibilidades nicas de criao do mesmo poder-ser.
Isto nos lana no abismo do nada, onde temos que aprender a danar
sem nenhuma razo ou desrazo. E esta dana no a embriaguez mstica das
alucinaes lisrgicas ou psicotrpicas, mas a prpria abertura da diferena em
seu inevitvel retraimento advencial. O que no pode ser dito. O que pode
ser dito sempre o que j foi ou ser. O que est sempre protegido de qual-
quer conhecimento sobre sua origem ou fim. O que apenas desvela-se en-
quanto diferena. Por isso o que jamais pode ser perscrutado em seu aconte-
cimento. O que irrompe do silncio e a ele retorna sem cessar: mostra-se,
ocultando-se no acontecimento. O que no pode ser descrito, apenas viven-
ciado. A descrio j no alcana o , mas apenas o que foi. Mas, na descri-
o que se guarda o que est sendo de sua alienao. O que est sendo, afinal,
o que ainda , portanto, o prprio aberto da abertura originante.
Sem dvida, todo este discurso nada tem de normativo e nada resolve
para o estado atual da nossa indigncia pedaggica. Caso fosse um discurso
107
9
PEDAGOGIA DA DIFERENA PENSADA COMO
DIFERENA: NOTAS IMPLICADAS II 9
9
Artigo publicado na Revista GERE 5, 2002.
10
Esta uma expresso que forjei para dar conta da nosso complexa estrutura de ser-no-
mundo-com, e da irredutibilidade de tal estrutura a padres hegemnicos de interpretao
polarizados metafisicamente, como sujeito / objeto, essncia / existncia, alma / corpo,
racionalidade / sensibilidade, teoria / prtica etc.
110
rem atores conscientes no processo de suas prprias vidas associadas. Para ser
fiel ao princpio da igualdade originante, uma pedagogia da diferena no pode
aceitar o princpio da excluso e da indiferena humanas. Entretanto, fica claro
que este grau de conscincia s se pode alcanar por meio de um efetivo esfor-
o aprendente. Neste sentido, no repetindo a tradio j consagrada do
pensamento pedaggico ou filosfico que se pode chegar ao concreto exerccio
da autonomia desejada.
deveras surpreendente: ela nos joga para algo ainda no pensado de forma ra-
dicalmente diferente. Vou ao concreto. Como que funciona o princpio da
identidade em nossas operaes mentais corriqueiras? Na matemtica apren-
de-se que o nmero sempre igual a ele mesmo. Entretanto, todo nmero
demarca a possibilidade de uma operao lgica de grande complexidade. To-
do nmero signo do processo abstrativo da inteligncia humana. Por este
processo possvel igualar similares em uma extenso homognea e vazia.
rena. A questo agora torna o ser o mesmo que o pensar. O mesmo, portanto,
o meio atravs do qual pensar e ser tornam-se unidos no sem-fundamento.
O que diz toda esta argumentao desenvolvida? Aonde ela nos leva?
Segundo penso leva-nos para o equacionamento de uma outra possibilidade
pedaggica ainda impensada. Neste sentido, falar em pedagogia da diferena
o mesmo que reinventar o sentido que nomeia a identidade como a diferena
entre ser e pensar, o que significa tomar a diferena ontolgica como a articu-
lao necessria para se determinar a identidade do ente-espcie que somos
como humanidade. Trata-se, portanto, de uma pedagogia do aprender a a-
prender e no mais do ensinar como imperativo do diferente da diferena.
Neste ngulo de interpretao, o importante que hoje podemos pensar o ser
a partir do comum-pertencer. Isto significa que para ns o pensar a doao
deste comum-pertencimento. Por isto precisamos aprender a pensar a-
prender a aprender. A nica maneira de sairmos do estado de submisso onto-
lgica em que nos encontramos como sujeitos sociais aprendendo a pensar
aprendendo a ser. Precisamos ser para que o nosso pensar nos liberte da
interdio ontolgica. Este deveria ser o primeiro passo do aprendizado hu-
117
Tudo isso vos deixa perplexos? Se no vos deixa perplexos, isto sim
que preocupante. A perplexidade tem que estar na origem de todo possvel
aprendizado humano potencializador, ou como diz Miguel Bordas, a indigna-
o deve ser a marca de nossa comum atitude aprendente. Os educadores tm
que estar preparados para a polilgica do sentido. No se pode mais aceitar a
ideia de que o educador tenha que ser um funcionrio dependente e submisso
s autoridades constitudas pelas trocas polticas que falam em nome de inte-
resses particulares. Permanecer hoje na ordem dos interesses meramente parti-
culares o mesmo que se submeter s foras obscuras do oportunismo de ca-
pital e m-f dos que se colocam no lugar do diferente da diferena. Isto
toca no cerne de uma revoluo cultural ainda distante, e da que uma peda-
gogia da diferena pode armar a trama de uma nova educao pblica, porque
118
11Trata-se de uma expresso forjada para a redefinio do ser humano situado: nem sujeito,
nem objeto e sim polijecto. A expresso esclarecida na nota 1, interpolijectualidade, derivada
desta.
119
Resta, sem dvida, o como fazer isto para que o homem transcenda a
ordem do ser dado e institudo como hegemonia planetria da tecnocincia
empresarial. Entretanto, este como fazer no constitui um problema neces-
srio, porque no h um como fazer nico e hegemnico, simplesmente
porque no h um ser que deve prevalecer com sua autoridade incontestvel,
mas seres que no seu transcurso existencial realizem o ser na singularidade
irrepetvel do acontecer-apropriar, prprio da igualdade do homem em relao
ao ser e da mesmidade de ambos enquanto comum-pertencer. O co-
pertencimento pode ainda, a partir desta correspondncia originante, abrir o
nosso ser para a realizao da deciso soberana da liberdade aprendente em um
mundo de iguais, mundo onde a diferena pode ser pensada como diferena, e
a identidade pode ser acolhida no acontecimento plural do idntico, isto , do
mesmo.
Referncia:
10
A ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA
lgico, preciso aprender Lgica para pensar corretamente. Mas, por acaso
a Lgica a cincia filosfica por excelncia?
12
As partes aspadas do texto transcrito so citaes que Heidegger faz de Hlderlin, expresses poticas, portan-
to, apropriadas para marcar a diferena entre a doutrina da lgica e a lgica das coisas.
136
lgico. S assim a palavra lgica pode ser reassumida como ponto focal da
atividade filosfica. Mas isto no uma tarefa fcil de ser realizada.
Ora, tudo isso continua, sem dvida, muito vago e impreciso. O que
dissemos nada esclarece, apenas pe o pensar mesmo em uma perspectiva
enviesada e provocante, mantendo-o protegido de sua consumao precoce.
Para aprender a aprender preciso por primeiro saber escutar o que diz o
Lgos. Em que sentido, porm, se coloca este saber escutar o Lgos? O
que quer dizer Lgos? Em primeiro lugar, com estas perguntas no se pode
chegar a nada de certo, posto ser a prpria palavra obscura em sua origem, e
139
que diz o Lgos. Nem razo, nem discurso e nem linguagem so suficientes
para traduzir o que diz o Lgos. E o que diz o Lgos? O indizvel? Como
pode o que diz ser indizvel?
Referncias:
11
RESSIGNIFICAO DOS CONCEITOS DE CI-
NCIA E EPISTEMOLOGIA VISANDO-SE A
FORMAO DE UMA EPISTEMOLOGIA DO
EDUCAR POLILGICA NO-VERDADEIRA
Portanto, o padeiro possui um saber sobre o po, assim como cada ar-
teso sobre sua arte, e cada habilidade lida como aquisio de um saber que
um fazer prprio: um saber fazer isto ou aquilo com maestria. Aqui a cincia
ainda no uma teorizao pura, mas apenas uma atividade que por si mesma
reflexiva. Aqui a cincia uma atividade de produo de um bem utilitrio,
um servio social. E como servio utilitrio que a cincia querer um aprendi-
zado: ningum nasce sabendo fazer po, mas apenas com a possibilidade de
saber fazer isto ou aquilo. Este saber fazer algo como algo s sobrevive pela
transmisso de sua cincia a outros que a tomem como tarefa e se tornem seus
mestres.
Mesmo pertencente famlia do verbo epistamai, com toda a pregnncia
semntica assinalada, epistme uma palavra especfica do vocabulrio dos fil-
sofos a partir de Scrates. De qualquer modo, mesmo entre os filsofos ela
continuar referindo-se a uma atividade competente, s que agora esta ativida-
de tornar-se- teortica e no mais prtica. Trata-se, finalmente, da cincia
compreendida como intuio intelectual, como atividade ideacional. Entre-
tanto, o que isto intuio intelectual, atividade ideacional?
O conceito de cincia, como hoje usado por nossa civilizao, tem sua
gnese epistmica entre os primeiros filsofos gregos. Aquilo que por eles foi
estabelecido permanece sendo uma referncia imprescindvel para uma investi-
gao compreensiva do conceito (ou conceitos) de cincia em vigncia. Veja-
mos porque. A atividade da cincia, mesmo se necessariamente emprica, per-
manece sendo uma competncia intelectual. intelectualmente que a cincia
se constitui como atividade prtica, porque seus operadores so grandezas ide-
ais: nmeros, conceitos, equaes, escalas, definies etc. Sem a atividade inte-
lectual a cincia seria vazia: faltar-lhe-ia o meio computacional, o crebro hu-
mano. Este dado, apesar de bvio, precioso para a compreenso da atividade
cientfica. A cincia, ento, uma atividade intelectual, requerendo para o seu
exerccio competncia cognitiva de alcance abstrato e conceitual. Seja ele qual
for, o exerccio cientfico requer o aprendizado de medidas e propriedades das
grandezas discretas. Ora, justamente este o objeto da matemtica. Mas, o
que tem a ver matemtica com cincia (epistme)?
Eis aqui o sentido de ser mathematiks para Tales, isto , ensinar o povo he-
lnico uma nova concepo de mundo, cujo smbolo maior condensava-se no conceito
de princpio, isto , da arkh compreendida como aquilo de onde algo sur-
ge (Heidegger, 1979: 21). A arkh articula-se em uma compreenso cosmol-
gica nova, cujo foco de interesse transfere-se da ambincia antropomrfica do
mito para a constituio de uma compreenso cosmolgica fundada na abertu-
ra para a Physis. O princpio Arch. Como princpio, a arkh no deixada
para trs no momento em que acontece. Pelo contrrio, como princpio a arkh
aquilo que impera, ou melhor, aquilo que, estando na origem, vigora. Aqui
aparece a ideia de uma unidade tipo (arch) para toda a Physis. E este aparecer
resultado de operaes matemticas bem delineadas e sucedidas, inevitavel-
mente sedimentadas. Em Tales teria ocorrido pela primeira vez uma mudana
de atitude diante dos acontecimentos do sentido. Ele expressou esta mudana
afirmando a gua como a arkh de todas as coisas.
mstica da Trcia fato recontado por Plato no dilogo Teeteto , que tro-
ou dele quando, caminhando, caiu em um buraco. Ao que ela retrucou:
Que homem s tu que pes todo entusiasmo nas coisas que se passam no cu e
no prestas ateno s coisas que tens diante de ti e debaixo dos olhos? Tales
ensinava matemtica. Claro, trata-se apenas de uma interpretao. Entretan-
to, de algum modo isto indica uma diferena radical entre um indivduo que
desenvolveu habilidades cognitivas relativas ao clculo e medida e um indiv-
duo que no passou por esse aprendizado: que no formatou o seu crebro
para poder observar estrelas e encontrar nisso um sentido altamente implicado
e apaixonante.
Aqui est a falha: aquilo que deve ser verdadeiro princpio no precisa ter
uma forma unilateral e singular, mas a diferena mesma deve ser de natureza
universal. A forma deve ser totalidade da forma: isto a atividade e a auto-
conscincia mais alta do princpio espiritual, que a forma se tenha elevado pe-
lo esforo para a forma absoluta o princpio do espiritual. (1978: 10)
... em primeiro lugar porque essa proposio enuncia algo sobre a origem
das coisas; em segundo lugar, porque o faz sem imagem e fabulao; e en-
fim, em terceiro lugar, porque nela, embora apenas em estado de crislida,
est contido o pensamento: Tudo um. A razo citada em primeiro lugar
deixa Tales ainda em comunidade com os religiosos e supersticiosos, a se-
gunda o tira dessa sociedade e no-lo mostra como investigador da natureza,
mas, em virtude da terceira, Tales se torna o primeiro filsofo grego. Se
tivesse dito: Da gua provm a terra, teramos apenas uma hiptese cient-
fica, falsa, mas dificilmente refutvel. Mas ele foi alm do cientfico. [...] (p.
10)
At aqui at parece que ele est dizendo a mesma coisa que Hegel. En-
tretanto, h uma abissal diferena entre um e outro. Para Nietzsche no h
nada a ser superado na advenincia do tempo. Pelo contrrio, ele acolhe do
pensamento originrio algo de insupervel no tempo do acontecimento: o salto
totalidade do ente, enquanto , fora do tempo linear e progressivo da razo.
inerente a uma atividade cerebral altamente especializada. Este fato deve ter
demorado muito tempo para acontecer na espcie humana. Tudo indica que,
de algum modo, a cultura grega da sia Menor acolheu uma poca em que se
fez presente uma espcie de exploso neural, ocorrida em alguns indivduos
os pensadores originrios. Isto abre novos horizontes, perspectivas e possibi-
lidades para o desenvolvimento da espcie humana. De certo modo, lembran-
do Heidegger, isto est na certido de nascimento do curso historial do Oci-
dente.
O caso que com a epoch nada se pode admitir como previamente dado,
o que requer um ponto de partida que ela prpria pe, tirando de si mesma,
como conhecimento primeiro. Esta no uma passagem de fcil e imediata
compreenso, mas requer o esforo do absoluto retorno s coisas mesmas.
Quando, ento, a ideia de um saber absoluto soa pretensiosa e nos dias atuais
inconcebvel, como possvel sustentar o carter radical da epoch fenomenol-
gica, sem cair no contra-senso e no vazio das questes metafsicas? Afinal, que
saber absoluto este tomado como princpio da prpria epoch?
Sempre que percepciono, represento, julgo, raciocnio, seja qual for a certeza ou a
incerteza, a objectalidade ou a inexistncia de objectos destes actos, absolutamente
claro e certo, em relao percepo, que percepciono isto ou aquilo e, relativamente
ao juzo, que julgo isto ou aquilo, etc. (1990: 54)
Para Husserl, toda vivncia psquica tem um correspondente fenmeno puro, que
exibe a sua essncia imanente (singularmente tomada) como dado absoluto. Neste sen-
tido, toda posio de uma realidade apresentada como transcendente, isto ,
no contida no fenmeno, encontra-se desconectada, isto , suspensa. Deste
modo, se h possibilidades de converter tais fenmenos puros em objetos de
investigao, evidente que j no estamos na psicologia, esta cincia trans-
cendentemente objectivante (1990:71).
Contudo, ainda faltam novos passos e novas reflexes para que se pos-
sa pr o p firme no pas da fenomenologia. Esta abordagem inicial concer-
nente a todos os fenmenos, apesar da fenomenologia ocupar-se, segundo suas
metas crticas, apenas dos fenmenos do conhecimento. Isto, entretanto, no
impede que o ponto de partida assumido pela fenomenologia refira-se igual-
mente a todos os casos onde h fenmeno. A questo, agora, alcana um pon-
to de mxima tenso. Trata-se da autojustificao da validade do conhecimen-
to fenomenolgico, o que requer a presena do sujeito capaz de intuir e cogitar
sobre o puramente imanente, sem perder de vista a sua existencialidade efetiva.
Este um ponto crtico abissal e inevitvel. Dizendo com Husserl: Para
explorar a essncia do conhecimento, tenho, naturalmente, de possuir como dado
o conhecimento em todas as suas formas questionveis e de um modo tal que
este dado nada tenha em si do problemtico que qualquer outro conhecimento
consigo traz, por mais que parea fornecer dados (1990: 72). Este justamen-
te o problema do conhecimento puro, e ele o principal objeto da fenomeno-
logia husserliana.
Sem dvida, tudo isso parece um mero jogo de tautologias, jogo desco-
lado dos chamados fatos. No h que se negar a fora desta aparncia. Ela
um dado, apesar de no ser um dado absoluto. E no um dado absoluto
justamente porque aparece desta ou daquela maneira, segundo esta ou aquela
crena no mundo natural. Afirma-se, postula-se, nega-se isto ou aquilo como
dado. Tudo isto mero jogo de aparncias, mera tautologia do referente, seja
imanente puro, imanente incluso ou apenas transcendente. A pureza, ento,
apenas mais um referente de algo como algo? O importante, ento, perce-
ber que h algo como algo: este perceber que puro. Ele, ento, no puro
porque se sobressai, mas puro porque existe como tal, isto , como perce-
bido em si mesmo, como puro ver. Ora, esta pureza nada tem a ver com
grandezas ideais, mas apenas com a conscincia de que h, de qualquer modo,
conscincia no ver: o puro fenmeno da fenomenologia. Assim, enquanto o
objeto da fenomenologia o puro fenmeno, no h problema e incerteza
quanto possibilidade do conhecimento, porque no se trata do transcendente,
mas apenas do que em si evidente: o aparecer e a aparncia do puro ver. A
dvida s persiste diante do que no evidente em si mesmo: o puro transcen-
dente. Este, porm, inacessvel ao conhecimento fenomenolgico. Fenome-
nologicamente falando, s o puro dado evidente em si mesmo. E, felizmente,
o puro dado , em si mesmo, apenas imanente, pois o conhecimento do trans-
cendente apenas um preconceito sobre a possibilidade do conhecimento ser,
em si mesmo, algo alm de si mesmo.
13
Nesta descrio, baseei-me em uma fonte imediata, apenas como incio de conversa.
Trata-se do Glossrio encontrado em Chau (1994). Isto, portanto, no me impede de conti-
164
O lgein como pousar (estender) significa: levar algo a se deitar. Isto tam-
bm quer dizer: deitar uma coisa junto da outra, recolher. Assim, pousar sinni-
mo de colher. Entretanto, o sentido do colher no se limita ao uso mais co-
nhecido de ler um texto, mas antes evidencia o sentido de trazer-junto-para-o-
estender-diante. O sentido se aproxima da agricultura. A metfora agrcola.
167
Quando se fala colher que apanha e junta, no se diz algo que se encerra
no apanhar os frutos, mas tambm aparece o juntar. Aqui se evidencia a ima-
gem do estender-diante: juntar dispor a colheita para uso comum recolher e
oferecer. claro, recolher no apenas amontoar, mas, antes de tudo, prote-
ger e abrigar, para da distribuir e oferecer. Portanto, colher recolher que ,
tambm, abrigar e proteger, oferecer e distribuir. Como diz Heidegger: Do
recolher faz parte o procurar e trazer para um lugar (1978: 112). Ora, este
lugar o seleiro, o lugar onde se guarda o que se colhe, o lugar do recolhi-
mento da colheita. O seleiro, portanto, lugar de reunio do colhido:
acolhida do alimento proteo de sua serventia. Por seu turno, o seleiro
tambm lugar onde se recolhe o que foi selecionado na colheita. O que foi,
assim, selecionado, mostra-se como o escolhido. O colher, ento, tam-
bm selecionar, isto , ao que dispe para a escolha. Escolher recolher o
que foi selecionado na colheita: recolhimento.
Mas, ento, foi isso o que aconteceu: lgein, pensado originalmente co-
mo pousar-estender, passou a significar dizer e falar? Na visada de Heidegger,
esta no a questo. Seguindo a sua trilha, posso dizer que lgos significa dizer
/ falar tendo em vista o prprio recolhimento, isto , o pousar-estender. Nesta me-
dida, o carter mais originrio do lgein no deixado de lado quando o acento
recai no dizer e falar, mas apenas velado. O que isto quer dizer? Quer dizer
que no sentido mais originrio do pousar-estender est contido o dizer e o falar.
Assim, estes no so simples derivados do que se supe como mais antigo (o-
riginrio), mas constituem o lgein desde o princpio. O caso que, concor-
dando com Heidegger, desde os primrdios ...o dizer e discorrer dos mortais
realiza-se como lgein, como pousar. Portanto, no dizer e falar mais originrio
est implicado o recolhimento do que se presenta diante: o acontecimento do
que se des-vela diante como sentido-situado sentido prprio. Ora, dizendo
assim, nada do que se possa afirmar sobre o que ou deixa de ser pode ser
concebido como descolado do ato de pousar e estender diante de si a pre-sena.
Entretanto, o que significa pre-sena sempre algo que s se presenta no
dizer e no falar, o que sempre requer decises e selees invariavelmente loca-
lizadas: um ser-a, portanto, um passado-passando.
O fato que vejo claramente uma nova possibilidade para o nosso pen-
sar filosfico, que agora assume como tarefa o ultrapassamento do que j era
o imediatamente dado ao nosso perceber e inteligir legado pela tradio epis-
tmica do Ocidente. Aparece, assim, uma nova clareira para o pensar pr-
prio e apropriado. Como, ento, deixar de ouvir o Logos como escutar-pousar?
Sinceramente essa questo nos joga para o mbito de uma tarefa que
corresponde a uma revoluo cultural de longo alcance. Trata-se de partir de um
novo ponto zero na redescrio fenomenolgica da cincia e da filosofia. Tra-
ta-se de educar para esta possibilidade. Mas, como fazer isto educar para o
exerccio de um pensamento prprio e apropriado?
Referncias:
NOTAS