UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAO

DISSERTAO DE MESTRADO

Mulheres no hip hop: identidades e representaes

Priscila Saemi Matsunaga

Campinas

2006

i
ii
 minha me, Vanilde

e minhas irms, Melissa e Vanessa; mulheres da minha vida

v
vi
AGRADECIMENTOS

muito difcil traduzir em palavras meu agradecimento a todos que, de alguma forma,

vivenciaram comigo o caminho para a realizao deste trabalho....

Agradeo, em primeiro lugar, a minha famlia. Minha gratido ao meu pai, Nelson, e

minha me, Vanilde, por sempre acreditarem na minha formao. Agradeo minhas irms,

Melissa e Vanessa, que mesmo de longe estiveram sempre comigo.

Ao Denis, que esteve sempre ao meu lado, agradeo pelas conversas compartilhadas,

pelas ausncias desculpadas e pelo carinho durante estes anos incertos do mestrado;

Agradeo Faculdade de Educao da Unicamp pela oportunidade de realizar este estudo,

e funcionrios da ps-graduao, sempre atenciosos;

Agradeo muitssimo ao meu orientador, Prof. Dr. Salvador Sandoval, pela confiana e

apoio;

Agradeo banca examinadora pela ateno leitura do texto: Profa. Dra. Patrizia Piozzi

(Exame de Qualificao), Profa. Dra. Angela Soligo e, especialmente, agradeo a Profa. Dra.

Telma Regina de Paula Souza, por me mostrar, sempre com muita generosidade, os caminhos da

pesquisa cientfica. Talvez o texto aqui apresentado no se concretizasse caso no nos

encontrssemos na graduao em Psicologia...

Agradeo aos amigos que de perto, ou de longe, acompanharam-me neste percurso:

Vanessa, Adriana, Boni, Tati, Gabi e Tho. Muitas conversas e confuses compartilhadas...

vii
 Agradeo imensamente todas as mulheres que permitiram que eu escutasse suas histrias

de vida, suas caminhadas, seus objetivos. Este trabalho s foi possvel pela confiana que tiveram

em mim....

Agradeo aos colegas do GPPE, pelas observaes na construo do estudo;

E, por fim, agradeo a companhia do Billy e da Clo, sempre me lembrando que h vida

do outro lado da janela...

Este estudo foi possvel em virtude da bolsa concedida pela CAPES.

viii
RESUMO

A pesquisa busca refletir sobre a participao de mulheres no movimento hip hop, bem

como analisar as representaes sociais da mulher construdas pelo movimento.

As anlises propostas so baseadas nas consideraes tericas sobre identidade,

identidade coletiva e representaes sociais. Os dados utilizados no estudo foram coletados por

meio de entrevistas abertas roteirizadas com mulheres que participam do movimento (nas cidades

de Piracicaba e So Paulo) e de letras de rap (elemento artstico do movimento hip hop).

Compreendemos que o movimento hip hop se constitui como uma possibilidade de

identificao para mulheres que buscam um agir coletivo, seja este orientado para a reivindicao

feminista ou para a reivindicao dos direitos daqueles que vivem em condies de excluso

social e econmica, utilizando manifestaes artsticas como veculo/instrumento de relato e

protesto destas condies. O hip hop, porm, por meio de seu principal elemento, a msica rap,

propaga representaes sociais tradicionais referentes mulher. Assim, grupos femininos

comeam a questionar o posicionamento inferior que lhes atribudo, reivindicando outros papis

e visibilidade cultural e poltica.

Palavras-chave: movimento hip hop, identidade, identidade coletiva, representaes sociais,

mulheres.

ix
x
ABSTRACT

The research aims to think over the women participation in hip hop movement, and to

analyze the women social representation built by the movement as well.

The proposed analyses are based upon the theoretical grounds on the identity, collective

identity and social representations. The data used in this study were gathered through open

oriented interviews made with women who participate in the movement (in the cities of

Piracicaba and So Paulo), and through the lyrics of rap (an artistic element of the hip hop

movement).

We understand that the hip hop movement is constituted as a possibility of identification

for those women who search for a collective action, whether be directed for feminist demand or

be directed for demanding the rights of those who live in social and economical exclusion

conditions, using artistic manifestations as a mean/ instrument of reporting and protesting of such

conditions. However, the hip hop, by its principal element, the rap music, spreads the traditional

social representation related to woman. Therefore, feminine groups begin to question the inferior

position to whom it is attributed, and they are claiming other roles and political and cultural

visibility.

Key-words: hip hop movement, identity, collective identity, social representations, women.

xi
xii
SUMRIO

Introduo........................................................................................................................ 1

Captulo I

66
O Novo nos Novos Movimentos Sociais......................................................................... 7

Algumas consideraes sobre o conceito de identidade e identidade coletiva........... 14

Representaes sociais..................................................................................................... 26

Hip hop e seus elementos artsticos................................................................................ 32

Danando na rua................................................................................................................ 32

O muro nosso.................................................................................................................. 38

A msica est no ar............................................................................................................ 41

O hip hop e seus discursos.............................................................................................. 45

Cad as mulheres nos estudos acadmicos.................................................................... 58

O desenvolvimento da pesquisa...................................................................................... 61

As mulheres entrevistadas................................................................................................. 67

Captulo II
Mulher um passo a frente............................................................................................... 71

As mulheres na Casa do Hip hop de Piracicaba........................................................... 90

Minas da Rima e Casa do Hip hop: percepes sobre a mulher e sobre 103
feminismo

Captulo III
Letras de rap produzidas por grupos masculinos ou rappers/homens........................ 111

xiii
Letras de rap produzidas por mulheres........................................................................ 127

O sentido da mulher nas letras de rap....................................................................... 143

Os papis sociais atribudos mulher................................................................................ 144

A mulher e a classe social.................................................................................................. 147

Uma identidade tnica/racial............................................................................................. 148

Os valores morais atribudos mulher.............................................................................. 151

A representao social da mulher ................................................................................ 155

Ideais de mulher............................................................................................................... 158

Amor...s de me............................................................................................................... 158

Voc no passa de mulher objeto...................................................................................... 166

Tem que ser mulher pra se manter em p.......................................................................... 173

Consideraes finais........................................................................................................ 179

Referncias bibliogrficas............................................................................................... 185

Anexos............................................................................................................................... 191

xiv
Introduo

O presente estudo apresenta algumas reflexes sobre a participao e representao da

mulher no movimento hip hop1. Este movimento vem conquistando jovens, principalmente

jovens que moram na periferia das cidades, atravs da msica rap, da dana e da arte visual.

Estudos acadmicos vm sendo desenvolvidos sobre o hip hop, porm, nestes estudos, a

participao de mulheres neste universo no destacada, assim, busco compreender como o hip

hop representa a mulher e como as mulheres identificam-se neste contexto, sendo agentes na

construo do movimento. Este estudo, portanto, pretende compreender estas duas dimenses:

representacionais e identitrias.

Ainda como estudante do Curso de Psicologia da Universidade Metodista de Piracicaba,

estudei o movimento de hip hop produzido na cidade de Piracicaba, interior de So Paulo, por

meio de minha insero na pesquisa intitulada Formaes identitrias de grupos e comunidades

singulares: o esgotamento do individualismo moderno e os sentidos dos comunitarismos atuais,

orientada pela Profa. Dra. Telma Regina de Paula Souza. Neste estudo, pude desenvolver

algumas reflexes sobre o movimento hip hop como um produtor de contedos que promovem

identificaes e posicionamentos identitrios, permitindo aos jovens que dele fazem parte um

sentido de pertencer e se reconhecer como sujeitos sociais. Neste estudo, porm, algumas

questes sobre o pertencimento ao hip hop e as relaes por ele engendradas no puderam ser

contempladas, assim, ao ingressar no programa de Mestrado em Educao da Universidade de

Campinas, o projeto de pesquisa possua, como um de seus objetivos, a investigao da

participao de mulheres no movimento. Este interesse surgiu a partir da observao da pouca

1
O termo hip hop pode ser encontrado, graficamente: hip hop, hip-hop, Hip Hop. Os motivos para esta diferenciao
no esto explicitados, porm, neste estudo, optei em utiliz-lo, sem critrios especficos, sem hfem.

1
presena de mulheres no contexto hip hop e em virtude de vrias letras de rap (principal elemento

artstico do movimento) produzirem um posicionamento sexista e discriminatrio em relao

mulher.

Em relao literatura e estudos acadmicos produzidos sobre o hip hop tambm percebi

que esta temtica no era contemplada, ou melhor, poucos estudos detinham-se sobre a

participao feminina neste contexto. O estudo que apresento, portanto, independente das

provveis lacunas e erros analticos que possa comportar, apresenta-se como uma tentativa de

dar voz s mulheres e compreender, ainda que de forma incipiente, esta questo. Este estudo

busca compreender a participao das mulheres no espao pblico por meio do hip hop, a partir

das identidades construdas no movimento, bem como as representaes sociais da mulher que

so constitudas no discurso pblico, por meio das anlises das letras de rap.

Como proponho discutir os aspectos identitrios presentes no hip hop, apresento algumas

consideraes tericas sobre a construo de identidades coletivas presentes nas Teorias sobre os

Novos Movimentos Sociais. Compreendo, portanto, que o movimento hip hop, por seus aspectos

de mobilizao e reivindicao, pode ser considerado como um movimento social. Ainda que a

inteno nesta dissertao no seja discutir a pertinncia dos vrios paradigmas sobre os

movimentos e to pouco o enquadramento do hip hop em um determinado paradigma,

apresento brevemente algumas consideraes sobre o que vem sendo considerado,

academicamente, os Novos Movimentos Sociais.

Diferentes abordagens e diversos autores caracterizam as dimenses dos movimentos

sociais, mas proponho discutir a partir de uma abordagem especfica, com as contribuies de

Alberto Melucci2. Utilizo algumas reflexes quanto construo identitria entre atores para a

2
Melucci se respalda mais nas teses dos interacionistas simblicos, mais preocupados com o nvel ideacional e com o
conjunto de representaes que um movimento cria ao longo de sua existncia. O movimento como uma organizao

2
configurao da ao coletiva. Trata-se da compreenso de como este fenmeno social consegue

mobilizar os jovens, e em nosso caso as jovens.

Num primeiro momento, ento, apresento algumas discusses que permearam a

construo da Teoria dos Novos Movimentos Sociais, e especificamente, o que foi (e )

compreendido como novo nestes movimentos. A partir desta exposio, retomo consideraes de

Alberto Melucci sobre o conceito de identidade coletiva, bem como as reflexes propostas por

autores, entre eles Stuart Hall, de como as identidades so construdas na contemporaneidade.

Como suporte terico que tambm sustenta o trabalho utilizo a Teoria das Representaes

Sociais apresentada por Serge Moscovici. As representaes sociais, enquanto fenmeno de

significao e interpretao dos sujeitos da realidade, pode ser apreendido em conversas, nas

falas e, no presente estudo, em letras produzidas por grupos de rap. As letras so uma forma de

comunicao e propagao das idias que circulam entre os grupos que fazem parte do hip hop e

entre aqueles que so ouvintes e, neste sentido, transportam algumas representaes que os

rappers constroem para significar a realidade social. Utilizo a Teoria das Representaes Sociais

compreendendo que na narrativa do rap esto presentes representaes identitrias, ou seja, o

rapper atribui algumas caractersticas como pertencentes ao outro, sejam outros grupos ou

sujeitos individuais.

Na discusso sobre as representaes de mulher privilegio, como fonte de dados, as letras

de rap e na compreenso de como as mulheres se inserem neste contexto, o significam e dele

fazem parte, analiso as identidades construdas utilizando como instrumento de coleta de dados

entrevistas abertas baseadas em um roteiro, apresentado em Anexo. A anlise qualitativa dos

dados busca compreender os sentidos que so produzidos pelos discursos, sejam estes presentes

poder ter decrescido ou at mesmo desaparecido, mas existir na sociedade por meio das representaes que criou e
que passam a mediar ou servir de parmetro para as relaes sociais cotidianas. (Gohn, 1997, p.155)

3
nas letras ou nas entrevistas. Este texto, ento, relata o percurso da pesquisa, bem como as

anlises e reflexes que foram construdas durante este processo.

A estrutura da dissertao

No primeiro captulo apresento as consideraes sobre a Teoria dos Novos Movimentos

Sociais e questes pertinentes ao conceito de identidade e identidade coletiva. Apresento ainda as

consideraes tericas sobre a Teoria das Representaes Sociais; consideraes sobre o

movimento hip hop e o caminho metodolgico para a anlise das letras de rap.

No segundo captulo apresento algumas reflexes sobre a participao das mulheres no

movimento hip hop a partir de dois grupos: O grupo Minas da Rima e o posicionamento de

mulheres que participam da Casa do Hip hop. A distino entre estes grupos deu-se pelas

diferentes perspectivas e objetivos dos grupos; o primeiro se coloca como um grupo feminista

que reivindica mais espao para as mulheres no hip hop; o segundo se identifica com as

demandas mais abrangentes do movimento.

No terceiro captulo apresento as consideraes analticas sobre as representaes sociais

da mulher nas letras de rap, buscando um dilogo pontual com as representaes presentes nas

entrevistas.

A estrutura do texto procura esclarecer que as anlises, tanto de letras como de

entrevistas, partiram da compreenso de que o hip hop considerado um movimento social, a

partir da Teoria dos Novos Movimentos Sociais, e que pode ser compreendido por meio das

identidades forjadas, seja apresentando e representando estas identidades (letras), como tambm

promovendo identificaes e relaes solidrias.

4
 Penso que as anlises feitas e os caminhos percorridos estejam de acordo com as

expectativas na construo de uma dissertao. Para mim, at o momento, a vivncia na prtica

de pesquisa e na elaborao de anlises sobre a mobilizao social, tem sido uma vivncia rica,

que contribui na construo de minha prpria identidade.

5
6
CAPTULO I

O Novo nos Novos Movimentos Sociais

Os processos que permeiam a participao e mobilizao de atores3 no cenrio poltico

vm sendo estudados sobre diferentes paradigmas. Maria da Glria Gohn (1997) sintetiza, no

livro Teorias dos Movimentos Sociais: paradigmas clssicos e contemporneos, estudos sobre os

movimentos sociais que foram gestados entre diferentes campos de saber, como a sociologia,

cincia poltica e psicologia, e entre diferentes contextos: norte-americano, latino-americano e

europeu. A autora expe as preocupaes, os interesses e enfoques (ora macro, ora

microsocietais) que permeiam os estudos entre os tericos vinculados a cada escola e as crticas

e revises que foram sendo desenvolvidas em torno desses estudos. Os movimentos sociais,

assim como as teorias sobre eles, no so homogneos e possuem interesses e objetivos distintos.

Os tericos, porm, sempre estiveram preocupados em formular teses que abrangessem esta

heterogeneidade. Na grande contribuio que o texto de Maria da Glria apresenta, contemplo

mais especificamente s questes relacionadas a abordagens presentes nos chamados Novos

Movimentos Sociais (Europa), uma vez que esta abordagem (re)formula categorias e conceitos

que interessam para o desenvolvimento deste estudo.

Segundo Gohn, na Europa, a partir de 1960 dois grandes paradigmas foram criados na

busca pela compreenso dos movimentos sociais: o neomarxista e o culturalista-acionalista, este

sendo conhecido como a Teoria dos Novos Movimentos Sociais. Essas novas teorias partiram

3
O termo ator utilizado pelos autores que discutem os Movimentos Sociais. A designao sujeito social
tambm utilizado em alguns estudos. Entendo, porm, que as duas denominaes denotam um entendimento dos
atores/sujeitos como agentes de sua prpria histria, no sendo somente receptores.

7
para a criao de esquemas interpretativos que enfatizavam a cultura, a ideologia, as lutas sociais

cotidianas, a solidariedade entre as pessoas de um grupo ou movimento social e o processo de

identidade criado (GOHN, 1997, p.121).

Os tericos da abordagem dos Novos Movimentos Sociais, segundo Gohn, podem ser

agrupados em trs linhas: a histrico-poltica representada por Claus Offe, a psicossocial

representada por Alberto Melucci, Ernest Laclau e Chantal Mouffe e a acionalista de Alain

Touraine. Segundo a autora, as caractersticas gerais da Teoria dos Novos Movimentos Sociais

seriam a construo de sistemas tericos baseados na cultura e na possibilidade dos atores

coletivos criarem e lutarem contra as discriminaes de acesso aos bens produzidos pela

modernidade. Alm disso, a teoria prope que estes movimentos criticam os efeitos nocivos da

modernidade/globalizao a partir da fundamentao de suas aes em valores tradicionais,

solidrios, comunitrios. A nova abordagem, portanto, elimina a centralidade de um sujeito

especfico, predeterminado, e v os participantes das aes coletivas como atores sociais

(GOHN, p.122-123) independentemente dos condicionamentos das estruturas (uma viso que

nega o Marxismo Ortodoxo).

A nova abordagem (re)coloca a poltica no mbito social, abarcando todas as prticas

sociais e no circunscrita somente ao Estado.

Os atores produzem a ao coletiva, nos dizeres de Melucci, porque so capazes de se

autodefinir, a si mesmos e a seu relacionamento com o meio ambiente. No se trata de um
processo linear mas de interao, negociao, e de oposio de diferentes orientaes. O
grande destaque ser para a lgica que cria a identidade coletiva que permeia as aes de
um grupo... Nos novos movimentos sociais a identidade parte constitutiva da formao
dos movimentos, eles crescem em funo da defesa dessa identidade (Idem: p.123-124).

Algumas crticas foram feitas a respeito da Teoria dos Novos Movimentos Sociais no que

tange a expresso novo.

8
 Segundo Paoli (1995)

Sua originalidade residia no fato de organizarem-se para expressar o desejo de integrar-se

a uma outra esfera de poder, aquela que pertence ordem da cidadania e dos direitos e
que regida, portanto, por aquilo que hoje, anos mais tarde, est sendo enunciado como
prpria da sociedade civil revitalizada (p.27).

A autora observa que a discusso em torno dos movimentos sociais, e sua novidade,

apresentava para os tericos um desafio na compreenso de que os atores sociais no mais

expressavam reivindicaes baseadas na categoria de classe, configurando o proletrio como

sujeito por excelncia da transformao social, mas na participao visando construo

democrtica da sociedade, no sem conflitos e disputas de poder, mas permitindo o surgimento

de um sujeito plural. A demanda desses sujeitos se inseria na noo de direitos, dignidade e

cidadania.

No Brasil, na primeira metade dos anos 70, os principais atores foram os grupos de

operrios fabris, construindo organizaes que elaboraram noes sobre os direitos dos

trabalhadores desvinculado de sindicatos oficiais, permitindo a construo de sindicatos

autnomos. Tambm grupos de moradores de bairros de periferia reivindicavam melhores

condies de habitao e autonomia na administrao local.

Na dcada de 80, outros sujeitos tambm ocuparam o cenrio poltico, como o movimento

de mulheres, de negros, do campo, indgenas.

Tambm neles foi lido um sentido inovador que se dirigia a construir referncias novas,
para a sociedade, em relao singularidade de diferentes condies sociais antes
annimas como dimenso poltica. Coexistindo no espao das aes coletivas, todos esses
movimentos sociais desvendaram um processo que se refere, intimamente, experincia
democrtica: a existncia de conflitos mltiplos cuja legitimidade forma a prpria
possibilidade de uma democracia real. (PAOLI, 1995, p. 31).

9
 Carvalho (1998), de acordo com Paoli (1995), argumenta que os novos sujeitos polticos

construram, e constroem, uma cultura participativa e autnoma, colocando novos temas na

agenda pblica, adotando muitas vezes uma postura exterior e antagnica ao Estado.

Sua ao abre novos espaos ou lugares para a ao poltica. Na ausncia de espaos

legtimos de negociao de conflitos, o cotidiano, o local de moradia, a periferia, o gnero,
a raa tornam-se espaos e questes pblicas, lugares de ao poltica, constituindo
sujeitos com identidades e formas de organizao diferentes daquelas do sindicato e do
partido (CARVALHO, 1998, p. 9).

Segundo Paoli (1995), porm, muitos tericos viram com descrdito, principalmente em

relao ao movimento dos operrios, a autonomia em relao ao Estado conquistada pelos

movimentos, considerando que para manter-se essas organizaes passariam a ser reintroduzidas

nos espaos institucionais da poltica. Outros tericos, em contraposio, argumentaram que a

legitimidade poltica das organizaes j se dava na forma como essas organizaes surgiram.

Foi necessrio, ento, por parte dos tericos dos movimentos sociais, na compreenso da

emergncia dos novos sujeitos polticos, considerarem as aes dessas organizaes em relao

ao Estado, ou seja, a autonomia que esses movimentos possuam nos momentos de negociao na

arena poltica, e a emergncia da noo de identidade como categoria para o entendimento da

capacidade dos movimentos de aglutinar os sujeitos em demandas que no somente se referiam

as carncias materiais, mas contribuam para a construo de subjetividades e interesses coletivos

baseados na noo de direitos.

Segundo Evers (1984), os novos movimentos sociais apresentam um alargamento da

esfera do poltico (p.12). As manifestaes sociais de emancipao e busca por uma outra

sociedade se do nas relaes sociais dos atores; no cotidiano. O autor, porm, ambguo no que

se refere idia do alargamento desta esfera, pois ao mesmo tempo em que defende que os

10
domnios da vida social no so isentos de poltica, enfatizando, portanto que a poltica um

elemento constante dentro da vida social (p.15), uma de suas teses defende que o potencial

transformador dos novos movimentos sociais no poltico mas scio-cultural. Segundo o autor,

a capacidade inovadora desses movimentos parece basear-se menos em seu potencial poltico e

mais em seu potencial, para criar e experimentar formas diferentes de relaes sociais

quotidianas (p.15).

O autor nos revela que os novos movimentos sociais so portadores/potencializadores de

uma utopia que se manifesta nas relaes interpessoais dos atores, promovendo uma

transformao no seu modo de ser e de conceber o mundo e de atuar politicamente nele.

Evers (1984) destaca que pensar uma sociedade mais igualitria e justa, ou seja, uma

utopia frente a nossa sociedade capitalista, possibilita aos novos movimentos sociais uma direo,

um ideal que permite a construo de sujeitos e atores sociais que procuram em suas prticas a

construo de uma sociedade democrtica. O autor coloca a noo de identidade em

contraposio alienao, como um dos aspectos centrais dos movimentos sociais.

As crticas feitas Teoria dos Novos Movimentos Sociais se referem, principalmente, que

este novo no pode ser pensado como uma contribuio conceitual original, uma vez que em

diferentes paradigmas sobre os movimentos sociais, mesmo que pontualmente e sem a inteno

de anlise, os conceitos de solidariedade e identidade j estavam esboados (Gohn, 1997). O

novo, porm, refere-se a uma constituio mais heterognea dos movimentos sociais e a

necessidade de se construir uma teoria capaz de conseguir dar conta da diversidade. Segundo

Melucci (2001)

A novidade est, com efeito, na definio de um conceito relativo, que tem a funo
temporria de assinalar algumas diferenas comparativas entre as formas histricas do
conflito de classe e as formas emergentes de ao coletiva (...). Mas tanto os crticos da

11
 novidade dos novos movimentos sociais quanto os defensores deste paradigma
partilham do mesmo limite epistemolgico: eles consideram os fenmenos
contemporneos com um objeto emprico unitrio (...). Paradoxalmente, o resultado do
debate sobre novos movimentos sociais esgotar-se da imagem dos movimentos-
personagens. Nos movimentos contemporneos, como em todos os fenmenos coletivos,
combinam-se formas de ao que dizem respeito aos diversos nveis da estrutura social,
que implicam diversas orientaes, que pertencem a fases histricas diversas. Trata-se,
portanto, de compreender esta multiplicidade de elementos, sincrnicos e diacrnicos, e
de explicar, pois, como eles se combinam na concreta unidade de um ator coletivo (p. 24-
25).

Alguns autores, entre eles Gohn, fazem crticas a Teoria dos Novos Movimentos Sociais

por considerarem suas categorias e conceitos confusos e constituir-se como uma teoria

incompleta. No pretendemos, neste estudo, aprofundar no debate terico e nas diferentes

argumentaes na compreenso dos movimentos sociais, mas entendemos que, assim como

afirma Prado (2002)

A despeito da polmica que o termo novo significou, parece-nos salutar reconhecer que
este deslocamento foi um dos principais responsveis pela re-introduo da Psicologia
Social junto s anlises da mobilizao coletiva. Estas mudanas foram acompanhadas
pela preocupao em compreender a dinmica interna dos movimentos de mobilizao
social, j que as anlises anteriores, especialmente as macroestruturais, apresentavam
vrias insuficincias. Segundo Sandoval (1989), a rejeio tradicional dos aspectos
psicossociais, desenvolvida pela Sociologia, foi responsvel pelo abandono de
preocupaes sobre a dinmica das aes coletivas, alm disso, os modelos sociolgicos
estticos, ainda segundo o autor, foram mais descritivos do que interativos, j que
subestimaram a anlise das dinmicas para se ater s anlises dos conflitos macrossociais
e, por conseguinte, desenvolveram o mito Estado repressor x Movimento social popular
coeso (Sandoval apud Prado, 2002,p.63)

Para a compreenso da pertinncia da exposio realizada, necessrio reafirmar que o

hip hop, neste estudo, considerado um movimento social, pois promove a construo de

atores/sujeitos que reivindicam, num primeiro momento, um reconhecimento de sua existncia;

reivindicam direitos e garantias sociais e se constituem como um grupo que atua politicamente

utilizando a arte. Estes aspectos sero retomados na apresentao do movimento hip hop. A
12
seguir, fazemos, primeiramente, uma breve apresentao sobre a conceituao da categoria

identidade, identidade coletiva e representao social. Esta apresentao necessria, uma vez

que estes conceitos so utilizados para a anlise do movimento hip hop, dos grupos hip hoppers

pesquisados e das letras. So utilizadas (as categorias) como ferramentas analticas para

compreendermos como as mulheres inscrevem-se no movimento, quais so suas aes e quais

so as representaes identitrias da mulher forjadas pelo movimento.

13
Algumas consideraes sobre o conceito de identidade e identidade coletiva

Inicialmente apresentamos algumas consideraes sobre como vem sendo compreendida a

categoria identidade a partir das elaboraes propostas, principalmente, por Stuart Hall. Estas

consideraes buscam refletir sobre como os sujeitos esto se posicionando no mundo,

estabelecem relaes sociais entre si e entre grupos de pertencimento.

O conceito de identidade foi sendo modificado a partir dos contextos histricos e do

desenvolvimento das sociedades. A identidade, portanto, no considerada contemporaneamente

como possuidora de uma essncia, mas como uma categoria importante para compreendermos

como os sujeitos atribuem para si e para os outros caractersticas que os definem como sujeitos. A

identidade um desses conceitos que operam sob rasura, no intervalo entre a inverso e a

emergncia: uma idia que no pode ser pensada da forma antiga, mas sem a qual certas

questes-chave no podem ser sequer pensadas (HALL, 2000, p.104). Entre estas questes-

chave, entendemos a emergncia de movimentos sociais identitrios, que trouxeram para o

debate pblico e poltico questes antes circunscritas esfera privada, como: a) a sexualidade; b)

questes referentes constituio de uma identidade cultural; ou como prope Mouffe (1995),

como a identidade, especificamente a identidade poltica, deveria ser construda para se pensar

em uma comunidade poltica.

Segundo Hall (2001), podemos distinguir trs concepes distintas sobre a identidade. A

primeira delas se refere ao que poderamos chamar de Sujeito do Iluminismo.

Segundo o autor,

Isso no significa que as pessoas, em tempos pr-modernos, no eram indivduos, mas que
a individualidade era tanto vivida, conceptualizada de forma diferente. As
transformaes associadas modernidade libertaram o indivduo de seus apoios estveis

14
 em tradies e nas estruturas. Antes se acreditavam que essas eram divinamente
estabelecidas, no estavam sujeitas, portanto, a mudanas fundamentais. O status, a
classificao e a posio de uma pessoa na grande cadeia do ser - a ordem secular e
divina das coisas predominavam sobre qualquer sentimento de que a pessoa fosse um
indivduo soberano. O nascimento do indivduo soberano entre o Humanismo
Renascentista do sculo XVI e o Iluminismo do sculo XVIII, representou uma ruptura
importante com o passado. Alguns argumentam que ele foi o motor que colocou todo o
sistema social da modernidade em movimento (p.25).

Citando Raymond Williams (1976), Hall argumenta que o sujeito do iluminismo era

significado como indivisvel, singular, nico e possuidor de uma identidade permanente.

Muitos foram os movimentos que permitiram a emergncia destes significados: a Reforma e o

Protestantismo, o humanismo Renascentista e o Iluminismo (como citado acima) e as revolues

cientficas que promoveram questionamentos sobre os dogmas religiosos, centrando as discusses

no Homem. Segundo o autor, uma figura importante, que deu a essa concepo uma formulao

primria, foi o filsofo francs Ren Descartes 1596-1650) (p.26). Ainda que Descartes tenha se

questionado sobre o deslocamento de Deus,

Descartes acertou as contas com Deus ao torn-lo Primeiro Movimentador de toda

criao; da em diante, ele explicou o resto do mundo material inteiramente em termos
mecnicos e matemticos. Descartes postulou duas substncias distintas a substncia
espacial (matria) e a substncia pensante (mente). Ele refocalizou, assim, aquele grande
dualismo entre mente e matria que tem afligido a Filosofia desde ento. (...) Desde
ento, essa concepo do sujeito racional, pensante e consciente, situado no centro do
conhecimento, tem sido conhecida como o sujeito cartesiano (p.27).

Com a complexidade assumida pelas sociedades modernas, foi necessrio que a categoria

identidade comportasse uma dimenso social do sujeito, uma vez que o cidado individual

emaranhou-se nas maquinarias administrativas burocrticas do estado moderno (...) O indivduo

passou a ser visto como mais localizado e instalado no interior dessas grandes estruturas e

formaes de sustentao da sociedade moderna (HALL, 2003, p.30).

15
 Dois fatores contriburam para a emergncia do Sujeito Sociolgico: a) os fundamentos da

biologia de Darwin, no qual o sujeito humano foi biologizado razo tinha uma base na

Natureza e a mente um fundamento no desenvolvimento fsico do crebro humano (p.30), b) a

ascenso das novas cincias sociais. Entre estas novas cincias, destaca-se a formulao da teoria

da socializao, que compreende que o sujeito internaliza o mundo exterior (processos grupais

e normas coletivas), e externaliza seu interior por meio da ao no mundo social. Esta

concepo foi forjada na primeira metade do sculo XX (p.32), porm, no mesmo perodo,

segundo Hall, outros retratos do sujeito j faziam crer em uma figura descentrada (o autor cita

Kafka O Processo -, entre outros), para a compreenso das formaes identitrias processadas

na chamada alta modernidade.

Aquelas pessoas que sustentam que as identidades modernas esto sendo fragmentadas
argumentam que o que aconteceu concepo do sujeito moderno, na modernidade tardia,
no foi simplesmente sua desagregao, mas seu deslocamento. Elas descrevem esse
deslocamento atravs de uma srie de rupturas nos discursos do conhecimento moderno
(HALL, 2003, p.34)

O autor cita o pensamento marxista; as contribuies de Freud; Saussure; Foucault e o

feminismo como grandes avanos no pensamento e elaboraes tericas que permitiram que se

pensasse a identidade na alta modernidade, ou modernidade tardia.

A primeira descentrao importante refere-se s tradies do pensamento marxista. Os

escritos de Marx pertencem, naturalmente, ao sculo XIX e no ao sculo XX. Mas um
dos modos pelos quais seu trabalho foi redescoberto e reinterpretado na dcada de
sessenta foi luz da sua afirmao de que os homens (sic) fazem a histria, mas apenas
sob as condies que lhe so dadas. Seus novos intrpretes leram isso no sentido de que
os indivduos no poderiam de nenhuma forma ser os autores ou os agentes da histria,
uma vez que eles podiam agir apenas com base em condies histricas criadas por outros
e sob as quais eles nasceram, utilizando recursos materiais e de cultura que lhes foram
fornecidos por geraes anteriores (HALL, 2001, p.34-35).

16
 A partir desta leitura dos postulados de Marx, principalmente realizados por Althusser,

como refora Hall, instaura-se a no existncia de uma essncia universal de Homem presente em

cada indivduo, uma vez que isto traduzia uma perspectiva de mundo empirista e ideal. Muitos

consideraram estas formulaes como anti-humanistas, mas no se nega que estas contriburam

para o questionamento sobre uma suposta essencialidade humana.

Os postulados de Freud tambm contriburam para o descentramento do sujeito.

A teoria de Freud de que nossas identidades, nossa sexualidade e a estrutura de nossos

desejos so formadas com base em processos psquicos e simblicos do inconsciente, que
funciona de acordo com uma lgica muito diferente daquela da Razo, arrasa com o
conceito do sujeito cognoscente e racional provido de uma identidade fixa e unificada o
penso, logo existo, do sujeito de Descartes (HALL, 2001, p.36).

Freud, ao trazer para a compreenso do sujeito a dimenso do inconsciente, de algo

estranho, no possvel de ser acessado diretamente destitui, no campo da psicologia, a noo de

um sujeito centrado, agente e livre de determinaes. Hall cita as contribuies de Jacques Lacan

para a compreenso da constituio identitria que se realiza a partir dos processos de

identificao, alm das reflexes deste autor quanto fantasia que os sujeitos possuem sobre si

mesmo enquanto sujeitos inteiros. Segundo Ferreira (2004), o sujeito do inconsciente

lacaniano, inscrito em uma filiao saussuriana, faz da linguagem sua condio de existncia

(p.47)

Linguagem, em Lacan, o sistema que est em jogo com a lngua. Este sistema precede o
sujeito e o condiciona. H aqui um ponto de aproximao entre o sujeito da psicanlise e o
do discurso. Ambos so determinados e condicionados por uma estrutura, que tem como
singularidade o no-fechamento de suas fronteiras e no-homogeneidade de seu territrio.
Dessa forma, sujeito, linguagem e discurso poderiam ser concebidos como estruturas s
quais se tm acesso pelas falhas. (FERREIRA, 2004,p.43).

17
 O terceiro descentramento apontado por Hall (2001) baseia-se nos pressupostos de

Ferdinand Saussure. Este autor compreende que

A lngua sistema social e no um sistema individual. Ela preexiste a ns. No podemos,

em qualquer sentido simples, ser seus autores. Falar uma lngua no significa apenas
expressar nossos pensamentos mais interiores e originais; significa tambm ativar a
imensa gama de significados que j esto embutidos em nossa lngua e em nossos sistemas
culturais (HALL, 2001, p.40).

A noo de sujeito, da identidade, da linguagem e do discurso, ento, na interseco dos

postulados de Marx; Freud e Lacan; e Saussaure, compreendem que o sujeito ao mesmo tempo

interpelado pela ideologia presente nas instituies as quais pertence desde seu nascimento,

portanto um sujeito que reproduz uma linguagem j instituda, e tambm o sujeito que

produz novas representaes uma vez tambm o sujeito dos chistes, das falhas, das faltas

(algo que nos completa pela ausncia), ou seja, da incompletude, que ao tentar dizer aquilo que

pretende se faz neste mesmo ato. o sujeito que se faz no ato da linguagem.

Ora, qual a grande descoberta de Freud? a descoberta da incidncia na natureza do

homem e das suas relaes com a ordem simblica. E se a ordem simblica constituda
pelo Outro (o terceiro, o Pai, a Lei), compreendemos assim a frmula central de Lacan
incessantemente repetida: o inconsciente o discurso do Outro. (...) Para Lacan, a relao
entre inconsciente e linguagem absoluta: o momento em que o desejo se humaniza
aquele em que a criana nasce para linguagem. Porqu? Porque a palavra mata o objeto.
A palavra no nos d a presena do objeto, mas a ausncia dele (COELHO, s/d, XLVIII).

Pensar deste modo renunciar completude, a possibilidade do sujeito saber sobre aquilo

que diz, mas sim entender que ele se faz na relao com o outro, na Alteridade. A partir das

contribuies de Freud, Lacan e da leitura de Saussure sobre a constituio do sujeito pelo

discurso, conceitua-se a identidade como sendo relacional e inscrita na ordem do simblico.

18
 O quarto descentramento apresentado por Hall baseia-se nas proposies apresentadas por

Michel Foucault. Segundo este autor, existe um poder disciplinar que pretende moldar os corpos,

os sujeitos, vigiar e regular a espcie humana para que o ser humano se constitua docilmente.

No necessrio aceitar cada detalhe da descrio que Foucault faz do carter abrangente
dos regimes disciplinares do moderno poder administrativo para compreender o
paradoxo de que, quanto mais coletiva e organizada a natureza das instituies da
modernidade tardia, maior o isolamento, a vigilncia e a individualizao do sujeito
individual (HALL, 2001, p.43).

Por ltimo, o autor traz as contribuies para a compreenso de um sujeito descentrado a

partir das demandas dos novos movimentos sociais, em particular do feminismo, tanto em sua

crtica terica como uma ao coletiva. Segundo Hall (2001), o feminismo

Ele questionou a clssica distino entre o dentro e o fora, o privado e pblico. O

slogan do feminismo era: o pessoal poltico.
Ele abriu, portanto, para a contestao poltica, arenas inteiramente novas de vida social:
famlia, a sexualidade, o trabalho domstico, a diviso domstica do trabalho, o cuidado
com as crianas, etc.
Ele tambm enfatizou, como uma questo poltica e social, o tema da forma como somos
formados e produzidos como sujeitos generificados. Isto , ele politizou a subjetividade, a
identidade e o processo de identificao (como homens/mulheres, mes/pais,
filhos/filhas).
Aquilo que comeou como um movimento dirigido contestao da posio social das
mulheres expandiu-se para incluir a formao das identidades sexuais e de gnero.
O feminismo questionou a noo de que os homens e as mulheres eram parte da mesma
identidade, a Humanidade, substituindo-a pela questo da diferena sexual.(p.45-46).

A partir, portanto, destas breves consideraes, acreditamos que contemporaneamente, a

categoria identidade entendida como descentrada ajuda-nos a pensar como se do os processos

identificatrios de sujeitos que buscam sentidos para si e para o mundo, e como estes processos

permitem pertencimentos, reconhecimentos em uma realidade muitas vezes desigual (social e

19
economicamente), fragmentada, globalizada. Acreditamos que entender a categoria identidade a

partir destas argumentaes conceber que

(...) o agente social constitudo por um conjunto de posies subjetivas que nunca
podem ser totalmente fixadas em um sistema fechado de diferenas. construda por uma
diversidade de discursos, entre os quais no h necessria relao, mas um constante
movimento de mltiplas determinaes e de deslocamentos. A identidade deste sujeito
mltiplo e contraditrio , ento, sempre contingente e precria, temporariamente fixada
na interseco destas posies subjetivas e dependente da forma especfica da
identificao. Esta pluralidade, no entanto, envolve a coexistncia, de um e outro, de
uma pluralidade de posies subjetivas mas uma constante subverso e uma mltipla
determinao de um pelos outros, os quais fazem possvel a gerao de efeitos totalizantes
dentro de um campo caracterizado por determinadas fronteiras abertas. H, portanto, um
duplo movimento: de um lado, um movimento de descentralizao, o qual previne a
fixao de um conjunto de posies em volta de um ponto pr-constitudo; de outro lado,
e como um resultado desta fixao essencialista, o movimento oposto: a instituio de
pontos nodais, fixaes parciais as quais limitam o fluxo de um significante sobre o
significado. Mas esta dialtica fixao/no fixao possvel somente porque a fixao
no est dada antemo, porque nenhum centro de subjetividade precede a identificao do
sujeito. Por esta razo ns temos compreendido a histria do sujeito como a histria de
suas identificaes, e no h nenhuma identidade consumada ante desta ltima para ser
resgatada (MOUFFE, 1995, p.33).4

Esta autora nos ajuda a pensar sobre as identidades forjadas pelo movimento hip hop uma

vez que sua preocupao se inscreve na possibilidade de construo de identidades polticas para

a construo de uma democracia plural e radical. Confrontando paradigmas do ordenamento

social, a saber: o liberalismo, o comunitarismo e o democrtico, a autora aponta os paradoxos

existentes nestes ordenamentos quando se busca conciliar os preceitos de bem comum, liberdade,

igualdade e individualidade na atual democracia liberal. Para Mouffe (1995)

A comunidade poltica como um plano de inscrio de uma multiplicidade de demandas

onde um ns constitudo, exige a idia correlata de bem comum, mas um bem comum
entendido como um ponto cego, um horizonte de significados, alguma coisa para as
quais ns devemos constantemente nos referir mas o qual ns nunca poderemos chegar.
Nesta viso, o bem comum opera, de um lado, como um imaginrio social: que aquele

4
Traduo livre realizada pelo Prof. Dr. Marco Aurlio Mximo Prado.

20
 no qual h a verdadeira impossibilidade de conseguir a representao completa e isto d a
ele o papel de um horizonte no qual ele a condio de possibilidade de qualquer
representao dentro do espao que ele delimita. De outro lado, ele especifica o que ns
podemos chamar, seguindo Wittgenstein, uma gramtica da conduta que coincide com a
fidelidade aos princpios tico-politicos constitutivos da democracia moderna: liberdade e
igualdade para todos. Mas como estes princpios esto abertos a muitas interpretaes
concorrentes temos que reconhecer que uma comunidade poltica totalmente includa
nunca poder ser realizada. Haver sempre um elemento de fora constitutivo, um
exterior para a comunidade que a verdadeira condio de sua existncia. vital
reconhecer que, para a construo de um ns necessrio distingui-lo de um eles e
que todas as formas de consenso esto baseadas em atos de excluso, a condio de
possibilidade de uma comunidade poltica ao mesmo tempo a condio da
impossibilidade de sua inteira realizao (p.35).

A autora problematiza a poltica como um campo de ao coletiva e pblica, no qual

existem diversas identidades coletivas em conflito. O que a autora nos alerta quanto

necessidade da construo de identidades polticas pautadas no respeito liberdade individual,

mas que possuam como ponto nodal, ou articulatrio, uma viso de cidadania.

Negar a necessidade da construo de identidades coletivas conceber a poltica

exclusivamente como sendo a luta de minorias em busca do reconhecimento e da
representao dos seus direitos, permanecer cego frente s relaes de poder e ignorar os
limites impostos pela extenso da esfera dos direitos, sem considerarmos ainda o fato de
que alguns direitos tm sido construdos atravs da excluso e da subordinao do direitos
de outros. Contra este extremo pluralismo ps-moderno, mas na perspectiva de no jogar
as relaes de poder fora, o caminho que eu estou defendendo mostra como relaes
sociais e identidades so sempre construdas atravs de formas de poder assimtricas. J
que alguns agentes sociais tm mais poder que outros, isto j forar estes ltimos a
estabelecer algumas formas de aliana contra os primeiros e para fazer isto, eles tero que
construir as suas demandas na articulao das demandas dos outros. Por isso, o papel
crucial de categoriais como hegemonia e articulao. (...) Isto quer dizer que a relao
entre agentes sociais se tornaria mais democrtica somente na medida em que eles
aceitassem a particularidade e a limitao para suas prprias reivindicaes; em outras
palavras quer dizer somente na medida em que eles reconhecessem a relao mutual deles
como uma relao na qual o poder no capaz de ser exterminado. E ento, fica claro,
no somente porque o pluralismo deve ser entendido como sendo um elemento
constituidor da democracia moderna, mas tambm porque ele no pode ser separado do
poder e do antagonismo. (MOUFFE, 1995, p.36-37).

21
 Um dos autores que nos ajudam a pensar como se d o processo da constituio das

identidades coletivas Alberto Melucci. As formulaes do autor inscrevem-se nos processos

intragrupais que possibilitam a formao de um ns atravs de aspectos psicossociais na

articulao com as demandas e reivindicaes dos grupos sociais.

Segundo Melucci (2001), os fenmenos coletivos apresentam-se com uma certa unidade

externa (p.29), porm, h uma heterogeneidade interna a ser administrada, uma vez que os

significados, as formas de ao, os modos de organizao so diferenciados. Para o autor,

Um movimento social um objeto construdo pela anlise e no coincide com as formas

empricas de ao. Nenhum fenmeno de ao coletiva pode ser assumido em sua
globalidade, porque no expressa nunca uma linguagem unvoca. Uma aproximao
analtica dos movimentos implica na decomposio do objeto segundo o sistema de
relaes sociais investido na ao e segundo as orientaes que tal ao assume. O
significado do fenmeno varia, portanto, em funo do sistema de relaes sociais ao qual
a ao faz referncia, e da natureza do conflito (MELUCCI, p. 2001:33).

Para a anlise dos movimentos sociais, o autor considera que: a) os movimentos sociais

no so resposta a uma crise, sendo vista como uma disfuno do sistema social, mas a

explicitao de um conflito no qual atores lutam por recursos valorizados por diferentes grupos;

b) o movimento social define uma solidariedade especfica, o reconhecimento por parte dos

atores como pertencentes a uma mesma unidade social; c) o campo analtico do movimento social

depende do sistema de relaes no qual tal ao coletiva se situa e qual contexto se refere

propondo uma ruptura de regras (referentes) e questionamentos da legitimidade do poder.

Os movimentos sociais podem se referir a trs tipos de conduta: enquanto movimentos

reivindicativos, os atores coletivos reivindicam, dentro de um sistema organizativo, a distribuio

de recursos no interior da organizao, geralmente para manuteno, conquista de uma categoria

22
(papis e funes); enquanto movimento poltico, os atores lutam para garantir ou melhorar suas

posies e participaes no sistema poltico; e enquanto movimento antagonista, os atores

questionam o modo de produo de recursos e sua distribuio. O autor nos lembra que no seria

possvel um movimento antagonista puro, sem mediaes com o sistema poltico ou organizativo.

Para Melucci (1997), os movimentos sociais so um objeto quente, um objeto que

envolve interesses e paixes (p.12). O fenmeno coletivo no uma unidade emprica, e sendo

assim, a ao coletiva deve ser decomposta analiticamente, pois ela no um dado homogneo,

mas resultado de processos sociais diversificados.

Devemos compreender quais so as relaes que configuram o fenmeno, seus

significados e orientaes da ao. Uma das possibilidades que se coloca para compreendermos o

fenmeno coletivo o arranjo que este produz, como foi dito anteriormente, na construo de

uma solidariedade. Para tanto, utilizamos a Identidade Coletiva como possibilidade de explicao

destes laos de solidariedade.

Segundo o autor, Identidade Coletiva um conceito, uma ferramenta analtica que

possibilita o estudo de como os atores sociais identificam-se mutuamente. A Identidade Coletiva

assegura a continuidade e permanncia do movimento ao longo do tempo. (Melucci, 1995)

A Identidade Coletiva um processo que envolve: 1) definies cognitivas a respeito de

finalidades, significados e campos de ao; 2) se refere a uma rede de relacionamentos ativos

entre atores interao, comunicao, influncia, negociao; 3) possibilita que os indivduos se

sintam parte de uma mesma unidade. Assim, este processo no se encerra em um clculo de

custo-benefcio, mas composto por paixes e sentimentos, que podem inicialmente ser

considerados irracionais, mas que permitem que os sujeitos construam e compartilhem

significados.

23
 Nas sociedades altamente diferenciadas, o vnculo social no mais garantido de modo
natural e no existe mais identificao automtica com a coletividade. Indivduos e grupos
constroem e escolhem os seus vnculos em proporo crescente. A conseqncia que a
poltica, a referncia polis, ao espao comum de governar, no tem mais um
fundamento na naturalidade do vnculo social, mas se torna uma escolha de convivncia,
de decises conjuntas, de conservar o passado e o de projetar o futuro. O sentido que cada
um d quilo que faz, indivduo ou grupo, se torna to importante para a poltica porque
constitui o fundamento da participao ao espao comum, esfera da polis. O sentido
que os atores produzem no se constitui no interior da poltica, mas a precede na
experincia social de cada um. Sem fazer referncia ao sentido, mas poltica se torna
procedimento, simples exerccio de tcnicas (MELUCCI, 1997, p. 53).

Assim, na constituio da ao coletiva, um dos processos engendrados a construo de

um grupo que define individualmente e coletivamente projetos, compartilha anseios e desejos.

Como Souza (2002) aponta

Estamos entendendo ento que a idia de identidade, especialmente a idia de identidade

coletiva, comparece como reivindicao de pertencimento a um grupo, como
possibilidade de pertencimento ao mundo; pertencimento esse definido nas possibilidades
de escolhas situadas nas relaes de diferenciao/desigualdades sociais que, para ganhar
fora e legitimidade para a luta devem, necessariamente, ser reconhecidos, tanto o
pertencimento, como a unidade de pertena, ou seja, tanto a igualdade, como a diferena
(p.88).

Sader (1988), ao explicitar a sua opo em adotar a noo de sujeito coletivo para a

anlise dos movimentos sociais presentes nas dcadas de 1970 e 1980, traz contribuies para

compreendermos como a identidade de um grupo imperativo na constituio do fenmeno

coletivo.

Quando uso a noo de sujeito coletivo no sentido de uma coletividade onde se elabora
uma identidade e se organizam prticas atravs das quais seus membros pretendem
defender seus interesses e expressar suas vontades, constituindo-se nessas lutas.(...) Mas
trata-se, sim, de uma pluralidade de sujeitos, cujas identidades so resultado de suas
interaes em processos de reconhecimento recprocos, e cujas composies so mutveis
e intercambives. As posies dos diferentes sujeitos so desiguais e hierarquizveis;
porm essa ordenao no anterior aos acontecimentos, mas resultados deles. E,
sobretudo, a racionalidade da situao no se encontra na conscincia de um ator
privilegiado, mas tambm resultado do encontro de vrias estratgias. (...) H, pois, uma

24
 inerncia recproca do sujeito e objeto na prpria constituio do sujeito. Nessa
concepo, sujeito autnomo no aquele (pura ao voluntarista) que seria livre de todas
as determinaes externas, mas aquele que capaz de reelabor-las em funo daquilo
que define como sua vontade. Se a noo de sujeito est associada possibilidade de
autonomia, pela dimenso do imaginrio como capacidade de dar-se algo alm daquilo
que est dado (p. 54 -55 - 56).

Assim, o estudo da construo da identidade coletiva permite compreender a produo e

reelaborao de sentidos da experincia coletiva. Por meio da manifestao poltica,

reivindicao de direitos, os sujeitos forjam suas identidades e configuram uma atuao coletiva

ao mesmo tempo em que esta atuao se d por meio destas identidades. Desta forma, portanto,

para compreendermos como a atuao das mulheres ocorre no movimento hip hop, buscamos

compreender as identidades coletivas por elas construdas. Estas reflexes sero apresentadas

adiante. Apresentamos, a seguir, algumas consideraes sobre noo de representao social.

Utilizamos este conceito, ou como prefere Moscovici (1961), este fenmeno, assim como a

categoria identidade coletiva, como ferramenta analtica para compreendermos as formaes

identitrias de mulheres presentes no hip hop e as representaes identitrias forjadas pelo

movimento hip hop no que se refere categoria mulher.

25
Representaes sociais

No estudo A Representao Social da Psicanlise (1961), Serge Moscovici introduz o

conceito de representaes sociais no mbito da Psicologia Social, a partir da grande contribuio

das reflexes de mile Durkheim, quando este formula o conceito de representaes coletivas.

Ao propor o conceito representaes coletivas, Durkheim estava interessado em destacar a

especificidade do pensamento social em relao ao individual, bem como reforar que um

homem que no pensa por meio de conceitos no um homem, uma vez que estaria reduzido

s suas percepes (MOSCOVICI, 1978). Com isso, Durkheim, segundo Serge Moscovici,

reafirma que a vida social a condio para a existncia do pensamento organizado, mas sem,

contudo, explicitar os modos de organizao do pensamento. Assim, Moscovici retoma o

conceito de representaes procurando imprimir uma maior nitidez ao formular suas hipteses;

porm o autor ressalta que no h uma transposio de um conceito a outro. Enquanto Moscovici

considera as representaes sociais como um fenmeno mutante, Durkheim considera as

representaes como conceito, encarando-o como passivo.

As representaes so compostas por figuras e expresses socializadas, simbolizando atos

e situaes que so comuns a determinado grupo, porm, segundo Moscovici, ao encarar a

simbolizao como a tentativa dos sujeitos tornarem conscientes a realidade, as representaes

adquirem um carter passivo, de reflexo de algo exterior, enquanto que ao compreend-la como o

esforo dos sujeitos e grupos na simbolizao da realidade, ao mesmo tempo reconstruindo

simbolicamente esta realidade, imprime-se o carter ativo das representaes.

Por conseguinte, enquanto Durkheim v as representaes coletivas como formas estveis

de compreenso coletiva, com o poder de obrigar que pode servir para integrar a
sociedade como um todo, Moscovici esteve mais interessado em explorar a variao e a

26
 diversidade de idias coletivas nas sociedades modernas. Essa prpria diversidade reflete
a falta de homogeneidade dentro das sociedades modernas, em que as diferenas refletem
uma distribuio desigual de poder e geram uma heterogeneidade de representaes
(DUVEEN em MOSCOVICI, 2003, p.15).

As representaes sociais, segundo Moscovici, so produzidas pelos sujeitos quando estes

confrontam idias, experincias, conceitos na compreenso do mundo e das coisas que dele

fazem parte, convencionando objetos, pessoas e acontecimentos e divulgando estas convenes

nas relaes sociais. O autor compreende o fenmeno das representaes sociais como um

processo dialtico. Os sujeitos nascem em uma determinada cultura, com uma lngua, valores,

crenas, costumes, estruturas, instituies prprias. Neste contexto j circulam determinadas

formas de se viver, pensar, agir, sentir que sero compartilhados pelos membros do grupo.

no encontro pblico de atores sociais, nas vrias mediaes da vida pblica, nos espaos
em que sujeitos sociais renem-se para falar e dar sentido ao quotidiano que as
representaes sociais so formadas. Enquanto fenmeno elas expressam, em sua
estrutura interna, permanncia e diversidade, tanto a histria como realidades atuais. Elas
contm em si tanto resistncia mudana como sementes de mudana. A resistncia
mudana se expressa pelo peso da histria e pela tradio, que impinge sobre os processos
de ancoragem e objetivao. As sementes de mudana so encontradas no meio essencial
das representaes sociais, notadamente a conversao. A fala precisamente o produto
de um processo contnuo de dilogo, conflito e confrontao entre o novo e o velho, de
idias que se formam precisamente enquanto so faladas. Neste sentido, as representaes
sociais so mveis, versteis e esto continuamente mudando (JOVCHELOVITCH, 2000,
p. 40-41).

Como afirma Jovchelovitch (2000), a Teoria das Representaes Sociais compreende o

ser humano como sujeito da histria e da sociedade e tambm sujeito histria e sociedade. Ao

mesmo tempo em que o sujeito molda novas representaes por elas moldado. As

representaes so construdas em determinado grupo social, como afirma Moscovici (2003),

para tornar o no-familar familar, possibilitando que o sujeito se reconhea no processo da

27
construo da realidade, sendo esta sua funo primordial. Embora os sujeitos compartilhem

significados j existentes, a Teoria das Representaes Sociais enfoca a incessante busca do

sujeito em produzir novos significados. A simbolizao da realidade, a necessidade que os

sujeitos sociais tm em compreender, tornar concreto a experincia social se materializa na

construo das representaes.

O que estamos sugerindo, pois, que pessoas e grupos, longe de serem receptores
passivos, pensam por si mesmos, produzem e se comunicam incessantemente suas
prprias e especficas representaes e solues s questes que eles mesmos colocam.
Nas ruas, bares, escritrios, hospitais, laboratrios, etc. as pessoas analisam, comentam,
formulam filosofias espontneas, no oficiais, que tm um impacto decisivo em suas
relaes sociais, em suas escolhas, na maneira como educam seus filhos, como planejam
seu futuro, etc. Os acontecimentos, as cincias e as ideologias apenas lhe fornecem o
alimento para o pensamento (MOSCOVICI, 2003,p.45).

O sujeito produz seu conhecimento particular do mundo utilizando este conhecimento

em sua vida cotidiana, em suas relaes, modelando seu comportamento, suas crenas, sua

comunicao, ou seja, construindo sua realidade. Realidade esta compartilhada com outros

sujeitos numa rede de significados j constitudos, por meio de representaes sociais que no so

um apanhado de representaes individuais mesmo porque o sujeito se constitui como sujeito

na relao com o outro mas uma construo social, que se d na comunicao entre os sujeitos.

Assim, o campo privilegiado para se compreender a formao e analisar as representaes

so os processos comunicativos que os sujeitos estabelecem no cotidiano, bem como os meios de

comunicao de massa que divulgam e perpetuam estas representaes.

Serge Moscovici, com a preocupao em identificar as representaes como fenmeno e a

importncia e os motivos pelos quais os sujeitos representam, teoriza sobre os processos

presentes em sua produo, os processos de ancoragem e objetivao.

28
 Como os sujeitos, ao tentarem significar a realidade, j esto imersos em uma rede de

smbolos, o processo de ancoragem se d quando determinado objeto ou idia comparado ao

paradigma de uma categoria pr-existente, sendo re-ajustado a ele para que nela se enquadre

(MOSCOVICI, 2003, p.61). Esse processo implica que o sujeito avalie, nomeie, classifique e

categorize estes objetos e idias. Assim, o que era estranho e ameaador torna-se familiar e

passvel de ser imaginado e representado.

O processo de objetivao se d por meio de dois estgios: a imagem de um conceito

deixa de ser um signo e torna-se a rplica da realidade, adquirindo uma existncia quase fsica;

assim substitui-se o que concebido pelo que percebido.

A objetivao e a ancoragem so as formas especficas de mediaes social das

representaes sociais, que elevam para um nvel material a produo simblica de uma
comunidade (...) Objetivar condensar significados diferentes que podem ser
ameaadores, ou indizveis - para faz-los familiares, domesticados. Ao assim fazer,
sujeitos sociais ancoram o desconhecido em uma realidade j institucionalizada e
deslocam a geografia de significados estabelecidos que as sociedades lutam para
perpetuar. Estes so processos que mantm e desafiam, que reproduzem e superam, que se
formam, e, ao mesmo tempo ajudam a formar a vida social de uma comunidade
(JOVCHELOVITCH, 2000, p. 81-82).

Trata-se, portanto, de uma teoria que tenta desvendar os processos pelos quais os sujeitos

sociais significam a realidade, enfatizando a importncia da memria coletiva e da comunicao

como elementos essenciais nesta luta pelos significados. E esta luta no meramente figurativa,

uma vez que na ao comunicativa os grupos no possuem poder e influncias equivalentes. A

diversidade e heterogeneidade de grupos e representaes possibilitam a construo de novas

representaes, possibilitando a mudana e a transformao, porm determinados grupos tm o

interesse de manter o poder e status alcanado. A luta entre os diversos grupos e sujeitos sociais

se d tanto no plano econmico-poltico, como no simblico.

29
 Em outras palavras, para se poder apreender o sentido do qualitativo social prefervel
enfatizar a funo a que ele corresponde do que as circunstncias e as entidades que
reflete. Esta lhe prpria, na medida em que a representao contribui exclusivamente
para os processos de formao de condutas e de orientao das comunicaes sociais.
Tal funo especfica, e a seu propsito que falamos de representao social. Ela
difere da funo da cincia ou da ideologia, por exemplo. A primeira visa o controle da
natureza e tem por finalidade contar a verdade sobre ela; a segunda esfora-se antes por
fornecer um sistema geral de metas ou em justificar os atos de um grupo humano.
Subseqentemente, elas propem condutas e comunicaes adequadas. Mas para faz-lo,
cada uma sofre transformaes em harmonia com os mecanismos representativos
(MOSCOVICI, 1978:,p.76-77).

Segundo Spink (1993), os estudos sobre representaes sociais so produzidos por

campos de saber diversos acarretando abordagens diferenciadas, porm as propostas de estudo

sobre as representaes examinam, de forma direta ou indireta, a elaborao individual cognitiva

dos sujeitos na busca por dar sentido realidade no podemos esquecer que esta realidade

realidade por ser representada, segundo a Teoria das Representaes Sociais , bem como o

estudo e compreenso das condies sociais que forjam estas representaes. So muitas as

divergncias sobre a construo e uso da Teoria das Representaes Sociais, identificando-se a a

luta pela manuteno de determinadas concepes do que conhecimento cientfico e campos de

saber, porm, segundo a autora, o consenso entre os estudiosos das representaes sociais seriam:

a) a nfase nas condies de produo e b) utilizao, como objeto de anlise, do material

espontneo.

Segundo Moscovici (1978), citando Georg Mead, se os sujeitos ao se comunicarem

tornarem-se porta vozes de um grupo, estes se definem como um eu generalizado falando para

outrem generalizado. Se h uma particularizao, como em pesquisas que enfocam opinies,

este sujeito o faz para se distanciar deste eu generalizado, tornando-se comentarista de seu

prprio discurso. Assim, o discurso apresentado como o discurso deles ou o discurso de todo

30
mundo. Estas so as formas que os sujeitos sociais, na tentativa de resolverem problemas,

representarem, construrem suas significaes, posicionam-se diante da experincia cotidiana.

No presente estudo, compreendo o discurso dos rappers como o representante deste eu

generalizado, caracterizando-se como o discurso do grupo no somente rappers mas

representando o movimento hip hop. Representando estes jovens de periferia que optaram pela

manifestao artstica como forma de vivenciarem e significarem suas experincias. Proponho,

ento, fazer algumas consideraes sobre as representaes que estes jovens constroem sobre a

mulher em letras de rap. Entendo que estas apresentam como estes jovens vm e vivem suas

relaes no cotidiano no que se refere compreenso da mulher. As contribuies de Moscovici

so aqui relevantes, uma vez que utilizando como fonte de dados letras de rap, compreendo que a

narrativa proposta nestas letras configura um mundo, um modo de ser e de viver, atribuindo aos

personagens desta narrativa, identidades.

Antes de apresentar as reflexes sobre a participao de mulheres no movimento bem

como a anlise realizada com as letras de rap, a seguir, so tecidas algumas anlises sobre os

elementos que constituem o hip hop (dana, msica e artes plsticas) e a relevncia destas

expresses artsticas como potencializadoras da mobilizao social.

31
Hip hop e seus elementos artsticos

O termo hip hop, definindo-se como saltar (hop) e movimentar os quadris (hip), a

denominao utilizada quando se faz referncia unio de trs elementos/expresses culturais

a msica rap5, a dana de rua e o grafite em um movimento social que tem como luta o fim das

desigualdades sociais e econmicas, utilizando a afirmao da negritude como mecanismo de

resistncia e reivindicao pela igualdade de direitos entre os cidados. A seguir exponho as

expresses artsticas acima citadas, para posteriormente apresentar como elas so compreendidas

enquanto movimento social.

Danando na rua

Adoto a expresso dana de rua, uma vez que, por meio de conversas informais e

encontros em eventos, expresso break vm sendo contestada como a nomeao adequada para

a dana praticada entre os integrantes do movimento hip hop. Segundo Marcelinho Back Spin, da

Back Spin Crew, em entrevista a revista Caros Amigos (n 24), a denominao break, ou

breakdance, foi forjada pela mdia, mas no apropriada para se referir dana presente no hip

hop. Assim, Marcelinho explica que:

O DJ Kool Herc, na dcada de 70, foi o DJ que descobriu o break da msica, a parte
instrumental de um disco de funk. Como essa parte instrumental era curta, ele pegava dois

5
Alguns integrantes do hip hop falam de quatro elementos, pois o rap composto pelo DJ (disque jquei) e pelo MC
(mestre de cerimnia ou rapper). Em alguns estudos, a partir de entrevistas com integrantes do movimento tambm
se apresenta um outro elemento, o conhecimento, conscincia ou sabedoria. A discusso sobre os elementos que
constituem o hip hop no o objetivo deste estudo, mas um dado importante, uma vez que demonstra os diversos
significados que este movimento pode assumir para os seus integrantes.

32
 discos iguais e desenvolvia uma forma suave de passar de um disco pro outro e
aumentava esse break. Nisso, ele comeou a chamar essa rapaziada que danava no break
da msica de break boys, ou b.boys. Ento ta o incio dessa dana. Top rock, footwork e
freeze so os trs fundamentos da dana dos b.boys. Esse o elemento do hip hop, o
b.boyind, ou breaking, que no break dance. (p.23)

Outros dois entrevistados corroboram a posio de Marcelinho, Frank Ejara e Eugnio

Lima. Alm destes depoimentos sobre a denominao da dana, os danarinos trazem outras

verses sobre o significado dos passos apresentados em rodas de dana.

Em estudos como de Andrade (1996) e Rose (1997), os movimentos apresentados pelos

danarinos so associados com a guerra do Vietn, simbolizando as hlices de um helicptero, no

caso do movimento giro de cabea, ou associados ao crescente desenvolvimento tecnolgico e

como os danarinos simbolizavam esta transformao, por meio de passos robotizados. O que os

entrevistados da revista Caros Amigos trazem so as associaes dos movimentos com a capoeira

Angola argumentando que os caras falam que o giro de cabea foi inventando por causa da

guerra do Vietn: meu, o giro de cabea da capoeira cara, que muito anterior guerra do

Vietn, capoeira Angola da poca do Brasil Colnia (Marcelinho, Caros Amigos, p. 23).

Esta ressignificao sugere que talvez estes integrantes busquem um reconhecimento

identitrio a partir da cultura brasileira e de resqucios de uma cultura africana para

definirem-se enquanto sujeitos legtimos a partir do contexto social que vivenciam atualmente.

Presenciamos em nossa sociedade uma visibilidade para questes relacionadas aos negros, em

parte fruto das discusses sobre polticas de aes afirmativas. Ao (re)apresentarem a dana de

rua, e os demais elementos do hip hop como prprios de uma cultura negra (ao rap atribudo

uma origem em cantos africanos, chamados griots, produzidos por escravos norte-americanos),

estes sujeitos inscrevem-se neste reconhecimento identitrio legitimado pelo discurso pblico.

Como prope a teoria das representaes sociais, as representaes so forjadas em um

33
determinado contexto social, portanto, entendemos que esta ressignificao quanto a uma origem

africana que foi perpetuada pelos negros escravizados por meio da capoeira, contribuem para

uma afirmao identitria em harmonia com o debate pblico brasileiro. Alm desta possibilidade

de compreenso, como afirma Hall (2001), as identidades culturais globalizadas sofrem dois

processos que gravitam em uma tentativa de recuperar uma identidade pura (Tradio) ao mesmo

tempo em que se conectam com o hibridismo promovido pela disperso de pessoas (como

imigrantes) no mundo globalizado (Traduo).

Algumas identidades gravitam ao redor daquilo que Robins chama de Tradio,

tentando recuperar sua pureza anterior e recobrir as unidades de certezas que so sentidas
como tendo sido perdidas. Outras aceitam que as identidades esto sujeitas ao plano da
histria, da poltica, da representao e da diferena e, assim, improvvel que elas sejam
outra vez unitrias ou puras; e essas, conseqentemente, gravitam ao redor daquilo que
Robins (seguindo Homi Bhabha) chama de Traduo (HALL, 2001, p.87).

Os entrevistados da revista Caros Amigos tambm trazem outra verso sobre as batalhas

de break, que so apresentadas nos estudos acadmicos como forma de conteno da violncia,

uma vez que os danarinos, ao invs de brigarem fisicamente, travam batalhas simblicas por

meio da dana.

O Kool Herc tocava msica funk pras pessoas danarem, era uma movimentao cultural,
no tinha nenhuma palestra, nenhum discurso poltico, no tinha, no teve. Foi uma
fantasia da mdia a histria da dana ter surgido para evitar brigas de gangue. Na verdade,
eles brigavam mais, porque ningum queira perder uma batalha. (Frank, Caros Amigos, p.
23).

34
 Segundo o site www.virgula.com.br,6 em artigo assinado por Juny Kp, a dana praticada

pelos integrantes do hip hop a dana de rua, feita na rua, criada e crescida na rua. Neste

artigo, o autor apresenta nomes e lugares Nova Iorque e Los Angeles onde teriam surgido os

movimentos que integram a dana de rua. Existiria, portanto: o Up Rock (Brooklyn Rock),

configurando movimentos de ataque e defesa; o Top Rock, que a apresentao do danarino na

roda de breaking; o Footwork, os ps movimentando circularmente o corpo com o apoio das

mos; o Freeze, que configura uma congelada em uma posio e os Moves, que seriam os giros

de cabea (o danarino se posiciona sustentando-se e girando com o topo da cabea no cho) e

saltos.

As divergncias sobre a origem dos movimentos da dana e seus primeiros danarinos

remete-nos s consideraes feitas em estudos sobre a apropriao do rap. Segundo Guimares

(1998), o rap e sua forma discursiva remete tradio africana de relatos orais e no so poucos

os estudiosos do rap que localizam na frica a gnese desse estilo musical (p. 158).

Ao associar a dana de rua com os movimentos da capoeira, os danarinos brasileiros

procuram na cultura africana, remetendo-se poca da escravido no Brasil Colnia, as origens

de suas prticas culturais atuais. Se pensarmos que o movimento hip hop, assim como

apresentado nos estudos acadmicos, teve suas primeiras manifestaes nos Estados Unidos, em

bairros povoados por descendentes negros e caribenhos, sua fora ao ser introduzido no Brasil,

em manifestaes na estao de metr So Bento na dcada de 80, revelam uma conexo

simblica com uma origem africana compartilhada entre os praticantes e sujeitos que se

identificam com a cultura hip hop e tambm com a dana de rua, tanto no Estados Unidos quanto

no Brasil, uma vez que a cultura africana faz parte da constituio da cultura brasileira e da

estadunidense.

6
Consultado em Fevereiro de 2005.
35
 Pensamos que o discurso hip hopper que promove esta possibilidade de ancorar a

identidade destes sujeitos em uma origem cultura africana promove um sentimento de

pertencimento mais estvel, mais seguro, e no caso brasileiro, mais legtimo, uma vez que o

contexto poltico institucional, na atualidade, reafirma estas identidades positivamente (como a

existncia de Secretarias de promoo da igualdade racial, bem como as polticas de ao

afirmativa).

O black, assim, um exemplo no apenas do carter poltico das novas identidades, isto ,
de seu carter posicional e conjuntural (sua formao em e para tempos e lugares
especficos) mas tambm do modo como a identidade e a diferena esto
inextricavelmente articuladas ou entreleadas em identidades diferentes, uma nunca
anulando completamente a outra. (HALL, 2001, p.87)

interessante observar que os danarinos (as) esto preocupados em conhecer os

fundamentos da dana: A gente agora tem que se voltar pras razes pra entender melhor. Tem

mais coisa pra trs do que pra frente. O futuro est no passado (Frank, Caros Amigos, p.23).

Em batalhas de dana que presenciei pude observar a concentrao dos danarinos que

vo se apresentar, a preparao corporal/fsica para que os movimentos sejam realizados

adequadamente e um respeito entre os danarinos que se enfrentam. Para apreender os sentidos

do danar seria necessrio um estudo mais aprofundado, porm este no o foco deste trabalho.

Mas a viso da coreografia nos revela corpos fortes, que demonstram exploso e fora,

espontaneidade, controle dos msculos. As b.girls do Rosas Urbanas Crew aprendem a trabalhar

juntas para criar movimentos novos, ensinar as outras e construir coreografias novas para

36
preparar apresentaes. Elas tambm aprendem como se alongar direito, comer saudavelmente e

tratar bem o corpo.7

Delimitam seu territrio, o territrio do grupo ou sujeito que est danando, demonstram

criatividade e estilo, qualidade essencial para se configurar como um bom danarino. Somente o

fato de danarem diferente (que no se aprende nas academias), de uma forma que precisa ser

apreendida na rua, e depois significada o estilo de cada danarino nos revela a busca pela

diferenciao e tambm pela identificao como b. boying. A busca do sujeito pela sua(s)

identidade(s).

7
Projeto Rosas Urbanas Crew.[mensagem pessoal]. Mensagem recebida por [email protected] em 01
ago 2005.

37
O muro nosso

Elemento que tambm constitui o movimento hip hop, o grafite, ou graffiti (como aparece

em alguns estudos e alguns artigos da mdia) deriva do grego graphein, que significa escrever

(MAGRO, 2004).

Esta arte grfica observada em muros, paredes, carros, em qualquer espao da cidade

que permita a insero de letras e desenhos feitos com tinta ltex ou spray.

Os autores atribuem que as primeiras pixaes em muros foram nomes ou assinaturas, os

chamados tags, foram a origem do que hoje conhecemos como grafite. A prtica do grafite,

segundo Magro, tornou-se notria durante a dcada de 70, uma vez que carros de metr, com

grafites, circulavam entre os bairros da cidade de Nova Iorque, caracterizando-se como uma arte

nmade. No Brasil, o grafite chegou, assim como os outros elementos do hip hop, no final da

dcada de 70 e incio da dcada de 80, como alternativa de divertimento, num primeiro momento,

e posteriormente como mecanismo de luta e resistncia.

Segundo David Toop (1991), citado por Marlia Sposito (1994):

Nos EUA, o grafite como movimento significou a invaso das reas nobres das grandes
cidades por aqueles que viviam segregados nos guetos e subrbios pobres, que deixavam
os sinais visveis de sua presena atravs dos muros e paredes pintados; se os brancos de
New York nunca visitaram as partes negras ou hispnicas da cidade, o grafite foi uma
espcie de visitao, de invaso simblica do centro da cidade, encontrada pelos jovens
negros e porto-riquenhos (SPOSITO, p.169).

Alm desta invaso simblica, que por si s j implica em um embate entre grupos, os

contedos dos grafites possuem, em alguns casos, a inteno de chamar a ateno do pblico para

problemas como o uso de drogas e armas; outros grafites trazem temas do cotidiano dos sujeitos,

como algum cantando.

38
 Muitas vezes os grafiteiros e grafiteiras no tm a autorizao para utilizar um muro, assim,

os conflitos com a polcia so uma ameaa.

Magro (2004), em estudo sobre as meninas do grafite, retoma as contribuies de Rose

(1994) sobre a participao das mulheres. Num primeiro momento, por ser um ato ilegal quando

no autorizado por proprietrios, o grafite em muros acarreta riscos, alm da possibilidade de um

desgaste na reputao das meninas que adotam a arte de grafitar como expresso.

Muitos grafiteiros e grafiteiras associam-se em crews assim como danarinos , que

so grupos que renem artistas para troca de experincias e composio de um grupo, mesmo que

cada sujeito tenha um estilo de danar ou grafitar. Uma prtica que existe em Nova Iorque, como

relata Rose (1994), citada por Magro (2004), so os rols noturnos que os grupos de grafiteiros

fazem pelo metr. Esta situao causa risco a integridade fsica, e para as mulheres riscos a sua

integridade moral, uma vez que podem lidar com boatos sobre promiscuidade sexual, portanto

h uma preocupao com a reputao por parte das mulheres. Segundo Magro, por essa razo, h

um desestmulo para a participao as meninas no graffiti, aliado, ainda ao medo de represlias

familiares (p.64).

A autora salienta que no contedo dos grafites tanto masculinos quanto femininos h um

envolvimento com a crtica realidade, porm as meninas utilizam cores mais claras e brilhantes

e conclui que

Experincias de meninas que transgridem, ocupam o espao fincado pela bandeira do

macho, tentam construir outros corpos de mulher no espao urbano de periferia,
estruturado e cristalizado naturalmente mas como possibilidade estratgica de
reivindicar um lugar no mundo, ser reconhecida como ser que se expressa, cria, vivencia
seus sentidos, modula sua prpria voz seja aguda, dissonante ou desafinada. Elas
marcam presena nas ruas, pelas cores que so grafitadas nos muros, e que revelam a elas
prprias suas identidades no transitar pelo espao pblico, mostrando a existncia vivida,
do preto-e-branco s cores (MAGRO, 2004, p. 109).

39
 As experincias significadas pela arte de grafitar perpassam os estilos que cada sujeito

imprime em sua produo. Assim como na dana, no grafite h estilos diferenciados, como os

explicitados por Castleman (1999), apresentados no trabalho de Magro (p. 62). Os estilos so:

Throw-up: letras redondas, sem detalhes, mais fceis de serem produzidas; o estilo Wild: que so

letras entrelaadas e requerem habilidade do grafiteiro; o estilo 3-D: peas de desenho elaboradas

em trs dimenses e o estilo Free que uma mistura de todos os outros estilos. No site

www.virgula.com apresenta-se ainda o estilo Tag, que so as assinaturas que so a origem dos

grafites.

Assim como os grupos de dana, o grafite, nas palavras de Juny Kp, no referido site

arte da rua para a rua. Seu mundo, seu reino so os centros urbanos; seu suporte, os muros e as

paredes.

Como os outros elementos do hip hop, o grafite auxilia na expresso de sentimentos,

anseios, de experincias, assim como qualquer arte.

40
A msica est no ar

A palavra RAP significa ritmo e poesia (Rhythm and Poetry). Elemento artstico do hip

hop com maior disseminao entre os jovens, o rap se constitui pela melodia tocada por meio de

pick ups (toca discos) comandadas pelo DJ (Disc jquei), que mistura ritmos e trabalha os sons; e

pela letra do MC (Mestre de Cerimnia)8 ou rapper, muitas vezes o autor da letra. A msica rap

tem um ritmo cadenciado; as palavras ditas em tom de declamao so suas principais

caractersticas. Em seu contedo abordam: um dia na periferia, a morte de um companheiro, um

assalto, uma briga, a violncia vivida no dia-a-dia, a violncia policial, uma festa, o que acontece

numa noite, o que acontece no Pas, entre tantos outros temas que perpassam a vida cotidiana

da periferia9. Assim como os outros elementos que compem o hip hop, o rap teve suas origens

nos Estados Unidos durante a dcada de 1970.

As origens jamaicanas e urbanas do RAP, sobretudo nos subrbios pobres de New York,
so reconhecidas por todos os seus participantes. Ao nascer sob a forma de canto e ritmo
nas ruas e esquinas da cidade street player esse gnero retoma, de modo criativo, a
tradio oral dos negros da frica Ocidental que entoavam canes nas aldeias (griots).
Esta herana continua, nos EUA, com os escravos das plantaes sulinas e prisioneiros
negros nas primeiras dcadas do sculo XX que, na submisso ao trabalho forado,
cantavam para denunciar e mitigar seu sofrimento (TOOP, 1991). A esse conjunto de
influncias pode ser tambm acrescida a prpria tradio oral da cultura popular
brasileira, expressa pelos cantores e poetas repentistas (SPOSITO, p.168-169).

Segundo Tella (1999), os ritmos e msicas produzidos pela populao negra, como os

work songs e spirituals, tiveram uma grande importncia na resistncia e preservao da cultura

8
importante, novamente, destacar que os integrantes do hip hop compreendem o Mestre de cerimnia e o Disc
jquei como elementos distintos, porm, no estudo apresento a msica rap como representando estes dois elementos,
uma vez que a letra do rap obedece as bases musicas propostas pelo DJ e as letras cantadas e produzidas pelos
MCs. Nas anlises no presente estudo utilizo somente as letras como dados.

41
africana em pases que escravizaram esta populao, como o Brasil e Estados Unidos. Outros

ritmos como o soul e funk foram introduzidos no Brasil, advindos dos Estados Unidos, a partir da

indstria cultural e desencadearam um processo no qual os bailes blacks constituram-se como

espaos de conscientizao da populao negra. As batidas ouvidas nestes estilos musicais

chamavam a ateno do ouvinte, e como afirma este autor, o rap, ao ser introduzido nos bailes,

proporcionou a radicalizao da afirmao da negritute e a possibilidade de protesto quanto

situao de discriminao tnico-racial.

Segundo Souza (2005)

De acordo com o panorama histrico e discogrfico do rap reunido na exposio Rap

origem/destino10, durante os anos 80, o rap vinha se desenvolvendo principalmente em
So Paulo, mas o estilo produzido era, principalmente, o rap romntico e o rap
historinha. Como exemplo, havia o rapper Pepeu, que alcanou grande sucesso com a
msica Ruth Carolina, que consistia em um desafio para enumerar, dentro do ritmo e da
rima, nomes de meninas. Outro exemplo que alcanou sucesso nacional foram os Black
Juniors, que, moda Jackson Five, danavam break e cantavam hits como mas que
linda ests. S em 1986 foi composto gravado em 1988 o primeiro rap com
conotao poltica e social no Brasil; a dupla Thade e DJ Hum gravou Corpo Fechado
(p.11).

Hoje, grias so utilizadas nos versos que compem as letras de rap e unem, tanto na

produo como na divulgao, jovens negros que moram na periferia (o local uma referncia

importante para os hip hoppers), denunciando os problemas tnicos e sociais, apropriando-se de

referenciais do passado da populao negra e gerando, com isso, um questionamento do

imaginrio social, uma vez que a histria oficial questionada por outras memrias (TELLA,

2000).

9
Segundo Guimares (1998) A periferia como territrio do rap assumida por seus produtores e a partir dela que
se propaga sua mensagem. Para Mano Brown, somos a voz da periferia. (p.190)

42
 Como salienta Guimares (1998), assim como o samba e a msica afro-baiana, o rap

produzido pela populao negra e mestia, mas difere, por exemplo, do samba, no idealizando o

morro11, a violncia, a pobreza (p.191). A realidade descrita de forma direta, nua e crua.

Segundo a autora, o rapper fala com aquele que o est ouvindo de maneira direta, como um

conselho ou aviso (p. 158).

Desta forma, do modo como cantam e o que cantam, os rappers muitas vezes so

considerados pela mdia como os socilogos sem diploma, que buscam entender e denunciar os

problemas sociais, configurando-se como narradores urbanos. A partir das letras, h uma

denncia quanto s desigualdades sociais vivenciadas e compartilhadas entre tantos sujeitos que

moram na periferia, desprovidos de seus direitos como cidados, sem saneamento, educao,

lazer, sade. Alm desta denncia, que pode se configurar por meio de um relato da vida do dia-

a-dia, nas letras de rap h indignao, revolta, acusao, dio. Os playboys, os polticos, as

madames so o oposto da vivncia do rapper. Enquanto eles tm tudo: carro, casa, direitos, os

manos vivem em condies precrias, sendo discriminados e marginalizados. A arma utilizada

nesta contestao a palavra; a valorizao do negro, do pobre, do jovem a munio.

Segundo Kehl (1999), em texto sobre o grupo de rap Racionais MCs

A fora dos grupos de rap no vem de sua capacidade de excluir, de colocar-se acima da
massa e produzir fascnio, inveja. Vem de seu poder de incluso, da insistncia na
igualdade entre artistas e pblico, todos negros, todos de origem pobre, todos vtimas da
mesma discriminao e da mesma escassez de oportunidades (...) Eles apelam para a
conscincia de cada um, para mudanas de atitude que s podem partir de escolhas
individuais; mas a autovalorizao e a dignidade de cada negro, de cada ouvinte de rap,

10
De acordo com a autora, esta exposio foi organizada na SESC Itaquera em Abril de 2004, como parte do Evento
Hip Hop os 5 elementos.
11
Diferentemente das anlises da autora quanto idealizao da periferia nas letras, entendemos que existe uma
idealizao positivada deste lugar-espao social quanto um ambiente alegre em algumas letras, onde todos so
iguais, com leis e regras prprias, e muitas vezes permissivo quanto aos crimes cometidos pelos seus moradores.
Exploraremos mais estas consideraes na anlise das letras.

43
 depende da produo de um discurso onde o lugar do negro seja diferente do que a
tradio brasileira indica (p. 96-97)

Sendo assim, o rap se constitui hoje como msica feita por negros, para negros como

mecanismo de resistncia frente discriminao e na busca pela autovalorizao desta populao,

ao mesmo tempo em que assume a responsabilidade de ser porta voz da periferia na exigncia

dos direitos de cidados.

44
O hip hop e seus discursos

A maioria dos estudos situa a origem do hip hop no bairro do Bronx em Nova Iorque,

durante a dcada de 1970, com a unio dos elementos artsticos (ANDRADE, 1996; ROSE,

1997; GUIMARES, 1998; TELLA, 1999, 2000; GUASCO, 2001; LOURENO, 2002;

MAGRO 2004, SILVA, 1999 entre outros) e destaca sua importncia social, cultural e poltica

nas experincias juvenis.

Jovens negros e latinos frente ao desemprego e a violncia, (re)elaboraram suas prticas

culturais especficas e iniciaram manifestaes artsticas que permitiram a construo de um

sistema simblico que orientava suas prticas e atitudes forjando o que posteriormente foi

chamado de movimento hip hop (SILVA, 1999).

Nos Estados Unidos e no Brasil, inicialmente, os elementos que hoje constituem o hip hop

estavam mais direcionados ao lazer e divertimento e como mecanismo de conteno da violncia,

porm, por meio do aprimoramento dos elementos artsticos e das organizaes dos grupos de

dana e msica, que no hip hop denominam-se posses ou crews (grupos de dana ou grafite)

que o hip hop emergiu como uma organizao social capaz de unir os jovens em torno de

manifestaes artsticas que propiciam uma interpretao poltica de sua prpria condio, uma

vez que comearam a questionar as carncias materiais da periferia, buscando reverter esta

situao atravs de eventos beneficentes, utilizando a arte como instrumento de contestao da

vivncia perifrica, trazendo para o discurso pblico (msica e grafite) as condies da

populao. Nas posses, os grupos se articulam para promoverem shows, manifestaes,

oficinas e grupos de discusso sobre temas principalmente relacionadas condio do negro e os

problemas enfrentados na periferia e pela juventude (ANDRADE, 1996).

45
 Os sujeitos/atores que compem cada elemento so: o MC (mestre de cerimnica cantor

ou rapper), o DJ (disc-jquei), o b. boy ou b. girl (danarinos) e os grafiteiros e grafiteiras. Em

sua maioria, os jovens que fazem parte do movimento, so e esto nas periferias das cidades e

procuram, por meio da arte, protestarem quanto sua situao social, econmica e cultural.

No Brasil, o movimento hip hop, enquanto manifestao poltico-cultural sustenta-se em

suas expresses artsticas e em momentos de discusso e debates promovidos entre os prprios

integrantes, ou em momentos em que reivindicam direitos junto ao poder pblico. Segundo o site

Real hip hop (www.realhiphop.com.br)12, no ms de Maro de 2004, representantes do

movimento hip hop estiveram reunidos com o Presidente Lus Incio Lula da Silva reivindicando:

a) A formao e legitimao de uma comisso (grupo de trabalho) que dialogasse

diretamente com a Presidncia da Repblica;

b) Formao de grupos de desenvolvimento do hip hop (aes sociais e culturais) nas vinte e

sete capitais brasileiras;

c) Liberao de espaos pblicos ociosos que sirvam como base para o trabalho de grupos;

d) Criao de um Fundo Nacional para apoio e patrocnio a projetos do hip hop na periferia.

Para os participantes da reunio, segundo o referido site, o mais importante era criar uma

comunicao direta entre o hip hop brasileiro e o Presidente da Repblica. Com esta iniciativa, os

hip hoppers assumem uma aproximao com o aparato estatal e percebem a fora poltica que o

movimento atingiu.

A articulao necessria para aglutinar grupos e integrantes de vrias regies do Brasil

acarretou o surgimento de organizaes nacionais: A Nao Hip Hop Brasil, Frente Brasileira de

12
Consultado em Dezembro de 2004.

46
Hip Hop, o MHHOB (Movimento Hip Hop Organizado do Brasil) e o MH2O (Movimento Hip

Hop Organizado).

Em um nmero especial sobre hip hop organizado pela Revista Caros Amigos (n 24,

Junho de 2005), Marcelinho Buraco, integrante da Nao Hip Hop avalia que as diferentes

organizaes nacionais de hip hop no so divergentes, porm os diferentes grupos no querem

ser representados todo mundo quer falar por si, ningum quer que o outro fale por ele. Mas ns

nos unimos nas horas certas (p. 04).

Percebemos, ento, que no movimento existem tentativas diversas de organizao, formas

de manifestao, grupos de identificao (tanto de ideais quanto artsticos), e posicionamentos

diferenciados quanto no estabelecimento de parcerias com o poder pblico. Isto evidencia que o

movimento hip hop no possui um discurso uno, que congrega todos os que dele fazem parte,

mas composto por grupos distintos, com interesses diferenciados, e ao contrrio do que aponta

o entrevistado da revista Caros Amigos, grupos que divergem sobre as aes que devem ser

colocadas em prtica pelo hip hop. Podemos pensar isto a partir da fala de uma de nossas

entrevistadas sobre o movimento hip hop piracicabano13:

E: A eleio...
D: Pra prefeito. . Da o que aconteceu, a gente decidiu que ns, que ns amos trabalhar pra
quem, at foi assim , como o grupo no era fechado num candidato s e a gente achou que no
era justo, porque cada um tem a sua posio, cada um de um bairro, cada um, ento cada um vai
votar em quem quer. Ento a gente decidiu que o hip hop no ia fazer, aderir a nenhum partido.
Ou a nenhum candidato. Ento, se o D. quisesse fazer show pro Roberto Morais, o D. ia fazer,
no o hip hop, a Casa do Hip hop. Se eu quisesse fazer pro PT, eu, a Daniela, e a gente fechou
assim. E alguns grupos fecharam por questes financeiras. Queriam gravar Cd, o cara foi l,
falou: Fecha comigo que eu gravo o seu Cd. Ento assim, existem essas questes que na minha
opinio so as mais conflitantes possveis n. Eu no conseguiria trocar com um grupo, que
envolve um movimento, por dinheiro. E envolve assim, se fosse algum que acreditasse, beleza,
n. Mas assim, de repente envolve algum que no acredita, envolve o nome de um movimento:

13
Apresento alguns trechos das entrevistas realizadas para demonstrar algumas reflexes sobre o movimento hip hop
em um contexto mais amplo. As entrevistas tinham como objetivo coletar dados que pudessem fornecer informaes
sobre a atuao das mulheres, mas tambm contribuem para refletirmos sobre caractersticas do movimento
trabalhadas por outros autores.

47
O hip hop est com o fulano. E no acredita no fulano. Veste a camisa do fulano pra ganhar
dinheiro e no acredita no fulano. Pra mim isso complicadssimo e eu no trocaria, e aqui na
cidade teve gente que fez isso. E depois acabou , no dando certo, e fez l o show que tinha que
fazer e depois viu que, que nem todas as pessoas cumprem com os combinados, acabou at se
ferrando e tal. Existe, aqui dentro da cidade existe grupos conflitantes, no no pessoal, mas no
ideolgico. E a quando eles fazem as coisas dele, deles, se a gente convidado a gente vai, curte
e tal, d uma passadinha, mas no se envolve. No tem envolvimento com esses grupos. E
quando a gente faz, ele so convidados, eles vo, do uma olhadinha, v, mas tambm no tem
envolvimento.
(Daniela)

Na cidade de Piracicaba, portanto, existem grupos que fazem parte do movimento hip

hop, mas que no participam, como apontado pela entrevistada, da Casa do Hip hop, porque no

concordam com os seus posicionamentos. No contexto nacional, ento, podemos pensar que estes

mesmos conflitos se colocam na constituio do movimento.

H grupos de jovens hip hoppers brasileiros que explicitam que o hip hop possui tambm

um outro elemento: o conhecimento, tambm referido como conscincia ou sabedoria. A

valorizao dos heris que lutaram pela causa negra, como Martin Luther King, Malcon X e

Zumbi dos Palmares, uma forma de conhecimento da luta dos negros em outras pocas e que

se atualiza na luta dos hip hoppers, unindo estes jovens na valorizao da cultura negra. Este

elemento configura tambm o conhecimento dos idealizadores do movimento hip hop DJ Kool

Herc, DJ Grand Master Flash e DJ frika Bambaataa14. Uma possibilidade de compreenso

deste tipo de diferenciao, uma vez que no so todos os grupos que colocam a sabedoria como

elemento, a necessidade de separar integrantes do movimento hip hop como rappers que

produzem letras com conotao positiva daquelas que no a produzem, ou seja, que no

valorizavam a cultura negra ou incitam a violncia e o uso de drogas. O elemento conhecimento

define uma representao positiva, uma vez que separa quem est interessado em passar uma

mensagem positiva ou no.

48
 Segundo Souza (2005),

O que hoje denominado Hip Hop, no Brasil, constitui-se de cinco elementos: O DJ, o
rap, o Break, o grafite e a conscincia. Originalmente, somente o break, o grafite e o rap
(que englobava o DJ e o MC) eram denominados como elementos constituintes do Hip-
Hop. At hoje, muitos de seus praticantes nomeiam quatro elementos, acrescentando a
essas trs iniciais o desdobramento do DJ. O quinto elemento, a conscincia, comeou a
ser evocado a pouqussimo tempo e nem sempre mencionado quando se descreve o Hip-
Hop. A insero desse quinto elemento pode ser analisada como uma ideologizao
dessas manifestaes artsticas, ao mesmo tempo em que tambm um modo de um
determinado grupo delimitar e tomar posse como guardio e praticante do verdadeiro
Hip Hop (p.23).

H uma grande heterogeneidade na compreenso do que o movimento entre os hip

hoppers. Seus integrantes, ao serem questionados sobre o que o movimento, trazem a definio

a partir da unio de expresses artsticas que possuem um forte vnculo com a vivncia darua e

com a luta da populao pobre marginalizada nos Estados Unidos afrodescendentes e latinos e

no Brasil os afro-descendentes. Em texto produzido pela posse Sindicato Urbano de Atitude

(S.U.A.T, s/d), discute-se se o hip hop um movimento social ou uma cultura. Nas

argumentaes propostas pelo autor do texto, que define o que concebido como cultura e como

movimento social, o hip hop pode ser considerado uma cultura e um movimento ao mesmo

tempo.15

Em cima desta definio, vejo que podemos encaixar o Hip Hop como uma cultura, j que,
primeiro, conseguimos (ns do Hip Hop) nos enxergarmos como diferentes de outros grupos:
somos Hip Hop e no os brothers do surf; e da vem a nossa identidade, pois nossas atitudes
esto de acordo com o modo de viver do Hip Hop e nos afirmamos como membros participantes
deste modo de vida, desta cultura; somos Hip Hop porque fazemos isso e no aquilo. Quanto a
esse modo de viver tambm percebemos nossas particularidades, pois trazemos conosco valores,

14
Este sendo considerado o responsvel pela denominao hip hop como a unio dos elementos artsticos.
15
Texto Hip Hop: Cultura e Movimento ao Mesmo Tempo assinado por S.U.A.T. Recebi este texto de um
integrante do movimento hip hop de Piracicaba.

49
costumes, modos de se vestir, formas de arte, jeito de falar e andar, etc. que tambm so
contrastantes em relao a outros grupos.

O hip hopper segue em sua argumentao, definindo que o movimento social constitui-se

a partir de trs dimenses: a) identificao de tenses e conflitos societais; b) identificao de

formas de superao desses conflitos e c) mecanismos que permitam esta superao. E conclui

que o hip hop pode ser considerado tambm um movimento uma vez que:

O Hip Hop se levanta como extrato da sociedade que faz frente burguesia, sendo esta a
detentora dos meios de produo, e tambm responsvel pela m distribuio da renda, e
conseqentemente se levanta contra um governo que gerenciado por essa burguesia e que
restringe a participao popular nos processos decisrios. Aqui est uma das caracterizaes de
movimento social: uma classe mobilizada expondo suas reivindicaes frente outra; e a
caracterizao de movimento poltico: um setor da sociedade organizado reivindicando uma
participao efetiva no governo.

E frente s opes de ser reconhecido como movimento ou como cultura, e as crticas

quanto a finitude dos movimentos sociais quando estes atingem seus objetivos, conclui que isto

no quer dizer se o Movimento Hip Hop acabar, se conseguirmos atingir nossos objetivos, a

cultura ir acabar; um carter no exclui o outro; ser movimento no quer dizer que no cultura

e vice-versa.

Assim, na discusso apresentada por esta posse percebemos a busca pela definio do que

o hip hop entre os prprios integrantes. Uma de nossas entrevistadas tambm salientou a

tentativa de definir o movimento hip hop como cultura ou como movimento social

At hoje eu tava conversando com o B. sobre isso a, eu falei: , a gente teve uma questo de
discutir com a Aline, teve um problema assim, ela escreveu no papel, eu acredito que se eu pegar,
eu tenho escrito ainda, eu aguardei, ela falou, uma que ela brigava muito comigo por causa que
eu falava cultura hip hop, ela falava que era um movimento hip hop, eu falei: No. O hip hop
50
uma cultura, movimento o que a gente faz no sbado, no domingo, um evento, a isso da o
movimento hip hop, que o pessoal do hip hop t se movimentando praquilo. Um show, uma
palestra, alguma coisa, isso o movimento hip hop. Falei pra elas. E a questo do quinto
elemento, eu falei: , a questo do quinto elemento na verdade seria o primeiro ou o em geral,
porque lgico, pra voc ser um DJ voc tem que ter sabedoria, voc vai ter que ter conhecimento,
se um MC a mesma coisa, um b. boy, em tudo, vai ser um conhecimento pra voc. Pra voc
ter um grupo, Ah, eu ter um grupo de hip hop, assim, que discute a questo do hip hop. Ah, ta,
mas, como criou, da onde surgiu, quem criou, quem n, da eu falei: Tem que saber isso da.
Acho que, da que foi a questo, ele falou: Ah tia, que eles falam tia pra mim, ah tia, no d pra
discutir isso da mesmo, nem discuto com as meninas.
(Camila)

Entendemos que estas divergncias sobre o hip hop ser uma cultura de rua ou um

movimento social esto implicadas nos sentidos sobre cultura e nas concepes do senso

comum sobre os movimentos sociais, uma vez que para esta entrevistada a cultura significada

como a produo artstica e o movimento, as aes desempenhadas. Esta busca de definio,

porm, quanto ao hip hop ser um movimento ou uma cultura por parte dos integrantes no

minimiza o fato de que suas aes e as identidades forjadas pelo movimento so polticas.

No estudo empreendido por Souza (2002), a autora busca compreender o sentido poltico

presente no movimento hip hop.

Essa interpretao parte da manifestao explcita da possibilidade de criao cultural fora

dos espaos consagrados como cultura-artstica. a cultura das ruas que ganha evidncia
na msica, dana e no grafismo. Cultura afirmativa que revaloriza um lugar de excluso
como produtor de significados que negam a excluso. Lugar de encontros, de denncia,
diverso e organizao. Espao de identificaes forjadas no reconhecimento positivo de
um pertencimento que permite a constituio de uma identidade cidad como ponto nodal
de outras identificaes: ser perifrico, ser pobre, ser negro, ser rebelde, ser falante, no
som, no corpo, nos desenhos, que ocupam os espaos pblicos das grandes e mdias
cidades. A poltica a manifestao, a ocupao de espaos pblicos para alm de sua
funo operacional, na arquitetura das cidades. Uma manifestao provocante tanto na
linguagem, ritmos e gestos, como na revelao da potencialidade criadora de um lugar
criatura, ou seja, de um lugar significado como efeito colateral da civilizao e do
progresso. O lugar dos sem lugar. O sentido do poltico dessa manifestao o
reconhecimento desse lugar, reconhecimento de sua excluso econmica, social e poltica
e reconhecimento de uma incluso, a auto-incluso daqueles que vivem nesse lugar. O
sentimento de pertencimento e o pertencer define uma identidade positiva (auto-
afirmativa) que legitima aes coletivas dos pertencentes. (...) Quando o movimento

51
 ganha uma forma mais organizativa, com as posses que foram criadas principalmente em
So Paulo, novos sentidos polticos vo sendo constitudos. Nesse momento grupos de rap
j despertaram o interesse da indstria fonogrfica que passa a investir na produo e
promoo de alguns grupos e at mesmo de alguns indivduos que esto fora de lugar,
ou seja, falam daquilo que no vivenciam (...) O sentido poltico, assim, libertrio
enquanto denncia proferida em prosas, versos, ritmos, coreografias e formas grficas,
mas conservador enquanto forma de incluso, fortemente reificada no mercado esttico-
artstico alicerado em valores ticos liberais (SOUZA, 2002, p.135-135-137).

A autora, portanto, nos apresenta os sentidos do poltico presentes no movimento quanto

este inova em seus aspectos artsticos e na positivao de uma outra cultura. Serem

reconhecidos em seus pertencimentos indica uma positivao e legitimao para estarem no

mundo. Como a autora afirma, entretanto, quando o movimento se alia indstria fonogrfica, o

sentido do poltico inscreve-se nos aspectos presentes no paradigma liberal, que pressupe uma

afirmao genrica da liberdade e a supremacia do individual sobre o coletivo.

Se pensarmos nas reflexes de Melucci (2001), o movimento hip hop pode ser

considerado como portador de algumas caractersticas de um movimento antagonista. Segundo

este autor, um movimento antagonista uma ao coletiva portadora de um conflito que atinge a

produo de recursos de uma sociedade. Luta no s contra o modo pelo qual os recursos so

produzidos, mas coloca em questo os objetivos da produo social e a direo do

desenvolvimento (p.42). Entendemos isto uma vez que o hip hop traduz em suas reivindicaes os

conflitos existentes na sociedade no que diz respeito a produo e usufruto dos recursos

materiais, sociais e polticos. Buscam uma incluso poltica e scio-econmica, utilizando para

isto significados e valores sociais compartilhados pela sociedade, como a busca pela igualdade,

mas utilizando como referencial identificatrio um pertencimento baseado na diferena. Os

elementos artsticos so utilizados como instrumentos que comportam estes pertencimentos, e em

alguns casos, as reivindicaes.

52
 O sentido do poltico presente na inovao do ritmo e dos discursos do hip hop acaba

sendo considerado, pela mdia, como um aspecto perigoso, uma vez que o seu discurso incitaria o

racismo, a intolerncia, a revolta violenta das minorias (HERSCHMANN, 2000a). Ainda que

muitas letras tenham contextos violentos, o hip hop no pretende incitar a violncia, mas relat-

la, uma vez que so esses mesmos jovens que a sofrem em seu cotidiano (GUIMARES, 1998).

A violncia muitas vezes associada s culturas juvenis e, segundo Herschmann (2000a),

em seu estudo sobre o funk e o hip hop, a mdia muitas vezes ora estigmatiza, ora glamouriza as

manifestaes juvenis e os jovens que delas fazem parte. Na oposio funk/ hip hop muitas

vezes colocada pelos prprios integrantes do movimento hip hop, uma vez que percebem que os

funkeiros no tem interesse poltico , na mdia num primeiro momento, os jovens hip hoppers

foram abordadas como desordeiros (p.109). Hoje, a mdia oferece outras representaes sobre o

hip hop, como a reportagem apresentada pela revista Superinteressante, com a manchete: YO! T

tudo dominado. O hip hop, que acaba de completar 30 anos, extrapola o estigma de cultura de

gueto e toma de assalto a moda, a mdia e a indstria fonogrfica. (Janeiro, Edio 209).

Aqui se evidenciam outras representaes do hip hop. Como cultura de rua, produzida por

jovens que procuram grupos de pertencimento, construindo significados para sua vivncia

(LOURENO, 2002), at sua apropriao por parte da indstria cultural, como nos esclarece

Souza (2002), que identifica, principalmente na msica rap e nas roupas, um mercado de

consumo.

O rap, como gnero musical, est em evidncia, e j ganhou os canais de televiso,

abertos ou fechados, alm de existirem programas somente com a programao rap. Alguns

grupos de rap ainda enfrentam dificuldades em sua insero enquanto produto, produzindo seus

CDs por meio de produtoras independentes e, segundo Herschmann (2000b), um dos motivos

seriam as letras muito longas. A esttica hip hopper tambm adquiriu adeptos, como o uso de
53
calas jeans largas, bons, jaquetas, camisetas com o nome dos grupos, movimentando o mercado

de produtos para jovens.

O que preocupa os integrantes do hip hop a apropriao pela indstria cultural de sua

arte, porm descontextualizando-a e transformando sua manifestao em produto a ser

consumido. Alguns grupos de rap, como Racionais MCs, possuem um embate claro com os

meios de comunicao de massa, recusando convites de apresentaes e entrevistas (Os

Racionais MCs estiveram somente em 2003 no Programa Ensaio da TV Cultura, e em algumas

apresentaes no canal MTV), outros, porm, assumem que estes meios devem ser utilizados

com inteligncia e por quem sabe e entende o que est fazendo, caso de Rappin Hood e MV

Bill. Segundo Helena Abramo, no especial da Revista Caros Amigos de 1998, n 3, ainda que os

hip hoppers combatam a indstria cultural, so por ela atravessados, uma vez que por meio dela

obtm informao e se mostram para o pblico. Segundo a autora, o movimento hip hop tem duas

particularidades em relao a outros movimentos juvenis: o caso de ser um movimento produzido

por jovens negros e por terem um lao de solidariedade forte com a comunidade.

As expresses artsticas, a esttica proposta, suas mensagens e discursos so

possibilidades de compreenso de como a juventude negra perifrica est significando suas

experincias, mobiliza-se e configura anseios e vontades, mesmo que atravessado, e diramos

submetida, ao sistema que combate. Entendemos isto a partir das consideraes de Souza (2002),

pautadas no pensamento de Mouffe (1995), sobre o ordenamento social baseado no paradigma

liberal e no pluralismo identitrio

Para Mouffe, a democracia plural uma garantia contra o fechamento do sistema e de

uma totalizao, mas entendemos que tambm, no jogo de foras entre as diferenciaes
constituintes do plural, partes dos diferentes so ignoradas ou neutralizadas pelos prprios
princpios que definem as diferenciaes, uma vez que essas devem a tender ao sistema de
regulaes sociais que mantm hierarquizaes sociais excludentes. O plural, assim,

54
 converte-se em uma retrica discursiva, capturado pelos papis sociais ou pelos logotipos
identitrios, produzidos pela sociedade de consumo. Nessa ltima perspectiva, a ao
inovadora de novas identidades, se no incorporadas nas possibilidades de
transformao e criao de papis sociais, constituem-se apenas como novos segmentos
de mercado ou na prpria mercadoria. Isso pode ser analisado, principalmente, nos
movimentos relacionados juventude. Neste sentido, ocorre uma institucionalizao de
aes coletivas, at mesmo quando alguns grupos sociais transformam-se em categorias
psico-sociais, que tambm definem polticas de identidade, que, em ltima instncia,
almejam a regulao dessas aes em conformidade com as instituies sociais j
estabelecidas. Esse processo, permite a incorporao de novos discursos no plano
institucional, em que uma suposta identidade inova os papis institucionais
possibilitando uma certa atualizao discursiva nas relaes de subordinao dissimuladas
(SOUZA, 2002, p.16)

Assim, o movimento hip hop em sua aproximao com a indstria fonogrfica, submete-

se ao discurso mercadolgico que ordena a contemporaneidade, buscando uma incluso social.

Ainda assim, ao aproximar a compreenso dos grupos hip hoppers dos grupos punks e

darks estudados por Abramo (1994), entendemos que

a criao estilstica desses grupos juvenis, como grupos de sociabilidade e de negociao

de espaos de vivncia no novo meio urbano, atravs da construo ou conquista de
canais de diverso, circulao e comunicao, tem o sentido de construo e manifestao
de uma identidade distintiva, atravs da qual definem sua posio no mundo e o modo de
entend-lo. Os punks e darks lidam com as questes da sua prpria condio juvenil,
vinculadas a seu tempo histrico, buscando um modo de processar essa vivncia da forma
a mais significativa possvel. E mais que isso, procuram expor para a sociedade as
questes que os preocupam, relativas sua condio mas tambm de outros setores
sociais, ao destino geral da sociedade, do seu futuro (ou falta de futuro) (ABRAMO,
1994,p.155).

Segundo Weller (s/d), em estudo comparativo entre jovens negros de So Paulo e jovens

de origem turca em Berlim, integrantes de grupos de rap, no hip hop definem-se grupos de

orientao geracional e grupos de orientao social- combativa. Os grupos de orientao

geracional

buscam no rap uma forma de trabalhar descontinuidades biogrficas, rupturas familiares e

os problemas que enfrentam como jovens e habitantes da periferia, (e) os grupos de

55
 orientao social-combativa vem o rap como uma forma de concretizao de suas
aspiraes sociopolticas e educativas (p.18).

Assim, se para alguns grupos a vivncia juvenil est em evidncia nos discursos e

interesses do grupo, por outro lado, em outros se percebe um embate e discurso poltico mais

arraigado; porm ambos configuram um movimento que fortalece alguns interesses comuns,

nas palavras da autora, de experincias conjuntivas.

O movimento hip hop no fica circunscrito a jovens negros e de periferia, sendo

apropriado por jovens de classe mdia e brancos. Segundo Guimares (1998), corroborando

com as idias de Weller, isso evidenciaria que outro sentimento de excluso permite a

identificao: o ser jovem.

Em estudos em meados do sculo XX, as culturas juvenis eram consideradas como desvio

ou delinqncia juvenil uma vez que no se ajustavam as normas sociais e geralmente eram

grupos juvenis de origem pobre , na dcada de 1940 os estudos consideravam as culturas

juvenis como uma passagem natural no processo de socializao uma vez que eram

encarados como grupos de adolescentes que estavam passando por uma crise prpria da idade

, at sua caracterizao como potencializadores da mudana social, na dcada de 60, com os

grupos que reivindicavam direitos civis e sociais (ABRAMO, 1994), hoje compreende-se que,

segundo Melucci (2001), os jovens so um espelho da sociedade, e as mobilizaes juvenis so

reflexos e revelao das demandas mais profundas e os conflitos existentes na sociedade; e o

movimento hip hop vm sendo entendido enquanto tal.

Segundo Guasco (2001), os rappers constroem suas identidades a partir de duas

referncias bsicas, a identidade negra e a identidade de periferia (p. 101), mas que alcana

outros sujeitos que, se no so negros e no so da periferia, so jovens (GUIMARES, 1998).

Jovens que em nossa sociedade, como ressalta Abramo (1997), citada por Magro (2004), ainda

56
no esto sendo encarados como possveis interlocutores na cena poltica e sujeitos de suas

aes.

Os estudos sobre as culturas juvenis, e sobre o hip hop em especfico, abordam: sua

importncia no campo educativo, tanto no-formal quanto formal, uma vez que muitos

professores adotam, por exemplo, a msica rap como instrumento pedaggico (ANDRADE,

1999); sua importncia na significao de experincias do ser jovem, negro, pobre (autores

citados no decorrer do texto); na insero no mercado fonogrfico; em sua apropriao pela

indstria cultural, porm, e este estudo pretende contribuir nesta discusso, no abordaram

adequadamente a participao das mulheres neste contexto.

57
Cad as mulheres hip hoppers nos estudos acadmicos?

Nos estudos sobre o movimento hip hop, como foi citado anteriormente, a contribuio de

mulheres na constituio do movimento geralmente no analisada. Um dos poucos trabalhos

sobre este aspecto foi desenvolvido por Magro (2004). Segundo esta autora

Nos estudos sobre culturas juvenis, pouco se tem abordado sobre a participao das
meninas. Elas esto praticamente ausentes dos trabalhos etnogrficos, nas matrias
jornalsticas e nos relatos de pesquisa. Mesmo quando elas aparecem nesses trabalhos, a
categoria gnero colocado em segundo plano, como mais uma varivel a ser analisada,
mas pouco problematizada (p.49)

Em seu estudo sobre as meninas do grafitti, a autora analisa a vivncia das adolescentes,

abordando a questo de gnero, identidade e adolescncia na cultura hip hop e discute a

participao e mobilizao feminina no movimento.

Nos Estados Unidos, segundo Magro (2004), citando Rose (1994), h aspectos

diferenciados nas experincias culturais de homens e mulheres na cultura hip hop. Em se tratando

do grafite, temas como os riscos inerentes a arte de grafitar e a reputao das meninas so

preocupaes que perpassam a experincia de fazer parte do movimento, por parte das mulheres,

bem como a luta contra o sexismo de seus colegas homens(p.65). Tratando-se especificamente

do rap,

Em artigo sobre rap e feminismo, OConnel (s/d), observa que as mulheres rappers esto
estabelecendo batalha pela conquista de uma maior visibilidade social, fundada sobre uma
perspectiva que denuncia a desvalorizao das experincias, pensamentos e atitudes das
mulheres. Para essa autora, apenas nos ltimos dez anos algumas mulheres rappers

58
 ganharam considervel reconhecimento e respeito na Amrica como cantoras e letristas.
Influenciadas principalmente pelas mulheres do blues, essas rappers tm abordado o tema
sexualidade feminina para se manifestarem como sujeitos sexuais, e no objetos sexuais, e
assim construir uma imagem positiva para si mesmas (MAGRO, 2004, p. 65-66).

Segundo a autora citada por Magro, h uma diferenciao entre os temas de raps

produzidos por homens e mulheres. Enquanto os homens destacam a crtica social nas letras de

rap, as mulheres procuram oferecer imagens positivas de mulher, opondo-se ao esteretipo da

mulher sexualmente submissa.

Um aspecto importante ressaltado por Rose neste estudo sobre as mulheres negras no rap
americano que tais mulheres estabelecem um dilogo, tanto com homens, como com
mulheres de classe baixa, criando um espao pblico de reflexo, especialmente para as
negras, que pem em questo os padres dominantes da sexualidade feminina negra, uma
vez que estes a submetem ao papel de meros objetos sexuais (MAGRO, 2004, p. 67).

Nos estudos desenvolvidos sobre o hip hop brasileiro, a (in) visibilidade das mulheres

e/ou sua marginalizao so apontados, mas no analisados.

De acordo com Andrade, os jovens da Posse por ela estudada eram muito unidos, mas
mostraram posturas radicais, a saber ridicularizam a maioria das mulheres, achando-as
interesseiras e fteis. Esta concepo comum entre os jovens do Hip Hop que no
aceitam mulheres no movimento, a no ser que esta demonstre capacidade, talento ou
habilidade artstica e interesse no movimento, o que, segundo eles, difcil de encontrar
(ANDRADE, 1996: 229-230 apud LOURENO, 2002: 23).

Segundo Micael Herschmann (2000a)

Na realidade, a mulher no mundo do hip-hop carioca ou paulista ocupa um papel

secundrio, apesar de nenhum de seus membros admitir isso nas vrias entrevistas
realizadas. Alm de enfrentarem um machismo velado, que se expressa no uso freqente
da expresso vadia nas msicas e discursos, elas enfrentam o pouco espao que existe

59
 para que artistas do sexo feminino cantoras, danarinas ou grafiteiras possam se
manifestar. Ao contrrio das mulheres do funk, as do hip-hop no podem usar
explicitamente o erotismo como estratgia para subverter esse universo
predominantemente masculino. Nenhuma delas usa roupas provocantes, com medo
justamente de ser estigmatizada por isso. Sua indumentria lembra as roupas pesadas e
largas dos homens. Sua estratgia fazer uso da palavra, em um discurso que se aproxima
muito do feminista tradicional. Respondem ao discurso dos homens com mais
discursos, ou melhor, diante da verborragia masculina, produzem mais verborragia (p.
203-204).

No presente estudo pretendemos problematizar a participao e representao das

mulheres no movimento hip hop.

A seguir, portanto, apresentamos os caminhos percorridos para o desenvolvimento da

pesquisa, alguns dados identificatrios a respeito das entrevistadas, as letras que foram utilizadas,

bem como as anlises que empreendemos na compreenso da participao de mulheres no

movimento e as representaes da mulher no hip hop.

60
O desenvolvimento da pesquisa

Porque estudar as representaes e identidades da mulher no hip hop? Qual o propstio

para tal investigao? Acompanho o hip hop desde o ano 2000. Durante a graduao em

Psicologia16 tive a oportunidade de desenvolver, como bolsista de Iniciao Cientfica, estudo

sobre a articulao do movimento na cidade de Piracicaba, quais seriam os propsitos destes

jovens, seus interesses. Neste processo, estive presente em reunies com integrantes do

movimento, em shows com grupos de rap, apresentaes de dana e outros eventos. E

perguntava: onde esto as mulheres no palco, na dana, grafitando, discutindo? Na maioria das

vezes elas estavam no pblico, participando como pblico, uma vez que os namorados,

companheiros, irmos, filhos estavam no palco. E durante este tempo ouvia conversas; em

entrevistas que foram realizadas, que o movimento era machista. Tambm escutava letras de

rap que diziam: as mulheres s pensam em comprar, em enganar, s pensam em dinheiro e status.

Como uma mulher pode fazer parte de algo que a deprecia, que a humilha? Ser que nas msicas

h um tipo de mulher? Ou so todas as mulheres?

Ingressando no programa de mestrado na Faculdade de Educao, um dos objetivos do

projeto de pesquisa entre outros que foram reconsiderados e por vezes abandonados era

investigar a participao das mulheres no movimento e, como sugesto dos professores que

compunham a banca de entrevista, que se fizesse uma investigao sobre as representaes da

mulher em letras de rap. Este, ento, tornou-se um dos objetivos da pesquisa, assim como a

participao das mulheres.

16
Pesquisa Formaes identitrias de grupos e comunidades singulares: o esgotamento do individualismo moderno
e os sentidos dos comunitarismos atuais. Profa. Responsvel Dra. Telma Regina de Paula Souza. Fui bolsista de
iniciao cientfica FAPIC/Unimep e PIBIC/CNPq.

61
 Para a reflexo sobre as representaes da mulher no hip hop, inicialmente foram

consultadas letras de rap. um campo imenso. Procurei, ento, identificar grupos de rap que so

representativos no cenrio nacional conversando com integrantes do movimento em

Piracicaba ; grupos que possuem msicas com maior visibilidade e tambm consultei sites

destinados ao pblico hip hopper, como www.bocadaforte.com.br17.Os grupos indicados, como

tambm as letras, apresentaram-se com um enorme repertrio. Tambm busquei informaes em

programas de rdio destinados ao rap, mas no obtive sucesso.

Aps este incio, optei por letras de rap que retratavam claramente a mulher, que foram,

em alguns casos indicados pelos hip hoppers, caso dos Racionais MCs, letras que encontrei na

internet, ou por indicao de funcionrios de lojas que comercializam CDs de rap (lojas de

Piracicaba e So Paulo, na galeria 24 de Maio). So letras que j no ttulo se referem mulher ou

que no decorrer da letra fazem algum tipo de referncia. Os grupos escolhidos e as letras foram:

Face da morte: Mulheres.

Ndee Naldinho: Aquela mina firmeza e O Filho adotivo.

Faco Central: Desculpa me.

Gabriel o Pensador: Loraburra.

Racionais MCs: Mulheres Vulgares, Parte II, Frmula Mgica da Paz, Qual mentira vou

acreditar.

RappinHood: Tributo s mulheres negras.

MV Bill: Soldado Morto, Mina de F.

Detentos do rap: Amor... S de me.

17
Nos sites, as letras mais procuradas e escutadas so transcritas por fs.
62
 Alguns grupos, como Racionais MCs, tm um grande pblico e so considerados, muitas

vezes, como os maiores representantes do rap nacional, outros grupos ou artistas, como Viso de

Rua e Lady Chris, so representantes da produo das mulheres. As letras inseridas na pesquisa

fazem parte do universo que compem o movimento, mesmo no sendo to conhecidas. Para que

as anlises das letras pudessem refletir possveis diferenciaes entre letras masculinas e

femininas18, recorri a produo da Rapper Nega Gizza, Lady Rap e do grupo que possui como

uma de suas MCs, e principal letrista (Dina Di), Viso de Rua. As letras femininas so:

Lady Chris: Guerreira.

Viso de rua: Abertura, Dina Di 2004, Amor e dio, Corpo em evidncia, Hora de avanar, Vem

v, A noiva do Thock, Memrias, Filho pro mundo, Guerreiros..., Marcas da Adolescncia (estas

letras compem o CD A Noiva do Thock).

Nega Gizza: Filme de terror, Depresso, Larga o Bicho, Prostituta, Nenm, Inconstante, Fiel

Bailarino (letras que compem o CD Na Humildade).

Foram, portanto, utilizadas como fonte de dados 32 letras de rap. As letras de rap que

foram analisadas no compem a totalidade da produo hip hopper, nem tampouco

compreendem todas as possibilidades de representao da mulher que podem existir neste

cenrio. Preocupamo-nos, porm, com os significados atribudos mulher referentes as possveis

identidades que a distino de gnero poderia sugerir. Em um primeiro procedimento de

organizao dos dados, h uma tentativa de interpretao dos sentidos dos contedos de cada

letra, que poderamos chamar de interpretao descritiva. Posteriormente, realizamos uma

categorizao que pde ser desenvolvida a partir desta primeira organizao. Esta categorizao,

ainda emprica, busca fornecer dados pra discutirmos sobre as possveis identidades atribudas a

18
Sugesto apresentada no exame de qualificao.
63
mulher, referentes raa/etnia, classe social, valores morais e papis sociais. Estas caractersticas

esto presentes nas letras por meio de adjetivaes, imagens, expresses que, no jogo discursivo,

atuam distinguindo quem sou eu/ns, quem o outro/eles, convencionando as concepes

de mundo, construindo relaes e produzindo ou reproduzindo esteretipos. Nas narrativas as/os

rappers produzem significados sobre como eles consideram, portanto, distines de gnero, ou

seja, o que para eles significa ser mulher/ser homem e os possveis arranjos relacionados a outras

dimenses da existncia humana.

Aps a realizao desta primeira categorizao (que apresentada, bem como a

interpretao descritiva), propomos a discusso analtica baseada em trs categorias: ser me,

ser mulher objeto e ser lutadora. Durante o processo de anlise percebemos que, a partir das

categorias de classe social, etnia/raa, valores morais e papis sociais, essas trs categorias

analticas refletiam as ideologias19 e idealizaes que permeiam a construo da distino de

gnero no movimento hip hop. Nesta anlise, estabelecemos um dilogo pontual entre as

representaes presentes nas letras e algumas consideraes feitas por entrevistadas. Nas

entrevistas semi-estruturadas (o roteiro est anexo), realizadas com mulheres (no total oito

mulheres) questionamos sobre como percebiam as distines de gnero e as mudanas que

pudessem ter ocorrido, ou no, na sociedade no que tange s relaes engendradas por esta

distino. As entrevistas foram realizadas nas cidades de So Paulo e Piracicaba.

Em Piracicaba existe a Casa de Hip hop, situada no Bairro Paulicia, porm duas

mulheres que fazem parte da Casa que cantam e produzem raps, aps algumas tentativas para

participarem da pesquisa, no se mostraram interessadas. Insisti durante muito tempo neste

19
Utilizamos o conceito de ideologia como proposto por J.B. Thompson (1995). Argumentarei que o conceito de
ideologia pode ser usado para se referir s maneiras como o sentido (significado) servem, em circunstncias
particulares, para estabelecer e sustentar relaes de poder que so sistematicamente assimtricas que eu chamarei
de relaes de dominao. (p.16)

64
campo, mas como no obtive retorno procurei referncias na cidade de So Paulo. Por meio do

Instituto da Mulher Negra, o Geleds, que realizou uma parceria com o movimento hip hop e

desenvolveu o projeto Femini rappers, conversei com mulheres que h algum tempo fazem parte

do hip hop paulistano. O contato com essas mulheres foi inicialmente realizado por emails e

telefonemas. Apresentei o objetivo da pesquisa e foram realizadas quatro entrevistas. A primeira

entrevista, com a participao de duas hip hoppers, foi realizada na casa de uma delas. Depois do

trabalho, elas se mostraram dispostas em fornecer os dados, mas estavam cansadas. Tambm

realizei uma das entrevistas em Santo Andr, no local de trabalho e a outra entrevista tambm foi

na casa da integrante. Realizei em Piracicaba quatro entrevistas com mulheres que participam do

hip hop, aps contatos telefnicos e indicaes de integrantes do movimento. Elas fazem parte do

hip hop h menos tempo e atuam organizando a Casa do hip hop.

As entrevistas foram transcritas imediatamente aps serem realizadas, e numa primeira

leitura busquei apreender, assim como nas letras, os sentidos produzidos pelo discurso. Para a

realizao da anlise, identifiquei nos discursos as trs dimenses na compreenso da identidade

coletiva proposta por Melucci (1995): definies cognitivas a respeito de finalidades, significados

e campos de ao; como os atores estabelecem relacionamentos e como eles se sentem em

relao ao movimento (se sentem fazendo parte de uma mesma unidade?).

Analisei, separadamente, o grupo entrevistado em So Paulo, e o grupo entrevistado em

Piracicaba. Estes dois grupos, embora ambos pertencentes ao cenrio hip hop, possuem objetivos

e interesses distintos, portanto compreendo que constroem identidades coletivas distintas.

As anlises procuraram refletir, a partir de categorizaes temticas, os contedos e

interpretaes possveis.

65
 A seguir, num primeiro momento, apresento alguns dados sobre as entrevistadas. Os

nomes utilizados so fictcios e a pesquisa est de acordo com as normas ticas em pesquisa com

seres humanos, com anuncia do Comit de tica Institucional Unicamp/FCM20.

Em um segundo momento, apresento reflexes sobre a participao da mulher no

movimento hip hop, a partir da categoria analtica identidade coletiva. E em seguida, as

discusses sobre a representao social da mulher no movimento hip hop.

Como fonte de dados tambm foram coletados reportagens jornalsticas e consultados

sites. Estou inscrita, tambm, em um grupo de discusso de mulheres do grafite, na internet

(Grafiterias BR), contei com o auxlio de outra colega de ps-graduao, Fernanda Sunega ,

e acesso algumas reflexes e estabeleo contatos com mulheres do Brasil. Este campo, portanto,

de contatos e dados fazem parte do processo de insero no campo investigado e so

fundamentais para uma compreenso mais abrangente do hip hop.

O estudo objetivou, portanto, compreender a construo identitria da mulher na

contemporaneidade, bem como sua participao no espao pblico, utilizando para isto, como

campo investigativo, o movimento hip hop. Ser mulher/ ser homem considerado uma distino

sexual, cultural e simblica que define as identidades e papis sexuais dos sujeitos. Muitos

estudos utilizam a categoria de gnero para analisar a dimenso relacional da construo social de

ser homem e ser mulher. Nos estudos de gnero21, esta construo terica considerada,

portanto, uma categoria analtica. Em outras palavras, o que chamamos de homem e mulher no

o produto da sexualidade biolgica, mas sim de relaes sociais baseadas em sentidos

atribudos a estas dimenses e que refletem distintas estruturas de poder (MORAES, 1998,

p.100). Compreendemos que a distino de gnero estabelece padres distintos quanto ao uso

20
O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido apresentado em Anexo.

66
dos espaos pblicos, polticos e privados, define acessos diferenciados a instituies polticas,

desigualdades sociais/econmicas e violaes quanto vivncia da cidadania e de direitos22. A

anlise que a seguir apresentamos pretende, portanto, contribuir para esta discusso.

As mulheres entrevistadas

Apresentamos alguns dados identificatrios dos sujeitos da pesquisa, utilizando nomes

fictcios.

Juliana, 19 anos. Solteira, mora com os pais e com um irmo. Nasceu na cidade de Americana e

veio morar em Piracicaba com a famlia quando tinha 4 anos. Completou o ensino mdio e

gostaria de cursar Pedagogia. Namora um integrante da Casa do Hip hop de Piracicaba e

conheceu a organizao atravs de uma amiga. Participa da organizao da Casa h

aproximadamente 3 anos. evanglica, trabalha como vendedora em um estabelecimento

comercial de Piracicaba. Seu irmo escutava rap, mas antes de integrar o movimento hip hop no

sabia que este estilo musical constitua um movimento social.

Camila, 19 anos. Solteira, mora com os pais e com trs irmos. Mudou-se para Piracicaba

quando tinha 9 anos. Seu pai, procura de emprego, antecedeu mudana da famlia. Quando

chegaram em Piracicaba instalaram-se na casa de parentes. Completou o ensino mdio e gostaria

de cursar Psicologia. Conheceu a Casa do Hip hop em 2003, porm afastou-se da organizao em

21
Existem questionamentos sobre a utilizao da categoria gnero, uma vez que este opera na dicotomia
homem/mulher, sendo esta produzida por uma ideologia sexista. (NOGUEIRA, 2001)
22
BRUSCHINI, C. E UNBEHAU, S. Gnero, democracia e sociedade brasileira. So Paulo: FCC:ED. 34, 2002.

67
virtude de desentendimentos entre seu namorado e integrantes da Casa (ele tambm participa da

organizao). Trabalha como auxiliar administrativo.

Patrcia, 23 anos. Solteira, mora com os pais e uma sobrinha. piracicabana, formada em

Servio Social e atualmente aluna de curso de ps-graduao em Administrao e avaliao de

projetos sociais. Conheceu o movimento hip hop atravs de seu irmo, integrante do movimento

(atualmente ele no participa). Participava de reunies da Casa do Hip hop desde Julho de 2004,

porm afastou-se pelas dificuldades pessoais. Namora h sete anos, e trabalha na Guarda-mirim

de Piracicaba como assistente social.

Daniela, 25 anos. Solteira, mora com os pais e um irmo. formada em Pedagogia e atualmente

leciona no ensino fundamental em uma escola municipal de Piracicaba. piracicabana, no

namora e conheceu a Casa do hip hop quando estava finalizando o curso superior (2003),

participa da organizao da Casa desde ento.

Joana, 28 anos. solteira, mora sozinha. paulistana, mas j morou no Estado de Minas Gerais

e Paran. Quando era pequena, seu irmo freqentava bailes na cidade e ouvia msicas em casa.

Sempre gostou do ritmo das msicas e comeou no hip hop, em 1990, danando. Atualmente

integra o grupo Fator tico, como MC. arte-educadora, e recentemente desistiu de cursar

cincias sociais em virtude do valor da mensalidade. Gosta de escrever poesia e letras, alm de j

ter participado de grupos teatrais e feito (produzido e dirigido) um curta-metragem.

Beatriz, 32 anos. Solteira, mora com as duas filhas (uma de dois e outra de seis anos). Possui

cinco irmos, completou o ensino mdio, iniciou o curso de comunicao social, porm desistiu
68
por no se identificar. Pensa em cursar sociologia. Nasceu em So Bernardo do Campo e hoje

mora em Santo Andr. Quanto tinha entre 15, 16 anos freqentava bailes na cidade e atravs da

dana comeou a participar de um grupo de rap. uma das pioneiras no movimento hip hop,

tendo participado do primeiro grupo inteiramente feminino. Hoje atua como articuladora do

movimento, embora cante sozinha. Atualmente exerce a funo de assessora para assuntos de

promoo da igualdade racial na prefeitura de Santo Andr.

Clara, 36 anos. Solteira, mora com trs filhos (uma das crianas amiga da filha). A filha mais

velha tem 18 anos e tem um menino de 4 anos. No completou o ensino fundamental e gostaria

de terminar os estudos aps seus filhos terem se formado gostaria de cursar Psicologia.

Conheceu o rap em bailes da cidade, e comeou no hip hop em 1989. Marcou-a um show da

dupla Thade e DJ Hum. Desde ento MC e participa do grupo RPW (com dois integrantes

homens). paulistana.

Paula, 36 anos. Solteira, mora com a me e tios. Paulistana, completou o ensino mdio.

Conheceu o hip hop atravs de bailes e por influncia de um tio que DJ. Trabalha atualmente

como digitadora em uma empresa em So Paulo e foi uma das pioneiras no hip hop (participa

desde 1986), com a primeira gravao de uma letra sua em 1989. Atualmente compem algumas

letras e canta sozinha.

69
70
CAPTULO II

Mulher um passo a frente

Quando nos reportamos aos grupos musicais que constituem o movimento hip hop, bem

como as imagens produzidas pela mdia brasileira (jornais, televiso, rdio) h uma soberania

masculina. rara a imagem de mulheres na composio dos grupos hip hoppers, sendo eles

musicais, de dana ou grafite. Desconstruindo esta imagem, alguns grupos constitudos somente

por mulheres, caso do Minas da Rima, Mulheres, Grafiteiras BR, Dandara23, ocupam o

cenrio hip hop debatendo a condio feminina na contemporaneidade e no prprio movimento

hip hop. Mas como estas mulheres se articulam, quais so seus interesses? No presente estudo,

entrevistamos mulheres que compem o grupo Minas da rima. Mulher um passo a frente,

este o objetivo do projeto. Segundo o site produzido pelo grupo

(www.realhiphop.com.br/minasdarima)24:

O objetivo desse projeto a visibilidade e integrao das mulheres na cultura Hip-Hop em todo o
pas, promovendo intercmbios culturais, oficinas e palestras. O primeiro evento foi em 99 no
KVA em So Paulo e contou com participaes de mulheres de grande expresso dentro da
cultura. Todo o ano tem sido feito, evento e debate, sempre contando com o apoio das mulheres
que esto dispostas a lutar pelo espao que seu por direito dentro do Hip-Hop e nem sempre o
tem.

23
As mulheres que participam destes grupos so MCs, grafiteiras ou DJs. Utilizam estes grupos como forma de
articulao das demandas femininas.
24
Acesso em Janeiro 2005.

71
 O grupo, ento, surgiu na medida em que as mulheres perceberam que no tinham o

mesmo espao, na cultura hip hop, como os homens. Elas fazem parte do hip hop h pelo menos

treze anos e falam sobre como o movimento se constitua em seus primeiros momentos.

Conheceram o hip hop, principalmente, por meio dos bailes que ocorriam na cidade de So

Paulo. Nestes bailes, a aproximao com a msica negra, como soul e funk, e a identificao

musical com a mesma j indicava preferncias artsticas. Nos bailes tambm aconteciam rodas de

dana, que de acordo com uma entrevistada, era chamado de smurf. Entre 1986 e 1990 os

primeiros clips de rap foram produzidos, bem como shows de artistas pioneiros como Thade e

DJ Hum. Estas mulheres tambm fizeram parte das primeiras posses na cidade de So Paulo,

que num primeiro momento, constituam-se como possibilidade de aglutinao de pessoas para

irem a shows e eventos.

, eu canto, eu fao a parte do MC n. Eu comecei assim ..., eu sempre, desde adolescente eu

sempre gostei de msica negra, sempre curti baile de msica negra, desde a adolescncia e a foi
uma, uma conseqncia n, curtia funk, soul, as melodias, samba rock, j gostava da
musicalidade n, e eu ir pro hip hop foi uma conseqncia disso. Eu vi um show n, do Thade e
DJ Hum em 89, a foi um marco. Eu olhei e Porra, d pra fazer assim, eu pensei comigo
uma coisa que d pra fazer aqui, eu no sabia, eu no imaginava que pudesse ser feito aqui, eu
achava que era s na gringa. Eu comecei a me interessar, e eu sozinha comecei a escrever umas
letras, comecei a pedir pra cantar nos bailes, sozinha, eu comprava uns vinis assim, punha
embaixo do brao, fiquei um bom tempo assim, cantando sozinha, at que eu conheci os dois
integrantes do meu grupo que o RPW.
(Clara)

Nessa poca, e assim, a partir da, era breaker e comeou a tocar, era breaker e comeou a cantar,
e era breaker, ou era breaker e j grafitava ou comeou a grafitar. Mas a maioria era dana, se
encontrava pela dana mesmo n. Ento, a o Zulu convidou a gente pra ir na casa dele, que os
meninos todos se encontravam l, onde eu conheci o DMD, que o Marrom, que foi o cara que
deu a primeira letra pra eu cantar, n. E, e o Gerson, o Cdigo 13 n, que um dos que gravou
junto com o Thade o primeiro disco, pela Eldorado. Cdigo 13, e a a gente foi se encontrar l na
So Bento, a a gente conheceu esse povo, eu e a minha prima n, a City Lee. A gente conheceu a
So Bento e a gente comeou a freqentar a So Bento.(...) Ento, bem l no comecinho, o que a
72
gente tinha. Tinha a Renata e as irms dela, que eram, que danavam n. Elas danavam (...) um
pouco de break. Eu no lembro direito, mas eu lembro que elas danavam muito, pra gente que
no sabe quase nada n, danava outras coisas n, mas de hip hop no n, ento, tinha a Renata e
as irms dela e a gente assim, eu e essa minha prima, que danava assim: olhava os meninos, mas
tambm no danava l, com eles, a gente vinha aqui pra ensaiar entendeu, porque a gente morria
de vergonha porque eles danavam muito. Talvez at nem danassem muito, mas pra gente era...
ento, a gente comeou meio que danando tambm n.. Danando smurf n, que agora todo
mundo elimina essa palavra. No, smurf nunca existiu, num sei o qu. Mas, naquela poca era
smurf, que hoje chama street dance ou dana de rua. (...) No assim, a identidade com o hip hop
musical mesmo, n, porque as batidas que eu j ouvia, ento se faz muito, muito sampler n,
pega de msica antiga, e tudo que eu j ouvia em casa, n, que o meu tio j tinha e a gente j
ouvia em casa. Ento a coisa da msica, mesmo, da batida, do suingue e tal.
(Paula)

Naquela poca no tinha muito, na poca que ns criamos o Sindicato Negro era mais os pares
estarem junto n, dentro, ia um fazer show, ia todo mundo no show daquele, entendeu. , e
fortalecimento mesmo, porque ns tnhamos, hoje ainda, mas naquela poca era muito pior, uma
opresso policial muito forte, tanto que eu j perdi a conta de quantas vezes eu fui, n, junto com
os cara, parada pela polcia, e revistavam minha bolsa, c entendeu. (...) O Sindicato negro o
seguinte, ele, ento assim, foi a primeira posse, num tinha muita viso o que era n, mas era mais
pra fortalecer mesmo as pessoas do hip hop, pra t junto n, e assim, ento, parecia enxame n, de
abelha, de, marimbondo, onde ia um, ia todos. E ns fazamos isso, enchamos as festas, sabe
assim, lanamentos de discos, essas coisas. Foi uma poca boa, porque, na verdade era uma
escola de hip hop entendeu. Todo mundo cantava, todo final de semana a gente se reunia, todo
mundo,cada um mostrava seu trabalho, sua letra nova, o que ia gravar, etc e tal e foi muito bom
isso. Foi uma experincia boa pra caramba assim. E por ser a primeira posse, ns que no
tnhamos idia ainda do que era posse, na poca as posses todas eram assim, hoje, depois n, no
meio da dcada de 90 e tal pra frente, que mudou o carter da posse n, que ela virou mais uma
organizao de trabalhos sociais etc e tal, mas antes era mais a questo...
(Beatriz)

A insero destas mulheres, portanto, ocorreu principalmente pela identificao artstica

que o hip hop oferece por meio da msica, do grafite e da dana. O acesso, porm, muitas vezes

era sentido como diferenciado e as mulheres tinham vergonha em danar em pblico

(depoimento dado por Paula, acima citado). No existiam mulheres que faziam parte do hip hop,

portanto as referncias artsticas eram em sua maioria constitudas por homens. Elas foram

pioneiras na insero de mulheres no hip hop nacional e sentiram a dificuldade em serem

reconhecidas em um cenrio dominado por homens.

73
Acho que no tem outro, n, tipo, os cara terminaram de cantar, bonito, beleza, n. A na hora que
eu vou cantar, o cara, o outro cara do outro grupo t testando guitarra. Porra. Porque que ele no
fez isso a hora que tava os cara l. Porque ele fez justamente no momento que eu estava. Ento
pera, tem alguma coisa errada, n. Ento eu acho que pela questo de ser mulher mesmo,
porque tava l mandando e a rapaziada tava l, opa. Ento assim, eu posso at dizer que, , eu,
assim, o pblico que difcil, o pblico de samba, qualquer pblico de rock, ou mesmo de rap,
um pblico que no aplaude.
(Paula)

Joana: E essa busca de espao uma coisa constante assim, parece que, eu no sei se uma coisa
que as pessoas desacreditam da sua palavra, da sua, do, do, da msica que voc faz, um negcio
to louco, que voc no consegue espao pra se apresentar, voc no consegue, n, as pessoas te
olham, a vai um outro grupo...
Clara: um teste, assim, um teste, assim, eu posso at falar, teve uma poca que meu grupo
acabou n, assim, a gente deu um tempo, eu fui fazer solo n, a eu chamei duas parceiras pra
cantar comigo, e a DJ era a Miss na poca, uma puta DJ, a DJ se converteu...
Joana: Muito boa...
Clara: Era a melhor DJ, assim, na boa, a garota ficou em 3O lugar de MC Brasil, entendeu, no
concurso de DJs mundial, ela ficou, pegou o 3o lugar, no meio de homens, era a nica mulher, e
assim, constantemente a gente chegava pra tocar, os caras desregulava a aparelhagem inteira, pra
testar mesmo, A menina vai tocar, ento deve ser aquela garota que pe o disco, pe a agulha e
sai tocando, meu, da ela chegava assim, e assim, aquela menina com um metro e meio, aquela
branquinha, com sorriso sempre na cara, sempre sorrindo assim, ela sacava os case dela,
comeava a tirar capa, comeava a tirar fio... (...) A, meu, era um teste constante, assim, tanto
que a nossa DJ, ela t trabalhando mais essa parte tcnica, porque boicote mesmo...
Joana: Os caras boicotam, microfone que t dando tilte...
Clara: Desregula o microfone..
Joana: Que t dando choque, que , meu, d de tudo. Os caras, tipo, pegam o tapete e puxam.
Clara: Parece conto n?
Joana: Parece histria, parece que a gente t vendo coisa, mas no .
E: Vocs fazem, tem alguma idia porque isso acontece?
Clara: Pra justamente dificultar ainda mais entendeu, porque aquela coisa, que nem, quando a
Miss tocou, antes dela n parar de tocar, ela tocou no Hip Hop Dj no participando, no
concorrendo, tipo, ela s fez uma apresentao, e todo mundo falou Meu, se ela tocasse ela seria
a campe, ento aquela coisa do machismo Pura, eu vou perder pra uma mina?, O show das
mina vai ser melhor que o meu.
(Joana e Clara)

E fora os casos assim, desestmulo mesmo n, o caso da menina que o DJ no deixou ela entrar.
Fez ela colocar o jaqueto, porque ela tava com uma cala justa e uma miniblusa, que assim ela
no ia subir no palco. H casos at, de meninas que apanharam porque no tavam danando
direito.
(Paula)

74
Bom enfim, a assim, ... da p, conheci um pessoal que se encontra ali no clube da cidade, ali na
Barra Funda, e fui conhecendo, conhecendo as pessoas, mas assim, eu nunca me conformei, na
verdade, com o papel secundrio que era dado a mulher, nem na sociedade, na sociedade que ns,
n, temos, que uma sociedade que eles colocam como uma sociedade patriarcal, nem dentro do
hip hop, o papel secundrio que elas eram, na verdade, as namoradas, n, e eram poucas mesmo,
eram poucas meninas naquela poca que tinham um papel n, eram coadjuvantes, quer dizer, no
eram coadjuvantes, eram na verdade, protagonistas n, da cena, eram bem, eram muito poucas n.
E assim, eu ficava extremamente incomodada com isso e a eu ia, da tinha a So Bento tambm,
amos pra So Bento sempre, n, destinado as mulheres o papel secundrio e o machismo era
muito, muito, muito forte, se hoje forte, antes era muito mais.
(Beatriz)

No cenrio hip hop vemos a disputa de poder entre grupos masculinos e femininos.

Mesmo com esta diferenciao, as mulheres continuaram a produzir letras, cantar, apresentarem-

se em shows e no caso de Clara, o hip hop foi um espao no qual percebeu que a distino de

gnero demarcava diferentes acessos e reconhecimento.

Eu fui aprender isso, a distinguir isso dentro do hip hop. Porque as coisas aconteciam comigo e
eu achava que era uma coisa natural. O homem ser o dominante a mulher a dominada. Pra mim,
eu fui criada por mulheres n, meu pai morreu cedo, ento minha av, me, entendeu, irm, eu
tenho um irmo s, que o nico homem da famlia, ento isso se reflete hoje em dia, porque
agora em casa eu, minha filha, minha outra menina tambm que eu tenho como filha que mora
em casa, gatas, o nico homem da casa o J., entendeu. Mas assim, quando eu fui comear a me
relacionar com homens assim, no s na vida pessoal, mas de amizade, eu achava que era normal
por no saber, no ter a experincia dentro de casa, no saber, que eu achava que era normal
entendeu. E dentro do hip hop que a gente comea, porque as pessoas acha que s cantar, s
subir e fazer uma letra l, muitos acha que o objetivo do rap gravar um cd. No , entendeu.
Voc se informar, voc aprender...
Joana: Se envolver...
Clara: Exatamente, voc se engajar e com o conhecimento que voc adquire, repassar pras outras
pessoas entendeu, pra que seja uma, a informao seja mais fcil. Ento, dentro do hip hop que eu
fui aprender que isso existia, ento a gente comea a ter uma anlise maior, comea a ....
(Joana e Clara)

O movimento se constitui como um espao de aprendizado poltico, no qual os sujeitos

se percebem como construtores e agentes das relaes sociais. Se este aprendizado ocorre a partir

da insero no movimento, para algumas mulheres ele contribuiu na verificao de que ser

75
homem/ser mulher embasa diferenciaes de quais espaos sociais so atribudos para cada

categoria.

Eu percebi antes de entrar. Porque essa coisa....

Clara: Eu no tinha essa viso...
Joana: No nem viso, questo de, de, porque a minha famlia tinha essa coisa de relao de
gnero muito forte, n, e por exemplo, como era meu irmo que ia curtir, ento eu j via essa
coisa, No, ento, voc no pode porque voc mulher.
Clara: exatamente...
Joana: Ento, eu j tive isso antes, eu j tive isso antes, a eu, a eu, quando ele parou um pouco
de curtir, a eu entrei, n, e eu percebia isso tambm em quem cantava. S via homem, s ouvia
homem cantando. Eu vi a Paula uma vez, e depois eu mudei, e quando eu voltei, quando eu voltei
pra So Paulo, a eu vi a Clara, estourada. Cantando, lgico, c t me entendendo.(risos)
Clara: Dessa vez eu nem pensei em nada. Ainda isso, porque eu cantava com dois homens, eu
nem sei at que ponto, se eu ainda tivesse cantando sozinha se seria to mais acessvel...
Joana: A eu falei No, tem mulher cantando e eu quero cantar tambm assim. A foi, a eu fui
percebendo a dificuldade da mulher cantar na cultura. Que era assim, os homens queriam, quer,
queriam e ainda hoje fazem muito essa coisa, pra fazer backing, fazer um vocal assim de fundo,
mas assim, pra t lado a lado, n, pra...
Clara: So poucos...
(Joana e Clara)

Hoje eu tenho trinta e dois. E por uma, por uma, assim, por uma necessidade mesmo, teve
algumas passagens tristes e at um tanto violentas assim e que, que eu vivi, que me impuseram e
a eu tinha que ter... E o hip hop foi uma escapatria disso tudo pra mim. Minha me sempre dizia
assim pra mim: Olha, voc tem que ter cuidado porque, , ficar esperta com o mundo, porque
voc mulher e voc negra, e isso voc sempre vai sofrer uma discriminao com isso. No
assim desta forma, mas ela sempre dizia isso, minha me, uma pessoa semi-analfabeta, etc e tal,
que procurou da melhor forma que ela podia, dar instruo que ela tinha tambm, dar uma
educao pra gente para o mundo, na verdade, n. No uma educao, assim, nunca se
preocupou tanto de t freqentando escolas, etc, n. Num tinha essa viso, mas ela queria educar
para o mundo.
(Beatriz)

Participar do hip hop, em um primeiro momento, se constitui como espao de diverso e

expresso das mulheres. Foi por meio do envolvimento com o hip hop e posteriormente com o

Instituto da Mulher Negra, Geleds, que estas mulheres comearam a perceber que poderiam

atuar de forma diferenciada na construo do movimento.

76
Ns, que era o pessoal da poca, eu, Paula, DMN, n, Racionais, todo mundo assim, vrios
grupos que tinha naquela poca de 92, mais ou menos. Entre 90 e 92, e ali foi onde, eu sabia que
tinha alguma coisa, sempre brigava pelas mulheres, j tinha feito msicas mesmo n, que da saiu
algumas msicas, quer dizer, no tinha sado nessa poca que eu tinha entrado no Geleds, mas
tinha aquele burburinho do pessoal:... Vagabunda, num sei o que.... E eu ficava extremamente
irritada com isso, brigava, num sei o que... Bom, enfim, a quando eu entrei pro Geleds, foi a
que me deu todo o suporte n, e foi a que eu me descobri feminista, na verdade, foi entrando pro
Geleds, e na verdade, eu fui a primeira feminista do hip hop, n. At no domingo que vem
agora, ns vamos estar fazendo uma palestra l, eu e a Beatriz, na posse Haussa, que t
completando doze anos ali em So Bernardo, e o ttulo : O feminismo negro e o hip hop. E eu
tenho privilgio de ter levado o feminismo para dentro do hip hop, porque no existia, e nessa, e
as meninas, elas se sentiam extremamente constrangidas de falar contra os homens n, mas eu
sempre tentei colocar... E hoje que elas conseguem entender isso, no falar contra os homens,
falar em favor das mulheres e dizer que eles no podiam fazer de ns gato e sapato sem ter uma
resposta, n, para isso. Bom, ento assim, entrando no Geleds eu me instrumentalizei n, no
campo feminista e tambm me instrumentalizei pra defender os direitos n, femininos, dentro do
hip hop e travei brigas homricas assim, com as pessoas do hip hop, p, os caras na verdade, me
respeitam muito hoje, mas era muito engraado naquela poca n, e eu sou amiga de todos eles,
dos Racionais eu sou extremamente amiga, n, sou muito prxima, nem sei se existe isso,
extremamente amiga, mas sou muito prxima deles, tanto que assim, p, eu fui ganhar minha
segunda filha e quem me levou pra maternidade, quem foi me buscar foi o KL Jay, que eu
morava prximo a ele na Zona Norte n, o Brown foi na semana, na segunda feira passada foi at
a minha casa, ento assim, ns sempre fomos amigos mesmo e eu consegui manter isso, porque
eles entendiam qual era o meu ponto de vista. Porque assim p, c t cantando uma msica que
bitch quer dizer garota sem vergonha ou mulheres vulgares, eles falavam assim: Mas Beatriz, ns
no estamos falando pra voc... Voc nossa companheira, aliada. Eu falava assim: Foda-se.
Vocs no esto falando pra mim, mas esto falando das mulheres e eu sou uma mulher
entendeu. Se voc passar na rua, ver um branco chamando um preto de macaco, ou agredindo ele
verbalmente, ou mesmo fisicamente, de qualquer outra forma por ele ser negro, o que voc vai
fazer? Voc vai passar como se nada tivesse acontecido, ou voc vai em defesa deste negro?
Porque voc vai se sentir atingido, ento a mesma coisa com as mulheres. No importa de quais
mulheres voc esteja falando, da japonesa, da indgena, da loira, da morena, da negra, no
importa se da prostituta ou da santa, entendeu, eu sou uma mulher e eu quero ser tratada com
respeito. Ento assim, isso foi durante anos e at hoje na verdade. Ns tivemos alguns avanos
nessa rea, mas no assim, no uma coisa que possa se comemorar ainda, apesar que todo
avano pequeno um tipo de comemorao, mas no ainda. No d pra se comemorar porque
eu mereo muito mais, ns merecemos muito mais, ns mulheres, principalmente ns mulheres
negras, que historicamente ns fomos discriminadas, quadruplamente n, porque uma
discriminao, j tem uma discriminao contra a mulher, a depois contra o homem negro, a
depois contra a mulher negra n, numa pirmide por exemplo, de salrios etc. Ns somos o
quarto salrio dessa pirmide, ento vem o homem branco, depois a mulher branca, depois o
homem negro e por ltimo o nosso, o trabalho menos remunerado que ns temos. Embora,
tenho dados aqui, que eu trabalho com isso na verdade, n, de que a mulher negra a que mais
investiu na educao nesses ltimos anos, mais que a mulher branca, e somos menos
remuneradas.
(Beatriz)

77
 Como a entrevistada relata, a participao no projeto Femini rappers (a

instrumentalizao citada por ela) possibilitou uma mobilizao coletiva para combater as

discriminaes sofridas pela mulher. De acordo com Silva (1999), a aproximao entre o Geleds

e o movimento hip hop ocorreu

Em 1992, vrios rapper chegaram a Geleds depois de ouvir a interveno de uma

integrante da organizao em uma praa pblica de So Paulo, na qual se divulgava um
servio do Programa de Direitos Humanos, o SOS Racismo, no qual se presta atendimento
jurdico s vtimas de discriminao racial. H pouco, aqueles/as jovens haviam tido um
amigo rapper assassinado por um policial militar no metr de So Paulo (...) Inicialmente,
foram desenvolvidas intensas atividades para aqueles/as jovens para o exerccio da
cidadania. (...) Assim, a perspectiva de fortalecer o Movimento Hip Hop, um dos braos
mais ativos e vigorosos da luta anti-racista na cidade de So Paulo, trouxe para o Geleds
um desafio novo, ou seja, como tratar a questo cultural de maneira politizada, como
incorpor-la organizao de forma estrutural e orgnica, como criar um modelo de
trabalho com os jovens, pautado pela autonomia e incentivo ao crescimento ao invs da
tutela (p.94-95).

As discriminaes de gnero tambm foram preocupao da instituio, e a partir do

Projeto Rappers, institui-se o Femini rappers, visando estimular as jovens negras reflexo

sobre gnero e raa e produo de atitudes crticas em relao ao racismo e ao machismo

(Idem, p.96).

Segundo Paula, porm, o projeto no obteve um grande xito.

Paula: Noventa e dois, noventa e dois. Eu acho que a gente, o seminrio deve ter acontecido em
91, e a, foi a MC Regina, a MC Regina, a Lady Rap, a Cris D, . Teve outras meninas que foram
tambm, mas no ficaram, agora eu no me lembro por conta de qu. E a, o Geleds, o Geleds
e a Beatriz que era mais, assim, levantava a bandeira feminista, num sei o que, eles comearam a
trabalhar uma proposta de fazer um, de ter um (...) feminino que o Femini Rappers , que voc
falou, s que, assim, eu apesar de trabalhar dentro dos projetos eu trabalhava fora, sempre
trabalhei fora, como eu te falei, eu fazia as duas coisas, coisas que eu gosto, mas o meu trabalho,
eu trabalho porque eu preciso ter uma fonte de renda, ento comeou a se cogitar essa coisa. Mas
naquela poca tinha muita da coisa da vaidade, isso no era uma coisa s das meninas, os
meninos tambm, acho que de todos n, tinha que passar por um processo de amadurecimento, e
a assim, que uma coisa que eu acho que teria que ter acontecido na poca, o Geleds enquanto
uma instituio que detm um conhecimento , propor essa coisa de, , de construo, n, ento
78
eles queriam a construo a partir de algum, que que foi da Lady Rap n. Ento c tinha que
ter um processo de construo, ento: Somos essas? Somos, ento que vamos fazer, qual nome
vamos escolher, o que vamos fazer, o que que ns pretendemos, essa coisa toda. Ento eles
fizeram o caminho contrrio, n. Ento assim, atravs da Lady Rap, n, ento, a coisa no deu
certo. E no ia dar mesmo. O grupo no comea a partir de algum, o grupo comea a partir de
um conjunto.
E: Voc falou o Femini Rappers.
Paula: O Femini Rappers.
E: Ah, t.
Paula: Ento , no rolou.
E: Mas, qual que era o propsito do Femini rappers?
Paula: Ento, na verdade eu no sei, era mulheres trabalhando unidas, por algum objetivo, mas
que isso no chegou a se concretizar justamente pelo caminho que foi dado.
E: Ah t entendi.
Paula: N, assim, no houve um processo de construo. Algum disse: Olha, tem aqui o Femini
rappers e a o que que vamos fazer agora? Pera, o Femini rappers de quem, pra quem?
Como que ? Qual esse processo de construo?.
(Paula)

A entrevistada, ento, aponta que tambm dentro do projeto haviam conflitos, baseados,

principalmente, na vaidade. A vaidade apontada como um dificultador na constituio de um

grupo de mulheres fortalecido. As entrevistadas relatam que brigas nos bastidores poderiam,

eventualmente, ocorrer em virtude de uma rapper, ou um grupo, conseguir reconhecimento e

projeo diferenciados. Isto, porm, no permaneceu como um obstculo para que, anos mais

tarde, grupos feministas se constitussem no hip hop. Este processo visto, como no caso de

Clara, como um amadurecimento das mulheres que participam do hip hop.

Tinha a Paula n, que uma das pioneirssimas a meu, e eram poucas garotas n, e acabei me
identificando, enfim, fiz essa amizade com os dois meninos do meu grupo assim, tanto que a
gente tem o grupo at hoje, trabalha junto, e assim, era sempre, um sonho meu, pelo menos
assim, falo eu Clara, era um sonho meu ver mulheres assim, trabalhando no hip hop. Sempre foi
muito difcil, por falta de informao, por falta de comunicao, enfim, por falta de maturidade,
por egos, entendeu, meio, s que a gente, eu falo, a gente chegou num estgio de maturidade que,
a gente viu que..., a gente chegou num ponto assim dentro do hip hop, assim, eu, a Laine, a Chris,
se a gente no se uni pra fortificar vai continuar sendo essa coisa, aquela coisa diluda, aquela
coisa que meu, aquele mito, como voc mesmo falou, que difcil achar rappers, achar difcil
meninas no hiphop. Tem muitas, tem muitas, mas elas esto assim, espalhadas entendeu, ento a

79
gente resolveu... O Minas da rima surgiu primeiro como um show, teve um show, foi o primeiro
show que assim, no Brasil, s de mulheres, em todos os estilos...
(Clara)

Na verdade era um projeto, a Beatriz deve ter te falado, um projeto pra acontecer, porque assim,
ela tava trabalhando na prefeitura, os caras cederam o espao e a ela tinha que fazer alguma
coisa. A falou: , tem o Minas da Rima a tal, e a como que vamo fazer. Ah, no sei, vamo
conversar n (...), ento, a chamamos vrias meninas e tal, pra uma reunio.
E: Quem chamou, desculpa?
Paula: A Beatriz, porque o que eu te falei, ela tinha a proposta do espao e tudo o mais, s no
tinha assim, porque assim, na verdade, o que que ela queria fazer: um festival. Este festival ,
assim, teriam grupos do Brasil inteiro ou de So Paulo inteiro. S que no houve muitas
inscries, acho que umas nove inscries. Ela falou: mas, eu tenho que ocupar o espao. N,
porque assim, j tinha o espao, ...
E: , c fala o espao fsico mesmo?
Paula: Espao fsico, espao dado pelos organizadores de um evento.
E: Ah, t.
Paula: Ento ela pensou num festival, mas j tinha visto que no ia rolar. A, ela me chamou,
falou assim, porque eu j tava mexendo com outras vrias coisas de organizao. Falou: , Paula,
tem um espao a n, a gente, se tiver a fim, a gente podia ver pra ver o que a gente faz com as
meninas a, pra ocupar esse espao. Porque tipo, c t reclamando, reclamando de espao, da o
cara: , eu tenho uma casa pra voc fazer o que voc quiser, a voc no vai fazer, n. A ela
falou, a eu fui na reunio, acho que foi umas trinta pessoas assim, trinta mulheres representantes
de grupos, e a a gente fez uma grande reunio. E a, o que que a gente vai fazer, o que a gente
pode fazer?. No, olha, pode fazer assim, assim, assim, assado. Cada um deu a idia,
elencamos todos os grupos n, a chamamos pra uma segunda, terceira reunio, a foi diminuindo
n. A s ficou, s ficou eu, a Beatriz, e mais a Silvana e mais duas pessoas que eu no lembro.
Pra pensar na organizao, a a gente pensou que podia ser um grande show, que tivesse uma
abertura com todas as mulheres e a depois os grupos, assim, pra poder ocupar o espao e pra
poder mostrar todo mundo. Ento que cada grupo pudesse cantar uma msica e fazer uma msica
com outro grupo, a o outro grupo cantava a sua msica. E foi o que a gente conseguiu fazer. Eu
acho que a gente trouxe umas vinte bandas, e a a gente conseguir fazer isso da, e a a gente se
encontrou e a resolveu que no podia ficar s a, que a gente tinha que fazer mais coisas. E a a
gente comeou a fazer , , debates, n, , palestras, e encontros n. A gente foi, a gente foi pro
sul, pro Rio, n, pra Porto Alegre, pro Rio de Janeiro e algumas coisas a gente fez aqui em So
Paulo mesmo. , a atravs de uma organizao de mulheres do Rio de Janeiro a gente fez um
encontro, , que veio mulheres do hip hop de dez estados brasileiros.
(Paula)

O grupo Minas da Rima, portanto, surge da possibilidade da realizao de um evento e

com o sucesso do mesmo, constitui-se como uma organizao de mulheres assumindo posies

feministas. Elas participam de eventos, debates, discusses sobre a condio feminina e tambm
80
produzem shows, abrindo espao para outras mulheres se apresentarem, alm de fiscalizarem

eventos de hip hop que no contemplam a mulher. Uma destas atuaes/fiscalizaes foi

atribuio de 50% de representatividade de mulheres no evento promovido pela ONG Ao

Educativa, chamada Semana de cultura hip hop, que este ano realizou sua quinta edio. De

acordo com Paula:

De voc dar continuidade a esse perfil de poder n, e menosprezar muitas vezes, porque por
exemplo, na reunio da Semana de Cultura , eu levei a proposta de gnero, levei a proposta de
gnero, que assim, eu falei e o cara da casa, que tava representando a Ao educativa se
surpreendeu, n, mas achou muito bom, assim, ficou surpreso da proposta, mas assim, os olhos
dele brilharam, mas os meninos se chocaram, n, ento assim, ah porque so do hip hop? No,
porque eles so brasileiros criados todos da mesma forma. Ento eu entendo, mas o que eu no
entendo voc no querer mudar.
E: A proposta que voc fala foi da...
Paula: No de organizao, a gente no tem muitas mulheres com esse perfil organizacional, n,
porque no d pra voc exigir que todo mundo seja, n, mas como os homens se movimentam
mais, eles tm essa coisa do perfil organizacional, mas da efetiva participao das atividades.
Ento assim, falei: Vamos trabalhar a questo de gnero, 50, 50%. Salvo se no houver. Ento
assim, so quatro grupos hoje, dois de mulheres, dois de homens. Ah, no tem de mulher, ento
vai de homem, seno .
(Paula)

O Minas da Rima pretende, ento:

Pra dar visibilidade pras mulheres do hip hop, pra dar formao pras mulheres do hip hop
entendeu. Ento, esse fortalecimento, o objetivo geral, fortalecimento, visibilidade e
formao, n, s mulheres do hip hop e formao entenda-se como no s formao de, p
incentiv-las a freqentar um curso n, universitrio e tal, mas de instrumentalizao de como
agir em casos de violncia fsica, discriminao racial, violncia psicolgica, todo tipo de
formao e informao que uma mulher precisa.
(Beatriz)

No incio, porm, as mulheres do grupo no se assumiam como feministas. Segundo

Beatriz, as mulheres no tinham compreenso, inicialmente, do que o feminismo.

81
No tinha um entendimento do que era o feminismo e muitas vezes, quer dizer, a sociedade no
tem um entendimento do que o feminismo n, acho que ser feminista ser contrrio de
machista, ou aquelas mulheres loucas que queimam suti em praa pblica, entendeu. Ou essas
mulheres libertinas, n. esse o entendimento muitas vezes da sociedade. , na verdade, uma
distoro proposital, entendeu. Para as mulheres no se assumirem quanto e no terem fora
enquanto, n, feministas. E eu, mas assim, eu acho que isso uma coisa que ns estamos
conseguindo, em passos curtos, mas estamos conseguindo trilhar esse caminho, e pra mim uma
vitria, de qualquer forma.
(Beatriz)

Na pesquisa Mulheres brasileiras no espao pblico e privado, realizada pela Fundao

Perseu Abramo em 2001, no qual 2.502 mulheres foram questionadas sobre a compreenso do

feminismo, menes de superioridade da mulher em relao ao homem so associadas ao

feminismo por 12% enquanto para 7% feministas so mulheres autoritrias, genericamente

mandonas ou briguentas (SOARES, 2004, p. 165).

Pensamos que as mulheres, inicialmente, no compreendiam o feminismo como um

movimento social e faziam uma relao entre machismo e feminismo como correlatos, ou seja, se

por um lado o machismo implica na superioridade dos homens, o feminismo implica na

superioridade das mulheres. Segundo Sarti (2001), na dcada de 1970, inicialmente, ser feminista

tinha uma conotao pejorativa. (...) Para a direita era um movimento imoral, portanto

perigoso. Para a esquerda, reformismo burgus e para muitos homens e mulheres, independente

de sua ideologia, feminismo tinha uma conotao anti-feminina (p.39). Compreendemos, ento,

que as mulheres do Minas da Rima sentiram-se, inicialmente, incomodadas com esta

representao. O discurso, porm, das entrevistadas indica que o esclarecimento em relao ao

feminismo permitiu que a ao do grupo fosse dirigida para a reivindicao feminista atual.

Fora isso tem vrios projetos que eu me envolvo. Eu sou do conselho consultivo da vereadora da
Soninha, do conselho GLBT dela, n, ento, assim, eu nunca fico, eu posso ver as coisas,
acompanhar de longe, mas s vezes eu me envolvo assim. Agora que eu t, sou feminista, t, fao
parte de um grupo de jovens feministas, n, ento, eu me envolvo em vrios movimentos assim
pra, assim, no s pra questo de formao, questo de envolvimento, mas aquela coisa de
82
poltica mesmo. Nas minhas idias assim, se eu no tiver participando de algum movimento
assim, s vezes, eu fico sem cho, assim. A informao, eu no tenho contato com a informao
que eu preciso, at pra fazer minhas coisas n, minhas letras.
(Joana)

Mas, ento, isso, e desde o hip hop eu tentei dar essa dimenso pras pessoas n. Fui feliz, fui,
porque hoje eu tenho amigas minhas, como a Paula e a Clara, que tinham pavor do feminismo e
hoje se dizem feministas.
E: No comeo elas no...
Beatriz: Ham, ham, no, no. Eu sou a favor das mulheres, das mulheres. E a at quando
comeamos com o Minas da Rima, que o nosso projeto n, e futura organizao, e a... Mas eu
no sou feminista. Mas voc Beatriz, e no por isso que ns temos que ser. Sempre, e hoje
ns fomos num seminrio l no Rio de Janeiro, inclusive numa ilha l, que tinha quarenta
mulheres de onze estados representados n, e a quando perguntou assim, eu quero saber quem
aqui do grupo, todas, assim, do Minas da Rima pelo menos, eu, a Paula, a Biba, a Joana e a Clara,
todas levantaram a mo e isso me deixou tremendamente orgulhosa, porque voc n, eu consegui
vencer uma barreira, uma batalha, ali, que era dentro do meu prprio meti, meu prprio crculo,
mas foi bacana, foi bom .
(Beatriz)

Para pensarmos, portanto, como se constituiu a identidade coletiva do grupo Minas da

Rima, temos de considerar que o caminho trilhado por estas mulheres no movimento hip hop

forneceu um aprendizado quanto discriminao sofrida pelas mulheres a partir de relaes de

poder assimtricas. A identificao com a reivindicao feminista fomentou o surgimento do

grupo e o fortaleceu, definindo, portanto, a identidade coletiva a partir destes aspectos

objetivos/cognitivos. As mulheres se sentiam inferiorizadas pela discriminao de gnero e se,

num primeiro momento, suas letras j narravam a condio feminina, foi por meio do projeto

Minas da Rima no incio poderia ser percebido como um grupo feminino , que a

reivindicao feminista tornou-se o objetivo.

(...) ento esse o trabalho que hoje o Minas da rima pretende levar, uma organizao de
mulheres feministas, s que da terceira onda n, de feministas, que quer incluir, que quer
expandir.
E: Como assim, terceira onda?

83
Beatriz: Porque teve a primeira onda do feminismo, que foi na dcada de 60, tal, 50, 70, 50, 60,
70, depois teve a segunda onda, n, feminismo quando ele veio novamente, depois na dcada de
90, 80, 90, e essa a terceira onda, ns somos da terceira onda entendeu. Ento um movimento
feminista da terceira onda.
E: Que no seu ver, que difere, o que mantm? (...)
Beatriz: Ento, o que difere o foco de atuao das mulheres. Porque antes era pras mulheres
poder sair pra trabalhar n, aquelas coisas, depois era pra ter, pra ser respeitada enquanto
mulheres etc e tal, ter direito n, e hoje ns estamos aqui, brigando pelo direito ao aborto,
legalizao do aborto, ns estamos brigando pelo direito diversidade sexual n, ns estamos
brigando pela incluso e ampliao da juventude, e isso.
(Beatriz)

Segundo Corra (2001)

O movimento feminista no Brasil contemporneo, que teve sua maior expresso na dcada
de 1970, esteve intimamente articulado com outros movimentos sociais da poca:
movimentos populares que iam desde a luta por moradia, passando por melhores
condies de vida (gua encanada, luz, transporte), at a luta pela criao de creches nas
fbricas e universidades (o que era uma lei antiga, mas no cumprida); movimentos
polticos a includos movimentos pela anistia ao presos polticos, pela luta contra o
racismo, pelos direitos terra dos grupos indgenas do pas e o movimento dos
homossexuais (p. 13-14).

O Minas da Rima se insere na atual agenda feminista quando, por exemplo, se filia a

instituies e organizaes no governamentais que procuram questionar o lugar social ocupado

pelas mulheres na contemporaneidade, a violncia fsica e psicolgica sofrida por elas e a

reivindicao de direitos, como os direitos sexuais e a legalizao do aborto25. No presente ano,

as entrevistadas participaram de um encontro no Rio de Janeiro (Julho de 2005) para discutir a

violncia contra a mulher. Anteriormente, participaram do seminrio Hip Hop Mandando

Fechado em Sade e Sexualidade, realizado em Janeiro de 2005 em Nova Iguau, Rio de

Janeiro. A partir das discusses realizadas neste encontro, um CD de rap foi produzido e

distribudo para organizaes que trabalham com os direitos da mulher.

84
 Percebemos que o processo da constituio da identidade coletiva do grupo foi possvel

pela identificao com a reivindicao feminista, articulando as identificaes pessoais com um

objetivo comum; pelo processo de articulao entre os discursos individuais sobre a

discriminao de gnero, que possibilitou um convencimento, uma vez que as mulheres tinham

posies diferenciadas, mas atualmente posicionam-se como mulheres feministas; e o sentimento

de concretizar um sonho (Clara), de ver mulheres trabalhando juntas.

Apesar de t s eu e a Joana aqui, mas eu acredito que consenso geral. Igualdade. a

necessidade que cada uma sentia, mas como cada uma, cada uma sozinha tal, no encontrava
fora, da quando a gente resolveu conversar, assim, de conversa: Puxa, mas ela pensa igual a
mim, ela tem a mesma, a mesma vontade que eu, porque no juntar essa fora n. Ento uma
coisa, uma coisa abrangente assim, uma coisa que move as seis, a busca do espao, no s pra
ns entendeu, mas pra geral, de todas as mulheres, entendeu. o mnimo, o mnimo, tem que
ter espao isso, tem que ter abertura, tem que ter credibilidade assim.
(Clara)

Que pra mim o que ser feminista no ser contra os homens, lutar pelos direitos iguais das
mulheres, n, somos diferentes sim, somos diferentes na fora fsica, n, somos diferentes no
tamanho, no jeito, no corpo, nos fentipos at, mas no somos diferentes na capacidade de
raciocnio, no somos diferentes n, na questo de assumir cargos de poder de chefia, ento o
que ser feminista, lutar contra todas as formas de opresso e discriminao existente, n, ento
isso, e isso que eu tentei introduzir durante todo esse, esses meus 17 anos nos, quase 18, no
hip hop e, e o que eu sempre falava assim pro pessoal: Eu no consigo entender vocs, que se
vocs fazem parte do hip hop, que um movimento libertrio n, luta contra todas as formas de
opresso, pelo menos a opresso exercida sobre os negros, vocs vo fazer parte deste brao que
a opresso, que a discriminao um dos braos dessa mquina n, e um o machismo, o
outro a discriminao racial, a discriminao sexual, etc e tal e vocs s esto reforando esta
mquina, que se o movimento, se o hip hop libertrio contraditrio voc estar discriminando
tambm, que voc no est discriminando pela raa, est discriminando pelo sexo.
(Beatriz)

a partir do posicionamento grupal em relao aos antagonismos e conflitos vivenciados

no cotidiano engendrados pelo pertencimento e a compreenso dos processos de opresso que as

25
Na pgina da internet www.realhiphop.com.br/minasdarima, esto questes so discutidas em artigos, entrevistas e
enquetes.

85
mulheres sofrem, que entendemos que a identidade coletiva do Minas da Rima propicia a

constituio de uma identidade poltica (Prado, 2002).

Nesse sentido, a estruturao de crenas, interesses, valores e significados vai se

transformando durante o processo de mobilizao e, neste e atravs deste a constituio de
identidades polticas possvel, mas para tal necessrio que alm das relaes
intergrupais e entre grupos se estabelea uma relao de delimitao de fronteiras a partir
da passagem das relaes de subordinao para as relaes de opresso, e estas fronteiras
so vividas e experienciadas no somente como diferenciaes sociais entre as
categorizaes grupais, mas, pelo contrrio, como impedimentos e possibilidades de
conquista da equivalncia de direitos (Mouffe, 1992 apud Prado 2002, p.60).

Mais do que se constituir como um grupo de pertencimento, as mulheres hip hoppers

vivenciam um ns antagnico ao eles, no somente hip hoppers, mas homens. A igualdade

proposta por estas mulheres inscreve-se na noo de direitos baseada na diferena,

compreendendo que a opresso da mulher fruto de construes sociais e lutas polticas. Ser

mulher, para elas, no somente define lugares de pertencimento, mas tambm vivncias de

opresso, que as mobilizam para um enfrentamento pblico/poltico em um contexto especfico, o

movimento hip hop, e em outros espaos.

A construo de uma identidade poltica das mulheres no movimento hip hop promove

discusses sobre a discriminao de gnero que ordenam a vida social, no ficando circunscrito

ao contexto hip hopper. Isto sugere que para alm de prticas e pertencimentos (pertencimento ao

hip hop), buscam tambm um reconhecimento da diferena (homens/mulheres), articulando em

sua construo identitria reivindicaes ancoradas no discurso democrtico e de direitos de

todos os sujeitos sociais (demanda do hip hop), com o discurso de combate discriminao de

gnero (demanda feminista). Estas mulheres contribuem no fortalecimento do espao pblico,

entendendo este de acordo com as proposies de Habermas

86
 A essas experincias de construo de equivalncias e competncias, que subvertem
subordinaes e hierarquias, subjaz uma idia de esfera pblica enquanto um
procedimento, que toma com ponto de partida a pressuposio de uma certa paridade
entre os debatedores, permitindo que, a despeito de suas diferenas reais, eles possam
deliberar como se fossem iguais. Estes espaos, diz Habermas, instauram uma nova
sociabilidade na qual se deixa de levar em considerao diferenas de status. Uma
polidez da igualdade, uma certa paridade, cuja base a autoridade do argumento,
que pode se firmar contra a hierarquia social e chegar a uma igualdade e sensibilidade
entre pessoas de classes desiguais, igualdade do meramente humano (Dossi: os
movimentos sociais e a construo democrtica, 1998-1999,p.54).

Os crticos das consideraes habermasianas, entre eles a feminista Nancy Fraser (2002),

consideram que o autor, baseado em premissas burguesas, desconsidera as possibilidades reais

quanto participao equivalente de grupos, acenando que estes espaos so predominantemente

masculinos e definidos por uma elite.

Partindo do reconhecimento dessas excluses, Fraser apresenta o conceito de

contrapblicos ou pblicos alternativos. Esses seriam os espaos nos quais os grupos
sociais marginalizados e excludos da participao na vida pblica, poderiam afirmar sua
identidade, formulando e discutindo acerca de seus interesses, longe da superviso dos
grupos dominante. Seriam, assim, espaos profundamente relevantes, na medida em que
neles novos sujeitos polticos poderiam constituir suas identidades e projetos. Caracteriza
esses espaos, ainda, um relativo grau de homogeneidade, uma vez que as divergncias
internas existentes no atingem o grau do antagonismo que costuma-se encontrar em
espaos pblicos mais ampliados, nos quais o debate e a negociao envolvem pblicos
diversos, como, por exemplo, os espaos de co-gesto (Dossi: os movimentos sociais e a
construo democrtica, 1998-1999, p.59).

Compreendemos que o movimento hip hop inscreve-se no espao pblico como sujeito

poltico na medida em que, como mencionado anteriormente, apresenta-se reivindicando

reconhecimento por parte da sociedade e do Estado quanto s problemticas que afetam a

populao brasileira pobre e negra e atua como mediador para a realizao de projetos e polticas

pblicas que atendam este grupo.

87
O Frum, na verdade, ele t comeando, ele j, ele j existe a muito, mas ele t comeando a se
construir em regies n, que assim, o Frum efetivamente pra pensar em polticas pblicas
para que o governo possa incentivar, que o governo possa incentivar as aes de hip hop, todos os
seus profissionais, oficineiros que existem, a finalidade essas, pode at aumentar, pode at, sei
l, se pensar politicamente , da insero n, das pessoas do hip hop na poltica, mas efetivamente
isso n, pensar em polticas pblicas que seja de igual pra todo mundo n, pra t inserido. Ento
tem o Frum que eu tambm comecei l em 2002, n, o pessoal, a gente comeou a discutir essa
questo de frum e agora j t se espalhando por toda Grande So Paulo, e no interior tambm, e
em parte (...)
(Paula)

Em se tratando das questes relacionadas a gnero, porm, as mulheres do movimento

perceberam que alm de no existirem reivindicaes especficas quanto discriminao social e

econmica que afeta a populao feminina, o movimento hip hop se estrutura a partir de uma

ordem sexista e patriarcal. Foram impelidas, ento, a articular as demandas feministas com o

movimento hip hop, debatendo no espao pblico reivindicaes femininas/feministas, bem

como denunciar a violncia contra a mulher na sociedade e no hip hop. Pensamos que esta

necessidade foi gerada uma vez que o hip hop, como est estruturado, no contempla a

reivindicao destas mulheres, o que acarretou a construo de um espao contra-pblico se

pensarmos a partir das concepes de Fraser (2002). Se por um lado ocorre o fortalecimento do

grupo Minas da Rima a partir desta homogeneidade discursiva intragrupo, acarretando uma

articulao fortalecida no espao pblico, por outro, percebemos que o movimento hip hop

fragmenta-se em demandas e a possibilidade de concretizao da igualdade encontra mais

obstculos, uma vez que isto pode acarretar demandas irreconciliveis.

Como nos fala Souza (2002)

Uma questo importante, ento, sobre quais as possibilidades de participao dos

indivduos nos espaos pblicos, o que nos parece a grande demanda que as polticas
identitrias nos revelam. Tal demanda nos impe a necessidade de reorganizao ou, mais

88
 radicalmente, transformao da vida cultural, das relaes sociais e polticas no incio
desse sculo, o que configura um campo de tenso entre identidades (diferenas) e os
princpios universais que regem as instituies modernas ocidentais que ganharam
hegemonia atravs do exerccio do poder (material: tcno-econmico; ideolgico:
eurocentrismo ou euro-americanocentrismo; e militar: genocdios dos mais diversos
gneros). Se a pluralidade pode fragmentar, fortalecendo as relaes de poder dos ltimos
sculos, tambm pode enfraquecer essas mesmas relaes de poder. O enfraquecimento
dos poderes constitudos com base nos universais fundantes da modernidade implica
revelar as determinaes histricas desses universais que, na realidade, so particulares
que assumiram uma forma hegemnica (Laclau, 1995) ao apresentarem-se como bens
comuns conquistados pela humanidade. De fato, os universais principalmente o direito
liberdade e igualdade so conquistas histricas e representam uma metamorfose no
processo civilizatrio ocidental, o que no legitima que as formas de materializao desses
princpios na organizao social (na realidade nunca alcanada) sejam a mxima para sua
realizao. (SOUZA, 2002, p. 203)

Pensamos, portanto, que as demandas do grupo Minas da Rima inscrevem-se na

reivindicao por relaes sociais e polticas que comportem a pluralidade identitria referente ao

gnero, mas que esta no encerre as possibilidades de dilogo entre os sujeitos sociais,

inviabilizando um projeto comum. Como nos aponta Souza (2002), estas demandas

desmascaram esta pretensa universalidade que, por no se concretizar, impulsiona, por meio

das tenses geradas, o questionamento para a configurao de relaes sociais baseadas em

outros valores ticos (ainda por construir).

89
As mulheres na Casa de Hip Hop de Piracicaba

Em estudo realizado entre 2000 e 2002, integrantes do movimento hip hop foram

entrevistados para a realizao de um estudo no qual me inseri como bolsista de Iniciao

Cientfica26 e, segundo um dos informantes, em Piracicaba o hip hop est presente, pelo menos,

desde 1988. Inicialmente no se tinha o conhecimento da cultura hip hop, mas existiam grupos de

rap e break. Foram diversas as tentativas de organizao do movimento na cidade, entre elas o

Projeto hip hop, o Revoluo Breakers, a Associao Revolucionria (Souza, 2002). Essas

entidades, porm, comportavam interesses semelhantes, mas tambm conflitos e rivalidades

entre os grupos e bairros.

Atualmente, o hip hop em Piracicaba representado, principalmente (embora segundo as

entrevistadas existam grupos divergentes) pela Casa do hip hop. Esta organizao comeou

suas atividades em 2002 e segundo um informativo distribudo pela entidade:

A idia da Casa surgiu atravs de vrias reunies com participantes, colaboradores e

simpatizantes da Cultura hip hop, que tinha como objetivo um trabalho voluntrio voltado para as
comunidades da periferia, preocupados com a educao, a violncia, a marginalidade, a auto-
estima e o desemprego.

Segundo as entrevistadas, o objetivo da Casa do Hip hop de Piracicaba :

A gente quer impor o movimento sociedade e tal, mas , assim, a maior preocupao
molecada t pra rua. Tanto com o fechamento do Recanto, ento o que voc via, assim, a agonia
que d de ver a molecada no sinal, fazendo malabares e tal, pra t conseguindo dinheiro, alguns
se drogando, entendeu. , acho que assim, fora t impondo o movimento a sociedade, mais
preocupao em t auxiliando, em t ajudando essa molecada, em t tentando n, ocupar a

26
Formaes identitrias de grupos e comunidades singulares: o esgotamento do individualismo moderno e os
sentidos dos comunitarismos atuais. Orientado pela Profa. Dra. Telma Regina de Paula Souza.

90
cabea. Infelizmente a gente no pode fazer isso a semana inteira com eles, o dia inteiro,
entendeu. Mas pelo menos um dia t tentando, tentando envolver n.
(Juliana)

Ento, eu acho meio complicado, eu acho que sou a que tem mais restries pra falar do hip hop
no geral, eu conheo o trabalho da Casa do Hip hop, eu no conheo o hip hop bem assim, nem
fora da cidade, imagina no mundo n, mas assim, , eu penso, at porque assim , o hip hop
formado por pessoas, e por pessoas de ideologias diferentes, ento tem o hip hop podre assim,
tem o hip hop que pensa em gravar CD, fazer show e ganhar dinheiro, e ser um rapper bem
sucedido e tal, tem esse, tem pessoas assim no hip hop tambm, ento eu posso falar pra voc que
o propsito da Casa a questo, o grande propsito a questo do social, , no assumir o papel,
de repente, o papel do poder pblico: , j que a prefeitura no faz, vamos fazer ns. No, mas
mostrar assim que ns tambm temo, , o, nosso papel perante a comunidade e que a gente no
vive sozinho e que se a gente se isolar, se a gente no se constituir enquanto grupo, ns no vamo
conseguir nada mesmo. No, , a gente acha que o nosso grande propsito, eu sempre resumo
assim, pelo menos pra mim, , ns no vamos deixar... Ah, ns no podemos fazer o papel da
prefeitura, ento ns no vamos dar comida. No, ns vamo dar comida pra no morrer de fome,
porque morto no vai correr atrs do que precisa, ento , vem aqui, coma, s que o seguinte,
pra voc conseguir comida de novo, pra voc conseguir a sua casa, voc tem que ir falar com
esse, se voc precisar de mim voc me chama. T indo junto. Ento eu acho que o grande
propsito a questo do social, a questo dos direitos iguais em todos os sentidos, , na questo
de gnero, na questo de raa, na questo de igualdade social, econmica, ento pra mim a
grande bandeira do hip hop o social, por isso que eu no, eu no, gosto de msica de gringo l e
tal, mas eu no sei se eu me apio muito no hip hop deles porque eu no conheo, eu gosto muito
de MV Bill, porque faz um trabalho na comunidade e usa o hip hop pra isso, n, pra estruturar um
grupo, pra chamar todo mundo e pra criar multiplicadores a. De repente no da cultura hip hop,
mas de repente do trabalho comunitrio.
(Daniela)

(...) com a cultura, no necessariamente a cultura hip hop, a me identifico com, mas, eu vejo
que a cultura hip hop ela prega uma disciplina, ela prega uma responsabilidade, entendeu, ela d
um norte pra algum. Vamo supor, uma criana que no tenha expectativa nenhuma na vida e ela
pode ter um sonho, porque ela gosta de rap. Geralmente a periferia gosta dessas coisas ligadas a
cultura hip hop. Que o break, que o Dj, a dana, e a msica. Eles gostam, entendeu: Ento
vamo supor: Ai, meu sonho um dia ser cantor de rap. Vamo l ento. Entendeu. Eu acho que
isso pode disciplinar a vida dela pra ela ter um objetivo, e eu sinto que se um dia a gente tiver
promovendo um evento na Casa, e eles tiverem na rua, eles vo sair da rua pra ir assistir o evento
da Casa, entendeu. Tem muito trabalho de conscientizao, como palestras, sabe, eu acho que
isso pode preencher a cabea de algum, por exemplo, tirar a criana da rua pra levar pra l, pra
t aprendendo alguma coisa, pra acrescentar alguma coisa pra vida delas. No vamo falar assim:
Ah, o hip hop pode d futuro pra algum. , uma criana vai sonhar em ser monitor de algum
lugar com o breaking, pode ser que no ganhe a vida com isso, mas eu acho que isso vai dar uma
disciplina, uma responsabilidade pra ela sonhar, entendeu?
(Patrcia)

91
 Alm da participao de duas das entrevistadas (Juliana e Daniela), a organizao da Casa

do hip hop realizada por mais dois homens. Nosso interesse, porm, centra-se na constituio

do grupo feminino, ou melhor, na participao das mulheres. Por meio dos depoimentos,

percebemos que o interesse em desenvolver trabalhos scio-educativos com crianas em situao

de rua uma das principais atuaes da Casa do hip hop. As entrevistadas, ao falarem sobre seus

projetos pessoais e questes que lhes interessavam, reportaram-se principalmente questo

infantil e a insero em cursos do ensino superior com o intuito de fortalecer suas atuaes no

hip hop.

Gosto da rea, assim, de, da organizao. Eu gosto, gosto de montar o projeto, nunca sai do
papel, mas gosto de montar o projeto. E a minha inteno de fazer psicologia porque eu gostaria
de ter um projeto, montar um projeto pra trabalhar com menores infratores n, crianas de rua.
Quero fazer um projeto pra incentivar eles a sair da rua. Esse o meu sonho, no sei quando vai
ser realizado, mas... Isso da eu tenho em mente, sempre tive, n, eu sempre gostei de t
envolvida com esta questo social. Apesar de t um pouco afastada, mas continuo pensando (...)
com tema na Casa tambm, mas por motivos mais fortes eu no pude continuar. Por isso. Ento
essa inteno da psicologia n, trabalhar com esses meninos, esses meninos de rua.
(Camila)

, mas eu vejo assim, pra mim o hip hop, eu no sei se tem o mesmo sentido que pra eles, eu
acho assim, o hip hop no tudo, no vai transformar o mundo, o hip hop pelo hip hop, eu vejo
que o hip hop mais uma ferramenta, mais um instrumento, assim como foi pra mim, na minha
profisso. mais um instrumento pro mundo, ento eu me vejo no hip hop como mais uma, uma
pessoa ali pra mostrar pros mais novos, porque assim, os mais velhos que to ali so at mais
carudos do que eu, at mais, sabem mais dos direitos deles do que eu, se algum proibir eles de
alguma coisa, eles vo dar um jeito tal, mas assim, pros meninos mais novos eu t ali pra mostrar
pra eles que eles tambm podem.
(Daniela)

A atuao na Casa, portanto, orientada pelos interesses pessoais conjugados com os

interesses da instituio. Assim, identificam-se com o hip hop e sentem fazendo parte de um

objetivo maior ao integrarem o movimento.

92
 interessante ressaltar, no entanto, que estas mulheres no realizam as atividades

artsticas. No so elas as oficineiras ou rappers, grafiteiras, danarinas. Elas so integrantes do

hip hop, mas atuam na organizao dos eventos; possveis contatos com outras entidades e

participam das reunies.

totalmente o quinto elemento n. Porque tem os quatro, que o break, o, a msica e a

composio, que o grafite, que , os quatro l, e o quinto que eles falam que sabedoria n.
Mas no que , sabedoria. nossa participao por fora mesmo. De organizar evento, de dar uma
estrutura, a parte de burocracia. Eu s no mexo com a parte de dinheiro. Tem as tesoureira, que
a Juliana, a Luana, que a secretria. E eu dou um suporte assim sabe, tento correr atrs de
alguma coisa que eu posso. Eles falam: Viu, t precisando de tal coisa, vamo l. Vamo l. Ou
participo das reunies, opino bastante, porque eu falo muito sabe, e assim, mais essa parte
burocrtica mesmo entendeu, de eu poder t contribuindo com o que eu sei pela faculdade, na
questo de estatuto, na questo de regimento interno, mais essa parte mesmo n. Participo dos
eventos s organizando. Eu vou assistir, eu apio. Tento.
(Patrcia)

Ento, eu no fao parte de nenhum dos elementos artsticos, DJ, Break, grafite e MC, at me
arrisquei a ajudar os meninos a escrever algumas letras de msica, essas questes assim, mas eu
no fao parte de nenhum desses elementos, eu fao parte do quinto elemento que a questo da
conscincia. Ento, t sempre digitando projeto, resolvendo assim problemas mais, papel
assim.(...) Quem t danando no vai poder sair da dana pra buscar o que precisa, porque t
danando, t fazendo, ento eu acho que o meu papel especfico no hip hop esse, t por fora,
nos bastidores n, tentando dar o mximo de estrutura que eu puder, pra que acontea legal o
evento, ou a oficina. Ento assim, o Sesc t chamando bastante a gente, a gente no trabalha no
Sesc sem projeto, tem que, tem que apresentar o projeto do que ns vamos fazer, e os meninos
trabalham o dia inteiro, eu sou a nica que trabalha at o meio dia, ento eu digito os projetos,
levo pra Casa, a gente l: E a, t legal, t...? E eu procuro fazer assim, , fala pra mim o que voc
acha que vai acontecer, rascunha alguma coisa que eu estruturo e trago de volta, porque a oficina
deles, ento eu no acho que tenho esse direito de atropelar, fazer do jeito que eu quero: ,
voc faz isso. No, eu acho que o meu papel l mais nos bastidores mesmo, mais de
estruturao, de auxiliar de oficina mesmo, de estruturar a oficina.
(Daniela)

Assim, a gente cuida mais da parte da organizao, digo a gente, eu e a Daniela n, eu assim,
atualmente estou como tesoureira da Casa, s que qualquer correria. Vai fazer um evento, alguma
coisa, a gente faz de tudo n, at limpar banheiro no final do evento, mais a parte de organizao
mesmo, no levo jeito pra cultura, pra danar, pra ser DJ, s organizao, correria mesmo.
Organizar papis, ajudar a Daniela nos ofcios, essas coisas, mas o restante... Eu tenho vontade de
danar, grafitar, mas no levo jeito.
(Juliana)
93
 As duas rappers que fazem parte da Casa, como j mencionado, no puderam participar

da pesquisa. Segundo as entrevistadas, atualmente, elas esto afastadas da organizao por

estarem trabalhando no perodo no qual ocorrem reunies. As mulheres que conversamos,

portanto, trazem dados sobre a organizao da entidade, porm declaram que o interesse em

participar do hip hop advm da percepo de que os elementos artsticos atingem crianas e

adolescentes (pelos ritmos, cores, sons) e assim promovem formas de sociabilidade baseadas na

disciplina, solidariedade, respeito. As mulheres se vem participando do movimento quando

auxiliam os homens na confeco das oficinas, em reunies, fazendo sugestes. interessante

registrar que elas, alm de no participarem dos elementos artsticos, tambm no so ouvintes da

msica rap. Somente uma das entrevistadas, Camila, tinha experincia com um grupo de rap, no

qual ela participou como backing vocal. As entrevistadas, ento, quando questionadas sobre suas

percepes quanto a letras que traziam a mulher como personagem, respondiam que no tinham o

hbito, embora escutassem eventualmente, de ouvir rap, tanto produzido por homens e mulheres.

Porque eu me identifico com a cultura, entendeu. No vou falar pra voc: Ah, eu chego em casa e
escuto rap, porque eu vou t mentindo pra voc, entendeu. Mentira. Falar assim: Ah, eu chego em
casa e fico l curtindo rap. Mentira. C chega em casa e tenta grafitar alguma coisa, palhaada.
Eu no tenho nem coordenao pra pegar no spray, sabe. C chega em casa e fica tentando
compor uma msica. Imagina! A gente brinca, fica eu, a Juliana e a Daniela que vamo ficar de
backing vocal para os meninos, mas tudo brincadeira, entendeu.
(Patrcia)

Muito difcil (escutar rap). O que eu conheo a Negra Li n, que canta rap, eu acho que s. Eu
acho que especificamente assim, que faz parte do movimento eu s conheo ela. Tem outras, mas
eu no sei falar pra voc, quem , eu acho que eu conheo daqui da cidade esses dois grupos que
eu falei, tem mulheres que fazem parte, parte do grupo dos meninos. De homens, geralmente todo
grupo de homem tem uma mulher. Geralmente, mesmo que seja s pra fazer backing vocal, uma
participaozinha, mas tem. E de artisto, mais assim, eu conheo s essa. Tem umas, tem umas
outras meninas, mas eu no sei falar pra voc.
(Daniela)

94
Olha, produzido por grupo feminino nem tanto, eu ouo mais Negra Li, entendeu; a prpria
Sabrina e Vanessa que so as MCs l da Casa, tal, tanto porque no tem tambm. No tem
muito grupo feminino. A que eu mais ouo mesmo Negra Li.
(Juliana)

Eu falei: Olha, o rap eu no sei se eu vou conseguir cantar, rimar, eu falei, mas o backing eu fao
pra vocs, porque eu cantava na Igreja, ento j me acostumei com a questo de cantar, mas dos
elementos eu no cheguei a fazer nenhum.
(Camila)

Podemos pensar, portanto, que diferentemente do grupo constitudo em So Paulo, os

objetivos e finalidades para as mulheres que participam do hip hop piracicabano concretizam-se

nas atividades realizadas com crianas e adolescentes, como oficinas de break e rima que

acontecem na Casa, interferindo no cotidiano destas crianas (que poderiam estar na rua).

Entendem que estas oficinas e a aproximao com a cultura hip hop fornece s crianas modelos

identificatrios adequados constituio humana, como o respeito e a disciplina. Contribuem,

portanto, nesta interveno quando organizam eventos e tecem sugestes em relao aos projetos.

A constituio da identidade coletiva para estas mulheres, ento, conjuga seus interesses

pessoais e o propsito do hip hop (na percepo delas), construindo um campo de ao no qual

elas conseguem expressar e realizar projetos pessoais dialogando com o interesse da organizao

(que se por um lado aglutina interesses de outras pessoas, tambm define o campo de ao a

partir desses mesmos interesses). No que se refere rede de relacionamentos estabelecidos entre

as mulheres (elemento importante na constituio da identidade coletiva), percebemos que elas se

vem e percebem os outros como amigos que discutem interesses, alguns conflitantes, mas que

por meio de negociaes, conseguem imprimir na Casa do hip hop objetivos comuns. As

divergncias geralmente ocorrem na definio de como ser o evento ou show.

95
A gente tem reunio todo sbado e a nessas reunies a gente sempre t decidindo , o que vai
fazer, algum convidou a gente pra ir em tal lugar, ns vamos, no vamos, e, qual que o meu
papel assim, especfico no hip hop, eu t assim, sempre junto, independente: ah, vai s o pessoal
da dana, eu t l pelo meu envolvimento. (...) Eu acho que depois de quatro anos da Casa, no
participei do comeo, no posso falar como era, mas acho assim, que o grupo se estruturou agora,
mas lgico, vai entrar mais gente, mas eu acho que no sai mais ningum, acho que tem ali agora
porque , ento ficou um negcio assim, de amigos mesmo, , tentando no deixar acontecer
com as outras pessoas o que aconteceu com a gente, da questo, principalmente com eles n, de,
moravam em favelas e tal, que a Paulicia era muito mal vista na poca que eles eram meninos
n, de no deixar acontecer do, da questo do preconceito, da questo do, da, de negao da raa,
da questo da auto-estima, da questo da escola no ter a cara da comunidade, ento eu acho que
t bastante assim.
(Daniela)

Camila, uma das entrevistadas, se afastou da Casa do hip hop por causa de um

desentendimento entre seu namorado e um dos integrantes da Casa.

Foi por causa do, no lembro se era, ah, foi um racha que teve n, no lembro o que seria, seria
aniversrio ou alguma coisa, foi um racha que teve e por causa do, de ter acontecido o que, de ter
colocado os mais velhos pra danar com os, os oficineiros menores, que tavam comeando,
tavam iniciando na dana, da o Fer acabou discutindo com o Beto que no era certo, no era
justo, colocasse os, quem tava iniciando com quem tava iniciando, os grandes com os grandes, e
a acabou discutindo, e ele acabou se afastando e aquele problema, se eu for e ele no for, o
bico fica daquele tamanho. Ento pra no contrariar eu parei de ir junto tambm.
(Camila)

interessante notar que somente Camila trouxe dados sobre a inteno de se constituir em

Piracicaba um grupo feminino/feminista.

Camila: . Ele dana, da, eu sou apaixonada por negros n, ento j chamou a ateno por ele
ser negro, pela dana, depois a gente fez amizade, a depois de um bom tempo a gente veio a se
conhecer, acabamo namorando, da eu comecei a conhecer o movimento, conheci o B., o pessoal
da Casa, o que era, a histria, o grupo que ele participava na poca, ento da que a gente tentou,
tentei montar como se fosse uma Casa do hip hop mas pra mulheres mesmo, s que a gente no
tinha oficineiros, a gente conversou, o pessoal daqui, ningum acreditou e at mesmo t no papel
e a gente no conseguiu tirar do papel. E assim, eu no sou feminista e as meninas que tavam
comigo j eram feministas, ento no tinha como levar avante entendeu?!
E: Como assim?
96
Camila: No queremos homens, queremos mulheres. Mas as mulheres no hip hop minoria,
ento pra ir avante a gente ia precisar de um DJ, de um MC, de um b.boy pra t dando as oficinas,
n, mas como a gente no conseguiu, cada uma foi pro seu lado, no mexeu com isso.
E: Ah, fala um pouquinho mais assim. Voc conheceu essas meninas onde?
Camila: Na escola. Elas estudavam, uma estudava comigo e as outras, e montaram um grupo n,
e elas assim nunca cantaram e tal, s tinham vontade. S que na realidade, uma queria ser Dj,
outra queria ser grafiteira, e a outra, era realmente o sonho dela era ser MC. Essa, ela assim, ela
no aceitava mesmo, os meninos. Era totalmente assim, diga no aos homens sabe. Ento, no
tinha, ento a gente no teve dilogo. Da as meninas desistiram de cantar, falou No, eu vou
tentar uma oficina, vou tentar um, n.., pra conseguir alguma coisa. Uma delas fazia mang,
uma delas fazia manga, falou: Eu t na rea, eu sei desenhar manga, quero trabalhar na rea do
grafite, tal. A gente conversou com o pessoal do, , como que fala, bocada forte, o pessoal da
bocada forte, a gente entrou em contato com ele, eles vinham pra c, mas a questo social nossa
tambm, eles falaram, as meninas: No, no tem como falar: Vamo montar um dois dias, um
sbado e um domingo de qualificao, de oficina. Ento da a gente falou: Ento melhor a gente
parar por aqui, n, agora no sei como elas esto.
E: Mas s pra entender melhor assim, era, tinham vocs, a uma queria danar, uma queria cantar,
n...
Camila: Isso, isso, isso, e eu ficar com a parte de, eu organizar a parte administrativa, e elas iam
ficar com as oficinas, caso elas conseguissem...
E: Elas iam dar as oficinas.
Camila: Isso.
E: S que elas j manjavam, elas j sabiam?
Camila: No, no. Nenhuma sabia, tinha letra. Elas tem letra, letra de rap mesmo, mas manjar de
Dj, grafite, essas coisas elas no manjam.
E: Por isso a bocada, o pessoal da Bocada forte ia vir...
Camila: Iam vir pra poder dar um, fazer tipo assim, a cada ms, ou um ou dois finais de semana
eles vinham pra fazer uma oficina de capacitao pra oficineiros. Eles vinham pra c, s que a
gente tinha que bancar ele, arrumar um espao, gasolina, alimentao pra ele. A gente precisava
disso, mas a gente no teve condies, a eu falei: Ah, ento a gente leva esse projeto na Casa...
E: Na Casa da Paulicia..
Camila: Isso, na Casa da Paulicia. Eu falei: A gente leva o projeto. S que com o B. elas n, no
se bicam, ento...
E: E voc sabe porque elas no se do bem com o B.?
Camila: Ah, eu acho que questo assim dela mesmo entendeu. preconceito dela, em si, dela
mesmo.
E: Pelo B. ser homem?
Camila: , pelo B. ser homem.
E: Ah, entendi.
Camila: Elas so muito feminista, muito, muito. E eu no sou, no tinha como levar avante isso.
Era tipo Black Phanters sabe (risos), elas achavam que era Black Phanters, ento no dava pra...
Penso em montar um projeto, a gente tem, no bairro, j abriram espao, quando a gente precisar
montar um projeto eles do, cede a escola, o centro comunitrio...
E: Aonde?
Camila: No Jardim Oriente, o bairro onde eu moro. Eles falaram: , se precisar montar algum
projeto a, as portas esto aberta por causa da molecada.
E: Mas voltando um pouco no caso das meninas, no virou nada?
97
Camila: No virou.
E: E mas, voc sabe porque se juntou a mulheres e no a, foi o caminho que voc achou?
Camila: Foi, surgiu, elas assim, falaram assim que a nica pessoa que tinha o pulso firme n,
como elas, foi o que elas usaram, era eu pra poder t desenvolvendo o projeto com elas.
E: Ah, entendi.
Camila: Elas precisavam de uma ajuda, no tinha como elas colocarem no papel, no tinha idia
de como fazer, e a questo, a gente ia discutir os quatro elementos e ia discutir a questo de
sexualidade, drogas, , beleza n, tipo, a gente tinha, tinha um amigo meu que ia dar oficina de
tranas, a gente queria colocar isso, queria montar um coral com crianas, um coral, como se
fosse um, assim, pessoal, tipo soul, jazz, assim sabe, misturar o pessoal, tipo aquela Mudana de
Hbito da freira (filme), a gente queria, sonhava com (risos) um coral daqueles, mas no foi pra
frente.
E: E foi meio abandonado assim?
Camila: Foi, no, a gente decidiu, falou: , em Janeiro a gente se encontra, (...), s que depois
disso...
E: Em Janeiro desse ano vocs falaram que iam se encontrar...
Camila: , isso, de 2006, a gente ia se encontrar em 2006...
E: Porque esse projeto, essa idia...
Camila: Saiu esse ano mesmo...
E: Foi esse ano que vocs pensaram.
Camila: Foi esse ano que saiu, a, num sei, acho que foi numa festa que tava eu, o B., a Juliana,
elas no gostam muito da Ju n, ento, da no outro dia a gente se encontrou e ela mudou de
calada e no cumprimentou, s que como no tinha problema nenhum comigo, eu falei: Ah, eu
no devo, ento no vou correr atrs, no vejo necessidade pra isso, ento foi isso...
E: Uai, ento ela tem algum problema com o pessoal da Casa, no s questo do B. ser
homem...
Camila: Tem, tem. que assim, so brancas, filhas de negro com branco, entendeu, como eu,
meus pais, meu pai moreno, minha me branca, s que o meu av, ele negro, pai do pai,
ento, elas, apesar de serem de pele branca, elas no aceitam uma mulher, uma pessoa branca t
trabalhando com um projeto de negros, entendeu. Mesmo ser, um preconceito que tem entre ela,
tipo a Ju, ela no aceita a Juliana pela Juliana ser branca, s que eu sempre deixei ciente que a
Juliana faz coisas que uma menina negra no t fazendo l dentro da Casa, entendeu. Sempre
deixei claro isso, ento pra mim assim sempre foi, sempre vai ser, nossa, uma amiga pra todas as
horas, a Ju (...), ela muito boa. Nossa...
E: Ah, entendi, ento tem uma coisa tambm de...
Camila: , acho, preconceito delas mesmo, sei l.
E: Ah, ento essa idia tambm recente.
Camila: recente, recente.
(Camila)

As outras entrevistadas, porm, no trouxeram informaes sobre esta tentativa de

configurao de um grupo feminino. De acordo com Camila, as outras mulheres que estavam

envolvidas neste projeto, alm de no se relacionarem bem com um dos organizadores da Casa
98
do Hip hop (B.), tambm no possuam afinidades com Juliana. Camila indica duas

possibilidades para tal conflito: o fato de B. ser homem e de Juliana ser branca. Podemos supor

que as mulheres que pretendiam organizar o grupo feminista no legitimavam a participao no

grupo de homens e brancos, nem to pouco uma eventual parceria com a Casa do hip hop.

Entendemos que isto evidencia que o movimento hip hop, em uma cidade de mdio porte como

Piracicaba, enfrenta a multiplicidade de posies sobre os objetivos, os sujeitos e as aes que

este movimento deve assumir27.

O grupo responsvel pela Casa do hip hop um grupo coeso, mas que tambm

permeado por negociaes e desentendimentos que refletem na ao desenvolvida pelo grupo e

naqueles que dele participam.

Quais seriam os sentidos que permeiam a formao deste grupo? Pelo o que pudemos

compreender dos discursos femininos, o hip hop um instrumento que possibilita a

concretizao de seus anseios, ao mesmo tem em que constitui identidades. Assim, ao mesmo

tempo em que as mulheres percebem que seus interesses refletem na constituio do grupo, este

oferece posies de identificao para elas.

Em todos os lugares. Eu acho que assim, esse o interessante, em todos os lugares, porque eu
sempre fui, eu sempre fui desse movimento sem saber que ele existia n. Eu sempre gostei de
muito, das coisas que trabalha o movimento, das coisas da ideologia e tal, mas eu no, eu no o
conhecia, e a eu consegui me expressar em todos os lugares que eu vou, independente se no
Partido, se na escola, se , em Santa Olmpia que no conhecia o movimento, tinha idia assim
por televiso, e ns levamos esses dias o pessoal pra l pra t danando. Eu consigo me expressar
atravs do hip hop. Na igreja, no..., ento eu acho que tudo...
(Daniela)

Juliana: Mais pelo, me identifico mais pelo social mesmo. Adoro a cultura, no conhecia pra
mim, conhecia s o rap n, a msica e no conhecia mais nada. Adoro, conheci um mundo novo

27
Infelizmente no conseguimos entrevistar estas mulheres, aps algumas tentativas de localizar o grupo citado por
Camila.

99
pra mim, porque eu cresci n, mas pelo social mesmo. Por t vendo assim , tanta gente
necessitando da ajuda que a gente t tentando passar. Tanta molecada pra rua, sabe. Que mais me
empolga mesmo saber que assim, bem no fundo, mesmo que seja pouca coisa, c t
conseguindo fazer alguma coisa pra algum. Pra t melhorando a situao de algum, pra t
ajudando algum entendeu. Principalmente com moleque, com criana, bem o social mesmo n.
E: E voc se sente reconhecida dentro do movimento ou dentro daqui de Piracicaba?
Juliana: Olha, eu me sinto dentro do movimento, eu me sinto. Assim, porque, s vezes t
discutindo alguma coisa, de repente c bate o p: No, isso, isso, isso. (...) Agora assim eu t,
me sinto um pouco reconhecida sabe, o trabalho que eu fao l dentro, at, mais pelo pessoal l
dentro mesmo. Agora a gente, , saiu uma matria minha e da Daniela no jornal, naquele Gira
Pira, ento o pessoal t, s vezes passa na rua: Ah, o hip hop t legal, seu trabalho, beleza. Sabe,
difcil achar uma mulher no hip hop, tal, tal, tal. Agora sim eu t me sentindo mais
reconhecida, mas o pessoal dentro, dentro da Casa mesmo eu me sinto bastante reconhecida.
Tanto eu quanto a Dani, sem, sem comparao.
(Juliana)

O reconhecimento conseqente participao no movimento hip hop, construindo

uma possibilidade de pertencimento ao mundo (SOUZA, 2002). A participao no hip hop

constri sentidos para a identidade pessoal das entrevistadas, que se vem contribuindo na

constituio de uma sociedade mais justa.

As discusses e posicionamentos diversos que constituem o grupo afetam diretamente na

construo da identidade dos sujeitos que dele participam.

, eu era contra, eu achava que no tinha que ter porque eles tem capacidade de entrar e, e a
depois acabamo ferrando numa discusso, na poca, das cotas e tal e da eles conseguiram fazer
com que eu entendesse que a questo das cotas assim : Enquanto no tiver, por exemplo,
enquanto no tiver um professor negro, o aluno no vai se identificar enquanto professor,
enquanto no tiver um advogado negro, os, as crianas no vo se identificar enquanto advogado.
a figura, porque a gente abre uma revista e v l um monto de gente branca. A gente se
identifica. Eu posso ser artista, eu posso ser, e o negro no, ele se via onde: no pedreiro, ele se
via, sei l, e ele se identificava com isso e a maioria ia pra isso. E a eu acabei percebendo que as
cotas pra dar oportunidade pra mais pessoas estarem em outros tipos, independente de ser bem
sucedido ou no, mas em outros tipos de trabalho, de servio, ou de posio, pra que o negro
criana se identifique com aquilo e possa lutar pra chegar l. Ento assim, depois dessa conversa
eu aderi 100% a questo das cotas, e uma outra coisa que mudou bastante foi assim, eu sempre
tava envolvida com a comunidade, envolvida nos movimentos, mas no diretamente. E depois de,
de entrar na Casa eu percebi que se no for diretamente no adianta, se eu no tiver l pra dar a
minha cara, se eu no tiver l pra, e a eu comecei a fazer parte de reunies, das sesses da
Cmara, dos, de coisas assim mais concretas, onde eu estou mais diretamente envolvida. Ento
100
serviu pra, pra eu falar: No, eu tenho que estar. O trabalho pode ser de bastidores? Pode. Mas eu
tenho que t l, seno no faz a fora. E essa questo das cotas que foi bem, e assim, muito, eu
sou muito cabeuda tambm, muito difcil eu me rever assim. Foi uma questo concreta assim,
que, e eu at convenci uma menina negra da minha classe que ela no tinha que ser a favor. Fazia
pedagogia. Eu convencia ela que ela no tinha que ser a favor, porque o pessoal tava falando, eu
falava pra ela: O pessoal tava falando que o negro no tinha a mesma capacidade da gente. E a
questo no essa n, no de inteligncia ou no, no de capacidade ou no. de
oportunidade, de oportunidade, de histria, histrico. Mas essa uma concreta e a outra foi a
questo de t envolvida mais diretamente, de ir pra reunio, de chamar reunio, de fazer evento,
de fazer evento e ir trs pessoas. E da? Na outra vai cinco, na outra vai quinze, na outra... Ento
eu acho que isso...
(Daniela)

O processo que envolve a constituio da identidade coletiva na constituio do

movimento social congrega espaos de discusso, posicionamentos, negociaes, interesses, que

determinam a ao coletiva ao mesmo tempo em que oferecem sentidos para a construo

identitria dos sujeitos. Diferentemente do que ocorre no grupo Minas da rima, as mulheres de

Piracicaba no possuem demandas feministas, e o discurso delas ora se apresenta como uma

busca de ajudar o outro, configurando aes assistencialistas, ora como se percebendo como

sujeito poltico, como o discurso acima citado. Compreendemos que as mulheres no hip hop ao se

responsabilizarem pelo fortalecimento comunitrio constituem identidades polticas, que como

salienta Souza (2002), possuem como ponto nodal identificatrio a cidadania, ainda que esta

possua traos assistencialistas.

O ser modelo, dolo, espelho, quase um Deus encarnado, solidrio, amigo, mensageiro
de um protesto, de uma denncia, o grito da periferia permite a construo de um
dignidade moral que passa a definir regras de conduta social. Eles passam a ter
obrigao de manter uma identidade positiva que referncia para outros, a molecada.
(Souza, 2002, p.73).

101
 Compreendemos que a identidade forjada no hip hop piracicabano pode ser

compreendida como uma inscrio poltica, na medida em que as reivindicaes do grupo

perpassam a busca pelo reconhecimento identitrio, que conforme apontou Souza (2002)

(...) a identidade de um, do outro, de um ns ou um eles, balizada segundo as foras

sociais que sempre divergem entre os elementos constituintes de uma configurao social,
quer seja no plano micro ou macro destas configuraes. Tais divergncias, inconciliveis,
criam campos de tenso que nos remetem a arena do poltico. Assim, identidade um
movimento que sempre refere-se a poltica ou s formas de constituio e legitimao de
uma estrutura e dinmica social (p.14)

Compreendemos que as identidades construdas no movimento hip hop so diversas,

como podemos observar por meio da comparao entre os dois grupos pesquisados, mas ambos

se referem a uma constituio de um ns, em oposio e construo de um eles, e percebem

as discriminaes (sociais, raciais, econmicas e de gnero) como resultado do ordenamento

social, ainda que para um grupo esta discriminao perpassa as construes de gnero, classe e

raa e para o outro inscreve-se mais nas distores em relao classe. Acreditamos que isto

reflexo, principalmente, das representaes diferenciadas quanto discriminao de gnero, bem

como do percurso pessoal traado no movimento hip hop.

Para alm da compreenso da identidade forjada pelo movimento hip hop, interessa-nos a

percepo destas mulheres em relao ao gnero. Elas integram um movimento que por muitos

considerado machista, e nos perguntamos como elas se sentem fazendo parte de um grupo

considerado como tal.

102
Minas da Rima e Casa do Hip hop: percepes sobre a mulher e sobre feminismo

As mulheres do grupo Minas da Rima comearam a participar do hip hop quando este

ainda se estruturava espontaneamente no contexto brasileiro. Eram homens que participavam do

hip hop e as mulheres buscavam identificar-se neste contexto.

Aqui , aqui, tudo de bermudinha e tal. Aqui tamo de bermudinha, as meninas esto de cala,
aqui . Ento assim, aqui , a gente t de bermuda ou shorts, a tem a gente t de vestidinho, aqui
. Ento assim, a gente trabalhar a feminilidade, n. Ser o mais feminina possvel e podendo
sempre mandar a mensagem nervosa. Ento, s que o que acontecia, no comecinho mesmo, a
gente ia pra So Bento tudo, era uma poca que os meninos usavam n, usavam agasalho, pra
fazer batalha era agasalho mesmo n, mas era uma poca que os meninos usavam muito preto.
Muito preto, ento assim, tinha aquela coisa de identidade n, como voc se identifica dentro do
hip hop. E a assim, voc olha, os homens todos iguais, e as mulheres? No tem mulher. Ento
essas meninas que eu te falei, a Renata e as irms dela, elas usavam assim , esses colante, essas
calas coladinhas e tal, pra ter mais flexibilidade mesmo, pra danar, pra fazer os, ou cala larga e
tal, n, pra poder danar com mais..., e a gente na verdade, a gente no tinha estilo, a gente tinha
um estilo que era estilo de dia-a-dia mesmo, n, as roupas que a gente tinha no guarda roupa
(Paula)

De acordo com Paula, em se tratando do estilo hip hopper, as mulheres no possuam

referenciais e tiveram que construir uma imagem estilizada para que os outros as percebessem

como integrantes do movimento.

Ia fazer o show, ento assim, os meninos usavam muito preto, n, principalmente os rappers, os
outros no, os outros no, usavam camiseta e tal, (...) mas eles usavam muito preto, ento eu,
bom, ento como eu vou me adequar a isso? Ento, eu usava tnis tambm, tnis voc fica a
vontade, e a usava um jeans, um brim, e enquanto eles tavam tudo de preto, eu colocava cor de
rosa. Ento bon cor de rosa, ento eles usavam sobretudo, ento minha me fez um sobretudo
cor de rosa. (E risos). Sabe, tudo assim, pra, pra eu me destacar no meio deles: Olha, aqui uma
menina, n.
E: Entendi.
Paula: Porque assim, andava todo mundo junto, tudo menino n.
E: Era pra diferenciar.
Paula: Pra diferenciar n, pra eles verem que era uma mulher ali no meio, ento assim, bon,
sempre usei bon, chapu, sempre alguma coisa assim. Assim, unha comprida, brinco, anel,
103
pulseira, que eu no uso mais que eu tenho alergia agora, mas anel em todos os dedos,unha
pintada de rosa, pink. E assim, toda ornamentada. , ento assim, me vestia, quase como eles,
mas puxando pro lado feminino n, anel, anel cor de rosa, e a, depois n, quando a gente comea
a cantar efetivamente, a gente j fica mais light, a a gente a gente, tipo, eu no t a pra
ningum porque eu t falando, num t subindo no palco pra rebolar, vamo dizer assim. Ento, o
seguinte, eu vou subir como eu quiser e vou mandar a idia, e isso era meio, n, os cara falava:
Porra, as mina... Quando eles ia pensar em tirar uma onda, a gente j tava: Porque a polcia num
sei o que, num sei o que l. A, porra, o que que , n. Ento, tava pensando: P, elas vo cantar
melodia n. A a gente j chegava quebrando: Porque poltico no sei que num sei que l...E
assim por diante, ento assim, a gente..
(Paula)

No incio as mulheres demarcaram um espao no qual elas se apresentavam no discurso

e na msica, trabalhando com as temticas que esto presentes no rap masculino, por exemplo, a

polcia e os polticos. O estilo, porm, era definido para marcar uma diferena identitria, ou seja,

o discurso poderia se assemelhar com o discurso masculino, mas era produzido por uma mulher,

mulher que veste rosa, feminina, usa unha comprida.

O estilo uma caracterstica importante no contexto artstico, e foi por meio dele que

inicialmente as mulheres buscaram uma diferenciao. De acordo com a entrevistada, porm, esta

diferenciao no regra para as mulheres que participam do hip hop.

E eu tive a impresso de ter visto s homens. Porque? Porque todos os trejeitos dos homens elas,
elas captaram e assim que ela se mantm. Parece que alm de voc , parece que, pra essa
insero, pra insero voc tem que ser como ele efetivamente. E eu costumo falar assim que eu,
eu me recuso ser, n, um macho do hip hop. Eu quero ser uma mulher, n, que possa falar
igualmente n, assim, com o mesmo, a mesma, vamos dizer, a mesma altura, sem ter que, nem
masculinizar, sem tem que ser macho n, pra me fazer entender.
(Paula)

Ela percebe que muitas vezes as mulheres adotam o estilo masculino para que a

insero no movimento seja possvel. Como citado anteriormente, existiram casos em que as

mulheres eram impedidas de ir para o palco com roupas mais femininas, como blusinhas e shorts.

Pensamos que este estilo masculinizado no jeito de vestir contribua na insero do movimento
104
e reforce as caractersticas que para os rappers so valorizadas, como a agressividade.

Caractersticas estas que sempre estiveram relacionadas com a construo social do homem, e

no da mulher. Se num primeiro momento, portanto, o discurso da entrevistada indica uma

essencialidade do feminino, por outro isto utilizado como estratgia de diferenciao em um

espao que nega a participao da mulher.

Cada entrevistada exps sua insero no movimento hip hop e as percepes pessoais

sobre como o movimento se estrutura. As relaes de gnero, em ambos os grupos, so

percebidas engendrando discriminao e preconceito contra a mulher, porm para o Minas da

Rima o questionamento quanto a este ordenamento considerado o objetivo para a existncia do

grupo e necessrio para a construo democrtica, o que no destacado pelas mulheres da Casa

do Hip Hop.

Dentro do rap, do hip hop, tem muito machismo ainda, sabe. Uma coisa que a gente no
conseguiu acabar. Eu e a Daniela, a gente vive brigando com todo mundo, tem algumas reunies
que sai quebra pau l porque, eles t, acabando um pouco esse machismo n. Porque, , na cabea
deles a mulher fica em casa, a mulher limpa casa, fica l no seu canto n. Inclusive essas msicas
assim at, horrvel, detesto ouvir, porque fico revoltada n. Porque t falando mal da mulher, a
mulher isso, mulher trai. , tudo, gira em torno do machismo. Ento acho at que difcil pra
um homem assim, nem todos, mas aquelas mais machistas t fazendo uma letra envolvendo de
mulher e t exaltando a mulher na letra entendeu. o bendito do machismo. A gente at briga l
com o pessoal, no briga n, discute com os meninos, tudo. Eles to comeando agora a (...).
(Juliana)

Tambm como apontado anteriormente, as mulheres do Minas da Rima se assumem

como feministas, e as mulheres da Casa do Hip Hop no.

Eu acho que tudo que radical ruim. Tudo que radical ruim, tanto quanto ser machista,
quanto feminista. Entendeu, horrvel, ridculo. Eu acho que a gente pode competir de igual pra
igual. Entendeu. O que que eu posso falar sobre homem e mulher, assim.
Eu penso assim , o machismo no legal porque d oportunidade s pro homem, e o feminismo
tambm no legal, porque da d oportunidade s pra mulher. Eu acho assim, at precisou, at
105
precisa em alguns casos, por aquela questo da envergadura da vara n, todo mundo muito
machista, ento vamo ser todo mundo muito feminista pra ver se pelo menos d o meio pra ns,
mas eu acho assim, eu no acredito num, num, numa sociedade, num mundo, num pas onde ou a
mulher manda ou o homem manda. , muita gente pensa assim , de ter, exemplo banal assim,
direitos iguais, a quando o cara chega e senta no nibus e deixa uma moa em p, reclamam com
o cara que a moa ficou em p. Mas no direitos iguais? E se o cara t cansado? No pode ficar
sentado? Ento nisso que eu acredito, eu acredito nos direitos iguais: voc canta? E se eu quiser
cantar eu tambm vou cantar. No porque eu sou mulher, mas porque eu quero cantar. Porque eu
sou um ser humano, e porque eu sou, ento eu vejo o feminismo... Eu acho que num certo
momento foi preciso mesmo, mesmo assim, seno a gente no ia ter chance, em algumas
situaes a gente, sei l, v que se no for assim no tem oportunidade mesmo, mas eu vejo que o
mundo no tem que ser feminista, no tem que ser, no tem que inverter, a gente no tem que
fazer o que os homens um dia fizeram, sem dar oportunidade pra eles. Eu vejo a questo de
conscincia, de mente, de vontade, e no a questo de gnero: Ah, voc homem, voc no pode
cuidar de uma casa. Pode, se voc quiser, sei l, de repente inverter a, a mulher trabalha fora e o
cara cuida da casa, acho que no tem...
(Daniela)

O feminismo percebido pelas mulheres de Piracicaba como a supremacia feminina e

no compreendem que o feminismo se estrutura como um movimento social. Percebem que o

dia-a-dia a Casa do Hip Hop ainda define espaos sexualizados, como por exemplo, a

responsabilidade para a limpeza do local das mulheres, enquanto que os homens so os

responsveis pela organizao do evento (aparelhagem, divulgao).

Assim, quando tem evento elas vo cortar po, entendeu.

E: As mulheres que vo cortar po.
Juliana: J aconteceu comigo e com a Dani n. Fica cortando po l pra servir, no que a gente
no faa isso, faz sem problema, mas tipo assim, lugar de mulher na cozinha cortando po e a
gente se vira com as coisas aqui pesadas n. A gente podia muito bem t correndo atrs de som,
t ajudando eles a montar tudo n. No que eles faam , Voc no vai fazer isso porque voc
mulher. Mas sempre rola, do prprio homem entendeu.
(Juliana)

Esta discriminao, porm, vista muitas vezes como natural e que pode ser resolvida nos

relacionamentos interpessoais. Elas no assumem a posio feminista como uma luta poltica no

106
espao pblico, mas entendem que a construo de novas relaes de gnero pode ser revertida

no cotidiano.

Ento tem, eu acho que no nosso grupo fcil pelo que eu falei, um grupo pequeno onde todo
mundo tem muita intimidade com todo mundo, de parar a reunio e falar: Meu eu no gostei do
que voc falou pra mim. Pra mim, diretamente assim. Ento, importante por isso tambm,
mesmo as questes raciais tambm, algum, algum dia faz uma brincadeirinha, eu acho que
acontece menos porque a maioria negro n, ento, mas assim, tem a liberdade de falar: No
curti. Como a gente mulher: Eu no gostei, pra mim isso E uma vez um dos meninos
escreveram uma msica e falou: Daniela, eu quero que voc oua essa msica. Ento vamo
l.Da ele cantou pra mim uma msica que falava do amor, mas uma msica super machista
sabe, porque ele tinha sofrido uma decepo amorosa, ento ele tava falando da menina, mal,
lgico. Mas assim, quem no conhecia a histria dele, super machista. Da no final da msica ele
olhou pra minha cara: Machista n?. Da eu falei: cara.... Da ele falou assim: C acha que
eu tenho que mudar alguma coisa?. No meu, a msica no a expresso do seu sentimento, o
que voc ta sentindo isso, ento.... Acho que outro ganho assim, eles comearam a pensar nas
atitudes deles se so machistas ou no, nas msicas deles se esto machistas ou no, mas
acontece sim, acho que com menos freqncia do que no resto do mundo, porque, porque a gente
t ali, t inserida no grupo, tamo, mas acontece.
(Daniela)

A diferenciao discursiva entre os grupos reflexo do percurso de cada mulher no

movimento hip hop. Enquanto o grupo Minas da Rima e as mulheres que dele fazem parte,

foram pioneiras no movimento e tiveram que construir para si e para outros a imagem de que a

mulher tem o direito de participar e adotam isto como luta poltica, as mulheres de Piracicaba,

talvez pelo fato de participarem h pouco tempo do movimento e no se inserirem como artistas,

entendem que as relaes discriminatrias se encerram nos relacionamentos pessoais. No nos

cabe aqui definir a legitimidade de diferentes posicionamentos, mas compreendermos que o

pertencimento grupal engendra diferentes lugares de reconhecimento, lutas, interesses e

reivindicaes e que o movimento hip hop composto por uma complexidade e heterogeneidade

de sujeitos que muitas vezes minimizado no discurso pblico (caso, por exemplo, da mdia).

107
 interessante observar que as mulheres percebem diferentemente o motivo pelo qual h

pouca participao feminina. Para as mulheres que esto a mais tempo no hip hop, a falta de

mulheres no movimento conseqncia da ordem patriarcal, na qual a mulher responsvel pelo

cuidado dos filhos e do marido, encarando muitas vezes a dupla jornada (cuidado com a casa e

famlia juntamente com o trabalho remunerado), impossibilitando que as mulheres ocupem outros

espaos. Outro obstculo para a participao feminina a religio e a famlia.

Ento assim que at por isso que alegrava as pessoas em aplaudir, em se manifestar n, sempre
teve pouca mulher, mas assim, ao longo do tempo foi aumentando. S que, ele aumenta e
diminui, aumenta e diminui, vai oscilando. Porque? Porque so na sua grande maioria mulheres
jovens. Engravidam cedo. No tem uma estrutura familiar, no tem companheirismo no parceiro.
Ento s dentro desse time que eu tentei montar, ento eu tenho, , menina que me no gostava,
no queria nem saber ouvir falar de hip hop. Porque era coisa de maloqueiro e assim, fez de tudo,
assim, pra ela sair disso, ela saiu, casou, parou, embora nem esteja casada hoje, mas n. Ento
tem, por exemplo, menina que se envolve com cara que machista, ento assim: Minha mulher
no vai pro palco, imagina, exposta. E ou, que pertence a outra religio, que diz que isso coisa
do demnio e efetua realmente uma lavagem cerebral, que ela no quer nem ouvir falar disso n.
(Paula)

Diferentemente, o grupo de mulheres da Casa do Hip hop entende que a participao

escassa de mulheres no movimento decorrente da falta de interesse e informao.

Ah, eu acho falta de interesse. Eu acho que falta de interesse mesmo, entendeu, porque assim,
acho que preconceito aqui da mulher no hip hop no existe isso. Os meninos valorizam pra
caramba a menina que canta, a menina que dana sabe, que Dj, aqui em Piracicaba, o pessoal de
fora que eu pude conhecer, valorizam, eles acham o mximo a mulher subir no palco, cantar, ou a
mulher ir l danar no meio dos meninos. Eles fazem aquela festa, eu no vejo motivo pra ser
barradas.
(Camila)

Com um show, foi. A, no, vou falar da oficina de Dj que foi a oficina que eu acompanhei muito
de perto, porque era do meu irmo. A, tinha, se no me engano, tinha seis participantes, os seis
homens, entendeu. Mas j na de rima, tinha por a tambm, o mesmo nmero, trs meninas. Mas,
na outra, de grafite, s meninos, c t entendendo. Ento, mesmo assim pouco. L na platia
tinha bastante mulher, mas era minha me, era num sei quem, era num sei quem, era a Geovana,
108
era a namorada de fulano, c t entendendo, mas pra assistir, pra participar, eu vejo que os
meninos tem um pouco mais de interesse.
(Patrcia)

Compreendemos que este discurso no coloca em perspectiva a ordem cultural do

androcentrismo (Fraser, 2002) e est muito mais vinculada s percepes rotineiras do cotidiano

destas mulheres.

Outro dado que importante registrar se refere percepo quanto s conquistas

realizadas pelas mulheres. Enquanto as mulheres do grupo Minas da Rima entendem que os

avanos quanto discriminao de gnero ainda so muito poucos, para as mulheres da Casa do

Hip hop, as conquistas so significativas.

No importa de quais mulheres voc esteja falando, da japonesa, da indgena, da loira, da

morena, da negra, no importa se da prostituta ou da santa, entendeu, eu sou uma mulher e eu
quero ser tratada com respeito. Ento assim, isso foi durante anos e at hoje na verdade. Ns
tivemos alguns avanos nessa rea, mas no assim, no uma coisa que possa se comemorar
ainda, apesar que todo avano pequeno um tipo de comemorao, mas no ainda. No d pra
se comemorar porque eu mereo muito mais, ns merecemos muito mais, ns mulheres,
principalmente ns mulheres negras, que historicamente ns fomos discriminadas,
quadruplamente n, porque uma discriminao, j tem uma discriminao contra a mulher, a
depois contra o homem negro, a depois contra a mulher negra n, numa pirmide por exemplo,
de salrios etc. Ns somos o quarto salrio dessa pirmide, ento vem o homem branco, depois a
mulher branca, depois o homem negro e por ltimo o nosso, o trabalho menos remunerado
que ns temos. Embora, tenho dados aqui, que eu trabalho com isso na verdade, n, de que a
mulher negra a que mais investiu na educao nesses ltimos anos, mais que a mulher branca, e
somos menos remuneradas.
(Beatriz)

Ah, a mesma coisa que o machismo entendeu. Aqui s entra mulher, ponto final, e acabou,
entendeu, a mulher melhor que homem pra fazer isso, isso e isso. No, isso daqui coisa de
mulher. Acho que isso no existe mais, at homem limpando casa a gente v. Antes era coisa de
mulher, no . Ento eu acho que a sociedade vem pregando isso l de trs, mas eu acho que a
mulher foi capaz de passar isso, n, de transpor isso, falar assim: No, pera, o lugar de mulher
no ficar esquentando barriga em fogo e gelando p em pia e no tanque. No . No existe
mais isso. Muita mulher hoje trabalha fora e o homem cuida de casa. Eu acho que uma
conquista da mulher. Mas tambm no acho que, a mulher por ter conquistado seu espao, pela
mulher ter conseguido tudo que conseguiu, , justifica ela ser extremamente feminista. A gente
109
melhor. No, eu acho que a gente mostrou que a gente capaz, to capaz quanto eles, mas no
que seja melhor, ou pior, nem que eles sejam melhores, eu acho que a gente s tem capacidade de
competir junto com os homens. Assim, opo formada, opinio formada sobre feminismo, se eu
falar pra voc que eu tenho, mentira, eu nunca me informei sobre isso entendeu.
(Patrcia)

Estas diferentes percepes entrelaadas com pertencimentos diferenciados definem as

construes identitrias, bem como o campo de atuao destas mulheres. Entendemos que ambos,

porm, procuram uma insero no mundo social/poltico diferente daquele que muitas vezes

tido como alienante ou indiferente. A busca pelo sentido de ser sujeito e no objeto impele

estas mulheres a uma participao pblica.

Outras formas de compreenso de como o movimento hip hop constri as relaes de

gnero so fornecidas pelas letras de rap. As mulheres tambm percebem estas letras de forma

diferenciada. Propomos, ento, algumas consideraes a partir da anlise destas letras dialogando

pontualmente com os discursos femininos. Antes, porm, apresentamos a interpretao

descritiva, ou poderamos chamar de anlise descritiva das letras, identificando as

categorizaes empricas e posteriormente as anlises propostas referentes aos contedos

ideolgicos que perpassam a representao da mulher no hip hop.

110
CAPTULO III

Letras de rap produzidas por grupos masculinos ou rappers/homens

Neste primeiro bloco, apresentaremos algumas letras de rap produzidas por grupos que

possuem integrantes homens ou de rappers homens. Cada letra sugere formas de compreenso da

mulher e outros contedos, portanto, apresentaremos uma interpretao descritiva sobre o que a

letra relata.

Grupo Face da Morte

CD Face da Morte: Feito no Brasil

Letras Mulheres.

Ano: 2003

Nesta letra no existe uma histria/narrativa contada. A letra traz algumas consideraes

sobre a mulher no que se refere sua relao com um homem, uma vez que o bom malandro tem

sua mina de f. Esta tambm considerada uma grande mulher por estar ao lado de um grande

homem (h, portanto, uma modificao quanto ao ditado popular Atrs de um grande homem

sempre tem uma grande mulher). A mulher considerada como ar, que eu preciso respirar.

Alm disso considerada linda, cheirosa, toda feminina, dedicada, fiel, sua beleza rara. Esta,

portanto, a mulher brasileira. Mas a letra tambm produz outros sentidos ao considerar que O

rap tem que ser verdade, eu no posso maquiar, o joio e o trigo tem que saber separar. Tem as

revolucionrias e as que no valem nada, patroa e empregada, mesmo louco esse mundo, para

cada bruxa uma fada.

111
 Assim, ao contrrio dessa mulher brasileira, fiel e dedicada, existem as mulheres que so

infiis e que pegam no p. O homem, ento, deve avaliar como est seu relacionamento, ou seja,

considerar que nem sempre casamento bom negcio, uma vez que a mulher tem que correr

junto e ser fiel. A letra tambm traz a histria, e esta pode ser considerada uma narrativa, de um

truta (colega/amigo) do rapper que chegou numa cidade na qual no existia mulher. Perguntando

para um padre onde ele estava indo, este afirmou que estava indo pra um lado, que para o rapper

era considerado o lado da zona, o que d a entender uma casa de prostituio. O padre, porm,

ressalta que a zona do outro lado, ou seja, a cidade na qual no tem mulher. Segundo a letra,

todos os homens conhecem uma prostituta, porm no admitem. Para o autor, a zona um lugar

no qual no importa a classe social, ou se o indivduo ladro ou policial, uma vez que l tudo

igual. E termina a letra falando do amigo que a esposa prostituta, e que ele cuida da casa, lava

a loua da janta, e infelizmente o sustento vem de outra cama.

De forma geral, esta letra procura definir e separar tipos de mulher. A mulher

companheira, fiel, que no atrapalha a vida do homem, que me, ou seja, pode gerar uma vida,

ou a mulher que infiel e no ajuda o homem. Na narrativa a cidade sem mulheres (que

considerada pelo padre uma zona), ope-se cidade das mulheres (a casa de prostituio). Esta

interpretada como um lugar perigoso, mas de certa forma conhecido por todos os homens que

querem se divertir. Infelizmente o amigo, em sua relao pessoal, sustentado por uma

prostituta.

Rapper Ndee Naldinho

CD The Beste of Ndee Naldinho

Letra: Aquela mina firmeza

Ano: desconhecido.
112
Este CD uma coletnea de msicas do rapper, porm a data referente composio da msica

no mencionada. Esta letra aparece no CD Ndee Naldinho ao Vivo de 2002.

A letra deste rap narra a histria de um homem, no caso o autor da letra, que encontra um

amigo para desabafar quanto a sua decepo amorosa. Ele foi abandonado pela mulher, que

caracterizada como uma mina firmeza, de responsa, princesa. Esta mulher a qual se refere tinha

uma beleza natural, era um dom da natureza. Foi ela que o ajudou a se levantar na favela e lhe

deu abrigo quando ele estava na pior. Na vivncia do casal, ela no atrapalha as correrias dele,

sabe viver no dia-a-dia. Quando ele chegava do trabalho, ela o abraava, o rango tava pronto,

servia a janta, abria uma cerveja. Alm disso, ela tinha carinho por ele e ele tem saudades de

quando faziam amor com ela dizendo que o amava.

Na letra no aparece o motivo da separao, somente que ela no d mais notcias, no

telefona. Est triste pela separao, e finaliza a msica falando que no quer mais viver nessa

tristeza, ele precisa encontr-la.

Rapper Ndee Naldinho

CD The Beste of Ndee Naldinho

Letra: O filho adotivo

Ano: desconhecido.

Este CD uma coletnea de msicas do rapper, porm a data referente composio da msica

no mencionada. Esta letra aparece no CD Ndee Naldinho ao Vivo de 2002.

Nesta msica narra-se a histria do relacionamento entre me e filho. O filho adotivo era

feliz, mas no tinha mordomia, estudava de noite e trabalhava ao dia. Ele era to humilde, e ele

gostava de ajudar as pessoas que dele precisavam, estudava e os seus planos, era ser um
113
defensor dos direito humanos. Sua me era simples, seu pai um bom senhor. Ela tinha orgulho de

seu filho, porm um dia quando ele saiu pela manh para trabalhar e no retornou, comeou a

ficar preocupada. Recebeu mais tarde a notcia de que seu filho tinha sido vtima fatal de uma

bala perdida. Desesperada, a me chorou, pediu por socorro e a Deus que no fosse verdade,

porm, o narrador completa que esta a realidade e tristeza para muita gente. Esta famlia

morava na mesma favela que do narrador, um povo trabalhador.

Grupo Faco Central

CD A marcha fnebre prossegue

Letra Desculpa Me

Ano: 2004

O narrador conta uma histria, a partir da perspectiva de filho, sobre a sua relao com

sua me. J pelo ttulo da msica o filho compreende que fez algo de errado e por isso pede

perdo me. Pede desculpas por no ter dado valor pro sonho de sua me, pela sua luta, por ela

ter querido o melhor para ele e ele no ter retribudo. uma histria em que a me faz tudo pelo

filho: pegava fruta podre na feira para aliment-lo, pedia esmola pra no ter despesa e enquanto

isso ele estava no bar, jogando bilhar, bebendo conhaque. Ela o visitava no presdio, levando

bolacha, cigarro. Vinha de madrugada, sacola pesada pra ser revistada pelos porcos da entrada.

Rebelio, voc no porto, temendo minha morte, sendo pisoteada pelos cavalos de choque.

Aps sair da priso, ele prometeu tomar jeito, porm no cumpriu a promessa. Logo

estava novamente usando drogas e envolvido em roubos. Ameaou a me, pois ela tentava

imped-lo. No roubo a um mercado, ele baleado e socorrido pelo farmacutico do bairro,

provavelmente fazendo um favor a sua me. No foi atendido no pronto socorro, pois este estava
114
sendo vigiado. Para a recuperao do filho, sua me pediu esmola no buso, deu comida na boca,

comprou todos os remdios. Quando estava melhor, precisava fumar pedra e roubou o relgio da

me para conseguir a droga. Isto foi em um fim de semana. Somente retornou para casa depois de

um tempo e acabou deparando-se com o a me morta em virtude de um ataque cardaco quando o

procurava na rua durante a madrugada. Conclui a msica com o refro:

Desculpa me por te impedir de sorrir, desculpa me por tantas noites em claro sem dormir,

desculpa me, pra te pedir perdo infelizmente tarde, desculpa me, s restou a lgrima e a

dor da saudade.

Rapper Gabriel o Pensador

CD Gabriel o Pensador

Letra: Lraburra

Ano: 1993

Nesta letra, o rapper Gabriel o Pensador analisa a diferena entre a mulher de verdade,

brasileira, cidad, inteligente e a tal lraburra, que o narrador vai caracterizando durante a

msica. No uma narrativa/histria, mas uma letra que tenta fazer a distino e atribuio de

identidades para a lraburra. Segundo o rapper, esta teria uma personalidade fraca, nada na

cabea, s pensa em usar roupinha produzida para a estao, uma vaca. Tem bundinha

empinada pra mostrar que bonita, e cabea parafinada pra ficar igual paquita. Ela se interessa

por carros, por dinheiro, s se preocupam em chamar a ateno, so falsas, medocres, no

sabem conversar, so mulheres objeto, so levianas, vulgares, so sebosas, tapadas,

preconceituosas. So marionetes alienadas, mulheres objeto. Conclui a msica dizendo que no

a cor do cabelo ou da pele que caracteriza uma lraburra, mas o que elas tem na cabea. As
115
lraburras so todas iguais e se contrapem as mulheres de verdade, ou seja, as mulheres

inteligentes.

Grupo Racionais MCs

CD Holocausto Urbano

Letra Mulheres Vulgares

Ano: 1990

A msica comea com uma conversa por telefone entre integrantes do grupo. Quando

perguntado sobre o motivo da ligao, um dos interlocutores responde: sobre mulher e tal. E o

outro continua: Mulher? Que tipo de mulher?

Na letra, o grupo vai tecendo consideraes sobre a mulher que feminista. Para eles,

estas mulheres consideram que todos so machistas. Estas mulheres no querem ser consideradas

smbolos sexuais, lutando para chegar ao poder e provar sua moral, mas para eles isto significa

andar para trs. Esta mulher feminista s pensa em dinheiro. considerada vulgar, repugnante,

cretina. Mostram-se nuas como objeto. uma intil que ganha dinheiro fazendo sexo. Segundo a

letra, as mulheres que so feministas querem vivenciar uma relao afetiva/sexual com os

homens no qual a sexualidade vivenciada livremente. Por este motivo so condenveis. Eles

compreendem a pauta de reivindicaes feministas como a liberao e o prazer sexual feminino,

independentemente se isto feito por dinheiro ou no. Por isso elas so vulgares.

Seu batom e a maquiagem a tornam banal, ser mau, fatal, legal, ruim, ela no se importa.

S quer dinheiro enfim. Envolve qualquer um com seu ar de ingenuidade, te domina com seu

jeito promscuo de ser, como se troca de roupa ela te troca por outro. Muitos a querem para

sempre, mas eu quero s por uma noite, voc me entende? Gosta de homens da alta sociedade,
116
at os grandes traficantes entram em rotatividade. Mestia, negra ou branca, uma de suas nicas

qualidades a ganncia. A impresso que se ganha de decncia, quando se trata de dinheiro e

sexo, se torna indolncia. Fica perdida no ar a pergunta: qual a pior atitude de uma prostituta,

se vender por necessidade ou por ambio? Tire voc a concluso.

A mulher, ento, condenada por viver relaes sexuais, seja por motivos de necessidade,

por ambio, e diramos, por prazer. De forma geral, nesta letra, o grupo pretende construir uma

imagem da mulher que vivencia sua sexualidade de forma livre, ganhando ou no dinheiro para

isso, possuindo vrios parceiros sexuais. Para eles, esta mulher est sempre pensando em obter

uma vantagem financeira dos seus relacionamentos sexuais, por isso so vulgares.

Grupo Racionais MCs

CD Raio X do Brasil

Letra Parte II

Ano: 1993

Esta msica comea com uma conversa por telefone entre um homem e uma mulher, esta

sendo namorada de um amigo dele. Ela tenta, pelo contedo da conversa, convenc-lo a sarem

juntos. Ele diz que embaado porque conheceu o amigo antes de conhec-la. Na continuao da

msica, o rapper anuncia que considera mulher de aliado como homem, e que no admite dando

em cima dele ou de outros camaradas. Continua relatando que as mulheres so sem vergonhas,

pois no prestam mesmo sendo compromissadas. Generaliza, portanto, a situao em que ele se

encontra perante uma possvel traio (dela e dele, pois amigo do cara) para todas as mulheres.

Relata que gostaria de alertar o amigo quanto infidelidade da namorada, porm no o faz

117
porque provavelmente ele no ir acreditar. Ele est com a mente totalmente atrofiada. O rapper

s lamenta, pois a mulher uma figura viva obscena.

Segue a msica narrando que ela bate o p, ele abaixa a cabea, ela grita na frente dos

outros, ele respeita, acredita em meias palavras, lgrimas, juras ensaiadas. O rapper acredita

que os manos (amigos) deveriam respeitar a mulher do outro, porm no o fazem pois muitas

vezes pensam, no pega nada (no tem problema). Assim, se esquecem de quem mano,

considerao ficou para trs, j no existe mais, mil vezes peo meus psames, em poucos

amigos se pode confiar, mulher ento, menos se pode contar. Para ele, mestia, negra, ou

branca, sempre sai uma vagabunda. A mulher, de forma geral, segue sendo caracterizada como

mentirosa, cadela, cobra criada, cascavel. Continua dizendo que existe uma populao feminina

grande, portanto no precisa sair com a mulher do mano. Pode sair com qualquer outra, pois

existem sete mulheres para cada homem ou mais. Ela tem duas, trs caras, chega at uma dzia

e suga at finalizar o que voc tem e o que voc tiver. De certa forma, a narrativa, ao contar a

tentativa de traio por parte da namorada de um conhecido do rapper, insinua que todas as

mulheres tm uma pr-disposio traio, portanto no so confiveis. Confivel acreditar e

no trair o mano, seu amigo.

A msica termina com outra ligao telefnica, na qual a mesma mulher conversa com

outro rapper e tenta seduz-lo. Este nega ao dizer que ela j tentou sair com um amigo e namora

outro mano.

Grupo Racionais MCs

CD Sobrevivendo no Inferno

Letra Frmula Mgica da Paz

Ano:1998
118
 O autor inicia a letra contando que o lugar onde mora (a rea) um campo minado, mas

ele no vai fugir, no traindo quem ele foi, quem ele . Identifica-se com a favela e diz que cada

lugar tem sua prpria lei e que ele sempre respeitou. Cita nomes de bairros e faz uma digresso

falando que no dia de visita ir mandar cigarro para alguns presos. Retoma o assunto inicial e

anuncia que no um sermo, mas eu sei como que , foda parceiro, a maldade na cabea o

dia inteiro, nada de roupa, nada de carro, sem emprego, no tem ibope, no tem rol sem

dinheiro, sendo assim, sem chance, sem mulher, voc sabe muito bem o que ela quer, encontre

uma de carter se voc puder.

Retrata, portanto, a vida de quem privado de bens materiais e como isso afeta os

relacionamentos pessoais, uma vez que as mulheres esto interessadas no dinheiro do homem.

Continua a msica falando de si: eu era s um moleque, s pensava em danar, cabelo black e

tnis All star, na roda da funo m zueira. (...) No tava nem a, nem levava nada a srio,

admirava os ladro e os malandro mais velho.

Pergunta ao ouvinte, porm, o que mudou, se algo melhorou, que muitos velrios

aconteceram, que muitas mes choraram e que malandragem de verdade viver.

Segundo o narrador, muitos manos continuaram no caminho da malandragem e morreram.

E se pergunta porque a vida tem que ser assim. At em sonho a violncia acontece, ele sonha que

baleado. E diz que vai procurar a frmula mgica da paz.

Retorna narrativa. de manh e crianas brincam na rua soltando pipa. Lembra-se de

quando era criana e fazia o mesmo. A conversa entre os amigos a mesma: tiros da madrugada,

gente morta, sangue. Mudam de assunto. Ele pede uma fita do Jorge Ben. Outra digresso: uma

p de mano preso chora a solido, uma p de mano solto sem disposio. Os manos penhoram

coisas para tudo virar fumaa (crack). Retorna a sua prpria histria: ele no, eu no t nem a
119
pra que os outro fala. Quatro, cinco, seis preto num Opala, pode vir gamb, paga pau, t na

minha moral na maior, sem gor, sem pacau, sem p, eu t ligeiro, eu tenho a minha regra, no

sou pedreiro, no fumo pedra. Um rol com os aliados j me faz feliz, respeito mtuo a chave

o que eu sempre quis (diz).

Aconselha o ouvinte a procurar a sua frmula mgica da paz. Conta, ento, o assassinato

de um mano e comea a se perguntar sobre a sua responsabilidade no homicdio: E a Mano

Brown cuso? Cad voc? Seu mano t morrendo, o que voc vai fazer? Pode cr, eu me senti

intil, eu me senti pequeno. Mais um cuso vingativo, puta desespero, no d pra acreditar, que

pesadelo, eu quero acordar. No d, no deu, no daria de jeito nenhum. O Derlei era s mais

um rapaz comum.Dali a poucos minutos mais uma Dona Maria de luto. Na parede o sinal da

cruz. Que porra essa? Que mundo esse? Onde t Jesus?

Relata o descaso em relao ao policiamento do Capo Redondo e na tentativa de

descobrir o culpado, comea a questionar sua prpria ideologia.

Amplia a narrativa para os dias de visita aos cemitrios no Dia de finados e percebe que:

E durante uma meia hora olhei um por um e o que todas as senhoras tinham em comum: a roupa

humilde, a pele escura, o rosto abatido pela vida dura. Colocando flores sobre a sepultura

(podia ser a minha me).

Conclui que na favela a vida de um ser humano vale muito pouco, e que s morre o pobre.

A gente vive se matando irmo, por qu? Finaliza a msica pedindo para que todos procurem sua

frmula mgica da paz.

Nesta narrativa, portanto, que traz a histria de um assassinato, operam duas imagens da

mulher: a me e a sem carter. Elas se inserem na narrativa de modo a representar as mulheres

que so mes dos manos assassinados e as mulheres que moram na favela, mas que no saem

com os manos por eles no terem dinheiro.

120
Grupo Racionais MCs

CD Sobrevivendo no Inferno

Letra Qual mentira vou acreditar

Ano:1998

No comeo da letra dimensionado o tempo: So dez e meia, tem a noite inteira, dormir

embaado numa sexta-feira. O narrador gostaria de sair, ir a uma festa, mas os amigos ainda no

ligaram pra combinar nada, mas mesmo assim ele sai. Ouve funk no carro e, ao que tudo indica,

por este gosto musical a polcia cresce o olho. Fala de sua experincia de tomar geral por ser

preto. Quem preto como eu j t ligado qual , nota fiscal, RG, polcia no p. Os policiais ainda

dizem que no so preconceituosos, uma vez que o genro mestio e racismo no existe.

Ainda a caminho da festa parado por policiais que reviram o banco, amassam seu bon

branco. Recebe um telefonema de um amigo e combinam um lugar. L, ele conhece umas fulana.

Juliana? No. Mariana? No. Alessandra? No. Adriana? O nome s um detalhe, o nome s

um nome. L o inferno, porque tem uma p de mulher.

Encontra os amigos e durante a festa, passa uma mulher. Cabelo solto, vestido vermelho,

estrategicamente a um palmo do joelho. Todos a cobiam. E durante o jogo de seduo ele se

pergunta se ela aceitaria ir pra um baile ou ir pra Zona Sul ter um grand finale. Amor com gosto

de fruta at as seis da manh, me chamar de meu preto e me cantar Djvan.

A histria muda de rumo quando a mulher pede para trocar a msica do rdio. Passa de a

menina mais bonita da escola, rainha passista, para uma vaca nazista. Segundo ele, ela disse que

tinha bronca de neguinho de salo, que a maioria maloqueiro e ladro, que no gostava que

falassem gria com ela, pra ele se lembrar que no estava na favela. Assim, a Cinderela virou
121
bruxa do mal, racista, perversa. Ele, ento, passa a desqualific-la, uma vez que j correu a

banca toda de uns playba que colava l na rea. E pra ele, ela falava que era cedo pra pensar em

sexo.

Assim, de acordo com o refro, tem que saber mentir, tem que saber lidar, em qual

mentira vou acreditar. A noite assim mesmo, ento deixa rolar.

Continua a msica relatando que deu uma carona para um conhecido, e quando este

desceu do carro para levar um recado para um parente que fazia parte da igreja evanglica

pentecostal, o narrador percebeu que as coisas estavam estranhas. Ningum se vestia como um

crente, e todos que entravam na casa/igreja, saam coando o nariz. Insinua, ento, que ali uma

boca (local de venda de drogas). Fala que este rapaz fazia de tudo pra fumar pedra (crack) e

conclui que ele est fazendo hora extra no mundo (est tempo demais vivo). A noite t boa, a

noite t barato, mas puta, gamb, pilantra mato.

Nesta letra, portanto, prevalece a imagem da mulher relacionada com sua sexualidade.

Rapper Rappin Hood

CD Sujeito Homem 1

Letra: Tributo s mulheres negras

Ano: 2004

Como o ttulo da msica j indica, a letra uma exaltao da mulher negra. No se conta

uma histria em particular, mas, de acordo com a letra, as mulheres negras/pretas possuem uma

histria de luta e sofrimento.

A msica dedicada a todas as deusas do bano, deusas da beleza, as nossas rainhas,

essas so as nossas mulheres pretas. Ela considerada princesa, mas tambm aquela que no
122
est na capa da revista, no secretria executiva, no ocupa o papel principal na novela, ou

seja, sua pele escura espelha a conscincia de que a vida dura pra mulher negra.A mulher

negra considerada como a mulher de verdade, exemplo de luta, e possui mais dignidade que a

lraburra. No admite ser subjugada, passada pra trs, a mulher negra exige direitos iguais.

Prossegue com a constatao de que a mulher negra a Dona Maria, que lava roupa todo

dia, que batalha e que serve a madame como escrava no tempo do cativeiro. A mulher negra

assume os contornos da me, que reza pela famlia e luta pelo seu sustento. H a participao de

uma mulher na letra (Lady Rap). Ela traz sua histria: uma mulher guerreira, que no faz pose

de bandida, bonita. Ela j esteve perdida, mas continua fazendo sua arte pra encontrar uma

sada... Para ela, ser negra uma sina, mas a mulher preta tem sucesso e ela quer o seu

progresso. toda a mulherada armando uma cilada, ns na rampa de acesso, metro por metro.

Nem pense em me provocar, podemos brigar, temos a fora de Al. O rapper retorna e considera

que as mulheres pretas, as brasileiras, tem um sorriso puro, fazendo-as verdadeiras. a mulher

trabalhadeira, que mais serviu na casa de sinhozinho, nos quilombos do Brasil. Conclui: Seja no

campo ou na cidade, que Deus ilumine vossas caminhadas. Que Deus lhes d as vitrias

desejadas. A todas as mulheres pretas que o sorriso esteja em seu amanh, pois Dandara vivem

em sua luta, certo irms, paz. Mulheres pretas tem histria.

A letra, de forma geral, faz o recorte em relao mulher negra, atribuindo-lhe

caractersticas de mulheres que lutam pela sua sobrevivncia, uma vez que a sociedade racista lhe

impe papis secundrios (como no ser uma secretria executiva), e faz referncia a Mama

frica como a me que pede pelo filho em suas preces, portanto referncia a uma construo

identitria racial. Nesta letra tambm opera a dimenso da mulher como me.

123
Rapper MV Bill

CD Declarao de Guerra

Letra: Mina de f

Ano: 2002

Nesta letra, o autor traz a sua histria com a mina de f. Ele sabe que errou, mas gostaria

de t-la novamente. Pensa em ter um filho, e ope a possvel constituio da famlia com o seu

afastamento do mundo do crime. Segundo a letra, foi preciso perder pra compreender que

noitada no leva a nada. Vou aprender a viver, entender e reconhecer a preta de verdade que

no deixa a lgrima correr. Ela a mina de f, da boca pra fora deseja que eu morra, toda vez

que eu te chamo de cachorra, normalidade entre homem e mulher. Quando a gente briga voc

diz que no me quer. Pois , na vida voc minha parceira, pois , na guerra, voc minha

guerreira. Mercenria o que mais tem, se eu no tiver de carro eu no sou ningum, no me

deslumbro, no perco a minha luta. Eu vejo Lcifer de suti e calcinha, querendo dar o bote

vestido de mulher e me separar da minha mina de f, que fecha comigo na tristeza e na alegria,

participativa do meu dia a dia, no perco mais o meu compromisso, e vou provar que sou maior

que tudo isso.

A letra, portanto, dedicada a companheira do autor, que considerada uma mina de f

por estar sempre ao lado dele, em todos os momentos, tristes ou felizes, em contraposio a um

tipo de mulher que s pensa em dinheiro, e que na letra considerada Lcifer, ou mercenria.

Esta mina de f tambm assume uma possvel identidade tnica/racial: preta de verdade que no

deixa lgrima correr.

124
Grupo Detentos do Rap

CD: Amor...s de me. O resto puro dio.

Letra: Amor...s de me.

Ano: 2003

A msica comea falando sobre confiana. Quando a necessidade bate no porto todos

viram as costas. O autor faz, no incio, uma distino entre ele e Deus, uma vez que ele sabe que

no todo correto. A letra, em sua continuidade, contar o motivo desta frase. Diz que passou por

dificuldades, correu atrs, enfrentou o inimigo. Para ele: Parceiro s Deus, nele a nica

confiana, e nela o nico amor, a fonte desde criana. No teve, por exemplo, um lugar, sei

que Deus est olhando por mim.

A letra continua com um telefonema entre me e filho. Ela pergunta como ele est, ele

responde que est tudo bem. Ele fez uns corre junto com a me de um companheiro que est

preso. A letra no fala que tipo de corre, ou seja, o que ele fez com a me. Ouvindo a msica

temos a sensao de que ele participou, junto com outros, de um assalto e este companheiro que

est preso tambm participou.

Continua dizendo que o dinheiro produto do assalto, a polcia pegou. Depois de um

tempo, trs anos, a mulher que ele saa, a loira tingida trabalha no 12 (prostituta?), seus filhos

so aviezinhos (ajudantes do trfico), e conclui: Do que adiantou as noitadas com as

vagabundas que s queriam dinheiro. E quantos mil reais na cena, mas s ela que est

sofrendo. Bandido reflita na idia, raciocina porque o caminho constante, sem liberdade, sem

aliado, mas com amor que de me.

A me ama o filho e o perdoa pelas suas atitudes. Somente ela vai ajud-lo, somente nela

ele pode confiar. Ela est sempre presente em dia de visita, sofre quando sabe de rebelio no
125
presdio, quase morre, pede a Deus que proteja o filho. Conclui: Eu me lamento quando at

matei, vendo lgrimas de me que fiz rolar, mas s eu sei tudo o que eu passei, quando pra vida

do crime tive que voltar.

O rap, ento, traz caractersticas distintas da mulher: a me e as vagabundas (estas s

pensam em dinheiro).

126
Letras de rap produzidas por mulheres

Assim como elaborado na interpretao das letras produzidas por homens, apresentaremos

de forma sucinta os contedos presentes em letras produzidas por mulheres rappers, a fim de

compreendermos como a representao da mulher opera nestas letras, bem como outros

contedos que compem a narrativa. Diferentemente das letras masculinas, a anlise das letras

apresentadas se referem, principalmente, a composies realizadas por um grupo feminino, Viso

de Rua, e por duas rappers: Nega Gizza e Lady Rap. Encontramos um nmero reduzido de

produes femininas, portanto a anlise concentra-se nestas produes.

Grupo Viso de Rua

CD Viso de Rua A noiva doThock28

Letra: Abertura

Ano: 2004

A primeira msica que compe o CD simula uma sala de aula. A professora faz o controle

de presenas e faltas e pede para uma das crianas ler a lio de casa. uma redao. Nela, a

criana define o que entende por guerra: a guerra a luta armada entre naes, hostilidade,

discrdia e disputa. Tambm define o que guerreio: guerreiro aquela que marginalizado

pela sociedade. O guerreiro luta pela sua famlia. Continua a abertura do CD dizendo que

periferia periferia e o grupo: so vrios guerreiros envolvidos numa misso importante da

periferia, unidas pelo mesmo desejo, ser feliz.

127
Letra: Dina Di 2004

A rapper Dina Di comanda o grupo Viso de Rua. Nesta letra ela se define: rapper nata,

uma voz que relata, a realidade, a necessidade, a vida maltrata. Vim do anonimato, de baixo, eu

sei, um espao no fcil, eu conquistei. Eu tive ax pra chegar at aqui, no me vendi, no

desandei, no sou daqui, nem de l, eu sou de todo lugar, aonde o tempo, conforme o vento me

levar. Eu sei chegar, se relacionar numa boa, vai no seu barco que eu vou na minha

canoa.Continua a msica com a interveno de Helio (rapper que participa da composio da

letra). Fala sobre a falta de alguns parceiros, que o rap compromisso. Cita Sabotage (este rapper

foi assassinado em 2003). Conta, agora, com novas parceiras, como a de Lauren (rapper do

grupo). Durante a msica so citados outros grupos de rap, amigos. De forma geral, esta letra

apresenta quem Dina Di, descrita por ela, e apresenta outros integrantes do grupo. Tambm faz

referencia a outros grupos e nomes do rap nacional, como o Minas da Rima, Sistema Negro.

Letra: Amor e dio

Esta letra, novamente, faz referncia a quem Dina Di: uma mina normal, com

qualidades e defeitos, uma perda fatal que me fez ser desse jeito. (...) Guerreira, solitria,

autoritria por nascena. Segundo ela, muitas pessoas duvidaram que ela pudesse estar nos

palcos novamente (Dina Di esteve presa) e se define como uma mulher pela metade, por no estar

junto ao homem que ama (ele est preso) e estar longe do filho. Ela diz que: cada palavra que

escrevi, na pele eu j senti, sobrevivi e t de volta no mundo. A msica fala sobre recomeos.

Retoma a infncia: Assim, Campinas foi minha quebrada, no esqueo por nada, onde eu cresci,

28
Este CD composto por 13 faixas, porm uma no ser analisada: Look na cena, uma vez que so scrachts.
128
perdi meu pai e tive a me assassinada. Meu rap no feito de meias verdades, quem ouve at

sabe minha idade, minha personalidade (...) Rap o motivo, a causa pela qual eu t lutando,

indicando, perdendo noites e noites de sono, durante anos apostando cada minuto do meu tempo,

observando quem digno de t no movimento.

Letra: Corpo em evidncia

Esta letra fala da mulher que expe seu corpo. Essas mulheres, para ela, tm um corpo

perfeito, mas uma mente vazia. Por exporem seus corpos, elas possuem dinheiro e, seguindo sua

argumentao, no sabem o que sofrimento. Fica implcita a idia de que estas mulheres

incitam o adultrio e tambm a pornografia, uma vez que cerca de 200 mil usurios da internet

so viciados em sites erticos. Compulsivos por sexo virtual, uma epidemia sobre a qual

ningum fala. Contamina a alma, imoral, afeta e muito o estado emocional, provoca crise

conjugal, separao, traio na vida real. Lindas de ver, de fazer muito homem enlouquecer,

atrs no preciso correr, elas vm at voc. Acesse o cardpio do dia.

Condena a pornografia e logo em seguida diz que seria mais feliz sem flacidez, e um

abdome firme, sem cicatriz. Arrumar os dentes, usar biquni. Aps isto retoma a mulher objeto

de seduo da tv e finaliza que estas mulheres caem no esquecimento, porm a promiscuidade

no.

Dina Di recrimina as mulheres que vendem o corpo na TV ou em outros meios de

comunicao, argumentando que isto acarreta pornografia e traio. De certa forma, porm,

identifica-se com um modelo de beleza, pois gostaria de fazer algumas alteraes em sua

aparncia. Isso traria felicidade. O paradoxo da letra se constri na condenao da mulher que se

129
coloca como objeto de desejo, mas que tambm identificada como um padro de beleza a ser

alcanado.

Letra: Hora de Avanar

A letra comea: Tem que ser mulher pra se manter em p, pra encarar a multido uma

misso, pra quem . A msica uma convocao para as mulheres: a mulher ser unida, a,

porque jamais ser vencida, at o fim Viso de rua no peito, o amor e o dio faz efeito, hora de

avanar (...) A preta, sem treta, o respeito, o que h. Retomando sua prpria histria, diz que

o amor e o dio so permanentes em sua vida, mas que ela uma mulher de fibra e no se rende.

Diz de si: Sou Dina Di, mulher de fibra, e tem muitas como eu, que capaz de resistir, o que

vem, que vai alm, que no atrasa o de ningum, que faz o bem. Que no virou refm de homem,

certa, independente, que constri o prprio nome. Em oposio a ela tem aquelas que eu,

desacredita, que no se movimenta, lenta, parasita, no anda. Do tipo que os homem domina,

comanda. Respeito de quem tem, por mim.

Finaliza a msica dizendo que as minas esto vindo, se unindo, to vendo, vai destilar

todo o veneno. Vivendo e aprendendo com a dor, com a falta que faz meus pais que me deixaram.

Amigos e rivais.

Na letra, portanto, h um movimento entre a histria pessoal da rapper e o que ela

pretende em relao a outras mulheres. Para isso, ela compara sua prpria histria com a de

outras mulheres que lutam pela vida (sobrevivncia) em oposio a mulheres que no se

movimentam, que deixam se levar por homens. Em relao a uma suposta unio das mulheres,

ela no esclarece quais so as finalidades pra tal organizao, mas somente que elas to vindo, se

unindo...
130
Letra: Vem V

Segundo esta letra, o rap feito por gente inconsolvel e carente, que pe pra fora o que

sente. Se vier do gueto, no importa se feito por negro ou branco, mas o importante relatar a

revolta que vem de dentro. De fatos, depoimentos que serve de exemplo, tanto pra homem quanto

pra mulher, no contra indicado, pra quem quiser. A letra continua falando sobre os prmios

que o grupo recebeu.

Esta msica traz uma definio identitria importante, a identidade que centra o hip

hop, para a rapper, o gueto, a periferia, a identificao com a revolta e carncia.

Letra: A noiva do Thock

Nesta msica rapper fala de sua histria com um homem. Comea a letra de forma

generalizada: a mulher pode modificar um homem ou afundar cada vez mais, e vice-versa, certo.

Muitas perderam a liberdade, a dignidade, por amor, principal fator, uma ru confessa.

Ele est preso, ela solta. So feitas juras de amor, mas ela ainda que esteja com saudades,

no quer ser mulher de ladro. Ela sabe qual a rotina: visitas, boletins de ocorrncia, drogas...

Ainda que sofra a separao, ela no quer essa rotina. E termina a msica dizendo que eles iro se

acertar quando ele estiver solto.

131
Letra: Memrias

Nesta letra, j pelo ttulo, a rapper traz algumas memrias pessoais e familiares. Pra falar

de sua famlia e sua relao com sua me, ela traz a realidade das mulheres/mes que

desesperadas choram pelo filho morto, uma vez que todo adolescente se envolve (com o qu?

Talvez drogas, crime.) Mas a me no deve agredir o filho, tem que ter amor e controle do

espao. Relata, ento, sua relao com a me. Elas se afastaram e isto fez com que ela aprendesse

sobre a importncia da unio. Diz que so memrias, e o que passou, passou.

Continua: No qualquer ferida que o tempo cicatriza, algumas so para sempre, que

mata ou escraviza. Filho, futuro, prever no consigo, que seja pra mim uma recompensa e no

um castigo.

A me, portanto, deve ser recompensada pelo seu esforo, e no castigada. O futuro,

porm, no pode ser previsto. Aqui percebemos que a vivncia de ser me tida, de certa forma,

como um sofrimento. A letra, porm, continua com a histria do assassinato de um garoto

hemoflico morto pelo pai, e que o padrasto e me desnaturada no souberam cuidar. Fica

confuso, no relato, quem tinha envolvimento com cocana, porm o uso da droga que a causa

de tanto sofrimento. Finaliza a msica falando que o que passou, passou, no volta atrs.

Letra: Do lado de fora da muralha

A rotina da visita ao presdio onde namorados e maridos esto presos o contedo desta

letra. A solido de esperar por algum ser liberto, o julgamento, o crime so relatados. De

qualquer forma: se periculoso ou no, meu marido, se p tem uma sina, sei l, virou rotina,

132
foda, porta de cadeia, Hortolndia, Tirapina. As filas as paquitona no domina no, ningum

melhor do que ningum, tudo mulher de ladro.

A letra, portanto, trabalha com a idia de que a vida da mulher que esposa de presos se

constitui como uma sina, rotina a ser vivenciada por elas.

Letra: Filho pro mundo

Ser me sofrer. Nesta letra, a introduo j aborda o sofrimento: Filho, o que vai ser, vai

depender do caminho que escolher. Toda me sofre porque no pode prever o que o filho vai ser

quando crescer. Na adolescncia se envolve com falsos amigos, influncia, perigo, eles tm tudo

a perder, viram marginais, matam os prprios pais. Ingratos, desleais. Mesmo assim a gente

ama at o fim. Cada vez mais, certo ou errado.

Conta histria de uma amiga que tem o filho preso. Considera que a Febem no

recupera, faz o menor se transformar em algo bem pior. Olha s, quem me como eu sabe que

filho pequeno seu, cresceu do mundo.

Para ela, o amor de me sempre me enfim. Tem muito pai sem corao que faz o filho

em vo, distante, tem amante, briga constante. Incapaz de amar, farsantes, logo vai desabar, o

que restar vai ser marcante.

Considera que no existe escola boa para os filhos. O dia de amanh imprevisvel. Pede

ajuda a Cristo. Diz que criou os filhos com muito sacrifcio. E lamenta pela me quando esta

percebe que criou um bosta.

Finaliza: Se amou, se amar, ver que ainda teve sorte. Filho pro mundo a conseqncia

do nosso mundo, do nosso viver. Quem vai chorar, quem vai sentir, quem vai parar, quem vai se

arrepender,ver que tenho Deus mais forte. Felicidade ainda um sonho.

133
 A mulher, nesta letra, retratada como a me que sofre. Ela sempre ama os filhos, mesmo

estes cometendo aes que as desagradam ou ferem. Os pais no possuem este mesmo status,

pois fazem filhos em vo.

A responsabilidade sobre o filho ocorre quando ainda so pequenos, aps crescerem

tomam suas prprias decises. Tambm, para percorrer o caminho certo ou no, os filhos so

influenciados pelas ms companhias.

Letra: Guerreiros...

No h uma narrativa presente na letra. H uma associao entre ser guerreiro e ser da

periferia, fazer um corre no dia-a-dia. Fala de ser MC, ser mano, rimar. Hip hop caminho.

Tambm h uma aluso quanto ser guerreiro ser negro. Dina Di comea a cantar e pede paz,

menos violncia. Ser mulher ou no, tanto faz, uma vez que ela nasceu pra compor e pra cantar.

T no sangue dos guerreiro, os ltimos sero os primeiros.

Fala sobre esse CD (o terceiro) e cita alguns parceiros: Sistema negro, Helio, Famlia

RZO.

H uma sobreposio em ser guerreiro, da periferia, ser negro. Esses trs elementos se

complementam e confundem-se pra designar quem do rap e do hip hop. Quem so esses

guerreiros: so os trabalhadores, que correm pra sobreviver? So as pessoas que moram na

periferia da cidade (espao geogrfico que tambm comporta um componente scio-econmico?)

e so os negros?

134
Letra: Marcas da Adolescncia

O tema central da letra um relacionamento pessoal. Aps um amor no correspondido,

ela passa a beber, no comia, s fumava. Lamenta, pois no queria que o filho a visse dessa

maneira. Lembra quando tinha 13 anos e se envolveu com um homem mais velho. Acreditava em

tudo o que ele dizia. Eu sou a me do seu filho que voc nem viu crescer, nunca sequer deu valor,

nem quis saber entender. Ela espera por sete anos ele sair da priso e quando isso acontece, ele a

troca por outra. Procura, ento, afastar-se dele, pra tentar esquec-lo. Ela o v com outras

mulheres, gastando dinheiro com elas e com jogo, e recorda de quantas vezes o filho pediu por

uma festa de aniversrio e ele negou. Ser vagabundo foda, mas me solteira bem pior, no

desespero, se vem fcil ou com suor, se a fome chega, o filho chora, nessa hora o que acontece, o

cara v, tem, quer, e a moral voc esquece.

A rapper continua declarando que sente muita falta de sua prpria me.

Aqui percebemos que a falta de recursos financeiros da mulher quando esta me envolve

a prostituio, uma vez que ela exerce esta funo, muitas vezes, para ter dinheiro pra cuidar do

filho. Retorna, portanto, a imagem da mulher que faz tudo por amor ao filho.

135
Rapper Nega Gizza

CD: Na Humildade29

Letra: Filme de terror

Ano: 2002

O filme de terror a situao brasileira. A letra comea com: pas da democracia racial,

da mulata exportao, da beleza natural. Brasil, nao feliz, um pas tropical, pas da pedofilia,

futebol e carnaval. Brasil que nos condena a viver como animal irracional, vamos fingir que vai

passar, vamos fingir que natural.

Em toda a letra descreve-se situaes em que os mandantes, os poderosos (como a famlia

Sarney e de ACM), decidem pelo destino do Brasil e dos brasileiros, e o povo, passivo, no luta.

Eles saqueiam o nosso estado e o povo passa mal, rezar um tero, um pai nosso no o

suficiente. Concentram renda e no se acham indecentes. Maranho, terra de pretos

transformados em capachos, Salvador, terra de pretos j domados aos laos dos carrascos. A

letra pede a todos que: pegue sua arma e v buscar o que nosso e traz pro lado de c, vai l. O

povo visto como palhao que aceita ordens e entende que tudo natural. Para ela, somos parte

de um povo sem futuro, de uma gente sem cultura, sem orgulho, os brancos na orla, os pretos no

morro, os ndios sufocados contra o muro.

Diz, porm, que nesta letra no h um ideal, mas que seu jeito (jeito de dizer as coisas?),

e continua dizendo ao ouvinte que no aceite imposies, no concorde com a realidade, chama

todos pro combate e finaliza com a frase: no vou morrer pelo Brasil (talvez referncia ao Hino

Nacional).

29
Utilizamos sete letras do total de doze msicas que compem o CD Na Humildade. Este o segundo CD da rapper
e escolhemos estas letras por contemplarem os objetivos da pesquisa.

136
 A imagem que traz esta letra refere-se mulata exportao, beleza natural. Ela no

trabalha com esta imagem, porm penso que a mulata exportao refere-se a este imaginrio

que permanece na sociedade brasileira da mulher sedutora, sensual, pronta para satisfao (do

homem) sexual. Esta imagem vem atrelada a condio de ser bela natural. Interessante observar

que nas letras produzidas por homens, em especial na de Rappin Hood, esta imagem da mulher

tambm aparece, porm reforando a negritude como uma caracterstica que, alm de permitir

que esta mulher seja sensual, tambm trabalhadeira.

Ser negra ser bela naturalmente. Na viso da rapper isto remete-se mulata exportao

(por ser mulher sua crtica seja direta?), na viso do rapper ela trabalhadeira (oposio implcita

do imaginrio da mulata exportao?).

Letra: Depresso

A letra busca retratar uma mulher que no entende por qual motivo est deprimida. Em

primeiro lugar fala de pessoas que morrem, que sofrem. Ela chora, e diz que s precisa de

verdade, paz, justia e liberdade, coragem pra viver nessa cidade.Ela quer dignidade, mas usa

drogas, pergunta-se se normal detestar os mais clarinhos (referncia aos brancos?), odiar a

sociedade, e responde que no fundo inveja essa gente, sem dio nos dentes, sem amor no

corao, sem bala no pente.

Pede a me proteo para realizar seu sonho de menina (no diz qual). V-se explorada,

assim como os moradores do morro, feito saco de pancada. Diz de si: deprimida dos ps a

cabea, sou fiel. Atrevida com homem, valente eu t no cu. O meu crime foi falar pela minha

gente favelada, no quero ser julgada sem ter advogada. Estou exausta, vrias noites sem

dormir. Mas antes do final da vida eu decido se eu vou sair, mas por enquanto eu fico aqui. Sou
137
psicose delirante, me transformo em cada instante em astronauta viajante T na depr, t na

depresso, no me vejo no espelho e vou andando na contra mo.

De forma geral esta letra parece mesclar sentimentos que refletem um descontentamento

tanto com a vida pessoal, como com a situao de outras pessoas, no caso, a gente da favela. Isto

gera angstia e dvidas que a deixam deprimida.

Letra: Larga o Bicho

Nesta letra as rappers Nega Gizza e Yeda Hills falam de si. Nega Gizza caracteriza-se

como mulher preta de esprito guerreio, no sou mulata, no sou mula, sou canho, sou a

granada que explode a solido (...) no sou metida, eu sou apenas atrevida, venenosa, barro

duro, perigosa, corajosa, sou formosa, vaidosa.(...) Tenho fama de neguinha barraqueira, sou do

tipo que chega s no fim da feira, no sou mulher de reclamar de homem mane, descendente

africana conservando minha f.

Yeda diz: pois no sou patricinha ou perua. No nasci de bunda pra lua, aprendia muito

nas ruas. No ABC eu cresci, sou nega na pele e na mente, isso me faz valente, pois sei que sou

descendente do guerreiro Zumbi (...) Impe respeito pra ser respeitado, isso no s filosofia

(...) Sou mulher, mas no sou to frgil ou to delicada, meu microfone minha arma, minha

palavra como uma espada, o rap no privilgio do homem, j vencemos esse desafio, se voc

no entende nada, disque Yeda Hills.

As duas rappers, portanto, representam nesta letra suas identidades. As duas consideram-

se mulheres fortes, guerreiras, em virtude de serem negras. Yeda ope a patricinha ou perua pra

dizer de si mesma, enquanto Nega ope a mulher que fica reclamando de homem. Demonstram,
138
at na forma como cantam, uma certa agressividade que tambm se ope ao frgil e delicado que

ocupa o imaginrio de como a mulher se comporta (em oposio agressividade masculina).

Finalizam a letra com: O rap no perfeito, assumo meu preconceito, solte a voz e alivia o peito,

vacilou no tem mais jeito. som de preto, meu nego, som de preto.

Letra: Prostituta

Segundo o site vagalume.com, Nega Gizza coletou, durante seis meses, histrias de

prostitutas. Ela queria relatar com veracidade a vida de uma prostituta. Conforme a letra, a

prostituta : o retrato desse povo brasileiro, a ausncia do amor com a presena do dinheiro. O

exerccio da prostituio, portanto, realizado pela falta de dinheiro. Ela considerada a rainha

do erotismo, condenada pelas famlias, pecadora. O que gostaria, porm, era ser artista, ser capa

de revista, ser bem vista. Usa drogas para suportar o cotidiano e diz: sou meretriz, codinome

vagabunda, entre o mau e o bem, vou deixar de ser imunda, voc acha que falta de moral,

promiscuidade excessiva, seja puta dois minutos e sobreviva.

Continua relatando como sua profisso, e ressalta que o que lhe interessa o filho e sua

me. Gostaria de estar com eles ao invs de, naquele momento, iniciar a vida sexual de um

menino. Finaliza a letra dizendo que provavelmente aos 33 anos estar velha e arrependida e aos

43 s no esqueleto, recordo a vida.

Esta letra, embora represente a realidade de uma prostituta, nos oferece a imagem da

mulher que utiliza esta profisso, ou esta forma de ganhar dinheiro, como alternativa para

sustentar a famlia. A necessidade me leva a sobrevivncia, a misria me leva a indecncia, as

duas a loucura, intenso devaneio, sou a ausncia do amor com a presena do dinheiro(...) No

me orgulho, mas me assumo, menos mal.. Aparece a imagem da mulher que batalha e se sacrifica,
139
mesmo pensando que os meios escolhidos no so os mais corretos (sei que no sou mulher

direita), para demonstrar o amor que sente e no deixar faltar nada aos seus.

Letra: Nenm

Esta uma letra que trabalha com recordaes pessoais da rapper em relao a sua

famlia. Fala sobre seu irmo (apelido Nenm) que faleceu por ter se envolvido com o trfico e

roubos. A me da rapper uma mulher de grande fora produtiva, acostumada a passar

dificuldades na vida, guarda no peito uma triste decepo, neuroses da rua trazida pelo meu

irmo.(...) Ele foi criado com carinho, com amor e sacrifcio, s eu sei o que isso e como

difcil.

Ele era viciado em drogas e a famlia v-se desestruturada quando seu irmo preso. Ao

retornar para casa, est mais cabuloso, com a cabea bem pior. Muda-se para outra favela,

continua envolvido com o trfico. Foi morto pelos vermes (no diz se policiais ou traficantes) que

invadiram sua casa. Para a polcia mais um bicho, um Z ningum, deixou famlia, mulher e

saudade. No sei se foi pro Cu alcanar a eternidade.

Na letra, a rapper fala de seu irmo, que de heri, para ela, virou vilo. Em relao a

mulher, porm, a imagem que prevalece da me, novamente sendo associada ao sacrifcio no

cuidado dos filhos e sua posterior decepo por ele no corresponder s suas expectativas.

Letra: Inconstante

Todas as rimas desta letra so construdas com o final ente. Aumente, urgente,

emergente, mente, lente... O discurso produzido apela para os pretos que vivem sem questionar a
140
dominao dos brancos. Diz: A sede de alforria urgente, quem chegar at a superfcie

emergente, de repente sente que a sua idia quente, tenta enfraquecer sua alma pela mente,

alisa seu cabelo e bota lente, tipo o cigarro, vai matando lentamente.

Ela, ao contrrio, se coloca com uma guerreira combatente, que no se deixa ser

manipulada. Conclui que: A falta de atitude desses pretos deprimente, nem parecem que de um

povo lutador so descendentes, com a poltica descrente, igualdade um sonho desistente.

Nega Gizza, nesta letra, portanto, diz um pouco de si, mas constri um discurso para o

preto, pra que ele se rebele.

Letra: Fiel bailarino

Esta narrativa direcionada a um traficante. Conta-se sua histria. Considerava-se cheio

de marra, saa com um monte de mulheres, mas quando chegava em casa batia na filha,

explorava a me. Sua mina estava grvida e ao ser expulsa de casa pelos pais foi morar com ele.

Ela, porm, no suportou a vida do companheiro e foi embora. Foi morto, em seu barraco, por

seus parceiros por estes terem achado que tinham sido trados (ele era suspeito de ter assassinado

outro parceiro).

A mulher, nesta letra, significada a partir dos papis sociais que exerce: me e esposa.

Nestes dois papis elas so vistas como exploradas e abusadas.

141
Rapper Lady Rap

CD Equilbrio (a busca)/volume III

Coletnea

Ano: 2001

Letra: Guerreira

Lady Rap considerada uma das pioneiras no movimento hip hop. No somente entre as

mulheres que comearam a cantar, como tambm entre os homens. Nesta letra, KL Jay, produtor

do CD pergunta qual o motivo dela ter se afastado do hip hop. Ela responde que: toda mina quer

ser uma preta de f. Ela uma preta de f. E ao longo da letra faz referncias as suas trutas,

guerreiras, e possuem um plano (porm este plano no explicitado). Considera-se uma

guerreira, descendente de sab, veneno no paladar, meu sentido, enfeitiar. Enquanto algumas

mulheres fazem pose de bandida, ela vive na corrida. Parece-me que sua ausncia no cenrio hip

hopper, como aparece em sua participao na letra de Rappin Hood, deu-se por estar perdida.

Nesta letra ela diz: fui ao inferno e voltei, no t derrubada, foi difcil pra mim, sobrevivi, t

aqui, mas no foi fcil seguir, eu precisei insistir. O mundo trabalha pra te deixar no cho, c

tem pouca escolha, pouca opo, s tive tempo pra ver que iluso.

Lady Rap constri pra si uma representao da mulher que batalha, guerreira, uma

mina preta de f. Para uma construo identitria baseada numa raa/etnia remete-se ao

continente africano.

142
O sentido da mulher nas letras de rap

Antes de apresentarmos as categorizaes propostas a partir das letras, faz-se necessrio

esclarecermos a distino inicial que conduz a anlise. Estamos propondo compreender o sentido

e a representao social da mulher por meio da anlise das letras de rap. Interessa-nos

particularmente, a construo social e o sentido atribudo mulher. As categorias empricas que

nos deteremos refletem os contedos e temas propostos pelas letras, femininas e masculinas, a

saber: os papis sociais atribudos mulher, qual classe social pertence mulher da qual elas/eles

falam, possveis identidades tnica/raciais e valores morais. Buscamos compreender os sentidos

de cada uma dessas dimenses a partir de caractersticas que esto presentes nas prprias letras.

So possveis arranjos diversos que contemplam estas quatro dimenses identitrias, e muitas

vezes a legitimao de um papel social, por exemplo, configurado por meio da valorizao de

determinadas caractersticas. Estes arranjos determinam quais tipos de mulher habitam a

construo do mundo hip hop e a valorizao de determinadas caractersticas para a construo

de sentidos para a mulher.

A partir desta categorizao emprica, propomo-nos a uma discusso sobre trs categorias

analticas distintas que refletem os contedos ideolgicos que perpassam a representao de

mulheres: a me (Amor... s de me), mulher objeto (Voc no passa de mulher objeto) e a

guerreira (Tem que ser mulher pra se manter em p). Nestas categoriais propomos um

dilogo com algumas representaes que foram utilizadas nas entrevistas por mulheres que

participam do hip hop. Este dilogo uma tentativa de ampliar a discusso, que parte do discurso

pblico que o hip hop apresenta nas letras conjugado com o discurso das mulheres que dele

participam.

143
Os papis sociais atribudos mulher

mulher que ocupa a cena rap considerada me, namorada ou esposa, e em alguns

momentos dona-de-casa (esta dimenso aparece mais raramente). Segundo Salem (1980)

O conceito de papel engloba dois aspectos analtica e empiricamente distintos. Refere-se,

de um lado, s expectativas de desempenho que recaem sobre um ator pelo fato de ocupar
uma determinada posio social. Essas expectativas, que cristalizam tipificaes de
padres interacionais, so veiculadas por outros atores que, em virtude da relao
particular que mantm com o ator em questo, se configuram em outros
significativospara ele. (...) Por outro lado, o conceito de papel se refere tambm ao
desempenho efetivo levado a cabo por um ator no exerccio de sua funo. A idia de
comportamento, conforme aqui entendida, engloba no apenas a prtica expressiva do
ator, isto , os dados observveis de seu comportamento, como tambm as representaes,
ou seja, a maneira particular como retrata e explica suas prticas segundo sua prpria
lgica (p..25-26).

Estas duas dimenses, portanto, so consideradas quando analisamos as letras de rap. Na

produo masculina, h uma expectativa quanta a funo social que a mulher deve desempenhar.

Por outro lado, percebemos que nas letras femininas estes papis aparecem na construo

identitria da mulher.

Quando a me retratada por um homem, o papel que ela desempenha de cuidadora

incondicional do filho. isso que se espera de uma me. Ela sofre as mais horrveis situaes

para poder sustentar a famlia. E esta representao corroborada pelas letras produzidas por

mulheres.

Me, no dei valor pro teu sonho

Sua luta, diploma na minha mo
Sorriso, formatura
No fui seu orgulho
(...)
Desculpa me por te impedir de sorrir
Desculpa me
144
Por tantas noites em claro, triste sem dormir
Desculpa me
Pra te pedir perdo infelizmente tarde
Desculpa me
S restou a lgrima e a dor da saudade
(...)
A herona que pediu esmola no buso
Com a receita, deu comida na boca
Comprou todos os remdios
Sonhou com emprego
Mas o diabo me quis descarregando o ferro
A eu dei soco, chute, bati com tanto dio
Preciso fumar, vai me, d o relgio
Velha, doente, desafiando a madrugada
De porta em porta
Algum viu meu filho, t preocupada
Fim-de-semana, foi farinha, curtio
S cheguei hoje
De premio te trombei nesse caixo
Um vizinho ligou, que foi ataque cardaco
Morreu na rua atrs da merda do teu filho
(Grupo Faco Central, letra Desculpa Me)

Toda me sofre porque no pode prever o que o filho vai ser quando crescer
Na adolescncia se envovle com falsos amigos, influncia, perigo, eles tem tudo a perder
Viram marginais
Matam os prprios pais
Ingratos, desleais, mas mesmo assim a gente ama at o fim, cada vez mais, certo ou errado.
(...)
Olha s, quem me como eu sabe que filho pequeno seu
Cresceu, do mundo
(...)
O amor de me sempre me enfim
Tem muito pai sem corao que faz o filho em vo, distante
Tem amante briga constante.
Incapaz de amar, farsantes.
(Grupo Viso de Rua, letra Filho pro mundo)

(...) mas me solteira bem pior

No desespero, se vem fcil ou com suor
Se a fome chega, o filho chora, nessa hora o que acontece
O cara vem, tem, quer, e a moral voc esquece.
(Grupo Viso de Rua, letra Marcas da adolescncia)

145
 A partir da perspectiva das letras produzidas por homens e por mulheres, no qual o

primeiro atribui expectativas quanto ao desempenho do papel de me, estas mesmas expectativas

so apresentadas nas letras por mulheres. Elas, quando falam de si como mes, confirmam as

expectativas masculinas.

No desempenho de seu papel como namorada ou esposa, espera-se que a mulher seja uma

mina de f. Para os homens, isto significa ser uma mulher fiel, dedicada, que no atrapalha nas

correrias dele. Para as mulheres, ser uma mina de f significa ser guerreira. Nas letras do grupo

Viso de Rua esto mais evidentes a representao da mulher como parceira, uma vez que ela

(Dina Di) traz letras que narram sua vida amorosa. Ela fiel como um co, na ilha da seduo

(letra A Noiva do Thock). A decepo amorosa acontece por responsabilidade do companheiro.

Na configurao do ser namorada/esposa, as letras trabalham relacionando a fidelidade

como caracterstica condicionante do papel social. A partir do momento que se rompe este pacto,

a mulher deixa de ser uma mina de f para se transformar em uma mulher vulgar. Nas letras de

mulheres, interessante notar que a fidelidade, e a permanncia com determinado parceiro so

visto como uma sina, um destino, como apresentado na letra abaixo:

Mina de nome, conhece a sensao

De ver o cara sair sem saber se o cara vai voltar ou no
Final de marginal de qualquer artigo
Se periculoso ou no, meu marido
Se p tem uma sina, sei l, virou rotina
(Grupo Viso de rua, letra Do lado di fora da muralha)

A sina pode ser vista, neste caso, como uma determinao da qual ela no escapa, que

pode tanto significar seu vnculo afetivo com o companheiro, como justificar uma dimenso de

sofrimento que confirma uma identidade atribuda mulher da periferia. (Veremos adiante que a

mulher da periferia sempre retratada como a mulher que batalha).

146
A mulher e a classe social

Duas dimenses aparecem para caracterizar a mulher, enquanto representao identitria

de classe, ser rica ou pobre. Ser burguesa ou da periferia. Estas duas dimenses, porm,

interpem-se com uma possvel identidade tnica, como a mulher da periferia ser negra e a

mulher rica ser branca.

Uma rosa negra, deusa da beleza

Mulher de verdade, exemplo de luta
Com at mais dignidade que a tal lraburra
Do campo ou da cidade, do lar ou das letras
Salve todas as mulheres pretas
(...)
Lava roupa todo dia, que agonia
Triste vida da Dona Maria
Acorda cedo, j vai pra batalha
Lava roupa pra madame que lhe paga
Como uma escrava dos tempos do cativeiro
Reza pela famlia, luta por seu sutento
(Rapper Rappin Hood, letra Tributo as mulheres negras)

Explora bel, leva uma vida de princ, pensando o qu?

Nem sabe o que sofrer de Cherokee
Tem at jet-sky, dinheiro mato, s fingir
(Grupo Viso de Rua, letra Corpo em evidncia)

Por hora, porm, pensamos que esta distino entre duas classes distintas, ser rica ou

pobre, confirma a representao da mulher que habita o mundo hip hop (pobre) em oposio

mulher que habita o mundo do sistema (a mulher rica).

A mulher rica vista como sendo ftil, sem motivos pra sofrer, pois ela tem tudo. A

mulher da periferia batalha pra conseguir seu sustento, nada vem fcil.

147
Uma identidade tnica/racial

Em se tratando da construo identitria baseada numa dimenso tnico/racial, os/as hip

hoppers trabalham com as identificaes da mulher branca, negra e mestia. Muito dessa

composio sugere que a mulher negra identifica-se com uma ancestralidade africana,

escravido, e por natureza uma mulher lutadora. A mulher branca retratada como uma vaca

loira, ftil, burra (lraburra). Assim como acontece quando pensamos na mulher e a classe social

a qual ela representa, a dimenso tnica conjuga-se com a classe social. Ao falarem sobre a

mulher negra, por exemplo,

Salve todas as mulheres pretas

Essa menina, mulher, da pele preta
Oh, meu Deus, salve a mulher negra
Negra, preta, mulher brasileira, negra
No admite ser subjugada, passada pra trs
Negra, preta, mulher brasileira, negra
Exige direitos iguais
Lava roupa todo dia, que agonia
Triste vida da Dona Maria
Acorda cedo, j vai pra batalha
Lava roupa pra madame que lhe paga
Como uma escrava dos tempos do cativeiro
Reza pela famlia, luta por seu sustento
Discriminada h muito tempo
Mantm a f, mostra o seu talento
Mulheres pretas pra vocs essa cano
Meu carinho, minha considerao
Mama frica quem agradece
A me que pede pelo filho em suas preces
Lembra a mulher, preta Dandara, jia rara, felicidade a sua cara
Tem uma coisa que eu queria lhe dizer:
A preta, Deus abenoe voc.
Negra, preta, mulher brasileira, negra.
(Rapper Happin Hood, letra Tributo as mulheres negras)

148
 Neste trecho aparece a atribuio de uma identidade tnica, a mulher negra, com

referncia escravido (escrava do cativeiro) como tambm sendo a mulher que batalha (valor),

e como pobre (lava roupa pra madame que lhe paga), alm de atribuio do papel social de

me. Na letra, portanto, arranjos identitrios so definidos pra falar da mulher negra (como

sugesto do ttulo da letra, e como ocorrem nas demais letras). A identidade tnica muitas vezes

moldada e atribuda a partir de caractersticas como a classe social. O que est presente tambm,

em relao mulher negra, sua africanidade e a cor da pele.

Tenho fama de neguinha barraqueira,

Sou do tipo que chega s no fim da feira,
No sou mulher de reclamar de homem man,
Descendente africana conservando minha f.
(...)
Pois no sou patricinha ou perua,
No nasci de bunda pra lua, aprendia muito nas ruas.
No ABC eu cresci, sou nega na pele e na mente,
Isso me faz valente,
Pois sei que sou descendente do guerreiro Zumbi (...)
(Rapper Nega Gizza, letra Larga o Bicho)

A mulher branca, neste trecho, aparece como a patricinha ou perua, que nasceu de bunda

pra lua, ou seja, com sorte. Ao contrrio da mulher negra, que tem que batalhar e aprender nas

ruas a se virar. mulher negra atribudo como caracterstica a luta, elas so a priori

batalhadoras. Este status, porm, pode ser perdido quando esta compartilha anseios de um

mundo que no da periferia, relaciona-se como homens que no so negros ou expe seu

corpo como mercadoria.

De acordo com Ribeiro (2004), a raa e a discriminaes geradas quanto ao pertencimento

determinada raa, compe o racismo e o aprofundamento das desigualdades sociais.

Historicamente, em nosso continente, a cor da pele dos negros determinou no apenas o lugar

149
fsico a senzala, como tambm o lugar social e eles permitido (p.101). Mas, como observa a

autora, analisando os dados da pesquisa da Fundao Perseu Abramo Quanto identificao

racial, ficou evidente o mito ou o terror de se pensar a cor como indicativo de diferena racial

(p.94).

Pensamos que a atribuio de uma identidade tnica/racial mulher em letras de rap sofre,

portanto, as influncias da constituio na realidade brasileira, do que ser negro/branco, uma

vez que esta distino vem atrelada discriminao sofrida por causa do pertencimento. Ter a

pele escura conforma uma identidade estigmatizada, mas que os hip hoppers procuram inverter

a partir da identificao da pele e da ancestralidade como indicativos de um povo lutador.

150
Os valores morais atribudos mulher

Nas letras femininas e masculinas percebemos que as/os rapperes propem normas de

sociabilidade para os ouvintes. A letra busca apresentar uma mensagem que apresente as

formas, as normas e condutas que regem o mundo, a partir da tica hip hopper.

De acordo com as anlises de Guasco (2001) e Souza (2005), o mundo e os

tipos/personagens que nele habitam so apresentados pelos rappers, e diria representados, por

meio de oposies fixas. H descries quase caricaturais destes tipos/personagens e no h

quase variaes. No h matizes, gradaes, a complexidade do ser humano. Cantam a vida de

forma dura, sem delicadeza. E em alguns momentos, quase sem alternativa. No que se refere

mulher, esta dicotomia e radicalidade tambm se aplica, como nos trechos apresentados a seguir:

1) Pera, no no, o rap tem que ser verdade

Eu num posso maquiar
O joio e o trigo tem que saber separar
Tem as revolucionrias e as que no vale nada
Patroa e empregada
mesmo louco esse mundo, pra cada bruxa uma fada

2) Mas , v direito se status ou amor

3) Vocs so o mais puro retrato da falsidade

Desculpa amor, mas eu prefiro mulher de verdade

4) Mulher? Que tipo de mulher?

5) Mas a metade eu te garanto que no presta.

6) Sou Dina Di, mulher de fibra

E tem muitas como eu
Que capaz de resistir, o que vem, que vai alm
Que no atrasa o de ningum
Que faz o bem.
151
 A, que no virou refm de homem
Certa, independente, que constri o prprio nome
Tem aquelas que eu, desacredita, que no se movimenta
Lenta, parasita, no anda.
Do tipo que os homem domina, comanda, enfim..

7) Mulher de verdade, exemplo de luta

Com at mais dignidade que a tal lraburra

Nestes trechos, h uma distino entre a mulher de verdade e a falsa/mentirosa; a mulher

que no atrasa o de ningum, e aquela que lenta, parasita; as revolucionrias e as que no

valem nada. H a construo de representaes e interpretaes da mulher, como que, por meio

das letras, os rappers procurassem estabelecer regras de conduta para mulheres e assim

diferenciar quelas que so as verdadeiras e as falsas, valorizando determinadas caractersticas e

desvalorizando outras, com o intuito de demarcar as que podem fazer parte do universo da

periferia/hip hopper e as que no podem. E nesta ciso, patente nestas construes, h

personagens e caractersticas que se destacam: valores positivos que conformam as mulheres

batalhadoras e valores negativos que compreendem as mulheres vulgares.

Assim, como proposto pela anlise de Guasco (2001) e Souza (2005), h uma clara

distino, e uma cristalizao, de que existem dois tipos de mulheres: as mulheres que merecem

ser respeitadas por lutarem, serem honestas, serem verdadeiras. O outro tipo no merece ser

respeitado uma vez que querem status, no valem nada. Qual seria, ento, a necessidade de

atribuir sentidos to distintos? Quais so as motivaes que levam a separar, de forma to clara,

os tipos de mulher? Segundo a anlise realizada pelos autores citados, e aqui compartilhada, esta

separao se faz necessria como uma forma de resistncia radical. Os rappers no podem

vacilar, os negros tm que mostrar seu valor e pra fazer parte deste mundo perifrico h regras e

valores que precisam ser respeitados. Quem demonstra um desvio, um vacilo, como por exemplo,

152
ao querer status, dinheiro fcil, no perdoado. Alm disso, na valorizao da periferia, o seu

oposto deve ser desvalorizado, ou seja, o sistema e os tipos/personagens que dele fazem parte

(SOUZA, 2005). Opem, nas letras, o preto tipo A (ser preto como referncia ao ser pobre/da

periferia) do playboy e a mulher negra da mulher branca. Na configurao do grupo, ou o ns,

os hip hoppers estabelecem claramente quem so os outros, ou o eles.

Na anlise proposta por Souza (2005)30 sobre a produo do grupo Racionais MCs, a

autora identifica nas letras do grupo e em sua prtica discursiva duas operaes semnticas: a

autovalorizao e a radicalizao. Autovalorizao e radicalizao principalmente

relacionados periferia e no-periferia e brancos e negros. Os Racionais impem no discurso

uma valorizao e radicalizao da periferia (o espao perifrico exaltado e outros espaos

urbanos desvalorizados), assim como h exaltao dos negros e rechao aos brancos, adotando

uma postura radical, e nas palavras da autora, em alguns momentos, maniquesta (p.47).

Atravs das letras dos raps, possvel distinguir tipos de pessoas que so descritas e
classificadas. Quanto s mulheres, mais da metade considerada sem carter, vadia,
vulgar. As que so valorizadas so chamadas de preta ou pelo termo pouco marcado
mina e aparecem ligadas a um mano de valor, como Mano Brown, na citao acima de
Vida Loka parte I (...) que buscava a preta dele no porto da escola. Tambm
ligada ao Mano na porta do bar (...), antes de ele se desviar para o mundo do crime,
estava sua mina apaixonada, amiga e solidria, que, depois do desvirtuamento de seu
mano, perdeu a posio: agora ele tem vrias. Essas vrias que ele passa a ter so as
mulheres vulgares, que, dependendo da cena narrada, podem ser chamadas de minas.
Mulheres bastante valorizadas so as mes, principalmente as mais velhas, caracterizadas
como sofredoras, corretas, batalhadoras (p.117).31

Assim como Guasco (2001) afirma que

Basta listar algumas das categorias utilizadas pelos rappers para perceber sua relao entre
elas e o reflexo de uma retratao do social onde o mundo se constitui de duas metades
opostas. Temos ento do lado da periferia e enquanto tipos positivos as categorias de

30
A autora analisa letras do Grupo Racionais MCs por meio da anlise do discurso (Mestrado em Lingstica) e no
decorrer de sua dissertao trabalha com conceitos advindos deste campo de conhecimento.
31
A autora utiliza trechos das letras, apresentadas entre aspas, em sua argumentao.

153
 aliado, mano ou irmo, ladro e malandro (o verdadeiro malandro, citado como um tipo
em extino); temos tambm o preto tipo A; as categorias ou tipos sociais representados
pelo trabalhador ou pelo pai de famlia, alm da me e esposa dedicada; h ainda o
tratamento como filho da puta, que para ter sentido positivo depende do contexto em que
se fala e da intimidade que se tem como o interlocutor. Como categorias ou tipos
negativos da periferia temos o pilantra, o trara e o nia (viciado em drogas pesadas,
principalmente o crack); o negro limitado ou o neguinho; o comdia e o vacilo; alm das
vagabundas (geralmente definidas pela promiscuidade e infidelidade). Os tipos ou
categorias sociais negativos construdos pelos rappers para representar o lado da sociedade
oposto periferia possuem menos possibilidades de variao e so menos detalhados. So
eles: o playboy, o patro, o burgus ou capitalista, alm das vagabundas e das vacas
(geralmente definidas no s pelo comportamento sexual, mas tambm pelo desprezo para
com os homens da periferia desprezo que s pode ser superado no caso de haver
interesse material) (...) A viso do mundo dos rappers construda a partir de categorias
de oposio. O mundo e a sociedade so pensados a partir da separao de dois plos
opostos e antagnicos (p.139).

Na construo da representao da mulher percebemos que as diversas dimenses

identitrias se sobrepem. A representao concebida a partir de esteretipos e tipificaes que

vo se alterando e alternando conforme a narrativa. Entendem que determinado papel no

construo social e cultural, mas essencializado (caso da me que sempre, pelo menos nas

letras, ou seja, no discurso pblico, ama os filhos). Isto determina uma construo do real, em

letras, no qual estas/estes rappers conjugam ideais de mulher.

154
A representao social da mulher

Se compararmos as produes entre homens e mulheres, percebemos que as letras

produzidas por mulheres possuem um contedo mais pessoalizado, ou seja, falam sobre suas

experincias pessoais, quem so, onde vivem, revelando como se vem, como constroem suas

identidades. As letras dos homens possuem um contedo, de forma geral, mais abrangente,

acontecimentos que ocorreram no bairro, com outros e com eles mesmos. Esta forma de

construo de narrativas, porm, no exclusividade dos homens (Nega Gizza possui letras

mais abrangentes), mas est mais presente na produo destes. Podemos pensar que esta distino

fornece dados sobre como as mulheres exercem em sua fala, o direito de expressar sobre suas

prprias experincias.

As letras produzidas pelas mulheres revelam algumas dimenses da condio social na

qual vivem, trazendo para um domnio pblico suas vivncias particulares, e talvez possibilitem a

outras mulheres enxergarem a sua prpria existncia. Esta publicizao pode operar como um

questionamento da prpria construo social de ser mulher. Em letras produzidas por mulheres

sua condio social questionada, por exemplo, como a fala da rapper Kamilla na letra F em

Deus, do CD Declarao de Guerra (rapper MV Bill): No vou deixar ningum me amarrar e dar

tapa na minha cara, vai ser difcil me calar. Esta poderia ser uma resposta ao funk que teve

muito sucesso (e muitas crticas), no qual o refro dizia: Um tapinha no di; talvez o

rompimento com a invisibilidade da mulher e da sua fala pblica, alm de ser uma resposta

violncia fsica sofrida por muitas mulheres.

A diferena que pudemos observar em letras produzidas pelas mulheres refere-se ao apelo

construo de um grupo de mulheres. Explicando: na hegemonia artstica masculina, as

mulheres comeam a cantar outras possibilidades de sentidos e significaes na construo de sua

155
identidade. Ela me, negra, condena as mulheres que se vendem ao capitalismo, desejando

fama e dinheiro, mas tambm estas rappers esto unidas, esto com suas trutas, querem o poder,

querem subir a rampa de acesso (Lady Rap).

Apontam para uma dimenso pblica onde o privado reinava, entendendo a dimenso

do privado relacionado ao espao da casa32 (e aos papis de me, esposa e dona-de-casa), e a

dimenso pblica na possibilidade da mulher desempenhar papis e funes relacionadas rua,

como, por exemplo, o poder pblico (subir a rampa de acesso). Assim, representaes

identitrias so apresentadas para que outros sentidos da vivncia da mulher sejam construdos.

De certa forma, as rappers convocam outras mulheres para uma luta (nas entrevistas, as

mulheres expressam que esta luta contra o machismo, contra a violncia, contra a injustia

social) e apresentam outras referncias e representaes sobre e para a mulher.

Assim como proposto pela Teoria das Representaes Sociais, para a compreenso das

representaes, estes rappers, e mais especificamente as rappers, compartilham representaes j

arraigadas, mas contribuem na formao de novas representaes ao instituir elementos novos,

divulgando outras formas de compreenso da mulher, que alm de ser me e companheira,

tambm se organiza e luta, propondo, portanto, referncias na construo do mundo e da mulher.

Possibilidades de referncia para as pessoas que escutam estas letras compreendam o movimento

hip hop e a mulher que nele habita.

32
Segundo DaMatta (1991) Quando, ento, digo que casa e rua so categorias sociolgicas para os brasileiros,
estou afirmando que, entre ns, estas palavras no designam simplesmente espaos geogrficos ou coisas fsicas
mensurveis, mas acima de tudo entidades morais, esferas de ao social, provncias ticas dotadas de positividade,
domnios culturais institucionalizados e, por causa disso, capazes de despertar emoes, reaes, leis, orao,
msicas e imagens esteticamente emolduradas e inspiradas(p.17)

156
 Entendemos que a partir das caractersticas na construo identitria da mulher (papel

social, identidade tnica/racial, classe e valor moral), as/os rappers definem ideais de mulher.

Como j foi exposto, estes ideais definem quem quem no jogo das relaes sociais. Quem

pertence ao meu grupo, sendo homem ou mulher, quem pertence ao grupo do outro. Interessa-nos

compreender como estes ideais reiteram, ou no, sentidos da mulher e buscar compreender como

estes sentidos operam na construo do movimento hip hop.

157
Ideais de Mulher

Amor...s de me

A me o tipo/personagem mais valorizado pelos rappers, sendo muito exaltada nas

letras. Seu sofrimento, sua luta pra manter a famlia e os filhos unidos, sua dedicao detalhada

nas letras, e diria idealmente configurado.

Em oposio a um filho que no merece ateno e considerao, h uma me idealizada

que perdoa e cuida de seu filho. Em uma das letras, a conversa entre me e filho:

Na vida do crime eu me entreguei pra sobreviver

Eu tive que matar, lgrimas de me fiz rolar.

Saiba meu filho que eu te perdoei

Pra te ver feliz eu tive que chorar.
S no quero lamentar, quero te ver voltar
(Grupo Detentos do rap, letra Amor s de me).

Assim, esta personagem envolta em uma urea que a transforma em quase uma santa.

Ela capaz de sofrer, quase morrer e perdoar as irresponsabilidades do filho de corao

sempre aberto. Configura-se, portanto, uma reiterao de um imaginrio sobre as funes sociais

da mulher, em especial, o cuidado com os filhos. interessante notar que nas entrevistas

realizadas, as mulheres percebem e vivenciam esta dimenso identitria, ora construindo suas

prprias identidades e ora como um mecanismo de opresso masculino.

Paula: Eu acho que o hip hop comea a conscientizar a partir das mulheres, enquanto no tem
mulher no cenrio no h conscientizao.
E: Como assim, no entendi?
Paula: Conscientizar, porque voc j deve ter ouvido falar um monte de gente falar de
conscientizao.
E: Sim.
158
Paula: Conscientizao a partir do hip hop. Ento assim, o hip hop entra na prtica da
conscientizao, seja por qual elemento for. Ento, o que eu quis dizer que essa conscientizao
do hip hop para com a sociedade, vai comear a partir da mulher.
E: ela que, so as mulheres no movimento que comearam a ...
Paula: So elas que tem, que detm o poder de , de efetivamente conscientizar o outro.
E: Porque voc entende dessa forma?
Paula: Eu entendo isso por conta do, de todo esse valor , esse valor , valor humano, educao.
So as duas coisas que regem o ser humano, n. Embora os tempos tenham mudado o tempo todo
e a gente a no sculo XXI, e o homem at cria seus filhos, a mulher continua sendo este ser que
realmente passa a conscientizao, que passa educao. Ah, agora assim, discuto com muita
gente por falar Ah no, agora tem homem que cria e tal. Tudo bem, tem, mas, essa mudana ela
s se d atravs da mulher mesmo assim. Primeiro a mulher tem que se reconhecer machista, se
tornar feminista, pra que a mudana acontea no homem e na mulher. Porque assim, muito do
que a gente reclama dos homens at, culpa das mes deles. A gente tem, , por exemplo, as
criaes n, de meninas e de meninos. Eu posso dizer que eu fui privilegiada porque assim, houve
uma poca que perguntava-se pra mim, perguntavam-se assim, minha me: Mas quem o
homem, a Paula ou o Antonio. Porque eu chegava de madrugada e ele ia dormir cedo, mas
porque que ele ia dormir cedo, porque ele ia namorar, n, a namorada no podia ficar at muito
mais tarde, e ele num tinha mais nada pra fazer, ele voltava pra casa, porque os colegas j tinham
ido tudo pra balada.
(Paula)

Clara: porque assim, pra mulher tudo mais complicado, entendeu, porque geralmente a
mulher, assim, so mes de famlia, esposas, ento, trabalhadoras, ento elas tem que achar um
espao dentro dessa vida corrida pra fazer msica, que nem eu ia falar..., pros caras muito fcil,
porque sempre tem uma mulher por trs deles, entendeu, cuidando, tem a me, ou tem uma irm,
ou tem a esposa, a namorada.
Joana: Sempre chega em casa a comidinha t l..
Clara: Exatamente.
Joana: Pronta, a roupinha, t tudo, tudo...
Clara: Ele no vai precisar lavar roupa antes de ir pro show, como eu fao, como todo mundo
faz, entendeu. Puta, eu vou ter que ir tem show hoje, domingo, deixa eu fazer a feira, deixar o
almoo pronto pras crianas, trs horas eu t entrando na Van pra fazer o show.
Joana: E os meninos no tem isso...
Clara: Acorda uma da tarde, a me j ps a mesa, comeu, a roupinha ta l passadinha pra ele
fazer o show. Ele pode chegar a noite do servio dele, muitos trabalham, claro, chega a noite do
servio no tem que se preocupar de fazer a janta, no tem que se preocupar em arrumar a casa.
Senta, pe o som, fica viajando ali nas letras, tem a mulher que t cuidando, entendeu?
(Joana e Clara)

Para estas mulheres, portanto, a mulher ainda a responsvel pela educao e cuidado dos

filhos, muito embora isto seja percebido como uma relao assimtrica e de dominao do

homem em relao mulher. Estas relaes dificultam o acesso da mulher, quando esta me, ao
159
espao pblico, como por exemplo, quanto ela pretende ser uma cantora (vide o discurso

feminino apresentado na discusso do grupo Minas da rima).

O discurso no qual se assenta a ideologia de que a me a responsvel pela criao

dos filhos definida, segundo Lipovetsky (2000), pela associao direta em ser mulher e o amor.

As vises tradicionais da mulher como ser de excesso e de desmedida, assim como as

ideologias modernas que se recusam a considerar a mulher como um indivduo autnomo
vivendo para e por si mesmo, contriburam para conjugar estreitamente identidade
feminina e vocao para o amor. Toda a educao das mulheres deve ser relativa aos
homens. Agradar-lhes, ser-lhes teis, fazer-se amar e honrar por eles, educ-los quando
jovens, cuidar deles quando adultos, aconselh-los, consol-los, tornar-lhes a vida
agradvel e doce, eis os deveres das mulheres em todos os tempos, escreve Rousseau: a
diviso sexual dos papis afetivos se enraza em uma representao da feminidade cuja
essncia dar-se, existir para o outro, dedicar sua vida felicidade do homem. Celebrando
o poder do sentimento sobre a mulher, definindo-a pelo amor, os modernos legitimaram
seu confinamento na esfera privada: a ideologia do amor contribuiu para reproduzir a
representao social da mulher naturalmente dependente do homem, incapaz de chegar
plena soberania de si (p.24).

A me hip hopper assume este amor, que lhe destinado, como natural. Assim tambm

o para as mulheres rappers. Segundo as letras femininas, a me espera que seu filho no vire

marginal, por causa das companhias erradas, pois ela fez de tudo para aliment-lo e educ-lo,

como, por exemplo, prostituir-se. por meio deste ato que ela demonstra o seu amor, reiterando,

portanto, a representao de que a me doa-se ao filho e existe em funo dele. Podemos

perceber isto na letra:

Filho, o que vai ser, vai depender do caminho que escolher

Toda me sofre porque no pode prever o que o filho vai ser quando crescer
Na adolescncia se envolve com falsos amigos
Influncia, perigo, eles tem tudo a perder
Viram marginais,
Matam os prprios pais
Ingratos
160
Desleais, mas mesmo assim
A gente ama at o fim
Cada vez mais
Certo ou errado
Eu vi Elizabeth ali lado a lado, ali, sem dormir
Porque tem um filho na priso, no mundo do co
No tem motivo pra rir
(Grupo Viso de Rua, letra Filho pro mundo)

Interessante registrar que uma pesquisa realizada por Elizabeth Badinter (1980), citada

por Saffioti (2004), na qual mulheres eram questionadas sobre a maternidade, 55% das

entrevistadas valorizavam esta condio, porm 48% valorizavam a maternidade mesma, isto , o

fato biolgico, pois s 20% mencionaram o prazer enorme propiciado pela maternagem (p.47).

Podemos pensar que maternidade, e a figura da me, portanto, continua sendo um modelo

identificatrio para a construo da identidade da mulher baseada em seu aspecto biolgico,

determinando que ser me seja sina para muitas mulheres em virtude de sua condio biolgica

(SARTI, 1985), e reiterando a construo de um imaginrio que associa esta condio ao amor

incondicional, ou seja, uma construo social (possuindo o componente biolgico) considerada

uma condio natural (toda me ama).

Para alm desta possibilidade de compreenso do sentido da mulher como me, ou seja,

entendendo que o hip hop mantm uma imagem da mulher de forma conservadora, associando-a

ao espao privado e ao cuidado do outro (filhos e maridos), podemos pensar que nas letras de rap

a condio econmica da qual os rappers falam e vivenciam influencia na construo desse ser

me.

Segundo Mano Brown, integrante do grupo Racionais MCs, em entrevista no programa

Ensaio em 2003, transcrito por Souza (2005, p. 13)

161
Eu no tive pai. Como que eu vou chamar outro homem de autoridade? Autoridade a minha
me.

Como ele, outro conhecido rapper, MV Bill, considera que:

Nesse trabalho do livro, nessa pesquisa, eu s ratifiquei o que pensavam em relao s mes,
cara. Isso uma parada muito forte. Porque as mes da favela, principalmente a me de baixa
renda, pode faltar tudo, mas no falta o carinho e o amor. Isso nunca minha me deixou faltar. E
uma das cenas mais chocantes que eu trago na memria, desse trabalho todo, de tudo o que eu vi,
foi uma comunidade que a gente estava, em uma cidade a, e de madrugada os garotos traficando,
vendo a droga deles, chegou uma me trazendo como se fosse uma marmita pro filho no trabalho,
sabe? Como se fosse um trabalho normal. Ela chegou: Oi, meu filho. Deu beijo na testa dele,
deu a marmita na mo dele e disse: Fica com Deus, meu filho, tchau, um beijo. Deu tchau pra
todo mundo e eu fiquei olhando aquilo ali e fiquei pensando se aquela mulher estava alimentando
o filho dela ou se ela estava alimentando o trfico de drogas. Daria um outro documentrio, um
outro livro, uma outra discusso. Conversei com outras mes que faziam isso, elas falavam: Meu
filho, mesmo sabendo que ele t errado, que aquele dinheiro sujo, eu sou me! E esse eu sou
me explica muita coisa. A figura da me pra ns muito diferente. difcil os caras da favela
chamarem a me de voc. sempre senhora, uma figura religiosa. Pela me, nego d a vida,
mata e morre. isso que a gente aprende. Esses garotos que conversei, muitos no tm pai. O pai
ausente, o pai preso, alcolatra, abandonou, simplesmente sumiu, pai morto. Mas a me est
ali, vista de forma herica. Eu costumo chamar a me de pe. Faz dois papis ao mesmo tempo.
(Revista Caros Amigos, n.99, 2005)

A me a autoridade na periferia. Ela cuida da casa, trabalha, cuida dos filhos e do

marido. As mes, no contexto perifrico, so a expresso de que o sujeito pode manter-se

firme diante das adversidades da vida. Muitas vezes ela quem assume as responsabilidades

pela sobrevivncia da famlia, e nas letras de rap, sua luta extremamente exaltada. Segundo

Porto (2004), citando pesquisa realizada pelo Datafolha em 1998, a me a personagem mais

importante da famlia atual. Acumula as funes tradicionais (o cuidado com a casa e com os

filhos) com as de ser uma das principais, se no a nica, fontes de renda da famlia, e ainda

exercer uma autoridade vinculada idia de reserva moral da famlia (p.141). A autora,

baseada em dados da pesquisa A mulher brasileira nos espaos pblicos e privado, realizada

em 2001 pela Fundao Perseu Abramo, afirma que 76% dos lares brasileiros as mulheres
162
participam da composio da renda familiar, e 32% deles so providos principalmente pelas

mulheres (p.141).

Segundo Berqu (2001), analisando o perfil demogrfico das chefias femininas no

contexto brasileiro, utilizando dados da Fundao IBGE, Censo demogrfico de 1991 e PNAD

1998,

as chefias femininas crescem no pas como um todo, nas cinco grandes regies, no urbano
e no rural. (...) A grande maioria das chefias femininas continua sendo do tipo
monoparental, seguidas de mulheres que moram sozinhas, situao presente tanto nas
cidades quanto nas reas rurais. Aumenta a proporo de mulheres chefiando a casa,
mesmo na presena do marido ou companheiro, fenmeno este tipicamente urbano.(...) As
mulheres sem marido ou companheiro e com filhos so muito pobres. Praticamente
cinqenta por cento vivem sem rendimentos ou com menos de um salrio mnimo (p.263).

Com base nestes dados, e considerando que a grande maioria dos rappers so pobres e

moram na periferia das cidades, compreendemos que a exaltao da figura materna de forma

idealizada construda na medida em que, no cotidiano, a mulher/me vem sendo cada vez mais

a responsvel pela manuteno familiar, em seu aspecto econmico e social. Os esteretipos que

acompanham a construo social da me, ou seja, seu amor incondicional, sua luta na formao

moral do filho, o perdo que concedido quanto este erra, promovem a sensao de serem

amados, (pelo menos por algum!), protegidos, compreendidos em face de uma realidade que

muitas vezes lhes nega este amor. Por parte das letras femininas, elas utilizam esta me idealizada

como modelo identificatrio na construo de sua condio materna. Ambos, portanto,

(re)apresentam a me idealizada proposta pela ordem social moderna.

Khel (2000), em uma anlise sobre a produo do grupo Racionais MC`s, argumenta que

o tratamento de mano entre os hip hoppers significa um sentimento de fratria e um campo de

163
identificaes horizontais, bem como, a utilizao de Deus funcionando como a interdio

paterna,

uma vez que Deus lembrado como referncia que no deixa mano aqui desandar (...)
Deus lembrado como pai cujo desejo indica ao filho o que ser um homem: um preto
tipo A. (...) preciso que o Outro aponte, a partir do seu desejo (que no se pode
conhecer, mas a cultura no cessa de produzir pistas para que se possa imaginar), um lugar
de dignidade, para que o sujeito sinta-se digno de ocupar um lugar (p.100).

E a me? Como podemos pensar a funo materna a partir desta perspectiva? Segundo

Pimentel (1999), a nica exigncia definitiva a lealdade periferia, esta sim a grande me de

todos os manos, acima de tudo. Negar as razes condenar-se ao ostracismo (p.107)

O sentido atribudo me, mulher que concebeu um filho, muitas vezes sobrepe-se aos

sentidos atribudos periferia. Neste espao geogrfico e simblico, os hip hoppers se sentem

protegidos. Na periferia existe uma lei paralela, todos a seguem. na periferia que os manos

conseguem redeno, aps cometerem algum crime (a me/periferia em muitos casos

permissiva, assim como a me que perdoa o filho quanto este a rouba, mata, trafica, no lhe

impondo repreenses nem castigos); so perdoados e amados. Como o morro, cantado em muitos

sambas de forma romantizada, na me/periferia romantizada que os hip hoppers possuem um

lugar de aconchego, de sossego, de carinho, de aprendizado, como no argumenta MV Bill:

Tem uma cultura que sai das comunidades, mas, dentro desse trabalho de pesquisa rodando as
comunidades, percebi que muitos moradores, se pudessem, morariam em outros lugares. Quando
digo que as favelas deviam acabar, no o povo, no as pessoas, mas a forma: morar em encosta,
deslizamento, saneamento zero, desrespeito, arbitrariedade policias, submisso ao crime, essas
paradas, t ligado? Acho que as pessoas no deveriam passar por isso. Ter condies de vida
subumana, criana desnutrida, sabe? Isso tudo no bonito. Agora, no caso do rap, muitos caras
que eu conheo falam da questo com uma certa nostalgia, por causa do aprendizado que tiveram
naquela comunidade. Eu, por exemplo, quando falo da cidade de Deus, lembro muito do

164
aprendizado que tive. Se hoje sou alguma coisa graas quele lugar, at se me dei mal isso fez
com que eu aprendesse alguma coisa para o futuro graas quele lugar.
(Revista Caros Amigos, n.99, 2005)

Se a periferia um espao/modelo identificatrio para a construo identitria hip hopper

talvez seja pelo fato de que este espao comporta sentidos que vo alm da situao scio-

econmica e geogrfica e simboliza a me de todos. Aquela que ama incondicionalmente,

abriga e ampara. Ser marginal, pobre, discriminado realidade pra muitos, mas na periferia/me:

Na periferia a alegria igual

quase meio dia a euforia geral
l que mora meus irmos, meus amigos
E a maioria aqui se parece comigo
(Grupo Racionais MCs, letra Fim de semana no parque)

Um sentido, portanto, desta funo materna seria a compreenso de que o cuidado, o

amor incondicional, exercido por esta me/biolgica e pela me/periferia. Numa sociedade

desigual como a nossa, em que a maioria da populao sofre dificuldades materiais e se

estabelece no mundo das necessidades; simbolicamente, a me perifrica abraa, aconchega,

fornece segurana e compreenso a todos que a ela recorrem. Para alm de uma compreenso do

real e da me reiterando uma representao conservadora sobre a mulher, os hip hoppers utilizam

desta imagem para a representao de pelo menos um lugar/espao simblico no qual so

valorizados.

165
Voc no passa de mulher objeto

A mulher e sua sexualidade adquirem contornos distintos para o hip hop, pois de um lado

a mulher vista como linda e sensual, em outros momentos vista como promscua e vulgar.

Em algumas letras podemos perceber que h uma positivao da sexualidade feminina em

relao s mulheres negras. Exemplo disto a msica Tributo s mulheres negras, que alm de

trazer questes que so realidade no nosso pas, como a discriminao racial para a ocupao em

postos mais elevados de trabalho e a quase inexistncia de imagens positivadas do negro na

mdia, trabalha tambm com uma essencializao da feminilidade da mulher negra.

Pois sempre ficou jogada em segundo plano

Sua pele escura espelha a conscincia
Que a vida dura para mulher negra
A sociedade machista, com pais racistas
E ela colhe as migalhas de um sistema fascista
E mesmo assim deixa fluir todo o seu perfume,
Uma rosa negra, deusa da beleza
Mulher de verdade, exemplo de luta
Com at mais dignidade que a tal lraburra
Do campo ou da cidade, do lar ou das letras
Salve todas as mulheres pretas
Essa menina, mulher, da pele preta
Oh, meu Deus, salve a mulher negra
Negra, preta, mulher brasileira, negra
No admite ser subjugada, passada pra trs
Negra, preta, mulher brasileira, negra
Exige direitos iguais
(Rapper RappinHood, letra Tributo as mulheres negras)

Nesta positivao da mulher negra opera uma compreenso de que ela a mulher

brasileira, mantendo entre outras coisas uma representao da mulher sensual (deixa fluir todo o

seu perfume). No mais a mulata tipo exportao da qual fala a letra Larga o bicho de Nega

166
Gizza , mas mantm-se a idia de uma sensualidade e sexualidade inerente mulher, em especial

a mulher negra. Em outra letra podemos tambm perceber esta positivao da mulher negra

associada sua sexualidade.

Ser uma preta de f, mano, aponte

Me diz se puder se a fulana no se confunde com qualquer
Muita calma nessa hora, eu sei como que
Eu sou uma preta de f
Lady Chris, muito ax
povo do s, continente africano
A mulherada t na luta h mais de miliano
Minhas trutas so guerreiras, temos nosso plano
Escuta bem, abre o ouvido, v se passa um pano
T com a minha legio de mulheres brilhantes
T seguindo a frente, t mais adiante
Chris, descendente de sab, veneno no paladar
Meu sentido, enfeitiar
(Rapper Lady Rap, letra Guerreira)

Em outras letras percebemos que a sexualidade da mulher vista como promiscuidade

quando vivenciada livremente. Esta posio adotada principalmente pelo grupo Racionais

MCs. Segundo eles, pode-se confiar na mulher somente 50%, porque ela est sempre pronta pra

ser infiel, trair o namorado/marido com outros homens, ter vrios parceiros ao mesmo tempo.

Esta promiscuidade permeia qualquer tipo de mulher, ou seja, negra, branca ou mestia.

Outra fonte de reprovao em relao mulher ocorre quando esta expe seu corpo.

Era um corpo nu, queimado de sol

Capa de revista ,
Exposta nas bancas, para todos verem
Muita mulher, na TV voc v, voc quer
Mais na hora de ver qual que ?
Mais o que mais te di olhar com zi .
A capa da playboy quem ser?
A prxima tentao vou te falar
De um corpo perfeito uma mente vazia
Uma atriz porn que interpretou uma vadia
Tem buc (...) pra dar e vender
Estola, bel, leva uma vida de princ, pensando o que?

167
Nem sabe o que sofrer de Cherokee
Tem at jet-sky, dinheiro mato s fingir
(Grupo Viso de rua, letra Corpo em evidncia)

Como entender a representao da mulher em relao sua sexualidade? De certa forma,

entendemos que em relao a esta dimenso identitria ocorre uma idealizao da mulher como

sendo sensual. Isto est presente no somente na compreenso da mulher, mas do povo brasileiro

em geral. Na pesquisa referida anteriormente realizada pela Fundao Perseu Abramo, uma das

questes que foram levadas a 2.502 entrevistadas, referia-se a sua satisfao sexual. Segundo

Chacham e Maia (2004)

O primeiro dado que chama a ateno, ao analisar os resultados obtidos, o nmero

impressionantemente alto de mulheres que se declararam satisfeitas com a sua sexualidade
ou vida sexual: 79% do total (incluindo a 77% das virgens). Mais interessante ainda que
61% do total afirmaram estar totalmente satisfeitas com a sexualidade (...) Parece-nos
que o discurso de uma felicidade geral na cama reafirma nosso autoconceito de povo
sensual e sexual. fato a grande importncia que brasileiros(as) conferem ao sexo e
sensualidade nas suas interpretaes sobre si mesmos como povo. Se na Europa e nos
Estados Unidos a vida sexual tem sido tratada como um fenmeno essencialmente
individual, no Brasil ela foi tomada como uma espcie de chave para a natureza peculiar
da realidade brasileira (p.76-77).

Os hip hoppers estariam, portanto, reiterando esta representao do povo brasileiro e da

mulher brasileira como essencialmente sensual. Nesta reapresentao, porm, utilizam esta

dimenso de forma positivada ao falar da mulher negra e de forma negativa ao falar sobre a

mulher branca (O grupo Racionais, como mencionado, no faz esta distino).

na ambigidade deste discurso que est situada representao da mulher e sua

sexualidade, adotando em alguns momentos um discurso conservador e tradicional e em alguns

momentos um discurso positivado (mas no diria progressista) desta mesma sexualidade.

168
Existe uma moral para homens e outra para mulheres. Assim como argumentado no texto de

Chacham e Maia (2004),

Na Colnia, todo o poder emanava do patriarca, que organizava a ordem social em uma
regio geograficamente imensa, sem aparato coercitivo e dependente do trabalho escravo.
No modelo clssico da famlia patriarcal, unidade social dominante havia um ncleo
(patriarca, esposa e filhos legtimos) e sua periferia (concubinas, amantes, filhos
ilegtimos, escravos, amigos, clientes etc.). Esse modelo, segundo Freyre, gera o duplo de
moralidade para homens e mulheres brasileiros, resultando em extrema diferenciao
entre os sexos, sendo que o homem superior, forte, viril e ativo, e a mulher inferior,
fraca, bela, desejvel e sujeito dominao do patriarca (p.81).

interessante notar a utilizao do termo periferia para designar as amantes, concubinas,

escravos, entre outros, uma vez que, se no perodo colonial estes eram os renegados, em nossos

dias so os negros e os pobres (descendentes destes?), sendo que a diferenciao entre os sexos

permanece em muitos termos, como a beleza da mulher e a virilidade do homem. Esta dimenso

sexualizada da mulher ora utilizada para positivao da mulher negra, ocupando o lugar da

mulata tipo exportao (representao da mulher brasileira para o comrcio do turismo e para o

prprio brasileiro), ora utilizada de forma negativa para caracterizar a mulher como promscua.

Entendemos, porm, que de forma geral h uma coisificao/objetivao da mulher. A vivncia

livre da sexualidade ainda no vista pelo hip hop como um direito que a mulher conquistou a

partir das lutas feministas. As mulheres ainda se mantm fiis como um co na ilha da seduo

(Dina Di), mesmo quando no correspondidas. uma reapresentao do amor romntico, da

fidelidade da mulher, da mulher dita de famlia, em oposio mulher da rua, pois esta s

pra uma noite (Racionais MCs).

Trabalham com uma representao essencialista da mulher, opondo a mulher de verdade a

falsa.

169
Mulher de verdade, dedicada e fiel
se voc encontrou, agradea ao cu,
linda, cheirosa, toda feminina,
quase um semi-deus, pode gerar outra vida
(Grupo Face da Morte, letra Mulheres)

bonita, gostosa e sensual.

Seu batom e a maquiagem a tornam banal.
Ser a mau, fatal, legal, ruim, ela no se importa!
S quer dinheiro, enfim.
Envolve qualquer um com seu ar de ingenuidade.
Na verdade, por trs vigora a mais pura mediocridade.
Te domina com seu jeito promscuo de ser,
Como se troca de roupa, ela te troca por outro.
Muitos a querem para sempre
Mas eu a quero s por uma noite, voc me entende?
(Grupo Racionais MCs, letra Mulheres Vulgares)

Configura-se, portanto, uma representao associando mulher a natureza, conjugando a

sua sexualidade com a reproduo (gera outra vida), e quando se trata sobre a vivncia livre da

sexualidade por parte da mulher, ela continua sendo este ser sensual, mas no presta, pois ela

no est preocupada com prazer, mas com dinheiro. De uma forma ou de outra, ela condenada

por viver sua sexualidade, por prazer ou por dinheiro (assim como as mulheres que expem seus

corpos). Entendemos que a sexualidade ainda continua sendo um forte tabu entre os membros

do movimento hip hop, e a vivncia desta sexualidade sendo regida pelos valores tradicionais,

conformando a construo da representao da mulher e sua identidade sexual em aspectos

conservadores de uma ordem social estabelecida pelo: patriarcalismo; pela religio (Eu vejo

lcifer de suti e calcinha, querendo dar o bote vestido de mulher e me separar da minha mina de

f, rapper MV Bill, letra Mina de F) e pela medicina que define sade/doena (compulsivos

por sexo virtual, uma epidemia sobre a qual ningum fala, contamina a alma, imoral, afeta e

muito o estado emocional, provoca crise conjugal, separao, traio na vida real, grupo Viso

de Rua, letra Corpo em Evidncia).

170
 Nas entrevistas realizadas, percebemos em uma das entrevistadas a procura pela inverso

do sentido da vivncia da sexualidade por parte das mulheres.

Beatriz: isso, n, que a mulher tem que, mulher no pode usar roupinha curta, ela no. Ah,
no, ela tem que ter um s namorado, num pode.... Eu sempre falei assim, eu num t nem a, eu
nunca namorei. Namorei com o pai da minha primeira filha, fui morar junto com ele, e namorei
com o pai da minha segunda filha, que eu tambm fui morar com ele. De resto, eu no namorava,
entendeu. Ento, esse discurso, Ah, essa vaca, essa galinha, n. Tudo reproduzindo o que os
homens falam, mesmo n. Ela d bola pra todo mundo, ento no presta mesmo. Ento assim...
E: Entendi.
Beatriz: isso n, e Ah, eu no sei o que ela t querendo a, essa coisa pra homem. Ento
tudo reproduo de um discurso machista, e a assim, e eu, eu p, dentro do hip hop, j levei
nome de tudo, de lsbica, de prostituta, de piranha, (...) J cantei grvida das minhas duas filhas,
j cantei com filha segurando no brao e no outro o microfone. Eu no tenho vergonha, levo l
minhas filhas, lindas, maravilhosas e brinco com qualquer um, mas isso foi construdo como, esse
respeito? Por briga, porque num tava nem a, se era a primeira vez... Ento assim, eu tinha uma
postura, eu no namoro, eu no gosto de namorar, sabe assim. Homem no presta e no merece,
sabe, ter uma pessoa to maravilhosa quanto eu. (Risos), ao lado deles, eles servem pra mim us-
los. E os caras ficavam muito loucos com isso sabe. E, porque no admitia. Eles admite o
contrrio, mas voc fazer a mesma coisa com eles que eles fazem com voc, n, ento eles
ficavam putos da vida comigo e aqueles que eu j tinha dispensado eu falava: deixa eu ver no
meu catlogo, j tinha passado pelo meu catlogo.
(Beatriz)

Percebemos, ento, a partir deste depoimento, que a livre vivncia da sexualidade foi (e )

vista por muitos como promiscuidade (vaca, galinha). A rapper utilizou como mecanismos de

subverso a mesma estratgia adotada pelos homens, ou seja, namorava vrios, trocava de

parceiros. De forma geral, porm, este um discurso solitrio, que no apareceu em outras

entrevistas, e tambm no est presente nas letras. Pelo contrrio, em algumas entrevistas

percebemos que h uma condenao da mulher que expe o seu corpo:

Assim, tipo, vamos comear da palavra, dos palavres. Assim, eu acho que tem mulher que
muito vulgar na hora de falar, com os meninos, xingar os meninos. A forma de se vestir, s vezes
coloca uma micro, micro saia, ento motivo deles querer aproveitar da bondade. Entendeu,
blusa tambm. Eles aproveitam. Eles aproveitam, no adianta falar que no, que, a gente anda
com roupa, de cala jeans e camiseta eles, j tem n, imagina voc l com os seios de fora, uma
171
saia curta. Eu fui numa festa no dia das crianas, tinha uma menina danando, um top miniatura,
uma microssaia, tinha um zper, ela abriu at em cima, ela danava um funk, mostrava tudo a, a
calcinha dela, ento isso dava motivo das pessoas t falando dela. Ento acho que isso da.
(Camila)

As mulheres enfrentam, portanto, restries quanto sua liberdade, como por exemplo, a

vivncia da sexualidade, pois a sociedade se estrutura a partir de uma moral para o homem e uma

moral para a mulher. Como o movimento hip hop ainda opera nesta dicotomia, as mulheres, para

se sentirem respeitadas e integrantes efetivas do movimento, tambm reproduzem esta

dicotomia, ou seja, condenam as mulheres por estas se colocarem como objeto. Este discurso

indica que os sentidos sobre a mulher objeto so partilhados no somente pelos homens, mas

tambm pelas mulheres. Entendemos, porm, que esta reiterao funciona como mecanismo de

aceitao do movimento e de positivao do mesmo, uma vez que, diferentemente do funk (que

sempre associado promiscuidade), no contradiz os valores moralizantes que permeiam a

sociedade brasileira. A liberdade sexual no entendida por ns como a

comercializao/objetivao do corpo feminino, mas a possibilidade da vivncia do prazer sexual

por parte das mulheres.

172
Tem que ser mulher pra se manter em p

Uma das caractersticas atribudas mulher sua fora, sua luta. Nas letras esta dimenso

aparece associada a uma condio de ser da periferia e de ser negra. A mulher, a no ser quando

se trata da mulher objeto, vista como uma batalhadora, lutando e sofrendo com as

adversidades da vida.

Pois , na vida voc minha parceira

Pois , na guerra voc minha guerreira
(Rapper Mv Bill, letra Mina de f)

E o que todas as senhoras tinham em comum: a roupa humilde, a pele escura

O rosto abatido pela vida dura.
Colocando flores sobre a sepultura. ("podia ser a minha me").
(Grupo Racionais MCs, letra Frmula Mgica da Paz)

A guerra
A guerra a luta armada entre naes
hostilidade, discrdia e disputa.
Atacar o inimigo de emboscada.
Guerreiro: guerreiro aquele que marginalizado pela sociedade.
O guerreiro luta pela sua famlia.
Periferia periferia.
(Grupo Viso de rua, letra Abertura)

Mulher preta de esprito guerreiro

Quem , , sem ca, sem desespero
No sou mulata, no sou mula, sou canho
(Rapper Nega Gizza, letra Larga o Bicho)

Pensamos que esta valorizao da luta como modelo identificatrio moral do hip hop, e da

mulher no hip hop, possibilita uma inverso na construo social da periferia e da negritude como

sendo marginais, malandros, ladres, preguiosos, bandidos...

173
 A vida cotidiana da maioria da populao brasileira construda por uma grande

desigualdade social. A representao da populao que vive na periferia, e dos negros que nela

habitam, determina que quem pobre muitas vezes ladro (vide os jornais televisivos

sensacionalistas). Construir uma imagem positiva para esta populao parece ser o objetivo do

hip hop. No que na periferia no existam pessoas de m ndole (como o neguinho em oposio

ao preto tipo A), mas o discurso hip hopper enfrenta este esteretipo a partir de outro: o povo da

periferia um povo lutador. A mulher negra da periferia uma mulher que batalha, vive no dia-

a-dia, faz as suas correrias. Esta positivao da periferia, a exaltao e autovalorizao da pessoa

que nela habita possibilita uma construo identitria tambm positivada. A periferia que se

valoriza; os negros que tratem de bancar sua cultura, seus valores este o antdoto contra a

alienao, contra a seduo promovida pela propaganda, pela tev, arautos de uma sociedade

de consumo (Khel, 2000, p. 103).

A mensagem que perpassa a construo da realidade, e da mulher, atravs do olhar hip

hopper pode ser percebida como: a vida uma guerra, e voc, para permanecer vivo, tem que ser

guerreiro. Ao invs de procurar ganhar dinheiro fcil, por meio do trfico e do roubo (que

acabam por ceifar a vida do mano), batalhe, seja humilde, valorize o que seu.

Como seria possvel a construo identitria positivada se aspectos que permeiam a vida

do ser humano no fossem valorizados? Ser negro ser inferior, ser pobre ser bandido,

marginal, preguioso, ser mulher ser promscua, vulgar. Os sujeitos poderiam construir uma

imagem de si positivada se todas as representaes que lhe servem como identificao so vistas

negativamente? O hip hop, em seu discurso pblico, oferece uma opo: valorize o mano, a

mulher que corre junto com voc, a negritude, a periferia. Se todos nos enxergam como

marginais, devemos ns nos enxergarmos desta forma?

174
 Constroem, portanto, para si, uma representao positivada, baseada numa dimenso

moral valorizada pela sociedade brasileira, a humildade (herana religiosa do catolicismo?) e a

luta (representao que permeia a luta dos escravos e suas formas de resistncia).

Assim como apontado anteriormente, este valor produz sentidos para a vida cotidiana, que

baseada nas condies da populao, s pode ser vivenciada como uma luta pela sobrevivncia.

O discurso hip hopper, portanto, opera como uma resistncia radical para a construo

de um grupo de pertencimento positivado. A carncia, as dificuldades so vencidas no dia-a-dia,

no cotidiano. Valorizar uma cultura, o hip hop, como sendo prprio deste grupo funciona como

alternativa para queles que foram renegados, destitudos da cultura elitizada, dos teatros, da

msica erudita. O que lhes resta uma cultura de rua, sem academias, sem ttulos. Muito

embora de forma idealizada, e romantizada, esta valorizao da batalha, da luta como inerente

periferia e ao negro, fornece uma representao e modelos identificatrios que contradizem o

discurso pblico, no qual o povo brasileiro s pensa em carnaval e futebol.

Em relao s letras produzidas por mulheres, que tambm valorizam a mulher

batalhadora, h uma afirmao que nega o imaginrio social no qual ela representada como

frgil, passiva, dependente. As mulheres utilizam a luta como referncia identitria na

construo da representao da mulher que independente, que constri o prprio nome (Grupo

Viso de Rua, letra Hora de Avanar).

Autoras de suas letras, tambm so autnomas e autoras de suas prprias histrias.

Convocam outras mulheres para participar desta virada e muitas vezes so confundidas como

sendo neguinhas barraqueiras (Rapper Nega Gizza, letra Larga o Bicho). Nas entrevistas,

percebemos que este valor, a batalha, a luta, est muito presente no discurso feminino. Este

tambm relacionando a mulher, negritude e luta.

175
Por todos os abusos sexuais, todas as iras das madames n: Ah, essa negrinha seduziu o meu
marido e ia l e cortava um seio de uma, furava o olho de outra entendeu. Ento, e por todos os
filhos sem pais que nasceram destas escravas n, os chamados bastardos, ento assim, ns
carregamos a parte mais pesada da escravido, na verdade, e nem por isso nos deixamos, sabe,
cair, porque a mulher negra muito forte, a mulher muito forte, seja ela negra ou branca. Ento
assim, a mulher negra tem essa coisa muito especial, que s floresceu com o sofrimento mesmo
n, e aquela coisa de dignidade, porque existe uma dignidade que vem do sofrimento, ento
uma pessoa que sofre muito, voc olha pra ela, ela tem aquela postura, assim, sabe, e, que passa
por muita adversidade.
(Beatriz)

Ento a gente no teve assim, aquela, que eu acho que tinha que ser, que acho que o principal,
que a mulher, que mulher, mas que fodida. Ento, a gente no teve isso no cenrio, no que
no teve, a gente tem, mas assim com destaque, , merecido. Ento, eu acho que isso foi uma
coisa que sempre faltou e que ainda tem que ter porque muitas dessas nossas mulheres do hip hop
so mulheres negras, e a gente ainda tem esse estigma que a mulher negra mulata pra sambar e
que meu, ela no pensa, e a gente teve a infelicidade da Solange, l no Big Brother e p, todo
mundo tira e voc fica sem saber o que que, como fazer pra mudar aquela imagem, n, falar
assim: No, no assim, n. E a assim, a pessoa fala: Voc voc porque eu te conheo, mas o
resto deve ser tudo assim, e no essa imagem que a gente quer ter, n. Ento assim: Ah, agora
no mais a mulata que samba e tal, agora a preta burra n, que t a nas paradas de sucesso,
n. Ento a gente no teve essa representatividade que a gente tambm precisa ter pra valorizar
nossa auto estima, pra aumentar a nossa auto estima, n. Porque ainda tem muitas mulheres
negras que andam de cabea baixa, que no se mostra, que tem vergonha de si, porque o mundo
no dela, n, o mundo das outras, que, ela acaba se fechando naquele mundo dela. Ento
assim, moda, moda ver um homem preto com uma mulher loira, e a eu no t falando nem de
racismo, mas de valorizao mesmo. raro voc ver um homem preto com uma mulher preta,
ali, junto. raro, ento as mulheres pretas, elas , mais difcil de ter um relacionamento, n, de
casar, ter um relacionamento pra vida inteira. E, ento assim, essa autovalorizaao, de reconhecer
a mulher negra, reconhecer a beleza da mulher negra, no s a questo sexual, ou sexista, ou
sensual, n, mas enquanto mulher batalhadora, lutadora, que inteligente, que administradora,
n, ver essa mulher forte e bonita, com os seus traos, n, ter essa, eu acho que isso , uma
busca assim, uma busca minha e de muitas outras mulheres, dessa coisa assim de , ter a
liberdade, se quer usar black, usar black e conseguir arrumar um trampo, n, e de alisar, e de
enrolar, e de fazer o que quiser porque a mulher branca faz o que ela quer com o cabelo dela, a
mulher preta tambm tem que ter esse direito sem ser criticada: Ah, ela t querendo ficar branca,
ou..., n, porque tem muito disso. Ento assim, ou voc t querendo ficar branca, ou voc, p,
mas voc no tem o perfil, por exemplo, pra trabalhar na minha empresa. E o que pega primeiro
o mercado de trabalho, n, que diz quem voc . Ento , nesse sentido a, quando fala assim que
autovalorizaao, e preciso ter essas mulheres n, que na maioria so negras, que fazem o hip
hop. Tem brancas, so poucas, um nmero menor de mulheres brancas. No caso dos homens no,
tem bastante homens brancos, mas a maioria so negro, mas a maioria so homens, n, ento ,
trabalhar essa questo da valorizao mesma da mulher negra, do respeito, da auto estima, elevar
a auto estima n, a gente no se v, assim, porque as pessoas criticam: Ah, tem a revista Raa que
(...) Eles esto sendo racistas. No, a gente t querendo se ver, a gente t querendo pegar o
nosso filho e mostrar olha, que ele tem uma referncia, que ele no ache que ele feio porque o
176
outro t falando que ele feio, porque ele tambm , tambm t representado numa revista, n,
que um trabalho de auto estima mesmo, ento , essas coisas, assim, da gente valorizar mais a
nossa raa, que foi uma raa que foi desvalorizada com a escravido, ento , o hip hop ele
tambm tem esse papel mesmo de...
(Paula)

A mulher batalhadora a mulher identificada como pertencente ao hip hop.

A mulher que t envolvida no rap mesmo, ela tem um pensamento diferente. Um pensamento de
batalhar, de conseguir, ter uma postura diferentes, uma educao, procura se informar, n, t
sempre ali envolvida.
(Camila)

Em oposio mulher que participa do hip hop, o discurso feminino apresenta mulheres

fteis.

Ento eu acho que isso, no tem como traar um perfil, complicado dizer, mas vamos supor,
uma pessoa que pensa em fazer unha de sbado a tarde no vai perder o tempo dela pra ir at a
Casa ajudar ningum. Ento eu acho que o que importa mesmo a essncia do ser humano, no
de mulher, de homem. Mas no caso, ns mulheres, a essncia nossa, essncia de solidariedade,
de acreditar em alguma coisa, de querer mudar, no de transformar, porque a gente no
transforma nada, a gente orienta entendeu, transforma quem quiser a realidade, ento eu acho que
isso. Eu acho que essncia mesmo, s essncia, no tem como a gente traar, Ah, o perfil,
entendeu.
E: , como a gente falou dos tipos de mulheres n.
Patrcia: Vamos supor, eu estudei em escola particular, entendeu, tem vez que eu encontro amigas
de antigamente: Ah, no sei o que, no sei o que, no sei o que. Vamo em tal lugar Ah, no,
hoje no d, eu vou na Casa Casa, que Casa? Casa do Hip hop Hip hop, voc gosta dessas
coisa? . Entendeu, tem at um certo preconceito, no homem, mulher, entendeu, ou homem
tambm, mas da eu acho que questo social, entendeu, a questo de objetivo de vida, de
acreditar em ser humano, do valor do ser humano pra cada um. Acho que isso.
(Patrcia)

Buscando compreender os sentidos desta construo ideolgica, pensamos que esta

contribui no fortalecimento do grupo de mulheres, que se opem a um imaginrio construdo a

177
partir da passividade da mulher, da inferioridade dos negros e at mesmo elegendo a mulher,

em contraposio ao homem, como a responsvel pela transformao da sociedade.

Compreendemos que esta representao da mulher fornece referncias para outras mulheres

ocuparem espaos diferenciados, como espaos pblicos. Esta busca de sentido revela que para

alm da reiterao de concepes tradicionais da mulher, que esto presentes tanto no discurso

feminino, como em letras produzidas pelos hip hoppers (a me, a esposa, a fidelidade), a mulher

vista, pela mulher hip hopper, conversando com a agenda feminista que reivindica, entre

outras coisas, direitos sociais igualitrios.

178
Consideraes finais

A aproximao com o hip hop suscita o interesse em compreender diferentes dimenses e

sentidos do movimento. O movimento hip hop pode ser compreendido, e esta foi nossa escolha, a

partir das teorizaes propostas por autores que compreendem os movimentos sociais em suas

dimenses psicossociais e enfatizam a identidade coletiva (MELUCCI, 2001) como ferramenta

analtica na compreenso dos movimentos. Desta forma, ser hip hopper significa a positivao

simblica da periferia, da negritude, e em alguma dimenso, da masculinidade. E foi a partir

desta inquietao, da dimenso sexista presente no movimento, que iniciamos este estudo. Seria

muito problemtico tecermos concluses definitivas sobre a participao de mulheres no

movimento, mas este estudo busca compreender alguns sentidos desta participao, bem como a

representao de mulher oferecida pelo movimento.

As letras de rap, tanto femininas como masculinas, sugerem diferentes sentidos. A mulher

presente no discurso pblico (rap) ocupa os papis sociais de me e namorada, valorizada por

ser negra e batalhadora, condenada por ser objeto e vulgar. Estas caractersticas sugerem

uma representao da mulher vinculada a uma ordem moral e social conservadora, que ainda

opera na distino entre feminino e masculino, atribuindo para o primeiro o espao privado e para

o segundo o espao pblico.

Segundo Lipovetsky (2000), muitas foram s transformaes ocorridas, principalmente no

sculo XX, que indicam o surgimento do que o autor chama de terceira mulher. Esta concilia

papis sexuais tradicionais, como me e esposa, com uma possibilidade de atuao pblica e

combativa que muitas vezes lhe era negada, como a profissionalizao e a busca pelo poder.

Segundo o autor

179
 Para o sexo forte, o fato de dividir-se entre dois mundos natural; para o outro sexo, isso
vem acompanhado de conflitos e de interrogaes, de uma busca de conciliao que
freqentemente fonte de culpa e de insatisfao. Sem dvida, a nova cultura individualista
tende a reduzir as disjunes radicais dos papis sexuais: de um lado, reala a importncia
da vida privada no homem; do outro, incita ao investimento feminino na vida profissional.
Mas essa dinmica no institui a homogeneizao dos papis dos dois sexos: o plo
domstico continua a ser prioridade mais marcada no feminino que no masculino; o plo
profissional, uma prioridade mais masculina que feminina. O estado social ps-moderno
coincide no com a indistino dos papis sexuais, mas com a diferenciao sexual da
mesma lgica individualista; no o modelo de reversibilidade entre os sexos que nos
governa, mas um duplo modelo individualista, reinscrevendo socialmente a diferena
masculino/feminino. Os esteretipos de sexo no devem ser confundidos com uma
herana do passado que o progresso apagar muito naturalmente: bem vivos, eles se
recompem no prprio seio do mundo aberto da igualdade e da liberdade modernas. H
muitas iluses em crer que a dinmica da igualdade prepara um universo unissex: a
reproduo social da diferena sexual continua a ser um processo consubstancial aos
tempos ps-modernos (LIPOVETSKY, 2000, p.243).

Assim como nas letras de rap, nas entrevistas percebemos que as mulheres buscam se

inscrever nesta nova mulher, mas preservando aspectos tradicionais. No possuem como ideal

a imagem da mulher que permanece em casa cuidando dos filhos, esperando que o marido retorne

para servir o jantar, aps um dia de trabalho. Mas percebem, porm, que o espao domstico

ainda permanece como um referencial identitrio importante para a mulher, assim como a

maternidade.

Como observa Lipovetsky (2000), permanece a distino sexual num duplo modelo

individualista, na qual a mulher deve se inserir, por exemplo, no mercado de trabalho e nos

postos de deciso poltica, e o homem deve estar mais interessado nos assuntos privados, a saber,

o cuidado com a casa e com os filhos; esta diviso, porm, ainda mantm um ncleo que coloca

a distino masculina/feminina nos espaos pblicos para o primeiro, e os espaos privados para

o segundo. Esta viso permanece no hip hop e no discurso das integrantes do movimento. Quais

seriam os sentidos para tal posicionamento?

180
 Entendo que, talvez, esta permanncia de uma viso androcntrica possua, pelo menos,

dois sentidos. O primeiro seria a manuteno de poder. A guerra dos sexos no movimento se

perpetua, principalmente, na exposio artstica. O embate entre homens e mulheres se d quando

eles a impedem de aparecer tanto quanto eles. Para o movimento, no legtimo a mulher ir

para o palco, uma vez que este espao reservado para os homens. Se pensarmos na separao

entre rua/casa, espaos pblicos e privados, podemos inferir que existe uma distino entre

palco/bastidores.

Como pudemos perceber pelas entrevistas, as mulheres no so questionadas quando

ajudam na organizao do evento, mas sim quando elas pretendem ocupar o mesmo espao

pblico, o palco, como os homens. Quando isto acontece, esta ocupao vista como no

legtima, pois a exposio feminina ainda pode ser vista como no adequada socialmente.

Alm disso, as mulheres trazem nos discursos as dificuldades por elas enfrentadas no que

se refere articulao entre vida privada e pblica. So mes, trabalham em outros empregos que

no esto relacionadas com o contexto hip hop, cuidam da casa. Diferentemente dos homens, no

possuem companheiros/as que as auxiliem nas tarefas cotidianas, corriqueiras. Evidenciam a

vivncia da dupla jornada; vem-se impelidas a conquistar novos espaos, mas ainda no se

desfizeram das responsabilidades antigas, nem tampouco conseguem dividir estas

responsabilidades com outros.

Outro sentido que pode ser atribudo manuteno de uma viso discriminatria em

relao mulher, principalmente nas letras, se refere tentativa do movimento hip hop se incluir

no discurso atual. O sexismo no exclusividade do movimento; percebemos que a sociedade

brasileira estrutura-se a partir da viso androcntrica, e isto pode ser observado nas distines

sexuais quanto aos postos de trabalho ocupado por homens/mulheres, a diferena de salrios, a

hierarquia poltica, entre outros. Isto no negar os avanos conquistados pelas mulheres, mas
181
admitir que as relaes sociais contemporneas perpetuam discriminaes quanto distino

sexual, definindo espaos que podem ser ocupados por homens e mulheres.

Como aceitar, ou nas palavras de uma das entrevistadas, impor, um movimento que

pretende a incluso social dos seus participantes, possuindo um discurso totalmente inovador?

Entendemos que, de certa forma, o hip hop joga o jogo das relaes de poder. O jovem

que quer ser includo, respeitado, reconhecido como sujeito, sendo ele pobre e negro, para a nossa

sociedade, tem que tambm ser homem. A busca pela incluso refora aspectos que so

valorizados socialmente em relao mulher, ou seja, a mulher doce, que uma boa me,

fiel ao marido, que enfrenta junto com ele as adversidades da vida. Esta representao no

privilgio dos hip hoppers, mas a representao da mulher no Brasil.

Para ser includo, o neguinho tipo A tem ao lado uma mina de f e assim, nas letras de

rap, percebemos que a construo identitria perpassa (...) uma adjetivao de si no plano

relacional com o outro, quer seja um outro semelhante ou oposto (SOUZA, 2002, p.72). O

discurso hip hopper busca, portanto, o reconhecimento identitrio e uma incluso social

valorizando aspectos que no somente so valorizados pelos perifricos, mas pela sociedade em

geral, utilizando nas letras referncias positivas do homem, que tem ao seu lado uma boa

mulher. Um exemplo disto se refere sexualidade. A vivncia da sexualidade por parte das

mulheres de forma livre um tabu no somente no hip hop. A mulher que possui vrios

parceiros vista como promscua, diferente do homem, que visto como viril. Esta dicotomia

moral permanece no movimento, reforando uma representao deste como um contexto

moralmente aceitvel, pois est em sintonia com os preceitos da sociedade brasileira.

Pretendemos, com estas consideraes, salientar a importncia de revermos os parmetros

que configuram as relaes sociais, no somente ligadas s questes de classe, etnia/raa, mas

tambm as relaes de gnero.

182
 O hip hop reivindica um reconhecimento identitrio positivado, alicerado na positivao

da negritude e da periferia (ainda que estes se sobreponham em muitos casos), apresentando em

seu discurso, para a efetivao desta positivao, discriminaes de gnero que reforam o

discurso geral/pblico sobre a mulher. O sentimento e a tentativa de incluso reiteram, portanto,

em relao distino de gnero, a supremacia masculina. A tentativa de reverter este quadro

est presente, principalmente, no discurso das mulheres que fazem parte do movimento e

reivindicam para si outras representaes e relaes. Elas apontam, portanto, que o hip hop pode

se configurar de outra maneira, mas isto depender de suas lutas, das reflexes e dos debates.

Entendemos, ento, que o movimento hip hop se articula em diferentes demandas, entre

elas a demanda de grupos feministas, o que sugere, portanto, que enquanto um movimento social,

o hip hop vem atuando como uma mobilizao que expe as vrias desigualdades sociais que

perpassam a sociedade brasileira, sejam elas referentes a questes raciais, econmicas e, com os

grupos feministas, as desigualdades engendradas pela discriminao de gnero.

183
184
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190
Anexos

Anexo 1: Termo de consentimento livre e esclarecido

Comit de tica em Pesquisa da Faculdade de Cincias Mdicas/UNICAMP

Projeto 561/2005 Jovens em movimento: algumas consideraes sobre o movimento hip-

hop.

Pedido de alterao do ttulo aprovado em 24/02/2006: Mulheres no hip hop: identidades e

representaes.

Anexo 2: Roteiro para entrevistas

191
Anexo 1

Termo de consentimento livre e esclarecido

(Decreto n 93.933 de 14/01/87; Resoluo CNS n 196/96)

A pesquisa Jovens em movimento: algumas consideraes sobre o movimento hip-hop,

apresentada ao programa de Mestrado em Educao da Faculdade de Educao da Universidade
Estadual de Campinas, sob a orientao do Prof. Dr. Salvador Antonio Mireles Sandoval tem
como objetivo compreender os significados e sentidos presentes no movimento hip hop.
A pesquisa visa contribuir com reflexes sobre como a juventude vem vivenciando e
discutindo questes relacionadas s diferenas e desigualdades culturais, sociais e polticas. A
partir destas reflexes, pode-se pensar em alternativas que contribuam para a melhoria da
qualidade de vida destes jovens, por exemplo, a partir de polticas pblicas para a juventude,
justificando, portanto, a realizao da pesquisa.
A metodologia proposta nesta pesquisa qualitativa. Sero utilizados como fonte de
dados: entrevistas e letras de rap. Os dados sero obtidos junto a integrantes de grupos ligados ao
movimento hip-hop por meio de entrevistas semi-estruturadas, individuais ou grupais. As
entrevistas sero realizadas pela pesquisadora-mestranda responsvel Priscila Saemi Matsunaga.
Com o consentimento dos entrevistados, as entrevistas sero udio-gravadas e transcritas na
ntegra para o trabalho de anlise de dados. Os dados sero analisados a partir dos conhecimentos
das Cincias Humanas e Sociais.
A utilizao da entrevista semi-estruturada a forma mais adequada metodologicamente
para o propsito do estudo (a compreenso das formaes identitrias e seus sentidos para os
grupos/sujeitos da pesquisa) e sero respeitados os princpios ticos quanto ao sigilo da
identidade dos entrevistados, o que assegura a privacidade dos sujeitos em relao aos dados
confidenciais que possam oferecer a pesquisadora.
No existe possibilidade de risco ou dano material para os sujeitos envolvidos neste
estudo, porm os sujeitos sero indenizados caso algum prejuzo for comprovado. Os sujeitos
convidados a participar dessa pesquisa tero total liberdade de se recusarem a participar e/ou
retirar seu consentimento em qualquer fase da pesquisa, bem como serem ressarcidos de
despesas que porventura possam ter ao se disponibilizarem para a mesma.
192
Todos os esclarecimentos sobre a pesquisa, em qualquer momento de sua realizao, sero
oferecidos pela pesquisadora responsvel.

A partir desses esclarecimentos, eu, ____________________________________________,

RG n___________________________, nascido em ___/___/___, na cidade de_________,
residente ______________________________________________, aceito participar
voluntariamente como sujeito na pesquisa sobre o movimento hip-hop realizada pela
Pesquisadora Priscila Saemi Matsunaga (19) 34383397.
Minha participao se dar sob a forma de depoimento gravado, desde que seja garantido
anonimato que assegure minha privacidade quanto aos dados confidenciais emitidos na
oportunidade, conforme esclarecido acima.

Campinas, ___, de____________de_______.

___________________
Assinatura

Comit de tica em Pesquisa

(19) 3788-8936

193
Anexo 2
Roteiro para entrevista

Eixos temticos:

Histria de vida
Participao em movimentos
Movimento atual

Histria de vida
O objetivo principal permitir que a entrevistada relate sobre sua histria pessoal.

Idade
Sexo
Local de nascimento
Locais onde morou
Procedncia familiar
Famlia (quantos, quem so, profisso dos pais, dos irmos)
casada? Tem filhos?
Escolaridade?
Trabalha?
Relatar algumas experincias familiares

Sobre participao em movimentos

O objetivo principal permitir que a entrevista fornea dados sobre sua participao pblica.

Quais movimentos que participou?

Como era sua participao?
Enfrentou dificuldades?
O que mais marcou ou aprendeu nessa experincia?
J tinham participado de movimentos preocupados com a questo de gnero?

194
Sobre o movimento atual
O objetivo principal permitir que a entrevistada relate suas experincias no movimento hip hop.

A qual grupo pertence?

Quais so os objetivos do grupo?
Como foi sua insero?
Quais foram os motivos pessoais pra esta insero? Como se sentia?
Quem faz parte e como so as pessoas que participam?
Qual o sentido/significado de participar do grupo?
Quais foram s razes para o surgimento do grupo?
Quais as intenes do grupo?
Como o grupo atua (as discusses so realizadas em quais espaos letras, debates, encontros)?
Quais as dificuldades que o grupo encontra?
Quais so os projetos do grupo?
O grupo possui parceiros (movimento negro por exemplo?)? Quais? Como se d esta parceria?
Existem grupos rivais?
Existem conflitos no grupo? Por que?
Histria do grupo
Material escrito e gravado

195