Lacos de Memoria PDF

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 170

PRAXIS

* Tanga rya ngombe Curral de bois (com 4 casas de pastores)


Laos de Memria & Outros Ensaios
Sobre Literatura Angolana
Copyright 2006, Inocncia Mata
& Unio dos Escritores Angolanos
Apresentao
Editor
Capa
Desenhos na Areia
Reviso
Cidlia Cotrim
Design Grfico e Impresso
Zoomgraf-k Niteri
Depsito Legal N 2951/06
Tiragem: 1000 exemplares
1 Edio: Luanda, 2006
Coleco: Praxis n 7
Todos os direitos desta edio UEA
E-mail da Autora: [email protected]
Site: www.uea-angola.org
Fax: 222-323205 Telefones: 222-323205/ 322421
Inocncia Mata

Laos de Memria & Outros Ensaios


Sobre Literatura Angolana

Unio dos Escritores Angolanos


Praxis
ndice
guisa de apresentao: Uma Voz Autorizada ..................... (pg.)

Laos de Memria: a escrita-testemunho como teraputica


na literatura africana os casos de Angola e da Costa do Marfim.............. (pg.)

Maio, Ms de Maria: as guas da memria em movimento.. (pg.)

Pepetela e a seduo da Histria................... (pg.)

Pepetela: a releitura da histria entre gestos de reconstruo...................... (pg.)

Transformou-se o amador em coisa amada?


Joo Melo e a irreverncia da contao...................................................... (pg.)

Sob o signo de uma nostalgia projectiva: a poesia


angolana nacionalista e a poesia ps-colonial............. (pg.)

A funo catrtica da memria na literatura angolana:


o caso de Botelho de Vasconcelos........ (pg.)

Dizes-me Coisas Amargas como os Frutos:


da dico no feminino cincia dos lugares e dos tempos......... (pg.)

Espigas do Sahel: a harmonia do pico e do lrico................ (pg.)


Uma Voz Autorizada
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

Este livro rene ensaios j anteriormente publicados em revistas


de especialidade e apresentados em conferncias e congressos, alguns
dos quais totalmente modificados na sua forma original, o que lhes
d outra dimenso. Por causa da circulao restrita desses ensaios, e
dada a sua importncia para o estudo da literatura angolana, entendeu
a Unio dos Escritores Angolanos dar-lhes forma de livro a fim de
facilitar o seu acesso aos estudantes de Letras. Nestes ensaios Inocncia
Mata percorre algumas das feies mais caractersticas da actual
produo literria angolana, sempre na sua relao com o momento
histrico em que vive o Pas. Desde o costa-marfinense Ahmadou
Kourouma (em dilogo com Boaventura Cardoso) a Pepetela e a
Joo Melo, na fico; de Paula Tavares a Botelho de Vasconcelos,
Maimona, Jos Lus Mendona, Maria Alexandre Dskalos e Amlia
Dalomba, na poesia, Laos de Memria & Outros Ensaios ensaia um
olhar diacrnico sobre a literatura angolana cujos demiurgos a ensasta
situa na gerao da Mensagem.

Os textos ensasticos de Inocncia Mata so de leitura obrigatria


porque so peas profundas sobre os grandes momentos da nossa
literatura, uma viso onde se pode destacar, no s a permanente
dimenso de docncia como elemento desapaixonado de anlise
literria, como tambm se pode notar a grande tarimba ensastica;
Censi, como tratada carinhosamente pelos escritores angolanos,
s uma das renomadas especialistas de literatura que mais descodifica
as metforas, teias narrativas e alegorias da literatura que se fez ontem
e de hoje.

O Editor
Adriano Botelho de Vasconcelos

13
INOCNCIA MATA

14
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

Se fssemos infinitos
Fssemos infinitos
Tudo mudaria
Como somos finitos
Muito permanece.
Bertold Brecht

15
Laos de memria: a escrita-testemunho como
teraputica na literatura africana os casos de
Angola e da Costa do Marfim*

O passado traz consigo um ndice


misterioso, que o impele redeno.
Walter Benjamin

As literaturas africanas, metonmias do percurso histrico dos


pases, parecem hoje coincidir no percurso da sua existncia
funcionando como textos-memria da Histria dos pases. No seu
perodo de emergncia e consolidao dos sistemas literrios, em
que a literatura funcionou como subsidiria da afirmao nacional e
identitria face ideologia colonial, essas literaturas fizeram-se, grosso
modo, relatos de nao em devir. Nesta marcha, o discurso
prevalecente era aquele que buscava sintetizar as diferentes vozes
(afinal, as diferentes vises sobre o processo de afirmao
anticolonial), partilhar memrias histricas e forjadas e colectivizar
angstias e aspiraes.
Hoje, porm, em perodo ps-colonial, essas literaturas
continuam a trilhar o caminho da nao. No entanto, ao invs de
uma nao higinica, este ainda relato de nao tem vindo a fazer-
se pela encenao da fragmentria memria incmoda de diferenas,
intolerncias, conflitos, traies e oportunismos, numa enunciao
narrativa predominantemente de modo evocativo, atravs da qual

*
Este texto continua uma reflexo iniciada aquando do Colquio da APLC Associao
Portuguesa de Literatura Comparada, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa:
Memria e Esquecimento: concepo, recepo, intercepo, 20-21 de Janeiro de
2005.
se convoca um passado bem diferente daquele antes textualizado
histrico, no j idealizado. Assim, um dos territrios da enunciao
ps-colonial o desvelamento da continuidade da lgica colonial
de dominao, agora internalizada, para alm dos inter-
relacionamentos global/local nas relaes internas transversais, que
cruzam o interior destas sociedades. Este deslocamento do olhar
para o interior, para as relaes de poder internas torna-se, neste
contexto, um dos critrios configuradores da esttica ps-colonial,
caracterizada pela persistncia dos muitos efeitos da colonizao e,
ao mesmo tempo, por seu deslocamento do eixo colonizador/
colonizado ao ponto de sua internalizao na prpria sociedade
descolonizada (Hall, 2003: 110).
o que acontece em Maio, Ms de Maria (1997), do angolano
Boaventura Cardoso, e Al no Obrigado (2000), do costa-
marfinense Ahmadou Kourouma. Nestes romances, os autores
ultrapassam os limites do passado reinventado e falam de factos
histricos: no primeiro caso, o quotidiano de represso e medo que
se seguiu tentativa de golpe de estado de 27 de Maio de 1977; no
segundo caso, a memria das crianas-soldados da Libria e da
Serra Leoa que, abandonadas de afecto, vive(ra)m um quotidiano
terrvel amenizado pelo sonho de terem nas mos dlares americanos
e uma kalashnikov! Em ambos os casos, ferozes fbulas polticas
sobre uma frica muito real, portanto na contramo do discurso
celebrativo de que se fez a nao literria, anterior nao cultural e
cvica.
So factos histricos recentes de que os destinadores e sujeitos
so internos, e no j o outro: no primeiro caso, Maio, Ms de Maria,
trata-se do clima de angstia e medo, engendrado pela aco da polcia
de segurana do Estado de Angola, a DISA, clima que se seguiu ao
27 de Maio de 1977, quando uma faco do MPLA, que ficou
conhecida como fraccionista, ensaiou um golpe de Estado, no
sucedido: seguiram-se perseguies nocturnas, prises, torturas,
execues sumrias, valas comuns e desaparecimentos e, embora
poucas famlias angolanas tivessem escapado angstia de no terem
podido fazer o luto dos filhos, este episdio ainda um vazio no
discurso historiogrfico angolano, apesar de ser cada vez menos
silenciado no discurso poltico e afectivo dos agentes sociais; no
segundo caso, Al no Obrigado, a memria do inferno que
foram as guerras tribais dos anos 90, na Libria e na Serra Leoa, em
que meninos de 7-14 anos eram recrutados e iniciados em rituais de
sangue para engrossarem exrcitos criminosos em guerras fratricidas
e no despiciendo o facto de, no Brasil, o tradutor ter optado
pelo ttulo Al e as Crianas-soldados1: guerras levadas a efeito pelos
senhores da guerra nacionais, com a cumplicidade e o
protagonismo dos pases vizinhos e da (dita) Comunidade
Internacional, que o guineense Carlos Lopes define, na esteira de
Joo Cravinho2, como projeco antropomrfica de uma entidade
imaginria por detrs daquilo que se pensa ser um consenso ou a
opinio preponderante sobre determinado tema (2005: 6). Esta
narrativa, em enunciao em primeira pessoa, desenvolve-se atravs
de percursos de vrias crianas que, abandonadas de afecto e de
proteco familiar e social, se tornaram crianas-soldados, vivendo
um quotidiano terrvel amenizado pela sensao de poder que lhes
do uma kalashnikov nas mos, dlares americanos nos bolsos e um
lder-pai, pois, como diz Birahima, o menino narrador,

Quando no se tem pai, me,


irmo, irm, tio, quando no se tem nada de
nada, o melhor ir-se para soldado-criana. As
crianas-soldado3 para aqueles que j no tm
nada a fazer neste mundo nem no Cu de Al.
(Kourouma, 2004: 89)

1
Ahmadou Kourouma, Al e as Crianas-soldados, So Paulo, Estao Liberdade, 2003
[Traduo de Flvia Nascimento].
2
O autor refere-se ao seguinte livro de Joo Gomes Cravinho: Vises do Mundo. As
Relaes Internacionais e o Mundo Contemporneo, Instituto de Cincias Sociais, Lisboa,
2002.
3
A traduo portuguesa optou, incompreensivelmente, pelo plural crianas-soldado.
As duas narrativas, quais relatos testemunhais, so percursos de
personagens que funcionam como metonmias de existncias
africanas; ambas se erigem em relatos que actualizam estratgias
completamente diferentes embora coincidam no facto de serem
movimentos temporais retrospectivos que relatam eventos anteriores
ao seu incio (Reis, 1994: 29), num gesto que activa a memria do
narrador omnisciente (Maio, Ms de Maria) e de Birahima, o menino-
narrador (Al no Obrigado). No primeiro caso, o incio da narrativa
cuja primeira sequncia (todo o primeiro captulo) a missa
(totalmente carnavalizada, mais parecendo uma sesso de exorcismo),
que culmina com a morte do protagonista, Joo Segunda, e da cabra
Tulumba (in absentia) conduz o leitor pelos meandros do passado
remoto e recente da personagem, um velho assimilado negro,
seduzido pelas benesses da colonizao e cptico da independncia,
at aos estertores do colonialismo e aos dois primeiros anos da
independncia marcados por uma inexorvel dinmica:

L em casa, cabra Tulumba


estertorava no exacto momento em que Joo
Segunda se despedia deste mundo ao fim de longos
e atribulados sessenta e cinco anos de vida.
(Cardoso, 1997: 18)

Do mesmo modo, em Al no Obrigado a memria do menino-


soldado (que acabava de deixar de o ser) activada quando, desfeito
o sonho de encontrar a sua amada tia Mahan e despojado, por isso,
de esperana de afecto, j de regresso, na estrada de Abidjan via
Man, no 4x4 Passero do doutor Mamadou Dounbia, seu primo,
este lhe pede que lhe conte o que aconteceu:

Instalei-me bem, bem sentado e


comecei. Decidi. O ttulo definitivo e completo
do meu blablabla Al no obrigado a ser justo
em todas as suas coisas c na Terra. Continuei a
contar as minhas baboseiras durante vrios dias.
(Kourouma, 2004: 166)

O interessante que, mesmo tratando-se de escritores com


percursos nada semelhantes, ambos os romances, angolano e costa-
marfinense, so, como atrs j referi, ferozes fbulas polticas sobre
uma frica em desestruturao poltica, tica, moral e sociocultural,
e que no se compadece j com a confinao memria pr-colonial
ou invectivao da frica colonial, antes se reportando a uma frica
ps-colonial que quer proceder purgao dos seus males pela
superao dos limites da memria remota, para expor as fracturas
do presente. No entanto, pode dizer-se que, embora
contemporneos, as representaes literrias de frica de Boaventura
Cardoso e de Ahmadou Kourouma so muito diferentes.
Nascido em 1927 em Togobala, no pas malink, Costa do
Marfim, Ahmadou Kourouma autor de uma obra cuja primeira
pedra comea a enfrentar a realidade do ps-independncia que, na
altura (1968, data da publicao do seu primeiro romance, Les Soleils
des Indpendances), j no convoca celebrao. Por seu turno,
Boaventura Cardoso, nascido em 1944, em Luanda, autor de uma
obra em que houve cedncia viso utpica do que seria a frica
ps-colonial, sendo apenas o seu quarto livro, O Signo do Fogo, de
1992, o primeiro que intenta um mergulho na histria da resistncia
angolana para desvelar que, afinal, essa no fora to harmoniosa
internamente nem to herica: O Signo do Fogo um romance que,
em dilogo com A Gerao da Utopia, de Pepetela (tambm
publicado em 1992), fala da resistncia no interior do pas,
acompanhando as diligncias anticoloniais de um grupo de jovens,
na cidade de Luanda, nos anos 60, com todos os constrangimentos
exteriores ao grupo (heterogneo a vrios nveis raa4, origem social,
4
Por raa no quero significar qualquer categoria biolgica seno, somente, categoria
discursiva que releva de diferenas biotpicas entre indivduos da raa humana (tais
como cor da pele, textura do cabelo, caractersticas fsicas e corporais, etc), que
funcionam como marcas simblicas e que tm repercusses ideolgicas no edifcio
formao acadmica) e os dissensos surgidos entre os seus membros
falo de dilogo porquanto A Gerao da Utopia autopsia o percurso
de um contemporneo e tambm heterogneo grupo de jovens
africanos que em Lisboa frequentavam a Casa dos Estudantes do
Imprio, nos anos 60, acompanhando-o at 1991, ano em que o
pas comeava a ensaiar a primeira experincia neoliberal e de regime
multipartidrio, aps dezasseis anos (1975-1991) de uma forte
ortodoxia poltica.
Na verdade, a obra de Boaventura Cardoso comea por veicular
uma viso utpica da resistncia anticolonial, primeiro atravs dos
contos de Dizanga Dia Muenhu (A lagoa da vida) e O Fogo da
Fala, e tambm a celebrao da cultura tradicional, com o livro de
contos A Morte do Velho Kipacaa. Apesar de O Signo do Fogo comear
j a laborar com questes incmodas que os angolanos precisam de
discutir para uma pacificao da memria scio-histrica, ser com
Maio, Ms de Maria que Boaventura Cardoso enceta, com recorrncia
a um discurso alegrico, a escalpelizao das sombras da Histria
recente, intentando a reinveno das utopias que nortearam os gestos
dos homens conducentes ao processo da independncia poltica
projecto que o romancista prossegue em Me, Materno Mar
(2001).
Maio, Ms de Maria um romance que tanto passou quase
despercebido crtica portuguesa como no teve em Angola a
visibilidade que se esperaria de um to singular romance, tanto em
termos temticos (precisamente vinte anos aps os fatdicos
acontecimentos ficcionalizados) quanto em termos de renovao
estilstica, no conjunto da obra do autor e no panorama literrio
angolano. Talvez se compreenda este duplo silncio, sobretudo da
crtica angolana: a sua matria diegtica era, altura (1997),
inoportuna (pois se vivia o auge da chamada 2 guerra civil,

sociocultural. Ver: Stuart Hall, Identidades Culturais na Ps-Modernidade (RJ, DP &


Editora, 6 edio, 2001), Albert Memmi, O Racismo (Lisboa, Editorial Caminho,
1993), e Claude Lvi-Strauss, Raa e Histria (Lisboa, Editorial Presena, 1980).
porventura a mais violenta e, nesse contexto, quanto menos fogos,
melhor) e explosiva (pois se reporta ao clima de medo e angstia
decorrentes de uma atroz represso que se seguiu perpetrada pela
entidade ainda destinadora do sentido ptrio). Neste romance, o
autor navega nas guas do Tempo e este o da Histria recente do
pas, evocando-a para provocare, isto , para a fazer falar, a falar
dela e da ocorrer o acto de fazer pensar, que leva ao processo de
um produtivo questionamento, na medida em que esse processo
conduz exorcizao do contencioso. Recorrendo a sinais
identificveis desse perodo (sobretudo polticos, econmicos e
ideolgicos), concentrados na vivncia de uma famlia, que se faz de
meandros dolorosos de um quotidiano tumultuoso e feito de
constantes reagenciamentos psicossociais e polticos, a narrativa
que, como j se disse, comea com a morte de Joo Segunda, o
protagonista, aos 65 anos de idade reporta-se aos dois primeiros
anos da independncia (1975) e actualiza o percurso de vida de
Segunda: negro assimilado, que apresentado no captulo sexto
como um negro com uma instruo superior dos brancos de quem
era subalterno e que por isso se considerava superior maioria dos
negros; enfim algum que

Sabia falar como os brancos de primeira e de segunda,


bordava requebros nas falas do Minho, da Beira Alta,
do Baixo Alentejo, do Algarve, ele que s conhecia a
Metrpole no mapa. Ento os brancos que lhe falavam
assim voc s preto na pele, no corao voc branco como ns,
e ento ele se ria ridente vaidoso. (Cardoso, 1997: 43)

A rememorao da histria da iniciao de Joo Segunda


ortodoxia marxista, de que se torna incondicional por oportunismo,
e o seu desencanto (pois a sua grande mgoa, aps o desaparecimento
do filho, foi ver que aquele era um regime esprio, que no poupava
sequer os seus), envolve narrador e narratrio. Ento, juntos,
desenvolvem um movimento de pura revitalizao psicossocial e
INOCNCIA MATA

afectiva individual e colectiva para adquirir a capacidade de reler


acontecimentos e explicaes que levem a compreenses. Na verdade,
como diz Walter Benjamin, nos seus Ensaios sobre Literatura e Histria
da Cultura, o passado traz consigo um ndice misterioso, que o
impele redeno (1994: 223).
Sendo a histria tanto espao de confrontao de perspectivas
quanto, tambm, espao de produo de conhecimento definitivo,
possvel ler este romance, tal como essoutro em anlise, Al no
Obrigado, como narrativas em articulao com as transformaes
da Histria e das sociedades a que se reportam. Cruzam-se nos textos
referncias factuais: no caso de Maio, Ms de Maria, a referncia
factual nuclear diz respeito aos acontecimentos daquele fatdico ms
de Maio de 1977, em Luanda, ocorrncia feita de uma inicial
violncia golpista e represso contra-golpista que se saldou em
desaparecimentos, prises, torturas e mortes, situao que no texto
representada pelo desaparecimento de jovens no bairro do Balo;
outrossim, h ainda a representao, em remotos flash-backs
(reportando-se ao perodo colonial), da relao colonizados/
colonizadores e, j no ps-independncia, a referncia aos radicalismos
ideolgicos, larvar cultura de clientelismo, ao nepotismo e
corrupo disposies comportamentais dir-se-ia naturalizadas hoje
na sociedade angolana. O texto constri um discurso alegrico, isto
, uma figurao convencionada dirigida inteleco, com recurso a
ces, para, paralelamente deixar transparecer grandes generalizaes
histricas, fsicas ou filosficas (Pires, 1981: 259); e tambm para
representar episdios da histria de que vem fazendo o relato da
nao angolana, tanto a herica quanto a ptrida. Na verdade, esta
figurao de carcter transitivo, funcional e utilitrio dos ces, quais
crberos que funcionam como guardies do mundo subterrneo e
executores da ordem ditatorial do estado policial, visa representar a
situao de ortodoxia ideolgica que ento se vivia. Enquanto isso,
acompanha-se o processo de reconverso ideolgica de Joo
Segunda como diligncia para a sua sobrevivncia e a sua ascenso
social, estratgia recorrente daqueles, como Joo Segunda, cujo

24
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

passado colonial seria rotulado de colaboracionista pela ideologia


dominante: com efeito, o mesmo Joo Segunda que se torna
defensor do status quo do regime dito marxista-leninista sado da
independncia, como bom portugus ensinara aos filhos que

Angola Portugal, ns todos somos


portugueses, era melhor ficarmos com os brancos
do que nos entregarmos nos turras que s estavam
lutar era para transformar Angola num Congo
(Cardoso, 1997: 44).

Se apenas na sua quarta obra, este romance agora em anlise,


Boaventura Cardoso comea a internalizar o seu olhar crtico, pelo
contrrio o primeiro e j clssico romance de Ahmadou Kourouma,
Os Sis das Independncias, datado de 1968, j se reporta a uma
realidade disfrica que em frica se tornou generalizada: a traio
dos ideais e das expectativas da independncia mesmo se, ou talvez
por isso mesmo, o pas Costa dos banos (Cte des bnes, que
convoca, inevitavelmente, associao Costa de Marfim, pas do
autor) e seu vizinho, a Repblica socialista do Nikinai, nome e regime
que remetem ideologica e fonicamente para a Guin-Conacri...
Seguir-se-iam a Os Sis das Independncias os romances Monnet,
Outrages et Dfis, em 1990, En Attendant le Vote des Betes Sauvages,
em 1998 (Prmio do Livro Inter), obras que constroem verdadeiros
libelos contra a natureza totalitria dos regimes sados das
independncias e o modus operandi dos polticos africanos. Allah n
est pas oblig alis, Al no Obrigado o seu ltimo livro, j
adaptado para o teatro pela companhia senegalesa Bou-Saana, da
cidade de Ziguinchor, em Casamance (Senegal), livro que j ganhou
dois prestigiados prmios de lngua francesa, o Renaudot e o
Goncourt des Lycens, este atribudo pelo pblico jovem (o que
prova que este livro est a chegar s camadas mais jovens) alis, o
livro vendera, em dois anos, mais de 200 mil exemplares, mais de
sete mil s em Abidjan, o que deixou o escritor muito feliz prova,

25
INOCNCIA MATA

disse ele, de que a elite costa-marfinense cresceu5, pois em frica


comprar livros ainda um luxo! Romance escrito segundo uma
perspectiva testemunhal, da resultando uma linguagem crua, tal
como as suas personagens, o ttulo Al no obrigado
parafraseia um provrbio africano que diz que Al no tem a
obrigao de consertar as asneiras dos homens, nem tem a obrigao
de se ocupar de todos os males da Terra. O prprio autor explica
numa entrevista da seguinte forma o seu ttulo: Al no obrigado
a ser justo, a dar a oportunidade a todo o mundo. Al est l e
aceita-se o que Ele faz6.
Esta ideia constantemente repetida pelo pequeno Birahima
desde o incio do seu tragicmico relato sobre o percurso das muitas
crianas das violentas guerras civis africanas que com o narrador
(autodiegtico?) se cruzaram (Kid, Sarah, Estabanado, Kik, Fati,
Sekou Ouedraogo, o terrvel, Sossou, a pantera, Johnny, o raio,...),
algures na Libria e na Serra Leoa, onde ele acabar por se tornar
soldado nessas guerras infernais alimentadas directamente pela sanha
torcionria dos senhores da guerra, referidos como bandidos:
Samuel Doe, Charles Taylor, Prince Johnson, El Hadji Koroma
(Libria); Foday Sankoh, Highan Norman, Johnny Kourouma
(Serra Leoa) e seus respectivos aliados, sempre designados como
ditadores: ditador Kadhafi (Lbia), ditador Compaor (Burkina
Faso), ditador Sani Abacha (Nigria), ditador Houphout-Boigny
(Costa do Marfim), ditador Eyadema (Togo), ditador Lansana Cont
(Guin-Conacri)...
Diferentemente da subjectividade da narrao da vida de Joo
Segunda (que se faz com recurso a uma focalizao interna), no relato
autobiogrfico de Birahima no existe comprometimento do autor
emprico, apesar de Ahmadou Kourouma ter sido tambm um

5
Ahmadou Kourouma, Ahmadou Kourouma: contra regimes totalitrios. Entrevista
a Ana Paula Conde, publicada na seco Cultura-e do site do Banco do Brasil, no dia
20 de Outubro de 2003, mas retirada da publicao Tempestade Comunicao.
6
Entretien. Le Franais dans le Monde, nr. 89, mars, 2001.

26
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

permanente exilado que deambulou por pases africanos (Arglia,


Camares, Togo), buscando um lugar em que o pensamento e a expresso
no fossem cerceados: no parece t-lo encontrado tal como Birahima
no parece ter encontrado paz afectiva , uma vez que acabou por se
radicar em Frana, onde viria a falecer no dia 12 de Dezembro de 2003.
No sendo, em rigor, romance histrico, Al no Obrigado
romance que parece romance histrico, com a substncia do seu
enredo a resultar de uma comprovada factualidade (veja-se a
informao histrica sobre datas e locais das reunies, dos acordos,
das batalhas durante essas guerras civis) e de uma simulao de
historicidade, mesmo que no seja uma narrativa de pura extraco
histrica, expresso do brasileiro Alcmeno Bastos (1999). Tal ,
por exemplo, o entendimento de romance histrico de A. W. Halsall,
no seu livro LArt de Convaincre. Le Rcit Pragmatique: Rhtorique,
Idologie, Propagande. Para este ensasta, este (sub)gnero uma
narrativa que faz coexistir, num mesmo universo diegtico, eventos
e personagens histricos e inventados (1988: 217). Ideia que
retomada por Maria de Ftima Marinho, que labora na esteira de
Georg Lukcs: para a ensasta, a interligao diegese e Histria salda-
se, frequentemente, pela incluso de dados rigorosos histricos no
meio da intriga (1999: 20) ainda que esses dados sejam apenas
fragmentos textualizados.
Porm, Al no Obrigado mais do que isto: se por um lado
oscila entre o roman-mmoire e o romance histrico, por outro
caminha entre o romance histrico e o romance biogrfico que
oscilam entre dois plos, o real e o ficcional e em que, nas palavras
de Jacinto Prado Coelho, o universo homogneo porque o fictcio
absorve, integra e transfigura o real, a personagem histrica
transforma-se numa personagem de fico (1983: 21). Assim, se
Birahima pode ser um qualquer menino costa-marfinense, os
referentes que o configuram funcionam cumulativamente como
elementos recebidos do real e partes estruturais dum mundo suposto,
s existente no imaginrio (idem). verdade, pois como dizia
Georg Lukcs, j em 1937, o importante no romance histrico no

27
INOCNCIA MATA

o relato dos grandes acontecimentos histricos, mas sim a arte de


fazer ressuscitar poeticamente os seres humanos que participaram
nesses acontecimentos...
Pode dizer-se, portanto, que nem Maio, Ms de Maria nem Al
no Obrigado podem ser considerados romances histricos, na sua
definio clssica, isto , segundo um modelo que remonta ao
Romantismo apesar do ostensivo jogo com a factualidade: em
Al no Obrigado a factualidade reporta-se s brbaras guerras civis
naturalizadas pelos Africanos e consentidas pela Comunidade
Internacional, benevolncia do Ocidente em relao aos ditadores
africanos (pees no xadrez das influncias), ao negcio das armas,
dos diamantes, da borracha, enfim. Na verdade, ambos os romances
intentam o pacto com a veridicidade, pacto necessrio para baralhar
a relao entre a histria e a fico que, de forma intencional e
tensional, os autores procuram, para tornar visvel e reescrever a
histria negada: aquela, em Maio, Ms de Maria, silenciada pela
Histria oficial (do MPLA, vale dizer), ou que a Comunidade
Internacional ignora, no segundo caso. Assim, nem Maio, Ms de
Maria nem Al no Obrigado se fundamentam na demonstrao
da performance gloriosa do passado como nas narrativas do projecto
nacional da escrita libertria erigindo-o, o passado, a lugar simblico
da comunidade.
Diferentemente, nestes romances a evocao do passado,
condicionada pela dinmica ps-colonial (cuja constante o
questionamento), investe na encenao do passado como modelo
de explicao do presente: em Al no Obrigado, o leitor fica a
compreender a dinmica dos conflitos naquela parte de frica, com
causas que mergulham as suas razes no trfico negreiro e no sistema
escravocrata transferido para a Libria e sobre o qual a Amrica se
construiu, causas que continuam na moldura da emancipao
colonial assim como nas relaes com a antiga potncia colonial e
no lugar dos pases que para Birahima so todas repblicas
bananeiras corrompidas da frica francfona (Kourouma, 2004:
7) no xadrez do jogo neocolonial; em Maio, Ms de Maria, o

28
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

presente em Angola tanto a discusso sobre a legitimidade do


regime para conferir estabilidade democrtica e desenvolvimento
sustentvel ao sistema, como o facto de ser nestas disposies
estabilidade democrtica e desenvolvimento sustentvel que se
alicera o processo de recuperao psicossocial e de reconciliao
da comunidade em situao ps-conflito e ps-ditatorial. como
se o autor, Boaventura Cardoso (e, com ele, Adriano Botelho de
Vasconcelos e E. Bonavena, poetas angolanos que sentem tambm
a necessidade de transfigurar em poesia esse passado recente)
dissesse que o reconhecimento oficial de crimes passados e o
respeito pela dignidade e memria das vtimas so passos
fundamentais no processo de reconciliao e de construo do
tecido social (Simes, 2002: 71). Leia-se, por exemplo, E.
Bonavena, em Os Limites da Luz:

Devo dizer-vos que


a memria no azeda,
luz e necessidade vital
da nossa identidade,
no traz po boca
das novas geraes!
(Bonavena, 2003: 24-25)

, pois, como se os autores quisessem afirmar, na esteira do


arquitecto italiano Paolo Portoghesi, que a perda da memria,
e no o seu culto, que far os homens prisioneiros do passado
(1982: 111). Porque do que os autores intentam falar da
necessidade teraputica de desocultao do passado, para o
exorcizar e, ao mesmo tempo, fazer passar a imagem da Histria
vivida e partilhada, com a distncia que o tempo proporciona,
pelo desencanto e pela perda da inocncia: o que narra Birahima,
o menino-soldado, o seu ritual de iniciao guerra, a sua perda
da inocncia eu ousaria, at, dizer a sua iniciao condio
africana:

29
INOCNCIA MATA

Quando se diz que h guerra


tribal num pas quer dizer que grandes bandidos
salteadores distriburam o pas entre si.
Distriburam entre si a riqueza; distriburam o
territrio; distriburam entre si os homens.
Distriburam tudo e tudo entre si e o mundo
inteiro deixa-os fazer isso. Toda a gente os deixa
matar vontade os inocentes, as crianas e as
mulheres. (Kourouma, 2004: 37)

Por outro lado, para alm da laboriosidade retrospectiva, quase


arqueolgica, da memria (ainda que a memria humana tambm
pressuponha capacidade de imaginao e inveno), a sua dimenso
conciliatria opera, tambm pelo esvaziamento da tenso, a
desvinculao entre o passado e o presente, enquanto este vinculado
ao futuro pelo gesto de reconstruo que o processo rememorativo
implica.
Com efeito, ensina-nos Andreas Huyssen, o passado no est
simplesmente ali na memria, mas tem de se articular para se
transformar em memria (1997: 14): veja-se que o menino se
projecta no futuro, no s porque consegue contar a sua histria,
mas porque o faz recorrendo a instrumentos do saber, que so os
dicionrios do malink Varrasouba Diabat, outro refugiado de
Togobala, ex-intrprete do ACNUR, morto na aldeia de Worosso,
o aquartelamento do generalssimo El Hadji Koroma, onde tambm
perecera sua tia Mahan, por solidariedade com todos os refugiados
do acampamento (2004: 163). Este trabalho de rememorao, ao
mesmo tempo que articula biografias e performances colectivas,
testemunhadas ou partilhadas, tambm as oblitera e as dilui na
coreografia mesma da temporalidade pois pensar esquecer
diferenas, como diz Irineu Funes, o narrador de Funes, el
memorioso, conto de Jorge Lus Borges, o homem de uma
prodigiosa memria, razo por que o presente se lhe tornara
insuportvel. Veja-se, por exemplo, Birahima, que se abstm de

30
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

nomear o horror quando se dispe a falar de seus companheiros,


recorrendo amide a expedientes como discursos iterativos,
amplificantes na sua significao de horror e dor, de que se ressaltam
apenas dois exemplos7:

No tenho gosto para contar porque no sou obrigado


a cont-la e porque me magoava, me magoava muito.

O campo era delimitado por crnios humanos espetados


em estacas, como acontece em todos os acampamentos
da guerra tribal da Libria e da Serra Leoa.

Afinal, o que os autores (ainda) fazem a escrita da nao


mesmo se para Ahmadou Kourouma se trate de uma transnao,
ainda resgatando os ideais do panafricanismo , por via da agitao
das guas mansas da memria, via por que dissensos e conflitos fazem
eco no discurso da Histria e se tornam explicativos na textura
significativa do presente.

Queluz, Janeiro de 2005

7
Existem outros exemplos de discurso do tipo frequentativo, mas so de natureza
repetitiva, que no acrescentam, em termos de mais-valia semntica, significao
textual. Dois exemplos: Al no obrigado a ser justo em todas as coisas desta terra. E
pronto. Ou Al , na sua imensa bondade, nunca deixa vazia uma boca que criou.

31
INOCNCIA MATA

32
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

Maio, Ms de Maria
as guas da memria em movimento*
O passado traz consigo um ndice
misterioso, que o impele redeno.

Walter Benjamin

J uma vez afirmei8 que a literatura angolana tem vindo a


antecipar questes incmodas que os angolanos precisam de discutir
para uma pacificao da memria scio-histrica e para a
escalpelizao das sombras da Histria recente, intentando a
reinveno das utopias que nortearam os gestos dos homens que
conduziram a independncia poltica. Vrias so as obras em que
este parece ser um dos efeitos de leitura, desde A Gerao da Utopia
(1992) e Parbola do Cgado Velho (1996), de Pepetela, a O Signo
do Fogo (1992) e Maio, Ms de Maria (1997), de Boaventura
Cardoso, e aos recentes livros de poesia, Os Limites da Luz (2003),
de E. Bonavena, e Tbua (2004), de Adriano Botelho de
Vasconcelos. Escritas nos ltimos dez anos, estas obras no se
realizam, diferentemente dessoutra escrita da Histria como Nzinga
Mbandi, Lueji ou A Casa Velha das Margens, por via de
reinterpretaes fundadoras, isto , a partir de elementos de culturas
e histrias da margem, mas atravs da actualizao da memria de
factos indizveis, como o caso deste romance de Boaventura
Cardoso, que constitui objecto do presente ensaio.

*
Rita Chaves, Tania Macdo & Inocncia Mata (Org.), Boaventura Cardoso a Escrita
em Processo, S. Paulo, Alameda/Unio dos Escritores Angolanos, 2005.
8
Ver: Inocncia Mata, Literatura angolana: fices e realidades um olhar diacrnico
(1997). Literatura Angolana, Silncios e Falas de uma Voz Inquieta, Luanda, Kilombelombe,
2001.

33
INOCNCIA MATA

Nessa minha reflexo atrs citada, tambm de 1997, eu afirmava


que, alicerando-se numa matriz memorialista poltico-cultural, tais
obras, mencionadas como diferentes relativamente escrita da
Histria, resgatam a memria (individual, grupal ou segmental),
muitas vezes dolorosa e traumtica, e a redimensionam para a
confrontar com o presente. Nesta medida, estas obras funcionam
como escritas catrticas que reafirmam a necessidade de se discutirem
temas incmodos estrategicamente rasurados das preocupaes
quotidianas da inteligentsia (Mata, 2001: 85).
Tambm j foi referido9 que este romance, Maio, Ms de Maria,
publicado em 1997, tanto passou quase despercebido crtica
portuguesa (apesar de ter sido publicado em Portugal), como no
teve em Angola a visibilidade que se esperaria, devido ao assunto a
que se reporta e ao momento da sua publicao. Apesar da sua matria
diegtica ser de extraco histrica, no se pode dizer que Maio, Ms
de Maria possa ser considerado um romance histrico clssico,
segundo um modelo que remonta ao Romantismo. A diferena entre
o que se conhece sobre este subgnero e que para Avrom Fleishman
toda gente sabe o que (1971: 3)10 e Maio, Ms de Maria que,
enquanto aquele se fundamenta na demonstrao da performance
gloriosa do passado, erigindo-o a lugar simblico da comunidade,
neste romance a evocao do passado, condicionada pela dinmica
ps-colonial (cuja constante o questionamento), investe na encenao
do passado como modelo de explicao do presente. Este o modelo
metafrico, na sua especificidade metonmica (entendendo que tanto
a metonmia como a sindoque so formas secundrias de metfora)11,

9
Inocncia Mata, Maio, Ms de Maria um livro que fala da histria atravs da
religio. Mar Alm Revista de Cultura e Literatura dos Pases Africanos de Lngua
Oficial Portuguesa, n. 1 Fevereiro de 2002 (Lisboa), pp. 133-134.
10
A frase de Fleishman Everybody knows what a historical novel is. The English
Historical Novel Walter Scott to Virginia Woolf, Baltimore/London, The Johns Hopkins
Press, 1971.
11
Sobre os modelos de explicao historiogrfica, ver: Hayden White, Trpicos do
Discurso: Ensaios sobre a Crtica da Cultura, So Paulo, Edusp, 1994.

34
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

no sentido em que a metonmia, sendo redutiva nas suas operaes,


forneceria um modelo da forma de explicao (...), pois esta se
caracteriza por apreender o campo histrico como um complexo de
relaes entre parte e parte e por tentar compreender esse campo em
funo das leis que ligam um fenmeno a outro como uma causa
associada a um efeito (White, 1994: 92). Isto : diferentemente da
metfora, que se fecha numa similaridade, a metonmia no favorece
um centro e se amplia em relaes de contiguidade. Parece-me, creio
eu, ser disso que se trata na representao desse perodo de medo e
incertezas que foi a histria do 27 de Maio: a tessitura romanesca
recorre a sucessivas e contguas mediaes12 como as guas, os ces, os
desmaios, a cabra, as manifestaes da defunta D. Zefa, o ms de
Maio, as vises de Maria, enfim... que podem ser estruturadas como
modelos de explicao simblica e alegrica.
No entanto, com este romance Boaventura Cardoso dava
continuidade a um projecto que comeara em O Signo do Fogo
(1992), em que, em complemento com o universo de resistncia
no exterior que se apreende em A Gerao da Utopia, o autor de
Dizanga Dia Muenhu (a lagoa da vida) se prope transformar a
lagoa da Histria num rio escorrendo pelo leito da memria de
vrios chos, regando o cho da nao que se pretende plural, pelo
encontro de outros afluentes, isto , outras vises da Histria. Neste
romance de 1997, Maio, Ms de Maria, o autor navega nas guas do
Tempo e este o da histria recente do pas. Recorrendo a sinais
identificveis desse perodo, concentrados na vivncia de uma famlia,
que se faz de meandros dolorosos de um quotidiano tumultuoso e
feito de constantes reagenciamentos sociais e afectivos, a narrativa
que comea com a morte de Joo Segunda, o protagonista, aos 65

12
Entendo aqui por mediao, na esteira de Fredric Jameson, o termo dialctico
clssico entre a anlise formal de uma obra de arte e o seu cho social, ou entre a
dinmica interna da estrutura esttica e a base scio-poltico-econmica, isto , a
relao entre nveis e instncias e a possibilidade de adaptao das anlises e descobertas
de um nvel para outro (Fredric Jameson, O Inconsciente Poltico: a Narrativa como Acto
Socialmente Simblico, So Paulo, Editora tica, 1992, p. 35).

35
INOCNCIA MATA

anos de idade reporta-se aos dois primeiros anos da independncia


e actualiza o percurso de vida de Segunda, negro assimilado, assim
apresentado no captulo 6:

Quando estava na prosa com gente da


sanzala se comunicava bem em kimbundo e umbundo,
com provrbios e anedotas chalaantes, ou ento
linguajava em pretogus, que se fazia entender. No
meio dos brancos Joo Segunda que afinava os putu
dele, fia da me!, donos da lngua se conseguiam de
lhe imitar? Sabia falar como os brancos de primeira e
de segunda, bordava requebros nas falas do Minho,
da Beira Alta, do Baixo Alentejo, do Algarve, ele que
s conhecia a Metrpole no mapa. Ento os brancos
que lhe falavam assim voc s preto na pele, no corao
voc branco como ns, e ento ele se ria ridente vaidoso.
(Cardoso, 1997: 43)

Ao longo da narrativa, em flash-back rememorativo, vo-se


notando sinais de uma desestruturao psicossocial, a primeira da
qual foi a deciso de Joo Segunda em abandonar Dala Kaxibo, a
sua vila do interior de Angola, para se instalar em Luanda ele que
nunca se manifestara adepto da ideia da independncia e que at
ensinara aos filhos que Angola Portugal, ns todos somos
portugueses, era melhor ficarmos com os brancos do que nos
entregarmos nos turras que s estavam lutar era para transformar
Angola num Congo (Cardoso, 1997: 44). A famlia, no entanto,
apesar da sua frota de quinze camies, chega j amputada na sua
afectividade, com a morte repentina da matriarca, D. Zefa, durante
a viagem, a poucos quilmetros do Dondo (1997: 29). J em
Luanda, Segunda, passado o primeiro enfrentamento espcio-cultural
e social, enceta um ritual de aproximao aos valores vigentes da
sociedade, os ditados pelo monolitismo do partido nico. Guiado
pela tica do ter ou, talvez, pela tica da sobrevivncia , Joo

36
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

Segunda reinventa o seu mundo, mesmo custa de algumas fracturas,


a comear pelo corte de relaes com os compadres da Terra Nova
que o tinham acolhido: decide, ento, arranjar casa prpria, pois
no suportava mais o ambiente de l em casa, as piadas e as
insinuaes (Cardoso, 1997: 36), acabando, at, por aceitar o
casamento de sua filha Hortnsia com um militar sem instruo, de
origem social no assimilada (Cardoso, 1997: 47) e que, por isso,
segundo os seus antigos valores, no consideraria digno socialmente
de sua filha razes confirmadas pelo espalhafato oferecido pela
famlia do Comandante, o noivo, durante o copo-dgua (os
discursos, os gestos, os comportamentos) que veio tornar evidente
o contraste entre a origem social das duas famlias (Cardoso, 1997:
52-56):

Comandante era homem tinha parece


ter trinta e tal anos, cabea meia careca, barriguinha
dele saliente, barba descuidada, falha sibilante nos
dentes, gestos sem mesuradamente, araviava alto num
portugus misturado com uma lngua que Segunda
no pde lhe identificar. (Cardoso, 1997: 49)

O sentido de sobrevivncia de Joo Segunda pode dizer-se pautado


pelas convenincias ditadas pelas disposies de um regime que
estimulava relaes de nepotismo e clientelismo. E embora os filhos
se mantivessem distantes do cunhado, por causa das suas maneiras
grosseiras (Cardoso, 1997: 57), Joo Segunda acabar por se adaptar
nova situao e, at, tornar-se um situacionista e usufruir das benesses
que o novo regime lhe concede por via do genro. Este funciona como
veculo de acesso ao crculo do poder, que permitiria a sua chegada aos
patamares da nomenklatura que podemos definir, na esteira de Eddy
Prez, como a oligarquia da burocracia (2003: 60) instalada no
poder e assim como o acesso aos negcios (o que, em regime de partido
de orientao dita marxista-leninista, seria ilcito):

37
INOCNCIA MATA

Meus filhos, embora o segredo seja a alma


do negcio, o que posso dizer-vos simplesmente que
tenho uns negcios com o vosso cunhado. Dinheiros nos
bancos aqui, umas casas l fora para vocs passarem
umas frias. tudo. Por enquanto, no vos posso dizer
mais nada. (Cardoso, 1997: 58)

Comeara a ascenso poltica de Joo Segunda. Na verdade, o


Comandante era um caso tpico de ex-guerrilheiro que pensava que
o pas lhe devia gratido ad eternum, para quem eram legtimos o
enriquecimento ilcito e a utilizao do cargo para negcios esprios.
Com tais apoios, assim o dos moradores do Bairro do Balo, que s
existia na imaginao dos seus moradores apesar de ser apenas um
espaozinho diminuto, sem importncia, um bairro de fico
(Cardoso, 1997: 75) , Joo Segunda vivia a sua fico:

Que Joo Segunda ostentava com


desmedida vaidade os cargos que detinha, em todas
circunstncias exibia os ttulos. Tinha mandado
imprimir toda essa vaidade em cartes-de-visita de
todos os tamanhos para lhes distribuir nos amigos e nas
ilustres individualidades. s vezes ficava assim estava
mirar nome dele escrito impresso, gostosamente. Tinha
largas dezenas de lenos de bolso, camisas de cambraia
encomendadas do Putu, gravatas de muitas cores, laos,
tudo com o nome dele de Joo Segunda gravado. Nos
copos e na loia de Alcobaa e de Vista Alegre, era o
mesmo. (Cardoso, 1997: 78)

Para reforar a sua posio sociopoltica, faltava a Joo Segunda


um desafio poltico que o fizesse entrar no apertado crculo de
tribunas e palanques, de fotografias no jornal e imagem na televiso,
lugares que funcionam em relao sinedquica com a nomenklatura.
Esses desafios eram: a Presidncia da Comisso do Bairro do Balo,

38
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

depois da Presidncia do Conselho de Moradores do Prdio do Balo


e do Futebol Clube do Balo, funes que ele haveria de cumprir
com zelo popular (Cardoso, 1997: 69).
interessante notar como essa fico se assemelhava do tempo
colonial. No , por isso, despiciendo o facto de que, no topo da
sua carreira sociopoltica, a sua pose e os sinais exteriores com que se
identificava, designadamente a sua indumentria, fossem os mesmos:

Agora Presidente do bairro, que vaidosava


mais. Joo Segunda voltara a usar os antigos fatos que
usara nas grandes festas de l em Dala Kaxibo, que
Lusala tinha conservado meticulosamente, para que a
traa no lhes inutilizasse. Naquele outro tempo
Segunda tinha sempre ocasies para envergar fatos dele,
casamentos e baptizados, Natal, Pscoa, 15 de Agosto,
5 de Outubro. (Cardoso, 1997: 77)

Com a ajuda do genro, com efeito, Joo Segunda havia-se tornado


um membro da nomenklatura um estatuto que, na sua imaginao,
s a morte lhe podia tirar (Cardoso, 1997: 79). Pusera de parte no
apenas os seus valores morais e mundivenciais (como as conversas
com o esprito de D. Zefa, a ateno s falas da cabra Tulumba ou
a igreja). Porm, apenas quando os excessos o atingem (que comeam
a anunciar-se a partir do captulo 12 com o surgimento dos primeiros
ces), com o desaparecimento de Hermnio, seu filho mais velho, e
de outros jovens do Bairro, Joo Segundo torna-se crtico, resgatando
os valores que haviam norteado a sua vida.
Com fundamento ficcional no cho na Histria do pas,
Boaventura Cardoso busca nos bas de uma dolorosa memria um
dos momentos trgicos da recente Histria de Angola a mesma
que sugestionou Os Limites da Luz, de E. Bonavena, e Tbua, de
Adriano Botelho de Vasconcelos, curiosamente dois jovens, da
mesma gerao etria e potica, que conheceram as cadeias do MPLA
depois da independncia: a tentativa do golpe de estado de 27 de

39
INOCNCIA MATA

Maio de 1977, e suas sequelas, de que resultaram a perseguio


implacvel, descontrolada e aniquiladora, aos seus autores,
simpatizantes ou simplesmente pessoas com ligaes mais estreitas
com os envolvidos, a morte e o desaparecimento de milhares de
angolanos, muitos dos quais jovens, para alm da angstia de muitas
famlias que no puderam fazer o luto. Tal como na factualidade
histrica, h no romance sinais reconhecveis de um tempo de medo:
a origem sociocultural dos desaparecidos, o horrio e a incidncia
espacial dos desaparecimentos (o B B, a lembrar o B , isto , o
Bairro Operrio, martirizado pelas prises ps-27 de Maio):

Na escola as professoras lhe assinalavam


jeito dele para redigir bem, boas redaces, e se
admiravam como um preto podia escrever melhor que
um branco e at empregar palavras difceis. De facto,
Hermnio no s escrevia bem como at era o melhor
quando que tinha disputa na palavra puxa palavra, e
um dia no foi ele ento nico s que sabia alcateia
que bando de lobos?
(...)
Os pouco rapazes do Prdio tinham
deixado de ficar sentados nas escadas a conversar longas
horas como antigamente. Chegavam das aulas e se
refugiavam imediatamente nos apartamentos e de l
s saam no dia seguinte. Tinha rapazes que tinham
fugido para outros bairros, que viver no B B era muito
demasiado arriscado. Que se dizia os ces s atacavam
de noite, de dia as pessoas podiam andar descansadas.
Mesmo assim, de dia s se viam pelas ruas mais velhos,
mulheres e crianas, no tinha quase juventude
nenhuma. (Cardoso, 1997: 85-88)

Na verdade, romance publicado vinte anos depois desses


nefandos acontecimentos, Maio, Ms de Maria uma pungente

40
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

narrativa que desenvolve duas buscas: a busca de um discurso


alternativo no condicionado por um pensamento nico situao
que obrigou Joo Segundo urgncia de abdicar da sua prtica religiosa
para melhor se encaixar no esprito marxista-leninista do regime ento
vigente , e a busca de solues para o medo (tempo contaminado
pela rememorao) que se perpetuou na vivncia e na imaginao e
em que crenas e sentimentos sugestionados se revelam de forma cruel
e dolorosa pela memria que aparece como fora subjetiva ao mesmo
tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora (Bosi,
1999: 47); porm, recorrendo a estratgias de re-apresentaes que
intentam questionar imagens cativas do imaginrio (literrio e histrico)
e purific-las. A narrativa desenvolve-se desde o incio como repertrio
meticuloso de desvelamentos de medos de origem vria (o primeiro
de todos, a despoletar o devir diegtico, e que Joo Segunda no sabia
explicar, mas que o fez mudar-se de Dala Kaxibo), de desconfianas a
todos os nveis, do medo vivido em surdina, do terror do silncio e
do rudo, da ignorncia e da ansiedade do amanh. O Bairro do Balo,
metfora da cidade (e esta do pas), o lugar taciturno de desconfianas,
a comear pelo lar em foco: Joo Segunda no conta aos filhos os
meandros do negcio com o genro, estes no lhe contam o que pensam
do cunhado, os empregados Lusala e Catorze calam as suas
desconfianas, os habitantes do prdio e do bairro comentam, em
surdina, o sbito enriquecimento de Joo Segunda...
Se a histria, como disciplina, sendo uma actividade que produz
conhecimentos sobre os quais no h nada a fazer, tambm um
combate que faz avanar o conhecimento (Elikia MBokolo13), j o
discurso sobre o passado, na sua modalidade ficcional, revela que ele,
o passado, ainda no foi ultrapassado, mesmo que muitas vezes seja
recalcado pela retrica oficial da reconciliao, que, no raro, confunde
perdo com esquecimento. Aqui o cruzamento da fico com a
Histria procede no sua reinterpretao, mas talvez sua

13
Professor congols (Congo-Kinshasa), em conferncia na FLUL, no dia 27 de Outubro
de 1997.

41
INOCNCIA MATA

compensao pois trata-se de um perodo silenciado no relato da


nao. contra isso que parece insurgir o sujeito da enunciao da
poesia de Botelho de Vasconcelos (2004: 94) ao afirmar:

As frases
ficaram simples para que atravs de uma senha
se entenda como fomos hbeis em usar das cobras
as sombras at para nas gavetas anularmos
o nome dos irmos.

Ou o grito do sujeito potico da poesia de Os Limites da Luz,


em vrios poemas, em que so lembrados muitos dos amigos mortos
nas prises depois da independncia: Wandalika, Kimpwanza, Nado,
Kangosso, Xandoca, Jacob, Elisirio, Abel... Nomes no ficcionais,
mas reais, pessoas de carne e osso que muitos conheceram, cujas
mes, filhos e familiares conhecemos. Leia-se, por isso, a
laboriosidade retrospectiva da memria, que se realiza entre dois
plos a recordao e o esquecimento , aps a reclamao das
presenas das vtimas da represso, num registo memorialista de
incidncia poltico-social, que vasculha vivncias dolorosas,
submersas sob o peso do discurso da pretensa harmonia social:

Assim,
acreditando na utilidade
desta aritmtica da morte,
se finaram os meus amigos,
precoce e nobremente
mas sem construir
o sonho que lhes soprava a vida.

Apenas me legaram
este dever de memria!...

42
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

(...)
Devo dizer-vos que
a memria no azeda,
luz e necessidade vital
da nossa identidade,
no traz po boca
das novas geraes!
(Bonavena, 2003: 24-25)

Se a poesia de Os Limites da Luz e de Tbua elegaca, nem por


isso deixa, tal como antes o romance de Boaventura Cardoso, de
desenvolver um movimento de pura revitalizao psicossocial e
afectiva individual e colectiva para ensaiar de novo acontecimentos
e explicaes que levem a compreenses. Na verdade, como diz
Walter Benjamin, em epgrafe que agora resgato, o passado traz
consigo um ndice misterioso, que o impele redeno (1994: 223).
como se os autores quisessem afirmar, na esteira do arquitecto
italiano Paolo Portoghesi, que a perda da memria, e no o seu
culto, que far os homens prisioneiros do passado (1982: 111). Do
que os autores falam da necessidade de desocultao do passado,
para o desdramatizar e, ao mesmo tempo, fazer passar a imagem da
Histria, com a distncia que o tempo proporciona, pelo desencanto
e pela perda da inocncia, para que esta, a imagem do passado, se
transforme em realidade em que todos se reconheam no aquela
em que apenas existam consensos, mesmices, harmonia. Por outro
lado, para alm da laboriosidade retrospectiva da memria, a sua
dimenso conciliatria opera, tambm pelo esvaziamento da tenso,
a desvinculao entre o passado e o presente, enquanto este vinculado
ao futuro pelo gesto de reconstruo que o processo rememorativo
implica, pois, ensina-nos Andreas Huyssen, o passado no est
simplesmente ali na memria, mas tem de se articular para se
transformar em memria (1997: 14). Este trabalho de
rememorao, ao mesmo tempo que articula biografias e
performances colectivas, tambm as oblitera e as dilui na coreografia

43
INOCNCIA MATA

mesma da temporalidade, feitas de acidentes vrios e de uma


corografia de excluses e at de liquidaes.
Ora, diz ainda Elikia MBokolo, na ocasio acima referida, que
a histria no apenas combate, mas tambm espao de produo
do conhecimento definitivo. , assim, possvel, ler Maio, Ms de
Maria em articulao com as transformaes da Histria e da
sociedade, na medida em que se cruzam no texto referncias factuais
(de que a nuclear a do ms de Maio de 1977) e ideolgicas, de que
o primeiro sinal o tempo de distopia que, dois anos depois da
independncia, j comeava a manifestar-se. Para alm da inquietao
generalizada, ainda em Dala Kaxibo, o primeiro gesto de reaco ao
desencanto manifesta Joo Segunda com o seu estado de torpor, de
letargia, de medo generalizado (Cardoso, 1997: 84-87).
Com uma construo romanesca que convida a um desvelamento
das representaes sociopolticas de um passado recente e doloroso, que
condicionam os comportamentos dos actantes e adjuvantes desse tempo,
e a direco dos olhares para apreender as falas do imaginrio histrico,
Maio, Ms de Maria assenta num triplo pilar que desde o ttulo vai
dando sentido fico, tecida com fiapos de Histria. Por um lado, o
romance tece uma subtil ironia confuso entre ideologia e crena,
confuso que se pode ler como marca de uma ausncia espiritual que o
radicalismo ideolgico do partido nico gerou e aqui vale lembrar,
com Jameson, que toda a ideologia utpica (1992: 298); por outro,
Boaventura Cardoso traz cena a conciliao entre as prticas ritualsticas
das religies tradicionais de base animista (os pressgios, a cabra Tulumba,
os sinais da natureza, os monlogos dialogantes com a defunta D. Zefa)
e as dos cultos cristos, mormente catlicos porm, no de um
catolicismo ortodoxo, como se v, por exemplo, na cena da exorcizao
do satans, logo no incio (Cardoso, 1997: 13-14). Pela exposio de
uma multitudinria religiosidade, ou sincretice religiosa no dizer do
narrador (Cardoso, 1997: 12), talvez o autor textual queira dizer a
possibilidade de uma identidade mltipla afinal, a identidade (e logo
em Angola!) incompatvel com a fora da homegeneizao e de
uma viso poltica diversa do real.

44
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

Todavia, a ironia contra o monolitismo e o maniquesmo no


sugere uma direco destinatria, antes, pelo indizvel, plana sobre
todos os processos mentais monolticos, tanto religiosos quanto
poltico-ideolgicos e culturais. Assim, opera-se uma descronologizao
do fio histrico para reconstruir um tempo vazio, complexo, o que
faz com que a Histria aqui funcione como lio (Barthes, 1988:
149). Se, por isso, esta destemporalizao acontece, por outro lado
ela torna a fala romanesca mais uma linguagem literria com funo
conativa-apelativa.
O segundo fio deste tecido a aproximao entre o campo e a
cidade, baralhando os sinais de suas especificidades: no apenas pela
deslocao da famlia Segunda, mas ainda pela fala narrativa (em
termos morfossintcticos, fonticos, lexicais e rtmicos), com o seu
ritmo marcado por um coloquialismo inerente ao prprio ritmo
oral, pontuado por expresses fticas, interjeies, imprecaes,
exclamaes, lengalengas e outros artifcios mais frequentes numa
linguagem oral do que numa narrativa escrita. Esta mistura de marcas
faz desse universo de gentes do interior e da cidade uma sntese da
identidade que se vem desenhando a nvel nacional, em que sonhos
e medos, vozes e silncios, ideal e real se interpenetram, a nvel
discursivo e performtico, na conformao de um corpo colectivo,
com memrias dissonantes, como a de Joo Segunda e a do seu
genro, por exemplo: este, de origem angolana duvidosa, e todos os
preconceitos decorrentes dessa condio: Tinha gente afinal estava
falar ele era zambiano, Ningum que sabia ao certo se ele tinha nascido
em Angola ou na Zmbia, ele tambm no dava esclarecimento
indubitvel certo na dvida (Cardoso, 1997: 98); Joo Segunda,
pelo contrrio, conhecedor de suas origens assimiladas, leitor de
clssicos portugueses, orgulhoso da sua condio de portugus,
embora no tendo conscincia do seu estatuto secundrio na
hierarquia da cidadania portuguesa em sistema colonial da ser
irnico o seu apelido: segunda (Cardoso, 1997: 44). Esta
personagem, prottipo do angolano assimilado que se vai
consciencializando, por um processo doloroso de perdas e caos, da

45
INOCNCIA MATA

falcia da sua identidade portuguesa e do regime monoltico do ps-


independncia, a metfora de um corpo em processo de
recomposio identitria, de re-enraizamento, no obstante a
fragmentao que se seguir na sua famlia e no Bairro do Balo;
e, como j se disse, quando se apercebe de que pattico retrato de
desculturado j no tinha lugar na nova Angola que, com
dificuldade, enceta o seu ritual de iniciao ideologia do novo
regime. No se pense, no entanto, que a mentalidade de ex-assimilado
se transforma. Com efeito, toda a narrativa pontuada pelo discurso
de Segunda de subalternizao da cultura africana, pois o seu modelo
se encontra na ideologia cultural do negro assimilado: v-se isso,
por exemplo, na tensa discusso acerca do nome da neta recm-
nascida, que acabaria por se chamar Maria Florence Muyambo
Sipangule, para grande tristeza do av Segunda, que considera este
um nome de gente atrasada (Cardoso, 1997: 99); tal se v ainda
na relao que Segunda tinha com a lngua portuguesa, cujo domnio
constitua, para ele, critrio de civilizao, civilidade e nobreza social
(Cardoso, 1997: 100).
O terceiro pilar onde se tece a trama romanesca assenta no cho
alegrico, adubado com fiapos do fantstico, do maravilhoso e do
simblico: estas categorias percorrem toda a narrativa; porm no
final da narrativa toda ela, afinal, um flash-back que impem o
seu significado quando os desaparecidos (cujas vozes os familiares
ouviam apenas, entre desmaios e transes) aparecem e se misturam
com os vivos para, atravs de uma simbologia aqutica, sugerir, tal
como Pepetela em O Desejo de Kianda, a purificao colectiva e a
revitalizao da memria e preciso lembrar que esse processo se
fizera, em O Signo do Fogo (1989), atravs do fogo. As dimenses,
afinal representativas das vrias pulses da vida, misturam-se num
forte dispositivo mundivivencial em que o culto de Maria se concilia
com outros rituais, fundindo sagrado e profano, cmico e srio, e
efectuando-se a parodizao desse ritual tanto no plano das cenas
como no da linguagem. E lembrando que a pardia pressupe
repetio com distncia crtica que permite a indicao irnica da

46
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

diferena no prprio mago da semelhana (Hutcheon, 1991: 47),


este procedimento pardico permite o dilogo entre passado e
presente, com vista libertao, ainda que provisria, de relaes
hierrquicas, de regras e preceitos morais e ticos. Este procedimento
surge, assim, tambm como uma dimenso canibalesca dos discursos
e performances do passado.
Nessa busca de reconciliao nacional que referi como sendo
um ritual de iniciao, Boaventura Cardoso recorre alegoria,
estratgia marcada pela transitividade (pois a sua relao, sendo
arbitrria e convencional, apenas funcional e utilitria), que gera
significaes para alm das usuais conotaes e dos segundos sentidos
pelo cruzamento dos planos ideolgico, poltico e social e que,
juntamente com derivaes polissimblicas da gua, engendra
significaes ambguas.
Este elemento csmico gua , que simboliza um eterno devir,
isto , uma constante mudana do estado dos objectos do Mundo,
manifesta-se atravs de variaes metamrficas. A sua primeira
manifestao encontra-se na dedicatria, dando sinal do seu lugar
na textura simblica da diegese:

Laura,
Companheira de jangada.

Tanto no seu estado puro quanto atravs de seus duplos (chuvas,


dilvios, aguaas, oceanos, mares, rios, riachos, fundos, gotas e at
choros e lgrimas), a(s) gua(s) acompanha(m) a lgica diegtica
embora muitas vezes o surgimento de uma forma deste elemento
contrarie essa lgica textual: por exemplo, quando o contexto requer
guas pouco profundas, isto , quando as guas deveriam ser
mansas ou claras, surgem agitadas ou turvas, resultando um efeito
de estranhamento, que acentuado pela adjectivao: as guas so
novas, fecundantes, diluvianas, brilhantes, nascentes, estranhas, turvas,
fluentes, chovidas, benditas, alcovais, frescas, doces, salgadas,
constantes, irrompentes, transbordantes, fundas, ocenicas, mansas,

47
INOCNCIA MATA

passadas, travessas, encrespadas, tumultuosas e, por um processo de


reinveno morfolgica, at vascas... Ao todo, conta-se em cerca de
trs centenas o nmero de ocorrncias deste elemento e suas
metforas, desde o incio da histria, no segundo captulo, em que
nuvens negras, juntamente com o estranho comportamento da cabra
Tulumba, pressagiaram que a terra iria tremer em Dala Kaxibo
(Cardoso, 1997: 19) nuvens que se transformariam em infernais
guas diluvianas (Cardoso, 1997: 26) , at ao final da histria/
princpio da narrativa que, em segmento prolptico, apresenta um
final com as guas do dique irrompendo (Cardoso, 1997: 12).
Por outro lado, porm, medida que a narrao avana, comeam
a tornar-se previsveis as derivaes metamrficas da(s) gua(s)
referentes ao contexto da aco e da personagem a que se referem.
Note-se, no entanto, que tais ocorrncias relevam normalmente do
comentrio do narrador em relao s personagens e situao
diegtica que se vai revelando, atravs deste elemento, com
funcionamento simblico. Mas a sua introduo pela voz narrante
to natural que quase se integra no contexto da narrao. Como
acontece na apresentao pormenorizada deste elemento quase no
final:

Encarapeladas, tumultuosas, vinham


correndo guas, arrastando tudo que encontravam na
sua intempestiva cavalgada, limos, algas, os fundos
aquticos se encimando, garavetos, gua-ps, folhas,
ramos de rvores, cepos, tufos de muitos verdes, vinham
transbordantes as guas se espraiando pelas margens,
sulcando as terras por improvisados regos e gaivas. No
meio do leito as guas se revolviam encrespadas, num
movimento circular estrondeante, assim, que fazia
tanta espuma e uma bruma cinzenta escura que se
confundia com as nuvens do cu. (Cardoso, 1997:
211)

48
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

com esta manifestao descontrolada da gua que o texto se


fecha: Joo Segunda navegando em derradeiras guas e Hermnio
surgindo, tarde de mais, quando as guas vascas j transbordavam
do leito (Cardoso, 1997: 211). Neste movimento se instalam
sentidos de perda que transtemporalizam este tempo e o projectam,
profeticamente, num tempo posterior, do sentimento de desencanto
e falncia dos ideais revolucionrios e das promessas de um tempo
paradisaco embora esse sentimento de falncia ainda no fosse
to profundo em 1977, tal como apresentado em Maio, Ms de
Maria e, para alm disso, sendo esse sentimento de perda neutralizado
pelo impulso para a redeno de que fala Walter Benjamin no incio
deste texto.
Este romance apresenta-se como tessitura que faz emergir a fala
da Histria, evidenciando uma estrutura dialgica em que a voz da
enunciao vai expondo as questes a um interlocutor pressentido,
despertando-o para as contradies ideolgicas de um tempo de
certezas, como foram os anos do ps-independncia. Na verdade, o
narrador torna presente a figura do narratrio, um interlocutor
silencioso a confundir-se com o leitor, a quem so apresentados os
meandros das contradies do regime instaurado, questes para as
quais no encontra resposta, antes deixando ambos narratrio e
leitor angustiados. Visto deste ponto de vista, Maio, Ms de Maria
pode ler-se como romance ps-colonial, no sentido em que se operou
um deslocamento do eixo colonizado/colonizador para outras
histrias da Histria, outras relaes de poder, que efectivam a
internalizao destas relaes na sociedade descolonizada. Por isso,
ler o 27 de Maio a partir deste romance realizar, de certa forma,
o iderio benjaminiano de que somente para a sociedade redimida
o passado citvel em cada um dos seus momentos (Benjamin,
1994: 223)...

Queluz, 15 de Agosto de 2004/15 de


Novembro de 2004

49
INOCNCIA MATA

50
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

Pepetela e a seduo da Histria*

I talk about the past mainly because I am


interested in the present.
Ngungi Wa Thiongo

No panorama da literatura angolana, a publicao de Mayombe,


em 1980, um momento de viragem. Com este romance e com
outros que se lhe seguiriam (como Yaka, Lueji: o Nascimento de um
Imprio e A Gloriosa Famlia: o Tempos dos Flamengos), Pepetela
consolida uma das mais produtivas tendncias da literatura angolana
(a relao entre Fico e Histria) e um dos mais portentosamente
ideolgicos veculos de reflexo sobre o pas que acabava de nascer.
Em Mayombe Pepetela (vice-ministro da Educao por ocasio da
publicao) constri uma histria de celebrao do esforo de um
povo pela libertao nacional, cujos protagonistas, guerrilheiros,
funcionam como representao metonmica desse povo. Um
romance de clara estruturao pica, portanto dentro da tradio
literria angolana.
E, no entanto, um romance radical em termos estticos. Radical
em termos temticos: um grupo de nacionalistas com poucas
afinidades entre si para alm do objectivo comum que os mantm
ali, na floresta, um universo que no tem Luanda como pano de
fundo Luanda que sempre funcionou na literatura como metfora
do pas, desde a esttica fundadora da gerao da Mensagem; radical
em termos tcnico-compositivos: vrios narradores que contam uma
mesma histria em que todos so protagonistas, num espao que se
move entre Mayombe, a grande floresta da regio de Cabinda, e

*
Este texto continua e amplia a conferncia proferida na Fundao Luso-Americana
para o Desenvolvimento, em Lisboa, no dia 19 de Outubro de 2000, por ocasio do
encontro com Pepetela, subordinado ao tema Cultura do Desenvolvimento, Cultura
e Desenvolvimento, Desenvolvimento da Cultura.

51
INOCNCIA MATA

Dolisie, pequena cidade na Repblica Popular do Congo (embora


grande parte da aco se passe na floresta); radical em termos
semntico-pragmticos: a singularidade de cada protagonista
manifesta-se na sua origem e, mais importante ainda, na diversidade
das vises sobre a luta e das razes de cada um, embora as suas vozes
conformem uma crnica unificada e centrpeta que se faz ouvir na
voz omnisciente singular do narrador omnisciente, um
supranarrador, que se manifesta logo no incio, na dedicatria: Vou
contar a histria de Ogun, o Prometeu africano; finalmente, radical
em termos ideolgicos e em termos de efeitos de recepo14: o
supranarrador, que se assume como um cronista, prope-se contar,
ele, uma histria que, afinal, acaba por ser contada por todos quantos
nela participam. Porm, essas personagens-narradoras transformam-
se, elas prprias, em homens, diferentemente da contaminao divina,
ou titnica, que o supranarrador havia anunciado no incio: Aos
guerrilheiros do Mayombe, que ousaram desafiar os deuses abrindo
caminho na floresta obscura (M, Dedicatria).
Radical, enfim, foi esta inovao de que se vem falando sobretudo
porque em Mayombe a escrita tem um funcionamento
desestabilizador15 em relao tradicional escrita angolana, pela
apologia da diversidade como fautora de aprendizagem de uma
realidade plural. E o autor consegue isso pela mobilizao de
estratgias discursivas e temticas que visavam ou resultavam na
deslegitimizao de um projecto de nao monocolor em todos os
sentidos: em Mayombe, estamos perante muitas vozes narrantes,

14
Fao aqui uma rpida mas talvez necessria diferenciao entre crtica e recepo:
esta, a recepo, refere-se anlise e ao destino histrico da obra, isto , como uma
obra e o seu autor foram recebidos ao longo de uma determinado espao-tempo;
enquanto a crtica pode ler-se, segundo Franco Meregalli, como uma recepo que
utiliza a leitura como uma operao ulterior (Locha Mateso, La Littrature Africaine et
sa Critique, Paris, AC.C.T./ditions Karthala, 1986, p. 8).
15
interessante Pepetela afirmar, a propsito deste romance, t-lo escrito para discutir
consigo prprio certos temas. Cf. Inocncia Mata, Pepetela e seus leitores estudantes
estrias (histricas) que ficam por contar. Revista frica Hoje (Lisboa), Novembro
de 1997.

52
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

muitas focalizaes, uma galeria de personagens diferentes em termos


ideolgicos, tnicos, rcicos e de estratos scio-econmicos, apenas
unidas num nico objectivo: a luta pela libertao nacional. Portanto,
Mayombe era na altura, de facto, uma narrativa completamente
diferente mesmo em relao a Muana Pu (1979) e obviamente em
relao a As Aventuras de Ngunga, em que o tempo e o espao de
produo, de recepo e de inteno eram completamente outros,
por se tratar de uma novela escrita para servir de manual de ensino
nas zonas libertadas.
O que faz, em suma, deste romance uma novidade no panorama
poltico angolano? que ele tanto anuncia um novo mapeamento
do discurso ideolgico na literatura angolana como actualiza novas
configuraes que a dinmica da Histria vale dizer, sobretudo,
do ps-colonialismo doravante ir impor aos escritores angolanos.
no contexto do desvelamento do valor e significao dessas
metamorfoses que podemos situar a obra de Pepetela, de que
Mayombe um exemplo determinante. A sua obra indicia um forte
movimento de reorientao do olhar sobre o pas atravs de um
contra-discurso que no efectua rupturas com a literatura
consagrada, mas que opta por representar a diversidade, celebrando
as vrias raas do homem para reescrever a viso euforicamente
uniformizante da Histria dos sujeitos africanos, prevalecente na
poesia dos demiurgos do sistema literrio, os da gerao da
Mensagem, e nas narrativas de combate que sempre tomaram
Luanda como lugar privilegiado da gestao do pas.
Ao propor uma viso plural daquele grupo, para se afastar da
viso uniformizante construda sob o signo da reivindicao
nacionalista, o autor parece consciente de que s potencialidades do
contra-discurso literrio se opem as suas limitaes quanto a uma
revoluo no contexto da discursividade dominante (que, no mbito
do que tenho vindo a considerar, a literatura consagrada). Pelo
que as exigncias da conscincia impem agora uma contra-epopeia
poltica e social passvel de referenciar a transformao dos ideais, na
altura j em processo de questionamento: no se pode esquecer que

53
INOCNCIA MATA

em 1980 o MPLA j havia passado por duas importantes fracturas,


a Revolta Activa (1974) e o chamado Fraccionismo (1977).
Neste sentido, a escrita pepeteliana segue o pressuposto de
Richard Terdimann16 segundo o qual o contra-discurso tem o poder
de situar e relativizar a autoridade e a estabilidade do sistema
discursivo, mas no o de efectuar uma revoluo efectiva uma vez
que est condenado a ser marginal em relao discursividade
hegemnica (Terdimann, 1995: 98). Assim, Pepetela em muitos
dos seus romances no inventa um outro lugar, mas prope a
deslocao radical dentro de um mesmo lugar (Santos, 1994: 279-
280), agenciando tanto a catarse dos lugares coloniais (Yaka, A
Gerao da Utopia, A Gloriosa Famlia) como as tenses ps-coloniais
(O Co e os Calus, A Gerao da Utopia, Parbola do Cgado Velho)17,
como ainda as pr-coloniais, com em Lueji ou em Parbola do Cgado
Velho. Um exemplo cruel dessa tentativa de agenciamento catrtico
dos lugares ps-coloniais l-se no discurso que actualiza os receios
das personagens da Munda em Parbola do Cgado Velho,
designadamente quanto distino entre os militares dos dois
contendores, semanticamente conotados com o MPLA e a UNITA,
demonstrando que o sujeito opositor j no o outro, mas o
mesmo, isto , ns mesmos (o que subverte a viso
necessariamente maniquesta da literatura nacionalista em que as
tenses eram lineares e a relao de alteridade bem transparente):

Mas ento o Kanda dos nossos e o Luzolo do inimigo?


Penso que sim. Pelo menos o Kanda dos meus nossos, no
sei quais so os nossos dos outros.
(PCV, 1996: 100)

16
Apud Helen Tiffin, Post-colonial Literatures and Counter-discourse. Bill Ashcroft,
Gareth Griffiths & Helen Tiffin (ed.), The Post-colonial Studies Reader, London and
New York, Routledge, 1995.
17
A esta lista devem ser acrescentados hoje: Jaime Bunda, Agente Secreto (2001),
Jaime Bunda e a Morte do Americano (2003) e Predadores (2005).

54
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

Outrossim, o mesmo romance d tambm exemplo desse tempo


pr-colonial no to harmonioso, em que o passado de medo
rememorado em guerras pr-coloniais, na opresso dos sobas, nas
guerras de kuata-kuata e continua na opresso e represso coloniais,
nas revoltas e nas guerras coloniais, na guerra civil que tinha chegado
Munda...
Quando em 1980 uma dcada de viragem na literatura
angolana, como o fora a mesma dcada no sculo XIX Pepetela
publica Mayombe, a fico angolana levava um sculo de existncia,
desde a novela Ng Mutri (1882). Ao desvendar os caminhos e os
processos da fico angolana, possvel referenciar os dois lugares
fundamentais em que ela faz a gestao do pas Lunda e Luanda,
metforas da existncia de duas Angolas (Padilha, 1995, p. 89), na
senda das consideraes de Anbal, o Sbio, de A Gerao da Utopia:

H duas Angolas, elas se defrontaram.


Duas Angolas provenientes dessa ciso da elite, a
urbana e a tradicional. [...] Temos de tapar esse fosso,
voltar a criar as pontes. (AGU, 1992: 306)

Com efeito, talvez possamos remontar a Alfredo Troni para


registar a primeira representao da paisagem humana de uma Luanda
a fazer-se urbana alguns, dimensionados na ideologia luso-
tropicalista, preferem crioula, como se todas as (grandes) cidades o
no fossem e continuem a ser! A ser assim, talvez no seja arbitrrio
ler Ng Mutri como a primeira viso literria de uma Luanda que
ter griots que cantam e contam uma cidade resistente cuja cultura
original conquista os signos da cultura imposta, assimila-os, para
os devolver de modo a que sejam, talvez equivocadamente, lidos
segundo um esquema em que realidades brancas se confrontam
com realidades negras (e lembro, na fico, Luandino Vieira,
Arnaldo Santos, Antnio Cardoso, Boaventura Cardoso, Jofre
Rocha). Cito, assim, a ttulo de exemplo, as estrias de Luandino
Vieira, sobretudo duas que me parecem paradigmticas neste

55
INOCNCIA MATA

cruzamento de dois segmentos que a idealidade quis convivente: A


fronteira do asfalto e Encontro de acaso, duas estrias de A Cidade
e a Infncia (1957). Mas tambm o conto As cinco vidas de Teresa18,
um conto de Artur Pestana, mais tarde Pepetela, publicado em 1962
pela coleco Imbondeiro, faz um ensaio da relao conflitante entre
mundos em antagonismo devido cor da pele e aos locais da cultura
neste caso, aos locais da ideologia (colonial). Por outro lado, o lugar
privilegiado daquela fico que assinala a outra Angola a da tradio
ancestral, a Lunda tem os primeiros paisamentos literrios na obra
de pendor etnografista de Assis Jnior e scar Ribas e em Castro
Soromenho na sua trilogia de Camaxilo (Terra Morta, Viragem e A
Chaga), macrotexto de um romancista da intervalaridade colonial cujo
percurso temtico e ideolgico o torna um dos precursores da moderna
fico angolana.
Pepetela um dos construtores literrios dessa ponte de que fala
Anbal, uma ponte que resultante de um intencional projecto de
nacionalidade abrangente. A sua obra pauta-se por caractersticas smicas
que apontam para a diferena, a diversidade, a alteridade, a igualdade
e a dialogia, num processo em que o dilogo entre as duas entidades
no tem um resultado somativo mas cumulativo, dando sentido s
palavras de Manuel Rui: ser ptria assim, multilingustica e
multicultural, ser-se mais rico para a criatividade (...) Numa ptria
assim, sempre o real se decifra por ngulos cada vez mais diferentes e
a prpria comunicao a multicriatividade, pelo que essencial: o
homem (Rui, 1981: 33) Manuel Rui, ele prprio errante de
territrio (nasceu e cresceu no Huambo, outro espao ideolgico e
cultural que talvez nem se encaixe em nenhuma das duas Angolas j
consideradas), errante de gnero ( cultor de duas prticas literrias, a
narrativa e a potica) e errante de modo (na sua obra revela apetncia
tanto para o modo lrico, o satrico, o evocativo e o herico-pico).
18
Artur Pestana, As Cinco Vidas de Teresa. Novos Contos de frica, Imbondeiro, S
da Bandeira, 1962. Artur Pestana autor de outros contos, Velho Joo em Mensagem,
Casa dos Estudantes do Imprio, Lisboa, ano XIV, n 2; e A Revelao. Joo das
Neves (0rg.), Poetas e Contistas Africanos, Porto Alegre, 1963.

56
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

Na reordenao da distopia,
a seduo da histria
A obra de Pepetela assinala, nesta procura de um outro modo de
escrever o pas, uma novidade que o romancista assume: a recorrncia
Histria para a compreenso e a gesto do presente, como a
corroborar Ngugi Wa Thiongo em palavras que resgato da epgrafe:
Falo do passado principalmente porque estou preocupado com o
presente (Thiongo, 1988). E o presente hoje faz-se de uma grande
preocupao da intelligentzia, aquela que une as sensibilidades, e
que , paradoxalmente, aquela que parece desuni-las: a construo
da nao. O prprio escritor interroga-se em entrevista autora deste
texto:
Ser que se pode hoje falar de Angola
como uma nao? Ou apenas um projecto de nao?
Ou ainda menos do que isso? Ora, a Histria ajuda a
enquadrar este problema e talvez at tenha algumas
respostas. Um pas que tem estado em guerras cruis
constantes e no se fraccionou (nem parece ter
tendncia para isso) porque tem algum cimento
muito forte a lig-lo. A questo : de onde veio esse
cimento?
H evidentemente outros factores, at de
ordem poltica, mas sem dvida que a Histria tem
peso nesse processo. E neste caso pode dizer-se que
ideolgico considerar-se o passado como fonte de
conhecimento do presente. (Pepetela, 1999: 114)

Julgo que neste contexto que pode ser interpretada essa


apetncia do romancista para a escrita da histria. Romances como
Mayombe, Yaka, Lueji, A Gerao da Utopia, Parbola do Cgado
Velho ou A Gloriosa Famlia so metafices historiogrficas, ou seja,
so romances que se apropriam de personagens e acontecimentos

57
INOCNCIA MATA

histricos, no para simplesmente celebrar o passado, mas para o utilizar


como veculo de uma reflexo sobre a prpria condio presente do
pas e sua projeco futura. Portanto, os romances de Pepetela so
romances que incorporam os domnios da literatura (a sua ficcionalidade),
da histria (o passado histrico, isto , as personagens e os acontecimentos
tidos como histricos) e da teoria (a pensatividade, a reflexividade).
Quer isto dizer tambm que estes romances realizam-se na auto-
conscincia terica sobre a histria e a fico como criaes humanas
(Hutcheon, 1991: 21-22). Lembro, a propsito, Saramago, para quem
a Histria necessariamente parcial e parcelar (Saramago, 1998: 79 e
ss.), pela prpria limitao humana (do historiador). Para alm de que a
realidade pode ser vista de formas muito diferentes e at incompatveis.
essa conscincia histrica que leva a que a obra romanesca de
Pepetela funcione com uma lgica antipica que acaba por referenciar
os ideais agnicos da revoluo e do nacionalismo e, claro, da
cidadania, que nem logrou vingar. E isso, por um lado, pela
vulgaridade das suas personagens (personagens comuns: mesmo
as figuras histricas tm uma postura simplesmente humana) e
tambm atravs do despertar de vozes e memrias que na utopia
poltico-social no tinham lugar. Pelo processo de viglia dessas vozes,
antes silentes e marginais, resgatadas da Histria, descobrem-se as
sombras do outro lado da realidade, vai-se modificando a paisagem
da cidadania e a nao comea a emergir diversa, colorida.
Mas mais do que narrar o passado, como parece acontecer nos
romances de Pepetela, o que se passa a sua reinveno para o moldar
s exigncias das interpretaes eficazes. Quer dizer, Lueji: o Nascimento
dum Imprio no intenta uma reconstituio do processo da fundao
do imprio lunda por uma rainha de nome Lueji que se confronta
com o seu irmo Tchinguri pela posse do lukano do pai, Kondi; nem
tampouco intenta A Gloriosa Famlia: o Tempo dos Flamengos traar a
gnese da famlia Van Dum (deveria dizer da famlia Van Dnem?),
as confrontaes entre holandeses e portugueses ou as motivaes de
Antnio de Oliveira Cadornega, por muitos considerados o primeiro
historiador angolano. O contexto discursivo destas metafices

58
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

historiogrficas representa possibilidades de releituras do passado, de


reinterpretao para, como j acima foi dito, o moldar s exigncias
da compreenso do presente. Afinal, lembra Edward Said que a
maneira como formulamos ou representamos o passado molda nossa
compreenso e nossas concepes do presente (Said, 1995: 34).
Entre historiadores, escritores e ensastas consensual a ideia de
que o passado s nos pode chegar textualizado. Linda Hutcheon,
por exemplo, considera que a narrativizao do passado pressupe a
sua aceitao como verdadeiro (Hutcheon, 1991: 127): o discurso
sobre o passado, nas suas duas modalidades (histria e literatura),
depende das novas concepes de Histria e de Literatura. Ambos
os discursos, o da Histria e o da Literatura, buscando a construo
simblica da realidade, so condicionados por ideologias, instituies
e contextos. Se a histria, enquanto discurso, um processo em
movimento constante, dentro do qual o historiador se move (Carr,
1976: 113), fica profanada a sacralidade do facto histrico e desfeito
o seu carcter absoluto. Assim, o discurso histrico, tal como o
discurso literrio (este, sobretudo pela natureza mesma do trabalho:
imaginao), s nos pode dizer aquilo que pensava o seu autor,
historiador ou romancista. Com o relativismo histrico, o
multiperspectivismo desestabilizou as fronteiras da verdade e da fico
na sua relao com o passado, enquanto as possibilidades do presente
se alargaram e a inquirio passou a estatuto de postura
epistemolgica.
Hoje, portanto, o romance que busca na histria matria de
efabulao actualiza caractersticas que relevam dessa relatividade do
olhar, condicionada pela sua prpria problematizao, no sentido
em que questionado o embasamento histrico do passado em si
(Hutcheon, 1991: 126). To sistmico esse desafio problematizante
do perodo ps-moderno19 que se pode concordar com a estudiosa
19
Termo demasiado sobredefinido e, por isso, subdefinido, que aqui utilizo endendendo-
o como a condio cultural do ps-guerra. Cf. Elisabeth Wesseling, Writing History as
a Prophecy (Postmodernist Innovations of the Historical Novel), Johns Benjamins Publishing
Company, Amsterdam/ Philadelphia, 1991, p. VII.

59
INOCNCIA MATA

canadiana de que se trata de um tempo anistrico. Porm, essa anistria


(ou, melhor, ahistria) , paradoxalmente, o resultado de uma intensa
conscincia histrica: que o retorno histria, ultrapassado o
pesadelo da histria, resulta no desejo de pensar historicamente e
hoje pensar historicamente pensar critica e contextualmente
(Hutcheon, 1991: 121).
Eis porque a narrativa histrica actual se caracteriza por um
multiperspectivismo, uma disparidade de focalizaes, na inteno
de apresentar uma viso plural da histria, vrios olhares sobre a
mesma realidade, acontecimento ou universo, porque se prope
rejeio do consenso dominante, como lembra Kwame A. Appiah,
no cotejo que o intelectual ganense faz entre ps-modernismo e
ps-colonialismo (Appiah, 1997:200). Assim sendo, fcil fazer
derivar esta definio de Appiah dessoutra postura da ps-
colonialidade actualizada na obra de Pepetela: os seus romances
instituem-se como lugar em que se operam as contradies do
colonial e do ps-colonial, ora em sinergia, ora em competio.
Neste contexto, a obra romanesca de Pepetela pode considerar-
se partilhando caractersticas do romance histrico ps-moderno,
porque no busca o passado para o fixar ou o celebrar ou para conhecer
a histria cumprindo um dever patritico, mas para o interrogar e,
atravs dessa interrogao, chegar compreenso. A sua escrita, ento,
faz-se da subjectivizao da Histria, da transcendncia da Histria
e da auto-reflexividade que so as trs caractersticas da novelstica
ps-moderna.
No ensaio desse questionamento das ideias absolutas e
cristalizadas, Pepetela recorre ao multiperspectivismo narrativo,
resultante, afinal, de vises diferentes sobre acontecimentos. F-lo
primeiro em Muana Pu (Ele e Ela) e depois, de forma mais
estilhaante, em Mayombe, romance histrico conjuntivo, na
classificao de Harry Shaw20, em que o destino do protagonista, o

20
Harry Shaw, The Forms of Historical Fiction Sir Walter Scott and his Successors,
Ithaca & London, Cornell University Press, 1983.

60
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

Comandante Sem Medo, se confunde com a prpria histria (trama)


mas histria contada a onze vozes: Teoria, Milagre, Mundo Novo,
Muatinvua, Andr, o Chefe do Depsito, o Chefe de Operaes,
Lutamos, Joo, o Comissrio e, finalmente, o supranarrador, qual
maestro que vai conduzindo a orquestra de olhares e vozes sobre a
forma como os prprios ousaram desafiar os deuses abrindo um
caminho na floresta obscura (M, Dedicatria).
Ficamos, ns leitores, a conhecer a histria desses homens do
Mayombe? Sim, mas no a verdade histrica. Porque a funo desses
narradores no narrar ou contar a histria uma vez que a sua fala
no conduz a qualquer desenvolvimento diegtico: o que fazem
desvelar cada carcter, de cada membro da orquestra, desmitificando-
o e desmitificando-se para, em vez de deuses, se afirmarem apenas
como homens. As vrias vozes narrantes e mltiplas focalizaes
do, assim, narrativa (Mayombe), uma energia dramtica, alm de
contriburem para a relativizao das aspiraes, vontades e
sensibilidades e para a relativizao da realidade histrica. A inteno
textual anunciada no incio contar a histria de Ogum, o
Prometeu Africano ganha uma contaminao amargamente
sublime tendo em conta o carcter sacralizante das personagens:
guerrilheiros nacionalistas, fechados no tero da floresta Mayombe,
com todas as caractersticas do locus horrendus: cobras, feras, rios
caudalosos, lama, escurido, matas camufladas de folhas conformam
o espao de harmonizao do nacional (M, 1980: 82). Este local
constri, portanto, entidades contaminadas por um sopro sobre-
humano; no entanto, paradoxalmente, condicionadas pelos limites
da condio humana: apesar de corajosos, sentem medo e, apesar da
sua aurola divina, tm atitudes imorais e menos honestas e oscilam
entre dois pontos (como dir no final Joo, o Comissrio Poltico),
que podem ser o individual e o colectivo, mas tambm o bem e o
mal! Disso resulta a humanizao do guerrilheiro, numa altura (1980)
em que ele (o guerrilheiro) ainda era o modelo, em que a sua
sacralidade e todo o poder que lhe era atribudo dado o seu lugar
na sociedade ainda no era tocada.

61
INOCNCIA MATA

Em O Co e os Calus, o romancista reincide nessa estratgia,


num romance em que a realidade apresentada
fragmentariamente: uma Luanda vista sob vrios ngulos,
vivenciada por uma galeria humana diversificada, a partir da
relao com um co, em que o supranarrador, agora abdicando
da sua omniscincia, limita-se a fazer a montagem das histrias
que compem o todo. De novo a pluralizao do olhar sobre os
acontecimentos e sobre Luanda; de novo a apologia da diferena
e o elogio da diversidade. A estrutura da narrativa acompanha,
alis, a desordem social: vrios narradores, uma focalizao
impressionantemente caleidoscpica e vrios planos narrativos
de onde sobressai, para alm do plano principal, esse outro
intervalar que incorpora a relao conflitual entre Lucapa (o co
pastor-alemo) e a buganvlia.
Tmbm em A Gloriosa Famlia essa escrita pensativa mais
explcita na sua auto-reflexividade na exibio de um narrador
um escravo que constantemente se questiona quanto ao seu
lugar na histria, sua funo e viso. Dir-se-ia que o narrador, a
trs sculos de diferena, interage com Edward Said quando
afirma que o contacto imperial nunca consistiu na relao entre
um activo intruso ocidental contra um nativo no ocidental inerte
ou passivo; sempre houve algum tipo de resistncia activa e, na
maioria esmagadora dos casos, essa resistncia acabou
preponderando (Said, 1995: 12). Diz por isso o narrador acerca
da sua funo:

Tudo o que possa vir a saber do


ocorrido dentro do gabinete ser graas
imaginao. Sobre este caso e sobre muitos
outros. Um escravo no tem direitos, no tem
nenhuma liberdade. Apenas uma coisa lhe no
podem amarrar: a imaginao. Sirvo-me sempre
dela para completar relatos que me so
sonegados, tapando os vazios. (AGF, 1997: 14)

62
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

O mesmo narrador, omnisciente, o escravo analfabeto e mudo


de Baltazar Van Dum, revelando uma vigilante conscincia
histrica, insurge-se contra a perda de documentos histricos,
tanto por irresponsabilidade do governador portugus Pedro Csar
de Menezes como de holandeses, na fuga daqueles para
Massangano:

No s curiosidade v, eu tenho
sentido da Histria e da necessidade de a
alimentar, embora os padres e outros europeus
digam que no temos nem sabemos o que
Histria
(...)
Assim se perderam todos os
documentos da conquista e fundao da cidade e
todos os mambos e makas que aconteceram nesses
anos todos at chegada dos malufos. Depois somos
ns que no temos sentido da Histria, s porque
no sabemos escrever. Eu, pelo menos, sinto grande
responsabilidade em ver e ouvir tudo para um
dia poder contar, correndo as geraes, da mesma
maneira que aprendi com outros o que antes
sucedeu. (AGF: 1997: 120-121).

Ironicamente, o narrador vai-se perfilhando como personagem


do futuro ao criticar a relao que se estabelece entre o passado que
ainda presente (sculo XVII: o tempo dos flamengos) e o presente
que ser passado: Sei que os flamengos vo ficar aqui sete anos
(AGF, 1997: 49). As prprias personagens, reflectindo sobre o
futuro a partir do passado e com os valores do presente, pensam-se
em termos do seu lugar na espcio-temporalidade: o seu passado, o
seu presente e o seu devir, ou seja, como o seu advento se tornou
evento. Lembremo-nos, por exemplo, da primeira fala de Teoria,
em Mayombe, outro exemplo desse esquema reflexivo:

63
INOCNCIA MATA

Nasci na Gabela, na terra do


caf. Da terra recebi a cor escura de caf,
vinda da me, misturada ao branco defunto
do meu pai, comerciante portugus. Trago em
mim o inconcilivel e este o meu motor.
Num universo de sim ou no, branco ou
negro, eu represento o talvez. (...) Face a este
problema capital, as pessoas dividem-se aos
meus olhos em dois grupos: os maniquestas e
os outros. bom esclarecer que raros so os
outros, o Mundo geralmente maniquesta.
(M, 1980: 14).

Ou porque o evento seguir determinado rumo, como


possvel perceber da fala de Mulaji, o pescador, no final de Lueji:
o Nascimento dum Imprio. Informa-nos este narrador (o nico
que no pertence nobreza), que tomar a palavra uma nica
vez para nos anunciar o futuro do imprio que Lueji fundou,
que:

(...) a vaidade dos muata Yanvu


que nunca morrem se tornar enorme.
Esquecero os ensinamentos de Lueji, no h
ensinamentos que sempre durem. Vo querer
conquistar povos pela fora, vo exigir tributos
pesados, vo fazer guerras. Na sua vaidade e
ambio, s vo se preocupar com as lutas e
intrigas da corte, todos querendo cada vez mais
vantagens. E a fora da Lunda, aquilo que fazia
os outros povos a admirar e aceitar a sua chefia,
a lio de Lueji, vai se perder. Dela fica apenas
o nome, mesmo esse muitas vezes modificado, e
uma estria que cada qual contar conforme o
seu interesse. (L, 1989: 482)

64
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

Muitos aspectos da inovao contida na obra de Pepetela residem


no repovoamento da paisagem e na remitologizao do espao da
utopia, roda pelos descasos da revoluo. Diferentemente do que
acontece em outros romances angolanos, em que a morte do pas se
anuncia irrevogvel num pretrito que retira a possibilidade de
revitalizao, de qualquer restituio vital e, portanto, se sugere a
impossibilidade liminar da reutopizao21, a obra romanesca de
Pepetela, mesmo aquela em que o desencanto intenso, como em A
Gerao da Utopia, mas tambm em O Desejo de Kianda e em
Parbola do Cgado Velho, contorna a distopia e antecipa outro desejo
utpico, porque no se esgota num pretrito. Corroborando a ideia
de que a imperfeio do mundo que justifica a utopia, que a torna
incontornvel, inevitvel (Coelho, 1990: 4), ora o texto retoma o
fio da palavra inicial Como bvio, no pode existir eplogo nem
ponto final para uma estria que comea por portanto (AGU, 1992:
316) , ora tece a continuidade do processo utpico a partir de uma
realidade metamorfoseada, como em Parbola do Cgado Velho, com
um Ulume e uma Munakazi transfigurados pelos acontecimentos.
De um modo ou de outro, pela lgica diegtica ou pela significao
semntico-pragmtica, essa reinicializao efectua-se tanto no tempo
do ps-independncia como no da ps-abertura e da economia de
mercado, aqui seguido, mais uma vez, do descarrilamento do que se
havia idealizado. E isso mesmo expondo as fissuras do ps-
independncia e do ps-monopartidarismo, que so igualmente
perodos de grandes descasos: um gerando uma intolerncia
avassaladora e outro um neo-liberalismo selvagem em que todos os
meios justificam os fins (como defendem e praticam Malongo e

21
o que acontece em Estao das Chuvas (1996) de Jos Eduardo Agualusa, ou Os
Anes e os Mendigos, de Manuel dos Santos Lima, e at em alguns dos pequenos contos
de Da Palma da Mo (1998), de Manuel Rui (que logo no incio nos baralha com a
advertncia de que Isto [os contos] a realidade e qualquer semelhana com a fico
mera coincidncia, recuperando um jogo com a verdade, tpico da estrias luandinas,
que o prprio Pepetela havia j resgatado em O Co e os Calus).

65
INOCNCIA MATA

Vtor, os pseudo-empresrios, e Elias, o pseudo-pastor). Portanto,


no podendo haver ponto final, o texto deixa em aberto a possibilidade
de reencenao do seu espao, a reedio das suas personagens
(sobretudo as personagens que assumem os ideais de antanho, os
jovens Orlando e Judite, filha de Sara) e a proposta sucesso da
escatologia, diluio de valores morais e ticos, um perodo de
regenerao.
Esta semantizao de regenerao tambm se pode encontrar
em Mayombe, em que Joo assume o lugar do Comandante Sem
Medo e ns, leitores, ficamos convencidos de que os guerrilheiros,
ento reunidos volta do Comandante morto, continuaro juntos
apesar das suas diferenas. Do mesmo modo, pode encontrar-se
tambm em Yaka, na figura de Joel/Ulisses, o bisneto angolano de
Alexandre Semedo, que prometera ao av fazer todos os possveis
para chegar sua taca. Assim se compreende a lgica da
temporalidade espiralar desta narrativa em que o final de um ciclo,
o colonial, que a famlia Semedo representa, , simultaneamente,
tambm um incio: 1975, ano da realizao da primeira fase da utopia
poltico-social, a independncia poltica.
Estamos, assim, perante no j uma escrita da utopia mas uma
utopia da escrita, isto , uma escrita dessacralizante que desvela a
desconstruo de sentidos, denuncia os simulacros da Histria e faz
o repovoamento dos espaos vazios da utopia desfeita assinalando
um novo espao de significaes em que os mitos continuaro a
persistir e a contarem-se a si prprios, como se descobre em Yaka,
na fala da esttua a Alexandre Semedo e em toda a narrativa: afinal,
a mensagem da esttua, revelada no final, era simples e Alexandre
Semedo s no a entender porque a sua viso de Angola era uma
construo de simulacros, que o prprio define como ciladas e
embustes (Yaka, 1985: 386) a esttua representava um colono, ou
os colonos, burros e ambiciosos, leu Ulisses, o mais hbil e
manhoso dos gregos (Yaka, 1985: 376-387).
O processo de reflexo sobre o presente requer um distanciamento
entre o narrador e o universo narrado, aproximando-o do esquema

66
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

pardico, no sentido em que entende a pardia como forma


intertextual que constitui, paradoxalmente, uma transgresso
autorizada (Hucheon, 1991: 95). A pardia da Histria um
elemento considerado configurador da ps-modernidade da escrita
da histria e o resultado do posicionamento individual do autor
perante o mundo e perante si prprio um distanciamento e uma
atitude crtica em relao ao texto original, no caso o discurso
consagrado sobre a Histria. assim que a narrativa pepeteliana
pode ser contaminada e bastas vezes o pelo modo irnico e
tambm pardico ou at caricatural e carnavalesco, como acontece
no final de A Gerao da Utopia, em que o exacerbamento oratrio
de Elias (que inaugura no apenas uma igreja, mas uma seita,
Dominus), no gera um efeito tico, mas pattico (de pathos),
conducente imediata repulsa.
Intentando, na sua escrita, a travessia do Letes angolano mas
sem beber de suas guas do esquecimento, para no esquecer porque
preciso reordenar o caos da distopia , Pepetela contraria a imagem
benjaminiana de um anjo que olha o passado enquanto est a ser
empurrado, de costas, para o futuro. Ao deixar-se seduzir pela
Histria, o autor intenta, atravs dela, pluralizar as suas vises,
descristalizar mosaicos identitrios e faces ideolgicas que exigncias
de tempos mais difceis forjaram e vises mais monolticas e tcticas
continuam a encenar, e fazer a apologia da diferena e o elogio da
diversidade.
Num concerto performativo de interpretao reconfigurativa dos
tempos angolanos (passado, presente e futuro), o obra pepeteliana
realiza, assim, o princpio de que toda a arte anti-sistmica (ou
assistmica). F-lo rejeitando a facilidade instaurada pela crise e no
fazendo uma literatura de sobremesa22. Afinal no foi Anbal, seu
duplo, que disse que quando os intelectuais se demitem, evidente
22
Referncia a uma polmica ocorrida em Paris a propsito da escrita africana que um
crtico classificou no ser literatura de sobremesa, como deve ser toda a literatura
(considerao do crtico). A que um colega e amigo meu senegals respondeu que no
tendo a frica o primeiro prato, obviamente que no poderia pensar em sobremesa.

67
INOCNCIA MATA

que a sociedade perde o norte, vai buscar outros valores (AGU,


1992: 306)? Pepetela, o escritor, ou Artur Carlos Maurcio Pestana
dos Santos, o cidado, diferentemente de Anbal, o Sbio, ou de
Sem Medo, a Esfinge, no se exilou dentro do seu prprio pas,
como o primeiro, no se deixou sucumbir porque no tem lugar
numa Angola independente, como o segundo, nem escreve para
despir a pele (como diz Joo, o Comissrio Poltico). Escreve, sim,
para vestir as vrias peles das existncias do seu pas.

68
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

Pepetela: a releitura da histria


entre gestos de reconstruo *

O historiador no apenas o mediador entre o


passado e o presente; tem igualmente a tarefa
especial de reunir dois modos de compreenso do
mundo que costumeiramente estariam
invariavelmente separados.
Hayden White

Afirmar que em 1997 Pepetela ganhou o Prmio Cames, o


maior galardo literrio de Lngua Portuguesa, uma grosseira
banalidade; mas talvez seja uma ideia afirmar que, ao faz-lo, o jri
distinguia no apenas um dos mais interessantes escritores de lngua
portuguesa, mas tambm o seu pas, Angola, o quarto espao deste
idioma a ser homenageado, depois do Brasil, de Moambique e de
Portugal.
que Pepetela um dos grandes construtores desse espao.
Nascido em 1941 em Benguela, sul litorneo de Angola, a fez
os estudos secundrios, aps os quais veio para Portugal; em Lisboa,
onde publica o seu primeiro conto que se conhece23 e se confraterniza
no mtico crculo da Casa dos Estudantes do Imprio e, depois,
frequenta o Instituto Superior Tcnico e a Faculdade de Letras da

*
Palestra proferida na 3 edio da Festa da Lngua Portuguesa Encontro com
escritores distinguidos com o Prmio Cames. Cmara Municipal de Sintra, 7-9 de
Maio de 2001. Publicado em: Rita Chaves & Tania Macedo (Org.), Portanto... Pepetela,
Luanda, Edies Ch de Caxinde, 2002.
23
Velho Joo em Mensagem, Casa dos Estudantes do imprio, Lisboa, ano XIV, n 2.
Artur C. Pestana, Artur Pestana ou Carlos Pestana publicou ainda alguns poucos
contos: As cinco vidas de Teresa. Garibaldino de Andrade e Leonel Cosme (Org.),
Novos Contos dfrica, S da Bandeira, Col. Imbondeiro, 1962; A revelao. Joo
Alves das Neves, Poetas e Contistas Africanos, Porto Alegre, 1963.

69
INOCNCIA MATA

Universidade de Lisboa; de Paris para onde vai fugindo ao servio


militar e, consequentemente, da guerra que comea j a pressentir-
se , parte para Argel, j dentro das fileiras do MPLA (Movimento
Popular de Libertao de Angola, que conduzir o pas
independncia em 11 de Novembro de 1975). O 25 de Abril apanha-
o nas matas angolanas como guerrilheiro, experincia que convocara
para escrever, ainda em 1971, Mayombe, que s viria a ser publicado
em 1980, o mesmo ano da publicao de A Revolta da Casa dos
dolos, pea de teatro que a efabulao do perodo referente s
primeiras relaes entre portugueses e kongueses (do Reino do Kongo).
Antes, em 1972, publicara j As Aventuras de Ngunga, histria do
pioneiro Ngunga, menino rfo de treze anos que se torna homem
nas matas: afinal uma singela novela de inteno pedaggica, escrita
para servir de manual de alfabetizao e escolarizao nas zonas
libertadas (e que era suposto ser traduzida para a lngua mbunda) e,
em 1978 Muana Pu, uma viagem de dois jovens em busca de
Calpe, a cidade perdida e sonhada (note-se que Muana Pu fora
escrita ou, pelo menos, acabou de o ser em 1969, durante a luta
de libertao). Seguem-se em 1984 O Co e os Calus, stira social
incmoda sobre as imperfeies do sistema socialista cujas
especificidades angolanas o tornavam uma contradio entre
conceitos (a propalada liberdade e suposta justia para todos so
substitudas por clientelismo, pequena corrupo e nepotismo), e
Yaka, saga de uma famlia de colonos que, mais do que radicar-se, se
nativiza no espao angolano tornando-se at portugueses de
segunda; em 1989 publica o romance histrico Lueji: o Nascimento
de um Imprio (da Lunda) e em 1992 um manifesto de puro
desencanto quanto s esperanas que a independncia despertara, A
Gerao da Utopia; desesperana que continua em O Desejo de
Kianda (1995), um romance em cima do acontecimento, sobre a
abertura multipartidria e as engenharias ideolgicas de antigos auto-
intitulados marxistas, agora seduzidos pelas maravilhas do neo-
liberalismo que abraam com a mesma ortodoxia anterior. Com os
acordos de Lusaca, renascem as esperanas de paz e o romancista

70
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

publica aquele que considera o seu feitio falhado, Parbola do


Cgado Velho (1996): um exerccio de reflexo sobre a intolerncia e
a cultura de excluso como um dos males que minam a terra angolana
e gangrenam o esprito dos homens; no ano seguinte, libertando-se
da puno que adivinha da intensificao do factor acontecimento
vital na vida do pas (Mata, 1995: 32), regressa ao passado, ao Sc.
XVII, e publica A Gloriosa Famlia o Tempo dos Flamengos, romance
que traa a gnese da famlia Van Dum (deveria dizer da famlia Van
Dnem?), tomando-a como metonmia de uma Angola feita do
cruzamento de gentes e negociao de interesses e tendo como pano
de fundo o contexto das confrontaes entre holandeses e
portugueses, por um lado, e africanos, por outro, num cenrio que
traz, mais uma vez, da sombra o papel participativo destes no
processo histrico.
O contexto discursivo destas fices historiogrficas (Linda
Hutcheon) aponta para possibilidades de outras leituras do passado
que designo como releituras , de suas reinterpretaes, para o moldar
s exigncias da compreenso do presente: um presente cuja
complexidade o tem tornado colectivamente trgico. ainda no
contexto dessa ritualstica do olhar sobre o passado para o integrar
numa estrutura de interpretao do presente e sob a puno de uma
disposio explicativa do mundo, que em 2000 o romancista
surpreende os seus leitores a mim, pelo menos com uma fbula
para todas as idades, o romance intitulado A Montanha da gua
Lils, trazendo-nos uma aparentemente andina narrativa, contaminada
pela retrica do conto popular. Trata-se de uma estria contada por
um velho, o av Bento, uma estria trans-espacial e intemporal, sobre
indivduos (lupis, jacalupis e lupes) que no souberam gerir a sua
riqueza e acabaram sendo vtimas dela: surpreende A Montanha da
gua Lils, digo eu, porque baralha o horizonte de expectativas do
leitor habituado a uma escrita de auto-reflexividade que o autor sempre
fez. Quer dizer que normalmente os romances de Pepetela se realizam
na auto-conscincia terica sobre a histria e a fico como criaes
humanas (Hutcheon, 1991: 21-22).

71
INOCNCIA MATA

E disso tambm que quero falar: a escrita de Pepetela uma


escrita que se questiona, que pensa a sua funcionalidade e a sua eficcia
para alm da ficcionalidade, uma escrita que finta o doce e explode
no til, uma escrita que, como polariza Stephen Greenblatt,
confronta dolorosamente prazer e interesse (Greenblatt, 1989: 1-
14). Prazer esttico e interesse pedaggico e ideolgico. Alis, Pepetela
nem refuta a dimenso ideolgica e pedaggica, acrescento eu da
sua escrita:

Um pas que tem estado em guerras cruis constantes


e no se fraccionou (nem parece ter tendncia para
isso) porque tem algum cimento muito forte a lig-
lo. A questo : de onde veio esse cimento?
H evidentemente outros factores, at de ordem
poltica, mas sem dvida que a Histria tem peso
nesse processo. E neste caso pode dizer-se que
ideolgico considerar-se o passado como fonte de
conhecimento do presente. (Pepetela, 1999)

Pepetela no enjeita, pois, essa vertente ideolgica da sua obra, no


sentido em que Fredric Jameson entende esse investimento ideolgico
como uma funo instrumental de um dado objecto cultural, com
um poder simultaneamente utpico e de afirmao simblica de uma
forma de classe especfica e histrica (Jameson, 1992: 301). Mesmo
porque hoje ideia consensual, tanto na meta-histria como na cincia
narratolgica, que a narrativa no apenas um instrumento de ideologia,
mas o prprio paradigma de ideologizao dos discursos em geral
(White, 1992: 33). Numa sociedade em que, devido incipincia da
academia, a instituio literria constitui um outro plo do saber,
com estatuto que se conjuga com o poder de validao de instituies
que regulam o vnculo social24, a relao histria/fico, sendo uma
24
interessante notar como os romances so objecto de discusso entre historiadores
e antroplogos, como aconteceu, por exemplo, com Yaka, de Pepetela e A Casa Velha
das Margens, de Arnaldo Santos.

72
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

constante nas literaturas que emergem de situaes conflituais em


processo de autonomizao (poltica, cultural, social) , na literatura
angolana, singular.
Essa singularidade advm do facto de que, pela literatura, se vai
escrevendo tambm a histria do pas e Mayombe , mais uma
vez, um registo (o nico, dizem alguns) do que foi a guerrilha na
frente do Cabinda. Cumpre-se deste modo o preceito terico de
Hayden White de que um acontecimento histrico aquele que
susceptvel de, pelo menos, duas narraes da sua ocorrncia (White,
1992: 20) no caso conhecemos a narrao literria e ficamos
espera que, pela pesquisa de fontes orais, se realize a modalidade
cientfica da narrativa histrica deste passado recente de Angola.
As duas narraes de que fala White, podendo referir tambm
duas perspectivas, pelo menos, duas vises sobre o mesmo
acontecimento, referem duas modalidades discursivas, duas formas
de relatar, dois modos de textualizar, duas realizaes discursivas a
histrica e a ficcional. A lgica da relao entre os dois discursos ,
assim, de complementaridade devida ao facto de ambos os discursos
perseguirem os mesmos objectivos: oferecer uma imagem verbal
da realidade (White, 1994: 138). Com efeito, perseguindo o
raciocnio segundo o qual os eventos ocorrem, mas os factos so
constitudos na descrio lingustica25, pode inferir-se que a histria,
sendo discurso que busca a legitimao do seu estatuto de verdico,
no se divorcia do seu referente nem impugna a dicotomia
verdadeiro/falso que se incrusta na representao factual e nisso
reside a sua operatividade. Porm, como discurso que busca representar
um passado com pretenso a real, recorre a estratgias textuais que
absolutizam a sua condio de instrumento de mediao e nisso
reside a sua performatividade.

25
Events happen, facts are constituted by linguistic description. Hayden White,
Figuring the nature and times deceased: literary theory and historical writing. Ralph
Cohen, The Future of Literary Theory, New York/London, Routledge, 1989, p. 35.

73
INOCNCIA MATA

Estas duas modalidades discursivas sobre acontecimentos


reais no so, com efeito, antagnicas ou sequer desvinculadas.
Na literatura angolana, sob a puno da ideologia nacionalista, a
histria foi recurso para, atravs dos mitos de que qualquer
histria nacional vive, se constituir como veculo de afirmao
cultural e reivindicao poltica. E por isso, isto , por imperativos
exteriores ao texto, o acontecer histrico era transformado em
material pico para a celebrao de uma nao imaginada, a ser
inventada. Hoje, em perodo ps-colonial, em que os imperativos
ptrios so outros e no j a sua afirmao a literatura angolana
parece inverter a perspectiva evenemencial daquela grande
narrativa da nao que a histria nacionalista fixou. Esta foi
uma busca natural, a busca num tempo anterior histria, o
tempo do futuro que sucede a um presente insuportvel um
presente paradoxalmente anterior (colonial) e actual (ps-
colonial). Como toda a narrativa de nao, o grande relato da
nao angolana, impulsionado pela ideologia nacionalista, exaltava
o passado como memorial de grandeza mas com a previso do
futuro portanto, uma histria das origens aberta ao futuro
para o que seria interessante, desde j, compulsar o final de As
Aventuras de Ngunga ou mesmo de Mayombe:

V bem, camarada. (...)


Se Ngunga est em todos ns, que
esperamos ento para o fazer crescer?
Como as rvores, como o massango e
o milho, ele crescer dentro de ns se o regarmos.
No com gua do rio, mas com aces. No com
gua do rio, mas com a que Uassamba em sonhos
oferecia a Ngunga: a ternura. (Pepetela, 1976:
128)

O mesmo tom de abertura ao futuro assume Joo, o


Comissrio, aps a morte de Sem Medo, ele que naturalmente o

74
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

substitui26. No admira que num tal contexto a escrita literria de


representao histrica se aproximasse da narrativa histrica cientfica
por ambas serem teleolgicas, pois a finalidade e a funo estavam
envolvidas pela edificao moral e pelo dever patritico.
Os primeiros relatos da historiografia nacional, de que o mais
clebre parece ser a Histria de Angola27, foram envolvidos numa
apologtica patritica e de edificao moral, de que o mais recente
exemplo me parece ser o ltimo discurso do Presidente Jos Eduardo
dos Santos na abertura da conferncia internacional sobre Direito,
Democracia e Cidadania que em Maio decorreu em Luanda28. Na
sua elocuo, Jos Eduardo dos Santos faz o relato do processo
doloroso da nao angolana, remontando ao Sc. XIX, Conferncia
de Berlim, rastreando o passado recente feito de guerras como as de
resistncia, de libertao, de agresso e ocupao de parte do
territrio nacional pelo regime do apartheid da frica do Sul, de
guerra civil e da instrumentalizao desse processo por certa
comunidade internacional, num jogo a que a politologia designou
como guerra fria. Tal narrao da nao, marcada forosamente
pela componente herica, refora o que assinala Franois Furet como
exaltao da grandeza ou do sentimento nacionais que, segundo o
historiador francs, continua a ser uma das grandes justificaes da
histria narrativa, depois de ter sido, sem dvida, o seu impulso

26
Mas compulsemos ambos os finais com o de A Gerao da Utopia: apesar da
possibilidade de reinicializao que o final sugere, a sesso carnavalizante do culto da
Igreja da Esperana e Alegria do Dominus, com a participao, cumplicidade e
patrocnio de Malongo (empresrio) e Vtor (poltico), metonmias dos novos mandantes
do pas, metfora de um novo ciclo em que os dois poderes esto de mo dadas no
aproveitamento do vazio que a realidade criou no esprito do povo. E essa aliana,
Anbal, o Sbio, considera-a catastrfica, j em 1992. E hoje, mais de uma dcada
depois?!
27
interessante notar que a autoria desta Histria de Angola annima, pois tratando-
se de uma trabalho de equipa, os nomes dos autores no vm indicados o que refora
ainda mais o alcance mtico deste grande relato da nao angolana.
28
Conferncia sobre Direito, Democracia, Cidadania, organizada em Luanda pela
Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, de 2 a 4 de Maio de 2001.

75
INOCNCIA MATA

fundamental: todos os povos precisam de uma narrativa das origens


e de um memorial da grandeza que possam ser ao mesmo tempo
garantias do seu futuro (Furet, 1977: 83). S que, tal como hoje,
se os profissionais j no se compadecem com os mitos da histria,
tambm o no fazem os escritores e, para mais, um escritor com
vocao para historiador, como Pepetela (lembre-se, a propsito,
que ele um dos autores da Histria de Angola).
Assim, num primeiro momento a nao constituiu-se como
memorial de feitos hericos (A Vida Verdadeira de Domingos Xavier,
Ns, os do Makulusu ou a estria O fato completo de Lucas
Matesso, de Vidas Novas, obras de Luandino Vieira) e significou
homogeneizao e liberdade (As Aventuras de Ngunga). Nao
agenciada pela elite nacionalista, num momento de extenso em
que se impunha esgarar as suas fronteiras e desvincul-la da
perspectiva que a tomava como corpo substantivo e normativamente
definido e caracterizado, ela passaria a demandar descentralizao e
plena cidadania. E descentralizao significa novas vises sobre o
nacional que, por sua vez, pressupem confronto de posies sobre
o nacional, diversidade de perspectivas ideolgicas, dispersas
configuraes identitrias diferentes e disseminadas no tempo e no
espao. nesse equilbrio entre a expresso e a sua substncia que
reside a instncia centrifugadora de aspiraes que tem vindo a
dominar a escrita de Pepetela. E, nesse sentido, pode considerar-se
essa obra como reescrita do cannico discurso literrio da nao,
visando a construo de uma cultura da diferena: diferena de
condies e existncia culturais, lingusticas, ideolgicas...
Em que consiste essa reescrita ou essa contra-discursividade? Em
contnuas imploses na escrita da nao e no questionamento das
verdades absolutas, consequncia do desencantamento larvar destes
vinte e cinco anos, do processo de desencanto mas tambm um
denominador comum desta nossa condio finissecular, finimilenar.
nesse sentido que a obra de Pepetela antecipa discusses com
que a sociedade se confrontar ou que o discurso oficial (poltico ou
cientfico) quer rasurar ou omitir: foi assim com Mayombe, com os

76
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

diversos tipos de diferena que insidiosamente se intrometiam nas


questes essenciais dos guerrilheiros; foi assim com O Desejo de
Kianda e hoje j ningum se abstm de falar de que no possvel
construir a democracia com democratas arrivistas e reciclados como
CCC; foi assim com Parbola do Cgado Velho e a conscincia
cvica contra a guerra hoje j no distingue, como os habitantes da
aldeia da Munda, o exrcito dos nossos e o dos outros:
Mas ento o Kanda dos nossos e o Luzolo do
inimigo?
Penso que sim. Pelo menos o Kanda dos meus
nossos, no sei quais so os nossos dos outros.
(Pepetela, 1996: 100)

Do mesmo modo que, em A Revolta da Casa dos dolos, membros


da famlia real no so inocentes no processo de escravizao
generalizada que se seguiu, at da famlia real, tambm em A Gloriosa
Famlia a rainha Jinga faz alianas com estrangeiros para derrubar
estrangeiros, sendo retratada como uma personagem cuja cincia
poltica de foro maquiavlico, diferentemente da rainha celebrada
naquele que talvez seja o primeiro romance histrico da literatura
angolana, Nzinga Mbandi (1979), de Manuel Pedro Pacavira, como
herona da resistncia contra a penetrao europeia no seu territrio.
Confrontem-se, a exemplo, as duas apresentaes da rainha do
Ndongo:

Tinham-lhe dado o nome de Ana de


Sousa, havia os que lhe chamavam Jinga (...) mas
o nome dela verdadeiro esse mesmo que vem na
capa: Nzinga Mbandi.
No devia ser mulher para se dar l a
essa fitas de puxar a cara, amarrar a testa, alar
os peitos, pr o rabo a pino, e coisas outras dessas.
Factos h que nos levam a pensar que ela cresceu

77
INOCNCIA MATA

bela, carinha bonita, alegre simptica, sendo o


seu defeito: virar bicha-fera-ferida, caso que lhe
violassem um direito, tanto que uma formidvel
histria ela nos deixou, uma histria que mete
respeito, o motivo que me traz a conversar aqui
com vocs. Mas comecemos pelos tempos dos eus
passados. (Pacavira, 1979: 17)

(...) foi muito ousada a maneira como Baltazar


Van Dum aproveitou a sua ascendncia flamenga
para enganar a rainha [Jinga Mbandi], que de
facto detesta que a tratem assim, pois ela diz
rei, porque s rei manda, e ela no tem nenhum
marido que mande nela, ela que manda nos
muitos homens que tem no seu harm e que
chama de minhas esposas. Rei Jinga Mbandi e
acabou. Rainha ou rei, no entanto, foi enganada
e bem enganada pelo meu dono. (Pepetela, 1997:
23).

Por outro lado, a significao que se pode retirar desta ltima


urdidura romanesca e do lugar actancial tanto da rainha Jinga Mbandi
como do Mani Luanda que os africanos so, no raro, cmplices
da sua trgica histria uma ilao que se pode tambm retirar da
mensagem de A Montanha da gua Lils. Pode pensar-se, por outro
lado, que buscando a alteridade da verdade, ou verses dela, se
busca tambm a desconstruo do monolitismo, pelo apagamento
do nico sentido da histria. E outra estratgia para essa relativizao
do olhar consegue o romancista atravs de um dispositivo textual
feito de pulverizao de vozes e perspectivas e cito os romances
Mayombe, O Co e os Calus e A Gloriosa Famlia: nestes romances os
prprios narradores se confessam impotentes em expressar com
imparcialidade e globalmente a realidade, ao permitirem que outras
vozes narrantes se apropriem da narrao, enquanto em A Gloriosa

78
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

Famlia a conscincia histrica do narrador um escravo mudo e


analfabeto que se serve do p branco da pemba ou nos riscos
traados nos ares das encruzilhadas pelos espritos inquietos
(Pepetela, 1997: 393-394), para registar a histria dizia, a sua
conscincia histrica to intensa e dolorosa que ele se questiona
constantemente quanto ao seu lugar na histria, o exerccio e a tica
da sua posio de registador da histria:

Tudo o que possa vir a saber do


ocorrido dentro do gabinete ser graas
imaginao. Sobre este caso e sobre muitos outros.
Um escravo no tem direitos, no tem nenhuma
liberdade. Apenas uma coisa lhe no podem
amarrar: a imaginao. Sirvo-me sempre dela
para completar relatos que me so sonegados,
tapando os vazios. (Pepetela, 1997: 14)

A afirmao de Pepetela, disseminada nas falas de Anbal,


personagem de A Gerao da Utopia, e antecipada mais de uma
dcada antes nas de Sem Medo (Mayombe), de que os propsitos da
revoluo foram trados ideia que o escritor reitera na entrevista
radio Voz de Amrica29 e que foi reproduzida no jornal Angolense30
indica que da transformao assinalada pelos desamores do presente
resulta a proposta de uma outra utopia. Todavia, a conscincia
histrica individual tem imposto as suas condies a qualquer nova
utopia. E sendo a conscincia histrica
uma conscincia determinada pelos acontecimentos a curto prazo;
a conjuntura que condiciona as suas reaces de optimismo ou de
pessimismo em relao ao futuro. (Furet, 1977: 92)
, essa conscincia histrica que leva a que a obra romanesca de
Pepetela funcione com uma lgica antipica que acaba por referenciar

29
A entrevista foi para o ar no dia 15 de Janeiro e comeou a circular na internet no dia 16.
30
Angolense, Luanda, 27 de Janeiro a 03 de Fevereiro de 2001.

79
INOCNCIA MATA

os ideais agnicos da revoluo e do esprito nacionalista animado


pela imaginao utpica, ideais construdos sobre uma mstica do
herico e do pico.
So por isso significativos a urdidura da trama e o dispositivo
textual da lgica antipica da novelstica de Pepetela. Um desses
dispositivos o lugar da guerra como dinamizadora de ciclicidade
histrica e no de harmonizao de diferenas. S para ilustrar o que
quero dizer, interessante notar que a paz que Lueji conseguiu para
o seu imprio no adveio da guerra que no chegou a travar com o
irmo, que se retira para o Cassai, mas da capacidade de ambos em
porem em cima da mesa as suas razes, diferenas e mgoas, num
episdio que me parece dos mais expressivos da cumplicidade entre
os dois irmos e significativos do romance:

Contigo aprendi muito e sobretudo


que algumas tradies h que preservar, seno um
homem se perde nas suas dvidas e se consome
em pequenas lutas sem significado. (Pepetela,
1989: 408).

Numa altura (2001) em que a sociedade angolana discute a


eficcia da guerra e a sua funcionalidade como fautora de paz, a
obra de Pepetela revela-se campo bastante para uma discusso
especulativa sobre ela, cumprindo o preceito da sua pensatividade,
ou seja, da sua meta-historicidade, e funcionando para alm da sua
ficcionalidade.

80
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

A guerra como fautora da dinmica temporal

, pois, a conscincia histrica ou, como tambm equaciona


Saramago, a conscincia intensssima, quase dolorosa, do presente
(Saramago, 1990) que leva Pepetela a olhar na direco do passado.
E uma constante desse passado a guerra. Por isso, um aspecto
caracterstico da esttica romanesca de Pepetela a guerra como
marcador da temporalidade. Esse tipo de marcao da dinmica
temporal, to frequente nos romances de Pepetela, determinado
pela matria temporal: narrar a nao angolana pressupe a
textualizao de um passado de guerras e da guerra como fora motriz
das transaces cclicas, com particular destaque em Parbola do
Cgado Velho e em A Gloriosa Famlia. tambm a guerra que marca
o ritmo da periodicidade, com a desestruturao social, a sua
reordenao implicando reajustamentos de mentalidades e
instituies, significadores importantes de mudana dos ciclos
histricos.
O primeiro romance que inaugura esse significador como marca
da construo nacional o romance As Aventuras de Ngunga. Em
romances posteriores Mayombe, Lueji, A Gerao da Utopia,
Parbola do Cgado Velho a presena da guerra uma forma de
passagem a nvel diegtico e discursivo, que aponta para novos ciclos
histricos ou configuraes culturais e ideolgicas a nvel da
construo (da ideia) de nao. Em Parbola do Cgado Velho, logo
no incio, quando Ulume rememora o passado atravs de uma
temporalidade pontuada por guerras, vai-se percebendo tambm
como a ideia de Angola se foi modificando ao longo dos tempos e
a comunidade nacional foi emergindo: com efeito, ao primeiro
estdio da guerra tribal e feudal, pela consolidao de um poder
hierrquico, segue-se a guerra imperial cujo objectivo era a expanso
territorial e a dominao das populaes conquistadas; segue-se o
perodo colonial cujo propsito era a explorao dos recursos naturais
at exausto, recorrendo mo-de-obra das gentes da terra. Na

81
INOCNCIA MATA

pirmide social, porm, a designao dos ciclos secundria para


quem, como Ulume, sofre os seus directos efeitos:

Ganhava um ou outro [exrcito de sobas], o


certo que muita gente morria. Durante o tempo
da guerra, no se podia cultivar. Os celeiros ficavam
vazios, a fome vinha. (Pepetela, 1996: 19)

Mas interessante notar que, no obstante uma explicitao dos


malefcios da guerra, ela funcionava como significante escatalgico
(fome, mortes, fuga, destruio) com consequncia regeneradora
num quadro mais amplo: o alargamento territorial e a unificao
que logo se degenera face s verdades adquiridas, tempo em que se
vive o fascnio por outros mundos.
Mesmo em Lueji: o Nascimento dum Imprio, a guerra (e a ameaa
dela) cumpre uma tripla funo cosmognica: ela visa alargar o
imprio de Lueji e travar as pretenses usurpativas de seu irmo
Tchinguri, que se sentira injustiado com a subida ao trono da irm,
mas tambm estratgia de consolidao do poder perante os
Tubungo, que sempre a olharam com desconfiana31.
Esse significante cosmognico que a guerra encerra de forma to
constante na obra de Pepetela acentua-se quando a guerra de
libertao, contra o regime colonial regime estrangeiro, exgeno e
sem quaisquer identificaes com as populaes: aqui no se trata
apenas de unificao ou consolidao territorial, uma etapa necessria
para a constituio da comunidade imaginada, mas, sendo de
libertao, uma etapa fundamental para a fundao nacional que,
alis, e consequentemente, em Lueji j se insinua.
Quer se trate de uma construo realista como em As Aventuras
de Ngunga, satrica como em O Desejo de Kianda, de celebrao

31
Interessante neste contexto a conversa entre Lueji e o irmo Chinyama sobre a
ideia de Tchinguri acerca do exrcito e do povo ideias perigosas para os Tubungo,
como considerou a prpria Lueji (Lueji, 1989: pp. 162-165).

82
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

histrica como em Mayombe e em Lueji, de documentao histrica


como em Yaka e em A Gloriosa Famlia, de significao alegrica
como em Parbola do Cgado Velho, a novelstica pepeteliana introduz
sempre a guerra como predicador episdico ou cclico de
movimentos histricos movimentos esses que no se fecham na
sua irrevogabilidade. Renovam-se constantemente, numa operao
que regenera a violncia e gera outras guerras, numa lgica espiralar
de violncia cujo fim s pode ser trgico, exemplo que Yaka d pela
tragicidade dos destinos dos filhos de Vilonda e Alexandre Semedo.
Por isso que esse significante no cosmognico em A Gloriosa
Famlia: uma sucesso de guerras de que o fim foi uma paz precria
que nem Matilde, a feiticeira, mais funcionando com uma
cassandra, no conseguiu prever. Foi essa inutilidade da funo
blica, essa sua funo absolutamente escatolgica, que os dois filhos
de Kondi, Tchinguri e Lueji, previram, evitando ambos, por isso,
uma confrontao.
sob o signo do desencanto, da distopia, que Pepetela escreve.
Ou pelo menos, esse signo que contamina as minhas leituras de
Pepetela e as suas entrevistas parecem iluminar as minhas leituras.
Embora saibamos que a historicidade do discurso, ou a
historicidade da realidade discursiva, que tem a ver com as
circunstncias do contexto, resulta da transfigurao do real desse
contexto, essa contingncia o desencanto ps-colonial um real
incontornvel. E, no entanto, a estratgia de Pepetela para o
neutralizar ou para o reverter no a reverberao da histria, de
que resultaria uma utopia negativa. Antes de chegar desagregao
da comunidade e sua disperso e submisso aos outros animais,
muitas alternativas tiveram os habitantes da montanha da gua lils;
no souberam aproveit-las e sucumbiram. A proposta de alternativas
est nas entrelinhas dos textos que intentam chegar percepo
histrica, instaurando outro tempo, o da heterotopia, um antdoto
da utopia, termo que Boaventura de Sousa Santos define como a
busca de uma Pasrgada 2. Esta resulta da deslocao radical dentro
de um mesmo lugar, o nosso, tempo de relativizao do

83
INOCNCIA MATA

conhecimento, [de] distncia ldica em relao a outras formas de


pensar e agir, enfim, outras formas de vida (Santos, 1994: 280).
A insidiosa, lenta e persistente deslegitimao do regime institudo
gera uma escrita de compensao, mas no labora para que a autpsia
do sistema possa resultar na sua justificao (como tambm acontece),
enquanto as imperfeies so criticadas. No se pense, portanto,
nesse fenmeno como efeito de uma crise ou declnio da utopia ou,
ainda menos, de um desmoronar generalizado de sentido da histria.
Ou, apenas, da existncia com um significado mais amplo, a
expandir-se para a transcendncia da histria de que j Georg Lukcs
e mais tarde Michel Vanoosthuyse (1996: 16 e ss) j falavam e que
Avrom Fleishman considera como a fora motriz do pensamento,
que relaciona os trs eixos da temporalidade (passado presente
futuro) que fundam a conscincia histrica (Fleishman, 1971: 15).
Nem isso: longe de ser uma escrita de crise ou, pior ainda, do
declnio da utopia, desmitificao da utopia (da nao e do homem
novo) segue-se a sua revitalizao (da utopia) e a dos caminhos picos
atrs trilhados. Disso resulta a construo de um outro tipo de utopia,
que doravante consiste numa deslocao do centro para a margem,
da sombra para a luz, do monlogo para o dilogo, do mesmo para
o diferente: o meio rural, as responsabilidades e crimes, as diferenas
de toda a ordem so exumados e tecidos como componentes da
nao. Poder parecer que a nao assim narrada (a)parea em crise;
mas a inscrio da nao no contexto de crise, o repens-la como
corpo dilacerado por vrias fracturas so actividades que pressupem
a adopo de um referencial histrico para a reconstituio do tecido
narrativo da nao com uma dupla eficcia: a imploso da narrativa
de um nao rasa e monocolor e a crtica da privatizao dos factos
que tanto a ideologia colonial como a nacionalista empreenderam
da histria do pas.
Como uma narrativa histrica, a fico de Pepetela no apenas
a mediadora entre o passado e o presente; incumbiu-se tambm e
retomando agora a epgrafe deste texto da tarefa especial de reunir
dois modos de compreenso do mundo que costumeiramente

84
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

estariam invariavelmente separados (White, 1994: 40). Porque


entendeu, o autor desta escrita, que o passado funciona como a pr-
histria do presente (Foley, 1986: 162), como prefigurao do
presente e que, afinal, contrariamente ao que diz o autor em A Gerao
da Utopia, nem os ciclos so eternos, porque no pode haver ponto
final em histrias por contar como esta nossa guerra... Por isso, tal
como os destinos de Sara, Anbal, Malongo, Vtor, Elias poderiam
ser reinicializados (porque a estria no tem ponto final), tambm o
dos angolanos poder s-lo. Basta que saibam, diferentemente dos
habitantes da montanha lils, escolher a alternativa que contemple
negociaes de sentidos, respeito pelas diferenas e dilogo entre
diversidades.

Queluz, 8 de Maio de 2001

85
INOCNCIA MATA

86
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

Sob o signo de uma nostalgia projectiva*:


a poesia angolana nacionalista e a poesia ps-colonial

Cada gerao, numa


certa opacidade,
descobre a sua misso;
assume-a ou se torna
traidora.
Frantz Fanon

No me parece excessivo afirmar que, hoje, a literatura angolana,


reagindo intrigante e nada apaziguadora (pelo menos at 2002)
dinmica da situao ps-colonial do pas, vive um perodo de
singular eclectismo esttico e produtividade reflexiva. Tal se deve a
uma dialogia transtextual e intergeracional e necessidade de repensar
o pas, tarefa em que a literatura se assume como vanguarda,
continuando a ser veculo privilegiado da actividade reflexiva, agora
quase substituindo os cientistas sociais (historiadores, socilogos,
politlogos) no registo e anlise dos acontecimentos e fenmenos
que ainda no foram erigidos a objecto de estudo.
No entanto, apesar de a literatura angolana continuar ainda a
cerzir a identidade na senda da histria e das imagens e memria
dela, os pressupostos e os destinadores hoje so outros, ou antes, essa
alteridade j no remete apenas para os sujeitos do exterior, mas
tambm contempla aqueles mesmos que so partcipes do estado do
pas. Isto , as novas geraes de escritores assumem de forma incisiva
a internalizao do olhar e no descuram as novas relaes de poder.

*
Publicado nos Estados Unidos, em ingls, na RAL (Research in African Literature),
com o ttulo: Under the sign of a projective nostalgia: Agostinho Neto and Angolan
post-colonial poetry (no prelo).

87
INOCNCIA MATA

Na verdade, sabido que no perodo colonial-fascista, em que se


gerou a esttica nacionalista, a produo literria fez-se em dilogo
com a ideologia libertria. A esttica literria de ento mobilizou, por
isso, uma retrica que buscou partilhar memrias imaginariamente
histricas e sociais e colectivizar angstias e aspiraes, enveredando
por terrenos temticos e estilsticos que, visando a rasura e o
obscurecimento de conflitos e de pulses divergentes dentro da
comunidade imaginada, intentavam a construo de um corpo uno
e coeso, dentro dos propsitos do nacionalismo que se pode definir,
segundo Ernest Gellner, como sendo um princpio poltico que
defende que a unidade nacional e a unidade poltica devem
corresponder uma outra (Gellner, 1993: 11).
Para reforar a contaminao pica da escrita do perodo de
definio do sistema literrio, outro esquema foi o recurso
elaborao do imaginrio cultural, a partir de ndices retirados da
natureza e da sociocultura (gentes, sinais de uma vivncia quotidiana,
do espao fsico e social) e transformados em smbolos. Por via destes,
intentava-se, pelo poder encantatrio da palavra, o estabelecimento
de um elo social, psicolgico e afectivo-sentimental entre indivduos,
cumprindo-se uma funo extratextual de eficcia ideolgica.
Atravs desses lugares culturais, ou culturalizados, de sinais
retirados da geografia e da natureza, de valores e atributos
(re)inventados da sociocultura e (re)elaborados intelectualmente,
cantava-se a ptria comunidade de leis e instituies muito
centralizadas e unitrias com um propsito poltico (Smith, 1997:
23): ptria que, embora carente em justia humana, era prdiga em
natureza. E essa prodigalidade da natureza e harmonia entre homem
e natureza funcionavam, nas palavras de Antonio Candido, como
construo ideolgica transformada em iluso compensadora
(Candido, 1989: 149). esta a lgica de poemas como Havemos
de voltar, O iar da bandeira, Adeus hora da largada, No
me peas sorrisos, O caminho das estrelas, Campos verdes,
Sangrantes e germinantes ou Caminho do mato, de Agostinho
Neto; ou O rio da nossa terra, de Antnio Jacinto: neles, como

88
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

alis em muitos outros poemas de Sagrada Esperana, o caminho


do mato e do contrato, do sofrimento e da dor, da espoliao
humana e da explorao at exausto das riquezas da terra
utilizando a mo-de-obra local afinal, isso o colonialismo
transformava-se em caminho das flores/flores do amor
(Caminho do mato).
Porm, aps o perodo de agenciamentos ideolgicos
finalsticos, de exigncia nacionalista, hoje as motivaes dos actores
da escrita so outras, o que faz do panorama literrio angolano um
espao diversificado e eclctico. Embora seja temerrio caracterizar
o actual perodo a partir de apenas uma tendncia esttica, pode
inferir-se que a natureza ideolgica da nova escrita do corpo da
nao e da identidade ainda de nostalgia, pela tendncia para o
passado como um trao caracterstico da imaginao utpica, que
ainda subsiste. Porm, operando um processo canibalesco, no
sentido da devorao como metfora da assimilao crtica dos
elementos da esttica fundacional, com a condio de esses elementos
retirados serem reelaborados em moldes do contexto histrico, sob
a urgncia das vrias tenses fracturantes da sociedade angolana actual.
Na nova viso do pas, as contingncias do fazer histrico-cultural
e socioeconmico so simbolicamente acopladas pelo processo
(ainda) de reconstruo nacional, agora com recurso conscincia
subjectiva. por via desta conscincia individual que se perseguem
ainda a memria histrica e as feies e as particularidades das
representaes da Histria, com o intuito de desmontar as (possveis)
estratgias de realizao da nao poltica, para a transformar em
nao cvico-territorial. Esta torna-se agora a base sobre a qual os
indivduos podem reclamar direitos legais na comunidade (Smith,
1997: 147-148). Trata-se de uma funo que na nova poesia angolana
parece estar a destituir o modelo primordial de construo dessa
comunidade imaginada afinal, na altura, pensada de uma forma
higinica , em tempo da mais precria condio em que vivem
os seus filhos, sobretudo desde que o estado de guerra se naturalizou
em Angola.

89
INOCNCIA MATA

Por isso, parafraseando Antoine Compagnon, a questo que


orientar as minhas reflexes : que ter restado dos nossos antigos
amores, aqueles poemas pelos quais aprendemos a amar a ptria e
que foram as letras das canes mobilizadoras da revoluo nos anos
70? Ou seja: que dilogo estabelece hoje a actual poesia angolana
com a gerao demirgica do sistema literrio nacional, de que
Agostinho Neto um dos representantes, para (continuar a) pensar
o pas?
no contexto desta nova funo que me parece significativo o
dilogo tenso e denso entre a poesia precedente, em particular a de
Agostinho Neto e de Antnio Jacinto (mas tambm Viriato da Cruz
ou Aires de Almeida Santos), assim como a narrativa, sobretudo a
de Luandino Vieira, com a actual literatura angolana, designadamente
a poesia de Paula Tavares, Maria Alexandre Dskalos, Joo Maimona,
Jos Lus Mendona e Adriano Botelho de Vasconcelos, cinco dos
mais importantes poetas da actualidade. So todos poetas que se
revelaram aps a independncia e que viveram e suponho que
ainda vivam a angstia da influncia dos clssicos angolanos,
entendendo clssico no sentido em que o define Vtor Manuel
Aguiar e Silva: o clssico aquele escritor que, seja qual for o tempo
em que escreveu, nosso contemporneo, porque ainda tem alguma
coisa a dizer-nos (SILVA, 2002, 19). Enfim, como dialoga a actual
poesia com os nossos clssicos, autores que fundaram o sistema
literrio angolano?
Esta gerao de poetas, todos na casa dos cinquenta anos, ou
quase, continua a ser historicamente caracterizada por uma
disponibilidade para dizer a nao e a identidade. Adriano Botelho
de Vasconcelos e Jos Lus Mendona, por exemplo, que se revelaram
ainda nos anos 70, tm uma poesia ainda muito marcada por sinais
de celebrao utpica. Quem ler Voz da Terra (1974) e Abismos de
Silncio (1996) e Tbua (2004), de Botelho de Vasconcelos, poder
pensar tratar-se de poetas diferentes; o mesmo se passar com a viagem
de Chuva Novembrina (1981) a Quero Acordar a Alva (1997) e a
Ngoma do Negro Metal (2000), de Jos Lus Mendona. Poticas

90
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

diferentes, sim, porque os primeiros livros Voz da Terra e Chuva


Novembrina so de celebrao da revoluo, numa colagem aos
desgnios da escrita de combate, realizada numa construo
isotpica, isto , numa rede semntica que remete, no caso de Botelho
de Vasconcelos, para a reiterao da voz da terra, de cujos sinais,
em urdidura simblica e alegrica, os demiurgos do sistema haviam
construdo a angolanidade; por seu turno, em Jos Lus Mendona
essa celebrao realiza-se pela reiterao expansiva da semntica da
fertilizao do solo em tempo de liberdade (pela referncia
independncia de Angola, ocorrida a 11 de Novembro de 1975).
Por outro lado, os ltimos livros destes poetas particularmente
Abismos de Silncio e Ngoma do Negro Metal j denunciam a
nostalgia de um futuro anunciado e no cumprido: o silncio e o
negro metal a denunciarem uma intensa melancolia e uma nostalgia
regressiva, distpica. O modo elegaco resulta da configurao
semntico-pragmtica privilegiada pelos dois poetas para expressarem
as suas perplexidades perante o Mundo, perante o pas e perante eles
prprios.
A ideia de uma ptria rica cantada por Agostinho Neto no poema
Havemos de voltar, ou por Antnio Jacinto em Monangamba
e em O rio da nossa terra, ou em Quando os meus irmo
voltarem, de Aires de Almeida Santos, desqualificada pela viso
da desapropriao das riquezas nacionais por uma entidade no
localizada apetecia-me dizer globalizada, na medida em que se
trata de uma entidade com alcance biopoltico cujo poder, sem rosto,
sem raa ou sem marcao nacional, um sistema transnacional,
que descentraliza e desterritorializa (Negri & Hardt, 2001: 12). Na
verdade, trata-se de uma mquina que integra as diversas modalidades
(o econmico, o cultural, o familiar, o alimentar, at o afectivo) e
que sequestra o prprio corpo sociocultural, o bios social. esta
preocupao que a obra de Pepetela tambm tece nas bordas do
texto: em A Gerao da Utopia, por exemplo, legvel a mesma
entidade imperial interna por isso que falei de uma alteridade
interna , representada na figura de Malongo, que substitui a ordem

91
INOCNCIA MATA

imperialista tradicional afinal aquele imperium que j no significa


colonizar, controlar terras que no so nossas, que esto distantes,
que so possudas e habitadas por outros (Said, 1995: 37). A profecia
do poeta sobre o regresso ptria concretizou-se e Malongo voltou
bela ptria angolana, Angola libertada/Angola independente
(Neto, Havemos de voltar), e se instalou na Terra:

[Malongo] estava l h muito tempo


preparada para a paz. Comeou a vir banda
para pequenos negcios. Servia de
intermedirio de firmas belgas, francesas e
holandesas, de mdio porte, que queriam
vender produtos ou tecnologias. Como era
amigo antigo de responsveis importantes (...)
conseguiu os primeiros negcios. (...) Ele tinha
de repartir a sua comisso. Mas mesmo assim
ganhava muito dinheiro. Ganhou dez vezes
mais num ano que em toda a vida anterior.
Estava preparado para a paz to esperada.
(AGU, 259-261)

Porm, o interlocutor de Agostinho Neto neste canto das


riquezas da ptria feitas de recursos naturais e paisagsticos e de
potencialidades culturais (a marimba, o quissange, o carnaval),
parece ser, quase quarenta anos depois, Jos Lus Mendona,
particularmente em Respirar as Mos na Pedra (1989), em Quero
Acordar a Alva e em Ngoma do Negro Metal. Particularmente Quero
Acordar a Alva que funciona como um macropoema e se
desenvolve em trs momentos (as suas trs partes denominadas
livros: Sobre o nocturno corao de frica, Uma rvore fala e
Quero acordar a alva) responde eufrica sagrada esperana
do regresso ptria com o tenso nocturno corao de frica.
Leiamos a marcao distpica deste tempo no poema Reconstruo
Nacional:

92
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

1974
Quimbanguleiros32 de todos os muceques erguem o
verde
despertar das cidades
com blindagens de leo palma
no eco encardido das ndegas

1994
Nossas crianas roem os dentes
neste cu etlico de balas perfumadas

2004
Nossa Senhora Santa Ana da Muxima
ainda marmoriza o pas do rio Bengo
mas os deuses j no escarram mais o mel
da angstia em nossas bocas de papel

Outro dilogo, na contramo, pode ver-se ainda entre o poema


de Agostinho Neto Sangrantes e germinantes (Sagrada Esperana)
e o de Jos Lus Mendona Sangrantes pedaos de metal (Ngoma
do Negro Metal): enquanto o poema de Neto termina com uma
disposio claramente, melhor, profeticamente utpica,

Pelo futuro eis os nossos olhos


Pela Paz eis as nossas vozes

32
Quimbanguleiros eram estivadores das construes dos grandes edifcios do tempo
colonial. Eram operrios no qualificados que misturavam o cimento areia e
transportavam a argamassa, os tijolos e outros materiais pelos andares acima da a
kimbangula (carregar s costas). Ao lado de cada edifcio e construo, as mulheres dos
bairros pobres chegavam para instalarem as suas cozinhas, paneles e carvo, para
venda de funge com peixe de leo palma, por um preo muito mdico, altura do
bolso do kimbanguleiro da a expresso com blindagens de leo palma/no eco
encardido das ndegas.

93
INOCNCIA MATA

Pela Paz eis as nossas mos


Da frica unida no amor.

o de Jos Lus Mendona claramente de desesperana:

sonhos do meu mundo reciclado


por quimeras de pombas terebintinas.

Na poesia de Jos Lus Mendona reescreve-se a contaminao


que desde os tempos de combate nacionalista se operava entre ptria
(a entidade institucional) e terra, vinculao que se sustentava na
natureza, num movimento de identificao que se aproxima daquele
que tambm ocorreu nos anos 30 na Amrica Latina, para cuja
literatura Antonio Candido olha quando equaciona do seguinte modo
esse fenmeno de cantar a terra/pensar a ptria, transformando aquela
(a terra) em justificativa desta (a ptria):

A idia de ptria se vinculava estreitamente da natureza e em


parte extraa dela a sua justificativa. (...) Um dos pressupostos ostensivos
ou latentes da literatura latino-americana foi esta contaminao,
geralmente eufrica, entre terra e ptria, considerando-se que a
grandeza da segunda seria uma espcie de desdobramento natural da
pujana atribuda primeira. (Candido, 1989: 141-142)

Subvertendo a vinculao que, por um lado, ento se operava


entre nao e riqueza e, por outro, entre esta categoria e felicidade
colectiva que se intentava construir, hoje o poeta Jos Lus Mendona
considera que

94
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

O africano est a escorrer


como um saco de sal
somos filhos do crude e a cinza
de um sol eterno negoceia nossos ventres
quando nos deitamos noite e dia
de orelhas cortadas pela guerrilha.
A preto e branco nos cassumbularam
os dentes no siso e no
maximbombo dos mortos a infncia
do plen sitiado toma assento.
E iam gruas de vazias bocas o poro
dos nossos sonhos a escorrer
como um saco de sal.

(JLM, Como um saco de sal, Quero Acordar a Alva)

O que ressalta neste dilogo, sempre na contramo, que ideia


de africano na sua verso metonimicamente angolana, o que refora
a transnacionalidade da entidade imperial , que ainda tem a Me
frica como superptria, se liga a de orfandade (material, cultural,
espiritual) e de desapossamento da terra e do homem, ainda criana:
(...) no/maximbombo dos mortos a infncia/do plen sitiado toma
assento. E esta ltima herana, a orfandade, que sintetiza esse
sentimento de irrealizao da utopia que percorre a poesia angolana
contempornea. Portanto, mais do que da orfandade do indivduo
em relao ptria, dela prpria, a ptria, que os poetas
contemporneos falam, de uma instituio que j no espera uma
entidade quase messinica propulsora de mudanas e de
transformaes dialcticas, como em Adeus hora da largada e
O iar da bandeira, ambos de Sagrada Esperana, de Agostinho
Neto:

95
INOCNCIA MATA

Amanh
entoaremos hinos liberdade
quando comemorarmos
a data da abolio desta escravatura

Ns vamos em busca de luz


os teus filhos Me
(todas as mes negras
cujos filhos partiram)
Vo em busca de vida.
(Adeus hora da largada)
******
Cheguei no momento preciso do cataclismo matinal
em que o embrio rompe a terra
humedecida pela
chuva
erguendo planta resplandecente
de cor e juventude

Cheguei para ver a ressurreio


da semente
a sinfonia dinmica do
crescimento da alegria nos
homens
(...)
Quando eu voltei
O dia estava escolhido
E chegava a hora
(O iar da bandeira)

Em contrapartida, o metal das minas de diamante, ouro, cobre


e de petrleo a que haveramos de voltar, j no gera vida, como
se pode ler em Ngoma do negro metal:

96
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

Do negro metal de Cassinga33 hoje o ngoma


ergue o eco de vozes canonizadas
pela extrema-uno do fuzil. E o navio
de bocas ressarcidas morde musical
o reescrito papel do oceano.
Nos litros da noite os ces fecundam
o antropomtrico cenrio: entre razes
o ventre da morte estala vertical.

Por seu turno, tanto Paula Tavares, em Dizes-me Coisa Amargas


como os Frutos (2001), como Maria Alexandre Dskalos, em Lgrimas
e Laranjas (2001), desfazem a semntica da espera esperanosa e
transformam-na numa espera desencantada, injectando-lhe sinais de
uma nostalgia que se prolonga pela desventurosa existncia, perante
a indiferena daqueles por quem esperaram:

tristezas os olhos
de onde me olhas
detrs de um tempo passado,
o tempo das promessas antigas.

Teus olhos, amado,


so os olhos de algum
que j morreu
e ainda no sabe.
(PT, Sombras)

33
Importante zona mineira no municpio da Jamba, no interior da provncia da Hula
(zona fronteiria, entre as provncias da Hula e do Kunene), pertencente Companhia
Mineira do Lobito. O ferro era escoado pelo Porto do Namibe (ex-Momedes),
especialmente construdo para esse efeito, e onde hoje existe o projecto de um Terminal
Mineralfero.

97
INOCNCIA MATA

******
Os filhos de Eva
no tm a memria do den.
Foi com o silncio
que a serpente se fez pagar.
Eles passam por ela indiferentes
e
caminham sem retorno.
Nem a solido de Eva
nem o pranto de Ado
lhe arrepiam os passos.

(MAD, Os filhos de Eva)

J no h o enlevo dos poetas por um corpo prdigo, igualitrio,


harmonioso e sem fissuras. Contra a iluso da bela ptria/nossa
terra, a poesia contempornea de Angola instaura o dilogo tenso
com os discursos poticos fundadores, atravs de uma sucesso de
anomalias da natureza que remetem para a desenrolar da Histria,
como em Ex-Votos (2003):

Em cima do morro de salal


No nasce a orqudea
Nos lagos secos da lua
No andam os peixes
Das pernas das raparigas
No desce sangue

A cinza lenta da noite


Devora a fogueira.
(PT, Em cima do morro de salal)

98
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

o que acontece tambm com o sujeito da enunciao do poema


de Maria Alexandre Dskalos, poetisa revelada em 1991, cuja poesia
sintetiza, j em Jardim das Delcias, essa busca de um olhar menos
bipolarizado e mais prescritivo e centrifugante:

As cores esto
na natureza.

O mundo no
a preto e branco.
(MAD, As cores esto l)

Tambm a partir deste poema pode ler-se a realizao, em surdina,


de um dilogo tenso em duas direces: com Antnio Jacinto em
Poema de alienao (O meu poema/sou eu branco/montado em
mim negro/a cavalgar pela vida), e com Ernesto Lara Filho que
confessa, no poema Sinceridade, que gostaria de ser negro... numa
interlocuo a que Paula Tavares responde em Identidade (Ex-
Votos):

Quem for enterrado


Vestindo s a sua prpria pele
No descansa
Vagueia pelos caminhos.

este dilogo como essoutro entre Agostinho Neto e Joo


Maimona que se me afigura subversivo, canibalesco, melhor,
antropofgico (no sentido em que os actuais actores de escrita
devoram criticamente as categorias fundacionais do sistema,
incorporando-lhe as contingncias da Histria do pas). Trata-se,
pois, de um dilogo produtivamente ps-moderno at, no sentido
de constante questionamento da doxa, isto , da tradio, ao

99
INOCNCIA MATA

contrapor a essa tradio dos filhos de uma ptria de promissora


glria a sua actual condio mendicante e sub-humana. De novo
Jos Lus Mendona:

Subsarianos somos
sujeitos subentendidos
subespcies do submundo
subalimentados somos
surtos de subepidemias
sumariamente submortos

do subdlar somos
subdesenvolvidos assuntos
de um sul subserviente.

(JLM, Subpoesia, Quero Acordar a Alva)

Coteje-se este poema com essoutros Poema de alienao, de


Antnio Jacinto, e Poema e Adeus hora da largada, de
Agostinho Neto. Ou mesmo Velho negro, tambm de Neto:

Velho negro

Vendido
e transportado nas galeras
vergastado pelos homens
linchado nas grandes cidades
esbulhado at ao ltimo tosto
humilhado at ao p
sempre sempre vencido

E forado a obedecer
a Deus e aos homens
perdeu-se

100
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

Perdeu a ptria
e a noo de ser

Reduzido a farrapo
macaquearam seus gestos e a sua alma
diferente

Velho farrapo
negro
perdido no tempo
e dividido no espao!

Ao passar de tanga
com o esprito bem escondido
no silncio das frases cncavas
murmuram eles:
Pobre negro!

E os poetas dizem que so seus irmos.

A nao a comunidade imaginada do ns , categoria que da


terra se expandiu a corpo uno e coeso, e a ptria como instituio,
antes entidades dialogantes e conformantes na literatura fundadora,
j no o so na actual literatura: esta quer agora, para alm da nao
gregria, fazer funcionar a sua dimenso cvica, em que se vo
harmonizando categorias como nostalgia do passado e com intenes
desiderativas do futuro, numa estratgia discursiva que visa a
integrao destas duas disponibilidades da vontade na nova
comunidade ps-colonial.
assim que se chega, na actual literatura angolana, ao lugar da
cidadania, at ento inexistente na configurao do local da cultura
e da nao, e que comea a insinuar-se para resgatar o seu lugar no
discurso sobre a identidade e na escrita da nao. A cidadania,
qualidade de teor legalista concomitante de qualquer nao (Smith,

101
INOCNCIA MATA

1997: 147), transporta implicaes que se actualizam sobretudo no


lugar da ptria.
O cenrio de runas da condio angolana, e no apenas de
precariedade socioeconmica, inclui tambm a desorganizao da
memria, dos espaos e dos afectos. A ptria prometida que o
enunciante do poema O iar da bandeira (Agostinho Neto)
profetiza, pela convocao das vontades, lugares e entidades
(histricas, culturais, afectivas e espirituais), que outrora tiveram uma
performance herica, e pela recuperao de um novo incio com a
participao de todos releiam-se os versos Todos tentavam erguer
bem alto/a bandeira da independncia , cede lugar a um sindicato
macabro (Barreto, 1961: p. 226)34.
Na verdade, com Jos Lus Mendona assim como com Adriano
Botelho de Vasconcelos, com Joo Maimona, com Paula Tavares e
com Maria Alexandre Dskalos a poesia resgata da latncia e dos
sussurros a fala do pas real, ora nostalgicamente rememorativa, ora
fortemente acusatria e crtica, como no supracitado poema Ngoma
do negro metal, em que o sema que surge associado, hoje, s riquezas
naturais, fuzil, que constri uma isotopia de destruio, morte e dor.
Isso mesmo v-se sobretudo na fala das mulheres, at pelos ttulos
dos seus ltimos livros, que causam produtivo estranhamento: Dizes-
me Coisas Amargas como os Frutos e Lgrimas e Laranjas: por este
incio os ttulos , processa-se a transfigurao dos signos em runa
para, na contramo dialgica, e ideolgica, esses mesmos elementos
sgnicos dizerem ainda da possibilidade de uma ptria amada, no
obstante a crueza da condio humana.

34
A viso de ptria de Lima Barreto (1881-1922), num texto publicado precisamente
em 1961 (ano do incio da luta armada em Angola), sintetiza aquela que eu gostaria de
expressar como relevando da poesia angolana contempornea. Cito-a por isso:
(...) a Ptria, esse monstro que tudo devora, continuava vitoriosa nas idias dos
homens, levando-os morte, declarao, misria, para que, sobre a desgraa de
milhes, um milhar vivesse regaladamente, fortemente ligados num sindicato macabro.
Afonso Henriques Lima Barreto, Numa e a Ninfa. Obras Completas, volume III, So
Paulo, Editora Brasileira, 2 edio, 1961, p. 226.

102
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

Nem sempre, porm, esta uma nostalgia projectiva, que intenta


uma reconstruo. Atente-se, por exemplo, no dilogo entre dois
poetas Joo Maimona e Paula Tavares, respectivamente sobre a
viso catastrfica do pas e a urgncia do sonho adiado, num discurso
marcado por um tom elegaco, resultado de uma nostalgia
crepuscular:

tive em dias meus as festas da sombra.


tudo era sombra. princpio e decadncia:
a essas cores eu chamo palavras adiadas:
no me farto de contemplar suas runas.

(JM, Atrs da sombra, Idade das Palavras)

******
Guardo a memria do tempo
em que ramos vatwa,
os dos frutos silvestres.
Guardo a memria de um tempo
sem tempo
antes da guerra,
das colheitas
e das cerimnias.

(PT, Origens, Dizes-me Coisas Amargas como os Frutos)

No obstante essa nostalgia, por vezes regressiva (porque


crepuscular), o que a poesia contempornea, afinal, intenta no a
negao da feio celebrativa da terra e suas gentes, a sua feio
histrica e a do potico. Se hoje as preocupaes dos poetas se viram
para as relaes internas de poder, para a repartio razovel das
riquezas, para o processo de dignificao do indivduo, para o respeito
pela histria particular e segmental dos grupamentos, para o respeito
pelos direitos cvicos e para o equilbrio nas relaes sociais, mais

103
INOCNCIA MATA

no fazem que reelaborar, criticamente, a corrente de solidariedade e


cumplicidade que, prosopopeicamente, se constri no poema
Partida para o contrato, de Agostinho Neto, em que a natureza
chora, tal como Maria, a partida de Manuel para o contrato, ou a
participao de todos na sinfonia emancipatria em O iar da
bandeira, ou ainda o acumpliciamento da natureza na comunho
entre os dois amantes em Carta dum contratado, de Antnio
Jacinto. No obstante a celebrao da comunho entre homem e
natureza como partes da mesma entidade, em que aquela se cumplicia
com o enunciador na dor da separao e na desventura do
analfabetismo, no poema Carta dum contratado, de Antnio
Jacinto, em Adriano Botelho de Vasconcelos a terra reveste-se de
silncios e de sombras, e o olhar das mes adormece as agonias/que
infecundam os signos das/fraternidades (Abismos de Silncio: 24).
Outrossim, enquanto a Mulher-Me, nos seus desdobramentos
simblicos, smbolo de resistncia, persistncia, proteco, unio
e fortaleza na poesia nacionalista, em vrios poemas de Paula Tavares
a Mulher se humaniza e se fragiliza perante a fora destruidora dos
acontecimentos (guerra, fome, aniquilamento das relaes afectivas
e seus corolrios), como no poema Me (Dizes-me Coisas Amargas
como os Frutos):

A me chegou
no estava sozinha
o cesto que trazia
no estava bem acabado
a me chegou
no tinha as tranas direitas
a me chegou e o pano que trazia
no estava bem alinhado
a me chegou com olhos maduros
os olhos da me
no olhavam
na mesma direco

104
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

a me chegou
e no era ainda o tempo
do po do leite azedo
e das crianas.
A me chegou e a fala que trazia
no estava bem preparada
a me chegou
sozinha
com as falas da desgraa da misria do leite fermentado e
do barulho.

evidente a euforia celebrativa e a corrente de germinao


emancipatria que tanto figuras do (ento) presente histrico (Amigo
Liceu, Benge, Joaquim, Gaspar, Ildio, Manuel e outros amigos e
irmos) e cultural (o Ngola Ritmos, os Intelectuais, a Liga e o
Farolim) como as do passado (Ngola Kiluanji e Rainha Ginga)
tentavam ento empreender. No dealbar do sculo XXI, quando se
esperaria a produtividade desse cataclismo matinal, semanticamente
conotando-a com felicidade e bem-estar que o poeta encontrou
quando voltou (O iar da bandeira), hoje de novo Botelho de
Vasconcelos:

A sanzala ficou deserta e os velhos


no enterraram os seus mortos, nenhuma felicidade
se ouve seno pelo vinho. Sonharam com a cabea
viciada de sinais at perderem
a confiana. (...)

(ABV, Abismos de Silncio)

Do que se trata, com efeito, do redimensionamento crtico do


discurso sobre a nao, embora sempre ainda a partir das coordenadas
do projecto nacional a liberdade, a tradio, a coeso unitria e a
felicidade social. Pretende-se que a nao continue a conceber-se

105
INOCNCIA MATA

para alm da comunidade imaginada e da terra, como uma ptria


territorial, o local do nosso nascimento e da nossa infncia, a extenso
do corao e do lar (...) o local dos nossos antepassados, e dos heris
e das culturas da nossa antiguidade (Smith, 1997: 146). Porm,
porque o pas real j no permite a euforia do canto celebrativo, a
voz do passado parece interpelar, desta vez, Joo Maimona, que
reage:

impalpvel pas fnebre quando procurado


se cobre de noite. fugitivo cresce no rio
donde o oceano mais distante que se v
chora conhecer o fruto as cinzas
que aos poucos se tornam janelas alheias.

(JM, Procura, Retrato das Mos. Festa da Monarquia35)

O campo semntico de caracterizao do pas constri uma


isotopia crepuscular em que pontuam semas como pas fnebre e
fugitivo em que as cinzas frutificam contra janelas alheias...
Portanto, muitas dcadas depois, a germinao e as
transformaes revolucionrias que se anunciavam no se
concretizaram: os filhos de Eva no tm memria do den (Maria
Alexandre Dskalos) porque o den no chegou a existir! Em vez
disso, no poema supracitado, de Botelho de Vasconcelos, h a
sugesto da interrupo da dinmica histrica pela no continuidade
do ciclo da ancestralidade para o que remete a imagem dos mortos

35
Considero apenas Retrato das Mos, que um dos dois segmentos do livro Festa da
Monarquia (2001), de Joo Maimona (o outro precisamente Festa da Monarquia). Na
verdade, as duas partes no constituem um conjunto, antes funcionando de per si, ideia
que at o prprio autor pareceu perfilhar ao solicitar prefcios diferentes para cada
uma. Quando fiz o prefcio de Retrato das Mos, fi-lo para um livro de poesia, Retrato
das Mos; desconhecia que o livro seria parte de uma publicao, Festa da Monarquia.
Parece-me que a publicao conjunta se deveu, apenas, a um exerccio de engenharia
financeira.

106
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

insepultos, ou a antinaturalidade do ciclo vital (como nos poemas


Em cima do morro de salal, de Paula Tavares). De tal
desestruturao psico-sociocultural resulta a alienao do homem,
indiciada pela bebedeira, pela perda do sonho e pela desesperana. E
pela represso que, ento (Maio de 1977), se abateu sobre a
comunidade imaginada, contrariando as ideias de liberdade que o
discurso nacionalista apregoava de que Sem Medo desconfiava,
ainda durante a luta de libertao e por isso afirmava que um partido
uma capela (Mayombe, 1985: 131), sintetizando a lgica dogmtica
do funcionamento do movimento ps-utopia atravs do pensamento
religioso e da alegoria crist, puras que Adriano Botelho de
Vasconcelos retoma:

Na catedral as gaivotas fizeram durar os mares


at as ptrias ficarem sob o domnio de uma nica
razo. Perdido o seu tesouro
uma utopia na corrente de um panfleto
os velhos tentam fugir das confisses
at as suas palavras desempregarem
nas tertlias e cais
os poetas.
(ABV, Tbua, 2004: 92)

at as ptrias ficarem sob o domnio de uma nica/razo:


esta , certamente, uma referncia ditadura do monolitismo
ideolgico de que resultaram prises, desaparecimentos, mortes, valas
comuns, dores, traumas familiares, material de obras como Maio,
Ms de Maria (1997), de Boaventura Cardoso, Os Limites da Luz
(2003), de E. Bonavena, e Tbua (2004), de Adriano Botelho de
Vasconcelos, livro com que o autor ganhou, em ex-aequo, o Prmio
Sonangol de Literatura, sob o pseudnimo Aires, nome de seu irmo
mais velho morto durante a sanha persecutria da DISA, depois da
tentativa de golpe de estado protagonizada por dissidentes do MPLA

107
INOCNCIA MATA

adeptos de Nito Alves e Jos Van-Dnem, que ficaram conhecidos


como fraccionistas. Afinal, lembrar o passado tambm uma forma
de dinamizar o processo de reconstruo...
Chamo a ateno para as datas da poesia com a qual ponho em
dilogo a dos consagrados Neto e Jacinto: Maria Alexandre Dskalos,
Jardim das Delcias (1991) e Lgrimas e Laranjas (2001); Adriano
Botelho de Vasconcelos, Abismos do Silncio (1996) e Tbua (2004);
Jos Lus Mendona, Quero Acordar a Alva (1997) e Ngoma do
Negro Metal (2000); Joo Maimona, A Idade das Palavras (1997) e
Retrato das Mos (includo em Festa da Monarquia, 2001); e Paula
Tavares, Dizes-me Coisas Amargas como os Frutos (2001) e Ex-Votos
(2003).
Trinta anos depois da independncia, esta gerao de escritores
angolanos assumiu a sua misso: perseguir o projecto utpico e
revitaliz-lo. Diria, para resgatar Fanon, citado na epgrafe, que,
afinal, esta Gerao das Incertezas descobriu a sua misso e, sua
maneira, numa certa opacidade, est a assumi-la sem fazer
concesses. A sua poesia ainda intenta a (re)construo da nao,
porm pela mobilizao de outros temas e recursos estilsticos e
retricos, a que subjaz uma outra filosofia: tanto a da escalpelizao
das responsabilidades (por que o advento no se tornou evento),
como o exerccio da cidadania e a apologia da heteroglossia, isto , a
da proliferao de vises sobre o pas e sobre a nao que, afinal,
ainda se vai fazendo dolorosamente.

108
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

A funo catrtica da memria na actual


literatura angolana:
o caso de Botelho de Vasconcelos*

a perda da memria, e no o seu culto, que far os


homens prisioneiros do passado.
Paolo Portoghesi

Publicado em 2004, Tbua, de Adriano Botelho de Vasconcelos,


, juntamente com Os Limites da Luz, de E. Bonavena (alis, Nelson
Pestana), um livro que vem tornando explcita uma tendncia na
literatura angolana: a da reinveno do vivido a fim de que ele
signifique no tempo da Histria.
Na verdade, esta no , em rigor, seno em poesia, uma novidade
na literatura angolana, na medida em que a prosa de fico vinha
ensaiando esta tendncia h j algum tempo: pense-se em Crnica
de um Tempo de Silncio (1988), de Antnio Fonseca; em A Gerao
da Utopia (1992), de Pepetela; em O Signo do Fogo (1992), de
Boaventura Cardoso ou ainda em Maio, Ms de Maria (1997), do
mesmo Boaventura Cardoso; e na colectnea de contos de Joo Tala,
Os Dias e os Tumultos (2004), distinguida com o Grande Prmio de
Fico da UEA, edio de 2004 s para citar alguns exemplos.
Tbua o stimo livro do poeta Adriano Botelho de
Vasconcelos, distinguido com o Prmio Sonangol de Literatura, na
sua edio de 2003, em ex-aequo com outro original de fico, A
Candidata (2004), da (at ento apenas poetisa) cabo-verdiana Vera

*
Este ensaio continua a minha leitura apresentada durante a cerimnia de lanamento
do livro Tbua decorrida no Centro Cultural Portugus de Luanda, em Junho de 2004.
A sair em: Portuguese Literary and Cultural Studies, vol. 15: Remembering Angola,
Editor: Victor Mendes; Guest Editor: Phillip Rothwell, published by Center University
of Massachusetts Dartmouth (2006).

109
INOCNCIA MATA

Duarte, autora de Amanh Amadrugada (1993) e de O Arquiplago


da Paixo (2001). Depois de Voz da Terra (1974), Vidas de S Revoltar
(1975), Clulas de Iluso Armada (1983), Emoes (1988), Anamnese
(1989) e Abismos de Silncio (1996), Botelho de Vasconcelos
surpreende duplamente os seus leitores: em termos tcnico-
compositivos, com um procedimento formal novo na sua
bibliografia e no sistema de que faz parte, actualizado numa
inclassificvel poemtica (sero dezassete poemas em voltas ou um
s poema que se desenvolve em dezassete andamentos?), de irregular
composio estrfica e versificatria, mas que retoma uma forma
potica antiga, diria ate clssica, que a composio em mote e
glosa; em termos semntico-pragmticos, com uma nova temtica
que passa pela recomposio psicocultural individual e colectiva,
aps situao de (o)presso ps-ditatorial e conflito ps-blico.
Estas obras redimensionam, pela sua intencionalidade, as
premissas do projecto literrio da construo da Nao, instaurando
outras coordenadas como liberdade, responsabilizao e cidadania,
considerada esta enquanto efectivo exerccio de direitos cvicos (e
polticos) e desempenho de deveres, o que requer, neste contexto
literrio ps-colonial, constante questionamento e revisitao crtica
do passado.

1. Transmutaes da alma na
poesia de Botelho de Vasconcelos
Os heris so as memrias das nossas/tragdias. (p. 92)
Disse uma vez o escritor brasileiro Manoel de Barros que no
gostava de palavra costumada (1997: 71) palavra de efeito
previsvel, conhecido, consensualmente partilhado; palavra de efeito
consensual e no problematizante; palavra que, mesmo que nomeie
a realidade, no a interrogue e a invective; enfim, palavra que no
produza efeito tico e performativo, isto , que no leve aco.

110
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

Parece que Botelho de Vasconcelos tambm no.


A hesitao do autor entre Tbua, ttulo que foi a concurso da
Sonangol, em 2003, e Olmias, ttulo por que o autor pensara optar
para depois abandonar em privilgio do primeiro, revela uma dupla
inteno: reter a dor para fazer o luto e, simultaneamente, por esse
gesto de purificao, enveredar pelo rumo da luz, para o que remete a
palavra olmias inventada, diga-se sendo que, como se ver mais
adiante, a sua primeira remisso para a luz, para a vitria sobre a
sombra e o silncio para que remete o seu livro anterior, Abismos de
Silncio, acima referido. Esse caminho visa buscar a reconciliao e o
apaziguamento pessoal, familiar, social e poltico, aps cerca de trs
dcadas de uma dor contida, devido ao facto de o prprio e alguns
de seus irmos terem sido vtimas da represso da DISA (a polcia
poltica do regime monopartidrio, responsvel por torturas e valas
comuns aps a tentativa de golpe de estado de 27 de Maio de 1977).
No despiciendo o facto, como j tive a oportunidade de assinalar
no prefcio deste livro, de o autor ter concorrido ao Prmio Sonangol
sob o pseudnimo Aires, precisamente o nome de um dos irmos
ento mortos, o mais velho. Neste contexto, muito significativa a
opo final pelo ttulo original, Tbua, a convocar semanticamente
o continente de um corpo inerte, sem vida o caixo.
No momento em que relia o livro para registar em forma
definitiva estas linhas, estava a ler o livro No Tenhas Medo de Saber
(2003), da ruandesa Yolande Mukagasana, j lanado em traduo
portuguesa. Trata-se de um depoimento testemunhal pungente de
quem perdeu a famlia (marido, trs filhos, irmos, amigos) na louca
voragem de dio entre tutsis e hutus que varreu o seu pas, o Ruanda,
em 1994. Apesar de a autora afirmar a sua convico na impunidade
dos verdadeiros responsveis (a Frana, por exemplo, que, alis, acusa,
explicitamente), este um livro que, segundo notcias, ser filme
que no de silncios contidos. como se a autora quisesse dizer
que: Os heris so o que os nossos olhos escondem/dos tmulos
(p. 91) ou que Os heris so as memrias das nossas/ tragdias (p.
92) numa pungente interlocuo com Botelho de Vasconcelos

111
INOCNCIA MATA

(2004: 91-92) e com os seus confrades Boaventura Cardoso, o de


Maio, Ms de Maria (romance publicado em 1997,
significativamente 20 anos depois dos eventos que se seguiram a
esse fatdico 27 de Maio de 1977, que ficaram silenciados no discurso
oficial, mas no v-se na escrita dos escritores na memria histrica
dos angolanos e que Botelho de Vasconcelos transpe agora para a
fala!) e Bonavena, o de Os Limites da Luz (2003). Oiamos
Bonavena, que, evocando os seus amigos Kimpwanza e Wadalika,
conclui: Apenas me legaram/este dever de memria (p. 24). Antes,
pelo contrrio, trata-se, o livro de Yolande Mukagasana, de uma
homenagem Paz (nem despiciendo o facto de a sua autora ter
sido agraciada com a Meno Honrosa do Prmio UNESCO de
Educao para a Paz, na sua edio de 2003). Por seu turno, pelo
elogio da vida, apesar da dor, que este livro de Adriano Botelho de
Vasconcelos faz, parece-me que ele se aproxima, salvaguardadas as
diferenas de inteno e genolgicas, do de Yolande Mukagasana e
de E. Bonavena. Tambm no livro de Botelho de Vasconcelos, a
reconciliao com o Mundo isto , com a ptria e o eu comea
a desenhar-se com o reencontro com a dor, com a ritualizao do
luto, que necessrio fazer-se para que a purificao se processe, pela
exposio das fracturas e das fissuras individuais:

O luto leva os velhos a apagarem


os silncios que foram teis para que a palavra no tivesse
outras ousadias (p. 64)

e dissensos ptrios:

Encontrei o meu morto vou dar-lhe banho


com as ptrias e ptalas do meu
quintal. (p. 82)

O que Tbua prope uma discusso sobre as feridas dos anos


da guerra guerra de todos os tipos: tambm aquela que tem um

112
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

contendor identificado internamente, que resulta da represso, por


discordncias poltico-ideolgicas e at culturais, como essa de que
tero sido vtimas os entes queridos dos escritores em dilogo, os
chamados fraccionistas. Tbua significa, assim, a contramo do que
tem vindo a ser ideia comum para a reconciliao e o encontro com
a Ptria. E essa ideia, supostamente apaziguadora, alia a reconciliao
ps-blica, ou ps-ditatorial, necessidade de perdo e de
esquecimento, porque se tem a presuno de que a sociedade se
pacifica pelo silenciamento dos horrores, fsicos ou psicolgicos. E
aqui que ambos, a ruandesa e o angolano (ou melhor, os angolanos
citados), dialogam com o arquitecto italiano Paolo Portoghesi, que
resgato da epgrafe, para quem a perda da memria, e no o seu
culto, que far os homens prisioneiros do passado (1982: 111).
neste contexto de desvelamento dos lugares comuns oficiais que
significa o seguinte mote:

Quem faz o discurso para os heris precisa


de muitos vazios onde Deus no tenha espao
para recordar que toda a linha e esquadro
o que o homem no pode fazer
de si prprio (p. 88)

Muito mais adiante, a meio da caminhada catrtica, o sujeito


enunciador dir, de forma sentenciosa:

s vezes no se sabe que a cabea


a montanha de uma insnia,
uma fora distante do corpo
que chama os criminosos pelos seus nomes
numa ferida por onde circulam j bbados
os homens. (p. 54)

113
INOCNCIA MATA

Porqu que se v atravs do poema/o modelo da terra? (p.


90)
Nem, de outra parte, deve ter sido por acaso que me lembrei de
Manoel de Barros e precisamente de Livro sobre Nada: que, tal
como este, Tbua tambm no me parece ser um livro comum:
nem pelo gnero (ser poesia em prosa? Prosa potica?), nem pela
mancha grfica, pelas linhas impressas (versos?), nem pelas imagens,
enfim, pela sequncia de pensamentos apresentados em fragmentos.
Outrossim, a instintiva associao ao livro de Manoel de Barros
tambm me surgiu da recepo desta colectnea como resultado de
um exerccio metapotico, como se a palavra pudesse conter o mago
do Mundo, como neste excerto:

Em cada boca existe a delicada


palavra que vem de um n que foi parte da confuso
dos deuses e pode parecer uma nave
que cintila no prprio
fogo. (p. 43)

Em cada boca que recita a palavra


em pele se sublinha o poder da manh. (p. 78)

Estas so palavras editadas no poema-mote e que se reeditam,


em amplificao, no poema-glosa como nos outros trinta e quatro
poemas da colectnea. De facto, parece existir uma filosofia de
contaminao clssica neste procedimento de construo estrfica
adoptado pelo poeta, em que se recorre a uma ideia-base, ora
sentenciosa ora proverbial, marcada graficamente em negrito, para,
na(s) estrofe(s) seguinte(s), se amplificar a ideia em intermediaes
metafricas e alegricas.
Desde o Formalismo russo que sabemos que uma das funes
construtivas do literrio o estranhamento, isto , a desfamiliarizao.
por essa funo que uma obra literria entra em correlao com os
outros elementos do sistema (autoral e literrio) e significa na sua

114
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

originalidade. E o estranhamento que este livro de Botelho de


Vasconcelos suscita comea pelo duplo ttulo: Tbua e Olmias36.
Ao ttulo, Tbua, j fiz referncia no prefcio que integra este livro,
intitulado Invectivando o silncio: a Luz revitalizadora37, e
certamente, por causa da sua dimenso to visceralmente pungente,
o autor tem dado melhor explicao e significao, designadamente
na entrevista que acompanha, em publicao anexa, este livro de
poemas38. Mas porqu Olmias, perguntei eu ao poeta. Por nada:
simples exerccio ldico a partir de um antropnimo Lmia a
que, num jogo sonoro, o poeta recorreu para, atravs da derivao
prefixal, com flexo do plural, dar origem palavra Olmias, que
remete, em termos de associao fnica, para luz, luminosidade,
aurora... E os poemas deste livro, diferentemente dessoutros de
Abismos de Silncio, so lunares e, at, solares. Isto , poemas que
convocam Luz que , de facto, a palavra que percorre este texto,
tanto em termos quantitativos quanto em termos isotpicos (que
formam campos semnticos afins), considerando os trinta e cinco
poemas como um s texto que desenvolve um movimento de pura
revitalizao psicossocial e afectiva individual e colectiva.

A sanzala regressou sem poder contar


as ausncias. como se tivssemos medo
de reconhecer a falta dos jovens. O fundo do espelho
do lago o que advinha na alma a distncia entre a
vida e o monstro. (p. 93)

36
Quando o original deste livro me chegou s mos para prefcio, ainda tinha como
ttulo Olmias, ttulo que o autor aproveitou para o livro seguinte: Olmias (Luanda,
UEA, 2005).
37
Inocncia Mata, Invectivando o silncio: a Luz revitalizadora. Prefcio a Tbua,
op. cit., pp. 11-16.
38
Entrevista de Botelho de Vasconcelos a Aguinaldo Cristvo: Vasconcelos: onde
exista uma injustia social estar sempre presente a pena dos poetas. Vasconcelos &
Aguinaldo Cristvo, Discursos & Entrevistas & Ensaio, ABV, Grfica EAL Inserto do
livro Tbua.

115
INOCNCIA MATA

uma utopia na corrente de um panfleto (p. 92)


Todo o (macro)poema um percurso de subjugao, pela Luz,
da Noite e todas as remisses semnticas que sugestionam a
ambincia nocturna (guerra, represso, morte, caos, sofrimento,
tristeza, desagregao identitria, fragmentao psicossocial, misria
de corpo e de esprito). Esta poesia aponta, assim, para uma
reconstruo, uma desfribilao em relao aos anos da represso e
da guerra e seus corolrios, como seja a fragmentao sociocultural
de que o livro anterior, Abismos de Silncio, d testemunho. Aqui,
neste livro, Tbua, h sinais de outro universo bem diferente, com
lexemas e expresses recorrentes que apontam para campos
semnticos menos elegacos e mais cosmogonizantes, como em:

Uma mo pode fazer a durao do sonho


se tiver no seu barro o que se pode adiantar
como preo dos erros de Deus quando o trigo no fazia
ainda sorrir a terra e separe do seu hmus
os mortos que fazem ouvir
as queixas. (p. 41)

Um deus que tambm erra, luz, fogo, mo, trigo, terra, barro,
hmus, mortos que (j) podem falar, numa insistncia na imagtica
revitalizante e de reconverso do desencanto e do desfazer das
incertezas. Alis, os elementos primordiais Luz (Ar), Fogo, Terra,
gua nas suas verses metonmicas so o leitmotiv deste relato da
revitalizao qual, antes, relato de nao , em inmeros poemas,
como, por exemplo, neste Oh! luz que foi descansar na lagoa para
fazer o espelho ou essoutro Oh! luz que veio por detrs do teu
corpo como, entre muitos outros... O poema tambm labora, no
seu percurso de significao, contra o monolitismo ideolgico e
identitrio da utopia que se constituiu sob imperativos nacionalistas
e, por urgncia performativa, se fez panfletria, com palavras
desempregadas de tertlias e poetas sem cais e assim vigorou durante
o perodo de consolidao da nacionalidade poltica:

116
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

Na catedral as gaivotas fizeram durar os mares


at as ptrias ficarem sob o domnio de uma nica
razo. Perdido o seu tesouro
uma utopia na corrente de um panfleto
os velhos tentam fugir das confisses
at as suas palavras desempregarem
nas tertlias e cais
os poetas. (p. 92)

Toda a existncia/ uma tentativa de rguas (...) (p. 94)


A revitalizao individual e colectiva acima referida solapa o
movimento do reconhecimento das perdas e da fragmentao
psicossocial, afectiva e espiritual e tem alicerces no processo de
recuperao psicossocial e de reconciliao da comunidade. A retrica
da reconciliao sobrepe-se, doravante, do silncio que vigorou,
a fim de que se altere a senha da oficialidade:

As frases
ficaram simples para que atravs de uma senha
se entenda como fomos hbeis em usar das cobras
as sombras at para nas gavetas anularmos
o nome dos irmos. (p. 94)

como se o poeta se insurgisse contra o muro de frases feitas


do discurso da reconciliao. No entanto, essa postura de
confrontao com o passado no pressupe o seu culto (como, alis,
desaconselha Portoghesi), pelo que a nostalgia que daqui resulta
no regressiva, mas projectiva, a direccionar ao futuro. Nada h de
mais construtivo do que organizar as runas do passado, na contramo
do anjo de Paul Klee, reinterpretado por Walter Benjamim. Na
verdade, as runas do poeta pessoais, afectivas, ideolgicas, ptrias
no se amontoam para se dispersarem a seus ps: o poeta arranja-
lhes um lugar e um sentido, qual velho Kinga [que] entrega velha

117
INOCNCIA MATA

Ngonga o osso dos espritos (p. 52), para que cada uma (runa,
segundo Klee, ou osso, segundo o Velho Kinga) funcione no corpo
reconstitudo do passado:

Recomece ento a nova identidade


como a nica estreia do mundo e prova-o um barco
que estique a sua vela para que se abra o mar.
Tantos tm sido os caminhos procura
de um lugar para o corpo.

No hmus a mais longa perda/ do nome


faz a defesa do epitfio. (p. 96)
Com a fala do enunciante tambm ele actor, pois refere, logo
no incio, e por duas vezes, a sua condio discipular nesse processo
de aprendizagem e de reconciliao com o Mundo a ganhar uma
conotao projectiva, aqui comea novo trecho nesse percurso de
humuficao do solo da memria, que j comeara com a convocao
da afectividade familiar. Na verdade, j a meio do percurso, entre o
poema-mote , meus sangues! No foram as minhas vidas e a
poema-glosa correspondente, Esse o sabre que empunho diante
de ti, os pilares da identidade psicossocial, individual e comunitria
comeam a emergir, com a nomeao da famlia, afinal seguro porto
de afectos. E ser por ela, a famlia, que vo entreabrir-se os postigos
e se erigir a catedral das ideias, onde se regenera o blsamo da
memria. que esse processo de rememorao funciona como
blsamo: a memria das pessoas ensina-nos Ecla Bosi tambm
depende desse longo e amplo processo pelo qual sempre fica o que
significa (1979: 32). Esse hmus, que a radicao afectiva, toma
forma na explicitude fistular no sentido cirrgico do termo, em
que fstula se pensa canal com finalidade teraputica (outro sentido
deste termo no texto, ao lado do seu significado como marca ou
ferida moral e psicolgica). Diz o enunciador, explicitamente:

118
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

Foi atravs da luz que refiz os signos para que as


palavras que nos guiam atravs das fstulas e feiras
mantenham as partes finais que celebram nos cristais
o sono que se descobre nas salivas das cobras. (p. 44)

119
INOCNCIA MATA

2. ...Intermezzo... Que fazer com esta dor?


Depois... o percurso se nos baralha: o poeta parece regredir na
dor, to crespuscular se torna a semntica do universo potico. Entre
O corpo [que] ficou entre as lianas repetindo/ em seus erros a dor
que a outros fez durar (p. 96) e a vergonha que nos est prxima
do corao o mote do poema seguinte (p. 97) , o poeta volta
interioridade (pessoal e colectiva) do sofrimento e busca a voz dos
mortos. Mas talvez seja, apenas, um regresso purgativo. Porventura
mais dionisaco que elegaco, como se fosse uma pausa para a
recomposio final, uma libertao orgaca da memria e uma catarse
da dor :

Os mortos de outras guerras mais antigas


estavam tontos nas poas
de vinho. (p. 98)

3. Do sal das lgrimas flor na Primavera


Kanjala com o seu tempo perfeito depois/de
muitas fogueiras. (p. 124)
Porque a seguir o movimento final se anuncia de reconciliao:
trata-se, na verdade, de um tempo de generosidade, por que o cidado
tambm pugna ao afirmar, em entrevista j aqui citada: Curemos
os nossos enganos lavando os ps dos outros!
H a proposta da reconciliao por via do luto, do
desmascaramento pela palavra, pelo apelo confisso e contrio,
pela evocao dos mortos (Joana, Ximinha, Aires) e neste terreno
Bonavena muito mais explcito no inventrio dos seus mortos ,
pela citao de mortos, enfim, pelo apelo denncia das verdades
como caminho para a pacificao social e para a utopia de uma
sociedade reconstruda, de que Kanjala, no texto de Botelho de
Vasconcelos, representao metonmica. A metfora da queimada
para deixar visveis as causas (p. 108) bem representativa: as sombras

120
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

da Histria desfazem-se; o Kwanza (que, em 1977, ter acolhido


o corpo de Aires, o irmo morto) ganha outras funes, mais
sublimes, que j no passam pelo encobrimento dos crimes: apanhar
a intimidade/da ptria (p. 116); a terra ter outra ordem:

Que chegue agora o silncio


para que a terra tenha outra ordem: a lua
mais perto do mar. (p. 117)

A associao corpo/morte que se fazia em segmentos anteriores


deste relato tem agora novas conotaes, mais genesacas, mais
prospectivas:

Teu corpo dana nos anis


da msica que s pode ser entendida no meio
espesso e lento do meu
esperma. (p. 110)

O amor substitui as sombras e as lgrimas de dor (elas so agora


de amor p. 112) e se dispem gerao, generosidade. amor
sereno, que sobrevm a um cansao, cuja imagem, porventura menos
sublime e mais terrena e orgstica, se retm dos seguintes versos:

quando tu sentes que falo contigo


com uma fora de ancas
e unhas? , Deus, como o amor a si prprio
se entrega ao cansao que faz e, no entanto,
parecer ser outro e em nunca vivido no momento
das humidades que untam de luas
os teus braos poisados nas minhas
ndegas. (p. 122)

E o sujeito at prope a transmudao do objecto de culto:

121
INOCNCIA MATA

O poema deveria desfazer o meu n numa estrofe


que troque o meu epitfio
pelas flores. (p. 120)

(No disse o russo Alexandre Potebnia [1835-1891] que no


existe arte e particularmente poesia sem imagem?39 postulao
que to bem serviu o programa simbolista, mesmo se depois
se tenha chegado ao consenso de que a imagem, tal como outros
recursos ditos literrios, no so exclusivos da linguagem cuja
funo dominante a esttica?) Seja como for, a esta imagem de
positividade est associada Kanjala, metfora do milagre da Paz:
Kanjala, uma vila do Sul de Angola, muito sacrificada durante a
guerra civil (por ambos os contendores armados), hoje um milagre
da cicatrizao das feridas da guerra, com suas extensas plantaes de
milho.
Kanjala de barro que completa o que Deus deixara
por fazer pela diviso do po, todo o tema da vida
procura o ouro
numa ponta
de milho.
(...)
Kanjala com o seu tempo perfeito depois
de muitas fogueiras. Um milheiral levanta a terra
numa mesa
acesa que ocupa o horizonte. E primeiro levantas as
dvidas
que feriram a inocncia e depois preferes que destes
braos
se faa o clice da utopia. (pp. 123-124)

39
Alexandre Potebnia, Notas sobre a teoria literria. Apud Vtor Chklovski, A arte
como procedimento. AAVV, Teoria da Literatura: Formalistas Russos (1976), Porto
Alegre: Editora Globo, 3 edio, p. 39.

122
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

O caos est definitivamente organizado nesta ltima paragem,


numa relao comunicante com os elementos naturais, culturais e
espirituais do Mundo. Porm, no sem antes se proceder ao
desvelamento da ltima verdade, um dos aspectos mais perversos
da ideologia:
Olhavas para os homens com um
corao incapaz de aceitar como uma lavra pode
salvar um Pas que decidiu pelas ideologias
escolher os seus melhores filhos. (p.124)

o elogio da diferena e do pluralismo; a invectivao


da intolerncia que levou represso e perseguio e ao
aniquilamento dos diferentes e dos que pensavam diferente. Um
dos aspectos mais perversos, porm tambm um dos mais geradores
da nova utopia, pois como aqueloutra seminal, a utopia
revolucionria, esta nova utopia se constri de palavras:

A palavra atravessa toda a iluso como se cumprisse


uma misso. Podemos apresentar-nos como vtimas
das suas tbuas onde Deus acabara de jurar o repouso
das manhs. (p. 125)

A utopia agora tambm atravs do verbo. Como antes Pepetela,


que, a propsito de A Gerao da Utopia, afirmara que a escrita seria
realmente a sua ltima utopia... como sempre fora, alis, acrescenta
o romancista (1992). Tambm desta feita, o poeta olhando para a
memria no de modo ingnuo e sob punes teleolgicas:

A cicatriz delicada
como se tivssemos que olhar para a memria
com uma outra escolha e astcia.
(...)

123
INOCNCIA MATA

Por isso as palavras vo compondo


numa s estrofe o que a vida mesmo atenta no pode
consagrar. (p. 126)

Doravante, h condies para todas as celebraes, uma vez que,


feita a catarse, com projeco futura, possvel escrever o poema
como uma possibilidade do amor:

Celebras tudo at a memria


dos nossos dias ficar como fitas de um poema que tinhas
escrito como uma possibilidade
do amor. (p. 128)

Como uma lei da vida, cria-se a disposio para o regresso


temporrio dor. Mas contra isso, nada se pode fazer: a marca da
Vida vivida na marcha inexorvel do tempo!

Todo o minuto s existe saturado por insinuao


das nossas dvidas e regressos temporrios
morgue. (p. 129)

Tal como inevitvel que o poeta, pela sua flauta


no deveria ser kissanje? , continue a oferecer sonhos aos outros...

Um poeta toca a flauta da tua tarde


de esperas janela como se pedisses numa agonia
que te oferecesse
um gesto. (p. 130)

Pela recepo, pela intelligentzia, ora reveladora de


constrangimentos ora silenciosa, que obras deste teor causam na
sociedade angolana (e refiro-me a A Gerao da Utopia e a Maio,
Ms de Maria, respectivamente), pode dizer-se que a palavra ajudar,
mais uma vez, na reconstruo do corpo fracturado da nao, agora

124
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

devido a conflitos internos como antes a palavra literria fora um


dos seus mais importantes artfices, pela pena dos poetas-polticos.
Hoje, pela palavra criativa e reflexiva a nao busca agenciar as
runas e prosseguir ainda no caminho da utopia, agora no apenas
da nao, mas da ptria (que solapa, pela sua significao, a
comunidade imaginada) e da cidadania, categoria at ento
inexistente na configurao do local da cultura e da nao. Na verdade,
e como acima ficou dito, a cidadania requer outros ingredientes que
no se compadecem com a inteno exclusivamente celebrativa, pois,
sendo de teor legalista apesar de este ser concomitante de qualquer
nao, como nos ensina Anthony Smith (1997: 147), pressupe
uma participao e transporta outras implicaes que no so
necessariamente uniformizantes e centrpetas, embora ainda de
unidade, implicaes conducentes construo de uma sociedade
livre, justa e aprazvel de se viver. No so estas, afinal, as coordenadas
dos programas mximos dos movimentos de libertao?

Luanda (Angola), Junho de 2004/Ilhus (BA-Brasil), Agosto de


2005

125
INOCNCIA MATA

126
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

Dizes-me Coisas Amargas como os Frutos: da dico


no feminino cincia dos lugares e dos tempos*

Dizes-me Coisas Amargas como os Frutos o terceiro livro de


poesia de Paula Tavares, alis Ana Paula Ribeiro Tavares, nascida no
Lubango (ex-S da Bandeira), provncia da Hula, sul de Angola, e
autora de Ritos de Passagem (1985), O Lago da Lua (1999) e Ex-
Votos (2003) poesia; O Sangue da Buganvlia (1998) e A Cabea
de Salom (2004); Os Olhos do Homem que chorava no Rio (2005),
romance a quatro mos com Manuel Jorge Marmelo.
Historiadora, cronista e poetisa, sobretudo nesta condio que
a escritora adentra pelos meandros da condio angolana, atravs do
eu feminino, escalpelizando as razes dessa condio, ora intentando
reordenar um tempo de memrias, individuais e colectivas, feitas
sonho,

No meu sonho nascem tartarugas dos olhos de anjos


(...)
No meu sonho um anjo voa a voz da tartaruga
em volta da luz
em volta do meu sonho.
(Conto pende)

*
Expresso da prpria (Ana) Paula Tavares escrita na dedicatria ao livro Ex-Votos
(2003), oferecido autora deste texto: Para a Cency, que tem a cincia dos lugares
(...). Texto lido na cerimnia da entrega do Prmio Mrio Antnio 2004, da Fundao
Calouste Gulbenkian. Publicado em: Revista Ecos Literatura & Lingustica. Instituto
de Linguagem da UNEMAT Universidade do Estado do Mato Grosso (Cceres).
Estudos Portugueses e Africanos: Memria, Sujeito e Ensino de Lnguas. Agosto de
2004-Jan. 2005, Ano III, n 3.

127
INOCNCIA MATA

ora buscando reconfigurar um tempo de memrias de origem,


onde se guardam os alicerces de um mundo j a desfazer-se devido a
perdas, sofrimentos e lgrimas, de que o ttulo deste livro em causa
dizes-me coisas amargas como os frutos d o tom, muito disfrico:
a amargura perante as notcias da perda do amado.

Guardo a memria do tempo


em que ramos vatwa,
os dos frutos silvestres.
Guardo a memria de um tempo
sem tempo
antes da guerra,
das colheitas
e das cerimnias.
(Origens)

Depois de Ritos de Passagem (1985) e de O Lago da Lua (1999),


a poetisa reedita neste livro a sua votao ao sul, iniciada no livro
anterior, atravs de sinais culturais: kwanyamas, nyanekas, mulas.
Por este veio, perseguem-se os meandros da condio feminina, num
universo em que a palavra no feminino continua a ser de actualizao
constrita, inserindo-os na reflexo sobre a condio angolana, na
tentativa de reordenar um tempo de angstias, de memrias em
desagregao, de caos interior e exterior:

Os celeiros esto vazios


as crianas sem leite.
(Amada)

Neste livro, Paula Tavares extrai do seu sentir e do seu saber


enfim, do seu saber-sentir , das suas memrias e da sua cartografia
vivencial e reflexiva as formas de dizer e representar o sul, em relao
metonmica com o pas, atravs da viso do segmento feminino, at
ento apenas sujeito potico. Pelo ritual da palavra da sabedoria

128
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

kwanyama, a autora celebra uma cultura hoje contida pelos efeitos


to nefastos de uma guerra ainda por vencer: aquela que se instalou
no corao e na mente dos homens e condiciona os seus gestos e
comportamentos.
Revelando um intenso trabalho da palavra, transformada em
matria de louvao, numa postura j iniciada em livro anterior
leiam-se os ttulos de poemas como Mukai VI e Mulher VIII,
ostensivamente em continuidade do livro anterior , a autora move-
se no seu universo histrico de que o seu imaginrio se alimenta:
histria de vida, com a sua educao europeia, de menina que cresceu
com a madrinha portuguesa e que decidiu, depois, amar a distante
av kwanyama e que, por isso, quer conhecer e aproximar-se do
mundo volta, enveredando, por isso, pelos caminhos da Histria,
enquanto discurso sobre o passado pois esta poetisa cruza as duas
modalidades discursivas: basta ler O Lago da Lua, que bvio
exemplo do modo como a poesia compensa a insatisfao do ofcio
de historiar, como o caso narrativa potica Histria de amor da
princesa Ozoro e do hngaro Ladislau Magyar.
O ritual de iniciao que a autora encetara dezanove anos
antes, em 1985, com Ritos de Passagem, atinge aqui (neste livro
publicado em 2001), a sua mais harmoniosa estao, com
recorrncia a dois signos das culturas do sul o boi e a vaca ,
num percurso em que os dois gneros (masculino/feminino) se
conciliam no redimensionamento da nostalgia dos tempos
imemoriais, de um tempo/sem tempo/antes da guerra, das
colheitas/e das cerimnias. O boi e a vaca, que fundam as duas
partes da colectnea de vinte e nove poemas, funcionam como
signos tutelares na configurao da paisagem humana, nas sua
dimenso psico-cultural e social. Esta uma paisagem dilacerada
pelos esquemas histricos ditados por interesses poltico-
ideolgicos e pessoais: o boi verdadeiro, como guia da voz entre
o som e o silncio (que o mesmo dizer, entre o caos e os
cacos), e a vaca fmea, guia tambm, lenta e firme, representao
metafrica da Me, mas aquela que lambe as feridas e o corao,

129
INOCNCIA MATA

aquela que preserva a comunidade da desagregao e da


fragmentao identitria face ao desamparo e ao sofrimento.
No se pense, porm, que se trata da simples actualizao do
smbolo Me/Terra, um dos lugares cannicos da poesia nacionalista,
fundadora dos respectivos sistemas literrios: porque hoje

ningum cumpriu os preceitos


e agora somos vivas da floresta
e temos os sonhos perdidos

(As vivas)

Ora, como lembra Jos Manuel Oliveira Mendes, a tradio s


possvel em lugares estveis, permanentes e com dada espessura
temporal. Os lugares desestabilizadores conduzem a processos de
destradicionalizao (2002: 500-501). Na verdade, perante tal
situao de contnua turbulncia identitria (identidades culturais,
sociais e espaciais) que Angola vive(u), como pensar a continuidade
das prticas tradicionais?!
(...)
onde est o tempo prometido pra viver, me
se tudo se guarda e recolhe no tempo da espera
pra l do cercado
(O cercado)

Embora, ainda e sempre, com forte ligao imagem da Terra,


numa percepo que pode remeter, semanticamente, para a vinculao
aos valores culturais tradicionais, a mulher/me no tem j aquela
restrita marcao tradicional aos lugares simblicos de fertilidade e
de fecundidade e de representao de frica. Ao ampliar os critrios
da tradicional regulao da simblica do feminino, a autora no
rasura tais dimenses como poderia? , porm, f-las implodir
para significarem para alm dos fiapos que engendram, com
recorrncia a metforas tiradas da pauta do corpo e convocando

130
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

imagens sensuais e erticas, a dizerem da fora que desenha o corpo


feminino. Dir-se-ia que a funo deste signo, antes transformado
em smbolo por razes extraliterrias, era de afirmao; neste tempo,
este signo se desdobra em significaes que apontam para a
reconstruo, para a reorganizao da diferena, para a reescrita do
lugar da mulher/me no espao sociocultural e da imaginao:

A me chegou
no estava sozinha
o cesto que trazia
no estava bem acabado
a me chegou
no tinha as tranas direitas
a me chegou e o pano que trazia
no estava bem alinhado
a me chegou com olhos maduros
os olhos da me
no olhavam na mesma direco
a me chegou
e no era ainda o tempo
do po do leite azedo
e das crianas.
A me chegou e a fala que trazia
no estava bem preparada
a me chegou
sozinha
com as falas da desgraa da misria do leite fermentado e
do barulho.

(A me)

O prprio ttulo desta colectnea diz da sua substncia: dizes-


me coisas amargas como os frutos o excerto de uma cano da

131
INOCNCIA MATA

tradio oral kwanyama que se reporta situao de completo


desalento em que a amada recebe a notcia do amado, descrito com
a morte nos olhos/e sem sandlias, uma sombra que perdeu a
lngua de metal/a dos sinais e do provrbio com o nome da amada
inscrito toda uma construo eufemstica para dizer da morte do
amado, em notcia que apenas um estrangeiro poderia trazer. Na
verdade, o Estrangeiro de Dizes-me Coisas Amargas como os Frutos
no o de O Lago da Lua: aquele portador de ms notcias, este
bem-vindo, o hngaro Ladislau Magyar, o amado da princesa Ozoro,
aquele a quem Ozoro ensinou a ser da terra (Histria de amor da
princesa Ozoro e do hngaro Ladislau Magyar).
Neste terreno ainda do sul, kwanyama particularmente, a poetisa
faz a recriao dos sinais de configurao dos mapas identitrios,
injectando-lhe uma filosofia mais ampla, to transtnica como o
fora em Ritos de Passagem e mesmo em O Lago da Lua, em que os
aportes das culturas do Leste e do estrangeiro Ladislau Magyar tm
um lugar produtivo. E embora situando-se nas culturas dos povos
do sul, existe uma actualizao, existem outras formas de pensar as
relaes sociais e afectivas, existem outros lugares poticos menos
cannicos da tradio literria, como a guerra, as margens, as
sombras, a esperana cansada da vida, as viagens sem regresso, os
rostos de muralha, o ehumbo (isto : o espao familiar) deserto, o
regresso ou a rendio inglria do guerreiro, o no cumprimento
dos preceitos, a viuvez, a mudez da me, o seu seio seco de leite, a
fome e tantos outros tpicos que fazem deste livro uma escritura
menos solar.
No admira: este livro foi gerado em tempo de guerra, em que
havia a necessidade de reconfigurar um tempo de memrias das
origens a memria do tempo/em que ramos vatwa (Origens),
os mticos (primeiros) habitantes do sul angolano onde se guardam
os alicerces, as memrias e as matrizes identitrias do que se pretende
vir a ser um dos locais da cultura nacional:

132
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

(...)
A me preparou as palavras devagarinho
mas o que saiu da sua boca
no tinha sentido.
A me olhou as entranhas com tristeza
espremeu os seios murchos
ficou calada
no meio do dia.
(A me e a irm)

Na verdade, em tenso dilogo com a poesia celebrativa da


nacionalidade, esta poesia nomeia situaes desestruturantes como
a guerra ou o sentimento de perda, partida e abandono (da o ttulo
retirado de um poema kwanyama, como j foi dito, a sintetizar o
sentimento de perda das mulheres ao ouvirem notcias da morte de
seus homens), que vo da partida viuvez e liquidao das relaes
afectivas, da violncia escassez de alimento. Em Sombras, o
sujeito, em interlocuo, conclui:

Teus olhos, amado,


So olhos de algum
Que j morreu
E ainda no sabe.

Esta poesia est pontuada por sinais muito disfricos, signos de


runa e em runa para, em contramo dialgica e ideolgica ,
com o discurso oficial (potico e referencial), dizerem ainda da
possibilidade de fogo novo, no obstante a crueza da condio
sociocultural e econmica e a conscincia do sonho adiado. E, mais
uma vez na contramo, a semntica desse sonho adiado est
concentrada na imagem de abandono da me que olhou as entranhas
com tristeza/espremeu os seios murchos/ficou calada/no meio do
dia (A me e a irm).

133
INOCNCIA MATA

Assim, a poesia de Paula Tavares, sobretudo O Lago da Lua,


Dizes-me Coisas Amargas como os Frutos e Ex-Votos dialogante e,
nessa votao cultura do sul, com a poesia de Ruy Duarte de
Carvalho , tem um lugar interessante na literatura angolana,
ilustrando a conscincia e a apetncia desse sistema para um
deslocamento tpico o que j est a verificar-se e a funcionar
como um cartucho no sistema da angolanidade literria, sedimentada
e institucionalizada a partir de sinais da cultura urbana, e at
cosmopolita, e rasa de diferenas etnoculturais. Na sua poesia, e
particularmente neste Dizes-me Coisas Amargas como os Frutos, o
literrio angolano passa tambm a contar com outros territrios
para o redimensionamento do discurso sobre a comunidade
imaginada e sobre a terra. Dos ritos s formas simples (no sentido
jolliano: portanto, mitos, lendas, provrbios, mximas, poemas e
canes tradicionais), o ttulo deste livro que ganhou, em 2004, em
ex-eaquo, a segunda edio do prestigiado Prmio Mrio Antnio
da Fundao Calouste Gulbenkian, reitera a dimenso cosmognica
da palavra, demonstrando, a autora, a sua cincia dos lugares: a
integrao do antigo no agenciamento da nova Angola que, em
situao de intensa pungncia, est a fazer-se nao tambm pela
ritualizao da palavra que diz a identidade e a memria e, cada
vez com mais premncia, tem de dizer a diversidade.

Lisboa, 15 de Junho de 2004

134
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

Espigas do Sahel: a harmonia do pico e do lrico*

Espigas
espigas brotam do Sahel
pioneiras da liberdade
a caminhar sem cautela
pela floresta carregada de espinhos
Amlia Dalomba

Continuo a dizer da literatura que gosto ou no gosto.


temerrio e pode at parecer contraditrio, avisara-me um professor,
meu mestre, com quem aprendi a preocupao da objectividade,
to importante e quase sagrada no meu ofcio: a docncia e o
trabalho crtico. Continuo, pois, a dizer que nada pior quando o
texto de prazer se sobrepe ao texto de fruio, reportando-me
produtiva distino barthesiana. E o meu desejo, enquanto professora
de literatura, no que os meus alunos vejam o livro como objecto
de trabalho, mas que aprendam a gostar de ler.
S para dizer que gosto deste terceiro livro de Amlia Dalomba,
Espigas de Sahel (2004), depois de nsia (1995) e de Sacrossanto
Refgio (1996); em 2005, a poetisa publicou Noites Ditas Chuva.
Este terceiro livro de poesia de Amlia Dalomba, que tambm
declamadora, um livro maduro, de grande inquietao em relao
ao que se passa volta, que busca, porm, ainda uma possibilidade
de conciliao entre a Natureza, na sua primordialidade (terra, gua,
ar, fogo), e o Homem, que o autor textual vai sussurrando ao
logo dos quarenta e sete poemas que constituem este livro.
O ttulo parece contrariar uma primeira leitura: a pressupor
alimento em terreno hostil, pelos dois semas simbolicamente
vinculados ao elemento csmico terra, convocados a partir do ttulo.

*
Publicado no Semanrio Angolense (Luanda), n 102, 4-11 de Maro de 2005.

135
INOCNCIA MATA

Com efeito, Sahel, o deserto, remete semanticamente para a actual


condio angolana, mas de onde brotam elementos seminais de
esperana, as espigas. Porm, nesse osis no deserto, o leitor
surpreendido com a cruel desesperana, em dose dupla (I e II), dos
primeiros segmentos poemticos. Trata-se, porm, de uma distopia
em reverso na medida em que, gritando a condio humana, o
sujeito vai propondo a sua reabilitao, pois do que se fala de uma
desesperana (e no de desespero). Os poemas referem-se sobretudo
a dolorosos quadros humanos mitigados pela crena num deus
redentor, como em Respirar esperana:

Quando Deus acender a lmpada


sobre o mastro do meu bero
calar o pranto nas aldeias

Ou em Um grito+1:

Desafio-te
ao duelo da vida
tu
que tocas assduo
minha porta
com a lngua
flamejante de blasfmias

Um cristo
em cada
crucifixo

Mas no se trata de um Deus desconhecido: o deus para o qual


apela o sujeito um deus de Todos a Natureza, afinal, que
pretende reinventar como sacrossanto refgio dos Homens:

136
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

O verde mais verde


do Mayombe
pulmo do mundo
a insuflar esperana

interessante esta reinveno de Mayombe como lugar de utopia.


Na verdade, sabendo que a autora natural de Cabinda, vejo nesta
invocao outra conciliao que se opera neste livro: o pico e o
lrico. que evidente que existe uma insistncia do olhar sobre o
colectivo, no sentido em que o sujeito da enunciao intenta a
representao da totalidade do seu povo. Nesta insistncia, busca-
se um prisma que ultrapasse as fronteiras do nacional e se alarga ao
transnacional, o que se pode verificar na viso caleidoscpica da
geografia africana do sofrimento e da liquidao da dignidade
humana, como em Esta outra frica Encontro com Lumumba
e Nas margens do Congo:

(...)
sombra do coqueiro
deliram os ancios
defecaram onde comeram
e os sapos
os sapos
tomaram dos poetas
o lugar

Porm, este um livro que, reportando-se a uma contempornea


historicidade, intenta um segundo movimento, este regenerador,
atravs do olhar subjectivo, em que o elemento dinamizador de
sentido(s) a vivncia dos afectos. Esta harmonizao do lrico com
as contingncias da Histria , alis, uma das lies de Theodor
Adorno que, ao falar sobre lrica e sociedade, assim afirma:

137
INOCNCIA MATA

A composio lrica tem esperana de extrair, da


mais irrestrita individuao, o universal. O risco
assumido pela lrica, entretanto, que o princpio
de individuao no garante nunca que algo
necessrio e autntico venha a ser produzido. Ela
no tem o poder de evitar por completo o risco de
permanecer na contingncia de uma existncia
meramente isolada. Essa universalidade do teor
lrico, contudo, essencialmente social. S entende
aquilo que o poema diz quem escuta, em sua
solido, a voz da humanidade; mais ainda, a
prpria solido da palavra lrica pr-traada pela
sociedade individualista e, em ltima anlise,
atomstica, assim como, inversamente, sua
capacidade de criar vnculos universais (...) vive
da densidade de sua individuao. (Adorno, 2003:
66-67)

Esses lugares afectivos vem-se no apenas em poemas dedicados


me, mulher, amiga, prostituta, aos rfos, a Chico Santos
ou a Joo Serrote, mas, sobretudo, vem-se nas inmeras dedicatrias
destes poemas do Livro I, Espigas do Sahel: familiares, amigos,
figuras gradas como Patrice Lumumba... Ao potenciar os lugares
no corrodos pelos atropelos do processo histrico, que so os afectos
e os sentimentos familiares, o eu lrico vai-se alimentando e
rumando na contramo do agravamento da amargura que tende a
subjug-lo. Da a recorrncia, sobretudo no Livro II, Ar de p, a
uma expresso mais introspectiva, mais contemplativa at da Natureza
(que havia sido um lugar de possibilidade de revitalizao).
Outrossim, no para mim despiciendo a origem do ttulo:
Espigas de Sahel remete para uma certa frica, l para os lados
onde deambulam outros ancestrais da autora: Cabo Verde. Da a
utopia se situar tambm o l, de onde o nos vm, alis, sinais de
esforada mudana, no obstante a floresta carregada de espinhos:

138
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

Espigas
espigas brotam do Sahel
pioneiras da liberdade
a caminhar sem cautela
pela floresta carregada de espinhos
(Espigas do Sahel)

Um livro diferente que nunca deixa, na leitura, de ser texto de


fruio, apenas ensombrada por um qu de desconforto que causam
algumas gralhas em poesia to sensvel e envolvente; gralhas que,
estou certa, em prxima reedio, ou reimpresso, uma reviso
cuidada saber apagar.

139
INOCNCIA MATA

140
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

Transformou-se o amador em coisa amada?*


Joo Melo e a irreverncia da contao

Transforma-se o amador em coisa amada.


Lus de Cames

A obra ficcional de Joo Melo tem vindo a confirm-lo como


um escritor do satrico, modo que actualiza com o recurso ao humor,
mas, sobretudo, ao sarcasmo, pardia e at ao grotesco.
Poeta mormente, autor do oito livros de poesia40, em 1998 Joo
Melo revela-se tambm como ficcionista com Imitao de Sartre &
Simone de Beauvoir; trs anos depois, em 2001, reincide com Filhos
da Ptria, para, em 2004, publicar The Serial Killer e Outros Contos
Risveis ou Talvez No41, uma colectnea de dezassete contos que,
continuando esse processo de inovao tcnico-compositiva,
exponenciam a ironia dos contos do primeiro livro e a dimenso
humorstica dos do segundo. Embora tenha publicado poesia
recentemente, A Luz Mnima (Luanda, 2004), na fico que o
autor se vem tornando mais sistemtico na inovao temtica e
estilstica, sobretudo na composio das diferentes vozes narrativas
e no jogo de focalizaes, exerccio no qual se mostrara diligente
desde Imitao de Sartre & Simone de Beauvoir42.

*
Este texto retoma algumas ideias da recenso da obra The Serial Killer e Outros Contos
Risveis ou Talvez No publicada na Revista Metamorfoses: Revista da Ctedra Jorge de
Sena para estudos Literrios Luso-Afro-Brasileiros/UFRJ (Rio de Janeiro), n 6,
Editorial Caminho e Ctedra Jorge de Sena, Agosto de 2005.
40
Joo Melo autor dos seguintes livros de poesia: Definio (1985), Fabulema (1986),
Poemas Angolanos (1989), Tanto Amor (1989), Cano do Nosso Tempo (1991), O Caador
de Nuvens (1993), Limites e Redundncias (1997) e A Luz Mnima (2004). Em 1991
publicou o ensaio Jornalismo e Poltica.
41
J as primeiras provas tipogrficas estavam a ser revistas quando foi lanado o quarto
livro de contos do autor, No Dia em que o Pato Donald Comeu pela Primeira Vez a
Margarida (Lisboa, Editorial Caminho, 2006).
42
Esta obra no ser considerada neste ensaio crtico porque j foi objecto de um

141
INOCNCIA MATA

Diferentemente do Joo Melo poeta, cuja escrita


assumidamente intimista, mesmo quando fala do social (da ter sido
natural a sua viragem para a poesia amoroso-ertica), enquanto
contista que Joo Melo intenta um olhar sobre a sociedade angolana
do ps-abertura ao multipartidarismo e do ps-guerra, a partir de
um lugar sociocultural privilegiado. F-lo para reflectir sobre o
(per)curso do pas, em momento de reagenciamentos de vria ordem
que os tempos tumultuosos das trs dcadas da independncia no
haviam permitido e porque a narrativa o modo literrio que
permite a anlise; f-lo construindo autores textuais que se
metamorfoseiam em supranarradores homodiegticos e omniscientes
pertencentes elite luandense; f-lo assegurando aos modos satrico,
pardico, humorstico e irnico um lugar importante no conjunto
dos recursos mobilizados por via dos quais procede ao desvelamento
das incongruncias, inconsistncias, contradies, nonsenses e
amoralidades da sociedade de que o autor um dos agentes; f-lo,
enfim, numa escrita cujo efeito de leitura, mesmo sendo
frequentemente o riso, sobretudo tico: o leitor, partcipe dessa
cultura social, reflecte sobre o que acaba de ler, ora rindo-se do
destino da personagem, ora regozijando-se com a punio, ora ainda
se incomodando por se saber cmplice (ainda que at ento
inconsciente) da situao (note-se, a propsito, que muitos estudiosos
assinalam a necessidade de sintonia interpretativa entre o produtor
de ironia e o seu destinatrio para que os sentidos subjacentes
enunciao irnica surtam efeito). Razo tem Walter Benjamin
quando afirma que no h melhor ponto de partida para o
pensamento que o riso. Riso que funciona, no caso de Angola,
como uma terapia para superar os traumas do ps-monopartidarismo
e ps-conflito: como se o autor quisesse dizer que a rir que os
angolanos se entendem. Na verdade, D. C. Muecke reala, em A
Ironia e o Irnico (1995), a dimenso pedaggica deste recurso, que

estudo anterior (cf. Inocncia Mata, Literatura Angolana: Silncios e Falas de uma Voz
Inquieta, Lisboa, Mar Alm/ Luanda, Kilombelombe, 2001).

142
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

no apenas discursivo seno tambm mundivivencial (ideolgico


e cultural, portanto), ao afirmar que

A ironia tem basicamente uma funo corretiva.


como um giroscpio que mantm a vida num curso
equilibrado ou reto, restaurando o equilbrio
quando a vida est sendo levada muito a srio ou,
como mostram algumas tragdias, no est sendo
levada a srio o bastante, estabilizando o instvel,
mas tambm desestabilizando o excessivamente
estvel. (Muecke, 1995: 19)

Referir-se- o instvel ao statu quo reinante, numa sociedade


de princpios em transgresso em que o tico se secundariza face
degenerao de valores e fragmentao identitria identidade
individual, cultural, social, grupal, enfim?
Nem sempre, porm, se trata de um efeito tico: outras vezes
de um pathos ideal e moral, como nos contos Tio, mi d s cem
e O feto, de Filhos da Ptria, cuja leitura comea por provocar
sorriso e esgar, at a violncia da situao apresentada em dilogo
monologante, outra tcnica narrativa experimentada pelo escritor
resultar em raiva e revolta, compaixo e repulsa.
Se em sentido lato se pode afirmar que o humor a capacidade
de perceber e criar o cmico (e o surgimento da comicidade e do
riso advm do princpio de contradio), dos contos do livro Filhos
da Ptria colectnea em que o ficcionista comear a exacerbar o
seu processo de contao, at pelo riso alegre que o ttulo desperta
, no se pode, porm, dizer que tais contos, embora cmicos,
produzem efeito derrisrio: na verdade, no me parece que se incluam
no gnero do riso de zombaria, porque no so de escrnio, antes
provocando um esgar ora maldoso ora amargurado e um sorriso
subtil e melanclico: no tenho culpa, ningum tem culpa, todos
tm culpa, diz a menina de O feto (Melo, 2001: 143). No
despiciendo o facto de, na recenso crtica a este livro, no JL Jornal

143
INOCNCIA MATA

de Letras, Artes & Ideias, Pires Laranjeira ter intitulado o seu texto
da seguinte forma: De ir s lgrimas43!
Depois da guerra (que acabou em 2002), pensa-se que a
reconstruo, de que tanto se fala, seja tambm do homem angolano:
assim, The Serial Killer, o livro seguinte que, estranhamente, tem
como subttulo romance44, opera uma outra esta pequena
viragem: no existe, como nos outros dois livros anteriores, uma
unidade temtica, embora continue a ser uma escrita de escalpelizao
da situao sociopoltica angolana, num contraste, tipicamente
carnavalizante, entre a absurda lgica interna dos contos, como no
conto homnimo, e a fora libertadora da linguagem. Isso faz com
que muitas vezes a(s) narrativa(s) manifeste(m) incapacidade de se
manter(em) dentro dos limites das hiprboles cmicas, tornando as
situaes, ainda que inverosmeis externamente, absurdamente
verosmeis e a experincia da verosimilhana, diz-nos Propp,
uma das condies de comicidade (Propp, 1992: 204). O que
comeara por ser ridculo transforma-se em absurdo e essa
ultrapassagem dos limites, por causa da sua alogicidade, por vezes
esvazia a comicidade que comeara a desenhar-se, mesmo mantendo
uma forte inteno satrica.
Diferente , pois, este The Serial Killer, embora perfeitamente
enquadrado na dinmica exacerbante do autor, que chega pardia
entendida por Linda Hutcheon como uma repetio com distncia
crtica que permite a indicao irnica da diferena no prprio mago
da semelhana (1991: 47). Assim, pela pardia se revelam a
inconsistncia interior, o nonsense e o desfasamento que existe entre
os traos exteriores e o contedo interior. Nada escapa, nestes contos,
sanha satrica do autor que se manifesta em vozes narrantes to
verrinosas quanto possuidoras de uma cruel conscincia histrica:

43
JL Jornal de Letras, Artes & Ideias (Lisboa), 823 17 de Abril de 2002, p. 23.
44
Em entrevista a Aguinaldo Cristvo (ver bibliografia), o autor diz tratar-se de uma
gralha. S-lo- certamente, pois, embora diferente do anterior (como se ver), este
livro nada tem de contaminao deste gnero. Entrevistas. www.uea-angola.org

144
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

o imaginrio literrio (Caricatura do escritor enquanto jovem); as


gloriosas foras da segurana (O celular); o internacionalismo
proletrio (Porqu que a tia Lurdes continua desdentada), a luta
pela emancipao da mulher (O Esquadro Marreco) estes dois
ltimos sendo temas to caros doutrina socialista; as hierarquias
profissionais e a sua apetncia clientelista (O rabo do chefe); a
angstia identitria do exilado (O exilado); os caminhos tortuosos
da reconciliao nacional (Porqu que a tia Lurdes continua
desdentada?); as relaes entre Angola e Portugal e suas implicaes
nas relaes humanas marcadas bastas vezes por preconceitos (Vm
a as portuguesas) ou a pardia questo identitria (O
mulaticida) temas politicamente incorrectos, nesta fase de
reconciliao nacional.
Castio e despudorado45, assim classificou Pires Laranjeira, em
outra recenso crtica, o vocabulrio, enfim, a linguagem de The
Serial Killer, que desconstri os lugares-comuns de uma cultura social
e poltica na qual raramente se reflecte sobre ideias cristalizadas ou
que funcionam como boomerang. No admira, pois, que seja o prprio
autor a encarar a sua escrita como uma tese, enfim, uma arma de
pensamento sobre o pas. Sobre Filhos da Ptria, por exemplo, disse
ser o livro uma grande reflexo sobre quem somos, angolanos, sob
a forma como ns relacionamos uns com os outros e sobre a forma
como ns queremos levar o nosso pas (...) a defesa de uma tese46.
No que estou plenamente de acordo, se se pensar o texto como
lugar de mediao entre o real e o imaginrio sociocultural e poltico.
Parece-me, pois, evidente que a escrita ficcional de Joo Melo
funciona com uma ostensiva dimenso ensastica, diria at judicativa.
Eis porque no me cobo de buscar a desmontagem do jogo
significante do seu texto ficcional e, ao mesmo tempo, tentar a

45
Pires Laranjeira, A farra de bem contar. JL Jornal de Letras Artes & Ideias (Lisboa),
n 873, 17 de Maro de 2004, p. 22.
46
Joo Melo, O escritor deve ter a liberdade de escrever sobre tudo e da maneira que
entender. Entrevista de Aguinaldo Cristvo. Op. Cit.

145
INOCNCIA MATA

mediao na tentativa de descodificar as jogadas visveis que nesse


tabuleiro oculto do sagrado, que seria o texto, se executam, nas
palavras de Nuno Jdice, que tambm afirma que, por isso, o
trabalho do crtico

o reconhecimento de que, enquanto processo


semitico, um texto literrio no pode afastar-se
radicalmente, nem opor-se do ponto de vista da
significao, relativamente ao mundo real, onde
ele encontra de facto a sua pertinncia enquanto
objecto reconhecido no seu uso esttico. (Jdice,
2005: 19-20)

No entanto, nesse seu empreendimento reflexivo de mediao,


o autor no se limita a criticar o que est mal, mas a veicular a sua
viso de Angola, segundo uma mitologia desidentitria. Talvez por
isso os contos reincidam na temtica da identidade e do preconceito
racial e at do racismo (temas candentes em Filhos da Ptria). No
entanto, o leitor menos atento poder pensar que se trata de um
vcio localizado no segmento tnico de Charles Dupret (um exagero
onomstico que revela, partida, o posicionamento autoral), de O
efeito estufa (Filhos da Ptria) e da personagem de O mulaticida
(The Serial Killer). A unilateralidade da crtica indicia, com efeito,
que se trata de um vcio existente apenas entre os negros, na medida
em que o autor rasura um outro vcio que, na contramo e no
segmento no-negro, tambm existe na sociedade angolana e que
a dupla obsesso que quer funcionar como antdoto do vcio
anterior: uma diz respeito conveniente ideia de que a questo da
identidade s o para aqueles que a vem como instrumento de
luta racial (ideia que a to emblemtica quo perversamente
esvaziada frase sintetiza: identidade cor de burro fugindo 47,

47
Identidade/ cor/ de burro fugindo, do livro de poesia Angola Angol Angolema
(1976), da autoria de Arlindo Barbeitos, que serve de epgrafe a Filhos da Ptria.

146
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

contrariando, alis, a citao do prprio autor acima transcrita). Outra


obsesso a da apologia das fronteiras perdidas que , como se
sabe, privilgio de alguns, num mundo em que a globalizao tem
um efeito derrisrio nos espaos da periferia e na guettizao de seus
habitantes. Assim, para completar o quadro do questionamento e
operar aquilo a que se poderia considerar como perspectiva
pedagogicamente heteroglssica, haveria de contrapor outro plo
do preconceito que tambm existe na sociedade angolana: a
conscincia de um novo sentido de solidariedade tnica,
disponibilidade ideolgica que hoje existe entre os no-negros ou
autctones48, como pejorativamente referido nos contos em
estudo com repercusses extra-nacionais, designadamente em
Portugal. Este olhar crtico, que est disseminado nos trs ltimos
livros de contos de Joo Melo, direccionado para um s segmento
como o nico visado na responsabilizao dos preconceitos raciais
existentes na sociedade angolana, revela, com efeito, uma assuno
ideolgica do autor. Veja-se a dimenso unilateralista dos seguintes
excertos:

As opes esttico-epidrmicas do estilista foram


consideradas uma lufada de ar fresco no amorfo
panorama da moda local, o grito do Ipiranga dos jovens
criadores autctones e at mesmo uma autntica
revoluo poltico-semitica (...)
(O efeito estufa, Filhos da Ptria, 2001: 64)

O tema da raa sempre foi uma obsesso para ele. (...)


O nefasto papel dos mulatos no desenvolvimento da
sociedade angolense eis como poderia designar-se a

48
Parece-me que o destino desta palavra se aproxima dessoutra indgena, que
ganhou, durante o sistema colonial portugus (particularizado pela poltica do
assimilacionismo cultural), uma carga estigmatizante, ainda hoje visvel em algum
discurso, mesmo de africanistas...

147
INOCNCIA MATA

sua anlise sobre a questo, se acaso ele quisesse


algum dia escrever uma tese germanide sobre a
mesma.
(O mulaticida, The Serial Killer, 2004: 113)

Em poca de imploso de muros, de piratarias de


patentes, de eclectismo geral, de misturas
inusitadas, de transfuso de clulas e de clonagens,
apenas os pobres de esprito tm tempo e energia
para perder com a grotesca tentativa de se
manterem grudados a identidades restritas e
fechadas em si mesmas.
(O usurpador, O Dia em que o Pato
Donaldo Comeu pela Primeira Vez a Margarida,
2006: 12)

Afinal, onde est a obsesso?! caso para questionar quem


determina a importncia das questes, a avaliar pela qualificao
daqueles que pensam de forma diferente: os pobres de esprito...
Se, como diz o autor na entrevista supracitada, a identidade
dinmica e esta uma afirmao La Palisse! esta ideia tambm
se aplica a outros segmentos volta dos quais determinada cultura
social engendrou uma alteridade em relao a um certo perfil
identitrio que se quer com patente de exclusividade da
angolanidade. E esta questo de excluso ou de marginalizao
transversal numa Angola que ainda no se endogenizou na sua reflexo
sobre a heterogeneidade. Trata-se, por outro lado, posta a questo
pertinente, alis nestes termos to maniquestas, de um discurso
de confrontao pouco produtivo em termos de um qualquer efeito
pedaggico, conforme se poderia deduzir de uma proposta
tendencialmente integradora e inclusiva que busca a consciente
identificao com a comunidade imaginada em toda a sua
diversidade. Pois se se pretende uma epistemologia da pluralidade,
h que respeitar todas as opes identitrias que permitam a cada

148
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

segmento encontrar o seu caminho prprio para a sua realizao


identitria no espao territorial angolano.
Talvez por se referir a um mundo de excessos, o processo de
contao de Joo Melo tem vindo a fazer-se de excessos: de
linguagem, de personagens, de situaes, de significao, de efeitos.
Na verdade, como falar da sociedade angolana um sociedade de
inmeros e incompreensveis excessos sem que o amador se
transforme na coisa amada? Esta dimenso metamrfica do emissor
aproxima a escrita ficcional de Joo Melo do carnavalesco, pois o
carnaval se apresenta como um espectculo teatral no qual se apagam
as fronteiras entre actores e espectadores, todos participando e
desempenhando vrios papis simblicos e experimentando, todos,
a fora libertadora e regeneradora: comme lart ou la rligion, le
rire peut tre une activit de sublimation (Martin-Granel, 1991:
152).
Seja como for, pelo riso se dessacralizam, na obra de Joo Melo,
temas tidos como fundadores da ideologia do Estado e se opera a
eroso da venerao que determinadas entidades e categorias (ainda)
detm. o mundo s avessas, em que se transgridem as definies
padronizadas: o que se celebra o excesso, como forma de libertar
os tabus, as regras de uma cultura scio-poltica que se especializou
na hipocrisia e que sabe gerir com eficincia o jogo do parecer, que
o jogo das mscaras. Eis porque se pode afirmar, na esteira de
Bakhtine, que o carnavalesco um dos outros procedimentos
utilizados por Joo Melo para questionar as barreiras, sobretudo
discursivas, da ideologia social (mais do que poltica) prevalecente.
Os recursos utilizados exacerbam os defeitos para acentuar a crtica e
gerar o efeito do realismo grotesco. Diz, a propsito, Bakhtine
que

La forme de grotesque carnavalesque (...) ilumine


la hardiesse de linvention, permet dassocier des
lments htronnes, de reapprocher ce qui est
loign, aide saffranchir du point de vue

149
INOCNCIA MATA

prdominant sur le monde, de toute convention,


des vrits courantes, de tout ce qui est banal,
coutomier, communnement admis; elle permet
enfim de jeter un regard nouveau sur lunivers, de
sentir quel point tout ce qui existe est relatif et
que, par consquent, un ordre du monde
compltement diffrent est possible. (Bakhtine,
1970: 43)

So, grosso modo, estrias de uma Luanda privilegiada (relaes


de poder e de identidade, morais e ticas, rcicas e poltico-
ideolgicas) e muitos destes contos, que situam o seu universo fora
dos limites de um mundo realmente possvel, raiam, por isso, o
grotesco que , como se sabe, um procedimento do exagero: os
defeitos (morais, ticos ou fsicos) so de tal forma exponenciados
que atingem o terrvel, o monstruoso e o absurdo, como no conto
O Esquadro Marreco, The Serial Killer (cujo processo construtivo
se baseia na hiprbole).
Os contos, sobretudo os de The Serial Killer, apresentam-se como
realizao do grotesco e aqui vale lembrar as flutuantes acepes
deste termo, para o que recorro a Massaud Moiss: o termo
grotesco assume, hodiernamente, o sentido de bizarro, extravagante,
caprichoso, mau gosto, irregular e, mesmo, ridculo (1988: 267).
No obstante essa oscilao da significaao, interessa reter, neste
contexto, o seu sentido de grau mais elevado do exagero pardico
que se torna terrvel quando o princpio espiritual se anula no homem
(Propp, 1992: 92). O tom cruelmente perverso da contao
contamina o leitor que se des-solidariza das penas da vtima, como
no conto Caricatura do escritor enquanto jovem, uma pardia
ou, talvez, pastiche? que utiliza a stira como veculo de crtica:
stira dirigida a um fenmeno de carcter sociocultural que a
obsesso de certos elementos da sociedade em quererem ser
escritores. verdade que existem razes de significncia muito
positiva a explicarem essa obsesso; porm, o que parodiado

150
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

no o estatuto, mas sim os meios e as motivaes por que se tenta


ascender ao estatuto... Eis porque se pode considerar que se trata,
neste caso, de um riso trgico, pois, como lembra Verena Alberti,
em O Riso e o Risvel na Histria do Pensamento, esta modalidade de
riso tem menos a ver com o objeto do riso (o trgico do que se ri)
do que com a atitude daquele que ri (Alberti, 1999: 20) no que
resulta a implicao directa do leitor angolano no universo da estria,
entidade que participa desse universo pela sua vivncia, pelo seu saber-
sentir e pelos subentendidos que consegue captar.
Sendo contos de escrnio, o riso no surge como manifestao
de defeitos ocultos e de incio totalmente imperceptveis (Propp,
1992: 44), antes surgem como punio ostensiva por este defeito.
como se houvesse uma ordem moral ou espiritual, interior, feita
de emoes, de consistncia moral, de sentimentos, de vontades ou
de operaes intelectuais (Propp, 1992: 174), que precisasse de ser
reposta e os defeitos de ordem fsica portanto, nvel externo
indiciam a insuficincia daquelas disponibilidades interiores e
sinalizam o vazio tico, moral e espiritual.
Neste mbito, papel importante cabe ao narrador na verdade,
deveria dizer narradores, responsveis pelo desnudamento desses
defeitos interiores, dessas insuficincias ticas, dessas inconsistncias
morais, desse vazio espiritual. Para o que se transformam em sujeitos
participantes o narrador se transformando em narrado, enfim, o
amador se transformando na coisa amada em interlocuo no
apenas com o leitor, mas at com as personagens: At onde capaz
de ir a capacidade de humilhao do ser humano? (O elevador),
pergunta o narrador, em voz confundindo-se com a da personagem,
por um lado, a voz do humilhado com a do humilhante, por outro.
Nessas incurses metanarrativas, com o sujeito enunciador em
constante movimentao metalptica, o narrador acaba por
desempenhar o papel do cmico, do humorista, do stiro a quem
cabe, qual coro da tragdia, orientar o leitor pelos meandros de um
mundo cuja lgica a do absurdo, como o que acontece no conto
Natasha (Filhos da Ptria):

151
INOCNCIA MATA

O presente relato vai dar conta aos leitores, o mais


objectivamente possvel (logo sem qualquer espcie
de envolvimento emocional), das vicissitudes que
a levaram a empreender essa viagem absurda (...)
(...)
Porqu que a Natasha Pugatchova abandonou o
cinematogrfico cenrio, embora demasiado branco
e frio (...) e desembarcou com todas as suas bagagens,
mas totalmente desarmada, nesta terra infestada
de negros, calor, mosquitos e epidemias (Melo,
2001: 41-42)

Este estatuto ambguo do narrador, quanto sua cincia e distncia,


uma caracterstica de ordem tcnico-compositiva que parece comum
ao processo de contao de Joo Melo. Constantemente interferindo
no mundo narrado, o narrador f-lo de forma revigorante e
surpreendente: com muito humor, s vezes com muita crueldade,
interferindo e assumindo-se como o manipulador do destino das
personagens e do curso dos acontecimentos.
O efeito que a leitura de alguns destes contos provoca ora um
sorriso leve ora um riso que em The Serial Killer chega a ser
imoderado, rabelaisiano na concepo de Mikhail Bakhtine, que
estuda a obra de Franois Rabelais, considerando o seu profundo
enraizamento na cultura popular e nos gneros a ela associados: o
realismo grotesco e a pardia, como formas no apenas de aproximar
as classes e abolir as hierarquias sociais e, portanto, causar eroso no
esquema da marginalizao e da excluso, como ainda de operar a
libertao da convenes e dogmas sociais e religiosos. Diz, a
propsito, Mikhail Bakhtine:

Limage grotesque caractrise le phnomne en tat


de changement, de mtamorphose encore inacheve,
au stade de la mort et de la naissance, de la croissance
et du devenir. (Bakhtine, 1970: 33)

152
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

preciso ter presente que, para Bakhtine, esse riso festivo,


libertrio, ultrapassa tanto a manifestao individual quanto um
evento localizado. Assim, se na obra de Franois Rabelais as hierarquias
feudal e clerical eram os alvos preferenciais dessas manifestaes
carnavalescas, tambm na obra de Joo Melo leiam-se os ttulos:
Imitao de Sartre & Simone de Beauvoir, Filhos da Ptria, The Serial
Killer e Outros Contos Risveis ou Talvez No, No Dia em que o Pato
Donald Comeu pela Primeira Vez a Margarida , pela similitude do
riso anticlerical, se opera, a partir do seu incipit, um sentido de
exploso libertadora na medida em que resulta numa vitria sobre
as inmeras restries e tabus, sobre o medo, sobre o verbo, ou
melhor, sobre a verbalizao do que possa ser considerado incmodo,
sobre, enfim, o sagrado e o ideolgico, disponibilidades que no
raro tendem a ter uma dimenso opressora e castradora do
pensamento e da criatividade, porque reprimem a conscincia crtica.
Por outro lado, o riso que resulta da leitura dos contos de Joo
Melo no apenas de zombaria, mas expressa, tambm, uma alegria
animal (Propp, 1992: 167), porque tem a ver com a perverso
naturalista que os excessos de natureza fisiolgica suscitam: a gula
(comer e beber em excesso), a fornicao desenfreada, a obsesso do
sexo, a defecao com uma dose de indecncia e a licenciosidade que
a escrita melhor, a linguagem do narrador acompanha. como
se o autor assumisse que a licenciosidade e a alegria, acompanhadas
do riso imoderado, tivessem poder mgico, exorcizante, sobre os
efeitos ainda visveis da guerra e seus corolrios. Essas disponibilidades
corpreas tornam-se veculo de derriso: por estes princpios
positivamente dessacralizantes se conduz a focalizao do homem
atravs de imagens fsicas e fisiolgicas, fazendo com que ele transgrida
os limites impostos pela Sociedade e pela Cultura e se afirme pela
Natureza, onde existe um nivelamento total e onde o poder no
estabelecido por valores forjados e naturalizados pela ideologia. D-
se, assim, por um lado, a subverso do poder estabelecido (e poder
no apenas poltico!) e, por outro, a valorizao da fora vital
afinal, animal, porque natural do homem que despido de

153
INOCNCIA MATA

suas mscaras socioculturais, ideolgicas e morais (da tambm a


insistncia e a presena da morte em todos os estratos sociais).
Mesmo se para Aristteles, na sua Potica, as diferenas entre
vcios e virtudes se encontrem s no carcter dos homens, na sua
(elevada ou baixa) ndole por isso Aristteles fala em homens
melhores, piores ou iguais a ns (cap. II: 7) , o filsofo de Estagira
tambm fala da composio cmica como ridcula, sendo que
ridculo apenas certo defeito, torpeza andina e inocente; que
bem o demonstra, por exemplo, a mscara cmica, que, sendo feia
e disforme, no tem expresso de dor (cap. V: 22), inferindo-se,
portanto, que o repugnante pode causar prazer, o que, alis, bem
explicitado por Aristteles: ns contemplamos com prazer as
imagens mais exactas daquelas mesmas coisa que olhamos com
repugnncia (cap. IV: 14). Por isso, pode dizer-se que, neste ponto,
Joo Melo corrobora, com estes procedimentos do cmico,
Aristteles, em ideia retomada por Bakhtine, que explicita o
acrscimo quanto ideia de proximidade, afirmando a comicidade
em objectos prximos, que sejam possveis de apalpar

sem cerimnia por todos os lados, revir-lo, vir-


lo do avesso, examin-lo de alto a baixo, quebrar
o seu envoltrio externo, penetrar nas suas
entranhas, duvidar dele, estende-lo, desmembr-
lo, desmascar-lo, desnud-lo, examin-lo e
experiment-lo vontade. (Bakhtine, 1993: 413)

Na verdade, estando to prximo, possvel ao sujeito cmico


no caso, Joo Melo escalpelizar as vrias molstias da sociedade
angolana.
Se os ttulos so irnicos ora pela associao fnica (os filhos
da p...), ora pela elaborada e intencional comdia de enganos (o
serial killer , afinal, um lady killer...), ora ainda, como em Imitao
de Sartre e Simone de Beauvoir, pela citao dessa famosa relao
conjugal sustentada numa base intelectualmente perfeita porm

154
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

totalmente desajustada na civilizao angolana, ou at pela


subverso, melhor, pela inteno profanatria da ingnua relao
entre o Pato Donald e a eterna namorada Margarida , h ainda
motivos de ordem psicolgica que provocam comicidade. As
histrias dos contos de Joo Melo percorrem um pas de contradies,
com epicentro em Luanda, resultantes de uma srie de factores
internos e externos, tentando tornar visveis os meandros da
construo de uma sociedade feita de diferenas tornadas
antagonismos. Porque afinal o que une os angolanos so as diferenas:
so todos filhos da ditosa ptria bem amada... cuja dinmica vai
revelando um espao-tempo polifnico e plurivocal, que deve ser
potenciado com vista construo pedaggica de uma sociedade
multicultural e de cultura de equidade e de liberdades cvicas.

155
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

BIBLIOGRAFIA CITADA

157
INOCNCIA MATA

158
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

Bibliografia literria:

BONAVENA, E., Os Limites da Luz, Lisboa, Imprensa Nacional-


Casa da Moeda, 2003
CARDOSO, Boaventura, Maio, Ms de Maria, Lisboa, Campo das
Letras, 1997
CRUZ, Viriato (da), Poemas, Luanda, UEA/ENDIAMA, 1990
DSKALOS, Maria Alexandre, Jardim das Delcias, Luanda, Ler &
Escrever, 1991
DSKALOS, Maria Alexandre, Lgrimas e Laranjas, Lisboa,
Editorial Caminho, 2001
DALOMBA, Amlia, Espigas do Sahel, Luanda, Kilombelombe,
2004
FILHO, Ernesto Lara, O Canto de Martrindinde, Luanda, Unio
dos Escritores Angolanos, 1988
JACINTO, Antnio, Poemas, Luanda, Unio dos Escritores
Angolanos, 1982
KOUROUMA, Ahmadou, Al no Obrigado, Lisboa, Edies
ASA, 2004
LOPES, Carlos, O desafio tico de um desenvolvimento com
diversidade. Conferncia proferida no Centro de
Estudos Africanos da Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa. Abril de 2005. Policopiado.
MAIMONA, Joo, A Idade das Palavras, Luanda, INIC, 1997
MAIMONA, Joo, Festa da Monarquia, Luanda, Kilombelombe,
2001
MELO, Joo, Filhos da Ptria, Lisboa, Editorial Caminho, 2001
MELO, Joo, The The Serial Killer e Outros Contos Risveis ou Talvez
No, Lisboa, Editorial Caminho, 2004
MELO, Joo, No Dia em que o Pato Donald Comeu pela Primeira
Vez a Margarida, Lisboa, Editorial Caminho, 2006
MENDONA, Jos Lus, Respirar as Mos na Pedra, Luanda, Unio
dos Escritores Angolanos, 1989
MENDONA, Jos Lus, Quero Acordar a Alva, Luanda, INIC,

159
INOCNCIA MATA

1997
MENDONA, Jos Lus, Ngoma do Negro Metal, Luanda, Ch
de Caxinde, 2000
NETO, Agostinho, Sagrada Esperana, Luanda, Unio os Escritores
Angolanos, 1976
PACAVIRA, Manuel Pedro, Nzinga Mbandi, Luanda, UEA/Lisboa,
Edies 70, 1979
PEPETELA, As Aventuras de Ngunga (1973), Lisboa, Edies 70,
1976
PEPETELA, Muana Pu, Lisboa, Edies 70/Luanda, Unio dos
Escritores Angolanos, 1978
PEPETELA, A Revolta da Casa dos dolos, Lisboa, Edies 70/
Luanda, Unio dos Escritores Angolanos, 1980
PEPETELA, O Co e os Cals, (1985), Luanda, Unio dos Escritores
Angolanos, 1988
PEPETELA, Mayombe (1980), Luanda, Unio dos Escritores
Angolanos, 3 edio, 1985
PEPETELA, Yaka, (1984), Lisboa, Edies 70/Luanda, Unio dos
Escritores Angolanos, 2 edio, 1985
PEPETELA, Lueji: o Nascimento dum Imprio, Luanda, Unio dos
Escritores Angolanos, 1989
PEPETELA, A Gerao da Utopia, Lisboa, Publicaes Dom
Quixote, 1992
PEPETELA, O Desejo de Kianda, Lisboa, Publicaes Dom
Quixote, 1995
PEPETELA, Parbola do Cgado Velho, Lisboa, Publicaes Dom
Quixote, 1996
PEPETELA, A Gloriosa Famlia: o Tempo dos Flamengos, Lisboa,
Publicaes Dom Quixote, 1997
PEPETELA, A Montanha da gua Lils. Fbula para Todas as Idades,
Lisboa, Publicaes Dom Quixote, 2000
SANTOS, Aires de Almeida, Meu Amor da Rua Onze, Luanda,
Unio dos Escritores Angolanos, 1987

160
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

TAVARES, Paula, Dizes-me Coisas Amargas como os Frutos, Lisboa,


Editorial Caminho, 2001
TAVARES, Paula, Ex-Votos, Lisboa, Editorial Caminho, 2003
VASCONCELOS, Adriano Botelho (de), Abismos de Silncio,
Luanda, UEA/ABV Editora, 1996
VASCONCELOS, Adriano Botelho (de), Tbua, Luanda, UEA,
2004

Bibliografia de referncia citada:


ADORNO, Theodor, Notas de Literatura, So Paulo, Duas
Cidades/Editora 34, 2003
ALBERTI, Verena, O Riso e o Risvel na Histria do Pensamento,
Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999
APPIAH, K. Anthony, Na Casa de Meu Pai: a frica na Filosofia da
Cultura, Rio de Janeiro, Contraponto, 1997
ARISTTELES, Potica. Traduo, Prefcio, Introduo,
Comentrio e Apndices de Eudoro de Sousa. Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 2 ed., 1990
BAKHTINE, Mikhail, Esthtique et Thorie du Roman, Paris,
Gallimard, 1999
BAKHTINE, Mikhail, Questes de Literatura e de Esttica a
Teoria do Romance, So Paulo, Hucitec, 1993
BAKHTINE, Mikhail, Luvre de Franois Rabelais et la Culture
Populaire au Moyen ge et sous la Renaissance, Paris,
Gallimard, 1970
BARROS, Manoel (de), No gosto de palavra costumada. Livro
sobre Nada, Rio de Janeiro, Editora Record, 1997
BARTHES, Barthes, O Rumor da Lngua, So Paulo, Editora
Brasiliense, 1988
BASTOS, Alcmeno, Ali e outrora, aqui e agora: romance histrico
e romance poltico, limites. Luza Lobo (Org.),
Fronteiras da Literatura Discursos Transversais, vol. 2,
Rio de Janeiro, Relume Dumar, 1999

161
INOCNCIA MATA

BENJAMIN, Walter, Magia e Tcnica, Arte e Poltica. Ensaios sobre


Literatura e Histria da Cultura. Obras Escolhidas.
Volume I, So Paulo, Brasiliense, 1994
BOSI, Ecla, Memria e Sociedade. Lembranas de Velhos, So Paulo,
Companhia das Letras, 7 edio, 1999
CARR, E. H., Que a Histria?, Rio de Janeiro, Ed. Terra e Paz,
1976
COELHO, Eduardo Prado, A utopia num mundo imperfeito.
Jornal do Brasil. 19 de Agosto de 1990
COELHO, Jacinto do PRADO, Cames e Pessoa: Poetas da
Utopia, Lisboa, Publicaes Europa-Amrica, 1983
BARBEITOS, Arlindo, A Sociedade Civil em Angola: Estado,
Cidado, Identidade em Angola, Lisboa, Edies
Imbondeiro, 2003
BARRETO, Afonso Henriques LIMA, Numa e a Ninfa. Obras
Completas, volume III, So Paulo, Editora Brasileira, 2 ed.,
1961
CANDIDO, Antonio, A Educao pela Noite & Outros Ensaios,
So Paulo, Editora tica, 1989
COMPAGNON, Antoine, O Demnio da Teoria (Literatura e Senso
Comum), Belo Horizonte, Editora da UFMG, 1999
DIOP, Cheikh Anta, Les Fondements Culturels, Techniques et
Industriels dun
Futur tat Fdral dAfrique Noire, Paris, Prsence Africaine,
1960
FLEISHMAN, Avrom, The English Historical Novel: Walter
Scott to Virginia Wolf, Baltimore, The Johns Hopkins
University Press, 1971
FOLEY, Barbara, Telling the Truth Theory and Practice of
Documentary Fiction, Ithaca/London, Cornell University Press,
1986.
FURET, Franois, A Oficina da Histria, Lisboa, Editora Gradiva,
s/d. [1977]

162
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

GELLNER, Ernest, Naes e Nacionalismo, Lisboa, Gradiva, 1993


GREENBLATT, Stephen, Towards a poetics of culture. H.
Aram Veeser (ed), The New Historicism, New YorK/London,
Routledge, 1989
HALL, Stuart, Da Dispora: Identidades e Mediaes Culturais.
Organizao de Liv Sovik. Belo Horizonte, UFMG/Braslia,
Representao da UNESCO no Brasil, 2003
HALSALL, A. W., LArt de Convaincre. Le Rcit Pragmatique:
Rhtorique, Idologie, Propagande, Toronto, Les ditions
Paratexte, 1988
HARDT, Michael & NEGRI, Antonio, Imprio, Rio de Janeiro-
So Paulo, Editora Record, 2001 [trad. Berilo Vargas]
HUTCHEON, Linda, A Potica do Ps-Modernismo (Histria
Teoria Fico), Rio de Janeiro, Imago Editora, 1991
HUYSSEN, Andreas, Memrias do Modernismo, Rio de Janeiro,
Editora da UFRJ, 1997
JAMESON, Fredric, O Insconsciente Poltico: a Narrativa como
Acto Socialmente Simblico, So Paulo, Editora tica, 1992
[1981]
JDICE, Nuno, O Fenmeno Narrativo: do Conto Popular
Fico Contempornea, Lisboa, Edies Colibri, 2005
LARANJEIRA, Pires, De ir s lgrimas!. JL Jornal de Letras,
Artes & Ideias (Lisboa), n 823 17 de Abril de 2002
LARANJEIRA, Pires, A farra de bem contar. JL Jornal de Letras
Artes & Ideias (Lisboa), n 873, 17 de Maro de 2004
MARINHO, Maria de Ftima, O Romance Histrico em Portugal,
Porto, Campo das Letras, 1999
MARTIN-GRANEL, Nicolas, Rires Noirs. Anthologie Romance
de lHumour et du Grotesque dans le Roman Africain,
Saint Maur, ditions Sepia, 1991
MATA, Inocncia, A periferia da periferia. Revista Discursos, 9,
Lisboa, Universidade Aberta, 1995
MATA, Inocncia, Literatura angolana: fices e realidades um
olhar diacrnico (1997). Literatura Angolana, Silncios e Fala de

163
INOCNCIA MATA

uma Voz Inquieta, Luanda, Kilombelombe, 2001


MATA, Inocncia, Literatura Angolana: Silncios e Falas de uma
Voz Inquieta, Lisboa, Mar Alm, 2001/Luanda, Kilombelombe,
2001
MATA, Inocncia, Maio, Ms de Maria um livro que fala da
histria atravs da religio. Mar Alm Revista de Cultura e
Literatura dos Pases Africanos de Lngua Oficial Portuguesa, n. 1
Fevereiro de 2002 (Lisboa). pp. 133-134
MBOKOLO, Elikia, Reflexo sobre a histria e a historiografia
de frica. Conferncia na FLUL (Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa), Mestrado de Histria de frica, no dia 27
de Outubro de 1997
MELO, Joo, O escritor deve ter a liberdade de escrever sobre
tudo e da maneira que entender. Entrevista de Aguinaldo
Cristvo. Entrevistas. www.uea-angola.org
MENDES, Jos Manuel Oliveira, O desafio das identidades.
Boaventura de Sousa Santos (org.), Globalizao:
Fatalidade ou Utopia?, Porto, Edies Afrontamento,
2 ed., 2002
MOISS, Massaud, Dicionrio de Termos Literrios, So Paulo,
Cultrix, 1988
MUECKE, D. C., A Ironia e o Irnico, So Paulo, Perspectiva,
1995
MUKAGASANA, Yolande, No Tenhas Medo de Saber, Lisboa,
Coimbra, Diocese de Coimbra, 2003
PADILHA, Laura, Entre Voz e Letra: o Lugar da Ancestralidade na
Fico Angolana, Niteri, EDUFF, 1995
PARLAMENTO EUROPEU, Carta Europeia das Lnguas Regionais
e Minoritrias, Estrasburgo, Dezembro de 2001
PREZ, Eddy E. Jimenez, A Revoluo dos Camalees, Porto, Campo
das Letras, 2003
PEPETELA, A escrita a minha utopia. Entrevista a Maria Velho
da Costa, Dirio de Notcias (Lisboa), 9 de Agosto de
1992

164
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

PEPETELA, Pepetela por Inocncia Mata. Cames Revista de


Letras e Culturas Lusfonas, em Setembro de 1999
PIRES, Orlando, Manual de Teoria e Tcnica Literria, Rio de
Janeiro, Presena/INLMEC, 1981
POTEBNIA, Alexandre, Notas sobre a teoria Literria. Apud
Vtor Chklovski, A arte como procedimento.
AAVV, Teoria da Literatura: Formalistas Russos, Porto
Alegre, Editora Globo, 3 edio, 1976
PORTOGHESI, Paolo, After Modern Architecture, New York,
Rizzoli Internat. Pubns, 1982
PROPP, Vladmir, Comicidade e Riso [1976], So Paulo, Editora
tica, 1992
REIS, Carlos & LOPES, Ana Cristina M., Dicionrio de
Narratologia, Coimbra, Almedina, 4 edio revista e aumentada,
1994
RUI, Manuel, Entre mim e o nmada a flor. Teses Angolanas:
Documentos da VI Conferncia dos Escritores Afro-Asiticos, 1
volume, Lisboa, Edies 70, 1981
SAID, Edward W., Cultura e Imperialismo, So Paulo,
Companhia das Letras, 1995
SANTOS, Boaventura de Sousa, Pela Mo de Alice o Social e o
Poltico na Ps-Modernidade, Porto, Edies Afrontamento, 3
ed., 1994
SARAMAGO, Jos. Carlos Reis. Dilogos com Jos Saramago,
Lisboa, Editorial Caminho, 1998
SARAMAGO, Jos, Histria e fico. JL Jornal de Letras,
Artes e Ideias (Lisboa), 6 de Maro de 1990
SHAW, Harry, The Forms of Historical Fiction - Sir Walter
Scott and his Successors, Ithaca/London, Cornell University
Press, 1983
SILVA, Vtor Manuel AGUIAR (e), H um tempo para formar
o leitor. Entrevista a Joo Pedro Aido. Palavras
(Lisboa), Associao de Professores de Portugus,
Nmero 21/Primavera de 2002, pp. 7-21.

165
INOCNCIA MATA

SIMES, Mnica Rafael, A Agenda Perdida da Reconstruo


Ps-blica: o Caso de Timor Leste, Lisboa, Quarteto Editora,
2002
SMITH, Anthony D., A Identidade Nacional, Lisboa, Gradiva,
1997
THIONGO, Ngungi Wa. Stephen Gray. Research in African
Literature, 19 April, 1988
VASCONCELOS, Adriano Botelho (de). Entrevista a Aguinaldo
Cristvo: Vasconcelos: onde exista uma injustia social
estar sempre presente a pena dos poetas. Vasconcelos
& Aguinaldo Cristvo, Discursos & Entrevistas &
Ensaio, ABV, Grfica EAL Inserto do livro Tbua.
VANOOSTHUYSE, Michel, Le Roman Historique Mann,
Brecht, Dblin, Paris, PUF, 1996
WESSELING, Elisabeth, Writing History as a Prophecy
(Postmodernist Innovations of the Historical Novel), Johns
Benjamins Publishing Company, Amsterdam/Philadelphia, 1991
WHITE, Hayden, Figuring the nature and times deceased:
literary theory and historical writing. Ralph Cohen, The Future
of Literary Theory, New York/London, Routledge, 1989
WHITE, Hayden, Trpicos do Discurso: Ensaios sobre a Crtica
da Cultura, So Paulo, EdUSP, 1994

166
LAOS DE MEMRIA E OUTROS ENSAIOS SOBRE LITERATURA ANGOLANA

169

Você também pode gostar