Filosofar e Educar I

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FILOSOFAR

&
EDUCAR
Inquietaes Pensantes

2a Edio

Dante Augusto Galeffi


1

FILOSOFAR
&
EDUCAR
Volume I

INQUIETAES PENSANTES

2a Edio

DANTE AUGUSTO GALEFFI


2

SUMRIO:

Prefcio da primeira edio


Prefcio da segunda edio
1. TENSES FILOSFICAS CONTEMPORNEAS: UMA
DESCRIO EM PERSPECTIVA

2. DELINEAMENTOS DE UMA FILOSOFIA DO EDUCAR


POLILGICA: NO CAMINHO DE UMA ONTOLOGIA RA-
DICAL

3. EDUCAO: TECENDO SONHOS, HUMANIZANDO O


MUNDO HOMENAGEANDO PAULO FREIRE

4. A CONSTRUO DO CONHECIMENTO CIENTFICO


EM QUESTO: CONSIDERAES POLILGICAS SOBRE
A AMBIGUIDADE DA CINCIA

5. A EPISTEMOLOGIA DO EDUCAR NA PERSPECTIVA DA


INTERDISCIPLINARIDADE

6. HERMENUTICA E FENOMENOLOGIA DO EDUCAR:


TRAOS DE UM FILOSOFAR POLILGICO PRPRIO E
APROPRIADO

7. A CONSTRUO CULTURAL DA DIFERENA


8. PEDAGOGIA DA DIFERENA: NOTAS IMPLICADAS I
9. PEDAGOGIA DA DIFERENA PENSADA COMO DIFE-
RENA: NOTAS IMPLICADAS II

10. A ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA

11. RESSIGNIFICAO DOS CONCEITOS DE CINCIA E E-


PISTEMOLOGIA VISANDO-SE A FORMAO DE UMA
EPISTEMOLOGIA DO EDUCAR POLILGICA NO-
VERDADEIRA
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4

Prefcio
O livro, ora editado, tem como base o trabalho de pesquisa do autor desenvol-
vido no perodo de 1999-2002, a partir do projeto Regimes Epistemolgicos nas
Pesquisas em Educao: sentidos, contextos, validades e possibilidades.
A publicao constitui-se de palestras, trabalhos apresentados em encontros a-
cadmicos, participao em mesa-redonda, artigos publicados em revistas e reflexes
desenvolvidas ao longo do projeto de pesquisa.
Dante Galeffi caminha em uma aventura aberta ao seu acontecimento e suspei-
ta da prpria filosofia, enquanto conhecimento institudo. No pretende substituir a
que est instituda por outra filosofia, mas na tenso instituinte-institudo aprender
sempre mais o filosofar, ou seja, sair da nominao substantiva para a ao do verbo
que, como afirma o autor, uma realizao perene do que sem ocaso, nunca teve
origem.
Nesse sentido, enfatiza o estado aprendente como atitude fenomenolgica
permanente, implicando na necessidade, no caso da educao, da ao do educar.
Aprender passa a ser o mesmo que aprender a viver junto, aprender a fazer, a-
prender a pensar, aprender a ver, aprender a falar, aprender a escrever, aprender a
aprender.
A vida em primeiro lugar, o que nos dirige para um educar com a vida. Isto
significa aprender a ser, isto , aprender a cuidar da vida na vida, com a vida, em
vida.
O autor desenvolve uma crtica radical cincia, afirmando que a tragicidade
da espcie humana continuar vinculada arcaica luta de opostos, se a atual forma
crtica da produo do conhecimento dominante no se dedicar a criar novas possi-
bilidades aprendentes.
Estas novas possibilidades encontram caminho na abordagem poemtico-
pedaggica que se define como um fazer inventivo, que inventa no prprio ato do
fazer.
Prope ento o caminho fenomenolgico-hermenutico prprio e apropriado,
baseado em Husserl, em Heidegger e em Gadamer, mas que no se esgotam neles.
com esse caminho que emerge a diferena para propiciar jogos ainda no jo-
gados e colocar a pedagogia da diferena para problematizar o discurso pedaggico
contemporneo.
Homem e ser encontram-se imbricados no sem-fundamento, pois um e outro
devem responder ao apelo da igualdade originante.
5

Nesse processo discursivo, o autor desenvolve uma nova concepo de episteme


e de logos, de maneira que a epistemologia no vista nem como filosofia da cincia,
nem como teoria do conhecimento. O logos , assim, o lugar do encontro da dife-
rena ontolgica entre ser e ente, o mbito da clareira e de seu velamento protetor,
isto , o que h a-se-pensar e o que protege do sem-sentido.
Esta publicao, juntamente com as pesquisas desenvolvidas pelo autor, um
marco de radicalidade no filosofar e no educar, sem se constituir em um modelo a
ser reproduzido, pois no seu fundante sem-fundamento est a concepo da ao de
cada um enquanto singularidade, pois a maior aprendizagem que se encontra no
discurso de Dante : seja voc, na dinmica da vida, aprendendo a ser-sendo ou mais
ainda, aprendendo a aprender a ser-sendo.
Salvador, 18 de fevereiro de 2003
Luiz Felippe Perret Serpa
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1
TENSES FILOSFICAS CONTEMPORNEAS:
UMA DESCRIO EM PERSPECTIVA1

Do meu ponto de partida, estou convencido de que os problemas filo-


sficos tornaram-se tenses filosficas na contemporaneidade. No h mais
problema filosfico para decifrar, examinar e analisar e sim tenses filosficas,
conflitos, modos de ser para deixar acontecer o com-sentido.

Partindo desta constatao absolutamente pessoal, o que aqui conside-


ro uma simples e despretensiosa apresentao do que venho reconhecendo
como tenses filosficas contemporneas e significativas, dignas, portanto, de
acolhida e ateno respeitosa. Portanto, desde o incio optei pela atitude filos-
fica de radicalidade, e o que me interessa relevar so campos tensivos que a-
bram o nosso mbito pensante para outras possibilidades ainda no pensadas.
Assim, no descreverei tenses do ponto de vista de conflitos ideolgicos em-
pedernidos. O meu foco de ateno se concentra no como hoje pensamos filo-
soficamente, se que se pode dizer que se pensa filosoficamente. As tenses
filosficas aqui apresentadas dizem respeito ao modo de ser das filosofias contempo-
rneas, no sentido especfico da perspectiva epocal na qual me inscrevo e cons-
telo. Apresento, ento, uma
compreenso em perspectiva das tenses filosfica contemporneas.

Em momento algum estaremos falando em verdade/falsidade, nem muito


menos nos importa determinar qual seria o ethos mais adequado para formar
um ser humano santo; assim como no nos interessa discorrer sobre leis estti-
cas do belo/feio. Vejam bem, propositalmente sa da primeira pessoa e fui
para a terceira pessoa. Quero com isto destacar uma certa polifonia presente
em todo este discurso. Quando me refiro a mim mesmo, quero dizer ao todo em
que este mim se encontra reunido em assemblia. Claro, no me refiro a uma
assemblia no sentido poltico, e sim ao mbito onde um mim um ns atado a

1
Palestra realizada na V Semana de Filosofia promovida pelo Centro Acadmico de Filo-
sofia e pelo Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da
UCSal, no dia 06/06/2002. Texto publicado na Revista GERE 6, 2002.
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um destino. Trata-se de um mbito eminentemente ontolgico: campo a partir


do qual o homem experiencia o ser como potncia e pura possibilidade.

Gravito em um campo de fora chamado filosofia. A minha apreenso


do que seja filosofia vem de uma rede de relaes empticas que no aceitam o
mundo-a como dado. Pelo contrrio, olhando o mundo-a como ser-no-
mundo, associo-me s vozes da chamada filosofia da diferena, onde possvel
empreender uma radical transvalorao de todos os valores, a partir de realizaes
ontolgicas. Esta minha associao s filosofias da diferena no significa a
adeso a um sistema veritativo concludo e certo, do ponto de vista formal.
Pelo contrrio, significa a repulsa a toda significao j dada e a todo conforto
metafsico possvel. Significa, em outras palavras, um exerccio filosfico altivo
e inventivo em um s tempo; um exerccio, entretanto, marcado por uma on-
tologia fraca, no sentido de um retorno radical s coisas mesmas, segundo o
modo como constituem nossas corriqueiras vivncias perceptivas e cognitivas.
Trata-se de uma ontologia marcada pelo signo da diferena, o que delimita um
campo de possibilidades abertas ao seu prprio fluxo de acontecimentos ras-
gantes.

Para descrever a perspectiva filosfica na qual este discurso se inscreve


e tensiona, recorro voz de Gianni Vattimo em sua obra As Aventuras da
Diferena (1980; 1988). Com o subttulo O que significa pensar depois de
Nietzsche e Heidegger, Vattimo apreende de maneira condizente as tenses
filosficas nutridas pela perspectiva das filosofias da diferena, particularmente
em virtude das filosofias de Nietzsche e Heidegger, que empreendem uma
complexa desconstruo do pensamento ocidental marcado metafisicamente
por um platonismo deliberado, isto , por uma ideia de unidade polarizante,
portanto, dicotomizante, para a qual a aparncia no passa de um espelho da
essncia, em uma rigidez e violncia marcadas pelo signo da culpa e do medo,
pelo signo da retrao diante do des-velamento e da entrega ao acontecimento
em seu vrtice transvalorante.

Trata-se, assim, de compreender como, a partir da perspectiva da dife-


rena pensada ontologicamente, seja possvel reconfigurar a prpria filosofia em
sua instncia polifnica e polissmica, o que abre para a possibilidade de supe-
rao radical de toda oposio metafsica fundada em uma unidade esttica e
dedutvel em suas leis e princpios perenes.

Gianni Vattimo considera que Nietzsche e Heidegger modificaram de


uma maneira substancial a prpria noo de pensamento, pelo que, depois
deles, pensar assume um significado diverso do de antes (1988, p. 9).
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preciso, agora, saber em que medida esta afirmao faz sentido para ns. Po-
demos, de forma filosfica, dizer tal coisa sem uma concreta argumentao
discursiva? Esta afirmao de per si universal e verdadeira, portanto incontes-
tvel?

Indico aqui uma das mais eminentes tenses filosficas contempor-


neas: a filosofia da diferena rompe definitivamente com a tradio filosfica
do Ocidente. Bem, mas em que medida este rompimento ocorre? O rompi-
mento com a tradio filosfica do Ocidente realizado pelos filsofos da dife-
rena mais proximamente o qu mesmo?

A questo crucial diz respeito ao pensar: o que pensar depois de Ni-


etzsche e Heidegger? Na sentena h o deslocamento da filosofia para o pensar
filosfico. A questo em Nietzsche no de ordem terica; to pouco pode-se
dizer que de ordem prtica. A questo em Nietzsche o prprio pensar em
seu acontecimento, ontolgica e no gnosiolgica. Tambm a questo em
Heidegger escava a superao da questo lgico-ontolgica e edifica o retorno
radical fenomenologia do ente em sua condio prvia, na perspectiva de
realizaes do ser-sendo.

A perspectiva filosfica diferenciada de Nietzsche um claro dizer no


ao excesso de conhecimento da racionalidade filosfica ocidental. Com Herclito, Nietzs-
che afirma o eterno retorno do mesmo, em uma decidida superao do binmio
metafsico entre teoria e prxis, essncia e aparncia etc. Ele opera justamente
uma fuso de teoria e prtica, no pelo vis lgico-normativo, mas pelo salto
ontolgico nas infinitas possibilidades do ser-sendo potencializado como ultra-
homem, alm-homem. O eterno retorno do mesmo o ato de superao de toda
dualidade metafsica. No se trata de um conceito logicamente formulado, e
sim de uma ao no tecido do tempo: acontecimento. Entretanto, aconteci-
mento no significa qualquer acontecimento. Trata-se do acontecimento de
realizao da ultrapassagem do pensamento filosfico ocidental, considerado
por Nietzsche como uma doena, o que significa uma recusa radical a toda a
tradio da proveniente.

De maneira cautelosa, preciso que a esta interpretao de Nietzsche e


Heidegger encontre uma distncia potica condizente, pois no se trata de lev-
los to a srio, mas de meditar com eles o que dizem e provocam, no para
segui-los ou adot-los como guias eleitos, mas para beber na mesma fonte que
eles, visar com eles o infundado de tudo o que ; exercer com eles o primado
de uma vida com sentido no evento, vida alm do sem-sentido no advento: abertura
radical s aventuras da diferena.
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Para Nietzsche, a doena do pensamento ocidental tem origem na


separao, tida como insupervel, entre ser e valor, evento e sentido. Como
releva Vattimo: ... esta separao apenas um efeito das relaes de domnio,
isto , da estrutura edipiana do tempo.

Na perspectiva de Nietzsche, o significado do pensar, como j se disse,


no nem teortico nem prtico. No estando polarizado, Nietzsche pensa ao
modo do jogo, isto , ao modo da gratuidade e da no-fundamentao de tudo
em seus acontecimentos. A preocupao de Nietzsche no se configura como
praxiolgica justamente porque, como diz Vattimo (1988, p.10), para ele uma
transformao revolucionria das relaes sociais no pode vir a ocorrer sem
que simultaneamente sejam demolidas as estruturas onde as mesmas tm as
suas razes mais resistentes, isto , na gramtica, ou seja , no cerne das categori-
as ordenadoras de nossa experincia elementar do mundo. Entre tais categorias
pode-se encontrar as seguintes relaes polarizadas: relao sujeito-predicados
(propriedades), sujeito-objeto, substncia-acidente, essncia-aparncia, verda-
de-falsidade etc.

De modo similar, no se pode dizer que o pensar em Nietzsche tenha


algo a ver com a tradio gnosiolgica do Ocidente. No se trata mais de uma
teoria do conhecimento, segundo os moldes acadmicos da tradio, mas de
uma atitude disposta ao acontecimento do pensar em sua aventura diferente, no
mais fundado no primado de uma racionalidade lgica operativa, mas no pri-
mado da vontade exercida como potncia de vida no acontecimento da vida.

Acolhendo a consonncia do dizer de Gianni Vattimo (1988, p.10):


O novo pensamento a que Nietzsche aspira com o anncio do ultra-homem
tambm ele legvel como aventura da diferena, sobretudo no sentido em que
um pensamento capaz de se abandonar (sem medos metafsicos, sem as atitudes de
defesa que se exprimem na reduo de tudo a um nico princpio, na posse do qual
nada pode acontecer) multiplicidade das aparncias libertas da condenao platni-
ca, que faz delas cpias de um original transcendente, o qual imediatamente impe
hierarquias e asceses.

As tenses at agora descritas atiam-nos em uma constelao marcada


pelo signo da infundamentao ltima. Esta maneira de propor o pensar des-
concertante antes de ser concertante. O elemento diferenciador o prprio
perspectivismo ultra-valorante. A ultra-valorao no segue a doena histri-
ca, pois se abre para a ultrapassagem da polarizao hierarquizante. Nesta
medida, o elemento fundante em Nietzsche no nem o ser nem a aparncia,
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mas a dissoluo da luta de opostos pelo lado da superfcie, do eterno jogar


sem ocaso, numa clara aluso heraclitiana. Ora, este elemento um campo de
fora sem fundamento; o seu fundamento no est nem no ser nem na aparn-
cia, mas em seu prprio mbito desejante e pulsivo, em seu acontecimento
sempre retornante, sempre potente e gneo, sempre cambiante, sempre-vida,
ou melhor, mais-vida.

A abertura perplexiva e desconstrucional do pensamento de Nietzsche


encontra, sem vacilos, ampla ressonncia no pensamento de Heidegger, no
porque este seja um nietzschiano declarado, e sim muito mais em virtude da
visada da diferena pensada como diferena. mais do que claro de que se
trata de dois pensadores independentes. Mas tambm compreensvel uma
convergncia de ambos para o primado da diferena como caminho marcado
pelo eterno retorno do mesmo eterno retorno do infundado.

De fato, a grande contribuio de Heidegger vem de sua analtica exis-


tencial, um caminho rigorosamente filosfico de desconstruo do edifcio da
metafsica ocidental, como foi edificado desde Scrates, considerado por Hei-
degger o primeiro filsofo da histria, e ao mesmo tempo um caminho de retor-
no ao ser em seu acontecimento aberto a infinitas possibilidades. Trata-se da
inveno de uma hermenutica que procura capturar o ser em seu advento
originrio, compreendendo a o alvorecer do pensamento dos primeiros pensa-
dores gregos. Esta uma hermenutica curiosa, sobretudo pela sua inteno de
deixar ao ser a primazia de uma re-tomada de seu dizer vigorante. Uma tenso
que trabalha a partir da relao memria-esquecimento, ou desvelamento-
velamento. Este modo de dizer, ento, assume a tarefa de uma investigao
existencial do ser que ns mesmos somos, enquanto ecsistimos, isto , enquan-
to somos ao modo do da-sein, do ser-a j dado, j instalado como ser-no-mundo-
com: o ser como pr-sena.

Em Heidegger, a questo da diferena ontolgica se torna o campo focal,


compreendido como fundamento infundado, de toda a gnese historial do ser-
no-mundo-com, isto , do constructo da-sein. no mbito da diferena onto-
lgica que se opera uma virada lingstica, para a qual no a linguagem que se
encontra a servio do pensamento racionalmente concebido, mas, pelo contr-
rio, o pensamento que se encontra a servio da linguagem do ser. E a lingua-
gem do ser no se expressa por meio de sentenas logicamente formuladas,
mas pela pujana de sua origem sempre originante, independentemente de jus-
tificativas metafsicas fundadas em um princpio de identidade que se compre-
ende como um trao do ser.
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Em sua virada ontolgica, Heidegger pensa o princpio da identidade


como sendo o campo da relao entre os opostos metafsicos, o que permite
pensar a identidade como forjada a partir da relao entre os opostos da rela-
o, ou melhor, os diferentes da relao. Propriamente falando, a identidade
aparece pela relao de diferentes. A identidade propriamente a relao indis-
socivel entre ser e ente (ser e pensar), o que permite superar o conceito e a
atitude de um diferente na diferena, ou seja, do privilgio de uma das polaridades
sobre a outra: um chefe e um empregado, um dominante e um dominando, um
forte e um fraco etc. Em todos estes casos h sempre uma parte privilegiada e
uma parte usurpada, isto , h sempre um diferente na diferena.

A identidade assim pensada torna-se o campo fundante de todas as


possibilidades de acontecimentos fenomenolgicos do ser-sendo. Nesta virada,
no a identidade que um trao do ser, mas o ser que se mostra como tra-
o da identidade, isto o ser se mostra em p de igualdade com o ente. A iden-
tidade, assim, no mais pensada como identidade lgica hierarquizante, e sim
pensada como identidade ontolgica fundada no sem-fundamento do que nun-
ca tem ocaso. A perspectiva do jogo aqui aparece em pleno relevo. Entretanto,
no este um jogo dramtico. Pelo contrrio, ele trgico: desvela a condio
humana na condio humana propicia o velamento protetor para o salto
liberador. A vida como jogo jogado na altivez do esprito em liberdade.

Entretanto, eu penso que a questo do salto liberador em Heidegger


no se deixa levar pela produo de sentido substitutiva de sistemas criticados.
Nele a questo muito mais uma aspirao do que propriamente uma certeza
sobre a presena, enquanto presente. este aspecto aberto que pessoalmente
me atrai no pensamento de Heidegger: o instigamento/provocao de outras
possibilidades radicais para o pensar; o pensar, ento, se comemora como festa
e celebrao; no um fardo insuportvel, mas fardo que se suporta em uma
revoluo no mbito da histria do ser-no-mundo. O pensar, assim , feito de
lentido e suspeita. O pensar, deste modo, no comemora a efervescncia do
instante, mas seu acontecimento na proximidade de uma origem sempre-viva.

Os crticos de Heidegger e Nietzsche, no sem razo, destacam uma


nostalgia da origem pela reproposio de uma circularidade temporal. Com a dife-
rena de que em Nietzsche isto alcana uma mais radical e severa atitude vi-
vencial, enquanto em Heidegger isto se torna um dilogo constante com a tradio,
uma redescrio da tradio que permite liberar os textos filosficos do enclave
monolingsta da tradio do significado nico, de cuja posse se incumbem
bacharis seculares. Isto permite, de certo modo, implodir toda figurao filo-
sfica hierarquizante, seja ela alem ou francesa, inglesa ou italiana, portuguesa
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ou apenas brasileira, hindu ou chinesa, africana ou rabe. Nada fica de p


diante da crtica heideggeriana. Contudo, nada destrudo em sua historicidade
remota. O campo da analtica, assim, torna-se a preparao para uma revoluo
do pensamento, sem contudo firmar-se em declaraes programticas em no-
me de humanismos familiares e nacionais. Entretanto, isto no dado na teo-
ria como simples possibilidade remota, mas conclama para uma deciso irrevo-
gvel, na destinao do ser-humanidade que somos.

Acolhendo a filosofia da diferena de Heidegger, fica para mim eviden-


te que a diferena por ele pensada como ruptura, isto , como des-
tituio do carter definitivo da presena (Vattimo, p. 12). Isto quer dizer que
a ruptura no concebida como forma de conciliao com nada, mas provo-
ca irrupes desconcertantes e inesperadas do ser-sendo. Para Heidegger a
ruptura provocada pela reproposio da diferena ontolgica no se ocupa
com a concepo existencialista do homem como problematicidade, na pers-
pectiva de sua condio de finitude e de seu inevitvel drama pela escolha de
sua destinao.

Neste sentido, a diferena no pensada a partir do que j ou est


cotidianamente presente, mas a partir de seu prprio arch, de sua prpria ori-
gem vigorante-originante. Isto um concreto salto no abismo infundado do
sentido-sendo. O importante aqui aprender a danar suspensos no Nada. O senti-
do de origem assim concebido algo de absolutamente indeterminado, atendo-
se ao eterno fluir da potncia gnea que no encontra fundamento nem no ser
nem em sua aparncia, mas no acontecimento instante de sua plenitude solar
ao infinito. Entretanto, Heidegger no se entrega consumao de um destino
trgico, da a sua acentuada nostalgia grega. Apesar desta nostalgia, com Hei-
degger se re-aprende algo que j havia sido uma conquista de Nietzsche: se
aprende que o pthos de uma filosofia do homem, relativa a sua problematici-
dade existencial e o drama de sua livre escolha no merece a ateno de uma
filosofia que se devota a anunciar e realizar o alm-homem.

assim que, tanto para Nietzsche como para Heidegger, uma concilia-
o dialtica entre as polaridades se torna risvel. No se trata, em base dife-
rena descrita, de conciliar e superar a luta dos opostos, mas de compreender
que o pensar mesmo em sua constituio depende deste jogo tensivo dos o-
postos. Deste modo, a diferena pensada como des-tituio do carter defini-
tivo da presena torna-se essencial ao pensamento para que este se constitua
como pensamento crtico (Vattimo, p. 12). E isto contra qualquer tentativa
de pensamento dialtico conciliador; contra igualmente ideia de uma ordem
13

poltica investida de um chamado socialismo real, e que proclama o fim da


alienao e apresenta as condies para a efetuao da autenticidade.

A perspectiva da diferena forjada por Heidegger, a diferena como


ruptura da tradio metafsica, se no enfatiza o carter existencialista do ho-
mem, enfatiza, entretanto, a condio ontolgica do ente homem, em sua con-
dio existencial de ser-para-a-morte. Fora do enquadramento propriamente
existencialista, Heidegger repensa a finitude constitutiva da existncia, o que
caracteriza-se pela fundao de uma ontologia aberta ao apelo ouvido do ser,
onde o ocaso do Ocidente tomado como declnio e exausto de um ciclo
historial.

O importante de tudo isso, para mim, toca o mbito de um novo co-


meo para a filosofia que parece no dirigir-se ao velho mundo em seu apelo,
mas ressoa em ambientes com pouca ou quase nenhuma tradio filosfica
acadmica. Isto uma tenso significativa: o conflito entre um pensamento da
diferena e a manuteno de uma filosofia escolstica padronizada e hierarqui-
zante. Entretanto, em nenhum momento penso em solues fceis, porque
reconheo o quanto seja preciso fazer para mudar os rumos destinais de um
povo modernamente constitudo.

Acreditando ainda na tarefa do pensamento, penso que as perspectivas


abertas pelas filosofias da diferena de Nietzsche e Heidegger so ainda fontes
para uma revoluo do pensamento. E isto uma outra tenso muito significa-
tiva: encontramo-nos abertos s mltiplas possibilidades pensantes, mas pre-
ciso deixar de lado qualquer pretenso e inteno de acabamento formal, de
verdade definitiva, de primado indiscutvel. Como tenso significativa, a possi-
bilidade de um novo pensar filosfico no se faz como projeto aplicvel em
uma dada sociedade histrica, mas alcana o cerne onde o prprio ser humano
dorme o sono de sua impertinncia ancestral e violncia simblica. Neste sen-
tido, no propondo descrever as estruturas permanentes da verdade do ser,
pensadores como Nietzsche e Heidegger assinalam em suas prprias obras
caminhos para realizaes do ser que libertem-nos de toda pretenso e insis-
tncia em figuraes imponentes e hegemnicas do ser-sendo. Isto, de certo
modo, abre possibilidades para novas narrativas filosficas, consolidadas, en-
tretanto no por suas descendncias autorizadas, mas justamente pela pujana
de seus conceitos manifestos no prprio aparecer de seus jogos libertamente
jogados, para alm das maquinaes partidrias do evento aberto a infinitas
possibilidades de vnculo e aderncia s crenas emergentes e mediadas pela
alucinao violenta do capital mercantil.
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A perspectiva aqui descrita tem o seu foco na constatao da morte de


um sistema, de uma cultura histrica: o Ocidente. Acontece, entretanto, que as
litanias no so mais entoadas devidamente, o que provoca uma estranha sen-
sao de perda irreparvel. O efeito nostlgico vem da, isto , vem da queda
em uma depresso deliberada onde todos os valores humanos so incinerados
na fornalha do mundo-sendo. A questo est no alcance de um estado de ser
que supere as oscilaes desconcertantes do aniquilamento da centralidade
egica do homem. O foco, ento, no mas o homem em sua historicidade
moderna, mas a prpria superao da importncia de tal homem para a manu-
teno do acontecimento imperante do que no conhece ocaso.

As poucas tenses filosficas aqui descritas so pretextos para o texto


do pensamento provocado pelo questionamento acerca das possibilidades do
pensar filosfico depois de Nietzsche e Heidegger. Em todo caso, esta asserti-
va pressupe a imerso em uma constelao epocal, mesmo quando a mesma
alcana, nos seus limites, o alcinico estado de ser-no-mundo vivido gramati-
calmente por Nietzsche.

Vejamos com mais afinco. Considero que a maior tenso filosfica


contempornea encontra-se na passagem do tempo historial do Ocidente. A
planetria ocidentalizao mostra-se, assim, como contratempo: o valor meio
como mercadoria. neste contratempo da cultura mundial da mais valia que o
Ocidente experimenta, de diversas formas, o seu ocaso, ou melhor, a sua morte
como hegemonia planetria e como identidade e destino epocal. Inevitavel-
mente nossa poca marcada pela dissoluo da passagem do tempo real. O
tempo tornou-se a efervescncia da precipitao dos instantes na ocupao
monitorada. Maquinaes so as marcas das manipulaes autorizadas. A bes-
tialidade pode a ser experimentada em sua plenitude.

diante deste cenrio que pode brotar o sentimento de indignao pela


condio humana. Indignar-se da condio humana dada uma tenso filos-
fica relevante e significativa. pela indignao s condies humanas impostas
pelo modo de ser da humanidade dominante presente, que se pode criar condi-
es para o aparecimento de uma filosofia do alm-homem. Isto muda o modo
de compreenso do processo formador da atitude filosfica. E, para formar
para esta possibilidade pensante, preciso construir condies e meios favor-
veis ao seu engendramento. Isto no uma tarefa que se possa programar sem
que haja potncia humana para tensionar a corda da espcie estendida na pas-
sagem do tempo biolgico.
15

A tenso nesse ponto toca o mbito dos ambientes formadores


do discurso filosfico contemporneo. As passagens a so construes cultu-
rais enraizadas. inevitvel reconhecer que ainda a Europa que detm a tec-
nologia filosfica competente, e que em nosso meio o que se v a perpetua-
o das matrizes filosficas europias. Entretanto, vejo que uma grande tenso
filosfica est na possibilidade do aparecimento/construo de uma nova Pai-
deia humana. Isto indica para a potencializao de uma nova atitude aprenden-
te, para a qual o filosofar se torna um caminho de realizao do ser-no-mundo-
com, pelo vigor da indignao e altivez de esprito. Neste sentido, o lugar da
filosofia se desterritorializa e se encontra em lugar algum. Significa, ento, dizer
que a filosofia mais significativa de hoje no mais se encontra no meio acad-
mico autorizado, e sim na vida e obra de pensadores que vivem de vida pr-
pria. Quem so estes pensadores? Bem, alguns so ainda desconhecidos, outros
so ainda marginais, como o caso de Krishnamurti e David Bohn.

O caso que pensamos ainda a filosofia como sendo posse de alguns


bacharis e doutores, e no sabemos ainda reconhecer o filsofo em sua radi-
calidade alcinica. Assim, os territrios consagrados da filosofia ficam restritos
a especialistas e homens/mulheres de alta cultura, e os temas filosficos fecha-
dos em crculos incomunicveis. A questo que, vacinados por Nietzsche e
Heidegger, no mais possvel acreditar nas verdades pronunciadas por filso-
fos de ctedra, exceto como verdades da contingncia histrica dos mesmos. E
por incrvel que parea, isto no leva a uma desvalorizao dos filsofos passa-
dos; pelo contrrio, permite uma mais rigorosa apreciao das obras filosficas
marcadas pelo signo da indignao e da livre criao.

A tenso, ento, entre a velha filosofia e a filosofia do aventurar-se no


tempo do sendo, se configura como tenso criadora, o que permite uma re-
composio do prprio modo do trabalho filosfico acadmico. Claro, em
filosofia no h espao para a improvisao indecisa. A improvisao filosfica
exige um alto grau de tenso criadora, o que no se pode realizar fora de um
ambiente propcio e potencializador. Condies propcias e deliberadas, por-
tanto, so fundamentais para o aparecimento de obras filosficas originantes, o
que no quer dizer que as mesmas tenham sorte diferente de toda e qualquer
obra humana criadora.

Tais condies, entretanto, precisam da artesania de indivduos alcini-


cos, e no pode ser transmitida atravs de processos formais escolarizados,
porque depende de uma atividade de efetuao prpria e apropriada. Portanto,
no se trata de imaginar uma maquinao para a produo de filsofos em
srie, mas de construir meios eficazes para o aparecimento de novos pensado-
16

res formados pela lentido do tempo pensante. Meios eficazes, entretanto, no


so meios cujo controle atribudo a uma racionalidade previsvel e monoto-
nal. A eficcia dos meios depende do vigor com que se trabalha a coisa do pen-
samento. Neste aspecto, caberia a uma academia filosfica propiciar os meios
de rigor da investigao filosfica aberta e desafiante, tendo como pthos a in-
dignao pela condio humana dada, e a disposio s novas e imprevisveis
aventuras diferenciais do pensar laborioso e lento, rigoroso e danante como a
msica polifnica do tempo incessante, porm mutante em seus modos de ser
re-tornante.

Porque sei que este discurso tambm uma aventura aberta ao seu a-
contecimento, encerro esta fala com a convico de que precisamos, para a-
prender a filosofar, comear por suspeitar severamente da prpria filosofia em
sua inteno instituda, no para depor um rei e substitui-lo por outro, mas
para abandonar em definitivo qualquer pretenso de sobre-determinao do
ser-a, e para que se aprenda a alcionizar sempre mais o filosofar como realiza-
o duradoura do que, sem ocaso, nunca teve origem. E as tenses sociais?
Bem, estas dependem de uma outra atitude aprendente para serem equaciona-
das em favor de uma revoluo cultural de longo alcance. De novo o papel do
filsofo parece ser o de ultrapassar-se no movimento de seu prprio pensar. O
resto apenas conversa para fazer dormir o menino assustado. Vamos, ento,
ouvir as tenses porventura provocadas a partir da minha fala infilosfica. O-
brigado pela ateno.

Referncia Bibliogrfica:

VATTIMO, Gianni. As Aventuras da Diferena. O que significa pensar de-


pois de Heidegger e Nietzsche. Traduo: Jos Eduardo Rodil. Lisboa: Edies
70, 1988.
17

2
DELINEAMENTOS DE UMA FILOSOFIA DO
EDUCAR POLILGICA: NO CAMINHO DE UMA
ONTOLOGIA RADICAL2

Introduo

Este trabalho quer ser o balano provisrio de uma longa investigao


que vem sendo efetuada por mim junto ao Grupo de Pesquisa Epistemologia do
Educar e Prticas Pedaggicas, cadastrado no CNPQ e vinculado Faculdade de
Educao e ao Programa de Ps-Graduao em Educao (mestra-
do/doutorado) da UFBA, inscrito na Linha de Pesquisa Filosofia, Linguagem e
Prxis Pedaggica. As suas reas de concentrao so a Filosofia e a Educao.
Filosofia e Educao, entretanto, compreendidas como caminhos aprendentes da
atitude crtica radical, no sentido especfico de uma cincia do homem e para o
homem, uma cincia do alm homem, cincia de um saber-ser e saber-fazer
prprios e apropriados.

Partindo deste horizonte tensivo fundamental, temos procurado inven-


tariar o processo aprendente do pensar crtico, ressignificando, de forma radi-
cal, as prprias Filosofia e Educao que, por esta toro conceitual, so com-
preendidas como o aprender a aprender a ser. Neste sentido, pode-se dizer que
caminhamos construindo uma Filosofia do Educar polilgica, polissmica,
polifnica, ocupada em descrever a ao educante a partir de uma ontologia
radical, isto , a partir de um plano de realizao humana fundado na liberdade
incondicional do sem-fundamento. Isto indica, entretanto, na dimenso acio-
nal, que desenvolvemos pesquisas no campo da formao de professo-
res/pesquisadores visando ultrapassar os modos e modalidades institudos da
educao formal vigente. Interessa-nos saber na raiz a gnese da cincia oci-
dental, compreendidas a a filosofia e a educao em suas historicidades geopo-
lticas.

2
Trabalho apresentado no I Encontro do GT de Filosofia da Educao do Norte e Nor-
deste; realizado em Recife, de 4 a 6 de setembro de 2002, promovido pela UFPE.
18

Procura-se trabalhar sempre com a atitude crtica de radicalidade. No se tra-


ta, deste modo, de uma investigao ocupada com as concepes de educao
instrumental que o mercado cultural dispe, e sim de uma proposio que visa
ultrapassar o atual horizonte da formao crtica de professores/pesquisadores
e, conseqentemente, a prpria formao crtica dos indivduos que passam
pelo sistema formal de educao nacional. Neste sentido, pode-se falar com
propriedade de uma Filosofia do Educar que assume como tarefa a construo
de uma Cincia (Epistemologia) do Educar Polilgica. E se aqui ainda insisti-
mos no uso da palavra cincia, no nossa inteno construir um sistema
terico (seja ele esfrico ou trico) sobre a educao, e sim intervir no tecido
histrico da educao humana, oferecendo possibilidades acionais concretas de
aprendizado dialgico, pelo aprender a cuidar de si e dos outros, isto , pela
realizao autoconhecente.

Com a palavra cincia, portanto, no queremos afirmar a possibilida-


de de verdades nicas a serem explicadas pela razo humana objetivamente
disposta. No usamos a palavra no sentido moderno, no falamos em cincia
experimental ou natural, mas em cincia fenomenolgica. Portanto, falamos de
cincia em sentido propriamente filosfico, o que pressupe uma absoluta li-
berdade de vo. Falamos em cincia como atividade aprendente de conheci-
mentos que dizem respeito ao nosso comum pertencimento ao ente-espcie
humanidade, segundo nossas concretas e histricas condies existenciais (am-
bientais, corporais, materiais, simblicas).

A comum dicotomia entre as cincias exatas e as cincias no-exatas


estruturada, tambm, dicotomicamente. H um privilgio das cincias objetivas
sobre aquelas ditas subjetivas. No se trava a uma relao de iguais e sim de
uma relao de subservincia. como se as cincias humanas tivessem sempre
que imitar o modelo das cincias objetivas, e no pudessem nunca ultrapassar a
condio de subalternidade em relao s mesmas. Esta comum dicotomia no
foi ainda resolvida no plano da produo do conhecimento oficial. Ela ainda
regula as formas de valorao das atividades humanas produtivas, permitindo a
desvalorizao, ou subservincia, das investigaes que compreendem o ser hu-
mano em sua radicalidade, justamente porque estas no se curvam ao sistema
maqunico armado como domnio e dominncia a mais-valia hegemnica e
planetria imperante. claro, diante de um sistema hegemnico como o do
capital mais-valente, s o que pode vir a dar lucro contbil e imediato pode ser
objeto de interesse e investimento, o resto faz a figura do pobre: vive da cari-
dade dos senhores.
19

a atitude de indignao ao estado de coisas dadas que nos move nesta


busca epistmica. Levantamos nossa voz para restaurar um sentido de cin-
cia que diga respeito, como ao, aquisio de um conhecimento que nos
liberte do jugo imperante da bestialidade e da rudeza espiritual dominante.
Com a palavra cincia est em jogo nossa prpria sorte como ente-espcie huma-
nidade. Queremos, assim, falar de uma cincia que se exercita como constru-
o humana de uma sociedade de iguais. Esta a maior cincia de todas, jus-
tamente porque se ocupa do nico ente que necessita de cuidado e ateno
absoluta: o ser humano. O maior bem no pode encontrar-se fora de ns. En-
to, cincia para ns o mesmo que saber-pensar, saber-ver, saber-viver-junto, saber-
fazer, saber-no-saber, saber-calar, saber-falar, saber-ser. isto mesmo, cincia algo
que nos diz respeito, como humanos, em nosso modo de ser para a liberdade de
ser. Assim, o que dizemos como cincia o nosso prprio modo de ser-
consciente do que sabemos fazer com a vida um saber-fazer com arte.

Esta ressignificao do conceito de cincia no exclui de seu espectro


nenhuma das formas de cincia j realizadas na histria. Entretanto, no esta-
mos interessados em teorizar sobre o passado da cincia, e sim interessados em
construir uma cincia do educar polilgica, isto , uma cincia que se confunde
com o nosso modo concreto de ser-no-mundo: uma cincia autnoma e inven-
tiva, porm prpria e apropriada.

Tal proposio , sem dvida, ousada e at mesmo inquietante, pois


no se trata de seguir uma determinada tradio instituda, mas de romper,
metodologicamente, com ela. Ou seja, o aprendizado da atitude aprendente feno-
menolgica o campo focal de nossa investigao. O importante no ter acu-
mulado muitos conhecimentos, mas aprender a distanciar-se de todo e qual-
quer conhecimento dado, como modo de desenvolver-se em cada um a capa-
cidade emprico-analtica de construo epistmica do conhecimento crtico.
Decidimos levar a srio a atitude de radicalidade aprendente que a fenomenologia
procura descrever. No compreendemos mais os fenmenos como dados, e
sim como campos de foras conflitantes e interativos, em relao aos quais no
se pode nunca explicar, mas simplesmente dizer o que nunca se deixa paralisar
na fixao de uma s face, de um s sentido, de uma nica verdade. E se pre-
tendemos descrever acontecimentos aprendentes, no nos cabe determinar a
priori as categorias da nossa realidade verdadeira, pois a tarefa, agora, justa-
mente de silenciar o acmulo de representaes do sentido, realizando-se, as-
sim, um retorno radical sobre ns mesmos.

Esta atitude aprendente no se deixa levar pelo argumento fcil do que


se impe como lei estabelecida excludente. Do ponto de vista de quem apren-
20

de, o importante aprender a aprender. Este o grande desafio fenomenolgico


da Filosofia do Educar proposta.

Descrio do ponto de partida fenomenolgico

O nosso ponto de partida fenomenolgico encontra ampla ressonncia


e inspirao na atitude aprendente de Edmund Husserl, em relao a uma
reforma total da filosofia, para fazer desta uma cincia com fundamentos ab-
solutos (s/d: 10). Em suas Meditaes Cartesianas (s/d), ele apresenta o prot-
tipo do retorno filosfico sobre si mesmo, inspirado em Descartes. com
este fundamento o retorno radical sobre ns mesmos que ousamos
construir uma filosofia polilgica. Acolhendo alguns pensamentos de Hus-
serl, esclarecemos, em consonncia com a atitude descrita, nosso ponto de
origem radical:
Em primeiro lugar, quem quiser verdadeiramente tornar-se filsofo
dever pelo menos uma vez na sua vida virar-se para si prprio e, a partir de
si, tentar derrubar todas as cincias admitidas at a e tentar reconstru-las. A
filosofia a sabedoria de algum modo um assunto pessoal do filsofo.
Deve constituir-se enquanto sua, ser a sua sabedoria, o seu saber que, ainda que
tendendo para o universal, seja por ele adquirida e que ele deve poder justifi-
car desde a origem e em cada uma de suas etapas apoiando-se em intuies
absolutas. A partir do momento em que tomei a deciso de acometer estes
objetivos, deciso que s me pode conduzir vida e ao desenvolvimento filo-
sfico, fiz, pois, por isso mesmo, voto de pobreza em matria de conhecimen-
to. Ento manifesto que foi necessrio perguntar-me como poderia encon-
trar um mtodo que me mostrasse o caminho a seguir para chegar ao saber
verdadeiro. [...] ... estas meditaes esboam o prottipo do gnero de medi-
taes necessrias a qualquer filsofo que comea a sua obra, s estas medita-
es podem dar origem a uma filosofia. (Husserl, s/d: 10-11)

Tomando essa passagem de Husserl como inspirao, queremos afir-


mar que a nossa construo de uma Filosofia do Educar Polilgica parte de
uma atitude de radicalidade justificada da mesma forma. Para dizer: sempre
um ponto de partida radical que pode dar origem a uma filosofia necessria,
independente da sua condio existencial concreta, ou melhor, da sua singula-
ridade e novidade radical.

Portanto, a novidade desta concepo no nos coloca em vantagem na


disputa pelo conhecimento verdadeiro. Trata-se, pelo contrrio, de uma ne-
21

cessidade: s possvel filosofar a partir de si mesmo; ou seja, ou realizamos o


caminho de retorno sobre ns mesmos, ou a filosofia no passar de uma es-
pcie de espelhamento natural das coisas do mundo. E neste sentido, tambm uma
Filosofia da Educao no passar de campo subalterno do conhecimento au-
torizado. Assim, preferimos evitar a forma substantiva de nomeao das coisas,
assumindo a forma verbal como conceito limite absoluto. neste sentido que
falamos de Filosofia do Educar (filosofar educante), evitando a expresso j
consagrada de Filosofia da Educao. Com esta mudana de nome mudamos
tambm o conceito da coisa que filosfica: o educar. Ou seja, no pensamos
o educar separado do filosofar, e a filosofia continua aparecendo como relao
amorosa com a coisa mesma do pensar-ser.

Partimos, desse modo, de uma atitude de suspenso de todos os dados


e de todos os juzos de valor j produzidos at ento, na linha do tempo de
nossa condio histrico-existencial concreta. Este ponto de partida fez voto
de pobreza em relao ao conhecimento adquirido secularmente, o que no
significa desconhecimento ou grosseira desvalorizao das tradies vigentes, e
sim uma repulsa aos elaborados racionais que queiram se impor como leis na-
turais do mundo dado, sem que seja preciso nenhum esforo transcendental
prprio e apropriado. Partimos, portanto, de uma radicalidade de princpio que
realiza o esforo transcendental como alcance apodctico do conhecimento
geral do ser-no-mundo-com, ou seja, do que necessrio e universal, isto ,
alcance do que nos constitui fenomenologicamente falando, em nossa condi-
o de existncia concreta e histrica.

Entretanto, com esta forma de crena transcendental, no corremos


o risco de permanecer no horizonte gnosiolgico da filosofia e da cincia mo-
dernas? Ser ainda necessrio afirmar verdades apodcticas como caminho
fundamental para a construo da filosofia e da cincia? Que garantias, enfim,
temos ao trilhar um caminho de retorno radical sobre ns mesmos? Acredita-
mos em universais necessrios, deduzidos por intuies intelectuais solipsistas
totalizadoras? Podemos, como acreditavam Descartes e Husserl, realizar o
retorno radical sobre ns mesmos e, em ns mesmos, encontrar a evidncia
absoluta da verdade universal o verdadeiro ego transcendental?

Bem, o nosso ponto de partida fenomenolgico necessita de maiores


esclarecimentos. A questo, ento, concentra-se no movimento de retorno
radical sobre ns mesmos. Queremos, ento, saber: o que isto significa o
movimento de retorno ao nosso ego transcendental? As figuraes, aqui, so a
essncia da nossa questo. Queremos saber o que nos constitui como egos
transcendentais, isto , como conscincias viventes abertas ao acontecimento
22

do sentido, em constelaes anelares pr-existentes. Ento, podemos alcanar,


ainda, uma abrangncia universal para a questo do conhecimento transcen-
dental?

Tais questes nos desconcertam e nos confundem momentaneamente.


O que estamos propondo segue o desenho da crtica racionalista moderna de
Descartes a Deleuze? Ou procura, justamente, um novo incio para o filosofar?
E ao procurar este novo incio, qual mesmo a novidade do empreendimento?
No seria ela, a novidade, uma iluso renovada da plenitude inalcanvel? Ou
seja, no seria isto uma fuga da realidade dura e rida do saber sempre certo da
racionalidade apartada do mundo?

O que propomos no algo fcil de justificar, porque construmos algo


que tem sua prpria marca de origem. E qual mesmo esta marca? Onde en-
contrar os seus traos e sinais certos e incontestveis? Pelo visto, no seremos
facilmente acolhidos em nossas intenes de um novo comeo para o filosofar como
prtica aprendente do ser-sendo. claro, quem somos ns, e de onde provm a nos-
sa autorizao para falar algo to inusitado: uma filosofia do educar polilgica?

Este o problema: estamos justamente no incio; somos iniciantes.


Entretanto, queremos aprender com brio e altivez; no queremos permanecer
sob a guarda de qualquer que seja a autoridade externa nossa prpria vonta-
de. claro, no falamos de vontade individual, mas de conjugao e comu-
nho de foras mltiplas e associadas. No falamos seno em nosso prprio
nome, segundo a pulso de nossas vidas consteladas.

A sada do ego transcendental

O ponto de partida fenomenolgico descrito no nos deixa repousar


no conceito limite de ego transcendental postulado por Husserl. Entretanto, ele
nos serve de ponto de inflexo, no sentido de uma mudana de horizonte no-
emtico para o tratamento-vivncia do tema do educar. Neste sentido, nosso
campo conceitual funda sua prpria evidncia predicativa, apesar das mesmas
encontram o seu fundamento em juzos e evidncias ante-predicativas. O al-
cance do eu transcendental realizado na epoch () fenomenolgica.
Reduzindo meu eu humano natural e a sua vida psquica (domnio da experincia
psicolgica interna) ao meu eu transcendental e fenomenolgico (domnio da expe-
rincia interna transcendental e fenomenolgica), alcano uma evidncia absoluta. A
questo, portanto, no se limita a uma mera representao de fatos vividos
pelos outros, mas requer que se alcance a vivncia meditativa concreta do ego
transcendental. Este ponto de radicalidade permite a sada da prpria ideia de
23

ego transcendental. Como diz Husserl, o conceito de transcendental e o seu


correlativo, o conceito de transcendente, devemos retira-los exclusivamente
da nossa prpria meditao filosfica (s/d,p. 40).

Ora, isto afirma a necessria atitude de radicalidade (transcendncia) di-


ante do aparente e manifesto mundo natural. Isto ns joga para dentro de ns
mesmos, no sentido de um retorno ao nosso eu transcendental. Ou melhor,
todos os objetos e todos os dados externos da experincia j no mais se en-
contram fora de ns, mas se constituem a partir do ego transcendental. Por-
tanto, o mundo natural j no um problema que nos toca. O eu e sua vida
psquica no constituem mais uma parte do mundo. O que isto quer dizer?
Bem, quer dizer que o eu j no se confunde como sendo isto ou aquilo, este
ou aquele homem, nem muito menos se confunde com o homem capaz, em
sua limitao de produo de abstraes singulares, de alcanar a sua prpria
mente ou alma ou intelecto, nem mesmo o alcance da prpria alma tomada sepa-
radamente. Portanto, o eu no se confunde com a egoidade tipicamente hu-
mana. Assim, a experincia puramente interna de meu eu deixada de lado
em sua singularidade, ficando apenas o fluxo existencial do prprio eu em sua
indistino.

O eu, assim, no mais um EU afirmativo e singular, mas a prpria


possibilidade de uma Filosofia fenomenolgica ou transcendental, alias a pr-
pria possibilidade de uma Filosofia apropriadamente crtica, independente,
desde de si mesma, de toda e qualquer ordem implcita ou explcita: livre e-
xerccio absoluto exerccio de ser fundando-se e re-fundando-se infinita-
mente.

Pelo visto ficamos ainda no que pode ser tomado como simples produ-
o de sentido singular. O nosso ponto de radicalidade pode fazer pensar que
permanecemos no limiar das filosofias da conscincia. Afinal, como usar
Husserl como inspirao e no praticar uma estrita filosofia da conscincia? A
questo, nos parece, tangencia o conceito de conscincia e suas implicaes
de sentido j institudos historicamente. Entretanto, podemos ainda tomar a
conscincia como pertencente ao campo pr-reflexivo, o que nos permite sair
da ideia de conscincia como conscincia intelectual. Deste modo, ousamos a sa-
da, para ns uma evidncia, do ego transcendental, isto , no aceitamos co-
mo dada a existncia do eu natural e nem do eu transcendental, mas apenas
abarcamos a egoidade e a naturalidade enquanto nos inscrevemos no fluxo
da conscincia em seu infinito campo de possibilidades focais. A conscincia,
assim, sempre uma implicao existencial, ou seja, pressupe o ser capaz de
conscincia, a partir de uma conscincia de conscincia. Deste modo, o im-
24

portante a vida em seu acontecimento consciente, isto , na vivncia do ego


transcendental instante, em que o objeto do conhecimento o prprio sujeito
do conhecimento, e o sujeito, assim, se torna um polijecto do conhecimento.

No se discute, portanto, se h conhecimento, mas se procura meditar


o conhecimento do conhecimento como modo de ser-no-mundo-com. Assim, o
foco de nossa sada do ego transcendental o acontecimento da relao de
possibilidades aprendentes ainda no experienciadas. Neste sentido, na medi-
da em que no cabe mais estabelecer princpios para a validao de regras de
conduta universais e uniformes, o importante cuidar do estado do que vi-
vo e vital. Trata-se de um cuidar que um aprender a ser infinito.

Com tais encaminhamentos, o que temos a possibilidade de fazer va-


ler uma atitude de radicalidade aprendente que realize, desde do comeo, o
retorno radical sobre si mesmo, independente de todo e qualquer estatuto ou
regra externa ao prprio contexto aprendente efetivo. Isto significa deixar a-
para trs a ideia de um sistema filosfico completo, que permitiria, tambm,
tratar de temas como a educao de uma forma sistematicamente filosfica.
No queremos aqui construir uma Filosofia da Educao, e sim realizar uma Fi-
losofia do Educar, ou melhor, um filosofar por si s educante: ser-no-mundo-
fazendo-se, ultrapassando-se, doando-se ao que instante-vivo.

Aqui nosso intuito no o de construir uma substncia chamada educa-


o,a partir de uma tica especificamente filosfica. Queremos, pelo contrrio,
desconstruir os cenrios das representaes que a filosofia da educao vem
montando ao longo de um tempo significativo. Ou seja, queremos descons-
truir a pretenso de uma Filosofia da Educao. Desconstruir, entretanto, no
significa desconhecer os cenrios a desmontar, mas justamente conhec-los
em seus momentos determinados e em suas conexes radiais infinitas. A car-
ga do sentido, deste modo, sempre um presente vivo que se devota a viver.
Tem carga e sentido aquilo que se auto-percebe em relao ao seu ser-
sentido-sendo: modo de ser do ser consciente/inconsciente de si, do outro e
do ambiente de vida.

Diante dessa especfica figurao transcendental, o melhor mesmo


no procurar entender, posto que o que importa no o entendimento no
sentido intelectual do termo. Muito alm disto, trata-se de uma apreen-
so/vivncia que nos dispe ao acontecimento de um retorno radical ao fun-
do comum de tudo: o sem-fundamento, o vazio, o caos. Ora, uma tal possi-
bilidade j se encontra implicada no mundo-da-vida, e dele no se aparta para
nada. A questo, ento, saber o que compreendemos por mundo-da-vida. O
25

mundo e todas as vivncias psicolgicas possveis j se encontram dados em


uma conscincia de que h conscincia. Deste modo, no se trata de confun-
dir os plos da relao, como se fossem regidos por uma identidade corres-
pondente a um trao do ser, e estivessem submetidos a uma falsa igualdade
entre ente e ser. O mundo dado, assim, no nunca um mundo natural, e
isto porque, para a conscincia de conscincia todo mundo natural tam-
bm mundo construdo, isto , fenmeno de conscincia de que se tem
conscincia. Deste modo, qualquer forma de relao bipolarizada eliminada
da cena, porque o que importa no averiguar objetivamente as leis do mun-
do, mas abandonar de vez, a ideia da existncia de um mundo natural, conse-
qentemente, de um homem natural. precisamente esta naturalidade
que passa a ser colocada de lado: no h dados naturais dotados de contedos
humanos, e sim contedos humanos dotados da naturalidade de processos
gerativos auto-reguladores.

Diante disso, a sada do ego transcendental quer ressignificar as possibi-


lidades de um exerccio filosfico autnomo e inventivo, e quer fazer disto
um caminho aprendente radical: caminho absolutamente aberto ao seu pr-
prio absoluto a imagem do infinito no finito.

Mudana de estado: do substantivo ao verbo

A partir da toro fenomenolgica esboada anteriormente, deixamos


de lado qualquer tentativa de construo substantiva da educao, como prtica
filosfica sistemtica, e partimos para a concretizao do fazer educante, no
sentido de um educar aberto ao acontecimento implicado e solidrio das mul-
tiplicidades viventes. Isto deixa de lado qualquer ideia de filosofia como porta-
dora da tarefa de produzir metanarrativas verdadeiras e objetivas, e restitui ao
filosofar a primazia do ato filosfico, no sentido prprio do termo, isto , co-
mo ato implicado no acontecimento do com-sentido, independente do modo e
da forma em que se diga e se mostre o ser-fenmeno. E justo a, no ser-
fenmeno, que importa ressaltar a abertura do aprendizado. Trata-se da passa-
gem do estado substantivo para o estado verbo. Bem, no se trata de uma oposio.
Pelo contrrio, falamos em passagem de um estado a outro: passagem de um
estado de conscincia ingnua para um estado de conscincia ctica: uma cons-
cincia interrogante. E porque uma passagem e no uma contraposio, no
se nega a existncia arqueolgica de sistemas filosficos que se dedicaram e
dedicam, tambm, aos problemas pedaggicos. Em outras palavras, a passagem
do estado substantivo para o estado verbo implica na reformulao radical de todas
as categorias que regem nossos regimes de significao, a partir de um novo
26

comeo, um comeo suficientemente iniciado para poder engendrar novas


formas de fazer e de dizer, de ser e de pensar novas aventuras filosofantes.

na medida da passagem anunciada que falamos aqui em Filosofia do


Educar polilgica. Como filosofia, ela pressupe, antes de tudo, a atitude de
radicalidade aprendente. Assim, por filosofia dizemos a atitude de aprendizado
autoconhecente. Neste sentido, a filosofia do educar aqui delineada ensaia a
formulao de novas aventuras do aprendizado de si mesmo, deixando em
aberto os infinitos caminhos para se alcanar o xito de uma ao criadora.
Entretanto, esta abertura apenas indica que a realizao do que chamamos filo-
sofia do educar no se representa apenas neste modo de dizer a coisa do edu-
car, mas, ao mesmo tempo, afirma que este modo pode ser tambm um modo
vivo de conceber o educar criador.

A partir, portanto, do salto epistemolgico descrito, a passagem do


substantivo para o verbo, queremos anunciar o surgimento de uma tenso
filosfica que se funda na ao aprendente aberta fenomenologicamente. Isto
significa dizer que qualquer tema pode tornar-se objeto de uma investigao
filosfica, desde que se compreenda a filosofia como atitude aprendente radi-
cal: alcance do modo de ser criador e guardador do que no se pode comparar
e reduzir a mero estatuto de objeto ou de sujeito. Neste sentido, o ato educante
realizado aquele mesmo que realizamos a partir de ns mesmos, em ns
mesmos. Melhor dizendo: este ns no se reduz ao eu psicolgico dos hu-
manos, e nem muito menos pode-se dizer que no humano. Pelo contrrio, o
humano se reconhece como tal a partir de seu prprio modo de existncia situ-
ada, e de nenhum modo podo-se querer reduzir o acontecimento do ser-sendo
aos moldes monolgicos de uma racionalidade doentia e perversa. Uma filoso-
fia do educar se ocupa justamente da ao educante em sua nascente. No o
antes ou o depois que interessa, mas a ao em si mesma.

Claro, isso no algo fcil de compreender. Afinal, no se exime nin-


gum de ter que fazer o esforo de auto-esvaziamento para poder alcanar
atitude aprendente atenta ao acontecimento sempre vivo e presente. Permane-
cer no presente o ato aprendente em si mesmo. Isto no se ensina e no se
transmite geneticamente. Permanecer na conscincia de uma conscincia que
tem conscincia de ser conscincia um ato de intuio que ultrapassa os limi-
tes do ser consciente: o permanecer vazio diante do tempo psicolgico recor-
rente. A recorrncia psicolgica o obstculo a vencer. Deixar de lado o que
parece claro e cheio de si o caminho para a sada do ego transcendental, co-
mo realizao de outras possibilidades aprendentes: construo verbal, filosofia
do educar polilgica.
27

Proposio simples: no caminho de uma ontologia radical

O ponto focal da filosofia do educar aqui delineada a realizao de


um novo incio para o aprendizado do pensar. Como vimos, este novo incio
no pode ser buscado fora de ns mesmos. E porque em ns mesmos que se
encontra a possibilidade de tal acontecimento, tudo o que at ento j se disse
sobre o ato de educar matria prima para a construo de uma filosofia do
educar ontologicamente fundada. O ato de ser-no-mundo-com que nos peculiar
se configura, agora, a partir de um esvaziamento de todo sentido atribudo ao
filosofar e ao educar. Educar e filosofar so, assim, o mesmo. O filosofar um
educar e o educar um filosofar. Neste sentido, o educar no depende do filoso-
far nem o filosofar do educar. Ambos so o mesmo, ou melhor, so modos de
ser aprendentes e abertos liberdade do encontro inusitado. O filosofar em
si mesmo educar e o educar em si mesmo um filosofar.

O ponto comum a identidade nascida da relao de co-pertencimento


ao mesmo. No se trata, entretanto de uma identidade lgica, e sim de uma
identidade ontolgica. Em outras palavras, trata-se da identidade que funda o
filosofar e o educar na relao de co-pertencimento diferena ontolgica. O
filosofar um pensar assim como o educar um modo de ser; o educar um
pensar assim como o filosofar um modo de ser. Esta correspondncia diz
respeito unidade mltipla do ato de ser e pensar. O fundo comum a dife-
rena entre ser e pensar, isto , o mesmo, o igual. A correspondncia, entretan-
to, no causal e sim modal. Por serem diferentes ser e pensar se encontram
unidos no mesmo Um: o sem-fundamento. Tanto o ser como o pensar so
idnticos no co-pertencimento. Ambos identificam-se apenas a partir da rela-
o de comum pertencimento. A identidade assim, a prpria diferena onto-
lgica que, na raiz, se encontra relacionada com o igual. Ora, igual a si mesmo
tanto o pensar como o ser. Entretanto, na relao de co-pertencimento um
no sem o outro, e em nenhum deles se encontra a causa primeira derradeira,
porque um s com o outro o idntico a si mesmo. Portanto, a identidade no
mais pensada como um trao do ser, e sim o ser torna-se um trao da identi-
dade, ou melhor, da diferena ontolgica originante.

Aqui o fundamental o princpio da diferena ontolgica. ele que


aponta para uma identidade que no se restringe frmula consagrada A = A,
porque um A somente igual a ele mesmo,e nenhum outro A poder igualar-se
a qualquer que seja o A. Esta frmula lgica com a qual se expressou o concei-
to central do princpio de identidade na cultura ocidental revelou-se contradit-
ria, na medida em que da relao entre iguais ela permite estabelecer o privil-
28

gio de uma das partes sobre a outra. Assim, entre o ser e o pensar passou a
existir uma relao de derivao fundada em uma igualdade desigual, porque,
na identidade da relao, uma das partes acabou aparecendo como dominante e
a outra como dominada.

Este modo lgico de pensar a identidade como um simples trao do


ser, em que coisas distintas, mesmo que smiles, se confundem com o igual, faz
do pensar uma instantnea cpia do ser, ou melhor, seu espelhamento. Ora,
mas o que est dito que o pensar e o ser so o mesmo, o que em nenhum
momento significa dizer que um cpia imagtica e fantasiosa do outro e que
s um o real, sendo o outro apenas o imaginrio, o flutuante , o efmero.
Esta forma grosseira de se conceber o acontecimento do sentido mesmo para
fazer desesperar o mais santo dos homens. Entretanto, a partir de uma herme-
nutica ontolgica fundada na diferena como diferena ocorre uma reviravol-
ta no mbito da interpretao do ser pelo pensar.

O pensar mesmo ele mesmo o ser. Isto em hiptese alguma quer di-
zer que um deriva do outro, mas que ambos se encontram na relao de co-
pertencimento originrio e igual, isto , ambos se do a saber um pelo outro
enquanto so o mesmo, ou melhor, se do a saber no pensar como ser-no-
mundeo-com. Esta proposio pode parecer arbitrria e enigmtica, mas ela est
dizendo que o educar e o filosofar so apenas distintos como traos de uma
mesma identidade: a relao de co-pertencimento. Esta afirmao nos abisma
em um universo de sentidos ainda desconhecidos, o que nos convoca a apren-
der a aprender a ser-pensante.

O ser pensante tornou-se, ento, o foco de nossa identidade entre edu-


car e filosofar. S uma ontologia radical permite configurar uma tal possibili-
dade. O acesso a isto o nosso prprio ser enquanto existe. a que se encon-
tra toda possibilidade e toda impossibilidade de ser e de no-ser. E porque a
origem um campo de co-pertencimento e de diversidades, enquanto somos
nunca podemos abandon-la. Ou seja, nunca abandonamos a origem do nosso
comum-pertencimento ao ente e ao ser, sendo o ente agora o prprio pensar
enquanto ser. Neste sentido o educar em si mesmo um filosofar em si
mesmo. Entretanto, para que isto ocorra necessrio abdicar de toda e qual-
quer pretenso sistemtica de abarcar a lei perene e imutvel das coisas, porque
a nica lei perene para o acontecimento do sentido o seu comum-
pertencimento ao mbito do sem-fundamento, o Vazio, o Caos.

Ora, isto pode at parecer um mero jogo de palavras jogadas ao acaso,


mas apresenta um solo ontolgico novo para a construo local de uma filoso-
29

fia do educar polilgica. E porque no se pretende edificar um sistema conclu-


sivo metalingstico sobre a educao e/ou o educar, e sim realizar possibilida-
des aprendentes concretas e bem distintas umas das outras, preciso que por
primeiro cada um por sua conta cumpra o esvaziamento ontolgico do seu
prprio eu encarnado. Isto quer dizer que o interesse de uma filosofia do edu-
car polilgica da ordem do aprender a ser-sendo, isto , uma ao que exige
de cada um de ns o aprendizado meticuloso e longo da arte de viver o presen-
te como acontecimento do co-pertencimento originante.

Tudo isso, entretanto, no descreve uma sada facilitada para os me-


nos esforados nos estudos filosficos, e nem muito menos pretende negar
outras possibilidades conceptivas no contempladas nesta perspectiva polilgi-
ca. No pretendemos negar a histria da Filosofia da Educao no Ocidente,
mas apenas mostrar um possvel caminho de ressignificao do ato educante
como sendo da ordem da ao livre e inventiva, cabendo a cada um realizar em
si mesmo a experincia de retorno radical ao mundo da vida, segundo o modo
como vivemos e re-fazemos o mundo aparentemente dado. Afinal, do ponto
de vista fenomenolgico, o mundo dado passou a ser apenas um fenmeno de
existncia, e no algo derradeiro e intocvel. Este um campo de investigao
fundamental para que se possa compreender o educar como filosofar. Agora,
para que isto acontea preciso alcanar o estado da arte no fazer aprendente.
Assim, o educar no mais se pode associar aplicao de normas de conduta
exemplares, no processo de imposio de modelos supostamente bons.

O educar passa a ser uma ao aprendente aberta ao seu prprio acon-


tecimento. justamente neste ponto que o educar , por natureza, filosfico,
isto , se dispe aberto ao acontecimento do sentido como aprendizado dial-
gico, onde o co-pertencimento dos dialogantes no enamoramento vivente o
solo onde brota a fonte da sabedoria. E a sabedoria sempre um tesouro dos
que dialogam, e s os que dialogam a dispem, ou melhor, so tomados por
ela.

Deste modo, caminhando em uma ontologia radical realizamos a pas-


sagem do estado substantivo para o estado verbo. Entretanto, isto apenas nos deixa
vazios para o aprendizado do que apaixona os mais distantes recantos do ser-
sendo. Ora, isto s se pode fazer atravs de modos apropriados, porque o es-
tado da arte requerido sempre pressupe modos de ser-sendo muito peculiares
e distintos. Assim, um primeiro passo para o alcance de um conceito guia para
significar uma Filosofia do Educar polilgica o esvaziamento de nosso pr-
prio ego com todas as suas convices e crenas. Este o estado da arte que
pretendemos para o filosofar educante. Neste sentido o filosofar um educar
30

porque ele mesmo um modo de fazer arte. A filosofia, portanto, nesta nossa
visada, um modo peculiar de fazer arte. Este modo peculiar encontra-se fun-
dado na prpria necessidade humana de fazer e de agir para poder-ser.

Trata-se, ainda que ressignificado, do mundo do trabalho em que o


homem se encontra sendo. Infelizmente, a falta de uma hermenutica mais
radical sobre o sentido do trabalho para a vida humana fonte de muitos equ-
vocos e disputas belicosas entre culturas histricas distintas. As chamadas ati-
vidades intelectuais, aparecem, ento, como sofisticao e perfumaria produzi-
das por grupos humanos dominantes e pretensamente superiores aos pobres
coitados que vivem no mundo natural. Mas afinal, quem humano que vive
em um mundo natural? O incrvel que o preconceito em relao ao prprio
homem. A pretensa naturalidade humana, assim, se mostra quase como uma
evidncia antropolgica e biolgica. Entretanto, que homem homem que
vive em estado natural? Seguramente todo ser humano deixado prpria sorte
desde o nascimento, podem dizer bilogos e antroplogos. claro, isto um
fato bastante condizente. Contudo, reduzir o ser humano ao determinismo
pretensamente biolgico ou antropolgico mostrou-se sempre como algo se-
melhante a querer deduzir leis perenes do ser humano de estudo de casos ou
de srie de casos.

Por mais que se proceda ao infinito a multiplicao dos casos, em qual-


quer parte de uma escala ou de uma progresso poder ocorrer a descontinui-
dade da srie deduzida. Isto demonstra a impossibilidade de se chegar a verda-
des exatas atravs da mera investigao emprica. A empiria, neste caso, faz
parte da prpria experincia do educar e do filosofar, e as formas modernas de
definio e regulao da empiria no passam de casos isolados e singulares.
Assim, o educar anunciado como filosfico e polilgico no admite fechar-se
em seriaes e modulaes estanques e hegemnicas, porque uma fora em si
mesmo plstica e plasmante, capaz sempre de romper continuidades j institu-
das e ordinrias. Este o foco: uma filosofia do educar polilgica ao a-
prendente no prprio ato de aprender o dilogo interrogante entre interlocuto-
res dialgicos e no apenas discursivos e opositivos.

O sentido prvio do educar como disposio ao acontecimento do


sentido infinito e implicado do ser-sendo
31

O educar tornou-se para ns um filosofar efetivo. Isto implica conce-


ber o educar como disposio ao acontecimento do sentido infinito e implicado se ser-sendo.
aqui que entra a necessidade de se compreender a filosofia do educar como
caminho aprendente do ser-sendo. Isto tambm pressupe o estado da arte.
Educar uma arte tanto como o filosofar. Dizer qua so arte, no significa
dizer que no so tcnicos, e sim que so artsticos em seus modos de dizer e
de fazer modos sempre inventivos, irrepetveis. A tcnica, no caso, assun-
to pessoal do filsofo ou educador, o seu prprio modo de dizer e fazer sua
obra. Nem o filosofar nem o educar so meras tcnicas de saber-fazer, mas so
caminhos aprendentes abertos ao seu prprio acontecimento. Os problemas
comeam quando se pretende ensinar o estado da arte sem o fazer propria-
mente arte. E o fazer propriamente no objeto de ensino, exceto quando se
trata do fazer nas atividades de repetio e assimilao. Estas tambm fazem
parte do elenco moderno do que se deve aprender para se poder ser melhor no
mundo do capital. Mas isto no diz respeito ao ato filosfico e educante em
suas naturezas pensantes e radicais, em seus saltos inventivos e extraordinrios.
Isto apenas diz respeito aos atos mecanicamente repetidos e aos interesses
mercantis determinados.

Falando assim at parece que a condio humana ideal e benfazeja.


Mas justo o contrrio o que acontece: a condio humana a mais desequili-
brada de todas as formas de vida conhecidas. As desigualdades so incontveis
em suas infindveis sries e casos. A bestialidade tambm tem se mostrado um
trao comum aos seres humano existentes. mesmo desesperadora a condio
humana desde sua origem. Apenas uma minoria goza do estado de bem-
aventurana, e no me refiro minoria dos grupos humanos socialmente abas-
tados e ricos, mas minoria dos que atravessam o limiar do prprio ego trans-
cendental e desembocam no mundo da vida com a germinao de suas trans-
cendncias silenciosas.

Neste sentido, a condio de miserabilidade humana fica restrita aos


grilhes do mundo da necessidade. At no mito da criao do homem se en-
contra, desde o meio do caminho, a interdio divina em relao sua liberda-
de absoluta. Pelo contrrio, ao ser humano cabe rastejar e submeter-se aos
ditames do mundo da necessidade, pagando com o seu trabalho a perpetuao
de uma vida ou de escravo ou de senhor. Esta interdio divina o estigma da
humanidade histrica, porque a necessidade filha do desejo pela completude
de ser como Deus , em seu ser eternamente incompleto e inacabado. Aconte-
ce que o Deus mtico uma obra inacabada do esprito na condio humana.
Pelo conhecimento cientfico ou pela ascese mstica, ou pelo empreendimento
32

econmico, o ser humano sempre busca o querer-ser e o querer-saber. Aconte-


ce que h o ser humano em uma concreta condio de existncia.

E porque o ser humano apenas enquanto existe o ente-espcie huma-


nidade, ele est sempre predisposto ao acontecimento divino em seu prprio
ser, apesar de dificilmente deixar vir ao encontro a liberdade do ser humano
que se pe em p de igualdade com os deuses e os imortais. Esta condio
simblica originante no depende de um progresso do esprito humano para
poder vir a acontecer, simplesmente porque ela j plenitude e liberdade em si
mesma, independente de qualquer posse ou de qualquer territrio pr-
estabelecido nas relaes institudas de poder. claro, este acesso ao mundo
da sabedoria no nos chega por sortilgios ou rituais mgicos deliberados, mas
implica em uma escarposa ascenso de autoconhecimento construdo cotidia-
namente. Neste sentido, uma filosofia do educar assim concebida no se inte-
ressa em descrever os fenmenos vigentes da educao humana contempor-
nea, entendendo a toda a memria histrica disponvel nos arquivos da huma-
nidade histrica. Estamos, assim, falando de uma condio humana que pro-
cesso histrico permanente. De uma condio humana que pode tornar-se
liberta de sua prpria necessidade, sem que a necessidade seja negada em seu
efetivo acontecimento. Somos todos filhos da necessidade. Enquanto huma-
nos, somos a necessidade vivente encarnada. na e pela necessidade que se
pode tambm aprender a ser livre como necessidade. Vista deste modo, a li-
berdade aparece como o prprio fundante da necessidade, e no o contrrio.

Portanto, ao dizermos que o sentido prvio da filosofia do educar aqui


delineado a disposio ao acontecimento do sentido infinito e implicado do ser-sendo,
afirmamos a necessidade de construirmos os caminhos histricos de perpetua-
o do ente-espcie humanidade em sua disposio ao cuidar e ao criar do seu
prprio ser. como ser-humanidade que o agir humano nos interessa, fazen-
do sentido a construo de uma filosofia do educar polilgica. Este sentido
encontra-se no prprio agir dialogante do aprender a ser-sendo, isto , encon-
tra-se na conjugao e na conjuno de filosofar e educar. Educar para filoso-
far e filosofar para educar. At parece frase feita de partido em poca de elei-
o. Mas a questo aqui de outra alada.

A questo uma tenso existente entre um estado substantivo e um es-


tado verbo de ser-no-mundo. em nome deste salto que a filosofia se fez no
filosofar. S o acesso a si mesmo, atravs do autoconhecimento, d acesso
sada do ego transcendental institudo. Isto mostra como fundamental o a-
prender a pensar e, desta forma, apresenta-nos a urgncia de uma filosofia do
educar polilgica: ela pode nos ajudar a sair a velha gramtica e ancorarmos
33

nossa embarcao nas guas densas da fenomenologia transcendental, ou me-


lhor, da filosofia em seu exerccio poemtico-pedaggico radical. O fazer e o
saber-fazer so os fundamentos de toda prtica humana concretizada. No fa-
zer e no saber-fazer esto os focos da intencionalidade aprendente do filosofar
e do educar. S se aprende o que se mostra necessrio no pensar-ser. S o ne-
cessrio pode ser aprendido em seu evento. Necessrio o livre vo do pssa-
ro no ar. Sem a resistncia do ar o vo nunca seria possvel.

Este o estado aprendente que pode e se deve realizar plenamente: a


condio humana que alcana o estado filosofante do fazer-se com arte, nas
dialogias diferenciais de cada relao de co-pertencimento amoroso e apren-
dente de ser-sendo. Nestas passagens e sinapses risomticas mltiplas o impor-
tante alcanar um estado de sabedoria pessoal que nos permita permanecer
atentos ao instante presente, sem que seja preciso negar os efeitos matrias do
passado ou do futuro do ente-espcie humanidade. Pelo contrrio, este estado
de sabedoria fruto de um esvaziamento de toda e qualquer pretenso de co-
nhecimento verdadeiramente verdadeiro das coisas. Acontece que com a epoch
fenomenolgica realizada ocorreu um ponto de no retorno ao estado supos-
tamente natural do ser humano, o que implica em experimentar-se lanado em
novas possibilidades de ser e de pensar. isto o que anunciamos como condi-
o prvia para a vivncia da filosofia do educar polilgica aqui delineada.

Delineamentos conclusivos: o agir pedaggico como aprender a


pensar-ser

At agora em nossa investigao ficou evidente a necessidade de um


recomeo radical para da filosofia e do filosofar, o que se identifica, pela pro-
ximidade e pela relao, com o prprio educar filosofante. Isto ficou eviden-
ciado no movimento de desconstruo fenomenolgica praticado. Todas as
verdades e todas as crenas at ento determinadas pelos regimes humanos de
significao so pretextos na construo da realizao do ser-pensar concebi-
do como filosofar educante.

Ora, o educante aqui no ocupa o papel paterno da norma ou da lei


modelada, mas apenas a condio de possibilidade do aprender a ser prprio
ao ente espcie-humanidade. Isto nos obriga a abandonar, por princpio, as
amarras da velha gramtica metafsica do Ocidente e enveredar em sendas e
caminhos ainda no vividos. Este o estado aprendente que vimos realizando
como atitude fenomenolgica permanente. Isto implica que o delineamento
de uma filosofia do educar polilgica o resultado do meu ponto de inflexo
radical no caminho aprendente do filosofar como caminho de retorno sabe-
34

doria do que simplesmente o ser do ente em sua infinita gnese e transfor-


mao.

Afinal, uma filosofia do educar assim concebida no quer antecipar na-


da daquilo que possa vir a acontecer, daqui por diante, com o ser-pensar au-
tnomo e inventivo. Isto sobretudo por que o seu ethos fundamental o sen-
timento de indignao pela condio da humanidade histrica a instalada e
atuante, e o seu pthos ainda a paixo pela completude do ser-sendo, em seu
acontecimento exttico diante do infinito turbilho caldrico do mundo feno-
menal. Assim, a fenomenocidade do nosso ser-no-mundo-com aquilo mesmo
que sabemos ser a partir de ns mesmos, independente do mundo objetivo
que se perfila em nossas percepes comuns e ordinrias. Portanto, uma filo-
sofia do educar polilgica s pode acontecer no mbito de um exerccio filo-
sofante aprendente a aberto aos questionamentos radicais do prprio ser. As-
sim, qualquer que seja a idealizao produzida pela razo humana acerca do
que significa ser-sendo no passar de plida sombra do que s por inteiro
no mbito do seu prprio advento desvelante.

isto o que queremos que seja esta filosofia do educar polilgica ligei-
ramente delineada: uma abertura aprendente lanada na infinita investigao
criadora de si mesmo. Isto de espantar at mesmo os mais cticos interlocu-
tores, ainda mais espantar os que se sentirem convocados a este mergulho
radical nas absolutas e turvas fontes do conhecimento humano. Educar, en-
to, uma questo de raa e grima, sendo a grima a forja necessria para o sur-
gimento de realizaes do prprio ser na incompletude do acontecimento in-
cessante da vida-sendo: um ato de metaconscincia crtica no acontecimento
transcendente de nosso ser de passagem. O trabalho, ento se mostra longo e
rduo, no sendo larga a passagem que pode levar ao ego transcendental e
sada do mesmo em si mesmo, sem que haja a perda de sua diferena ontol-
gica originante. Eis, talvez algo digno ainda para poder merecer a teno filo-
sfica dos que se buscam a si mesmos. Um convite ao pensar sempre aberto
ao inesperado e ao indizvel. Entretanto, um pensar capaz de se indignar pela
perpetuao do estado humano de submisso e de bestialidade. Um pensar
que tambm um saber-ser prprio e apropriado, pela desapropriao de si
mesmo e do mundo. Um pensar livre de donos e comandantes: absoluto de-
sinteresse pela vida dissociada.

Referncias

HUSSERL, Edmund. Meditaes Cartesianas. Introduo Fenomenologia.


Traduo:Antnio M. Magalhes. Porto-Portugal: RS, s/d.
35

3
EDUCAO: TECENDO SONHOS, HUMANI-
ZANDO O MUNDO HOMENAGEANDO PAU-
LO FREIRE 3

Em primeiro lugar, agradeo o convite para participar desta mesa re-


donda por ocasio da VIII Jornada Pedaggica do SIMPRO-BA. O tema des-
ta mesa coincide com o da Jornada, que homenageia Paulo Freire. Portanto, a
tarefa desta mesa dupla: configurar o tema geral, a partir de uma interpreta-
o prpria e apropriada, e homenagear Paulo Freire. Sem dvida, no fcil
fazer estas duas coisas ao mesmo tempo, mas o que intencionamos, eu e o
professor Felippe Serpa, neste momento: tecer sonhos possveis, no sentido da
humanizao do mundo, e fazer ecoar a voz de um dos grandes educadores da
histria humana.

De qualquer modo, o nosso foco a educao, ou melhor, o aconteci-


mento do educar humano. E qual a nossa perspectiva de compreenso do
fenmeno educar? Bem, gostaramos de colocar esta questo para todos vo-
cs: o que pensam acerca do educar? H um dado capital em tudo isso: somos
todos professores. Portanto, a pergunta dirige-se aos professores e professoras,
isto , a todos ns profissionais da educao. Possumos, por ventura, uma
concepo unitria e comum da educao e do educar?

O problema diz respeito as nossas pr-concepes de educao, isto ,


os modos como miramos o fenmeno. Afinal, somos educadores ou apenas
simples professores? Qual a diferena entre ser professor e ser educador? Na
verdade, esta uma distino provocante: ela visa uma tomada de conscincia
de nossa real condio existencial. Trata-se, assim, de um questionamento que
cada um deveria fazer de si mesmo, isto , um perguntar-se seriamente: sou
professor ou sou educador? Qual a diferena?! Bem, a diferena encontra-

3
Trata-se do tema da mesa-redonda includa nas atividades da VIII Jornada Pedaggica do
SIMPRO-BA, em 20/09/2002.
36

se, como caso, na prpria ao pedaggica desenvolvida por Paulo Freire. Se


soubermos l-lo com ateno criativa, haveremos de ouvi-lo falar de uma con-
vocao ad-mirao como modo de aprendermos a ver com conscincia, a
partir de ns mesmos:
Para o ponto de vista crtico que aqui defendemos, a operao de mirar im-
plica outra a de ad-mirar. Ad-miramos e ao adentrar-nos no ad-mirado o mira-
mos de dentro e desde dentro, o que nos faz ver. (FREIRE, 2001, p. 43)

Na ingenuidade, que uma forma desarmada de enfrentamento com a


realidade, miramos apenas e, porque no ad-miramos, no podemos mirar o mirado
em sua intimidade, o que no nos leva a ver o que foi puramente mirado. (idem, p.
44)

Entre outras coisas, as palavras de Paulo Freire indicam para uma dife-
rena de atitude diante dos fenmenos que nos constituem. Trata-se de sair-
mos da atitude ingnua em que comumente nos inserimos e adentrarmos na
atitude crtica. preciso no apenas mirar o sentido do educar, mas ad-mirar o
campo da mira em sua ecloso e recolhimento. Ou seja, preciso que, alm de
professores, possamos ser tambm educadores. preciso, assim, que apren-
damos a ad-mirar o que se encontra na mira do nosso desejo: o educar. Portan-
to, no basta apenas mirar, como diz Freire, preciso, antes de tudo, ad-mirar
o educar, isto , saber-ser prprio e apropriado partir sempre do acolhimento de
si mesmo, e em si mesmo permanecer alm de si mesmo. O ad-mirar implica o
ser que ns mesmos podemos ser na clareira do evento humanidade. E porque
no sabemos ainda ad-mirar, apenas miramos o educar na perspectiva da pro-
fisso: tornamo-nos meros professores de conhecimentos adquiridos pela hu-
manidade ao longo de sua historicidade dominante. E a educao humana,
onde fica a educao humana? Ou melhor, o educar, onde fica ele? Somos
professores ou somos educadores? Ou ainda, somos professores- educadores?
Sabemos apenas mirar, ou sabemos j ad-mirar? Ou ainda, sabemos mirar-ad-
mirando?

O que cada um de ns diz a respeito? Sou professor ou sou educador?


Entretanto, qual mesmo a diferena entre uma coisa e outra? H, afinal, dife-
rena entre o professor e o educador? E vocs tm alguma dvida em relao
a isto? Quem haveria de negar a Paulo Freire o ttulo de educador da humani-
dade do homem? E ns, alcanamos a altitude de um Paulo Freire em nossas
prticas pedaggicas hodiernas? A resposta, ento, pode ser muito simples: a
maioria de ns professa o saber constitudo em cada uma das reas do conhe-
cimento especializado. Entretanto, quantos praticam a investigao radical de
si mesmo, ao modo, tambm, de um Paulo Freire? Este o dado que pode, de
alguma maneira, fazer aparecer um pouco da conscincia histrica mundial em
37

nossas to ocupadas vidas, vidas vividas para o trabalho profissional, segundo


as imperiais e incontestveis leis do mercado.
Vejam bem, estou aqui fazendo uma provocao pensante, e, em ho-
menagem a Paulo Freire, gostaria de inquietar vossos coraes com questes
cruciais que dizem respeito vida planetria, e no apenas nosso pequeno
mundico familiar. De modo bem radical, no poderemos sair da condio de
subalternidade em que nos encontramos historicamente, se no soubermos ad-
mirar a conjuntura histrica do nosso tempo contemporneo. Isto requer estu-
do e pesquisa. No necessariamente estudo e pesquisa nos moldes oficiais insti-
tudos de cientificidade e seriedade epistemolgica, mas necessariamente com-
preendendo por estudo e pesquisa aquilo que tira um povo, isto , tira seus
indivduos, da ocluso de sua prpria de-ciso soberana de ser-livre, construin-
do futuro no cuidado com a vida-sendo, concebendo a realizao plena da
humanidade do humano no tempo instante da vida ad-mirante.

Infelizmente, ou talvez felizmente, a nossa liberdade apenas uma pos-


sibilidade aprendente. Ningum nasce livre, mas se faz livre em seu ser. Consti-
tucionalmente falando, livre todo o cidado que cumprir a lei do seu estado.
Espiritualmente falando, livre todo aquele que se fizer livre de si mesmo, em
si mesmo. E porque no nascemos livres, mas para nos tornarmos livres preci-
samos exercer a liberdade, de algum modo o ser livre no da ordem dos regu-
lares conhecimentos adquiridos em bancos escolares. O que no quer dizer que
a escola no seja importante, e sim que a educao humana se d na vida, e as
instituies so artifcios criados culturalmente pelos homens para o exerccio
efetivo da vida associada. nesta perspectiva que ser professor e ser educador
so coisas distintas, e que ser professor e ser educador podem tornar-se o mes-
mo, isto , coincidir na mesma pessoa sem polarizaes funcionais.

De modo geral, porque somos profissionais da educao e no apren-


demos a pensar por conta prpria, ficamos a reboque de actantes coletivos
hegemnicos e centralizadores. No aprendemos o suficiente a questionar as
condies de existncia da nossa humanidade prxima, e nos contentamos em
repetir o que j est estabelecido. De certo modo, encontramo-nos abandona-
dos prpria sorte de um acaso pleno de cartas marcadas e vcios de subordi-
nao. E porque nada fazemos para mudar este estado de coisas, nossa sorte
vaga como folha ao vento, dominada por desconhecidas foras msticas e po-
deres invisveis. Do alto de sua humildade, seguramente Paulo Freire gostaria
de ver-nos mais altivos e despertos, menos acomodados e mais criadores de
ser. O fato que a sua pedagogia visa o educar humano para a emancipao
plena e no para a continuidade das mazelas e desgraas sociais to arrasadoras.
38

A rigor, a proposta de Freire requer revolues do esprito, revolues


do ser-no-mundo-com-outros. E revolues, nesta perspectiva, no separam
teoria de prxis, e nem aceitam o mero acmulo de conhecimento como sinal
de alguma coisa grande. As revolues necessrias so revolues de atitude
tica diante do acontecimento vida. O grande mestre desta histria no o
homem com seu prepotente intelecto plenamente racional, mas a vida que ele
carrega em si mesmo, para alm de si mesmo. Definitivamente, no o ser
humano que possui a vida, mas a vida que possui o ser humano. Isto muda
muita coisa para a compreenso humana de suas condies, limites e possibili-
dades de ser-plenamente, fazendo-se plenamente vivendo plenamente. E
esta uma ddiva do acontecer do sentido fora de qualquer prescrio moral
ou limite institucional tradicional, secular.

De alguma forma, Paulo Freire toca a questo da nossa alienao diante


dos acontecimentos que nos cercam. O modo de mira do nosso educar no
alcana o ad-mirar criador em sua nascente sempre instante. Dormimos, assim,
o sono dos injustos enquanto no aprendemos a ser-sendo de forma mais radi-
cal e genuna. Vivemos esquecidos do nosso prprio dom de ser criando-se
ultrapassagem.

Nossas pedagogias esto cheias de boas intenes. Entretanto, em ge-


ral, so pedagogias da acomodao e do aplicado treinamento de habilidades e
capacidades a servio de um mundo dominado pela tecnocincia. O exerccio
profissional dos professores regido por normas e leis determinadas pelo Es-
tado. Mas, quem o Estado? Ou melhor, quem est no poder no Estado? De
modo exaltado, poder-se- at responder: o Estado somos ns. Bem, mas que
ns este? Onde encontrar o fundamento e a efetividade deste ns? Cla-
ro, poder-se- responder: em ns mesmos encontraremos o fundamento deste
ns. Entretanto, como isto, em ns mesmos funda-se o Estado? isto
uma efetividade ou apenas efetividade para alguns poucos?

Bem, todos aqui fazem parte de um movimento sindical genuno, sa-


bem muito bem o significado e o peso da palavra cidadania. claro, isto faz
parte de um movimento de esclarecimento coletivo, fruto de lutas histricas
longas e, na maioria das vezes, violentas. Sem dvida, o Estado funciona atra-
vs de suas representaes legtimas. O Estado, assim, tem sempre a forma dos
que o governam, segundo os interesses dos grupos dominantes. O Estado mu-
da com a mudana de seus campos de interesse, isto , com a mudana de seus
atores e actantes. Ento, o ns sempre algo determinado no Estado: ele
sempre diz respeito aos grupos associados dominantes. Ora, isto quer dizer que
o Estado um ns apenas para os que se encontram legitimamente repre-
39

sentados em sua constituio. Para cada um de ns aqui presentes, sem dvida


que o Estado um ns: somos cidados e cidads conscientes de direitos e
deveres exercemos nossa cidadania.

No ponho em dvida nossa organizao sindical, nossa participao


na luta no-armada das polticas pblicas, visando-se um bem comum justo e
humanitrio. Ponho em dvida a suficincia e eficincia de nossas aes polti-
cas organizadas, no sentido de uma educao bsica mais humana e menos
imediatista. No campo da educao isto uma evidncia. No preciso recor-
rer a nenhum grande pensador da educao para saber do descompasso exis-
tente entre teorias educacionais emancipatrias e prticas educacionais engaja-
das na transformao humana livremente determinada e compartilhada.

Tomemos como objeto de anlise o sistema da educao formal em


nosso pas. No preciso falar do bvio. Apesar dos aparentes avanos, o sis-
tema privilegia, ainda, a pedagogia de contedos, segundo os moldes de uma
excelncia competitiva e excludente. No fundo, responde-se ainda ao regime
de dominao vigente, e privilegia-se quantitativamente uma minoria que
preparada para comandar, nas diversas reas do conhecimento, os rumos futu-
ros da histria. O nosso pas ainda no democrtico, apesar de seu regime
poltico ser democrtico. E s ser democrtico no momento em que realizar
uma socializao que cumpra rigorosamente com o Estatuto dos Direitos e
Deveres Humanos, de uma forma uni-plural, isto , a partir de um sentido co-
mum de humanidade e de realizaes singulares de vida associada. Isto abre-
nos para tenses existenciais antes insuspeitadas, porque acolhe a abertura hu-
mana para sua emancipao planetria. Um projeto-processo, sem dvida, ut-
pico.

Esse ponto alcanado de uma possvel conscincia planetria, marcada


pelo acontecimento das diferenas, das diversidades-mltiplas e do engajamen-
to com a vida-sendo, demarca novos horizontes para a educao neste mil-
nio. Entretanto, pelo fato de j existir esta compreenso de novos horizontes, e
isto j ser admitido como diretrizes mundiais da educao contempornea, no
quer dizer que a coisa j se encontra dada. Pelo contrrio, o nico dado o
acontecimento da vida em sua premncia de mais-vida. Isto faz a diferena. O
fato, entretanto, que o nosso sistema formal de ensino ainda no alcanou
este horizonte pedaggico que compreende a educao como aprender a ser.

Ora, aprender a ser no o mesmo que mera transmisso de conhecimentos


bancrios. S se aprende a ser, sendo. Isto uma evidncia. Entretanto, como
realizar o aprender a ser por meio de prticas to homogeneizantes, para as quais
40

o sujeito da aprendizagem deve ser moldado de fora para dentro e adequar-se


ao j estabelecido? Este movimento de subordinao pedaggica , na raiz,
contrrio concepo do educar como aprender a ser-sendo. Pode-se at dizer:
tanto faz uma coisa como outra, isto , de qualquer modo se aprende a ser.
Entretanto, quando hoje se fala e se elaboram diretrizes da educao do tercei-
ro milnio como aprendizado do ser, isto no significa um ser qualquer dotado de
vontade maqunica, e sim significa a abertura humana para a compreenso de
sua condio existencial como ente-espcie, e no apenas como indivduos ou
grupos de indivduos encerrados em seus mundicos particulares.

Para que a expresso aprender a ser se torne algo vivo e vital, preciso
considerar as coisas para alm do ego. A impessoalidade deste aprender a
chave de sua perene singularidade. O acontecimento da vida no precisa de
explicaes, e nem melhor entendido por meio destas. O acontecimento da
vida da ordem do aprender a ser. Ora, o que isto significa? Significa, entre ou-
tras coisas, na inspirao de Paulo Freire, um cuidado radical com o aconteci-
mento da vida em sua florescncia e fenecncia infindveis. O aprender a ser,
assim, no reprope egosmos condicionados, mas, pelo contrrio, convoca
para uma revoluo ontolgica no mbito do ser-coletivo que somos como
ente-espcie humanidade ente ontologicamente livre, porm onticamente
determinado pela historicidade do sensvel: mbito do vivo.

Assim, aprender a ser o mesmo que aprender a viver-junto, aprender a fazer,


aprender a pensar, aprender a ver, aprender a falar, aprender a escrever, aprender a aprender.
Isto aponta para uma revoluo de comportamento societrio, revoluo tica.
A vida em primeiro lugar: educar com a vida. O cuidado em primeiro lugar: edu-
car com cuidado cuidar do que vivo e nico, pois nada nunca se repete,
mas se multiplica como unidade geradora de unidades geradoras. Aprender a ser,
deste modo, ultrapassa a concepo escolar de educao, porque, antes de tu-
do, diz respeito atitude de cuidado de si e dos outros, independente dos mei-
os de tal realizao.

Diante de uma tamanha abertura para a acolhida da diversidade huma-


na, nenhum modelo hegemnico pode figurar como a lei cannica do mundo da
ao e do aprendizado de ser. Pelo contrrio, caberia agora educar e no mais pro-
fessar conhecimentos indiscutveis. Isto muda toda a didtica e muda toda a
pedagogia, muda tambm toda a filosofia da educao, e a psicologia da educa-
o e a antropologia da educao e a histria da educao. Isto muda tudo,
rigorosamente falando. Todos os saberes e formas de conhecimento so sabe-
res e formas de conhecimento humano. Todos eles dizem respeito ao ser que
somos, enquanto somos humanos.
41

A conclamao, ento, para uma educao do aprender a ser, diz respeito


ao mbito da vida-instante, isto , responde necessidade do ser que cada um
, no sentido do alcance de si mesmo em seu prprio ser-no-mundo-com. Ora,
isto no prescreve nenhuma norma de conduta especfica, mas indica para a
atitude fundamental da liberdade humana: o ser cuidando-se no mundo-com ser de
relao em relao com o mundo do outro no mundo. Aprender a ser, ento, significa,
aprender a cuidar de si no mundo-com aprender a cuidar da vida na vida, com a vida, em
vida.

Olhando bem, nossa pedagogia anda de mal a pior. Nossa didtica a-


inda generalista e conteudista. Como afirma Luckesi, nosso sistema de avalia-
o escolar, no sabe ainda avaliar, e sim examinar. Aprovamos nossos alunos
por meio de exames de conhecimentos normativos, e no atravs de avaliaes
efetivas, onde estaria em jogo uma outra relao aprendente, um outro ethos: o
cuidar do outro como a si mesmo, isto , o respeito incondicional ao ser-livre
do outro, pelo respeito incondicional ao prprio ser-livre. Isto diz tudo. Nossa
pedagogia no se ocupa da vida humana em seu processo aprendente instante,
mas encontra-se a servio da tecnocincia planetria dominante, no sentido do
descuidado com a vida-instante: a alienao planetria.

Talvez seja desagradvel ouvir isto. Mas, o que diria Paulo Freire em
uma ocasio semelhante? Por ventura falaria ele de consolaes metafsicas, ou
convocaria para aes revolucionrias? E como possvel ser revolucionrio,
no sentido freireano, se apenas poucos so os senhores e muitos os escravos?
Em homenagem a Paulo Freire, afirmo aqui uma pedagogia da vida, e no uma
simples pedagogia de bancos escolares. Neste sentido, a escola deve ad-mirar a
vida para realizar sua transformao. Entretanto, isto , sem dvida, uma uto-
pia, ou melhor uma heterotopia. claro, portanto, que algo que ainda no ,
mas pode tornar-se.

O desafio, ento, reside no como nos tornarmos aprendentes do ser-livre?


Aqui o tornar-se um ser-sendo, no s projeto, mas processo: acontecimento
prprio e apropriado da vida. E porque o tornar-se verbo, no se trata de
modelagem segundo um cdigo pr-estabelecido, e sim de uma ao de co-
pertencimento ao instante vvido. assim que, no nos tornamos nem no amanh
nem no ontem, pois o tornar-se sempre o que duradouro no presente vivo:
o tornar-se o mesmo que fazer acontecer a ad-mirao do que se tem em mira:
co-pertencimento na humanizao do mundo. Portanto, no compreendemos
o tornar-se como um dever-ser ideal, e sim como realizao plena do prprio ser
no acontecimento de cada instante humano. No se trata, portanto, de professar
42

nenhuma doutrina ltima acerca do sentido do ser-no-mundo-com, e sim de uma


convocao para que aprendamos a pensar o ser da educao a partir de ns
mesmos, isto , a partir das condies histrico-poltico-sociais em que existi-
mos concretamente.

Paulo Freire, em sua Pedagogia do oprimido (1987), fala da necessidade do


dilogo para a formao da liberdade autntica dos seres humanos, isto , fala
da dialogicidade da educao como Prtica da Liberdade. Para Freire, o dilogo como
fenmeno humano tem seu ser na palavra. Mas, se a palavra no o movimento
de uma prxis, ela apenas palavra oca, palavra impotente. Como diz:

No h palavra verdadeira que no seja prxis. Da que dizer a palavra ver-


dadeira seja transformar o mundo.
A palavra inautntica, por outro lado, com que no se pode transformar a
realidade, resulta da dicotomia que se estabelece entre seus elementos constituintes.
Assim que, esgotada a palavra de sua dimenso de ao, sacrificada, automaticamen-
te, a reflexo tambm se transforma em palavreria, verbalismo, blblbl. Por tudo is-
so, alienada e alienante. uma palavra oca, da qual no se pode esperar a denncia do
mundo, pois no h denncia verdadeira sem compromisso de transformao, nem
este sem ao. (FREIRE, 1987, p. 77-78)

Nas palavras de Freire, a palavra verdadeira dialgica e transformado-


ra, e este seu modo de ser de todos e no apenas de alguns poucos. Neste
sentido, dizer a palavra no privilgio de alguns homens, mas direito de to-
dos os homens (ibid. p.78). E justo por isto que ningum pode dizer a
palavra verdadeira sozinho, ou dize-la para os outros, num ato de prescrio,
com o qual rouba a palavra aos demais.

Acolhendo essas palavras, o dilogo uma exigncia existencial. No se trata


de imposio, mas de condio para a Prtica da Liberdade. A Liberdade
livre, ela no tem proprietrios e senhores. A Liberdade Dilogo entre iguais:
Conquista do mundo para a libertao dos homens (FREIRE, 1987, p. 79).

Bem, talvez agora fique mais claro porque, no incio, diferenciamos o


ser professor do ser educador. Somos, afinal, professores ou educadores, ou
ainda, professores-educadores? Penso que no se trata de julgarmos ningum,
mas de reconhecermos as condies de existncia concreta em que estamos.
Mudar este estado de coisas requer muito desejo e muito trabalho. Isto no
pode vir a acontecer por um simples decreto legal. Pelo contrrio, o decreto
legal que deveria encontrar-se a servio desde acontecimento. Portanto, no se
trata de iludir com promessas esperanosas de um futuro melhor, mas de reali-
z-lo no agora de nossas vidas. No se trata, portanto, de uma utopia compre-
endida como lugar imaginrio ideal, e sim utopia como o lugar em que o humano
43

realiza plenamente a doao libertadora de seu prprio ser-sendo: a ad-


mirncia do instante sem ocaso.

Decidir pela vida: eis o nosso mais premente desafio pedaggico! En-
tretanto, um tal desafio no pode ser adiado em sua advenincia. No se trata
de vivermos para um futuro ideal, e sim, justamente, de aprendermos a sair
desta iluso coletiva de um tempo alm da vida-instante. E se levarmos a srio
a diferena entre ser professor ser educador, isto no quer dizer deixar de ser
professor, o que, no nosso caso, implicaria em estado de desemprego.

No se trata, portanto, de uma pregao moralista sobre o que deve ser


a educao, e sim de uma convocao para a efetivao de um compromisso
histrico com o todo conjuntural da humanidade do humano. Deste modo,
claro que a escola precisa ser reestruturada em sua funo poltico-social, e que
um tal acontecimento s poder ocorrer a partir de organizaes polticas leg-
timas e legais, e isto a longussimo prazo. Neste sentido, no cabe apontar os
defeitos dos outros, e sim realizar uma sada gradual do atual modelo pedag-
gico vigente. isto o que permite vislumbrar uma revoluo cultural fundada
no cuidado incondicional vida em sua totalidade conjuntural, incluindo o ser
humano e sua humanidade histrica.

Vejam bem: o tempo todo estou provocando para uma tomada de


conscincia histrica planetria, onde o educar acolhido como aprender a ser-
sendo. Ouso afirmar que isto encontra ressonncia com o legado pedaggico
deixado por Paulo Freire. Ou melhor, ouso afirmar que a pedagogia de Freire
uma Pedagogia da Vida Emancipada, e no uma simples metodologia escolar
voltada para a aquisio de habilidades e competncias a servio de um mundo
do trabalho cada vez mais seletivo e excludente. Nisto Paulo Freire se afina
com as possibilidades abertas pelas filosofias de Hegel e Marx. E isto, sem
dvida, a partir de uma concepo compreensiva do tempo histrico como
processo aberto ao querer-poder, e ao querer-saber do homem em suas possi-
bilidades aprendentes livres.

E porque isto no se apresenta como um sistema fechado de verdades


dadas e sim com uma atitude aprendente permanente diante do acontecimento
da prpria vida, no se trata de seguir o mtodo pedaggico de Paulo Freire, o
que seria uma traio ao mesmo, mas de buscar em sua obra alimento vvido
na transformao do nosso modo de ser professor. E isto, de tal forma que
tambm na escola formal possa ser a vida-livre o prprio campo da sua funo
social de formao humana, pela criao de novas possibilidades de ser livre. E
porque, usando palavras de Freire, o dilogo encontro de homens que pro-
44

nunciam o mundo, no deve ser doao do pronunciar de uns a outros (ibid.,


p.78). Neste sentido, ser sempre um ato de criao e no uma mera repetio
do que j passou.

Assim, a minha convocao/provocao a de que possamos parar pa-


ra pensar intensamente as nossas prticas docentes cotidianas, e possamos agir
pelo lado da transformao radical, isto , possamos tornar-nos educadores e no
desautorizados professores que insistem na liturgia da sala de aula, como reifica-
o subordinada e subordinante do ato de ser no livremente aberto ao ser
aberto do aprender a ser-sendo. Dizendo isto, passo a palavra ao amigo Felippe
Serpa para que ele desvele para ns a voz da sua indignao criadora.

Referncias Bibliogrficas
FREIRE, Paulo. Ao cultural para a liberdade: e outros escritos. 9 ed. So
Paulo: Paz e Terra, 2001. (O Mundo, Hoje, v.10)

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,


1987.
45

4
A CONSTRUO DO CONHECIMENTO CIEN-
TFICO EM QUESTO: CONSIDERAES PO-
LILGICAS SOBRE A AMBIGIDADE DA CIN-
CIA4

Comeo esta fala buscando imagens apropriadas para tratar do tema


sugerido, no mbito deste 3 CINFORM. Tratando-se de um painel sobre o
Conhecimento Cientfico, escolhi quatro imagens para descrever a Cincia
Contempornea: a Imperial, a Ideal, a Virtual e a Trgica. Por meio destas
imagens procurarei apresentar questes pertinentes a uma crtica radical do
conhecimento cientfico, sem perder de vista a inevitvel provisoriedade de
todo discurso que se apresente com as credenciais de crtico. Percorrendo estas
quatro imagens, procurarei, portanto, apresentar algumas tenses de um ques-
tionamento epistemolgico rigoroso, nunca, porm, exato, visando com isto
provocar uma possibilidade de leitura polilgica do constructo conhecimento
cientfico em sua ambigidade incorrigvel, neste ambiente de ouvintes e fa-
lantes.

1. A imagem Imperial da Cincia como senso comum

Vivemos, sem dvida, sob a gide da cincia em todos os recantos do


mundo presente. O mundo tem se tornado cada vez mais o mundo do conhe-

4Comunicao apresentada no III CINFORM LABORATRIO DE CINCIA DA INFOR-


MAO, REA TEMTICA: INFORMAO E CONHECIMENTO NO III MILNIO,
SUBTEMA: CONSTRUINDO O CONHECIMENTO, PAINEL: CONHECIMENTO
CIENTFICO; participantes: Felippe Serpa (UFBA) Coordenador; Eliany Alvarenga (UFPE)
Relatora; Dante Galeffi (UFBA) Palestrante; Wilson Gomes (UFBA) Palestrante; Salvador-
2001.
46

cimento cientfico. Em toda parte h cincia. Toda a nossa vida, afinal, depen-
de cada vez mais de cincia. Esta , ao meu ver, a imagem imperial da cincia:
em toda parte ela impera soberana e implacvel. A cincia to imperativa que
j se transformou em senso comum. Todos sabem que a nossa a era da tec-
nocincia. Esta afirmao tornou-se domnio pblico, um percepto coletivo
global. Em toda parte, em todo canto, a cincia a palavra de ordem, o motivo
dominante da era da globalizao imperativa. Em um sentido muito estrito, a
cincia confunde-se hoje com o fenmeno arrasador da
globalizao planetria. No h como separar uma coisa da outra. E justa-
mente a que mora o perigo. A questo que o tempo virtual do fenmeno da
globalizao se confunde, agora, com a conscincia metafsica da cincia con-
tempornea. O acontecimento de uma grande rede mundial midiatizada parece
ser hoje a prpria meta-conscincia da imperativa tecnocincia.

O mundo virtual que se abre atravs dos novos meios de informao e


comunicao funda-se no conhecimento tecnocientfico, e isto de tal modo
que sem este conhecimento no se pode entrar na sua rede voraz como produ-
tor de sentido, mas apenas como ambincia das foras hegemnicas constitudas,
ou melhor, como mera coisa a ser manipulada na correnteza das incertezas
qunticas e nas boas intenes do empreendimento sempre politicamente cor-
reto.

Inevitavelmente, os detentores do conhecimento tecnocientfico con-


tribuem para uma modulao de poca onde o valor do indivduo ou das soci-
edades organizadas medido pelo seu conhecimento efetivo em relao aos
novos meios computacionais. Isto implica em novas configuraes de foras,
o que gera novos campos de poder e de dominao tecnocientfica. Definiti-
vamente, no mais o Estado que realiza em si a ideia de cincia hegemnica,
atravs dos seus mecanismos burocrticos e de sues aparatos legais. Pelo con-
trrio, hoje a figura do Estado corre em desespero atrs da imperial e empresa-
rial iniciativa privada.

Definitivamente o privado tornou-se o modelo de conduta de todo Es-


tado seriamente antenado com a nova ordem mundial neoliberal. Qualquer
Estado para ser levado a srio precisa empresariar-se, isto , tornar-se uma
empresa eficiente e lucrativa. Os ideais socialistas e de justia humanitria pre-
gados pelas ideologias dos Estados democrticos ficam adiados em virtude da
premncia das novas redes de conhecimento empresarialmente articulados.
Tudo , ento, sacrificado em nome de uma nova hegemonia do conhecimento
tecnocientfico. em nome da nova cincia que a onda neoliberar avassaladora
justifica a sua dominao planetria.
47

O argumento absolutamente dogmtico, porque se pauta na pura e


simples medio de resultados manipulados convenientemente, segundo fluxos
que mais lembram o risoma do que a rvore. A rede risomtica, entretanto,
dos novos acontecimentos da razo tecnocientfica, fica ainda submetida ao
antigo processo hierarquizante da rvore do conhecimento. Mais do que nun-
ca se procede de modo geomtrico, apesar de tudo se apresentar em redes ri-
somticas. Uma certa geometria dos novos territrios do conhecimento se
sobrepe ao evento risomaticamente estruturado. a fora de regulao da
nova ordem tecnocientfica. Curiosamente, esta nova ordem adota o princpio
da excluso como sua prpria lei. Excluindo diferenas possveis fica sempre
mais fcil dominar um certo territrio simblico marcado por multiplicidades.
Nesta medida, est nova ordem age de forma cega e tradicional, muito mais do
que se imagina. O processo regulador hierarquizante e reducionista, preferen-
cialmente quantificador. Tudo acaba ganhando extenso e regularidade, ou
melhor, sem extenso e regularidade no h como quantificar a eficcia de um
constructo tecnocientfico potencialmente hegemnico, portanto, verdadeiro.

A geometria reducionista da nova ordem mundial tecnocientfica conti-


nua essencialmente euclidiana. Apesar da risomao das teias produtoras de
conhecimento cientfico, h um jogo de triangulaes entre os regimes de for-
as produtivas onde prevalece a hierarquia piramidal. a velha forma sobre-
pondo-se ao novo campo dos acontecimentos instantes. No fundo, o processo
de autojustificao da racionalidade tecnocientfico continua sendo uma super-
estrutura baseada em uma centralidade absoluta e estranhamente metafsica.
Sua forma continua sendo piramidal, apesar dos eu discurso mostrar-se risom-
tico. A tendncia absolutista do saber-fazer tecnocientfico contemporneo se
arma e dominada pela ordem poltico-empresarial reinante.

A cincia, neste sentido, est a servio do capital politicamente articula-


do: o seu avano ou o seu retrocesso s dependem dos incentivos provenientes
do capital politicamente organizado. A trama desta saga deveras complexa e
flutuante. que a forma risomtica determina as oscilaes do constructo
hegemnico tecnocientfico na linha do tempo, mas a forma piramidalmente
hierarquizante estabelece a regulao final do processo. Em nome da regulari-
dade e de um certo equilbrio esttico do sistema dominante, a tecnocincia
mantida por uma ordem moral extremamente refratria ao polilogismo propa-
lado pelos efetivos pensadores da cincia: os construtores de novos conceitos e
novos instrumentos metodolgicos. que a propalada independncia da cin-
cia em relao ordem poltica e moral de um meio social hegemnico mais
complicada do que parece ser.
48

No fundo o que conta o poder de barganha e a capacidade de persua-


so de grupos organizados na produo do conhecimento tecnocientfico. Mas
o poder hegemnico continua sendo determinado na esfera poltico-
empresarial. E este um poder estranhamente invisvel, como se existisse uma
entidade superior (Deus) por trs do carter regulador das foras produtivas,
uma espcie de voluntarismo que acredita que este Deus s pode estar do lado
dos que esto no comando do mundo. Entretanto, quem so os comandantes
do mundo? Este tipo de identificao impossvel na atual ordem mundial,
porque todos os seus partcipes so apenas funcionrios de um voluntarismo
soberano e arrasador, onde impera um maniquesmo do tipo: a luta do Bem
contra o Mal. O actante coletivo que prevalece nesta nova ordem , portanto,
imperial e reducionista, hegemnico e dissimulador. Nesta luta do Bem contra
o Mal, o prprio Mal sempre o outro lado da face hegemnica da moeda.
Quem no se afina com a regulao estabelecida pelas foras hegemnicas, est
contra a ordem metafsica do mundo. Afinal, a velha mxima do direito do
vencedor regular a vida dos vencidos continua vigorando. S o vencedor tem
direito liberdade autojustificada. Aos vencidos resta sempre a esperana de
um desenvolvimento controlado pelos novos donatrios imperiais, desde que
se submetam regulao imposta pelos mesmos e mostrem servido delibera-
da.

Tudo isso para dizer como hoje o conhecimento cientfico o senso


comum da nova ordem mundial estabelecida. As novas maquinaes cogniti-
vas dispem o horizonte humano em ilusrias aberturas humanitrias, quando
o que prevalece a mais cruel rede de manipulaes e regulaes que atentam
contra o princpio da vida natural, no sentido de uma meta-conscincia ecol-
gica planetria em favor da biodiversidade e da etnodiversidade. Assim, a di-
menso de cuidado que caracteriza esta meta-conscincia planetria vista pela
hegemonia tecnocientfica vigente como um verdadeiro empecilho para o a-
vano de sua rede de dominao e controle regular. nesta medida que o
conhecimento cientfico se mostra ambguo e cego em sua voracidade imperial,
a partir do momento em que serve de horizonte ontolgico hegemnico para a
dominao planetria de cunho poltico-empresarial, onde todas as possibilida-
des parecem igualmente contempladas, mas onde o que prevalece uma forma
de seleo cruel que impede o autodesenvolvimento dos povos e naes histo-
ricamente alienados deste processo de produo dos meios tcnicos e intelec-
tuais planetariamente dominantes.

A cegueira dessa forma hegemnica da tecnocincia dominante mes-


mo preocupante. Sobretudo porque j senso comum afirmar a consumao
49

de sua vigncia planetria. preocupante, portanto, na medida em que nos


deixamos, em geral, iludir pela aparente positividade desta forma de ser impe-
rante. Neste aspecto, concordo com Heidegger quando assinala para o carter
de arrazoamento (Ge-Stell) da nossa atual era tecnolgica. Neste sentido, a sim-
ples constatao de tal acontecimento nos tem tornado, em geral, impotentes
diante dos desgnios do mundo para o qual o sentido do ser tornou-se o pr-
prio xito da dominao tecnocientfica planetria. isto o que compreendo
como senso comum nesta imagem onde a cincia se mostra imperial, dominan-
te, hegemnica e hierarquizante.

E pelo fato de ser algo que no se discute, este modo de conceber a ci-
ncia pertence hoje ao domnio comum, requisitando uma atitude crtica para
ser devidamente contestado e desmascarado em seus efeitos impositivos, coisa
que sempre depender de uma nova formao para a cincia que saiba elevar a
qualidade do esprito humano livre e empreendedor, a partir de um ordena-
mento ontolgico abissalmente novo, totalmente outro. E isto nunca poder
ocorrer se no for devidamente construdo e cultivado, a partir de ambientes
de pesquisa e convivncia que no se submetam ordem imperativa da acefalia
crnica dos discursos hoje institudos de validade e validao, de autoridade e
autorizao, de mais qualificado e menos qualificado etc., segundo regras fixa-
das por comunidades cientficas imperiais e nada cordiais e integradoras.

Para finalizar esta breve descrio da imagem imperial da cincia, forjei


uma metfora que me parece condizente com o fio condutor at aqui desfiado.
Trata-se da metfora do Jogo de Xadrez: o mundo da tecnocincia dominante
como jogo hierarquizante e polarizado. De fato, o tabuleiro de xadrez divi-
dido em 64 quadrados idnticos, metade claros e metade escuros (preferenci-
almente pretos e brancos). O jogo sempre jogado a dois. Cada jogador dis-
pe de 16 figuras hierarquicamente especializadas, cada uma das quais com
uma especfica competncia de ao, dentro das estritas e indiscutveis regras
do jogo, todas subordinadas a um nico princpio, simbolizadas pelo poder
real. O poder unitrio, entretanto, sempre dual. O rei tem uma rainha que
realiza todo o seu poder de mobilidade, recolhendo em si todas as possibilida-
des dispostas de ao. Entretanto, o rei possui uma mobilidade mnima. De
fato, o rei o smbolo da inteligncia do jogo, isto , do poder de conhecimen-
to e estratgia do jogador. Afinal, ganha o jogo quem eliminar o rei do outro.

Trata-se, portanto, de um jogo de ganhar-perder: um dos jogadores


sempre vence a contenda. Claro, esta descrio parece limitar em demasia a
ideia do jogo de foras estruturado a partir da hegemonia tecnocientfica plane-
tria, mas se presta para chamar a ateno para o fato de que o senso comum
50

da cincia adota esta mesma forma mental do jogo e da hierarquizao, onde


tudo se reduz ou se subordina figura de um governante ou de um deus sim-
bolicamente constitudos e articulados. Tudo isto para dizer que o que predo-
mina em meio grande diversidade do mundo tecnocientfico ainda a velha
forma dual hierarquizadora e hegemnica, mesmo quando se pratique um dis-
curso que prega a diversidade e o respeito s inmeras possibilidades do ser
tecnicamente determinado, ou mesmo se admita a forma risomtica do aconte-
cimento do sentido filosoficamente recortado.

A cincia, em sua imagem imperial, confunde-se com o senso comum


da dominao planetria. Nesta perspectiva, o saber tecnocientfico se torna
conhecimento a servio da hierarquia rgia da poltica-empresarial globalizante,
onde ao cientista no cabe mais a tarefa de pensar com independncia e altivez
a totalidade conjuntural do mundo instante, cabendo-lhe, entretanto a funo
especializada de conhecimento de certos domnios maquinalmente construdos
e mantidos. Enfim, diante desta imagem imperial da cincia, o bom cientista
ser justamente aquele capaz de executar funes altamente especializadas,
porque, como uma mquina algortmica, foi programado para atender ao
campo de ao de uma determinada competncia tcnica, e no para pensar ou
contestar a ordem estabelecida, ou mesmo pensar as possibilidades de uma
nova ordem moral planetria. Claro, a vida privada deste trabalhador intelectual
fica garantida em seus mltiplos direitos de posse, poder e prazer, e isto desde
que se comporte como uma competente mquina humana altamente especiali-
zada. A lei deste senso comum que a imagem imperial da cincia pode ser
expressa na seguinte frase: competir para sobressair, mas nunca contestar a
ordem rgia estabelecida.

2. A imagem Ideal da Cincia como discurso acadmico

Propositalmente, a partir de agora vou diminuir a intensidade descritiva


das outras trs imagens da cincia, e isto para poder cumprir o percurso pro-
metido no incio, dentro do tempo que me resta. Desde o incio elegi como fio
condutor da minha fala um percurso discursivo essencialmente problematiza-
dor. No fundo trato a questo da cincia e do conhecimento cientfico em uma
perspectiva filosfica, entendendo por filosofia justamente uma atitude de in-
vestigao do acontecimento do sentido-significado, atitude aberta ao instante
e plasticamente indeterminada. Alis, talvez esta seja a nica via, no sentido
estrito da atitude investigativa radical, para a realizao de uma crtica do co-
nhecimento construdo historicamente, pois suspende toda e qualquer crena
ingnua ou dogmtica relativa ao sentido do ser-no-mundo-com, isto , sus-
pende os regimes habiturios de suas valncias ostensivas e imperiais, sejam
51

estas ontolgicas ou epistemolgicas. Neste sentido, o discurso filosfico se


articula como modulador de conceitos ideais. E tais conceitos so axiologica-
mente autnomos e autojustificados, apesar da sua inevitvel interdependncia
em relao ordem dos acontecimentos efetivos.

O dado que a filosofia no preciso requisitar autorizao do princ-


pio hegemnico rgio para poder plasmar as suas grandezas ideais, apesar da
raridade de uma tamanha faanha propositiva. E porque rara, a atitude filo-
sfica de absoluta radicalidade diante dos acontecimentos do sentido-
significado o que menos se v na imagem Ideal da cincia. Pelo contrrio, a
idealidade discursiva da cincias, das vrias cincias teorticas e prticas, vive
submetida a processos extremamente imperiais, o que de per si mostra-se co-
mo contra-senso filosfico. O fato que a abrangncia ontognosiolgica de
uma crtica radical de todo conhecimento possvel passa ao largo da maioria
dos ambientes acadmicos institudos e regulares. At mesmo na especfica
rea de formao filosfica o que se v a reificao de sistemas j autorizados
de pensamento crtico, o que torna o atual filsofo de profisso um sofisticado
arquelogo das obras de pensamento produzidas no passado. Nesta margem
de produo ideal, poucos escapam desta tendncia hegemnica do especialista
autorizado.

Mudando o foco da imagem Ideal da Cincia da produo crtica, de


cunho estritamente filosfico, para a produo de competncias epistmicas
comprovadas, o que vemos um amplo espectro de possibilidades. De qual-
quer modo, todo campo epistmico de formao para uma determinada rea
do conhecimento possui o seu prprio vio ideacional, isto , produz o seu
prprio discurso articulado idealmente, porm inserido em determinada linha
de competncia produtiva. Neste sentido, a imagem Ideal da cincia tambm
ambgua, porque tanto pode apresentar-se como discurso crtico do mais alto
teor de inquietao insubordinada, como pode reificar modulaes convenien-
tes ordem imperial estabelecida metafisicamente.

O fato, entretanto, que, tambm na sua idealidade, a cincia contem-


pornea exercita-se a partir de processos excludentes e hegemnicos, sendo
fcil detectar isto na prprio configurao das agncias de fomento da pesquisa
acadmica. De modo geral, h um conceito hegemnico de produo de co-
nhecimento cientfico que adota um certo modelo das cincias fsico-
matemticas aplicadas. Se diz que a produo do conhecimento cientfico re-
quer experimentao e comprovao regular. Neste aspecto, claro que as
cincias do homem saem perdendo no fatiamento das cotas de investimentos
destinadas pesquisa cientfica. Ou melhor, saem perdendo na medida em que
52

no adotem os mecanismos de aferio e medio prprios das chamadas cin-


cias objetivas. O que se v, ento, uma forma de idealidade, isto , de produ-
o discursiva em que os modelos metodolgicos quantificveis se impem
como nica modalidade de produo de conhecimentos vlidos epistemologi-
camente.

claro, inclusive, que a rede de distribuio dos recursos para a pes-


quisa cientfica j esteja devidamente mapeada, e que mais vale investir em cen-
tros de produo de alguma tecnologia imediatamente aplicvel, do que nos
centros de formao onde a cincia passe a ser submetida crtica filosfica
radical, exigindo investimento a fundo perdido e de longo prazo, sem nenhuma
garantia de retorno poltico-empresarial imediato. De qualquer forma, na
imagem Ideal da cincia que encontramos, ainda que tnue, a possibilidade de
uma crtica radical do imperialismo tecnocientfico vigente.

Apesar desta possibilidade, o que ainda prevalece a forma imperial da


cincia, mesmo neste campo onde o ser humano se redefine a partir do seu
regime discursivo constelado e tradicional, e onde as melhores imagens so
fornecidas pelos pensamentos mais improvveis e mais incertos, do ponto de
vita da pragmtica imperativa reinante. Nesta medida, os novos jogos discursi-
vos propostos pelos filsofos contestadores s so acolhidos quando no re-
presentam mais nenhuma ameaa manuteno de uma ordem instituda e
metafisicamente soberana, e o que mais se v na academia a imposio de
modelos de produo de conhecimento em que o senso crtico apurado passa a
ser visto como empecilho para o atendimento das normas de qualificao e
reconhecimento vigentes.

Enquanto um discurso filosfico ameaar uma certa hegemonia territo-


rial de grupos de intelectuais que muito bem representam o rei invisvel, ele
ser publicamente desautorizado e banido do rol dos saberes autorizados, cla-
ro, com a exceo de algumas raridades indiscutveis, pois contestadoras, se
inscrevem em ampla tradio de competncia discursiva. Infelizmente, o atual
sistema de qualificao vigente cada vez mais fechado para esta possibilidade
criadora. Basta ver como hoje raros so os filsofos contestadores dentro da
ambincia acadmica: lugar onde se alimenta toda possibilidade ideacional da
fantasia criadora da cincia, mas onde cada vez mais difcil alimentar o adven-
to de novas possibilidades contestadoras e crticas.
53

3. A imagem Virtual da Cincia como retrica estetizante e seduo em-


presarial deliberada

Diante desta imagem permaneo na estesia dos novos meios computa-


cionais. A sua espetacularidade estonteante e igualmente imperativa. A digita-
lidade computacional vigente dispe o mundo em novas janelas imaginrias. O
problema que todas se subordinam ordem empresarial reinante, o que s
tem aumentado o processo de excluso social dos intelectualmente no qualifi-
cados para competir em um mercado de trabalho onde o conhecimento dos
meios operativos cognitivos o que qualifica e demarca o usufruto dos privil-
gios de pertencer a uma sociedade tecnologicamente avanada. Tudo bem, isto
hoje um movimento mundial irreversvel.

O problema que a aparente democratizao da informao que os


novos meios computacionais permitem uma falcia das mais tenebrosas e
enganosas. As novas teorias gestadas na onda da cibercultura contempornea
esto, na sua maioria, a servio de foras empresariais que s visam o aumento
do consumo telemtico, e pouco cuidam da sade humana planetria, ou me-
lhor, s cuidam dos que possuem o mnimo de poder para o consumo virtual
das maravilhosas consolaes imaginrias que os novos meios oferecem para a
o usufruto dos ciberneticamente qualificados e financeiramente amparados.
De modo rpido, isto descortina, finalmente, a imagem Trgica da cincia.

4. A imagem Trgica da Cincia como Filosofia da Diferena

nesta imagem Trgica que concentro o meu esforo de superao do


horizonte imperial da tecnocincia planetariamente dominante. Entretanto, esta
imagem foge de toda e qualquer previso operativa e empresarial da cultura
contempornea, abrindo-se para a compreenso de novas possibilidades a-
prendentes ainda marginais, desconhecidas. Claro, isto tambm faz parte de
um certo percurso discursivo que pressupe uma ampla formao crtica,
compreendendo em seu espectro todos os efetivos contestadores da ordem
imperial estabelecida, sejam eles poetas, filsofos, cientistas ou religiosos. O
caso que a tragicidade da cincia se mostra em sua prpria historicidade, a
comear do fato de sua peculiar mentalidade hierarquizante e imperial. Em si
mesma, a cincia e o saber cientfico no possuem o poder de resolver os pro-
blemas trgicos da espcie humana planetria.

A cincia, segundo a sua configurao epocal contempornea, tem se


mostrado absolutamente inepta para a resoluo das desigualdades sociais tra-
gicamente dispostas. Assim, se a atual forma crtica da produo do conheci-
54

mento dominante no se devotar a criar os meios de novas possibilidades a-


prendentes, a tragicidade da espcie humana continuar submetida arcaica e
truculenta luta de opostos, mesmo no imagem sofisticada do jogo de xadrez.
Para repensarmos a produo cientfica em sua tragicidade ontolgica funda-
mental, teramos que reinventar a ambincia pensante e aprendente da espcie
humana para alm das maquinaes poltico-empresariais dos possuidores do
conhecimento cientfico operante. Isto, entretanto, talvez no esteja mais ao
nosso alcance, cabendo-nos, finalmente, adormecer nas novas estesias virtuais
que tanta esperana insuflam no imaginrio teleolgico do curso historial da
espcie humana como um todo.

Bem, a imagem Trgica da cincia apenas uma provocao pensante,


no sendo,portanto, nenhuma soluo fcil e nem muito menos uma aceitao
passiva e cordial da estupidez humana imperante, mesmo quando esta estupi-
dez se exercita em nome da mais soberba vontade de domnio pela posse dos
meios computacionais mais bem intencionados. A imagem trgica da cincia,
ento, mostra-se como a contracultura que tanto incomoda e apavora os posi-
tivistas cegados pelo poder luminoso e infinito de suas crenas poltico-
empresarias to expansivas e imperiais.

Enfim, estas so as minhas provocaes pensantes abertas e ampla-


mente crticas, o que nada garante e nada determina para a resoluo do pro-
blema do conhecimento, mas apenas decide por um caminho radicalmente
disposto a contestar o sentido imperante do ser da tcnica, como modo novo
de redimensionar os problemas emergentes da cincia e do conhecimento pos-
svel de ser construdo em benefcio de uma outra regulao epocal da espcie
humana. Utopia filosfica deliberada e implicada em uma revoluo planetria
ainda desconhecida.
55

5
A EPISTEMOLOGIA DO EDUCAR NA PERSPEC-
TIVA DA INTERDISCIPLINARIDADE5

Abertura

Em primeiro lugar, quero agradecer o convite para participar desta ativida-


de de extenso promovida pelo colegiado do curso de pedagogia da UNEB de
Juazeiro, que tem como tema central a epistemologia do educar na perspectiva da in-
terdisciplinaridade. Aceitei o convite como um desafio poemtico-pedaggico.
Isto , encontro-me aqui disposto a investigar com vocs o mbito de possibi-
lidades de uma prtica epistemolgica do educar que possua a peculiaridade
polilgica da interdisciplinaridade. O poemtico-pedaggico evocado diz res-
peito construo criteriosa de uma filosofia do educar, que tambm uma
crtica rigorosa da produo e metodologizao do conhecimento cientfico.
Trata-se de um esforo de redimensionamento do fazer cientfico na sua ins-
trumentalidade e na sua finalidade de servir ao ser humano em seu processo
autopotico aberto e livremente determinando.

Portanto, trata-se da discusso sobre a possibilidade de se construir


uma epistemologia do educar como campo interdisciplinar de nossas prticas
pedaggicas efetivas, no sentido de caminharmos para uma superao do mo-
delo pedaggico vigente, fundado claramente em relaes de dependncia e
submisso simblica do educando em relao ao educador. Um sinal claro
disto encontra-se no uso ostensivo que fazemos da palavra ensino. Se diz que o
professor ensina e o aluno aprende. E porque pretendemos, como educadores,
sempre ensinar, na maioria das vezes no somos capazes de instaurar um pro-
cesso aprendente epistemologicamente conseqente. Claro, mudar esta ordem
de funes no uma tarefa fcil. No prego aqui que isto possa acontecer
pelo simples discurso crtico-epistemolgico, mas defendo a necessidade de
elaborao de questes que nos permitam construir uma cincia do educar em
nova chave crtica.
5 Palestra realizada no Curso de Extenso promovido pelo Departamento de Cincias Humanas do Campus III da UNEB Curso de
Pedagogia - Juazeiro BA, novembro de 2001.
56

Nesse aspecto, a figura do ensinar d lugar figura do fazer-aprender.


No se trata mais de ensinar, mas de fazer-aprender. O professor no tem que
ensinar nada, mas tem que saber fazer-aprender. Este o tema principal de
uma epistemologia do educar aqui batizada de poemtico-pedaggica: o fazer
aprendente autnomo e inventivo. Neste sentido, tratamos de uma pedagogia para a
liberdade, isto , elevamos a cincia do educar ao patamar de um saber prprio
e apropriado. Ora, isto requer uma construo efetiva, construo de relaes
aprendentes que so a superao do modelo ensinante em vigncia.

O tema epistemolgico da interdisciplinaridade em questo: a ima-


gem do aprender a ser

nesse mbito que o tema da interdisciplinaridade me parece relevante e


necessrio, porque s por meio de uma construo interdisciplinar nova se
poder alcanar a prtica de uma revoluo pedaggica aprendente, ou melhor,
se poder realizar a superao do modelo pedaggico vigente, claramente fun-
dado em uma autoridade externa hierarquizante e subordinante. Portanto, os
meus questionamentos convocam a que paremos para pensar e analisar o mo-
do como ensinamos os contedos de nossas especficas especialidades discipli-
nares, e por qual motivo no logramos hoje alcanar uma interao efetivamen-
te interdisciplinar em nossas prticas docentes cotidianas. Afinal, o que seria
necessrio fazer para que pudssemos caminhar na direo de uma construo
pedaggica interdisciplinar fundada no processo aprendente, isto , no saber
fazer-aprender, e no mais no processo ensinante de contedos generalistas e
repetitivos?

Diante dessa questo logo se levanta uma outra: o que mesmo que se
pode fazer-aprender? Com este questionamento alcanamos o cerne de uma
crtica radical de todas as nossas crenas e atitudes diante do mundo dado. Tra-
zendo isto para a nossa proximidade, alcanamos o ponto de partida para a
efetuao de uma crtica radical de nossas atitudes pedaggicas, sejam elas do-
centes ou discentes. Como mesmo que cada um se comporta sendo professor
e sendo aluno? O que que cada um pensa sobre educao? O que significa
educar para cada um? Em outras palavras, para iniciarmos uma investigao
sobre as condies de possibilidades relativas construo de uma epistemolo-
gia do educar interdisciplinar e polilgica, preciso que os participantes se dis-
ponham a realizar um retorno radical sobre si mesmos. Este o principal fun-
damento da prtica aprendente aqui proposta.

Nitidamente, acabo de propor a prtica da epoch fenomenolgica para


cada um dos participantes. Entretanto, tenho clara conscincia da dificuldade
57

de realizao deste retorno a si mesmo propugnado pela atitude fenomenolgi-


ca. No falo, portanto, de algo bvio e de imediata compreenso. Contudo,
falo de algo absolutamente necessrio para que se possa instaurar uma outra
possibilidade pedaggica em nosso meio; uma possibilidade aberta diante do
desafio do poder-ser-livre. Neste sentido, falo de uma necessria revoluo
espiritual e cultural da humanidade, e, assim, de uma revoluo do indivduo e
no interior do indivduo. Portanto, no falo em favor desta ou daquela faco
ideolgica, mas afirmo igualmente uma ideologia: a possibilidade de uma educao
humana capaz de fazer-aprender a ser.

Com isso eu quero dizer muitas coisas. Sobretudo quero dizer que
preciso aprender a ser. At aqui, porm, parece que no sa de uma tautologia;
no disse muita coisa. Afinal, o que significa aprender a ser? Em que sentido
tomamos e interpretamos o ser em questo? Diante de uma tamanha generali-
dade, como fazer com que cada um seja tocado por um sentido do ser que a
tudo une no mesmo um? Esta me parece a questo mais difcil: fazer ver que
no se trata de um ser genrico e vazio, mas do ser que cada um enquanto
existe, isto , do ser Joo ou Pedro, Maria ou Ana, Joaquina ou Jos. Claro,
trata-se do ser pessoa, ou melhor, do ser indivduo de uma determinada coleti-
vidade, de uma especfica sociedade.

Assim, esta imagem do aprender a ser carrega-se de significados concre-


tos e acionais. Aprender a ser o mesmo que tornar-se pessoa autnoma e
inventiva. Isto implica em uma vastssima gama de possibilidades e em concre-
tos ambientes de vida comum. Em que sentido, ento, aprende-se a ser? No
aprendemos sempre a ser alguma coisa, uma determinada pessoa, um especfi-
co profissional, uma peculiar natureza? E se sempre aprendemos a ser, o que
uma tal imagem acrescenta de novo ao nosso horizonte pensante?

Esta imagem do aprender a ser passa a adquirir um novo significado na


medida em que realizarmos em ns mesmos a experincia da individuao pes-
soal do sentido ontolgico do nosso ser-no-mundo. Afinal, quem este ser
que ns mesmos podemos ser? Entro aqui em uma questo muito inquietante,
especialmente porque ela coloca o sentido do ser de uma forma aprendente,
isto , no como contedo a ser assimilado pela memria, mas como atitude a
ser praticada por cada um em particular e por todos em suas mltiplas relaes
com-outros. Toco, sem dvida, em uma questo deveras abissal: o que o ser,
enquanto cada um em particular e todos em geral?

Estou falando de um sentido comum de ser. Entretanto, como que


cada um compreende e descreve este sentido comum? Existe mesmo um sen-
58

tido comum que a tudo une no mesmo um? Assim, pode-se falar em um a-
prender a ser comum sem que seja preciso modelar este aprender em um com-
portamento padronizado e normatizado, isto , em um comportamento igual e
mecanicamente repetido? Afinal, no a norma que estabelece o sentido de
comunidade entre os seres humanos? E sem a norma, o que seria do sentido
comum do aprender a ser?

As questes colocadas so muito incisivas: elas decidem por um corte


epistemolgico que se fundamenta em uma ontologia fenomenolgica. Tudo
aqui muito escorregadio. Isto inevitvel diante da tarefa de propor e cons-
truir uma epistemologia do educar to abrangente e to ousada. Portanto, todo
cuidado pouco. Convm avanarmos com cautela e ateno redobrada, caso
no queiramos banalizar a atitude aprendente em foco nesta provocao pen-
sante.

Partindo de um corte ontolgico fundamental, penso a interdisciplina-


ridade como uma possibilidade que s poder comear a fazer sentido em uma
especfica construo epistemolgica. Isto significa dizer que, se quisermos
efetivamente sair do crculo vicioso do atual discurso pedaggico que prega a
interdisciplinaridade como modelo, devemos claramente nos posicionar diante
de uma crtica radical do conhecimento pedaggico contemporneo. Neste
caso, no pode haver meio termo. preciso decidir em que direo avanar.

Assim, de nada adianta falar em interdisciplinaridade sem a existncia


de um sentido comum para o processo educacional humano. Queremos, en-
fim, educar em que sentido? O que queremos fazer do pedagogo que se forma
em um curso superior? Que horizontes teleolgicos demarcamos em nossas
concretas prticas disciplinares? Temos, por acaso, clareza acerca do que po-
demos, queremos e devemos ser, enquanto seres aprendentes? Ou isto ainda
tema considerado intil e apenas filosfico, no sentido logicamente pejorativo
do termo?

O retorno radical a si mesmo como ponto de partida para a constru-


o de uma epistemologia do educar que possa tornar a formao
pedaggica um saber fazer-aprender a ser

A questo agora concentra-se no carter autnomo do processo apren-


dente que se tem em mira. Isto aponta para uma anlise da estrutura prvia de
toda possibilidade aprendente: aponta para o constructo ser-no-mundo-com.
Este retorno a ns mesmos, entretanto, no significa retorno ao suposto eu de
cada um em particular. Este retorno a realizao da atitude aprendente que
59

nos torna indivduos pertencentes a um todo estrutural j previamente deter-


minado. Husserl acentuava que este era um retorno s coisas mesmas. Com
isto ele enfatizava a atitude aprendente como fundamento absoluto do exerc-
cio filosfico que assume como sua tarefa primacial a elucidao de uma cin-
cia da essncia do fenmeno absoluto. Claramente, trata-se de um retorno
conscincia. Entretanto, de qual conscincia se fala? O que , na perspectiva
de um filosofar fenomenolgico, retornar conscincia?

De certa forma, com esta questo tocamos naquilo que o ponto de


partida de todo exerccio crtico-fenomenolgico rigoroso. Assim, a prpria
discusso epistemolgica acerca dos princpios e fundamentos das cincias em
geral pressupe a atitude de rigor como seu ponto de partida crtico. Deste
modo, quando usamos a expresso epistemologia para indicar a cientificidade
de procedimentos disciplinares, preciso que por primeiro saibamos o que
cincia. Claro, todos havero de dizer que fazem cincia e que, portanto, sa-
bem o que cincia? Entretanto, sabem todos que a discusso epistemolgica
acerca do que cincia sempre e necessariamente uma discusso crtica? E
porque crtica, sabemos suficientemente o significado radical desta expres-
so?

Pelo visto, estamos ainda no significado de um ponto de partida radical


sobre ns mesmos. Retornamos, ento, nossa conscincia no momento em
que realizamos uma epistemologia do ato educante? De novo a conscincia se
mostra um obstculo para o avano compreensivo da questo do sentido pri-
macial da epistemologia do educar interdisciplinar, aqui proposta como tema
investigativo. A questo que a palavra conscincia logo associada figura
do sujeito. Com esta palavra logo atramos as gangues das filosofias da cons-
cincia constituinte para a esfera de nossa compreenso de conscincia. E
nesta perspectiva, facilmente se confundem as mltiplas abordagens fenome-
nolgicas do conhecimento construdo e histrico com meras idealizaes i-
maginativas. Esta uma contenda curiosa. comum se ver na academia a
disputa entre as mltiplas abordagens epistemolgicas e metodolgicas das
diversas reas do conhecimento. Por exemplo, atualmente no meu ambiente de
trabalho venho notando uma disputa entre uma abordagem materialista hist-
rico-dialtica e uma abordagem fenomenolgica. O curioso que dificilmente
se tem oportunidade para o travamento de uma investigao comum, e o que
prevalece um jogo de poderes calcados em crenas determinadas sobre o que
a cincia e o que deve ser ensinado. No fundo, trata-se de uma disputa tola,
que no leva a nenhum lugar conseqente, mas apenas adia a necessidade de
uma unificao epistemolgica para o exerccio da atitude aprendente efetiva: o
tornar-se indivduo autnomo e inventivo.
60

lastimvel perceber como, na maioria das vezes, no sabemos discutir


as questes essncias e comuns da nossa condio humana, e nos perdemos
em partidarismos epistemolgicos que so a expresso de nossa incapacidade
de realizar uma cincia de rigor, no mais radical sentido do termo. Nitidamen-
te, ainda no h uma epistemologia do educar que nos garanta o alcance abso-
luto de uma cincia do educar polilgica, necessariamente interdisciplinar e
dinmica: aberta ao acontecimento. E ainda no h porque isto no pode ser
feito de uma nica vez. Ou seja, no se trata de pregar uma determinada dou-
trina sobre a verdade epistemolgica, mas de se praticar a atitude investigativa
de rigor. Isto implica sempre em uma suspenso dos juzos imediatos que for-
mulamos sobre as coisas verdadeiramente verdadeiras. A nossa comum atitude
ingnua diante do conhecimento j dado deve poder ser ultrapassada, e o nos-
so olhar deve alcanar um distanciamento justo para uma nova compreenso
dos nexos de sentido do ser-no-mundo-com.

Em primeiro lugar, em geral a nossa prtica epistemolgica muito


pobre. muito pobre porque no aprendemos a pensar de uma maneira pr-
pria e apropriada, mas, preferencialmente, nos tornamos repetidores de certas
verdades estabelecidas, sem nunca termos parado para questionar sua validade
e sua indiscutvel certeza. De modo geral, no agimos, em nossas prticas epis-
temolgicas, muito diferente dos fanticos religiosos. O dado que o nosso
peculiar modo de pensar tem sempre razo. Todo mundo acha que sempre
tem razo, ainda mais quando se tem em mos um poder qualquer sobre o
outro. O problema todo est a: temos sempre razo; a nossa sempre a me-
lhor forma de compreenso. Diante disto, o que fazer para fazer entender a
necessidade de um ponto de partida filosfico radical, sem o qual qualquer
exerccio epistemolgico no passar de regime de crena fechado em sua pr-
pria razo?

A atitude fenomenolgica que aqui coloco como ponto de partida para


a construo de uma epistemologia do educar, centrada no saber fazer-
aprender a ser a chave crtica para a edificao das bases de uma nova cincia
do educar aprendente: cincia aberta ao acontecimento do ser-sendo;cincia
unida pelo vis da multiplicidade e da diferena ontolgica essencial entre o ser
e o ente. Ora, o dado que esta atitude aprendente no se pode ensinar, mas
apenas saber fazer-aprender. Diante da compreenso articuladora aberta pela
atitude fenomenolgica radical, preciso ter presente a superao dos horizon-
tes ingnuo e dogmtico, sem que se perca de vista a inevitvel ingenuidade e
dogmaticidade desta mesma atitude. Trata-se, ento, do alcance de uma consci-
ncia crtica efetivamente transcendental, isto , de uma conscincia que alcan-
61

a, em si mesma, a amplitude dos seus limites, condies e possibilidades como


compreenso articuladora. Neste sentido, a conscincia no pode mais se con-
fundir com a figura do sujeito transcendental de kantiana memria, mas, tam-
bm no pode se desvencilhar do esquematismo de sua prpria elaborao ek-
sistencial, no sentido heideggeriano do termo.

Diante disso, abre-se para ns um campo assustador de possibilidades


aprendentes, sem que se perca de vista a condio ek-sistencial prvia de nosso
ser-no-mundo-com, isto , o nosso peculiar modo de ser-aprendente ser
lanado no mundo em sentido. Isto quer dizer que, sem fazermos a conta com
o fundamento de nossa peculiar forma de ser, no lograremos alcanar o re-
torno sobre ns mesmos propugnado como fundamento da atitude crtico-
epistemolgica radical. Entretanto, este tom do discurso no deveria vos con-
fundir em relao ao seu carter aparentemente especulativo. Com a atitude
fenomenolgica, como j disse, no se alcana uma verdade j dada, mas ape-
nas a posse de nexos compreensivos que nos fazem duvidar de tudo o que
logo se apresente como verdade incontestvel.

Com a atitude fenomenolgica no aderimos a um sistema de verdades


j construdo e consolidado, mas nos colocamos na disposio aprendente da
cincia do fenmeno vivo e instante. No se trata, portanto, de um mero de-
vaneio especulativo e idealista. Este ponto de partida necessrio ao exerccio de
uma epistemologia do educar efetivamente interdisciplinar nos ata imediata-
mente fenomenologia de nossos gestos e atitudes de ralao com o mundo e
com os outros. Ora, esta por definio uma atitude prtica: preciso saber
fazer-aprender a ser. Sem este movimento praxiolgico, dificilmente se pode
compreender o carter articulador do exerccio epistemolgico criticamente
instrudo. Entretanto, preciso sempre partir desta atitude aprendente radical,
caso se queira alcanar o mbito de uma epistemologia capaz de autojustificar-
se diante do tribunal das cincias ditas experimentais.

A questo que as cincias humanas, na sua maioria, no passaram a-


inda da sua fase pr-crtica. A pedagogia, por exemplo, uma destas cincias
que mais parecem pr-crticas do que outra coisa. Basta avaliar o que que se
valoriza como cincia social aplicada na atual sociedade do conhecimento e da
informao, para perceber que o campo de uma reflexo filosfica estrita
ainda muito pouco valorizado e entendido em sua funo articuladora essencial
do sentido geral do ser-no-mundo-com. E enquanto a pedagogia no realizar
um retorno crtico sobre as suas prprias crenas e certezas, no ser possvel
v-la concorrendo de igual para igual na disputa dos vrios territrios do saber
fazer qualificado. por isto que aqui insisto na importncia de um ponto de
62

partida radical para se dar incio construo de uma epistemologia do educar


nova e efetivamente produtora de inusitadas competncias ontolgicas, capa-
zes de nos fazer aprender a ser-sendo.

O pressuposto da transdisciplinaridade para se poder construir uma


trama aprendente interdisciplinar

De um modo geral, hoje muito comum se ouvir falar em interdisciplinaridade


como uma conquista da nova LDB vigente. Entretanto, o que no claro para
ningum a efetividade de um processo interdisciplinar. Muito se fala, mas
no se pratica ainda, em larga escala, a atitude interdisciplinar to propalada.
Alis, a maioria das pessoas no sabe muito bem o que fazer diante deste novo
conceito pedaggico.

O fato que no existe uma base comum de compreenso para se po-


der realizar um trabalho concretamente interdisciplinar. As questes filosficas
fundamentais precisariam de uma ateno que em geral apenas dada do pon-
to de vista simplesmente formal. Basta ver onde entra a filosofia como ativida-
de de formao na grade curricular dos cursos de pedagogia. No mximo ela
entra como um saber geral, considerado pela maioria como um saber especiali-
zado de difcil compreenso. No fundo, mesmo com existncia de algumas
matrias que levam o nome de filosofia, no se pratica, na maioria das vezes a
atitude filosfica como atitude crtica radical.

Assim, no momento em que aqui falamos em atitude filosfica funda-


mental, como esteio para uma prtica pedaggica armada criticamente, no nos
referimos aos contedos das disciplinas de filosofia, mas ao prprio ato de
retorno radical sobre ns mesmos, coisa que nunca pode ocorrer a partir de
um aprendizado meramente cumulativo e baseado na repetio modelar de
certas crenas atitudinais. Se assim fosse, o aprendizado crtico da cincia j
estaria garantido pela enormidade de disciplinas que cada um tem que cursar ao
longo de sua vida escolar e acadmica. Se o mero acmulo de conhecimentos
resolvesse a situao, j estaramos em patamares pedaggicos muito mais a-
vanados e surpreendentes. Mas, o fato que nos encontramos ainda muito
longe de uma efetiva formao crtica, que garanta o aparecimento de educado-
res e educandos autnomos e inventivos.

Com isso o horizonte de sentido alcana uma complexidade bastante


considervel. Ora, mais do que nunca precisamos aprender a pensar critica-
mente. Este aprendizado crtico que deveria ser o elemento comum de todas
63

as atividades disciplinares cumpridas na suposta formao acadmica qualifica-


da. Afinal, que tipo de competncia se espera de um pedagogo? Claro, deve
existir um projeto que justifique esta competncia. Entretanto, ser que a
mesma est adequadamente ajustada ao novo mundo que se abre diante da
contempornea sociedade do conhecimento e da informao? Sinceramente,
vocs esto satisfeitos com o que so capazes de desenvolver como conheci-
mento aplicado no vosso curso de pedagogia? a atual formao pedaggica
uma formao j crtica e interdisciplinar, ou isto ainda precisa ser feito?

Bem, no nada fcil provocar a inquietao crtica aprendente. Inevi-


tavelmente, as reaes so as mais inesperadas. Afinal, quem que gosta de
reconhecer que o que faz poderia ser melhor dimensionando? Quem gosta de
se reconhecer alienado? Seguramente o que estou propondo no algo que
possa ser aceito por todos como uma verdade indiscutvel. Alis, no estou
aqui apresentando nenhuma verdade indiscutvel, e sim o modo de construo
de uma crtica radical do conhecimento epistemolgico sobre o educar. Neste
sentido, no apresento um sistema de conhecimento j acabado, e sim uma
possibilidade de agenciamento para uma nova cincia do educar.

O fato que precisamos alcanar o mbito transdisciplinar de nossas


atividades aprendentes. Sem este, a interdisciplinaridade fica apenas no papel,
permanecendo uma figura abstrata e estranhamente ensimesmada em sua pr-
pria cegueira operante. O passo, porm, para a transdisciplinaridade requer
uma radical mudana de mentalidade. Isto significa, em outras palavras, o saber
fazer-aprender a ser anunciado. De nada adianta, portanto, se falar em inter-
disciplinaridade quando isto ainda no ocorre concretamente na trama curricu-
lar da formao pedaggica praticada na academia. E por que isto no ocorre?
Ser por incapacidade de se praticar uma cincia aprendente efetiva?

De modo geral, penso que isto no ocorre simplesmente porque nunca


paramos para analisar concretamente os termos da questo interdisciplinar.
Como seria possvel a existncia de um trabalho interdisciplinar sem a prvia
existncia de acordos epistemolgico-crticos entre os trabalhadores da educa-
o? Logicamente, sem que se construa no se pode levar a srio o sentido
interdisciplinar das vrias disciplinas de um determinado curso de formao
para o trabalho especializado. Antes de tudo, a interdisciplinaridade sempre
um constructo coletivo de fato. Ela s existe quando devidamente feita e
articulada. neste ponto que o carter transdisciplinar aparece como elemento
que deve anteceder a existncia dos acordos interdisciplinares, porque se no
houver clareza em relao ao sentido do ser que se quer formar, a formao do
educador corre srios riscos de nunca poder alcanar a conscincia crtica de
64

sua especfica condio humana livremente determinada, portanto, uma atitude


autnoma e inventiva, onde o certo no pode ser confundido com a formao
de contedos para serem repetidos segundo o modelo que os justifica e deter-
mina. Isto seria um atentado inteligncia aprendente do ser humano singular,
e s produz no mximo bons funcionrios incapazes de contestao e de crti-
ca fundamentada. isto o que se quer com a famigerada interdisciplinaridade:
formar pessoas destitudas de sendo crtico e de vontade criadora prpria?

Aqui a figura da transdisciplinaridade a chave de compreenso para a


construo de uma epistemologia do educar interdisciplinar. E isto verdade,
na medida em que sem a superao do horizonte de saberes e disciplinas sepa-
radas em compartimentos quase estanques, no se pode dimensionar com pre-
ciso a afetiva trama interdisciplinar de um determinado campo do conheci-
mento. o carter transdisciplinar que nos convoca a perceber uma estrutura
comum previamente determinada do nosso ser-no-mundo-com. Em outras
palavras, isto significa a existncia de um nexo unificador que nos permite a-
prender a ser-sendo, isto , nos permite alcanar um grau de autonomia de ser
e saber fazer que nos coloca acima de toda contingncia meramente subjetiva
ou objetiva: nos coloca diante da possibilidade de uma tematizao epistemo-
lgica do fenmeno ontolgico do nosso prprio ser como acontecimento
integrante do sentido-sendo.

Pode at parecer, mas este no um jogo de palavras que visa persuadir


algum acerca de uma verdade particular. Pelo contrrio, aqui jogamos o jogo
do sentido-significado em uma possibilidade polilgica e radicalmente aberta
ao prprio acontecimento do que faz sentido, na medida da nossa no-
submisso a pretensas verdades inabalveis e indiscutveis. Justamente porque
podemos investigar a verdade do ser, podemos contestar toda espcie de impe-
rativo categrico que queira se impor como norma de conduta incompreens-
vel e subjugante.

Portanto, para chegarmos a propor uma trama interdisciplinar efetiva,


dentro de um determinado campo de disciplinas, necessrio partilhar de uma
compreenso transdisciplinar do sentido do ser-no-mundo-com. Sem isto, a
interdisciplinaridade no passar de arranjo meramente convencional e vazio,
no logrando alcanar nenhuma consistncia ativa, permanecendo no rol das
coisas abstratas e de nenhuma utilidade para a vida prtica. O problema co-
mo chegar a esta compreenso transdisciplinar assinalada. Seguramente, ela no
pode ocorrer por um simples ato intuitivo, mas deve nascer de um esforo de
superao do horizonte epistemolgico determinado pelo surto moderno das
cincias empricas e matemticas. Nesta medida, para que se possa minima-
65

mente colocar em movimento a construo interdisciplinar de um determina-


do campo do conhecimento, se faz preciso uma ampla crtica da atividade cien-
tfica contempornea. esta crtica que pode permitir o alcance de um campo
unificado comum, sem a perda das especificidades dos diversos modos de co-
nhecimento disciplinares.

O problema, ento, se articula a partir de uma superao dos horizon-


tes epistmicos modernos e contemporneos, e isto na direo da ultrapassa-
gem das dicotomias clssicas da racionalidade ocidental. Portanto, o que est
em jogo com a figura da transdisciplinaridade uma radical mudana do mode-
lo compreensivo global do sentido do ser-no-mundo-com, onde no mais ca-
bem perspectivas ou puramente subjetivistas ou somente objetivistas do co-
nhecimento, mas perspectivas que privilegiem o ser humano em sua natureza
complexa e plural.

No nosso caso, a transdisciplinaridade que precisamos para compor


uma suficiente trama interdisciplinar em nossas prticas de formao pedaggi-
ca passa por um essencial aprendizado filosfico. Sinceramente, sem uma filo-
sofia capaz de discutir as questes primaciais do nosso tempo, no se pode
alcanar nenhuma soberania espiritual deliberada, isto , no se pode alcanar
uma autonomia de gesto pedaggica altamente qualificada, gesto que no
fique a reboque das grandes teorias do sentido, mas que formule os seus pr-
prios princpios de compreenso articuladora e que produza a sua prpria epis-
temologia transdisciplinar.

Portanto, precisamos de filosofia para chegarmos a construir uma tra-


ma interdisciplinar entre as diversas disciplinas pertencentes ao campo das ci-
ncias sociais aplicadas. filosoficamente que se pode falar em transdiscipli-
naridade sem que se corra o risco de ser confundido com os novos msticos da
cincia planetria. Sem uma compreenso articuladora geral das condies,
limites e possibilidades do nosso ser-no-mundo-com no possvel fazer uma
cincia que acolha em seu mbito o ser humano como o seu prprio sentido
implicado. Trata-se, assim, de cumprirmos uma nova revoluo ontognosiol-
gica como substrato para a construo de uma nova cincia aprendente, o que
exige que cada um realize radicalmente o retorno a si mesmo como fundamen-
to de toda cincia humana que queira ultrapassar a sua prpria impotncia.

Edgar Morin, em seu livro Cincia com Conscincia (1996), nos ajuda a
compreender melhor o que aqui foi articulado como necessidade transdiscipli-
nar para a unificao da produo do sentido das cincias humanas, base, por-
tanto, de toda trama interdisciplinar efetiva. Para Morin, preciso ir alm do
66

que hoje se propala como necessidade interdisciplinar, alcanando o que ele


chama de transdisciplinaridade. E isto se deve prpria natureza da cincia que,
sem um determinado campo unificado, no teria florescido com tanta pujana
e concretude. Entretanto, na contemporaneidade este carter unificador da
atividade cientfica perdeu valncia e o que se v a franca disputa entre sabe-
res que se proclamam independentes uns dos outros, sem a mnima preocupa-
o com uma unidade de referncia comum. Como diz Morin:

Aqui, h que observar que uma revoluo se opera sob nossos olhos.
Enquanto o saber, na tradio grega clssica at a Era das Luzes e at o fim do
sculo 19 era efetivamente para ser compreendido, pensado e refletido, hoje,
ns, indivduos, nos vemos privados do direito reflexo.
Nesse fenmeno de concentrao em que os indivduos so despos-
sudos do direito de pensar, cria-se um sobrepensamento que um subpensa-
mento, porque lhe faltam algumas das propriedades de reflexo e de conscin-
cia prprias do esprito, do crebro humano. Como ressituar ento o proble-
ma do saber? Percebe-se que o paradigma que sustm o nosso conhecimento
cientfico incapaz de responder, visto que a cincia se baseou na excluso do
sujeito. certo que o sujeito existe pelo modo que tem de filtrar as mensa-
gens do mundo exterior, enquanto ser que tem o crebro inscrito numa cultu-
ra, numa sociedade dada. Em nossas observaes mais objetivas entra sempre
um componente subjetivo.
Hoje, a questo do retorno do sujeito fundamental e est na ordem
do dia. Mas, neste momento, h que formular a questo dessa separao total
sujeito/objeto em que o monoplio do sujeito entregue especulao filos-
fica.
Precisamos de pensar-repensar o saber, no com base numa pequena
quantidade de conhecimentos, como nos sculos 17-18, mas no estado atual
de proliferao, disperso, parcelamento dos conhecimentos. Mas como faze-
lo? (1996: 136-137)

Como se pode ver, Morin uma das vozes que conclamam para uma
nova unificao epistemolgica das cincias do esprito. Seguramente, a sua
voz importante mas no a nica. No se trata, no caso,de seguirmos a risca
o pensamento epistemolgico de um grande pensador, mas de realizarmos o
alcance metodolgico de uma nova cincia humana unificada, sem a perda das
inevitveis complexidades e diferenas na produo e reconhecimento deste
saber. Isto s pode ser feito por meio de uma deciso irrevogvel. Esta deci-
so nos deve empenhar na construo de um sentido comum para a atividade
cientfica de uma nova pedagogia crtica, fruto no de especulaes meramente
filosfica, mas de aes implicadas e conseqentes que garantam uma forma-
o humana pensante e altiva, e no um mero simulacro de cincia que s faz
67

agravar a impotncia diante da soberania dos novos meios alienadores do sen-


tido unificado do ser humano em sua totalidade conjuntural.

Sem dvida, tudo isso extremamente complexo e assustador. Ao


mesmo tempo alentador perceber a premncia de construo de uma cincia
do educar orientada polilogicamente. Isto implicaria em um efetivo avano de
nossa rea de conhecimento em relao ao saber global de nossa Era tecnol-
gica. Estamos, assim, diante de um desafio pensante do mais alto risco. Inclu-
sive porque com ele alcanamos, de novo, o fundamento de nossa soberania
espiritual em relao ao que hoje se tem feito com o conhecimento hegemni-
co da tecnocincia reinante.

Afinal, que tipo de relaes podemos hoje estabelecer com o conheci-


mento, na imperante sociedade da informao globalizada? Ser possvel alcan-
armos uma autonomia de pensamento e ao, a partir de novos horizontes
articuladores do sentido educante do ser-no-mundo-com? Ou no temos, ain-
da, a mnima chance de desenvolver uma atitude crtica deste porte, em nossos
corriqueiros cursos de formao para as cincias sociais aplicadas, como o
caso da Pedagogia? O que, ento, nos falta para que realizemos uma unificao
epistemolgica dos campos das cincias humanas e exatas? Que tipo, portanto
de epistemologia haveremos de praticar para que se alcance uma tamanha deci-
so pedaggica: saber fazer-aprender a ser?

A abordagem poemtico-pedaggica como meio articulador de uma


nova epistemologia do educar, pensada como campo unificador de
todas as cincias humanas e exatas campo transdisciplinar como
fundamento da construo de aes pedaggicas interdisciplinares.

Bem, claramente estamos diante de um verdadeiro impasse: como decidi-


remos que tipo de epistemologia fundar nossas prticas pedaggicas daqui
para a frente? Esta uma questo muito importante. Em primeiro lugar preci-
samos decidir qual ser a nossa atitude epistemolgica na construo de uma
cincia do educar criticamente articulada. Sem esta deciso no se pode lograr
construir nenhuma epistemologia rigorosa. E sem a concretizao de uma epis-
temologia rigorosa no se pode vir a superar o atual horizonte disciplinar dos
saberes dispersos e especializados, o que significa prolongar indefinidamente o
estado de indigncia crtica das reas de conhecimento identificadas como ci-
ncias sociais aplicadas.

Ou procuramos sair deste estado de indigncia pela via do retorno radi-


cal s coisas mesmas, ou permaneceremos cativos de um modo de saber domi-
68

nante e hegemnico que no admite o princpio fundamental da multidiversi-


dade aprendente. Isto seria lastimvel: que o nosso especfico campo de co-
nhecimento no consiga alcanar a sua independncia axiolgica e sua inteli-
gncia operativa concreta e abstrata. neste sentido que se torna urgente
uma nova epistemologia do educar transdisciplinar, o que ainda exige uma
efetiva construo interdisciplinar entre as vrias especialidades e disciplinas
envolvidas, isto , exige que as pessoas implicadas neste processo se comuni-
quem em torno das questes essenciais e comuns. este acordo intersubjetivo
que pode garantir o aparecimento de uma prtica interdisciplinar ainda inexis-
tente. Mas este acordo no pode ser feito apenas na base do formalismo disci-
plinador do processo legal.

No se trata apenas de acordo formal, pois necessrio que em primei-


ro lugar exista um acordo afetivo. Sem um acordo afetivo impossvel consti-
tuir uma trama interdisciplinar concreta. No mximo com isto se alcana o
formalismo abstrato de um dever, sem que se experimente ainda o direito de
interpelao e questionamento dos seus actantes coletivos. Entretanto, este
acordo decisivo para o engendramento do processo interdisciplinar no algo
que se pode alcanar por meio de um comando tcnico qualquer. Admitir esta
possibilidade o mesmo que achar que com a nossa racionalidade ns pode-
mos sempre dominar, sempre acertar, sempre dizer a verdade verdadeiramente
verdadeira. A afetividade necessria para a existncia de um sentido comum
para a vida humana no pode provir de um planejamento estratgico da razo
instrumental. Isto seria o mesmo que aceitar a dialtica do senhorio e do escra-
vo como a lei inalienvel do mundo humano historicamente determinado.

A esfera da afetividade que a tudo capaz de unir no mesmo um, sem


nunca perder de vista a diversidade operante do ser-sendo, no pode explicar-
se por uma causa mecnica qualquer. Pensar assim seria o mesmo que aban-
donar a soberania do esprito humano na sua relao afetiva com a vida. Na
verdade, parece que isto mesmo que o sistema poltico-econmico dominan-
te quer imputar ao exerccio das humanidades: que as mesmas se submetam
claramente s leis do novo mercado de trabalho hegemnico. Neste aspecto,
como se no existisse mais espao para a crtica radical de todo conhecimento
possvel ao ente-espcie humanidade.

Assim, posso dizer agora como entendo a urgncia de praticarmos uma


epistemologia do educar transdisciplinar e rigorosa. Esta tem a funo de in-
terdisciplinarizar os vrios campos aprendentes envolvidos na formao hu-
mana e pedaggica. Isto implicaria em uma formao crtica comum, que teria
que nascer do retorno radical a si mesmo. Ora, isto s possvel atravs de um
69

concreto sentido de comunidade presente em todos os participantes do pro-


cesso. S possvel pela existncia de uma afetividade comum que ultrapasse
as barreiras dos mltiplos territrios especializados hoje existentes na socieda-
de globalizada do conhecimento e da informao. Isto, portanto, implica no
alcance comum de um sentido de humanidade alm dos mesquinhos interesses
particulares da vida cotidiana das sociedades constitudas. Isto requer que sai-
bamos pensar a construo de uma revoluo cultural de longa durao, para a
qual o sentido do ser-no-mundo-com alcana a totalidade do todo estrutural da
humanidade. este sentido macro de humanidade que hoje ainda nos falta
para que possamos realizar uma nova epistemologia do educar interdisciplinar
e voltada para o desenvolvimento humano espiritualmente autoconsciente e
ontologicamente livre, porm noolgica e ecologicamente responsvel por cada
um dos seus atos e atitudes concretas.

A abordagem poemtico-pedaggica que proponho como trama para a


construo de uma nova teoria da educao procura responder ao desafio de
um saber fazer-aprender a ser, compreendendo com isto o prprio e apropria-
do meio de formao para o aparecimento de indivduos autnomos e inventi-
vos; indivduos finalmente capazes de realizarem em si mesmos as maiores
conquistas do esprito humano sempre novo, sempre o mesmo, sempre outro.
Isto aponta e requisita uma explicitao mais demorada sobre as dimenses
aprendentes que podem se tornar os signos comuns de uma trama construtiva
interdisciplinar das cincias humanas marcadas por uma nova epistemologia
crtica.

Entendo por abordagem (compreenso) poemtico-pedaggica a ur-


gncia de um processo aprendente que eleve a condio humana ao patamar de
uma vita activa digna e altiva, soberana e pacfica. Forjei este conceito para co-
brir uma nova concepo de educao. E digo nova no por ignorar a histria
que nos antecede, mas por reconhecer a premncia de uma educao aberta ao
prprio acontecimento implicado da realizao humana. Falo do novo que se
renova na prpria atividade vital, o novo da nova primavera ou do prximo
inverno, o novo da vida-instante aberta diante de suas possibilidades aprenden-
tes. Afinal, a vida humana no feita apenas de passado: ela encontra-se proje-
tada em sua prpria historicidade dialtica. Trata-se, assim, de uma nova edu-
cao para a vida do esprito. O esprito, entretanto, no deve ser aqui entendi-
do no sentido idealista do termo, nem muito menos no sentido apenas materia-
lista-histrico-dialtico do termo.

O esprito aqui tomado em seu sentido lato, isto , designa o prprio


ser-do-homem-no-mundo-com. O ser-do-homem esprito, isto , compre-
70

ende, projeta, age, memoriza, recorda, sonha, trabalha, come, relaciona-se, con-
figura-se, representa-se, constitui-se, transmuta-se, desaparece, reaparece etc.
Este ser esprito faz toda a diferena. mesmo um problema de diferena ontol-
gica. Ser esprito a prpria diferena ontolgica. No limito aqui o esprito ao
campo da conscincia e da autoconscincia. O esprito no se define pela cons-
cincia ou autoconscincia do ser humano histrico. O esprito antecede a
conscincia ou a autoconscincia e seria tolice imagin-lo categorizado deste ou
daquele modo. O esprito por definio o transcendens: no possvel atribuir-
lhe atributos que explicariam sua essncia incriada. O esprito se vive, e nunca
pode ser confundido com um ente simplesmente dado. Dissociar o esprito do
mundo da vida o que me parece o grande problema. At aqui ao falar de es-
prito no o dissociei do mundo da vida. No d para separar o esprito do
mundo. O esprito, justamente, o dnamo do mundo, e por isto que ele no
apenas o homem, mas o homem que se reconhece esprito enquanto ek-
siste no mundo. O esprito ultrapassa o homem, mas o homem esprito em
seu prprio modo de ser-viver.

Este meu modo de compreenso abrangente e indeterminada do espri-


to acaba sendo o nexo articulador do que batizei de compreenso poemtico-
pedaggica para o fazer-aprender a ser. A abordagem poemtico-pedaggica pro-
posta articula-se como movimento compreensivo do ser-do-homem-no-
mundo-com, relevando o carter operativo e inventivo da formao humana
para a vida do esprito, isto , a vida vivida como livre criao do esprito no
mundo das relaes efetivas e das tradies justificadas e cultivadas nos pro-
cessos ritualizadores da vida humana comum, ou melhor, vida cotidiana. Cla-
ro, esta imagem da livre criao do esprito no a melhor forma de apre-
sentar a possibilidade desta abordagem, porque logo pode ser associada ao
ciclo do pensamento idealista e, com isto, pode provocar associaes indevi-
das. Entretanto, prefiro correr este risco a negar o que para mim no apenas
uma abstrao intelectual, pois um modo de vida engajado no processo de
desenvolvimento espiritual das sociedades histricas as sociedades compos-
tas por seres humanos concretos, fulanos, beltranos, Joss, Marias etc. Penso
que o nosso problema ao falar de esprito seja a falta de intimidade com ele.
Com isto no estou representado nada de fixo e imutvel, mas apenas reconhe-
cendo uma correspondncia imediata com o sentido do ser-sendo.

A minha abordagem poemtico-pedaggica define-se como fazer in-


ventivo, ou seja, fazer que ao fazer inventa o prprio modo de fazer. Portanto,
um fazer aprendente por excelncia um fazer que aprende fazendo. Neste
sentido que enfatizo o aprender a ser, isto quer dizer: aprender a ver, aprender a
pensar, aprender a viver-junto, aprender a fazer, aprender a sentir, aprender a conceber, a-
71

prender a julgar, aprender a falar, aprender a escrever. Estas dimenses figuradas,


entretanto, no so suficientes para resolver o problema concreto do aprendi-
zado das mltiplas disciplinas em uma chave transdisciplinar e em uma articu-
lao interdisciplinar. Para que isto ocorresse todo professor em particular ha-
veria de ter sido formado ao modo do Emlio de Rousseau, isto , teria que
passar por um processo complexo de ativao destas vrias dimenses em si
mesmo, fora dos enquadramentos prescritivos e formais do ensino disciplinar
institudo. Em outras palavras, cada professor haveria de ter alcanado o limiar
do seu prprio projeto existencial aberto ao aprendizado implacvel do ser-
sendo. Sem isto, nada do que se diz poemtico-pedaggico pode fazer sentido
e nutrir o esprito de fora e metamorfose aprendente: o retorno eterno do
livre esprito da criana aberta e empenhada em des-velar o mundo no gesto
poemtico da celebrao da vida pela vida do esprito.

Uma descrio mais pormenorizada das vrias dimenses do aprender


a ser algo que deixo em aberto para tratar em outra ocasio, porque agora me
apraz finalizar esta fala com a ntida convico de ter j inquietado o suficiente,
o que j indica para uma necessria continuidade desta conversao epistemo-
lgica, caso se deseje tornar esta epistemologia do educar uma prtica pedag-
gica indispensvel para a criao de uma nova Paideia em nosso comum meio
de existncia. E com palavras de Rousseau encerro estas consideraes com
uma exortao serenojovial:

Jovem professor, prego-vos uma arte difcil, a de educar sem precei-


tos e de tudo fazer sem nada fazer. (Rousseau, 1999: 132)

Com isso recolho-me na ideia de uma compreenso poemtico- peda-


ggica que nos disponha a realizar uma revoluo do esprito a partir do traba-
lho aprendente como obra de arte, criao livre e consumao plena do prima-
do da vida sobre a morte: alimento fundamental para a nutrio da soberania
sbia de uma humanidade digna de partilhar a potncia gnea do equilbrio im-
pondervel.

Referncias:

MORIN, Edgar. Cincia com Conscincia. Traduo: Maria D. Alexandre e


Maria Alice Sampaio Dria. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996.

ROUSSEAU, J.-J. Emlio ou Da Educao. Traduo: Roberto Leal Ferrei-


ra. So Paulo: Martins Fontes, 1999.
72

6
HERMENUTICA E FENOMENOLOGIA DO
EDUCAR: TRAOS DE UM FILOSOFAR POLI-
LGICO PRPRIO E APROPRIADO6

Abertura

Para comear, cumpre-me descrever o uso dos termos envolvidos:


Hermenutica, Fenomenologia e Educar. No ttulo escolhido, dois substanti-
vos esto coligados ao verbo educar. O foco deste discurso, portanto, o ver-
bo, a ao educante. As palavras hermenutica e fenomenologia entram a co-
mo regimes de enunciao, ou, usando uma expresso de Paul Ricoeur, como gre-
lha de leitura. Portanto, as palavras hermenutica e fenomenologia assinalam
uma contaminao de certa tradio da filosofia ocidental. Entretanto, em que
mbito dessa tradio este discurso se inscreve e por quais autorizaes ele se
sustenta? Em que sentidos, portanto, aqui so usados os termos hermenutica
e fenomenologia e como os mesmos desvelam o educar? Em outras palavras,
qual a perspectiva fenomenolgico-hermenutica que constitui o horizonte
articulador do que aqui comunicamos?

A origem dos sentidos fenomenolgico e hermenutico do discurso


apresentado

O ponto de partida deste discurso um questionamento filosfico.


Assim, o termo contaminao aqui usado como reconhecimento de uma
apropriao filosfica que configura uma voz singular como precipitao de
um discurso que fala de um lugar que lhe prprio: o ser-sendo. Do lugar de
onde germina este dizer, o sentido de clareza apodctica de uma proposio
pensante imediatamente compreensvel. O poder-ser do ser-sendo evidente por
si mesmo. Entretanto, no se trata de uma clareza lgica, no sentido demons-

6
Texto escrito para o Encontro de Fenomenologia e Hermenutica, promovido pelo Mes-
trado em Filosofia da UFBA, Salvador, dias 11, 12 e 13 de dezembro de 2002. O mesmo foi
apresentado, de forma resumida, na mesa-redonda do mesmo encontro Gramtica e Cons-
truo do Sentido.
73

trativo do conhecer, nem de uma evidncia racional, como deduo de catego-


rias preexistentes, e nem muito menos de uma certeza conceitual ao modo de
gramticas regimentais, e sim de uma realizao de ser-sendo: acolhimento do
vigor rasgante o da coisa ela mesma em si mesma.

A contaminao da qual me refiro diz de um percurso de pensamento que


germina da radicalidade do ponto de partida fenomenolgico. Husserl e Heidegger so
alguns dos interlocutores dessa contaminao. Interlocutores sim, autoridades
externas no. Com eles, no confirmamos o que se supe e se determina co-
mo discurso filosfico autorizado. Pelo contrrio, com eles, o discurso filosfi-
co autorizado encontra-se sob julgamento. Com eles, a nica certeza a vida-
sendo. Fui sendo levado, assim, a refazer os percursos lgicos e ontolgicos
das filosofias ocidentais, atravs do dilogo de pensamento. Em primeiro lugar,
o movimento de retorno ao si-mesmo. Com Husserl uma convico:

Em primeiro lugar, quem quiser realmente tornar-se filsofo dever uma


vez na vida voltar-se para si mesmo e, dentro de si, procurar inverter todas as cin-
cias admitidas at aqui e tentar reconstru-las. A filosofia a sabedoria de qual-
quer forma um assunto pessoal do filsofo. Ela deve constituir-se como algo dele, ser
a sua sabedoria, seu saber, que, embora se volte para o universal, seja adquirido por ele
e a qual ele possa ter condies de justificar desde a origem e em cada uma de suas e-
tapas, apoiando-se em suas intuies absolutas. (HUSSERL, 2001, p.20)

Husserl envereda na procura de um saber verdadeiro, a partir do qual


uma cincia absoluta se reconfirma em sua gnese prpria. A sua fenomenolo-
gia modo de acesso ao saber absoluto. Neste sentido, um mtodo, o mtodo
filosfico propriamente dito. Seu cartesianismo consiste justamente na posio
de princpio. Neste mbito, Husserl fala para filsofos empenhados com a sabe-
doria. Seguindo os passos de Descartes, Husserl recoloca o problema do co-
nhecimento transcendental como uma sabedoria pessoal do filsofo: uma radi-
calidade como retorno s coisas mesmas. A pergunta, ento, pelo conhecimento
verdadeiro, se desatrela dos compromissos ontolgicos e metafsicos de qual-
quer espcie e se encaminha para o mbito do acontecimento-precipitao do
sentido-sendo. Contudo, o saber absoluto do filsofo no se encontra vincula-
do a nenhuma espcie de vivncia psicolgica. Pelo contrrio, pelo movimento
de retorno s coisas mesmas ocorre deixar-de-lado, des-montar, des-
fazer todo saber j construdo e realizado at aqui pela cincia e pela moral. O
fundo desse saber absoluto , contraditoriamente, um no-saber absoluto. A
provocao da fenomenolgica de Husserl foi por mim acolhida nesta possibi-
lidade: a de ser o movimento metdico de esvaziamento de todo pretenso sa-
ber absoluto e de toda imperativa moralidade, que queiram se apresentar como
a verdade e a norma transcendentes e indiscutveis. No mbito da radicalidade
74

filosfica realizada por Husserl no h lugar para falsos problemas filosficos. Nesta
visada, os verdadeiros problemas filosficos so verdadeiros na medida de seu desco-
lamento dos fatos naturais. Assim, um verdadeiro problema filosfico aquele
que alcana o desvelamento de algo em seu prprio discurso, permanecendo,
deste modo, um fenmeno da fenomenologia. O saber filosfico verdadeiro o
saber que se desvela e se constri no discurso e pelo discurso de pensamento.

Aprendi a ouvir essa provocao de Husserl para alm dos psicologis-


mos e filosofismos sobre a verdade. No modo como acolho a atitude fenome-
nolgica, o fundamental no possuir muitos conhecimentos e muitas infor-
maes sobre as verdades cientficas e filosficas vigentes, e sim permanecer
sempre atentos s coisas mesmas, no modo mesmo como constituem o nosso
comum perceber. A atitude fenomenolgica, assim, nos mantm atentos ao
presente. , deste modo, um estado de ateno absoluta.

O importante, nesse retorno radical sobre si mesmo, no acumular


conhecimentos e informaes sobre as verdades histricas consagradas, e sim
aprender a l-las no enviesamento constelado do presente vivo. , sem dvida,
um ato de livre de-ciso que no faz sentido como simulacro de discurso filo-
sfico. Ou discurso filosfico verdadeiro ou no passar de simulacro. Entre-
tanto, o ser verdadeiro desse discurso no se pode medir por autoridades exter-
nas. Portanto, no se trata de nenhuma verdade lgica, muito menos de uma
verdade ontolgica. O sentido de verdade aqui mostrado s se pode compreender
por meio de uma intuio absoluta prpria e apropriada. Neste mbito, algo
da sabedoria pessoal do filsofo. Este sentido de certeza interna e absoluta o que
funda uma fenomenologia empenhada em descrever os fenmenos como apa-
recer e aparncia, no modo, portanto, como constituem o ego transcendental, ou
melhor, a conscincia em seu modo de ser-em-situao.

Claro, a verdade absoluta que se alcana por meio de uma intuio ei-
dtica desse gnero est fora do jogo demonstrativo das cincias positivas, e
s se pode comunicar aos outros, mas nunca imaginar que seja possvel dizer
ao outro do que se trata, se esse outro no tiver em si mesmo uma experincia
do mesmo gnero. Entretanto, quando se realiza uma descrio como esta,
algo tambm se prefigura atravs do prprio discurso, e esse algo de algum
modo percebido pelos que entram no fluxo de sua apario e de sua aparncia.
Portanto, no acredito na possibilidade de ser compreendido, exceto no mbito
daquilo mesmo que no discurso rasga o velamento do sentido-sendo, para logo
em seguida proteger-se de novo no silncio da fala. Assim, a contaminao
fenomenolgica descrita nada tem a ver com opinies pessoais sobre o qu
75

da filosofia e da cincia, mas consiste em um caminho de investigao radical


do saber-ser-sendo. Compreendem?

Por outro lado, a contaminao se deu tambm pelo lado da Herme-


nutica. Como se no bastasse o abismo aberto pela fenomenologia de Husserl,
fui contaminado pelo passo de volta que marca o pensamento de Heidegger. A
Fenomenologia do Da-sein uma Hermenutica da questo do ser: uma Onto-
logia Fundamental. Neste mbito, o importante a escuta atentiva do pensa-
mento que germina na origem. Isto interpreta o sentido da filosofia como o
pensamento prprio do a-se-pensar (HEIDEGGER, 1998, p. 17). Esta a
grande questo hermenutica em Heidegger: de que maneiras o pensamento
dos pensadores originrios descortinou a origem, como aquilo mesmo a-se-
pensar, e que relaes tem isso com a poca hegemnica do Ocidente? E como
pela expresso pensamento originrio Heidegger compreende no a obra de
pensadores da poca arcaica grega, mas a ddiva daquilo que no e para o pen-
samento essencial o a-se-pensar, isto significa, no modo grego de pensar,
amizade pelo que constitui o a-se-pensar. Ora, essa amizade justamente
o que os gregos chamaram, na origem, filosofia. Nesta perspectiva, no existiria
filosofia no ocidental, no sentido de que o Ocidente originariamente grego.
Com palavras de Heidegger:
No existe filosofia alm da ocidental. Em sua essncia a filosofia to o-
riginariamente ocidental que carrega dentro de si o fundamento da histria do Oci-
dente. E unicamente desse fundamento que nasce a tcnica. S existe uma tcnica
ocidental. Ela consequncia da filosofia e nada alm disso. (1998, p. 17)

Nessa compreenso, uma Hermenutica do Da-sein tem sotaque grego,


ou melhor, um retorno ao modo originrio dos pensadores que pensam no
mbito da origem. Para Heidegger, estes so apenas trs: Anaximandro, Par-
mnides e Herclito. Quer isto dizer, ento, que sem o domnio da lngua gre-
ga no se pode propriamente filosofar? Se, como afirma Heidegger, uma
redundncia dizer filosofia ocidental, e isto justamente porque a filosofia
exclusivamente ocidental, ou melhor, grega, quem no tem acesso lngua gre-
ga arcaica ou lngua alem moderna no pode dizer que filosofa. assim
mesmo, ou essa apenas a verdade de Heidegger e s dele e de seus segui-
dores?

Sim, a filosofia grega, assim como o taosmo chins. Bem, e da?


Somos ocidentais ou apenas seres humanos faladores de lnguas especficas?
Qual a diferena entre ser ocidental ou ser oriental, ou ser mdio-oriental?
Aqui comea minha dvida em relao origem do pensamento que se diz
filosfico. O que fulgurou como encontro com a origem, s aconteceu exclu-
76

sivamente no pensamento grego dos pensadores originrios nominados? Ou o


pensamento desses pensadores, na acolhida do a-se-pensar, se fez sensvel coisa
mesma do pensar? Ento, as palavras ditas, por eles, ecoaram com vigor de
fonte e no com indiferena, des-velando a poca do Ocidente em sua origem
e em sua vigncia de origem? O que isto significa? Que o fundamento da his-
tria do Ocidente se confunde com a essncia da filosofia grega, e que, por-
tanto, unicamente desse fundamento que nasce a tcnica? O que tudo isto
propriamente quer dizer de forma inequvoca? E da? Para onde nos leva esta
constatao? preciso ainda filosofar.
O prprio Heidegger pode ajudar no esclarecimento relativo ao sentido da origem
propriamente dita da filosofia, e isto na direo de uma melhor compreenso
das possibilidades abertas por sua hermenutica ontolgica. Recorrendo a
Kant, ele confirma a impossibilidade de se poder dizer com preciso onde e
quando nasceu o esprito filosfico entre os gregos. Com isso ele se contenta
mesmo a distncia em fazer a experincia do fundamento do comeo
da filosofia, isto , da metafsica numa dimenso prpria (1998, p. 18). Tra-
ta-se, deste modo, da Hermenutica compreendida como experincia da ori-
gem atravs da escuta do pensamento originrio ouvido (lido) em sua sonn-
cia grega. Heidegger embarca fundo nessa viagem sem retorno. O seu pensar
vive dessa ressonncia com a palavra da origem. Como hermeneuta do ser-
sendo, ele interpreta o dizer dos pensadores originrios como acolhimento da
origem. A sua hermenutica uma ressignificao do sentido-sendo a partir da
origem. Ele reinventa o filosofar como reaproximao da origem e distan-
ciamento do fim. O fim, no caso, a tcnica em sua hegemonia planetria.
neste ponto que a contaminao de Heidegger me alcana de maneira radi-
cal, permitindo-me usar o termo Hermenutica alm do horizonte filosfico
grego. Apesar de grego, e logicamente alemo, Heidegger , tambm, e antes de
tudo, Da-sein. Ele tambm esteve no mundo-com. isto o que me interessa da
Hermenutica ontolgica de Heidegger: sua abertura para uma revoluo ain-
da impensada no seio do ser-sendo.

nesse ponto que o sotaque alemo ou grego da filosofia no faz


nenhuma diferena, porque s se pode filosofar em linguagem e lngua prpria,
no interessando se grega ou latina, japonesa ou hindu, espanhola ou portugue-
sa. A prova disto que em todas as lnguas e culturas do planeta h poetas e
pensadores, artfices e legisladores. A questo, me parece, de desenvolvimen-
to humano. Todo povo desenvolvido espiritualmente produz artfices e pensa-
dores prprios. E dizer isto significa reconhecer como o filosofar, antes de
corresponder apenas ao modo grego de ser, caracteriza-se pela busca amorosa
do sentido do ser em sua diversidade incessante. Afinal, o ser sempre aquilo
77

que no acontecimento do sentido. Sem sentido no h ser, e sem ser o senti-


do no ek-sistiria no acontecimento espacial do tempo.

De certo modo, hoje como hoje, olho para Heidegger com admirao e
suspeita simultaneamente. A admirao vem do reconhecimento da sua obra
monumental e de grande flego criador. A suspeita provm do fato de sua
excessiva melancolia em relao a origem, para no dizer obsesso. Talvez
tivesse sido para ele salutar afastar-se um pouco mais vigorosamente de suas
convices filosficas, aprendendo, assim, a falar com mais desenvoltura a
lngua do pensamento em seu silncio rasgante. Ora, mas isto ele sempre deu
provas de saber fazer com maestria indiscutvel. Neste caso, no estou aqui
procurando diminuir o seu valor como pensador autntico, mas simplesmente
dando provas do reconhecimento da diferena entre a pessoa de Heidegger e o
seu dizer de pensador radical. Afinal, para quem falava Heidegger? Por ventura
pode-se medir os efeitos da propagao de um dizer filosfico como aquele de
Heidegger? Trata-se de manter-se fiel fonte original do seu pensar, ou essa
fonte no pertence mesmo a ningum, e Heidegger teria simplesmente bebido
dela e se embriagado, a ponto de no mais saber o caminho de volta para casa?

O que me interessa da perspectiva fenomenolgico-hermenutica de


Heidegger aquilo mesmo que ele diz em consonncia com o seu mergulho
denso na origem do pensamento grego. Mas justo no momento em que ele
procura territorializar a filosofia como sendo uma coisa exclusiva dos gregos,
ele mesmo acaba deixando-se levar pela soberbia pensante, que s sabe ver a
verdadeira filosofia como sua coisa exclusiva, um domnio particular de um
determinado tipo de inteligncia de dominao ideolgica, longamente treinada
pela escolstica acadmica. Neste sentido, o vio humano pela posse da totali-
dade conjuntural do todo estrutural da pre-sena contaminou tambm o ho-
mem Heidegger, que sofreu de apatridade radical, mas no foi corajoso o sufi-
ciente para abandonar sua confortvel cidadela e lanar-se na aventura da dife-
rena por ele mesmo anunciada de maneira quase obsessiva.

Ilhado em seu prprio territrio simblico-filosfico, no cabe ao pro-


feta realizar em sua totalidade a utopia da prpria obra. A obra, assim, no tem
ptria nem nome prprio, pois acolheu a vertigem da origem e se espargiu
com os ventos do mundo-vivo. A obra, tambm, no se resume apenas sua
forma perenal de registro autntico do que disse o pensador, mas ultrapassa a
prpria letra em seu brilhar de estrela madura. A obra se oferta ao mundo da
vida em seu dizer impessoal e procura sempre aqueles capazes de acolh-la em
seu dizer sempre outro, em seu aparecer sempre o mesmo.
78

No penso aqui em negar a influncia decisiva de Heidegger para este


modo de pensar, mas apenas, sendo fiel ao chamado da origem, cumprir sem
vacilos a sada jovial da cidadela do ego transcendental travestido de Da-sein.
Ou seja, se o Da-sein apresenta-se como constructo capaz de abarcar o modo
de ser prprio ao humano, como esperar que o dizer do ser fale apenas, na
origem, grego, e modernamente alemo? No estaria na hora de radicalizarmos
o sentido do Da-sein como efetivamente aquilo que s se pode dizer o que
pelo que j foi, mas que nunca, por isso mesmo, se pode dizer em definitivo e
por meio de uma racionalidade qualquer o que propriamente o que se en-
contra, no presente, sendo-ser?

De Heidegger, portanto, me aproprio do sentido de abertura do que h


a-se-pensar em sentido prprio e que envolve o ente-espcie humanidade como
um todo. Sua obra interpretativa dos pensadores originrios fonte inegvel de
beleza e grandeza de pensamento rasgante. por esta possibilidade que enve-
redo por esse pensar fenomenolgico e hermenutico do educar.

Compreenso polilgica fenomenolgico-hermenutica do


educar na instncia do a-se-pensar

O modo sinttico como descrevi a gnese da minha concepo de fe-


nomenologia e hermenutica prpria e apropriada acentua o carter atitudinal
do caminho investigativo (filosfico) em curso. E justo por ser um caminho-
sendo (em curso), no falo de uma investigao passada, e sim de um movi-
mento instante que avana pulsivamente no mbito de sua projeo em um
novo tempo do ser-sendo. Neste sentido, a minha pesquisa fenomenolgico-
hermenutica no oferece resultados como aqueles prprios das pesquisas em-
pricas. Os resultados, se assim se quiser, so indicadores de snteses dos
processos vividos ao longo da investigao. A questo, ento, dimensionar o
tempo prprio da investigao. No sendo uma investigao quantificvel, o
tempo da pesquisa o tempo do ser. Isto para dizer que a pesquisa fenomeno-
lgico-hermenutica por mim realizada compreende o todo estrutural da vida-
sendo, em uma flutuao caracterstica de um momento irrepetvel do ser-
sendo. A pesquisa de tal maneira a vida em sua totalidade que inconcebvel
qualquer separao entre lazer e trabalho, entre tempo de cio e tempo de
produo de algo. E como o seu objetivo no a mera produo de algo, mas
a realizao do prprio ser, a nica coisa mensurvel do movimento o que se
comunica comunidade implicada na produo do conhecimento cientfico,
atravs do que se diz e do que se escreve em ocasies como essa. Contudo,
quero deixar registrada a minha posio em relao ao que se qualifica como
pesquisa acadmica sria. No se pode medir a produo acadmica de pen-
79

samento atravs dos quantificadores institudos, porque, por princpio e natu-


reza, s se pode comparar coisas distintas atravs de um regime de excluso
baseado em critrios formais e ideais de produtividade e melhor desempe-
nho na multiplicao de um determinado capital especulativo. No estaria
mais do que na hora de dizer basta a essa maneira de julgar o valor da produ-
o de conhecimento acadmico?

Com isso quero dizer que a investigao no se fundamenta em ne-


nhuma autenticao ou autorizao externa, mas se afirma pelo seu ser-sendo:
ela tambm obra em movimento de vida. Assim, se pode dizer que essa for-
ma de investigao no se associa a nenhuma escola ou tendncia metodolgi-
ca nos campos da fenomenologia e da hermenutica. Pelo contrrio, sendo
uma pesquisa prpria e apropriada mais apropriado dizer que ela dialoga com
muitas vozes, mas no segue nenhuma delas. neste sentido que este filosofar
foi chamado de polilgico, compreendendo-se a no apenas a juno arbitrria
de muitas lgicas, mas, sobretudo, a reunio de diferentes vozes engajadas
em diferentes temporalidades. E isto para esclarecer um modo peculiar de
compreenso do filosofar como construo de sentido-sendo. Diante da mul-
tiplicidade de vozes existentes no tomo posio, mas acolho o ultrapassamen-
to de todas elas. neste mbito que o educar o campo efetivo deste exerccio de
vida fenomenolgico-hermenutico. Para mim, no h mais como separar o
fenomenolgico do hermenutico, muito menos o que se pode chamar propri-
amente de investigao filosfica pode-se separar da vida em seu acontecer
criador. Uma convico maturada longamente esta: a rigor, a atitude feno-
menolgico-hermenutica disposio para a realizao da vida altiva e cuida-
dosa, criadora e justa. O problema do ser, assim, o problema do ser-no-mundo-
com. O filosofar do ser, deste modo, se torna o aprender a ser-sendo-com. Est
implicada nesta convico uma indissociabilidade entre filosofar e educar. No
separo o educar do filosofar. Penso o educar como o a-se-pensar o apelo amoroso do
ser-sem-ocaso. Acolho o filosofar como aprender a ser no ser-sendo aprender a ser na
vida-vivente; aprender o a-se-pensar na polilogia do pensar-ser.

Aqui a perspectiva polilgica pede esclarecimentos. Na medida em que


a contaminao fenomenolgico-hermenutica deste filosofar fundamental-
mente uma peculiar atitude filosfica, antes de tudo, preciso realizar em si mesmo
o encontro com o des-velamento do sentido do ser. Neste mbito, todo filosofar
criador, e no h filosofar no criador e sim um no-filosofar. Desde a origem,
a atitude filosfica se caracteriza pelo querer-saber-ser radical. O Fragmento
101 de Herclito Eu me busco a mim mesmo pode ser acolhido nesta
possibilidade. No vejo meio termo para o filosofar: ou ele a busca-encontro
de si mesmo, alm de si mesmo, ou ele nada ser alm de vaidade egica e
80

prepotncia intelectual. Muito alm das vaidades, o filsofo o que acolhe em


si mesmo a potncia do ser-sendo e dela cuida como um bem que no lhe per-
tence. Neste sentido, ser filsofo significa partilhar do mbito onde tudo se
encontra unido no mesmo Um. Assim, o que propriamente a filosofia no diz
respeito as obras dos chamados filsofos e sim muito mais ao mbito em que
o apelo do ser-sendo acolhido na impermanncia sensvel do a-se-pensar dos
pensadores curadores do ser-sendo.

Com essa visada polilgica, o tempo do a-se-pensar prprio da atitude filo-


sfica no o mesmo tempo linear das representaes historiogrficas sobre a
filosofia. Entre Plato e Aristteles, quem mais filosfico? E, entre Husserl e
Heidegger, quem mais verdadeiro, no sentido prprio do des-velamento?
Em outras palavras, como negar a diversidade de vozes vigorosas que ecoam
no tempo do ser-sendo, como estaes da vida em seu fluir perenal? Como
escolher, ento, entre Husserl e Heidegger, quando o caso o de saber escolher a si
mesmo, alm de si mesmo?

Apresento aqui uma compreenso polilgica do sentido-sendo. Ao


juntar Husserl com Heidegger, apenas como caso pontual, no corro o risco
de cair em nenhum ecletismo filosfico. Isto porque para mim Husserl e Hei-
degger so incomparveis, assim como so incomparveis todas as realizaes
criadoras. E como no se trata de seguir uma doutrina ou aderir a uma escola
de pensamento, e sim de realizar o a-se-pensar como ddiva amorosa do saber-
ser, qualquer pensador autntico fonte de um saber inigualvel. Neste senti-
do, no h como afirmar que um determinado filsofo est superado e que o
que se deve agora fazer aderir s novidades das modas ditadas pelos novos
filsofos territorializados. Afinal de contas, toda obra humana (filosfica ou
no), como obra, superada. Desde a nascente, todo filsofo j se encontra
em si mesmo superado. Enfim, tudo o que obra o que j foi. Entretanto,
naquilo que j foi, na obra j feita, percute e repercute o a-se-pensar do ser-sendo.
Em tudo o que j foi o sempre atravessa o mbito do tempo no instante ger-
minal . S o que no no pode nunca tornar-se. O que , sempre um ser-
sendo.

E porque toda obra humana j em si mesma um passado, no h


nunca a possibilidade de elaborao completa e acabada do sistema da Nature-
za, ou da vida csmica, ou da vida humana. Entretanto, em cada caso singular
do ser-vida se manifesta uma de-ciso irrevogvel de plenitude. E porque aqui-
lo que ama velar-se, o ser-sendo consiste justamente em continuar a ser.
No enviesamento de nossas vidas corriqueiras, os limites impostos pelas con-
dies scio-histricas da humanidade no so os empecilhos para o floresci-
81

mento do pensamento criador, porque o nosso ser sempre um ser-em-


situao. No h, deste modo, condies ideais a serem repetidas em cada caso
para que se possa realizar a plenitude, e sim apenas falta de de-ciso radical, em
qualquer dos casos ou situao limite. Dificilmente a condio humana deixar
de lado as contradies que lhe so prprias. Dificilmente filosofaremos me-
lhor se aparelharmos nossos ambientes acadmicos ao modo deste ou daquele
centro de excelncia. O que precisamos de melhores condies ticas para o
trabalho de pensamento. Isto o que pode fazer a diferena. Sem isto, portan-
to, no se pode querer aprender a filosofar de modo radical e criador, e isto
sem que seja necessrio apagar uma estrela sequer do cu. Entre o acender e o
apagar de estrelas, lembrando Herclito, a vida tem um Logos que se aumenta a si
mesmo (Fragmento 115). este o esprito que me move a filosofar, ou melhor,
dispe-me vida-sendo.

No polilogismo de minha fala, acolho igualmente Husserl e Heidegger,


assim como acolho uma infinidade de outras vozes. No encontro neles e em
todas elas seno uma realizao do mesmo Um. Como, ento, escolher entre os
dois ou entre uma delas? Na verdade, no escolho nem um e nem outro, mas
escolho a mim mesmo, ou melhor, escolho o que me escolheu nesta aproxima-
o com o sendo-ser. E porque eu mesmo no escolhi a mim mesmo mas fui
escolhido, atendo ao chamado do que me possvel enquanto ser humano:
conhecer-me a mim mesmo e pensar. Nesta possibilidade, nem a fenomenolo-
gia de Husserl e nem a hermenutica fenomenolgica de Heidegger so cami-
nhos possveis para quem quer que seja, porque trazem a marca do aconteci-
mento da plenitude humanamente vivida. Para que pudessem ser caminhos
possveis para quem quer que seja, cada um de ns teria que ser Heidegger ou
Husserl sem tirar nem pr. Quando, por exemplo, Husserl discorre, em suas
Meditaes Cartesianas, acerca do carter bilateral da conscincia, para da falar da
sntese como forma original da conscincia, sua descrio alcana uma plenitude ini-
gualvel. Lendo suas consideraes ocorre aprender com ele aquilo sobre o que
discorreu, mesmo se este aprendizado nunca se possa igualar a qualquer outro
aprendizado, e nunca se possa dizer que coincide com o que ele disse. Toda
leitura filosfica sempre uma aproximao nunca uma coincidncia. De qualquer
modo, as descries feitas por Husserl so to verdadeiras quanto aquelas fei-
tas por Heidegger, e umas no superam as outras nunca. So ambas revelado-
ras, em modos distintos, do a-se-pensar. Bem, pelo menos este o meu modo
de acolher a diferena vvida em cada obra do pensador que d a pensar.

A maneira como Husserl descreve a gnese da sua fenomenologia


transcendental to abissal como o modo com o qual Heidegger executa sua
leitura de Herclito ou realiza sua Hermenutica do Da-sein, em Ser e Tempo
82

(1991). Assim, quando Husserl diz que ... poderemos definir o carter bilateral
da investigao da conscincia, descrevendo-o como uma coordenao insepa-
rvel (2001, p. 57), isto revela uma de-ciso irrevogvel de plenitude no ato
minucioso e metdico da descrio fenomenolgica da conscincia como um
retorno radical a si mesmo. Pleno de potncia e esperanoso pela possibilidade
de um conhecimento universal do ser que -sendo, conclui suas Meditaes
dizendo:
Temos diante de ns um sistema de disciplinas fenomenolgicas, do qual a
base fundamental no o axioma ego cogito, mas uma plena, inteira e universal tomada
de conscincia de si mesmo.
Em outros termos, a via que conduz a um conhecimento dos fundamen-
tos ltimos , no mais alto sentido do termo, ou seja, a uma cincia filosfica, aquele
em direo a uma tomada de conscincia universal de si mesmo, de incio mondica e
depois intermondica. Podemos igualmente afirmar que a prpria filosofia um de-
senvolvimento radical e universal das meditaes cartesianas , ou seja, um conheci-
mento universal de si mesmo, e abrange toda cincia autntica, responsvel por si
mesma.
O orculo dlfico conhece-te a ti mesmo adquiriu um novo sentido. A
cincia positiva uma cincia do ser, a qual se perdeu no mundo. preciso de incio
perder o mundo pela epoch, para reencontra-lo em seguida numa tomada de conscin-
cia universal de si mesmo. Noli foras ire, disse Santo Agostinho, in te redi, in interiore ho-
mine habitat veritas. (2001, p. 170)

De modo paralelo, pode-se acolher este mesmo sentido de plenitude


em Heidegger, assim como em qualquer outro pensador autntico. Em Ser e
Tempo, Heidegger afirma que:
Ontologia e fenomenologia no so duas disciplinas diferentes da filosofia ao
lado de outras. Ambas caracterizam a prpria filosofia em seu objeto e em seu modo
de tratar. A filosofia um ontologia fenomenolgica e universal que parte da herme-
nutica da pre-sena, a qual, enquanto analtica da existncia, amarra o fio de todo
questionamento filosfico no lugar de onde ele brota e para onde retorna.
As investigaes que se seguem so apenas possveis na base estabelecida por
E. Husserl, cujas Investigaes Lgicas fizeram nascer a fenomenologia. As explicitaes
do conceito preliminar de fenomenologia de-monstraram que o que ela possui de es-
sencial no ser uma corrente filosfica real. Mais elevada do que a realidade est a
possibilidade. A compreenso da fenomenologia depende unicamente de se apreend-la
como possibilidade. (1995, p. 70)

Ento, quem devo, afinal, escolher como a melhor fonte filosfica para
continuar pensando, Husserl ou Heidegger? Bem, j falei desta de-ciso: nem
Husserl e nem Heidegger, mas o pensar mesmo, em si mesmo, alm de si
mesmo. isto, porm, possvel, dadas as condies adversas ao pensar mes-
mo, to marcantes nos tempos hodiernos? Afirmativamente, digo ser possvel
83

deixar de lado toda e qualquer pretenso de acabamento filosfico sem perder


de vista a de-ciso pela plenitude vivente, no ato mesmo em que se pensa o
ser-sendo como realizao singular do que nunca tem ocaso.

A compreenso polilgica fenomenolgico-hermenutica do


educar, na instncia do a-se-pensar, aqui desenhada, privilegia o verbo como
lugar prprio do ser-sendo. O verbo educar o meio de reunio de diferenas
na base do mesmo sem-fundamento. Uma hermenutica-fenomenolgica do educar
tem como seu campo de investigao o aprendizado da atitude filosfica, isto , o
aprendizado de si mesmo enquanto ser-no-mundo-com. Neste mbito, importa aprender
a ser-sendo. Como aprendizado de si mesmo, o educar implica na possibilidade de se
fazer-aprender a ser-sendo. Como todas as palavras aqui usadas, o educar uma
palavra provisria para indicar uma nova possibilidade aprendente no seio da vida-
sendo. Quero enfatizar com isto um agir fenomenolgico-hermenutico empe-
nhado em aprender-a-ser-com. Trata-se de um agir-com no horizonte histrico-
social de nossas possibilidades criadoras. Fazer-aprender a ser-com, esta a tarefa
desta hermenutica e fenomenologia do educar. No se trata, assim, de pres-
crever uma doutrina filosfica nova. Pelo contrrio, a questo apontada no
doutrinal e sim ontolgica: diz respeito ao ser que somos e podemos ser en-
quanto somos-no-mundo-com.

O aprendizado aqui referido fala da diversidade do poder-ser no saber-ser. O


poder-ser requisita o saber-ser. Nem poder-ser sem saber-ser, nem saber-ser sem poder-
ser. No se trata, portanto, de um aprendizado escolar ou escolstico, um aprendiza-
do comprometido com programas sociais e polticos aparelhados ideologica-
mente para atender a certos fins mercadolgicos pela qualificao tecnocient-
fica. Entretanto, tambm um aprendizado para ser realizado no mbito da
educao formal bsica e da educao superior. Portanto, um aprendizado
que interessa a todo estado de direito constitudo democraticamente. Afinal,
educar para qu?

De qualquer modo, o horizonte de sentido aqui apresentado para o edu-


car heterotpico: o seu mbito no prefigura uma realidade e sim uma possibi-
lidade, e uma possibilidade marcada pelo signo da diferena como diferena. O lugar
um campo de possibilidades que escapa de toda e qualquer certeza fundada
na imobilidade do inaparente. O inaparente, afinal, no mvel e nem imvel,
ele simplesmente inaparente. O outro lugar o lugar do tempo inaparente. A
heterotopia, assim, implica no prprio movimento das precipitaes fenomni-
cas: ela diversidade de possibilidades de relaes-com-diferentes. Afinal, a luz
onda ou partcula? Sendo oras onda, oras partcula, dependendo do meio de
captura, a luz sempre ela mesma em si mesma luz. Desta forma, o lugar ima-
84

ginrio prprio da utopia humanista moderna tornou-se agora o lugar imagin-


rio inaparente. Neste sentido, no mais se trata de lutar por ideais inalcanveis
e por sonhos irrealizveis, mas de fazer valer a potncia do poder-ser e saber-ser
que h em cada um de ns, no sentido de uma ao educante, isto , que d
passagem ao florescimento e frutescimento do a-se-pensar como realizao do
inaparente sempre outro, sempre o mesmo. Afinal, como algum poderia manter-se
encoberto diante do que nunca tem ocaso? (Herclito, Frag. 16). este o tempo do ser-
sendo que se des-vela no horizonte deste caminho fenomenolgico e hermenu-
tico do educar.

Em relao ao tempo do ser, recorto uma passagem de Ilya Prigogine que


considero extraordinria na nomeao de outras possibilidades de compreen-
so do tempo e do seu nascimento cosmolgico. Diz ele:
Aconteceu nascimento do tempo? A questo muito complexa. Provavel-
mente aconteceu nascimento do nosso tempo. Provavelmente houve nascimento do
nosso universo. Est aqui o nascimento do tempo em si? [...]
No devemos esquecer-nos: a cincia s pode descrever fenmenos repet-
veis. Se se deu um fenmeno nico, uma singularidade como o Big Bang, eis que nos
encontramos perante um elemento que introduz aspectos quase transcendentais, que
escapam cincia.
Da mesma maneira, no creio que a vida corresponda a um fenmeno nico:
forma-se sempre que as condies planetrias sejam favorveis. E mais, creio que se
formar outro universo sempre que as condies astrofsicas forem favorveis a tal
evento.
O nascimento do nosso tempo no , por conseguinte, o nascimento do
tempo. J no vazio flutuante o tempo preexistia no estado potencial.Talvez nisto se-
jamos tributrios da nossa linguagem. O tempo no a eternidade, nem o eterno re-
torno. E isto j no somente irreversibilidade e evoluo. Talvez hoje necessitemos
de uma nova noo do tempo capaz de transcender as categorias de devir e de eterni-
dade. [...]
Hoje observamos o papel das micro-estruturas, das decises individuais, das
flutuaes que se amplificam. [...]
Na cosmologia que acabo de expor a totalidade que desempenha o papel
determinante. O fato singular, individual, s se torna possvel quando implicado nesta
totalidade.
Chegamos assim a um tempo potencial, um tempo que est sempre j a-
qui, em estado latente, que s exige um fenmeno de flutuao para se atualizar. Nes-
te sentido, o tempo no nasceu com o nosso universo: o tempo precede a existncia, e
poder fazer nascer outros universos. (1999, p. 59-60)

Ora, o tempo do ser aqui acolhido rasga a existncia humana em precipi-


taes sempre j aqui. Isto implica em outras possibilidades para o ente-
espcie humanidade em sua saga aprendente. Se o tempo no evolui e to pou-
co devm, se no retorna ao mesmo e muito menos eterno, o tempo precede a
existncia na justa medida em que a constitui em seu aparecer e em sua aparncia
85

instante e multvoca. Como o inaparente de todo aparecer e aparncia, o tempo


diverso em seu prprio ser-sendo: ele a morada do ser-sendo sempre outro,
sempre distinto, sempre nico. Nesta medida incomensurvel do tempo do ser-
sendo, a totalidade conjuntural do todo estrutural da pre-sena s ocorre nas
realizaes singulares das flutuaes viventes, e cada jogo do ser-sendo, pela
repetio do poder-ser, sempre um jogo aberto ao tempo instante sem ocaso.
Como jogo aberto, o grande aprendizado tornar-se sempre presente, enquanto
corpo-vivo flutuante ek-sistente. Isto apresenta o tempo em sua diferena
ontolgica germinal.

Nessa perspectiva assustadora da diferena ontolgica que o tempo carrega,


a hermenutica-fenomenolgica aqui acolhida se abre para o aprendizado radical
do ser-sendo em polifnicas e polilgicas floraes epocais, no sentido do espar-
gimento da potncia do ser em universos paralelos e desconhecidos uns aos
outros, sem que, contudo, a inaparncia radical do tempo sofra qualquer altera-
o com isso. Assim o aprendizado do tempo do ser o grande desafio pedag-
gico do milnio das incertezas, iniciado neste sculo XXI de nossa era oci-
dental. O grande desafio, tambm, aprender a conjugar o verbo ser na diver-
sidade de sua potncia e na amplitude de sua extenso. Ento, o aprendizado
requisitado j no diz respeito ao projeto escolstico de formao humanista,
mas requer uma outra artesania filosfica, aberta, agora, ao acontecimento do
sentido na diversidade de seus poderes criadores. Assim, divisamos a ultrapas-
sagem do tempo do Ocidente e de sua ocidentalizao, no sentido da origem
originante do tempo do ser, mesmo sabendo que este divisar no exclui nada
daquilo que a vida em seu acontecimento plural e divergente, mltiplo e im-
previsvel. A questo, ento, : como fazer-aprender a ser? Temos a uma nova
tarefa para o saber filosfico: aquela de potencializar o surgimento de novos
poetas e pensadores do tempo, pelo ultrapassamento da interdio ontolgica
instituda. O tempo , agora, a precipitao de uma outra era: a era poliental.

O passo de volta fenomenolgico-hermenutico como uma revolu-


o no mbito do ser-sendo fundada na diferena como diferena
palavras finais: o educar com a vida

A imagem do passo de volta, to presente no pensamento de Heidegger,


algo que define tanto uma fenomenologia da conscincia como uma herme-
nutica do ser-sendo. Na fenomenologia de Husserl, com a epoch ocorre um
afastamento (distanciamento) das verdades estabelecidas para ressignific-las a
partir de dentro, por meio de uma atitude aprendente radical. Isto no deixa de
ser um passo de volta: um retorno s coisas mesmas, isto , conscincia en-
carnada e situada em sua pertena ao inaparente tempo do ser. Com a atitude
86

fenomenolgica, visa-se o alcance da atitude aprendente na vida e para a vida. O


carter transcendental desta operao consiste no alcance pessoal e intransfer-
vel do fulgurar conjuntural do todo estrutural do ser-no-mundo-com. Bem com-
preendida, esta operao permitiria iluminar os mbitos em que so conforma-
das nossas condies existenciais concretas, por meio de descries inicialmen-
te mondicas e, posteriormente, intermondicas e ultramondicas. Este fluir da
conscincia de si seria o fundamento para a construo de uma sociedade de
iguais. Os iguais, entretanto, so diferentes em seus modos de ser. So iguais
justamente na diferena de seus modos de ser.

Caminhando em uma paralela, na hermenutica de Heidegger se cum-


pre, decididamente, o passo de volta como retorno origem. Este retorno
no um retrocesso ao tempo histrico da origem, e sim uma retomada do
vigor originante, pelo afastamento do ensimesmamento metafsico do ser.
Ora, isto nos joga no vrtice do tempo instante do que no conhece ocaso.
esta abertura que me parece o a-se-pensar e que se doa para alm dos territrios
culturais da filosofia secular instituda. O a-se-pensar, em sua originariedade, no
escolhe o povo ou a nao privilegiada para fazer-se palavra. Pelo contrrio, se
um povo ou uma nao aprende a pensar o a-se-pensar, isto ocorre como ddiva
da acolhida da linguagem do ser na cotidianidade de sua existncia. Curiosa-
mente, o ser-sendo torna-se, de mltiplos modos, o acontecimento da vida-
vivente na vida-vivida.

Diante de toda essa saga pensante, resta ainda enfrentar, de modo radi-
cal, a conformao da falsa conscincia histrica que vem determinando o estado
de submisso ontolgica de alguns povos do planeta e de algumas naes do
mundo. A falsa conscincia histrica nos captura pelo lado de nossa pretenso do
alcance de um conhecimento intelectual apartado dos acontecimentos concre-
tos do existir. O mundo da vida reclama cuidados redobrados. A vida humana
requer ateno absoluta. Isto algo que a humanidade haver de aprender se
quiser vencer a barbrie por ela mesma criada e perpetuada desde a origem dos
tempos. O ser que se pode apreender no diz respeito apenas ao indivduo
isolado ou s sociedades histricas nacionalizadas. Trata-se de uma revoluo
que alcana toda a espcie humana e diz respeito a todos sem exceo. preci-
so cuidar da vida na vida e com a vida. preciso aprender a cuidar da vida em
vida. O bem maior, portanto, deste caminho fenomenolgico-hermenutico
a vida-sendo: o educar com a vida, o cuidar do que sem ocaso, na diversidade
de suas interminveis flutuaes criadoras.

Consigo ouvir em Gadamer (1998; 2002) uma voz que conclama ao


equilbrio da vida espiritual (histrico-cultural) pela retificao de nossa cons-
87

cincia, ou melhor, de nossa falsa conscincia histrica. Isto, de certo mo-


do, introduz uma outra voz nesta perspectiva polilgica do sentido-sendo, o
que vem aumentar ainda mais o seu campo de abertura para o sentido do edu-
car nele implicado. A retificao assinalada por Gadamer aponta para a posi-
tividade do filosofar nesta nossa era dominada pela tecnocincia. O modo de
acesso ao conhecimento das estruturas que conformam historicamente nossos
modos de ser-no-mundo, aquele da vida cultural ativa. Sem histria e sem
memria, o ser humano cai no esquecimento do seu peculiar poder-ser e que-
rer-saber. A vida espiritual dos povos se define pelo seus modos de vida. A
sabedoria humana tem sua gnese no modo de ser dos povos e naes ao lon-
go de suas histrias reais. O conhecimento humano s se desenvolve pela a-
cumulao de potncia provinda da combusto do que vivo e vital na mem-
ria do tempo presente.

O conhecimento humano, assim, descortina encobrimentos do que


pela remisso ao passado. No haveria, portanto, conhecimento humano sem
cultura histrica para cuidar dele como um bem vivo e, portanto, como um
bem que sempre est na passagem do tempo presente dos seres humanos. Para que a
histria temporal do esprito humano seja algo digno de ser levado ao futuro,
preciso a existncia de curadores do tempo, no sentido daquilo mesmo que
configura a essncia humana em suas possibilidades latentes e atuais. No se
trata, assim, de fechar os olhos diante da realidade que constitui a humanidade
histrica da qual fazemos parte como seus descendentes, se no diretamente
culturais pelo menos biolgicos.

Nesse sentido, teramos que aprender a filosofar em lngua e linguagem


prpria se decidssemos acolher a diversidade da vida espiritual dos povos e
naes humanas a partir de nossas prprias formas de celebrar o acontecimen-
to da existncia. Isto poderia nos fazer-aprender a conviver com as diferentes
vozes do ser-sendo espalhadas pelo mundo. Teramos, inclusive, um bom
motivo para apurar a nossa comum prepotncia intelectual diante do que se
afirma que pode e deve ser considerado verdadeiramente filosfico, ou com-
provadamente cientfico, ou reconhecidamente artstico, ou fielmente religioso.
Isto sem falar nas interdies abstrusas de certas autoridades epistemolgicas
institudas que se arvoram a ditar normas extrnsecas para validar processos
autorizados de produo do conhecimento, tendo como nica base suas po-
bres e suspeitas competncias tecnocientficas. Para um filosofar autntico, a
nica interdio aceitvel aquela que lida com os prprios limites do aconte-
cimento humano, em seu modo de ser peculiar. Qualquer outra interdio
jogo escuso de poder, que se deve aprender a reconhecer e a descartar com
veemncia.
88

mais ou menos assim que consigo ouvir o apelo de Gadamer quando


chama a ateno para a condio humana efetiva, no sentido de um aprendiza-
do comum e necessrio a ser realizado por todos em benefcio da preservao
e transformao criadora da vida-sendo. Referindo-se ao debate atual de sua
poca, ele identificou duas formas de responder pergunta sobre o papel da
filosofia na conscientizao do real, no sentido da condio humana concreta.
Indo de encontro a ambas as formas de responder pergunta, a conservador
e a revolucionrio, sem deixar de reconhecer em cada uma delas alguma po-
sitividade, Gadamer pondera:

A conscientizao do real poderia trazer conscincia justamente o fa-


to de que, quando tudo parece transformar-se to radicalmente, as coisas de
fato pouco se modificam. Isso no significa que estejamos defendendo a ma-
nuteno do status quo de uma ordem (ou desordem). Trata-se antes de uma
retificao de nossa conscincia que deveria reaprender a perceber por trs do
que se modifica e do que podemos e devemos transformar o inaltervel e o
real. Creio que tanto o conservador como o revolucionrio necessitam igual-
mente da retificao de sua conscincia. As realidades imutveis e estveis
nascimento e morte, juventude e velhice, ptria e estrangeiro, vnculo e liber-
dade exigem ser acatadas por parte de todos. Essas definem o espao de
jogo dentro do qual os homens podem planejar e estabelecer os limites de suas
possibilidades. Por mais que avance a cincia, as regies e os reinos do mundo,
as revolues do poder e do pensamento, todo planejamento e organizao de
nossa vida nesse planeta e fora dele no podero ultrapassar uma medida im-
posta a todos mesmo que, provavelmente, desconhecida por todos. (2002, p.
204)

Diante dessa correo de Gadamer, desse chamado para o concreto,


preciso dizer, tambm corrigindo rotas, que nem tanto e nem to pouco, e nem
muito menos no meio. verdade, os limites de nossa existncia so determi-
nados por fatores e funes por ns, provavelmente, desconhecidos. E, em
qualquer que seja o caso, haver sempre um modo de ser-sendo que se man-
tm atrelado ao passado e se multiplica no futuro, sempre a partir do presente.
Essa correo da falsa conscincia tambm serve para desimpedir o julgamento
parcial da pluralidade da vida. Neste sentido, a medida de Gadamer s vli-
da, a rigor, para o prprio Gadamer, mesmo com toda a grandeza de sua obra
e com a considervel influncia do seu pensamento em muitas das linhagens
hermenuticas contemporneas. Entretanto, isto no quer dizer que a sua obra
deve sofre restries de qualquer espcie, do mesmo modo que no se deveria
impor restries a nenhuma grande obra da criao humana. Ocorre o mesmo
89

problema com as demais vozes acolhidas. Nenhuma delas pode servir para
resolver nossos problemas em definitivo, do ponto de vista do aprendizado de
nossa comum pertena ao primado do que no tendo incio, no tem por isso
mesmo ocaso. Entretanto, culturalmente nada seramos sem a presena dos
que nos antecederam e realizaram, igualmente, uma de-ciso de plenitude.

Assim, neste sentido, nem Husserl, nem Heidegger, nem Gadamer


suficiente para a de-ciso deste caminho fenomenolgico-hermenutico pr-
prio e apropriado. Mas, sem cada um deles, seguramente, este caminho no
teria a possibilidade de uma nova e nica realizao do que no cansa de dizer
o mesmo na refulgncia do instante vvido. Na acolhida desta possibilidade,
compreendo, em sntese a fenomenologia como atitude aprendente do ser
prprio e apropriado; a hermenutica como o modo de compreenso do ser
que somos no-mundo-com interpretao do sentido do ser-sendo em sua
polifonia incorrigvel; o educar como a atitude aprendente acolhedora das in-
findveis possibilidades do ser-sendo, em sua inconsciente inaparncia.

Filosofar, ento, s em linguagem e lngua prprias, o que se aprende


na acolhida atenta do instante, que nos alcana em sua valncia de fonte e de
origem, sempre o que surpreende e rasga, para velar de novo, o vu protetor
do ser-sendo.

Referncias Bibliogrficas:

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Mtodo II. Complementos e ndice.


Traduo de Enio Paulo Giachini. Petrpolis: Vozes, 2002. (Coleo Pensa-
mento Humano)

HEIDEGGER, Martim. Herclito. A origem do pensamento ocidental Lgi-


ca. A doutrina heracltica do lgos. Traduo de Mrcia de S Cavalcante Schu-
back. Rio de Janeiro: relume-Dumar, 1998.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte I. Traduo de Mrcia de S Ca-


valcante. 5 ed. Petrpolis: Vozes, 1995.

HUSSERL, Edmund. Meditaes cartesianas. Introduo Fenomenologia.


Traduo de Frank de Oliveira. So Paulo: Madras, 2001.
90

PRIGOGINE, Ilya. O nascimento do Tempo. Traduo do Departamento


Editorial de Edies 70. Lisboa, Portugal: Edies 70, 1999.
91

7
A CONSTRUO CULTURAL DA DIFERENA 7

A cultura planetria contempornea vem sendo marcada pelo signo da


Diferena. Em toda parte se ouve falar em diferena como palavra de ordem.
A palavra chega a ganhar contornos assustadores e abarca desde a mais comba-
tiva conscincia ecolgica at a mais torpe realidade social da excluso. Os seus
correlatos mais prximos so a diversidade (biodiversidade, etnodiversidade,
diversidade cultural), a multirreferncia (multilingsmo, multiculturalismo,
multilogicidade) e a alteridade em suas mltiplas instncias. Entretanto, a Dife-
rena no foi ainda dimensionada o suficiente em sua possibilidade efetiva de
diferena. Ela ainda continua subordinada ao princpio autoritrio do diferente da
diferena, separatividade metafsica entre o ser e o aparecer, o senhor e o es-
cravo. No mundo do trabalho isto fica muito evidente, mas no s a, em toda
parte esta a lei imperante.

Procuro aqui problematizar a construo cultural da Diferena, partin-


do de uma investigao ontolgica fundamental. Para tanto, recorro ao discur-
so interrogante e tensivo, aproximando-me de uma dialogia aberta ao pensar
mesmo pelo vis da Filosofia da Diferena. A minha inteno provocar o
pensar mesmo em quem se dispuser a seguir esta trilha discursiva dia-ferente.
Desejo apresentar uma pequena pea polifnica onde a Diferena aparea co-
mo Diferena, em uma rasgadura da cena hodierna da cultura contempornea.

O que seria necessrio, sem meias palavras, para a construo da cultu-


ra da diferena em nosso mundo globalizado, marcado pelo signo da indiferen-
a deliberada? Seria isto possvel, ou no passaria de mero devaneio, til apenas
enquanto objeto de consumo ficcional?

A questo assim posta provoca um imediato mergulho no ambiente


complexo e turbulento da cultura contempornea. A polifonia de vozes des-
conhecidas assustadora. como se todas as vozes do passado, do presente
e do futuro se encontrassem no espao virtual de todas as possibilidades. Tudo
a possvel. Entretanto, uma tal gama de abertura fica adiada em virtude da
soberania da indiferena no meio poltico e cultural global. A diferena tornou-
7
Artigo publicado na Revista Pr-textos para Discusso, da UNIFACS, 2001
92

se palavra de ordem, verdade. Passou, inclusive, a ser politicamente correto


acolher a diferena como princpio tico universal. Mas, a diferena no est
sendo ainda vivida visceralmente como diferena, porque a ela se atribui ape-
nas o aspecto marginal da cultura de massa vigente, como se bastasse apenas
boas publicidades sobre a incluso social das diferenas para se mudar a menta-
lidade ultramilenar da humanidade sobre o assunto. Tornou-se retrica pblica
incluir o direito dos excludos nos discursos bem intencionados do poder pol-
tico constitudo, mas a ao efetiva vai em outra direo: a da indiferena deli-
berada e promscua, onde o que vale a lei feudal da manuteno do prprio
territrio material e simblico, no qual um Diferente da diferena se coloca no
lugar da prpria lei e se faz o direito universal. Trata-se, sem dvida, de uma
doena histrica de graves consequncias para a sade espiritual da humanida-
de andante.

De modo geral, pelo fato de pertencermos ao ambiente cultural ps-


moderno, imaginamos que hoje exista mais civilidade do que nas culturas pas-
sadas. Entretanto, do ponto de vista do que a est posto como regime moral,
mais do que nunca prolifera e domina o princpio do Diferente da diferena. Em
toda parte h excluso e opresso, discriminao cultural e preconceito eugni-
co. Mais do que nunca o planeta vive oprimido e indiferente ao princpio da
Diferena. A diferena agora de ordem financeira. O valor humano medi-
do pelo tamanho da conta bancria e no pela estatura tica do homem. E di-
zer isto tambm problemtico, porque a prpria tica passou a fazer parte do
rol das palavras vazias e contraditrias. Tornou-se mais uma palavra que s
tem valor no enquadramento retrico das disputas por territrios marcados
por opulncia e insensatez, territrios principescos e nababescos.

Os delitos, por exemplo, so sempre cometidos pelos escravos econ-


micos, nunca pelos senhores, que sempre encontram a vtima certa para pagar
por eles. Claro, h excees louvveis, onde algum Diferente se torna a vtima
de um Diferente ainda maior. Nestes casos, a justia humana apenas adiada
pela aparente correo da lei cega e imutvel. O fato que vivemos sob a gide
do diferente da diferena. Em toda parte domina o indiferente, a saber: o diferente da
diferena. O que, ento, significa hoje pensar a diferena como diferena, se j sem-
pre domina o diferente da diferena?

Corro aqui o risco, ao colocar uma perspectiva de compreenso da


construo cultural da diferena, de apresentar uma questo que de questo
no tem nada. E isto pelo simples fato de j se considerar como descontada a
realidade constituda pela relao do senhorio e do escravo, mesmo em pleno
estado democrtico de direito. Alm da panfletagem de grupos minoritrios,
93

que entendem a lei da diferena como algo de uso exclusivo dos seus identifi-
cados, a luta por um regime poltico fundado na diferena como diferena deve
ser travada em outra dimenso, onde no basta apenas levantar bandeiras pr
ou contra isto ou aquilo, mas preciso ultrapassar o prprio assujeitamento ao
que quer que seja. Enquanto perdurar a psicologia do assujeitamento a estabe-
lecida, a lei do diferente da diferena no ter sido ultrapassada. O seu ultrapassa-
mento s pode ocorrer atravs de uma revoluo cultural de longo alcance,
onde o singular humano seja acolhido em sua prpria humanidade criadora e
diferente.

Diante de tamanha possibilidade, o que hoje ouvimos e vemos como


discurso da diferena no passa, na maioria das vezes, de reificao do j esta-
belecido princpio milenar do diferente da diferena. Entretanto, nada disto ainda
claro em seu intuito provocante de um pensar pensante. E no claro na me-
dida em que deixo em suspenso qualquer resposta pronta e previsvel sobre o
que estou dizendo como diferena como diferena. Na verdade, o que estou fazen-
do jogo jogante e no apenas jogo jogado, evocando aqui um dos temas prediletos
do atual filosofar do amigo Felippe Serpa. como jogo jogante que falo da cons-
truo cultural da diferena, isto , falo de algo que ainda no j sempre sen-
do, pois risco o acontecimento da diferena enquanto diferena e no do que j est
posto como lei imperativa do diferente da diferena. Isto mesmo de enlouquecer
a frgil psicologia humana da consolao assujeitada. Mas diante deste vrtice
embriagante que a questo da diferena pensada enquanto diferena aparece
em cena e se impe por fora de sua prpria fora.

Que esquisito, acabo de afirmar que a questo da diferena tira de si


mesma a fora de sua prpria fora. como dizer: no se trata de uma ques-
to derivada de uma outra coisa que a antecede, nem muito menos de algo que
a sucede enfuturando-se no arqutipo prottipo do antropomorfismo universal. Pelo
contrrio, trata-se de uma questo instante: como fonte, ela brota de si mesma
ininterruptamente pelo menos at que cessem suas condies de princpio.
Quando, ento, o que est em questo uma fora que tira a sua fora de si
mesma, isto tambm quer dizer que para que esta fora exista so necessrias
condies especficas e concretas. Neste sentido, no falo de suposies fanta-
siosas, mas de efetivas condies para que a fora da diferena enquanto dife-
rena nasa de si mesma, isto , do seu prprio meio de existncia. Entretanto,
como isto possvel em um ambiente cultural dominado pela indiferena onto-
lgica?
Seguindo o vis de um interrogar inconcluso, pensar hoje a diferena
enquanto diferena requer a fora de pelo menos 12 mil Hrcules reunidos.
No se trata de fora motora, como cavalos que movem ainda hoje carros e
94

mquinas fantsticas. Pelo contrrio, a fora de natureza tica e requer um


grande potencial de energia espiritual para poder ser usada de forma criadora.
Enquanto prevalecer a lei do diferente propugnador e disseminador da indife-
rena, a diferena no encontrar condies para florescer em sua igualdade
originante. O ponto crucial, ento, da propalada diferena a igualdade origi-
nante. Ora, mas esta no est dada como dom natural, mas apenas como condi-
o de abertura originante aberta ao seu prprio poder-ser diferente. Isto, sem
dvida, espantoso. E espantoso porque pe em cena a prpria liberdade
humana rasgada em sua prpria possibilidade querente. Trata-se de uma que-
rncia e no de uma interdio malograda. A querncia origina-se da altivez
tica, e nunca um estado de submisso pode nutri-la em seu vigor extravagante.

De qualquer modo, a questo da construo cultural da diferena fica


aqui apenas anunciada em sua abertura originante. Em um espao como este
de discusses pr-textuais, o que importa, segundo penso, provocar fendas
pensantes que desfaam a falsa segurana do princpio imperial do diferente da
diferena. Chega de imperadores e senhores algozes. A hora de abandono
desta forma de filiao arrogante e subjugante. preciso, ento, cultivar amo-
rosamente a diferena enquanto diferena em sua nascente sempre nova. Isto
no quer dizer nenhuma forma de conciliao amortecedora da fora jorrante
da imprevisvel diferena originante da igualdade mltipla. E porque falo em
tom provocante, tenho a certeza de que permaneci fiel ao jogo jogante do i-
nesperado.

E porque o inesperado sempre desconhecido, permaneo aberto ao


acontecimento inesperado e sempre protegido em seu prprio desconhecimen-
to. A diferena pensada como diferena, ento, aquilo mesmo que ainda no
pode ser pensado sem ser identificado como sendo isto ou aquilo. Neste senti-
do, bem melhor do que apresentar uma nova teoria da diferena permanecer
perscrutando o advento inesperado da diferena sempre instante do instante
sem ocaso. Mas isto uma outra questo que tangencia a temporalidade abso-
luta do ser-sendo, mesmo em sua aparente e persistente ocluso instalada e
permanente. Pensar a construo cultural da diferena plantar sementes dife-
rentes das j plantadas, jogar jogos ainda no jogados, escrever pr-textos
ainda no escritos: jorrar como fonte em direo a tudo que jorra permanente,
e mesmo assim nunca abandonar o lugar nascente.
95

8
PEDAGOGIA DA DIFERENA: NOTAS IMPLI-
CADAS I 8

O que mais falta no campo da produo discursiva sobre educao e


pedagogia voz prpria. O pedagogo acostumou-se a ser uma voz desautori-
zada e enfadonha, que sempre fala de um lugar que no o seu e de uma for-
ma submissa e incua. Colocar, ento, em discusso a questo da Diferena
como problema pedaggico pode logo parecer um destes modismos verborri-
cos que acometem renomadas personalidades do mundo acadmico, vidos de
sucesso e de rpida insero meditica no rol das celebridades ocas. No trato
aqui de modismo e nem de moda. Trato da questo pedaggica por excelncia,
que apesar dos enormes avanos tecnolgicos e da grande quantidade de textos
sobre educao que o pas vem produzindo na ltima dcada, ainda uma
questo no respondida: Afinal, o que significa educar?

O peso dessa questo semelhante questo: o que significa pensar? E


estas so perguntas to vagas quanto: o que significa ser? Sim, o que significa
pensar, educar, ser? No so estas, em si mesmas, questes impossveis? E a
pergunta: o que significa Diferena, no tambm impossvel? Uma Pedago-
gia da Diferena, o que isto significa? No fcil, diante destas expresses, cair
em um jogo de efeitos persuasivos e passageiros, em um jogo de palavras apa-
rentemente consistentes e conceitos espetaculares?

Na zona dos efeitos de um discurso como este, devo dizer que o que
tenho em mira no um simples jogo de efeitos persuasivos, mas um jogo que
disponha o pensar ao pensar mesmo: um jogo implicado, interrogante e aberto,
inconclusvel, polifnico, polilgico, polissmico. Este jogo, ao dispor-se co-
mo pensar mesmo, no delega seu acontecimento s vozes autorizadas do co-
nhecimento pedaggico, mas procura pensar exclusivamente a partir do que se
mostra como o que h para ser pensado como pedagogia da diferena. Peda-
gogia da diferena, o que mesmo isto? Se no modismo, do que se trata?

8
Artigo publicado na Revista GERE 4, 2001.
96

Com a expresso pedagogia da diferena quero justamente problema-


tizar o discurso pedaggico contemporneo. Portanto, no se trata da apresen-
tao de uma diferenciada concepo pedaggica, mas da prpria crtica ao
estado pedaggico no qual nos encontramos imersos como educadores e estu-
dantes de pedagogia. Assim, trata-se de dispor um discurso sobre o educar que
se articule filosoficamente, no para responder s questes prprias do nosso
tempo ou apresentar uma concepo alternativa de Filosofia da Educao que
se oferte como mercadoria intelectual a ser comercializada na baslica acadmi-
ca autorizada. Aqui coloco simplesmente o que h para se pensar como pro-
blema pedaggico gerador de novas aes educantes, a partir do primado da
Diferena Ontolgica. Trata-se, deste modo, de um acontecimento de Filosofia
do Educar que agora se oferece como hermenutica do ser-sendo, abrindo-se
para novas floraes epocais. O que digo, portanto, apenas um dizer que
acolhe o que h ainda para se pensar como educar, lanado-se na saga interro-
gante e poemtica do sentido.

Aproximo-me de um fazer potico. O que posso aqui dizer o que me


surpreende nesta abertura para o ser-sendo. Falo do instante. Instancio uma
provocao pensante. Dimensiono o cio como condio para que este jogo
do pensar mesmo seja jogado no vigor de um dizer dia-ferente, des-referente, di-
ferente. O objeto o pensar mesmo, isto , a intencionalidade o prprio
pensar pensante. O pensar mesmo interroga: O que significa educar? O pen-
sar mesmo vive do crculo do perguntar e do co-responder. A resposta para o
pensar uma nova pergunta, e a pergunta uma nova resposta. Por isso nunca se
responde quando se pensa, mas apenas se co-responde. um contnuo fluir
que nunca chega verdade, mas sempre descortina instantes do mesmo, apesar
de sempre outro.

No pensamos quando buscamos a verdade, pensamos quando o des-


velamento vem a ns. O desvelamento sempre uma implicao do que ad-
vm de si mesmo no encontro com a Diferena Ontolgica. Pensar ser!
Com esta mxima o pensar se faz implicado no ser do ente. No se trata da
representao de algo passado, mas daquilo mesmo a-se-pensar como advento
de uma revoluo cultural de longo alcance. A mxima de Parmnides ...ser e
pensar so o mesmo, permanece aberta ao ainda no pensado: advento advin-
do. Nos sulcos do ser o pensar se encarna no ente pensante. No se trata do
cogito cartesiano, que deduz do pensar a prova do existir. No uma operao
lgica que se apresenta na mxima: pensar ser. Trata-se, antes de tudo, de um
encontro do ser e do ente, uma conjuno, uma comunho entre diferentes. A
expresso pensar ser nomeia a diferena a partir do mesmo. O mesmo, portan-
to, no a identidade de ser e pensar, mas a diferena de ser e pensar. O
97

no aponta para uma igualdade e sim para um movimento. O que est sendo,
no foi e nem ser. Pensar ser, ento, diz: ser faz pensar, pensar faz ser. O
o que est sendo. Assim, o pensar est sendo o ser e o ser s no pensar.
Ou melhor, o pensar acolhe o que como ser. Mas, o que o que acolhido
como ser pelo pensar?

Com esse discurso algo de estranho se nos apresenta. Aonde nos leva
este questionamento ontolgico? Qual o seu nexo com a nossa realidade
instituda e com a nossa possibilidade instituinte? Indo direto ao assunto, com
este discurso ontolgico recolocamos a questo pedaggica a partir de um sen-
tido radicalmente simples e originrio. A questo da diferena, ento, passa a
ser o eixo gerador de uma nova articulao crtica para a investigao e mudan-
a de regime do nosso prprio estado pedaggico. Qual a conscincia que
possumos do educar? Somos seres pensantes, como educadores, ou simples-
mente mquinas programadas que se limitam a expelir o que se impe como
norma e como dever? Se somos seres pensantes em nossas prticas e teorias
pedaggicas, por que que no somos capazes de transformar o mundo? O
que nos falta para transformar o mundo?

Essa uma provocao que chama a ateno para a importncia do


aprender a pensar. Infelizmente, no fomos educados para o pensar. A verdade
que no aprendemos ainda a pensar. A nossa pedagogia marcada pela aquisi-
o de conhecimentos e no por uma efetiva construo do saber-ser. O a-
prendizado do pensar ainda uma promessa pedaggica em nossas prticas
cotidianas. Estamos ainda muito longe de uma prtica pedaggica efetivamente
fundada no primado da diferena enquanto diferena. Ns educadores, de uma
maneira geral, praticamos ainda uma pedagogia do desespero e da opresso, e
nos submetemos ao primado da heteronomia do poder institudo e tirano.
Fazemos, ainda, muito pouco em relao ao que h a ser feito. Somos muito
acomodados. Ser por isso que no se quer levar a srio o radical aprender a
pensar? Afinal, a que foras servem os educadores? Ser educador significa,
por ventura, ser servial de um poder institudo e prepotente? O educador
um servo das foras imperantes, um funcionrio burocrtico sem direito a voz
prpria?

Infelizmente, preciso que reconheamos a nossa condio de indi-


gncia como educadores de profisso. No fomos ainda capazes de produzir
um pensar prprio, ou quando isto ocorre, temos insistido em adotar posies
partidrias e irrefletidamente dogmticas, quando o que se precisa justamente
a ampliao da potncia que um pensar prprio faz germinar. Adotamos Pia-
get ou Vygotsky, Paulo Freire ou Wallon, Ansio Teixeira ou Rogers, Marx ou
98

Gramsci etc. como referenciais pedaggicos, mas poucos so aqueles que ou-
sam fazer destes grandes apenas um motivo para ir adiante, dar continuidade
criativa ao que ofereceram como obra. O dado que no precisamos de dou-
trinas pedaggicas, e sim de aes pedaggicas criticamente instrudas. Os
grandes autores so nossos interlocutores no nossos mandatrios. Afinal, s
se pode compreender um grande quando nos tornamos da sua altitude. O di-
logo s existe entre iguais. A desigualdade geradora de submisso e de covar-
dia. No h grandeza na desigualdade e submisso, apenas assujeitamento.

A perspectiva aqui apresentada de uma pedagogia da diferena dirige-se


aos sequiosos de igualdade, os livres. A diferena pensada como diferena
nada tem a ver com desigualdade. A diferena no o desigual, a diferena o
igual na proximidade do encontro com a diferena. O que isto quer dizer?
Quer dizer apenas isto: o mesmo. O mesmo, entretanto, no repetio, mas
diferena instante: imanncia aberta no nada, o sem-fundamento. O mesmo da
diferena a sua repetio como diferena. A diferena, entretanto, no admi-
te um diferente da diferena. Isto seria cair na trama metafsica do mundo, e aceitar
como lei o que apenas caso. No h um diferente da diferena na diferena.
Isto seria identidade hierarquizante, ou seja, seria admitir uma polarizao onde
um dos plos comanda e outro comandado. Trata-se do binmio metafsico
que nomeia o ser como o diferente da diferena, impondo ao pensar uma iden-
tidade de espelhamento do ser. Este binmio estrutura a histria da metafsica
ocidental, e estabelece para a razo humana uma tarefa hierarquizante e morali-
zante. A prpria racionalidade desenvolvida no Ocidente hierarquizante e
moralizante. A razo ocidental se desenvolveu na direo da vontade de co-
nhecimento, e neste sentido ela abomina a vontade de potncia. Como vontade
de conhecimento, a razo perpetua domnios e territrios: hierarquiza.

Pensar a razo ocidental como histria da barbrie e como estrutura


hierarquizante significa reconhecer que assim todos ns somos programados.
Nossa cultura, nossa histria feita de barbrie e de desigualdade. A nossa
igualdade de origem, a nossa diferena, no foi pensada pela razo, exceto para
manuteno de seu sofisma idealista. O sentido de igualdade foi tomado a par-
tir do primado de um diferente da diferena. Toda sorte de imperialismo da
advm. O fato que vivemos em um regime de desigualdade quando nossa
origem igual. Todos somos iguais. Esta afirmao, entretanto, no desfaz o
estado de coisas em que nos encontramos imersos: h desigualdades em toda
parte. Vivemos sob um regime tirnico disfarado de democracia. E no me
refiro apenas ao nosso pas, pois isto um fenmeno mundial. E neste regime
parece no haver muito espao para a germinao de uma humanidade de i-
guais fundada na diferena. A luta a ser travada ainda do tamanho do univer-
99

so. Nenhuma consolao metafsica e nenhuma migalha social podem nos bas-
tar, caso desejemos realizar a vontade de potncia de uma humanidade de i-
guais e no de desiguais.

Se a pedagogia da diferena aqui apresentada no um mero jogo de


efeitos persuasivos e encantatrios e nenhum instrumento de vaidade pessoal,
ela h de ser o alm-pedagogia que a est. Neste sentido, ela ainda no foi, mas
est sendo. E porque est sendo que ela ainda o que no aparece. Assim,
ela o lugar da crtica pedaggica contempornea e o seleiro de uma nova Fi-
losofia do Educar. Agora o que importa o verbo. Trata-se de uma Filosofia
da ao de ser-sendo: acontecer-apropriar. Isto ainda promessa porvindoura,
apesar de j ser-sendo. porvindoura porque no se identifica com o estado
de coisas que a est. porvindoura na esperana dos que a realizam no agora,
na imperfeio do caso. Portanto, no se trata de mais uma ideologia imposta
por feudatrios diligentes e espertalhes, mas do cuidado com a humanidade
do humano advindo, do humano igual no seio da diferena.

claro, um tal discurso no resolve nada do ponto de vista do estado


de coisas instaladas na cotidianidade burocrtica dos eventos disciplinados pe-
las minorias usurpadoras. Entretanto, como discurso, ele dispe este estado
de coisas no campo imanente de uma revoluo cultural de longo alcance.
Ento, para que isto possa fazer sentido, precisamos aprender a aprender. A-
prende-se a aprender, claro, aprendendo. Isto bvio. Alis, nada do que
aqui se pode dizer algo de novo. Nada h de novo sob o sol. Isto to antigo
quanto Salomo. Contudo, o mundo sempre novo a cada instante, a come-
ar do sol. O que no h de novo sob o sol o espectro de suas infindveis
possibilidades. Mas tudo sempre novo sob o sol, mesmo na aparente repeti-
o. Alis, a repetio o acontecimento da diferena. Mas h tambm repe-
tio sem diferena, esta a submisso. Na submisso no h diferena na
igualdade e sim negao repetida. O problema o estado de submisso. Ser
submisso a negao da diferena na igualdade, o mesmo que no-ser.

De modo evidente, a questo da diferena dificilmente nos deixa indi-


ferentes. Ela uma questo crucial e incmoda. O dado que somos, em ge-
ral, demasiadamente indiferentes ausncia da diferena. Nossa indiferena
nos torna submissos e impotentes, meros funcionrios de hegemonias estpi-
das. Ser indiferente, ento, o mesmo que no-ser. Afinal, como pode algum
sensato acomodar-se diante de tanta indigncia? Que mundo este? Que lei
tirnica esta que no deixa ser o igual? Que inferno este onde impera a
desigualdade entre iguais?
100

A indiferena, entretanto, se impe como norma de conduta: moral de


rebanho, falsa mansido, falsa humildade. Porque somos indiferentes s desi-
gualdades institudas socialmente no sabemos realizar a potncia da igualdade.
Contudo, a igualdade nada tem a ver com uniformidade e submisso. A igual-
dade nos dada como diferena. Mas no se trata de uma diferena pensada e
vivida a partir de um diferente. A diferena o que nos garante a igualdade de
origem no campo da imanncia absoluta. No se trata, em nenhum dos poss-
veis casos, de uma submisso a algo transcendente, mas de um encontro ima-
nente de iguais: eis a diferena! E isto no acontece indiferentemente, como
poderia ocorrer uma diferena indiferente?

A diferena sempre uma implicao imanente: acontecimento explo-


sivo do ser-sendo rompimento do vu subjetivo da submisso. No h
diferena fora da igualdade originante. O que pode haver, sem dvida, o uso
indiferente do poder-ser igual. Mas isto nada tem a ver com a diferena, isto a
ocluso da potncia igualitria do ser-sendo. Pela ocluso da igualdade na dife-
rena, a diferena se torna indiferena. Pela indiferena nada somos alm de
mquinas humanas em estado permanente de submisso. Que pobreza de esp-
rito deixar-se dominar pela indiferena e pela desigualdade! Mas, infelizmente,
este o nosso estado de no-ser.

Como, ento, aprender a ser aprender a aprender? Ser isto tarefa


pedaggica vivel, ou no passa de imaginao assustadora? Podemos, ento,
realizar uma pedagogia da diferena, ou isto no est ao nosso alcance, ou est
apenas ao alcance da imaginao? Mas, no seria temeroso um pensar que no
potencializasse o concreto permanecendo na simples especulao? Para que
serviria um pensar meramente especulativo? No seria isto o mesmo que per-
manecer encoberto na indiferena do ser e do ente? No seria isto negao da
potncia imanente e lucfera da diferena ontolgica, isto , da igualdade origi-
nante do ser humano e sua possvel humanidade ou desumanidade?

Se a questo primacial da pedagogia da diferena o aprender a apren-


der, a ideia de ensinar se torna ultrapassada. E isto verdico em todas as ins-
tncias da vida prtica. O conceito de ensinar prprio de uma pedagogia de
contedos e se baseia na negao da diferena enquanto diferena, pela afirma-
o do diferente da diferena. justo este princpio, que privilegia uma das
partes da diferena, que est na base das foras da indiferena humana do que
est a instalado como lei e realidade. O mundo em que vivemos a expresso
de uma poca dominada pela indiferena em relao diferena ontolgica.
Neste sentido, estamos em um mundo marcado pela desigualdade entre ser e
ser do ente, entre dominante e dominado. para este mundo que o conceito
101

de ensinar est a servio: um mundo apenas para alguns, mundo de excluses e


sabiches. Diante disto, o mbito da igualdade originante permanece encober-
to, cabendo parte privilegiada da diferena ensinar o certo e o errado. Que
pobreza! Que desolao! Que tristeza!

A questo da diferena ontolgica, ento, descortina uma outra possibi-


lidade para o educar. E esta possibilidade no quimrica e inatual, diante do
quadro geral da civilizao robtica e da virtualidade instantnea de todo co-
nhecimento. Esta possibilidade via de acesso para o acontecimento do educar
como aprender a aprender, e isto pressupe a superao do atual regime de
desigualdades e de imposies dogmticas, e requer a presena viva dos que
so capazes de sair dos domnios da indiferena ontolgica e da desigualdade
imperante. Neste caso, conhecimento sem saber assujeitamento ao que usur-
pa o poder da igualdade fazendo-se o diferente da diferena. Pedagogia do
ensinar a pretenso de alguns de se tornarem senhores absolutos do sentido.
Esta a estupidez da nossa civilizao: somos cativos de um desarranjo gstri-
co-intestinal crnico e acabamos como excrementos dos diferentes da diferen-
a. Como, porm, ultrapassar este estado de coisas? No j estamos atolados a
essa lama gstrico-intestinal at o limite, como seria, ento, possvel sair dela?

muito comum que o atual estado de misria humana nos torne pes-
simistas incorrigveis. O mais difcil fazer brotar uma pedagogia da diferena
em um terreno j ocupado e j indiferente. O dado que para mudar este es-
tado de indigncia indiferente preciso mudar todas as relaes de poder vi-
gentes. Isto significa, a rigor, uma mudana radical de atitudes em relao ao
que est a imposto pelos poderosos autorizados. Isto significa uma revoluo
cultural de longo alcance. Infelizmente, talvez isto ainda no nos alcance, por-
que estamos muito comprometidos com as estruturas vigentes de poder, e j
no possumos potncia para salinizar a indiferena. Nos tornamos demasia-
damente assujeitados para que de ns possa nascer algo de grande. isto
mesmo? Somos impotentes diante das estruturas de poder dominantes e impe-
rantes? esta a nossa atitude diante do educar: silenciamos frente indiferen-
a e como rebanho de desalmados cumprimos a lei do diferente da diferena?
Seria possvel para ns, seres assujeitados, romper esta cadeia de indiferena e
desamor? Se possvel, como fazer isto?

De certo modo, preciso reconhecer que o nosso sujeito est assujei-


tado a ideia de dever. Trata-se de um sujeito que deve obedecer lei do dife-
rente. A nossa pedagogia est infelizmente perpassada por esta covardia onto-
lgica. Toda ela uma pedagogia da submisso. Por isto ela inventou a ideia de
ensino e de imposio de contedos supostamente teis para o desenvolvimen-
102

to das capacidades e habilidades humanas a servio de um mundo territoriali-


zado e indiferente diferena originante de nossa igualdade ontolgica, isto ,
indiferente igualdade ontolgica do ser humano enquanto ser humano: sua
diferena na diferena.

Diante desse quadro assustador, que coloca a nossa atual pedagogia no


rol dos crimes cometidos contra a humanidade do ser humano, como que os
pedagogos e educadores aqui presentes se sentem? Indignados, por serem
acusados de assujeitados crnicos? O que vocs me dizem? Mandar-me-o
para o inferno por vos acusar de indiferena diante da diferena ontolgica?
Bem, podem me xingar a vontade. Eu tambm me incluo entre os acusados:
estou me auto-acusando de assujeitado ao dizer isto. Reconheo, em mim
mesmo, o acontecimento da impotncia diante de um mundo j dominado
pelo diferente da diferena. Um mundo onde no h lugar para o igual, apenas
para o desigual. Entretanto, por reconhecer a impotncia responsabilizo-me,
tambm, pela sua possvel cura, em primeiro lugar em mim mesmo, no como
sujeito isolado, mas como ente-espcie que tambm sou. E ento, por que
estou sendo to duro na apresentao desta pedagogia da diferena? Por que
me insurgi contra a indiferena peculiar de uma pedagogia marcada pela lei do
ensinar? Por que escolhi incomodar e no acomodar?

Penso que s pode haver uma pedagogia da diferena quando nos dis-
pusermos a aprender a aprender entre iguais. Isto muda tudo. Mas este mudar
ainda porvir, porque no estamos ainda sendo iguais em nossas prticas e
hbitos pedaggicos. Nos comportamos, de uma maneira geral, como diferen-
tes da diferena: pretendemos ensinar aos outros o que apenas pode ser apren-
dido conjuntamente. Nos esquecemos do cuidar da diferena que todo apren-
dizado requisita. No se aprende o que ensinado. Aprende-se o que apre-
endido em um ambiente de interaes abertas e iguais. A igualdade, no caso,
no o que se conhece, mas o que se pode saber. Igual somente aquele que
sabe. O que apenas conhece no igual, pois o conhecer impe hierarquias
desiguais e anula a diferena como diferena.

Uma pedagogia da diferena, ento, no uma mirabolante fantasia vir-


tual, um mero jogo de estilo onde as palavras diferena e igualdade so eleitas
como signos imaginrios de um delrio filosfico qualquer. Uma pedagogia da
diferena corresponde ao acontecimento encarnado de uma outra possibilida-
de para a espcie humana, fora do regime de desigualdades em que nos encon-
tramos imersos. Isto implica em uma revoluo ontolgica lenta e contnua,
onde a meta a prpria igualdade humana fundada na diferena. E a lentido
desta revoluo nos vacina contra a apressada procura de solues pedaggicas
103

fceis e mantenedoras da desigualdade imperante. Afinal, ser que somos ca-


pazes de uma tamanha faanha ontolgica: romper definitivamente com o
princpio moral do diferente da diferena?

Penso que a surpresa e possvel indignao que este modo de falar pro-
vocam atesta o nosso estado geral de assujeitamento ordem tirnica estabele-
cida. Como mudar esta ordem? Que poder possumos para um tamanho feito?
No esta uma aspirao impossvel diante do quadro geral da submisso rei-
nante? Como aprender a ser em um mundo marcado pelo diferente da dife-
rena? A que serve, ento, o aprendizado do pensar? Serve para nos enquadrar
ordem estabelecida, ou serve para nos acostumar no submisso a qualquer
que seja o argumento indiferente? O que podemos fazer diante deste estado
patolgico onde a igualdade no ainda vivenciada como diferena?

Bem, uma pedagogia da diferena no doutrina pedaggica, mas crti-


ca radical da condio de assujeitamento dos iguais. Ela um thos aberto na
igualdade originante que a tudo une na diferena ontolgica. Pedagogia da
diferena, ento, o nome apropriado para uma radical mudana de estado de
ser. Estamos diante de um projeto mais que milenar, um projeto ultramilenar.
Isto no poder ser feito seno lentamente, ao longo de muitas e muitas gera-
es. Entretanto, preciso cuidar para que o advento de uma humanidade de
iguais possa se fazer carne encarnada: esprito vivo imanente. E isto requer
estratgias de ao. Estratgias abertas, cujas regras no esto mais ditadas pelo
diferente da diferena, mas so constitudas na relao de iguais. A diferena,
ento, no assinala para os diferentes tipos humanos, e sim para o fundamento
comum que nos torna iguais em potncia.

A diferena no , portanto, a dessemelhana dos tipos humanos, mas


apenas o mbito do advento do inesperado. Como iguais nunca somos idnti-
cos, mas apenas participantes da mesma potncia originante. E esta potncia
no pra de acontecer em sua instantaneiadade absoluta. Esta potncia ins-
tante advencial impermanente: sua fora originante o caos e no a ordem.
No se trata do caos compreendido como desordem, mas do caos como mbi-
to de todas as possibilidades originantes e ontologicamente iguais, no apenas
semelhantes ou reflexivas.

No , definitivamente, por comparaes ou espelhamentos que se po-


de alcanar o veio pulsivo do aprender. As comparaes, no caso, so apenas
imposies hierrquicas que perpetuam a manuteno da estrutura desigual
entre iguais. Comparar assujeitar-se ao j determinado pelo diferente da dife-
rena. Em uma pedagogia da diferena o ato de comparar cuidadosamente
104

abolido. A comparao perpetua o princpio da excluso, e a diferena fica


confundida com o ato de manipular iguais pela astultcia de alguns. Em uma
pedagogia da diferena a comparao d lugar ao reconhecimento da singulari-
dade criadora.

Os iguais produzem o alimento da vida ativa, e no deixam margem pa-


ra comparaes assujeitadoras. No se compara o que igual, mas valoriza-se
a provenincia e perpetua-se a singularidade do comum. assim que uma pe-
dagogia da diferena reencontra-se com o mundo da vida e o mundo vivido.
enquanto ser-no-mundo que a relao entre o homem e a natureza se faz na
Diferena. Isto significa dizer que o mesmo est sempre acontecendo, e
este acontecer que torna o ser igual ao ente, isto , a diferena fica garantida no
prprio reconhecimento do pensar como ser. Assim, s o pensar abarca o ser
em sua totalidade enquanto ente. S o pensar propriamente o mesmo que
ser. O ser, portanto, no o ente, mas o que ultrapassa sempre o ente. Ora, o
que sempre ultrapassa o ente no nada, ou seja, nunca isto ou aquilo, ape-
nas o que . Sendo o que apenas , o ser est sempre sendo. Que espanto!

O mesmo, ento, o prprio campo desta Diferena, o meio de seu


acontecimento criador. Neste sentido, a Diferena a prpria condio de
abertura originria para o advento de uma humanidade de iguais, na singulari-
dade criadora de cada igual. No h, ento, monotonia ontolgica neste reco-
nhecimento da igualdade na Diferena, porque a Diferena, agora, aconteci-
mento advencial do ser-no-mundo. Diante de tal ontologia, o acontecimento
sempre polifnico e nico. A igualdade, ento, o sinal de uma potncia co-
mum para o no assujeitamento do ser a qualquer que seja o ente determinado,
Deus ou a Natureza, o Capital ou o Estado, o macho ou a fmea. O ser, nesta
grandeza, pode ser cada um de ns na advencialidade do encontro criador com
a diferena, isto , na medida em que cada um se fizer igual pela realizao de
sua potncia ontolgica.

At aqui provoquei o pensar prprio e apropriado, nada fiz seno ten-


sionar a possibilidade de uma outra poca pedaggica fundada na diferena
enquanto diferena. Incomodei-vos? Se no fui capaz de tanto, sairei daqui
frustrado. Caso, porm, vos tenha provocado uma outra possibilidade para o
pensar pedaggico, tenham certeza de que isto no diz respeito a uma posio
pessoal, mas a uma dimenso comum que a todos convoca como seres nela
implicados. Estas notas implicadas de pedagogia da diferena, ento, dizem respeito a
uma Filosofia do Educar polilgica e polifnica, posto que a igualdade admiti-
da como fundamento comum a prpria diferena enquanto diferena, o que
significa dizer: acontecimento criador implicado, isto , responsabilidade tica
105

diante da prpria possibilidade humana de no-assujeitamento a nenhum ente


determinado: disposio para o inesperado retorno do mesmo, o instante abso-
luto na provenincia do nada.

A minha questo, agora, saber como que algo deste quilate pode vir
a tornar-se tema de interesse nos discursos pedaggicos e filosficos da con-
temporaneidade. Como , afinal, que vamos aprender a aprender, j que esta
a mxima desta pedagogia da diferena? Este desafio deveras desafiante. Ele
pressupe uma sistemtica desconstruo de todo o edifcio da metafsica oci-
dental e de toda crena dogmtica na cincia imperante e na tcnica dominante.
Trata-se, sem dvida, do aprendizado do pensar prprio e apropriado. No h
frmulas para isto e nem sistemas filosficos ou pedaggicos que possam ser
adotados como modelos garantidos de interveno metodolgica, por que o
que est em jogo o ser humano em sua igualdade singular. Isto, ento, pres-
supe pessoas preparadas para lidar com a polifonia e a polissemia do aprendi-
zado, isto , pressupe pessoas abertas ao acontecimento da diferena, pessoas
responsveis e efetivamente crticas, pessoas dedicadas ao cuidado dos iguais
em suas possibilidades nicas de criao do mesmo poder-ser.

claro, estamos muito longe de uma pedagogia da diferena assim


concebida. Mas justamente esta distncia que circunstancia a necessidade de
uma nova epistemologia do educar, tendo como campo intencional uma revo-
luo espiritual de longa durao, e no uma pedagogia a servio do que a est
posto como mundo do trabalho e do capital aplicado. Apesar de j ter sido
iniciada desde o incio do tempo humano, est revoluo ainda no foi mini-
mamente experienciada pela humanidade, o que torna o empreendimento ain-
da mais ousado e assustador.

Trata-se de uma revoluo de mentalidade e atitude diante do aconte-


cimento da vida implicada, isto , a vida encarnada do ente-espcie humanida-
de. E como se sabe, nada h de mais indeterminado e difcil do que a mudana
de mentalidade. Afinal, trata-se de abandonar uma programao humana base-
ada na desigualdade e na indiferena. Quantas geraes sero necessrias para
que esta mudana ocorra? Felizmente a razo humana no tem como estimar
esta possibilidade, porque a ela no cabe comandar o processo na condio de
dominante o diferente da diferena , mas apenas de registrar a continui-
dade do advento da diferena enquanto diferena. Isto j muito para a razo
humana: ser o seleiro advencial do inesperado que se espera no instante abso-
luto do tempo.
106

Isto nos lana no abismo do nada, onde temos que aprender a danar
sem nenhuma razo ou desrazo. E esta dana no a embriaguez mstica das
alucinaes lisrgicas ou psicotrpicas, mas a prpria abertura da diferena em
seu inevitvel retraimento advencial. O que no pode ser dito. O que pode
ser dito sempre o que j foi ou ser. O que est sempre protegido de qual-
quer conhecimento sobre sua origem ou fim. O que apenas desvela-se en-
quanto diferena. Por isso o que jamais pode ser perscrutado em seu aconte-
cimento. O que irrompe do silncio e a ele retorna sem cessar: mostra-se,
ocultando-se no acontecimento. O que no pode ser descrito, apenas viven-
ciado. A descrio j no alcana o , mas apenas o que foi. Mas, na descri-
o que se guarda o que est sendo de sua alienao. O que est sendo, afinal,
o que ainda , portanto, o prprio aberto da abertura originante.

A questo, agora, o como realizar esta revoluo espiritual a partir do


educar em todas as suas instncias e graus. Claro, isto implica em decises
radicais e em uma prtica pedaggica que assuma, como prtica, sua prpria
cincia com independncia e colaborao com as demais reas do conhecimen-
to. A questo, ento, de superao do atual estado de assujeitamento do edu-
cador, atravs de uma atitude revolucionria diante com os seus iguais educan-
dos. preciso preparar uma nova florao de indivduos humanos que no se
assujeitem ao princpio de autoridade imposto pelos regimes barbricos das
sociedades prepotentes e monologicamente hegemnicas. preciso que o edu-
car esteja a servio do aprender a ser para alm do formalismo escolar institu-
do, abrindo-se para o salto liberador da diferena ontolgica, isto , da igualda-
de originante em todas as instncias do existir humano.

Bem, aqui o tom do discurso exortativo, o que nada resolve e talvez


nada esclarea. O preciso que... indica apenas uma urgncia. A questo
saber se temos condies para atender a esta urgncia e quais so elas, as con-
dies, para uma efetiva mudana de regime pedaggico em nosso meio. Se
assim decidimos, por onde comear? Por que no comear agora? Comear
agora significa decidir tornar-se um igual na diferena em todos os momentos.
Significa despertar do sono dogmtico e da m querncia ancestral. Apenas
uma deciso preciso, mas sem ela nada se pode fazer, nada se pode desejar de
grande. E esta deciso sempre uma ciso bem demarcada. Decidir significa
romper e rasgar, cindir e interromper uma ambigidade subjugante. Decidir o
mesmo que aprender a ser-sendo: lanar-se ocioso no acontecimento da doa-
o liberta.

Sem dvida, todo este discurso nada tem de normativo e nada resolve
para o estado atual da nossa indigncia pedaggica. Caso fosse um discurso
107

normativo no seria filosfico. Porque filosfico, ele no precisa esquivar-se


da compreenso transcendental para fazer-se conhecimento comprovado.
Esta uma diferena que quando no apreendida na sua dinmica articuladora
conceitual e agente, acaba provocando uma noo obtusa de Filosofia, como se
esta fosse apenas a metafsica, entendida como o lugar da verdade dogmtica,
provinda da interpretao autorizada e teologicamente justificada, interpretao
que institui significados nicos e unvocos. A verdade que a imagem que se
faz da Filosofia a de uma velha senhora aposentada que vive a recordar. Cla-
ramente, no esta a Filosofia da qual me refiro. No falo de uma Filosofia
escolstica e cheia de interdies normativas. Falo da atitude de investigao
radical do nosso comum pertencimento ontolgico. Filosofia, no , ento,
um sistema de ideias concludas e concludentes, mas apenas a abertura para a
realizao do projeto e processo humanos a partir de um ethos concretizador e
advencial, ou seja, a partir de uma atitude prolongada e duradoura que acolha o
viver na sua bem querncia e se disponha plenitude valente e transvalorante,
cuja meta o instante nico na sua polifonia irradiante e re-tornante.

O que queremos ser, afinal, na condio de educadores? Onde encon-


trar coragem para uma tamanha faanha revolutiva? A condio da nossa indi-
gncia pensante nos torna mal querentes. Os hbitos adquiridos e os costumes
cotidianos nos tornam preguiosos para uma mudana to intensa e radical
como esta. mais fcil, ento, permanecer na comodidade do que j est deci-
dido. D menos trabalho do que agir segundo o ethos da co-responsabilidade
integradora da diferena. Entretanto, a nica possibilidade para o surgimento
cultural de uma pedagogia fundada na diferena enquanto diferena a exis-
tncia de seres humanos transgressores da indiferena ontolgica. preciso
que alguns se tornem agentes de uma pedagogia da diferena em suas prprias
praticas pedaggicas. Estes alguns havero de estar muito bem preparados para
este agir diferenciado, e havero de assumir o nus da impertinncia de suas
aes. Isto no prescreve nenhum caminho acabado. Pelo contrrio, apenas
lembra como uma pedagogia da diferena s faz sentido a partir do ethos da
igualdade originante, onde no se ensina, mas se aprende a ser-sendo-com-
outros na advenincia do aberto transpessoal. No se trata, portanto, de afir-
mao pessoal, mas de encontro derradeiro com a diferena surpreendente,
sempre outra, sempre a mesma, nunca antes, nunca depois, sempre nica: ins-
tante sem ocaso.

E os demais passos? Bem, os demais passos so aes discretas que


passam despercebidas do olhar cativo: recolhem-se no velamento protetor.
Desejo, ento, que alguns aqui possam sonhar com o descortinamento mostra-
do e de que se percebam implicados no princpio infundado da diferena: pos-
108

sam se fazer diferentes na igualdade originante realizem em suas vidas a


pedagogia da diferena. Ofeream-se altivos ao acontecimento da maestria do
que nunca tem ocaso. A guerra est declarada! E agora, como serei devorado por
vocs?
109

9
PEDAGOGIA DA DIFERENA PENSADA COMO
DIFERENA: NOTAS IMPLICADAS II 9

Felippe Serpa vem insistindo no fato de que a questo da Diferena


como Diferena vem sendo comumente articulada a partir do conceito de I-
dentidade. Deste modo, interpreto que o que deveria ser a Diferena como
Diferena se mostra como o Diferente da diferena, tornando-se a questo
uma mera reduo da Diferena ao Princpio de Identidade pensado no hori-
zonte da metafsica tradicional. Parto desta tenso para desenvolver o tema da
Pedagogia da Diferena. No vou aqui falar desta nova moda pedaggica cha-
mada de Pedagogia da Diferena, no sentido de proclamar uma doutrina e pro-
fessar uma nova verdade hegemnica e monolgica. Pelo contrrio, vou aqui
problematizar estes dois conceitos: o Diferente da diferena e a Diferena co-
mo Diferena.

A rigor, a investigao da questo da Diferena pensada como Diferen-


a requer uma radicalidade de princpio de difcil acesso. E como no acredito
em mediaes facilitadoras e sim em mediaes potencializadoras, no preten-
do aqui facilitar a sua compreenso por meio de simplificaes. Entretanto,
pretendo fazer-vos pensar a Diferena na perspectiva do aprender a ser, isto ,
sob a gide da experincia prpria e irrepetvel de cada um em sua interpolijec-
tualidade 10, isto , enquanto membro de uma coletividade associada e partici-
pe de uma unidade indissocivel entre sujeito e objeto. Deste modo, pretendo
apresentar uma possibilidade de elaborao crtica do tema da Diferena e o
conseqente efeito disto no campo do discurso pedaggico contemporneo,
mostrando a urgente tarefa de construo de uma nova Paideia nascida do
princpio da Diferena como Diferena. Isto tangencia uma revoluo cultural
abrangente e de longa durao, e no um simples dado proveniente de uma

9
Artigo publicado na Revista GERE 5, 2002.
10
Esta uma expresso que forjei para dar conta da nosso complexa estrutura de ser-no-
mundo-com, e da irredutibilidade de tal estrutura a padres hegemnicos de interpretao
polarizados metafisicamente, como sujeito / objeto, essncia / existncia, alma / corpo,
racionalidade / sensibilidade, teoria / prtica etc.
110

realidade j constituda e hegemnica, realidade marcada pelo signo da Identi-


dade e da conseqente desigualdade dos iguais.

Com o intuito de provocar para a realizao de uma crtica radical da


condio humana contempornea, especificamente de nossa prpria condio
contextual, convoco a todos os que se dispuserem a seguir este discurso a dei-
xarem de lado suas convices e opinies pessoais acerca dos dados que cons-
tituem nossas crenas e atitudes diante do sentido-sendo. Com isto, vos con-
voco a partilhar de uma vivncia instantnea de suspenso momentnea de
nossos juzos de valor sobre a realidade instituda e instituinte. Trata-se de
praticarmos a atitude filosfica de modo genuno. E esta atitude encontra-se
imediatamente em ns mesmos.

No se trata, assim, de buscarmos fora de ns o acontecimento do sen-


tido e da significao articuladora de nosso ser-no-mundo, mas em ns mes-
mos. Claro, sempre preciso partir da prpria condio existencial de cada
um, o que abarca a totalidade do nosso comum perceber e ser. Partindo da
condio existencial que nos prpria, estaramos aptos para esta vivncia
proposta de radicalidade filosfica, ou simplesmente no nos encontramos
ainda devidamente preparados para tal? Esta forma de perguntar j mostra
como no se trata de encontrar uma resposta pronta s questes suscitadas,
resposta que apenas satisfaa a mera curiosidade desinteressada. Tambm mos-
tra como o que est em jogo diz respeito ao aprender a ser de cada um de ns.
Em outras palavras, tratar do tema da Pedagogia da Diferena requer um con-
creto exerccio filosfico. isto o que faz a diferena em relao ao mero dis-
curso sobre a diferena, em que vozes autorizadas pretenderiam ensinar os
seus prprios dogmas grupais, tornado-os princpios fundantes hegemnicos e
monolgicos. E como aqui procuro apontar na direo de um pensar rigoroso
e conseqente, na perspectiva de um concreto aprender a ser, proponho algu-
mas questes de princpio como modo de alimentar a investigao acerca do
sentido de uma Pedagogia da Diferena pensada como Diferena.

Comeo pelas perguntas: O que a palavra diferena provoca em


nossa pr-compreenso? Quantos de ns suspeitam do tema da diferena co-
mo mais uma das artimanhas de mercado promovida por uma Pedagogia Em-
presarial? Seria possvel colocar o problema da Diferena como Diferena a
partir de uma atitude filosfica radical, onde no mais caberiam representaes
autorizadas da verdade humana? Seria isto possvel para ns, acostumados
longamente ao assujeitamento ideolgico do poder institudo? Por ventura,
poderamos realizar um pensar autntico a partir de nossas precrias e desauto-
rizadas vozes?
111

Bem, a questo que apresento neste ensaio diz respeito ao necessrio e


radical aprendizado do pensar. Proponho, ento, que este discurso seja filoso-
fante. Eu vos convido a filosofar. O mais importante agora no a nossa
comum convico sobre o mundo e o homem, mas a nossa disposio ao a-
prendizado do pensar prprio e apropriado. Esta , a meu ver, a condio para
se elaborar o tema pedaggico da diferena alm do comum princpio metafsi-
co do Diferente da diferena. Isto, sem dvida, requer uma disposio interro-
gante de grande mpeto, pois sem a presena de um pulsivo interesse pelo que
se tem em mira como investigao e construo dos conhecimentos e da sabe-
doria, no se logra filosofar com propriedade e efetiva autonomia axiolgica e
scio-histrica. Em outras palavras, afirmo que no sabemos ainda filosofar
em lngua e ambiente prprios. E por que isto? Simplesmente porque ainda
no aprendemos a pensar por conta prpria. O argumento, ento, de que isto
ocorre porque no nos ensinaram a pensar. O curioso que este argumento
denuncia uma grave falta: ao afirmar deste modo, quem afirma encontra-se na
perspectiva do Diferente da diferena. Em outras palavras: pensa a Diferena
como Identidade metafsica e princpio hegemnico monolgico. Tentarei
elucidar melhor esta afirmao a seguir.

A localizao histrica do problema da diferena pressupe uma ampla


reviso do conceito de identidade que funda a racionalidade metafsica ociden-
tal. Assim, falar de Diferena requer, tambm, que se fale de Identidade. En-
tretanto, por acaso quando dizemos identidade j sabemos de imediato do que
se trata, e apenas quando dizemos diferena ocorre uma estranheza desconhe-
cida? Com esta questo articulo uma compreenso que supera a dicotomia
entre identidade e diferena e ousa pensar a diferena como diferena. No se
trata, portanto, de mero formalismo semntico, mas efetivamente da criao de
um conceito que no nos dado intuitivamente, como se bastasse abrir os o-
lhos para ver. A criao deste conceito uma deciso e nunca uma mera re-
presentao de um dado da realidade vivida. Para alcan-lo precisamos apro-
ximar-nos do originante, do originrio e do original. Ora, isto convoca o nosso
ser a um salto revolutivo radical, onde a doao liberadora nos alcance e nos
possua irrestritamente. Isto mudaria todo o curso da pedagogia que vem sendo
praticada por ns, marcada, desafortunadamente, pelo signo da desigualdade e
da indiferena. Afinal, de que maneira iremos realizar o ideal de liberdade parti-
lhada que nos torne dignos e criativos e no meros subalternos de senhores
impostores?

A questo primacial em uma Pedagogia da Diferena, deste modo, diz


respeito ao princpio da Igualdade Originante, convocando a todos a se torna-
112

rem atores conscientes no processo de suas prprias vidas associadas. Para ser
fiel ao princpio da igualdade originante, uma pedagogia da diferena no pode
aceitar o princpio da excluso e da indiferena humanas. Entretanto, fica claro
que este grau de conscincia s se pode alcanar por meio de um efetivo esfor-
o aprendente. Neste sentido, no repetindo a tradio j consagrada do
pensamento pedaggico ou filosfico que se pode chegar ao concreto exerccio
da autonomia desejada.

A questo, como se pode ver, muito mais densa do que se poderia


imaginar. Todos ns estamos sendo convocados a uma efetiva construo de
um saber que nos torne irrestritamente responsveis por aquilo mesmo que
somos ou queremos ser. Nada do que est a mudar de curso sem o intercur-
so de nossa deciso radical. E o que mais surpreendente que todos esto
convocados para esta responsabilidade aprendente e originante. Inegavelmen-
te, trata-se de uma revoluo espiritual ainda nova e desconhecida, para a qual
devemos nos dirigir com mpeto e prudncia simultaneamente. Afinal, para que
se mude esta nossa forma mental prpria de subjugados e subordinados meta-
fsicos so necessrias mltiplas geraes de seres livres e criadores. Tudo isto
porque a liberdade nossa disposio apenas uma possibilidade e no uma
realidade j estabelecida. O fato que vivemos em um mundo de desiguais,
onde existem diferentes condies de desenvolvimento humano e onde a dife-
rena medida na base de um princpio hegemnico e linear, o que o mesmo
que tomar a diferena como princpio de desigualdade. Para que isto possa
desvelar novas formas de compreenso da condio humana, vou tratar o con-
ceito de Diferena como Diferena a partir da considerao do princpio de
identidade que funda a epistme ocidental. Sigo aqui algumas trilhas de Hei-
degger encontradas no seu texto Identidade e Diferena (1979).

A Identidade comumente associada a um princpio lgico. Ela tradi-


cionalmente representada pela frmula A = A. Tal princpio vale como a su-
prema lei do pensamento verdadeiro. Entretanto, o que identidade? Esta
frmula permite-nos experimentar efetivamente o que identidade? Em caso
afirmativo, de que maneira isto ocorre? No caso, antes de aceitarmos o princ-
pio de identidade expresso pela frmula j consagrada, paremos para pensar
mais demoradamente sobre o que mesmo a identidade que se supe a lei
fundante de toda racionalidade possvel. Ora, agindo assim estamos no cami-
nho do pensamento interrogante, onde sempre preciso aprender do princ-
pio. Portanto, no nos interessa saber que contedos determinados pertencem
ao tema, mas de que maneira podemos experimentar o princpio de identidade
como caminho interrogante, isto , como investigao radical das condies
prvias do ser que somos no mundo. Com isto tocamos no problema do fun-
113

damento da forma comum de agir no mundo, e este um problema ainda


pouco explorado em nossas investigaes epistemolgicas sobre o que e o
que tem de ser a educao humana socialmente instituda.

A frmula A = A apresenta o princpio da identidade. Tal princpio


nos diz que A igual a A, isto , que A A: A idntico A. Trata-se eviden-
temente de uma tautologia, isto , da repetio do mesmo. A se define, portan-
to, como A: repete-se como o mesmo A o mesmo que A. Uma tal repeti-
o, entretanto, parte de uma suposta comparao entre dois termos de um
mesmo conjunto. Entretanto, o mesmo ele mesmo em si mesmo, no preci-
sando da igualdade apresentada na frmula para definir-se. Como diz Heideg-
ger, Para que algo possa ser o mesmo, basta cada vez um. No preciso dois
como na igualdade (1979: 179).

A confuso, ao que parece, nasce da. A frmula que nomeia o princ-


pio de identidade fala de uma igualdade e no do mesmo o idntico. Deste
modo, o princpio de identidade, pensado a partir da sua mesmidade, no no-
meia apenas a similitude entre A e A, mas, sobretudo a Diferena de cada A
em si mesmo. O idntico se diz o mesmo. Ora, o mesmo no nunca o igual a
outro qualquer, mas apenas o idntico, isto , o que em si mesmo o mesmo.
No sendo o igual, o mesmo no se equipara a um outro de si, mas apenas ao
que em si mesmo ele mesmo para si mesmo o mesmo. Ora, isto nos joga
para uma outra compreenso de identidade onde o princpio fundante o idn-
tico, isto , o mesmo, ou melhor: a diferena como diferena. De que forma,
entretanto, isto fica claro para ns, neste caminho de pensamento?
Segundo Heidegger, A frmula mais adequada para o princpio de
identidade A A no diz apenas: cada A ele mesmo o mesmo, ela diz antes:
consigo mesmo cada A ele mesmo o mesmo (1979: 179). Em outras pala-
vras, em cada identidade reside a relao com, isto , uma mediao, uma
ligao, uma sntese: a unio numa unidade (idem). Na identidade, portanto, o
que est em jogo sempre uma relao com, o que bem diferente de se pen-
sar o igual a partir da polarizao metafsica, onde uma das partes da relao se
mostra como princpio fundante e a outra como princpio derivado. Quanto,
ento, se diz que algo segundo seu princpio de identidade, ou este algo se
encontra fundado na sua diferena ou no passar de mera figurao subordi-
nada ao j estabelecido como princpio fundante homogneo e vazio.

Tomando esta crena como verdica, fala-se em identidade fora de seu


elemento fundante: a diferena. Desta forma, admite-se uma noo de identi-
dade marcada pelo signo de um Diferente da diferena, e no logramos pensar
a identidade fundada na Diferena como Diferena. Ora, esta uma questo
114

deveras surpreendente: ela nos joga para algo ainda no pensado de forma ra-
dicalmente diferente. Vou ao concreto. Como que funciona o princpio da
identidade em nossas operaes mentais corriqueiras? Na matemtica apren-
de-se que o nmero sempre igual a ele mesmo. Entretanto, todo nmero
demarca a possibilidade de uma operao lgica de grande complexidade. To-
do nmero signo do processo abstrativo da inteligncia humana. Por este
processo possvel igualar similares em uma extenso homognea e vazia.

Assim, quando comumente se diz que A igual a A, se quer dizer que


A vale pela sua prpria afirmao, e que o seu efeito sempre um outro A
igual a si mesmo. Esta uma expresso capaz de cobrir o campo de possibili-
dades relativas a toda habilidade de clculo e medida que esta lgica realiza. A
verdade que esta lgica no se encontra ainda ao alcance comum, porque se
parssemos para pensar sobre o princpio de identidade, o veramos em sua
configurao diferencial originria, onde o mesmo nomeado em sua essncia
o mesmo como o idntico.

O idntico, desta forma, no um outro de si que se espelha na dupli-


cidade da igualdade, mas ele mesmo nele mesmo o mesmo, e no um outro
de si fora de si. O idntico do princpio de identidade no nunca o ser igual a
um outro semelhante. O idntico o ente que em si mesmo o seu ser-sendo.
O idntico funda a identidade na relao do ente consigo mesmo. A identidade
o ente de relao em seu campo de relao. A identidade nomeia homens e
coisas pelo transcurso da Diferena Ontolgica. A identidade identidade para
o ser que alcana o idntico em seu prprio ser-sendo. A identidade a unida-
de em seu alcance existencial. Uno todo ente no ser. A questo que esta
unidade do idntico no absolutamente o inspido vazio daquilo que, em si
mesmo desprovido de relaes, persiste na montona uniformidade (Heideg-
ger, 1979: 179). Deste modo, a identidade no diz respeito ao conceito lgico
de identidade, mas ao modo de ser-no-mundo-com.

A identidade, assim, configurao ontolgica do idntico na relao


do mesmo consigo mesmo. A identidade deste o incio do pensamento origi-
nrio esteve fundada na diferena ontolgica entre pensar e ser. Entretanto, a
partir do momento em que a identidade se apresenta como princpio supremo
do pensamento, ela se torna apenas uma representao conceitual homognea
e vazia. contra esta forma de identidade que o discurso da diferena procura
construir sua interpretao. A identidade pensada como homogeneidade
justamente o que a se encontra determinado como princpio da desigualdade
ontolgica. E porque nossa civilizao se funda no princpio da identidade
homognea e vazia, estamos acostumados a conceber a identidade como afir-
115

mao do Diferente da diferena, isto , a partir da tica de quem domina e


no de quem dominado. Nesta frmula encontra-se o modo de ser da desi-
gualdade e da excluso que prpria da racionalidade tecnocientfica da con-
temporaneidade.

O nosso mundo cultural dominado por este princpio hegemnico da


identidade lgica, isto um acontecimento incontestvel. Cada um de ns a
expresso desta lei da excluso e da desigualdade, no precisamos recorrer a
exemplos abstratos para compreender esta facticidade de nosso comportamen-
to de relao. Apesar de vivermos em um regime poltico democrtico, a lei da
excluso est em toda parte. A comear do fato de que todo o regime de edu-
cao formal em nossa civilizao encontra-se marcado pelo signo de uma re-
ferncia que se impe como lei universal, exigindo do aprendiz obedincia ao
que se ensina e no ao que se pode aprender alm da medida instituda e estra-
tegicamente disciplinada para a repetio da submisso deliberada de uma das
partes do processo.

Deixando de lado o princpio da identidade lgica do pensamento, en-


contramo-nos diante da diferena enquanto diferena. A identidade agora
marcada pelo signo do apelo. Trata-se do apelo que fala desde o ser do ente.
Historicamente isto to antigo quanto Parmnides. Uma das proposies de
Parmnides afirma: O mesmo, pois, tanto aprender (pensar) como tambm
ser.

De maneira equvoca o princpio de identidade pronunciado logica-


mente se diz inspirado nesta proposio de Parmnides. Entretanto, o que se
pode apreender nos termos de sua proposio que coisas diferentes como
pensar e ser so pensadas como o mesmo. Segundo Heidegger, isto quer dizer
algo absolutamente diverso do que afirma a doutrina metafsica, para a qual a
identidade faz parte do ser. Pelo contrrio, Parmnides parece dizer que o ser
faz parte da identidade.
Ora, se assim interpretarmos, na sua proposio no mais aparece a i-
dentidade como um trao do ser, mas o ser se mostra como uma das partes da
identidade. Neste sentido, no h primeiro o ser e depois a identidade, mas o
ser e o pensar se renem no mesmo como identidade. A identidade, assim, no
um trao do ser, mas a unidade que une no sem-fundamento o ser e o pen-
sar. A questo, deste modo, se articula como diferena pensada como diferen-
a, o que permite redefinir a igualdade como o meio a partir do qual o idntico
se faz pela mediao de ser e pensar, e no pela polarizao que faz do pensar
um trao do ser. Tudo aqui muda de sentido. O que se diz igual j no mais
a homogeneidade de um conceito que nomeia o ser como o diferente da dife-
116

rena. A questo agora torna o ser o mesmo que o pensar. O mesmo, portanto,
o meio atravs do qual pensar e ser tornam-se unidos no sem-fundamento.

Tomado a proposio de Parmnides como enigmtica e ainda desve-


lante, concordo com Heidegger quando afirma que nela Pensar e ser tm seu
lugar no mesmo e a partir deste mesmo formam uma unidade (1979: 181).
Deste modo, nos primrdios do pensamento a identidade no aparece ainda
como princpio de excluso da diferena ontolgica, mas afirma a sua marca de
origem nomeando a diferena como diferena, isto , a identidade o idntico
da relao entre pensar e ser.

O idntico justamente o mesmo em seu comum-pertencer. Pensar e


ser so o mesmo como comum-pertencer. Neste caso, o ser determinado a
partir de uma identidade, como um trao desta identidade, e no a identidade
representada, como acontece na metafsica sistemtica, como um trao do
ser. Neste sentido, a identidade que o elemento fundante, e este funda-se
no sem-fundamento. Portanto, a identidade pensada como o idntico no seio
de uma relao de diferentes. A identidade garante para o ser e o pensar a
mesma provenincia, no cabendo reduzi-la a um trao do ser. Esta reduo
significaria o privilgio do diferente (o ser) da diferena (o pensar), como se o
pensar fosse apenas um trao identitrio do ser. O mesmo, entretanto, une no
mesmo mbito homem (pensar) e ser (ente), de tal modo que a identidade do
homem se d na juno com o ente, e isto que permite pensar a igualdade
como fundada na diferena compreendida como diferena e no como um
trao do ser.

O que diz toda esta argumentao desenvolvida? Aonde ela nos leva?
Segundo penso leva-nos para o equacionamento de uma outra possibilidade
pedaggica ainda impensada. Neste sentido, falar em pedagogia da diferena
o mesmo que reinventar o sentido que nomeia a identidade como a diferena
entre ser e pensar, o que significa tomar a diferena ontolgica como a articu-
lao necessria para se determinar a identidade do ente-espcie que somos
como humanidade. Trata-se, portanto, de uma pedagogia do aprender a a-
prender e no mais do ensinar como imperativo do diferente da diferena.
Neste ngulo de interpretao, o importante que hoje podemos pensar o ser
a partir do comum-pertencer. Isto significa que para ns o pensar a doao
deste comum-pertencimento. Por isto precisamos aprender a pensar a-
prender a aprender. A nica maneira de sairmos do estado de submisso onto-
lgica em que nos encontramos como sujeitos sociais aprendendo a pensar
aprendendo a ser. Precisamos ser para que o nosso pensar nos liberte da
interdio ontolgica. Este deveria ser o primeiro passo do aprendizado hu-
117

mano: a abrangente doao libertadora. Somente com este passo se pode


compreender o aprender a ser como aprender a pensar, o que dispe para o
cuidado permanente do acontecer-apropriar que o ente-espcie humanidade
em sua historialidade.

De um modo geral, estou aqui falando de uma subverso ontolgica


radical. Imagino, com isto, que precisamos nos tornar filsofos do sentido para
alcanar a grandeza do que se dispe como possibilidade aprendente, e no
mais simplesmente ensinante. Esta uma viso efetivamente guerreira. Ela
nos provoca para a deciso de nosso prprio ser. preciso, ento, decidir o
que queremos fazer de ns mesmos. O que queremos ser? Devemos, assim,
aceitar passivamente o estado de coisas a imperante? Devemos aceitar como
lei inderrogvel o princpio da identidade excludente? Devemos aceitar as de-
sigualdades institudas como inevitveis? Devemos cruzar os braos diante da
miserabilidade de nosso ser cotidiano? Est tudo posto, tudo dado?

Pensar a pedagogia sob o prisma da diferena ontolgica significa dis-


posio para o acontecimento instante e polilgico do sentido. Ora, isto re-
quer uma revoluo de mentalidade, uma revoluo de atitude diante da doa-
o que hoje dispe o nosso ser diante da hegemonia planetria das tecnocin-
cias. No d para fugir desta condio contempornea do nosso ser. A globa-
lizao tecnocientfica hoje um acontecimento hegemnico. O que fazer di-
ante desta vaga neoliberal com ares de absoluta? Como conduzir o floresci-
mento crtico do ser do educando, em uma poca onde no se cuida mais do
ser em sua potncia irrepetvel? Se tudo agora parece falar em nome de regi-
mes pedaggicos empresariais, como propor uma reviso crtica radical de tudo
o que a est, sem provocar uma inevitvel mudana de comportamento de
relao?

Tudo isso vos deixa perplexos? Se no vos deixa perplexos, isto sim
que preocupante. A perplexidade tem que estar na origem de todo possvel
aprendizado humano potencializador, ou como diz Miguel Bordas, a indigna-
o deve ser a marca de nossa comum atitude aprendente. Os educadores tm
que estar preparados para a polilgica do sentido. No se pode mais aceitar a
ideia de que o educador tenha que ser um funcionrio dependente e submisso
s autoridades constitudas pelas trocas polticas que falam em nome de inte-
resses particulares. Permanecer hoje na ordem dos interesses meramente parti-
culares o mesmo que se submeter s foras obscuras do oportunismo de ca-
pital e m-f dos que se colocam no lugar do diferente da diferena. Isto
toca no cerne de uma revoluo cultural ainda distante, e da que uma peda-
gogia da diferena pode armar a trama de uma nova educao pblica, porque
118

o que est em jogo a elevao poltico-espiritual dos que recorrem ao ensino


formal vigente. Isto indica na direo de um salto qualitativo do sistema de
ensino considerado. preciso, a todo custo, fazer aprender a ser.

O horizonte de sentido que nos pode tirar do escanteio da histria he-


gemnica da era digital h de ser de uma grandeza incomensurvel. A questo
no se limita nossa imediata vizinhana habitual. A questo diz respeito ao
sentido de soberania que deve aflorar em cada um em particular. Todos so
chamados a partilhar do banquete. No se pode mais aceitar a ideia de que a
formao escolar obrigatria tenha que estar a servio de uma poltica do des-
mando e da usurpao de direitos constitucionais. S mesmo um povo sub-
misso pode aceitar formar-se para um mercado de trabalho marcado pelo signo
da indiferena e da monocultura empresarial aparentemente adepta da diversi-
dade. Este tipo de educao de faz de conta justamente o que no precisa-
mos. Da a necessidade de uma revoluo de mentalidade. S se pode pensar
uma pedagogia da diferena, que se apresente alm do mero jogo retrico insti-
tudo como educao pblica obrigatria, a partir de uma nova prtica pedag-
gica.

A forma mental atual dos professores da rede escolar demasiadamen-


te estreita para poder provocar uma mudana radical na atitude pedaggica.
Isto s poder ocorrer em longo prazo. Trata-se de um processo que exige um
grande trabalho criador e conservador ao mesmo tempo. No se pode imaginar
que uma simples teoria pedaggica da diferena ir solucionar a questo com
um passe de mgica. preciso, antes de tudo, prover os meios materiais e sim-
blicos desta mudana. E isto de tal forma que a prtica pedaggica se inspire
no mais radical sentido do aprender a aprender. isto o que pode fazer a dife-
rena, e em longo prazo propiciar uma mudana de mentalidade no modo de
relao professor-aluno. Nesta nova possibilidade, o professor no ensina,
mas apenas media o aprendizado. E o aprendizado haver de tornar-se cada
vez mais a realizao de um novo ser independente. pela independncia do
outro que o professor haver de agir como mediador do processo. Esta inde-
pendncia no pode ser constrita a modelos formais pr-estabecidos. Esta in-
dependncia o que pode garantir o surgimento de polijectos 11 humanos dota-
dos de um senso de responsabilidade aprendente e sempre abertos superao
de si mesmos pela relao pulsiva e tensiva com os outros.

11Trata-se de uma expresso forjada para a redefinio do ser humano situado: nem sujeito,
nem objeto e sim polijecto. A expresso esclarecida na nota 1, interpolijectualidade, derivada
desta.
119

O fato que vivemos, como educadores, na perspectiva de meros fun-


cionrios de uma educao j modulada e legalizada. Este o problema: a edu-
cao para ns um sistema j realizado. Isto nos impede de suspeitar que a
nossa condio humana ainda extremamente carente de cuidado e acompa-
nhamento permanente. Para se chegar, ento, ao patamar desta revoluo cul-
tural encabeada por uma pedagogia da diferena, precisamos muito mais de
afeto e cuidado do que de punio e disciplina estpida regulada por aqueles
que se fazem os diferentes da diferena, usurpando, assim, o direitos dos ou-
tros de tambm se tornarem iguais no mbito do mesmo fundamento no-
fundado.

claro, nada disso imediatamente compreensvel. No poderia ser de


outro modo, pois estou provocando um pensar inquietante. Na verdade, isto
o que me importa: provocar um pensar pensante. Se de algum modo isto acon-
teceu, significa que esta minha fala no se encerra no limite temporal deste
discurso, mas se prolonga na possvel continuidade da investigao crtica que
nos pode empenhar em uma transformao radical do nosso ser social. Pode-
mos, de modos variados, ousar a anlise das condies do nosso prprio ser-
situado. Inclusive podemos exercer uma liberdade aprendente que no esmore-
a diante da inevitvel resistncia do meio institudo como escola formal. Infe-
lizmente o legal parece se sobrepor ao legtimo, impedindo, assim, o floresci-
mento mais definido da diferena na igualdade originante. Onde, ento, encon-
trar a identidade que nos torne potncias gneas encarnadas? Como fazer para
que a diferena como diferena se torne o fundamento de nossas prticas pe-
daggicas cotidianas? Como deixar acontecer o ser da diferena, sem o trans-
curso da interdio e da desigualdade indiferente? Como, ento, cuidar para
que possamos formar seres humanos altivos e independentes, sem a devida
ateno afetiva e o concreto respeito pelo seu mistrio ontolgico?

Em nossa pedagogia hodierna, agimos como se tudo estivesse funcio-


nando perfeitamente: aplicamos uma dogmtica legalmente instituda, mas
pouco contribumos para a sua desconstruo crtica. Afinal, qual ser humano
queremos formar? Queremos formar bons funcionrios, ou queremos formar
seres humanos soberanos e surpreendentes? De forma direta, penso que o
discurso de uma pedagogia da diferena pensada como diferena no possa
ater-se ao imperativo legalista da interdio e do disciplinamento ideolgico
institudo.

O nosso sentido de povo e nao no pode mais se limitar a uma iden-


tidade que se impe como lei de excluso e manipulao empresarial hegem-
nica. Este sentido haver de nascer da diferena ontolgica que nos dispe
120

abertos ao mbito concreto da igualdade originante. E esta diferena dever


impor-se em sua identidade plural e polilgica, superando o princpio da iden-
tidade onde um Diferente da diferena se coloca no lugar do ser e pretende a
todos submeter e subjugar. A nossa nica sada o aprendizado permanente
do sentido-sendo. Para tanto precisamos sempre aprender. O nosso estado de
ser deve sempre estar aberto ao aprender a aprender. Com isto, o que temos
que superar no pouco. Da a necessria intensificao das atividades apren-
dentes, coisa que s se pode fazer caso por caso. Neste sentido, uma pedago-
gia da diferena haver de fazer-se na diferena de cada acontecimento instan-
te, e no poder moldar-se por uma lei exterior a ela mesma. Pode parecer pa-
radoxo, mas o esprito da Lei de Diretrizes e Bases vigorante aponta na direo
da soberania nacional. Mas, como tornar soberano um povo que no aprendeu
ainda a pensar, tendo como fundamento a diferena como diferena? Este o
desafio que temos pela frente. Equacion-lo j significa decidir por uma mu-
dana de regime pedaggico radical.

Assim, faz sentido se falar em pedagogia da diferena, porque ela con-


clama a todos realizao do prprio sentido constelado de uma nova consci-
ncia humana: conscincia de ente-espcie e de inevitvel liberdade criadora
auto-responsvel. Uma pedagogia da diferena, portanto, nada tem a ver com
o discurso vazio da reificao da convenincia subordinada ao princpio da
identidade excludente e imperialista. Uma pedagogia da diferena h de fazer-
se soberanamente nos seleiros locais das mltiplas inteligncias desgarradas. O
que preciso preparar o educador para que no seja ele o repetidor passivo
do processo excludente da pedagogia da indiferena. O educador haver de ser
ele mesmo um campo de realizao soberana das potencialidades e possibilida-
des locais; ele haver de sempre aprender a ser no mbito da modificabilidade
ontolgica permanente e na dinmica incessante do processo histrico em cur-
so. Nada do que foi ser ou poder ser de novo como j foi um dia: a lei da
mutabilidade operante deve instruir o novo patamar aprendente da pedagogia a
ser construda por cada educador efetivo. Devemos aprender a ser na sobera-
nia da nossa possibilidade absoluta de liberdade partilhada e combativa. Tudo,
ento, deve fazer-se na diferena do acontecimento que rene as mltiplas vo-
zes no mbito do comum-pertencimento de homem e ser.

Como diz Heidegger, o homem manifestamente um ente. Neste sen-


tido, ele faz parte da totalidade do ser, como a pedra, a rvore e a guia. Per-
tencer aqui quer dizer: inserido no ser. Tal inserimento uma relao de co-
pertencimento: o homem pertence ao ser e o ser pertence ao homem. Deste
modo, a doao do ser em relao ao homem e do homem em relao ao ser
se d no mbito da correspondncia ao apelo do ser. Nesta relao de corres-
121

pondncia, Heidegger chega a dizer o seguinte: Homem e ser esto entregues


reciprocamente um ao outro como propriedade. Pertencem um ao outro
(1979: 182).

Trata-se de um comum-pertencer. Melhor ainda: de um comum-


pertencer. Contudo, este originrio comum-pertencer por ns teimosamente
ignorado quando tendemos a representar tudo atravs de categorias redutoras e
princpios polarizados. Este comum-pertencer ainda marcado pelo princpio
de identidade metafisicamente polarizado. a que mora o perigo, porque ao
representarmos metafisicamente o sentido de comum-pertencimento, abdica-
mos da possibilidade da igualdade originante em funo da afirmao de um
Diferente da diferena. Como, ento, em uma pedagogia marcada por este
princpio monolgico e homogneo de identidade se pode chegar a pensar a
identidade como fundada na diferena ontolgica do co-pertencimento de ho-
mem e ser? Evidentemente que no possvel sair desta tica da identidade
homognea seno pelo passo de volta, isto , pelo distanciamento crtico em
relao cidadela da racionalidade metafsica da tecnocincia contempornea.

Isto requer tambm uma revoluo de conceitos, o que s se pode fa-


zer por meio de uma revoluo do comportamento humano no seu co-
pertencimento ontolgico. Infelizmente, no este simples discurso que vai
resolver as tenses inerentes a esta nova abertura perplexiva diante da diferen-
a humana. O homem, na qualidade de ente-espcie, no deve submeter-se ao
ser da era tecnocientfica contempornea. Pelo contrrio, na qualidade de igual
ao ser no mbito ontolgico, cabe ao homem chamar para si a responsabilida-
de de pertencer ao ser e de possui-lo na sua possibilidade. o homem que
deve realizar o ser e no o ser que deve realizar o homem. Na medida de sua
realizao, o ser da era tecnocientfica imperante no pode servir de referncia
para a revoluo espiritual do ser humano. Neste momento, a responsabilida-
de no pode mais ser transferida ao ser-como-tal. O ser-como-tal no pode
ensinar nada ao homem. o homem que deve aprender a ser alm do ser-
como-tal.

Diante disso, minha perplexidade aumentou de potncia. No sei bem


o que dizer para finalizar este breve discurso sobre pedagogia da diferena co-
mo diferena. No aprendizado do comum-pertcncimento de pensar (homem)
e ser (ente) abre-se para ns uma outra possibilidade ontofilogentica. sobre
esta outra possibilidade que quero ver realizada uma pedagogia da diferena
como diferena. Isto me deixa relativamente confortvel diante desta enorme
tarefa: sei que estou construindo uma epistemologia do educar polilgica, onde
o conceito de cincia re-descrito inventivamente em aberturas imprevisveis e
122

conseqentes, cincia para a qual o aprender a aprender aprender a ser se


apresenta pelo signo da diferena ontolgica, fundamento no fundado da i-
gualdade originante igualdade de potncia e ato; igualdade de soberania e
altivez: vontade de sempre mais-vida.

Resta, sem dvida, o como fazer isto para que o homem transcenda a
ordem do ser dado e institudo como hegemonia planetria da tecnocincia
empresarial. Entretanto, este como fazer no constitui um problema neces-
srio, porque no h um como fazer nico e hegemnico, simplesmente
porque no h um ser que deve prevalecer com sua autoridade incontestvel,
mas seres que no seu transcurso existencial realizem o ser na singularidade
irrepetvel do acontecer-apropriar, prprio da igualdade do homem em relao
ao ser e da mesmidade de ambos enquanto comum-pertencer. O co-
pertencimento pode ainda, a partir desta correspondncia originante, abrir o
nosso ser para a realizao da deciso soberana da liberdade aprendente em um
mundo de iguais, mundo onde a diferena pode ser pensada como diferena, e
a identidade pode ser acolhida no acontecimento plural do idntico, isto , do
mesmo.

Ora, o mesmo sempre a relao de iguais no campo da diferena. A


diferena pensada como diferena, ento, nos diz apenas isto: homem e ser
encontram-se imbricados no sem-fundamento: um e outro devem correspon-
der ao apelo da igualdade originante. A nenhum deles, portanto, cabe atribuir a
primazia ontolgica porque ambos so traos do mesmo, isto , do idntico.
Entretanto, como representar este idntico quando ele sempre acontecimen-
to instante e singular? Resta-nos sempre a deciso ou a indeciso radicais. O
que queremos ser?

Est a questo. Agora, o como podemos ser uma questo para a


qual nenhuma prescrio pode cobrir a amplitude e grandeza de suas infinitas
possibilidades. Diante disto, nenhuma lgica linear instituda capaz de abrir-
nos para o acontecer-apropriar do homem em relao ao ser.Tudo depende de
nossa prpria construo social, isto de nossa identidade fundada na diferen-
a como diferena. Penso que agora cabe a cada um responder ou correspon-
der a estas provocaes pensantes, no no sentido de uma concordncia passi-
va, mas de um encontro efetivamente contrastante e combativo. Tudo isto
afinal est apenas no incio, e nem valeria a pena imaginar que possa um dia ter
um fim preciso e uma conceituao nica e acabada. Isto seria o mesmo que
no aprender a pensar, justo o que no queremos com a problematizao de
uma pedagogia da diferena como diferena.
123

Referncia:

HEIDEGGER, Martin. Identidade e Diferena. In: Heidegger Confern-


cias e Escritos Filosficos, Coleo Os Pensadores; traduo de Ernildo Stein.
So Paulo: Abril Cultural, 1979, p 177-202.
124

10
A ESPECIFICIDADE DA FILOSOFIA

Comeo discutindo a especificidade de uma investigao filosfica,


porque aqui afirmo tratar-se de uma. O tema enfocado: Concepo filosfi-
ca de uma Pedagogia da Diferena impe-se como Filosofia do Educar.
O que isto quer dizer? Em primeiro lugar, quer dizer uma especfica con-
cepo de Filosofia: um devir filosfico em ao. Em segundo lugar diz de
uma inveno pedaggica germinada do conceito de diferena ontolgica
entre ente e ser, o que requer a elaborao de um especfico discurso do
educar instrudo por uma Hermenutica do ser-sendo.

Esse conceito anunciado de especificidade filosfica lana-nos na


aventura do prprio pensar historial da humanidade. Portanto, no se trata
de uma simples opinio subjetiva sobre algo, mas do prprio acontecimento
da criao do esprito humano investigador de si mesmo. No h aqui meio
termo. A especificidade filosfica consiste justamente em uma disposio
ao apelo imperante do ser-sendo. Consiste, portanto, em ato criador disposto
ao acontecimento do sentido-sendo, interpretado como isto ou aquilo e sig-
nificado nos regimes habiturios da existncia cotidiana de uma dada coleti-
vidade.

No h como negar que a especificidade filosfica seja justamente


uma disposio imperante no acontecimento do ser-sendo. A questo, ento
: como pde algo deste mbito chegar a ser identificado com uma mera
produo de sentido conceitual, uma simples idealizao mental, um comum
ato reflexivo, uma pueril curiosidade intelectual? E foi justo isto o que aca-
bou acontecendo com a conceituao de especificidade filosfica no Oci-
dente: ela passou a ser confundida e tida como jogo intelectual incuo e
abstrato, no mximo til como campo disciplinar para o desenvolvimento da
inteligncia prtica e astuta dos humanos.

Defino a especificidade filosfica como investigao radical do a-


contecimento multifacetado do ser-sendo. No se trata apenas de uma sim-
ples inveno de conceitos, mas de uma conceituao do que nos toca
125

como humanidade. No sendo apenas uma atividade de produo de con-


ceitos, a filosofia tem a sua especificidade na conceituao compreensiva do
ente em sua totalidade. Ora, isto no qualquer coisa, muito menos uma
inveno. Nem mesmo uma suposio ou uma hiptese artificiosa. A Filo-
sofia, desde sua origem, teortica. Mas, em que sentido ela sempre foi
teortica?

O querer-saber manifesto na atitude filosfica teortico na clara


acepo de percepo compreensiva do sentido-sendo. Trata-se sempre de
uma disposio do querer-saber. A disposio sempre tambm um que-
rer-saber. Estas no so instncias separadas, mas complementares. A dis-
posio j uma implicao do querer-saber. No se trata, portanto, de uma
disposio qualquer, mas da disposio como acontecimento do ser-sendo.
O que isto quer dizer? Quer dizer apenas que no h acesso Filosofia sem
a experincia do pensar, isto , sem o ato de contemplar o sentido ou senti-
dos do ser-sendo. Ora, mais uma vez, o que isto quer dizer? Como chegar
a tal atitude? No isto muito vago e impreciso para qualificar a especifici-
dade da Filosofia?

A especificidade da Filosofia, ento, apenas isto: uma radical ati-


tude de investigao do ser do ente em sua totalidade. Mas, no justo
isto o que se diz superado na Filosofia: a pura atividade teortica e o afasta-
mento da atividade prtica? Como, ento, sustentar uma tal afirmao de
especificidade da Filosofia em dias to exigentes?

Bem, o que importa neste momento esclarecer a especificidade


anunciada. Ela nos lana na origem do pensamento interrogante. No mbito
desta origem tudo originante: aparece o conceito de totalidade como acon-
tecimento do ser-sendo advento. O conceito de totalidade, entretanto, no
se presta para apresentar nenhuma verdade universal como tal, porque
sempre um ser-sendo. A unidade do conceito no se presta a uma transmis-
so genrica e vazia, qual repetio de um modelo ideal qualquer, e isto
porque esta unidade sempre nica: ela advm em fluxo intensivo e instan-
te: passa, fenece, recolhe-se na ambincia do seu pre. Nesta ambincia da
unidade do conceito, o transcendente o acontecimento do sentido-sendo. O
transcendente se faz na imanncia do seu acontecer: algo existe como tal
h ser no pensar; ser e pensar so o mesmo.

O conceito, portanto, no uma abstrao possvel apenas na espcie


humana, a partir de sua peculiar estrutura cerebral. O conceito de totalidade
126

o acontecimento do prprio pensar sapiencial: Hn Panta - Tudo


Um (Herclito, Frag. 50). Ora, isto assim dito ressoa como o conceito do
conceito, a matria e a forma imanentes do prprio conceito-sendo. Entre-
tanto, nada de certo e acabado se encontra neste descortinar-se da totalidade
no pensamento originrio. Dizer, portanto, que a Filosofia produo de
conceitos, e que isto est descortinado na percepo de totalidade dos pri-
meiros pensadores, nada garante e nada determina.

fundamental, ento, que o conceito se faa advento. a que ele se


faz passagem e fluxo, nexo e velocidade encarnada. Nesta instncia, o con-
ceito se faz teoria, isto , abarca uma totalidade imanente absoluta. Entretan-
to, isto no representvel como princpio uni-versal, ao modo de uma es-
peculao extravagante, e nem muito menos se ope prtica. Pelo contr-
rio, a unitotalidade prpria do conceito justamente o acontecimento do
fluxo dinmico do ser-sendo, e no uma paralise imagtica suscetvel de
repetio e imitao. Neste mbito, portanto, no h conceito fora do acon-
tecimento do sentido-sendo como encarnao e consumao do advento.
Sim, todo conceito por ser advento consuma-se, encerra-se, recolhe-se no
seu pre, morre como tal. Todo conceito fluxo advencial do que se d na
passagem do seu instante: ele sempre advm aquilo mesmo que pensado
como ser-sendo. Sua multivalncia inesgotvel. Nada o reduz para alm
do seu prprio advir: ele sempre advm, torna-se, encarna-se, conecta-se,
articula-se e aparece na sua prpria consistncia o tornar-se coisa do con-
ceito. O conceito, assim, no determinado por referncias fora do seu m-
bito, mas ele mesmo o acontecimento do sentido-sendo: o Tudo-Um sem-
pre implicado, sempre o mesmo, sempre outro do mesmo. O conceito, deste
modo, no mais uma representao ou generalizao do mesmo, mas ape-
nas um acontecimento implicado do sentido-sendo: um consistens algo
que em si mesmo em si mesmo o seu ser e aparecer; algo que no seu
consistir conceptivo: concepo absoluta em um campo de imanncia relati-
vo tenso-instante: ato de ser-sendo advento.

Tocamos aqui o cerne da questo da especificidade filosfica. Onde,


afinal, se pode dizer o que filosofia sem ser? Plano de imanncia, imann-
cia pura, transcendncia imanente, imanncia transcendente, transcedncia-
transcendental, todos estes so termos de uma mesma problemtica: O que
significa pensar filosoficamente? pensar o mesmo que ser?

Qual mesmo a especificidade da Filosofia? O problema da especi-


ficidade diz respeito tanto ao fenmeno territorializante da Filosofia acad-
127

mica quanto ao acontecimento da desterritorializao do filosofar consisten-


te. A especificidade, portante, tem tambm dupla articulao: tanto ela se
presta como afirmao territorializante quanto como negao desterritoriali-
zante. Esta dupla articulao da especificidade filosfica mostra, com maior
relevo, que a problemtica filosfica produzida por pelo menos duas esp-
cies de campos de imanncia (para no usar a expresso cunhada por De-
leuze/Guattari, 1992, planos de imanncia): o campo sistemtico-
territorializante e o campo radicalmente desterritorializador. A rigor, s
segunda articulao de especificidade pode-se chamar propriamente filos-
fica. A primeira se ocupa da lei, o que a torna condizente com a reificao
identitria, com a construo histrica de territrios independentes e cultu-
ralmente preservados, uma vez mantida sua hegemonia de territrio.

Tudo isso impactante. A especificidade filosfica da ordem do


acontecimento do pensar livre. Ora, o livre pensar no deixar-se levar para
lugar algum, e sim permanecer fiel ao acontecimento do pensar-ser. este
elo de fidelidade o mbito da consistncia do especfico pensar filosfico.
Sem fidelidade a um conceito instrutor o filosofar se perde na impermann-
cia. E a impermanncia, neste caso, no o carter do que desterritorializa,
e sim daquilo que no tem sentido algum. E o que no tem sentido algum
no o sema do soma - tmulo do corpo morto: eidoln, dolo, imagem
plida do que foi-sendo. O que no tem sentido o sem-sentido: o no-ser.
O no-ser, entretanto, no o que est ausente, mas apenas aquilo que no ,
nunca foi, nunca ser. O que nunca , foi ou ser no absolutamente nada.
O nada, entretanto, no o umbroso desconhecido, por assim dizer, o in-
consciente individual e coletivo. O nada simplesmente nada . A confuso
sobre o que do nada comea quando se pretende falar do transcendente
como de algo alm do lgos no necessariamente da razo -, o que um
contra-senso patente. Esta confuso pode ser desfeita no ato mesmo do
especfico filosofar. Para quem filosofa com radicalidade no h a possibi-
lidade de um transcendente que explicaria o imanente. No caso, um trans-
cendente assim conceituado ou imanncia inclusa ou no passa de equvo-
co resultante da falsa conscincia. Os que filosofam com radicalidade pre-
cisam sempre territorializar o discurso filosfico. Afinal, nestes casos
sempre a posse de algo o que importa. E este algo, no caso especfico da
Filosofia, sempre o devir pensante do pensador: produo de sua obra de
pensador. Sem obra no h Filosofia, e sem que a Filosofia se torne minha
posse, sua especificidade fica confundida com trmites legais e burocrti-
cos, perdendo a sua consistncia negando o advento da sua liberdade radi-
cal.
128

Esse assunto mesmo provocante. A especificidade filosfica no


uma mera conveno formal e burocrtica. E como poderia ser assim, se
sua peculiaridade a de sempre ser um ato criador? No sendo convencio-
nal, sua especificidade e consistncia esto na fora de sua durao. A espe-
cificidade filosfica sempre um acontecimento criador. Isto significa: o
filsofo sempre inventa filosofemas, isto , cria conceitos ao modo de cor-
pos sem rgos - totaliza, engloba, supera, substancializa, territorializa o seu
saber, protege a sua descendncia, perpetua sua dominncia. , ao final, um
ato de ser livremente determinado. Este o pressuposto de toda especifici-
dade filosfica: a liberdade da livre determinao do pensar devindo o ser-
sendo da Filosofia. E aqui a determinao no promana da vontade,
mas do poder-ser. A vontade, no caso, a determinao agente do con-
sistente e durvel ser-sendo.

A especificidade da Filosofia um problema to antigo quanto sua


origem. Desde o incio, a Filosofia foi definida como cincia teortica pura:
investigao sobre os primeiros princpios e as primeiras causas (Aristte-
les, 1969). Tratava-se a de uma especfica competncia: a competncia
teortica. Esta no tinha por fim nem o fazer utilitrio e esttico nem a ao
moral e poltica, mas a pura contemplao dos primeiros princpios e das
primeiras causas. Esta contemplao, entretanto, requeria uma competncia,
uma maestria, uma habilidade e conseqente aprendizado habitual. No era
sem esforo que se poderia alcanar uma tamanha faanha, a de contemplar
o princpio e o fim de todas as coisas que so e que no so. A especifici-
dade, neste caso, residia na investigao do que primeiro e ltimo no m-
bito do todo estrutural do Ente em sua totalidade. Princpios, causas, meios
e fins so os conceitos-chave desta especificidade. A investigao teortica
visava, portanto, o conhecimento das coisas em seus primeiros princpios e
primeiras causas, isto , visava seus conceitos absolutos.

Ao longo da histria da Filosofia, a especificidade do fazer filosfico


apareceu em floraes mltiplas. Entretanto, tais floraes sempre mantive-
ram os laos com o pensamento grego, sobretudo pela figura de Scrates e
pelas obras escritas de Plato e Aristteles. Do ponto de vista estritamente
histrico, a formao do pensamento especulativo do Ocidente sempre es-
teve ligada a esta santssima trindade. O dado que o meio de formao do
pensamento especulativo ocidental configurou-se como humanismo a partir
da trade grega, mas sofreu metamorfoses extraordinrias ao longo de seus
aproximados 2600 anos de existncia. curioso, ento, parar para averiguar
129

de que modos e formas a Filosofia que nasceu na Grcia foi se perpetuando


ao longo do ciclo do Ocidente histrico, chegando aos dias de hoje. Tratar-
se-ia, neste caso, de um estudo scio-antropolgico, o que no o foco in-
tencional desta ocasio. Poucos, entretanto, foram os filsofos efetivos, isto
em termos comparativos. Muitas vezes em um sculo apareceu apenas um
grande filsofo, ou mesmo nenhum. Os grandes filsofos se contam, ainda,
com os dedos. O que isto diz? Diz que a Histria da Filosofia simples-
mente o efeito das obras singulares de alguns poucos, e que so tais obras
que fazem a diferena.

Ento, a especificidade filosfica multiplamente matizada, sobre-


tudo porque toda obra de pensamento criador dificilmente se torna de dom-
nio pblico imediato. A Filosofia, ento, reclama sua especificidade pelas
vozes de seus fazedores efetivos. Portanto, s o filsofo criador tem certeza
da especificidade de seu filosofar, o que no garante que a mesmo possa ser
facilmente comunicada aos outros, e muito menos garantir a quem quer que
seja as certezas que se buscam para esconder a condio humana de extrema
indigncia e de cruel brutalidade. No, a especificidade da Filosofia nada
tem a ver com escolas de pensamento secular e sedimentada, apesar de sua
histria sempre ter mantido estrita relao com as mesmas. S na experin-
cia do pensamento radical se pode alcanar o especfico da Filosofia, porque
de outra forma o especfico da Filosofia se torna um mero trmite legal e
burocraticamente institudo. Nada pior do que isto se pode esperar para a
Filosofia: que a sua especificidade se restrinja ao domnio de uma impulsiva
e inescrupulosa vontade de conhecimento.

As mltiplas habilidades que podem ser adquiridas freqentando


uma notvel academia ou faculdade de Filosofia, nunca garantiram a produ-
o filosfica de qualidade. O itinerrio clssico de formao do filsofo,
pelo contrrio, tem sido o lugar da no-filosofia, onde conviria a algum
mais livre evitar. Mas, em geral, esta nossa civilizao ocidental padece de
uma doena crnica curiosa e malfazeja: a despotencializao do esprito
criador, o niilismo de alma e corpo. O dado que a Filosofia ocidental aca-
bou prisioneira de sua prpria imagem de consolao e conciliao, o que a
tornou demasiadamente frgil para sair do prprio lamaal em que se atolou
por excesso de baixa estima. Hoje a Filosofia padece da ausncia de grandes
pensadores, e aqueles que ocupam este lugar, no se encontram altura de
procriarem o alm homem e de engendrarem a transvalorao de todos os
valores, como bradou Nietzsche no seu tempo de pobreza e escassez de
esprito criador.
130

A Filosofia, assim, manteve-se sempre apartada da vulgarizao, o


que a torna uma atividade rara e em franca extino quase uma arara azul.
Assim, quando hoje algum se levanta para falar da especificidade filosfica
para alm do convencional e do j territorializado, isto pode perfeitamente
soar como ato de vaidade pessoal, querendo, entretanto, apenas ser um pen-
sar radical e singularmente provocante e desterritorializante: a Filosofia
como ao guerreira; Filosofia como arte da guerra em sua totalidade.

Dizer, entretanto, que a Filosofia a arte da guerra, no significa


grande coisa. Esta uma expresso que no especifica nada. Arte da guerra
pode ser a experincia csmica e humana como um todo. Qualquer atividade
natural ou humana pode assim ser tambm chamada. A poltica e a religio,
por exemplo, so tipicamente guerreiras; a arte, a cincia, o comrcio e o
lazer tambm fazem guerra; o cosmos vivente vive ebulindo. O Mundo
guerra, dizia Herclito. Tudo pode ser guerra. Mas a guerra de que fala
Herclito no a guerra, no qualquer luta, qualquer disputa. Esta guer-
ra um estado permanente de atrito entre campos distintos de foras efeti-
vas. Tudo est em movimento sempre. O movimento em si o que Hercli-
to chamava plemos. Movimento mudana, mutabilidade, transformao,
gerao, causao agindo e reagindo. Guerra, portanto, como ao em si.
Ora, deste ponto de vista, se tudo guerra, onde estaria a especificidade da
Filosofia como arte da guerra? Por ventura seria a produo/inveno de
conceitos? Mas, o que o conceito? No este tambm um termo to po-
lmico como guerra?

Afirmar que a especificidade da Filosofia a produo/inveno de


conceitos algo to vago como afirmar a sua essncia como arte da guerra.
O conceito em Filosofia no nunca a sua representao, nem muito menos
sua auto-imagem. O conceito o modo de ser da Filosofia: sua efetividade.
O conceito sempre uma forma sem partes: totalidade do sentido-sendo. O
conceito, assim, no se transmite atravs da comunicao, mas se d no en-
contro da diferena-acontecimento. O conceito o ser-sendo da filosofia:
seu campo, seu meio, seu advir perene. O conceito sempre uma certeza,
uma claridade advinda da clareira do sentido. Conceito sentido transpassa-
do pelo fulgor luminescente. Conceito no uma representao de uma efe-
tividade, mas a efetividade em seu compreender-se. Conceito no ima-
gem, no coisa, no fato. Conceito concepo problemtica, interroga-
o, indagao do seu percepto. Conceito flecha, instrumento de ao,
projtil lanado no mbito do sendo, cujo arco e a meta permanecem ausen-
131

tes no conceito no h nem princpio nem fim: o conceito como aconteci-


mento da mesmidade entre ser e pensar: advento do que nunca concluvel.

Sim, Filosofia produo de conceito. Entretanto, o conceito inde-


finvel. Dele no se pode dizer seno o que no , tendo j sido. Conceito
acontecimento do sentido-sendo concepo des-velante da totalidade vi-
vente. Concepo como devir, gerao de origem, gnese do acontecimento
destinal: destino inelutvel do que se percebe percebendo o sentido-sendo.
O conceito ao do que tem sentido. O sentido do conceito sempre com-
preenso total do que se apresenta em sentido nexo, ponte, passagem,
articulao, relao de foras, conjugao de partes, configurao do que
pela distino dos seus modos de aparecer: critrio. como critrio que o
conceito se faz ao formadora da investigao dos acontecimentos, se faz
acontecimento-aprendiz. enquanto aprender que o conceito se mostra
em sua especificidade. Conceito processo de aprendizado. Neste sentido,
se pode afirmar que o conceito, em seu modo de ser critrio, nada tem de
intuitivo, pois apenas se constitui enquanto processo de inveno permanen-
te esforo de criao do ser em seu sentido-sendo. Conceito, assim,
sempre um aprender a ser-sendo usando a fora da redundncia desta ex-
presso. Portanto, conceito no uma representao mental e lingstica de
algo, mas ao inventiva e realizante do pensamento interrogante. Todo
conceito interroga: ele fora conjugada de tenses instveis no aconteci-
mento do sentido. Nada no conceito suprfluo. Tudo nele sentido-sendo.
O conceito, assim, no se parece com nada: sempre o que nunca est, sen-
do isto ou aquilo. O conceito est sempre na interface, na passagem, no
meio. Ele nunca ou isto ou aquilo. Ele nunca um ente determinado, e
nem muito menos a expresso do ser. O conceito o prprio ser-sendo He-
rclito ou Parmnides, Plato ou Aristteles, Descartes ou Locke, Hume ou
Kant, Hegel ou Marx. Nietzsche ou Deleuze, Husserl ou Heidegger etc. In-
veno humana, o conceito se d como obra.

O ser-sendo do conceito sempre a vida de Herclito, de Parmni-


des, de Kant, de Heidegger. Entretanto, deles s se pode conhecer as obras,
e s atravs delas se pode dizer se so ou no filosficas. Mas as obras so
sempre efeito plasmado de um conceito encarnado como Herclito, Scra-
tes, Marx etc. As obras requisitam leitura. A leitura vivncia. A vivncia
aprendizado de uma determinada forma de aparecer. Vivncia a memria
da obra: leitura viva da no-forma. A obra, portanto, oferece a vivncia do
especificamente filosfico, mas no limita o acontecimento do conceito.
132

O conceito, neste sentido, sempre um destino: vigorosa paixo em


equilbrio esttico, pela dinmica do evento. O conceito como evento
sempre o desconhecido: ele nunca est onde parece ser se impe como
fora concreta. O conceito ultrapassa sempre sua auto-imagem: ele no tem
forma fixa, mas tem aparncia conjugada: articula-se em rede e totaliza pla-
nos. O conceito separa, distingue, examina, clareia, destaca... O conceito
sempre mudo: sua fala sempre vazia de imagens virtuais ou atuais. O con-
ceito jamais se confunde com imagem e imageabilidade. Ele nunca uma
expresso de verdade coincidente, mas apenas condiz com o acontecimento
seu fio condutor, conduz o compreender pensante; ensinante. O con-
ceito sempre fora ativa, nunca passividade perceptiva e imaginante. A
imageabilidade do conceito o seu prprio exerccio, nunca o seu funda-
mento. A imagem apenas a ocasio do conceito, e nunca lhe corresponde,
porque a imagem sempre coisa, e o conceito um ser.

Claro, todo conceito tambm imagem. Entretanto, a imagem em si


no conceito, to pouco ideia. Sendo apenas a ocasio do conceito, a ima-
gem sempre o meio de seu acontecimento: sem isto o sentido no seria
corpreo. Imagem, assim, o conceito em fuga de si mesmo: aparncia. A
aparncia, neste sentido, mais ausncia do que presena: ela adverte a falta
e a procura do que no se tem. A aparncia vizinha do desejo: s o que
desejado aparece, tem aparncia. Ela o negativo da presena em si. O mo-
do como aparece apenas motivo construdo, nunca sua identidade ou es-
sncia transcendente. O aparecer obra j feita passado. O conceito, po-
rm, nunca passado: ele sempre ultrapassa a aparncia, sua forma de obra.
Alcanar o conceito, assim, significa encarn-lo no acontecimento do senti-
do totalizante. Isto, entretanto, no significa nenhuma oposio entre mat-
ria e forma, sensvel e inteligvel, corpo e esprito, porque o conceito, aqui
pensado e dito, no se dissocia nunca de seu acontecimento encarnado: ul-
trapassagem do que simplesmente coisa.

Temos aqui um clssico problema filosfico: o conceito e sua rela-


o com o transcendente. O fato que, em geral, no fomos habituados a
conceber o conceito como abertura para o aberto e engendramento do ser
que , e sim como definio de algo como algo luz da distino de sua
aparncia. O conceito assim concebido torna-se apenas cone ou smbolo
de outra coisa que sempre transcende o seu aparecer, caracterizando muito
mais a aquisio de conhecimentos estruturados do que a investigao radi-
cal do acontecimento do ser-sendo. nesta medida que a clssica proble-
mtica da transcendncia fica confundida com uma simples expresso icni-
133

ca e simblica, o que vela o carter transcendental da transcendncia e faz


transparecer a representao significada. Isto sim se pode chamar propri-
amente de abstrao. Entretanto, o conceito compreendido como abertura
para o aberto e engendramento do ser dimensiona no a abstrao mental,
mas a concretude existencial no acontecimento da diferena ontolgica. O
conceito, neste caso, estado de ser: acontecimento da ultrapassagem no
mbito da diferena entre o que percebe e o simplesmente percebido. Como
pode, ento, o conceito tornar-se mera coisa? Como pode ser ele apenas um
cone do pensamento em si, ou apenas um smbolo do esprito?

O conceito pensado a partir da diferena ontolgica confunde-se


com a prpria atividade filosfica em sua nascente. No se trata de nenhu-
ma verdade dada, mas de uma atividade aberta ao acontecimento do que
como deve ser: destino. Confundir, portanto, o conceito filosfico com me-
ras representaes mentais e culturais dadas e concludas o mesmo que
perder de vista a especificidade do fazer filosfico.

Desde sua origem grega, a Filosofia esteve sempre ligada arte de


pensar. Filosofia era a arte de pensar: um aprender a pensar. Claro, trata-
va-se, tambm, de uma tcnica um especfico fazer e um conseqente
saber fazer. Como saber fazer, a Filosofia se oferecia como mtodo para
o conhecimento das primeiras causas e dos princpios primeiros e ltimos.
Este saber fazer filosfico era uma atividade da atitude de autoconhecimen-
to, e no qualquer atividade. Tratava-se do exerccio de pensar, do aprender
a pensar, ou melhor, aprender a ser. No se tratava, portanto, de um co-
nhecimento dado, mas da sua busca, ou melhor, da efetivao de um conhe-
cimento do que conhece. Qualquer tentativa de definio escolstica sobre o
assunto perda de densidade e vitalidade pensante. No precisamos mais
das definies escolsticas de Filosofia. Elas devem ser abandonadas para
que se possa ainda pensar com vigor e abertura radical para o acontecimento
do ser-sendo. Mais do que uma arquitetura j edificada e concluda, a Filo-
sofia uma disposio imperante. Plato e Aristteles a isto ainda chama-
vam thaumazen o espanto, a admirao, a abertura de compreenso unito-
tal. Infelizmente, uma certa impotncia diante da possibilidade do aconteci-
mento do pensar-ser, induz a conceber o espanto como o que imperava na
origem grega da Filosofia, tendo sido ultrapassado pelo ulterior desenvol-
vimento do pensamento especulativo, que teria deixado de lado definitiva-
mente qualquer procedimento mgico-mstico em nome de uma razo sem-
pre lgica e certa. Ento se ouve dizer: Pensar um ato lgico. Como ato
134

lgico, preciso aprender Lgica para pensar corretamente. Mas, por acaso
a Lgica a cincia filosfica por excelncia?

Recorro a uma provocao pensante de Heidegger. Diz ele: Pensar


preciso, e, em primeiro lugar, aprender a pensar. Aprendemos isso com a
lgica? O que o pensamento tem a ver com a lgica? O que significa
este termo? (1998: 203)

De maneira bastante ostensiva, se diz que a Filosofia uma atividade


eminentemente lgica, e que sua especificidade residiria justamente a
em sua natureza lgico-discursiva. O thaumazen, neste caso, faria apenas
parte de um momento histrico da Filosofia, quando os gregos se espanta-
ram pela primeira vez, no fazendo nenhum sentido no surto moderno da
cincia. Mas, como aceitar isto como algo indiscutvel? Como perder de
vista a dimenso espantosa do pensar do aprender a pensar?

Uma tal dimenso s se perde de vista quando abandonamos a sorte


da Filosofia aos domnios da tcnica da chamada arte da Lgica, isto , do
aprendizado correto do pensar. Entretanto, preciso duvidar deste estado de
coisas com rigor e vigor, pois disto depende o acontecimento de um filoso-
far que no perca de vista a sua especificidade de aprender a pensar, per-
manecendo aberto ao acontecimento imprevisvel e luciferente do ser-sendo.
O espanto diante do acontecimento do que se torna ser ainda o pthos im-
perante da Filosofia, e da que se pode determinar de novo a sua especifi-
cidade atuante. Isto, em outras palavras, dimensiona o sentido da logicidade
do filosofar e de sua especificidade a partir do prprio discurso. Lgos a
palavra-chave deste enigma. Mas, como entendemos este termo? No se
circunscreve sua significao autorizada no que comumente chamamos de
lgica do sentido ou cincia da lgica? Mas, o que isto a Filosofia
como cincia da lgica?

Segundo Heidegger (1998:199-200), com o ttulo de Lgica cos-


tuma-se compreender a doutrina do pensamento correto. Neste sentido,
ainda hoje comum entender-se a ocupao lgica como o aprendizado
correto do pensar. Contudo, um tal aprendizado visto comumente como
disciplina formalmente estabelecida, onde normas e leis j se encontram
dadas e aptas ao movimento de repetio e interiorizao do aprendizado do
correto pensar. Tratar-se-ia de uma tcnica a partir da qual se aprenderia a
pensar sem erro, um mtodo ou doutrina das formas e regras do pensamento
certo. Entretanto, em sentido corretamente compreendido, pensamos logi-
135

camente quando seguimos a lgica inerente coisa e pensamos a partir da


coisa. Neste sentido, nunca aprendemos a pensar corretamente atravs do
simples conhecimento da construo e das regras do pensamento, aprenden-
do-as de cor, segundo se diz, sem que sejamos tocados pela lgica interna
das coisas e sermos por ela conscientemente conduzidos. Com palavras de
Heidegger:

Algum pode dominar inteiramente a lgica sem, no entanto, jamais


produzir um pensamento verdadeiro. Pensamentos verdadeiros so, porm, muito
raros. O homem produz, com freqncia, muitos pensamentos. S que os pensa-
mentos assim produzidos no so os confiveis. Os pensamentos verdadeiros e ra-
ros no surgem do pensamento auto-produzido. Tambm no se encontram nas
coisas, da mesma maneira que uma pedra se encontra no campo, ou uma rede na
gua. Os pensamentos verdadeiros so dis-pensados ao homem, e isso somente
quando ele se encontra na correta com-pensao, ou seja, na prontido exercida pa-
ra o pensamento, que vem ao seu encontro como o a-se-pensar. (1998: 2000)

Aqui nos encontramos diante da ambigidade do termo lgica co-


mo a palavra-chave da especificidade filosfica. De um lado o termo desig-
na a lgica do pensamento e, de outro, a lgica das coisas, isto , de um lado
o teor de regra e da atitude pensante e, de outro, a conjuno das coisas.
De onde, entretanto, provm esta ambigidade? No ela tendenciosa, no
sentido do predomnio da lgica entendida como doutrina das formas e re-
gras do pensamento?

Sigo, ento, algumas pistas de Heidegger, ao considerar essa ambi-


gidade anunciada da lgica. Diz ele (1998: 202):

Pensar corretamente, a partir das coisas, pensar de modo geral


preciso. Sim, sobretudo, aprender a pensar o mais preciso. E tudo isso de manei-
ra alguma para simplesmente evitar erros de pensamento. Pensar preciso para
que se possa corresponder a uma determinao do homem histrico que ainda se
acha inteiramente velada. Talvez tenha mesmo de ser assim. Talvez no futuro um
bom tempo tenha que ser dedicado unicamente a decidir-se, para o homem hist-
rico, continua garantia ou fica recusada a possibilidade de correspondncia e a ca-
pacidade de pensar. O homem histrico significa a humanidade qual foi dis-
pensado um envio de destino como a-se-pensar. E que outro povo, nessa hora do
mundo, poderia receber a ddiva do pensamento para os dias provindouros seno
o povo dos pensadores, sobre o qual um errante apartado chegou a dizer que se
trata do corao sagrado dos povos e que dele advm conselho , em torno do
que do rei e do povo. 12

12
As partes aspadas do texto transcrito so citaes que Heidegger faz de Hlderlin, expresses poticas, portan-
to, apropriadas para marcar a diferena entre a doutrina da lgica e a lgica das coisas.
136

Sim, aprender a pensar a questo imperante da Filosofia. Entretan-


to, um tal aprender no se restringe ao mbito de uma disciplina formal que
daria as regras seguras para o especfico exerccio filosfico. Deste modo, a
concepo da especificidade filosfica como atividade eminentemente l-
gica deve ser colocada em dvida e investigada na sua gnese histrica.
Este ato investigativo nos empenha em uma de-ciso de acolher o ato de
pensar como realizao do ser, e no simplesmente como jogo lgico e
propositivo relativo ao verdadeiro e ao falso. Como realizao do ser,
o pensar nos ata a um destino: o aprender-sendo acontecimento do ser. Este
destino encontra-se aberto ao pensar como o que h a-se-pensar.

O campo especfico da Filosofia, ento, no se delimita pela lgica


compreendida como doutrina do correto pensar, e sim pela efetiva corres-
pondncia ao apelo imperante do pensar que descortina mundo, coisas e
Terra como um sinal do verdadeiro. Entretanto, esta compreenso de espe-
cificidade do ato filosfico no encontra fcil acolhida no meio dos que se
ocupam de cultura filosfica, sobretudo porque imprime ao filosofar uma
outra possibilidade ainda no tentada, apesar de inspirar-se no mais antigo
pensamento que aparece sob a luz dos pensadores originrios da Grcia ar-
caica. Trata-se da realizao de um pensamento descortinador do evento da
diferena ontolgica, a partir do qual desenvolve-se a Filosofia como cor-
respondncia ao apelo imperante do ser-sendo, tornando-se o lugar dia-
lgico do especificamente verdadeiro.

Ora, nada disso imediatamente claro e indiscutivelmente certo. A


especificidade da Filosofia no se deixa enredar no j estabelecido como
sistema da cincia do conhecimento verdadeiro. aqui que mora o perigo
do filosofar: sua inalienvel desterritorializao do que se considera j esta-
belecido. Assim, muito mais do que o conforto de uma certeza lgica, a
Filosofia o lugar da realizao da verdade como advento, o que impossibi-
lita qualquer sistema de cincia poder abarcar o efetivamente verdadeiro,
pois este ato vivo do ser-sendo, e nunca uma mera representao formal
dos dispositivos permanentes do ser. Afinal, o ser justo o que no uma
mera coisa. porque no mera coisa que o ser no pode nunca se iden-
tificar com o ente simplesmente dado, o imediatamente mo. este abis-
mo do pensar que cabe ainda pensar como especificidade da Filosofia. Isto
implica em aprender a pensar. Nada, porm, garante acesso seguro a este
aprender. Talvez, seguindo pistas de Heidegger, a questo seja ainda mais
primria: Talvez precisemos primeiro aprender a aprender, e aprender a
137

poder aprender. Mais ainda: Talvez precisemos primeiro estar prontos


para aprender a aprender (1998: 202). Mas, o que significa este ato
aprender?

Para Heidegger, uma s palavra no capaz de responder a essa


questo, e no mximo o que se pode fazer esclarecer:

... Aprender apropriar-se com saber de algo a partir de uma indicao e


assinalamento, a fim de presentear esse algo como propriedade do saber, sem per-
d-lo ou empobrec-lo. Aprender diz respeito a um tornar prprio mediante o sa-
ber, uma propriedade do saber que no nos pertence, mas qual ns pertencemos.
Precisamos primeiro aprender a aprender. Tudo deve ser muito primrio, muito
cheio de espera, muito lento, para que, enquanto nico envio de destino, o verda-
deiro possa vir verdadeiramente ao nosso encontro e ao encontro de nossos suce-
dneos, sem que seja preciso calcular quando, onde e em que fisionomia isso ocor-
rer com propriedade. Deve surgir uma gerao de lentos, para que a pressa exa-
gerada da vontade de produo e a corrida das prestaes e compromissos, para
que a cobia de informaes imediatas e solues baratas no nos precipitem num
vazio ou nos desviem para a fuga, em opinies e crenas apenas derivadas, que
nunca podem constituir origem, unicamente subterfgio. (1998: 203)

Como se v, aqui no h meio termo para o sentido originrio do


aprender. E isto o mais difcil de aceitar: a especificidade da Filosofia no
se encontra fora do acontecimento do pensar-ser, e s ocorre como aconte-
cimento da diferena ontolgica, no ato mesmo do seu advento pensante.
Sem o nexo da diferena entre o ser e o ente o pensar seria uma mera ex-
presso do capricho humano, e no haveria caminho possvel para o advento
do aprender a aprender como realizao do que h a-se-pensar. Isto indica
encontro e acontecimento, o que bem diferente de algo que pretende ser o
mapa completo do conhecer possvel ao homem consciente de si. No a-
prender a aprender, portanto, no ocorre uma assimilao de preceitos j
codificados pela lgica formalmente concebida, porque o prprio ato de
pensar este aprender que se aprende com as coisas mesmas, segundo sua
prpria possibilidade e abertura.

Se, entretanto, no a lgica que garante a especificidade da Filo-


sofia, isto apenas significa uma distncia da ideia de sistema e de acabamen-
to que a palavra comumente carrega. Contudo, h lgica na atividade filos-
fica, e a palavra pode ser resignificada na sua valncia originria. Trata-se,
evidentemente, da palavra Lgos. por meio dela que se pode realizar uma
descrio hermenutica da relao da atividade filosfica com a o discurso
138

lgico. S assim a palavra lgica pode ser reassumida como ponto focal da
atividade filosfica. Mas isto no uma tarefa fcil de ser realizada.

O que quero dizer bastante simples e lento. A atividade filosfica


no pode ser ensinada, apenas aprendida. O seu aprendizado requer o saber
aprender. Em primeiro lugar, saber aprender a aprender. A dimenso lgi-
ca do filosofar, ento, no consiste em sistemas determinados pelo engenho
humano para favorecer a obteno de conhecimentos, porque ela o pensar
mesmo no seu acontecimento pensante. Este o problema: o pensar mesmo.
ele que a incgnita. Defini-lo j pressupe um devir filosfico: um des-
tino encarnado. O pensar mesmo nunca se encontra em nenhum ente deter-
minado, apesar de poder manter relao com qualquer coisa ou ente deter-
minado. O pensar mesmo sempre se distingue do meramente formal e do
imediatamente material. O formal e o material so planos do acontecimento
do sentido-pensado, e no sua essncia. Claro, sem matria e forma o pen-
samento no consistiria. Entretanto, o pensar mesmo transcende estas trans-
cendncias dadas, porque imanncia absoluta. como imanente absoluto
que o pensar pode ser dito transcendente. Ele transcendente na medida em
que no coisa, ente, isto ou aquilo, mas o traspassamento do sentido-
sendo: o da coisa unidade sem partes.

A lgica do pensar mesmo sempre surpreende, pois nunca est


onde a colocam como sendo isto ou aquilo. Tal lgica s se aprende no pen-
sar mesmo. Assim, no h uma lgica a ser aprendida como mtodo forma-
lizado, e sim apenas o exerccio do pensar. A lgica que se pode aprender
sempre acontecimento des-velante, nunca isto ou aquilo, esta ou aquela
tcnica. Afinal, com as tcnicas lgicas disponveis o que se pode aprende
a forma prpria de domnio da vontade de conhecimento, mas isto nada
tem a ver com o pensar mesmo. Imaginar que atravs do pensar se alcana o
conhecimento dos meios de produo e manipulao do homem e da nature-
za o mesmo que negar ao pensar o seu especfico ofcio: o evento do pr-
prio aprender a aprender como acontecimento nico e germinante.

Ora, tudo isso continua, sem dvida, muito vago e impreciso. O que
dissemos nada esclarece, apenas pe o pensar mesmo em uma perspectiva
enviesada e provocante, mantendo-o protegido de sua consumao precoce.
Para aprender a aprender preciso por primeiro saber escutar o que diz o
Lgos. Em que sentido, porm, se coloca este saber escutar o Lgos? O
que quer dizer Lgos? Em primeiro lugar, com estas perguntas no se pode
chegar a nada de certo, posto ser a prpria palavra obscura em sua origem, e
139

s por meio de interpretaes j consagradas e gastas se considera vlido o


acesso sua significao. Pretender, portanto, dizer algo de certo sobre a
essncia da palavra Lgos , sem dvida, um ato improvvel e desnecess-
rio. O nico caminho possvel e vlido a escuta do pensar mesmo.

pensado o que diz Lgos que seguimos escutando-o. E o escuta-


mos atravs dele mesmo, enquanto o interrogamos. Isto quer dizer: pensa-
mos o lgos como o prprio pensar interrogante. Lgos, ento, j no uma
palavra que significa algo apenas prprio aos pensadores originrios gregos,
mas se descortina como o que h a-se-pensar. Neste sentido, aqui no inte-
ressa seguir os files lingsticos prprios ao uso histrico e contextualizado
da palavra, nas apenas fazer com que ela nos fale em sua propriedade ainda
impensada. Como isto, porm, possvel sem que se transforme em um
artifcio lgico e em maquinaria mental artificiosa? possvel ouvir o
Lgos em sua origem advencial desconhecida? De qualquer modo, isto
que aqui se tenta: ouvir o que diz o Lgos a partir dele mesmo. Mas, como
isto feito? Simplesmente interpelando o pensamento acerca do que ainda
obscuro como pensar mesmo, isto , escutando o que diz de si o pensar.
Neste sentido, no pensamos o pensamento, mas somos por ele pensados.
Escutar o lgos, ento, a audio do pensamento que se apossa de nossa
querncia e se faz o impensado. O que o lgos diz sempre o mesmo na
singularidade do impensado. O lgos, agora, tornou-se o mbito do surgi-
mento da diferena ontolgica: encontro do ente no ser. As palavras se tor-
nam aqui armadilhas e empecilhos: lgos a medida de cada acontecer des-
tinal. O sentido do ser torna-se, assim, o aperon inominvel, e o seu sem-
sentido a absoluta ateno ao evento: o que se faz palavra e gesto, durao e
memria no instante gerativo do que eclode e se destina. A que se destina?
Destina-se a ser sempre instante motivo e esquecimento. Destina-se ao e-
vento do ser-sendo. Para onde vai, entretanto, esta figura etrea que se afi-
gura como ser-sendo? Ela nunca vai para lugar algum, porque sempre o
seu prprio lugar. O que j o lugar, para onde pode ir? Por acaso se vai
para outro lugar quando se muda de lugar, ou a mudana de lugar apenas
passagem do mesmo de lugar a lugar?

Esse modo de colocar a questo filosfica mesmo inquietante. L-


gos no diz seno o pensar mesmo o impensado. Razo, discurso, lin-
guagem, lgica so palavras que se apresentam como autnticas represen-
tantes da pregnncia semntica e da polifonia e polissemia da palavra Lgos.
Sem dvida, ela uma dessas palavras que parecem fazer nascer o mundo
como de uma torrente inesgotvel. Entretanto, nada disso pode abarcar o
140

que diz o Lgos. Nem razo, nem discurso e nem linguagem so suficientes
para traduzir o que diz o Lgos. E o que diz o Lgos? O indizvel? Como
pode o que diz ser indizvel?

Aqui no tratamos de significar o lgos, apenas de diz-lo. Lgos


nada significa porque o lugar do acontecimento nico de tudo: tudo um.
O lgos no , em sua nascente, nem discurso, nem razo, nem linguagem.
Lgos a passagem do que , o ser, na amplitude de sua ocluso. Lgos,
assim, no apenas o lugar da reminiscncia e da memria, mas tambm do
esquecimento e da ocluso. A perplexidade sempre o seu horizonte, mes-
mo na decadncia mais inimaginvel da histria humana. Perplexo ficava
Herclito diante do que nunca tem ocaso. Perplexo tambm ficava Herclito
diante da ignomnia dos homens, pois no sabiam auscultar o que diz o L-
gos. Perplexos ficamos diante da grandeza do universo que se descortina
diante de ns, em sua multivalncia cada vez mais extraordinria. Perplexos
tambm ficamos diante da vileza humana e da insensatez, miserabilidade,
estupidez e dessacralizao de tudo. a situao humana que causa espanto
diante da possibilidade do tudo um e do desperdcio. o cosmo em suas
redes invisveis e sempre mais concretas que provoca o estupor da compre-
enso silente de tudo, pela via do esquecimento que provm de sua fonte
jorrante. O esquecimento, entretanto, no o foco de negatividade do L-
gos, mas seu velamento protetor a garantia de sua irrepetvel gnese.
Ouvir o Lgos, ento, significa o ultrapassamento do sem-sentido no adven-
to conjunto do ser e do ente. Lgos, assim, o lugar do encontro da dife-
rena ontolgica entre ser e ente, o mbito da clareira e de seu velamento
protetor clareira como o que h a-se-pensar e velamento como o que
protege da indiferena e da estupidez do sem-sentido.

Esse modo de dizer mesmo inquietante. Foi dito: o Lgos o mbi-


to da clareira e do velamento protetor, simultaneamente. Clareira (Lichtung)
a palavra que Heidegger usa para indicar a essncia impensada da Physis.
Como diz: No sentido de abrigar abrindo e clareando, a clareira a essn-
cia originria que se vela na Alethia (1998: 32). Pode-se, assim, dizer que
clareira o nome apropriado para indicar o encobrimento essencial do a-
se-pensar (ser). Lgos, portanto, antes de ser o lugar do discurso racional e
do discernimento sistemtico e metdico, o mbito protetor da clareira,
enquanto o a-se-pensar. Entretanto, como sustentar uma tamanha compreen-
so do pensar mesmo diante do atual momento histrico da Filosofia, que se
apresenta como o lugar da hiper-crtica e do mais estpido modismo intelec-
tual?
141

Ouvindo Heidegger, que logicamente no o Lgos, mas fala em sua


proximidade, encontro motivo e acolhida para seguir adiante nesta senda
indagante. O Lgos, ento, se torna proximidade e encontro da diferena
ontolgica ainda impensada, e abre a clareira do pensar em sua advenincia
impensada. Sibilinidade? isto o que aqui proponho como pensar mesmo?
No isto, ento, facilmente tachado de obscurantismo crasso e imperdo-
vel presuno sapiencial? Como, ento, pensar filosoficamente fora da l-
gica ou do pensar correto? No esta a marca nefasta da metafsica oci-
dental: pretender pensar o impensvel e nominar o inominvel?

Diante desse jogo de remisses e de imprecises conceituais, qual


mesmo a especificidade da Filosofia? O que tem a ver a Filosofia com o
Lgos pensado como o mbito do encontro e conjuno da diferena onto-
lgica? E como pode esta diferena iluminar diversamente o sentido da
Filosofia e de uma conseqente pedagogia da diferena? Tais questes,
agora, ocupam o lugar de fechas mortais, e no deixam espao para acomo-
daes j pensadas acerca do sentido a-se-pensar. como a-se-pensar que o
Lgos se descortina em sua advenincia. S o impensado pode propriamente
arquear-se e lanar-se como o que dele se pode escutar na sua germinncia.
Herclito fala dessa escuta de maneira surpreendentemente obscura. Numa
traduo do fragmento 50, podemos ouvir: Se no ouvirem simplesmente a
mim mas se tiverem auscultado (obedecendo-lhe, na obedincia) o lgos,
ento um saber (que consiste em) dizer igual o que diz o lgos: tudo um
(Heidegger, 1998: 256).

Nada de imediatamente claro se encontra neste dizer. Pelo contrrio,


trata-se justamente do que no se pode dizer sem que se perca sua advenin-
cia. Ento, como ouvir o que diz o Lgos a partir de quem o nomeou? De
qualquer modo, Herclito fala de escuta, de algo passvel de escuta, por-
tanto de discurso e voz. Escutar sempre a recepo de uma voz que um
discorrer. Mas que voz esta que se pode escutar como Lgos? De que
provenincia esta escuta e esta voz? escuta ainda mntica e potica?
Ou apenas escuta? Escuta de que? Voz de quem?

Se Lgos a palavra da qual deriva lgica, e se lgica a pala-


vra de ordem da Filosofia instituda historicamente deste Scrates, convm
ouvir o que pode ainda dizer o Lgos. Como, ento, auscult-lo em seu a-
contecimento nico? Inevitavelmente, atravs do discurso e da voz. Mas de
qual discurso e de que voz se fala? Por acaso este discurso e esta voz que
142

dele aparece, Lgos? Lgos qualquer discurso e qualquer voz? E se no


qualquer discurso e qualquer voz, o que diz o Lgos como discurso e voz?

Referncias:

ARISTTELES. Metafsica. Traduo: Leonel Vallandro. Porto Alegre,


RS: Editora Globo, 1969, 311p.

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Flix. O que a Filosofia? Traduo:


Bento Prado Jr. E Alberto Alonso Muoz. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora 34,
2000, 288p.
HEIDEGGER, Martin. Herclito. A origem do pensamento ocidental
Lgica. A doutrina heracltica do lgos. Traduo: Mrcia S Cavalcante
Schuback. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1998, 415 p.
143

11
RESSIGNIFICAO DOS CONCEITOS DE CI-
NCIA E EPISTEMOLOGIA VISANDO-SE A
FORMAO DE UMA EPISTEMOLOGIA DO
EDUCAR POLILGICA NO-VERDADEIRA

Descrio semntica da epistemologia

O termo epistemologia entrou em uso muito recentemente no rol


dos saberes acadmicos. Hoje ele usado largamente em qualquer rea do co-
nhecimento, apesar da grande ambigidade e polissemia do mesmo. De forma
imediata, basta focar o olhar nas definies dos mltiplos programas de ps-
graduao existentes. Todas as reas do conhecimento, hoje, postulam um
patamar epistemolgico autojustificvel, apesar do inevitvel trnsito entre os
diversos saberes autorizados (consolidados historicamente), o que vem confi-
gurando uma era que podemos chamar de absolutamente hbrida, ou melhor,
interdependente, multvoca e indeterminada (aberta e sujeita a casos e ocorrn-
cias especficas, configuradas por feixes de foras pulsivas, cristalizada em re-
des e regimes morais).

Segundo Canguilhem (apud Carrilho, 1991), o termo epistemologia


foi originalmente proposto em lngua inglesa (epistemology), em 1954, sendo
usado em oposio ontology (ontologia), ou seja, significando a teoria do
conhecimento em oposio metafsica clssica como teoria do ser. En-
tretanto, h registros de seu aparecimento em lngua francesa desde 1901,
quando da traduo do livro de Bertrand Russell Ensaio sobre os fundamen-
tos da Geometria (1894). A o termo epistemologie significa uma filosofia
da cincia, entenda-se, dos fundamentos da cincia. Em ingls, o que em
francs epistemologie se diz philosophy of science.

Esse sentido ambguo do termo epistemologia permite falar de dois


usos predominantes: um continental e outro anglo-saxnico. O dado que
tanto o alemo como o italiano, usam o termo segundo os franceses, o que
caracteriza um uso continental. Epistemologia, portanto, para a cultura con-
tinental o mesmo que filosofia da cincia e para a cultura anglo-saxnica o
mesmo que teoria do conhecimento.
144

Se usarmos a expresso epistemologia, em sentido continental, esta-


remos nos referindo ao discurso de constituio da cincia positiva, ramificado
para as cincias particulares, segundo os seus mtodos e determinaes postu-
lativas, factuais e possveis. J se usarmos o termo no sentido anglo-saxnico
estaremos falando de teoria do conhecimento (gnoseologia), o que se carac-
teriza pela pretenso de um meta-discurso regulador hegemnico, no sentido
de uma teoria geral do conhecimento, teoria esta delineada pela anlise lgica
das proposies e por um tcito e explcito combate ontologia ou metafsica.

De qualquer modo, o uso do termo epistemologia continua ambguo,


sendo necessrio sempre contextualizar o seu sentido, segundo o regime de
crenas de uma dada comunidade de interesses. E como o discurso epistemo-
lgico se tornou ostensivo em todos os campos da produo do conhecimen-
to, convm distinguir e separar, unir e conjugar diferenas discretas, para da
configurar um sentido prprio e apropriado para o mesmo, na medida em que
se possa at mesmo deix-lo de lado, ou apresentar motivos que o destituam da
sua posio hegemnica, sobretudo no mbito das cincias do esprito.
De modo geral, quando algum se prope a discorrer sobre epistemo-
logia no pode prescindir de um mapeamento prvio dos territrios da cincia,
num esforo preliminar de inventariar o que se apresenta como exerccio exato
e rigoroso da racionalidade sistemtica. Isto requer uma investigao sobre a
histria da cincia e sobre os modos de justificao e operao que caracteri-
zam a atividade epistmica, isto , a atividade cientfica. Ora, mas o que cin-
cia?

Analise preliminar dos termos que compem a palavra epistemo-


logia: epistme + lgos

Antes de tratarmos diretamente de uma arqueologia do conceito de cin-


cia e da cincia em seus regimes acionais, procuraremos abordar uma genealo-
gia da palavra epistemologia. Etimologicamente, epistemologia formada
por dois vocbulos gregos: epistme + lgos. Analisaremos cada um deles separa-
damente, para depois uni-los. O primeiro da mesma famlia do verbo epista-
mai, significando saber, ser capaz de, ser competente no fazer algo, ser versa-
do em. Este saber, este ser capaz de e competente para, indica uma empera,
isto , uma experincia unida tcnica (techn), configurando-se como cincia
de, maestria em. De qualquer modo, mesmo na sua forma mais original,
epistamai significava cincia de, cincia prtica, resultado da experincia e da
tcnica. Nesta medida, todas as atividades humanas que envolvem habilidades
e maestria so compreendidas como cincias prticas, o que requer aprendiza-
145

do do fazer prprio a cada caso. O padeiro possui a cincia do fazer po; o


timoneiro a cincia da conduo; o pastor a cincia do pastoreio etc.

Portanto, o padeiro possui um saber sobre o po, assim como cada ar-
teso sobre sua arte, e cada habilidade lida como aquisio de um saber que
um fazer prprio: um saber fazer isto ou aquilo com maestria. Aqui a cincia
ainda no uma teorizao pura, mas apenas uma atividade que por si mesma
reflexiva. Aqui a cincia uma atividade de produo de um bem utilitrio,
um servio social. E como servio utilitrio que a cincia querer um aprendi-
zado: ningum nasce sabendo fazer po, mas apenas com a possibilidade de
saber fazer isto ou aquilo. Este saber fazer algo como algo s sobrevive pela
transmisso de sua cincia a outros que a tomem como tarefa e se tornem seus
mestres.
Mesmo pertencente famlia do verbo epistamai, com toda a pregnncia
semntica assinalada, epistme uma palavra especfica do vocabulrio dos fil-
sofos a partir de Scrates. De qualquer modo, mesmo entre os filsofos ela
continuar referindo-se a uma atividade competente, s que agora esta ativida-
de tornar-se- teortica e no mais prtica. Trata-se, finalmente, da cincia
compreendida como intuio intelectual, como atividade ideacional. Entre-
tanto, o que isto intuio intelectual, atividade ideacional?

O conceito de cincia, como hoje usado por nossa civilizao, tem sua
gnese epistmica entre os primeiros filsofos gregos. Aquilo que por eles foi
estabelecido permanece sendo uma referncia imprescindvel para uma investi-
gao compreensiva do conceito (ou conceitos) de cincia em vigncia. Veja-
mos porque. A atividade da cincia, mesmo se necessariamente emprica, per-
manece sendo uma competncia intelectual. intelectualmente que a cincia
se constitui como atividade prtica, porque seus operadores so grandezas ide-
ais: nmeros, conceitos, equaes, escalas, definies etc. Sem a atividade inte-
lectual a cincia seria vazia: faltar-lhe-ia o meio computacional, o crebro hu-
mano. Este dado, apesar de bvio, precioso para a compreenso da atividade
cientfica. A cincia, ento, uma atividade intelectual, requerendo para o seu
exerccio competncia cognitiva de alcance abstrato e conceitual. Seja ele qual
for, o exerccio cientfico requer o aprendizado de medidas e propriedades das
grandezas discretas. Ora, justamente este o objeto da matemtica. Mas, o
que tem a ver matemtica com cincia (epistme)?

De algum modo, desde a sua origem filosfica, o que se entende por


epistme como competncia terica se confunde com o que os gregos deno-
minavam mathematik, que tambm subentende techn. Trata-se da cincia ma-
146

temtica, ou seja, o feminino de mathematiks, quer dizer, o possuidor do co-


nhecimento de ensinar medidas e propriedades dos entes naturais aos huma-
nos. Essa operao de transmisso de medidas e grandezas discretas mthema
atos, ensinamento, por sua vez derivado de mathno, eu ensino. A nfa-
se aqui dada ao ato de ensinar na primeira pessoa delimita uma competncia
prpria do pensador.

Na cultura grega, os pensadores originrios foram portadores de um


saber matemtico que se constituiu a partir da cidade de Mileto. O foco inicial,
portanto, a sia Menor, onde as novas colnias gregas a instaladas depara-
ram-se com culturas tradicionais territorializadas, possuidoras de um saber
matemtico j praticado institucionalmente. Em Mileto teria nascido Tales
(provavelmente no final do sculo VII a . C., tendo l vivido at meados do
sculo VI a. C.). Ele tido como o fundador da escola de Mileto (milesiana), e
teve como seus sucessores Anaximandro (cerca de 610-547 a. C.) e Anaxme-
nes (cerca de 585-528 a. C.). Tales era considerado um grande matemtico
pelos seus contemporneos, e a ele se atribui uma articulao poltica de alta
engenharia: teria ele planejado e armado uma trama confederativa entre as ci-
dades-Estados da sia Menor, na tentativa de uni-las contra o avano das inva-
ses de povos orientais. Com isso ele fortalecia uma unidade identitria para o
mundo helnico, em uma poca de extrema barbrie, em um ambiente cultural
profundamente mtico-religioso.

Eis aqui o sentido de ser mathematiks para Tales, isto , ensinar o povo he-
lnico uma nova concepo de mundo, cujo smbolo maior condensava-se no conceito
de princpio, isto , da arkh compreendida como aquilo de onde algo sur-
ge (Heidegger, 1979: 21). A arkh articula-se em uma compreenso cosmol-
gica nova, cujo foco de interesse transfere-se da ambincia antropomrfica do
mito para a constituio de uma compreenso cosmolgica fundada na abertu-
ra para a Physis. O princpio Arch. Como princpio, a arkh no deixada
para trs no momento em que acontece. Pelo contrrio, como princpio a arkh
aquilo que impera, ou melhor, aquilo que, estando na origem, vigora. Aqui
aparece a ideia de uma unidade tipo (arch) para toda a Physis. E este aparecer
resultado de operaes matemticas bem delineadas e sucedidas, inevitavel-
mente sedimentadas. Em Tales teria ocorrido pela primeira vez uma mudana
de atitude diante dos acontecimentos do sentido. Ele expressou esta mudana
afirmando a gua como a arkh de todas as coisas.

Diante desta aparente ingenuidade de achar que em tudo h gua, algo


absolutamente novo acontece: a investigao do princpio das coisas a partir da
empera Apesar de tudo, Tales muito mais conhecido na perspectiva da do-
147

mstica da Trcia fato recontado por Plato no dilogo Teeteto , que tro-
ou dele quando, caminhando, caiu em um buraco. Ao que ela retrucou:
Que homem s tu que pes todo entusiasmo nas coisas que se passam no cu e
no prestas ateno s coisas que tens diante de ti e debaixo dos olhos? Tales
ensinava matemtica. Claro, trata-se apenas de uma interpretao. Entretan-
to, de algum modo isto indica uma diferena radical entre um indivduo que
desenvolveu habilidades cognitivas relativas ao clculo e medida e um indiv-
duo que no passou por esse aprendizado: que no formatou o seu crebro
para poder observar estrelas e encontrar nisso um sentido altamente implicado
e apaixonante.

Ao longo da Histria da Filosofia, pelo menos at o sculo XIX, os


pensadores originrios foram tratados como infantes da filosofia e da cincia:
os primeiros a balbuciarem conceitos e desenvolverem investigaes fantasio-
sas sobre o Ente em sua totalidade. Inegavelmente, foi graas a Hegel que os
primeiros pensadores ganharam ateno historiogrfica na investigao das
origens da filosofia e do filosofar no Ocidente. Mas, s atravs de Nietzsche
que os mesmos aparecem fora de uma leitura dialtica e evolutiva dos estgios
de desenvolvimento da especulao filosfica, e ganham luzes insuspeitadas e
uma nfase compreensiva nova.

Para se ter uma ideia mais precisa da diferena de interpretao entre


Hegel e Nietzsche acerca do pensamento originrio, evoco aqui palavras de
ambos sobre Tales.

Para Hegel Tales o primeiro filsofo da histria em virtude de mani-


festar o conceito de unidade de todas as coisas, a partir do elemento gua. Diz
ele em suas Prelees sobre a Histria da Filosofia (1979: 9):

A proposio de Tales de que a gua o absoluto ou, como diziam


os antigos, o princpio, filosfica: com ele, a Filosofia comea, porque atra-
vs dela chega conscincia de que o um a essncia, o verdadeiro, o nico
que em si e para si. Comea aqui um distanciar-se daquilo que nossa per-
cepo sensvel; um afastar-se deste ente imediato um recuar diante dele.

Segundo Hegel, com Tales comea a aquietao da imaginao selva-


gem, infinitamente colorida de Homero; comea a dissociao de uma infini-
dade de princpios, isto , a representao de que um objeto singular algo
que verdadeiramente subsiste para si, como fora autnoma e acima das outras;
comea a afirmao de que h apenas uma lei universal, um universal ser em si
e para si, a intuio simples e sem fantasia, o pensamento de que apenas um
148

. Entretanto, para Hegel isto apenas o incio de um longo movimento para


o alcance definitivo do esprito absoluto. Neste sentido, Tales teria identificado
o princpio com um elemento fsico, emprico, e no ainda com um conceito
puro autoconsciente.

Contudo, a afirmao da existncia de uma nica lei universal, identifi-


cada no elemento gua, atesta o aparecimento de uma nova compreenso do
mundo, que agora desloca a ateno do singular para o universal, do mltiplo
para o uno. Como diz Hegel, a separao entre o absoluto e o finito a en-
frentada. Entretanto, no se trata de uma separao que dicotomiza o um e o
finito, como se tratasse da existncia de dois mundos separados: o um estaria,
por conseguinte, sempre alm do mltiplo, e este no passaria de uma plida
sombra do mesmo. Pelo contrrio, segundo Hegel o ponto de vista filosfico
que somente o uma a realidade verdadeiramente efetiva (1978: 90). Isto
significa, em outras palavras, uma superao dialtica do estgio inconsciente
do esprito absoluto. Portanto, significa uma mudana de estado compreensi-
vo, onde o verdadeiramente efetivo o um, isto , o mltiplo e singular estado
de coisas subsumido na conscincia efetiva de que tudo um. Ora, aqui no
h mais luta de opostos, mas superao da falsa viso de mundo centrada em
deuses concebidos a imagem e semelhana dos homens, com a diferena da
condio mortal destes.

Entretanto, o carter filosfico que Hegel reconhece em Tales perma-


nece associado ideia de uma dialtica perene do esprito absoluto, o que acaba
subsumindo todas as etapas anteriores do esprito na histria humana: a idade
mtica teria sido superada pela idade filosfica, e esta pela idade da cincia do
absoluto autoconsciente. Neste sentido, na viso de Hegel, Tales teria sido o
primeiro a dar incio passagem de um estgio consciente para um outro auto-
consciente, permanecendo, entretanto, ele mesmo apenas no princpio. Deste
modo, Hegel aponta a falha de Tales na identificao de um princpio universal
a partir de um elemento singular, a gua. Diz ele:

Aqui est a falha: aquilo que deve ser verdadeiro princpio no precisa ter
uma forma unilateral e singular, mas a diferena mesma deve ser de natureza
universal. A forma deve ser totalidade da forma: isto a atividade e a auto-
conscincia mais alta do princpio espiritual, que a forma se tenha elevado pe-
lo esforo para a forma absoluta o princpio do espiritual. (1978: 10)

Hegel aqui assinala para a atividade e a autoconscincia do princpio


espiritual mais elevado: a forma como totalidade da forma. As implicaes
desta forma de compreender as coisas so densas e problemticas. Simples-
149

mente, para ele o estgio da autoconscincia, como alcance da forma absoluta


do princpio espiritual, s teria ocorrido a partir do seu esforo para a forma
absoluta. este modo de subsumir o passado que diferente na interpreta-
o de Nietzsche sobre os primeiros pensadores (filsofos).

Vejamos, ento, de que modo Nietzsche abre uma outra perspectiva de


compreenso do pensamento originrio. Segundo afirma, em um dos seus
ensaios sobre os pr-socrticos, a filosofia grega parece comear com uma
ideia absurda, expressa na proposio de Tales: a gua a origem e a matriz de
todas as coisas. Nietzsche considera que esta afirmao, aparentemente simpl-
ria, merece ateno por trs razes:

... em primeiro lugar porque essa proposio enuncia algo sobre a origem
das coisas; em segundo lugar, porque o faz sem imagem e fabulao; e en-
fim, em terceiro lugar, porque nela, embora apenas em estado de crislida,
est contido o pensamento: Tudo um. A razo citada em primeiro lugar
deixa Tales ainda em comunidade com os religiosos e supersticiosos, a se-
gunda o tira dessa sociedade e no-lo mostra como investigador da natureza,
mas, em virtude da terceira, Tales se torna o primeiro filsofo grego. Se
tivesse dito: Da gua provm a terra, teramos apenas uma hiptese cient-
fica, falsa, mas dificilmente refutvel. Mas ele foi alm do cientfico. [...] (p.
10)

At aqui at parece que ele est dizendo a mesma coisa que Hegel. En-
tretanto, h uma abissal diferena entre um e outro. Para Nietzsche no h
nada a ser superado na advenincia do tempo. Pelo contrrio, ele acolhe do
pensamento originrio algo de insupervel no tempo do acontecimento: o salto
totalidade do ente, enquanto , fora do tempo linear e progressivo da razo.

Isso tudo bastante lgico, mas no necessariamente uma verdade


coincidente, porque o que aqui fazemos uma aproximao arqueo-
genealgica do conceito de cincia no Ocidente, numa tentativa de descobrir-
inventar novas perspectivas de compreenso e de autojustificao para o que
temos em mira com este estudo: o delineamento de uma epistemologia do e-
ducar, epistemologia radicalmente resignificada e redescrita em suas possibili-
dades e processualidades uma epistemologia alm da epistemologia.

Agora re-pergunto: Em que medida procede a afirmao de que a


cincia , antes de tudo, uma atividade matemtica? O carter de medio e
definio de grandezas discretas prprio da atividade matemtica parece ser
150

inerente a uma atividade cerebral altamente especializada. Este fato deve ter
demorado muito tempo para acontecer na espcie humana. Tudo indica que,
de algum modo, a cultura grega da sia Menor acolheu uma poca em que se
fez presente uma espcie de exploso neural, ocorrida em alguns indivduos
os pensadores originrios. Isto abre novos horizontes, perspectivas e possibi-
lidades para o desenvolvimento da espcie humana. De certo modo, lembran-
do Heidegger, isto est na certido de nascimento do curso historial do Oci-
dente.

Provavelmente, o surgimento dessa cincia matemtica, ou melhor,


dessa sapincia, um acontecimento nico na histria do universo, e aquilo
que por ela se divulga permite a laicizao e o manuseio do clculo e da medi-
da. Bastaria, ento, ter presente uma reduzida definio de cincia como toda
atividade de clculo e de medida capaz de formar acontecimentos seqenciados e autojustifica-
dos. Este tipo de definio se apresenta destituda de polarizao: no nem
boa nem m, nem verdadeira e nem falsa. Como definio, trata-se apenas de
uma abertura de novas possibilidades. Entretanto, ela se presta para mltiplos
usos, inclusive aquele das aes humanas consideradas malficas. Ningum
pode negar, por exemplo, a capacidade de clculo e medida de grupos de or-
ganizao criminosa, como mfias e cartis do trfego de drogas, ou certos
servios secretos de naes hegemnicas. Tudo isso cabe no conceito de cin-
cia, porque antes dela ser isto ou aquilo, a matemtica ou a geometria, a rob-
tica ou a filosofia, ela uma atividade cerebral altamente complexa e especiali-
zada, independentemente do formato acadmico e erudito como se apresenta o
que se pretende que seja a chamada cincia dura.

Essa passagem quer apenas justificar a matemtica como pano de fun-


do de toda atividade cientfica, isto , a capacidade de calcular e medir as gran-
dezas discretas em qualquer dos contextos possveis prprio do desenvolvi-
mento da inteligncia abstrata, o que permite redefinir o conceito moderno e
hegemnico de cincia como sendo apenas um caso histrico do que prprio
ao ser humano como espcie, caso ramificado em mltiplos eventos movidos
pelo mesmo impulso de vontade de conhecimento, e marcado por formas
de desenvolvimento cognitivo que privilegiam habilidades de manipulao e
resoluo de artimanhas utilitrias, mesmo dentro do mais extremado utilita-
rismo esttico-virtual. O sujeito, ento, se forma publicitrio para poder enga-
nar os outros com tanta habilidade quanto os grandes nomes da publicidade.
Isto tambm cabe no conceito de cincia. Cabe tambm a estranheza dos
grandes cientistas e pensadores, que sempre do a impresso de que existe uma
humanidade muito mais elevada do que aquela experimentada pelos comuns
mortais no dia-a-dia.
151

Inicialmente, o saber matemtico se desenvolve na Grcia em duas


grandes escolas. A primeira a escola de Mileto j mencionada. Falemos, ago-
ra, um pouco da escola Pitagrica, a segunda. Ela confunde-se com a figura
legendria de Pitgoras de Samos, ilha do Mar Egeu na sia Menor, e liga-se ao
orfismo e a uma transformao radical do mesmo. Diz-se que Pitgoras substi-
tuiu o culto ao deus Dioniso pelo culto matemtica, inaugurando uma inves-
tigao da Physis pautada nos nmeros inteiros. A ideia de unidade chama-se
nmero para os pitagricos, sendo a realidade representada segundo uma sim-
blica numrica dual e decnica. Ao um se contrape o dois, ao trs o quatro e
assim sucessivamente. Neste sentido, nmero medida de todas as coisas, con-
figurando pares de opostos complementares: finito e infinito, mpar e par, uni-
dade e multiplicidade, repouso e movimento, macho e fmea, luz e obscurida-
de, bem e mal, quadrado e retngulo, direita e esquerda etc. Tais opostos
estruturam tudo: tanto se referem ao movimento cosmolgico quanto s ati-
tudes morais. Nmeros so medidores de estados de coisas, sejam elas grande-
zas fsicas ou ticas. Nmeros so arqutipos geradores de todas as configura-
es possveis, aquelas limitadas e aquelas ilimitadas. Nmeros so essncias
discretas e hologrficas, isto , a estrutura-tipo de todo ente existente ou pass-
vel de existncia. Estes so traos da concepo pitagrica.

Fazendo uma reflexo, h, sem dvida, uma diferena entre o nmero


pitagrico e o que hoje somos capazes e conceber numericamente. A questo
que, em geral, estamos acostumados a considerar a gnese da Cincia a partir
de ticas progressistas e evolucionistas. Falamos, ento, na passagem do mito
para a cincia (filosofia) como se estivssemos falando de uma superao dial-
tica (no plano do esprito universal, seja essa superao de cunho kantiano,
darwiniano, hegeliano, newtoniano, marxiano, ou de qualquer outro cunho)
que alcana o ser de toda a humanidade. Trata-se da tica etnocntrica ou
melhor eurocntrica? Ento, quando nos reportamos aos antigos, sempre
ocorre uma reduo intencional que os coloca como nossos antecessores na
escala evolutiva?

Ento, dizemos: Houve um tempo em que o nmero era concebido


como relao mgica entre os fenmenos. Na cultura grega, Pitgoras de Sa-
mos inaugurou um sistema mathemtikos que pensava toda a ordem csmica
atravs de uma simblica aritmtica. Ento, ficamos surpresos com tamanha
ingenuidade, e dizemos: Houve um tempo em que o nmero era concebido como rela-
o mgica entre os fenmenos... Portanto, olhamos o passado com a estranheza de
um estrangeiro diante de um novo mundo. E porque estamos olhando fsseis,
temos sempre a impresso de que foram incompletos, de que tentaram algo
152

mas no conseguiram chegar at o final. E com isso reificamos nossa crena


de progresso e evoluo. Temos sempre a impresso de que somos melhores,
pensamos melhor, somos mais evoludos do que os que nos antecederam.
Ento conclumos: Pitgoras no fez cincia, apenas praticou magia. Essa
era uma forma ingnua de conceber o mundo.... E por a vai....

Essa evocao da relao de epistme com mthema serve-nos como ten-


sor conceitual para a ressignificao almejada. O caso que, desde a antiguida-
de, o termo epistme tem estreita relao com processos de clculo e medio,
ponderao e diviso, multiplicao, reduo e reduo simblica. Este dado
no parou de metamorfosear-se ao longo do tempo do Ocidente. O importan-
te, ento, acatarmos a dimenso do acontecimento inaugural da logicidade
humana em suas mltiplas manifestaes e possibilidades. Assim, de igual
modo escola milesiana ou pitagrica, comumente consideramos tambm
todo o pensamento desta poca como mero primrdio da nossa soberba e
prepotente racionalidade lgica e tecnocientfica. Deste modo, camos na ten-
tao de considerar os primeiros pensadores como menores, infantes na saga
autoconsciente da razo.

Essa forma de preconceito tira-nos a possibilidade de uma investigao


mais radical sobre a gnese da cincia na humanidade do homem. Porque nos
deixamos enredar pela crena de uma continuidade histrica dos eventos, cri-
amos uma iluso psicolgica do tempo. Essa iluso nos custa muito caro. Par-
timos quase sempre do ponto oposto. Queremos sempre ter razo, uma razo
mais clara, mais justa... Imaginamos que os nossos juzos so os mais apurados.
Tudo, ento, se reduz nossa tica etnocntrica, nossa corrente ou escola de
cincia, ao nosso prprio umbigo.

Assim, perdemos tempo quando permanecemos prisioneiros do tempo


psicolgico? Mas, como escapar do tempo psicolgico, no ele o smbolo do
inconsciente ativo? No ele pulso de vida ? H uma passagem de Hus-
serl em A ideia da Fenomenologia (1990), onde ele descreve o conhecimento, que
aqui uso para melhor dimensionar a natureza desse tempo psicolgico. Diz
ele:

O conhecimento , em todas as suas configuraes, uma vivncia psquica:


conhecimento do sujeito que conhece. Perante ele esto os objetos conhecidos. Mas,
como pode o conhecimento estar certo da sua consonncia com os objetos conheci-
dos, como pode ir alm de si mesmo e atingir fidedignamente os objetos? [...] O co-
nhecimento , pois, apenas conhecimento humano, ligado s formas intelectuais humanas, in-
capaz de atingir a natureza das prprias coisas, as coisas em si. (p. 42-43)
153

Segundo Husserl, a forma de sair das amarras desse tempo psicolgi-


co a atividade filosfica radicalmente fenomenolgica. Na sua perspectiva,
preciso ir alm do psicologismo para se chegar a fazer uma crtica da cincia
natural rigorosa, e exatamente esta crtica que ele chama de Filosofia. A crti-
ca ao psicologismo , ento, a reafirmao da possibilidade de uma cincia do
conhecimento fenomenolgico, isto , conhecimento da objetualidade do co-
nhecer: conhecimento do conhecer conhecimento transcendental, mas no
transcendente; conhecimento absoluto. Como ele afirma:

Se abstrairmos das metas metafsicas da crtica do conhecimento, atendo-


nos apenas sua tarefa de elucidar a essncia do conhecimento e da objectalidade cognitiva, ela
ento fenomenologia do conhecimento e da objectalidade cognitiva e constitui o fragmento
primeiro e bsico da fenomenologia em geral.
Fenomenologia designa uma cincia, uma conexo de disciplinas cientfi-
cas; mas, ao mesmo tempo, e acima de tudo, fenomenologia designa um mtodo e
uma atitude intelectual: a atitude intelectual especificamente filosfica, o mtodo especifica-
mente filosfico. (1990: 46)

O que aqui ressalto a atitude intelectual filosfica da fenomenologia


proposta por Husserl. Nela o importante a radical crtica ao conhecimento
natural e a incluso de uma nova tarefa para a filosofia. Trata-se de uma filosofia
re-inventada, re-significada, re-descrita. Para Husserl, h de se colocar a filoso-
fia em uma dimenso nova, e por mais que essa nova dimenso possua conexes
inevitveis e essenciais com as antigas dimenses admitidas pela cincia, a ela
corresponde um mtodo novo desde os seus fundamentos, contrapondo-se decidida-
mente aos mtodos naturais de autojustificao epistmica. Ora, isto abre um
campo de puras possibilidades, onde os fatos so tomados apenas como acon-
tecimentos casuais: casos reais, mas nunca casos em si mesmos capazes de de-
monstrar essa ou aquela concepo de verdade e de certeza.

Ento dizemos: A filosofia uma cincia de rigor. E por encontrar-


se em uma dimenso completamente nova, precisa de pontos de partida inteiramen-
te novos e de um mtodo totalmente novo; mtodo este capaz de distingui-la, por prin-
cpio, de toda cincia natural. Ora, ento, conclumos: A matemtica pita-
grica, ou grega de uma maneira mais geral, no passa de cincia natural. E
com essa afirmao encerramos a nossa possibilidade de reconhecer que tam-
bm Pitgoras fazia cincia ou melhor, produzia conhecimento visando a
posse de certos princpios e causas, de certos meios de inteleco do todo na-
tural. Mas, como se pode estabelecer a crtica do conhecimento fora do mbi-
to natural, se esta a condio primeira de todo conhecimento humano?
154

Na visada da fenomenologia de Husserl, trata-se de praticar a epoch no


mais radical sentido do termo. Ora, a epoch no coloca o seu praticante diante
de nenhuma doutrina mais verdadeira do que aquelas praticadas pelas cincias
naturais, mas apenas d incio investigao metdica do que prprio ao
conhecer humano, a partir de uma distncia j cumprida em relao s verda-
des estabelecidas pelas cincias naturais e pelos hbitos conceptivos calcados
no senso natural senso comum. Trata-se, ento, de autojustificar o mbito a
partir do qual se edifica uma cincia do esprito que j no acredita nem nas
verdades do mundo natural e nem nas verdades do mundo psicolgico (moral).

Mas, onde essa operao de radicalidade suspensiva encontra o seu a-


poio, se j no so vlidas nem as verdades objetivas e naturais e nem as ver-
dades subjetivas e humanas? isto cientfico, ou no passa de delrio filosfi-
co de extremo poder sedutor, pois apresenta a possibilidade de um ponto de
incio absoluto para a filosofia criticamente posta ?

Nesse ponto, Husserl segue os passos de Descartes. Trata-se de admitir


um ponto de partida de forma alguma ambguo, mas, pelo contrrio, claro e
evidente por si s. Mas, isto possvel fora das referncias naturais e psicol-
gicas? E se possvel, como possvel? Ento, cartesianamente, a questo se
coloca em uma perspectiva de saber absoluto, onde algo se apresenta como
conhecimento primeiro e evidente, fora de qualquer dvida ou de qualquer
incerteza? Este algo, entretanto, no se encontra em estado natural, mas re-
quer uma atividade de elucidao permanente, continuada. E, sobretudo, este
algo no se encontra fora do sujeito cogitante. Mas, Husserl segue apenas o
ponto de partida de Descartes, a radicalidade do ponto de partida, deixando
clara a diferena da sua inteno filosfica (fenomenolgica).

O caso que com a epoch nada se pode admitir como previamente dado,
o que requer um ponto de partida que ela prpria pe, tirando de si mesma,
como conhecimento primeiro. Esta no uma passagem de fcil e imediata
compreenso, mas requer o esforo do absoluto retorno s coisas mesmas.
Quando, ento, a ideia de um saber absoluto soa pretensiosa e nos dias atuais
inconcebvel, como possvel sustentar o carter radical da epoch fenomenol-
gica, sem cair no contra-senso e no vazio das questes metafsicas? Afinal, que
saber absoluto este tomado como princpio da prpria epoch?

Facilmente somos levados a pensar a ideia de saber absoluto como algo


pertencente ao ciclo imponente da racionalidade iluminista, como expresso de
uma vontade de conhecimento incapaz de dimensionar a sombra produzida
pela sua prpria luz. Deste modo, a ideia de uma suspenso radical dos dados
155

do conhecimento nos parece absolutamente fora de propsito. E com este


sentimento de impossibilidade, somos levados a no cumprir um retorno radi-
cal sobre ns mesmos, enquanto ente-espcie que somos. Adiamos, assim, a
possibilidade de uma epistemologia prpria e apropriada aos nossos fins. Ou
seja, adiamos a possibilidade de uma crtica radical do conhecimento que nos
coloque na perspectiva do ensaiador, para o qual os dados so apenas imagens
perceptivas, dados em si mesmos absolutos. Como diz Husserl, evocando Des-
cartes sobre a natureza da dvida e da certeza na cogitatio:

Sempre que percepciono, represento, julgo, raciocnio, seja qual for a certeza ou a
incerteza, a objectalidade ou a inexistncia de objectos destes actos, absolutamente
claro e certo, em relao percepo, que percepciono isto ou aquilo e, relativamente
ao juzo, que julgo isto ou aquilo, etc. (1990: 54)

Aqui aparece um sentido de certeza muito diferente do que aquilo


que em geral representamos sobre o tema. Nos parece deslocado se falar em
saber absoluto, porque no sabemos muito bem do que se trata, e logo imagi-
namos tratar-se de uma falcia da razo. Entretanto, se deslocarmos o foco
intencional da suspenso para o prprio conhecer, ento, o conhecer sempre
um dado absoluto, seja ele isto ou aquilo, percepo reflexiva intuitiva, ou ape-
nas fantasia reflexiva intuitiva. Este o ncleo central da radicalidade do pon-
to de partida: o conhecer que se conhece a si mesmo e em si mesmo. Estaria
a o ponto de partida da fenomenologia de Husserl: Toda evidncia intelectiva e
toda a vivncia em geral, ao ser levada a cabo, pode fazer-se objeto de um puro ver e cap-
tar e, neste ver, um dado absoluto. (1990: 55)

H aqui um ponto de partida que, ao suspender os dados naturais da


inteleco, abre-se para a investigao da essncia do conhecimento. o
projeto de uma crtica radical do conhecimento, pela perspectiva do conhecer,
ou melhor, do conhecedor. De forma radical, Husserl pe o conhecimento em
suspeio judicativa. No entanto, isto no anula ou nega as mltiplas formas de
conhecimento existentes, apenas postula uma cincia humana fundada em seu
prprio absoluto, isto , a partir das suas prprias condies, limites e possibi-
lidades. Isto requer uma crtica radical do conhecimento e uma crtica rigorosa
da cincia.

No se trata, entretanto, de um sistema de cincia que estabelece hie-


rarquias exatas e imutveis. Portanto, no se trata de compreender a atitude
fenomenolgica como saber absoluto do transcendente, mas apenas saber ab-
soluto do imanente sobretudo do puramente imanente. Nesta medida, a
reduo fenomenolgica coloca-se como mtodo para a investigao do
conhecimento puro, isto , do puramente imanente, suspendendo todo e
156

qualquer juzo e inteleco relativos ao imanente incluso. Suspende-se, as-


sim, os dados relativos a sistemas de crenas, e foca-se a inteno apenas no
imanente em si mesmo, isto , na prpria conscincia na sua abertura trans-
cendental, isto , na apreenso absoluta de si mesma como conscincia para,
conscincia de alguma coisa. Mas a conscincia em si, a pura imanncia, no se
confunde com os dados da transcendncia, e s pode ser tal em um ser para-si,
isto , em um ser aberto ao prprio acontecimento vivo da criao da humani-
dade.

A fenomenologia, assim, se autojustificaria como cincia do esprito,


nada tirando das cincias naturais como suporte e modelo de suas operaes
demonstrativas. E ela, como cincia do esprito, nada tem contra as diversas
formas de conhecimento produzidas pela humanidade desde os seus primr-
dios, porque isto seria um contra-senso, mas apenas requisita das outras cin-
cias o mesmo respeito para o seu ponto de partida, porque uma crtica do co-
nhecimento no poderia estar submetida a nada fora do seu prprio campo
intencional. Portanto, se as cincias naturais se proclamam vlidas em virtude
da objetividade de seus correlatos e postulados, maior motivo tem uma feno-
menologia para seguir adiante na investigao da essncia do conhecimento,
posto ser o seu campo intencional to objetivo quanto qualquer outro objeto
das cincias dogmticas ou naturais. Mas, qual , ento, o prprio objeto da
fenomenologia?

Para Husserl, toda vivncia psquica tem um correspondente fenmeno puro, que
exibe a sua essncia imanente (singularmente tomada) como dado absoluto. Neste sen-
tido, toda posio de uma realidade apresentada como transcendente, isto ,
no contida no fenmeno, encontra-se desconectada, isto , suspensa. Deste
modo, se h possibilidades de converter tais fenmenos puros em objetos de
investigao, evidente que j no estamos na psicologia, esta cincia trans-
cendentemente objectivante (1990:71).

Assim, a fenomenologia no investiga fenmenos psicolgicos nem


ocorrncias da chamada realidade efetiva, mas apenas interessa-se pelo que e
vale, independente da existncia ou no de algo como a realidade objetiva, e
sem pretender julgar a validade e legitimidade de tais transcendncias. No
memento em que a fenomenologia suspende os dados naturais ela se depara
com o prprio fenmeno da conscincia. Isto, segundo Husserl, algo to
objetivante quanto a objetivao das cincias que lidam com imanncias trans-
cendentes. Estes so os dados absolutos puramente imanentes, e ainda que se
refiram intencionalmente realidade objetiva, o prprio referir-se para tais
157

dados uma certa caracterstica, porque nada se preconceitua acerca do ser e no


ser da realidade.

Esse esclarecimento , para Husserl, o lanamento da ncora na costa


da fenomenologia,
....cujos objetos so postos como existentes, da mesma maneira que a cin-
cia pe os objetos da sua investigao; no esto postos como existncia num eu, num
mundo temporal, mas como dados absolutos, captados no ver puramente imanente.
O puramente imanente, deve aqui, de incio, caracterizar-se mediante a reduo fenome-
nolgica: eu intento justamente isto aqui, no o que ele visa transcendentemente, mas o
que em si mesmo e tal como est dado. Tais expresses so, naturalmente, apenas
rodeios e auxlios para levar a ver o primeiro que aqui importa ver, a diferena entre
os quase-dados do objeto transcendente e o dado absoluto do prprio fenmeno.
(1990: 72)

Contudo, ainda faltam novos passos e novas reflexes para que se pos-
sa pr o p firme no pas da fenomenologia. Esta abordagem inicial concer-
nente a todos os fenmenos, apesar da fenomenologia ocupar-se, segundo suas
metas crticas, apenas dos fenmenos do conhecimento. Isto, entretanto, no
impede que o ponto de partida assumido pela fenomenologia refira-se igual-
mente a todos os casos onde h fenmeno. A questo, agora, alcana um pon-
to de mxima tenso. Trata-se da autojustificao da validade do conhecimen-
to fenomenolgico, o que requer a presena do sujeito capaz de intuir e cogitar
sobre o puramente imanente, sem perder de vista a sua existencialidade efetiva.
Este um ponto crtico abissal e inevitvel. Dizendo com Husserl: Para
explorar a essncia do conhecimento, tenho, naturalmente, de possuir como dado
o conhecimento em todas as suas formas questionveis e de um modo tal que
este dado nada tenha em si do problemtico que qualquer outro conhecimento
consigo traz, por mais que parea fornecer dados (1990: 72). Este justamen-
te o problema do conhecimento puro, e ele o principal objeto da fenomeno-
logia husserliana.

O reconhecimento de um dado absoluto algo em relao ao qual no


paira nenhuma dvida. O dado absoluto, ento, no nada mais do que abrir os
olhos e ver, apurar os ouvidos e ouvir, aguar o falar e falar, nutrir o julgar e
palatar, despertar o tato e tocar. O puro ver, o puro ouvir, o puro falar,
o puro tocar, o puro degustar. Este o dado absoluto: o puro imanente.
Claro, trata-se de um dado perceptivo, de um perceber: ver, ouvir, falar, tocar,
sentir etc. O puro imanente, ento, aquilo que esta imediatamente diante
de ns: o fenmeno, no sentido do aparecer e daquilo que aparece. Este
aparecer que aparece, no caso de um crtica do conhecimento, o conhe-
cer que conhece: o ego transcendental (evitando-se a palavra sujeito).
158

Seguindo esse fio condutor, a fenomenologia de Husserl apresenta-se


como cincia do fenmeno, ou seja, cincia da constituio da conscincia
relativa a seus efeitos perceptveis, ao seu aparecer como ente, a seu ser isto ou
aquilo. Ora, decididamente, aqui no se lida com metafsicas apriorsticas e
nem com certezas inclusas, mas apenas com a essncia do conhecimento.
O ponto de partida, ento, da fenomenologia continua sendo o cogito? Admitir
isso no significa permanecer no horizonte moderno das filosofias da consci-
ncia, para as quais o mundo representao do esprito e o esprito uma
ideia universal?

, parece que estamos em uma encruzilhada. Torna-se necessrio, en-


to, decidir. Em primeiro lugar decido pela clareza do puro imanente, o que
me faz suspender a prpria ideia de certeza, seja ela objetiva ou subjetiva. A
questo da certeza, ento, confunde-se com a disposio para acolher o dado absolu-
to: o puro ver, o puro sentir, o puro dizer, o puro ouvir etc. No uma certeza certa
no sentido cartesiano, porque ainda no se trata de uma cogitatio, ou melhor, de
uma meditao intelectualmente disposta, mas se trata apenas de uma disposi-
o espiritual absolutamente aberta ao fluxo do acontecimento do fenmeno,
isto , aberta como conscincia pr-reflexiva. O dado absoluto, ento, o puro
imanente, e dado que ele no se encontra apenas em um sujeito singular, ele a
pr-condio de todo conhecimento possvel, em toda a extenso e profundi-
dade da humanidade do homem. Em primeiro lugar o sujeito encontra-se no
mundo. O mundo, deste modo, apresenta-se como dado natural ao sujeito:
coisas, objetos, manifestaes, horizontes, correlaes etc. A seguir, o sujeito
se reconhece no mundo. E a o mundo passa a ser objeto de investigao por
parte do sujeito. O sujeito, ento, coloca o problema do conhecimento: Que
conhecer, e quem conhece?

Ora, essa pergunta tipicamente filosfica a marca fundante das epis-


temes ocidentais. Tambm os cientistas naturais perguntam, e isto um dado
absoluto. No importando a matriz, a cincia cincia porque de algum modo
interroga, seja isto ou aquilo, este fato ou aquele objeto. O curioso que com
este olhar alguma coisa se ilumina de forma inesperada: o prprio conhecer se
torna conhecido a partir do conhecedor. Diria Descartes: Penso que sou, logo sou.
este o dado puro: Sou porque sei que percebo. Este o ponto de incio de uma
filosofia fenomenolgica, ponto de abertura para uma crtica radical da cincia
e do conhecimento, em suas mltiplas aparies. Primeiramente, h o que
pensar, e este o prprio pensador. A reflexividade , ento, um dado absoluto.
Como dado absoluto, a reflexividade um puro fenmeno: no seu prprio apa-
recer na aparncia.
159

Esse o campo do conhecimento puro. Podemos agora estud-lo, es-


tabelecendo uma cincia dos fenmenos puros, uma fenomenologia? Entretanto,
patente que s se pode clarificar a essncia do conhecimento, se cada um de
ns o perscrutar por si mesmo, e se ele prprio nos for dado a perceber tal
como , em seu estado puro. H aqui uma dificuldade de natureza semntica.
Em geral, a imagem de pureza nos chega associada a fenmenos morais.
Ento, logo dizemos: no h nada puro na percepo de algo como algo, muito
menos no entendimento de algo. A expresso puro, ento, nos soa como
assepsia ou eugenia voluntria. A ela logo associamos imagens como alma
pura, carter puro, virtude pura, gua pura etc., como se estivssemos
falando de grandezas puramente ideais, grandezas numricas em si, absoluta-
mente quantificveis. Mas, para esta visada fenomenolgica, conhecimento
puro apenas o conhecer, isto , o ser que conhece em si mesmo: o conhece-
dor.

Sem dvida, tudo isso parece um mero jogo de tautologias, jogo desco-
lado dos chamados fatos. No h que se negar a fora desta aparncia. Ela
um dado, apesar de no ser um dado absoluto. E no um dado absoluto
justamente porque aparece desta ou daquela maneira, segundo esta ou aquela
crena no mundo natural. Afirma-se, postula-se, nega-se isto ou aquilo como
dado. Tudo isto mero jogo de aparncias, mera tautologia do referente, seja
imanente puro, imanente incluso ou apenas transcendente. A pureza, ento,
apenas mais um referente de algo como algo? O importante, ento, perce-
ber que h algo como algo: este perceber que puro. Ele, ento, no puro
porque se sobressai, mas puro porque existe como tal, isto , como perce-
bido em si mesmo, como puro ver. Ora, esta pureza nada tem a ver com
grandezas ideais, mas apenas com a conscincia de que h, de qualquer modo,
conscincia no ver: o puro fenmeno da fenomenologia. Assim, enquanto o
objeto da fenomenologia o puro fenmeno, no h problema e incerteza
quanto possibilidade do conhecimento, porque no se trata do transcendente,
mas apenas do que em si evidente: o aparecer e a aparncia do puro ver. A
dvida s persiste diante do que no evidente em si mesmo: o puro transcen-
dente. Este, porm, inacessvel ao conhecimento fenomenolgico. Fenome-
nologicamente falando, s o puro dado evidente em si mesmo. E, felizmente,
o puro dado , em si mesmo, apenas imanente, pois o conhecimento do trans-
cendente apenas um preconceito sobre a possibilidade do conhecimento ser,
em si mesmo, algo alm de si mesmo.

E como diz Husserl, a ideia de transcendncia tem, em si mesma, dois sen-


tidos, ambos correlacionados imanncia.. O primeiro deles apresenta o objeto
160

do conhecimento como se no fosse ingrediente no ato cognitivo, de tal forma,


que por dado imanentemente se entende o estar inclusamente contido.
Assim, o ato de conhecimento, a cogitatio (cogitao) tem momentos ingredien-
tes, e como ingredientes a constituem. Entretanto, neste caso, a coisa que a
cogitao intenciona, encontra-se na prpria cogitatio como vivncia, mas
no inclusamente como fragmento, como algo que realmente nela existe. Mas,
como pode a vivncia ir a alm de si mesma? Como pode ela transcender o
imanente incluso, o que percebido, recordado etc.? Assim, diante desta ideia de
transcendncia, o imanente apenas imanente incluso, enquanto vivncia cognitiva.
Este o problema: como pode, ento, a vivncia transcender, se ela se con-
funde apenas com o imanente incluso a prpria vivncia da cogitatio? Facilmen-
te, diante desta ideia de transcendncia a confusa vaguidade impera, provocan-
do obscuridades e no clarezas claridades.

O outro sentido de transcendncia tem como contrrio uma imanncia intei-


ramente diversa, a saber: o dar-se absoluto e claro, a autopresentao em sentido absoluto
(Husserl, 1990: 62). Neste sentido, transcendente todo conhecimento no
evidente, que intenta ou pe o ente objetivamente, mas no o intui ele mesmo.
Com esta transcendncia se vai alm do dado, isto , se vai alm do que direta-
mente se pode ver e captar. A pergunta, ento, que suspende a validade de tal cren-
a, Husserl a coloca como pedra de toque para sua crtica fenomenolgica:
Como pode o conhecimento pr como existente algo que nele no est direta e verdadeiramen-
te dado? (ibid., p.61)

Recapitulando. So duas as transcendncias e duas as imanncias, exis-


tindo uma correspondncia polarizada entre ambas. A primeira transcendncia
contrape-se a uma imanncia inclusa, distinguindo a vivncia em si dos conte-
dos prprios das vivncias inclusas. Deste modo, toda vivncia ingrediente,
isto , toda vivncia disto ou daquilo a expresso da imanncia, e apenas a
vivncia do que intentado como cogitao se diz transcendente, porque no
se confunde com coisas ou contedos fragmentariamente existentes ao modo
de coisas. Mas, como pode a vivncia ir alm da vivncia? J a segunda trans-
cendncia se contrape pura imanncia. Todo conhecimento no evidente em
si transcendente. E para ser evidente em si, o conhecimento puramente ima-
nente. S este pode ser dito conhecimento absoluto. Portanto, no h sentido
em se falar de um conhecimento transcendente do dado absoluto: a pura ima-
nncia.

No mbito do desenvolvimento da teoria do conhecimento (gnoseolo-


gia), essas duas transcendncias e imanncias se confundem inicialmente. Foi
necessrio um longo percurso discursivo antes da meditao acerca da possibi-
161

lidade do conhecimento crtico ter sido aprofundada. De qualquer modo, a


transcendncia, segundo os dois sentidos equvocos assinalados, ela constitui-
se no problema inicial e guia da possibilidade da crtica do conhecimento. E
como diz Husserl, este o enigma que bloqueia o caminho do conhecimento
natural, constituindo o impulso para as novas investigaes. Nesta medida, a
investigao fenomenolgica parte do reconhecimento da impossibilidade do
conhecimento transcendente, seja ele qual for, admitindo, ento, apenas o ima-
nente como objeto efetivo do conhecimento crtico. A evidncia, assim, deixa
de ser um dado para alm do dado, e passa a ser o dado puro: o puramente imanen-
te. este o ponto de partida de uma fenomenologia, compreendida como cr-
tica da essncia do conhecimento. Trata-se, portanto, de deixar evidente que a
autojustificao da fenomenologia no pretende alcanar verdades transcen-
dentes, mas apenas mostrar a validade do que puramente imanente: o fenmeno no
seu aparecer e na sua aparncia; a conscincia compreendida como campo intencional e rela-
cional, conscincia de, conscincia-sendo.

Segundo essa perspectiva apresentada, uma teoria crtica do conheci-


mento jamais pode edificar-se sobre uma cincia natural de qualquer espcie.
Apesar disto, os enigmas no desaparecem, porque uma cincia fenomenolgi-
ca no se ocupa de fatos, mas apenas da essncia do conhecimento, isto ,
do campo virtual relativo s possibilidades do conhecer. Entretanto, no mo-
mento em que a fenomenologia privilegia o campo das possibilidades em de-
trimento do campo das realidades inclusas, ela deixa em aberto o enigma, por-
que a sua evidncia e certeza dizem apenas respeito ao campo do dado puro o
dado puro como abertura de todas as possibilidades onde h conhecimento
e, em absoluto, pretenda que esta certeza deva ser necessariamente transcen-
dente. Neste sentido, qualquer certeza transcendente um contra-senso,
porque pretende justificar algo que est absolutamente fora do seu alcance
cognitivo. E porque a fenomenologia privilegia a possibilidade, o seu enigma
configura-se no como possvel o conhecimento, e no mais no por qu ele verda-
deiro. Ser verdadeiro, ento, neste sentido, significa simplesmente o fenme-
no, isto , aquilo que s possvel para uma conscincia que percebe e viven-
cia o des-velamento por si mesma. Responder ao como torna-se a tarefa de uma
crtica do conhecimento e da cincia. O como, ento, movimento de produo
de sentido circunstanciado, existente segundo esta ou aquela emergncia. O
como est sempre aberto, e nenhuma teoria metafsica pode assegurar a sua exis-
tncia perptua. O como a cincia prtica: o agir desta ou daquela forma, se-
gundo este ou aquele critrio, movido por esta ou aquela pulso. O como
possvel o conhecimento crtico? o prprio conhecimento crtico no seu
acontecimento tessitural. Por isto, a ele no cabe responder por compromissos
162

ontolgicos transcendentes, porque a sua essncia o prprio como e no o


transcendente por qu.

De certo modo, Husserl chama este como de meditao infinita. E digo de


certo modo, porque isto no se encontra explcito na sua fala. Claro, esta
meditao uma investigao permanente, porque meditar no significa
alcanar verdades eternas por meio de uma contemplao direta das essncias
incorpreas, mas, antes, significa manter-se distante de toda e qualquer repre-
sentao de realidade que queira se impor como verdade ltima, obrigando-nos
a uma espcie de aderncia partidria compulsria. A meditao fenomeno-
lgica, ento, justamente o alcance da disposio necessria para se realizar o
como possvel o conhecimento humanamente fundado. Neste caso, o como se confunde
com a prpria produo do conhecimento, porque est claro que o conheci-
mento sempre conhecimento de alguma coisa, portanto, sempre conheci-
mento como isto ou aquilo.

Apesar desse ltimo esclarecimento, a pergunta pelo como possvel o


conhecimento fenomenolgico? respondida pelo como este conhecimento
produzido. E para algum que tenha passado por esta visada crtica, torna-se
impossvel reconhecer a validade das cincias humanas a partir dos mtodos
quantitativos das cincias fsico-matemticas cincias naturais. Este um
erro crtico de gravssimas consequncias, porque s em base liberdade abso-
luta pode o esprito humano libertar-se dos grilhes de sua prpria absurdida-
de. Querer, ento, justificar as cincias humanas tomando como base mtodos
quantitativos o mesmo que pretender que um cego veja, ou que um mudo
fale. E querer tal coisa , indubitavelmente, possvel. Mas, querer que este seja
o modelo para toda cincia vlida o mesmo que pretender transformar a pos-
sibilidade em apenas uma ou duas opes. o mesmo que pretender dizer que
apenas esta ou aquela cincia verdadeira, sendo as demais simplesmente pr-
cientficas. A expresso para isto pode ser a seguinte: excluir para melhor coman-
dar; eliminar as diferenas para melhor impor-se.

Sem pretender exaurir nada, com a fenomenologia coloquei o proble-


ma do conhecimento a partir de outras possibilidades, o que ilumina o necess-
rio sentido da crtica na edificao de uma autojustificao absoluta das cincias
humanas. E isto, de algum modo, requer o aprendizado crtico-epistemolgica,
aprendizado semelhante ao almejado por Marx no seu projeto revolucionrio.
Trata-se, sem dvida, de recolocar o problema da formao humana para o
domnio cientfico em outra abertura, o que requer que a cincia humana se
defina como processo permanente de auto-superao, porque no se trata de
demonstrar verdades j sabidas metafisicamente, mas apenas de mostrar o
163

acontecimento do sentido-significado: dar prosseguimento ao como realizar


uma cincia da essncia do conhecimento no prprio exerccio do conhecer
crtico abertura para o aberto e para o fechado.

Pelo fato da fenomenologia responder apenas pelo como do conheci-


mento, ela deve comear sempre do incio. Esta a sua sina: ela est sempre
comeando, e nunca supera o ponto de incio radical. Mas esta sina no um
fardo e sim um destino serenojovial. Porque est sempre comeando a fenome-
nologia apenas um mtodo, jamais um sistema apriorstico a ser demonstrado
passo por passo. O conhecimento, assim, uma aventura do esprito humano,
aventura que tambm pode ser acolhida como acrscimo de potncia, e no
como reificante aprisionamento do esprito criador e inventivo: poema tambm
apenas comeado.

Ora, ento dizemos: s a cincia experimental e quantitativa cincia. Claro,


esta uma afirmao dogmtica e excludente. Entretanto, na medida em que
praticamos a epoch fenomenolgica, uma tal afirmao torna-se absurdamente
vazia de sentido e contra-sensual. A questo, ento, requer a redefinio do
que cincia. E isto s se pode fazer pelo discurso e no discurso.

Camos, assim, na segunda palavra que compe epistemologia, lgos.


justamente atravs dela que a cincia se autojustifica desta ou daquela ma-
neira. Na lngua grega, lgos possua uma pregnncia semntica muito alm do
seu uso tecnocientfico, que indica estudo, teoria, racionalizao de etc.
Supostamente derivado do verbo lgo (lgein, no infinitivo), lgos significa vrias
coisas em contextos diferentes. uma palavra polissmica de grande fecundi-
dade. Recolhendo algumas de suas sonncias e ressonncias, temos pelo me-
nos 5 seqncias que indicam proximidades e diferenas, desde o seu uso mais
antigo at o contemporneo. Lgos, assim, pode significar:
1) reunir, colher, acolher, pousar, pausar, repousar, ouvir, ponderar,
contar, escolher, selecionar, calcular;
2) narrar, dizer, pronunciar, proferir, falar, declarar, anunciar, discutir,
nomear, designar, convencer;
3) ordenar, refletir, pensar, raciocinar, investigar, racionalizar, demons-
trar, analisar, teorizar, fundamentar;
4) significar, expressar-se oralmente, discursar, contar, comunicar-se
com outros;
5) ler em voz alta, recitar, fazer dizer, discursar. 13

13
Nesta descrio, baseei-me em uma fonte imediata, apenas como incio de conversa.
Trata-se do Glossrio encontrado em Chau (1994). Isto, portanto, no me impede de conti-
164

De tudo isso destaca-se o carter lingstico da palavra, seja em sua a-


cepo apophntica ou naquela apodctica, isto , tanto como articulao verbal (o
lgos como discurso) quanto como conceito e fundamento racional universal e
necessrio (o lgos como pensamento verdadeiro, lugar da essncia). Lgos, por-
tanto, uma daquelas palavras que ocupam lugar de destaque no mbito da
compreenso, interpretao, explicao, comunicao e produo simblica do
ser humano. Claro, trata-se de uma palavra grega, assim, ocidental. Entretanto,
aquilo que os gregos chamavam lgo no foi algo exclusivo de sua lngua. Com
expresses correlatas, todos os povos humanos perceberam e percebem a
importncia da palavra, e, de algum modo, possuram e possuem regimes de
significao onde o mesmo foi e dito e pensado. Comparar regimes de
signos de povos e culturas distintas seria muito instrutivo a este respeito. Mas
este no o lugar para tamanha tarefa. Limito-me, ento, a descrever as-
pectos (sintomas) do uso da palavra.

No campo das cincias em geral, lgos compe a nomeao da maior


parte delas, querendo sempre dizer teoria, estudo, investigao, cincia
sistemtica. Assim, da cosmologia astrologia, da antropologia biologia, da
gnosiologia epistemologia, toda palavra com a terminao logia quer dizer
sempre o mesmo: procedimento investigativo e sistemtico. O lgos aqui usado em
uma de suas mltiplas dimenses. Entretanto, a impresso que se tem, do lado
da ignorncia geral, que a palavra apenas signifique, na sua nascente, razo,
princpio, causa, fundamento. Quando, ento, dizemos epistemologia
queremos dizer uma investigao de certo tipo, isto , com o seu prprio obje-
to temtico. Exclui-se, deste modo, o uso no cientfico da palavra? Seria,
ento, impossvel re-inventar novos sentidos para a palavra, onde caberia uma
epistemologia do educar que no se limitasse a acolher como paradigmas irre-
futveis as tradies continental e anglo-saxnica? Seria possvel formular uma
epistemologia do educar que contemplasse uma compreenso polilgica do
lgos, onde se descreveriam apenas acontecimentos implicados com as nossas
efetivas emergncias existenciais, sem compromissos com parties e confrari-
as e nem com crenas ontolgicas inderrogveis, porm sempre engajado com
o cuidado e o cuidar da vida em comum?

Dei um salto importante. Com essas questo deixei de lado mltiplos


compromissos fantasmticos. Retomo, ento, uma descrio de lgos que me
permitir cunhar um outro sentido para a expresso epistemologia do educar. Se o

nuar aprofundando a etimologia da palavra de forma circular, prometendo outros resulta-


dos mais adiante.
165

uso da palavra lgos deste a origem polissmico, s com o advento da filosofia


ele se tornar predominantemente teortico. Entretanto, mesmo entre os
pensadores originrios e os filsofos gregos o seu uso era ainda muito mais
plstico do que aquele por ns atribudo modernamente. Derivado do verbo
lgo como vimos lgos uma palavra que parece ter nascido da boca de um
pensador, Herclito de feso. Lgo, algo assim como ler-dizer, perceber-
falar, tornar algo legvel por palavras, soa como des-velamento e presenti-
ficao de sentido. Soa como sentido. Sentido, entretanto, sentido situado,
descortinar-se de coisas, mundo, moradas, cu e terra, homens e deuses. Senti-
do predominantemente sentido. O verbo lgo, assim, se diz lgein, isto , dizer
e falar. Trata-se sempre de algo dito e falado com sentido, o que caracteriza o
modo de ser prprio ao homem. De forma paralela, lgos uma palavra que
nomeia sentido.

Examinando o Fragmento 50 de Herclito, Heidegger (1978) chama a a-


teno para uma outra possibilidade de compreenso da palavra logos. Segundo
a traduo de Snell, o fragmento soa do seguinte modo:

Se aprenderam no a mim, mas o sentido,


ento sbio dizer no mesmo sentido: Um Tudo.
...ouk emou all tou Lgou akosantas
homologein sophn estin Hn Pnta.

Heidegger considera esta sentena como enigmtica, apesar de se ter a


impresso de que a mesma compreensvel sob qualquer ponto de vista. Para
mostrar que no se trata de algo de imediata compreenso, ele recorre ao escla-
recimento das palavras correlatas logos e lgein. O dado que desde a Antigi-
dade o logos de Herclito foi interpretado de diversas maneiras: como ratio,
como verbum, como lei do mundo, como o elemento lgico e a lei do pensa-
mento, como o sentido e como a razo (1978: 111). Entretanto, pouco ou
quase nada se fez na direo de um mergulho nas cercanias da obscuridade do
sentido dado por Herclito palavra. Claro, com tal mergulho no se pode
imaginar alcanar a dimenso do seu dizer originrio, porque isso impossvel,
mas, sem dvida, pode-se apenas mostr-lo de maneira diversamente aproxi-
mada.

Heidegger, ento, usa lgein para aproximar-se do logos enunciado por


Herclito. De imediato, lgein significa dizer e falar. Nesta proximidade, logos
significa enunciar e legmenon o que foi enunciado dito, falado. De certo
modo, o enunciar se fixa no que foi enunciado. H, ento, um movimento do
aparecer e da aparncia, um jogo fenomenalmente dado: acontecimento-
166

apropriao de algo como algo, enquanto aparecer e aparncia, dizer e dito


(fato), falar e falatrio. H verbo e h substantivo. Agir e Produo. Lgein,
portanto, aparece como falar, dizer, narrar, e pressupe a produo da fala e do
dito, do narrar e da narrativa.

Apoiado no alemo, Heidegger reapresenta um sentido ainda mais ori-


ginrio da apalavra lgein, da qual se forma logos. Trata-se da palavra legen, que
no alemo soa aproximado de: deitar e estender diante. Aqui a ideia proeminente
o recolher, e encontra ressonncia no legere latino, como colher no sentido de ir pegar
e recolher. Deste modo, mais originariamente, antes de significar dizer, falar e
narrar, lgein significa propriamente o pensar e apresentar o que recolhe a si e s outras
coisas. Na sua forma mdia lgein se diz lgesthai, significando estender-se no reco-
lhimento do repouso. Por seu turno, lgesthai se relaciona com lkhos, que o lugar
de pouso, e com lkhos, que o lugar da emboscada, onde algo est escondido e em posio
de ataque. Aparece, tambm, a palavra lego (alfa copulativo), significando algo
me importa, algo me preocupa (segundo Heidegger lego foi saindo de uso depois
de squilo e Pndaro) lego lembra muito o nosso alegar: recorro ao que me parece
convincente; alego o que se mostra evidente; argumento desta ou daquela forma.

Repentinamente, lgos passou a significar pousar, deitar, estender, recolher.


Mas, de que forma isto sustentvel comunitariamente, e no apenas um jogo
de estilo, jogo de palavras livres, descompromisso ontolgico? Ento, qual o
sentido de resgatar um sentido mais originrio para logos, alm do dizer e falar?
No esta uma tarefa irrelevante, diante de emergncias prximas e de outra
ordem? Que sentido, ento, h neste trabalho de interpretao da epistemolo-
gia e da cincia, visando o delineamento de uma epistemologia do educar?

Apesar de estranho, continuo interessado em investigar o como o lgos


deixou de significar pousar e recolher, passando a significar falar e dizer. Trata-se,
sem dvida, de um narrar e de uma narrao. Nesta narrao ousa-se ouvir o
logos em uma outra sonncia. A importncia disto absolutamente pessoal.
Entretanto, fazemos desta pessoalidade uma abertura para a re-inveno inter-
pessoal do sentido da cincia, epistemologia e educar. Ento, seguindo a her-
menutica de Heidegger, insisto no sentido de lgein como pousar: prolongo a
estranheza do inesperado.

O lgein como pousar (estender) significa: levar algo a se deitar. Isto tam-
bm quer dizer: deitar uma coisa junto da outra, recolher. Assim, pousar sinni-
mo de colher. Entretanto, o sentido do colher no se limita ao uso mais co-
nhecido de ler um texto, mas antes evidencia o sentido de trazer-junto-para-o-
estender-diante. O sentido se aproxima da agricultura. A metfora agrcola.
167

Colher pressupe um movimento sincronizado entre o semear e o reco-


lher. Podemos dizer que o colher recolhe. claro que recolhe, dizemos.
Apesar dessa evidncia, colher aparece como uma atividade de recepo,
como o ato de ler um texto, isto , colher suas palavras, como colhemos
frutos. Mas o colher quer dizer, antes de tudo, trazer-junto-para-o-estender-diante.
Portanto, deparamo-nos com um sentido muito alm do uso moderno e bur-
gus do ato de ler, muito semelhante ao modo de consumo de nossos egos habi-
tuais, degustadores de frutos produzidos industrialmente. Onde s preciso
pagar para usufruir ou at mesmo apenas furtar. O colher, , deste mo-
do, tambm um apanhar: Quem colhe as espigas levanta o fruto do cho. Na
colheita da uva se tiram os cachos da parreira (Heidegger, 1978: 112). neste
sentido que ouvimos o colher: colher apanhar e juntar. Assim, ouvimos diferente
o que significa lgein no seu sentido anterior a dizer e falar?

Quando se fala colher que apanha e junta, no se diz algo que se encerra
no apanhar os frutos, mas tambm aparece o juntar. Aqui se evidencia a ima-
gem do estender-diante: juntar dispor a colheita para uso comum recolher e
oferecer. claro, recolher no apenas amontoar, mas, antes de tudo, prote-
ger e abrigar, para da distribuir e oferecer. Portanto, colher recolher que ,
tambm, abrigar e proteger, oferecer e distribuir. Como diz Heidegger: Do
recolher faz parte o procurar e trazer para um lugar (1978: 112). Ora, este
lugar o seleiro, o lugar onde se guarda o que se colhe, o lugar do recolhi-
mento da colheita. O seleiro, portanto, lugar de reunio do colhido:
acolhida do alimento proteo de sua serventia. Por seu turno, o seleiro
tambm lugar onde se recolhe o que foi selecionado na colheita. O que foi,
assim, selecionado, mostra-se como o escolhido. O colher, ento, tam-
bm selecionar, isto , ao que dispe para a escolha. Escolher recolher o
que foi selecionado na colheita: recolhimento.

Segundo Heidegger, A colheita exige de si e para si este recolhimento.


No recolher recolhido impera uma concentrao originria (1978: 113). Aqui
o colher e o pousar no se situam como coisas distintas e paralelas, pois o co-
lher j se encontra no pousar. Um pressupe o outro. Deste modo, quando
Heidegger resgata o sentido do lgein como pousar, isto , como deixar-as-coisas-
juntas-estendidas-diante, este deixar no quer dizer o mesmo que deixar cor-
rer, deixar de lado, ignorar. Pelo contrrio, trata-se do deixar no sentido
do recolhimento, portanto, do deixar que algo se conserve no ato de reco-
lh-lo. Recolher, assim, sempre um reconhecer algo como algo: deixar-
estendido-diante.
168

Mas, ento, foi isso o que aconteceu: lgein, pensado originalmente co-
mo pousar-estender, passou a significar dizer e falar? Na visada de Heidegger,
esta no a questo. Seguindo a sua trilha, posso dizer que lgos significa dizer
/ falar tendo em vista o prprio recolhimento, isto , o pousar-estender. Nesta me-
dida, o carter mais originrio do lgein no deixado de lado quando o acento
recai no dizer e falar, mas apenas velado. O que isto quer dizer? Quer dizer
que no sentido mais originrio do pousar-estender est contido o dizer e o falar.
Assim, estes no so simples derivados do que se supe como mais antigo (o-
riginrio), mas constituem o lgein desde o princpio. O caso que, concor-
dando com Heidegger, desde os primrdios ...o dizer e discorrer dos mortais
realiza-se como lgein, como pousar. Portanto, no dizer e falar mais originrio
est implicado o recolhimento do que se presenta diante: o acontecimento do
que se des-vela diante como sentido-situado sentido prprio. Ora, dizendo
assim, nada do que se possa afirmar sobre o que ou deixa de ser pode ser
concebido como descolado do ato de pousar e estender diante de si a pre-sena.
Entretanto, o que significa pre-sena sempre algo que s se presenta no
dizer e no falar, o que sempre requer decises e selees invariavelmente loca-
lizadas: um ser-a, portanto, um passado-passando.

Pre-sena indica para o modo de ser-no-mundo prprio ao ser humano.


A palavra uma traduo do Da-sein alemo. O a indicado na partcula Da
o que se encontra dado, o ente presente. Ora, ele s presente na medida em que
j passou. O que presente, portanto, sempre Ente. Entretanto, pre-sena no se
reduz apenas ao que j passou, o presente, porque tambm ser, ou melhor,
passado-passando, ser-sendo. Este ser-sendo nunca apenas o ente simplesmente
dado, nunca apenas o que j se encontra feito, porque tambm o fazer-
fazendo-se: o Ser propriamente dito, mas nunca circunscrito ao limite do dito.
Por definio, Ser aquilo que , mas aquilo que nunca o simplesmente
dado, a pura presena. Ser aquilo que na medida do seu sendo, da sua ec-
sistncia. O que ec-siste encontra-se fora de si: transcende em si mesmo
a si mesmo como estar-lanado. Ser, portanto, indefinvel, porque nunca
apenas o que j era ou o que se mostra presente. Ser, assim, abertura
para o aberto: poder-ser-sendo.

Seguindo essa dinmica da pre-sena (Da-sein), possvel, ento,


afirmar que a nomeao originria do Ser no corresponde sua definio ca-
tegorial, mas apenas ao seu aparecimento enquanto pre-sena, portanto, en-
quanto ultrapassa o pr e destitui o ser de toda e qualquer possvel defini-
o ltima. a que o logos ouvido mais originariamente pode soar como es-
tender diante e pousar. Estender diante, ento, prprio daquilo que
coisa ou ente. Pousar, entretanto, prprio daquilo que re-colhe a potncia no
169

seleiro, visando poder lanar-se no aberto, como continuidade do ser-sendo, e


no mais dos entes simplesmente dados. Quando no seleiro se recolhe o que
se extraio da colheita, pousa-se a potncia do que foi recolhido em uma plata-
forma de lanamento. E esta dimenso do estar-lanado que faz do es-
tender diante e do pousar um modo de dizer o Ser que sempre , porque
sempre um sendo: jogo aberto no aberto de suas possibilidades. Assim, o Ser
nunca o Ente, porque este apenas coisa, fato, acontecimento, e o Ser est
sempre alm do que dele se pode dizer e do que foi dito, porque ele est sempre-
sendo. O do Ser , portanto, o ser-sendo.

Entretanto, essa constatao no foi sempre clara na histria da filoso-


fia e da cincia. Pelo contrrio, esta uma conquista muito recente da discursi-
vidade teortica, e custou muito para que pudesse ser ouvida com seriedade e
respeito. Imediatamente, quem no est acostumado com tais questes metaf-
sicas logo imagina tratar-se de algo totalmente abstrato e distante dos fatos
corriqueiros. A questo do Ser, infelizmente, foi enquadrada na moldura de
uma metafsica ultrapassada pelo progresso da racionalidade moderna. E com
este tipo de crena se acredita que tal questo no passe de um equvoco lin-
gstico, uma formulao deslocada e ingnua da realidade, um estado de insa-
nidade metafsica, justamente porque contrrio ao princpio da vida encarna-
da.

Na perspectiva de uma aproximao hermenutica do pensamento


originrio, o lgein, o pousar, ...perpassa tudo o que est desvelado, como o dizer e
falar (Heidegger, 1978: 115). Ora, isto significa que, desde o princpio, no
dizer e falar que impera o pousar propriamente dito. Segundo Heidegger, en-
quanto pousar que a essncia do dizer e discorrer articula-se. Aqui se esconde
uma deciso mais antiga e mais rica sobre a essncia da linguagem. Neste sen-
tido, Heidegger levanta a seguinte questo: Qual a amplitude da marca que a
essncia da linguagem recebeu do pousar? (1978: 114)

Com essa questo somos lanados no vrtice da metafsica construda a


partir do Logos. Teria a essncia da linguagem sido determinada no pousar que
recolhe? O que isto tem a ver com o tema da cincia e da filosofia? O que inte-
ressa na questo, afinal, que ultrapasse qualquer dos horizontes demarcados
pela tradio, e que diga diretamente a cincia e a filosofia em uma perspectiva
aberta?

De modo inequvoco, a colocao dessa questo diz respeito a um cer-


to modo de ver, a uma certa disposio espiritual para compreender o aconte-
cimento originrio na sua vigncia, e no apenas na sua representao histri-
170

co-crtica construda. Neste sentido, a compreenso se desloca de um plano


arqueolgico e se aproxima de uma abordagem genealgica, o que sempre
pressupe pontos de partida, mesmo quando tais pontos so contestadores e
divergentes dos tradicionais, ou consolidados por tradies culturais vivas.
Este ponto de partida genealgico evita uma compreenso de cincia e filosofia
baseada apenas nas estratificaes / sedimentaes histricas referidas ao pas-
sado, porque localiza o fluxo do sentido na agoridade. a agoridade que permite
que os conceitos de cincia e filosofia preservem a sua abertura mais originria.
E aqui nos deparamos com a imagem da deciso que determinou o processo
metafsico da compreenso da linguagem como um mero instrumento do pen-
samento. Mas isto no quer dizer que, desde a origem, Logos tenha algo a ver
com Razo e racionalidade. A questo de outra ordem. E esta outra ordem
repousa no reconhecimento de que, desde o incio, ... a desocultao do oculto no
desvelado a presena mesma daquilo que se presenta. Denominamo-lo o ser do ente.
(1978: 114). Assim, desde o incio do pensamento originrio, o que se desvela
o ser do ente em sua totalidade, e aqui que o pousar aparece na sua
primazia.

Tocamos a questo da essncia da linguagem. Nesta visada heideg-


geriana, a determinao mais originria da linguagem no nem a phon e nem
o semanein, isto , no nem a fonao e nem a significao das palavras, mas
sim o pousar. Mas, o que isto quer dizer? Como o pousar pde determinar o
sentido do Logos, e como este tornou-se apenas o lugar da verdade racional-
mente articulada?

Para nossa surpresa, o simples se mostra na sua Diferena: Dizer


lgein, isto , pousar. Segundo Heidegger, esta simples frase nomeia um segre-
do antes impensvel: o falar da linguagem se produz a partir do desvelamento das
coisas que se presentam e se determina como o deixar-estendido-conjuntamente-diante, de
acordo com o fato de que aquilo que se presenta est estendido diante de ns (1978: 114).
Nesta sonncia, o logos sempre traz consigo o sentido daquilo que aparece, isto ,
aquilo que se produz e se estende diante de ns. Assim, o logos sempre um
mostrar-se a partir de si mesmo, um auto-mostrar-se na clareira, isto , um
mostrar-se que desvela o ente em sua totalidade.

Essa imagem da clareira bastante sugestiva. Trata-se de um


divisar de coisas e acontecimentos em uma abrangncia compreensiva, onde
tudo se une e se recolhe na clareira. Este divisar clarificante, este recolher do
que se mostra-diante , antes de tudo, um ouvir. como ouvir que o pousar
recolhe aquilo que se presenta diante. Assim, antes da significao ser determi-
nada pela articulao de palavras ela ocorre como ouvir. Entretanto, este
171

ouvir no associado ao rgo receptor dos sons e rudos produzidos por


fontes sonoras externas. Este ouvir o prprio aparecer do nome das coisas
divisadas. Logos, portanto, um ouvir-falante: o recolhimento do ente luz do
ser. Mas, de que modo isto sustentvel? De que modo possvel assentar a
essncia mais originria da linguagem em um ouvir-falante que no uma mera
reverberao de sons externos e repetio de palavras soltas?

Essa operao s se mostra possvel atravs de aproximaes impreci-


sas e inconclusas, porque o que est em jogo no saber como os primeiros
pensadores ouviram primeiro para depois falar, mas saber de que modo isto
ainda impera em nossos atos de fala. A questo, ento, saber como pensa-
mos hoje algo assim como a essncia da linguagem, e de que modo nos enga-
namos com as representaes j constitudas, imaginando que o pousar te-
nha sido apenas o primeiro estgio da linguagem humana.

Se como pousar logos tambm um ouvir primeiramente um ouvir


-, h que se recolocar a questo da tradio logofonocogrfica do Ocidente a partir
de uma outra visada. O que isto significa? Para mim significa um ponto de
no-retorno a qualquer dos regimes morais marcados pelas oposies metaf-
sicas. Aqui de novo pe-se em relevo a atitude fenomenolgica, para no chamar
simplesmente de mtodo fenomenolgico, porque a palavra mtodo encontra-se
carregada de uma pretenso de universalidade e monolingusmo que impede a
apreenso da amplitude do estado de abertura que se descortina a partir da
radicalidade do ponto de partida, e em seu lugar impe hierarquias axiolgicas em
nome de prticas de dominao e excluso. Assim, alcanando este ponto de
no-retorno aos regimes metafsicos tradicionais, a partir da atitude fenomenolgica
ou radicalidade do ponto de partida, a recolocao da amplitude semntica da pala-
vra logos requisita de ns uma disposio para a escuta atenta do que o Lgos diz.

Heidegger, ao tratar do Lgos em Herclito, toma o Fragmento 50 co-


mo motivo para permitir-se uma outra escuta das palavras seminais dos Pensa-
dores Originrios. O Fragmento 50 apresenta, em sua traduo, a trilha seguida
por Heidegger, em uma traduo de Emmanuel Carneiro Leo (1991: 71):

Auscultando no a mim mas o Logos, sbio concordar que tudo um

O que aqui em primeiro lugar aparece o auscultar o ouvir. Herclito


fala do escutar e do ter escutado. O que ele diz ele ouviu do Logos. No ele que
est dizendo de sua cabea algo apenas pessoal, mas ele est correspondendo ao
Logos, convocando quem ouvir possa para ouvir ele mesmo o que diz o Logos.
Este ouvir , em si mesmo, um ouvir com-juntamente. Esta coisa assim dita nos
172

soa hoje trivial e at mesmo ingnua. Estamos to viciados ao logos discursivo


que nos deixamos levar pelas representaes triviais da linguagem ordinria.
Ento, de modo quase espontneo, passamos a acusar o Logos de ter sido o
causador dos males da civilizao ocidental, porque a palavra parece estar de-
finitivamente significada pela tica de um racionalismo pragmtico capaz de
alcanar os extremos das oposies metafsicas comuns. Ento se chega a di-
zer: A razo ocidental tornou-se o portal do inferno do capitalismo selvagem e da sofisti-
cao telemtica e maqunica do capital virtual aliado a regimes polticos neo-liberais ainda
paternalistas e centralizadores, portanto, acentuadamente excludentes, autoritrios e legalis-
tas.

Essa descrio sumria do modo como o senso filosfico hoje ainda


concebe as mazelas atribudas instituio do Logos ocidental, confundido a
palavra com Ratio, razo, sobretudo na visada do racionalismo da Modernida-
de, o que nos impede de re-ouvir o que diz o Lgos, sem que seja necessrio,
minimamente, que saibamos grego antigo e latim clssico. Neste ponto dis-
cordo radicalmente de Heidegger que afirmava s ser possvel se filosofar em
grego ou alemo.

Em minha compreenso, s se pode filosofar em lngua prpria, e para


ser exato e coerente, a partir de um Logos ouvido como acontecimento da Dife-
rena que a Tudo une no mesmo Um, em primeiro lugar da minha prpria condio
e circunstncia histrico-cultural. Sim, se pode at mesmo contestar esta pos-
sibilidade de s se poder filosofar em lngua prpria, pela constatao de que
no so todas as lnguas vivas ou mortas que, em sua prpria dinmica falante,
encontram-se abertas ao acontecimento de um pensar originrio e seminal.
Deste modo, poderamos supor que a nossa lngua no muito afeita s ques-
tes abertas pelo pensar radical, e deste modo, o nosso estgio cultural (civili-
zatrio) no teria ainda condies de fazer florescer um filosofar genuno a
partir de nossa prpria lngua. Acontece, entretanto, que a nossa lngua no
morta, neolatina e tem suas razes mais antigas calcadas na lngua grega, que
por sua vez indo-europia. Isto confere mltiplas possibilidades plsticas
ainda abertas e indeterminadas pela tradio. Afinal, quando que os filsofos
de lngua portuguesa vo poder alcanar montes vizinhos da estatura de um
Guimares Rosa ou Fernando Pessoa, Ceclia Meireles ou Clarice Lispector? O
que impediria o pensar filosfico de ser to genuno como o poetar portugus
ou a msica brasileira?

Vejo aqui uma questo de de-ciso histrica. claro, o mundo con-


temporneo no quer mais saber de metanarrativas monolinguistas, o que pode
dar a impresso de que no cabe mais a ocupao por um pensamento filosfi-
173

co que seja demarcado em um horizonte de lngua prpria, porque isto recairia,


aparentemente, no esquema de um idealismo absoluto revisitado e travestido.
No nada disto o que me interessa com este texto e com esta fala em favor
de um filosofar em lngua prpria. evidente que temos diante de ns novos
e desconhecidos caminhos e desafios, e porque a Histria s se repete, no
sentido de nada acrescentar de novo, para aqueles que dela se esquecem, ou
por falta de condies existenciais ou por inrcia, e com ela no mantm uma
relao co-responsvel e dinmica.

O fato que vejo claramente uma nova possibilidade para o nosso pen-
sar filosfico, que agora assume como tarefa o ultrapassamento do que j era
o imediatamente dado ao nosso perceber e inteligir legado pela tradio epis-
tmica do Ocidente. Aparece, assim, uma nova clareira para o pensar pr-
prio e apropriado. Como, ento, deixar de ouvir o Logos como escutar-pousar?

Sinceramente essa questo nos joga para o mbito de uma tarefa que
corresponde a uma revoluo cultural de longo alcance. Trata-se de partir de um
novo ponto zero na redescrio fenomenolgica da cincia e da filosofia. Tra-
ta-se de educar para esta possibilidade. Mas, como fazer isto educar para o
exerccio de um pensamento prprio e apropriado?

Tenho apenas algumas pistas, porque a questo no se limita a um mo-


nolingusmo, que seria, por exemplo, o meu modo peculiar e prprio de rein-
ventar o Logos. No nada disto. No uso a palavra inveno de forma to
leviana. Entendo por inveno um ato absolutamente correlacionado com
condies e com contextos muito concretos, o que em nenhum momento
pretende apresentar o novo como simples oposio ao tido como velho pelo
discurso alternativo. Inveno, portanto, quer apenas dizer que preciso a-
prender-a-ser de forma prpria e apropriada, para que o monolingusmo da meta-
fsica tradicional possa dar lugar ao plurilinguismo de uma diferente forma de
compreender a linguagem humana e os processos da intersubjetividade e da
comunicao polifnica e polissmica.

Ento, se do ponto de vista de uma crtica radical dos processos de


significao do mundo preciso deixar-de-lado a ideia obtusa de verdade uni-
versal, por meio dela tambm possvel estabelecer a plataforma de lanamen-
to para novas maneiras de demarcar os territrios simblicos da produo do
conhecimento humano, tendo em vista o alcance de novas e surpreendentes
narrativas que nos joguem de novo no espanto de nossa mais genuna possibilida-
de-de-ser-sendo.
174

Assim posto, o desafio nos convoca a realizar uma potica filosfica


que tem a funo de desconstruir/construir continuamente o objeto dos nossos
desejos de ser-sendo, para alm do mero discurso grafado em moldes acadmi-
cos e esclerosados pela ausncia de oxigenao primeva. E esta se encontra
imediatamente diante de ns, sem tirar nem pr. O que, entretanto, no signi-
fica dizer que j se encontra dada, mas apenas que se encontra imediatamente
em ns como possibilidade.

Como haveremos de entender os discursos epistemolgicos das


cincias fsico-matemticas?

Redescrevendo a atitude epistemolgica: desconstruo herme-


nutica do conceito de epistemologia, segundo sua configurao
analtica epistemolgico, e elaborao de um novo conceito epis-
temolgico.

At aqui discorremos acerca dos conceitos de epistme e de lgos. Segui-


mos um fio condutor aberto e indeterminado. Chega um momento que um tal
caminho j no nos ajuda a ultrapassar o seu prprio horizonte ontolgico
previamente disposto. A atitude epistemolgica requerida para a aquisio e
produo do conhecimento cientfico autorizado, no admite a mistura com as
gangues psicolgicas das singularidades. S as regularidades mensurveis so
admitidas em seu campo experimental. Esta caracterizao da atitude episte-
molgica se prende historicidade de suas posies autorizadas. E como aqui
o que procuramos fazer justamente um afastamento desta atitude de crena
em um epistemologia praticada ao modo dos lgicos fisicalistas e matematicis-
tas, convm esclarecer a gnese do novo conceito de epistemologia aqui elabo-
rado. Fazendo isto, estamos abandonando definitivamente o monolingsmo
dos epistemlogos do sculo XX. No mais falamos em epistemologia ao mo-
do do chamado crculo lgico, sem, contudo, cairmos no engano de descon-
siderar o valor e a importncia da mtrica lgica na estruturao da cultura
contempornea globalizada.

Sem dvida, a palavra epistemologia tem sua prpria historicidade. Isto


no se pode negar. Entretanto, queremos aqui ressignificar a palavra na cons-
truo de uma filosofia do educar polilgica. Vamos, assim, configurar um
novo sentido para a expresso, que agora passa a significar uma operao me-
todolgica de crtica radical do conhecimento possvel e de seus instrumentos e
procedimentos de ao, sem que se perca de vista a impossibilidade de um
conhecimento verdadeiro articulado ao modo de um modelo ideal e monolgi-
co. Este o nosso principal obstculo: como propor uma epistemologia do
175

educar no-verdadeira, se a prpria epistemologia, na sua historicidade, prima


pela crena e manuseio de critrios afirmativamente verdadeiros? Falamos,
ento, de cincia e cientificidade a partir de quais fundamentos e princpios
indiscutveis? Sem os instrumentos usuais de mensurao e clculo, de que
forma se pode pretender fazer uma cincia do educar?

Referncias:

CARRILHO, Manuel Maria. Epistemologia: posies e crticas. Lisboa:


Fundao Calouste Gulbenkian, 1991.

CHAU, Marilena. Introduo Histria da Filosofia. Vol. I. So Paulo:


Brasiliense, 1994.

HEGEL, Georg W. F. Tales de Mileto. In: Os Pr-Socrticos. Traduo: vrios.


So Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 9-10.

HEIDEGGER, Martin. Logos. In: Os Pr-Socrticos; Coleo Os Pensadores.


Traduo: Ernildo Stein. So Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 111-123.

HEIDEGGER, Martin. O que isto a filosofia? In: Heidegger. Conferncias e


Escritos Filosficos; Coleo Os Pensadores. Traduo: Ernildo Stein. So
Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 7-24.

HUSSERL, Edmund. A ideia da fenomenologia. Traduo: Artur Moro.


Lisboa: Edies 70, 1990.

LEO, Emmanuel Carneiro. Os Pensadores Originrios: Anaximandro,


Parmnides e Herclito. Introduo e Traduo Emmanuel Carneiro Leo.
Petrpolis: Vozes, 1991.

NOTAS

Trabalhar com dimenses: inventrio da cultura geral, onde esteja implicada a


educao humana em suas formas, regimes e possibilidades. As dimenses
podem ser: Lgica, tica, Esttica, Poltica e Econmica. Ou, instrumental-
epistemolgica-conceitual-operativa, auto-reflexiva e soberana, inter-reflexiva
176

e percepiente-imaginfica, inter-agente e dominante (legislante e legisladora),


vital-ambiental-escambiante.

Postulados (proposies) de uma Epistemologia do Educar polilogicamente


articulada, articulando e articuladora.

O Educar o Celeiro da Humanidade


O objetivo primacial do Educar desconhecido, mas imperante como
volio ab-soluta
O Educar no possui formas a priori, e nem muito menos formas a poste-
riori. O Educar no tem medidas nem inatas nem adquiridas.
O Educar aquilo que no seu sendo. No se educa melhor hoje do
que ontem, nem nunca se educar melhor amanh.
O Educar no tem medidas e nem muito menos feies. No se pode
querer que se eduque por gerao espontnea. Este um querer vo, in-
conseqente.
preciso querer Educar livremente, isto , cuidar de si mesmo em tudo.
A compreenso o modo de ser do Educar. Mas a compreenso no
meramente contemplativa, teortica. Compreender existir como cor-
po-no-mundo-com. Compreender o mesmo que ser-sendo-mundo-
com.
Uma Epistemologia do Educar esforo compreensivo de uma poca:
haver de fazer-se entender pela urgncia e no pelo artifcio.
Epistemologia do Educar = construindo a conscincia plena de ser-no-
mundo-com, com rigor e altivez.
A epistemologia do educar haver de ser energia - fora viva consciente
do seu ato ab-solutamente livre: ultrapassagem vivente; perpetuao da
vontade soberana, porm impermanente. A fluidez do sendo-imperante:
no-descendncia da crnica insensatez humana: vigor incontido.
Semiticas so lgicas do sentido, portanto, regimes epistemolgicos
dos sentidos.
As representaes e as figuraes do sentido so campos demarcados
por prticas culturais de longa durao, o que prefigura formas de ao
modeladas pela fora do hbito, mas no indica nenhuma lei invisvel
escondida atrs dos fenmenos.
S aquele que tem conscincia perpassa o ambiente como aparece a
quem percebe. S a conscincia transcende o dado e o fato, porque
177

um sendo-em-si. Ora, um sendo-em-si um ser-para-si. Entretanto, no


h ser-para-si limitado em si, exceto o ser-para-a-morte. Mas o ente-
espcie no padece desta morte, perpetua-se no sendo-outro-de-si: a Di-
ferena ontolgica ser-no-mundo-com: a Identidade imperante, multi-
vocamente a mesma.

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