Amor Sem Limites

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Pe. Angelo Brusco M.I.

PERFIL
DO
BEM-AVENTURADO
PADRE LUS TEZZA
FUNDADOR DAS FILHAS
DE SO CAMILO
Beatificado pelo Papa Joo Paulo, II
em Roma, no dia 4 de novembro de 2001

Ttulo italiano:
Lamore non conosce confini: Beato Luigi Tezza. Pe. Angelo Brusco M.I.
Torino, 2001

Traduo: Pe. Jlio Munaro M.I.

Com licena dos Superiores

@ 2001 Casa Provincial das Filhas de So Camilo


02241-120 rua Adelino Bortoli, 139
So Paulo SP
Tel.: (011) 6973-0813
Todos os direitos reservados

Impresso e acabamento: Edies Loyola (0**11) 6914-1922


Introduo

O Pe. Lus Tezza morreu em Lima, no dia 26 de setembro de 1923. Na


tradio crist, o dia da morte chama-se dies natalis ou dia do nascimento.
Chegou ao momento da morte, aberto para a eternidade, aps uma longa e
movimentada caminhada de vida, autntica peregrinao para a misso. De seus
82 anos de vida, passou 40 na Itlia, 19 na Frana e 23 no Peru. Somando
atividades a atividades, formou um quadro em que se constata a realizao de um
projeto, que evolui progressivamente em seu esprito. Foram muitas as funes
que desempenhou na Ordem dos Ministros dos Enfermos (Camilianos), da qual
foi membro desde os 15 anos: foi formador, superior de comunidade, fundador de
uma Congregao religiosa - as Filhas de S. Camilo -, ministro do amor
misericordioso para com os doentes, orientador de almas e reformador.
Quem o conheceu no teve dvidas em comprovar a perfeio do seu
amor, dando testemunho de sua santidade, conforme consta de documento que
sintetiza a opinio dos seus contemporneos:
Foi amado como pai e venerado como santo. J no est conosco, mas,
do seu tmulo, faz-nos ouvir os seus ensinamentos. A sua pessoa e o seu
comportamento eram de anjo; a sua palavra, de um ministro do evangelho; o seu
corao, receptculo de sentimentos elevadssimos; a sua amizade, uma corrente
de ouro que cativou, sem violncia, milhares de coraes e sua misso sempre foi
portadora de salvao. Esteve entre ns como uma viso celeste, sempre bom e
humilde, sempre carinhoso e cheio de amor. A f era a razo do seu agir, a
bondade o envolvia como um manto e o coroava como um diadema.
Estas palavras, que revelam o momento afetivo em que foram escritas,
foram confirmadas na memria que, com o passar dos anos, foi-se formando
sobre sua pessoa e sua obra.
Finalidade deste livro apresentar as etapas da viagem terrena do Pe.
Tezza e acompanhar a formao do quadro da sua vida, descobrindo o fio de
ouro do amor a Deus e ao prximo que entrelaou entre si os mltiplos
acontecimentos de que foi protagonista.
Realizao plena do projeto que Deus tinha sobre ele, a sua pessoa e a sua
vida contm uma mensagem que, com o passar dos anos, tornou-se sempre mais
evidente, apresentando de forma original os traos caratersticos de Cristo, divino
samaritano das almas e dos corpos.
A idia de viagem acompanhar toda a elaborao desta biografia.
Presente na literatura de todos os tempos, na Bblia adquire um valor simblico
excepcional. A Sagrada Escritura representa o homem como peregrino, cuja
caminhada s termina no encontro definitivo com Deus. Muitas vezes, como com
Abrao, o homem bblico sabe o que deixa, mas s Deus conhece a meta que
deve alcanar. Existe a viagem de libertao, como a do povo que saiu do Egito;
1
o caminho para o exlio; a fuga da responsabilidade; a peregrinao a Jerusalm.
No seu caminhar, o homem no est s, porque o prprio Deus peregrino; o
homem caminha para Deus, mas junto com Deus.
Estes diferentes sentidos de viagem esto presentes na caminhada terrena
do Pe. Tezza, muitas vezes levado por circunstncias especiais para direes
inesperadas, mas todas voltadas para a mesma meta. Nele, o deslocamento
geogrfico se transforma em viagem interior: peregrinao intensa, tenso
constante do corao voltado para Deus e o prximo.
So muitas as fontes de informao para estruturar a biografia do Pe.
Tezza. Foram recolhidas, avaliadas e organizadas num conjunto harmonioso pelo
Pe. Bruno Brazzarola, postulador geral dos camilianos. Os volumes por ele
organizados so de fundamental importncia para qualquer estudo sobre o Pe.
Tezza1. Outras publicaes, muitas escritas pelas Filhas de S. Camilo, ilustram
aspectos particulares da vida e da espiritualidade do Bem-aventurado.
Toda esta literatura tem sua fonte principal nas cartas do Pe. Tezza, que
do informaes no s de acontecimentos externos de sua vida, mas tambm, e
sobretudo, de seus estados de alma e de seu crescimento humano e espiritual.
Desde os 15 anos at quase a sua morte, Tezza valeu-se de cartas como
instrumento de informao, de desabafo interior, de manifestao de afeto, de
intercmbio espiritual.
Outra sntese de toda a documentao encontra-se nos dois volumes da
Positio super vita, virtutibus et fama sanctitatis, preparada em funo da causa
de beatificao do Pe. Tezza.
Agradeo a Madre Serafina Dalla Porta, por sua suave insistncia em
pedir-me que escrevesse esta biografia. Agradeo sinceramente a comunidade da
Casa Geral das Filhas de S. Camilo, onde tive acolhida fraterna e colaborao
generosa e competente.
O esforo deste trabalho foi recompensado por um conhecimento mais
profundo do Pe. Tezza, figura excepcional de homem e de camiliano.

Angelo Brusco

Roma, 02 de maio de 2001.

ABREVIAES

ACBM Arquivo Convento Buenamuerte (Camilianos - Lima)


AFSC Arquivo das Filhas de S. Camilo(Grottaferrata - Roma)
AG Arquivo Geral dos Camilianos (Roma)
1
Entre as obras de Brazzarola lembramos: Scritti del P. Luigi Tezza M.I. Fondatore della Congregazione delle
Figlie di San Camillo, Grottaferrata, 1988; I primi 23 anni di vita del Servo di Dio padre Luigi Tezza (anni
1841-1864), Grottaferrata, 1991; Biografia del Servo di Dio padre Luigi Tezza camilliano (anni 1865-1868),
Grottaferrata, 1993; Biografia del Servo di Dio padre Luigi Tezza camiliano (anni 1869-1900), Grottaferrata
1994; Gli ultimi 23 anni di vita del Servo di Dio padre Luigi Tezza camilliano (anni 1900-1923); Padre Luigi
Tezza camilliano (1841-1923), Grottaferrata, 1996.

2
APL Arquivo da Prov. Lombardo-Vneta (Verona)
ASV Arquivo Secreto Vaticano
Positio Romana seu Limana, Beatificationis et Canonizationis
Servi Dei Aloisii Tezza Sacerdotis Professi Ordinis Clericorum Regularium
Min. Infirmis Fundatoris Filiarum S. Camilli (1841-1923, Roma 2000).

3
I
UM COMEO PROMISSOR
Os primeiros 15 anos: buscas, alegrias e separaes.

A primeira etapa da vida de Lus Tezza abrange os anos que vo do


nascimento ao seu ingresso no Seminrio Camiliano de Verona (1841-1856).

Comeo de uma longa caminhada

Tezza no deixou qualquer notcia importante sobre este perodo de sua


vida. Nos seus escritos no se encontra qualquer referncia sua cidade natal, a
seus pais, ao mundo civil e religioso em que cresceu. Os nicos documentos que
escreveu so uma ficha pessoal, redigida no incio de sua experincia de
seminrio, e algumas cartas.
Este silncio sobre a sua infncia e adolescncia foi preenchido por outros
documentos que trazem, alm de dados bsicos, as informaes essenciais sobre
a famlia, os estudos e o nascimento da vocao religiosa na Ordem de S. Camilo.
atravs dessas informaes que se pode formar uma idia vaga de como as
experincias desses primeiros anos - o meio ambiente, as tradies da sua cidade
natal e da famlia... - tenham infludo em sua personalidade.
Conegliano, onde nasceu no dia 1 de novembro de 1841, uma pequena
cidade da provncia de Treviso, norte da Itlia. Localizada parte na plancie e
parte na encosta de uma colina, est cercada de paisagem amena que um pintor
local, - Joo Batista Cima - reproduz poeticamente em suas pinturas. Na sua
longa histria, que remonta ao sc. XII, a cidade passou por vrias dominaes,
ltima delas a de Veneza, antes de ser incorporada ao Reino da Itlia.

Os pais

Do pai de Lus, Augusto, s chegaram at ns notcias ligadas sua


profisso de mdico. A documentao no deixa dvidas quanto sua
competncia profissional. Num atestado expedido pelas autoridades dos lugares
onde trabalhou como mdico, constam grandes elogios ao trabalho que
desenvolveu na assistncia aos doentes, tanto pela quantidade de trabalho que fez
como mdico, como pela sua capacidade acima do comum. Pode-se deduzir
que Lus tenha herdado do pai o senso de responsabilidade, a dedicao ao
prximo, o profissionalismo. Provavelmente a atividade do pai contribui tambm
para abri-lo ao mundo da sade e do sofrimento, ao qual, mais tarde, dedicar
grande parte de suas foras.
Mais abundantes e significativas so as informaes sobre a me, Catarina
Nedwiedt. Se o marido deixou rfo o menino aos oito anos, ela o acompanhou
durante muito tempo, influindo decisivamente em suas opes. Era mulher rica de
qualidades humanas, dotada de grande sensibilidade, sustentada por uma viso de

4
vida fundamentada em slida espiritualidade. Ao filho transmitiu fineza, ternura,
gosto pela beleza, abertura para os valores do esprito. As tendncias de proteo
exagerada e de acentuada ingerncia na vida do filho no chegam a comprometer
a validade de seu estilo de educao, pois, sabia associar carinho disciplina,
muitas vezes severa.

xodos

Filho nico, Lus acompanhou sua famlia em suas andanas decorrentes da


profisso mdica do pai. Ainda no tinha completado um ms, quando a famlia
se transferiu para Veneza e, 18 meses mais tarde, para Dolo, onde morou at
1850. Pequeno municpio da provncia de Veneza, Dolo contava com uma
populao de aproximadamente seis mil habitantes e era muito procurada pelos
venezianos, que gostavam de suas plantaes de cereais, legumes e fruteiras.
Na cidade de Dolo, Lus freqentou os dois primeiros anos do ensino
fundamental, 1847-48 e 1848-49.
A morte prematura do marido, ocorrida no dia 11 de janeiro de 1850,
quando contava apenas 36 anos, obrigou D. Catarina a voltar para Conegliano,
juntamente com o filho. Durante quatro anos, Lus pde desfrutar do carinho da
av e dos tios paternos. Freqentou o terceiro ano do ensino fundamental (1849-
1850), matriculando-se, em seguida, no ginsio episcopal de Ceneda, hoje Vitrio
Veneto (1851-52; 1852-53).
A necessidade de dar a Lus melhores oportunidades de estudo, provocou
nova transferncia, desta vez para Pdua, cidade onde D. Catarina possua uma
pequena propriedade no bairro de Santana.

Em busca da vocao

Na cidade de Pdua, onde freqentou o ensino mdio, parte na escola


pblica - Ginsio Imperial - (1853-54; 1854-55) e parte em escola particular
(1855-56), Lus amadureceu a sua vocao para a vida religiosa.
Pouco sabemos da caminhada interior que levou o jovem Lus a optar pela
vida consagrada. Na Positio, com palavras um tanto enfticas, mas que devem
corresponder verdade, afirma-se que, de 1853 a 1856, teve comeo a vida a
dois, me e filho, unidos no apenas pelo sangue e pelo amor, mas muito mais por
igual vocao, um compromisso fundamental de vida: consagrar-se a Deus depois
que Lus terminasse seus estudos em Pdua. No fundo, era justamente esta a
vocao da me: dar a vida ao filho e prepar-lo para realizar o projeto de
Deus2.

O encontro com os camilianos

2
Positio, II, p. 11.

5
A busca espiritual realizada por D. Catarina e por seu filho foi favorecida pelo
contato com os Ministros dos Enfermos, popularmente conhecidos como
Camilianos, do nome de seu Fundador, Camilo de Lllis.
Em Pdua, os camilianos tinham-se estabelecido em 30 de agosto de 1846, a
pedido do bispo Modesto Farina, para assumir a direo e a assistncia espiritual
da Casa de Santa Ana. A Casa, fundada em 1821, abrigava 150 idosos e cerca de
60 meninos. Alm da direo do setor masculino da casa, os religiosos, padres e
irmos, davam assistncia espiritual e corporal aos idosos e acompanhavam os
jovens.
O encontro com os camilianos deu-se provavelmente pelo fato que D.
Catarina freqentava a Igreja da Casa de Santa Ana, onde tinha encontrado um
competente orientador espiritual na pessoa do Pe. Caetano Mdena, superior da
comunidade camiliana. Na crnica da casa de Pdua, D. Catarina considerada
exmia benfeitora da comunidade camiliana e de total amor pela Igreja de
Santana, qual doou muitas alfaias3. Junto com a me, Lus tornou-se um assduo
freqentador da casa dos camilianos, tanto assim que os religiosos escreveram:
Tezza mais nosso que de sua me; est quase sempre conosco4.
O discernimento vocacional de D. Catarina e de seu filho aconteceu em
clima de serena familiaridade, sob a orientao do Pe. Mdena. Religioso de
grande valor, alm de slida cultura clssica, possua dotes de bom animador,
tanto assim que foi nomeado superior geral da Ordem pelo papa Pio IX, cargo
que no aceitou. Demonstrava, para com Lus e sua me, estima, afeto e
proteo, chagando a falar de um grande amor que os unia a estas duas
pessoas, cujo corao e cuja ndole encontravam nele boa acolhida.
De sua parte, Tezza no hesitou em chamar o Pe. Mdena pai de minha
vocao, reconhecendo o papel por ele desempenhado na escolha que fez.
O modo como Lus verbalizou seu chamado vida consagrada simples e
preciso, como consta nas cartas que escreveu em 1855 ao Pe. Lus Artini,
superior da casa de formao dos camilianos em Verona. Declara-se chamado por
uma voz interior que se fez ouvir sempre mais forte e que o levou para a Ordem
dos Camilianos5. Mostra-se desejoso de falar com o Pe. Artini sobre o doce
problema da sua vocao. Enche-o de alegria o pensamento de poder transpor os
sagrados muros do convento de Verona para nunca mais deix-los.
Uma rpida visita a Verona, em 1855, encheu-o de alegria, confirmando-o
em seu propsito de seguir a vida religiosa.
No dia 29 de outubro de 1856, acompanhado pelo Pe. Mdena e por sua
me, Tezza entrou na casa religiosa de Santa Maria do Paraso, em Verona,
acolhido pelo Pe. Lus Artini, religioso que ter papel importante em sua vida.
Trs dias depois, tambm D. Catarina entrou no mosteiro de Santa Maria
da Visitao, em Pdua.

A experincia da separao
3
Cronaca della Casa dei Camilliani, Padova 26-30 ottobre 1856, in APL Registro Cronaca, vol. IV, fol. 27.
4
APL. 279/5o2.
5
APL 279/440

6
Esta fase da vida de Lus encerra-se com mais uma separao. Em 15 anos
apenas, a experincia da separao marcou profundamente a sua vida. Por cinco
vezes os acontecimentos o obrigaram a mudar de residncia. A deslocao
geogrfica traz sempre mudanas na psique e no esprito, causa sofrimentos,
reabre e aprofunda feridas. No caso de Tezza, a separao da me e dos
religiosos camilianos de Pdua, talvez, trouxe tona lembranas da morte
prematura do pai.
Quem acompanhou estas separaes deu-se conta de seu lado doloroso,
fazendo uma leitura em que se d nfase ao sofrimento, abrandado, mas no
eliminado, pela f. Fala-se do jovem Tezza que, com herico exemplo, se
separou da me, filho nico, para seguir a voz de Deus6. H quem manifeste sua
emoo por este rarssimo exemplo de desprendimento cristo mtuo. Parece
que se possa atribuir de modo especial a estes dois o elogio de Cristo, isto ,
que so dignos dele ao fazer to grande renncia, provocando ou, antes,
implorando o golpe da espada mstica que os separe para sempre.7
Vivida desde os primeiros anos de vida, a experincia da separao se far
sentir muitas vezes ao longo dos anos, exigindo que Tezza coloque a sua morada
onde a vontade de Deus o quer.

Retrato de um jovem de 15 anos

Quando Lus chegou a Verona para iniciar sua formao para a vida
religiosa ainda no tinha completado 15 anos.
Como se v pelas fotografias da poca, devia ser um rapaz bem apanhado,
harmoniosamente desenvolvido, de feies fortes e suaves ao mesmo tempo.
Trazia os traos da me, aristocrticos e perfeitos; as feies do rosto se
distinguiam pela beleza, viril e doce, no comum8.
As notas que obteve nos estudos revelam elevado grau de inteligncia.
Rico e expressivo afetivamente, tinha vida moral sadia, como se v pelo
testemunho de sua me que declarou considerar ntegro o lrio de seu filho.
A deciso de ingressar no seminrio foi fruto de um discernimento feito
com seriedade, sob a orientao de sacerdotes de grande experincia.
Sem dvida, um conjunto de fatores contribuiu para criar ao redor dele um
ambiente propcio para um crescimento sadio. s condies econmicas
favorveis e atmosfera cultural rica de incentivos, associava-se um ambiente
espiritual de amor e de bons exemplos, apesar das muitas transferncias e da
morte prematura do pai.
A ficha pessoal de Tezza seria mais completa se, alm desses elementos
positivos sobre sua pessoa, houvesse outros, que mostrassem o seu
relacionamento com os pais, os seus gostos pessoais, as inevitveis falhas do seu
carter e de seu comportamento...Isto ajudaria a evitar o risco de fazer um retrato
6
Cronaca della Casa di Padova..., fol. 60.
7
APL. 280/719.
8
Positio, II, padre 11.

7
por demais idealizado, prprio de um tipo de biografia que descamba para o
exagero e a unilateralidade.
Se a documentao que chegou at ns traz apenas os aspectos positivos,
claro que eram os que mais se destacavam, tanto assim que um religioso da
comunidade camiliana de Pdua previu que teria um futuro promissor e glorioso:
Sinto por este rapaz afeto e estima, pois prevejo que, no futuro, trar glria para
a nossa Ordem.9

II
SURPRESAS E RIQUEZAS DE UM MUNDO NOVO
De Pdua para Verona

Ao se estabelecer em Verona, Tezza entrou num mundo muito diferente


daquele em que tinha vivido at ento. A passagem da vida de famlia para a vida
de seminrio exigiu novo modo de organizar o tempo, novos relacionamentos,
disciplina rigorosa.
Mas estes desafios tambm lhe abriram novos horizontes. Em Verona,
pde respirar a atmosfera cultural e religiosa de trs mundos distintos: a Ordem
dos Ministros dos Enfermos (Camilianos), a Igreja de Verona e a realidade social
e poltica da poca.

O mundo camiliano

A Ordem dos Ministros dos Enfermos (camilianos) foi fundada por S.


Camilo de Lellis10 em 1582 e definitivamente aprovada pelo Papa Gregrio XIV
em 1591.
Camilo nasceu em 1550. Viveu um perodo de vida superficial e, em parte,
dissipada. No dia 2 de fevereiro de 1575 teve uma forte experincia de Deus que
o levou a mudar radicalmente de vida e de comportamento. Fracassou duas vezes
na tentativa de ser capuchinho por causa de uma chaga incurvel que trazia num
dos ps e acabou descobrindo que sua vocao estava em servir os doentes.
Internado no hospital S. Tiago, em Roma, Camilo acabou trabalhando naquele
hospital como enfermeiro e encarregado do pessoal.
A caminhada espiritual, sob a orientao de S. Felipe Neri, desenvolveu em
Camilo uma crescente sensibilidade para com os doentes e sofredores. Tendo-se
dado conta da m assistncia prestada aos doentes no hospital S. Tiago, pois, boa
parte dos funcionrios era mal preparada e sem motivao, teve a inspirao de
fundar uma companhia de homens de bem para servir os doentes, no por
dinheiro, mas unicamente por amor de Deus.
Esta primeira idia da fundao tornou-se realidade em 1584 e, em 1591,
quando a congregao dos Ministros dos Enfermos foi elevada a Ordem
Religiosa.

9
APL. 280/801.
10
Cfr. M. Vanti, San Camillo e i suoi Ministri degli Infermi, Roma 1957.

8
Aos votos tradicionais de castidade, pobreza e obedincia, Camilo
acrescentou um quarto, exigindo de si mesmo e dos seus religiosos que se
consagrassem ao servio dos doentes, ainda que com risco da prpria vida.
Camilo deixou exemplos sublimes de sua dedicao aos doentes. Trabalhou
durante muitos anos no Hospital do Esprito Santo, em Roma, acorreu aonde
eclodiam pestes ou irrompiam situaes de emergncia, fundou comunidades
camilianas em vrias cidades da Itlia.
A obra de Camilo no se limitava ao, mas dava espao reflexo sobre
como servir os doentes. Embora no fosse culto, possua qualidades geniais,
carismticas e profticas. No campo da assistncia aos doentes, a histria o
reconhece como um reformador importante. Seu modo de ser e de agir com a
pessoa que sofre tornou-se uma escola, cuja originalidade foi reconhecida pela
Igreja atravs do Papa Bento XIV. Uma escola na qual se pode aprender no s a
cuidar do doente com amor e competncia, mas tambm a viver a vida no
Esprito de forma toda especial.
Um documento de sua contribuio para a reforma da assistncia aos
doentes so as Regras da Companhia dos Ministros dos Enfermos11, escritas de
um s jato, em 1584. So uma amostra realmente encantadora de competncia e
de amor no servio aos doentes.
Nelas destaca-se a centralidade do doente, senhor e patro de quantos o
assistem e do prprio hospital. Tudo deve voltar-se para o seu tratamento,
evitando toda e qualquer instrumentalizao. A dignidade do doente decorre do
fato de ele ser sacramento da presena de Cristo. De fato, servir o doente servir
Cristo; Estive doente e me visitastes(Mt 25, 36).
Nas palavras e nos gestos de Camilo est presente a globalidade da
assistncia ao doente: corpo e alma so inseparveis no doente e suas
necessidades corporais e espirituais devem ser encaradas numa viso unitria da
pessoa. Enfim, quem cuida do doente no deve apenas assumi-lo na globalidade
de sua pessoa, mas achegar-se a ele com a totalidade do seu ser: conhecimento e
afetividade, tcnica e corao. Ficou famosa uma frase que Camilo disse aos seus
colaboradores: Irmos, mais amor nas mos!. Neste envolvimento afetivo
merece destaque a dimenso feminina do amor: amor terno, carinhoso, rico de
compaixo.
Quando Camilo morreu, em Roma, no dia 14 de julho de 1614, a Ordem
por ele fundada contava mais de 300 religiosos divididos em 5 provncias.
Ao perpetuar o carisma do fundador, a Ordem camiliana manteve-lhe
fidelidade fundamental. Mas no faltaram crises. Uma das mais graves afetou a
Ordem na segunda metade do sc. XVIII, provocando sria diminuio numrica
dos religiosos e certa decadncia dos valores prprios da vida consagrada. A
presena dos camilianos nos hospitais perdeu fora e a vida fraterna em
comunidade deteriorou-se. Influncia negativa foi provocada teve a interferncia
do poder civil em questes internas da Ordem.

11
Este documento encontra-se em: G. Sommaruga (a cura di), Scritti di San Camillo, Edizioni Camilliane,
Torino 1991, pp. 17-29.

9
O desejo de reforma, que surgiu nas primeiras dcadas do sc. XIX, teve
um realizador eficaz na pessoa do Pe. Camilo Csar Bresciani.12 Sacerdote da
diocese de Verona, pessoa culta, orador e poeta de renome nos meios cultos da
cidade, foi motivado a pedir a presena dos camilianos em Verona para dar
continuidade ao maravilhoso movimento em prol dos doentes desenvolvido por
uma associao de voluntrios, a Irmandade dos sacerdotes e dos leigos
hospitaleiros, da qual foi um dos grandes promotores. Tendo-se tornado
camiliano, iniciou uma fundao que logo cresceu e se tornou provncia da
Ordem, marcada por um padro de vida fiel ao ideal de S. Camilo.
O mundo camiliano em que ingressou Tezza era, pois, novo e sadio,
coerente com o ideal do Fundador, rico de uma espiritualidade capaz de
transformar pessoas, conformando-as a Cristo misericordioso. Religiosos de
grande envergadura humana e espiritual contriburam para realizar a reforma de
Bresciani, com um grupo de jovens camilianos animados de zelo apostlico e
ardor missionrio.

Na Igreja de Verona

A presena e o crescimento da Ordem de S. Camilo em Verona no podem


ser compreendidos se no forem vistos luz da Igreja de Verona no sc. XIX 13.
Presidida por grandes bispos, distinguiu-se em vrios setores, mas sobretudo no
campo da caridade. Segundo D. Joo Andr Avogadro, que governou a diocese na
difcil passagem do sc. XVIII para o sc. XIX, a suprema regra pastoral devia
ser dedicar-se ao bem do prximo, sem qualquer distino de classe. A j
mencionada Irmandade dos Sacerdotes e dos Leigos Hospitaleiros14 catalisou
muitas obras de assistncia aos pobres e aos doentes. Ao redor dela atuaram
homens e mulheres de excepcional valor, sacerdotes e leigos. Muitos deles se
tornaram fundadores de Congregaes Religiosas: Pedro Leonardi, Madalena de
Canossa, Gaspar Bertoni, Antnio Provolo, Carlos Steeb, Vincenza Poloni... A
respeito de Madalena de Canossa, o Pe. Camilo Csar Bresciani escreveu que
foi no hospital lbios de mel, com braos de amor e mente de anjo. E falando
de Steeb e de Poloni, comparou-os a dois riachos que desembocam num nico
rio, para tornar bem temperadas e indistintas as guas da caridade. Para todas
estas pessoas, o hospital foi escolhido como a propriedade de Verona, ou
melhor, de Cristo, puro jardim da humanidade e da religio; os pobres e os
doentes, a verdadeira vida de sua vocao celestial.
Ao servio, dia e noite, aos doentes no hospital, acrescentou-se um
programa assistencial voltado, como lembra Madalena de Canossa, para a
juventude pobre e abandonada e para as vtimas da guerra e de outras
calamidades pblicas (mulheres transviadas, filhos ilegtimos...), instruo

12
A. Brusco, P. Camillo Cesare Bresciani, fondatore della Provincia Lombardo-veneta dei Chierici Regolari
Ministri degli Infermi (Camilliani), Il Pio Samaritano, Milano 1972.
13
Cfr. AA. VV., Chiesa e spiritualit nellOttocento italiano, Mazziana, Verona 1971.
14
Cfr. A. Brusco, P. Camillo Cesare Bresciani..., pp. 57-72.

10
religiosa...A espiritualidade que animava este movimento caritativo centrava-se
na humanidade sofredora de Cristo, presente no pobre e no doente.
O Pe. Camilo Bresciani e os seus religiosos alimentaram-se deste fervor de
caridade que permeava a Igreja de Verona, fazendo com que tambm os
seminaristas participassem.

Sociedade civil rica e complexa

A Ordem de S. Camilo e a Igreja de Verona do sc. XIX viveram numa


sociedade marcada por acontecimentos importantes, portadores de novos traos
culturais com os quais tiveram que se confrontar. Para dar-se conta, basta lembrar
a decantao da cultura da Revoluo Francesa, levada para a Pennsula Itlica
com as tropas de Napoleo, a revoluo industrial, o Ressurgimento Italiano, a
independncia da Itlia, a supresso das Ordens religiosas em 1866. Estes
acontecimentos mudaram a fisionomia da sociedade, gerando progresso, mas
tambm exaltando os nimos e provocando divises.
Como noutras regies da Itlia, tambm em Verona a Igreja teve que
enfrentar um mundo em rpida e, sob certos aspectos, tumultuada mudana, que
apresentava enormes desafios. Ao lado de atitudes rgidas e polmicas, de
tendncias a demonizar os adversrios, de se fechar atrs de barricadas, no
faltaram estratgias pastorais para reevangelizar a sociedade por meio de
atividades caritativas, de promoo das misses, numa palavra, do despertar das
ricas energias espirituais que, presentes na vida da igreja, aguardavam orientao
para objetivos de atualidade15.

Encontro com um homem excepcional

Estes foram os mundos nos quais a personalidade de Lus Tezza respirou


no tempo de sua formao para a vida consagrada e o sacerdcio. Vivendo numa
casa de formao, a influncia do mundo exterior, seja eclesistico que civil,
passava pelo filtro da formao do seminrio, cujo principal responsvel era um
religioso excepcional: o Pe. Lus Artini16.
Nascido na Diocese Verona em 1808, Artini fez-se camiliano aos 32 anos,
aps um longo perodo de ministrio sacerdotal. Quando estudante, foi voluntrio
nos hospitais da cidade, onde conheceu o Pe. Bresciani, que o levou a se tornar
religioso camiliano.
Pregador de renome e hbil orientador espiritual, culto, de grande zelo
pastoral, dedicado aos pobres e aos doentes, austero e exigente, mas de viso
larga, dotado de qualidades de governo, Artini contribuiu de forma decisiva para
o crescimento da fundao camiliana de Verona, antes como formador e, depois,
como superior responsvel por toda a provncia.
15
Cfr. G. Butturini, Da Verona al Mondo, in Una Citt, un Fondatore, Miscellana di studi mazziani II,
Verona 1980, pp. 341-449.
16
G. Bonaldi, Il sacerdote Luigi Artini e la sua vocazione nellOrdine di San Camillo, Quaderni di Storia della
Provincia Lombardo-Veneta dei Ministri degli Infermi (Camilliani), Verona 1991.

11
Na qualidade de formador, criou um bem sucedido cenculo de piedade e
de estudo, onde os jovens candidatos vida camiliana podiam ter uma educao
apropriada para se tornar autnticos Ministros dos Enfermos, segundo o esprito
de S. Camilo.
Como superior, mostrou-se capaz de liderana inteligente e firme, levado
por projetos apostlicos de grande abertura.
Padre Artini acompanhou o jovem Tezza ao longo de toda a sua formao
de camiliano. Entre os dois, estabeleceu-se um relacionamento positivo que
cresceu sem parar, assumindo caractersticas de profunda amizade espiritual.

III
UMA PLANTINHA QUE CRESCE BEM
Noviciado e profisso religiosa

A caminhada de formao de Tezza comeou com a cerimnia da tomada


de hbito religioso em 8 de dezembro de 1856.
Normalmente, o noviciado precedido por um perodo de preparao, o
postulado. Nesse tempo, verifica-se se o candidato tem as qualidades necessrias
para iniciar a experincia de vida religiosa. Lus Tezza foi dispensado dessa etapa
de formao, provavelmente pelo tempo que passou em contato com a
comunidade camiliana de Pdua.
A pouca idade de Lus - tinha apenas 15 anos - no deixou de suscitar
dvidas em alguns de seus familiares quanto capacidade de enfrentar a
experincia da vida religiosa. A me exps as suas preocupaes numa carta aos
superiores, que a tranqilizaram quanto condio psicolgica e espiritual do
filho.

O programa de formao

Durante os dois anos de noviciado, o trabalho concentrava-se na formao


espiritual segundo as Regras da Ordem camiliana, mas aberto a outras atividades,
como o estudo.
O esprito que caracterizava o programa de noviciado daquele tempo era
de disciplina severa. Era proibido aos novios manter qualquer contato com
pessoas estranhas ao noviciado. Dava-se grande importncia observncia das
regras, cheias de detalhes. Num contexto de isolamento, o novio aprendia vrios
mtodos de orao, ascese e prtica do ministrio camiliano.
Um documento da poca indica os objetivos da formao para a prtica do
carisma camiliano e a metodologia a ser seguida.
Os novios deviam tomar conscincia da nobreza e da excelncia da
finalidade prpria da Ordem, com estima elevada e ardentssimo amor.
Sublinha-se, com certa nfase, que os novios so chamados a convencer-se que
a glria do camiliano est em servir os doentes com perfeio. Para atingir este

12
objetivo so necessrios a observncia perfeita das Regras e o estudo, sobretudo
das cincias sagradas.
Um ponto importante era o estgio que os novios deviam fazer para
aprender a cuidar dos doentes. Seguindo o exemplo de S. Camilo, os novios
faziam ora o papel de doente, ora o de quem cuida do doente17.
Toda a formao desenvolvia-se sob a orientao atenta do mestre de
novios, que tambm era seu confessor.
So poucas as informaes a respeito da caminhada humana e espiritual de
Tezza durante o noviciado. Vista com olhos humanos e superficiais, a experincia
de noviciado pode ser considerada como camisa de fora para este jovem que
vinha de um contexto de liberdade e de autonomia. As informaes que chegaram
at ns, embora poucas, mostram, porm, que este tempo foi de grande proveito
para o seu crescimento humano e espiritual.

O relacionamento com o Mestre

Um dos fatores que contriburam para o bom xito do noviciado de Lus


Tezza foi, sem dvida, o bom relacionamento que se estabeleceu entre ele e o
mestre, Pe. Artini. Analisando este relacionamento pode-se chegar a uma certa
avaliao da caminhada feita por Tezza durante o noviciado e, tambm, dar-se
conta de alguns traos importantes da sua personalidade.
Na sua maneira de tratar com o mestre, Tezza demonstrou certa
dependncia. Declarava com freqncia que sentia a necessidade do brao e do
apoio de Artini para seguir o spero e difcil caminho que leva salvao,
deixando entrever que se sentia perdido sem a sua ajuda. No sentia receio de se
declarar, todo, em tudo e por tudo do Pe. Artini.
Durante a formao, a dependncia uma condio necessria para tornar-
se disponvel educao, sem o que nenhum crescimento vivel. Corre-se o
risco, porm, de que a dependncia, fruto de demasiada confiana no educador,
engendre passividade e tolha a participao ativa no processo de formao.
Ao ler as cartas que escreveu ao Pe. Artini, fica a impresso que foi
tentado a colocar tudo nas mos do seu formador. Mais de uma vez prometeu-lhe
pronta, cega e alegre obedincia, fazendo que sua vontade tambm seja a
minha. H outras expresses que tambm levam a crer que seu comportamento
tivesse como finalidade agradar ao Pe. Artini, mais que realizar o seu projeto de
vida.
Contribuiu para alimentar esta impresso o seu amor filial, afetuoso e
intenso para com o mestre, considerado como bom pai. No impossvel que a
figura paterna do Pe. Artini tenha substitudo a do pai, desaparecido demasiado
cedo do seu mundo afetivo. Isto pode explicar o fato de tratar o mestre com
linguagem muito familiar, alm de outras manifestaes de grande afeto18.
17
Regole per Chierici Regolari Ministri degli Infermi con un ristretto delle Costituzioni ad uso dei Fratelli
Laici Novizi ed Oblati com laggiunta di alcuni avvisi per i Novizi ed un breve metodo per lorazzione mentale ,
Roma 1848, pp. 35-36.
18
Cfr. APL. 282/422.

13
No consta que o Pe. Artini tenha rejeitado as manifestaes de carinho do
jovem Tezza. Antes, as retribua, compreendendo o que se passava no corao do
adolescente, cujo desejo de firmar a sua autonomia continuava inferior
necessidade de ser ajudado.
Tendo percebido o grande potencial humano e espiritual daquele jovem,
via nele uma esperana para a Ordem e para a Igreja. compreensvel, portanto,
que, tomado de sentimentos de simpatia e benevolncia, chegasse a atitudes de
preferncia para com ele. Isso no passava desapercebido ao jovem Tezza, que se
sentia confuso por tamanha bondade e ateno do seu pai.
Como bom formador, Artini fez o possvel para que o relacionamento entre
ele e Tezza no se tornasse prejudicial, mas contribusse para fazer dele um
autntico religioso, imitador de S. Camilo.
Dessa amizade nasceu em Lus o desejo de abrir por completo seu corao
e sua alma ao formador. Sentia-se grato at na intimidade mais profunda19. Lus
gostava de realar sua sinceridade no relacionamento, deixando que Artini lesse
no mais ntimo do seu corao. O Pe Artini foi visto por Tezza no apenas como
pai, mas tambm como modelo e guia, capaz de lev-lo meta.

O engajamento pessoal: estudo e ministrio

Tezza acrescentava a esta disponibilidade de se deixar conduzir no


processo de crescimento humano e espiritual, tambm o seu engajamento pessoal,
prometendo com toda a generosidade do meu corao querer, de agora em
diante, progredir sempre mais no caminho da virtude...20. O seu olhar estava
sempre voltado para a santa finalidade da obra, atrado pela beleza da meta.
Sob a influncia do Pe. Artini, comeou a criar uma atitude interior que ir
crescer ao longo de sua vida: deixar-se guiar pelo desejo sincero de conhecer e
fazer a vontade de Deus,... preocupado em agir para a maior gloria de Deus e o
bem das almas21.
Estes princpios o ajudaram a realizar as diversas atividades exigidas pelo
programa de noviciado.
Pouco sabemos do trabalho de Tezza com os doentes durante os dois anos
de noviciado. O nico aceno encontra-se numa carta do Pe. Estanislau Carcereri
ao Pe. Artini. Doente, Carcereri foi assistido por Tezza, que o declarou nunca
suficientemente louvado e amado enfermeiro, que reproduz muito bem a virginal
modstia de S. Lus e a fervorosa caridade do nosso santo pai e fundador
Camilo22.
Como j dito, no noviciado havia a possibilidade de continuar os estudos.
Lus precisava terminar dois anos do ensino mdio para enfrentar os exames de
maturidade. Como nos anos anteriores, a sua inteligncia, unida a muita
aplicao, garantiu-lhe bons resultados no seminrio episcopal de Verona. Mas
19
APL. 2533/432.
20
APL. 281/134.
21
Positio, II, padre 51.
22
APL 281/733.

14
quando foi prestar os mesmos exames como privatista no Real Colgio da cidade,
foi reprovado. O resultado surpreendeu at seus professores. o primeiro
fracasso que se conhece na vida de Tezza. Uma lio amarga para ele que,
certamente, lhe causou sofrimento, mas sem comprometer a sua caminhada.
No noviciado no faltavam momentos de descanso e lazer. Pode-se
imaginar do que fosse capaz um grupo de adolescentes em termos de brincadeiras
e de esportes. De tempos em tempos, os novios iam para a casa de descanso de
S. Juliano, uma casa modesta, construda sobre as runas de uma antiga torre,
com uma pequena capela ao lado. A VILA, como era conhecida pelos religiosos,
ficava perto de Verona, sobre um promontrio de pedra. Servia de lugar de
descanso para os religiosos que trabalhavam com os doentes e tambm para os
estudantes.

A presena da me

No temos notcias da avaliao do caminho percorrido por Tezza durante


o noviciado. S na correspondncia entre a me de Lus e o Pe. Artini encontra-se
algo. D. Catarina ficava feliz ao ouvir os elogios do mestre dos novios ao seu
filho, visto como plantinha que cresce bem.
Embora distante, fazia-se presente atravs de suas cartas. Tendo entrado no
Mosteiro da Visitao, tambm ela estava em tempo de formao. Aps o
postulado, vestiu o hbito religioso no dia 21 de agosto de 1857. Me e filho
caminhavam juntos rumo mesma meta: a consagrao pela profisso dos
conselhos evanglicos.

A profisso religiosa

Lus emitiu a profisso religiosa no dia 8 de dezembro de 1858.


Alguns dias mais tarde, manifestava a sua admirao pelas muitas graas
recebidas, com um estilo algo redundante, mas que vale a pena lembrar, pois
mostra a linguagem usada na literatura espiritual daquele tempo. Fala da graa de
ter deixado o mundo, que no merece confiana, lobo rapaz, acolhido no redil
de Jesus, contente por ter vestido o hbito religioso nas verdejantes pastagens
de virtude, com a sede saciada nas lmpidas fontes da salvao, oferecido em
holocausto a Deus e marcado com um glorioso smbolo divino23.
Se estas palavras e imagens um tanto altissonantes manifestam a sua
alegria imediata pela meta alcanada, tambm deixam transparecer sentimentos
de tranqila segurana, fruto de uma identidade que se vai formando num
entrelaamento harmonioso de elementos humanos e espirituais.
O que Tezza recebeu no noviciado ser integrado progressivamente,
traduzindo-se em comportamentos cada vez mais maduros.

23
APL. 2533/484.

15
IV
ENTRE ESTUDOS E ATIVIDADE DE FORMAO
Preparao para o sacerdcio

Feita a profisso religiosa, Lus iniciou o segundo perodo de formao,


dedicado ao estudo e preparao para o sacerdcio. Esta etapa, que vai do fim
de 1858 at 1864, transcorreu-a toda em Verona, na casa de Santa Maria do
Paraso, com breves passagens por S. Juliano.
Tinha pouco mais de 17 anos. A profisso religiosa ajudou-o a dar mais um
passo no processo de unificao do seu ser. Considerava-se sempre mais como
uma pessoa consagrada a Deus. Alm disso, as ordens menores, que recebeu no
dia 28 de dezembro de 1858, levaram-no a pensar no sacerdcio com o desejo de
se tornar autntico seguidor de Cristo, autntico ministro do santurio, autntico
religioso24. Rumo a esta meta, caminhou sempre sob a orientao do Pe. Artini,
com quem manteve um relacionamento rico de amor e de estima.

Mltiplas atividades

O que devia ser para Tezza um tempo relativamente tranqilo, concentrado


no crescimento espiritual e no estudo, tornou-se um perodo de intensa atividade
e de grandes responsabilidades.
Incentivado pelo Pe. Artini, no segundo semestre de 1859 enfrentou
novamente, e com sucesso, os exames de maturidade, apesar dos protestos da
me, preocupada com a sade do filho. Com sua intuio de me, D. Catarina
procurava impor suas razes ao Pe. Artini: O olho de me, escreveu-lhe,
perspicaz e seu corao adivinha o que outros nem sequer sonham25.
As suas preocupaes no eram sem fundamento. Em 1859, Tezza foi
nomeado, oficialmente, diretor do seminrio menor. Esta delicada misso,
acrescida ao estudo, foi-lhe confiada aps cuidadosa avaliao de sua
capacidade. Dizia-se dele que educa com fineza, e sendo sua caracterstica a
caridade e a doura, sabe tornar o peso da disciplina, difcil em si e quase
insuportvel para os jovens, mais doce que o mel26.
Se esta atividade lhe trouxe gratificaes, pois os jovens se mostravam
satisfeitos com seu mtodo de formao, no deixou de incidir em suas condies
de sade.
Em carta ao Pe. Artini consta que atravessou um momento de crise e de
desconforto. Fala de grande melancolia que, apesar dos seus esforos, se
fazia cada vez mais forte e a todo momento arrancava-me algumas lgrimas, e
garante que nunca tinha experimentado um dia assim27. Tratando-se de fato
isolado, a reao emotiva de Tezza deve ser vista como decorrncia de um
momento de stress, superado graas ajuda de seu mestre.
24
APL. 282/799.
25
APL. 1433/134.
26
APL., Cronaca della Casa di Noviziato e Studio dallanno 1858 allanno 1866, vol. V, fol. 127.
27
APL. 283/346.

16
Estudos de filosofia e teologia

Tezza fez o curso de filosofia e teologia parte na prpria comunidade


camiliana e parte no seminrio episcopal de Verona. difcil avaliar o nvel dos
estudos das duas escolas.
Embora o Pe. Artini desse grande importncia formao cultural, no
podia esquecer o nmero limitado de professores camilianos e que nem todos
tinham preparao altura. As excelentes notas dadas a Tezza, revelam a sua
inteligncia, mas no a qualidade acadmica dos programas que dependiam do
regulamento de estudos do seminrio episcopal, que no visava a formao de
doutores em teologia, mas de pastores de almas, ministros da Igreja.
Nas crnicas da casa fala-se, de forma elogiosa, de sua participao bem
sucedida numa disputa teolgica na Igreja de S. Bernardino, em Verona.

Como professor

A dedicao de Tezza aos estudos foi posta prova no s pela funo de


diretor do seminrio menor, mas tambm pela atividade de professor dos
seminaristas. Por falta de pessoal qualificado, eram escolhidos tambm os
estudantes de boa capacidade. Tezza, que figura entre eles, ensinou histria,
fsica e grego. Mais tarde, em 1863, foi encarregado de redigir os Anais da
Provncia.

Adeso a um tipo de vida religiosa renovada

Entre os acontecimentos que marcaram este perodo da vida de Tezza figura, em


1862, a elevao da fundao camiliana Lombardo-Veneta a Provncia religiosa.
A cerimnia, celebrada com solenidade em Verona, revestiu-se de especial
importncia, pois significou a aprovao do projeto de reforma da Ordem de S.
Camilo levado a termo pelo Pe. Bresciani, que tinha como objetivo o servio
completo aos doentes e a vida fraterna em comum.
Tezza estava profundamente envolvido nesse acontecimento, pois tinha
compreendido o seu significado e o seu alcance. De uma carta que escreveu ao
Pe. Bernardino Girelli28, percebe-se que conhecia a situao da Ordem e o
processo de renovao em marcha na fundao de Verona. A expectativa da
elevao da nova provncia encheu-o de alegria e o levou a ver toda a Ordem
arrancada, num abrir de olhos, do tmulo, em que estava prestes a ser fechada,
para a alegria de uma vida esplndida.
O seu contentamento foi ainda maior pela nomeao do Pe. Artini como
superior da nova provncia. Por seu intermdio seja-nos dado ver resplandecer,
entre as espessas trevas, o sol da paz, da tranqilidade, da justia, de que h
muito est privada a nossa pobre Congregao29.
28
APL. 287/161.
29
APL. 2534/317.

17
O crescimento espiritual

Em meio a estudos, atividades de formao e ensino, os anos passaram


rapidamente e Tezza chegou s ordens sagradas. Foi ordenado subdicono no dia
21 de maro de 1863; dicono no dia 19 de dezembro do mesmo ano e sacerdote
no dia 21 de maio de 1864.
Chegou a essas metas atravs de longa caminhada de crescimento
espiritual, durante a qual a busca da perfeio da caridade no diminuiu nunca.
Oh, sim, querido Padre, quero ser santo, verdadeiro imitador da caridade do
santo pai Camilo30, escreveu ao seu mestre.
No se trata de auto-avaliao, mas de resposta feliz a uma atrao
interior, marcada por momentos msticos, nos quais se sentiu tomado de divinal
embriaguez, com o esprito inundado por um rio de paz, de alegria, de
exultao, a ponto de duvidar de si mesmo, refletindo que a satisfao plena
nesta vida mal convm a uma alma que, aspirando ao cu, deve, sempre e
fortemente, sofrer com Jesus31.
Nesse tempo comearam a surgir os primeiros sinais do que se pode
chamar de a teologia da cruz, um dos pontos centrais da sua espiritualidade.
Afirma sentir-se atrado de maneira forte e incessante para sofrer com Jesus e
por Jesus. Brotam-lhe, espontneas, as reflexes sobre o sofrimento de Cristo
crucificado, acompanhado por Nossa Senhora das Dores32. Entregando-se
vontade divina, desfruta de um rio de paz que supera qualquer sentimento
humano.
Tambm a formulao de conceitos de vida espiritual progrediu graas aos
estudos de teologia, tornando-o capaz de associar clareza de expresso e
entusiasmo interior.
Esta adeso afetiva a tudo quanto se refere ao esprito deixa entrever um
trabalho atento sobre si mesmo, a ginstica dos desejos de que fala S.
Agostinho, cuja finalidade esvaziar o corao do que vo e suprfluo para
buscar o nico bem, Deus.33
Tambm devem ser vistas luz desta finalidade as suas prticas ascticas
dirias, cuja finalidade era lev-lo a se conformar sempre mais com a vontade de
Deus. Um exemplo desse trabalho sobre si mesmo foi o propsito de ser
obediente at nas mnimas coisas.

30
APL. 2533/569.
31
APL. 288/942.
32
APL. 283/145.
33
A nossa vida uma ginstica do desejo. O santo desejo ser tanto mais eficaz quanto mais arrancarmos a
raiz da vaidade aos nossos desejos. J o dissemos outras vezes que para poder encher-se necessrio antes
esvaziar-se. Tu deves ser enchido pelo bem, e por isso deves livrar-te do mal. Suponha que Deus quer encher-te
de mel. Se ests cheio de vinagre, onde colocar o mel? Deve-se esvaziar a vasilha daquilo que tinha dentro,
melhor, precisa limp-lo. Talvez seja necessrio limp-lo com esforo e dedicao, se necessrio, para que seja
apto a receber algo. Quando dizemos mel, ouro, vinho, etc., no fazemos mais do que referir-nos nica
realidade que queremos enunciar, mas que indefinvel. Esta realidade chama-se Deus (Tratado 4; PL. 35,
2008-2009).

18
Nesta caminhada de crescimento, o ideal camiliano esteve sempre
presente, orientando-o na perspectiva do autntico esprito de S. Camilo e da
prtica da caridade para com os doentes.

As ordens sagradas: diaconato e sacerdcio

As ordens sacras, recebidas nesse estado de alma, tornaram-se fonte de


grande alegria, unida ao reconhecimento da benevolncia de Deus. s vsperas
do diaconato, 19 de dezembro de 1863, chorou de emoo, de confuso, de
gratido ao sentir-se elevado a to grande dignidade. A sua alegria foi partilhada
pela me que, como sempre, tinha acompanhado espiritualmente o filho atravs
da orao, envolvendo todo o mosteiro na solidariedade espiritual com Lus. Em
carta ao Pe. Artini, confessou que pediu a Deus que levasse seu filho antes que se
desviasse da perfeio religiosa34. Agora, fala de consolao, gratido, confuso e
dor, ao mesmo tempo35.
Mas foi a ordenao sacerdotal, celebrada no dia 21 de maio de 1864, que
encerrou o tempo de formao de Tezza. Na crnica da casa de Santa Maria do
Paraso, o acontecimento foi narrado em detalhes. O tom da narrativa, com
alguma redundncia, deixa transparecer a satisfao profunda da comunidade
religiosa e das pessoas ligadas ao Pe. Tezza. No faltam elogios ao neosacerdote,
chamado de diretor do nosso seminrio camiliano e professor em vrias
disciplinas cientficas e literrias, e, o que mais importa, verdadeiro exemplo de
virtude. Estavam l seu tio Giuliano, o seu professor D. Tonon, todas as
autoridades camilianas.
O cronista se detm em analisar o sermo do neosacerdote, afirmando que seu
sermo arrancou lgrimas mesmo de quem no sabe chorar. Ao ouvi-lo podia-se
penetrar a sua mente, o seu belssimo corao, a sua religiosidade. No seu
discurso, Tezza falou do seu relacionamento com os PP. Mdena e Artini, o
primeiro, promotor da sua vocao, e o outro, formador excepcional. Falou de
todos aqueles que tinham contribudo para o seu bem: louvou os padres,
apostrofou os clrigos, foi admirvel para os postulantes. No se esqueceu do
povo que estava l. Terminou falando de sua me, ento religiosa de clausura. A
estrutura ntida, a exposio clara, o corao aberto, o sentimento caloroso, a
maneira de falar franca formavam um tal conjunto de coisas que quem o
escutasse no podia deixar de chorar de emoo.
O banquete foi lauto e descontrado. Tomou parte tambm o fundador da
provncia camiliana, Pe. Camilo Csar Bresciani, que aplaudiu, transbordante de
alegria36.
Naquele mesmo dia da ordenao sacerdotal, acompanhado pelo Pe.
Artini, o Pe. Tezza foi a Pdua para celebrar a sua segunda missa no mosteiro em
que estava a sua me.

34
APL. 285/399.
35
APL. 288/141.
36
APL., Cronaca della Casa di Noviziato..., vol. V, ff. 176-179.

19
Quanto a ordenao sacerdotal tenha marcado a vida de Tezza, foi
revelado por ele mesmo, anos mais tarde, a um coirmo: No dia de minha
primeira missa, pedi a Deus uma graa, entre outras, e foi que conservasse em
mim, durante toda a minha vida, os mesmos sentimentos de pureza e de fervor. E
eu acredito, - acrescentou em voz mais baixa, como se quisesse que ningum o
escutasse - que Deus ouviu o meu pedido37.

A amizade espiritual

Tambm nesta fase da sua formao, Tezza foi acompanhado, com mo


firme e paterna, pelo Pe. Artini. Embora mantendo as atitudes calorosas e
afetuosas de antes, o seu relacionamento com o formador foi amadurecendo. A
partir de 1860, desaparecem nas cartas as expresses demasiado familiares e j
no usa o Tu. O amor, a estima, a dependncia total ao superior, mestre e diretor
espiritual entram a fazer parte da amizade espiritual, que tem grande tradio na
histria da Igreja.
Estabeleceu-se entre os dois uma compreenso profunda que no precisava
de muitas palavras: O corao de vossa paternidade, escreveu ao Pe. Artini,
compreendeu o meu, como eu compreendi, de h muito, e compreendo
plenamente o seu: fiquemos unidos nesta feliz e santa compreenso mtua que
tem como mediao, qual ilustrao esplendorosa, o Corao Sacratssimo de
Jesus...38.
O corao de Cristo o lugar em que o relacionamento afetivo, embora
mantendo a sua intensidade humana, recebe extraordinria carga espiritual: No
difcil adivinhar, compreender, decifrar entre dois coraes que se amam com o
amor que fogo e luz ao mesmo tempo, com o amor que s santo,
indefectvel...com o amor com que nos amamos39. Dava-se conta de que, depois
de certo ponto, preciso parar, caso contrrio no seria mais o corao a falar,
mas a mente com artifcios e fantasias literrias e poticas, que ele rejeita como
o fogo detesta a gua40. A quem lhe recriminava suas expresses exageradas de
carinho, respondia: Sou inimigo ferrenho e irreconcilivel de tudo quanto,
mesmo de longe, possa parecer mentira ou coisa profana. S o corao, e
somente ele, me ditou e escreveu com a pena da simplicidade filial inspirada na
tinta da espontaneidade41.
Este modo de se relacionar, rico de intensidade afetiva e purificado pela
graa, no era exclusivo do seu relacionamento com o Pe. Artini, mas com muitos
outros. Ilustrativa a carta que escreveu a um clrigo s vsperas de sua
ordenao subdiaconal. Declara-o dulcssimo de minha alma no nosso amado
Jesus. Confessa que se sentiu levado a escrever-lhe novamente para transmitir-
lhe o amor que Deus tinha depositado em seu corao. Seu amor se traduz num

37
Testemunho do padre Cruz Maulon, in Domesticum, 7(1924), p. 152.
38
APL. 288/942.
39
APL 2534/987.
40
APL. 2534/807.
41
APL. 2534/703.

20
auspcio e numa prece a Deus para que o faa sempre mais santo, sempre mais
seu em afetos e obras, no por meio de uma virtude aparente, mas real, radicada
numa alma ardente de amor divino42.
Cultivada com dedicao constante, a vida no Esprito permeou a
dimenso afetiva de Tezza, purificando-a e engrandecendo a sua riqueza.

Perodo feliz e produtivo

Dando uma olhada nos oito anos que passou na casa de formao, o Pe.
Tezza no hesitou em dar uma avaliao positiva sobre a sua passagem pelo
seminrio, onde recebeu o alimento necessrio para enfrentar com serenidade e
coragem os desafios do ministrio sacerdotal.
Falava de tempo feliz, destacando aspectos corriqueiros e insignificantes
daquele perodo.
Chega-se, com isso, ao conhecimento das ansiedades que o afligiam no
tempo de exames, das suas artimanhas para conhecer as notas antes que fossem
publicadas. Tambm as frias tinham seu lugar nas lembranas. Reconfortante era
o contato com a natureza na casa de S. Juliano e nas colinas de Verona. De vez
em quando se entregava a devaneios poticos, com toques ingnuos e
redundantes, prprios do tempo e da idade: Morre o outono - a natureza
revestida de excepcionais belezas veste o manto triste do inverno e parece
esconder-se ao nosso olhar - acaba o suave zfiro e sopra o violento boreal,
altaneiro rei das neves, o cu se encobre..., tudo muda, tudo some...43.
Tambm na vida de Tezza, a estao mudou. Do mundo resguardado do
seminrio passou para o grande campo do apostolado.

V
NO CAMPO DO APOSTOLADO
Anos ativos e agitados (1864-1867)

No incio de sua vida apostlica, Tezza estava em condies ideais: jovem,


bem de sade, dotado de boa formao humana e espiritual, tendo em seu ativo
boa experincia de educador e de professor, estimado e amado por seus
superiores e colegas.
O Pe. Artini obteve-lhe o direito de voz ativa e passiva, que fez com que
pudesse participar de forma mais ativa na vida da provncia.
Temos algumas fotografias daqueles anos que mostram seu estado fsico e
o esprito que o habita. Trata-se de poses em que ele, com 1,85m de altura, se
apresenta robusto, bem proporcionado e esguio. A impresso de fora e de
segurana de sua figura moderada pela tranqilidade do rosto, um tanto oval,
srio, levemente tenso que os cabelos cortados moda monge do destaque

42
APL. 290/691.
43
APL. 2534/901.

21
quando no usa o barrete clerical. As batinas que trajava so pesadas, rudes e
aparentemente embaraantes. Da faixa da batina, pende o rosrio.

Trabalho de formador e experincias apostlicas

Com entusiasmo prprio da idade, mergulhou no ministrio, continuando


sua atividade de educador e dedicando-se com sucesso pregao. A atividade de
pregador levava-o a sair de Verona. Os sermes que fazia em Pdua duravam de
35 a 40 minutos, tempo aceitvel segundo os religiosos da comunidade, que lhe
davam a sua aprovao. Em suas andanas, deu-se conta da situao das
comunidades camilianas, onde no faltavam conflitos. Seu trabalho de formador
proporcionou-lhe alegrias, mas tambm desnimo e frustrao por falta de
aproveitamento dos jovens. A crnica registra momentos de rigidez em resposta a
comportamentos que no aceitava.
Foram anos de grande atividade, ricos de gratificaes apostlicas, tanto
que a me, que estava no mosteiro, o exortava a precaver-se contra a vaidade.
Exagerava no trabalho e chegou a ter desmaios momentneos, com crises de
melancolia que se abatiam sobre ele.

A supresso dos institutos religiosos

Quando tudo parecia sorrir, o panorama obscureceu-se repentinamente. Os


acontecimentos polticos da ltima fase do Ressurgimento Italiano afetaram
profundamente as Ordens e Congregaes religiosas, dando incio a anos
agitados e dolorosos.
Aps a proclamao do reino da Itlia em 1861, as manobras diplomticas
do governo italiano criaram condies para atacar a ustria e anexar o Vneto. A
guerra teve seu ponto culminante na batalha de Custoza, a poucos quilmetros de
Verona, gerando pnico na populao.
Vivendo de perto os acontecimentos blicos, Tezza demonstrou coragem e
confiana em Deus. Escreveu ao Pe. Artini: Esperamos que tudo corra bem, pois
a nossa sorte est nas mos de Deus, que s pode querer o melhor para ns: por
enquanto mantemos o nosso corao l no alto, de onde nos vem conselho,
prudncia e fortaleza44.
Os camilianos se dedicaram assistncia dos feridos que eram
transportados dos campos de batalha para a cidade. Impossibilitado de participar
dessa atividade humanitria, Tezza declarou ter inveja dos coirmos e quis criar
um posto de atendimento tambm em S. Juliano.
Aps o armistcio austraco-prussiano, o Vneto foi anexado ao Reino da
Itlia, sujeito, portanto, s leis que vigoravam na Itlia, exceto no Estado
Pontifcio.
Entre as leis, uma decretava a supresso das Ordens e Congregaes
religiosas. Emanada em 1855 no Reino do Piemonte, foi estendida a todo o
44
APL. 291/516.

22
territrio nacional no dia 7 de julho de 1866. Em Verona, entrou em vigor no dia
1 de julho do ano seguinte.

Lei injusta e facciosa

A deciso do governo foi o resultado de uma postura ideolgica e poltica,


que se formou aos poucos no sc. XIX, num contexto social e poltico muito
complicado. O entrelaamento de valores e interesses contrastantes - entre os
quais o ideal nacionalista, a adeso aos princpios religiosos e autoridade papal,
as lutas operrias, o liberalismo e a promoo dos direitos do homem...-
contribuiu para criar um ambiente tenso em que o esprito anticlerical encontrou
terreno frtil para se firmar, favorecido por reaes inoportunas da Igreja. A
supresso dos institutos religiosos, deve, pois, ser considerada como o resultado
mais vistoso da luta contra o clero e serviu para encobrir, com motivaes
ideolgicas, interesses subjacentes.
A execuo da lei foi acompanhada de manifestaes espalhafatosas e
ataques explcitos na imprensa. Nas atitudes dos chefes das foras pblicas,
notavam-se grosserias e ofensas. Velhos rancores contra o poder do Papa e da
Igreja tiveram oportunidade de explodir de forma exagerada.
Os religiosos camilianos tentaram isentar-se da lei, apoiados na finalidade
humanitria da Ordem. Com este objetivo, por ocasio da visita do rei da Itlia a
Verona, Camilo Bresciani fez chegar s mos do soberano uma carta de
felicitaes, assinada tambm pelo Pe. Artini. A iniciativa, que teve a adeso do
Pe. Tezza, provocou reaes tanto em Roma como em Verona, onde as opinies
dos religiosos sobre a situao poltica no eram unnimes.45

Situao de emergncia

Fracassadas todas as tentativas, os camilianos da Provncia Lombardo-


Veneta tiveram que enfrentar a dolorosa experincia do exlio e da disperso.
Prevendo a tragdia, o Pe. Artini, superior provincial, enviou uma circular a
todos os religiosos. Trata-se de um documento realmente nobre, que revela
grandeza e equilbrio de alma. Em cada linha transparece um sofrimento muito
grande, mas contido, que s a f torna suportvel. Era preciso prevenir
rapidamente as conseqncias nefastas da supresso. O Pe. Artini podia faz-lo,
pois gozava do prestgio de uma autoridade firme e suave, da fora de um amor
que impele e da capacidade de superar as divergncias mais contrastantes.
Embora privilegiasse a caridade e a orao, tomou medidas concretas.
Num primeiro momento, os religiosos, de dia, mantinham-se fechados na Casa de
Santa Maria do Paraso e, de noite, se acolhiam noutros lugares. Em julho de
1867, o Pe. Artini conseguiu colocar um grupo de estudantes junto famlia
Mosconi, em Marzana, lugarejo de Valpantena, enquanto outros foram acolhidos
pela famlia Sego, perto de vesa, e outros, ainda, na casa paroquial de Santa
45
A. Brusco, P. Camillo Cesare Bresciani..., p. 184.

23
Maria do Paraso. Diversos religiosos se refugiaram em casas de famlia. No
faltaram os descontentes que fizeram da supresso a oportunidade para livrar-se
das obrigaes da vida religiosa.
Para um observador independente, a jovem provncia camiliana da
Lombardia e Vneto, fundamentada em bases slidas, parecia uma vinha
abandonada. Os Irmos leigos no podiam exercer sua atividade de assistncia
corporal nos hospitais; a vida comum - uma das grandes conquistas da reforma do
Pe. Bresciani - estava ameaada e, em alguns lugares, abolida; o hbito religioso
no era tolerado...

Uma leitura espiritual da experincia de exlio

O Pe. Tezza viveu intensamente os acontecimentos dolorosos da supresso.


Numa carta me, de 4 de julho de 1867, conta as horas dramticas vividas antes
da expulso dos religiosos das casas de Santa Maria do Paraso e de S. Juliano.
No consigo descrever o transtorno, a confuso, o corre-corre; foi um ir e vir, a
noite toda, de transportes, ajudados pelo bom povo que chorava como se a nossa
sada fosse uma desventura familiar46.
Obrigado a viver fora da casa religiosa, hspede de estranhos, sem nada,
escondendo a sua identidade de camiliano, preocupado com a sorte dos seus
estudantes, considerou-se, durante esse tempo, no exlio.
Embora pesada e transtornante, a experincia no foi vivida pelo Pe. Tezza
fora do quadro espiritual em que tinha colocado a sua vida. Como seu mestre, Pe.
Artini, entregou-se nas mos de Deus: A vontade de Deus a minha fora e a
tranqilidade interior de ter usado todos os meios para a salvao.47
Este estado de alma torna-se, pouco a pouco, o pano de fundo sobre o qual
colocar todas as dificuldades de sua vida. Um abandono que no significa
desconhecimento da triste realidade vivida, mas conscincia de que a luta entre o
bem e o mal no mundo encontra a sua soluo na vontade de Deus. Das suas
cartas emergem dados luminosos de uma teologia da histria, simples, mas
segura, fonte de confiana e de esperana.
Sob o impulso das experincias vividas entre 1865 e 1871, Tezza retomou
e aprofundou a reflexo sobre o sofrimento. A cruz e o crucifixo ocupam, mais
amide, o seu esprito, fazendo deles um lugar privilegiado de observao da
vida. Amadureceu nele a certeza de que no se pertence a Deus se no se chega
a sentir implantado no corao o madeiro da cruz banhado pelo sangue de Cristo
e pelas lgrimas de Maria48. Esta conscincia o engajou ainda mais num esforo
para purificar as suas intenes a ponto de orientar tudo para a glria de Deus.
Tambm a devoo Virgem Imaculada fez-se mais visvel em seus
escritos. Ao se consagrar a Nossa Senhora, no dia 15 de agosto de 1866, pediu-

46
ALV 292/579.
47
F. Spagnolo - G. Facchini (a cura di) Lettere circolare dei Prefetti provinciali della Provincia Lombardo-
Veneta dei Ministri degli infermi, nel Centenario della Fondazione, 1862-1962, Verona 1965, p. 116.
48
APL. 290/691.

24
lhe a graa de estar disponvel vontade de Deus, oferecendo a sua vida para o
bem dos postulantes, de cuja formao era responsvel.

O olhar voltado para o futuro

Para as demais provncias camilianas da Itlia, exceto a de Roma, a


desero provocada pela supresso dos Institutos religiosos foi geral:
desapareceram as provncias de Npoles e Siclia, foi lenta e difcil a retomada da
provncia do Piemonte.
A provncia Lombardo-Veneta, embora gravemente afetada, superou a
provao. Diante das dificuldades externas, no diminuiu a sua criatividade. No
podendo expandir-se na Itlia, o Pe. Artini e seus jovens religiosos pensaram na
realizao de um sonho acalentado h anos: as misses.

VI
A MISSO DA FRICA
Renncia a uma viagem ambicionada

O ideal missionrio no foi estranho jovem comunidade camiliana de


Verona. Homem de viso larga, o Pe. Artini cultivou o projeto de levar a Ordem a
pases onde ainda no havia chegado o Evangelho. Falava amide sobre o
assunto com seus jovens religiosos, encontrando resposta entusiasta, sobretudo
por parte de alguns deles, como Estanislau Carcereri e Lus Tezza.
O seu interesse missionrio era alimentado tambm pela grande tradio
cultural, espiritual e missionria de Verona, que tinha em Nicolau Mazza um dos
inspiradores mais convictos. De fato, um dos fatores que favoreceram o despertar
religioso da diocese de Verona, no sc. XIX, foi o interesse missionrio ou, de
algum modo, o interesse por novas exploraes, de modo especial no Oriente49.

Sonho alimentado desde a infncia

Como consta de um depoimento de 1867, Tezza sonhou ser missionrio


desde a infncia, sentindo isso, nos ltimos 10 anos, como a sua segunda
vocao. Conservou a viva por meio da orao, do silncio e do estudo,
aguardando a ocasio para realiz-la50.
Os pases para os quais o grupo camiliano sonhava levar a Boa Nova, atravs da
prtica da caridade com os doentes, eram os asiticos: Tibet, Cochinchina,
Coria...
Por ocasio da supresso dos Institutos religiosos, o Pe. Artini e seus
jovens companheiros compreenderam que o sonho missionrio, alimentado em
leituras e conversas, podia tornar-se realidade. Se as leis injustas do Governo
49
G. Butturini, Daniele Comboni e gli Istituti missionari nella storiografia di questo secolo, in Ad Gentes, 1
(1999), p. 86.
50
ASV, Fundo Congreg. dos Bispos e Regulares - sec. Reg., n. 7, julho-agosto 1867.

25
obrigavam os religiosos a viver escondidos e impediam o seu ministrio, por que
no procurar outros lugares, onde a messe estava madura?
Em pouco tempo decidiram pedir licena ao Superior Geral e ao seu
Conselho para realizar um projeto, que contava com a adeso de trs padres:
Estanislau Carcereri, Lus Tezza e Alfonso Chiarelli, alm de um clrigo: Jos
Franceschini.

O no de Roma

A resposta dos superiores de Roma foi taxativamente negativa. Na tradio


da Ordem de S. Camilo, as misses nunca tinham despertado grande interesse.
Interpretaes erradas de algumas afirmaes de S. Camilo levavam a pensar que
as ndias, isto , os pases de misso, eram, para os camilianos, apenas as
enfermarias do hospital. Algumas viagens espordicas a outros pases tinham sido
fruto mais da iniciativa de alguns religiosos do que da Ordem como tal. Isto
explica, em parte, a reao do governo central da Ordem proposta de Artini.
Reao que, de alguma forma, parece exagerada na avaliao das intenes de
quem tinha proposto o projeto missionrio.

Daniel Comboni

Antes que a resposta negativa do Superior Geral, Pe. Jos Oliva, chegasse
a Verona, atravs de carta do seu vigrio, Pe. Camilo Guardi, com data de 15 de
abril de 1867, outra porta se havia aberto, mas que alterava o projeto missionrio
inicial.
Um jovem sacerdote da diocese de Verona, Daniel Comboni51, h anos se
dedicava obra de evangelizao da frica. Num primeiro tempo, tinha-se
associado ao Pe. Nicolau Mazza, promotor, entre 1857 e 1861, de algumas
expedies arriscadas na frica. O fracasso do projeto missionrio de Mazza
levou Comboni a criar um projeto prprio, com o apoio do bispo de Verona, D.
Lus Canossa. Sua idia era fundar um instituto missionrio de direito diocesano e
preparar os padres para a misso africana num seminrio prprio. Tendo sabido
do projeto dos camilianos, procurou atrai-los para a sua aventura.
Comboni era um homem excepcional. No seu projeto de evangelizao da
frica encontram-se as intuies que contriburam para dar um novo rumo s
misses ad gentes. O plano da regenerao da frica tinha como objetivo, alis
ambicioso, evangelizar a frica atravs da prpria frica.
Punha a servio de seu projeto as qualidades e tambm os defeitos de sua
personalidade. O seu temperamento fogoso, o modo de agir pouco diplomtico, a
linguagem franca a ponto de se tornar rude fizeram com que assumisse atitudes
dificilmente aceitveis se no se leva em conta o zelo que o animava e o acerto
do seu projeto missionrio. Tambm o seu patrocinador, D. Canossa, tinha
personalidade forte, no isenta de traos autoritrios, com exagerada conscincia
51
G. Romanato, Daniele Comboni - LAfrica degli esploratori e dei missionari, Rusconi, Milano, 1998.

26
do poder episcopal que, s vezes, o levava a ignorar a autonomia prpria dos
religiosos.
Os quatro jovens camilianos foram conquistados pela idia de se engajar
na misso africana, com um projeto j pronto em suas linhas gerais. Sem grande
dificuldade, deslocaram o seu objetivo do continente asitico para o continente
africano.
Quando chegou a resposta negativa dos Superiores de Roma, aderiram ao
plano de Comboni e de D. Canossa, que lhes propunham de pedir Congregao
dos Bispos e dos Religiosos licena para se colocar disposio absoluta do
bispo de Verona no seu seminrio das Misses da frica Central.
A mediao de D. Canossa junto ao Papa facilitou a resposta favorvel da
Congregao dos Bispos e dos Religiosos, que chegou no dia 15 de julho de
1867. Nela dizia-se que, ...levando em conta a disperso dos religiosos, o Papa
permitia benignamente ao bispo de Verona, desde que os religiosos o pedissem,
que os aceitasse...para os prximos cinco anos, sob a sua absoluta dependncia e
jurisdio, inclusive em fora do voto de obedincia52.

Silncios e ambigidades

Tudo aconteceu sem que os Superiores Camilianos soubessem. De fato,


desde os primeiros contatos, D. Canossa e Comboni decidiram pedir silncio aos
quatro camilianos. No deviam falar sobre o assunto nem mesmo com o seu
superior imediato, o Pe. Artini. O bispo assumiu o compromisso de cuidar do
caso com o Governo Central da Ordem, por ocasio de uma prxima viagem a
Roma.
Se fcil compreender o motivo de D. Canossa e Comboni para impor
silncio, menos compreensvel a razo que levou os quatro camilianos a aceitar
este compromisso, sobretudo, considerado o bom relacionamento que existia
entre Tezza, Carcereri e Artini.
Provavelmente, D. Canossa e Comboni pensavam que os Superiores
Camilianos, postos diante de fatos, teriam aderido ao projeto. Os Religiosos
Camilianos, por sua vez, confiavam no bispo, que tinha prometido acertar tudo,
pessoalmente, com os seus superiores. No se deve excluir, contudo, que o seu
comportamento foi conseqncia do medo que os superiores, uma vez
informados, interrompessem o seu projeto missionrio.
Esta hiptese poderia ser vlida para Carcereri, mas no para o Pe. Tezza.
De fato, quando o Pe. Artini soube do Rescrito papal chamou-o para conversar.
Das conversas e das cartas que trocaram percebe-se com clareza a boa f do Pe.
Tezza, que Artini logo aceitou, pois conhecia bem o filho. No h dvida que
confiava cegamente no que o bispo propunha e sustentava com a sua autoridade.
Excluda a comunicao com os Superiores, a clareza e a coerncia de
comportamento dos quatro religiosos camilianos estavam fora de qualquer
suspeita. Isto fica evidente pela sua reao ao Rescrito papal, que os incorporava
52
APL. 1458/31.

27
ao clero secular, isto , ao clero diocesano, completamente desligados da Ordem,
embora s temporariamente. O contedo do Rescrito contrastava com a inteno
de participar do projeto missionrio como filhos de S. Camilo. Na splica ao
Papa, de fato, o Pe. Tezza tinha dito que queria continuar, de afeto, e por quanto
possvel tambm de observncia regular, verdadeiro filho e membro da Ordem
de S. Camilo, qual devo tudo, depois de Deus53. Seus companheiros tambm
seguiram a mesma linha.
A reao dos PP. Tezza, Carcereri, Franceschini e Joo Batista Zanoni (que
substituiu o Pe. Chiarelli, que renunciou) no se fez esperar. Numa carta ao bispo
mostraram, com respeito e clareza, que as coisas tinham sido mudadas: Foi,
portanto, o maior e o mais doloroso dos desenganos ter ouvido de Comboni que o
Rescrito em si e nas intenes do Papa e da Congregao declarava-nos
secularizados e desligados da Ordem e que no podia permitir,...absolutamente,
que fosse fundada uma casa religiosa54. Com muito sofrimento, mas sem
titubear, renunciaram ao projeto missionrio, demonstrando grande amor
vocao camiliana e Ordem.
Lendo essas declaraes, o Pe. Artini reconheceu com satisfao a
qualidade moral de seus filhos preferidos. Como superior provincial, informou os
Superiores da Ordem, em Roma, sobre o que havia acontecido.
Como era de esperar, chegou uma carta condenando o procedimento do
bispo e de Comboni e tambm uma avaliao severa sobre o comportamento dos
jovens religiosos .

Perdidos num labirinto

A partir de agora, os acontecimentos tornam-se complexos, cheios de


imprevistos, ricos de luzes e sombras. A tentativa de realizar um projeto
missionrio grandioso e inovador despertou sentimentos contrastantes, criou
partidos opostos, desencadeou lutas de poder, deu margem a fofocas, mostrando
abertamente a interferncia da fraqueza humana na busca da promoo do Reino
de Deus.
Muitos aspectos deste captulo da vida do Pe. Tezza tornam-se
incompreensveis luz dos princpios que regem a Igreja e os Institutos religiosos
hoje; outros mostram claramente os limites das pessoas implicadas na situao.
Apareceu com clareza a diferena de viso do Pe. Artini e dos Superiores
de Roma. Estes no se mostraram em condies de ver, na situao que se havia
criado, os sinais de uma novidade que daria um impulso renovador Ordem.
O Pe. Artini, pelo contrrio, embora no aceitasse o teor do Rescrito
papal, procurava um caminho para superar o conflito salvando a honra da Ordem
e a causa missionria e se mostrou compreensivo diante da exuberncia de seus
filhos. A largueza de horizontes apostlicos que tinha, ajudou-o a superar o
sofrimento do eventual perda de Tezza e de Carcereri, pois contava com eles para
a formao dos jovens religiosos.
53
ASV. Fundo Congr. Bispos e Regulares, pos. Regulares, julho-agosto 1867.
54
APL 1458/45.

28
Tambm Comboni e Canossa, apesar de certas tticas maquiavlicas que
usaram para atingir seus objetivos, mostraram que respiravam uma atmosfera rica
de valores e aberta novidade.
De fato, vista a oposio dos Camilianos ao Rescrito papal, tanto
Comboni quanto o bispo de Verona no tiveram dvidas em mudar os termos do
Rescrito papal, aceitando que os camilianos colaborassem na misso com direito
de fundar uma casa da Ordem, uma vez chegados frica.
Mas os Superiores de Roma mantiveram sua oposio misso,
considerada um devaneio, um capricho, uma idia louca, um escndalo
demonaco.

Uma escolha difcil

Diante desta atitude negativa dos Superiores de Roma, o comportamento


dos quatro missionrios camilianos acabou por se diferenciar.
Carcereri55, seguido pelo Pe Zanon e o Clrigo Franceschini ( na ltima
hora aderiu tambm o Ir. Bartoli), decidiu aceitar o Rescrito papal e ser fiel e
coerente com a palavra dada e assinada. Mostrava-se, pois, decidido a partir ao
primeiro sinal do bispo. De fato, partiu com seus companheiros no dia 25 de
outubro de 1867, amargurado porque os Superiores, includo o Pe. Artini, lhe
negaram a sua bno.
Inteligente, de zelo ardente, espiritualmente rico, idealista e, ao mesmo
tempo, realizador eficiente, Carcereri seguiu uma lgica prpria. Certo de estar
no bom caminho, defendeu com firmeza seu ponto de vista, deixando-se guiar por
seu carter forte, um tanto cabeudo e arrogante. Embora no a aprovasse a sua
lgica, o Pe. Artini no se sentiu em condies de contrari-la, deixando a Deus o
julgamento final.
A contribuio de Carcereri para o xito da misso no Sudo foi decisiva,
como o prprio Comboni reconheceu. Mostrou-se bom explorador, educador e
administrador sagaz, defensor dos escravos e dos doentes. O seu relacionamento
com Comboni, porm, no demorou a se deteriorar. Srias divergncias fizeram
com que a Congregao da Propagao da F, em 1877, chamasse de volta para a
Itlia os Missionrios Camilianos.
O fim desagradvel da aventura missionria camiliana na frica no
diminuiu em nada o seu valor de sinal para a Ordem, que o resgatou no sc. XX,
quando se abriu com grande generosidade para as misses. Ao voltar para a
Itlia, o Pe. Carcereri contribuiu para a expanso dos camilianos na Frana e
ocupou altos cargos no governo da Ordem.
O Pe. Tezza, de sua parte, optou pelo caminho da obedincia aos
superiores religiosos, entregando-se vontade do Pe. Artini, em quem via a
expresso da vontade de Deus. Dois motivos fundamentais o levaram a seguir
este caminho.

55
F. Vezzani, P. Stanislao Carcereri, contestato e contestatore, Ancora, Milano, 1983.

29
O mais importante foi sua maneira de compreender o voto de obedincia.
L-se num de seus escritos daquele tempo: A vontade de Deus: eis meu nico
guia, a nica razo de meus anseios, qual tudo sacrificarei. Qualquer outra
deciso particular e pontual no e no pode mais ser minha, mas dos meus
superiores56.
Com o Pe. Artini tinha aprendido a fazer da aceitao da vontade de Deus,
manifestada atravs dos superiores, um ponto chave de sua espiritualidade.
Entregando-se a Deus, chegou a gozar de profunda tranqilidade interior.
Esta maneira de encarar a obedincia, porm, no significava passividade.
Na verdade, viveu com intensa paixo este perodo da sua vida. Mostrou-se forte
ao enfrentar a fria de Comboni, indignado pela contestao dos Camilianos ao
Rescrito papal: O superior deu-me muito apoio e eu enfrentei.... 57. No se
intimidou quando foi tachado de traidor, antes por Comboni e, depois, tambm
por Carcereri.
Mas no esqueceu os pontos fracos da sua personalidade. Referindo-se ao
choque com Comboni escreveu: No sei quantos golpes iguais a este poder
suportar a minha ainda demasiado jovem e surpreendente fraqueza.... 58 No
faltaram momentos em que a busca da vontade de Deus fez sentir o seu peso.
Em certos momentos, sinto a tentao de dizer a mim mesmo: Oh! Tivesse, pelo
menos alguma vez, agido segundo meu modo de ver! Talvez no me encontraria
agora nestas angstias e no poria outros na mesma situao por minha causa!
Mas logo acrescentava: Mas digo: tentao!, pois, graas a Deus, ainda sinto
que o melhor sempre obedecer e acatar o desejo dos superiores59.
Outro fator deve ser procurado na interveno da me que, do mosteiro da
Visitao, acompanhava o filho, pronta a reagir quando surgiam situaes difceis
ou de perigo. Desta vez no teve dvidas em apelar para os superiores de Lus,
pedindo que no o deixassem partir para a frica. A obedincia e as notcias
negativas sobre o incio da misso na cidade do Cairo foram os motivos que
justificaram o seu pedido.
O propsito do Pe. Tezza de permanecer firme na obedincia no foi fcil.
Internamente, vivia com dificuldade o contraste entre o grande desejo de ir para
as misses e a aceitao da vontade de Deus. De fora, vinham-lhe presses
contraditrias. O bispo de Verona, Comboni e os missionrios que j estavam na
frica pediam que partisse, apoiando-se no Rescrito papal. Com igual insistncia
se exprimiam quantos queriam que ficasse na Itlia, insistindo no valor da
obedincia e da pertena Ordem.
Preso neste dilema, entregou o seu discernimento a Nossa Senhora,
prometendo que iria em peregrinao ao Santurio da Corona, construdo sobre
uma rocha, nas imediaes de Verona.
Sem se dar conta, estava sendo uma pea importante no tabuleiro do
projeto missionrio. Isto ajuda a compreender a estima de que gozava. Por seu
56
APL. 292/660.
57
APL. 1458/47.
58
Ib.
59
APL. 294/168.

30
temperamento pacato, conciliador, equilibrado, fundado em valores essenciais, a
sua presena na frica teria sido valiosa. L certamente teria feito de contrapeso
ao entusiasmo, muitos vezes excessivo, do Pe. Carcereri, cuja autntica paixo
missionria, em certos momentos, corria mais o risco de soobrar do que de
conduzir.
Para conquistar Tezza, D. Canossa amenizou o tom e, em dezembro de
1867, foi encontrar-se com o Pe. Artini para pedir que fizesse de intermedirio
junto aos superiores de Roma. Artini anuiu de bom grado ao seu pedido. A
resposta do Geral da Ordem, Pe. Oliva, ao bispo de Verona foi negativa e, ao
mesmo tempo, mostrou toda a sua antipatia pela Provncia Lombardo-Veneta,
deixando claro que seu no s misses continha motivos pessoais nem sempre
elevados.

Viagem a Roma

Tambm Tezza escreveu ao Pe. geral para ter uma resposta definitiva.
Como no a teve, foi aconselhado pelo Pe. Artini a ir pessoalmente a Roma. A
viagem ocorreu em fins de abril de 1868. Ao passar por Pdua, ficou um dia com
sua me. Uma parada em Florena permitiu-lhe admirar, encantado, as belezas da
ento capital da Itlia.
Ao chegar a Roma, a acolhida da comunidade camiliana foi fria e, de certa
forma, hostil. A atmosfera espiritual da cidade papal no lhe deixou boa
impresso. Com amargura percebeu que o mundo camiliano em que tinha
crescido era muito diferente daquele das comunidades romanas: Detesto at a
morte o religioso apenas de nome..., escreveu, falando, talvez, da falta de vida
fraterna em comum60.
Alm disso, deu-se conta que tambm em Roma havia divergncia de
opinies sobre a participao dos camilianos na misso da frica: a Congregao
para a Propagao da F era contrria sua partida, por causa da influncia do
Pe. Guardi sobre o Prefeito da Congregao, Cardeal Barnab; o Papa, com
quem se encontrou em audincia particular no dia 22 de maio, pediu-lhe que
acatasse o Rescrito.
Apoiado na palavra do Papa, Tezza voltou para Verona no dia 30 de maio,
quase certo que partiria para as misses.
Em Verona, porm, o aguardavam ms notcias a respeito da misso na
frica.
No Cairo, o Pe. Zanoni tinha-se mostrado imprudente no exerccio de sua
profisso de enfermeiro. Advertido, reagiu mal e espalhou boatos sobre o projeto
missionrio e as pessoas que estavam sua testa. Disso resultou um clima de
acusaes mtuas e de fofocas. Essas informaes caram sobre Tezza como uma
ducha de gua fria que, tambm por presso da me, freou o seu ardor
missionrio.

60
APL. 1458/123.

31
Fuga para Roma

Neste meio tempo, no dia 22 de abril de 1868, D. Canossa foi nomeado visitador
apostlico da Provncia Camiliana Lombardo-Vneta61. Mostrou-se esperanoso
de resolver pacificamente o problema das misses e pediu aos superiores que
definissem a sua participao no projeto missionrio africano. A situao era
favorvel a um acordo, pois ao Pe. Oliva havia sucedido o Pe. Camilo Guardi,
amigo de Artini. Guardi aceitou a proposta do bispo, mas com duas condies:
fundar uma casa camiliana nas misses e que os missionrios reconhecessem
seus erros. Como a segunda condio no foi aceita pelo Pe. Carcereri, o Pe.
Guardi manteve sua posio.
D. Canossa fremia e, na qualidade de visitador apostlico, pretendia
pressionar o Pe. Tezza, querendo convenc-lo a partir para a frica em fevereiro
de 1869, junto com Comboni, que estava na Europa.
Ciente disso, a me do Pe. Tezza interveio e pediu ao Pe. Guardi que
chamasse seu filho para Roma. Assim, de repente, Tezza viajou novamente para a
cidade do Papa, onde, desta vez, foi acolhido fraternalmente, sobretudo pelo Pe.
Guardi.
Em Roma, visitou alguns Dicastreos onde havia posies contrastantes a
respeito do seu destino. O Cardeal Barnab elogiou-o por no ter partido para as
misses; na Congregao dos Bispos e dos Regulares quiseram saber porque
tinha escrito uma carta ao bispo de Verona, na qual apresentava sua renncia
formal ao Rescrito papal. Tezza soube responder satisfatoriamente a todas as
objees e seu pedido de ficar livre das obrigaes impostas pelo documento
papal foi aceito e comunicado a D. Canossa.
A volta do Pe. Tezza para Verona foi tranqila, porque, finalmente, o bispo
da cidade, embora profundamente contrariado e decepcionado, acatou a deciso
da Congregao Romana.
Aps tanta agitao, o Pe. Tezza pretendia dedicar-se, sem mais, sua
atividade de formador. De fato, a supresso e o problema da misso africana
haviam prejudicado sua atividade, interrompendo seu ritmo e continuidade.
Entre as suas preocupaes estava tambm a de dar maior ateno ao Pe.
Artini. Profundamente provado, o Padre dava sinais de depresso. Feridas
graves, como as incompreenses de alguns religiosos, as divergncias sobre a
misso africana, as seqelas da supresso, tinham enfraquecido a sua resistncia.
O Pe. Tezza procurava confort-lo, tratando-o com bondade e firmeza, com uma
espiritualidade sadia, que levava a ver luz mesmo entre as trevas mais densas. No
relacionamento entre os dois, os papis, agora, estavam invertidos. O jovem
Tezza, antes acompanhado com amor pelo Pe. Artini, agora, devia dar seu apoio
ao pai num momento em que suas foras cediam.

Adeus a Verona

61
No so muito claros os motivos desta deciso inoportuna e injustificada, que colocava o destino das
comunidades camilianas na dependncia da autoridade do bispo.

32
Infelizmente, o vazio criado ao redor do Pe. Artini ia-se alargando. De fato,
a presena de Tezza em Verona durou apenas alguns meses. Por causa da Lei
Italiana que obrigava os seminaristas a prestar o servio militar, recebeu ordem
de transferir-se para Roma a fim de ser mestre de trs clrigos.
Com esta viagem a Roma, que aconteceu no dia 9 de junho de 1869,
encerrou-se outro captulo na jornada do Pe. Tezza. Foi a despedida definitiva de
Verona e de muitas pessoas com quem havia partilhado sua vida.
A cidade de Verona ficou impressa em seu corao, no s por suas
belezas naturais e artsticas e pelo seu povo, aberto e simptico, mas tambm e,
sobretudo, pelo muito que tinha recebido do ponto de vista humano e espiritual
durante os anos de sua formao e de suas primeiras experincias pastorais.
Foi sobretudo a separao do Pe. Artini que fez sangrar o corao do Pe.
Tezza. Circunstncias imprevistas, que sero lembradas mais adiante, no lhe
permitiram despedir-se de seu amado pai, que morreu no dia 7 de maro de 1872.
Terminou, assim, a realidade de um longo relacionamento, rico de sentimentos, de
estima recproca, purificado por um grande amor sobrenatural, voltado para ideais
apostlicos.
A distncia, porm, no rompeu este lao, mas mostrou-lhe a instabilidade
das coisas e o abriu ainda mais para horizontes sobrenaturais.

Um programa de vida

Quando deixou Verona, Tezza estava para completar 28 anos. O primeiro


perodo de seu sacerdcio no passou sem deixar marcas positivas para o
amadurecimento de sua personalidade. notvel o que consta num seu escrito de
dezembro de 1868, por ocasio do retiro anual. Na viglia da festa da Imaculada
Conceio, Tezza se props:
- conservar sempre inaltervel calma de esprito em todas as
circunstncias de minha vida, por mais difceis e penosas que sejam, contrrias a
meus pontos de vista, a meus sentimentos;
- no me antecipar nunca, menos ainda nas coisas boas, s disposies da
vontade divina sobre quanto me pertence ou poder pertencer-me;
- abraar de boa vontade, por amor ao Corao SS. de Jesus, sem me
queixar, qualquer tipo de aflies, desprezos, injrias, maus tratos, desonras que
me vier a acontecer, vendo em tudo a mo de Deus;
- manter-me sempre, sempre, sempre tranqilo no lugar, condio, trabalho
que me for determinado pela santa obedincia, sem nada pedir, nada recusar;
- aproveitar com presteza e generosidade de corao todas as
oportunidades de praticar a mortificao;
- manter toda a modstia possvel nos meus sentidos e control-los at com
mortificaes especiais;
- procurar progredir cada dia na perfeio, aproveitando todas as ocasies
que surgem e dedicar-me com toda fora ao bem das almas, sobretudo dos meus
coirmos de vida religiosa...

33
- finalmente, quero consagrar-me todo inteiro, com o que tenho e sou, fao
e farei, ao Corao adorvel de Jesus pela converso dos pobres pecadores pelos
quais no deixarei nenhum dia, e mais vezes que possa, de interessar a ternura de
me do Corao Santssimo e Imaculado de Maria e aquele purssimo de S. Jos,
meu querido Pai.

Retrato interior

Deste retrato interior que, segundo o seu primeiro bigrafo, Pe. Bruno
Brazzarola, ficou inalterado durante toda a sua vida, nota-se claramente que o
jovem Tezza percorreu uma significativa caminhada de crescimento humano e
espiritual. A prtica do ministrio tinha-o fortalecido na sua identidade de
Camiliano. Em vrias oportunidades, sua capacidade de doao tinha alcanado
pontos altos.
Percebe-se uma relao equilibrada entre necessidades e valores. Por isso,
a ateno s necessidades de amor, de auto-afirmao e de estima fica
subordinada aos valores de doao a Deus e ao prximo. A entrega vontade de
Deus e a preservao da tranqilidade de alma em meio s tempestades da vida
surgem como metas parcialmente conquistadas atravs de luta constante e serena
contra as inclinaes da natureza. Numa de suas cartas afirma: Reconheo que
me encontro em estado de sacrifcio quanto s minhas inclinaes, mas est bem
assim e me sinto feliz, pois...no bem o que vemos, mas o que Deus quer62.
Como acontece amide no oceano, a tempestade dos acontecimentos entre
1864 e 1869 agitou apenas a superfcie do seu esprito, mantendo a calma na
profundidade.
A sua vida espiritual, porm, no se fechava no horizonte da intimidade,
mas permanecia aberta aos coirmos e aos pecadores, em esprito de reparao,
prprio da poca.
Continuava firme a sua tendncia para o crescimento humano e espiritual.

VII
INTERMEZZO ROMANO
O suave peso da obedincia

No dia 9 de junho de 1869, Tezza chegou pela terceira vez a Roma. No se


tratou de visita, mas de residncia que se prolongou at agosto de 1871.
Como foi dito acima, Tezza no tinha grande simpatia por Roma.
Certamente no podia fugir aos atrativos da cidade eterna, rica de lembranas da
vida da Igreja e da Ordem. A Casa de Santa Maria Madalena hospedou durante
anos S. Camilo, cujas obras de caridade voltavam memria ao visitar os
hospitais S. Tiago e Esprito Santo. Naquele tempo, Roma estava no centro das
atenes da Igreja e do mundo por causa da celebrao do Conclio Vaticano I.

62
APL 294/419.

34
O que aborrecia o Pe. Tezza era o tipo de vida das Comunidades
Camilianas da Provncia Romana, reduzida, na poca, as quatro: Santa Maria
Madalena, S. Vicente e S. Anastcio na Fonte de Trevi, S. Joo de Malva, no
alm Tibre, e S. Joo de Latro. Via o contraste com o que tinha aprendido em
Verona, sob a orientao dos Padres Bresciani e Artini. A no observncia da vida
em comum, com todas as suas exigncias, sobretudo da pobreza, e a pouca
disposio para se dedicar assistncia dos doentes eram os dois pontos que
mais angustiavam a sua sensibilidade religiosa. Explicam-se, assim, vrias
observaes crticas de suas cartas. Mas isso no o impediu de reconhecer o
valor de muitos religiosos, cuja excelncia despertava a sua admirao.

Vice-mestre de novios

Durante esses dois anos, morou na casa de S. Vicente e Anastcio, perto da


Fonte de Trevi, exercendo a funo de vice-mestre de novios. A esta atividade
acrescentava outras, como pregao, atendimento aos doentes da comunidade e
da parquia.
A intensa atividade, que s vezes ia alm de suas foras, tornou-se mais
pesada por causa das preocupaes decorrentes dos acontecimentos histricos de
1870, ano da tomada de Roma pelo exrcito do Piemonte.
Com a anexao do Estado Pontifcio ao Reino da Itlia, entraram em vigor,
tambm em Roma, as leis de supresso das Ordens e Congregaes religiosas.
Para Tezza tratava-se de viver, pela segunda vez, em clima carregado de
hostilidades e de manifestaes anticlericais.

Tempo de tumultos

Desse tempo de tumultos, que viu a exploso de paixes de tendncias


opostas, o Pe. Tezza deixou muitas notcias em sua correspondncia com o Pe.
Artini, graas qual conhecemos muitos detalhes: a assistncia que os Religiosos
Camilianos deram aos feridos na batalha entre piemonteses e soldados do
exrcito pontifcio, da qual participou; a visita do rei e o relacionamento tenso
entre o rei da Itlia e o Papa.
Nos seus escritos, porm, h mais crnica do que reflexo sobre os
acontecimentos. Noutras palavras, Tezza no parece estar envolvido na dinmica
ideolgica dos fatos, mesmo que se tenha declarado, sem mais, do lado da Santa
S, manifestando publicamente sua adeso ao Papa.
Mostra-se mais sensvel s calamidades que se abateram sobre a cidade
eterna, como a inundao do Tibre, em janeiro de 1871, cuja intensidade
devastadora agravou a situao, j tensa, da populao.
Aps descrever que no Panteo a gua cobriu quase por inteiro os portes
de ferro, que na Madalena subiu um palmo acima do estrado do altar...e que no
Hospital do Esprito Santo, como nos tempos de S. Camilo, tiveram que
transportar os doentes para o andar superior, no consegue disfarar o seu

35
desapontamento: Que dolorosa diferena, desta vez vergonhosa at para ns.
So Camilo e seus filhos foram substitudos por soldados do exrcito italiano!63.
Esta observao negativa vale tambm para o clero romano, que no se
mobilizou, talvez por medo das foras anticlericais, o que deu margem a crticas
da imprensa adversria.
Como em Verona, tambm em Roma, a principal atividade do Pe. Tezza,
isto , a educao, foi dificultada pelos acontecimentos sociais e polticos do
momento. O clima de medo e de incerteza provocado pelo assalto do governo s
instituies religiosas, prejudicava a continuidade da formao, perturbando a
tranqilidade necessria para a reflexo e a orao.

Destino: Frana

A tudo isso, acrescente-se uma notcia inesperada: foi transferido para a


fundao da Frana. Podia esperar a morte, anota, mas que justamente agora,
neste momento, pudesse ser mandado para outro lugar e, ainda mais, para a
Frana, foi para mim coisa to nova e inesperada, que, embora esteja arrumando
as malas s pressas, custa-me a acreditar nisso64.
O Pe. Guardi, vigrio geral, tomou esta deciso, atendendo a um pedido
dos religiosos que estavam na Frana desde 1869. A nova fundao precisava de
um formador capaz e Tezza preenchia todas as qualidades para a funo.

Nova ruptura

Face a esta nova ruptura, suas reaes logo se fizeram sentir, como se v
numa carta que escreveu ao Pe. Artini: Eis uma nova ruptura, melhor, uma srie
de novas rupturas para o meu pobre e fraqussimo corao. No consigo dizer-lhe
quanto estou sofrendo. Mas, tambm desta vez, prevaleceu a viso sobrenatural
das coisas, pelo que fala da necessidade sempre querida e muito suave para os
religiosos de repetir, com a parte superior do esprito uma vez mais Seja feita a
vontade de Deus65.
Mostrando notvel maturidade humana e espiritual, Tezza no nega o
sofrimento; uma vez reconhecido e aceito, esfora-se por assumi-lo numa viso
sobrenatural das coisas: No consigo expressar quanto sinto, escreve ao Pe.
Artini, embora me sinta feliz de sacrificar tudo, mesmo o mais tenro e santo afeto,
voz da santa obedincia na qual se encontra infalivelmente a vontade de
Deus66. O conforto que sentia provinha da certeza de que Deus tudo predispe
para o nosso maior bem67.
Mais uma vez, foi chamado a tomar conscincia de que, para quem opta
por seguir Cristo na radicalidade da vida religiosa, as tendncias naturais do

63
APL. 296/2.
64
APL. 296/174.
65
Ib.
66
APL 296/274.
67
Ib.

36
corao no so o critrio ltimo para as prprias escolhas. Tinha sonhado ir para
a frica, mas no foi por fidelidade vontade dos superiores. Agora, o desejo de
ficar na Itlia e de voltar para a sua querida Verona foi truncado por uma ordem
na qual tambm viu a vontade de Deus.
Atitude interior que no escapou observao dos coirmos, como se v
pelo testemunho de um religioso fidedigno, o Pe. Pedro Desideri, secretrio geral
da Ordem, que definiu o Pe. Tezza uma tima pessoa, como sempre foi. Nele h
observncia, respeito, caridade, doura, instruo, zelo, mortificao; para falar a
verdade, um autntico modelo de religioso68.
A viagem para a Frana aconteceu no dia 20 de agosto de 1871, seguindo
um caminho que no previsto. Num primeiro momento, o Pe. Tezza devia passar
por Pdua e Verona para despedir-se de sua me e dos coirmos da provncia
Lombardo-Veneta, sobretudo do Pe. Artini. Em seguida, o roteiro foi mudado.
Junto com o Pe. Lus Motterle, Tezza embarcou em Civitavecchia rumo a
Marselha e, de l, para Cuisery, a meta final.

As lies da experincia romana

Os dois anos que Tezza passou em Roma no foram inteis. Fora do ninho
onde foi criado sob a proteo constante do Pe. Artini, valeu-se com mais
confiana de suas prprias foras, crescendo em autonomia pessoal.
De grande proveito foi sua convivncia com um grupo de religiosos de
outra cultura.
Alm disso, conviveu com um dos seus interlocutores mais significativos,
uma figura de grande destaque, o Pe. Camilo Guardi69. Personalidade humana e
religiosa rica, Guardi gozava de grande prestgio na Ordem e tambm nos
ambientes do Vaticano e na diocese de Roma. Governou a Ordem de 1868 a
1884, ocupando o papel de protagonista nos principais acontecimentos da Ordem
daquele tempo. Homem de viso larga, soube captar o sentido da reforma
promovida pelo Pe. Bresciani, em Verona; favoreceu a expanso da Ordem com a
fundao da Frana. Dotado de forte senso da autoridade, mostrou-se
intransigente, at quase o fim, quanto misso na frica. O seu governo, sbio e
esclarecido, permitiu que a Ordem superasse as graves dificuldades causadas
pelos acontecimentos sociais e polticos do seu tempo. Interagindo com ele, como
veremos, o Pe. Tezza sentiu-se estimulado a fortalecer a sua autoridade pessoal,
embora respeitando sempre a obedincia.
No momento de sua transferncia para a Frana, Tezza estava prestes a
completar 30 anos, pronto para enfrentar novos desafios com segurana e
largueza de horizontes.

APL 295/149.
68

Para o conhecimento dessa importante figura de camiliano cf. J. Kuk, I Camilliani sotto la guida di Padre
69

Camillo Guardi (1868-1884) Ed. Camilliane, Torino, 1996.

37
VIII
O PRIMEIRO PERODO NA FRANA
Maturidade ativa

Cuisery, a localidade onde Tezza, acompanhado pelo jovem sacerdote Lus


Motterle, chegou no dia 24 de agosto de 1871, era um vilarejo perdido no interior
do departamento de Sane et Loire, diocese de Autun. A casa dos camilianos
ficava fora do vilarejo, perto de um santurio de Nossa Senhora, Notre Dame de
la Chaux. Tezza descreve o lugar como um pequeno paraso, que lembrava S.
Juliano.
A presena dos Camilianos no lugar tinha comeado dois anos antes. O
pedido do bispo de Autun para que os camilianos assumissem o santurio, onde
tambm seria construda uma casa para sacerdotes idosos e doentes, atendia ao
desejo do Pe. Camilo Guardi, vigrio geral da Ordem, de ampliar a presena dos
camilianos fora da Itlia. Os primeiros trs padres - Zanoni, Virgili e Morel -
chegaram em 1870. Enquanto aguardavam a construo da casa de repouso,
exerciam o ministrio sacerdotal nas parquias da redondeza. As epidemias que
irromperam aps a guerra franco-prussiana de 1870, proporcionaram-lhes a
oportunidade de mostrar sua dedicao aos doentes e isso os tornou conhecidos
na regio.

Os primeiros quatro anos

Tezza se adaptou facilmente nova realidade. Algum escreveu que, na


Frana, encontrou uma misteriosa naturalidade, uma segunda ptria e uma
especial adaptao para o seu esprito. Tinha a vantagem de saber o Francs,
aprendido na escola e falado na famlia e no mosteiro da me.
Nos primeiros quatro anos de sua permanncia na Frana, isto , at 1875,
Tezza desenvolveu a sua atividade em vrios campos.
Em primeiro lugar, trabalhou na formao dos candidatos vida religiosa.
No faltavam vocaes, que acompanhou seguindo o mtodo aprendido em
Verona e praticado em Roma. Neste campo, sentia-se vontade, favorecido pela
calma e silncio da casa de Cuisery. Como conhecia a lngua, traduziu as Regras
Camilianas para o Francs.
Outra atividade, informal, mas muito importante, foi a superviso do
andamento da fundao na Frana. Recebeu do Pe. Guardi o encargo de inform-
lo sobre a situao da comunidade de Cuisery. Cumpriu tambm esta obrigao.
As cartas que escreveu ao Vigrio Geral no eram para inform-lo apenas.
Sugeria-lhe medidas a tomar, pedia normas claras para estabelecer a disciplina e
favorecer a vida comum perfeita. Em Verona, Tezza tinha assimilado os princpios
da reforma do Pe. Bresciani e Artini, cujo objetivo era levar a Ordem de S.
Camilo ao ideal das origens, promovendo a assistncia aos doentes e a vida
fraterna em comum. A sua formao religiosa tornava-o avesso a um tipo de vida
demasiado livre e individualista.

38
O Pe. Guardi atendeu o Pe. Tezza e enviou o Decreto para o governo da
nossa casa de La Chaux, no qual tornava oficiais as regras da reforma em vigor
na Provncia Lombardo-Vneta.
O terceiro setor de sua atividade foi o ministrio. No incio, o Pe. Tezza
dedicou-se pastoral no santurio e nas parquias. O seu conhecimento da lngua
permitiu que se dedicasse tambm pregao.
Mas para ele e tambm para os demais religiosos, era urgente comear
uma atividade especificamente camiliana. Dado que no era possvel construir a
casa para sacerdotes idosos e invlidos em Cuisery, comearam a pensar noutros
lugares.

Nova modalidade do ministrio Camiliano

Entre vrios projetos viveis, optaram, em 1872, por uma casa de repouso
em Lyon, cidade de muitos recursos e numerosas vocaes. Tratava-se de uma
obra de apenas 12 leitos, mas importante por seu significado histrico. Era a
primeira vez que a Ordem de S. Camilo estabelecia uma obra assistencial prpria.
Com esta escolha, Tezza e seus coirmos iniciavam uma nova modalidade
de ministrio camiliano, que se expandiu na Frana e, no sculo seguinte, noutras
partes da Ordem. Talvez estivessem presentes na mente do Pe. Tezza as palavras
do seu mestre, Pe. Artini: De S. Camilo podemos e devemos aprender a
caridade, mas os meios para p-la em prtica hoje, convm que os aprendamos
do esprito que Deus infunde em nossos coraes para atender s necessidades
atuais70.

As responsabilidades

Ao se envolver nessas iniciativas da fundao francesa, Tezza pde


mostrar suas qualidades. Sua autoridade foi reconhecida oficialmente quando, em
1884, o Pe. Guardi, por ocasio da sua visita pastoral, inaugurou o noviciado e
nomeou o Pe. Tezza mestre de novios e superior da comunidade. Na poca, a
comunidade de La Chaux era formada por trs padres, quatro novios, um oblato
e um postulante.
As atividades da fundao cresceram, tornando mais pesado o trabalho e a
responsabilidade do Pe. Tezza, que se viu obrigado a pedir demisso do cargo de
mestre de novios. Indicou como seu sucessor o Pe. Joaquim Ferrini, da provncia
romana, que conheceu em Roma, e por quem tinha grande estima. A Consulta
acolheu o seu pedido e o Pe. Ferrini chegou a Cuisery no dia 22 de agosto de
1875.

Uma mudana feliz

70
APL. 280/274.

39
Uma mudana importante no tipo de vida e na atividade de Tezza
aconteceu em 1876 com a entrada em cena de um personagem de destaque, o sr.
Camille Fron-Vrau, mdico, fundador da faculdade de medicina da Universidade
Catlica de Lille, que se tornou um centro de iniciativas humanitrias. Criou
associaes de mdicos e de doentes e se envolveu nas questes sociais seguindo
as orientaes de Leo XIII. Morreu em 1906, com fama de santo.
O encontro com Fron-Vrau aconteceu por acaso. Tendo-o procurado para
pedir ajuda financeira, o Pe. Tezza encontrou nele apoio e colaborao para a
expanso dos Camilianos na Frana. O convite para uma fundao camiliana em
Lille no demorou. Perto da Faculdade de Medicina estavam previstos alguns
dispensrios para que os mdicos catlicos e os estudantes atendessem
gratuitamente a populao. Um desses dispensrios seria entregue aos
camilianos.
O projeto foi acolhido pelo Pe. Tezza e tambm pelos superiores de Roma.
Apesar das dificuldades para conseguir a aprovao do arcebispo de Cambrai, do
qual dependia Lille, a iniciativa se concretizou rapidamente. No dia 27 de janeiro
de 1877, a Consulta Geral aprovou a fundao de Lille e, no dia 15 de agosto, foi
inaugurada a nova Casa. Cinco padres e cinco irmos, sob a chefia do Pe.
Carcereri, h pouco retornado da misso da frica, iniciaram o ministrio
camiliano no primeiro dispensrio ligado Universidade, em colaborao com os
professores e os estudantes da Faculdade de Medicina. Havia entusiasmo e
trabalho tambm fora do dispensrio para atender os doentes em suas casas,
especialmente os sacerdotes doentes. A conscincia de ter voltado ao ideal de S.
Camilo infundia nimo.
Em poucos anos, a fundao francesa se desenvolveu, graas presena de
religiosos de valor, quase todos provenientes da provncia Lombardo-Vneta.

A vice-provncia da Frana

A presena de trs comunidades - Cuisery, Lyon e Lille - com um total de 29


religiosos, levou a Consulta Geral, em 1877, a constituir a fundao em Vice-
Provncia, garantido-lhe, assim, maior autonomia. O Pe. Tezza foi nomeado Vice-
Provincial.
No chegou inexperiente ao cargo. Na sua primeira carta circular aos
coirmos mostrou segurana e riqueza de idias, indicando os pontos
fundamentais sobre os quais pretendia construir o edifcio de cada comunidade e
da Vice-Provncia: a vida fraterna comum, a prtica do nosso ministrio segundo
o ideal de S. Camilo, a fidelidade Regra e o amor Ordem.
Para dar maior consistncia e funcionalidade a estas linhas de ao,
realizou um Captulo vice-provincial extraordinrio, em la Chaux, de 9 a 16 de
maio de 1878. A assemblia era formada por 9 participantes, todos padres de
valor, como Carcereri, Vido, Ferrini e Franceschini.
As decises do captulo, em 95 artigos, abrangiam todos os setores da Vice-
Provncia, isto , vida espiritual, ministrio e formao. Aprovou a abertura do

40
ministrio em obras de acolhida e de tratamento prprias da Ordem e procurou
introduzir mudanas para os irmos, propondo sua participao nos captulos,
embora sem direito de voto. A Consulta aprovou a maior parte das decises do
captulo no dia 01 de novembro de 1878.
Ao convocar o captulo, o Pe. Tezza propunha-se dar estrutura slida
Vice-Provncia, criando fraternidade e envolvimento nos projetos de todos. O
desenvolvimento da fundao s teria xito se todos os religiosos pusessem suas
capacidades a servio de um projeto comum.
A vice-provncia crescia bem. Nas trs Comunidades havia construes em
andamento: em Cuisery, para a nova casa de noviciado; em Lyon, a ampliao da
casa de repouso; em Lille, o acabamento do dispensrio.
De vrias partes chegavam pedidos de novas fundaes. Em 1878 foi
aberta Casa em Cannes, na Costa Azul, para assumir uma casa de repouso, j
construda, para sacerdotes doentes e crnicos da diocese. Uma dcada mais
tarde, foi a vez da fundao da comunidade de Thoule-sur-Mer, tambm para
idosos. As vocaes aumentavam e os superiores decidiram transferir os
religiosos professos de La Chaux para Lyon.

Os anos difceis da supresso das Congregaes

Mas sobre todo este crescimento se abateu a supresso das Congregaes


Religiosas, decretada pelo Governo Francs no dia 29 de maro de 1880. Os
camilianos, sobretudo por causa do grande nmero de religiosos estrangeiros,
foram obrigados a deixar a Frana, e sofreram muito por causa das leis de
supresso. Entre as possveis escolhas, decidiram levar os estudantes, parte para
o Tirol e parte para Verona, na casa de S. Juliano, que desde 1869 era casa de
frias para os religiosos da provncia. L, foram acolhidos os clrigos orientados
pelo Pe. Carcereri. O Pe. Tezza continuou em La Chaux, esperando evitar a
expulso. Mas no dia 11 de novembro de 1880, teve que partir para Verona.
Quanto aconteceu naqueles dias mostra com clareza o clima que reinava no
relacionamentos entre Estado e Igreja na Frana aps a guerra da Prssia. Nesta
situao dramtica, criada pela interveno da polcia e de grupos marginais, pela
reao do povo em defesa dos religiosos e do santurio mariano, pelos insultos e
ameaas, o Pe. Tezza mostrou fora e coragem fora do comum. No teve medo
de se posicionar diante dos usurpadores da Casa Religiosa e da igreja.
Como no podia evitar a expulso, foi para a Itlia, mas estava decidido a
voltar quanto antes. De fato, aps trs meses de permanncia em Verona,
conseguiu voltar para La Chaux. Perseguido pela polcia, teve que se esconder e
mudar de casa muitas vezes. A sua experincia de duas supresses anteriores, em
Verona e em Roma, e o exemplo do Pe. Artini, o ajudaram a enfrentar esta
situao difcil, permitindo que evitasse ou, pelos menos, dificultasse o mais
possvel o xodo de religiosos. Embora modestas, as conseqncias negativas da
supresso pesaram sobre a jovem Fundao Camiliana da Frana, criando

41
confuso e dando motivo a reaes incontroladas de alguns religiosos
descontentes.

Uma pausa

Em 1882, Tezza terminou seu mandato de vice-provincial e lhe sucedeu o


Pe. Vido. A mudana no deixou de causar surpresa nos religiosos, tanto assim
que o Pe. Guardi, talvez percebendo um certo descontentamento causado pela
deciso tomada, procurou dar explicaes ao Pe. Tezza. Este, porm, declarou
imediatamente que no precisava, reconhecendo sempre e cegamente, em tudo e
por tudo, a vontade de Deus nas decises dos seus representantes na terra - e
estando intimamente convencido que, graas a elas, tudo correr s mil
maravilhas71.
De sua parte, o novo vice-provincial, Pe. Vido, no discurso de tomada de
posse dirigiu-se diretamente ao Pe. Tezza, prestando homenagem aos seus
mritos de iniciador da fundao francesa, realando tambm o exemplo da sua
humildade.
Para o trinio seguinte, aguardava-o o cargo de superior da comunidade de
Lille, onde se dedicou a vrias atividades, todas ligadas ao carisma camiliano.
Trabalhou na farmcia, organizou um servio de termoterapia, acompanhou a
Lourdes um grupo de doentes. Por determinao do Vice-Provincial procurou
uma casa de formao na Holanda, na fronteira com a Alemanha, para acolher os
candidatos vida religiosa da Frana, Alemanha e Holanda. O projeto realizou-se
mais tarde, em 1884, com a compra de uma casa em Roermond, no Brabante, que
devia funcionar como casa de formao para estudantes de vrios pases.

Superior provincial

Em 1884, com a morte do Pe. Guardi, assumiu o cargo de Vigrio Geral da


Ordem o Pe. Joaquim Ferrini, e o Pe. Tezza foi novamente nomeado superior da
fundao da Frana, elevada a Provncia em 1885.
As feridas provocadas pela supresso das congregaes religiosas estavam
se fechando e a retomada da comunidade da Frana caminhava satisfatoriamente,
embora as ameaas do governo no tivessem acabado. Da visita pastoral s
comunidades da provncia, feita em 1886, Tezza teve uma impresso positiva.
Neste segundo perodo de superior da provncia, Tezza dedicou-se ao
trabalho de consolidao das conquistas anteriores, mas sempre aberto
novidade.
No campo da formao dos candidatos vida religiosa, interessou-se na
compra de uma casa de formao para os seminaristas Camilianos em Tournai, na
Blgica, pois a casa de Roermond no tinha condies para abrigar todos os
candidatos.

71
AG 1686/155.

42
Quanto ao ministrio Camiliano, aderiu, em 1888, proposta de participar
na realizao de um hospital de 200 leitos da Universidade de Lille, cabendo aos
camilianos a assistncia aos doentes, ajudados por freiras para cuidar das
mulheres. Um projeto ambicioso que mostra o favor de Tezza para obras de
assistncia sade, onde os religiosos podem exercer com liberdade o ministrio
prprio da Ordem.
Foi nesta poca que nasceu em Tezza a idia de preparar mulheres
consagradas para cuidar dos doentes.
O envolvimento no projeto do hospital de Lille levou Tezza, em 1888, a
recusar o convite do Cardeal Protetor da Ordem, Rafael Mnaco La Valletta, para
ser Consultor Geral da Ordem, em Roma.
Tratava-se de protelao apenas, pois, no ano seguinte, Tezza participou do
Captulo Geral e foi eleito Consultor, Vigrio Geral e Procurador da Ordem.

A experincia francesa, fonte de crescimento

Uma avaliao dos 18 anos que o Pe. Tezza passou na Frana permite que
se descubram aspectos novos de sua personalidade e de seu modo de agir. um
perodo de afirmao pessoal, reconhecido oficialmente pela nomeao a cargos
importantes, como mestre de novios, superior local e provincial.

A gesto da autoridade

Como geriu a autoridade? Foi na Frana que comeou a exercer esta


misso.
A resposta a esta pergunta deve ser precedida pela avaliao de seu
comportamento em relao aos superiores. Como j vimos, Tezza sempre se
deixou conduzir pelo esprito do voto de obedincia, que o levou a ver nos
superiores os mensageiros da vontade de Deus, razo de sentimentos de respeito
e de estima. No fugiu deles, no lutou contra eles, nem se submeteu
passivamente. O seu objetivo era de uma interdependncia que lhe permitisse
reconhecer e valer-se da autoridade dos superiores, assumindo, ao mesmo tempo,
a sua autoridade pessoal.
Eloqente foi sua correspondncia com os superiores gerais desse perodo,
sobretudo com o Pe. Guardi. Eis como respondeu a uma carta um tanto severa do
primeiro: No imagina que imensa caridade o senhor me faz todas as vezes que,
sem qualquer considerao, sem procurar formas delicadas, o senhor me faz
sentir sua voz paterna, mesmo que seja para dizer as coisas mais amargas e
desagradveis para o meu amor prprio72.
Ao mesmo tempo, Tezza desabafava com ele, respondia perguntas, rebatia
acusaes que tinham chegado a Roma, sabendo unir autodefesa leal a profundo
respeito pela autoridade e sincero sentimento de humildade.

72
AG 1686/104.

43
Anos antes, no teve receio em dizer ao Superior Geral, com respeito, mas
com sinceridade, que a repreenso que lhe havia feito teria sido muito mais
proveitosa se tivesse usado termos mais humanos...
Ao se tornar superior, assumiu um tipo de relacionamento todo especial.
Em carta circular de 9 de julho de 1889, dedicada ao exerccio da autoridade
pelos superiores, pediu que dessem ordens com prudncia, mas exigissem com
firmeza a sua execuo... e no aceitassem com facilidade as desculpas
apresentadas pelos sditos, sem verificar se tais desculpas so realmente
vlidas.73
Estas palavras so apenas uma faceta do estilo de Tezza. Na realidade, o
seu modo de se posicionar diante dos religiosos se caracterizava pela firmeza,
mas tambm pela bondade e, sobretudo, por muita pacincia. Na formao dos
candidatos sabia moderar as suas exigncias, como se v numa carta em que
critica a pedagogia do Pe. Vido que, embora bom e santo, era to duro e exigente
que espantava os novios estavam sob a sua formao. Com um pouco de humor,
acrescenta que, sob a sua orientao, nem S. Lus teria terminado o noviciado....
Segundo alguns, a bondade e a mansido de carter do Pe. Tezza no eram
prprios do seu temperamento, mas, como em S. Francisco de Sales, resultado
de muita luta74. Trata-se de uma opinio no comprovada por documentos. No
perfil biogrfico da me de Tezza, l-se que o jovem Artur (Lus), dotado de
temperamento brando e fcil, aceitava com respeito as repreenses um tanto
severas de sua digna me, corrigindo um pouco, sem dar-se contas, a aspereza da
virtude da me75.
verdade, porm, que mantinha vivas e fortalecia suas qualidades atravs
de uma disciplina constante, conseguindo reduzir ao mnimo as inevitveis
impacincias, as reaes de fechamento, as repreenses exageradas, fruto mais
de cansao que de traos de seu carter.

Pontos de vista diferentes

A tendncia de Tezza para ser indulgente e tolerante, para esperar e dar


novas oportunidades, no deixava de provocar crticas de alguns religiosos. Na
provncia francesa havia pessoas de grande valor, como Estanislau Carcereri,
Joaquim Ferrini, Francisco Vido, que, no espao de poucos anos, ocuparam os
cargos mais elevados de suas provncias e da Ordem. Se a sua presena foi
valiosa para o crescimento da fundao, tambm foi raiz de atritos para o Pe.
Tezza. As crnicas daqueles anos lembram dificuldades de relacionamento entre
ele e os padres acima lembrados, de maneira especial com o Pe. Carcereri.
Como j dito, o Pe. Carcereri tinha personalidade forte e grande amor pela
Provncia da Frana e pela Ordem. Na sua viso das coisas, mostrava-se
clarividente. Era reconhecido por todos como um mestre de novios inigualvel.
O que o prejudicava era sua tendncia individualista, reforada por proverbial
73
Le Rucher Camillien de France, 1889, p. 98.
74
Testemunho do Pe. Baudin, in Domesticum, 4 (1924), p. 78.
75
AFSC 2B/2.

44
tenacidade. Numa carta ao Pe. Guardi, o Pe. Tezza afirma: Quando o Pe.
Carcereri quer uma coisa, no h Geral nem Papa que o segure76.
Havia assuntos sobre os quais a viso do Pe. Tezza no era aceita por
todos: certos critrios para admitir e demitir candidatos vida consagrada; tipo
de formao; tolerncia com religiosos inobservantes; relacionamento respeitoso
e conciliador com os superiores de Roma.
As crticas dos coirmos nem sempre eram sem fundamento. No faltavam
religiosos imaturos, sobretudo jovens, acolhidos sem discernimento, mostrando
que a promoo vocacional e a formao dos candidatos vida consagrada nem
sempre eram de bom nvel. Nesse ponto, o Pe. Tezza era um tanto
condescendente, o que ele prprio reconhecia quando surgiam casos de
comportamento inadequados de postulantes ou de jovens professos. Nem a
formao intelectual ficou sem falhas, pois dependia s dos religiosos da
fundao, nem sempre devidamente preparados. A supresso das congregaes
religiosas tornou evidentes algumas dessas lacunas.
O mal-estar de tais divergncias era agravado pelas murmuraes que, s
vezes, se transformavam em acusaes chegavam aos superiores maiores.
Este conjunto de elementos suficiente para justificar a acusao contra o
Pe. Tezza de ser homem fraco e ...que devia ser despertado do sono...? A
anlise do seu comportamento e dos resultados da sua ao leva a uma resposta
negativa. De fato, mesmo quem no concordasse com seu mtodo de governar a
provncia e de resolver os problemas, no podia ignorar a caminhada feita pela
fundao da Frana sob o seu comando. Houve crescimento em todos os campos,
coeso comunitria mesmo nos momentos da disperso provocada pela supresso
das congregaes religiosas, inovao na prtica do ministrio camiliano,
primazia da vida espiritual.
Noutras palavras, Tezza mostrou-se homem capaz. Se a tendncia a
defender os seus pontos de vista - com seu modo pacato, que no agredia, mas
envolvia o interlocutor, cedendo para depois retomar... - podia provocar irritao
em alguns, isso no chegava a pr em dvida sua boa f e sua boa inteno.
No por acaso foi o prprio Pe. Carcereri a fazer grandes elogios ao Pe.
Tezza. Declarou-o o Padre mais amado e mais honrado da provncia, exaltando
as suas qualidades, engrandecendo o bem que fez Provncia da Frana e
preconizando as esperanas que a sua experincia e o seu amor Ordem deixam
prever para o futuro77.

Homem de ao

Outro aspecto que emerge do perodo que o Pe. Tezza passou na Frana a
sua capacidade de enfrentar e desenvolver uma grande quantidade de trabalho.
Embora se mostrasse forte, de muitas energias fsicas e psicolgicas, em
certos momentos sentia-se sufocado pela atividade, que se tornava mais pesada
por causa das preocupaes.
76
AG 1686/151.
77
Le Rucher Camillien de France, 1887, pp. 54-76.

45
Entre essas, merecem ser lembradas as que vinham da pobreza econmica
em que se encontrava a fundao francesa. Em certa ocasio, Tezza chegou a
dizer que no tinha dinheiro nem para despachar uma carta. A contribuio dos
benfeitores era incerta, pois dependia das condies econmicas do povo. A
situao de pobreza obrigava o Pe. Tezza a bater porta do povo, escrevendo
cartas, recorrendo a pessoas e a organizaes. Se a ajuda de Camille Fron-Vrau
foi providencial, contudo, no foi suficiente para atender s necessidades de um
grupo que se tornava cada vez mais numeroso.
Numa carta ao Pe. Guardi d-se ao luxo de um desabafo, revelador da
situao difcil que enfrentava: Estou em tal mar de coisas disparatadas,
pressionado por cartas de Lille, de Lyon e de Cannes, sem contar outras de
natureza econmica, a necessidade de dividir-me entre aulas, formao dos
novios, busca de meios de subsistncia, e tudo o mais, que realmente um
milagre se minha pequena cabea agenta: acrescente as amarguras, as mais vivas
que tocam o meu corao por causa do passado e do presente e os srios motivos
que me preocupam quanto ao futuro, espero que sua paternal bondade se
compadea de mim. Embora levante todas as manhs s 4,30 hs e retarde o mais
possvel a hora de deitar, privando-me at do recreio comum para trabalhar, no
consigo fazer tudo e sempre me escapa alguma coisa e fica atrasada78.
O tipo de vida levado por Tezza neste tempo era tal que causava desgaste
psicolgico. As muitas e to diferentes atividades exigiam grandes energias,
abrindo caminho para o stress. Aps a morte do Pe. Artini, no encontrou um
interlocutor privilegiado, com quem pudesse abrir-se em sua afetividade e
espiritualidade profundas. Em nenhum documento, porm, consta que o Pe. Tezza
tenha demonstrado sintomas de esgotamento. Se o consumo de energias era
grande, sua capacidade de recuperao tambm se mostrava elevada, tanto do
ponto de vista fsico e psicolgico como espiritual. Disso extraa motivaes para
purificar as razes do seu agir e fora para superar as dificuldades.

Sentimentos feridos

Durante a sua permanncia na Frana, tambm sua vida afetiva sofreu


provaes durssimas. O seu corao foi ferido pela morte de vrias pessoas
queridas. Em 1880 morreram o Pe. Modena, a quem devia sua vocao religiosa,
e sua me. Estas perdas, talvez, o fizeram reviver sofrimentos experimentados 10
anos antes com a morte, em 1871, do Pe. Bresciani, fundador da Provncia
Lombardo-Vneta e reformador da Ordem, e a outra, ainda mais dolorosa,
ocorrida um ano depois, do Pe. Artini, figura determinante na sua vida.
Francisca Camila Nedwiedt (nome de religiosa da me de Tezza) encerrou
sua caminhada terrena aos 65 anos. Religiosa do Mosteiro da Visitao de Pdua
desde 1856, percorreu uma caminhada de crescimento espiritual admirvel. Num
relatrio feito pela sua comunidade percebe-se a grandeza moral desta mulher, na

78
AG 1686/104.

46
qual a grande mstica se associava ao desejo ardente de se doar para a salvao
do prximo.
O Pe. Tezza pde encontr-la poucos meses antes da sua morte. Na crnica
do Mosteiro consta: Quando chegou a hora do encontro, a nossa querida madre
parecia no mais sentir o sofrimento. Poder-se-ia dizer que o amor de me lhe
deu asas, to depressa percorreu o trajeto que vai da enfermaria para a sala de
visitas. A primeira saudao que me e filho se deram foi a saudao dos
santos79. Naqueles momentos to intensos, as poucas palavras que conseguiu
dizer, foi um convite para se entregar a Deus e um at o cu.
Tezza reagiu de maneira sbria morte dessas pessoas, que tinham
ocupado lugar importante em sua vida. Fez um aceno morte do Pe. Bresciani,
passou em silncio a de Artini. Numa carta ao Pe. Guardi limitou-se a dizer:
Estamos fazendo os sufrgios pelo falecido Pe. Mdena - mais um vazio que se
faz em nossas casas -; num ms, de 27 de agosto a 27 de setembro, perdi minha
me e o primeiro pai de minha vocao religiosa. Seja feita e louvada em tudo a
santa vontade de Deus80.
Mostrou-se e mostrar-se- mais expressivo por ocasio da separao de
pessoas e lugares imposta pela obedincia. Em todas estas situaes, porm,
deixava-se guiar por sentimentos de f e de entrega vontade de Deus.

O elemento unificador

primeira vista, a vida do Pe. Tezza durante a sua permanncia na Frana


parece dispersa, por causa das suas atividades de governo, pregao e
administrao. Nas suas cartas, no fala de temas de espiritualidade, como fazia
antes. Os poucos esquemas de retiros espirituais que pregou aos coirmos no
permitem que se penetre em seu ntimo.
Onde est o centro de sua vida movimentada, o elemento unificador? Da
documentao disponvel resulta que o fundamento espiritual lanado nos anos
anteriores agentava bem, consolidando-se na provao.
Como valor fundamental, emerge a entrega a Deus, que quem tece os
acontecimentos humanos. O Pe. Tezza quis fazer parte desta teia divina,
mantendo-se ao servio do plano de Deus. Fora desta tica, a sua atividade
ficaria sem sentido. Na entrega vontade de Deus, encontrou fora at nos
momentos mais dramticos, como a supresso das Congregaes Religiosas.
Apoiado na esperana da assistncia de Deus, a quem se mantm constantemente
unido, encontra foras para promover a vida fraterna e realizar os projetos
apostlicos.
devoo ao Sagrado Corao de Jesus e Virgem Imaculada
acrescentava a de S. Jos, protetor e patrono principal da Ordem.

Volta para Roma

79
AFSC 2B/2.
80
AG 1686/131.

47
Quando saiu da Frana para Roma, Tezza estava perto dos 48 anos. A
experincia da Frana o tinha amadurecido em todos os sentidos. Seu aspecto
fsico tambm sofreu mudanas. Das fotografias desse tempo, a sua figura parece
ter ganho em traos de fineza e nobreza. A postura continua firme e forte e o
passar dos anos parece no ter pesado, a no ser levemente, no seu fsico que
conserva uma linha harmnica. Ganha em profundidade o seu olhar, que
demonstra segurana e fora de penetrao e, ao mesmo tempo, tendncia para a
interiorizao. O rosto deixa transparecer, com mais evidncia do que no
passado, serenidade e capacidade de controle.
Estava maduro para assumir responsabilidades que abrangiam a Ordem
toda.

IX
NO TOPO DA ORDEM DE S. CAMILO
Uma viso universal

O Captulo Geral da Ordem no era celebrado h 27 anos. Vrias


circunstncias tornaram impossvel esse acontecimento, cuja periodicidade,
segundo as Constituies, de seis anos. Entre elas, a mais grave foi a supresso
das Congregaes Religiosas. Naquele tempo de desordens, a Santa S, por meio
da Congregao dos Bispos e dos Regulares, providenciava a nomeao do
Superior Geral e dos Consultores, precedida de consulta aos religiosos atravs de
carta. Tratava-se de situao anormal, cujas conseqncias pesavam sobre a
qualidade da vida religiosa, impedindo que se fizessem as reformas necessrias.
No faltavam religiosos que, naquele estado de coisas favorvel ao seu
padro de vida relaxado, trabalhavam contra qualquer mudana. A cada fim de
mandato de Superior Geral, convenciam a Santa S a suspender a celebrao do
Captulo Geral, alegando o estado de degradao moral e de confuso que a
Ordem atravessava.

O fim de uma longa crise

O Pe. Tezza, entre outros, contribuiu de forma decisiva para encerrar to


difcil perodo de crise. Quando, em 1888, a Santa S decidiu, mais uma vez,
suspender a convocao do Captulo, a Provncia francesa se ops
terminantemente, condenando as manobras de alguns religiosos para desacreditar
a Ordem diante do Papa e pediu ao Superior Geral que interviesse com firmeza
para pr termo a to desagradvel situao.
A deciso da Frana foi tomada no Captulo Provincial celebrado no dia 5
de maro de 1888 sob a presidncia do Pe. Tezza. Graas a uma proposta do Pe.
Estanislau Carcereri e do Pe. Francisco Vido foi redigida uma carta Consulta
Geral.
Na carta constam os princpios da reforma feita pelo Pe. Camilo Bresciani.
O documento indica os pontos fundamentais da vida religiosa Camiliana: um forte

48
apelo assistncia aos doentes, introduo vida comum perfeita em todas as
Casas, melhoria da formao dos candidatos vida religiosa, fidelidade
Constituio na eleio dos superiores maiores.
A proposta da provncia francesa foi acolhida pelo Superior Geral, Pe.
Joaquim Ferrini, que entregou ao Papa Leo XIII um relatrio completo sobre o
estado da Ordem, onde constava que a situao permitia uma boa e proveitosa
celebrao do Captulo. Para reforar suas palavras, o Pe. Ferrini citou o exemplo
da fundao francesa, que tinha crescido bem sob a orientao do Pe. Tezza. A
Santa S acolheu o pedido do Pe. Geral e determinou que o Captulo Geral fosse
celebrado no ms de maio de 1889.

Eleito procurador da Ordem

O Pe. Tezza chegou preparado para o Captulo da Ordem. A variedade das


experincias vividas no campo da formao, do servio aos doentes, da
administrao e do governo de uma Provncia prspera o tinham enriquecido
muito, tanto do ponto de vista humano como religioso. Em todos os lugares em
que havia trabalhado - Verona, Roma e Frana - chamou a ateno e mereceu a
estima tanto dos religiosos, quanto das autoridades eclesisticas e dos leigos.
Representava, alm disso, o grupo de religiosos que tinha rompido com um tipo
de vida consagrada contrrio, em muitos pontos, ao esprito de S. Camilo.
Estes motivos levaram os capitulares a votar nele. De fato, foi eleito
primeiro Consultor, Procurador e Vigrio do novo Superior Geral, Pe. Joo
Mattis. O papel confiado ao Pe. Tezza comportava vrias responsabilidades, pois
no era apenas conselheiro, mas vigrio geral, substituto, portanto, do Superior
Geral em caso de ausncia ou incapacidade. Alm disso, como procurador devia
cuidar das relaes da Ordem com a Santa S.
Com esta eleio, feita no dia 18 de setembro de 1889, Tezza viu-se
deslocado da periferia para o centro, chamado a continuar o seu engajamento
para o bem da Ordem em termos igualmente generosos, embora diferentes.

cabeceira dos doentes

Naquele tempo, a presena no governo central da Ordem no exigia dos


Consultores Gerais tempo integral. Eram desconhecidas as viagens e a
participao na vida das provncias que se tornaram praxe na Ordem somente na
segunda metade do sc. XX. Era normal, portanto, que os Consultores
assumissem outras atividades.
O Pe. Tezza passou a residir no Hospital S. Joo de Latro, como capelo.
Os camilianos tinham assumido a assistncia espiritual desse hospital em 183681.
Antes de se tornar camiliano, o padre Camilo Csar Bresciani tinha estado
em Roma para conhecer as casas da Ordem. A sua visita ao Hospital S. Joo o
Cfr. M. Vanti, Cento anni dei CC. RR. Ministri degli Infermi nellArcispedale del SS. Salvatore a S.
81

Giovanni in Laterano, 1836-1936. Roma 1936.

49
deixou bem impressionado: No momento estou na terceira casa dos Padres de S.
Camilo, isto , em S. Joo de Latro. Aqui observo tudo quanto fazem pelos
doentes. Os religiosos so seis, todos jovens; tm dois irmos; trabalham muito,
mas com alegria...Vivem de acordo e se alternam nas atividades com turno
fixo82.
No hospital, Tezza pde exercer o carisma prprio da Ordem de forma
contnua. Nos anos anteriores, no lhe fora possvel consagrar muito tempo ao
ministrio com os doentes, por causa dos compromissos de formao e de
governo.

Que mtodo pastoral?

No chegaram at ns documentos que informem sobre o mtodo pastoral


seguido pelos religiosos que trabalhavam no hospital S. Joo. Tomando
conhecimento da literatura produzida pelos camilianos possvel ter uma idia
das linhas metodolgicas que orientavam a assistncia espiritual aos doentes
naquele tempo.
Em 1630 foi escrito e publicado um Manual sobre a visita aos doentes:
Practica visitandi infirmos. O autor, Pe. Tiago Mancini, conheceu
pessoalmente S. Camilo e infundiu o seu esprito no livro, que no s constitui a
sntese da teoria e prtica da Ordem de S. Camilo naquele tempo, mas serviu de
referncia para os escritos posteriores que tratam da assistncia aos doentes 83.
Outros autores camilianos do sc. XVII, cujas obras influenciaram a assistncia
aos doentes at o incio do sc. XX, dependiam abertamente do Pe. Mancini. Por
esses motivos, o Captulo Geral de 1678 colocou o manual entre os textos
indispensveis para a formao dos religiosos camilianos.
No livro do Pe. Mancini, afora muitas coisas j superadas, encontram-se
numerosos elementos originais e inovadores, que podem ser considerados atuais.
Acertadamente destaca a necessidade de preparao especfica para a
assistncia espiritual aos doentes. Trata-se de um ministrio que requer boa
preparao teolgico-pastoral e tambm prtica.
Se a nfase dada dimenso sacramental, presente no livro, relevante,
no diminui o espao do conhecimento da pessoa e das suas necessidades, nem
do relacionamento interpessoal e do dilogo do sacerdote. O autor convida o
agente de pastoral a se munir de prudncia e bondade e estabelecer um bom
relacionamento com o doente antes de propor-lhe a orao e os sacramentos.
Tambm a tonalidade da voz e o modo de conversar tem sua importncia.
Para acompanhar o doente no so necessrios sermes nem discursos de
alta teologia, mas aconselhamento feito com simplicidade e bondade. Pode
contribuir para a eficcia do acompanhamento espiritual a criao de um clima
sereno, por meio de msicas e cnticos apropriados e a repetio de frases
bblicas centradas no amor de Deus.
82
APL. 260,4.
83
E. Sapori, Lopera Practica visitandi infirmos del Padre Mancini Giacomo M.I. - Una proposta di
pastorale sanitaria nellItalia del seicento, in Camillianum, 22 (2000), p. 311.

50
O relacionamento pastoral no deve terminar com a administrao dos
sacramentos, mas continuar com o acompanhamento do padre e de outras
pessoas.

Ministrio de consolao

A viso do Pe. Mancini, para quem a assistncia ao doente devia ser um


ministrio de consolao voltado para salvao da pessoa como um todo,
encontrava resposta positiva no esprito do Pe. Tezza, tanto pela sua
personalidade quanto pela formao recebida. O seu encontro com os doentes era
enriquecido pela sensibilidade e afetividade que dava um toque especial ao seu
relacionamento com as pessoas queridas.
Os doentes do Hospital S. Joo foram os beneficirios de sua caridade
pastoral, impregnada de amor. Indagado porque, de manh, ao abrir a janela de
seu quarto, respirava profundamente, respondeu que queria encher o peito com o
perfume de caridade que saa da enfermaria que ficava no andar inferior. Esta
reao lembra a de S. Camilo que, ao passar perto do Hospital do Esprito Santo,
parava a fim de se deliciar com o seu perfume. Em carta escrita anos mais tarde,
o Pe. Tezza lamenta ter deixado o Hospital, meu verdadeiro paraso na terra.

Um projeto inovador

O amor de Tezza para com os doentes no se limitava ao acompanhamento


espiritual. Procurava tornar mais eficaz o servio aos doentes atravs de outras
formas de ao.
H alguns anos amadurecera no seu esprito o projeto de engajar mulheres
consagradas na misso prpria da Ordem, para que a sua presena e ao
enriquecessem com a sensibilidade feminina a prtica do ministrio camiliano.
Durante sua permanncia em Roma, boa parte de suas energias foi
dedicada a esse projeto, sob a ao do Esprito que queria fosse fundador das
Filhas de S. Camilo.

X
O FUNDADOR
Atento voz do Esprito

O projeto de fundar uma congregao religiosa para servir a comunidade


eclesial e o mundo, cresceu aos poucos no Pe. Lus Tezza sob o impulso de vrios
estmulos, internos e externos, atravs dos quais o Esprito conduz.
Foi em Lille que, pela primeira vez, sentiu a necessidade de um grupo de
mulheres que colaborassem com os Camilianos na assistncia aos doentes no
hospital da Universidade Catlica, para cuja realizao tinha contribudo.

51
Antecedentes na Ordem Camiliana

Na histria da Ordem de S. Camilo no faltaram tentativas de formar


associaes de mulheres dedicadas assistncia dos doentes. Existiram, no sc.
XVIII, em Roma, Viterbo e Bolonha, geralmente conhecidas como Tercirias da
Ordem de S. Camilo. Tambm em Barcelona surgiu uma associao desse tipo
com o nome de Instituio de Enfermeiras ou Congregao da Providncia da
Ordem de S. Camilo. Emitiam votos privados e viviam em suas famlias. Houve
casos de mulheres que vestiam o hbito camiliano. Em Bolonha, teve
popularidade Rosa Camila Grimaldi, falecida em 1841, com fama de santidade.
Em nvel mais elevado de organizao, surgiu, em Lucca, a Congregao das
Irms Oblatas Enfermeiras, fundada por Maria Dominga Brun Barbantini, hoje
bem-aventurada, agregada Ordem de S. Camilo em 1842.
Todos os movimentos e associaes aqui lembrados no mais existiam no
tempo do Pe. Tezza. Apenas as Irms Oblatas Enfermeiras tiveram algum
crescimento em Lucca e, mais tarde, adotaram o nome de Ministras dos
Enfermos de S. Camilo. Em 1888, o Pe. Tezza, quando ainda em Lille, manteve
contato com elas por meio do Pe. Ferrini, para ter a sua colaborao. Seu pedido,
porm, no foi aceito pelo bispo.
Em Roma, o Pe. Tezza no desistiu da idia j cultivada na Frana e, em
1891, obteve licena da Consulta Geral para fundar uma comunidade de Irms
em Lille. O projeto, porm, fracassou por dificuldade de deslocao entre Roma
e a cidade francesa.

Encontro com Judite Vannini

A espera de Tezza foi recompensada por um encontro casual com a jovem ,


Judite Vannini84.
Durante um retiro que pregou s religiosas de Nossa Senhora do Cenculo,
Judite confessou ao Pe. Tezza as suas ansiedades provocadas pela difcil busca
do projeto de Deus a seu respeito. O seu discernimento vinha de longe. Aos 32
anos, momento em que a mulher comea sentir a crise da meia idade, Judite
carregava a insatisfao tpica de quem ainda no havia encontrado o seu lugar na
vida. Era-lhe difcil dar uma resposta satisfatria aos questionamentos
fundamentais de qualquer pessoa: Quem sou? Que quero? Havia nela o desejo
profundo de chegar sua casa, morada fundada na idia clara da sua
identidade, da viso ntida de um projeto de vida, da compreenso do desgnio de
Deus a seu respeito.
Nascida em Roma no dia 7 de julho de 1859, ficou rf de pai e me aos
sete anos. Internada no Orfanato Torlnia, das Irms de S. Vicente, ficou l 17
anos, at 1883; recebeu boa formao e obteve o diploma de mestra de jardim de
infncia.

84
Cfr. B. Brazzarola, Madre Giuseppina Vannini, fondatrice delle Figlie di San Camillo, Grottaferrata 1990.

52
No Orfanato, nasceu nela o desejo de se tornar Filha da Caridade. Novia
em 1884, no conseguiu levar a termo o seu projeto. De fato, aps vrias
tentativas, foi demitida de vez da Congregao. Judite resistiu s propostas do
irmo de lev-la a conhecer a vida e se dedicou ao magistrio em colgios
religiosos at 1891.

Uma mulher em busca

Que que no funcionava nesta jovem mulher, pequena em tamanho, mas


de aspecto agradvel, inteligente e de boa instruo, correta em sua vida e boa
crist, tmida, mas forte e determinada? As carncias afetivas, decorrentes da
perda precoce dos pais, o ambiente fechado do Colgio onde viveu longos anos,
o temperamento introvertido, as incompreenses nas casas de formao da
Congregao das Filhas da Caridade, mas que lhe deram grande apoio, so
elementos que podem explicar a insatisfao que a perturbava. Tratava-se, porm,
de uma explicao apenas parcial. O corao inquieto de Judite, certamente j
tinha encontrado o que procurava. No me procurarias se j no me tivesses
encontrado, so palavras que Pascal pe na boca de Cristo ...Em seu caminho de
Emas, algum caminhava com ela, sem que ela o percebesse. Precisava que
algum a fizesse sentir aquela presena misteriosa, forte e suave.
Foi o que fez o Pe. Tezza. No encontro de dezembro de 1891, Judite
contou-lhe sua situao. Os conselhos que o Padre lhe deu caram no vazio at
quando lhe props que se dedicasse ao projeto que ele acalentava h algum
tempo. Naquele momento, acenderam-se algumas luzes no esprito de Judite.
Teve a certeza que havia encontrado o que estava procurando.
O encontro entre Tezza e Vannini, aparentemente casual, revelou-se uma
daquelas oportunidades que definem a vida de uma pessoa. Nas descries das
aventuras de grandes pesquisadores do esprito, existe sempre a figura, fugaz ou
permanente, de algum que acompanha, de um guia, um inspirador. Francisco de
Assis abriu o corao de Clara. Tambm Francisco de Sales orientou Madame
Chantal no caminho da perfeio.
A conversa de 1891, desencadeou na Vannini um dinamismo espiritual
intenso que, sob o impulso da graa divina e atravs do conhecimento de S.
Camilo, a levou, pouco a pouco, a se conformar a Cristo misericordioso, divino
samaritano, mdico das almas e dos corpos, que padece em quem sofre.

A realizao do projeto

Este dinamismo amadureceu progressivamente atravs de acontecimentos e


experincias que acrescentaram algo novo ao j bom, em termos de tomada de
conscincia, profundidade e intensidade espiritual.
Aps o sim da Vannini, o projeto de fundao passou rapidamente para a
prtica. Outras duas jovens, tambm orientadas espiritualmente pelo Pe. Tezza,
mostraram-se dispostas a participar da obra: Vitria Panetta e Emanuela Eliseo.

53
Com elas, Judite formou uma pequena comunidade. Moravam numa casa
modesta, na Via Merulana 141, em Roma.
No dia 2 de fevereiro de 1892, alguns meses aps o encontro com o Pe.
Tezza, no quarto em que S. Camilo morreu, na Casa de S. Maria Madalena, o
Superior Geral dos camilianos, Pe. Joo Mattis, na presena do Pe. Tezza, deu o
escapulrio com a cruz de S. Camilo a Judite e s suas companheiras.
Foi o comeo oficial da Congregao e deu ao pequeno grupo um padro
de vida mais organizado, marcado pela simplicidade, disciplina, esprito de
orao e servio aos doentes.
O Pe. Tezza teve a preocupao de dar-lhes formao segundo o esprito
de S. Camilo, seguindo as Constituies da Ordem camiliana. O ideal terico do
carisma camiliano foi posto em prtica imediatamente. Judite e suas
companheiras comearam a cuidar de doentes em suas casas, de dia e de noite.
Acolheram uma em sua prpria residncia. Logo, outras candidatas bateram
porta do pequeno convento. Uma delas, Henriqueta Elisei, vai merecer ateno
especial do Pe. Tezza.
O progresso da fundao amadureceu no Pe. Tezza a deciso de dar o
hbito religioso a Judite. Durante a cerimnia, celebrada no dia 19 de maro de
1892, na capela das Irms do Cenculo, Judite adotou o nome de Maria Josefina.
Na oportunidade, com gesto significativo, o Pe. Tezza tirou do seu manto a cruz
vermelha e a passou a Josefina para que, pregada em seu hbito, mostrasse ao
mundo que a Congregao das Filhas de S. Camilo havia renascido.

Uma amizade profunda

Pelas palavras ditas a Vannini v-se que o relacionamento entre Tezza e ela
estava se aprofundando em confiana e estima mtua. Maria Josefina ser
chamada de pedra angular de um desgnio de Deus, o de perpetuar a mensagem
da caridade misericordiosa para com os doentes, que S. Camilo considerava o
corao da caridade85.
A amizade que nasceu entre os dois trazia a marca da espiritualidade mais
genuna. Tezza, dezoito anos mais velho, transmitia a Vannini a riqueza da sua
experincia, acumulada durante anos de formao em seminrios, no governo da
Provncia Camiliana da Frana e no cargo de procurador da Ordem. Autntico
camiliano, o esprito do fundador S. Camilo tinha lanado razes profundas em
sua vida, orientando seu modo de ser e de agir de acordo com Cristo
misericordioso.
No Pe. Tezza havia o afeto de pai espiritual, de mestre, de guia seguro e,
ao mesmo tempo, respeitoso. Esse afeto se estender, com igual intensidade, a
todas as Filhas de S. Camilo. A Irm Vannini, que correspondeu com sentimentos
filiais amizade do Pe. Tezza, encontrou, na autenticidade deste relacionamento,
crescimento em sua auto-estima e estmulo para assumir com fora e coragem a
responsabilidade de cofundadora da nova Congregao.
85
AFSC 1C3.

54
No faltam dificuldades

O crescimento do pequeno grupo continuou com firmeza, mas com muitas


dificuldades.
No dia 6 de abril de 1892, deixaram a residncia da Via Merulana por
causa do comportamento violento e ambguo do proprietrio e de outros
inquilinos do prdio. A nova residncia, na Via Giusti, 15, era maior e mais
confortvel e isto facilitou o trabalho de assistncia aos doentes.
Dificuldade maior surgiu meses mais tarde. Quando, em junho de 1892, o
Pe. Tezza pediu ao Cardeal Vigrio de Roma, Lcido Maria Parocchi, a
aprovao oficial da Congregao, foi-lhe comunicado que o Papa Leo XIII
tinha reservado para si a aprovao de novas congregaes na diocese de Roma.
A determinao do papa, que visava limitar a proliferao de Congregaes, s
vezes com a mesma finalidade de apostolado, obrigou o Pe. Tezza a recorrer
pessoalmente ao Papa Leo XIII. Grande, porm, foi a sua decepo perante a
resposta negativa do papa. Outro pedido tambm no teve resposta favorvel,
apesar dos motivos que o Pe. Tezza apresentou em sua carta, na qual descrevia a
histria, as razes e a finalidade da fundao.
O destino da Congregao parecia selado quando, com gesto providencial,
o Cardeal Vigrio salvou a situao. Ao saber que as Irms Camilianas no
dependiam da Ordem dos Ministros dos Enfermos, mas do Vicariato86, fez ver
Congregao dos Bispos e dos Regulares que a fundao das camilianas era
anterior ao decreto de Leo XIII. Alm do esclarecimento, fez grandes elogios s
Irms, destacando, como j tinha feito a imprensa romana, os bons servios que
prestavam aos pobres e aos doentes. O resultado foi a aprovao da associao
das camilianas como Pio Conservatrio, sob a responsabilidade do bispo.
Tratava-se de reconhecimento jurdico importante. A pedido de Vannini, o Pe.
Joaquim Ferrini foi nomeado assistente eclesistico da fundao e o Pe. Tezza
confessor.

A Congregao Cresce

Durante as tratativas para a aprovao, a caminhada da fundao no


parou. Em 1893, na presena do Superior Geral, Pe. Joo Mattis, Vannini emitiu
a profisso dos conselhos evanglicos e o voto de assistir os doentes, mesmo com
risco da prpria vida. O ingresso de novas candidatas elevou para 14 o seu
nmero.
Em 1893, comeou a expanso. Cremona e Mesagne, nas Puglias, foram
os lugares onde chegaram as primeiras Camilianas. Nas duas cidades, chamaram
a ateno das autoridades eclesisticas e do povo pela sua dedicao aos doentes.
86
A uma pergunta do Cardeal, o superior geral Pe. Mattis respondeu que as irms eram apenas agregadas aos
Ministros dos Enfermos em relao aos bens espirituais e a Ordem jamais teve qualquer ingerncia quanto a
elas, ficando sujeitas aos seus ordinrios. Elevada a Instituto, a Congregao perdeu qualquer dependncia da
Ordem camiliana, como foi determinado em seguida pelas Constituies de 1893, art. 1 (AG 1695/93, 94).

55
O tempo confirmou a validade do projeto do Pe. Tezza, que no visava a
restaurao das Tercirias da Ordem de S. Camilo, como j dissemos, mas
fundar uma congregao nova, de vida comum perfeita, presidida por uma
superiora e estruturada segundo regras e constituies bem definidas.
O crescimento da Congregao nunca mais iria parar.

XI
O ESPRITO DA FUNDAO
Com corao de me

O projeto do Pe. Tezza de fundar, junto com Judite Vannini, a Congregao


das Filhas de S. Camilo foi fruto de profunda experincia do Esprito. Tendo-a
vivido de forma intensa e profunda, sentiu o desejo de transmiti-la a outros para
que tambm a vivessem, conservassem e aprofundassem, desenvolvendo-a em
sintonia com o Corpo de Cristo, em contnuo crescimento87.

O carisma Camiliano

Esta experincia do esprito era o carisma, ou dom, da misericrdia para


com os doentes, prprio da Ordem Camiliana, qual o Pe. Tezza pertencia.
Tornou prprio o carisma de cuidar dos doentes e de ensinar como servi-los,
seguindo Cristo misericordioso, assimilando-o com sua experincia pessoal,
marcada pelo ambiente em que viveu e pela formao que recebeu.
O Pe. Tezza, como j dissemos, formou-se numa escola em que o carisma
Camiliano era ensinado e vivido segundo o genuno esprito do Fundador, S.
Camilo, num contexto em que a vida fraterna em comum era fundamental e a
assistncia aos doentes o centro da ao pastoral.
Terminada a formao, manteve-se fiel a estes princpios e os transmitiu
aos religiosos com palavras e, sobretudo, com o exemplo do seu servio generoso
e de um relacionamento pessoal rico de amor. No tempo que passou em Roma, a
servio do governo da Ordem, trabalhou para que esta idia de vida consagrada
Camiliana fosse aceita por toda a Ordem.
Ele, portanto, movido pelo esprito, atento aos sinais dos tempos e fiel
inspirao fundamental de S. Camilo, junto com Josefina Vannini, foi mediador
para que as Filhas de S. Camilo recebessem de Deus o seu carisma. por isso
que as Filhas consideram a Ordem camiliana o tronco fecundo e abenoado do
qual recebeu vida, mas cresceu independente, o rebento da sua Congregao
religiosa.

Uma verso feminina do carisma

A unio profunda entre a Ordem Camiliana e as Filhas de S. Camilo no


significa que o Pe. Tezza e a Madre Vannini quisessem fazer um mero transplante
87
Mutuae Relationes.

56
do carisma de S. Camilo, passando-o, por assim dizer, de uma Congregao para
outra.
Certamente, o carisma de S. Camilo foi a grande reserva de energia
espiritual, na qual os dois fundadores beberam em abundncia a inspirao e a
maneira de fazer a experincia de Deus. Mas, como um rio que nasce de um lago
segue caminhos prprios e originais, assim o carisma camiliano, assimilado por
Tezza e Vannini, assume caractersticas originais, graas ao influxo de mltiplos
fatores de ordem pessoal, histrica e cultural.
Examinando um dos aspectos dessa originalidade, podemos afirmar que,
atravs da Congregao fundada pelo Pe. Tezza, o carisma camiliano vivido no
gnero feminino, com tudo quanto isso comporta de significativo88.
S. Camilo, ao pedir que seus religiosos cuidassem dos doentes com
corao de me, intuiu que a assistncia aos doentes deve valer-se das qualidades
e atitudes prprias do gnio feminino: a receptividade, a disponibilidade, a
ternura, a acolhida, a capacidade de escuta, a intuio, a sensibilidade para captar
o sentido das situaes, a disposio para assumir os problemas dos outros, a
inclinao para ajudar...
Significativa uma regra que redigiu: Em primeiro lugar, cada qual pea a
Deus que lhe d um afeto materno para com o prximo, a fim de podermos servi-
lo com todo o amor, tanto na alma quanto no corpo, pois, com a graa de Deus,
desejamos servir todos os doentes com o mesmo carinho que uma extremosa me
dedica ao seu filho doente.
Camilo foi o primeiro a pr em prtica esta regra, como garante um seu
colega em pgina de rara beleza: ...Quando Camilo se punha a cuidar de um
doente, parecia uma galinha sobre os seus pintainhos ou uma me cabeceira de
seu filho doente. Como se seus braos e mos no conseguissem expressar todo o
seu amor, o mais das vezes, se inclinava e curvava sobre o doente, como se
quisesse transmitir-lhe com o corao, com a respirao e a alma a ajuda de que
precisava.
Antes de deixar aquela cama, mexia cem vezes no travesseiro e nos
cobertores, nos ps, na cabea, nos lados e, como se o segurasse ou se sentisse
atrado por um m invisvel, parecia no encontrar o caminho para ir embora.
Passava de um lado para outro da cama, ficava em dvida e perguntava ao doente
se estava satisfeito, se precisava de algo, dando-lhe conselhos sobre salvao da
alma. No se poderia representar melhor o cuidado e o carinho de uma amorosa
me parra com seu filho nico gravemente enfermo.
E quem no conhecesse o Padre, no teria imaginado que tinha ido ao
hospital para cuidar de todos os doentes indistintamente, mas apenas daquele,
como se sua vida lhe fosse muito importante e de grande interesse e como se no
tivesse outra preocupao no mundo89.

88
Cfr. C. Petretto, Il femminile nel carisma camilliano, in La vita consacrata nel mondo della salute, gesto e
annuncio del vangelo della misericordia, Quaderni del Camillianum, n. 4, Roma 1992.
89
S. Cicatelli, Vita del padre Camillo de Lellis, biografia manoscrita, Edizione critica, aos cuidados do Pe.
Sannazzaro, Roma, 1980, pp. 436-37.

57
Na Congregao que Tezza fundou, este aspecto do carisma camiliano foi
aprofundado e ampliado. Pedia s suas Filhas que vissem no doente o Esposo -
por acaso, o doente no a imagem de Cristo? E pedia-lhes que o servissem com
corao de me.
Algumas frases da Encclica Mulieris dignitatem de Joo Paulo II,
permitem que se compreenda a profundidade e a atualidade da mensagem do Pe.
Tezza. Se Deus confia todo homem a todos e a cada um, afirma o Papa, este
ato de confiar refere-se de modo especial mulher - precisamente pelo fato de
sua feminilidade - e isso decide particularmente a sua vocao. Isto vale
sobretudo num contexto scio-cultural em que os progressos da cincia e da
tcnica, favorecendo um progresso desigual, pode comportar tambm um
gradual desaparecimento da sensibilidade pelo homem, por aquilo que
essencialmente humano. Neste sentido, sobretudo os nossos dias aguardam a
manifestao daquele gnio da mulher que assegure a sensibilidade pelo
homem em qualquer circunstncia: pelo fato de ser homem(b.).

A formao

Como Tezza escreveu numa de suas cartas, a imitao de S. Camilo devia


ser uma obrigao permanente para as Filhas de S. Camilo : O vosso prprio
nome indica o que deveis fazer e ser diante de Deus e dos homens90.
Este era o objetivo da formao que lhes dava atravs de conferncias e da
direo espiritual. A fonte de onde tirava o material era a literatura camiliana: a
vida de S. Camilo, as Regras e Constituies da Ordem, que adaptava s Filhas.
Tezza encontrou uma sntese feliz do carisma e da espiritualidade
camiliana na chamada Frmula de Vida, uma espcie de Carta Magna onde
constam com preciso as condies necessrias para abraar a vida religiosa na
Ordem camiliana.91 S. Camilo a redigiu em 1591. Revista repetidas vezes, a
Frmula de Vida figura, ainda hoje, no texto da Constituio dos Ministros dos
Enfermos e das Filhas de S. Camilo.
Na Frmula de Vida d-se nfase que a consagrao religiosa est em
viver exclusivamente para Jesus Cristo crucificado. Esta entrega total a Deus
torna suavssimo o jugo dos conselhos evanglicos de castidade, pobreza e
obedincia, acrescidos do voto de cuidar dos doentes, mesmo com risco da
prpria vida. Ao cuidar dos doentes, a pessoa consagrada deve deixar-se guiar
pelo evangelho que a faz ver Cristo em quem sofre. To valiosa a prola da
caridade que vale a pena vender tudo para adquiri-la.

Interpretao pessoal das fontes

Ao propor o carisma e a espiritualidade de S. Camilo, o Pe. Tezza no fez


o papel de simples repetidor. O contedo de suas conferncias revelam meditao
e sntese pessoal que o levaram a dar-lhes forma nova, de acordo com a
90
AFSC 1A 027.
91
Cfr. G. Sommaruga (a cura di) Scritti di San Camillo de Lellis, Edizioni Camilliane, Torino, pp. 32-34.

58
sensibilidade e a psicologia de suas Filhas, com linguagem simples, como consta
nas cartas e noutros escritos s suas Filhas.
Exemplo marcante a redao adaptada de algumas idias da Frmula
de Vida.
Dirigindo-se s Filhas da comunidade de Cremona, em 1898, assim se
expressou: Se como esposas de Jesus, pois nisso sois iguais s demais
religiosas, deveis estar desapegadas de tudo, no esprito e na prtica da santa
pobreza, desprendidas de vs mesmas, em absoluta obedincia e vigilantes na
mortificao, e do que vos cerca, para manter ntegro at da mais leve mancha o
lrio da vossa virginal pureza; como verdadeiras Filhas de S. Camilo deveis,
sobressair, em primeiro lugar, pela caridade mtua e, depois, com todos,
principalmente com os doentes, dispostas a assumir por causa da caridade
qualquer sacrifcio, ainda que doloroso, empenhando no s as prprias foras, as
comodidades e a vida, que muitas vezes so menos difceis, mas, sobretudo, a
natureza, a vontade e o amor prprio92.
Estes pensamentos constam tambm num manuscrito de 1892, espcie de
rascunho para a redao das Regras e das Constituies, onde aponta as funes
da mestra de novias: ...Exortar as novias a fazer grandes sacrifcios,
propondo amide exemplos de santos, especialmente dos mrtires que deram a
sua vida por Cristo, sem esquecer o exemplo de pessoas do mundo que arriscam,
e muitas vezes perdem a sade e a vida na esperana e no desejo de recompensas
fteis e passageiras. Prepare-as, pois, para sofrer tudo, para sacrificar tudo por
amor de Nosso Senhor, e inflame-as no desejo de morrer vtimas da caridade93.
Importante e original a explicitao que o Pe. Tezza faz da relao que
existe entre servio misericordioso aos doentes e o esprito fraterno. Ou a
caridade impregna todo o agir da pessoa ou no existe. Aps recomendar s
Irms que se dediquem com empenho prtica da caridade fraterna, acrescenta:
Tomai cuidado. Se a caridade se enfraquecer entre vs, sobrar menos para os
pobres doentes e, o que pior, Deus se afastar de vs e arruinareis a sua obra e
tambm vossas almas94.

As regras e Constituies

A contribuio do Pe. Tezza para a estruturao da nova Congregao no


ficou s na inspirao do carisma. Cuidou tambm da legislao, que lhe deu
estrutura. Tambm nisso, adotou as Regras e as Constituies da Ordem de S.
Camilo, modificando-as, quando necessrio, na parte que se refere ao feminino e
ao sacerdcio. Para alargar a viso, valeu-se das constituies de duas
congregaes femininas. Pontos que as distinguiam das constituies consultadas
so: vida comunitria perfeita, mais orientao que prescrio, modo de exercer a
autoridade, devoo ao Sagrado Corao e a S. Jos.

92
AFSC 1A028.
93
But et forme de la Congrgation, manuscrito do Pe. Lus Tezza, in AFSC 1C 8b.
94
AFSC 1A 017.

59
Modificadas em 1896, as Regras e Constituies foram aprovadas pelo
Cardeal Vigrio de Roma em 1909, quando tambm foi aprovada a Congregao.
Outras mudanas foram feitas no sc. XX, at a reforma solicitada pelo Vaticano
II.
Merece destaque o fato que at agora os textos constitucionais da
Congregao das Filhas de S. Camilo, reformulados em suas estruturas e em sua
linguagem para adaptar-se aos tempos, no mudaram o seu contedo essencial,
mantendo intacto o esprito e as intenes do servo de Deus95.

A primeira discpula e colaboradora

A primeira pessoa a assumir o carisma camiliano, tendo como mediador o


Pe. Tezza, foi Judite Vannini, sua filha espiritual e cofundadora. Na escola do Pe.
Tezza, conseguiu assimilar as idias fundamentais de uma espiritualidade que tem
como centro Cristo misericordioso, divino samaritano, e foi capaz de transmiti-las
com sucesso s suas religiosas.
Comparando as cartas que os dois fundadores escreveram, possvel
perceber seus pontos comuns sobre temas fundamentais da vida religiosa, vivida
segundo o esprito de S. Camilo.
Como no Pe. Tezza, tambm na Vannini percebe-se a fora de alma com
que conseguiu transformar o seu sofrimento em meio de redeno, tornando-o
fonte de compaixo e de misericrdia para com os sofredores.
Como superiora geral no pde exercer, como queria, o ministrio de
assistncia aos doentes. As informaes que temos, porm, falam com eloqncia
de sua atitude para com os doentes, descrevendo-a dotada de especial ternura,
que se traduzia em gestos comoventes que lembravam, sob certos aspectos, os de
S. Camilo.
A caridade para com os doentes, expresso de uma atitude interior e fruto
da graa, no se restringiu a um setor da atividade da Vannini, mas a envolveu
por completo nos seus relacionamentos, sobretudo com suas religiosas. Sirvam de
exemplo estas palavras do Decreto sobre a heroicidade de suas virtudes: Com
simplicidade, diligncia, autodomnio, viveu o mandamento da caridade para com
o prximo; esteve afetuosamente perto e foi me atenciosa para com suas irms
de congregao, os doentes e os pobres...solcita como era pela sua salvao
espiritual e corporal; e ensinava as irms a se comportarem como ela, com
gentileza e sem se poupar.
O relacionamento com Tezza, os acontecimentos e as experincias da vida
e do ministrio, levaram Vannini a dar-se conta que o carisma camiliano da
caridade misericordiosa para com os doentes, do qual seu guia espiritual a tinha
imbudo, encontrava nela ressonncia especial. Era tambm o seu carisma.
No adquiriu esta conscincia atravs de pesquisas intelectuais, mas pela
experincia de um Deus de ternura e compaixo. De um Deus rico em
misericrdia, que 12 passagens do evangelho o apresentam comovido em seu
95
Positio, II, p. 440.

60
ntimo por situaes de dor com que se defrontou em sua misso evangelizadora
e que, na cruz, deu a suprema prova de amor, tomando parte no sofrimento
humano.

Juntos na caminhada espiritual

Com a fundao das Filhas de S. Camilo, o Pe. Tezza retomou, em parte, o


dilogo espiritual que tinha interrompido na Frana, aps a morte do Pe. Artini.
Na Vannini e, depois, nas Filhas de S. Camilo, encontrou as interlocutoras ideais
com quem dialogar em nvel denso de afeto e de espiritualidade.
Ao ajud-las, cresceu com elas. nas cartas s Filhas que se encontram os
temas fundamentais da sua espiritualidade, retomados, desenvolvidos,
aprofundados e vivenciados.
Um caminhar juntos no crescimento espiritual que no acaba mais.

XII
A PROVA DA CRUZ
Sofrer tudo em silncio de amor.

Sobre a fundao da Congregao das Filhas de S. Camilo, que j crescia


bem, abateu-se um duro golpe, que atingiu diretamente o Pe. Tezza, mas
repercutiu em toda a Congregao.

Fofocas e acusaes

Pouco antes de 1895, comearam a correr algumas fofocas a respeito do


Pe. Tezza, ligadas ao seu relacionamento com as Filhas de S. Camilo. As fofocas
culminaram em acusaes gravssimas e chegaram at o Cardeal Vigrio de
Roma.. Tezza chegou ao conhecimento do que estava acontecendo atravs de
carta do seu amigo Pe. Ferrini, que no teve coragem de falar com ele
pessoalmente96.
Quem provocou as fofocas que corriam entre os religiosos foi o Pe. Joo
Mattis, Superior Geral da Ordem. Por ocasio da sua visita pastoral na Frana,
chegaram aos seus ouvidos acusaes contra o Pe. Tezza, mais tarde confirmadas
por cartas de ex-Filhas de S. Camilo, demitidas da Congregao.
Nos documentos no constava com clareza a natureza das acusaes. Pelas
reaes do cardeal Vigrio, a quem o Pe. Mattis relatou o caso, pode-se deduzir
que se tratava de problemas de afetividade, talvez manifestaes de carinho,
demasiada familiaridade.
A carta do Pe. Ferrini, acima lembrada, fala de interpretaes distorcidas
de atitudes do Pe. Tezza e lamenta a facilidade com que foram aceitas na
Congregao algumas religiosas que, num sentido ou no outro, comprometeram a
sua posio.
96
AFSC 1A 021b

61
Tambm a Irm Vannini, numa carta ao superior geral, Pe. Desideri, alude
a interpretaes injustas do modo de ser e de agir do Pe. Tezza: Nenhum outro
motivo o levou a agir afora o bem particular das almas e a glria de Deus,
infelizmente com demasiado zelo e foi isso que o prejudicou97.
Tambm o Pe. Tezza no deixava de se questionar sobre o seu modo de
agir, perguntando se imprudente e inconscientemente tivesse dado motivo ou
fundamento para as acusaes de que era alvo98.

Que motivos?

As razes que podem ter levado algumas ex-Filhas a levantar dvidas


sobre a integridade moral do Pe. Tezza podem ser vistas como reao sua
demisso da congregao. Menos claros e plausveis os motivos que levaram o
Pe. Mattis a agir contra a caridade e o bem da Ordem camiliana.
A histria da Ordem camiliana daquele tempo ajuda a compreender alguns
dos motivos.
O primeiro est na Consulta Geral e nos ambientes romanos, onde
reinavam mentalidades diferentes quanto a vida religiosa camiliana no que se
refere pobreza, vida comum e prtica do ministrio especfico da Ordem. O Pe.
Tezza, apoiado pelo Pe. Ferrini, era pioneiro do retorno s origens, enquanto o
Pe. Mattis e outros religiosos de prestgio mostravam-se propensos a manter a
situao. Esta diversidade s devia provocar atritos.
Alm destas dificuldades de fundo, deve-se lembrar o conflito provocado
pela herana que o Pe. Camilo Guardi deixou casa de noviciado da Provncia
romana, enquanto o Pe. Mattis e outros queriam que se destinasse a toda a
Ordem. A divergncia trouxe divises e ressentimentos; a autoridade eclesistica
precisou intervir.
Tambm no podem ser esquecidas divergncias de pontos de vista quanto
a natureza da Congregao das Filhas de S. Camilo. Havia quem a considerasse
como simples ressurgimento das Tercirias, e quem a visse como congregao
totalmente autnoma. O envolvimento do Pe. Tezza na Congregao, e tambm
do Pe. Ferrini, era demasiado grande no entender do Superior Geral, Pe. Mattis.
Estes fatores foram suficientes para criar um clima em que as denncias
poderiam ser um desabafo de ressentimentos e at de desejos de vingana. A
histria, tambm eclesistica, apresenta muitos exemplos de santos atingidos em
sua honra por acusaes que envolviam a sua vida afetiva. Esse tipo de
insinuaes prospera com facilidade porque parte de patologias ligadas
sexualidade.

A reao do Pe. Tezza

97
AFSC 1A 75.
98
AFSC 1A 021a

62
A reao do Pe. Tezza a essas acusaes est em suas cartas. Uma foi
enviada Vannini e revela a sua grandeza de alma e o modo que escolheu para
contornar as dificuldades da vida.
Em primeiro lugar, fala da luta terrvel que enfrentou consigo mesmo.
Em seguida, descarta a proposta de se defender publicamente, afirmando: Teria
podido faz-lo noutras circunstncias nas quais as armas de defesa me teriam
garantido a humilhao dos acusadores, mas sempre preferi, como prefiro,
colocar minha causa nas mos de Deus e deixar que ele aja. 99 Esta tomada de
posio, sinal de muita ponderao e da aceitao sincera da vontade de Deus,
deu-lhe paz muito profunda.
Tambm esclarece dois motivos que o levaram a optar pelo silncio. O
primeiro foi a certeza de que os frutos da Cruz so sempre abundantes e tambm
muito consoladores. As obras de Deus devem fundamentar-se na dor e fortalecer-
se no sacrifcio. Foi o que previu desde o comeo da fundao: O que est
acontecendo, era esperado, de uma ou de outra forma, h muito tempo e voc
sabe que eu o predisse desde os primeiros dias em que o Senhor se dignou
chamar-nos a trabalhar juntos nesta obra100. O segundo foi a conscincia de que
esta provao resultaria frutuosa para o crescimento da Congregao que havia
fundado.
Escrevendo sua querida filha e cofundadora da Congregao, afirma:
Agora podeis compreender que ocasio propcia e que consoladora esperana
traz ao meu corao este acontecimento por mais humilhante e doloroso que seja
para mim e no darei o menor passo para afastar de meus lbios este clice
amargo, que realiza o meu nico e contnuo desejo para vs e no qual sempre
procurei inspirar-me no meu agir em relao a vs. E se isso no for suficiente
para que sejais s de Deus, que Deus acrescente coisa pior; espero que a sua
divina graa me ajude a suportar tudo em amoroso silncio101.
Este modo de agir nas adversidades estava enraizado no esprito do Pe.
Tezza desde a juventude. Como j visto, entre os propsitos que fez num retiro
espiritual em dezembro de 1868, encontra-se o seguinte:
- guardar sempre inaltervel calma de esprito em todas as circunstncias
de minha vida, por mais difceis e penosas que sejam, contrrias aos meus pontos
de vista, aos meus sentimentos;
- abraar de boa mente por amor do Corao SS. de Jesus, sem me
queixar, todo tipo de aflies, desprezos, injrias, maus tratos, desonras que de
alguma forma me possam acontecer, vendo em tudo a mo de Deus.

Ressonncias negativas

Embora infundada, a denncia causou muitos transtornos e grande


sofrimento tanto ao Pe. Tezza como s Filhas de S. Camilo.

99
Ib.
100
Ib.
101
Ib.

63
As autoridades eclesisticas proibiram ao Pe. Tezza de confessar mulheres
e de ir s casas das Filhas de S. Camilo. Mesmo vista luz da f, esta proibio
causou profunda ferida em seu corao de pai: Mil vezes disse a Deus: separai-
me destas queridas filhas, mesmo para sempre, contanto que sejam vossas,
somente vossas102.
O distanciamento forado da comunidade das irms diminuiu sua
participao na formao, na redao das regras e no discernimento. Tambm
pesava sobre ele um vu de suspeita e, por isso, foi vigiado em suas sadas de
casa.
Mais que qualquer outra, Vannini reagiu diante da situao e escreveu uma
carta muito franca ao Superior Geral, Pe. Desideri. Nela afirma: Deve
compreender, reverendssimo padre, que, como no sou criana, compreendi que,
infelizmente, querem afastar por completo o nosso muito respeitvel Padre. Calar
nesta hora seria quase confirmar as fofocas e as graves calnias contra o nosso
Padre103. A proibio imposta ao Pe. Tezza - homem inocente e de Deus, que
agia sempre em vista do bem das almas e da glria de Deus - parecia-lhe injusta.
Tambm outras Filhas de S. Camilo procuraram defender o comportamento
reservado do Pe. Tezza em seu relacionamento com as irms. Sempre vi o Pe.
Tezza conversar com a Vannini na sala da comunidade, onde todas estavam
presentes e nunca vi os dois sozinhos, escreveu uma delas. E outra: Nunca
tomou a liberdade de usar, com as suas filhas, palavras e expresses que
revelassem afeto desordenado ou fossem inconvenientes para um sacerdote104.

Redimensionamento

Vistos em seus detalhes, os acontecimentos que fizeram de Tezza vtima de


calnias, no comprovadas e injustas, assumem toques de dramaticidade pelas
conseqncias que tiveram sobre ele e sobre a sua misso. Mas, quando vistos
num contexto mais amplo, perdem fora. De fato, apesar desses lamentveis
inconvenientes, a vida e a atividade do Pe. Tezza continuaram normalmente, com
toda a estima da Ordem. No captulo geral de 1895, foi reeleito consultor e
examinador de novios. Dois anos mais tarde foi enviado Espanha como
visitador das comunidades de Madri e de Valncia.
Tambm a proibio de visitar as suas filhas no foi to rgida que lhe
impedisse de ir s suas casas em ocasies especiais. Participou da profisso
perptua da Vannini e, depois de fundada a casa de noviciado em Grottaferrata,
foi visitar suas filhas no dia 8 de dezembro de 1896, por ocasio de duas
profisses temporrias, e no dia 17 de abril de 1900, antes de viajar para o Peru.

Crescimento em responsabilidade da Madre Vannini

102
Ib.
103
AFSC 1A 75.
104
Positio, I, p. 104, 149-150.

64
Visto de outro ponto de vista, o afastamento do Pe. Tezza das Filhas teve o
mrito de favorecer o crescimento da Madre Vannini em responsabilidade e
autoridade. A partir daquele momento, o peso do governo da Congregao pesou
todo sobre seus ombros.
Emitida a profisso perptua, com outras duas colegas, no dia 8 de
dezembro de 1895, Vannini foi eleita superiora geral da Congregao.
Entusiasmo e criatividade marcaram a sua ao. Fundou novas comunidades na
Itlia e fora da Itlia e acompanhou suas filhas com amor de me.
Afastado injustamente e, depois, em misso no Peru, Tezza sentiu-se perto
de sua primeira filha e cofundadora por meio de cartas densas de afeto e de
espiritualidade, como se v pelo que escreveu em 1907: O resto do meu corao
voc conhece, pois se mudei, foi para crescer. Acrescente o que conhece do
passado e cair no real105.

XIII
VOLTA PARA A FRANA
Uma permanncia difcil

numa de suas cartas Vannini e s suas Filhas que Tezza manifestou o


grande sofrimento que lhe causou a transferncia de Roma para Lille.

Fim de seu mandato de consultor geral

Estamos em 1898. Trs anos antes, no trigsimo nono captulo geral, a


Ordem elegeu um novo superior geral, o Pe. Pedro Desideri, que logo adoeceu e
morreu dias depois. Obedecendo s Constituies, foi celebrado outro captulo
geral, ainda em 1898, com mudanas no governo central. O Pe. Tezza terminou
seu mandato de Consultor e o novo superior geral, Pe. Jos Sommavilla, o
transferiu para Lille.
De Lille escreveu: Est para terminar o terceiro ms desde que fiz o meu
grande sacrifcio, mas parece que foi ontem o dia da dolorosssima separao do
querido hospital S. Joo e de vocs minhas queridssimas filhas. Embora, graas
a Deus, totalmente resignado vontade adorvel e amabilssima de Deus, no
posso esquecer-me um instante, e apenas minha cabea fica livre dos
pensamentos e das preocupaes dos meus deveres, instintivamente vai a Roma,
a Cremona e por toda a parte onde esto e as v, fala, aconselha e, algumas
vezes, tambm repreende e sempre abenoa e com o mais puro e santo afeto pede
a Deus todo bem para vocs106.

A fecunda experincia da passagem por Roma

105
AFSC 1A 086.
106
AFSC 1A 028.

65
O tempo que o Pe. Tezza passou em Roma, - 1889-1898 - foi fecundo.
Nove anos de intensa atividade no governo da Ordem, engajado na assistncia
aos doentes e na fundao da Congregao das Filhas de S. Camilo.
Graas sua participao em trs captulos gerais da Ordem - 1889, 1895
e 1898 - contribuiu para introduzir reformas importantes na vida da Ordem,
sobretudo para a eleio do superior geral e para vida comum perfeita em toda a
Ordem, exceto para os religiosos que tinham professado antes de 1898. No
foram conquistas fceis, sobretudo quando se pensa no tipo de vida em vigor nas
casas religiosas e em certas intrigas que dificultavam o relacionamento entre as
congregaes religiosas e a Santa S.
Durante o seu mandato de consultor, em 1897, Tezza foi encarregado de
visitar oficialmente a fundao da Espanha, restabelecida aps um longo perodo
de extino. Nas cartas que escreveu ao vigrio geral, Pe. Estanislau Carcereri, e
no relatrio que apresentou consulta ao voltar para Roma, descreveu as duas
comunidades da Espanha - Madri e Valncia - ricas de esprito religioso, baseado
na observncia da vida comunitria e na prtica do ministrio camiliano.
De grande utilidade foi sua experincia de capelo no Hospital S. Joo. Em
contato com os doentes, no s experimentou, mas tornou visvel a alegria de
viver o carisma da Ordem, pondo em prtica os ensinamentos de S. Camilo.
A fundao das Filhas de S. Camilo foi a obra principal do Pe. Tezza
durante a sua permanncia na Cidade Eterna. A iniciativa proporcionou-lhe as
maiores alegrias e, tambm, os mais duros sofrimentos.
O retorno para Lille agravou a perda, j comeada em Roma com a
proibio de visitar suas Filhas imposta pela autoridade eclesistica.
Tambm esta separao foi vivida luz da f em Deus e na perspectiva do
bem da Congregao: Se Deus me pedisse no outro, mas cem sacrifcios como
o ltimo, isto , o atual, que muito doloroso, creio que estaria disposto a
enfrent-los todos e de todo o corao, para o vosso maior bem e para a
consolidao da vossa santa obra, que prezo mais que qualquer outra coisa do
mundo107. A natureza se revolta contra a perda mxima e muito dolorosa, mas
na sua alma, sente-se feliz porque pensa nas grandes vantagens para a
Congregao.

A difcil estada em Lille

O Pe. Tezza ficou em Lille pouco menos de dois anos. Chegou no dia 20
de junho de 1898 e viajou para Lima, Peru, no dia 12 de abril de 1900.
Durante este tempo, foi superior da comunidade, administrou o
dispensrio, cuidou do pessoal. Tinha voltado para um lugar querido e para um
trabalho conhecido.
O que o distraiu do trabalho ordinrio, muito intenso, foi o projeto de
iniciar, na cidade, uma comunidade das Filhas de S. Camilo. Foi justamente em
Lille que teve a idia de fundar uma Congregao de mulheres consagradas
107
AFSC 1A 031.

66
assistncia aos doentes. No tardaram a aparecer candidatas, que procurou
formar. Em 1899, com a visita da Madre Vannini, Superiora Geral da
Congregao, houve a tomada de hbito de duas novias, que foram para Roma
com a Madre a fim de completar a sua formao.
. A comunidade das Filhas em Lille encontrou dificuldade para conseguir
sua autonomia dos religiosos camilianos e teve que enfrentar as dificuldades da
poltica anti-religiosa do governo francs. Por isso, em 1901, a comunidade das
Filhas foi obrigada a se transferir de Lille para Bonsecours, na Blgica.

Perodo muito amargo

Contra todas as expectativas, a permanncia de Tezza em Lille no foi


feliz. Ao partir para o Peru, deixou a provncia francesa, que amava de corao,
em situao de abatimento. Alguns anos mais tarde, escrevendo de Lima ao
Superior Geral, descreveu o segundo perodo de sua estada em Lille como muito
amargo, afirmando que considerava a sua transferncia da Frana para a Amrica
do Sul, embora difcil, como passar do inferno para o cu.
Os motivos de sua decepo foram vrios. A acolhida um tanto fria do
ento superior que, doente, demorou para inform-lo sobre a situao. Em
seguida, teve que conviver com um grupo dividido, pois nem todos os religiosos
aceitavam a vida comum perfeita. Enfim, a presena de um religioso
problemtico, causou-lhe transtornos. Repreendido pelo padre Tezza por ficar
muito tempo com mulheres na sala de visitas, reagiu denunciando que a
comunidade das Filhas de S. Camilo no respeitava a clausura e facilitava o
acesso dos padres.
Mais uma vez, o Pe. Tezza foi ferido no seu relacionamento com as Filhas.
Soube da denncia quando j longe da Frana, por carta do Pe. Jos Sommavilla,
Superior Geral, que lhe causou muito sofrimento. Na sua resposta a Roma,
declarou-se surpreso com tais denncias e deu explicaes detalhadas sobre a
residncia das irms, que estava para ser transferida para outra local, mais longe
da casa dos religiosos.
Esse tipo de denncias no era raro naquele tempo. Em 1842, em Verona,
o Pe. Camilo Csar Bresciani enfrentou situao semelhante. Tinha alugado uma
casa para as Irms da Misericrdia, fundadas por seu amigo o Pe. Carlos Steeb,
perto da residncia dos capeles. Para facilitar o acesso das irms ao hospital
permitiu que passassem por um corredor da casa dos padres. A proximidade das
duas casas e a passagem por um corredor comum foram motivo de crticas,
murmuraes e insinuaes maldosas108. O Pe. Tezza, como Bresciani, no sofria
de inibies que levam a projetar com facilidade as prprias imaturidades afetivas
sobre outras pessoas.

Chamado para outras terras

108
Cfr. A. Brusco, Padre Camillo Cesare Bresciani..., pp. 223-224.

67
Os acontecimentos da comunidade de Lille acompanharam o Pe. Tezza
durante anos, mesmo aps deixar a Frana.
Nos primeiros meses de 1900, a presena do Pe. Tezza em Lille foi
interrompida por uma deciso do superior geral que o nomeou, junto com o Pe.
ngelo Ferroni, visitador da Casa camiliana da Buenamuerte, em Lima, Peru..
Depois de muitos anos desligada de Roma, a comunidade camiliana de
Lima pediu para se reintegrar Ordem. Este primeiro passo, teve que ser
acompanhado por um projeto de reforma para dar comunidade religiosa um
padro de vida condizente com o evangelho e as Constituies da Ordem.
O Pe. Tezza e Pe. Ferroni receberam essa delicada incumbncia.

XIV
RUMO A TERRAS DISTANTES
Uma viagem sem retorno

A escolha do Pe. Tezza como Visitador da comunidade camiliana de Lima


no aconteceu por acaso. O superior geral, Pe. Jos Sommavilla, sabia que podia
contar com um homem de grande experincia, conhecedor da situao da
comunidade camiliana da capital do Peru. De fato, quando os religiosos do Peru
se reintegraram Ordem, o Pe. Tezza estava em Roma como Consultor geral.
O seu companheiro, Pe. ngelo Ferroni, Provincial da Espanha, tinha sido
discpulo do Pe. Tezza, crescido na Provncia Lombardo-Vneta, onde tinha
assimilado o genuno esprito camiliano, fruto da reforma do Pe. Camilo Csar
Bresciani.

Mais um desprendimento

Qual fosse o estado de alma do Pe. Tezza antes de partir de Gnova para
Lima consta em sete cartas que, em poucos dias, enviou s Filhas de S. Camilo.
Deixou Lille no dia 12 de abril e visitou as comunidades das Filhas em
Roma e Grottaferrata. Pelo fim do ms encontrou-se com a Madre Vannini, em
Cremona. Um encontro breve mas rico, cheio de alegria e tambm impregnado de
tristeza por causa da separao.
Na correspondncia daqueles dias, no teve dvidas em externar os seus
sentimentos, enquadrando-os sempre num contexto espiritual em que eram
abrandados para dar lugar ao valor mais importante: o bem espiritual das Filhas.
O sacrifcio da separao foi mitigado graas constatao que o esprito de
Deus reinava entre as suas Filhas, que lhe pareciam animadas pelo desejo
crescente e a firme vontade de se tornar verdadeiras e santas religiosas.
A coincidncia de sua partida com a festa da Santa Cruz, leva-o a escrever:
Deixo-as no dia da Santa Cruz: uma graa partir sombra deste sinal adorvel
da nossa redeno, emblema da fora e da vitria contra as potncias do inferno.

68
aos ps dessa cruz bendita que vos deixo com a maior tranqilidade e l que
me encontrareis sempre unido convosco109.

Viagem longa e penosa

A viagem foi longa e penosa. Deixaram o porto de Gnova no dia trs de


maio de 1900. O navio Etruria da Companhia La Veloce fez a primeira escala
em Barcelona. Depois, em Tenerife, (Ilhas Canrias), em Santa Lcia (Antilhas),
Guayra (Venezuela), Curaao, Colon (Panam,), de onde os dois padres foram
at a capital, Panam, fim da primeira parte da viagem.
De cada uma dessas localidades, o Pe. Tezza enviou s Filhas e ao
superior geral mensagens, ricas de notcias, escritas em tom sereno e com certo
humor. Fala do espetculo grandioso e assustador do Oceano Atlntico, onde se
pode meditar a grandeza e o poder infinitos de Deus e o nada que somos ns.
Os movimentos do navio perturbavam constantemente os passageiros: Se visse
como estamos balanando! mesa preciso segurar tudo, pois tudo cairia nesta
dana sem fim. A maioria dos passageiros passa mal, mas eu estou muito bem,
apenas um pouco cansado110.
Alm disso, o tormento do calor que, quanto mais o navio se aproxima do
equador, tanto mais o calor aumenta, com momentos insuportveis. Tambm a m
organizao do navio contribua para aumentar o mal-estar, provocando atrasos.
De fato, no chegaram em tempo ao Panam para tomar o navio que os levaria ao
Peru. Tezza e Ferroni tiveram que ficar quatro dias na cidade, atormentados pelo
calor e por enxames de formigas voadoras, percevejos e mosquitos. Uma delcia!
No sei se teramos agentado mais quatro dias sem ficar doentes.... 111

Segunda parte da viagem

No dia 7 de junho comeou a segunda parte da viagem, com o navio ingls


Arequipa. Neste navio - escreve - viaja-se como prncipes. um verdadeiro
palcio com lindos e espaosos camarotes, corredores, salas de estar e refeitrio
realmente magnficos e bem arejados.
Entre as notcias curiosas da viagem do Panam at o porto de Callao, no
Peru, uma se refere comida. No navio Arequipa comia-se bem e amide, mas no
menu no constava vinho. Aproveitando da sua paternal recomendao de
cuidar de nossa sade - escreveu ao superior geral - penso que no pecamos
contra a santa pobreza se compramos, todos os dias, uma garrafinha de vinho
para os dois, ao preo de quase duas liras. Eu poderia ter ficado sem, mas percebi
que o estmago do Pe. ngelo estava sofrendo muito e, embora tivesse
escrpulos, decidi for-lo112.

109
AFSC 1A045b.
110
AFSC 1A 047
111
AG 492/177.
112
Ib.

69
Adentrando no Pacfico, o clima tornou-se mais ameno, tornando
suportveis outros inconvenientes. A escala em Guayaquil, no Equador, foi difcil.
Por causa da febre amarela, o navio teve que ficar em quarentena que, felizmente,
durou apenas dois dias, pois no havia nenhum passageiro doente. A Lei do pas,
que desta o clero e os religiosos, deixou dvidas quanto possibilidade de escala
em territrio equatoriano.
A viagem terminou no dia 20 de junho, em Callao, porto de Lima. A
viagem de Gnova at Lima durou 49 dias.
Durante a viagem, no esqueceram a finalidade da expedio. At os
contratempos foram oferecidos a Deus para o xito da santa misso a eles
confiada: Se Deus nos pedisse e quisesse mais sacrifcio, parece que nos
sentiramos felizes em enfrent-lo, contanto que consigamos fazer algo que
console o corao de vossa paternidade e glorifique a Deus113.
No Pe. Tezza, essas intenes, reforadas pela celebrao diria da missa,
contriburam para transformar a passagem de um continente para outro num
movimento interior, coerente com a caminhada espiritual de toda a sua vida.

Na Ciudad de los Reyes

Lima, cidade onde Tezza chegou aps longa viagem, rica de histria.
Fundada em 1535 por Pizzarro, que lhe deu o nome de Cidade dos Reis, pois
comeou a ser habitada no dia 6 de janeiro, festa de Reis ou Epifania, fica na
costa central do Peru, a poucos quilmetros do oceano Pacfico, cercada por
amplo e frtil vale em forma de anfiteatro.
No sc. XVIII, a cidade alcanou grande prosperidade graas descoberta
de minas de metais preciosos, favorecida tambm pela proximidade do porto de
Callao, do qual dista apenas 12 quilmetros. Abalada por numerosos terremotos,
- o maior aconteceu em 1746, que deixou em p apenas 25 dos 12.204 edifcios
da cidade - mas sempre ressurgiu das runas. Por volta do fim do sc. XIX, a
populao da cidade no passava de 100.000 habitantes.
Desde os tempos da conquista espanhola, Lima esteve no centro da vida do
pas. Nela no s se podiam admirar edifcios de grande valor artstico, amplos
vales e lindos jardins, mas tambm freqentar bons centros culturais.
Ao se tornar centro de imigraes internas, no conseguiu evitar a
exploso de graves problemas sociais, provocados pela aglomerao da
populao vinda do campo em busca de trabalho e de cultura, e pelos grandes
contrastes entre os bairros ricos e as zonas marcadas por degradao material e
moral.

No convento da Buenamuerte

113
AG 492/175.

70
Percorridos os 12 km que separam Callao de Lima, os PP. Tezza e Ferroni
chegaram ao convento da Buenamuerte, situado na parte da cidade conhecida
como Barrios Altos. O bairro, habitado por famlias de boas condies, no fim do
sc. XIX comeou a perder prestgio e se tornou refgio da classe popular e
pobre.
O convento dos camilianos era uma construo espaosa, edificada aps o
terremoto de 1746, que destruiu por completo a casa dos religiosos. No centro
havia dois claustros, um para os novios, outro para os padres, com bom nmero
de quartos. No primeiro claustro havia uma capela artstica, decorada por bons
artistas, como Francisco Zurbarn. Ao redor da capela ficavam as dependncias
necessrias para a vida da comunidade: refeitrio, cozinha, despensa, enfermaria
e padaria. Tambm havia uma quadra de esportes. Para atender s crescentes
necessidades religiosas da populao, foi construda uma igreja em estilo barroco
moderado.
Os padres Tezza e Ferroni foram recebidos no convento da Buenamuerte
com toque festivo dos sinos e os religiosos perfilados na portaria, com vestes
solenes. A comunidade contava nove padres, dois subdiconos e alguns irmos
professos.

XV
A PRESENA CAMILIANA EM LIMA
Luzes e sombras de uma longa e gloriosa histria

O pequeno grupo de religiosos camilianos que acolheu os dois visitadores,


era herdeiro de uma gloriosa e complexa histria iniciada no fim do sc. XVIII.114

O comeo

A presena dos camilianos em Lima comeou em 1673, com a chegada cidade


do Pe. Andr Scicli, natural de Palermo, Itlia, que partiu para a Amrica do Sul
em 1665 com a finalidade de arrecadar fundos para custear a causa de
beatificao de S. Camilo de Lellis, fundador da Ordem, e tambm para tornar a
Ordem conhecida em terras americanas. Levou consigo uma esttua de Nossa
Senhora de Loreto e um grande estandarte, que representava S. Felipe Neri vendo
anjos que inspiravam aos camilianos as palavras que deviam dizer aos
agonizantes.
Seu mtodo missionrio era simples, mas eficaz: quando chegava a um
vilarejo ou cidade, entronizava a imagem da Virgem, expunha o estandarte, falava
de Nossa Senhora, contava a vida de S. Camilo, o que fez e o que fazem os seus
religiosos para o bem dos doentes. Aps o encontro nas praas, visitava e
confortava os doentes.

V. Grandi, Il Convento della Buenamuerte a Lima, Quaderni di Storia della Provincia Lombardo-Veneta dei
114

Ministri degli Infermi (Camilliani), Verona 1996.

71
Em 1687 voltou para Roma. Tinha percorrido, como missionrio, a
Amrica Central e do Sul e alcanado a finalidade principal da sua viagem, a
arrecadao de fundos para a beatificao de S. Camilo.
Com a mesma finalidade, em 1704, outro camiliano se ps a caminho do
novo mundo. Foi o Pe. Golbodeo Carami, que viajou com o vice-rei do Peru, D.
Manuel Oms de Senmenat. Aps longa odissia chegou capital do Peru em
1707.
Em Lima, o Pe. Carami exerceu o ministrio camiliano de dia e de noite. A
cidade se entusiasmou e logo ofereceu ao Padre uma casa e pediu que fundasse
uma comunidade camiliana. Com a ajuda de benfeitores, conseguiu construir uma
igreja que dedicou a Nossa Senhora, com o Ttulo de Virgen de la Buenamuerte
ou do Trnsito. No dia 14 de agosto de 1712, com a participao do vigrio
episcopal e com o beneplcito do novo vice-rei, o bispo de Lima entronizou, aps
solene procisso, a Virgen de la Buenamuerte.
O Pe. Carami pediu s autoridades civis e eclesisticas que lhe obtivessem
licena do rei para fundar uma comunidade camiliana em Lima. O decreto chegou
em 1735. Nesse meio tempo, haviam chegado da Espanha outros religiosos: dois
em 1716 e trs em 1731. Deram-se imediatamente ao trabalho, assistindo os
doentes nas casas e nos quatro hospitais de Lima.
No dia 30 de janeiro de 1733, aps quatro meses de dolorosa enfermidade,
o Pe. Golbodeo Carami morreu. Contava 62 anos de idade. Uma perda que todos
choraram em Lima, por causa do trabalho que tinha feito a bem dos doentes.
Conta-se que num s dia atendeu mais de 600 empestados. A sua presena no
Peru fez aumentar o prestgio da Ordem que, pouco a pouco, se consolidou,
graas ao envio de outros religiosos da Espanha, alguns de grande valor.

Desenvolvimento animador

Em maio de 1742, foi inaugurado o noviciado. No comeo, quase todas as


vocaes vinham da Espanha. A atrao de jovens e tambm de adultos pela
Ordem devia-se, em grade parte, generosidade e bondade com que os
religiosos cuidavam dos doentes. Uma testemunha ocular afirma: Assim vemos
que muitos indivduos distintos por cultura, virtude e linhagem, de idade madura
ou ainda jovens, procuram o convento da Buenamuerte para alegria e edificao
de todos.
Entre 1745 e 1770, a vice-provncia teve um crescimento notvel. Foi
aberta uma nova casa em Lima, na regio conhecida como Alameda de los
Descalzos, com igreja dedicada a Santa Liberata, perto da casa religiosa. A
beatificao de S. Camilo, em 1742, e a sua canonizao, em 1746, foram
celebradas com grande solenidade, tornando conhecidos os Religiosos da
Buenamuerte. Em 1745 vestiram o hbito religioso camiliano trs candidatos, em
1746 sete, em 1747 mais sete, em 1751 onze Podiam ser padres ou irmos. No
comeo de 1750, a famlia religiosa contava 33 membros, em 1770, 77 e, no
comeo do novo sculo, mais de 100.

72
Tambm o governo da vice-provncia tinha-se tornado mais estvel e
eficiente, graas instituio, em 1759, de uma Vice-Consulta, com autoridade
para tratar de todos os assuntos da Amrica do Sul com os mesmos poderes que a
Constituio atribui Consulta Geral da Ordem, em Roma.
Para garantir a manuteno dos religiosos compraram terras em Caete,
perto de Lima. Contrataram centenas de trabalhadores. Os religiosos davam aos
seus empregados e populao da redondeza assistncia espiritual e de sade.

Comunidade exemplar: assistncia aos doentes e promoo de cultura

At fins do sc. XVIII, a comunidade camiliana de Lima foi modelo de


vida religiosa, admirada por todos. Os historiadores afirmam que a Ordem dos
Ministros dos Enfermos (Camilianos) era uma exceo em meio decadncia
geral das congregaes religiosas. O segredo deste crescimento foi a presena e a
atividade de superiores de grande envergadura humana e espiritual e a fidelidade
ao carisma camiliano, vivido com grande criatividade para atender s
necessidades do maior nmero possvel de doentes e pobres.
Outro ponto alto da comunidade camiliana de Lima foi a importncia que
deu cultura. Neste campo, distinguiu-se, de maneira especial, o Pe. Martin de
Andrs Perez, superior do convento de 1739 a 1753. Homem de estudo e de
cincia, alm de profunda espiritualidade, foi professor de teologia durante anos
no Colgio de Alcal, na Espanha.
O Reitor da Universidade de Lima, entusiasmado pela maneira como
formava intelectualmente os seus religiosos, criou na universidade uma ctedra de
Prima Moral y casos ocurrentes in articulo mortis e a confiou ao Pe. Prez, com
a aprovao do rei e da Consulta Geral em 1755. Esse interesse pelos estudos e
pelo ensino se manteve vivo, abrangendo outros ramos do saber, tanto assim que
numerosos padres do convento da Buenamuerte eram considerados especialistas
em vrias disciplinas teolgicas e cientficas.

Expanso no Peru e na Amrica Latina

A situao florescente da comunidade de Lima favoreceu a expanso da


Ordem. Na segunda metade do sc. XVIII, surgiram fundaes camilianas em
vrios pases da Amrica Latina: em 1756, em Arequipa e em Guamanga, hoje
Ayacucho, Peru; em 1766, em Popayan, Colmbia; em 1789, em Quito, Equador;
em 1789, em La Paz, Bolvia.

Sintomas de crise

Sintomas de crise comearam a aparecer no fim do sculo XIX. Houve


sinais de indisciplina, disputa de cargos, discusses e conflitos internos entre os
religiosos, entre padres e irmos, entre professores de universidade e religiosos
que se dedicavam exclusivamente ao apostolado camiliano, entre as comunidades

73
de Santa Liberata e da Buenamuerte. Advertiam-se tambm as conseqncias
negativas de uma promoo vocacional um tanto superficial. Tudo isso provocou
diviso em prejuzo da caridade fraterna e do bom nome e da grande estima que o
povo tinha pelos camilianos.
Entre os fatores externos que contriburam para engendrar este estado de
coisas, deve-se lembrar, em primeiro lugar, a reao ao poder absoluto da
Espanha e das ingerncias externas no pas. Tambm nos conventos fervia o
desejo de implantar os ideais de justia, igualdade e liberdade. Deve-se lembrar,
ainda, a separao de Roma da provncia espanhola e, conseqentemente,
tambm das casas da Amrica do Sul, que dependiam dela, separao imposta
pelo rei Carlos IV e confirmada pelo Papa Pio VI em 1793.
Grave golpe foi desferido contra a fundao pelo movimento
independentista, que agitou a Amrica do Sul, levando proclamao da
independncia do Peru em 1821, que se tornou efetiva em 1824.

Um mrtir da confisso

Houve um Padre Camiliano, Pedro Marieluz, que se envolveu nos conflitos


entre espanhis e patriotas peruanos. Capelo militar numa guarnio espanhola,
desempenhava com zelo o seu ministrio sacerdotal e era estimado por todos..
Quando eclodiu um revolta no forte de Callao, o general espanhol Rodil quis
saber do Pe. Marieluz que informaes tinha tido ao confessar os rebeldes. Como
se negou terminantemente a atend-lo, foi condenado morte. Deste mrtir da
confisso foi aberto o processo de beatificao, mas no teve seguimento,
sobretudo por falta de documentao.

Sobrevivncia

Com a criao de estados independentes na Amrica do Sul, deixaram de


existir as casas camilianas de La Paz, 1820, Popayan, em 1821, Arequipa e S.
Liberata, em 1825, e Quito, em 1870. A nica comunidade que sobreviveu foi a
da Buenamuerte, em Lima. Suprimida duas vezes (1829-33 e1843-44), conseguiu
sobreviver e resistir no s aps a separao de Roma, mas tambm aps a
supresso da provncia espanhola entre 1834 a 1835.
Aps a proclamao da independncia do Peru, a comunidade da
Buenamuerte passou por desordens e momentos dramticos, fruto de
interferncias do governo e de tendncias anticlericais dos governantes. Apesar
da situao crtica, o povo sempre mostrou amor pelos religiosos camilianos,
defendendo-os contra os ataques violentos das autoridades civis. Os religiosos
sempre procuraram restabelecer a vida religiosa, sustentados pela fidelidade ao
carisma da assistncia aos doentes.

Rumo reunificao da Ordem

74
Tambm o desejo de se reintegrar Ordem emergiu repetidas vezes. Sob o
governo do Pe. Camilo Guardi, os relacionamentos foram bons, mas sem
resultados concretos. A interveno da Santa S conseguiu manter vivas as
tratativas, que chegaram a bom termo sob o governo do Pe. Estanislau Carcereri
(1895-98).
No dia 29 de janeiro de 1897, graas a um pedido dos religiosos da
Buenamuerte, foi celebrada a integrao da casa de Lima Ordem de S. Camilo.
Este fato, porm, no foi suficiente para superar as dificuldades da
comunidade, que enfrentou momentos de grave desordem, provocados,
sobretudo, por problemas econmicos. As iniciativas de alguns religiosos, que
recorreram aos tribunais civis e provocaram escndalo, acarretaram a interveno
das autoridades eclesisticas. Foi solicitada oficialmente a colaborao da Ordem
mediante o envio de religiosos da Europa. O superior geral, Pe. Jos Sommavilla,
decidiu nomear dois visitadores, o Pe. ngelo Ferroni e o Pe. Lus Tezza.
Aguardando a sua chegada, o Papa nomeou visitador apostlico o arcebispo de
Lima, D. Manuel Tovar.

Um desafio difcil

Dessa longa histria, rica de luzes e sombras, Tezza e Ferroni, talvez,


conheciam apenas a ltima parte. Quando, no dia seguinte sua chegada, foram
visitar o arcebispo e o delegado apostlico, D. Pedro Gasparri, o quadro que
estes lhes pintaram era bastante dramtico. Assunto para meter as mos nos
cabelos, tanto do ponto de vista material, como jurdico e moral, escreveu,
impressionado, o Pe. Tezza, ao superior geral. A misso dos visitadores, portanto,
se apresentava muito difcil.
Um autntico desafio, que Tezza se disps a enfrentar com f e coragem.

XVI
A REFORMA DO CONVENTO DA BUENAMUERTE
Com firmeza e doura

No entender dos Padres Tezza e Ferroni, e tambm dos superiores de


Roma, a visita comunidade da Buenamuerte devia ser rpida. Tratava-se de pr
ordem numa casa religiosa h muito separada da Ordem, com costumes que no
se coadunavam com a vida consagrada.

Um projeto apressado

A previso de um trabalho breve no deixou de influir no plano de reforma


do Pe. Tezza e do seu companheiro, Pe. Ferroni. Provavelmente, a avaliao
superficial da situao levou-os a pensar que bastaria tomar algumas medidas,
bem pontuais, para restabelecer a vida comum perfeita, instaurar um padro de

75
vida disciplinado e de boa observncia, e sanar a situao financeira, muito
precria. O envio de alguns religiosos da Europa ajudaria a dar continuidade
obra de reforma.
O plano parecia funcionar, pois os religiosos da Buenamuerte mostravam
aceitar as orientaes dos enviados de Roma. Uma vez expulso da Ordem um
padre rebelde e indisciplinado, e postos sob controle procedimentos hostis de
dois ou trs religiosos de mais idade, criou-se na comunidade um clima de
cooperao para a reforma.
Mais difcil era a situao econmico-financeira. Embora a Buenamuerte
fosse considerada o convento mais rico da cidade, - possua fazendas e terras
com mais de 800 hectares em Caete, e muitas casas na cidade - na realidade, o
Convento estava beira da falncia por causa de dvidas. O Pe. Tezza props
algumas solues, que se revelaram sbias, embora no fossem postas em prtica
imediatamente. Tambm resolveu o problema da fundao de santas missas e das
capelanias agrcolas, cujos fundos estavam esgotados.

Novas perspectivas

Quando, aps dois meses de sua chegada, os padres, Tezza e Ferroni foram
ter com o arcebispo e o delegado apostlico para inform-los que davam por
encerrada a sua misso, foram instados a permanecer para consolidar a reforma.
Ao contrrio do Pe. Ferroni, que tinha pressa em voltar para a Espanha por causa
de problemas urgentes, o Pe. Tezza mostrou-se favorvel proposta. A seus olhos
parecia conveniente ficar mais tempo em Lima, aguardando a chegada de dois ou
trs religiosos da Europa. As autoridades eclesisticas achavam necessrio
consolidar a reforma e criar condies para garantir seus resultados.
Em carta ao superior geral, o Pe. Tezza colocou-se disposio,
declarando-se pronto a acatar a ordem de continuar em Lima. Em agosto de
1900, a ordem veio do arcebispo, na qualidade de visitador apostlico da casa da
Buenamuerte.
Esta deciso selou o destino dos ltimos 23 anos de vida do Pe. Tezza. O
Pe. Ferroni partiu para a Espanha no dia 13 de agosto de 1900. O Pe. Tezza
nunca mais deixar a capital do Peru.

Santa indiferena

A conscincia de que a sua permanncia no Peru no tinha tempo marcado,


foi se aclarando com o andar dos acontecimento e se fez certeza depois de alguns
anos.
Na espera, Tezza manteve-se indiferente, isto , num estado de alma que
mostra disposio de aceitar, sem reao, a vontade de Deus. Eis o que escreveu
ao superior geral: Graas a Deus, acho que me sinto indiferente a tudo, desde
que na santa obedincia. Portanto, disponha de mim livremente, como achar

76
melhor, tanto para deixar-me aqui definitivamente, como para mandar-me para a
Europa ou para qualquer outra lugar115.
Tratava-se de um modo de ser adquirido atravs de constante entrega
vontade de Deus, que o levou a declarar sem mrito a sua adeso aos projetos
dos superiores, tamanha a sua naturalidade.

Uma ponte entre o velho e o novo mundo

Esta indiferena, contudo, no significa esquecimento de quanto tinha


deixado na Europa. O Pe. Tezza mostra-se atento voz do corao que o faz
voltar Frana e, sobretudo, Itlia, A sua correspondncia, relativamente
abundante, servia de ponte entre os dois mundos, mantendo viva a lembrana.
Nas cartas ao Pe. Jos Sommavilla e ao seu sucessor como superior geral,
Pe. Vido, tratava de problemas da casa de Lima, mas tambm mostrava interesse
em saber o que se passava na Ordem, comentando amide o que acontecia na
provncia da Frana, infelizmente vtima de persistentes crises. Nas cartas s
Filhas, a conversa distncia era sempre dominada pelo carinho. As guas do
oceano no tinham conseguido apagar a chama do amor...Em cada carta no
deixava de reavivar nelas o desejo de perfeio da caridade, retomando temas de
sua espiritualidade e insistindo na fidelidade vocao.
De suas cartas emergem detalhes simpticos, como o que escreve ao Pe.
Sommavilla: Sabe o que me est faltando? No ria de mim...Uma boa pitada de
rap! uma verdadeira penitncia. Nem a necessidade consegue tirar-me o
costume116. Com igual humor fala do tormento das pulgas: No pode imaginar
que tormento, o ano todo! Aqui no morrem nunca e fazem o papel de um
incmodo silcio. uma das poucas coisas que a minha pouca pacincia no
conseguiu aceitar117.

Nova compreenso da Misso.

Sem esquecer as pessoas que havia deixado, concentrava-se na sua misso.


A deciso do arcebispo e do delegado apostlico levou-o a compreender que a
sua avaliao da realidade da comunidade da Buenamuerte devia ser revista para
encontrar solues de longo prazo, mais eficazes. At o momento, as suas
observaes o haviam levado a concluses contraditrias; nalgumas cartas se
mostrava otimista; noutras, tendia ao pessimismo. A reforma no podia limitar-se
a mudanas superficiais de disciplina; era necessrio mudar as pessoas atravs de
formao.
A observao prolongada da vida da comunidade da Buenamuerte, o
contato com outras congregaes religiosas, o melhor conhecimento da cultura
local permitiram-lhe delinear um quadro mais objetivo e completo da situao.
No a via to calamitosa como pessoas estranhas lha tinham descrito sua
115
AG 492/200.
116
AG 492/236.
117
AG 942/242.

77
chegada. A sua experincia de governo o levava a no ver apenas as sombras do
quadro, mas tambm as luzes e descobrir as causas do que no correspondia ao
conjunto da situao. Se havia desvios dos ideais da vida consagrada, provinham
de ignorncia, falta de comando e de acompanhamento dos superiores, mais que
de maldade. No faltavam pontos positivos dos religiosos, como fidelidade
prtica do ministrio camiliano.

No contexto do mundo peruano

A prtica do ministrio e o contato com pessoas importantes no mundo


eclesistico e civil, permitiram que o Pe. Tezza se formasse uma idia clara da
situao poltica, social e religiosa do Peru.
A cavalo dos sc. XIX e XX, o poder poltico tinha ficado nas mos de
grupos aristocrticos e de oligarquias plutocrticas que, sob aparente democracia,
governavam de forma absolutista, sustentados pela passividade do povo.
Muitas mudanas tinham acontecido no campo social. Desaparecida a
velha aristocracia, surgiram os novos ricos, que se moviam em torno do dinheiro,
com mentalidade empresarial, mais de acordo com a realidade e mais condizente
com a modernizao do pas.
Muito diversificada apresentava-se a classe mdia, constituda de
burocratas, profissionais liberais, parte do clero e do exrcito. Dividia-se em alta
e baixa, de acordo com a quantidade de bens, cor da pele, cultura e prestgio da
profisso. Estava muito ligada ao pas, democracia, educao, ao
desenvolvimento das artes e das profisses.
Em seguida, vinha a classe baixa, tambm dividida em vrios nveis:
operrios, artesos, comerciantes, ambulantes, empregados domsticos, mineiros,
camponeses. O habitat da maioria desta classe era muito pobre.
No final do sc. XIX , a Igreja apresenta-se profundamente ferida em
conseqncia dos acontecimentos polticos e sociais das ltimas dcadas:
desordem causada pelos guerras da independncia e da longa e desastrosa
ocupao chilena, demasiada ingerncia do poder poltico em questes religiosas,
atitudes hostis das autoridades influenciadas por ideologias contrrias religio;
penetrao da propaganda protestante.
Muitos fatores tornavam a Igreja incapaz de enfrentar adequadamente esta
situao: nmero insuficiente de bispos; o empobrecimento das parquias devido
s guerras tinha provocado a fuga de muitos sacerdotes, com falta de formao
religiosa e moral do povo; as vocaes sacerdotais eram poucas e as
Congregaes religiosas, vtimas de um espantoso processo de relaxamento
moral, com grande nmero de exclaustraes.
Escrevendo ao Superior Geral, o Pe Tezza anotava: Quanto a novios e
vocaes (autnticas) sempre zero e neste ponto todas as comunidades so
iguais. Isto depende da educao crist bsica, que falta absolutamente. Tambm
no seminrio, onde esto aproximadamente 60 clrigos, no creio haja 30 com
boa e slida vocao.

78
verdade que o povo continuava mantendo forte religiosidade; esta,
porm, ficava em exterioridades, como novenas e procisses; no se
fundamentava em princpios teolgicos slidos.
Ao Pe. Tezza no passava despercebida a exterioridade da religiosidade
popular, da qual, porm, via o aspecto positivo. Escreveu: Tambm do ponto de
vista religioso caminha-se bem. Existe muita f e muita piedade, muitssimas
igrejas e muitssimas comunidades religiosas, com oraes e cerimnias pblicas
todos os dias, muito mais que na Europa118.
A formao religiosa era escassa e a que se dava tendia a se concentrar no
moralismo. A pregao no produzia grandes frutos. Muitas vezes, ficava em
polmicas contra a maonaria e os protestantes. Os grandes ensinamentos sociais
de Leo XIII estavam longe de impregnar a famlia, o mundo do trabalho, a
escola.

Adaptar-se situao

As impresses que o Pe. Tezza tirava de suas observaes sobre a situao


do Peru esto em muitas de suas cartas, manifestadas de forma direta, com
reaes emotivas diversificadas, toques precisos e ricos de humor. Estas reaes
o ajudavam a compreender a situao problemtica da comunidade da
Buenamuerte e, ao mesmo tempo, o levava a alimentar em seu corao um grande
amor pelo povo, que se tornou o seu povo.
Deu-se conta que no Peru no se podia esperar os mesmos resultados que
na Europa. A ao, portanto, devia adaptar-se situao das pessoas e ao
contexto em que viviam. Descartou o despotismo e a dureza, primeiro, porque
no faziam parte do seu temperamento e, segundo, porque imprprios para
conseguir qualquer resultado positivo. Props-se, pois, um modo de agir
orientado pela conscincia de que somente com sacrifcios, compreenso
paciente, muita tolerncia, sem querer tudo e j, mas, sobretudo, dando a
possibilidade e motivando o desejo e a vontade de se renovar119, era possvel
realizar a reforma.

A prtica da autoridade

Para desempenhar o seu papel de reformador, Tezza precisava de


autoridade. Esta foi-lhe outorgada por Roma de vrias maneiras: em abril de l901,
foi visitador junto com o Pe. Ferroni; em fevereiro de 1901, visitador geral
temporrio; alguns meses depois, visitador geral a beneplcito da consulta geral;
de 1905 a 1908 foi superior, de fato, da casa de Lima; no dia 4 de junho de 1909
foi nomeado delegado provincial, cargo que ocupou at a celebrao do captulo
geral de 1910. Tambm no campo econmico, o Pe. Tezza exerceu atento
controle.
Em 1910 acabaram todos os cargos de governo do Pe. Tezza.
118
AFSC 1A 060
119
V. Grandi, Il Convento della Buenamuerte..., p.197.

79
Durante uma dcada pde, portanto, orientar a vida do convento da
Buenamuerte, com a liberdade necessria para conduzir o projeto de renovao.
No exerccio da autoridade, valia-se dos conselhos e da colaborao de
eclesisticos influentes. Desde o comeo, estabeleceu um relacionamento de
estima mtua e de amizade com o arcebispo de Lima e com o delegado
apostlico D. Pedro Gasparri. Este, pessoa de excepcional valor, futuro
Secretrio de Estado do Vaticano e signatrio dos Tratados de Latro (1929),
mostrou grande interesse e amor pela comunidade camiliana. Quando voltou para
Roma, Tezza escreveu: Que perda para ns na pessoa de D. Gasparri, seja pela
sua grande influncia, seja pelo seu interesse mais que paternal por ns, seja,
acrescento, por mim em particular, pela grande bondade com que me honrava 120.
Igual colaborao continuou com os demais representantes da Santa S e com as
autoridades da igreja local.
Baseado nas informaes que tinha e no mtodo adotado, o Pe. Tezza
realizou com calma e firmeza o seu projeto de reforma.

XVII
RESULTADOS DA REFORMA
Fraternidade e vigor apostlico

No incio de 1901, o Pe. Tezza acreditou ter alcanado o primeiro objetivo


de seu projeto de reforma: a observncia da vida religiosa, isto , a prtica dos
atos comunitrios, a clausura e a paz fraterna: Graas a Deus, tudo est em paz
e santa concrdia com todos e, pouco a pouco, tudo entra nos eixos quanto
disciplina da casa....Desordens, mesmo pequenas, no existem ou no as
percebo121.

A organizao interna

Para acompanhar de perto a vida da comunidade, o Pe. Tezza passou em


casa quase todo o primeiro ano de sua estada em Lima, dedicando-se formao
dos novios e dos clrigos, alm de presidir as cerimnias na igreja, que achava
eternas.
O trabalho de reorganizao da comunidade se fortaleceu com a chegada
da Europa do Padre Pedro Wankann, mestre de novios. Entre Tezza e o jovem
sacerdote alemo, muito inteligente e criativo, houve bom relacionamento e
colaborao.
A organizao do noviciado ps prova os candidatos, pondo a
descoberto a falta de autenticidade de muitos vocacionados. Havia necessidade
de um bom nmero de religiosos da Europa, tanto para renovar a comunidade,
como para atender s necessidades pastorais.

Alargar os horizontes: a assistncia nos hospitais


120
AG 492/218.
121
AG 492/195.

80
O projeto de reforma do Pe. Tezza no se limitou comunidade religiosa,
mas procurou reconquistar o seu prestgio moral diante do povo.
Graas sua experincia da Itlia e da Frana, lutou para ampliar o servio
dos religiosos na assistncia aos doentes nas famlias e promover o ministrio
camiliano nos hospitais. Tinha-se dado conta que em nenhum lugar da Europa o
nosso ministrio to bem compreendido e apreciado como em Lima.
Vendo o campo de trabalho no mundo do sofrimento e da sade, elaborou
um plano ambicioso, isto , uma capelania para atender s necessidades pastorais
dos cinco hospitais e casas de acolhida da cidade. Isso restabeleceria o antigo
prestgio da Ordem em Lima. A idia foi bem aceita pelas autoridades
eclesisticas e a chegada, em 1902, de seis religiosos europeus possibilitou a
realizao do plano.
Os pedidos de camilianos como assistentes espirituais nos hospitais no
demoraram: em 1901, o Hospital Militar; em 1903, o Hospital Dos de Mayo, com
600 leitos; em 1905, o Hospital Santana, com 500 leitos; em 1904, o Hospital
dos Incurveis, com 200 leitos. Da casa da Buenamuerte, a caridade camiliana se
irradiava para os principais lugares de dor, levando alvio e garantindo assistncia
espiritual.
Quanto ao mtodo pastoral, provvel que os padres europeus tenham
adotado o mais difundido na Ordem, elaborado por bons pastoralistas camilianos,
entre eles o j lembrado Pe. Mancini.

O grande oceano: a assistncia aos doentes a domiclio

A pastoral nos hospitais era complementada pela assistncia aos doentes


nas famlias. S. Camilo considerava este campo do ministrio camiliano o
grande oceano, um campo pastoral sem limites. Na Itlia, os camilianos eram
conhecidos como Padres da boa morte. Tambm a Casa da Buenamuerte, em
Lima, realava a importncia da assistncia aos moribundos, sobretudo em
domiclio. Tratava-se de um trabalho apostlico exigente, pois o nmero de
religiosos era pequeno. O clero deixava de bom grado este trabalho aos
camilianos e com isso os chamados aumentavam e vinham de todas as partes da
cidade.
Eis o que o Pe. Tezza escreve ao superior geral da Ordem: H dias em
que temos oito ou dez chamados ao mesmo tempo, de todas as partes da cidade,
o que muito cansativo e requer muito tempo, pois o pessoal disponvel
limitado. Antigamente, cada padre tinha sua mula e ia a cavalo, com mais rapidez
e menos desgaste. Agora temos que ir a p. O povo, aqui, muito exigente. Ai, se
quando chama no atendido logo; faz como os napolitanos quando S. Janurio
demora para fazer o milagre...122.

122
AG 492/202.

81
Uma ficha excelente

Uma apresentao geral da atividade dos camilianos sob a coordenao do


Pe. Tezza, de 1900 a 1910, consta numa carta do encarregado dos negcios da
Santa S em Lima, D. Davi Quattrocchi, ao prefeito da Congregao dos
Religiosos em Roma, na qual desfaz as acusaes contra a comunidade da
Buenamuerte de um documento annimo enviado Sagrada Congregao dos
Religiosos. No escrito, alm dos camilianos, tambm os redentoristas foram alvo
de denncias123.
Entre as acusaes constava: que tinham grande nmero de capelanias, em
prejuzo do clero secular e da qualidade do servio prestado; que recebiam
salrio e no ajudavam os pobres; e, enfim, que a disciplina na casa da
Buenamuerte deixava a desejar.
Na sua carta, D. Davi, aps afirmar que os camilianos so uma autntica
bno para Lima, declara que o Pe. Tezza em poucos anos salvou a
comunidade da Buenamuerte. Em seguida, esclarece que as quatro capelanias
dos camilianos foram assumidas a pedido das autoridades eclesisticas e com
licena dos superiores de Roma. Nelas, os camilianos trabalhavam com
verdadeira abnegao e com zelo digno de elogios.
Passando a falar da assistncia em domiclio, o delegado papal afirma que
feita com competncia e preciso, de dia e de noite, observando os turnos de
planto ou de visitas. No so menos de cinco mil os doentes e moribundos que
os padres camilianos assistem todos os anos.
Para rechaar a acusao de avareza, lembra que os padres atendem
gratuitamente e por amor de Deus o Hospital dos Italianos e o Colgio Bom
Pastor, prestaram atendimento gratuito no Lazareto durante muitos anos, no
deixam de dar muitas esmolas e so generosos em hospitalidade.
No que se refere disciplina da comunidade da Buenamuerte, D. Davi
afirma que pouco ou nada tem a dizer, embora no faltem pequenas falhas. De
informaes de terceiros e tambm de visu consta-me que os religiosos so
animados de bom esprito, docilidade e amor ao sacrifcio.
Trata-se de uma ficha elogiosa e confortante, que aborda os pontos
principais da ao do Pe. Tezza no seu trabalho de reforma do Convento da
Buenamuerte. Face a estes resultados, pode-se imaginar o seu trabalho
prolongado, feito com pacincia, confiana, amabilidade e firmeza e de entrega
amorosa vontade de Deus.
As apreciaes de D. Davi constam tambm nos escritos do Pe. Tezza. Em
muitas cartas lembra a volta ao antigo esplendor da comunidade da Buenamuerte.
Agradam-lhe os elogios do povo e no deixa de transmiti-los ao Pe. Geral:
Recebo sempre cumprimentos pelo bem que os nossos padres fazem...Garanto-
lhe, Padre Rev.mo, que vrias de nossas provncias no fazem tanto trabalho
como na nossa casa. Digo-lhe isto para a maior glria de Deus124.

123
Positio, II, pp. 558-559.
124
AG 2/o53/464.

82
E continua: Sempre vejo pessoalmente, alm do que todos dizem em voz
unnime, que a nossa Ordem tem um campo vastssimo e uma messe abundante e
no tenho dvidas em afirmar que a mais popular e a mais amada de Lima125.

XVIII
O PREO DO SERVIO
Adeses e contrastes

Que preo o Pe. Tezza teve que pagar para conseguir xito no seu projeto
de reforma da comunidade camiliana de Lima?

Misso pesada

verdade que no trabalhou sozinho na renovao da comunidade de


Lima. De importncia decisiva foi a chegada de um grupo de sacerdotes
europeus. De 1901 a 1910, chegaram 11 padres e 1 irmo: sete da provncia
alem, dois da espanhola e dois da Lombardo-Veneta. Alguns deles se
destacavam por suas qualidades e pela importante contribuio que deram
fundao do Peru e tambm provncia espanhola.
Mas o peso maior do governo da Casa da Buenamuerte caiu sobre os
ombros do Pe. Tezza.
Embora confessasse que a passagem de Lille para Lima foi como sair do
inferno para o cu, mais de uma vez reconheceu as dificuldades da misso em
que se tinha engajado, chamando-a de rdua e muito penosa, difcil de
compreender para quem no a est vivendo126.
No eram poucas as situaes que causavam stress. Deve-se lembrar, em
primeiro lugar, a adaptao a um novo contexto scio-cultural. Em seguida, a
comunidade religiosa, com a presena de elementos problemticos, que geravam
tenses. No se deve esquecer a insegurana provocada pela situao econmica
que se prolongou durante anos - no apenas em Lima, mas tambm em Quito - e
pela ameaa de supresso da casa pelo governo, pois no contava com oito
religiosos peruanos. Acrescente-se a tudo isso o peso de ms notcias que
chegavam da Europa, que mantinham abertas certas feridas, como a situao
difcil de Lille, e abriam novas, como a morte do Pe. Joaquim Ferrini, com quem
havia partilhado grandes ideais. O efeito desgastante desses e de outros fatores
foi agravado pela sobrecarga de trabalho dentro e fora da comunidade.

Contestaes

Mas o que mais aborreceu o Pe. Tezza foram as crticas de alguns


religiosos da comunidade, descontentes com seu modo de agir.

125
AG 492/236.
126
AG 2/053/461.

83
A eles no agradava o seu modo de agir inspirado na poltica de
contemporizar, - como ele prprio disse numa de suas cartas - que consistia em
agir com pacincia, prudncia, longanimidade, mesmo s custas de sacrifcios
pessoais. Teriam desejado atuao mais firme e maior determinao.
Tezza j conhecia esse tipo de crtica. Como vimos, na Frana enfrentou
recriminaes do Pe. Estanislau Carcereri, descontente com seu modo de resolver
certos problemas. Tratava-se de um modo de ser que fazia parte do seu
temperamento e de seu modo de encarar a prtica da autoridade, mas que dava
bons resultados.

Concentrao de poder?

Ao descontentamento com o procedimento bondoso do Pe. Tezza,


acrescentava-se a queixa de concentrao de poder.
Como j dissemos, at 1910 Tezza foi, de fato, a autoridade mxima na
casa da Buenamuerte. Quando chegou como visitador, o superior da comunidade
era o Pe. Paulo Serna, peruano, homem de grande generosidade, admirado por
seu zelo apostlico, mas de procedimentos discutveis quanto administrao dos
bens da casa. Todos reconheciam a convenincia de troca, mas era difcil porque
a lei civil mandava que o superior da comunidade fosse peruano.
Entre os religiosos locais, no entender do Pe. Tezza, apenas um estava
altura desta responsabilidade, o Pe. Gregrio Leyva, que estava na Espanha e no
aceitava o cargo.
Para evitar dificuldades com o governo, - e o Pe. Serna tinha l seus
amigos - e complicaes administrativas, o Pe. Tezza decidiu mant-lo como
superior de nome, mas assumindo ele, desde 1905, o papel de superior de fato.
Esta deciso, aconselhada pelas autoridades eclesisticas, no foi do agrado de
alguns religiosos, que viam apenas os seus aspectos negativos.
A concentrao de poderes nas mos do Pe. Tezza abrangia tambm a
economia, o que provocou descontentamento e discusses na comunidade.
Outro elemento gerador de mal estar era a dependncia de Tezza do
arcebispo de Lima e do representante da Santa S. Recorria a eles com
freqncia, sobretudo nos primeiros tempos de sua chegada casa da
Buenamuerte, pois o bispo continuava visitador apostlico da comunidade
camiliana.
As crticas ao Pe. Tezza no paravam na comunidade, mas chegavam at
Roma. Na mesa do superior geral, Pe. Francisco Vido, havia cartas que
denunciavam os inconvenientes acima lembrados, com detalhes mesquinhos
sobre o seu comportamento, como ausncia freqente da casa religiosa e falta de
participao nos atos de comunidade.

A defesa da verdade

84
Ao reagir a estas crticas que iam at Roma, o Pe. Tezza mostrou firmeza,
disposto a defender a verdade e a demonstrar a sua boa f. No governo da
comunidade, sentia-se motivado apenas pelo bem da Ordem e por sadio
discernimento.
Numa de suas cartas ao superior geral, escreveu com firmeza: No
pretendo fazer a minha apologia contra as acusaes desses padres, menos ainda
reivindicar mritos pelo pouco que com a ajuda de Deus consegui fazer, mas
devo dizer, em s conscincia, que, apesar das crticas e acusaes de jovens
inexperientes, no mudaria em nada meu modo de agir nesta difcil tarefa, caso
tivesse que comear de novo127.
Passando a pontos especficos, lembra que com dureza e despotismo,
como alguns gostariam que fizesse, aqui no teria feito e no faria nada 128.
Numa carta de 1910 do Pe. Pipping, religioso da Buenamuerte, ao superior geral,
encontramos uma confirmao das palavras do Pe. Tezza: O que outros no
conseguiram com a severidade, (o Pe. Tezza) conseguiu com a bondade e a
doura unidas caridade129.
Abordando, enfim, o assunto de suas ausncias da comunidade, declara
que no pode admitir isso porque no corresponde verdade. Informa que
passou o primeiro ano de sua estada em Lima literalmente sem colocar p fora
de casa, ocupado em pr ordem na vida interna da comunidade130. E acrescenta
que era indispensvel ressuscitar moralmente este pobre cadver aos olhos do
povo pela prtica do ministrio131, atendendo aos insistentes pedidos do
arcebispo. Quando saa de casa, era fcil saber onde estava.
Na defesa do Pe. Tezza percebe-se o amor pela verdade e a preocupao
em salvaguardar a reforma da comunidade da Buenamuerte, que lhe havia
custado muitos sacrifcios e grande sofrimento. A desconfiana de alguns
religiosos desgastava-o fsica e moralmente; em certos trechos de suas cartas, o
Pe. Tezza chega a se questionar se os superiores de Roma - Pe. Francisco Vido e
os Consultores - ainda tinham a confiana nele depositada pelo governo anterior
da Ordem. O apoio do Pe. Sommavilla tinha sido fundamental nesta rdua e
dolorosssima misso em que se tinha metido, exclusivamente para a glria de
Deus, o bem da Ordem e a consolao dos queridos superiores132. Talvez se
desse conta que as cartas endereadas a Roma criavam mal estar e desconfiana.

Outras vozes

As crticas contra o Pe. Tezza e o seu modo de agir como superior na


comunidade da Buenamuerte eram resultado de atitudes de dois religiosos: O Pe.
Pedro Vankann e Guilherme Sclichterle.

127
AG 2/053/461.
128
Ib.
129
AG 2/053/420.
130
AG. 2/053/458.
131
Ib.
132
AG 2/053/461.

85
Como j vimos, o relacionamento entre Tezza e Vankann tinha comeado
bem e a colaborao entre os dois tambm, apesar da diferena de temperamento.
O Pe. Tezza sabia reconhecer as suas qualidades, apesar de certos
comportamentos que no aprovava. Embora fosse excelente religioso, no o
considerava apto para mestre de novios por seu modo rgido e exigente e
tambm por falta de boas maneiras, que S. Camilo no queria que fossem
descuidadas133. E comenta com certo humor: verdade que se pode entrar no
cu sem boas maneiras, mas parece que S. Francisco de Sales dizia que a virtude
deve ser bem trajada134. Com o passar dos anos, Vankann deu sinais de
inquietude, impetuosidade e maus modos, e com isso mais destrua do que
construa, tornando difcil o seu relacionamento com a comunidade.
Quanto ao Pe. Schlichterle, Tezza sempre manifestou grande estima,
nomeando-o ecnomo da casa da Buenamuerte e considerando-o apto para ser
superior.
O exame de documentos ao nosso alcance torna discutveis e infundadas as
crticas dos dois religiosos contra o Pe. Tezza. Parecem fruto de desconhecimento
pela situao em que se encontrava a comunidade de Lima e, talvez, de
imaturidade e mgoas mal administradas.
As reaes do Pe. Vankann e Schlichterle devem, pois, ser vistas com
cautela e confrontadas com outras vozes - mais numerosas e mais objetivas - que
falam em favor do Pe. Tezza. Trata-se de vrios depoimentos, alguns do tempo
das acusaes contra o Pe. Tezza, outros, de anos aps a sua morte.
Merece ateno especial a carta do Pe. Pipping ao superior geral, Pe.
Vido, de 9 de julho de 1910, ano em que o Pe. Tezza deixou o cargo de superior
da comunidade.
Ele escreve: Sentimos muito a perda do Pe. Tezza como superior, porque
amado e apreciado por todos, tanto peruanos, como estrangeiros. Governou com
sabedoria e amor o convento durante 10 anos. Quando chegamos aqui, h 8 anos,
o convento gozava de to m fama que nenhuma pessoa de bem, sacerdotes ou
leigos, teria posto os ps aqui. Se este estado de coisas mudou com o passar dos
anos, deve-se agradecer, em primeiro lugar, ao Pe. Tezza, que se tornou querido
em toda a cidade e estimado por todo o clero e pelas melhores famlias de
Lima135. Na sua carta, o Pe. Pipping, imitado por outros religiosos, julga com
severidade o Pe. Vankann.
Nos depoimentos feitos dcadas aps a morte do Pe. Tezza, todos esses
detalhes negativos, decorrentes de conflitos comunitrios e de interesses
mesquinhos e secundrios, desaparecem e tudo se concentra nos pontos
essenciais da atividade do Pe. Tezza, que o tornaram grande. O prprio Pe.
Schlichterle abrandou muito o tom de suas crticas, associando-se aos que
engrandeciam as suas virtudes.

Religioso Exemplar
133
AG. 492/220.
134
AG. 492/235.
135
AG. 2/053/420.

86
Que o Pe. Tezza no estava apegado ao poder, mas se servia da autoridade
para o bem da comunidade, est claro ao longo de toda a sua vida, especialmente
pelo seu comportamento quando foram nomeados novos superiores, aps o
captulo geral de 1910. Na ocasio, terminava o seu mandato de delegado
provincial. De Roma chegou a nomeao do novo superior da Buenamuerte, Pe.
Guilherme Schlichtherle. Tezza ficou surpreso pela falta de informao a seu
respeito: continuaria ou no como delegado provincial?
Mas quando chegou de Madri e de Roma a informao de que no tinha
mais cargo, Tezza se retirou sem dificuldade. E o fez de forma elegante e
religiosamente exemplar, submetendo-se ao novo superior como um dos ltimos
e mais jovens da casa.
No s, mas ao passar de superior para simples religioso, suportou em
silncio e humildade atitudes deselegantes do novo superior.

Sofrimento e crescimento

Um olhar de conjunto sobre os 10 anos de governo do Pe. Tezza na Casa


da Buenamuerte, permite no s que se admire o grande trabalho que fez, mas
tambm que se tome conscincia do seu crescimento humano e espiritual.
Como em todas as outras etapas da sua vida, tambm nesta, a cruz esteve
presente e acompanhou toda a execuo do projeto de reforma da comunidade
camiliana, levando-o a se conformar sempre mais com Cristo, meta de toda vida
humana e religiosa.
Nesta caminhada de crescimento espiritual, soube conviver com a sua
humanidade e suas limitaes, num esforo constante de purificao.
Neste trabalho, era levado no por um voluntarioso estril, mas pelo amor
de Deus, em quem sempre depositou sua confiana.

XIX
O APOSTOLADO EM LIMA
Outono ativo

Perto dos 70 anos, o Pe. Tezza comea a ltima etapa de sua vida.
Terminadas as responsabilidades de governo na Casa da Buenamuerte, sentia-se
livre e com mais tempo para continuar e intensificar as atividades pastorais
iniciadas com sua chegada a Lima.

Multiplicidade de atividades apostlicas

Apesar das suas obrigaes de visitador, envolveu-se sempre mais no


apostolado. Graas estima que aos poucos conquistou em vrios segmentos
sociais da cidade, comearam a chover pedidos de trabalho dos mais diversos
ambientes. Com isso pde exercer o seu ministrio em hospitais, conventos,

87
seminrio, cria episcopal, casas de pobres e ricos, escolas, dando a sua
contribuio para a reforma da Igreja de Lima no comeo do Sec. XX.
O prestgio que tinha junto s autoridades comprovado pelos cargos
importantes que lhe foram confiados: Membro do Conselho de administrao da
diocese, em 1902; consultor do Conclio Provincial de Lima, em 1909; membro
do Conselho de Vigilncia da diocese, em 1910; consultor telogo da Assemblia
episcopal, em 1919, quando beirava os 80 anos.
A variedade do seu ministrio, colocava-o em contato com diversas classes
de pessoas. O venerando Pe. Tezza estimado pelos grandes da capital do Peru,
graas ao seu exmio saber e virtude l-se na Revista Domesticum, de 1909. Sua
dedicao aos doentes e aos pobres da periferia fez dele um amigo dos
marginalizados e excludos.

A assistncia aos doentes

Como j dissemos, o Pe. Tezza no se limitou a intensificar a assistncia


espiritual aos doentes na cidade, com um projeto inteligente e eficaz que permitiu
que fossem ajudadas muitas instituies de assistncia aos doentes e inmeras
famlias, mas se envolveu diretamente no servio aos doentes, mostrando que se
sentia vontade nesse campo de apostolado, mesmo que no fosse o ministrio
que mais o absorvia.
Desde 1901 consta o seu apostolado num lazareto da cidade, que acolhia
vtimas de varola e de febre amarela. Ia todos os dias, praticando o quarto voto
de cuidar dos doentes, mesmo com risco da prpria vida. A sua caridade
transformava aquele lugar, que muitos evitavam, em seu jardim preferido, onde
se sentia vontade.
Mais tarde se dedicou assistncia aos doentes no Hospital dos Italianos e
numa penitenciria. No livro de batizados consta que prestava servio tambm no
Hospital Dos de Mayo.
Ao ministrio nos hospitais, acrescentava a visita aos doentes nas famlias.
Padre Humberto Teles, que foi seu superior de 1913 at 1919, atesta: At o fim
de sua vida, isto , at depois dos 80 anos, o nosso Pe. Lus continuou suas
visitas todos os dias136 nas famlias. Chegou a visitar 11 doentes num s dia, em
diferentes pontos da cidade.
No tinha medo de entrar nos callejones, lugar onde morava a maior parte
da populao. Tratava-se de residncias com um corredor comum, no fim do qual
havia um reservatrio de gua e servios higinicos comuns a todas as famlias.
Amide, nesses lugares de pobreza, reinava alcoolismo, ignorncia,
promiscuidade e brigas. As muitas esmolas que recebia de seus penitentes,
geralmente acabavam nas mos daquelas famlias desamparadas, transformando-
se em comida, roupas e medicamentos.

136
Positio, II, p. 678.

88
Tambm a falta de instruo religiosa e moral manteve-o atento e ativo.
Prova disso foi a criao da escola de catequese na igreja da Buenamuerte e suas
aulas de religio no Colgio Italiano.
A carga proftica do ministrio de Tezza para com os pobres e doentes no
se fazia sentir na denncia das injustias, nem mesmo em projetos para eliminar
as causas dos males que afligiam o povo do seu tempo. Isso no fazia parte do
seu modo de ver as coisas e no constava de suas experincias do passado nem
fez parte da sua formao. Na sua correspondncia aparecem poucos acenos de
revolta contra a condio miservel em que viviam os doentes de varola e de
febre amarela no Lazareto de Lima.
O seu profetizo aparecia, sobretudo, no reconhecimento da dignidade da
pessoa humana, que deve ser amada mesmo na misria e na degradao fsica e
moral, por ser imagem de Deus.

O sacramento do perdo e a orientao espiritual

Outra atividade pastoral que aumentou com o fim de seus compromissos


de governo da Casa da Buenamuerte foi o atendimento a pessoas na confisso e
na orientao espiritual.
Alm das confisses na Igreja do convento e nos hospitais, que o
mantinham ocupado durante horas, foi confessor de congregaes femininas e de
colgios. O arcebispo D. Tovar, quis que fosse orientador espiritual dos
candidatos ao sacerdcio no Seminrio D. Torbio, da diocese de Lima.
Muitos religiosos e leigos o procuravam para a direo espiritual. Era
favorecido, nesta atividade, por suas qualidades pessoais e sua preparao
teolgica. O seu carter bondoso e afvel, alm da segurana de doutrina e
prudncia nos conselhos, angariaram-lhe a confiana e a estima do povo.
Segundo muitos depoimentos do processo de Lima, a figura e o modo de agir do
Pe. Tezza lembravam S. Francisco de Sales.
No lhe faltavam, de fato, afinidades com o Santo Bispo de Genebra.
Ambos estavam convencidos que a eficcia da graa de Deus, transmitida pelo
sacramento da reconciliao e pelo acompanhamento espiritual, dependia,
embora no de forma determinante, tambm das qualidades humanas do
confessor ou diretor espiritual. A aceitao, o respeito, a compreenso e a
compaixo se transformaram em meios para comunicar o amor misericordioso de
Deus, tornando-o mais compreensvel para o penitente.
Sobre o ministrio da confisso e da orientao espiritual do Pe. Tezza
encontramos avaliaes elogiosas de muitas pessoas. Foi definido homem de
grandes virtudes, de muita experincia na orientao das almas, digno de grande
estima. Por isso, como diretor espiritual e confessor era conhecido, procurado e
amado em toda a cidade de Lima137. D-se grande destaque sua capacidade de
consolar e de estimular. Quantos coraes existem nesta provncia do Peru que
foram consolados, confortados pela bondade deste santo e caridoso padre. Para
137
Ib.

89
muitos, ele possua o dom da intuio dos coraes e das almas para gui-las s
metas mais altas da perfeio crist e religiosa.138
No Dirio ntimo da fundadora das Religiosas Reparadoras do Sagrado
Corao, Madre Teresa do Sagrado Corao de Castaeda y Coello, l-se: este
bom padre, dignou-se mostrar-nos sua grande benevolncia. Encorajou-me muito
na dolorosa caminhada que estamos fazendo. As provaes do momento, disse-
me o bom padre, so prova da condescendncia de Deus...139.
Muitas das pessoas por ele orientadas espiritualmente ocupavam altos
cargo na Igreja e na sociedade. Entre os eclesisticos deve-se lembrar o delegado
apostlico, D. ngelo Scapardini, e o nncio, D. Loureno Lauri.
Das irms, alm da Madre Teresa do Sagrado Corao de Jesus, merece
meno especial Teresa Candamo, fundadora das Cnegas da Cruz, cujo
processo de beatificao est em andamento. Tezza tornou-se seu diretor
espiritual por volta de 1910, apoiando-a num momento difcil em que as
autoridades eclesisticas se opunham sua fundao. Sem os seus conselhos -
afirma a segunda superiora geral da Congregao - e sem a sua prudncia em
orient-la, talvez a nossa Madre Teresa Candamo no teria agentado o difcil
caminho que a providncia lhe indicou e no existiria atualmente a obra das
Cnegas da Cruz140.
As cartas que enviou s Filhas de S. Camilo devem ser consideradas como
orientao espiritual distncia. Uma leitura atenta permite captar, entre notcias
e informaes, a presena e a concatenao de temas que formam a estrutura de
um ministrio de acompanhamento no caminho do esprito.

Ministrio e espiritualidade

Com o passar dos anos, o Pe. Tezza foi obrigado a diminuir a sua atividade
apostlica. diminuio da atividade de apostolado sobreveio, de forma sempre
mais intensa, o crescimento de valores que a sustentaram e a tornaram mais
eficaz: a prudncia, o saber, a santidade. Sobretudo a santidade, com o
crescimento constante do amor a Deus e ao prximo e, no seu pensamento, como
condio primria e inevitvel para ser instrumento de santificao nas mos de
Deus. Sem a presena deste amor, a intensa atividade do Pe. Tezza teria sido
simples agitao.
Era homem de orao e de contemplao, afirma um religioso do seu
tempo. E como consta de um depoimento do processo de beatificao, o seu
encontro ntimo com Deus favorecia o encontro com o prximo, rico de amor. Era
vivo nele o movimento espiritual que Urs von Balthasar apresenta com uma
imagem potica profunda: O rojo: vertical sobe para o cu o raio de fogo do
amor, concentra-se, explode (no timo de xtase), e mil centelhas descem rpidas
e sempre mais rpidas para a terra: Deus te envia, desfeito em pedaos, te envia
aos teus irmos.
138
M. Vanti, Cento anni..., p. 101.
139
Positio, II, p. 512.
140
Positio, I, p. 118, 183.

90
A espiritualidade vertical por natureza, tende para o cu, isto , para o
infinito de Deus. Mas nem sempre te faz decolar do mundo, deixando-te suspenso
na luz. Envia-te, desfeito em pedaos, para os irmos, para a histria, para a
terra. Feito fogo, podes aquecer; transformado em centelha, podes iluminar;
transfigurado em Deus, podes testemunhar a nova criatura para a qual todos
podem tender. F e vida, culto e caridade, mstica e realidade no podem ficar
separados, mas conviver harmoniosamente entre si141.
De muitas de suas cartas, de alguns testemunhos, mas, sobretudo,
observando o seu comportamento, constata-se que, para o Pe. Tezza, a orao e a
atividade apostlica eram vistas como as mos entrelaadas do amor a Deus. Na
orao e no apostolado, sob formas diferentes, o fiel encontra Cristo, une-se a
ele, vivendo a experincia de uma crescente comunho com ele. Disso resulta que
entre dimenso contemplativa e dimenso ativa da vida espiritual, entre orao e
apostolado existe unio inseparvel.
Partindo de uma imagem original de S. Bernardo, pode-se dizer que, no
seu apostolado, o Pe. Tezza fazia mais o papel de reservatrio do que de duto.
Eis como o santo explica a diferena entre reservatrio e duto: Enquanto o duto
descarrega todas as guas to logo as recebe, o reservatrio espera ficar cheio at
as bordas e d apenas o que sobra, isto , o que pode dar sem se empobrecer. So
muitos os que querem dar antes de receber. Agrada-lhes mais falar do que ouvir.
Tomam a iniciativa de ensinar o que no aprenderam. Embora incapazes de
governar a si mesmos, pem-se a guiar os outros....
Quando isto acontece, continua S. Bernardo, corre-se o risco que a
caridade se perca na busca da consolao, se desoriente sob o peso do medo,
perca a paz caindo na tristeza, fique diminuda pela avidez, desvirtuada pela
ambio....142
A fonte principal de onde o Pe. Tezza hauria a sua fora era a eucaristia.
Escrevendo a suas Filhas, exortava-as a visitar amide Jesus na eucaristia,
haurindo na fonte do Corao divino o esprito de santa caridade que as faa
zelosas, delicadas, generosas, verdadeiros anjos cabeceira dos doentes e com
os pobres143.
O servio que se presta ao ser humano, recebe da eucaristia o seu sentido e
o seu jeito de ser, encontra nela a sua fonte e tambm a sua norma. No foi por
acaso que Jesus uniu intimamente o servio eucaristia (Jo 13, 2-16), pedindo
aos discpulos que perpetuassem a sua memria tanto na ceia do Senhor quanto
no lava-ps. Na celebrao da eucaristia, o fiel encontra Cristo, divino samaritano
dos corpos e das almas, o crucifixo, expresso mxima do amor de Deus, o
ressuscitado. Desse encontro haure a fora para fazer da sua vida - seguindo o
exemplo de Jesus - uma pro-existncia, uma autntica narrativa do amor de Deus.
Esta profunda unio com Deus, leva o Pe. Tezza a purificar constantemente
os motivos de sua ao. Embora se sentisse preparado para a prtica do
ministrio sob mltiplas formas, lembrava a si mesmo e aos outros a importncia
141
Cfr. Ravasi G., Raggio di fuoco, in Avvenire, 7 dezembro 2000, p. 1.
142
S. Bernardo...
143
AFSC 1A 014.

91
da abnegao. Deus, na verdade, quem salva; a ao humana apenas
instrumento e mediao.
Procurando somente Deus no seu trabalho e dedicando todas as foras
para a sua glria, o Pe. Tezza, como se v em muitas de suas cartas, fazia da sua
atividade apostlica um meio de unio com Deus144.

XX
PASSAGEM PARA A OUTRA VIDA
ltimos anos e morte

O Pe. Tezza teve a graa de uma vida longa. Durante os 82 anos de sua
vida terrena, gozou de sade relativamente boa, afetada momentaneamente por
pequenos distrbios, que logo superava. Uma notvel energia psicofsica e
espiritual permitiu que enfrentasse o desgaste de um ritmo de vida dinmico e de
srios deslocamentos geogrficos, dando-lhe condies de se manter ativo at os
ltimos anos de vida.

Como uma luz que se apaga

A sua caminhada terrena chegou ao fim atravs de um processo de lenta


parada fsica e mental, apagando-se como se esvai a luz do crepsculo. O Pe.
Tezza mostrou-se observador atento das mudanas do seu corpo e do seu esprito,
reagindo de forma diferente, conforme seu estado de alma e as condies fsicas
em que se encontrava.
Em carta de 1908, escreveu a um coirmo: Estou ficando velho e sempre
mais fraco na luta de cada dia145. Falando da cura de uma doena relativamente
grave, diz: Deus no me quis e continuo aqui, envelhecendo at quando for do
seu agrado usar de sua infinita pacincia comigo146. s Filhas, que se queixavam
da falta de cartas, d como desculpa o enfraquecimento das foras, mas que no
diminuam o seu trabalho: No se preocupem com minha sade. Graas a Deus,
estou muito bem e, apesar dos meus 70 anos, Deus me ajuda a fazer mais do que
quando tinha 30147.
Perto dos 75 anos, viu-se obrigado a diminuir as suas atividades na igreja
da comunidade, limitando suas andanas a uma visita ao SS. Sacramento tarde,
a participar das refeies com a comunidade, quando ouvia a leitura espiritual e
observava o alegre apetite com que os coirmos se alimentam nas refeies148.
A diminuio progressiva das foras j no lhe permitia celebrar a missa
todos os dias como queria. Somente por poucos dias pde usufruir do privilgio
de celebrar a missa sentado numa poltrona, como o Nncio lhe havia permitido.

144
Cfr. AFSC 1A 015; 1A 066; 1A 093.
145
APL. 335/232.
146
AFSC 1A 089a
147
AFSC 1A 091.
148
Testimonianza di padre Antonio Niat, in Positio, II, pp. 679-683.

92
Passagem para a outra vida

Em seu esprito percebia espontaneamente que estava chegando a hora de


partir para a outra vida.
A correspondncia dos anos 1920-22, bastante escassa, contm muitos
pedidos de oraes para enfrentar este momento com serenidade e coragem. Ao
acrescentar algumas linhas a uma carta que o provincial da provncia espanhola,
Pe. Holzer, endereou s Filhas de S. Camilo, escreve: Aproveito...para
acrescentar...uma palavrinha do meu corao sempre cheio, para convosco, de
inextinguvel afeto em Deus e para pedir que rezeis por mim, pois me sinto bem
perto da eternidade. At o cu, minhas queridssimas Filhas. Recomendai-me
muito a Deus, como eu o fao e o farei sempre por vs. Gostaria de dizer-vos
muitas e muitas coisas, mas no tenho foras para escrever; que as diga e as faa
ouvir Deus, pois dele que vm, fazendo-vos sempre mais suas.
Estamos em 1922, a um ano da sua morte.

Outro te cingir

O progressivo enfraquecimento e o avano sorrateiro e inexorvel da


arteriosclerose o punham na condio de aplicar a si mesmo as palavras que
Jesus disse a S. Pedro: Em verdade, em verdade te digo: quando eras jovem, tu
te cingias e andavas por onde querias; quando fores velho, estenders as mos e
outro te cingir e te conduzir aonde no queres(Jo 21,18).
Como Jesus pediu a Pedro, tambm pediu ao Pe. Tezza que o seguisse
como discpulo fiel, at nesta fase da sua vida, geralmente marcada por solido e
dependncia.
Desde 1920, tudo foi diminuindo no seu modo de vida: aos poucos, o
espao se limitou ao jardim, onde tomava sol, e ao quarto e cama, onde
passava como morto a maior parte do dia; a vista ficava cada vez mais fraca;
sentia-se sem foras at para as atividades mais simples; a conscincia e a
memria se embotavam. Com a diminuio da atividade pastoral, o
relacionamento com as pessoas foi minguando; ficou s com os coirmos.

O crescimento do homem interior

Segundo o testemunho de um religioso que o conheceu bem e o


acompanhou na fase final de vida, cumpriam-se, no Pe. Tezza, as palavras de S.
Paulo: Embora, em ns, o homem exterior v caminhando para a sua runa, o
homem interior se renova dia-a-dia(2 Cor 4.16). Ele escreve: Quando o mal
minava sempre mais o seu corpo, saa amide para apanhar sol. Com um chapu
de palha na cabea e agasalhado como em pleno inverno, passava as tardes de
vero de costas para o sol e, embora suas roupas queimassem, tremia de frio por
causa da arteriosclerose.

93
Mas se o seu corpo estava frio e nada conseguia aquec-lo por falta de
circulao do sangue, sua alma era irrigada por algo mais vivificante que o
elemento que nos d vida. Quanto mais frio o corpo, mais o seu esprito parecia
arder. Tinha sempre o rosrio entre os dedos, enquanto murmurava uma prece ou
rezava salmos que sabia de cor149. Suas foras pareciam crescer quando chegava
a hora de celebrar a missa, ddiva que pde desfrutar at a festa de S. Jos de
1923, ano da sua morte. Se me sinto fraco quando celebro, - costumava dizer -
como me sentiria se no celebrasse?.
Tambm o lbum de fotografias desse tempo mostra o lento declnio do Pe.
Tezza, mas sem prejudicar a harmonia e a serenidade do seu esprito. Majestoso
e aristocrtico, foi descrito na crnica das religiosas Reparadoras do Sagrado
Corao, em 1901. Esses traos no desapareceram nas fotografias dos ltimos
anos; manteve semblante tranqilo, tpico de quem tinha procurado viver a
verdade dessas palavras: A essncia e a perfeio do amor de Deus est na
prtica constante e generosa da sua vontade em tudo.

Uma longa preparao

A serenidade com que o Pe. Tezza enfrentou a velhice e a morte, no


vendo nelas o caminho para a escurido, mas para a luz, deve ser considerada
dom de Deus e resultado de longa preparao.
Entre os fatores que mais o ajudaram a superar a crise do ocaso, deve-se
lembrar, em primeiro lugar, a sua entrega vontade de Deus, um leit-motiv que o
acompanhou a vida toda. Levado por este estado de alma, conseguiu transformar
a morte num grande acontecimento de realizao pessoal. Mostra com clareza
esta atitude do Pe. Tezza a seguinte orao de Teilhard de Chardin: Quando no
meu corpo (e mais ainda no meu esprito) o passar da idade comear a deixar os
sinais, quando se abater sobre mim de fora, ou nascer em mim de dentro, o mal
que abate ou leva consigo, no momento doloroso em que tomar conscincia - de
repente - que estou doente ou velho, sobretudo no ltimo momento, quando sentir
que estou fugindo de mim mesmo, absolutamente passivo nas mos das grandes
foras desconhecidas que me formaram, em todas essas horas de trevas, faze-me
compreender, Senhor, que s tu (desde que minha f seja suficientemente grande),
a separar dolorosamente as fibras do meu ser, para penetrar at a medula da
minha substncia e levar-me a ti.
Entrega amorosa a Deus, admiravelmente expressa nas palavras de Cristo
na cruz: Nas tuas mos, Senhor, entrego o meu esprito(Lc 23,46) e na
exclamao confiante de Simeo: Agora, Senhor, podes deixar teu servo ir-se
em paz (Lc 2,29).

As pequenas mortes

149
Dados histricos de padre Cruz Maulen, in ACBM 003018.

94
De grande ajuda na preparao do Pe. Tezza para a grande passagem
foram as pequenas mortes, que viveu no longo caminho de sua vida. As mltiplas
perdas e separaes que enfrentou, tiveram forte impacto emotivo sobre ele..
A morte bateu porta de sua famlia quando ele era ainda criana, levando-
lhe o pai. Mais tarde, viveu com sofrimento o afastamento da me, dos coirmos
e sobretudo de suas amadas Filhas. Em 1910, perdeu tambm os cargos de
superior, que teve durante quase 40 anos.
Em todas os acontecimentos de perda e de separao, o Pe. Tezza tratava
suas feridas com o blsamo da confiana em Deus. Isto o fortalecia na convico
de que no se deve ficar demasiado preso s coisas que nos cercam, s pessoas
de nossa roda, ao mundo em que vivemos e, enfim, ficar agarrados a ns
mesmos.
Prova eloqente deste desprendimento crescente das pessoas e das coisas,
no somente aceito, mas em alguns casos preparado e buscado, a carta que
escreveu s Filhas de S. Camilo no dia 31 de janeiro de 1912. Nela exprime com
clareza os motivos que o levaram a tornar mais espaada a sua correspondncia.
preciso sacrificar, afirma, tambm as coisas boas. o que ele queria.
Mas alm desta razo havia outra mais importante, que ele manifesta
claramente: Desde os primeiros anos de vossa fundao, alquebrado pelas
dificuldades, os sofrimentos, as lutas, as angstias de todo tipo, que talvez no
deixava transparecer, mas que sentia profundamente em meu corao, ofereci a
Deus, para o bom xito da fundao e para o vosso bem, o sacrifcio do que mais
custava ao meu corao, oferecendo-lhe o holocausto da minha absoluta
separao de vs, desde que mantivesse sempre em vs o bom esprito e que
Deus sempre as guardasse como a pupila de seus olhos.
E continua: No devia e no devo aceitar de corao quanto prometi e
ofereci para o vosso bem, minhas queridssimas filhas? E no seria, de minha
parte, sonegar algo da oferta feita a Deus se, para satisfazer o meu corao,
mantivesse convosco uma correspondncia mais assdua?150
Examinada atentamente, esta confisso no descreve apenas uma
realidade, mas um processo de crescimento espiritual. De fato, a diminuio da
correspondncia do Pe. Tezza aconteceu quando se deu conta que o sacrifcio da
separao das Filhas era uma realidade, no sendo mais possvel voltar para a
Europa. A separao, portanto, devia completar-se tambm pela diminuio dos
contatos por carta.
Comportamento semelhante encontra-se na vida de S. Francisco de Sales.
Em certo momento, a sua correspondncia com Francisca de Chantal diminui.
Diante das queixas da filha espiritual, manteve silncio151.
Atitudes de santos que obedecem a uma lgica nem sempre compreensvel
do ponto de vista humano, uma lgica ditada pela intensificao do
relacionamento com Deus.
Na ltima fase da sua vida, mais que em outros momentos, Tezza foi
chamado a viver a espiritualidade da cruz, que tinha alimentado o seu esprito. A
150
AFSC 1A 092.
151
Cfr. S. Francisco de Sales, Lettere di amicizia spirituale, Ed. Paoline, Milano, 1984.

95
unio com Cristo nos momentos de kenosi tornava-se expresso de amor e
certeza de estar envolvido por ele na ressurreio.

Entre passado e presente

O crescimento do homem interior e a entrega sempre mais profunda a


Deus no impediam ao Pe. Tezza de se sentir ligado ao seu passado e ao que
ainda lhe era possvel viver na sua comunidade.
Do testemunho de um coirmo que o acompanhou nos ltimos anos e foi
seu confidente na fase terminal, v-se como o Pe. Tezza gostava de contar fatos e
experincias de sua vida passada. Recordava pessoas, falava de sua me, contava
o que tinha feito. Ao lembrar estas coisas, mostrava certa expresso de alegria,
mas sem vaidade.
Nessas conversas, porm, nunca mencionou as Filhas de S. Camilo. Outros
religiosos souberam da Congregao que tinha fundado apenas atravs de
conversas com suas Filhas, com entusiasmo e alegria, nos momentos de delrio
provocados pela doena.

Unido comunidade

No s o passado, mas tambm o presente prendia a sua ateno.


Interessado no que acontecia, mostrava-se feliz quando lhe davam notcias da
Ordem ou da comunidade e apreciava as informaes com inteligncia lcida.
Fazia questo de ter notcias dos religiosos da comunidade, mostrando-se
verdadeiro pai, at o fim.
Os coirmos da comunidade da Buenamuerte cercaram o Pe. Tezza de
grande carinho e venerao, dando-lhe excelente assistncia. Um coirmo,
Aurlio Arcari, teve a incumbncia de acompanh-lo sempre e em tudo.
Quando, por volta de setembro de 1923, a doena se agravou, em parte por
causa do inverno, o superior, Pe. Happe, na presena de toda a comunidade,
administrou-lhe os sacramentos da Eucaristia e da Uno dos enfermos. Com
inteligncia lcida, o doente acompanhava as oraes litrgicas, mas em certos
momentos sua voz sumia...Por volta das 12 hs do dia 26 de setembro, seu pulso
enfraqueceu. Os traos do rosto se contraram, sem se alterar. Sobreveio a palidez
e a sua alma, com a serenidade do justo, passou para a ptria dos bem
aventurados152.

Uma vida realizada

Um coirmo que assistiu o Pe. Tezza nos ltimos anos, assim o definiu:
uma vida realizada. Uma vida vivida no amor.
A morte do Pe. Tezza repercutiu em toda a cidade de Lima. Embora h
tempo vivesse retirado por causa da doena, a participao nos seus funerais
152
ACBM 003018.

96
ultrapassou toda expectativa. Estavam presentes autoridades eclesisticas e civis
e representantes de todas as congregaes religiosas.
A morte do Pe. Tezza foi uma oportunidade para tornar pblico o
reconhecimento dos seus mritos e da santidade de sua vida. A expresso mais
repetida o declarava apstolo de Lima. Quem o tinha conhecido mais de perto,
como conselheiro ou diretor espiritual, no teve dvidas em ressaltar a sua
santidade. Aos poucos a convico de que o Pe. Tezza tinha alcanado a
perfeio da caridade tomou conta da opinio pblica e nunca mais desapareceu..

A viagem.... mesmo aps a morte

Os restos mortais do Pe. Tezza foram transladados do cemitrio de Lima


para Buenos Aires e postos na capela da comunidade das Filhas de S. Camilo. O
comboio que partiu da capital peruana chegou a Buenos Aires no dia 24 de
janeiro de 1948, recebido com honras civis e militares.
No dia 15 de dezembro de 1999, seus restos foram transladados de Buenos
Aires para Grottaferrata (Roma) e depositados na casa geral das Filhas de S.
Camilo, onde tambm esto os restos mortais de Josefina Vannini.
Esta proximidade dos restos mortais smbolo do amor humanamente rico
e espiritualmente profundo que manteve unidas estas duas pessoas na realizao
de um ideal comum: servir o homem sofredor, imagem de Cristo.

XXI
A ESPIRITUALIDADE DO PE. LUS TEZZA
Uma vida unificada

A espiritualidade foi o fio de ouro que deu unidade vida do Pe. Tezza.
Guiado pelo Esprito, aos poucos conseguiu pr em contnua relao com Deus
todos os aspectos da sua vida, transformando o seu comportamento - desejos,
sentimentos, aspiraes, atividades...- numa progressiva manifestao do amor de
Deus, que havia nele. Quando algum possudo por Deus e aberto sua graa,
sua vida acaba assumida no amor e vivida a servio do amor. Porque Deus
amor. Entrando no amor, todas as realidades da vida se unem entre si, tornando-
se uma histria de amor, que nico e que, portanto, consegue uni-las todas153.

Espiritualidade original

Este ideal, que de todo cristo, o Pe. Tezza o conseguiu e viveu de forma
original, em sintonia com sua histria pessoal, seu estado de vida, sua cultura, sua
educao. De fato, se a espiritualidade crist, considerada na sua fonte
originria, nica, porque nico o mediador entre Deus e o homem, Cristo
Jesus, e porque nico o Esprito unificador que nos transforma em novas

Rupnik M.I., La vita spirituale e la sua crescita, in AA.VV., A partire dalla persona, Lipa, Roma, 994, p.
153

167.

97
criaturas, sob o aspecto existencial, porm, existem muitas formas de vida crist
e, portanto, maneiras diferentes de viver a vida espiritual154.
Os traos originais da vida espiritual do Pe. Tezza no se encontram em
elaboraes tericas bem estruturadas, mas no dia-a-dia de sua vida e nas suas
cartas.
Solidamente enraizado na tradio camiliana, sofreu a influncia de outros
mestres de espiritualidade, como S. Francisco de Sales, que conheceu e amou,
talvez atravs de sua me, que se fez religiosa do mosteiro da Visitao. O santo
bispo de Genebra foi um dos autores que, no sc. XIX, inspiraram os promotores
do renascimento espiritual, enfraquecido pelo iluminismo.
a partir de certos fragmentos que surgem, ora aqui, ora acol, na vida
exterior e tambm ntima do Pe. Tezza, que possvel traar um quadro da sua
espiritualidade.

A entrega a Deus

A entrega vontade de Deus o pano de fundo que engloba todos os


aspectos da vida espiritual do Pe. Tezza. Esta atitude de total confiana em Deus
aparece desde quando entrou no seminrio e o acompanha a vida toda, dando-lhe
fora e infundindo-lhe serenidade mesmo nas horas mais difceis. A vontade de
Deus: eis meu nico guia, o nico objetivo das minhas aspiraes e qual tudo
sacrifico155, escreveu em 1867.
Meio privilegiado de sua entrega a Deus foi a obedincia aos superiores
at o aniquilamento de si. No centro desta radicalidade est o exemplo de
Cristo: Tu no quiseste sacrifcio e oferenda. Tu, porm, me formaste um corpo.
Holocausto e sacrifcios pelo pecado no foram do teu agrado. Por isso eu digo:
Eis me aqui, - no rolo do livro est escrito a meu respeito - eu vim, Deus, para
fazer a tua vontade (Hb 10, 5-7).
Entre os frutos da adeso vontade de Deus - e nisto o Pe. Tezza
encontrava a sua paz - sobressai a indiferena diante dos acontecimentos e das
opes de vida. Atingiu esta meta quando, aps muito viver, a riqueza do tesouro
encontrado diminui, progressivamente, a atrao pelas coisas.

A cruz e o crucifixo

Sobre o pano de fundo da entrega a Deus e sua vontade sobressai a cruz


pela qual Cristo realizou o plano de salvao proposto pelo Pai. A cruz tem lugar
de destaque na vida espiritual do Pe. Tezza, como tambm o teve na vida de S.
Camilo. O fundador da Ordem dos camilianos se props como objetivo
fundamental de sua vida viver unicamente para Jesus crucificado.

154
Favale A. Spiritualit del ministero presbiterale, LAS, Roma, 1985, p. 18.
155
APL 292/660.

98
O que une algum cruz o sofrimento em suas mltiplas formas. Na
experincia da dor, Tezza descobriu um caminho perfeito para se unir a Cristo e
imit-lo no seu amor156.
Tambm nisso, ele seguiu os passos do fundador. O contato com o
franciscanismo mostrou a Camilo o caminho para se conformar com Cristo numa
vida de penitncia, e tambm mostrou que os sofrimentos pessoais - no s a
morte a si mesmo, mas tambm os sofrimentos fsicos - so um meio eficaz para
imitar Jesus sofredor. Camilo jamais abandonou este caminho, mas o aprofundou
sempre mais.
Significativas so estas palavras do seu testamento espiritual: Quero
suportar com pacincia todas as adversidades por amor daquele que quis morrer
por mim na cruz. Quero suportar no s a inapetncia de comida, a dificuldade de
dormir e as palavras desagradveis, mas tambm quero submeter-me, por amor
de Deus, a quem cuida de mim. Quero aceitar com pacincia por amor de Jesus,
qualquer medicamento amargo, tratamento doloroso e qualquer outro incmodo
at a agonia e morte, pois ele sofreu muito mais do que isso por meu amor.
Mesmo quando perder os sentidos, se ainda sentir alguma dor no corpo, quero
suport-la voluntariamente por amor de meu doce Jesus157.
A caminhada espiritual vivida no seu sofrimento pessoal, levou Camilo a
considerar suas doenas como misericrdias de Deus.

Seguindo as pegadas do Fundador

Seguindo o exemplo do fundador, o Pe. Tezza pe em relao com a cruz


todos os aspetos negativos da sua vida, - lutos, momentos de depresso, conflitos
fora e dentro da comunidade ... - certo de que, unidos aos sofrimentos de Cristo,
no deixam de trazer frutos. Trata-se de um pensamento que volta constantemente
em suas cartas. Pensamento que surge desde a sua juventude e se mantm sempre
vivo na sua conscincia.
O sofrimento une a Cristo e se torna fonte de misericrdia, compreenso e
participao no sofrimento dos outros, transformando a pessoa em bom
samaritano. Neste sentido, o ferido transforma-se em terapeuta.
So Camilo intuiu com clareza a relao que existe entre a dor assumida
com f e a assistncia aos doentes. Falava muito sobre isso em suas conversas
com os religiosos.
Tambm no Pe. Tezza aparecem os frutos da integrao bem sucedida dos
seus sofrimentos, e pode, portanto, ser definido como um terapeuta ferido, isto ,
uma pessoa capaz de transformar a sua experincia pessoal de dor em fonte de
cura para outros. A integrao de suas feridas um dos dados mais importantes
para explicar a sua sensibilidade para com as pessoas que sofrem.
O amor cruz, to evidente na vida e nos escritos do Pe. Tezza, no
busca da dor pela dor. No h nele sinais de dolorismo, isto , de uma atitude que
156
Cfr. G. Terenghi, La croce di Cristo nellesperienza spirituale di San Camillo de Lellis, Camillianum,
Roma, 1996.
157
G. Sommaruga ( a cura di), Scritti di San Camillo de Lellis, Camilliane, Torino, 1991., pp. 220-226.

99
v a dor como um valor em si, chegando a exalt-la ou, em casos extremos, a
procur-la. Toda a sua vida foi uma luta contra o mal e as doenas.
No seu desejo de imitar Cristo, aceitando e valorizando os aspetos
negativos da vida, o Pe. Tezza quer apenas unir-se a Ele no projeto da redeno,
que continua no tempo.
Apesar de certas expresses que podem provocar ambigidade e confuso
- fenmeno que acontece at entre os grandes msticos, como S. Joo da Cruz,
Santa Teresa de vila, Santa Teresa do Menino Jesus - para Tezza o sofrimento
de Cristo e de Nossa Senhora depende sempre do amor: Verdadeiramente, o
nosso amor todo para a cruz e na cruz, e nela e por ela adquire sempre novo
vigor e chamas inextinguveis, que acabam por se confundir com os inefveis
ardores da caridade eterna158. Tambm o sofrimento humano, unido ao
sofrimento de Cristo, se entrelaa no amor.

Um corao ardente de amor

Unindo-se a Cristo crucificado, o Pe. Tezza descobriu a fonte do amor,


simbolizada na imagem do corao. A devoo ao Corao de Jesus, que no sc.
XIX se difundiu com fora, tornou-se um elemento importante da sua
espiritualidade.
Deu-se conta que esta devoo se adaptava bem ao seu esprito. De fato,
bem fundamentada teologicamente, preenchia a dimenso afetiva, to marcante
na sua personalidade. Ajudou-o a progredir nesta linha o interesse que a Ordem
camiliana teve por esta devoo e que, em 1872, fundou, em Roma, a Confraria
da Guarda de Honra.
O Corao de Jesus torna-se o lugar onde deseja ficar e crescer, onde
encontra refgio e consolo nas horas difceis, onde acontece o encontro com as
pessoas, especialmente com suas Filhas. Seu amor por elas, de fato, tem como
nica fonte o Corao de Jesus e como nico alimento o seu inesgotvel
amor159.
Se so muitos os caminhos que levam ao Corao de Jesus, o caminho que
o Pe. Tezza privilegiou foi o da eucaristia. Por este sacramento, so transmitidas
aos seres humanos as riquezas do amor de Deus que os transformam.
Existem inmeros testemunhos quanto intensidade e profundidade do seu
amor a Jesus eucaristia. Alguns, j lembrados, realam a sua devoo ao celebrar
a santa missa, devoo que se manteve inalterada ao longo de toda a sua vida.
Outros destacam a atitude mstica, quase contemplativa, que mantinha na
celebrao da eucaristia. Ele prprio sublinha a relao ntima que existe entre
eucaristia e eficcia apostlica.
Significativo o testemunho de uma comunidade de freiras de Lima, as
Religiosas Reparadoras do Sagrado Corao. Nas suas crnicas de 1901,
descrevem a missa de meia noite que o Pe. Tezza celebrou na passagem do sc.
XIX para o sc. XX. O que fez exultar o corao - l-se - foi quando o
158
APL 291/103.
159
AFSC 1A 087.

100
sacerdote chegou ao altar. primeira salva de tiros, prostrou-se no santurio
diante de sua Divina Majestade....O aspecto majestoso e aristocrtico desse
ministro de Deus tocava o corao. A cor branca dos cabelos e da pele se
confundia com a alvura dos paramentos que trajava. A santidade imprime um
sinal que a alma no consegue disfarar. Via-se que, naquele momento, a alma
do sacerdote estava imersa no seu Deus. Este sacerdote o Rev. Pe. Visitador
geral da Ordem dos Crucferos, L. Tezza, que h pouco chegou de Roma e para
onde voltar em breve160.

Amor sobrenatural

A devoo ao Corao de Jesus levou o Pe. Tezza a desenvolver, embora


de forma fragmentria, uma rica espiritualidade de relacionamentos interpessoais
e de amizade, imitando, assim, grandes figuras de santos e de santas do passado,
como S. Francisco de Sales. No corao adorvel do Divino Mestre, escreve
para as Filhas, seja o nosso contnuo encontro, onde desde j podeis saborear
uma prova dulcssima do amor que faz a gente feliz, onde estou e sempre
estarei161.
O Pe. Tezza percebia que, vividas no Corao de Jesus, os
relacionamentos interpessoais e a amizade se impregnam de amor sobrenatural,
ou gape, que no exclui a afetividade, mas a purifica e eleva.
A caridade, dom de Deus mais que conquista pessoal, penetra o corao
que a acolhe e d vida aos valores que nele existem, enriquecendo-os de
incondicionalidade, gratuidade, universalidade e liberdade. A prtica do amor
sobrenatural implica a entrega do que nosso, a capacidade de dar sem nada
esperar, o domnio das tendncias egocntricas da natureza.
Num contexto de frieza, azedume, burocracia, num clima sem
familiaridade, sem vibraes psicofsicas, emotivas e sensveis, a caridade no
acaba por trair a si mesma? Nem a santidade autntica quando se reprimem as
emoes da pessoa. autntica quando esta riqueza guiada pela inteligncia,
purificada pela graa e voltada para a vivncia do amor a Deus e ao prximo.
Vistas nesta luz, as qualidades que caracterizavam o Pe. Tezza nos seus
relacionamentos interpessoais ganham um sentido especial. A exortao de
Cristo: Aprendei de mim que sou manso e humilde de corao uma fora que
transformou o seu carter e o seu modo de relacionar-se com as pessoas.
Tambm a amizade e o grande afeto que sempre demonstrou, antes ao Pe.
Artini e a outros coirmos e, depois, s Filhas, tornam-se expresso do amor,
cuja fonte o Corao de Jesus.
Tambm a fraternidade que a irms vivem na comunidade deve partir do
amor de Cristo: Sede um s corao e uma s alma no Sacratssimo Corao de
Jesus. Nesta unio encontrareis com abundncia consolao, fora, coragem e

160
Positio, II, p. 577.
161
AFSC 1A 082

101
tambm os meios materiais para sustentar e difundir sempre mais a vossa
obra162.

Virgem e Me

A devoo a Nossa Senhora ocupa um lugar importante na espiritualidade


do Pe. Tezza, devoo que a tradio da Ordem torna ainda mais significativa.
Sintetizando o seu relacionamento com Nossa Senhora, S. Camilo escreveu no
seu testamento espiritual: Coloco minha vontade nas mos da Virgem Maria,
Me de Deus Onipotente e no desejo outra coisa seno o que a Rainha dos
Anjos quer, e a declaro minha Senhora e advogada163.
Certamente, o Pe. Tezza bebeu nesta tradio e a viveu de acordo com a
sua personalidade. Nas muitas oraes que escreveu, sobretudo na juventude,
encontram-se expresses ricas de confiana na mediao da Me de Deus. A ela
se consagrou repetidas vezes e amide lhe pediu - como modelo de servio,
solcita em atender as necessidades das pessoas - para que intercedesse em favor
de pessoas em situaes difceis em seu corpo e em sua alma.
Com o passar dos anos, a sua ateno se fixou em dois momentos da vida
de Maria: no seu Sim, isto , na sua entrega generosa e na sua submisso
amorosa vontade de Deus; e na sua presena aos ps da cruz, quando se tornam
dramaticamente visveis as conseqncias do seu Sim ao anncio do anjo. Eis o
que escreve: necessrio estar ao p da cruz como Maria Santssima, isto ,
manter-se firme e confiantemente em p sem se deixar levar por sentimentos
demasiado humanos e terrenos, adorando com total confiana e com amor
fervoroso as disposies sempre infinitamente santas e amorosas de Deus
que...tudo dispe com poder e suavidade para o maior bem daqueles que o
amam.
Junto com Maria est S. Jos, modelo de confiana na providncia divina.
A devoo a S. Jos era muito viva na provncia camiliana Lombardo-Vneta,
incrementada pelo Pe. Lus Artini. O Pe. Tezza a repassou para as Filhas de S.
Camilo, que a cultivam com amor.

Mstica e asctica

Os pontos firmes da espiritualidade do Pe. Tezza, acima lembrados,


consolidaram-se ao longo de toda a sua vida, com perseverana e sem
interrupo, usando os meios sua disposio.
Est convencido que se as virtudes nascem aos ps da cruz e no Corao
inflamado de amor, como dom de Deus, devem ser alimentadas pela orao e
cultivadas com ascese serena e slida.
A mstica, baseada na orao, que cultivava de vrias formas, e na
observncia dos votos, vai acompanhada pela ascese, qual d grande
importncia; pratica-a pessoalmente e a prope s suas Filhas. Fceis, de fato,
162
AFSC 1A 064
163
G. Sommaruga(a cura di), Scritti di San Camillo..., p. 224.

102
so as tentaes de deixar-se levar pelas fraquezas da prpria natureza,
mergulhar na atividade, descuidar da vida interior, seguir caminhos espirituais que
atendem mais ao prprio ego do que busca de Deus.
Num escrito de 1870, aparece o rigor com que organizava a sua vida,
impondo-se objetivos precisos: decide manter sempre e em toda circunstncia
perfeita igualdade e tranqilidade de espirito; faz o propsito de ter com todos
boas maneiras, delicadeza e mansido; mostra vontade de controlar com
cuidado os seus sentimentos e manter fidelidade s prticas de piedade
prescritas164.
Com o passar dos anos, o autodomnio tornou-se um hbito quase
espontneo, facilitado pela sua finalidade, isto , a unio com Deus. Neste
sentido adquirem significado a sua sobriedade, a prtica escrupulosa da pobreza,
o regime de intenso trabalho, o controle dos sentidos, a mortificao.
Ao propor mtodos de ascese a outras pessoas, sobretudo s suas Filhas,
mostra bem a sua viso dessa dimenso da vida espiritual.
A busca da santidade e o cultivo das virtudes no deve visar metas
extraordinrias e vistosas, mas viver o dia-a-dia da vida com esprito elevado. De
fato, na vida diria que se escondem o que declara, numa palestra s Filhas, as
trs doenas da vida religiosa: a rotina, a negligncia e a indiferena.
Um bilhete, que guardava entre seus escritos, reproduz em termos
pessoais, o que dizia S. Francisco de Sales: No foi a alguns apenas, mas a
todos, que Deus disse: sede santos. A santidade, portanto, deve estar ao alcance
de todos. No que consiste? Em fazer muito? No. Marta, uma s coisa
necessria. Em fazer coisas extraordinrias? Tambm no. No seria para todos
nem para qualquer circunstncia. Mas est em fazer o bem e fazer bem o bem, na
condio e no estado em que Deus nos colocou. Nada mais do que isso, nada
alm disso165.
Suas exortaes, portanto, se voltam para um tipo de vida espiritual
simples, no qual transparea a dedicao total a Deus. Em carta a uma das Filhas
de S. Camilo pede-lhe que seja sria e modesta, sem afetao, boa e humilde
com todos, sem demasiada humildade e fraqueza, franca, aberta, desenvolta, sem
altivez e sem superficialidade166. Em seguida, acrescenta: Fale pouco, reflita
muito e reze mais ainda. Tudo em Deus, por Deus, com Deus...Lembre, filha
querida, que quanto mais for nada a seus olhos, mais se tornar apta para realizar
as maravilhas de Deus para o bem da sua congregao167.
Ao propor modos de mortificao, Tezza deixa-se guiar por um sadio
realismo, sugerindo que se evitem exageros. Seguindo S. Camilo, sublinha o que
mais tarde ir figurar na Constituio camiliana: a vida religiosa na fiel
observncia dos votos, na prtica da caridade fraterna e do ministrio, constitui
por si mesma uma intensa ascese. Embora sem excluir o valor da disciplina e do

164
Cfr. AFSC, 1A 0 129.
165
AFSC 1 A 0130
166
AFSC 1 A097.
167
Ib.

103
sacrifcio pessoal, valoriza a vida corrente como lugar para mostrar a fora do
amor, dominando as tendncias egostas.

Contemplativo na ao

Como j vimos noutro captulo, a unio com Deus, alcanada atravs da


orao e sustentada por uma ascese equilibrada, levou o Pe. Tezza a se dedicar ao
prximo com amor generoso. O seu ministrio, portanto, deve ser visto como
expresso fiel da sua espiritualidade.
Ao cuidar dos doentes, ao orientar espiritualmente os seus coirmos e as
pessoas que o procuravam, fazia experincia de Deus. Nisso, encontrava um
grande mestre em S. Camilo para quem o servio ao doente se transformava em
ato de culto a Deus. Na viso de f de Camilo, o doente torna-se sacramento da
presena de Cristo. No doente, Camilo via reabertas as dolorosas chagas do seu
Senhor Crucificado. O seu primeiro bigrafo escreve que Camilo contemplava
to vivamente a pessoa de Cristo neles, que muitas vezes, quando lhes dava de
comer...se mantinha to reverente na sua presena, como se realmente estivesse
na presena de Deus, dando-lhes muitas vezes de comer com a cabea descoberta
e de joelhos168.
Esta dimenso mstica do servio ao doente fazia de Camilo um
contemplativo na ao.
No Pe. Tezza, o amor pelos doentes se manifesta em termos mais
moderados, como menos ardente o ministrio que exerceu noutros setores de
apostolado. Mas no faltam acenos significativos, centelhas que apontam para o
fogo de amor que o levava a ver no Hospital S. Joo, em Roma, um jardim
perfumado, um ninho querido., contemplar Cristo nos irmos.

O esplendor do amor

A vida do Pe. Tezza foi impregnada pelo Esprito. E uma vida impregnada
pelo Esprito como uma nuvem de vero; cobre o sol, mas ela prpria parece
ser sol; e talvez o seja, porque o sol est em cada uma de suas gotas. O amor de
Deus est presente em todas as expresses autnticas do amor dos homens. Deus
sempre Deus e uma nuvem sempre uma nuvem, mas a nuvem e Deus
resplandecem juntos.

Eplogo
A HERANA
Responder ao amor com amor

Aps a morte de uma pessoa sobra apenas o que de sua vida foi realmente
fecundo. Silncio e esquecimento apagam o resto.

168
Cicatelli S., Vita del P. Camillo de Lellis, a cura di P. Sanazzaro, Roma, 1980. P. 85.

104
Por isso, a herana do Pe. Tezza deve ser procurada nos pontos de sua
existncia que contriburam para gerar vida, abrir novos caminhos, promover ou
confirmar valores autnticos, prevalecer o ser sobre o ter. No faltam esses
pontos e podem ser vistos no pano de fundo de uma vida que, se do ponto de
vista humano, pouco teve de extraordinrio, foi, porm, o espao onde, pouco a
pouco, amadureceu um modelo de criatura nova, centrada no seguimento de Jesus
misericordioso, segundo o evangelho, fiel ao anseio de transmitir aos homens o
amor redentor do Senhor.

Modelo de religioso camiliano

A herana do Pe. Tezza aparece, em primeiro lugar, em iniciativas que


desafiaram o tempo.
Na Ordem camiliana abriu um horizonte importante, afirmando, com a
palavra e com o exemplo, que a vida religiosa s tem sentido se vivida seguindo o
caminho proposto pelo Fundador.
A sua atividade de reformador, educado na escola de grandes mestres,
mostrou-se eficaz no s em Lima, mas em toda a sua vida, numa incansvel
defesa e promoo dos valores fundamentais da consagrao a Deus no esprito
camiliano: a vida fraterna em comum e a assistncia aos doentes.
Para o Pe. Tezza, a fidelidade ao carisma se coadunava com a criatividade
ao p-lo em prtica. Na Frana, mostrou-se inovador, iniciando uma forma de
assistncia aos doentes em obras prprias, coisa at ento desconhecida na
Ordem. Tambm em Lima deu incio a modalidades de ministrio nos hospitais,
de h muito abandonadas, mostrando que a boa organizao da ao pastoral
garantia de eficcia.
Em sua atividade na Frana e no Peru, semeou e plantou, deixando que
outros colhessem os frutos. E os frutos continuam.

As Filhas de S. Camilo

O projeto no qual o Pe. Tezza mais investiu e que continua mais visvel no
tempo, foi a fundao da Congregao das Filhas de S. Camilo.
Ao fundar uma nova congregao religiosa, fez um grande apelo Igreja
para que d maior ateno s pessoas nas quais Cristo continua a sua paixo no
tempo.
Foi o que disse Joo Paulo II num discurso iluminado s Filhas de S.
Camilo: O carisma do servio aos doentes que vos distingue na Igreja, em fora
de um quarto voto, um dom e uma atividade que vos coloca no corao da vida
e da misso da Igreja, que Sacramento, sinal e instrumento do amor de Deus
para com o homem todo e todos os homens, com especial ateno para os
pequenos, os doentes, os pecadores.169

169
Os ensinamentos de Joo Paulo II, Vol. XIII, 1 (1990), p. 815.

105
Por acaso, a Igreja no precisa incrementar de forma sempre mais intensa e
significativa a dimenso mariana, feita de silenciosa presena na dor, de
grandeza que se torna acolhida e servio para os pobres, os fracos, as vtimas da
doena e da morte?
A dedicao de mulheres consagradas das mais adequadas para atender a
esta necessidade. A Filha de S. Camilo representa, de fato, a Me Igreja que
acolhe e cerca de ateno os aflitos e os fracos, que procura com toda a
dedicao aliviar os indigentes, servindo neles o prprio Cristo. Desta forma
contribui para o bem e a promoo de toda a famlia humana, cujas alegrias e
esperanas, tristezas e angstias encontra eco em seu corao170.
Pela presena e ao de suas amadas Filhas, o carisma do Pe. Tezza e
Josefina Vannini, cofundadora, floresceu em 17 pases de quatro continentes.
Enfrentando os desafios do mundo da sade e do sofrimento por meio de
grande variedade de ministrios, seguindo os passos de seus fundadores, as mil
Filhas de S. Camilo contribuem para a evangelizao mediante a prtica da
caridade misericordiosa e lembram constantemente a presena de Cristo em quem
sofre.

Apontar para a santidade

No incio do novo milnio, entre as muitas promessas, os inmeros


programas e as intensas esperanas que vm de muitas fontes, emerge discreto e
corajoso o apelo de Joo Paulo II a programar a presena e a ao da Igreja no
mundo como sinal de santidade171.
A santidade, ideal de perfeio a que todos so chamados, no consiste
num tipo de vida excepcional, mas na capacidade de viver a vida normal,
impregnando-a intensamente dos valores evanglicos de justia, de paz, de
reconciliao e de amor.
Entre os bem-aventurados e santos, o Pe. Lus Tezza, com a sua vida e o
seu testemunho apresenta um padro elevado da vida crist corriqueira 172 Este
o aspecto mais valioso de sua herana espiritual.
Com humildade e simplicidade, demonstrou que uma vida voltada para
Deus na prtica da caridade misericordiosa para com quem sofre, pode realizar-se
em plenitude. Nele, de fato, encontraram admirvel realizao os frutos do
Esprito, como a alegria, a serenidade, a delicadeza de modos e o equilbrio de
comportamento, elementos indispensveis para a sua felicidade e dos outros.
Sustentado por um profundo relacionamento com Deus e ajudado por uma
dedicao contnua para superar os impulsos egostas da natureza, o Pe. Tezza
soube canalizar suas energias humanas e espirituais para um servio generoso e

170
R. Pesce, Le Figlie di San Camillo, in A. Brusco, F. Alvarez, La spiritualit camilliana, Itinerari e
prospettive, Ed. Camilliane, Torino 2001, p. 422.
171
Novo millennio ineunte, Carta Apostolica 2000, n. 30.
172
Ib., n. 31

106
desinteressado ao prximo. No , talvez, em contato com os irmos e as irms
que sofrem no corpo e no esprito que o amor encontra a sua maior prova?173
Se por sua opo de vida o Pe. Tezza fala de maneira especial s pessoas
consagradas, a sua mensagem igualmente significativa para os cristos em geral
e os homens de boa vontade, sobretudo para os que se dedicam ao mundo do
sofrimento e da sade.
Do seu testemunho de vida brotam mensagens simples e profundas que
ressoam positivamente no corao e no esprito de quem vive em contato com o
sofrimento e trabalha na promoo da sade.
So convites para manter viva e vibrante a prpria humanidade, para amar
a vida e respeitar a pessoa humana ferida pela doena, a encontrar na doao de
si a recompensa do que se faz.
A se tornar consciente que h uma s resposta para o amor de Deus: o
amor.

NDICE

Apresentao
Introduo
Siglas

I. Um incio promissor
Os primeiros quinze anos: busca, alegrias e separaes
II. Surpresas e riquezas de um mundo novo
De Pdua para Verona
III. Uma plantinha que cresce bem
Noviciado e profisso religiosa
IV. Entre estudo e atividades pedaggicas
A preparao para o sacerdcio
V. No campo do apostolado
Anos ativos e agitados (1864-1867)
VI. A Misso da frica
Renncia a uma viagem desejada
VII. Intermezzo Romano
O suave peso da obedincia
VIII. O primeiro perodo francs
Maturidade ativa
IX. No vrtice da Ordem camiliana
Uma viso universal
X. O Fundador
Aberto voz do Esprito
XI. O Esprito da Fundao
173
Ib., n. 49; cfr, Mt 25.

107
Com corao de me
XII. A provao da cruz
Sofrer tudo em silncio de amor
XIII. Volta para a Frana
Uma permanncia difcil
XIV. Rumo a terras distantes
Uma viagem sem retorno
XV. A presena Camiliana em Lima
Luzes e sombras de uma longa e gloriosa histria
XVI. A reforma do convento da Buenamuerte
Com firmeza e doura
XVII. Os frutos da reforma
Fraternidade e vigor apostlico
XVIII. O preo do servio
Adeses e contrastes
XIX. O apostolado na cidade de Lima
Outono ativo
XX. A passagem para a outra vida
ltimos anos e morte
XXI. A Espiritualidade de Lus Tezza
Uma vida unificada.
XXII. A herana
Responder ao amor com amor.

ndice

Pe. Angelo Brusco religioso camiliano. Foi Superior Geral da Ordem de


1989 a 2001, atualmente Diretor do Centro Camiliano de Formao, em
Verona, e Catedrtico do Instituto Internacional de Teologia Pastoral e
Sanitria Camillianum, em Roma.

108

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