Amor Sem Limites
Amor Sem Limites
Amor Sem Limites
PERFIL
DO
BEM-AVENTURADO
PADRE LUS TEZZA
FUNDADOR DAS FILHAS
DE SO CAMILO
Beatificado pelo Papa Joo Paulo, II
em Roma, no dia 4 de novembro de 2001
Ttulo italiano:
Lamore non conosce confini: Beato Luigi Tezza. Pe. Angelo Brusco M.I.
Torino, 2001
Angelo Brusco
ABREVIAES
2
APL Arquivo da Prov. Lombardo-Vneta (Verona)
ASV Arquivo Secreto Vaticano
Positio Romana seu Limana, Beatificationis et Canonizationis
Servi Dei Aloisii Tezza Sacerdotis Professi Ordinis Clericorum Regularium
Min. Infirmis Fundatoris Filiarum S. Camilli (1841-1923, Roma 2000).
3
I
UM COMEO PROMISSOR
Os primeiros 15 anos: buscas, alegrias e separaes.
Os pais
4
vida fundamentada em slida espiritualidade. Ao filho transmitiu fineza, ternura,
gosto pela beleza, abertura para os valores do esprito. As tendncias de proteo
exagerada e de acentuada ingerncia na vida do filho no chegam a comprometer
a validade de seu estilo de educao, pois, sabia associar carinho disciplina,
muitas vezes severa.
xodos
Em busca da vocao
2
Positio, II, p. 11.
5
A busca espiritual realizada por D. Catarina e por seu filho foi favorecida pelo
contato com os Ministros dos Enfermos, popularmente conhecidos como
Camilianos, do nome de seu Fundador, Camilo de Lllis.
Em Pdua, os camilianos tinham-se estabelecido em 30 de agosto de 1846, a
pedido do bispo Modesto Farina, para assumir a direo e a assistncia espiritual
da Casa de Santa Ana. A Casa, fundada em 1821, abrigava 150 idosos e cerca de
60 meninos. Alm da direo do setor masculino da casa, os religiosos, padres e
irmos, davam assistncia espiritual e corporal aos idosos e acompanhavam os
jovens.
O encontro com os camilianos deu-se provavelmente pelo fato que D.
Catarina freqentava a Igreja da Casa de Santa Ana, onde tinha encontrado um
competente orientador espiritual na pessoa do Pe. Caetano Mdena, superior da
comunidade camiliana. Na crnica da casa de Pdua, D. Catarina considerada
exmia benfeitora da comunidade camiliana e de total amor pela Igreja de
Santana, qual doou muitas alfaias3. Junto com a me, Lus tornou-se um assduo
freqentador da casa dos camilianos, tanto assim que os religiosos escreveram:
Tezza mais nosso que de sua me; est quase sempre conosco4.
O discernimento vocacional de D. Catarina e de seu filho aconteceu em
clima de serena familiaridade, sob a orientao do Pe. Mdena. Religioso de
grande valor, alm de slida cultura clssica, possua dotes de bom animador,
tanto assim que foi nomeado superior geral da Ordem pelo papa Pio IX, cargo
que no aceitou. Demonstrava, para com Lus e sua me, estima, afeto e
proteo, chagando a falar de um grande amor que os unia a estas duas
pessoas, cujo corao e cuja ndole encontravam nele boa acolhida.
De sua parte, Tezza no hesitou em chamar o Pe. Mdena pai de minha
vocao, reconhecendo o papel por ele desempenhado na escolha que fez.
O modo como Lus verbalizou seu chamado vida consagrada simples e
preciso, como consta nas cartas que escreveu em 1855 ao Pe. Lus Artini,
superior da casa de formao dos camilianos em Verona. Declara-se chamado por
uma voz interior que se fez ouvir sempre mais forte e que o levou para a Ordem
dos Camilianos5. Mostra-se desejoso de falar com o Pe. Artini sobre o doce
problema da sua vocao. Enche-o de alegria o pensamento de poder transpor os
sagrados muros do convento de Verona para nunca mais deix-los.
Uma rpida visita a Verona, em 1855, encheu-o de alegria, confirmando-o
em seu propsito de seguir a vida religiosa.
No dia 29 de outubro de 1856, acompanhado pelo Pe. Mdena e por sua
me, Tezza entrou na casa religiosa de Santa Maria do Paraso, em Verona,
acolhido pelo Pe. Lus Artini, religioso que ter papel importante em sua vida.
Trs dias depois, tambm D. Catarina entrou no mosteiro de Santa Maria
da Visitao, em Pdua.
A experincia da separao
3
Cronaca della Casa dei Camilliani, Padova 26-30 ottobre 1856, in APL Registro Cronaca, vol. IV, fol. 27.
4
APL. 279/5o2.
5
APL 279/440
6
Esta fase da vida de Lus encerra-se com mais uma separao. Em 15 anos
apenas, a experincia da separao marcou profundamente a sua vida. Por cinco
vezes os acontecimentos o obrigaram a mudar de residncia. A deslocao
geogrfica traz sempre mudanas na psique e no esprito, causa sofrimentos,
reabre e aprofunda feridas. No caso de Tezza, a separao da me e dos
religiosos camilianos de Pdua, talvez, trouxe tona lembranas da morte
prematura do pai.
Quem acompanhou estas separaes deu-se conta de seu lado doloroso,
fazendo uma leitura em que se d nfase ao sofrimento, abrandado, mas no
eliminado, pela f. Fala-se do jovem Tezza que, com herico exemplo, se
separou da me, filho nico, para seguir a voz de Deus6. H quem manifeste sua
emoo por este rarssimo exemplo de desprendimento cristo mtuo. Parece
que se possa atribuir de modo especial a estes dois o elogio de Cristo, isto ,
que so dignos dele ao fazer to grande renncia, provocando ou, antes,
implorando o golpe da espada mstica que os separe para sempre.7
Vivida desde os primeiros anos de vida, a experincia da separao se far
sentir muitas vezes ao longo dos anos, exigindo que Tezza coloque a sua morada
onde a vontade de Deus o quer.
Quando Lus chegou a Verona para iniciar sua formao para a vida
religiosa ainda no tinha completado 15 anos.
Como se v pelas fotografias da poca, devia ser um rapaz bem apanhado,
harmoniosamente desenvolvido, de feies fortes e suaves ao mesmo tempo.
Trazia os traos da me, aristocrticos e perfeitos; as feies do rosto se
distinguiam pela beleza, viril e doce, no comum8.
As notas que obteve nos estudos revelam elevado grau de inteligncia.
Rico e expressivo afetivamente, tinha vida moral sadia, como se v pelo
testemunho de sua me que declarou considerar ntegro o lrio de seu filho.
A deciso de ingressar no seminrio foi fruto de um discernimento feito
com seriedade, sob a orientao de sacerdotes de grande experincia.
Sem dvida, um conjunto de fatores contribuiu para criar ao redor dele um
ambiente propcio para um crescimento sadio. s condies econmicas
favorveis e atmosfera cultural rica de incentivos, associava-se um ambiente
espiritual de amor e de bons exemplos, apesar das muitas transferncias e da
morte prematura do pai.
A ficha pessoal de Tezza seria mais completa se, alm desses elementos
positivos sobre sua pessoa, houvesse outros, que mostrassem o seu
relacionamento com os pais, os seus gostos pessoais, as inevitveis falhas do seu
carter e de seu comportamento...Isto ajudaria a evitar o risco de fazer um retrato
6
Cronaca della Casa di Padova..., fol. 60.
7
APL. 280/719.
8
Positio, II, padre 11.
7
por demais idealizado, prprio de um tipo de biografia que descamba para o
exagero e a unilateralidade.
Se a documentao que chegou at ns traz apenas os aspectos positivos,
claro que eram os que mais se destacavam, tanto assim que um religioso da
comunidade camiliana de Pdua previu que teria um futuro promissor e glorioso:
Sinto por este rapaz afeto e estima, pois prevejo que, no futuro, trar glria para
a nossa Ordem.9
II
SURPRESAS E RIQUEZAS DE UM MUNDO NOVO
De Pdua para Verona
O mundo camiliano
9
APL. 280/801.
10
Cfr. M. Vanti, San Camillo e i suoi Ministri degli Infermi, Roma 1957.
8
Aos votos tradicionais de castidade, pobreza e obedincia, Camilo
acrescentou um quarto, exigindo de si mesmo e dos seus religiosos que se
consagrassem ao servio dos doentes, ainda que com risco da prpria vida.
Camilo deixou exemplos sublimes de sua dedicao aos doentes. Trabalhou
durante muitos anos no Hospital do Esprito Santo, em Roma, acorreu aonde
eclodiam pestes ou irrompiam situaes de emergncia, fundou comunidades
camilianas em vrias cidades da Itlia.
A obra de Camilo no se limitava ao, mas dava espao reflexo sobre
como servir os doentes. Embora no fosse culto, possua qualidades geniais,
carismticas e profticas. No campo da assistncia aos doentes, a histria o
reconhece como um reformador importante. Seu modo de ser e de agir com a
pessoa que sofre tornou-se uma escola, cuja originalidade foi reconhecida pela
Igreja atravs do Papa Bento XIV. Uma escola na qual se pode aprender no s a
cuidar do doente com amor e competncia, mas tambm a viver a vida no
Esprito de forma toda especial.
Um documento de sua contribuio para a reforma da assistncia aos
doentes so as Regras da Companhia dos Ministros dos Enfermos11, escritas de
um s jato, em 1584. So uma amostra realmente encantadora de competncia e
de amor no servio aos doentes.
Nelas destaca-se a centralidade do doente, senhor e patro de quantos o
assistem e do prprio hospital. Tudo deve voltar-se para o seu tratamento,
evitando toda e qualquer instrumentalizao. A dignidade do doente decorre do
fato de ele ser sacramento da presena de Cristo. De fato, servir o doente servir
Cristo; Estive doente e me visitastes(Mt 25, 36).
Nas palavras e nos gestos de Camilo est presente a globalidade da
assistncia ao doente: corpo e alma so inseparveis no doente e suas
necessidades corporais e espirituais devem ser encaradas numa viso unitria da
pessoa. Enfim, quem cuida do doente no deve apenas assumi-lo na globalidade
de sua pessoa, mas achegar-se a ele com a totalidade do seu ser: conhecimento e
afetividade, tcnica e corao. Ficou famosa uma frase que Camilo disse aos seus
colaboradores: Irmos, mais amor nas mos!. Neste envolvimento afetivo
merece destaque a dimenso feminina do amor: amor terno, carinhoso, rico de
compaixo.
Quando Camilo morreu, em Roma, no dia 14 de julho de 1614, a Ordem
por ele fundada contava mais de 300 religiosos divididos em 5 provncias.
Ao perpetuar o carisma do fundador, a Ordem camiliana manteve-lhe
fidelidade fundamental. Mas no faltaram crises. Uma das mais graves afetou a
Ordem na segunda metade do sc. XVIII, provocando sria diminuio numrica
dos religiosos e certa decadncia dos valores prprios da vida consagrada. A
presena dos camilianos nos hospitais perdeu fora e a vida fraterna em
comunidade deteriorou-se. Influncia negativa foi provocada teve a interferncia
do poder civil em questes internas da Ordem.
11
Este documento encontra-se em: G. Sommaruga (a cura di), Scritti di San Camillo, Edizioni Camilliane,
Torino 1991, pp. 17-29.
9
O desejo de reforma, que surgiu nas primeiras dcadas do sc. XIX, teve
um realizador eficaz na pessoa do Pe. Camilo Csar Bresciani.12 Sacerdote da
diocese de Verona, pessoa culta, orador e poeta de renome nos meios cultos da
cidade, foi motivado a pedir a presena dos camilianos em Verona para dar
continuidade ao maravilhoso movimento em prol dos doentes desenvolvido por
uma associao de voluntrios, a Irmandade dos sacerdotes e dos leigos
hospitaleiros, da qual foi um dos grandes promotores. Tendo-se tornado
camiliano, iniciou uma fundao que logo cresceu e se tornou provncia da
Ordem, marcada por um padro de vida fiel ao ideal de S. Camilo.
O mundo camiliano em que ingressou Tezza era, pois, novo e sadio,
coerente com o ideal do Fundador, rico de uma espiritualidade capaz de
transformar pessoas, conformando-as a Cristo misericordioso. Religiosos de
grande envergadura humana e espiritual contriburam para realizar a reforma de
Bresciani, com um grupo de jovens camilianos animados de zelo apostlico e
ardor missionrio.
Na Igreja de Verona
12
A. Brusco, P. Camillo Cesare Bresciani, fondatore della Provincia Lombardo-veneta dei Chierici Regolari
Ministri degli Infermi (Camilliani), Il Pio Samaritano, Milano 1972.
13
Cfr. AA. VV., Chiesa e spiritualit nellOttocento italiano, Mazziana, Verona 1971.
14
Cfr. A. Brusco, P. Camillo Cesare Bresciani..., pp. 57-72.
10
religiosa...A espiritualidade que animava este movimento caritativo centrava-se
na humanidade sofredora de Cristo, presente no pobre e no doente.
O Pe. Camilo Bresciani e os seus religiosos alimentaram-se deste fervor de
caridade que permeava a Igreja de Verona, fazendo com que tambm os
seminaristas participassem.
11
Na qualidade de formador, criou um bem sucedido cenculo de piedade e
de estudo, onde os jovens candidatos vida camiliana podiam ter uma educao
apropriada para se tornar autnticos Ministros dos Enfermos, segundo o esprito
de S. Camilo.
Como superior, mostrou-se capaz de liderana inteligente e firme, levado
por projetos apostlicos de grande abertura.
Padre Artini acompanhou o jovem Tezza ao longo de toda a sua formao
de camiliano. Entre os dois, estabeleceu-se um relacionamento positivo que
cresceu sem parar, assumindo caractersticas de profunda amizade espiritual.
III
UMA PLANTINHA QUE CRESCE BEM
Noviciado e profisso religiosa
O programa de formao
12
objetivo so necessrios a observncia perfeita das Regras e o estudo, sobretudo
das cincias sagradas.
Um ponto importante era o estgio que os novios deviam fazer para
aprender a cuidar dos doentes. Seguindo o exemplo de S. Camilo, os novios
faziam ora o papel de doente, ora o de quem cuida do doente17.
Toda a formao desenvolvia-se sob a orientao atenta do mestre de
novios, que tambm era seu confessor.
So poucas as informaes a respeito da caminhada humana e espiritual de
Tezza durante o noviciado. Vista com olhos humanos e superficiais, a experincia
de noviciado pode ser considerada como camisa de fora para este jovem que
vinha de um contexto de liberdade e de autonomia. As informaes que chegaram
at ns, embora poucas, mostram, porm, que este tempo foi de grande proveito
para o seu crescimento humano e espiritual.
13
No consta que o Pe. Artini tenha rejeitado as manifestaes de carinho do
jovem Tezza. Antes, as retribua, compreendendo o que se passava no corao do
adolescente, cujo desejo de firmar a sua autonomia continuava inferior
necessidade de ser ajudado.
Tendo percebido o grande potencial humano e espiritual daquele jovem,
via nele uma esperana para a Ordem e para a Igreja. compreensvel, portanto,
que, tomado de sentimentos de simpatia e benevolncia, chegasse a atitudes de
preferncia para com ele. Isso no passava desapercebido ao jovem Tezza, que se
sentia confuso por tamanha bondade e ateno do seu pai.
Como bom formador, Artini fez o possvel para que o relacionamento entre
ele e Tezza no se tornasse prejudicial, mas contribusse para fazer dele um
autntico religioso, imitador de S. Camilo.
Dessa amizade nasceu em Lus o desejo de abrir por completo seu corao
e sua alma ao formador. Sentia-se grato at na intimidade mais profunda19. Lus
gostava de realar sua sinceridade no relacionamento, deixando que Artini lesse
no mais ntimo do seu corao. O Pe Artini foi visto por Tezza no apenas como
pai, mas tambm como modelo e guia, capaz de lev-lo meta.
14
quando foi prestar os mesmos exames como privatista no Real Colgio da cidade,
foi reprovado. O resultado surpreendeu at seus professores. o primeiro
fracasso que se conhece na vida de Tezza. Uma lio amarga para ele que,
certamente, lhe causou sofrimento, mas sem comprometer a sua caminhada.
No noviciado no faltavam momentos de descanso e lazer. Pode-se
imaginar do que fosse capaz um grupo de adolescentes em termos de brincadeiras
e de esportes. De tempos em tempos, os novios iam para a casa de descanso de
S. Juliano, uma casa modesta, construda sobre as runas de uma antiga torre,
com uma pequena capela ao lado. A VILA, como era conhecida pelos religiosos,
ficava perto de Verona, sobre um promontrio de pedra. Servia de lugar de
descanso para os religiosos que trabalhavam com os doentes e tambm para os
estudantes.
A presena da me
A profisso religiosa
23
APL. 2533/484.
15
IV
ENTRE ESTUDOS E ATIVIDADE DE FORMAO
Preparao para o sacerdcio
Mltiplas atividades
16
Estudos de filosofia e teologia
Como professor
17
O crescimento espiritual
30
APL. 2533/569.
31
APL. 288/942.
32
APL. 283/145.
33
A nossa vida uma ginstica do desejo. O santo desejo ser tanto mais eficaz quanto mais arrancarmos a
raiz da vaidade aos nossos desejos. J o dissemos outras vezes que para poder encher-se necessrio antes
esvaziar-se. Tu deves ser enchido pelo bem, e por isso deves livrar-te do mal. Suponha que Deus quer encher-te
de mel. Se ests cheio de vinagre, onde colocar o mel? Deve-se esvaziar a vasilha daquilo que tinha dentro,
melhor, precisa limp-lo. Talvez seja necessrio limp-lo com esforo e dedicao, se necessrio, para que seja
apto a receber algo. Quando dizemos mel, ouro, vinho, etc., no fazemos mais do que referir-nos nica
realidade que queremos enunciar, mas que indefinvel. Esta realidade chama-se Deus (Tratado 4; PL. 35,
2008-2009).
18
Nesta caminhada de crescimento, o ideal camiliano esteve sempre
presente, orientando-o na perspectiva do autntico esprito de S. Camilo e da
prtica da caridade para com os doentes.
34
APL. 285/399.
35
APL. 288/141.
36
APL., Cronaca della Casa di Noviziato..., vol. V, ff. 176-179.
19
Quanto a ordenao sacerdotal tenha marcado a vida de Tezza, foi
revelado por ele mesmo, anos mais tarde, a um coirmo: No dia de minha
primeira missa, pedi a Deus uma graa, entre outras, e foi que conservasse em
mim, durante toda a minha vida, os mesmos sentimentos de pureza e de fervor. E
eu acredito, - acrescentou em voz mais baixa, como se quisesse que ningum o
escutasse - que Deus ouviu o meu pedido37.
A amizade espiritual
37
Testemunho do padre Cruz Maulon, in Domesticum, 7(1924), p. 152.
38
APL. 288/942.
39
APL 2534/987.
40
APL. 2534/807.
41
APL. 2534/703.
20
auspcio e numa prece a Deus para que o faa sempre mais santo, sempre mais
seu em afetos e obras, no por meio de uma virtude aparente, mas real, radicada
numa alma ardente de amor divino42.
Cultivada com dedicao constante, a vida no Esprito permeou a
dimenso afetiva de Tezza, purificando-a e engrandecendo a sua riqueza.
Dando uma olhada nos oito anos que passou na casa de formao, o Pe.
Tezza no hesitou em dar uma avaliao positiva sobre a sua passagem pelo
seminrio, onde recebeu o alimento necessrio para enfrentar com serenidade e
coragem os desafios do ministrio sacerdotal.
Falava de tempo feliz, destacando aspectos corriqueiros e insignificantes
daquele perodo.
Chega-se, com isso, ao conhecimento das ansiedades que o afligiam no
tempo de exames, das suas artimanhas para conhecer as notas antes que fossem
publicadas. Tambm as frias tinham seu lugar nas lembranas. Reconfortante era
o contato com a natureza na casa de S. Juliano e nas colinas de Verona. De vez
em quando se entregava a devaneios poticos, com toques ingnuos e
redundantes, prprios do tempo e da idade: Morre o outono - a natureza
revestida de excepcionais belezas veste o manto triste do inverno e parece
esconder-se ao nosso olhar - acaba o suave zfiro e sopra o violento boreal,
altaneiro rei das neves, o cu se encobre..., tudo muda, tudo some...43.
Tambm na vida de Tezza, a estao mudou. Do mundo resguardado do
seminrio passou para o grande campo do apostolado.
V
NO CAMPO DO APOSTOLADO
Anos ativos e agitados (1864-1867)
42
APL. 290/691.
43
APL. 2534/901.
21
quando no usa o barrete clerical. As batinas que trajava so pesadas, rudes e
aparentemente embaraantes. Da faixa da batina, pende o rosrio.
22
territrio nacional no dia 7 de julho de 1866. Em Verona, entrou em vigor no dia
1 de julho do ano seguinte.
Situao de emergncia
23
Maria do Paraso. Diversos religiosos se refugiaram em casas de famlia. No
faltaram os descontentes que fizeram da supresso a oportunidade para livrar-se
das obrigaes da vida religiosa.
Para um observador independente, a jovem provncia camiliana da
Lombardia e Vneto, fundamentada em bases slidas, parecia uma vinha
abandonada. Os Irmos leigos no podiam exercer sua atividade de assistncia
corporal nos hospitais; a vida comum - uma das grandes conquistas da reforma do
Pe. Bresciani - estava ameaada e, em alguns lugares, abolida; o hbito religioso
no era tolerado...
46
ALV 292/579.
47
F. Spagnolo - G. Facchini (a cura di) Lettere circolare dei Prefetti provinciali della Provincia Lombardo-
Veneta dei Ministri degli infermi, nel Centenario della Fondazione, 1862-1962, Verona 1965, p. 116.
48
APL. 290/691.
24
lhe a graa de estar disponvel vontade de Deus, oferecendo a sua vida para o
bem dos postulantes, de cuja formao era responsvel.
VI
A MISSO DA FRICA
Renncia a uma viagem ambicionada
25
obrigavam os religiosos a viver escondidos e impediam o seu ministrio, por que
no procurar outros lugares, onde a messe estava madura?
Em pouco tempo decidiram pedir licena ao Superior Geral e ao seu
Conselho para realizar um projeto, que contava com a adeso de trs padres:
Estanislau Carcereri, Lus Tezza e Alfonso Chiarelli, alm de um clrigo: Jos
Franceschini.
O no de Roma
Daniel Comboni
Antes que a resposta negativa do Superior Geral, Pe. Jos Oliva, chegasse
a Verona, atravs de carta do seu vigrio, Pe. Camilo Guardi, com data de 15 de
abril de 1867, outra porta se havia aberto, mas que alterava o projeto missionrio
inicial.
Um jovem sacerdote da diocese de Verona, Daniel Comboni51, h anos se
dedicava obra de evangelizao da frica. Num primeiro tempo, tinha-se
associado ao Pe. Nicolau Mazza, promotor, entre 1857 e 1861, de algumas
expedies arriscadas na frica. O fracasso do projeto missionrio de Mazza
levou Comboni a criar um projeto prprio, com o apoio do bispo de Verona, D.
Lus Canossa. Sua idia era fundar um instituto missionrio de direito diocesano e
preparar os padres para a misso africana num seminrio prprio. Tendo sabido
do projeto dos camilianos, procurou atrai-los para a sua aventura.
Comboni era um homem excepcional. No seu projeto de evangelizao da
frica encontram-se as intuies que contriburam para dar um novo rumo s
misses ad gentes. O plano da regenerao da frica tinha como objetivo, alis
ambicioso, evangelizar a frica atravs da prpria frica.
Punha a servio de seu projeto as qualidades e tambm os defeitos de sua
personalidade. O seu temperamento fogoso, o modo de agir pouco diplomtico, a
linguagem franca a ponto de se tornar rude fizeram com que assumisse atitudes
dificilmente aceitveis se no se leva em conta o zelo que o animava e o acerto
do seu projeto missionrio. Tambm o seu patrocinador, D. Canossa, tinha
personalidade forte, no isenta de traos autoritrios, com exagerada conscincia
51
G. Romanato, Daniele Comboni - LAfrica degli esploratori e dei missionari, Rusconi, Milano, 1998.
26
do poder episcopal que, s vezes, o levava a ignorar a autonomia prpria dos
religiosos.
Os quatro jovens camilianos foram conquistados pela idia de se engajar
na misso africana, com um projeto j pronto em suas linhas gerais. Sem grande
dificuldade, deslocaram o seu objetivo do continente asitico para o continente
africano.
Quando chegou a resposta negativa dos Superiores de Roma, aderiram ao
plano de Comboni e de D. Canossa, que lhes propunham de pedir Congregao
dos Bispos e dos Religiosos licena para se colocar disposio absoluta do
bispo de Verona no seu seminrio das Misses da frica Central.
A mediao de D. Canossa junto ao Papa facilitou a resposta favorvel da
Congregao dos Bispos e dos Religiosos, que chegou no dia 15 de julho de
1867. Nela dizia-se que, ...levando em conta a disperso dos religiosos, o Papa
permitia benignamente ao bispo de Verona, desde que os religiosos o pedissem,
que os aceitasse...para os prximos cinco anos, sob a sua absoluta dependncia e
jurisdio, inclusive em fora do voto de obedincia52.
Silncios e ambigidades
27
ao clero secular, isto , ao clero diocesano, completamente desligados da Ordem,
embora s temporariamente. O contedo do Rescrito contrastava com a inteno
de participar do projeto missionrio como filhos de S. Camilo. Na splica ao
Papa, de fato, o Pe. Tezza tinha dito que queria continuar, de afeto, e por quanto
possvel tambm de observncia regular, verdadeiro filho e membro da Ordem
de S. Camilo, qual devo tudo, depois de Deus53. Seus companheiros tambm
seguiram a mesma linha.
A reao dos PP. Tezza, Carcereri, Franceschini e Joo Batista Zanoni (que
substituiu o Pe. Chiarelli, que renunciou) no se fez esperar. Numa carta ao bispo
mostraram, com respeito e clareza, que as coisas tinham sido mudadas: Foi,
portanto, o maior e o mais doloroso dos desenganos ter ouvido de Comboni que o
Rescrito em si e nas intenes do Papa e da Congregao declarava-nos
secularizados e desligados da Ordem e que no podia permitir,...absolutamente,
que fosse fundada uma casa religiosa54. Com muito sofrimento, mas sem
titubear, renunciaram ao projeto missionrio, demonstrando grande amor
vocao camiliana e Ordem.
Lendo essas declaraes, o Pe. Artini reconheceu com satisfao a
qualidade moral de seus filhos preferidos. Como superior provincial, informou os
Superiores da Ordem, em Roma, sobre o que havia acontecido.
Como era de esperar, chegou uma carta condenando o procedimento do
bispo e de Comboni e tambm uma avaliao severa sobre o comportamento dos
jovens religiosos .
28
Tambm Comboni e Canossa, apesar de certas tticas maquiavlicas que
usaram para atingir seus objetivos, mostraram que respiravam uma atmosfera rica
de valores e aberta novidade.
De fato, vista a oposio dos Camilianos ao Rescrito papal, tanto
Comboni quanto o bispo de Verona no tiveram dvidas em mudar os termos do
Rescrito papal, aceitando que os camilianos colaborassem na misso com direito
de fundar uma casa da Ordem, uma vez chegados frica.
Mas os Superiores de Roma mantiveram sua oposio misso,
considerada um devaneio, um capricho, uma idia louca, um escndalo
demonaco.
55
F. Vezzani, P. Stanislao Carcereri, contestato e contestatore, Ancora, Milano, 1983.
29
O mais importante foi sua maneira de compreender o voto de obedincia.
L-se num de seus escritos daquele tempo: A vontade de Deus: eis meu nico
guia, a nica razo de meus anseios, qual tudo sacrificarei. Qualquer outra
deciso particular e pontual no e no pode mais ser minha, mas dos meus
superiores56.
Com o Pe. Artini tinha aprendido a fazer da aceitao da vontade de Deus,
manifestada atravs dos superiores, um ponto chave de sua espiritualidade.
Entregando-se a Deus, chegou a gozar de profunda tranqilidade interior.
Esta maneira de encarar a obedincia, porm, no significava passividade.
Na verdade, viveu com intensa paixo este perodo da sua vida. Mostrou-se forte
ao enfrentar a fria de Comboni, indignado pela contestao dos Camilianos ao
Rescrito papal: O superior deu-me muito apoio e eu enfrentei.... 57. No se
intimidou quando foi tachado de traidor, antes por Comboni e, depois, tambm
por Carcereri.
Mas no esqueceu os pontos fracos da sua personalidade. Referindo-se ao
choque com Comboni escreveu: No sei quantos golpes iguais a este poder
suportar a minha ainda demasiado jovem e surpreendente fraqueza.... 58 No
faltaram momentos em que a busca da vontade de Deus fez sentir o seu peso.
Em certos momentos, sinto a tentao de dizer a mim mesmo: Oh! Tivesse, pelo
menos alguma vez, agido segundo meu modo de ver! Talvez no me encontraria
agora nestas angstias e no poria outros na mesma situao por minha causa!
Mas logo acrescentava: Mas digo: tentao!, pois, graas a Deus, ainda sinto
que o melhor sempre obedecer e acatar o desejo dos superiores59.
Outro fator deve ser procurado na interveno da me que, do mosteiro da
Visitao, acompanhava o filho, pronta a reagir quando surgiam situaes difceis
ou de perigo. Desta vez no teve dvidas em apelar para os superiores de Lus,
pedindo que no o deixassem partir para a frica. A obedincia e as notcias
negativas sobre o incio da misso na cidade do Cairo foram os motivos que
justificaram o seu pedido.
O propsito do Pe. Tezza de permanecer firme na obedincia no foi fcil.
Internamente, vivia com dificuldade o contraste entre o grande desejo de ir para
as misses e a aceitao da vontade de Deus. De fora, vinham-lhe presses
contraditrias. O bispo de Verona, Comboni e os missionrios que j estavam na
frica pediam que partisse, apoiando-se no Rescrito papal. Com igual insistncia
se exprimiam quantos queriam que ficasse na Itlia, insistindo no valor da
obedincia e da pertena Ordem.
Preso neste dilema, entregou o seu discernimento a Nossa Senhora,
prometendo que iria em peregrinao ao Santurio da Corona, construdo sobre
uma rocha, nas imediaes de Verona.
Sem se dar conta, estava sendo uma pea importante no tabuleiro do
projeto missionrio. Isto ajuda a compreender a estima de que gozava. Por seu
56
APL. 292/660.
57
APL. 1458/47.
58
Ib.
59
APL. 294/168.
30
temperamento pacato, conciliador, equilibrado, fundado em valores essenciais, a
sua presena na frica teria sido valiosa. L certamente teria feito de contrapeso
ao entusiasmo, muitos vezes excessivo, do Pe. Carcereri, cuja autntica paixo
missionria, em certos momentos, corria mais o risco de soobrar do que de
conduzir.
Para conquistar Tezza, D. Canossa amenizou o tom e, em dezembro de
1867, foi encontrar-se com o Pe. Artini para pedir que fizesse de intermedirio
junto aos superiores de Roma. Artini anuiu de bom grado ao seu pedido. A
resposta do Geral da Ordem, Pe. Oliva, ao bispo de Verona foi negativa e, ao
mesmo tempo, mostrou toda a sua antipatia pela Provncia Lombardo-Veneta,
deixando claro que seu no s misses continha motivos pessoais nem sempre
elevados.
Viagem a Roma
Tambm Tezza escreveu ao Pe. geral para ter uma resposta definitiva.
Como no a teve, foi aconselhado pelo Pe. Artini a ir pessoalmente a Roma. A
viagem ocorreu em fins de abril de 1868. Ao passar por Pdua, ficou um dia com
sua me. Uma parada em Florena permitiu-lhe admirar, encantado, as belezas da
ento capital da Itlia.
Ao chegar a Roma, a acolhida da comunidade camiliana foi fria e, de certa
forma, hostil. A atmosfera espiritual da cidade papal no lhe deixou boa
impresso. Com amargura percebeu que o mundo camiliano em que tinha
crescido era muito diferente daquele das comunidades romanas: Detesto at a
morte o religioso apenas de nome..., escreveu, falando, talvez, da falta de vida
fraterna em comum60.
Alm disso, deu-se conta que tambm em Roma havia divergncia de
opinies sobre a participao dos camilianos na misso da frica: a Congregao
para a Propagao da F era contrria sua partida, por causa da influncia do
Pe. Guardi sobre o Prefeito da Congregao, Cardeal Barnab; o Papa, com
quem se encontrou em audincia particular no dia 22 de maio, pediu-lhe que
acatasse o Rescrito.
Apoiado na palavra do Papa, Tezza voltou para Verona no dia 30 de maio,
quase certo que partiria para as misses.
Em Verona, porm, o aguardavam ms notcias a respeito da misso na
frica.
No Cairo, o Pe. Zanoni tinha-se mostrado imprudente no exerccio de sua
profisso de enfermeiro. Advertido, reagiu mal e espalhou boatos sobre o projeto
missionrio e as pessoas que estavam sua testa. Disso resultou um clima de
acusaes mtuas e de fofocas. Essas informaes caram sobre Tezza como uma
ducha de gua fria que, tambm por presso da me, freou o seu ardor
missionrio.
60
APL. 1458/123.
31
Fuga para Roma
Neste meio tempo, no dia 22 de abril de 1868, D. Canossa foi nomeado visitador
apostlico da Provncia Camiliana Lombardo-Vneta61. Mostrou-se esperanoso
de resolver pacificamente o problema das misses e pediu aos superiores que
definissem a sua participao no projeto missionrio africano. A situao era
favorvel a um acordo, pois ao Pe. Oliva havia sucedido o Pe. Camilo Guardi,
amigo de Artini. Guardi aceitou a proposta do bispo, mas com duas condies:
fundar uma casa camiliana nas misses e que os missionrios reconhecessem
seus erros. Como a segunda condio no foi aceita pelo Pe. Carcereri, o Pe.
Guardi manteve sua posio.
D. Canossa fremia e, na qualidade de visitador apostlico, pretendia
pressionar o Pe. Tezza, querendo convenc-lo a partir para a frica em fevereiro
de 1869, junto com Comboni, que estava na Europa.
Ciente disso, a me do Pe. Tezza interveio e pediu ao Pe. Guardi que
chamasse seu filho para Roma. Assim, de repente, Tezza viajou novamente para a
cidade do Papa, onde, desta vez, foi acolhido fraternalmente, sobretudo pelo Pe.
Guardi.
Em Roma, visitou alguns Dicastreos onde havia posies contrastantes a
respeito do seu destino. O Cardeal Barnab elogiou-o por no ter partido para as
misses; na Congregao dos Bispos e dos Regulares quiseram saber porque
tinha escrito uma carta ao bispo de Verona, na qual apresentava sua renncia
formal ao Rescrito papal. Tezza soube responder satisfatoriamente a todas as
objees e seu pedido de ficar livre das obrigaes impostas pelo documento
papal foi aceito e comunicado a D. Canossa.
A volta do Pe. Tezza para Verona foi tranqila, porque, finalmente, o bispo
da cidade, embora profundamente contrariado e decepcionado, acatou a deciso
da Congregao Romana.
Aps tanta agitao, o Pe. Tezza pretendia dedicar-se, sem mais, sua
atividade de formador. De fato, a supresso e o problema da misso africana
haviam prejudicado sua atividade, interrompendo seu ritmo e continuidade.
Entre as suas preocupaes estava tambm a de dar maior ateno ao Pe.
Artini. Profundamente provado, o Padre dava sinais de depresso. Feridas
graves, como as incompreenses de alguns religiosos, as divergncias sobre a
misso africana, as seqelas da supresso, tinham enfraquecido a sua resistncia.
O Pe. Tezza procurava confort-lo, tratando-o com bondade e firmeza, com uma
espiritualidade sadia, que levava a ver luz mesmo entre as trevas mais densas. No
relacionamento entre os dois, os papis, agora, estavam invertidos. O jovem
Tezza, antes acompanhado com amor pelo Pe. Artini, agora, devia dar seu apoio
ao pai num momento em que suas foras cediam.
Adeus a Verona
61
No so muito claros os motivos desta deciso inoportuna e injustificada, que colocava o destino das
comunidades camilianas na dependncia da autoridade do bispo.
32
Infelizmente, o vazio criado ao redor do Pe. Artini ia-se alargando. De fato,
a presena de Tezza em Verona durou apenas alguns meses. Por causa da Lei
Italiana que obrigava os seminaristas a prestar o servio militar, recebeu ordem
de transferir-se para Roma a fim de ser mestre de trs clrigos.
Com esta viagem a Roma, que aconteceu no dia 9 de junho de 1869,
encerrou-se outro captulo na jornada do Pe. Tezza. Foi a despedida definitiva de
Verona e de muitas pessoas com quem havia partilhado sua vida.
A cidade de Verona ficou impressa em seu corao, no s por suas
belezas naturais e artsticas e pelo seu povo, aberto e simptico, mas tambm e,
sobretudo, pelo muito que tinha recebido do ponto de vista humano e espiritual
durante os anos de sua formao e de suas primeiras experincias pastorais.
Foi sobretudo a separao do Pe. Artini que fez sangrar o corao do Pe.
Tezza. Circunstncias imprevistas, que sero lembradas mais adiante, no lhe
permitiram despedir-se de seu amado pai, que morreu no dia 7 de maro de 1872.
Terminou, assim, a realidade de um longo relacionamento, rico de sentimentos, de
estima recproca, purificado por um grande amor sobrenatural, voltado para ideais
apostlicos.
A distncia, porm, no rompeu este lao, mas mostrou-lhe a instabilidade
das coisas e o abriu ainda mais para horizontes sobrenaturais.
Um programa de vida
33
- finalmente, quero consagrar-me todo inteiro, com o que tenho e sou, fao
e farei, ao Corao adorvel de Jesus pela converso dos pobres pecadores pelos
quais no deixarei nenhum dia, e mais vezes que possa, de interessar a ternura de
me do Corao Santssimo e Imaculado de Maria e aquele purssimo de S. Jos,
meu querido Pai.
Retrato interior
Deste retrato interior que, segundo o seu primeiro bigrafo, Pe. Bruno
Brazzarola, ficou inalterado durante toda a sua vida, nota-se claramente que o
jovem Tezza percorreu uma significativa caminhada de crescimento humano e
espiritual. A prtica do ministrio tinha-o fortalecido na sua identidade de
Camiliano. Em vrias oportunidades, sua capacidade de doao tinha alcanado
pontos altos.
Percebe-se uma relao equilibrada entre necessidades e valores. Por isso,
a ateno s necessidades de amor, de auto-afirmao e de estima fica
subordinada aos valores de doao a Deus e ao prximo. A entrega vontade de
Deus e a preservao da tranqilidade de alma em meio s tempestades da vida
surgem como metas parcialmente conquistadas atravs de luta constante e serena
contra as inclinaes da natureza. Numa de suas cartas afirma: Reconheo que
me encontro em estado de sacrifcio quanto s minhas inclinaes, mas est bem
assim e me sinto feliz, pois...no bem o que vemos, mas o que Deus quer62.
Como acontece amide no oceano, a tempestade dos acontecimentos entre
1864 e 1869 agitou apenas a superfcie do seu esprito, mantendo a calma na
profundidade.
A sua vida espiritual, porm, no se fechava no horizonte da intimidade,
mas permanecia aberta aos coirmos e aos pecadores, em esprito de reparao,
prprio da poca.
Continuava firme a sua tendncia para o crescimento humano e espiritual.
VII
INTERMEZZO ROMANO
O suave peso da obedincia
62
APL 294/419.
34
O que aborrecia o Pe. Tezza era o tipo de vida das Comunidades
Camilianas da Provncia Romana, reduzida, na poca, as quatro: Santa Maria
Madalena, S. Vicente e S. Anastcio na Fonte de Trevi, S. Joo de Malva, no
alm Tibre, e S. Joo de Latro. Via o contraste com o que tinha aprendido em
Verona, sob a orientao dos Padres Bresciani e Artini. A no observncia da vida
em comum, com todas as suas exigncias, sobretudo da pobreza, e a pouca
disposio para se dedicar assistncia dos doentes eram os dois pontos que
mais angustiavam a sua sensibilidade religiosa. Explicam-se, assim, vrias
observaes crticas de suas cartas. Mas isso no o impediu de reconhecer o
valor de muitos religiosos, cuja excelncia despertava a sua admirao.
Vice-mestre de novios
Tempo de tumultos
35
desapontamento: Que dolorosa diferena, desta vez vergonhosa at para ns.
So Camilo e seus filhos foram substitudos por soldados do exrcito italiano!63.
Esta observao negativa vale tambm para o clero romano, que no se
mobilizou, talvez por medo das foras anticlericais, o que deu margem a crticas
da imprensa adversria.
Como em Verona, tambm em Roma, a principal atividade do Pe. Tezza,
isto , a educao, foi dificultada pelos acontecimentos sociais e polticos do
momento. O clima de medo e de incerteza provocado pelo assalto do governo s
instituies religiosas, prejudicava a continuidade da formao, perturbando a
tranqilidade necessria para a reflexo e a orao.
Destino: Frana
Nova ruptura
Face a esta nova ruptura, suas reaes logo se fizeram sentir, como se v
numa carta que escreveu ao Pe. Artini: Eis uma nova ruptura, melhor, uma srie
de novas rupturas para o meu pobre e fraqussimo corao. No consigo dizer-lhe
quanto estou sofrendo. Mas, tambm desta vez, prevaleceu a viso sobrenatural
das coisas, pelo que fala da necessidade sempre querida e muito suave para os
religiosos de repetir, com a parte superior do esprito uma vez mais Seja feita a
vontade de Deus65.
Mostrando notvel maturidade humana e espiritual, Tezza no nega o
sofrimento; uma vez reconhecido e aceito, esfora-se por assumi-lo numa viso
sobrenatural das coisas: No consigo expressar quanto sinto, escreve ao Pe.
Artini, embora me sinta feliz de sacrificar tudo, mesmo o mais tenro e santo afeto,
voz da santa obedincia na qual se encontra infalivelmente a vontade de
Deus66. O conforto que sentia provinha da certeza de que Deus tudo predispe
para o nosso maior bem67.
Mais uma vez, foi chamado a tomar conscincia de que, para quem opta
por seguir Cristo na radicalidade da vida religiosa, as tendncias naturais do
63
APL. 296/2.
64
APL. 296/174.
65
Ib.
66
APL 296/274.
67
Ib.
36
corao no so o critrio ltimo para as prprias escolhas. Tinha sonhado ir para
a frica, mas no foi por fidelidade vontade dos superiores. Agora, o desejo de
ficar na Itlia e de voltar para a sua querida Verona foi truncado por uma ordem
na qual tambm viu a vontade de Deus.
Atitude interior que no escapou observao dos coirmos, como se v
pelo testemunho de um religioso fidedigno, o Pe. Pedro Desideri, secretrio geral
da Ordem, que definiu o Pe. Tezza uma tima pessoa, como sempre foi. Nele h
observncia, respeito, caridade, doura, instruo, zelo, mortificao; para falar a
verdade, um autntico modelo de religioso68.
A viagem para a Frana aconteceu no dia 20 de agosto de 1871, seguindo
um caminho que no previsto. Num primeiro momento, o Pe. Tezza devia passar
por Pdua e Verona para despedir-se de sua me e dos coirmos da provncia
Lombardo-Veneta, sobretudo do Pe. Artini. Em seguida, o roteiro foi mudado.
Junto com o Pe. Lus Motterle, Tezza embarcou em Civitavecchia rumo a
Marselha e, de l, para Cuisery, a meta final.
Os dois anos que Tezza passou em Roma no foram inteis. Fora do ninho
onde foi criado sob a proteo constante do Pe. Artini, valeu-se com mais
confiana de suas prprias foras, crescendo em autonomia pessoal.
De grande proveito foi sua convivncia com um grupo de religiosos de
outra cultura.
Alm disso, conviveu com um dos seus interlocutores mais significativos,
uma figura de grande destaque, o Pe. Camilo Guardi69. Personalidade humana e
religiosa rica, Guardi gozava de grande prestgio na Ordem e tambm nos
ambientes do Vaticano e na diocese de Roma. Governou a Ordem de 1868 a
1884, ocupando o papel de protagonista nos principais acontecimentos da Ordem
daquele tempo. Homem de viso larga, soube captar o sentido da reforma
promovida pelo Pe. Bresciani, em Verona; favoreceu a expanso da Ordem com a
fundao da Frana. Dotado de forte senso da autoridade, mostrou-se
intransigente, at quase o fim, quanto misso na frica. O seu governo, sbio e
esclarecido, permitiu que a Ordem superasse as graves dificuldades causadas
pelos acontecimentos sociais e polticos do seu tempo. Interagindo com ele, como
veremos, o Pe. Tezza sentiu-se estimulado a fortalecer a sua autoridade pessoal,
embora respeitando sempre a obedincia.
No momento de sua transferncia para a Frana, Tezza estava prestes a
completar 30 anos, pronto para enfrentar novos desafios com segurana e
largueza de horizontes.
APL 295/149.
68
Para o conhecimento dessa importante figura de camiliano cf. J. Kuk, I Camilliani sotto la guida di Padre
69
37
VIII
O PRIMEIRO PERODO NA FRANA
Maturidade ativa
38
O Pe. Guardi atendeu o Pe. Tezza e enviou o Decreto para o governo da
nossa casa de La Chaux, no qual tornava oficiais as regras da reforma em vigor
na Provncia Lombardo-Vneta.
O terceiro setor de sua atividade foi o ministrio. No incio, o Pe. Tezza
dedicou-se pastoral no santurio e nas parquias. O seu conhecimento da lngua
permitiu que se dedicasse tambm pregao.
Mas para ele e tambm para os demais religiosos, era urgente comear
uma atividade especificamente camiliana. Dado que no era possvel construir a
casa para sacerdotes idosos e invlidos em Cuisery, comearam a pensar noutros
lugares.
Entre vrios projetos viveis, optaram, em 1872, por uma casa de repouso
em Lyon, cidade de muitos recursos e numerosas vocaes. Tratava-se de uma
obra de apenas 12 leitos, mas importante por seu significado histrico. Era a
primeira vez que a Ordem de S. Camilo estabelecia uma obra assistencial prpria.
Com esta escolha, Tezza e seus coirmos iniciavam uma nova modalidade
de ministrio camiliano, que se expandiu na Frana e, no sculo seguinte, noutras
partes da Ordem. Talvez estivessem presentes na mente do Pe. Tezza as palavras
do seu mestre, Pe. Artini: De S. Camilo podemos e devemos aprender a
caridade, mas os meios para p-la em prtica hoje, convm que os aprendamos
do esprito que Deus infunde em nossos coraes para atender s necessidades
atuais70.
As responsabilidades
70
APL. 280/274.
39
Uma mudana importante no tipo de vida e na atividade de Tezza
aconteceu em 1876 com a entrada em cena de um personagem de destaque, o sr.
Camille Fron-Vrau, mdico, fundador da faculdade de medicina da Universidade
Catlica de Lille, que se tornou um centro de iniciativas humanitrias. Criou
associaes de mdicos e de doentes e se envolveu nas questes sociais seguindo
as orientaes de Leo XIII. Morreu em 1906, com fama de santo.
O encontro com Fron-Vrau aconteceu por acaso. Tendo-o procurado para
pedir ajuda financeira, o Pe. Tezza encontrou nele apoio e colaborao para a
expanso dos Camilianos na Frana. O convite para uma fundao camiliana em
Lille no demorou. Perto da Faculdade de Medicina estavam previstos alguns
dispensrios para que os mdicos catlicos e os estudantes atendessem
gratuitamente a populao. Um desses dispensrios seria entregue aos
camilianos.
O projeto foi acolhido pelo Pe. Tezza e tambm pelos superiores de Roma.
Apesar das dificuldades para conseguir a aprovao do arcebispo de Cambrai, do
qual dependia Lille, a iniciativa se concretizou rapidamente. No dia 27 de janeiro
de 1877, a Consulta Geral aprovou a fundao de Lille e, no dia 15 de agosto, foi
inaugurada a nova Casa. Cinco padres e cinco irmos, sob a chefia do Pe.
Carcereri, h pouco retornado da misso da frica, iniciaram o ministrio
camiliano no primeiro dispensrio ligado Universidade, em colaborao com os
professores e os estudantes da Faculdade de Medicina. Havia entusiasmo e
trabalho tambm fora do dispensrio para atender os doentes em suas casas,
especialmente os sacerdotes doentes. A conscincia de ter voltado ao ideal de S.
Camilo infundia nimo.
Em poucos anos, a fundao francesa se desenvolveu, graas presena de
religiosos de valor, quase todos provenientes da provncia Lombardo-Vneta.
A vice-provncia da Frana
40
ministrio em obras de acolhida e de tratamento prprias da Ordem e procurou
introduzir mudanas para os irmos, propondo sua participao nos captulos,
embora sem direito de voto. A Consulta aprovou a maior parte das decises do
captulo no dia 01 de novembro de 1878.
Ao convocar o captulo, o Pe. Tezza propunha-se dar estrutura slida
Vice-Provncia, criando fraternidade e envolvimento nos projetos de todos. O
desenvolvimento da fundao s teria xito se todos os religiosos pusessem suas
capacidades a servio de um projeto comum.
A vice-provncia crescia bem. Nas trs Comunidades havia construes em
andamento: em Cuisery, para a nova casa de noviciado; em Lyon, a ampliao da
casa de repouso; em Lille, o acabamento do dispensrio.
De vrias partes chegavam pedidos de novas fundaes. Em 1878 foi
aberta Casa em Cannes, na Costa Azul, para assumir uma casa de repouso, j
construda, para sacerdotes doentes e crnicos da diocese. Uma dcada mais
tarde, foi a vez da fundao da comunidade de Thoule-sur-Mer, tambm para
idosos. As vocaes aumentavam e os superiores decidiram transferir os
religiosos professos de La Chaux para Lyon.
41
confuso e dando motivo a reaes incontroladas de alguns religiosos
descontentes.
Uma pausa
Superior provincial
71
AG 1686/155.
42
Quanto ao ministrio Camiliano, aderiu, em 1888, proposta de participar
na realizao de um hospital de 200 leitos da Universidade de Lille, cabendo aos
camilianos a assistncia aos doentes, ajudados por freiras para cuidar das
mulheres. Um projeto ambicioso que mostra o favor de Tezza para obras de
assistncia sade, onde os religiosos podem exercer com liberdade o ministrio
prprio da Ordem.
Foi nesta poca que nasceu em Tezza a idia de preparar mulheres
consagradas para cuidar dos doentes.
O envolvimento no projeto do hospital de Lille levou Tezza, em 1888, a
recusar o convite do Cardeal Protetor da Ordem, Rafael Mnaco La Valletta, para
ser Consultor Geral da Ordem, em Roma.
Tratava-se de protelao apenas, pois, no ano seguinte, Tezza participou do
Captulo Geral e foi eleito Consultor, Vigrio Geral e Procurador da Ordem.
Uma avaliao dos 18 anos que o Pe. Tezza passou na Frana permite que
se descubram aspectos novos de sua personalidade e de seu modo de agir. um
perodo de afirmao pessoal, reconhecido oficialmente pela nomeao a cargos
importantes, como mestre de novios, superior local e provincial.
A gesto da autoridade
72
AG 1686/104.
43
Anos antes, no teve receio em dizer ao Superior Geral, com respeito, mas
com sinceridade, que a repreenso que lhe havia feito teria sido muito mais
proveitosa se tivesse usado termos mais humanos...
Ao se tornar superior, assumiu um tipo de relacionamento todo especial.
Em carta circular de 9 de julho de 1889, dedicada ao exerccio da autoridade
pelos superiores, pediu que dessem ordens com prudncia, mas exigissem com
firmeza a sua execuo... e no aceitassem com facilidade as desculpas
apresentadas pelos sditos, sem verificar se tais desculpas so realmente
vlidas.73
Estas palavras so apenas uma faceta do estilo de Tezza. Na realidade, o
seu modo de se posicionar diante dos religiosos se caracterizava pela firmeza,
mas tambm pela bondade e, sobretudo, por muita pacincia. Na formao dos
candidatos sabia moderar as suas exigncias, como se v numa carta em que
critica a pedagogia do Pe. Vido que, embora bom e santo, era to duro e exigente
que espantava os novios estavam sob a sua formao. Com um pouco de humor,
acrescenta que, sob a sua orientao, nem S. Lus teria terminado o noviciado....
Segundo alguns, a bondade e a mansido de carter do Pe. Tezza no eram
prprios do seu temperamento, mas, como em S. Francisco de Sales, resultado
de muita luta74. Trata-se de uma opinio no comprovada por documentos. No
perfil biogrfico da me de Tezza, l-se que o jovem Artur (Lus), dotado de
temperamento brando e fcil, aceitava com respeito as repreenses um tanto
severas de sua digna me, corrigindo um pouco, sem dar-se contas, a aspereza da
virtude da me75.
verdade, porm, que mantinha vivas e fortalecia suas qualidades atravs
de uma disciplina constante, conseguindo reduzir ao mnimo as inevitveis
impacincias, as reaes de fechamento, as repreenses exageradas, fruto mais
de cansao que de traos de seu carter.
44
tenacidade. Numa carta ao Pe. Guardi, o Pe. Tezza afirma: Quando o Pe.
Carcereri quer uma coisa, no h Geral nem Papa que o segure76.
Havia assuntos sobre os quais a viso do Pe. Tezza no era aceita por
todos: certos critrios para admitir e demitir candidatos vida consagrada; tipo
de formao; tolerncia com religiosos inobservantes; relacionamento respeitoso
e conciliador com os superiores de Roma.
As crticas dos coirmos nem sempre eram sem fundamento. No faltavam
religiosos imaturos, sobretudo jovens, acolhidos sem discernimento, mostrando
que a promoo vocacional e a formao dos candidatos vida consagrada nem
sempre eram de bom nvel. Nesse ponto, o Pe. Tezza era um tanto
condescendente, o que ele prprio reconhecia quando surgiam casos de
comportamento inadequados de postulantes ou de jovens professos. Nem a
formao intelectual ficou sem falhas, pois dependia s dos religiosos da
fundao, nem sempre devidamente preparados. A supresso das congregaes
religiosas tornou evidentes algumas dessas lacunas.
O mal-estar de tais divergncias era agravado pelas murmuraes que, s
vezes, se transformavam em acusaes chegavam aos superiores maiores.
Este conjunto de elementos suficiente para justificar a acusao contra o
Pe. Tezza de ser homem fraco e ...que devia ser despertado do sono...? A
anlise do seu comportamento e dos resultados da sua ao leva a uma resposta
negativa. De fato, mesmo quem no concordasse com seu mtodo de governar a
provncia e de resolver os problemas, no podia ignorar a caminhada feita pela
fundao da Frana sob o seu comando. Houve crescimento em todos os campos,
coeso comunitria mesmo nos momentos da disperso provocada pela supresso
das congregaes religiosas, inovao na prtica do ministrio camiliano,
primazia da vida espiritual.
Noutras palavras, Tezza mostrou-se homem capaz. Se a tendncia a
defender os seus pontos de vista - com seu modo pacato, que no agredia, mas
envolvia o interlocutor, cedendo para depois retomar... - podia provocar irritao
em alguns, isso no chegava a pr em dvida sua boa f e sua boa inteno.
No por acaso foi o prprio Pe. Carcereri a fazer grandes elogios ao Pe.
Tezza. Declarou-o o Padre mais amado e mais honrado da provncia, exaltando
as suas qualidades, engrandecendo o bem que fez Provncia da Frana e
preconizando as esperanas que a sua experincia e o seu amor Ordem deixam
prever para o futuro77.
Homem de ao
Outro aspecto que emerge do perodo que o Pe. Tezza passou na Frana a
sua capacidade de enfrentar e desenvolver uma grande quantidade de trabalho.
Embora se mostrasse forte, de muitas energias fsicas e psicolgicas, em
certos momentos sentia-se sufocado pela atividade, que se tornava mais pesada
por causa das preocupaes.
76
AG 1686/151.
77
Le Rucher Camillien de France, 1887, pp. 54-76.
45
Entre essas, merecem ser lembradas as que vinham da pobreza econmica
em que se encontrava a fundao francesa. Em certa ocasio, Tezza chegou a
dizer que no tinha dinheiro nem para despachar uma carta. A contribuio dos
benfeitores era incerta, pois dependia das condies econmicas do povo. A
situao de pobreza obrigava o Pe. Tezza a bater porta do povo, escrevendo
cartas, recorrendo a pessoas e a organizaes. Se a ajuda de Camille Fron-Vrau
foi providencial, contudo, no foi suficiente para atender s necessidades de um
grupo que se tornava cada vez mais numeroso.
Numa carta ao Pe. Guardi d-se ao luxo de um desabafo, revelador da
situao difcil que enfrentava: Estou em tal mar de coisas disparatadas,
pressionado por cartas de Lille, de Lyon e de Cannes, sem contar outras de
natureza econmica, a necessidade de dividir-me entre aulas, formao dos
novios, busca de meios de subsistncia, e tudo o mais, que realmente um
milagre se minha pequena cabea agenta: acrescente as amarguras, as mais vivas
que tocam o meu corao por causa do passado e do presente e os srios motivos
que me preocupam quanto ao futuro, espero que sua paternal bondade se
compadea de mim. Embora levante todas as manhs s 4,30 hs e retarde o mais
possvel a hora de deitar, privando-me at do recreio comum para trabalhar, no
consigo fazer tudo e sempre me escapa alguma coisa e fica atrasada78.
O tipo de vida levado por Tezza neste tempo era tal que causava desgaste
psicolgico. As muitas e to diferentes atividades exigiam grandes energias,
abrindo caminho para o stress. Aps a morte do Pe. Artini, no encontrou um
interlocutor privilegiado, com quem pudesse abrir-se em sua afetividade e
espiritualidade profundas. Em nenhum documento, porm, consta que o Pe. Tezza
tenha demonstrado sintomas de esgotamento. Se o consumo de energias era
grande, sua capacidade de recuperao tambm se mostrava elevada, tanto do
ponto de vista fsico e psicolgico como espiritual. Disso extraa motivaes para
purificar as razes do seu agir e fora para superar as dificuldades.
Sentimentos feridos
78
AG 1686/104.
46
qual a grande mstica se associava ao desejo ardente de se doar para a salvao
do prximo.
O Pe. Tezza pde encontr-la poucos meses antes da sua morte. Na crnica
do Mosteiro consta: Quando chegou a hora do encontro, a nossa querida madre
parecia no mais sentir o sofrimento. Poder-se-ia dizer que o amor de me lhe
deu asas, to depressa percorreu o trajeto que vai da enfermaria para a sala de
visitas. A primeira saudao que me e filho se deram foi a saudao dos
santos79. Naqueles momentos to intensos, as poucas palavras que conseguiu
dizer, foi um convite para se entregar a Deus e um at o cu.
Tezza reagiu de maneira sbria morte dessas pessoas, que tinham
ocupado lugar importante em sua vida. Fez um aceno morte do Pe. Bresciani,
passou em silncio a de Artini. Numa carta ao Pe. Guardi limitou-se a dizer:
Estamos fazendo os sufrgios pelo falecido Pe. Mdena - mais um vazio que se
faz em nossas casas -; num ms, de 27 de agosto a 27 de setembro, perdi minha
me e o primeiro pai de minha vocao religiosa. Seja feita e louvada em tudo a
santa vontade de Deus80.
Mostrou-se e mostrar-se- mais expressivo por ocasio da separao de
pessoas e lugares imposta pela obedincia. Em todas estas situaes, porm,
deixava-se guiar por sentimentos de f e de entrega vontade de Deus.
O elemento unificador
79
AFSC 2B/2.
80
AG 1686/131.
47
Quando saiu da Frana para Roma, Tezza estava perto dos 48 anos. A
experincia da Frana o tinha amadurecido em todos os sentidos. Seu aspecto
fsico tambm sofreu mudanas. Das fotografias desse tempo, a sua figura parece
ter ganho em traos de fineza e nobreza. A postura continua firme e forte e o
passar dos anos parece no ter pesado, a no ser levemente, no seu fsico que
conserva uma linha harmnica. Ganha em profundidade o seu olhar, que
demonstra segurana e fora de penetrao e, ao mesmo tempo, tendncia para a
interiorizao. O rosto deixa transparecer, com mais evidncia do que no
passado, serenidade e capacidade de controle.
Estava maduro para assumir responsabilidades que abrangiam a Ordem
toda.
IX
NO TOPO DA ORDEM DE S. CAMILO
Uma viso universal
48
apelo assistncia aos doentes, introduo vida comum perfeita em todas as
Casas, melhoria da formao dos candidatos vida religiosa, fidelidade
Constituio na eleio dos superiores maiores.
A proposta da provncia francesa foi acolhida pelo Superior Geral, Pe.
Joaquim Ferrini, que entregou ao Papa Leo XIII um relatrio completo sobre o
estado da Ordem, onde constava que a situao permitia uma boa e proveitosa
celebrao do Captulo. Para reforar suas palavras, o Pe. Ferrini citou o exemplo
da fundao francesa, que tinha crescido bem sob a orientao do Pe. Tezza. A
Santa S acolheu o pedido do Pe. Geral e determinou que o Captulo Geral fosse
celebrado no ms de maio de 1889.
49
deixou bem impressionado: No momento estou na terceira casa dos Padres de S.
Camilo, isto , em S. Joo de Latro. Aqui observo tudo quanto fazem pelos
doentes. Os religiosos so seis, todos jovens; tm dois irmos; trabalham muito,
mas com alegria...Vivem de acordo e se alternam nas atividades com turno
fixo82.
No hospital, Tezza pde exercer o carisma prprio da Ordem de forma
contnua. Nos anos anteriores, no lhe fora possvel consagrar muito tempo ao
ministrio com os doentes, por causa dos compromissos de formao e de
governo.
50
O relacionamento pastoral no deve terminar com a administrao dos
sacramentos, mas continuar com o acompanhamento do padre e de outras
pessoas.
Ministrio de consolao
Um projeto inovador
X
O FUNDADOR
Atento voz do Esprito
51
Antecedentes na Ordem Camiliana
84
Cfr. B. Brazzarola, Madre Giuseppina Vannini, fondatrice delle Figlie di San Camillo, Grottaferrata 1990.
52
No Orfanato, nasceu nela o desejo de se tornar Filha da Caridade. Novia
em 1884, no conseguiu levar a termo o seu projeto. De fato, aps vrias
tentativas, foi demitida de vez da Congregao. Judite resistiu s propostas do
irmo de lev-la a conhecer a vida e se dedicou ao magistrio em colgios
religiosos at 1891.
A realizao do projeto
53
Com elas, Judite formou uma pequena comunidade. Moravam numa casa
modesta, na Via Merulana 141, em Roma.
No dia 2 de fevereiro de 1892, alguns meses aps o encontro com o Pe.
Tezza, no quarto em que S. Camilo morreu, na Casa de S. Maria Madalena, o
Superior Geral dos camilianos, Pe. Joo Mattis, na presena do Pe. Tezza, deu o
escapulrio com a cruz de S. Camilo a Judite e s suas companheiras.
Foi o comeo oficial da Congregao e deu ao pequeno grupo um padro
de vida mais organizado, marcado pela simplicidade, disciplina, esprito de
orao e servio aos doentes.
O Pe. Tezza teve a preocupao de dar-lhes formao segundo o esprito
de S. Camilo, seguindo as Constituies da Ordem camiliana. O ideal terico do
carisma camiliano foi posto em prtica imediatamente. Judite e suas
companheiras comearam a cuidar de doentes em suas casas, de dia e de noite.
Acolheram uma em sua prpria residncia. Logo, outras candidatas bateram
porta do pequeno convento. Uma delas, Henriqueta Elisei, vai merecer ateno
especial do Pe. Tezza.
O progresso da fundao amadureceu no Pe. Tezza a deciso de dar o
hbito religioso a Judite. Durante a cerimnia, celebrada no dia 19 de maro de
1892, na capela das Irms do Cenculo, Judite adotou o nome de Maria Josefina.
Na oportunidade, com gesto significativo, o Pe. Tezza tirou do seu manto a cruz
vermelha e a passou a Josefina para que, pregada em seu hbito, mostrasse ao
mundo que a Congregao das Filhas de S. Camilo havia renascido.
Pelas palavras ditas a Vannini v-se que o relacionamento entre Tezza e ela
estava se aprofundando em confiana e estima mtua. Maria Josefina ser
chamada de pedra angular de um desgnio de Deus, o de perpetuar a mensagem
da caridade misericordiosa para com os doentes, que S. Camilo considerava o
corao da caridade85.
A amizade que nasceu entre os dois trazia a marca da espiritualidade mais
genuna. Tezza, dezoito anos mais velho, transmitia a Vannini a riqueza da sua
experincia, acumulada durante anos de formao em seminrios, no governo da
Provncia Camiliana da Frana e no cargo de procurador da Ordem. Autntico
camiliano, o esprito do fundador S. Camilo tinha lanado razes profundas em
sua vida, orientando seu modo de ser e de agir de acordo com Cristo
misericordioso.
No Pe. Tezza havia o afeto de pai espiritual, de mestre, de guia seguro e,
ao mesmo tempo, respeitoso. Esse afeto se estender, com igual intensidade, a
todas as Filhas de S. Camilo. A Irm Vannini, que correspondeu com sentimentos
filiais amizade do Pe. Tezza, encontrou, na autenticidade deste relacionamento,
crescimento em sua auto-estima e estmulo para assumir com fora e coragem a
responsabilidade de cofundadora da nova Congregao.
85
AFSC 1C3.
54
No faltam dificuldades
A Congregao Cresce
55
O tempo confirmou a validade do projeto do Pe. Tezza, que no visava a
restaurao das Tercirias da Ordem de S. Camilo, como j dissemos, mas
fundar uma congregao nova, de vida comum perfeita, presidida por uma
superiora e estruturada segundo regras e constituies bem definidas.
O crescimento da Congregao nunca mais iria parar.
XI
O ESPRITO DA FUNDAO
Com corao de me
O carisma Camiliano
56
do carisma de S. Camilo, passando-o, por assim dizer, de uma Congregao para
outra.
Certamente, o carisma de S. Camilo foi a grande reserva de energia
espiritual, na qual os dois fundadores beberam em abundncia a inspirao e a
maneira de fazer a experincia de Deus. Mas, como um rio que nasce de um lago
segue caminhos prprios e originais, assim o carisma camiliano, assimilado por
Tezza e Vannini, assume caractersticas originais, graas ao influxo de mltiplos
fatores de ordem pessoal, histrica e cultural.
Examinando um dos aspectos dessa originalidade, podemos afirmar que,
atravs da Congregao fundada pelo Pe. Tezza, o carisma camiliano vivido no
gnero feminino, com tudo quanto isso comporta de significativo88.
S. Camilo, ao pedir que seus religiosos cuidassem dos doentes com
corao de me, intuiu que a assistncia aos doentes deve valer-se das qualidades
e atitudes prprias do gnio feminino: a receptividade, a disponibilidade, a
ternura, a acolhida, a capacidade de escuta, a intuio, a sensibilidade para captar
o sentido das situaes, a disposio para assumir os problemas dos outros, a
inclinao para ajudar...
Significativa uma regra que redigiu: Em primeiro lugar, cada qual pea a
Deus que lhe d um afeto materno para com o prximo, a fim de podermos servi-
lo com todo o amor, tanto na alma quanto no corpo, pois, com a graa de Deus,
desejamos servir todos os doentes com o mesmo carinho que uma extremosa me
dedica ao seu filho doente.
Camilo foi o primeiro a pr em prtica esta regra, como garante um seu
colega em pgina de rara beleza: ...Quando Camilo se punha a cuidar de um
doente, parecia uma galinha sobre os seus pintainhos ou uma me cabeceira de
seu filho doente. Como se seus braos e mos no conseguissem expressar todo o
seu amor, o mais das vezes, se inclinava e curvava sobre o doente, como se
quisesse transmitir-lhe com o corao, com a respirao e a alma a ajuda de que
precisava.
Antes de deixar aquela cama, mexia cem vezes no travesseiro e nos
cobertores, nos ps, na cabea, nos lados e, como se o segurasse ou se sentisse
atrado por um m invisvel, parecia no encontrar o caminho para ir embora.
Passava de um lado para outro da cama, ficava em dvida e perguntava ao doente
se estava satisfeito, se precisava de algo, dando-lhe conselhos sobre salvao da
alma. No se poderia representar melhor o cuidado e o carinho de uma amorosa
me parra com seu filho nico gravemente enfermo.
E quem no conhecesse o Padre, no teria imaginado que tinha ido ao
hospital para cuidar de todos os doentes indistintamente, mas apenas daquele,
como se sua vida lhe fosse muito importante e de grande interesse e como se no
tivesse outra preocupao no mundo89.
88
Cfr. C. Petretto, Il femminile nel carisma camilliano, in La vita consacrata nel mondo della salute, gesto e
annuncio del vangelo della misericordia, Quaderni del Camillianum, n. 4, Roma 1992.
89
S. Cicatelli, Vita del padre Camillo de Lellis, biografia manoscrita, Edizione critica, aos cuidados do Pe.
Sannazzaro, Roma, 1980, pp. 436-37.
57
Na Congregao que Tezza fundou, este aspecto do carisma camiliano foi
aprofundado e ampliado. Pedia s suas Filhas que vissem no doente o Esposo -
por acaso, o doente no a imagem de Cristo? E pedia-lhes que o servissem com
corao de me.
Algumas frases da Encclica Mulieris dignitatem de Joo Paulo II,
permitem que se compreenda a profundidade e a atualidade da mensagem do Pe.
Tezza. Se Deus confia todo homem a todos e a cada um, afirma o Papa, este
ato de confiar refere-se de modo especial mulher - precisamente pelo fato de
sua feminilidade - e isso decide particularmente a sua vocao. Isto vale
sobretudo num contexto scio-cultural em que os progressos da cincia e da
tcnica, favorecendo um progresso desigual, pode comportar tambm um
gradual desaparecimento da sensibilidade pelo homem, por aquilo que
essencialmente humano. Neste sentido, sobretudo os nossos dias aguardam a
manifestao daquele gnio da mulher que assegure a sensibilidade pelo
homem em qualquer circunstncia: pelo fato de ser homem(b.).
A formao
58
sensibilidade e a psicologia de suas Filhas, com linguagem simples, como consta
nas cartas e noutros escritos s suas Filhas.
Exemplo marcante a redao adaptada de algumas idias da Frmula
de Vida.
Dirigindo-se s Filhas da comunidade de Cremona, em 1898, assim se
expressou: Se como esposas de Jesus, pois nisso sois iguais s demais
religiosas, deveis estar desapegadas de tudo, no esprito e na prtica da santa
pobreza, desprendidas de vs mesmas, em absoluta obedincia e vigilantes na
mortificao, e do que vos cerca, para manter ntegro at da mais leve mancha o
lrio da vossa virginal pureza; como verdadeiras Filhas de S. Camilo deveis,
sobressair, em primeiro lugar, pela caridade mtua e, depois, com todos,
principalmente com os doentes, dispostas a assumir por causa da caridade
qualquer sacrifcio, ainda que doloroso, empenhando no s as prprias foras, as
comodidades e a vida, que muitas vezes so menos difceis, mas, sobretudo, a
natureza, a vontade e o amor prprio92.
Estes pensamentos constam tambm num manuscrito de 1892, espcie de
rascunho para a redao das Regras e das Constituies, onde aponta as funes
da mestra de novias: ...Exortar as novias a fazer grandes sacrifcios,
propondo amide exemplos de santos, especialmente dos mrtires que deram a
sua vida por Cristo, sem esquecer o exemplo de pessoas do mundo que arriscam,
e muitas vezes perdem a sade e a vida na esperana e no desejo de recompensas
fteis e passageiras. Prepare-as, pois, para sofrer tudo, para sacrificar tudo por
amor de Nosso Senhor, e inflame-as no desejo de morrer vtimas da caridade93.
Importante e original a explicitao que o Pe. Tezza faz da relao que
existe entre servio misericordioso aos doentes e o esprito fraterno. Ou a
caridade impregna todo o agir da pessoa ou no existe. Aps recomendar s
Irms que se dediquem com empenho prtica da caridade fraterna, acrescenta:
Tomai cuidado. Se a caridade se enfraquecer entre vs, sobrar menos para os
pobres doentes e, o que pior, Deus se afastar de vs e arruinareis a sua obra e
tambm vossas almas94.
As regras e Constituies
92
AFSC 1A028.
93
But et forme de la Congrgation, manuscrito do Pe. Lus Tezza, in AFSC 1C 8b.
94
AFSC 1A 017.
59
Modificadas em 1896, as Regras e Constituies foram aprovadas pelo
Cardeal Vigrio de Roma em 1909, quando tambm foi aprovada a Congregao.
Outras mudanas foram feitas no sc. XX, at a reforma solicitada pelo Vaticano
II.
Merece destaque o fato que at agora os textos constitucionais da
Congregao das Filhas de S. Camilo, reformulados em suas estruturas e em sua
linguagem para adaptar-se aos tempos, no mudaram o seu contedo essencial,
mantendo intacto o esprito e as intenes do servo de Deus95.
60
ntimo por situaes de dor com que se defrontou em sua misso evangelizadora
e que, na cruz, deu a suprema prova de amor, tomando parte no sofrimento
humano.
XII
A PROVA DA CRUZ
Sofrer tudo em silncio de amor.
Fofocas e acusaes
61
Tambm a Irm Vannini, numa carta ao superior geral, Pe. Desideri, alude
a interpretaes injustas do modo de ser e de agir do Pe. Tezza: Nenhum outro
motivo o levou a agir afora o bem particular das almas e a glria de Deus,
infelizmente com demasiado zelo e foi isso que o prejudicou97.
Tambm o Pe. Tezza no deixava de se questionar sobre o seu modo de
agir, perguntando se imprudente e inconscientemente tivesse dado motivo ou
fundamento para as acusaes de que era alvo98.
Que motivos?
97
AFSC 1A 75.
98
AFSC 1A 021a
62
A reao do Pe. Tezza a essas acusaes est em suas cartas. Uma foi
enviada Vannini e revela a sua grandeza de alma e o modo que escolheu para
contornar as dificuldades da vida.
Em primeiro lugar, fala da luta terrvel que enfrentou consigo mesmo.
Em seguida, descarta a proposta de se defender publicamente, afirmando: Teria
podido faz-lo noutras circunstncias nas quais as armas de defesa me teriam
garantido a humilhao dos acusadores, mas sempre preferi, como prefiro,
colocar minha causa nas mos de Deus e deixar que ele aja. 99 Esta tomada de
posio, sinal de muita ponderao e da aceitao sincera da vontade de Deus,
deu-lhe paz muito profunda.
Tambm esclarece dois motivos que o levaram a optar pelo silncio. O
primeiro foi a certeza de que os frutos da Cruz so sempre abundantes e tambm
muito consoladores. As obras de Deus devem fundamentar-se na dor e fortalecer-
se no sacrifcio. Foi o que previu desde o comeo da fundao: O que est
acontecendo, era esperado, de uma ou de outra forma, h muito tempo e voc
sabe que eu o predisse desde os primeiros dias em que o Senhor se dignou
chamar-nos a trabalhar juntos nesta obra100. O segundo foi a conscincia de que
esta provao resultaria frutuosa para o crescimento da Congregao que havia
fundado.
Escrevendo sua querida filha e cofundadora da Congregao, afirma:
Agora podeis compreender que ocasio propcia e que consoladora esperana
traz ao meu corao este acontecimento por mais humilhante e doloroso que seja
para mim e no darei o menor passo para afastar de meus lbios este clice
amargo, que realiza o meu nico e contnuo desejo para vs e no qual sempre
procurei inspirar-me no meu agir em relao a vs. E se isso no for suficiente
para que sejais s de Deus, que Deus acrescente coisa pior; espero que a sua
divina graa me ajude a suportar tudo em amoroso silncio101.
Este modo de agir nas adversidades estava enraizado no esprito do Pe.
Tezza desde a juventude. Como j visto, entre os propsitos que fez num retiro
espiritual em dezembro de 1868, encontra-se o seguinte:
- guardar sempre inaltervel calma de esprito em todas as circunstncias
de minha vida, por mais difceis e penosas que sejam, contrrias aos meus pontos
de vista, aos meus sentimentos;
- abraar de boa mente por amor do Corao SS. de Jesus, sem me
queixar, todo tipo de aflies, desprezos, injrias, maus tratos, desonras que de
alguma forma me possam acontecer, vendo em tudo a mo de Deus.
Ressonncias negativas
99
Ib.
100
Ib.
101
Ib.
63
As autoridades eclesisticas proibiram ao Pe. Tezza de confessar mulheres
e de ir s casas das Filhas de S. Camilo. Mesmo vista luz da f, esta proibio
causou profunda ferida em seu corao de pai: Mil vezes disse a Deus: separai-
me destas queridas filhas, mesmo para sempre, contanto que sejam vossas,
somente vossas102.
O distanciamento forado da comunidade das irms diminuiu sua
participao na formao, na redao das regras e no discernimento. Tambm
pesava sobre ele um vu de suspeita e, por isso, foi vigiado em suas sadas de
casa.
Mais que qualquer outra, Vannini reagiu diante da situao e escreveu uma
carta muito franca ao Superior Geral, Pe. Desideri. Nela afirma: Deve
compreender, reverendssimo padre, que, como no sou criana, compreendi que,
infelizmente, querem afastar por completo o nosso muito respeitvel Padre. Calar
nesta hora seria quase confirmar as fofocas e as graves calnias contra o nosso
Padre103. A proibio imposta ao Pe. Tezza - homem inocente e de Deus, que
agia sempre em vista do bem das almas e da glria de Deus - parecia-lhe injusta.
Tambm outras Filhas de S. Camilo procuraram defender o comportamento
reservado do Pe. Tezza em seu relacionamento com as irms. Sempre vi o Pe.
Tezza conversar com a Vannini na sala da comunidade, onde todas estavam
presentes e nunca vi os dois sozinhos, escreveu uma delas. E outra: Nunca
tomou a liberdade de usar, com as suas filhas, palavras e expresses que
revelassem afeto desordenado ou fossem inconvenientes para um sacerdote104.
Redimensionamento
102
Ib.
103
AFSC 1A 75.
104
Positio, I, p. 104, 149-150.
64
Visto de outro ponto de vista, o afastamento do Pe. Tezza das Filhas teve o
mrito de favorecer o crescimento da Madre Vannini em responsabilidade e
autoridade. A partir daquele momento, o peso do governo da Congregao pesou
todo sobre seus ombros.
Emitida a profisso perptua, com outras duas colegas, no dia 8 de
dezembro de 1895, Vannini foi eleita superiora geral da Congregao.
Entusiasmo e criatividade marcaram a sua ao. Fundou novas comunidades na
Itlia e fora da Itlia e acompanhou suas filhas com amor de me.
Afastado injustamente e, depois, em misso no Peru, Tezza sentiu-se perto
de sua primeira filha e cofundadora por meio de cartas densas de afeto e de
espiritualidade, como se v pelo que escreveu em 1907: O resto do meu corao
voc conhece, pois se mudei, foi para crescer. Acrescente o que conhece do
passado e cair no real105.
XIII
VOLTA PARA A FRANA
Uma permanncia difcil
105
AFSC 1A 086.
106
AFSC 1A 028.
65
O tempo que o Pe. Tezza passou em Roma, - 1889-1898 - foi fecundo.
Nove anos de intensa atividade no governo da Ordem, engajado na assistncia
aos doentes e na fundao da Congregao das Filhas de S. Camilo.
Graas sua participao em trs captulos gerais da Ordem - 1889, 1895
e 1898 - contribuiu para introduzir reformas importantes na vida da Ordem,
sobretudo para a eleio do superior geral e para vida comum perfeita em toda a
Ordem, exceto para os religiosos que tinham professado antes de 1898. No
foram conquistas fceis, sobretudo quando se pensa no tipo de vida em vigor nas
casas religiosas e em certas intrigas que dificultavam o relacionamento entre as
congregaes religiosas e a Santa S.
Durante o seu mandato de consultor, em 1897, Tezza foi encarregado de
visitar oficialmente a fundao da Espanha, restabelecida aps um longo perodo
de extino. Nas cartas que escreveu ao vigrio geral, Pe. Estanislau Carcereri, e
no relatrio que apresentou consulta ao voltar para Roma, descreveu as duas
comunidades da Espanha - Madri e Valncia - ricas de esprito religioso, baseado
na observncia da vida comunitria e na prtica do ministrio camiliano.
De grande utilidade foi sua experincia de capelo no Hospital S. Joo. Em
contato com os doentes, no s experimentou, mas tornou visvel a alegria de
viver o carisma da Ordem, pondo em prtica os ensinamentos de S. Camilo.
A fundao das Filhas de S. Camilo foi a obra principal do Pe. Tezza
durante a sua permanncia na Cidade Eterna. A iniciativa proporcionou-lhe as
maiores alegrias e, tambm, os mais duros sofrimentos.
O retorno para Lille agravou a perda, j comeada em Roma com a
proibio de visitar suas Filhas imposta pela autoridade eclesistica.
Tambm esta separao foi vivida luz da f em Deus e na perspectiva do
bem da Congregao: Se Deus me pedisse no outro, mas cem sacrifcios como
o ltimo, isto , o atual, que muito doloroso, creio que estaria disposto a
enfrent-los todos e de todo o corao, para o vosso maior bem e para a
consolidao da vossa santa obra, que prezo mais que qualquer outra coisa do
mundo107. A natureza se revolta contra a perda mxima e muito dolorosa, mas
na sua alma, sente-se feliz porque pensa nas grandes vantagens para a
Congregao.
O Pe. Tezza ficou em Lille pouco menos de dois anos. Chegou no dia 20
de junho de 1898 e viajou para Lima, Peru, no dia 12 de abril de 1900.
Durante este tempo, foi superior da comunidade, administrou o
dispensrio, cuidou do pessoal. Tinha voltado para um lugar querido e para um
trabalho conhecido.
O que o distraiu do trabalho ordinrio, muito intenso, foi o projeto de
iniciar, na cidade, uma comunidade das Filhas de S. Camilo. Foi justamente em
Lille que teve a idia de fundar uma Congregao de mulheres consagradas
107
AFSC 1A 031.
66
assistncia aos doentes. No tardaram a aparecer candidatas, que procurou
formar. Em 1899, com a visita da Madre Vannini, Superiora Geral da
Congregao, houve a tomada de hbito de duas novias, que foram para Roma
com a Madre a fim de completar a sua formao.
. A comunidade das Filhas em Lille encontrou dificuldade para conseguir
sua autonomia dos religiosos camilianos e teve que enfrentar as dificuldades da
poltica anti-religiosa do governo francs. Por isso, em 1901, a comunidade das
Filhas foi obrigada a se transferir de Lille para Bonsecours, na Blgica.
108
Cfr. A. Brusco, Padre Camillo Cesare Bresciani..., pp. 223-224.
67
Os acontecimentos da comunidade de Lille acompanharam o Pe. Tezza
durante anos, mesmo aps deixar a Frana.
Nos primeiros meses de 1900, a presena do Pe. Tezza em Lille foi
interrompida por uma deciso do superior geral que o nomeou, junto com o Pe.
ngelo Ferroni, visitador da Casa camiliana da Buenamuerte, em Lima, Peru..
Depois de muitos anos desligada de Roma, a comunidade camiliana de
Lima pediu para se reintegrar Ordem. Este primeiro passo, teve que ser
acompanhado por um projeto de reforma para dar comunidade religiosa um
padro de vida condizente com o evangelho e as Constituies da Ordem.
O Pe. Tezza e Pe. Ferroni receberam essa delicada incumbncia.
XIV
RUMO A TERRAS DISTANTES
Uma viagem sem retorno
Mais um desprendimento
Qual fosse o estado de alma do Pe. Tezza antes de partir de Gnova para
Lima consta em sete cartas que, em poucos dias, enviou s Filhas de S. Camilo.
Deixou Lille no dia 12 de abril e visitou as comunidades das Filhas em
Roma e Grottaferrata. Pelo fim do ms encontrou-se com a Madre Vannini, em
Cremona. Um encontro breve mas rico, cheio de alegria e tambm impregnado de
tristeza por causa da separao.
Na correspondncia daqueles dias, no teve dvidas em externar os seus
sentimentos, enquadrando-os sempre num contexto espiritual em que eram
abrandados para dar lugar ao valor mais importante: o bem espiritual das Filhas.
O sacrifcio da separao foi mitigado graas constatao que o esprito de
Deus reinava entre as suas Filhas, que lhe pareciam animadas pelo desejo
crescente e a firme vontade de se tornar verdadeiras e santas religiosas.
A coincidncia de sua partida com a festa da Santa Cruz, leva-o a escrever:
Deixo-as no dia da Santa Cruz: uma graa partir sombra deste sinal adorvel
da nossa redeno, emblema da fora e da vitria contra as potncias do inferno.
68
aos ps dessa cruz bendita que vos deixo com a maior tranqilidade e l que
me encontrareis sempre unido convosco109.
109
AFSC 1A045b.
110
AFSC 1A 047
111
AG 492/177.
112
Ib.
69
Adentrando no Pacfico, o clima tornou-se mais ameno, tornando
suportveis outros inconvenientes. A escala em Guayaquil, no Equador, foi difcil.
Por causa da febre amarela, o navio teve que ficar em quarentena que, felizmente,
durou apenas dois dias, pois no havia nenhum passageiro doente. A Lei do pas,
que desta o clero e os religiosos, deixou dvidas quanto possibilidade de escala
em territrio equatoriano.
A viagem terminou no dia 20 de junho, em Callao, porto de Lima. A
viagem de Gnova at Lima durou 49 dias.
Durante a viagem, no esqueceram a finalidade da expedio. At os
contratempos foram oferecidos a Deus para o xito da santa misso a eles
confiada: Se Deus nos pedisse e quisesse mais sacrifcio, parece que nos
sentiramos felizes em enfrent-lo, contanto que consigamos fazer algo que
console o corao de vossa paternidade e glorifique a Deus113.
No Pe. Tezza, essas intenes, reforadas pela celebrao diria da missa,
contriburam para transformar a passagem de um continente para outro num
movimento interior, coerente com a caminhada espiritual de toda a sua vida.
Lima, cidade onde Tezza chegou aps longa viagem, rica de histria.
Fundada em 1535 por Pizzarro, que lhe deu o nome de Cidade dos Reis, pois
comeou a ser habitada no dia 6 de janeiro, festa de Reis ou Epifania, fica na
costa central do Peru, a poucos quilmetros do oceano Pacfico, cercada por
amplo e frtil vale em forma de anfiteatro.
No sc. XVIII, a cidade alcanou grande prosperidade graas descoberta
de minas de metais preciosos, favorecida tambm pela proximidade do porto de
Callao, do qual dista apenas 12 quilmetros. Abalada por numerosos terremotos,
- o maior aconteceu em 1746, que deixou em p apenas 25 dos 12.204 edifcios
da cidade - mas sempre ressurgiu das runas. Por volta do fim do sc. XIX, a
populao da cidade no passava de 100.000 habitantes.
Desde os tempos da conquista espanhola, Lima esteve no centro da vida do
pas. Nela no s se podiam admirar edifcios de grande valor artstico, amplos
vales e lindos jardins, mas tambm freqentar bons centros culturais.
Ao se tornar centro de imigraes internas, no conseguiu evitar a
exploso de graves problemas sociais, provocados pela aglomerao da
populao vinda do campo em busca de trabalho e de cultura, e pelos grandes
contrastes entre os bairros ricos e as zonas marcadas por degradao material e
moral.
No convento da Buenamuerte
113
AG 492/175.
70
Percorridos os 12 km que separam Callao de Lima, os PP. Tezza e Ferroni
chegaram ao convento da Buenamuerte, situado na parte da cidade conhecida
como Barrios Altos. O bairro, habitado por famlias de boas condies, no fim do
sc. XIX comeou a perder prestgio e se tornou refgio da classe popular e
pobre.
O convento dos camilianos era uma construo espaosa, edificada aps o
terremoto de 1746, que destruiu por completo a casa dos religiosos. No centro
havia dois claustros, um para os novios, outro para os padres, com bom nmero
de quartos. No primeiro claustro havia uma capela artstica, decorada por bons
artistas, como Francisco Zurbarn. Ao redor da capela ficavam as dependncias
necessrias para a vida da comunidade: refeitrio, cozinha, despensa, enfermaria
e padaria. Tambm havia uma quadra de esportes. Para atender s crescentes
necessidades religiosas da populao, foi construda uma igreja em estilo barroco
moderado.
Os padres Tezza e Ferroni foram recebidos no convento da Buenamuerte
com toque festivo dos sinos e os religiosos perfilados na portaria, com vestes
solenes. A comunidade contava nove padres, dois subdiconos e alguns irmos
professos.
XV
A PRESENA CAMILIANA EM LIMA
Luzes e sombras de uma longa e gloriosa histria
O comeo
V. Grandi, Il Convento della Buenamuerte a Lima, Quaderni di Storia della Provincia Lombardo-Veneta dei
114
71
Em 1687 voltou para Roma. Tinha percorrido, como missionrio, a
Amrica Central e do Sul e alcanado a finalidade principal da sua viagem, a
arrecadao de fundos para a beatificao de S. Camilo.
Com a mesma finalidade, em 1704, outro camiliano se ps a caminho do
novo mundo. Foi o Pe. Golbodeo Carami, que viajou com o vice-rei do Peru, D.
Manuel Oms de Senmenat. Aps longa odissia chegou capital do Peru em
1707.
Em Lima, o Pe. Carami exerceu o ministrio camiliano de dia e de noite. A
cidade se entusiasmou e logo ofereceu ao Padre uma casa e pediu que fundasse
uma comunidade camiliana. Com a ajuda de benfeitores, conseguiu construir uma
igreja que dedicou a Nossa Senhora, com o Ttulo de Virgen de la Buenamuerte
ou do Trnsito. No dia 14 de agosto de 1712, com a participao do vigrio
episcopal e com o beneplcito do novo vice-rei, o bispo de Lima entronizou, aps
solene procisso, a Virgen de la Buenamuerte.
O Pe. Carami pediu s autoridades civis e eclesisticas que lhe obtivessem
licena do rei para fundar uma comunidade camiliana em Lima. O decreto chegou
em 1735. Nesse meio tempo, haviam chegado da Espanha outros religiosos: dois
em 1716 e trs em 1731. Deram-se imediatamente ao trabalho, assistindo os
doentes nas casas e nos quatro hospitais de Lima.
No dia 30 de janeiro de 1733, aps quatro meses de dolorosa enfermidade,
o Pe. Golbodeo Carami morreu. Contava 62 anos de idade. Uma perda que todos
choraram em Lima, por causa do trabalho que tinha feito a bem dos doentes.
Conta-se que num s dia atendeu mais de 600 empestados. A sua presena no
Peru fez aumentar o prestgio da Ordem que, pouco a pouco, se consolidou,
graas ao envio de outros religiosos da Espanha, alguns de grande valor.
Desenvolvimento animador
72
Tambm o governo da vice-provncia tinha-se tornado mais estvel e
eficiente, graas instituio, em 1759, de uma Vice-Consulta, com autoridade
para tratar de todos os assuntos da Amrica do Sul com os mesmos poderes que a
Constituio atribui Consulta Geral da Ordem, em Roma.
Para garantir a manuteno dos religiosos compraram terras em Caete,
perto de Lima. Contrataram centenas de trabalhadores. Os religiosos davam aos
seus empregados e populao da redondeza assistncia espiritual e de sade.
Sintomas de crise
73
de Santa Liberata e da Buenamuerte. Advertiam-se tambm as conseqncias
negativas de uma promoo vocacional um tanto superficial. Tudo isso provocou
diviso em prejuzo da caridade fraterna e do bom nome e da grande estima que o
povo tinha pelos camilianos.
Entre os fatores externos que contriburam para engendrar este estado de
coisas, deve-se lembrar, em primeiro lugar, a reao ao poder absoluto da
Espanha e das ingerncias externas no pas. Tambm nos conventos fervia o
desejo de implantar os ideais de justia, igualdade e liberdade. Deve-se lembrar,
ainda, a separao de Roma da provncia espanhola e, conseqentemente,
tambm das casas da Amrica do Sul, que dependiam dela, separao imposta
pelo rei Carlos IV e confirmada pelo Papa Pio VI em 1793.
Grave golpe foi desferido contra a fundao pelo movimento
independentista, que agitou a Amrica do Sul, levando proclamao da
independncia do Peru em 1821, que se tornou efetiva em 1824.
Um mrtir da confisso
Sobrevivncia
74
Tambm o desejo de se reintegrar Ordem emergiu repetidas vezes. Sob o
governo do Pe. Camilo Guardi, os relacionamentos foram bons, mas sem
resultados concretos. A interveno da Santa S conseguiu manter vivas as
tratativas, que chegaram a bom termo sob o governo do Pe. Estanislau Carcereri
(1895-98).
No dia 29 de janeiro de 1897, graas a um pedido dos religiosos da
Buenamuerte, foi celebrada a integrao da casa de Lima Ordem de S. Camilo.
Este fato, porm, no foi suficiente para superar as dificuldades da
comunidade, que enfrentou momentos de grave desordem, provocados,
sobretudo, por problemas econmicos. As iniciativas de alguns religiosos, que
recorreram aos tribunais civis e provocaram escndalo, acarretaram a interveno
das autoridades eclesisticas. Foi solicitada oficialmente a colaborao da Ordem
mediante o envio de religiosos da Europa. O superior geral, Pe. Jos Sommavilla,
decidiu nomear dois visitadores, o Pe. ngelo Ferroni e o Pe. Lus Tezza.
Aguardando a sua chegada, o Papa nomeou visitador apostlico o arcebispo de
Lima, D. Manuel Tovar.
Um desafio difcil
XVI
A REFORMA DO CONVENTO DA BUENAMUERTE
Com firmeza e doura
Um projeto apressado
75
vida disciplinado e de boa observncia, e sanar a situao financeira, muito
precria. O envio de alguns religiosos da Europa ajudaria a dar continuidade
obra de reforma.
O plano parecia funcionar, pois os religiosos da Buenamuerte mostravam
aceitar as orientaes dos enviados de Roma. Uma vez expulso da Ordem um
padre rebelde e indisciplinado, e postos sob controle procedimentos hostis de
dois ou trs religiosos de mais idade, criou-se na comunidade um clima de
cooperao para a reforma.
Mais difcil era a situao econmico-financeira. Embora a Buenamuerte
fosse considerada o convento mais rico da cidade, - possua fazendas e terras
com mais de 800 hectares em Caete, e muitas casas na cidade - na realidade, o
Convento estava beira da falncia por causa de dvidas. O Pe. Tezza props
algumas solues, que se revelaram sbias, embora no fossem postas em prtica
imediatamente. Tambm resolveu o problema da fundao de santas missas e das
capelanias agrcolas, cujos fundos estavam esgotados.
Novas perspectivas
Quando, aps dois meses de sua chegada, os padres, Tezza e Ferroni foram
ter com o arcebispo e o delegado apostlico para inform-los que davam por
encerrada a sua misso, foram instados a permanecer para consolidar a reforma.
Ao contrrio do Pe. Ferroni, que tinha pressa em voltar para a Espanha por causa
de problemas urgentes, o Pe. Tezza mostrou-se favorvel proposta. A seus olhos
parecia conveniente ficar mais tempo em Lima, aguardando a chegada de dois ou
trs religiosos da Europa. As autoridades eclesisticas achavam necessrio
consolidar a reforma e criar condies para garantir seus resultados.
Em carta ao superior geral, o Pe. Tezza colocou-se disposio,
declarando-se pronto a acatar a ordem de continuar em Lima. Em agosto de
1900, a ordem veio do arcebispo, na qualidade de visitador apostlico da casa da
Buenamuerte.
Esta deciso selou o destino dos ltimos 23 anos de vida do Pe. Tezza. O
Pe. Ferroni partiu para a Espanha no dia 13 de agosto de 1900. O Pe. Tezza
nunca mais deixar a capital do Peru.
Santa indiferena
76
melhor, tanto para deixar-me aqui definitivamente, como para mandar-me para a
Europa ou para qualquer outra lugar115.
Tratava-se de um modo de ser adquirido atravs de constante entrega
vontade de Deus, que o levou a declarar sem mrito a sua adeso aos projetos
dos superiores, tamanha a sua naturalidade.
77
chegada. A sua experincia de governo o levava a no ver apenas as sombras do
quadro, mas tambm as luzes e descobrir as causas do que no correspondia ao
conjunto da situao. Se havia desvios dos ideais da vida consagrada, provinham
de ignorncia, falta de comando e de acompanhamento dos superiores, mais que
de maldade. No faltavam pontos positivos dos religiosos, como fidelidade
prtica do ministrio camiliano.
78
verdade que o povo continuava mantendo forte religiosidade; esta,
porm, ficava em exterioridades, como novenas e procisses; no se
fundamentava em princpios teolgicos slidos.
Ao Pe. Tezza no passava despercebida a exterioridade da religiosidade
popular, da qual, porm, via o aspecto positivo. Escreveu: Tambm do ponto de
vista religioso caminha-se bem. Existe muita f e muita piedade, muitssimas
igrejas e muitssimas comunidades religiosas, com oraes e cerimnias pblicas
todos os dias, muito mais que na Europa118.
A formao religiosa era escassa e a que se dava tendia a se concentrar no
moralismo. A pregao no produzia grandes frutos. Muitas vezes, ficava em
polmicas contra a maonaria e os protestantes. Os grandes ensinamentos sociais
de Leo XIII estavam longe de impregnar a famlia, o mundo do trabalho, a
escola.
Adaptar-se situao
A prtica da autoridade
79
Durante uma dcada pde, portanto, orientar a vida do convento da
Buenamuerte, com a liberdade necessria para conduzir o projeto de renovao.
No exerccio da autoridade, valia-se dos conselhos e da colaborao de
eclesisticos influentes. Desde o comeo, estabeleceu um relacionamento de
estima mtua e de amizade com o arcebispo de Lima e com o delegado
apostlico D. Pedro Gasparri. Este, pessoa de excepcional valor, futuro
Secretrio de Estado do Vaticano e signatrio dos Tratados de Latro (1929),
mostrou grande interesse e amor pela comunidade camiliana. Quando voltou para
Roma, Tezza escreveu: Que perda para ns na pessoa de D. Gasparri, seja pela
sua grande influncia, seja pelo seu interesse mais que paternal por ns, seja,
acrescento, por mim em particular, pela grande bondade com que me honrava 120.
Igual colaborao continuou com os demais representantes da Santa S e com as
autoridades da igreja local.
Baseado nas informaes que tinha e no mtodo adotado, o Pe. Tezza
realizou com calma e firmeza o seu projeto de reforma.
XVII
RESULTADOS DA REFORMA
Fraternidade e vigor apostlico
A organizao interna
80
O projeto de reforma do Pe. Tezza no se limitou comunidade religiosa,
mas procurou reconquistar o seu prestgio moral diante do povo.
Graas sua experincia da Itlia e da Frana, lutou para ampliar o servio
dos religiosos na assistncia aos doentes nas famlias e promover o ministrio
camiliano nos hospitais. Tinha-se dado conta que em nenhum lugar da Europa o
nosso ministrio to bem compreendido e apreciado como em Lima.
Vendo o campo de trabalho no mundo do sofrimento e da sade, elaborou
um plano ambicioso, isto , uma capelania para atender s necessidades pastorais
dos cinco hospitais e casas de acolhida da cidade. Isso restabeleceria o antigo
prestgio da Ordem em Lima. A idia foi bem aceita pelas autoridades
eclesisticas e a chegada, em 1902, de seis religiosos europeus possibilitou a
realizao do plano.
Os pedidos de camilianos como assistentes espirituais nos hospitais no
demoraram: em 1901, o Hospital Militar; em 1903, o Hospital Dos de Mayo, com
600 leitos; em 1905, o Hospital Santana, com 500 leitos; em 1904, o Hospital
dos Incurveis, com 200 leitos. Da casa da Buenamuerte, a caridade camiliana se
irradiava para os principais lugares de dor, levando alvio e garantindo assistncia
espiritual.
Quanto ao mtodo pastoral, provvel que os padres europeus tenham
adotado o mais difundido na Ordem, elaborado por bons pastoralistas camilianos,
entre eles o j lembrado Pe. Mancini.
122
AG 492/202.
81
Uma ficha excelente
123
Positio, II, pp. 558-559.
124
AG 2/o53/464.
82
E continua: Sempre vejo pessoalmente, alm do que todos dizem em voz
unnime, que a nossa Ordem tem um campo vastssimo e uma messe abundante e
no tenho dvidas em afirmar que a mais popular e a mais amada de Lima125.
XVIII
O PREO DO SERVIO
Adeses e contrastes
Que preo o Pe. Tezza teve que pagar para conseguir xito no seu projeto
de reforma da comunidade camiliana de Lima?
Misso pesada
Contestaes
125
AG 492/236.
126
AG 2/053/461.
83
A eles no agradava o seu modo de agir inspirado na poltica de
contemporizar, - como ele prprio disse numa de suas cartas - que consistia em
agir com pacincia, prudncia, longanimidade, mesmo s custas de sacrifcios
pessoais. Teriam desejado atuao mais firme e maior determinao.
Tezza j conhecia esse tipo de crtica. Como vimos, na Frana enfrentou
recriminaes do Pe. Estanislau Carcereri, descontente com seu modo de resolver
certos problemas. Tratava-se de um modo de ser que fazia parte do seu
temperamento e de seu modo de encarar a prtica da autoridade, mas que dava
bons resultados.
Concentrao de poder?
A defesa da verdade
84
Ao reagir a estas crticas que iam at Roma, o Pe. Tezza mostrou firmeza,
disposto a defender a verdade e a demonstrar a sua boa f. No governo da
comunidade, sentia-se motivado apenas pelo bem da Ordem e por sadio
discernimento.
Numa de suas cartas ao superior geral, escreveu com firmeza: No
pretendo fazer a minha apologia contra as acusaes desses padres, menos ainda
reivindicar mritos pelo pouco que com a ajuda de Deus consegui fazer, mas
devo dizer, em s conscincia, que, apesar das crticas e acusaes de jovens
inexperientes, no mudaria em nada meu modo de agir nesta difcil tarefa, caso
tivesse que comear de novo127.
Passando a pontos especficos, lembra que com dureza e despotismo,
como alguns gostariam que fizesse, aqui no teria feito e no faria nada 128.
Numa carta de 1910 do Pe. Pipping, religioso da Buenamuerte, ao superior geral,
encontramos uma confirmao das palavras do Pe. Tezza: O que outros no
conseguiram com a severidade, (o Pe. Tezza) conseguiu com a bondade e a
doura unidas caridade129.
Abordando, enfim, o assunto de suas ausncias da comunidade, declara
que no pode admitir isso porque no corresponde verdade. Informa que
passou o primeiro ano de sua estada em Lima literalmente sem colocar p fora
de casa, ocupado em pr ordem na vida interna da comunidade130. E acrescenta
que era indispensvel ressuscitar moralmente este pobre cadver aos olhos do
povo pela prtica do ministrio131, atendendo aos insistentes pedidos do
arcebispo. Quando saa de casa, era fcil saber onde estava.
Na defesa do Pe. Tezza percebe-se o amor pela verdade e a preocupao
em salvaguardar a reforma da comunidade da Buenamuerte, que lhe havia
custado muitos sacrifcios e grande sofrimento. A desconfiana de alguns
religiosos desgastava-o fsica e moralmente; em certos trechos de suas cartas, o
Pe. Tezza chega a se questionar se os superiores de Roma - Pe. Francisco Vido e
os Consultores - ainda tinham a confiana nele depositada pelo governo anterior
da Ordem. O apoio do Pe. Sommavilla tinha sido fundamental nesta rdua e
dolorosssima misso em que se tinha metido, exclusivamente para a glria de
Deus, o bem da Ordem e a consolao dos queridos superiores132. Talvez se
desse conta que as cartas endereadas a Roma criavam mal estar e desconfiana.
Outras vozes
127
AG 2/053/461.
128
Ib.
129
AG 2/053/420.
130
AG. 2/053/458.
131
Ib.
132
AG 2/053/461.
85
Como j vimos, o relacionamento entre Tezza e Vankann tinha comeado
bem e a colaborao entre os dois tambm, apesar da diferena de temperamento.
O Pe. Tezza sabia reconhecer as suas qualidades, apesar de certos
comportamentos que no aprovava. Embora fosse excelente religioso, no o
considerava apto para mestre de novios por seu modo rgido e exigente e
tambm por falta de boas maneiras, que S. Camilo no queria que fossem
descuidadas133. E comenta com certo humor: verdade que se pode entrar no
cu sem boas maneiras, mas parece que S. Francisco de Sales dizia que a virtude
deve ser bem trajada134. Com o passar dos anos, Vankann deu sinais de
inquietude, impetuosidade e maus modos, e com isso mais destrua do que
construa, tornando difcil o seu relacionamento com a comunidade.
Quanto ao Pe. Schlichterle, Tezza sempre manifestou grande estima,
nomeando-o ecnomo da casa da Buenamuerte e considerando-o apto para ser
superior.
O exame de documentos ao nosso alcance torna discutveis e infundadas as
crticas dos dois religiosos contra o Pe. Tezza. Parecem fruto de desconhecimento
pela situao em que se encontrava a comunidade de Lima e, talvez, de
imaturidade e mgoas mal administradas.
As reaes do Pe. Vankann e Schlichterle devem, pois, ser vistas com
cautela e confrontadas com outras vozes - mais numerosas e mais objetivas - que
falam em favor do Pe. Tezza. Trata-se de vrios depoimentos, alguns do tempo
das acusaes contra o Pe. Tezza, outros, de anos aps a sua morte.
Merece ateno especial a carta do Pe. Pipping ao superior geral, Pe.
Vido, de 9 de julho de 1910, ano em que o Pe. Tezza deixou o cargo de superior
da comunidade.
Ele escreve: Sentimos muito a perda do Pe. Tezza como superior, porque
amado e apreciado por todos, tanto peruanos, como estrangeiros. Governou com
sabedoria e amor o convento durante 10 anos. Quando chegamos aqui, h 8 anos,
o convento gozava de to m fama que nenhuma pessoa de bem, sacerdotes ou
leigos, teria posto os ps aqui. Se este estado de coisas mudou com o passar dos
anos, deve-se agradecer, em primeiro lugar, ao Pe. Tezza, que se tornou querido
em toda a cidade e estimado por todo o clero e pelas melhores famlias de
Lima135. Na sua carta, o Pe. Pipping, imitado por outros religiosos, julga com
severidade o Pe. Vankann.
Nos depoimentos feitos dcadas aps a morte do Pe. Tezza, todos esses
detalhes negativos, decorrentes de conflitos comunitrios e de interesses
mesquinhos e secundrios, desaparecem e tudo se concentra nos pontos
essenciais da atividade do Pe. Tezza, que o tornaram grande. O prprio Pe.
Schlichterle abrandou muito o tom de suas crticas, associando-se aos que
engrandeciam as suas virtudes.
Religioso Exemplar
133
AG. 492/220.
134
AG. 492/235.
135
AG. 2/053/420.
86
Que o Pe. Tezza no estava apegado ao poder, mas se servia da autoridade
para o bem da comunidade, est claro ao longo de toda a sua vida, especialmente
pelo seu comportamento quando foram nomeados novos superiores, aps o
captulo geral de 1910. Na ocasio, terminava o seu mandato de delegado
provincial. De Roma chegou a nomeao do novo superior da Buenamuerte, Pe.
Guilherme Schlichtherle. Tezza ficou surpreso pela falta de informao a seu
respeito: continuaria ou no como delegado provincial?
Mas quando chegou de Madri e de Roma a informao de que no tinha
mais cargo, Tezza se retirou sem dificuldade. E o fez de forma elegante e
religiosamente exemplar, submetendo-se ao novo superior como um dos ltimos
e mais jovens da casa.
No s, mas ao passar de superior para simples religioso, suportou em
silncio e humildade atitudes deselegantes do novo superior.
Sofrimento e crescimento
XIX
O APOSTOLADO EM LIMA
Outono ativo
Perto dos 70 anos, o Pe. Tezza comea a ltima etapa de sua vida.
Terminadas as responsabilidades de governo na Casa da Buenamuerte, sentia-se
livre e com mais tempo para continuar e intensificar as atividades pastorais
iniciadas com sua chegada a Lima.
87
seminrio, cria episcopal, casas de pobres e ricos, escolas, dando a sua
contribuio para a reforma da Igreja de Lima no comeo do Sec. XX.
O prestgio que tinha junto s autoridades comprovado pelos cargos
importantes que lhe foram confiados: Membro do Conselho de administrao da
diocese, em 1902; consultor do Conclio Provincial de Lima, em 1909; membro
do Conselho de Vigilncia da diocese, em 1910; consultor telogo da Assemblia
episcopal, em 1919, quando beirava os 80 anos.
A variedade do seu ministrio, colocava-o em contato com diversas classes
de pessoas. O venerando Pe. Tezza estimado pelos grandes da capital do Peru,
graas ao seu exmio saber e virtude l-se na Revista Domesticum, de 1909. Sua
dedicao aos doentes e aos pobres da periferia fez dele um amigo dos
marginalizados e excludos.
136
Positio, II, p. 678.
88
Tambm a falta de instruo religiosa e moral manteve-o atento e ativo.
Prova disso foi a criao da escola de catequese na igreja da Buenamuerte e suas
aulas de religio no Colgio Italiano.
A carga proftica do ministrio de Tezza para com os pobres e doentes no
se fazia sentir na denncia das injustias, nem mesmo em projetos para eliminar
as causas dos males que afligiam o povo do seu tempo. Isso no fazia parte do
seu modo de ver as coisas e no constava de suas experincias do passado nem
fez parte da sua formao. Na sua correspondncia aparecem poucos acenos de
revolta contra a condio miservel em que viviam os doentes de varola e de
febre amarela no Lazareto de Lima.
O seu profetizo aparecia, sobretudo, no reconhecimento da dignidade da
pessoa humana, que deve ser amada mesmo na misria e na degradao fsica e
moral, por ser imagem de Deus.
89
muitos, ele possua o dom da intuio dos coraes e das almas para gui-las s
metas mais altas da perfeio crist e religiosa.138
No Dirio ntimo da fundadora das Religiosas Reparadoras do Sagrado
Corao, Madre Teresa do Sagrado Corao de Castaeda y Coello, l-se: este
bom padre, dignou-se mostrar-nos sua grande benevolncia. Encorajou-me muito
na dolorosa caminhada que estamos fazendo. As provaes do momento, disse-
me o bom padre, so prova da condescendncia de Deus...139.
Muitas das pessoas por ele orientadas espiritualmente ocupavam altos
cargo na Igreja e na sociedade. Entre os eclesisticos deve-se lembrar o delegado
apostlico, D. ngelo Scapardini, e o nncio, D. Loureno Lauri.
Das irms, alm da Madre Teresa do Sagrado Corao de Jesus, merece
meno especial Teresa Candamo, fundadora das Cnegas da Cruz, cujo
processo de beatificao est em andamento. Tezza tornou-se seu diretor
espiritual por volta de 1910, apoiando-a num momento difcil em que as
autoridades eclesisticas se opunham sua fundao. Sem os seus conselhos -
afirma a segunda superiora geral da Congregao - e sem a sua prudncia em
orient-la, talvez a nossa Madre Teresa Candamo no teria agentado o difcil
caminho que a providncia lhe indicou e no existiria atualmente a obra das
Cnegas da Cruz140.
As cartas que enviou s Filhas de S. Camilo devem ser consideradas como
orientao espiritual distncia. Uma leitura atenta permite captar, entre notcias
e informaes, a presena e a concatenao de temas que formam a estrutura de
um ministrio de acompanhamento no caminho do esprito.
Ministrio e espiritualidade
Com o passar dos anos, o Pe. Tezza foi obrigado a diminuir a sua atividade
apostlica. diminuio da atividade de apostolado sobreveio, de forma sempre
mais intensa, o crescimento de valores que a sustentaram e a tornaram mais
eficaz: a prudncia, o saber, a santidade. Sobretudo a santidade, com o
crescimento constante do amor a Deus e ao prximo e, no seu pensamento, como
condio primria e inevitvel para ser instrumento de santificao nas mos de
Deus. Sem a presena deste amor, a intensa atividade do Pe. Tezza teria sido
simples agitao.
Era homem de orao e de contemplao, afirma um religioso do seu
tempo. E como consta de um depoimento do processo de beatificao, o seu
encontro ntimo com Deus favorecia o encontro com o prximo, rico de amor. Era
vivo nele o movimento espiritual que Urs von Balthasar apresenta com uma
imagem potica profunda: O rojo: vertical sobe para o cu o raio de fogo do
amor, concentra-se, explode (no timo de xtase), e mil centelhas descem rpidas
e sempre mais rpidas para a terra: Deus te envia, desfeito em pedaos, te envia
aos teus irmos.
138
M. Vanti, Cento anni..., p. 101.
139
Positio, II, p. 512.
140
Positio, I, p. 118, 183.
90
A espiritualidade vertical por natureza, tende para o cu, isto , para o
infinito de Deus. Mas nem sempre te faz decolar do mundo, deixando-te suspenso
na luz. Envia-te, desfeito em pedaos, para os irmos, para a histria, para a
terra. Feito fogo, podes aquecer; transformado em centelha, podes iluminar;
transfigurado em Deus, podes testemunhar a nova criatura para a qual todos
podem tender. F e vida, culto e caridade, mstica e realidade no podem ficar
separados, mas conviver harmoniosamente entre si141.
De muitas de suas cartas, de alguns testemunhos, mas, sobretudo,
observando o seu comportamento, constata-se que, para o Pe. Tezza, a orao e a
atividade apostlica eram vistas como as mos entrelaadas do amor a Deus. Na
orao e no apostolado, sob formas diferentes, o fiel encontra Cristo, une-se a
ele, vivendo a experincia de uma crescente comunho com ele. Disso resulta que
entre dimenso contemplativa e dimenso ativa da vida espiritual, entre orao e
apostolado existe unio inseparvel.
Partindo de uma imagem original de S. Bernardo, pode-se dizer que, no
seu apostolado, o Pe. Tezza fazia mais o papel de reservatrio do que de duto.
Eis como o santo explica a diferena entre reservatrio e duto: Enquanto o duto
descarrega todas as guas to logo as recebe, o reservatrio espera ficar cheio at
as bordas e d apenas o que sobra, isto , o que pode dar sem se empobrecer. So
muitos os que querem dar antes de receber. Agrada-lhes mais falar do que ouvir.
Tomam a iniciativa de ensinar o que no aprenderam. Embora incapazes de
governar a si mesmos, pem-se a guiar os outros....
Quando isto acontece, continua S. Bernardo, corre-se o risco que a
caridade se perca na busca da consolao, se desoriente sob o peso do medo,
perca a paz caindo na tristeza, fique diminuda pela avidez, desvirtuada pela
ambio....142
A fonte principal de onde o Pe. Tezza hauria a sua fora era a eucaristia.
Escrevendo a suas Filhas, exortava-as a visitar amide Jesus na eucaristia,
haurindo na fonte do Corao divino o esprito de santa caridade que as faa
zelosas, delicadas, generosas, verdadeiros anjos cabeceira dos doentes e com
os pobres143.
O servio que se presta ao ser humano, recebe da eucaristia o seu sentido e
o seu jeito de ser, encontra nela a sua fonte e tambm a sua norma. No foi por
acaso que Jesus uniu intimamente o servio eucaristia (Jo 13, 2-16), pedindo
aos discpulos que perpetuassem a sua memria tanto na ceia do Senhor quanto
no lava-ps. Na celebrao da eucaristia, o fiel encontra Cristo, divino samaritano
dos corpos e das almas, o crucifixo, expresso mxima do amor de Deus, o
ressuscitado. Desse encontro haure a fora para fazer da sua vida - seguindo o
exemplo de Jesus - uma pro-existncia, uma autntica narrativa do amor de Deus.
Esta profunda unio com Deus, leva o Pe. Tezza a purificar constantemente
os motivos de sua ao. Embora se sentisse preparado para a prtica do
ministrio sob mltiplas formas, lembrava a si mesmo e aos outros a importncia
141
Cfr. Ravasi G., Raggio di fuoco, in Avvenire, 7 dezembro 2000, p. 1.
142
S. Bernardo...
143
AFSC 1A 014.
91
da abnegao. Deus, na verdade, quem salva; a ao humana apenas
instrumento e mediao.
Procurando somente Deus no seu trabalho e dedicando todas as foras
para a sua glria, o Pe. Tezza, como se v em muitas de suas cartas, fazia da sua
atividade apostlica um meio de unio com Deus144.
XX
PASSAGEM PARA A OUTRA VIDA
ltimos anos e morte
O Pe. Tezza teve a graa de uma vida longa. Durante os 82 anos de sua
vida terrena, gozou de sade relativamente boa, afetada momentaneamente por
pequenos distrbios, que logo superava. Uma notvel energia psicofsica e
espiritual permitiu que enfrentasse o desgaste de um ritmo de vida dinmico e de
srios deslocamentos geogrficos, dando-lhe condies de se manter ativo at os
ltimos anos de vida.
144
Cfr. AFSC 1A 015; 1A 066; 1A 093.
145
APL. 335/232.
146
AFSC 1A 089a
147
AFSC 1A 091.
148
Testimonianza di padre Antonio Niat, in Positio, II, pp. 679-683.
92
Passagem para a outra vida
Outro te cingir
93
Mas se o seu corpo estava frio e nada conseguia aquec-lo por falta de
circulao do sangue, sua alma era irrigada por algo mais vivificante que o
elemento que nos d vida. Quanto mais frio o corpo, mais o seu esprito parecia
arder. Tinha sempre o rosrio entre os dedos, enquanto murmurava uma prece ou
rezava salmos que sabia de cor149. Suas foras pareciam crescer quando chegava
a hora de celebrar a missa, ddiva que pde desfrutar at a festa de S. Jos de
1923, ano da sua morte. Se me sinto fraco quando celebro, - costumava dizer -
como me sentiria se no celebrasse?.
Tambm o lbum de fotografias desse tempo mostra o lento declnio do Pe.
Tezza, mas sem prejudicar a harmonia e a serenidade do seu esprito. Majestoso
e aristocrtico, foi descrito na crnica das religiosas Reparadoras do Sagrado
Corao, em 1901. Esses traos no desapareceram nas fotografias dos ltimos
anos; manteve semblante tranqilo, tpico de quem tinha procurado viver a
verdade dessas palavras: A essncia e a perfeio do amor de Deus est na
prtica constante e generosa da sua vontade em tudo.
As pequenas mortes
149
Dados histricos de padre Cruz Maulen, in ACBM 003018.
94
De grande ajuda na preparao do Pe. Tezza para a grande passagem
foram as pequenas mortes, que viveu no longo caminho de sua vida. As mltiplas
perdas e separaes que enfrentou, tiveram forte impacto emotivo sobre ele..
A morte bateu porta de sua famlia quando ele era ainda criana, levando-
lhe o pai. Mais tarde, viveu com sofrimento o afastamento da me, dos coirmos
e sobretudo de suas amadas Filhas. Em 1910, perdeu tambm os cargos de
superior, que teve durante quase 40 anos.
Em todas os acontecimentos de perda e de separao, o Pe. Tezza tratava
suas feridas com o blsamo da confiana em Deus. Isto o fortalecia na convico
de que no se deve ficar demasiado preso s coisas que nos cercam, s pessoas
de nossa roda, ao mundo em que vivemos e, enfim, ficar agarrados a ns
mesmos.
Prova eloqente deste desprendimento crescente das pessoas e das coisas,
no somente aceito, mas em alguns casos preparado e buscado, a carta que
escreveu s Filhas de S. Camilo no dia 31 de janeiro de 1912. Nela exprime com
clareza os motivos que o levaram a tornar mais espaada a sua correspondncia.
preciso sacrificar, afirma, tambm as coisas boas. o que ele queria.
Mas alm desta razo havia outra mais importante, que ele manifesta
claramente: Desde os primeiros anos de vossa fundao, alquebrado pelas
dificuldades, os sofrimentos, as lutas, as angstias de todo tipo, que talvez no
deixava transparecer, mas que sentia profundamente em meu corao, ofereci a
Deus, para o bom xito da fundao e para o vosso bem, o sacrifcio do que mais
custava ao meu corao, oferecendo-lhe o holocausto da minha absoluta
separao de vs, desde que mantivesse sempre em vs o bom esprito e que
Deus sempre as guardasse como a pupila de seus olhos.
E continua: No devia e no devo aceitar de corao quanto prometi e
ofereci para o vosso bem, minhas queridssimas filhas? E no seria, de minha
parte, sonegar algo da oferta feita a Deus se, para satisfazer o meu corao,
mantivesse convosco uma correspondncia mais assdua?150
Examinada atentamente, esta confisso no descreve apenas uma
realidade, mas um processo de crescimento espiritual. De fato, a diminuio da
correspondncia do Pe. Tezza aconteceu quando se deu conta que o sacrifcio da
separao das Filhas era uma realidade, no sendo mais possvel voltar para a
Europa. A separao, portanto, devia completar-se tambm pela diminuio dos
contatos por carta.
Comportamento semelhante encontra-se na vida de S. Francisco de Sales.
Em certo momento, a sua correspondncia com Francisca de Chantal diminui.
Diante das queixas da filha espiritual, manteve silncio151.
Atitudes de santos que obedecem a uma lgica nem sempre compreensvel
do ponto de vista humano, uma lgica ditada pela intensificao do
relacionamento com Deus.
Na ltima fase da sua vida, mais que em outros momentos, Tezza foi
chamado a viver a espiritualidade da cruz, que tinha alimentado o seu esprito. A
150
AFSC 1A 092.
151
Cfr. S. Francisco de Sales, Lettere di amicizia spirituale, Ed. Paoline, Milano, 1984.
95
unio com Cristo nos momentos de kenosi tornava-se expresso de amor e
certeza de estar envolvido por ele na ressurreio.
Unido comunidade
Um coirmo que assistiu o Pe. Tezza nos ltimos anos, assim o definiu:
uma vida realizada. Uma vida vivida no amor.
A morte do Pe. Tezza repercutiu em toda a cidade de Lima. Embora h
tempo vivesse retirado por causa da doena, a participao nos seus funerais
152
ACBM 003018.
96
ultrapassou toda expectativa. Estavam presentes autoridades eclesisticas e civis
e representantes de todas as congregaes religiosas.
A morte do Pe. Tezza foi uma oportunidade para tornar pblico o
reconhecimento dos seus mritos e da santidade de sua vida. A expresso mais
repetida o declarava apstolo de Lima. Quem o tinha conhecido mais de perto,
como conselheiro ou diretor espiritual, no teve dvidas em ressaltar a sua
santidade. Aos poucos a convico de que o Pe. Tezza tinha alcanado a
perfeio da caridade tomou conta da opinio pblica e nunca mais desapareceu..
XXI
A ESPIRITUALIDADE DO PE. LUS TEZZA
Uma vida unificada
A espiritualidade foi o fio de ouro que deu unidade vida do Pe. Tezza.
Guiado pelo Esprito, aos poucos conseguiu pr em contnua relao com Deus
todos os aspectos da sua vida, transformando o seu comportamento - desejos,
sentimentos, aspiraes, atividades...- numa progressiva manifestao do amor de
Deus, que havia nele. Quando algum possudo por Deus e aberto sua graa,
sua vida acaba assumida no amor e vivida a servio do amor. Porque Deus
amor. Entrando no amor, todas as realidades da vida se unem entre si, tornando-
se uma histria de amor, que nico e que, portanto, consegue uni-las todas153.
Espiritualidade original
Este ideal, que de todo cristo, o Pe. Tezza o conseguiu e viveu de forma
original, em sintonia com sua histria pessoal, seu estado de vida, sua cultura, sua
educao. De fato, se a espiritualidade crist, considerada na sua fonte
originria, nica, porque nico o mediador entre Deus e o homem, Cristo
Jesus, e porque nico o Esprito unificador que nos transforma em novas
Rupnik M.I., La vita spirituale e la sua crescita, in AA.VV., A partire dalla persona, Lipa, Roma, 994, p.
153
167.
97
criaturas, sob o aspecto existencial, porm, existem muitas formas de vida crist
e, portanto, maneiras diferentes de viver a vida espiritual154.
Os traos originais da vida espiritual do Pe. Tezza no se encontram em
elaboraes tericas bem estruturadas, mas no dia-a-dia de sua vida e nas suas
cartas.
Solidamente enraizado na tradio camiliana, sofreu a influncia de outros
mestres de espiritualidade, como S. Francisco de Sales, que conheceu e amou,
talvez atravs de sua me, que se fez religiosa do mosteiro da Visitao. O santo
bispo de Genebra foi um dos autores que, no sc. XIX, inspiraram os promotores
do renascimento espiritual, enfraquecido pelo iluminismo.
a partir de certos fragmentos que surgem, ora aqui, ora acol, na vida
exterior e tambm ntima do Pe. Tezza, que possvel traar um quadro da sua
espiritualidade.
A entrega a Deus
A cruz e o crucifixo
154
Favale A. Spiritualit del ministero presbiterale, LAS, Roma, 1985, p. 18.
155
APL 292/660.
98
O que une algum cruz o sofrimento em suas mltiplas formas. Na
experincia da dor, Tezza descobriu um caminho perfeito para se unir a Cristo e
imit-lo no seu amor156.
Tambm nisso, ele seguiu os passos do fundador. O contato com o
franciscanismo mostrou a Camilo o caminho para se conformar com Cristo numa
vida de penitncia, e tambm mostrou que os sofrimentos pessoais - no s a
morte a si mesmo, mas tambm os sofrimentos fsicos - so um meio eficaz para
imitar Jesus sofredor. Camilo jamais abandonou este caminho, mas o aprofundou
sempre mais.
Significativas so estas palavras do seu testamento espiritual: Quero
suportar com pacincia todas as adversidades por amor daquele que quis morrer
por mim na cruz. Quero suportar no s a inapetncia de comida, a dificuldade de
dormir e as palavras desagradveis, mas tambm quero submeter-me, por amor
de Deus, a quem cuida de mim. Quero aceitar com pacincia por amor de Jesus,
qualquer medicamento amargo, tratamento doloroso e qualquer outro incmodo
at a agonia e morte, pois ele sofreu muito mais do que isso por meu amor.
Mesmo quando perder os sentidos, se ainda sentir alguma dor no corpo, quero
suport-la voluntariamente por amor de meu doce Jesus157.
A caminhada espiritual vivida no seu sofrimento pessoal, levou Camilo a
considerar suas doenas como misericrdias de Deus.
99
v a dor como um valor em si, chegando a exalt-la ou, em casos extremos, a
procur-la. Toda a sua vida foi uma luta contra o mal e as doenas.
No seu desejo de imitar Cristo, aceitando e valorizando os aspetos
negativos da vida, o Pe. Tezza quer apenas unir-se a Ele no projeto da redeno,
que continua no tempo.
Apesar de certas expresses que podem provocar ambigidade e confuso
- fenmeno que acontece at entre os grandes msticos, como S. Joo da Cruz,
Santa Teresa de vila, Santa Teresa do Menino Jesus - para Tezza o sofrimento
de Cristo e de Nossa Senhora depende sempre do amor: Verdadeiramente, o
nosso amor todo para a cruz e na cruz, e nela e por ela adquire sempre novo
vigor e chamas inextinguveis, que acabam por se confundir com os inefveis
ardores da caridade eterna158. Tambm o sofrimento humano, unido ao
sofrimento de Cristo, se entrelaa no amor.
100
sacerdote chegou ao altar. primeira salva de tiros, prostrou-se no santurio
diante de sua Divina Majestade....O aspecto majestoso e aristocrtico desse
ministro de Deus tocava o corao. A cor branca dos cabelos e da pele se
confundia com a alvura dos paramentos que trajava. A santidade imprime um
sinal que a alma no consegue disfarar. Via-se que, naquele momento, a alma
do sacerdote estava imersa no seu Deus. Este sacerdote o Rev. Pe. Visitador
geral da Ordem dos Crucferos, L. Tezza, que h pouco chegou de Roma e para
onde voltar em breve160.
Amor sobrenatural
160
Positio, II, p. 577.
161
AFSC 1A 082
101
tambm os meios materiais para sustentar e difundir sempre mais a vossa
obra162.
Virgem e Me
Mstica e asctica
102
so as tentaes de deixar-se levar pelas fraquezas da prpria natureza,
mergulhar na atividade, descuidar da vida interior, seguir caminhos espirituais que
atendem mais ao prprio ego do que busca de Deus.
Num escrito de 1870, aparece o rigor com que organizava a sua vida,
impondo-se objetivos precisos: decide manter sempre e em toda circunstncia
perfeita igualdade e tranqilidade de espirito; faz o propsito de ter com todos
boas maneiras, delicadeza e mansido; mostra vontade de controlar com
cuidado os seus sentimentos e manter fidelidade s prticas de piedade
prescritas164.
Com o passar dos anos, o autodomnio tornou-se um hbito quase
espontneo, facilitado pela sua finalidade, isto , a unio com Deus. Neste
sentido adquirem significado a sua sobriedade, a prtica escrupulosa da pobreza,
o regime de intenso trabalho, o controle dos sentidos, a mortificao.
Ao propor mtodos de ascese a outras pessoas, sobretudo s suas Filhas,
mostra bem a sua viso dessa dimenso da vida espiritual.
A busca da santidade e o cultivo das virtudes no deve visar metas
extraordinrias e vistosas, mas viver o dia-a-dia da vida com esprito elevado. De
fato, na vida diria que se escondem o que declara, numa palestra s Filhas, as
trs doenas da vida religiosa: a rotina, a negligncia e a indiferena.
Um bilhete, que guardava entre seus escritos, reproduz em termos
pessoais, o que dizia S. Francisco de Sales: No foi a alguns apenas, mas a
todos, que Deus disse: sede santos. A santidade, portanto, deve estar ao alcance
de todos. No que consiste? Em fazer muito? No. Marta, uma s coisa
necessria. Em fazer coisas extraordinrias? Tambm no. No seria para todos
nem para qualquer circunstncia. Mas est em fazer o bem e fazer bem o bem, na
condio e no estado em que Deus nos colocou. Nada mais do que isso, nada
alm disso165.
Suas exortaes, portanto, se voltam para um tipo de vida espiritual
simples, no qual transparea a dedicao total a Deus. Em carta a uma das Filhas
de S. Camilo pede-lhe que seja sria e modesta, sem afetao, boa e humilde
com todos, sem demasiada humildade e fraqueza, franca, aberta, desenvolta, sem
altivez e sem superficialidade166. Em seguida, acrescenta: Fale pouco, reflita
muito e reze mais ainda. Tudo em Deus, por Deus, com Deus...Lembre, filha
querida, que quanto mais for nada a seus olhos, mais se tornar apta para realizar
as maravilhas de Deus para o bem da sua congregao167.
Ao propor modos de mortificao, Tezza deixa-se guiar por um sadio
realismo, sugerindo que se evitem exageros. Seguindo S. Camilo, sublinha o que
mais tarde ir figurar na Constituio camiliana: a vida religiosa na fiel
observncia dos votos, na prtica da caridade fraterna e do ministrio, constitui
por si mesma uma intensa ascese. Embora sem excluir o valor da disciplina e do
164
Cfr. AFSC, 1A 0 129.
165
AFSC 1 A 0130
166
AFSC 1 A097.
167
Ib.
103
sacrifcio pessoal, valoriza a vida corrente como lugar para mostrar a fora do
amor, dominando as tendncias egostas.
Contemplativo na ao
O esplendor do amor
A vida do Pe. Tezza foi impregnada pelo Esprito. E uma vida impregnada
pelo Esprito como uma nuvem de vero; cobre o sol, mas ela prpria parece
ser sol; e talvez o seja, porque o sol est em cada uma de suas gotas. O amor de
Deus est presente em todas as expresses autnticas do amor dos homens. Deus
sempre Deus e uma nuvem sempre uma nuvem, mas a nuvem e Deus
resplandecem juntos.
Eplogo
A HERANA
Responder ao amor com amor
Aps a morte de uma pessoa sobra apenas o que de sua vida foi realmente
fecundo. Silncio e esquecimento apagam o resto.
168
Cicatelli S., Vita del P. Camillo de Lellis, a cura di P. Sanazzaro, Roma, 1980. P. 85.
104
Por isso, a herana do Pe. Tezza deve ser procurada nos pontos de sua
existncia que contriburam para gerar vida, abrir novos caminhos, promover ou
confirmar valores autnticos, prevalecer o ser sobre o ter. No faltam esses
pontos e podem ser vistos no pano de fundo de uma vida que, se do ponto de
vista humano, pouco teve de extraordinrio, foi, porm, o espao onde, pouco a
pouco, amadureceu um modelo de criatura nova, centrada no seguimento de Jesus
misericordioso, segundo o evangelho, fiel ao anseio de transmitir aos homens o
amor redentor do Senhor.
As Filhas de S. Camilo
O projeto no qual o Pe. Tezza mais investiu e que continua mais visvel no
tempo, foi a fundao da Congregao das Filhas de S. Camilo.
Ao fundar uma nova congregao religiosa, fez um grande apelo Igreja
para que d maior ateno s pessoas nas quais Cristo continua a sua paixo no
tempo.
Foi o que disse Joo Paulo II num discurso iluminado s Filhas de S.
Camilo: O carisma do servio aos doentes que vos distingue na Igreja, em fora
de um quarto voto, um dom e uma atividade que vos coloca no corao da vida
e da misso da Igreja, que Sacramento, sinal e instrumento do amor de Deus
para com o homem todo e todos os homens, com especial ateno para os
pequenos, os doentes, os pecadores.169
169
Os ensinamentos de Joo Paulo II, Vol. XIII, 1 (1990), p. 815.
105
Por acaso, a Igreja no precisa incrementar de forma sempre mais intensa e
significativa a dimenso mariana, feita de silenciosa presena na dor, de
grandeza que se torna acolhida e servio para os pobres, os fracos, as vtimas da
doena e da morte?
A dedicao de mulheres consagradas das mais adequadas para atender a
esta necessidade. A Filha de S. Camilo representa, de fato, a Me Igreja que
acolhe e cerca de ateno os aflitos e os fracos, que procura com toda a
dedicao aliviar os indigentes, servindo neles o prprio Cristo. Desta forma
contribui para o bem e a promoo de toda a famlia humana, cujas alegrias e
esperanas, tristezas e angstias encontra eco em seu corao170.
Pela presena e ao de suas amadas Filhas, o carisma do Pe. Tezza e
Josefina Vannini, cofundadora, floresceu em 17 pases de quatro continentes.
Enfrentando os desafios do mundo da sade e do sofrimento por meio de
grande variedade de ministrios, seguindo os passos de seus fundadores, as mil
Filhas de S. Camilo contribuem para a evangelizao mediante a prtica da
caridade misericordiosa e lembram constantemente a presena de Cristo em quem
sofre.
170
R. Pesce, Le Figlie di San Camillo, in A. Brusco, F. Alvarez, La spiritualit camilliana, Itinerari e
prospettive, Ed. Camilliane, Torino 2001, p. 422.
171
Novo millennio ineunte, Carta Apostolica 2000, n. 30.
172
Ib., n. 31
106
desinteressado ao prximo. No , talvez, em contato com os irmos e as irms
que sofrem no corpo e no esprito que o amor encontra a sua maior prova?173
Se por sua opo de vida o Pe. Tezza fala de maneira especial s pessoas
consagradas, a sua mensagem igualmente significativa para os cristos em geral
e os homens de boa vontade, sobretudo para os que se dedicam ao mundo do
sofrimento e da sade.
Do seu testemunho de vida brotam mensagens simples e profundas que
ressoam positivamente no corao e no esprito de quem vive em contato com o
sofrimento e trabalha na promoo da sade.
So convites para manter viva e vibrante a prpria humanidade, para amar
a vida e respeitar a pessoa humana ferida pela doena, a encontrar na doao de
si a recompensa do que se faz.
A se tornar consciente que h uma s resposta para o amor de Deus: o
amor.
NDICE
Apresentao
Introduo
Siglas
I. Um incio promissor
Os primeiros quinze anos: busca, alegrias e separaes
II. Surpresas e riquezas de um mundo novo
De Pdua para Verona
III. Uma plantinha que cresce bem
Noviciado e profisso religiosa
IV. Entre estudo e atividades pedaggicas
A preparao para o sacerdcio
V. No campo do apostolado
Anos ativos e agitados (1864-1867)
VI. A Misso da frica
Renncia a uma viagem desejada
VII. Intermezzo Romano
O suave peso da obedincia
VIII. O primeiro perodo francs
Maturidade ativa
IX. No vrtice da Ordem camiliana
Uma viso universal
X. O Fundador
Aberto voz do Esprito
XI. O Esprito da Fundao
173
Ib., n. 49; cfr, Mt 25.
107
Com corao de me
XII. A provao da cruz
Sofrer tudo em silncio de amor
XIII. Volta para a Frana
Uma permanncia difcil
XIV. Rumo a terras distantes
Uma viagem sem retorno
XV. A presena Camiliana em Lima
Luzes e sombras de uma longa e gloriosa histria
XVI. A reforma do convento da Buenamuerte
Com firmeza e doura
XVII. Os frutos da reforma
Fraternidade e vigor apostlico
XVIII. O preo do servio
Adeses e contrastes
XIX. O apostolado na cidade de Lima
Outono ativo
XX. A passagem para a outra vida
ltimos anos e morte
XXI. A Espiritualidade de Lus Tezza
Uma vida unificada.
XXII. A herana
Responder ao amor com amor.
ndice
108