Rimbaud Iluminações PDF

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 62

2

Iluminaes (1886)
Arthur Rimbaud (1854-1891)
Traduo: Janer Cristaldo

Capa:
Rimbaud, aos 17, por tienne Carjat
provavelmente tirada em Dezembro de 1871
Fotografia conservada na BnF
http://www.bnf.fr
Fonte digital: wikipedia

Fonte Digital
Documento do Tradutor
[email protected]

2012 Janer Cristaldo


eBooksBrasil.org

3
Arthur Rimbaud

ILUMINAES
Traduo
Janer Cristaldo

eBooksBrasil
2012
Aps o Dilvio

Nem bem se aquietara a idia do Dilvio,


Uma lebre parou entre os sanfenos e as inquietas
campnulas e elevou sua prece ao arco-ris, atravs
da teia de aranha.
Oh! As pedras preciosas que se escondiam, as
flores que j olhavam.
Na grande rua suja os aougues se ergueram, e os
barcos foram levados ao mar, que, no alto, era em
degraus como nas figuras.
O sangue correu, na casa de Barba-Azul, nos
matadouros, nos circos, onde o selo de Deus
empalidecia as janelas. O sangue e o leite corriam.
Os castores construam. Saa fumaa dos cafs nos
botequins.
Na manso de vidros ainda gotejante, as crianas
contemplavam as imagens maravilhosas.
Uma porta bateu, e na praa do vilarejo, a criana
girou seus braos, envolvendo os cata-ventos e os
galos dos campanrios, sob o fulgurante aguaceiro.
A senhora*** instalou um piano nos Alpes. A missa e
as primeiras comunhes foram celebradas nos cem mil
altares da catedral.
As caravanas partiram. E o Hotel Esplndido foi
erguido em meio ao caos de gelos e noite polar.
Desde ento, a Lua ouviu os chacais berrando pelo
deserto dos timos, e as clogas em tamancos

4
rugindo no pomar. Depois, na floresta violeta, coberta
de brotos, Eucaris me disse que chegara a primavera.
Surge, lago, Espuma, rola sobre a ponte a e sobre
os bosques; panos negros e rgos, relmpagos e
trovo, subi e rolai; guas e tristezas, subi e
restaurai os Dilvios.
Pois desde que eles se dissiparam, oh! as pedras
preciosas enterrando-se, e as flores abertas! reina o
tdio! E a Rainha, a Feiticeira que acende sua brasa
no pote de barro, jamais querer contar-nos o que ela
sabe, e que ns ignoramos.

5
Infncia

I
Este dolo, olhos negros e crina amarela, sem famlia
nem corte, mais nobre que a fbula, mexicano e
flamengo; seu domnio, azul e verdor insolentes,
estende-se sobre praias conhecidas por ondas sem
naus, de nomes ferozmente gregos, eslavos, clticos.
beira da floresta, as flores de sonho tilintam,
estalam, iluminam, est a donzela de lbios de
laranja, joelhos cruzados no claro dilvio que irrompe
dos prados, nudez que os arco-ris, a flora e o mar
ensombrecem, transpassam, e vestem.
Damas que volteiam nos terraos vizinhos ao mar;
crianas e gigantes, negras soberbas no musgo
verdoso, alfaias, erguidas sobre o solo frtil dos
bosques e jardins degelados jovens mes e irmos
maiores com olhares cheios de peregrinaes,
sultanas, princesas de andar e vestes tirnicas,
pequenas estrangeiras e pessoas docemente
infortunadas.
Que tdio, a hora do corpo querido e do corao
amado.
II
ela, a pequena morta, atrs das roseiras. A jovem
mame defunta desce o patamar. A calea do primo
range na areia. O irmozinho (est nas ndias!) l,
frente ao poente, sobre o campo de cravos. Os
velhos enterrados rgidos na muralha dos goivos.

6
O enxame das folhas de ouro cerca a casa do general.
Esto no meio-dia. Segue-se o caminho vermelho
para chegar-se estalagem vazia. O castelo est
venda; as persianas esto soltas. O cura ter levado
a chave da igreja. Em torno ao parque, as guaritas
dos guardas esto desabitadas. As paliadas so to
altas que s se v os cimos sussurrantes. Ademais,
nada h para se ver l dentro.
Os prados sobrem at os vilarejos sem galos, sem
bigornas. A represa est levantada. dos calvrios e
moinhos do deserto, as ilhas e as ms!
Flores mgicas zumbiam. Os taludes o embalavam.
Animais de uma elegncia fabulosa desfilavam. As
nuvens se amontoavam sobre o alto mar feito de uma
eternidade de lgrimas quentes.
III
No bosque h um pssaro, seu canto vos detm e vos
faz corar.
H um relgio que no soa.
H uma catedral que desce e um lago que sobe.
H uma pequena carruagem abandonada nas moitas,
ou que desce a vereda s carreiras, engalanada.
H um grupo de pequenos comediantes disfarados,
vistos na estrada pela beira do bosque. H, por fim,
quando se tem fome e sede, algum que nos expulse.
IV
Sou o santo, orando no terrao, como os animais
mansos pastam at o mar da Palestina.
Sou o sbio na ctedra sombria. Os ramos e a chuva
se arrojam sobre a janela da biblioteca.
Sou o transeunte da grande estrada pelos bosques
anes; o rumor das represas abafa meus passos.

7
Vejo, longamente, a melanclica lixvia dourada do
poente.
Eu bem seria a criana abandonada no cais que partir
para o alto-mar, o pequeno servo que segue a
alameda cujo final toca o cu.
As sendas so speras. Os montculos se cobrem de
giestas. O ar imvel. Quo distantes esto os
pssaros e as fontes! Isto s pode ser o fim do mundo,
avanando.
V
Que me aluguem por fim esta tumba, branca de cal e
com as linhas de cimento em relevo bem fundo na
terra.
Apoio meus cotovelos na mesa, a lmpada ilumina
vivamente estes jornais que s releio de idiota, estes
livros sem interesse.
Numa distncia enorme acima da minha sala
subterrnea, as casas se implantam, as brumas se
renem. A lama vermelha ou negra. Cidade
monstruosa, noite sem fim!
Menos acima, esto os esgotos. Dos lados, nada
seno a espessura do globo. Talvez os abismos de
azul, poos de fogo. nesses planos que talvez se
encontrem luas e cometas, mares e fbulas.
Nas horas de amargura, imagino bolas de safira, de
metal. Sou senhor do silncio. Porque uma aparncia
de clarabia empalidecer no canto da abbada?

8
Conto

Um Prncipe se envergonhava por jamais haver se


dedicado seno perfeio das generosidades
vulgares. Previra espantosas revolues no amor, e
suspeitava que suas mulheres eram capazes de algo
melhor que esta tolerncia adornada de cu e de luxo.
Queria ver a verdade, a hora do desejo e da satisfao
essenciais. Fosse ou no uma aberrao da piedade,
ele o quis. Possua ao menos um poderio humano
suficientemente vasto.
Todas as mulheres que o haviam conhecido foram
assassinadas. Que vandalismo no jardim da beleza!
Sob o sabre, elas o abenoaram. Ele no encomendou
outras novas. As mulheres reapareceram.
Matou todos que o seguiam, aps a caa ou libaes.
Todos os seguiam.
Divertiu-se estrangulando os animais de luxo. Fez
queimar os palcios. Arrojava-se sobre as gentes e as
esquartejava. A multido, os tetos de ouro, os belos
animais existiam ainda.
Pode algum extasiar-se na destruio rejuvenescer
na crueldade! O povo no murmurou.
Ningum ofereceu a ajuda de seus conselhos.
Galopava altaneiro certa noite. Um Gnio surgiu, de
uma beleza inefvel, inconfessvel mesmo. De sua
fisionomia e de sua postura emanava a promessa de
um amor mltiplo e complexo! de uma felicidade
indizvel, insuportvel mesmo! O Prncipe e o Gnio se

9
aniquilaram provavelmente na sade essencial. Como
no teriam podido dela morrer? Morreram juntos
ento.
Mas este Prncipe morreu, em seu palcio, em uma
idade comum. O Prncipe era o gnio. O Gnio era o
Prncipe.
A msica erudita faz falta a nosso desejo.

10
Desfile

Palhaos muito slidos. Vrios exploraram vossos


mundos. Sem necessidades, e com pressa de utilizar
suas brilhantes faculdades e conhecimento de vossas
conscincias. Que homens maduros; Olhos
bestificados maneira da noite de vero, vermelhos e
negros, tricolores, de ao salpicado de estrelas de
ouro; faces deformadas, plmbeas, cadavricas,
inflamadas; rouquides brincalhonas! O andar cruel
dos ouropis! H alguns jovens, como veriam
Querubim?
Providos de vozes terrveis e de alguns recursos
perigosos. Mandam-nos criar corpo na cidade,
engalanados com um luxo repelente.
o mais violento Paraso do esgar raivoso!
Comparao alguma com vossos Faquires e outras
bufonarias cnicas. Em vestes improvisadas com o
gosto do pesadelo, representam lamrias, tragdias de
malandros e de semideuses espirituais como a historia
ou as religies jamais o foram. Chineses, hotentotes,
bomios, idiotas, hienas, Molochs, velhas demncias,
demnios sinistros, eles misturam modos populares,
maternais, com as atitudes e ternuras bestiais.
Interpretariam at mesmo peas novas e canes para
moas de famlia. Mestres jograis,transfiguram o
lugar e as pessoas e recorrem comdia magntica.
Os olhos flamejam, o sangue canta, os ossos se
dilatam, as lgrimas e os filetes vermelhos escorrem.
Suas piadas ou terror duram um minuto, os meses

11
inteiros.
Sou o nico a possuir a chave deste desfile selvagem.

12
Antigo

Gracioso filho de P! Em torno de tua fronte coroada


de pequenas flores e bagas, teus olhos, esferas
preciosas, se movem. Pintadas de borra parda, tuas
faces se afundam. Tuas presas brilham. Teu peito
lembra uma ctara, tinidos circulam em teus braos
louros. Teu corao bate nesse ventre onde dorme o
duplo sexo. Passeia, noite, movendo docemente
esta coxa, esta segunda coxa e esta perna esquerda.

13
Being Beauteous

Ante a neve um Ser de Beleza de elevado porte. Silvos


de morte e crculos de msica em surdina fazem
crescer, dilatar-se e vibrar como um espectro este
corpo adorado; chagas escarlates e negras explodem
em suas carnes soberbas. As cores prprias da vida
ensombrecem, danam, e se desprendem em torno
Viso, tomando forma.
Os frmitos sobem e zumbem, e o sabor insensato
destes efeitos carregando-se dos silvos mortais e as
roucas msicas que o mundo, longe atrs de ns,
lana contra nossa me de beleza, ela recua,
ergue-se. Oh! nossos ossos se revestem de um novo
corpo amoroso.
***
a face cinzenta, o escudo da crina, os braos de
cristal! O canho sobre o qual tenho de arrojar-me na
confuso das rvores e do ar leve!

14
Vidas

I
as enormes avenidas da terra santa, os terraos do
templo! Que fizeram do brmane que me explicou os
Provrbios? Desde ento, de l vejo ainda at as
velhas! Lembro-me das horas de prata e de sol junto
aos rios, a mo da campina sobre minha espdua, e
de nossas caricias em p nas plancies picantes.
Uma revoada de pombas escarlates troa em torno de
meu pensamento. Exilado aqui, tive um cenrio onde
representar as obras-primas dramticas de todas as
literaturas. Eu vos indicaria as riquezas inauditas.
Observo a histria dos tesouros que encontrastes.
Vejo a continuao! Minha sabedoria to desprezada
quanto o caos. Que meu nada, ao lado do estupor
que vos espera?
II
Sou um inventor de mritos bem distintos de todos
quantos me precederam; um msico quase, que
encontrou algo como a clave do amor. Hoje, gentil
homem de uma campina acre no cu sbrio, tanto
comover-se com a lembrana da infncia mendicante,
da aprendizagem ou da chegada em tamancos, das
polmicas, das cinco ou seis viuvezes, e de algumas
bodas onde minha cabea dura impediu-me de seguir
o diapaso de meus camaradas. No lamento minha
antiga parte de alegria divina; o ar sbrio desta acre
campina alimenta ativamente meu atroz ceticismo.
Mas como este ceticismo no pode de agora em
diante ser praticado, e como alias me devoto a uma

15
nova perturbao, espero tornar-me um louco muito
cruel.
III
Num sto em que fui encerrado aos doze anos
conheci o mundo, ilustrei a comedia humana. Num
celeiro aprendi a histria. Em certa festa noturna,
numa cidade do Norte encontrei todas as mulheres
dos antigos pintores. Numa velha travessa de paris me
ensinaram as cincias clssicas. Numa magnfica
manso cercada pelo Oriente inteiro coroei minha
imensa obra e passei meu insigne retiro. Misturei meu
sangue. Meu dever me foi devolvido. Nem mais
preciso pensar nisso. Sou realmente de alm-tmulo, e
no tenho mensagens.

16
Partida

Visto demais. A viso foi reencontrada em todos os


ares.
Tido demais. Rumores de cidades, noite, e sob o sol,
e sempre.
Conhecido demais. As paradas da vida. rumores e
Vises!
Partida na afeio e o rudo novos!

17
Realeza

Numa bela manh, num povo muito afvel, um homem


e uma mulher soberbos gritavam na praa pblica.
Meus amigos, quero que ela seja rainha! Quero ser
rainha! ela ria e tremia. Ele falava aos amigos de
revelao, de experincia cumprida. Ambos
desfaleciam, um contra o outro.
Com efeito foram reis toda uma manh, em que
tapearias carmesins se elevaram sobre as casas, e
toda a tarde, quando avanaram em direo aos
jardins de palmeiras.

18
uma razo

Um golpe de teu dedo no tambor desencadeia todos


os sons e inaugura a nova harmonia. Um passo teu
a leva dos novos homens e o comeo de sua marcha.
Tua cabea se desvia: o novo amor! Tua cabea se
volta o novo amor!
Muda nossos destinos, passa ao crivo os flagelos, a
comear pelo tempo, cantam-se estas crianas.
Erige, no importa onde, a substncia de nossas
fortunas e desejos, pedem-te.
Chegada desde sempre, irs por toda a parte.

19
Manh de Embriaguez

meu bem! meu belo! Fanfarra atroz em que


jamais vacilo! Cavalete mgico! Hurra para a obra
inaudita e para o corpo maravilhoso, pela primeira vez!
Isto comea pelos risos das crianas, terminar por
eles. Este veneno h de permanecer em todas as
nossas veias mesmo quando, ao ir- se a fanfarra,
sejamos entregues a antiga desarmonia. presente
ns to dignos destas torturas! Recolhamos
ardorosamente esta promessa, esta demncia! A
elegncia, a cincia, a violncia! Prometeram-nos
enterrar na sombra da rvore do bem e do mal, banir
as honestidades tirnicas, para que introduzssemos
nosso muito puro amor. Isto comeou com alguns
desgostos e acabou, no podendo arrebatar-nos
imediatamente desta eternidade, isto acabou numa
debandada de perfumes.
Riso das crianas, discrio dos escravos, austeridade
das virgens, horror pelas formas e objetos daqui,
sagrados sejais pela lembrana desta viglia. Isto
comeava com toda a grosseria, eis que termina com
anjos de chama e gelo.
Pequena viglia de embriaguez, santa! ainda que s
fosse pela mscara que nos gratificastes. Ns te
afirmamos, mtodo! No esquecemos que glorificaste
ontem cada uma de nossas idades. Temos f no
veneno. Sabemos dar nossa vida inteira todos os dias.
Eis o tempo dos Assassinos.

20
Frases

Quando o mundo for reduzido a um nico bosque


negro para nossos quatro olhos espantados, a uma
praia para duas crianas fiis, a uma casa musical
para nossa clara simpatia, eu vos encontrarei.
Que haja c em baixo um s ancio, calmo e belo,
cercado de um luxo inaudito, e eu estarei a vossos
ps.
Quando tenha realizado todas as vossas lembranas,
seja eu aquela que vos sabe estrangular, eu vos
sufocarei.
*
Quando somos muito fortes, quem recua? muito
alegres, quem cai de ridculo? Quando somos muito
maus, que fariam de ns?
Enfeitai-vos, danai, ride. Jamais poderei enviar o
Amor pela janela.
*
Minha camarada, mendiga, criana monstro! Como
te so indiferentes estas infelizes e estas manobras, e
meus embaraos. Une-te a ns com tua voz
impossvel, tua voz! nico adorador deste vil
desespero.
*
Uma manh enevoada, em julho. Um gosto de cinzas
voa no ar; um odor de madeira que sua na lareira, as
flores maceradas, a pilhagem dos caminhos, a
garoa dos canais pelos campos porque no agora os
brinquedos e o incenso?

21
*
Estendi cordas de sino a sino; guirlandas de janela
janela; correntes de ouro de estrela estrela, e dano.
*
O alto lago fumega continuamente. Que feiticeira ir
erguer-se no crepsculo brando? Que frondescncias
violetas vo descer?
*
Enquanto os fundos pblicos so dissipados em festas
de confraternizao, um sino de fogo rseo tange nas
nuvens.
*
Acentuando um agradvel sabor a tinta da China, um
p negro chove docemente sobre minha viglia.
Diminuo as luzes do lustre, caio na cama e, voltando
para o lado da sombra, eu vos vejo, minhas filhas!
minhas rainhas!

22
Operrios

esta clida manh de fevereiro. O Sul inoportuno


veios suscitar nossas lembranas de indigentes
absurdos, nossa jovem misria.
Henrika vestia uma saia de algodo de quadrados
brancos e escuros, que deve ter sido usada no sculo
passado, um gorro com fitas e um leno de seda. Era
mais triste que um luto. Dvamos uma volta pelo
subrbio. O tempo estava enevoado, e esse vento do
Sul excitava todos os odores vis dos jardins
devastados e dos prados ressequidos.
Isto no devia fatigar minha mulher tanto quanto a
mim. Num charco deixado pela inundao do ms
anterior em uma senda bastante elevada ela me
mostrou peixes muito pequenos.
A cidade, com sua fumaa e seus rumores de ofcios,
nos seguia ao longe pelos caminhos. o outro mundo,
a morada abenoada pelo cu, e as sombras das
rvores! O sul me recordava os miserveis incidentes
da minha infncia, meus desesperos estivais, a terrvel
quantidade de fora e de cincia que o destino sempre
afastou de mim. No! no passaremos o vero neste
pais avaro onde no seremos jamais seno rfos
noivos. Quero que este brao enrijecido no arraste
mais uma imagem querida.

23
As Pontes

Cus cinzentos de cristal! Um estranho desenho de


pontes, retas estas, arqueadas aquelas, outras
descendo ou caindo na oblqua sobre as primeiras, e
estas formas se renovando em outros circuitos
iluminados do canal, mas todas so longas e leves que
as margens, juncadas de cpulas, se humilham e
diminuem. Algumas dessas pontes esto ainda
cobertas de escombros. Outras sustentam mastros,
sinais, frgeis parapeitos. Acordes menores se cruzam
e se prolongam,, cordas sobem as ribanceiras.
Distingue-se uma jaqueta vermelha, talvez outras
vestes e instrumentos de msica. Sero rias
populares, trechos e instrumentos senhoriais, restos
de hinos pblicos? A gua gris e azul, larga como
um brao de mar. Um raio branco, caindo do alto do
cu, aniquila esta comdia.

24
Cidade

Sou em efmero e no muito descontente cidado de


uma metrpole que se supe moderna porque todo
gosto conhecido foi subtrado tanto dos mobilirios e
do exterior das casas quanto do traado da cidade.
Aqui no podereis assinalar os vestgios de nenhum
monumento de superstio. A moral e a lngua esto
reduzidas sua mais simples expresso, enfim! Estes
milhes de pessoas que no tm necessidade de se
conhecer sobrelevam de maneira to semelhante a
educao, a profisso e a velhice, que a durao da
vida deve ser varias vezes menos longa daquela que
uma estatstica insana encontra para os povos do
continente. Assim como, de minha janela, vejo
espectros novos circulando atravs da espessa e
eterna fumaa de carvo, nossa sombra dos
bosques, nossa noite de vero! Ernias novas, diante
da choupana que minha ptria e todo meu corao,
pois tudo aqui se assemelha a isto, a Morte sem
prantos, nossa ativa filha e serva, um Amor
desesperado, e um belo Crime choramingando na
lama da rua.

25
Sulcos

direita a aurora estival acorda as folhas e os vapores


e os rudos deste recanto do parque, e os declives da
esquerda abrigam em sua sombra violeta os mil sulcos
rpidos da estrada mida. Desfile de magias. De fato:
carros carregados de animais de madeira dourada,
mastros e telas multicores, ao imenso galope de vinte
cavalos de circo malhados, e as crianas e os homens
montados nos mais espantosos animais; vinte
veculos, ornados, embandeirados, e floridos como
carruagens antigas ou de contos, cheias de crianas
ataviadas para uma pastoral suburbana. At atades
sob seus dossis noturnos, erguendo os penachos de
bano, desfilando ao trote de grandes guas azuis e
negras.

26
Cidades

So cidades! um povo para o qual se ergueram


estes Alegans e estes Lbanos de sonho! Chals de
cristais e de madeira que se movem sobre trilhos e
roldanas invisveis. As velhas crateras cingidas se
colossos e palmeiras de cobre rugem melodiosamente
em meio aos fogos. Festas de amor soam nos canais
pendurados atrs dos chals. A msica de caa dos
carrilhes grita nas gargantas. Corporaes de
cantores gigantes acorrem em vestimentas e
auriflamas deslumbrantes como a luz dos cumes.
Sobre as plataformas em meio aos abismos os
Holandos trombeteiam sua bravura. Sobre as
passarelas do abismo e os tetos dos albergues, o
ardor do cu embandeira os mastros. O
desmoronamento da apoteoses alcana os campos
das alturas onde centauras serficas evoluem entre as
avalanches. Acima do nvel dos mais altos cumes, um
mar perturbado pelo nascimento eterno de Vnus,
juncado de frotas orfenicas e do rumor das perolas e
das conchas preciosas, o mar escurece s vezes
com esplendores mortais. Sobre as vertentes, as
colheitas de flores grandes como nossas armas e
nossas taas, mugem. Cortejo de Mabs em tnicas
roxas, opalinas, sobem das ravinas. No alto, as patas
na cascata e nas saras, os veados mamam em
Diana. As Bacantes dos subrbios soluam e a lua
arde e uiva. Vnus entra na caverna dos ferreiros e
ermites. Sinos cantam as idias dos povos. Dos
castelos construdos com ossos sai a msica
desconhecida. Todas as lendas evoluem e os alces se
27
lanam s povoaes. O paraso das tormentas se
desintegra. Os selvagens danam sem parar a festa
da noite. E, uma hora, mergulhei no movimento de um
bulevar de Bagd onde grupos cantaram a alegria do
trabalho novo, sob uma brisa espessa, circulando sem
poder eludir os fabulosos fantasmas dos montes onde
devamos tornar a encontrar-nos.
Que bons braos, que bela hora me devolver esta
regio de onde vm meus sonhos e meus mnimos
movimentos?

28
Vagabundos

Msero irmo! Quantas atrozes viglias lhe devo! Eu


no me encarregava fervorosamente desse
empreendimento. Ridicularizava sua enfermidade. Por
minha culpa voltaramos ao exlio, escravos. Ele me
atribua um azar e uma inocncia muito estranhas, e
acrescentava razoes inquietantes.
Eu respondia, escarnecendo, a este satnico doutor, e
terminava por alcanar a janela. Criava, alm do
campo atravessado por bandas de msica rara, os
fantasmas do futuro luxo noturno.
Aps esta distrao vagamente higinica, estendia-me
numa enxerga. E, quase todas as noites, mal havia
dormido, o pobre irmo se levantava, a boca
apodrecida, os olhos arrancados, tal como ele se
sonhava! e me arrastava pela sala, uivando seu
sonho de melancolia idiota. Eu, com efeito, com toda a
sinceridade da alma, tinha assumido o compromisso
de devolv-lo a seu estado primitivo de filho do Sol,
e andamos errantes, nutridos pelo vinho das cavernas
e pela bolacha das estradas, eu pressuroso de
encontrar o lugar e a frmula.

29
Cidades

A acrpole oficial, superior s mais colossais


concepes de barbrie moderna. Impossvel
expressar o dia fosco produzido por este cu
imutavelmente gris, o esplendor imperial das
construes, e a neve eterna do solo. Num singular
gosto de enormidade, foram reproduzidas todas as
maravilhas clssicas da arquitetura. Assisto a
exposies de pintura em locais vinte vezes mais
vastos que Hampton-Court. Que pintura! Um
Nabucodonosor noruegus fez construir as escadarias
dos ministrios, os subalternos que pude ver so mais
orgulhosos que...(1), e tremi ante o aspecto dos
guardies de colossos e oficiais de construes. Com
o agrupamento dos edifcios em praas, ptios e
terraos fechados, os cocheiros foram afastados. Os
parques representam a natureza primitiva trabalhada
por uma arte soberba. O bairro alto tem partes
inexplicveis: um brao de mar, sem navios, desenrola
sua superfcie de granizo azul entre cais juncados de
candelabros gigantes. Uma ponte curta conduz a uma
poterna exatamente sob a cpula de Sainte-Chapelle.
Esta cpula uma armao de ao artstico de cerca
de quinze mil ps de dimetro.
Em alguns pontos das passarelas de cobre, das
plataformas, das escadarias que contornam os
mercados e pilares, acreditei poder avaliar a
profundeza da cidade! prodgio que no pude
compreender: quais so os nveis dos outros bairros
sobre e sob a acrpole? Para o estrangeiro de nossa

30
poca, o reconhecimento impossvel. O bairro
comercial um circo de um s estilo, com galerias de
arcadas. No se vem as lojas, mas a neve da calada
est esmagada; alguns nababos to raros quanto os
passantes de uma manh de domingo em Londres, se
dirigem at uma diligencia de diamantes. Alguns divs
de veludo vermelho: servem-se bebidas polares cujo
preo varia de oitocentas a oito mil rupias. Ante a idia
de procurar espetculos neste circo, respondo a mim
mesmo que as lojas devem conter dramas bastante
sombrios. Penso que h uma policia. Mas a lei deve
ser de tal modo estranha, que renuncio a fazer uma
idia dos aventureiros daqui.
O subrbio, to elegante quanto uma bela rua de
Paris, favorecido por um ar luminoso. O elemento
democrtico conta com algumas centenas de almas.
L, no entanto, as casas no continuam; o subrbio se
perde singularmente no campo, o Condado que
ocupa o ocidente eterno das florestas e das plantaes
prodigiosas onde os gentis-homens selvagens
perseguem suas crnicas sob a luz que se criou.

31
Viglias

I
o repouso iluminado, nem febre nem langor, no leito
ou no prado.
o amigo nem ardente nem dbil. O amigo.
a amada, nem atormentadora nem atormentada. A
amada.
O ar e o mundo de modo algum buscados. A vida.
Era ento isso?
E o sono refresca.
II
A iluminao volta rvore da obra em construo.
Das duas extremidades da sala, cenrios quaisquer,
elevaes harmnicas se juntam. A muralha diante do
vigia uma sucesso fisiolgica de cortes de frisas, de
faixas atmosfricas e acidncias geolgicas. Sonho
intenso e rpido de grupos sentimentais com seres de
todos os caracteres entre todas as aparncias.
III
As lmpadas e os tapetes da viglia fazem o rudo das
ondas, noite, ao longo do casco do navio e em torno
do steerage.(2)
O mar da viglia, qual os seios de Amlia.
As tapearias, at a meia altura, entalhes de renda,
aparncia de esmeralda, onde se lanam as rolas da
viglia.
.. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. ..
..

32
A prancha da lareira negra, reais sis das praias: ah!
Poos de magias; nica viso da aurora, esta vez.

33
Mstica

No declive da escarpa os anjos trocam suas vestes de


l sobre os relvados de ouro e esmeralda.
Prados de chamas saltam at o alto do mamilo.
esquerda, o terrio da aresta pisado por todos os
homicidas e todas as batalhas, e todos os rudos
desastrosos seguem sua curva. Atrs da aresta direita,
a linha dos orientes, dos progressos.
E, enquanto, a faixa ao alto do quadro formada pelo
rumor giratrio e saltitante das conchas dos mares e
das noites humanas.
A doura florida das estrelas e do cu e do resto desce
diante da escarpa, como um cesto, contra nosso
rosto, e forma o abismo fragrante e azul l embaixo.

34
Aurora

Tive nos braos a aurora de vero.


Nada se movia ainda na fachada dos palcios. A gua
estava morta. Os campos de sombra no
abandonavam o caminho do bosque. Caminhei,
despertando os hlitos vivos e mornos, e as pedrarias
olharam, e as asas se ergueram sem rudo.
A primeira aventura foi, no sendeiro j pleno de frescos
e plidos fulgores, uma flor que disse seu nome.
Ri loura wasserfall (3) que se desgrenhava atravs
dos pinheiros: pelo cimo prateado reconheci a deusa.
Levantei ento, um a um, os vus. Na alameda,
agitando os braos. Na plancie, onde a denunciei ao
galo. Na grande cidade, ela fugia entre os
campanrios e as cpulas, e correndo como um
mendigo sobre os cais de mrmore, eu a perseguia.
No alto do caminho, perto de um bosque de loureiros,
eu a envolvi com seus vus amontoados, e senti um
pouco seu imenso corpo. A aurora e a criana caram
na falda do bosque.
Ao despertar era meio-dia.

35
Flores

De um degrau dourado, entre os cordes de seda,


os gazes grises, os veludos verdes e os discos de
cristal que enegrecem como bronze ao sol, vejo a
digital abrir-se sobre um tapete de filigranas de prata,
de olhos e cabeleiras.
Peas de ouro amarelo semeadas sobre a gata,
pilares de mogno sustentando uma cpula de
esmeraldas, buqus de cetim branco e de finas varas
de rubis rodeiam a rosa dgua.
Qual um deus de enormes olhos azuis e de formas de
neve, o mar e o cu atraem aos terraos de mrmore a
multido de jovens e fortes rosas.

36
Noturno Vulgar

Um sopro abre fendas operdicas (4) nos tabiques,


transtorna a armao dos tetos carcomidos, dispersa
os limites das lareiras, eclipsa as janelas. Ao longo
da vinha, tendo-me apoiado com o p uma grgula,
desci nesta carruagem cuja poca indicam
suficientemente as vidraas convexas, os paramentos
curvos e sofs contorcidos. Carro fnebre de meus
sonhos, solitrio, casa de pastor de minha tolice, o
veiculo fira em torno relva da grande estrada
apagada: e numa racha no alto do vidro direita
redemoinham s lvidas figuras lunares, folhas, seios;
Um verde e um azul muito intensos invadem a
imagem. Desatrelagem nas imediaes de uma
mancha de cascalho.
Aqui vai-se assobiar para a tempestade, e as
Sodomas e as Solimas, e os animais ferozes e os
exrcitos.
(Postilho e bestas de sonho continuaro sob os
mais sufocantes bosques, para afundar-se ate os
olhos na fonte de seda)
E enviar-nos, fustigados atravs das guas
marulhentas e das bebidas derramadas, a rolar sob o
ladrido dos ces de guarda...
Um sopro dispersa os limites da lareira.

37
Marinha

Os carros de prata e cobre


As proas de ao e prata
Ferem a espuma,
Agitam os tocos dos espinheiros.
As correntes da charneca,
E os sulcos imensos da vazante, Correm circularmente
para o este,
Para os troncos do quebra-mar,
Cujo ngulo castigado por turbilhes de luz.

38
Festa de Inverno

A cascata soa atrs das cabanas de pera-cmica.


Girndolas prolongam, nos pomares e nas alamedas
vizinhas do Meandro, os verdes e os vermelhos do
crepsculo. Ninfas de Horcio com penteados do
Primeiro Imprio, Rondas Siberiana, Chinesas de
Boucher.

39
Angstia

Ser possvel que Ela (5) me faa perdoar as


ambies continuamente aniquiladas, que um final
feliz compense as pocas de indigncia, que um dia
de xito nos adormea sobre a vergonha da nossa
fatal inabilidade.
( palmas! diamante! Amor, fora! mais alto que
todas as alegrias e glrias! de qualquer modo, em
todas as partes, demnio, deus, Juventude deste
ser; eu!)
Que acidentes de magia cientifica e movimentos de
fraternidade social sejam prezados como restituio
progressiva da franqueza primeira?...
Mas a Vampiro que nos torna gentis ordena que nos
divirtamos com o que ela nos deixa, ou que pelo
contrrio sejamos mais extravagantes.
Rolar at as feridas, pelo ar fatigante e o mar; at os
suplcios, pelo silencio da guas e do ar mortferos; at
as torturas que riem, em seu silencio atrozmente
agitado.

40
Metropolitano

Do estreito de ndigo aos mares de Ossian, sobre a


areia rsea e laranja que o cu cor de vinho lavou,
acabam de subir e cruzar-se bulevares de cristal
imediatamente habitadas por jovens famlias pobres
que se alimentam nas fruteiras. Nenhuma riqueza. A
cidade!
Do deserto de betume fogem, completamente
desbaratados, com lenis de bruma escalonados em
bandos pavorosos no cu que se recurva, recua e
desce, formado pela mais sinistra negra que possa
fazer o Oceano de luto, os cascos, as rodas, os
barcos, as garupas. A batalha!
Levanta a cabea: esta ponte de madeira, arqueada;
as ultimas hortas da Samaria; estas mscaras
coloridas sob a lanterna fustigada pela noite fria; a
ondina simplria de tnica farfalhante, no fundo do rio;
estes crnios luminosos nos plantios de ervilhas e as
outras fantasmagorias a campanha.
Caminhos bordados de grades e muros, contendo
apenas seus pequenos bosques, e as atrozes flores
que chamaramos coraes e irms, Damascos
tomados pelo langor, possesses de fericas
aristocracias ultra-renanas , japonesas, guaranis,
aptas ainda para receber a msica dos antigos e h
albergues que para sempre no mais se abrem h
princesas, e se no ests muito oprimido, o estudo dos
astros o cu.
Na manh em que, com Ela, vos debatestes entre os
resplendores da neve, estes lbios verdes, os cristais,

41
as bandeiras negras e os raios azuis, e os perfumes
prpuras do sol dos plos, tua fora.

42
Brbaro

Muito aps os dias e as estaes, e os seres e os


pases,
O pavilho de carne sangrenta sobre a seda dos
mares e das flores rticas; (elas no existem.)
Restabelecido das velhas fanfarras de herosmo que
nos atacam ainda o corao e a cabea longe dos
antigos assassinos (6)
Oh! o pavilho de carne sangrenta sobre a seda dos
mares e das flores rticas; (elas no existem.)
Dulores!
Os braseiros, chovendo nas rajadas de geada,
Dulores! os fogos na chuva do vento de diamante
lanada pelo corao terrestre por ns eternamente
carbonizado. O mundo! (Longe dos velhos refgios
e das velhas chamas, que se ouvem, que se sentem,)
Os braseiros e as espumas. A msica, virada aos
abismos e choque dos flocos de gelo nos astros.
Dulores, mundo, msica! E l, as formas, os
suores, as cabeleiras e os olhos, flutuando. E as
lagrimas brancas, ferventes, dulores! e a voz
feminina que chegou ao fundo dos vulces e das
grutas rticas.
O pavilho...

43
Promontrio

A aurora de ouro e a noite tremente surpreendem


nosso bergantim em alto-mar frente a esta manso e
suas dependncias, que formam um promontrio to
vasto como o piro e o Peloponeso ou como a grande
ilha do Japo, ou como a Arbia! Santurios que so
iluminados pela reapario das teorias, imensas vistas
da defesa das costas modernas; dunas ornadas de
clidas flores e bacanais; grandes canais de Cartago e
diques de uma Veneza suspeita; dbeis erupes de
Etnas e fendas de flores e guas dos glaciares;
lavadouros rodeados de lamos da Alemanha;
declives de parques singulares pendendo dos cimos
da rvore do Japo; e as fachadas circulares dos
Royal ou dos Grand de Scarbro ou do Brooklyn; e
suas ferrovias flanqueiam, cavam, dominam as
disposies deste Hotel, escolhidas na histria das
mais elegantes e colossais construes da Itlia, da
Amrica e da sia, e cujos terraos e janelas agora
cheios de luzes, bebidas e brisas perfumadas, esto
abertos ao esprito dos viajantes e dos nobres que
permitem, nas horas do dia, a todas as tarantelas das
praias, e mesmo aos ritornelos dos vales ilustres da
arte, decorar maravilhosamente as fachadas do
Palcio-Promontrio.

44
Cenas

A antiga Comdia prossegue em suas harmonias e


divide seus Idlios:
Bulevares de teatro de feira.
Um longo quebra-mar de madeira de um extremo ao
outro de um campo rochoso onde a multido brbara
revoluciona sob as rvores despojadas.
Nos corredores de gaze negra, seguindo o andar dos
passeantes pelas lanternas e pelas folhas,
Pssaros precipitam-se sobre um ponto de alvenaria
movido pelo arquiplago coberto das embarcaes
dos espectadores.
Cenas lricas com acompanhamento de flauta e tambor
se inclinam nos retiros dispostos sob os tetos, em
torno dos sales de clubes modernos ou das salas do
Oriente antigo.
O espetculo mgico no cimo de um anfiteatro
coroado de bosques, ou se agita e modula para os
Becios, na sombra das florestas que se movem, na
aresta das culturas.
A pera cmica se divide num palco na aresta de
interseco de dez tabiques que se erguem na galeria
de fogos.

45
Noite Histrica

Em qualquer noite, por exemplo, em que se encontre o


turista ingnuo, afastado de nossos horrores
econmicos, a mo de um mestre anima o clavecino
dos prados; joga-se baralho no fundo do lago, espelho
evocador das rainhas e das favoritas; tm-se santos,
vus, e os fios da harmonia, e os cromatismos
legendrios, no crepsculo.
Ele estremece passagem das caas e das hordas. A
comedia goteja sobre os teatros de feira da relva. E o
embarao dos pobres e dos dbeis nesses planos
estpidos!
sua viso escrava, a Alemanha ergue seus estrados
em direo s luas; os desertos trtaros se iluminam;
as revoltas antigas fervilham no centro do Celeste
Imprio; pelas escadarias e cadeiras de rochedos, um
pequeno mundo lvido e chato, frica e Ocidente, vai
edificar-se. Depois um bal de mares e noites
conhecidas, uma qumica sem valor, e melodias
impossveis.
A mesma magia burguesa em todos os pontos em que
nos deposite o correio! O fsico mais elementar sente
que j no mais possvel submeter-se esta
atmosfera pessoal, bruma de remorsos fsicos, cuja
constatao j um tormento.
No! O momento da estufa, dos mares arrancados,
dos abraos subterrneos, do planeta desaparecido, e
dos extermnios conseqentes, certezas to pouco
malignamente assinaladas na Bblia e pelas Nornas (7)
e que caber ao ser severo vigiar. No entanto, de

46
modo algum ser uma ao legendria!

47
Bottom (8)

Sendo muito espinhosa a realidade para meu forte


carter, encontrei-me, no entanto, na casa da
Senhora, como um grande pssaro gris azulado
voando at as molduras do teto e arrastando a asa nas
sombras da noite.
Fui, ao p do dossel que sustinha suas jias adoradas
e suas obras-primas fsicas, um gordo urso de
gengivas violetas e de plo encanecido pela amargura,
os olhos nos cristais e nas pratarias dos consolos.
Tudo se fez sombra e aqurio ardente. Pela manh,
belicosa aurora de junho, corri aos campos, asno,
trombeteando e brandindo minha queixa at que as
Sabinas vieram lanar-se ao meu peito.

48
H

Todas as monstruosidades violam os gestos atrozes


de Hortnsia. Sua solido mecnica ertica, sua
lassitude, a dinmica amorosa. Sob a vigilncia de
uma meninice, ela foi, em numerosas pocas, a
higiene ardente das raas. Sua porta est aberta
misria. L, a moralidade dos seres atuais se
desagrega em sua paixo ou em sua ao. O terrvel
frmito dos amores novios no solo sangrento e pelo
hidrognio esplendoroso! achai Hortncia.

49
Movimento

O movimento em ziguezague na encosta das quedas


do rio,
O abismo da popa,
A celeridade da rampa,
A enorme passagem da corrente
Conduzem atravs dos fulgores inauditos
E a novidade qumica
Os viajantes rodeados pelos turbilhes do vale
E da corrente.
So os conquistadores do mundo
Que buscam a fortuna qumica pessoal;
O esporte e o conforto viajam com eles;
Levam consigo a educao
Das raas, classes e animais, nesta nave
Repouso e vertigem
luz diluviana,
Nas terrveis noites de estudo.
Porque na conversa entre os aparelhos, o sangue, as
flores, o fogo, as jias,
Nas contas agitadas nesta borda fugitiva
V-se, retumbante como um dique alm da rota
hidrulica motriz,
Monstruosa, iluminando-se sem fim, sua proviso de
estudos;
Caados no xtase harmnico,
E o herosmo da descoberta.
Nos acidentes atmosfricos mais surpreendentes,
Um jovem casal se isola na arca,
a antiga selvageria que se perdoa?
E canta e se situa.

50
Devoo

A minha irm Lusa Vanaen de Voringhem: sua coifa


azul voltada para o mar do Norte. Para os nufragos.
A minha irm Lonie Aubois dAshby. Bau! (9) A
relva de vero sussurrante e ftida. Para a febre das
mes e dos filhos.
A Lulu, demnio que conservou um gosto pelos
oratrios do tempo das Amigas e de sua educao
incompleta. Para os homens. Senhora***.
Ao adolescente que fui. A esse santo ancio, ermida
ou misso.
Ao esprito dos pobres. E a um muito alto clero.
Assim como a todo culto em um lugar de culto
memorial e entre acontecimentos tais que seja preciso
entregar-se, obedecendo as aspiraes do momento
ou ainda ao nosso prprio vcio srio.
Essa noite em Circeto dos altos gelos, gordurenta
como o peixe, e colorida como os dez meses da noite
vermelha, (seu corao de mbar e spunk), (10),
para minha nica orao muda como essas regies da
noite, e precedendo faanhas mais violentas do que
este caos polar.
A qualquer preo e sob todos os ventos, mesmo em
viagens metafsicas. Mas mais ento.

51
Democracia

A bandeira tremula na paisagem imunda, a nossa


gria abafa o tambor.
Nos centros alimentaremos a mais cnica prostituio.
Massacraremos as revoltas lgicas.
Aos pases picantes e sem tmpera! a servio das
mais monstruosas exploraes industriais ou militares.
Adeus aqui, no importa onde, Recrutas de boa
vontade, teremos a filosofia feroz; ignorantes por obra
da cincia, extenuados pelo conforto; a exploso para
o mundo que marcha. Para frente, a caminho!

52
Fairy (11)

Para Helena se conjuraram as seivas ornamentais nas


sombras virgens e as claridades impassveis no
silncio astral. O ardor do vero foi confiado a
pssaros mudos e a indolncia requerida a um barco
de lutos sem preo por enseadas de amores mortos e
de perfumes atenuantes.
Aps o momento da cantiga das lenhadoras no
rumor da torrente sob a runa dos bosques, do
chocalho do gado no eco dos vales, e dos gritos das
estepes.
Para a infncia de Helena fremiram as espessuras e
as sombras, e o seio dos pobres, e as lendas do
cu.
E seus olhos e sua dana superiores ainda s
cintilaes preciosas, s influencias frias, ao prazer do
cenrio e da hora nicos.

53
Guerra

Criana ainda, certos cus aperfeioaram minha tica:


todos os caracteres matizaram minha fisionomia. Os
Fenmenos se sublevaram. Atualmente, a inflexo
eterna dos momentos e o infinito das matemticas me
perseguem por este mundo onde padeo todos os
xitos civis, respeitado pela infncia estranha e por
afeies enormes. Sonho com uma guerra, de direito
e de fora, de lgica bem imprevista.
to simples quanto uma frase musical.

54
Juventude

I
Domingo
Os clculos de lado, a inevitvel descida do cu, e a
visita das lembranas e a assemblia dos ritmos
ocupam a morada, a cabea e o mundo do esprito.
Um cavalo galopa no hipdromo suburbano e ao longo
das plantaes e arvoredos, atingido pelo carbnculo.
Uma miservel mulher de teatro, nalguma parte do
mundo, suspira aps abandonos improvveis. Os
desesperados (12) enlanguecem aps a tempestade, a
embriaguez e as feridas. Crianas pequenas afogam
maldies ao longo dos rios.
II
Soneto
Homem de constituio ordinria, a carne no era um
fruto suspenso no pomar, dias pueris! O corpo, um
tesouro a dissipar; amar, o perigo ou a fora de
Psiqu? A terra possua vertentes frteis em prncipes
e artistas, e a descendncia e a raa nos impeliam aos
crimes e aos lutos: o mundo, vossa fortuna e vosso
perigo. Mas agora, este labor cumprido, tu, teus
clculos, tu, tuas impacincias, no so mais que
vossa dana e vossa voz, no fixadas e de modo
algum foradas e de xito, na humanidade fraternal e
discreta pelo universo sem imagens; a fora e o
direito refletem a dana e a voz somente agora
apreciadas.
III
Vinte Anos
55
As vozes instrutivas exiladas...A ingenuidade fsica
amargamente sossegada...Adgio. Ah! O egosmo
infinito da adolescncia, o otimismo estudioso: como
estava o mundo cheio de flores este vero! Os ares e
as formas agonizantes...Um coro, para acalmar a
impotncia e a ausncia! Um coro de vidros de
melodias noturnas...Com efeito, os nervos vo logo
falhar.
IV
Ainda permaneces na tentao de Antonio (13). O
refocilamento do zelo cerceado, os tiques de orgulho
pueril, o abatimento e o espanto. Mas te consagrars a
esse trabalho: todas as possibilidades harmnicas e
arquiteturais gravitaro em torno da tua morada. Seres
perfeitos, imprevistos, se oferecero s tuas
experincias. s tuas cercanias afluir
sonhadoramente a curiosidade de antigas multides e
de luxos ociosos. Tua memria e teus sentidos no
sero o alimento de teu impulso criador. Quanto ao
mundo, quando dele sares, em que se ter
convertido? Em todo caso, nada das aparncias
atuais.

56
Saldo

venda o que os judeus no venderam, o que nem a


nobreza nem o crime degustaram, o que o amor
maldito e a probidade infernal das massas ignoram; o
que nem a cincia nem o tempo ho de reconhecer;
As Vozes reconstitudas; o despertar fraterno de todas
as energias corais e orquestrais e suas aplicaes
instantneas; a ocasio, nica, de liberar nossos
sentidos!
venda os Corpos sem preo, fora de toda raa, de
todo mundo, de todo sexo, de toda descendncia! As
riquezas brotando a cada passo! Saldo de diamantes
sem controle!
venda a anarquia para as massas; a satisfao
irreprimvel para os amadores superiores; a morte
atroz para os fiis e os amantes!
venda as habitaes e as migraes, esportes,
magias e comodidades perfeitas, e o rudo, o
movimento e o futuro que criam!
venda as aplicaes de clculo e os inauditos saltos
de harmonia. Os achados e os termos insuspeitados,
possesso imediata,
Impulso insensato, e infinito em direo aos
esplendores invisveis, s delicias insensveis, e suas
secretas loucuras para cada vcio e sua alegria
espantosa para a multido.
venda os Corpos, as vozes, a imensa opulncia
inquestionvel, o que no vender jamais. Os
vendedores no esgotaram o saldo! Os viajantes no

57
tm porque perder sua comisso to cedo!

58
Gnio

Ele a afeio e o presente pois fez a casa aberta ao


inverno espumoso e ao rumor do vero, ele que
purificou as bebidas e os alimentos, ele que o
encanto dos lugares fugitivos e a delicia sobre-humana
das estaes. Ele a afeio e o futuro, a fora e o
amor que ns, em p sobre os dios e os desgostos,
vemos passar no cu de tempestade e nos
estandartes de xtase.
Ele o amor, medida perfeita e reinventada, razo
maravilhosa e imprevista, e eternidade: mquina
amada das qualidades fatais. Tivemos todo o espanto
de sua concesso e da nossa: fruio de nossa
sade, impulso de nossas faculdades, afeio egosta
e paixo por ele, ele que nos ama em razo de sua
vida infinita...
E ns o evocamos e ele viaja...E se a Adorao vai
embora, sua promessa ressoa: Para trs etsas
supersties, estes corpos antigos, estas famlias e
idades. esta a poca que soobrou!
Ele no ir embora, no tornar a descer de um cu,
no cumprir a redeno das cleras das mulheres e
das alegrias dos homens e de todo este pecado;
porque isto foi feito, ele existindo, e sendo amado.
suas respiraes, suas cabeas, suas progresses;
a terrvel celeridade da perfeio das formas e da
ao!
fecundidade do esprito e imensido do universo!
Seu corpo! O desprendimento sonhado, o

59
quebrantamento da graa perpassada por violncia
nova!
Seu olhar, seu olhar! todas as genuflexes antigas e
as penas redimidas aps sua passagem.
Seu dia! a abolio de todos os sofrimentos sonoros e
mveis na mais intensa msica.
Seu passo! as migraes mais enormes que as
antigas invases.
ele e ns! o orgulho mais benvolo que as caridades
perdidas.
mundo! e o canto claro dos novos flagelos!
Ele nos conheceu a todos e a todos nos amou.
Saibamos, esta noite de inverno, de cabo em cabo, do
plo tumultuoso ao castelo, da multido praia, de
olhares em olhares, foras e sentimentos cansados,
cham-lo e v-lo, e despedi-lo, e sob as mars e no
alto dos desertos de neve, seguir suas vises, seus
alentos, seu corpo, sua luz.

60
Notas do Tradutor

(1) Palavra ilegvel no texto do manuscrito Graux.


Editores optam por: Brennus, Bravi, Brmanes, ou
ainda Brahmas.
(2) Steerage: palavra inglesa: pores do navio.
(3) Cascata. Em alemo, no original.
(4) Palavra de origem inglesa (operatic), referente
pera.
(5) Ela, para alguns comentaristas ser a Mulher,
para outros a Religio. Ou ainda: a Morte, a Razo, o
Mtodo, a Msica, a Poesia. Provocar discusses eis a
vantagem de ser abstrato.
(6) No caso, fumadores de haxixe, de onde, alis,
proviria a palavra assassino.
(7) Deusas escandinavas que presidem aos destinos
dos homens, equivalentes s Parcas.
(8) Aluso, talvez, a Bottom, de Sonho de Uma Noite
de Vero, que se metamorfoseia em asno.
(9) Bau: deusa caldia do azar.
(10) Palavra inglesa que admite vrios significados:
isca, fungo, madeira podre, e como adjetivo: fogoso,
violento.
(11) Palavra inglesa: fada.
(12) Rimbaud escreve les desesperadoes, que, no
ingls, significa: malfeitor, bandido temvel.
(13) Aluso La Tentation de Saint Antoine, de
Flaubert.

61
Traduo 2012 Janer Cristaldo
[email protected]
Verso para eBook
eBooksBrasil.org

__________________
Agosto 2012

eBookLibris
2012 eBooksBrasil.org

62

Você também pode gostar