BRAUDEL, Fernand. Cartografia Do Mundo Atual
BRAUDEL, Fernand. Cartografia Do Mundo Atual
BRAUDEL, Fernand. Cartografia Do Mundo Atual
Fernand Braudel
C ada cidade tem o que contar, seu pequeno discurso para quem se prestar a lhe dar
ouvidos. So Paulo silenciosa, reservada quando se trata de si mesma, falando
pouco de seus negcios prprios, um pouco mais interessada pelo Brasil, entretendo-
nos, porm, longamente e com prazer, do mundo. Porque o mundo a envolve, vive
com ela, impe-lhe seu squito de problemas, de questes e exigncias. J obser-
varam como aqui os intercmbios intelectuais descrevem grandes crculos e nos fa-
zem viajar pela terra inteira? So Paulo, rosa dos ventos, tem o sentido, a experincia,
a compreenso do mundo, no o de ontem, mas o de hoje, cujas coordenadas se
contratam, cujo volume diminui, cujos continentes dia-a-dia mais se aproximam
uns dos outros. Aqui fermenta a mocidade das coisas; impunemente se pode e deve
sonhar com o futuro. Trata-se em verdade da presena real do mundo, tal qual , tal
*
Transcrito de O Estado de So Paulo, 19 de Maio de 1935. O trabalho de transcrio e digitao
deste e dos demais textos de Braudel aqui publicados foram feitos por: Andrea Zonta, Camila Matheus
da Silva (do Departamento de Histria da UNESP-Assis) e Taise Ferreira da Conceio (Departa-
mento de Histria da Universidade Estadual de Londrina), a quem agradecemos.
Fernand Braudel / Revista de Histria 146 (2002), 29-34
nos um jornalista, h anos, o Sr. Francis Delaisi, que era imprescindvel distinguir
duas Europas: A Europa A, industrial, povoada de cavalos-vapor, compreendendo
a Alemanha, pedaos da Rssia e da Polnia, a Itlia Setentrional, a Checoslovquia,
a ustria, a Frana, os Pases Baixos, a Inglaterra e um fragmento da Espanha, e
onde a rede das vias frreas e estradas de rodagem aperta suas malhas; e, de outro
lado, a Europa B, sem indstria, com suas pistas primitivas, seus campos atrasados,
suas ilimitadas reservas de imigrao... Escrevia Francis Delaisi no momento em
que a Europa, j inquieta procurava uma soluo para os problemas de sua existncia,
propondo-lhe um remdio simples: a formao de um bloco entre as duas Europas,
fornecendo um objeto manufaturado outra, que, em troca, lhe daria seus excessos
de trigo e produtos alimentcios. Mais ou menos na mesma poca, dizia Lucien
Romier coisas semelhantes quando propunha entregar Alemanha, superpovoada
e superindustrializada, a valorizao do Far West Europeu. Supondo-se, porm, o
que bastante quimrico, que esse bloco europeu ameaa em suma para o mundo,
pois que constituiria uma potncia esmagadora e perigosa para os outros realizasse
sua fuso, reuniria ele toda a substncia europia do mundo? No existir uma
31
terceira Europa, a Europa C, A Europa Colonial, ou melhor, de alm-mar? No sero
Europa tambm, os Estados Unidos, o Brasil e muitos outros pases? A Europa a
velha Europa conquistou, no passado, o mundo, rompendo-lhe os limites imper-
feitos. S no plano mundial se reconhece sua verdadeira face.
*
Um esboo econmico do mundo no pode ser mais complicado do que o pre-
cedente. Dentro deste novo ponto de vista, surge o universo como um conjunto de
reservatrios, de tanques, onde as guas no apresentam o mesmo nvel. Referem-
se os economistas a esta mdia ideal, o nvel dos preos mundiais, realidade alis,
pois em relao a ele que se efetuam as trocas econmicas, que se organizam mars
e correntes e por causa dele se rompem os diques. Esta oceanografia econmica,
vista de cima, apresenta aparentemente quatro compartimentos: o continente euro-
peu, o mundo britnico, o fuso americano e a sia ou Extremo Oriente. Seja o leitor
indulgente e no proteste. No ignoro as lacunas do esboo e penso, como ele, que
Fernand Braudel / Revista de Histria 146 (2002), 29-34
Este mundo de que tanto falei, no se pode evitar de sonh-lo melhor nos seus
diferentes planos. Sonhos polticos? Sociedade das Naes, projeto dos Estados Uni-
dos da Europa, idia de certos escritores ingleses de ligar os pases situados em volta
do Atlntico num s bloco... Sonhos sociais, econmicos, religiosos... Hesito ante
a massa das questes, e, tambm, a impossibilidade de delimitar problemas. Permitir-
me-ei, por isso, no para resolver as dificuldades, mas para terminar meu artigo,
uma digresso histrica.
Realizou o Imprio Romano, para o mundo antigo, o sonho que atormenta tantos
contemporneos. Suprimiu as fronteiras, submetendo mesma lei as pequenas col-
mias estabelecidas nos bordos do Mediterrneo. Roma deu aos povos os imensos
benefcios da pax romana e a Europa viveu, durante sculos, da lembrana desse
paraso perdido. Levar-se- sempre em conta, porm, o passivo da experincia roma-
na? Camille Julian a ele fazia aluso em um de seus cursos do Collge de Frana e
eu no resisto ao prazer de bordar algumas consideraes nesta grande idia. Que-
brando, com sua conquista, os pequenos mundos independentes, Roma impediu sim-
34 plesmente o pleno desenvolvimento do pensamento antigo. Viveu como um herdeiro
que esbanja a fortuna que no lhe custou amontoar. Antes dela o esplendor do milagre
grego; depois dela a Idade Mdia que a erudio descobre, hoje, ter sido to frtil
no domnio da tcnica, quer quanto s estradas, quer quanto navegao martima.
Roma tendeu para a perfeio poltica, o mundo de hoje para a perfeio tcnica.
No haveria grande perigo em inverter os termos da equao? No devem uma
ordem, uma perfeio ser compradas, ser compensadas por inferioridades flagrantes,
misrias inexpiveis?