Anais - Artigos
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CDD 901
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Departamento de Histria
Chefe : Ana Carolina Vimieiro Gomes
Colegiado de Ps-Graduao
Coordenador: Luiz Carlos Villalta
Editor Chefe
Prof. Dr. Magno Moraes Mello
Conselho Editorial
Cssio Bruno de Arajo Rocha
Igor Barbosa Cardoso
Mrcio Mota Pereira
Maria Visconti Sales
Rafael Vincius da Fonseca Pereira
Valdeci da Silva Cunha
Reviso
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Igor Barbosa Cardoso
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Diagramao
Cssio Bruno de Arajo Rocha
Valdeci da Silva Cunha
Capa
Valdeci da Silva Cunha
Site/Banco de Dados
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Valdeci da Silva Cunha
Entendemos que essa publicao fortalece uma parceria de sucesso iniciada em 2014, ano
da primeira publicao dos Anais do EPHIS pela Temporalidades, mas deve tambm servir como
estimulo ou mesmo como um convite novos laos de parceria, de articulao, colaborao e
troca de experincias entre o corpo discente da Histria-UFMG e das demais instituies do pas.
No nos esqueamos das palavras de Fleck: aquilo que pensa no homem no ele, mas sua
comunidade social. A origem do seu pensamento no est nele, mas no meio social onde vive, na
Mais uma vez, nosso agradecimento a todos que tornaram possvel estes projetos.
Desejamos a todos uma excelente leitura!
Mrcio Mota Pereira
Rafael Vincius da Fonseca Pereira
1 FLECK, Ludwik. Gnese e desenvolvimento de um fato cientfico. Trad., Georg Otte, Mariana Camilo de Oliveira. Belo
Horizonte: Fabrefactum. 1.ed., 1935. 2010, p. 90.
2
______. Gnese e desenvolvimento de um fato cientfico, p. 85.
Em 2015, o evento contou com mais de 700 inscritos que participaram da programao
composta por 20 Simpsios Temticos, 15 Minicursos e 8 Mesas de Comunicaes Livres.
Durante os 4 dias de evento foram apresentados cerca de 390 trabalhos, dentre os quais 77 textos
completos compem estes anais.
Alexsandra Frana
Bruno Duarte Guimares Silva
Bruno Vincius de Moraes
Denise Aparecida Souza Duarte
Fbio Baio
Felipe Silveira de Oliveira Malacco
Gislaine Gonalves
Luiza Rabelo Parreira
Mara Nascimento
Pamela Naumann Gorga
Paulo Renato Silva de Andrade
Raquel Marques
Weslley Fernandes Rodrigues
Simpsios Temticos 1 a 5
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O Idea del Tempio della Pittura de Giovanni Paolo Lomazzo luz da recepo e
interpretao da Potica na segunda metade do sculo XVI
Gabriela Paiva de Toledo
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As parquias e a cristianizao das comunidades rurais na Alta Idade Mdia: uma anlise
do caso das Astrias nos sculos IV e V
Ulli Christie Cabral
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RESUMO: O Idea del Tempio della Pittura (1590), coadunado ao Trattato dell'arte della pittura, scoltura
et architettura (1584), forma o corpus textual principal da teoria da arte de Giovanni Paolo
Lomazzo, pintor e terico milans da segunda metade do sculo XVI. Enquanto que no Trattato,
Lomazzo lida com questes de aplicao mais prtica, discorrendo sobre cada um das sete partes
da pintura e dedicando a cada uma um captulo no qual explica, exemplifica e aplica os preceitos
tericos considerados por ele paradigmticos baseado nos cnones clssicos e modernos, reserva
ao Idea suas reflexes de cunho mais filosfico, tentando elaborar uma teoria que satisfizesse
algumas questes caractersticas de seu tempo. Os questionamentos que atravessam todo o Idea
se tratam, portanto, de indagaes que tambm perpassavam os demais tericos da segunda
metade do sculo XVI, e que recaam na questo da maniera pessoal do artista. Como era possvel
existirem diversas maneiras pessoais distintas entre si e ao mesmo tempo belas e perfeitas? Para
resolver os impasses suscitados pela diversidade de estilos artsticos, Lomazzo se apia em
diferentes correntes tericas vigentes em seu tempo, como o Aristotelismo, o Neoplatonismo, a
Magia Natural, a Astrologia, a Alquimia e a Medicina Humoral, em um esforo para harmonizar a
ideia aristotlica da arte permeada pela regra e resultante de um processo racional com a
expresso pessoal do artista. Neste artigo, tentarei realizar uma reflexo sobre o dilogo entre a
recepo e a interpretao da Potica de Aristteles, que acredito ser uma das fontes tericas
utilizadas por Lomazzo, trazida ao debate terico do sculo XVI sobretudo a partir da dcada de
1540, e o pensamento de Lomazzo manifesto no Idea, e, talvez, estabelecer uma possvel relao
direta entre a ressurgimento das discusses em torno da Potica e a teoria esttica lomazziana.
PALAVRAS-CHAVES: Giovanni paolo lomazzo, Arte potica, Renascimento, Idea del tempio
della pittura, Maneirismo.
Este artigo se trata de um passo inicial na investigao de uma das abordagens possveis
para a compreenso do objeto da minha pesquisa de mestrado, o Idea del Tempio della Pittura, de
Giovanni Paolo Lomazzo, publicado em 1590 em Milo. Foi a partir de uma reflexo sobre as
questes estruturais da obra junto ao meu orientador, Prof. Dr. Luiz Marques (Ifch - Unicamp),
que surgiu a hiptese de uma possvel ligao desta com a recepo da Arte Potica de Aristteles,
algo que no aparece de forma explcita na bibliografia principal dos escritos tericos de
Lomazzo. Aps essa primeira desconfiana, realizei uma leitura direcionada da obra aristotlica
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em questo, e me atentei tese de Phd de Julia Chai publicada em 1990 na Universidade de
Harvard (Cambridge - EUA) e deparei-me com a problematizao dessa questo nos ltimos
captulos de sua pesquisa. Ainda, busquei um maior aprofundamento no tocante a obra de
Aristteles em Stephen Halliwell, um dos estudiosos da Potica e sua recepo, tanto em seu artigo
presente na obra Essays on Aristotles' Poetics1, como tambm em sua traduo comentada da Arte
Potica2 publicada em 1987. Alm disso, um levantamento dos primeiros comentadores e
tradutores da Potica no Renascimento foi necessrio para clarear os horizontes. Contudo, o texto
que aqui apresento ainda uma primeira anlise da questo, que pretendo desenvolver ao longo
da pesquisa de mestrado.
a partir do terceiro decnio do sculo XVI que a Potica, uma das obras tardias de
Aristteles escrita entre os anos de 335 a.c e 326 a.c, tornou-se um dos ncleos em torno do qual
orbitavam as discusses de teoria literria e artstica, o que foi impulsionado pelas tradues da
obra primeiro para o latim, e anos depois para a lngua verncula. Sua primeira traduo, para
alm da verso latina de Averris no sculo XII, foi realizada pelo florentino Alessandro Pazzi e
publicada em Florena em 1536. Nos anos que se seguiram a essa publicao, comeam a surgir
nos crculos intelectuais italianos uma srie de comentrios obra confrontando os problemas
tericos do perodo em relao arte e produo literria com o seu contedo: em 1548, o In
librum Aristotelis de arte poetica explicationes, de Francesco Robortelli, publicado em Florena; Em
1550, uma exposio da Potica, originada de uma srie de lies ministradas por Vincenzo Maggi
e Bartolomeo Lombardi na Accademia degli Infiammati em Pdua entre os anos de 1546 e 1547,
publicada em Veneza; Em 1560, o comentrio de Pietro Vettori publicado em Florena e
reeditado em 1563, 1564 e 1573; Em 1570, a vulgata comentada da Potica por Lodovico
Castelvetro publicada na corte imperial em Viena; Em 1576, o Ars poetica aristotelis versibus
exposita de Bernardino Baldini publicado em Milo; entre outros comentrios.
Segundo Stephen Haliwell, em um artigo intitulado The poetics and its interpreters3 em um
reunio de textos sobre a Potica organizada por Amlie Oksenberg em 19924, a polmica em
torno da obra em meados do sculo XVI teve uma importncia central, tornando-se um lugar-
1 RORTY, Amlie Oksenberg (ed). Essays on Aristotles' Poetics. Princeton, NJ : Princeton University Press, c1992.
2 HALLIWELL, Stephen. The Poetics of Aristotle : translation and commentary. Chapel Hill : University of North Carolina
Press, 1987.
3 __________. The poetics and its interpreters. In RORTY, Amlie Oksenberg (ed). Essays on Aristotles' Poetics.
5 KHAN-ROSSI, Manuela; PORZIO, Francesco (orgs). Rabisch: Il grottesco nell'arte del Cinquecento. L'Accademia della Val
di Blenio, Lomazzo e l'ambiente milanese, catalogo della mostra [Lugano 1998], Milo, 1998, pp.13.
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Figura 3 - Leonardo da Vinci, Caricatura, tinta sobre papel, Galleria degli
Uffizi, Florena.
Diante deste quadro, pode-se inferir que Lomazzo vivia em um ambiente de intensa
agitao intelectual e circulao de ideias, e, ademais, um mundo de conhecimentos heterclitos e
diversificados. O prprio Bernardino Baldini, supracitado como autor de um dos mais influentes
comentrios Potica, era seu amigo e membro da Accademia dei Facchini della Val di Blenio. Seria
improvvel, portanto, que no estivesse par das discusses que permeavam a recepo e a
interpretao da Potica. Ao escrever suas duas obras de crtica e teoria artstica, o Trattato dell'arte
della pittura, scoltura et architettura (1584) e o Idea del Tempio della Pittura (1590), Lomazzo visava
sistematizar um conjunto de preceitos e regras gerais que servisse de guia ao artista incipiente.
Assim sendo, em conformidade com as preocupaes de seu tempo, Lomazzo se encontra dentre
os tericos que, sob o impacto do aristotelismo, procuravam definir os cnones da arte
direcionando os pintores a um fim por eles estabelecido. A segunda metade do sculo XVI
marcada por uma gerao de pensadores que se esforava para lidar com os problemas tericos
suscitados pela maniera pessoal do artista, agravados pelo ambiente da Contrarreforma. Contudo,
vale ressaltar que as regras propostas por Lomazzo, principalmente no Trattato, obra de uma
aplicao mais prtica, no eram apresentadas por ele como dogmticas, mas como uma espcie
de guia para o artista. A partir dos conceitos de "Prudncia" e "Discernimento", Lomazzo admitia
reconhecer o hiato existente entre teoria e prtica: ambos davam obra de arte um toque pessoal
do artista. Ou seja, a teoria fornecia um esquema geral do fazer artstico que por meio das
faculdades da "prudncia" e do "discernimento" era particularizado nas obras pelo artista. A obra
de arte se torna, ento, o resultado da utilizao do juzo do pintor para transformar a regra geral
em algo individual. Esse ponto deve ser destacado em Lomazzo, pois o distancia da ideia
primeira presente na recepo e interpretao dos escritos aristotlicos. Porm, Lomazzo toma as
devidas precaues para balizar a expresso pessoal do artista, elencando, no Idea del Tempio, sete
modelos a serem imitados, na acepo aristotlica do termo, pelo artista nefito. Assim,
sobrepujando a polmica do modelo nico, estabelece a ideia do cnone mltiplo e, com isso,
assegura um horizonte mais estvel para a arte de seu tempo, o que lhe permitia contornar o
sentimento de decadncia da arte e as preocupaes em relao s futuras geraes. Seus sete
modelos da pintura seriam representados por sete artistas denominados "governantes" da pintura,
que personificavam sete arqutipos ideais de estilo: Rafael Sanzio, Michelangelo Buonarroti,
Segundo Julia Chai6, em sua concluso a respeito do modo como Lomazzo aborda cada
uma das sete partes da pintura, que so a proporo, a perspectiva, a luz, a cor, o movimento, a
forma e a composio, o que se torna evidente a importncia visual da representao da
emoo atravs dos gestos e da expresso facial, junto com a perspectiva, a iluminao e a cor,
que acentuam o interesse dramtico da narrativa. O espectador, para Lomazzo, passa a ser um
elemento importante na concepo da obra de arte, que norteada pela ideia de espetculo. Aqui,
pode-se notar um possvel dilogo com a Potica, tanto em relao a incluso do espectador nas
preocupaes do artista quanto em relao encenao de tom teatral da narrativa. No que se
refere a noo de "Decoro", para Lomazzo o que est em jogo a capacidade de convencimento
da obra, ou seja, o verossmil convincente, mais do que a verdade fidedigna, e aqui se pode
perceber um dos ncleos conceituais da Potica, na qual Aristteles redefini a ideia de mmesis na
arte como algo que diz respeito ao verossmil e ao universal. O decoro para Lomazzo, portanto,
no apenas auxilia na adequao do retrato s caractersticas do personagem que se quer retratar,
mas tambm daquilo que ele deveria ser: ele excede ao modelo, criando dentro de uma
determinada convenincia. A ideia da verossimilhana , ento, um elemento central na obra de
arte, e ela que deve ser fixada no horizonte do artista no processo de concepo da obra. Ela
permite ao artista o uso da licena e um extravasamento do modelo, sem perder a noo de limite
dentro daquilo que apropriado. A medida do sucesso da obra se d na sua capacidade de
convencimento mediante a inveno sobre o modelo, e, aqui, a verdade da histria no significa a
traduo visual da mesma. Lida-se com a verdade da mesma maneira com que ela foi interpretada
a partir da Potica: no registro do universal. Nesse sentido, a Potica proporcionou um aparato
terico que permitia driblar as crticas contrarreformistas. A insero da Potica nos debates da
segunda metade do Cinquecento contribui para a manuteno do artifcio pictrico e do fictcio em
oposio interpretao literal da narrativa proposta pela igreja contrarreformada.
6CHAI, Julia. Gian Paolo Lomazzo and the art of expression. Tese ( PHD in History of Art) - Harvard University,
Cambridge, 1990. pp 196 - 270.
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Aristteles na cena literria ajudou a direcionar a arte de volta para seu eixo essencial7", que
segundo ela, residia na importncia da expresso formal em detrimento daquilo que vinha sendo
valorizado sob influncia da Contrarreforma, e que para Aristteles, segundo as interpretaes,
no fazia parte do substancial da obra: o decoro figurativo. A construo interna essencial do
artifcio convincente, isto , os problemas formais, seria trazida de volta ao cerne das
preocupaes do artista no pensamento de Lomazzo sob impacto da teoria aristotlica, ao invs
das descries das corretas vestimentas e maneiras dos personagens. Para ele, a forma perfeita da
expresso o que caracteriza o essencial na obra de arte, e, neste sentido, a forma que
valorizada como o meio principal para se atingir a expresso desejada.
Voltando questo da valorizao da audincia, que por fim acaba determinando os conceitos da
teoria de Lomazzo de verossimilhana, de expresso formal, do artifcio e do decoro, na medida
em que so norteados pela ideia de convencimento, destaco a importncia da edio verncula da
Potica de Lodovico Castelvetro (Viena, 1570; Basilia, 1576), como aponta Julia Chai8.
Provavelmente, Lomazzo no lia grego, e, assim como muitos autores de sua poca, foi bastante
influenciado por esta vulgata. Em sua edio, Castelvetro esmia o texto aristotlico e se
convence de que Aristteles privilegiava os interesses do espectador. A verossimilhana era
importante no apenas porque a arte deveria imitar a natureza, mas tambm porque deveria fazer
com que o espectador acreditasse na representao. Diante dessa exposio, pode-se perceber
que o dilogo com os escritos aristotlicos, e sobretudo com a recepo desses escritos na
segunda metade do sculo XVI, faz parte do eixo principal do estudo do corpus textual de
Lomazzo, e que no se poderia realizar uma investigao sobre seu pensamento terico sem levar
em conta a Potica e a utilizao de sua estrutura conceitual pelos tericos do perodo. Vale
ressaltar que o corpo terico de Lomazzo no se resume somente a conceitos baseados na
doutrina aristotlica: aquilo que lhe basilar, a ossatura propriamente dita da sua teoria sobre o
processo de concepo da obra de arte e sua definio de imaginao se alinham muito mais ao
sistema filosfico neoplatnico, sobretudo quele referente a Marsilio Ficino e seus discpulos.
Entretanto, o estudo da recepo da Potica crucial para o entendimento no apenas de suas
obras tericas, mas tambm do ambiente intelectual no qual estava mergulhado e das urgncias
que suas reflexes buscavam responder.
7 ___________. pp 287.
8 ___________. pp287.
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Consideraes sobre a mimetologia: sapatos e
sapatarias
Antnio Leandro Gomes de Souza Barros
Doutorando em Histria
UNICAMP/FAPESP
[email protected]
Entre os anos de 1886 e 1889, Van Gogh pintou uma verdadeira coleo de pares de
sapatos em sete quadros.9 Somando-se os seus ltimos meses de vida em 1890, esses foram os
anos decisivos de sua pesquisa plstica. Esse conjunto de sapatos to impactante para a
abordagem artstica de Van Gogh quanto outros conjuntos temticos recorrentes em sua
produo. notria, por exemplo, a controvrsia acerca do tema dos seus sapatos e
9Nmerode quadros descobertos durante a pesquisa, no excluindo a possibilidade de haverem outros mais.
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desenvolvida entre nomes de peso para os estudos de arte em geral: Heidegger, Schapiro e
Derrida10. Contudo, essa comunicao no se pretende a deflagrar posio na querela e nem
mesmo retom-la em seu mbito. Aqui trataremos apenas de considerar as foras criativas
envolvidas nesses quadros em um estudo de caso com as foras criativas de outro pintor. Mas
sem nos anteciparmos s devidas questes de arte, retomemos a apresentao das obras de Van
Gogh envolvidas nessa considerao.
Assim como grande parte da obra de Van Gogh, os referidos quadros apresentam um
tema/objeto com um interesse quase obsessivo e absoluto: em tela figura apenas e simplesmente
um ou mais pares de sapatos. Nada mais. E so vistos em diferentes ngulos e perspectivas, em
variadas posies, at mesmo em diferentes construes colorsticas. Contudo, tais os sapatos so
iconograficamente muito prximos, no apenas pela temtica, mas em particular pela maneira
intimista e tensa de retrat-los.
Como caractersticas gerais, notvel que esses sete quadros sejam todos de pequenas
dimenses, que variam entre 30 e 50 cm. A maior parte dos quadros de Van Gogh de
dimenses reduzidas. Porm, no caso em particular dos quadros dos sapatos esse tamanho
praticamente reala o tamanho natural de um pequeno par de sapatos reais, isto , materiais, o
tamanho de um par de sapatos usado diariamente nos ps de quem quer que seja. So quadros
em que no se esconde o carter pictrico, suas pinceladas, sua visualidade enquanto pintura, at
mesmo enquanto planaridade. E, no entanto, todos eles, de alguma forma, preservam a noo de
profundidade, situam esses sapatos no interior plstico do quadro. Assim, o quadro bem mais
se assemelharia a um guarda-volumes onde se v apenas sapatos.
10Para o leitor que nutrir interesse pela querela mencionada recomenda-se: a) HEIDEGGER, Martin. A Origem da
Obra de Arte; b) SCHAPIRO, Meyer. The Still Life as a Personal Object: A Note on Heidegger and Van Gogh; c) DERRIDA,
Jacques. Restitutions of the Truth in Pointing.
11HEIDEGGER, Martin. A Origem da Obra de Arte. So Paulo: Edies 70, 2005, p. 25.
12SCHAPIRO, Meyer. A Arte Moderna. So Paulo: Editora da USP, 2010, p. 140.
O prprio Vincent confessa ao irmo Tho, em carta datada de fins de 1889, portanto,
aps ter pintado toda a sua srie de sapatos, que: em sua opinio, o oportuno e conveniente
enquanto pintor era trabalhar como algum que faz sapatos, sem preocupaes artsticas.14 E
Antonin Artaud, corrobora o at aqui apresentado sobre o artista: pintor e nada mais, carrega
o peso de ser pintor sem saber para qu nem para onde. Este pintor somente pintor.15
Vincent Van Gogh pintava tudo, mas pintava uma coisa de cada vez. Seus quadros no
buscam a eloquncia, a narratividade histrica, a representao filosfica numa visualidade. So,
em geral, quadros que oferecem simplesmente objetos pintados. Um pintor que no se preocupa
em realizar nada alm de pinturas, alm do pintar: colecionando objetos visuais para o domnio
da arte. Schapiro inclusive questiona se Van Gogh teria sido o ltimo grande pintor da realidade
e, simultaneamente, o precursor de uma arte antiobjetiva, seu realismo pessoal. 16 Portanto, a
partir dessas primeiras observaes, possvel considerar essa coleo de sapatos, esse conjunto
de quadros como questionamentos modelares do pintar de Van Gogh.
Nesse sentido, traamos uma dialtica artstica entre Van Gogh e um pintor da
antiguidade contado nos relatos feitos por Plnio, o velho, no Livro 35 - um dos ltimos volumes
da Histria Natural, a enciclopdia do mundo antigo. Interessa-nos a personalidade pictrica de
Pireico, pintor grego apelidado pelos antigos rhyparographos, algo como pintor de trivialidades.
17LICHTENSTEIN, Jacqueline (org.). A pintura Vol.1. So Paulo: Editora 34, 2004, p. 84.
18______.A pintura Vol.1, p. 84.
19Ou tambm interpretado e traduzido como preos. Trata-se de um termo de dupla conotao, tipicamente pliniano.
24 evidente que aqui h toda a espcie de confuso na nossa alma. Aplicando-se a esta enfermidade da nossa natureza que a pintura
com sombreados no deixa por tentar espcie alguma de magia. PLATO. A Repblica. So Paulo: Martin Claret, 2000, p. 301.
25o pintor far o que parece ser um sapateiro, aos olhos dos que percebem to pouco de fazer sapatos como ele mesmo, mas julgam pela
Mas tudo isso o vemos possivelmente no apetrecho para calar que est no
quadro. Pelo contrrio, a camponesa, traz pura e simplesmente os sapatos. [...]
O ser-apetrecho do apetrecho reside, sem dvida, na sua serventia. Mas esta,
por sua vez, repousa na plenitude de um ser essencial do apetrecho.
Denominamo-la a solidez (Verlsslichkeit). graas a ela que a camponesa por
meio deste apetrecho confiada ao apelo calado da terra; graas solidez do
apetrecho, est certa do seu mundo. Mundo e terra esto, para ela e para os que
esto com ela, apenas a: no apetrecho. Dizemos apenas e estamos errados,
porque a solidez do apetrecho que d a este mundo to simples uma
estabilidade e assegura terra a liberdade do seu afluxo constante. 28
Essa solidez, alcanada pelos sapatos de Van Gogh tambm alcanada pelas obras de
Pireico conforme indica o texto pliniano lembrando que seus quadros de sapatarias embora
materialmente fossem de dimenses diminutas alcanavam grandezas maiores do que as
prprias galerias. A sua mgica conquista de grandeza um fato artstico determinante para o seu
grande apelo ao pblico e aos crticos mais severos, como o prprio Plnio. Serapio, por
exemplo, o pintor de obras imensas, no comentado no Livro 35 como um grande nome da
pintura antiga, mesmo entre os gneros menores. Todavia, parece surgir no texto puramente para
servir de parmetro s conquistas dos quadros de Pireico. Assim, a considerar o talento singular
Van Gogh no imitou os sapatos, mas, como vaticinou Plato e como ele mesmo insinua
em carta ao irmo, imitou o sapateiro. Aspecto semelhante, presume-se, poder-se-ia comentar das
sapatarias de Pireico. Seus contemporneos gregos, entre eles o prprio Plato, no viam nos
seus pequenos quadros apenas a imagem, um smbolo ou signo de sapatarias, mas enxergavam
neles o lugar de onde vieram seus prprios sapatos um lugar que se fazia maior do que as
paredes da galeria ocupada por Serapio. Um lugar, portanto, construdo com esforo helnico, e
parte do mundo civilizado de uma importante cidade republicana, fornecedor desse elemento to
caracterstico da realidade cvica grega. Afinal, os sapatos de maneira geral so, enquanto objetos
plsticos, correspondentes a um princpio de realidade. Plato o sabia to bem disso que preferiu
retratar Scrates, o habitante mximo do Mundo das Ideias, como o filsofo descalo.
Aqueles que, para alm do exemplar Scrates platnico, desde o mundo grego at hoje
ainda escapam do uso de sapatos so quase sempre entendidos como marginais, como habitantes
da periferia de nossa realidade construda: os loucos, os indigentes das ruas, os mendigos. Ou
mesmo as crianas, que no podem ir s escolas descalas atente-se para o fato de que todo
beb tradicionalmente ganhe, logo aps o seu nascimento, um pequenino par de sapatinhos
mesmo que ele ainda leve meses para tentar os primeiros passinhos, configurando um tipo de
atestado de que agora, depois de nascido, o beb tomou parte desse mundo. O conto de fadas de
Cinderela ainda exemplar dessa lgica potica de um princpio de realidade que se confere pelos
ps calados: ao servir em seu p o sapatinho de cristal perdido, sua vida se transforma atravs de
um tropo curioso abandonando a realidade de gata borralheira para a vida de princesa. A
psicologia moderna inclusive identifica uma espcie de sndrome de Cinderela, na qual pessoas
que tiveram uma infncia de extrema pobreza se tornam obcecadas por compras de sapatos.
nessa relao dialtica e plstica que permanece o distanciamento platnico com a pintura, que
ele literalmente identifica com a figura do sapateiro uma escolha em seu dilogo que no deve
ser tomada como aleatria.
Pireico no copiou uma aparncia de sapataria, no. Ele imitou sapatarias com tal arte que
fazia com que seus contempladores recebessem sua realidade, isto , seus sapatos, no do
mundo platnico das ideias, nem do mundo dos objetos utilitrios, mas do mundo engendrado a
partir de sua pintura. Os sapatos no vinham do ofcio do sapateiro, saiam da pintura de Pireico
havia um sapateiro trabalhando no interior desses quadros antes deles se perderem. Nesse
sentido, finalmente, deveria ser notvel que o desaparecimento da Grcia antiga como fora
fsica material contemporneo, talvez at sincrnico, com o desaparecimento das sapatarias
30LACOUE-LABARTHE, Philippe. A Imitao dos Modernos. So Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 75.
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Cena Trimalchionis: uma leitura de imagens
Caroline Morato Martins
Graduada em Histria
Universidade Federal de Ouro Preto/LEIR-UFOP
[email protected]
RESUMO: Este trabalho apresenta uma breve leitura do vocabulrio imagtico presente no
Satyricon, obra composta em 65 d.C e atribuda a um aristocrata que possivelmente pertenceu ao
crculo social do imperador Nero. Pensando a relao entre decoro e imagem, analisamos trechos
que confluem para uma caracterstica entendida nos captulos da obra intitulados Cena
Trimalchionis (25-78): as imagens narradas formam uma mistura, onde diferentes cdigos sociais se
anunciam. Ou seja, na Cena, onde um rico liberto chamado Trimalchio oferece um banquete em
sua casa luxuosa, o que parece comum maioria dos convidados, que como o anfitrio so
libertos, no reconhecido por outras personagens - que possuem certa erudio - presentes no
mesmo banquete.
Entendemos que o decoro expresso pelos libertos da Cena mostra-se nas representaes
visuais a partir, sobretudo, das representaes de suas trajetrias, enfatizadas pelos personagens e
em especial por Trimalchio. O personagem Enclpio narra detalhadamente uma pintura posta
logo na entrada da casa do banquete, que traz a trajetria de Trimalchio de escravo a homem de
incontvel riqueza. O prprio Trimachio, ao fim do banquete, tambm informa minuciosamente
como desejava o seu suntuoso monumento funerrio e o seu prprio funeral.
Em 26,9 tm-se a primeira referncia Trimalchio, dita por Agammnon (educador que
aparece na discusso nos cinco primeiros captulos do Satyricon, sobre o declnio da retrica em
uma aula/discusso aberta com Enclpio e Ascilto. Ele informa a Enclpio, Ascilto e Gito 32
sobre o jantar daquela noite, dizendo que se trata de um lautissimus homo (homem riqussimo). O
31PETRNIO. Satyricon. Trad. BIANCHET, Sandra Maria Gualberto Braga. Belo Horizonte: Crislida, 2004.
32 H um debate sobre a colocao de Gito dentro da Cena. Logo ao incio do episdio, j vinculado ao
personagem um lugar efetivamente diferente em relao ao restante dos episdios do Satyricon, como se apenas o
nome do jovem garoto, que formara um tringulo amoro com Enclpio e Ascilto, coincidisse nessa comparao. Em
26, 10 se encontra a primeira referncia a Gito como um escravo na Cena: Amicimur ergo diligenter obliti omnium
malorum, et Gitona libentissime seruile officium tuentem [usque hoc] iubemus in balneum sequi (Ns, ento, vestimos
prontamente, esquecendo todos os nossos males, e ordenamos a Gito, que exercia com prazer sua funo de servo,
que nos acompanhasse sala de banhos).
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uso do superlativo ocorre apenas aqui, mas lautitia (como substantivo e adjetivo) uma
importante palavra, usada constantemente na Cena para descrio do jantar, do prprio hspede e
de suas posses, alm de muitas vezes possuir uma conotao irnica. O nome Trimalchio,
provavelmente, possui origem oriental. Em nomes de libertos ou escravos geralmente se encontra
um cognomea com tal raz. Trimalchio, aparentemente, veio da sia Menor (Asia 75,10) e equivale
a trs vezes rei.
Agammnon tambm informa que o hspede tem em seu triclnio um relgio
(horologium)33. J aqui so anunciados os trs temas bsicos da Cena: lautitiae, tempo e morte.34 O
trompetista, bucinatorem35 marca as trocas do relgio para que ele (Trimalchio) saiba a todo
momento quanto tempo perdeu de sua vida (26, 9: ut subinde sciat quantum de uita perderit). Esse
objeto da sala de jantar, portanto, relaciona-se a meticulosidade com que Trimalchio marca a
passagem de sua vida, j que ele mantm o controle de sua prpria morte, sabendo (subinde) at
quando morrer, ele diz: agora ainda me restam trinta anos, quatro meses e dois dias de vida (77,
2: nunc mi restare uitae annos triginta et menses quattuor et dies duos). Tal preocupao de Trimalchio
relaciona-se fortemente com sua tentativa de auto afirmao atravs da exaltao que promove de
sua trajetria, ou seja, os temas de tempo e morte correspondem a outra preocupao de
Trimalchio: sua memria e lugar social.
Logo aps se iniciar o episdio da Cena, Trimalchio oferece um jogo (24, 4)36, onde
garotos de cabelos compridos so mencionados: escravos com tais caractersticas foram
associados como delicati, e o modo com que o prprio Trimalchio entrou em Roma (29,3),
orgulhosamente declarando ter sido amante de seu senhor e de sua senhora (75,10-11). Essa
33 PET. Sat. 26, 9: horologium in triclinio et bucinatorem habet subornatum (equipou sua sala de jantar com um relgio e um
tocador de corneta). Provavelmente uma clepsidra (relgio de gua de origem egpicia, com um tubo com fundo
largo, a partir do qual a gua cairia em um ritmo medido. No um relgio de sol - que indica o tempo durante as
horas de luz solar por meio de um brao fixo, o gnomon, que lana uma sombra sobre uma placa ou superfcie
marcada em horas - como o do tumlo de Trimalchio em 71,11).
34 SHEMELING, G. A commentary on the Satyrica of Petronius. Oxford University Press, 2011, p. 84-85. interessante
exemplo em CC. Fam. 16, 21, 2. Dicionrio Latino-Portugus. Org. Ernesto Faria, 1962, p. 144.
36 H um debate entre Saylor (1987) e Panayotakis (1995): o primeiro v os jogos como uma apresentao de
elementos gladiatrios, que oponhem-se a dificuldade de Trimalchio de lidar dar - a frequente inabilidade da
personagem - com a ideia da morte, enquanto o segundo rejeita tal concluso.
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aproximao entre capillatus e delicatus/catamitus comum na iconografia e literatura37. O velho
Trimalchio, descrito como feio e careca, chamado de pater familiae38.
37 SHEMELING, G. A commentary on the Satyrica of Petronius. Oxford University Press, 2011, p. 86.
38 PET. Sat. 27, 2.
39 BODEL, J. Trimalchios Underworld, in Tatum, 1994, p. 240; RIMMELL, V. Petronius and the Anatomy of Fiction.
tenebat Minervamque ducente Romam intrabat (Trimalchio, de cabelos compridos, segurava o caduceu e entrava em Roma,
conduzido por Minerva); 3) hinc quemadmodum ratiocinari didicisset (a partir da, ele teria aprendido a fazer clculos); 4)
dispensator factus esset, omnia diligenter curiosus pictor cum inscriptione reddiderat (em seguida, teria sido promovido a
tesoureiro; tudo isso o minucioso pintor tinha reproduzido diligentemente, com letreiros); 5) in deficiente vero iam porticu
levatum mento in tribunal excelsum Mercurius rapiebat (J no final do prtico Mercrio arrastava-o erguido pelo queixo em
direo a uma plataforma elevada). Apesar de ser um escravo em (1), em (2) e (5) ele pintado como um deus ou
acompanhado por um deus. Em (2) Trimalchio pintado similarmente a um general triunfante ou imperador
entrando em Roma ou, ainda, a um heri entrando na cidade. Enquanto a cena (3) e (4) mostra a rpida elevao de
Trimalchio como escravo, (5) tem algo especial: mostra Trimalchio como um liberto e o tribunal (71, 9) ao qual
Mercrio o conduz ao assento no anfiteatro ou teatro reservado aos patronos no espetculo pblico.
42 PL. Histria Natural 35, 6-7.
43 Kernyi (1923), p. 158-9; K. Scott (1935), p. 227; Bodel (1994), p. 248, comparam os murais de Trimalchio com
um sarcfago presente na Villa Doria Pamphilj em Roma, que exibe a narrativa biogrfica de um homem que no fim
toma o elevado lugar na carruagem guiada por Mercrio. In: SHEMELING, G. A commentary on the Satyrica of
Petronius. Oxford University Press, 2011, p. 95-6.
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mural de Trimalchio deriva dos monumentos funerrios (...)44. O mural de Trimalchio aparece
como a entrada do inferno, e o curso da Cena como um katabasis ao submundo para Enclpio.
De acordo com Bodel (1994), entre outros autores, sinais de uma descida ao inferno e uma
elevao ao mundo superior so evidentes45.
Em 29, 4, o uso do termo dispensator, que uma posio de destaque na domus, nos remete
ao debate historiogrfico sobre a diviso de funes da casa romana ao longo da poca
augustana. Tal estrutura, em confirmao a posio aristocrtica das fontes literrias latinas,
indica o incentivo a disputas entre escravos e dependentes do dominus.48 Em 29, 4 Trimalchio
parece ter em sua histria um sentido, cursus, onde com a ajuda de Minerva, aprende as
habilidades tpicas de escravos que se tornam libertos, comumente contabilistas, e em seguida ele
torna-se dispensator.49 Trimalchio fornece um mais detalhado curriculum vitae em 75, 10-77, 550.
44 BODEL (1994), op cit. p. 242. Ver tambm: WREDE (1971), p. 154; (1981) p. 93-105; DENTZER (1962);
KLEINER (1988) p. 115-19. In: SHEMELING, G. A commentary on the Satyrica of Petronius. Oxford University Press,
2011, p. 96.
45 SHEMELING, G. A commentary on the Satyrica of Petronius. Oxford University Press, 2011, p. 97.
46 VEYNE, P. Vie de Trimalcion, Annales, ESC, 1961 e BODEL, J. Freedmen in the Satyricon of Petronius. University of
Michigan, 1984.
47 (53, 2): in praedio Cumano quod est Trimalchionis nati sunt pueri XXX, puellae XL (nas terras de Cumas que pertencem a
Trimalchio, nasceram 30 meninos, 40 meninas). ROGER (1945), p. 19; FINLEY (1977), p. 154-66 e BODEL (2005)
relacionam ao epitfio de Aulus Capreilius Timotheus de Anfiplis, que ostenta ter sido um comerciante de carne
( ). Ele mostrado liderando uma linha de oito escravos acorrentados juntos pelos pescoos no
mercado-escravo no havendo envergonhamento aqui.
48 MOURITSEN, H. The freedman in the Roman world. Cambridge: Cambridge University Press, 2011 e THBERT,
Yvon. O escravo. In: GIARDINA, Andrea (org.). O homem romano. Lisboa: Editorial Presena, 1991, Cap V, p. 117-
145.
49 A partir do seu trabalho sobre escravido romana Bodel (2010 325) comenta (em atriensis e ostiarius - atriensem
equivale a um escravo com vrias responsabilidades: Sat. 72, 8; 72; 10) que no s os ttulos atribudos as funes
particulares no servio domstico mudam com o tempo, mas certamente ttulos descreveram funes diferentes em
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O fim da pintura na parede, em 26, 5, traz a figura de Mercrio, que assim como a figura
de Minerva, foi reconhecida por Enclpio. J que foram reconhecidas, ambas as pictum
correspondem a um decoro, um cdigo cultural partilhado a Enclpio talvez a Ascilto e at ao
garoto Gito - e certamente a Agammnon, mas outros padres no aparecem partilhado a eles
em outras pinturas e objetos da casa, inclusive faltam tambm tais referncias em relao a grande
parte das falas de Trimalchio. Ao fim, esses personagens no parecem compreender
completamente Trimalchio (suas falas e comportamentos e, inclusive, seus objetos). Trimalchio
se eleva saindo da escravido atravs da aquisio de riqueza e ajuda de Mercrio, de quem ele
assume o atributo (caduceum). Mercrio, sua divindade protetora (77, 4; 67, 7) quem transfere ele
ao alto tribunal (e por exemplo, ao ofcio de servir Augustalis), onde K. Scott e Bodel51 anunciaram
ento haver uma apoteose. O movimento na forma de triunfo da escravido para a liberdade
explica porque sua casa decorada como um monumentum: pintura alegrica de sua carreira e
conectado a Mercrio.
perodos diferentes. A posio de atriensi, por exemplo, cai em acentuadamente nos nveis, considerando os mais
importantes escravos na casa; funo associada a de cozinheiro. Ele um mordomo (gerencia a propriedade de
outro) originalmente na troca do atrium (e talvez o espao aqui descrito um atrium) no qual imagines de ancestrais
foram exibidas e tendo administrao geral da casa e escravos reservada a ele. Primeiro o dispensator e atriensi mantm
funes similares. Maxey (1938) nota que trs formas de atriensi podem ser identificadas.
50 De acordo com as numerosas referncias no Digesto (11, 3: 16; 14, 3: 12, 34, 2, 1, 40, 4: 24) dispensatores so
normalmente escravos. So importantes funcionrios no interior da casa, nos deveres e status. Ver tambm:
SHEMELING, G. A commentary on the Satyrica of Petronius. Oxford University Press, 2011, p. 97-9.
51 SCOTT, K. Mercury on the Bologna Altar, MDAI(R) 50: 225-30, 1935, p. 228 e BODEL (1984), op cit. p. 56.
52 HOPKINS, K. Death and Renewal. Cambridge, 1983, p. 202, 255-6.
53 PET. Sat. 75, 9-11: Bene emo, bene uendo; alius alia uobis dicet. Felicitate dissilio. Tua autem, sterteia, atiamnum ploras? Iam
curabo fatum tuum plores. Sed, ut coeperam dicere, ad hanc me fortunam frugalitas mea perduxit. Tam magnus ex Asia ueni quam hic
candelabrus est. Ad summam, quotidie me solebam ad illum metiri, et ut celerius rostrum barbatum haberem, labra de lucerna ungebam,
Tamen ad delicias [femina] ipsimi [domini] annos quattordecim fui. Nec turpe est quod dominus iubet. Ego tamen et ipsimae [dominae]
satis faciebam. Scitis, quid dicam: taceo, quia non sum de gloriosis (Compro bem, vendo bem; um outro pode dizer outra
coisa a vocs. Eu estou saltando de felicidade. Voc, no entanto, sua roncaronca, por acaso ainda est se
lamentando? Eu cuidarei j para que voc lamente seu destino. Mas, como eu tinha comea a falar, foi minha
temperana que me conduziu a minha fortuna. Eu cheguei da sia to grande quanto este cadelabro aqui. Em
poucas palavras, todos os dias eu costumava me medir perto dele e, para que eu tivesse um rosto barbudo mais
depressa, embebia meus lbios com o azeite da lmpada. Contudo, fui durante quartoze anos, amante de meu dono.
E isso no vergonha alguma, pois o dono que manda. Eu, no entanto, satisfazia tambm a esposa dele. O que eu
vou dizer, vocs j sabem: eu me calo, porque no sou de ficar contando vantagens).
Sat, 76, 1-11: Ceterum, quemadmodum di uolunt, dominus in domofactus sum, et ecce cepi ipsimi carebellum. Quid multa? Coheredem
me Caesari fecit, et accepi patrimonium laticlauium. Nemini tamen nihil satis est. Cocupiui negotiari. Ne multis uos morer, quinque
naues aedificaui, oneraui uinum et tune erat contra aurum misi Romam. Putares me hoc iussisse: omnes naues naufragarunt, factum,
non fabula. V no die Neptunus trecenties sestertium deuorauit. Putaris me defecisse? Non mehercules mi haec iactura gusti fuit,
tamquam nihil facti. Alteras feci maiores et meliores et feliciores, ut nemo non me uirum fortem diceret. Scis, magna nauis magnam
fortitudinem habet. Oneraui uinum, lardum, fabam, seplasium, mancipia. Hoc loco Fortunata rem piam fecit; omne enim aurum suum,
omnia uestimenta uendidit et mi centum aureos in manu posuit. Hoc fuit peculli mei fermentum. Cito fit quod di uolunt. V no cursu
centies sestertium corrotundaui. Statim redemi fundos omnes, qui patroni mei fuerant. Aedifico domum, uenalicia coemo, iumenta;
quicquid tangebam, crescebat tamquam fauus. Postquam copei plus habere quam tota patria mea habet, manum de tabula: sustuli me de
negotiatione et coepi [per] libertos faenerare. Et sane nolentem me negotium meum agere exhortauit mathematicus, qui uenerat forte in
coloniam nostram, Graeculio, Serapa nomine, consiliator deorum. Hic mihi dixit etiam ea quae oblitus eram; ab acia et acu mi omnia
exposuit; intestinas meas nouerat; tantum quod mihi non dixerat quid pridie cenaueram. Putasses illum semper mecum habitasse (De
resto, graas aos deuses, tornei-me soberano na casa dele e, num piscar de olhos, apoderei-me do miolo-mole de meu
dono. O que h mais para dizer? Ele me colocou como herdeiro juntamente com o imperador e eu recebi um
patrimnio digno de um patrcio. No entanto, ningum fica satisfeito com nada. Tive a ganncia de negociar. Sem
prender vocs com pormenores, eu constru cinco navios, carreguei-os com vinho e naquela poca era como se
fosse ouro -, mandei-os para Roma. Talvez achem que eu preparei isto: todos os navios naufragraram. Isso um
fato, no uma inveno. Em um nico dia, Neturno devorou trinta milhes de sestrcios. Vocs pensam que eu
desisti? Mo, por Hrcules, esse prejuzo serviu de aperetivo para mim, como se nada tivesse acontecido. Fiz outros
navios maiores, no s melhores, mas tambm mais protegidos pelos deuses, de foma que nem uma pessoa sequer
deixou de dizer que eu era um homem corajoso. A gente sabe que navio grande possui grande fora. Carreguei-os
novamente com vinho, toucinho, cereal, perfume, escravos. Nessa ocasio, Fortunata fez uma coisa boa, pois ela
vendeu todas as sua jias de ouro, todas as suas roupas e colocou em minhas mos cem moedas de ouro. Isso foi
como o fermento do meu patrimnio. Rapidamente se fez a vontade dos deuses. Em uma nica viagem, eu cheguei a
ganhar dez milhes redondos. Imediatamente, comprei de volta todas as fazendas que tinham sido do meu antigo
dono. Constru uma casa, comprei um mercado de escravos no atacado, animais de carga;qualquer coisa que eu
tocava crescia tal como um favo. Depois que passei a ter mais do que minha ptria inteira, dei um basta: tirei meu
corpo fora do comrcio de mercadorias e comecei a emprestar dinheiro a juros para libertos. E, mesmo eu no
querendo, encorajou-me a manter meu negcio um astrlogo, que tinha vindo para em nossa colnia por acaso, um
desses gregos que andam por a, de nome Serapa, um conselheiro dos deuses. Ele me disse at mesmo coisas que eu
tinha esquecido; narrou-me tudo nos mnimos detalhes; ele conhecia meus intestinos; a nica coisa que ele no me
disse foi o que eu tinha jantado no dia anterior. At parecia que ele tinha sempre vivido comigo).
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talvez demonstre o peso do passado de Trimalchio, ao qual ele tenta, especialmente por essa
parede, glorificar. Apesar de no se envergonhar de onde veio, enaltece sua ascenso social e
intelectual. Os atletas, em 29, 7 talvez expressem o valor dado fora fsica e rude, similar a de
um escravo, com Trimalchio agora distante.
Em 29, 8 Trimalchio indica cultuar deuses domsticos pelas imagens de Lares de prata,
porm ele no possui descendncia nobre. Do mesmo modo, a esttua de mrmore de Vnus
(importante nos cultos romanos) provavelmente aponta para a tentativa que Trimalchio faz de
vincular-se a uma origem nobre, uma vez que Enias, segundo o mito fundador de Roma, seria
descendente da deusa (e depois at mesmo os imperadores, como Csar, se vincularam). Ao
mesmo tempo que evidencia seu passado de escravido, mistura-o com referencias de um grupo
ao qual no pertence, uma cultura aristocrtica onde ele no se encaixa.
Ao fim do captulo 29, em in medio (em meio)54, h o sentido de que as figuras esto ao
centro da pintura na parede, onde Trimalchio combina repertrios. A proximidade entre uma
referncia erudita (Homero) ao lado de gladiadores55 talvez seja a melhor passagem de todo o
Satyricon para elucidar a mistura que o personagem faz, tentando expressar seu vnculo prximo
a aristocracia e o seu passado sem referencias nobres56. Apenas Agamnon, Ascilto, Gito e
principalmente Enclpio parecem no compreenderem muitas das referencias de Trimalchio, ou
seja, eles no se associam a tal cdigo social. Os quatro parecem ter erudio suficiente para
conhecerem Homero, porm, as figuras, postas a forma de Trimalchio, no so reconhecidas por
eles. Acreditamos que isso ocorra devido a esta mescla de cdigos, e no devido m tcnica
empregada pelo pintor. A parede traz a Ilada e Odissia, tema elevado, mas pintadas como
Trimalchio as entende e de acordo com a forma que ele recebeu a tradio erudita. Portanto, sua
parede mostra dupla filiao ao aproximar a retratao de tema erudito com outra retratao
menos elevada, uma baixa filiao: gladiadores de Lenas. Desse modo, ambos os padres so
54 in medio: disponvel ou em exposio ou mo como em Horcio Serm. 1, 2, 108 in medio posita, not in medio atrio;
cf. M. Smith (1975), que nota a suposio equivocada in media sc. porticu na margem..
55 Laenatis: o proprietrio de uma grex de gladiadores ou provavelmente o magistrado que exibiu eles. A partir de um
cognome encontrado em Pompia (bem como outras famlias), Maiuri (1945, p. 12) especula que Lenas poderia ser
um membro de uma famlia igual a do mestre de Trimalchio, Pompeu, a quem Trimalchio explicitamente reivindicou
como seu patro (Sat. 30, 2 C. Pompeio Trimalchioni) e de quem ele adota o nome. SHEMELING, G. A commentary on
the Satyrica of Petronius. Oxford University Press, 2011, p. 100-
56 PL. HN 35, 52 nota que um prtico pblico coberto com retratos de gladiadores; Cenas homricas so comuns
em pinturas de casas, como Vitruvius 7, 5, 2 reividica, e KELLUM (1999 296 n. 38) comenta na ubiquidade de
afrescos de gladiadores. A villa na Puazza Amerina (Siclia) tem um mosaico ilustrando a histria de Odisseu e do
Ciclope.
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importantes para Trimalchio, compondo o personagem e sua tentativa de consolidao de
identidade. A mescla de padres se repete na narrao do monumento funerrio de Trimalchio ao
fim da Cena, onde mais do que consolidao de identidade, a personagem deseja construir
tentando tambm elevar - sua memria.
57 SHEMELING, G. A commentary on the Satyrica of Petronius. Oxford University Press, 2011, p. 156.
58 COURTNEY, E. A Companion to Petronius, Oxford, 2001, p. 79. Um bom exemplo est em Sat. 48, 7.
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ST 2: Poder e F na Idade Mdia
O Contexto Hispnico
59 PALOL, Pedro de. La Cristianizacin de La Aristocracia Roamna Hispanica. Pyrenae: revista de prehistria i antiguitat
de la Mediterrnia Occidental, N. 13-14, 1977-1978, pgs. 281-300
60 ______. La Cristianizacin de La Aristocracia Romana Hispnica, p.284
61 ______. La Cristianizacin de La Aristocracia Romana Hispnica, p.286
O Paganismo
Um dos apontamentos mais importantes a respeito desse trabalho que a regio das
Astrias, apesar de fazer parte do Imprio Romano, no passou por um forte processo de
romanizao, seja por ficar em uma regio mais afastada do poder central ou mesmo por no
apresentar uma vantagem imediata aos romanos. O fato que as populaes que ali habitavam
eram clticas, culturalmente e linguisticamente falando. Segundo Wendy Davies, o noroeste da
Espanha ainda apresentava uma lngua vernacular cltica nos sculos VI e VII63. Sua forte
tradio conviveu, durante sculos, com o cristianismo que comeou a ser introduzido no sculo
IV. Desde o princpio do processo, os evangelizadores cristos identificaram que no bastava
converter as pessoas, era necessrio combater suas prticas pags.
Cabe aqui uma definio do que seria esse paganismo. Hoje em dia, identificamos o
paganismo com inmeras denominaes e prticas religiosas. No mundo romano no havia essa
distino. Lorenzo Martnez ngel trs um exemplo disso ao tratar do sincretismo romano
religioso, em que conviveram tanto os cultos do Estado, quanto os cristos e at orientais64.
Porm, o que vai tornando-se mais claro que a medida que o cristianismo avana, o termo
pago comea a ser aplicado a tudo aquilo que no cristo, e inclusive vai ser utilizada ao falar
dos mulumanos que viriam a conquistar a Pennsula Ibrica65. As religies pags da poca, que
conviviam com os costumes religiosos romanos, especialmente as de origem celta, tinham um
carter profundamente naturalista.
62 Mesmo com o dito, na faixa mediterrnica e no pouco que se consegue saber do restante da Espanha, existiu um
paganismo persistente durante todo o sculo IV e at bem tardiamente no sculo V.
63 DAVIES, Wendy. The Celtic Kingdoms. In: FOURACRE, Paul (org.). The New Cambridge Medieval History: Volume
Tanto o que um snodo, realizada em Braga no ano de 1477 mostra uma curiosa
passagem sobrea a celebrao das missas:
Porque segundo a ordebaam da sancta madre Egreja a missa nom deve seer
celebrada senom nas egrejas e lugares a Deus consagrados e dedicados por
reverea de tam alto sacramento que h o Corpo e Sangue de nosso Senhor
Jhesu Christo, o que achamos seer fecto pello contrario en muitos lugares desde
arcebispado, celebrando missas nos canpos e nos pees das arvores e em outros
lugares desonestos e de grande periigo por causa das chuivas, ventos e
tenpestades e doutros inconvenientes que muitas vezes sobreveem.67
Essa clara ligao com as prticas pags e a forte conexo com seu naturalismo tpico
apresentam-se no sculo XV, praticamente mil anos aps o incio do processo de cristianizao
da Pennsula Ibrica, agora cristianizadas. Segundo ngel, a Igreja lutou contra as crenas pr-
crists tentando eliminar as mesmas, destruindo sua forma, seus cultos e afetando com isso tanto
os pagos, quanto os cristos que mantinham prticas anteriores a nova f, tendo mais xito com
os primeiros do que com os segundos. Um cristo que estivesse nos locais onde o paganismo
mostrou-se mais forte, como no noroeste da Espanha (o recorte espacial que aqui se prope
trabalhar), podia ir igreja aos domingos e ainda acreditava no poder dos bosques. Para esse
personagem suas crenas no eram incompatveis e nunca pensaria que eram, a no ser que
As Parquias
68 Martnez trs uma passagem de Oronzo Giordano que diz o seguinre: todas aquellas prcticas ad arbores, vel ad
fontes, vel ad lapides quasdam [fueron] denunciadas constantemente por las autoridades eclesisticas y por las leyes
estatales. E a questo ainda pode ser entendida como uma luta de fato se levar em considerao quando S.
Bonifcio destruiu uma grande rvore, sagrada aos germanos. Ou que S. Benito teria queimado um bosque inteiro
dedicado a Apolo.
69 ______. Reflexiones Sobre El Paganismo Y La Cristainizacin. p. 33
70
DE LA PEA SOLAR, J. Ignacio Ruiz. Parroquias, concejos parroquiales y solidaridades vecinales em la asturias medieval.
Asturiensia medievalia. Oviedo, n 7, 1993-1994. p. 105
Esses centros continuariam a ter essa funo agregadora mesmo quando as populaes se
converteram ao cristianismo, que no representava uma religio destruidora das relaes
polticas prvias. Como se sabe, as estruturas tipicamente crists que comeam a se consolidar
nesse perodo aproveitaram-se muito bem das instituies pblicas e polticas do Imprio
Romano. As parquias na Espanha teriam sido, at o sculo V, propagadoras da ordem social
que existia at ento, ainda submetidas autoridade dos bispos, sendo que no constituam uma
organizao autnoma. depois do sculo V que as parquias vo passar a reger-se, tendo
frente uma figura como um presbtero, que ter uma relao mais prxima com os paroquianos.
Mesmo tendo se apoderado de uma estrutura pr-existente a motivao para a formao das
parquias foi religiosa, no sentido que aps o processo de cristianizao ter sido iniciado que os
centros de referncia passam a constituir marcos de unio entre as comunidades, primeiramente
estando sob a total tutela de um bispo e, posteriormente, de um presbtero, atingindo maior
autonomia local.
Um ponto importante a ser levantado a de que a maioria das parquias que existem at
hoje nas Astrias se constituram ainda nos sculos IV e V. O arquelogo Jos Carlos Snchez
71 DE LA PEA SOLAR. Parroquias, concejos parroquiales y solidaridades vecinales em la asturias medieval. p.111
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Pardo, demonstra que as parquias no foraram um novo espao geogrfico, respeitado limites
histricos e culturais e as formaes comunitrias que j existiam. A parquia no foi imposta, foi
apenas adaptada ao contexto das populaes rurais que haviam l, dando sentido s mesmas,
reunindo-as e agrupando-as sobre a religio crist. As organizaes paroquiais ajustaram-se aos
espaos geogrficos, ocupando os territrios de forma eficaz, ordenada e completa. Segundo
Snchez Pardo,
las iglesias tenderan a distar de tres cuartos de hora a una hora de camino unas
de otras (de 3 a 4 km), para que todos los fieles puedan cumplir el precepto de
asistencia a misa los dias festivos, o por lo menos todas las familias puedan
estar representadas en el templo.72
A organizao das parquias se deu de forma ordenada, podendo mesmo ter sido
planejada (um bispo ou um aristocrata pode ter enviado um pregador ou presbtero j para uma
regio especfica, conhecida, tomando conscincia de seu projeto cristianizador). Analisando o
processo de surgimento das parquias, no restam dvidas que de fato foram importantes para a
difuso do cristianismo, a proposta de trabalho a de averiguar em que medida a instituio
dessas organizaes auxiliou na cristianizao desses povos.
O projeto das parquias como meio de levar o cristianismo ao ambiente rural, e mesmo
ser facilitador do controle das prticas dos paroquianos, o que em trabalhos futuros pretende-se
investigar. O problemtico de pensar seria partir da premissa de que essa cristianizao falhou
72 SNCHEZ, Jos Carlos Pardo. Las iglesias rurales y su papel en la articulacin territorial de la Galicia medieval
(ss. VI-XIII). Mlanges de la Casa de Velzquez. 40-1, 2010. p. 164
73 A palavra vecinal no apresenta uma boa traduo direta em portugus. Seu sentido trata das relaes de vizinhana,
unio, comunidade. Optei por mant-la como me foi introduzida pelo texto de De La Pea Solar.
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por, como j foi mencionado, mil anos depois o paganismo ainda ser combatido. preciso levar
em considerao que a prpria ao romana frente ao paganismo apresentou questes que
precisam ser levadas em conta. Como por exemplo, o fato de trabalhar o paganismo como uma
coisa s, sem observar as variaes que existiam de uma religio para outra. Para a Igreja, pago
era o no-cristo, uma viso extremamente generalizada que provavelmente dificultou ainda mais
o combate. Tambm interferia na formao da identidade crist, que no estava formada e
variava com as denominaes. O cristo se definia em oposio ao pago, mas era difcil
identificar o que era ser pago sendo que as prticas eram largamente reproduzidas.
Fato que o sincretismo religioso foi necessrio para o desenvolvimento do cristianismo, e como
parte importante do processo no pode ser necessariamente considerado como uma derrota.
mais um elemento que precisa entrar no estudo da poca. A inteno a de mostrar o quanto a
cristianizao da Espanha mostrou-se difcil em um primeiro momento (no que houvesse uma
resistncia aos cristianismo, na verdade os nativos mostraram-se bem receptivos a nova f), pela
presena mnima, at onde foi possvel determinar a partir de estudos arqueolgicos, de cristos
na regio. E a partir do momento em que se percebeu que no seria problema converter as
populaes, mas de fato fazer com que abandonassem suas antigas prticas a ideia de
cristianizao assume uma nova faceta. Baseando-se nisso que futuros trabalhos investigaro que
parte as parquias tomaram nessa questo, em que medida essas organizaes comunitrias
envolveram-se na cristianizao de uma regio com tradio celta to acentuada quanto eram as
Astrias nos sculos IV e V. Sem entrar no mrito de que foi uma empreitada vitoriosa ou falha,
basta pensar que o Cristianismo hoje a principal religio do Ocidente, mesmo com todas as
prticas pags que incorporou ao longo dos anos.
74 Tambm foi nesse contexto que a Chronica de El-Rei D. Fernando foi formulada. D. Fernando foi irmo de D. Joo,
sendo a sua morte uma das origens para a crise sucessria em Portugal e, consequentemente, para a ecloso da
Revoluo de Avis. Porm, tal obra no faz parte da seleo original de fontes dessa pesquisa de mestrado em geral,
uma vez que o objetivo principal da mesma consiste em comparar as representaes das rinhas Beatriz de Castela,
esposa de D. Afonso IV e me de Pedro I e Filipa de Lencastre, esposa de D. Joo I.
75 Termo cunhado por Lus de Cames em Os Lusadas para referir-se aos descendentes de D. Joo I e Filipa de
Lencastre, devido ao alto grau de educao e de esprito militar-expansionista que os mesmos possuam.
76 LOPES, Ferno. Chronica de El-Rei D. Joo I. 2. ed. Lisboa: Escriptorio (Coleo Bibliotheca de Classicos
Amou bem fielmente o seu mui nobre marido, sendo bom sentido de o nunca
anojar, e da boa ensinana e creao de seus filhos; no fazia cousa alguma com
rancor nem odio, mas todas suas obras eram feitas com amor de Deus e do
prximo.78
80 KRISTEVA, Julia. Introduo Semanlise. 3. ed. So Paulo: Perspectiva, 2012, pp. 4-5.
81 BARDIN, Laurence. Anlise de contedo. Trad. Lus Antero Reto e Augusto Pinheiro. Lisboa: Edies 70, 2002, pp.
104-107.
82 _______. Anlise de contedo, pp. 107-108.
83 CASAGRANDE, Carla. A mulher sob custdia. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle (orgs.). Histria das
Mulheres no Ocidente. Trad. Maria Helena da Cruz Coelho, Irene Maria Vaquinhas, etc. al. Porto: Edies
Afrontamento, 1993, v. 2: A Idade Mdia, p. 104.
84 ZURARA, Gomes Eannes de. Crnica da Tomada de Ceuta, pp. 136-137.
85 KLAPISCH-ZUBER, Christiane. Masculino/Feminino. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude (orgs.).
Finalmente vindo o Infante ao Lugar de Canavezes, onde foy ter com ele a
Rainha Dona Brites [Beatriz], sua my, e o Arcebispo de Braga, com outras
authorisadas pessoas, que ali se juntaro intervindo todos pela paz, e quietaa
do Reyno, depois de grandes debates, e altercaes, o viera a concordar com
ElRey aos 5. do mez de Agosto do mesmo anno de 1355.87
87 LOPES, Ferno. Chronica del Rey D. Pedro I: deste nome, e dos Reys de Portugal o oitavo. Cognominado o
Justiceiro. Lisboa Ocidental; Officina de Manoel Fernandes da Costa, 1735, pp. 476-477.
88 A fins exemplificativos, citam-se a presena de Beatriz no juramento de fidelidade de seu filho Pedro ao pai D.
Afonso IV que selava o acordo de Marco de Canaveses e garantia a paz em Portugal aps um perodo de guerra
civil e o comparecimento de Filipa ao funcionamento de uma bastida construda para derrubar os muros da vila de
Salvaterra, no ano de 1388.
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limites das prprias aes e representaes medievais genuinamente femininas isto , os limites
de aes e representaes desvinculadas de qualquer forma de dominao masculina, mesmo se
majoritariamente inferidas pelo discurso as quais, de todo modo, esto inseridas em uma
sociedade impossvel de ser concebida sem a noo de hierarquia.
Doutoranda em Histria
PPHR - UFRRJ
Este trabalho parte dos estudos sobre Queenship, o conjunto de prerrogativas referentes
Rainha e seus mltiplos papis no contexto de Portugal Medieval. Queenship um conceito que
vem sendo trabalhado pela historiografia anglo-sax desde a dcada de 1990, e tem ampliado os
horizontes dos pesquisadores interessados nas mulheres oriundas da realeza medieval. Os
pesquisadores que trabalham com este conceito em Portugal e Espanha, mantm o termo original
em ingls pela falta de uma definio concisa nas lnguas latinas que possa ser utilizado para dar a
amplitude que os estudos de Queenship abarcam89.
89
RODRIGUES, Ana Maria & SILVA, Manuela Santos. Womens and Gender History. In: MATTOSO, Jos (dir.).
The Historiography of Medieval Portugal (1950-2010). Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, 2011, p 492.
importante observar que nos mltiplos reinos da alta idade mdia, o casamento era um
assunto de cunho pessoal, que envolvia os interesses locais, e fazia com que o monarca
eventualmente praticasse algum tipo de poligamia, no existindo a obrigao de primogenitura ou
legitimidade para que um filho fosse herdeiro de seu pai. Isto fazia com que o papel da rainha no
fosse claramente estabelecido, dando espao para repdios, divrcios, novos casamentos e
reposicionamentos sociais. A evoluo do casamento dentro da rbita da Igreja, que o tornou um
sacramento, foi um fator de excepcional importncia para a valorizao do papel da rainha.91 Foi
o momento em que ela se tornou pea fundamental para a legitimao da dinastia. Era atravs de
seus filhos que a linhagem sobreviveria, e sua influncia no mbito familiar, aumentou.
A questo que as rainhas eram posicionadas no jogo poltico de forma que sua origem e
parentesco no pudesse deixar de ser levada em considerao. Rainhas eram sempre a irm, filha,
esposa ou me de algum soberano. Em seus mltiplos papis, ela poderia ser encontrada como
sendo a rainha consorte, casada com o rei, a rainha me, me do rei, a rainha regente, na
ausncia de seu marido ou filho, a rainha tenente, brao direito do monarca que se encontrava
em outra parte de seu domnio, a rainha viva, aps a morte do rei. Estes papis por sua vez,
poderiam ser subsequentes ou simultneos, para complicar mais a identificao92.
O objetivo deste estudo especfico analisar brevemente as relaes dos reis portugueses
com suas consortes sob a tica dos estudos de Queenship, entre os anos de 1373 e 1415 que
90
EARENFIGHT, Theresa. Queenship in Medieval Europe. New York: Palgrave MacMillan, 2013, p.2.
91
EARENFIGHT. Queenship in Medieval Europe, p. 35.
92
________. Queenship in medieval Europe, p. 14.
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compreendem o governo de D. Fernando, desde seu casamento com D. Leonor Teles de
Meneses, e o governo de D. Joo I, at a morte de D. Filipa de Lencastre, sua esposa.
Em uma breve retrospectiva biogrfica, devemos lembrar que D. Leonor era uma fidalga
casada, sobrinha do Conde de Barcelos, um dos grandes senhores portugueses, quando o rei D.
Fernando a percebeu na corte e se apaixonou por ela. D. Fernando forou uma anulao do
casamento de Leonor pelos prelados portugueses, e se casou secretamente com ela no ano de
1372. Os boatos correram, e quando o povo de Lisboa ficou sabendo e foi interpelar o rei, este
desconversou, pediu um prazo e fugiu para o norte do pas onde esperou a poeira baixar.
93
Cf. LOPES, Ferno. Crnica del Rei D. Fernando. Lisboa: Ed. Casa da Moeda, 2003. ______. Crnica del Rei D.
Joo, Vol. III. Lisboa, Portuglia Editora, s/d.
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reino, e D. Leonor se tornou a regente de acordo com os termos do tratado de Salvaterra de
Magos94, com a misso de governar at que um hipottico neto chegasse a idade de 14 anos.
Leonor no era suficientemente benquista para o que se propunha a fazer. Os boatos eram de
que tinha um amante, na figura de seu conselheiro Joo Fernandes de Andeiro, conde de Ourm,
que era detestado pela populao, e o consequente assassinato deste pelo Mestre de Avis, o
infante D. Joo, foi um fator explosivo e inesperado que levou ao fim a curta regncia de Leonor
Teles, a primeira mulher a governar Portugal desde os tempos fundadores da condessa D. Teresa
no sculo XII.
A conhecida Revoluo de Avis foi a quebra de dinastia que tirou do poder D. Leonor
Teles, desqualificando sua herdeira, D. Beatriz, e colocou no trono o Infante D. Joo, filho
bastardo do rei D. Pedro e meio-irmo de D. Fernando. D. Joo conseguiu expulsar o exrcito e
as pretenses castelhanas ao trono portugus na Batalha de Aljubarrota, em 1385. Aps vencer a
batalha e ver conquistada sua reivindicao ao trono, era hora de arrumar uma esposa e se
esforar por fundar sua dinastia. D. Joo fez uma boa escolha na figura da princesa inglesa, D.
Felipa de Lencastre. Filha de Joo de Gaunt e neta de Eduardo III, Felipa era culta e piedosa,
embora no fosse to jovem, j estando por volta dos 27 anos.
Foi uma boa escolha poltica, e um bom resultado, pois Felipa se provou frtil, dando
luz a oito filhos vivos entre seus vinte oito anos (1387) e seus quarenta e dois anos (1402). Seus
filhos sobreviventes ficaram conhecidos como os infantes da nclita Gerao (D. Duarte, D.
Pedro, D. Henrique, D. Isabel, D. Joo e D. Fernando), cada um deles tendo um papel relevante
nos acontecimentos portugueses do sculo XV. D. Felipa foi uma rainha bem amada sua morte
de peste em 1415, ficou registrada na crnica de Zurara, em uma bela passagem onde a rainha
arma cavaleiros seus filhos mais velhos, Duarte, Pedro e Henrique, que estavam de partida na
expedio que culminaria com a conquista de Ceuta e o comeo da expanso martima
portuguesa. Um gesto simblico que valorizou ainda mais a virtude de D. Felipa.
Tendo em vista o que acabamos de expor, vamos tentar analisar essas duas rainhas de
acordo com os aspectos relevantes que fazem parte do conceito de Queenship.
Origem familiar:
94
______. Crnica de D. Joo I, Vol. I. Lisboa: Portuglia Editora, s/d, p. 168.
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D. Leonor Teles de Meneses era sobrinha de Joo Afonso Telo de Menezes, um privado
do rei D. Pedro que foi o segundo nobre portugus a receber o ttulo de Conde de Barcelos. Os
ttulos de Conde (assim como os de Marqus e Duque) eram raros em Portugal do sculo XIV, e
o fato do rei D. Pedro t-lo concedido era um sinal de grande considerao. Assim, Leonor Teles
vinha de uma importante famlia da nobreza portuguesa. John Carmi Parsons na introduo do
livro que organizou Medieval Queenship, afirmou que O rei que escolhe uma esposa em seu
prprio reino, exalta a parentela dela e desequilibra a balana entre sua nobreza, enquanto que a
rainha pode ser usada por sua famlia para ganhos polticos.95.
Por outro lado, D. Felipa de Lencastre veio da Inglaterra, aliada de Portugal contra os
castelhanos. O pai de D. Felipa era pretendente ao trono castelhano atravs de sua segunda
esposa D. Constana, filha de Pedro, o Cruel, o monarca que havia sido morto pelo irmo
Henrique Trastmara. Sobre rainhas estrangeiras, Parsons dizia que embora fossem o elemento
central de alianas valiosas e um smbolo do abismo social entre o rei e seus sditos, poderia
desviar sua fortuna para seus parentes e conterrneos96. Desta forma, a nobreza local poderia se
sentir ameaada pela comitiva que acompanhava a rainha a seu novo pas. A rainha estrangeira
era bem sucedida quando conseguia estabelecer um forte lao intercultural, como foi o caso de
D. Felipa, onde os vnculos com o pas de origem fossem vistos mais como uma vantagem do
que uma ameaa para a nobreza local.
Sexualidade e Maternidade
Outros critrios usados para analisar as rainhas passam pelo uso de sua sexualidade e seu
sucesso em relao maternidade.
D. Leonor Teles de Meneses foi uma personagem que entrou para a histria portuguesa
com m fama. claro que necessrio lembrar que o autor da Crnica de D. Fernando, Ferno
Lopes era o cronista da Dinastia de Avis, a quem no interessava exaltar os bons feitos de
Leonor, mas os fatos dos quais no podemos fugir que ela j era casada e tinha um filho, e de
seu casamento com D. Fernando apenas a Infanta D. Beatriz sobreviveu.
95
PARSONS, John Carmi. Medieval Queenship. New York: St. Martin Press, 1998, p.4.
96
PARSONS. Medieval Queenship, p.4.
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Assim temos uma rainha que no era virgem, que chegou at o trono atravs da seduo e
no cumpriu com seu papel principal que era dar continuidade dinastia. Dvidas foram
levantadas sobre a lealdade e fidelidade de D. Leonor a D. Fernando, ainda que alguns destes
argumentos tenham sido utilizados por D. Joo das Regras nas Cortes que elevaram D. Joo de
Avis ao trono portugus, com o intuito de deslegitimar D. Beatriz, o simples fato de se utiliz-los
e serem aceitos j demonstra o grau de desconfiana que se tinha nas qualidades morais da rainha.
Na Crnica de D. Fernando, Ferno Lopes deixa bem claro que a rainha emprenhava e paria sem
que tivesse dormido com o rei97. O caso de Leonor de muito m fama, que pode exagerar a
realidade, mas no deixa de ter uma ponta de verdade.
J a casta Felipa de Lencastre foi a donzela que casou virgem e cumpriu virtuosamente
seu papel de garantir a sucesso. Uma parte importante do papel da rainha se passava no leito
onde concebia e dava a luz aos herdeiros reais. A cobrana por castidade, virtude, piedade e
exemplo fazia com que o papel sexual da rainha fosse totalmente voltado para a procriao, que
um dos fatores que servia para medir seu sucesso e sua possvel influncia poltica, pois o papel
de Rainha Me poderia ser bastante respeitado pelo acesso irrestrito e confiana que o rei tinha
nela. D. Felipa de Lencastre mais uma vez teve sucesso absoluto em sua funo de ser me dos
filhos reais, o que se reflete em sua boa memria na histria portuguesa.
Influncia e Intercesso
Embora no parea existe uma grande diferena entre uma rainha ser influente e
interceder por seus sditos. A influncia da rainha foi causa de inmeros distrbios em diferentes
cortes. A nobreza se preocupava quando parecia que a rainha exercia influncia direta sobre o rei
e seu direcionamento poltico. D. Leonor Teles de Meneses no tinha dvidas sobre sua
capacidade para governar e influenciava D. Fernando para que este assumisse o posicionamento
poltico que fosse de acordo com o que ela queria. Ela providenciava casamentos entre a nobreza,
forjando alianas que a beneficiasse (o que era, de fato, papel da rainha), escolhia os nobres que
seriam promovidos na corte, e dava palpites sobre poltica externa. Ferno Lopes afirmou que
Leonor Teles era uma rainha com corao cavaleiroso 98, o que pode ser visto como um misto
97
LOPES. Crnica del Rei D. Fernando, p. 155.
98
LOPES. Crnica del Rei D. Fernando, p. 196.
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de admirao por sua coragem e firmeza, e crtica, pois esta postura era incompatvel com uma
mulher.
Mulheres muito influentes eram vistas como sedutoras e logo ganhavam fama como
usurias de bruxaria ou adlteras, pois s mediante a estes argumentos que se poderia justificar o
domnio delas sobre o rei.
Neste sentido, D. Felipa de Lencastre tambm obteve total sucesso. Sua presena junto
ao rei era discreta, embora ele confiasse nela e deixasse a governao do reino em suas mos em
diversas ocasies. D. Felipa seguia os deslocamentos do rei pelo reino, e era uma figura que dava
apoio e suporte ao monarca. Ao mesmo tempo via frequentemente suas solicitaes serem
atendidas, quando as encaminhava a D. Joo.
Vimos assim, de forma breve, as atribuies da Queenship e de quais maneiras elas podiam
ter um impacto positivo ou negativo na organizao do reino. Origem familiar e geogrfica, uso
da sexualidade e funo da maternidade, a influncia e a intercesso e mesmo, a piedade que no
chegamos a explorar neste trabalho, poderiam ter efeitos diversos dependendo de quais formas
estes fatores se combinassem. E sobre isto ainda teremos muito a dizer.
99
EARENFIGHT. Queenship in Medieval Europe, p. 11.
100
______. Queenship in Medieval Europe, p. 12.
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ST 3: Teoria da Histria e Histria da
Historiografia
Fernando Garcia
Mestrando (UFMG)/ [email protected]
Breno Mendes
Doutorando (UFMG) /[email protected]
Marco Girardi
Mestrando (UFMG) /[email protected]
Resumo
a histria uma cincia? Esta pergunta formulada por Pedro Lessa no incio do sculo XX j
era fonte de preocupao e reflexo dos intelectuais brasileiros desde as ltimas dcadas do
sculo XIX. Estabelecendo um estreito dilogo com a produo europeia ocupada com o mesmo
assunto, os intelectuais brasileiros se debruaram sobre a questo e buscaram estabelecer os
critrios que definiam um trabalho como sendo propriamente de histria. Importante fonte de
reflexo para os debates polticos do perodo, a histria precisava se consolidar como campo de
saber autnomo e confivel, ainda que distinto das cincias naturais. Nesta rpida exposio, nos
propomos a levantar alguns trabalhos relevantes em torno desse debate para identificar, ainda que
em linhas gerais, o que se entendia por cincia histrica nos primeiros anos da Repblica
brasileira.
Palavras-chave
Marcelo Gantus Jasmin, em seu estudo sobre Alexis de Tocqueville102, considera que a
ideia de que a histria um saber privilegiado na orientao do agir virtualmente to antiga
101 Este trabalho parte de uma pesquisa de mestrado desenvolvida no Programa de Ps-graduao em Histria da
UFMG, orientada pela Doutora Eliana de Freitas Dutra e conta com auxlio da CAPES.
102 JASMIN, Marcelo Gantus. Alexis de Tocqueville: a historiografia como cincia da poltica. Belo Horizonte: Editora
Fino Trao, 2009, p. 66; MATTOS, Hebe. A vida poltica. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz. A abertura para o mundo:
1889-1930, vol. 3. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. (Histria do Brasil nao: 1808-2010; 3), p. 85-131.
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novo padro de cientificidade que emergia, bem como s novas demandas
polticas. [...] Fazia-se necessria a reorganizao histrica das antigas provncias
agora Estados da Federao que, a partir desse momento, concorriam com
seus elementos singulares na disputa por posies no cenrio poltico
nacional.111
A histria conquistou novos lugares a partir do qual a fala sobre o passado estaria
autorizada. nesse sentido que se pode compreender o surgimento dos institutos histricos
estaduais, que passam a cobrir grande parte do territrio nacional. Apenas para citar alguns
exemplos, tivemos naquele momento a criao de institutos histricos no Cear, 1887; na Bahia,
em 1894; em So Paulo, 1895; Santa Catarina, 1896; Rio Grande do Norte, 1902; Paraba, 1905; e
em Minas Gerais, 1907. Estas associaes, atuando em conjunto com o Instituto Histrico e
Geogrfico Brasileiro (IHGB), os arquivos e a imprensa, sero o ponto de partida de onde repensar a
histria da nao, adequando-a as demandas do novo regime. Surge assim uma srie de trabalhos
que se propuseram a definir o que deveria ser entendido por histria, fornecendo os referenciais
metodolgicos para seu tratamento e limitando os contornos do seu objeto prioritrio (a histria
nacional), constituindo, portanto, os textos de fundao desta nova historiografia, para lanar
mo da expresso de Manoel Luiz Salgado Guimares112.
Dentre os autores estrangeiros mais debatidos neste perodo encontra-se Henry Tomas
Buckle, autor de History of civilization in England (1857). O historiador ingls recebido, aps
dcadas de silncio, como o moderno reformador da histria que mais teria se ocupado com a
111 MEDEIROS, Bruno Franco; ARAJO, Valdei Lopes de. A histria de Minas como histria do Brasil. Revista do
Arquivo Pblico Mineiro. Belo Horizonte, v. XLIII, 2007, p. 29.
112 GUIMARES, Manoel Luiz Salgado. Uma histria da histria nacional: textos de fundao. In: LIMA, Ivana
Stolze; CARMO, Laura do (Org.). Histria social da lngua nacional. Rio de Janeiro: Edies Casa de Rui Barbosa, 2008,
p. 395.
113 GOMES. A Repblica, a Histria e o IHGB, p. 30-31.
Est aqui presente a ideia de que no se deve avaliar o progresso de uma civilizao
apenas pela relao do homem com a natureza, como o quis Buckle. Para Romero, h que
considerar os fatores naturais, tnicos e morais em conjunto. Buckle, desse modo, no teria se
enganado em considerar o atraso do Brasil, mas sim no tocante aos motivos desse atraso.
Apesar de elogiar alguns aspectos de sua obra, a prpria concepo de histria de Romero
vai de encontro de Buckle, uma vez que para o brasileiro
114 BARROS, Jos DAssuno. Consideraes sobre o paradigma positivista em histria. Revista Historiar
(Universidade Estadual Vale do Acara), Sobral- CE v. 4, n. 4 (jan./jun. 2011), p. 14.
115 ROMERO, Silvio. Histria da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Fundao Biblioteca Nacional, Domnio Pblico.
Captado em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2128,
em 20 de maio de 2015, p. 12.
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contrrio exibir os motivos das originalidades, das particularidades, das
diferenciaes desse povo no meio de todos os outros.116
Opondo-se, no entanto, aos historiadores que concebiam a histria como uma cincia,
Romero distingue trs modalidades do conhecimento, em relao ao seu grau de confiabilidade,
do que surgem as cincias propriamente ditas, as quase-cincias e as falsas cincias. Neste sentido,
classifica a histria como uma quase-cincia, ao lado da psicologia e da economia poltica, uma
vez que toda a ordem de estudos, tendo por objetivo o homem e a sociedade, tem ficado por
enquanto na segunda classe, por no haver atingido aquele grau de certeza que constitui o brilho
prprio das completas cincias119.
Outro autor a se debruar sobre a questo da cientificidade da histria foi Pedro Lessa,
que apresenta uma monografia de ingresso ao IHGB com o ttulo a histria uma cincia?
Reflexes sobre o conceito de histria. O texto, escrito originalmente para servir como
introduo primeira edio brasileira de Histria da Civilizao na Inglaterra (Buckle, 1900), foi
novamente publicado anos mais tarde na Revista do IHGB, em 1908, com uma supresso no ttulo.
Lessa realiza nesta obra, que ocupa noventa pginas da Revista e conta com 162 notas de rodap,
talvez o mais completo e elaborado trabalho de reviso historiogrfica do incio do sculo no
Brasil, demonstrando uma profunda erudio ao analisar de forma crtica cnones da escrita da
histria desde Tucdides e Xenofonte at chegar a seus contemporneos, posicionando Buckle
como um divisor de guas para a escrita da histria.
Lessa, apesar de tecer crticas, destaca na obra de Voltaire duas contribuies importantes.
Em vez de comear por uma doutrina, para a impr depois aos factos, o auctor [...]
comprehendeu, com o seu maravilhoso bom senso, que a doutrina devia decorrer naturalmente
do estudo dos factos. A segunda contribuio feita no sentido de que antes de Voltaire a
historia era incompleta, pois s abrangia os acontecimentos politicos e religiosos. Foi elle quem
incluiu na historia os costumes, as lettras, a philosophia, todos os elementos, em summa, que
reflectem a vida da humanidade, do que se infere que, mesmo que Lessa no acredite que seja
possvel conhecer a histria em sua totalidade, tudo o que se referisse a vida humana era
contedo para a histria.
Lessa tambm fez muitas ressalvas em relao a Buckle, basicamente por sua concepo
da histria como cincia estar baseada na natureza e no desenvolvimento moral e intelectual
como determinantes para o progresso das sociedades, alm claro, da pretendida centralidade da
europeia em detrimento ao restante do mundo. Todavia, admitia que Buckle era mais sofisticado
do que outros autores e marcava um antes e depois no pensamento sobre a histria, uma vez
que seu determinismo no levava ao fatalismo e nem impedia a ao dos homens. Assim, para
Buckle os homens tinham liberdade para agir de acordo com seu prprio critrio, mas estavam
limitados s circunstncias. Isso significava que, nas palavras de ngela de Castro Gomes,
apesar de agir com limitaes os homens tinham responsabilidade sobre o que acontecia na
histria, no sendo essa tese determinista uma negao da individualidade e da racionalidade
humanas. Natureza e homem se influenciavam e se modificavam mutuamente121.
A principal crtica de Lessa obra de Buckle consistia, entretanto, no fato de que ele
prprio considerava que a histria deveria ser construda a partir de um esforo metdico e
sistemtico rigoroso, mas, como nos demonstra o estudo de Ivan Norberto dos Santos, ao
120 LESSA, Pedro. Reflexes sobre o conceito de Historia. Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, tomo 69, vol. 114, p. 193-285, 1908, p. 197.
121 ______. Reflexes sobre o conceito de Historia, p. 234-235. GOMES. A Repblica, a Histria e o IHGB, p. 46.
Aps passar pelos estudos de Taine, Mommesen, Michelet, Renan, o historiador conclui
que no possvel formular leis gerais para a histria, de onde se infere que a histria no uma
cincia, pois esta exigia a capacidade de generalizao para a formulao de leis. Isso no faz com
que Lessa abandone a histria, conferindo a ela um estatuto privilegiado para se conhecer a
sociedade. Em suas palavras: a histria que nos apresenta os factos que servem de fundamento
s generalizaes da sociologia124, essa sim capaz de fazer previses a respeito do futuro.
122 SANTOS, Ivan Norberto dos. A historiografia amadora de Rocha Pombo: embates e tenses na produo
historiogrfica brasileira da Primeira Repblica. Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS/ PPHIS, 2009. Dissertao (mestrado)
195f, p. 52.
123 LESSA. Reflexes sobre o conceito de Historia, p. 270.
124 ______. Reflexes sobre o conceito de Historia, p. 272.
125 FLEIUSS, Max. Discurso de Max Fleiuss no Instituto Histrico e Geogrfico de Minas Gerais 15 de agosto de
1907. Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, 1928 [1927], tomo 101, vol. 155, p. 230-231.
126 perceptvel a referncia de Fleiuss ao trabalho de Langlois e Seignobos, ainda que no tenha se preocupado em
fazer uma citao direta na ocasio, muito provavelmente por se tratar de um discurso. Na Introduo aos estudos
histricos, os autores franceses definem a histria como aquela que nos faz compreender o presente, explicando-nos
(...) as origens do atual estado de coisas. [...] A histria , tambm, um elemento indispensvel para o acabamento das
cincias polticas e sociais, ainda em via de formao; porque a observao direta dos fenmenos sociais (em estado
esttico) no basta para constituir estas cincias; preciso acrescentar-lhes o estudo do desenvolvimento dsses
fenmenos no tempo [...] eis porque tdas as cincias do homem [...] assumiram neste sculo a forma de cincias
histricas. Mas o principal mrito da histria est em ser um instrumento de cultura intelectual, pois incentiva a uma
viso mais crtica do mundo, nos habitua a um nmero variado de sociedades e costumes diferentes e nos faz
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Citando Charles Langlois, Taine, Mommsen, Fustel de Coulanges e Droysen, afirma que
seu perodo no admite mais a proximidade da histria com a fbula, exigindo a exposio
racional dos documentos, e afirma enfaticamente: a poca das banalidades literrias [...]
passou. Reproduzindo uma fala de Oliveira Lima, o historiador acredita que o Brasil tem tido
por hora grandes pesquisadores, como Varnhagen, mas no possui ainda um grande historiador.
Os trabalhos realizados at ento seriam simplesmente bons subsdios que poderemos oferecer
ao definitivo historiador que no tardar.
compreender os processos das transformaes humanas. LANGLOIS, Charles; SEIGNOBOS, Charles. Introduo
aos estudos histricos. So Paulo: Renascena, 1946. Trad. Laerte de Almeida Morais, p. 223-224.
127 O trabalho de levantamento e crtica das fontes e a confeco de monografias como base para as snteses
histricas tambm so ideias apropriadas das propostas de Langlois e Seignobos em sua Introduo.
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O que Freud fez da histria? Relaes entre historia e
psicanlise na operao historiogrfica de Michel de
Certeau
Robson Freitas de Miranda Jnior
Mestrando em Histria
Universidade Federal de Minas Gerais
[email protected]
De acordo com a historiadora Luce Giard, Michel de Certeau possua uma forma peculiar
de atravessar as fronteiras entre as reas do conhecimento. Para ela, Certeau no se incomodava
em esperar um salvo-conduto no posto fronteirio, tampouco em solicitar a autorizao dos
guardies de determinado feudo129. Esta travessia, no entanto, no pretendia dissolver as
fronteiras e os estatutos dos saberes e sim alimentar a conscincia da historicidade inscrita nas
128 FREIJOMIL, Andrs. Clo, entre Freud y Lacan. El gesto psicoanaltico en Michel de Certeau. Prohistoria vol.14
Rosario jul./dic. 2010. p.2.
129 CERTEAU, Michel de. Histria e Psicanlise: entre cincia e fico. Traduo: Guilherme Joo de Freitas
A familiaridade entre histria e psicanlise provoca, em Certeau, o que ele mesmo chama
de uma estranha inquietao. Para o autor, elas representam formas distintas de distribuir o
espao da memria. Neste espao, ocorreriam duas operaes distintas: o esquecimento, que
entendido como uma ao contra o passado, e o trao mnsico, um retorno do esquecido, ou
seja, uma ao desse passado que se dissimula no presente. Para ele, histria e psicanlise seriam
maneiras diferentes de pensar a relao entre passado e presente. A historiografia pensa essa
relao sob os modos de sucessividade, correlao, efeito e disjuno. Para o saber histrico,
mesmo quando se estabelece uma continuidade, solidariedade ou conivncia entre eles, o passado
est sempre ao lado do presente, ou seja, sempre so diferentes um do outro 135. Segundo Certeau,
esta distino estabelecida por conta de uma vontade de objetividade pretendida pelo saber
histrico, que se configura como a maneira pela qual o presente se constitui como um prprio
que se debrua sobre um outro.
130 PINTO, Aline Magalhes. Um historiador e suas travessias. TOPOI, v. 13. n. 24. Jan-jun. 2012, p. 196.
131 CERTEAU. Histria e Psicanlise: entre cincia e fico, p. 47.
132 Phillip Carrard afirma que quando Michel de Certeau comeou a publicar seus primeiros ensaios sobre
historiografia nos primeiros anos de 1970, poucos historiadores franceses estavam preocupados com as operaes da
escrita histrica. (Ver: CARRARD, Philippe. History as a Kind of Writing: Michel de Certeau and the Poetics of
Historiography. The South Atlantic quarterly [0038-2876] ano:2001 vol:100 fasc:2 pg: 465 -482.). Alm da
publicao da Escrita da histria [1975], do prprio Michel de Certeau, podemos destacar aqui tambm outras
importantes obras nesta dcada que buscavam investigar a importncia da narrativa para a historiografia, assim como
suas fronteiras com a fico, so elas: Como se escreve a histria de Paul Veyne [1971], Meta-histria [1973] e Trpicos do
discurso [1978] de Hayden White.
133 WANDEL, T. Michel de Certeaus Place in History. Rethinking History, v. 4, n. 1, p. 55-76, 2000. p. 71.
134 COSTA, Raul M. Lucas da. Michel de Certeau: entre a histria e a psicanlise. Histria e Historiografia: Ouro
Diante destes aspectos, Certeau atribui importncia ao fato de que, tanto a psicanalise
quanto a histria, possuem a narrativa como forma privilegiada ao discurso da elucidao. As
duas estratgias do tempo que ele havia diferenciado se encontram, portanto, no discurso
narrativo, pois nele se estruturam, se organizam e se esclarecem. A partir desta concluso, ele
afirma que os cruzamentos e debates dessas duas estratgias apontam para as possibilidades e
limites da renovao que o encontro entre histria e psicanlise oferece historiografia.
Desta forma, uma investigao da obra de Michel de Certeau que considere, sobretudo, a
questo de como a articulao entre historiografia e psicanlise, operada por ele, influi e se faz
presente em sua compreenso da operao historiogrfica, se faz profundamente necessria.
Analisar de que forma as aproximaes e distanciamentos entre as diferentes estratgias para lidar
com a temporalidade e que encontram no discurso narrativo um meio de compreenso da
alteridade, de um outro que se perdeu, de um ausente, que para Certeau o objeto da histria,
considerar uma dimenso importante da obra desse historiador francs. A escrita, que envolve a
construo de uma narrativa, para o historiador francs parte fundamental da operao
Paul Ricoeur entende que Michel de Certeau traz uma importante contribuio
epistemologia da histria ao colocar lado a lado, em sua obra A escrita da histria (1975), uma
discusso sobre a operao historiogrfica e estudos sobre a escrita freudiana 139. Para o filsofo
francs, no somente uma parte importante do trabalho de Certeau resulta do intercmbio entre
diversas maneiras de fazer histria, mas esse intercmbio que justifica o recurso psicanlise
numa epistemologia do conhecimento histrico140. Segundo Ricoeur, a busca, realizada por
Certeau, do lugar do discurso histrico em meio s maneiras de fazer histria que justifica que
a psicanlise seja levada em considerao por uma epistemologia que, de interna ao discurso
histrico, se faz externa a ele. Michel de Certeau contribuiria, portanto, para uma ampliao do
modo de compreenso e explicao do discurso da histria141.
Franois Dosse afirma que histria e psicanlise so vtimas de uma tenso similar entre
nomotetia e idiografia, isto , por um lado, a narratividade e a temporalidade da narrativa e, por
outro, a aspirao de encontrar coerncias pertinentes, relaes de causalidade, aspiraes
cientficas142. Para o autor, essa proximidade est na base de um grande nmero de problemas
comuns s duas disciplinas143. Nesse caso, tanto o historiador quanto o psicanalista se veriam
138 Certeau discute a questo da escrita da histria em seu texto A operao historiogrfica, entendendo-a como elemento
constitutivo do trabalho do historiador. Ela opera construindo representaes, atribuindo sentido e pretendendo
compreender o passado, que lhe est ausente. Para o autor, a escrita histrica ela mesma uma prtica social que
confere ao seu leitor um lugar bem determinado, redistribuindo o espao das referncias simblicas. Ela cria relatos
do passado que so como cemitrios nas cidades; exorciza e reconhece uma presena da morte no meio dos vivos
(Ver: CERTEAU. Histria e Psicanlise: entre cincia e fico, p. 91).
139 RICOEUR, Paul. A Memria, a Histria, o Esquecimento. Traduo: Alain Franois [et al.] Campinas: Editora
e pragmtica (Ver: DELACROIX, Christian. DOSSE, Franois; GARCIA, Patrick. Correntes histricas na Frana:
sculos XIX e XX. Traduo: Roberto Ferreira Leal. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012.). Esse momento pode ser
fecundo no intercmbio entre historia e psicanlise, para o autor, este perodo permite que se leve em conta, alm
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diante de um obstculo semelhante: o confronto entre o discurso e o real. Para Doss, a escrita
da histria, assemelhando-se psicanlise, reveste-se de um valor performtico, pois ela contribui
na edificao de um tmulo para a morte. Isto ocorre em dois sentidos: em primeiro lugar, ao
honrar o passado e, depois, ao coloca-lo em seu lugar, isto , ao encontrar-lhe um lugar no
mundo dos vivos144. Doss afirma que essa performance (da escrita da histria), que se incumbe
de encontrar atravs da linguagem uma prtica que possa dar lugar ao seu outro, no passado, tem
relao com a prtica do tratamento analtico145.
Franois Doss, aproxima Michel de Certeau de Paul Ricoeur no que diz respeito a
compreenso destes autores sobre a histria146. Ele afirma que o filsofo francs atribui um lugar
de importncia s teses do historiador, quando este define a escrita da histria como equivalente
escritural da sepultura, isto , como um ato que transforma em presena interior a ausncia fsica
do objeto perdido pelo fato de enterr-lo147. Para Doss, a escrita da histria, assemelhando-se a
psicanlise, reveste-se de um valor performtico, pois ela contribui na edificao de um tmulo
para a morte. Este procedimento ocorreria em dois sentidos: em primeiro lugar, ao honrar o
passado e, depois ao coloca-lo em seu lugar, isto , ao encontrar-lhe um lugar no mundo dos
vivos. Esta prtica seria o que Freud chama de trabalho do luto, que se configura como
fundamental para reabrir o presente para novos possveis148.
De um modo geral (e por conta do espao aqui disponvel), alguns pontos importantes no
que diz respeito ao dilogo entre historiografia e psicanlise na obra de Michel de Certeau podem
ser destacados. Uma das principais espaos em que o historiador francs discute estas interaes
o livro Histria e Psicanlise: entre cincia e fico149. Nesta obra so reunidos textos dedicados
do nvel do acontecimento em si, a trama textual qual ele d origem, os sinais que deixa, os mitos que funcionam a
partir dele e os discursos de fico que vo a ele se sobrepor (DOSSE. Histria e cincias sociais. p. 65).
144 DOSSE, Franois. Renascimento do acontecimento: um desafio para o historiador: entre a Esfinge e a Fnix.
trabalho contra a morte, ela se firmaria como um lugar encontrado para a sepultura. Portanto, a escrita da histria
exerce um papel duplo: ela tanto uma forma de exorcismo, por seu papel de enterro (ela exorciza a morte ao
introduzi-la em seu discurso); e, ao mesmo tempo, ela exerce uma funo simbolizadora (DOSSE, Franois.
Renascimento do acontecimento: um desafio para o historiador: entre a Esfinge e a Fnix. p. 122).
146 DOSSE, Franois. Paul Rcoeur y Michel de Certeau: La historia entre el decir y el hacer. Buenos Airea: Nueva
Vision, 2009.
147 DOSSE. Renascimento do acontecimento: um desafio para o historiador: entre a Esfinge e a Fnix. p. 123.
148 ______. Renascimento do acontecimento: um desafio para o historiador: entre a Esfinge e a Fnix.. p. 122.
149 Esta obra consiste numa publicao pstuma organizada por Luce Giard e foi originalmente publicada em 1987,
em francs, pela editora Gallimard. No Brasil, esta coletnea foi publicada em 2011, pela editora Autntica.
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reflexo sobre o fazer historiogrfico em dilogo com o saber psicanaltico, suscitando
importantes questes sobre suas proximidades e tambm distines.
Um primeiro aspecto que pode ser ressaltado e que relevante para o autor se
apresenta no texto intitulado A histria, entre a cincia e a fico150. Certeau problematiza a presena
da fico na escrita do historiador, em primeiro lugar porque a disciplina histrica possui uma
aspirao cientfica, depois porque o discurso produzido por ela procura alega referir-se a um
real151. Para Certeau, cincia e fico so conceitos complexos e que abrangem significados
distintos e que so utilizados para definir a prtica histrica como disciplina. Um dos pontos
fundamentais da reflexo realizada por Certeau sobre o estatuto cientfico do discurso
historiogrfico a compreenso de sua relao com a instituio que lhe autoriza. A obra do
historiador esconde a instituio guardi da verdade do real que reconhece e autoriza seu lugar.
O historiador francs argumenta que a historiografia se localiza em um entremeio entre cincia e
fico.
150 Texto originalmente publicado em 1983, sob o ttulo Lhistoire, science et fiction in: DE CERTEAU, Le Genre
humain, n. 7-8, p. 147-69, 1983.
151 CERTEAU. Histria e Psicanlise: entre cincia e fico. p. 48.
152 Este texto foi publicado pela primeira vez em 1978, em uma obra organizada por alguns historiadores, dentre eles
Jacques Le Goff., cuja proposta era discutir, em um volume coletivo, as transformaes da disciplina histrica.
Psychanalyse et histoire. In LE GOFF, J. et. alii. La Nouvelle Histoire. Paris: Retz, 1978, p. 477-487.
153 CERTEAU. Histria e Psicanlise: entre cincia e fico. p. 71.
154 _______. Histria e Psicanlise: entre cincia e fico. p. 72.
155 _______. Histria e Psicanlise: entre cincia e fico. p. 473
156 De acordo com Certeau, a relao de Freud com a histria foi bastante singular, pois promoveu importantes
rupturas com os antagonismos clssicos entre o individual e o social, o normal e o patolgico, e por fim entre o
ficcional e a realidade. O autor se utiliza da obra Totem e Tabu (1913) para demonstrar como Freud opera a
ultrapassagem desses dualismos, alm de discutir a prpria condio ficcional do sujeito na cultura (CERTEAU,
Michel de. A escrita da histria. Traduo: Maria de Lourdes Menezes: reviso tcnica Arno Vogel. 3.ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2011, p. 76).
157 Le roman psychanalytique Histoire et lettrature. Certeau apresentou inicialmente em um encontro
t. I, p. 3-41, sob o ttulo Loperation historique. No livro publicado pela editora Forense Universitria
(CERTEAU, 2008) encontramos uma reviso revista, corrigida e ampliada.
162 CERTEAU, Michel de. A Escrita da Histria. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2008. p. 45.
a partir destas noes que devemos interpretar os ensaios que compem a parte final
dessa obra. Em O que Freud faz da histria166, o autor trata de saber o que, como analista, Freud faz
da escrita da histria. Certeau entende que no quando nos esforamos por plantar nas regies
obscuras da histria conceitos reputados freudianos, tais como o nome do pai, complexo de
dipo, transferncia, enfim, quando nos servimos da psicanlise, que aprendemos com ela, mas
quando refazemos diante de um caso to singular como um pacto de possesso firmado com o
diabo, o trabalho do analista que da lenda faz uma histria167. A concluso a que o autor
chega, tratando-se de Freud, que este instrui, no quando faz algo da histria contada pelos
outros, a comear pelos historiadores, mas quando, sua maneira, faz histria. partindo desta
percepo que Certeau procura perceber algumas contribuies da escrita freudiana para a escrita
produzida pelo historiador. H aqui uma crtica s apropriaes selvagens da teoria psicanaltica
feita pelos historiadores das mentalidades.
163 Portanto, implica um meio de elaborao, circunscrito por determinaes prprias: uma profisso liberal, um
posto de observao ou de ensino, uma categoria de letrados, etc (CERTEAU, 2008, p. 47).
164 que no histrica, seno quando articulada a um lugar social da operao cientfica e quando ligada a uma
instituio que define tcnicas para sua produo (CERTEAU. A Escrita da Histria. p. 89).
165 CERTEAU. A Escrita da Histria. p. 91.
166 Estudo publicado em Annales E. S. C., t. 25, 1970, p. 654-667. Este texto est presente na ltima seo da obra A
Para Certeau, existe uma maneira historicista de ler as teses de Freud a fim de distinguir o
verdadeiro do falso em sua obra, mas tambm existe uma outra dimenso que equivale a levar a
srio sua fantasia como fico terica, isto : uma teoria da narratividade analtica (ou cientfica)
apresenta-se na obra de Freud, mas mais uma vez sob a forma de narrao histrica. Certeau se
interroga sobre a maneira como a escrita de Freud desloca as linhas da abordagem histrica.
Certeau percebe em sua escrita, portanto, uma forte presena da subjetividade de Freud, isto , o
lugar de onde Freud escreve e a produo de sua escrita entram no texto junto com o objeto do
qual ele trata. Para Franois Doss,
Doss se vale da percepo de Certeau que entende que aqui, passado e presente se
movem no mesmo espao, polivalente. E nenhum dos nveis de um texto serve de referncia
para os outros170.
Mestrando em Histria
Resumo: O presente estudo tem por finalidade discutir as relaes de sentidos e possibilidades
entre a Histria e a Literatura. Vrios so os autores que discutem esta intrnseca relao que
muito deixa os historiadores inquietos principalmente quando se refere a escrita da Histria e
suas profundas similitudes com os enredos da escrita literria. Pois, diante deste debate, muito se
tem a discutir, j de certo modo, pes em cheque o saber histrico e mesmo a construo da
histria enquanto Cincia. Nesta regio de conflitos as vezes tensas, entre a histria e a literatura,
percebe-se a necessidade de ampliar alguns debates e mesmo notar novos horizontes para a
escrita da histria que mesmo parecendo com uma redao literria, no deixaria de ser Cincia
pelo fato de usar os recursos tropolgicos estilsticos da literatura. No entanto, alguns
questionamentos ficam sendo necessrios aos historiadores? Ser a Histria verdadeiramente uma
Cincia? At onde so os limites das abordagens entre a Histria e a Literatura? A escrita da
Histria uma escrita artstica por usar tropologias literrias? O que ir diferenciar a Histria da
Literatura? Hayden White seria um dos mais ardentes crticos literrios da atualidade que
questiona o saber histrico e sua constituio quanto Cincia, no entanto, outros autores veem
possibilidades nas relaes como De Decca, Sevcenko, Nbrega entre outros, que em seus
estudos o significado do campo do conhecimento histrico seria muito mais amplo e mesmo se
aproximando da escrita literria, no deixa ria de ser Histria, pois nas narrativas historiogrficas,
os historiadores no tem a liberdade potica dos artistas justamente por estarem ligados e fontes
documentais que serviriam de respaldo para suas argumentaes e escrita.
Partindo desta anlise que se prope uma ruptura dos atuais modelos paradigmticos174,
ou seja, romper com o modelo clssico positivista, procurando novos paradigmas para a histria,
nesse contexto que as novas linguagens entram em cena, quer seja como fonte, documento,
metodologia, uma vez que quem produziu, o fez tambm dotado de uma carga terica. Mas, as
chamadas novas linguagens (cinema, msica, charge, pintura, todas as expresses artsticas em
geral) na verdade no so novas como se pensa. Esse termo pressupe uma ruptura,
principalmente com os positivistas, como se fosse utilizado pela primeira vez, mas que na
verdade sempre existiram, porm, sua abordagem como objeto, nunca foram considerados.
171BURKE, Peter (org.). A Escrita da Histria: Novas Perspectivas. Trad. Magola Lopez. So Paulo: UNESP,
1992.
172 LE GOFF, Jacques. Histria e Memria. 4 ed. Campinas: ed. Unicampus, 1996.
173CHAGAS, Waldeci Ferreira. A arte de inventar e escrever a histria. In; LINS, Juarez Nogueira. Literatura, Leitura
e Ensino. Guarabira: UEPB, 2006, p 11-12.
174RUIZ, Rafael. Novas formas de abordar o ensino de histria In: KARNAL, Leandro(org.) Histria na sala de aula:
Conceito, Prticas e Propostas. So Paulo: Contexto, 2003, p.75.
Mas esta apropriao de novas linguagens proporciona tambm impasses, como enfoca
diversos autores ao exporem que existem fronteiras e outros que visionam, esta relao como
sendo muito mais complexa do que a imaginada.
Problematizando esta questo faz-se necessrio apontar trs caminhos norteadores com
relao a discusso entre a Histria e a literatura, que poder diferir de historiador para
historiador. A discusso inicia com a homonmia de sentidos entre a histria e a literatura, onde a
verdade e fico convergem a um mesmo ponto; em uma segunda abordagem, h autores
cujas anlises apontam diferenas entre os saberes histricos e literrios, apesar de sua forte
relao de sentidos mas, os impasses passam a serem notveis a partir do momento em que
perpassam pela discusso da perda de identidade enquanto campo do conhecimento; e uma
terceira abordagem concerniria na possibilidade de haver fortes ligaes de sentidos, mas com
diferenas quanto a abordagem dada ao objeto de pesquisa focalizado pela histria ou pela
literatura.
175Comenta-se que a literatura ao longo do sc. XIX, assumira posio secundria que diferir do sc. XX,
OLIVEIRA, Cludia Freitas de. Histria e Literatura: Relao de sentidos e possibilidades. In: VASCONCELOS,
Jos Gerardo, MAGALHES JNIOR, Antnio Germano. Linguagens da Histria. Fortaleza: Imprece, 2003 ( UFC ),
p.82.
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tropolgicas predominantes: metfora, metonmia, sindoque e ironia; j quanto ao gnero,
podem apresentar-se como dramtico, comdia, stira e trgico.176
Diante desta complexidade textual, o prprio Hayden em seu artigo Teoria Literria e
Escrita da Histria salienta que se os tropologistas considerarem o discurso historiogrfico
como sendo fictcio, figurativo, imaginativo, potico-retrico isto tambm no poderia ser
empregado no discurso dos tropologistas? Ele questiona se no seria a prpria tropologia uma
fico, e as afirmaes feitas com base nela apenas fices das fices que pretende encontrar por
toda parte?177.
Deste modo, as relaes da literatura com a histria, segundo o autor, seriam muito mais
prximas do que se pensava. Mas, os literatos expem que h diferenas entre ambas, mesmo
tendo relaes de tropos; uma dessas diferenas que os historiadores dentre as suas atribuies
no possuem a capacidade de sondar as camadas mais sombrias da conscincia humana e a
relutncia em utilizar modos contemporneos de representao literria (...) tudo isso sugere que
a histria um tipo de arte178.
176 WHITE, Hayden. Trpicos do discurso: ensaios sobre a crtica da cultura. 2 ed. So Paulo: EDUSP, 2001, p 88-91.
______. Teoria Literrio e escrita da histria.Trad. Dora Rocha IN: Estudos Histricos CEBRAP. Rio de Janeiro;
177
A histria no de modo algum uma cincia ainda que como mtodo ela
contribua para as cincias graas as suas operaes de inventariaes. O que o
historiador oferece como explicao das estruturas e processos do passado, na
forma de narrativa, so simplesmente formalizaes desses esquemas
fraudulentos que em ltima anlise so mticos em sua essncia.179
Apesar de serem argumentaes muito fortes, torna-se vlida a sua posio para a
discusso, principalmente quando enfoca a questo de categorias que o autor expe na sua
obra: Trpicos do Discurso, uma vez que para a classificao em categorias de arte ou cincia
necessrio, conhecer o significado do que arte e o que cincia. Se por um lado histria se
utiliza elementos literrios, no possui uma rigorosidade, objetividade que apregoa para com as
cincias. Por outro lado, temos uma busca incansvel de historiadores por tentar aproximar-se da
verdade180, atravs de novos olhares aos documentos, fontes que respaldem as concluses
histricas e no as chamadas inventariaes propostas pelo autor.
Classificar a histria como arte de segunda categoria, de certo, ter em mente a plenitude
do significado do que seja arte, problemtica esta controversa justamente por no haver uma
definio clara e lgica acerca do que seria arte, no entanto, h mecanismos institucionalizados e
muito feliz esta colocao que Flamarion expe, pois grande maioria das cincias
modernas j realizam h bastante tempo sua discusso em torno de sua legitimidade enquanto
cincia, debate este, que os historiadores vem promovendo h alguns anos; por isso talvez que
haja uma crise metodolgica da histria, uma vez que se busca mtodo ou mtodos, cuja
discusso metodolgica para as cincias exatas j esto superadas. Com a quebra dos modelos
paradigmticos positivistas de cincia, histrica pregado por Ranke; h uma crise at na prpria
identidade no que refere-se ao estatuto de cincia. diante deste contexto, que surge a seguinte
pergunta: o que cincia?
181 COLI, Jorge. O que arte? 8 ed. So Paulo: Brasiliense, 2000 ( Coleo Primeiros Passos ).
182 CARDOSO, Ciro Flamarion S. Uma Introduo Histria. 4 ed. Editora Brasileira, 1992, p. 13.
Concernente a discusso no que tange a palavra literatura percebe-se que deriva do latim
litteratura que na sua contrao littera significa o ensino das primeiras letras e com o passar dos
tempos a palavra ganha um melhor sentido184, deste modo, passou a significar artes das belas
letras e s podemos falar em literatura escrita, quanto a oral deste ponto de vista, no
corresponderia a nada. O dicionrio ao atribuir significado ao termo literatura, descreve como
sento um substantivo feminino arte de compor trabalhos artsticos em prosa ou verso185.
Diferentemente desse enfoque traado por Hayden, h autores que discutem esta relao
com maior ponderao, e em seus dilogos no h uma perda de identidade das disciplinas em
relao aos seus objetos de estudo; mesmo com apropriao por parte da histria de
metodologias e abordagens, antes de outros campos do saber. Por esta relao apresentar-se to
prxima, que os vrios autores discutem justamente, as relaes fronteirias entre ambas.
Mesmo que a narrativa da histria utilize elementos literrios, alguns autores186 a encara
com outras perspectivas e atribui o campo dos historiadores como sendo estudos relacionados
com aquilo que aconteceu. Assim, identificar-se-ia por excelncia, com a verdade do acontecido,
embora, no esboce uma verdade absoluta dos fatos ocorridos, nem seja, uma mimese daquilo
que teria acontecido. Deste modo, no poderia enquadrar-se como fico, pelo menos no plano
literal, uma vez que as narrativas ficcionais esto diretamente relacionadas arte literria. Mas, o
que fico? O nosso Aurlio define como ato ou efeito de fingir; coisa imaginria, fantstica,
criao.187
183 FERREIRA, Aurlio Buarque de Holanda. Mineaurlio Sculo XXI: mine dicionrio da Lngua Portuguesa. Rio
de janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.162
184 MASSAUD, Moiss.Criao Literria. So Paulo: USP, 1995.
E ainda controlado pela prpria relao com objeto e o comprometimento com o mais
verossmil possvel, no querendo dizer que seja uma verdade inquestionvel, mas que haja um
nvel mais prximo com o real. Esta questo torna-se bastante complexa quando nos remetemos
ao conceito de verdade que Haydem atribui a histria, pois enftico ao afirmar que o enredo da
histria semelhante ao do romance, assim ele questiona at a verossimilhana e fico na
urdidura dos acontecimentos narrados pelos historiadores. Surgem inquietaes com estas
argumentaes de Hayden, tenta traar linhas fronteirias entre fico e verdade, estabelecendo
que,
No obstante desse pensamento ao estudar as vrias funes da literatura, dentre elas, cita
a expanso da cultura, conhecimento de mundo, compromisso social, exerccio de contestao,
denncia, alm de atuar como distrao e entretenimento189. Assim como a histria, a literatura
188 DE DECCA, Edgar Salvadori. O que Romance Histrico? Ou devolvo a Bola pra voc, Hayden White. ( mmeo), p. 4.
189NBREGA, Geralda Medeiros. Literatura e Histria: um dialogo possvel. In :SILVA, Antnio de Pdua Dias
(org.). Literatura e Estudos Culturais. Joo Pessoa: UFPB, 2004, p 83.
Deste modo, a literatura pode ser vista como uma construo da linguagem, partindo da
interface do imaginrio e do real revela um real ficcionalizado, onde muitas vezes s atravs dela
que a sociedade conhece seu passado, penetrando tambm nos espaos mticos, podendo assim,
dialogar com autores gregos e latinos como Homero, Virglio, Ovdio, Cames entre vrios
outros, cujo legado cultural desvenda civilizaes passadas, onde muitas vezes foram re-lidos
pelos herdeiros do mistrio da palavra artstica.
Diante da citao de Nbrega, aponta para o historiador estando mais preocupado com a
realidade, enquanto que o escritor torna-se atrado pela possibilidade. Ento deste modo, a
literatura fala ao historiador de uma histria que aconteceu, apresentando uma expectativa do
vir-a-ser. Suas possibilidades de certo no vingaram, qui concretizar e com esta problemtica,
surge um novo questionamento. Qual a posio do escritor diante da histria? Para esta
inquietao o autor recorre a Barthes para responder e enfoca que A histria, ento diante do
escritor como o advento de uma opo necessria entre vrias morais da linguagem; ela o
obriga a significar a literatura segundo possveis que ele no domina191.
191 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Misso. 4ed. So Paulo: Brasiliense, 1995, p. 20-21.
Diante das discusses at aqui discutidas, percebo que h uma forte relao entre os
campos de conhecimento da Histria e da Literatura, mas que ambas no se confundem, muito
menos se dilui a tal ponto de uma ser maior ou melhor que a outra como prope enfaticamente
Hayden White, mas que como campos de conhecimentos da Cincias Humanas.
Mesmo com a Virada Lingustica192, os usos dos recursos e estudos da linguagem no texto
do historiador, percebo assim como Ankersmit que h muito mais que isso, outras questes que
tambm so importantes, que deixemos para discutir noutro momento. Os campos por terem
uma certa ligao no limita o conhecimento e nem minoriza outro, mas com as abordagens e
novas possibilidades de investigao no campo literrio pela Histria, pode-se sim, perceber
outros olhares poticos inclusive sobre determinado acontecimento quer seja social, poltico ou
cultural, nos diversos campos.
192Para mais informaes sobre a virada lingustica, consultar a obra completa, mas, especificamente o captulo 2,
por justamente apontar as origens desta temtica.ANKERSMIT, F.R. A Escrita da Histria: a natureza da
representao histrica. Tradutores: Jonathan Meneses... [et al]. Londrina: Eduel, 2012.
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O Anticristo Superstar como leitura para o presente:
indstria cultural, ps-modernismo e releituras de
Nietzsche por Marilyn Manson193
Warley Alves Gomes
Doutorando em Histria
Universidade Federal de Minas Gerais
[email protected]
Resumo: O presente trabalho busca refletir sobre a relao entre Marilyn Manson, a indstria
cultural e a moral protestante. A maneira como Manson se apropriou das ideias de Nietzsche
para compor seu personagem autobiogrfico o Anticristo Superstar e posicionar-se contra um
moralismo religioso tambm foi discutida. O trabalho tambm prope pensar as reflexes
prprias da filosofia da histria para alm dos cnones historiogrficos, entrando em contato
com a cultura popular do sculo XX.
Introduo
No seria nenhum exagero dizer que, a partir do sculo XX, a escrita vem deixando de ser
o principal espao de circulao de ideias, disputando o espao com a msica, os filmes, as
emissoras de televiso e, recentemente, com a internet. Se Paris foi a cidade moderna smbolo do
sculo XIX, Nova York o modelo de cidade moderna a partir do sculo XX. Times Square
como o exemplo mximo da sociedade contempornea: pessoas das mais variadas origens
circulam em um fluxo de luzes velozes, brilhantes o suficiente para ofuscar a viso e estimular o
consumo desenfreado.
193Devo a ideia inicial de trabalhar com Marilyn Manson era de meu colega Douglas de Freitas, graduando em
Histria da UFMG. No sei qual teria sido a abordagem dele sobre as obras de Marilyn Manson, nem o recorte
temporal que usaria. Talvez um dia ele as coloque em texto.
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sem ser visto e pode se encontrar dentro do prprio territrio nacional. A vitria do modelo
ocidental, caracterizada por um capitalismo selvagem, vem gerando um aumento na desigualdade
econmica, produzindo uma separao cada vez maior entre aqueles que podem se incluir no
sistema e aqueles que apenas podem fazer parte dele atravs da excluso.
A sensao que temos a de que estamos frente a um mundo sem sada: de um lado a
vitria acachapante do grande Capital, que privilegia apenas a menor parte das sociedades, ao
passo que esmaga no s atravs do poder financeiro, mas tambm de sua ideologia neoliberal
transvestida de realidade social os setores mais pobres; de outro lado, um novo encantamento
do mundo, que se d atravs de um novo aumento do nazi-fascismo no Ocidente e de uma
ascenso do fanatismo religioso, tanto no Ocidente quanto no Oriente, que vem cada vez mais
ameaando o estado laico.
Admitindo que no somos capazes de dar uma resposta ao problema, podemos seguir a
proposta de Marshall Berman, em seu livro Tudo que slido desmancha no ar e buscar na arte
exemplos que nos permitam ver uma aproximao entre a modernidade e a vida social, bem
como uma crtica ao sistema. Seria um modo de apropriarmos dessa crtica, de modo a mudar o
sentido dessa modernidade, aceitando-a como irreversvel, mas imputando nela, cada vez mais,
uma lgica que favorea aos homens que nela vivem e no s grandes corporaes, que buscam
desumanizar seus empregados e transformar os cidados em consumidores.
Dito isto, vamos relativizar a viso de Adorno e Horkheimer sobre a indstria cultural
fruto de uma concepo preconceituosa e elitista do que a obra de arte , mas vamos aceitar
sua proposta de buscar nos artistas sombrios da modernidade um caminho para melhor
compreend-la. Ainda seguindo nossa proposta na introduo, vamos observar em Marilyn
Manson personagem construdo por Brian Hugh Warner uma representao do imaginrio de
alguns setores sociais do mundo ps-1990. Um mundo no qual o capitalismo vitorioso, mas
no aniquilou o encantamento religioso do mundo. Pelo contrrio, fundiu-se a ele, tornando-o
ainda mais forte.
Marilyn Manson lanou entre 1996 e 2000 uma trilogia de lbuns Antichrist Superstar
(1996), Mechanical Animals (1999) e Holy Wood (In the shadows of the Valley of the Death) (2000) que
mescla fico e autobiografia. A histria contada de maneira invertida, assim Antichrist Superstar
o primeiro lbum lanado conta o final da histria, enquanto Holy Wood representa o comeo
da narrativa195. Na trilogia Manson realiza uma crtica sobre o consumo, a religio e a violncia
ADORNO; HORKHEIMER. Dialtica do Esclarecimento. Jorge Zahar. Rio de Janeiro, 2006, p.97-98.
194
Basham, David (1999-12-16). "Manson To Walk In The "Valley Of Death" For Next LP". MTV News. MTV
195
Networks (Viacom).
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que marcam a sociedade estadunidense. A partir desse trip Manson reconstri sua prpria
trajetria, construda atravs de personagens ficcionais.
Por fim, Holy Wood (In the shadows of the Valley of Death) narra a histria de Adam Kadmon
o primeiro homem , que viaja de Death valley a Holy Wood, buscando trazer a revoluo
atravs da msica, de maneira idealista. Holy Wood uma cidade caracterizada pelo trip
ideolgico armas, Deus e governo, que cultua a f nas celebridades e a violncia e cujos valores
morais esto fundamentados por uma religio enraizada no martrio. Em Holy Wood, Adan vai
perdendo seu idealismo e cada vez mais vai sendo absorvido pela ideologia hegemnica na
cidade.
Aps esta apresentao, fcil perceber como a autobiografia de Brian Warner vai se
misturando fico e como Marilyn Manson foi se construindo enquanto personagem ao longo
do tempo. A trajetria de Adan Kadmon representa, em certa medida, a trajetria inicial de
Warner, que vai perdendo sua ingenuidade ao passo que passa cada vez mais a ganhar
importncia na indstria cultural. Seus valores revolucionrios vo se perdendo em funo de
Apresentada a narrativa contida nos trs discos, resta a pergunta: no qu ela se articula
com a sociedade contempornea?
Vamos comear do primeiro disco lanado, o Antichrist Superstar. preciso ressaltar que
em 1996, Brian Warner ainda estava definindo as caractersticas de Marilyn Manson. O
personagem ainda no era conhecido fora dos Estados Unidos quando Warner comeou a
elaborar o conceito do Anticristo que seria desenvolvido no lbum. Segundo o prprio Warner, a
ideia veio de alguns sonhos que havia tido desde a infncia. Segundo ele:
Eu acredito que minha vida to importante que afeta as vidas dos outros. Eu
acredito que sou Deus. Eu acredito que todos so seu prprio Deus. Eu sonhei
que eu era o Anticristo, e eu acredito nisso. [...] Aps anos estudando o
conceito, eu comecei a perceber que Anticristo um personagem uma
metfora que existe em quase todas aas religies sob diferentes nomes, e
A partir das citaes acima, pode-se inferir duas coisas: a primeira delas a desmitificao
da noo do Anticristo. A segunda constatao a de que aquilo que visto como coletivo
dentro da mitologia crist dissolve-se em uma individualidade simblica para Warner: Deus no
se manifesta em cada indivduo, mas sim cada indivduo pode ser seu prprio Deus. O prprio
Apocalipse tambm se torna uma manifestao simblica e limitada ao plano do individual.
Tais constataes podem ser compreendidas luz daquilo que Jean Franois Lyotard
em um primeiro momento e outros intelectuais definiram como uma caracterstica fundamental
da condio ps-moderna: a de um presente no qual as metanarrativas emancipacionistas no
mais influenciariam de maneira decisiva nas aes humanas. A queda do Muro de Berlim e a
dissoluo da Unio Sovitica teria sido o ltimo prego no caixo das narrativas teleolgicas, que
viam um fim na histria. A realidade social no poderia mais ser vista como um bloco coeso e
sim a partir de dimenses fragmentadas em diversos pontos de vista. O relativismo passou a
ganhar cada vez mais fora na sociedade contempornea, principalmente com a vitria do Capital
e da ideologia por excelncia da classe burguesa: o liberalismo. Junto com esse relativismo e
esta vitria do Capital, o individualismo ganhou cada vez mais fora na sociedade ps-moderna.
Em uma lgica dessacralizada como a de Manson, tanto a divindade quanto o Apocalipse no
precisam mais estar vinculados a uma cosmogonia, antes disso, se manifestam no plano
individual. Nada mais coeso com a lgica fragmentada ps-moderna, bem como com o
liberalismo econmico. Esta afirmao faz ainda mais sentido quando olhamos para uma
realidade como a dos estados Unidos, na qual o liberalismo que surge pautado na defesa das
liberdades individuais frente ao Estado foi a fora motora no s para a manuteno do
capitalismo, mas tambm para a prpria concepo do que o cidado estadunidense.
196MANSON, Marilyn; STRAUSS, Neil.The long hard road out of hell. Harper Collins, New York, 1998, p.231.
Traduo nossa.
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de um Anticristo que libertaria o homem da moral crist e restauraria a esperana no homem.
Esta seria uma vitria sobre Deus e a nulidade. Seria, na concepo de Nietzsche, uma redeno
para a humanidade. Esta , basicamente, a mesma concepo do lbum Anticrhist Superstar: o
passo final da trajetria de Manson seria sua decadncia e redeno, a superao de si mesmo, o
que indicaria a possibilidade de redeno para toda a sociedade. O nico modo de alcanar esta
redeno trilhando o caminho da decadncia e assumindo o mal interno no a partir de uma
concepo crist de vida, mas como parte da natureza humana e como uma necessidade de
autoconhecimento e superao de si mesmo. Esta similar concepo de Nietzsche que
envolve a vontade de poder: ela o caminho definitivo para a superao de si mesmo.197
Assim, Manson estabelece um jogo duplo: o Anticristo Superstar seria parte de sua
prpria trajetria, mas tambm estaria conectada com a sociedade a qual faz parte. Esta
ambiguidade apresenta o desejo do msico em ampliar o alcance de seu conceito de Apocalipse
para alm das fronteiras individuais. De certa maneira, a crtica sociedade moderna j estaria
presente desde a formulao conceitual do lbum, como pode-se observar a partir deste trecho de
sua autobiografia:
Essa lgica coletiva aparece em diversos momentos do disco Antichrist Superstar, como
podemos ver nos trechos abaixo:
197 Em Assim falou Zaratustra encontra-se: E este segredo a prpria vida me contou. V, disse, eu sou aquilo que
sempre tem de superar a si mesmo. NIETZSHE. Friedrich. Assim falou Zaratustra. So Paulo: Companhia das Letras,
2014, p.110.
198 MANSON, Marilyn; STRAUSS, Neil.The long hard road out of hell. HarperCollins, New York, 1998, p.219. Traduo
nossa.
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Ei vtima, foi voc quem colocou o porrete na minha mo
Eu sou um ismo, meu dio um prisma
Vamos matar a todos e deixar seu Deus escolh-los199
Diversos elementos de crtica se cruzam nos trechos acima. Marilyn Manson aponta para
as contradies presentes no padro de vida normal do Estados Unidos: o estadunidense
mdio como o branco, protestante, limpo das drogas. Como se no bastasse, todos os cidados
estariam sujeitos vigilncia e julgamento constante de uma sociedade que, no satisfeita com a
199Irresponsible hate anthem. MANSON, Marilyn. Antichrist Superstar. Nothing Records, 1996, faixa 1.
200I dont like the drugs (but the drugs like me). MANSON, Marilyn. Mechanical Animals. Interscope Records, 1998,
Faixa 9.
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punio moral e jurdica de seus pecadores, tambm os deseja exibir ao pblico,
reproduzindo uma lgica do espetculo presente desde a Idade Mdia: o pecador deve ser
exposto para que o pblico se entretenha e, ao mesmo tempo, aprenda que deve seguir
estritamente as ordens do sistema e portar-se como um homem de bem, o que, em uma
sociedade na qual a lgica protestante forte, como o caso da sociedade estadunidense,
significa ser um bom cristo. A ironia e a denncia da hipocrisia dessa lgica aparecem nas
linhas finais: para manter-se em uma sociedade como esta preciso estar constantemente
dopado.
Concluso
Ao final deste trabalho, convm retomar ao incio da apresentao. Fica claro o papel de
Marilyn Manson como um representante do ps-modernismo. Gostaramos, no entanto, de
rejeitar a ideia de uma ps-modernidade enquanto ruptura em relao modernidade, e adotar
tanto a postura de Marshall Berman que a apresenta como um fenmeno de constante
mudana e a de Jean-Franois Lyotard em seu livro O inumano: consideraes sobre o tempo:
Com isto, queremos dizer que ainda que as obras de Marilyn Manson apresentem
elementos ps-modernistas, as consideramos como parte de uma corrente de ideias inseridas no
estgio contemporneo da modernidade. Mais que uma ruptura, Marilyn Manson ou Brian
Warner, j que a prpria noo de identidade se manifesta de maneira confusa, no s na
pessoa/personagem, mas tambm em grande parte da sociedade contempornea significa uma
continuidade com os artistas e escritores da modernidade, como Sade e Nietzsche. Assim como
estes escritores sombrios, Manson soube captar as contradies de sua poca, revelando no s
os aspectos positivos da sociedade da qual vez parte, mas antes, inserindo-se nela e procurando
romper com a moralidade crist, articulada entre o bem e o mal. Manson soube ver como,
para alm das significaes que damos a cada uma destas partes, ambas fazem parte da prpria
condio humana. Manson tambm pode ser colocado na mesma corrente de pensadores como
Baudelaire, Dostoivsky, Mary Shelley e Edgar Allan Poe, que conscientes do mundo no qual
viviam, buscaram se apropriar dos valores modernos para apresentar suas contradies e oferecer
um modo de resistncia. Porm, no nos enganemos: no existe, nas obras de Manson assim
como no existia nas obras destes escritores a proposta de ruptura com o sistema capitalista. O
que se destaca so as crticas do mesmo. Crticas valiosas em um momento no qual o
fundamentalismo religioso parece ganhar flego na sociedade contempornea e a esfera poltica
cada vez mais invadida pela esfera religiosa.
Por fim, fica uma questo no ar: em tempos no qual o Messias anunciado parece nunca
retornar se que um dia veio no necessitaria nossa sociedade de um Anticristo que
apresente seus elementos mais negativos, que funcione como um espelho , revelando-lhe tudo
aquilo que ela recusa-se a enxergar? Parece que criamos Deus a nossa imagem e semelhana, mas
nos recusamos a olhar para sua outra metade: o Anticristo que estamos construindo com nossas
prprias aes, a cada dia.
201LYOTARD, Jean-Franois. O inumano: consideraes sobre o tempo. Editorial Estampa, Lisboa, 1990.
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A modernidade e a redefinio do papel do
diplomata na virada do sculo XVIII para o XIX
Cristiane Maria Marcelo Uerj
Doutoranda em Histria
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Bolsista FAPERJ
[email protected]
Resumo: Tenciona-se com esta comunicao discutir algumas das mudanas ocorridas na
carreira diplomtica na passagem do sculo XVIII para o XIX. A proposta ento pensar como
a filosofia do iluminismo e o contexto de mudanas polticas, sociais, econmicas e ideolgicas
que marcaram a virada da centria tambm contriburam para a redefinio das funes
atribudas ao agente diplomtico. A partir de autores como Philippe Cahier, Ren Rmond,
Franois Callires e Williams Gonalves, dentre outros, buscaremos discutir as permanncias e as
rupturas ocorridas nos hbitos, condutas, valores bem como na prpria formao que se desejava
de um representante da Nao em terras estrangeiras.
A diplomacia, entendida como o processo por meio do qual diferentes grupos humanos
negociam seus interesses, muito antiga. Segundo Brian White o primeiro documento
diplomtico encontrado pelos arquelogos data de 2500 a.C, aproximadamente202. Naquele
primeiro momento os emissrios eram itinerantes, no seguiam regras fixas e tambm podiam
exercer outras funes concomitantes como aquelas relacionadas religio. A necessidade de
negociarem territrios, discutirem tratados de paz ou para estabelecerem acordos polticos e
econmicos aps um perodo de confronto era o que justificava esses encontros pontuais entre
os povos antigos.
medida que o tempo passou, no entanto, a arte de negociar foi ganhando novos
contornos. De acordo com Philippe Cahier, ela teve incio na pennsula itlica durante o sculo
XV quando as disputas de poder entre as cinco principais cidades-estados daquela regio
(Florena, Gnova, Milo, Roma e Npoles) aumentou a preocupao em conhecer com mais
profundidade o que acontecia nos crculos de poder concorrentes. Esta preocupao ganhou
profundidade aps o Tratado de Westflia (1648) momento em que a autoridade supranacional
do papa foi perdendo espao para as emergentes lideranas polticas dos prncipes, reis e outras
Citado por GONALVES, Williams; SILVA, Guilherme A. Dicionrio de relaes internacionais. 2 Ed. revista e
202
No podemos negar, entretanto, que foi na passagem do sculo XVIII para o XIX que a
diplomacia alcanou sua maioridade, ficando muito mais prxima das estratgias de negociao
contemporneas. Naquela poca uma srie de transformaes econmicas, polticas, sociais e
ideolgicas ocorridas no mundo ocidental acabou exigindo a remodelao de algumas
concepes sobre a diplomacia. Estas transformaes, como aponta Ren Rmond, foram fruto
do choque intenso e frequente entre as quatro foras distintas de renovao, quatro correntes que
ora se sucederam, ora se combateram o Liberalismo, a Democracia, os movimentos sociais e os
movimentos das nacionalidades , alm das foras de conservao poltica, econmica, intelectual
e social herdadas do perodo anterior206. Na prtica, no entanto, o processo de afirmao dessas
novas ideias no se deu apenas pela prerrogativa de confronto. Durante grande parte do sculo
XIX percebe-se a confluncia desses dois modelos de sociedade que, muito lentamente, foi
abandonando os valores herdados do Antigo Regime207 e firmando os ideiais da modernidade.
ocidentais entre os sculos XVI e XVIII, trs sculos de intensas mudanas, sentidas a seu modo por cada uma das
monarquias europeias. Utilizado pela primeira vez nos debates da Assembleia Constituinte francesa, por conta da
Revoluo de 1789, o termo passou a caracterizar as instituies e os estilos de vida que se pretendiam extinguir.
Sobre uma ideia mais alargada do conceito de Antigo Regime ver NEVES, Guilherme P. das; VAINFAS, Ronaldo.
Antigo Regime. In VAINFAS, Ronaldo (org). Dicionrio do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001,
p. 43-46. Ver tambm FURET, F.; OZOUF, Mona (orgs). Antigo Regime. Dicionrio crtico da Revoluo Francesa. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
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101
Este cenrio de crescente efervescncia poltica, de mudanas de valores experimentados
pela Europa e pela Amrica a partir de finais do sculo XVIII acabou trazendo novos desafios
prtica poltica diplomtica vigente entre as novas e velhas naes e inaugurou uma outra maneira
de pensar a poltica externa de um territrio e o papel que devia ser atribudo ao agente
diplomtico. Entre as naes do velho continente era mais que necessrio repensar maneiras de
se aproximar dos novos mercados americanos que surgiam a fim de defender sua posio na
balana de poder ento existente. Para territrios recm-independentes tornava-se primordial
serem reconhecidos como estados soberanos e desenvolverem estratgias para se inserirem no
cenrio poltico e econmico do novo sculo.
Mesmo com suas limitaes, no podemos deixar de destacar que o Congresso de Viena
remodelou a maneira de direcionar as relaes diplomticas internacionais. Homens como
Metternich, da ustria, Maurice de Tayllerand, da Frana, Castlereagh e Wellington, da Inglaterra,
foram chamados a utilizar todas as suas habilidades argumentativas a fim de definirem as bases da
nova ordem europeia208. Estes diplomatas, conforme alude Philippe Cahier, passaram cada vez
mais a representar os interesses da Nao209 em detrimento das vontades do rei. Herana direta
do perodo revolucionrio anterior a 1815, a ideia de soberania aos poucos foi se afastando da
figura do monarca para se aproximar do povo, que se firmava como o legtimo dono do poder210.
Houve, assim, a ressignificao de uma prtica diplomtica que vinha sendo utilizada
desde o Tratado de Westiflia, em 1648. Naquele contexto, a assinatura do acordo para pr fim a
uma guerra que envolvia motivos polticos e religiosos entre as principais potncias da poca
enquadrou de vez as pretenses supranacionais do papado e dos imperadores, ao mesmo tempo
que legitimou uma concepo mais moderna de governo cujo poder e autonomia recaa na figura
de prncipes, reis, condes que no mais viviam sob a tutela do Sacro Imprio Romano
208 Prssia, Portugal, Sucia e Espanha foram as outras naes que enviaram seus representantes.
209 Nao aqui deve ser entendida dentro de sua concepo poltica moderna que pressupe a existncia de um grupo
de pessoas (entendido como cidados) que partilha uma mesma forma de governo e um mesmo conjunto de leis.
Para uma reflexo mais profunda sobre esta concepo, ver: CHIARAMONTE, Jos Carlos. Mutaciones del
concepto de nacin durante el siglo XVIII y la primera mitad del XIX. In ______ . Nacin y estado en iberoamrica: el
lenguaje poltico en tiempos de las independencias. 1 Ed. Buenos Aires: Sudamericana, 2004, p.27-57.
210 CAHIER. Le droit diplomatique contemporain, p. 25.
O que estava em jogo em Viena de 1815 e que passou a ser preocupao das negociaes
diplomticas nos anos seguintes era menos a defesa dos direitos de um indivduo e mais os
interesses de uma comunidade poltica cujas desavenas externas deviam ser solucionadas de
forma dialgica em detrimento dos conflitos diretos. importante destacar que esta ideia de
transferncia de soberania no foi um processo homogneo e est diretamente relacionado com
as peculiaridades da formao dos Estados-nacionais de cada territrio.
211 MOTA, Luis. Uma releitura critica do consenso em torno do sistema vestefaliano. In janus.net. V.3, n.2. Outono.
2002, p. 17-40.
212 SICARI, Vincenzo Rocco. As relaes diplomticas no direito internacional. Dissertao (Mestrado em Direito)
Faculdade Mineira de Direito, Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais, Minas Gerais, 2007, p. 25
213 ______. As relaes diplomticas no direito internacional , p. 26.
214 A longa trajetria e experincia diplomtica de D. Lus da Cunha pode ser exemplificada pelo seu empenho como
representante dos interesses portugueses junto s cortes de Londres (1715-1719), Madri (1719-1720), Paris (1720-
1728 e 1736-1749) e Haia (1728-1736).
215 Citado por SILVA, Ana Rosa Coclet da. A formao do homem-pblico no Portugal setecentista: 1750-1777.
Revista Intellectus. Ano 02. Vol. II, 2003, p. 9. Conforme destaca a autora, originalmente estas instrues foram
solicitadas a D. Lus por Marco antonio de Azevedo Coutinho, no momento de sua escolha como secretrio de
Estado dos negcios estrangeiros, doze anos antes, mas o estadista o manteve em sigilo.
216 CLUNY, Isabel. D. Lus da Cunha e a ideia de diplomacia em Portugal.Lisboa: Livros Horizonte, 2009, p. 35.
[...] ont voit souvent des hommes qui ne sont jamais sortis de leur pays, qui
nont eu aucune application sinstruire des affaires publiques et dun genie
mdiocre et devenir pour leur coup dessai ambassadeurs dans des pays dont ils
ne connaissent ni les interts, ni les loix, ni les moeurs, ni la langue, ni mme la
situation [...] ambassadeurs, dont le but principal doit tre dentretenir une
bonne correspondance entre leur mitre et les princes vers lequels ils sont
envoyez.217
Assim, o recrutamento destes homens se dava especialmente nas fileiras da elite cortes,
entre os elementos da magistratura e os de formao universitria que j dominavam com certa
desenvoltura as regras de etiqueta e protocolo essenciais ao desempenho das misses
diplomticas. Pelo menos at o sculo XIX, mesmo que com algumas adaptaes, essa realidade
parece no ter sido modificada. Estudos feitos por Lus Moita comprovam que na Inglaterra,
entre 1815 e 1914, s dois embaixadores (George Canning e Edward Grey) no eram lordes ou
filhos de lordes e, segundo o autor, uma verificao idntica se poderia fazer para os casos
francs, russo, piemonts ou espanhol.219
Como estratgia para remediar esta ineficincia era preciso promover uma reforma no
mtodo de ensino e tambm nos contedos a serem estudados. Assim, o diplomata idealizado da
modernidade, do ponto de vista de D. Lus da Cunha e de muitos de seus contemporneos, devia
ter uma formao terica especfica voltada para o aprendizado do direito natural e das gentes.
Tambm era importante conhecer o que vinha sendo produzido em outros pases.
Particular ateno devia ser dada formao do carter do representante diplomtico uma
vez que ele era o espelho do rei ou do Estado representado. Desse modo, qualitativos como os
de habilidade, honestidade, probidade, resignao e prudncia deviam fazer parte da formao
destes homens a partir do estudo de filosofia moral e racional a fim de no comprometer
negativamente a imagem pblica do Estado soberano e tambm do monarca.
A renovao do estudo da retrica, a cincia do falar bem, tambm foi outro item enfatizado
pelo diplomata j que seu bom aprendizado era condio necessria para aprimorar a arte do
convencimento e da negociao, essenciais a um bom representante. Com todos estes atributos
buscava-se formar homens teis ao engrandecimento do Estado que era a palavra de ordem do
perodo setecentista. Preocupao que tambm pode ser observada entre os estadistas do sculo
XIX.
Discursando sobre a responsabilidade tica e moral destes homens, Pecquet conclui que
as qualidades do corao eram as mais essenciais ao homem pblico a ponto de afirmar que o
sucesso do diplomata-negociador dependia absolutamente da confiana que ele inspirava,
portanto, era indispensvel o aprimoramento de valores relacionados candura, probidade e
Ambos os estadistas tambm concordavam que a leitura de obras tericas sobre poltica e
diplomacia bem como o estudo de tratados anteriormente celebrados eram essenciais na
formao destes homens222. O pleno conhecimento das causas, razes e consequencias de
determinado acordo diplomtico podia servir de inspirao aos jovens representantes que ainda
teriam a oportunidade de conhecer as ligaes histricas entre as duas naes conflitantes, a
natureza e os princpios do direito pblico e das gentes ali empregados.
Entretanto, como bem sublinhou Lus da Cunha, o puro e simples conhecimento das leis
no era condio para um bom desempenho diplomtico. Alm do nascimento e da formao era
a experincia uma das etapas de maior importncia na preparao de um homem de governo. O
estadista chegou a essa concluso ao perceber, quando de sua nomeao para Londres, em 1697,
que os quase doze anos de experincia profissional como magistrado de pouco ou nada serviu
para o desempenho diplomtico que requeria uma preparao especfica.
Para alm de uma formao especfica, conforme j destacamos, D. Lus concordava que
o dilogo e o convvio com outros agentes externos eram essenciais para o aprimoramento da
prtica diplomtica. Baseando-se em sua prpria experincia, o estadista confessou em suas
instrues que o ato de escutar os discursos, as razes e de acompanhar o comportamento dos
mais experientes aprofundou o seu aprendizado sobre os liames da arte de negociar. No foi
toa, portanto, que no entendimento do estadista, passado como lio aos diplomatas vindouros,
as capacidades necessrias ao exerccio da diplomacia eram, comparativamente, as mesmas que se
esperava de um mdico. Dizia ele, verdade que h muito que reparo que as experincias dos
ministros so como as dos mdicos, que quando no conhecem a constituio dos enfermos, as
mesmas medicinas com que curam uns, matam outros [...] que o que com mais frequncia se
221PECQUET, Antoine. Discours sur lart de negocier. Paris-Cergy: Centre de Recherche de lEssec, 2003, p.25.
222Entre as obras polticas citadas podemos lembrar as Mmoires Historiques, Politiques, Critiques et Littraires, de Amelot
de La Houssaye; O Prncipe, de Maquiavel; O Tratado, de Pufendorf.
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experimenta no corpo poltico [...]223. Nesse sentido, era importante instru-los, trein-los,
coloc-los em contato com a multiplicidade de tratados e as diversas estratgias de negociao de
maneira que, quando tivessem que atuar, buscassem favorecer e no destruir os interesses da
nao que representava.
Antoine Pecquet, tal como Lus da Cunha, depositava tanta confiana na observao e na
imitao da atuao dos ministros com mais sabedoria que defendeu a necessidade de que o novo
diplomata, antes mesmo de comear a atuar, tivesse contato com seu antecessor na mesma corte
onde seria creditado. Isso lhe daria a oportunidade de se informar sobre a realidade do territrio,
sobre o carter das autoridades sob as quais devia prestar respeito e avaliar, ele mesmo, qual seria
a melhor estratgia a ser empregada na conduo dos negcios. Poderia, ainda, conhecer as
amizades estabelecidas por seu predecessor, cultiv-las e conquistar a confiana a fim de
compreender os reais interesses que circundavam a atuao daqueles homens. No entendimento
de Pecquet, este tempo dispendido pelo novo representante diplomtico era essencial no s para
conhecer a nova realidade que teria que enfrentar, mas tambm para direcionar com antecipao
assuntos de interesse de seu governo224. Era, pois, a experincia o segredo da sabedoria e do
sucesso nos negcios.
Dotado de toda essa formao, habilidades e valores que o diplomata estaria preparado
para desempenhar com qualidade as suas funes de representar, informar e negociar que eram
essenciais para o sucesso e o reconhecimento internacional da nao que representava.
Pela ideia de representar compreende-se a funo de falar em nome de uma nao, o que
pressupe um cuidado especial j que nessa situao o diplomata um substituto direto do chefe
de seu Estado. Portanto, precisa ter uma preocupao redobrada com os hbitos e condutas
praticados diante das autoridades do pas em que est creditado para deixar a melhor imagem
possvel do Estado que representa. A boa impresso criada por um diplomata era condio
necessria para o andamento de uma negociao.
A coleta de informaes que julgassem teis para a formulao da poltica externa de sua
nao era outra funo que o agente diplomtico devia desempenhar com mais afinco. Superou-
se a fase da espionagem e aumentou-se a preocupao com a qualidade e fundamentao das
Os desafios polticos, sociais, econmicos e ideolgicos enfrentados, durante o sculo XIX, pelas
novas e velhas naes da Amrica e da Europa fizeram com que os servios e habilidades deste
grupo social mais ou menos homogneo de agentes diplomticos fossem constantemente
solicitados. Tais solicitaes, contudo, tiveram objetivos diferentes e variaram de acordo com as
perspectivas internacionais das instituies estatais. No caso das potncias europeias, por
exemplo, a incessante busca pela poltica de equilbrio de foras ao longo das conturbadas
dcadas de 1820 e 1830, exigiu a reunio desses agentes do governo ora para reafirmar os
princpios restauracionistas consagrados em Viena, ora para dar voz algumas reivindicaes que
afirmavam a fora dos princpios liberais e questionavam uma ordem anteriormente imposta,
como aconteceu com o reconhecimento do processo de Independncia da Grcia diante do
Imprio Otomano em 1832. No caso dos jovens pases sul-americanos, entretanto, os desafios
foram outros e estiveram intimamente relacionados com o processo de construo e legitimao
dos Estados nacionais, mas no seriam enfrentados sem obstculos. S que isso uma outra
histria.
228LIMA, Sheila Conceio Silva. Em nome do pai, do filho e do poder joanino: Portugal e a Santa S na primeira metade
do sculo XVIII. Tese (Doutorado em Histria) Programa de Ps-Graduao em Histria Poltica, Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013. Ver especialmente o captulo 3: O papel e o exerccio da
diplomacia em D. Joo V.
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Entre a histria e a psicanlise: reflexes da teoria
psicanaltica para o estudo da narrativa histrica
Resumo: Este trabalho pretende investigar as possibilidades de realizar uma reflexo sobre o
conceito de narrativa histrica apresentado por Paul Ricoeur a partir de recursos apropriados da
psicanlise.
229 NIETZSCHE, Friedrich. II Considerao Intempestiva sobre a utilidade e os inconvenientes da Histria para a
vida. In: NIETZSCHE. Friedrich. Escritos sobre histria. Apresentao, traduo e notas Noli Correia de Melo
Sobrinho. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; So Paulo: Loyola, 2005.
230 Ao descrever os trs tipos de histria monumental, tradicionalista e crtica o filsofo no deixa ntido se aquilo
a que se refere trata-se de uma espcie de memria pessoal, de uma memria compartilhada informalmente por
determinada cultura ou grupo social, ou se se trata de uma histria composta a partir dos pressupostos acadmico-
cientficos que fazem dela uma cincia. Esse aparente desleixo no suficiente, contudo, para desautorizar a
provocao nietzschiana presente no referido texto. O lembrar-se, a articulao/compartilhamento informal da
lembrana ou a produo cientfica de uma narrativa histrica ainda assim se mantm inferiores ao esquecimento e
felicidade como seu produto.
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Aqueles que atribuem histria, mesmo que no possam faz-lo de maneira clara, uma
certa importncia para a vida, quando no uma necessidade fundamental para qualquer sociedade
ou, pelo menos, para a cultura contempornea ocidental, ho de ficar minimamente incomodados
com a tese do filsofo alemo. Como ento solucionar esse aparente desprestgio a que foi
relegada a narrativa histrica? A resposta, ou o enfrentamento, contar com o apoio da
psicanlise.
Em O mal-estar na civilizao, Freud introduz uma teoria geral que concebe as
conformaes socioculturais como sendo erigidas a partir da restrio/represso dos instintos
humanos mais primitivos. Para ele, a condio bsica de se viver em sociedade justamente essa
represso ou supresso (tanto da sexualidade quanto dos instintos de agresso). De outra forma,
uma vez tendo total liberdade para os seus instintos, o ser humano teria uma vida ainda mais
fugaz. preciso abdicar de parte da felicidade (percebida como satisfao total dos desejos) em
prol de um pouco de segurana: Basta-nos ento repetir que a palavra civilizao designa a
inteira soma das realizaes e instituies que afastam a nossa vida daquela de nossos
antepassados animais, e que servem para dois fins: a proteo do homem contra a natureza e a
regulamentao dos vnculos dos homens entre si231. A civilizao e sua inerente infelicidade
constituem uma forma de superar o passado animalesco do ser humano. O reclamo de Freud
neste clssico texto enfrenta o excesso de restries aos instintos imposto pela civilizao que lhe
contempornea; assim, ele no pretende excluir de uma vez por todas o mal-estar, embora
afirme a possibilidade de ser menos infeliz sob uma organizao social mais frouxa em relao
aos instintos humanos: O programa de ser feliz, que nos imposto pelo princpio do prazer,
irrealizvel, mas no nos permitido ou melhor, no somos capazes de abandonar os
esforos para de alguma maneira tornar menos distante a sua realizao232.
A primeira constatao que se pode depreender desse texto para ponderar a provocao
nietzschiana inicial diz respeito impossibilidade de uma felicidade completa. O princpio do
prazer , segundo Freud, o grande ordenador da conduta humana. A sua total realizao ,
contudo, impraticvel, visto que a organizao social pressupe inevitavelmente um mnimo de
restrio a esse princpio. Assim, o esquecimento incapaz de produzir uma felicidade plena e
sobrepor a misria real.
Para alm disso, a relao temporal do passado para a teoria psicanaltica tem maior
serventia para o presente estudo:
Talvez devssemos nos contentar em afirmar que o que passou pode ficar
conservado na vida psquica, no tem necessariamente que ser destrudo. De
toda maneira possvel que tambm na psique elementos antigos sejam
apagados ou consumidos via de regra ou excepcionalmente a tal ponto que
no mais possam ser reanimados e restabelecidos, ou que em geral a
conservao dependa de certas condies favorveis. Podemos to s nos ater
231 FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilizao (1930). In: FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilizao, novas
conferncias introdutrias psicanlise e outros textos (1930-1936). Obras completas volume 18. Traduo Paulo Csar de
Souza. So Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 49.
232 _______. O mal-estar na civilizao (1930), p. 40.
relatado em autobiografia (O caso Schreber), artigos sobre tcnica e outros textos (1911-1913). Obras completas volume 10.
Traduo e notas Paulo Csar de Souza. So Paulo: Companhia das Letras, 2010.
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Uma leitura hermenutica da histria e do tempo da histria responde de forma mais
categrica algumas das perguntas anteriormente formuladas. o filsofo francs Paul Ricoeur
que, a partir da noo de ser-afetado-pelo-passado, apresenta-se aqui em auxlio.236 Ao tentar
explicitar a noo de receptividade eficincia da histria237, ele vai trabalhar com trs
conceitos: a tradicionalidade, as tradies e a tradio.
Por tradicionalidade deve-se entender uma dialtica no interior do que chamamos
experincia, entre a eficincia do passado, que sofremos, e a recepo do passado, que
operamos238; ela significa que a distncia temporal que nos separa do passado no um
intervalo morto, mas uma transmisso geradora de sentido239. J tradies carrega o sentido de
conceber o presente antes como herdeiro que como inovador; essa condio decorre
essencialmente da estrutura linguageira da comunicao em geral e da transmisso dos contedos
passados em particular. Ora, a linguagem a grande instituio [...] que desde sempre precedeu a
cada um de ns. E por linguagem deve-se entender, aqui, no s o sistema da lngua em cada
lngua natural, mas as coisas j ditas, ouvidas e recebidas240. Finalmente, define-se tradio enquanto
o reconhecimento de que toda proposio de sentido ao mesmo tempo uma pretenso verdade241; o
presente herdeiro de crenas, persuases, convices, ou seja, modos de ter-por-verdadeiro242.
Essa dimenso viscosa do passado, isto , a sua capacidade de aderir ao tempo futuro,
naturalmente sem determin-lo por completo, e, muitas vezes, sem tornar ntida essa atuao, por
si s j constitui argumento suficiente para atestar a impossibilidade do esquecimento ficar
restrito a uma dimenso pessoal. No entanto, o significado do conceito de reconhecimento reforar
o esclarecimento dos questionamentos anteriormente apresentados. Nesta altura, ser preciso
recorrer fenomenologia da memria. Diz Ricoeur:
Finalmente, h o reconhecimento propriamente mnemnico [...]; ele consiste na
exata superposio da imagem presente mente e do rastro psquico, tambm
chamado de imagem, deixado pela impresso primeira. [...] Esse pequeno
milagre de mltiplas facetas prope a soluo em ato do enigma primeiro,
constitudo pela representao presente de uma coisa passada. A esse respeito,
o reconhecimento o ato mnemnico por excelncia.243
236 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Traduo Claudia Berliner. So Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
Como o prprio Ricoeur deixa explcito no captulo Para uma hermenutica da conscincia histrica, nesta discusso sobre
ser-afetado-pelo-passado ele dialoga diretamente com a obra Verdade e Mtodo de H.-G. Gadamer.
237 ______. Tempo e Narrativa, v. 3, p. 374.
238 ______. Tempo e Narrativa, v. 3, p. 374.
239 ______. Tempo e Narrativa, v. 3, p. 377 (grifos do autor).
240 ______. Tempo e Narrativa, v. 3, p. 377 (grifos do autor).
241 ______. Tempo e Narrativa, v. 3, p. 379 (grifos do autor).
242 ______. Tempo e Narrativa, v. 3, p. 379 (grifos do autor).
243 RICOEUR, Paul. A memria, a histria, o esquecimento. Traduo de Alain Franois [et al.]. Campinas: Editora da
244 ______. Tempo e Narrativa. Traduo de Claudia Berliner. So Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
245 ______. Tempo e Narrativa, v. 1, p. 93.
246 ______. Tempo e Narrativa, v.1, p. 101.
247 Termo do prprio Ricoeur.
248 RICOEUR. Tempo e Narrativa, v.1, p. 114.
249 ______. Tempo e Narrativa, v.1, p. 123.
250 ______. Tempo e Narrativa, v.1, p. 132.
256 LACAN, Jacques. O Seminrio: livro 1: os escritos tcnicos de Freud, 1953-1954. Texto estabelecido por Jacques-
Alain Miller; traduo de Betty Milan. 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1979, p. 21.
257 ______. O Seminrio: livro 1: os escritos tcnicos de Freud, 1953-1954, p. 21.
258 ______. O Seminrio: livro 1: os escritos tcnicos de Freud, 1953-1954, p. 22.
259 importante salientar que o Lacan deste Seminrio I ainda um Lacan otimista em relao s possibilidades do
simblico dizer o real (e que, portanto e apenas aparentemente, encaixaria perfeitamente nas pretenses deste
estudo).
260 DE CERTEAU. A Escrita da Histria. Traduo Maria de Lourdes Menezes. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013
Resumo
Nesse trabalho pretendo abordar o primeiro texto em que o filsofo francs Paul Ricoeur se
debruou sobre problemas atinentes ao conhecimento histrico: Husserl e o sentido da Histria,
publicado originalmente em 1949 na Rvue de Mtaphysique et de Morale e, posteriormente, retomado
na coletnea de artigos Na escola da fenomenologia (1986). O objetivo principal apresentar e
discutir criticamente a leitura ricoeuriana sobre a aproximao entre fenomenologia e filosofia da
histria no final da trajetria intelectual de Edmund Husserl. Alm disso, tambm buscarei situar
os argumentos acerca do sentido da histria contidos nesse ensaio em relao ao conjunto da
obra ricoeuriana publicada nas dcadas subsequentes.
Introduo
O trabalho que me propus a apresentar faz parte do meu projeto de doutorado aprovado
recentemente na UFMG. Portanto, acho que vale a pena expor de forma breve seus principais
argumentos. Minha questo norteadora bem simples e, ao mesmo tempo, difcil de ser
respondida: a histria tem um sentido? Ou ser que os acontecimentos se sucedem no devir
temporal de forma catica e contingente, sem quaisquer conexes ou propsitos que os
unifiquem? Para pensar esse importante problema escolhi como fonte a obra do filsofo francs
Paul Ricoeur, que j tinha sido meu objeto de pesquisa durante o mestrado. Em linhas gerais, no
meu projeto procuro investigar quais so as nuances que o conceito de sentido recebeu ao longo
da trajetria de Ricoeur. Logo de sada, eu mapeei trs acepes do conceito: 1) sentido como
referncia realidade; 2) sentido como o significado de uma narrativa; 3) sentido como telos,
como finalidade ltima do processo histrico263.
Para orientar a pesquisa estou trabalhando com uma hiptese lanada pelo filsofo
brasileiro Olinto Pegoraro. Segundo ele, podemos dividir as respostas filosficas questo sobre
o sentido da histria em 3 vertentes principais: Na primeira vertente, a histria e a experincia de
todos ns possui uma inteligibilidade, pois vivemos em um mundo submetido a um desgnio
262Bolsista CAPES/Proex
263Esse mapeamento foi inspirado naquele que Martin Winklund realizou sobre a obra de Jorn Rsen. WIKLUND,
Martin. Alm da racionalidade instrumental: sentido histrico e racionalidade na teoria da histria de Jorn Rsen.
Histria da Historiografia, nmero 1, agosto, 2008
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superior que encaminha os acontecimentos para uma meta precisa: tudo faz sentido, pelo
exerccio da inteligncia o homem descobre o sentido do universo 264. Na segunda linha de
raciocnio a perspectiva oposta, a histria humana se mostra como um amontoado de fatos
caticos e eventos desastrosos. As guerras, a explorao de um ser humano sobre o outro em
busca do acmulo de riquezas, o dio entre as pessoas, nada faz sentido. A terceira corrente
responde questo do seguinte modo: quem atribui sentido experincia a inteligncia humana
por meio da histria, da filosofia, da literatura e de outros discursos criadores de sentido. Logo,
por trs dos acontecimentos no existe um princpio ordenador transcendente. Quando tomados
em si mesmos os eventos no fazem sentido. O sentido no est embutido nas coisas; mas ele
uma leitura mental que fazemos: o nosso olhar que faz o sentido do que est ao nosso redor 265.
Depois dessa pequena introduo fico mais vontade para ajustar o foco para o tema da
comunicao. Vou seguir o tradicional formato acadmico das pesquisas histricas apresentando
primeiro minhas fontes e em seguida meus objetivos. Ento, vamos l: na apresentao de hoje,
minha fonte ser, principalmente, o artigo publicado por Paul Ricoeur em 1949 na Revista de
Metafsica e Moral intitulado Husserl e o sentido da histria. Meu principal objetivo
compreender a importncia dos argumentos fenomenolgicos de Husserl para a elaborao da
filosofia da histria ricoeuriana. Saliento que esse um tema pouco estudado pelos
pesquisadores. Alis, no consegui encontrar nenhum artigo monogrfico sobre o assunto. Meu
objetivo secundrio ser tentar estabelecer alguns vnculos entre as obras de juventude de Ricoeur
e as de maturidade. Para tanto, ser fundamental estar atento tanto as permanncias quantos s
descontinuidades. Para finalizar vou lanar algumas hipteses sobre uma questo que tem me
inquietado: Por que ao longo de sua trajetria Paul Ricoeur quase no fez referncia a esse artigo
publicado em 1949? Esse fato fica ainda mais intrigante se lembrarmos que o autor tem um certo
apreo em falar de sua prpria obra e costuma retomar com frequncia os argumentos
trabalhados em textos anteriores.
Dito isso, gostaria de fazer alguns apontamentos preliminares sobre a relao que Ricoeur
manteve com a fenomenologia, e, especialmente, com a obra de Edmund Husserl.
Posso dizer que desde o princpio de seus 47anos de trajetria intelectual Ricoeur
manteve uma relao bastante prxima com a fenomenologia husserliana. Durante a Segunda
Guerra Mundial, quando ainda estava no campo de prisioneiros da Pomernia, ele deu incio a
traduo da obra Ideias escrita por Husserl, que posteriormente foi apresentada como um dos
requisitos para a obteno de seu doutorado em Filosofia. Em um artigo de 1983 intitulado Da
interpretao, Paul Ricoeur busca caracterizar a tradio filosfica a qual pertence e destaca trs
264 PEGORARO, Olinto. Sentidos da histria: eterno retorno, destino, acaso, desgnio inteligente, progesso sem fim. Petrpolis:
Vozes, 2011, p. 51-52.
265 ______. Sentidos da histria: eterno retorno, destino, acaso, desgnio inteligente, progesso sem fim. Petrpolis: Vozes, 2011, p.
52.
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traos: ele se insere na linha de uma filosofia reflexiva, que est na esfera de influncia da
fenomenologia husserliana e deseja ser uma variante hermenutica dessa fenomenologia. Um pouco
mais adiante, encontro uma afirmativa preciosa para meus propsitos. Nela a fenomenologia
apontada pelo filsofo francs como o espao de um imprio do sentido, onde a atitude natural em
relao ao mundo suspensa em favor de uma reflexo que busca compreender as articulaes
fundamentais da experincia: este imprio do sentido, assim liberto de toda a questo factual,
que constitui o campo privilegiado da experincia fenomenolgica, o lugar por excelncia da
intuitividade266.
O caminho que estou trilhando parte de questes mais amplas em direo a problemas
mais especficos. Portanto, passo a dissecar os principais argumentos da minha fonte, o artigo
Husserl e o sentido da Histria. A questo de fundo desse texto uma reflexo sobre os motivos que
levaram o fundador da fenomenologia a considerar a histria em suas ltimas obras, j que boa
parte de sua carreira foi marcada por uma abordagem eidtica transcendental que colocava a
realidade factual entre parnteses para descrever suas essncias.
A principal razo apontada por Ricoeur para essa mudana bastante clara: Husserl
passou a refletir sobre o sentido da Histria aps a ascenso do regime nazista na Alemanha, a
prpria tragdia da histria inclinou Husserl a pensar historicamente 267. Antes desse perodo,
Husserl era considerado como um pensador apoltico, porm, na ltima fase de seu pensamento
deixou de falar apenas do ego transcendental, para abordar a conscincia de uma crise coletiva da
humanidade, especificamente do homem europeu. Vale lembrar que em 1933 ele foi aposentado
compulsoriamente da Universidade de Freiburg em virtude de sua ascendncia judaica.
Entretanto, Ricoeur alerta que a transformao na problemtica filosfica de Husserl excede suas
motivaes psicolgicas, na medida em que as Ideias, no sentido fenomenolgico, buscariam fazer
uma mediao entre a conscincia e a histria.
Um texto de destaque nessa ltima fase do pensamento husserliano a conferncia A
filosofia e a crise da humanidade europeia. Ali Husserl desenvolve o ncleo de sua filosofia da histria,
segundo a qual existe uma ntima ligao entre a crise da cultura ocidental e a crise epistemolgica
das cincias. Ambas so uma crise de sentido e expressam uma perda do tlos, do sentido. No plano
epistemolgico isso ocorreu por causa da adoo do modelo galileano e teve como implicao a
perda do mundo da vida. O paradigma objetivista da cincia e da tcnica teria se concentrado nos
meios e se esquecido dos fins. O tlos subjacente ao mundo da vida que deveria ser recuperado
era a ideia de humanidade global, o projeto de racionalidade universal268. Nas observaes crticas
266 RICOEUR, Paul. Da Interpretao. In Do texto aco. Ensaios de hermenutica II. Porto: Rs-Editora, 1989, p. 37.
267 ______. Na escola da fenomenologia. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrpolis: Vozes, 2009, p. 19.
268 assim que se faz possvel uma histria, mas possvel apenas como realizao da razo. Ela no uma evoluo,
o que equivaleria a uma derivao do sentido a partir do no sentido, nem uma pura aventura, o que resultaria em
uma sucesso absurda de no sentidos. Ela sim, uma permanncia em movimento, a autorrealizao de uma eterna
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que faz sobre o pensamento husserliano, Ricoeur ressalta a pertinncia de haver um dilogo entre
a crena fenomenolgica de que a ideia a realidade histrica do Ocidente e as pesquisas feitas
pelos historiadores de ofcio.
Na sua reflexo sobre a crise das cincias europeias e a fenomenologia transcendental,
Husserl traou, segundo Ricoeur, uma ntida oposio entre o mtodo fenomenolgico aplicado
filosofia da histria e a histria dos historiadores. Nesta perspectiva, a teleologia da histria
inseparvel da criao de sentido sobre si mesmo, portanto, o olhar no parte do exterior, dos
fatos, mas, do interior, da conscincia: Como a histria a nossa histria, o sentido da histria
o nosso sentido269.
A cincia objetivista toma o que ela chama o mundo objetivo como sendo o
universo de todo o existente, sem considerar que a subjetividade criadora da
cincia no pode ter lugar legtimo em nenhuma cincia objetiva. Mas o
investigador da natureza no se d conta de que o fundamento permanente de
seu trabalho mental, subjetivo, o mundo circuncidante vital (Lebenswelt), que
constantemente pressuposto como base, como terreno da atividade, sobre o
qual suas perguntas e mtodos de pensar adquirem um sentido270.
Tomando como base os elementos que destaquei at o momento creio ter subsdios para
tecer uma reflexo preliminar, que ainda poder ser melhor dimensionada ao longo da pesquisa:
na perspectiva fenomenolgica a conscincia que confere sentido realidade factual ao se dirigir
a ela por meio da intencionalidade. No entanto, esta conscincia doadora de sentido no se reduz a
operaes lgicas e intelectuais, porm inclui tambm a experincia vivenciada pelo sujeito no
mundo da vida (lebenswelt). Desse modo haveria afinidades com aquela perspectiva sobre o
sentido da histria que mencionei no incio da apresentao, segundo a qual a conscincia
humana que atribui sentido aos fenmenos, embora, a referncia aos sentidos prvios contidos
no mundo da vida no possa ser rompida271.
Para concluir minha apresentao vou apontar de maneira breve quais aspectos da
reflexo fenomenolgica permaneceram na obra ricoeuriana e quais foram redimensionados. Em
relao aos argumentos que permaneceram eu evidencio trs questes: A primeira a
preocupao com o sentido teleolgico da histria. Nas obras posteriores ao artigo de 1949,
Ricoeur se posicionou no debate epistemolgico sobre temas importantes para a historiografia
e infinita identidade de sentido RICOEUR, Paul. Na escola da fenomenologia. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrpolis:
Vozes, 2009, p. 38.
269 RICOEUR, Paul. Na escola da fenomenologia. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrpolis: Vozes, 2009, p. 34.
270 HUSSERL, Edmund. A crise da humanidade europeia e a filosofia. Introduo e traduo de Urbano Zilles. 3. ed. Porto
carecem de sentido ZILLES, Urbano. Introduo. In HUSSERL, Edmund. A crise da humanidade europeia e a filosofia.
Introduo e traduo de Urbano Zilles. 3. ed. Porto Alegre: EDiPUCRS, 2008, p. 43.
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contempornea tais como objetividade, verdade, narrativa, representao e memria, porm,
jamais se restringiu apenas ao domnio metodolgico. Podemos perceber essa considerao sobre
o sentido da histria nas obras Histria e verdade (1955), Tempo e narrativa (3 volumes, 1983-1985) e
A memria, a histria, o esquecimento (2000). A segunda questo diz respeito ao vnculo existente
entre o sentido e a conscincia, ou seja, na perspectiva ricoeuriana a compreenso do sentido
histrico contribui para a compreenso de si. A terceira questo aponta para aquilo que Husserl
chamou de questionamento em sentido contrrio (Rckfrage). Tal questionamento est presente na
verso ricoeuriana do crculo hermenutico. A questo em sentido contrrio pretende reenviar a
ateno da cincia para o solo originrio que lhe confere sentido, o mundo da vida. Ela um
movimento de desobjetivao que tem como propsito mostrar os limites do objetivismo. No
final do primeiro tomo de Tempo e narrativa, Ricoeur sentencia: caso a historiografia rompa seu
vnculo com a narrativa ela incorreria em um equvoco semelhante ao das cincias galileanas, isto
, perderia seu vnculo com o mundo da ao272 Tornando mais clara a nossa proposta de leitura:
aquelas perspectivas que, no seu esforo de objetivao, rompem o vnculo da histria com a
narrativa levariam a uma ciso com a experincia do campo prtico (mmesis I), de modo
semelhante ao que fora feito pela cincia moderna em seu processo de objetivao do real. Algo
similar estaria presente tambm caso se tomasse a configurao textual da historiografia (mmesis
II) como um objeto autnomo, sem referente extralingustico273.
Vejamos agora quais pontos da abordagem fenomenolgica foram redimensionados na
trajetria ricoeuriana. No primeiro artigo em que refletiu mais detidamente sobre a histria, Paul
Ricoeur no faz referncia a nenhum historiador. Em suas obras posteriores essa postura se
transforma na concesso de um importante espao para as pesquisas feitas pelos historiadores de
ofcio. Talvez, esse redimensionamento esteja ligado a um outro deslocamento segundo o qual a
questo do sentido no se limita apenas a uma operao da conscincia sobre os fatos.
Gostaria de finalizar formulando algumas hipteses em vez de trazer grandes solues.
Tais hipteses so uma tentativa de resposta questo que tem me inquietado: Por que ao longo
de sua trajetria Paul Ricoeur quase no fez referncia ao artigo Husserl e o sentido da histria?
Desconfio que isso teria ocorrido porque o filsofo ampliou o significativamente o escopo das
tradies intelectuais com as quais dialogou. Me parece que a obra de Hegel teria ocupado com
mais proeminncia esse espao de reflexo sobre o sentido da histria na filosofia ricoeuriana.
Sem contar que Ricoeur procurou construir suas reflexes nas fronteiras da filosofia levando em
considerao fontes no filosficas como a historiografia, a teologia e a psicanlise.
272RICOEUR, Paul. Temps et rcit. Tome 1. Paris: ditions du Seuil, 1991. (Collection Points Essais)
273MENDES, Breno. A representncia do passado histrico em Paul Ricoeur: Linguagem, narrativa e verdade. 223 f. Dissertao
(Mestrado em Histria). Universidade Federal de Minas Gerais, Programa de Ps-Graduao em Histria, Belo
Horizonte, 2013.
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Temporalidade e experincia esttica em Hans
Robert Jauss: um mergulho na Queda da Casa de
Usher
Mestrando
Resumo
Hans Robert Jauss foi um pensador peculiar, no apenas pelo seu engajamento em
reabilitar uma histria da literatura a muito perdida, como ele afirma, mas por ter feito disso
uma misso, na tentativa de fortalecer os estudos literrios. De certo modo, me parece que seus
intentos percolaram tambm em outros campos do conhecimento, sobretudo na histria.
Todavia, no cerne de suas reflexes encontra-se a centralidade do leitor, em outras palavras a
recepo e por conseguinte, a comunicao. O leitor aparece como uma pea fundamental na
composio do jogo em que autor e obra participam paritariamente.
POE, E.A. A queda da Casa de Usher (1839). In: Os melhores contos de Edgar Allan Poe. . [com estudo crtico de
274
275 KUHN, T. S. A estrutura das revolues cientficas. 2. ed. So Paulo: Perspectiva, 1978.
276 ZILBERMAN, Regina. Esttica da recepo e histria da literatura. So Paulo: tica, 1989. p.10.
Caminhamos, por conseguinte para a questo central desse trabalho. Como Jauss articula
a historicidade do fenmeno literrio e a experincia esttica oportunizada na relao entre elas?
Para dar um certo grau de tangibilidade aos argumentos que seguiro a partir de agora, optei por
elencar um conto do escritor e poeta Edgar Allan Poe publicado na Burtons Gentlemans Magazine
em 1839, com o ttulo The Fall of the house of Usher. Nele faremos a tentativa de mostrar as
camadas temporais278, bem como suas potencialidades na experincia esttica, revelando assim
uma premissa importante de compreenso da experincia que se abre como efeito histria e por
ela continuamente reaberta; em certa medida porque s ela permite colocar o problema da
historicidade279 e sua capacidade de pensar a experincia em que se constitui o fenmeno
literrio, para alm de todas as categorias ideais ou positivas com que se pretenda corporiz-lo280.
A queda da Casa de Usher est no escopo de uma gama de contos que Edgar Poe
escreveu durante sua vida, sendo classificados como Story Shorts, essas histrias curtas tm como
centro um personagem melanclico, sombrio, enfermo, solitrio e talentoso. Para alguns
estudiosos o trabalho dele podem ser organizados em pelo menos trs graus de complexividade:
autobiogrfico, fantstico e de Horror. No cabe desenvolver nesse momento esses nveis. Mas
deixar evidenciado que eles no so autnomos e que condies especificas de compreenso
potica se encontram de diversas maneiras. Poe estava preocupado com a recepo e com o
efeito de seus contos. No The philosophy of composition (1946) ele mostra que os caminhos que
tomava no processo criativo no eram ingnuos; para ele a boa arte no esta dissociada da
racionalizao. O objetivo conduzir o leitor pela e no interior da histria para que
concomitantemente ao autor ele componha. Ele est preocupado, portanto, com a construo do
efeito.
Segundo Jauss, reduzir a arte a um simples reflexo tambm limitar o efeito que ela
produz no reconhecimento do j conhecido281, portanto, a condio ficcional da narrativa
A epigrafe desse trabalho, a porta de entrada para o conto supracitado. Nessas linhas
introdutrias ao conto podemos extrair elementos que nos ajudaro na compreenso do que foi
dito at aqui.
282 KOSK apud. JAUSS, Hans Robert. A literatura como provao. Lisboa: Passagens, 2003. p.45.
283 JAUSS. A literatura como provao, p.46.
284 POE, A queda da Casa de Usher, p. 55.
285 JAUSS, Hans Robert. O texto potico na mudana de horizonte de leitura In: LIMA, Luiz Costa Lima. Teoria da
Literatura em suas fontes. v.2. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2002. p.878.
Nesse trecho do conto, o autor nos conduz por uma estrada pouco convencional, quase
idlica, mas que segundo ele singularmente triste; a partir das referencias apresentadas
construmos uma imagem, um lugar com rvores mortas e secas, estrada de terra, pouca
iluminao, tendo como companheira do nosso heri, a escurido. Nessa dinmica que compe
as possibilidades abertas pela relao entre a produo e comunicao, fica, pois claro, que trata-
se, assim, de fazer entrar, na compreenso do fenmeno literrio, a personagem esquecida de
quase toda teoria literria o leitor uma fonte de energia que contribui para fazer a prpria
historia, uma vez que a sua interveno que faz entrar a obra no horizonte da experincia286.
Edgar Poe, em seu em seu ensaio Da imaginao (1849) empreendeu uma discusso
fortemente enraizada nessa ambivalncia conduzida fuso da beleza com a deformidade, nos
mostrando que h possibilidades infinitas na imaginao. Diz ele:
Congresso Internacional da ABRALIC - Tessituras, Interaes, Convergncias 13 a 17 de julho de 2008 USP So Paulo,
Brasil.
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instrumentos de msica estavam espalhados em torno, mas no conseguiam
dar nenhuma vitalidade ao ambiente289.
notrio o estrato de um tempo que mantm seu toque aguado para deixar visvel sua
passagem. Se imiscuindo s condies de inserir o problema da poiesis como construo e
experimentao de mundos, na ineludvel atividade da aisthesis, que os abre e os faz existir290. A
experincia esttica convoca portanto, o horizonte de experincia, nessa ao que podemos
experimentar e que vai aos poucos ganhando vigor para que no mergulho controlado no texto
ficcional sejamos catalisadores, pois a literatura um meio de criar e de transformar a percepo
como meio privilegiado de formao da sensibilidade291.
O ritmo do conto conduz para uma certa melancolia, bem como para uma ansiedade
quando os acontecimentos, aparies e a prpria imagem da Lady Madeline. Ela que surge como
espectro, presente sem ser presente. Como uma passagem que nos atravessa sem que de imediato
nos provoque um deslocamento, quase como se as leis da fsica no fossem mais possveis. Por
outro lado, se voltarmos a chegada do nosso heri veremos uma possa de gua parada, que
reduplica aquela imagem impactante, que o faz empreender a seguinte reflexo em dialogo com o
que Rodrick Usher:
Esta opinio, na sua forma geral, era a da sensibilidade das coisas vegetais. Mas
na sua fantasia desordenada, a idia assumira um carter mais ousado, e ia,
sob certas condies, at o reino dos inorgnicos. Faltam-me palavras para
exprimir toda a extenso, ou o seu fervoroso abandono a essa idia. A crena,
entretanto, estava ligada (como anteriormente aludi) s pedras cinzentas do
lar dos seus avs. As condies desta sensibilidade tinham sido aqui, segundo
ele imaginava, cumpridas na metdica justaposio das pedras na ordem da
sua disposio, tanto como na dos muitos fungos que se espalhavam por elas, e
das rvores existentes no terreno acima de tudo, na longa e intacta durao
dessa disposio, e na sua reduplicao nas guas paradas do pntano292.
Fronteiras so expostas nesse trecho como sendo o prprio castelo o limite do tempo e
da vida, na condio de ampliar a conscincia histrica e a conscincia esttica, norteado pela
ideia fundamental da literatura como organizadora e emancipadora vida. Segundo Jauss, a
experincia esttica se afirmaria pela sua mudana conceitual. Se antes estava ligada ao prazer de
ter o uso ou o proveito de uma coisa297, agora o que importa a significao de participao e
apropriao e o sentido intrnseco de alegrar-se com algo298, interagindo com ele. Afirma ainda
que, a percepo esttica no um cdigo universal atemporal, mas, como toda experincia
esttica esta ligada experincia histrica299.
Seguindo para consideraes possveis e finais, preciso deixar evidenciado que para
conceber a historicidade da literatura trs passos precisam ser dados. Na tese IX da conferencia
de Hans Robert Jauss esse ponto bastante esmiuado. Segundo ele para entender as camadas
temporais presentes no processo hermenutico; temos que considerar a recepo das obras
literrias atravs do tempo, o sistema da literatura num dado momento e a sucesso dos
sistemas sincrnicos e por fim a relao entre a evoluo intrnseca da literatura e a da Histria
em geral.
Consideraes finais
A queda da Casa de Usher nos conduziu por um cenrio to escuro quanto claro, to feio
quanto belo, to real quando falso. Seu ttulo anunciou, de alguma maneira, o desfecho do conto,
ou seja, a destruio da casa. Enseja uma pergunta e uma premonio, o que vai acontecer? H
Nesse jogo de pergunta e resposta, Edgar Poe, deixa claro que a melancolia , assim o
mais legitimo de todos os tons poticos302, no comando desse conto ele no se revela, deixa o
leitor livre, desprendido, quase inocentado de suas pretenses e exigncias. Vejamos nesse trecho:
E, portanto, face a isso, a atitude esttica exige que o objeto distanciado no seja
contemplado desinteressadamente, mas que seja coproduzido pelo fruidor semelhana do que
se passa no mundo imaginrio305. Fica, pois, claro que os indivduos, sejam eles leitores internos
ou externos, so atravessados por essa experincia que em sntese, fundamentalmente, um
modo de experincia de si mesmo na capacidade de ser outro306
302 POE, Edgar Allan. Poemas e Ensaios. Trad, Oscar Mendes. So Paulo: Globo, 2009. p.118.
303 ______. A queda da Casa de Usher, p.72.
304 ______. Poemas e Ensaios, p.122.
305 JAUSS, Hans Robert. A esttica da recepo: colocaes gerais In: LIMA, Luiz CostaA literatura e o leitor: textos de
esttica da recepo. Hans Robert Jauss et al. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p.75.
306 ______. A esttica da recepo, p.77.
307 ______. A literatura como provao, p.100.
Tantas tarefas empreendidas e no fim das contas, nos deleitamos no exerccio da escrita,
do pensamento e da releitura. Aportamos em um cais pouco freqentado para fazer aquilo que o
processo hermenutico gadameriano chamou de applicare (aplicao).
De certa maneira o corpo perde a ancoragem no mundo e reconstri na imaginao seu mundo
perdido. No mais como engano ou farsa, mas como possibilidade e ressignificao. A estrutura
textual como construo do sujeito e como produo de sentido colabora assim, desde que o
texto literrio no seja seu fim ultimo. No libertando a obra de seus condicionantes histricos
como proposto pelo formalismo. Mas criando condies de possibilidade que favorea na
medida em que crie, invente, e intervenha na prpria contingncia que a histria.
Palavras-chave
Edtih Stein; Stimmung; Walter Benjamin
Artigo
308.Os conceitos de espao de experincia e horizonte de expectativa so formulados por Reinhart Koselleck,
enquanto categorias de orientao temporal. Buscamos interpretar a modernidade atravs de uma dupla reduo
destas categorias temporais como uma caracterstica fundamental da modernidade, como afirma Koselleck: a
tenso entre experincia e expectativa que, de uma forma sempre diferente, suscita novas solues, fazendo surgir o
tempo histrico. (p313).
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Podemos por apresentar os testemunhos do qumico Primo Levi na obra que se tornou
referencia da historiografia sobre Os Campos de concentrao que descreve de maneira
sensibilizante como a linguagem que nos compe, no so capazes para definir racionalmente a
experincia e a atmosfera vivenciadas pelos judeus: Dizemos fome, dizemos cansao, medo e dor,
dizemos inverno mas trata-se de outras coisas. Aquelas so palavras livres, criadas, usadas por homens livres.
309
Outros pensadores como Alice A. R. Eckahrdt define um destes traumas das ideologias
antissemita atravs da pergunta: Como se pode falar daquilo que indizvel?, assim como o escritor Elie
Wiesel , que ao tentar sintetizar a experincia dos sobreviventes tambm chega a mesma
inquietao de no conseguir falar diante da atmosfera no qual estavam inseridos, como podemos
perceber a seguir: Eu tinha coisas demais a dizer, mas no as palavras para diz-las. Consciente da pobreza
dos meus meios, eu via a linguagem transformar-se em obstculo. Dever-se-ia inventar outra linguagem.310.
309.
LEVI, Primo. isto um homem ? Rio de Janeiro: Rocco editora, 1988, p125 .
310WIESEL Elie, La nuit. Paris: Les ditions de minuit, 2007, p. 12,.
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Os intelectuais Edith Stein e Walter Benjamin esto inseridos nesta sensao de
distanciamento do presente em relao ao passado, e, ao mesmo tempo, buscaram refletir sobre
esta mudana e sobre as consequncias ticas desta experincia, destacando dois aspectos
fundamentais a percepo do tempo enquanto acelerado e como consequncia desta acelerao a
tematizao epistemolgica da impossibilidade do acesso a realidade311.
Diante desta crise de representao evidenciada por Gumbrecht e tambm por Foucault,
ocorreu uma crise epistemolgica e, por conseguinte, a abertura de certa atmosfera melanclica.
Trata-se da experincia de um sentimento o de que o sujeito estranho ao mundo que o cerca,
sendo necessrio ao homem observar com cuidado o mundo e ao mesmo tempo se perceber
como agente neste mesmo mundo.
311
. RANGEL, Marcelo. ARAUJO, Valdei. Apresentao - Teoria e histria da historiografia: do giro lingustico ao
giro tico-poltico, 2015, p322.
312 O Surrealismo e o Dadasmo so movimentos de vanguarda , que segundo Marcos Nobre no livro Curso Livre de
Teoria Critica , buscaram pensar a relao das obras de arte diante da pratica da vida cotidiana, sendo a primeira
corrente o Surrealismo ao abolir as fronteiras entre o real e o sonho, por meio da constatao da arte como um meio
de revoluo da prpria vida. E a segunda corrente o Dadasmo, buscava atravs da inteno de compor obras de
arte com objetos comuns questionavam o papel tradicional da obra de arte, e a contemplao do objeto artstico
enquanto independente da vida social.
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Marcelo Rangel e Valdei Araujo apresentam que duas tradies distintas (fenomenolgica
e a neo- historicista) 313 buscaram pensar e refletir a crise epistemolgica herdada do sculo XIX
para o sculo XX, na qual estavam inseridos, dois representantes da primeira tradio a
fenomenolgica, filosofa Edith Stein314 e o terico literrio Walter Benjamin315 ambos
intelectuais de origem judaica316, buscaram vivenciar a crise e a partir dela, olhar para o presente
maximamente indito com cuidado, para a partir de ento, e apenas a partir de ento, entende-lo.
313
. RANGEL, Marcelo. ARAUJO, Valdei. Apresentao - Teoria e histria da historiografia: do giro lingustico ao
giro tico-poltico, 2015, p322.
314 Edith Stein (1891-1942) intelectual , discpula de Edmmund Hursell , filsofa da corrente fenomenolgica e forte
literria, filosofia sociologia, apresenta inspirao nas correntes filosficas do marxismo e na histria cultural.
316 Entendo o conceito de intelectual como apresentado por Michael Lowy no texto: Judeus Heterodoxos, um
conjunto de indivduos definidos por produtores de bens culturais e simblicos, que no podem ser englobados
como uma classe social, mas sim um indivduos que apesar de compartilhar caractersticas comuns como a religio
judaica, mais se manifestam em lugares e seguem trajetrias diferentes .
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Dizendo ainda em outras palavras, um clima histrico o mesmo que um
conjunto de sentimentos especfico que se sedimentam e se tornam
transcendentais no interior de um tempo histrico determinado, podendo se
reconstituir de acordo com acontecimentos histricos e experincias do
tempo.(RANGEL, 2012 p. 5).
s critica das filosofias do progresso, surge para estes pensadores como a descrena de
que as experincias do passado ainda possuam a capacidade de orientao dos homens no
presente, ou explicando de outra maneira, diante das sensaes de conjunturas inditas no
presente, os homens percebiam o passado afastado do tempo que era o deles.
Ambos os intelectuais buscam refletir sobre o presente histrico, e isto por serem
afetados por esta sensao de descontinuidade e estarem inseridos nesta crise gnosiolgica. Como
resposta a esta crise esses autores buscam uma relao mais ntima entre gnosiologia e tica,
atravs, de uma compreenso fenomenolgica de que todo pensamento e ao e no interior do
presente determinado pela relao de intimidade com passados e futuros, os quais se
constituem como ponto de determinao transcendental que orienta e determina cada presente318,
sendo um destes ambitos a reflexo histrica.
Ezequiel Garca Rojo ao escrever sobre a importncia de Edith Stein para o sculo XX
apresenta como tese central a compreenso de que ela se permitiu ser afetada pelos
acontecimentos prprios ao seu tempo histrico, segundo as palavras do prprio autor:
Sino tambin porque Ella misma se identifico con El discurrir de los eventos
habidos em El [...] Buena parte de la histria alemana del siglo XX puede
seguirse a partir de los relatos autobiogrficos steinianos; eso s, es la histria
vivida desde dentro por una alemana, y que no siempre aparece em los libros
oficiales. 319
A biografia de Edith Stein nos permite mltiplas abordagens, entre as quais poderamos
destacar o papel da mulher, filsofa, teloga, carmelita, intelectual, judia e alem. Infelizmente
Ezequiel Garca Rojo buscava analisar a figura steiniana como uma mulher que possui um
esprito para descrever e apreender o real. Esprito este que caracterizado pelo autor por sua
habilidade para descrever aquilo que observa: as pessoas e as situaes, tentando de maneira
simples em sua autobiografia Estrellas Amarilas320 e em suas cartas no apenas descrever os
espaos em que experimentava a vida, mas tambm as relaes polticas e sociais.
O projeto intelectual formulado por Edith Stein pode ser definido atravs da expresso
321
de busca pela verdade , isto , assumir o projeto tico de se comprometer com a anlise e
descrio da realidade que a cercava, ou seja, de se deixar ser afetado pelo presente e a partir de
uma profunda anlise refletir sobre o papel da histria. O mesmo, alis, pode ser explicitado
sobre o pensamento de Benjamin.
Econmica. p. 30.
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Esta mudana para Gottingen se faz necessria para compreendermos a influncia de
Husserl e dos outros professores da instituio, como no campo da histria onde Edith Stein
teve como professor o historiador Max Lehann da universidade de Gottingen, onde este
apresentava a sua turma a viso historiador alemo Leopolt Von Ranke, de quem o professor se
considerava herdeiro, sobre este conhecimento histrico a autora escreve: A este amor por la histria
no era en mi un simple sumergirme romntico em El passado. Iba unido estrechamente a uma participao
apaixonada em los sucessos polticos del presente, como histria que se esta haciendo.
O perodo entre o final do sculo XIX e inicio XX foi marcado pela intensificao da
presena de conjunturas e sentidos inditos, no qual os homens no estavam preparados para
signific-los. Podemos ler a imagem da representao do anjo, que descrita por Benjamin como
324Paul
Klee, pintor e poeta de nascido na sua, naturalizado alemo.
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uma figura em movimento acelerado, e que e impelida para o futuro e ao mesmo tempo em que
ao olhar para o passado, apenas v os destroos no qual tenta recuperar ou preservar ao acordar
os mortos e juntar os fragmentos (BENJAMIN, 1940 p, 1).
Este o contexto social e histrico no qual Walter Benjamin e Edith Stein estavam
inseridos e marcados por uma formao cultural romntica, principalmente nas denominadas
cincias do esprito (Geisteswissenschaften), formao esta caractersticas dos intelectuais judeus da
Europa central.
Esta gerao de intelectuais como foi apresentada por Michael Lowy, foi marcada por
tentativas de reencantamento do mundo, sendo algumas caractersticas fundamentais formuladas
atravs de um encontro ao retorno ao religioso (tradio), a oposio do aspecto cultura (Kultur)
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em relao civilizao (Zivilisation), e da comunidade (Geminschaft) em relao ideia de
sociedade (Gesellschaft) 325.
Para estes autores, as conjunturas que geraram a realidade da primeira guerra assim como
o processo de valorizao do cientificismo, foram marcadas pelo distanciamento do passado
enquanto possvel orientao diante do presente como podemos perceber na descrio feita por
Walter Benjamin:
Diante de uma realidade negativa marcada por um conjunto de estruturas opressoras que
recriam um tempo no qual os homens sofrem porque mesmo se empenhado na produo e
recriao de significados, estes no conseguem vencer a disputas com os discursos que legitimam
o presente sendo logo obscurecidos.
325 LOWY, Michael. Romantismo e Messianismo no Pensamento judaico da Europa Central no comeo do sculo
XX p.29
326 Movimiento filosfico iniciado no sculo XVIII , no qual faziam parte os pensadores Fichte (1762-1814),
Podemos perceber pela descrio feita por esses autores em relao experincia
vivenciada pela primeira e segunda grande guerra e pelo perodo denominado por ns como o
entre guerras, que a descrio feita marcada por um sentimento de impotncia diante das com
conjunturas apresentadas no presente sendo esta uma caracterstica do tempo histrico em que
denominamos de modernidade.
Ao descrever sobre o seu presente, ou seja, sobre o tempo no qual esta inserida, Stein,
por exemplo, afirma que a experincia da primeira guerra apenas foi possvel por um sentimento
de impotncia, presente em instituies que poderiam ser responsveis por sensibilizarem e
guiaram os indivduos diante da realidade sendo estas a cultura e a razo, como podemos
perceber a partir de uma carta escrita em 1918, ou seja antes da carta citada anteriormente, na
qual ao refletir sobre a primeira guerra a autora aponta para uma crena de que os indivduos
atravs de instituies como a cultura e a razo ( esprito humano ) poderiam superar a
experincia da guerra, como podemos perceber a seguir :
Mi querida Erna:
..... Gustosamente quisiera transmitiros algo de lo que a m, despus de cada
nuevo golpe, me da nueva energa. () Es muy seguro que nos encontramos
en un punto crtico dentro del desarrollo del espritu humano, y no hay que
quejarse si la crisis dura ms de lo que cada uno en particular deseara. Todo lo
que ahora es tan horrible, y que yo, desde luego, no quiero disimular, es el
espritu que debe ser superado. Pues el nuevo espritu est ya ah y, sin lugar a
dudas, terminar por imponerse () Lo bueno y lo malo, el conocimiento y el
error estn mezclados en todas partes, (), trtese de pueblos como de
partidos. Esto desencadena una espantosa confusin, y quin sabe cundo
aparecer otra vez algo de calma y claridad () Slo quisiera inculcarte la
confianza de que el desarrollo, cuyo curso nosotros presentimos slo muy
limitadamente y mucho ms limitadamente podramos determinar.
.... Saludos cordiales y besos, tuya Edith. (STEIN , 2003, p630).
Ainda neste sentido, Walter Benjamin apresenta de maneira semelhante uma reflexo
sobre as experincias presentes na primeira grande guerra mundial, sendo estas marcadas pela
evidencia de que diante desta conjuntura indita os homens no encontravam respostas no
passado (experincia) e vivenciavam de maneira negativa o presente, como podemos perceber a
seguir:
No, est claro que as aes da experincia esto em baixa, e isso numa gerao
que entre 1914 e 1918 viveu uma das mais terrveis experincias da histria.
Talvez isso no seja to estranho como parece. Na poca, j se podia notar que
os combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres
em experincias comunicveis, e no mais ricos. Os livros de guerra que
inundaram o mercado literrio nos dez anos seguintes no continham
experincias transmissveis de boca em boca. No, o fenmeno no estranho.
Porque nunca houve experincias mais radicalmente desmoralizadas que a
experincia estratgica pela guerra de trincheiras, a experincia econmica pela
inflao, a experincia do corpo pela fome, a experincia moral pelos
governantes. Uma gerao que ainda fora escola num bonde puxado por
cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto
nas nuvens, e em cujo centro, num campo de foras de correntes e exploses
destruidoras, estava o frgil e minsculo corpo humano. (BENJAMIN ,
1933,p.115.)
Os projetos intelectuais apresentados por Stein e Benjamin para confrontar a crise
presente no sculo XIX e XX, podes ser compreendidos como um movimento no qual ao se
perceberem como agentes histricos , Edith Stein e Walter Benjamin buscam responder s
inquietaes provocadas pelas novas conjunturas do presente, em um primeiro momento
buscando evidenciar a mudana na percepo de um tempo descrevendo-o enquanto negativo e
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acelerado (Sattelzeit ou filosofia do progresso ) marcado por um afastamento do passado, que no
conseguiria responder de maneira maximamente eficaz ao presente, gerando assim o clima
histrico denominado de Stimmung da melancolia. Explicando melhor diante de conjunturas
maximamente inditas esses filsofos buscaram ser afetados pelo seu presente, e atravs deste
sentir a sua poca, a realidade do mundo que era o deles.
Resumo: Neste artigo pretendo analisar o retorno biogrfico, na perspectiva de Pierre Bourdieu
e Sabina Loriga, no que tange ao trato da produo biogrfica, que segundo estes o resultado de
uma hibridizao entre histria, biografia e literatura. Utilizando como eixo terico a histria
cultural, mais especificamente Pierre Bourdieu, para compreender como a escrita biogrfica
possibilitaria um ponto de anlise do contexto. O autor fala em iluso biogrfica, refletindo sobre o
risco de tomar a histria de vida retrospectivamente como um todo coerente, dotado de um
sentido claro, que justificaria cada etapa ou passagem da vida do seu objeto.
Tambm mobilizo para a discusso biogrfica a autora Sabina Loriga, que analisa a escrita
biogrfica como contendo em si, dois riscos. O primeiro seria configurar a experincia individual
como uma experincia mdia, e segunda seria do risco de tentar apreender a totalidade. Loriga
critica objetivamente o trabalho do autor, questionando o mtodo pelo qual Bourdieu opta em
sua anlise. Quanto a utilizao do eu para retirar a exemplificidade, a autora tambm discute a
questo das fontes biogrficas utilizadas para compreender os atos sociais, e seus efeitos como
elementos ilustrativos. Busca tambm enfatizar que outras foras so mais importantes que a ao
de cada indivduo, alheias a ele, para justificar a separao da biografia e a historia. Afirma ainda
que existe uma necessidade de maiores estudos por parte dos historiadores no conhecimento
literrio, estando estes to prximos da biografia e da noo de hibridez do gnero.
A escritora Virginia Woolf, elabora em seus escritos em torno da escrita biogrfica reflexes
sobre as camadas dos indivduos, que seriam resultado de diferentes aes e escolhas do
indivduo durante sua vida. Refletindo sobre os limites e mtodos da biografia, Woolf escreve
Orlando buscando a quebra do paradigma da biografia vitoriana. um personagem que nasce
homem e que no meio de sua narrativa torna-se mulher. A busca da autora afirmada o tempo
todo como uma busca pela verdade, a verdade sobre sua personagem.
Palavras-chave: Teoria da histria; Biografia; Teoria biogrfica; Virginia Woolf; Pierre Bourdieu,
A biografia arte? Ou seria uma escrita isenta de imaginao ou fico? Este trabalho
teve sua concepo tendo em vista essas questes sobre os limites e a hibridizao entre histria,
biografia e literatura, partindo de leituras de obras de Virginia Woolf e tentando aqui uma
conexo com o texto secular de Pierre Bourdieu e as elocubraes de Sabina Loriga.
Atualmente podemos dizer que a biografia passa por um momento de grande liberdade
de criao. Tericos da literatura se voltaram para o tema, no para empurrar essas obras de volta
para a Histria, mas para compreender a criao de um discurso narrativo prprio, com
ferramentas de escopo ficcional e de uma liberdade criativa tambm nova, apoiando-se em uma
renovao que se desenvolve desde o inicio do sculo XX.
Virginia Woolf (1882 1941) tendo sido crtica literria, romancista, ensasta e resenhista
atuou como uma das intelectuais inglesas mais presentes e discutidas na nossa temtica, sendo
uma das maiores questionadoras da rea no bojo da discusso acerca do dito romance moderno,
e abrindo para novas interpretaes da escrita biogrfica e dela a questo que iniciou as
reflexes desse artigo: A biografia uma arte?
Em 1939, Virginia questionou-se e abordou o tema no artigo The art of biography publicado
na Revista Atlantic Monthly de Nova York. No artigo, Virginia utiliza duas biografias de Lytton
Strachey (1880 1932) afim de apontar novas direes. Muito conhecido por duas
biografias, Strachey escreveu Rainha Vitria (1921) e Elizabeth and Essex: a tragic history (1928)
utilizando-se de recursos diferentes, aqui servindo como exemplo de anlise.
A escolha por uma anlise pela via da histria nos leva escolha defendida por Sabina
Loriga. Para ela, os historiadores haviam se afastado da escrita da vida de homens por outras
abordagens e novos objetos de uma forma mais marcante nas dcadas de 1960 e 1970.
Para Virginia, o bigrafo que segue somente os documentos acaba caindo de sbito no
tumulo e escrever fim sobre a sua cabea, expondo somente os fatos e deixando as elucubraes
para o leitor.
Utilizando a linha historiogrfica cultural como base terica, mais especificamente Pierre
Bourdieu para continuarmos nosso empreendimento pela escrita biogrfica. O autor fala em
iluso biogrfica, refletindo sobre o risco de tomar a histria de vida retrospectivamente como
um todo coerente, dotado de um sentido claro, que justificaria cada etapa ou passagem da
trajetria. Esse risco tambm aparece, embora endereado a outro tipo de reflexo na discusso
de Virginia em sua anlise sobre a escrita biogrfica.
Produzir uma histria de vida, tratar a vida como uma histria, isto , como o
relato coerente de uma sequencia de acontecimento, com significado e direo,
talvez seja conformar-se com uma iluso retrica, uma representao comum
da existncia que toda uma tradio literria no deixou e no deixa de reforar.
328
Sem dvida, cabe supor que o relato biogrfico se baseia sempre, ou pelo
menos em parte, na preocupao de dar sentido, de tornar razovel, de extrair
uma lgica ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva, uma conscincia e
uma constncia, estabelecendo relaes inteligveis, como a do efeito causa
eficiente ou final, entre os estados sucessivos, assim constitudos em etapas de
um desenvolvimento necessrio. 329
327 Virginia Woolf no cunha ou desenvolve o conceito, por isso, esta encontra-se mencionada entre aspas.
328 BOURDIEU, Pierre. A iluso biogrfica. In FERREIRA, Marieta de Morais; AMADO, Janaina (org.). Usos e
abusos da historia oral, 8 edio, Rio de Janeiro. Editora FGV, 2006. P. 185.
329 ______.A iluso biogrfica, P. 184.
O que estamos definindo aqui como camadas de eu, so, assim, as pessoas dentro das
pessoas, que segundo Woolf, so convocadas medida da necessidade. Podemos refletir e ir alm
da viso literria de Virginia e afirmar que assim tambm ocorre na escrita histrica quando trata
de personagens proeminentes. A escolha limitadora de um nico eu para ser analisado mais do
que necessrio, recomendado. As reflexes em Orlando so novamente esclarecedoras:
Talvez, mas o que parece certo (pois agora estamos na regio do talvez e do
parece) que o eu de que ela mais precisava se mantinha distncia, pois ela ia
mudando seus eus to rapidamente quanto dirigia, a julgar pelo que se ouvia, e
330BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simblicas. So Paulo: editora Perspectiva, 2013. P. 184
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havia um novo eu em cada esquina como acontece quando por alguma razo
inconfessvel o eu consciente, que o mais importante e tem o poder de
desejar, no deseja ser mais nada seno um nico eu. Isto o que alguns
chamam de verdadeiro eu e , dizem, a unio de todos os outros eus que
existem em ns, comandados e aprisionados pelo eu-capito, o eu-chave, que
amalgama e controla todos os eus. 331
Virginia preocupa-se a tentativa cada vez maior por parte dos bigrafos de obter a
completude de seu objeto, mas a impossibilidade disto acontecer. Justamente porque: Cada
momento o centro e ponto de encontro de um nmero extraordinrio de percepes ainda
mais expressas. A vida sempre e inevitavelmente mais rica, muito mais, do que ns que
tentamos express-la.332 Aqui, comentando um dos textos foco deste trabalho, Bourdieu est
em completa concordncia com a perspectiva de Woolf, quanto ideia de que temos que nos
questionar, quando lemos e escrevemos uma biografia, o quanto do nosso heri e personagem
encontra-se expresso ali.
O bigrafo agora se depara com uma dificuldade que melhor talvez confessar
do que encobrir. At este ponto da narrativa da vida de Orlando, documentos
tanto particulares quanto histricos tm tornado possvel cumprir o primeiro
dever de um bigrafo que caminhar, sem olhar para a direita ou a esquerda,
nas camadas indelveis da verdade; sem se deixar seduzir pelas flores;
indiferente sombra; metodicamente continuar at cair de sbito no tmulo e
escrever finis na lpide sobre as nossas cabeas. [...] Nosso simples dever
expor os fatos at onde so conhecidos, e ento deixar o leitor fazer com eles o
que puder.333
O dever do bigrafo, num texto repleto de ironias e fices, torna-se uma provocao. As
verdadeiras biografias do inicio do sculo XX deveriam ser pautadas na documentao, assim
como a autora defendeu em textos como A arte da biografia. Nosso papel como leitores est
seguro, j que estabelecemos o pacto da veracidade textual com o nosso autor para alm da sua
possibilidade de tornar-se mais prxima uma literatura de alto nvel.
Sabina Loriga, por sua vez, pensa sobre os problemas inerentes escrita biogrfica,
alertando-nos para dois riscos. O primeiro configurar a experincia individual como uma
experincia mdia e o segundo, o risco de tentar apreender a totalidade do biografado.
Neste ponto, Loriga critica objetivamente o mtodo proposto por Bourdieu.
Nos ltimos anos, a noo de indivduo voltou a ocupar lugar de destaque na discusso
dos historiadores, justamente a partir da revalorizao da biografia, apostando no que Loriga
chama de homem qualquer, recusando a dita simplicidade na escrita da vida do homem
comum. Assim, entra em consonncia com o discurso aqui defendido, de que mesmo sendo um
indivduo mltiplo, composto de diferentes eus, no existe uma simplicidade ao falarmos desse
conceito, independente do seu objeto, seja ele um diplomata ou um pintor da Idade Mdia.
Retomando Bourdieu, podemos verificar tambm como uma forma de iluso biogrfica, a
aliana feita entre individualidade e identidade, atravs do nome prprio, como mais uma forma
sancionada de individualidade: Em outras palavras, ele s pode atestar a identidade da
personalidade, como individualidade socialmente constituda, custa de uma formidvel
abstrao.335
Segundo Loriga, ao longo do sculo XX, o individual e o social como conceitos foram
engessados em torno de uma escolha falsa: a necessria opo entre um ou outro, em favor ou do
coletivo ou do indivduo336. Para ela, a luta entre esses dois conceitos mantiveram-se na escrita
biogrfica.
A biografia atualmente tem sido alvo de escrita e publicao por parte, pelo menos no
Brasil, por jornalistas. Esta perda de espao por parte dos historiadores atribudo linguagem
utilizada e priso teoria que permeia a escrita biogrfica.
Trazer essa reflexo, utilizando um texto que questiona os mtodos de escrita da biografia
e a proposta da new biography, cabe no momento de um repensar a quem pertence o campo da
escrita biogrfica e o modo como ela deve ter sua concepo e discusso metodolgica frente a
uma escrita cada vez mais influenciada pela teoria da literatura.
Acredito, em resposta nossa questo guia, que a biografia uma arte, na medida em que
orquestra a narrativa de uma vida, permeada de fico ou no. No por deixar para trs uma
histria perfeitamente contada, mas por trazer luz o que h de mais intrigante e interessante no
mundo: o indivduo, com suas dvidas, acertos e erros de vida. Para encerrar fao uma pequena
referncia Virginia Woolf:
Ah, se os personagens poderamos reclamar, porque a nossa pacincia est diminuindo tivessem mais
considerao por seus bigrafos! Pode haver coisa mais irritante do que ver um personagem, com o qual
esbanjamos tanto tempo e trabalho, escapar completamente do nosso controle como o testemunham
PPGH- UEPG
Resumo: Esta reflexo se prope a pensar a escritura da histria em relao s fontes disponveis da
Antiguidade, especialmente as que se referem a Mesopotmia e a construo destas enquanto narrativa
histrica atrelada ao lugar que o historiador ocupa nos conflitos de seu tempo. Para pensar essas questes
foram importantes s obras de Marc Bloch, John Gaddis e Paul Veiney, alm de autores que trabalham
com as culturas do Antigo Oriente Prximo, como Mario Liverani, Joaquin Sanmartin, Jean Bottro,
Samuel Noah Kramer, entre outros. O lugar da Histria Antiga na disciplina de Histria demarcado por
conflitos acadmicos que visam no apenas o seu reconhecimento como campo temtico especifico que
contribui para a disciplina de forma singular. Mas tambm como campo de disputa pela sua legitimidade
enquanto rea do saber, constituda a partir de um lugar especfico, sujeita a provas e controles
(CERTEAU, 1982). Uma vez que a histria seria a cincia dos homens no tempo, como disse Marc Bloch,
torna-se impossvel extirpar ou ignorar a Histria Antiga como produtora de conhecimento histrico.
Assim ao relacionarmos a temporalidade produo acadmica desses historiadores foi possvel
compreender que as consideraes acerca da Antiga Mesopotmia respondiam as questes referentes ao
lugar que esses historiadores ocupavam em seu prprio contexto histrico.
Os usos que esses grupos e indivduos fazem da histria antiga ou de elementos pertencentes a
esta esto relacionadas ao seu cotidiano. Assim as prticas e as estratgias dessas pessoas, suas releituras e
apropriaes marcam os lugares sociais ao qual pertencem constituindo uma forma singular de representar
a realidade.
O segundo aspecto diz respeito escritura da histria, a narrativa construda pelos historiadores
acerca da temtica da Antiguidade341. O lugar da Histria Antiga na disciplina de Histria demarcado por
conflitos acadmicos que visam no apenas o seu reconhecimento como campo temtico especfico que
contribui para a disciplina de forma singular. Mas tambm como campo de disputa pela sua legitimidade
enquanto rea do saber, constituda a partir de um lugar especfico, sujeita a provas e a controles342.
Uma vez que a histria a cincia dos homens no tempo, como disse Marc Bloch, torna-se
impossvel extirpar ou ignorar a Histria Antiga como produtora de conhecimento histrico. As culturas
que compem a antiguidade influenciaram e influenciam ainda a cultura ocidental, da os olhares languidos
de Clio para com os diversos objetos principalmente ao que se refere aos Orientes343.
So os Orientes que atraem com seu exotismo, suas lnguas e escritas mortas, seus mitos de
origem que guardam resqucios tribais ou sua tecnologia que ainda assombra e surpreende os
pesquisadores hodiernos. Por isso, os olhares lanados sobre eles formulam tantas questes, a Antiguidade
constitui-se como o territrio do no factual344.
Enquanto cincia a histria est atrelada as demandas da Academia. Michel de Certeau, por
exemplo, classificou a histria sobre trs desdobramentos operatrios: sua relao com o lugar,
procedimento de anlise e a construo de um texto, por isso a entendida como a combinao de um lugar
Nesse sentido, a histria enquanto representao do passado se assemelha a paisagens por vezes
nubladas ou nevoadas pelo tempo cronolgico. O historiador John Gaddis, por exemplo, aponta que s
podemos retratar o passado como uma paisagem prxima ou distante, mas no podemos conhec-lo com
certeza. Dessa forma, o historiador no tem outra opo seno fazer um esboo do que no consegue
delinear com preciso, generalizar, abstrair. Isso significa que so nossas formas de representao que
determinam o que estamos observando.346
Para John Gaddis, a histria tem funo de tornar a complexidade compreensvel, primeiro para
ns mesmos, depois para os outros347. A histria assume, nesse interim, o papel de progresso atravs da
transmisso de habilidades adquiridas de uma gerao para outra348, o que contribui para estudamos o
passado com inteno de compreender o presente e nos preparar para o futuro.
A moda do deus romano Jano, o historiador olha para o passado e o futuro, a histria transita
entre a mudana e a tradio. Da a importncia de rever velhos conceitos referentes Antiguidade, te
trazer a luz seus acontecimentos, questionar os indcios, inquirir os eventos, estejam eles catalogados, ou
quer durmam ainda, na floresta do no factual349.
O objeto desta reflexo tem temporalidade e espao bem delimitados, trata-se do territrio
conhecido como Antigo Oriente Prximo, a Mesopotmia. Como todo conceito criado para explicar uma
realidade, a noo de Oriente, diz respeito a uma ideologia europeia de origem ilustrada e romntica. O
termo foi forjado nos sculos XVII e XVIII, para designar os lugares que escapavam do controle das
potncias europeias e se localizavam a leste dos Urais e ao sul do Mar Negro. O Oriente, portanto era a
O adjetivo antigo para o Oriente foi uma construo de historiadores modernos, uma ciso
arbitrria e carente de limites precisos, como lembra o historiador Joaqum Sanmartin351.
Esses termos, assim como o termo Crescente Frtil352, e o prprio nome Mesopotmia353 para
designar essa cultura e seu espao de atuao, nada diziam aos autctones. Os sumrios partiam de uma
viso cruciforme do mundo, seus governantes se intitulavam reis das quatro regies desde o final do III
milnio. Denominaram seu lugar de origem de Kalam, palavra em lngua sumria que significa literalmente:
o Pas.
Nesse sentido, mesopotmicos e rabes parecem ter se fundido em um s aos olhos desses
pioneiros, que viam nos segundos a extenso dos primeiros e no levou em conta a diferena gritante de
cultura e mentalidades entre o Oriente e Ocidente. Esses pesquisadores europeus partiam das inquietaes
de seu tempo para responder e escrever a histria da Mesopotmia.
Alguns desses pesquisadores eram movidos a provar a veracidade dos escritos bblicos, outros
medindo os costumes de sumrios e semitas com comportamentos atuais acabaram cometendo
anacronismos. Cada qual esteve atrelado a sua corrente historiogrfica e as questes de seu momento
histrico. Assim os conceitos utilizados diziam respeito cultura europeia, que via a Mesopotmia como o
lugar da primeira civilizao, embora descrevesse seus costumes como brbaros, suas tradies como
resqucios de cultos tribais animistas e suas prticas como carente de valores cristos ocidentais.
Um exemplo disso so algumas das consideraes feitas pelos sumerilogos Samuel Noah
Kramer e Jean Bottro, sobre a divindade feminina Inanna/Ishtar, frequentemente ela nomeada como
350 SERRANO, Jos M.; SANMARTIN, Joaqun. Histria Antigua del Prximo Oriente. Madrid: Akal, 2008, p. 6-9.
351 ______. Histria Antigua del Prximo Oriente, p. 8.
352 O termo segundo Sanmartin inadequado, uma vez que mistura indevidamente culturas heterogneas, alm de ser
Apesar da potica e eloquncia com que esses pesquisadores escrevem, suas afirmativas so no
mnimo machistas. Mesmo que reconheam que os valores daquelas pocas nunca foram os nossos, os
olhares lanados a Mesopotmia foram carregados de valores ocidentais e temporalmente localizados.
Mas como lembra Arlete Farge no existe nenhum historiador que possa dizer razoavelmente
que suas escolhas no foram orientadas, pouco ou muito, por uma dialtica do reflexo ou do contraste
com ele mesmo.354 Ou seja, os historiadores criam representaes sobre o passado, tendo por referncia
sua temporalidade, suas experincias pessoais e profissionais. Dessa forma, buscam organizar a realidade
de acordo com seus prprios objetivos.355
No entanto, foi devido aos esforos desses pesquisadores que as interpretaes acerva dessa
cultura extinta puderam se desenvolver. Afinal a histria filha de seu tempo356, como escreveu Marc
Bloch. Dessa forma, podemos compreender que as consideraes acerca da Antiga Mesopotmia
respondiam as questes referentes ao lugar que esses historiadores ocupavam em seu prprio contexto
histrico.
Assim, hoje partimos das questes de nosso tempo para criticar os mesmos documentos sob
outra tica, sob a gide da Nova Histria Cultural. Como lembra John Gaddis, da mesma forma que os
historiadores modernos fizeram suas escolhas, os historiadores do futuro iro escolher seu destino: sero
eles que iro impor significados, assim como ns o fazemos ao estudar o passado, e no aqueles que o
viveram.357
354 FARGE, Arllete. O sabor do Arquivo. Traduo de Ftima Murad. So Paulo: EDUSP, 2009, p. 72.
355 GADDIS. Paisagens da histria, p.35.
356 BLOCH, Marc. Apologia da Histria ou o ofcio do historiador. Traduo Andr Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2002, p.
7.
357 GADDIS. Paisagens da histria, p.39.
Para o autor:
Ligado s concepes marxistas, o autor fez suas consideraes em paralelo com os primeiros
ensaios da Nova Esquerda Inglesa. Para Mario Liverani os relatos histricos continham um excesso de
detalhes destinados a convencer o pblico que a imagem oferecida era real, suas proposies veem o
documento como revelador de ideologias que partem de um sistema cultural, logo de prticas e condutas
cotidianas.
Nesse sentido, o autor acredita que a histria se assemelha a literatura com descries e detalhes
que aproximariam o leitor da narrativa. Mas essa narrativa no seria despretensiosa, ao contrrio ela
transmitiria as ideias de determinado grupo e pretenderia universalidade de seus anseios. Os relatos
histricos seriam ento representaes no sentido elaborado pelo historiador Roger Chartier.
358 LIVERANI, Mario. Mito y politica en la historiografia del Prximo Oriente Antiguo. Barcelona: Bellaterra, 2006, p.12.
359 ______. Mito y politica em la historiografia del Prximo Oriente Antigo , p.12.
360 CHARTIER, Roger. Histria Cultural: Entre prticas e representaes. Lisboa/Rio de Janeiro: Difel/Bertrand Brasil,
1990, p. 17.
A ideologia no pode ser ignorada nem nos textos antigos nem na forma em que,
como estudiosos da antiguidade, interpretamos e traduzimos estes textos.
Escrever a histria, ainda que histria antiga, longe de ser um exerccio didtico
inocente est inevitavelmente influenciada pelas mudanas polticas, por traos
religiosos, polticos e ideolgicos.363
Assim, a escritura da histria estaria envolta em ideologias, tanto dos autores de tais documentos
como do historiador que labuta sobre eles. Porm importante lembrar que nenhum documento foi
criado com a finalidade de ser histrico, seu fim religioso, administrativo, poltico, particular, o estatuto
de histrico uma construo dos historiadores.
Nesse sentido, concordamos com John Gaddis quando diz que o melhor que os historiadores
poderiam fazer seria representar a realidade, suavizar detalhes, olhar para padres mais abrangentes,
refletir como se pode usar o que se v em prol de seus objetivos365. A narrativa histrica seria ambgua,
direcionada e voltil.
Os historiadores manipulariam o passado e dele extrairiam outra coisa que no ele mesmo, mas
sua representao. Os historiadores em cada temporalidade impem significados aos seus objetos de
estudo, fazem suas selees baseadas em seus interesses pessoais e nas demandas da Academia. Criam
tendncias ou voltam-se aos clssicos, mas suas questes partem de seu tempo, observam o passado sob a
perspectiva do presente366.
Em tempos em que um patrimnio inestimvel vem sendo destrudo no Iraque, lugar onde muito
das culturas da Antiga Mesopotmia descansa ainda sob os tells, torna-se urgente repensar no apenas as
fontes, os mtodos e a escritura da histria sobre esse territrio, mas propor novos olhares de Clio para os
Orientes e sua complexidade.
Resumo: Neste trabalho busco analisar duas correntes de interpretao da histria da literatura
brasileira na primeira metade do sculo XIX. A primeira empreendida por Domingo Jos
Gonalves de Magalhes com a publicao do Ensaio sobre a histria da literatura do Brasil na revista
romntica Nitheroy no ano de 1836 e a segunda iniciada alguns anos depois por Santiago Nunes
Ribeiro, com a publicao do artigo Da nacionalidade da literatura brasileira na revista romntica
Minerva Brasiliense, no ano de 1843. Temos assim, duas linhas de interpretao sobre a histria da
literatura brasileira, que revelam concepes de literatura, histria e histria da literatura, uma na
qual Magalhes afirma que a literatura brasileira s surge, de fato, a partir da emancipao poltica
e outra sustentada por Santiago que defendera a existncia de uma literatura que podia ser
chamada de brasileira desde a colnia, na medida em que este considerava a literatura a expresso
de um povo, de suas condies fsicas e sociais.
Neste trabalho busco analisar e traar uma comparao entre duas correntes de
interpretao da histria da literatura brasileira que surgem na primeira metade do sculo XIX. A
primeira defendida por Domingo Jos Gonalves de Magalhes com a publicao do Ensaio sobre
a histria da literatura do Brasil na revista romntica Nitheroy no ano de 1836 e a segunda iniciada
alguns anos depois por Santiago Nunes Ribeiro, com a publicao do artigo Da nacionalidade da
literatura brasileira na revista romntica Minerva Brasiliense, no ano de 1843.
Tm-se, assim, duas linhas de interpretao sobre a histria da literatura brasileira, que
revelam concepes de literatura e histria distintas: uma na qual Magalhes afirma que a
literatura brasileira surge, de fato, a partir da emancipao poltica e outra sustentada por Santiago
que defendera a existncia de uma literatura que podia ser chamada de brasileira desde a colnia,
na medida em que este considerava a literatura a expresso de um povo, de suas condies fsicas
e sociais. Neste sentido, alguns escritores do perodo colonial j produziriam uma literatura que
possua caractersticas especficas que revelavam a influncia do meio.
A escolha desses dois letrados justifica-se pela influncia que tinham em suas redes
intelectuais e pelos seus esforos em construir uma histria para a incipiente literatura brasileira e
Esforos foram empregados pelos letrados que atuavam nesse movimento com vistas a
dotar o Brasil de maior autonomia cultural, pois embora j houvesse ocorrido a emancipao
poltica, consideravam que o Brasil ainda no possua uma cultura que lhe fosse prpria.
367RICUPERO, Bernardo. O romantismo e a ideia de nao no Brasil (1830-1870). So Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 85.
368______. O romantismo e a ideia de nao no Brasil (1830-1870), p. 86.
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Percebe-se com a formao da crtica literria no perodo um processo de tomada de
conscincia, no qual vai se construir de acordo com Antonio Candido em sua obra Formao da
Literatura Brasileira, um processo de construo de um ponto de vista no qual a literatura clssica
se identifica a colnia e a romntica com a nao independente.
O sentimento que pairava era de que se devia recuperar o tempo perdido tornando-nos
civilizados, entrando para o hall das civilizaes, mas desenvolvendo ao mesmo tempo uma cultura
que nos fosse prpria. Sendo assim, a vinculao com a Frana que aparece no discurso de
muitos letrados do perodo parecia resolver o problema da herana colonial, que seria um dos
fatores que dificultavam a independncia cultural do Brasil em relao a sua antiga metrpole.
369 MAGALHES, Domingo Jos Gonalves de. Ensaio sobre a Histria da Literatura no Brasil Nitheroy T. 1 N1.
Paris: Dauvin Et Fontaine, Libraires, 1836, 132-159.
370 ______. Ensaio sobre a Histria da Literatura no Brasil Nitheroy T. 1 N1, passim.
371 MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Gigante e o Espelho in: GRINBERG, Keila e SALLES, Ricardo (eds.) Coleo O
Minerva
Brasiliense (1843-1845) e Guanabara (1849-1856), para tratar das revistas que contriburam para introduo e
consolidao do romantismo no Brasil.
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publicada em 1836, em Paris, considerada a que inicia esse movimento, com a publicao no
primeiro nmero da revista do Ensaio sobre a Histria da Literatura no Brasil de Domingo Jos
Gonalves de Magalhes, o qual considerado o manifesto do romantismo brasileiro.
Santiago Nunes Ribeiro era natural do Chile, mas h muito tempo viera morar no Brasil,
onde terminou seus estudos. Seguiu depois a carreira do magistrio, no Colgio Pedro II, no qual
atuou como professor de retrica e potica. Fora tambm professor particular de filosofia e dava
aula no Collegio Dinstruco Elementar375; scio do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro; participou
da Sociedade de Literatura Brasileira376 e foi um dos fundadores da Academia Philomtica do Rio de
Janeiro377, sendo importante destacar a sua atuao como censor no Conservatrio Dramtico
373 RIBEIRO, Santiago Nunes. Da nacionalidade da literatura brasileira. Minerva Brasiliense. Vol. I, n1. Rio de Janeiro:
Typographia de J.E.S. Cabral, 1843, p. 7-23.
374 Ver DA SILVA, Innocencio Francisco et al. Diccionario bibliographico portuguez estudos. Vol. 7. Lisboa: Imprensa
Nacional, 1862.
375 Ver Dirio do Rio de Janeiro, Ano XXV- 22 de dezembro de 1846 n. 7388. Trata-se de um anncio do Collegio
Dinstruco Elementar, comunicando a entrada de Santiago, como professor de filosofia, no quadro de professores do
colgio.
376 Ver Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro para o ano bissexto de 1844- Primeiro
dedicada a memria de Santiago Nunes Ribeiro escrita pelo Cnego Fernandes Pinheiro.
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Brasileiro378. A base dessas informaes reunidas acerca do Santiago se encontram no Diccionario
bibliographico portuguez379 e as outras adicionadas so resultados da longa pesquisa empreendida.
Esses dois letrados possuam vises muito distintas acerca da formao da literatura
brasileira, das quais tratarei a seguir me baseando no Ensaio sobre a histria da literatura do Brasil
(1836) de Magalhes e no artigo Da nacionalidade da literatura brasileira (1843) de Santiago.
Primeiramente, destaco no ensaio escrito por Magalhes o papel que o mesmo atribui
literatura, destacando-a como importante na formao da nao, na medida em que a mesma
preserva a histria de um povo. Como pondera Valdei Lopes de Arajo a literatura para
Magalhes seria uma espcie de cpsula do tempo, que conserva a memria de um povo,
atribuindo assim um papel testemunhal literatura.380
Comeo a anlise acerca das vises dos autores com a tese de Santiago, na qual o autor
afirma que o Brasil possui uma literatura prpria desde a colnia, pois considera a literatura a
expresso de um povo, de suas condies fsicas e sociais. Santiago identifica uma cor local do
Brasil, a qual sendo uma espcie de inspirao nativa fazia com que as obras escritas pelos aqui
nascidos pudessem ser consideradas brasileiras, como podemos perceber neste pequeno trecho:
As condies sociais e o clima do Novo Mundo necessariamente devem modificar as obras nele
escritas nessa ou naquela lngua da velha Europa.381. Por outro lado Magalhes no acredita em
uma cultura dita brasileira, na existncia de uma cor local, pois a histria brasileira seria reflexo de
outro povo, herdeira do passado da colonizao portuguesa, como pode ser visto no trecho a
seguir:
Cada povo tem a sua histria prpria, como cada homem seu carter particular,
cada rvore seu fruto especfico, mas esta verdade incontestvel para os
primitivos povos, algumas modificaes, contudo, experimenta entre aqueles
cuja civilizao apenas um reflexo da civilizao de outro povo.382
No que tange a imitao, o escritor Santiago Nunes Ribeiro para defender a literatura
brasileira das acusaes de ser mera imitadora de culturas externas questionara: que espcie de
378 Exames censrios realizados por Santiago encontrados na seo de manuscritos da Biblioteca Nacional.
379 Ver DA SILVA, Innocencio Francisco et al. Diccionario bibliographico portuguez estudos. Vol. 7. Lisboa: Imprensa
Nacional, 1862.
380 ARAJO, Valdei Lopes de. A experincia do tempo. Conceitos e narrativas na formao nacional brasileira (1813-1845). So
Nos ensaios de Magalhes, assim como no de Santiago a poesia destacada por ser
entendida no perodo como a primeira manifestao da literatura, que seria capaz de congregar as
diferentes dimenses da realidade. Ela pode ser entendida nestes ensaios como o gnero que
encarnava a literatura.
Magalhes em seu ensaio afirma que, A poesia brasileira no uma indgena civilizada;
uma grega vestida francesa e portuguesa, e climatizada no Brasil 385. Em resposta a essa
assertiva Santiago define que a poesia uma musa brasileira que seria ... educada na velha
Europa, onde a inspirao nativa se desenvolveu com o estudo e contemplao de cincias e
natureza estranha386. Como se pode ver, os dois letrados possuem concepes distintas acerca da
definio da histria da literatura brasileira.
Enquanto Magalhes considerava a literatura brasileira uma virgem de terra helnica que
teria sido transportada para o Brasil, para Santiago a inspirao nativa fazia com que as obras
escritas pelos aqui nascidos pudessem ser consideradas brasileiras. Portanto, destaca-se no ensaio
do clebre chileno uma espcie de instinto da nacionalidade, que uma das principais
caractersticas do seu pensamento acerca da histria da literatura brasileira e que mais tarde seria
desenvolvido por Machado de Assis387.
Sendo assim, Santiago deixa claro atravs de sua teoria o papel ativo do homem que no
se submete passivamente s influncias, justificando assim, que os clssicos brasileiros no
poderiam fugir dos padres de seu perodo. Portanto, se houve imitao tambm ocorreram
reaes originais e por isto os velhos autores no poderiam ser considerados meros reflexos da
Europa.
O sentimento no perodo era de que a literatura seria capaz de civilizar, tendo assim uma
funo pedaggica/civilizacional. E o literato, que de alguma forma pertence ao tempo europeu,
por meio de seus conhecimentos, na medida em que muitos tinham a sua formao fora do pas,
era o ator principal dessa misso.
388 CANDIDO, Antonio. Formao da literatura brasileira. Momentos decisivos. Vol 1. Belo Horizonte:Editora
Itatiaia,1978, p.300.
389 MAGALHES. Ensaio sobre a Histria da Literatura no Brasil Nitheroy T. 1 N1, passim.
Ver a obra de RICUPERO,Bernardo. O romantismo e a ideia de nao no Brasil (1830-1870), So Paulo: Martins
390
Fontes, 2004.
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O trabalho intelectual do historiador: discutindo a
prtica historiogrfica391
Resumo: assente entre os historiadores a necessidade de discutir sobre sua prtica, seu ofcio,
seu trabalho intelectual e os mltiplos desafios enfrentados no decorrer dessa trajetria. Entre
esses desafios encontram-se explicitar os diversos e diferentes caminhos percorridos, para se
construir a narrativa historiogrfica, os quais podem ser entendidos aqui como o mtodo
histrico prtica/escrita (BLOCH, 2001). E pensar a circulao dessa produo, pois sabemos
dos diferenciais que essa apresenta a partir do pblico a quem direcionada (CERTEAU, 1982).
No entanto, muitas vezes nos dedicamos as nossas temticas de pesquisa deixando de lado a
reflexo sobre nossa prpria prtica, ou seja, percorremos um caminho de trabalho, mas no
refletimos sobre ele e muitas vezes nem mencionamos o(s) mtodo(s) utilizado(s) (GADDIS,
2003). Assim, este artigo se prope a discutir a partir de um tema especifico, neste caso
religiosidade, os diversos elementos que compe uma pesquisa e sua divulgao seja no meio
acadmico ou para um pblico no especializado.
Introduo
Este ensaio se prope a discutir a partir de um tema especifico, neste caso religiosidade,
os diversos elementos que compe uma pesquisa. Para tanto esta discusso se ampara em quatro
obras: O Sabor do Arquivo de Arlete Farge (2009); Paisagem da Histria de John Lewis Gaddis
(2003); Apologia da Histria de Marc Bloch (2001) e A escrita da Histria392 de Michel de Certeau
(1982). Por outro lado, buscou-se na bibliografia especializada o amparo para se discutir a
temtica da religiosidade.
391 Este trabalho foi desenvolvido na disciplina de Mtodos e Tcnicas de Pesquisa em Histria do Curso de
Mestrado em Histria, Cultura e Identidades do PPGH/UEPG. Com financiamento da CAPES/Fundao
Araucria.
392 No caso desta obra utilizou-se apenas o Captulo II: A operao historiogrfica.
393 Jonh L. Gaddis faz uma definio de espao em Paisagem da Histria: como os historiadores mapeiam o passado.
Sendo: local onde os eventos acontecem. p.47.
394 FARGE, Arlete. O sabor do arquivo. So Paulo: EDUSP, 2009, p. 72.
395 BLOCH, Marc. A apologia da Histria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2001.
396 O trabalho de pesquisa desenvolvido agora em nvel de Mestrado teve origem na graduao - Bacharelado em
Histria (UEPG/2006).
397 ABREU, Marta Campos. O imprio do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro (1830-1900). 3.
408 DANTAS, Srgio Neves. Processos interculturais de identidade religiosa: o mundo fulni-. Caminhos. Goinia, v.
5, n. 1, p. 149-177, jan/jun. 2007.p. 149.
409 Quando usa-se testemunho referimo-nos a relatos dos primeiros festejos encontrados nos peridicos que fazem
413 SANCHIS, Pierre. Tramas sincrticas da histria: Sincretismo e modernidades no espao luso-brasileiro. Revista
Brasileira de Cincias Sociais. So Paulo: Anpocs.p.p.123-138 n. 28, 1995. p. 126.
414 CHARTIER, Roger. O mundo como representao. Estudos Avanados. Abr.1991, vol.5, n.11, p.173-191
415 CERTEAU, Michel de. A inveno do cotidiano, artes de fazer. Petrpolis: Vozes, 1994, p. 45-48.
416 BLOC A apologia da Histria. p. 45.
Palavras-chave: exlio; Edward Said; Tzvetan Todorov; intelectuais; condio exlica; conflito
identitrio.
O exlio, por ser um fenmeno multifacetado, tem sido objeto de estudos em diferentes
reas do conhecimento: antropologia, histria, psicologia, sociologia, literatura, geografia etc. No
de se estranhar que um mesmo fenmeno possa proporcionar abordagens diversas, j que,
principalmente, durante o sculo XX, os Estados nacionais transformaram o exlio em prtica
corrente. Em muitos casos, a necessidade de se (re) afirmar como nao envolve a elaborao de
uma Histria oficial, a (re) construo de uma identidade e um panteo nacional, rituais cvicos e,
sobretudo, uma violncia estatal ideolgica e fsica capaz de manter seres humanos heterogneos
aglutinados sob uma mesma bandeira. Nesse contexto, o exilo foi uma importante ferramenta
para afastar a dissidncia poltica e grande parte dos indivduos que no se enquadravam dentro
do projeto nacional.
Discorrer sobre o exlio sempre complexo, pois analis-lo implica em refletir sobre o
conflituoso processo de constituio, reconstruo e/ou reorientao da conjuntura cultural,
social e/ou poltica do Estado nacional. Impossvel mencionar um sem se remeter ao outro, uma
vez que o exlio a fraqueza e/ou a intolerncia estatal em abrigar ideias e projetos de vida
417Verso resumida para a apresentao em Simpsio Temtico e a posterior publicao nos Anais do IV Encontro
de Pesquisa em Histria na UFMG.
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diferentes do oficial. Contudo, no nos encontramos diante de uma simples estrutura de causa e
consequncia, o exlio, enquanto estratgia de isolar/banir o indivduo de sua terra natal, remonta
ideia de ostracismo na Antiguidade Clssica.418 Nesse sentido, a definio desse termo algo
problemtico e possui um longo lastro histrico; operar com uma de suas acepes uma
escolha a ser tomada e justificada pelo pesquisador em relao ao seu objeto de estudo. Faz-se
essa ressalva, obviamente no por acaso, pois esta monografia investiga as autobiografias Minima
Moralia: Reflexes a partir da vida lesada (1951), Fora do lugar (1999) e O homem desenraizado (1996) dos
exilados: Theodor Adorno, Edward Said e Tzvetan Todorov respectivamente.
Ciente que esse trabalho situa-se num dos inmeros campos de pesquisa sobre o exlio,
considero imprescindvel, antes de tudo, apresentar o conceito, defendido por Luis Roninger e
Mario Sznajder:
418 Para a compreenso do debate historiogrfico acerca da definio de exlio ver: SZNAJDER, Mario y
RONINGER, Luis. Hacia una definicin de la condicin del exlio. In: La poltica del destierro y el exlio en Amrica
Latina. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 2013.
419 SZNAJDER, Mario y RONINGER, Luis. La poltica del destierro y el exlio en Amrica Latina. Mxico: Fondo de
Nesse sentido, torna-se essencial apresentar um breve resumo dos percursos de vida dos
autores em questo.
Edward Wadie Said nasceu em Jerusalm, no ano de 1935. A regio era administrada pelo
Mandato Britnico da Palestina. Os ingleses, ante a prerrogativa imperialista, elegeram-se
encarregados da generosa misso de gerenciar o territrio at o povo atingir a maturidade
necessria independncia. Nesse contexto instvel, Said viveu treze anos na Palestina at ser
substituda pelo emergente Estado de Israel. A partir de ento, a vida de sua abastada famlia
transformou-se numa sucesso de deslocamentos e tentativas de adaptao a ambientes
estrangeiros. Seu pai, nascido tambm em Jerusalm, obteve cidadania norte-americana devido a
servios militares prestados durante a Primeira Guerra Mundial. Desse modo, Said e as suas
quatro irms obtiveram por direito hereditrio a cidadania estadunidense. Filho de rabes cristos,
sua me era de Nazar, Said foi educado em escolas pautadas nos valores ocidentais tanto em
Jerusalm como no Cairo. Em 1951, frente instabilidade poltica e aconselhado por seu pai,
mudou-se para os Estados Unidos onde concluiu seu ensino secundrio e seguiu carreira
acadmica at concluir seu doutorado na Universidade de Harvard. Torna-se professor de
literatura comparada da Universidade de Columbia em 1963. Concebido como um dos maiores
crticos literrios dos EUA e pensador sobre o mundo rabe, faleceu aos 67 anos aps uma rdua
batalha contra a leucemia. Durante a tentativa de vencer o cncer, que o levaria morte em 2003,
escreveu o livro, Fora do Lugar, retratando as suas memrias e a sua trajetria pessoal.
Nascido em Sfia no ano de 1939, Tzvetan Todorov deixou Bulgria aos 24 anos para
continuar seus estudos na Frana. Mora em Paris, desde 1963, onde continuou a carreira
acadmica tornando-se um influente crtico literrio. Naturalizado francs, o nico autor em
anlise ainda vivo. Alm disso, denomina-se um exilado circunstancial, j que tomou a deciso
de deixar Bulgria sem nenhuma perseguio e/ou constrangimento estatal. Permaneceu por
dezoito anos sem retornar ao pas natal temendo as prticas vigentes no regime sovitico-blgaro.
Em 1981, volta Bulgria e descobre o carter dbio de sua identidade. A sensao de pertencer
a duas culturas ao mesmo tempo o tema de O homem desenraizado. Nessa obra, Todorov reflete
sobre o pas onde cresceu, e sobre a Frana e os Estados Unidos que visita anualmente h trs
dcadas. Intelectual de ampla influncia no mundo, denuncia, em seu livro, a crueldade do
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totalitarismo nos pases do antigo bloco sovitico e critica a intolerncia nas democracias.
Autor de mais de vinte livros, Todorov conhecido por seu trabalho como ensasta, historiador e
filsofo.
Depois dessa breve introduo sobre os trs intelectuais, observa-se um aspecto crucial a
condio exlica particular de Todorov:
O pavor do retorno, ao mesmo tempo em que anuncia a predileo nova ptria, aponta
a conexo inquebrantvel com o seu local natal. Sentimento ambguo compartilhado por outros
exilados, no entanto, a viagem de volta aventada, por Adorno e Said, com um vis redentor.
Esse ponto ser explorado ao longo do texto.
Os ttulos das autobiografias, Minima Moralia: Reflexes a partir da vida lesada, Fora do lugar e
O homem desenraizado, so bastante elucidativos em relao ao desconforto provocado pelo
desterro. Para alm do deslocamento geogrfico, o exilado passa a perceber outra dimenso
temporal:
420TODOROV, Tzvetan. O homem desenraizado. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999, p. 15.
421TODOROV, Tzvetan. O homem desenraizado. p. 14
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por Joseph Wittlin), pois o exilado seria despojado no s de sua terra mas
tambm dos acontecimentos de seu tempo que transcorre em seu pas
enquanto ele est fora. Tambm, frequente que, durante o exlio se viva em
dois tempos simultneos, no presente da terra que acolhe e no passado que se
deixou para trs, sendo que esse ltimo pode tiranizar o presente pela nostalgia
do que se perdeu.422
O exlio divide a vida do indivduo em duas partes, com marcadores temporais distintos.
No passado, localizam-se as memrias nostlgicas do ambiente de origem e dos laos
socioculturais rompidos pelo exlio. No presente, vive-se numa realidade imposta em que o
exilado acompanhado pela sombra do passado. Lidar com a confluncia de dois tempos talvez
seja o primeiro desafio do exilado uma vez que a sua sobrevivncia depende das aes no
presente, e o passado deve ser manejado de forma a no aprision-lo naquilo que j passou. A
cronologia habitual da vida interrompida e o futuro passa depender de como o exilado opera o
destempo. Alm disso, enfrenta todas aquelas especulaes do que poderia ter vivido e sido se
o exlio no lhe tivesse ocorrido.
Tal como tantos outros, perteno a mais de um mundo. Sou um rabe palestino
e tambm sou americano. Isso me possibilita uma dupla perspectiva esquisita,
para no dizer grotesca. Alm disso, sou um acadmico. Nenhuma dessas
identidades estanque: cada uma delas influencia as demais. O que complica as
coisas que os Estados Unidos acabaram de travar uma guerra destruidora
contra um pas rabe, o Iraque, o qual havia ocupado ilegalmente o Kuwait,
outro pas rabe, e pretendia praticamente elimin-lo. Os Estados Unidos so
tambm os principais patrocinadores de Israel, o Estado que aniquilou a
sociedade e o mundo em que nasci. Israel administra agora uma bruta ocupao
militar dos territrios palestinos da Cisjordnia e da faixa de Gaza. Assim,
tenho de superar as vrias tenses e contradies implcitas em minha
biografia.423
Observam-se as diversas contradies imbricadas na vida de Said, ele cita a sua pertena a
dois mundos distintos, a sua ocupao profissional e ainda pondera a respeito da atuao da
conjuntura externa sobre as identidades assumidas. Admitindo duas identidades radicalmente
distintas: rabe palestino e norte-americano, ele reconhece o resultado grotesco gerado pela
422VOLPE, Miriam L. Geografias do exlio. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005, p. 82.
423SAID, Edward. Reflexes sobre o exlio e outros ensaios. So Paulo: Editora Schwarcz Ltda., 2003, p. 200-1
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inviabilidade de uma coexistncia pacfica. O conflito identitrio est posto e tambm passa pelo
fato de ser um acadmico de destaque na sociedade estadunidense e um intelectual engajado na
causa palestina. Educado em escolas britnicas e em instituies norte-americanas, a sua posio
de professor universitrio deve-se ao seu esforo e oportunidade, proporcionada pelos EUA, de
desenvolver uma carreira acadmica. Contudo, o mesmo pas que promoveu as suas condies de
vida constitui-se no maior patrocinador do Estado judaico, que, por sua vez, responsvel pela
morte de milhares de palestinos. Sem dvida, o apoio do governo dos EUA foi e continua sendo
fundamental para o estabelecimento e a expanso territorial de Israel, o que necessariamente
implica no confinamento progressivo do povo palestino a reas restritas e rigorosamente vigiadas
pelo exrcito israelense. Desse modo, a Palestina configura-se na maior priso a cu aberto
existente no mundo, tendo em vista a barreira fsica imposta pelo muro da Cisjordnia e o severo
controle de entrada e sada dos palestinos. Said, ao relatar a ocupao militar israelense nos
territrios palestinos, no trecho supracitado, no esteve vivo para acompanhar o infeliz desfecho
do conflito que culminou no endurecimento das polticas de vigilncia e na construo desse
extenso muro.424
Nota-se o carter efmero da moradia proporcionada pela escrita, consenso entre Said e
Adorno. Nesse ponto, intento problematizar a posio defendida pela Adelia Ribeiro: Trago
427
ainda de Said e Adorno a ideia de que a escrita a mais concreta morada do intelectual.
Embora a escrita seja a principal ferramenta de ambos pensadores para reivindicar a existncia e
expor as ideias, eles insinuam a sua potencialidade trapaceira provendo conforto aonde no h.
Adorno manifesta a obrigao do intelectual de manter-se fiel a sua condio exlica:
Retirado de sua terra natal, o desterrado, num primeiro momento, perde as referncias
culturais, deslocando-se da vida privada pblica. Estrangeiro noutra comunidade tem a opo
de se ajustar ao novo cenrio: Quem est isento da vergonha da nivelao pura e simples traz
425 ADORNO, Theodor. Minima Moralia: Reflexes a partir de uma vida lesada. Rio de Janeiro: Beco do Azougue
Editorial Ltda, 2008, p. 83.
426 SAID, Edward. Reflexes sobre o exlio e outros ensaios, p. 315.
427 RIBEIRO, Adelia. Intelectuais no exlio: onde a minha casa?Revista Dimenses, vol.26, 2011, p. 156.
428 ADORNO, Theodor. Minima Moralia: Reflexes a partir de uma vida lesada, p. 29.
Said teve de se contentar com uma viagem melanclica, em 1998, que anunciava o seu
adeus a Jerusalm, pois j se encontrava em tratamento contra o cncer. L constata que as
cidades e os lugarejos nos quais habitavam sua famlia haviam se transformado numa srie de
locais israelenses onde a minoria palestina vivia subjugada ao Estado de Israel. Diferentemente de
Adorno, seu retorno em carter definitivo terra natal nunca transgrediu a dimenso imaginria.
Contudo, em consonncia com o pensador alemo, encerra seu livro com a mxima: Com tantas
Por outro lado, aps dezoito anos ausente, Todorov viaja Bulgria, em 1981, precavido
sob todos os aspectos a fim de que seu sonho no tornasse realidade. O temor de ser impedido
de deixar Sfia foi dissipado, bem como os pesadelos. O retorno descortinou uma nova
dimenso de sua identidade. A ele lhe cabe uma percepo peculiar do refgio adotado,
dissonante dos demais autores:
Ele atribui a sua existncia experincia de vida francesa. A sua carreira acadmica
desenvolvida na Frana, que o estabeleceu como professor e pesquisador, confiam-lhe uma
posio social clara. desse lugar que ele enuncia-se sem dispensar os seus laos com a Bulgria
e os Estados Unidos. Portanto, a sua morada slida, pois est fincada num lugar especifico:
Paris.
Consideraes finais:
431 SAID, Edward. Fora do lugar. So Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 429.
432 TODOROV, Tzvetan. O homem desenraizado, p. 20-1.
Contudo, devido ao fato de no ser perseguido e expulso de seu pas, a sua adaptao
ptria estrangeira foi menos traumtica quando comparada aos outros dois autores. No se trata
de mensurar o imensurvel ou estabelecer quem agonizou mais, e sim de apreender que os
obstculos impostos vida dos exilados so particulares e influenciam na sua concepo de
exlio. A identificao de Todorov no dada por acaso e nem justificada simplesmente pela sua
condio de exilado circunstancial. Quando adentramos no campo subjetivo, o nvel de
complexidade aumenta, haja vista a pluralidade de agentes atuantes que orientam as diversas
sensaes e sentimentos. Nesse sentido, torna-se impossvel explicar tais condicionantes, mas
nem por isso devemos relevar alguns fatos. Adorno e Said foram banidos de suas naes, o
primeiro perseguido por sua origem judaica e o segundo por ser rabe palestino. Observa-se a
palavra nao, pois a Palestina, ainda hoje, no reconhecida como Estado por muitos
pases.433As suas vidas estavam em risco e, no caso do intelectual palestino, ele foi forado a
emigrar duas vezes de Jerusalm ao Cairo e de l aos Estados Unidos. Soma-se a isso a
impossibilidade de retorno de Said, contrastante com Adorno que volta a viver na Alemanha.
Talvez no seja coincidncia que todos os trs intelectuais tenham atuaes multidisciplinares, j
que o exlio propiciou-lhes uma leitura mais ampla e crtica do mundo ao seu redor. Seguramente
a afinidade de Said com a condio exlica percebida por Adorno no casual, a interlocuo
com o filsofo alemo se d em diversas partes do livro, Reflexes sobre o exlio e outros ensaios, e
permeia a sua viso inquieta. Adotar a condio exlica como moradia tornou-se um imperativo
moral, e a escrita foi o principal instrumento questionador e difusor de crticas acerca da realidade
catica instaurada. Todorov percorre outro caminho, admitindo Paris como casa e espao de
enunciao, porm no deixa de lanar a sua mirada estrbica s circunstncias em seu entorno.
A identidade fragmentada, partilhada tambm pelos outros autores, dilata o escopo tico,
possibilitando ao menos um entendimento sob dois vieses diferentes. Assim, aceitar a premissa
que o todo no verdadeiro434 constitui-se no primeiro passo do desterrado na tentativa de
questionar esse mundo abarrotado de certezas.
433 De acordo com uma contagem da Agence France-Presse (AFP), pelo menos 112 pases reconhecem o Estado da
Palestina. A Autoridade Palestina, afirma que so 134 pases.
434 ADORNO, Theodor. Minima Moralia: Reflexes a partir de uma vida lesada, p. 46.
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo discutir a relao existente entre a Literatura e a Histria a
partir da anlise comparativa dos romances Tenda dos milagres (Jorge Amado) e Viva o povo brasileiro
(Joo Ubaldo Ribeiro). Pretende-se evidenciar que, nessas narrativas, a Histria do Brasil
contada por vrias vozes, representativas da elite e, sobretudo, do povo, fazendo com que esses
romances se transformem em instrumentos de denncia, visto que trazem tona perodos
sombrios da Histria brasileira, principalmente a perseguio cultura afro-brasileira. Ao discutir
acerca dos eventos histricos transfigurados em ambas as produes literrias, destaca-se que a
voz do povo at ento silenciada atravs da violncia praticada pelos poderosos , ganha fora,
por meio da maior de todas as armas: o conhecimento, disseminado, nos dois enredos, por
intermdio de Pedro Archanjo e Maria da F.
Introduo
A Histria constitui-se um produto do historiador, que tem como matria prima os fatos,
mas que adiciona a eles, um recorte, um ajustamento e sua interpretao. Atravs de documentos
e/ou inscries, entre outras fontes, o historiador realiza pesquisas, faz uma seleo e analisa se
um fato relevante o bastante para se tornar histrico. Dessa maneira, ele no apenas conta ou
reconta os fatos, mas de alguma maneira os cria, medida que adiciona a eles a sua viso de
mundo e muitas vezes os seus interesses.
435 COUTINHO, Afrnio. Notas de teoria literria. Petrpolis, RJ: Vozes, 2008.
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Atravs dela, o leitor viaja no tempo e no espao, dialoga com homens e culturas de sculos
distantes e conhece fatos que precederam o momento que vive. Afinal,
436 BORGES, Helosa Barreto. Uma leitura do romance Tenda dos milagres, de Jorge Amado: a relao tridica
real/fictcio/imaginrio no texto literrio. Sitientibus, Feira de Santana, v. 1, n. 37, p. 113 133, 2007, p.117.
437 ISER, A. Wolfgang. Os atos de fingir ou o que fictcio no texto ficcional. Trad.: Hidrun Krieger Olinto e Luiz
Costa Lima. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2002.
438FERREIRA, Antnio Srgio. Relaes entre Literatura x Histria, p.10. Disponvel em:
<http://www.semar.edu.br/revista/pdf/artigo-antonio-sergio-ferreira.pdf>. Acesso em: 23 jun. 2012.
439 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Histria, literatura e cidades: diferentes narrativas para o campo do patrimnio. In:
verdade que a Literatura parte dos fatos da vida ou os contm. Mas esses
fatos no existem nela como tais, mas simplesmente como ponto de partida. A
Literatura, como toda arte, uma transfigurao do real, a realidade recriada
atravs do esprito do artista e retransmitida atravs da lngua para as formas
que so os gneros e com os quais ela toma corpo e nova realidade. Passa,
ento, a viver outra vida, autnoma, independente do autor e da experincia de
realidade de onde proveio. Os fatos que lhe deram s vezes origem perderam a
realidade primitiva e adquiriram outra, graas imaginao do artista. So agora
fatos de outra natureza, diferentes dos fatos naturais objetivados pela cincia ou
pela histria ou pelo social.441
Com base neste raciocnio, que tambm defendido por Wolfgang Iser442, cabe afirmar
que o texto literrio possui fragmentos da realidade mesmo sem necessariamente mencion-los
dando-lhes no um valor de repetio, mas criando, muitas vezes, outras verses, utilizando
estratgias de representao da fico e misturando o imaginrio e o real.
A esse respeito, Gerson Luiz Roani443 salienta que ao aplicar-se ao processo de elaborao
do texto, tanto o romancista quanto o historiador buscam captar o momento histrico ao qual
esto vinculados, procuram conhecer documentos que contam os fatos e os organizam a partir de
seu ponto de vista para constituir seus discursos. Logo, conforme salienta o referido autor, tanto
na Histria quanto na Literatura, os acontecimentos no so simplesmente expostos, eles so
criados, pois suas construes compartilham o mesmo ato de organizao e representao do
mundo, so narrativas proporcionadoras de conhecimento sobre o ser humano.
Hayden White444, por sua vez, evidencia que a ficcionalidade de um texto algo que est
presente no s em textos literrios, mas em outros que compe o acervo cultural da sociedade,
como, por exemplo, o texto histrico. Segundo o autor, os historiadores sempre criaram verses
do mundo real, partindo dos eventos, utilizando estratgias de representao da fico. No
entanto, investigar essa relao entre Literatura e Histria no significa buscar apenas o reflexo de
Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 1994. (Ensaios de Cultura; vol. 6), 1994.
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uma na outra, pois, mais do que a imagem, a Literatura seria antes o imaginrio da Histria. Isso
significa que, se Literatura e Histria no so independentes uma da outra, elas tampouco so
ligadas por uma relao mecnica de causa e efeito. 445 Afinal, a Literatura reflete, naturalmente,
o momento histrico, e como tal, constitui-se a representao da Histria.
Tem-se como saber cristalizado que o texto fictcio se ope ao real. Porm, Iser 446
protesta essa oposio, questionando se os textos ficcionais so de fato, em sua totalidade, fico
e se os textos considerados reais, como os histricos, por exemplo, esto insetos de fico. Logo,
o autor prope que a oposio fico e realidade deva ser substituda por uma nova seleo, a
trade real, fictcio e imaginrio. Posto isso, Iser (2002) adverte que o texto literrio, apesar de
ficcional, tem um carter de realidade, pelo fato de nele existir uma repetio dessa realidade que
no se esgota nela mesma. Ento, essa repetio, que apresenta finalidades que no pertencem
realidade repetida, torna-se um ato de fingir. Assim, o ato de fingir ganha sua marca prpria, que
de provocar a repetio no texto da realidade vivencial, por esta repetio atribuindo uma
configurao ao imaginrio, pela qual a realidade repetida se transforma em signo e o imaginrio
em efeito do que referido 447.
Dessa forma, o autor estabelece uma relao tradica entre o real, o fictcio e o imaginrio,
e apresenta o ato de fingir no texto ficcional como a irrealizao do real e a realizao do
imaginrio. Sobre o ato de fingir, Iser448 esclarece, ainda, que cada texto ficcional retm contextos
pr-existentes, elementos essenciais para a composio do mesmo, que podem ser elementos
histricos, social, cultural, poltico ou literrio. Contudo, esses elementos contextuais integrados
no texto no so em si fictcios, apenas a sua seleo449. Seria questionvel, ento, a oposio da
Literatura, como sinnimo de fico ou mentira, e da Histria, como sinnimo da realidade ou
verdade. Afinal, como j questionou Roland Barthes:
445 FREITAS, Maria Teresa de. Literatura e Histria. So Paulo: Atual, 1986, p.151.
446 ISER. Os atos de fingir ou o que fictcio no texto ficcional.
447 ISER. Os atos de fingir ou o que fictcio no texto ficcional, p.958.
448 ______. Os atos de fingir ou o que fictcio no texto ficcional.
449 Aqui, a seleo entendida como um dos atos de fingir proposto por Iser, que abarca ainda a combinao e o
autodesnudamento, que tambm podem ser observados nos romances corpus desse estudo.
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esta narrao realmente, por algum trao especfico, por uma indubitvel
pertinncia, da narrao imaginria, tal como a podemos encontrar na epopeia,
o romance ou o drama? 450
450 LE GOFF, Jacques. Histria e Memria. 5ed. Campinas: editora da Unicamp, 2003. p. 65.
451 BAKHTIN, M. Os gneros do discurso. In: Esttica da Criao Verbal. 2. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1997. p.
279-326.
452 CARVALHAL, Tnia Franco. Literatura Comparada. So Paulo: tica, 1986, p.7.
A histria contada pelo povo e o discurso da elite em tenda dos milagres e viva o
povo brasileiro
Consagrados como romances de cunho popular, Tenda dos milagres e Viva o povo brasileiro
lanados, respectivamente, em 1969 e 1984, so considerados dois clssicos da literatura
baiana/brasileira, que recriam, numa ordem cronolgica no linear, a Histria do pas, revelando
o discurso daqueles que foram silenciados, atravs de um jogo com datas e anos. De acordo com
Olivieri-Godet,
uma relao entre o espao e a memria permite reconstruir o vivido por uma
comunidade. Descobrem-se a inumeras representaes da nao ligadas ao
fator de classes, aos diferentes sistemas culturais e conjuntura histrica no
decorrer da qual a nao se desenvolveu.455
453 SANTOS, Itazil Bencio dos. Jorge Amado: retrato incompleto. Rio de Janeiro: Record, 1993, p.76.
454 OLIVIERI-GODET, Rita. Construes identitrias na obra de Joo Ubaldo Ribeiro. So Paulo: HUCITEC, 2009, p.24.
455 OLIVIERI-GODET. Construes identitrias na obra de Joo Ubaldo Ribeiro, p.33.
Embora este fragmento seja da obra Viva o povo brasileiro, a colocao abrange tambm
Tenda dos milagres. Afilnal, ambas evidenciam que a Histria chamada de oficial baseia-se no
discurso dos poderosos e, portanto, narra os fatos conforme seus interesses.
Desse modo, os dois romances mencionam vrios eventos histricos, alguns ocorridos de
fato, e outros, inventados, trazendo tona perodos sombrios da Histria brasileira, sobretudo, a
perseguio cultura afro-brasileira. Dentre vrios outros eventos, podem ser citados, na obra
ubaldiana, a colonizao, a independncia do pas, a libertao dos escravos e as guerras de
Canudos e do Paraguai; j na produo amadiana, discorre-se, principalmente, acerca da ditadura
militar e do apartheid. No entanto, a eles so adicionados novos elementos, mostrando, sem
hierarquias, os discursos dos oprimidos e da elite. Esta, por sua vez, formada por poderosos,
que desprezam o estado em que nasceram, por ser, conforme sua viso, bero de negros,
mestios, ndios e pobres:
456 RIBEIRO, Joo Ubaldo. Viva o povo brasileiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007, p.488-489.
Percebe-se, ento, toda a violncia e perseguio sofridas pelo povo nesses enredos, mas
fazendo uso de seu prprio conhecimento, que o povo luta para ter voz ativa. Mas essas aes
sempre foram e ainda so reprimidas pela classe dominante, como destacara Loureno, filho de
Daf e Macrio, personagens de Viva o povo brasileiro:
460 AMADO, Jorge. Tenda dos milagres. 16 ed. Rio de Janeiro: Record, 1976, p.81
461 SANTOS. O anti-discurso histrico da manifestao popular em Viva o povo brasileiro, de Joo Ubaldo Ribeiro, p.131.
462 AMADO. Tenda dos milagres, p.284.
Esse enxerto demonstra que os menos favorecidos sempre foram deixados margem da
sociedade e da Histria, embora sejam a maior parte constituinte da populao do Brasil, desde
os tempos primordiais. Contudo, como evidenciado por Pedro Archanjo: gesto intil e triste, o
dio de raas no pode vingar no clima brasileiro, [pois] nenhum muro de preconceito resiste ao
mpeto do povo.464
Consideraes finais
Assim, atravs desse estudo comparativo, depreende-se que nos romances Tenda dos
milagres e Viva o povo brasileiro os eventos histricos tranfigurados so apresentados sob vrios
pontos de vista, atravs de diferentes vozes sociais, representativas da elite, mas sobretudo do
povo. Trazendo tona perodos sombrios da Histria brasileira, principalmente a perseguio
cultura afro-brasileira, revelando o discurso daqueles que foram silenciados, fazendo com que o
objeto enunciativo, marcado por uma histria de marginalizao e preconceito, se transforme em
sujeito de enunciao. Impulsionando, por consequncia, discusses sobre os problemas sociais e
a sociedade brasileira.
Dessa meneira, com seu carter ficcional, os romances Tenda dos milagres e Viva o povo brasileiro so
representaes literrias da Histria, transfiguraes da Histria considerada oficial, que
utilizada como campo de referncia nessas narrativas para criar uma crtica prpria Histria,
fazendo com que a noo de verdade relativize-se; proporcionando ao leitor um questionamento
de at que ponto o que se assume como verdade histrica no contm, assim como a
Literatura, uma reinveno. Conquanto, esses romances vo mais alm, se transformam em
instrumentos de denncia, medida que reconstroem e criticam a hierarquia das raas,
mostrando a luta dos negros e mulatos pela afirmao da cultura popular.
463 RIBEIRO, Joo Ubaldo. Viva o povo brasileiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007, p.578.
464 AMADO. Tenda dos milagres, p.263.
Resumo: O presente trabalho visa tratar da estreita relao entre a produo de textos satricos e
seus produtores. Os estudantes ditos Vadios que transgrediam os valores de uma Retrica e de
uma Esttica, que ordenavam todo o extrato de cultura Erudita ou Alta Cultura por Mikhail
Bakhtin, bem como a prpria vida, e essa regra desde a antiguidade, como regra de arte e regra
de existncia e de produo e reproduo da vida material, que se pautava na trplice Bom, Belo
e Verdadeiro, minha inteno estabelecer contato entre essa produo satrica, considerando a
relao autor(es)-textos e a relao de ambos com a Igreja Catlica Medieval que em sua
multiplicidade de formas, ora julga, mas faz questo de trazer para si esses textos de forma a
preservar, dialeticamente, o que perseguia, como fica claro na dinmica dos debates sobre o
Christos Agelastus.
Proponho em um primeiro momento, a comparao entre o modelo de Estudante Perfeito, que
pode ser observado em Pedro Abelardo em comparao com o pice da transgresso que nos
chega por meio da defesa jurdica em forma de poema efetuada pelo Estudante Goliardo de
Nome desconhecido autointitulado O Grande Archipoeta. Fim de salientar as brechas e
deslizes em ambos os modelos e suas intrnsecas relaes com o Renascimento Cultural do
Sculo XII. Em um segundo momento pretendo expor com mais clareza a efetividade desse
movimento dialtico que triunfa sobre o controle do imaginrio medieval, mas deixa brechas,
dentro da Alta Cultura, onde fenmenos ligados ao Renascimento do Sculo XII fazem deslizar
dentro da teologia, da produo de saber e dentro da prpria cultura universitria, esta ligada a
nova cultura das cidades, como aponta Patrick Gilii, uma produo de versos e poemas que
apontam para um humanismo, uma liberdade e uma valorizao das vicissitudes humanas, que
em tempos de renascimento cultural do sculo XII foram abandonadas em prol de uma ascese.
Essa relao complexa pelo carter dialtico e dialgico deste estudo se mostra como um campo
profcuo de estudos sobre as relaes de poder e f, por conta de sua abrangncia social e
teolgica.
Palavras Chave: Idade Mdia; Renascimento Cultural do Sculo XII; Riso; Histria do Riso;
Goliardos;
Se fosse possvel localizar a criao mais original que define o perodo do Renascimento
do Sculo XII, poder-se-ia apontar, em primeira mo, os Intelectuais. As escolas Catedrais e as
Universidades s entrariam em segunda mo, pois, a originalidade est, nesse caso, nos
frequentadores e no nos locais.
Mas em termos quantitativos, essas escolas eram muito limitadas. A partir do sculo XII,
acompanhando as profundas transformaes que advieram nesse perodo, houve uma grande
expanso do ensino e uma grande expanso quantitativa em relao ao nmero de escolas, graas
expanso das cidades e mobilidade social que se instaurou dentro do Ocidente medieval,
graas aos excedentes propiciados pela efervescncia agrria que agora era um fator definidor,
pois dotava a cidade da capacidade de receber e alimentar um pblico muito maior.
Mas como j foi discutido acima, a expanso se deu para dentro, e algumas amarras no
cabiam mais dentro dessa nova ordem inovadora. As antigas escolas estavam circunscritas ao
programa estipulado pela Igreja e sob essa gide, os homens das geraes do sculo XII no
poderiam ter feito mais do que os da gerao anterior haviam feito, se houvessem se mantido
dentro de um programa de estudos que se refere a uma reproduo de um programa pensado e
uma sociedade, como aponta Le Goff, que se pensava como viva em um outono, ou seja, no seu
pice.
O sculo XII aparece marcado, nos mbitos de estudos, com a grande variedade dos
mtodos de ensino, apesar de que nos programas, os modelos do trivium e do quadrivium tenham
sobrevivido por bastante tempo. E toda essa transformao levar a uma importante mudana no
corpo discente, j que o corpo institucional e formador havia se transformado para receber os
novos homens em busca de um saber igualmente novo, agora, diferenas marcantes aparecero
na sociedade urbana medieval. Primeiramente, os alunos no fazem mais objees a serem apenas
um pblico formado, mas agora seguem novos programas, com a dialtica comeando a se tornar
a principal fonte de produo de conhecimento. A partir da virada no ensino do sculo XII,
temos a figura do Intelectual, um homem de ofcios que aparece com o desenvolvimento das
E mais do que simples acompanhantes dos grandes poderes, esses Intelectuais esto no
topo de uma cadeia de transformaes que so operadas nessa sociedade. Eles so, ainda segundo
Le Goff:
E para ilustrar melhor a forma como se deram essas mudanas e o que eram os
intelectuais desse momento, temos aqui dois exemplos, o do estudante que representa o auge de
uma poca e o que h de desviante nessa nova relao estabelecida: Pedro Abelardo e So
Bernardo de Claraval, j citados mais atrs.
O primeiro tido pela historiografia moderna como o criador da escola moderna por
conta de seu papel como grande mestre e intelectual. Tendo vivido em um momento de grandes
transformaes que no se encerram nelas mesmas, Abelardo esteve durante um perodo na
escola da Catedral de Laon, para depois se dirigir maior cidade do mundo ocidental, que na
poca Paris, com a escola mais inovadora do momento. L ele se torna um magister e ganha a
licena para lecionar e monta sua prpria escola, em Sainte Genevive. Para Jacques Verger, a
465 Conforme aponta Le Goff em seu livro Os Intelectuais da Idade Mdia, o termo Clerc (Clrigo em Francs)
pode representar do mesmo modo, sacerdote estudioso, erudito e sbio.
466 LE GOFF. Jacques. Os Intelectuais na Idade Mdia. 4 Edio. Rio de Janeiro: JOS OLYMPIO, 2011. Pag. 25
467 ______. Os Intelectuais na Idade Mdia. Pag.41.
Ao contrrio desse modelo de estudante, que meso crescendo e atuando fora dos limites
impostos pela Igreja, temos um caso que nos ilustra bem o outro pelo dessa existncia golirdica.
O Grande Archipoeta, como ficou conhecido, foi um estudante que esteve hospedado e
empregado na corte de Frederico Barbaroxa, tem nos Carmina Burana um poema, longo, que,
segundo Woensel considerada a sua defesa jurdica. O Poema intitulado Estuans Interius pode
ser dividido em duas partes muito bem definiadas. Onde na primeira temos um reconhecimento
da vida torpe e libertina da existncia no ligada a nada seno a prpria vontade, do poeta.
ALBERTI, Verena O Riso e o Risvel na Histria do Pensamento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/Editora Fundao
468
Le Goff comea seu livro, Por Amor s Cidades com uma afirmativa clara e direta, que
as Cidades Medievais esto mais prximas das cidades contemporneas do que as cidades da
antiguidade474, conforme citamos mais atrs, ao comentar sobre as mudanas operadas na
significao da Cidade para o homem do baixo medievo. Mas o que nos importante saber que
desde o sculo XII, a evoluo das cidades medievais consistiu na reunio, lenta e numa nica
instituio, do ncleo primitivo de um ou dois burgos importantes.475. Ou seja, a cidade se
mostra como polo para onde convergem todas as relaes de poder e por si s, de um setor da
cultura que acaba sendo engolido e transformado, dialeticamente, pela cultura da cidade, me
refiro s instituies de ensino, que antes se dedicavam a formao dos religiosos e que agora
tero seu espao to modificado pelas relaes com a cidade quanto todo o entorno de poder.
Agora, os studii e as faculdades contam com a participao de novos entes, no circunscritos s
trs ordens feudais - os que trabalham os que oram e os que laboram -, mas que so abundantes,
de certa forma, e atuantes na vida da cidade, os intelectuais. Figuras que esto ligadas cidade
em seu jogo de instituies (Cidade, Universidade, Igreja) e das convenes sociais.476 e esse no
lugar definidor de duas posturas: a primeira delas que ao Intelectual foi dado o ttulo e status
473 MACEDO, Jos Rivair de. Riso, Cultura e Sociedade na Idade Mdia. 1 Edio. So Paulo: EDUSP e Editora
UNESP, 2000.
474 LE GOFF. Os Intelectuais da Idade Mdia. p.9
475 LE GOFF. Os Intelectuais da Idade Mdia p.17.
476 ________Os Intelectuaisda Idade Mdia.. P. 8-10.
Mas no do espao ordenado que me refiro, a questo que trago aqui daqueles que
fugiam s regras e compuseram a partir do vasto material aqui apresentado um registro sobre
quem eram: os goliardos.
Baderneiros e Satricos, esses estudantes eram por vezes o martelo das tradies, mas sem
nunca deixar de operar pela mesma:
In Taberna Gregorius
Iam disputat Inglorius;
Severitas Ieronymi
Partem causatur obuli;
Agustinus de Segete,
Benedictus de Vegete.
Sunt colloquentes clanculo
Et ad macellum sedulo.479
Sua definio como vagabundos intelectuais, dada por Le Goff, apenas uma sntese de
uma parcela da vida desses que, para garantir seu sustento, compunham, a partir da sociedade e
de seu conhecimento em poesia latina e de outras tradies, um discurso que, apesar de contrrio
ordem, mas fiel, ou no, a Santa Igreja Catlica. Como o prprio autor define: O Sonho deles
um mecenas generoso, uma gorda prebenda, vida folgada e feliz. Querem antes tornar-se
beneficirios de uma ordem social do que mud-la.480 Na realidade, fazia apenas questo de
deleitar quem estivesse ouvindo e retirar a pessoa do corpo, em suma, fazer a pessoa rir. Nesse
caso, a compreenso do riso como um discurso para o deleite, mesmo que sedicioso e
477 O tradutor do livro de Le Goff, salienta no entanto que a palavra Clrigo oriunda do termo em francs Clerc
que pode significar tanto membro do clero quanto intelectual. (Le Goff, 2011. P. 22)
478 Estudar antes moda/ Hoje a muitos incomoda;/importava o saber,/hoje brincam pra valer. (Versos Retirados do
orador / Nossos Bento e Agostinho /sobre a safra do trigo e do vinho/ Cavaqueiam discretamente/ mas com o rega
bofes em mente. (Retirado do Cntico Florebat Olim Studium
480 LE GOFF. Os Intelectuais da Idade Mdia. P. 51
O Riso um ente to poderoso que foi condenado pela maior parte da teologia medieval.
A lgica do Christus Agelastus, o Cristo que no ri, apenas se rejubila, foi discutida desde os pais da
Igreja, e mesmo tendo vrias vertentes, prevalece a que como imitadores de Cristo, os probos e
os homens de vida religiosa, bem como indicado a todos os cristos, no devem rir, pois o
Cristo no riu. E como se pode ver em todas as passagens onde aparecem cenas de risos na
Bblia, sempre h uma conotao negativa e destruidora, como zombarias e escrnio. Mas, outra
questo, mais filosfica, permeia esse pargrafo do riso na teologia medieval. Como afirma Jos
Rivair Macedo483, o riso, dando ares novos de experimentao ao corpo, se coloca como
regenerador, mas o problema de regenerar o corpo, que at o sculo XII a ideia de que a carne
481 Msica que fala da Taberna em que todos (mercadores, estudantes, clericos errantes, prisioneiros, abade, decano e
vrios outras figuras representando o todo da sociedade medieval) aparecem bebendo, jogando e vivendo
licenciosamente. No h em toda a composio do Carmina Burana uma msica to clara quanto aos lugares comuns
que so trabalhados nas cantigas. Pois ela rene, linha por linha todas as figuras temticas, desde as personagens
quanto s referncias Bblicas, das canes dste compndio.
482 Quando falo de poltica, me refiro apenas a ao na polis, ou seja, o tipo especfico de Riso que eu determino com
a capacidade de ser lugar comum, ou ao menos, operar por meio de lugares comuns ao lxico, o riso formado
dentro da experincia dinmica que s possvel notar/viver com o advento da cidade.
483 MACEDO. Cultura e Sociedade na Idade Mdia. Pag.45
O que dizer sobre o riso? No definir todos os seus lugares comuns que podem ser
desdobrados para a criao de um panorama maior e mais completo, j que teramos em mos o
retrato do srio, pautado na lgica funcional da sociedade em questo e do outro lado, o no-
srio, o infinito e o inquantificvel, que podem e devem ser tomados pelo historiador como
objeto de estudo. O que fiz aqui foi apenas pontuar algumas questes e mostrar, partindo de uma
alteridade que o tema do riso revela no s sobre quem fez rir, mas sobre quem riu e sobre a
sociedade que deu escopo para o material risvel.
Resumo: Pretende-se aqui realizar uma breve exposio da pesquisa que vem sendo
desenvolvida para dissertao de mestrado, no Programa de Ps Graduao de Histria da
Universidade Estadual Paulista (UNESP) campus Franca. O objetivo deste trabalho reside em
apresentar algumas reflexes iniciais sobre o tema da eugenia e a proposta do exame mdico pr-
nupcial no Brasil.
A eugenia comea a ser difundida no Brasil por volta de meados da dcada de 1910,
quando passaram a ser publicadas as primeiras teses e artigos refletindo sobre o tema. Cincia
fundada pelo ingls Francis Galton por volta da segunda metade do sculo XIX, a eugenia tinha
por objetivo o aprimoramento racial atravs, sobretudo, da estimulao de nascimentos
considerados desejveis. O prprio nome de origem grega j apregoava sua inteno: a formao
de geraes sadias, ou seja, boas geraes. Baseando-se nas teorias darwinianas, Galton, que por
sua vez era primo de Darwin, buscou aplicar os pressupostos da teoria da seleo natural ao ser
humano484, utilizando-se de regras matemticas e estatsticas o pensador ingls acreditava que
seria possvel produzir uma raa superior ou mais bem dotada uma vez que se promovesse a
reproduo dos melhores tipos humanos.
Autoras como Nancy Stepan (2005) e Lilia Schwarcz (1993) nos atentam para o fato que
no Brasil as teorias raciais e a eugenia foram interpretadas de modo particular, no sendo,
portanto, uma mera cpia daquilo que era propagado no exterior. Para Stepan a eugenia brasileira
exemplificava uma importante variante485 daquele movimento ou daquelas reflexes permeadas
na Europa ou nos Estados Unidos. No caso especfico da eugenia, ainda segundo a mesma
autora, no Brasil, sobretudo ao longo da dcada de 1920, os eugenistas associaram-se s correntes
higienistas e sanitaristas. Logo, a associao entre eugenia e sade, por exemplo, era bastante
484DEL CONT, Valdeir. Francis Galton: eugenia e hereditariedade. Sci. stud. [online]. 2008, vol.6, n.2, p. 202.
485STEPAN, Nancy Leys. A Hora da Eugenia: raa, gnero e nao na Amrica Latina. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz,
2005, p. 76.
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frequente. Isto se deve a sua aproximao com as teorias do francs Lamarck, ou lamarckismo,
que pela crena da transmisso dos caracteres adquiridos julgava que o meio ambiente ou fatores
externos poderiam influir na descendncia uma vez que poderiam alterar o plasma germinativo.
Ainda segundo Stepan, na maioria dos pases europeus a teoria de Lamarck teria sido
derrubada pela aceitao dos estudos de Weismann e mais tarde de Mendel que iriam afirmar
que alteraes externas (meio ambiente, educao, cultura, etc) no seriam capazes de modificar
plasma germinativo.486
489ALMEIDA JNIOR, Antnio. O exame mdico pr-nupcial. So Paulo: Instituto Dona Anna Rosa, 1927. p. 33.
490STEPAN. A Hora da Eugenia. p. 116.
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segredo mdico ou sigilo profissional outros ainda julgavam ser um um atentado s liberdades
individuais491.
O mdico Almeida Jnior reconhecia estas objees, e ainda pontuava outras como
possveis erros de diagnstico ou atestados falsos permitindo assim indevidamente um
casamento, no entanto, acreditava que estas no invalidavam o projeto, apenas demonstravam
que ainda no era o tempo oportuno para a sua efetivao. Em sua viso parecia-lhe certo
caminhar para lei, mas de modo devagar, investindo intensamente nas propagandas para que a
populao compreende-se a importncia da realizao do exame. O mesmo ainda afirmava no
saber precisar quando a efetivao desta medida ocorreria, mas acreditava que seria ainda em um
tempo remoto.492
Apesar disto, segundo Carrara: De um modo geral, nas primeiras dcadas do sculo XX
o exame pr-nupcial tinha j a adeso da maioria dos mdicos brasileiros. As divergncias
apareciam somente quando se tratava de saber se devia ser obrigatrio ou consentido493. Boa
parte dos mdicos questionava o Cdigo Civil de 1916 e acreditava que este deveria ser
reformulado, pois apesar de listar alguns impedimentos matrimonias estes ainda no seriam
suficientes. Afrnio Peixoto transcreve do Cdigo Civil, art. 219:
No entanto, para Afrnio Peixoto no bastaria que medidas fossem tomadas depois que o
mal estivesse feito, ou seja, buscar remediar depois que um cnjuge doente tivesse
contaminado seu parceiro. Para os eugenistas convinha mais evitar ou prevenir que estas
molstias fossem transmitidas e isto seria possvel atravs do exame pr-nupcial. Em outras
palavras, no deveria ser apenas uma providncia, ou seja, tomar uma medida posterior, depois
que a doena fosse contrada. Mas deveria haver uma profilaxia. Prevenir possveis transmisses
de doenas antes que o casamento acontecesse.
491 CARRARA, Srgio. Tributo a vnus: a luta contra a sfilis no Brasil, da passagem do sculo aos anos 40. Rio de Janeiro:
Editora FIOCRUZ, 1996. p.180.
492 ALMEIDA JNIOR. O exame mdico pr-nupcial. So Paulo: Instituto Dona Anna Rosa, 1927. p. 67-8.
493 CARRARA. Tributo a vnus, p. 185.
494 PEIXOTO, Afrnio. Novos rumos da medicina legal. Rio de Janeiro: Guanabara, 1938. p. 26.
Nancy Stepan por sua vez aponta que em 1933 os eugenistas se dedicaram ao lobby junto aos
recm-deputados da Assembleia Constituinte496 defendendo ativamente seus pontos de vista. De
acordo com a autora, os eugenistas tiveram sucesso e conseguiram inserir-se nas novas
legislaes, sobretudo em relao ao matrimnio atravs da introduo da clusula nubente que
exigia que os futuros cnjuges apresentassem prova de sua sanidade fsica e mental antes do
casamento497. No entanto, sua aplicao levaria em considerao as condies regionais do pas,
nesse sentido a fiscalizao para o cumprimento da medida ficava inviabilizada498. Nesse
sentido, poderamos dizer que apesar da eugenia ter conseguido incluir-se na legislao, o exame
mdico pr-nupcial nunca chegou a ser implantado da forma como muitos mdicos almejavam,
ou seja, de forma obrigatria e efetiva em todas as regies do pas. O que nos parece claro,
portanto, a grande interveno social que os mdicos eugenistas ambicionaram utilizando-se de
um discurso que pretendia ser legitimador uma vez que era cientfico.
495 ANTUNES, Jos Leopoldo Ferreira. Medicina, leis e moral: pensamento mdico e comportamento no Brasil (1870 1930).
So Paulo: Editora UNESP, 1998. p. 208.
496 STEPAN. A Hora da Eugenia. p. 61.
497 ______. A Hora da Eugenia, p. 135.
498 GORGULHO, G. BARATA, G. A eugenia na poltica de isolamento compulsrio de hansenianos no brasil. In:
MOTA, Andr. MARINHO, Maria Gabriela (orgs). Eugenia e histria: cincia, educao e regionalidades. So Paulo: USP,
Faculdade de Medicina: UFABC, Universidade Federal do ABC: CD.G Casa de Solues e Editora, 2013, p. 192.
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Voz liberal de Minas:
O imaginrio da elite poltica signatria do Manifesto
dos Mineiros
Marco Tlio Antunes Gomes
Graduando em Histria pela PUC-Minas
Graduando em Cincias do Estado pela UFMG
[email protected]
Resumo:
O Manifesto dos Mineiros, intitulado Ao povo mineiro, foi lanado no dia 24 de outubro de
1943 por membros da elite poltica e intelectual de Minas Gerais, incluindo figuras como Afonso
Arinos, Milton Campos, Pedro Aleixo e Virglio de Melo Franco. O documento se propunha a
defender os ideais de liberdade e democracia, elementos tidos como prprios da ndole mineira,
fazendo assim oposio ao Estado Novo. Atravs da anlise do manifesto e de entrevistas
concedidas pelos signatrios, objetivo deste artigo compreender de que maneira o discurso
desta elite se apropria e interpreta o passado na busca de constituir uma identidade regional que
legitime sua ao poltica.
Introduo:
499BAGGIO, Sheila Brando. Minas e um desfecho para o Estado Novo: notas sobre o Manifesto dos Mineiros
(24/10/43). Revista do Departamento de Histria, Belo Horizonte, n. 8, 1989. p. 134-141.
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tambm durante o Estado Novo que ocorrer uma forte presena do Estado na
economia. De acordo com Thomas Skidmore, essa interferncia estatal se dava de duas formas:
Em Minas Gerais se deu a primeira manifestao pblica desta elite liberal insatisfeita. Em
24 de outubro de 1943, um grupo de lderes polticos e empresrios lanaram em Belo Horizonte
um manifesto intitulado Ao povo mineiro, em que se colocavam contra o autoritarismo do governo
Vargas, apelando para uma tradio histrica de Minas Gerais de defesa dos valores democrticos
e liberais. O que se observa, contudo, que a atribuio destas ideias como algo particular da
identidade regional mineira algo que vai alm dos interesses econmicos desta elite, sendo
prprio de uma intelectualidade mineira que anseia construir uma imagem de si prpria.
500 SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getlio a Castello (1930-64). So Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 76.
501 DULCI, Otvio Soares. A UDN e o anti-populismo no Brasil. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1986. (Teses). p. 68.
502 FRANCO, Afonso Arinos de Melo. A alma do tempo: memrias (formao e mocidade). Rio de Janeiro: Jos
Olympio, 1961.
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em Santa Luzia ou Ouro Preto, fazendo assim referncia s tradies liberais de Minas Gerais.
Optaram, no entanto, em realizar sua divulgao no dia 24 de outubro, aniversrio da Revoluo
de 1930, em Belo Horizonte.
1964). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. (Coleo Estudos brasileiros; v. 51). p. 34.
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inerentes histria do estado, retomando assim o passado para evidenciar a necessidade de se
recuper-los:
Assim sendo, pelos valores de liberais e democrticos presentes no povo mineiro, que por
sua vez refletiriam os desgnios da nao, estes indivduos colocam sua ao poltica no s como
um ato corajoso, mas um dever cvico, buscando assim legitimar sua autoridade diante do pblico
leitor. Explicando nos termos da teoria de Bourdieu, a especificidade do discurso de autoridade
507 BONAVIDES, Paulo; AMARAL, Roberto. Textos Polticos da Histria do Brasil. 3 ed. Braslia: Senado Federal,
Conselho Editorial, 2002. p. 465.
508MANIFESTO DOS MINEIROS. Transcrio dos depoimentos de seus signatrios (1977). Rio de Janeiro,
Vale ressaltar que a construo da identidade regional no era feita de modo arbitrrio por
esta elite poltica, sendo embasada em teorias sociolgicas da poca. Em O homem e a Montanha,
publicado no ano do Manifesto, Joo Camillo de Oliveira Torres busca estudar como a geografia
do estado e sua configurao histrico-social influenciaram na construo do esprito mineiro.
Para o autor,
511BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingusticas: o que falar quer dizer. 2 ed. So Paulo: Editora da
Universidade de So Paulo, 1998. (Clssicos; 4)
512 ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Mitologia da mineiridade: o imaginrio mineiro na vida poltica e cultural
geogrfica para a formao do esprito mineiro. Belo Horizonte: Autntica Editora, 2011. (Coleo Historiografia de
Minas Gerais. Srie Alfarrbios; v. 2). p. 206.
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centro de gravidade de todo o Brasil [...]. Minas, enfim, a Montanha, o
Centro, o im que atrai os brasileiros de todas as regies514.
Apropriaes do passado
514 LIMA, Alceu Amoroso. A voz de Minas: (Ensaio de sociologia regional brasileira). So Paulo: Abril, 1983. p. 124.
515 BOURDIEU, Pierre. O poder simblico. 14 ed. Trad. Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. p. 12.
516 FAGUNDES, Luciana Pessanha. Construindo pontes entre olhares: os usos polticos do passado. In: III Simpsio
ILB. Itinerrios da Pesquisa Histrica: Mtodos, Fontes e Campos Temticos, 2010, Mariana. Anais do III Simpsio
Imprios e Lugares no Brasil, 2010. p.5.
517 BONAVIDES; AMARAL. Textos Polticos da Histria do Brasil, p. 465.
deixaram o latim, os livros, tantos mestres (...). Isso tudo deu a Minas uma
sensao de dever histrico para com a liberdade, da voc tem Felipe dos
Santos, Tiradentes, Tefilo Otoni e o Manifesto dos Mineiros.519
Antnio Carlos Vieira Cristo, por sua vez, se concentra na Inconfidncia Mineira, para ele
um movimento que no foi poltico, mas uma tomada de posio espiritual e religiosa. A
liderana de Tiradentes, colocado como o homem do povo, teria sido capaz de mobilizar
escritores, estudantes, advogados e padres, todos naturalmente modelados pelo esprito de
liberdade.520 J Antnio Neder, quando perguntado sobre as origens do liberalismo mineiro,
aponta como causa a atividade mineradora, incompatvel com a conduta abusiva dos agentes
administrativos da metrpole, o que gerava rebeldia entre os colonos. Neste embate entre os
mineradores e o autoritarismo metropolitano, os primeiros, iluminados pelas ideias da Revoluo
Francesa e da Revoluo Americana, desenvolveram o liberalismo mineiro. Desta forma,
518 CARVALHO, Jos Murilo de. A formao das almas: o imaginrio da Repblica no Brasil. So Paulo: Companhia
das Letras, 1990. p. 68.
519 MANIFESTO DOS MINEIROS. FGV/CPDOC, p. 43.
520 MANIFESTO DOS MINEIROS. FGV/CPDOC, p. 47.
o imaginrio possui uma funo social e aspectos polticos, pois na luta poltica,
ideolgica e de legitimao de um regime poltico existe o trabalho de
elaborao de um imaginrio por meio do qual se mobiliza afetivamente as
pessoas522.
Consideraes finais
preciso ressaltar, contudo, que esta operao do imaginrio no algo feito de maneira
totalmente calculista, sendo os prprios signatrios do Manifesto adeptos ideia de identidade
regional que buscam exaltar. Mesmo nos depoimentos, quatro dcadas depois, esta elite descreve
os valores liberais e de dever cvico como uma constante da histria do estado, mesmo naquela
poca. O estudo desta elite poltica e econmica ainda se faz necessrio na atualidade ao
constatarmos que muitas destas ideias que caracterizam a identidade mineira ainda se encontram
propagados pelo imaginrio poltico na atualidade.
RESUMO: Este presente artigo tem como pretenso analisar a importncia das revistas
modernistas lanadas no perodo de 1922 a 1928. Perodo esse conhecido como "modernismo
heroico", destacando principalmente as revistas Klaxon e Esttica, e a atuao dos jovens
modernistas Srgio Buarque de Holanda e Prudente de Moraes, neto, tanto na representao de
Klaxon, e na criao de Esttica no Rio de Janeiro em 1924. Neste artigo destaca-se o legado
deixado por essas publicaes, servindo anos mais tarde como inspiradores de movimentos como
a Tropiclia e o Cinema Novo Brasileiro.
Introduo
Outro ponto que merece ser destacado para Sirinelli (1988), alm das revistas, so as
correspondncias trocadas entre determinados personagens. Por essas cartas, percebe-se a
formao de um ncleo, de um grupo coeso em uma mesma sintonia, em que at a linguagem se
torna um referencial entre os pares para definir o conceito de redes. Como cita Sirinelli : A
linguagem comum homologou o termo redes para definir tais estruturas. Elas so mais difceis
de perceber do que parece. (SIRINELLI, 1988). Percebe-se, ento, no s uma rede, mas vrias
redes formadas, pois Srgio Buarque tambm se mantinha atualizado atravs de correspondncias
com o movimento modernista mineiro, de Recife, e se mantinha atualizado principalmente com o
que acontecia na Europa. Pois, para a elaborao de suas obras, vai dialogar mais com escritores
europeus do que propriamente com os brasileiros. Arcanjo (2013) nos mostra como essa relao
de troca de correspondncias entre intelectuais vai ser importante na construo das identidades e
na legitimao das redes de sociabilidade:
524 SIRINELLI, Franois. Por uma Histria Poltica, in: RMONDE, Rne. Rio de Janeiro: Editora UFRJ / Editora
FGV, 1988.
525 ARCANJO, Loque. Os Sons de uma Nao Imaginada: As Identidades Musicais de Heitor Villa-Lobos. (Doutorado em
Histria). Universidade Federal de Minas Gerais, Programa de Ps Graduao em Histria, Belo Horizonte, 2013.
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Torna-se importante refletir sobre o pronunciamento de Malatian (2009) acerca da
importncia da anlise das cartas trocadas entre esses grupos de intelectuais, na formao das
redes de sociabilidade. Segundo a historiadora, so significativas:
Em 2012, celebrou-se 90 anos da Semana de Arte Moderna, mais do que isso, celebrou-se
tambm 90 anos do lanamento da primeira revista de cunho modernista, a Klaxon, revista
paulista voltada para as publicaes da Semana de 22. Era uma revista de combate, cujo nome foi
inspirado na vanguarda futurista. Segundo explica Mrio de Andrade, o fundador da revista,
Klaxon foi criada para organizar a baguna que houve durante a semana, que aconteceu nos dias
13, 15 e 17 de fevereiro. Alm da Klaxon, cabe destacar que muitas outras revistas foram criadas
durante o perodo que vai de 1922 a 1928, sendo esses anos muito produtivos em relao a
publicao de materiais voltados para o modernismo. Destaca-se que o eixo sudeste dominou o
mercado, tendo as cidades de So Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, os principais polos
construtores no Brasil em relao s publicaes das revistas. (VELLOSO, 2006).527
Segundo Marques (2013), por meio das revistas, as ideias se propagam, superam fronteiras
e novos movimentos so deflagrados. Esse perodo que vai de 1922 a 1928, tambm conhecido
como modernismo heroico, pois segundo consta, somente a revista Festa, tinha um mecenas,
que sustentava suas publicaes. Enquanto as demais tiveram uma vida bem curta, pois no havia
dinheiro suficiente para a produo, o que havia, segundo Marques (2013), eram vaquinhas
literrias, apoios localizados, sendo assim, elas acabavam por falta de condies financeiras.
Como cita Marques.
526MALATIAN, Teresa. Cartas: Narrador, Registro e Arquivo. O Historiador e Suas Fontes. So Paulo: Contexto, 2009.
527VELLOSO, Monica Pimenta. As Modernas Sensibilidades Brasileiras: Uma Leitura das Revistas Literrias e de Humor na
Primeira Repblica. Frana: Nuevo Mundo Mundo Nuevo, 2006. (Artigo Cientfico).
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Destinadas a um pblico bem mais restrito, essas publicaes no precisavam
abusar de apelos visuais, que de qualquer modo seriam inviveis, por conta da
falta de recursos e das enormes dificuldades de produo. (MARQUES, 2013,
p. 13).528
Porm em se tratando de revistas, o Brasil sempre teve uma tradio muito forte nesse
aspecto, temos a Kosmos (1904-1909), Fon-Fon! (1907-1958), A Careta (1908-1961), O Malho (1902-
1954), O Pirralho (1911-1919) e Paratodos (1919-1932), revistas essas que tiveram uma sobrevida
maior, em relao s revistas de cunho modernista. Essa batalha inicia-se em 1922, atravs da
figura proeminente e intelectual de Mrio de Andrade, segundo constata os amigos, era ele a
conscincia mais aguda daquele perodo, sendo ele leitor vido de publicaes europeias, como
LEsprit Nouveau, Lumire, La Nouvelle Revue Franaise e a alem Der Sturm, alm de outras. O
prprio Mrio, em 1942, em uma conferncia de nome O movimento modernista assim cita:
O que nos igualava, por cima dos nossos despautrios individualistas, era
justamente a organicidade de um esprito atualizado, que pesquisava j
irrestritamente radicado sua entidade coletiva nacional. (VELLOSO, 2010).529
A Klaxon, lanada trs meses aps a Semana de Arte Moderna de 1922, mais precisamente
no dia 15 de maio, onde ela se torna consequncia de todo aquele movimento inovador, que
aconteceu no Teatro de So Paulo, nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro em So Paulo. Pode-se dizer,
que entre todas, era a mais inovadora, a mais combativa, e a mais radical. Por isso, nem todos
entenderam direito sua mensagem, como foi o caso do escritor Lima Barreto, que em carta,
critica a publicao da revista. Como relata em seu artigo publicado na carioca A Careta de Julho
de 1922, dirigi-se diretamente a Srgio:
528 MARQUES, Ivan. Modernismo em Revista: Esttica e Ideologia dos Peridicos dos anos 1920. Rio de Janeiro: Casa da
Palavra, 2013.
529 VELLOSO, Monica Pimenta. O Moderno em Revistas: Representaes do Rio de Janeiro de 1890 a 1930. OLIVEIRA,
Claudia, VELLOSO, Monica Pimenta, LINS, Vera. (Org.). Rio de Janeiro: Garamond Universitria, 2010.
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fundo no seno brutalidade, grosseria e escatologia, sobretudo esta.
(MONTEIRO, 2012, p. 178).530
Porm, cabe destacar que o artigo de Lima Barreto, foi imediatamente rebatido no
nmero de agosto de Klaxon, na seo Luzes e Refraes na qual os klaxistas ensaiavam respostas
a recepo conservadora.
Entre os que faziam parte da revista, podemos citar Mrio e Oswald de Andrade,
Guilherme de Almeida, Luiz Aranha, Srgio Milliet, Antnio Carlos Couto de Barros, Tcito de
Almeida e Rubens Borba de Moraes. Os encontros eram sempre realizados a tarde no escritrio
de Tcito de Almeida, localizado na Rua Direita, e depois seguiam para a Confeitaria Vienense,
na Praa da Repblica. Segundo Marques (2013), os klaxistas no eram somente aqueles que
compunham a redao, mas tambm aqueles que eram seus representantes fora de So Paulo.
Dentre eles podemos destacar Srgio Buarque de Holanda, no Rio de Janeiro, Joaquim Inojosa,
530 MONTEIRO, Pedro Meira. Mrio de Andrade e Srgio Buarque de Holanda: Correspondncia. So Paulo: Companhia das
Letras, Edusp, 2012.
531 ______. Mrio de Andrade e Srgio Buarque de Holanda: Correspondncia. So Paulo: Companhia das Letras, Edusp,
2012.
532 HOLANDA, Srgio Buarque. Os Novos de So Paulo. O Mundo Literrio, Rio de Janeiro, 5 de junho de 1922.
Como cita Velloso (2010), na revista Esttica, predomina o foco urbano. So impresses e
imagens sensoriais marcadas pelas novas ritmias da cultura da modernidade. no Rio de Janeiro,
epicentro dessa nova temporalidade, que Prudente de Moraes, neto experimenta, poeticamente, o
deslocamento. So camadas de tempo que operam simultaneamente. (VELLOSO, 2010).534
Esses dois jovens iro ser de suma importncia para o modernismo carioca, pois atravs
deles, estabeleceu-se uma maior interlocuo e dilogo com modernistas paulistas, mineiros e de
outros estados. Assim disse Prudente de Moraes, neto no perodo de lanamento da revista
Esttica: "Tnhamos a inteno de marcar o inicio de uma fase construtiva e a parte material
acompanhava essa inteno (...) Pretendamos a agressividade interior". (LEONEL, 1984, p.
181).535
J Esttica, alm de dar um continusmo a ideia original da Klaxon, foi inspirada tambm na
revista inglesa The Criterion, de T.S. Eliot, lanada em 1922. Como citou Rubens Borba de Moraes,
depois da revista de combate que lutava, mordia, arranhava, descabelava. Esttica oferecia um
modernismo triunfante, afirmativo, bem instalado na vida. (LEONEL, 1984, p. 140). Alm de
Rubens, o prprio Srgio declarou acerca da revista:
Klaxon tinha sido uma revista que rompia com uma poro de coisas.
Precisava-se fazer uma revista que passasse a construir alguma coisa, a partir
daquela ruptura, com a mesma gente, e gente que foi aparecendo depois,
533 MARQUES, Ivan. Modernismo em Revista: Esttica e Ideologia dos Peridicos dos anos 1920. Rio de Janeiro: Casa da
Palavra, 2013.
534 VELLOSO, Monica Pimenta. O Moderno em Revistas: Representaes do Rio de Janeiro de 1890 a 1930. OLIVEIRA,
Claudia, VELLOSO, Monica Pimenta, LINS, Vera. (Org.). Rio de Janeiro: Garamond Universitria, 2010.
535 LEONEL, Maria Clia de Moraes. Esttica e o Modernismo. So Paulo / Braslia: Hucitec/INL, 1984.
536 MARQUES, Ivan. Modernismo em Revista: Esttica e Ideologia dos Peridicos dos anos 1920. Rio de Janeiro: Casa da
Palavra, 2013.
Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG. v. 7 (Suplemento,
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porque muitos no estavam na Semana de Arte Moderna. (LEONEL, 1984,
p.173).537
Porm em 1926, Srgio e Prudente vo para a Revista do Brasil, onde o primeiro se torna
seu colaborador de ponta e o segundo o seu secretrio, tendo Rodrigo de Mello Franco Andrade
na direo, sendo financiada pelo mecenas Paulo Prado. Como bem destaca Velloso (2006),
citando a importncia da articulao feita entre as elites intelectuais e empresariais na estruturao
dessas redes de sociabilidade, e como foram importantes para construir um sentimento de
brasilidade.
Significativo notar, que nas pginas de Esttica, seria o lugar do conflito entre os
realizadores das duas revistas e tambm o grupo liderado por Graa Aranha, Ronald de Carvalho
e Renato Almeida, chamando a ateno, que esse foi o primeiro fato de um rompimento e ciso
dentro do prprio modernismo. J o outro grupo era formado por Srgio, Prudente de Moraes,
neto, Alcntara Machado, Manuel Bandeira e Oswald de Andrade, sendo que esses se
identificaram com as perspectivas lanadas por Srgio. (VELLOSO, 2006). Maria Eugenia
Boaventura, no prefcio de sua obra, 22 por 22, narra esse acontecimento entre os modernistas e
Graa Aranha, quando este atacou a linguagem pau-brasil e recebeu, duras criticas atravs da
crnica intitulada Modernismo Atrasado.
Graa Aranha dos mais perigosos fenmenos de cultura que uma nao
analfabeta pode desejar (...) O seu temperamento agitado levou-o aos graciosos
excessos da Semana de Arte Moderna. Hoje, quando da revoluo encanecida,
brotam os caminhos claros de cada povo, ei-lo, importando para a academia
uma srie de abstraes inteis e querendo impor, como modernistas, alguns
dos espritos mais tardos do pas. (BOAVENTURA, 2000, p. 19).539
537 LEONEL, Maria Clia de Moraes. Esttica e o Modernismo. So Paulo / Braslia: Hucitec/INL, 1984.
538 VELLOSO, Monica Pimenta. As Modernas Sensibilidades Brasileiras: Uma Leitura das Revistas Literrias e de Humor na
Primeira Repblica. Frana: Nuevo Mundo Mundo Nuevo, 2006. (Artigo Cientfico)
539 BOAVENTURA, Maria Eugenia. 22 por 22: A Semana de Arte Moderna vista pelos seus contemporneos. So
Porm nem todos estavam de comum acordo com as criticas feitas por Srgio aos
modernistas "academizantes". Como foi o caso de Esmeraldino Olympio, como cita Velloso, foi
possivelmente um pseudnimo usado por Freyre para assinar uma crnica na revista na qual fazia
uma critica ferrenha a Srgio, principalmente pelo artigo O Lado Oposto e Outro lado. Nesse
artigo, Freyre se coloca ao lado de Graa Aranha, Ronald de Carvalho, Guilherme de Almeida
entre outros, aderindo a uma retrica em que ele se identificava com os modernistas
academizantes, que foram extremamente criticados por Srgio Buarque de Holanda e Prudente
de Moraes, neto. Abaixo um trecho do artigo, publicado na Revista do Brasil no ano de 1926, O
Lado Oposto e Outros Lados.
540 MARQUES, Ivan. Modernismo em Revista: Esttica e Ideologia dos Peridicos dos anos 1920. Rio de Janeiro: Casa da
Palavra, 2013.
541 HOLANDA, Srgio Buarque. O Lado Oposto e Outros Lados. Revista do Brasil, So Paulo, p.9-10, 15 de outubro
de 1926.
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Leonel (1984), em seu livro cita como Srgio Buarque e Prudente de Moraes, neto,
costumavam assinar as criticas, quando j sabiam de antemo as polmicas que causaria os artigos
nas publicaes de Esttica.
J ngela de Castro Gomes, em seu artigo Essa Gente do Rio, destaca o fato de So
Paulo e Rio serem to parecidos. "Rio e So Paulo eram absolutamente iguais: eles se odiavam".
(GOMES, 1993, p. 65). Mostrando assim a rivalidade entre as duas cidades naquele contexto.
Segundo Gomes (1993), o Rio de Janeiro convivia, desde os fins do sculo XIX, com duas
presenas fundamentais em termos de referncias para o mundo intelectual, primeiro: a Academia
Brasileira de Letras, segundo: o grupo de bomios da Rua do Ouvidor. Enquanto o Rio tinha
uma identidade mais voltada para a presena do Estado, do comrcio, da boemia, So Paulo era
uma cidade marcada com forte tendncia pela produo e pelo ehtos do mercado. (GOMES,
1993).
Assim declara Menotti Del Picchia, em 1922, oito meses aps a Semana, a respeito dos
"bandeirantes" paulistas, que foram ao Rio de Janeiro fincar o marco da "vitria" paulista sobre o
movimento carioca. Entre esses "bandeirantes" esto Mrio de Andrade, Oswald de Andrade
entre outros.
542 LEONEL, Maria Clia de Moraes. Esttica e o Modernismo. So Paulo / Braslia: Hucitec/INL, 1984.
543 GOMES, Angela de Castro. Essa Gente do Rio...Os intelectuais cariocas e o modernismo. Estudos Histricos, Rio de
Janeiro, vol. 6, n.11, 1993, p. 62-77.
544 HLIOS, "A bandeira futurista", Correio Paulistano, 22/10/1922.
Desde que chegou ao Rio de Janeiro, em 1921, aos dezenove anos, Srgio
Buarque de Holanda operou como elo entre o circulo de intelectuais
modernistas do Rio de Janeiro e de So Paulo. certo que ajudou muitos na
aproximao entre Mrio de Andrade e intelectuais como Graa Aranha,
Ribeiro Couto e Ronald de Carvalho. Mesmo as primeiras correspondncias
trocadas entre Mrio de Andrade e Manuel Bandeira evidenciavam uma
aproximao organizada pela presena de Srgio. (NICODEMO, 2012, p. 110-
111).545
Mrio ainda lamenta o fechamento da revista Esttica por falta de recursos financeiros,
dessa maneira, acaba-se por criar um tom mais intimista e de proximidade entre Mrio de
Andrade e os jovens modernistas, dizendo terem eles cumprido muito bem sua misso embora
como o prprio Mrio diz, a falta de arame fosse um problema insolvel, difcil de resolver.
(VELLOSO, 2010). Cabe aqui destacar a primeira carta, trocada ainda em 1922, mais
precisamente no dia 08 de maio, onde Mrio de Andrade diz a Srgio: " preciso que no te
esqueas de que fazes parte dela. Trabalha pela nossa Ideia, que uma causa universal e bela,
muito alta". (MONTEIRO, 2012, p. 19). Acerca dessa correspondncia, Srgio 30 anos depois,
publica um artigo no Jornal Dirio Carioca, intitulado Depois da Semana, onde revela mais
detalhes sobre o trecho da carta citada acima, quando se correspondia com Mrio de Andrade.
545 NICODEMO, Thiago Lima. Srgio Buarque de Holanda e a dinmica das instituies culturais no Brasil 1930-1960.
Seminrio "Atualidade de Srgio Buarque de Holanda". Debate promovido pelo IEB/USP. So Paulo, 2012.
546 HOLANDA, Srgio Buarque. Depois da Semana. Jornal Dirio Carioca, Rio de Janeiro, 24 de fevereiro de 1952.
Dessa forma, pode-se concluir como essas produes, mesmo tendo vida curta, foram
importantes na construo de uma nova identidade brasileira, e como elas constituram um novo
paradigma em se tratando de modernismo. Como cita Velloso (2006), essas revistas foram
importantes para a construo de um novo sentimento de brasilidade. Revistas essas, que
circularam em meados dos anos 20, e acabaram por ocupar um papel muito importante no
restrito mundo intelectual de seu tempo. Como bem cita LUCA (2010), no prefcio da obra O
Modernismo em Revistas, a importncia dessas revistas.
LUCA, Tnia Regina. O Moderno em Revistas: Representaes do Rio de Janeiro de 1890 a 1930. In: OLIVEIRA, Claudia,
547
VELLOSO, Monica Pimenta, LINS, Vera. (Org.). Rio de Janeiro: Garamond Universitria, 2010.
Resumo: Walter Benjamin (1892 1940), importante ensasta, filsofo e socilogo nascido em
Berlim, foi um dos mais ilustres pensadores alemes do sculo XX. Dentre seus inmeros
ensaios, Benjamin reflete acerca da modernidade e dos conceitos de multido e flneur; ao estudar
Charles Baudelaire, o autor elabora hipteses de como teria se dado a modernidade (e quais
teriam sido suas consequncias) no final do sculo XIX em Paris, Londres e Berlim. Trazendo
essa ideia para o Brasil do sculo XX, nessa comunicao pretendo contrapor os conceitos de
modernidade, multido e flneur de Benjamin com a literatura do poeta ps-modernista brasileiro
Manoel de Barros (1916 2014), relacionando com o contexto do Brasil republicano. Acredito
que Barros, cuja escrita foi marcada sobretudo pelo uso de um vocabulrio coloquial e rural, pode
ser descrito como uma espcie de flneur brasileiro, que, assim como Baudelaire, se encantava
com a multido ao mesmo tempo em que no se sentia pertencente a ela. Dessa forma, a partir
das mudanas ocorridas nos diversos cenrios brasileiros no sculo XX, possvel encontrar
Barros e suas vozes lricas observando, de longe, a ascenso da modernidade.
548BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: Um Lrico no Auge do Capitalismo - Obras Escolhidas III. Trad. Alves Baptista,
H. So Paulo: Brasiliense, 1994.
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No livro Tudo que solido desmancha no ar549, Marshall Berman analisa a
modernidade como sendo uma experincia vital experincia de tempo e espao, de si mesmo e
dos outros, das possiblidades e perigos da vida que compartilhada por homens e mulheres em
todo o mundo550. Dessa forma, o sujeito moderno estaria inserido em um processo de
modificaes sociais, religiosas, ideolgicas, geogrficas, econmicas, polticas, etc., tendo
vivenciado o desmoronamento de tudo que se sabia e conhecia pra ver a construo de algo
novo. Berman, ento, divide a modernidade em trs fases: a primeira teria durado do incio do
sculo XVI ao fim do sculo XVIII e as pessoas nesse momento estariam apenas comeando a
vivenciar a vida moderna e a modernidade, sem estarem cientes disso. A segunda fase teria
comeado com a Revoluo Francesa, que acabou por envolver um grande pblico que
compartilhava do mesmo desejo de viver em um ambiente revolucionrio e, consequentemente,
moderno; o pblico moderno do sculo XIX, ento, teria vivido em um mundo cuja
modernidade estava chegando mas ainda no havia se dado completamente. No sculo XX, para
Berman, o processo de modernizao j teria se expandido e abarcado o mundo inteiro,
culturalmente, sociologicamente e politicamente, sendo esta a terceira fase da modernidade.
Assim, possvel colocar a modernidade como sendo uma espcie de experincia social e
histrica que despertou vrias modificaes culturais, sociais, filosficas e cientficas, ocasionando
diversas reformas e transformaes de carter estrutural.
549 BERMAN, Marshall. Tudo que slido desmancha no ar. So Paulo: Cia das Letras, 2008.
550 BERMAN. Tudo que slido desmancha no ar. So Paulo. Cia das Letras, 2008, p. 15.
551 BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Trad. Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
552 BENJAMIN. Charles Baudelaire: Um Lrico no Auge do Capitalismo, p. 111.
553FRANCONETI, Marina. Um olhar pulsante sobre a modernidade por Baudelaire, Poe e Hoffmann. Disponvel em:
<http://literatortura.com/2013/07/um-olhar-pulsante-sobre-a-modernidade-por-baudelaire-poe-e-hoffmann>.
Acesso em: 10 nov. 2014.
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De acordo com Olgria Matos, a cidade o espao de individualizao e cidadania
poltica, atualizada por esses liames de afeio, ternura, admirao, sublimao e convivncia554;
todavia, por mais que alguns sujeitos pudessem dispor de caractersticas fsicas dissemelhantes,
vestindo roupas e agindo de formas diferentes, nesse momento elas acabaram por se incluir em
uma massa populosa, um conjunto homogneo sem grandes diferenas entre si assim, portanto,
constituda a multido. Essas pessoas passam a comportar-se de forma igual s demais sem
realizar grandes reflexes acerca dessa massificao automtica. Por conseguinte, as diversas
conjunturas econmico-sociais e a vida privada desse momento, concebidas a partir da
industrializao e urbanizao europeia, esto extremamente conectadas com a multido.
O flneur se difere do operrio e do vagabundo por muitas vezes ser de origem burguesa;
assim, diferentemente do cio do pobre, que sempre foi criticado e considerado uma ameaa
sociedade, o cio do flneur aturado, j que a flnerie era considerada uma arte para muitos poetas
e pensadores da poca. possvel afirmar, ento, que flneur se mistura na multido por
curiosidade e desejo de conhecimento e compreenso das fantasmagorias da sociedade,
especficas da modernidade e do capitalismo contemporneo.
554 MATOS, Olgria Chain Fres. Walter Benjamin: plis grega, metrpoles modernas. In: Benjaminianas - Cultura
capitalista e fetichismo contemporneo. So Paulo: Editora Unesp, 2002. p. 144.
555 DANGELO, Martha. A modernidade pelo olhar de Walter Benjamin. In: Estudos Avanados, USP, v. 20, n. 56,
2006. p. 242.
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um carter desumano, pelo fato de que as metrpoles encontram-se em constante e acelerada
transformao, o que resulta no desaparecimento dos suportes objetivos da memria; a
destruio dos espaos da cidade converte-se em metrpole impessoal e sem memria. (...) Tudo
repetio, multiplicao do sempre-igual.556 A preocupao com o prximo viria, ento, de
acordo com seus prprios interesses e convenincias.
558BARROS, Manoel de. O apanhador de desperdcios. In: Memrias inventadas para crianas. So Paulo: Editora
Planeta do Brasil, 2006, p. 15.
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e da vida cotidiana. Ento, para o eu-lrico, as coisas e seres desimportantes seriam mais belas que
as inovaes tecnolgicas, que a velocidade, que a informtica; ele , portanto, um apanhador de
desperdcios que prefere os restos e as coisas desmerecidos pela sociedade do que as grandes
tecnologias que estavam em ascenso e as correrias da vida moderna.
Assim como Baudelaire, Barros e suas vozes lricas admiram e encontram beleza nas
coisas feias e desleixadas pela sociedade, enxergando nas antteses a soluo para seus
problemas. Na poesia a seguir, escrita por Baudelaire, fica evidente o quanto o escritor utiliza de
antteses e contradies para expor seus conceitos e opinies: [...] Beleza? O teu olhar, infernal e
divino,/ Gera confusamente o crime e o herosmo,/ E podemos, por isso, comparar-te ao
vinho[...]560. A flor e o mal, a beleza e a dor, o feio e o belo, portanto, se fazem presente nas
poesias de ambos os poetas em questo.
559 ______. Desejar ser. In: Livro sobre nada. So Paulo: LeYa, 2013, p. 33.
560 BAUDELAIRE. As flores do mal, p. 163.
561 BARROS, Manoel de. Fragmento de canes e poemas. In: Poesias. So Paulo: LeYa, 2013, p. 10.
Podemos observar, assim, que o sujeito lrico da poesia de Barros, embora observe com
encanto alguns dos elementos citadinos, ele no se apropria do esprito imposto pelas massas,
posicionando-se margem do coro moderno. No poema a seguir, torna-se explcito esse lugar
particularizado em que o artista se insere, diferenciando-se do homem comum que vive apenas
seguindo o fluxo da multido e da modernidade:
563 BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade o pintor da vida moderna. Organizador: Teixeira Coelho. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1996, p. 19.
564 BARROS, Manoel de. Retrato do artista quando coisa. In: Retrato do artista quando coisa. So Paulo: LeYa, 2013, p.
61.
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Latelier du feuilleton: recepo e repercusso do
gnero folhetinesco na Frana do sc. XIX
Jos Roberto Silvestre Saiol
Graduando
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
[email protected]
Resumo: O sculo XIX francs profundamente marcado pelo incio da industrializao, pelo
incremento da vida urbana e pelas consequncias polticas e sociais da Revoluo Francesa. O
poder simblico dessas transformaes foi to avassalador que passou a demandar novas formas
de sensibilidade originadas das inquietaes e tentativas de apreender toda aquela complexidade.
no seio desta configurao histrica que emerge o chamado Romantismo. Na esteira dessas
transformaes, a demanda pela democratizao da imprensa atrelada difuso do gnero
romance e o surgimento de novas tcnicas de impresso possibilitaram o surgimento do
folhetim, que em sua evoluo histrica passou de rodap a gnero literrio. O objetivo deste
trabalho realizar algumas consideraes acerca da recepo e repercusso deste gnero
romanesco, tipicamente moderno, a partir de uma charge do francs J.J. Grandville, intitulada
Latelier du feuilleton. A proposta investigar a crtica chamada literatura industrial a partir da
categoria de escritor rentvel figura capaz de atentar e produzir a partir das demandas de um
novo tipo de pblico, muito preocupados com a questo do gosto.
On dit quil y a dans les ateliers darts mcaniques une faon de distribuir le
travail qui le rend plus facile et plus rapide: sil sagit de faire un carrosse, lum
est charg des roues, lautre des ressorts, un troisime du vernis et des dorunes.
Nous serions vraiment tent de croire, en voyant certaines oeuvres qui se disent
pourtant des oeuvres dintelligence, quil y a des fabriques littraires o lon a
recours ces procedes.565
Apresentao
Como tive a oportunidade de anunciar em meu ltimo trabalho566, os passos seguintes das
minhas pesquisas sobre o gnero folhetinesco e, mais especificamente, sobre obra de Alexandre
Dumas (1802-1870) , destinar-se-iam investigao da repercusso deste novo gnero
romanesco no contexto francs da primeira metade dos oitocentos. A este respeito, muito
acertada, me parece, a hiptese levantada por Marlyse Meyer567 sobre a ambiguidade deste
565 MOLNES, Gaschon. 1841. Apud DUMASY, Lise. La querelle du Roman-feuilleton: Littrature, presse et politique,
un dbat prcurseur (1836-1848). Grenoble: Ellug, 1999. pp. 13.
566 De como foi inventado o feuilleton-roman, e do sucesso de Alexandre Dumas (1836-1850). Comunicao
apresentada durante a III Semana de Histria da UFF, ocorrida entre os dias 23-27 de maro de 2015.
567 Ver: MEYER, Marlyse. Folhetim: uma histria. So Paulo: Companhia das Letras, 1996.
A mquina literria
568 Em outros trabalhos, tive a oportunidade de explorar de forma mais detalhada cada um destes movimentos
histricos, tarefa que no cabe nos limites do presente texto. As referncias que nortearam tais constataes foram:
BERMAN, Marshall. Tudo que slido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Trad. Carlos Felipe Moiss; Ana
Maria L. Ioriatti. So Paulo: Companhia das Letras, 2007; HOBSBAWM, Eric J. A Era das Revolues: Europa (1789-
1848). Trad. Maria Tereza Lopes Teixeira; Marcos Penchel. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981; HOBSBAWM, Eric J.
A Revoluo Francesa. Trad. Maria Tereza Lopes Teixeira; Marcos Penchel. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996; SALIBA,
Elias T. As utopias romnticas. So Paulo: Estao Liberdade, 2003.
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instrumentalmente uma de suas gravuras visando perseguir os vetores e possibilidades abertos
por ela para se pensar a crtica da poca.
Intitulada Latelier du feuilleton, a gravura faz parte de uma srie de imagens maior, lanada
em 1868 postumamente, portanto chamada Exposition de lavenir, que est publicada no
interior do terceiro tomo de Le diable Paris: Paris et les parisiens a la plume et au crayon, obra coletiva
assinada pelo tambm ilustrador francs Paul Gavarni (1804 1866), e por Grandville. Seus
volumes incluem trabalhos em formatos de textos e imagens no apenas destes dois ltimos,
mas, s para se ter uma ideia, de nomes como o de Honor de Balzac (1799-1850), Grard de
Nerval (1808-1855), Thophile Gautier (1811-1872), entre muitos outros.
569GAVARNI, Paul; GRANDVILLE, J. J. Le diable Paris: Paris et les parisiens a la plume et au crayon troisime
partie. Paris: J. Hetzel, Libraire-Editeur, 1868. Disponvel em: gallica.bnf.fr / Bibliothque nationale de France. pp.
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Figura I J.J. Grandville -
Latelier du feuilleton. In: Le diable
Paris: Paris et les parisiens a la
plume et au crayon troisime
partie. Paris: J. Hetzel, Libraire-
Editeur, 1868. Disponvel em:
gallica.bnf.fr / Bibliothque
***p ()
nationale de France. 231***
No preciso ir muito mais longe para notar que o humor empregado na imagem, no
mnimo, sinaliza uma dura crtica aos rumos da modernidade matria sobre a qual pretendo me
debruar durante os prximos passos de minhas investigaes. O diagnstico fornecido por
Grandville nesta gravura sinalizou alguns vetores que pretendo perseguir nas sees seguintes
deste trabalho. Eles dizem respeito ao contexto de surgimento do folhetim, s formas de
organizao da produo literria e ao deslocamento da posio social do autor.
Escritores rentveis...
O surgimento do gnero folhetinesco est inserido num cenrio mais amplo marcado
pelo que Franco Moretti chama de industrializao da produo do livro e pela generalizao
do consumo de fico. Para o autor, tal como sinaliza Peter Burke, o final do sculo XVIII teria
571
marcado uma espcie de 1 revoluo industrial no setor do entretenimento . Nascido na
Frana na dcada de 1830, idealizado por mile de Girardin (1802-1881), e recebendo sua forma
clssica pelas mos de Eugne Sue (1804-1857) e Alexandre Dumas, o termo folhetim em sua
primeira acepo designava uma localizao geogrfica na pgina do jornal: o rodap, destinando-
se esta seo, sobretudo publicao de matrias e assuntos mais leves e recreativos do que
aqueles que prevaleciam no restante do peridico.
Entre os fatores que possibilitaram sua existncia, Elias Saliba destaca as mudanas nas
condies concretas de produo e consumo de literatura, caracterizadas, sobretudo, pelo
advento de novas tcnicas de impresso, de novas relaes que se consolidaram no mercado
editorial e pela intensificao das relaes entre imprensa diria veculo difusor do gnero
folhetinesco e a literatura572. Marlyse Meyer corrobora este argumento, enfatizando ainda o
570 GAVARNI. Le diable Paris: Paris et les parisiens a la plume et au crayon troisime partie, p. 231.
571 MORETTI, Franco. Atlas do romance europeu (1800-1900). Trad. Sandra Guardini Vasconcelos. So Paulo:
Boitempo Editorial, 2003. pp. 181.
572 SALIBA. As utopias romnticas, p. 50.
Note-se, portanto, que: com o folhetim, a obra literria passa a ser uma mercadoria,
no verdadeiro sentido do termo; passa a ter seu preo fixado, produzida de acordo com um
certo padro e fornecida em data previamente combinada576. no interior desta
configurao histrica que emerge a figura que, na falta de referncias, intitulo escritor rentvel:
escritores cuja percepo das transformaes ocorridas nas condies concretas de produo
artstico-literria foram capazes de produzir a partir das demandas de um novo tipo de pblico,
muito preocupados com a questo do gosto577 e com a obteno de rendimentos mais
expressivos, imediatos e menos espaados.
p 49.
576 SALIBA, As utopias romnticas, p. 50.
577 Categoria altamente complexa, histrica e socialmente varivel, com implicaes diretas sobre a produo
artstico-literria, sobre a qual pretendo me debruar durantes os prximos passos desta pesquisa. Ver:
SCHCKING, Levin L. El gusto literrio. Mxico: Breviarios Fondo de Cultura Econmica, 1996.
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Jean Yves Mollier nos d notcias sobre um certo Louis Reybaud (1799-1879), o qual em
1845 cria o personagem Granpr, um industrial criador do primeiro folhetim a vapor. Para
Mollier:
A arena do debate foi a imprensa (e, sobretudo, o jornal) que, sob a Monarquia de Julho,
aos poucos assumiu contornos de uma imprensa de massa e assistiu reproduo sistemtica da
frmula bem sucedida empregada por mile de Girardin no La Presse pela maior parte dos
jornais cotidianos franceses, visando o aumento significativo do nmero de assinantes. As
matrias envolvidas no debate revelam uma espcie de indissociao entre a crtica poltica e a
crtica esttica. De acordo com Lise Dumasy, em linhas gerais, o folhetim constitua, sob a tica
da crtica, uma forma literria moderna, industrial, democrtica e de massa580.
Em sntese, me parece que as questes suscitadas por ele poderiam ser sistematizadas em
trs pontos centrais, a saber: i) a concepo do livro enquanto objeto de arte em oposio ao
produto industrial; ii) a democratizao do consumo e da produo artstico-literria e iii) a
massificao do pblico. Debrucemo-nos, portanto, mais detidamente em cada um deles.
O primeiro ponto diz respeito concepo dos crticos poca, que sobrepunha o valor
do livro como obra de arte [infinitamente individualizado e singularizado] ao produto industrial
veiculado nos jornais cotidianos. Segundo Dumasy, a insero da produo artstico-literria no
578 MOLLIER, Jean-Yves. A Leitura e seu pblico no mundo contemporneo: ensaios sobre histria cultural. Trad. Elisa
Nazarian. Belo Horizonte: Autntica Editora, 2008. p. 88.
579 LEPENIES, Wolf. As trs culturas. Trad. Maria Clara Cescato. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo,
07; 11-12.
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circuito do mercado e do consumo de massas com todas as suas implicaes resultava numa
dramtica perda de valor da obra. Em outras palavras, a prostituio do autor ou da musa
implicaria fundamentalmente na dessacralizao da [alta] literatura581.
O terceiro ponto, tambm diretamente ligado aos demais, volta-se para a questo do
pblico. Conforme Dumasy, os detratores do gnero folhetinesco atribuam-no como
caractersticas a grosseria esttica e a prosa banal/superficial. Tais apontamentos esto ligados
ideia de uma estratificao entre alta literatura (legtima e elevada) e baixa literatura. Esta ltima,
por destinar-se a um pblico cujo esteretipo encarnava na figura feminina, infantil e, sobretudo,
em posio de dependncia elementos que se definiam pela passividade, pela falta de
julgamento poltico, moral e esttico, segundo a concepo da poca constitua uma espcie de
abecedrio da produo literria583.
... les crivains ne donnrent plus la composition que le secret daiguiser les
apptits grossiers et dexciter les curiosits vulgaires [...] Au lieu de sadresser
llite des intelligences, on ne sadressa plus quaux instincts de la foule, non
pour les corriger, mais pour les satisfaire. La littrature fut mise la porte des
piciers; non que nous nestimions ces honntes gens, Dieu ne plaise!
Seulement nous ne pensons ps que la littrature doive descendre jusqu eux
lorsquelle ne peut les lever jusqu elle584.
Consideraes finais
Dada a impossibilidade de concluir este longo percurso, tendo-se em vista sua vastido
e, como diria Marlyse Meyer, a importncia dos cortes sistemticos , gostaria de realizar alguns
apontamentos a ttulo de consideraes finais. At o momento, minhas investigaes permitiram-
me observar de que forma os condicionantes propiciados pela configurao histrica que
possibilitou o surgimento do folhetim tiveram implicaes diretas na forma assumida pelo
581 DUMASY. La querelle du Roman-feuilleton: Littrature, presse et politique, un dbat prcurseur (1836-1848), p. 12-
14.
582 ______. La querelle du Roman-feuilleton, p. 16.
583 ______. La querelle du Roman-feuilleton, p. 14; 18-20.
584 LA MODE. 1844. Apud. DUMASY, Lise. La querelle du Roman-feuilleton: Littrature, presse et politique, un dbat
585MOLLIER, Jean-Yves. A Leitura e seu pblico no mundo contemporneo: ensaios sobre histria cultural. p. 10.
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260
ST 5: Histria, gnero, poltica e
sexualidade: Memrias e Identidades na
escrita da histria
RESUMO: O presente artigo consiste em refazer a trajetria de Lindolfo Gomes e destacar sua
importncia no cenrio, cultural e intelectual na cidade mineira de Juiz de Fora na primeira
metade do sculo XX. Lindolfo Gomes, professor, jornalista, fillogo, historiador, folclorista e
escritor, atuou ativamente em todas essas reas em diversas cidades mineiras e cariocas. Tal fato o
fez adquirir uma rica rede de amigos que influenciaram sua atuao e difundiram suas ideias.
Pretendemos aqui analisar Lindolfo dentro da abordagem da biografia intelectual para assim
entender, a partir de seus pensamentos e suas abordagens pessoais, com quem ele debatia e com
quem eram feitas essas articulaes, dentro e fora de Juiz de Fora. Entendemos por fim, que com
esse trabalho, a importncia de Lindolfo para a memria e a histria de Juiz de Fora fique clara,
mostrando ainda como a escrita da histria tambm se mostra muito rica em suas identidades e
personagens.
Lindolfo Gomes
Nascido em Guaratinguet (SP) em 1875, Lindolfo Eduardo Gomes era de uma famlia
importante e tradicional da regio. Neto do Baro de Mambucaba e filho do mdico Dr. Antnio
Francisco Gomes, aos dois anos de idade, com o falecimento de sua me, foi morar em Volta
Redonda (RJ) e concluiu os estudos secundrios na cidade do Rio de Janeiro (onde j colaborava
com alguns jornais). Passou a residir em Juiz de Fora em 1894, aos 19 anos de idade.
586BASTOS, Wilson de Lima. Lindolfo Gomes. S. L.: Ministrio da Educao e Cultura, 1975. (Folcloristas Brasileiros,
n. 1). p. 7.
Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG. v. 7 (Suplemento,
2015) Belo Horizonte: Departamento de Histria, FAFICH/UFMG, 2016. ISSN: 1984-6150 -
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Lindolfo Gomes ainda considerado como um dos poetas esquecidos de Juiz de Fora na viso
de Leila Barbosa e Marisa Rodrigues, apesar de ter sido um escritor de uma erudio lingustica
requintada [...] extremamente arguto e engenhoso, pois atravs de pesquisas e estudos,
correlacionou cenas discursivas as mais diversas em busca das identidades [...].587 Como
jornalista, Lindolfo atuou em diversos jornais de Juiz de Fora, So Paulo e Rio de Janeiro,
principalmente, tendo sido presidente honorrio e um dos fundadores da Associao de
Imprensa de Minas. Foi ainda membro e fundador da Academia Mineira de Letras (fundada em
Juiz de Fora em 25 de dezembro de 1909), membro da Academia Carioca de Letras, Academia
Brasileira de Filologia, Instituto Histrico e Geogrfico de Minas Gerais, Instituto Histrico e
Geogrfico de Ouro Preto, Academia Fluminense de Letras e representante da Academia Mineira
de Letras na Federao das Academias de Letras do Brasil.588 Como historiador, dedicou grande
parte de suas pesquisas a descobrir quem teria sido o juiz de fora que deu o nome de seu cargo
cidade, dvida essa que at hoje no foi esclarecida.
Dentro dessas poucas palavras introdutrias j notvel a importncia do professor em
todos os campos que atuou. Seus estudos histricos sobre a cidade de Juiz de Fora o levou a ser
convidado pelo municpio a escrever a Histria de Juiz de Fora, trabalho esse que no
conseguiu exercer por conta da enfermidade que o assolou j no final de sua vida. A tarefa passou
ento para as mos de Paulino de Oliveira, que a fez com perfeio, e que, nas palavras do
prprio Lindolfo seria o melhor e mais completo [trabalho] at agora realizado.589 Para o
mesmo Paulino, Lindolfo era um verdadeiro mestre da filologia e polgrafo do maior quilate. [...]
No h em Minas quem ligado s letras, ignore seu valor.590 Assim sendo, no foi atoa que ele
foi um dos fundadores da Academia Mineira de Letras e cabe aqui lembrar tambm que como
folclorista chegou a ser comparado com Silvio Romero, uma referncia indiscutvel nos estudos
folclricos brasileiros.
A importncia da biografia intelectual
Tambm conhecida como biografia histrica, a biografia intelectual, gnero que passou a
ser usado dentro da historiografia a partir da dcada de 1970 e que foi renovado a partir de
587 BARBOSA, Leila Maria Fonseca; RODRIGUES, Marisa Timponi Pereira. Letras da cidade. Juiz de Fora: Fundao
Cultural Alfredo Ferreira Lage, 2002, p. 41.
588 BASTOS. Lindolfo Gomes, p. 8.
589 Lindolfo Gomes teria dado tal declarao ao prprio Paulino ao ler o primeiro captulo do referido livro.
OLIVEIRA, Paulino de. Centenrio de Lindolfo Gomes. Dirio Mercantil, Juiz de Fora, 22 de fev. 1975.
590 _________. Centenrio de Lindolfo Gomes.
591 OLENDER, Marcos. Ornamento, ponto e n: da urdidura pantalenica s tramas arquitetnicas de Raphael Arcuri.
Juiz de Fora: FUNALFA/Editora UFJF, 2011. P. 20.
592 ALONSO, Xos Ramn Veiga. Individuo, sociedade e historia: reflexiones sobre el retorno da biografia. Studia
histria oral. 2 ed. Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas, 1998. p. 190.
Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG. v. 7 (Suplemento,
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quem eram feitas as suas articulaes, dentro e tambm fora de Juiz de Fora, entendendo assim a
sua importncia no contexto da cidade mineira. Atravs de uma citao de Jacques Le Goff,
Roger Chartier lembrou que a mentalidade de um indivduo, mesmo sendo um grande homem,
justamente o que ele tem de comum com outros homens de seu tempo.602
A rede social de Lindolfo Gomes e sua importncia para a cidade de Juiz de Fora
Como j foi visto anteriormente, Lindolfo Gomes pode ser chamado de um intelectual
completo. Atuou ativamente nas reas de jornalismo, ensino, folclore, literatura, histria e letras.
Por suas mltiplas facetas, foi muito elogiado e construiu em torno de si um ciclo de amizades,
ou uma rede social, que alm de divulgar, influenciou grande parte de sua obra. Nessa parte do
presente artigo buscaremos mostrar um pouco essas relaes e ciclos sociais dos quais Lindolfo
participava, j dizendo de antemo que as pesquisas sobre essas relaes esto ainda em
andamento, sendo que o que ser aqui apresentado no constitui nas concluses de um trabalho
futuro.
Sobre seu ciclo de amizades ligado s letras, o fato de Lindolfo ter sido um dos
fundadores da Academia Mineira de Letras (fundada em Juiz de Fora em 1909) j deixa claro toda
sua influncia com os mais importantes nomes das letras de Minas Gerais naquela poca. Antes
da fundao da Academia Mineira, Lindolfo havia sido vice-presidente da chamada Confraria
literria mineira, criada em 1896 e que seria a precursora da referida academia. Alm de Lindolfo
fizeram parte da fundao da Academia: Albino Esteves, Amanajs de Arajo, Belmiro Braga,
Dilermano Cruz, Eduardo de Menezes, Estevam de Oliveira, Brant Horta, Heitor Guimares,
Jos Rangel, Luiz de Oliveira e Machado Sobrinho. Aos doze primeiros, juntaram-se depois mais
18 membros e em 1910 mais 10, totalizando 40 membros. 603 Todos esses literatos acabaram
fazendo parte do ciclo social de Lindolfo, uns mais amigos outros menos, mas no difcil
encontrarmos referncias de Lindolfo a esses intelectuais que sempre que lanavam livros
enviavam uma cpia com dedicatria ao professor.604 Alm de scio fundador da Academia
Mineira de Letras, Lindolfo participou tambm de inmeras associaes literrias, como foi
destacado no incio desde artigo, aumentando ainda mais esse ciclo social.
602 CHARTIER, Roger. beira da falsia: a histria entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: Editora da UFRGS,
2002. P. 34.
603 BARBOSA, Leila Maria Fonseca; RODRIGUES, Marisa Timponi Pereira. Machado Sobrinho: notcias da imprensa
sobre a Academia Mineira de Letras. Juiz de Fora: FUNALFA, 2009. P. 20-31, 97.
604 Podemos perceber isso na sria de crnicas intituladas Ntula, que Lindolfo escreveu para o jornal Dirio
Concluso
Lindolfo Gomes foi um intelectual de vrias faces. Mas isso no era raro em sua poca.
muito comum encontrarmos professores, advogados, mdicos, farmacuticos, que tambm eram
escritores e jornalistas (no sentido de serem redatores ou colaboradores de peridicos). No
entanto, o que se pode destacar de Lindolfo foi sua maestria em todas suas tarefas. Considerado
um grande erudito e possuidor de excelente senso crtico por Joaquim Ribeiro, aps sua morte,
em 1953 vrios rgos da imprensa, letras, folclore, educao e institutos publicaram em algum
meio os lamentos por sua perda. Lindolfo, acima de tudo, era muito querido e exemplo a ser
seguido. Assim o descreveu Heli Menegale:
Uma vida simples eis a feio que melhor o individualizava. Conheci-o,
cigarrinho de palha entre os dedos, fugindo de ser notado, modestamente, entre
os que o cercavam. Intil, porque uma palavra sua nos vaivns do dilogo,
dominava a conversa.
Depois da simplicidade, o inexausto labor. Joo Ribeiro, que o admirou e
louvou tanto, no sabia decifrar o segredo da erudio de quem vivia onde no
eram fceis as fontes de pesquisa e consulta. S o trabalho, o aferroante, o
pertinaz, o indefesso trabalho explica o milagre.607
Para terminarmos gostaramos de citar Pedro Costa, que ao escrever sobre Lindolfo na
Revista Marlia, em agosto de 1934, resume, em uma frase, o perfil exato do professor: Homem,
poeta, crebro, corao.608
607 MENEGALE, Heli. Lindolfo Gomes. Palestra pronunciada no salo de julgamento do Frum de Juiz de Fora, a
convite da Associao Franco-Brasileira de Cultura de Juiz de Fora, em 11 de setembro de 1953. Revista da Academia
Mineira de Letras. Belo Horizonte, v. 20. 1954. p. 81
608 Citado por BASTOS. Lindolfo Gomes. P. 15.
Licenciada em Histria
RESUMO: A presente comunicao se ocupa de duas edies do peridico Repblica das Moas, que
circulou na cidade do Rio de Janeiro em outubro de 1879. Tendo em vista que o jornal era editado por
mulheres e propunha a participao feminina na poltica, espao ento considerado masculino, ser
avaliada a abrangncia social do discurso jornalstico no intuito de sabermos como o peridico propunha
o alargamento do espao de atuao feminina e se, ao mesmo tempo, reafirmava as limitaes polticas
impostas s mulheres. At o presente momento foi possvel concluir que, apesar da proposta de expanso
da atuao da mulher na sociedade, o jornal, de maneira ambgua, acabava por desnaturalizar a presena
feminina em determinados espaos. Essa desnaturalizao pde ser observada pela recorrncia de termos
e expresses que atribuam lugares e comportamentos prprios s mulheres, e assim, reforavam o velho
esteretipo. Deste modo, a mensagem defendida e propagandeada pelas editoras do Repblica da Moas,
ao mesmo tempo em que conclamava as mulheres a uma imerso na poltica, no se desvencilhava dos
arraigados valores tradicionais, dando uma sombra conservadora sua proposta revolucionria.
Este trabalho tem como objetivo analisar o peridico Repblica das Moas na tentativa de avaliar o
significado da proposta de expanso da atuao feminina no Brasil que, neste jornal, vem paradoxalmente
acompanhada da reafirmao dos tradicionais esteretipos femininos de finais do sculo XIX. , portanto,
foco desta anlise, a ambigidade suscitada entre a proposta inicial do peridico e o sentido que permeava
suas matrias.
Repblica das Moas circulou na cidade do Rio de Janeiro em apenas duas edies: A primeira em 12
de outubro de 1879 e a segunda em 19 de outubro do mesmo ano. Editado por Carlota de Almeida e
Cada nmero do jornal totalizava oito pginas impressas sendo trs delas totalmente preenchidas
por imagens. Nas demais, havia espaos dedicados poesia, crtica de teatro, dicas de agricultura, e por
fim, colunas polticas, as mais extensas e destacadas, j que eram o foco do peridico. interessante
observar que o Repblica das Moas desviava sua temtica principal e at mesmo seus assuntos secundrios
do padro seguido por grande parte da imprensa feminina do sculo XIX, que era a literatura voltada para
a me e a esposa, recheada de receitas culinrias, moldes de costura e matrias sobre o casamento e criao
de filhos.
Apesar do grande nmero de publicaes voltadas para o pblico feminino da poca estarem
atreladas apenas s questes do lar e da sociedade em seus aspectos menos complexos, alguns peridicos
como O Quinze de Novembro do Sexo Feminino e O Sexo Feminino tambm abordaram de maneira
contundente as questes polticas, mas o que chama a ateno no Repblica das Moas que h uma
convocao das mulheres, explcita e direta, para a participao poltica e em sua primeira edio, na capa,
as mulheres so conclamadas a derrubar a monarquia numa exaltao fervorosa da Repblica:
J que aos homens falta valor para derribarem essa carunchosa monarchia, sejamos ns as
defensoras dos direitos do povo, e tomem elles a direco dos negcios domsticos. Viva a Repblica!
Viva o bello sexo!609
609 Repblica das Moas, Rio de Janeiro, 12 de outubro de 1879, nmero 1, p.1.
Eliseo Vern em Comunicao de massas e produo de ideologia 610, apresentou o discurso como sendo
uma rede de interferncias, carente de unidade prpria e onde se manifesta uma multiplicidade de
sistemas de restries. Isso significa que o discurso no vale por si s, j que seu sentido tambm
construdo a partir de fatores externos. Ao se analisar o discurso veiculado em um peridico feminino do
ano de 1879 h que se considerar as condies de sua produo, quais foram suas redes de interferncias,
quais os pontos em que houve dissonncia de vozes das prprias editoras, enfim, toda a complexidade que
o envolveu.
Alm disso, h na frase de capa uma clara definio do espao feminino e masculino. Diante da
necessidade anteriormente discutida, as editoras convocavam as mulheres a assumirem as questes
610 VERN, Eliseo. Comunicacin de masas y produccin de ideologa Acerca de la constituicin del discurso
burgus en la prensa semanal, nmero 1, Buenos Aires, Revista Latinoamericana de Sociologia, 1974, p.9.
611
Repblica das Moas, Rio de Janeiro, 12 de outubro de 1879, nmero 1, p.1.
612 Repblica das Moas, Rio de Janeiro, 12 de outubro de 1879, nmero 1, p. 2.
Na segunda edio do peridico, o poema A Virgem, assinado por Placido de Abreu, chama a
ateno no s pelas caractersticas que destaca na personagem, mas tambm pelo tema, to caro s
mulheres da poca:
A VIRGEM
No poema, a figura da mulher bela, encantadora e pura se casa contra sua vontade e
assume, com a legitimidade oferecida pelo casamento, um futuro de infelicidade e desonra. Diante de uma
temtica to relevante para o pblico feminino, as editoras optaram por no incluir comentrios, como j
haviam feito em outras oportunidades, apenas publicaram o poema suscitando uma imensa curiosidade
sobre as redes de interferncias, os fatores externos e motivaes que levaram sua escolha.
No primeiro nmero do peridico, na coluna intitulada Toillete h uma narrativa que, com
pinceladas cmicas fala sobre um baile em So Paulo. Nessa narrativa importante destacar as referncias
feitas s mulheres presentes no evento. Durante a enunciao de um poema em que havia exclamaes de
sangue:
As moas, coitadinhas, suppondo grande desgraa, recorreram logo s suas armas de guerra, e
toca a chorar... 614
Mais adiante, quando outro convidado, numa cena dramtica invoca famosos personagens j
mortos:
As moas, espavoridas, fugiram todas da sala e deixaram o Sr. Vasconcellos entre os espectros,
como uma cruz por entre tmulos.615
Ainda no mesmo texto a narradora usa a seguinte frase para descrever a si prpria e s suas
amigas:
Nossas amigas, eram todas bonitinhas e de todas fomos ns as mais feinhas, isto , as mais
sympaticasinhas.616
Por fim, na coluna de crtica de teatro, Anacleta Pafncia descreve da seguinte maneira a atriz
Ismenia dos Santos, que havia estreado na pea Anjo do Mal:
613
ABREU, Placido de. A Virgem. Repblica das Moas, Rio de Janeiro, 19 de outubro de 1879, nmero 2, p. 3.
614 Num Baile. Repblica das Moas, Rio de Janeiro, 12 de outubro de 1879, nmero 1, p. 3.
615 ______. Num Baile, p. 3.
616 ______. Num Baile, p. 3.
617 Theatros. Repblica das Moas, Rio de Janeiro, 19 de outubro de 1879, nmero 2, p. 6.
618 BUITONI, Dulclia Helena Schroeder. Mulher de Papel: a representao da mulher pela imprensa feminina
brasileira. So Paulo, Summus, 2009.
619 BUITONI, Dulclia Helena Schroeder. Mulher de Papel: a representao da mulher pela imprensa feminina
Introduo
Atravs da anlise do jornal Lavoura e Commercio, a cidade de Uberaba pode ser
interpretada como de preocupao eugnica claramente explcita. Em um de seus primeiros
nmeros disponveis no acervo consultado, a reportagem intitulada de Eugenia621, traz de incio a
explicao do que seria essa nova cincia: eugena a sciencia recentissima, de origem inglesa,
que tem por objeto o aperfeioamento physico e moral da espcie humana. Foi Galton o seu
fundador em 1865.
Prossegue dizendo que era preciso que a sociedade brasileira se desligasse do tratamento
para com a eugenia animal - pois sabido que a dedicao que se dava a certas espcies se devia
principalmente pelo fato de os primeiro esportes usarem animais nas competies, sendo o Turf,
620 Este trabalho contou com o apoio da Fundao de Amparo a Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG APQ-
00397-13- Projeto 21417). A pesquisa realizou-se nos acervos da Biblioteca Pblica Estadual Luiz de Bessa (Belo
Horizonte/Minas Gerais). Agradeo ao carinho e confiana dos professores Cleber Dias, Maria Cristina Rosa e Sarah
Soutto Mayor, estas ltimas, flores quais dedico este trabalho.
621 Eugena. Lavoura e Commercio, Uberaba, 12 meio 1918, n. 2080, p.4.
O que comprova a influncia eugnica da cidade, pois sabido que a instruo militar
fora usada em prol do melhoramento da raa, e no caso de Uberaba aparenta ter tecidos dilogos
prximos no s com o ambiente escolar, mas com a cidade e mbito esportivo, pois o jornal
Lavoura e Commercio cita a formao do clube de futebol do 4 Batalho de Infantaria Futebol
Clube, considerado pelo principal time local, Uberaba Esporte Clube, um adversario digno de
respeito, onde militam otimos elementos628.
622 MELO, Victor Andrade de. Corpos, bicicletas e automveis: outros esportes na transio do sculo XIX e XX.
In: PRIORE, Mary Del; MELO, Vitor Andrade de. Histria do esporte no Brasil: do Imprio aos dias atuais. So Paulo:
UNESP, 2009, p.71-105.
623 Eugena. Lavoura e Commercio, Uberaba, 12 meio 1918, n. 2080, p.4.
624 Ver Castellani Filho, Lino. Educao Fsica no Brasil: a histria que no se conta Campinas, SP: Papirus, 1988.
625 DIAS, Cleber Augusto. Primrdios do futebol em Gois, 1907-1936. Revista de Histria Regional 18(1): 31-61, 2013.
O que aqui chamo de Uber irms se remete ao fato de as duas cidades triangulinas
terem na primeira metade do sculo XX, na constituio das suas prticas extra-ambiente
familiar, lazeres afins. A citar bailes danantes, musicais, pic-nics, cinema; tendo Uberaba, atravs
do trabalho com as fontes, apresentado maior nmero de reportagens fazendo referncia a
presena de circos na cidade nesta poca631. Pareadas tambm pela formao de Clubes
recreativos, o que no sculo XX foi prtica comum no s destas cidades, mas de todo o Estado
que buscava se orientar para a educao de um corpo de vida comum, o corpo de modos
eugnicos:
629 GOELLNER, Silvana Vilodre. Mulher e esporte no Brasil: entre incentivos e interdies elas fazer histria. Revista
Pensar a Prtica, v.8, n 1, 2005. Captado em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/fef/article/view/106/2275.
Acesso em: 14 mar. 2015.
630 Jogos interestaduais realizados no interior do pas, institudo em 1936, na cidade de Monte Alto, cujos mentores
esportivos deram credito ideia de Babi Barioni, criador e organizador das cinco primeiras competies. Inaugurado
apenas com competies da modalidade Cestobol, destaca Uberlndia com o primeiro lugar nos campeonatos de
1936 a 1938. A oitava edio do Campeonato aconteceu em Sorocaba. Ler sobre o II Campeonato Aberto do
Interior tambm uma forma de perceber a relao tecida entre Tringulo Mineiro e So Paulo, que recorridas vezes,
alm do Campeonato, teceram dilogos com as suas delegaes esportivas (A Tribuna, Uberlandia, 11 set. 1937, n.
1138, p.1; A Tribuna, Uberlandia, 19 out. 1938, n. 1252, p. 1; A Tribuna, Uberlandia, 4 abril 1943, n. 1664, p. 2; A
Tribuna, Uberlandia, 29 abril 1943, n. 1669, p. 2)
631 BRAZ, Sebastio. Lavoura e Commercio, Uberaba, 30 dez. 1933, n. 6086 p.2 ; Vamos ter um pic-nic. A Tribuna,
Uberlandia, 26 abril 1939, n.1296, p.1; Diverses. A Tribuna, Uberlandia, 11 nov. 1943, n. 1719, p.2; Circo Piolin.
Lavoura e Commercio, Uberaba, 5 agosto 1933, n. 6361, p.2.
Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG. v. 7 (Suplemento,
2015) Belo Horizonte: Departamento de Histria, FAFICH/UFMG, 2016. ISSN: 1984-6150 -
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277
Um controle perfeito dos pequenos jornais e semanrios do interior do Estado
de Minas Gerais leva verificao de que, nos ultimos seiz meses intensificou se,
em todas as cidades mineiras, a organisao e fundao de clubes sociaes,
literarios ou recreativos. Este , sem duvida, um ndice seguro e promissor do
retorno de Minas a uma poca de prosperidade e fastgio. Os clubes, alm de
contribuir para o reerguimento do nivel social, cultural e artstico das
coletividades, formam um indicador incontestvel do ritimo novo e brilhante da
vida do Estado. Em Minas, elas sero mais um trao de unio entre os
mineiros, criando afinidades, estimulando o espirito associativo to necessario
em todos os setores das atividades humanas, propiciaro um maior encanto e
maiores atraes para a nossa vida em comum632.
Uma prtica interna comum destes mbitos era a promoo de bailes danantes, em que
se l no exemplo de Uberaba: hoje, na forma costumeira, haver na sede desta simpatica
sociedade, mais uma reunio dansante, oferecida pela diretoria aos seus scios. As dansas tero
inicio s 20 horas, durante at meia noite 634.
Ainda nesta nota, ao descrever a sesso do dia, dedicada s moas chiques e elegantes de
Uberaba onde seria exibido o filme No ha mais amor, a nota ilustra bem o ideal de mulher que se
gestava naquele momento ao se referir a protagonista Lilian Harvey: uma mulher que para ser
completa, deveria ser leve alm de bonita, o que significava estar integrada ao ambiente dos
esportes. E as mulheres, pelo que interpretado na nota, haviam conseguido onipresena, pois
alm de beleza, as tecnologias presentes na poca como o avio, navio... Proporcionavam isto a
elas637.
Mas antes de estarem integradas de forma prtica nas modalidades esportivas natao,
voleibol e cestobol no Tringulo Mineiro, que parte deste trabalho, neste caso referenciando as
cidades de Uberaba e Uberlndia, lido que elas estiverem a frente de apadrinhamentos de times
de cestobol e futebol masculino, sendo eleitas at a Rainhas do Esporte638. A presena feminina
meio ao mbito do futebol claramente celebrada nas seguintes notas dos distintos jornais, A
Tribuna:
p.3.
641 Premios ao Bello Sexo. A Tribuna, Uberlandia, 11 junho 1939, n. 1303, p.3.
Sobre a presena das mulheres nas arquibancadas, vale fazer um comparativo a essa
leveza esperada dos corpos femininos lida na nota com a programao do cinema de Uberaba,
pois em artigo supracitado, Cleber Dias diz das confuses que estas causavam meio s
arquibancadas nas partidas de futebol em Gois: nos espetculos de futebol, as mulheres
torciam e, nessa torcida brigavam, falavam palavres, quebravam suas sombrinhas ao baterem nas
adversrias e jogavam pedras contra as mesmas643.
O que corrobora com o que lido na nota que faz aluso ao jogo entre os times do
Uberaba e Palestra Itlia, da cidade de So Paulo, que estas torcedoras no se portavam de forma
to leve como o esperado, e estavam integradas ao clima efervescente das pelejas. Diz: os sr.
torcedores e as lindas torcedoras podem assim, desde j ir afinando as suas gargantas para a maior
torcida que j se viu dentro das fronteiras de Minas Gerais, o que sugere que elas se inseriam ali
com o sentimento maior ao de simplesmente florearem as arquibancadas; valendo tambm
refletir sobre o lugar de destaque que o futebol teria nesta cidade, pois estes jogos foram
marcados para os dias 24 e 25 de dezembro prximos, dia do calendrio cristo que se comemora
o Natal645.
642 Pelos esportes. Lavoura e Commercio, Uberaba, 15 agosto 1933, n. 6369, p.4.
643 DIAS, p. 43, apud REBELLO, p.97.
644 GOELLNER, Silvana Vilodre. Mulheres e futebol: entre bolas e bonecas, a dificuldade de insero. Revista pr-
O colaborador da coluna Pelo Sport, de assinatura KIKI, descreve a ligao das cidades de
Uberaba e Uberlndia, que comeam pelo nome da cidade de Uberaba ao nome do rio de
Uberlndia, que por muitos anos foi conhecido como Uberabinha, o que poderia parecer
desclassificatrio naquele momento, j que a cidade de Uberlndia se destacava mais do que
Uberaba nos assuntos dos esportes aquticos, tanto pelo tamanho e beleza do rio, quanto pela
organizao de um club, que segundo a nota, o nome do rio Uberabinha foi mudado para
Uberlandia Club647, afirmando que foroso convir que andamos bem, mesmo pondo de lado
os mais vivos traos de um tradio honrosa648, mesmo porque o nome da cidade tambm era
Uberabinha antes de ser conhecida como Uberlndia. Assim, mudar at mesmo o nome de uma
cidade e de um rio para justificar aes de melhoramento esportivo acontecera na cidade de
Uberlndia.
Corroborando com os ideais saneadores vigentes no incio do sculo XX, dois espaos
em Uberlndia, foram pensados para recreao util ao corpo e ao espirito650 envolvendo o
esporte aqutico: O rio Uberabinha e o Praia Club:
A piscina do Praia Club de Uberlndia contava com o projeto de uma torre de salto
definitiva, j dispondo de uma torre de salto provisrio, espao onde era possvel exercitar o
water polo e o salto652.
Alm da participao de atletas como Ruth Tibery, inscrita como competidora na prova
de carter mista, Prova Tribuna:
Outros dois esportes esto associados prtica feminina nas Uber irms, o voleibol e o
basquetebol, na poca conhecido como cestobol. Esportes estes envolvidos prioritariamente,
pelo que por ser lido nas fontes, com o mbito escolar, seja para floreamento dos
acontecimentos, como no exemplo sobre a posse da diretoria do Gremio Recreativo da Escola
Normal de Uberaba, em que as alunas normalistas praticantes do voleibol se apresentaram neste
evento para encerramento das celebraes da encantadora festa660, ou mesmo acontecendo
entre times advindos de instituies educativas de outros Estados, como por exemplo na notcia
que diz do jogo de voleibol e cestobol entre as alunas-normalistas de Uberaba com as paulistas de
655 Inaugurado o Uberlandia Tenis Club. A Tribuna, Uberlandia, 4 abril 1943, n.1664, p.1
656 Uberlandia Tenis Club. A Tribuna, Uberlandia, 25 maro 1943, n. 1661, p.4
657 Dentre os dias 18 e 21 de maio, em visita a cidade de Uberlndia, fiz contato com o Praia Club e Uberlndia Tnis
Clube para tentativa de acesso aos arquivos destes lugares. Mas, infelizmente no liberaram o acesso, o que considero
decepcionante, pois seria de muita valia para o somatrio das fontes j coletadas.
658 Discusso mais aprofundada sobre o assunto pode ser lida no artigo de SANTOS, Ricardo Pinto dos.
Comemorando o Brasil: que Brasil? In: SANTOS, Joo Manuel Casquinha Malaia; MELO, Victor Andrade de. 1922:
celebraes esportivas do centenrio. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012, p.163-182.
659 Grupo de pesquisa do departamento de Estudos do Lazer da Universidade Federal de Minas Gerais-Campus
Os treinos das uberabenses aconteceram no Estdio local, das Mercs, onde em nota, o
jornal traz pontualmente o que o treinador desejava de suas jogadoras, e Sebastio Braz termina a
reportagem antecessora do dia do jogo, dizendo em nome da cidade que confiamos
absolutamente na dedicao e no esforo de todas as nossas graciosas jogadoras e temos certeza
de que elas sabero defender com herosmo as suas cores uberabenses no grande interestadual de
amanh662.
Consideraes finais
Deste modo, entender o jornal como uma rede complexa de informaes necessrio
para entender que nem toda histria verdade, e sim motivao de quem a escreve. Este
trabalho, ainda em continuidade se motivou pelo interesse de entender como foi a receptividade
das mulheres nas cidades supracitadas, nos mbitos esportivos, em que se destacaram em prticas
da natao, voleibol e cestobol na primeira metade do sculo XX.
Assim, conclui-se que mulher e esporte so coisas afins, de tempos em que as investidas
da campanha mdico-higienistas brasileira com a vontade de modernizao dos hbitos no
modernos do pas, fomentaram campanhas locais, onde o regional tambm integrou o nacional,
pelo prezar do corpo de regras comuns. Neste exemplo, o corpo feminino das flores das
princesinhas do serto664 mineiro.
661 Bola ao cesto e voleibol. Lavoura e Commercio, Uberaba, 25 out. 1933, n. 6029, p.2.
662 BRAZ, Sebastio. Lavoura e Commercio, Uberaba, 28 out. 1933, n. 6032, p.2.
663 LOPES, Jos Sergio Leite. A vitria do futebol que incorporou a pelada: a inveno do jornalismo esportivo e a
entrada dos negros no futebol brasileiro. Revista USP: Dossi Futebol, n.22, Junho-Agosto 1994, p.64-81.
664 Apelido carinhoso das cidades.
RESUMO: O corpo sexuado, antes do sculo XX, no tinha as devidas atenes merecidas pelos
historiadores, bem como o cinema enquanto fonte para a historiografia. O presente trabalho
pensado luz da epistemologia feminista e dos estudos queer, ao passo que se pretende aqui
aplicar o gnero enquanto uma categoria de anlise para a histria, conforme Joan Scott [1990],
entender o cinema enquanto tecnologia de gnero, segundo Teresa de Lauretis [1994], ou seja,
artifcios criados e usados para se construir as representaes do sujeito e dos corpos, na mesma
medida em que veicula estas representaes na cena miditica. Neste sentido, o trabalho se
prope a anlise de um fragmento da pelcula de Pedro Almodvar, a Pele que Habito [2011], a
fim de problematizar a representao do corpo na ps-modernidade, de modo a desconstruir o
invarivel vnculo entre sexo, corpo, gnero e desejo, a partir do que prope a terica Judith
Butler (2003), quando considera corpo, gnero e desejo so trs elementos construdos e que, por
conseguinte, fundamental desatrel-los. Para tanto, utilizar-se- a noo de dispositivo de
Michel Foucault para, a partir do dispositivo da sexualidade analisar os mecanismos de desconstruo
da norma que conduz as prticas sexuais, o que sustentar a direo da presente anlise. Destarte,
a partir das prticas discursivas e da produo de sentido, realizar-se- o trabalho, fragmento de
uma dissertao de mestrado, com vistas a pensar a cena discursiva da qual emergem os discursos
sobre os corpos que escapam norma, bem como o sexo e o gnero.
665 MAIA, C. J. A inveno da solteirona: conjugalidade moderna e terror moral: Minas Gerais 1890-1948. Ed. Mulheres,
2011, p.34.
666
BLOCH, Marc. Apologia da Histria ou o Ofcio de Historiador. Rio de Janeiro: ed. Zahar, 2001.
667
BUTLER, Judith. Problemas de gnero: feminismo e subverso da identidade. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira,
2003.
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Fruto de um tempo de agitaes e transformaes, a possibilidade refletir acerca da ps-
modernidade fundamental, na pelcula A pele que habito. Lanado em 2011 faz parte deste
universo catico, j que para compreender as percepes que o cineasta tem acerca da
representao do corpo, do sujeito, do sexo e do gnero, necessrio considerar o
desfacelamento de grandes modelos explicativos, solidificados e hegemnicos. Para a presente
anlise, valer-me-ei de um conceito foucaultiano de dispositivo. Portanto, na Histria da
sexualidade Volume I, a vontade de saber, Foucault nos apresenta o dispositivo da sexualidade668, que
algo que consegue me dispor de ferramentas para compreender de que maneira foi instaurada
uma ideia sobre o sexo, unificando a conduta sexual, o que se constitua enquanto norma,
acabando por concentrar esforos para torna-la lugar de verdade. Desta forma, o dispositivo da
sexualidade foi capaz de produzir sujeitos anormais, tal como Vera/Vincent.
Desta maneira, procurei articular tanto o imaginrio acerca dos corpos sexuados, quanto suas
representaes historicamente construdas. Assim, me interessou neste trabalho a produo
discursiva de representaes sociais sobre o corpo, fazendo emergir no imaginrio coletivo o
sujeito ciborgue, figura que sugere a ideia do nomadismo identitrio e do bizarro, a personagem
Vera/ Vincent.
A proposta de anlise se faz a partir do recorte dos primeiro cinco minutos do filme. A sucesso
de cenas emblemticas intrigaram nossos olhares e nos atentaram para pensar a construo desta
subjetividade que se distingue de tudo o que j pudera ser visto nas telas do cinema. Conforme
diz Tomas Tadeu669 a subjetividade humana estruturada sobre runas e hoje j no se questiona
mais quem o sujeito, mas a preocupao gira em torno da pergunta: ainda queremos ser
sujeitos? Precisamos disto? Existe algo ps-sujeito? Desta maneira, deparamo-nos com a
personagem Vera/ Vincent dentro de seu invlucro protetor, que preserva sua identidade
para os demais. No se sabe, a priori, quem , o que e para que propsito mantido ali. A
impresso que se tem , antes de tudo, de desconforto. Parece que o sujeito consegue escapar por
todos os lados, como se pensssemos na perspectiva identitria atual e ao mesmo tempo se v
mantido em um crcere eterno.
Assim, Tnia Navarro Swain670 advoga que [...] uma cartografia identitria , afinal, o que nos
resta para observarmos o percurso de opes, movimentos e atuaes ao longo de nossas
histrias pessoais/sociais preciso exceder, preciso desapegar da identidade, desta busca
incessante pelas marcas do social. Sugere a terica que sejamos livres, antes de tudo. Ainda diz
668 Segundo Foucault, o dispositivo da sexualidade funciona de acordo com tcnicas mveis, polimorfas e
conjunturais do poder, ele engendra uma extenso permanente dos domnios e qualidade dos prazeres, a natureza
das impresses, por tnues ou imperceptveis que sejam. O dispositivo da sexualidade tem, como razo de ser, no o
reproduzir, mas o proliferar, inovar, anexar, inventar, penetrar nos corpos de maneira cada vez mais detalhada e
controlar as populaes de maneira cada vez mais global Conferir: FOUCAULT, Michel. Histria da sexualidade.
p.19-71
669 TADEU, Tomaz. Antropologia Ciborgue: as vertigens do ps-humano. 2 ed. Belo Horizonte. Autntica Editora,
2009.
670
NAVARRO-SWAIN, T. A inveno do corpo feminino ou a hora e a vez do nomadismo identitrio. Textos de
Histria: Revista do Programa de Ps-Graduao em Histria da Unb. Braslia, Unb, vol. 8, n.1/2, 2011, p.14.
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Swain que, estes traos, desenhados por valores histricos, transitrios, naturalizam-se na
repetio e reaparecem fundamentados em sua prpria afirmao: as representaes da
verdadeira mulher, e do o verdadeiro homem atualizam-se no murmrio do discurso
social.671
A proposta de pensar o desapego, pensar em onde comea e termina o humano que
impulsiona esta anlise. A personagem Vera/Vincent, sujeito construdo nas amarras do universo
masculino, agora preso em um corpo sexuado, marcado pelo feminino e forado a reconstruir
esta subjetividade. Essa dualidade representada em um corpo coberto por faixas, a tentativa de
apagar as marcas da reconstruo, a ubiquidade do corpo enquanto uma mquina e a
identificao que rompe as fronteiras entre o que se pensa ser homem e mulher e para alm, do
que ser humano. O prprio cenrio do filme, sutilmente sugere que Vera/Vincent se inspira nas
personagens femininas e temas da ambivalncia sexual das novelas de Alice Munro (n. 1931) para
compor um simulacro de feminino, enquanto estampa a sua resistncia psicolgica nos escritos
e desenhos da parede do quarto de confinamento e nas esculturas que faz com aluses obra
da artista plstica e militante LGBT Louise Bourgeois (1911-2010). Inclusive, nos agradecimentos
da ficha tcnica do filme, Pedro Almodvar diz: Obrigado a Louise Bourgeois, cuja obra no apenas me
emocionou, mas tambm serviu de salvao para a personagem Vera.
671
SWAIN. Tnia. Navarro. (Org.). A inveno do corpo feminino ou a hora e a vez do nomadismo identitrio.
Textos de Histria. Dossi Feminismos, teorias e perspectivas. Braslia, Edunb/PPGHIS, v.8, n. 1-2, 2000, n.p.
672
KUNZRU, Hari. Genealogia do Ciborgue. In: TADEU, Tomaz. Antropologia Ciborgue: as vertigens do ps-humano.
2 ed. Belo Horizonte. Autntica Editora, 2009, p.19.
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A atuao das mulheres no grupo guerrilheiro urbano
argentino montoneros
RESUMO: O presente artigo tem como objeto, analisar a atuao das mulheres no grupo de
esquerda da Argentina, denominado Montoneros, no perodo de 1960 a 1979. O estudo da atuao
das mulheres, principalmente em grupos polticos que se denominam revolucionrios, torna-se
fundamental para problematizar os espaos masculinizados da poltica e tambm para se pensar
as mulheres como atores histricos, principalmente nos movimentos populares e no jogo poltico
na Argentina.
Introduo
673 Um montonero era aquele que se rebelava por razes polticas contra as autoridades departamentais, provinciais,
ou nacionais. Em alguns casos, revolucionrio e montonero eram sinnimos. (LA FUENTE, 2007, p. 112). LA
FUENTE, Ariel. Los hijos de Facundo. Trad. Amanda Monteiro Diniz Carneiro. Buenos Aires: Prometeu, 2007. Os
montoneros, aos olhos dos oligarcas representavam um monte de ignorantes selvagens- os montos- Os montoneros
formulavam-se em fins dos anos 1960. Contudo o grupo que marcou a luta antiimperialista na especificidade
Argentina teve sua primeira apario pblica em 29 de maio de 1970 com a chamada operacin Pindapoy. (ROCHA,
2011, p. 80).
674 Segundo Etulain, o peronismo um objeto complexo, porque no se compe apenas pelo partido peronista, ou
mesmo pelos sindicatos. Trata-se de um movimento que rene diferentes setores sociais em torno de uma amlgama
definida a partir do vnculo entre o povo e a figura de Pern. O peronismo em sua funo de representar os
interesses populares promove sua unidade com base na fora opositora deste contedo popular. ETULAIN, Carlos
Raul. A esquerda e o peronismo. 336 f. Tese (Doutorado em Cincias Sociais) Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Filosofia e cincias Humanas, Campinas, 2001. P. 100-101
675 ROCHA, Maria Marina de Lira. Uma onda de lama e sangue ameaa cobrir a repblica: Os discursos sobre a violncia no
governo de Isabelita Pern (junho de 1975- Maro de 1976). 207f. Tese (Mestrado em Histria) - Universidade
Federal Fluminense, Instituto de Cincias Humanas e Filosofia, Rio de Janeiro, 2011. 80 p.
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importante ressaltar que a formao do grupo em 1960 sofreu, alm de influncias
especficas do contexto da Argentina, influncias externas que moldaram a identidade do grupo.
Partindo desse princpio, podemos destacar como influencia externa, a urgncia revolucionria
trazida pela Revoluo Cubana, principalmente no que se refere luta armada. Como influncias
internas podemos destacar as manifestaes no seio da Igreja, em que muitos jovens lutaram
contra a explorao e a pobreza, e o prprio Peronismo que tambm influenciou no processo de
formao desse grupo e de outros que tambm surgiram nesse perodo.
O grupo Montoneros foi um dos mais importantes do perodo. Era constitudo, em sua
maioria, por jovens que tinham a pretenso de transformar a Argentina em um pas socialista,
defendiam o anti-imperialismo e o fim do capitalismo. De maneira geral, seus principais objetivos
eram o desenvolvimento nacional, a justia social e o poder popular.
E ainda:
676 GARATEGARAY, Martina. Montoneros Leales a Pern: Notas Sobre la Juventud Peronista Lealtad. 2012.
Captado em: <http://revistas.um.es/navegamerica/issue/view/11421>. Acesso em: 22. Jun. 2014.
677 GILLESPIE, Richard. Soldados de Pern: Los Montoneros. Trad: Amanda Monteiro Diniz Carneiro. Buenos Aires:
678PIGNA, Felipe. La poltica en los 70. Captado em: <www.elhistoriador.com.ar>. Acesso em 05 set. 2014.
679Documentos Montoneros. Captado em: http://www.elortiba.org/docmon.html. Acesso: 26 jun. 2015.
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Em 1970, sequestraram e assassinaram o ex-presidente da Argentina, Pedro Eugenio
Aramburu680. Este era considerado o principal inimigo do grupo Montoneros, visto que foi
responsvel por dois crimes imperdoveis para o grupo: a ordem de fuzilamento de 27 peronistas
e a expatriao dos restos mortais de Eva Duarte de Pern.
Em 1974 o grupo Montoneros entrou para a clandestinidade. Com isso surgiram muitas
dificuldades, tais como a falta de recursos e, sobretudo, a diminuio do contato poltico com as
massas, entre outros problemas. Entretanto, as dificuldades se intensificaram ainda mais com o
golpe militar de 24 de maro de 1976, que levou derrocada do governo de Isabel Pern. Um
680Pedro E. Aramburu foi presidente no perodo de 1955 a 1958, defendia uma linha mais dura em relao a
peronismo, sindicatos e trabalhadores. A represso se agudizou. Em resposta a resistncia popular se refora.
(ETULAIN, 2001, p. 103). ETULAIN. A Esquerda e o Peronismo, p. 103.
O grupo, no tinha a dimenso do aparato montado pelos militares para destruio das
organizaes guerrilheiras, uma vez que a experincia vivida em golpes anteriores ao de 1976 no
se comparava com esse ltimo. No imaginavam, por exemplo, a dimenso do aparato repressor
montado pela ditadura que envolvia sequestros, torturas e assassinatos.
A estratgia do grupo era resistir represso por meio da luta armada. Entretanto, devido
ao forte aparato montado pelo regime militar, o grupo foi desaparecendo rapidamente, haja vista,
a frustrante estratgia de luta armada e tambm a grande represso que se instalava naquele
momento. Alguns dos integrantes do grupo no resistiram violncia das torturas e acabavam
entregando informaes a respeito da atuao do grupo. Dessa forma, os militares aumentavam a
represso, atingindo os principais quadros do movimento. Em outubro de 1976, a organizao j
apresentava muitas perdas. Segundo Marcelo Larraquy683, durante os dois primeiros anos de
resistncia armada, o exrcito Montonero da capital federal havia perdido 60% de suas foras.
Enfim, importante destacar, que a atuao dos grupos guerrilheiros neste perodo, no
era fcil. Entretanto, podemos notar, que a causa pelo qual eles lutavam ultrapassava todas as
dificuldades e era o que lhes mantinham nessa luta at o fim ltimo de suas prprias vidas. Nessa
perspectiva, poderamos nos perguntar como se dava a atuao das mulheres neste perodo, j
que a situao feminina envolvia o que podemos chamar de dupla militncia, ou seja, duas
posies de resistncia ao mesmo tempo. A primeira era a resistncia a uma sociedade machista
que s aprovava a atuao feminina em espaos privados e a segunda a resistncia ao sistema
poltico instaurado. Dessa maneira, ser mulher militante era uma tarefa extremamente difcil,
entretanto como veremos a seguir, isso no impedia a insero e luta das mulheres nestes grupos.
683LARRAQUY, Marcelo. Fuimos Soldados: Historia Secreta de la Contraofensiva Montonera. Buenos Aires: Aguilar, 2006,
p.126.
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questionadas pela historiografia e sociologia que tratam do tema, uma vez que as construes
culturais ganharam espao nos estudos das relaes de gnero. Tenta-se desmistificar o
estabelecimento de caractersticas biolgicas manipuladas culturalmente. As determinaes de
tais caractersticas colocam a mulher em uma condio subalterna, ou seja, em um mundo
privado, apenas como cuidadora do lar e excluindo-a do mundo pblico.
Joan Scott define a categoria gnero, em seu uso mais recente, da seguinte maneira:
Minha definio de gnero tem duas partes e vrias sub-partes. Elas so ligadas
entre si, mas deveriam ser analiticamente distintas. O ncleo essencial da
definio baseia-se na conexo integral entre duas proposies: o gnero um
elemento constitutivo de relaes sociais baseado nas diferenas percebidas
entre os sexos, e o gnero uma forma primeira de significar as relaes de
poder. As mudanas na organizao das relaes sociais correspondem sempre
mudana nas representaes de poder, mas a direo da mudana no segue
necessariamente um sentido nico.684
importante ressaltar tambm, a questo das disputas por poder presentes nas relaes
sociais e, sobretudo, nas relaes entre homens e mulheres. Os interesses e estratgias, tambm
se fazem presentes nessas complexas relaes, so eles, juntamente com o poder simblico - que
podem estar no mbito do consciente ou inconsciente-, que legitimam o poder e consolidam os
modos de vida e hbitos dos sujeitos. Assim, atravs das lutas e legitimaes, alguns
comportamentos se tornam naturalizados. As relaes entre homens e mulheres, onde a mulher
ocupa apenas o espao privado e o homem responsvel por todo o espao pblico, so
exemplos desses comportamentos naturalizados, das lutas e legitimaes de poder. Estas relaes
no se explicam apenas pela imposio ou coao, so legitimadas e construdas consciente e
inconscientemente pelos prprios sujeitos.
684 SCOTT, Joan. Gnero: Uma categoria til para anlise histrica. 1989. Captado em:
<www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?down=51008>. Acesso em: 20 fev. 2014.
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que contriburam, de forma decisiva, para que a histria da humanidade, de homens e mulheres,
fosse escrita apenas no gnero masculino.
Nas dcadas de 1960 e 1970 muitas mulheres jovens se envolveram na luta poltica,
Norma Arrostito, a Gaby, foi um dos exemplos de atuao feminina nesse perodo. Junto com
ela, podemos citar Antnia Canizo, Amanda Peralta, Marta Bazan, entre outras.
Por ser mulher, Arrostito, no conseguiu alcanar o poder merecido no grupo Montoneros.
Participou do sequestro de Aramburu e foi uma figura emblemtica dentro da organizao. No
era usual uma mulher fazer parte da conduo de um grupo guerrilheiro, e no caso do
Montoneros, no foi diferente. Segundo Gabriela Saidon,687 Foi relegada por um problema de
manejo machista da conduo. Do grupo inicial foi ficando marginalizada. Em uma etapa esteve
muito sozinha.
685BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. Trad. Cssia R. de Oliveira. So Paulo: Brasiliense, 1997, p. 36.
686 WOLLF, Cristina Scheibe. Gnero e maternidade nos movimentos de resistncia contra as ditaduras no Cone
Sul, Amrica do Sul. In: SIMPSIO NACIONAL DE HISTRIA, 27, 2013, Natal. Anais... Natal:
Anpuh, 2013. p. 3.
687SAIDN, Gabriela. La Montonera Biografia de Norma Arrostito. Trad. Amanda Monteiro Diniz Carneiro. Buenos
Aires: Sudamericana, 2005, p. 56.
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lhes davam tarefas associadas a condio feminina. A reestruturao das
relaciones de gnero teve um lugar secundrio nas organizaes de esquerda.688
Norma foi a nica montonera, juntamente com Fernando Abal Medina, que foi Cuba
para receber treinamento militar, haja vista que o restante do grupo quase no tinha
conhecimento acerca da luta armada. Norma participava ativamente naquele grupo, opinava nas
decises poltico- ideolgicas e nas questes tcnicas de segurana, tais como usos de explosivos,
entre outros. Mesmo considerando seu significativo papel, nunca alcanou a liderana do grupo,
nem mesmo com a morte de Fernando Abal Medina, um dos mais importantes integrantes do
grupo. Igualmente, para todos os demais, amigos e inimigos continuar sendo a Norma
Arrostito, o bronze, mas alm dos cargos formais como uma nomeao no governo de Oscar
Bidegain..689.
importante ressaltar, que a situao das mulheres militantes na ditadura civil militar era
muito complicada, principalmente se pensarmos na vulnerabilidade da sua condio de mulher
nos centros de tortura, sendo bastante exploradas pelos militares. Muitas delas foram levadas aos
centros de tortura, grvidas, e seus filhos foram entregues para famlias de militares e de civis,
desestabilizando psicologicamente a militante. Alm disso, muitas delas foram estupradas pelos
seus algozes. Enfim, mesmo tendo conhecimento desses fatos e com todos os riscos, muitas
mulheres tiveram atuao poltica intensa nesse perodo.
Em dois de dezembro de 1976, Norma foi capturada e levada para o centro de deteno,
Escola de Mecnica de Armada ESMA, onde passou os ltimos 410 dias de sua vida. Foi usada
como trofu pelos militares. Quando chegavam os novos detidos, eram levados at ela com o
objetivo de desestrutura-los psicologicamente.
688 COSSE, Isabella. Pareja, sexualidad y familia en los aos sesenta. Buenos Aires: Siglo XXI, 2010, p. 144.
689 SAIDN. La Montonera Biografia de Norma Arrostito, p. 131.
690 _______. La Montonera Biografia de Norma Arrostito, p. 151
Gaby tinha uma atitude distinta de todos os demais, parecia um morto vivente.
Era uma espcie de presena fantasmagrica. Era uma pessoa muito calada,
muito estranhvel, muito sorridente, transmitia a imagem de algum que tivesse
paz interior e aceitado o seu destino.691
Dessa forma, podemos pensar que a luta de Norma pela libertao do seu pas e do seu
povo, ultrapassava sua prpria necessidade de permanecer viva naquele momento. Essa uma
das razoes pela qual Norma aceitava sua condio de detida.
Norma muito coerente em seu pensamento e sua ao. Ela pensava algo e o
realizava. Era uma pessoa muito simples, tanto em sua presena como em seus
projetos. Era revolucionria, pois deixou tudo para seguir uma luta pela
libertao de seu pas e de seu povo e por conseguir um objetivo poltico. Por
isso foi muito mais que um guerrilheiro, um soldado.692
Consideraes Finais
Alm disso, a importncia do estudo das mulheres se fundamenta, na sua grande insero
nos grupos guerrilheiros mesmo com todas as dificuldades, inclusive da dupla militncia.
Levando tudo isso em considerao, no podemos omitir o estudo de sujeitos to importantes e
atuantes na histria, uma vez que, assim corremos o risco de no compreendemos diferentes
Resumo: O presente trabalho aborda de forma comparada o surgimento de revistas feministas durante o
perodo das ditaduras militares no Brasil (1964-1985) e no Uruguai (1973-1985). Durante os anos de
represso nos pases da Amrica Latina, a Doutrina da Segurana Nacional agiu com o objetivo de conter
a ameaa do inimigo interno, gerador da subverso, levando ao cerceamento de direitos e liberdades
civis, bem como a censura dos variados meios de informao. Neste nterim, a mdia alternativa se
desenvolveu no submundo da imprensa no cone sul resultando em inmeras publicaes como: folhetos,
revistas, jornais, etc. Seus objetivos mesclavam denncias sobre o papel desempenhado pelas mulheres na
sociedade e contedos feministas com carter didtico; buscavam, sobretudo, aliar libertao feminina
com efetiva participao poltica e social, como o caso dos peridicos brasileiros Brasil Mulher e Ns
Mulheres, e dos uruguaios La Cacerola e Cotidiano Mujer. Este ltimo, inclusive, iniciando sua produo no
ano da queda do regime militar no Uruguai. O objetivo analisar comparadamente tais publicaes
atravs do discurso de gnero difundido por estas mulheres tentando perceber sua importncia poltica.
Ao analisar peridicos tais como jornais e revistas produzidos como ato de resistncia durante um
perodo de represso de um pas, ou imediatamente aps o incio de sua redemocratizao, tenho em vista
que as mesmas devem ser vistas como narrativas que representam prticas sociais que so produto e/ou
produtoras de uma realidade social, e que se utilizam de estratgias de discursos para seduzir e convencer
seu pblico alvo de suas proposies. Para tal, utilizam-se das mais diversas formas de aproximao com
os leitores, criando uma atmosfera verossmil de identificao.693
Partindo dessa premissa, este artigo focar em peridicos feministas que nasceram sob a gide dos
regimes totalitrios do Brasil e do Uruguai nas dcadas de 1970 e 1980. So eles: os brasileiros Brasil Mulher
e Ns Mulheres; e os uruguaios La Cacerola e Cotidiano Mujer, esta ltima, criada j no processo de
redemocratizao do pas. A escolha baseada em peridicos que tinham um fio condutor em comum: a
afirmao de serem de contedo feminista, propondo um novo olhar sobre as mulheres e sua posio na
693Assim como Walter Benjamin, acredito na importante relao entre narrativas e experincias pessoais e relatos
orais das vivncias dos narradores. Da mesma forma que corroboro com a diferenciao entre informao e
narrativa. Os peridicos analisados na pesquisa sero tratados como meios de se exercer o poder do discurso
narrativo, e no como simples veculo de difuso de informao, uma vez que a informao, para o autor, s tem
valor no momento em que nova, enquanto a narrativa conserva suas foras e depois de muito tempo ainda
capaz de se desenvolver. Cf. BENJMIN, Walter. O Narrador. In: Magia e Tcnica, Arte e Poltica. So Paulo: Editora
Brasiliense, 2000.
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sociedade, assim como seu papel enquanto agente poltico importante no perodo em que vigoravam a
censura e perseguio ao que era subversivo.
A anlise de tais peridicos busca uma possvel conexo e trnsito de ideias entre intelectuais
brasileiras e uruguaias que, fugindo dos regimes de represso de seus pases, se exilaram no Brasil ou no
Uruguai, formando assim uma rede de transmisso de ideias feministas que estavam em ebulio mundo
afora com a chamada segunda onda do feminismo.694 de grande importncia inserir a Amrica Latina
neste circuito e analisar, atravs de tais peridicos, a forma antropofgica que tais ideias foram
ressignificadas nas realidades de restrio de direitos civis em que viviam, e a importncia dos mesmos no
processo de redemocratizao dos pases.
O contexto ditatorial que culminou com diversas aes dos governos dos dois pases de
cerceamento de direitos civis teve seu incio bem antes da deflagrao dos golpes militares. Desde fins da
2 Guerra Mundial, sobretudo na dcada de 1950, o desenvolvimento dos pases latino americanos se
associou ao capital internacional, tendo os EUA como principal financiador das grandes ondas de
industrializao de diversos pases, entre eles, o Brasil.
Neste contexto eclodem, inicialmente no cone sul e posteriormente em outras regies da Amrica
Latina vrios governos ditatoriais, que tiveram como referncia a Doutrina de Segurana Nacional (DSN)
para lidar com as ameaas que os rondavam. No contexto vigente de Guerra Fria, representava a noo de
guerra total contra a ameaa comunista que desvirtuaria e subverteria a segurana nacional dos pases
latino americanos, aparecendo na forma de movimentos sociais e guerras revolucionrias. Maria Helena
Moreira Alves sintetiza a DSN como
694 A pesquisadora Joana Maria Pedro afirma que os movimentos libertrios que culminaram com os eventos de 1968
e a chamada segunda onda do feminismo esto intimamente ligados, ideia com a qual coaduno. O feminismo de
segunda onda tem suas origens no ps Segunda Guerra Mundial e teve como principais bandeiras a luta pelo direito
ao corpo, sexualidade, a luta contra a subordinao das mulheres, alm de defender maior participao poltica
feminina. Teve como lema a frase o privado poltico. Cf. PEDRO, Joana Maria. Os Feminismos e os Muros de
1968 no Cone Sul. In: Clio - Srie Revista de Pesquisa Histrica - N. 26-1, 2008.
695 Para Daniel Aaro Reis, a oposio norte americana com a Revoluo em Cuba que faz com que o novo
governo adote o socialismo como regime poltico, gerando nas naes vizinhas do continente uma atmosfera de
medo e utopias. Ver: REIS, Daniel Aaro. Ditadura Militar, Esquerdas e Sociedade. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar,
2005.
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abrangente corpo terico constitudo de elementos ideolgicos e de diretrizes
para infiltrao, coleta de informaes e planejamento poltico-econmico de
programas governamentais. Permite o estabelecimento e avaliao dos
componentes estruturais do Estado e fornece elementos para o
desenvolvimento de metas e o planejamento administrativo peridicos.696
696 ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposio no Brasil (1964-1984). Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1984. p. 35.
697 As reformas de base propostas pelo presidente Goulart tinham como objetivo reformar os sistemas bancrio,
fiscal, urbano, administrativo, agrrio e universitrio, alm de propor a possibilidade de voto aos analfabetos, alm de
uma maior interveno do Estado na vida econmica do pas. Para outras informaes,ver:
<http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/artigos/NaPresidenciaRepublica/As_reformas_de_base>. Acesso
em 06/04/2015.
698 REIS. Ditadura Militar, Esquerdas e Sociedade, p. 27.
Vitoriosos na luta contra os guerrilheiros do MLN, os militares ganharam cada vez mais fora,
aliada ao enfraquecimento quase total do sistema poltico democrtico teoricamente vigente no Uruguai.
Afirma Enrique Serra Padrs que
699 Tambm chamados de Tupamaros, o MLN nasceu no Uruguai na dcada de 1960 como uma reunio de grupos e
movimentos de esquerda que se preparavam para lutar contra movimentos golpistas e de orientaes fascistas. Tinha
como fontes ideolgicas o socialismo e o liberalismo que, apesar de contraditrios, convergiam em um ponto (e que
era o mote do movimento): ambos haviam conseguido importantes mudanas no mundo atravs da violncia, para
se combater a opresso. Seu lder foi Jos Alberto Mujica Cordano, que viria a se tornar presidente do Uruguai entre
os anos de 2010 e 2015. CABRAL, Jos Pedro Cabrera. Trajetria do Movimento de Libertao Nacional
Tupamaros 1962-1973: algumas questes de identidade e poder. In: Estudos Ibero-Americanos, vol. XXXIII, num. 02,
dezembro de 2007.
700 PADRS, Enrique Serra. Como em El Uruguay no hay...Terror de Estado e Segurana Nacional Uruguai (1968-1985): do
Pachecato Ditadura Civil-Militar. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005.
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O AI-5 acabou com as possibilidades de uma luta de rua, com a participao de
massas. As lideranas e integrantes conhecidos dos movimentos foram
arrastados para os crceres, muitos foram literalmente trucidados ou tiveram
que ir para a clandestinidade. Desencadeou-se, assim, a luta armada para resistir
ao terrorismo de Estado.701
No Uruguai, em 1977, o presidente recm escolhido pelo Conselho Militar Alberto Demicheli
promulga os atos institucionais nmeros 1 e 2, que suspendia a convocao de eleies gerais e criava o
Consejo de La Nacin, que garantia ao Conselho de Estado e a uma junta oficial das foras armadas a qual
cabia eleger os futuros presidentes da repblica, respectivamente. Mesmo Demicheli sendo substitudo
pelos militares meses depois por outro presidente, Aparcio Mendez, as medidas continuaram em vigor e,
com a implantao de outros atos, se tornaram cada vez mais severas e restritivas. Segundo Gustavo
Alberto Cabrera Alvarez,
a represso focalizou: o desmantelamento dos partidos polticos, as guerrilhas
urbanas, e os sindicatos. As perseguies, prises, torturas, assassinatos e exlio
de militantes polticos e sindicais foram eficientes para limpar o caminho e, em
poucos meses, a resistncia tinha sido totalmente eliminada.702
O aumento da represso em ambos os pases gerou no apenas terror social, mas tambm
diversas prises, torturas e mortes. A luta armada, na forma de guerrilhas ou organizaes clandestinas se
tornou cada vez mais perigosas, uma vez que, alm da possibilidade de priso, quase no havia um apoio
da populao em geral.703 Com isso, no decorrer das dcadas, os grupos e organizaes revolucionrias
foram perdendo fora de atuao por meio da violncia e tiveram que buscar outras formas de expresso
de suas ideias. Com meios de comunicao censurados e sob estreita vigilncia do governo, a mdia
alternativa e clandestina se torna uma importante ferramenta de denncia e resistncia.
A mdia alternativa foi um aspecto dinmico e bastante popular durante os anos de chumbo. 704
Para os fins da pesquisa que pretendo realizar, interessa-nos os impressos em formato de jornais e revista,
de forma geral, e, em particular, os alternativos feministas, feitos por e para mulheres no Brasil e no
701 ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposio no Brasil (1964-1984). Petrpolis: Vozes, 1984. p. 141.
702 ALVAREZ, Gustavo Alberto Cabrera. Movimentos Sociais e Ditadura Militar no Uruguai. In: Anais do IV
Simpsio Lutas Sociais na Amrica Latina Imperialismo, nacionalismo e militarismo no sculo XXI. Londrina, 2010.
703 Segundo Reis, no Brasil, a populao entendia a luta das guerrilhas e os enfrentamentos com a polcia poltica
como uma espcie de guerra civil, algo que no conseguiam compreender e nem participar de forma direta. Viviam
uma dualidade de situaes: por um lado, no compartilhavam com os ideias da esquerda, mas tambm no
compactuavam com a violncia vinda por parte do governo. Este, porm, possua a capacidade e os meios de deixar
seus atos de represso fora das vistas da grande massa. Ver mais em REIS. Ditadura Militar, Esquerdas e Sociedade, p.
53.
704 O trabalho de referncia para o estudo de mdias alternativas durante a ditadura militar no Brasil continua sendo o
de Bernardo Kucinski. Em seu livro, o autor analisa cerca de 150 publicaes das mais diversas naturezas (satricos,
polticos, culturais, feministas, etc.) e demonstra que o grande cerne de tais publicaes era a luta contra a ditadura e
as crticas ao capitalismo e ao imperialismo. Ver: KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e Revolucionrios: nos tempos da
imprensa alternativa. So Paulo: Scritta, 1991.
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Uruguai. Destaco aqui os brasileiros Brasil Mulher e Ns Mulheres, e os uruguaios La Cacerola e Cotidiano
Mujer.
O pblico-alvo do jornal eram as mulheres dos meios populares, como estudantes, operrias,
residentes nas favelas e no campo. Desta forma, grande parte das matrias abordavam as condies de
vida nas quais elas estavam inseridas. Com pautas abrangendo assuntos que privilegiavam a mulher
comum, o Brasil Mulher se espalhou pelo Brasil e conquistou um pblico nacional, diversificado, e com
capacidade crtica para debater os assuntos ali propostos.
Em linhas gerais, o jornal buscava ser um contraponto a tradicional imprensa feminina que
priorizava uma ideia de mulher erotizada, dependente da presena e do poder masculino. Seu objetivo era
desconstruir tais esteretipos de mulher e despertar identificao nas mulheres, despertando-as para uma
nova construo social, na qual elas seriam protagonistas e sua atuao em busca da democracia poderia
705 A histria dos jornais foi contada em detalhes por duas remanescentes das lutas armadas e da organizao dos
peridicos, e constitui a obra de referncia para este artigo. TELES, Amelhinha; LEITE, Rosalina Santa Cruz. Da
Guerrilha Imprensa Feminista: a construo do feminismo ps-luta armada no Brasil (1975-1980). So Paulo:
Intermeios, 2013.
706 O Movimento Feminino pela Anistia teve seu incio no ano de 1975 (Ano Internacional da Mulher, decretado
pela ONU), e teve como principal articuladora Terezinha Zerbini, na cidade de So Paulo. Foi o primeiro esforo
coletivo a levantar a bandeira da promulgao da lei da anistia. Teve atuao importante em oito estados brasileiros
(So Paulo, Bahia, Minas Gerais, Cear, Paraba, Rio Grande do Sul, Sergipe e Pernambuco), e foi de grande
importncia no processo de redemocratizao do pas. Para maiores informaes, ver: PERES, Lcia. Movimento
Feminino pela Anistia no Rio Grande do Sul. In: BARBOSA, Vnia M.; FERNANDES, Ananda Simes; LOPEZ,
Vanessa Albertinence; PADRS, Enrique Serra. Ditadura de Segurana Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985):
histria e memria. Porto Alegre: Corag, 2009.
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ser transformadora. O jornal teve 17 edies, com uma tiragem regular de 5 mil exemplares, sempre em
formato de tabloide e com fotos nas capas. Chegou ao fim em 1980.
Um ano depois, em 1976, publicado o primeiro nmero do Ns Mulheres, tendo em seu corpo
editorial uma grande parte de mulheres que j haviam vivenciado o feminismo fora do Brasil, enquanto
exiladas, e estudantes universitrias. Tinha como principal linha editorial, assim como o Brasil Mulher, a
organizao popular de mulheres e a luta social feminina contra a sociedade patriarcal. Apesar de se
autointitular feminista, buscava chamar a participao masculina no processo de emancipao da mulher.
Seu publico alvo eram mulheres jovens, estudantes, de classes mais baixas, e, para conscientiza-las
da importncia de sua luta individual contra a opresso patriarcal, adotava uma narrativa quase pedaggica.
Sua distribuio se dava nas portas de escolas, fbricas, universidades, sendo feito, basicamente, por suas
integrantes. O Ns Mulheres teve apenas 8 nmeros editados e no divulgava sua tiragem. Tambm era
escrito em formato de tabloide, e suas capas possuam ilustraes e chamadas dos temas que seriam ali
tratados. Chegou ao fim em 1978.
As duas publicaes conversam em muitos aspectos, e entre eles, est a luta por uma sociedade
livre da censura, no apenas no pas, mas, principalmente, em seus lares e na sociedade em geral.
Propunham a independncia feminina na esfera social, poltica, afetiva e sexual, lutavam pela anistia e por
um mundo mais justo e igualitrio entre todos.
O Uruguai tambm produziu diversos grupos que se utilizaram da mdia alternativa como palco
para a luta contra o governo ditatorial e foram de grande importncia na mobilizao de grupos a favor da
redemocratizao. Porm, ao contrrio do que vem sendo feito, pouco se tem em detalhes sobre a
trajetria e contedo de tais peridicos. At o momento de pesquisa para este projeto, no havia sido
publicado nenhum trabalho acadmico que se debruasse exclusivamente sobre tais organizaes e suas
publicaes.707
Temos ainda poucas informaes sobre as origens e contedos de tais publicaes.708 Em recente
entrevista, a deputada uruguaia Margarita Percovich narra que, a partir de 1984, com o incio da
redemocratizo no Uruguai, mulheres de todos os partidos polticos se organizavam no sindicato dos
707 importante ressaltar que diversas mulheres j ocupavam um posto substancial na intelectualidade uruguaia ao
longo do sculo. Um dos nomes mais expoentes o da novelista Armona Etchepare (1914-1994), que causou
rebulio no meio intelectual ao publicar, em 1950, na Revista Clima, a novela chamada La Mujer Desnuda. O caso
ganhou uma enorme repercusso por ser uma crtica a sociedade que se baseia em preconceitos ticos, morais e
religiosos. Muitos questionaram a autoria do ousado escrito, mas, em nenhum momento, se sups que pudesse ser
escrito por uma mulher. A surpresa se deu quando Armona se declarou como autora, sendo uma respeitvel
professora universitria.
708 Localizei algumas informaes sobre o peridico no trabalho de Cntia Crescncio e Soraia de Mello, chamado
O Trabalho Dignifica o Homem, mas e a mulher? O riso na imprensa feminista no Cone Sul, publicado na Revista
Artmis, em 2013.
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trabalhadores txteis para discutir o lugar que as mulheres ocupariam nos novos rumos que o pas estava
tomando. Neste contexto, comeam os contatos com as integrantes do Grupo de Estdios sobre La Condicin
de La Mujer en el Uruguay (GRECMU), em sua maioria estudantes universitrias que estavam em contato
com os direcionamentos polticos e feministas ao redor do mundo. Nas palavras de Percovich,
Ellas saban de la dcada de la mujer de las Naciones Unidas, algo que las
dems no tenamos ni idea. No sabamos lo que estaba pasando en el resto del
mundo porque se reciba poca informacin y no tenamos los medios que
tenemos ahora. Ellas venan trabajando, haciendo diagnsticos y haban creado
ese centro de estudios -como haban hecho otros universitarios porque en
dictadura no se dejaba funcionar la Universidad. Fueron quienes nos trajeron
las reivindicaciones propias que tenamos que tener como mujeres. Y fue ah
que algunas empezamos a descubrir lo que era la discriminacin y a unirla con
nuestro marco ideolgico, que la injusticia de un proyecto de desarrollo estaba
basado en otras formas de subordinacin que no eran solamente las de clase.709
So estas mulheres do GRECMU que levam a frente um projeto de uma publicao feminista que
ao mesmo tempo denunciasse as condies femininas no perodo, assim como algumas propostas
feministas para seus partidos polticos e para a nova sociedade que estava surgindo. Assim surge La
Cacerola, peridico que esteve em atividade entre 1984 e 1988, com tiragem e periodicidade irregulares.710
709 Margarita Percovich deputada no Uruguai e deu esta entrevista em maro de 2015, por ocasio do ms da
mulher. A entrevista completa pode ser acessada no seguinte endereo eletrnico: <
http://inmayores.mides.gub.uy/innovaportal/v/41507/4/innova.front/derribando-las-barreras-invisibles>. Acesso
em 30/03/15.
710 No encontrei nenhum trabalho acadmico que se dedique exclusivamente a este peridico feministas, apenas
alguns que se utilizam de elementos (como charges, por exemplos) para traar anlises pontuais. Desta forma, no
possvel, neste momento, identificar qual o direcionamento feminista preciso da publicao. Como consequncia
desta reunio de acadmicas e operrias, surge em Montevidu o Plenrio de Mujeres en el Uruguay (PLEMUU),
organizao no governamental que tornariam formais as reivindicaes femininas no processo de redemocratizao.
711 < http://www.cotidianomujer.org.uy/sitio/quienes-somos> Acesso em 30/03/15.
Muitos so os estudos que vem se dedicando ao tema dos grupos feministas que nasceram sob o
estado de represso que dominou a Amrica Latina entre as dcadas de 1960 e 1980. Os peridicos
brasileiros se tornaram uma fonte frutfera para se pensar na forma de circulao das ideias feministas
geradas a partir da segunda onda do movimento.
Ainda no se tem um estudo que se dedique a criao e instalao das ideias modernistas no
Uruguai, estudo este que estou fazendo no momento. Acredito que desvendar a forma que tais ideias
circularam no pas e se desenvolveram entre as intelectuais e operrias do pas uma das formas de se
compreender o processo de redemocratizao do pas, e na posio ocupada por elas hoje em dia. O
Uruguai se tornou um pas de vanguarda na Amrica Latina, e estes movimentos de mulheres foram peas
principais para este desenvolvimento.
Simpsios Temticos 6 a 10
Departamento de Histria
Chefe : Ana Carolina Vimieiro Gomes
Colegiado de Ps-Graduao
Coordenador: Luiz Carlos Villalta
Editor Chefe
Prof. Dr. Magno Moraes Mello
Conselho Editorial
Cssio Bruno de Arajo Rocha
Igor Barbosa Cardoso
Mrcio Mota Pereira
Maria Visconti Sales
Rafael Vincius da Fonseca Pereira
Valdeci da Silva Cunha
Reviso
Cssio Bruno de Arajo Rocha
Igor Barbosa Cardoso
Mrcio Mota Pereira
Maria Visconti Sales
Rafael Vincius da Fonseca Pereira
Valdeci da Silva Cunha
Diagramao
Cssio Bruno de Arajo Rocha
Valdeci da Silva Cunha
Capa
Valdeci da Silva Cunha
Site/Banco de Dados
Cssio Bruno de Arajo
Valdeci da Silva Cunha
1CHUVA, Mrcia Regina Romeiro. Os arquitetos da memria: sociognese das prticas da preservao cultural
no Brasil (anos 1930-1940). Rio de Janeiro: UFRJ, 2009, p. 43.
2IHGB. Revista do Instituto Histrico e Geogrfico do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1908, p. 05-
06.
3SCHWARCZ, Lilia Moritz. Os guardies da nossa histria oficial: os institutos histricos e geogrficos brasileiros.
So Paulo: IDESP, 1989, p. 04.
4 COSTA, Clia Maria Leite. O Arquivo Pblico do Imprio: o legado absolutista na construo da
Por outra parte, a partir dos anos 1960, assiste-se a um crescimento das
preocupaes com a gesto dos documentos e a chamada revoluo documental, para
usarmos um termo de Glnisson (1977). Tem-se a produo desordenada de acervos, sem
uma preocupao sistemtica com as razes de sua produo, ou ainda, com as
6SILVA, Jaime Antunes da. Por uma Poltica Nacional de Arquivos. Captado em:
http://www.conarq.arquivonacional.gov.br/Media/publicacoes/mesa/por_uma_poltica_nacional_de_arquiv
os.pdf. Acesso em: 03 maio 2015.
7 LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: _____. Histria e Memria. Campinas, SP: Editora da
Unicamp, 2003, p. 531-532.
8 BRASIL. Decreto-lei n 25/1937. Captado em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-
lei/del0025.htm. Acesso em: 03 maio 2015.
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UFMG. v. 7 (Suplemento, 2015) Belo Horizonte: Departamento de Histria,
FAFICH/UFMG, 2016. ISSN: 1984-6150 - www.fafich.ufmg.br/temporalidades
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Nas aes de salvaguarda de documentos arquivsticos, que no eram nem sequer
citados diretamente na legislao que cria o SPHAN, a argumentao seguiu ancorada nas
mesmas justificativas de risco de perda eminente9. Alm disso, a recuperao de alguns
acervos coloniais e sua disponibilizao em imveis tombados dava uso aos edifcios a
partir de 1950. Um bom exemplo seria a Casa Setecentista de Mariana (MG). Instituio
vinculada ao IPHAN, que hoje abriga um acervo de aproximadamente 50 mil documentos
que abrangem os perodos Colonial, Imperial e Republicano, de 1709 a 1956. So cerca de
350 metros lineares de documentos textuais, pertencentes aos Cartrios de 1 e 2 Ofcio.
Alm de documentos de outros fundos como da Arquidiocese de Mariana e da Cmara
Municipal da primeira cidade mineira. Os documentos foram recolhidos pelo rgo de
patrimnio em 1948. A princpio o acervo ficava nas dependncias da Cmara Municipal e,
a partir de 1960, ganha o espao do nobre casaro situado ao lado da igreja matriz10. A Casa
possui alm do espao do arquivo, uma sala destinada a exposies de carter didtico e
sala de multimeios, para a promoo de sesses de vdeos, cursos, palestras, debates e
outros eventos.
11JARDIM, Jos Maria. Polticas pblicas arquivsticas: princpios, atores e processos. Arquivo &
Administrao, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 5-16, 2006, p. 10.
12BRASIL. Lei n 8.159/1991. Captado em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8159.htm. Acesso
em: 03 maio 2015.
Outro importante ponto que, impossvel recolher, como era previsto na criao
do AN e do APM, respectivamente, documentos do Brasil e do Estado de Minas Gerais
em sua totalidade. Isso porque, devido dimenso territorial do pas e do estado, no existe
uma poltica de gesto de documentos eficiente e eficaz. Assim existem massas
documentais acumuladas em vrios rgos de suas reparties. Devido adoo da Lei
12.52713 e a possibilidade de abertura de processos judiciais em decorrncia da negativa de
algum tipo de informao que no se enquadra em nenhum aspecto de sigilo mencionado
nessa lei , esses rgos esto iniciando seus processos de gesto de documentos14,
13 Lei Federal n 12.527, de 18 de novembro de 2011, regula o acesso a informaes previsto no inciso
XXXIII do art. 5, no inciso II do 2 do art. 216 da Constituio Federal, dispondo que o direito
informao deve ser assegurado ao cidado em conformidade com os princpios bsicos da administrao
pblica e de acordo com as seguintes diretrizes: I - observncia da publicidade como preceito geral e do sigilo
como exceo; II - divulgao de informaes de interesse pblico, independentemente de solicitaes; III -
utilizao de meios de comunicao viabilizados pela tecnologia da informao; IV - fomento ao
desenvolvimento da cultura de transparncia na administrao pblica; V - desenvolvimento do controle
social da administrao pblica. Sendo dever do Estado garantir esse direito, da forma mais objetivo e gil
possvel, de forma transparente, clara e de fcil compreenso. (Art. 3 e 5).
14 Entende-se por gesto de documentos todo o processo de produo, tramitao, uso, avaliao nos
Outro fator relevante para o tratamento devido dos acervos o baixo investimento
do Governo Federal e do Estado de Minas Gerais em seus arquivos pblicos. Os governos
tentem a visualizar que pautas de outros rgos so mais importantes do que a preservao
de sua memria administrativa, que de interesse do cidado e da nao.
desenvolvimento cientfico e tecnolgico de Minas Gerais. uma fundao do Governo Estadual, vinculada
Secretaria de Estado de Cincia, Tecnologia e Ensino Superior. (Informaes disponveis no site da
Fundao: http://www.fapemig.br/institucional/apresentacao/)
16 CNPq: Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico. Agncia do Ministrio da
Cincia, Tecnologia e Inovao (MCTI), tem como principais atribuies fomentar a pesquisa cientfica e
tecnolgica e incentivar a formao de pesquisadores brasileiros. (Informao disponvel no site:
http://cnpq.br/web/guest/o-cnpq;jsessionid=0BFA7BA84ECFDBB29F41DC0AE832F97B)
17 FUNDIF: Fundo Estadual de Defesa de Direitos Difusos. Atravs do CEDIF Conselho Estadual de
Defesa de Direitos Difusos anualmente arrecada indenizaes decorrentes de condenaes por danos
causados a bens protegidos pelos direitos difusos e multas em descumprimento dessas condenaes, que so
revertidas, atravs da publicao de editais de financiamento de projetos de recuperao desses bens,
promoo de eventos educativos, cientficos e na elaborao de materiais informativos referentes natureza
da infrao ou do dano causado. (Art. 1, Lei n 19.489, de 13/01/2011).
18 Leis de incentivo cultura instituem polticas pblicas para a cultura nacional, como o PRONAC
Programa Nacional de Apoio Cultura ou Lei Rouanet. Essa poltica possibilita que empresas (pessoas
jurdicas) e cidados (pessoas fsicas) apliquem parte de seu imposto de renda em aes culturais e, em troca,
recebam incentivos fiscais. (Informaes disponveis no site:
http://www.dhnet.org.br/tecidocultural/curso_acc/3/03_lei_rouanet.pdf).
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os contratos dos estagirios tm durao de no mximo dois anos; o valor de suas bolsas e
a carga horria de trabalho normalmente no so atrativos; o nmero de vagas ofertadas
em outras instituies incluso privadas com possibilidade de contratao posterior, ao
menos para os futuros profissionais de Arquivologia elevado.
Consideraes finais
Como pontuado, necessrio que sejam elaboradas polticas pblicas para a gesto
e tratamento dos arquivos pblicos, considerando que cada arquivo possui sua
especificidade e que, portanto, no possvel tecer uma poltica generalista, que no atenda
s suas principais demandas. imprescindvel considerar as necessidades dos usurios do
arquivo porque sua finalidade, principalmente do arquivo permanente, dar acesso aos
documentos. Todas as polticas pblicas que visam gesto de documentos arquivsticos
devem considerar, portanto, esse aspecto para que sejam eficazes.
Ainda que tenha sido aprovada uma Lei de Acesso Informao, sabe-se que a
prtica de gesto documental ainda no efetiva em todas as esferas da administrao
pblica brasileira e que arquivistas e demais profissionais qualificados que lidam com a
gesto e preservao de documentos so escassos em seus rgos e setores. Quando
existentes, enfrentam dificuldades relacionadas principalmente cultural institucional,
falta de mo-de-obra qualificada e quantidade de documentos acumulados ao longo de
dcadas pelas administraes anteriores e, muitas vezes, recolhidos de forma errnea ao
arquivo permanente.
Sobre essa viso, Crtes21 afirma que o prprio posicionamento dos arquivos
pblicos brasileiros dentro da administrao governamental, indica a forma pela qual o
poder pblico vem tratando a informao por ele produzida e acumulada no decorrer de
suas atividades: com descaso e negligncia.
19JARDIM. Polticas y sistemas de archivos. Mxico: Secretara General Iberoamericana, Red de Archivos
Diplomticos Iberoamericanos, 2010, p. 39.
20 Informao fornecida pelo prof. Jos Maria Jardim em texto prvio ao debate na Mesa Redonda Nacional
de Arquivos, realizada de 13 a 15 de julho de 1999 pelo Arquivo Nacional disponvel em:
http://www.udesc.br/arquivos/id_submenu/619/artigo_arquivo_publico.pdf. Acesso em: 10 out. 2014.
21 CRTES. Persechini Armond. Arquivo pblico e informao: acesso informao nos arquivos pblicos estaduais do
Brasil. Belo Horizonte, 1996. Dissertao (Mestrado) Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de
Biblioteconomia, p. 81.
Resumo
O artigo tem como objetivo apontar e analisar as caractersticas inerentes aos espaos
fnebres que se configuram nos cemitrios oitocentistas. Estes, pertencendo ao seu tempo,
refletem a mentalidade e o imaginrio no qual esto inseridos. As obras e imagens, neles
incorporadas, revelam-se como um acervo significativo para a compreenso da sociedade e
das relaes que se estabelecem entre os homens. Nascidos na confluncia de uma srie de
fatores que perpassam pela reordenao social, poltica e mental; a urbanizao, a absoro
e aplicao dos discursos mdicos e higienistas; a consolidao da burguesia como classe
dirigente, a supremacia do individualismo e a adoo de novas condutas em relao aos
mortos e morte; os espaos de enterramento transfiguram-se em lugares de especial
significado para o entendimento dos sentimentos e do imaginrio. Pretende-se apontar
alguns aspectos que propiciam a reflexo sobre os significados incorporados pelas
necrpoles oitocentistas. Para percorrer este caminho sero destacados: os epitfios, os
elementos decorativos que ornamentam os tmulos fotografias, estaturia, adereos,
dentre outros e a utilizao destes lugares como marcos da memria dos grandes, a
construo de mitos e imagens que distinguem os poderosos dos outros mortais. Ser
apontado, igualmente, o potencial dos cemitrios como local de trabalho e espao para
manifestao do talento artstico de artistas e artesos. O propsito destacar a relevncia
destes espaos como lugares da construo da memria, destacando-se, contudo, o acervo
neles guardados, indicando a necessidade de se compreender sua dimenso patrimonial e a
urgncia no estabelecimento de aes pblicas ou privadas no sentido de proteg-los e
torn-los locais devidamente apropriados pelas sociedades nas quais se inserem.
22LOUREIRO, Maria Amlia Salgado. Origem Histrica dos Cemitrios. So Paulo: Secretaria de Servios e
Obras, 1977.p.12
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de comungar com os espritos ancestrais ou de aplac-los. Embora o
ajuntamento de alimentos e a caa no encorajem a ocupao
permanente de um stio nico, pelo menos os mortos reclamam esse
privilgio. H muito tempo atrs, os judeus reclamavam, como
patrimnio seu, a terra onde estavam localizadas as sepulturas de seus
antepassados, e essa bem fundamentada pretenso parece ser primordial.
A cidade dos mortos antecede a cidade dos vivos. Num sentido, alis, a
cidade dos mortos precursora, quase o ncleo, de todas as cidades
vivas. A vida urbana cobre o espao histrico entre o mais remoto
campo sepulcral da aurora do homem e o cemitrio final, a Necrpolis
em que uma aps outra civilizao tem encontrado o seu fim23.
23 MUMFORD, Lewis. A Cidade na Histria Suas origens, suas transformaes, suas perspectivas. Traduo Neil R. da
25 Soalguns dos cemitrios que esto circunscritos neste perodo: Pre Lachaise, Paris (1804); Cemitrio
Staglieno, Genova (1835); Recoleta, Buenos Aires (1822); Chacarita, Buenos Aires (1871); Consolao, So
Paulo (1858) e So Joo Batista, Rio de Janeiro, (1851).
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Belo Horizonte nascida na virada do sculo dezenove apresentou-se como uma
proposta nova em relao a tudo aquilo que havia sido o Arraial do Belo Horizonte, local
escolhido dentre outros e sobre o qual foi erguida a nova capital. Esta proposta perpassou
pela composio estilstico-arquitetnico das ruas e prdios, bem como o perfil de seus
moradores que alm de serem novos e modernos, como a cidade, deveriam possuir novos
hbitos e comportamentos naquilo que se relacionava ao convvio social. E neste convvio
inclui-se a morte.
Vale acrescentar que esta deciso j havia sido determinada atravs da Lei Imperial
de 1 de outubro de 1828, mas no havia se concretizado efetivamente at ento. As
normas da Comisso Construtora possuam significados simblicos especiais: era a
civilizao dos costumes.
O Cemitrio de Nosso Senhor do Bonfim nasceu a partir deste projeto. Nele pode-
se antever a mentalidade moderna /burguesa que norteou os princpios fundadores da
capital, atravs da avaliao de sua arquitetura, dos artistas-artesos que nele trabalharam e
26 LEAL, Fbio Nunes. O Arraial do Bello Horizonte.In: Commisso Constructora da Nova Capital.Revista Geral
dos Trabalhos.Publicao peridica, descriptiva e estatstica feita com autorisao do Governo do Estado sob direo do
Engenheiro Chefe Aaro Reis. Rio de Janeiro: H. Lombaerts & C. 1895. V. I p. 13.
27AZEVEDO, Arthur. Um passeio a Minas. Revista do Arquivo Pblico Mineiro. Belo Horizonte, Ano XXXIII,
1982.p.179 -211
28 Embora tenha sido inaugurado no final do sculo XIX, 1897, a regulamentao do cemitrio pblico foi
processada atravs do Decreto n 1368, datado de 05 de maro de 1900, com a aprovao do ento
Presidente do Estado, Dr. Francisco Silviano de Almeida Brando. Dividido em 06 captulos o decreto
determina as condies de uso, dimenses, caractersticas das sepulturas, enterramentos, transporte de
cadveres, administrao do espao, dos valores a serem cobrados, dentre outras orientaes. Decreto n 1368
de 05 de maro de 1900.Regulamento do Cemitrio Publico Prefeitura da Cidade de Minas. Cidade de Minas: Imprensa
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A convivncia entre mortos e vivos j no podia ser tolerada, da a equilibrada
distncia a ser mantida, especialmente fora do permetro urbano, na zona determinada
como suburbana na planta da capital, em local de fcil acesso, mas que no maculasse a
ordem atravs da qual a cidade se organizava.
At a dcada de 40 o cemitrio foi o nico da capital, deste modo, todos eram nele
sepultados. Por mais de um sculo de existncia paralela cidade dos vivos, a cidade dos
mortos atravessou fases que acompanham as mudanas pelas quais sua parceira tambm
vivenciou.
Desde os tempos mais remotos o homem registra sua vida atravs das imagens.
Imagem como fora simblica reveladora e representativa das expectativas, desejos
contidos e projees que o homem tem diante da vida. A arte, portanto, um elemento
presente no cotidiano humano. Atravs da produo artstica, da explorao das imagens
criadas pelos homens possvel compreender aspectos variados da sociedade que as
produz. Este um exemplo que pode ser buscado se analisarmos a arte funerria.
O cemitrio, deste modo, tem sido um espao significativo para insero da prtica
da educao patrimonial, pois, alm de convidar a sociedade belorizontina para a fruio, o
deleite e apreciao esttica, naquilo que se refere s obras de arte que ornamentam os
tmulos; estimulam a reflexo contnua sobre as transformaes das relaes no tocante ao
culto aos mortos, os discursos concordantes e dissonantes, bem como a construo da
trama social, poltica e religiosa que define os hbitos e cdigos culturais da populao da
capital mineira.
31Sobre educao patrimonial consultar: FLORNCIO, Snia Rapim e outros. Educao patrimonial: histrico,
conceitos e processos. Braslia, DF: IPHAN/CEDUC, 2014. 64 p.
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Educao Patrimonial em Arquivos Municipais
Arthur Oliveira Freitas
Graduado em Histria- UFMG
Graduando em Arquivologia - UFMG
[email protected]
Introduo
Arquivos e Histria
32 PARRELA, Ivana. Arquivistas e o fomento s pesquisas: Educao Patrimonial nos arquivos brasileiros. In:
Por serem responsveis pela guarda dos documentos oficiais, os Arquivos, muitas
vezes, se enquadram em um discurso histrico que exalta os vencedores. Com isso, as suas
atividades educativas/patrimoniais, so pensadas de maneira a reforar este discurso,
evocando uma histria que segue seu caminho natural, retirando as divergncias e os
conflitos existentes.
Ressaltamos que, como dito por Adriana Koyama, os Arquivos no devem ser
apenas extenses do ensino curricular. Caso os programas educativos se preocupem apenas
em desenvolver as habilidades e competncias estabelecidas pelos Parmetros Curriculares,
perdem a possibilidade de criar abordagens mais amplas e de trabalhar o conhecimento
histrico e arquivstico dos visitantes. Outra preocupao a proximidade dos discursos
dos Arquivos e da Histria Oficial, construda de forma a apagar as inconsistncias e os
conflitos, em uma narrativa apaziguadora, que apresenta, de acordo com Paulo Freire, um
futuro determinado, imutvel. importante, que os documentos escolhidos proporcionem
um pensamento prprio, um raciocnio individual ou coletivo, que seja desenvolvido pelos
alunos sem ser previamente determinado ou guiado.
Tambm relevante que se faa uma conexo entre a Histria Local e a Histria
Geral. Para Bellotto, encontrar estas ressonncias dos acontecimentos nacionais e
internacionais, comprovadas nos documentos regionais, sempre possvel e extremamente
til compreenso da histria pelos alunos.39, estas aproximaes, permitem aos
estudantes vislumbrarem a possibilidade de interagirem e serem parte da histria.
38ALVES, Lus Alberto Marques. A histria local como estratgia para o ensino da histria. Porto:
Universidade do Porto, 2006.
39 BELLOTTO, H. L. Poltica de ao cultural educativa nos arquivos municipais. In: Registro, Ano I, n 1,
2002, P.22.
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cotidiana de milhares de cidados, as perseguies que estrangeiros sofreram e os conflitos
provenientes destes eventos.
Arquivos Simulados
40 MATTOZZI, Ivo. Arquivos simulados e didtica da pesquisa histrica: Para um sistema educacional
integrado entre arquivos e escolas. Histria Revista, v. 14, n. 1, p. 321-336, 2009.p.324.
41 ______. Arquivos simulados e didtica da pesquisa histrica, p.326.
42 MATTOZZI, Ivo. Arquivos simulados e didtica da pesquisa histrica, p.322.
Os arquivos simulados devem ser uma verso menos complexa do arquivo real, sem
perder de vista o original. De acordo com o desenvolvimento dos trabalhos e do
aperfeioamento das turmas, as pesquisas podem adquirir uma maior complexidade.
Segundo Ivo Mattozzi, O arquivo simulado deveria ter uma estrutura voltada aos
estudantes, para compreenso das funes, estruturas e potencialidade de um arquivo
real.43, sem se esquecer do desenvolvimento de pesquisas histricas naquela instituio,
graas ao trabalho dos arquivistas.
RESUMO
A partir de dois questionamentos iniciais: por que preservar? E por que digitalizar para
preservar? pretende-se, nesta comunicao, desenvolver algumas reflexes acerca do
processo de digitalizao de documentos visto como ferramenta para preservao e acesso
a acervos de consulta restrita. Com o advento de novas tecnologias, a cada dia expande-se
o nmero de acervos digitalizados, e, com ele, o aumento inconteste das possibilidades de
pesquisa entregues ao pesquisador, muitas vezes de maneira gratuita e distncia. Todavia,
os profissionais que atuam nas instituies de salvaguarda incluindo os historiadores
no devem perder de vista dois pontos essenciais que circundam esse processo: a
conservao da materialidade dos documentos e um planejamento para arcar tambm com
os custos advindos da digitalizao. Para torn-la mais concreta, a discusso ser amparada
por breves excertos de relatos de experincia da autora no processo de digitalizao de dois
acervos distintos: A Coleo Linhares acervo pertencente s Colees Especiais da
Biblioteca Universitria da UFMG; e o acervo documental do Museu Tipografia Po de
Santo Antnio, em Diamantina. A apresentao est fundamentada tambm em manuais e
diretrizes nacionais e internacionais para digitalizao de documentos, alm de outras
leituras e pesquisas. Ao final, destacar-se- a importncia de se considerar em primeiro
plano as especificidades materiais e contextuais de cada acervo ao se optar pela
digitalizao. Porque digitalizar preservar, mas , ao mesmo tempo, criar um novo acervo
que, por sua vez, precisar tambm ser preservado.
INTRODUO
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O objetivo desse texto lanar algumas reflexes sobre as relaes entre a
materialidade dos acervos que preservamos, a digitalizao desses acervos e as
possibilidades de acesso. Devo dizer, antes de mais, que essa breve discusso tem como
foco os acervos de papel, entretanto as discusses se ampliam tambm, em muitos
aspectos, para outras tipologias de acervo.
E, afinal, por que preservamos? Essa uma questo muito complexa, que engloba
vrias discusses e linhas de pensamento relativas ao conceito de memria, que no cabe
discutir aqui. Mas, sabemos que os documentos (e incluo aqui a noo mais ampla de
documento, que abrange o nosso patrimnio material e imaterial, objetos particulares e
acervos pblicos) so memria, so o que restou, o registro de um tempo que j no o
nosso mas que, atravs dos objetos, nos cabe ler, analisar, interpretar..47
definir a conservao do patrimnio cultural tangvel. Boletim Eletrnico. Rio de Janeiro, ABRACOR, n 1, jun.
2010.
46 FRONER, Yacy-Ara; ROSADO, Alessandra. Princpios histricos e filosficos da Conservao Preventiva. Belo
ACESSO VIRTUAL
48SMITH, Abby. Digitization is not Preservation at least not yet. In: KRESH, Diane (org.). The Whole
Digital Library Handbook. Chicago, EUA: American Library Association, 2007. p.342-345.
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preservao digital que alcanam maior qualidade de imagem so os formatos RAW, como
o TIF, por exemplo importante lembrar que os formatos que guardam mais informao,
ocupam mais espao na memria do computador. Tambm pode acontecer do acesso aos
arquivos ser impossibilitado devido ao mau funcionamento ou pane dos equipamentos de
leitura ou das mdias de guarda das informaes digitais. Alm disso, no podemos nos
esquecer dos custos: digitalizar um arquivo no apenas colocar o documento em um
scanner e apertar um boto. O processo se inicia muito antes e finaliza muito depois desse
ato, se que se pode mesmo falar em fim do processo. Selecionei dois acervos digitais de
peridicos disponveis online para dirigir essa discusso.
Outra experincia que gostaria de relatar foi a realizada pelo Projeto Memria do
Po de Santo Antnio, recentemente patrocinado pelo Programa Petrobras Cultural. A
Associao do Po de Santo Antnio uma entidade beneficente de Diamantina que,
como forma de arrecadar dinheiro para se manter, passou a publicar, desde 1906, um jornal
voltado para a comunidade diamantinense. Esse jornal foi impresso em tipografia at 1990!
Com o apoio da UFMG o acervo foi totalmente digitalizado entre o fim de 2013 e os
primeiros meses de 2014 no setor de Colees Especiais da Biblioteca Universitria. O
49 SANTOS, Vilma et al. A Coleo Linhares em meio digital. In: Varia Histria, Belo Horizonte, vol.27, n46,
p.735-750, jul/dez 2011.
50 O resultado dessa primeira fase est disponvel no site < http://linhares.eci.ufmg.br/>
MATERIALIDADE
Muitas vezes nos referimos ao papel como o suporte da informao escrita. Mas a
letra, escrita ou impressa, ser toda a informao contida em um documento? Abre-se um
campo novo, ainda pouco explorado nos acervos brasileiros, das possibilidades de pesquisa
que envolvem a materialidade dos documentos, pois estes registram em sua estrutura fsica
suas tcnicas de fabricao, materiais utilizados que refletem muitas vezes os materiais
CONSIDERAES FINAIS
53ZERVOS, Spiros. Intrinsic Data Obfuscation as the Result of Book and Paper Conservation Interventions.
In: Proceedings of the International Conference on Integrated Information. 2011. Disponvel em: <http://users.teiath.gr
/szervos/__objects/docs/zervos_kos_Intrinsic_Data_Obfuscation. pdf >. Acesso em 16 jun. 2015.
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Por isso devemos sempre levar em considerao: as especificidades do acervo
(qualidade dos suportes, estado de conservao, local de guarda), a justificativa para a
digitalizao (Por que digitalizar esse acervo especfico?), onde ser guardada a verso
digitalizada dos documentos e tambm os originais, as polticas de acesso ao original e ao
material digitalizado e como outras informaes acerca dos documentos sero veiculadas.
A criao de um acervo digital sim uma ferramenta de preservao que deve ser
utilizada sempre que for possvel e necessrio, mas com cautela e responsabilidade, para
que o trabalho no se torne tambm, com o passar do tempo, mais um acervo em processo
de deteriorao.
AMPLIANDO O CONCEITO
A Reforma urbana de Paris promovida por Haussmann57 entre 1852 e 1870 concentrou
esforos em nome de melhorias na circulao e na higienizao da capital da Frana. Para
tal fim, demoliu inmeras vias pequenas e estreitas do perodo medieval, e criou imensos
54 CHOAY, Franoise. A alegoria do patrimnio. So Paulo: Estao Liberdade; Unesp, 2006, p. 99.
55 CHOAY, Franoise. A alegoria do patrimnio. So Paulo: Estao Liberdade; Unesp, 2006, p. 127.
56 BENVOLO, Leonardo. Histria da cidade. So Paulo: Perspectiva, 2012.
57 Tambm conhecido como Baro Haussman, foi prefeito do antigo departamento do Sena
entre 1853 e 1870, foi responsvel pela reforma urbana de Paris, determinada por Napoleo III.
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boulevards assim como jardins e parques. Destruiu, [...] em nome da higiene, do trnsito e
at da esttica, partes inteiras da malha urbana de Paris. (CHOAY, 2006)58
ZANCHETI, Slvio Mendes. (Orgs.). Plano de gesto da conservao urbana: conceitos e mtodos. Olinda: CECI,
2012, p. 71.
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Atualmente, o IPHAN Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional
adota o conceito de patrimnio cultural, ampliao da denominao de patrimnio
histrico e artstico vigente em 1937.
VALORIZANDO O URBANO
de abril de 2015.
65 CASTRIOTA, op. cit.
66 CHOAY, Franoise. A alegoria do patrimnio. So Paulo: Estao Liberdade; Unesp, 2006.
67 So documentos, cartas, recomendaes referentes proteo e preservao do patrimnio cultural,
68 CARSALADE, Flvio de Lemos. A pedra e o tempo: arquitetura como patrimnio cultural. Belo Horizonte:
global que se dedica a promover a aplicao da teoria, metodologia e tcnicas cientficas conservao do
patrimnio arquitetnico e arqueolgico.
70 Em ingls, United Nations Education, Scientific and Cultural Organization.
71 Em ingls, Historic Urban Landscape. Em portugus traduzido como Paisagem Urbana Histrica.
72 UNESCO. Recommendation on the Historic Urban Landscape. Disponvel em: <
http://portal.unesco.org/en/ev.phpURL_ID=48857&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html
> Acesso em: 24 de abril de 2015.
73HAYDEN, Dolores. The power of place: urban landscapes as public history. Cambridge: The MIT Press,
1995.
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O bairro de Santa Tereza est localizado numa antiga rea fora dos limites da
Avenida do Contorno em Belo Horizonte. Parte da stima seo suburbana, local onde um
grupo de operrios, grande parte deles constitudo por imigrantes, se instalou em 1898.
Em 1910 foi construdo o Hospital do Isolado, para tratamento de doenas
infectocontagiosas, e, em 1914, a antiga hospedaria de imigrantes foi ocupada pela 59 Cia.
de Caadores do Exrcito.
Formado em sua grande maioria por casas, muitas delas do incio do sculo XX, a
paisagem tpica do bairro reforada pelo ritmo de vida nada convencional para uma
metrpole.
Por outro lado, a presso do mercado imobilirio provoca a alterao das dinmicas
da composio do local consequentemente promovendo a gentrificao76 e extino de
prticas sociais locais. As mudanas no padro de ocupao de Santa Tereza, em meados
da dcada de 1980, ocorreram com a construo de pequenos edifcios residenciais. Alm
disso, [...] a construo, em 1992, do viaduto que passa sobre a Avenida dos Andradas,
ligando Santa Tereza a Santa Efignia e a construo da estao de metr, inaugurada no
ano seguinte (FUNDAO MUNICIPAL DE CULTURA DE BELO HORIZONTE,
2015)77, o bairro tornou-se altamente atrativo ao mercado imobilirio.
identitrio para o bairro Santa Tereza. In: ANDRADE, Luciana Teixeira de; ARROYO, Michele Abreu.
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Em 1996, Santa Tereza se configura como ADE rea de Diretriz Especial
definida pela Lei 7166/96, que restringe coeficientes de aproveitamento do solo, altura de
edificaes, taxas de permeabilidade, entre outras limitaes. A ADE foi criada como
contraposta ao pedido feito pelo Movimento Salve Santa Tereza79, que se mobilizou contra
o adensamento que se instalava no bairro nos meados da dcada de 1980.
(Org.). Bairros pericentrais de Belo Horizonte: patrimnio, territrios e modo de vida. Belo Horizonte: Editora
PUC Minas, 2012, p. 109.
79 Movimento criado em 1996 em defesa da ADE de Santa Tereza.
80
CAJAZEIRO, Karime G; SOUZA, Franoise Jean; SOARES, Caroline Pereira. Instrumentos de proteo
do patrimnio cultural: um olhar sobre o caso do bairro Santa Tereza. In: ANDRADE, Luciana Teixeira de;
ARROYO, Michele Abreu. (Org.). Bairros pericentrais de Belo Horizonte: patrimnio, territrios e modo de vida.
Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2012, p. 297.
81 CDPC Conselho Deliberativo do Patrimnio Cultural
82
FUNDAO MUNICIPAL DE CULTURA DE BELO HORIZONTE. Dossi para proteo do conjunto
urbano bairro Santa Tereza. Belo Horizonte: 2015, p. 10.
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impedindo o processo de verticalizao e adensamento populacional da rea
(MOVIMENTO SALVE TEREZA, 2013 apud FUNDAO MUNICIPAL DE
CULTURA DE BELO HORIZONTE, 2015)83
86 SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. Preservar no tombar; renovar no pr tudo abaixo. Disponvel em: <
https://docs.google.com/file/d/0BwTS4THx9n2hQmpabF9EbTdWT0U/edit?pli=1>. Acesso em: 18 de
abril de 2015.
87 Segundo Pontual (2012) o planejamento estratgico aplicado dimenso urbana permite aes conjuntas
do poder pblico, do setor privado e da sociedade em prol das potencialidades das cidades.
88 PONTUAL, Virgnia. Plano de gesto da conservao integrada. In: LACERDA, Norma; ZANCHETI,
Slvio Mendes. (Orgs.). Plano de gesto da conservao urbana: conceitos e mtodos. Olinda: CECI, 2012, p. 94.
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conservao integrada como a integrao entre a preservao do patrimnio e o
planejamento urbano (CASTRIOTA, 2010)89
Prata (2010) indica que houve evoluo com relao aos instrumentos de gesto
urbana, contudo os instrumentos de proteo e preservao ainda se apoiam, basicamente,
no tombamento. Conforme a autora, urgente promover a ampliao das formas de
acautelamento. A discusso patrimonial hoje ainda muito marcada pelo tombamento,
como se preservao e tombamento sinnimos fossem. (PRATA, 2010)91
Em Santa Tereza, as limitaes impostas pela lei (ADE) foram consolidadas pela
proteo do conjunto urbano constituindo maneira de garantir a permanncia das prticas
sociais e econmicas tradicionais do bairro. De qualquer maneira, necessrio levar-se em
conta que o ambiente urbano extremamente dinmico mesmo em Santa Tereza sendo
necessrio, portanto, a implantao de planejamento e gesto urbana pautados no
desenvolvimento social.
CONSIDERAES FINAIS
bairros. In: FERNANDES, Edsio; ALFONSIN, Betnia. (Orgs.). Revisitando o instituto do tombamento. Belo
Horizonte: Frum, 2010, p. 301.
bairros. In: FERNANDES, Edsio; ALFONSIN, Betnia. (Orgs.). Revisitando o instituto do tombamento. Belo
Horizonte: Frum, 2010, p. 308.
92 BOSI, Ecla. Sociedade e memria: lembrana de velhos. So Paulo: Companhia das Letras, 1994.
93 BRANDO, Pedro Ivo Martins. Territorialidade e sociabilidade no espao urbano. In: ANDRADE,
Luciana Teixeira de; ARROYO, Michele Abreu. (Org.). Bairros pericentrais de Belo Horizonte: patrimnio,
territrios e modo de vida. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2012, p. 89.
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Patrimnio alimentar: passos para a garantia da
sociobiodiversidade e segurana alimentar
Resumo:
Este trabalho pretende discutir a relao entre patrimnio/tradio alimentar. Pretendemos
discutir, a partir de algumas experincias de caso, de que forma o processo de
patrimonializao de alimentos e saberes relacionados a alimentao podem estar ligadas a
fenmenos mais complexos, como a preservao da sociobiodiversidade e/ou um possvel
soluo para os problemas ecolgicos e garantia da segurana alimentar.
Introduo
Este trabalho, de carter ensastico, fruto das discusses e leituras feitas ao longo
da disciplina Antropologia da Alimentao e Patrimnio, oferecida no programa de ps-
graduao em Antropologia Social da Universidade Federal de Gois. As discusses em
sala de aula me levaram a refletir sobre os processos de patrimonializao dos alimentos
"tradicionais" e das prticas alimentares e sua possvel contribuio para a preservao da
sociobiodiversidade, a soluo para alguns problemas ecolgicos, e tambm, a garantia da
segurana alimentar. Para chegar ao ponto que nos interessa passaremos antes por algumas
discusses que atravessam o debate. Estas so: o debate sobre a alimentao na
antropologia, a patrimonializao dos alimentos e das prticas alimentares, a biodiversidade
e segurana alimentar, para, enfim, explicar como esses temas convergem nesse trabalho.
Montanari97 tem retratado que o sistema alimentar tanto contm como transporta a
cultura de quem a pratica. Alm disso, o sistema alimentar tambm depositrio das
tradies e identidade de um grupo, tornando-se assim um extraordinrio veculo de
auto-representao e de troca cultural. O autor tambm percebe que toda cultura, toda
O que pretendemos chamar a ateno aqui sobre a existncia de grupos que ainda
possuem esse corpo de conhecimento sobre todo o processo produtivo de determinado
produto, ainda que eles estejam dentro de um sistema em o modo de produo industrial
exista e seja predominante. No estamos falando de uma nao inteira, como fazem os
autores discutidos, mas pequenos grupos dispersos pelo territrio, mas que constituem a
nao. Falamos aqui de grupos que chamamos de tradicionais, que vivem da captura de
animais e frutos, fazendo uso de saberes que so passados atravs de geraes.
Maria e GARCIA, Rosa Wanda Diez. Antropologia e Nutrio: um dilogo possvel. Rio de Janeiro: Editora
Fiocruz, 2005.
104 __________. Patrimnio e Globalizao, p. 129.
105 __________. Patrimnio e Globalizao.
106 __________. Patrimnio e Globalizao, p. 130.
107 CONTRERAS. Patrimnio e Globalizao.
108 CWIERTKA, Katarzyna & WALRAVEN, Boudewijin. Asian Food: The Local and the global. Honolulu:
Chegar nesse ponto da reflexo sobre patrimnio instaura uma crisa sobre a
importncia poltica da patrimonializao dos alimentos, saberes e cozinhas. Reduzir as
prticas e conhecimentos, transformados em patrimnios, a meros incentivos ao turismo
seria apenas um decalque. Pensar a poltica na patrimonializao tambm nos leva a crer
que a discusso a respeito das culturas, se o que ocorrem so trocas culturais (e por isso
naturais) ou globalizao (que destri as tradies), parece pouco profcuo. A questo que,
cremos, deve ser levantada : de que forma a patrimonializao pode ter um papel poltico
importante? Foi a partir dessa reflexo, partindo de exemplos etnogrficos de autores os de
Moncus e Santamarina116, Katz117 e Bitter e Bitar118, que passei perceber a contribuio da
patrimonializao para a garantia da sociobiodiversidade e segurana alimentar.
propuesta de la cocina mexicana como patrimnio inmaterial de la humanidade. In: ALVAREZ, Marcelo &
MEDINA, Xavier (Eds.) Indentidades en el Plato. El Patrimonio cultural alimentario entre Europa y America.
Barcelona: Icaria, 2008.
117 KATZ, Esther. Alimentao indgena na Amrica Latina: comida invisvel, comida de pobres ou
patrimnio culinrio? In: Espao Amerndio, Porto Alegre, volume 3, nmero 1, pp 25-41, jan/jun, 2009.
118 BITTER, Daniel & BITTAR, Nina Pinheiro. Comida, trabalho, e patrimnio: notas sobre o ofcio das
baianas de Acaraj e Tacacazeiras. In: Horizontes Antropolgicos, ano 18, nmero 38, pp 213-236, jul/dez, 2012.
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Depois de passearmos pelas teorias e etnografias sobre patrimnio e alimentao,
chega a hora de buscar algumas definies, ou indefinies, sobre o que chamamos aqui de
populaes tradicionais. Falar sobre o processo de construo do conceito de
populaes tradicionais pode ser um pouco complicado quando tentamos pensar onde e
quando o termo foi criado. Entre a bibliografia disponvel possvel encontrar essa
definio ligada a processos diversos. To impossvel quanto falar de toda a bibliografia
disponvel falar somente de uma. Sendo assim, foram selecionados alguns autores com
base na sua relevncia sobre o assunto e a influncia que tiveram na minha compreenso
sobre o que seriam as chamadas populaes tradicionais.
119 DIEGUES, Antnio Carlos; ARRUDA, Rinaldo. Saberes Tradicionais e Biodiversidade no Brasil. Braslia:
Ministrio do Meio Ambiente; So Paulo: USP, 2001.
120 POSEY, Darrel A. Manejo da Floresta Secundria, capoeiras, campos e cerrados (Kayap). In: RIBEIRO,
D. (Ed.), Suma Etnolgica Brasileira, v. 1 (Etnobiologia), pp. 173-188. Petrpolis, Rio de Janeiro: Vozes/FINEP,
1986.
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dos projetos de desenvolvimento envolvendo altas tecnologias, como as monoculturas com
mquinas modernas e utilizao de pesticidas e fertilizantes que acabam destruindo as
riquezas sociais e biolgicas, Posey121 realiza um estudo sobre o tipo de agricultura realizada
pelos Kayap. Neste estudo, o autor descobre entre os indgenas um tipo de agricultura
nmade em que, por entre as trilhas em que os indgenas faziam suas expedies existem
zonas de cultivo. As margens das trilhas so plantadas com numerosas variedade de
inhames, batata-doce, marantceas, cup, (Cissus sp.) zingiberceas, arceas e outras plantas
tuberosas no identificadas122.
Outro debate que tem se intensificado atualmente sobre as sementes crioulas (ou
nativas), e diversas ONGs e instituies como a Embrapa tem investido na criao de
bancos de sementes, com o intuito de preserv-las, e tambm na implementao da
agroecologia, que possui esse nome, mas algo prximo do que Posey124 descreve como a
agricultura Kayap, no sentido de que oposta ao modelo de monocultura.
Segundo Trindade125
A autora supracitada tambm explica que a alta tecnologia permitiu que as sementes
pudessem sofrer modificaes induzidas em laboratrio para que houvesse menos perdas e
comunidades tradicionais. In: Congresso Nacional do Conpedi, 15, 2006, Manaus. Anais... Manaus: UEA,
2006, p 1-15.
126 __________. Sementes crioulas e transgnicos, uma reflexo sobre sua relao com as comunidades
tradicionais, p. 4.
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contaminaes por pragas. Essas sementes so as conhecidas sementes geneticamente
modificadas ou, transgnicas. O problema discutido hoje com relao aos riscos sade e
a soberania alimentar que essa semente apresenta, no s pela sua modificao, mas
tambm porque, para produzi-la, necessrio o uso de agrotxicos que so altamente
ofensivos a sade humana. Essa semente, que tambm hbrida, por serem criadas em
laboratrio, esto sendo patenteadas pelas empresas de biotecnologia, apresentando um
srio risco soberania alimentar, pois poucas empresas sero donas dos alimentos. Por
causa do seu rendimento, vrios pequenos agricultores aderiram as sementes transgnicas,
no entanto, hoje se veem em uma situao difcil, pois perderam suas sementes e precisam
sempre comprar as sementes hbridas, s que, para comprar as sementes preciso comprar
o pacote inteiro, semente e agrotxico.
tradicionais.
132 BITTER e BITTAR. Comida, trabalho, e patrimnio.
Assim, entendemos que essa conquista das comunidades do Rio Negro, por
exemplo, muito importante para pensar que o Iphan pode ser um grande parceiro no que
se refere a manuteno da biodiversidade e garantia da segurana e soberania alimentar.
Acreditamos que instituies como a Unesco (no caso do Mxico), o IPHAN (no caso do
Rio Negro) e outras poderiam ser importantes parceiras para garantir a salvaguarda desses
bens que so fundamentais para nossa vida, os alimentos, e consequentemente, a
preservao das culturas e prticas relacionadas a produo, preparo e consumo desses
alimentos.
[...] Uma cidade pode ser o nome dum pas, dum cais, um porto, um
barco de andorinhas e gaivotas ancoradas na areia. E pode ser um arco-
ris janela, um manjerico de sol, um beijo de magnlias ao crepsculo,
um balo aceso numa noite de junho. Uma cidade pode ser um corao,
um punho.
(Albano Martins. Uma cidade. In: Castlia e Outros Poemas)
A cidade [...] um livro de pedra, uma espcie de biblioteca que se abre leitura e
interpretao134, mas ela permite que se faa novas inscries e novos registros de
expresses culturais em sua paisagem135, pois as pessoas os recriam a todo momento. Por
ser um acervo das produes humanas ao longo do tempo, a urbe se configura em um
objeto de aes educacionais, o que a torna capaz de ser estudada a partir da leitura e da
escrita de smbolos, signos culturais. A cidade, portanto, uma construo e uma
idealizao humana que permite possveis interpretaes, pois nela se percebe a polissemia
de memrias e imaginrios atuais, como tambm do passado:
133 Patrimnio ou Patrimnio Cultural entendido neste trabalho como [...] bens de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referncia identidade, ao, memria
dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira [como tambm de qualquer outro agrupamento
social]. BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Belo Horizonte: Lder, 2008. Art. 216. p.125.
134 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Histria, Literatura e Cidades: diferentes narrativas para o campo do
a uma dimenso cultural, pois modifica diversas esferas da sociedade, como a viso de mundo, os valores
simblicos, etc. Assim, toda paisagem cultural, segundo a Carta de Bag (2007) ela [...] o meio natural ao
qual o ser humano imprimiu as marcas de suas aes e formas de expresso, resultando em uma soma de
todos os testemunhos resultantes da interao do homem com a natureza e, reciprocamente, da natureza com
homem, passveis de leituras espaciais e temporais. IPHAN. Carta de Bag: Carta da Paisagem Cultural.
Captado em: http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=895 Acesso em: 20 de abril de 2015.
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[...] o espao urbano se torna um lugar de inteligibilidade, de construo
de narrativas que cumprem funes de situar os indivduos no tempo e
no espao e de dar sentido s suas vidas. Dos traos que marcam a
cidade, a multiplicidade se revela, abrigando diversas cidades, como um
caleidoscpio ou palimpsesto: a cidade que foi um dia, por meio de
runas, monumentos, bens patrimoniais, narrativas; a cidade que ser um
dia, feita de projetos e fices cientficas, a cidade do presente, em
dcalage entre a cidade real e a cidade representada.136
141 A expresso memria enquadrada foi utilizada por Pollak a partir da concepo formulada por Henri
Rosso, que a utilizou para se referir memria coletiva de forma mais especfica. Para Pollak o trabalho de
enquadramento tambm realizado por meio da captao das emoes, assim a televiso e os documentrios
so mecanismos que enquadram explorando tal sentimento. POLLAK, Michael. Memria, Esquecimento,
Silncio. In: Estudos Histricos. Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989. p. 03.
142______. Memria, Esquecimento, Silncio. p. 07.
143 POLLAK. Memria, Esquecimento, Silncio. p. 08.
144 ______. Memria, Esquecimento, Silncio. p. 08-09.
145Por fora de lei os estados devem repassar parte do que arrecadam como o ICMS aos municpios, Minas
Gerais por meio da Lei 12.040 de 1995, substituda pela Lei 18030 de 2009, definiu os critrios gerais que os
municpios devem cumprir para pleitear o recebimento de recursos provenientes desse imposto. Desde ento
a Lei mineira permite ao Instituto Estadual de Patrimnio Histrico e Artstico (IEPHA-MG) elaborar
parmetros especficos por meio das Deliberaes Normativas, portanto estas norteiam o trabalho dos
municpios que possuem a pretenso de pleitear recursos originrios do recolhimento pelo estado do ICMS
Critrio Patrimnio Cultural. O IEPHA-MG a partir da Deliberao Normativa 01/2005 solicitou aos
municpios a realizao de projeto de Educao Patrimonial e o desenvolvimento das atividades nele
previstas.
Aps apresentar os propsitos da oficina e a razo pela qual ela estava acontecendo,
fez-se a seguinte pergunta turma: como se poderia averiguar o que importante para
uma pessoa?. A partir das respostas construdas pelos grupos debatemos se os mesmos
critrios poderiam ser aplicados para investigar o que importante em uma cidade. A
princpio houve opinies divergentes, mas todos se esforaram para justificar os
posicionamentos escolhidos e convencer os demais participantes que suas opinies eram as
mais adequadas. Quando se pediu para exemplificar o que julgavam importante em
Urucnia a maioria dos inscritos concluram que os valores histricos, artsticos, afetivos e
sociais so elementos que permitem classificar um artefato ou uma manifestao cultural
como importantes para uma cidade, portanto, os fundamentos so semelhantes, mas no
os mesmos utilizados para se estabelecer o que valoroso para um indivduo. A partir das
repostas elaboradas pelos inscritos percebeu-se que boa parte deles possua noes (mesmo
que intuitivamente) acerca do que era patrimnio.
147 Os participantes do Programa de Erradicao do Trabalho Infantil (PETI) podiam escolher quais
atividades queriam cursar dentre algumas opes a eles apresentadas, como na ficha de avaliao vrios alunos
pediram a continuao um novo mdulo foi contratado.
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patrimnio local utilizando as Novas Tecnologias de Informao e de Comunicao
(TICs), por meio de eleio a maioria decidiu produzir um vdeo.
O ponto central do vdeo foi demonstrar que os valores culturais de uma localidade
so produzidos por seus habitantes, portanto ao reconhecer o valor do patrimnio
admite-se a importncia de cada morador. Os integrantes da oficina por meio de filmadoras
e cmeras digitais enquadraram os bens culturais locais construindo, portanto, uma
narrativa prpria acerca da identidade, da memria e do patrimnio local. Narrativa esta
que possibilitou constatar que houve a internalizao dos aprendizados, pois
internalizar148 um processo cognitivo que implica reter um conhecimento,
relacionando-o com outros ou com os anteriormente construdos apropriando-se, portanto,
de todos eles para mediar as relaes com o mundo que cercam os alunos, ampliando,
assim, a aquisio de signos culturais, instigando-os a ressalt-los.
148 VIGOTSKI, Lev Semenovich. Obras escogidas III: problemas del desarrollo de la psique. Visor
Distribuciones: Madrid, 1995.
149 FLORNCIO, Snia Rabim; CLEROT, Pedro; BEZERRA, Juliana; RAMASSOTE, Rodrigo. Educao
Juliene Tardeli
Mestre em Histria Social
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
[email protected]
Introduo
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Aps a Segunda Guerra Mundial, passou-se a existir um processo de alargamento
da noo de patrimnio. A partir deste fenmeno, os bens patrimoniais passaram a serem
visualizados tambm nas prticas culturais. Essa noo, porm, no se baseava em modelos
europeus. Grande parte das mudanas no pensar sobre o papel do patrimnio nas polticas
culturais diz respeito abertura para aes empreendidas em pases do considerado
terceiro mundo e de pases da sia.
150 SANTANNA, Mrcia. A face imaterial do patrimnio cultural: os novos instrumentos de reconhecimento
e valorizao. In: Memria e Patrimnio: Ensaios contemporneos. ABREU, Regina; CHAGAS, Mrio (orgs). 2
ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009, p52.
151 ______. A face imaterial do patrimnio cultural:, p. 53.
In: Memria e Patrimnio: Ensaio contemporneos. ABREU, Regina; CHAGAS, Mrio (orgs). 2 ed. Rio de
Janeiro: Lamparina, 2009.
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Os anos de 1980 foram marcados pelos debates em torno da memria e
do patrimnio mais especificamente sobre os deslocamentos conceituais
de um e de outro em perspectiva com os anseios de novos sujeitos
histricos que entraram em cena e forjaram a necessidade de se repensar
os silncios e os ocultamentos, assim como o que deve ser protegido,
valorizado, repertoriado.154.
154 NOGUEIRA, Antonio Gilberto Ramos. O campo do patrimnio cultural e a histria: itinerrios conceituais e
prticas de preservao. Antteses. DOI: 10.5433/1984-3356.2014v7n14p45, p. 52.
155 FONSECA. Para alm de pedra e cal., p. 77.
Novos Desafios
Rebeca; SOIHET, Raquel (orgs). Cultura poltica e leituras do passado: historiografia e ensino de histria.
Civilizao Brasileira, 2007, p. 356.
159 CANCLINI, Nestor Garcia. O patrimnio cultural e a construo imaginria no nacional. In:
HOLANDA, Helosa Buarque (Org.). Revista do Patrimnio Histria e Artstico Nacional. Braslia: Iphan, n. 23, p.
94-115, 1994.
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patrimonializao, se estas esto envolvidas em dicotomias entre alta e baixa cultura, qual a
representatividade destas e qual o real envolvimento do grupo que abarcado por estas.160.
160 Cf. BOURDIEU, P. Capital Cultural, Escuela y Espacio Social. Mxico: Siglo Veinteuno, 1997.
161 ABREU. Memria e Patrimnio, p.356.
162 NOGUEIRA. O campo do patrimnio cultural e a histria, p. 53.
163 ABREU, Memria e Patrimnio, p. 358.
164 Ao considerar a definio de Mrio Chagas de patrimnio como posse de um bem, ver-se- que ele, seja
material ou imaterial, ser sempre permeado por foras simblicas e disputas de poder. Cf. CHAGAS, Mrio.
Casas e portas da memria e do patrimnio. In: Em Questo. Porto Alegre. V. 13, n 2. p. 204-224, jul-dez
2007.
165 GONALVES, Mrcia de Almeida. Histria local: o reconhecimento da identidade pelo caminho da
insignificncia. In: MONTEIRO, Ana Maria. Ensino de Histria: Sujeitos, saberes e prticas Rio de Janeiro:
Mauad X / FAPERJ, 2007.
166 CHUVA, Mrcia, 2012 apud NOGUEIRA, O campo do patrimnio cultural e a histria., p. 48.
RESUMO
O ensino de Histria na Educao Bsica em nossa realidade atual no pode se basear
apenas em livros. Os contedos apresentados pelos manuais didticos no consideram a
realidade local e a diversidade cultural brasileira. Desta forma, esse trabalho pretende
debater a importncia da Educao Patrimonial, como forma de transmisso e apropriao
de conhecimento e enriquecimento, tanto do indivduo como de sua comunidade. Por
meio do contato direto com os objetos e manifestaes, o aluno passa a fazer uma leitura
do mundo, e passam a se apropriar dos contedos propostos pela Histria, como rea de
estudo, produzindo e adquirindo conhecimento, pois os objetos e o processo histrico
passam a ter significado. O aluno passa a se perceber como um agente do processo
histrico em que est inserido. Uma maneira de assegurar que o ambiente escolar seja um
espao de encontro entre as diferentes formas de ser, de pensar e de sentir, um processo de
ensino e aprendizagem em Histria mais atrativa e significativa para os alunos atravs da
ligao entre essa rea do conhecimento e a Educao Patrimonial.
Aos professores do sculo XXI, diferente das geraes anteriores, no podem mais
repetir um programa j pr-estabelecido, reproduzir um currculo oficial para todas as
escolas do pas, sem se preocupar com uma realidade de cada lugar. Os professores desses
novos tempos devem selecionar saberes e fazeres que sejam significativos para suas
comunidades.
Desta forma, cada planejamento de ensino particular, uma reflexo e prtica que
deve articular especificidades de um grupo de educandos aos objetivos traados pelo
167 BRASIL. Secretaria de Educao Fundamental. Parmetros Curriculares Nacionais: histria. Braslia: MEC,
1997.
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professor. E essa prtica pode se utilizar de algumas metodologias. Jos Carlos Libneo diz
que em resumo, podemos dizer que os mtodos de ensino so as aes do professor pelas
quais se organizam as atividades de ensino e dos alunos para atingir objetivos do trabalho
docente em relao a um contedo especfico168.
Sobre Educao Patrimonial podemos citar, como uma das primeiras aes no
Brasil, o I Seminrio de Educao Patrimonial no Brasil, que ocorreu em 1983. Um evento
realizado no Museu Imperial, em Petrpolis RJ, inspirado no trabalho pedaggico
desenvolvido na Inglaterra denominado Heritage Education, do qual se desenvolveu uma
metodologia para o trabalho educacional em museus e monumentos histricos, a qual pode
ser encontrada no Guia Bsico de Educao Patrimonial.169
Histria: uma parceria possvel. In: SOARES, Andr Luis Ramos (org.) et al. Educao Patrimonial: relatos e
experincias. Santa Maria: UFSM, 2003, p. 48.
173 ______. Educao Patrimonial: relatos e experincias, 2003, p.52.
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dinmico e mais interessante, na busca por novas possibilidades pedaggicas de construo
de conhecimentos e de transformao das condies de vida dos alunos.
174 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
175 ______. Pedagogia do Oprimido, p. 33.
176 HORTA, M. de L. P. et al. Guia bsico de Educao Patrimonial, 2006, p. 06.
177 MACHADO, Alexander da Silva. A construo da cidadania a partir da Educao Patrimonial. In:
SOARES, Andr Luis Ramos (org.) et al. Educao Patrimonial: relatos e experincias. Santa Maria: UFSM, 2003, p.
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tomem contato com os patrimnios de suas localidades, no intuito de
fundamentar uma identidade cultural178.
Resumo: Os objetos recolhidos por um indivduo em seu percurso de vida revelam muito
mais que o valor intrnseco sua natureza material: acabam por demonstrar, tambm, o
valor simblico atribudo pelo colecionador a cada um daqueles itens colecionados, como
um texto que narra histrias passveis de leitura e interpretao. quele que se coloca
diante desse acervo, enquanto recurso de informao e subsdio pesquisa, cabe o desafio
de se manter o mais fiel possvel linguagem original estabelecida por seu titular de forma a
possibilitar uma compreenso mais pormenorizada daquele indivduo, do seu tempo e da
prpria cultura. Neste contexto, a presente comunicao tem por objetivo tornar pblico
os resultados parciais da pesquisa acadmica "A coleo pelo olhar do colecionador: o que
dizem os acervos pessoais", que busca compreender as vertentes emocional e pragmtica
envolvidas no processo de formao de colees, como requisito bsico para uma
aproximao e apropriao mais eficaz do observador-leitor de uma dada coleo pessoal,
otimizando assim, a percepo do que efetivamente representa aquele acervo enquanto
registro histrico.
INTRODUO
182 Ao temo objeto atribumos, aqui, o sentido de documento expresso por Bellotto (2004): Segundo a
conceituao clssica e genrica, documento qualquer elemento grfico, iconogrfico, plstico ou fnico
pelo qual o homem se expressa. o livro, o artigo de revista ou jornal, o relatrio, o processo, o dossi, a
carta, a legislao, a estampa, a tela, a escultura, a fotografia, o filme, o disco, a fita magntica, o objeto
utilitrio etc., enfim, tudo o que seja produzido, por motivos funcionais, jurdicos, cientficos, tcnicos,
culturais ou artsticos, pela atividade humana. BELLOTTO, Heloisa Liberalli. Arquivos permanentes:
tratamento documental. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. p.35.
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Esta breve comunicao tem por objetivo tecer algumas consideraes sobre o
conceito de coleo formal e de coleo funcional - bem como suas caractersticas bsicas - e a
importncia destas enquanto fonte de informao privilegiada a uma compreenso mais
fidedigna possvel do indivduo que sistematicamente reuniu todo aquele complexo acervo
material, baseando-nos, aqui, no que cita Vera Grecco:
COLEES
183 GRECCO, Vera Regina Luz. Colecionismo: o desejo de guardar. Jornal do MARGS, Porto Alegre, n.83,
junho de 2003.
184 LOPES, Jos Rogrio. Colecionismo e os ciclos de vida: uma anlise sobre percepo, durao e
transitoriedade dos ciclos de vida. Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, n.34, p.377-404, jul./dez.2010. p.380-
381.
185 MARSHALL, Francisco. Epistemologias histricas do colecionismo. Episteme, Porto Alegre, n.20, p.13-23,
jan./jun.2005, p.15.
186 CRUSCO, Srgio. Colecionar contar histrias. Revista Continuum Ita Cultural, So Paulo, n.29, p.12-15,
jan./fev.2011.
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Para que essa tarefa possa ser iniciada, porm, necessria a compreenso e a
distino entre dois perfis de colees: as formais e as funcionais187. Por coleo formal
compreendemos a reunio sistemtica de objetos os mais diversos, atrelados a um ou mais
interesses do indivduo Colecionador, tendo por fundamento primeiro a relao afetiva
estabelecida entre eles. Aqui, os objetos so desnudados de sua funo original (razo pela
qual foram criados) e adquirem um novo valor, agora carregado pela subjetividade do
sujeito que os reuniu. Por coleo funcional compreendemos a reunio objetiva de objetos
os mais diversos, associados a uma ou mais necessidades do indivduo colecionador, tendo
por fundamento primeiro a relao prtica estabelecida entre eles, com pouco ou nenhum
envolvimento emocional. Referimo-nos, neste caso, a tudo aquilo que se mostra essencial
para a execuo dos nossos afazeres e obrigaes.
187 Terminologia inicialmente adotada nas atividades de ensino e incorporada, posteriormente, no repertrio
conceitual dos trabalhos de pesquisa do autor.
188 OLIVEIRA, Andria Machado; SIEGMANN, Christiane; COELHO, Dbora. As colees como durao:
o colecionador coleciona o qu? Episteme. Porto Alegre, n.20, p.111-119, jan./jun.2005. p.112.
189 Pesquisa vinculada ao Departamento de Teoria e Gesto da Informao da Escola de Cincia da
formal.
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profissionais). Mesmo diante da argumentao sobre outras possibilidades de leituras
inerentes ao valor representativo de suas colees funcionais, os mesmos mantiveram-se
hesitantes. Como bem o cita Soraia Nogueira (2004), a partir do momento em que um
objeto selecionado, possudo e ordenado por um sujeito, passa ele ento a se constituir
como um espelho da sua personalidade, seu cotidiano, seu meio social, como uma espcie
de biografia material, amadurecendo ao longo dos anos191. Ainda que a restrita
aproximao emocional no confira s colees funcionais o mesmo status das colees
formais, sob o ponto de vista biogrfico, so ambas facetas de um mesmo indivduo.
191 NOGUEIRA, Soraia Nunes. A imagem cinematogrfica como objeto colecionvel: o colecionador na era digital.
241f. Dissertao (Mestrado em Artes Visuais) - Universidade Federal de Minas Gerais, Programa de Ps-
Graduao em Artes Visuais, Belo Horizonte, 2004, p.15.
192 Frase atribuda ao colaborador da pesquisa (entrevistado) Sr. E. R., tambm citado no pargrafo anterior.
193 BOSI, Alfredo. Consideraes sobre tempo e informao. So Paulo: Instituto de Estudos Avanados da
informao. Encontros Bibli: Revista Eletrnica de Biblioteconomia e Cincia da Informao. Florianpolis, n. esp., p.87-
104, 1.sem.2009. p.87.
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simplesmente. Traz consigo a capacidade de ofertar ao mundo uma singular viso da
realidade, presente ou passada.
196CAVEDON, Neusa Rolita et al. Consumo, colecionismo e identidade dos biblifilos: uma etnografia em
dois sebos de Porto Alegre. Horizonte Antropolgicos, Porto Alegre, n.28, p.345-371, jul./dez.2007. p.368.
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ST 7: Histria e Inquisio: histria
inquisitorial, fontes inquisitoriais e suas
aplicaes nos estudos sobre religio,
poltica e sociedade
Introduo
Um vicio execrvel, desconhecido antigamente a esse grau,
implantou-se entre ns: a blasfmia pela qual o nome do Senhor
ultrajado da maneira mais odiosa [...]. E essa hedionda blasfmia
reina em todas as condies: mulheres, velhos, jovens, at crianas
que mal podem falar, todos a tm nos lbios, o que jamais se vira
no tempo de nosso pais. 197
197Citado em J. Jansen. La civilisation de l'Indus Redcouverte d'une grande culture antique. VIII, p.454. Tbingen,
1568.
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os religiosos acusados de declaraes infames em relao f. E sero estes ltimos que
darei um enfoque maior.
A mensagem na qual a Inquisio buscava transmitir aos fiis e leigos era uma
mensagem de medo e terror, aguilhoando-os na obedincia e submisso. o que diz Jean
Delumeau em A Histria do medo no Ocidente, essa mensagem de medo e punio antiga,
to antiga quanto prpria civilizao Os homens de Igreja, aguilhoados por
acontecimentos trgicos, estiveram mais do que nunca inclinados a isol-la nos textos
sagrados e a apresenta-la s multides inquietas com a explicao ltima que no se pode
colocar em dvida (DELUMEAU, 2009, p.335).
Quantos aos crimes que busco analisar, as blasfmias e proposies herticas eram
dois crimes que, ainda que relacionadas fala, possuam suas diferenas. As proposies
herticas eram crticas, questionamentos ou indagaes feitas contra a Igreja como
instituio ou aos seus membros. As blasfmias eram uma demonstrao de grosseria,
rusticidade ou ignorncia; uma prtica nascida do hbito, da ironia, do humor, da raiva ou
da decepo200. To antigo quanto qualquer crena religiosa, a blasfmia vista pela Igreja
como um desprezo contra Deus e seus ensinamentos, podendo ser expressa atravs de
198 MARCOCCI, Giuseppe; PAIVA, Jos Pedro. Histria da Inquisio Portuguesa 1536-1821. Lisboa: Esfera dos
Livros, 2013, p.15.
199 NOVINSKY, Anita Waingort. A Inquisio. 2 edio So Paulo: Brasiliense, 1983, p.37.
200 SCHWARTZ, Stuart. Cada uma na sua lei: Tolerncia religiosa e salvao no mundo atlntico ibrico.
A descoberta do Novo Mundo talvez tenha sido o feito mais espantoso da histria
dos homens, abriam-se as portas de um novo tempo. Em um perodo que ouvir valia bem
mais do que se ver, os olhos enxergavam primeiro o que se ouvira dizer. Tudo quanto se via
era filtrado pelos relatos de viagens fantsticas, de terras longnquas, de homens
monstruosos que habitavam os confins do mundo conhecido (SOUZA, 1986, p.21-22).
Na Europa, o Inferno e todas suas criaturas tomaram conta da imaginao dos homens
modernos. Visto que a Inquisio trabalhava para extirpa-lo de vez do continente, Sat se
refugiaria para terras distantes, de alm-mar. Era necessrio, ento, que l ficasse nesse
lugar afastado, onde o Inferno e o Paraso se encontravam (SOUZA, 1986, p.139).
201 O critrio para a escolha da fundao destes tribunais, que tinham outros sob a sua jurisdio, seguia
aproximadamente os limites das dioceses e procurava abranger as regies que reuniam um maior nmero de
cristos-novos e mouros. Depois da constituio destes seis tribunais pelo reino, houve um retrocesso e
quatro deles foram extintos, o de Coimbra temporariamente, o de Lamego, Porto e Tomar definitivamente;
talvez esta abolio se deva s dificuldades financeiras que a sua manuteno iria acarretar, bem como o de
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oficialmente implantado no Brasil um Tribunal, a Colnia portuguesa na Amrica
encontrava-se diretamente ligada e subordinada ao de Lisboa, interferindo profundamente
na vida colonial. Alguns acusados (dos casos considerados mais graves) eram enviados para
serem julgados na capital portuguesa, e dependendo da pena, podiam por l permanecer
pelo resto da vida caso no fossem enviados para as gals ou para o degredo em alguma das
colnias.
Na primeira Visitao, foi enviado ao Brasil como agente do Santo Ofcio, Heitor
Furtado de Mendona, de aproximadamente trinta e cinco anos. Alm de licenciado, Heitor
Furtado tinha ainda em seu currculo o ttulo de desembargador real e capelo fidalgo do
Rei. Era homem de foro nobre, que passara por dezesseis investigaes de limpeza de
sangue204 para habilitar-se ao cargo inquisitorial. Em 28 de Julho de 1591 tem inicio a
Visitao do Santo Oficio ao Brasil.
fazer uma verificao burocrtica de toda esta rede criada, quando no existia ainda um Regimento bem
definido para a sua regulamentao. (FERREIRA, 2012, p.62).
202 NOVINSKY, Anita Waingort. Inquisio: Prisioneiros do Brasil: Sculos XVI a XIX. 2. ed. So Paulo:
Perspectiva, 2009.
203 SIQUEIRA, Sonia A. A Inquisio Portuguesa e a Sociedade Colonial. So Paulo: tica, 1978.
204Ao adotar os estatutos de limpeza de sangue no processo de admisso de novos membros em seus
quadros, a Inquisio passou a controlar uma das clivagens estruturantes da ordem social do Antigo Regime
portugus, que era a separao da sociedade entre cristos-velhos e cristos novos (TORRES, 1994, p. 109)
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inquisitorial. Heitor Furtado veio debaixo de um plio (sobrecu
porttil) de tela de ouro e, estando na S, recebeu um sem nmero
de homenagens e discursos de louvor, inclusive de Maral Beliarte,
provincial dos jesutas. 205
Aps toda essa apresentao, Heitor Furtado deu incio aos trabalhos nas terras
tropicais. Publicou o Edital da F e Monitrio da Inquisio, onde se encontravam a
definio e caracterizao dos crimes sob jurisdio inquisitorial. Mas, para que o Tribunal
funcionasse, era necessria a formulao de regulamentos e de instrues internas, no
apenas para o enquadramento e a orientao dos fluxos de comunicao, mas tambm para
a alimentao de todo o aparelho. So conhecidos cinco Regimentos em pocas
diferentes, onde so redigidas instrues para o melhor funcionamento da Inquisio
portuguesa, 1552, 1570, 1613, 1640 e 1774.
205 VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos ndios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. So Paulo: Companhia
209 SCHWARTZ, Stuart. Cada uma na sua lei: Tolerncia religiosa e salvao no mundo atlntico ibrico.
Bauru: Edusc, 2009.
210 SCHWARTZ, Stuart B. Cada um na sua lei: Tolerncia religiosa e salvao no mundo atlntico ibrico.
Vozes. 1978. p. 13
213 VAINFAS, Ronaldo. Trpico dos Pecados: moral, sexualidade e inquisio no Brasil Colonial. Rio de Janeiro:
O descrdito em relao aos eclesisticos talvez fosse atiado ainda mais pelo
nmero considervel de padres conhecidos pelo mau viver. Nas Minas setecentistas foram
numerosssimos, sempre envolvidos em rixas, defloramentos, concubinatos, raptos,
jogatina, bebedeiras, desacatos aos fiis 216.
214 PAIVA, Jos Pedro. "Os mentores": frades e freiras. In: AZEVEDO, Carlos Moreira (Dir.). Histria religiosa de
Portugal. Lisboa: Crculo de Leitores, 2000. v. II, p.205.
215 Idem.
216 SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. So Paulo: Companhia das Letras, 1986, p.106.
217 As Constituies primeiras do Arcebispado da Bahia impressa em Lisboa no ano de 1719 foi uma compilao
Concluso
Thas Tanure
Graduanda em Histria
Universidade Federal de Minas Gerais UFMG
[email protected]
RESUMO: Este trabalho pretende analisar o degredo inquisitorial como prtica punitiva
no Imprio Portugus, colocando em perspectiva seus dois principais aspectos: o controle
social e a penitncia. Prtica difundida por toda a Europa, presente nas leis do Reino
portugus, o degredo foi incorporado pela Inquisio portuguesa como principal pena para
os rus pecadores. Degredar, que vem do verbo degradar, significava tambm morte civil
do desterrado. Distante de todo o seu mundo, o degredado precisava reinventar o mundo
ao atravessar seu martrio. Havia uma chance de regenerao atravs da penitncia, como
no Purgatrio, intermedirio entre o inferno e o cu. Presente em todo o Imprio, o
degredo contribuiu para a colonizao, povoamento, controle social do Reino, e tambm
possibilitou a circulao de prticas, saberes, pecados e culturas entre sociedades atlnticas.
PALAVRAS-CHAVE: Degredo; degredo inquisitorial; Inquisio portuguesa.
Esse artigo tem por objetivo analisar o degredo como prtica punitiva no Portugal
Moderno, e mais especificamente a forma como a pena de degredo foi apropriada e
utilizada pela Inquisio portuguesa. O desterro como pena foi largamente empregado na
punio de criminosos portugueses e tambm uma das penas que os inquisidores mais se
valeram na expiao dos pecadores. O degredo forou a purgao dos pecados, mas
tambm contribuiu para o povoamento dos recnditos territrios conquistados por
O degredo
O banimento, isto , enviar o condenado para longe de seu local de domiclio, foi
apropriada do Direito Romano e aplicada pelos Estados modernos. Alguns autores, como
Timothy Coates229 e Gerald Bender230 consideram que a pena de degredo apropriada pelos
Estados modernos pressupe o Estado Imperial, uma vez que, utilizando-se dos
degredados, a Coroa reforaria o poder em locais onde ele seria relativamente insuficiente e
para os quais no se conseguiria atrair suficiente imigrao livre. Aquele que seria
indesejvel no Reino, poderia ser de grande valia para povoar as Conquistas231.
Timothy Coates elucida que a documentao sobre o degredo como pena comea
com a Alta Idade Mdia e termina em 1954, quando esta pena foi abandonada. Neste
trabalho, realizaremos algumas reflexes sobre o exlio penal no Portugal moderno, usando
como fontes legislativas as Ordenaes Filipinas e o Regimento do Santo Ofcio de 1640.
Para tanto, nosso recorte espao-temporal o Imprio Portugus dos sculos XVII e
XVIII. O objetivo aqui no avaliar as permanncias e mudanas relativas ao sistema de
degredo ao longo de todo o recorte temporal, mas, to somente, fazer indicaes sobre a
sua prtica nas legislaes real e inquisitorial e sobre algumas de suas aparentes
contradies no perodo atravs de alguns estudos de caso.
228 Sobre as sociedades atlnticas e o intercmbio cultural entre elas ver BAYLIN, Bernard. Atlantic history:
concept and contours. Harvard University Press, 2005.
229 COATES, Timothy. Degredados e rfs: colonizao dirigida pela Coroa no Imprio Portugus. 1550-1775. Lisboa:
encontra especificado, frequentemente consta degredo Para as conquistas ou Para alguma das conquistas
de sua Majestade.
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de sua terra. Haveria trs tipos de degredo: A expulso para terras remotas. A relegao
em alguma ilha, e a proibio de alguns lugares particulares232.
Nas Ordenaes Filipinas, para a maioria dos crimes prevista a pena de degredo.234 Os
crimes eram classificados como menores, graves e absolutamente imperdoveis. Timothy
Coates afirma que todos os trs tipos eram punidos com a pena de degredo235. Quando o
destino do degredado era um local inspito do Imprio Portugus, como a frica ou o
Brasil, tratava-se de uma sentena grave. A frequncia com que os poderes Imperial e
inquisitorial se valiam da pena de degredo em Portugal motivou a advertncia de um jurista
em 1742:
apropriado por outros espaos de lngua portuguesa, como o Brasil, que teria mantido o degredo como
diretiva at a a primeira constituio republicana de 1891. Cf. NEPOMUCENO, Gabriela Murici. Crime e
punio no Antigo Regime portugus: o degredo civil nas Ordenaes Filipinas. Dissertao de mestrado, Histria, UnB,
2002, apud AL, Clarisse Moreira. Angola: lugar de castigo ou jia do Imprio. O degredo na historiografia e fontes. Sc.
XIX. Dissertao de mestrado apresentada ao departamento de Histria da Universidade de Braslia, 2006.
235 COATES, Timothy. Degredados e rfs...
236 FERREIRA, Manoel Lopes. Pratica Criminal Expedida na Forma da Praxe Lisboa: Caros Esteves Mariz, 1742,
p. 222 e segs. Apud COATES, T. Degredados e rfs: colonizao dirigida pela coroa no imprio portugus. p. 55
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sobre a transportao penal conciliando teses colonialistas com o evolucionismo em voga e
o determinismo biolgico proveniente de sua carreira de mdico: O degredo entre ns
uma sentena tradicional237.
Nas Ordenaes Filipinas, o degredo era previsto para a maioria dos crimes.238 Nos
crimes de ordem moral ou religiosa, o desterro est quase sempre presente. A seguir,
elencamos alguns exemplos. Para aquele(s) que arrenegam, ou blasfemam, de Deus, ou
dos Santos [...] sendo Fidalgo, seja degradado um ano para frica239.
seja alguma pessoa ousada que para adivinhar lance sortes, nem varas
para achar tesouro, nem veja em gua, Cristal, espelho, espada, ou em
outra qualquer cousa luzente, nem em espadua de carneiro [...], nem
traga consigo dente, nem barao de enforcado, nem membro de homem
morto, nem faa com uma das ditas cousas, nem com outra posto que
aqui no seja nomeada espcie alguma de feitiaria ou para adivinhar, ou
para fazer dano a alguma pessoa,[...] nem para pegar homem, nem
mulher para no poderem haver ajuntamento carnal.240
Aqueles que benziam ces ou bichos sem autoridade dEl Rey e no fossem pees eram
degredados para frica por um ano, ou dois anos para Castro Marim se fossem mulheres.
Aqueles que compram moeda falsa ou a despendem, sabendo que falsa e em qualquer
237 TELLES, Francisco Xavier de Silva. A transportao Penal e a Colonizao (Lisboa: SGL, 1903). Apud.
Timothy Coates. Degredados e rfs: colonizao dirigida pela coroa no imprio portugus. p. 85. Para uma boa anlise
sobre a historiografia sobre o degredo portugus ver AL, Clarisse Moreira. Angola: lugar de castigo ou jia do
Imprio. O degredo na historiografia e fontes. Sc. XIX. Dissertao de mestrado apresentada ao departamento de
Histria da Universidade de Braslia, 2006.
238 Para estudos recentes sobre a pena de degredo nas Ordenaes Filipinas, ver NEPOMUCENO, Gabriela
Murici. Crime e punio no Antigo Regime portugus: o degredo civil nas Ordenaes Filipinas. Dissertao de mestrado,
Histria, UnB, 2002 e TOMA, Maristema. Imagens do degredo: histria, legislao e imaginrio (a pena de
degredo nas Ordenaes Filipinas). Dissertao de mestrado, Histria, Unicamp, Campinas, 2002.
239 ALMEIDA, Candido Mendes. Ordenaes Filipinas. Rio de Janeiro, 1870, verso digitalizada disponvel em
A ordem social estabelecida e afirmada continuamente nas Ordenaes atravs das penas
de degredo previstas. Assim, no crime de entrada em Mosteiro, para retirada de freira, ou
para dormir com ela, se o homem for peo, dever morrer por isso. Mas se for de maior
qualidade, pague cem cruzados para o Mosteiro e ser degredado para sempre para o
Brasil242. A diferenciao das penas segundo a qualidade dos envolvidos a regra nas
Ordenaes. Assim tambm acontece no caso daquele que dorme por fora com qualquer
mulher ou trava dela e a leva por sua vontade. Se o enganador for fidalgo ser degradado
para frica at a nossa merc, se for peo que morra por isso243. Assim, vrios outros
crimes eram punidos com a pena de degredo, e as penas eram diferenciadas de acordo com
a ordem social desigual do Antigo Regime.
Dom Francisco de Castro, Inquisidor Geral do 16 Conselho dEstado de S. Magde. Lisboa: Manoel da Sylva, 1640. 243
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degredo inquisitorial para a Amrica portuguesa, afirma que a Inquisio foi um Estado
dentro do Estado, e que a Igreja e a Monarquia estavam unidas na luta contra os desvios
sociais, polticos e religiosos. Por esta razo os regimentos inquisitoriais estavam de acordo
com as ordenaes reais. Alm disso, em diversos trechos do Regimento de 1640, a
expresso segundo a disposio do direito revelaria a aproximao estreita desse
regimento com as ordenaes reais em vigor nessa poca. As condenaes inquisitoriais
moldam-se s leis da jurisdio secular. 245.
p. (Cpia autenticada do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Srie Preta, 671), p. 258
245 PIERONI, Geraldo. Os excludos do reino. Braslia: Unb, 2000, p.61. respeito da unio da Igreja com o
Estado na empreitada colonial da modernidade, ver BOXER, Charles. A igreja militante e a expanso ibrica
(1440-1770). Editora Companhia das Letras, 2007.
246 Regimento do Santo Officio..., p. 342, 343.
247 Regimento do Santo Officio..., p. 360.
248 Regimento do Santo Officio..., p. 360.
Como as mulheres no podiam ser mandadas s gals reais, por se acreditar serem
frgeis e incapazes de trabalho to rduo, elas frequentemente foram condenadas ao
degredo para o Brasil, ou Angola em crimes cujas penas correspondentes para os homens
eram as gals. Esse o caso da prescrio para o delito da mulher herege que confessa na
ltima hora, que dever ser degredada para Angola, So Tom ou partes do Brasil. E
tambm daquelas mulheres que depois de confessarem seus crimes, se jactam de no os ter
cometido. Para estas, a pena de outros tantos anos para o Brasil, ou para Angola.
251 SOUZA, Laura de Mello. Inferno atlntico. Demonologia colonizao: sculos XVI-XVIII, So Paulo: Companhia
das letras; 1993.
252 PIERONI, Excludos do Reino, e COATES, Timothy, Degredados e rfs... consideram que o sistema de
degredo funcionava com relativa flexibilidade, tendo diversos condenados conseguido a alterao de seus
locais de exlio penitencial. Sobre o perdo de penas na Frana da modernidade, ver DAVIS, Natalie Zemon.
Histrias de perdo e seus narradores na Frana do sculo XVI. So Paulo: Cia das Letras, 2001
253 BETHENCOURT, Francisco. Histria das Inquisies: Portugal, Espanha e Itlia Sculos XV-XIX/ Francisco
magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no sculo XVI. Editora Companhia das Letras, 2004 e PAIVA,
Jos Pedro. Bruxaria e superstio num pas sem caa s bruxas, 1600-1774 (Lisboa: Notcias, 1997.
Sobre os sodomitas no Brasil colonial, consultar os clssicos de MOTT, Luiz; O sexo proibido: virgens, gays e
escravos nas garras da Inquisio. Papirus Editora, 1988 e Justitia et Misericordia: a Inquisio portuguesa e a
represso ao nefando pecado de sodomia. NOVINSKi, Anita; CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Inquisio:
ensaios sobre mentalidade, heresias e arte. Trabalhos apresentados, 1992, no 1, p. 704-732. VAINFAS, Ronaldo. Moral,
sexualidade e Inquisio no Brasil / Ronaldo Vainfas. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
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Bluteau define tambm um sentido metafrico para o termo desterro. O pecado
desterro da razo. Desterro da razo e do Cu so os pecados255. Despossudos da razo,
apartados da F, vagueando procura de redeno, os pecadores tambm eram banidos de
suas terras. Mas a eles era oferecida uma oportunidade de purificao. No podemos nos
esquecer do importante aspecto penitencial da pena de degredo. Laura de Mello e Souza
demonstra brilhantemente o aspecto purificador da travessia martima associando o
degredo ao purgatrio como intermedirio entre o inferno e o cu. O degredo purgava o
reino de suas mazelas, mas tambm oferecia ao pecador uma oportunidade de purificao
atravs deste grande rito de passagem256.
O Santo Ofcio acreditava, ou pelo menos parecia acreditar que, uma vez em seus
locais de degredo, se emendariam os pecadores. Mas, ao se purgar o Reino, as conquistas se
infernalizariam. Assim, parece ser mais importante controlar socialmente a Reino do que as
conquistas, o que demonstraria ter o Santo Ofcio dois pesos e duas medidas257. E alm
disso, uma vez infernalizadas as colnias, fundiam-se prticas culturais diversas que o
degredo teria ajudado a difundir. Como salienta Laura de Mello e Souza,
Concluso
Nestes casos, como nos de outros escravos degredados para Portugal, cabe
refletirmos se o processo que conjugou o degredo penitencial e o controle social do Reino
entrou em contradio considerando que os indesejveis das conquistas foram povoar a
259 ANTT, Inquisio de vora, Processo 7759. Emblemtico em diversos aspectos, este processo foi
estudado por Laura de Mello e Souza, Geraldo Pieroni e Daniela Calainho. Cf. SOUZA, Laura de Mello. O
diabo e a terra de Santa Cruz. Feitiaria e religiosidade popular no Brasil Colonial. So Paulo: Companhia das letras,
1986; PIERONI, Os excludos do Reino e CALAINHO, Daniela. Metrpole das mandingas.Religiosidade negra e
Inquisio Portuguesa no Antigo Regime / Daniela Buono Calainho. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.
260 ANTT, Inquisio de Lisboa, Processo 11178.
261 RESENDE, Maria Lenia Chaves de. Cartografia gentlica. Os ndios e a Inquisio na Amrica
Portuguesa (sculo XVIII). In: Travessias inquisitoriais das Minas Gerais aos crceres do Santo Ofcio: dilogos e trnsitos
religiosos no imprio luso-brasileiro (scs. XVI-XVIII). FURTADO ,Jnia Ferreira e RESENDE, Maria Lenia
Chaves de (orgs.) Fino Trao Editora, 2013.
262 RESENDE, Maria Lenia Chaves. Cartografia Gentlica... Ronaldo Vainfas chega a semelhante concluso
sobre a suposta ignorncia dos indgenas nos processos dos acusados na Santidade do Jaguaripe. O autor
conclui que o caso somente alcanou tamanho interesse e repercusso pelo visitador Heitor Furtado de
Mendona por ter alcanado o abrigo e a aderncia de brancos e fidalgos da Bahia. VAINFAS, Ronaldo. A
heresia dos ndios. Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. So Paulo: Companhia das letras, 1995.
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Metrpole. Renato Venncio fala de um mundo de ponta-cabea, inverso total em
relao ao impacto que causaria na populao livre de Lisboa a chegada de cativos da
Amrica.
264 C.f. CAMILO ROCHA, Igor Tadeu. Libertinos, tolerncia religiosa e inquisio sob o reformismo
ilustrado luso-brasileiro: formulaes, difuso e representaes (1756- 1807). Dissertao (Mestrado em
Histria). Universidade Federal de Minas Gerais. Programa de Ps-graduao em Histria. Belo Horizonte,
2015. 186 p. Disponvel em:
Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da
UFMG. v. 7 (Suplemento, 2015) Belo Horizonte: Departamento de Histria,
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representaes sobre a tolerncia e liberdade religiosas expressas nas falas dos denunciados
e investigados pela Inquisio portuguesa dentro do perodo conhecido como o
Reformismo Ilustrado, que abrange os reinados de D. Jos I (1750-1777), D. Maria I (1777-
1816) e D. Joo VI (1816-1822). Procurou-se refletir sobre as ideias em defesa da tolerncia
religiosa nesse contexto, relacionando-se debates referentes Ilustrao e um substrato
cultural preexistente no mundo luso-brasileiro, que muitas vezes tendia a formas mais
cticas, crticas e tolerantes em matria religiosa. Foram analisados 30 documentos
inquisitoriais, dentre eles processos, cartas, denncias, apresentaes e sumrios referentes
ao crime de libertinagem, de alada inquisitorial, alm de partes do Livro de Visitaes do
Santo Ofcio ao Gro-Par265, alm do Regimento do Santo Ofcio de Portugal de 1774,
publicado por Snia Siqueira na Revista do Instituto Histrico Geogrfico Brasileiro, em 1996266.
Esta dissertao foi organizada em trs captulos, cujo o primeiro procurou analisar
a tolerncia religiosa como tema de pesquisa histrica e os subsequentes focaram na anlise
documental propriamente dita.
https://www.academia.edu/11550165/Libertinos_Toler%C3%A2ncia_religiosa_e_Inquisi%C3%A7%C3%A
3o_sob_o_Reformismo_ilustrado_lusobrasileiro_formula%C3%A7%C3%B5es_difus%C3%A3o_e_represen
ta%C3%A7%C3%B5es_1756-_1807_ Acessado em 27/06/2015
265 Livro de Visitao do Santo Ofcio da Inquisio ao Estado do Gro-Par (1763-1769). Apresentao: Jos
Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, a. 157, n.
392, jul./set. 1996.
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No primeiro captulo, intitulado A Tolerncia religiosa como tema de anlise histrica,
objetivou-se apresentar a tolerncia religiosa como historicamente construda e no como
um dado bvio , dialogando com a autora Lynn Hunt267 e sua ideia de paradoxo da
obviedade, que ela utiliza, ao se referir a uma contradio presente nas mais diversas
referncias aos direitos humanos, entre a aparente obviedade presente na opinio pblica
ao se referir ao tema que contrasta com o fato do mesmo sempre ser parte de disputas,
embates e jamais ser considerado como um projeto realizado de maneira plena. A
tolerncia religiosa, tema prximo ao dos direitos humanos, tambm incorre nesse risco se
tomado como um dado bvio ou como projeto plenamente realizado. Por isso, ao
historiciz-lo, enfatizou-se uma opo distinta da, por exemplo, feita por Mario
Turchetti268, de delimitar a tolerncia religiosa como um conceito. A opo que foi feita
privilegia pensar a tolerncia religiosa como um terreno de disputas e constantes discusses
em torno de liberdades de crena, convivncia entre pessoas e grupos que professem
credos diferentes uns dos outros, assim como questes que se referem ao papel das
autoridades na vida religiosa e mesmo concepes a respeito de possveis verdades
absolutas. Como isso, buscou-se, ao longo dessa pesquisa, evitar um raciocnio pautado na
noo do que determinada ideia precisaria ou deveria ter para a consideramos
plenamente como uma defesa da tolerncia religiosa. Tal escolha se justifica por dois
motivos. O primeiro deles que uma delimitao conceitual muito rgida pode incorrer em
proposies muito prescritivas a respeito da relao entre dois credos distintos em
determinado contexto, alm de poder incorrer em anacronismos. Essa crtica foi
apresentada neste captulo obra de Giacomo Martina269. por ele defender que a tolerncia
religiosa de fato somente se daria ao conciliar o pacifismo no trato com a dissidncia
religiosa com uma noo de verdade absoluta (no caso dele, a catlica), ou ainda a crtica
que foi feita tambm neste captulo ao trabalho de Turchetti quando o autor afirma no
haver a defesa da tolerncia religiosa na obra de Erasmo de Roterd, visto que mesmo que
o humanista holands defendesse o fim de perseguies religiosas, ainda conciliava sua
267 HUNT, Lynn. A inveno dos direitos humanos: uma histria. Traduo: Rosaura Eichenber. So Paulo.
avec un aperude lanonyme De la concorde de lEstat. Par lobservation des Edicts de Pacification (1599). In: Michel
Grandjean & Bernard Roussel (d): Coexister dans lintolrance. Ldit de Nantes (1598). Genve: Labor et Fides,
1998; _________________. Une question mal pose: rasme et la tolerance. Lide de Sygkatabasis.
Bibliotque dHumanisme et Renaissance. Tome LIII. 1991, n 2. s/l. pp. 379-395
269 MARTINA, Giacommo. La Iglesia, de Lutero a nuestros dias. Volume II: Epoca del Absolutismo. Lo
A tolerncia religiosa aparece de maneiras diversas nos debates das Luzes, seja em
ataques contra o fanatismo e a superstio, em crticas s perseguies religiosas
empreendidas por agentes como as Inquisies ibricas, e tambm por crticas contra uma
religiosidade barroca, e tambm na defesa de formas mais brandas de religiosidade. A
historiografia a respeito do referido tema o insere tambm nos debates em torno das
270 KAMEN, Henri. Toleration and Dissent in Sixteenth-Century Spain: The Alternative Tradition. Sixteenth
Century Journal, vol. 19, n. 1. (Spring, 1888). Pp. 3-23.
271 VENTURI, Franco. Utopia e Reforma no Iluminismo. Traduo: Modesto Florenzano. Bauru, SP.
EDUSC, 2003.
272 OUTRAM, Dorinda. What is the Enlightment? In: OUTRAM, Dorinda. The Enlightment: new
1822). In: Histria dos conceitos: dilogos transatlnticos. Joo Ferez Junior, Marcelo Jasmin (organizadores).
Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, Ed. Loyola, Iuperj, 2007. Pp. 129-140.
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questes decorrentes da chamada crise no pensamento europeu, que remete s ltimas
dcadas do sculo XVII e se articulam, entre outros pontos, com o impacto da cincia
moderna no pensamento europeu e discusses em torno de fatos como a revogao do
dito de Nantes, em 1685.
275 BENASSAR, Bartolom. LInquisition Espagnole: XVe,-XIXe sicle. Collection Marabout Universit.
Hachete. Paris, 1979.
276 DA CUNHA, D. Joo Cosme, cardeal. Regimento do Santo Ofcio da Inquisio dos Reinos de Portugal
(1774). In: SIQUEIRA, Snia Aparecida. A disciplina da vida colonial: os Regimentos da Inquisio. Revista do
Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, a. 157, n.
392, jul./set. 1996. Pp: 885-972.
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a uma religiosidade j existente no mundo luso-brasileiro, marcada por certa materialidade
expressa nas reflexes sobre a existncia do Paraso, sobre o Inferno, Purgatrio e Paraso,
sobre o sexo de Maria Santssima, de Cristo ou dos santos, a respeito da materialidade da
alma, alm de questionamentos sobre pertinncia de alguns dogmas e sacramentos. Ao
mesmo tempo em que se notam referncias a elementos do referido substrato cultural,
percebem-se ainda algumas reflexes presentes em obras de pensadores como Voltaire,
Rousseau e DHolbach. A defesa da tolerncia religiosa no Reformismo Ilustrado luso-
brasileiro, por parte dos libertinos, teve como caracterstica marcante apropriaes as
constantes ressignificaes e formulaes originais, que dialogaram com os debates da
Ilustrao e que, ao mesmo tempo, tambm foram tributrias de um substrato religioso e
cultural de origens anteriores ao estabelecimento dos tribunais do Santo Ofcio em
Portugal. Ela se espalhou juntamente com o desgaste de instituies que constituam os
pilares das sociedades de Antigo Regime.
277DARNTON, Robert. Boemia literria e Revoluo. Traduo: Lus Carlos Borges. So Paulo: Companhia
das Letras, 1987.
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Tratos desonestos na confisso. O crime de
solicitao em Minas Gerais (1720-1810)
Sabrina Alves da Silva278
Mestranda
Universidade Federal de So Joo Del Rei
[email protected]
RESUMO: Este artigo trata do crime inquisitorial de solicitao, que se dava dentro da
estimvel forma de lavar almas do catolicismo, o confessionrio. E em especfico das
denncias e processos ocorridos entre 1720 e 1810 em Minas Gerais. A solicitao se
constitua como um crime inquisitorial porque profanava o sacramento da penitncia,
e acontecia quando um confessor usava do lugar do confessionrio para tratos
desonestos com a (o) penitente.
PALAVRAS-CHAVE: Inquisio; solicitao; Minas Gerais.
278
Bolsista FAPEMIG.
279
PIERONI, Geraldo. Sollicitatio Ad Turpiam. A Profanao do Confessionrio. In: Idem. Boca Maldita:
blasfmias e sacrilgios em Portugal e no Brasil nos tempos da Inquisio. Jundia, S.P.: Paco Editorial,
2012. 160 p.
280
_________. Sollicitatio Ad Turpiam. A Profanao do Confessionrio, p. 83.
281
DELUMEAU, Jean. A Confisso e o Perdo: as dificuldades da confisso nos sculos XIII a XVIII. So
Paulo: Companhia das Letras, 1991. 152 p.
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No cnon do IV Conclio de Latro, realizado em 1215, foi estabelecido
confisso anual obrigatria e a universalizao do celibato, mas no que se refere
disciplina eclesistica, as resolues mais importantes vieram do Conclio de Trento,
realizado com interrupes entre 1545 e 1563. Cabe salientar que a Igreja Catlica
passava pela Reforma e tentava a todo custo recuperar antigas possesses catlicas e
conter o avano da ameaa protestante.
282
LIMA, Lana Lage da Gama. As Constituies da Bahia e a Reforma Tridentina do Clero do Brasil. In:
FEITLER, Bruno; SALES SOUZA, E. (Org.). A Igreja no Brasil: Normas e prticas durante a vigncia das
Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia. So Paulo: UNIFESP, 2011.
283
Documento que condensou e adaptou para a realidade colonial as decises de Trento: Constituies
Primeiras do Arcebispado da Bahia, publicadas em 1707 por D. Sebastio Monteiro da Vide.
284
LIMA. As Constituies da Bahia e a Reforma Tridentina do Clero do Brasil, p. 148.
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til a esse Tribunal. Caso fosse afirmativa a resposta os confessores deveriam
suspender a administrao do sacramento e negar-lhes a absolvio ordenando que
fosse depor perante os inquisidores285. No caso de solicitao, o confessor devia
obrigar os (as) penitentes a delatar, sob a pena de negar-lhes a absolvio, e o (a)
penitente tinha 30 dias para denunciar, a denncia podia ser feita pessoalmente ou
por carta. Se por ventura o (a) penitente estivesse impedido de comparecer diante do
comissrio ou no soubesse escrever podia encarregar qualquer pessoa que confiasse,
principalmente seu confessor286.
285
GOUVEIA, Jaime Ricardo Teixeira. Dois galhos, um s tronco, na salvaguarda da pureza da f: a
vigilncia e disciplinamento da luxria heresiarca do clero. In: MATTOS, Yllan de. MUNIZ, Pollyanna G.
Mendona. Inquisio e Justia Eclesistica. Jundia: Paco Editorial, 2013, p. 310.
286
LIMA, LANA LAGE da Gama. A Confisso Pelo Avesso: o crime de solicitao no Brasil colonial.
Tese de Doutoramento apresentada USP, So Paulo, 1991, p. 476.
287
GOUVEIA, Jaime Ricardo Teixeira. A Quarta Porta do Inferno. A vigilncia e disciplinamento da luxria
clerical no espao luso-americano (1640-1750). Tese de Doutoramento, European University Institute,
2012.
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aspectos foram importantes na constituio dos papis femininos e fabricaram
esteretipos bastante utilizados pela sociedade colonial. Longe de ser um territrio de
mesmice e serenidade, o feminino mostrou-se ao longo do perodo colonial
borbulhante de conflitos, diferenas e complementaridades. A normatizao do
discurso sobre a mulher foi disseminado principalmente atravs da Igreja no Brasil
colnia. Os padres ideais de comportamentos importados da metrpole tiveram nos
moralistas, pregadores e confessores os mais eloquentes porta-vozes, a mentalidade
colonial foi sendo assim lentamente penetrada e impregnada por esses discursos288.
288
PRIORE, Mary del. A Mulher na Histria da Colnia; A Mulher e o Encontro dos Tempos. In: Idem.
Ao Sul do Corpo: condio feminina, maternidade e mentalidades no Brasil Colnia. Rio de Janeiro: Jos
Olympio, 1995.
289
OLIVEIRA, Lisa Batista de. Devassa e tratos ilcitos: desejo e seduo nas Minas setecentistas. XXVII
Simpsio Nacional de Histria, Natal- R.N., julho 2013, p. 02.
290
VAINFAS, Ronaldo. Moralidades Braslicas: deleites sexuais e linguagem ertica na sociedade
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A idade das (os) penitentes solicitadas (os) variava entre 12 e 80 anos, e a idade
dos padres solicitantes variava entre 28 e 80 anos. As dcadas com o maior nmero de
denncias foram s dcadas de 1740 (29 denncias) e 1750 (28 denncias). Em muitos
casos o padre denunciado por solicitar vrias mulheres, foram 150 mulheres
solicitadas em 87 denncias291.
Como j foi dito anteriormente, muitas denncias foram arquivadas pela falta
de testemunhas vlidas, ou seja, denunciantes dignas de crdito, honradas e virtuosas.
292
A grande maioria das testemunhas vtimas/cmplices em Minas Gerais, 44%,
foram descritas como pardas, - sabendo que em algumas denncias no consta a
qualidade293 ou condio294 das testemunhas 295
-, 19% foram descritas como
pretas, 10 % crioulas, 6% mulatas, 11% ndias e 10% brancas. Mesmo dentre estas
brancas muitas so descritas como de pouco crdito e desonestas. A seguir
exemplificaremos estes nmeros com um exemplo de denncia que no virou
processo por constar no decorrer do relato um parecer desfavorvel sobre a
qualificao das testemunhas.
escravista. In: SOUZA, Laura de Mello (org.). Histria da Vida Privada no Brasil. So Paulo, Companhia
das Letras, 1997, vol.1, p. 42.
291
Foram 102 denncias, mas em 15 denncias no encontrei nenhum dado sobre as (os) solicitadas
(os).
292
Vtima/cmplice, por Jaime R. Teixeira Gouveia, tese de doutorado: A Quarta Porta do Inferno. A
vigilncia e disciplinamento da luxria clerical no espao luso-americano (1640-1750). Muitas (os)
penitentes foram realmente vtimas das investidas, muitas vezes, inescrupulosas dos confessores, outras
(os) penitentes mantinham certa troca de afeio e carinho com os confessores, e s denunciavam por
serem obrigadas por outros confessores.
293
Segundo Eduardo Frana Paiva qualidade como categoria geral abrange caractersticas fsicas, como
ndio, negro, crioulo, mestio etc. PAIVA, Eduardo Frana. Dar Nome ao Novo. Uma histria lexical da
Ibero- Americana entre os sculos XVI e XVIII (as dinmicas de mestiagem e o mundo do trabalho).
Belo Horizonte: Autntica, 2015, p. 33.
294
Segundo Eduardo Frana Paiva condies, pensada como condies jurdicas no sculo XVIII
possveis a um indivduo, eram trs: livre, escravo e forro. PAIVA. Dar Nome ao Novo. Uma histria
lexical da Ibero- Americana entre os sculos XVI e XVIII, p. 34.
295
Havia intensa comunicao, comrcio e circulao de gente entre as regies, e isso fomentou a
formao do lxico que nomeava, identificava e servia para distinguir e classificar aquelas realidades
ibero-americanas (...), uma srie de termos e expresses nomearam as dinmicas das mestiagens
biolgicas e culturais, as associaes entre elas e o mundo do trabalho, mormente o da escravido.
PAIVA. Dar Nome ao Novo. Uma histria lexical da Ibero- Americana entre os sculos XVI e XVIII, p.
27.
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artimanha utilizada pelo padre para justificar seus erros. Na primeira apresentao no
se encontra a data, segundo o padre Thom296 achando-se ele no confessionrio
ouvindo vrios penitentes pelo preceito anual da quaresma, e em outras ocasies
mais, tendo repreendido vrios penitentes pelos pecados contra o santo preceito da
castidade, especialmente trs ou quatro mulheres pretas corruptas e pblicas,
usando de lhe dizer, que havia de ir a casa das ditas, e que ali
havia de gritar e clamar que aquelas criaturas estavo
ofendendo a Deos, e crucificando a Jesus Christo, e que asim
tivesem entendido, por que elle denunciante por nenhum
modo havia de consentir que ellas estivessem ofendendo a
Deos, e crucificando novamente a Jesus Christo297.
O referido padre relatou que viu que levava as penitentes s lgrimas e assim
tambm aconteceu com outras duas ou trs penitentes em diferentes dias, at que
fazendo a mesma exortao a uma penitente chamada Rosa, natural da costa da mina,
escrava do capito Jos da Rocha, lhe disse que havia de ir a sua casa se continuasse a
ofender a Deus e perguntou se ela abriria a porta, ela respondeu que no abriria,
muito desconfiada de que seria para tratar com ela. No mesmo instante o padre caiu
em si, refletindo o que tinha dito a Rosa e as demais penitentes, pelo mal que a
referida Rosa tomou as suas inocentes e singelas palavras e se comeou a arrepender
do que indevidamente e sem malcia tinha dito. Ento, explicou sua exortao a Rosa,
que com suas continuadas ofensas crucificava novamente Jesus Cristo, e a penitente
comeou chorar. E o padre Thom alegou que nunca mais tornou a usar de
semelhantes termos. Ele continua ainda na mesma carta de denncia:
como tambm lhe parece ele denunciante, segundo a sua
lembrana, que em alguns annos mais antecedentes uzou com
algumas pretas corruptas e pblicas, levado do mesmo amor e
zelo do cervio de Deos, das mesmas perguntas, sem da sua
parte haver malcia alguma, e somente um grande dezejo de
que no ofendessem mais a Deos298.
Por isso, segundo o padre Thom, confessava a sua culpa e se denunciava, disse
que no lembrava nem o nome nem o estado das mulheres, mas todas eram
296
ANTT. IL. Caderno 22 dos solicitantes, fol. 245, m.585.
297
ANTT. IL. Caderno 22 dos solicitantes, fol. 245, m.585.
298
ANTT. IL. Caderno 22 dos solicitantes, fol. 245, m.585.
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mulheres pretas corruptas e pblicas. Em 1742 o padre Thom299 escreve
novamente ao comissrio Jos Matias de Gouveia relatando que em 1733 estando
confessando com ele uma mulher parda chamada Violante do Sacramento, tendo o
dito padre tido com esta mulher algum trato antecedente em sua casa, ela disse em
confisso palavras desonestas que ele respondeu dizendo que isso no para este
lugar, repreendendo-a asperamente. Como no ano de 1737 confessando [Luvia]
Maria, parda solteira, que no mesmo ato da confisso disse ao referido padre algumas
palavras amatrias, e ele a respondeu mostrando aborrecimento e mandando-a
prosseguir. Tambm em 1739 estando no lugar da confisso e confessando-se com ele
Maria Teixeira Ramos, mulher branca, viva, vendo ele o bom procedimento dela lhe
falou que a estimava e venerava como a me dele, e que se estivesse na mo alguma
cousa que a pudesse favorecer que mandasse a sua negra a casa dele que faria com
boa vontade, e seguiu passado algum tempo ter algum trato elcito com ella.
299
ANTT. IL. Caderno 25 dos solicitantes, fol. 248, m. 465.
300
ANTT. IL. Caderno 24 dos solicitantes, fol. 48, m. 114.
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ajoelhar, e disse que ela no quis lhe fazer gosto que no queria nem havia de
confess-la.
301
ANTT. IL. Caderno 26 dos solicitantes, fol. 372, m. 667.
302
ANTT. IL. Caderno 26 dos solicitantes, fol. 348, m. 619.
303
ANTT. IL. Caderno 26 dos solicitantes, fol. 372, m. 667.
304
RESENDE, Maria Lenia Chaves de. Cartografia Gentlica: Os ndios e a Inquisio na Amrica
Portuguesa (sculo XVIII). In: FURTADO, Junia Ferreira; RESENDE, Maria L. C. de (org.). Travessias
Inquisitoriais da Minas Gerais ao Crcere do Santo Ofcio: dilogos e trnsitos religiosos no Imprio luso-
brasileiro (sculos XVI- XVIII). Belo Horizonte: Fino Trao, 2013, p. 352.
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por outros crimes: por desacato a imagem, revelar o sigilo da confisso, blasfmias e
proposies, feitiaria, leitura de livros proibidos, sodomia, bigamia, entre outros305.
305
RESENDE, Maria Lenia; Inventrio das denncias nos cadernos do promotor da Inquisio de Lisboa-
Minas Gerais (Sc. XVIII). In: FURTADO, Jnia Ferreira; RESENDE, Maria Lenia, (ORG); Travessias
inquisitoriais da Minas Gerais aos crceres do Santo Ofcio: dilogos e trnsitos religiosos no imprio
luso-brasileiro (sec. XVI- XVIII).Belo Horizonte: Fino Trao, 2013.
306
ANTT. IL. Denncias contra o Padre Manoel Martins de Macedo, PT-TT-TSO-IL-28-15042.
307
ANTT. IL. Denncias contra o Padre Manoel Martins de Macedo, PT-TT-TSO-IL-28-15042.
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443
de Macabas, eram eles: Padre Antnio Alvares Pugas308 denunciado em 1741 e o
padre Manoel Pinheiro de Oliveira309 denunciado no mesmo sumrio de culpas do
padre Pugas, em 1741. Onze recolhidas prestaram depoimento para a diligncia sobre
o acusado de solicitao padre Antnio Alvares Pugas, padre presbtero do Habito de
So Pedro. E como os trmites inquisitoriais rolavam em segredo absoluto, as
testemunhas, todas recolhidas do dito recolhimento, no sabiam quem realmente era
o acusado, e por isso alm do padre Pugas denunciaram outros seis padres, entre eles
o padre Manoel que fora acusado de solicitante por seis recolhidas. O padre Pugas foi
acusado por oito recolhidas. Apesar do Recolhimento de Macabas no ter um
estatuto que exigisse uma pureza de sangue e por isso aceitasse mulheres casadas,
vivas, bastardas, mulatas, negras, mamelucas, ndias etc., essas mulheres que l
estavam na maioria das vezes contra sua prpria vontade eram filhas de famlias
abastadas, afinal era cobrado uma espcie de dote para que qualquer moa no
recolhimento ingressasse. A partir dessas afirmaes e das informaes dos processos,
apesar de algumas denunciantes dos dois padres serem descritas como mulata e filha
de carijs do mato (ndios) elas estavam em uma instituio catlica, onde as filhas
das famlias ricas ingressavam, estavam protegidas pelo peso da instituio, no eram
freiras, mas eram moas que supunham viviam em recolhimento e amor a Deus, por
isso, dignas de crdito310.
308
Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT) Portugal; Inquisio de Lisboa. Processo de Padre
Antnio lvares Pugas, n256, PT-TT-TSO-IL-28-256.
309
Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT) Portugal; Inquisio de Lisboa. Processo de Padre Manoel
Pinheiro de Oliveira, PT-TT-TSO-IL-28-8123.
310
ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas: mulheres da colnia. Condio Feminina nos conventos e
recolhimentos do Sudeste do Brasil, 1750-1822. So Paulo: Ed. Jos Olympio. 1993.
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Censura inquisitorial e anlise de fenmenos
celestes em Portugal (1744-1745)
Atravs da bula Cum ad nihil magis o papa Paulo III (1534-1549) instaurou o
Tribunal do Santo Ofcio em Portugal, a pedido do rei D. Joo III, em 23 de maio de 1536,
nomeando trs bispos, a saber, de Coimbra, de Lamego e de Ceuta, como inquisidores-
gerais. E autorizou ao monarca nomear um quarto inquisidor-geral que deveria ser
escolhido entre os bispos e o clero secular, com formao em teologia ou em direito
cannico.311 Inicialmente, o intuito da Coroa portuguesa em implantar a Inquisio em
311
Cf. BETHENCOURT, Francisco. Histria das Inquisies: Portugal, Espanha e Itlia Sculos XV-XIX. So
Paulo: Companhia das Letras, 2000. 531p.
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terras lusas deveu-se difuso do judasmo e do comportamento dos cristos-novos, que
no entendimento da Coroa, ameaava a unidade da Igreja Catlica em Portugal.
312 Cf. Ttulo V. Dos inquisidores. De como se ho de mandar censurar as proposies, e de como o assento
que sobre elas se tomar h de ir ao Conselho. Regimento do Santo Ofcio da Inquisio dos Reinos de
Portugal recopilado por mandado do ilustrssimo e reverendssimo senhor Dom Pedro de Castilho, Bispo
Inquisidor-Geral e Vice-Rei dos Reinos de Portugal 1613. In: Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro,
Rio de Janeiro, a.157, n.392. p. 615. jul./set. 1996.
313 Cf. Livro I. Ttulo X. Dos qualificadores. Pargrafo 2. Regimento do Santo Ofcio da Inquisio dos
Reinos de Portugal, ordenado por mandado do ilustrssimo e reverendssimo senhor Bispo dom Francisco de
Castro, Inquisidor-Geral do Conselho de Estado de Sua Majestade 1640. In: Revista do Instituto Histrico e
Geogrfico Brasileiro, Rio de Janeiro, a.157, n.392. p. 693. jul./set. 1996.
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A preocupao da Inquisio portuguesa era de encontrar nesses materiais a prova
de que foram elaborados utilizando-se da arte da astrologia judiciria, que consistia em
tentar conhecer e prever o futuro a partir dos eventos celestes seja a passagem de um
cometa, a movimentao das constelaes e demais corpos celestes extremamente
proibida pela Igreja Catlica desde a promulgao da bula Coeli et Terrae314, em 5 de janeiro
de 1585, pelo papa Sisto V (1585-1590). De acordo com Lus Miguel Carolino nesta bula
criticava-se duramente a ambio humana de tentar conhecer e desvendar o futuro, prtica
que tornava os homens vulnerveis perante o diabo e os levava a desafiar a prpria
divindade.315 No entanto, a Igreja Catlica combatia a astrologia judiciria devido a sua
previso do futuro como algo certo e imutvel, tal base colocava em questo a liberdade
humana de decidir se salvar ou no, mas para outras finalidades prever o futuro era
aceito pela igreja. De acordo com Gianriccardo Grassia Pastore
314Essa bula est digitalizada e foi disponibilizada no site da Biblioteca Nacional Digital:
http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_manuscritos/mss1352113/mss1352113_027.pdf; e
parcialmente disponvel no Google Books, onde foi publicada no livro de Adelina Sarrin Mora. Mdicos e
inquisicin em el siglo XVII. Cuenca: Universidad de Castilla/La Mancha, 2006. p. 181-187:
https://books.google.com.br/books?id=AEOLjBhr_bQC&pg=PA181&lpg=PA181&dq=bula+coeli+et+ter
rae&source=bl&ots=bAZj-bHELH&sig=kbf9drYsUaEPRnZRu7eaG9GXae8&hl=pt-
BR&sa=X&ei=JF1RVfuzHu_msAT5lYC4Dw&ved=0CB8Q6AEwAA#v=onepage&q=bula%20coeli%20et
%20terrae&f=true;
315 CAROLINO, Lus Miguel. Cincia, astrologia e sociedade: a teoria da influncia celeste em Portugal (1593-
1755). Porto: Fundao Calouste Gulbenkian/Fundao para a Cincia e a Tecnologia, 2003. p. 79.
316 PASTORE, Gianriccardo Grassia. Astrologia e Inquisio em Portugal nos sculos XVI e XVII. 172 f.
Dissertao (Mestrado em Histria e Filosofia das Cincias) Universidade de Lisboa, Faculdade de Cincias,
Lisboa, 2014, p. 128.
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pessoa, e circunstncias da culpa pedirem maior condenao; e sendo
compreendida segunda vez na mesma culpa, se lhe daro as penas, que
parecer aos Inquisidores, tendo respeito, as que lhe esto impostas pelo
dito Breve, e constituio.317
Esse cometa foi visto, tambm, em Portugal, conforme ofcio de um proco, o qual
no informou seu nome, residente em Oliveira de Azemis, ao Conselho Geral do Santo
Ofcio, em 21 de maro de 1745, justificando no haver censura ao estudo do cometa do
319 Cf. Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Tribunal do Santo Ofcio (TSO), Conselho Geral do
Santo Ofcio (CGSO), mao 41. 07 fls. Oliveira de Azemeis, 21-3-1745. Esse documento manuscrito est
disponvel em microfilme no Centro de Memria da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais (PUC
Minas), trazido do ANTT pela professora Ms. Dra. Virgnia Maria Trindade Valadares, pontual 2307.
320 ANTT, TSO, CGSO, mao 41. fl. 01.
321 CAROLINO, Lus Miguel. Astrologia, sociedade e religio. In: ___. A escrita celeste: almanaques astrolgicos
em Portugal nos sculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Acces, 2002. p. 25.
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em todo o anno:/ 30 don/ 1donde nao pode dizerse tractado de
Astrologia Judiciaria,/ 2 ou Astronomancia prohibida, mas sim, e so
discurso de Astro/ 3 nomia, ou Astrologia Natural, licita [...]322
Com esse argumento, pressupe-se que o dito proco tinha conhecimento da bula
de Sisto V, pois ressalta que em sua anlise no tentou adivinhar o futuro e nem descobrir
os segredos divinos, e ainda utiliza do argumento de que seu estudo refere-se Astronomia
ou Astrologia Natural, pois esta foi autorizada pelo papa Sisto V na referida bula.
Consideraes finais
RESUMO: Este trabalho pretende apresentar a histria da Igreja Matriz de Santo Antnio
de Itatiaia, distrito de Ouro Branco, Minas Gerais. A anlise de sua arquitetura, arte e
iconografia ajudam a compreender essa que uma das primeiras igrejas do estado e que
remete ao comeo do sculo XVIII.
Itatiaia, que hoje distrito de Ouro Branco, certamente tem sua origem ainda no
final do sculo XVII, uma vez que j, em 1712, houve o primeiro registro de batismo na
atual igreja de Santo Antnio, matriz do distrito (Figura 1). Sua origem est ligada,
portanto, aos primeiros registros de ocupao do territrio mineiro. Para chegar a Vila
Rica, uma das principais opes de trajeto de paulistas e cariocas passava por Itatiaia.
323 As datas referentes a igreja que aparecem neste trabalho esto registradas nos livros de tombo das
irmandades do Rosrio dos Pretos e do Santssimo Sacramento da Matriz e tambm aparecem nos projetos
de restaurao da igreja. Os documentos foram acessado no Centro de Documentao e Informao do
IPHAN de Belo Horizonte, em novembro de 2014.
324 Disponvel em: http://iepha.mg.gov.br/banco-de-noticias/935-iephamg-apresenta-uma-capela-uma-
325
Revestimento de cobertura a base de cal.
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Figura 3 - Esquema do partido das fases da Matriz. Elaborao:
Fernanda Silva, 2014.
A restaurao que iniciou em 2014 tem revelado pinturas antigas ainda conservadas
graas a camada de tinta superior que protegeu a arte precedente.
326 Os trabalhos e a vida do artista foram explorados em diversos trabalhos. A destacar: Contribuio ao
estudo da pintura colonial: Manoel Ribeiro Rosa (1758/1808), de Adalgisa Arantes Campos. Vida cotidiana e
produo artstica de pintores leigos nas Minas Geras: Jos Gervsio de Souza Lobo, Manoel Ribeiro Rosa e
Manoel da Costa Atadeda mesma autora. Alm do Pintores coloniais nas minas setecentistas: a vez de
Manuel Ribeiro Rosa de Leandro Rezende e Armando Leopoldino.
327 REZENDE, Leandro Gonalves. LEOPOLDINO, Armando Magno de Abreu. Pintores coloniais nas
minas setecentistas: a vez de Manuel Ribeiro Rosa. VIII EHA - Encontro de Histria da Arte 2012, p; 329.
Disponvel em: http://www.unicamp.br/chaa/eha/atas/2012/Leandro%20Goncalves.pdf Acesso em: 27 de
junho de 2015.
328 Em 1996 um grande roubo na igreja levou 19 imagens da matriz. Apenas uma foi recuperada at o
momento. A imagem de So Joo Batista menino foi encontrada e restaurada em 2011 por iniciativa da
Associao de moradores do distrito, Os Bem te vis.
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Figura 6 Retbulo-Mor, Santo Antnio. Foto: Fernanda Silva,
2014.
Alm do retbulo mor, mais quatro retbulos ornam a nave da igreja. Dois
colaterais, beirando o arco cruzeiro e dois laterais, mais prximos aos plpitos.
Mas a curiosidade mais relevante quanto iconografia dos retbulos est justamente
nos retbulos colaterais, que sempre foram entendidos com caractersticas populares do
sculo XIX (Figura 9). Frutos de um rococ vernacular, ou uma simplificao do rococ,
que durante o processo de restaurao iniciados em 2014, mostraram-se mais antigos do
que se imaginava.
329Bohrer, Alex Fernandes A talha do estilo nacional portugus em Minas Gerais [manuscrito]: contexto
sociocultural e produo artstica / Alex Fernandes Bohrer. - 2015. 2 v. : il. Orientadora: Adalgisa Arantes
Campos. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Cincias
Humanas. p.253.
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Figura 10 Esquema de Retbulo do Estilo Nacional. Fonte:
Alex Bohrer, 2015. apud.
http://historias.interativas.nom.br/bbcartas/?page_id=5 (acesso
em 08/09/2014).
A matriz de Itatiaia uma joia do barroco mineiro e sua iconografia pode trazer
tona rastros de sua histria e do seu valor enquanto Patrimnio. Desde seu tombamento,
em 1983, a igreja passou por nove obras de restaurao, o que revela a preocupao com
esse que um dos exemplares mais peculiares da arquitetura e iconografia do barroco
mineiro.
Em meados dos anos 80, o economista e historiador da Arte John Michael Montias
(University of Yale), juntamente com o Getty Research Institue, elaboraram o banco de
dados conhecido como The Montias Database of 17th Century Dutch Art Inventories.
Com o objetivo de proporcionar fontes histricas aos pesquisadores da arte e das colees,
caso da morte dos pais. Sua funo era de invetariar os bens de artsticos de maior valor da casa do solicitante,
em caso de morte dos pais, esses bens eram leiloados e o dinheiro transferido para os tutores dos rfos.
334 Inventrio de Mathijs van Ceulen, datado do ano de 1631, disponvel em:
http://research.frick.org/montias/browserecord.php?-action=browse&-recid=2460 (ltimo
acesso:23/06/2015)
335 Inventrio de Mathijs van Ceullen, datado do ano de 1644, disponvel em:
336 Em 2014 foi apresentado no III Encontro de Pesquisa em Histria, a biografia de Mathijs van Ceulen feita
durante a pesquisa. CHAVES, Andr Onofre Limrio. Mathijs van Ceulen e a conquista neerlandesa no
nordeste brasileiro. Anais do III EPHIS. Revista Temporalidades. v. 6, suplemento (2014). Belo Horizonte:
Departamento de Histria, FAFICH/UFMG, 2014. ISSN:1984-6150.
337 CHARTIER, R. beira da falsia. A histria entre certezas e inquietude. Trad.: Patrcia. C. Ramos. Porto Alegre:
de Ouro, Uma interpretao. (trad.) Hildegard Feist. So Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 289 - 368.
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Como toda fonte textual, os inventrios possuem suas limitaes em seu uso para a
escrita da histria. Segundo John Montias, antes da inventariao dos objetos artsticos de
uma residncia holandesa, geralmente os familiares do falecido ocultavam ilegalmente obras
de grande valor341. Um exemplo disso ocorreu na inventariao dos bens do pintor
Rembrandt aps seu falecimento, realizada porque o referido pintor havia acumulado um
alto nmero de dvidas e estas deveriam ser quitadas. Logo aps a inventariao, foi
descoberto que sua esposa havia escondido obras do pintor e, por causa disso, ela sofreu
um processo judicial e teve que listar os quadros ocultados342. Outro problema do uso de
fontes inventariais o fato que os objetos que no possussem forte agrado no mercado de
arte no eram inventariados. Aos olhos da poca, no compensaria inventariar um objeto
que no fosse atraente para o mercado. Havia, destarte, uma seleo dos melhores itens de
uma coleo artstica, que no era registrada em sua completude. A variao dos valores no
mercado das artes uma terceira dificuldade enfrentada por quem utiliza essas fontes. No
inventrio, o notrio ou o inventariante registrava o valor que as peas possuam naquele
momento, e, posteriormente elas poderiam ter seu preo alterado, podendo valer mais ou
menos. Esse fator torna difcil para o pesquisador elaborar um padro de preos das
colees privadas holandesas.
Em contrapartida, o lado positivo dos inventrios holandeses que favorecem a
pesquisa em Histria da Arte e das Colees ao informar aos pesquisadores elementos
importantes para a compreenso do colecionismo privado na Holanda do sculo XVII. O
inventrio holands no informa apenas a pea que foi inventariada, mas outras
informaes de grande importncia, como a disposio dos objetos nos cmodos das
casas, alm de indicar o valor da pea conforme o valor de mercado daquele momento343.
A partir da anlise dos inventrios podemos fazer leituras que permitem realizar
uma anlise biogrfica, que indique a qualidade da composio de uma coleo particular
mostrando que essa no se resumia em ser um lugar de curiosidades, mas um ambiente que
refletia a personalidade de seu colecionador. Desde modo, uma coleo permite indicar a
maneira em que um sujeito gostaria de ser visto quando algum visitante adentrasse em sua
residncia. No caso de van Ceulen, ele gostaria de passar a imagem de sua profisso de
comerciante, sua posio de diretor da W.I.C., e tambm mostrar seu lado pessoal atravs
da sua religio e preferncias das temticas das pinturas.
Uso de imagens no estudo do colecionismo artstico e cientfico no sc.
XVII
344BUVELOT, Quentin (ed.). Albert Eckhout: A Dutch artist in Brazil. Zwolle, ND: Royal Cabinet of
Paintings Mauritshius Foundation, The Hague; Waanders, 2004.
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Figura 1 - Albert Eckhout, 1641, Mulher e criana de ascendncia
africana. leo sobre tela, 181 x 189 cm. Nationalmuseet,
Copenhagen. Disponvel em:
http://samlinger.natmus.dk/ES/25493.
345 FERRO, Cristina; SOARES, Jos Paulo Monteiro (orgs.). Brasil-Holands = Dutch-Brazil. 5 v. Rio de
Janeiro: Index, 1995.
346 BRIENEN, Rebecca Parker. Visions of a savage paradise: Albert Eckhout, court painter in Colonial Dutch
Brazil. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2006. 288p. ALPERS, Svetlana. A arte de descrever: a arte
holandesa no sculo XVII. Trad. Antonio de Pdua Danesi. So Paulo: EDUSP, 1999. 427 p.
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Figura 2 - Mapeamento de elementos da tela Mulher e criana de
ascendncia afriana, de Albert Eckhout. Fonte: os autores.
v. 2. O Thierbuch e a Autobiografia de Zacharias Wagener. Trad.: Alvaro Alfredo Bragana Junior. Rio de
Janeiro: Index, 1997.
350
BRIENEN. Visions of a savage paradise, 2006. FERRO; SOARES; TEIXEIRA. Brasil Holands, 1997.
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Van Campen era, alm de artista, arquiteto, e participou da construo de Mauritshuis, a
residncia de Nassau na cidade de Haia, para onde o conde se mudou logo no retorno do
Brasil. Tanto van Campen como van Everdingen eram membros da Guilda de So Lucas
de Harlem, que representava pintores, escultores e outros artistas visuais. Esses dois artistas
trabalharam juntos na decorao da sala Oranjezaal de Huis ten Bosch, residncia
comissionada em 1645 por Amalia von Solms para o stadtholder neerlands Frederik
Hendrik, e tanto na Processo triunfal com tesouros do Leste e do Oeste, de van Campen, como na
Alegoria do nascimento de Frederik Hendrik, de van Everdingen, que decoram a Oranjezaal
encontramos cestos africanos como parte da composio351. Outros trabalhos de Jacob van
Campen (Natureza morta com guirlanda de frutas e flores, leo sobre painel, Rijksmuseum,
Amsterdam) e de Caesar van Everdingen (Garota com chapu largo, leo sobre tela,
Rijksmuseum, Amsterdam; O rapto de Europa, leo sobre tela, National Gallery of Canada,
Ottawa), elaborados entre 1645 e 1650 incorporam variaes do mesmo cesto. Por fim,
traamos a trajetria do cesto at uma tapearia francesa de 1726 intitulada Les pcheurs352,
da srie Anciennes Indes produzida pela Manufaturas Gobelins, baseada em desenhos
originais de Eckhout presenteados por Joo Maurcio de Nassau-Siegen ao rei francs Lus
XIV em 1679.
Esse pequeno exerccio investigativo nos permite comear a vislumbrar, a partir da
recorrncia de objetos e imagens, uma rede de pessoas envolvidas na produo, circulao
e coleo de objetos artstico-cientficos no sculo XVII. Essas pistas que encontramos a
partir do estudo da imagem pintada por Eckhout se complementam com outras evidncias
e documentos, em dilogo com estudos contemporneos em histria social das artes,
histria da cincia e histria cultural, dando corpo a fenmenos muitas vezes apresentados
nessa bibliografia de forma mais geral.
Outro tipo de imagem que pode servir ao estudo da histria das colees so as
imagens que retratam colees, sejam elas colees reais ou imaginrias. Escolhemos como
exemplo uma pintura do flamengo Willem van Haecht, intitulada Apelles pintando Campaspe,
que representa em meio a um ambiente de coleo de arte o episdio em que o artista
Apelles retrata Campaspe, uma das amantes de Alexandre, O Grande, a pedido desse
imperador.
351
_________. Albert Eckhout, 2004.
352
TEIXEIRA, Dante Martins. Elementos do Brasil Holands presentes nas Nouvelles Indes tapearias da
Manufatura Gobelins. BRASIL HOLANDS, v. 2. Rio de Janeiro: Index, 2003.
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Figura 3 - Willem van Haecht, c. 1630, Apelles pintando Campaspe. leo sobre
tela, 104,9 x 148,7 cm. Mauritshuis, Haia. Disponvel em:
https://www.mauritshuis.nl/en/discover/mauritshuis/masterpieces-from-the-
mauritshuis/apelles-painting-campaspe-266/
As telas que retratam salas de coleo, com especial destaque para as colees de
pinturas, floresceram como um gnero de pintura de forma quase exclusiva na Anturpia
no sculo XVII353. primeira vista, a tela nos d uma impresso do que compunha uma
coleo ideal: pinturas, esculturas de temas clssicos, livros e gravuras, moedas, relevos,
porcelana, conchas, instrumentos cientficos. As pinturas de van Haecht nesse gnero se
destacam por figurarem em sua composio no objetos meramente baseados no estilo de
artistas renomados, mas obras conhecidas e identificadas. Devido s prticas de cpia da
poca, no podemos ter certeza em muitos casos se van Haecht teve acesso aos originais
ou a cpias desses, na forma de pinturas ou gravuras, mas temos alguma ideia das obras
que circulavam e eram valorizadas no meio. Muitas das obras que aparecem nas pinturas de
van Haecht integravam a coleo do comerciante e patrono das artes Cornelis van der
Geest, para quem van Haecht trabalhava, mas a falta, por exemplo, de um inventrio
completo dessa coleo abre margens para dvidas.
Esses quadros nos informam, ainda, sobre as formas de exibio dos objetos
colecionados e o ambiente considerado ideal para as colees. Vemos na tela em questo a
353
Van SUCHTELEN, Ariane; van BENEDEN, Ben. Room for art in seventeenth-century Antwerp. Antwerp:
Rubenshuis; The Hague: Royal Picture Gallery Mauritshuis; Zwolle: Wanders Publishers, 2009.
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disposio justaposta das obras, detalhes sobre o mobilirio tpico e, tambm, sobre o
ambiente arquitetnico ideal, com paredes amplas nas quais as obras poderiam ser
dispostas e muitas janelas e outras aberturas que permitiam iluminao natural. mister
ressaltar, todavia, que os artistas deveriam realizar adaptaes, de forma a representar
bidimensionalmente um ambiente tridimensional e fazer aparecer na pintura a totalidade da
coleo.
Gostaramos de dar ateno especial ao aspecto espacial e arquitetnico. Essa tela
de van Haecht no pretende retratar nenhum ambiente real, mas usa elementos reais para
compor a cena. Vrios dos elementos da tela remetem figura do pintor flamengo Peter
Paul Rubens: algumas telas de Rubens esto representadas nas paredes, como objetos da
coleo (Batalha das Amazonas, Alte Pinakothek, Munique; Tarquin e Lucrcia, Sanssouci,
Postdam; Stiro bbado dormindo, Akademie der Blindenden Knste, Viena), mas, alm disso,
a figura de Alexandre, que compe a cena principal da tela de van Haecht, parece copiada
da representao de Perseu de uma pintura de Rubens, Perseu e Andrmeda (Hermitage, So
Petesburgo). Essa mesma pintura aparece em uma gravura de 1692, que retrata a casa de
Rubens em Anturpia, reproduzida de forma decorativa sobre uma sacada com vista para o
jardim354. E uma das referncias mais impressionantes Rubens e sua casa a sala semi-
circular que aparece ao fundo no quadro de van Haecht, quase idntica quela que Rubens
construiu em sua casa para exibir sua coleo de esculturas355, inspirada em exemplos
arquitetnicos italianos, tanto antigos quanto contemporneos - o Panteo romano,
ilutraes nos tratados de arquitetura de Scamozzi e Serlio, e a Tribuna da Galleria degli
Uffizzi, em Florena. Tantas referncias figura de Peter Paul Rubens esto ligadas tanto
valorizao das obras do pintor no mercado das artes e no meio colecionista, como ao
reconhecimento desse flamengo como exemplo de colecionador a ser seguido.
Consideraes finais
354 HARREWIJN, Jacobus. Vista da casa de Rubens em Anturpia, em 1692. Rijksmuseum, Amsterdam.
Disponvel em: https://www.rijksmuseum.nl/en/collection/RP-P-OB-55.445
355 ___________________. Vista da cada de Rubens em Anturpia, em 1692.
RESUMO: O artigo almeja uma discusso do conceito de cultura barroca atravs das
vises de Jos Antnio Maravall e Adalgisa Campos: o primeiro, ao tratar o contexto de
crise e instabilidade espanhol, tambm legitimou a presena cultural barroca nas terras
recm-povoadas a partir da colonizao, enquanto a segunda props que a colonizao
possibilitou um convvio intercultural que se estabeleceu sobre valores e prticas espirituais,
alm de uma viso de mundo barroca.
Introduo
O Barroco foi um estilo artstico que surgiu no sculo XVI e vigorou at o sculo
XVIII, mantendo uma padronizao em suas caractersticas, porm adicionando certas
especificidades dependentes da localidade e sociedade em que se manifestara. Alm de uma
formao estilstica, o Barroco se mostrou tambm como um modo de vida, estabelecendo
uma cultura prpria. Marcado pela exuberncia de detalhes, pela dramatizao e
teatralidade, pelo exagero em sua composio, com seu jogo de claro e escuro e contornos
contrastantes ao modelo formal e proporcional propostos pelo classicismo que vigorava na
arte europeia at ento, foi originado na Itlia, mas se expandiu para diferentes pases com
contextos sociais e religiosos distintos, interagindo com diferentes manifestaes culturais e
se adaptando s condies encontradas em diferente tempo e espao.356 Os primeiros
crticos e estudiosos do Barroco classificaram sua criao limitada ao estilo, uma inovao
356No que diz respeito ao significado de sua nomenclatura, ainda em discusso e gerando inmeras verses, a
significao mais comum entre tericos e artistas se refere prola irregular, termo usado por joalheiros da
Pennsula Ibrica, que denominava pejorativamente a imperfeio. De origem francesa, sua etimologia
incerta, geralmente relacionada a algo absurdo, extravagante, o ridculo levado ao extremo. Cf. BAZIN,
Germain. Barroco e Rococ. Trad. lvaro Cabral. So Paulo: Martins Fontes, 1993.
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nas artes visuais considerando a arquitetura, pintura e escultura. Contudo, tal viso se
ampliaria at alcanar uma expresso cultural, um fenmeno to abrangente que se
relacionaria msica, teatro, festas, literatura, ao esprito barroco de um perodo e,
principalmente, um imaginrio religioso.357 Enquanto estilo artstico, o Barroco ganhara
representatividade apenas no sculo XIX a partir do terico Henrich Wlfflin, aps o
perodo neoclssico e a febre antibarroca:
357 VILA, Affonso; GONTIJO, Joo Marcos Machado; MACHADO, Reinaldo Guedes. Barroco Mineiro:
Glossrio de Arquitetura e ornamentao. 3. ed. Belo Horizonte: Fundao Joo Pinheiro, 1996.
358 VILA, Affonso. Iniciao ao Barroco Mineiro. So Paulo: Nobel, 1984, p. 3.
359 WLFFLIN, Heinrich. Renascena e Barroco. So Paulo: Perspectiva, 1989.
360 BAZIN. Barroco e Rococ.
361 WLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundamentais da histria da arte: o problema da evoluo dos estilos na arte
mais recente. Trad. Joo Azenha Jnior. 4. ed. So Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 12.
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materiais, tcnicas e artistas na anlise das manifestaes artsticas.362 Dessa forma,
legitimamos a necessidade de relacionar os estilos artsticos aos contextos em que eles esto
inseridos, no construindo apenas anlises formalistas, mas tambm reconhecendo a
existncia da estrutura maior que se tornou o Barroco, ultrapassando o estilo para alcanar
uma questo espiritual, cultural e filosfica. Alm de considerar o contexto envolvido, ao
propor a anlise no mbito das artes e da arquitetura, principalmente no que tange
temtica religiosa, se torna necessria a construo de um percurso com um breve retorno
a outros estilos para a compreenso da modificao do pensamento, e como este se
materializou na edificao dos templos. Em seguida, discutiremos as questes que
caracterizaram a formao de uma cultura do barroco em todos os mbitos da vida social a
partir das anlises de Jos Antnio Maravall e Adalgisa Arantes Campos.
Do estilo cultura atravs da persuaso na arquitetura religiosa
362 HAUSER, Arnold. Renascena, Maneirismo e Barroco. In: ______. Histria Social da Arte e da Literatura.
Trad. lvaro Cabral. Martins Fontes, 2010.
363BRANDO, Carlos Antnio Leite. A formao do homem moderno vista atravs da arquitetura. Belo Horizonte:
AP Cultural, 1991.
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no correspondiam s novas ideias de uma conscincia csmica. Vista como melhor
maneira de compreender e representar a realidade, a arte do sculo XVII se diferenciaria da
concepo dos sculos anteriores frente aos avanos cientficos e intelectuais.
Com o fim da Idade Mdia a histria da Europa Ocidental teria se tornado uma
histria de crise, intercalada por perodos brandos, mas sempre marcada por misria,
sofrimento e conflitos. A Renascena corresponderia a um perodo de intervalo brando em
meio instabilidade, por isso o Maneirismo364 (sc. XVI) apareceria com uma mentalidade
de crise to forte, que no buscaria a representao de paz, beleza e equilbrio dos ideais
clssicos. Ao mesmo tempo em que retornava s questes religiosas, deixadas de lado pelos
renascentistas, o Maneirismo abria espao para as inovaes cientficas. A crise da
Renascena estava intrinsicamente ligada crise do humanismo, pois a f no homem rura
novamente. O otimismo humanista calcado no equilbrio da f, da moral e da justia cairia
por terra. O grande drama renascentista foi retornar aos ideais clssicos pautados na
objetividade dos antigos, mesmo vivenciando as contribuies medievais, tendo o homem
se tornado um ser espiritualizado e crente nas questes post-mortem.365
364O Maneirismo, de acordo com Brando, foi o estilo pautado em algumas caractersticas estilsticas bsicas,
como o anti-naturalismo; a tenso; o contraste; a presena de um espao mais dinmico e heterogneo que o
renascentista; a recuperao da longitudinalidade, como por exemplo, o caminho no interior das suas igrejas e
cidades; a desintegrao dos padres clssicos e racionais; o mergulho na alma humana; e a alienao do
homem sendo recuperada atravs da busca de si.
365 HAUSER, Arnold. Maneirismo. Trad. J. Guinsburg e Magda Frana. So Paulo: Editora Perspectiva, 1993.
366 BRANDO. A formao do homem moderno vista atravs da arquitetura, 112-113.
367VENTURI, Lionello. O Perodo Barroco. In: ______. Histria da Crtica de Arte. Lisboa: Edies 70, 2002.
368A partir de meados do sculo XVI a Igreja procurou atingir as massas de fiis buscando-os fora da igreja, e
a primeira atitude dos padres da Reforma Catlica foi a reconstruo de Roma. As igrejas barrocas passam a
ser projetadas em relao a um eixo que as integra no ambiente urbano, formando um projeto de cidade
barroca, como cidade santa em que inmeras igrejas formam uma grande composio do catolicismo
dominante. O discurso persuasivo visava exaltao do poder e dos dogmas da Igreja renovada, por isso a
intensa proliferao e monumentalidade das construes religiosas que estruturaram as cidades barrocas,
sendo avistados de todos os lugares. A igreja assumiria o papel de protagonista no grande cenrio teatral das
cidades, conectando todo o tecido urbano e se destacando com suas altas torres visveis por todos os ngulos,
alm do desenvolvimento da sensibilidade pela expectativa, tenso e surpresa. A partir da perspectiva de uma
rua, o olhar seria encaminhado amplitude de uma praa, apario de um monumento e, em especial,
proliferao de igrejas. A fachada representava o sentido monumental do edifcio, ainda que modesto, porque
uma igreja sempre um monumento enquanto instituio. Ela deve se distinguir das outras casas em
dimenso, plstica e volume, alm de contrapor o espao aberto e luminoso de fora ao espao fechado e
penumbroso do interior. Cf. ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e persuaso: ensaios sobre o barroco. So Paulo:
Companhia das Letras. 2004; BAETA, Rodrigo Espinha. Crise, persuaso e o universo cultural do barroco.
Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, Belo Horizonte, v. 18, n. 22, set. 2011.
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percepo visual do espectador. As naves longitudinais das igrejas catlicas deveriam
permanecer escuras propondo uma aluso ao espao terreno, em contrapartida, a
representao do sagrado seria iluminada. As igrejas se engrandecem e se reestruturam, pois
so construdas intencionalmente para o culto de massa.369
A Cultura do Barroco
Jos Antnio Maravall inovaria ao construir sua anlise do Barroco para alm de
um conceito estilstico, e o abordara a partir das influncias sociais dos contextos de crise e
instabilidade na Espanha.370 A partir da poltica, sociedade, economia e religio,
estabeleceria o conceito de cultura do barroco para a Espanha, mas consideraria seu
desenvolvimento para diferentes pases da Europa e tambm para suas colnias alm-mar.
Guerra dos Trinta Anos, saques, pestes, fome, crises demogrficas, instabilidades, conflitos
sociais e revoltas urbanas e camponesas so alguns dos aspectos responsveis pela
instabilidade e insegurana do sculo XVII na Europa. O cenrio de crise ainda seria
complementado por conflitos polticos e pelas constantes perseguies religiosas. Fontes
de respostas e possveis solues, Igreja e Estado tomariam para si a responsabilidade do
controle social. Portanto, concomitante crise se desenvolve o Barroco, enquanto estilo e
cultura, posteriormente utilizado como mecanismo de expresso e representao do poder
absolutista e da Igreja.
A partir da anlise de uma cosmoviso, Maravall caracterizou o homem barroco a
partir de alguns aspectos como pessimismo, desordem, tristeza, existncia sombria e
inquietao. Em uma sociedade desenganada, vivendo em meio ao caos enquanto alguns se
encontram em meio ao luxo, o Barroco visa tambm denncia dos defeitos do ser
humano, vivendo entre o egosmo e a depravao. O mundo barroco se cerca, portanto, de
desconfiana frente aos sentimentos de violncia, agressividade, inveja e crueldade. Tais
questes podem ser visualizadas na expresso artstica. O tremendismo, a violncia, a
crueldade, que com tanta frequncia se manifestam nas obras do Barroco, decorrem dessa
raiz de concepo pessimista do homem e do mundo [...].371 Quanto ao Estado
Absolutista, possvel observar no caso espanhol uma pedagogia da violncia. A atrao
pela violncia, pela morte e pelo macabro pode se relacionar s represses e severidade da
372CAMPOS, Adalgisa Arantes. Escatologia, iconografia e prticas funerrias no barroco nas Geraes. In:
RESENDE, Maria Efignia Lage de.; VILLALTA, Luiz Carlos. (Org.) Histria de Minas Gerais: As Minas
Setecentistas. Vol. 2. Belo Horizonte: Cia do Tempo: Autntica, 2007.
373 MARAVALL. A Cultura do Barroco.
374No decorrer da Reforma Catlica, a Igreja reavaliou seu prprio programa e finalidade, no devendo ser
considerada apenas uma reao Reforma Protestante. Alm disso, Segundo Argan, no foi a situao
religiosa da Reforma Catlica ou o absolutismo que moldaram a forma persuasria da arte barroca, mas a
persuaso existente no barroco que pde ser utilizada para inmeros fins posteriores.
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partir da Reforma Catlica se desenvolveram questes que foram discutidas no Conclio de
Trento (1545-1563), e mesmo no sendo especialistas em questes artsticas, seus
componentes sabiam da importncia da arte dentro da Igreja Catlica, mesmo que a
iconografia e o controle artstico no fossem o objetivo principal das atitudes reformistas.
Em relao s postulaes expostas em Trento, posteriormente a Igreja Catlica criou
reinterpretaes para os decretos, como, por exemplo, no lugar da moderao na produo
e inovao das obras se observou a proliferao de novas imagens. Vale ressaltar ainda que
as modificaes presentes nas diretrizes do Conclio por parte da Igreja refletem mais sua
posio frente s necessidades das massas do que uma imposio feita a partir dessa Igreja.
Portanto, em relao s artes, impossvel propor que aps o Conclio se estabelecera
preceitos ou uma unidade para a expresso artstica. Tal fato no limita tambm a
possibilidade de conexes entre a arte e a f, apenas elimina uma forma de expresso
artstica nascida aps as ponderaes de um novo catolicismo em Trento. Com o Barroco a
arte religiosa catlica assume um carter oficial, e pode ser vista como uma expresso
artstica posterior ao Conclio e influenciada por ele atravs de suas reinterpretaes.375
A bifurcao da religio se apresentava como a grande questo do perodo, pois
alm de optar por uma religio, o homem tambm optaria por uma forma de
comportamento. A Igreja Catlica recorria ento legitimao da demonstrao visual dos
fatos da prpria histria, e ainda enfatizou o carter espetacular do rito e do culto. A
propaganda e a persuaso foram os instrumentos utilizados para atingir os fiis, pois a
sensibilidade das imagens seria a forma mais eficaz para o entendimento generalizado,
enquanto o Estado atuaria da mesma forma atravs do absolutismo monrquico,
conservando uma hierarquia social. O objetivo na exaltao da iconografia religiosa era
mostrar que qualquer um poderia se tornar santo vivendo de forma devota e cumprindo os
deveres sociais.376 Como foi exposto acima, a composio e estruturao das igrejas
colaboravam com um imaginrio prprio: um discurso exposto pelo caminho para a
salvao a ser percorrido pelo fiel; a persuaso estaria presente no modelo de igreja
longitudinal, na nave nica para a melhor agremiao dos fiis, no pice a ser alcanado
pelos altares e no que seria encontrado l, ou seja, os exemplos a serem seguidos. O
envolvimento das massas ocorreria no dever de ouvir missa, de ir igreja e buscar a
375 FRANCASTEL, Pierre. A Contra-Reforma e as Artes na Itlia no fim do sculo XVI. In: ______. A
realidade Figurativa. Trad. Mary Amazonas Leite de Barros. 3. ed. So Paulo: Perspectiva, 2011.
376 ARGAN. Imagem e persuaso: ensaios sobre o barroco.
377
BRANDO. A formao do homem moderno vista atravs da arquitetura.
378
MARAVALL. A Cultura do Barroco.
379 BARBOSA FILHO, Rubem. Tradio e Artifcio: Iberismo e Barroco na Formao Americana. 1ed. Belo
assistencialismo. Da mesma forma como as corporaes de ofcio demonstravam uma forma de associao
por interesses profissionais, as irmandades e as Casas de Misericrdia representavam as associaes
espiritualizadas, assistenciais e com interesses de solidariedade grupal em meio religio e realidade social de
seus membros. As irmandades surgiram em Portugal desde o sculo XI sob a forma de hospedarias de rota de
peregrinao, seja se autofinanciando ou financiadas pela Coroa Portuguesa. Com a colonizao das terras
recm-povoadas, a Coroa se preocuparia com o papel desempenhado pelas irmandades em suas colnias. Na
regio mineradora, em especial, a vida religiosa passaria a ser guiada de forma diferenciada pelas associaes
leigas atravs do clero secular. Cf. BOSCHI, Caio Csar. Os Leigos e o Poder. Irmandades Leigas e Poltica
Colonizadora em Minas Gerais. So Paulo: tica, 1986; RUSSEL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil
colonial. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2005.
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catlico. Dessa forma, a autora analisou as prticas devocionais a partir das postulaes
tridentinas incorporadas no Brasil atravs das Constituies Primeiras, legitimando a
importncia do Conclio nas normas da Igreja e no cotidiano dos fiis. Ao propor a
compreenso da mentalidade e valores religiosos em Minas, desenvolveu o conceito de
cultura barroca em relao s prticas e s representaes analisadas, unindo as diretrizes da
Igreja s adaptaes dos grupos em interao. A imposio religiosa como meio de
controle social por parte da Igreja e Estado levariam aos mecanismos de negociao
durante a interao de diferentes culturas.381
A colonizao criou a possibilidade do convvio intercultural entre
populaes as mais variadas, contudo assentando como modelo a
cultura barroca, cujos valores espirituais tiveram grande
longevidade na Capitania e posteriormente Provncia de Minas
Gerais, persistindo mesmo quando se praticava a gramtica do
Rococ (1760-1840). No obstante a sua transformao e
profundo dinamismo, esse sistema de vida durou nas Minas at
meados dos Oitocentos. a viso de mundo barroca que se impe
nas Gerais, convivendo com, mas tambm desarticulando as
culturas pags autctones e africanas.382
Apresentao
O comrcio atlntico portugus na era mercantil produziu uma vasta cultura
material a partir do contato entre distintas culturas. O resultado de um processo de longa
durao de intercmbio de mercadorias, tecnologias e mentalidades pode ser percebido por
meio da construo de uma cultura multifacetada, originada dessa malha de relaes. Os
acervos em marfim no Brasil, com recorte em Minas Gerais, pouco estudados e com
escassa documentao de procedncia ou origem, o objeto da pesquisa apresentada, a
qual faz parte do projeto The Luso-African Ivories: Inventory, Written Sources, Material Culture and
the History of Production.386 Essa produo, independente de se tratar de artefatos de teor
ritual ou laico, abordada por meio de seus aspectos materiais e documentais.
386Projeto coordenado pelos professores Peter Mark (Universidade de Lisboa and Wesleyen University) e
Vaniclia Silva Santos (Universidade Federal de Minas Gerais). Tambm integra esse amplo projeto, uma
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O projeto geral visa alcanar trs objetivos: 1) levantamento dos acervos em marfim
e sua documentao nas instituies mineiras; 2) anlise nos inventrios e testamentos de
Minas Gerais sobre a cultura material em marfim, considerando a circulao de objetos,
usos, constituio de gostos e de gestos que lhes atriburam valores e justificaram sua
procura, seu comrcio e sua ostentao; e 3) o estudo material, por meio da Histria da
Arte Tcnica, voltado tecnologia de construo dos artefatos. Na primeira fase da nossa
investigao, foi dedicada ateno especial ao levantamento dos acervos em Minas e anlise
preliminar desta documentao, no que se refere localizao e posse das peas.
Jose Horta e Luis Urbano estudaram a entrada de peas de marfim em Lisboa, por
meio dos poucos livros de contas da Casa da Guin, em Lisboa, que sobreviveram ao
terremoto, especialmente para os anos de 1504 a 150, (onde) encontram-se tambm
388
registros alfandegrios que referem chegada de colheres e saleiros africanos . Os
referidos autores assinalam que o marfim africano esculpido se apresentou de diversas
maneiras, tais como em colheres, saleiros e olifantes sapi-portugueses, representando,
sobretudo, cenas de caa com fauna claramente de raiz europeia, sendo constituda por
veados de hastes longas, javalis, lebres e cervos, tal como ces de caa e cavalos ajaezados
In: Revista de Histria da Arte e Cincias do Patrimnio. Portugal, n. 1, p. 20, 2013, p. 21.
388 ______ Olifantes afro-portugueses com cenas de caa \ C.1490-C1521, p. 21.
390 MOREIRA, Rafael. PEDRO E JORGE REINEL (AT.1504-60), DOIS CARTGRAFOS NEGROS
NA CRTE DE D. MANUEL DE PORTUGAL (1495-1521). Lisboa: 2010. Disponvel em: <
http://3siahc.files.wordpress.com/2010/08/rafael-moreira-3siahc.pdf >. Acesso em: 01 maio 2015.
391 SILVA, Jorge Lzio Matos. Sagrado Marfim, O imprio portugus na ndia e as relaes intracoloniais Goa e Bahia,
sculo XVII: iconografias, interfaces e circulaes. 2011. 170f. Dissertao (Mestrado) Pontifcia
Universidade Catlica de So Paulo, Programa de Ps-Graduao em Histria, So Paulo, p. 12.
392 Nesse sentido ver os trabalhos de MALTA, Marize; NETO, Maria Joo. Colees de arte alm-mar: encontros
e perspectivas entre Portugal e Brasil. SANTOS, Lucila. A sagrao do Marfim. Museu Histrico Nacional
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marfim no Brasil, em sua grande maioria esto sob posse de Museus de Arte Sacra, Museus
Histricos ou at mesmo em colees particulares. A Coleo Souza Lima, por exemplo,
conta com cerca de 572 esculturas, foi adquirida entre 1919 e 1930, pelo empresrio Jos
Luiz de Souza Lima. Nos anos 1940 as peas do colecionador foram compradas pelo
governo federal e integradas ao acervo do Museu Histrico Nacional do Rio de Janeiro 393.
Sons: O universo cultural da obra de arte. MELLO, Magno Moraes (org.). Disponvel em
<http://heema.org/wp-content/uploads/2014/12/SEMIN%C3%81RIO-ARTE-BELO-HORIZONTE >
Acesso em: 30 abr. 2015, p. 129.
394 Localizado na Rua dos Aimors, 1697 - Lourdes, Belo Horizonte MG.
395 IPAC. Inventrio de Proteo do Acervo Cultural de Minas Gerais. Plano Estadual de Inventrio de Minas
Gerais. Disponvel em < http://www.iepha.mg.gov.br/images/stories/noticias/2009/ipac.pdf > Acesso em:
30 abr. 2015.
396 De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), o Estado de Minas Gerais possui
853 municpios. IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica. Minas Gerais. Disponvel em <
http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/uf.php?lang&coduf=31&search=minas-gerais>. Acesso em: 30 jun.
2015.
397 Bem Cultural de natureza material (tangvel) - stios urbanos, estruturas arquitetnicas e urbansticas, bens
integrados, bens mveis, arquivos, patrimnio arqueolgico, stios naturais. Bem Cultural de natureza imaterial
(intangveis) festas, danas, celebraes, modos de fazer, saberes e ofcios.
398 Alvorada de Minas, Arax, Baependi, Baro de Cocais, Belmiro Braga, Belo Horizonte, Belo Vale, Berilo,
Bocaiuva, Caet, Campanha, Carangola, Catas Altas, Caxambu, Chapada do Norte, Conceio do Mato
Dentro, Confins, Congonhas, Congonhas do Norte, Contagem, Couto de Magalhes, Diamantina/ Biribiri,
Esmeraldas, Ferros, Ibirit, Itacambira, Itacarambi, Itanhandu, Januria, Jequitib, Lagoa Santa, Leopoldina,
Manga, Mariana, Mateus Leme, Matias Barbosa, Matias Cardoso, Minas Novas, Moema, Montes Claros, Nova
Lima, Oliveira, Ouro Branco/ Itatiaia, Ouro Preto, Pedro Leopoldo, Piranga, Pitangui, Rio Acima, Rio
Pomba, Sabar, Sacramento, Santa Brbara, Santa Luzia, So Gonalo do Rio Abaixo, So Joo das Misses,
So Francisco, So Tom das Letras, Serro, Uberaba, Uberlndia, Vespasiano.
399Harmnio um instrumento musical dotado de tecla, fole e palhetas. Assemelha-se ao rgo e ao piano.
400 Rua Januria, 130 Floresta, Belo Horizonte MG.
401Alvorada de Minas, Baro de Cocais, Barbacena, Belo Horizonte, Caet, Catas Altas, Conceio do Mato
Dentro, Congonhas, Diamantina, Itabira, Itabirito, Itaverava, Lavras, Mariana, Matias Cardoso, Minas Novas,
Nova Era, Nova Lima, Ouro Branco, Ouro Preto, Prados, Raposos, Sabar, Santa Brbara, Serro, So Joo del
Rei, Paracatu, Tiradentes, Uberaba.
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inventrios de acervos mveis e integrados de igrejas e capelas, contando com apenas um
sobrado em Barbacena e o Museu Histrico Ablio Barreto, em Belo Horizonte.402 Para a
pesquisa nesse acervo, foram utilizados os mesmos descritores da pesquisa no banco de
dados do IPAC/ IEPHA.
402 No Inventrio Nacional de Bens Mveis e Integrados, foram pesquisadas um total de setenta e uma igrejas
Gerais: Belmiro Braga, Chapada do Norte, Conceio do Mato Dentro, Congonhas, Itacambira, Minas
Novas, Pedro Leopoldo, Santo Antnio do Norte, Distrito de Conceio do Mato Dentro.
404Os municpios com peas em marfim identificados nos levantamentos do IPHAN/ MG so: Barbacena,
Catas Altas, Diamantina, Mariana, Mariana/ Santa Rita Duro, Sabar, Santa Brbara / Brumal, Santa Brbara
/ Catas Altas e So Joo del Rei.
405 Dos quatro crucifixos identificados no MRSJDR, dois so de procedncia desconhecida, e os outros dois
Tipologia
406Nota-se que, em muitos dos inventrios pesquisados, h descrio sobre as condies de conservao e
segurana das peas, porm sabido que com o passar dos anos, a ausncia de aes preventivas contra a
infestao de pragas ou at mesmo em decorrncia de sujidades causadas pela ao do tempo, colocam a
preservao dessas imaginrias em risco.
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peas, sendo distribudos da seguinte forma: um Cristo da Agonia; vinte e nove Crucifixos;
cinco Senhores do Bonfim; um Calvrio e um Sagrado Corao de Jesus. As imagens
marianas so referentes : Nossa Senhora da Conceio (foram identificadas trs imagens),
Nossa Senhora da Purificao, Nossa Senhora da Soledade, Nossa Senhora das Dores,
Nossa Senhora do Rosrio, Nossa Senhora do P da Cruz e de Santana Mestra; e quatro
santos: Santo Antnio de Pdua, So Domingos, So Joo Evangelista e So Luis Rei da
Frana.
As peas no-sacras foram organizadas em dois subgrupos: utenslios e decorativos.
Os utenslios predominaram em adaga, revlver, pena de escrita, cachimbo e esptula
407
(utilizado principalmente para abertura de cartas) . Apenas uma pea de uso decorativo:
um caador de borboleta. Pode-se seguramente inferir que as peas eram de propriedade de
homens brancos, pois os negros no podiam usar arma branca ou de fogo e em geral, no
sabiam ler para usar pena de escrita nem recebiam tantas cartas que precisavam de uma
esptula especial para abri-las. O grfico 1 ilustra a classificao tipolgica realizada.
Consideraes preliminares
407 Conforme descrio da ficha de inventrio do IPHAN: esptula de marfim com extremidades
arredondadas. Parte superior mais estreita com pintura rocalha, fundo em guilhoch. Parte inferior com
pintura retratando a cena de casal vestido a moda do sculo XVIII, no topo de uma escadaria decorada por
rocalhas e elementos fitomorfos e encimada por coluna com vaso de flores e ramos.
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As indicaes de origem/produo e datao das peas realizadas nos institutos de
proteo patrimonial no podem ser tomadas sem fazer uma investigao sobre cada pea.
Por meio, da Histria da Arte Tcnica, especificamente, da identificao da matria-prima,
pode-se aventar que h predominncia de peas feita com marfim branco e uma minoria
em marfim avermelhado, de origem asitica e africana, respectivamente.
Os prximos passos da pesquisa ser realizar pesquisas em livros de Tombo,
Receitas e Despesas, das irmandades onde foram identificadas as peas, com o intuito
de apreender como os objetos sacros em marfim foram adquiridos pelas ordens terceiras
que tinham espao nas referidas casas religiosas. E por fim, pesquisar nos arquivos do
Museu do Ouro, Anexo Casa Borba Gato, em Sabar, que conta com documentos
administrativos dos sculos XVIII e XIX, produzidos pelo Cartrio do 1 e 2 Ofcio da
Comarca do Rio das Velhas, como forma de possibilitar a identificao de peas em
marfim nos testamentos e inventrios post mortem. Essa documentao possibilitar
alcanar as seguintes questes: quais as origens dos marfins encontrados nos acervos de
Minas Gerais? Como os marfins chegaram a Minas Gerais? Como foram adquiridos, pelas
ordens terceiras os objetos sacros em marfim? As peas eram importadas prontas ou o
marfim era adquirido in natura e as peas esculpidas pelos artfices locais?
A inveno da Paisagem
O relato da clebre subida de Francesco Petrarca ao Monte Ventor, realizado em
1336, considerado um marco para a teoria da paisagem moderna (ocidental). Situado no
limiar da modernidade, o ato do poeta italiano paradoxal: ao mesmo tempo que Petrarca
teria subido o Monte com o mero intuito de contemplar a paisagem o que no era
comum poca ao chegar ao cume, o poeta abrira ao acaso as confisses de St.
Agostinho, que recriminavam aqueles que se abandonam a si mesmos para admirar as
belezas do mundo. No entanto, mesmo que o olhar do poeta ainda fosse marcado pela
meditao religiosa, ele teria colocado em evidncia um olhar direto sobre o mundo, ou
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seja, forjado a conquista de um ponto de vista elevado que fundou a experincia
paisagstica moderna. A vista captada a partir de uma elevao, nesse sentido, engendra um
imaginrio que se arraigar nas primeiras definies do conceito de paisagem e permear
durante muito tempo o pensamento paisagstico. Assim, a paisagem, enquanto concepo
clssica remeteria sempre a um ponto de vista, a um observador que captaria uma poro
do espao do alto de um elevado. Diversos estudiosos da paisagem salientaram este aspecto
fundador do olhar de cima de um penhasco, monte ou montanha, que implica no s uma
elevao fsica mas tambm moral, intelectual408. No entanto, o ato matricial de Petrarca
nos interessa medida que nos remete tambm constituio do sujeito moderno
enquanto centro do universo que lana um olhar soberano em relao natureza: o olhar
daquele que domina, capta, apreende esta mesma natureza que viria a ser denominada
paisagem. Em certo sentido existe uma forma de dominao, um olhar soberano.
A paisagem foi aos poucos se impondo at virar o prprio tema da pintura nos
pases baixos, com os pintores flamengos, no sculo XVI. O filsofo francs Alain Roger
destaca dois elementos necessrios inveno da paisagem ocidental: a laicizao dos
elementos naturais e a sua organizao em um grupo autnomo. Para a funo edificante
408 cf. Le Got du monde : exercices de paysage. Arles: Actes Sud; cole Nationale Suprieure du Paysage, 2009.
409 cf. CLARK, Kenneth. LArt du Paysage. Paris: Arla, 2010.
410 cf. CAUQUELIN, Anne. A Inveno da paisagem. So Paulo: Martins, 2007, p. 81-82.
411 ROGER, Alain. Court trait du paysage. Paris: Gallimard, 2013, p.70. en instituant une vritable profondeur,
elle met distance ces lments du futur paysage et, du mme coup, les lacise.
412 COLLOT, Michel. La Pense-paysage. Arles: Actes Sud; cole Nationale Suprieure du Paysage, 2011, p.18.
Le paysage comme un phnomne, qui nest ni une pure reprsentation ni une simple prsence, mais le
produit de la rencontre entre le monde et un point de vue.
413 ______. Potica e filosofia da paisagem. Trad. Ida Alves et al. 1. ed. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2013, p. 30.
414 ______. Potica e filosofia da paisagem, p. 31.
O Homem e o mundo
A palavra chinesa que nomeia a paisagem Shan-shui, que significa montanha-
gua, sendo que a gua da natureza do Yin e a montanha da natureza do Yang, as duas
foras fundamentais opostas e complementares que se encontram em todas as coisas, de
acordo com o taosmo. No entanto, essa relao entre montanha e gua, complementada
por outra relao essencial, que aquela que existe entre a terra e o cu. Assim sendo, a
terra, de natureza Yin, se oporia ao cu, de natureza Yang. E nesta relao, o homem
415
______. Do Horizonte da Paisagem ao Horizonte dos Poetas. In: ALVES, Ida Ferreira; FEITOSA, Marcia
Manir Miguel (orgs.). Literatura e paisagem: perspectivas e dilogos. Niteri: EDUFF, 2010, p. 206.
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tambm se encontra presente, atravs dos seus liames com a terra, pela dimenso do cu
que ele possui e, sobretudo, pelo olhar que ele pousa (o espectador ou o pintor) sobre a
paisagem total da qual ele mesmo parte integrante416. Dessa forma, a paisagem tambm
formada pela trade homem-terra-cu cujos elementos se complementam mutuamente.
416CHENG, Franois. Vide et plein. Le language pictural chinois. Paris : ditions du Seuil, mai 1991, p. 97-98.
417CHENG, Franois. Vide et plein. Le language pictural chinois. Paris : ditions du Seuil, mai 1991, p. 101.
Diffrente de la perspective linaire qui suppose um point de vue privilgi et une ligne de fuite, la
perspective chinoise est qualifie tantt darienne, tantt de cavalire. Il sagit, en effet, dune double
perspective. Le peintre, en gnral, est cens se tenir sur une hauteur, jouissant ainsi dune vision globale du
paysage (pour montrer la distance entre les choses baignant dans un espace atmosphrique, il use des
contrastes de volume, de forme et de tonalit) ; mais en mme temps, il semble se mouvoir travers le
tableau, pousant le rythme dun espace dynamique et contemplant les choses de loin, de prs et de diffrents
cts [...].
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primordial entre o sujeito e o espao. Configura-se assim uma zona de coalescncia entre o
interior e o exterior do sujeito, e o olhar no mais um olhar distanciado, mas aproximado,
imanente.
418 BESSE, Jean-Marc. Ver a Terra. Seis ensaios sobre a paisagem e a geografia. So Paulo: Perspectiva, 2006,
p.80.
419 cf. MINGSONG, Geng. La peinture des paysages de la Chine ancienne. Champs-sur-Marne, France: Music &
420 Os quadros da artista que aqui fazemos referncia podem ser vistos no seguinte endereo eletrnico:
http://www.galeriesamagra.com/#!lamiel-fr/c1qy6. Acesso em: 28/05/2015.
421 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Flix. O espao liso e o espao estriado. In: Mil plats: capitalismo e
esquizofrenia. v. 5. Trad. Ana Lcia de Oliveira. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997, p.185.
422 ______. O espao liso e o espao estriado, p. 180.
423BERTO, AL. Voyage dun portugais, avec um stylo, em Cvennes. In: BERTO, AL. Dispersos. Lisboa:
Assrio & Alvim, 2007, p. 12. parcelle par parcelle, sur ma peau, jorganise les nuits de fumature . au
printemps les syllabes naissent sous les toiles.
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experincia do transumano, do alm do humano, marcado no poema pela passagem da
primeira pessoa do singular eu para a terceira pessoa ele: ele chega das plancies que
terminam borda do atlntico, e o oceano de sua infncia retornar sempre424. Essa
mudana acarreta uma exteriorizao do sujeito, dada enquanto inscrio do processo de
transumncia, ou seja, aquela que desvela um espaamento do sujeito, o ato de tornar-se
outro, de devir que se d na abertura paisagem: no interior dos cristais da imensa noite
ele se abandona ao esquecimento do homem transumano425. O movimento do devir
desvela tambm uma relao originria, primordial entre sujeito e mundo: gargantas de
rochedos onde o vento canta o primeiro dia do mundo. Landas esquecidas, corpo que
estremece na cavidade de uma memria mais antiga que ele426.
ele escuta o vento. A noite pesa sobre suas plpebras vegetais. [...]
ele te olha, tudo parece se desenlaar das trevas como se seu
olhar, ao instante de encontrar o teu se pousasse, imediatamente,
sobre as coisas, as esclarecendo pela primeira vez.429
424 BERTO, AL. Voyage dun portugais, avec um stylo, em Cvennes. In: BERTO, AL. Dispersos. Lisboa:
Assrio & Alvim, 2007, p. 13. il arrive des plaines qui se finissent au bord de latlantique, et locan de son
enfance reviendra toujours.
425 ______. Voyage dun portugais, avec um stylo, em Cvennes, p. 13. lintrieur des cristaux de limmense
premier jour du monde. Landes oublies, corps qui tressaille dans la cavit dune mmoire plus ancienne que
lui.
427 cf. MERLEAU-PONTY, Maurice. O Olho e o esprito. Trad. Alberto Tassinari. So Paulo: Cosac & Naify,
2004.
428 AGAMBEN, Giorgio. A imanncia Absoluta. In: ALLIEZ, ric (Org.). Gilles Deleuze: uma vida filosfica. So
ses paupires vgtales. [...] il te regarde, tout semble se dlier des tnbres comme si son regard linstant
de rencontrer le tien se posait, de suite, sur les choses, les clairant pour la premire fois.
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Dessa forma, a paisagem se configura como experincia primordial entre o sujeito e
o mundo. Como se d em Laura Lamiel e na pintura oriental, a paisagem deixa de ser
orientada por uma subjetividade que ordena os elementos sensveis em uma totalidade
homognea a partir de um ponto de vista privilegiado, um ponto de vista fixo, como aquele
dado pela perspectiva linear, e passa a ser algo da ordem do encontro, dos devires e zonas
de indiscernibilidade que embaralham as fronteiras entre o sujeito e o mundo, entre o
humano e o no-humano: ele sente bater no seu pulso o corao da montanha, e as
palavras que ele escreve na alvorada desenham a paisagem [...] eis aqui o que o sacode e
inquieta: se misturar paisagem430.
430 BERTO, AL. Voyage dun portugais, avec um stylo, em Cvennes, p. 15-17. il sent battre dans son pouls
le coeur de la montagne, et les mots quil crit laube dessinent le paysage [...] voici ce qui le secoue et
lobsde: se mler au paysage.
431 ______. Voyage dun portugais, avec um stylo, em Cvennes, p. 18. devenir rocher, rester immuable des
sicles sous le soleil, dans une somnolence heureuse. / grandir arbre, donner des feuilles, des branches, des
fleurs et des fruits. / pressentir les vents avec ses os daigle lent. / la nuit descend. Il tend les mains vers le
feu des astres et sent se dployer la sve des paroles, pour la familiarit avec les hommes.
432 ______. Voyage dun portugais, avec um stylo, em Cvennes, p. 21. quelque part, lhomme-paysage ouvre
ses yeux aux tnbres et frissonne aussi. / pore pore, les constellations allument son sang. [...] ses doigts
caressent lhumus profond de la nuit.
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[...] em algum lugar em si explode a alegria das vias lcteas.
Embriagado at os nervos, ele navega sobre os cimos do precioso
silncio, sobre os cumes desta terra primordial. [...] ele v, agora ele
v e comea a falar com tudo o que est vivo, com tudo que est
morto. [...] O vero a estao das revelaes.433
Consideraes finais
433 ______. Voyage dun portugais, avec um stylo, em Cvennes, p. 19, 21, 22. quelque part en soi clate la
joie des voies lactes. Enivr jusquaux nerfs, il navigue sur les cimes du prcieux silence, sur les sommets de
cette terre primordiale. [...] il voit, maintenant il voit et se met parler avec tout ce qui est vivant, avec tout ce
qui est mort. [...] Lt est la saison des rvlations.
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A programao iconogrfica da Capela do
Santssimo do templo de Nossa Senhora dos
Anjos em Mariana
A data de incio das obras de construo da Capela de Nossa Senhora dos Anjos
em Mariana ainda hoje uma incgnita. A primeira meno ao templo aparece no
regimento interno da Arquiconfraria do Cordo de So Francisco no ano 1779, quando os
devotos descrevem as festividades do calendrio litrgico e os rituais de sepultamento que
ali ocorreriam. Provavelmente, a construo da capela primitiva se iniciou logo aps a
fundao da agremiao em 1760, quando esses homens e mulheres de cor ainda se
reuniam em altar lateral na Capela de So Gonalo, situada no morro de mesmo nome.
Localizado na Rua Dom Silvrio (anteriormente denominada de Rua Nova, por ter
sido a ltima via aberta na antiga cidade) o templo dos pardos do Cordo simples e
modesto, demonstrando que foi erigido por agremiao religiosa de poucos recursos. O
434 Cf. CAMPOS, Adalgisa Arantes. As Irmandades de So Miguel e as Almas do Purgatrio: culto e iconografia no
Setecentos mineiro. Belo Horizonte: C/Arte, 2013, p. 81-134
435 Cf. ZILLES, Urbano. Significao dos smbolos cristo. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001, p. 36-46
436 Cf. MLE, mile. El arte religioso del siglo XII al siglo XVII. Mxico: Fundo del Cultura, s/d, p. 163-165
437 Este tambm foi um recurso utilizado na decorao da predela do altar-mor da Capela de So Sebastio,
localizada no morro de So Sebastio em Ouro Preto, construda e ornamentada ainda durante o Setecentos.
Ali, observam-se dez quadrinhos posicionados, cinco de cada lado do sacrrio. Judas Iscariotes e Judas Tadeu
no esto representados.
438 Para maiores informaes sobre os trezes painis, Cf.: FERREIRA, Maria Clara Caldas S. Arquiconfraria do
Cordo de So Francisco em Mariana: histria, arte e iconografia religiosa. 2009. Trabalho de Concluso de Curso
(Especializao em Cultura e Arte Barroca) IFAC/UFOP. Ouro Preto, 2009, p. 70-86
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pssaro smbolo de Jesus.439 De maneira simblica, ento, esta pintura representa o modelo
do amor de Deus pelos homens e da morte de Cristo pelo sacrifcio.
A segunda pintura representa um ostensrio iluminado, suspenso por nuvens. De
acordo com a liturgia catlica, a custdia o lugar onde se ostenta a hstia consagrada, ou
seja, o corpo de Cristo que ser compartilhado pelos fiis na comunho. A temtica da
esfera divina reforada pelo fato do ostensrio ser representado entre nuvens. Esttica e
estilisticamente, estas nuvens so similares s nuvens que decoram o camarim do altar
presente nesse ambiente, evidenciando que o mesmo passou por repintura na mesma poca
que a ornamentao das paredes foi feita.
No que se refere programao iconogrfica, a terceira pintura bastante
interessante. Sob as nuvens, est o livro fechado contendo sete selos (referncia ao
Apocalipse). Em cima deste aparece representado uma cruz com o cordeiro deitado (muito
semelhante composio que decorra o centro do forro da nave da Matriz de Nossa
Senhora do Pilar em Ouro Preto). No peito do cordeiro observa-se um punhal, dessa
feriada jorra sangue. Trata-se ento do sacrifcio e da ressurreio Cristo. Em algumas
passagens da Bblia, Cristo reconhecido como cordeiro. O exemplo mais notrio aparece
quando So Joo Batista exclama ao ver Jesus: Eis o cordeiro de Deus que tira o pedao
do mundo (Jo 1, 29). Certamente, se referia ao tema sacrifical do Velho Testamento:
o cordeiro primognito, aquele que se denomina hoje em dia de
cordeiro-do-So-Joo, surge, em sua brancura imaculada e gloriosa,
como uma cratofania primaveril; encarna o triunfo da renovao, a
vitria, sempre a renovar-se, da vida sobre a morte.440
J nos primeiros sculos aps a morte de Cristo, o cordeiro aparece como smbolo
do sacrifcio de Jesus. Nesta representao a temtica reforada pela cruz e a espada, que
simbolizam o martrio.
O livro o smbolo da sabedoria, fechado simboliza a matria virgem, pois
conserva o seu segredo.441 Contendo os sete selos representa o livro do Apocalipse, que
desvela todos os segredos da histria universal; o mistrio divino se manifesta apenas aos
iniciados.442 A traduo da palavra Apocalipse revelao. Ao se retirar os sete selos o
segredo que s o cu conhece ser revelado ao mundo:
Ento eu vi, entre o trono e os quatro seres vivos e no meio dos ancios,
um Cordeiro como que imolado, Tinha sete chifres e sete olhos, que so
os setes espritos de Deus enviados por toda a terra [...] Eles chamam em
alta voz: O Cordeiro que foi imolado digno de receber o poder, a
riqueza, a sabedoria, a fora, a honra, a glria e o louvor! (Ap 5, 6-12)
[...] Eu vi quando o Cordeiro abriu o primeiro dos setes selos; ouvi o
439 CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionrio de smbolos. Rio de Janeiro: Jos Olympio Editora,
1999, p. 705
440CHEVALIER. GHEERBRANT. Dicionrio de smbolos. p. 287
441________. Dicionrio de smbolos. p. 555
442HEINZ-MOHR, Gerd. Dicionrio de smbolo: imagens e sinais da arte crist. So Paulo: Paulus, 1994, p. 223-
224
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primeiro dos quatro seres vivos gritar com voz semelhante a um trovo:
Vem! (Ap 6, 1).
443 Sobre a bandeira de So Jorge ver SANTOS, Georgina Silva dos. Ofcios e Sangue: a irmandade de So Jorge
a arte religiosa nas Minas Setecentistas: trabalho e vida cotidiana. Belo Horizonte: Tese de Doutorado. Programa
de Ps-Graduao em Histria da UFMG, 2010.
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do fornecimento de objetos e servios de seus ofcios, controlavam os preos e quem os
poderia produzir. Para adentrar em uma corporao de ofcio necessitava tornar aprendiz
de um Mestre de ofcio e posteriormente realizar um exame. Este apresenta mltiplos
significados era um ritual de representao. Permitia, tambm, o monoplio do mercado
pelos mestres. Mas principalmente reproduzia a tradio, seja de aprendizagem e da tcnica
de produo, o que tornava os objetos e servios homogneos. As corporaes de ofcios
como uma instituio remanescente do perodo medieval buscava manter a tradio e a
prpria estrutura da sociedade hierarquizada. As corporaes de ofcios atravs da
regulamentao da aprendizagem e do exame inseriam o novo oficial mecnico no seu
lugar social naquela sociedade corporativa em que cada um ocupa um lugar e uma funo.
Nela o trabalho mecnico apresenta uma importncia de sobrevivncia material cotidiana
das populaes e tem um lugar, o do povo.
445 Ver SILVA, Fabiano Gomes da. Pedra e cal: os construtores em Vila Rica no sculo XVIII (1730-1800).
Belo Horizonte: Dissertao de Mestrado. Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG, 2007.
446 ALFAGALI, Crislayne Gloss Maro. Em casa de ferreiro pior apeiro: os artesos do ferro em Vila Rica e
Banais: o controle dos ofcios mecnicos pelas Cmaras de Lisboa e das Vilas de Minas Gerais (1750-1808).
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de corporaes que ordenava o trabalho mecnico e inseria novos oficiais na sociedade
dava uma liberdade individual. A insero social foi individual a partir da qualidade do seu
saber fazer, de sua capacidade tcnica, e das relaes com a elite local e outros oficiais. A
qualidade tcnica e a capacidade de atender diversas demandas obtidas pelo prestgio de sua
produo s eram possveis com o auxlio de oficiais jornaleiros, escravos e aprendizes.
Muitos estudos tem apontado uma busca de distino dos oficiais mecnicos e dos artistas,
principalmente os homens de qualidade parda. Mas devemos lembrar que so casos
isolados, a mobilidade social existia para alguns que conseguiram adentrar as redes de
sociabilidade local. importante enfatizar que a mobilidade horizontal, delimitada pelo
lugar social de cada ocupao, por uma estrutura de uma sociedade desigual e
hierarquizada. Na historiografia h diversos estudos de casos que demonstram que o
defeito mecnico no impedia de ocupar cargos rgios e at o ingresso no clero. Desde que
o individuo no exercesse mais o ofcio ou o defeito fosse somente de sangue devido a
antepassados mecnicos. Alm de ser muitas vezes uma graa rgia que concedia a dispensa
do defeito mecnico.
XVIII (as dinmicas de mestiagens e o mundo do trabalho). Belo Horizonte: Autntica, 2015, p. 95.
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carapina no vinha acompanhada com a palavra ofcio. A prpria ocupao no
regulamentada pela cmara, no necessitava de exame. Pertencentes aos chamados ofcios
de madeira junto com a carpintaria, marcenaria e os ofcios de entalhador e ensamblador. A
ocupao de carapina muitas vezes associado na historiografia como de escravos,
principalmente por ser um trabalho rstico. O carapina trabalhava com a plaina de
madeira, realizando os servios mais grosseiros de desbaste e corte 449. O escravo carapina
muitas vezes acompanhava o seu senhor que poderia ser um carpinteiro, portanto ele era
um ajudante do fazer mecnico cotidiano do seu senhor do seu proprietrio. Mas havia
tambm casos de escravos carapinas alugados para trabalhar em canteiros de obras que
recebiam jornais.
449 MENESES, Jos Newton Coelho. Anexo 2: Glossrio dos Ofcios Mecnicos. In: Artes Fabris e servios
banais: ofcios mecnicos e as Cmaras no final do Antigo Regime Minas Gerais e Lisboa, 1750-1008. Tese
(Doutorado em Histria) Universidade Federal Fluminense, Niteri, 2003, p. 318.
450 IBRAN/MOS/CBG/CSO-I(27) 230 1765
no mineravam: oficiais mecnicos nas Minas Gerais setecentista. In: RESENDE, M. E. F. & VILLALTA, L.
C. (Orgs). Histria de Minas Gerais: As Minas setecentistas 1. Belo Horizonte: Autentica & Companhia do
Tempo, 2007. P. 377-399.
457 IBRAN/MSO/CBG/CSO-I (21) 194 1760.
Introduo
Alguns pesquisadores ainda situam o rococ como faze final do barroco, o que est
totalmente incorreto, pois so estilos distintos. O barroco tem suas origens na Itlia do
sculo XVI e o rococ e originrio na Frana do sculo XVIII466.
Na arquitetura o barroco tinha objetivo de impactar o fiel que com ela se deparava,
pois esta materializava o poder da Igreja Catlica Triunfante, com a qual venceu os
protestantes na Europa e consegui difundir-se pelo mundo468.
462 MACHADO, Lourival Gomes. Barroco Mineiro. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 1969, p.
20.
463 OLIVEIRA, Myriam Andrade R. O Rococ religioso no Brasil e seus antecedentes europeus. So Paulo: Cosac &
Naify, 2003, 1 v.
464 OLIVEIRA, Myriam Andrade R. Barroco e Rococ no Brasil. Belo Horizonte: C/ Arte, 2014, p. 9.
465 ARAJO JNIOR, Delson Aguinaldo de. Anlise da produo pictrica da Capela do Senhor do Bom Jesus de
Matozinhos na cidade do Serro. 2015.97 p. Monografia (Ps graduao Lato Senso em Cultura e Arte Barroca)
Faculdade Federal de Ouro Preto. Ouro Preto.2015.
466 OLIVEIRA, Myriam Andrade R. Barroco e Rococ no Brasil, p. 9.
467 _________. Barroco e Rococ no Brasil.
468 _________. Barroco e Rococ no Brasil.
469 _________. Barroco e Rococ no Brasil.
ARAUJO JUNIOR, Delson Aguinaldo de. Pinturas nas Igrejas da Comarca do Serro Frio. 103
470
475 ARAUJO JUNIOR, Delson Aguinaldo de. Estampas como inspirao para a pintura em Minas Gerais. In:
IV ENCONTRO DE HISTRIA DA ARTE, 4, 2009, Campinas. Atas do IV Encontro de Histria da Arte da
UNICAMP. Campinas, SP: IFCH/Unicamp, p. 144-157.
476 Jargo de Martinho Lutero / Epistola de Paulo aos Romanos
477 Na regio do Sacro Imprio Romano-Germnico, Carlos V se recusou em oficializar a nova religio de
Lutero, alguns prncipes germnicos se rebelaram contra o imperador, a partir desta ao de protestos dos
prncipes o movimento ganhou nome de protestantismo.
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Estes foram os pilares que levaram a igreja catlica a rever suas bases, e reagir
perante o movimento protestante, diante da crise que envolveu a igreja o papa Paulo III
deu inicio a Contrarreforma, (ou reforma Catlica), em 1539 e 1540 o papa oficializou a
Companhia de Jesus, ordem religiosa criada pelo espanhol Incio de Loyola, que defendia
rigidez aos princpios da moral crist, obedincia hierrquica, no territrio luso brasileiro.
A Companhia de Jesus focava ateno redobrada com a educao das crianas, esta
ordem religiosa foi a principal aliada do papado contra o avano da heresia protestante.
Vieram significativas quantidades de jesutas para a Amrica, catequizando os ndios pela
moral crist, e implantaram valores europeus catlicos478, no Brasil fundaram muitos
povoamentos (misses ou redues) e cidades, como a cidade de So Paulo e os Sete Povos
das Misses, esta Companhia ficou conhecida como os soldados de Cristo de severa
obedincia aos superiores e ao papa.
478 LEITE, Serafim. Artes e Ofcios dos jesutas no Brasil. Lisboa: Brotria, Rio de Janeiro: Livro de Portugal,
1953.
479 SOUZA, Laura. Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. 2. ed. So Paulo: Companhia das Letras, 2014. v.
1. 542 p.
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A Comarca do Serro Frio foi uma importante regio mineradora, a primeira regio
da Amrica a ser encontradas as pedras preciosas dos diamantes, ocorreram extravios e
contrabandos, no qual estava envolvido parte da elite, contudo os penalizados eram os mais
vulnerveis, sendo, os escravos, os negros libertos, e a camada inferior da sociedade480.
A arte religiosa da regio do Norte de Minas Gerais, conta com escassos estudos,
porm de substancial importncia para a compreenso das mesmas, entre os pintores o
mais estudado foi o guarda-mor Jos Soares de Arajo precursor da arte religiosa do
circuito dos diamantes, introduzindo o gosto pela pintura de perspectiva de trama barroco,
atuando junto com auxiliares481.
480 FURTADO, Jnia F. O livro da capa verde: O regimento diamantino de 1771 e a vida no distrito diamantino
no perodo da Real Extrao. So Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGH/UFMG, 2008. 208 p.
481 MAGNANI, Maria Claudia A. O. Cultura Pictrica e o Percurso da Quadratura no Arraial do Tijuco no sculo
XVIII: entre o decorativo e a persuaso. 2013. 428 f. Tese (Doutorado em Histria Social da Cultura)
Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2013.
482 SANTOS, Antnio Fernando Batista dos; MIRANDA, Selma Miranda. Artistas pintores do Distrito
Diamantino: revendo atribuies. In: IV COLQUIO LUSO BRASILEIRO DE HISTRIA DA ARTE, 4, 1992,
Salvador. Atas do IV Colquio Luso Brasileiro de Histria da Arte. Salvador, BA: UFBA, 1992, v. 1, p. 411-
428.
483 ARAUJO JUNIOR, Delson Aguinaldo de. Anlise da produo pictrica da Capela do Senhor do Bom Jesus de
Matozinhos na cidade do Serro. 2015. 97 p. Monografia (Ps graduao Lato Senso em Cultura e Arte Barroca)
Faculdade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, 2015.
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discpulos, Silvestre de Almeida Lopes, de origem parda, do Capito Caetano Luiz de
Miranda e de Manoel Antnio da Fonseca, artista que trabalhou no forro da Matriz de So
Jos, em Itapanhoacanga, distrito de Alvorada de Minas.
O Guarda-mor e do perodo barroco, atuando nesta vertente artstica, por sua vez
os demais pintores citados acima so de outro estilo, o rococ. O Barroco de origem
italiana e a primeira forma de manifestao artstica catlica a se implantar no Norte de
Minas Gerais e o rococ tem suas origens na Frana de Luiz XV, um estilo de corte e foi
implantado no Brasil nos principais polos econmicos da poca, um estilo que ocorre
aps a manifestao do Barroco484.
Acredito que, a partir destes artistas, ocorriam oficinas locais, que tinham um
mestre orientador, escravos e artfices contratados. Desta forma, atuava Jos Soares de
Arajo no Arraial do Tijuco e imediaes, Caetano Luiz de Miranda atuou no Arraial do
Tijuco (atual cidade de Diamantina) Inha e em Vila do Prncipe (atual cidade do Serro);
seguiu de perto as produes do Guarda- Mor. Sua obra prima consolidou-se com a
pintura da Igreja do Senhor do Bom Jesus do Matozinhos, na Cidade do Serro. Silvestre de
Almeida Lopes desenvolveu trabalhos no Arraial do Tejuco e talvez em Conceio do
Mato Dentro, sua grande produo encontra-se na Igreja de Nossa Senhora do Amparo485.
484 OLIVEIRA, Myriam Andrade R. Barroco e rococ na arquitetura religiosa brasileira da segunda metade
do sculo XVIII. Revista do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, Rio de Janeiro, v. 29, p. 144-169, 2001.
485 ARAUJO JUNIOR. Pinturas nas Igrejas da Comarca do Serro Frio. 103 p.
Nos sculos XVII e XVIII prevaleceu na Europa o governo absolutista, cujo poder
estava centrado nas mos do monarca, o qual era monopolizado por uma nica famlia,
enfatizavam que esta forma de governo era de origem divina, com a confirmao da igreja
nos reinos catlicos. O imaginrio do direito divino dos governantes no era coeso em toda
a Europa, os Pases Baixos eram democrticos, a Inglaterra era regida por monarquia
parlamentar. Nos pases de monarquia absolutista prevaleceu a ostentao e o luxo487.
Barroco Italiano
486 BAZIN, Germain. Barroco e Rococ. 2 ed. So Paulo: Martins Fonte, 2010, p. X
487 ______. Barroco e Rococ, p. XI.
488 ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e persuaso. So Paulo: Companhia das Letras, 2004. 567 p.
489 BAZIN. Barroco e Rococ, p. 4.
490 ______. Barroco e Rococ.
Os primeiros crticos deste estilo, do barroco tinham uma viso bastante pejorativa
do mesmo, chamando o de gosto bizarro495 segundo Baeta:
491 Colunas Torsas ou Salomnicas, aluso s colunas do Templo de Salomo. Bernini se inspirou colunas da
Baslica de Constantino, Sculo IV.
492 Com mais de 25 metros de altura.
493 BAZIN. Barroco e Rococ, p. 14.
494 BAZIN. Barroco e Rococ, p. 17.
Concluso
O circuito dos diamantes foi um importante polo minerador das pedras preciosas
do perodo Colonial. Fruto da minerao foi surgindo vilas e povoaes as quais deram
origem a significativas igrejas com pinturas de estilo barroco e rococ. A pintura barroca
foi introduzida pelo guarda-mor Jos Soares de Arajo, que trabalhou com uma
significativa equipe. Na pintura de estilo rococ o artista mais notvel foi Caetano Luiz de
Miranda, com atuao na Igreja de Matozinhos do Serro e na Igreja de So Francisco de
Diamantina, sendo estas as principais obras deste artista. A produo pictrica da igreja de
Matozinhos do Serro de fato uma composio erudita, que se posiciona entre as mais
RESUMO: O retbulo do Estilo Nacional Portugus foi alcunhado por Robert Smith em
clebre livro sobre a talha em Portugal. Em Minas possvel encontrar traos deste estilo
em rarssimas peas de fins do XVII e incio do XVIII. O Nacional Portugus nas Minas
marcou o bero de uma das mais esplendorosas pocas artsticas e culturais do perodo
colonial, nos legando obras de inestimvel valor, focos do presente estudo. Tendo isso em
vista, elaboramos um estudo sistemtico de retbulos desta tipologia, com abordagens
estilsticas e iconogrficas, propondo escolas ou oficinas atuantes em Minas Gerais no
incio do sculo XVIII. Esse tipo de estudo nos auxiliar a dar nova abordagem sobre os
primrdios da Histria de Minas Gerais, lanando mo desses retbulos, at agora to
pouco estudados.
Barroco e territorializao
Muito se tem escrito sobre a produo cultural e artstica do chamado Barroco
Mineiro. Estudos variados sobre pintura, talha e escultura se multiplicaram nos ltimos
cinquenta anos. No entanto, cabe salientar que tais estudos acentuam um hiato: a
produo artstica do territrio das Gerais de fins do seiscentos e trs primeiras dcadas
do setecentos no recebeu ainda trabalho abrangente e sistemtico. Este perodo
marcado especialmente pelo aporte em terras americanas de uma tipologia especfica de
retbulos, de impulso criativo tipicamente lusitano, chamado hodiernamente de Estilo
Nacional Portugus (conforme alcunha dada por Robert Smith) ou simplesmente de
Barroco Portugus, conforme j discutimos em alguns congressos.
Outra rea que merece ser citada aquela compreendida no antigo Termo de
Mariana e parte do de Vila Rica, no Vale do Rio Gualaxo (afluente do Rio Doce),
499ALVES, Natlia Marinho Ferreira. A arte da talha no Porto na poca barroca, vol.1. Porto: Arquivo
Histrico/Cmara Municipal do Porto, 1989, p.216, 277.
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sobretudo em distritos marianenses como Camargos, Monsenhor Horta, Furquim e
Ribeiro do Carmo. Ainda que as criaes dessa regio estejam muito alteradas ou
apresentem por vezes um gosto de transio, so, contudo, importantes para
compreendermos a difuso desse estilo em reas de minerao intensa em incios do
sculo XVIII. O estudo de igrejas como a So Caetano de Monsenhor Horta nos
possibilita entender o processo de mudana de uma morfologia e iconografia tpicas do
seiscentos para a nova formalidade ao gosto joanino italianizante, com dossis,
cortinados e um desenho mais arquitetnico. So monumentos emblemticos: a Matriz
de Bom Jesus de Furquim, a Igreja de So Sebastio de Ribeiro do Carmo, a Igreja de
Nossa Senhora da Glria de Passagem de Mariana, a S e a Santana de Mariana e a
Igreja de So Jos de Ouro Preto, com seus dois pequenos retbulos laterais de nosso
estilo.
500 Em mapas antigos era comum se dar mais nfase aos rios e ribeiros, que aos caminhos e picadas,
rudimentares quase sempre. Exemplo disso o famoso mapa elaborado por Cludio Manoel da Costa em
1782, onde constam as comarcas de Vila Rica e do Rio das Velhas. Nele h especial ateno hidrografia,
estando representados com bastante preciso os principais rios, afluentes e pequenos ribeiros (como o Rio
Maracuj de Cachoeira do Campo e o Crrego Cip, perto da paragem do Capo do Lana).
501 provvel que em incios do sculo XVIII muitos outros templos ostentassem peas do Estilo Nacional,
Poderamos nos aprofundar em qualquer uma das oficinas que circularam nas
localidades acima, mas, tendo em vista o espao reduzido aqui, iremos privilegiar aquelas
identificadas na Matriz de Cachoeira do Campo por essa igreja possuir documentos
remanescentes e pela importncia de sua talha que, pelo que pudemos perceber, reaparece
em vrios lugares, como Sabar, Pompu e Caet. Resolvemos alcunhar um desses
escultores como Mestre de Cachoeira, j que se trata de artista annimo que deixou nesse
distrito a parte mais volumosa de sua obra.
Pela anlise detida dos elementos antropomrficos, sugerimos que esse mestre
atuou, como dito, na Matriz de Nazar (na capela-mor, arco e altares do cruzeiro), em
Santo Antnio de Pompu (no arco-cruzeiro e no lavabo da sacristia, cuja carranca se
assemelha aos dois mascares sob os nichos do mor da Nazar, com desenho parecido das
sobrancelhas, nariz e bigode), na Penha de Caet (em fragmentos esparsos), no Rosrio de
Caet (especificamente nos nichos das peas laterais) e no medalho do coro e sacristia da
Matriz de Sabar (cuja posio dos anjos, dos putti-estpites e dos porta-cortinas
exatamente a mesma daquelas encontradas nos retbulos laterais do Rosrio de Caet e na
densa decorao da matriz cachoeirense). Levantamos tambm a hiptese, pela anlise dos
elementos fito e zoomrficos, que esta seja a mesma oficina que atuou no retbulo-mor do
de Sabar.
502 Esses putti e anjos da capela-mor e arco-cruzeiro esto de tal forma repintados que foi impossvel resgatar
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do cruzeiro (que apresentam os mesmos vcios escultricos anteriores, mas com melhor
compleio), no obstante a ornamentao fito e zoomrfica ser praticamente a mesma.
Foi a anlise desses adornos, baseados em fnix e parreiras, que nos permitiu sugerir ser
essa a mesma oficina do de Sabar. Mas, teria esse artista abandonado uma tipologia, a
favor de outra, mais condizente com os grandes centros portugueses, onde abundavam os
putti? Cremos que isso perfeitamente possvel. Ou teria esse escultor feito primeiro a
capela-mor de Cachoeira e, depois, o , abandonando assim os ornatos humanos? H
documentos que insinuam isso. Sobre o , h uma solicitao da irmandade datada de
1717:
a policromia original na recente restaurao. Talvez muito da diferena notada entre esses e os da nave se deva
a essa repintura (a policromia da nave indelevelmente superior).
503 Apud VASCONCELLOS, Sylvio de. Capela de Nossa Senhora do . Belo Horizonte: Escola de Arquitetura
Concluso
Um trabalho que se impem agora ser procurar e, quem sabe, trazer a lume
manuscritos inditos ou - mesmo que nada novo se encontre - reler os j descobertos, com
o intuito especial de confirmar atribuies e dataes. muito importante, daqui para
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frente, propor periodizaes mais precisas, coisa invivel num estudo muito abrangente.
Cruzando informaes muita coisa pode mudar, como fizemos, por exemplo, ao
compararmos a petio citada por Sylvio de Vasconcellos (que aponta a data da
ornamentao do como em andamento em 1717) e o testamento de Antnio de Barros
(que sugere que a capela-mor de Cachoeira estaria sendo construda em 1714): seria a
Nazar concomitante com a do ? Ou, quem sabe, mais antiga? caminho que
demandaria mais uma srie de suposies, mostrando um escultor que abandona a
escultura humana a favor dum fitomorfismo e zoomorfismo ornamental. Contudo,
somente novos achados poderiam elucidar esse tipo de questionamento. Vasculhados os
arquivos locais, restaria algo nos acervos europeus?
Apresentao
506 Traduo: Florestas Reais. Esforo de converter pores do espao natural em propriedades privadas ao
rei, cabendo-lhe a jurisdio e o cuidado desse territrio, bem como os usos e desusos dos recursos naturais
presentes.
507 Para saber mais sobre este episdio, conferir primeiro captulo da obra COX, John Charles. The Royal
Em seu tratado, Manwood elabora leis acerca da atividade ento superada (mas no
esquecida) da caa, a que espcies caberiam a preservao dentro das florestas e, de maior
relevncia ao pressuposto deste artigo , o que significava a floresta e seu papel na esfera
poltica inglesa. Para isso, o jurista elisabetano investiga tratado e documentos oficiais do
estado ingls como exemplo, a Magna Carta513, e recortes de tratados jurdicos passados.
A seguir elenco dois exemplos presentes em sua obra.
510Traduo: Um tratado de leis da floresta onde so declarados no apenas essas leis, que esto em pleno
vigor, como tambm a origem e principio das florestas, e qual a natureza prpria de uma floresta.
511 H uma escassez de dados mediante a vida de John Manwood. Para alm desses dados John Manwood.
Captado em https://en.wikipedia.org/wiki/John_Manwood. Acesso em: 29 jun. 2015 e das citaes e
anlises presentes nas bibliografias de Keith Thomas, Simon Schama, John Cox (intelectuais a ser
contemplado nos tpicos seguintes) e Elizabeth Weixel (autora no selecionada para o trabalho, mas que
dedica um captulo de sua dissertao de mestrado a ele, WEIXEL, Elizabeth Marie. The Forest and Social
Change in Early Modern English Literature, 15901700. Minnesota: University of Minnesota, 2009, p. 14-104),
no constam mais informaes confiveis quanto ao jurista ingls.
512Obra que no foi contemplada para esse trabalho, por questes de acesso a ela.
513 nico documento a que foi possvel recuperar para compreender a proposta do jurista e complementar o
trabalho. Ver LANGTON, Stephen. Magna Carta (The Great Charter). London: Constitution Society, 1215.
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nacionalidade inglesa. Justifico mediante duas passagens: sua arguio quanto formao
da palavra Forest, segundo ele, for rest, sentido de lugar de descanso e deleite, logo, espao
onde o homem e a sociedade tambm se inserem Diferentemente da noo europeia
costumeira, Silva, com sentido de estranho, externo a esfera social e cultural (debate
presente no primeiro captulo); e o exerccio de, nos captulos tratando de espcies da
fauna, aponta-los segundo o linguajar nacional e no cientfico, em latim: The beasts of
the forest were the hart, the hind, the hare, the wild boar and the wolf. The beasts of the
chase were the buck, the doe, the marten, the roe deer, and the fox, while the beasts and
fowl of the warren were the cony, the pheasant and the partridge514.515 Por fim, seu
esforo de legar a Royal Forest um espao prioritariamente vinculado ao deleite, controle e
representao da Coroa, discurso iniciado no seu captulo 2, e permeia os quatro captulos
seguintes. Segundo ele, A Forest is a certain territory of woody grounds and fruitful
pastures, privileged for wild beasts and fowls of forest, chase, and warren, to rest and abide
there in the safe protection of the King, for his delight and pleasure516.517
514 Traduo: As bestas da floresta so o cervo, a cora, a lebre, o javali e o urso. Os animais de perseguio
so o pinote, a cora, o veado, a raposa, e enquanto as feras e aves de enclausuramento so o ochotona, o
faiso e perdiz.
515MANWOOD, John. A treatise of the laws of the forest wherein is declared not only those laws, as they are now in force,
but also the original and beginning of forests, and what a forest is in its own proper nature (1598). Londres: Company of
Stationers, 1665, p. 91-92.
516 Traduo: A floresta um certo territrio de terrenos arborizados e pastos privilegiados para feras
selvagens e aves de floresta, perseguio, enclausurado, para descansar e ficar ali seguras na proteo do Rei,
para o seu deleite e prazer.
517_________. A treatise of the laws of the forest wherein is declared not only those laws, as they are now in force, but also the
original and beginning of forests, and what a forest is in its own proper nature (1598), p. 40-41.
518 Corrente historiogrfica em dilogo com outras Cincias Humanas que se pretende analisar
acontecimentos e sociedades na compreenso da Ideia, ou ideias, que norteiam povoam e constituem esses
elementos. Um dos seus fundadores Lovejoy, argumentando que uma Ideia, defiinia-se como algo absoluto
e nico.
519 Ramificao da Histria das ideias que, divergindo da proposta de Lovejoy, concebe a relevncia do tempo
influncia de uma ou vrias ideias. O autor a que o artigo se fundamenta Quentin Skinner, em sua obra
SKINNER, Quentin. Vises da Poltica Questes Metodolgicas. Algs: Difuso Editorial S.A., 2005.
520 THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural Mudanas de atitude em relao s plantas e os animais (1500-1800).
522 SCHAMA, Simon. Paisagem e Memria. So Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 148.
523_________. Paisagem e Memria, p. 155.
524 Uma vez que Cox publicou seu livro cerca de um sculo antes de Schama, possvel interpretar que a
crtica dele a Manwood tenha sido uma influncia ao historiador.
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with forest legislation525.526 Apesar disso, seu trabalho nos relevante dado a riqueza de
detalhes acerca da Inglaterra, contemplando no tempo desde a gnese do territrio
ocupado por bretes e saxes no Imprio Romano at a sua contemporaneidade (finais do
sculo XIX); bem como no espao em sua segunda parte captulos detalhados
referentes s florestas existentes na Inglaterra, analisando aspectos histricos e fsicos das
mesmas, recorrendo a quadros e pinturas e a tratados e escritos de letrados. Na primeira
parte da obra, especificamente os primeiros oito captulos, o autor recupera elementos da
Histria Inglesa, marcados nesse dilogo com a natureza, bem como da prpria hierarquia
composta nessa Instituio real apontando para os ofcios, caractersticas, direitos e
deveres alm de dedicar captulos investigando a fauna e a flora, menos em seu aspecto
biolgico, e mais na dimenso simblica que estes possuam para a Coroa, a corte, e a
sociedade como um todo, configurada segundo essa leitura de humanizar animais e atribuir
valores a espcies de rvores, neste aspecto, vinculando ao mesmo ideal de Manwood e a
parte da pesquisa de Thomas (especificamente nas terceira, quarta e quinta parte de sua
obra, referente fauna domstica, selvtica e a flora, da Inglaterra Moderna, onde ele
defende que, at os sculos XVI e XVII, a classificao de animais e plantas dava-se pela
sua relao com o homem, ou seja, pela sua utilidade real e retrica527).
Consideraes Finais
525 Traduo: Em tais indicaes Manwood parece ter invocado leituras estrangeiras e no tratados ingls de
caa, uma falha em que ele foi imitado por mais de um escritor moderno, e tambm por ter confundido
mtodos de caa com a legislao florestal.
526 COX, John Charles. The Royal Forests of England. Londres: Great Britain Publisher, 1905, p. 25.
527Por real, refiro-me sua subsistncia alimento, transporte e segurana; e por retrico apropriao de
humanizar espcies da fauna e flora, atribuindo-lhes adjetivos, relevncia na comunho com o homem e, em
certos, casos, conscincia.
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expanso e mais e pelo reforo aos recursos existentes no territrio. Em suma, o jurista em
questo nos traz um novo olhar ideia de Estado Ingls no sculo XVI.
Ainda que o texto esteja distante de apresentar uma plena conscincia histrica no
sentido moderno do termo, no resta dvida de que o Conde de Ericeira percebia a
singularidade do tempo em que vivia, e assim, supera a ideia de Histria Magistra Vitae, de
528 JASMIN, Marcelo Gantus; JNIOR, Joo Feres. (org.) Histria dos conceitos: debates e perspectivas. Rio de
Janeiro: Editora da PUC-Rio, IUPERJ, 2006, p.44.
529 MENESES, D. Lus de (3 Conde de Ericeira). Histria do Portugal Restaurado Tomo I. Lisboa: Oficina de
De posse de quatro grandes blocos documentais, apenas para fins didticos, optei
por uma exposio cronolgica, do escrito mais precoce ao mais alongado no tempo.532 O
primeiro conjunto documental origina-se dos partidrios do infante D. Pedro e compe
uma narrao sobre os diversos eventos que ilustraram a insatisfao do infante com o rei,
a relao diplomtica entre o infante e a rainha e a forte influncia do valido conde de
Castelo Melhor sobre o rei. Como tal, a anlise da fonte carece de especial ateno, tendo
em vista sua escrita endereada e parcial. Como sempre nos lembra o historiador Marc
Bloch, no basta ter as fontes, preciso fazer as perguntas corretas.533 Assim sendo,
analisarei a Catastrophe de Portugal. Guiado por esse princpio, debruamo-nos sobre a
terceira fonte, igualmente parcial. Trata-se da Anti-Catastrophe de Portugal; como o ttulo nos
indica, ela consistia em uma resposta direta ao escrito dos partidrios de D. Pedro. Nessa
altura realizarei uma comparao entre as fontes, tendo em vista que estas descrevem
eventos de maneira paralela e, muito mais do que as coincidncias, preciso perceber as
pequenas omisses e breves adies que cada um dos autores faz em sua obra acerca do
evento descrito, em especial quando essas fontes procuram omitir conflitos e tenses que
531 KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuio semntica dos tempos histricos. Rio de Janeiro:
Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.
532 PERES, Damio. (Ed.) Monstruosidades do tempo e da fortuna. (1662-1669) Porto: Companhia Editora do
Como vimos, o autor era partidrio de D. Pedro, e tal proximidade com a realeza
no deixa de estar presente em seu cunho orientador. Ainda que no se pretenda um
espelho de prncipe nos moldes renascentistas, o relato permite passar alguns
534FARIA, Leandro Dorea Caceres (Ferno Correia de Lacerda). Catastrophe de Portugal na depofio del Rei D.
Affonso o sexto. Lisboa: Miguel Manescal, 1669.
535______. Catastrophe de Portugal na depofio del Rei D. Affonso o sexto. Entende-se por razo de Estado aquela
srie de pressupostos ligados ao governo. Como nos aponta Michel Sennelart, toda a razo de Estado depois
da Santo Agostinho ficou dividida entre a lgica do reger (regere) e dominar (rex).Michel Sennelart. As Artes de
Governar. So Paulo: Editora 34, 2006.
536 SOUZA, Camillo Aureliano da Silva. A Anti-Catastrophe: historia d'elrei d. Affonso 6. de Portugal. Porto:
Tipografia da Rua Formosa, 1845.
537 SKINNER, Quentin. A era dos Prncipes. In: As Fundaes do Pensamento Poltico Moderno. So Paulo:
Nessa mesma esteira D. Luis de Meneses aparece entre todos os escritos o mais
notrio, pois executa um apanhado do perodo da Restaurao Portuguesa, no mais em
busca de exemplos ainda que favorea D. Pedro mas a anlise de uma trajetria mais
ampla e da clareza de antes, agora e depois. A ideia de passagem do tempo, no mais num
caminho determinado at o Apocalipse, mas at um futuro controlvel to controlvel que
culmina na consolidao de D. Pedro no poder em 1683, quatro anos depois do escrito de
Ericeira. Dessa forma, temos uma nova ideia de passagem do tempo, que parece um
esboo da temporalizao de Koselleck, operando uma diferenciao dos demais escritores
coevos bem mais preocupados com a Magistra Vitae.
539 ______. Catastrophe de Portugal na depofio del Rei D. Affonso o sexto, p.15.
540 SOUZA. A Anti-Catastrophe: historia d'elrei d. Affonso 6. de Portugal, p. 15.
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Se D. Luis de Meneses foi capaz de perceber a passagem do tempo de outra forma,
parece certo que os outros elementos essenciais para o sattelzeit de Koselleck parecem mais
distantes. A democratizao no aparece nem como uma vasta sombra, afinal trata-se de
uma sociedade de Antigo Regime tpica, hierarquizada, estamental e com limitada
mobilidade social. Ericeira menciona, por exemplo, um processo de consolidao de uma
sentena de morte e tambm ali as hierarquias estavam presentes.
A politizao tambm no est ali, pois a poltica era palaciana, os populares eram
praticamente excludos como o prprio Ericeira reconhece: e a dispor de sorte os nimos,
que concorre no empenho ou todo ou a maior parte da nobreza, resoluo que costuma a
seguir o povo, e sem ela so sem inconstantes os seus afetos.542 Ademais esses escritos no
apresentavam ampla divulgao e ainda que divulgados o pblico leitor era bastante
restrito. Trata-se de uma sociedade no limiar entre oralidade e o letramento tal como as
sociedades contemporneas543 A transformao de conceitos em ideologias seria a terceira
etapa do processo de mudana nos conceitos, mas tambm no observamos a formao
dessas ideologias, mas essa questo tambm pode ser discutida. Afinal, a historiografia
portuguesa sobre o perodo ainda discute se podemos falar em uma ideologia poltica da
Restaurao nas palavras de Lus Reis Torgal.
Paulistana, 2006.
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Um Iluminismo perifrico? Histria das Ideias e a
Ilustrao em Portugal
Igor Tadeu Camilo Rocha
Doutorando/Bolsista CAPES-PROEX
Universidade Federal de Minas Gerais
[email protected]
Resumo: Dentro de modelos analticos tradicionais, que remetem a autores como Paul
Hazard, Peter Gay e Erns Cassirer, Portugal, bem como Espanha e suas respectivas
colnias, fizeram parte de uma periferia no que tange o contexto intelectual e sociolgico
das Luzes. Tais modelos privilegiam a posio francesa como central e a inglesa como uma
espcie de precursora, e o desenvolvimento do Iluminismo se deu, mais ou menos, a partir
de ecos da circulao da Enciclopdie ou de autores como Rousseau e Voltaire. Entretanto,
especialmente aps a publicao da obra Utopia e Reforma do Iluminismo, de Franco Venturi,
na qual se defende a tese de que a Ilustrao fora uma cosmopolitizao da linguagem do
republicanismo dos levelers ingleses aps a Revoluo do final do XVII, abriu-se caminho
para o desenvolvimento de modelos que mudaram drasticamente a geografia e cronologia
do Iluminismo. No que tange o caso portugus e luso-brasileiro, tradicionalmente colocado
como um Iluminismo perifrico, tal renovao da historiografia permitiu discusses que
foram alm da busca pelos motivos do atraso ibrico em relao s ideias em
desenvolvimento, especialmente no sculo XVIII, nos Alm-pirineus. O objetivo aqui
colocado discutir como essa mudana de perspectiva toca em questes centrais de uma
historiografia recente sobre a Ilustrao Portuguesa e luso-brasileira.
Ao longo das minhas pesquisas para o mestrado, que visaram a discusso a respeito
da difuso e defesa da tolerncia religiosa entre os libertinos em Portugal e Amrica
portuguesa entre a segunda metade do sculo XVIII e primeira dcada do XIX, buscando
sua relao com o contexto das ideais das Luzes, sem perder de vista um substrato cultural
lusitano que tendia a uma relativa tolerncia, surgiu um problema a ser enfrentado: como
pensar a Ilustrao em Portugal e Brasil, sendo que h geraes de trabalhos sobre esse
contexto que relegam esses dois contextos posies perifricas na Ilustrao. Na medida
em que as fontes confirmavam que a defesa da tolerncia religiosa nas falas dos chamados
libertinos articulava, diversas vezes, leituras inventivas dos pensadores da Ilustrao com
elementos da cultura e religiosidade portuguesas notados nas fontes inquisitoriais desde o
sculo XVI, surgiu a necessidade de se recorrer a trabalhos que repensavam essa posio.
Foram sendo vistas situaes em que a formulao e circulao de ideias correspondia
544 HAZARD, Paul. O pensamento europeu no sculo XVIII: de Montesquieu a Lessing. Editorial Presena.
Livraria Martins Fontes. Traduo: Carlos Grifo Babo. Lisboa, 1974. Pp. 36-72.
545 Essa mudana decisiva (tolerncia negativa, indiferentista dando lugar afirmao da tolerncia e
liberdade de conscincia) produz-se no momento em que, no lugar do pathos religioso que agitava os sculos
precedentes, os sculos das guerras de religio, surge um puro ethos religioso. A religio no deve ser algo a
que se est submetido. Ela deve brotar da prpria ao e suas determinaes essenciais. O homem no deve
ser mais dominado pela religio como por uma fora estranha; deve assumi-la e cri-la ele prprio na sua
liberdade interior. CASSIRER, Ernst. Filosofia do Iluminismo. 2 ed. Campinas. SP. Editora Unicamp. 1994.
P. 225.
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interpretativos sobre a Ilustrao, especialmente em relao concepo generalizante do
Iluminismo europeu, como centralizada mais ou menos na Frana.
Viotti da Costa, dessa maneira, defende que o que se chama de Iluminismo seja
uma inveno, uma vez que designa uma gama bastante ampla de generalizaes que no
correspondem a uma realidade histrica desse contexto permeado por debates,
discordncias e dissensos. A autora tem razo em sua crtica somente se consideramos
concepes tradicionais e modelos interpretativos mais generalizantes sobre a Ilustrao.
Uma historiografia mais recente, que ganhou fora principalmente a partir das dcadas de
1970 e 1980, no entanto, em uma tentativa de reviso historiogrfica crtica a esses modelos
tradicionais, colocou novas questes aos historiadores sobre as Luzes. Em termos de ideias,
bem como na difuso social, geogrfica e cronolgica da Ilustrao, dentro de uma
perspectiva de uma histria social das ideias, pesquisas recentes chegaram a concepes de
Ilustrao caracterizadas por uma grande diversidade. Tratam-se de concepes que se
afastam muito das criticadas por Viotti da Costa por no se basearem em buscas por
homogeneidade.
546 COSTA, Emlia Viotti da. A inveno do Iluminismo. In: COGGIOLA, Osvaldo (org.). A Revoluo
Francesa e seu impacto na Amrica Latina. So Paulo: Edusp, 1990. P. 33.
547 ______. A inveno do Iluminismo, p. 34
548 C.f. CARVALHO, Flvio Rey. Um Iluminismo portugus? A reforma da Universidade de Coimbra (1772).
no sculo XVIII, concluindo que houve um quadro de crescimento no primeiro quartel do sculo XVIII,
sucedido por uma depresso aps a dcada de 1730; depois, uma retomada na dcada de 1740, seguida de
uma expanso que durou at a dcada de 1770; e por fim, um perodo de altas e baixas at a Revoluo de
1789. O problema colocado por Venturi se as consideraes de Labrousse sobre as curvas da economia
francesa no sculo XVIII se aplicam ao restante do continente europeu e, em caso afirmativo, em que
medida. Venturi considera que, em linhas gerais, o quadro francs pode ser aplicado ao restante da Europa,
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no perodo cujas produes visaram principalmente resoluo de problemas da vida
pblica, entre os quais os econmicos, no somente da Frana, mas tambm na Pennsula
Ibrica, Itlia, Europa Central, entre outros espaos. Assim, por mais que as obras que
tentem discutir sobre problemas concretos das realidades especficas dos diversos pases
divirjam entre si, dada a prpria diversidade de contextos locais em que so produzidas, h
algo em comum que as liga, que as entrelaa com uma situao geral, que o quadro
econmico europeu555. nesse contexto que surgiu a Encyclopdie, entre o final da dcada de
1740 e a de 1750. E ela tem uma importncia central na concepo de Venturi sobre a
Ilustrao. O ambiente intelectual formado em torno dela e a sua circulao na Europa
serviram, segundo o autor, para espalhar ideias iluministas em toda o continente, com um
sucesso bem maior do que o dos panfletos ou polmicas sobre a religio ou poltica. A
divulgao das artes e das cincias feita pela Encyclopdie espalhou, de acordo com Venturi,
uma linguagem comum para se pensar os problemas concretos, com noes secularizadas
de felicidade, utilidade, bem comum, entre outras, nos mais diversos contextos europeus.
Criaram-se, assim, condies para o que ele chamou de uma Primavera das Luzes,
contexto em que os filsofos formaram uma espcie de partido autnomo, cujo ideal era
o de assumir a dianteira nas mudanas sociais. O despotismo esclarecido, as academias
de cincias espalhadas pela Europa, bem como as lojas manicas, entre outros, foram,
para Venturi, exemplos claros desse ideal que marcou a vida intelectual europeia, da
segunda metade do sculo XVIII at a Revoluo de 1789556.
As teses de Venturi, bem como as por ele influenciadas que expandem a geografia e
cronologia da Ilustrao, bem como abdicam do objetivo de buscar unidades e
com alguns limites, mas que a realidade econmica serve como um elemento comum entre os diversos
contextos locais no perodo das Luzes e que se relacionam com as diversas ideias que surgem no perodo no
sentido de se reformar as sociedades, instituies e Estados. C.f. LABROUSSE, C. E. Esquisse du
mouvement des prix et des revenus en France au XVIII sicle. Paris. 1932. Apud: VENTURI, Franco. Utopia
e Reforma no Iluminismo, pp. 217-223.
555 ______. Utopia e Reforma no Iluminismo, pp. 221-222.
556 Paradoxalmente, dessa Primavera das Luzes estaria excluda a Inglaterra, bero dos valores que, ao se
tornarem cosmopolitas, deram origem s Luzes. Isso porque nesse perodo, embora o autor ressalte a
importncia de alguns autores como Richardson, Thomas Paine, entre outros, no se forma em terras inglesas
um partido dos filsofos, entendido aqui como pensadores (filsofos ou no) engajados em aes e
mudanas na sociedade, da mesma maneira que se formou em Frana ou nas monarquias em que houve
processos que entendemos como despotismo esclarecido. Digo paradoxalmente, por se considerar que o
no engajamento dos pensadores ingleses nesse perodo se deve ao fato de a Revoluo Inglesa j ter
acontecido no final do sculo XVII. Assim, por mais que o discurso republicano ingls tenha influenciado a
formao de ideais caros ao iluminismo, como os de liberdade, igualdade, tolerncia, utilidade, entre outros,
na Inglaterra, no era mais um grande problema se alcanar tais ideais, que j tinham sido conquistados na
Revoluo e com a monarquia constitucional. ______. Utopia e Reforma no Iluminismo, p. 226-246.
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homogeneidade nesse contexto de ideias, abriu espaos para produes que questionaram
fortemente a forma como se inserem Portugal e Brasil nas Luzes, Por exemplo, eu autores
como Francisco Calazans Falcon, Fernando Antnio Novais e Caio Cesar Boschi, notamos
a tendncia de se conceber as Luzes portuguesas e luso-brasileiras, em linhas gerais, como
eclticas, estrangeiradas ou de compromisso. O termo ecltico, por exemplo, que
Falcon utiliza como uma caracterstica marcante Ilustrao portuguesa, remete a esse tipo
de interpretao. O ecletismo se caracteriza como uma conciliao entre moderno e
arcaico, em que um discurso modernizador divide espao com o da manuteno ou de uma
ruptura branda e conservadora com as estruturas tradicionais557. Diante dos modelos
interpretativos das Luzes adotados nesta pesquisa, essa concepo se torna problemtica
por dois motivos. O primeiro deles o de se conceber a Ilustrao como nica, e no
mltipla. Dessa maneira, as contradies inerentes ao contexto das Luzes so, ou
desconsideradas para serem encaixadas nos modelos explicativos mais gerais, ou ento so
interpretadas como sinais de atraso. O segundo a prpria ideia de ecletismo, um tanto
teleolgica, por partir do pressuposto de haver um ponto a se atingir em um processo de
modernizao que teria sido alcanado pelos Estados alm-pirenaicos, e no por Portugal.
As Luzes portuguesas, nessa perspectiva, so analisadas em relao sua proximidade ou
distncia de um telos de modernidade, previamente concebido. O atraso, o arcasmo, ou o
convvio entre antigo e moderno acabam, dessa maneira, sendo colocados como limites de
uma modernizao plena, construda a partir de modelos galocntricos.
557Falcon utiliza o termo ecletismo ao se referir s Luzes portuguesas, mas em especial orientao
secularizante do reformismo pombalino. O autor afirma que, no mbito geral, as reformas pombalinas foram
secularizadoras, mas seus meios foram cautelosos, eclticos. Para ele, o que predominou foi o meio termo,
a cautela diante das motivaes excessivas, o receio do desconhecido que o seja em demasia. E alm das
reformas que incidiram no campo poltico, econmico e social, essa tendncia ecltica se evidenciou em todos
terrenos: no das ideias, no dos livros e, em ltima anlise, quanto anlise filosfica que se deveria imprimir
ao processo secularizador como um todo. FALCON, Francisco Calazans. A poca Pombalina, p. 431.
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influncia de historiadores como Jules Michellet (1789-1874), reduziram o sentido da
histria da humanidade europeia. Afastar-se do modelo da Europa civilizada era estar
parte do curso teleolgico natural do gnero humano, e, dessa maneira, dialoga com uma
ideia de modernidade cujo ponto a se chegar seria a europeizao de Portugal, inadivel e
retificadora. Essa perspectiva influenciou muitas geraes de pensadores a respeito da
Ilustrao portuguesa, ibrica e luso-brasileira que partiu sempre da ideia de uma ausncia
das Luzes, luzes envergonhadas, luzes eclticas e luzes catlicas, vocabulrio
comum a muitos autores brasileiros e portugueses que tentavam buscar as razes pelo
atraso luso-brasileiro ou ibrico em relao Europa civilizada558.
-Para eles foi mais fcil. Foi s passar a limpo a nossa revoluo. 559
No ltima Hora, no seria exagero apontar que basicamente todo o editorial estava
organizado nas manchetes da primeira pgina e nas colunas e sees especializadas das
pginas posteriores, com exceo de alguns momentos da histria poltica no Brasil em que
as manchetes de primeira pgina poderiam chamar muito a ateno.
imprensa em transio: o jornalismo brasileiro nos anos 50. Rio de Janeiro: Editora Fundao Getlio Vargas, 1996. p.
151; RIBEIRO, Ana Paula Goulart Ribeiro. Imprensa e histria no Rio de Janeiro dos anos 1950. Rio de Janeiro: E-
papers, 2007, p. 39 e 40.
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566
Com o golpe de 1966 na Argentina, o ltima Hora, muitas vezes, tece
comparaes diretas entre Brasil e Argentina, sem eufemismos, jogos de palavras ou
questes subentendidas, embora a grande imprensa viesse sentindo as restries
impostas ao livre exerccio opinativo e de crtica ao governo.
562 Embora no haja uma referncia direta ao golpe militar no Brasil, o jornal j tornava explcitas as
semelhanas que, de incio, percebia entre os movimentos em ambos os pases.
563 Arturo Umberto Illia Francesconi, mdico, integrante da UCRP (Unin Cvica Radical del Pueblo) foi
eleito em outubro de 1963 e permaneceu no poder at junho de 1966, sendo retirado do poder pelo golpe
militar.
564
As manifestaes grevistas na provncia aucareira de Tucum, principalmente diante da decadncia
econmica, intensificou os apontamentos de Illia como incapaz de resolver os problemas econmicos do
pas.
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tenham sido as intenes dos artistas, suas crticas ajudaram a enfraquecer o
governo.565
565 MOTTA, Rodrigo Patto S. Jango e o golpe de 1964 na caricatura. 1. Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006,
p.12-13.
566 Jornal ltima Hora. 29 de junho de 1966.
567 Jornal ltima Hora. 29 de junho de 1966.
bastante poder direita do movimento justicialista, em especial no reprimindo suas aes terroristas,
dirigidas contra a esquerda, fosse peronista ou no. Seu aparato era organizado por assessores da presidenta,
com o conluio de policiais, empresrios e militares. Ao mesmo tempo, o movimento guerrilheiro, de fundo
peronista ou guevarista, avanou, em termos de popularidade entre a juventude estudantil e em termos do
nmero de aes guerrilheiras e terroristas. Os anos de 1974 a 1976 viram se adensar, de parte a parte, os
assassinatos, assaltos a bancos, sequestros e atentados a bombas, que havia se iniciado j durante o governo
de Lanusse.
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571
crise no pas. Com isso, o opinativo terminava indagando: at quando o exrcito
argentino esperar que o convoquem? com suas estratgias salvacionistas para a crise.
572
A noo de distanciamento das Foras Armadas ainda ganhou projeo nos dias
anteriores ao golpe. Em manchete de 18 de maro, Exrcito Argentino no se interessa
por golpe, o Ministro da Defesa Jorge Deheza garantia que: As Foras Armadas no
572 Diante dos altos ndices de desemprego, crise poltica e econmica, a populao aceitava qualquer soluo
para os problemas, inclusive o retorno militar. O que aconteceu em 24 de maro de 1976, quando a junta
militar composta pelo General Jorge Rafael Videla, almirante Emilio Eduardo Massera e brigadeiro Orlando
Ramn Agosti assumiram o poder na Argentina, dando incio ao que os militares chamaram de Processo de
Reorganizao Nacional, tambm conhecido simplesmente como O Processo. ROMERO. Histria
contempornea da Argentina. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. Pg. 195.; PALERMO, Vicente e NOVARO, Marco. A
ditadura militar argentina, 1976-1983: do golpe de Estado restaurao democrtica. So Paulo: EdUSP, 2007,
pp. 23-44.
Michel Justamand
Doutor em Antropologia e Ps-Doutor em Histria
UFAM Universidade Federal do Amazonas/AM
[email protected]
Introduo
As pinturas rupestres so pinturas feitas nas rochas. Muitas foram produzidas pelos
primeiros habitantes do Brasil e em todo o territrio nacional, e, algumas feitas no Parque
Nacional Serra da Capivara e em sua circunvizinhana. Pelo que nos parece, tais pinturas
tinham o objetivo de revelar aspectos da histria, em especial, dos possveis primeiros
habitantes da regio nordestina573.
573JUSTAMAND, Michel. Rochas de livres prazeres: Rochas de livres prazeres. Revista de Histria da Biblioteca Nacional.
Rio de Janeiro: outubro de 2014, edio 109, p. 63.
574GUIDON, Nide e MARTIN, Gabriela. A ona e as orantes: uma reviso das classificaes tradicionais dos
registros rupestres do NE do Brasil. Revista Clio Srie Arqueolgica. Vol. 25, n. 1. Recife: EdUFPE, 2010. p. 11-30.
575JUSTAMAND, Michel. O Brasil desconhecido: as pinturas rupestres de So Raimundo Nonato Piau. Rio de Janeiro:
de muito antes de 1500. Revista do LAP Laboratrio de Arqueologia Publica Paulo Duarte, NEPAM, UNICAMP,
Campinas, maio/2014. p. 1-5.
578SAHLINS, Marshall. A primeira sociedade da afluncia. CARVALHO, Edgard de Assis (org.). Antropologia
possvel futuro. Trad. Maria Luiza da Costa G. de Almeida. So Paulo: Melhoramentos, 1982, p. 172.
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578
intercambiavam informaes, o que lhes possibilitava desfrutar das condies reais de
vida580.
Neste texto contamos um pouco sobre o incio das pesquisas na regio do Parque
Nacional Serra da Capivara. Noutro momento refletimos sobre a presena das pinturas
rupestres dentro e fora do parque. Em outro ainda, abordaremos a especificidade da
presena dos falos nas cenas rupestres, que em alguns casos, esto acompanhados das
vulvas. Lembrando que a definio do feminino rupestre mais usada na regio do parque -
nos fornecida por Anne-Marie Pessis581. Apresentamos algumas imagens das pinturas para
enriquecer as discusses. E, por fim, apontamos as ltimas consideraes para que todos os
leitores possam fazer tambm suas inferncias posteriormente.
Uma das misses que vieram trabalhar no pas foi a franco-brasileiras. Essa misso
ficou encarregada de desenvolver estudos nos estados de So Paulo, Minas Gerais, Gois,
Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Piau. A que se localizava no estado do Piau foi
liderada por Nide Guidon. A partir desses incentivos, muitos stios arqueolgicos foram
encontrados, como os mais de 1300 hoje conhecidos somente na Serra da Capivara. Dentre
580JUSTAMAND, Michel. O Brasil desconhecido: as pinturas rupestres de So Raimundo Nonato Piau. Rio de Janeiro:
Achiam, 2010. 141 p.
581PESSIS, Anne-Marie. Imagens da pr-histria. Parque Nacional Serra da Capivara. So Raimundo Nonato:
FUMDHAM/Petrobras, 2003, p. 116. Segundo a autora as vulvas aparecem apenas nas cenas sexuais. Onde eles
tinham a inteno explicita de mostrar a ao sexual. E a identificao feminina fica por conta da exteriorizao da
cavidade vaginal. Aparecendo como complemento da zona genital. Assim, para ela, no o sexo feminino que
transparece nas cenas, mas sua funo de receptor dos falos. A autora ainda afirma que as escolhas dos pintores
rupestres pela funo nas cenas, esquecendo-se de outros pormenores nas figuras humanas. Ver tambm:
JUSTAMAND, Michel. O feminino rupestre em So Raimundo Nonato (Piau): muito antes de 1500. Revista
EducAmaznia Educao, Sociedade e Meio Ambiente. Humait, ano 5, vol. VIII, 2012/1, jan/jun, p. 123.
582JUSTAMAND, Michel. As pinturas rupestres do Brasil: memria e identidade ancestral. Revista Memorare. Tubaro,
_O Parque Nacional Serra da Capivara, onde est localizado hoje o maior nmero
de stios arqueolgicos com cenas rupestres, reconhecido, desde 1991, como patrimnio
da humanidade pela UNESCO. Condio que garante a preservao do parque para as
visitas e estudos das futuras geraes.
As pinturas rupestres
Ana Lcia Vieira de Andrade. Rio de Janeiro: Zahar editores, 2005. 252 p.
585JUSTAMAND, Michel. As pinturas rupestres de So Raimundo Nonato no Piau: cenas de representaes sexuais
de muito antes de 1500. Revista do LAP Laboratrio de Arqueologia Publica Paulo Duarte, NEPAM, UNICAMP,
Campinas, maio/2014. p. 1-5.
586PROUS, Andr. Arqueologia brasileira. Braslia: EDUnB, 1992, p. 510.
587JUSTAMAND, Michel. O Brasil desconhecido: as pinturas rupestres de So Raimundo Nonato Piau. Rio de Janeiro:
Achiam, 2010. 141 p.
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pinturas rupestres esto divididas em trs tradies presentes no Parque Nacional Serra da
Capivara. Elas so conhecidas como a Geomtrica, compostas por elementos que
denominamos atualmente como retas, crculos e outras formas desconhecidas; outra
tradio a Agreste composta, em geral, figuras antropomorfas sem movimentos,
normalmente sobrepostas s da tradio nordeste, nos mesmos stios arqueolgicos; e por
ltimo, a tradio nordeste que a mais pintada, a que apresenta as cenas da vida cotidiana
em diversos afazeres, a que as cenas apresentam e permitem-nos imaginar o movimento
das figuras pintadas.
Nas pinturas rupestres podemos ver representadas algumas sries temticas variadas
como: lutas sociais, caadas, rituais, sexualidades em diferentes posies e de parto592. Mas
aparecem em grande quantidade, na Serra da Capivara, as representaes das cenas de sexo,
algumas com grupos de humanos atuando, outras ainda com duplas e ou trios. Em muitos
588FUNARI, Pedro Paulo e JUSTAMAND, Michel. Representaes da sexualidade e dos falos: nas cenas rupestres
de So Raimundo Nonato Piau muito antes de 1500. Revista Sodebrs, vol. 9, n. 99, maro/2014. p. 53-56.
589JUSTAMAND, Michel. As pinturas rupestres na cultura: uma integrao fundamental. Embu das Artes: Alexa Cultural,
2006, p. 32.
590SAHLINS, Marshall. A primeira sociedade da afluncia. CARVALHO, Edgard de Assis (org.). Antropologia
Econmica. So Paulo: Livraria Editora de Cincias Sociais, 1978, p. 24.
591GASPAR, Madu. A arte rupestre no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. 84 p.
593JUSTAMAND, Michel. As pinturas rupestres de So Raimundo Nonato no Piau: cenas de representaes sexuais
de muito antes de 1500. Revista do LAP Laboratrio de Arqueologia Publica Paulo Duarte, NEPAM, UNICAMP,
Campinas, maio/2014. p. 1-5.
594JUSTAMAND, Michel. Rochas de livres prazeres: Rochas de livres prazeres. Revista de Histria da Biblioteca Nacional.
597TAYLOR, Timothy. A pr-histria do sexo: quarto milhes de anos de cultura sexual. Trad. Ana Gibson. Rio de Janeiro:
Campus, 1997. 329 p.
Pensamos que, sim, havia muito trabalho a fazer, mas tambm havia alegria, danas,
festas, rituais, sensualidade, sexualidade e gerao de vida599. E tambm a vida, claro, em
sua plenitude. Isso tudo ocorria entre os grupos, como evidenciam as pinturas rupestres
598COSTA, Zozilena de Ftima Frz. Uma inscrio de mundo a flor da pedra: os processos de comunicao dos povos pr-histricos
atravs da pintura do Parque Nacional da Serra da Capivara (PARNA), Piau Brasil. Tese (Doutorado em Comunicao e
Semitica), PUC-SP, 2003, p. 257.
599JUSTAMAND, Michel. A mulher rupestre. Representaes do feminino nas cenas rupestres de So Raimundo Nonato Piau.
Embu das Artes: Alexa Cultural, 2014. 96 p.
600PINKER, Steven. Tabula rasa: a negao contempornea da natureza humana. Trad. Laura Teixeira Motta. So Paulo:
Cia. das Letras, 2004, p. 27.
601JUSTAMAND, Michel. O Brasil desconhecido: as pinturas rupestres de So Raimundo Nonato Piau. Rio de Janeiro:
Achiam, 2010. 141 p.
602DIAWARA, Fod. O manifesto do homem primitivo. Trad. Franco de Sousa. Lisboa: Futura, 1973. 215 p.
603FUNARI, Pedro Paulo e JUSTAMAND, Michel. Representaes da sexualidade e dos falos: nas cenas rupestres
de So Raimundo Nonato Piau muito antes de 1500. Revista Sodebrs, vol. 9, n. 99, maro/2014, p. 53-56.
604DIAWARA, Fod. O manifesto do homem primitivo. Trad. Franco de Sousa. Lisboa: Futura, 1973, p. 102.
ltimas consideraes
Alm das questes sexuais apresentadas, graas s presenas dos falos, eles, os
mesmos, nos parecem ser, marcadores da identidade masculina antropomrfica imagtica
nas rochas. Isso porque eles no aparecem apenas em cenas de sexo. Aparecem tambm
em cenas de supostos rituais, ou em outros momentos, assim, supomos que a sua presena,
era antes de tudo, a informao de que para aquela determinada cena, local e ou afazer, o
gnero com falo era determinante para aquela dada atividade.
Nossos ancestrais tinham muita clareza sobre as atribuies de cada gnero, como
o que, quando e onde, cada um faz dentro de suas sociedades. Esse fato o que, ao menos
o que se nota, nas cenas rupestres plasmadas nas rochas do Parque Nacional Serra da
Capivara e em seu entorno, na regio do sudoeste do estado brasileiro do Piau. Fatos
demonstrados para um perodo da histria antiga do Brasil estimado pelos estudos
arqueolgicos, girando em torno de 6 a 12 mil anos atrs, perodo da permanncia da
tradio nordeste. E no qual se encaixam as cenas apresentadas nesses escritos.
Imagem e propaganda
605COSTA, Licurgo. Publicidade, Setembro de 1940, pp. 26-27. Apud: MONTEIRO, rica Gomes Daniel. A
guerra como slogan: visualizando o Advertising Project na propaganda comercial da revista Selees do
Reader`s Digest (1942-1945).Dissertao (mestrado). Rio de Janeiro:UFRJ, PPGHIS, 2006.p30 e 31
606 SANTANNA, Denise Benuzzi de. Propaganda e Histria: antigos problemas, novas questes. Projeto
impretervel que a leitura verbal e visual das publicidades seja realizada. Durante
o levantamento bibliogrfico nos deparamos por vezes com pesquisadores que utilizam o
anncio comercial como ilustrao, ignorando o fato de que o documento no diz por si
prprio, e sim precisa de questes para que adquira sentido. Ignorar a imagem; descol-la
do corpo do anncio; analis-la sem a publicar; priorizar ou texto ou figura, em detrimento
do outro so elementos problemticos com os quais nos deparamos em nosso
levantamento bibliogrfico. Achamos relevante apontar o que, em nossa concepo,
constitui-se como falhas, para que os historiadores atentem-se para as especificidades do
documento e no as cometam.
Circularidade temtica
607 SANTANNA, Mara Rbia. De perfumes aos ps: a publicidade como objeto histrico. Revista Brasileira de
Histria. So Paulo, v.32, n64, p.299-324, 2012.
608 MENESES, Ulpiano Bezerra. O fogo da socit anonyme du gaz. Sugestes para uma leitura histrica da
pesquisa, mas os coloca em paridade com outras, como publicaes, leis, etc. Os anncios de chapus so
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possvel analisarmos no mbito hermenutico, por exemplo, a recepo pelos
publicitrios de obras, sejam elas artsticas, literrias ou de outra espcie, como acadmicas
e historiogrficas, ideias circulantes e a forma de sua apropriao. Segundo Roland Barthes,
a todo instante, de modo natural, a publicidade apela para nosso saber e nos prope um
elo com nossas artes, nossas literaturas, nossas mitologias, ou seja, em definitivo, com
610
nosso passado. Principalmente os grandes mitos nacionais, segundo ele, serviriam
publicidade: Napoleo (para um francs), um cavaleiro medieval, o jardim pequeno-
burgus e a culinria regional611.
Luiz Fernando Cerri, por sua vez, avalia como publicidades veiculadas durante o
perodo conhecido como Milagre econmico brasileiro utilizaram-se de quadros
histricos para endossarem uma narrativa sobre a Independncia, a qual coloca D. Pedro I
como figura central, como forma de representao do Sesquicentenrio, e com apoio oficial
do Estado brasileiro. Demonstra, assim, que a publicidade tambm se torna lcus do
utilizados numa abordagem da Histria Ambiental, para analise da utilizao de couro de pssaros e plumas
em detrimento das campanhas cientficas contra a moda das penas. Tambm avaliada a alterao da funo
dos pssaros a partir dos anncios de inseticidas. A relevncia de tal artigo, para ns, a abertura da Histria
ambiental a utilizao de propagandas comerciais. Elas so analisadas por Duarte em p de igualdade com
outros tipos de documentao. DUARTE, Regina Horta. Pssaros e cientistas no Brasil: Em busca de
proteo, 1894-1938. Latin American Review, v.41, n1, Fevereiro 2006.
610 BARTHES, Roland. Sociedade, imaginao, publicidade. In: BARTHES Roland. Inditos. V.3. So Paulo:
publicitriass na dcada de 20. Revista Histria Hoje, v.3, p.1-29, 2007. p2.
613 OLIVEIRA, Cludia. Arqueologia: viagens ao passado da cidade. Cadernos da Comunicao. Srie Memria, v.
614CERRI, Luiz Fernando. A poltica, a propaganda e o ensino de histria. Cad. Cedes, Campinas, vol.25, n67,
p.319-331, set/dez 2005.
615 Em outro livro, O queijo e os vermes, Ginzburg se apropria do conceito de circularidade cultural presente em
Bakitin, que para ele , um relacionamento circular feito de influncias recprocas, que se movia de baixo pra
cima como de cima pra baixo. GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. Traduo: Maria Betnia Amoroso.
So Paulo: Companhia das Letras, 2006.
616 GINZBURG, Carlo. Tu pas te necessita: um estdio de caso sobre iconografia poltica. Prohistria, ano
A questo racial j teria principiado a ser discutida por Euclides da Cunha, Gilberto
Freyre e Oliveira Viana. Os idelogos do Estado Novo aprofundaram o mito da
democracia racial, valorizando a mestiagem. O ndio, portanto, era valorizado enquanto
passado de todos os brasileiros, no como presente e futuro. Apesar de o Estado Novo se
apropriar de vrias formulaes modernistas e reformul-las, nem Macunama, de Mrio de
Andrade, nem Martin Cerer, de Cassiano Ricardo, serviram como heris do Estado Novo.
Enquanto o primeiro personagem ressaltava a heterogeneidade nacional, o segundo
apontava para a paulistanizao do Brasil. Destarte, no era interessante ao Estado Novo
ser vinculado com nenhum dos dois.618 Tibicuera, personagem criado por rico Verssimo
em 1938, por sua vez, melhor se associaria ao Estado Novo, pois se constituiria em um
ndio de verdade, que aprendeu a se transformar.619
617GOMES, ngela de Castro. A Repblica, a Histria e o IHGB. Belo Horizonte: Fino Trao, 2009. p146-147.
618 QUEIROZ, Helaine Nolasco. Verdeamarelo/Anta e Antropofagia: narrativas da identidade nacional brasileira.
2010. Dissertao (Mestrado em Histria) Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas. Universidade Federal
de Minas Gerais, Belo Horizonte.
VELLOSO, Mnica Pimenta. As razes da brasilidade: os intelectuais modernistas e o Estado Novo. In: Os
intelectuais e a poltica cultural do Estado Novo. Rio de Janeiro: CPDOC, 1987.
_________________. A brasilidade Verde-Amarela: nacionalismo e regionalismo paulista. Estudos Histricos,
Rio de Janeiro, vol.6, n.11, p. 89-112.
619 GOMES, ngela de Castro. Op Cit.
620
FON-FON: semanrio alegre, poltico, crtico e esfusiante. Rio de Janeiro. Semanal. Disponvel no
arquivo da Hemeroteca da Biblioteca Pblica Estadual Luiz de Bessa. 18/02/1939, n07, ano 33.
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Figura 1 - Fontes: A Cigarra, A Cigarra. So Paulo. Mensal.
Disponvel no arquivo digital da Hemeroteca Estadual de
So Paulo. Fevereiro de 1937.
A autora conclui que a noo de civilizao desautorizava o saber indgena, por sua
falta de cientificidade. Entretanto, a civilizao autorizava a apropriao desse saber
primitivo, a fim de que ele fosse testado, comprovado pela cincia dos lugares civilizados,
par o bem da humanidade. 622
Apontamentos finais
Os ndios nas peas no aparecem como integrantes de um ns, mas como parte
do passado, dos primeiros integrantes do Brasil. Passado esse, que seria comum ao ns,
gerando identificao na comunidade imaginada brasileira.
621 Apud JUNQUEIRA, Mary Anne. Ao Sul do Rio Grande- imaginando a Amrica Latina em Selees: oeste,
wilderness e fronteira. Bragana Paulista: EDUSF, 2000. P247
622 Ibidem
Simpsios Temticos 11 a 15
Departamento de Histria
Chefe: Ana Carolina Vimieiro Gomes
Colegiado de Ps-Graduao
Coordenador: Luiz Carlos Villalta
Editor Chefe
Prof. Dr. Magno Moraes Mello
Conselho Editorial
Cssio Bruno de Arajo Rocha
Igor Barbosa Cardoso
Mrcio Mota Pereira
Maria Visconti Sales
Rafael Vincius da Fonseca Pereira
Valdeci da Silva Cunha
Reviso
Cssio Bruno de Arajo Rocha
Igor Barbosa Cardoso
Mrcio Mota Pereira
Maria Visconti Sales
Rafael Vincius da Fonseca Pereira
Valdeci da Silva Cunha
Diagramao
Cssio Bruno de Arajo Rocha
Valdeci da Silva Cunha
Capa
Valdeci da Silva Cunha
ST 13: Poltica, Cultura, Economia e Sociedade nas Amricas nos sculos XIX e XX
Os clubes juvenis rurais no Brasil, Argentina e Costa Rica e seus dilogos com os
4-H norte-americanos - Dcadas de 1950 a 1970
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613
Leonardo Ribeiro Gomes
857
A revista La Quinta Rueda e o debate sobre poltica cultural na via chilena para
socialismo
Mara Mximo Nascimento
879
O feminino no cinema cubano a partir da anlise dos filmes: Hasta cierto punto
(1983) e Retrato de Teresa (1979
Natlia Iglsias da Silva Scheid
891
RESUMO: Esta pesquisa faz parte de um estudo que se iniciou a partir da observao da
religiosidade na frica do Sul, precisamente, nas cidades de Johanesburgo e Pretria. Tal
apreciao ocorreu de uma visita nestas cidades, quando anfitrionado pelo Projeto Life for
All (Vida Para Todos). Deste modo, este estudo busca analisar as mais frequentes prticas
religiosas profetas e curandeiros, e suas influncias na vida, na conduta e no bem-estar da
populao de Johanesburgo e Pretria. Para alcanar o intento proposto foram feitas visitas
a grupos religiosos e levantamento dos textos escritos e que circulam no espao social das
referidas cidades com o intuito de embasar as anlises da investigao. Em toda a frica, a
f e a religiosidade fazem parte da cultura dos povos tribais e no tribais. A frica do Sul
o pas mais desenvolvido e se destaca pelo apoio de espaos destinados espiritualidade.
Johanesburgo o centro econmico e financeiro da frica do Sul, com grandes Igrejas,
onde se destaca tambm, os populares profetas e curandeiros tradicionais. A religiosidade e
as culturas tradicionais so fatores que influenciam diretamente a vida da grande maioria da
populao africana. A procura por profetas e curandeiros consiste na influncia de relatos
de conhecidos na busca de respostas e de melhores condies de vida e na procura de
ancestrais espirituais mediados por curandeiros tradicionais. As grandes igrejas so, em sua
maioria, crists e podem usar o sensacionalismo para atrair fiis. As consultas religiosas so
pagas, e h permisso para comercializar artigos/produtos nas Igrejas. Os curandeiros
tradicionais utilizam diversos objetos msticos em suas consultas para evocar os ancestrais
da clientela. Os resultados obtidos revelam que tambm no universo religioso possvel
reforar e criar diferentes maneiras de se relacionar com o sagrado, e de formas de
expressar sentimentos e descobertas nas entrelinhas dos no ditos ou do silncio
procedentes da interpretao dos profetas e curandeiros. Diante deste panorama h uma
crise de valores e nas prticas religiosas institucionalizadas, facilitando a propagao de um
novo modo de vivenciar a religio e a religiosidade no cotidiano dos indivduos.
Introduo
Este trabalho tem como objetivo analisar as prticas religiosas mais frequentes,
ilustradas pelos profetas e curandeiros, e suas influncias no modo de vida, comportamento
e bem-estar da populao de Johanesburgo e Pretria. Uma vez que, o cristianismo foi
introduzido cultura sul-africana pelas migraes holandesas e britnicas, a partir do sculo
XVII, tornando-se atualmente a religio com a maior porcentagem de adeptos na
populao sul-africana. Portanto, a cultura tradicionalmente indgena e o cristianismo, so
as prticas religiosas mais frequentes no territrio sul-africano e possivelmente em toda a
frica.2
Nesse contexto, a metodologia utilizada foi a viagem a locus, isto , frica do Sul.
Precisamente foram visitadas as cidades de Johanesburgo , Soweto e Pretria.
Johanesburgo a cidade mais populosa da frica do Sul, e Pretria, a quinta. O incio da
pesquisa deu-se no dia 7 de Julho de 2014 at o dia 28 do mesmo ms, num total de 21 dias
permanecidos no pas africano. O anfitrionamento deu-se pelo Projeto Life for All (Vida
para Todos) e Bookaf South Africa (rede de cafs literrios), ambos de fins religiosos,
embora no constituam igrejas com denominao.
1 JANZEN, John M. Self Presentation and Common Culture Structures in Ngoma Rituals of Southern
Africa. Journal of religion in Africa, v. 25, n. 2, p. 141-162, maio 1995, p. 154-157.
2 RICHARD ELPHICK, T. R. H. Davenport. Christianity in South Africa: A Political, Social, and Cultural
157.
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Segundo estatsticas oficiais, existem mais de 200 mil sangomas em toda a frica do
Sul, concentrados principalmente nos grandes centros, como Johanesburgo e Pretria. Em
contrapartida h apenas 20 mil mdicos no pas3 e grande parte destes so descriminados
pela populao devido ao despreparo tcnico dos profissionais, descrena aos servios
pblicos de sade e a forte influncia da religio tradicional africana.
7 VAN WYK, BenErik VAN OUDTSHOOM, Bosch GERICKE, Nigel. Medicinal Plants of South Africa.
Pretoria: Briza Publications, 1999.
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danas tradicionais. O ambiente da consulta forrado geralmente com peles de animais e
h a presena de velas e vestimentas tpicas.
Pentecostalismo Cristo
8 COMAROFF, Jean; COMAROFF, John. Christianity and colonialism in South Africa. American Ethnologist,
Chicago, v. 13, n. 1, p. 122, 1986.
9 ANDERSON, Allan. African Reformation: African Initiated Christianity in the 20th Century. Trenton, NJ:
First Century.Reading, Massachusetts, USA: Addison-Wesley, 1996 The Myth of the Twentieth Century: The
Rise and Fall of Secularization.. In Harvard Divinity Bulletin, v. 28, n. 2, 1999, p. 6-8.
12 J. Kwabena Asamoah-Gyadu. African Charismatics: A Study of Independent Indigenous Pentecostal Movements in
Concluso
13 DIESEL, Alleyn. False prophets delay the coming of SA's moral regeneration. Captado em:
<http://mg.co.za/article/2015-02-11-false-prophets-delay-the-coming-of-sas-moral-regeneration/>. Acesso
em: 18 jun. 2015.
14 Departamento de Estudos em Religio da Universidade de Johanesburgo (UJ). Captado em:
<http://www.uj.ac.za/EN/Faculties/humanities/departments/Religionstudies/Pages/home.aspx>. Acesso
em 18 jun. 2015.
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Nesse sentido, pregadores que acumulam riquezas imensas indicando escasso
consentimento moral e coletivo, esto inaptos para oferecer direes ticas aos seus
seguidores.
Introduo
Entretanto, admitimos estes, como fatores que influenciariam suas obras. Esta
colocao se torna interessante, para o nosso trabalho, porque no limita nosso
pensamento hiptese de que este missionrio escolheu o Gtico, apenas por seu gosto
pessoal, talvez sua leitura europia de mundo projeta-se em Catas Altas.
Atravs de seu percurso na Europa e sua chegada ao Brasil, vamos estabelecer uma
conexo entre o Neogtico na Europa e em nosso pas, destacaremos alguns temas, como
a implantao deste novo modelo arquitetnico sagrado em territrio brasileiro. Nosso
Indagaes nos levam a pensar que Clavelin, como superior no Caraa, justaps o
neogtico no Santurio para justificar uma inovao poltica de ensino e educao religiosa
fundamentada nos preceitos essenciais da Igreja Tridentina. A arquitetura da igreja, neste
caso, efetivou uma nova fase do pensamento religioso naquele lugar, contrastando com um
prottipo anteriormente institudo, o Barroco colonial. Logo, devemos examinar que tipo
de filosofia religiosa, os missionrios lazaristas pretendiam implantar nessa regio que
satisfaz aos seus fins religiosos?
O Neogtico
Neste sentido, relevante lembrar que o Gtico enquanto conceito histrico est
conectado ao Medievo. J como estilo arquitetnico, artstico e religioso, ou seja, enquanto
linguagem/tipologia, esta no se encontra limitada ao tempo (Idade Mdia), o que admite
sua presena no sculo XIX. No entanto, no se pode reconstruir ou transportar um
perodo histrico, j que as situaes so diferentes, em decorrncia disso, as simbologias
tambm sero distintas. De acordo com Snia Pereira Gomes:
16 Por se tratar de uma igreja neogtica ladeada por prdios coloniais e pela complexidade da anlise
arquitetnica deste conjunto, nos referimos a ele utilizando este termo.
17 PEREIRA. S. P. Ensino e teoria da arquitetura na Frana do sculo XIX. In: SANTOS DE OLIVEIRA, B.
et al. (orgs.). Leituras em teoria da Arquitetura. Rio de Janeiro: Viana e Mosley, 2009, vol. 1, p.84 e 86. (Coleo
PROARQ)
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Durante esta breve anlise, nos perguntamos: quais eram os elementos, qual era a
mensagem ou simbologia, qual a questo moral, que atraiu os olhares do homem do sculo
XIX para este estilo, conceito ou paradigma religioso, que esteve presente na idade mdia?
Ento colocaremos aqui algumas citaes suscitaram essa reflexo:
Assim sendo, percebemos que a religio nasce como um instrumento que ser
capaz de regularizar os diversos campos sociais, alm de ser uma maneira de firmar os
procedimentos que tm como finalidade a crena no sagrado. Assim, profiramos que de
certo modo, os cultos religiosos so configuraes didticas de reproduo da crena
coletiva nos elementos sagrados. Contudo, devemos levar em considerao que de alguma
forma, o sagrado e o profano so produtos de uma construo social.
18MARCHI, Cesare. Grandes pecadores, grandes catedrais. Trad. Luigi Cabra. So Paulo: Martins Fontes, 1991, p.
38.
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Por conseguinte, o sagrado definido como tal, atravs de um grupo de indivduos
que agem no campo religioso, admitidas pela sociedade exterior a ele, como capazes para
elaborarem tais definies. Logo, notamos, atravs dos autores citados que os princpios
morais so historicamente construdos.
O Gtico
Devemos refletir sobre o nascimento do Gtico que traz consigo elementos que
so utilizados de maneira pedaggica, uma vez que a maior parte da populao era
analfabeta. Porm os artistas deste momento, no se viam como tal e tinham a difcil
misso de fazer as pessoas compreenderem o que estava posto nas paredes das igrejas. Por
essa razo, eles apresentavam elementos do imaginrio popular, muitas vezes considerados
grotescos, talvez por isso o desconhecido no fosse representado, principalmente a figura
de Deus.
Ou seja, uma nova forma de conceber a religio catlica carecia de uma nova
tcnica construtiva que fosse inovadora o suficiente para evidenciar essa mudana de
pensamento. Pois, no faria sentido essa ruptura com os padres arquitetnicos utilizados
na arquitetura sagrada, sem uma justificativa plausvel, dado o investimento financeiro e
Devemos acentuar o valor de cada elemento que compem a igreja gtica, seja ele
decorativo ou estrutural, porque ele traz consigo uma mensagem, ou melhor, ele a prpria
representao de um pensamento religioso. Por essa razo, podemos citar as esculturas
gticas, que no seguem os paradigmas pr-estabelecidos anteriormente pelos gregos, pois
a simbologia para a Idade Mdia era muito diferente, a escultura gtica, veio revelar uma
mensagem desconhecida, nica. Portanto:
Para tanto, as igrejas foram construdas de acordo com o makeoff, e que eram
feitas com materiais da prpria regio. Porm, o Santurio do Caraa se destaca no sculo
23 Segundo Panofsky: Assim, a hora e o local de nascimento dos primrdios da Escolstica coincidem com
os dos primrdios da Arquitetura gtica, na forma que lhe deu o abade Suger, em seu projeto para a igreja de
Saint-Denis. Tanto a nova forma de pensar como o novo modo de construir (opus Francigenum) disseminaram-
se a partir de uma regio geogrfica circunscrita num raio de aproximadamente cento e cinquenta quilmetros
em torno de Paris embora o novo estilo, como Suger relata a respeito de seus artfices, tenha sido criado
por muitos mestres, de diferentes pases, e tenha evoludo muito rapidamente para um movimento
internacional. Por mais de um sculo e meio, essa regio iria manter-se como centro do desenvolvimento da
filosofia e da arquitetura. PANOFSKY, Erwin. Arquitetura gtica e escolstica, Sobre a analogia entre arte,
filosofia na Idade Mdia. Trad. Wolf Hrnke. So Paulo: Martins Fontes, 1991, p.3-4.
24 FAURE, lie. A Arte Medieval. Trad. lvaro Cabral. So Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 216 e 217.
Fonte: ZICO, J.T. Caraa, sua igreja e outras construes. Belo Horizonte, FUMARC/UCMG, 1993, p. 48.
Clavelin teria feito a substituio da capela barroca por uma igreja neogtica,
tambm porque na Idade Mdia, a igreja gtica era utilizada de diversas formas pela
comunidade, no apenas para realizaes dos cultos religiosos. Como o Caraa funcionava
nesta poca como um educandrio e tambm como ponto de peregrinao, talvez o
objetivo de Clavelin fosse expandir esse novo modelo religioso para alm das paredes dessa
nova igreja e das divisas do Santurio, talvez, ele aspirasse atingir a populao local?
Sendo assim:
Uma vez que igreja deriva do grego ecclesa, assembleia, no h razo para
que alguns membros fiquem excludos da assembleia. Os construtores
relacionaram como os modernos arquitetos quando tm de projetar um
estdio de futebol: toda a torcida deve poder entrar.25
Entretanto, vale lembrar que no incio deste mesmo sculo a Igreja se considerava
alvo de ofensas vindas das variantes do liberalismo, por isso ficava na defensiva e revidava
juntamente com o clero ultramontano, reafirmando a tradio europeia (romanizao),
porm esta tradio no existia no Brasil. Ento indagamos sobre quais princpios a ao
exercida pela Congregao da Misso, que veio para o Brasil com o intuito de recristianizar
seus fiis, para resgat-los da corrupo deixada pelo ouro.
Concluso
Exatamente por no existir esta tradio europeia em Minas Gerais, que Clavelin
poderia ter pensado numa nova, porm antiga e tradicional maneira catlica de pensar
seus princpios religiosos, usando o Gtico para cristianizar este povo, uma vez que o
objetivo da Igreja era reafirmar seus valores e constantemente romanizar. Pois, com a
consolidao do liberalismo, os fiis que neste momento formam a massa, tornando-se alvo
de uma disputa, se que podemos chamar assim, entre a Razo e o Liberalismo,
representados pelo Estado e a Igreja, que separam seus papeis na conduo da
estabelecida populao mineira.
Partimos, ento, de uma primeira constatao: a religio deixa sua marca no espao.
O Catolicismo, por exemplo, domina uma srie de paisagens mineiras. Basta observamos a
economia do turismo nas chamadas cidades histricas mineiras, tal como Ouro Preto,
26 O atual municpio de Pedra do Anta est localizado no interior de Minas Gerais, na Microrregio de
Viosa/ Zona da Mata Mineira, fazendo fronteira com os municpios de Teixeiras, So Miguel do Anta,
Jequeri, Amparo da Serra e Cana. Segundo dados do IBGE, sua populao estimada em 2010 era de 3.365
habitantes.
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Tiradentes, So Joo Del Rei e, claro, a cidade episcopal de Mariana. A presena do
religioso tambm est presente nas Artes, como em trabalhos do pintor Alberto da Veiga
Guignard e sua srie de obras intituladas paisagens imaginantes, produzidas entre as
dcadas de 1940 e 1960, dentre muitos outros.
No Brasil, de forma mais notria, desde a dcada de 1990, uma perspectiva cultural
vem influenciando as pesquisas em Religies e Religiosidades. Dentre os diversos temas, o
estudo da manifestao do sagrado no espao vem sendo compreendido a partir do
binarismo sagrado e profano, tal como podemos notar em diversos trabalhos como o da
Para fins de elucidao o conceito de paisagem religiosa est sendo empregado para
designar o conjunto de projees e representaes de um determinado ambiente em que
so impressos e que tambm imprimem signos da atividade religiosa, tais como as
identidades territoriais.
27 Dentre estes trabalhos, destaco um de esforo de sntese: ROSENDAHL, Zeny. Espao e Religio: uma
abordagem geogrfica. 2 Edio. Rio de Janeiro: Ed. da UERJ, 2002. importante salientar que a anlise do
espao religioso atravs do binarismo sagrado e profano foi tratado pelo fenomenologista romeno Mircea
Eliade, e apropriado em diversos trabalhos das cincias sociais. Ver: ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano.
Trad. de Rogrio Fernandes. So Paulo: Martins Fontes, 1992.
28 MATA, Srgio da. Cho de Deus: catolicismo popular, espao e proto-urbanizao em Minas Gerais. Sculos
Outra referncia importante aos estudos da geografia da religio, citada por Srgio
da Mata, o francs Pierre Deffontaines. Professor j renomado no cenrio europeu,
Deffontaines foi, ao lado de outros professores franceses, o responsvel pela
institucionalizao da Geografia brasileira, com a criao deste Curso na Faculdade de
Filosofia, Cincias e Letras da Universidade de So Paulo (USP), em 1934, e com a criao
da Universidade do Distrito Federal em 1935 (hoje, Universidade Estadual do Rio de
Janeiro (UERJ)). Alm destes dois institutos, Deffontaines foi tambm responsvel pela
organizao do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), criado no ano de
1937.
A palavra arraial empregada sem uma definio muito especfica, mas sempre
presente na documentao do sculo XVIII e XIX e na historiografia que tratou a Histria
de Minas Gerais. notrio que h ainda, nos estudos sobre Minas, o destaque ao processo
de conquista do territrio somente a partir da entrada das bandeiras e a criao das
chamadas vilas do ouro, tratando de forma mais abrangente os traos gerais de
29 FRANA, Marlia Ceclia. Pequenos centros Paulistas de Funo Religiosa. Tese de Doutorado apresentada na
Universidade de So Paulo, 1972.
30 DEFFONTAINES, Pierre. Como se constituiu no Brasil a rde das cidades. In: Boletim Geogrfico do IBGE,
Consideraes preliminares
31 Digo que foi de forma superficial uma vez que tais anlises sobre o perodo colonial e imperial brasileiro
deixaram de considerar, como sugerimos neste trabalho, a funo religiosa a partir de elementos presentes no
espao, tais como mosteiros, conventos e igrejas, alm das prticas religiosas como as festas religiosas e
celebraes que dominavam a paisagem local impregnada da religiosidade ali desenvolvida.
32 Refiro-me ao livreto publicado pelo j falecido Sr. Jos Pedro de Alcntara. Ver: ALCANTRA, Jos
Pedro de. Histria de Pedra do Anta: coletnea de informaes, fatos e fotos histricos. 1. Edio. Viosa:
Typogrfica, 2004.
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641
A documentao sobre a fundao dos municpios da Zona da Mata Mineira, tal
como Pedra do Anta, extremamente escassa e de difcil reunio, uma vez que boa parte
destas cidades pertenceu a outros municpios na categoria de distritos at sua
emancipao.33 Ainda so poucos os esforos de organizao e sistematizao de
informaes que poderiam corroborar com a compreenso do processo de formao das
cidades a partir do que Pierre Deffontaines analisou como a fundao de cidades-
patrimnio. No prprio municpio de Pedra do Anta, documentos como os primeiros
Livros de Tombo e do Fabriqueiro da Igreja, por exemplo, ainda no foram encontrados.
No Arquivo Eclesistico da Arquidiocese de Mariana, estou valendo-me de documentos
como os Pedidos de Proviso34 na tentativa de identificar quais eram os limites e
referncias geogrficas (rios, afloramentos rochosos, etc.) utilizadas pelos moradores do
ento arraial, que solicitavam a Diocese a elevao da capela condio de Parquia, isto j
nos anos de 1830-1840. Do Arquivo Pblico Mineiro (APM), documentos como Leis e
Decretos Provinciais, bem como o Livro de Registro de Terras da Parquia de So
Sebastio, da dcada de 1850, esto sendo importantes para a identificao dos possveis
moradores pioneiros do arraial e os limites da Freguesia do Anta j na metade do sculo
XIX.
33 Pedra do Anta, por exemplo, antes de se tornar muncipio em 1962, pertenceu as cidades de Mariana e
Ponte Nova, no sculo XIX, e Viosa e Teixeiras j no sculo XX. Ou seja, a documentao desta cidade
poder est dispersa em outros arquivos municipais, isto quando estas foram preservadas. No estgio atual de
nossa pesquisa, at ento no encontramos documentos especficos sobre o arraial do Anta nos arquivos de
Pedra do Anta, Teixeiras e de Ponte Nova. Os arquivos da Cmara Municipal e de fruns da cidade de
Mariana ainda esto sendo levantados.
34 Os pedidos de ereo de capelas e ermidas domsticas feitas aos bispos traziam quase sempre um relato do
isolamento geogrfico qual determinado grupo humano estava submetido, assim como as dificuldades
enfrentadas nas viagens at as paroquias mais prximas.
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representao cartogrfica da Freguesia de So Sebastio de Pedra do Anta com o uso do
Geoprocessamento35 e da metodologia conhecida como Cartografia Histrica 36.
RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo refletir sobre atitudes perante a morte entre a
populao testamentria marianense de meados do setecentos a meados do oitocentos. Analisamos
as atribuies das comunidades religiosa e familiar no que se refere ao conjunto de cuidados
entendidos como capazes de conduzir salvao da alma. Nossa abordagem parte da considerao
de que um dos pilares a mobilizar a redao dos testamentos era a preocupao em garantir o
melhor destino para a alma frente certeza da morte. Alm disso, o sucesso na empreitada da
salvao dependia no s da postura do testador, mas da atuao de terceiros. Dessa forma, o
documento se torna espao para a emergncia de expresses demonstrativas de uma cultura
religiosa, indicativas de laos de sociabilidade, envolvimento e confiana, o que buscamos investigar
na anlise.
Introduo
Os estudos a respeito da morte e das questes a ela relacionadas constituem uma discusso
sempre atual por se tratar de um assunto que atravessa a histria e as diversas culturas. Como se
sabe, o processo de envelhecimento e morte ultrapassa o vis biolgico, assumindo um carter
simblico. Por esse motivo, constitui-se como um fenmeno imbudo de valores e significados
cambiantes de acordo com o contexto cultural e histrico em que est inserido. Por esta razo, a
morte e o morrer seduzem estudiosos de campos de conhecimento variados, empenhados em
analisar o conjunto de prticas e representaes situadas em torno dela.
Nossa proposta de trabalho dialoga com a chamada histria das atitudes perante a morte,
relacionando-se com a histria cultural e social. Nossa pesquisa procura mostrar como se
37
O LAMPEH pode ser acessado no endereo http://www.lampeh.ufv.br/acervosmg/.
38 SILVA, Eliane Moura da. Vida e morte: o homem no labirinto da eternidade. Tese (Doutorado em Histria).
UNICAMP, Campinas, 1993. p. 154.
39 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essncia das religies. So Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 151.
Observa-se que a construo cultural do bem morrer estava inscrita em um universo que
engloba prticas e representaes40. As representaes se estabelecem no ambiente de
formulaes mentais e de atitudes baseadas nas vivncias dos grupos que as forjam na sociedade.
As representaes relativas morte geram prticas comportamentos, costumes e formas de
convivncia e suas prticas criam representaes, em um emaranhado de atitudes e gestos no qual
no possvel distinguir onde esto as origens se em certas prticas, ou em outras representaes.
Maria assume nos testamentos a funo ntida de intercessora, a primeira entidade na qual
depositada a confiana na mediao entre o humano e o sagrado, nos testamentos os
direcionamentos Virgem so comumente acompanhados de expresses como protetora,
40 Ver essas noes em CHARTIER, Roger. A Histria Cultural entre prticas e representaes. Lisboa:
DIFEL, s/d.
41 SILVA. Vida e morte. p. 15.
42 O sacrosanto, e ecumenico Concilio de Trento em latim, e portuguez: dedica, e consagra aos excell., e rev. senhores
Arcebispos, e Bispos da Igreja Lusitana, Joo Baptista Reycend. Lisboa: na officina de Francisco Luiz Ameno,
1781. Tomo II. Sesso XXV p. 347-349.
43
Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia. Feitas, e ordenadas pelo ilustrssimo, e reverendssimo senhor
D. Sebastio Monteiro da Vide: Propostas e Aceitas em o Synodo Diocesano, que o dito Senhor celebrou em
12 de junho do anno de 1707. Impressas em Lisboa no anno de 1719, e em Coimbra em 1720 com todas as
Licenas necessrias, e ora reimpressas nesta capital. Na Typografia de Antnio Louzada Antunes. So Paulo,
1853. p. 09.
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gloriosa, intercessora, senhora nossa, advogada. Maria Ferreira Filgueiras dirige sua prece
Maria do seguinte modo (...) pesso a Deos Nosso Senhor, me perdoe meos pecados, pellos
merecimentos de Nosso Senhor Jezus Christo e de Maria Santissima minha Senhora a quem torno
por minha Advogada, agora e na hora de minha morte.44 Nas palavras da testadora pode-se
perceber que o papel de rbitro a quem cabe o perdo dos pecados ou a condenao eterna no
deslocado da figura de Deus, Maria aparece ento no como salvadora, mas como a me piedosa
que roga a seu filho pelos pecadores arrependidos.
Num terceiro plano est a imagem do sacerdote, ele o representante da Igreja enquanto
instituio, atuando como intermedirio entre seus membros e as manifestaes divinas.45 Os
sacerdotes aparecem nos testamentos como figuras centrais no cerimonial fnebre, devem
acompanhar o fretro no momento de sepultamento e celebrar missas em memria dos defuntos.46
Por ultimo, mas no em ultimo lugar, o crente. Aquele que d sustento material e
espiritual s religies.47 ele quem redige os testamentos, encomenda missas, busca o intermdio
do sacerdote e a interseo dos santos. O fiel quem garante o funcionamento das associaes
leigas, faz doaes materiais para a manuteno das igrejas, conserva as prticas da religiosidade
cotidiana, quem se empenha em garantir a salvao e a vida eterna.
44 ACSM. Inventrio com testamento de FILGUEIRAS, Maria Ferreira. Cdice 113, auto 2348. Ano 1830.
Mariana.
45
SILVA. Vida e morte. p. 16.
46 Conforme solicitado por Anacleto Gonalves da Cunha: acompanharo os sacerdottes que os meus
testamenteiros quiserem e diram Missa de corpo presente de esmolla de mil e dusentos cada huma ACSM.
Inventrio com testamento de CUNHA, Anacleto Gonalves da. Cdice 323. Ano 1837. Mariana.
47
SILVA. Vida e morte. p. 16.
48 ______. Vida e morte. p. 16-17.
As menes aos laos de parentesco podem ser vistos mais explicitamente no espao
destinado herana e escolha do testamenteiro. A indicao do testamenteiro pressupunha
confiana, uma vez que esse era encarregado de todas as questes pendentes aps a morte do
testador. Eram nomeados procuradores, administradores e bem feitores dos bens do falecido,
autorizados a realizar todas as transaes financeiras necessrias. Deveriam cumprir as disposies
includas no testamento, onde, s vezes se antevia at o mais nfimo procedimento, mas tambm
frequentes eram as disposies que deixavam a preparao dos ritos fnebres parcialmente ou at
mesmo totalmente a cargo dos testamenteiros. No decorrer do recorte cronolgico os testadores
foram se restringindo cada vez mais ao ncleo dos familiares mais prximos e a eles coube uma
crescente responsabilidade para com os cuidados fnebres.
49ACSM. Inventrio com testamento de SILVA, Antnia Leme da. Cdice 018, Auto 0525. Ano 1810.
Mariana.
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noo de sacralidade do solo onde os mortos fariam sua morada at o Juzo Final.50 Nas
Constituies Primeiras recomendava-se o enterramento em lugares sagrados para que se evitasse o
esquecimento do finado. Nas igrejas o ausente se faria de certa forma presente, perpetuando sua
memria como garantia de oraes em benefcio da alma e, por conseguinte o alvio das penas do
Purgatrio.51 Garantir a sepultura eclesistica era uma preocupao constante entre todos os
testadores. As Constituies salientavam a importncia de conceder enterramentos em locais sagrados,
mas faziam restries destes para, dentre outros, hereges, judeus, excomungados e pagos que
nunca recebro, nem pediro o Sacramento do Baptismo52, e a seguir, aps recomendar o exame
cuidadoso dos casos em que no poder ser concedido o sepultamento, conclua-se e pelo defunto
que for enterrado fra do sagrado, se no dir Missa, nem faro Offcios, nem por elle se receber
benefcio algum, nem orar, nem rezar publicamente.53
O alferes Antnio Dias dos Anjos em julho de 1785 redige seu testamento atravs do qual
ele declara querer ser enterrado na Matriz de Nossa Senhora da Conceio de Guarapiranga onde
ele vivia. O testador afirma ser irmo das irmandades do Santssimo Sacramento, de Nossa Senhora
da Conceio e de So Miguel e Almas, e deseja ser sepultado em cova de qualquer uma dessas
irmandades, como lhe de direito. Como se pode ver, Antnio dos Anjos conjugou as duas
preferncias que influenciam a deciso pelo local da sepultura, a saber, o espao sagrado e o
esprito de comunidade. Mais adiante o testador faz uma interessante solicitao pesso pello
amor de Deos e pellas Rogas de Jesus Christo a todos os meus filhos e filhas Se lembre de minha
alma com hum padre nosso e hu ave Maria aos menos cada vez que forem a Igreja donde eu
fallecer digo eu for Sepultado55. Nesse trecho se percebe a conexo entre a importncia da
50 RODRIGUES, Cludia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradies e transformaes fnebres no Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1997. p. 234.
51 Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia. p.295.
52 ______. p. 301.
53 Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia. p. 303.
54 REIS, Joo Jos. A Morte uma Festa: Ritos fnebres e revolta popular no Brasil do sculo XIX. So Paulo:
Mariana.
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intercesso dos vivos pelos mortos, a necessidade de se fazer lembrar, e o papel do local da
sepultura, que, nesse caso, no s era um espao sagrado como tambm um local frequentado pela
famlia.
Em se tratando das vestes morturias, embora sua escolha fosse bastante flexvel 56,
podendo variar bastante conforme a vontade do testador, em nosso corpo documental h uma clara
preferncia pelos hbitos franciscano, carmelita e, no caso dos clrigos, vestes sacerdotais. Para Ana
Cristina Arajo o uso de hbitos religiosos estava relacionado crena de que as vestes atraam
benefcios espirituais.57 Tambm devemos acrescentar a grande popularidade das ordens terceiras
de Nossa Senhora do Carmo e de So Francisco de Assis em Mariana, se destacando pela
disposio de recursos materiais, demonstrado pela edificao de seus templos. Possivelmente elas
eram responsveis pelos enterramentos mais ricos em detalhes e pelos maiores cuidados com os
rituais post mortem.
Mariana.
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O Purgatrio como um lugar intermedirio onde as almas pudessem
aplacar, penitencialmente, seus erros menores e preparar-se para a
oportunidade de remisso dos pecados e a salvao eterna, abrandou os
castigos infernais. Aumentou as perspectivas salvacionais da religio
crist, assim como definiu uma nova relao entre mortos e vivos.59
Desse modo, o terceiro local se afigura como uma espcie de vlvula de escape,
uma soluo para a desesperana diante das ameaas e do risco quase certo da condenao.
Alm disso, como assinalado, as relaes entre vivos e mortos assumem uma nova
configurao, formam-se teias de solidariedade onde os vivos oram pelas e para almas dos
falecidos, para que elas sejam salvas e tambm para que intercedam por eles.
Jacques Le Goff observa esta confiana dos cristos na eficcia dos sufrgios, e
acrescenta que
Os sufrgios pelos mortos supem a formao de longas solidariedades
de um lado e de outro da morte, relaes estreitas entre vivos e defuntos,
a existncia, entre uns e outros, de instituies de ligao que pagam os
sufrgios como os testamentos ou fazem deles prtica obrigatria
como as confrarias.61
guisa de concluso
A partir de tudo que foi apresentado, ficou claro que o falecimento no significava pura e
simplesmente deixar de existir no mundo dos vivos. Para alm disso, a morte e o morrer tratavam-
62 LE GOFF, Jacques. Memria. In: Enciclopdia Einaudi: Memria Histria. Lisboa: Imprensa Nacional -
Casa da Moeda, 1997, vol.1, p. 24.
63
______. Enciclopdia Einaudi. p. 26-28.
64 Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia. p. 291.
Introduo
65 CHARTIER, Roger. A histria cultural: entre prticas e representao. Traduo de Maria Manuela Galhardo.
Lisboa: Difel, 1990, p.123.
66 S, Celso Pereira. Representaes Sociais: o conceito e o estado atual da teoria. In: SPINK, Mary Jane P.
O conhecimento no cotidiano: as representaes sociais na perspectiva da psicologia social. So Paulo: Brasiliense,
1995.p. 19-45, p. 32.
67 ARRUDA, Angela. Teoria das Representaes Sociais e Teorias de Gnero. Cadernos de Pesquisa, n.117,
novembro/2002. p.127-147, p.129.
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falar com a mesma autoridade. J o universo reificado aquele que se d no campo
cientfico, composto por diferentes papis e classes, cujas pessoas so desiguais, um
campo completamente hierarquizado. Neste universo a competncia adquirida determina o
grau de participao, o campo dos especialistas.
O contraste entre esses dois universos que de um lado esto as pessoas comuns, e
do outro os cientistas com seus papis bem definidos. Dentro desses universos a cincias
compreende o universo reificado, enquanto as representaes sociais tratam do universo
consensual.68 Todavia apesar de terem intenes diferentes so eficazes e imprescindveis
para o ser humano.
Ciro Flamarion & MALERBA, Jurandir (Orgs) Representaes: contribuio a um debate transdisciplinar. So Paulo:
Papirus, 2000.p. 9-10.
70
MOSCOVICI, Serge. Representaes Sociais: Investigao em psicologia social. 2a. edio. Editado em ingls por
Gerard Duveen: traduzido do ingls por Pedrinho A. Guareschi. Petrpolis, RJ: Vozes, 2003, p.78.
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No campo da educao o conceito de Representao Social aparece como muita
frequncia que segundo Gilly71.
Dessa maneira a Teoria das Representaes Sociais pode contribuir para analisar os
caminhos suaves das mulheres, no material didtico. Este que um elemento importante
no processo educativo escolar no Brasil. Sendo que
Segundo Joana Pedro, entrar para histria tem sido um valor disputado73,
principalmente para as mulheres, j que a historiografia tradicional dava destaque aos
grandes acontecimentos, fatos e heris que em sua maioria eram masculinos. Mas isto
mudou com a renovao que a Escola dos Annales trouxe para a historiografia, quando
introduziram a utilizao de novas fontes, novos personagens, novas perspectivas de
anlise, dando especial ateno os esquecidos, propondo uma histria vista de baixo74.
Como destaca Matos75, essa crise de identidade da histria levou procura de outras
histrias, o que levou a ampliao do saber histrico e possibilitou uma abertura para a
descoberta das mulheres e do gnero.
71 GILLY, Michael. As representaes sociais no campo educativo. Educar, n19. Curitiba, 2002.p.231-252,
p.232.
A utilizao desta teoria no trabalho parte da explicao dada pelo seu principal
representante, Serge Moscovici, (2003, p.233) que diz que o indivduo s existe dentro da
rede social e toda sociedade resultado da interao de milhares de indivduos. Sendo
assim, mesmo as cartilhas no sendo do campo especfico da Histria, elas podem
apresentar representaes comuns da sociedade em que foram produzidas, pode absorver
discusses pblicas, do universo consensual, daquele momento histrico, em que o papel
das mulheres na sociedade era to debatido.
Nossa nfase ser dada, em Joquebede, Ana e Ester mulheres estas que
representam o ser mulher na escritura sagrada, evidenciando o perfil da mulher, que seria
casada, me, dona de casa, professora de seus filhos e como plano de fundo o universo do
lar como cenas das experincias femininas. As representaes da mulher e do homem na
bblia foram construdas destacando o papel social de cada um deles na
sociedade, enfatizando quais eram as responsabilidades e as obrigaes das mulheres no
perodo.
76LOURO, Guacira Lopes; FELIPE, Jane; GOELLNER, Silvana Vilodre (Org.). Corpo, gnero e sexualidade:
um debate contemporneo na educao. Editora Vozes: Petrpolis/RJ, 2008, p.70.
J Ester, ou Havassa, era uma mulher linda, que foi escolhida para casar com o rei
Assuerro, porm a sua luta, no foi para salvar seu filho, para ter um filho, sua luta foi para
livrar o povo judeu da morte, ela e o povo jejuaram por trs dias, e mesmo sabendo que se
entrasse na sala do rei sem permisso era condenada morte. Mas ela no pensou em sua
vida mais em como salvaria o seu povo.
Consideraes Finais
Introduo.
Uruk, a cidade tutelar da deusa Inanna, ficava na regio que corresponde a atual
Warka, a uns trs quilmetros da atual Bagd. Esteve habitada desde o quarto milnio a.C.
O Eanna era o santurio consagrado deusa Inanna, as referncias a essa deusa aparecem
nesse complexo templrio desde o final do perodo de Uruk Antigo (3800-3200 a.C.), como
atestam os trabalhos da arqueloga Krystyna Szarzynka.77 J nesse perodo encontram-se
inscries de oferendas a trs personificaes dessa divindade: Inanna do Amanhecer,
Inanna do Entardecer e Inanna Principesca, sendo que os dois primeiros fazem meno a
uma das representaes da divindade como o planeta Vnus.
A ligao de Inanna com a cidade de Uruk pode ser atestada pelo mitema A rvore de
78
Hullupu , que apresenta a divindade como a jovem senhora que passeando pelas margens
do Eufrates encontra uma rvore de Hullupu sendo levada por suas correntezas. Ao tirar a
77 SZARZYNSKA, Krystyna. Offerings for the Goddess Inanna in Archaic Uruk. Revue dAssyriologie. Paris:
Gabala, 87, 1993, p. 7-29.
78 WOLKSTEIN, Diane; KRAMER, S.N. Inanna queen of heaven and earth: her stories and hymns from Sumer. New
Essa narrativa diz ainda que Inanna cuidou do broto com suas mos e esperou at
que este crescesse para que se tornasse sua cama e seu trono, o que ocorreu aps alguns
percalos e com o auxlio do mais famoso heri e rei de Uruk, Gilgamesh. A construo do
espao sagrado, a domesticao ou simbiose com os habitantes autctones so indcios de
que a divindade j tinha seu culto bem raigado quando da chegada dos sumrios 79 por volta
de 3500 a. C.
79 Embora esta interpretao seja meramente especulativa, pois o texto que trata desse mitema de perodo
posterior, essa hiptese no pode ser descartada, uma vez que a documentao escrita descende da tradio
oral com a qual conviveu durante toda a historia desses povos.
80 CHARTIER, Roger. Histria Cultural: Entre prticas e representaes. Lisboa/Rio de Janeiro: Difel/Bertrand
Brasil, 1990.
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Inanna era apresentada nas narrativas sempre como a jovem mulher, ao falar sobre o
casamento teve uma discusso acalorada com o irmo, o deus sol Utu. Inanna questionava
Utu sobre aquele que dividiria o leito nupcial com ela, quem iria para cama com ela. O
irmo informou que o casamento j estava acertado com o pastor Dumuzi, o que no a
agradou81.
A divindade ento arruma-se para as npcias, o ritual inclui uma espcie de dia da
noiva, em que ela usa de artifcios e artefatos para seduzir. A cerimnia inicia-se com a
preparao de Inanna para encontrar o futuro esposo e deixar-se levar at o leito nupcial.
Ela banha seu corpo e besunta com leo perfumado, coloca o vestido real, provavelmente
uma roupa utilizada especificamente para este fim, deixa seu dote pronto, coloca o colar de
lpis-lazli, pega seu selo e espera ansiosa pelo pretendente82.
Este chega com um cortejo, fica encantado com a viso de Inanna, o texto diz que
esta encontra-se to bela quanto luz da lua. Ento ele a abraa, roando seu pescoo no
dela e a beija. A ideia do contato fsico intenso transparece nessa passagem, pois de que
forma os pescoos podem roar um no outro seno pelo enlaar dos corpos? A divindade
ento profere uma espcie de juramento, que deve ser lembrado por todos, passados da
boca ao ouvido, contato pelo ancio ao jovem, ou seja, perpetuado pela tradio.
Formula novamente a pergunta sobre o ato sexual, usando metforas para o sexo,
questiona sobre quem ir arar sua cornucpia que encontra-se cheia de expectativas como a
lua nova, compara sua genitlia ao barco do cu, ao campo alto e ao cho molhado que
espera que a enxada venha arar. Dumuzi ento responde ao juramento, dizendo que ele ir
O rei excita-se, seu rgo sexual era comparado ao cetro erguido. Ao v-lo
excitado, Inanna pronunciava uma cano de felicidade, que parece indicar os preliminares
do ato sexual, pois sugere Dumuzi como sendo um homem voluptuoso e ousado, pois
acariciou a rea abaixo do umbigo da divindade, passando suas mos por entre as coxas, o
texto se refere a Dumuzi como aquele que os quadris da divindade amam84, ou seja, que a
satisfazia.
Mas Dumuzi tambm devia cantar a ela, as metforas comparam o corpo da deusa a
natureza, seus seios eram comparados aos campos. Dumuzi a convida para ir at o jardim,
o que possivelmente era uma referncia ao leito nupcial, onde ele diz que gostaria de
plantar a doce semente coberta de mel, ou seja, consumar o casamento. Ento eles seguem
para o leito nupcial onde passam a noite entre o sexo e carcias, at que adormecem
abraados e de mos dadas.
A narrativa segue ainda com a fala da deusa, que deve atestar ou relembrar o que
ocorreu na ocasio anterior, uma espcie de retrospectiva da consumao:
Esse testemunho da divindade pode ter sido utilizado para atestar que Dumuzi
cumpriu fielmente com sua funo marital, proporcionado prazer a Inanna. A deusa o
Os ritos desse casamento podem ter sido uma cerimnia reproduzida por todo
jovem casal nessa sociedade, pois o espao sagrado era reconfigurado e reencenado em
escala microscpica. Segundo Eliade o homem das sociedades tradicionais reproduzia o
macrocosmo no seu lar, a casa era uma espcie de microcosmo sacralizado87, o que nos leva
a crer que as prticas sexuais dos deuses eram seguidas pelos homens.
Outro texto intitulado Um tigi para Inana e Dumuzi88 mostra a divindade como
algum que encontra o amante as escondidas, vivendo um romance que se no era
proibido, no era adequado as jovens agir de tal forma. Nesse poema, Inanna se preocupa
por ter ficado muito tempo na companhia de Dumuzi e no saber o que dizer a me por
ter tardado tanto fora de casa. O amante a orienta a mentir que estaria com suas amigas
danando e ouvindo msica, assim esquecera-se das horas.
Essas canes ou hinos atestam uma relao de foras onde diversos grupos
femininos buscavam legitimar suas prticas por meio das aes da deidade e manter um
mnimo de liberdade para suas prticas sexuais. Este hino, da poca de Iddin-Dagan89, por
exemplo, sugere a continuidade dos votos e rituais relacionados Inanna, durante o Akitu:
86
____________________. Inanna queen of heaven and earth, p. 49.
87 ELIADE, Micea. Aspectos do mito. Rio de Janeiro: Perspectivas do Homem/edio 70, 1967.
88 ETCSL: t.4.08.08. Um Tigi para Inana (Dumuzid-Inana H). Disponvel em: http://etcsl.orinst.ox.ac.uk/cgi-
bin/etcsl.cgi?text=t.4.08.08#.
89 Terceiro rei da dinastia de Isin (1974-1954).
Consideraes finais:
No Arquivo do Caraa foi possvel levantar alguns documentos que nos permitiu
compreender a espiritualidade e os valores que regiam a Congregao da Misso, valores estes que
influenciaram as aes de D. Vioso enquanto missionrio lazarista e bispo. Dentre tais
documentos, destacamos as Regras ou Constituies Comuns da Congregao da Misso, formuladas por
Vicente de Paulo e compiladas pelo ento Superior da Provncia Brasileira da Congregao da
Misso, Pe. Vioso. Nas Regras, Vicente de Paulo buscava transmitir, de forma clara, as instrues
de como deveriam se comportar os padres em misses e sob quais normas e costumes a
Congregao deveria administrar suas casas. Esse documento demonstra ter grande importncia
dado ao fato de ser a nica obra publicada pelo fundador da Congregao. Mas alm das Regras,
outros regulamentos foram levantados para pesquisa, tais como os regulamentos do colgio, do
93AZZI, Riolando. O altar unido ao trono: um projeto conservador. S. Paulo: Edies Paulinas, 1992, p 8.
94______. O altas unido ao trono: um projeto conservador, p.31.
95 Talvez uma de suas mais famosas biografias tenha sido aquela escrita por um de seus ex-alunos e futuro
bispo de Mariana, Silvrio Gomes Pimenta. Nela o autor trs uma srie de documentos produzidos por D.
Vioso, ates e depois de iniciar seus ministrio no Brasil. In: PIMENTA, Padre Silvrio Gomes. Vida de D.
Antnio Ferreira Vioso, Bispo de Mariana, Conde de Conceio. 3ed. Mariana, Tipografia Arquiepiscopal, 1920
96Vicentinos ou lazaristas outra forma pelo qual se denominam os padres da Congregao da Misso, essa
ltima se deve ao fato de que foi o priorado de So Lzaro a primeira casa desses padres em Paris.
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seminrio, dos Superiores (diretores das casas), bem como decretos das assemblias realizadas pela
Congregao, antes e depois da morte de Vicente de Paulo97.
97Vale a pena ressaltar aqui a importncia que esses documentos tiveram na normatizao das aes lazaristas
no Brasil. Enquanto era Superior da Congregao, Dom Vioso em uma carta enviada ao Superior Geral em
Paris pede para que esse lhe envie a cpia de tais documentos a fim de regular suas atividades conforme as
diretrizes estabelecidas pela Congregao da Misso a nvel internacional. Esse documento tambm
importante j que nele Vioso destaca a importncia das Cartas e das biografias de So Vicente para a
Congregao: Faltam-nos as Regras dos Ofcios, mesmo do Superior, Visitador, do Diretor do Seminrio
Interno; so aqueles cujos ttulo remeto. Peo-vos, pois, Senhor, que nos envie todas, nenhuma excetuada, tal
carncia sendo-nos to prejudicial. Tende pena de ns. Se nos mandais a Vida do S. Fundador, suas Cartas, os
decretos das Assemblias Gerias, privilgios e faculdades da Congregao, muito nos ajudaro In: Biografia
Documentada do Servo de Deus D. Antnio Ferreira Vioso. Primeira parte do Positio Super Virtutibuset fama
sanctitatis servi dei Antoni Ferreira Vioso, Roma: Vaticano, 2001, p. 47.
98CAMELLO, Maurlio Jos de Oliveira. Caraa, centro mineiro de educao e misso (1820-1930). Belo Horizonte:
para o Portugus. Tais obras j foram traduzidas para o francs e o espanhol. At o dia da escrita dessa
comunicao j haviam sido publicados os trs primeiros tomos. Mias informaes ver In: Obras Completas So
Vicente de Paulo: correspondncias, colquios, documentos, tomo I. Org. Pierre Coste; traduo de Getlio
Mota Grossi. Belo Horizonte: Editora O Lutador, 2012.
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[...] ter cada um cuidado em que se no passe dia algum no qual se no
leia alguma coisa de algum livro espiritual, segundo a necessidade da sua
alma, pelo tempo assinalado pelo Superior ou Diretor. Alm disso, o
Sacerdote, e todos os Clrigos lero um capitulo do Novo Testamento e
tero venerao a este livro, como regra da perfeio Crist.100
100Regras ou Constituies Comuns da Congregao da Misso, [manuscritos compilados por Pe. Antnio Ferreira
Vioso, Superior da Provncia Brasileira da Congregao da Misso em dezembro de 1839]. Arquivo
Histrico do Santurio do Caraa, Armrio D. Vioso, p. 30.
101DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo - a culpabilizao no ocidente (sculos 13-18). Traduo lvaro
Esse ambiente religioso que, ao nosso entendimento era rgido em relao aos sentidos,
obviamente estava presente nas instituies lazaristas brasileiras, especialmente no Caraa. Ao julgar
pelo seu isolamento, o Colgio localizado na serra do municpio de Catas Altas fornecia o ambiente
ideal para se educar o clero e a mocidade de forma isolada do mundo, como em um mosteiro.
Entretanto, nesse ponto muitos poderiam objetar, dizendo que a conteno, a auto vigilncia e a
moralizao so temas comuns a religio crist, e que tal pregao lazarista era uma norma para
toda a cristandade. Contudo, se admitirmos tal afirmao, estaremos ignorando a existncia de
padres liberais que pregavam justamente o contrrio, como foi o caso de Diogo Antnio Feij109,
alm de muitos outros padres que viviam, conscientemente, em estado de concubinato abrindo
109Segundo Joo Camilo de Oliveira Torres o padre tinha uma concepo muito contrria da conteno, no
que dizia respeito ao celibato: Para Feij, devia ser abolido o celibato, que ningum levava a srio no Brasil
os fatos so bem conhecidos. Como achava impossvel regenerar o clero e fazer vivel a disciplina da Igreja, o
caso era abolir-se o celibato. Sente-se, a, o seu sbrio pessimismo: a reforma no sentido do reforo da
austeridade era impossvel, que se adaptasse a lei aos costumes. In: TORRES, Joo Camilo de Oliveira.
Histria das idias religiosas no Brasil. So Paulo: Grijalbo: 1968, p. 123.
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posteriormente uma oposio consciente s pregaes reformistas de D. Vioso110. Dessa forma
podemos entender que essa teologia reformista pregada pelos padres vicentinos estava longe de ser
um consenso nas Minas Gerias do sculo XIX.
Outro elemento marcante dessa introspeco religiosa eram as regras de silncio. So
Vicente j alertava em suas cartas sobre os momentos mais apropriados para se falar e a valorizao
e primazia do silncio. Em uma carta enviada ao proco de Saint-Laurent, Vicente de Paulo
descreve a rotina em suas casas
O silncio deveria ser guardado durante todo o dia, exceto nas horas reservadas a
recreao, tomadas como o momento ideal para se conversar. Esse mesmo rigor passado, como
j dissemos, para as demais casas lazaristas. No regulamento que regia o seminrio da Serra do
Caraa, encontramos uma disposio idntica, de acordo com o regulamento os seminaristas:
110Ao observar a vida de alguns clrigos que atuaram na Diocese de Mariana no perodo que compreendeu a
ao do lazarista D. Vioso, Gustavo Souza de Oliveira constata que muitos dos padres, rebeldes s diretrizes
colocadas pelo bispo, possuam boa instruo, contudo viviam amancebados ou envolvidos em poltica. Isso
nos mostra que as resistncias aos projetos reformadores e moralizantes desenvolvidos por Vios e baseados
nos dogmas da Congregao, era em muitos casos uma oposio religiosa consciente, sendo assim no havia
unanimidade, entre os padres daquele perodo, sobre qual norma e padro moral eram mais adequados a vida
eclesistica. Com relao aos tais eclesisticos ver In: OLIVEIRA, Gustavo de Souza. Entre o rgido e o flexvel:
D. Antnio Ferreira Vioso e a reforma do clero mineiro (1844-1875). 3387 f. Tese (Mestrado em Histria)
Universidade Estadual de Campinas, programa de ps-graduao em Histria, Campinas, 2010. p. 69 a 80.
111Obras Completas So Vicente de Paulo Tomo II, p. 155.
112Regras do Seminrio ou Noviciado da Congregao da Misso1837. BR. PBCM.CAR. F. 2.1, p. 15.
O que me faz moderar a afeio por demais sensvel que teria com vosso
retorno foi a nossa leitura do refeitrio, esses dias passados. Narrava que
um padre jesuta espanhol, que envelhecera em numerosos e assinalados
servios prestados a Deus nas ndias, insistiu com seus superiores que
lhe fosse permitido voltar, para morrer em seu pas, e ali no fazer nada
mais a no ser preparar-se para bem morrer. Foi-lhe dada a permisso e
ele voltou ao pas. Estando um dia em orao aos ps do crucifixo, ouvia
interiormente uma censura to severa que tinha feito mal em abandonar
a nova Igreja, cuja funo ele viera ajudar, que no teve mais paz,
enquanto seus superiores, no o mandaram de volta. L chegando,
recomeou a trabalhar com todo ardor permitido por sua avanada
idade, e morreu enfim como vivera, em odor de santidade116
113Sobre a irradiao do modelo educacional dos padres lazaristas na diocese de Mariana ver In:
TEIXEIRA, F. A. F. O processo de reforma da Igreja Catlica em Minas Gerais e a irradiao do modelo educacional
caracense no sculo XIX. In: VII Congresso de Pesquisa e Ensino de Histria da Educao em Minas Gerais,
2013, Mariana. Anais... Mariana: UFOP, 2013.
114SILVA NETO, Belchior J, da.Dom Vioso, Apstolo de Minas. Belo Horizonte, Imprensa Oficial do estado de
segundo era a pregar o evangelho aos pobres do campo conforme se v: 2 Pregar o Evangelho aos Pobres,
especialmente os do campo In: Regras ou constituies comuns da Congregao da Misso, p. 3.
116Obras Completas So Vicente de Paulo, Tomo II, p. 274.
Como podemos perceber D. Vioso comea a contar desde a sua chegada o tempo em que
as misses passaram a ser pregadas com toda a regularidade com que as instituiu S. Vicente. Essa
preocupao missionria, aliada a uma formao rgida nas instituies lazaristas so legados que
no ficaram restritos ao Colgio do Caraa ou as demais casas desses padres, elas influenciaram as
aes de D. Vioso a frente de sua Diocese, valorizando os aspectos que talvez sejam as maiores
marcas da Congregao da Misso, a rigidez com os preceitos morais dignas de uma ordem
monacal, mas ao mesmo tempo a preocupao com a evangelizao e a caridade, dignas de um
franciscano. Com respeito a esse dualismo na forma de se enfrentar as atividades religiosas, vale
ressaltar uma frase utilizadas por So Vicente e repetida por D. Vioso
Estes sentimentos e doutrinas, com que nos criaram, agora mais que
nunca, se nos fazem necessrios e devem ser indelveis da nossa
memria. Cartuxos em casa, apstolos nas aldeias e parece que, em grandes
letras, o deveramos ter escrito em nossos cubculos [grifo nosso].119
117PASQUIER, Eugnio. Os Primrdios da Congregao da Misso no Brasil e a Companhia das Filhas da Caridade
(1819-1849). Rio de Janeiro: Ed. Vozes, sem data, p 339-348.
118PIMENTA, Padre Silvrio Gomes. Vida de D. Antnio Ferreira Vioso, Bispo de Mariana, Conde de Conceio.
Virtutibus et fama sanctitatis servi dei Antoni Ferreira Vioso,Roma: Vaticano, 2001, p. 45.
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A noo de que em suas casas religiosas os padres lazaristas deveriam dedicar-se ao auto-
aperfeioamento, a contente vigilncia e aos exerccios espirituais sem, contudo, perder o foco
missionrio,parecem sintetizar bem o trabalho e o legado das personagens no processo de reforma
da Igreja em Minas Gerais. Vale ressaltar nesse momento que em termos de inovao teolgica, So
Vicente e os membros de sua Congregao no instituram nada de novo, e nem o queriam fazer,
uma vez que entre esses padres era prezada a simplicidade e o no aprofundamento em temas
complexos120. J o fato de outros bispos reformadores possivelmente terem utilizado os temas
evanglicos em seus sermes moralizantes, refora nossa hiptese de que desde os seus primrdios
a Congregao da Misso tinha uma predica reformista. Com isso queremos dizer que apesar desse
tipo de religiosidade ter achado um lugar comum em outras ordens religiosas, nas Minas Gerais do
sculo XIX tais diretrizes significaram a efetivao da reforma do clero.
Com relao aos demais estudos que enfatizam exclusivamente a figura de D. Vioso como
o agente pioneiro da reforma catlica em Minas, ignorando assim a atuao dos padres lazaristas
que atuaram nos bastidores desse processo, alm da formao vicentina de Vioso, devemos
lembrar que o prprio bispo nunca pretendeu se desvincular das prticas e ensinamentos herdados
de seus pares. Em uma carta enviada ao co-irmo Lus Antnio dos Santos por conta de sua
indicao ao bispado, Vioso exclama
Podemos perceber claramente que os temas caros a D. Vioso j como bispo eram
valorizados por sua congregao natal. Dessa forma, cremos que um estudo detido sobre a
Congregao da Misso, seus valores, seus personagens e suas aes concretas no bispado de
Mariana ainda esto por se fazer. Negligenciar a importncia e a atuao desses padres
desconsiderar uma importante parte da histria da Igreja, no s em Minas Gerais, mas tambm em
todo o Brasil.
120Juntamente com as Regras e Contituies Comuns da Congregao da Misso, foram encontrados nos arquivos do
Caraa vrios decretos das assemblias gerias realizadas aps a morte de Vicente de Paulo. Em uma seo
intitulada Outros avisos para os diretores de Seminrio, promulgado em 1673, vemos a seguinte instruo: perder
o tempo precisos e fazer o mal servio aos seminaristas o entret-los com questes puramente metafsicas que
no ensinam nada nem so de alguma utilidade e talvez ainda maior mal o inspirar-lhes e dar-lhes gosto para
todos aqueles sistemas relativos ao tratado da graa [ilegvel]. Um bom esprito no toma partido naquelas
questes, em que impossvel chegar ao resultado; pelo contrario, passa rapidamente por estas questes, e
opinies da escola, para se apegar e unir com Deus. Coleo encadernada contendo os decretos das Assemblias Gerais e
demais documentos. Arquivo Histrico do Colgio do Caraa no ArmrioD. Vioso, localizado na Pinacoteca
da RRPN-Santurio do Caraa, p. 146.
121PIMENTA. Vida de D. Antnio Ferreira Vioso, Bispo de Mariana, Conde de Conceio, p 96-97.
Introduo
O objetivo desse texto analisar as relaes que as pessoas estabeleceram com as
festividades em honra ao Divino Esprito Santo, buscando identificar nos discursos dos
122Esta pesquisa tem orientao da Professora Doutora Maura Regina Petruski Docente do Departamento
de Histria e do Programa de Ps-graduao em Histria, Cultura e Identidades da Universidade Estadual de
Ponta Grossa e possui financiamento da CAPES/Fundao Araucria.
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entrevistados123 elementos que contriburam na manuteno da memria, seja essa coletiva
ou individual. Para tanto focamos nas prticas ocorridas na cidade de Ponta Grossa.
A origem das prticas em honra ao Divino Esprito Santo gera inmeros debates,
isso se deve a escassez de documentao referente ao processo inicial desta devoo. Para
Lus da Cmara Cascudo esta, est ligada ao pagamento de promessa, de acordo com o
autor a Rainha Isabel de Arago, no sculo XIII, havia oferecido o cetro e a coroa real ao
Esprito Santo diante de uma crise, que Portugal estava vivendo. Dessa forma, o Esprito
Santo tornava-se Imperador de Portugal. Finalizada a crise, em agradecimento ao Esprito
Santo, a Rainha teria promovido uma festa em sua homenagem, que se repetiria a cada
ano.124 importante ressaltar que, neste texto, optamos por esse posicionamento, haja
visto o espao que temos para a discusso, no entanto, sabemos o quanto complexo esse
debate, entorno da origem desses festejos.
No Brasil a devoo ao Divino Esprito Santo tambm gera inmeros debates, isso
ocorre porque no se sabe ao certo a data de incio dessa. A dificuldade em obter uma data
precisa se deve ao fato dessa ser uma festa popular, no havendo, portanto, preocupao
em registra - l, como ocorria com as festas oficiais. O que se sabe e que no Brasil teve
suas caractersticas reformuladas e adaptadas as realidades locais125.
De acordo com a tradio, a origem da devoo ao Divino em Ponta Grossa, est
ligada a D. Maria Julio Cesarino Xavier, que ao encontrar a imagem da representao do
Divino Esprito Santo, uma pomba de asas abertas, gravada em um pedao de madeira,
teria iniciado as prticas em honra ao Divino na cidade. Trs geraes de familiares de D.
Maria deram continuidade as inmeras prticas de homenagens ao Divino, fazendo desta
devoo uma tradio na cidade, fator que possibilitou 133 anos de religiosidade e
memrias.
Entre o universo que compe esta devoo, situa-se a festa, no decorrer desta
encontram-se momentos privilegiados de reatualizaro da memria sociocultural de um
grupo, mas tambm pode ser um momento de relembrar ou buscar uma memria
individual, pessoal e ntima e sobre isso que discorremos a seguir.
A Festa
As festas sempre estiveram presentes em todas as sociedades. Tornando-se
momento privilegiado de construo de sociabilidades. Assim a festa nos permite ler uma
123 Foram selecionadas 5 pessoas para serem entrevistadas: 3 mulheres e 2 homens. As entrevistas foram
realizadas na Casa do Divino, espao que abriga a imagem que deu origem a devoo em Ponta Grossa. Os
nomes dos entrevistados so fictcios, com exceo de Ldia Hoffmann, a atual responsvel pelos festejos,
isso ocorreu para preservar a identidade dos mesmos.
CASCUDO, Lus da Cmara. Dicionrio do Folclore Brasileiro. 11 ed. So Paulo: Global, 2001. p. 76.
124
125ABREU, Marta Campos. O imprio do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro (1830-
1900). 3. Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; So Paulo: Fapesp, 1999.
126 CHARTIER, Roger. O mundo como representao. Estudos avanados. Abr.1991, vol.5, n.11, p. 173-191.
127 ABREU. O imprio do Divino. p. 14.
129 Entrevista realizada com Ldia Hoffmann, em Ponta Grossa, em dezembro de 2014, por Vanderley de
Paula Rocha.
130 POLLAK. Michael. Memria e identidade social. Estudos histricos. Rio de Janeiro. V. 5. n.10. 1992, p. 200-
212.
junho de 2003.
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bem no centro [da cidade]. Tambm no conseguimos resgatar a cavalhada, pois
d muito trabalho, mas em breve vamos fazer um teste 134.
Por meio da fala de Ldia percebemos alguns elementos das festas de antigamente
em comparao com as realizadas a partir de 2003, evidente um processo de
modernizao no s dos festejos, mas da sociedade onde esta festa estava inserida.
Quando Ldia afirma que atualmente a festa patrocinada por doaes de fiis, por
empresas e com apoio da prefeitura nos mostra as mltiplas relaes que compe esses
festejos na contemporaneidade e o jogo dessas relaes sendo construdo, assim
evidenciamos uma disputa de poder e de notoriedade, uma vez que as festas atuais atraem
um nmero expressivo de pessoas. Portanto, para as empresas patrocinar a festa passa a ser
um bom negcio.
Outro elemento apontado na narrativa de Ldia est relacionado ao fato das
mudanas ocorridas em torno do espao onde ocorrem as celebraes em honra ao
Divino. No nos referimos apenas ao processo de urbanizao desse espao, mas tambm
a ocupao desse. Se antigamente a populao ponta-grossense era em sua maioria de
catlicos e tais prticas, a do foguetrio e a cavalhada, no incomodavam a populao
que morava prximo casa, na contemporaneidade encontramos um templo evanglico e
um centro esprita na mesma rua onde est localizada a Casa do Divino, ou seja, com a
instalao de templos de outras religies na cidade, o espao ganhou outras configuraes,
se moldou para adaptar-se nova realidade. Por isso a dificuldade em realizar alguns
elementos que compunham as celebraes no passado, agora no presente, o foguetrio
um exemplo, pois no dia que ocorre a festa, o domingo do Divino, tambm ocorre os
cultos no templo evanglico. E o espao deve ser respeitado e compartilhado.
Se no passado as festas ocorriam apenas em frente a Casa do Divino, com sua
reedio em 2003, essa passou a se alternar entre dois espaos, em frente a Casa do
Divino, na rua Santos Dumont 524 e na Praa Marechal Floriano Peixoto, a praa da
Matriz. Isso ocorreu por dois motivos, durante alguns anos a Casa do Divino passou por
um processo de restauro, portanto estava interditada e precisou de outro espao para
realizar os festejos, e em 2005 a festa foi realizada em conjunto com o Cenculo Diocesano
e por esse motivo aconteceu na praa em frente Igreja Matriz135.
Essas informaes nos revelam relaes construdas e reconstrudas ao longo dos
anos, nos revelam a relao que a Igreja Catlica, enquanto instituio, estabeleceu com as
festividades religiosas de cunho popular. Se os festejos realizados por D. Maria eram
genuinamente populares, ou seja, uma festa realizada por leigos e para leigos apesar do
carter religioso, e no discurso clerical da poca eram combatidas, com sua reedio no
incio do sculo XXI passa a contar com o apoio eclesistico local.
136 WERNET, Algunstin. A vinda de congregaes estrangeiras e a europeizao do catolicismo no centro sul
do Brasil. Revista da SBPH. Curitiba, (6): 43, 1991.
137 ANDRADE. Solange Ramos de. A religiosidade catlica no Brasil a partir da Revista Eclesistica
Brasileira. Revista Brasileira de Histria das Religies Ano I, no. 2. Maring: Anpuh, 2008, p. 80.
138 Entrevista realizada com Maria, em Ponta Grossa, em dezembro de 2014, por Vanderley de Paula Rocha.
139 BOSCHILIA, Roseli T. Modelando condutas a educao catlica em colgios masculinos (Curitiba 1925-1965). Tese
(Doutorado em Histria). Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes. Universidade Federal do Paran,
Curitiba, 2002, p. 6.
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olhava para a sua imagem que fica exposta na casa e esse olhar era sempre de respeito,
apesar da conversa fluir de forma extrovertida.
Percebemos que uma relao de respeito, mas ao mesmo tempo ntima criada
com o sagrado na representao do Divino Esprito Santo. Questionada o porqu de ela
dizer que o Divino merecer a festa, ela responde de forma simples e direta: Porque ele
bom com todos ns. Assim, ao dizer que o Divino merece a festa porque ele bom, D.
Maria nos revela um contrato estabelecido entre os devotos e o Divino, preciso
homenage-lo porque Ele nos deu algo em troca, bom com todos ns. O Divino
atende nossos pedidos e devemos realizar a festa em sua homenagem, pois o contrato foi
firmado e precisamos respeita-lo. Este o sentimento de dona Maria que passa a ser
representado pela promessa, que passa a ser representada pela troca realizada entre o
devoto e o Divino.
Essas trocas so evidentes nos dias festivos, so nesses, que evidenciamos a maior
participao dos devotos, seja atravs do auxlio na realizao das novenas (em preparao
para a festa), cuidando da ornamentao do espao, da limpeza, das barraquinhas da
quermesse, ou como espectador annimo. Na fala de D. Maria, encontramos o elemento
da coeso social, quando ela afirma Se reunimos todos juntos, cada um traz alguma coisa,
juntamos tudo para que a festa seja boa. Nesse momento festivo, os devotos se renem,
contribuem para que a homenagem ao Divino a festa seja realizada com sucesso,
portanto seja boa.
Outra caracterstica presente na fala de D. Maria o carter divertido da festa,
presente neste momento de religiosidade, o sagrado e o profano compartilhando um
mesmo evento. A festa religiosa tambm um momento de se divertir, muitas pessoas
esto ali, no somente para rezar, mas tambm para se descontrair, assim a festa pode ser
entendida como Momento recreativo do ritual religioso.140 Ao questionar seu Antnio de
72 anos, aposentado, sobre os momentos de descontrao presente na festa do Divino,
assim ele se colocou:
Venho na festa do Divino sempre, s uma vez que eu no pude vir, porque
estava viajando na casa do meu irmo que no estava bem, estava com um
problema de sade, ele mora em Guarapuava. Eu gosto de participa da festa,
venho sozinho nas novenas e na festa, participo da procisso, da missa na igreja
e depois almoo aqui, fico um pouco mais na festa para ver os cnticos, mas
quando comea muito barulho das msicas altas e no gosto muito, entro [na
Casa do Divino] fao minha orao e vou embora. Eu no gosto de baguna,
acho assim que no hora, por isso s fico at um momento 141.
Na transcrio acima nos deparamos com uma memria individual142, ou seja,
formada a partir de acontecimentos vividos pessoalmente, pois seu Antnio se coloca na
143 HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Ps Modernidade. Traduo de Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira
Lopes Louro. 10. Ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
144 SANCHIS, Pierre. Tramas sincrticas da histria: Sincretismo e modernidades no espao luso-brasileiro.
Entrevista realizada com Sueli, em Ponta Grossa, em dezembro de 2014, por Vanderley de Paula Rocha.
145
Entrevista realizada com Raimundo, em Ponta Grossa, em dezembro de 2014, por Vanderley de Paula
146
Rocha.
Um problema recorrente
Quando nos deparamos com movimentos sociais agrrios, comum tentarmos simplifica-
los e enquadr-los em uma lgica j existente. Muitos movimentos agrrios no Brasil acabam sendo
comparados e Canudos, sendo considerados messinicos, uma forma simplria rotul-los, sem
compreender suas diversidades e complexidades. Porm, muitos historiadores questionam esses
rtulos messinicos, achando que esse enquadramento no d conta de explicar a complexidade dos
movimentos. Marco Antonio Villa um exemplo deste movimento, pois ele questiona esse carter
messinico do prprio Antonio Conselheiro e do movimento de Caudos:
148
VILLA, Marco Antonio. Canudos: O povo da terra. So Paulo: tica, 1997, p. 240
149 CUNHA apud VILLA, Canudos: O povo da terra. p. 240
150 VILLA, Canudos: O povo da terra, p. 09
151
CUNHA, Euclides da. Os Sertes. Rio de Janeiro: Ed. Francisco Alves, 1923, p. 151
152 QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O messianismo: no Brasil e no mundo. So Paulo: Dominus
Editora/Edusp, 1965.
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espetculo das injustias, o dever do homem trabalhar para san-las,
pois sua a responsabilidade pelas condies do mundo.153
Percebe-se ento que um movimento messinico precisa de uma crena, somada a uma luta
poltica, uma ao transformista, regida e incentivada pela crena em questo. Complementando a
compreenso do conceito de messianismo, relevante citar Maurcio Vinhas de Queiroz, que
compara um movimento messinico a um movimento social laico:
muito comum que a luta poltica sertaneja seja construda com embasamentos religiosos,
pois a religio, na maioria das vezes um catolicismo popular repleto de sincretismos, muito
presente na cultura popular do serto brasileiro. No podemos ignorar tais caractersticas culturais
desses grupos. Quando Vinhas de Queiroz afirma uma alienao no movimento messinico, ele se
refere ao pouco conhecimento poltico dos envolvidos. Porm, como salienta Lsias Nogueira
Negro, no se trata de uma alienao e sim uma busca poltica atravs do vis mais acessvel a eles,
no caso o vis religioso.
O movimento jeovense
153
QUEIROZ. O messianismo: no Brasil e no mundo, p. 07
154 QUEIROZ, Maurcio Vinhas de. Messianismo e conflito social: a guerra sertaneja do contestado: 1921-1916.
Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1996, p. 252/253
155 NEGRO, Lsia Nogueira. Revisitando o messianismo no Brasil e profetizando seu futuro. In: Revista
Vindo do sul da Bahia, Udelino chega a regio da Serra dos Aimors na dcada de 1940,
poca em que havia um conflito litigioso entre os estados do Esprito Santo e Minas Gerais pelo
territrio da regio. Sendo uma terra pouco habitada, havia at aquele momento apenas alguns
posseiros que ocuparam a regio, se apropriando de terras devolutas156, utilizando-as para a
agricultura, majoritariamente de subsistncia. Udelino como sabia ler e escrever, logo comea a dar
aulas e alfabetizar pessoas da regio, sendo, portanto, considerado um homem inteligente e
admirado pelos posseiros. Tal viso sobre Udelino facilitou que ele articulasse e comandasse o
movimento de Unio de Jeovah.
Como se trata de uma regio litigiosa, sem definio estadual, e com problemas de
distribuio de terras, o objetivo de Udelino Alves de Matos era criar um novo estado, o Estado de
Unio de Jeovah, e fazer uma distribuio justa das terras entre os que ali estavam produzindo e
sobrevivendo da terra.
Apesar de ter a adeso da maior parte dos posseiros, o movimento no tinha fora blica,
muito menos treinamento para enfrentar, num carter de guerra, a Polcia Militar do Esprito Santo.
Sendo assim, o movimento acaba em 1954, quando a Polcia Militar faz um cerco na Casa de
Tbua, sede administrativa do Estado de Unio de Jeovah, e destroem a casa queimando tudo que
havia dentro. Muitos dos jeovenses morreram nesta ao policial, porm alguns deles conseguiram
escapar. No h documentao que comprove a morte de Udelino nessa emboscada, porm
tambm no h nada que garanta a sua sobrevivncia. Sabemos apenas que Udelino desaparece
aps o ataque, o que facilita a criao de sua imagem como um mito na regio.
Terras indgenas que se tornaram desabitadas aps massacre dos indgenas que viviam na regio.
156
O documento mais antigo que retrata o movimento jeovense como movimento messinico,
encontrado at o momento nesta pesquisa, se trata de uma carta do interventor do Estado do
Esprito Santo, Jones dos Santos Neves, encaminhado ao Ministro de Justia e negcios Interiores,
do governo federal. Esta carta uma explicao do governo do Esprito Santo ao governo federal
sobre a represso violenta realizada contra o movimento jeovense, liderado pelo Major Djalma
Borges:
NEVES, Jones dos Santos. Ofcio N. G/1 471 [para] Ministro da Justia e Negcios Interiores, Francisco
157
Fato semelhante tambm pode ser encontrado no material paradidtico de maior circulao
sobre o Esprito Santo. No livro Histria e Geografia do Esprito Santo de Thais Moreira e Adriano
Perrone, possvel encontrar mais uma vez a representao messinica: Foi criado pelo
movimento o Estado de Unio de Jeov, num misto de questo fundiria e pregao religiosa. 162
Por se tratar de um material didtico, provvel que para sua escrita foram pesquisados materiais
de referncia sobre o tema, sendo Adilson Vilaa reconhecido como o maior pesquisador desta
temtica, perpetuando sua interpretao.
2007, p. 126
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692
Porm, ao analisar a primeira Comisso Parlamentar de Inqurito, feita na poca para
avaliar a extrema violncia dos policiais militares na regio, onde constam alguns depoimentos,
perceberemos que h uma representao um tanto divergente da apresentada por Vilaa. Esta CPI,
de abril de 1953, traz algumas denncias em material escrito, a maioria feita por lavradores da
regio, e dois depoimentos orais, alegando que a polcia agia de forma extremamente agressiva com
os posseiros. Um do Deputado Federal Wilson Cunha, quem fez a denncia, e outro do Major
Djalma Borges, principal responsvel pela ao militar na regio. Nestes depoimentos encontramos
alguns trechos que tratam de Udelino Alves de Matos e do movimento de Unio de Jeovah.
163 ESPRITO SANTO (Estado). Assemblia Legislativa. Comisso Parlamentar de Inqurito, n 71/53. 16 de abril
de 1953, p. 58
164 Nota-se que durante o processo referem-se a Udelino com o nome de Umbelino. No se sabe se
Na mesma CPI, consta o depoimento do acusado, Major Djalma Borges, onde acusado
de ser mandante dos atos violento da Polcia Militar no local. Em seu depoimento, Borges tambm
cita Udelino em um dado momento: denunciavam que um bando de 228 homens armados, sob a
chefia [...] de Udelino Alves de Matos, estava tomando as propriedades e matando os respectivos
proprietrios. 166 notvel que neste depoimento, Borges ao tentar justificar a sua violncia,
reafirma o carter violento de Udelino. Novamente, no foi encontrado nenhuma referncia do
lder jeovense como lder tambm religioso.
Apesar de ser possvel encontrar outras representaes sobre o movimento, como na CPI
trabalhada acima e na memria oral dos moradores da vila de Cotax168, podemos entender que a
representao messinica foi uma representao dominante. Utilizando das palavras de Roger
Chartier: As lutas de representaes tm tanta importncia como as lutas econmicas para
compreender os mecanismos pelos quais um grupo impe, ou tenta impor, a sua concepo do
169 CHARTIER, Roger. A histria cultural entre prticas e representaes. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; Lisboa
[Portugal]: Difel, 1990, p. 17
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695
ST 12: Dinmicas da conquista:
identidades, etnicidades e mestiagens
nos domnios ibricos
Adriano Toledo
Doutor em Histria Social da Cultura
(UFMG)/[email protected]
RESUMO: O presente estudo tem aborda a possibilidade de uso dos inventrios de bens
mveis, produzidos na Amsterdam do sculo XVII, como fontes para o estudo da Histria
das Colees. O estudo analisa a constituio de uma coleo privada que continha objetos
braslicos, registrada nos inventrios do comerciante e diretor da Companhia das ndias
Ocidentais, Mathijs van Ceulen. Alm das mudanas na composio da coleo, ao longo
do tempo, so estudadas as formas de resignificao que a coleo sofreu ao ser integrada
no ambiente residencial.
Introduo
Em 4 de maio de 1644, era registrado, pelo notrio Willem Hasen, o inventrio de
bens mveis provenientes da residncia do recm-falecido comerciante Mathijs van Ceulen.
Dentre os itens arrolados, considerados valiosos para o mercado de arte de Amsterdam, se
encontravam diversos objetos provenientes do Brasil. Pinturas, mapas e gravuras com
170
Esse trabalho foi o resultado da pesquisa Raridades em Contexto: incorporao e ressignificao de
objetos e imagens das ndias Ocidentais nas colees norte-europeias (sculo XVII)sobre a orientao do
professor de Museologia da Escola da Cincia da Informao, Ren Lommez Gomes. Alm disso, esse
estudo obteve apoio do Grupo da Histria das Colees e Museus recebendo o apoio da
PROGRAD/UFMG, PRQP/UFMG e FAPEMIG e do Grupo de Pensamento Poltico e Prticas Culturais
no Mundo Luso-Holands (sc. XVII), sendo esse apoiado pelo Espao do Conhecimento UFMG para a
realizao dos encontros semanais.
A presena de itens de origem brasileira nessa coleo teve, como ponto de origem,
a participao do comerciante na administrao da ocupao neerlandesa do nordeste
brasileiro, entre 1634 e 1640. Com a criao da Companhia das ndias Ocidentais, o anseio
por conseguir o controle do comrcio de produtos do Novo Mundo fez com que, em
1630, essa regio da Amrica Ibrica fosse tomada e ocupada. Com a ocupao, diversos
homens migraram para o Brasil com o objetivo de atuar no comrcio e na administrao,
dentre eles, um Diretor da W.I.C., Mathijs van Ceulen.
A prtica colecionista foi comum entre sujeitos de posses que vieram para o Brasil,
durante a ocupao neerlandesa, ou de pessoas habitantes de Amsterdam envolvidos com
os negcios do Brasil.. Dentre os inventrios, hoje conservados no no arquivo da cidade de
Amsterdam, esto o de Mathijs van Ceulen, Pieter Seulin, Marcus van Valckenburg e do
Captio Marten Piertersz. Daij. Atravs desses inventrios possvel perceber como a
realidade americana se produziu objetos de admirao e auto representao. Portanto, esse
trabalho pretende abordar o inventario de Mathijs van Ceulen, apresentando as
possibilidades de interpretao do processo de autorepresentao de um sujeito atravs da
constituio de uma coleo de material braslico, refletindo os interesses e histria de vida
de um indivduo.
171
MONTIAS, John Michael. Art at auction in 17th Century Amsterdam. Amsterdam: Press University.
2002. p.16.
172
MONTIAS, John Michael. Art at auction in 17th Century Amsterdam. Amsterdam: Press University.
2002. p. 17
173
MONTIAS, John Michael. Art at auction in 17th Century Amsterdam. Amsterdam: Press University.
2002. p.17
174
semanalmente, os coveiros das igrejas e cemitrios de Amsterdam eram obrigados a entregar para a
Cmara dos rfos, os nomes e endereos de homens e mulheres que morreram deixando menores de idade
Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG. v. 7
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Ceulen e sua esposa Margaret Heucheulaen possuam quatro crianas175, sendo Maria a
mais velha, com apenas oito anos. Por isso, justificava-se a necessidade dessas crianas
serem registradas na Cmara dos rfos, aps a morte de sua me, pois, ento restava-lhes
somente o pai como tutor.
(traduo do autor). MONTIAS, John Michael. Art at auction in 17th Century Amsterdam. Amsterdam: Press
University. 2002. p. 17
175
Informaes recolhidas no site: http://research.frick.org/montias/home.php (ltimo acesso:
30/06/2015). Pesquisar por Mathijs van Ceulen.
176
WATJEN, Hermann. O domnio colonial holands no Brasil: um captulo da histria do sculo XVII.
Companhia Editora Nacional, 1938.
177
HEIJER, Henk Den. Diretores, Stadhouderes e conselhos de administrao. In: WIESEBRON, Marianne L. O
Brasil em arquivos neerlandeses (1624-1654). Leinden: Mauritiana. 2005
178
Inventrio de Mathijs van Ceulen, datado do ano de 1631, disponvel pelo endereo:
http://research.frick.org/montias/browserecord.php?-action=browse&-recid=2460 (ltimo
acesso:23/06/2015)
179
Inventrio de Mathijs van Ceullen, datado do ano de 1644, disponvel no endereo:
http://research.frick.org/montias/browserecord.php?-action=browse&-recid=1363 (ltimo acesso:
23/06/2015).
180
SCHAMA, Simon. O desconforto da riqueza. In: O Desconforto da Riqueza: A cultura holandesa na
poca de Ouro, Uma interpretao. (trad.) Hildegard Feist. So Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 289 -
368.
181
BARLAEUS, Gaspar. Histria dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil. Recife: Fundao de
Cultura Cidade do Recife, 1980.
182
MELLO, Jos Antonio Gonsalves de. Os Holandeses no Brasil. Companhias da ndias Ocidentais In:
HERKENHOFF, Paulo (org.). O Brasil e os holandeses 1630-1654. Rio de Janeiro: Sextante, 1999.
183
LUCIANI, Fernanda Trindade. Muncipes e Escabinos: poder local e guerra de restaurao no Brasil
Holands (1630-1654). So Paulo: Alameda, 2012.
184
TRINDADE, Srgio Luiz Bezerra Trindade. Histria do Rio Grande do Norte. Natal: Editora IFRN, 2010
Em 1644, o nome de van Ceulen aparece nos registros da Cmara dos rfos de
Amsterdam que, desta vez, registrava seu falecimento. Diferente do primeiro momento em
que ocorreu a catalogao, 1631, Hasen, ao entrar na residncia de van Ceulen, encontrou
cmodos consideravelmente bem decorados, com obras de artes de variadas temticas,
indo de motivos religiosos a naturezas mortas. Uma das pinturas de destaque da coleo,
185
MONTIAS, John Michael. Art at auction in 17th Century Amsterdam. Amsterdam: Press University.
2002.
186
Inventrio de Mathijs van Ceullen, datado do ano de 1644, disponvel no endereo:
http://research.frick.org/montias/browserecord.php?-action=browse&-recid=1363 (ltimo acesso:
23/06/2015).
187
LOUGHMAN, John; MONTIAS, John Michael. Works of art in Amsterdam Inventories, 1600-1679. In:
Public and Private Spcaces. Works of art in Seventeenth-Century Dutch Houses. Zwolle, Waanders Printers.
2000. p.69
188
LOUGHMAN, John; MONTIAS, John Michael. Works of art in Amsterdam Inventories, 1600-1679. In:
Public and Private Spcaces. Works of art in Seventeenth-Century Dutch Houses. Zwolle, Waanders Printers.
2000. p.64..
Alm dos mapas apresentarem ser das terras braslicas, estando no primeiro
cmodo da residncia, eles se ressignificavam. Van Ceulen possua suas memrias de
189
SUTTON, Elizabeeth A. Capitalism and Cartography in the Dutch Golden Age. Chicago: University of
Chicago Press. 2015. 192 p.
Alm dos mapas do Brasil, as paredes do voorhuis da casa de van Ceulen possua
quadros de contedo poltico. Os retratos polticos eram peas muito comuns de serem
exibidas nos cmodos pblicos das casas de Amsterdam, posto que uma de suas funes
era o de representar os laos e redes sociais em que se inseriam os moradores da casa,
reforando a imagem de sua conexo com pessoas de destaque na sociedade local.
Na casa de van Ceulen, uma efgie do rei espanhol Felipe IV era um dos retratos
polticos que eram exibidos no voorhuis. No se sabe sua origem, mas pode-se supor que
essa pintura do chefe da maior nao inimiga da Repblica neerlandesa fora obtida como
presente diplomtico ou esplio de guerra em algum momento da invaso neerlandesa do
nordeste brasileiro, uma vez que o Imprio Portugus se encontrava sob o comando do rei
espanhol. Essa pintura, portanto, poderia ter a funo de marcar a posio poltica do
comerciante na ocupao do Brasil ou relembrar seu papel no fim do controle espanhol
sobre as terras conquistadas.
Outro retrato poltico que figurava entre as obras que estavam no voorhuis era o
retrato do Conde Maurcio de Nassau. Provavelmente, essa pintura foi colocada
juntamente com os mapas que representava o territrio braslico para estabelecer a relao
da atuao de van Ceulen com o Conde Nassau, no domnio das terras brasileiras. De
algum forma, seria honroso para Ceulen ter sua imagem ligada de Nassau, uma vez que o
ltimo era uma figura de destaque na aristocracia neerlandesa daquele perodo. O mais
interessante do voorhuis da casa de van Ceulen possuir retratos de figuras polticas o fato
de que, normalmente, no voorhuis no havia retratos. Estes, principalmente os que
representavam membros das famlias e os retratos polticos, eram colocados em cmodos
190
SUTTON, Elizabeeth A. Capitalism and Cartography in the Dutch Golden Age. Chicago: University of
Chicago Press. 2015. 192 p.
Concluso
A partir da anlise dos inventrios, podemos fazer leituras das colees do sculo
XVII neerlands que permitem perceber os laos existentes entre o impulso de colecionar e
formas de autorrepresentao do colecionador. Os inventrios informam uma grande
quantidade de dados que indicam a qualidade e variedade da composio de uma coleo
particular, mostrando que ela no se resumia a um acmulo de curiosidades, mas previa a
composio de um ambiente que refletia a personalidade do colecionador. Desse modo, os
dados sobre as colees presentes nesses documentos revelam as maneiras como um
sujeito gostaria de ser visto, quando algum visitante adentrasse em sua residncia. No caso
estudado percebe-se que van Ceulen, no momento de sua morte, sublinhava com sua
coleo uma imagem que valorizava sua profisso de comerciante e sua posio de diretor
da W.I.C.. Esse interesse de colecionamento e autorepresentao diferia do ano de 1631,
em que ele demonstrava uma preferncia por pinturas de temtica religiosa.
RESUMO: Os objetos materiais tm papeis culturais que ultrapassam o que a categoria objeto
pode sugerir. Longe de meros suportes ou auxiliares da ao de sujeitos, os objetos participam da
construo e desconstruo social das pessoas e suas identidades, bem como do estabelecimento,
definio e reconfigurao de relaes entre elas. Pensando no universo da colonizao das
Amricas, palco de encontro de sujeitos nas fronteiras entre o que poderamos chamar de grandes
blocos culturais, em vrias situaes podemos identificar a atuao de objetos materiais como
agentes mediadores de identidades, imaginrios e relaes. Tomo como caso de anlise uma
circulao especial de objetos em torno da figura do conde Johan Maurits van Nassau-Siegen, que
governou as conquistas brasileiras da Companhia Holandesa das ndias Ocidentais entre 1636 e
1644. No Brasil, Nassau formou uma vultosa coleo de espcimes animais e vegetais, artefatos de
povos diversos e obras artsticas e cientficas relacionadas ao Brasil e frica, grande parte da qual
foi levada para a Europa em seu retorno. Elementos significativos dessa coleo chegaram ao
conde por meio de presentes e trocas diplomticas com sujeitos das Amricas e da frica e, uma
vez na Europa, muitos dos itens colecionados foram dispersos atravs de doaes e presentes com
carter diplomtico. Proponho uma reflexo sobre a formao e disperso da coleo de Johan
Maurits van Nassau-Siegen em sua relao com as dinmicas coloniais de circulao de pessoas,
objetos, saberes e prticas culturais, nos contextos brasileiro e europeu. Argumento que essas aes
de colecionamento de objetos e de trocas de presentes podem ser percebidas como momentos de
191 As reflexes aqui apresentadas esto ancoradas em estudos desenvolvidos desde 2013 no projeto
Raridades em Contexto: incorporao e ressignificao de objetos e imagens das ndias Ocidentais nas
colees norte-europias (sc. XVII), com apoio da FAPEMIG. Esse projeto, coordenado pelo prof. Ren
Lommez Gomes da Escola de Cincia da Informao da UFMG, prope a investigao de processos de
recontextualizao e mudana de significado de objetos originrios das Amricas e frica ao serem
incorporados s colees norte-europeias do perodo moderno. O presente trabalho de pesquisa se beneficia,
tambm, da participao no Grupo de Estudo em Histria das Colees e dos Museus, sob coordenao do
Prof. Lommez Gomes e da Professora Verona Segantini da Escola de Belas Artes da UFMG, e no Grupo de
Pesquisa Pensamento Poltico e Prticas Culturais no Mundo Luso-holands (sc. XVII), igualmente
coordenado pelo Prof. Lommez Gomes, que se rene no Espao do Conhecimento UFMG. Por fim, a
abordagem dos objetos da coleo como agente mediadores devedora das discusses suscitadas nas aulas da
disciplina Antropologia dos Objetos, ministrada por Prof. Dr. Eduardo Viana Vargas e Ms. Levindo da
Costa Pereira na Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais no
primeiro semestre de 2015.
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encontro, mediao e produo de significados e sujeitos, em que os objetos aparecem como
agentes mediadores.
O perodo moderno destaca-se dentro do campo de estudos da Histria das colees como
um momento de emergncia de parmetros diversos de criao e ordenao de colees, que
correspondiam a interesses sociais distintos. O projeto de pesquisa Raridades em contexto:
incorporao e ressignificao de objetos e imagens das ndias Ocidentais nas colees norte-
europeias (sculo XVII) prope atentar para os diferentes usos, formas de percepo, apreciao e
valorizao dos objetos e colees por diferentes sujeitos, em diferentes espaos e situaes desse
momento. Dentro de tal projeto, me dedico ao estudo da coleo do conde Johan Maurits van
Nassau-Siegen, conhecido no Brasil como Maurcio de Nassau. A atividade colecionista de Nassau
engloba uma multiplicidade de aes e relaes, sujeitos e espaos, que aparecem eclipsados na
imagem tradicional do colecionismo moderno dos Gabinetes de Curiosidades.
Sobre as coisas
Vivemos rodeados de objetos, de coisas, e nossos modos de vida esto de tal forma
imbricados dessa materialidade que possvel conceber uma cincia inteiramente dedicada ao
estudo das sociedades a partir de seus vestgios materiais - a arqueologia. Ao mesmo tempo, nossa
sociedade distingue rigidamente pessoas e coisas, sujeitos agentes e objetos pacientes. Contudo,
as coisas tm papeis culturais que ultrapassam o que a categoria objeto pode sugerir. Longe de
meros suportes ou auxiliares da ao de sujeitos, os objetos atuam socialmente de diversas formas,
participando da construo e desconstruo social das pessoas e suas identidades, bem como do
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estabelecimento, definio e reconfigurao de relaes entre elas. Anthony Seeger, Roberto da
Matta e Eduardo Viveiros de Castro, em um artigo publicado em 1978, A construo da pessoa nas
sociedades indgenas brasileiras,192 j apontavam para a centralidade da questo da construo da pessoa
e fabricao dos corpos, com participao de objetos, como idioma simblico nas sociedades do
continente americano. Se em outras sociedades a construo da pessoa e fabricao dos corpos no
ganha a mesma dimenso ontolgica central, ainda assim podemos falar da construo simblica
das pessoas por meios imateriais e materiais como um aspecto marcante da vida social - ser pessoa,
no simplesmente ser homo sapiens, mas ser algum de um lugar e um tempo especficos, o que
aparece nas crenas, conhecimentos, relaes de parentesco, forma de falar, hbitos de higiene,
hbitos alimentares, vesturio, expresses artsticas, contexto econmico, situao poltica, e assim
por diante. Como afirma Jos Reginaldo Santos Gonalves no artigo Teorias Antropolgicas e Objetos
Materiais:
A troca de objetos foi tema de intenso interesse antropolgico e talvez um dos trabalhos
seminais nessa perspectiva seja o Ensaio sobre a ddiva197, de Marcel Mauss, publicado na dcada de
192 SEEGER, Anthony MATTA, Roberto VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B. A construo da pessoa
nas sociedades indgenas brasileiras. In: OLIVEIRA Filho, Joo Pacheco (org). Sociedades indgenas e
indigenismo no Brasil. Rio de Janeiro: Marco Zero/UFRJ, 1987, p. 11-29.
193 GONALVES, Jos Reginaldo Santos. Teorias Antropolgicas e Objetos Materiais. In: Antropologia dos
Prtica. Trad. Srgio Tadeu de Niemayer Lamaro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 166-203.
195 ________. La Pense Bourgeoise, p. 168 (nfases do original).
196 ________. La Pense Bourgeoise, p. 169.
197 MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a ddiva. In: Sociologia e Antropologia. Trad. Paulo Neves. So Paulo: Cosac
O antroplogo da economia Chris Gregory dedicou algum esforo a traar distines entre
ddivas e mercadorias como categorias lgicas, baseando-se tanto em teorias da Economia Poltica
quanto da Antropologia.202 Para o autor, a troca de mercadorias estabeleceria relaes entre os
objetos trocados, enquanto a troca de ddivas estabeleceria relaes entre os sujeitos envolvidos.
Nesse sentido Mauss, no Ensaio sobre a ddiva, expe que, no regime da ddiva, a troca de presentes
apenas uma parte de um contrato mais geral, envolvendo pessoas, valores e coisas, e afirma: Se
as coisas so dadas e retribudas, porque se do e se retribuem respeitos - poderamos dizer
igualmente cortesias. Mas tambm porque as pessoas se do ao dar, e, se as pessoas se do,
porque se devem - elas e seus bens - aos outros203. mister ressaltar que Gregory no trata os
conceitos de ddiva e mercadoria como categorias classificatrias ou mutuamente excludentes,
defendendo a possibilidade apontada por Sahlins de um continuum entre esses dois polos.204 Mauss,
por sua vez, encontra elementos caractersticos do regime da ddiva nas mais diversas sociedades,
inclusive na sociedade europeia da dcada de 1920, para a qual pode afirmar: A ddiva no
retribuda ainda torna inferior quem a aceita, sobretudo quando recebida sem esprito de
reciprocidade. [...] O convite deve ser retribudo, assim como a cortesia 205.
10-28.
GREGORY, C. A. Beyond Gifts and Commodities. In: Savage Money: the anthropology and politics of
commodity exchange. Amsterdam: Hardwood Academic Publishers; Taylor & Francis, 2005, p. 43-74.
203 MAUSS. Ensaio sobre a ddiva, p. 263 (nfases do original).
204 _________. The competing theories, p. 22.
205 ______. Ensaio sobre a ddiva, p. 294.
206 GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestio. Trad. Rosa Freire dAguiar. So Paulo: Companhia das Letras,
2001. 398p.
207 LATOUR, Bruno. Part I - How to deploy controversies about the social world. In: Reassembling the social: an
Maurcio de Nassau, aps destacada atuao no exrcito dos Estados Gerais da Repblica
das Sete Provncias Unidas dos Pases Baixos, foi apontado em 1636 para o cargo de Governador,
Almirante e Capito-General dos domnios conquistados e por conquistar da Companhia das
ndias Ocidentais - WIC - no Brasil, posto que ocupou at seu retorno a Haia em 1644. Era uma
funo ao mesmo tempo poltica, administrativa e militar. Ele deveria proteger e expandir os
territrios sob domnio da WIC, e garantir um ambiente de paz e ordem que permitisse o
desenvolvimento de atividades econmicas na regio.
Pierre Moreau, um francs a servio da WIC, nos informa em sua crnica211 que os Estados
Gerais esperavam ter nos nativos aliados na conquista de territrios nas ndias Ocidentais e
Orientais. Como argumenta o historiador Benjamin Schmidt212, em um estudo sobre a Amrica no
imaginrio neerlands no perodo de 1570 a 1670, os indgenas eram vistos, em um primeiro
momento, como vtimas seja da violncia, seja da ganncia, dos espanhis e, em todo caso,
potenciais beneficirios de uma aliana com os neerlandeses, prontos a pegarem em armas contra o
jugo hispnico primeira fagulha - o que se provou uma imagem equivocada. No territrio agora
sob comando de Nassau, a campanha luso-espanhola de guerrilha, empreendida em resistncia ao
novo governo, mobilizava a maior parte dos esforos neerlandeses e impedia o desenvolvimento da
indstria aucareira. A aliana com grupos indgenas, mais custosa do que o imaginado, se fazia
necessria em ambos os lados da guerra.
In: Innocence Abroad: the Dutch imagination and the New World, 1570-1670. Cambridge: Cambridge
University Press, 2004, p. 123-184; 185-243.
213 MONTEIRO, John. Entre o Etnocdio e a Etnognese - Identidades Indgenas Coloniais. In: Tupis,
Tapuias e Historiadores - Estudos de Histria Indgena e do Indigenismo. Tese (Concurso de Livre Docncia
em Etnologia) - Unicamp, Campinas, 2001, p. 53-78.
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Demorando-se Nassau s margens do So Francisco, vieram ter com ele
emissrios do rei dos tapuias, com presentes, arcos, flechas, lindssimas
penas de ema com as quais se enfeitavam indo para a guerra. Com a
devida cortesia, aceitou-os como ddivas de paz e de um comeo de
concrdia e penhores de benquerena, e, tratando digna e
magnificamente aos embaixadores, retribuiu os mimos, mandando-lhe
vestimentas de linho, camisas de mulher, facas, chocalhos, miangas,
corais, anzis, pregos, objetos para eles desconhecidos ou pelo menos
raro. Sobremodo contentes com isso, retiraram-se, prometendo
persuadir seu rei de aproximar-se do Conde e vir saud-lo.214
Firmava-se a a relao entre os indgenas reunidos sob o chefe Jandu e os neerlandeses. Nos
relatos neerlandeses, esses tapuais aparecem ora como bravos guerreiros, ora como selvagens
inconstantes, cuja lealdade no estava garantida. Nesse sentido, escreve Jorge Marcgrave, naturalista
que veio com Maurcio de Nassau para o Brasil:
O Ianduy, que conta mais de cem anos de idade, o rgulo, que mantm
a paz com os nossos e algumas vezes nos presta auxlio, em virtude de
aliana, ou ento envia contra os portugueses, dos quais figadal
inimigo, seu filho ou algum afim, com tropas. Mas no conveniente
usar o auxlio dstes indgenas, a no ser em caso extremo, pois so to
deshumanos que matam animais, homens e causam grandes
devastaes215.
Roulox Baro, intrprete e embaixador ordinrio da WIC no Brasil, descreve uma viagem ao
pas dos tapuias em 1647, com inteno de encontrar Jandu.216 O breve relato de Baro traz vrios
indcios da tradio indgena de troca de presentes e alimentos, na qual os neerlandeses, sem
conhecer, se inseriam. Mais ainda, o relato de Baro est repleto de desencontros de sentido e
momentos de tenso. Pensando a troca em contextos de ambiguidade, Gregory pontua que, em
situaes de coexistncia de diferentes sistemas de valor, emerge a possibilidade de compreenses
assimtricas das transaes quando essas se do entre pessoas que no compartilham dos mesmos
214 BARLU, Gaspar. Histria dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil e noutras partes sob o govrno
do ilustrssimo Joo Maurcio Conde de Nassau etc., (...). Trad. Cludio Brando. Rio de Janeiro: Servio Grfico do
Ministrio da Educao, 1940, p. 76.
215 MARCGRAVE, Jorge. Histria Natural do Brasil. Trad. Mons. Dr. Jos Procpio de Magalhes. So Paulo,
Jandu, nessa ocasio, reclama dos presentes que Baro lhe trazia, comparando-os tanto
com os recentemente ofertados pelos portugueses (Veja estes machados, estas machadinhas, estas
foices, estes faces e outros instrumentos de ferro; a menor pea vale mais que tudo aquilo que os
vossos Senhores holandeses jamais me enviaram219), inimigo que buscava alici-lo, como com
aqueles que recebera dos holandeses no passado, os quais descreve como belas trombetas, grandes
alabardas, belos espelhos, lindos copos e belas taas bem trabalhadas, que guardo em minha taba
para mostr-los aos outros tapuias que me vm visitar, dizendo-lhes: um certo senhor holands me
enviou isto, outro aquilo220. So presentes bem diferentes das facas, chocalhos, miangas, anzis,
pregos do encontro de 1638. Teriam anzis e pregos a mesma capacidade de mobilizar Jandu e
seus companheiros que as belas trombetas e taas bem trabalhadas?
Mas Jandu, como relata Baro, No deixava de aceitar o que os Nobres Poderosos meus
senhores lhe enviavam, na esperana que, no futuro, lhe seriam enviados objetos mais belos e
melhores221. Confiava, portanto, na relao de reciprocidade que as ddivas passadas instauravam.
Alguns dias depois, Jandu recebe em sua aldeia a visita de Wariju, lder de outro grupo tapuia, a
quem Jandu d parte dos presentes recebidos de Baro, sob a promessa de aliana. E explica a Baro:
Vs, meu filho, como necessrio que eu d aos tapuias parte do que me ofereceste? Pois, de
outro modo, eu ficaria s222.
Os presentes trocados com os Tapuias so diferentes daqueles trocados em 1641, com o rei
do Congo e conde do Sonho, que buscam Nassau como aliado na resoluo de uma disputa
poltica. Barlu223 relata que o rei do Congo enviara ao Brasil uma carta, 200 negros, um colar e uma
Uma das caractersticas marcantes de Friburgo era o grandioso jardim, com a presena de animais
variados e plantas brasileiras, africanas e europeias. Frei Manuel Calado, portugus que residiu no
territrio holands por um tempo a convite de Johan Maurits, afirma em seu relato que grande
parte desses animais eram trazidos como presente pelos habitantes da regio, com inteno de
conquistar a simpatia do conde.225
224 BARLU. Histria dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil e noutras partes sob o govrno do
ilustrssimo Joo Maurcio Conde de Nassau etc., (...), p. 158.
225 CALADO, Manoel. O valeroso Lucideno e triumpho da liberdade: primeira parte. Lisboa: Paulo Craesbeeck,
1648. 356 p.
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podendo assumir funes polticas, econmicas, cientficas, mdicas, esotricas e filosficas, dentre
outras226. A coleo do conde de Nassau no Brasil abarcaria animais e plantas, vivos em seus jardins
ou preservados, bem como objetos exticos e curiosos, itens que Nassau ganhava de presente ou
fazia recolher em expedies pelo territrio. As numerosas imagens e relatos produzidos pelos
artistas e naturalistas da comitiva de Johan Maurits, que incorporavam e traduziam plantas, animais,
lugares, coisas e pessoas em outra linguagem, seriam parte importante dessa coleo, especialmente
no retorno do conde Europa.
O trnsito dos objetos colecionados por Nassau para o continente europeu acompanhado
de um deslocamento de sentido. No mais narradores do sucesso da empresa colonial e comercial
da WIC e do papel de Nassau como governador-geral do territrio brasileiro, essas coisas agora
aproximam terras e povos distantes e de difcil acesso. Para Mariana Franozo227, que dedicou seu
doutorado ao estudo da coleo de Nassau, as trocas de presentes no contexto europeu adquiririam,
igualmente, outras dimenses - se, no contexto americano, buscariam estabelecer alianas militares
e comerciais entre os grupos tapuia, africanos e neerlandeses, agora as relaes que as ddivas de
Johan Maurits constroem seriam de carter pessoal, acrescentando valor a seu nome, seu capital
social. Lembremos, contudo, que mesmo durante sua estadia nas Amricas, Maurcio de Nassau se
envolveu em trocas de carter pessoal, a exemplo dos animais recebidos de presente dos habitantes
da regio, mencionados por Calado, e das remessas de espcimes animais e vegetais que o conde
envia Universidade de Leiden228.
226 HOOPER-GREENHILL, Eilean. Museums and the Shaping of Knowledge. London & New York: Routledge,
1992. 232 p.
KAUFMANN, Thomas DaCosta. From Treasury to Museum: the collection of the Austrian Habsburgs. In:
ELSNER; CARDINAL (eds.). The Cultures of Collecting. London: Reaktion Books, 1994, p. 137-154.
SWAN, Claudia. Collecting Naturalia in the Shadow of Early Modern Dutch Trade. In: SWAN;
SCHIEBINGER (eds). Colonial Botany: Science, Commerce and Politics in Early Modern World. Philadelphia:
University of Pennsylvania Press, 2007, p. 223-236.
227 FRANOZO, Mariana. De Olinda a Holanda: O gabinete de curiosidades de Nassau. Campinas: Editora da
Johan Maurits (1604-79) in North-East Brazil. Garden History, v. 30, n. 2, Dutch Influences. Winter, 2002, p.
153-176.
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Frana, em 1679. Rebeca Parker Brienen, em seu estudo sobre Albert Eckhout na corte brasileira
de Nassau, ressalta que os estudos a leo e as pinturas etnogrficas de Eckhout, valorizados na
Europa como imagens exticas do Novo Mundo altamente desejadas por terem sido pintadas ao
vivo, no foram distribudas entre colecionadores holandeses, mas enviadas para cortes poderosas
na Europa do Norte nas trocas acima mencionadas.229 Essa deciso pode ser interpretada como
uma forma de estender a rede de relaes de Johan Maurits, mas no menos importante a
percepo de que tais objetos, no contexto neerlands, sugeririam lembranas do empreendimento
colonial falido dos Pases Baixos. Esses objetos especiais da coleo do conde permitiriam o
estabelecimento de relaes entre Maurcio de Nassau e determinados sujeitos, mas no outros.
Franozo pondera:
De fato, vrios significados e vrias agncias se cruzavam e se emaranhavam nas redes por
que circulavam esses e outros objetos. A capacidade de ao desses objetos como mediadores nas
diversas situaes de troca depende das associaes estabelecidas com os outros sujeitos
envolvidos, no encontro de objetivos e horizontes de expectativas capazes de gerar resultados
ligeiramente surpreendentes231. guisa de um encerramento, ciente da necessidade de
aprofundamento posterior das reflexes ora apresentadas, fiquemos com as palavras de Mauss:
Trata-se, no fundo, de misturas. Misturam-se as almas nas coisas, misturam-se as coisas nas almas.
Misturam-se as vidas, e assim as pessoas e as coisas misturadas saem cada qual de sua esfera e se
misturam: o que precisamente o contrato e a troca232.
229 BRIENEN, Rebecca Parker. Visions of a savage paradise: Albert Eckhout, court painter in Colonial Dutch
Brazil. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2006. 288p.
230 FRANOZO, Mariana. De Olinda a Olanda, p. 40.
231 LATOUR, Bruno. A esperana de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos cientficos. Bauru: EDUSC,
2001. 372 p.
232 MAUSS. Ensaio sobre a ddiva, p. 212.
Apresentao
O comrcio atlntico portugus na era mercantil produziu uma vasta cultura
material a partir do contato entre distintas culturas. O resultado de um processo de longa
durao de intercmbio de mercadorias, tecnologias e mentalidades pode ser percebido por
meio da construo de uma cultura multifacetada, originada dessa malha de relaes. Os
acervos em marfim no Brasil, com recorte em Minas Gerais, pouco estudados e com
escassa documentao de procedncia ou origem, o objeto da pesquisa apresentada, a
qual faz parte do projeto The Luso-African Ivories: Inventory, Written Sources, Material Culture and
the History of Production.233 Essa produo, independente de se tratar de artefatos de teor
ritual ou laico, abordada por meio de seus aspectos materiais e documentais.
233Projeto coordenado pelos professores Peter Mark (Universidade de Lisboa and Wesleyen University) e
Vaniclia Silva Santos (Universidade Federal de Minas Gerais). Tambm integra esse amplo projeto, uma
proposta de convnio internacional A produo, circulao e utilizao de marfins africanos no espao
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O projeto geral visa alcanar trs objetivos: 1) levantamento dos acervos em marfim
e sua documentao nas instituies mineiras; 2) anlise nos inventrios e testamentos de
Minas Gerais sobre a cultura material em marfim, considerando a circulao de objetos,
usos, constituio de gostos e de gestos que lhes atriburam valores e justificaram sua
procura, seu comrcio e sua ostentao; e 3) o estudo material, por meio da Histria da
Arte Tcnica, voltado tecnologia de construo dos artefatos. Na primeira fase da nossa
investigao, foi dedicada ateno especial ao levantamento dos acervos em Minas e anlise
preliminar desta documentao, no que se refere localizao e posse das peas.
Jose Horta e Luis Urbano estudaram a entrada de peas de marfim em Lisboa, por
meio dos poucos livros de contas da Casa da Guin, em Lisboa, que sobreviveram ao
terremoto, especialmente para os anos de 1504 a 150, (onde) encontram-se tambm
235
registros alfandegrios que referem chegada de colheres e saleiros africanos. Os
referidos autores assinalam que o marfim africano esculpido se apresentou de diversas
maneiras, tais como em colheres, saleiros e olifantes sapi-portugueses, representando,
sobretudo, cenas de caa com fauna claramente de raiz europeia, sendo constituda por
veados de hastes longas, javalis, lebres e cervos, tal como ces de caa e cavalos ajaezados
Atlntico entre os sculos XV e XIX, desenvolvida entre a UFMG e a Universidade de Lisboa, tendo como
coordenadores respectivos Vaniclia Silva Santos e Jos da Silva Horta
234 AFONSO, Lus U; HORTA, Jos da Silva. Olifantes afro-portugueses com cenas de caa \ C.1490-C1521.
In: Revista de Histria da Arte e Cincias do Patrimnio. Portugal, n. 1, p. 20, 2013, p. 21.
235 ______ Olifantes afro-portugueses com cenas de caa \ C.1490-C1521, p. 21.
237 MOREIRA, Rafael. Pedro e Jorge Reinel (at.1504-60), dois cartgrafos negros na crte de d. Manuel de Portugal (1495-
1521). Lisboa: 2010. Disponvel em: < http://3siahc.files.wordpress.com/2010/08/rafael-moreira-3siahc.pdf
>. Acesso em: 01 maio 2015.
238 SILVA, Jorge Lzio Matos. Sagrado Marfim, O imprio portugus na ndia e as relaes intracoloniais Goa e Bahia,
sculo XVII: iconografias, interfaces e circulaes. 2011. 170f. Dissertao (Mestrado) Pontifcia
Universidade Catlica de So Paulo, Programa de Ps-Graduao em Histria, So Paulo, p. 12.
239 Nesse sentido ver os trabalhos de MALTA, Marize; NETO, Maria Joo. Colees de arte alm-mar: encontros
e perspectivas entre Portugal e Brasil. SANTOS, Lucila. A sagrao do Marfim. Museu Histrico Nacional
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marfim no Brasil, em sua grande maioria esto sob posse de Museus de Arte Sacra, Museus
Histricos ou at mesmo em colees particulares. A Coleo Souza Lima, por exemplo,
conta com cerca de 572 esculturas, foi adquirida entre 1919 e 1930, pelo empresrio Jos
Luiz de Souza Lima. Nos anos 1940 as peas do colecionador foram compradas pelo
governo federal e integradas ao acervo do Museu Histrico Nacional do Rio de Janeiro.240
Sons: O universo cultural da obra de arte. MELLO, Magno Moraes (org.). Disponvel em
<http://heema.org/wp-content/uploads/2014/12/SEMIN%C3%81RIO-ARTE-BELO-HORIZONTE >
Acesso em: 30 abr. 2015, p. 129.
241 Localizado na Rua dos Aimors, 1697 - Lourdes, Belo Horizonte MG.
242 IPAC. Inventrio de Proteo do Acervo Cultural de Minas Gerais. Plano Estadual de Inventrio de Minas
Gerais. Disponvel em < http://www.iepha.mg.gov.br/images/stories/noticias/2009/ipac.pdf > Acesso em:
30 abr. 2015.
243 De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), o Estado de Minas Gerais possui
853 municpios. IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica. Minas Gerais. Disponvel em <
http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/uf.php?lang&coduf=31&search=minas-gerais>. Acesso em: 30 jun.
2015.
244 Bem Cultural de natureza material (tangvel) - stios urbanos, estruturas arquitetnicas e urbansticas, bens
integrados, bens mveis, arquivos, patrimnio arqueolgico, stios naturais. Bem Cultural de natureza
imaterial (intangveis) festas, danas, celebraes, modos de fazer, saberes e ofcios.
245Alvorada de Minas, Arax, Baependi, Baro de Cocais, Belmiro Braga, Belo Horizonte, Belo Vale, Berilo,
Bocaiuva, Caet, Campanha, Carangola, Catas Altas, Caxambu, Chapada do Norte, Conceio do Mato
Dentro, Confins, Congonhas, Congonhas do Norte, Contagem, Couto de Magalhes, Diamantina/ Biribiri,
Esmeraldas, Ferros, Ibirit, Itacambira, Itacarambi, Itanhandu, Januria, Jequitib, Lagoa Santa, Leopoldina,
Manga, Mariana, Mateus Leme, Matias Barbosa, Matias Cardoso, Minas Novas, Moema, Montes Claros,
Nova Lima, Oliveira, Ouro Branco/ Itatiaia, Ouro Preto, Pedro Leopoldo, Piranga, Pitangui, Rio Acima, Rio
Pomba, Sabar, Sacramento, Santa Brbara, Santa Luzia, So Gonalo do Rio Abaixo, So Joo das Misses,
So Francisco, So Tom das Letras, Serro, Uberaba, Uberlndia, Vespasiano.
246Harmnio um instrumento musical dotado de tecla, fole e palhetas. Assemelha-se ao rgo e ao piano.
247 Rua Januria, 130 Floresta, Belo Horizonte MG.
248Alvorada de Minas, Baro de Cocais, Barbacena, Belo Horizonte, Caet, Catas Altas, Conceio do Mato
Dentro, Congonhas, Diamantina, Itabira, Itabirito, Itaverava, Lavras, Mariana, Matias Cardoso, Minas Novas,
Nova Era, Nova Lima, Ouro Branco, Ouro Preto, Prados, Raposos, Sabar, Santa Brbara, Serro, So Joo
del Rei, Paracatu, Tiradentes, Uberaba.
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sobrado em Barbacena e o Museu Histrico Ablio Barreto, em Belo Horizonte.249 Para a
pesquisa nesse acervo, foram utilizados os mesmos descritores da pesquisa no banco de
dados do IPAC/ IEPHA.
249 No Inventrio Nacional de Bens Mveis e Integrados, foram pesquisadas um total de setenta e uma igrejas
nos vinte e nove municpios trabalhados.
250 Nos acervos do IPAC/ IEPHA, foram identificadas peas em marfim nos seguintes municpios de Minas
Gerais: Belmiro Braga, Chapada do Norte, Conceio do Mato Dentro, Congonhas, Itacambira, Minas
Novas, Pedro Leopoldo, Santo Antnio do Norte, Distrito de Conceio do Mato Dentro.
251Os municpios com peas em marfim identificados nos levantamentos do IPHAN/ MG so: Barbacena,
Catas Altas, Diamantina, Mariana, Mariana/ Santa Rita Duro, Sabar, Santa Brbara / Brumal, Santa Brbara
/ Catas Altas e So Joo del Rei.
252Dos quatro crucifixos identificados no MRSJDR, dois so de procedncia desconhecida, e os outros dois
Tipologia
Foram localizadas sessenta e oito peas, sendo que as imaginrias religiosas
predominam na classificao das tipologias das peas localizadas. Foram identificas as
seguintes peas nos acervos pesquisados: adaga, bases, caador de borboletas, cachimbo,
calvrio, cristo da agonia, crucifixo, esptula, harmnio, hssope, Nossa Senhora da
Conceio, Nossa Senhora da Purificao, Nossa Senhora da Soledade, Nossa Senhora das
Dores, Nossa Senhora do P da Cruz, Nossa Senhora do Rosrio, pena (escrita), revlver,
Sagrado Corao de Jesus, Santana Mestra, Santo Antnio de Pdua, So Domingos, So
Joo Evangelista, So Luis Rei da Frana, Senhor do Bonfim, sinete, tero de Nossa
Senhora do Rosrio e umbela.
253 Nota-se que, em muitos dos inventrios pesquisados, h descrio sobre as condies de conservao e
segurana das peas, porm sabido que com o passar dos anos, a ausncia de aes preventivas contra a
infestao de pragas ou at mesmo em decorrncia de sujidades causadas pela ao do tempo, colocam a
preservao dessas imaginrias em risco.
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Dentro do subgrupo de peas sacras, h predominncia da imaginria devocional,
principalmente referente Cristo ou relativos sua morte, totalizando assim, trinta e sete
peas, sendo distribudos da seguinte forma: um Cristo da Agonia; vinte e nove Crucifixos;
cinco Senhores do Bonfim; um Calvrio e um Sagrado Corao de Jesus. As imagens
marianas so referentes : Nossa Senhora da Conceio (foram identificadas trs imagens),
Nossa Senhora da Purificao, Nossa Senhora da Soledade, Nossa Senhora das Dores,
Nossa Senhora do Rosrio, Nossa Senhora do P da Cruz e de Santana Mestra; e quatro
santos: Santo Antnio de Pdua, So Domingos, So Joo Evangelista e So Luis Rei da
Frana.
Consideraes preliminares
A partir do trabalho de levantamento e catalogao das peas em marfim em Minas
Gerais, foi feita a descrio da tipologia, da localizao e da atual posse das peas. A partir
254 Conforme descrio da ficha de inventrio do IPHAN: esptula de marfim com extremidades
arredondadas. Parte superior mais estreita com pintura rocalha, fundo em guilhoch. Parte inferior com
pintura retratando a cena de casal vestido a moda do sculo XVIII, no topo de uma escadaria decorada por
rocalhas e elementos fitomorfos e encimada por coluna com vaso de flores e ramos.
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desse trabalho preliminar, pretende-se analisar a origem/produo, tipologia, circulao e
posse do marfim ou das peas no sculo XVIII.
255 SUBRAHMANY, Sanjay. Connected Histories: Notes towards a Reconfiguration of Early Modern
Eurasia. In:
Modern Asian Studies, Vol. 31, No. 3, Special Issue: The Eurasian Context of the Early Modern History of
Mainland South East Asia, 1400-1800. Cambridge University Press,1997. p. 735-762.
256 GRUZINSKI, Serge. O historiador, o macaco e a centaura: a "histria cultural" no novo milnio. Estudos
De modo geral, a origem do termo casados foi associada conquista de Goa por
Afonso de Albuquerque em 1510, apesar de no se tratar de uma inovao, pois em
Marrocos existia uma instituio muito similar, os chamados fronteiros. De acordo com
Andrea Dor, esse governador passou a incentivar a politica de casamentos entre
portugueses e mulheres nativas, como um dos meios principais de fixar os portugueses e
seus descendentes em Goa. Assim, para contornar e sustentar as necessidades militares e
poltico-administrativas portugueses como estabelecer colnias de conquista que serviram
257 _______________. O historiador, o macaco e a centaura: a "histria cultural" no novo milnio, p. 325.
258 SERGE.O historiador, o macaco e a centaura: a "histria cultural" no novo milnio, p. 323.
259 CUNHA, Joo Teles e. De puro sangue a fraco rocim: A miscigenao na ndia portuguesa entre a
realidade social e as suas representaes (1500-1700). In: LOBATO, Manuel; MANSO, Maria de Deus Beites.
Mestiagens e Identidades intercontinentais nos espaos lusfonicos .NICPRI, Braga, 2013, p.71.
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como base de avanos territoriais - Albuquerque props ao rei portugus que seus soldados
se casassem com as mulheres locais260.
Por sua vez, Sanjay Subrahmanay definiu a categoria dos casados como uma
categoria jurdica, relacionada ao colono que estabelecesse casamento com uma indiana e se
fixasse no Estado da ndia. Por sua vez, os descentes de portugueses nascidos na ndia, so
definidos pelo autor como castios262.
Ainda de acordo com o autor, estes casados, cujo status era juridicamente relativo
categoria de homens-bons da sociedade urbana portuguesa, representavam a atividade
privada mercantil da regio de Goa. Assim, para Sanjay Subrahmanay, os casados podem
ser compreendidos de modo geral, ao burgus, de mentalidade urbana e mercantil263.
Andrea Dor aponta que era o comrcio o espao de atuao desses casados,
especialmente no que tocava o trafico interasitico ou na Rota do Cabo. Segundo a autora,
os casados de Goa, atuavam no comrcio costeiro com a regio do Guzerate e tambm no
comrcio com o Kanara, principal fonte de pimenta para a Carreira da ndia e do
Malabar264.
260 DOR, Andrea. Os casados na ndia portuguesa: a mobilidade social de homens teis. In: In: FLORES,
Jorge; MONTEIRO, Rodrigo, CALAINHO, Daniela, FEITLER, Bruno.(ORG). Razes do Privilegio:
Mobilidade social no mundo Ibrico do Antigo Regime. Civilizao Brasileira, 2011, P.509-510.
261 Carta de Afonso de Albuquerque ao rei. Goa, 4.11.1514. PATO. Raymundo Antonio de Bulho. Cartas de
Afonso de Albuquerque seguidas de documentos que as elucidam. Lisboa: Academia Real de Sciencias, 1884 e 1903.
262 SUBRAHMANY, Sanjay. The Portuguese Empire in Asia, 1500-1700: A Political and Economic History.
Outro importante aspecto a ser destacado em relao a estes casamentos mistos diz
respeito a ocupao destes em cargos administrativos. De acordo com Maria Fernanda
Bicalho, em 1542, uma ordem rgia colocava que os representantes dos mesteres no
Senado de Goa deveriam ser casados e residentes- ou seja, portugueses por nascimento e
origem- e que no fossem aceitas pessoas de outra nao ou qualidade. Ainda segundo a
autora, apesar da legislao pombalina ter abolido as diferenas legais entre brancos,
euroasiaticos e indianos cristos, o Senado de Goa, notificou em 1782, que brancos, ou
seja, portugueses, tinham preferncias na ocupao dos cargos da governana da terra267.
Em Macau, por exemplo, o cargo de vereador desde o final do sculo XVII era
ocupado exclusivamente por cristos velhos, portugueses de nao e gerao, comenta
Bicalho268. Assim, tanto em Goa quanto Macau, cidades importantes do vasto imprio
portugus, tinham em seus oficiais de cmeras formados majoritariamente por reins.
festas e a representao do imprio portugus. In: PAIVA, Eduardo Frana; ANASTASIA, Carla Maria
Junho. O trabalho Mestio: maneiras de pensar e formas de viver, sculos XVI a XIX Belo Horizonte,
ANNABLUME, 2002, p.309.
268 __________________________. Mediao, Pureza de sangue e oficias mecnicos. p.309.
269 DOR. Os casados na ndia portuguesa. p.520.
Neste sentido, destacamos que Alexandre Valignano, visitador das misses jesutas
na sia entre os anos de 1573 e 1596, se preocupou diretamente em realizar uma
hierarquizao dos povos nascidos em diversas regies do Oriente. Em um documento
datado de 1580, no qual procurou descrever as qualidades e costumes dos povos orientais,
o jesuta indicou que os japoneses e chineses eram superiores aos demais asiticos:
Toda a gente dessas partes (exceto a China e o Japo, que tais quais
trataremos em seu lugar, porque delas no falo agora) simbolizam as
seguintes coisas, convm, a saber, a que todos so de cor baa, embora
uma mais negra que a outra conforme o calor dos lugares em que
vivem, e conforme a qualidade de seus progenitores e dos exerccios que
fazem. E conforme a isto, embora uns sejam de mais ou menos primor e
capacidade que outros, todavia universalmente falando comum a toda
gente ser de pouco primor e de pouca capacidade: e parece como disse
Aristteles, de sua natureza nascida para servir, embora muitos entre eles
sabem mais e tem sutil entendimento, especialmente das coisas que
tocam seu interesse 271.
270 HESPANHA, Antnio Manuel. Imbecilitas: as bem-aventuranas da inferioridade nas sociedades de Antigo
Regime. So Paulo: Annablume, 2010, p.18.
271 WICKI, Jos. Documenta Indica. Romae: Monumenta Historica Societatis Iesus. 1948-1988, vol 13, p.144.
272
WICKI, Jos. Documenta Indica. Romae: Monumenta Historica Societatis Iesus. 1948-1988, vol 13,
p.144.
273 WICKI, Jos. Documenta Indica. Romae: Monumenta Historica Societatis Iesus. 1948-1988, vol 14, p.
834.
274BOXER, Charles. Relaes raciais no imprio colonial portugus. 1415-1825. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1967, p.96-97.
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Neste sentido, Serge Gruzinski, nos contextos dos sculos XVII e XVIII, indica
que a ideia de mistura, ou mesmo de mestiagem, pressupe a existncia de grupos
humanos puros, formados por elementos homogneos, A circulao e o intercambio entre
diferentes povos, a passagem do homogneo para o heterogneo levaria a um processo de
contaminao, de perda da pureza original e, portanto, de degenerao275.
275 GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestio. So Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 42.
276 ROSA, Alexandre Coelho de La. El Estatuto de Limpieza de Sangre de la Compaa de Jess (1593) y su
influencia en el Per Colonial. p.46-48.Captado em: http://www.upf.edu/huma/_pdf/ATT00248.pdf Acesso
em: 01. Maio. 2015.
277 ________________________.El Estatuto de Limpieza de Sangre de la Compaa de Jess (1593) y su
De modo geral, o panorama que se observa, portanto, era que apesar da escassez de
religiosos vindo do reino e posteriormente o ingresso de mestios e nativos nas ordens
religiosas, a excluso desses casados e de seus descentes, tanto na esfera poltica, social e
religiosa era uma realidade vivida na ndia.
Entretanto, o inverso tambm pde ser sentido, conforme salientou ngela Xavier
que as mulheres brmanes e chardos se recusavam a casar com filhos de casados,
aceitando, em vez disso, desposar fidalgos provenientes do reino, a quem reconheciam uma
dignidade semelhante sua280. possvel observar assim, que a prpria elite local procurou
se aproximar dos reinis portugueses nascidos na Europa- na inteno de indicar uma
pureza de sangue e de afastar da macula da mestiagem.
278 TAVARES, Clia Cristina da Silva. Jesutas e Inquisidores em Goa: a cristandade insular (1540-1682). Roma
Editora, 2004, p.112.
279 FARIA, Patricia Souza de. Percepes sobre os nascidos no Oriente Portugus: classificao e hierarquias
nas controvrsias em torno do clero nativo (Goa, sc. XVI-XVIII).. In: Faria, Angelo Assis; Manso, Maria de
Deus B; Levi, Abraham. (Org.). Quando o mundo era portugus: da conquista de Ceuta (1415) atribuio da
soberania de Timor-Leste (2002).. 1ed. vora; Viosa; Washington: NICPRI/ CCH-UFV, 2014, v. 1, p. 82-
106.
280 XAVIER. Dissolver a diferena, p.715.
281 BOXER. Relaes raciais no imprio colonial portugus. p. 99.
XVIII (as dinmicas de mestiagens e o mundo do trabalho). Belo Horizonte: Autntica, 2015. 304 p.
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ST 13: Poltica, Cultura, Economia e
Sociedade nas Amricas nos sculos XIX
e XX
O desenrolar dos primeiros passos do cinema em solo baiano contado pelos jornais ainda
preservados da poca e por escritores que se lanaram pioneiramente no ofcio do registro de um
acontecimento histrico para a Bahia, acreditando que, mais que entreter, o cinema era parte de um
processo de modernizao. Dos primeiros registros feitos no estado baiano, datados de 1910, at o
efervescente movimento do Cinema Novo, na dcada de 1950, tendo como grande referncia a
figura de Glauber Rocha, houve uma produo de filmes documentais que por um longo perodo
sustentaram o fazer cinematogrfico local e que pouco explorado, seja por potencial artstico, ou
por sua importncia como registros histricos. Embora, muitas vezes, rudimentares em sua feitura,
os filmes revelam atravs das imagens no s o desenvolvimento de uma arte cinematogrfica no
estado, como tambm os aspectos sociais, histricos e culturais da poca em que foram concebidos.
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Desse perodo correspondente primeira metade do sculo XX, destaca-se a figura de
Alexandre Robatto Filho que por mais de trs dcadas se dedicou ao desenvolvimento das
atividades cinematogrficas na Bahia. Com registros documentais, imprimiu na pelcula no apenas
imagens de uma Bahia ainda fortemente marcada por traos coloniais, como tambm tornaram
evidentes as foras econmicas que se convergiam para tornar possvel a produo dos filmes.
Com o descarte das obras realizadas por Gramacho e Dias da Costa, o ttulo de pioneiro do
cinema baiano coube a Alexandre Robatto Filho tendo produzido, por mais de quatro dcadas,
registros videogrficos de festejos, eventos polticos e sociais importantes.
Nascido em Salvador, no ano de 1908, Robatto Filho ficou conhecido como um homem
de muitos instrumentos j que desenvolvia as atividades de dentista, professor de Odontologia da
Universidade Federal da Bahia, rdio-amador, fundador do Iatch Clube da Bahia, produtor de discos
fonogrficos, escritor, desenhista, pintor e documentarista. Em 1930 comea a produzir curta-
metragem retratando aspectos da Bahia ainda marcada por forte trao colonial.
Preocupava-se em registrar a cultura baiana no s atravs dos filmes que fazia; por isso,
junto com o pintor argentino Cayb, lana uma srie de discos intitulados Documentrios da Bahia,
registrando toques de capoeira angola e sambas de roda. Participou ativamente da vida poltica e
cultural do estado, desempenhando tarefas junto ao Departamento de Educao Superior da
Cultura, no tempo do secretrio Navarro de Brito, e tambm no Instituto da Pecuria da Bahia.
286SILVEIRA, Walter da. A histria do cinema vista da provncia. Salvador. Fundao Cultural do Estado da
Bahia, 1978.
Alm disso, o cineasta, que mantinha uma sala de projeo permanente montada prximo
sua casa, conviveu de perto com artistas responsveis pelas agitaes modernas em torno das artes
na Bahia, como o artista plstico Mrio Cravo, o pintor Caryb e Jorge Amado, que escreveu um
personagem em sua homenagem, no romance Dona Flor e seus Dois Maridos288.
importante ressaltar que o perodo correlato s obras de Robatto Filho foram anos de
importncia para as discusses que tinham a Bahia como palco central de aes governamentais.
Afirmam alguns estudiosos que a crescente onda de industrializao que alavancou a produo e os
investimentos econmicos, principalmente no sudeste e sul do pas, no foi acompanhada pelos
baianos. O estado apresentava, ento, uma estagnao tanto no crescimento populacional como no
setor econmico. Nessa perspectiva pretendemos analisar o acervo documental robattiano tomando
como campo de observao o contexto no qual os seus filmes foram produzidos observando que
eles revelam uma memria documental significativa sobre uma Bahia imbricada em uma teia de
relaes dinmicas entre a tradio e o moderno, bem como evidenciam a atuao da viso de
mundo do cineasta, que, por vezes, dependente das condies de financiamento.
Conjuntura Baiana
287
ROBATTO FILHO, Alexandre. In: SETARO, Andr. Panorama do cinema baiano. Salvador, FUNCEB,
1976, p. 9.
288 SETARO, Andr; UMBERTO, Jos. Alexandre Robatto Filho: pioneiro do cinema baiano. Salvador: Fundao
A Bahia vai mergulhar, por bem mais de cem anos, num perodo de
relativo isolamento e solido, antes que acontea sua insero perifrica
na expanso nordestina do capitalismo brasileiro. E foi justamente na
maturao desse mais de cem anos insulares, de quase assombroso
ensimesmamento, que se desenvolveu a trama psicossocial de uma nova
conjuntura organicamente nascida, sobretudo, das experincias da gente
lusa, da gente banto e da gente iorubana.289
No incio do sculo XX, Salvador se configura como uma cidade quase paralisada, uma vez
que ser a capital brasileira que apresentar as menores taxas de crescimento populacional e essa
paralisia no se resumia exclusivamente aos aspectos demogrficos. Com o reinado do caf no
centro-sul do pas, se afirmando como principal produto de exportao do Brasil, aprofunda-se no
estado baiano o declnio da economia primrio-exportadora pautada principalmente na indstria
289
RISERIO, Antnio. Avant-Garde na Bahia. So Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi , 1995, p. 158.
290 RISERIO, Antnio. Uma histria da Cidade da Bahia. Rio de Janeiro: Versal, 2004, p. 455.
No entanto, neste mesmo perodo emerge uma nova fronteira agrcola para Bahia com as
plantaes de cacau no sul do estado. Se Ilhus antes era um pequeno povoado fundado por
jesutas, com a chegada dos cacauais a cidade deu um salto de crescimento se transformando em
um centro gerador de riquezas.
S por volta dos anos 1950 a Bahia vai ser alcanada por transformaes que a empurraro
na direo de uma sociedade com caractersticas normalmente associadas ao esprito dos tempos
modernos inaugurados pelo novecentos.
Otvio Mangabeira, em 1947, assume o governo da Bahia que ainda era dependente da
exportao agrcola, principalmente do cacau. O mrito do governo de Mangabeira, foi saber aliar
ao esprito liberal uma firme liderana econmica e moral sem deixar de lado o esprito da
reconstruo.
RISERIO, Antnio. Uma histria da Cidade da Bahia. Rio de Janeiro: Versal, 2004.
291
Intrigava-me, desde muito, o que chamei o enigma baiano: por que razo
a Bahia, cujas qualidades e riquezas eram, em geral, to celebradas, se
mantinha, todavia, em condies de progresso indiscutivelmente inferior
ao que resultaria, em boa lgica, de semelhante conceito, assim tivesse
ele a procedncia que se lhe atribua? [...] Reinava de modo geral, uma
atmosfera de desanimo e o que era talvez pior de conformao com
o abandono, para no dizer com a decadncia, uma grande, profunda
descrena na ao do poder pblico.292
Estudar a Bahia nos seus diferentes aspectos parece ter sido o ponto de partida para o
desenvolvimento de propostas de governo pensadas por Otvio Mangabeira, pois cumpria
conhecer a realidade da Bahia como passo importante para entender-se possibilidade de
mudana293. Ao defender que o estudo das cincias bsicas seria capaz de uma transformao da
mentalidade dos baianos, o ento governador celebra um convnio com o Programa de Pesquisas
Sociais Columbia University para pesquisas no territrio baiano, a verso baiana do Projeto
Unesco desenvolvido no Brasil. Segundo Farias (2007)294 a proposta teve suas linhas gerais bsicas
traadas em 1949, envolvendo intelectuais como Charles Wagley, Thales de Azevedo e Luiz Aguiar
Costa Pinto e tinha como propsito tanto estimular abordagens scio-antropolgicas quanto
realizar um mapeamento das reas rurais e urbanas considerando fundamentalmente o tema da
dinmica de mudanas socioculturais na elaborao de um projeto de implementao de um novo
sistema de ensino no estado.
O cenrio de estagnao baiana comearia a mudar no final dos anos quarenta, com a
chegada da energia eltrica produzida pela CHESF Companhia Hidreltrica do So Francisco
instalada em Paulo Afonso, e das aes empreendidas pelo Ministrio da Agricultura e do Conselho
Nacional de Petrleo.
MEDEIROS, Ruy. O programa de pesquisas sociais estado da Bahia Universidade de Colmbia: o seu contexto.
293
FARIAS, Edson. Quando inovar apelar tradio - a condio baiana frente modernizao turstica. Caderno
294
Risrio (1995) aponta que a partir do final da dcada de 1940 se criou um ecossistema
propcio ao aparecimento, formao e ao desenvolvimento de uma personalidade cultural criativa
que se encarnou em artistas-pensadores. A histria da produo esttico-intelectual brasileira no
sculo XX, tomando como base os escritos crticos, no deixa de mencionar a conjuntura de
efervescncia renovadora.
A modernizao da Bahia, agora aparecia como uma meta, um ideal para que o Estado
acompanhasse a primeira investida industrialista, modernizadora. A estrutura econmica da
provncia permaneceu essencialmente agromercantil, apesar da virada reformista que mobilizou o
centro sul do pas. Edgar Santos, reitor-fundador da Universidade da Bahia entre os anos de 1946 a
1961, figura importante desse perodo, defendia que o poder econmico e o poder cultural
convergissem para a superao do atraso e no mago desse poder cultural deveria estar a
universidade, se fazendo centro da agitao cultural, numa poca de mltiplas iniciativas no campo
da produo esttico-intelectual.
A descrio das prticas culturais e um modo de sentir e pensar tradicionais foram opes
adotadas pelo discurso da baianidade, o que afirma Mariano (2009), que nomeia tradio como
tudo o que remete continuidade, manuteno, sobrevivncia. A tradio pode ser citada como um
motivo para se optar pelo modo baiano de viver e pelas vantagens que traria proteo e primazia
, como tambm pode aparecer como um resultado da repetio de antigos costumes. Nas variveis
formas de se convocar a manuteno dessas prticas tradicionais, a simples referncia a elas, j
representaria uma forma de mant-las vivas, mesmo que na memria, uma vez que merecer ser
tematizada j atestado claro de importncia. Segundo a autora:
295
RISERIO, Antnio. Avant-Garde na Bahia. So Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi , 1995, p. 15.
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[...] uma tenso presente nessas ideias associadas a uma habilidade
baiana de perpetuar que elas remetem ora a uma capacidade de
adaptao convvio/coexistncia, mistura/fuso ora a uma dimenso
conservadora hereditariedade, pioneirismo, obrigatoriedade.296
Importante perceber que as discusses em torno do tradicionalismo no se restringiam
Bahia. A prpria concepo de nordeste se calcou nas premissas da saudade e da tradio, afirma
Albuquerque Jnior (1999)297, ressaltando, ainda, que a regio tem um ponto de partida, que no
estaria dado desde sempre, e se configura como uma espacialidade fundada historicamente,
originada por uma tradio de pensamento, uma imagstica e textos que lhe deram realidade e
presena. Seria, pois, o nordeste, dito tradicional, um produto da modernidade.
Das cantigas de Caymmi para a literatura de Jorge Amado, das imagens fixas de Pierre
Verger para os fotogramas animados de Alexandre Robatto Filho, o cinema tambm corroborou
com o leque imagtico que deu corpo aos discursos tendo como temtica principal a Bahia em seus
aspectos peculiares. Analisando o legado flmico produzido por Alexandre Robatto Filho nota-se as
faces da transio pela qual passava o Estado: de um lado uma Bahia ainda marcada fortemente por
traos provincianos; do outro, o processo industrial que emergia no novo panorama local. Alm
disso, aspectos de uma dita baianidade, sobretudo ancorada no trip antiguidade histrica,
originalidade cultural e a beleza natural e urbana so temas recorrentes na filmografia desse cineasta.
Entre o Mar e o Tendal (1953) e Xaru (1954), so duas obras de destaque dentro da
filmografia robattiana e ambas registram a pesca artesanal da populao ribeirinha e descendente de
escravos na cidade de Salvador ressaltando a importncia da puxada de rede como instrumento de
sobrevivncia e como mantenedora de uma tradio ainda maneira dos africanos que aqui
chegaram.
Alm dos dois filmes j citados, outro que desponta no escopo das obras que exaltavam
imagens da Bahia nos seus diferentes contextos tradicionais Vadiao (1954), pelcula dedicada
arte da capoeira praticada como os antepassados no tempo da escravido. Nesta obra possvel
observar os enquadramentos elaborados, um jogo de imagem e sombra e, para alm da tcnica, a
ausncia da mulher na prtica da capoeira, cabendo a esta apenas observar de longe e acompanhar
com aplausos.
Doutorando
299 As informaes aqui presentes foram colhidas da leitura das seguintes matrias do Jornal do Brasil de 1936:
O repatriamento das cinzas dos inconfidentes (pag. 10) e As cinzas dos inconfidentes (pag. 14), quinta-
feira, 24 de dezembro As cinzas dos Inconfidentes (pag. 3) e A chegada das cinzas dos Inconfidentes
(pag. 35), sexta-feira, 25 de dezembro Em homenagem memria dos Inconfidentes mineiros (pag. 6),
domingo, 27 de dezembro e De volta ao solo ptrio (pag. 8), tera-feira, 29 de dezembro.
300 Antnio Augusto de Lima Jnior (1889-1970), filho primognito do conhecido poltico mineiro Antnio
Augusto de Lima, foi advogado, poeta, magistrado, jornalista e historiador, alm de membro do Instituto
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Pblica, Gustavo Capanema. Por causa disso, Getlio Vargas assinou, em 21 de abril de 1936, o
Decreto n. 756 A, que autorizou a exumao dos restos mortais e a transladao para o Brasil das
cinzas dos inconfidentes, que estavam na frica, concedendo queles heris, mortos no exlio, o
louvor de repousarem em terras brasileiras.
Ainda segundo o decreto, ficava sob responsabilidade do Ministrio da Educao e Sade
Pblica, em associao a dois outros, o das Relaes Exteriores e o da Marinha, providenciar o que
fosse necessrio. Alm disso, os artigos 2 e 3 informavam, respectivamente, que caberia cidade
de Ouro Preto, Minas Gerais, guardar os despojos que seriam depositados em monumento a ser
construdo, e que o Ministrio da Educao e Sade Pblica comprometia-se a fazer a publicao
dos autos do processo da Inconfidncia Mineira.
Coube a Augusto de Lima Jnior ficar encarregado dessa misso. Ele dirigiu-se, assim, a
Portugal, uma vez que as ossadas e as cinzas dos inconfidentes jaziam em terras coloniais daquele
pas, e passou a acompanhar as autoridades portuguesas na exumao dos restos mortais dos
inconfidentes, certificando-se da absoluta veracidade do processo. Ou seja, a dimenso simblica de
autnticas relquias, de objetos capazes de ligar o visvel ao invisvel no caso prpria ideia de luta
pela liberdade do povo brasileiro foi um cuidado constante e nada ingnuo.
Finalizando os trabalhos, em novembro de 1936, o balano era animador. Como podemos
acompanhar por meio do termo de entrega dos autos de exumao e das urnas contendo ossadas e
cinzas dos inconfidentes301, produzido pelo governo portugus e oferecido, no dia 26 daquele ms e
ano, ao Delegado do governo brasileiro, foram encontrados doze restos mortais. Em dezembro do
mesmo ano, disponibilizaram-se, ainda, o auto de exumao e a urna que abrigava as cinzas de mais
um inconfidente identificado, totalizando treze. Todos os despojos haviam sido localizados em
igrejas situadas nas colnias de Angola e Moambique302.
Terminado o processo de buscas, era preciso iniciar os preparativos para o retorno triunfal
ao Brasil. Optou-se por desembarcar as ossadas e as cinzas na capital, o Rio de Janeiro, e s depois
decidir como elas seriam levadas para Ouro Preto. Em 24 de dezembro de 1936, chegou ao Rio de
Janeiro o navio brasileiro Bag, que trazia os restos mortais daqueles heris. Dois dias depois,
representantes do estado de Minas Gerais dirigiram-se embarcao para depositar sobre as urnas
funerais a bandeira mineira, ocorrendo vrios discursos, entre os quais o de Augusto de Lima
Jnior, que agradeceu o apoio recebido do governo portugus. Coincidindo com esse cerimonial, o
Ministrio da Educao e Sade Pblica distribuiu nas livrarias os trs primeiros volumes do livro
Autos da Devassa da Inconfidncia Mineira, produzidos em associao com a Biblioteca Nacional,
reunindo a documentao relacionada ao processo, conforme se havia comprometido. Em julho de
1937, dando prosseguimento iniciativa de editar esse conjunto de documentos histricos, o agora
Histrico e Geogrfico de Minas Gerais e da Academia Mineira de Letras. Ao longo de sua vida, colaborou
em diversos jornais do Rio de Janeiro, como A Gazeta de Notcias, A Noite, Jornal do Brasil, Jornal do Comrcio e
Correio da Manh. Em Belo Horizonte, fundou o Dirio da Manh e a Revista de Histria e Artes.
301 O documento original, intitulado Termo de entrega ao Excelentssimo Senhor Doutor Augusto de Lima
Jnior, Delegado do Governo Brasileiro, dos autos de exumao e das urnas contendo ossadas e cinzas dos
conspiradores da Inconfidncia Mineira, pode ser consultado em: Arquivo Cristiano Machado, CM c
1936.11.26. FGV/CPDOC.
302 Os inconfidentes eram: Domingos de Abreu Vieira, Francisco de Paula Freire de Andrada, Incio Jos de
Alvarenga Peixoto, Jos lvares Maciel, Luiz Vaz de Toledo Piza, Antnio de Oliveira Lopes, Joo da Costa
Rodrigues, Jos Aires Gomes, Salvador Carvalho do Amaral Gurgel, Toms Antnio Gonzaga, Vicente Vieira
da Mota, Vitoriano Gonalves Veloso e Francisco Antnio de Oliveira Lopes.
303 Com a Lei n. 378, de 13 de janeiro de 1937, o Ministrio da Educao e Sade Pblica passou a chamar-
se apenas Ministrio da Educao e Sade.
304 O Ministrio da Educao promove a publicao de documentos histricos. Jornal do Brasil, sexta-feira, 2
de julho de 1937. P. 6.
305 O Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE) foi criado em 1936 por Gustavo Capanema e dirigido
pelo antroplogo Edgard Roquete Pinto, tendo como objetivo fazer do cinema um instrumento de educao,
ao produzir e divulgar filmes de cunho educativo.
306 Para uma anlise desse filme, ver: SCHVARZMAN, Sheila. Humberto Mauro e as imagens do Brasil. So Paulo:
1943 a Carlos Drummond de Andrade, chefe de gabinete do Ministrio da Educao e Sade, respondia ao
memorando que havia sido enviado a ele a pedido de Gustavo Capanema, no qual este requeria informaes,
oriundas de pesquisas realizadas em documentos originais pertencentes ao arquivo da Biblioteca Nacional,
relativas naturalidade de Tomas Antnio Gonzaga, um dos personagens que atuaram na Inconfidncia
Mineira. Arquivo Luiz Vergara, LV c 1943.01.11. FGV/CPDOC.
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Tendo em vista colocar em prtica esse projeto de promoo da memria de Tiradentes, o
Ministrio da Educao e Sade empregou uma srie de polticas culturais que mobilizavam e
abrangiam diversas reas e rgos subordinados a ele. Um exemplo desse tipo de investimento
encontra-se na dramaturgia. Peas de teatro de carter pedaggico, explorando temas histricos,
foram uma grande novidade do final da dcada de 1930, das quais Tiradentes. Comdia histrica em trs
atos e sete quadros, de Viriato Corra311, um dos melhores representantes312. Sob o patrocnio do
Servio Nacional de Teatro do Ministrio da Educao e Sade, foi encenada pela primeira vez no
Teatro Municipal do Rio de Janeiro, no dia 16 de novembro de 1939, como parte do programa das
Comemoraes do quinquagsimo aniversrio da Repblica. Nessa pea, que foi um entre os vrios
instrumentos utilizados para a maior divulgao da histria de Joaquim Jos da Silva Xavier, o
carter de cada personagem apresentado de maneira especfica: Tiradentes era o mais
entusiasmado com o movimento sedicioso, aparecendo como destemido, sincero, ativo, sonhador,
revolucionrio e disposto a morrer pela liberdade, mantendo a proximidade com a imagem de Jesus
Cristo; Joaquim Silvrio dos Reis era o interesseiro, o traidor, sendo comparado a Judas; e os outros
inconfidentes foram construdos como pessoas fracas e desprovidas da capacidade de lutar at o
fim, no que diferiam e se inferiorizavam a Tiradentes313.
importante notar que Gustavo Capanema, para alm das medidas oficiais empregadas,
estava atento ao efeito multiplicador que elas poderiam desencadear, ao incentivar outras iniciativas
que, mesmo sem seu patrocnio, seguiam a direo propagada pelo Ministrio da Educao e Sade,
no que se referia s formas de caracterizao da figura desse heri maior. Capanema fazia questo
de reconhecer e estimular todos os tipos de aes que fortalecessem e expandissem o culto a um
determinado heri, em especial Tiradentes. O ministro, por exemplo, chega a enviar um telegrama
de felicitao a Antonio dos Santos, parabenizando-o por sua iniciativa em propor a seus colegas
bacharis da Faculdade de Direito da Universidade de Minas Gerais o nome de Tiradentes como
figura homenageada para paraninfo da turma de formatura no ano de 1943, ideia que, alis, tinha
sido unanimemente aceita314.
311 Viriato Correa (1884-1967), alm de teatrlogo, foi poltico, jornalista, romancista e membro da Academia
Brasileira de Letras. Sua produo de maior repercusso esteve voltada para o pblico infanto-juvenil, para
quem produziu inmeros ttulos, sendo Cazuza (1938) o mais conhecido deles. Ver: GOMES, Angela de
Castro. A Repblica, a Histria e o IHGB. Belo Horizonte, MG: Argvmentvm, 2009, p. 126.
312 Alm de Tiradentes, as principais peas histricas realizadas no perodo foram: Marquesa de Santos, de Viriato
Correa, encenada pela Cia. Dulcina-Odilon e estreada em 30 de maro de 1938; Iai Boneca, de Ernani Fornari,
encenada pela Cia. Delorges Caminha e estreada em 4 de novembro de 1938; Carlota Joaquina, de Raimundo
Magalhes Jnior, encenada pela Cia. Jayme Costa e estreada em 26 de maio de 1939; Mau, de Castello
Branco de Almeida, encenada pela Cia. Delorges Caminha e estreada em 25 de agosto de 1939; Caxias, de
Carlos Cavaco, encenada pela Cia. Comdia Brasileira e estreada em 10 de agosto de 1940; Sinh Moa Chorou!,
de Ernani Fornari, encenada pela Cia. Dulcina-Odilon e estreada em 4 de outubro de 1940; e O Chalaa, de
Raul Pedrosa, encenada pela Cia. Jayme Costa e estreada em 10 de outubro de 1940. Ver: FERREIRA,
Adriano de Assis. Teatro Ligeiro Cmico no Rio de Janeiro: a dcada de 1930. Tese de doutorado em Literatura
Brasileira. So Paulo: USP, 2010, p. 198 e 199.
313 ___________. Teatro Ligeiro Cmico no Rio de Janeiro: a dcada de 1930, p. 198 e 199, p.213-26. Nessa tese,
possvel encontrar tambm uma anlise do teatro brasileiro na dcada de 1930. A pea Tiradentes foi publicada
em 1941, no Rio de Janeiro, com o selo do Ministrio da Educao e Sade, pela editora Guarany. Uma cpia
datilografada da pea, datada do mesmo ano em que esta foi produzida pela primeira vez, 1939, encontra-se
em: Arquivo Luiz Vergara, LV pi Correa, V. 1939.00.00. FGV/CPDOC.
314 Os dados descritos encontram-se em Relatrio de minhas atividades cvicas, enviado a Gustavo
Capanema por Antonio dos Santos. Sobre a escolha de Tiradentes como homenageado de honra da
formatura, ver: fot. 676/3 a 679/2 ou pginas 3 a 11. Arquivo Gustavo Capanema, GC pi Santos, A.
1944.06.17. Microfilme rolo 10 fot. 674 a 687. FGV/CPDOC.
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Na verdade, uma das poucas iniciativas de celebrao da imagem de Tiradentes realizadas
no Estado Novo sem o envolvimento de Gustavo Capanema foi a publicao pelo DIP do livro
Tiradentes315, de Luciano Lopes, que integrava a coleo Vultos. Datas. Realizaes, produzida em
1944 e 1945.
Dessa maneira, o uso constante da figura de Tiradentes pelo Estado Novo pode ser
explicado pelo fato de que foi possvel reunir em torno desse personagem muitos dos valores
destacados pelo regime, como o desapego aos interesses individuais e a doao aos ideais coletivos,
entregando a prpria vida para salvar seu projeto e o dos demais companheiros. Tiradentes aparece,
assim, tambm como um representante da ndole pacfica e do esprito grandioso do brasileiro, ao
aceitar a morte em razo da Ptria.
Alm disso, Tiradentes passou a ser de extrema importncia aps o surgimento da 2
Guerra Mundial e, principalmente, com a entrada do Brasil neste conflito. Novamente, a
preocupao era com a defesa nacional, estimulando-se a busca por precursores desses valores, o
que trazia a luta de Tiradentes por liberdade, no sculo XVIII, para a ordem do dia. Ele seria o
melhor exemplo de amor patritico, mesmo que, em sua poca, o Brasil ainda estivesse longe de se
constituir enquanto nao. Sua inabalvel virtude cvica seria, em tempos de guerra, um smbolo e
uma inspirao, a fortalecer o esprito dos brasileiros frente ao conflito mundial.
Por fim, essa figura lembrada como um dos personagens histricos que mais
contriburam para a defesa nacional, ao ousar libertar o Brasil da metrpole portuguesa. Com a
entrada do pas na Segunda Guerra, em agosto de 1942, a proteo liberdade torna-se a grande
bandeira contra o fascismo, e Tiradentes reverenciado como um dos primeiros a lutar e morrer
por ela, servindo como forte elo de ligao entre o passado e o presente. Em meio a uma luta
decisiva para a preservao da liberdade e dos direitos do homem no mundo, a memria de
Joaquim Jos da Silva Xavier alcanava os coraes de todos os patriotas, fazendo brotar neles os
mais fortes sentimentos de brasilidade.
LOPES, Luciano. Tiradentes. Vultos. Datas. Realizaes. Rio de Janeiro: DIP, 1944.
315
A Inconfidncia Mineira. Revista Cultura Poltica. Vol. 2; num. 16; jun. 1942. P. 271.
316
317 A ideia de se criar uma instituio oficial de mobilizao da juventude brasileira partiu de Francisco
Campos, ento ministro da Justia. O projeto original de elaborao da Organizao Nacional da Juventude,
sugerido por ele, datado de maro de 1938, encontra-se no arquivo Getlio Vargas e era caracterizado pela
proposta de mobilizao poltico-miliciana da juventude e pela inteno de instituir uma organizao
paramilitar nos moldes fascistas, estando prevista a sua direo pelo presidente da Repblica e pelos ministros
da Guerra, da Justia e da Marinha, ficando de fora o Ministrio da Educao e Sade, ainda que o projeto
tambm possusse um carter educativo. No entanto, houve muitas crticas e oposies ao projeto,
principalmente por parte do Exrcito e do ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, o que o levou a
constantes alteraes, propostas inclusive por Gustavo Capanema. Finalmente criada, em 8 de maro de
1940, pelo Decreto-Lei n. 2.072, aps inmeras mudanas, a funo da Juventude Brasileira se mostrou
completamente distinta da apresentada no projeto original, resultando apenas em um movimento cvico-
educativo formado pela juventude escolar de todo o pas, mobilizada em torno do culto s datas, aos vultos e
aos smbolos nacionais. Para uma anlise aprofundada do processo de constituio da Juventude Brasileira,
ver: STEIN, Cristiane Antunes. Por Deus e pelo Brasil: a Juventude Brasileira em Curitiba (1938-1945).
Dissertao de mestrado em Educao. Curitiba: Universidade Federal do Paran, 2008; SCHWARTZMAN,
Simon BOMENY, Helena M. B. COSTA, Vanda M. R. Conteno das mulheres, mobilizao dos jovens.
In: Tempos de Capanema. Rio de Janeiro: Paz e Terra; So Paulo: EDUSP, 1984. Pp. 107-140; e HORTA, Jos
Silvrio Baia. A Juventude Brasileira: da mobilizao ao civismo. In: O hino, o sermo e a ordem do dia: regime
autoritrio e a educao no Brasil (1930-1945). Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1994, p. 205-287.
318Essa verso do projeto de decreto-lei redigida por Capanema situa-se em: Arquivo Gustavo Capanema,
GC g 1938.08.09. Microfilme rolo 52 fot. 81 a 85. Pasta II. FGV/CPDOC. As duas citaes, mais
precisamente, encontram-se, respectivamente, no fot. 81/1 e 84/2.
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pouco conhecido, mas acerca de quem se pudesse criar uma lenda
verdadeiramente interessante319.
Em funo da crtica, Capanema informa ao presidente, em 15 de janeiro de 1940, at
aceitar suprimir o artigo em questo, deixando a Juventude Brasileira de ter uma data prpria para a
sua festa, ainda que no concordasse com os argumentos utilizados, pois em sua opinio:
[...] o 21 de abril no uma data sem significao. uma data gloriosa,
cheia de beleza e de fora, e que marca na histria do Brasil o real incio
da independncia e da Repblica. tambm injustificvel dizer que
Tiradentes um heri pouco imponente e de pouca exemplaridade.
Tiradentes ao contrrio uma das mais impressionantes e exemplares
figuras no s de nossa histria, mas de toda a histria humana, pelo seu
critrio, pela sua clarividncia, pela sua capacidade de atuar e dirigir, pela
sua coragem, pela sua resistncia fsica e moral, pelo seu esprito de
sacrifcio e enfim pela sua bravura na tragdia que envolveu e
ensangentou a sua vida.
[...] Se acrescentarmos que Tiradentes era um homem jovem, de cerca de
quarenta anos, chegaremos concluso de que nenhum heri de nossa
historia mais prprio do que ele para figurar como guia e inspirao da
Juventude320.
Contudo, essa defesa que Capanema fez de seu projeto e da figura de Tiradentes no ficou
sem resposta de seu crtico. Este enviou a Vargas uma contra-argumentao, julgando as
consideraes do ministro insuficientes para rebater suas crticas. Nesse texto, acrescenta que, na
maior parte do Brasil, a figura de Tiradentes nada significa e que a adjetivao do ministro nada
demonstra, uma vez que os heris so feitos pelas suas grandes aes e era prefervel desenterrar
um pioneiro como Pedro Teixeira, Antonio Raposo, Domingos Jorge Velho, Santos Dumont,
Plcido de Castro ou ainda um homem do povo, um soldado, um marinheiro e criar-lhe uma
aureola de santo nacional a adotar a figura de Tiradentes, j que:
No se pode, nem deve, pois, dar juventude brasileira um heri
comportando discusses. O heri deve ser ou um produto acabado e
completo ou uma criao nova. De modo algum uma simples figura
histrica, que comporte discusses, dvidas, negaes [...]
Como generalizao nota-se que, num pas novo, por cultivar, o heri
deve ser um desbravador, um homem puro e de grande ao, um criador
de fora nacional e no um idelogo poltico. A exemplaridade que se
deve apresentar aos jovens em vez de aureola de mrtir deve carregar a
coroa do triunfo. O heri dos jovens um vitorioso e no um vencido.
No pretendemos uma discusso sem finalidade. No concordamos,
porm, em que Tiradentes, apesar do Palcio e da esttua, seja maior que
qualquer outro heri regional [...]
319 Arquivo Gustavo Capanema, GC g 1938.08.09. Microfilme rolo 52 fot. 209. Pasta III. FGV/CPDOC.
320Arquivo Gustavo Capanema, GC g 1938.08.09. Microfilme rolo 52 fot. 212/1 e 212/2. Pasta III.
FGV/CPDOC.
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Tome-se portanto um heri verdadeiramente nacional do Brasil todo
, e quanto mais annimo melhor, porque a sua lenda poder ser
enriquecida vontade321.
Essa troca de correspondncia, sempre endereada a Vargas, bom observar, diz muito a
respeito das disputas pela construo da figura do heri nacional, atravs do debate em torno da
caracterizao de Tiradentes, uma figura, como se v, sobre a qual havia, apenas aparentemente, um
consenso mximo entre lideranas polticas e intelectuais. O que se verifica sua apresentao
como um heri regional (mineiro), desconhecido na maior parte do pas e, bem pior, um heri
vencido, que, se contribura com a Ptria, o fizera com ideias e no com aes, situadas como um
contributo superior.
Aps diversas mudanas no texto, motivadas pelas crticas de inmeros atores, finalmente
criado o movimento da Juventude Brasileira, pelo Decreto-Lei n. 2.072, de 8 de maro de 1940,
sem qualquer meno a uma data prpria de comemorao e a um patrono. Alm disso, no lugar de
duas formaturas, como previa o projeto de Capanema, o decreto estabeleceu apenas uma, na data
da comemorao independncia do Brasil, que se realizaria no primeiro fim de semana do ms de
setembro, devendo ser marcada por grandes paradas realizadas na Semana da Ptria. Ou seja, o
dia 21 de abril foi abandonado, bem como qualquer referncia a Joaquim Jos da Silva Xavier.
Enfim, dentro de um projeto de culto figura de Tiradentes, a ao em torno da Juventude
Brasileira no tinha alcanado os resultados esperados.
Esse episdio, denso de significados, ajuda-nos a compreender como, apesar de um forte
imaginrio sobre Tiradentes j estar internalizado na populao, havia discusses sobre tal figura e a
possibilidade de alterao de uma hierarquizao de sua grandeza, indiscutivelmente, desde a
proclamao, como a do heri magno da Repblica. Tal concepo que se mantinha, mas tambm
estava em aberto, havendo claras investidas para sua redefinio, deixa ntido, mais uma vez, que
o presente que constri o passado e, nele, seleciona e desenha o perfil de seus heris, quer por via
da histria, quer da memria, quer por ambas, convergindo ou divergindo.
No caso de Tiradentes, no existia uma unanimidade entre os grupos que integravam o
governo. O que se verifica so disputas em torno da memria de determinados personagens
histricos, quer dizer, do lugar hierrquico que deveriam ocupar no panteo nacional, e em torno da
quantidade de investimentos, materiais e simblicos, para a realizao de celebraes. Capanema
procurou empregar seus esforos na promoo da figura de Tiradentes, utilizando toda a estrutura
do Ministrio da Educao e Sade, conseguindo, como resultado, manter forte o culto a esse
personagem, apesar de fracassar no que se referiu Juventude Brasileira.
321Arquivo Gustavo Capanema, GC g 1938.08.09. Microfilme rolo 52 fot. 233/1 e 233/2. Pasta III.
FGV/CPDOC.
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O regime Stroessner e os movimentos de
resistncia
Mestranda em Histria
UFMG
322SOLER, Lorena. Dominacin poltica y legitimidad: el stronismo en el contexto de America Latina. Nova
plis Revista de estudios polticos contemporneos. Paraguay. n. 4, p. 83-104. Abril-Outubro, 2009.
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anos de governo Stroessner, a sociedade paraguaia passou por um processo denominado de
coloradizao:
importante no perder de vista que a vida poltica paraguaia aps 1870 foi marcada pela
instabilidade poltica e por disputas violentas pelo poder. A ascenso de Stroessner, portanto, no
representou uma ruptura em um processo democrtico estvel, ao contrrio importantes
segmentos del pas aceptaron como um mal menor el advenimiento de una mano militar que
pusiera fin al desordem poltico y pacificara la Repblica.324
Uma das primeiras medidas tomadas por Stroessner ao assumir a presidncia foi realizar
purgas tanto nas foras armadas, como no partido Colorado, eliminando qualquer liderana
dissidente. Vale ressaltar que desde 1947, quando Mornigo decretou o Estado de Stio, todos os
outros partidos estavam proscritos; assim, as purgas no partido colorado visavam eliminar qualquer
tipo de oposio legal.
Boccia Paz ressalta que nos primeiros anos do regime stronista houve uma modernizao
do aparato de controle e informao, cuja instituio principal era a polcia. Sob o comando de
Edgar Insfrn Ministro do Interior criou-se um sistema de vigilncia domiciliar de pessoas
consideradas perigosas. Insfrn tambm deu grande importncia as informaes de fontes extra-
policiais, afinal a delao era uma prtica constante, estas informaes eram cuidadosamente
arquivadas e constituem, atualmente, parte do acervo do Arquivo do Terror, situado em Lambar
(cidade prxima a Assuno) no Paraguai.
323BOCCIA PAZ, Alfredo. GONZLES, Myrian. PALAU AGUILAR, Rosa. Es mi informe los archivos
secretos de la polcia de Stroessner. Asuncin: Servilibro. 2006, p. 149
324BOCCIA PAZ, Alfredo. GONZLES, Myrian. PALAU AGUILAR, Rosa. Es mi informe, p.53
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Uma das caractersticas marcantes do regime foi a construo de uma faixada de legalidade
e democracia. Assim, as medidas repressivas eram legitimadas por meio do amparo legal e
ideolgico na luta contra o comunismo. De acordo com a Comisso de Verdade e Justia do
Paraguai (CVJ-Py), o estado de stio foi um dos principais instrumentos jurdicos do stronismo que
permitiu ao executivo concentrar poderes absolutos e desconsiderar direitos legais e garantias
constitucionais.325
O stronismo tambm criou leis especficas para crimes polticos. A Lei N 294/ 1955 de
Defesa da Democracia pune queles que alzaren con mano armada contra los poderes constituidos
para suplantar total o parcialmente la organizacin democrtica republicana de la nacin, por el
sistema comunista o cualquier otro rgimen totalitario.326
E prev
Outra lei importante a 209/ 1970 de Defesa da ordem pblica e liberdade das pessoas.
Que prev penas para aqueles que defendessem publicamente o dio entre os paraguaios ou a
destruio das classes sociais. Esta lei definia uma ampla gama de condutas que violavam a paz
pblica, como formao de grupo armado para fins ilegais, pertencimento a organizaes ou
partidos comunistas, difamao de um ministro, legislador ou membro da Corte Suprema. Essas
leis aliadas ao Estado de Stio permitiam prender pessoas sob acusaes vagas. De acordo com a
CVJ328, a cada onda repressiva o governo acusava os detidos de infringirem uma dessas leis, sem,
contudo, definir o delito do qual eram acusados.
Ainda que, como afirmam Roberto Cspedes e Roberto Paredes329, a represso do regime
fosse exemplar e perversamente pedaggica em mostrar a crueldade e a impunidade dos crimes
cometidos pelos agentes do Estado, ao longo de toda a ditadura existiram grupos de resistncia e
oposio. Os mais conhecidos so o Partido Comunista Paraguaio (PCP), o Movimento Popular
Colorado (MOPOCO), Movimiento 14 de Mayo (M-14), a Frente Unido de Liberacin Nacional
325Comisin de Verdad y Justicia, Paraguay (CVJ). Informe Final Sntesis y caracterizacin del regimn.
(Tomo I). Asuncin, 2008, p. 158
A segunda incurso ocorreu em 1960, com a coluna Libertad, que no momento contava
com 120 homens, que se dividiram em 6 grupos, que foram derrotados dias aps o incio de suas
331ARELLANO, Diana. Regreso en Armas: Movimiento 14 de Mayo para la Liberacin del Paraguay. Nova
plis Revista de estudios polticos contemporneos. Paraguay. n. 8, p. 42-60. Agosto, 2004.
332Comisin de verdad y justicia. Informe final. Las principales de los derechos humanos (Tomo II).
Asuncin, 2008 p.166-167.
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aes. Arellano afirma que aps a priso dos membros do M-14 Stroessner inaugura uma mquina
repressiva baseada na tortura e na execuo sumria. A assertiva coaduna com as informaes
fornecidas pela CVJ-PY : Muchos prisioneros tomados el 6 de mayo habran sido arrojados con
vida desde aviones en vuelo por orden del entonces general Patricio Colmn, en tanto la mayora de
los combatientes fueron ejecutados por medio de torturas, culatazos de fusil o hachazos en
improvisados campamentos militares333
A Frente Unido de Liberacin Nacional (FULNA) foi formada em 1959, pelo Partido
Comunista Paraguaio junto a setores da oposio. Victor Dur e Agripino Silva334 definem a
FULNA como um movimento de esquerda que abarcava vrios setores sociais e polticos. A
FULNA definiu a guerra de guerrilhas como parte da revoluo paraguaia, um mtodo de luta do
povo para derrotar o regime ditatorial e impor a formao de um Governo Provisrio
Democrtico. A FULNA dividia-se em trs frentes: a Frente Campesina abarcava grandes reas de
influncia no interior do pas, como o Departamento de Cordillera, Guair, Paraguari e San Pedro.
(regio centro-sul). A Frente Operria tinha grande influncia nos sindicatos do Ferrocarril,
ANDE, Grficos, Operrios da construo civil, padeiros, sapateiros e outros. A Frente Juvenil-
Estudantil era constituda por estudantes secundaristas e do ensino superior. Ao longo de seus
cinco anos de existncia a FULNA fez diversas incurses armadas em territrio paraguaio,
contando principalmente com o campesinato, alm de propagandear seu manifesto em Assuno,
tarefa da frente estudantil.
A FULNA fez sua primeira incurso armada em 13 de junio de 1960, com a coluna
Ytoror. A resposta do aparato militar de Stroessner foi contundente, restando apenas dois
sobreviventes dessa coluna. Dur e Silva chamam ateno para o fato de que ao mesmo tempo que
a FULNA expandia suas aes no pas, tambm o aparato repressivo se articulava como uma rede,
acumulando informaes extradas de documentos apreendidos, mediante torturas e cooptao de
membros dos partidos Liberal e Febrerista. A ofensiva repressiva se deu em 1965, conseguindo
desmobilizar completamente o movimento. A represso recaiu tambm sobre a populao na
forma de vigilncia policial que abordava de forma violenta pessoas consideradas suspeitas. Ceres
Moraes e Evaristo Colmn335 ressaltam que, alm de combater a oposio, a represso tinha o
objetivo de amedrontar a populao, pois poderia atingir a qualquer indivduo, independente de sua
A dcada de 1960 foi considerada como a de maior violncia durante todo o stronismo. Foi
nesse contexto que se articulou uma poderosa rede de informaes sobre os paraguaios em exlio,
que se estruturou atravs dos consulados. De acordo com Boccia Paz, j na dcada de 1960 as
delaes permitiram que a polcia obtivesse informaes sobre as aes dos guerrilheiros, o que
eliminava qualquer possibilidade de fator surpresa336.
Consideraes finais
As execues, de acordo com a CVJ-Py, foram realizadas na presena dos moradores das
comunidades rurais e constituram-se como mensagens clara e objetivamente intimidatrias, alm
disso estigmatizaram os detidos e aqueles que por ventura houvessem prestado ajuda aos mesmos,
como comunistas ou subversivos. No s a troca de favores, mas tambm o terror converteu-se em
um elemento de incentivo a delao.
336BOCCIA PAZ, Alfredo. GONZLES, Myrian. PALAU AGUILAR, Rosa. Es mi informe los archivos
secretos de la polcia de Stroessner. Asuncin: Servilibro. 2006.
preciso, contudo, conceder nome e voz aos atores sociais descritos. Em meio s
classes dominantes urbanas da Primeira Repblica estavam de um lado a tradicional
camada senhorial em queda e de outro os cafeicultores do Vale do Paraba e os
traficantes de escravos em ascenso . A primeira classe (senhorio agrrio) atravessou a
segunda metade do sculo XIX com reduzida competitividade em relao aos seus
concorrentes no mercado internacional, resultando na queda de lucros da engrenagem
produtiva de cultivos agrcolas exceto aqueles que se dedicavam ao caf . A segunda
classe, por sua vez, estavam diretamente ou indiretamente relacionados ao enriquecimento
A emergente burguesia urbana e industrial valia-se das bases desiguais tecidas pelo
antigo senhorio agrrio para se consolidar, medida que herdava e mantinha os privilgios
scioeconmicos, aspectos esses que garantiam de um lado a submisso necessria para a
explorao da mo de obra popular e de outro a restrio suficiente para exclu-los dos
frutos do processo de expanso urbana em toda a sua extenso. Frente a esse contexto,
337 LISBOA, Armando de Mello. A mediao entre a economia e apoltica na produo terica sobre o Estado
contemporneo latino-americano: um balano. In.: Textos de Economia, 2, p. 123.
338
LISBOA, Armando de Mello. A mediao entre a economia e apoltica na produo terica sobre o Estado
contemporneo latino-americano: um balano. In.: Textos de Economia, 2.
339
LISBOA, Armando de Mello. A mediao entre a economia e apoltica na produo terica sobre o Estado
contemporneo latino-americano: um balano. In.: Textos de Economia, 2, p. 141. CARVALHO, Jos Murilo de.
A formao das almas: o imaginrio da Repblica no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1990.
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de modernizao conservadora pretendida no Brasil, que de um lado atendia a necessidade
de modernizar os centros urbanos pelas classes dirigentes e, de outro, mantinha esse
processo o mais restrito possvel frente incorporao das camadas populares. Diante
dessa constatao, indaga-se: mas qual era a relao entre cidades, progresso e restrio aos
populares? Julgava-se que o progresso apenas se concretizaria caso os indivduos
estivessem em harmonia com o coletivo e para que essa harmonia fosse conquistada, seria
necessria boa sade, realidade essa que nos oitocentos supunha-se que estivesse muito
distante das camadas populares, da a necessidade de restringi-los e ao mesmo tempo abrir
caminhos para a pesquisa das molstias decorrentes da modernidade, dedicando-se
especialmente quelas que se julgava ser o elo entre patologias e mazelas sociais.
340
MACHADO, Roberto et al. Danao da norma: a medicina social e constituio da psiquiatria no Brasil.
Rio de Janeiro: Graal, 1978. Biblioteca de Estudos humanos: Srie Saber e Sociedade; v. n, p. 195-379.
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procurava demonstrar a urgncia em impor uma nova lgica urbana, calcada pela relao
entre ordem, moral e sade341.
341
MACHADO, Roberto et al. Danao da norma: a medicina social e constituio da psiquiatria no Brasil. Rio
de Janeiro: Graal, 1978. Biblioteca de Estudos humanos: Srie Saber e Sociedade; v. n, p. 195-379.
342
NUNES, Everardo Duarte. Sade coletiva: uma histria recente de um passado remoto. In.: Tratado de
sade coletiva. Hucitec: So Paulo, 2006, p. 295 315.
343
MACHADO, Roberto et al. Danao da norma: a medicina social e constituio da psiquiatria no Brasil. Rio
de Janeiro: Graal, 1978. Biblioteca de Estudos humanos: Srie Saber e Sociedade; v. n, p. 195-379.
344
MACHADO, Roberto et al. Danao da norma: a medicina social e constituio da psiquiatria no Brasil. Rio
de Janeiro: Graal, 1978. Biblioteca de Estudos humanos: Srie Saber e Sociedade; v. n, p. 195-379.
345
MACHADO, Roberto et al. Danao da norma: a medicina social e constituio da psiquiatria no Brasil. Rio
de Janeiro: Graal, 1978. Biblioteca de Estudos humanos: Srie Saber e Sociedade; v. n, p. 195-379.
PIMENTEL FILHO, Jos Ernesto. Incultura e criminalidade: esteretipos sobre a educao da criana, do
jovem e do campons no sculo XIX. Histria, So Paulo, v.24, n.1, 2005, p.227-246.
O resultado foi um conflito desigual, que fez uso da polcia como elemento de
legitimao naquela que era considerada uma limpeza fsica e moral do espao urbano.
Diante desse contexto, a polcia figurava, assim, como um eficiente instrumento
disciplinador, tornando-se responsvel por vigiar usos e costumes, aplicar multas,
promover despejos e dar voz de priso queles que se opunham nova lgica sanitria.
Dados apurados por Maria Helena Souza Patto349 demonstram essa afirmao mediante a
constatao de que os gastos com a polcia em fins do sculo XIX eram duas vezes
maiores do que os gastos direcionados para a sade pblica. Observa-se, assim, que as
novas diretrizes da sade pblica apenas puderam seguir adiante sustentadas pela represso
346
MACHADO, Roberto et al. Danao da norma: a medicina social e constituio da psiquiatria no Brasil. Rio
de Janeiro: Graal, 1978. Biblioteca de Estudos humanos: Srie Saber e Sociedade; v. n, p. 195-379.
347 HENRIQUES, Rita de Cssia Chagas. A razo moldando o cidado: estratgias de poltica higienista e espao
urbano disciplinar Belo Horizonte (1907-1908). Cadernos de Histria, Puc Minas, Vol. 2, No 3 (1997).
348
PATTO, Maria Helena Souza. Estado, cincia e poltica na Primeira Repblica: a desqualificao dos pobres.
Estud. av. [online]. 1999, vol.13, n.35, pp. 167-198.
349
PATTO, Maria Helena Souza. Estado, cincia e poltica na Primeira Repblica: a desqualificao dos pobres.
Estud. av. [online]. 1999, vol.13, n.35, pp. 167-198.
350Cesare Lombroso, que se destacou ao buscar inserir na Criminologia os mesmos mtodos das Cincias
Naturais, procurando legar-lhe o prestgio daquelas. Para tanto, Lombroso realizou investigaes anatmicas
em prises, a partir das quais julgou ter encontrado o que denominou ser criminoso nato, isto , o indivduo
cujas caractersticas apresentavam especificidades fsicas e psquicas concebidas como tpicas de algum que
estava fadado ao cometimento de delitos. Lombroso considerava o criminoso nato incorrigvel e, por isso,
condenado reincidncia, pois era visto como uma anomalia psquica devassada por constante delinquncia.
A natureza do crime, desse modo, ficou em segundo plano, despertando mais ateno para a natureza do
comportamento criminoso, que tinha questionado o seu grau de humanidade, visto que feria princpios e
valores bsicos da natureza humana. De tais fronteiras emergiu o conceito de periculosidade, que Lombroso
entendia como produto de possveis estigmas anatmicos e biolgicos prprios dos indivduos criminosos.
Esses sinais eram vistos como elementos que denunciariam a suposta condio de inferioridade do tipo
criminoso. OLIVEIRA JNIOR, Alcidesio de. Penas especiais para homens especiais: as teorias biodeterministas
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criminosos aos olhos do que se supunha ser a corrente penal mais avanada do perodo.
Para os penalistas favorveis redao de um novo cdigo criminal, adotar leis segundo
modelos lombrosianos permitiria que a represso policial se mostrasse mais eficaz, j que
haveria orientao mais clara acerca dos criminosos a serem autuados e detidos. Julgavam
ainda que sob o vis lombrosiano fosse possvel calcular de forma mais racional a relao
entre os atos ilcitos e a punio. Como parte desse esforo, investiu-se na compreenso
cientfica dos atos criminosos por meio de estudos criminolgicos. Para o Estado
republicano, aprovar um novo cdigo de leis criminais de inspirao lombrosiana
favoreceria a imagem de modernidade que o regime republicano procurava refletir, dando
a impresso de que leis mais adequadas ao esprito do progresso dos oitocentos estavam
sendo aprovadas para garantir a segurana e a ordem. Julgava-se tambm que a legislao
penal de orientaes lombrosianas configurava um dos instrumentos relevantes para
diferenciar aqueles que seriam considerados normais e os que seriam vistos como
excludos. Aqueles que no se submetessem a tais determinaes, obrigatoriamente teriam
de se curvar, cedo ou tarde, desconfiana das autoridades locais, absorvendo a figura
daquele mantm os demais em eminente perigo e que por isso deve ser evitado, de forma
anloga a uma doena cujo contgio devesse ser impedido. Tendo em vista as discusses
acerca de uma nova codificao de natureza criminal que atendesse s lacunas apontadas
pelos especialistas em relao ao Cdigo Criminal de 1830, foi ento promulgado um
novo conjunto de leis o Cdigo Penal de 1890 que aos olhos daqueles que ocupavam
o poder, estaria altura do nascimento do republicanismo brasileiro. Diante desse cenrio,
a introduo da Criminologia no pas representava a implementao das estratgias
especficas de controle social e a adoo de formas diferenciadas de tratamento jurdico-
penal para determinados segmentos da populao351.
Com base nos motivos expostos, deveriam ser severamente combatidos aqueles
que se mostrassem distantes de se inserirem na lgica de progresso das elites republicanas.
Via-se com urgncia a necessidade de amparar a represso policial por meio de um cdigo
na Criminologia Brasileira na dcada de 1940. 2005. Dissertao (Mestrado em Histria das Cincias da
Sade) Casa de Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro.
351
ALVAREZ, Marcos Csar. O homem delinqente e o social naturalizado apontamentos para uma histria da
criminologia no Brasil. Teoria e Pesquisa, n.47, jul-dez/2005, p.71 92. TERRA, Livia Maria. Negro suspeito, negro
bandido: um estudo sobre o discurso policial. 2010. Dissertao (Mestrado em Sociologia) - Universidade
Estadual Paulista, So Paulo.
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de leis penais que regulamentasse, entre outros aspectos, os elementos sociais cuja coero
seria enfatizada em nome dos projetos reformistas e excludentes das elites republicanas.
Nesse nterim, a legislao penal, seguindo as orientaes lombrosianas, tornava-se um dos
instrumentos relevantes para diferenciar aqueles que seriam considerados normais e os que
seriam vistos como excludos. Estado, Medicina e legislao penal se dedicavam
continuamente convenincia, vontade e posio de poder vigentes352, articulando-os
na mesma direo dos jogos de poder das camadas dominantes. Levando em considerao
esse vis, foram erigidos os modelos criminolgicos do cdigo penal brasileiro de 1890,
aspecto esse que norteou os referenciais de delinquncia da poca. Por meio dessa
represso, esperava ser possvel abrandar a ocorrncia dos gneros de vida tidos na poca
como ameaadores. O discurso criminolgico agia, portanto, como reflexo de um poder
que atuava do centro para a periferia, delimitando, dessa forma, o perfil criminal a partir
do que as camadas dominantes entendiam como sendo ameaador.
352 BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 192.
Em 1980, Arenas fez parte do contingente de 125 000 cidados cubanos que
deixaram a ilha atravs do porto de Mariel, rumo aos Estados Unidos, em exlio em massa
autorizado pelo governo aps a invaso da embaixada peruana por 10 000 cubanos que
pediam asilo poltico. Os que desejavam deixar a ilha nessa poca e se colocavam na
condio de dissidentes polticos, como Arenas, eram, majoritariamente, jovens que haviam
formado sua conscincia social e poltica durante a revoluo, e pertenciam, quase todos, s
camadas populares, ou seja, constituam o grupo social que havia sido definido como o
principal alvo da revoluo de 1959.354 Esse exlio foi constitudo tambm por indesejados
pelo regime castrista, como homossexuais, presidirios, prostitutas e pacientes
353 Cf. MISKULIN, Silvia. Outro olhar sobre a Revoluo Cubana: a trajetria e obra de Reinaldo Arenas na
revista Vuelta. Revista Brasileira do Caribe, Braslia, Vol. X, n19. Jul-Dez 2009, p. 191-208.
354 Cf. MARQUES, Rickley. A Condio Mariel: memrias subterrneas da experincia revolucionria cubana (1959-
Dessa forma, o grupo forjou sua identidade a partir do estigma de marielitos para se
diferenciar dos demais cubanos, sejam os que davam suporte ao governo revolucionrio na
ilha ou a classe mdia e alta conservadora-liberal estabelecida em Miami. A busca pela
diferenciao frente a esses dois plos antagnicos da cultura poltica cubana o principal
elemento formador do grupo. Suas produes giravam em torno da construo de uma
memria e de uma identidade diferentes daquelas propagadas pelo discurso oficial do
governo cubano, em um processo de luta pelo prprio reconhecimento social dentro e fora
da ilha. Em seu projeto estava a disputa pela memria de suas juventudes em Cuba,
confrontando suas memrias individuais com a verso oficial do governo cubano, em uma
disputa pela memria coletiva.356
Final de un cuento foi escrito em 1982, somente dois anos aps a chegada do escritor
aos Estados Unidos. Esse conto, como grande parte da obra de Arenas, possui forte carga
autobiogrfica, ainda que seja um texto ficcional, e pode-se considerar que o prprio autor
se expressa atravs de seu protagonista. De acordo com Arenas, em entrevista a Jess J.
Barquet, em 1983: Hasta ahora he escrito fundamentalmente sobre las calamidades
355MARQUES, Rickley. A Condio Mariel: memrias subterrneas da experincia revolucionria cubana (1959-1990).
Tese (doutorado). Universidade de Braslia, 2009, p. 207.
356 Cf. MARQUES, Rickley. A Condio Mariel: memrias subterrneas da experincia revolucionria cubana (1959-
Nesse conto, Arenas nos apresenta inicialmente a dois amigos cubanos exilados que
conversam sobre suas vidas nos Estados Unidos. A tcnica de narrao envolve o leitor, de
modo que somente nas ltimas pginas do conto possvel compreender que o amigo
interlocutor da conversa, na verdade, est morto. Ainda que o texto seja apresentado como
um dilogo entre dois personagens, se trata, na realidade, de um monlogo interior, j que
o amigo nunca chega a intervir na conversa. O narrador havia viajado para Cayo Hueso, o
ponto mais ao sul dos Estados Unidos, para jogar ao mar as cinzas de seu amigo, que
cometeu suicdio por no poder suportar a experincia do exlio, marcada pela nostalgia,
inadaptao, crises de identidade e tristeza.
357 Entrevista concedida a Jess J.Barquet. Del gato Flix al sentimiento trgico de la vida. Nueva Orleans,
1983, p. 74.
358 Citado por PANICHELLI-BATALLA, Stphanie. La nostalgia y el exilio: comparacin entre Final de un
cuento de Reinaldo Arenas y Paso a nvel de Manuel Daz Martnez. In: PINEY, Grace PANCRAZIO,
James (org.). Cuba: Arte y literatura en exilio. Valencia: Legua Editorial, 2011, p. 47.
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argumentos se pueden esgrimir para consolar a alguien que an no est
provisto de un odio inconmesurable? 359
A nostalgia seria sentimento constante no sujeito desterrado. Super-la significaria
sobreviver no exlio, e isso s poderia ser feito atravs do dio ou do esquecimento. O seu
interlocutor, no entanto, sofria com o desenraizamento do universo de referncias
familiares provocado pelo desterro. Apesar de tambm ter sofrido com perseguies na
ilha, padecia com a nostalgia e sentia urgente necessidade de voltar a sua terra natal, nico
local no qual se reconhecia:
Por fim, importante ressaltar que o discurso sobre o exlio em Final de um cuento
marcado pela representao da sociedade capitalista estadunidense como profundamente
utilitarista, marcada por relaes pessoais frias, e regida pela lgica do mercado e pela busca
incansvel de lucro e bens materiais: nada es difcil de obtener en un mundo controlado
por cerdos castrados e idiotizados, slo tienes que encontrarle la ranura y echarle la
quarter369. Tais crticas sociedade capitalista norte-americana, alm de expressarem as
percepes do escritor durante o exlio, o diferenciam em relao comunidade de
cubanos exilados que se estabeleceu em Miami anteriormente a 1980 e que havia aderido ao
american way of life.
367 RESOLUES do Primeiro Congresso Nacional de Educao e Cultura de Cuba. So Paulo: Livramento, 1980, p.
29.
368 Cf. MARQUES, Rickley. A Condio Mariel: memrias subterrneas da experincia revolucionria cubana (1959-
1990). Tese (doutorado). Universidade de Braslia, 2009, p. 199.
369 ARENAS, Reinaldo. Final de un cuento. Mariel, 1983, p. 5.
RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo principal realizar uma breve anlise da
obra Del Plata al Nigara, escrita pelo intelectual franco-argentino Paul Groussac, tendo
como pano de fundo a questo da literatura de viagem como um importante gnero
literrio na Amrica Latina.
Introduo:
371 Para mais informaes sobre o conflito ver: ZEA, Leopoldo; MAGALLN, Mario. 1898 Desastre o
Reconciliacin?. Instituto Panamericano de Geografia e Historia: Mxico DF, 2000.
372 BRUNO, Paula. Paul Groussac. Un estratega intelectual. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econmica/UdeSA,
2005.
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autor sobre os Estados Unidos e alguns dos pases latino-americanos, pelos quais esteve de
passagem, durante o translado para terras norte-americanas.
O autor
Em 1885 ocupou o cargo que lhe pertenceu at sua morte, em 1929: o de diretor da
Biblioteca Nacional. Ocupar tal cargo deu a Groussac um maior destaque dentre os
crculos intelectuais argentinos, alm de poder dedicar-se exclusivamente as suas atividades
intelectuais. Groussac tinha acesso as novidades provindas do exterior antes de seus pares,
ou poderia enviar copistas para as obras que lhe interessavam para suas pesquisas.
Atividades de destaque do autor, alm da modernizao, aquisio de obras e catalogao
373
BRUNO. Paul Groussac. Un estratega intelectual, 2005.
374
_____. Paul Groussac. Un estratega intelectual, 2005.
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do acervo, foi a publicao de dois peridicos La Biblioteca e Annales de la Biblioteca. Tais
publicaes foram palcos para vrias de suas polmicas.
Viajar foi uma atividade constante na vida do autor, expedies que relata
principalmente em Del Plata al Nigara e em El Viaje Intelectual. Seus destinos foram
variados, dentre eles Argentina, Chile, pases da Amrica Central, Estados Unidos e
Europa, expressando suas opinies (nem sempre elogiosas) sobre os lugares e as pessoas, o
que lhe garantiu o reconhecimento de mestre na arte de injuriar, assinalado por Jorge
Luis Borges.375
375 BORGES, Jorge Luis. Obras completas. Buenos Aires: Emece Argentina, 2007.
376 A bibliografia sofre isso considervel.
377NETO, Daiana Pereira. (2013). De Paul Groussac a Richard Morse: Apropriaes e releituras de A Tempestade
A primeira parte da obra se dedica a sua primeira parada, o Chile. Pas que, assim
como a Argentina, teria no clima um fator de favorecimento ao desenvolvimento
intelectual, segundo Groussac. Durante sua breve estadia, o autor fez algumas
consideraes de destaque: primeiramente, ao falar do espao chileno e da condio
humana perante esta vastido, compreende que os pases devem organizar-se
nacionalmente, o que explica,
384
GROUSSAC. Del Plata al Nigara, p. 74.
385___.
Del Plata al Nigara. p. 81.
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Porm, no s com elogios ele descreve Lima. Assim como grande parte da
Amrica, a cidade mulher sofria com a decadncia, resultante da entrada de diversas raas
julgadas por ele inferiores, como o caso da incurso chinesa. Como sabemos, as
publicaes dos trabalhos cientficos de Spencer e Darwin influenciaram, em grande
medida as percepes destes autores de fim do sculo XIX. Para Groussac, aqueles
costumes e pessoas eram exageradamente exticos e destruidores de costumes. Em uma de
suas passagens, ao afirmar que as mulheres naturais da terra no se importavam e se
casavam com os asiticos, sua estupefao a de que os filhos decorrentes dessas unies se
mostravam mais inteligentes que as crianas puras, fruto da unio de naturais do pas.
386
Aps deixar o Peru, o autor afirma estar mesmo comeando sua viagem, uma vez que deixa as casas
amigas e seus contatos. Tanto no Chile, quanto no Peru, Groussac se hospedou entre amigos, em sua grande
parte homens representantes da Argentina.
387 O Canal do Panam comeou a ser construdo, em 1881, por empreiteiros franceses, porm o
empreendimento foi abandonado por problemas de engenharia e grande nmero de mortes, entre os
trabalhadores.
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la cuenta las bocas naturales utilizadas; pero en absoluto y como
proporcin de la obra por realizar, apenas una fraccin centesimal. Todo
lo difcil y problemtico queda en pie, sin haberse decentado ms que de
trecho en trecho y por va de ensayo. El ingeniero en jefe que me
acompaa no cree, naturalmente, que la partida est perdida. Est en su
papel profesional.388
No por eso pretendo que sea todo malo en la reserva europea, ni todo
bueno en la francachela americana. Cuando, por ejemplo, el sirviente
negro bebe en nuestros vasos, se zabulle en nuestro lavabo y concluye su
horripilante toilette nuestra vista y paciencia, siento en mi epidermis el
Nesse sentido, Paula Bruno afirma que grande parte dessa averso devia-se
principalmente ao fato de no localizar dentre os grupos intelectuais pelos quais circulou
uma aristocracia, pessoas capazes de reger os hbitos de uma sociedade refinada, indivduos
que pudessem transmitir os valores necessrios ao desenvolvimento de uma verdadeira
intelectualidade.391 Concebendo que, na verdade, essa democracia to falada e defendida
gerava uma ditadura da maioria, a qual o autor encarava com obstinada resistncia. Sendo
assim, quando essa democracia alcanava a esfera da educao pblica, mesmo que
ensinasse as pessoas a ler e a escrever, no favorecia o surgimento de gnios, uma vez que
massificava as pessoas e os condenava a mediocridade.
Um ponto que ilustra bem essa averso pode ser lido quando visitou a Universidade
de Harvard, onde assistiu s aulas durante uma semana. Sobre essa experincia escreveu:
Consideraes finais
Muitos dos tpicos abordados por Groussac, os quais tentei abarcar brevemente
por temticas, so recorrentes no final do sculo XIX. Inclusive a preocupao em relao
a maior presena norte-americana no continente a partir da dcada de 1880, a poltica, a
economia, as artes. Mesmo que sua maior preocupao tenha sido transmitir suas prprias
percepes, como homem de seu tempo deixou transparecer em seus escritos: ideias,
influncias e questes tpicas da conjuntura na qual as produziu.
Del Plata al Nigara, tornou-se uma fonte valiosa para se compreender o perodo no
qual foi produzido, discutindo poltica, economia, educao e arte. Mais que pensar os
Estados Unidos, podemos pensar as condies da Amrica Latina, a partir do olhar
peculiar de um estrangeiro, um francs, que adotou a Argentina como ptria e ao mesmo
tempo no abriu mo da aura e facilidades que sua condio de europeu lhe oferecia. Por
isso to difcil categorizar o autor.
Por fim, gostaria de salientar que essas breves pginas no esgotam e nem mesmo
tiveram a pretenso de abarcar toda a grandeza de Del Plata al Nigara, mas de apontar
393 BRUNO, Paula. Estados Unidos como caleidoscopio. Ensayo sobre las observaciones de viajeros
diplomticos argentinos del fin de siglo. In: Revista Complutense de Historia de Amrica. 2013, vol. 39, p. 23-38.
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questes levantadas pelo autor, podendo de alguma forma contribuir para um dilogo e um
enriquecimento acerca da literatura de viagem produzida na Amrica Latina no sculo XIX.
Introduo
Os trs primeiros anos da dcada de 1970, no Chile, foram marcados pelo intenso
debate poltico que mobilizou e polarizou a sociedade em torno da tentativa de realizar a
perspectiva anunciada pela Unidade Popular (UP) de institucionalizar a via chilena ao
socialismo. Projeto que pretendia revolucionar as estruturas poltico-sociais dentro dos
marcos de respeito institucionalidade democrtica, buscando compatibilizar socialismo e
democracia por meio de um sistema pluripartidrio com plena liberdade de imprensa.
Tentativa que ficou conhecida como a experincia chilena394. Nesse conflituoso processo, a
394 AGGIO, Alberto. Democracia e Socialismo. A experincia chilena. So Paulo: Annablume, 2002.
395MONCKEBERG, Maria Olivia. Los magnates de la prensa: concentracin de los medios de comunicacin en Chile.
Santiago: Random House Mondadori, 2011.
Covert Action In Chile, 1963-1973. Washington: U.S. Government Printing Office, 1975. Disponvel em:
397
O jornal La Nacin, por sua vez, foi fundado em 1917 e estatizado pelo General
Ibez durante a ditadura de 1927. Nos anos de governo da UP, apresentava uma
circulao diria de aproximadamente 21 mil exemplares, e seu diretor, nomeado
pessoalmente pelo Presidente Allende, era Oscar Waiss.398 Intelectual, que, aps o golpe,
foi preso e posteriormente obrigado a se exilar na Alemanha Oriental. Em seus editoriais, o
jornal, como esperado, alinhava-se s posies polticas da UP. Aps observar suas pginas,
entretanto, impe-se a hiptese que La Nacin, muito alm de servir como mero porta-voz
do governo, constituiu-se como importante espao de sociabilidade poltico-intelectual no
qual vrias setores da coalizao governamental debateram - inclusive com crticas s
posies de Allende - aspectos tericos, tticos e estratgicos da conduo poltica do
governo. Expressando, assim, as tenses e disputas polticas internas da UP.
WEITZEL, Ruby. Cuando La Nacin dej de existir. In: 200 aos de la prensa en Chile. Santiago: Editorial
398
USACH, 2011.
401BARBOSA, Marialva. Senhores da Memria. In: INTERCOM - Revista Brasileira de Comunicao, So Paulo,
vol. XVIII, N. 2, julho/dezembro de 1995.
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ordenada de un pas, cuya poblacin, tnicamente, es uniforme y que se
dio a s misma una estructura Republicana [...]402.
Um dos grandes debates no campo governista era sobre como desenvolver espaos
democrticos de participao popular, ampliando as formas em que trabalhadores e setores
populares pudessem participar institucionalmente do governo da UP. Nesse sentido,
enquanto El Mercurio projetava na UP um radicalismo que via nos cordes industriais e nas
Dos naciones en un solo pas. El Mercurio, Santiago, 30 de jun. 1973. Primeiro caderno, Editorial, p. 3.
402
Era recorrente a utilizao, pelo prprio governo, dessa imagem de neutralidade das
Foras Armadas em suas declaraes pblicas. Assim mesmo, aps a tentativa de golpe de
29 de junho, La Nacin expressava o papel das Foras Armadas como aspecto central na
manuteno da ordem democrtica. Em sua manchete de capa, de 5 de julho, afirmava em
caixa-alta: FF. AA. EXPRESSAN INVARIABLE RESPALDO Al REGIMEN
LEGAL404.
404 La
Nacin, Santiago, 05 de jul. 1973, Primeiro caderno, p. 1.
405
La Nacin, Santiago, 17 de ago. 1973, Primeiro caderno, p. 16.
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construa a imagem de que a UP colocava em risco a sobrevivncia do Chile unido, da
Nao e do Estado chileno.
Sobre esse tema, a historiadora chilena Vernica Valdivia Ortiz de Zrate escreveu:
Este alejamiento del conflicto poltico contribuy al mito de la
excepcionalidad de los militares y de la democracia chilena, en oposicin
a lo que ocurra en el resto de Amrica Latina; mito internalizado en
especial por los partidos y los polticos.407
possvel argumentar que este discurso expresso por La Nacin seria parte de uma
estratgia para neutralizar ou enfraquecer os militares ligados oposio e defensores do
golpismo. Entretanto, essa estratgia de ressaltar o carter patritico, nacionalista,
constitucionalista e apoltico dos institutos castrenses, pouco contribuiu, ou mesmo atuou
no sentido inverso, de conseguir estabelecer uma poltica para as Foras Armadas que
enfraquecesse a sedio e as articulaes golpistas. Como demonstrou Arturo Valenzuela, a
grande maioria da oficialidade enxergava nas Foras Armadas o guardio legtimo da
constitucionalidade, no entanto, a no intervencin estaba condicionada al desempeo de
los dirigentes civiles, pero no a un princpio definido de lealtad a la autoridade civil.408 Ou
seja, o que ambos os lados faziam, oposio e governo, era reforar e se apoiar no mito da
406Grandeza del General Prats. La Nacin, Santiago, 25 de ago. 1973, Primeiro caderno, Editorial, p. 3.
407 ORTIZ DE ZRATE, Vernica V. Todos juntos seremos la historia: venceremos. Unidad Popular y
Fuerzas Armadas. In: VALLEJOS, Julio Pinto (Org.). Cuando hicimos historia. La Experiencia de la Unidad
Popular. Santiago: LOM Ediciones, 2004, p. 195.
408 VALENZUELA, Arturo. El quiebre de la democracia en Chile. Santiago: Ediciones Universidad Diego
As ondas historiogrficas
O importante historiador Steven F. Lawson dividiu a produo norte-americana
acerca do Movimento pelos Direitos Civis em trs geraes (ou ondas) de estudiosos que
pautaram os debates entre os anos 1960 e 1990410. Em um primeiro momento,
historiadores de finais dos anos 1960 e incio da dcada de 1970 focaram na atuao de
410LAWSON, Steven F. Freedom Then, Freedom Now: The Historiography of the Civil Rights Movement.
The American Historical Review, v. 96, n. 2, p. 456-471, apr. 1991, p. 456-457.
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determinados lderes (liderana formal) das organizaes e nos impactos de eventos de
proeminncia nacional. Para eles, o movimento teria sido concebido primordialmente
como uma luta poltica de alcance nacional que objetivaria promover e assegurar
populao negra norte-americana at ento legal e institucionalmente privada do acesso
cidadania completa vitrias no mbito da justia e da legislao. Segundo destacam os
historiadores Sundiata Keita Cha-Jua e Clarence Lang:
Trabalhos escritos por este vis tendiam a ser narrativas 'top-down' que
enfatizavam as questes nacionais. Seguindo, muitas vezes
implicitamente, um quadro de anlise que priorizava a mobilizao de
recursos, eles creditaram o sucesso do Movimento ao carisma do Dr.
Martin Luther King, aos polticos liberais brancos, ao patronato branco
do norte, aliana liberal-sindical e/ou exposio televisiva da violncia
racial sulista realizada pela mdia. 411
A partir deste duplo enfoque lideranas formais e eventos de alcance nacional a
primeira gerao elegeu os anos 1954-1955 como marco inaugural do perodo dos Direitos
Civis em referncia deciso da Suprema Corte de abolir segregao racial nas escolas
pblicas (Brown x Board of Education of Topeka) e ao incio das manifestaes de boicote aos
nibus em Montgomery (Alabama), evento este que teria projetado nacionalmente o
herosmo individual da ativista Rosa Parks412. Apontaram, por outro lado, as decises da
Suprema Corte de por fim segregao e discriminao racial no pas (Civil Rights Act de
1964) e a Lei do Direito de Voto de 1965 como marcos finais responsveis por cumprir as
demandas polticas do movimento.413
411 Works written in this vein tended to be top-down accounts that emphasized national issues. Often
implicitly following a resource mobilization framework, they credited the movements success to Dr. Martin
Luther Kings charisma, white liberal politicians, northern white patronage, the labor-liberal alliance, and/or
the medias televised exposure of Southern racial violence. In: CHA-JUA, Sundiata Keita; LANG, Clarence.
The "Long Movement" as vampire: temporal and spatial fallacies in recent Black Freedom Studies. The Journal
of African American History, v. 92, n. 2, p. 265-288, spring 2007, p. 266. Com o intuito de preservar ao mximo
os sentidos originais das citaes, optamos por transcrever, nas notas de rodap, os trechos originais em
ingls traduzidos no corpo do texto.
414 Tal reconfigurao mudana de enfoque top-down para bottom-up implicou na ressignificao do que se
entendia por Movimento pelos Direitos Civis (Civil Rights Movement). Desta forma, o historiador Clayborne
Carson passou a defender o termo Black Freedom Struggle, desvinculando-o claramente de uma acepo do
movimento baseada na obteno de vitrias legais e judiciais como era o caso da primeira gerao
historiogrfica. Ver CHA-JUA; LANG. The Long Movement as Vampire, p. 267.
415 LAWSON. Freedom Then, Freedom Now, p. 457.
416 CHA-JUA; LANG. The Long Movement as Vampire, p. 265. Para os propsitos e limites deste texto
tratar de uma historiografia mais recente do Movimento pelos Direitos Civis e de sua crtica ao usos polticos
deste passado histrico restringiremos a nossa anlise aos itens de nmero 1 e 3 citados por Cha-Jua e
Lang. Desta forma, alm de no desenvolvermos os desdobramentos historiogrficos dos demais itens, no
comentaremos o trabalho destes autores que, por sua vez, apresentam importantes crticas ao revisionismo
proposto na vertente do Long Movement.
417 CHA-JUA; LANG. The Long Movement as Vampire, p. 267.
418 HALL. The Long Civil Rights Movement and The Political Uses of the Past, p. 1234.
419 ____________. The Long Civil Rights Movement and The Political Uses of the Past, p. 1234-1239.
420 Reworking that narrative for their own purposes, these new color-blind conservatives ignored the
complexity and dynamism of the movement, its growing focus on structural inequality, and its radical
reconstruction goals. Instead, they insisted that color blindness defined as the elimination of racial
classifications and the establishment of formal equality before the law was the movements singular
objective, the principle for which King and the Brown decision, in particular, stood. In: HALL. The Long Civil
Rights Movement and The Political Uses of the Past, p. 1237.
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1980 com o governo de Ronald Reagan e a partir de suas polticas de corte de programas
assistencialistas e de Guerra s Drogas.
421 ____________. The Long Civil Rights Movement and The Political Uses of the Past, p. 1237.
422 ALEXANDER, Michelle. The New Jim Crow: Mass Incarceration in the Age of Colorblindness. New York: The
New Press, 2012, p. 1-19.
423 HALL. The Long Civil Rights Movement and The Political Uses of the Past, p. 1238.
____________. The Long Civil Rights Movement and The Political Uses of the Past, p. 1239-1241.
424
____________. The Long Civil Rights Movement and The Political Uses of the Past, p. 1235.
425
independncia mexicano (1810-1814). 121 f. Tese (Dissertao de mestrado) USP, Histria Social, So
Paulo, 2012, p.53.
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Nacional, Semanario Patriotico Americano, El Correo Americano del Sur, Gazila del Gobierno
Americano, en el Departamento del Norte , que comeam a surgir na Nova Espanha,
encomendados por Miguel Hidalgo e Morelos, que marcaram uma ruptura com a imprensa
oficial no incio do sculo XIX.
A luta armada de Hidalgo e Morelos marcou uma ruptura com esta imprensa oficial.
Ao levantar os problemas sociais do pas e estratgias para combat-los, a imprensa
insurgente configurou um novo espao de debate poltico na Nova Espanha.428
Morelos utilizava da escrita de cartas para incitar os seus soldados a lutar pela ptria
americana. Simn Bolvar era um assduo missivista, produziu mais de 10.000 cartas, utilizou
seu epistolrio de forma a edificar uma memria de grande lder da independncia
americana.
Manuais de como se escrever cartas circulam durante todo o sculo XIX, ensinam
como se comunicar por cartas, todo um zelo na maneira de comear e encerar uma carta.
Toda uma norma em relao ao melhor papel a ser utilizado, ao assunto e a escrita
a ser utilizada nos diversos relacionamentos familiar, afetivo, social, intelectual, poltico ,
escritores profissionais, surge uma etiqueta epistolar atravs dos manuais. Mas nosso
foco neste trabalho exguo a apropriao pelas comunidades indgenas desse suporte de
comunicao escrita largamente utilizado no sculo XIX, como meio de agncia, isto , a
capacidade desses atores histricos de apreender, diagnosticar e operar sobre condies
sociais, culturais e polticas no cenrio em que elas se movimentam. E a partir da tomar
decises que possuem racionalidade, como na produo de um corpus epistolar indgena, ou
seja, na escritura de cartas como forma de ao poltica: instncias de organizao,
negociao e resistncia social.
429GASTAUD, C. R. Escrever cartas: as materialidades das correspondncias. In: XXVI Simpsio Nacional
de Histria, 2011, So Paulo. Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria. So Paulo: Anpuh, 2011. So
Paulo: ANPUH, 2011. v. 1. p.1.
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So prticas culturais prprias, socialmente estveis e de certo refinamento, que
segundo Lienhard (1992), poderamos qualificar de literatura mais por sua funo,
relativamente anloga literatura nas sociedades ocidentais, que por sua aparncia.
430 LIENHARD, Martin. Testimonios, cartas y manifiestos indgenas (desde la conquista hasta comienzos del
siglo XX). Seleccin, prlogo, notas, glosario y bibliografa de Martin Lienhard. Caracas: Biblioteca Ayacucho,
1992, p.14. (Disponvel em http://www.bibliotecayacucho.gob.ve).
432 GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestio. Trad. Rosa Freire de DAguiar. So Paulo: Companhia das
Letras, 2001. p.93-109.
433 SOARES, Gabriela Pellegrino Soares. Letramento e mediaes culturais em pueblos indgenas do centro
Os pueblos Mapuches produziram uma cultura epistolar muito parecida com a utilizada
por Bolvar, havia toda uma organizao no envio das correspondncias. Antes do envio
final essas teriam que passar pela mo do cacique, ou seja, era preciso que o chefe indgena
assinasse as cartas. Esses caciques possuam secretrios particulares os chamados
amanuenses, esses copistas escreviam as cartas ditadas pelos caciques depois recitavam
novamente para o cacique aquilo que havia ditado, uma forma de manter a originalidade e
veracidade das suas cartas. Todos os habitantes dos pueblos poderiam ditar cartas, mas
geralmente o cacique representava seu pueblo.
Essas cartas foram compiladas ao longo de mais de seis anos pelo historiador chileno
Jorge Pavez Ojeda, reunindo um corpus de cartas Mapuche produzidas ao longo do sculo XIX
(1803-1898), retiradas dos arquivos nacionais do Chile e da Argentina, e outras que provm
de publicaes retiradas de jornais, livros e revistas da poca. Que busca tornar pblico o
vasto leque da escrita de cartas Mapuche e os seus usos polticos, econmicos e familiares,
sugerindo que este corpus de cartas apenas a ponta do iceberg de correspondncias que
circulavam no sculo XIX.434
A produo das cartas abarca grande parte do perodo histrico vivido pelo pueblo
Mapuche desde antes das guerras de independncia do Chile e Argentina, passando pela
constituio dos Estados Nacionais, at o processo de reduo dos pueblos indgenas em
finais do sculo XIX (1880-1885). O nmero de cartas e a distribuio dos autores j indica
434PAVEZ OJEDA, Jorge (comp.) Las Cartas del Wallmapu. In: Cartas mapuche, siglo XIX, CoLibris/Ocho
Libros, Fondo de Publicaciones Americanistas, Universidad de Chile, Santiago de Chile, 2008.p.9-12.
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esse intenso processo de mobilizao, so mais de 383 cartas com mais de 139 autores,
encaminhadas pelas agncias polticas da escritura Mapuche.
435 Carta al Gobernador de Valdivia, Juan Clarke (Kallfunguru), Carta al Governador de Valdivia, Juan Clark
(kayumake); retirado de: PAVEZ OJEDA, Jorge (comp.) Cartas. In: Cartas mapuche, siglo XIX,
CoLibris/Ocho Libros, Fondo de Publicaciones Americanistas, Universidad de Chile, Santiago de Chile,
2008.p.119-120.
436 Retirado de: FREDRIGO, Fabiana de Souza. As cartas, a histria e a memria. In: Guerras e escrita: a
Todo esse apreo de Simon Bolvar por seu epistolrio fez com que a historiadora
Fabiana de Souza Fredrigo (2012) buscasse demonstrar por meio da anlise do seu
epistolrio, como o general buscou atravs da escrita de cartas edificar um projeto de
memria, legar posteridade a imagem do lder irretocvel, avesso a vida privada.
Para concretizao de seu projeto de memria Bolvar teria que se legitimar entre
seus pares construindo uma memria no presente. Nas 2.815 cartas escritas por Bolvar os
seus remetentes na maioria so os generais envolvidos no processo de independncia. So
constantes as cartas enviadas aos generais: Pez, Santander e Sucre.
Aps difundir sua indispensabilidade aos seus pares o general teria agora outra
empreitada pela frente, difundir a priori sua indispensabilidade pelos indgenas. Em relao
aos autctones; no processo de independncia, Bolvar expressa que esses ndios foram
acostumados docilidade, a subservincia, em carta ao editor da Gazeta Real Jamaica,
escreve:
Atravs de seu epistolrio Bolvar buscou tecer uma rede de informaes que viria
mais tarde consolidar-se em memria, que foram instrumentalizadas por ele, a fim de
438Trecho da Carta ao editor da Gazeta Real Jamaica Kingston, 09/1815; BOLVAR, Simn. Carta ao
editor da Gazeta Real Jamaica. In: Escritos polticos. Campinas (SP): Ed. da UNICAMP, 1992.p.66-67.
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edificar uma memria de grande lder e concomitantemente controlar qualquer revolta ou
resistncia indgena latente.
439Retirado de: LIENHARD, Martin. Doc.35: Carta dictada por algunos indios de Totonicapan, enero de
1821. Testimonios, cartas y manifiestos indgenas (desde la conquista hasta comienzos del siglo XX). Seleccin,
prlogo, notas, glosario y bibliografa de Martin Lienhard. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1992, p.112.
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espao social em que as cartas circulavam, o contexto. Analisar como atores histricos se
relacionavam com interlocutores polissmicos, como se moviam no processo de
emancipao e constituio dos Estados Nacionais, perodo extremamente nuanado, em
que os amerndios edificaram um projeto de memria atravs de um conjunto de cartas
mestias.
Introduo
Este artigo faz parte de uma pesquisa em fase ainda muito inicial. Por motivos
bvios no oferece nenhuma concluso, de maneira que trata-se de um trabalho que tem
como objetivo levantar algumas reflexes ainda sem respostas claras. Aqui o leitor
encontrar muito mais problematizaes do que propriamente afirmaes categricas
acerca do Sandinismo e de suas contradies.
Em uma pesquisa anterior440, apresentada em uma edio anterior deste mesmo
evento, analisamos a participao de uma brigada de combatentes voluntrios na Revoluo
Sandinista. Alm da prpria participao, foi tambm abordada a crtica feita pelos
dirigentes da brigada, militantes de um partido trotskista, FSLN. A crtica que tivemos
acesso abriu caminho para uma nova reflexo sobre o sandinismo: a contradio entre sua
estrutura partidria e militar e suas aes como detentor do poder poltico aps a
revoluo. Contradio que pode ser resumida na mudana do programa histrico da
Frente Sandinista de Libertao Nacional (FSLN) pouco antes da vitria final contra a
ditadura de Anastasio Somoza Debayle.
A reta final da luta contra a ditadura na Nicargua foi marcada por uma mudana
nas diretrizes estratgicas, e esta mudana foi, em nossa opinio, um indicativo de que o
440
A Brigada Simn Bolvar e sua participao na Revoluo Nicaraguense (1979), apresentada no III
Encontro de Pesquisa em Histria da UFMG.
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projeto de nao sandinista pautado na luta pelo socialismo foi em certa medida deixado de
lado em prol da vitria total contra o regime somocista.
A ideologia sandinista
O estudo da ideologia sandinista deve pautar-se, principalmente, em duas figuras,
Augusto Csar Sandino e Carlos Fonseca Amador. O primeiro, referncia histrica do
sandinismo, lutou contra a interveno norte-americana na Nicargua nas dcadas de 20 e
30 do sculo XX; e o segundo, principal dirigente e fundador da FSLN, militou
politicamente e lutou entre as dcadas de 50 e 70, at sua morte em 1976.
Sandino nasceu em 1895 na cidade de Niquinohomo e durante a juventude
trabalhou na propriedade de seu pai, at se envolver em um conflito pessoal em sua cidade
e sair da Nicargua. Durante o exlio trabalhou em Honduras e Mxico, e sua estadia neste
ltimo pas de grande importncia para sua formao poltica. Em suas biografias, atribui-
se parte de suas posies polticas ao contato que o mesmo teve com o anarquismo e at
mesmo a maonaria no Mxico. Sua identidade patritica aflora perceptivelmente no exlio,
quando resolve voltar para sua terra natal aps tomar conhecimento da interveno
estadunidense na Nicargua.441
Em territrio nicaraguense, Sandino organizou uma pequena guerrilha campesina
que lutou a favor da causa liberal, sob o comando do General Moncada. Aps o armistcio
entre liberais e os EUA em 1927, resolve no entregar suas armas e continua lutando com
sua guerrilha campesina contra as tropas norte-americanas.
Sandino, ou General de homens livres, como se intitulava, se considerava
comunista racionalista. Ao que parece, este termo oriundo de duas grandes influncias
em sua vida, a primeira, o anarco-sindicalismo, e a segunda, sua predisposio chamada
teosofia, uma mistura de crena espiritual com a racionalidade cientfica, muito comum,
por exemplo, no espiritismo. A influncia espiritual no pensamento de Sandino muito
forte e o mesmo chega em um momento a descrever a revoluo como uma purificao
espiritual. No entanto, o que nos interessa sua anlise materialista da sociedade.
Inegavelmente Sandino era avesso propriedade, e acreditava na propriedade coletiva
(cooperativas) e na autogesto campesina e operria.
441
SEBRIAN, Raphael Nunes Nicoletti. A repercusso do movimento sandinista na imprensa brasileira (1926-1934).
So Paulo: Editora Unesp, 2011.
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Este movimento es nacional y anti-imperialista [...] es popular y
preconizamos un sentido de avance en las aspiraciones sociales [...] Yo
no tendr nunca propriedades [...] Yo soy partidario ms bien de que la
tierra sea del Estado. En este caso particular de nuestra colonizacin en
El Coco, me inclino por un rgimen de cooperativas.442
442
SANDINO, Augusto C. El Pensamiento Vivo (recompilacin de Sergio Ramrez). t. I, p. 267. Editorial
Nueva Nicaragua, Managua, 1984. apud FONSECA TERN, Carlos. La perpendicular histrica: el sandinismo
como corriente alternativa y el derrumbe de las paralelas histricas em Nicaragua. Managua: Hispamer, 2011.
443
FONSECA TERN, Carlos. La perpendicular histrica. SELSER, Gregorio. Sandino, General de Homens Livres.
So Paulo: Global Editora, 1979.
444
ZIMMERMANN, Matilde. A Revoluo Nicaraguense. Trad. Maria Silva Mouro Netto. So Paulo: Editora
Unesp, 2006.
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actual se hace necesario que planteemos con gran nfasis que nuestro
magno objetivo es la revolucin socialista. [...] No se necesita mucha
perspicacia para adivinar que el enemigo tratar de penetrar la
organizacin, nuestras filas mismas, a travs de personas que pueden
hacerse pasar por sandinistas, para ms adelante provocar escisiones
mediante grupos de sandinistas democrticos.445
Sandinismo e nacionalismo
comum na Amrica Latina que o discurso nacionalista se misture com a ao
revolucionria socialista. A revoluo sempre teve aqui o grande papel de impulsionar o
rompimento com o imperialismo, sobretudo aquele empreendido pelos Estados Unidos. A
luta pela independncia poltica e econmica sempre encontrou no sentimento nacionalista
uma importante base ideolgica. No me refiro, obviamente, ao nacionalismo tpico da
Europa do perodo entre guerras, que motivou a ascenso de sentimentos radicalmente
xenfobos, racistas e imperialistas, como bem se sabe. O nacionalismo latino-americano
diferente, me parece muito mais propenso a coincidir-se com as ideias da esquerda e,
apesar da aparente contradio, tem uma profunda conotao internacionalista, uma vez
que se confunde com a aspirao de uma Amrica Latina unida.
O sentimento nacionalista, porm, quando faz parte de uma luta revolucionria,
torna-se concreto, ou pelo menos tem esta pretenso. O sentimento torna-se, portanto, um
projeto, mais especificamente um projeto de nao. A revoluo, na medida em que
pretende tomar o poder poltico, j de antemo est munida de um projeto do que vir a
445
FONSECA, Carlos. Bajo la bandera del sandinismo, p. 167. Editorial Nueva Nicaragua, Managua, 1985. apud
FONSECA TERN. La perpendicular histrica.
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ser o futuro Estado Nacional. Toda a ao revolucionria, consequentemente, deve, ou
pelo menos deveria, estar em harmonia com o projeto de nao defendido pelos
revolucionrios.
O nacionalismo clssico, ou o prprio Estado Nacional, que teve sua origem na
Europa do antigo regime, foi um empreendimento burgus. Ora, a nao um projeto de
conformao de identidades de classes e culturas em prol da formao de um mercado
interno. Nesse caso, conclui-se que o Estado Nacional o projeto de uma classe que
assume ento um carter universal. Por outro lado, segundo a teoria marxista, a classe
operria profundamente internacionalista. Assim porque pensa em termos
transnacionais, na medida em que seu inimigo o capital.446
O que podemos chamar de nacionalismo de esquerda, muito comum na Amrica
Latina, carrega aparentemente uma contradio a ser discutida, entretanto, no nos
ateremos a essa questo por se tratar de uma discusso extensa e delicada. Queremos
chegar com esta breve anlise do nacionalismo seguinte concluso: o projeto de nao o
projeto de uma classe (um segmento da sociedade), seja ela qual for, e, apesar de ter sua
origem em um certo tipo de imaginao, pois um projeto, est intimamente ligada uma
ideologia que pretende organizar um Estado Nacional a partir de um determinado molde.
Ao longo da histria da Nicargua basicamente dois projetos de nao se
desenvolveram, vindo mais tarde o sandinismo se estabelecer como uma opo alternativa.
Por una parte liberales y conservadores las dos corrientes polticas que conformaron las
paralelas histricas y por otra parte el sandinismo la corriente que irrumpi como uma
perpendicular rompiendo dicho esquema447.
Os dois primeiros projetos de nao, as paralelas histricas, se resumiam aos
projetos da elite nacional e se digladiavam em uma disputa carente de contedo poltico
muito profundo, uma vez que ambas eram muito parecidas. A disputa das paralelas
histricas dividia a tmida burguesia nacional em modernizantes e retrgrados, e de certa
forma servia como vlvula de escape para a rebeldia popular. Na prtica, ser liberal era
quase o mesmo que ser anti-conservador, por outro lado ser conservador era na prtica
ser anti-liberal. O conflito envolvia disputas familiares e rivalidades regionais muito mais
do que uma verdadeira oposio ideolgica. O sandinismo, em contrapartida, surgiu como
446
TORRES-RIVAS, Edelberto. Centroamrica: entre revoluciones y democracia. Bogot: Siglo del Hombre Editores,
CLACSO, 2008.
447
FONSECA TERN. La perpendicular histrica, p. 29.
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uma alternativa totalmente nova, com um projeto de nao baseado em uma ideologia que
pregava o poder popular e a libertao nacional, trazendo consigo o ideal da libertao
social.448
O projeto de nao defendido pelos sandinistas foi, como j dito anteriormente, a
prpria proposio ideolgica do movimento. Entender o projeto de nao defendido pela
FSLN requer a compreenso da ideologia sandinista, que como j defendemos aqui,
profundamente revolucionria e socialista. Da o motivo pelo qual Tern caracteriza o
projeto de nao sandinista como uma perpendicular histrica, pois emerge de uma
ideologia que rompe radicalmente com as paralelas histricas dos liberais e conservadores.
Romper com projetos capitalistas requer um projeto anticapitalista, de maneira que no
momento em que a FSLN se intitulou um projeto radicalmente diferente dos demais
projetos de nao, e tambm no momento em que opta pela luta armada, a imaginao do
futuro Estado Nacional nicaraguense foi erigido pelas ideias socialistas.
448
________________. La perpendicular histrica.
449
CHRISTIAN, Shirley. Nicargua: revoluo em famlia. trad. Ruy Jungmann, Rio de Janeiro: Editora Record,
1985.
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fosse de fato avassaladora. Aps a fuga da famlia Somoza e de seus partidrios, o poder
no foi ocupado unicamente pela FSLN, na verdade a chamada Junta de Reconstruo
Nacional era composta por vrios setores da poltica nicaraguense, apesar de uma ntida
maioria sandinista. A atitude encorajada pelos terceristas, que pode ser identificada na
Plataforma Poltico-Militar de Maio de 1977, fez com que a vitria de 1979 no trouxesse
consigo a fora necessria para que os sandinistas implementassem o projeto de nao
historicamente defendido pela FSLN.
A poltica de alianas adotada pela FSLN na reta final da luta contra a ditadura
tornou real a perda de identidade da ideologia sandinista alertada por Carlos Fonseca anos
antes. Em benefcio de uma estratgia que acelerou, sem dvidas, a derrota da Guarda
Nacional somocista, a FSLN abriu mo de uma identidade historicamente produzida e,
consequentemente, da possibilidade de implementao de um projeto de nao condizente
com esta identidade.
No se trata aqui de concluir que a ideologia sandinista se converteu em algo
diferente aps a revoluo, nem tampouco de dizer que o sandinismo ps-revoluo
simplesmente abandonou seus projetos primeiros. No entanto, a situao acima descrita
estabeleceu uma srie de compromissos que serviram para frear certos elementos do
programa revolucionrio que moldou a prpria formao da FSLN. A aparente perda da
identidade original do sandinismo serviu para abalar a prpria estrutura da vanguarda
revolucionria, que mais tarde se converteu em partido poltico eleitoral, pois em ltima
instncia simboliza contradies entre o projeto de nao e as aes polticas dos
sandinistas. Tratamos, afinal, de uma falta de coerncia entre histria, teoria e prtica.
RESUMO: este artigo analisa o vdeo-arte (1985) e a obra literria (1989) que compe o
trabalho El padre mo, elaborado pelas artistas Diamela Eltit (1949 -) e Lotty Rosenfeld
(1943 -), entre os anos de 1983 e 1989, no Chile. Objetivamos demonstrar como tais
produes serviram como denncia e resistncia ao governo ditatorial de Augusto Pinochet
(1973-1990), e podem auxiliar na construo de uma memria crtica sobre o perodo.
450 MUOZ, Heraldo. A sombra do ditador: Memrias polticas do Chile sob Pinochet. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
Traduo: AGUIAR, Renato, p. 79.
451 ________. A sombra do ditador: Memrias polticas do Chile sob Pinochet, p. 81.
452 ANTUNES, Priscila. O sistema de inteligncia chileno no governo Pinochet. Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 23,
n 38, Jul/Dez 2007, p. 399-417.
453 ________. O sistema de inteligncia chileno no governo Pinochet, p. 406.
454 ________. O sistema de inteligncia chileno no governo Pinochet, p. 406.
intelectual como ser cvico conciencia de su tempo, intrprete de la nacin o voz de su pueblo disponvel
em: ALTAMIRANO, Carlos. Historia de los intelectuales en Amrica Latina II: Los avatares de la ciudad letrada en el
siglo XX. Buenos Aires, Katz, 2010. p. 09-28. A funo do intelectual seria producir y transmitir mensajes
relativos a lo verdadeiro (si se prefere: a lo que ellos creen verdadeiro), se trate de los valores centrales de la
sociedade o del significado de su historia, de la legitimidade o la injusticia del orden poltico disponvel em:
ALTAMIRANO, Carlos. Histria de los intelectuales em Amrica Latina I: La ciudad letrada, de la conquista al
modernismo. Buenos Aires: Kart Editores, 2008, p. 09-14. Os intelectuais dialogariam com seus pares e
com a sociedade em geral, necessitando do reconhecimento de ambos os pblicos.
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mesma estrutura narrativa que a de uma pessoa considerada normal, elas optaram por
escut-la e divulg-la, defendendo que seu discurso poderia ajudar a questionar o quadro
poltico de seu pas, e no assim devendo cair no esquecimento. A divulgao do
testemunho foi realizada a partir da criao de duas obras: uma produo literria (1989)
cargo de Eltit e um vdeo-arte (1985) elaborado pelas duas artistas e que foi listado como
um dos trabalhos do Colectivo Acciones de Arte.457
Ao conversar com este morador da periferia, Eltit conta que no descobriu seu
verdadeiro nome, contudo, ao se apresentar, ele se descreveu como algum que pertenceu a
cargos altos do governo, que possua importantes informaes sobre pessoas da
administrao ligadas a El Padre Mo (que analisando suas falas podemos associar figura de
Pinochet), mas que por no compactuar com determinadas aes deste grupo foi
perseguido, colocado em um hospital psiquitrico e teve seus bens confiscados. Em seu
discurso, destaca-se constantemente a necessidade de falar sobre o que ocorreu para que
os atuais eventos, conforme diz, possam ser questionados.458
ELTIT, Diamela. El padre mo. Francisco Zegers Editor, Santiago, Chile, 1989, p. 22-70.
458
460HERESI, Constanza Jensen. Aproximaciones hacia el videoarte: anlisis sobre su gnesis, desarrollo y consolidacin em
Chile (1973-1989). Universidade do Chile. Santiago, Abril, 2013, p. 40-41.
461 Encuentros Franco-Chileno de video-arte. Centro Cultural La Moneda. Disponuvel em:
http://www.ccplm.cl/sitio/2014/encuentros-franco-chileno-de-video-arte/.
462 LAZZARA, Michael J. Prismas de la memoria: narracin y trauma en la transicin chilena. Santiago: Editorial
Aps a cena da menina Marisol Daz, o filme apresenta outra mistura de sons e
rostos, e retoma imagens do general discursando para a populao. Outra vez no se houve
a voz de Pinochet, mas de mulheres e homens de regies marginais de Santiago, sujeitos
muito pobres narrando a sua luta para sobreviver. Deste modo, as artistas questionam
novamente os discursos do ditador ao mostrar que a modernizao de carter autoritrio
que ele promovia no solucionava os problemas do pas, mas ao contrrio, ampliava os
ndices de desigualdades sociais. Esta situao tambm no especfica do contexto
464As leis que probem o aborto no esto no Cdigo Penal do Chile, sob o ttulo de "Crimes e Delitos contra
a Ordem da Famlia, a Moralidade Pblica e a Integridade Sexual", artigos 342 e 345, datadas de 1989.
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ditatorial, mas foi agravado neste perodo devido, por exemplo, ao combate realizado aos
projetos sociais da Unidade Popular465, como: reforma agrria, ampliao dos direitos
trabalhistas, poltica de redistribuio de alimentos para moradores de regies carentes e o
controle de preos de itens bsicos sobrevivncia. Durante o governo pinochetista tais
medidas foram rechaadas em prol de polticas tpicas do Estado-mnimo.
O vdeo-arte prossegue com novas mistura de vozes, contudo, uma delas passa a se
destacar em relao s outras - a do sujeito esquizofrnico que Eltit e Rosenfeld
encontraram habitando um terreno baldio. Embora a cmera ainda foque no rosto do
ditador, a voz que escutamos continua sendo das margens da cidade, mais especificamente
de algum considerado como um sujeito louco. Assim, as artistas transmitem a ideia de que
a fala do morador de rua estava sendo dita por Pinochet e seria este ento o discurso que
gostariam que fosse divulgado. Tal montagem tambm poderia indicar, segundo Lazzara,
que as falas do ditador contrapostas s imagens da realidade chilena apresentadas, devem
ser vistas como loucura, como um discurso doentio.466
465 Coalizao de partidos polticos e movimentos de esquerda que apoiaram a candidatura de Salvador
Allende presidncia do Chile.
466 LAZZARA, Michael J. Prismas de la memoria: narracin y trauma en la transicin chilena. Santiago: Editorial
Visto desde la literatura, este relato del relato, torna gesticulantes las
palabras hasta paralizarlas, mostrando su evidencia monologante, al llevar
hasta el lmite - trgico o burlesco - el nombre, los nombres del poder.470
467 ELTIT, Diamela. El padre mo. Francisco Zegers Editor, Santiago, Chile, 1989, p. 11.
468 ________. El padre mo, p. 13.
469 ________. El padre mo, p. 15-16.
470 ELTIT, Diamela. El padre mo. Francisco Zegers Editor, Santiago, Chile, 1989, p. 16.
Aps a apresentao do livro, segue-se a transcrio das trs falas de El padre mo,
separadas pelo ano em que foram gravadas. Em um primeiro contato, os testemunhos
471 EPPLE, Juan Armando. Acercamiento a la literatura testimonial em Chile. Revista Iberoamericana: Pittsburgh,
Vol. LX, 1994, p. 1149.
472 STEJILEVICH, Nora. El arte de no olvidar. Literatura testimonial en Chile, Argentina y Uruguay entre los 80 y 90.
Em sua primeira fala o sujeito afirma: El padre mo les da rdenes a todos ustedes,
ilegal475, descreve-o como integrante das foras armadas e como algum que conta com
pessoas influentes para cuidar de seus documentos. Assim como El padre mo, ele tambm
teria integrado a Administrao do pas e deveria ocupar determinados cargos do governo,
contudo, estes lhe foram negados e afirma o terem perseguido: A m me plantearon por
asasinato y enfermo mental. Se pag un dinero importante por lo mo.476 O motivo destas
perseguies apresentado de modo sistemtico nas suas trs falas, repetindo que no
concordou e no foi cmplice de determinadas pessoas que tinham como meta exterminar
outras; contudo, como possua importantes informaes sobre elas, sabendo inclusive o
endereo pessoal, teria sido vtima de represso.477
Conforme ressaltado, embora o depoimento fosse dado por uma pessoa em estado
de delrio, pode-se tentar compreender a maneira pela qual este homem se percebe no
contexto opressor da ditadura e qual o efeito do trauma em seu discurso. Um elemento
sobre o qual ele se preocupa o que denomina de poder da eletricidade, dizendo que
serviu para enfraquec-lo, alm de tornar a sua mente confusa.478 Sabe-se que os choques
eltricos foram um dos instrumentos de tortura empregados neste contexto, e que foram
muitas as vtimas deste procedimento. Se este homem realmente foi uma destas vtimas no
474 LAZZARA, Michael J. Prismas de la memoria: narracin y trauma en la transicin chilena. Santiago: Editorial
Cuarto Propio, 2007, p. 103.
475 ELTIT, Diamela. El padre mo. Francisco Zegers Editor, Santiago, Chile, 1989, p. 23.
476 ________. El padre mo, p. 23.
477 ________. El padre mo, p. 40.
478 ________. El padre mo, p. 40.
Nos discursos deste sujeito, outro trao que tambm aparece a sua busca pela
definio de uma identidade e um dos elementos que usa para descrev-la a sua opo
poltica em contraste com a de El padre mo, ressaltando assim, as suas diferenas em relao
ao ditador: pero el Padre Mo no es comunista, sino que es un oportunista, por lo que le
estoy conversando yo. Pero yo s que soy comunista y socialista.479 Ele tambm afirma que
gostaria que as suas memrias no fossem ignoradas e pudessem ser tratadas como
testemunhos do contexto poltico que seu pas vivenciava. Diamela Eltit afirma que a sua
fala exerce
una provocacin y una demanda a habitar como testimonio, aunque en
rigor su testimonio est desprovisto de toda informacin biogrfica
explcita. El mismo lo dice en una de sus partes: Pero debera de servir
de testimonio yo. Hospitalario no puede servir, porque ah tienen
empleada la tctica de la complicidad. (De su Tercera Habla.).480
Por meio do livro El padre mo, a escritora se prope a tratar as falas deste sujeito do modo
como ele sugeriu, produzindo uma importante obra para divulgar de modo fidedigno os
seus depoimentos. Apesar de o ltimo encontro ter ocorrido em 1985, Eltit apenas
conseguiu publicar as falas quase quatro anos depois. Nos agradecimentos da obra a
escritora afirma que esta publicao s foi possvel com o auxlio do seu amigo e editor
Francisco Zegers, quien ha compartido la opcin por espacios y voces alternativas y,
particularmente, por esta habla encontrada en la ciudad481. Ao public-la, a escritora busca
conferir autenticidade a um discurso marginal ou, oferecer um contra-discurso s falas de
Pinochet, destacando como em todas as partes das cidades encontram-se sujeitos atingidos
pela ditadura e que tem algo a dizer sobre esta situao.
Consideraes finais
Por meio do estudo do vdeo-arte (1985) e da obra literria (1989) que compe o
trabalho El padre mo, pode-se perceber a preocupao de Diamela Eltit e Lotty Rosenfeld
em desenvolver projetos artsticos capazes de dialogar com o contexto poltico pelo qual o
479 ELTIT, Diamela. El padre mo. Francisco Zegers Editor, Santiago, Chile, 1989, p. 46.
480 ________. El padre mo, p. 17-18.
481 ________. El padre mo, p. 09.
RESUMO: Este trabalho tem o objetivo de analisar alguns dos principais componentes do
discurso poltico e da identidade do Exrcito Zapatista de Libertao Nacional (EZLN),
movimento indgena que surgiu no estado de Chiapas, no Mxico, na dcada de 1980 e que
luta, principalmente, pelos direitos indgenas e contra os efeitos da globalizao neoliberal.
A princpio, surgiu como uma insurreio local na regio do sudeste mexicano e,
posteriormente, expandiu suas demandas, suas estratgias de ao e seu alcance
poltico para o mbito nacional e at mesmo internacional. Em meados dos anos 2000, j
era um movimento bastante diferente daquele que havia feito sua primeira apario pblica
em 1994 e contava com comunidades zapatistas espalhadas por diversos pases do mundo.
Com foco nas transformaes pelas quais passou o repertrio de ao poltica do grupo
que deixou a luta armada e passou a adotar uma estratgia de ao civil e pacfica
procuramos traar algumas das caractersticas do discurso poltico e da identidade
zapatistas. Apesar de ser um movimento majoritariamente indgena, os integrantes do
EZLN utilizam uma mscara para cobrir o rosto (o pasamontaas) e defendem a ideia de que
todo e qualquer um pode ser zapatista. No tm rosto, mas tm voz: com um discurso
quase potico que dialoga com diversos interlocutores (as comunidades indgenas, a
sociedade civil nacional e internacional, o governo, os intelectuais mexicanos, as minorias,
dentre outros), o Exrcito Zapatista de Libertao Nacional encontrou sua maior fora nas
palavras.
PALAVRAS-CHAVE: Zapatistas; Mxico; Discurso poltico; Identidade.
Paulo Barsotti; Luiz Bernardo Perics. (org.). Amrica Latina: histria, ideias e revoluo. 1 ed. So Paulo: Xam,
1998, p. 185.
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Em resposta a todos esses fatores que dizem respeito tanto s condies locais do estado
de Chiapas quanto a um contexto global do capitalismo o EZLN, que j estava em
processo de conformao desde a dcada anterior, travou em 1994 uma luta contra o
governo mexicano para que ele atendesse suas demandas por terra, trabalho, teto,
alimentao, educao, sade, liberdade, democracia, justia, independncia e paz.
485 LE BOT, Yvon. O sonho zapatista. Lisboa: Edies ASA, 1997, p. 50.
486 Atravs da Primeira Declarao da Selva Lacandona, o EZLN declara guerra ao governo federal e ao seu
exrcito. Aps 12 dias de combate, estimam-se mortes que variam entre 145 e 1.000 pessoas. No dia 12 de
janeiro, o governo decreta cessar-fogo unilateral e h uma grande manifestao pela paz na Cidade do
Mxico. O movimento mantm o cessar-fogo e inicia um dilogo com o governo, reivindicando democracia,
liberdade, justia, direitos indgenas, dentre outros. Os confrontos diretos deste conflito terminam, mas
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por meio das armas, foi confrontado com a necessidade de se reinventar. As aes polticas
do movimento se diversificaram e outros mtodos passaram a ser empregados, tais como
mesas de dilogo com representantes do governo, convenes com a participao da
sociedade civil, encontros intercontinentais, formao de comunidades autnomas e a
divulgao de pronunciamentos nos meios de comunicao. importante destacar,
entretanto, que o abandono da ao militar no significou que o EZLN deps as armas,
mas apenas colocou fim ao fogo ofensivo. Por uma questo de segurana interna, a fim de
proteger as fronteiras da Selva Lacandona e como uma estratgia de pressionar o governo
para atender suas demandas e dialogar com o grupo insurgente, os zapatistas continuaram
armados dominando parte do estado de Chiapas487, fazendo frente ao governo e mantendo
este importante aspecto de sua identidade. No houve rendio e, em caso de ataque do
inimigo, as tropas zapatistas eram instrudas a responder. O cessar-fogo teve o objetivo de
aliviar a situao da populao civil nas zonas de combate e abrir canais de dilogo com o
governo.
ofensivas militares por parte do governo continuam a ocorrer ao longo dos anos no interior do estado de
Chiapas.
487 O EZLN criou ainda em 1994 os chamados Municpios Autnomos Rebeldes Zapatistas (MAREZ),
pequenos territrios sobre o controle das bases de apoio zapatistas no estado de Chiapas. Os MAREZ
podem ser vistos como base social do movimento zapatista e como projeto alternativo de sociedade. Estes
locais so governados por Juntas de Bom Governo, que buscam formar um governo participativo por meio
da coordenao dos representantes das comunidades.
488 LE BOT. O sonho zapatista, p. 149.
489 HALL, Stuart. A identidade cultural na ps-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva & Guacira Lopes Louro.
Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
490 BRIDGE, Marco. FELICE, Massimo Di. Votn-Zapata: a marcha indgena e a sublevao temporria. So Paulo:
indgena construdas pelo movimento zapatista mexicano (1994-1996). 180 f. Dissertao (mestrado) - Universidade
Federal do Esprito Santo, Centro de Cincias Humanas e Naturais, Vitria, 2009, p. 92.
O discurso zapatista, assim como sua identidade, tambm tem carter plural.
Representa a fuso das distintas identidades abarcadas pelo grupo, composto por
diferentes vozes e se dirige a diversos interlocutores. Nos comunicados direcionados aos
povos indgenas, h uma mobilizao de elementos relacionados ao seu imaginrio coletivo;
nos escritos dirigidos sociedade mexicana, h um maior resgate de cones nacionais e
fatos da histria do pas; nas declaraes veiculadas para a sociedade civil internacional e
movimentos de outros pases, os insurgentes ampliam as possibilidades da luta zapatista e
enfatizam suas mltiplas identidades. Conforme nos apontam Marco Bridge e Massimo di
Felice, a linguagem e a representao lgica do mundo dos zapatistas busca a hibridao
polissmica e uma linguagem em que caibam todos os mundos.495
499 Como a Comit de Solidarit aves les Peuples du Chiapas en Lutte (CSPCL) e Espoir Chiapas, ambos coletivos
solidrios da Frana.
500 Nos primeiros meses de 1995, por exemplo, as comunidades autnomas zapatistas sofreram tentativas de
invaso militar por parte do governo mexicano. O EZLN respondeu no com uma ao militar, mas com
uma difuso de comunicados sociedade civil internacional que formava uma rede virtual de comunicao e
solidariedade. Abaixo-assinados, protestos eletrnicos e passeatas ocorreram em vrios pases e junto s
embaixadas mexicanas no mundo, fazendo com que as autoridades mexicanas recuassem.
501 BAIO, Fbio. Uma longa Revoluo - histria, memria e usos polticos do passado na guerra simblica entre estado e
zapatistas no Mxico. 114 f. Monografia (Graduao em Histria) Universidade Federal de Ouro Preto,
Instituto de Cincias Humanas e Sociais, Departamento de Histria, Mariana, 2012.
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No se tratava de inventar uma linguagem nova, mas de dar um sentido
novo palavra e especialmente histria na poltica. Para avanarmos
com essa renovao, tivemos de voltar atrs, de beber na tradio
cultural ndia para encontrar ideias e personagens antigos, confront-las
com os modernos e construir essa nova linguagem zapatista. Essa
linguagem ps-moderna, se quisieres, alimenta-se paradoxalmente da
pr-modernidade histrica. Procura os seus prprios terrenos de luta, a
imprensa, os smbolos, ocupa os espaos que vo aparecendo.502
504 A mscara utilizada pelos zapatistas, tambm conhecida como pasamontaas, pode ser considerada um
componente do discurso do EZLN, uma vez que analisamos o discurso como um conjunto de manifestaes
verbais e no-verbais, portador de sentidos mltiplos.
505 Trecho de um comunicado veiculado na imprensa em 28 de maio de 1994, chamado El ViejoAntonio: En
la montaa nace la fuerza, pero no se ve hasta que llega abajo. Captado em:
http://palabra.ezln.org.mx/comunicados/1994/1994_05_28.htm Acesso em: 15 maio 2015.
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Esse trecho exemplifica a ideia de elasticidade da identidade zapatista, como j foi
apontado anteriormente. A multiplicidade de identidades do movimento, que passou a ser
reforada no discurso zapatista, teve grande importncia na sobrevivncia e expanso do
EZLN para o plano internacional. De acordo com Ilse Scherer Warren, os novos
movimentos sociais na dcada de 1990 buscaram a formao de identidades coletivas,
baseadas em um pluralismo ideolgico e em valores e princpios ticos universais, sem a
eliminao das particularidades regionais ou comunitrias.506 No caso do EZLN, por
exemplo, por ser um movimento baseado em valores como liberdade, justia, democracia e
nao, seu discurso consegue atingir estratos muito diversos da sociedade e muitos grupos
distintos conseguem se reconhecer no movimento.
506 SCHERER-WARREN, Ilse. Redes de movimentos sociais. So Paulo: Edies Loyola, 2009, p. 118.
Resumo: Proponho uma apresentao da pesquisa em fase inicial na qual busco investigar
as relaes de complementaridade e possveis tenses entre os clubes agrcolas de jovens
rurais do Brasil (Clubes 4-S), Argentina (Clubes 4-A) e Costa Rica (Clubes 4-S), com os
clubes 4-H dos Estados Unidos. Tais clubes fizeram parte de iniciativas educacionais e
formativas promovidas por agncias de desenvolvimento como a American International
Association AIA, para a juventude rural latino-americana a partir de fins da dcada de
1940. Partimos do pressuposto que a organizao desses clubes estava ancorada em um
espectro de aes que envolvia interesses econmicos e culturais norte-americanos em
relao Amrica Latina. Assim, objetivos como a
formao e qualificao da mo-de-obra rural, o aumento da produtividade agrcola e a
melhoria das condies de vida da populao do campo, ligavam-se aos arranjos e
definies polticas e econmicas do ps Segunda Guerra no tocante aos papis que
caberiam agricultura na Amrica Latina. Pretendemos investigar at que ponto as trocas
culturais entre os scios dos clubes 4-H e os demais clubes congneres na Amrica Latina
foram marcadas por continuidades, descontinuidades, rupturas e tenses. Defendemos a
hiptese que nos pases estudados os clubes de jovens rurais foram carregados de forte
cunho moral e cvico buscando assim configurar sensibilidades que conformassem o
pblico-alvo em uma viso de mundo considerado moderna pelos seus defensores. Nesse
primeiro momento contamos com a anlise de fundos documentais acerca da Extenso
Rural e principalmente do trabalho com os clubes de jovens rurais localizados em
Bibliotecas e Centros de Documentao em Belo Horizonte e da revista Turrialba, editada
pelo Instituto Interamericano de Cincias Agrcolas IICA que se encontra digitalizada na
sua totalidade desde o ano de 1950 a 1995, acrescidas das informaes acerca da histria
dos 4-H a partir do portal da Fundao Nacional 4-H.
508 ARAPIRACA, Jos Oliveira. A USAID e a Educao Brasileira: um estudo a partir de uma abordagem crtica da
teoria do capital humano. So Paulo: Autores Associados: Cortez, 1982; TOTA, Antnio Pedro. O imperialismo
sedutor: a americanizao do Brasil na poca da Segunda Guerra. So Paulo: Companhia das Letras, 2000; DAROS,
Maria das Dores. Desenvolvimentismo e polticas educativas no Brasil dos anos 1950-1960:
transnacionalizao e modernizao. IN: GIL, Natlia; CRUZ E ZICA, Matheus da; FARIA FILHO,
Luciano Mendes (org.). Moderno, modernidade e modernizao: a educao nos projetos de Brasil sculos XIX e XX.
Volume 1. Belo Horizonte: Mazza Edies, 2012.
509 GOMES, Leonardo Ribeiro. Progredir sempre. Os jovens rurais mineiros nos Clubes 4-S (Saber,
Sentir, Sade, Servir) (1952 1974). 186 f. Dissertao (Mestrado em Educao) Universidade Federal de
Minas Gerais, Programa de Ps-Graduao em Educao, Belo Horizonte, 2013.
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Na dissertao, mesmo com a nfase aos Clubes 4-S em Minas Gerais, observamos
que o trabalho com clubes agrcolas no era novidade no Brasil naquele perodo e tinha
ligaes com outras experincias no continente. A partir de MENDONA510, observamos
que se por um lado a existncia de clubes agrcolas no pas se insere nos debates sobre
educao rural da dcada de 1920, foi a partir de 1940 que se iniciou uma campanha para
que estes se multiplicassem. Esta campanha teria sido motivada pelo retorno dos Estados
Unidos de tcnicos do Ministrio da Agricultura. No Brasil, as iniciativas de organizao de
clubes agrcolas foram intrinsecamente ligadas vida escolar, apesar das disputas de
competncias no tocante formao do homem rural que caberiam ao Ministrio da
Agricultura ou ao Ministrio da Educao. Em documento do Ministrio da Agricultura 511
destaca que foi dado nfase ao trabalho com os clubes agrcolas:
510MENDONA, Sonia Regina de. A dupla dicotomia do ensino agrcola no Brasil (1930-1960). Estudos Sociedade
e Agricultura, abril 2006, vol. 14 n. 1, p. 99.
511 LIMA, J.P.; BUHR, C.; LAVOR, G.C. Clubes Agrcolas. 2 edio. Rio de Janeiro: Ministrio da Agricultura. Servio de Informao Agrcola, 1949.
512Na Amrica do Sul ocorreu, por exemplo, em 1948 a fundao no Chile do Clube da Juventude Agrcola
4-C (Cabea, Corao, Capacidade, Cooperao). O Brasil teve em 1952 a formao dos Clubes 4-S (Saber,
Sentir, Sade, Servir). No ano seguinte foi a vez do Paraguai, onde os clubes ficaram conhecidos como 4-C
(Cabea, Corao, Capacidade, Cooperao). Em 1954 foi organizado no Uruguai o Movimento da Juventude
Agrria MJA que tinha como lema: Trabalho, Sade e Alegria. Em 1956 foram criados na Argentina os
Clubes 4-A (Ao, Adestramento, Ajuda, Amizade). Desde 1949 j existiam na Costa Rica os tambm
denominados Clubes 4-S sendo, por sua vez, nesse pas centro-americano o significado dos 4-S (Sade, Saber,
Sentimento, Servio). (FUNDAO FORD. Juventude Rural das Amricas. Volume II. Deaborn, Michigan: Ford
Motor Company, 1962).
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ambos os sexos, entre 10 a 20 anos com o intuito de desenvolver o sentimento de grupo,
aprimorar tcnicas cientficas de produo e melhorar as condies de trabalho e moradia.
Mas, enquanto os clubes agrcolas estavam intrinsicamente ligados ao meio escolar, os
clubes de jovens rurais como os 4-S no Brasil ou na Costa Rica ou os 4-A na Argentina,
existiram independentemente dos sistemas escolares desses pases. Julgamos, todavia que
precisamos aprofundar mais nas diferenas entre os j existentes clubes agrcolas em cada
um dos pases, com aqueles que foram fundados a partir de fins da dcada de 1940. No
caso da Argentina temos a impresso que, mais do que no Brasil, por exemplo, os Clubes
4-A deram continuidade a uma tradio de clubes de jovens do meio rural inspirados no
modelo estadunidense, j presentes desde a dcada de 1920. Sendo assim, mesmo com a
criao dos 4-A em 1956 continuaram a existir outras iniciativas de trabalho com a
juventude rural na Argentina. Tal fato nos motiva a investigar o que teria de peculiar os 4-A
naquele pas perante aos outros movimentos juvenis rurais e nesse sentido se existiram
disputas ou complementos entre eles. Teriam sido apenas as entidades promotoras ou
outros objetivos, bem como pblicos-alvo distintos que colaboraram para a ocorrncia dos
movimentos juvenis rurais naquele pas? Parece-nos, entretanto, que no obstante s
entidades promotoras ou pblico-alvo, tanto as experincias das dcadas de 1920, quanto
s iniciadas a partir de meados da dcada de 1950 sinalizavam para a incapacidade da escola
no meio escolar em formar meninos e meninas aptos para a vida em sociedade.
513 GUTIRREZ, Tala Violeta. Educacin, agro y sociedad. Quilmes: Universidad Nacional de Quilmes
editora, 2007, p.123.
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libertad, amparo del orden, cimiento de las nacionalidades.514 En 1919
se crearan los clubes agrcolas de nios (con 1400) socios), desde los
cuales se difundan estas actividades, con una ideologa nacionalista y
ms ligada al control social que al inters por enriquecer la cultura y
actividades escolares de los nios.
Los clubes, as como los huertos escolares, tenan el objetivo declarado
de inculcar el amor por la naturaleza y atraer a los jvenes hacia los
trabajos agrcolas. Se trataba de atividades que se desarrollaban durante la
tarde y los das de vacaciones.
Cabe destacar que esse estudo da professora Talia Gutirrez juntamente com outro
publicado em 2009515 tem sido at agora a nossa principal interlocuo acerca dos
movimentos juvenis agrrios na Argentina. Seus trabalhos sinalizam para a existncia de
atividades com jovens rurais que concorriam para o objetivo de modernizar as prticas
agrcolas e assim aumentar a produtividade da pequena e mdia propriedade rural. Mesmo
no sendo o objeto de seus estudos os 4-A em si, estes foram reiteradamente citados em
suas pesquisas.
514 Barneda, Joaqun. Iniciativas y experiencias dentro de la escuela primaria. Manualidades y orientacin agrcola, La Plata,
Direccin General de Escuelas, 1919. Barneda, Joaqun, La agricultura en la escuela primaria, La Plata, 1936, p.11-
12, 197.
515 GUTIERREZ, Tala Violeta. Agro pampeano y roles familiares en la dcada de 1960.
In: Muzlera, Jos y De Arce, Alejandra (coord. de dossier) El lugar de la familia en la produccin agropecuaria
argentina (1960-2008) dossier, Revista Mundo Agrario N 19, segundo sem.
2009. (www.mundoagrario.unlp.edu.ar).
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constituio de rgos locais de incentivo ao desenvolvimento aos clubes juvenis rurais,
como foi o caso do Brasil com a formao do Comit Nacional de Clubes 4-S ou na
Argentina com o Instituto Nacional de Tecnologia Agropecuria. A presena de tcnicos
da AIA nesses pases foi expressiva e sinaliza para introduo de um modelo modernizador
das relaes no campo. Entretanto, como tentaremos demonstrar, no teriam ocorrido sem
alteraes, tenses e influncias mtuas.
516 FUNDAO FORD. Juventude Rural das Amricas. Volume II. Deaborn, Michigan: Ford Motor Company,
1962, p.5-7.
517 Desde 1979 o IICA foi renomeado para Instituto Interamericano de Cooperacin para la Agricultura.
with AIA support, Law518 scaled upward from Venezuela. In 1960, Law
received funding from the AIA and the Inter-American Institute of
Agricultural Sciences to create an umbrella organization for Latin
American 4-H clubs. Based in the Costa Rican offices of the Institute,
the PIJR soon opened additional regional offices in Brazil and
Venezuela run by extension specialists Santiago Apodaca and Edgar
Matta. From those offices, the PIJR sought to knit the inchoate and
underfunded Latin American rural youth clubs into an efficient, well-
funded, transnational movement. To accomplish this goal, the PIJR
launched a series of initiatives. First, in each nation, the PIJR lobbied
for legislation and gathered supporters for a private foundation that
could raise funds and supplement the activities of the Ministries of
Agriculture. Second, the PIJR also raised funds for member
organizations directly and assisted with grant applications. Third, the
PIJR ran training workshops for extension staff and volunteer youth
club leaders. Lastly, the PIJR organized international 4-H competitions
and exchanges designed to award outstanding club work and to garner
positive attention for the member organizations. The sum of 5 these
activities paid rapid dividends. Club work in South and Central America
grew from fewer than 50,000 members in 1960 to more than 250,000 by
1967519.
518 Segundo Rosemberg, Howard Law foi um tcnico americano de desenvolvimento internacional que
trabalhou na Venezuela e teve relao estreita com os Clubes 5-V (Valor, Vigor, Verdade, Vergonha,
Venezuela) daquele pas.
519 ROSENBERG, Gabriel N. The Programa Interamericano para la Juventud Rural (Inter-American Rural Youth
de Sociologia Rural, 2010, Porto de Galinhas - Pernambuco. Anais do VIII Congreso Latinoamericano de
Sociologia Rural - Amrica Latina: realinhamentos polticos y proyectos en disputa. Recife: ALASRU, 2010.
V. 1. p.4.
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de fornecimento de mo-de-obra bem como de matria-prima e alimentos s populaes
urbanas e industriais. Sobre isso escreveu:
521BERRIO, Julio Ruiz. Introduccin a la historia de la Educacin Social en Espana. In: Historia de la
Educacin. Revista Interuniversitaria, n18, 1999, p.6-7.
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prximo daquilo que definiu RODRIGO522 acerca dos objetos da Educao Social. Para
esse autor a Educao Social trataria de todos os espaos e tempos no formalizados de
ensino, ou seja, que se produziram fora do sistema escolar formal. Ao listar, por exemplo,
alguns objetos de estudo da Educao Social aponta para um programa da Disciplina
Histria da Educao Social que comportaria os seguintes tpicos:
522 RODRIGO, Cndido Ruiz. Marginacin infantil y educacin protectora en la historia de la Educacin
Social. In: Historia de la Educacin Social y su Enseanza. Cuadernos de Historia de la Educacin. N4, 2008, p.50-51.
523 MARDOMINGO, Mara Tejedor. Os movimentos juvenis na Histria da Educao Social. In: Historia de
524GRUZINSKI, Serge. Les mondes mls de la monarchie catholique et autres connected histories. Annales. Histoire,
sciences sociales, 56me anne, n. 1, jan/fev 2001, p. 85-117.
526 DAROS, Maria das Dores. Desenvolvimentismo e polticas educativas no Brasil dos anos 1950-1960:
transnacionalizao e modernizao. IN: GIL, Natlia; CRUZ E ZICA, Matheus da; FARIA FILHO,
Luciano Mendes (org.). Moderno, modernidade e modernizao: a educao nos projetos de Brasil sculos XIX e XX.
Volume 1. Belo Horizonte: Mazza Edies, 2012, p. 192.
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A revista Chiapas e o Exrcito Zapatista de
Libertao Nacional: o debate sobre a questo
agrria no sul do Mxico
Mahira Caixeta Pereira da Luz
Graduada em Histria pela UFMG
[email protected]
RESUMO: Esse trabalho investiga de que forma a questo agrria mexicana debatida
por intelectuais na revista Chiapas, criada em 1995 na Universidad Nacional Autnoma de
Mxico (UNAM). A revista, com carter multidisciplinar, tem como objetivo compreender a
realidade do estado de Chiapas, que foi palco do levante indgena promovido pelo Exrcito
Zapatista de Libertao Nacional (EZLN) em 1994. O levante atraiu a ateno da mdia e
de intelectuais no plano nacional e internacional, sendo a questo agrria um dos muitos
elementos que foram longamente debatidos nessa publicao. Pretendemos, ento, analisar
o primeiro volume da revista para melhor compreendermos as interpretaes que os
intelectuais que colaboram com a publicao deram para a questo da terra e sua relao
com o EZLN.
Acreditamos que os autores que escrevem em Chiapas podem ser entendidos como
intelectuais e, para isso, tomamos por base a acepo construda por Edward Said.
Definimos o intelectual como um indivduo que possui um papel pblico na sociedade,
sendo essencial sua ao como figura representativa, fazendo com que caiba a esse sujeito
dar corpo e articular uma mensagem, um ponto de vista, uma atitude, filosofia ou opinio
para (e tambm por) um pblico530. Os colaboradores da revista em questo do
visibilidade e voz para uma srie de sujeitos que h anos so oprimidos e excludos na
sociedade mexicana: os diferentes povos indgenas, os campesinos, dentre outros grupos
vistos como marginalizados, trazendo tona a realidade e os diversos problemas que esses
enfrentam. Vale ressaltar que o dar voz no se limita anlise da realidade vivida por
528 Entrevista com Ana Esther Cecen. Hay una lucha contracultural que cuestiona la apropiacin
tecnolgica de la naturaleza. Revista Tena. Espanha, Valencia: n.10; nov-dic-ene, 2005/06. Captado em
http://www.revistateina.es/teina/web/teina10/dos5.htm. Acesso em 20. Abril. 2015.
529 Presentacin. Chiapas, volume 1, 1995, p. 5.
530 SAID, Edward W. Representaes do intelectual: as Conferncias Reith de 1993. So Paulo: Companhia das Letras,
2005, p. 25.
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esses sujeitos, a revista tambm publica entrevistas e documentos produzidos por esses
grupos, bem como pelo EZLN.
O artigo Chiapas y sus recursos estratgicos tem autoria de Ana Esther Cecea,
economista e a diretora da revista, e Andrs Barreda, professor da Faculdad de Economa
(UNAM), alm de contar com a colaborao de Ana Alicia Pea, Nashlley Ocampo e a
Equipe Chiapas. Os autores optam por abordar as condies econmicas do Estado e, ao
fazerem um balano detalhado da riqueza material da regio, conseguem expor como essa
um espao de cruzamento entre os processos de acumulao internacional e regional do
capital. Assim, apesar de no abordar a fundo a questo da terra, o texto expe bem a
contradio entre grande riqueza natural x misria da populao no Estado, bem como
questiona a proposta de modernizao prometida pelo TLC.
531 CECEA, Ana Esther; BARREDA, Andrs. Chiapas y sus recursos estratgicos. Chiapas, vol. 1, 1995, p.
65.
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diferena de topografia, o torna um Estado de variados ambientes e microambientes,
fazendo com que a riqueza bitica dele seja enorme.
Neil Harvey aponta que a transio ao livre mercado no Mxico rural foi
governada por organismos macroeconmicos, os quais no tiveram grandes preocupaes
com a realidade dos campesinos.534 Os autores do artigo em questo, bem como Armando
Bartra535, concordam com essa viso ao mostrar que os baixos nveis de desenvolvimento
da populao local tendiam a piorar com esse processo de modernizao. Os indgenas, por
sua vez, vtimas no s da explorao capitalista, mas tambm do racismo, seriam os mais
532 ORTIZ WADGYMAR, Arturo. Poltica econmica de Mxico 1982-2000: el fracaso neoliberal. 9 ed. Mxico:
Editorial Nuestro Tiempo, 2001.
533 AGUILAR CAMN, Hctor & MEYER, Lorenzo. sombra da Revoluo Mexicana: histria mexicana
primeiro volume de Chiapas, autor do artigo intitulado Origen y claves del sistema finquero del Soconusco, no qual faz
uma anlise histrica do sistema econmico da regio e seu impacto sobre a populao indgena.
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afetados, como afirmam: La poblacin trabajadora de Chiapas, y especialmente la
indgena, est en punto de optar entre diferentes tipos de muerte segura: hambre,
enfermedades o guerra. 536 Fica evidente, ento, que mesmo no abordando
detalhadamente a insurreio do EZLN, os autores conseguiam traar motivos que o
teriam impulsionado.
536 CECEA, Ana Esther; BARREDA, Andrs. Chiapas y sus recursos estratgicos, p. 97.
537 A Soberana Conveno Revolucionria (1914-16) foi o evento da Revoluo Mexicana em que estiverem
reunidos, em assembleia, os diferentes grupos revolucionrios para discutir propostas polticas e sociais do
processo revolucionrio. A primeira reunio ocorreu na Cidade do Mxico, enquanto a segunda deu-se em
Aguascalientes. A Conveno Nacional Democrtica (1994), por sua vez, foi convocada em 1994 pelo
EZLN e tinha por objetivo mobilizar a sociedade civil para a elaborao de um programa de democratizao
poltica, que rompesse com o partido de Estado e com a poltica neoliberal excludente.
538 HAU-LAMBERT, Catherine; RAJCHENBERG, Enrique. 1914-1994: Dos convenciones en la historia
O Programa da Conveno (1915), alis, vai justamente contra a mxima que tradio
significa imobilidade: nesse evento, que reuniu diferentes foras polticas542, que possvel
perceber um projeto transformador e inovador, no somente no que diz respeito ao uso da terra,
mas tambm no que se refere aos direitos polticos e sociais. Se os convencionistas trataram por
igual o problema do campesino e do operrio, o mesmo no ocorreu posteriormente na poltica
mexicana, uma vez que a indstria foi privilegiada em detrimento da agricultura. Por muitas vezes,
o modelo ejidatario foi criticado, devido misria que prevalece no meio rural. Tal crtica, contudo,
Finalmente, ao remeter a essa Conveno, o ELZN em 1994 colocava em pauta a ideia dos
cidados mexicanos reunidos para debater a situao poltica e social do pas. Defendia, assim, a
necessidade de lutar por um governo de transio que se comprometesse a abrir todos os espaos
de participao poltica legal, que elaborasse um programa de democratizao poltica do pas e que
rompesse com o partido de Estado. O Exrcito Zapatista, desse modo, dava oportunidade CND
de exercer uma presso poltica pacfica, o que fica claro na declarao do Subcomandante Marcos
em outubro de 94: Somos um ejrcito rebelde porque no creemos en las elecciones, pero la
diferencia com los otros grupos armados es ques estamos dispuestos a dejarnos convencer de que la
lucha armada no es necesaria. As llegamos a la CND.543
543 CECEA, Ana Esther; ZARAGOZA, Jos; Equipo Chiapas. Cronologa del conflicto. Chiapas, vol. 1, p.
175.
544 GONZLEZ ESPONDA, Juan; PLITO BARRIOS, Elizabeth. Notas para comprender el origen de la
Os jornais da poca tentavam passar a imagem que o levante zapatista era fruto de
uma articulao externa, Esponda e Plito descordam dessa ideia, expondo que o
aparecimento do movimento em Chiapas deve-se ao fato que ali encontram-se problemas
estruturais e conjunturais histricos, que se combinaram com uma tradio de luta e
organizao dos povos indgenas, alm de ser uma regio em que o desenvolvimento
baseado em um processo modernizador causou grandes impactos. Para uma anlise
sistematizada, os autores retomam toda a histria chiapaneca, desde sua incorporao ao
Mxico, no ano de 1824546. interessante notar que eles apontam que a concentrao de
terras se inicia j em 1824, quando a oligarquia se apropria das terras do clero e das
comunidades indgenas, fato que se intensifica durante o governo de Porfrio Daz, quando
investidores estrangeiros compram grandes pores de terra. A populao indgena, por
sua vez, servia de mo de obra para as plantaes, em um sistema que se assemelhava
escravido, situao que perdura at os anos sessenta, quando esses povos comearam a se
organizar por melhores condies de trabalho.
latifundio se entiende toda extensin de terreno que exceda de ocho mil hectreas, poseda en propiedad por
una persona o sociedad que tenga la capacidad legal para adquirir el dominio. Articulo 2: Lo que exceda de
la superficie sealada com el artculo anterior quedar sujeto a fraccionamiento y expropiacin en los
trminos de esta ley e ainda el que posea ms de ocho mil hectreas, deber fraccionar el excedente en el
trmino de seis meses cumpliendo con lo dispuesto en el artculo 10; en caso contrario el fraccionamiento
ser hecho por el Gobierno previa expropiacin.
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reforma agrria em Chiapas no seguiu um modelo de redistribuio de terras privadas,
mas sim de colonizao de terras no utilizadas, principalmente na regio da Selva
Lacandona, de modo que a estrutura agrria de latifndios permaneceu quase que intacta.
548
551GONZLEZ ESPONDA, Juan; PLITO BARRIOS, Elizabeth. Notas para comprender el origen de la rebelin
zapatista, p.119.
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tambm uma quebra de expectativas quanto a mudanas futuras eficientes.552 A apario do
EZLN em 1994, desse modo, marcou o incio de um novo processo na luta pela terra.
HARVEY, Neil. Rebellion in Chiapas: Rural Reforms and Popular Struggle, p. 53-55.
552
553DVALOS, Pablo. Movimientos Indgenas en Amrica Latina: El derecho a la palabra. In: DVALOS,
Pablo. Pueblos indgenas, Estado y Democracia. Buenos Aires: Consejo Latino Americano de Ciencias Sociales
CLASCO, 2005, p.29.
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A revista La Quinta Rueda e o debate sobre
poltica cultural na via chilena para socialismo
Mara Mximo Nascimento
Graduanda em Histria
Universidade Federal de Minas Gerais
[email protected]
554 Coalizo poltica conformada pelos partidos Socialista e Comunista, pelo Partido Radical, Partido Social
Democrata, Ao Popular Independente e Movimento de Ao Popular Unificado. Na segunda metade de
1971, incorporam-se tambm o Partido de Izquierda Radical e o Movimiento de Izquerda Cristiana; cf. A.
Aggio, Democracia e socialismo: a experincia chilena, So Paulo: Annablume, 2002, p.15.
555 Programa Bsico de Gobierno de la Unidad Popular Candidatura presidencial Salvador Allende.
558 SCHMIEDECKE, N. A. O movimento da Nova Cano Chilena no debate sobre a questo cultural travado na
revista La Quinta Rueda (1972-1973)e, Anais do XI Encontro Internacional da ANPHLAC, Niteri: 2014, p. 4.
559 Ver mais em BIANCHI, Soledad. La quinta rueda y PEC: dos miradas a la cultura. Chile, aos 60. In:
SOSNOWSKI, Sal (ed.). La cultura de un siglo: Amrica Latina y sus revistas. Buenos Aires: Alianza Editorial,
1999, p.477. Neste artigo, a autora afirma que La Quinta Rueda seria sectria e ideolgica. Essa crtica poderia
ser refutada se considerarmos que havia um espao dedicado ao leitor, onde se publicava elogios,
comentrios, sugestes e inclusive crticas revista, alm de publicao de entrevistas a elementos que
chegaram a dizer que no compravam La Quinta Rueda, por conta do seu carter panfletrio, entre outros
termos pejorativos. Contudo, nota-se que ao longo dessas entrevistas, tais crticas acabavam por ser
silenciadas e/ou ridicularizadas pelo corpo editorial.
560 No queremos nos erigir, como tantas vezes sucede com revistas desta ndole, em porta-vozes de uma
capela ou grupo, mas sim em um rgo de discusso ampla ao que tenha acesso quem tenha algo que
contribuir ao diagnstico e desenvolvimento de nossa realidade cultural. Traduo livre. Planteamientos. La
Quinta Rueda, n 2, nov. 1972, p. 8.
561 CRESPO, R. Las revistas y suplementos culturales como objetos de investigacin, Coloquio Internacional de Historia
562 Ibidem, p 2.
563 Dnde est la poltica cultural?. La Quinta Rueda, n1, out. 1972, Santiago: Quimant.
564 ALBORNOZ, Csar. La cultura en la Unidad Popular: Porque esta vez no se trata de cambiar um
presidente. In: VALLEJOS, Julio Pinto (coordinador-editor). Cuando hicimos historia. La experiencia de la Unidad
Popular. Santiago: LOM Ediciones, 2005.
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havia sido alcanado pela Zig-Zag na mesma frao de tempo. Dentre os ttulos
publicados estavam colees dedicadas histria nacional, clssicos da literatura mundial
(principalmente latino-americana) e importantes obras de tericos marxistas. Praticamente
todas as edies contavam com um prlogo que cumpria o papel da doutrinao.566
565 TEITELBOIM, Valodia. 5.000.000 de libros. La Quinta Rueda, n3, jan-fev 1973, Santiago: Quimant.
566 ALBORNOZ, Csar. La cultura en la Unidad Popular: Porque esta vez no se trata de cambiar un
presidente, p. 154.
567 Dali partiram muitas ideias que logo se incorporaram ao programa da Unidad Popular. Depois do triunfo
houve muita ebulio. [...] Mas se produziu certa desmobilizao, produto em algum sentido de que o
Governo no respondeu ao que dele esperavam os trabalhadores deste campo. Traduo livre. BALMES,
Jos. Poltica Cultura: Lo que hay y lo que falta. La Quinta Rueda, n. 6, mai. 1973, p. 3.
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envolvidas/os nesse debate concebiam o conceito de cultura. Nota-se que em La Quinta
Rueda a cultura percebida de maneira bastante ampla, o que se reflete na variedade de
temas que a revista, definida como cultural, abrange em suas nove edies. Como
supracitado, o peridico tratava desde artes plsticas a esportes. De acordo com os
editores, j no se poderia [] sostener la tradicional ecuacin de cultura = artes, como
568
una ddiva que los intelectuales y artistas reparten con mayor y menor generosidad.
Rompia-se com uma ideia tradicional que associava cultura a uma rea exclusiva do
conhecimento humano e com a ideia que vinculava a produo cultural erudio. Nesse
sentido, a cultura deveria ser ento, acessvel e de propriedade de todos os setores da
sociedade. Alm disso, ideia geral que se encontra no peridico de que a cultura de modo
algum seria algo parte das outras atividades humanas, muito pelo contrrio, como afirma
Carlos Maldonado:
Enrique Rivera alarga ainda mais a concepo sobre o que seria a cultura. Para o
escritor,
568 [J no se pode] sustentar a tradicional equao de cultura = artes, como uma ddiva que os intelectuais
e artistas repartem com maior e menor generosidade. Traduo livre. Dnde est la poltica cultural, n1,
p.12.
569 A cultura no um adorno ou mero passatempo para ociosos. Cultura a capacidade de um povo para
construir seu futuro de acordo com as particularidades de seu meio, de seu prprio pensar, sentir e fazer. Essa
compreende desde suas formas de organizao, passando por objetivos polticos, econmicos e sociais, seus
conceitos morais, etc., at suas autnticas expresses musicais, literrias ou teatrais. Traduo livre.
MALDONADO, C. Dnde est la poltica cultural?, n. 1, p.12.
Desse modo, a poltica cultural idealizada em La Quinta Rueda deveria se dar no sentido de
combater e destruir a dominao das elites sobre as massas chilenas, bem como de tornar o
pas livre da dependncia imperialista. Para tanto, tal poltica teria de ser, antes de tudo,
original, gerada a partir da realidade chilena e jamais ser uma cpia, ou uma aplicao de
570 A cultura, em oposio ao conceito de natureza, compreende o produto total da atividade humana
historicamente considerada. Se manifesta como um sedimento material e espiritual que humanidade acumula
para seu prprio progresso e que as sociedades divididas em classes usufruem em benefcio do
desenvolvimento e consolidao de seus setores dominantes. Todo bem material ou espiritual produzido pela
humanidade um bem cultural se est associado ao sentido de progresso e aperfeioamento social que
preside a maioria dos atos humanos. E a produo de bens culturais consequncia das aptides laborais e
criadoras e da capacidade de organizao social da humanidade. So bens culturais as ideias filosficas, as
organizaes polticas, as crenas religiosas, as obras de arte, os descobrimentos da cincia, os instrumentos
que produz a tecnologia para transformar a natureza, as condutas morais, os mitos, as lendas, os costumes.
Traduo livre. RIVERA, Enrique. Poltica cultural. Para comenzar a hablar, n2, nov. 1972, pp. 8-9.
571 O que deve caducar a cultura como privilgio de uma classe determinada; no fundo a ajuda a manter
sua dominao que, por sua vez, est estreitamente entrelaada com os interesses do imperialismo. Traduo
livre. Dnde est la poltica cultural? n1, out 1972, p.12.
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modelos de governos socialistas e, muito menos, dos ditos pases imperialistas. A poltica
cultural idealizada no peridico deveria nacer con lo nuestro572, como colocam os
editores, no segundo nmero do peridico:
Para nosotros, la cultura no comienza en Londres, Paris o Nueva York.
Debemos reflejar en primer trmino la realidad chilena, luego
latinoamericana y solo despus de las grandes metrpolis. Pretender el
orden inverso no es ni ms ni menos que subordinarse una vez ms a los
mecanismos de la dependencia cultural.573
Ou ainda:
No hay modelos cuya calca nos puede aportar soluciones. Hasta ahora
tenemos vivido un constante fenmeno de dependencia cultural y no se
trata tampoco de imitar modelos de los pases de la Europa Socialista,
Cuba o China. Hay que hallar los caminos que corresponden a nuestra
realidad.574
572 Nascer com o nosso. Traduo livre. Planteamientos, n2, nov 1972, p.8.
573 Para ns, a cultura no comea em Londres, Paris ou Nova Iorque. Devemos refletir em primeiro termo
a realidade chilena, logo a latino-americana e s depois a das grandes metrpoles. Pretender a ordem inversa
no mais nem menos que subordinar-se uma vez mais aos mecanismos da dependncia cultural. Traduo
livre. Planteamientos, n2, nov 1972, p.8.
574 No existem modelos cuja base nos pode aportar solues. At agora temos vivido um fenmeno de
dependncia cultural e no se trata tampouco de imitar modelos dos pases da Europa Socialista, Cuba ou
China. H que encontrar os caminhos que correspondem nossa realidade. Traduo livre. Dnde est la
poltica cultural?, n1, out 1972, p.12.
575 No puede caerse en um dirigismo estrecho ni tampoco en un caotismo sin brjula. Dnde est la
576 uma tarefa que est mais alm das possibilidades de ao e responsabilidades especficas do aparato
governamental, pois envolve o conjunto da sociedade e suas organizaes e, particularmente, supe o aporte
criador dos seus intelectuais e a presena viva das massas. uma tarefa coletiva, gigantesca e inadivel, que
no pode acometer-se por decreto, como bem assinala o Programa Bsico da Unidad Popular, no obstante a
misso diretiva, orientadora, coordenadora e centralizadora de recursos que est reservada ao governo.
Traduo livre. Para comenzar a hablar, n2, nov 1972, p. 9.
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Maldonado, um dos editores do peridico, a manuteno do carter revolucionrio do
processo577 dependia da participao macia dos/das operrios/as e camponeses/as
chilenos/a. Para Maldonado, deveria ser das massas todo o protagonismo no processo
chileno, em todos os seus setores.578 O autor apresenta, nesse sentido, uma proposta de
ao prtica para efetivao da participao popular:
[] dentro o junto a cada organizacin del pueblo debe
funcionar un Centro de Cultura Popular (CCP), o sea, la
organizacin de masas que preocupa en atender, planificar e
impulsar las necesidades culturales en un sindicato, en una Junta
de Vecinos, en un Asentamiento Campesino o Centro de
Reforma Agraria, en una Asociacin de Empleados, en un
colegio, en un barrio o en un villorrio.579
De modo geral, a viso encontrada na revista era de que a poltica cultural deveria
ter como objetivo o empoderamento das massas e a libertao do povo chileno do jugo das
classes dominantes. Para tanto, a participao dos proletrios e camponeses na produo
cultural era essencial. Para alguns autores, tal participao deveria ser de algum modo
guiada pelos/as intelectuais. Para outros, as massas deveriam gerar organicamente seus
prprios quadros, que dariam conta dessa tarefa de construo na rea cultural.
Nesse sentido, as aes institucionais deveriam constituir, sobretudo, incentivos
produo de cultura nacional popular, isto , s expresses culturais que representassem o
que os/as intelectuais que publicaram no peridico consideravam como advindas das razes
580
culturais da nao chilena. No por acaso que a figura do/da folclorista aparece
diversas vezes no peridico como categoria profissional de extrema importncia no
chamado processo cultural. Em diversos nmeros, por exemplo, Violeta Parra tem seu
trabalho citado e elogiado. H, inclusive, um nmero exclusivamente dedicado a
577 Em La Quinta Rueda, frequente a afirmao de que o Chile vivia um processo revolucionrio. Alis, esta
ideia aparece na grande maioria de seus artigos. No nos cabe aqui discutir se a via chilena para o socialismo
caracterizou propriamente uma revoluo. Para aprofundamentos no tema, ver captulo IV de AGGIO,
Alberto. Democracia e socialismo: a experincia chilena.
578 MALDONADO, Carlos. Dnde est la poltica cultura?, n. 1, out 1972, p.13.
579 [...] dentro ou junto de cada organizao do povo deve funcionar um Centro de Cultura Popular (CCP),
ou seja, a organizao de massas que preocupa em atender, planificar e impulsionar as necessidades culturais
em um sindicato, em uma Junta de Vizinhos, em um Assentamento Campons ou Centro de Reforma
Agrria, em uma Associao de Empregados, em um colgio, em um bairro ou em um vilarejo. Dnde est
la poltica cultura?, n1, out 1972, p.13.
580 Na revista, no encontramos delimitaes para o que representariam as razes culturais chilenas. O que
existe so exemplos de expresses culturais que deveriam ser valorizadas em detrimento de outras, como o
movimento da Nueva Cancin Chilena, em oposio msica popular influenciada por ritmos e temas
estrangeiros; ou a valorizao do teatro operrio, em oposio ao teatro no engajado.
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homenagear a cantora, compositora e estudiosa do folclore chileno.581 Antnio Skrmeta
afirma que:
Ordenar, coordinar, incentivar, sugerir trabajos conjuntos en el
campo cultural puede ser una significativa manera de que Chile
gane la batalla contra el imperialismo y sus aliados antipatriotas
dentro de casa, al acercar ms a los chilenos a su propio rostro, a
la expresin de lo que verdaderamente somos.582
581
Nmero 4 de La Quinta Rueda, de janeiro-fevereiro de 1973.
582 Organizar, coordenar, incentivar, sugerir trabalhos conjuntos no campo cultural pode ser uma
significativa maneira de que Chile ganhe a batalha contra o imperialismo e seus aliados antipatriotas dentro de
casa, ao acercar mais aos chilenos a seu prprio rosto, expresso do que verdadeiramente somos. Traduo
livre. SKRMETA, Antonio. Qu cantar?, n1, out. 1972, p.11.
583 A expresso hombre nuevo define o tipo ideal de revolucionrio e sujeito de uma sociedade socialista.
Tal expresso torna-se popular na Amrica Latina a partir da Revoluo Cubana. A flexo de gnero do
termo dentro das esquerdas latino-americanas quase nunca utilizada. muito raro encontrar-se a expresso
mujer nueva, ou qualquer associao com a figura feminina. O que deixa entrever o machismo e, por vezes,
a misoginia, presentes nas revolues e movimentos de esquerda na Amrica Latina. Em La Quinta Rueda essa
expresso utilizada no artigo A mi me concientiz Dios, de Maria Elena Claro, no segundo nmero da
revista. Alm de Claro, vrios outros autores mencionam o termo ou fazem aluso a ele.
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necessidade da sua sistematizao institucional, alm da defesa da democracia e da
participao integral da populao na sua constituio. Ademais, os debates travados nas
pginas de La Quinta Rueda deixam entrever reflexos das discusses que estavam sendo
feitas no prprio seio da Unidade Popular, certamente devido ao fato de que os seus
editores eram membros de partidos que compunham a coalizo, mas tambm porque tais
debates estavam instalados nos mais diversos mbitos da sociedade chilena daquele ento.
Em geral, h muito mais divergncias e polmicas do que consensos, por vezes apresentado
pelos prprios articulistas como a falta de coeso terica que permeou os trs anos do
governo de Salvador Allende 584, perspectiva que, aps o golpe militar de 1973, aparece em
diversas anlises como um dos fatores responsveis pelo fracasso da Unidade Popular, que
no foi capaz de construir a nova sociedade desejada.
584Tal percepo est bem sintetizada no artigo El trabajo terico, de Osvaldo Fernndez, n. 7, jun. 1973,
p.11.
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O feminino no cinema cubano a partir da anlise
dos filmes: Hasta cierto punto (1983) e Retrato de
Teresa (1979)
Graduada em Histria
UFMG
O cinema foi, desde o incio, enormemente valorizado, isso por seu carter de
comunicao de massa. Acreditava-se que ele poderia fazer a ideologia revolucionria
chegar a todas as regies e pessoas do pas, de uma maneira que nenhuma outra arte
585SOALHEIRO. Cine sobre ruedas: expresses da cultura poltica comunista nos discursos cinematogrficos e
na organizao do Cine-Mvil cubano (1961-1971), p. 21.
586VILLAA. O Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematogrfica ICAIC e a poltica cultural em Cuba (1959-
1991), p. 440.
587 Entendemos por poltica cultural a definio segundo a qual poltica cultural a mobilizao da cultura
levada a cabo por distintos tipos de agentes Estado, os movimentos sociais, as indstrias culturais,
instituies tais como museus, organizaes tursticas, associaes de artistas e outras com a finalidade de
gerar transformaes estticas, organizacionais, polticas, econmicas e/ou sociais.
OCHOA GAUTIER. Entre los deseos y los derechos. Un ensayo crtico sobre polticas culturales, p. 26.
VILLAA. O Instituto Cubano de Arte e Industria Cinematogrfica ICAIC e a poltica cultural em Cuba (1959-1991),
p. 22-25, 32-33, 51-59.
588VILLAA. O Instituto Cubano de Arte e Industria Cinematogrfica ICAIC e a poltica cultural em Cuba (1959-
1991), p. 27-29.
589 Consideramos como privilegiadas as organizaes que, apesar de aparelhadas ao Estado, conseguiam ter
relativa autonomia para desempenhar suas funes. Cf. MISKULIN. Os intelectuais cubanos e a poltica cultural da
Revoluo (1961- 1975), p. 21.
590VILLAA. O Instituto Cubano de Arte e Industria Cinematogrfica ICAIC e a poltica cultural em Cuba (1959-
1991), p. 25.
Com a vitria dos revolucionrios, uma das necessidades que se fez evidente foi a
de ter as mulheres atuando e militando politicamente. As cubanas passaram a ser vistas
como grandes mobilizadoras, possuidoras de grande fora poltica. A famlia enquanto
instituio continuou a ter papel decisivo dentro da sociedade cubana. O governo via a
adeso da famlia ao projeto revolucionrio como fundamental para seu sucesso. A
influncia que as mulheres possuam dentro dos lares passou a ser desejada, j que ao se
posicionarem do lado da Revoluo e de seus dirigentes, influenciavam de maneira inegvel
e decisiva o posicionamento dos outros membros do crculo familiar, em especial das
crianas. Era do interesse do governo que as novas geraes fossem educadas dentro do
ideal revolucionrio e que crescessem para se tornarem colaboradores e seguidores, no
opositores.
592 Cf. MEJA, Glenda; MARTNEZ-EXPSITO, Alfredo. Womens Representation: Two Epochs of the
Revolutionary Cuban Cinema. Revista Brasileira do Caribe, Maranho, v. VI, n. 11, jul.dez., 2005.
O Cdigo da Famlia
O cuidado com os filhos pelo Cdigo tambm passa a ser de responsabilidade dos
dois progenitores, sem distino alguma entre me e pai. Os pais esto obrigados a cuidar
da famlia que formaram e cooperar um com o outro no que diz respeito educao e
formao dos filhos, conforme os princpios da moral socialista. Dentro das possibilidades
de cada um, os dois tm a obrigao de participar dos cuidado do lar e contribuir
economicamente para manter a casa e os filhos.595
593 Cf. VASSI, Cssia. A famlia cubana segundo o Cdigo de 1975: novos homens, mulheres e crianas.
Monografia (Curso de Histria) Faculdade de Histria, Direito e Servio Social, Universidade Estadual
Paulista, Franca, 2003.
594 CUBA. Cdigo de Familia de 1975, art. 36.
595 ____. Cdigo de Familia de 1975, art. 26 e 27.
Lanado em 1983 o filme Hasta cierto punto, dirigido por Toms Gutirrez Alea, abre
com a exibio de um depoimento real dado por um trabalhador cubano, no qual ele diz
que apesar de ter vivido muito tempo em uma sociedade diferente, ele j havia mudado
muitas de suas atitudes em relao s mulheres, j havia mudado uns 80% e talvez chegasse
a 87%, mas nunca alcanaria os 100%, porque a igualdade entre homens e mulheres justa,
mas s at certo ponto.597
O filme se inicia com dois dos personagens principais, Arturo e Oscar. Arturo um
diretor de cinema do ICAIC que convida o roteirista e escritor de peas de teatro Oscar
para fazer o roteiro de um filme de fico e juntos criarem uma obra que trate do tema do
machismo em Cuba. O objetivo desta obra o de confrontar os homens cubanos e fazer
com que se conscientizem do prprio machismo.
Em uma das primeiras interaes entre Oscar e Lina, ele e o espectador descobrem
que ela uma trabalhadora porturia, me de um garoto de 11 anos e que, apesar de ter
Mesmo tendo que lidar com todo o preconceito recorrente de ser me solteira, Lina
se mostra uma mulher forte e decidida. Alm de trabalhar nesse ambiente
predominantemente masculino ela tambm estuda administrao porturia para depois de
formada conseguir um emprego melhor remunerado em Santiago, sua cidade de origem.
Sua fora tambm explicitada por ela no demonstrar em nenhum momento problema
algum para se impor perante seus colegas.
Eventualmente o machismo dele que leva ao fim do relacionamento dos dois. Ele
vai procur-la em sua casa e v saindo um antigo namorado; nervoso a questiona de
maneira agressiva sobre a presena do ex, aos prantos ela no responde, e ele parte. Seu
machismo e intolerncia o impedem de ver que o estado de Lina se deve ao fato de que ela
havia acabado de ser vtima de violncia sexual.
VILLAA. Crtica e engajamento poltico no cinema cubano: ousadias e limites de Hasta Cierto Punto, p. 230.
598
Hasta cierto punto foi dedicado a Sara Gmez, que nos anos sessenta havia trabalhado
VILLAA. Crtica e engajamento poltico no cinema cubano: ousadias e limites de Hasta cierto punto, p. 253.
599
Alea fez um filme importante para se pensar a situao da mulher em Cuba. Pode
no ser o filme cubano que melhor retrata o machismo e suas implicaes na vida das
pessoas, mas mostra como o machismo foi internalizado e reproduzido e propagado por
pessoas de todos os estratos sociais e dos dois gneros. Uma anlise de extrema
importncia, j que destri a crena de que o machismo de exclusividade de homens e
especialmente dos homens pobres.
Retrato de Teresa
Durante uma das brigas, Ramon a acusa de se ocupar de tudo, menos da casa e dos
filhos. Teresa se defende dizendo que trabalha como uma mula para que a casa esteja
sempre limpa e os meninos sempre bem cuidados, e que ningum pode acus-la do
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contrrio. Ela questiona sobre o que h de mal nela querer participar, ser til e sair da
rotina. Diz que a vida no pode ser s lavar, passar e cozinhar, que ela quer ser ela mesma,
e no uma escrava como sua me e sogra. Ele a ameaa dizendo que se ela quer seguir com
ele e seus filhos, que diga antes que ele saia pela porta. S ao ter seu direito a maternidade
ameaado que ela reage com firmeza, afirma que os filhos so dela e nem ele nem
ningum pode tir-los.
Os conflitos na relao do casal levam Teresa a pedir licena do trabalho para que
possa se dedicar exclusivamente famlia. Durante esse perodo vemos que, apesar de se
divertir ao lado do marido e dos filhos, ela est melanclica e evidentemente sentindo falta
das outras reas de sua vida. Completamente cego e insensvel a isso, em uma cena Ramon
diz que em seu trabalho sabem que ele esta estudando e que surgiu a possibilidade de que
lhe ofeream um emprego melhor em Santiago. Ele fala que sempre bom ter o que se faz
reconhecido, que um estmulo e faz com que a pessoa se sinta bem. Isto demonstra que o
seu crescimento profissional e a satisfao dele proveniente algo importante e a ser
valorizado, entretanto o mesmo no se aplica a Teresa.
Retrato de Teresa foi feito com o claro intuito de discutir a insero da mulher no
mercado de trabalho, assim como outros temas abordados no Cdigo da Famlia. A relao
familiar retratada na tela pode ser entendida como uma representao da grande maioria de
famlias cubanas e os problemas por elas enfrentados com a mudana dos valores vigentes.
Pelo filme, percebemos uma grande distncia entre o que prega a lei e a realidade
existente dentro dos lares cubanos. Apesar de o Cdigo afirmar que as tarefas domsticas
so de responsabilidade tanto do homem quanto da mulher, vemos que na grande maioria
dos lares as mulheres seguiram sendo, se no as nicas, ao menos as principais responsveis
por elas. As cubanas tinham ento uma tripla jornada de trabalho, j que somaram ao j
pesado trabalho de casa o trabalho assalariado e o trabalho voluntrio, uma cobrana
comum a pases socialistas. O peso das tarefas domsticas, do cuidado aos filhos e aos
maridos, somados s exigncias do mercado formal de trabalho, se mostra demais para
algumas mulheres, que, sem ajuda, se veem foradas a fazer escolhas, o que leva muitas a
abandonarem seus trabalhos.
Consideraes finais
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inegvel que aps a Revoluo o Estado promoveu em Cuba medidas designadas
ao segmento feminino, e que grandes avanos foram alcanados no que diz respeito
igualdade entre homens e mulheres. Perante a lei, pessoas de ambos os gneros passaram a
possuir os mesmo direitos, e a atuao das mulheres no meio social e poltico alcanou
nveis nunca antes vivenciados pelo pas.
Acreditamos tambm que o empenho por parte do Estado na luta pela igualdade
entre cubanos e cubanas no se deu somente pela conscientizao de que homens e
mulheres tm as mesmas capacidades e, consequentemente, devem ter garantidos os
mesmos direitos e deveres. Defendemos que as principais motivaes do governo foram
econmicas e polticas, sendo a principal delas a necessidade da mo de obra feminina.602
Vemos tambm algo muito bem exemplificado pelos filmes escolhidos que na
prtica muitas das questes legisladas pelo Cdigo no foram incorporadas vida diria das
pessoas. Que as mulheres continuaram a ser vistas como as principais, se no as nicas,
responsveis pelo cuidado com a casa e com os filhos; que apesar de garantido por lei, para
muitos o divrcio seguiu tendo um estigma muito negativo, e a mulher divorciada
continuou sendo alvo de preconceito; que a adeso da mulher ao trabalho formal
continuou a ser difcil, j que muitos maridos e outro familiares, alm de no ajudarem
essas mulheres nas atividades domsticas, ainda se interpunham e criavam empecilhos para
que elas trabalhassem fora de casa.
602Cf. DOS ANJOS SANTOS, Giselle Cristina. Mulher e Revoluo em Cuba. Histrica - Revista on line do
arquivo pblico do estado de So Paulo, So Paulo, n. 38, p. 1-13, 2009.
RESUMO: Este artigo tem por objetivo refletir sobre as distintas trajetrias dos escritores
Alejo Carpentier e Severo Sarduy no contexto da Revoluo Cubana (1959), estabelecendo
uma possvel relao com a produo literria do perodo. Tomo por base as novelas Os
Passos Perdidos (1953), de Carpentier, e Cobra (1972), de Sarduy, tentando estabelecer uma
relao entre a produo cultural e o contexto vivido por ambos os autores.
Introduo
Em uma apresentao para a Americas Society/Council of the Americas, realizada em
maro de 2011, o cubano Roberto Gonzlez Echevarra (professor de Literatura hispnica
e Literatura comparada da universidade de Yale EUA) traava as similaridades entre a
cultura cubana e o jogo de basebol.603 Para Echevarra, o basebol consiste na melhor
metfora para pensarmos a cultura cubana, uma vez que ambos partilham de
cdigos/regras complexas, e carregam em si uma forte noo de circularidade. Ao
contrrio dos esportes em geral (os quais chamou de esportes vai e volta, como o futebol
por exemplo), que trazem em sua essncia uma aluso guerra, uma partida de basebol no
tem por finalidade a simulao de uma batalha, mas sim a ideia de movimentos cclicos em
busca de um retorno para o lar (home run). De modo anlogo, a cultura cubana teria a
mesma orientao circular do basebol, garantindo-lhe uma identidade especfica, com
regras prprias, dilemas, modos de pensar e agir, etc.
Seguindo essa perspectiva, a aluso ao jogo pode ser ainda mais interessante quando
extrapolada para o contexto histrico da Revoluo Cubana, em 1959. Comparar o evento
603A apresentao mencionada pode ser encontrada no canal da Americas Society/Council of the Americas, no
YouTube, sob o ttulo de: Roberto Gonzalez Echevarria speaks about Cuba.
Captado em: https://www.youtube.com/watch?v=FUpgd15Mr64. Acesso em: 08 mai. 2015.
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a um jogo complexo significa perceber a existncia de um conjunto de regras e de
estratgias, compartilhadas e utilizadas por seus atores (jogadores) naquele momento. Ao
aproximar a lente sobre esses personagens possvel detectar no s como funcionaram
tais estratgias, mas tambm como, em determinados casos, algumas dessas figuras
subverteram as regras do prprio jogo em nome da sobrevivncia.
importante destacar desde j que, para esses autores, refletir sobre a identidade
do continente no perodo significava demarcar uma posio da Amrica Latina, e
consequentemente de Cuba, frente ao domnio poltico estadunidense, rompendo ao
mesmo tempo com o eurocentrismo vigente. Foram intelectuais preocupados com os
rumos do continente ainda que tenham seguido por caminhos distintos a partir do sucesso
da Revoluo.
Alejo Carpentier y Valmont (1904-1980) tentou ilustrar ao longo de sua carreira sua
viso particular da Amrica Latina, e consequentemente de Cuba. Para isso lanou mo de
uma produo prolfica que incluiu uma gama variada de romances e discursos que
abordaram temas variados, mas sempre conectados com sua leitura da Amrica. Agente
histrico de seu tempo, ele conseguiu aliar sua atividade como intelectual com a carreira
poltica dentro do governo revolucionrio.
605INFANTE, Guillermo C. Mea Cuba. Traduo Josely Vianna Baptista. So Paulo: Companhia das Letras,
1996, p. 379.
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Marselhesa, de Delacroix, que pintura de barricadas. Os exemplos
poderiam multiplicar-se na pintura, na msica, na literatura...
totalmente falso que o artista que se compromete politicamente na obra
perde qualidade!606
Apesar das crticas direcionadas ao seu papel dentro do governo, o fato que
Carpentier exerceu diferentes funes entre 1960 e 1980, ano de seu falecimento. Entre os
cargos mais significativos esteve frente da direo executiva do Editorial Nacional, rgo
mximo de regulamentao das normas para publicaes na ilha, alm de dirigir um
programa cultural para o Radio Habana em 1964. Em seguida foi eleito deputado na
Assembleia Nacional do Poder Popular de Cuba, cargo em que tambm recebeu duras
crticas, especialmente pelo fato de passar a maior parte do tempo em viagens no exterior,
o que no estaria de acordo com as necessidades impostas pelo ofcio. Por fim, foi
nomeado Ministro Conselheiro da Embaixada de Cuba em Paris, funo que ocupou at
1980.
606CARPENTIER, Alejo. Entrevistas: Alejo Carpentier. Havana: Editorial Letras Cubanas, 1985. Captado em:
http://www.tirodeletra.com.br/entrevistas/AlejoCarpentier. Acesso em: 08 mai. 2015.
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A jornada em solo europeu iniciou-se com alguns percalos um incidente poltico
entre Cuba e Espanha, em 1961, abreviou sua passagem pela pennsula ibrica forando-o a
seguir para Paris, onde residiu por algum tempo na Casa Cuba da Cidade Universitria.
Durante aquele mesmo ano, os bolsistas cubanos foram convocados pelo governo para o
retorno ilha; Sarduy, por sua vez, contrariando o chamado, decidiu permanecer em Paris,
pedindo prorrogao da bolsa para que conclusse os estudos. O resultado foi pior do que
imaginara: alm de no obter resposta das autoridades cubanas, passou lista dos
traidores contrarrevolucionrios. Permaneceu ento exilado em Paris, mas, inquieto,
realizou uma srie de viagens posteriores por diversos pases Alemanha, Sucia,
Inglaterra, Itlia, Grcia, Indonsia, Ceilo (atual Sri Lanka), fizeram parte de seu roteiro,
mas foi a estada na ndia que lhe causou particular transformao, servindo de inspirao
para seus futuros romances Cobra (1972) e Maitreya (1978). Sobre suas primeiras impresses
na ndia ele escrevia aos familiares:
Todo es fabuloso, desde el paisaje y la gente hasta los dioses.
Todo es bello, literario. Los colores tienen un brillo nico, los perfumes,
las flores y los pjaros son magnficos. Estoy escribiendo un diario que
publicar al final de Cobra, el diario indio, de modo que ya vern los
detalles.607
607 Trecho de carta datada de fevereiro de 1971, direcionada a sua famlia, presente na pgina da Severo Sarduy
Cultural Foundation. Captado em: http://www.severo-sarduy-foundation.com/vida. Acesso em: 08 mai. 2015.
608 MACHOVER, Jacobo. La Memoria frente al poder. Escritores cubano del exilio: Guillermo Cabrera Infante, Severo
Os resultados desse embate foram muito claros: ainda que gozasse de prestgio e
apoio da imprensa internacional, em Cuba seus livros no tiveram a mesma aceitao por
parte da imprensa oficial. Ao no compactuar com o regime, Sarduy assinalava um
caminho sem volta, ele foi alijado o direito de retorno terra natal, o que o fez abrir as
portas para um cosmopolitismo tanto real quanto literrio, mas el cosmopolitismo
proclamado es a veces slo uma fachada para ocultar el exilio, sufrido bajo cualquier
latitud.613
Ao entrar em contato com a trajetria dos dois intelectuais seria simples supor que,
por conta da atitude de cada um em relao ao contexto poltico (aproximao e
afastamento do regime de Fidel Castro), eles tambm estivessem distantes entre si
intelectualmente. Todavia, como adiantado no incio do texto, o fato de terem seguido por
vias polticas distintas aps a Revoluo no impediu que ambos estivessem, de certa
forma, conectados pela necessidade em demarcar uma identidade, ou identidades, na
Amrica Latina. A preocupao com um contexto mais amplo, expresso no debate/embate
Sarduy testa os limites de cada palavra apelando para os sentidos. Abarca o ttil, o
visual, o sonoro, o odorfero, etc. de forma que o leitor convidado a sentir a tenso, a
participar da cena:
Carpentier, por sua vez, busca nos valores estticos do barroco no a exaltao da
forma sobre o contedo, mas da forma para o contedo. O barroco para ele atravessa o
caminho de uma legibilidade esttica para uma legitimao na natureza e na histria.621
Em suma, sua escrita barroca (o barroquismo, como ele definiu) caracteriza-se por uma
proliferao descritiva que objetiva atravs da multiplicao de adjetivos acessar o indizvel.
Ou ainda, atravs do artifcio, da imitao, ele acredita ser possvel acessar um certo tipo de
realidade, uma realidade americana sumariamente barroca.
Por fim, e diretamente conectado a esse ltimo tpico, uma caracterstica comum
tanto a Carpentier, quanto a Sarduy, foi o constante uso da polifonia. Em suas obras
possvel perceber a multiplicidade de vozes que partem das periferias do mundo para
assumirem o protagonismo de histrias que se relacionam diretamente com o universo
complexo e heterogneo de seus autores. Tais vozes atestam no s a capacidade inventiva
de ambos, mas reproduzem ambientes, modos de pensar e agir, costumes e estratgias
variadas. Ao dar voz a esses personagens, revelando as tenses existentes no jogo, cada um
expressou, ao seu modo, um olhar distinto sobre a sociedade, carregados de suas
respectivas vises de mundo.
Concluso:
623CARPENTIER, Alejo. Os Passos Perdidos. Traduo Marcelo Tpia. So Paulo: Martins Fontes, 2009, p.
179.
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Dominick LaCapra),624 suas estratgias, modos de pensar e agir; e ao estabelecer ao mesmo
tempo uma relao com a produo cultural de ambos, espero ter lanado uma luz inicial
ao problema. Longe de esgotar as possibilidades, prefiro entend-lo como um ponto de
partida, cujo mrito reside em reconhecer e apresentar a complexidade que o tema carrega
consigo.
624 LACAPRA, Dominick. Repensar la historia intelectual y leer textos. In: PALTI, Elas Jos. Giro lingustico e
histria intelectual. Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes, s/d.
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Um fator de degenerao racial: a sfilis sob a
perspectiva mdica-eugenista
Priscila Bermudes Peixoto
Mestranda em Histria e Cultura Social
Faculdade de Cincias Humanas e Sociais UNESP
[email protected]
RESUMO: Este trabalho foi elaborado como parte de uma pesquisa mais ampla que vem
sendo desenvolvida sob o ttulo de: O exame mdico pr-nupcial como proposta
eugnica. Rio de Janeiro (1910-1945). Perseguindo o objetivo de compreender o
desenvolvimento da eugenia no Brasil e sua relao com a medicina, observamos que esta
teoria vinculou-se a outros discursos em voga no perodo como o sanitarismo e o
higienismo. Nota-se que no Brasil esta cincia foi interpretada de forma peculiar e adaptada
de sua verso original. Assim, a eugenia brasileira era bastante singular e relacionou a noo
de raa de sade, cultura e educao. Por este motivo considerava doenas como a sfilis,
a tuberculose e o alcoolismo como fatores degenerativos que comprometiam no apenas os
enfermos, mas tambm toda a sua descendncia.
PALAVRAS-CHAVE: Sfilis; Eugenia; Medicina.
625SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetculo das raas. Cientistas, instituies e questo racial no Brasil do sculo XIX.
So Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 28.
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assim, a teoria do branqueamento seria uma colocada como uma possvel soluo ao
problema racial do pas.626
Pouco mais tarde, no incio do sculo XX, passavam a ser difundidas no Brasil
ideias de cunho eugnico. A eugenia surgida com Francis Galton em 1883 pode ser
definida como um conjunto de ideias ou prticas627 que tinham como princpio a
obteno de geraes sadias atravs do aprimoramento da raa. O prprio termo, de
origem grega, j justifica a ideia: eu (boa); genus (gerao).628 Trata-se, portanto de uma
seleo consciente para o progresso fsico e moral, ideias estas fundamentadas em Darwin,
que por sua vez levariam ao engrandecimento da nao. Esta cincia, segundo Boarini,
estimulava os nascimentos desejveis e condenava a unio e procriao dos supostamente
tarados e degenerados que seriam, nesta concepo, nocivos sociedade.
626 ANDREWS, 1998, p. 18 apud HOFBAUER, Andreas. Uma histria do branqueamento ou o negro em questo.
So Paulo: Editora Unesp, 2006. p. 20.
627 MACIEL, Maria Eunice de S. A eugenia no Brasil. Anos 90, v. 7, n. 11, 1999. p. 121.
628 BOARINI, Maria Lucia. Higiene e Raa como projetos: Higienismo e Eugenismo no Brasil. Maring: Eduem, 2003.
p. 28.
629 DIWAN, Pietra. Raa Pura; uma histria da eugenia no Brasil e no mundo. So Paulo: Contexto, 2007. p. 31.
630 DVILA, Jrry. Diploma de brancura: poltica social e racial no Brasil: 1917-1945. So Paulo: Ed. da UNESP,
2006. p. 58.
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Quando um homem se alcooliza, fuma pio, se embebeda com ether, se
intoxica pela cocana, quando se expe voluntariamente syphilis, no
commette apenas um attentado contra a sua prpria pessoa, contra a sua
vida; mas prepara um a hereditariedade lamentvel de degneerados[sic],
de desequilibrados, de tarados, de criminosos. 631
A sfilis, segundo Srgio Carrara, era encarada como fruto de um exerccio sexual
633
imoderado simbolizava aquilo que os maus hbitos de conduta ocasionavam, sendo
assim os mdicos, tanto do movimento eugenista como do higienista, iro refletir sobre de
tratamento e cura desta enfermidade, mas tambm em medidas profilticas e saneadoras da
doena. Acreditava-se que a sfilis, devido multiplicidade de leses que provocava,
acarretava uma srie de outros problemas sade que muitas vezes levavam a morte, como
por exemplo, angina de peito e afeces das artrias, tuberculose, cncer da cavidade
bucal,634 por estes e tantos outros motivos a sfilis era um fator de grande preocupao
nesse perodo para os mdicos,635 pois alm de um problema propriamente de sade
pblica, ainda do ponto de vista eugnico, gerava preocupaes futuras em relao raa e
ao progresso da nao. Logo, era amplamente debatida e as propagandas de preveno e
alerta de perigo sobre a doena eram frequentes nos peridicos, alm das diversas
propagandas de medicamentos que prometiam sua cura.
631 GODOY, Paulo de. O exame medico pre-nupcial. Revista de Medicina, So Paulo, v. 12, n. 49, p. 518-528,
1927. p. 518.
632 GODOY, Paulo de. Pontos de Vista. Revista de Medicina, So Paulo, v. 008, n. 040, 1926. p. 3.
633 CARRARA, Srgio. Tributo a vnus: a luta contra a sfilis no Brasil, da passagem do sculo aos anos 40. Rio de
ocasionava outras enfermidades: [...] verdadeira caixa de Pandora, a sfilis podia produzir quase todas as
doenas e, ao atacar o sistema nervoso, dar origem loucura, s perverses sexuais, ao crime e imoralidade
(CARRARA, 1996, p. 42)
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A sfilis pensada ento como uma enfermidade prpria do desregramento sexual e
636
da imoralidade, intensificou o terror que envolvia as atividades sexuais . Diante deste
cenrio, o movimento eugenista passou em seus discursos a defender tambm a castidade
antes do casamento e fidelidade conjugal como medidas saneadoras e eugnicas
sociedade. Contudo, muitos mdicos tambm defendiam que deveriam ser divulgadas
noes educao sexual inclusive aos jovens, homens e mulheres, como uma medida
preventiva destes males venreos. 637 Segundo o mdico Prof. Dr. Celestino Bourroul638:
636 DANTAS, Bruna Suruagy do Amaral. Sexualidade, cristianismo e poder. Estudos e Pesquisas em Psicologia, v.
10, n. 3, p. 700-728, 2010. p. 518.
637 Em 5 de julho de 1933 ocorria a fundao do Crculo Brasileiro de Educao Sexual (CBES) no Rio de
num. 8. p. 12-3.
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Por este motivo, sobretudo a partir do final do sculo XIX,640 a sfilis foi encarada como
um fator de degenerao racial uma vez que impactava em toda a prole e
consequentemente do ponto de vista eugenico afetava inclusive o progresso nacional: uma
gerao fraca e doente representava um retrocesso para o aprimoramento racial e para o
avano da nao.641 Sobre a sfilis, afirma o Dr. Celestino Bourroul: este terrvel mal todas
as feies, mascara muitas molstias, insinua-se pelo seu contagio fcil em todos os meios,
estigmatisa geraes e geraes, lesa todos os rgos, degenera raas, emfim a grande
avaria. 642.
Alm disso, a sfilis era responsabilizada pela maioria dos casos de abortos, boa
parte dos casos de mortinatalidade e por 80% dos casos de debilidade congnita. 643
Conforme afirma o mdico Luciano de Mello Baptista em sua tese apresentada Faculdade
de Medicina do Rio de Janeiro em de novembro de 1926: A grande quantidade de abortos,
de nati-mortos, inviabilidade do produto de concepo, crianas disformes, idiotas,
paralyticas, cgas, correm, em grande parte por conta da syphilis.644.
Deste modo, neste trabalho inicial procuramos demonstrar que, sobretudo a partir
do final do sculo XIX, conforme atesta Carrara (1996), a sfilis adquiri uma nova
percepo mdica, pois em consonncia aos demais discursos da poca darwinismo,
646
REVEL, Jacques. Micro-histria e construo do social. In: Jacques Revel (Org). Jogos de escalas: a experincia
da microanlise. Trad. Dora Rocha. Rio de Janeiro: FGV, 1998. p.20.
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Sendo assim, o efeito de conhecimento pretendido pelo uso da microescala a construo
de uma modulao particular647 desse processo social, focada nas aes dos professores.
No entanto, seria inadequado imaginar que essas aes foram orientadas apenas
pela vontade livre dos prprios sujeitos, que no haveria nenhuma fora externa ao
indivduo que limitasse suas possibilidades ou impusesse certos padres de
comportamento. Buscou-se na historiografia, outros estudos que centraram o foco na ao
do indivduo, contudo, sem omitir a fora dos contextos socioculturais aos quais o sujeito
se insere.
647
___________. Micro-histria e construo do social, p.28.
648 LEVI, Giovanni. Sobre a micro-histria. In: BURKE, Peter. A escrita da histria Novas Perspectivas. Trad.
Magda Lopes. So Paulo: Editora UNESP, 2011. p.137.
649 _____________. Sobre a micro-histria, p.137.
Tais documentos indicam que o Clrigo in minoribus Joo Pedro de Almeida recebeu
a proviso por ordem da Real Mesa Censria para atuar como Mestre de Ler, Escrever e
Contar, no ano de 1780 e teria permanecido no cargo at 1801, ano em que faleceu.
650 GINZBURG, Carlo; PONI, Carlo. O nome e o como: troca desigual e o mercado historiogrfico. In:
GINZBURG, Carlo; CASTELNUOVO, Enrico; PONI, Carlo; A micro-histria e outros ensaios. Trad. Antnio
Narino. Lisboa-Rio de Janeiro: DIFEL-Editora Bertrand Brasil, p.169-178, 1989.
651
______________. O nome e o como: troca desigual e o mercado historiogrfico, p.175.
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Durante esse tempo, foi transferido do aldeamento do Cuiet para o do Peanha,
localidade na qual, no ano de 1803, Manoel de Arajo Novais tomou posse do ofcio de
Professor de Primeiras Letras.652
O atraso pode ser confirmado por meio do cruzamento das informaes dessas
Folhas de Professores com outros dois documentos avulsos encontrados tambm na Casa
dos Contos. Trata-se da Relao dos professores que findaram e da Relao dos
professores rgios existentes, duas listas onde constam nomes dos professores, divididos
pelas comarcas da Capitania, as cadeiras de aula que ocupam ou ocuparam e a data do
ltimo pagamento do ordenado realizado.654 No se sabe a data exata de escrita desse
documento, porm pode-se inferir que o trmino de sua elaborao se deu aps o ms de
junho de 1808, data mais recente do registro de pagamento realizado a um professor da
cadeira de gramtica da comarca de Vila Rica. O nome de Joo Pedro de Almeida consta na
lista dos professores que findaram, ou seja, professores que, por algum motivo, no
estariam mais atuando, seguido do registro de que seu ltimo ordenado pago teria sido no
ms de junho de 1794. O nome de Manoel de Araujo Novais tambm consta na lista dos
652 Estudiosos do processo de implantao das Aulas Rgias no reino e nos domnios ultramarinos no
construram um consenso acerca da existncia de possveis distines entre os ttulos de Mestre e
Professor. Sobre a discusso, cf. FONSECA, Thais Nivia de Lima. O ensino rgio na Capitania de Minas Gerais
1772-1814. Belo Horizonte: Autntica Editora, 2010, p.21-22. As pesquisas dessa autora indicam que na
Capitania de Minas Gerais a atribuio desses ttulos no parece ter representado distines no tipo de
atuao ou de status social, por isso utilizaremos ao longo do texto apenas o termo professor.
Dar-se- maior ateno aos dados sobre a trajetria de Joo Pedro de Almeida, posto que, at o momento da
escrita do artigo, foi encontrada apenas uma nica Folha de Pagamento de Manoel de Arajo Novaes.
653 Trata-se dos anos de 1781, 1783, 1789, 1795, 1796, 1797, 1798, 1801 e 1803.
654
Cf. no APM documento com a seguinte notao: CC-Cx.78-Pl.20091.
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professores rgios existentes seguido da informao de que ltimo pagamento teria sido
efetuado em maro de 1803.
A historiadora Thais Nivia de Lima e Fonseca, autora de dois livros que abordam,
entre outros assuntos, o processo de implantao das Aulas Rgias na Capitania de Minas
Gerais, aponta que o pagamento dos ordenados dos professores um dos temas de maior
relevo na historiografia acerca do assunto.655 Comumente, as aulas eram atestadas pelas
Cmaras ou autoridades eclesisticas mais prximas para que a Real Fazenda efetivasse o
pagamento do ordenado dos professores e, no ano de 1792, D. Maria I enviou ordens ao
governador da Capitania condicionando o pagamento apresentao dessas atestaes. 656
No caso dos professores atuantes nos sertes, h que se investigar se seus atestados teriam
sido elaborados pelas autoridades seculares e/ou eclesisticas dos aldeamentos, ou ainda
pelas Cmaras das Vilas s quais essas localidades estavam vinculadas. 657 A busca pelo
nome de Joo Pedro de Almeida e de Manoel de Arajo Novais nesses documentos pode
fornecer dados que completam as lacunas deixadas pelas Folhas de Pagamento, mas
tambm permitir visualizar indcios das relaes que os professores estabeleceram com
algumas autoridades coloniais e as formas como estas construram representaes acerca
do trabalho e do comportamento daqueles. Isso porque
655 FONSECA, Thais Nivia de Lima. O ensino rgio na Capitania de Minas Gerais 1772-1814, p.50.
Cf. FONSECA, Thais Nivia de Lima. Letras, ofcios e bons costumes: civilidade, ordem e sociabilidades na
Amrica portuguesa. Belo Horizonte: Autntica, 2009.
656 Cf. no APM documento com a seguinte notao: CC-Cx.10-Pl.10219
657 O aldeamento do Cuiet se localizava no termo de Vila Rica, j o aldeamento do Peanha no termo da Vila
do Prncipe.
658 _____________. O ensino rgio na Capitania de Minas Gerais 1772-1814, p.59.
659 Cf. no APM documento com a seguinte notao: SG-Cx.22-Doc.21.
660 Cf. no APM documento com a seguinte notao: CC-1758, rolo 122, f.41.
661 FONSECA, Thais Nivia de Lima. O ensino rgio na Capitania de Minas Gerais 1772-1814, p.55.
662 Cf. no acervo digital do Projeto Resgate disponibilizado pelo APM documento com a seguinte notao:
AHU-MG-Cx:112, Doc: 67
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No Fundo do Conselho Ultramarino do Arquivo Histrico Ultramarino, em
Portugal, catalogados pela mesma notao e intitulados como Requerimento de Joo Pedro de
Almeida, pedindo o emprego de mestre dos ndios do Suau Pequeno, assim como a construo de uma
capela para o batismo dos mesmos, esto a cpia da petio e outros documentos que indicam a
forma e o trnsito administrativo por que tramitou o pedido de Joo Pedro de Almeida, na
Capitania de Minas Gerais e no Reino. No se sabe a data exata da escrita da petio,
porm as atestaes assinadas por Paulo Mendes Ferreira Campelo, Diretor dos ndios da
Conquista do Cuiet, e Domingos da Silva Xavier, Vigrio da Freguesia da mesma
localidade, so datadas de 1775, trs anos antes de ser copiada em Lisboa por um Tabelio
da Coroa. Os outros documentos devem ter sido escritos por conselheiros que acatam
vrios dos argumentos de Joo Pedro como sendo favorveis ao atendimento de sua
solicitao. Segundo esses textos, havia cerca de 4 anos antes, que o professor atuava na
aldeia, ensinando os ndios a ler e escrever com o objetivo de ensin-los a doutrina crist e
j havia requerido, ao Tribunal da Junta de Vila Rica, o ordenado de Mestre de ndios,
alegando ser pago tambm ao professor do aldeamento do rio Pomba, bem como aos de
outras localidades, tudo s custas do Subsdio Literrio. Os documentos tambm indicam
que Joo Pedro de Almeida esteve no Reino para angariar apoio e demonstrar o grande
interesse que tinha pelo deferimento de sua petio. Em um deles, afirma-se que a
diligncia do Suplicante uma prova do seu zelo: que s por adiantar a utilidade espiritual
dos ndios, se sujeitou pela sua pobreza, a vir de obrigao no Galeo Nossa Senhora da
663
Glria e Santana, e a viver nesta corte da Divina Providncia. Essa afirmao sugere o
grau de abnegao e desprendimento do Professor que, a despeito de estar requerendo o
pagamento de salrio, via o seu magistrio junto aos ndios enquanto uma misso, de
carter quase religioso, que permitia a transmisso da palavra de Deus. dessa forma que
Joo Pedro de Almeida construa a imagem sobre si mesmo junto s autoridades
responsveis por sua nomeao.
Tal requerimento tambm fornece indcios acerca das relaes que Joo Pedro de
Almeida estabeleceu com as estruturas da administrao portuguesa civil e eclesistica no
reino e na colnia. As autoridades do aldeamento, do Tribunal da Junta em Vila Rica e dos
Conselhos da Coroa em Portugal so representantes dos sistemas normativos e prescritivos
da administrao do Imprio portugus, nesse sentido, a investigao sobre as relaes que
Pretendeu-se com esse artigo apresentar a forma como a trajetria de Joo Pedro de
Almeida e Manoel de Arajo Novaes pode ser reconstituda pelo mtodo onomstico de
pesquisa documental. Apropria-se da reflexo do socilogo Pierre Bourdieu, acerca da
funcionalidade do nome prprio como mecanismo social de criao de uma constncia
nominal do indivduo, independente dos contextos socioculturais onde atua.666
importante apontar que a pesquisa aproveita justamente desse efeito de constncia para
encontrar, por meio dos nomes desses professores, rastros documentais que fornecem
indcios das relaes, posies e aes desses sujeitos ao longo de suas trajetrias. A
diversidade de arquivos e de tipologias das fontes a serem utilizadas evidenciam a tentativa
de se apreender parte possvel da diversidade que compe a identidade desses sujeitos que a
constncia nominal tende a omitir. Joo Pedro de Almeida no foi apenas um professor
rgio, era um professor que atuava em aldeamentos, tinha ttulo de clrigo in minoribus,
possua um irmo militar e passagens pelo Reino e todos esses dados extrados da
665 LANGFUR, H., 2011. reas proibidas e hierarquias contestadas: resistncia indgena incorporao
colonial na mata atlntica setecentista. In: Razes do privilgio: mobilidade sociail no mundo ibrico do Antigo
Regime. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira. p.594.
666 BOURDIEU, Pierre. A iluso biogrfica. In: AMADO, Janana; FERREIRA, Marieta de Moraes (Org.).
Usos e abusos da histria oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1996, p.183-191.
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documentao compem (...) um conjunto de atributos e atribuies que lhe permitem
intervir como agente eficiente em diferentes campos.667
O alerta dado pelo socilogo acerca dos riscos da iluso retrica da biografia, que
tende a ordenar os acontecimentos da vida dos biografados em uma sequncia linear e
dirigida por uma finalidade nica, deve servir de orientao permanente durante a pesquisa
e a escrita da dissertao final. Os indcios da trajetria em trnsito de Joo Pedro de
Almeida evidenciam a sua condio de um agente sujeito a incessantes transformaes (no
se pode negar que suas experincias durante a formao eclesistica e a atuao em meio
aos ndios promoveram mudanas em sua prpria identidade) e reformulaes em suas
intenes e estratgias. Destarte, o padre e professor (...) um sujeito cuja constncia
certamente no seno aquela de um nome prprio.668
667 ___________.
A iluso biogrfica, p.190.
668
___________. A iluso biogrfica, p.189.
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Introduzindo documentao manuscrita nas aulas
de Histria Ensino bsico
Gabriel Afonso Vieira Chagas
Ensino superior completo em Histria (Licenciatura)
Universidade Federal de Minas Gerais
[email protected]
O projeto Oficina vai Escola era um desejo muito anterior ao segundo semestre
de 2014, quando de fato teve incio. A atividade se concretizou graas parceria do Colgio
Dom Pedro II com o coordenador da Oficina, Gabriel Chagas, que na ocasio fazia estgio
docente supervisionado na instituio. Gabriel viu no professor de Histria, Fernando
Rosa, ex-aluno da FAFICH - UFMG, um parceiro em potencial para que a Oficina de
Paleografia UFMG sasse do espao puramente acadmico da Universidade, disseminando
a tcnica de leitura de manuscritos dos sculos XVIII e XIX entre alunos e alunas do
Ensino Mdio.
O minicurso foi desenvolvido ao longo de trs dias, com durao total de 6h/aulas
distribudas igualmente: dias 7, 8 e 9 de outubro de 2014, sempre das 13h s 15h. O
professor e o estagirio fizeram a divulgao do projeto e uma lista de inscrio, que
ultrapassou oitenta inscritos. Os coordenadores separaram a documentao a ser
trabalhada, tendo em vista a introduo gradativa de caligrafia, da mais simples mais
complexa. O contedo dos documentos tambm foi considerado; priorizou-se
documentao referentes s Minas colonial, abordando o cotidiano e a escravido. Esta foi
uma estratgia para manter o contedo trabalhado durante o minicurso em paralelo quele
visto em sala de aula anteriormente pelos alunos juntamente ao professor. Parte dos
documentos utilizados fora j publicada na Revista de Histria da Biblioteca Nacional, na seo
Decifre se for capaz.
Como os (as) alunos (as) ficaram entusiasmados (as), a equipe viu a necessidade de,
j nesse dia, iniciar a leitura de documento, deixando a atividade mais atrativa. Isso havia
sido proposto no plano de aula, mas no com a durao longa que teve. Esta foi uma
demanda decorrente do interesse dos estudantes durante a aula, o que foi uma surpresa
para todos os coordenadores presentes. Partes do Compromisso da Irmandade de So Miguel de
Prados foram lidas em conjunto, quando projetado na parede. No decorrer da leitura, os
coordenadores explicaram que a gramtica atual no se aplicava ao contexto de produo
do documento, pois os alunos estranharam alguns termos como calidade (qualidade).
Explicaram tambm que muitas palavras apareciam grafadas juntas, porque o instrumento
da escrita (pena) no permitia a retirada constante do mesmo do papel, pois poderia
manchar a pgina. Tambm destacaram que na poca no havia normatizao no que se
refere gramtica e ortografia. Ao trmino de cada pargrafo, um dos coordenadores relia
o texto em voz alta e arguia a turma acerca do contedo, sempre o explicando. Os alunos
ficaram bastante curiosos e fizeram vrias perguntas.
Por sua vez, o terceiro e ltimo encontro foi marcado pela dinmica de grupo
referente s dez atividades previamente selecionada da sesso Decifre se for capaz da
Revista de Histria da Biblioteca Nacional. Os textos tratavam de temas variados e foram
produzidos entre o sculo XVI e XX. Para nossa grata surpresa, havia, nesses dois ltimos
dias, cerca de cinquenta estudantes, tal como no primeiro encontro, significando para os
organizadores da atividade uma excelente maneira de mostrar como os ouvintes ficaram
interessados no minicurso. A dinmica citada contou com a diviso da turma em dez
grupos de cinco alunos (as), tendo sido realizada em uma sala de aula convencional,
proporcionando a organizao necessria para o formato da atividade proposta. A leitura e
a transcrio dos documentos pelos alunos em seus grupos foram feitas a partir de
fotocpias distribudas no incio da aula do dia.
Ao lidar com os documentos, os (as) alunos (as) percebem que cada leitor pode -
dentro de certos limites oferecidos pelo texto e pelos padres de aceitabilidade do discurso
produzido pela comunidade dos historiadores - interpretar a sua maneira aquilo que l.
Percebe-se que as categorias de pensamento so variveis de acordo com a experincia e
intencionalidade do leitor; o modo deste lidar com o documento ou a habilidade de ler
corretamente as palavras escritas no suporte. Todas estas consideraes permitiram que os
alunos percebessem como a histria parte de interpretaes que variam de historiador para
historiador, e que no se pode compreender a disciplina como uma sequncia de fatos que
so fixos e devam ser assim estudados.
Consideraes finais
O projeto Oficina vai Escola uma iniciativa da Oficina de Paleografia - UFMG
que visa aproximar os trabalhos do grupo, tradicionalmente ligados modalidade
bacharelado (pois a habilidade paleogrfica cara ao historiador de arquivo), modalidade
licenciatura. Similarmente, o projeto uma tentativa de tornar os estudantes do Ensino
Bsico mais familiarizados com o fazer historiogrfico e com documentos manuscritos de
outros tempos. Trata-se de uma iniciativa que logrou sucesso considervel nesta primeira
experincia aqui relatada e que pretendemos levar a outras instituies de ensino. Seria
louvvel que outras Oficinas de Paleografia implantassem essa experincia em suas cidades.
669Cf. CUNHA, Luiz Antnio. O ensino de ofcio nos primrdios da industrializao. So Paulo: UNESP; Braslia,
DF: FLACSO, 2005.
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Disposies sobre o sistema de cobrana das taxas pagas pelos estabelecimentos
contribuintes foram publicadas no Decreto-Lei N 6.246, em 5 de fevereiro de 1944, e
tambm na Lei 5.461 de 25 de junho de 1968. Legislaes posteriores vigoraram a fim de
acompanhar o desenvolvimento do ensino do SENAI, que sempre procurou ajustar a
oferta e ementa dos cursos s novas demandas da indstria.670
Em Minas Gerais, a organizao do SENAI se deu a passos largos. A Federao
das Indstrias, presidida por Amrico Ren Giannetti671, em setembro de 1942, ano do
primeiro Decreto-Lei, nomeou como Diretor Regional do SENAI o jovem engenheiro,
Roberto Hermeto Corra da Costa. No ano de 1943, o trabalho foi intenso e marcado pelo
entusiasmo de pessoas como o prefeito de Belo Horizonte, Juscelino Kubitscheck, que em
correspondncia se coloca disposio da nova instituio.
nesse contexto que surge a Escola de Aprendizagem de Belo Horizonte. A
parceria do SENAI MG com a Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG) viabilizou a criao dos dois primeiros cursos noturnos, chamados de
Cursos Rpidos: Leitura e Interpretao de Desenho e Tornearia Mecnica, que
funcionaram nas oficinas Cristiano Ottoni, a partir de abril de 1943.
Entre 112 candidatos dos 137 inscritos, 79 foram considerados aptos para iniciar o
curso de Leitura e Interpretao de Desenho. Deste total, 49 aprendizes recebem
certificados de concluso de curso das mos de Amrico Ren Giannetti, que na ocasio,
em seu discurso, revisou aspectos da criao do SENAI e de sua atuao em Minas Gerais
at aquele momento, dezembro de 1943. Sobre a misso da instituio, destacou:
[O Governo Federal] traou normas e definiu atribuies para que a
prpria indstria, por intermdio de suas entidades de classe
sindicalizadas e desse grande instituto que o Servio Nacional de
Aprendizagem Industrial, possa vencer essa tarefa ingente, difcil e
penosa de dotar o Brasil de um exrcito de centenas de milhares, a
670 Para especificao desses e de outros decretos acerca do SENAI, Cf.: SERVIO NACIONAL DE
APRENDIZAGEM INDUSTRIAL/DEPARTAMENTO REGIONAL DE MINAS GERAIS. Centro de
Formao Profissional Amrico Ren Giannetti: sua vida. Belo Horizonte: SENAI, 1978.
671 Amrico Ren Giannetti nasceu no municpio de Rosrio, Rio Grande do Sul, no dia 20 de abril de 1896.
Faleceu em Belo Horizonte, dia 6 de setembro de 1954. Graduou-se em engenharia, colaborando com a
elaborao do Plano Rodovirio de Minas Gerais. No meio empresarial, atuou na Usina de Rio Acima, criada
por seu pai. Organizou as empresas: Fbrica de Papel Cruzeiro S.A., Cermica Santo Antnio, Eletro-
Qumica Brasileira S.A., Imobiliria Mineira e a Cia. Mineira de Estradas e Construes. Destacou-se no ramo
industrial pela implantao da indstria do alumnio no Brasil. A fbrica de alumnio metlico instalada em
Saramenha, municpio de Ouro Preto, no incio da dcada de 40, foi a primeira do gnero em toda Amrica
Latina. Presidiu da Federao das Indstrias do Estado de Minas Gerais FIEMG, no perodo de 1939-1947.
Como Secretrio da CNI Confederao Nacional da Indstria, participou efetivamente da criao do
SENAI (1942) e do SESI (1946). Sob seu comando foi instalado o SENAI em Minas Gerais e a primeira
Escola de Aprendizagem de Belo Horizonte. Ocupou cargos de vereador (Nova Lima e Belo Horizonte),
secretrio da Agricultura, Indstria, Comrcio e Trabalho no Governo Milton Campos (1941-1951), e se
elegeu prefeito de Belo Horizonte (1951-1954).
formatura da primeira turma do SENAI em Minas Gerais. Pasta Educao/Formatura. fl. 3. Datilografado.
674 Reconhecidas atualmente como: Centro de Formao Profissional Jos Fagundes Netto (Juiz de Fora);
Centro de Formao Profissional Afonso Greco (Nova Lima); Centro de Formao Profissional Michel
Michels (Sabar).
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foram sendo direcionados s novas Unidades instaladas nas comunidades de maior
concentrao operria.
O pioneirismo no SENAI tambm se deu com a adoo de inovaes nos mtodos
de ensino.675 As Sries Metdicas revolucionaram o ensino profissional, tornando-o
dinmico e eficiente e os Cursos Vocacionais, criados por determinao de Euvaldo
Lodi676, preparavam os jovens para a escolha de um ofcio. A educao fsica e os jogos
esportivos integravam a educao profissional no intuito de promover o desenvolvimento
integral do aluno.
Em 1958, como homenagem ao empresrio que teve a sua vida intimamente ligada
criao e instalao do SENAI em Minas Gerais, a Escola de Aprendizagem de Belo
Horizonte passou a se chamar Escola SENAI Amrico Ren Giannetti. Na dcada de
1970, recebeu o nome Centro de Formao Profissional Amrico Ren Giannetti.
H 70 anos, esta Unidade capacita mo de obra para indstria mineira. Para
comemorar o aniversrio da primeira Escola SENAI do estado de Minas Gerais,
reconhecidamente uma das primeiras em todo o Brasil, o Centro de Memria do Sistema
FIEMG realizou, em seu acervo, pesquisa histrica para elaborao da exposio Aqui
nasceu o SENAI de Minas Gerais: um olhar histrico, produzida em parceria com Galeria
de Arte SESIMINAS no segundo semestre de 2014.
A exposio apresenta as primeiras aes do SENAI em Minas Gerais atravs de
documentos oficiais e fotografias da poca. A mostra foi realizada em decorrncia das
solenidades de comemorao dos 70 anos da Escola de Aprendizagem em Belo Horizonte.
Na ocasio, recebeu a visita da atual diretoria do Sistema FIEMG e, em especial, dos
membros do Conselho Regional do SENAI, alunos e funcionrios da Unidade.
Atualmente, segue para outros pblicos, uma vez que a mesma conta com um calendrio
anual de itinerncia. No primeiro semestre de 2015, j foi montada em quatro lugares
distintos, a saber: na sede do Sistema FIEMG, localizada na Avenida Contorno em Belo
Horizonte; no Centro de Excelncia em Tecnologia e Manufatura Maria Madalena
675Cf. KALIL, Nagib L. O SENAI e sua metodologia de ensino. Rio de Janeiro: SENAI/DN/DRH, 1977.
676 Nasceu em Ouro Preto, no dia 9 de maro de 1896. Filho de imigrantes italianos que em 1898 fixariam
moradia em Belo Horizonte, formou-se engenheiro civil e de minas na Escola de Minas e Metalurgia de Ouro
Preto. Dedicou-se a construo de estradas e servios de explorao de minas de ferro e de carvo. Instalou
altos-fornos e dirigiu a Cia. Ferro Brasileiro e a Cia. Industrial de Ferro. Presidiu a Cia. Carbonfera
Metropolitana, a Fbrica de Tecidos de Seda Santa Helena e a Rheem Metalrgica. Na sua vida pblica
participou intensamente da organizao de entidades sindicais representantes do patronato industrial. Elegeu-
se deputado Constituinte (1933-34), se evidenciando como o relator das questes de ordem econmica e
social. Suas atividades polticas se sucederam at seu falecimento, em 1956. Foi, entretanto, como presidente
da Confederao Nacional da Indstria (1935-54) que pode influir, decisivamente, nos rumos da produo
nacional, visando sempre prosperidade do Brasil. Fundador do SENAI (1942) e do SESI (1946), Euvaldo
Lodi sempre debatia a necessidade de uma ampla cruzada em fazer o bem em favor das classes
trabalhadoras. A sua liderana no setor industrial foi homenageada com a indicao do seu nome para
patrono da entidade criada pela Confederao Nacional da Indstria em 1969, o Instituto Euvaldo Lodi
(IEL), destinado a promover a integrao da indstria com a universidade.
677O Centro de Memria do Sistema FIEMG integra as dependncias do Centro de Cultura Nansen Araujo.
Fica localizado no seguinte endereo: Rua lvares Maciel, nmero 59, bairro Santa Efignia Belo
Horizonte, MG. Telefone de contato: (31) 3241-7137.
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O futebol como tema histrico na Educao de
Jovens e Adultos
Meiriele Cruz
Licenciada em Histria
Universidade Federal de Minas Gerais
[email protected]
RESUMO: Este trabalho tem por objetivo abordar o futebol como tema histrico na
Educao de Jovens e Adultos a partir da contextualizao e da problematizao da
trajetria desta prtica esportiva no Brasil. As reflexes so orientadas pela relao
estabelecida entre o futebol e os conceitos de identidade, trabalho e lazer, buscando
favorecer a aproximao entre os contextos de popularizao desse esporte no Brasil e a
realidade dos alunos do Projeto de Ensino Fundamental 2 Segmento do Centro
Pedaggico da UFMG (PROEF2 CP/UFMG). A escolha do futebol como tema
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norteador de questes histricas mais amplas se deve ao fato dessa prtica esportiva ser
amplamente difundida no Brasil visto que o futebol se tornou um elemento valorizado da
cultura brasileira e permitir a discusso de contedos prprios da Histria atravs de um
tema que faz parte do cotidiano da maioria dos alunos.
Introduo
Este texto objetiva relatar a experincia pedaggica de estudo do tema Futebol
para educandos da Educao de Jovens e Adultos por meio de um projeto de ensino
envolvendo professores de Histria. Os estudantes envolvidos foram os educandos do
Projeto de Ensino Fundamental de Educao de Jovens e Adultos 2 segmento
(PROEF-2). Tal projeto, que envolve atividades de ensino, pesquisa e extenso, funciona
no turno noturno do Centro Pedaggico da UFMG e integra o Programa de Educao
Bsica de Jovens e Adultos da mesma universidade.
O Projeto de estudo o Futebol como tema histrico foi planejado e desenvolvido
por 4 monitores de graduao em Histria pela UFMG que atuam como professores no
PROEF-2, sendo orientados pela professora do Centro Pedaggico que coordena a rea de
Histria do PROEF-2.
Esse projeto se iniciou em junho de 2014 e foi concludo em dezembro do mesmo
ano. Seu desenvolvimento possibilitou a problematizao do tema Futebol sob diferentes
perspectivas, objetivando desnaturalizar a disseminao dessa prtica esportiva no Brasil.
Na organizao curricular do PROEF-2 est previsto que cada ano do curso do 2
segmento do Ensino Fundamental desenvolva projetos de ensino relacionados a
determinadas temticas: as turmas iniciantes trabalham com o tema Identidade, as de
continuidade trabalham com o tema Sociedade e consumo e as turmas concluintes
trabalham com o tema Vidas Urbanas. Buscando atender a esses temas gerais, a equipe
de Histria optou por trabalhar o tema Futebol relacionando-o com esses temas mais
gerais.678
Partindo do princpio que a trajetria do futebol no Brasil constitui um patrimnio
coletivo dos brasileiros ao longo dos anos, o futebol deixou de ser uma prtica esportiva
destinada ao entretenimento, ao lazer, e transformou-se em algo que identifica o pas, que
incentiva a coeso nacional, o nacionalismo. Embora no seja uma inveno brasileira, tal
prtica esportiva encontrou em solo tupiniquim um ambiente frutfero para desenvolver-se.
678 As turmas Iniciantes se referem ao 6 ano do ensino fundamental, as turmas de Continuidade ao 7 ano e
as turmas Concluintes ao 8 e 9 ano do Ensino fundamental.
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Disseminou-se pelas cidades, seduziu e seduz milhares de jovens e adultos ao ponto de
nosso pas ter recebido a alcunha de o pas do futebol, a casa de tal esporte.679
Um dos brinquedos favoritos dos brasileiros a bola. Os campos de futebol esto
espalhados pelo pas. Esse esporte tornou-se tanto um dos passatempos mais difundidos
no cotidiano dos brasileiros como tambm um meio de ascenso social, um campo
profissional valorizado social e economicamente.680
Entretanto, o processo de difuso dessa prtica esportiva no pas foi apropriado e
incentivado por diversos grupos sociais e principalmente por grupos polticos. Tais grupos
perceberam que o futebol e o apelo que essa prtica tinha com os brasileiros poderiam ser
utilizados como meio de difuso de ideais para a sociedade. Melhor dizendo, a difuso do
futebol no foi uma prtica espontnea, neutra. O Brasil se tornou o pas do futebol por
meio da ao de grupos polticos que utilizaram essa prtica esportiva como projeto
poltico. Esses propsitos polticos e econmicos embutidos no esporte nem sempre so
percebidos pela sociedade brasileira.
Por tudo o exposto, a ligao entre futebol e Histria vai muito alm de se estudar
apenas a trajetria da adoo desse esporte no pas. Ao utilizar essa prtica esportiva e sua
trajetria como tema histrico, poder-se-ia compreender os contextos nos quais ocorreram
a difuso desse esporte e tambm os interesses que motivaram e motivam a valorizao do
futebol, sem perder de vista as transformaes que ocorreram na sociedade ao longo desse
perodo e que influram nessa prtica esportiva.
Portanto, esse projeto teve por objetivo utilizar o futebol e sua trajetria como
temas da Histria. Para tanto, investigou-se a trajetria do futebol atravs da comparao e
relao da mesma com trs conceitos, os quais so: Identidade, trabalho e lazer. Por
entendermos que o Futebol alm de integrar a cultura brasileira uma opo de lazer, de
trabalho e um elemento de coeso nacional.
Nosso principal referencial terico foram as obras de Eric Hobsbawm dentre as
quais destacamos: A inveno das Tradies ,1984681, escrita em colaborao com Terence
Ranger; A Era dos Extremos; e Naes e nacionalismo. No decorrer de tais textos, Hobsbawm
identificou o futebol como uma entre muitas formas de expresso e smbolo da
679A referncia central para a discusso da popularizao do Futebol no Brasil foi FRANZINI, Fbio.
Coraes na ponta da chuteira: captulos iniciais da histria do futebol brasileiro (1919-1938). Rio de Janeiro:
DP&M Editora, 2003.
680Para discutir o processo de popularizao e difuso do futebol no Brasil e em Belo Horizonte utilizamos:
RIBEIRO, Raphael Rajo. A Bola em Meio a Ruas Alinhadas e uma Poeira Infernal: Os primeiros anos do
futebol em Belo Horizonte (1904-1921). Belo Horizonte: UFMG, 2007(Dissertao, Mestrado em Histria);
SILVA, Eliazar Joo da. De esporte das Elites ao esporte popular: a trajetria do Futebol no Brasil.
681HOBSBAWM, Eric. Introduo. In.: HOBSBAWM, Eric, RANGER, Terence. A Inveno das tradies.
Rio de Janeiro, PAZ e Terra, 1984, p-23.
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nacionalidade, e tambm um modo de coeso necessrio nao moderna. Hobsbawm
analisou o surgimento dos Esportes Modernos (dentre os quais o futebol) na segunda
metade do sculo XIX em sintonia consolidao do Estado-Nao da era moderna. Esse
processo aconteceu tambm na sociedade brasileira, dentro da qual o futebol foi
incentivado e valorizado em funo do seu potencial agregador e patritico, ou seja, foi
incorporado a cultura popular brasileira em nome da integrao social.
Utilizamos tambm a proposta de Bezerra (2004)682 de se trabalhar o futebol em
sala de aula, principalmente nas aulas de Histria, com conceitos bsicos, mas sempre os
contextualizando e buscando aproxim-los da realidade dos alunos. Seguindo tal proposta
utilizamos os conceitos de identidade, trabalho e lazer para discutir o processo de
tradicionalizao do futebol na sociedade brasileira.
A partir dessa premissa, ao debatermos com os alunos as relaes estabelecidas
entre o futebol e identidade nacional, procuramos refletir que no Brasil o futebol se tornou
esporte nacional no apenas por ser o mais praticado, mas principalmente porque durante
as Copas do Mundo um conjunto de representaes sobre a nao e o povo brasileiro se
legitimam a partir do futebol. O futebol foi apropriado por diferentes governos como o
intuito de se construir a identidade nacional, com a inteno de estreitar as relaes entre
elite e massa da populao. Para isso, cria-se e se organiza uma cultura popular para
promover a to sonhada integrao social. O futebol foi uma grande ferramenta para a
promoo dessa interao.
Para o conceito de trabalho utilizamos a definio adotada por Hegel na filosofia do
Direito, segundo o qual o trabalho alm do componente econmico, tambm formador
da conscincia, pois media as relaes entre os indivduos membros da sociedade civil, uma
vez que, a fim de satisfazer as carncias, cada indivduo precisa se relacionar com outros
indivduos, seja comprando algum produto, seja pagando por um servio, ou ainda
recebendo por servios prestados ou produtos feitos por ele. Para tanto, o trabalho,
pertencente esfera da sociedade civil, alm de satisfazer as carncias de cada indivduo, o
prepara para o Estado, na medida em que o faz pensar a sua relao com os outros na
sociedade de forma universal.
E para o conceito de lazer utilizamos a definio adotada por Gomes (2014) 683,
segundo a qual o lazer uma prtica social complexa que abarca uma multiplicidade de
vivncias culturais ldicas contextualizadas e historicamente situadas e que nas sociedades
contemporneas deve ser entendido como atividades necessrias para a sobrevivncia do
homem. No Brasil, um direito constitucional e no se limita, portanto, ao descanso da
jornada de trabalho.
682 BEZERRA, Holien Gonalves. Ensino de Histria: contedos e conceitos bsicos. In.: KARNAL,
Leonardo (org), Histria na sala de aula: prticas e propostas. So Paulo: Contexto, 2004.
683 GOMES, Christianne Luce. Lazer: Necessidade humana e dimenso da cultura. In.: Revista Brasileira de
45 aula 03/11/2014
Contedo: Ba do Futebol
Concluses
Por tudo o exposto, O futebol, assim como outros esportes, est entre algumas das
principais atividades de lazer do brasileiro, se no como prtica, ou trabalho, ao menos
como consumo dos seus espetculos.
Entretanto, ao considerar o futebol como elemento da cultura brasileira, no
podemos esquecer do processo histrico e social de insero e difuso dessa prtica
esportiva em nossa cultura. Devemos tambm considerar que nem sempre o futebol fez
parte da vida dos brasileiros e que no processo de valorizao e de legitimao dessa prtica
esportiva como elemento da nossa cultura, foi travada uma intensa luta simblica que
culminou na valorizao social do futebol.
A experincia adquirida no desenvolvimento do projeto permitiu que o processo de
formao do educando, principalmente se considerarmos o avano de novas perspectivas
educacionais, requer muito mais do que a abordagem disciplinar de contedos escolares.
Formar, ao contrrio do sentido que a prpria palavra poderia induzir, libertar a pessoa
que est sendo educada para que ela consiga, de forma autnoma. Aprender. Aprender
ultrapassa a sala de aula, assim imprescindvel que o aluno saiba interpretar criticamente o
mundo.
684Trechos registrados nos cadernos das turmas 78 e 79. Nos cadernos de turma foram registradas todas as
aes desenvolvidas pelo projeto.
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O processo de escolha do livro didtico de
Histria: o ponto de vista dos professores 685
Introduo
O livro didtico hoje representa um importante objeto de trabalho e estudo de
muitos pesquisadores, professores e alunos, sendo um dos motivos o fcil acesso h esse
material, viabilizado pelo PNLD (Programa Nacional do Livro didtico). Tambm
representa a principal fonte de lucro de muitas editoras (SILVA, 2014) 686. Chartie e Roche
(1995) 687 afirmam: Objeto de inesgotvel riqueza, o livro exerce h muito sua fascinao
(p. 111).
A escolha pelo livro didtico como objeto dessa pesquisa se d pela proporo que
ocupa esse material na educao escolar, em muitos casos, o nico livro que o aluno vai ter
685A pesquisa que deu origem a este artigo recebe financiamento da CAPES sob a orientao do Prof. Dr.
Renato Caixeta da Silva, e encontra-se vinculado ao Grupo de Pesquisa em Materiais e Recursos Didticos do
CEFET/MG.
686SILVA, Isade Bandeira da. O livro didtico de Histria no cotidiano escolar. Curitiba: Appris, 2014.
687CHARTIER, Roger e ROCHE, Daniel. O livro: uma mudana de perspective. In: LE GOFF, Jacques:
NORA, Pierre. (Org.) Fazer Histria: novos objetos. 4 edio. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.
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688
contato em toda sua vida (CASSIANO, 2013) , ou, o nico livro de leitura obrigatria
689
em nossa cultura (DIJK, 2012) . Tambm o principal material de trabalho utilizado
pelos professores e alunos no processo educativo (COSTA, 1999) 690. Sendo assim, destaco
o fato de que esse material se insere no conjunto das prticas escolares mediado pelas
opes feitas pelo professor.
688CASSIANO, Clia Cristina de Figueredo. O mercado do livro didtico no Brasil do sculo XXI: a entrada do capital
espanhol na educao nacional. So Paulo: Unesp, 2013.
689DIJIK, Teun A. van. Discurso e poder. So Paulo; Contexto, 2012.
690COSTA, ngela Maria Soares da. Prtica Pedaggica: O Uso do Livro Didtico no Ensino de Histria. III
Encontro Perspectivas do Ensino de Histria Aos Quatro Ventos. Universidade Federal do Paran.
Curitiba, 1999.
691FREITAG. Brbara et al. O livro didtico em questo. So Paulo: Cortez; 1989.
Tambm foram criadas medidas para orientar as selees feitas pelos professores,
o que no garante que o livro escolhido pelo docente seja o mesmo enviado pelo governo,
tendo em vista que esse problema tem uma srie de variveis, dentre elas a dinmica das
diferentes gestes escolares e a grande rotatividade dos docentes nas redes pblicas
brasileiras em virtude do elevadssimo nmero de contratos precrios de trabalho, entre
outras variveis (CASSIANO, 2013).
do FNDE promover e apoiar aes voltadas para a formao docente com vistas escolha e ao uso do livro
nas escolas.
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Constituio de 1988, a saber: VII atendimento ao educando no ensino fundamental,
atravs de programas suplementares de material didtico-escolar, transporte, alimentao e
assistncia sade (Art. 208) 694.
694BRASIL. Constituio (1988). Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Braslia, DF, Senado, 1998
695A pesquisa de Earp e Kornis (2005) considera o governo brasileiro como o terceiro maior comprador do
mundo, sendo a China e Estados Unidos os primeiros em relao compra institucional. De acordo com o
ano analisado, o Brasil pode ser o maior comprador quando se pensa em distribuio. Contudo os autores
reconhecem que sua pesquisa no considerou grandes mercados como a ndia e a Indonsia. EARP, Fabio
S; KORNIS, George. A economia da cadeia produtiva de livro. Rio de Janeiro: BNDES, 2005.
696Captado em< http://www.fnde.gov.br/programas/livro-didatico/livro-didatico-dados-estatisticos>
Acesso em 10 dez. 2014.
697BELMAR, CSAR Cristiano; PERRELLI, Maria Aparecida de Souza; LIMA, Adriana Arajo de. A
escolha e o uso do livro didtico pelos professores das reas de Cincias Naturais e Matemtica: as pesquisas
que abordam essa temtica. Srie-Estudos - Peridico do Programa de Ps-Graduao em Educao da UCDB.
Campo Grande, MS, n. 35, p. 241-261, jan./jun. 2013.
A pesquisadora mostra que as escolhas dos livros didticos nas escolas pblicas do
municpio de Quixad so unificadas, isso acontece tanto por uma necessidade de favorecer
a distribuio a todos os alunos da rede municipal, j que os livros vm de acordo o censo
escolar do ano anterior, como tambm, para garantir a vinda da primeira opo da coleo
didtica que foi feita, alm do respeito a tradio no municpio com relao escolha do
livro didtico.
Silva (2014) aponta tambm, que os guias no chegam a tempo hbil nas escolas;
alguns professores entendem que a garantia de acesso ao livro didtico nas escolas pblicas
um favor do governo para com os alunos alguns gestores pblicos e alguns
professores desconheciam o processo de escolha do livro didtico; nem todas as escolas
tiveram suas demandas atendidas; a escolha unificada do livro didtico traz problemas da
adequao realidade educacional de cada escola.
O mosaico da pesquisa
Estaro em foco discusso de dados a respeito do processo de escolha do livro
didtico de Histria no mbito do PNLD/2014 e/ou PNLD/2015 do ponto de vista dos
professores. Como esses profissionais realizam suas aes para a escolha desse material.
Como j foi dito, esse artigo faz parte dos primeiros resultados parciais oriundos da
pesquisa de mestrado desenvolvida pela autora. Assim sendo, os questionrios analisados
fazem parte do teste piloto, aplicados e coletados nos meses de novembro e dezembro de
2014. Foram coletados e consolidados dados de 10 professores respondentes, dentro de
um universo de 10 questionrios distribudos.
698Sobreo uso de questionrio online como recurso na construo e utilizao de instrumentos de coletas de
dados em pesquisas acadmicas recomendo a pesquisa de CESAR, Deborah Adriana Tonini Martin. O uso
dos questionrios online como apoio para as pesquisas acadmicas discentes no Ensino Superior. Captado
em: <http://pt.scribd.com/doc/106186074/O-uso-dos-questionarios-online-como-apoio-para-as-pesquisas-
academicas-discentes-no-Ensino-Superior-Deborah-A-T-Martini-Cesar>. Acesso em: 01 de setembro de
2014.
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A anlise dos dados coletados se pautar sob a tcnica da Categorizao Temtica
699
(GIBBS, 2009) que busca examinar as vrias abordagens e as questes prticas
relacionadas ao entendimento dos dados qualitativos.
699GIBBS, Graham. Anlise de dados qualitativos. Traduo de Roberto Cataldo Costa. Porto Alegre: Artmed.
2009.
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Contudo, essa mesma Portaria proibiu a divulgao dos livros diretamente nas
escolas, assim como eventos ou palestras dentro destes locais pblicos e/ou o
700
oferecimento de brindes durante o processo de escolha do livro didtico . Contudo, essa
prtica realizada nas escolas, conforme evidencia a afirmao do prof. 03: Um ms antes
do dia especfico da escolha do livro, os professores receberam, na escola, a visita de
representantes de algumas editoras, e uma lista de sites para que pudssemos avaliar o
material a ser escolhido. Prof. 03
Corroborando com essa idia, essa pesquisa constata essa afirmao com a fala
emblemtica do Prof. 04: [a escolha do livro didtico] Prestigiando quase sempre as
editoras maiores e com histrico de fornecimento de livros para escola. (Prof. 04).
700Cabe aos dirigentes e professores denunciar essas violaes pelo nmero 0800616161 ou pelo portal no
espao reservado ao processo de escolha. Tambm no permitido s escolas aceitar vantagens oferecidas
pelos editores e seus representantes (BRASIL, 2014).
701SOARES, Ricardo Pereira. Compras governamentais para o Programa Nacional do Livro Didtico: uma discusso sobre
Veem-se ainda outro exemplo de professores que foram silenciados pela sua
situao funcional, pois: Como designado, no tive uma voz muito ativa, pois, os outros
professores como efetivos e efetivados tiveram prioridade diante da execuo no prximo
ano, j que o contrato se encerraria no final do ano letivo. (Prof. 01).
Fato que ao fazer sua escolha, o docente tem que ter uma viso critica do
contexto scio-cultural em que insere seu pblico alvo, e a clareza de como e para qu este
livro foi adotado. No permitir que um material defina suas estratgias educacionais, e sim
formular meios para superar possveis limitaes do livro didtico.
Por ltimo, possvel perceber que mesmo diante das adversidades vivenciadas
nesse momento, sobretudo aquelas advindas da realidade desses profissionais, muitos
professores reconhecem a importncia do processo de escolha desse material que ser
utilizado no horizonte de trs anos, bem como o reconhecimento cabvel a sua prtica
docente:
Algumas concluses
A proposta inicial desse trabalho de descrever e problematizar os primeiros dados
relativos ao processo de escolha dos livros didticos nas escolas pblicas, a partir do ponto
de vista dos docentes no mbito do PNLD/2014 e/ou PNLD/2015, parece configura-se
como sustentada, pelo menos nesse primeiro momento da pesquisa.
Quanto ao professor, que prepara todo um momento para a efetiva seleo do livro
considerado adequado a realidade do seu aluno e no recebe a obra prevista, isso
caracteriza-se, podemos assim concluir, como um estreitamento do PNLD. Se o problema
esta na negociao do governo com as editoras, esse entrave j deveria ser previsto na
abertura do edital para a inscrio das colees das obras, estabelecendo quantidades
mnimas e mximas que o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educao (FNDE)
pode pagar por obra, bem como as quantidades mnimas de exemplares a serem
produzidos por cada editora.
702 VALOR ECONMICO. Editoras menores vendem mais ao governo federal. Jornal Valor Econmico, p.
B5, 17 out. 2006a.
703 FERNANDES, Magda Carvalho. O acesso ao livro didtico de Histria no Programa Nacional do Livro
Didtico, dos anos iniciais do Ensino Fundamental, entre 1999 e 2008. in: VII Congresso Brasileiro de Histria da
Educao, 2013, Cuiab. Circuitos e Fronteiras da Histria da Educao no Brasil, 2013. v. 1. p. 1.
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quando advoga que: No limite, no impossvel que a partir de um livro considerado
ruim o professor consiga desenvolver uma excelente aula (MUNAKATA, 2002 p. 92).
704MUNAKATA, Kazumi. Livro didtico e formao de professor so compatveis: In: MARFAN, Marilda
Almeida (Org.) Anais do Congresso Brasileiro de Qualidade na Educao: formao de professores: Braslia: MEC, SEF,
2002.
705 FARIA FILHO, Luciano M. O processo de escolarizao em Minas Gerais: questes terico-
metodolgicas e perspectivas de pesquisa. In: VEIGA, Cynthia; FONSECA, Thais. (Orgs.) Histria e
Historiografia da Educao no Brasil. Belo Horizonte: Autntica, 2003, p. 86.
706 PALLARES-BURKE, Maria Lcia. A imprensa peridica como uma empresa educativa no sculo XIX.
Cadernos de Pesquisa, So Paulo, n. 104, p. 144-161, jul. 1998. p. 145.
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cidade do atraso [].707 Vrias cidades foram indicadas, e aps intensos debates e
acirradas disputas, o Congresso Mineiro optou pelo Curral del-Rei, futura Belo Horizonte.
Foi necessrio para a construo dessa nova cidade mo de obra hbil e suficiente,
donde percebemos a importncia dos operrios, muitos dos quais, migrantes de outras
regies de Minas Gerais, do pas e de demais naes. A crise cafeeira foi responsvel por
disponibilizar um contingente de mo de obra que migrou de reas em decadncia
econmica para locais mais promissores, em desenvolvimento, como era o caso de Belo
Horizonte.
707 VERIANO, Carlos. Belo Horizonte: cidade e poltica: 1897-1920. 237 f. Dissertao (Mestrado em
Histria) Universidade Estadual de Campinas, Programa de Ps-Graduao em Histria, Campinas, 2001,
p. 58.
708 VERIANO. Belo Horizonte, p. 63.
709 VERIANO. Belo Horizonte, p. 74.
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perspectiva, Eliana Dutra descreve que populao trabalhadora de Belo Horizonte no
era possvel a fixao dentro da rea urbana da cidade:
710 DUTRA, Eliana. Caminhos operrios nas Minas Gerais: um estudo das prticas operrias em Juiz de Fora e
Belo Horizonte na Primeira Repblica. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1988, p. 56-57.
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A partir de levantamento bibliogrfico, percebi a escassez de estudos sobre o
movimento operrio de Belo Horizonte na Primeira Repblica. So ainda mais raros os que
relacionam trabalho, imprensa e educao, tal como proponho na pesquisa de doutorado.
711 MACIEL, Laura. O popular na imprensa: linguagens e memrias. In: XIX ENCONTRO REGIONAL
DE HISTRIA, 19, 2008, So Paulo. Anais... So Paulo: USP, 2008. p. 01.
713 CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. So Paulo: UNESP, 1998.
714 PALLARES-BURKE. A imprensa peridica como uma empresa educativa no sculo XIX, p. 150.
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at as primeiras dcadas do sculo XX, as taxas de analfabetismo chegavam a quase 70% da
populao com mais de 15 anos do pas e eram muito baixos os ndices de
escolarizao.715
Os folhetos de cordel eram, por isso, normalmente lidos em voz alta e ouvidos por
toda uma coletividade. Isso permitia maior aproximao de pessoas pouco ou no
alfabetizadas com o mundo da escrita, sendo a oralidade uma prtica importante e que, s
vezes, contribua inclusive para que alguns envolvidos pudessem aprender a ler.
715 GALVO, Ana Maria. Oralidade, memria e a mediao do outro: prticas de letramento entre sujeitos
com baixos nveis de escolarizao o caso do cordel (1930-1950). Educao & Sociedade, Campinas, v. 23, n.
81, p. 115-142, dez. 2002. p. 116-117.
716 GALVO. Oralidade, memria e a mediao do outro, p. 123.
717 GALVO. Oralidade, memria e a mediao do outro, p. 137.
718 FARIA FILHO, Luciano M. Representaes da escola e do analfabetismo no sculo XIX. In: GALVO,
Ana Maria; BATISTA, Antnio Augusto. (Orgs.) Leitura: prticas, impressos, letramentos. Belo Horizonte:
Autntica, 1999. p. 143-164.
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racionais, livres, que pretendiam oferecer aos filhos dos trabalhadores uma educao liberta
das influncias religiosas e burguesas.719
Predominava nos meios libertrios a concepo e luta por escolas livres, com a
defesa de um ensino eminentemente laico. Essas propostas, no entanto, teriam fracassado
prezas crena na possibilidade de uma emancipao cultural e ideolgica no interior da
sociedade burguesa.721
719 FERREIRA, Valdelice. Movimento Operrio e a Educao na Imprensa Sorocabana na Primeira Repblica. 211 f.
Tese (Doutorado em Educao) Universidade Metodista de Piracicaba, Programa de Ps-Graduao em
Educao, Piracicaba, 2009, p. 46.
720 LEONARDI, Victor. Histria da indstria e do trabalho no Brasil. So Paulo: tica, 1991, p. 258.
721 LEONARDI. Histria da indstria e do trabalho no Brasil, p. 259.
722 THOMPSON, Edward. A Formao da Classe Operria Inglesa. So Paulo: Paz e Terra, 2004, v. 1.
723 THOMPSON, Edward. Os Romnticos: A Inglaterra na era revolucionria. Rio de Janeiro: Civilizao
Brasileira, 2002, p. 17.
724 THOMPSON. Os Romnticos, p. 21.
725 THOMPSON. Os Romnticos, p. 24.
726 THOMPSON. Os Romnticos, p. 25.
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origina nessa poca e que se prolonga at o sculo XX vai ser encontrado naquele conjunto
de reaes provocadas pelo medo potencial revolucionrio da gente comum.727
732 BERTUCCI, Liane; FARIA FILHO, Luciano; TABORDA, Marcus. Edward P. Thompson: Histria e
formao. Belo Horizonte: UFMG, 2010, p. 47.
733 BERTUCCI; FARIA FILHO; TABORDA. Edward P. Thompson, p. 11-12.
734 BERTUCCI; FARIA FILHO; TABORDA. Edward P. Thompson, p. 53-54.
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prprias especificidades constituintes.735 Ainda assim, conforme Bertucci, Faria Filho e
Taborda (2010), apesar de sua atestada contribuio, os conceitos e obras desse historiador
social ingls foram e so pouco utilizadas no mbito da Histria da Educao.
Assim sendo, buscarei a partir da leitura e anlise dos peridicos das citadas
associaes compreender no somente o movimento operrio, mas, principalmente, como
a imprensa operria favoreceu debates a respeito de formas e alternativas educacionais que
abrangiam operrios ao longo da Primeira Repblica em Belo Horizonte. E, claro,
contribuir com mais um estudo sobre os operrios, suas experincias e representaes.
735 SCHUELLER, Alessandra; MAC CORD, Marcelo. Histria Social e Histria da Educao As
contribuies de Edward Thompson. In: MESQUITA, Ilka; CARVALHO, Rosana; FARIA FILHO, Luciano
(Orgs.) Nas dobras de Clio: Histria Social e Histria da Educao. Belo Horizonte: Mazza, 2014, p. 68.
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Histria, cinema e ensino: uma abordagem para a
Educao Bsica
Luciana Loureno de Souza
Graduanda em Histria pela Universidade Federal de Minas Gerais
[email protected]
Introduo
O presente artigo se baseia no trabalho desenvolvido na Escola Estadual Pedro II
em parceria com o Programa Institucional de Bolsa de Iniciao Docncia (PIBID) da
Faculdade de Educao da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A experincia
foi realizada com duas turmas do 6 ano do Ensino Fundamental durante o segundo
semestre do ano de 2014. Vale salientar que a realizao do projeto somente foi possvel
mediante as especificidades da escola que permitiram a larga atuao das bolsistas.
Infraestrutura
A Escola Estadual Pedro II foi fechada em 2007 e reaberta no ano de 2010
completamente reformada. O imvel, inaugurado em 1926 e tombado pelo patrimnio
histrico estadual e municipal obteve novos telhados, paredes, pisos, banheiros e
mobilirio, alm de adquirir elevadores e rampas de acesso adaptadas para portadores de
necessidades especiais, num investimento total de R$ 3,85 milhes. Todas as salas de aula
possuem uma televiso de LCD, um cabo HDMI, alm de excelentes carteiras. A escola
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conta ainda com uma biblioteca, um refeitrio, uma sala de msica, um salo nobre, uma
sala de estudos reservada aos professores, um salo amplo onde so feitas as atividades
esportivas e por fim, um ptio exclusivo para a socializao dos alunos e funcionrios da
escola. Logo, a instituio de ensino funciona como A Escola Vitrine do governo do
Estado de Minas Gerais na qual, os altos investimentos foram feitos tanto no que se refere
aos projetos educacionais quanto infraestrutura. Atualmente, a Escola Pedro II
considerada uma das melhores escolas pblicas de Ensino Fundamental e Mdio do
Estado. Em contraposio, algumas instituies escolares carecem de reparos bsicos na
estrutura dos prdios e outras no possuem sequer bibliotecas e recursos audiovisuais. Esta
situao revela um total descanso e abandono por parte do poder pblico estadual.
Perfil do professor
Recm-formado na modalidade licenciatura plena em Histria pela Universidade
Federal de Minas Gerais, o professor Fernando Rosa estabelece uma linha-didtica calcada
na utilizao dos diversos recursos audiovisuais como msicas, filmes, vdeos, imagens e
mapas, estimulando a anlise de outras fontes histricas diferentes dos documentos
textuais. Atravs da construo de mtodos didticos inovadores, os objetivos consistem
em trabalhar os conceitos primordiais do conhecimento histrico a partir da experincia da
realidade vivida. Dentro dos temas estudados, o professor dialoga com alunos e promove
debates como a importncia dos movimentos sociais para a conquista de direitos e
questes relacionadas ao feminismo e a homofobia. Essa relao com o estudante
extremamente importante porque constitui um espao aberto para discusses sobre a
realidade e a troca de opinies. Quanto mais se estabelece uma relao com o cotidiano
vivenciado pelos alunos, maior a facilidade de aprendizagem uma vez que eles conseguem
enxergar algum sentido para o estudo daquilo que est sendo proposto.
Precursores tericos
Atualmente o uso do cinema dentro da sala de aula recorrente no ensino de
histria, contudo essa atividade no tem nada de novo na realidade da educao brasileira,
muito pelo contrrio, os primeiros usos dos recursos cinematogrficos remontam as
dcadas de 1920 e 1930. Usualmente a linguagem cinematogrfica, sempre relacionada a
ilustrao de algum lugar ou paisagem, era sujeita a uma variedade de inapropriaes e
excees, para os educadores da poca os filmes alm de no servirem, pela grande
metragem, a utilizao propriamente escolar, so quase sempre inados de anacronismos,
de suposies infundadas, quando no de erros736. Contudo uma virada nessa perspectiva
ocorrer a partir da dcada de setenta, momento o qual o cinema ser considerado um
objeto da nova histria e passvel de novas abordagens e problematizaes. No que se
refere relao entre Histria e Cinema, destacamos essencialmente a obra intitulada
Cinema e Histria737 do historiador francs Marc Ferro, responsvel por revolucionar a
historiografia acerca dos estudos cinematogrficos do sculo XX. Desta forma, o livro
Uma vez que o contedo pragmtico era Roma Antiga, fizemos uma repartio
geral do tema pautada na prpria diviso poltica da histria romana: Realeza Romana,
Republica Romana e Imprio Romano. Isso no significa que as aulas se resumiram ao
contedo poltico, por outro lado dentro de cada tpico geral foi destacada aspectos como
sociedade, cultura e lazer e muitas vezes as relaes de permanncia entre os grandes cortes
temticos foram mais acentuadas do que as mudanas. Os filmes foram sendo expostos
desde as primeiras aulas, comeando com o filme Rmulo e Remo740 durante as aulas
sobre as possveis origens de Roma, no qual a origem mitolgica da cidade foi contrastada
com uma verso cientifica e apenas depois o filme foi exposto. Aps o termino do filme
procuramos saber se os alunos tinham notado alguma diferena entre a histria que
havamos lhes contato e a apresentada no filme. O objetivo dessa simples indagao era
mostrar que as histrias podem ser variadas, que nem o filme, nem a histria oficial ou a
739 BRASIL. Secretaria de Educao Bsica. Diretoria de Apoio Gesto Educacional. Pacto nacional pela
alfabetizao na idade certa : alfabetizao em foco : projetos didticos e sequncias didticas em dilogo com
os diferentes componentes curriculares : ano 03, unidade 06 / Ministrio da Educao, Secretaria de
Educao Bsica, Diretoria de Apoio Gesto Educacional. -- Braslia : MEC, SEB, 2012.
740 RMULO E REMO. Direo: Sergio Corbucci. Roteiro: Sergio Corbucci, Adriano Bolzoni, Ennio de
Concini, Sergio Leone,Luciano Martino, Duccio Tessari, Sergio Prosperi e Franco Rossetti. Italia, 1961. 108
min. Legenda, cor.
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que contamos para eles so completamente verdicas, que faltam dados e documentos para
que os historiadores possam saber qual foi a origem da cidade e alm do mais, mesmo que
existisse muitos documentos ningum teria certeza dos fatos, uma vez que no temos mais
acesso ao passado, mas apenas podemos interpreta-lo a partir dos vestgios deixados pelas
pessoas.
741Anbal, O Conquistador. Direo: Edgar G. Ulmer, Carlo Ludovico Bragaglia. Itlia, 1959. 103 min.
Legenda, cor.
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lado, em Anbal, O pior pesadelo de Roma742, documentrio da BBC produzido em
2006, as cenas trazem grandes batalhas, efeitos especiais e exaltam exageradamente o dio
de Anbal contra os romanos. A partir de uma produo de alto custo, o documentrio
trata o mesmo evento histrico representando a figura do Anbal como um homem
poderoso. Dentro do objetivo, outra questo trabalhada foi a problematizao da noo do
gnero documentrio enquanto retrato da realidade.
Gladiador, 2000
Outro filme escolhido para compor o repertorio de nosso projeto foi o
Gladiador743, dirigido por Ridley Scott. O longa com quase trs horas de durao conta a
histria de um general romano, o qual se torna escravo e posteriormente um gladiador
devido a uma conspirao que envolvia o cargo de imperador. O filme considerado por
muitos como extremamente anacrnico e sem contribuio efetiva para a sala de aula. Um
ponto que tais crticas deixam passar despercebido que muitos dos ditos anacronismos
so intencionais, por exemplo, na poca retratada pelo filme o Coliseu era chamado de
Anfiteatro Flaviano, apesar disso o diretor opta por deixar o nome que a maioria das
pessoas j esto habituadas, invocar tal o nome pode ser entendido como uma maneira de
situar melhor o espectador e no de aliena-lo. Os alunos sabiam muito bem o que era o
Coliseu, mas falar em Anfiteatro Flaviano seria minimamente estranho para eles. Isso
significa que os anacronismos contidos nos filmes nem sempre so prejudiciais e em no
raras vezes so um timo ponto de partida para debates amplos. Todavia no esse o
ponto principal de nosso trabalho, o que tentamos abordar com a produo de Scott a
maneira como os gladiadores eram retratados e como a distribuio do po durante uma
das lutas abre portas para um debate acerca do alcance da famosa poltica do Po e Circo.
Anbal, O pior pesadelo de Roma. Direo: BBBC de Londres. Inglaterra, 2006. 90 min Legenda, cor.
742
743GLADIADOR. Direo: Ridley Scott. Produo: Douglas Wick, David Franzoni e Branko Lustig.
Estados Unidos e Reino Unido, 2000. 155 min. Dublado, cor. Distribuio DreamWorks e Universal Studios.
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destaques aos momentos em que os gladiadores apareciam como objetos sociais
pertencentes a um jogo de interesses muito mais amplo que a prpria arena, por outro lado,
as cenas de reflexo pessoal e flashbacks dos personagens foram deixadas para outra
oportunidade de apreciao e entretenimento.
Uma vez que o filme foi reduzido a uma durao condizente com a realidade
escolar de cinquenta minutos por aula, os prximos passos foram a execuo da aula; do
filme e por ltimo da atividade reflexiva. Comeamos por uma aula expositiva e interativa
acerca de como eram os gladiadores e quais eram os papeis desses na sociedade romana.
importante salientar que dialogar a respeito deste tema significa entender alguns
importantes aspectos do sistema escravocrata romano, a relao do esporte com a poltica e
tambm voltar s origens de Roma, quando o gosto pelos gladiadores foi herdado da
cultura etrusca destacando uma das muitas continuidades na histria romana. Esses pontos
em conexo com o treinamento, a alimentao e a fisionomia dos lutadores foram
explorados durante a aula juntamente com o uso de desenhos da poca e imagens
ilustrativas. Aps a insero dos alunos no tema e a colocao de algumas questes a serem
pensadas durante o longa-metragem foi dado incio a exibio deste. No mais a experincia
dos alunos no foi interrompida.
Aps o termino do filme uma atividade foi proposta. O primeiro ponto ressaltado
era a diferena entre os gladiadores do cinema e aqueles desenhados em murais na poca.
Com uma series de perguntas e duas imagens, um frame do filme e um dos desenhos dos
gladiadores original da poca, foi proposto que os estudantes identificassem a inteno dos
produtores em priorizar que os principais lutadores fossem belos atores. A segunda questo
relacionava um pequeno texto com o filme e as ltimas aulas a respeito da poltica Po e
Circo. No trecho do texto o autor debatia at que ponto essa poltica pode ser entendida
como realmente efetiva, uma vez que no eram todos os habitantes da capital do imprio
que participavam dela. Em dilogo com essa teoria algumas cenas do filme mostravam uma
distribuio de po dento do Coliseu, ficava claro nesse momento que apenas algumas
pessoas conseguiam pegar a comida. Alm dessas duas abordagens os alunos tiveram
algumas aulas sobre o tema, o que possibilitou uma maior capacidade de absoro da
proposta e desenvolvimento das questes.
744ASTERIX E OBELIX CONTRA CSAR. Direo: Claude Zidi. Produo: Claude Berri. Frana e
Dinamarca, 1999. 106 min. Dublado, cor.
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de outras pessoas em construir uma identidade negativa delas. Entretanto no podemos
negligenciar que o filme atentou para um fator positivo e importante: os gauleses no
desistiram de sua liberdade, eles lutaram contra os romanos, o que remonta resistncia a
dominao de Roma.
RESUMO: Esse texto se prope a revelar mltiplas narrativas histricas acerca da figura
de Tiradentes como heri, as quais se constituram antes daquela que se tornou a mais
tradicional especialmente no ensino de histria, com isto perceberemos que esta imagem j
fora constituda antes da proclamao da Repblica, diferentemente do que a histria da
historiografia, inclusive sobre o ensino de histria, explicita. Partiremos da leitura de
Lies de Ensino de Histria, de Joaquim Manuel de Macedo, da Histria Geral do
Brasil, de Francisco de Adolpho Varnhagen e das Efemrides Mineiras, de Jos Pedro
Xavier da Veiga, acompanhando e descrevendo, ainda, as suas posies em relao
ligao entre a Conjurao Mineira e a Independncia do Brasil (1822). A partir da histria
dos conceitos tematizaremos conceitos como Portugal, portugueses, colonizao,
buscando, ao fim, investigar o problema da distncia histrica.
745FOCAS, Jnia. Discurso e Sentido na Inconfidncia Mineira. Conexo Letras, Belo Horizonte, vol. 2, n. 2,
pp. 104-119. 2006. p. 110.
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Preferimos, ao longo de nosso texto, tratar o episdio ocorrido em 1789 como
Conjura Mineira, justificando-nos a partir da leitura do vocabulrio acrescido aos Autos,
quando publicado pela Imprensa Oficial de Belo Horizonte, em 1976, e principalmente do
Dicionrio da Lngua Portuguesa, de 1789, de Antonio Moraes e Silva, onde consultamos o
significado poca dos verbetes conjurao, conjura, inconfidncia e sublevao,
onde o termo mais prximo de nossa compreenso do ocorrido, conjura, significa
movimento que no chegou ao seu fim esperado, no passado da concatenao
746
promissria de um grupo de homens polticos . visvel que o significado encontrado
em Moraes e Silva se apresenta como um contorno natural, quase feito sob medida, do que
nos propomos a discutir aqui.
746
SILVA, Antonio Moraes. Diccionario da lingua portugueza - recompilado dos vocabularios impressos ate
agora, e nesta segunda edio novamente emendado e muito acrescentado, por ANTONIO DE MORAES
SILVA. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813. Acesso em junho de 2014. p 448.
747FONSECA, Thas Nvia de Lima e. Exaltar a ptria ou formar o cidado. In: Histria & Ensino de
Aps a leitura inicial das obras anteriores a proclamao da repblica, foi possvel
de incio perceber que a Conjura Mineira fora sim tratada com destaque, nas obras de
Varnhagen e principalmente no texto didtico de Manuel de Macedo. Acreditamos que a
existncia dessa crena de inferioridade do movimento na histria nacional no ensino,
constatada por Fonseca, tenha se formado a partir apenas da leitura da obra de Abreu e
Lima, este sim, tratando com pouco interesse o fato histrico, como nos informa Bandeira
de Melo, ao dizer que o assunto Inconfidncia tambm no deixou de ser considerado no
livro didtico de J. Incio de Abreu e Lima, porm nesse autor a matria mereceu mais do
que poucas referncias, pois Abreu e Lima entendeu que o mesmo se tratava de quimrico
intento 748.
748 MELO, Ciro Flvio de Castro Bandeira de. A Inconfidncia Mineira. In: Senhores da histria e do
esquecimento: a construo do Brasil em dois manuais didticos de histria na segunda metade do sculo
XIX. Belo Horizonte, MG: Argvmentvm, 2008. Pp. 139-170. Pp. 140.
749 MATTOS, Selma Rinaldi de. Lies de Macedo. Uma pedagogia do sdito-cidado no Imprio do Brasil.
In: MATTOS, Ilmar Rohloff de (org.). A Histria do Ensino de Histria. Rio de Janeiro: Access, 1998. Pp.
31-41. P.
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referncia no ensino durante o sculo XIX, com as Lies de Macedo o sucedendo. Obra
essa, reeditada at o incio do sculo XX, caracterizando-se como um contedo de
referncia no ensino no s dentro do Colgio Pedro II, mas como nas escolas de ensino
primrio.
Joaquim Manuel de Macedo, rata na Lio XVII, em seu texto das Lies de
Histria do Brasil, para os alunos do 7 ano do Imperial Colgio Pedro II, da fracassada
sublevao ocorrida nas Minas Gerais, em Vila Rica, hoje Ouro Preto, no ano de 1789. Ele
retrocede temporalmente ao ano de 1786 para explicitar as motivaes e aes dos
participantes da Conjura e chega a 1792, ao fim do processo de Devassa. Cuidando do
assunto entre as pginas 215 e 227 do manual. Diferentemente de Macedo, Abreu e Lima,
trata do assunto em pouco menos de duas laudas.
750 REIS, Jos Carlos. Varnhagen (1853-7): O elogio da colonizao portuguesa. Varia Histria, Belo
Horizonte, n 17, maro/1997. Pp. 106-131. P. 115.
751 RODRIGUES, Thamara de Oliveira. A Independncia de Portugal. Histria, progresso e decadncia na
obra de Francisco Solano Constncio (1808-1840). Dissertao (Mestrado). Universidade Federal de Ouro
Preto. Instituto de Cincias Humanas e Sociais. Programa de ps-graduao em Histria, 2014. P.93.
Varnhagen, como nos apresenta Jos Carlos Reis, repreenderia aqueles que por
ventura comprometeram um futuro ligado a Portugal e isso chega a fazer com Gonzaga,
desconsiderando sua origem lusa em preferncia a seu passo em falso em relao as suas
obrigaes. Porm o patriotismo parcial de Varnhagen, que atingiria at a Famlia Real,
se no fosse o Imperador descendente da linhagem de Bragana, e da necessidade aparente
de uma analise em paralelo entre um colono portugus e um brasileiro, reconsidera a
postura do poeta rcade, asseverando a imagem negativa que fizera de Silva Xavier, nascido
em So Jos Del Rei, atual Tiradentes.
Macedo por sua vez, em suas lies, no volume publicado em 1863, diz que
Gonzaga no havia pretendido fazer parte da Conjura, ao mesmo tempo em que se inclina
a duvidar disso, pelas relaes mantidas entre ele e os demais conjurados:
752 MACEDO, Joaquim Manuel de. Lio XVII. Lies de Histria do Brasil para os alunos do 7 ano do
Imperial Colgio Pedro II., 1863. p. 215-227.
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Sobre Tiradentes, Varnhagen, em ambas as edies, como j havamos sublinhado,
apresenta-o como homem ambicioso, pobre, sem respeito e louco753, utilizando de uma
caracterizao feita por Gonzaga sobre o alferes, descrevendo ainda suas muitas tentativas
de galgar com espao na sociedade e riquezas, na tentativa de depreciar Tiradentes a partir
de atribuies no menos comuns queles que viviam nas Minas setecentistas. Dizendo
ainda de sua morte no patbulo o que conferira a este a imagem de mrtir.
754
Macedo trata Tiradentes como um conspirador menos importante , que foi
tornado mrtir (e heri?) atravs da sua qualificao como o mais terrvel e atroz dos
755
criminosos que teve como consequncia sua pena distinta dos conjurados, culpados
como ele, quando os juzes o impuseram o patbulo; ele, Tiradentes que se portara com
nobreza e no buscara subterfgios para tornar mais leve a sua culpa, se elevando acima
de todos os seus companheiros com o fulgor da coroa do martrio 756.
possvel perceber que a imagem heroica do alferes Silva Xavier no esteva, antes
da Proclamao da Repblica, no pice de sua relao com o sucesso da nao, pelo menos
753 VARNHAGEN, Francisco Adolpho de. Historia Geral do Brazil. 1854. Sees VIII e XLVII. 1 Edio.
1854. Pp.80-97; 269-282.
754 MACEDO. Lio XVII. P. 225.
755 ____________. Lio XVII. P.225
756 ____________. Lio XVII. P.225
757 ____________. Lio XVII. P.
O heri nacional s precisava ser assim nomeado, sua persona distinta j havia
sido construda no sculo XIX, e disso se aproveitaria a Repblica. A proclamao de uma
nova forma de governo precisava, tanto quanto o Imperador precisara ps 1822 de
legitimao, no deixando de utilizar do passado e dos historiadores para isso e assim foi
feita a relao de Tiradentes com a o republicanismo antes mesmo de 1889.
Jos Pedro Xavier da Veiga, nas Efemrides Mineiras, publicada em 1897, d grande
importncia ao ocorrido em 1789 e se apresenta aqui a partir da argumentao de Ivana
Denise Parrela que reconhece em boa medida que o autor d a obra um carter didtico758,
onde, j no prefcio o autor apresenta seu laborioso intento de reunir o maior nmero
possvel de fontes quer sejam elas encontradas em manuscritos inditos at informaes j
copiladas por institutos a respeito da histria de Minas Gerias, enfatizando o carter
patritico de seu trabalho.
Introduo
Mariana, Minas Gerais, se caracteriza por ser uma cidade distinta. Sua histria, que
remonta s primeiras exploraes aurferas da ento provncia mineira, no sculo XVII,
percebida no cotidiano da cidade, seja nas suas construes histricas, seja nos seus
habitantes. A extrao do minrio est diretamente ligada histria da ocupao da cidade,
na medida em que o ouro foi o primeiro responsvel pela ocupao deste permetro e, em
seguida, com sua escassez, a populao procura a zonal rural em busca de melhores
condies de vida. Na segunda metade do sculo XX, com a volta da explorao mineral
A partir deste contexto de abandono dos poderes pblicos para com o bairro Santo
Antnio, surge a necessidade do estudo da principal esfera transformadora que, naquele
espao, negligenciada: a educao.
Este estudo pretende, a partir da anlise de vrios fatores, tentar entender as causas
da desestruturao do Ensino Bsico naquele contexto. Aqui, tentaremos verificar o que,
no mbito poltico nacional, influenciou no sucateamento da escola, e o que, no mbito
poltico local, contribuiu para a marginalizao do bairro Santo Antnio e,
consequentemente, para a situao complicada da Escola Municipal Wilson Pimenta Ferreira.
Coloca-se esta desconstruo, logo de incio, devido ao fato de aquela regio abrigar
uma das primeiras construes religiosas de Minas Gerais, a Capela de Santo Antnio, cuja
fundao data, aproximadamente, do final do sculo XVII, alm de, equivocadamente,
relaes serem estabelecidas entre a comunidade que ali vive nos dias atuais e a Capela761.
760FISCHER, Mnica. Mariana: os dilemas da preservao histrica num contexto social adverso. Dissertao
(Mestrado em Sociologia) Departamento de Cincias Sociais/UFMG. 1993.
761TEDESCHI, Denise Maria Ribeiro. OLIVEIRA, Suellen Mayara Pres de. SENA, Tatiana da Costa.
Capela Santo Antnio: Dilogos entre Histria e Arqueologia (Relatrio de Pesquisa). I Seminrio de
Histria: Caminhos da Historiografia Brasileira Contempornea. Universidade Federal de Ouro Preto. 2006.
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dos movimentos migracionais nesta regio. Observemos como Souza Jnior762 expe esse
processo:
Reafirmando: acreditar que aquela comunidade, ali instalada, tenha relao direta
com as primeiras lavras aurferas do sculo XVIII um equvoco. Acredita-se que, para
melhor anlise do bairro, duas vertentes de interpretao devem ser tomadas. A primeira
762SOUZA JNIOR. Paulo Gracino de. Barraces Barrocos: memria, poder e adeso religiosa em
Mariana-MG. Rio de Janeiro: Dissertao (Programa de Ps-Graduao em Memria Social). Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro. UNIRIO. 2003. p. 57.
763SOUZA JNIOR. Barraces Barrocos: memria, poder e adeso religiosa em Mariana-MG, p. 68.
O segundo aspecto de que ser tratado a questo da violncia e das suas mltiplas
manifestaes. A violncia, que est inserida no contexto do bairro e da escola, se
O terceiro aspecto que ser tratado toca na questo dos problemas estruturais
encontrados na escola, durante a experincia de estgio entre o final do ano de 2012 e o
incio de 2013. Durante esta vivncia, foram constatados inmeros problemas de ordem
estrutural e poltica na escola. Esta experincia nos auxiliar a entendermos como o
sentimento de estigma para com o bairro prejudica o funcionamento da escola e nos
ajudar a constatarmos as mltiplas violncias encontradas ali naquele meio escolar.
Ao averiguar a sala que deveria ser, a priori, responsvel pela incluso digital dos
alunos, outra surpresa foi encontrada. Pilhas e pilhas de material, que no condiziam com a
proposta daquele ambiente, se amontoavam de maneira catica. Alm dos computadores
que estavam encaixotados, diversos materiais de mltiplas naturezas foram encontrados
naquele espao. Coisas que nada tinham a ver com a proposta do espao, que era destinado
ao ensino de informtica e incluso digital. Instrumentos musicais de fanfarra,
brinquedos, livros, carteiras, uniformes e computadores se apresentavam naquele meio de
maneira catica e desorganizada. O que se constatou de incio, ao primeiro contato com o
local, que aquele espao no estava servindo para o seu papel, aquele espao estava
servindo de depsito de materiais da escola. Tudo em meio sujeira e desorganizao.
Depois de averiguado o espao que seria trabalhado, nosso grupo decidiu qual
atitude deveramos tomar quanto quele espao que estava praticamente esquecido pela
escola. A sala que estava se configurando como um verdadeiro caos precisava
urgentemente de uma breve organizao, pois nem o mnimo dava para se fazer em meio
quela situao. Primeiramente, realocamos todos os itens que estavam fora de seu
contexto, que no tinham relao com informtica, para outro espao. Em seguida, fizemos
a faxina do local, pois, com a inutilizao daquele espao, muita sujeira e poeira
acumularam-se. Depois da limpeza e da realocao dos materiais, comeamos a
desenvolver as atividades que, aos poucos, iam trazendo de volta o sentido inicial daquele
espao, que era um lugar de conhecimento. Ou seja, um laboratrio de informtica.
Concluso
Tais fatores podem ser de origem da poltica nacional, da poltica regional recente e,
sobretudo, de fatores scio-histricos do local em que est inserida a escola. No nosso
estudo, evidenciamos que o estigma carregado pelo bairro Santo Antnio um dos
principais fatores que corroboram para que a escola dentro daquela comunidade continue
sucateada. Mesmo que recorramos aos anos de origem do sucateamento do ensino pblico,
que foram os anos 1990, para explicar o que se encontrou na escola estudada, o peso de sua
configurao histrica se mostra mais significativo para uma possvel explicao sobre sua
situao.
Tentando sistematizar uma linha de raciocnio para uma possvel concluso, vemos
que a escola reflete o preconceito que o bairro carrega sobre a cidade. Com base na
bibliografia sobre a histria recente de Mariana, vemos que o bairro Santo Antnio (ou
Prainha, como chamado pejorativamente), desde seu incio, nos anos 1970, nunca foi
aceito pela populao j estabelecida no centro histrico (elite sociopoltica). Seu contexto
de criao, que diretamente ligado a barganhas polticas do passado, carrega um estigma
que lhe traz um ttulo de bairro indesejado por grande parte dos setores da elite
marianense, lembrando que esta elite que tem se perpetuado no poder por muitos anos.
Sua situao de precariedade, em todos os aspectos evidenciados na pesquisa, reflete um
projeto de perpetuao da pobreza naquele local. Consequentemente, a Escola Municipal
Wilson Pimenta Ferreira dificilmente sair da situao de sucateamento, j que a escola se
configura como um dos mecanismos de mobilidade social nos dias atuais, o que no parece
interessar aos que preferem a manuteno desse estado geral das coisas, mesmo que
extremamente discrepante.
Mestranda em Educao
Apresentao
A presente pesquisa fundamenta-se na necessidade do uso de diferentes linguagens
e recursos didticos no ensino de Histria e acompanha as propostas de inovaes para a
Educao Bsica que vem sendo discutidas no Brasil. O professor de Histria vive em
constante desafio no que se refere ao desenvolvimento de prticas pedaggicas eficientes e
inovadoras, capazes de atrair o interesse pelo aprendizado histrico.
Dessa forma, a introduo de novos objetos de aprendizagem e de nveis
metodolgicos de ensino no permite mais organizar o trabalho em sala de aula em torno
de uma sucesso rgida de lies e exerccios e sim, instigam os professores a reinventar
permanentemente arranjos didticos e situaes de aprendizagem que respondam melhor a
heterogeneidade e s necessidades dos alunos.
764BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de Histria: fundamentos e mtodos. 4 ed. So Paulo: Cortez,
2011, p. 57.
765Para compreender a cultura histrica importante investigar os usos do passado entre os quais est a histria
766BOURTIER, Jean e JULIA, Dominique (orgs.). Passados recompostos: campos e canteiros da histria. Rio de Janeiro:
UFRJ e Fundao Getlio Vargas, 1998, p. 103.
767Em sua obra Passados Recompostos: campos e canteiros da Histria Dominique Juli e Jean Bourtier
ressaltam uma mudana no prprio estatuto da disciplina diante da qual os historiadores vo se apegar ao
mtodo, s operaes tcnicas e aos procedimentos para legitimar seu ofcio.
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campo de hipteses de modo a compor grandes esquemas explicativos para a construo
de um passado que possa ser amplamente compartilhado.
Sob essa tica e considerando pontos relativos ao mtodo, a histria escolar
aproxima-se da histria acadmica, apesar de terem objetivos distintos. A histria escolar
destinada escola e construda nela. Tem como objetivo ensinar e aprender a pensar
historicamente, rompendo com as naturalizaes e abrindo o horizonte de expectativas.
As anlises que buscam relacionar a produo historiogrfica ao ensino de Histria,
seja via programas curriculares, seja via livros didticos, tm se concentrado especialmente
no momento em que a historiografia brasileira se constitua, no mbito do Instituto
Histrico Geogrfico Brasileiro, o que tambm ocorria com a disciplina escolar Histria.
Obviamente deve-se salientar que ao colocar distines entre a histria acadmica,
de circulao massiva e escolar, no tem-se como objetivo hierarquizar o passado e de
prticas de memria768 em uma dada temporalidade.
Podemos inferir que parte da produo do conhecimento histrico pensar o
ensino e a escrita no deixando de explicitar suas diferenas. Apesar dos procedimentos,
regras, objetivos e finalidades no serem os mesmos, esses campos podem ser considerados
como interdependentes e a suposta hierarquia entre eles passa ento a no existir mais.
De acordo com a viso aqui defendida, os espaos de silncio e desconfiana entre
escola e universidade devem ser diminudos. Cabe ressaltar que pensar uma teoria da
histria parte indissocivel da prpria pesquisa e da reflexo sobre o seu ensino.
1.2 Carlo Ginzburg e a microhistria: conceitos e metodologias
Esta pesquisa baseia-se na importncia da microhistria e dos conceitos trabalhados
por Carlo Ginzburg para o campo da historiografia. Tem-se como objetivo discutir alguns
dos conceitos desse autor e testar suas potencialidades para o ensino de Histria.
A microhistria, como j citado anteriormente, constitui-se em um gnero textual
marcado por particularidades no tratamento do conhecimento histrico. Trs historiadores
destacaram-se no nascimento dessa tradio historiogrfica: Carlo Ginzburg Edoardo
Grendi e Giovanni Levi, especialmente com suas publicaes, pela editora Einaudi, entre
1980 e 1988.
Essa corrente vem sendo praticada principalmente por historiadores italianos,
franceses, ingleses e estadunidenses, com nfase no papel desempenhado pelos primeiros
microhistoriadores, na importncia da revista Quaderni Storici e no sucesso da coleo
italiana Microstorie.
A revista Quaderni Storici talvez tenha sido o empreendimento coletivo mais evidente
dos micro historiadores e a fonte mais slida para a pesquisa da sua produo
historiogrfica. Os trabalhos ai publicados na coleo Microstorie tambm queriam dar conta
768Entende-seaqui como memria o saber sobre o passado que todo indivduo possui enquanto membro de
um grupo social.
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das heterogeneidades, descontinuidades da realidade histrica e do conhecimento que o
trabalho do historiador produz sobre elas.
Queriam uma mudana radical na escala de observao propondo uma escala
microanaltica para a reconstruo do vivido e das relaes interpessoais de indivduos de
uma poca. Visavam reconstruir conflitos, dispositivos locais e deslocamentos opondo-se
viso etnocntrica769.
A microhistria representou uma renovao dos procedimentos analticos
proporcionada pelo interesse pelas transformaes, expressividade e representaes. Era
assim feita a escolha essencial de uma escala de observao baseada na convico central de
que ela oferecia a possibilidade de enriquecer as significaes dos processos histricos por
meio de uma renovao radical das categorias interpretativas e de sua verificao
experimental.
Dessa proposta tambm faz parte uma reflexo constante, politicamente motivada
por um interesse genuno e teoricamente articulado pelo problema da transformao social,
das oportunidades do protagonismo social, e da prpria definio mais concreta dos
sujeitos da histria.
Nas ltimas dcadas podemos destacar que a historiografia encontrou-se em um
momento de incerteza, momento esse marcado por dvidas e interrogaes. Grandes
tradies historiogrficas se fragmentaram em uma multiplicidade de correntes e mtodos.
A perda das certezas da quantificao, o abandono dos recortes clssicos dos
objetos de pesquisa histrica, os questionamentos acerca das noes de mentalidades ou
de cultura popular, das categorias como classes sociais ou socioprofissionais e dos
modelos de interpretao ( marxista, estruturalista, etc) so algumas dos sinais dos
novos desafios que a histria enfrentava770.
Alguns problemas se tornaram evidentes: a subjetividade do historiador; as
categorias utilizadas na anlise (que tem elas prprias uma histria) e as categorias usadas
pelos atores; as hierarquizaes e concepes fixas no davam mais conta da especificidade
das relaes e trajetrias que definem as identidades .771
Esse abandono j se mostrou necessrio sob a abordagem da Escola dos Annales,
na qual estudiosos como Braudel e Foucault apontaram para uma antropologia histrica
que trabalhasse o conceito de estrutura tentando pensar a histria de ritos, mitos, etc.
769Ao romper com essa viso etnocntrica, buscam uma aproximao com a Antropologia atravs do uso de
referncias tericas de Clifford Geertz e Fredrik Barth.
770Chartier trata deste assunto, logo nas primeiras linhas de sua obra Beira da Falsia. O sugestivo ttulo j
insinua metaforicamente, os caminhos imprecisos percorridos pelos profissionais da histria atual. Ora, marchar
sobre rochas altas e ngremes, beira-mar, demonstra expressar, simbolicamente, a dvida, acompanhado do
temor que toma conta das operaes historiogrficas.
771CHARTIER, Roger. Beira da Falsia: A histria entre incertezas e Inquietude. Porto Alegre: Ed.
Universidade/UFRGS, 2002.
772De acordo com Roger Chartier, o tempo das certezas da objetividade e da epistemologia da coincidncia
entre o real e o se conhecimento, marcado por escolas historiogrficas anteriores, protegia a histria de
inquietudes.
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princpios de regulao que a ordenam e a controlam, e interrogada em seus modos de
abonao e de veracidade.773.
Como novo campo metodolgico, a microhistria surge com a pretenso de
reconstruir, a partir de uma situao particular, a maneira como os indivduos produzem o
mundo social, por meio de suas alianas e confrontos, atravs das dependncias que os
ligam ou dos conflitos que as opem. O objeto da histria para a ser as racionalidades e as
estratgias executadas pelas comunidades, parentelas, famlias, indivduos.774
De acordo com Ginzburg, importante verificar como um indivduo das camadas
populares apropria-se e transforma elementos intelectuais que vem da cultura letrada.
Segundo ele, o que os leitores fazem de suas leituras uma questo decisiva diante da qual
tanto as anlises temticas da produo impressa quanto aquelas da difuso social das
diferentes categorias de obras permanecem impotentes. Os modos como os indivduos se
apropriam de um motivo intelectual ou de uma forma cultural so mais importantes do que
as distribuies estatsticas desse motivo.
Como tendncia historiogrfica, a microhistria aproximou-se de outras cincias
sociais. As interrogaes acerca da cultura, traziam questionamentos que somente no
dilogo com outros campos de anlise poderiam ser respondidos.
Assim, a microhistria ligou-se a Thompson e demonstra seu interesse pelas
relaes sociais e significados culturais, aproximando a Histria cada vez mais da
Antropologia. Nela se encontravam discusses sobre organizao social e formas de
articulao e integrao dos grupos sociais, as inter-relaes entre eles e transformaes
sociais, etc.
Neste mesmo momento a Antropologia tambm passava por questionamentos e
crise de modelos tradicionais que consideravam a comunidade como uma variao
estrutural coerente dentro de uma sociedade mais ampla. Antroplogos como Fredrik
Barth j tentava romper com essa viso criticando o etnocentrismo e defendendo a ideia de
que aquilo que costumamos chamar de sociedades so sistemas desordenados,
caracterizados pela ausncia de fechamento .775
Trabalhos como os de Peter Burke, Jacques Revel, Edoardo Grendi, Gionanni Levi
e Carlo Ginzburg so fundamentais para a definio dos procedimentos microanalticos.
Ao definir uma escala de observao, este tipo de narrativa fez frente aos
historiadores estruturais por apresentar melhor sentido do fluxo do tempo. Alm disso,
esta corrente tende a envolver-se cada vez mais com o privado, o pessoal, o vivido.
773BURKE, Peter. O que Histria Cultural?. Traduo: Srgio Goes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2005.
774LIMA, Henrique Espada. A micro-histria italiana: escalas, indcios e singularidades. Rio de Janeiro: Civilizao
Brasileira, 2006.
775BARTH, Fredrik. 2000. O Guru, o Iniciador e Outras Variaes Antropolgicas (organizao de Tomke Lask). Rio de
776GINZBURG, Carlo. A micro-histria e outros ensaios. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p.169.
777A escolha desses dois conceitos deve-se sua importncia dentro da prpria microhistria bem como pela
importncia deles para o trabalho didtico da Histria na Educao Bsica. Busca-se instigar os alunos
compreenso do conceito de cultura e cultura popular atravs da reduo da escala de observao que coloca
em relevo problemas que no seriam observveis de outro modo.
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As sequncias didticas so um conjunto de atividades ligadas entre si, planejadas
para ensinar um contedo, etapa por etapa. Organizadas de acordo com os objetivos que o
professor quer alcanar para a aprendizagem de seus alunos, elas envolvem atividades de
aprendizagem e de avaliao. Podem e devem ser usadas em qualquer disciplina ou
contedo, pois auxiliam o professor a organizar o trabalho na sala de aula de forma gradual,
partindo de nveis de conhecimento que os alunos j dominam para chegar aos nveis que
eles precisam dominar.
Os textos escritos ou orais que produzimos diferenciam-se uns dos outros pois so
produzidos em condies diferentes. Porm, podemos perceber certas regularidades em
um conjunto de textos com caractersticas semelhantes, o que chamamos de gneros de
textos. Os gneros, de acordo com Bakhtin (2003, p.262), so infinitos porque so
inesgotveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque em cada campo
dessa atividade integral o repertrio de gneros do discurso, que cresce e se diferencia
medida que se desenvolve e se complexifica um determinado campo. Sob essa abordagem,
podemos inferir que os artigos publicados pela Revista de Histria da Biblioteca Nacional
constituem um gnero textual, j que possuem caractersticas e finalidades prprias.
Nas sequncias que esto sendo produzidas, os temas que suscitaro o debate
estaro ligados microhistria e as possibilidades de sua abordagem; a Revista de Histria
da Biblioteca Nacional e s vises acerca do artigo escolhido para o trabalho; presena
nos artigos analisados dos dois conceitos presentes nas obras de Carlo Ginzburg e
escolhidos aqui para a abordagem microanaltica - reduo de escala e circularidade cultural -;
Publicada pela Sociedade de Amigos da Biblioteca Nacional (SABIN), com apoio
do Ministrio da Cultura e patrocnio da Petrobras e outras grandes empresas, sob o
amparo da Lei Rouanet, a Revista de Histria da Biblioteca Nacional (RHBN) tem-se
destacado pela divulgao da moderna e atualizada historiografia brasileira, revelando
tendncias e perspectivas tericas e metodolgicas da rea. Os artigos publicados em suas
pginas so selecionados por reconhecidos especialistas da rea e, acredito, a Revista tem
alcanado largo reconhecimento entre os historiadores. Deste modo, possvel encontrar
nas pginas da RHBN material histrico e historiogrfico produzido e/ou selecionado -
sejam imagens, textos, documentos e indicaes bibliogrficas - de alta qualidade, o que
motivou sua utilizao nessa pesquisa.
Lu A. S. Lana
Mestrando em Educao
FaE UFMG
Introduo
Com o propsito de analisar a difuso dos saberes da psicologia via cultura
impressa na educao em Minas Gerais, o presente artigo constri uma exposio acerca
das temticas que permeiam esta anlise: Histria social do conhecimento, da cultura
impressa e da Psicologia no Brasil em interface com a Educao.
Porm, consideramos os seguintes pontos: no de nossa pretenso adentrar de
maneira minuciosa aos debates presentes dentro das temticas mencionadas acima.
Realizaremos breve exposio acerca dos pontos que presentes dentro destas temticas,
que se fazem interessantes para a pesquisa de mestrado que est sendo realizada.
Apresentando alguns autores e conceitos que se pretende utilizar no processo de anlise
documental da pesquisa e de escrita da dissertao.
Da elaborao circulao do conhecimento
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O primeiro ponto abordado sobre a classificao do conhecimento. E para tal,
um referencial de grande importncia para a presente pesquisa e o de Peter Burke778. O
autor aborda em suas obras os mecanismos de classificao, apropriao e circulao do
conhecimento na sociedade. Que para presente pesquisa se faz muito pertinente, pois,
auxiliar no decorrer da anlise levando a perceber as maneiras como eram construdas e se
davam a difuso da cultura impressa sobre psicologia na educao mineira.
Burke779 trabalha com os conceitos de disseminao780, meios de comunicao781,
conhecimento disperso782 e casulo de informao783, para dar ao leitor uma ideia de como o
conhecimento desde sua elaborao ate sua difuso, possui um longo trajeto. Cogitando
dentro deste sistema de comunicao, filtros no processo de disseminao, circulao e
difuso. Onde segundo o autor, existe uma negociao de informaes, uma corretagem
784
epistmica entre o pblico geral785 e o de especialistas786. De modo a que a informao
pode se dar de maneira fluida ou viciosa787.
E de acordo com o autor, no movimento de intermediao destas informaes,
identificam-se que novas propostas cientficas podem ser descartadas, e velhos
conhecimentos, passados por uma bricolagem. Tudo a partir do interesse desses
intermedirios (que aqui consideramos sendo as pessoas em suas instituies e veculos
comunicativos da cultura impressa).
Assim, analisar esta perspectiva ser de grande importncia para a presente
pesquisa. Pois, a questo a ser pensada a de que: quando se busca comunicar algo, para
quem esta comunicao? E esta pergunta envolve todo o processo citado anteriormente
pelo autor. Buscando identificar onde e como circulavam, e por quem eram difundidos os
saberes impressos da Psicologia na educao mineira e belo-horizontina.
778
BURKE, P. Uma histria social do conhecimento: de Gutenberg a Diderot. So Paulo: Companhia das Letras,
2003; BURKE, P. Uma Histria Social da Mdia: De Gutenberg Internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2006;
BURKE, P. Uma Histria Social do Conhecimento II: da enciclopdia e Wikipdia. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
779 BURKE, P. Uma Histria Social do Conhecimento II: da enciclopdia e Wikipdia, p.112-113.
780 O conceito de disseminao seria a soluo para o problema do conhecimento disperso, fora do alcance
de muitas pessoas que precisam dele, oferecendo uma sada para aqueles que apenas ouvem o que outros
acham que querem ouvir.
781 Seria os diversos veculos comunicativos pelos quais se pode realizar uma disseminao ampla de
FLECK, Ludwik. La gnesis y el desarrollo de um hecho cientifico. Madri: Alianza, 1986. - Gnese e desenvolvimento de
788
um fato cientfico. Trad., Georg Otte, Mariana Camilo de Oliveira. Belo Horizonte: Fabrefactum. 1. ed., 1935.
2010.
789 So grupos formados por pensadores e especialistas de um dando campo cientfico, representantes de seu
conhecimento e agentes da divulgao destes.
790 onde se encontram especialistas formados para interpretar e que dominam determinados cdigos de um
grupo.
791 onde se encontram os leigos instrudos, pessoas que no so necessariamente cientistas, mas possuem
um fato cientfico.
794 CHARTIER, Roger. A Ordem dos Livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre o sculos XIV e
798 Ideia encontrada em BICCAS, Maurilane de Souza. O impresso como estratgia de formao: Revista do Ensino
de Minas Gerais (1925-1940). Belo Horizonte: Argvmentvm, 2008.
799 SCHELBAUER, Analete Regina. ARAJO, Jos Carlos S. Histria da Educao pela Imprensa. Campinas, SP.
Alnea, 2007. - CATANI, Denice Brbara e BASTOS, Maria Helena Cmara (Org.), 1997; Apndice- A
imprensa peridica educacional no Brasil: de 1808 a 1944". In: Educao em Revista. A imprensa peridica e a
Histria da Educao. So Paulo: Escrituras, 1997. - PEIXOTO, Anamaria Casassanta. A Reforma Educacional
Francisco Campos Minas Gerais, Governo Presidente Antnio Carlos. Belo Horizonte: Faculdade de
Educao/Universidade Federal de Minas Gerais, 1981. (Dissertao Mestrado). - DUARTE, Marisa Ribeiro
Teixeira . O trabalho de ensinar: pedagogia para a professora. Belo Horizonte: Faculdade de Educao/
Universidade Federal de Minas Gerais, 1988 (Dissertao de Mestrado). - PRATES, Maria Helena. A
introduo oficial do movimento de escola nova no ensino pblico de Minas Gerais: a escola de aperfeioamento. Belo
Horizonte Faculdade de Educao/ Universidade Federal de Minas Gerais, 1989. (Dissertao de Mestrado).
- SOUZA, Rita de Cssia. Sujeitos da educao e praticas disciplinares: uma leitura das reformas educacionais mineiras a
partir da Revista do Ensino (1925-1930). Belo Horizonte Faculdade de Educao/ Universidade Federal de
Minas Gerais, 2001. (Dissertao de Mestrado). - BORGES, V.L.A. A ideologia do carter nacional da educao em
Minas Gerais: Revista do Ensino (1925-1929). Campinas, Faculdade de Educao da Unicamp, 1993.
(Dissertao de Mestrado).
800 FARIA, Miguel Fabiano. Educao Fsica Na Revista Do Ensino De Minas Gerais (1925-1940).
Universidade Federal De Minas Gerais BICCAS, Maurilane De Souza. Nossos Concursos E A Voz Da
Prtica: A Revista Do Ensino Como Estratgias De Formao De Professores Em Minas Gerais (1925-
1930) Cadernos De Histria Da Educao - N. 4 - Jan./Dez. 2005.
Concluindo ento esta apresentao, para a presente pesquisa toda essa proposta se
faz pertinente, pois, reconhecendo a materialidade dos livros e impressos, podem-se
compreender especificidades contextuais da sociedade e dos produtores deste
conhecimento ali presente; assim como tambm dos interesses por trs deste
conhecimento ali selecionado, publicado e difundido. O que fornece os elementos para
801 GEBRIM, Virginia Sales. O Legado da psicologia na conformao da criana na pedagogia nova no Brasil.
In: LOURENO, rika; ASSIS, R. M; CAMPOS, R. H. F. (Org). Historia da Psicologia e Contexto Sociocultural.
Belo Horizonte: Puc Minas, 2012, p.263.
802 RODRIGUES, Anderson de B. ARAUJO, Jaqueline V. B. de. Histria da psicologia escolanovista em
Gois sob o prisma da relao psicologia educao. In: LOURENO, rika; ASSIS, R. M; CAMPOS, R. H.
F. (Org.). Historia da Psicologia e Contexto Sociocultural. Belo Horizonte: PUC Minas, 2012, p.291.
803 _________________. de. Histria da psicologia escolanovista em Gois sob o prisma da relao
Graduanda em Histria
As misses de evangelizao foram uma das portas de entrada mais eficientes para
os europeus no continente africano. O Congo e a converso do Manicongo so
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amplamente mencionados no rol de documentos disponveis, que servem de base para
vrios estudos sobre a presena da Igreja Catlica em frica. Os missionrios tinham a
plena convico de que somente a f crist era a verdadeira e que os povos africanos no s
precisavam ser civilizados atravs do conhecimento das escrituras sagradas, como tambm
reconhecer que todos os outros credos eram fundamentalmente falsos ou
lamentavelmente deformados806. Da a urgncia de evangelizao das almas que
desconheciam a verdadeira religio.
De acordo com Brasil Davidson, na frica era comum no haver uma estrutura
unificada de organizao social, mesmo em comunidades prximas geograficamente, pois
os modos de vida dos diferentes grupos dependiam da sua cosmogonia.807 Assim, ao
806 BOXER, Charles. A Igreja e a expanso Ibrica, 1440- 1770. Trad. Maria de S Contreiras. Lisboa: Edies
70, 1978, p.46.
807 DAVIDSON, Basil. Os Africanos:uma introduo sua histria cultural. Trad. Fernanda Maria Tom da
Silva. Lisboa: Edies 70,1969, p.89.
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analisarmos as organizaes polticas do territrio angolano da segunda metade do sculo
XVII at o ltimo quartel do sculo XVIII, necessrio entender que suas estruturas eram
bastante especficas e diversificadas. Deforma geral, o que os historiadores modernos
fazem estabelecer equivalncias artificiais entre cargos e posies Mbundus com os
existentes nas estrutura polticas europeias, usando conceitos como Estado, rei, ministros,
entre outros, para designar as posies hierrquicas no Ndongo. Joseph Miller define de
forma muito coesa a amplitude do conceito de organizao poltica para os Mbundus, que
transcende o modelo europeu:
808 MILLER, Joseph C. Poder poltico e parentesco: os antigos Estados Mbundu em Angola. Trad. Maria da
Conceio Neto. Luanda: Arquivo Histrico Nacional, 1995.p.261.
809 COELHO, Virglio. Em busca de Kbs: estudos e reflexes sobre o Reino do Ndongo. Luanda: Editorial
Kilombelombe, 2010. p.314, nota de rodap 5.
813 ALENCASTRO, Luis Felipe de. O tratado dos Viventes. Formao do Brasil no Atlntico Sul. So Paulo:
Companhia das Letras, 2000. p. 30.
814 BIRMINGHAN, David. Portugal e frica. Trad. Arlindo Barbeitos. Lisboa: Documenta Histrica/Vega,
2003, p.87.
de viagem: o caso da Guin do Cabo Verde (Sculos XV-XVII). In: RODRIGUES, Jos Damio.
RODRIGUES, Casimiro. Representaes de frica e dos Africanos na Histria e na Cultura Sculos XV-XXI, Ponta
Delgada, Centro de Histria de Alm-Mar, 2011, p.415.
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Entre os sculos XV e XVIII, algumas noes como gentio e idlatra
estiveram presentes nas descries que os viajantes fizeram das prticas religiosas que
existiam na costa da frica Ocidental.
O Padre Baltasar Barreira, j em uma das suas primeiras cartas, escritas em 1604,
quando chega a Cabo Verde e aguarda alguns dias at se dirigir a costa da Guin, afirmava:
[...] e de l [Guin] espero mandar to boas informaes da disposio daqueles Reys e
gentilidade para receber nossa santa f catlica, que se tome assento sobre nossa ficada e
perpetuao nestas partes.823
Percebe-se, portanto, que estes termos so recorrentes nas fontes que se referem a
regio da Guin, desde o sculo XV. Cabe agora compreender o que eles significavam e
quais os objetivos dos viajantes ao utiliz-los.
819 CADAMOSTO, Lus de e SINTRA, Pedro de. Viagens. Lisboa: Academia Portuguesa da Histria, 1988,
p.98.
820 PEREIRA, Duarte Pacheco. Esmeraldo de Situ Orbis. 3 edio. Lisboa, 1954, p. 134.
821 ALMADA, Andr lvares de. Tratado Breve dos Rios da Guin de Cabo Verde (1594). Leitura, introduo,
modernizao do texto e notas de Antnio Lus Ferronha. Lisboa: Grupo de Trabalho do Ministrio da
Educao para as Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses, 1994, p.258.
822_________. Tratado Breve dos Rios da Guin do Cabo Verde, 1994, p.296.
823 Carta do Padre Baltasar Barreira ao Provincial de Portugal, 22/07/1604, Monumenta Missionria Africana,
v. IV, p.46.
824 DONELHA, Andr. Descrio da Serra Leoa e dos Rios de Guin do Cabo Verde (1625). Edio, introduo,
notas e apndices: Avelino. T. da Mota. Lisboa: Junta de Investigaes Cientficas do Ultramar, 1977, p. 128.
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Jos da Silva Horta afirma que estes termos tinham como objetivo caracterizar as
crenas dos povos africanos como um erro que importava superar, j que a descrio dos
viajantes era organizada de acordo com o sistema de categorias disponveis no cdigo
referencial ibero-cristo825.
A gentilidade foi, durante muito tempo, associada a ausncia de lei, aqueles situados
fora do Cristianismo, Judasmo ou Islamismo eram integrados a categoria de gentios. Os
viajantes estabeleciam uma diferena significativa em relao aos gentios e aos mouros.
Os mouros eram associados ao eterno pecado, por terem acreditado na falsa f de
Maom. Em contrapartida, os gentios eram capazes de conhecer o caminho da
salvao, desde que se convertessem ao cristianismo826. Alm disso, os gentios, por serem
considerados povos sem f e sem lei, foram caracterizados como povos que poderiam ser
facilmente convertidos.
Um exemplo deste discurso, gentios versus mouros, est presente nas cartas do
Padre Baltasar Barreira. Quando indicado como superior da misso para a Guin, j
demonstra que tem conhecimento sobre a presena do islamismo naquela regio827. Uma
vez que, ao aceitar a misso afirma que necessrio salvar as almas de muitos que esto
sendo contaminados pela maldita seita de Mafamede.828 Percebe-se, portanto, que o seu
discurso ser influenciado pelo contexto das cruzadas contra os muulmanos. Logo, sua
perspectiva sobre os povos africanos influenciados pelo Isl ser extremamente pejorativa.
825 HORTA. O africano: produo textual e representaes (sculos XV-XVIII). In: CRISTVO, Fernando
(Org.). Condicionantes culturais da literatura de viagens: estudos e bibliografias. Lisboa: Cosmos, 1999, p.256.
826 DESTRO, L. C. F. . Cristos, mouros e gentios: os africanos subsaarianos nos relatos de viagem dos
sculos XV e XVI. In: XXVII SIMPSIO NACIONAL DA ANPUH, 2013, Natal. Anais Eletrnicos do
XXVII Simpsio Nacional de Histria da ANPUH, 2013, p.1.
827 De acordo com Alberto da Costa e Silva, aps a morte de Maom, em 632, os rabes unificados por
Maom, abalaram o poder do Imprio Bizantino e conquistaram o Iraque, a Sria, a Palestina, a Prsia, a
Armnia, a sia Menor, o Egito e os litorais da frica do Norte at a Tunsia. Acrescentaram a seus
domnios, no final do sculo VII, o Afeganisto, a ndia e quase todo o norte da frica. Os rabes
islamizados acreditavam que era obrigao do crente, ampliar os territrios sob o governo dos fiis, para isto
realizavam a guerra santa (jihad). Vale ressaltar que a expanso do islamismo esteve intimamente ligada a
expanso das rotas comerciais transaarianas. Isto no significa, contudo, que os rabes controlavam todo o
comrcio transaariano, j que grande parte deste comrcio continuava na mo dos berberes islamizados. Estes
berberes islamizados tiveram papel importante na difuso do islamismo na frica. Uma vez que, eram eles
que chegavam a diferentes espaos no territrio africano em busca de mercadoria e com a inteno de
estabelecer comrcio. Atravs deste contato difundiam tambm o islamismo. In: SILVA, Alberto da Costa e.
Nas terras do Islame. In: A manilha e o libambo: a frica e a escravido, de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2002.
828 Carta do Padre Baltazar Barreira ao Padre Antonio Mascarenhas, 16/3/1604. In: MMA. 1965, v. IV,
p.35.
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Alm de representar os povos islamizados como falsos e traioeiros, o seu discurso
tende a distinguir os islamizados dos gentios, reforando a perspectiva de que os
gentios so mais facilmente convertidos que os islamizados:
829 Carta do Padre Baltasar Barreira ao Padre Joo lvares, 01/8/1606. In: MMA. 1965, IV, p.172.
830 PAIVA, Daniela Rabelo Costa Ribeiro. As descries da cidade de Lisboa: escrita, poder e sociedade no Portugal dos
Felipes. Dissertao (Mestrado em Histria). UFF, 2013, 112f.
831 RECHEADO, Carlene. As misses franciscanas na Guin (SculoXVII). 118f. Dissertao (Mestrado em
Histria) - Faculdade de Cincias Sociais e Humanas/ Universidade Nova de Lisboa, Setembro de 2010,
p.18..26.
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A associao de alguns povos da Guin com o termo gentio no ingnua,
caracterizar alguns povos da costa com este termo, significava recorrer a um imaginrio
religioso cristo dos sculos XIII ao XV, e a interpretao crtica da figura dos gentios no
Novo Testamento, que eram representados como um povo desejoso de se aproximar da f
de Cristo e por ele chamado a formar a sua Igreja832. J o termo idlatra/idolatria,
remetia a uma referncia bblica, reenviava a Isaas 37:19, segundo o qual os deuses das
naes dos Gentios no eram deuses mas obras de mos de homens, madeira e pedra.833
A Idolatria aparece associada a ideia de artes mgicas, adorao de dolos, prtica de
encantamentos, feitios e sortilgios. Ser idlatra significava prestar a falsas divindades o
culto reservado ao verdadeiro Deus.
Cabe ressaltar que a caracterizao realizada pelos viajantes, dos povos que viviam
entre o Rio Gmbia e a Serra Leoa, como gentios/ idlatras no nos ajuda a
compreender as prticas religiosas destes. Ao contrrio, se o historiador no for cauteloso
corre o risco de utilizar estes termos e dificultar o entendimento sobre as caractersticas
religiosas presentes na regio.
Horta, por exemplo, chama ateno para o fato de que o peso concedido pelos
viajantes a noo de idolatria, no permitiu que eles compreendessem o carter de mero
suporte ritual e no de verdadeiro destinatrio do culto dos dolos. Os chamados
dolos eram objetos de culto atravs dos quais se aproximava dos espritos. Portanto,
no so deuses ou mesmo espritos, mas apenas o suporte para a propiciao dos
espritos.834 Diante disso, pretende-se agora explicar o que eram e o significavam aqueles
objetos que os viajantes denominavam como dolos e os povos locais chamavam de
Chin.
adaptao fontica crioula. Por isso, em ver de China melhor seria dizer Tchina, uma vez que em nenhuma
lngua nativa existe o ch com o som equivalente ao nosso, mas sim o teacher, no ingls. Optamos aqui por
utilizar o termo como aparece na fonte, mas importante considerar que a pronuncia diferenciada.
CARREIRA, Antnio. Smbolos, ritualistas e ritualismos nimo-fetichista na Guin Portuguesa. Boletim
Cultural da Guin Portuguesa, n63, ano XVI (1961), p. 508.
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O viajante-comerciante cabo-verdiano Andr lvares Almada, que foi um
mercador conhecido na Costa da Guin desde antes de 1570, descreve a adorao dos
Barbacins, desta forma:
Mais tarde ao tratar do culto dos Casangas e dos Banhuns, Almada afirmou que:
[...] se h-de saber que o vocbulo por onde esta gentilidade significa o
culto e venerao que tem de sua idolatria, por este nome China; de
modo que assim como ns chamamos a nosso deus, Deus, assim eles ao
que tm e adoram por Deus chamam China; donde, quando vem nossas
imagens de Cristo ou de Nossa Senhora lhe chamam China do branco,
ou China do Cristo, querem dizer Deus do cristo, ou coisa a que quer
ou que ama muito.838
E o que mais para espantar e que se pode ver a brutalidade desta cega
gente, a forma e figura desta sua negra china ou deus que veneram, a
qual esta: Tomam muitos paus, cada um de palmo e meio, todos muito
pretos em razo da variedade de licores que lanam em umas vasilhas,
que sangue de diversos animais; com que tingem estes paus;[...]; destes
paus fazem um feixe, que fica parecendo um cepo de talhar carne, de
altura de palmo e meio, do qual esto dependurados por umas cordinhas
delgadas duas ou trs caveiras de cachorros. E eis aqui o Deus que esta
cega e brutal gentilidade adora e mete no corao e isto que chamam
China.839
Baltasar Barreira tambm se referiu ao termo China ao tratar das prticas religiosas
dos povos da Guin. Em 1607, em uma carta destinada ao provincial de Portugal, o Padre
836 ALMADA. Tratado Breve dos Rios da Guin do Cabo Verde, p. 258-259.
837_________. Tratado Breve dos Rios da Guin do Cabo Verde, p.296-297.
838Das coisas do Cabo Verde e Costa da Guin, 1606. MMA, v. IV, p.204.
839 Das coisas do Cabo Verde e Costa da Guin, 1606. MMA, v. IV, p.204.
Alguns negros cristos naturais desta terra [Guin], que tornaro a ela da
Ilha do Cabo Verde, onde foro batizados, c o trato dos gentios viero
a tanto esquecimento das obrigaes de nossa santa f, que tinho
chinas, ou consentio que a tivessem seus escravos, e tratavo com elllas
e lhe encomendavo suas cousas, como fazem os gentios...840
China era o termo utilizado pelos Banhuns, Cassangas e Papeis para indicar a
representao simblica da residncia dos espritos. A existncia da China poderia ser
simbolizada atravs de vrios objetos (esculturas de madeira) ou seres (rvore). Mas as
representaes que aparecem de forma mais repetitiva nas fontes so as esculpidas em
madeira.
Portanto, como o ser supremo estava muito longe dos mortais, era necessrio uma
intermediao, e as foras espirituais que exercem essa ponte entre o divino e o humano
eram as Chinas. Por isso, as Chinas eram consultadas nas mais diversas circunstncias, em
Carta do Padre Baltasar Barreira ao Provincial de Portugal, 09/03/1607. MMA, v. IV, p. 238.
840
Embora tenhamos classificado uma srie de prticas sociais dos povos da Guin, j
citados, como prticas religiosas, legitimo destacar que esta classificao externa. As
sociedades estudadas no utilizavam este termo e no concebiam as prticas que classifico
como religiosas como uma esfera da vida social diferenciada. Ao contrrio, tais prticas
conectavam-se com uma multiplicidade de relaes sociais, relaes de poder, de
parentesco, de justia, etc.
Isto fica ntido quando observamos as situaes, presentes nas fontes, que
demonstram em que ocasies e com quais objetivos os povos da Guin recorriam aos
smbolos, reconhecidos como Chinas. O Padre Ferno Guerreiro escreveu em 1606 sobre a
utilizao das Chinas:
Donde o que eles tm por sua China e por seu Deus veneram com muito
grande respeito, nem fazem coisa sem seu conselho; e para mais o diabo
os enganar, lhes fala nela quando a trazem a pblico para treinarem
alguma coisa em juzo, ou fazerem algum juramento, ou querem saber
alguma coisa do que h de haver ou suceder no reino.842
Das coisas do Cabo Verde e Costa da Guin, 1606. MMA, v. IV, p. 204.
842
843SOUZA, Laura de Mello. Amrica Diablica: demonologia e imaginrio do descobrimento colonizao.
Ver. TB, Rio de Janeiro, 110: 85/100, jul-set, 1992.
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Um exemplo de deciso poltica tomada atravs da consulta a China, est presente
no relato de Almada, quando aborda o fato dos Barbacins realizarem uma consulta, no
mato sagrado, sobre se faro ou no guerra:
[...] a norte deste Rio vai correndo o Reino deste Rei de que se trata, que
um reino pequeno, de poucas terras, mas to belicoso em guerras que
tido entre os outros por um dos da fama. Causa isto, alm dele ser muito
bom capito e animoso, tem as suas terras muito cobertas de mato e
bosque serrado, no qual se mete e dele ofende aos inimigos; o seu
conselho de guerra jamais se descobre; nem se sabe; porque quando a
determina fazer, toma primeiro conselho para isto com os seus
deputados, e se mete com eles no bosque que est apegado aos seus
paos, e ali fazem uma cova de altura de trs palmos, redonda e todos os
do conselho se pem roda dela com as cabeas baixas olhando nela; ali
praticam todos se faro guerra ou no. E depois de tudo bem
examinado, e a determinao do que ho-de fazer tomada, tornam a
cobrir a cova. E diz o Rei: a terra no h de descobrir isto, porque fica
enterrado nela ho os do conselho tamanho medo de descobrirem o
que ali passam, que jamais se sabe.844
Alm dos exemplos ligados aos aspectos polticos, temos tambm elementos que
demonstram como os aspectos jurdicos estavam entrelaados as questes religiosas.
Valemtim Fernandes, no seu Manuscrito, referindo-se aos juramentos dos Banhuns,
escreve:
E qudo alguu faz algua cousa que lhe quere dar juramento levno ao
dito pao [China] onde h de jurar e bem se guarda de jurar falso porque
cuyda que logo ham de ser matados e jura assim por sua linhagem e
china: A china me mate descendo daquela palmeyra e isto porque todos
sobem a palmeira para tirarem vinho e assim juram tambm de outra
maneiradizendo cobra me mate ou lagarto etc.845
Alm dos exemplos acima, percebemos atravs dos relatos e cartas missionrias que
as Chinas esto presentes nas mais diversas situaes entre os povos da Costa da Guin,
como exemplo, citamos: na escolha e empossa mento de rgulo, chefes de povoado e
ritualistas (djanbacoses), no fanado (circunciso), nos ritos de passagem das classes
sociais, durante a gravidez na soluo de litgios e para juramentos em casos graves, em
certos rituais funerrios, prximos as sementeiras, quando da necessidade de chamar chuva,
para proteger a tabanka (povoado) contra os comedores de almas, contra a mortalidade
846______.
Tratado Breve dos Rios da Guin do Cabo Verde, p. 262.
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de gado e a pragas de insetos e outros. Estas situaes demonstram a ligao entre as
questes religiosas e os aspectos sociais, polticos e jurdicos.
Resumo: O estudo aqui proposto pretende realizar uma anlise do uso do trabalho
forado dos nativos nos territrios da provncia de Moambique entre finais do sculo XIX
e as trs primeiras dcadas do XX. A compulsividade do trabalho foi um modo largamente
empregado de explorao de mo de obra e contribua para o desarranjo tanto social,
quanto poltico e econmico dessas sociedades nativas. Nesse sentido, procuro apreender
as circunstncias do prolongamento de prticas que podem ser consideradas por muitos
como vestgio do escravismo, atravs de uma legislao aberta execuo de trabalhos
forados.
portuguesa. In: Portugal no mundo: tentativas para uma ocupao efetiva em frica no sculo XIX. Lisboa: Alfa, v.6,
1989, p. 100.
849 TAVEIRA, Maria Armanda Ramos. O imperialismo britnico e alemo durante a segunda metade do
sculo XIX. In: Portugal no mundo: tentativas para uma ocupao efetiva em frica no sculo XIX. Lisboa: Alfa, v.6,
1989, p. 116-131.
850 COUTINHO, Joo Azevedo. Do Nyassa a Pemba: os territrios da Companhia do Nyassa: o futuro porto
comercial da regio dos lagos. Lisboa: Typ. De Companhia Nacional, 1893. 247 p.
851 MATOS, Leonor Correia de. O problema do recrutamento da mo-de-obra local e respectivo cdigo de
trabalho. In: Portugal no mundo: tentativas para uma ocupao efetiva em frica no sculo XIX. Lisboa: Alfa, v.6, 1989,
p. 260-269.
852 CASTRO, Armando. A vida econmica das colnias portuguesas em frica de 1850 at ao eclodir da
Primeira Guerra Mundial. In: Portugal no mundo: tentativas para uma ocupao efetiva em frica no sculo XIX. Lisboa:
Alfa, v.6, p. 146-156, 1989.
853 HENRIQUES, Isabel Castro. Os Pilares da diferena: relaes Portugal-frica, sculos XV-XX. Lisboa:
portuguesas em Moambique. In: Est. Hist, Rio de Janeiro, v. 50, n 50, p. 313-330, 2012.
855 MENESES, MARIA PAULA G.O ''indgena'' africano e o colono ''europeu'' - a construo da diferena
856 CABAO, Jos Lus de Oliveira. Moambique: identidades, colonialismo e libertao. 2007. 475 f. Tese de
doutorado Antropologia social, Universidade de So Paulo. So Paulo. 2007.
857 ______. Moambique, p.108.
858 ZAMPARONI, Valdemir. De escravo a cozinheiro. Colonialismo e racismo em Moambique. 1 ed. Salvador:
portuguesas em Moambique. In: Est. Hist, Rio de Janeiro, v. 50, n 50, 2012, p. 313-330.
860 MARTINEZ, Esmeralda Simes. O trabalho forado na legislao colonial portuguesa- o caso de Moambique
(1899-1926). 2008. 331 f. Dissertao (Mestrado em Histria da frica) - Universidade de Lisboa, Lisboa,
2008.
861 MEDEIROS, Eduardo da Conceio. Histria de Cabo Delgado e do Niassa (C. 1836-1929). Maputo: S.N,
1997, 252p.
862 O princpio legal que os Africanos que no estavam a trabalhar como assalariados por um perodo fixo
em cada ano [...], seriam considerados vadios e assim vulnerveis ao shibalo, era o fundamento tcnico do
sistema. Os Africanos que recusavam o shibalo ou que quebravam os seus contratos estavam sujeitos a
trabalho correcional como prisioneiros, sendo o shibalo, deste modo, reforado pelo sistema penal.
(PENVENNE, Jeanne. O shibalo como um fator na migrao de trabalhadores do sul de Save 1900-1930 -
s.d.)
863 ______. O shibalo como um fator na migrao de trabalhadores do sul de Save, s.d.
864 ZAMPARONI, Valdemir. Da escravatura ao trabalho forado: teorias e prticas. In: Africana Studia, Porto,
n 7, 2004, p. 299-325.
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o trabalho ou servio imposto sobre ameaa de alguma sanso e
realizado involuntariamente.865
Se antes pautada em uma direo assimiladora 868, com uma jurisdio que
pressupunha aplicabilidade a todos os territrios portugueses, incluindo as colnias 869, a
poltica portuguesa passa a conceber o outro como legalmente diferente. 870 Esse outro
que sempre desprovido de civilizao, de afeio pelo trabalho, e por isso devia ser
educado por meio desse, tambm colocado em uma categoria generalizante. [...] a
implantao da moderna colonizao insistiu e apoiou-se numa hierarquizao cultural, a
partir do qual emerge, com grande nitidez, a ruptura entre o europeu e o indgena, dando
azo emergncia de vrios esteretipos que doravante configurariam a representao dos
colonizados. 871 As crticas centralizao partia de nomes como Antonio Enes, que era
defensor de uma poltica descentralizadora que dava maior autonomia s administraes
das colnias e rejeitava uma constituio nica que abrangeria todos os territrios
portugueses. 872 Era preciso afirmar a relao de dominao entre colonizador-colonizado e
uma constituio nica que presumiria os mesmo direitos e deveres a todos, ia contra
qualquer tentativa de diferenciao. Neste sentido A distino entre no indgenas e indgenas
que em Moambique ganha fora jurdica a partir da publicao de uma portaria do
Governo da colnia em 1917 um instrumento decisivo no processo de
institucionalizao da segregao laboral. 873
mundo: tentativas para uma ocupao efetiva em frica no sculo XIX. Lisboa: Alfa, v.6, 1989, p. 198-209.
869 MATOS. O movimento pendular centralizao/descentralizao na poltica colonial portuguesa, 1989.
870 THOMAZ. Disciplinar o indgena com pena de trabalho, 2012.
871 MENESES. O indgena africano e o colono europeu, p.78.
872 MATOS. O movimento pendular centralizao/descentralizao na poltica colonial portuguesa, 1989.
873 CABAO. Moambique, p.108, grifo do autor.
874 MATOS. O problema do recrutamento da mo-de-obra local e respectivo cdigo de trabalho, 1989.
875 As relaes internacionais, [...] tentavam agora construir-se sob uma nova ideia de relaes democrticas,
tuteladas por uma sociedade livremente consentida e aceita [...]. (AFONSO, 2008, p.110).
876 ZAMPARONI. Da escravatura ao trabalho forado, 2004.
877 MENESES. O indgena africano e o colono europeu, p.83.
878 THOMAZ. Disciplinar o indgena com pena de trabalho, 2012.
879 ZAMPARONI. De escravo a cozinheiro, 2007.
Resumo: O presente artigo parte da anlise de Verdadeiras informaes das terras do Preste Joo
da ndia (1540), um escrito do clrigo Francisco lvares (1465-1536/1541). Tal obra, de
carter etnogrfico, se insere no mbito das narrativas produzidas no contexto da expanso
portuguesa do sculo XVI, onde a descrio dos diversos povos e paragens contriburam
para a constituio daquilo que se configurou como a conscincia do Imprio portugus.
No caso de Verdadeiras informaes das terras do Preste Joo da ndia, lvares retrata suas
experincias e observaes colhidas no decorrer de sua participao como capelo da
conturbada embaixada (1520 e 1526) enviada ao reino do lendrio Preste Joo, localizado
na Etipia. Reino este que, desde o sculo XII, figura como horizonte na imaginao
europeia, principalmente na mentalidade portuguesa que manteve a mtica em torno da
Etipia at meados do sculo XVI. Esta constatao nos permite afirmar que o suporte
ideolgico do imprio ganha novos elementos ou mesmo substitudo por outros ao longo
da afirmao de sua hegemonia, tendo em vista o fato da Etipia passar da condio de
reino aliado terra de misso. Com efeito, nosso objetivo ser analisar o vocabulrio do
padre Francisco lvares - que se assenta no plano religioso, mas que em ltima instncia
visa garantir a expanso e conservao do reino portugus, tendo como base a
comprovao de um poderoso mito- buscando articul-lo aos contextos em que se
procedeu a transio do governo de Dom Manuel I para o de Dom Joo III.
Palavras-chave: Imprio; Verdadeiras informaes das terras do Preste Joo da ndia; Etipia;
Preste Joo.
Introduo
Claeys ainda salienta que o perodo das primeiras exploraes sucede a viagem
mtica e precede a era da viagem moderna. Esta ltima fez com que o antropolgico e o
etnogrfico assumissem a frente em detrimento do imaginrio. Segundo Domenico
Taranto, na modernidade temos um utopismo menos radical que se manifestar na maior
sensibilidade no que concerne a forma dos regimes. Esta preocupao possibilitou a
constituio dos Estados Modernos. 884
880 Podemos citar Lus Filipe Thomaz, Antnio Vasconcelos de Saldanha e Pedro Cardim, e suas respectivas
obras: THOMAZ, L. F. A idia imperial manuelina. In: DOR, A.; LIMA, L. F. S. & SILVA, L. G. Facetas do
Imprio na Histria: conceitos e mtodos. So Paulo: Editora HUCITEC, 2008, pp. 39-104; SALDANHA,
Antnio Vasconcelos de. Iustum imperium: dos tratados como fundamento do imprio dos portugueses no
Oriente; estudo de histria do direito internacional e do direito portugus. Lisboa: Fundao Oriente, 1997;
CARDIM, P. O Poder dos afectos: ordem amorosa e dinmica poltica no Portugal do Antigo Regime. Tese de
doutoramento em Histria, Faculdade de Cincias Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 2000.
881 DOR, Andra. Relaes entre Oriente e Ocidente (SC. XIII-XVII): mercadores, missionrios e
1987. P. 95/96.
884 CAILL, Alain; LAZZERI, Christian; SENELLART, Michel. Toms Morus (1478-1535), Tomas
Foi desde o sculo XIII - com o conhecimento mais preciso da parte oriental da
frica - que os europeus passaram a procurar de forma mais efetiva o mtico reino do
888
Preste Joo. Este intento foi mantido no imaginrio portugus at o momento de
expanso do imprio. por esta razo, que na documentao coeva sempre observamos os
Infantes D. Henrique, D. Pedro, D. Joo II, D. Manuel e D. Joo III se referirem e se
dedicarem busca do mtico reino da Etipia; somente D. Sebastio se dedicou a outros
sonhos.889
885 Era o caso das cerimnias que contavam com o uso de incenso, sinos e canes nas horas cannicas.
Viajantes do sculo XIII como William Rubruck muitas vezes relatam estas evidncias. desta vaga imagem
de um Cathay crist, que vir a lenda do Preste Joo. O texto a citar pela primeira vez este personagem est
atribudo Oto de Freising, que faz um resumo do relato que havia recebido em 1145 de um bispo da Sria
franca, Hugo de Gabala. Segundo este, quatro anos antes certo Joo, rei-sacerdote, cristo do reino
nestoriano, residente alm-Prsia, vencera o sulto muulmano persa Sanjar e conquistara a cidade imperial de
Ecbtana, estando prestes a caminhar para Jerusalm, teria sido impedido pelo rio Tigre, pois no teria
barcos. Ver: RICHARD, Jean. L'Extrme-Orient lgendaire au Moyen ge: Roi David et Prtre Jean. In:
MSTSUURA, Koishiro. Les civilisations au rgard de lautre (Actes du colloque international de Paris, 13 et
14 dcembre 2001). Paris: UNESCO, 2001. P. 117.118.
886 O Relatio de Davide narrava as vitrias do Rei Davi, filho do rei de Israel no pas Musul Manp, ele prprio
filho de um Serge, filho de Joo. Estes governantes foram apresentados como nestorianos. Contudo as
verses que corriam no Ocidente no falavam de um David filho do Preste Joo; o nome de David fora
substitudo pelo de Preste Joo. Ver: RICHARD, Jean.
887 RICHARD, Jean. L'Extrme-Orient lgendaire au Moyen ge: Roi David et Prtre Jean, p. 236, 237
888 A Nbia passou a ser includa na lista de naes que o Papa enviava emissrios da ordem Dominicana e os
missionrios franciscanos; entre 1305 e 1314, o dominicano William Adam teria conhecido a Etipia. Ver:
RICHARD. L'Extrme-Orient lgendaire au Moyen ge, p. 237
889 MATTOSO, Jos. Os rgios protagonistas. In: Histria de Portugal. Editorial Estampa.Vol: III. PP.437-
460.
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significante que sua realidade. Para nos, a relevncia em se considerar as variaes que o
mito do Preste Joo apresentou no imaginrio Europeu, consiste na possibilidade de
historicizar os empreendimentos martimos dos reis portugueses na busca de um reino
cristo envolto por muulmanos. Como o caso da conturbada embaixada do Padre
Francisco lvares, enviada Etipia por D. Manuel em 1526.
Pouco se sabe sobre a origem de lvares; apenas que nasceu em 1465, em Coimbra,
sendo incerta a data de sua morte (1536 ou 1541). Alm disso, foi clrigo secular da Igreja
de Santa Justa de Coimbra e exerceu a funo de capelo da j referida embaixada; fato que
denota proximidade com os crculos cortesos. A sua relao das terras do Preste Joo,
Verdadeiras informaes das terras do Preste Joo da ndia, foi publicada em 1540. Nela demonstra
preocupaes que vo desde a situao geogrfica e natural da Etipia, perpassando pelos
costumes e prticas religiosas, at a arquitetura de suas cidades, organizao social e
econmica. Tudo inserido no mbito das aes evangelizadoras.
Uma leitura atenta destes escritos nos permite identificar certas categorias, quais
sejam: justia, honra, engenho (no sentido de capacidade inventiva) converso e natureza.
Por hora, optamos por nos esforar em definir as trs primeiras categorias citadas; sendo
justia, a primeira delas.
Honra e justia
Notemos que D. Joo II inicia em seu reinado uma reforma jurdica, criando uma
verdadeira burocracia rgia. Esta reforma lavada adiante por D. Manuel I, que avanara
com a preocupao sistemtica de arrumar a legislao, as prticas legislativas e judiciais do
reino; acrescentando autoridade do rei j estabelecida por D. Joo II, instrumentos legais
que permitiram a essa autoridade, manifestar-se com eficcia. Assim impe-se a
uniformizao dos revistos forais, uma nova formao jurdica fortemente romanista e
influenciada pelo humanismo italiano, bem como, uma reforma dos pesos e medidas; tudo
isso muito bem documentado. 890
890MATTOSO. Os rgios protagonistas, 438-449. Por esta razo, No plano dos livros impressos entre os sculos
XV a XVIII, as matrias jurdicas (do direito civil ou do direito cannico, de direito comum ou de direitos
ptrios, tratadstica ou na paxstica) cobriam uma elevada percentagem de edies.
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que suas leis no eram escritas, e os seus julgamentos subjetivos. Isto pode ser comprovado
no requerimento de justia que D. Lus faz ao Preste Joo, por ocasio da morte de seus
homens no lugar de Arquico:
[...] mas mandou o feitor e lngua que fosse dizer ao Betudete de sua
parte porque mandava deitar ferros aos portugueses e os faziam tratar
to mal aos escravos capados. Respondeu o Betudete dizendo que quem
nos mandava c vir, que Matheus no fora a Portugal por mandado do
Preste Joo nem da rainha Elena; e que se o escravo lanara ferros aos
portugueses, que os portugueses os tornassem lanar ao escravo, e que
esta era a justia da terra.893
891 LVARES, P. Francisco. Verdadeira Informao sobre a Terras do Preste Joo das ndia (I). Transcrio em
portugus atual: Maria da Graa Perico. Publicaes Alfa, S.A., Lisboa, 1989, p. 79.
892 ______. Verdadeira Informao sobre a Terras do Preste Joo das ndia, p. 81.
893 LVARES. Verdadeira Informao sobre a Terras do Preste Joo das ndia, p. 82. O que o embaixador portugus
mandou pedir esclarecimento ao Betudete , pelo fato dos portugus terem sido presos.
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Neste campo a justia acaba dizendo respeito ao outrem, sendo todas suas virtudes
conexas com a justia. Assim, justo era aquele que pretendia a justia, no apenas a justia
do direito, mas tambm o respeito, a reverncia social, a gratido pelas mercs, etc. neste
sentido, que a honra, nossa segunda categoria encontra-se diretamente atrelada justia.
Observa-se que na sociedade etope, que no possua leis escritas, a justia era exercida por
pessoas tidas como "honradas".
Pousamos em uma ribeira corrente de muito boa gua [...] e nos fomos
ao dito lugar a ver um muito honrado fidalgo capito do lugar. [...] E fez-
nos grande gasalhado dando-nos muitas galinhas cozidas em manteiga e
muito vinho de mel [...] 894
[...] veio a nos um frade honrado que o segundo do Peste Joo, e
cabea e capito sobre os escrives do Preste Joo [...] 895
Este conceito de honra poderia tambm est atrelado ao respeito demonstrado pelo
soberano e povo Abexim s coisas do rei de Portugal, pois como temia ao mesmo Deus,
todo favor prestado aos homens do rei, caminharia no sentido do restabelecimento da
comunidade crist universal. Coisa que no poderia deixar de ser muito honrada.
894 ______. Verdadeira Informao das Terras do Preste Joo das ndia, p. 18. Lugar de Calote.
895 ______. Verdadeira Informao das Terras do Preste Joo das ndia, p. 101.
896 ______. Verdadeira Informao das Terras do Preste Joo das ndia, p. 30.
897 FARIAS, Jackson Fergson Costa de. Honra e escravido: um estudo de suas relaes na Amrica
Engenho
Ainda a respeito dos quadros legais que procuravam justificar a poltica imperial de
Portugal, observarmos em Verdadeiras informaes das terras do Preste Joo da ndia a categoria
engenho. Devido a dificuldade de defini-la a partir de fontes coevas, me arrisco a
compreend-la a partir da anlise do discurso literrio.
Sobre isso nos fala Antnio Jos Saraiva em sua obra O discurso engenhoso. Para o
autor, um dos representantes deste discurso engenhoso seria o Padre Antonio Vieira,
devido forma desembaraosa com que escrevia os seus sermes. Esta forma o colocava
numa situao de domnio em relao ao receptor destes sermes (os ndios), j que este
ltimo no possua o mesmo desembarao em relao ao uso da lngua. Nesta mesma
passagem a respeito de Antonio Vieira, Saraiva demonstra sua compreenso de
engenhosidade. Segundo o autor todo processo engenhoso implica numa agudeza, no
sentido de perspiccia, e intencionalidade. A retrica engenhosa de Vieira era, portanto
resultado de sua alta conscincia. 899
898LVARES. Verdadeira Informao sobre a Terras do Preste Joo das ndia, p. 67.
899SARAIVA, Antonio J. O discurso engenhoso: estudos sobre Vieira e outros autores barrocos.
So Paulo: Perspectiva, 1980, p. 8
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Digo que ningum caa nem pesca, nem tem engenho, nem maneira,
nem vontade para o fazer: por isso a caa muito boa de matar, porque
no corrida da gente [...] 900
Para a parte do poente que contra o Nilo: dizem haver grandes minas
de prata, e que a no sabem tirar, nem aproveitar, por falta de engenho.
901
Consideraes finais
900 LVARES. Verdadeira Informao sobre a Terras do Preste Joo das ndia, p. 24.
901 ______. Verdadeira Informao sobre a Terras do Preste Joo das ndia, p. 48. Lugar de Corcora.
902 ______. Verdadeira Informao sobre a Terras do Preste Joo das ndia, p. 194.
903 ______. Verdadeira Informao sobre a Terras do Preste Joo das ndia, p. 16.
904 ______. Verdadeira Informao sobre a Terras do Preste Joo das ndia, p. 118. Refere-se ao Clrigo de Abima
Marcos.
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inquisio (1547) - alertavam para a necessidade de reconduzir os etopes s leis de Roma.
Assim, a partir de 1555 seriam enviados Etipia vrios missionrios, especialmente
jesutas, que deveriam pregar e dar a conhecer a verdadeira palavra crist. 905
905Estes missionrios tambm teriam compilado obras de um valor inestimvel para o efetivo conhecimento
desta parte de frica. Jernimo Lobo, um destes padres jesutas, seria um dos primeiros viajantes do sculo
XVII a escrever sobre este pas. Ver: LOBO, Pe. Jernimo. Itinerrio e outros escritos inditos. Barcelos: Livraria
Civilizao, 1971. Ed. crtica pelo Pe. M. Gonalves da Costa. (Biblioteca Histrica - Srie Ultramarina). O
manuscrito original de 1640.
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1049
Anais do IV Encontro de Pesquisa em Histria
da UFMG
Simpsios Temticos 16 a 20
Departamento de Histria
Chefe: Ana Carolina Vimieiro Gomes
Colegiado de Ps-Graduao
Coordenador: Luiz Carlos Villalta
Editor Chefe
Prof. Dr. Magno Moraes Mello
Conselho Editorial
Cssio Bruno de Arajo Rocha
Igor Barbosa Cardoso
Mrcio Mota Pereira
Maria Visconti Sales
Rafael Vincius da Fonseca Pereira
Valdeci da Silva Cunha
Reviso
Cssio Bruno de Arajo Rocha
Igor Barbosa Cardoso
Mrcio Mota Pereira
Maria Visconti Sales
Rafael Vincius da Fonseca Pereira
Valdeci da Silva Cunha
Diagramao
Cssio Bruno de Arajo Rocha
Valdeci da Silva Cunha
Capa
Valdeci da Silva Cunha
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1052
Site/Banco de Dados
Cssio Bruno de Arajo
Valdeci da Silva Cunha
Representaes de doena e cura: uma anlise histrica da obra Natureza, doenas, medicina
e remdios dos ndios brasileiros (1844)
Nathlia Tomagnini Carvalho
1120
Abertura Poltica e Msica Popular Brasileira: um estudo sobre trs canes do Clube da
Esquina
Hudson Leonardo Lima Pblio
1282
Movimentos de bairros e luta pelo direito cidade durante o Regime Militar em Belo
Horizonte
Philippe Urvoy
1307
Introduo
Vtimas de um violento processo de expropriao territorial desde meados de 1930, os
quilombolas de Brejo dos Crioulos seguem na luta pelo seu territrio. Reconhecida como
remanescente de quilombo em 2004 pela Fundao Cultural Palmares (FCP), a comunidade
localiza-se no Serto dos Gerais, na divisa de trs municpios So Joo da Ponte, Verdelndia e
Varzelndia. Neste trabalho, proponho abordar a "histria fundiria" desta comunidade a partir
dos temas recorrentes nas narrativas e no acionamento de eventos e marcos da memria deste
coletivo. A partir de uma descrio etnogrfica, procuro destacar os movimentos de expropriao
territorial vivenciados pelos seus moradores e tambm suas conexes com outras comunidades
do "Territrio Negro da Jahyba"1. Como fio condutor deste texto, descrevo o trnsito das
famlias de ex-escravos pela da mata da Jaba. Em suas movimentaes, essas "redes de
irmandade"2, como observou Costa3, procuravam reas nas quais pudessem manter contato com
1 COSTA, Joo Batista de Almeida. Do tempo da fartura dos crioulos ao tempo de penria dos morenos. Identidade atravs de rito
em Brejo dos Crioulos (MG). Dissertao (Mestrado em Antropologia Social) Universidade de Braslia, Programa de
Ps-Graduao em Antropologia Social e Cultural, Braslia, 1999.
2 PLNIO DOS SANTOS, Carlos A. Fiis Descendentes: redes-irmandades na ps-abolio entre as comunidades negras rurais
sul-matogrossenses. 477 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) Universidade de Braslia, Programa de Ps-
graduao em Antropologia Social, Braslia, 2010.
3 COSTA. Do tempo da fartura dos crioulos ao tempo de penria dos morenos.
COSTA, Joo Batista de A. Brejo dos Crioulos e Sociedade Negra da Jaba. Novas Categorias Sociais e a
Visibilizao do Invisvel na Sociedade Brasileira. Ps Revista Brasilense de Ps-Graduao em Cincias Sociais: Ano V, pp.
99-122, 2001.
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a sociedade escravocrata sem o risco de serem apanhados e entregues novamente a
escravido, o que possibilitou que essas famlias se fixassem principalmente, mas no
exclusivamente, no interior da mata existente no vale do rio que, posteriormente, passou a ser
denominado de Verde Grande. Com a fixao nas terras inicia-se a ocupao da rea. O perodo
designado pelos meus interlocutores como tempo da fartura. Alm de discorrer sobre este
perodo, em conexo com o tema das famlias, procuro refletir sobre os perodos posteriores que
se desdobram na chegada dos fazendeiros e na fragmentao do territrio quilombola atravs da
grilagem e invaso das terras por estes. As categorias nativas que so acionadas para lembrar este
perodo so o tempo da diviso e o tempo dos fazendeiros.
(Meus bisavs, num tempo de muita fome, eles vieram fugindo para c. Vieram do
Gurutuba. A eles se esparramaram pela beira do ribeiro, ficou um aqui, outro
acol. Eles produziram as famlias deles por aqui. Meu pai mesmo, ele ficou ali,
mais para cima do ribeiro. Foi ali que ele produziu a famlia dele.)5
(2008).
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plantar milho, fava, feijo, essas coisas. A eles pegaram e chegaram primeiro
nessa brenha de mato que eu falo, nessa escurido tudo, sem moradia, que era esse
Furado Modesto. Inclusive a ona, a casa deles era casa de enchimento que a
gente fala, de pau. A ona comeu metade da perna dele, a com um espao de
tempo, quando ele faleceu, ficaram os filhos.)7
O autor tambm sugere que a historiografia paulista e baiana nos possibilita compreender
a histria raiz do Norte de Minas. Estas historiografias informam a presena de pequenos
grupos de africanos e seus descendentes que, fugidos da escravido, deram origem a quilombos.
Alm dos indgenas, essa seria outra caracterstica societria existente no interior da bacia do
mdio So Francisco. As populaes negras se localizaram, principalmente, mas no
exclusivamente, no interior da mata existente no vale do rio que, posteriormente, passou a ser
denominado de Verde Grande. A teorizao proposta por este autor encontra ressonncias nas
formulaes nativas. A nfase na circulao das famlias e grupos de ex-escravos um tema
sempre presente nas conversas e histrias contadas pelos moradores de Brejo dos Crioulos e das
comunidades vizinhas, importante para a compreenso da "histria fundiria" da regio9. O
processo de ocupao das terras sempre mencionado a partir de associaes e conexes com
essas temticas.
Em suas movimentaes pela mata da jaba essas "redes de irmandade", como observou
12
Costa , procuravam reas nas quais pudessem manter contato com a sociedade escravocrata,
sem o risco de serem apanhados e entregues novamente a escravido. De forma semelhante,
Plnio dos Santos (2010) argumenta que o processo de ocupao de terras por grupos de ex-
escravos, motivado pelo "projeto campons", fez com que estes priorizassem,
Do ponto de vista geogrfico, a mata da Jaba caracterizada pela sua densa floresta e pela
abundncia de lagos14. A existncia de dolinas, formadas a partir do desabamento de dutos de
cavernas calcrias no subsolo, conhecida popularmente pelos moradores do quilombo como
furados, uma das caractersticas dos solos eutrficos, reas que segundo Matos, so receptoras
de gua e sedimentos, cercadas pelo amplo domnio do carrasco. No perodo chuvoso, tem-se o
10 PLNIO DOS SANTOS. Fiis Descendentes: redes-irmandades na ps-abolio entre as comunidades negras rurais sul-
matogrossenses.
11 PLNIO DOS SANTOS. Fiis Descendentes: redes-irmandades na ps-abolio entre as comunidades negras rurais sul-
matogrossenses, p. 357.
12 COSTA. Do tempo da fartura dos crioulos ao tempo de penria dos morenos.
15 Vale mencionar que o nome de duas localidades do quilombo Furado Modesto e Furado Seco esto
relacionados a esta caracterstica pedolgica. Carrasco o nome dado pelos quilombolas a uma das cinco unidades da
paisagem. Alm desta existem: cultura vermelha, a vazante, o brejo e o furado. Cada ambiente identificado pelos
quilombolas abrange determinadas classes de solo e de acordo com as condies de cada local, estas podem ocorrer
em pequenas franjas ou se reproduzirem em grandes extenses ao longo do territrio (Plano de
Etnodesenvolvimento, 2012, p.79). Para um aprofundamento nestas questes, ver Matos (2008).
16 MATOS, L. V. Conhecimentos na anlise de ambientes: a pedologia e o saber local em comunidade quilombola
quilombo de Brejo dos Crioulos. Fundao Cultural Palmares. Rio de Janeiro, 2004.
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Estado a (demarcao das fazendas Morro Preto (no lado de So Joo da
Ponte) e Arapu (em Varzelndia, nesta poca ainda distrito de So Joo da
Ponte), respectivamente. Estas fazendas eram antigas sesmarias que no foram
registradas segundo a Lei de Terras de 1850 e por isto tornam-se terras
devolutas. No entanto, a diviso no se restringiu s fazendas Arapu e Morro
Preto, mas atingiu toda a sociedade negra da Jaba; por isto nas comunidades
remanescentes dos quilombolas vizinhas Brejo dos Crioulos estas tambm so
categorias importantes para marcar o incio da perda da autonomia destas
comunidades).20
Foi no tempo da diviso que os documentos comeam a ter importncia para alguns dos
moradores de Brejo dos Crioulos. Ainda que apresentada para os quilombolas como uma ordem
partida do Estado (SANTOS, 2004), tanto a forma de pagamento prestado ao servio de
demarcao cabeas de gado, sacas de arroz e milho, etc quanto o fato de que apenas alguns
quilombolas puderam acompanhar o processo, demonstram que os agrimensores demarcavam
apenas as terras daqueles que podiam pagar21. Durante a diviso, ocorre um circuito de trocas entre
os moradores, os agrimensores e os fazendeiros. Ao registrarem as glebas das fazendas onde
atuavam como terras de ausentes, os agrimensores adjudicavam em seus nomes e depois vendiam
para os fazendeiros. Se atravs da ocupao pacfica das terras soltas da mata da Jaba pela
populao negra estas so transformadas em seu patrimnio, a diviso propicia outro movimento,
a venda das terras para os fazendeiros resulta na transformao da terra solta, terra livre, em terra
de negcio. Aqueles sistemas que antes eram caracterizados pela ocupao das terras como
sistemas de posse comunal22, agora se tornaram fonte de especulao nas mos de fazendeiros
e empresrios rurais no s do Norte de Minas Gerais, mas de outras cidades e estados.
(Nos anos quarenta, capitaneados por Simo da Costa Campos, Padre Joaquim
Gangana, Geovani Fagundes, Romo Ferreira e outros, numa aliana entre as
principais famlias do povoado da Ponte, do povoado de Santo Antonio da Boa
Vista, de Condado do Norte, de Campo Redondo e Ibiracatu, conseguem sua
emancipao poltica. So Joo da Ponte torna-se sede do municpio que se
separou de Contendas, atual Braslia de Minas.)23
Brejo dos Crioulos. Diferentemente dos verbos comprar ou apossar, que os moradores utilizam para se remeter ao
processo pelo qual a terra foi adquirida por negociao de compra e venda ou pelo usucapio, acompanhar a diviso
toma o sentido de acato a uma deciso sobre a qual os quilombolas no foram consultados, s restando acordar,
concordar, acompanhar.) (SANTOS, 2004, p.81).
22 ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terras de preto, terras de santo, terras de ndios: uso comum e
conflito. In: CASTRO, Edna; HBETE, Jean. (Orgs.). Na trilha dos grandes projetos: modernizao e conflito na
Amaznia. Belm: UFPA/NAEA, pp.163-196, 1989.
23 COSTA. Do tempo da fartura dos crioulos ao tempo de penria dos morenos, p. 36.
(Jagunos com livros do cartrio local sob o domnio da mesma famlia com
transmisso de direitos sobre a terra j transcrita e com ameaas violentas,
requeriam que pais de famlias e vivas colocassem a impresso digital nos
referidos livros, realizando a transferncia das terras de famlias negras para
membros da elite regional apoiados pelo grupo mandonista local.)26
24 COSTA. Do tempo da fartura dos crioulos ao tempo de penria dos morenos, p. 57.
25 COSTA. Processos de Territorializao e o deslizamento na etnicidade quilombola de Agreste.
26 __________. Processos de Territorializao e o deslizamento na etnicidade quilombola de Agreste, p. 3.
27 COSTA. Do tempo da fartura dos crioulos ao tempo de penria dos morenos.
28 Luz (Voos da espera e da esperana: O Bairro Sagrada Famlia e as estratgias de permanncia no Serto Norte Mineiro. 94 f.
Dissertao (Mestrado em Sociologia) Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Programa de Ps-Graduao
em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, Rio de Janeiro, 2015.) destaca que a SUDENE foi idealizada por
Celso Furtado e instituda no ano de 1959 no governo de Juscelino Kubitschek. Sua finalidade era atrair
investimentos do setor privado para as regies atingidas pela seca. O Norte de Minas se tornou uma regio de dupla
investida, por fazer parte da Regio Mineira do Nordeste canalizando investimentos da SUDENE, e pelas suas reas
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apoio tcnico da Empresa de Assistncia Tcnica e Extenso Rural do estado de Minas Gerais
(EMATER-MG), ou de empresas particulares que surgiam, ou at mesmo de emprstimos
bancrios realizados no Banco do Brasil ou Banco do Nordeste, os fazendeiros melhoravam a
estrutura das suas fazendas, modernizando-as. O governo federal financia a transformao das
fazendas em empresas rurais. H tambm a distribuio de remdios para a populao branca que
vivia nos arredores.
de cerrado "promissoras". Para uma aprofundamento dos efeitos deste processo, ver Luz (2015) e Ribeiro (Histria
dos Gerais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.).
29 Depoimento pessoal, Tico, Araruba, 2014.
30 Ver, Carneiro e Cioccari (Retrato da Represso Poltica no Campo - Brasil 1962-1985 - Camponeses torturados,
(Um dos seus irmos Levino Pinheiro de Abreu morreu envenenado aps
tomar um suposto remdio oferecido por jagunos dos fazendeiros. Diversas
de suas cabeas de gado foram apanhadas mortas e dois cachorros de estimao
morreram baleados por jagunos que atiravam na direo da porta de sua casa.
Seu marido foi ameaado de morte e no dia em que seria assassinado na prpria
casa, conseguiu se salvar, escondendo-se debaixo da cama, enquanto sua esposa
dizia ao jaguno que ele estava viajando. Na noite deste dia, o marido de Dona
Elizarda fugiu enquanto ela e sua famlia foram para So Joo da Ponte acionar
a polcia, que nada fez. Ao retornarem ainda puderam ver sua casa em chamas,
ateadas pelos jagunos para que ela no mais retornasse (esta a ltima a ser
construda por Dona Elizarda, que na medida em que os fazendeiros destruam
suas casas e levantavam uma cerca, ela refazia outra adiante). Depois de ter a
casa incendiada, Dona Elizarda morou em So Joo da Ponte, mas voltou para
Araruba a tempo de ver Z Afonso um dos fazendeiros que a expulsou de
suas terras ser assassinado diante da Igrejinha de Bom Jesus da Lapa e Santo
Reis que ele pretendia transformar num malhador de gado.)32
Licenciado em Histria
O estudo sobre a famlia tem sido privilegiado por vrios autores e vertentes, e cada obra
j publicada possibilita novos conhecimentos e perspectivas de anlise comparada. A pesquisa
aqui apresentada visa contribuir com os estudos sobre o que Miriam Lott denomina de rico
mosaico cultural que se formou na Capitania das Minas35.
35Essa ideia de mosaico cultural a ser desvendando pelas inmeras pesquisas parciais se encontra em LOTT, Miriam
Moura. Na Forma do Ritual Romano. Casamento e Famlia. Vila Rica (1804-1839). Onde a autora afirma Consideramos
que quanto mais estudos parciais tivermos melhor ser para compormos esse rico mosaico que a Capitania de Minas Gerais. Pg.18
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Negcio: a interiorizao da Metrpole e do Comrcio nas Minas Setecentistas36 de Jnia Ferreira Furtado,
na qual a historiadora estuda os comerciantes nas Minas do sculo XVIII tendo por fio condutor
a vida particular de Francisco Pinheiro, importante comerciante portugus. Atravs de suas
relaes, o livro discute a sociedade e o comrcio no princpio da povoao das Minas.
Antes, porm, de se adentrar no tema proposto a este artigo, qual seja discutir o alto
ndice de endogamia encontrado para os casamentos realizados pela famlia Ferreira da Fonseca,
necessrio que se defina com qual significado do termo endogamia irei trabalhar. O conceito de
endogamia pode ser bastante amplo se considerarmos sua definio como prope o dicionrio
Priberam da lngua portuguesa
1. [Antropologia] Enlace matrimonial entre pessoas que pertencem ao mesmo grupo familiar, social, tnico,
religioso.37
Neste artigo, porm, o termo endogamia ser utilizado apenas para os casamentos
realizados por membros de uma mesma famlia, ou seja, personagens que tenham ascendentes
diretos em comum. Outro fator preponderante para se considerar antes de adentrarmos a esse
trabalho o perodo temporal que este abarca: um sculo e meio 1750-1890, onde fundamental
frisar que os dilemas e formataes do matrimnio nas Minas de meados do Sculo XVIII so
bastante dspares em relao mesma regio na segunda metade do Sculo XIX.
Para este trabalho, a escolha da famlia Ferreira da Fonseca se justifica pelo alto ndice de
dispensas de consanguinidade encontradas nos acentos de matrimnio dos membros desta e o
36 FURTADO, Jnia Ferreira. Homens de negcios: a interiorizao da Metrpole e do comercio nas Minas setecentistas.
1 Edio. So Paulo: HUCITEC, 1999.
37"Endogamia", in Dicionrio Priberam da Lngua Portuguesa [em linha], 2008-2013,
http://www.priberam.pt/DLPO/Endogamia [consultado em 17-03-2015].
38 SOARES, Mrcio de Souza. Presena africana e arranjos matrimoniais entre os escravos em Campos dos
Goitacazes (1790-1831). Histria: Questes & Debates, Curitiba, n. 52, p. 75-90, jan./jun. 2010. Editora UFPR.
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excessivo nmero de dispensas tendo como comparao a prpria regio em que se
encontravam. Para a quarta gerao da famlia, cerca de 1840 a 1870, 69,04% dos matrimnios
eram consanguneos, ao passo de que para a vila mais prxima, Lagoa Dourada, temos 43,86%
no perodo 1856 a 1881. Todos esses dados sero melhores trabalhados a seu momento neste
texto onde tambm sero apresentados as referencias que conduziram a esses nmeros.
O ramo familiar trabalhado chega s Minas antes de 1730, atravs de Joo Ferreira da
Fonseca, natural da Freguesia de Santa Brbara das Nove Ribeiras na Ilha Terceira dos Aores.
Joo fixa residncia na Itaverava das Minas se une em matrimnio em data anterior a 1732 com
uma prima de terceiro grau, Maria da Conceio. Ambos tinham em comum o bisav, Bento
Gonalves Falieiro e eram de origem aoriana. Acredita-se que o sogro de Joo, Antnio Coelho
Valado tenha vindo junto a este para as Minas, entretanto no conseguimos encontrar
embasamento para tal afirmao. Sobre a unio de Joo e Maria da Conceio, encontramos o
registro de banhos39 do casal no Processo De Genere de seu neto Padre Francisco Barbosa da
Cunha
[Fl.131]
1
Certido de banhos referente ao casamento
2
dos Avs Maternos do habilitando
3
Aos que a presente certido de ba-
4
nhos em forma virem fao saber que nas Parquias das
5
Igrejas de Santa Brbara do lugar das
6
nove Ribeiras desta Ilha terceira e de Nos
7
as Senhora da Pena do lugar de Fontinhas
8
desta mesma Ilha e Bispado de Angra
9
foi denunciado em trs dias festivos
10
em como estava casado debaixo
11
de fiana o Capito Joo Ferreira Fon
12
ceca filho legitimo que diz ser de Joo Fer
13
reira Bellerique e Catharina Dias da
14
Fonceca, e ele contraente natural
15
e batizado na sobredita Igreja de San
16
ta Barbara deste dito Bispado com Ma
17
ria da Conceio filha legitima que diz
18
ser de Antonio Coelho Valado e Marga
19
rida de So Joo j defunta natural
20
e batizada na sobredita Igreja de Nos
39 Trata-se dos proclamas de casamento preconizados pelo Conclio de Trento (1545-1564) que deveriam de ser
realizados em trs dias de preceito nas freguesias de origem dos nubentes.
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21
as Senhora da Pena do lugar da Fon
22
tinhas e ambos eles contraentes mora
23
dores na Itaverava das Minas40
O casal teve quatro filhos: rsula da Conceio que se casou com Antnio Lopes
Canado e foi residir no Arraial do Ona, hoje Pitangui; Felcia da Assuno do Senhor que
contraiu npcias com Bento Gonalves Pacheco e permaneceu residindo na Freguesia de Santo
Antnio da Itaverava; Ana Josepha do Sacramento e Joo Ferreira da Fonseca que foram residir
no entorno da Capelinha de Nossa Senhora da Lapa dos Olhos Dgua na Freguesia de Nossa
Senhora da Conceio dos Prados.
Entretanto, o que mais nos interessa nessa pesquisa o que acontece com a descendncia
de Joo Ferreira da Fonseca que se casou em 01 de Outubro de 1759 com Anna Jacinta da
Conceio. O casal edifica a Fazenda dos Olhos dgua e at a quarta gerao de seus
descendentes, esta permanecer entre os membros da famlia com uma extenso considervel.
Joo e Ana tiveram 10 filhos que se uniro em matrimnio com apenas trs famlias.
40 AEAM Referncia: R:0516 / A:03 / P:0516. De Genere de Francisco Barbosa da Cunha. Data: 1796.
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das mais influentes famlias da Comarca do Paraibuna segundo a tese de Doutorado de Antnio
Henrique Duarte Lacerda41.
O stimo filho Eduardo Ferreira da Fonseca se casou com Antnia Rita de Jesus Xavier
da famlia Ferreira de Souza. J Damaso Ferreira da Fonseca, o sexto filho, nascido em 18 de
Janeiro de 1773, herdeiro da Fazenda dos Olhos dgua, se une em Matrimnio em 1822 com
uma sobrinha, vinte e trs anos mais nova, Josepha Joaquina da Conceio filha de Felcia Jacinta
sua irm mais velha.
Com o falecimento de Damaso em 1833 quando seu primognito contava com apenas 8
anos de idade, a fazenda dos Olhos Dgua passaria ento para as mos de sua esposa e sobrinha
Josepha, e o Padre Gonalo Ferreira da Fonseca se tornaria o tutor dos rfos.
A gerao dos netos e dos bisnetos de Joo Ferreira da Fonseca e Ana Jacinta da
Conceio que nos chama a ateno nesta pesquisa. So ao todo 55 netos, dos quais 42
contraram matrimnio. Destes 29 dentro da famlia e 13 com no-parentes. Isso significa que
69,04% dos membros da quarta gerao da famlia que se casaram o fizeram de forma
endogmica. Aprofundando mais neste nmero percebemos que desses 29, 18 se casaram com
primos de 1 grau, 5 com tios ou sobrinhas, 4 com primos irmo aqueles que possuem os
quatro avs em comum e apenas 2 com primos de 2 grau. importante frisar que esses
matrimnios ocorreram em sua totalidade mais de trinta anos aps a Bula Magnan Profecta Cura do
Papa Pio VI em que autoriza-se a dispensa matrimonial entre parentes no Brasil, porm mantm
a proibio para primos de 1 grau, primos-irmos e tio-sobrinha.
A quinta gerao desta famlia apresenta dados ainda mais impressionantes de endogamia
que a quarta. Nela possumos o ndice de 80,55% dos membros que se casaram, o realizando com
parentes prximos em uma poca em que a vila mais prxima, Lagoa Dourada Contava com o
ndice de 47,13% de endogamia. Importante apontar que aqui se considera apenas aqueles
41 LACERDA, A. H. D. Negcios de Minas: famlia, fortuna, poder e redes de sociabilidades nas Minas Gerais a
famlia Ferreira Armonde (1751/1850). Niteri: Universidade Federal Fluminense, Instituto de Cincias Humanas e
Filosofia, Departamento de Histria, 2010. Tese (Doutorado).
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membros que permaneceram na regio da Fazenda dos Olhos Dgua, devido a questes de
viabilidade da pesquisa. Nessa gerao foram contabilizados 48 membros, dos quais 42
contraram matrimnio e destes s 7 com cnjuges de fora da famlia.
Ilustrando a afirmativa de que a manuteno da terra se deu por casamentos entre primos
que eram coerdeiros da fazenda, cito o caso das irms Rita Ilydia de Cassia e Maria Romana da
Conceio que foram herdeiras pelo testamento do tio Padre Gonalo Ferreira da Fonseca em
1857, do pai Damaso Ferreira da Fonseca falecido em 1833, da me Josepha Joaquina da
Conceio falecida em 1864, esta filha de Felcia irm de Damaso. Se no bastasse por a, as irms
se casaram com seus primos-irmos, Manoel Ferreira da Fonseca e Joo Ferreira da Fonseca,
filhos de Felisberto Ferreira da Fonseca, irmo de Damaso e Felcia e tambm herdeiros de partes
da fazenda.
Os dois casais citados acima assistem se formarem dois Matrimnios entre filhos seus:
Ilydio Ferreira da Fonseca, nascido em 1847, segundo filho de Joo e Rita contrai npcias em 15
de junho de 1869 com Maria Lya da Assumpo, nascida em 1851, e quarta filha de Manoel e
Maria Romana. Dessa unio nasceram 10 filhos. Por sua vez Marcolina Elidia de Cssia, oitava
irm de Ilydio, se une em Matrimnio com Camillo Ferreira da Fonseca, stimo irmo de Maria
Lya e tm com ele 4 filhos.
Considerando tudo que foi exposto, no h como negar que por mais que encontremos
mais justificativas para esse modelo de unio matrimonial empreendido pela famlia Ferreira da
Fonseca a permanncia da posse e da extenso da Fazenda dos Olhos Dgua era uma
justificativa completamente coerente e que norteou as escolhas desse grupo familiar.
Concluso
43APM Livro de Registro de Terras Paroquial. Cdice 028 Registro 2446 Brumado de Suassuhy (Nossa
Senhora das Grotas do Queluz).
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poltica em dois partidos Conservadores e Liberais, as leis que regiam a sociedade, e a prpria
transio da economia da Capitania das Minas para o que viria a movimentar a Provncia de
Minas Gerais.
Porm, em ambos os sculos, por motivos diferentes, a posse da terra sempre foi e ser
algo fundamental para a vida agrria. Os arranjos para a manuteno da Fazenda dos Olhos
Dgua com sua considervel extenso comeam efetivamente a se intensificar no sculo XIX,
quando a regio de So Joo Del Rei passa a ter a incumbncia de abastecer em grande parte a
Capital Imperial com produtos da terra.
O comrcio da Fazenda dos Olhos Dgua que produzia milho e principalmente cana,
com a Cidade de So Joo Del Rei tornou a terra algo muito precioso e que deveria ser
preservado pelas geraes vindouras.
Mestrando em Histria
A justificativa para a permanncia do trfico no pas por tanto tempo pode ser esboada atravs
da leitura da estrutura econmica agrria imposta desde o sculo XIV, que usava a mo-de-obra escrava
em sua plantaes de cana-de-acar, permanecendo esta estrutura ainda no sculo XVII, alm de ser
utilizada nas zonas mineradoras do sc. XVIII. No sculo XIX, a grande concentrao de escravos
acontecia nas fazendas de cafs, cabendo destaque para a regio agro exportadora do vale do Paraba
segundo Emilia Viotti da Costa, e acrescenta que devido ao solo frtil que impulsionou a atividade
proliferando para a provncia de So Paulo durante a segunda metade do sculo. Devido a impossibilidade
do trfico intercontinental, pelo menos na poca oficial, um recurso bastante utilizado pelos aristocratas
fora o comrcio provincial, principalmente com as fazendas escravocratas do norte, que se encontravam
em decadncia.
O II imprio brasileiro fora envolvido por uma srie de desgastes poltico-sociais, principalmente
a partir de 1850 e como exemplo pode-se citar: a questo militar, questo servil, questo religiosa, que
contriburam decisivamente para o declnio Imperial 45 e h ainda a formao de uma classe de
cafeicultores paulistas, estruturada politicamente em torno de um partido: O Republicano Paulista (PRP),
esta classe tambm era economicamente forte e almejava espao na corte imperial, ostentao que no
gozava.
A guerra do Paraguai fora tambm um fator de declnio para a monarquia no Brasil, uma vez que
as finanas imperiais estavam comprometidas, colaborada pelos altos gastos que a corte condicionava aos
cofres pblicos brasileiros. Diante deste cenrio e ao conjunto de fatores citados, alm de manifestao
nos jornais e folhetins da poca, veio se desgastando cada vez mais o prestgio da Corte brasileira.
Aliado a estes fatores do declnio da monarquia, havia um anseio pela repblica. Apesar dos
republicanos, terem abafado a voz dos monarquistas, eles teciam pesadas crticas a viso republicana. Para
os monarquistas a repblica representaria um levante militar fruto da indisciplina das classes armadas.
Defendiam o Imprio expondo que trouxera tranquilidade, conservao, progresso, integridade e unio.
44 BROOHSHAW, David. Raa e Cor na Literatura Brasileira. Trad. Marta Kirst. Porto Alegre: Mercado
Aberto, 1983.
45 LOPEZ, L. R. Histria do Brasil Imperial. 7 ed. Porto Alegre: mercado Aberto, 1999.
Ainda, na verso dos republicanos, a monarquia era considerada como uma anomalia da Amrica,
e enunciada j nos manifestos republicanos de 1870, sendo crticos ferrenhos do poder Moderador que
segundo os republicanos subjugava os demais poderes; criticavam tambm a vitaliciedade do Senado,
fraudes eleitorais, a centralizao excessiva do governo monrquico e estes problemas s seriam resolvidos
com a proclamao da Repblica. Os republicanos lutavam pela abolio da escravido e sem indenizao
dos proprietrios de escravos, divergindo dos monarquistas que pregavam uma emancipao escravista,
caso no, a abolio seria feita atravs de indenizao aos fazendeiros e pessoas proprietrios de escravos
no Brasil. Diante deste cenrio Castro Alves com suas poesias procurava sensibilizar alguns aristocratas
para com a condio do negro na sociedade brasileira, procurando destacar a humanidade dos negros e
escravos.
A Guerra do Paraguai, serviu para desviar o interesse do pblico em relao a escravido, para
com a causa patritica que era a guerra, estando acima de oposies e controvrsias. Mas, tambm fora
a guerra quem trouxera outros questionamentos com os militares e os escravos-militares que
representavam o pas na disputa. O governo ficou temeroso em armar os cativos para combater os
paraguaios, pois com a posse da arma poderiam organizar levantes e, assim, lutar por sua liberdade. A
presena dos escravos deixava os militares numa posio incmoda, uma vez que outrora, caavam os
cativos e durante a guerra lutavam, viveram e morreram juntos. No lado Paraguaio no havia escravido,
pois j fora abolida e com o contato com essa experincia de homens negros libertos, os militares,
poderiam at perguntar-se: porque nossos negros homens esto escravos?
Poetas, como Castro Alves, clamavam medidas eficazes dessas leis, tanto que escreveu Navio
negreiro em 1868, ou seja, 18 anos aps o fim do trfico de escravos. Ento, neste caso do trfico,
percebemos como eram ineficientes algumas autoridades que mesmo com a proibio ainda traficavam
seres humanos, como narra o poeta dos escravos.
O projeto da Lei do Ventre livre chegou Cmara em 12 de maio de 1871 e encontrou forte
oposio principalmente de Jos de Alencar, Ferreira Viana e Paulinho, e divergindo dos deputados
citados anteriormente, estavam Saio Lobato, Joo Alfredo, etc. J no Senado, os liberais se encontravam
47 VIANNA, Francisco Jos de Oliveira. O ocaso do Imprio. 4ed. Recife: Ed. Massangana, 1990.
Este era um momento de conturbao social devido s questes abolicionistas; h relatrios dos
chefes policiais da provncia fluminense que grupos encapuzados agiram como um verdadeiro KU-
KLUX-KLAN tupiniquim, com aes de torturas a negros acusados de crimes, alm de fazendeiros
solicitarem ao governo a formao de uma milcia organizada pelos prprios, afim de defender sua
integridade territorial, que encontrava-se ameaadas, pois as invases eram libertrias dos cativos ali
aprisionados e os instrumentos torturantes aos escravos eram expostos ao pblico em plena praa, o autor
ainda informa que instalara-se o pnico nas zonas escravizadoras.
Apesar de alguns lugares estarem numa situao periclitante como podemos observar
anteriormente, mas h um incio do poder executivo, principalmente no que tange o Gabinete de Itabora,
para com a questo servil49. a Cmara quem tomou a iniciativa de formar uma Comisso para dar seu
parecer sobre a escravido no Imprio. Salientou que para obter a aprovao da lei do Ventre Livre, teve
que pedir apoio as classes dominantes para aprovar, pois a trabalho escravo no era essencial. Durante a
aprovao do projeto, dos 42 (quarenta e dois) deputados da regio Centro Sul, 30 (trinta) se opuseram a
proposta. No Senado um tero dos Centro-Sulinos votaram contra a projeto. Efetivamente, o autor
salienta que todos os senhores mantiveram o escravo at a idade de 21 anos, ficando sua libertao
transposta para 189250.
No entanto esta discusso no era nova, pelo menos no senado Imperial, pois foram apresentadas
propostas anteriores para a libertao dos nascidos, tanto que em 17 de maio de 1865 foram apresentados
trs projetos de lei referente a esta temtica.
Neste contexto, a literatura pode ser tomada como fonte de produo de significados de uma
poca e neste caso, a literatura pode ser tomada como um relato, como um desenho do quadro
Abolio/ Escravido que de certa forma, projeta o futuro, e estas literaturas tem sido definidas por
diferentes historiadores da literatura, como romntica ou realista.51
Apesar de Castro Alves no ter vivido no auge do abolicionismo, suas poesias nos
remetem ao pensamento abolicionista, devido sua luta travada contra a aristocracia escravista
brasileira. Certamente, Castro Alves fora um dos precursores deste movimento. Na sua
concepo de liberdade, pregava a abolio da escravido.
Suas poesias percorreram o Brasil. Desta forma que foi atribudo o ttulo de Poeta dos
Escravos. Diante desde contexto, dentre suas poesias analisaremos duas: Tragdia no lar (julho de
1865), enfocando o cotidiano dos escravos, para compreendermos e mesmo, percebemos aos
olhos de Alves e da Histria a representao deste cotidiano, versando dilogos, diluindo
fronteiras. O texto trs tona tambm uma nova discusso do que vem a ser tragdia do
cotidiano negro(a).
A literatura brasileira teve uma forte participao no movimento, uma vez que a produo
histrica do sculo XIX, no priorizava o cotidiano dos negros nas senzalas e no trfico,
dedicando-se mais a narrar em linhas gerais estas situaes, diferindo das poesias de castro
Alves que trazia consigo esses olhares. Porm, apenas no sculo XX que foram levados em
considerao pelos autores, onde foi possvel relacionar o que Castro Alves escreveu com as
pesquisas realizadas na atualidade, algo constatado pelo poeta j no sc. XIX.
Comrcio, lutas e cotidiano nas senzalas brasileiras atravs da poesia Tragdia no lar
Na poesia: Tragdia no lar, o autor enfoca o cotidiano dos escravos, numa senzala
sobre uma famlia. Relata a situao periclitante em que esto condicionados e observa a relao da me
para com o filho e seu senhor. Faz um convite aos cidados (homens e mulheres) para que entrem na
senzala, de forma enftica e eloquente:
(...)
os ps l pisam em lama,
Percebe-se nesta poesia que o autor tece crticas tambm a sociedade por compactuar
com essa anomalia social e que os cidados percebam o absurdo na utilizao da mo-de-obra
cativa, no se importando com as condies insalubres onde, geralmente, estavam todos os
cativos, que era a senzala, sem comodidade e com muitos seres humanos vivendo no mesmo
ambiente. Notamos tambm como o autor descreve as vestimentas dos nobres, seus smbolos
aristocratas: o vestido longo e as luvas brancas.
Na senzala acontece atrocidades e isto que Castro Alves quer mostrar sociedade,
tocando no seio maternal, escreve uma transao comercial de uma criana afim de instigar
debates sobre a utilizao da mo-de-obra infantil. Em Tragdia no lar poesia escrita em 1865,
o poeta dramaticamente, descreve este ato:
E agitava o chicote...
52 ALVES, Castro. Os Escravos. Coleo clssicos da literatura: obra completa. Rio de Janeiro, 2004, p 38-39.
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1084
[...]
- Impossvel!...
Que ides...
Me arranqueis o corao!
[...]
O negro vivia no Brasil como se fosse animal, no possua direito, podia ser trocado,
castigado, vendido, mutilado e morto, at por ser tido como uma propriedade privada igual a
qualquer outro animal como porco ou cavalo.
A presena do chicote na segunda estrofe, aponta para esta condio atribuda a escrava,
tanto que agitava o chicote; juntamente para mostrar a cativa, que caso no obedecesse, seria
certamente chicoteada. A condio de objeto material e amparado na constituio nacional, dava
plenos poderes aos senhores escravocratas realizarem tais atitudes, perversas aos olhos humanos
e neste contexto social, que Castro Alves enfoca na sua poesia esta ao condenatria. Mesmo
que seja pela luz do Romantismo.
No entanto, nem sempre a venda era feita de forma aceitvel pelos membros da
comunidade negra, instalados nas senzalas; tanto que na prpria poesia em questo, ocorre uma
espcie de tentativa de um levante para combater o senhor e o comercirio que deseja efetuar a
compra, onde Castro Alves torna-se voz de alguns cativos no seu enredo:
No entanto, nem sempre os levantes feitos contra os donos dos escravos foram
controlados. Os africanos e descendentes lutaram como puderam. Pertinente a esse
pensamento, h trs formas de caracterizar as resistncias dos escravos brasileiros: revolta
organizada, caracterizada pela tomada do poder; insurreio armada e a fuga para o mato que
resultava em quilombos. Referindo-se a fuga como forma de resistncia56, destaca-se quando os
cativos eram recapturados eram ferrados com a letra F, num local visvel para indicar que era
fujo, alm de outros suplcios.
Diante deste cenrio, mesmo tendo um cativo com a resistncia a escravido ter a
perseguio dos senhores, e o pior, amparados na lei at por que quando ocorria um levante
contra seu dono, o escravo poderia vir a ser punido com chicote. Como no caso, aconteceu
nesta poesia. Porm, muito antes de serem efetivamente cadveres, so torturados, e quanto a
seus corpos, para onde vo? Nas regies litorneas, muitos cativos foram sepultados em covas
rasas na beira da mar57, e que no era difcil encontrar os cachorros desenterrando e comendo
braos e mos, o mesmo com os urubus. O autor ainda enfoca que fora cortado em pedaos um
corpo de um cativo por ter assassinado um dos religiosos da Ordem do Carmo.
Percebe-se ento, que nem sempre os escravos aceitavam pacificamente as atitudes dos
senhores de engenho, bares do caf, das minas, entre outros, mesmo sabendo das consequncias
Mesmo que muitas famlias no puderam ser famlia no Brasil, os laos permanecem
assim como a cultura nas relaes pessoais e sociais entre a Casa Grande e a Senzala, pois com a
imposio da cultura branca europeizada o modelo de famlia teve que se adequar ao sistema
escravista que via nos negros uma fonte comercial e de trabalho e no como seres humanos.
Castro Alves em sua poesia, ao seu modo, em Tragdia no Lar, quis de certo expor estas
mazelas sociais e que entre a escravido negra no pas, h seres humanos perdidos num pas do
Atlntico que foram seres sequestrados de seus lares, agora reconstroem os valores familiares
como podem, dentro das senzalas, dentro do que foi dado como digno aos objetos comerciais
que so os negros no Brasil neste perodo imperial.
58 ARINOS, Afonso de Melo Franco Agitao do escravo no Rio de Janeiro IN: CARNEIRO, Edson. (Org)
Antologia do negro brasileiro. Porto Alegre: Globo, 1950.
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Vidas femininas na reconstituio das relaes
familiares e sociais em Minas Gerais, sculo XVIII-
XIX
Lucilene Macedo da Costa
Mestranda em Histria
Universidade Federal de Ouro Preto
[email protected]
Introduo
O presente artigo se prope a apresentar parte dos resultados obtidos em uma pesquisa
de Mestrado, orientada pela Professora Doutora Andra Lisly Gonalves, na Universidade Federal
de Ouro Preto.
Nosso objeto de pesquisa constitudo pela anlise da trajetria de duas mulheres que
viveram na freguesia de Guarapiranga entre os sculos XVIII e XIX. O recorte temporal engloba
os anos de 1773 a 1865, que demarcam nascimento e morte das personagens. O principal
objetivo de nosso trabalho est em analisar as relaes de gnero e sociais estabelecidas por elas.
Para a reconstituio da histria de vida das duas mulheres, foi necessria a reunio de
informaes, coletadas em diversos tipos de fontes histricas, analisadas e cruzadas a fim de dar
sentido s vivncias dos indivduos que compuseram a rede de relaes dessas personagens.
Portanto, os mtodos da Demografia Histrica foram essenciais no momento de construo de
base de dados e cruzamento das informaes para identificao de cada indivduo. No Brasil, a
diversificao de fontes e a utilizao de manuscritos na pesquisa histrica tiveram o seu avano
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juntamente ao desenvolvimento da Demografia Histrica, que tem o seu incio na dcada de 1960
e seu desenvolvimento efetivo a partir de 1980, quando Maria Luiza Marclio utiliza a tcnica de
reconstituio de famlias de Louis Henry.
Para acompanhar a trajetria dessas mulheres tambm foi essencial um entendimento dos
laos fortes, para depois entendermos como elas se posicionaram no meio social e como
construram os laos fracos59. Nesse artigo, nos deteremos aos laos fortes das personagens,
portanto, a Histria da Famlia ser uma grande aliada na compreenso das histrias de vida.
Freguesia de Guarapiranga
59Utilizamos aqui os conceitos de Mark Granovetter que criou a tese da funo das relaes sociais. De acordo com
as teorias desse autor indivduos que compartilham Laos Fortes comumente participam de um mesmo crculo
social, ao passo que os indivduos com os quais temos relaes de Laos Fracos so importantes porque nos
conectam com vrios outros grupos, rompendo a configurao de ilhas isoladas dos clusters e assumindo a
configurao de rede social. Nesse sentido, as relaes baseadas em Laos Fortes levam a uma topologia da rede,
isto , definem a configurao dos ns da rede de conexes entre os indivduos no ciberespao, no qual as relaes
de Laos Fracos funcionam como brigdes desses clusters. Quanto menos relaes de Laos Fracos, menos bridges e
menos inovao. In: KAUFMAN, Dora. A fora dos Laos Fracos de Mark Granovetter no ambiente do
ciberespao. Galaxia. So Paulo, n. 23, p. 207-218, jun. 2012.
60FARIA, Sheila de Castro. A Colnia em Movimento: Fortuna e Famlia no Cotidiano Colonial. 1. ed. Rio de Janeiro:
Dentro, 1815-1850. In: ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, 14, 2004, Caxamb,
Anais..., Caxamb, ABEP, 20-24 de Setembro de 2004.
Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG. v. 7 (Suplemento,
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A freguesia de Guarapiranga localizava-se entre a regio Mineradora Central e a Zona da
62
Mata , ao sul da cidade de Mariana e oeste da antiga Vila de Queluz (atual Conselheiro Lafaiete),
banhada pelo rio Piranga, fazia parte do Termo da Cidade de Mariana. Teve grande importncia
econmica, figurando entre os principais ncleos aurferos fiscalizados pela Cmara de Mariana.
Esta proeminncia lhe conferiu a elevao condio de freguesia e vigaria com ttulo colativo,
conforme consta em carta rgia de 172463.
Entre 1750 e 1808, a freguesia tinha os seguintes arraias e povoados subordinados sua
jurisdio: Guarapiranga (atual cidade de Piranga), Barra do Bacalhau (Guaraciaba), So Caetano
do Xopot (Cipotnea), Pirapetinga, Pinheiro, Manja Lguas, Calambau (Presidente Bernardes),
Brs Pires (ou Senhora do Rosrio) e Tapera (Porto Firme)64. Ao lado de Furquim, Guarapiranga
correspondia maior freguesia do Termo de Mariana em extenso territorial65.
62PAIVA, Clotilde Andrade e GODOY, Marcelo Magalhes. Um estudo da qualidade da informao censitria em
listas nominativas e uma aproximao da estrutura ocupacional da provncia de Minas Gerais. Revista Brasileira de
Estudos Populacionais, Rio de Janeiro, v. 27, n. 1, p. 161-191, jan./jun, 2010.
63 ANDRADE, Mateus Rezende de. Compadrio e famlia em zona de fronteira agrcola: as redes sociais da elite escravista,
freguesia de Guarapiranga (1760-1850). Dissertao (Mestrado em Histria) Universidade Federal de Minas Gerais,
Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, Belo Horizonte, 2014, p. 34.
64 CHAVES, Cludia Maria da Graa, PIRES, Maria do Carmo, MAGALHES, Snia Maria (orgs.). Casa de Vereana
de Mariana: 300 anos de Histria da Cmara Municipal. Ouro Preto: Editora UFOP, 2008.
65 LOPES, Luiz Fernando Rodrigues. Vigilncia, Distino e Honra: Inquisio e Dinmica dos Poderes Locais no
diferenciao econmico-espacial e regionalizao nos sculos XVIII e XIX. In: V CONGRESSO BRASILEIRO
DE HISTRIA ECONMICA E 6 CONFERNCIA INTERNACIONAL DE HISTRIA DE EMPRESAS.
2003, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte: Secretaria da ABPHE, 2003. p. 25.
67 CARNEIRO, Patrcio A.S., MATOS, Ralfo E. S. A formao do espao agrrio no Leste da Capitania de Minas
Gerais: vales dos rios Piranga e Parabuna (1694-1835). In: SEMINRIO SOBRE A ECONOMIA MINEIRA,
XIII, 2008, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte: Cedeplar, UFMG, 2008. p. 7.
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econmicas de carter mercantil: a produo do fumo no vale do rio Xopot; engenhos de
acar, aguardente e rapaduras, com destaque para o distrito de Santo Antnio do Calambau.
68 LIBBY Douglas C. Transformao e trabalho em uma economia escravista: Minas Gerais no sculo XIX. So Paulo:
Brasiliense, 1988.
69 CARRARA, Angelo Alves. Minas e Currais: Produo Rural e Mercado Interno de Minas Gerais 1674 1807.
agrcola Minas Gerais, 1800-1856. So Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGH-UFMG, 2014.
73 Essa fonte foi digitalizada e disponibilizada pela equipe de pesquisadores do CEDEPLAR atravs do programa de
Populao nas Listas Nominativas de Minas Gerais na dcada de 1830 Poplin-Minas -1830 (Disponvel em:
<https://ti.eng.ufmg.br/pop30/>, acesso 05 ago 2015).
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seguimento populacional compunha-se por pardos (50,38%), enquanto os crioulos e africanos
correspondiam a 12,83% e 2,78%, respectivamente. 74
Entre os cativos foi possvel listar quatro categorias tnicas: crioulos (49,17%), africanos
(37,57%), pardos (12,60%) e cabras (0,66%). Ao se comparar as propores entre os sexos dos
cativos, v-se a grande maioria de africanos entre os homens e de crioulos entre as mulheres.
Essas informaes podem confirmar o envolvimento da regio no trfico interprovincial.
A partir das anlises da Lista Nominativa de 1831-32, Mateus Andrade sugere uma
microrregionalizao da freguesia de Guarapiranga e atravs dessa perspectiva realiza a
reconstituio da dinamicidade demogrfica e econmica de cada parte da regio:
Assim, podemos dizer que a freguesia de Guarapiranga era populosa e soube se adequar
s mudanas ocorridas no decorrer dos sculos XVIII e XIX em sua estrutura econmica e
demogrfica.
O casal teve que solicitar dispensa matrimonial, pois alm de serem acusados de manter,
por muitos anos, uma relao ilegtima, Antonio tambm foi acusado de cpula com a irm da
contraente. Aps depoimentos dos nubentes e das testemunhas, a licena matrimonial foi
concedida ao casal e em fevereiro do ano seguinte foi habilitado para receber o sacramento, ele
com, pelo menos, 59 anos e ela com 42 anos. Nesse caso, talvez o casamento foi o meio de
legitimar os laos, a fim de defender o patrimnio construdo e garantir a posse para o que ficasse
vivo primeiro, j que o casal no chegou a ter filhos.
77Cpia do Registro de Batismo de Clara Maria Violante. In: ARQUIVO Eclesistico da Arquidiocese de Mariana.
Processo Matrimonial Antonio de Souza Lobo e Clara Maria, 33-8162, 081620.
78Cpia do Registro de Batismo de Clara Dias Cunha. In: AEAM. Processo Matrimonial Caetano Jos Machado e Clara Dias
821.
80AEAM. Processo Matrimonial Antonio de Souza Lobo e Incia Maria do Sacramento. 01-124, reg. 001236.
Nas duas Listas Nominativas (1831-32 e 1838-39) que tivemos acesso a informaes do
distrito de Manja Lguas, Clara Maria Violante aparece acompanhada de seu marido 82. Alm do
casal o domiclio abrigava uma neta (Maria) e o marido (Felipe), um agregado e seis cativos.
Ainda possvel saber os ofcios dos membros desse ncleo familiar: Antonio e Felipe foram
classificados como lavradores, Clara como fiadeira e sua neta Maria como costureira.83
A Lista Nominativa de 1831-32 demonstra que no distrito de Manja Lguas a maioria dos
domiclios estava sob chefia masculina (45), sendo quatro solteiros, 1 vivo e 40 casados. Os
outros 21 fogos estavam sob os comandados de mulheres, sendo 15 solteiras, cinco vivas e uma
casada, sem a presena do marido. Os ofcios mais exercidos pelos homens era o de lavrador
(19), comerciante (11) e jornaleiro (8), enquanto as mulheres chefes exerciam com mais
frequncia atividades de fiao (8), lavradora (8) e tecelagem (3). Assim, podemos dizer que Clara
e seus familiares ajudaram a compor os dados demogrficos mais relevantes do distrito.
No ano de 1856 foi feito o Inventrio de Clara Maria Violante85, que nos informa um
pouco mais de sua vida econmica, sendo possvel, atravs do arrolamento de bens, contabilizar
81AHCSM. Inventrio de Clara Dias da Cunha. 1 Ofcio, Cdice 74, Auto: 1562.
82No tivemos acesso ao Inventrio de Antonio de Souza Lobo e no sabemos o ano de seu falecimento, s que foi
entre 1838 e 1854.
83Lista Nominativa de 1838-39. Disponvel em: <https://ti.eng.ufmg.br/pop30/>, acesso em 30 jun. 2015.
84Esse tipo de contrato, estabelecido no momento do sacramento matrimonial, consistia na promessa que o marido
fazia mulher de lhe deixar certa quantia pra o seu sustento e tratamento caso ele morresse antes. Cf.: BLUTEAU,
Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico ... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de
Jesus, 1712 - 1728. 8 v.
85ARQUIVO do Frum de Piranga. Inventrio de Clara Maria Violante. Cdice A208, Auto 584.
Em 1781, nasceu nossa segunda personagem, que foi batizada como Francisca de Paula
Magalhes (e permanece com esse nome at o seu segundo casamento), filha legtima do
Licenciado Francisco de Magalhes Canavazes e de Tomazia Rosa dos Santos86.
Seu pai era um homem de origem portuguesa, nascido e batizado na Freguesia de Santa
Maria de Furnas do Bispado do Porto, filho legtimo de Manoel Moreira Pinto e de Maria de
Souza Magalhes. Francisco faleceu precocemente em 1791, deixando seus filhos menores de
idade sob a responsabilidade de Tomazia Rosa dos Santos.87
86Informaes disponveis na cpia do Registro de Batismo. In: AEAM. Processo Matrimonial Jos Tomaz Ferreira e
Francisca de Paula Magalhes. 05-57, 05731.
87AHCSM. Inventrio de Francisco de Magalhes Canavazes. 1 Ofcio, Cdice 74 Auto 1572.
Aps os proclamas o casal foi impedido de casar-se, pois Jos foi acusado de ter cpula
ilcita com tias da contraente. A fim de conseguir a dispensa para o casamento, ele declarou que
havia inventado os envolvimentos para se gabar no meio da rapaziada. As tias da noiva tambm
negaram qualquer tipo de relao com o pretendente da sobrinha. Aps o recebimento da cpia
do Registro de Batismo do noivo, o casal recebeu a dispensa e uniram-se em matrimnio.
Aps o casamento, Jos tornou-se um Soldado do Exrcito, falecendo com poucos anos
de casado, em 1810. No tivemos acesso a esse Inventrio, mas atravs das idades dos filhos de
Francisca possvel perceber que ela ficou acompanhada de quatro filhos. No entanto, ao
encontrarmos uma Escritura de Perfilhamento feita pelo Capito Antonio Janurio Carneiro em
182189, descobrimos que o nico filho legtimo que Francisca teve com o Soldado foi Luiz.
Clementina, Teresa e Francisco foram declarados como filhos esprios pelo Capito. E aps a
morte do primeiro esposo houve ainda mais cinco filhos naturais dessa unio ilegtima.
88AEAM. Processo Matrimonial Jos Tomaz Ferreira e Francisca de Paula Magalhes. 05-57, 05731.
89AHCSM, Escritura de Perfilhamento que faz o Capito Mor Antonio Januario Carneiro aos seus filhos nela
declarados. In: Livro de Notas, n 111, p. 28v-29.
90AEAM. Processo Matrimonial Antonio Januario Carneiro e Francisca Paula Magalhes. 32-7795, 077950.
91SILVEIRA, Alessandra da Silva. Casando em Segredo: um estudo sobre os Casamentos de Conscincia, Bispado
do Rio de Janeiro, Sculo XIX. In: ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, 14, Caxamb,
Anais..., Caxamb: ABEP, 20-24 de setembro de 2004.
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Para garantir a trasmisso de sua herana, em 1827, o Capito Antonio Janurio Carneiro
realiza o Testamento92, no qual solicita mais uma vez o reconhecimento dos filhos esprios e
naturais, elege a esposa como tutora dos seus filhos menores e os filhos maiores (Francisco
Janurio Carneiro, Dona Clementina Candida e Dona Teresa Janurio) como seus primeiros
testamenteiros. Sabemos que Antonio Janurio Carneiro morreu em algum momento do ano de
1828, mas no dispomos do seu inventrio.
Nas duas Listas Nominativas analisadas (1831-32 e 1838-39) para o distrito de Piranga,
Francisca Janurio Carneiro aparece como chefe de seu domiclio. Uma mulher viva
acompanhada de seus filhos, escravos e agregados. Fora classificada como comerciante em 1832
e como mercadora em 1838, sendo que nesse segundo momento, um dos filhos lhe acompanhava
com o ofcio de negociante. Interessante ressaltar que entre os cativos dessa mulher tambm
foram encontradas declaraes das ocupaes, sendo trs classificados como tropeiros.
Observando esses dados fica visvel que Francisca compunha o segundo maior grupo de
chefes de domiclio femininos. Mas a sua ocupao e ofcio estavam em desacordo com a maioria
das mulheres chefes de domiclio deste distrito, ela fora classificada como negociante e
comerciante, ocupao que a posiciona em universo considerado masculino. Analisando a posse
de animais de transporte, o ofcio de alguns escravos (tropeiros) e a sua ocupao, podemos at
deduzir que essa mulher era uma das responsveis por abastecer localidades limtrofes.
92AHCSM, Testamento de Antonio Januario Carneiro. In: Livro de Registros de Testamentos. n 20, p. 167-160.
93 AFP. Inventrio de Francisca Januaria Carneiro. Cdice A037, Auto 469.
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Aps a soma de todos os bens, Francisca alcana um vultoso monte-mor de 143:385$211
(cento e quarenta e trs contos, trezentos e oitenta e cinco mil e duzentos e onze ris). No
entanto, o erro cometido pelo pai se repete, ela deixou muitas dvidas a serem pagas: 23:537$377
(vinte trs contos, quinhentos e trinta e sete mil e trezentos e setenta e sete ris). Alm de seus
dbitos, tambm foram descontados os dos herdeiros, que somavam 32:184$018 (trinta e dois
contos, cento e oitenta e quatro mil e dezoito ris) e os que ela tinha em sociedade com o filho
Camilo 27:651$680 (vinte sete contos, seis centos e cinquenta e um mil e seiscentos e oitenta
ris). Aps todas as divises necessrias, sobrou a cada um dos dez filhos de Francisca 7:715$568
(sete contos, setecentos e quinze mil e quinhentos e sessenta e oito ris).
Consideraes finais
Para alm dos laos afetivos, podemos dizer que essas mulheres conseguiram construir
modelos familiares que fugiam dos padres de uma famlia tradicional ou patriarcal e ajudaram a
compor os dados demogrficos que diferenciaram a populao feminina das localidades em que
habitaram.
Marcella de S Brando
Mestranda (UFMG) /[email protected]
Resumo: Este texto discute a partir e apesar da associao direta feita na Arqueologia brasileira
entre cachimbos de barro e sua utilizao por escravos, quando os artefatos so datados do
sculo XVIII ou XIX. A fonte da argumentao so tanto os elementos materiais, cachimbos
depositados em colees de museus, e anlises presentes na bibliografia, quanto iconografia
produzida por cronistas e viajantes do perodo em questo. guisa de uma concluso, so
apresentadas algumas relaes possveis entre o uso de cachimbos e o interesse dos escravos por
estes artefatos, ao mesmo tempo em que se crtica o reducionismo da ideia de cachimbo de
escravo.
Palavras chave: Cachimbos de barro; Arqueologia histrica; Dispora africana; Arte; Fumo.
94 Prefiro reservar a expresso cachimbo de barro para contextos de influncia europeia. Assim, a expresso no
abarca produes amerndias estas sim, datadas de milnios antes da invaso ibrica do continente americano.
95 Tal associao pode, por exemplo, ser encontrada em: AGOSTINI, Camilla. Cachimbos de escravos e a reconstruo de
identidades africanas no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UNESA, 1997: Monografia (Graduao) Curso de Arqueologia,
Rio de Janeiro: UNESA, 1997. GASPAR, Maria Dulce. Arqueologia, cultura material e patrimnio. Sambaquis e
cachimbos. In GRANATO, Marcus; RANGEL, Mrcio. F (Org). Cultura material e patrimnio da Cincia e Tecnologia.
Rio de Janeiro: Museu de Astronomia e Cincias Afins, 2009.374p., 1 CD ROM. pp. 39-52.PAIVA, Zafenathy;
FAGUNDES, Marcelo; BORGES, Joina. Uma baforada sim sinh:cachimbos de escravos para se entender a
dinmica sociocultural da Diamantina oitocentista. Revista Tarair. Campina Grande, vol.IV, n 1, p.165-186, 2015.
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Figura 1. Exemplo de cachimbo de barro com piteira vegetal (Padro duas
caras) Museu Histrico de Sete Lagoas. Foto: Marta Lucena.
96 Realizei todas as minhas pesquisas como pesquisador independente. No fui remunerado e no tive nenhuma
vinculao direta com o empreendimento realizado em Conceio do Mato Dentro.
97 O mtodo de datao foi o clculo do perodo mdio de produo da faiana encontrada nos stios. No disponho
dos dados que permitiram a datao, nem seus resultados finais.Ainda aguardo o repasse que a empresa me
prometeu.
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Tecnologia e decorao
98HANDLER, Jerome. The Middle Passage and the Material Culture of Captive Africans. Slavery and Abolition
.Vol. 30, n. 1., p. 126, 2009.
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Figura 2. Terminologia das partes do fornilho.1 Desenho: Marcony
Lopes Alves.
O processo produtivo dos cachimbos de barro no Brasil no foi alvo de nenhum relato
de cronista ou historiador at meados do sculo XX. O nico relato conhecido o que foi
publicado nos anais da Anpuh por uma historiadora, que descreve a produo de cachimbos de
barro moldados por uma indstria familiar criada pelo imigrante italiano Maximiliano Viviani, no
ano de 1895, em Osasco, SP99. Esse texto, no entanto, descreve o processo produtivo de peas de
um perodo posterior maioria das peas depositadas em colees museolgicas ou encontradas
em stios arqueolgicos100. Alm disso, o dono da fbrica veio da Itlia trazendo as ferramentas de
trabalho e o conhecimento do processo produtivo. Os cachimbos de Osasco apresentam
diferenas evidentes na decorao daqueles geralmente disponveis para os arquelogos. A
descrio, mesmo com suas limitaes, pode oferecer algumas pistas sobre as tcnicas e
procedimentos empregados na produo de cachimbos de barro. As ferramentas101 utilizadas para
o acabamento das peas na fbrica de Viviani podem ser muito semelhantes quelas empregadas
na produo das peas arqueolgicas. A lancheta, instrumento metlico semelhante a uma pazinha,
tinha seu cabo usado para realizar o orifcio cilndrico do porta-boquilha e para tirar a rebarba do
99 WERNER, Helena. O artesanato no municpio de Osasco em fins do sculo XIX. Anais do Simpsio de Professores
Universitrios de Histria . Franca, p. 251-271 1966.
100 Isso fica evidente por causa das diferenas morfolgicas e decorativas das peas da fbrica de Viviani e as peas
Caso o ponto de partida seja outro, como as prprias peas, acredito que seja possvel
explicar mais elementos de sua decorao. Assim, por exemplo, preciso assumir que a maior
parte das peas possui uma decorao com volutas e figuras antropomorfas semelhantes s
encontradas na arquitetura barroca, como, Frederico Barata105 apontou para Santarm (PA),
Brancante106 para o Sudeste do Brasil e Marcos Torres de Souza107 para Gois. H uma grande
diversidade de padres com volutas, cornucpias, semiesferas e cordas nos cachimbos
102 SOUZA, Marcos Andr Torres de & AGOSTINI, Camila. Body Marks, Pots, and Pipes: Some Correlations
between African Scarifications and Pottery Decoration in Eighteenth- and Nineteenth-Century Brazil. Historical
Archaeology, N. 46(3). pp. 102123, 2012.
103 AGOSTINI, Camilla. Mundo Atlntico e Clandestinidade: Dinmica material e simblica em uma fazenda litornea no sudeste,
sculo XIX. Tese (Doutorado). Rio de Janeiro: Programa de Ps-Graduao em Histria, Universidade Federal
Fluminense, p. 110-111, 2011.
104 PAIVA, Zafenathy; FAGUNDES, Marcelo; BORGES, Joina. Uma baforada sim sinh:cachimbos de escravos
para se entender a dinmica sociocultural da Diamantina oitocentista. Revista Tarair. Campina Grande, vol.IV, n 1,
p.165-186, 2015.
105 BARATA, Frederico. Arqueologia. Coleo As artes plsticas no Brasil.Tecnoprint grfica, Rio de Janeiro, 1952.
106 BRANCANTE, E. F. O Brasil e a cermica antiga. So Paulo, ano MCMLXXXI. So Paulo: Cia. Lithogrfica
Ypiranga, 1981.
107 SOUZA, Marcos Andr Torres de. Ouro Fino. Arqueologia Histrica de um Arraial de Minerao do Sculo XVIII, em
Gois. Goinia: Dissertao (Mestrado) Programa de Mestrado em Histria das Sociedades Agrrias, Faculdade de
Cincias Humanas e Filosofia, Universidade Federal de Gois, Goinia, 2000.
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modelados. As duas figuras antropomorfas presentes no padro variado duas caras 108 (ver
Figura 1) e suas volutas poderiam ser interpretadas como uma forma presente em retbulos
barrocos ou mesmo como variantes (negaes?) de anjos e seres fantsticos. Os cachimbos
com esse padro apresentam no fornilho uma figura de rosto grande e, na maioria das vezes, um
corpo em forma de ptala, sem ps, com seios e umbigo. Os braos da figura feminina
costumam a se assemelhar asas de anjo. No porta-boquilha, h uma figura diferente, com um
corpo em ptala tambm. As duas caras poderiam ser uma das formas exticas combinando o
humano e o animal, meias-figuras, cujos membros inferiores e\ou superiores so retorcidos
terminando em volutas, em cornucpia, em bulbo, em franjas ou em folhagens de acanto 109
encontradas em partes de igrejas do Barroco portugus. Se pensarmos em formas que misturam o
humano e o animal, podemos associar a presena de braos que se assemelham ou so asas. Em
todo o caso, ainda no consegui identificar exatamente o que seriam as duas caras presentes
nos cachimbos. Minhas colocaes sobre este e outros padres devem ser tomadas como
sugestes, mas que parecem conseguir explicar mais elementos decorativos.
110 SUNDBURY, Byron & HUNT Jr., William. Politics of the Fur Trade: Clay Tobacco Pipes at Fort
Union, North Dakota. Captado em: <http://www.nps.gov/archeology/sites/npsites/fortUnion.htm> Acesso em
29 de junho de 2015.
111 SOUZA, Marcos Andr Torres de. Ouro Fino. Arqueologia Histrica de um Arraial de Minerao do Sculo XVIII, em
Gois. Goinia: Dissertao (Mestrado) Programa de Mestrado em Histria das Sociedades Agrrias, Faculdade de
Cincias Humanas e Filosofia, Universidade Federal de Gois, Goinia, 2000.
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A reviso contou com a consulta a compilaes de imagens produzidas por
cronistas que estiveram no Brasil em A travessia da Calunga Grande112, Enciclopdia Ita Cultural113,
The Atlantic Slave Trade and Slave Life in the Americas: A Visual Record114, Biblioteca Nacional:
Acervo digital115. A pesquisa tambm contou com uma visita Pinacoteca do Estado de So
Paulo. Alm disso, revisitei a Viagem Pitoresca ao Brasil de Debret116 e a Viagem Pitoresca atravs do
Brasil de Rugendas117. Foram identificadas 25118 imagens de escravas e escravos usando cachimbos
em aquarelas, pinturas e uma fotografia, dois homens brancos fumando em cachimbos, alm de
duas imagens de mulheres caipiras fumando cachimbos de Almeida Jnior (Nh Chica e; no
fundo de Apertando o estribilho). A maioria dessas imagens de cenas da capital fluminense,
poca capital do Brasil. Esse recorte muito especfico, sendo amenizado apenas pelos relatos
escritos dos viajantes (ver abaixo). A anlise da iconografia mostrou uma predominncia da
figurao de mulheres pitando em cachimbos: treze escravas, alm das duas mulheres livres do
final do sculo XIX em Almeida Jnior. O contexto mais comum o do ganho nas ruas do Rio
de Janeiro, como em Vendedoras ambulantes de Carlos Julio ou em Negros vendedores de
carvo. Em Interior de uma casa do baixo povo, uma figurao de uma cena de descanso,
possvel ver um homem e uma mulher negros deitados em redes fumando em cachimbos e uma
mulher negra de p com um cachimbo na mo. Em Tropeiros pobres de Minas possvel ver
o que parece ser um local de pouso e venda de artefatos. H na cena uma gamela cheia de
cachimbos de barro, que parecem estar venda. Esta a nica cena em que os cachimbos no
esto sendo usados.
A consulta ao livro com uma grande coleo de referncia a artefatos, o Equipamentos usos
e costumes da casa brasileira: Objetos119, mostrou que nos textos os cronistas, como Bates, Freiyreyss,
Castelnau, Saint-Hilaire e Martius e Spix notaram o consumo de tabaco em cachimbos destacado
112 MOURA, Carlos Eugnio Marcondes. A travessia da Calunga Grande. Trs sculos de imagens sobre o Negro no Brasil.
(1637-1899), So Paulo, Edusp, 2000.
113 ENCICLOPDIA ITA CULTURAL. Captado em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/> Acesso em 15
de abril de 2015.
114 HANDLER, Jerome & TUITE Jr., Michael. The Atlantic Slave Trade and Slave Life in the Americas: A Visual
2015.
116 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histrica ao Brasil.So Paulo: Martins & Edusp,1972.
117RUGENDAS, Johann Mortz. Viagem pitoresca atravs do Brasil. Traduo Srgio Millet. 5. ed. So Paulo: Martins,
1954
118 Desconsiderei uma imagem de Maria Graham, duas de Chamberlain e uma de Debret, que eram adaptaes de
Objetos. V. 4. Fichrio Ernani Silva Bruno. So Paulo: Museu da Casa Brasileira, 2001.(ver verbete Cachimbo)
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entre as mulheres, em diversas partes do Brasil. Debret no poderia ter sido mais enftico quanto
a esta questo no Rio de Janeiro:
O prncipe Maxmiliano, num relato detalhado de uma cena em Lagoa Feia e uma
reflexo sobre o uso de cachimbo no Brasil, deixa claro que a utilizao de cachimbos de barro
estava tanto associada aos escravos quanto aos pobres:
A dona da cabana em que me alojei era uma mulher loquaz e jovial, de tez
descorada, vestida muito ligeiramente e trazendo boca um cachimbo, como a
maioria das mulheres das classes baixas do Brasil. Os brasileiros fumam, de
preferncia, cigarros feitos de papel, colocando-os atrs da orelha. Essa maneira
de fumar no foi levada ao Brasil pelos europeus, mas veio dos Tupinambs e
de outras tribos do litoral. Costumavam estes enrolar certas folhas aromticas
numa folha maior, acendendo-as na ponta. Os cachimbos usados pelos
pescadores, como em todo o Brasil, particularmente pelos negros e outras
pessoas das classes mais humildes, constam de um pequeno recipiente de barro
cozido escuro e de um tubo fino e liso, feito da haste de uma espcie de feto,
que cresce a considervel altura, ("samambaia"), a Mertensia dichotoma.
Entretanto, prefere-se geralmente, entre todas as classes do povo brasileiro,
tomar rap a fumar122.
120 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histrica ao Brasil.So Paulo: Martins & Edusp, p. 205, 1972.
121 AGOSTINI, Camilla. Cultura material e a experincia africana no sudeste oitocentista: cachimbos de escravos
em imagens, histrias, estilos e listagens. Topoi, v. 10, n. 18, Rio de Janiero. 2009
122 WIED-NEUWIED, Maximiliano de. Viagem ao Brasil nos anos de 1815 a 1817. Tradutores Edgard Sssekind de
Mendona e Flvio Poppe de Figueiredo. Rio de Janeiro: Editora Brasiliana, 1 Ed., p.94, 1942.
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Na anlise de um processo-crime aberto por um escravo contra outro no Vale do Paraba
imperial, Camilla Agostini123 identificou a nica informao sobre preo de cachimbo de barro no
Brasil. A pea valia 10 tostes, preo muito baixo e acessvel a escravos e homens livres pobres, o
que explica seu uso disseminado. Tambm preciso considerar que os cachimbos poderiam ser
modelados em pequena escala para atender necessidades pessoais. Seria interessante obter mais
dados sobre o preo dos cachimbos de barro e tambm dos cachimbos de caulim, para que se
faam comparaes.
Consideraes Finais
Este texto como uma reunio de notas buscou apresentar alguns problemas com a
presuno direta da associao entre escravos e cachimbos de barro. A predominncia de
decoraes de influncias europeias nos cachimbos de barro que podem ter sido usados por
mulheres escravas parece ser uma questo interessante para anlise, havendo elementos empricos
para a discusso. As colocaes desses cronistas, a iconografia e outras informaes mostram ao
mesmo tempo que a ideia de cachimbo de escravo no nem uma inveno sem base emprica
nem uma realidade dada e simples. Para a anlise de material arqueolgico coletado em
escavaes controladas essa questo pode ser vista a partir do contexto, embora eles no sejam
sempre claros. Muito preciso ser feito sobre o uso de cachimbos no Brasil dos setecentos e
oitocentos. A imagem do caipira pintado por Almeida Jnior em So Paulo e presente na
imagem do Jeca Tatu interpretado por Mazzaropi deve ser uma consequncia dos processos dos
dois sculos anteriores. As possibilidades de conexes devem ser traadas.
Agradecimentos
AGOSTINI, Camilla. Cultura material e a experincia africana no sudeste oitocentista: cachimbos de escravos
123
em imagens, histrias, estilos e listagens. Topoi, v. 10, n. 18, Rio de Janiero. 2009
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A Fisicatura-Mor nas Minas oitocentistas: polticas,
funcionrios e atuaes
Mestrando em Histria
RESUMO: O presente trabalho tem como proposio discutir as principais questes e reflexos
da medicina em Minas Gerais durante o perodo que perdurou a atuao da Fisicatura-Mor no
Brasil, a saber: entre os anos de 1810 e 1828. O perodo privilegiado se configura como essencial
para a compreenso das empreitadas de legitimao da medicina aos moldes cientficos do
Iluminismo nas vastides territoriais do Brasil do incio dos oitocentos. Para tanto, toma-se as
experincias individuais dos sujeitos envolvidos com as prticas e legislaes medicinais na
Capitania/Provncia de Minas Gerais como fio condutor de compreenso do complexo contexto
medicinal das Minas nos fins do perodo colonial e incio do Imprio. Entende-se que a
Fisicatura-Mor a ltima instituio de regulao das prticas medicinais no Brasil ainda gestada
no Imprio Portugus, o trabalho visa entender, concomitantemente, quais foram as influncias
da Ilustrao Lusitana nas prticas de medicina nos domnios brasileiros, trazendo luz da
discusso no apenas os impactos profissionais, como tambm as questes que dizem respeito ao
benefcio da sade dos povos das Minas. Portanto, o intuito trazer apreciao os principais
fatores e encargos que permeavam o cotidiano desse seguimento profissional em Minas no sculo
XIX, conjugando o esforo do governo das Minas em instruir e instituir uma medicina nos
moldes da Ilustrao em seus domnios e explorando como realmente as prticas, leituras e
legislaes medicinais se davam na vastido geogrfica e nas diversidades culturais e naturais das
Minas no perodo a se tratar.
PALAVRAS-CHAVE: Histria da medicina; Histria de Minas Gerais; Fisicatura-Mor.
124PIMENTA, Tnia Salgado. Artes de curar: um estudo a partir dos documentos da Fisicatura-Mor no Brasil do
comeo do sculo XIX. Dissertao (Mestrado em Histria) Universidade Estadual de Campinas, Programa de
Ps-Graduao em Histria, Campinas, 1997, p.11-44.
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grande aliada da Fisicatura-Mor no Brasil posteriormente o estabelecimento do Regimento de
1810, no qual a bilateralidade da norma figuraria como sua principal caracterstica.
Se os procedimentos ideais e punitivos so melhores especificados, consequentemente, as
medidas disciplinares s aes abusivas da fiscalizao tornaram-se, pelo menos a intento,
taxativas. Estabelecia-se que a comitivas visitadoras tinham de observar se os boticrios e lojas de
drogas tinham
o regimento para o preo dos medicamentos, se tem os pesos e balanas
aferidas, se as balanas so iguais, se os medicamentos esto feitos com a
perfeio e bondade que manda a Arte Farmacutica, e se neles existe aquele
vigor e eficcia para que possa produzir efeito para que foram compostos e so
aplicados. Se os utenslios esto com asseio e limpeza que se requer, se os vasos
em que esto os medicamentos tem os seus respectivos letreiros a vista para
no haver engano no tirar de algum; se as receitas que guardam esto somadas
pelo Regimento125
O rol de visitadores poderia, inclusive, mandar fechar a botica e incinerar os
medicamentos considerados inaplicveis e ineficazes. Por sua vez, os boticrios e droguistas
tambm poderiam apelar ou negar os efeitos da visitao se julgassem por suspeito algum
examinador, o que ser antes da visita e o juiz achar que legtima a suspeio, mandar retirar o
suspeito e chamar outro boticrio aprovado, podendo o compelir at fazendo vir ao debaixo de
priso.126
Confere-se tambm que o mtodo avaliativo tambm se tornou mais judicioso, facilitando
rplicas e trplicas tanto dos fiscais quanto dos fiscalizados. Acabadas as visitas, os boticrios
recebiam uma declarao assinada pelo juiz comissrio conceituando o estabelecimento como
B.L.R. Iniciais das palavras boa, suficiente e reprovada127. Outra via da declarao era
endereada diretamente ao Fsico Mor do Reino e a validade da licena era exatamente dos trs
anos at a realizao da prxima visita.
Mesmo com o salvo guardo de trs anos concedido pelas avaliaes peridicas, havia
outros mtodos de fiscalizao no intervalo de uma visita e outra. Se houvesse inadimplncia ou
falta com os critrios de normatizao, o transgressor era passivo de sofrer ao de devassa civil
que era aberta regularmente todos os anos. Deveria se observar as denncias e notificaes de
que
125 Biblioteca Nacional Sesso de Manuscritos. Coleo Casa dos Contos 1-27, 22, 006. Proviso de Luis Jos de
Godi Torres determinando que o juiz delegado Joo Rodrigues da Cruz execute o aviso rgio de 01/02/1815, para
coibir a prtica ilegal de medicina e consequentemente no abuso nos pedidos de exame e nas aplicaes de remdios.
19/05/1815, fl4v.
126 Biblioteca Nacional Sesso de Manuscritos. Coleo Casa dos Contos 1-27, 22, 006. Proviso de Luis Jos de
Godi Torres determinando que o juiz delegado Joo Rodrigues da Cruz execute o aviso rgio de 01/02/1815, para
coibir a prtica ilegal de medicina e consequentemente no abuso nos pedidos de exame e nas aplicaes de remdios.
19/05/1815, fl4v.
127 Biblioteca Nacional Sesso de Manuscritos. Coleo Casa dos Contos 1-27, 22, 006. Proviso de Luis Jos de
Godi Torres determinando que o juiz delegado Joo Rodrigues da Cruz execute o aviso rgio de 01/02/1815, para
coibir a prtica ilegal de medicina e consequentemente no abuso nos pedidos de exame e nas aplicaes de remdios.
19/05/1815, fl5.
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se alguma pessoa que no for mdico ou no tiver licena para substituir a falta
de mdicos, aplica remdio as necessidade internas, necessitando, ou por
qualquer outro modo; lentes que assim viro, exigem dos enfermos pagamentos
das suas visitas e curas; [...]; Se algum boticrio leva pelos medicamentos mais
do contedo no seu regimento, ou faz rebate de alguma parte da sua legtima
importncia; Se algum boticrio vende remdios ativos, suspeitosos, perigosos,
ou venenosos sem receitas de pessoa autorizada: como vomitrios, purgantes,
cantridas, preparaes mercuriais, pio e suas composies e outros
semelhantes; Se substituem uns remdios por outros sem autoridade de quem
os receitou; Se aviam receitas de medicina passadas por pessoas ilegtimas; Se
vendem remdios de segredo sem licena e taxa do Fsico Mor do Reino; Se
tem parceria com algum mdico ou cirurgio; Se so prontos no aviamento das
receitas a qualquer hora; Se costumam deixar parar a botica, deixando nelas
aprendizes ou escravos que vendam remdios; Se intromentem a curar ainda
que seja pelas receitas que vo a sua botica; Se algum mdico, ou cirurgio que
substituiu na falta de mdico, receita em latim, ou com breves; Se obrigam a
enviarem os enfermos suas receitas em boticas determinadas, Se receitam
medicamentos e composies com nomes desconhecidos para serem
entendidos somente por algum boticrio; Se algum venda ou faa remdios em
sua casa sem ttulo legtimo; Se os sangradores sangram em febres e outras
enfermidades mdicas sem ordem de pessoa legtima; E se as parteiras curam e
aplicam medicamentos a molstias de mulheres.128
Todos os tpicos elencados que deveriam ser observados eram previamente fixados em
locais pblicos das vilas pelos meirinhos das cmaras. Tudo isto feito na forma de edital que eram
devidamente anexados s devassas e assim como no caso das visitaes peridicas, todo
contedo dos processos era remetido ao Fsico Mor do Reino.129 Se os segredos nos mtodos de
cura no perodo j eram altamente rechaados130, a mesma regra deveria valer para os
procedimentos de fiscalizao da medicina, inclusive no que diz respeito aos critrios empregados
para se apurar se um indivduo era apto ou no para exercer de seu respectivo ofcio.
Aos candidatos boticrios, como exemplo, era estabelecido que se sorteasse e se fizesse
seis composies da Farmacopeia do Reino que seriam indagadas e avaliadas pelos dois boticrios
examinadores no podendo estes ter sido mestre de ofcio do examinado. Se ficassem bem
feitas, era concedida a sobredita licena, e os compostos farmacuticos do teste poderiam ser
128 Biblioteca Nacional Sesso de Manuscritos. Coleo Casa dos Contos 1-27, 22, 006. Proviso de Luis Jos de
Godi Torres determinando que o juiz delegado Joo Rodrigues da Cruz execute o aviso rgio de 01/02/1815, para
coibir a prtica ilegal de medicina e consequentemente no abuso nos pedidos de exame e nas aplicaes de remdios.
19/05/1815, fl7-7v.
129 Biblioteca Nacional Sesso de Manuscritos. Coleo Casa dos Contos 1-27, 22, 006. Proviso de Luis Jos de
Godi Torres determinando que o juiz delegado Joo Rodrigues da Cruz execute o aviso rgio de 01/02/1815, para
coibir a prtica ilegal de medicina e consequentemente no abuso nos pedidos de exame e nas aplicaes de remdios.
19/05/1815, fl7-7v.
130 RIBEIRO, Mrcia Moiss. A cincia os trpicos: a arte mdica no Brasil do sculo XVIII. So Paulo: Hucitec, 1997.
150 p.
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normalmente comercializados e aplicados. E da mesma forma, se mal feitos, o comrcio/uso era
desautorizado e o prejuzo era do boticrio avaliado alm claro, da reprovao. 131
O parecer do exame era dado em forma de voto fechado de cada um dos membros da
comitiva. Para ser considerado aprovado era necessria unanimidade. Se houvesse minoria
desfavorvel das apreciaes, o boticrio era tido como reprovado tendo, contudo, a
oportunidade de reexame seis meses depois. Em caso de maioria desaprovadora, o prazo para
nova averiguao era de um ano e meio.132
Ainda no que diz respeito s boticas, o acentuado trnsito martimo do incio do sculo
XIX ganha ateno do Regimento de 1810. Antes dos aportar ou partir, tantos os navios com
todas as boticas e drogas que chegassem de fora, assim como as boticas dos navios que
estiverem para fazer viagem133 deveriam ser examinados com a mesma rigidez dos
estabelecimentos de terra firme, sendo o despacho da Fisicatura-Mor, essencial para que as
embarcaes seguissem viagem.
Assim como os regimentos da dcada de 1740, as boticas, boticrios e lojas que faziam
comrcio de drogas medicinais continuam contando com ateno maior do aparato legislador.
Contudo, no Regimento de 1810 tambm se confere um melhor detalhamento dos
procedimentos de exame e estabelecimento dos limites de atuao dos demais ofcios do sangue.
Atravs do realado zelo que se tem com a questo das boticas e boticrios pode se ter
nota que na segunda metade do XVIII o comrcio de drogas era considervel nas vilas e portos
da Amrica. Da mesma forma, no so mencionados nos regimentos que ocasionais escassezes
de sujeitos dotados da habilidade farmacutica, assim como a venda e acesso s substncias so
preocupaes da Coroa para com os povos o que ocorria diferentemente com os mdicos,
cirurgies e outros oficiais de cura, em que a falta de indivduos atuantes apresentada nas
prprias legislaes como via de regra.
Nesse sentido, o Regimento de 1810 considera a sobredita carestia de oficiais que
causavam prejuzo aos sditos com a necessidade de imposies padres cientficos acordantes
aos interesses da Coroa. Entendia-se, ou pelo menos, presumia-se que
nas cidades e vilas populosas haver nmero certo de cirurgio aprovado, que
tratem daqueles enfermos de enfermidades internas, a quem os mdicos, por
poucos, no podem assistir, e sero aprovados pelo Fsico Mor do Reino pelos
131 Biblioteca Nacional Sesso de Manuscritos. Coleo Casa dos Contos 1-27, 22, 006. Proviso de Luis Jos de
Godi Torres determinando que o juiz delegado Joo Rodrigues da Cruz execute o aviso rgio de 01/02/1815, para
coibir a prtica ilegal de medicina e consequentemente no abuso nos pedidos de exame e nas aplicaes de remdios.
19/05/1815, fl7v.
132 Biblioteca Nacional Sesso de Manuscritos. Coleo Casa dos Contos 1-27, 22, 006. Proviso de Luis Jos de
Godi Torres determinando que o juiz delegado Joo Rodrigues da Cruz execute o aviso rgio de 01/02/1815, para
coibir a prtica ilegal de medicina e consequentemente no abuso nos pedidos de exame e nas aplicaes de remdios.
19/05/1815, fl7v.
133 Biblioteca Nacional Sesso de Manuscritos. Coleo Casa dos Contos 1-27, 22, 006. Proviso de Luis Jos de
Godi Torres determinando que o juiz delegado Joo Rodrigues da Cruz execute o aviso rgio de 01/02/1815, para
coibir a prtica ilegal de medicina e consequentemente no abuso nos pedidos de exame e nas aplicaes de remdios.
19/05/1815, fl7v.
Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG. v. 7 (Suplemento,
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exames de oposio que fizeram segundo o seu merecimento. Estes exames
sero feitos por 2 mdicos e o juiz comissrio presidente, e a cada um
perguntar de hora, e consultado o merecimento ter a distino de
aprovados smplice, dplice, trplice, com laudo ou aprovado de que repassaro
certides assinada pelo juiz comissrio presidente e mdicos examinadores, para
com ela requererem o Fsico Mor. [...] Estes exames ouviro sobre o
conhecimentos e curas das enfermidades agudas e crnicas, o prognstico e
medicamentos indicados assim como sobre o modo de fazer uma consulta a
qualquer mdico e de inquirir um enfermo atendendo-se sempre nas perguntas
aos poucos conhecimentos que os cirurgies podem ter. O mesmo exame faro
os cirurgies que forem curar em lugares onde no h mdico algum.134
O controle e conhecimento numrico dos indivduos que procuraram legalizao obtido
posteriormente aos regimentos da dcada de 1740 assim como o perodo de atuao da Junta
do Protomedicato possivelmente foi preponderante para o aperfeioamento do aparato
legislativo conferido no Regimento de 1810. Consequentemente, o intento legislador se
modernizou no que diz respeito ao elemento estatstico. Se outrora, de acordo com o que aqui j
foi discutido, to somente se intentava saber quem, quantos e onde estavam atuando os
curadores, de 1810 em diante interessava-se tambm nos pacientes.
De seis em seis meses os cirurgies licenciados deveriam remeter ao juiz comissrio,
uma relao fiel dos enfermos de que tem tratado, dos medicamentos que lhes aplicaram, o seu
resultado, e ele enviariam a sua correo ou louvor, segundo o seu merecimento135. Em caso de
erros consecutivos prejudiciais a vida dos povos, responderia a eles logo, e no admitiria mais
exame sem passar um ano136.
Passava-se claramente a se arrolar os requisitos bsicos de regulamentao, as obrigaes
de um licenciado para com a sociedade e o rgo administrativo, e as consequncias do
descumprimento das resolues e da infrao da lei. Reala-se nesse sentido, que, medida que
os modelos ideais e os procedimentos de fiscalizao eram melhores apresentados, e, que o
capital humano qualificado para as examinaes aumentava, consequentemente, a exemplaridade
punitiva aos transgressores tambm se acentuava. Condenava-se que
os que curam sem ttulo legtimo paguem 20$000 pela primeira vez, o dobro
pela segunda e assim pelas mais. Segundo; que os que vendem e fazem
medicamento, sejam condenado em 8$000 pela primeira vez, dobrando-se pelas
reincidncias. Terceiro; que pelas culpas averiguadas nas vizitas das boticas,
sejam condenados os boticrios em 4$000 pela primeira vez, no dobro pela
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Godi Torres determinando que o juiz delegado Joo Rodrigues da Cruz execute o aviso rgio de 01/02/1815, para
coibir a prtica ilegal de medicina e consequentemente no abuso nos pedidos de exame e nas aplicaes de remdios.
19/05/1815, fl8v.
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coibir a prtica ilegal de medicina e consequentemente no abuso nos pedidos de exame e nas aplicaes de remdios.
19/05/1815, fl9.
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coibir a prtica ilegal de medicina e consequentemente no abuso nos pedidos de exame e nas aplicaes de remdios.
19/05/1815, fl9.
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segunda, e na terceira o juiz comissrio lhe mande fechar a botica, que no
poder abrir sem merc do Fsico Mor do Reino. Quarto; que a pena de
desobedincia seja de 1$000; a de injria feita ao juiz comissrio e seus oficiais,
se arbitre segundo a qualidade dela; a de falsificar pesos e medidas seja 20$000
pela primeira vez, e se dobre pelas mais vezes at a quarta, em que os rus deste
delito sero constrangidos a fecharem as boticas ou lojas de drogas; pela falta
de aferio paguem 4$000, dobrando at a terceira vez e na quarta incorrero na
mesma pena de no poderem ter mais boticas ou lojas abertas. Quinto; que
nestas mesmas penas sejam condenados os que reincidirem em ter
medicamentos incapazes. Sexto; Que todas estas multas paguem alm das
custas.137
Nenhum outro funcionrio reinol, por mais hierarquicamente proeminente fosse, tinha
poderes para embargar ou suspender ato ou diligncia alguma dos juzes delegados do Fsico-
Mor do Reino138. A instituio gozava de plena autonomia de atuao nas diversas localidades
do Reino. Porm, em caso de alguma autoridade de outra instncia administrativa desconfiasse de
excessos de um ou outro delegado da Fisicatura, deveria dar diretamente conta ao Fsico-Mor
do Reino ou nos faro saber pela Secretaria de Estado competente, sem, contudo, lhe embaraar
o exerccio de que esto encarregados139.
Por mais que se acentuasse a burocratizao de todas as instncias dos processos de
regulamentao e fiscalizao dos curadores e seus estabelecimentos, a fluidez do governo da
medicina percebida como o grande intento das reorientaes legislativas. Mais do que isso, a
diferenciao principal das mudanas do aparato regulador entre a dcada de 1740 at o
Regimento 1810 justamente a inteno de equilbrio entre o que pode ser eficientemente
administrvel e o que deve ser satisfatoriamente benfico sade do pblico.
A preconcebida carestia de determinados ofcios deveriam significar afrouxo em alguns
pr-requisitos, como por exemplo, a formao e o modo de obteno do conhecimento de alguns
dos ofcios. Contudo, tambm no se deixava de ter arrocho com o que dizia respeito a questes
caras a administrao do Reino do Brasil, percebido na preocupao que se tinha com a correta
observncia do Regimento, assim como com o corpo efetivo que deveria conduzi-lo.
Destaca-se que no perodo que durou a Fisicatura-Mor em concordncia com todas as
iniciativas realizadas desde 1772 que aqui foram citadas , o mote era de tentar impor certos
padres e limites no exerccio da medicina, porm sem concentrar as prticas curativas a
137 Biblioteca Nacional Sesso de Manuscritos. Coleo Casa dos Contos 1-27, 22, 006. Proviso de Luis Jos de
Godi Torres determinando que o juiz delegado Joo Rodrigues da Cruz execute o aviso rgio de 01/02/1815, para
coibir a prtica ilegal de medicina e consequentemente no abuso nos pedidos de exame e nas aplicaes de remdios.
19/05/1815, fl9v.
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coibir a prtica ilegal de medicina e consequentemente no abuso nos pedidos de exame e nas aplicaes de remdios.
19/05/1815, fl10.
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determinado seguimento social e profissional dominante.140 Por mais que os mdicos acadmicos
j estivessem em monoplio nos cargos de admisso e fiscalizao dos exerccios de cura no
Reino, no se conferem nas legislaes estratgias claras de proibio de outros oficiais em
benefcio da classe mdica formada.
Em concordncia com o que aqui foi apresentado, entende-se que a renovao da praxe
da medicina no Reino141 estabelecida nos Estatutos de 1772 iniciaria um processo de reorientao
da formao dos mdicos em benefcio da sade pblica, contudo tentando agregar os saberes
populares a uma medicina dita oficializada. No se desconsidera, que no extrapolar do texto lei,
estratgias de beneficiamento do seguimento mdico acadmico tenham se dado o que
inclusive, o objetivo central de anlise e discusso deste estudo. Contudo, necessrio realar
que nas suas instncias de elaborao e afixao, a lei se fazia clara e objetiva quanto
preocupao com a sade dos povos.
H de se considerar o fator do artifcio retrico, e ao mesmo passo, que h de se levar em
conta que a prpria necessidade da dissimulao evidencia que o equilbrio entre foras de poder
era entendidamente necessrio entre todas as partes. Governo, instituies, funcionrios e
populao passavam a calcular e proceder a boa ordem supostamente a partir do que era benfico
ao pblico como um todo. 142
A reorientao educacional de Coimbra ps 1772 foi capaz de embeber a mentalidade dos
egressos de ideais estadistas, abandonando, assim, o modo providente de se pensar o exerccio e
o governo da medicina no Imprio Luso-Brasileira. A percepo de perfeio esttica de modo
de vida, de ao do Estado e de soberania monrquica substituda pela indagao e tentativa de
clculo do que poderia acontecer num futuro no exatamente no controlado nem controlvel,
no exatamente medido nem mensurvel143.
Concluindo, pretendeu-se demonstrar neste texto que a legislao de 1810 j vem
impregnada com a noo de bem pblico, sendo muitos aspectos dessa conscincia tambm
explcitos nos Estatutos de 1772. Depois das reformulaes pedaggicas de Coimbra, no apenas
preparavam-se mdicos dotados de modernas habilidades tcnicas e cientficas, mas, sobretudo,
formavam-se indivduos capazes de analisar, questionar e propor projetos polticos concernentes
ao governar e exercer da cura.
SENELLART, Michel. As Artes de governar: do regimen medieval ao conceito de governo. So Paulo: Editora 34, 2006. 302p.
142
FOUCAULT, Michel. Segurana, territrio, populao: curso dado no Collge de France(1977-1978). So Paulo:
143
RESUMO: Pretende-se apresentar tema de projeto de mestrado iniciado no ano de 2015 no programa de
ps-graduao em Histria da UFMG, na linha de Cincia e Cultura na Histria. Objetiva-se realizar uma
anlise histrica da obra Natureza, doenas, medicina e remdios dos ndios brasileiros (1844), escrita pelo viajante
naturalista Carl Friedrich Philipp von Martius que esteve no Brasil entre 1817 e 1820 e publicada na
cidade de Munique no ano de 1844. No livro, Martius descreve, a partir de pressupostos da cincia do
sculo XIX, as caractersticas fsicas dos povos indgenas brasileiros, as doenas que mais os acometiam e
suas implicaes e formas de tratamento. Alm disso, dedica-se ao estudo dos principais remdios
utilizados e das prticas e rituais curativos. Pretende-se, na dissertao, dar enfoque especial s
representaes de doena e cura construdas tanto pelos povos indgenas descritos pelo autor, como
pela comunidade de cientistas e viajantes da qual fazia parte. Tambm espera-se conseguir compreender a
construo histrica de um discurso cientfico a respeito de uma cultura diferente da europeia do sculo
XIX.
Introduo
Neste artigo ser apresentado tema de projeto de mestrado iniciado no ano de 2015.
Objetiva-se, por tanto, expor a proposta de trabalho elaborada. A pesquisa encontra-se ainda em
estgio inicial, por isso no ser possvel apresentar os resultados obtidos.
A anlise do carter social e cultural da cincia foi um dos temas de reflexo de Ludwik
Fleck. Em Gnese e Desenvolvimento de um Fato Cientfico, ele explica que O processo de
conhecimento representa a atividade humana que mais depende das condies sociais, e o
conhecimento o produto social por excelncia144.
Se hoje, religies, rituais e crenas so tidos, no senso comum, como o oposto de tudo
que faz parte do universo cientfico, o mesmo no ocorria no oitocentos. Segundo Betnia
Figueiredo, O espao da f, da crena, da simpatia no se contrape, na prtica das pessoas do
sculo XIX, ao espao da razo e da chamada cincia mdica145.
Pretendo faz-lo por meio da anlise histrica da obra Natureza, doenas, medicina e remdios
dos ndios brasileiros escrita por Carl Friedrich Phillipp von Martius. Com o ttulo original de Das
Naturell, die Krankheiten, das Arztthum und die Heilmittel der Urbewohner Brasiliens Mnchen, o livro foi
publicado pela primeira vez no ano de 1844, na cidade de Munique.
Os escritos de Martius foram elaborados com base em sua viagem ao Brasil entre 1817 e
1820. Mdico e botnico bvaro, o autor de Natureza, dedicou-se ao estudo das plantas brasileiras
144 FLECK, Ludwik. Gnese e Desenvolvimento de um Fato Cientfico. 1. ed. Trad. Georg Otte e Mariana Camilo de
Oliveira. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010. p. 85
145 FIGUEIREDO, Betnia Gonalves. A arte de curar: cirurgies, mdicos, boticrios e curandeiros no sculo XIX em Minas
Logo na introduo de Natureza, doenas, medicina e remdios dos ndios brasileiros o autor alerta
para o fato de que intenta fazer uma ampla observao sem preconceitos sobre os indgenas.
Pretende, desta forma, opor-se s vises preconceituosas dos primeiros cronistas e
historiadores da Amrica146.
A vinda dos naturalistas austracos e alemes ao pas foi beneficiada pelo estabelecimento
de relaes diplomticas entre casas reais. Dom Pedro I casa-se com a arquiduquesa da ustria,
146 AGUIAR, Jos Otvio; COSTA, Rassa Barbosa. Fisiologia e Naturezas humanas na obra de Von Martius: um
estudo da obra Natureza, doenas, medicina e remdios dos ndios brasileiros, publicada em 1844. In: SEMINRIO
NACIONAL DE HISTRIA DA CINCIA E DA TECNOLOGIA, 13, 2012, So Paulo. Anais do 13 Seminrio
Nacional de Histria da Cincia e da Tecnologia. So Paulo: Sociedade Brasileira de Histria da Cincia, 2012. p. 5.
147 MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von. Natureza, doenas, medicina e remdios dos ndios brasileiros (1844). 1. ed. Trad.
Manuel Augusto Piraj da Silva. So Paulo; Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre: Companhia Editora Nacional, 1939.
p. 01.
148 AGUIAR; COSTA. Fisiologia e Naturezas humanas na obra de Von Martius. p. 05.
149 DEAN, Warren. A ferro e fogo: a histria e a devastao da Mata Atlntica brasileira. 4 Reimpresso. Trad. Cid Knipel
Alm disso, ele realiza certa hierarquizao entre culturas, utilizando-se por vezes da ideia
da civilizao versus a barbrie.
Devemos confessar que o nosso tentame de seguir o fio do mais alto esprito
cientfico, por entre fatos isolados, nebulosos, e as tradies que constituem a
arte mdica dos ndios, no pde surtir efeito. Encontramo-nos, aqui, na
mesma situao em que nos achamos perante a Histria, a Lingustica, a
Mitologia e a Etnografia dessa raa vermelha, sempre numa esfera muito
obscura; e enquanto, com profundo sentimento e pesar, fazemos perpassar
diante de ns esse quadro de to intensa corrupo e degenerao, surge e
ressurge com o nosso pasmo, a pergunta: que extraordinria catstrofe deve ter
sofrido esta raa? Em que pavorosos desvios e rodeios ter ela errado durante
milnios, para chegar atual situao, to lamentvel quanto enigmtica?156
Por tudo acima exposto, concluo que, alm de apresentar uma forma narrativa fascinante,
o livro Natureza, doenas, medicina e remdios dos ndios brasileiros guarda um discurso mais complexo
do que uma rpida leitura nos faria supor. Martius dialoga com os conceitos de cincia e
cultura que estavam sendo construdos no sculo XIX por uma ampla comunidade de
154 EDELER, Flvio Coelho. A mata a botica dos ndios. In: Boticas e pharmacias: uma histria ilustrada da farmcia no
Brasil. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2006. p. 24 e 25.
155 MARTIUS. Natureza, doenas, medicina e remdios dos ndios brasileiros (1844), p. 201-202.
156 ________. Natureza, doenas, medicina e remdios dos ndios brasileiros (1844), p. 286.
Concluso
Para finalizar, a obra Natureza, doenas, medicina e remdios dos ndios uma fonte muito rica e
apresenta inmeras possibilidades analticas. No projeto de mestrado em desenvolvimento
pretende-se fazer uma anlise histrica deste documento a partir da perspectiva da Histria da
Cincia e da Histria da Sade.
RESUMO: O processo de construo do Estado imperial brasileiro tem sido bastante revisado,
especialmente a partir do enfoque nas dinmicas sociopolticas das provncias, os novos espaos
de poder estruturados por meio da adaptao e acomodao de novas e velhas instituies,
dentre elas os Conselhos provinciais (de Presidncia e Geral). Destarte, analisaremos de que
forma esses rgos contriburam para acomodar o Maranho no imenso mosaico imperial.
PALAVRAS-CHAVE: Dinmica poltica regional; Conselhos provinciais; Maranho; Brasil
Imprio.
Introduo
Impulsionados por estudos que vm destacando a complexificao das dinmicas
sociopolticas ocorridas nas provncias, que ocorreram desde a vinda da Corte portuguesa para o
Brasil (1808), passando pela movimentao ocasionada pela Revoluo do Porto (1820) e o
processo de Independncia, vrios pesquisadores esto se debruando sobre as singularidades dos
processos de adaptao, acomodao e transformao das novas e velhas instncias
administrativas nas outrora ptrias locais158, que se firmariam ao longo do Imprio como novos
espaos de poder e representatividade.
Nessa perspectiva, anlises que tratam das instncias judicirias, polticas e sociais esto
relativizando a antiga premissa de centralizao e autoritarismo que teriam sido impostos pelo
novo poder central desde o Primeiro Reinado ou pelas inovaes burocrticas, destacando que as
158 Marco Morel (2007) e Marco A. Pamplona (2009) trabalharam a trajetria polissmica do vocbulo ptria no
incio do sculo XIX e como seus diversos sentidos correlacionavam-se com o contexto de transformaes
sociopolticas ps-revolucionrias. O sentido mais comum era relacionado rea de nascimento ou de
estabelecimento do indivduo. Para mais informaes, ver MOREL, Marco. Ptrias polissmicas: Repblica das
Letras e imprensa na crise do Imprio portugus na Amrica. In: KURY, Lorelai (org.). Iluminismo e imprio no Brasil:
O Patriota (1813-1814). Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2007, p. 14-40; PAMPLONA, Marco A. Nao. In:
FERES JNIOR, Joo (org.). Lxico da histria dos conceitos polticos do Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009, p.
161-180.
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mudanas ocorridas nesse perodo foram marcadas pelo convvio de tentativas de
descentralizao poltica e de prticas localistas aliadas a uma busca de concentrao de poderes,
demonstrao evidente que a Corte recorreu constantemente a diferentes estratgias para
consolidar e legitimar sua autoridade no extenso territrio imperial159. Pari passu, tambm ntida
a coexistncia de reminiscncias do Antigo Regime com prticas inspiradas no novo iderio
liberal europeu, mais um subterfgio que denota as manobras de negociao e conciliao da
Corte para garantir o apoio das elites locais/regionais ao novo projeto estatal160.
Assim, estudos como os de Miriam Dolhnikoff161, Maria de Ftima Silva Gouva162 e de
Marisa Saenz Leme163 articularam as conjecturas polticas provinciais s relaes mantidas com a
nova sede de governo, destacando a importncia das tramas que marcaram a organizao
poltico-administrativa e seus atores, que articularam, de uma forma ou de outra, as bases para a
consolidao do Imprio do Brasil. Nesse rol, vrias instituies e instncias foram destacados,
como as Cmaras Municipais, antigos e poderosos potentados locais; a presidncia de provncia,
cargo executivo escolhido diretamente pelo Imperador; e os Conselhos Gerais, instituies que,
mais tarde, originaram as assembleias provinciais. Todavia, uma chama a ateno por seu carter
executivo, deliberativo e consultivo: o Conselho de Presidncia, tambm chamado Conselho de
Governo e Conselho Administrativo. No Maranho, o Conselho de Presidncia foi chamado
recorrentemente de Conselho Presidial, provvel referncia ao seu principal chefe, o presidente
de provncia. Mas vale destacar que esse termo tambm foi usado no projeto de Constituio
elaborado pela Assembleia Constituinte164.
159 MARTINS, Maria Fernanda Vieira. Das racionalidades da Histria: o Imprio do Brasil em perspectiva. Almanack
Braziliense. Guarulhos, n.04, p.53-61, 2012, p. 60.
160 ________. A velha arte de governar: um estudo sobre poltica e elites a partir do Conselho de Estado (1842-1889).
2005.
162 GOUVA, Maria de Ftima Silva. O imprio das provncias: Rio de Janeiro, 1822-1889. Rio de Janeiro: Civilizao
Brasileira, 2008.
163 LEME, Marisa Saenz. Dinmicas centrpetas e centrfugas na formao do Estado monrquico no Brasil: o papel
do Conselho Geral da Provncia de So Paulo. Revista Brasileira de Histria, So Paulo, vol. 28, n. 55, jun. 2008, p.
197-215.
164 ________. So Paulo no I Imprio: poderes locais e governo central In: OLIVEIRA, Ceclia Helena de Salles;
PRADO, Maria Lgia Coelho; JANOTTI, Maria de Lourdes Mnaco (orgs). A histria na poltica, a poltica na histria.
So Paulo: Alameda, 2006, p. 61.
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exame e juzo administrativo , destituindo, assim, as antigas Juntas de Governo criadas pelas
Cortes lisboetas. Alm disso, seria composto por seis conselheiros166 escolhidos dentre os
polticos do mbito regional, premissa que, em tese, buscava assegurar algum conhecimento dos
conselheiros acerca da situao da provncia e proporcionar adequado suporte consultivo ao
presidente, chefe do Executivo provincial, na resoluo de problemas e carncias
locais/provinciais.
165 Essa expresso foi sugerida por Andrada Machado para enfatizar que o rgo tinha somente carter executivo, e
no legislativo. Conferir: FERNANDES, Renata Silva. O Conselho da Presidncia e o Conselho Geral de Provncia na letra
da lei (1823-1828). 89 f. Monografia (Graduao em Histria) Universidade Federal de Juiz de Fora, Curso de
Histria Bacharelado, Juiz de Fora, 2012, p. 32-33.
166 Os candidatos ao Conselho de Presidncia deveriam ser maiores de trinta e cinco anos e residir na provncia h,
no mnimo, cinco, exigncias que buscavam asseverar o conhecimento dos conselheiros acerca do seu mbito
regional.
167 BRASIL, Decreto de 20 de Outubro de 1823, art. 24, p. 12-13.
168 A quantidade de membros dependia da populao da provncia. Foram definidos alguns critrios para os
candidatos: idade mnima de vinte e cinco anos, probidade e decente subsistncia. Era vetada a eleio ao presidente
de provncia, seu secretrio e os comandantes das armas, condio que, de certa forma, limitava o poder das
principais autoridades provinciais que eram nomeadas pelo poder central.
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pela Assembleia Geral, a Lei de 27 de Agosto de 1828 169. Ou seja, os Conselhos de Presidncia
passaram boa parte do Primeiro Reinado atuando de forma isolada no mbito regional. No
Maranho, no foi diferente.
Desta feita, o peso das deliberaes do Conselho Presidial, a participao de figuras de
destaque das provncias ao lado do delegado imperial e a sua atuao pioneira no espao de
poder regional vm auxiliando a retirar do limbo essa instituio e seus atores. Por outro lado,
com a instalao do Conselho Geral do Maranho, houve uma adaptao e adequao de
prioridades para evitar sobreposies de poderes. No entanto, inegvel que as duas instituies
contriburam sobremaneira para a fortificao do espao de poder regional e sua representao
frente o poder central. Assim, buscaremos mostrar atravs de uma anlise qualitativa e indiciria
das atas do Conselho Presidial e dos ofcios do Conselho Geral, de que forma os trabalhos dessas
duas instituies pautaram o processo de estabelecimento do Estado imperial na distante
provncia maranhense.
169 Para mais informaes sobre o impasse na elaborao do regimento dos Conselhos Gerais, ver CIRINO, Raissa
Gabrielle Vieira. Pelo bem da ptria e pelo Imperador: o Conselho Presidial do Maranho na construo do Imprio
(1825-1831). Dissertao (Mestrado em Histria). 169 p. Universidade Federal do Maranho, Programa de Ps-
graduao em Histria, So Lus, 2015.
170 Segundo Gianfranco Pasquino (2008, p. 768) a modernizao poltica iniciou-se com as transformaes sociais e
econmicas decorrentes das Revolues Industrial e Francesa, ocorridas no final do sculo XVIII, e teve impactos
em todos os mbitos da sociedade, com o objetivo principal de superar as caractersticas feudais do Antigo Regime.
Conferir PASQUINO, Gianfranco. Modernizao. In: BOBBIO, Noberto (org) et all. Dicionrio de poltica. Vol. 1.
Braslia: Editora Unb, 1998, p. 768-776.
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provncia e seu Conselho) foram encarregadas de auxiliar diretamente na organizao das bases
do novo sistema administrativo. No Maranho, tais incumbncias foram pauta constante do
Conselho Presidial, especialmente a partir de 1828, momento em que a iminncia de um novo
escrutnio modificou a escala de poder na provncia ao articular adaptaes para a municipalidade
com a instalao de novas instituies, tudo conforme os ditames do Poder Legislativo.
Conquanto editos mais antigos ainda estivessem em vigor, o perodo foi marcado pela
execuo de novas diretrizes eleitorais171, entre os quais se destaca o Decreto de 1 de Outubro de
1828, mais conhecido como Lei Orgnica dos Municpios, cujas determinaes atualizaram as
eleies municipais, que ainda continuavam seguindo as orientaes das chamadas Ordenaes
do Reino, legislao que vigorava no Brasil desde o perodo colonial172.
O principal foco da Lei Orgnica foi a definio de um regimento especfico para as
edilidades, delimitando os temas que poderiam ser discutidos e sobre os quais fiscalizariam. Essa
reorganizao estava diretamente relacionada com as pretenses para a estruturao da nova
burocracia, que deveria anular as prticas dos potentados locais relacionadas ao Antigo Regime,
para fortalecer e centralizar o Estado. A partir desse momento, as Cmaras passaram a ser
corporaes meramente administrativas, e foram impedidas de exercer qualquer tipo de
jurisdio contenciosa173. Alm disso, eram obrigadas a enviar suas atas eleitorais e ter suas
posturas e contas fiscalizadas pelos Conselhos Gerais. Enquanto estes no fossem instalados, os
rgos municipais estavam sob a jurisdio dos Conselhos de Presidncia.
No Maranho, o Conselho Presidial buscou garantir a execuo dessa lei e a adaptao
das Cmaras Municipais, retirando as dvidas acerca da aplicao dos decretos e fiscalizando suas
contas e posturas, exercendo, assim, forte presso sobre as municipalidades. As rendas
municipais, por exemplo, foram inspecionadas pormenorizadamente ao longo de 1829, tarefa que
apontou a persistncia da circulao de cobre falso nas instncias administrativas, moeda
falsificada que estava causando problemas na vida socioeconmica da provncia174, e possveis
casos de prevaricao dos funcionrios municipais, com a desorganizao e a falta de
171 O principal edito foi a Lei de 26 de Maro de 1824, mais conhecida como Instrues Eleitorais, que firmaram o
processo eleitoral em dois graus (eleitores de parquia e de provncia), sendo que no havia nenhum alistamento ou
registro provisrio dos eleitores no primeiro grau, apenas a publicizao de um censo feito pelo proco responsvel
dos fogos (ncleo familiar ou morada) da freguesia. Essa lacuna na lei permitia que a mesa eleitoral julgasse
arbitrariamente a qualidade dos votantes, negando-lhes o direito de voto, caso desejasse, ver FERREIRA, Manoel
Rodrigues. A evoluo do sistema eleitoral brasileiro. 2 Ed. rev. Braslia: TSE/SDI, 2005, p. 122.
172 ________. A evoluo do sistema eleitoral brasileiro, p. 114.
173 BRASIL, Decreto de 1 de Outubro de 1828, art. 24.
174 MARANHO. Conselho Presidial. Livro de Atas. Sesso de 6 de junho de 1829, fl. 78. Cdice 1337. Setor de
181MARANHO. Conselho Presidial. Sesso de 27 de junho de 1829, fl 82v; Sesso de 8 de julho de 1829, fl. 87.
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Costa Pinto tratara dos impostos que mais prejudicavam a provncia e outra do ofcio sobre o
mesmo assunto encaminhado por ele ao Ministrio182.
Assim como o Conselho Presidial, o Conselho Geral se constituiu como um espao de
intermediao entre as instncias de poder por dialogar com a municipalidade e a Corte, o que
confundia os limites de suas aladas. Em meados de dezembro do mesmo ano, por exemplo, Jos
Joaquim Rodrigues Lopes, secretrio do Conselho Geral, reenviou Secretaria da presidncia os
documentos das Cmaras de Icatu, Tutia e Vinhais remetidos pelo ento presidente de provncia
Cndido Jos de Arajo Viana. Os ofcios dessas edilidades solicitavam auxlio para a edificao
de igrejas, cadeias e uma casa de reunio para os vereadores. Segundo Lopes, o Conselho Geral
considerou que o chefe do Executivo provincial era o responsvel por deferir sobre esses
assuntos183.
Outras vezes, as atuaes dos dois rgos regionais se complementavam, especialmente
quando se tratava da rea de ensino pblico. No incio de maio de 1831, a Cmara de Icatu
respondeu ao Conselho Presidial que o povoado da Manga era o melhor lugar para estabelecer a
cadeira de Primeiras Letras, que fora criada pelo Conselho Geral. O presidente de provncia e
seus conselheiros aprovaram a proposta do colegiado municipal184.
Conquanto tenha enfrentado dificuldades em cumprir seu perodo de reunies regulares
devido constante falta do nmero mnimo de membros, o Conselho Geral enviou vrios
projetos de lei para a Assembleia Geral. De forma geral, observamos que as propostas visaram
uma sistematizao da vida socioeconmica da provncia a partir da organizao de um
regimento para a navegao no interior do Maranho; a proposio do aumento dos braos
escravos na lavoura, da organizao do ato de sua penhora, da padronizao do sistema de pesos
e medidas e da criao de um Jardim Botnico e de igualdade de prerrogativas para os mestres de
Latim e os de Primeiras Letras. A segurana pblica foi uma das principais temticas, envolvendo
projetos como o de coibir a movimentao dos indivduos considerados vadios pela provncia e
ganhar o aval para estabelecer mais juizados (de fora, do crime, civil e de rfos), alm da criao
de corpos de polcia rural185 em todas as freguesias da provncia186.
182 ________. Conselho Geral. Ofcios do secretrio ao presidente da provncia (1830). Secretaria do Governo. Setor
de Avulsos. Arquivo Pblico do Estado do Maranho.
183 ________. Conselho Geral.
184 MARANHO. Conselho Predial. Sesso de 6 de maio de 1831, fl. 115.
185 O principal objetivo dessa fora era capturar escravos fugidos e combater os quilombos, dois problemas
endmicos para o Maranho, que se destacava no perodo por seu elevado percentual de escravos na composio da
populao. FARIA, Regina Helena Martins de. Em nome da ordem: a constituio dos aparatos policiais no universo
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Outro papel dessa instituio, fortalecido ao longo de seu mandato, foi o de representante
do Maranho frente ao poder central. Logo que soube da convocao extraordinria da
Assembleia Geral, o Conselho Geral resolveu enviar uma representao para congratular o
Imperador e inform-lo sobre o sossego da provncia, reafirmando a fidelidade de seus sditos e
a tranquilidade pblica por estarem nas mos de um enrgico presidente de provncia, cujas aes
garantiram a prosperidade com o exerccio de todas as instituies liberais determinadas por lei 187.
Deste modo, observamos que, assim como o Conselho Geral de So Paulo, o Conselho Geral do
Maranho buscou despontar como uma fora poltica que poderia interferir, de forma mais
incisiva, nas decises e impresses da alta burocracia nacional188.
Consideraes finais
Enfim, a relao estabelecida entre os Conselhos provinciais (Presidial e Geral) do
Maranho e seu grau de influncia mtua so questes bastante complexas. Decerto, houve uma
convergncia de prticas no gerenciamento da mquina pblica. O Conselho Presidial deu grande
auxlio ao segundo por inserir a municipalidade nas novas normas vigentes, preparar sua
instalao e repassar-lhe as informaes necessrias para a elaborao dos projetos de lei. Por sua
vez, o Conselho Geral ampliou o poder administrativo ao buscar sistematizar a vida
socioeconmica provincial. Tais aspectos evidenciam que, apesar das indefinies legais e das
dissidncias sociopolticas que marcaram o perodo, a atuao dessas instituies tinha um fim
comum e muito relevante naquele momento de estabelecimento e delimitao dos contornos do
Estado: ampliar a autonomia da esfera provincial frente ao poder central.
Alm disso, essas instituies mantiveram uma via de comunicao com a Corte,
objetivando assegurar a ordem e evitar a anarquia, constituindo-se, assim, como canais de
representao para os cidados, prerrogativas das novas orientaes do Estado Moderno. Tal
aspecto foi essencial para asseverar a colaborao das elites polticas regionais, responsveis pela
direo das provncias a partir das capitais, no processo de estabelecimento do Imprio. Nesse
luso-brasileiro (sculos XVIII e XIX). Tese (Doutorado em Histria). 255 f. Universidade Federal de Pernambuco,
Programa de Ps-graduao em Histria, Recife, 2007, p. 164-166.
186 CIRINO, Pelo bem da ptria e pelo Imperador, p. 104-105.
187 O Farol Maranhense, 28 dez. 1830.
188 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Frana de. Poder local e palavra impressa: a dinmica poltica em torno dos Conselhos
PUJOL, Xavier Gil. Centralismo e Localismo? Sobre as relaes polticas e culturais entre capital e territrios nas
189
monarquias europias dos sculos XVI e XVII. Penlope, n. 6, p. 119-144, 1991, p. 127.
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busca de liberdade: fugas de escravos em So
Paulo, Zona da Mata e Centro de Minas Gerais (1871-
1888)
RESUMO: Neste trabalho apresentaremos algumas concluses parciais da pesquisa que estamos
desenvolvendo no mbito do mestrado. O objetivo geral da nossa pesquisa identificar e
comparar os padres de fugas e perfis scio-demogrficos dos escravos fugitivos em trs
localidades distintas: Oeste da provncia paulista, Zona da Mata e Centro da provncia de Minas
Gerais, entre os anos de 1871 e 1888. Porm, nesta comunicao, deteremos nossa anlise sobre
um aspecto especfico do padro de fugas, as motivaes. Alguns anncios de fugas nos
fornecem indcios que possibilitam a visualizao sobre os possveis fatores que levaram o
escravo a buscar a fuga como meio de liberdade. A indicao de fatores, tais como, o uso da
violncia fsica, a ruptura de conquistas geradas pela venda dos escravos para outro senhor e
regio, as tentativas de retorno ao local de procedncia, terra natal ou pela permanncia de laos
familiares, alm da busca pela insero no mercado de trabalho livre eram recorrentes nos
anncios. Estas sries de informaes quantificadas nos do uma dimenso de como os fugitivos
organizaram suas vidas na tentativa de experienciar a liberdade clandestina.
PALAVRAS-CHAVE: Escravido; Fugas de escravos; Demografia;
190BolsistaPROPP-UFOP.
191Analisamos anncios e artigos de seis peridicos, sendo que quatro eram publicados em Ouro Preto, regio central
da provncia de Minas Gerais (Dirio de Minas 1873-1878, A Provncia de Minas 1878-1888, A Actualidade 1878-1881 e
Liberal Mineiro 1882-1888), um em Juiz de Fora, na Zona da Mata Mineira (O Pharol 1876-1884) e um na cidade de
So Paulo (A Provncia de So Paulo 1875-1888).
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habilidades, valor oferecido pela captura, dentre outros. J o padro da fuga, composto pelos
estgios do ato de fugir, os quais foram separados em quatro momentos para facilitar as anlises.
So eles: primeiro estgio, a motivao, como veremos adiante pode estar relacionada ao
retorno procedncia ou antigo senhor, busca por laos familiares ou possibilidade de ocupar
um lugar no mercado de trabalho livre; segundo estgio, o planejamento, so os indcios
apresentados que nos possibilitam perceber quais passos o escravo tomou antes de se tornar um
foragido como, por exemplo, quais objetos levou na fuga; terceiro estgio, a execuo, a fuga
em si, onde identificamos se houve ou no ajuda na fuga (de livres ou de escravos), sua relao
com a sociedade livre ou escrava, se foi uma empreitada individual ou coletiva, bem como, a
direo tomada pelo cativo; e, por ltimo, as estratgias de permanncias, ou seja, as maneiras
pelas quais os cativos procuravam se manter em fuga como, se passar por livre, infiltrar-se no
mercado de trabalho, mudar de nome ou portar documento/carta de liberdade falsos.
Porm, neste artigo, nos deteremos a um aspecto do padro de fuga: possveis motivaes
e sua relao com outro aspecto, as estratgias de permanncia. Esta srie de informaes
quantificadas nos dar uma dimenso de como os fugitivos organizaram suas vidas na tentativa
de experenciar a liberdade clandestina.
192A
Actualidade, Ouro Preto, 10 de Dez. 1881, n. 150, p. 4.
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perspectivas, mesmo que remotas, de acesso liberdade. Ao faz-lo, punham
em xeque as bases de reproduo da dominao escravista.193
Acreditamos que a ruptura de conquistas gerada pela venda dos escravos para outro
senhor e regio foram uma das motivaes mais frequentes das fugas nas reas estudadas. Como
veremos abaixo, o nmero de evases que tinham como objetivo o retorno ao local de
procedncia (antigos senhores ou terra natal) foi de 5,4% em So Paulo, 13% em Ouro Preto e
3,4% em Juiz de Fora. Pode parecer um percentual pequeno, no entanto, quando consideramos
que a quantidade de anncios que trazia essa categoria de informao era de 24,4%, 33,6% e 30%
- em So Paulo, Ouro Preto e Juiz de Fora, respectivamente - esse ndice se torna expressivo. E,
nos alerta para uma diferena substancial, de mais de 100% dos ndices de So Paulo de Juiz de
Fora em comparao com Ouro Preto.
Essa questo se torna mais discrepante quando consideramos que, na cidade da Zona da
Mata, a indicao de que o fugitivo havia sido comprado recentemente foi mais alta que nas
outras localidades. Isto pode significar que por terem poucas informaes sobre os escravos, uma
vez que, o contato com os fugitivos em casos de compra recente era menor em relao aos
outros, os anunciantes de Juiz de Fora no teriam informaes suficientes para indicar uma
motivao como o retorno do cativo ao seu local de procedncia. Como no caso do escravo
Theodoro, de 20 anos, que fugiu da Serraria, Termo de Juiz de Fora. O autor do anncio indicou
que ele levou [ilegvel] dous chapeos um de palha [outro que] trouxe do Norte, e outro [...] claro
de aba grande. Este rapaz chegou a pouco do Norte e ainda no est a[costumado com os] hbitos
daqui.194 As motivaes apresentadas nos anncios eram diversas. At o momento, foram
categorizadas quinze formas diferentes195. Como podemos perceber na tabela abaixo. Foram
inseridos somente os casos em que elas eram citadas diretamente.
193CASTRO, Hebe M. Mattos de. Laos de famlia e direitos no final da escravido. In: ALENCASTRO, Luz Felipe.
(Org.). Histria da Vida Privada no Brasil: a corte e a modernidade. Vol. 2. So Paulo: Cia das Letras, 1997. p. 356-357.
194O Pharol. Juiz de Fora, 10 de Fev. 1876, n. 12, p. 2. Grifos nossos.
195Somente em trs casos, houve a indicao de duas ou mais motivaes para o mesmo fugitivo. Por ser um nmero
reduzido de casos, estas informaes no foram desmembradas. E, tambm, por acreditarmos que as motivaes
retorno ao local de captura e compra recente poderiam perder sua correlao caso fossem tratadas isoladamente.
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VEIO PRA SER
4 2,7 1 0,7 - -
VENDIDO
PROCURAR
1 0,7 - - - -
SENHOR
ASSENTAR PRAA - - 2 1,4 - -
FAMLIA E
- - - - 1 ,7
ESPLIO
FAMLIA - - 6 4,3 2 1,4
ALICIAMENTO - - 5 3,5 - -
ASSASSINATO 1 0,7 - - 6 4,1
ALUGADO - - - - 7 4,7
ASS. FG. ESC* - - - - 1 ,7
PECLIO - - 1 0,7 - -
FG. TAREFA - - - - 1 ,7
FG. ESCOLTA - - - - 2 1,4
R.L.C./C.R. ** - - - - 1 ,7
NO CONSTA 112 75,6 91 66,4 104 70,0
TOTAL 148 100,0 138 100,0 148 100,0
Fontes: A Provncia de So Paulo, 1875-1884; Dirio de Minas, 1873-1878; A Actualidade,1878-1881; A Provncia de Minas,
1882-1887; O Pharol, 1876-1888;
*Assassinato e fugiu de escolta.
**Retorno ao local de captura e compra recente.
De acordo com a tabela, os casos em que houve indicao direta de que o fugitivo
pretendia vender sua fora de trabalho (mercado de trabalho livre) foram ligeiramente prximos
entre So Paulo e Ouro Preto, mas superiores em comparao com os dados de Juiz de Fora.
Nesta categoria, entraram casos como do escravo Manoel, dado embraguez, bom pagem e
optimo copeiro, que j havia fugido outras vezes e fora preso trabalhando na construo da
estrada de ferro de Rio Verde, onde usava o nome Antnio. No entanto, o que categoriza a
motivao de Manoel como a busca pelo mercado de trabalho livre no sua experincia
passada, mas a indicao do autor ao publicar que consta que [...] seguio para a linha ferrea de
Pedro II afim de trabalhar alli, e levou a roupa em um mallote de viagem que furtou na via ferrea
do Rio Verde [...].196 Portanto, houve uma meno direta ao fato de que Manoel fugiu do
cativeiro para trabalhar como homem livre na construo da ferrovia.
Outro aspecto motivador das fugas era a reconstituio de laos familiares. Como no caso
de Martinho, de 17 anos, em cujo anncio o autor disse que desconfia-se que se esteja entre Juiz
de Fora e Rio Novo, na Chacara nos imediaes da casa de Jos Venancio, onde tem pai.197 Ou
no de Joaquim, de 30 anos, sobre o qual o anunciante afirmou que gosta de montar animal
bravo bom tocador de tropa, arreia e ferra; desconfio que est para as parte de S. Amaro onde
tem a sua me e irmos198
196A Provncia de Minas, Ouro Preto, 01 de Fev. 1883, n. 137, p. 4. Grifos nossos.
197O Pharol, Juiz de Fora, 04 de Dez. 1877, n. 77. p. 2. Grifos nossos.
198A Provncia de Minas, Ouro Preto, 22 de Mar. 1883, n. 144, p. 4. Grifos nossos.
199Houve um caso que apresentou dois elementos motivadores: a morte do senhor (no ato da fuga ele pertencia ao
seu esplio) e a reconstituio de laos familiares, por isso, ele est separado dos demais fugitivos vinculados apenas
questo da famlia.
200A Provncia de So Paulo. So Paulo, 28 de Out. 1875, n. 235, p. 3. Grifos nossos.
Sabemos que estamos lidando com uma fonte produzida pela classe senhorial e que
muito complicado deduzir as ambies do fugitivo, a partir, de um texto escrito por aquele que
quer captura-lo. No entanto, a fuga em si, era um ato de descontentamento com o cativeiro, com
a ordem escravista. Acreditamos que tomamos os cuidados metodolgicos necessrios que nos
permitem perceber que a possibilidade de se passar por um trabalhador livre (se direcionando
para o mercado de trabalho), a tentativa de reconstituir laos familiares, reestabelecer experincias
mais benficas foram alguns dos motivadores dos escravos nas suas tentativas de vivenciar a
liberdade, nas trs localidades estudadas, mesmo que em nveis especficos a cada regio. A partir
do exposto, acreditamos que atravs da anlise dos padres de fugas, que iniciamos com questo
das motivaes, estamos tratando dos universos sociais da escravido.
Em alguns anncios, aparece tambm o local de destino da fuga, como no caso citado do
fugitivo Adelino, que procurou na fuga um meio de voltar pro seu local de origem, o Cear, e no
caso dos escravos Joo Manoel, Joo Pernambuco e Faustino, citados acima, que fugiram em
direo ao Rio de Janeiro.
Tais anncios nos possibilitam ter uma noo da mobilidade fsica e dos destinos dos
fugitivos. Com base neste tipo de informao, criamos a tabela a seguir, onde foram computados
anncios em que a informao de destino est claramente citada, como nos casos citados
anteriormente. Segue tabela:
201A questo do castigo fsico no foi inserida no banco de dados como um motivador da fuga porque ele no era
expresso de uma maneira que pudssemos categoriza-lo como tal. Mas, criamos uma categoria s para os casos em
que o aoite era citado. Foram contabilizados 5 casos (3,4%) em So Paulo e 2 (1,4%) em Juiz de Fora de fugitivos
que tinham objetos de castigo junto ao corpo. Alm disso, existem casos em que eram mencionados sinais de
castigos recentes ou cicatrizes antigas.
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Como podemos perceber, os senhores de escravos de Ouro Preto tinham mais
conhecimento sobre o destino dos fugitivos em comparao com os demais. No entanto, o
ndice em que esta informao aparece baixo: 41,3% em Minas Gerais e 21,6% em So Paulo e
19,6% em Juiz de Fora.
Mesmo com este baixo nvel de incidncia, podemos perceber que nos casos em que o
destino da fuga foi citado, a maioria dos casos foi de fugas que se destinaram para localidades
internas prpria provncia em comparao com os casos em que o destino eram provncias
limtrofes. Alm disso, h ainda um caso em Ouro Preto de um fugitivo cujo destino foi uma
provncia longnqua, ou seja, que no faz fronteira. Outros dois fatores que nos possibilitam ter
uma noo da dimenso da mobilidade dos fugitivos so os casos de reincidncia e os que
possuem o local de captura do escravo reincidente. Vejamos as tabelas abaixo:
Tabela 3: Reincidncias.
SO PAULO OURO PRETO JUIZ DE FORA
REINCIDNCIAS FREQUNCIA PORCENTUAL FREQUNCIA PORCENTUAL FREQUNCIA PORCENTUAL
FUGIU UMA VEZ 3 2,0 5 3,6 10 6,8
FUGIU DUAS VEZES 3 2,0 - -
FUGIU MAIS DE TRS
- - 4 2,9 1 ,7
VEZES
FOI PRESO E FUGIU DE
- - 3 2,2 3 2,0
NOVO
NO CONSTA 142 95,9 126 91,3 134 90,5
TOTAL 148 100,0 138 100,0 148 100,0
* Fontes: A Provncia de So Paulo, 1875-1884; Dirio de Minas, 1873-1878; A Actualidade,1878-1881; A Provncia de
Minas, 1882-1887; O Pharol, 1876-1888;
Nestes casos, os anncios informam quantas vezes o escravo havia fugido antes, alguns
tambm citam o local de captura, como podemos ver abaixo:
Tabela 4: Local de captura.
LOCAL DE SO PAULO OURO PRETO JUIZ DE FORA
CAPTURA FREQUNCIA PORCENTUAL FREQUNCIA PORCENTUAL FREQUNCIA PORCENTUAL
PRPRIA
3 2,0 8 5,8 7 4,7
PROVNCIA
PROVNCIAS
3 2,0 1 0,7 3 2,0
LIMTROFES
NO CONSTA 142 95,9 129 93,5 138 93,2
TOTAL 148 100,0 138 100,0 148 100,0
* Fontes: A Provncia de So Paulo, 1875-1884; Dirio de Minas, 1873-1878; A Actualidade,1878-1881; A Provncia de
Minas, 1882-1887; O Pharol, 1876-1888;
Como podemos perceber na Tabela 3 e 4, comparando entre as duas provncias, o
percentual em que as informaes sobre a reincidncia de fugitivos e sobre o local de captura so
citadas bem prximo.
O que podemos afirmar com estas trs tabelas que quando observados os casos em que
h a informao sobre o destino, em ambas as localidades, a maioria dos fugitivos se
movimentavam dentro dos limites da provncia. Nos casos em que foi citado que os fugitivos
iriam ultrapassar os limites, o ndice de mobilidade em Minas Gerais superior ao de So Paulo.
Porm, nos casos de reincidncia que citam o local de captura, os fugitivos de So Paulo e Juiz de
Fora tinham uma mobilidade externa um pouco maior que a dos de Ouro Preto.
Assim como no caso das motivaes e das indicaes das direes tomadas pelos
fugitivos, em certos anncios as estratgias adotadas por eles aps a fuga, tambm eram descritas.
Em alguns casos era explcito que os fugitivos tinham planos de trabalhar livremente, s vezes
porque levavam suas ferramentas de trabalho e, em outras, porque os anunciantes indicavam que
eles iriam trabalhar em algum lugar. Vendendo sua mo-de-obra, os fugitivos teriam mais chances
de continuarem em fuga. O desenvolvimento econmico e urbano, nas trs reas analisadas,
possibilitou que eles interagissem com este mercado e com a comunidade, assemelhando-se a um
homem livre ou liberto. Trocar de nome e se passar por forro, em alguns casos, inclusive com
porte de documentos supostamente falsos, foram outras maneiras a que recorreram para no
serem descobertos.
No caso deste escravo, chamado Vidal, o anunciante atenta para seu trajeto e histrico de
fugas. Ele era natural do Rio de Janeiro. Quando morou nesta cidade, fugiu e tentou sentar
praa na marinha. Depois de capturado, foi vendido ao anunciante, que era da cidade de
202A
Provncia de Minas, Ouro Preto, 11 de Jun. 1882, n. 104, p. 4. Grifos nossos.
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Pitanguy (oeste mineiro). Posteriormente, fugiu para Ouro Preto, onde fora preso e, mais uma
vez, evadiu.
No s neste caso, mas em tantos outros noticiados, fica claro que os fugitivos tinham
mobilidade e usavam de artimanhas para no serem capturados. Como o controle social era
rgido e era fcil identificar um fugitivo, os escravos usavam alguns recursos para no serem
pegos. Por exemplo, em Pitanguy, Vidal dizia ser livre e que iria sentar praa.
No entanto, por mais que no final do sculo XIX j houvesse outros elementos na
sociedade alm dos livres e escravos, como os pretos livres, no seria muito difcil identificar um
fugitivo. Um estranho perambulando pelas cidades ou estradas sem carta de alforria ou papel de
assinado pelo senhor j poderia ser encaminhado para a delegacia de polcia como suspeito de
prfugo.
Ainda sobre a relao dos escravos com a sociedade livre, o segundo anncio toca num
ponto interessante, que denominamos de companhia na fuga. Ela importante para sabermos
se o escravo teve ou no ajuda, se foi ajudado por escravos ou pessoas livres e se recebeu apoio
durante ou aps a fuga. No caso de Seraphin (do segundo anncio), podemos dizer que ele teve
apoio de pessoas livres durante a sua fuga e que depois foi procurar trabalho. J no ltimo caso, o
fugitivo recorre ainda ao uso de carta de liberdade falsa, que provavelmente seria obtida com
ajuda da sociedade livre.
Sobre a relao do fugitivo com a sociedade livre durante a fuga, a incidncia de casos em
Ouro Preto de quatro casos, enquanto nas demais no houve registros. Porm, a relao dos
fugitivos com a sociedade livre, aps a fuga, proporcionalmente igual entre o centro-mineiro e
So Paulo, mas ausente na Zona da Mata. Com base nestes dados, podemos dizer que as fugas
em conjunto foram mais frequentes nas zonas cafeeiras, que em Ouro Preto, e, que nesta ltima
regio houve uma maior proximidade dos escravos com elementos livres durante a fuga.
Destacamos ainda que o ndice de escravos que fugiram especificamente para vender sua
mo-de-obra foi ligeiramente superior em So Paulo, em relao a Ouro Preto, enquanto Juiz de
Fora apresentou a menor quantidade. As motivaes ligadas a volta ao local de procedncia ou
origem foram encontradas em maior nmero em Ouro Preto e So Paulo. E, apesar, de em Juiz
de Fora termos encontrado uma relativa quantidade de casos onde a compra recente seria o
motivador, a quantidade de fugas relacionada ao retorno a localidades de origem ou procedncia
foi pequena.
RESUMO: O Perodo Regencial (1831-1840) ficou marcado como a fase conturbada da Histria
do Pas e de embates de projetos polticos. Naqueles embates teve importante papel a imprensa
peridica. Neste trabalho mostramos o uso de versos na luta poltica, na mudana de perspectiva
do peridico Sete dAbril, de uma posio Liberal para a Regressista.
PALAVRAS-CHAVE: Brasil Imprio; Perodo regencial; Imprensa; Liberalismo; Regresso.
Introduo
Tais embates passaram pelos mais variados campos: imprensa, Parlamento e as ruas e
vilas210. Como observa Marcello Basile, mais do que produto de um simples arranjo das elites, a
sintomaticamente chamada Revoluo de 7 de abril foi resultado no s das tramas urdidas da
imprensa, no Parlamento, nas sociedades secretas e nos quartis, mas tambm de forte
participao popular.211 A efervescncia nas ruas ocorreu na Corte e nas provncias, com uma
srie de motins e revoltas em todo o pas. Destacaram-se, sobretudo, a Cabanagem (1835 a 1840),
209BASILE, Marcello. O laboratrio da nao a era regencial (1831 1840). In: GRINBERG, Keila e SALLES,
Ricardo. O Brasil Imperial. Volume II 1831 1870. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2009.
210Ver SLEMIAN, Andrea. Um Imprio entre Repblicas? Independncia e Construo de uma Legitimidade para a
Monarquia Constitucional no Brasil (1822-1834). In: Oliveira, Ceclia Helena de S. et al. (orgs.). Soberania e Conflito:
Configuraes do Estado Nacional no Brasil do Sc. XIX. So Paulo: Hucitec, 2010, captulo 4, e BASILE, Marcello. O
laboratrio da nao a era regencial (1831 1840) In: GRINBERG, Keila e SALLES, Ricardo. O Brasil Imperial.
Volume II 1831 1870. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2009.
211Ver BASILE, O laboratrio da nao, 2009, p. 59. Para um quadro geral dos motins e revoltas, ver FAZOLI Filho,
Embora existam trabalhos, nos mais variados campos biografias, linguagem poltica,
rebelies e festividades , como aponta Basile, ainda h muito o que pesquisar sobre o perodo
regencial [...] h amplo espao aberto para novos estudos. Em especial em sua segunda metade
dos anos de 1830, Alis, o prprio texto de sntese de Marcello Basile, conquanto se proponha a
abarcar at 1837, pouco trata do perodo do Regresso213.
Aproveitando esse amplo espao, para novos estudos, buscamos, no presente trabalho
comparar a posio poltica do peridico Sete dAbril da Corte do Rio de Janeiro e sua mudana
poltica de Liberal para Conservador por meio de versos publicados por aquele peridico. O Sete
dAbril (1833-1939) foi um dos jornais de maior longevidade no perodo214. Segundo o historiador
Marcello Basile, ele se caracterizou pela sua solidez, pelo nmero de exemplares e pela sua
regularidade, denotando sua popularidade e influncia poltica215. Sua persistncia no campo dos
embates polticos revela a contundncia do Sete dAbril. A isto se soma a sua trajetria mutante,
em grande parte associada pela historiografia de Bernardo Pereira de Vasconcelos216,
configurando uma transio do Liberalismo ao Regresso Conservador.
Americana , de propriedade de Igncio Pereira da Costa. na rua detrs do Hospcio, nmero 160, inicialmente
distribudo s teras-feiras e aos sbado, havia nmeros extraordinrios, geralmente, distribudos s quintas-feiras,
por incialmente, 40$ (ris). Contudo, a partir da edio 293 o Sete d Abril muda de data e passa a ser distribudo nas
quartas-feiras e sbado.
215BASILE, Marcello Otvio N. de C. O Imprio em construo: projetos de Brasil e ao poltica na Corte regencial. Tese de
Doutorado em Histria Social. Rio de Janeiro: I.F.C.S. - U.F.R.J., 2004, pp. 36-37.
216A figura de Vasconcelos importantssima no Jornal. Sero atribudos a Vasconcelos, sobretudo pela Aurora
Fluminense, inmeros artigos que teria autoria daquele, contudo, o Sete d Abril sempre ir negar qualquer
envolvimento com Vasconcelos.
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Em sua fase Liberal, o Sete d Abril procurou defender Dom Pedro II tendo em vista a
liberdade da Nao. Para isso, era necessrio o cumprimento da Constituio. Alm disso, o Sete
criticava Dom Pedro I, visto como tirano que no contribua para a liberdade do pas. Desse
modo, comemorava-se a Revoluo de 7 de abril. Outra caracterstica desta fase fora a defesa
da separao do Estado da Igreja como necessria para um Brasil independente, inclusive, de
Roma. O Sete dAbril julgava essas bandeiras como patriotas. Patriotismo esse, que, como
vimos no descartava uma luta armada contra os Restauradores, enfatizando, sobretudo, as
crticas aos Restauradores por manterem o pas sob o julgo de Portugal.
Em sua fase Regressista, o Sete dAbril continuava por defender a Ptria, porm, com um
modelo conservador, tendo como suas bandeiras a continuao de um Governo Monrquico,
mas, constitucional, pois, dessa forma, no entender do Sete d Abril, o pas no voltaria aos
tempos do despotismo de Dom Pedro I, mas, avanaria rumo liberdade. Liberdade essa que
fora pensada, em um primeiro momento, com o clamor pela Regncia da princesa Januria.
Outra caracterstica desta fase foram as crticas a Evaristo Veiga, pois, este era visto como
progressista. No entender do Sete d Abril o Progresso levaria desordem, ao aumento de revoltas
ou anarquia. Marco tambm de sua fase Regressista foram suas crticas s Reformas, que antes
eram vistas com bons olhos, agora vistas como exageradas e desmedidas.
Aqui optamos pelo uso dos versos no Peridico Sete dAbril, sobretudo, em sua mudana
no campo politico de Liberal para Conservador. Lembramos que, aqueles versos eram usados,
das mais diferentes formas, por exemplo: para difamar, cantar hinos de louvores, ser voz do
pblico, para exortar os brasileiros, passando ainda por versos de zombaria, ironia, que traziam
consigo fatos variados, lamentaes, textos bblicos, etc.
Aportes tericos
Outra contribuio de E.P Thompson, pela necessidade fazer novas perguntas, buscar
novos objetos e os atores sociais esquecidos, inclusive, os rituais atpicos, como valiosas portas
para o conhecimento histrico, imersas na disciplina do processo e do contexto218. Alm da
contribuio da Nova Histria Poltica, considerando uma relativa autonomia do poltico,
recusando uma definio restritiva, e buscando integrar todos os autores sociais e no se
restringindo aos notveis. Interessa-nos aqui, em especial, o dilogo da poltica com a cultura219.
Segundo Robert Darton220, um poema possui vrias caractersticas, podendo ser usados
para difamar, sediciosos, reflexivos, satricos, exortativos, alm disso, podem ser usados como
memria, para (re)lembrar fatos at ento esquecidos. Alm disso, os poemas podem servir como
forma de protestos, ou ainda para fazer piadas, zombar, funcionado, inclusive, como voz pblica.
Por todas essas mltiplas formas, a analise do poema se torna complexa, pois, segundo Darton
aos olhos de nossa poca, alguns dos poemas parecem estranhos.221 Dito isso, em um primeiro
momento, passaremos agora para anlise e discusso sobre os versos no Sete d Abril.
Como dissemos o Sete d Abril migrou de uma posio Liberal para Regressista
Conservador. Isso deu-se nos mais variados campos: religioso, poltico, etc. Assim, comeamos a
nossa discusso destacando a edio de nmero 18, de 28 de fevereiro de 1833. Naquela edio -
Extraordinria. Dizia o Sete:
217REVEL, Jacques (org.). Jogos de Escalas. Rio de Janeiro: FGV, 1998, pp 11 e 36.
218THOMPSON. E. P. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Editora da Unicamp, 2001.
219Ver RMOND, Ren (org.). Por Uma Histria Poltica. Rio de Janeiro: UFRJ/FGV, 1996 e BERSTEIN, Serge. A
Cultura poltica. In: RIOUX, Jean-Piere & SIRINELI, Jean- Franois. Para uma Histria Cultural. Lisboa: Estampa,
1998.
220DARTON, Robert. Poesia e Polcia. So Paulo: Cia. das Letras, 2010, p. 61.
221__________. Poesia e Polcia, p. 61.
Estes versos trazem as bandeiras do Sete d' Abril at ento, a saber: a defesa de Dom
Pedro II, a liberdade da Nao, do Imprio, nfase ao respeito s leis e da Constituio e a
oposio declarada aos Caramurus, alvos de constantes ataques do Sete dAbril e talvez, aquilo que
seja mais importante, ou seja, a preferncia, por hora, de uma Regncia Permanente. Criticava-se
o governo de Dom Pedro I, por demonstrar que o poder do Rei no vinha de Deus, inclusive, no
campo religioso, por pedir a separao da Igreja do Estado Brasileiro. Contudo, todas essas
crticas levantadas pelo Sete dAbril tinha como fim a Ptria Brasileira, ou melhor, o
aperfeioamento da mesma. Desse modo, o Sete se posicionava contra o Despotismo, enfatizava
a importncia da unio dos brasileiros e os chamava a lutar pela Ptria. Nesse sentido, destacamos
a edio de nmero 55, de 6 de junho de 1833. Ali o Sete dAbril deixava clara sua insatisfao
com o passado Governo e convocava os brasileiros. Nota-se, porm, que os vis escravos, ou
seja, os submissos ao despotismo, ficavam fora dos considerados brasileiros:
Outro poema importante da fase liberal do Sete dAbril fora o da edio de nmero 56, de
9 de julho de 1833. Naquela edio, na sesso Variedades, o Sete d Abril trazia sua insatisfao
com os restauradores. Insatisfao aquela que ficava clara no prprio ttulo da poesia Aviso aos
restauradores por um soldado do dia SETE DE ABRIL. Nesta edio, eram mais uma vez: a
ptria, a religio, a liberdade e o clamor contra a Restaurao, pois, o que o Sete d Abril queria
O Sete d Abril demonstrava insatisfao contra uma possvel restaurao, no nmero 63,
de 3 de agosto de 1833. Na sesso L vai verso, de ttulo O Brasil no retrogada, o Sete
dAbril deixava claro que o Brasil no iria retroceder, pelo contrrio, iria avanar para superar a
bastarda escravido de outros tempos. Embora houvesse insatisfao com uma possvel volta
de Dom Pedro I, o mesmo no se dava com Pedro II.
Mais um poema que destaca a fase Liberal do Sete dAbril fora publicado na edio de
nmero 67, de 17 de agosto de 1833. Ali se mostrava favorvel ao inocente Pedro, enfatizava a
Constituio, os brasileiros e mais uma vez no escondia crtica aos Caramurus. Segue abaixo o
Hino Patritico:
O Sete d Abril comeava o ano de 1834 como Liberal e ainda comemorava a Revoluo
do dia 7 com hinos de louvores a data. O 7 de abril para folha significava o dia do triunfo da
Por fim, um dos temas principais durante 1834 que ganhava as pginas do Sete d Abril,
bem como os debates na Cmara dos deputados, eram as Reformas. O Sete, nesse sentido,
migrava de posio. De incio entusiasta das Reformas, tornou-se grande crtico daquelas. Para
demonstrar seus posicionamentos, mais uma vez a folha fazia uso de verso. O tom das Reformas
era dado, inclusive, atravs de Hino, conforme demonstra a edio nmero 174, de 26 de
agosto de 1834. Mais uma vez, destacamos o fato do Sete dAbril se dizer sempre em prol da
Ptria, como se, a vontade do Peridico no fosse s sua, mas, de algo maior.
Governei a meu grado o Brasil todo, Sem freio, sem pudor, sem maneira e modo
O Trono solapei, supus traies, Vi curvar-se a meus ps altivos colos
Pedi sangue, fingi Revolues, E no posso dobrar um Badameco
Honrados cidados cobre de lodo Que arder me faz cem vezes os miolos
Quem ousou arrostar-me, com denodo Imps-me o nome vil de vil tareco!!!
Sofreu de mim cruis perseguies E a trapaa, a calunia, a intriga, aos dolos,
Fiz Regentes, dispus das Eleies, S respondeu (oh, furor) passa, marreco
O Sete d Abril, que, em um primeiro momento foi a favor da Regncia do Padre Feij,
posteriormente, se mostrou insatisfeito com aquele Governo. O Governo do Padre sofria
desgaste, tanto pelo trato com a religio do pas, como pelas Revoltas ocorridas, sobretudo, no
Par e Rio Grande do Sul. A insatisfao tambm ocorria, pois, segundo o Sete d Abril, o Padre
era menos que medocre na arte de governar. Porm, uma questo estava aberta, se Feij no
mais governasse o pas, quem assumiria o posto? O Sete d Abril mais uma vez manifestou sua
posio em versos. A escolhida fora Dona Januria, ela seria aquela que iria libertar o pas da
escravido dos inimigos do Regresso, os que escravizavam o Brasil eram os Liberais. Enfim, a
Princesa seria a sucessora natural de Pedro I e teria a misso de comandar o Brasil como
algum escolhida dos Cus, como se v no nmero 327, de 11 de maro de 1836.
Concluso
Nosso trabalho buscou trabalhar com o uso dos versos no peridico Sete d Abril, no
perodo de 1833 1836. Justificamos a investigao a partir dos versos, pois, estes eram
constantes na folha e traziam peculiaridades, sobretudo, na mudana da folha de Liberal para
Regressista, nos termos acima explanados. Nesse sentido, julgamos que os versos sintetizaram
aquela mudana, possuindo, de certo modo, um carter pedaggico222 para construo poltica no
perodo regencial.
222CARVALHO, Jos Murilo de e NEVES, Lcia M. Bastos P. (orgs.). Repensando o Brasil do oitocentos: cidadania, poltica
e liberdade. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2009.
1157
A crtica ao sistema escravista e a orientao
econmica no Brasil Imprio nas narrativas sobre a
degradao da paisagem
223PDUA, J. A. Um sopro de destruio: pensamento poltico e crtica ambiental no Brasil escravista, 1786-1888. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
1158
Em 1822, o naturalista francs August de Saint-Hilaire empreendeu uma segunda viagem
pelo caminho da Serra do Mar e da Mantiqueira e relatou a regio de plantaes por onde passou.
Se, por um lado, descreveu que a grande extenso de montanhas e de matos virgens dificultava
o caminho e o avano da cultura, por outro representavam as grandes reservas naturais brasileiras
que deveriam ser aproveitadas racionalmente. Para o conterrneo de Saint-Hilaire que tambm
percorreu a regio fluminense, Charles Ribeyrolles, a regio tambm deveria ser aproveitada para
a agricultura, pois toda a terra sem cultura capital morto ...]. Ribeyrolles disse que gostaria
de ver os grandes pesquisadores daquele tempo entrarem na floresta e de ver nossos
proletrios ocupando os vales.224 Uma passagem do relato de viagem de J.B. von Spix e C.F.P.
von Martius traduz uma certa luta entre a natureza e a civizao luz do pensamento Ilustrado,
ao dizer que quando os habitantes deitarem abaixo as matas [...] e triunfarem da exuberante
vegetao e dos bichos daninhos, ento todos os elementos viro ao encontro da atividade
humana e a recompensaro plenamente.225
Todavia, uma outra paisagem tambm se construa no olhar dos viajantes a medida que
percorriam o territrio. Paralela a viso de grandiosas riquezas a serem aproveitadas, as paisagens
foram representadas com base na imprevidade e na falta de planejamento da ao humana ao
explorarem o mundo natural, realando o carater predatrio na apropriao das terras. O
agrnomo holands C. F. van Delden Larne, que passou pela mesma regio que Saint-Hilaire
sessenta anos depois, mostrou-se impressionado com o ritmo acelerado da destruio das matas e
do enfraquecimento dos solos causados pelo plantio alinhado vertical nos morros, que facilitava a
perda da cobertura vegetal com as chuvas. Descreveu uma paisagem desanimadora no relato de
sua viagem considerada triste, por se tratar de uma pas tropical. Narrou que por longas horas o
1159
trem avanava pelos morros pelados, guarnecidos por gigantescos vassourais cinzas, deplorveis
relquias de plantaes de caf outrora to esplndidas que, pode-se dizer, produziam ouro227. O
mesmo Martius que desejava o controle da natureza pela cultura agrcola, fez uma das muitas
crticas paisagem resultante das violentas queimadas que destruram as matas virgens para
dar lugar ao plantio na sua obra Flora Brasiliensis 228. Em comum, as narrativas descreviam como as
riquezas naturais eram desperdiadas e seus apontamentos seguiram por trs principais eixos
interligados de anlise: a falta de conhecimento ou descaso no trabalho da terra; ausncia de
tcnica e mquinas adequadas; e a escravido.
O mdico austraco J. E. Pohl, ao visitar o Brasil entre 1817 e 1821, anotou que os
proprietrios de terras abandonavam todos os trabalhos nas mos dos escravos e que a queima
das florestas aniquilava as madeiras e a fertilidade dos solos para futuras plantaes. Nas
montanhas, ainda haviam verdadeiras riquezas que no foram tocadas por falta de habilidades e
instrumentos essenciais para a minerao. Em seu relato, a regio mineira conservava os
vestgios ...] da atividade dos homens que esburacam o solo para a extrao de metais, cujas
covas informes e montes de cascalhos desfiguram as serras ...]. As lavras, antes ricas, estavam
em runas, pois seus proprietrios no tomaram o cuidado de angariar mineiros prticos e
experimentados para a empresa, julgando atingir seus objetivos com escravos to preguiosos
quo inexperientes. Considerou que seria necessrio e urgente substituir o brao escravo por
mtodo de minerao adequado para enriquecer a produo e pelo trabalho livre, como feito na
explorao do terreno aurfero de Crrego Soco por uma companhia inglesa229. Por sua vez, Spix
e Martius, ao passarem pela regio de Ouro Preto, destacaram a paisagem de abandono da
explorao mineral, que deixou muitos buracos cavados na montanha nos ataques talha sem
plano algum ou no trabalho das minas ora ao da gua, ora percia dos negros que, em vez
de usarem a mquina ...] se servem de martelo.230 Para eles, a importncia da cincia e da tcnica
para expanso da civilizao era imperativa e a escravido dos negros era apenas o resultado da
prpria degenerao da raa etope.231 J Richard Burton, na sua viagem pelo Brasil na dcada
de 1860, disse que a terra sofria de duas pragas especiais: o latifndio e o sistema de lavoura
227LARNE, C.F. van Delden. Brazil and Java. Report on Coffee-Culture in America, Asia and Africa. Londes-Haia:
Martinus Nijhoff, 1855, p. 282-283 Apud MARQUESE, Rafael de Bivar. Dispora africana, escravido e a paisagem
da cafeicultura no Vale do Paraba oitocentista. Almanack Braziliense, [S.l.], n. 7, p. 138-152, maio 2008. p. 139.
228MARTIUS, Karl Friedrich Philipp von; EICHLER, August Wilhelm; URBAN, Ignatius. Flora
brasiliensis: enumeratio plantarum in Brasilia hactenus detectarum quas suis aliorumque botanicorum studiis descriptas
et methodo naturali digestas partim icone illustratas. Monachii et Lipsiae [Munique e Leipzig]. R. Oldenbourg in
comm., 1840-1906. 15 v. Disponvel em : http://florabrasiliensis.cria.org.br. Acesso em: 05 maio 2015.
229POHL, J. E. Viagem no interior do Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1951, p. 369 e 409.
230SPIX; MARTIUS. Viagem pelo Brasil, 1817-1820.
231LISBOA, Karen M. O Brasil dos naturalistas Spix e Martius. Rev. Arquivo Nacional, v. 22, n. 1, 2009, p. 190.
1160
herdado dos aborgenes ou da frica Central e perpetuado pelos mtodos desmazelados de
cultura, inevitveis em qualquer parte em que se empregue o trabalho escravo.232
A constao de que foi pelos braos escravos que as riquezas foram exploradas e tambm
as matas derrubadas fez parte da percepo dos naturalistas sobre a paisagem resultante da
atividade humana. No entanto, as opinies se dividiram entre aqueles que atriburam a
degradao figura do escravo e aqueles que atriburam ao sistema da escravido, que propiciava
uma maior explorao dos recursos e afastava os proprietrios das terras. Esta segunda posio
foi a defendida pelo mdico e capelo ingls Robert Walsh, alinhado ao pensamento
antiescravagista, que defendeu o fim do trfico de escravos e os maus tratos dos cativos233.
232BURTON, R. F. Viagens aos planaltos do Brasil - Tomo I: Do Rio de Janeiro a Morro Velho. Trad. Amrico Jacobina
Lacombe. So Paulo: Cia Editora Nacional, 1947, p. 92 e 426.
233A postura de Walsh foi duramente criticado por Burton, que o considerou um iludido pelas questes
antiescravagistas que denunciavam o mau trato dos escravos. Para Burton, os escravos eram mais bem tratados que
os trabalhadores na europa e nunca presenciou um caso de crueldade exercida sobre escravos, e a ausncia de
correo fazia falta no carater dos cativos. Em um episdio, conta que na comitiva estava um negro recentemente
liberto, por ter sido fiel e bom aos seus senhores. Mas com a liberdade veio o mal da sua raa e se tornou
indolente, preguioso, atreviso e briguento. Numa discusso, diz que foi preciso colocar o escravo em seu lugar.
Cf. BURTON, R. Viagens aos planaltos do Brasil - Tomo III: O rio So Francisco. Trad. Amrico Jacobina Lacombe.
2 ed. So Paulo: Ed. Nacional; Brasilia: INL, Fundao Pr-Memria, 1983, p. 146.
234HOLANDA, Srgio Buarque de. Raizes do Brasil. 26. ed. So Paulo: Companhia das Letras, 1996.
235PRADO Jr., Caio. Histria Econmica do Brasil, p. 163 Apud PDUA. Um sopro de destruio, p. 76.
1161
moderada e cuidadosa, os males da economia brasileira ao domnio do escravismo 236. Outra
importante influncia naquele perodo foi o naturalista Friedrich W. H. Alexander von Humboldt
e sua teoria sobre a natureza americana, que deveria ser valorizada pela sua exuberncia e
diversidade. Do ponto de vista econmico, as teorias liberais e fisiocrticas, antipticas ao sistema
escravista em detrimento do trabalho livre e ociosidade dos proprietrios de terras, tambm se
fizeram presentes dentre os crticos estrutura socioeconmica baseada na escravido237.
1162
escravos degradados, de ignorantes e no educveis para a nova agricultura, pois no tinham
apego ou interesse algum pela terra que cultivavam240.
Para o historiador Rafael Marquese, foi a forma de organizao do trabalho no Brasil que
transformou a paisagem agrcola com a introduo da populao escravizada, no o escravo em
si. No Vale do Paraba, onde a presena de cativos era macia, os cafezais foram plantados em
alinhamento e decotados na altura mdia de um escravo, para facilitar a colheita de todos os
gros e para que o senhor pudesse vigiar o trabalho. O preparo do terreno antes do plantio se
dava com a derrubada da mata nativa e sua queima. A prtica da coivada, aprendida com os
indgenas e ampliada pelos colonos, foi a responsvel pela resultante fsica da paisagem
retratada241.
Dizia-se que o Brazil era por excellencia agrcola ...]; proclamava-se que o
Brazil era o caf, e o caf era o ouro, e eis a correria da populao rural para a
cultura de um nico gnero agrcola em detrimento da canna de assucar, do
algodoeiro, do fumo, do anil, do milho, etc. ...] Finalmente, o operrio agrcola
era o escravo, entidade embrutecida, sem intuio, sem o excitamento do
proprio interesse e cujo suor cresta a terra em vez de fertiliza-la.242
1163
talvez [...] to mal como elles?. Assim, desapparecendo esta causa, com o trabalho livre os
resultados seriam diferentes244. Mas o medo de que a minerao e a agricultura russem sem
braos cativos foi constantemente referenciada.
O principal objetivo das publicaes feitas na revista era mostrar a diferena entre a
desvatajosa enxada manobrada pelo infeliz escravizado e o arado do operrio inteligente, nos
termos utilizados por N. Moreira.246 Os autores acreditavam que a substituio gradual do
trabalho escravo acabaria com a cultura rotineira e introduziria a cultura racional, com
cultivadores preparados para manejar mquinas, qumicos, administrar as plantaes, etc.247
Algumas publicaes j mostravam como era possvel a reorganizao do trabalho com a
sustituio para o brao livre e que bons resultados j vinham sendo obtidos, contrariando as
profecias de decadncia. Um exemplo foi a citao de algumas plantaes de algodo que
obtiveram bons resultados baseados no trabalho livre, como observado pelo gelogo suio Louis
Agassiz, em 1865248. Atestava-se tambm os avanos do emprego de braos livres em fazendas de
caf, seja no servio interno como no corte e na roagem da capoeira. Mas nas ditas limpas, no
preparo do solo, feitas ainda enxada, o trabalho era penoso e a fadiga no compensava para os
livres, que viam a funo como dos escravos249. Dessa forma, o emprego das mquinas
auxiliariam nessa transio ao amenizar os desgastes do trabalhador, exigindo menor quantidade
de mo-de-obra que manipularia o solo de forma adequada.
244GORCEIX, H. O ferro e os mestres de forja na Provncia de Minas Geraes. Rev. Bras., n. 5, 1880, p. 159-161.
245A SITUAO agrcola da provncia da Bahia (1870). Rev. Agric., n. 8, 1871, p. 23.
246MOREIRA, N. J. Mechanica agrcola. Influncia malfica da escravido na economia rural. Rev. Agric., n. 1, 1886,
p. 59; NETTO, Ladislao. Investigao sobre a cultura e a molestia da canna de assucar. Rev. Agric. n. 3, 1870, p. 4.
247ENSINO Agrcola. Escolas prticas de agricultura. Rev. Agric., n. 1, 1885, p. 205.
248AGASSIZ, L. A agricultura nacional. Julgada pelo Sr. Prof. L. Agassiz. Rev. Agric., n. 10, 1872, p. 38.
249Em vrios artigos da Revista, o desinteresse de livres e proprietrios de terras pelo trabalho do solo era entendido
pela repugnncia que a atividade causava, pois se associava ao mesmo trabalho feito por um escravo. Como exemplo,
citamos o artigo: INDUSTRIA Saccarina. Crise do assucar. Rev. Agric., n. 1, 1887, p. 132.
1164
soluo. Para outros, como Charles Expilly e Alfred Marc, a colonizao do Brasil deveria ser
realizada pelos prprios trabalhadores brasileiros, mesmo que tambm viessem imigrantes250.
Para a reorganizao da economia agrria, seria, ademais, preciso criar condies para que
o proprietrio de terras e o trabalhador soubessem administrar o solo e desenvolver a agricultura,
bem como valorizar a sua atividade254. Formaria-se, assim, um grupo de agricultores instrudos
250SANTOS, C. A. Viajantes franceses e modelos de Colonizao para o Brasil (1850-1990). Rev. Mestr. Hist.,
Vassouras, v. 5, p. 41-54, 2003.
251BURTON. Viagem aos planaltos do Brasil Tomo I, p. 28-30.
252SANTOS. Viajantes franceses e modelos de Colonizao para o Brasil, p. 48.
253GORDILHO, P. Immigrao e trabalho livre. Discurso proncunciado na Assembleia Provincial do Rio de Janeiro.
principio da cincia moderna. INAUGURAO da Escola Agrcola Unio e Industria no Juiz de Fora (Provncia
de Minas Geraes). Rev. Agric., n. 1, 1869, p. 49-51; ver tambm A REFORMA Agrcola. Rev. Agric., n. 1, 1869, p. 2.
1165
nas Escolas Agrcolas, cuja cincia da Agronomia faria o elo entre a prtica e a teoria 255. Dessa
maneira, seriam formados
Desde cedo em sua carreira, Nabuco dava enfoque a obra da escravido como um entrave
ao surgimento de uma relao mais saudvel com a natureza e combatia o dominio do latifundio
e da monocultura que esgotavam a terra258. Ao observar a lavoura do recncavo baiano, mostrou
como as grandes propriedades no cuidavam do meio natural nem das condies de produo,
resultando numa paisagem desoladora.259 Dizia no ter dvidas de que o trabalho livre o
mais econmico, mais inteligente, mais til a terra, [...] mais prpria para gerar indstrias, civilizar
o pas, e elevar o nvel de todo o povo.260 Era preciso, para ele, que os proprietrios voltassem os
olhos para suas plantaes e formassem, em parceria com o trabalhador livre, uma classe mais
rica, mais til, mais poderosa e mais elevada, implantado tambm os maquinismos
aperfeioados.261 Joaquim Nabuco tambm discursava que esse operrio livre poderia ser
tomado dentre o grande nmero de negros libertos que lotavam as cidades e estradas, inativos,
tornando-os hbeis para os ofcios262.
255Em um relatrio sobre a molstia da cana de acar, Ladislau Netto falou da importncia do preparo tcnico e
cientfico para lidar com o enfraquecimento vegetal e hipertrofia dos gomos, causados pela propagao de insetos.
Sobre um empreendimento prximo a Belm, ele mostra que se obteve bons resultados com a contratao de um
agrnomo, onde a mquina e o estrume foram seus auxiliares. NETTO. Investigao sobre a cultura, p. 4-7.
256A REFORMA Agrcola. Rev. Agric., n. 1, 1869, p. 3.
257PADUA. Um sopro de destruio, p. 264.
258O seu conceito de escravido abrangia a forma como o sistema se relacionava com o meio fsico, a propriedade de
terra, a indstria e o regime poltico. Cf. MELLO, E.C. O carater orgnico da escravido. Folha de So Paulo, 12 dez.
1999 Apud PDUA. Um sopro de destruio, p. 273.
259PADUA. Um sopro de destruio, p. 274.
260Para tanto, usa a anlise de Noah Webster sobre os efeitos da escravido na moral e na indstria, ao afirmar que
no havia um proprietrio de escravos na Europa e na Amrica que no possa dobrar em poucos anos o valor do
seu estabelecimento agrcola, alforriando os seus escravos e ajudando-os no manejo das suas culturas. NABUCO, J.
O Abolicionismo. Brasilia: Edies do Senado Federa, 2003 [online], p. 185, nota 1.
261NABUCO. O Abolicionismo, p. 193; BRUSANTIN, B.; BARBOSA, V.; CAMPOS, E. Andr Rebouas, Joaquim
Nabuco e a abolio: algumas correspondncias. In: Anais Eletrnicos do IV Colquio de Histria Abordagens
Interdisciplinares sobre Histria da Sexualidade. Recife, 16 a 19 de outubro de 2010, p. 56.
262NABUCO. O Abolicionismo, p. 59, nota 2.
1166
De um outro ponto de vista, Andr Rebouas entendia que a desigualdade no campo era
o grande problema nacional e a abolio uma medida necessria para a realizao de uma
democracia rural263. Engenheiro empreendedor e filho de uma liberta, Rebouas acreditada que,
para que o pas passasse para a modernidade e alcanasse o progresso tcnico e institucional, era
preciso acabar com a escravido e o latifndio que mantinham a inrcia e apatia do
landorismo.264 Criticava tambm a predominncia de certas culturas agrcolas e o descaso com
as espcies brasileiras, que poderiam diversificar a economia e aumentar a produo nas fazendas.
Como Nabuco, entendia que era preciso investir primeiro no prprio brasileiro desocupado e
mal aproveitado, pois havia muitos ndios, mestios e libertos a serem educados para o
trabalho. Defendeu a necessidade de facilitar a posse de terras pelo imigrante e pelo negro
liberto, pois sem terras tem a alternativa de ser arteso ou assalariado precrio. 265 Incentivou a
criao de colonias agrcolas para dar-lhes instruo tcnica266. Assim, o solo canado se tornaria
frtil nas mos daqueles que regenerariam as terras e mudariam a paisagem com a tecnologia
moderna, transformando a agricultura numa industria livre, fertilizadora e progressista.267 Em
sntese, sua Democracia Rural propunha uma ampla reforma com a extino dos latifundios, da
monocultura e da escravido.
263Na sua passagem pelos Estados Unidos, Rebouas observou a relao dos pequenos proprietrios com suas terras,
principalmente atravs do Homestead Act, de 1862. BRUSANTIN; BARBOSA; CAMPOS. Andr Rebouas, Joaquim
Nabuco e a abolio, p. 49-50.
264REBOUAS, A. Agricultura nacional: estudos econmicos: propaganda abolicionista e democrtica, setembro de
1874 a setembro de 1883. Ed. fac-similar. Recife, Fundaj, Ed. Massangana, 1988 Apud BRUSANTIN; BARBOSA;
CAMPOS. Andr Rebouas, Joaquim Nabuco e a abolio, p. 54.
265A aquisio de terras se daria com incentivo do governo e no enfraquecimento do poder dos grandes fazendeiros,
com impostos sobre a extenso da propriedade e de escravos. Foi responsvel pela Lei de Imposto sobre a Escravatura,
em 1867, procurando compelir os senhores a diminuirem seus cativos. J nas terras devolutas, propunha repensar a
Lei de Terras e fazer loteamentos, colonias e transmisso de propriedades, como no modelo americano.
266REBOUAS. A Agricultura nacional, p. 118 e 269.
267JUCA, Joselice. Andr Rebouas: reforma & utopia no contexto do Segundo Imprio: quem possui a terra possui o
1167
influncia restrictiva do monoplio de certas culturas, em que se empregavam quase
exclusivamente todos os braos e todos os capitais. 269 Mas para Rebouas, aps a Abolio, suas
preocupaes aumentaram com a iminente Proclamao da Republica oligrquica e plutocrtica,
que ele repudiava270.
269LACERDA, J. B. Sobre a peste de Manqueira, em Minas Geraes. Rev. Agric., n. 1, 1889, p. 33.
270BRUSANTIN; BARBOSA; CAMPOS. Andr Rebouas, Joaquim Nabuco e a abolio, p. 54.
271 PDUA. Um sopro de destruio, p. 117; DRUMMOND. Devastao e preservao ambiental no Rio de Janeiro.
272TORRES, Alberto. O problema nacional brasileiro: introduco a um programma de organizao nacional. 3. ed. So
1168
Os tratados de 1810 nos debates da imprensa
peridica da emigrao em Londres
Graduado em Histria
RESUMO: Com a vinda da famlia real portuguesa para o territrio brasileiro em 1808 e a
abertura dos portos do Brasil s naes amigas, as trocas comerciais envolvendo o imprio luso-
brasileiro e as outras naes europeias se intensificam. amplamente discutida pela historiografia
sobre o tema a situao de servincia assumida pelo Estado portugus perante a Inglaterra,
principalmente pela quase total dominao inglesa no comrcio de produtos manufaturados. Este
quadro se agrava com a assinatura, em 1810, dos tratados de cooperao e amizade. O
contedo dos tratados de cooperao e amizade favoreciam, claramente, a nao inglesa frente s
outras naes, tendo como um dos maiores pontos de discusso entre luso-brasileiros da poca, a
cobrana de alquotas alfandegrias maiores para navios portugueses (16%) que para navios
ingleses (15%). O objetivo desta comunicao apresentar um recorte dessa discusso sobre os
resultados dos tratados de 1810. Pretendemos compreender, a partir dos peridicos da chamada
imprensa peridica da emigrao em Londres, como os resultados dos tratados foram discutidos
pelos periodistas quele momento. Mais especificamente focaremos nossas anlises nos primeiros
anos que seguem da publicao dos tratados de 1810 nos peridicos O Correio Braziliense, que teve
como editor Hiplito da Costa; O Investigador Portuguez em Inglaterra, editores Bernardo Jos de
Abrantes e Castro e Vicente Pedro Nolasco da Cunha e O Portuguez redigido por Joo Bernardo
da Rocha Loureiro. Sobremaneira cada um dos redatores publicaram em seus peridicos crticas
aos tratados de 1810 ligadas, basicamente, aos interesses que cada um deles defendiam neste
debate. Por estarem publicando de Londres este periodistas compartilhavam de um clima
privilegiado para compreendermos as distintas culturas polticas que se contrastam nesta
discusso.
PALAVRAS-CHAVE: Imprio luso-brasileiro, Imprensa peridica de emigrao, Tratados de 1810.
1169
estar ilegalmente estabelecido em Londres e pedindo ao Marqus de Wellesley a interveno
junto a coroa britnica para expulso do editor do Correio Braziliense de Londres.
273 Podemos ressaltar aqui, dentre uma grande produo bibliogrfica, algumas obras que ilustram de forma
sistemtica as configuraes do Imprio luso-brasileiro. Para uma viso do momento de transio dos sculos XVIII
para o XIX: ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do Imprio: questo nacional e questo colonial na crise do Antigo
regime portugus. Porto: Afrontamento, 1993; para uma compreenso da continuidade do Imprio como proposta
1170
Pensando, principalmente, atravs da ideia de vulnerabilidade Valentim Alexandre aponta
quatro pontos cruciais para compreendermos a concepo tomada por estes grupos polticos para
composio do Imprio Luso-brasileiro. A anlise do espao de convergncia entre os interesses
dos corpos mercantis de Lisboa e do Porto e as perspectivas polticas de uma importante faco
das cortes constituintes compreendido na dinmica que estava presente no ascendente
desligamento entre Portugal e Brasil um carter essencialmente poltico274. Desta forma, o
conceito de vulnerabilidade utilizado para a descrio daquela conjuntura complexa e mutante
vivenciada em Portugal.
O conceito de vulnerabilidade desenvolvido de maneira mais slida por Valentin
Alexandre em Os Sentidos do Imprio. Para o autor quatro pontos so os vetores estratgicos de
Portugal neste perodo, principalmente a partir do XVII. So eles: 1) defesa da metrpole
Portugal perante a vontade expansionista da Espanha Particularmente perigosa quando em
aliana com a Frana, principalmente depois do tratado de Utrecht em 1713. 2) proteo dos
trficos coloniais que eram parte essencial do comrcio externo portugus. 3) fixao dos
limites territoriais favorveis ao Brasil principalmente impedindo a entrada da Frana pela
Guiana e preservando os domnios territoriais do sul no rio da prata e 4) preservao dos pontos
da costa africana de onde provinha toda a mo de obra escrava, e que pode ser compreendido
como o motor de todo o sistema. Desta maneira, por maior o empenho de cada parte deste vasto
imprio seria inconcebvel a satisfao de todas as necessidades da defesa do territrio por uma
pequena potncia podemos arriscar at descreditada, como Portugal sem o recurso a apoios
externos: e a Gr Bretanha oferecia estes apoios a Portugal. Trs pontos bsicos desta ligao
amarram a anlise de Valentim Alexandre.
Uma primeira condio bsica para a sobrevivncia da aliana estava na permanncia do
interesse britnico pela conservao do sistema imperial portugus. Este interesse na primeira
metade do XVIII claro uma vez que o imprio luso-brasileiro constitui um mercado importante
para a produo da Gr-Bretanha e para a indstria dos derivados da l. Estas vantagens
atenuam-se com a decada drstica na extrao do ouro, que era a contrapartida principal das
exportaes britnicas. Outro ponto, os tecidos em algodo, produto chave da primeira fase da
revoluo industrial inglesa, no detinham os privilgios que eram dados as ls (lanifcios) no
tratado de Methuen.
Um segundo ponto diz respeito ao cumprimento desta aliana para a parte portuguesa e
da parte portuguesa a aliana cumpriria seu papel desde que proporcionasse a defesa eficaz do
sistema imperial e da metrpole. Existia, porm, na anlise de Valentim Alexandre, um limite no
que poderia ser o preo a pagar por essa defesa (por esses acordos). Para Alexandre este limite
varia por influncia das alteraes econmicas e sociais da sociedade portuguesa, estreitando-se
poltica de Reforma: LYRA, Maria de Lourdes Viana. A Utopia do Poderoso Imprio. Portugal e Brasil: Bastidores da
Repblica 1798-1822, Rio de Janeiro, Sete Letras, 1994; e para a compreenso dos processos polticos que envolviam
o Imprio luso-brasileiro e seus atores polticos os trabalhos de NEVES, Guilherme Pereira das. Del imperio
Lusobrasileo al Imperio del Brasil (1789-1822). In: GUERRA, Franois-Xavier e ANINNO, Antonio (Orgs.).
Inventando la nacin: Iberoamrica siglo XIX. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 2003., SHULTZ, Kirsten.
Versalles tropical: Imprio, monarquia e a Corte Real portuguesa no Rio de Janeiro, 1808-1821. Traduo: Renato
Aguiar. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2008 e SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Inventando a Nao: intelectuais
ilustrados e estadistas luso-brasileiros na crise do Antigo Regime Portugus (1750-1822). So Paulo: Hucitec, 2006.
274 Ver: PEDREIRA, Jorge Miguel. Economia e poltica na explicao da Independncia do Brasil. In:
MALERBA, Jurandir (Org.). A independncia brasileira: novas dimenses. Rio de Janeiro: FGV, 2006.
1171
para finais do XVIII. Neste perodo j notado uma burguesia mercantil e industrial com peso
junto ao aparelho de Estado. Esta nova camada da populao estaria empenhada em resguardar
das presses inglesas a parte que detinha do mercado brasileiro.
Em terceiro lugar o funcionamento desta aliana entre Portugal e Gr Bretanha estaria a
merc das condies polticas de ordem mais geral, ligadas a relao de foras na Europa. E aqui
tm-se um dos pontos mais singulares da propostas de Alexandre, para ele a hegemonia inglesa,
afirmada sobretudo em termo de poder naval, poderia fazer perigar a aliana, na medida em que
desvalorizaria as posies portuguesa no contexto da estratgia global da Gr Bretanha, no
sendo de excluir, num caso extremo, a possibilidade de uma ao inglesa visando o
desmantelamento do imprio luso-brasileiro.
Desta forma, a complexidade do perodo evidenciada de maneira sistemtica e
referencia um novo conjunto de fatores que apresentam este momento vivido como
fragmentado, desprovido de sistemas definitivos de normas, aberto a mudanas e transformaes.
Para alm de uma conjuntura favorvel, mantinha-se, no entanto, a vulnerabilidade estrutural do
imprio portugus; as perturbaes do sistema internacional nos vinte anos, entre 1790 a 1810,
iro amplamente demonstr-lo.
Para o Brasil mais especificamente, a chegada da famlia real possibilita o
desenvolvimento da cidade do Rio de Janeiro ampliando, e muito, o universo populacional. Entre
outras mudanas dava-se incio a materializao das condies indispensveis para a circulao de
ideias de maneira mais ampla. O surgimento de um pblico leitor e a gnese de uma esfera
pblica ativa, tambm faz parte deste contexto. Todavia, apenas razes de natureza material no
explicam o atraso brasileiro no campo da imprensa em relao s outras colnias da Amrica
Espanhola. H de se acrescentar uma expectativa que ultrapasse as condies materiais, a
compreenso da fora poltica de uma ideia expressa na forma de escrita.
A compreenso desta condio para o desenvolvimento da imprensa se mostra favorvel
nos quadros do estabelecimento da corte portuguesa no Rio de Janeiro, criando formas de
pensamento em pblico ampliado, favorecendo a circulao de peridicos, mesmo que neste
incio de maneira restrita. Apenas aps o trmino da censura, em 1821, so criadas condies
para a proliferao de jornais, inclusive nas provncias mais distantes do Rio de Janeiro. A teia das
notcias construda, sobretudo, pela rede de informaes verbais, que podem ter origem nas
letras impressas, as quais so retransmitidas oralmente a outros ou diretamente pela conversa
oriunda dos ambientes privados. Ao mesmo tempo, as letras impressas passam a se nutrir do jogo
das prticas orais275.
Sobre esta imprensa que se desenvolve no Rio de Janeiro destaca-se o peridico a Gazeta
do Rio de Janeiro. De fato a Gazeta foi o jornal oficia da corte portuguesa e era impressa aos
cuidados da Impresso Rgia, a ela competia o monoplio da impresso de qualquer obra
tipogrfica em territrio brasileiro. Todavia, no impedia a incluso de informaes de interesse
amplo ao pblico na Gazeta. O peridico estava diretamente vinculado a uma repartio pblica
real, ainda que a empresa, propriamente dita, se constitusse de scios que dela usufruam os
eventuais lucros, na medida em que o jornal tinha certa garantia de assinaturas que o financiasse,
criava-se assim um compromisso com o pblico leitor.
275 BARBOSA, Marialva. Histria Cultural da Imprensa: Brasil 1800 1900. Rio de Janeiro: Mauad X, 2010.
1172
A administrao da Impresso Rgia competia a uma Junta Diretora que deveria, segundo
as instrues do prncipe examinar os papis e livros que se mandassem publica e fiscalizar que
nada se imprimisse contra a religio, o governo e os bons costumes. A afirmao presente no
primeiro nmero da Gazeta denuncia que o governo no confiava tanto no grupo de editores. Ou
tambm, pode ser compreendida como uma tentativa de parecer livre e isenta em suas
informaes. Seja como for, sabe-se que, na verdade, o prprio Dom Joo VI lia os originais, em
portugus, francs ou ingls, e depois a junta administrativa ainda relia todo o material, antes que
o mesmo fosse enviado ao prelo. Essa junta era formada por Jos Bernardes de Castro, Mariano
da Fonseca e Jos da Silva Lisboa. Ainda assim, o fato de ser impresso sob as normas da Coroa
portuguesa no fazia da Gazeta fonte menos importante para a compreenso do perodo.
Desta forma a imprensa que serve a administrao colonial, deixa como vestgios do
sculo XIX muito das formas de circulao das ideias no interior do Reino de Portugal, bem
como entre este e o que se passava no resto do mundo.
276 NEVES, Lcia M. Bastos P. A guerra das penas: os impressos polticos e a independncia do Brasil. Tempo. Revista do
Departamento de Histria da UFF, Lisboa, v. 4, n.8, p. 41-65, 1999.
277 BAHIA, Juarez. Jornal: histria e tcnica. Histria da Imprensa Brasileira. Rio de Janeiro: tica, 1990.
1173
Imprio portugus e isto que Manoel Luis da Veiga diz ser seu intuito ao apresentar sua verso
do fato.
Veiga escreve sobre o fato em uma posio privilegiada, direto de Londres. Ele estava
naquela cidade desde 1808, experienciando distncia todas as mudanas pelas quais passava o
Imprio luso-brasileiro desde a partida da Famlia Real para a Amrica. Em Londres ele cuidava
de seus negcios e ali ele escreveu dois pequenos livros sobre a situao do governo portugus e
dos problemas envolvendo os negociantes, eram eles o Anlise dos Fatos Praticados em Inglaterra,
relativamente Propriedades Portuguesas de Negociantes Residentes em Portugal e no Brasil e o Reflexes
Polticas sobre o Estabelecimento de Comerciantes Ingleses no Brasil. Segundo Slemian e Chaves278 o
primeiro tinha um tom provocativo e contundente, o que era reconhecido pelo prprio Veiga,
que fora movido pelo desejo da verdade, ainda que isso lhe custasse o risco de fazer
inimizades. Embora nem a Anlise nem as Reflexes alcanassem a repercusso esperada por
Veiga, Hiplito da Costa tratou de seus textos no Correio Braziliense.
A Anlise iniciada por um prefcio, no qual Manoel Luis da Veiga aponta sobre o que se
tratar naquela obra. Diz Veiga que ela no foi ordenada com outro fim seno de informar os
meus compatriotas e colegas comerciantes do Brasil sobre o estado de seus negcios com a
Inglaterra. Sobre o risco de tocar em assuntos difceis por ter que apontar erros na
administrao portuguesa em Londres, Veiga trata nas seguintes palavras posso falar no nome d
Ilmo. e Exmo. Sr. d. Domingos sem o escandalizar. Por d. Domingos ser um homem de letras,
Veiga acredita que ele no se ofenderia em ouvir as verdades que ele apresentaria em seus
escritos. Alis, Veiga acreditava que ele estaria enganado pelos interesses individuais e egosmo
dos comerciantes e ministros que cercavam d. Domingos.
VEIGA, Manoel Luis da, SLEMIAN, Andrea, CHAVES, Cludia Maria das Graas. Obras de Manoel Luis da Veiga.
278
2012.
1174
1175
ST 18: Relaes de Poder: Conflitos e
Negociaes em uma perspectiva histrica
no sculo XX
1176
Uma breve introduo sobre as Brigadas
Internacionais e a Guerra Civil Espanhola
Guilherme Alonso Alves
Graduando
Universidade Federal de Minas Gerais
[email protected]
RESUMO: Este trabalho fruto de uma pesquisa incipiente, isto , o trabalho proposto
pensando apenas a partir de uma pequena reviso bibliogrfica sobre o tema. Sendo assim,
apenas uma introduo para uma temtica complexa e muito rica em contedo. As Brigadas
foram uma organizao militar coordenada principalmente pelo Partido Comunista Francs em
solidariedade Repblica Espanhola. Cidados de 53 naes se envolveram no conflito espanhol
atravs das Brigadas Internacionais, para essas pessoas o conflito no era algo nacional, mas a
oposio entre fascismo e os regimes parlamentares. Tal viso muito plausvel devido
participao de tropas dos Exrcitos da Alemanha e Itlia nos agrupamentos franquistas. De certa
maneira, o conflito espanhol e toda sua complexidade internacional eram uma caixa de
ressonncia para o cenrio poltico europeu, naquela guerra civil estavam colocados os elementos
que posteriormente iram implodir a Segunda Guerra Mundial.
PALAVRA CHAVE: Guerra Civil Espanhola; Partido Comunista; Internacionalismo.
Antes de iniciar a discusso centrada na questo das brigadas se faz necessrio um olhar
para situao pr-guerra civil. Aps vrios anos de ditadura de Primo de Riviera, o autocrata
renuncia ao seu cargo levando em seguida o Rei Afonso XIII a tambm tomar o mesmo
caminho. Com a vacncia de poder ento declarada a II Repblica Espanhola e em 1931 so
conclamadas eleies da Corte. Com a vitria de uma maioria parlamentar de esquerda, sucedeu
um processo de avanos sociais para o proletariado urbano, reforma agrria para o trabalhador
do campo e maior autonomia para os estados catalo e basco280. Contudo, ainda vivendo as
consequncias da crise de 1929, esses processos sociais encontraram muitos obstculos e
problemas em sua manuteno. Nesse cenrio de crise econmica e poltica o emergir de uma
279 DAZ-BALART. Mirta Nez. La disciplina de la concencia: las Brigadas Internacionales y su artillera de papel. Barcelona.
Flor del Vento, 2006 p.13
280 ALMEIDA, Paulo Roberto de. Brasileiros na Guerra Civil Espanhola: Combatentes na luta contra o fascismo.
Revista de sociologia e poltica. Braslia, Ministrio das Relaes Exteriores n.12, p. 35-66, jun.1999 p. 40.
1177
srie de greves, atentados e atitudes repressivas do Estado levou o governo a um processo de
desmoralizao. Entre novembro e dezembro de 1933 foram dissolvidas as Cortes e ocorreram
reconvocao as eleies. direita, reagrupada na Confederao Espanhola de Direitas Autnomas,
conseguiu vencer as eleies. O novo governo iria progressivamente anular os direitos populares
advindos da ltima gesto. Devido o fortalecimento das direitas espanholas somado ao processo
de deteriorao de direitos, a UGT Unio Geral dos Trabalhadores - em 1934, liderada por Largo
Caballero, iniciou uma greve geral que iria desembocar em levantes armados em Madrid, Astrias
e Barcelona. Em Barcelona, por falta de apoio da CNT- Confederao Nacional do Trabalho -, o
levante foi logo desmontado, em Madrid a falta de armas levou a derrota dos socialistas ante ao
exrcito, apenas nas Astrias foi possvel resistir s investidas das tropas mouras e da legio
estrangeira comandada pelo General Francisco Franco. Esta resistncia s foi possvel devido
unio entre o PCE comunista , UGT socialista e a CNT anarquista. Com o resultado do
fracassado levante a direita dominou a cena poltica entre 1934 e 1936. A mudana de postura do
movimento comunista internacional, advinda do VII Congresso da III Internacional Comunista,
Komitern muito importante para o desenrolar da poltica espanhola. Abandonaram-se as
diretrizes criadas no VI Congresso classe contra classe, diretriz onde os comunistas se
isolavam dos socialistas e sociais-democratas e devido ao fortalecimento fascista, passaram a
adotar a teoria da Frente Popular unio entre comunistas, socialistas e sociais-democratas
contra o fascismo.
281 ALMEIDA. Brasileiros na Guerra Civil Espanhola: Combatentes na luta contra o fascismo p. 41
1178
direitistas comeados em Madrid se espalharam por toda Espanha. Isso foi o incio de uma
querela que ir dividir o pas at os dias de hoje282.
282 _________. Brasileiros na Guerra Civil Espanhola: Combatentes na luta contra o fascismo p.42
283 DAZ-BALART. La disciplina de la concencia: las Brigadas Internacionales y su artillera de papel p. 180 e 181.
1179
dos voluntrios eram comunistas.284 Pela proximidade geogrfica a Frana se converteu no
principal ponto de coordenao e recrutamento e combatentes, tendo o PCF a sua frente.285
Para alm de uma tropa militar as Brigadas tambm eram um grupo poltico e a bandeira
da reforma agrria era de especial importncia. As posturas em relao reforma agrria
mudaram no decorrer da guerra, desde uma exaltao a coletivizao da terra at a defesa da
pequena propriedade. Tanto o PCE, quando o PSOE e os partidos republicanos defendiam a
coletivizao da terra respeitando o pequeno e mdio proprietrio que trabalhava diretamente em
suas terras.288 A partir dai se iniciou um combate contra aqueles que defendiam o modelo de
coletivizao total das terras e meios de produo anarquistas e trotskistas. Havia um embate
284 _____________. La disciplina de la concencia: las Brigadas Internacionales y su artillera de papel p.96
285 DAZ-BALART. La disciplina de la concencia: las Brigadas Internacionales y su artillera de papel p.97.
286 DAZ-BALART. La disciplina de la concencia: las Brigadas Internacionales y su artillera de papel p.80 e 81.
287 ALMEIDA. Brasileiros na Guerra Civil Espanhola: Combatentes na luta contra o fascismo p. 46.
288 DAZ-BALART. La disciplina de la concencia: las Brigadas Internacionales y su artillera de papel p.164.
1180
entre os defensores de uma revoluo social e os que defendiam a democracia liberal e as
reformas de esquerda. Curiosamente o PCE defendia em seu programa a coletivizao total,
todavia, com a adoo modelo de transio da Frente Popular passaram a defender tambm a
pequena e mdia propriedade camponesa289. Nesse meio tambm se encontrava a discusso entre
a estrutura de milcias frente organizao centralizada do Exrcito Popular regular.
289 ____________. La disciplina de la concencia: las Brigadas Internacionales y su artillera de papel p.165.
290 DAZ-BALART. La disciplina de la concencia: las Brigadas Internacionales y su artillera de papel p. 170 e 171.
1181
esses inimigos internos o PCE inclua o POUM partido comunista de orientao anti-stalinista
e em especialmente o seu levante de maio de 1937291 em Barcelona, mencionado anteriormente.
A situao em 1938 era muito grave, as BIs usadas como tropas de choque pelo Exrcito
Popular j contavam com muitas baixas depois de dois anos de guerra e pela impossibilidade de
renovar seus quadros devido ao bloqueio de No Interveno na fronteira francesa. Alm disso,
os rebeldes j haviam tomado uma grande parte do territrio e os alemes j havia demostrado
sua superioridade tcnica em Guernica e os italianos em Mlaga, embora tivessem perdido em
Guadalajara. A presena dos voluntrios era um fator determinante na guerra, o presidente ento
tomou a deciso de desmobilizar o contingente da BI. A deciso do governo Negrn era difcil,
mas de destreza no campo poltico. Era um modo de demonstrar o carter nacional do conflito
espanhol, retirar a ideia de luta internacional do comunismo e angariar a ajuda das democracias
ocidentais.293 As BIs se retiraram oficialmente do conflito espanhol em 21 de setembro 1938. Em
Genebra o presidente Juan Negrn anuncia perante a Sociedade das Naes a retirada das foras
internacionais do conflito. Essa era sua ltima jogada poltica frente ao Acordo de No
Interveno. Todavia, a retirada das tropas internacionais supervisionado por uma equipe da
Sociedade das Naes no mudou o status quo de isolamento da repblica. O governo de Negrn
intentava com ao um ltimo apelo s conscincias democrticas para fazer possvel uma
guinada em favor da repblica294. Em 15 de novembro de 1938 os Brigadistas fizeram uma
marcha de despedida em Barcelona onde foram saudados por Negrn, pela histrica dirigente do
PCE La Passionria e aclamados pela populao295.
291 ______. La disciplina de la concencia: las Brigadas Internacionales y su artillera de papel p.167.
292 DAZ-BALART. La disciplina de la concencia: las Brigadas Internacionales y su artillera de papel p. 204.
293 _____________. La disciplina de la concencia: las Brigadas Internacionales y su artillera de papel p. 114.
294 _____________. La disciplina de la concencia: las Brigadas Internacionales y su artillera de papel p. 113.
295
ALMEIDA. Brasileiros na Guerra Civil Espanhola: Combatentes na luta contra o fascismo p. 58 e 59.
1182
Uma Comisso Internacional para a Retirada dos Voluntrios CIRV foi criada pela Sociedade
das Naes. A comisso contabilizou 7.102 soldados em exerccio nas BIs, 1.946 portugueses e
latinos americanos integrados no exrcito regular e 3160 feridos, resultando em um total de
12.208 estrangeiros em luta. Alm disso, a CIRV averiguou que nunca houve mais de 25.000
combatentes estrangeiros nas Brigadas Internacionais. Ao final de tudo, contando com Levante e
Catalunha, havia 12.673 estrangeiros em luta no momento de sua retirada. Todavia, mesmo
depois de retirada oficialmente das tropas internacionais muito permaneciam na regio da
Catalunha a espera da evacuao296. A desmobilizao das tropas internacionais ainda enfrentou
alguns problemas de sada, pois muito combatentes no tinham como voltar a seus pases, como
por exemplo: italianos, alemes e checos. Em dezembro o governo mexicano permitiu a ida de
6.600 voluntrios de diversas nacionalidades para o territrio mexicano. Os mexicanos alugaram
mais de quatro vapores para fazer a conduo, tendo sada na cidade de Bordus. O governo
republicano concedeu os vistos de sada para os combatentes que iniciaram sua lenta caminhada
at o territrio francs, todavia, em seis de janeiro de 1939 no foi permitida a entrada dos
Brigadistas na Frana.297. Em paralelo a desmobilizao das Brigadas, Franco d incio a sua
campanha na Catalunha, auxiliado por mais de oito divises de blindados em sua maioria
italiana - conquistando a regio em dois meses.298
296
DAZ-BALART. La disciplina de la concencia: las Brigadas Internacionales y su artillera de papel p.116 e 117.
297 ALMEIDA. Brasileiros na Guerra Civil Espanhola: Combatentes na luta contra o fascismo. p.59
298 ________ . Brasileiros na Guerra Civil Espanhola: Combatentes na luta contra o fascismo. p.59
299 ________ . Brasileiros na Guerra Civil Espanhola: Combatentes na luta contra o fascismo. p.60.
1183
todavia a ajuda enviada por esses setores no podia ser comparada ao auxlio nazifascista
recebido por Franco. Sendo assim, o Tratado de No Interveno e as posies de no
beligerncia do governo Francs e Ingls conseguiu adiar pro quatro anos o confronto entre as
democracias e o fascismo que veio a estourar na Segunda Guerra mundial, porm esse adiamento
se deu ao custo da devastao da repblica espanhola e da conivncia com o avano do governo
desptico de Francisco Franco.
1184
As propostas de Glauber Rocha para o cinema novo
talo Nelli Borges
Mestrando em Histria Regional e Local
Universidade do Estado da Bahia
[email protected]
O valor que o Cinema Novo trs para a histria fica evidente se analisarmos o contexto
histrico da poca em que as suas obras foram produzidas e se pensarmos que essas obras foram
feitas sob uma realidade de represso e censura exercida no s ao cinema, mas a representaes
artsticas, uma arte subversiva que consegue driblar elementos normalizadores de um Estado
ditatorial certamente estar na memria histrica do pas e de seu povo, ainda mais se somarmos
isso tudo ao talento de nossos cineastas. Para alm do contexto do momento de vigncia do
movimento, os filmes cinemanovistas sempre abordaram figuras e temas histricos, posso citar
como exemplo a figura do cangaceiro e a questo da reforma agrria. Aliaram-se uma esttica
cinematogrfica revolucionria a servio da crtica aos problemas sociais brasileiros histricos
como a fome, o coronelismo e a misria no serto.
1185
Durante todo o sculo XX, o cinema passou por diversas fases, diversos modos de pr a
imagem em movimento na grande tela. So exemplos; o cinema expressionista alemo, a Nouvelle
Vague francesa, o Neorrealismo italiano, entre outros. No Brasil, em meados da dcada de 50
surgiam alguns cineastas com uma nova proposta de fazer cinema, que mais interessado no
abandono do povo pelo Estado, na desigualdade social, tudo isso sem usar grandes oramentos e
firulas estticas dos estdios que produziam filmes no Brasil.
Laikui Lins, em sua dissertao de mestrado, fala mais acerca contexto histrico que o
Brasil passava neste perodo:
O contexto scio poltico e cultural que d passagem ao desenvolvimento do
Cinema Novo o cenrio dos anos de 1950. Nesse momento, o Brasil parece
vivenciar uma frentica corrida em busca da superao do estado de
subdesenvolvimento em que se encontra o pas em pleno sculo XX, herana
deixada pelo colonialismo europeu. Desenvolvimento, progresso e
modernizao tornam-se, ento, as palavras de ordem nos mais diversos
contextos da sociedade brasileira.300.
O discurso desenvolvimentista dessa poca encontrado nas falas e nas prticas polticas
de Juscelino Kubitschek, presidente da Repblica entre 1956 e 1960. O ento presidente
propunha um plano de metas com o famoso slogan cinquenta anos em cinco que visava o rpido
desenvolvimento econmico e industrial brasileiro, desse modo, o Brasil torna-se um mercado
aberto, sobretudo para o capital estrangeiro, embora este aspecto tenha causados inquietaes.
Uma parte do governo era a favor da industrializao nacional atravs de recursos do Estado e do
setor privado, porm, mesmo o setor privado deveria ser especificamente nacional. Em
contrapartida, havia a parcela a favor dos recursos estrangeiros financiando a indstria no Brasil.
A construo de Braslia era tambm uma das metas do plano, a ideia era transferir a capital
federal para uma regio mais ao interior do pas, ao mesmo tempo essa medida diminuiria a
concentrao poltico econmica do sudeste e traria mais investimentos ao centro oeste do
pas e dessa forma diversificando a economia brasileira.
300LINS, Laikui Cardoso. A Recepo de Terra em Transe: ontem e hoje. Dissertao (Mestrado em Literatura) Programa
de Ps Graduao em Literatura e Diversidade Cultural. Universidade Estadual de Feira de Santana. 2009, p. 53.
1186
acordo com Lins a classe mdia produziu demandas inexistentes at o momento, entre elas,
demandas no plano cultural. Uma vez que o Brasil estava se modernizando, o pas precisava
evidenciar os mesmos atrativos dos pases desenvolvidos. Podemos admitir que tanto o cinema,
quanto a produo cinematogrfica faz parte das demandas do plano cultural que a autora
afirma.301.
A produo mais emblemtica deste perodo foi Rio, 40 Graus, de 1955 e dirigido por
Nelson Pereira dos Santos que posteriormente viria a ser um nome importante no Cinema Novo.
O filme em questo, de acordo com Leite (2005), trata com alta dose de criticidade a sociedade
carioca mostrando a cidade do Rio de Janeiro sob a tica de meninos negros que vendiam
amendoins nos famosos pontos tursticos da cidade, a crtica est justamente no tratamento de
descaso e desprezo exercido pela burguesia aos pobres e no contraste social dos cartes postais e
favelas da cidade.
A abordagem corajosa e crtica de Nelson Pereira dos Santos causou alguns problemas para
o lanamento do filme como aponta o historiador Sidney Leite:
O impacto do filme produzido no contexto da enorme comoo nacional
provocada pelo suicdio de Getlio Vargas foi to grande que a polcia e o
Servio de Censura tentaram vetar sua exibio. As justificativas para tal
tentativa foram desde a frgil e inverossmil alegao de que os termmetros
oficiais da cidade do Rio de Janeiro, mesmo no vero, no atingiam 40 graus at
a truculenta afirmao de que o filme havia sido feitos por comunistas com o
objetivo de denegrir a capital federal.302.
importantssimo que se fale desta ao falarmos de Cinema Novo. Como aponta Leite, Rio, 40
Graus foi uma das principais fontes de inspirao para o movimento cinemanovista que eclodiu
no final da dcada de 1950.303 Os filmes independentes produzidos durante esta dcada abriram
caminho para que no incio da dcada de 1960 o Cinema Novo se consolidasse enquanto
movimento reconhecido internacionalmente e lembrado at os dias atuais como momento mpar
na histria do cinema brasileiro.
Glauber Rocha foi um dos principais, seno o principal, cineasta da gerao do Cinema
Novo. Baiano natural de Vitria da conquista mudou-se pra Salvador onde passou o final da
infncia e adolescncia. Foi na capital baiana onde comeou a ter os primeiros contatos com
crtica e produo cinematogrfica. A carreira de Glauber Rocha foi marcada por obras
importantes como Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), Terra em Transe (1967) e O Drago da
Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969). Todas elas vencedoras de prmios internacionais causando
1187
impacto na crtica europeia e brasileira. Durante a dcada de 1970 passou longos perodos fora do
Brasil onde tambm produziu novas obras a exemplo de O Leo de Sete Cabeas e Cabeas Cortadas,
ambas de 1970. Alm de cineasta, Glauber tambm foi escritor, apresentador de TV. Dotado de
uma personalidade forte, acumulou polmicas, amizades e inimizades durante a vida. Faleceu em
1981, aos 41 anos, em decorrncia de problemas respiratrios.
A proposta que Glauber Rocha para o Cinema Novo era essencialmente conflitante com
outras propostas em vrios aspectos. At a dcada de 1960 a indstria do cinema no Brasil era
recente, assim como o processo de industrializao de outros setores. Aqui tnhamos basicamente
dois estdios de cinema; Atlntica e Vera Cruz, os dois, cada um a sua maneira, usava o cinema
hollywoodiano como maior referncia, seja na produo ou em mbitos de linguagem e narrativa
flmica. A Atlntica, com menos recursos que a Vera Cruz, se preocupava com comdias que na
opinio dos cinemanovista eram um deboche ao povo brasileiro, o cinema carnavalesco era
desprovida de crtica social real. A Vera Cruz veio com muito mais garbo e dinheiro trouxe
avanos tcnicos na produo, porm, do ponto de vista artstico e poltico, uma experincia
insuficiente para os integrantes do Cinema Novo, haja vista que os mesmos consideravam que
apenas a influncia de Hollywood no seria suficiente para garantir um cinema esteticamente eficaz,
assim como no espectro poltico, a Vera Cruz nada mais fazia do que a disseminao de uma
cultura imperialista. No limite, a percepo dos cinemanovista, que tambm a de Glauber
Rocha, era que o cinema praticado no Brasil naquele momento no pretendia ou mesmo sugeria
denunciar as injustias sociais nem propor uma conscincia crtica no pblico acerca da realidade
social do pas.
304PIERRE, Sylvie. Glauber Rocha: textos e entrevistas com Glauber Rocha. Traduo Eleonora Bottmann.
Campinas. Papirus. 1996 (Coleo Campo Imagtico), p.216.
1188
Temos ento o desenho geral do cinema de conflito que Glauber Rocha defende atravs
de sua percepo sobre o Cinema Novo. A materializao dessa ideia um texto de 1965 do
cineasta com o ttulo de Esttica da Fome apresentado em um evento italiano sobre cinema.
Muitos estudiosos consideram o texto como uma espcie de manifesto do Cinema Novo, em
algumas pginas Glauber conseguiu expressar as vises daquele movimento. No referido texto,
Glauber expe veementemente o combate do Cinema Novo com o cinema industrial brasileiro.
Um cinema que nasce e vive pelo combate, que precisa lutar contra seus inimigos, que
precisa assim transformar a sociedade e conscientizar seu povo. Essa em suma a proposta de
cinema nacional de Glauber Rocha principalmente no incio de sua carreira. A esttica da fome
foi uma grande sacada do movimento que produziu filmes interessantssimos quando nos
dispomos a analisar a histria do cinema brasileiro. O Cinema Novo agitou o Brasil, sobretudo na
elite intelectual brasileira, seja ela conservadora ou transformadora.
305 ROCHA, Glauber. Revoluo do cinema novo. So Paulo, SP: Cosac Naify, 2004, p. 65.
306 NAZARIO, Luiz. O Cinema Errante. So Paulo. Perspectiva. 2013, 245p.
1189
No entanto, o movimento no conseguiu atingir o povo, no houve uma identificao
imediata entre os dois como planejavam os cinemanovistas, os filmes iam de encontro a uma
lgica de distribuio e exibio que no os favorecia, uma linguagem hermtica feita a partir de
outras referncias surpreende negativamente um pblico que no cinfilo, tudo isso produziu
um afastamento entre o grande pblico e as obras do Cinema Novo, que ficavam mais expostas
entre crticos e intelectuais. Esse afastamento inclusive foi propositor de autocrtica dos cineastas
no fim dos anos 60 o que posteriormente diversificou as maneiras de produzir arte. A proposta
de cinema nacional de Glauber Rocha deu certo em vrios aspectos, mas no mais importante,
conquistar as massas e modificar uma realidade contraditria, isso no foi possvel de se fazer.
Entretanto, poucos lugares no mundo puderam ter o privilgio de ter movimentos de vanguarda
cinematogrfica com filmografias riqussimas de pontos de vistas estticos e temticos, isso o
Cinema Novo deu ao Brasil.
1190
A poltica de esportes varguista (1930-1945) e a
interao entre os poderes pblicos
municipal/estadual e os clubes de futebol de Belo
Horizonte/MG: permanncias e rupturas (?)
E-mail: [email protected]
307Cf. MANHES, Eduardo Dias. Poltica de esportes no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1986, p. 27-87. Cf. BUENO,
Luciano. Polticas pblicas do esporte no Brasil: razes para o predomnio do alto rendimento. 314 f. Tese (Doutorado em
Administrao Pblica e Governo) Fundao Getlio Vargas, Escola de Administrao de Empresas de So Paulo,
So Paulo, 2008, p. 105-132.
1191
brasileiros em competies internacionais, com destaque para as representaes nacionais de
futebol, modalidade esportiva de maior popularidade em vrios centros urbanos do pas desde as
primeiras dcadas do sculo XX. Entretanto, a efetiva instrumentalizao poltica dos esportes no
Brasil comeou a se delinear somente a partir do recrudescimento do autoritarismo com a
instaurao do Estado Novo (1937-1945) e, ao mesmo tempo, atravs da produo de um
consenso no setor esportivo privado em relao oficializao dos esportes pelo governo308,
cujos principais marcos foram a participao brasileira na III Copa do Mundo de futebol da
Federao Internacional de Futebol Association (Fifa), realizada na Frana em 1938, e a
promulgao do Decreto-lei n 3.199 de 1941, que criou o Conselho Nacional de Desportos
(CND).
Como nos assevera Meily Assb Linhales, esse longo percurso de efetiva
instrumentalizao poltica e oficializao dos esportes no pas durante o governo Vargas
evidencia que, independente das caractersticas autoritrias com que se revestiu o Estado nesse
perodo, a presena estatal no esporte no deve ser considerada como
308 Cf. SOUZA, Denaldo Alchorne. O Brasil entra em ao!: Construes e reconstrues da identidade nacional (1930-
1947). So Paulo: Annablume, 2008, p. 27-79.
309 LINHALES, Meily Assb. Jogos da poltica, jogos do esporte. In.: MARCELLINO, Nelson Carvalho (Org.).
Rodrigues; PERES, Fabiano Antnio Sena; OLIVEIRA, Rita Mrcia de; VIANA, Juliana de Alencar; SILVEIRA,
Amanda Carolina Costa; SILVA, Mrcio Aparecido de Freitas; LOPES, Tarcila Bretas; XAVIER, Jean Lopes;
LANA, Vivyan Louise; SAAD, Jane. Mapeando as primeiras aes de polticas pblicas de esporte em Minas Gerais
(1927-1946). In.: RODRIGUES, Marilita Aparecida Arantes; ISAYAMA, Hlder Ferreira (Org.). Um olhar sobre a
trajetria das polticas pblicas de esporte em Minas Gerais: 1927 a 2006. Contagem/MG: MJR Editora Grfica, 2014, p. 29-
46.
1192
Prefeitura Municipal de Belo Horizonte referentes aos Estdios dos clubes de futebol da cidade
durante os anos de 1930 e 1940, percebe-se a permanncia de prticas polticas de concesso de
privilgios em relao a algumas agremiaes esportivas da cidade iniciada ainda nos anos de
1910, reforando a j existente hierarquizao dos clubes de futebol em relao a oferta do
espetculo futebolstico na capital mineira.
O primeiro Stadium do America FC, inaugurado em 1923, teve 15% de seu oramento
subsidiado pelo Congresso Mineiro. Alm disso, no evento inaugural, coube a Raul Soares,
presidente do Estado e scio do clube, a responsabilidade de dar o pontap inicial do amistoso
entre o dono da casa e o Amrica FC do Rio de Janeiro. Em 1928 a Prefeitura requisitou o
311 Para informaes sobre o futebol belo-horizontino entre os anos de 1910 e 1930, consultar os artigos publicados
em SILVA, Silvio Ricardo da; DEBORTOLI, Jos Alfredo de O.; SILVA, Tiago Felipe da. (Org.). Histrias do
futebol e do torcer em Minas Gerais. In.: O futebol nas Gerais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012, p. 65-163.
312 A Taa Bueno Brando (1914) homenageou o presidente do Estado de Minas Gerais, Jlio Bueno Brando que,
junto com o ento Prefeito Municipal de Belo Horizonte, Olinto Meireles, foram os patrocinadores do evento. Alis,
ambos os politicos eram scios do America FC, um dos trs participantes do evento junto com Yale AC e C Atletico
Mineiro .
1193
terreno do Stadium americano para a construo do atual Mercado Central, indenizando o clube, no
ano seguinte (1929), com imvel em rea desmembrada do Parque Municipal, dotado de [...]
muros, archibancadas, para scios e geraes, Campos de Foot Ball, de Tenis e de Basquet Ball,
barraco para tomador de conta do campo [...]313.
Ainda em 1929, o C Atletico Mineiro edificou sua praa de esportes tambm por meio de
uma parceria com o Governo Estadual, poca presidido por Antnio Carlos, poltico alis que
deu nome ao Stadium atleticano. Assim, durante os anos de 1910 e 1920, a atuao estatal em
relao aos clubes de futebol contribuiu para instituir, como tambm reforou uma rivalidade
hegemnica e emuladora de distino social em Belo Horizonte entre America FC e C Atletico
Miineiro, o que explica, dentre outros fatores, o monoplio desses clubes na disputa das catorze
primeiras competies de futebol realizadas na cidade entre 1914 e 1927, com destaque para os
dez campeonatos vencidos consecutivamente pelos americanos entre 1916 e 1925.
A rivalidade clubista, alis, pode ser apontada como um dos principais fatores
responsveis pela ressignificao social dos praticantes e espectadores do futebol na capital
mineira, ensejando sua popularizao e espetacularizao. Processo que se caracterizou, no final
dos anos de 1920 e princpios de 1930, dentre outros aspectos, pela emergncia de uma nova
fora futebolstica na cidade, qual seja, a SS Palestra Itlia, que paulatinamente, passou a rivalizar
com o C Atletico Mineiro de forma mais contundente que o America FC314, tornando-se, a partir de
ento, uma agremiao esportiva tambm privilegiada pelas aes estatais.
313 FERRAZ, Francisco Casimiro Martins. Registro de Imvel n. 16.533. Data 18 janeiro 1928. [Cpia de 12 nov.
1959]. Belo Horizonte: 1 Ofcio Registro de Imveis, 1959, f. 1. In.: SECRETARIA MUNICIPAL ADJUNTA DE
GESTO ADMINISTRATIVA. Terreno onde se encontra o America F.C.. Belo Horizonte: Diviso de Patrimnio, Pasta
n. 48 Doc n. 1, s/d.
314 Segundo Marcelino Rodrigues da Silva, por mais que a SS Palestra Itlia tenha rivalizado as conquistas
futebolsticas regionais com o C Atletico Mineiro a partir de 1930, a sua consolidao como segunda fora esportiva na
cidade s ocorreu nos anos de 1960, quando, ento, a agremiao j havia sido rebatizada de Cruzeiro Sport Club por
ocasio da poltica de nacionalizao dos esportes de Vargas nos anos de 1940. (Cf. SILVA, Marcelino Rodrigues da.
Picadinho de raposa com sopa de galo. In.: Quem desloca tem preferncia: ensaios sobre futebol, jornalismo e literatura.
Belo Horizonte: Relicrio, 2014, p. 101-125.
315 Como assinalado anteriormente, as informaes sobre a poltica de esportes varguista em Minas Gerais foram
retiradas de RODRIGUES; ISAYAMA; COSTA; PERES; OLIVEIRA; VIANA; SILVEIRA; SILVA; LOPES;
XAVIER; LANA; SAAD. Mapeando as primeiras aes de polticas pblicas de esporte em Minas Gerais (1927-1946), p. 29-46.
1194
Assim, a promulgao do Decreto-lei estadual n 150 de 1938 definiu as bases legais de
difuso da cultura fsica no Estado por meio da construo e manuteno de Praas de
Esportes em diversas cidades mineiras, dotadas predominantemente de um ginsio poliesportivo
e uma piscina. A base oramentria para a concretizao dessa poltica foi estabelecida no ano
seguinte (1939), por meio da criao da Loteria Mineira, cujos recursos tambm seriam
destinados construo da Universidade de Minas Gerais.
Com o Decreto-lei estadual n 922 de 1943, que criou a Diretoria Geral das Praas de
Esportes de Minas Gerais, definiu-se que essas Praas de Esportes deveriam ofertar Cursos
Populares de educao fsica para alunos de grupos escolares do Estado e formar, por meio de
parceria com a Polcia Militar, [...] monitores para o ensino e treinamento de exerccios fsicos e
esportes em geral [...] capazes de inculcar nos jovens os valores cvicos e morais, inerentes
organizao social que se pretendia legitimar.316 O polo irradiador e espelho dessa poltica
seria o Minas Tnis Clube, Construdo pela Prefeitura de Belo Horizonte [entre 1935-1937],
arrendado a um grupo da elite poltica e econmica da cidade [...]317 e que, a partir de 1938 foi
transformado em entidade de utilidade pblica sob a denominao de Praa de Esportes Minas
Gerais. Seu presidente, nomeado pelo prprio governo do Estado, tambm tinha a funo de
dirigir, juntamente com dois outros membros, a Diretoria Geral das Praas de Esportes.
Essa instrumentalizao poltica dos esportes em Minas Gerais, verificada, por exemplo,
com a construo e estatizao do Minas Tnis Clube, tambm se arvorou sobre os principais
clubes praticantes de futebol de Belo Horizonte, poca, America FC, C Atletico Mineiro e SS
Palestra Itlia que, a partir de 1939 passaram a receber cotas da Loteria Mineira para difundir a
cultura fsica estado-novista318. Entretanto, as fontes por ora encontradas no so suficientes
para dizer se o repasse desses recursos alterou a organizao desses clubes, obrigando-os a ofertar
os Cursos Populares e a promover a formao de professores a partir dos princpios
pedaggicos (fsicos, cvicos e morais) e militaristas impostos pelo regime varguista. Por outro
lado, os processos patrimoniais da Prefeitura de Belo Horizonte evidenciam a ampliao dos
privilgios polticos concedidos aos clubes de futebol supracitados.
316__________________. Mapeando as primeiras aes de polticas pblicas de esporte em Minas Gerais (1927-1946), p. 38.
317__________________. Mapeando as primeiras aes de polticas pblicas de esporte em Minas Gerais (1927-1946), p. 35.
318 PREFEITURA DE BELO HORIZONTE. A Prefeitura [documento manuscrito]. [Original de] 13 setembro
1943; [Anotaes e subscries em] 22 fevereiro 1954; 4 maio 1954. In.: SECRETARIA MUNICIPAL ADJUNTA
DE GESTO ADMINISTRATIVA. Arrendamento dos quarteires 16, da 8 e 13 da 9 sees urbanas, respectivamente aos
Clubs: Cruzeiro S.C. (Ex-Palestra) e Club Atletico Mineiro. Demonstrao dos alugueis devidos e providencias
tomadas sobre o assunto. Belo Horizonte: Diretoria de Patrimonio, Pasta n. 48 Doc n. 1, [data de entrada] 27 ago.
1943.
1195
Exemplo nesse sentido pode ser encontrado nos documentos constantes do processo
Arrendamento dos quarteires 16, da 8 e 13 da 9 sees urbanas [...]319, registro da contrao, por parte
da Prefeitura de Belo Horizonte, das dvidas do C Atletico Mineiro e da SS Palestra Itlia em 1936,
quando ento o poder pblico local adquiriu, por meio de aplices municipais, os Estdios e
demais instalaes esportivas desses clubes, arrendando-as, em seguida, a custos anuais e por um
prazo de 30 anos, a esses mesmos clubes. Mesmo diante dessa manobra patrimonial do poder
pblico municipal e do financiamento do Governo do Estado por meio da Loteria Mineira, o C
Athletico Mineiro e a SS Palestra Itllia encontravam-se inadimplentes em 1943 com a Prefeitura de
Belo Horizonte em relao a seus arrendamentos sob a justificativa de seus presidentes que
alegavam [...] precariedade da situao financeira de seus gremios. 320. Na ocasio, o C Atletico
Mineiro havia pago apenas os dois primeiros anos, enquanto a SS Palestra Itlia no havia pago
sequer a primeira parcela prevista em contrato.
A soluo encontrada para o impasse foi a reteno das cotas da Loteria Mineira desses
clubes em 1943 e seu consequente repasse Municipalidade321, evidenciando, portanto, o uso,
mesmo que eventual, do recurso estatal destinado difuso da cultura fsica para manter as
finanas do C Atletico Mineiro e do Cruzeiro Sport Club/SS Palestra Itlia. A ausncia de
documentao sobre o pagamento dos arrendamentos das praas de esportes atleticana e
cruzeirense/palestrina no nos permite dizer se, aps o confisco da Loteria Mineira em 1943, esses
clubes mantiveram-se adimplentes com a Prefeitura de Belo Horizonte, tendo em vista a vigncia
do contrato at o ano de 1965.
ADJUNTA DE GESTO ADMINISTRATIVA. Clube Atltico Mineiro: juntada de processo. Belo Horizonte:
Diviso de Patrimnio, Pasta n. 49 Doc n. O, Processo n. 1534/53, 31 dez. 1952, f. 1-4.
323 PREFEITURA DE BELO HORIZONTE. Lei 156, de 17 de julho de 1950. Isenta o Clube Atltico Mineiro do
1196
rea na regio da Pampulha, denominada Quinta Elza, hipotecando os lotes aos seus credores.
O extravio do processo em 1954 deixa ainda algumas lacunas a serem desvendadas em relao
prtica poltica de concesso de privilgios aos principais clubes da cidade.
1197
Alm disso, me questiono sobre a origem das dvidas e da precariedade financeira do C
Atletico Mineiro e do Cruzeiro SC/SS Palestra Itlia: tal situao relacionava-se perspectiva desses
clubes, iniciada ainda no final dos anos de 1920, no sentido de montar equipes mais competitivas
e, consequentemente, mais diversificadas socialmente, ofertando melhores espetculos esportivos
sociedade, ensejando os caminhos do profissionalismo do futebol na cidade? Essa reorientao
permitiu a ressignificao social desses dois clubes que, paulatinamente, passaram a representar
dois modelos identitrios populares distintos que se concretizaram apenas nos anos de 1960,
pautados na identidade nacional populista, de elogio mestiagem, para o caso atleticano, e calcado
na perspectiva capitalista do trabalho, da perseverana, astcia e sucesso, para o caso
cruzeirense/palestrino?325 Ou ainda, seria justamente a conformao dessa identidade popular que
justificou o financiamento estatal desses clubes que assumiam a dominncia do setor esportivo,
em detrimento do declnio americano, que continuou a ser beneficiado com doaes imobilirias?
325 Questes discutidas nos artigos de SILVA, Marcelino Rodrigues da. Jogando em casa. In.: Quem desloca tem a
preferncia: ensaios sobre futebol, jornalismo e literature. Belo Horizonte: Relicrio, 2014, p. 98-169.
1198
Vargas e o jornal Correio da Manh na campanha
eleitoral de 1950
Mestrando em Histria
RESUMO: Com a chegada das eleies presidenciais no Brasil, marcadas para 3 de outubro de
1950, vrias alianas partidrias j haviam sido estabelecidas e nesse momento vrios nomes
foram aventados para o pleito. No perodo de pr-campanha eleitoral, o nome de Getlio
Vargas foi cotado para a candidatura e o jornal carioca Correio da Manh noticiou essa
provvel candidatura, tendo por finalidade a oposio ao ex-ditador, modo como o jornal se
referia Vargas. Nesse sentido, analisamos o modo como o jornal construiu sua oposio
Vargas na campanha eleitoral de 1950, destacando seus meios e recursos para isso.
PALAVRAS-CHAVE: Getlio Vargas; Correio da Manh; eleio
Em abril de 1950 Vargas se manifestou, pela primeira vez, que aceitaria sair como
candidato presidncia: Em abril, Getlio, lanado como candidato Presidncia da Repblica
por Joo Goulart, respondia que estava disposto a se sacrificar pelos trabalhadores .326
Contudo, a homologao de Vargas como candidato presidncia ocorreu em So Borja, sua
cidade natal, no dia 16 de junho de 1950, em discurso irradiado para a conveno nacional do
PTB no Rio de Janeiro, partido que Vargas estava filiado desde 1946 quando foi eleito Senador
pelo Rio Grande do Sul. Nesse panorama, antes mesmo da homologao da candidatura, o
Correio da Manh se manifestara em crtica candidatura de Vargas e nesse intuito vamos traar
aqui uma primeira anlise sobre a oposio do jornal Vargas no perodo pr-campanha eleitoral.
A intensa oposio do Correio da Manh Vargas se manifestou em quase todas as
edies do jornal, durante o perodo aqui analisado, 1 de junho de 1950 16 de junho de 1950
(pr-campanha eleitoral), e o seu motivo de ser nos traz indcio de como o jornal encarava a
candidatura de Vargas: uma real como possibilidade de vitria, pois apesar do que diziam, no
haver perigo que seja eleito, o peridico no estava convencido de seu prprio discurso, seno
seria injustificado emplacar forte oposio a quem no ofereceria perigo eminente de ganhar o
pleito.
326DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. PTB: do getulismo ao reformismo (1945-1964). Marco Zero: So
Paulo. 1989. p.91-92
1199
Em 1 de junho de 1950 o Correio da Manh publicou uma matria com o ttulo: O
ministro da Guerra acha desaconselhvel a candidatura do sr. Getlio Vargas. 327 Nesse texto o
jornal traz a entrevista com o ministro da guerra, general Canrobert Pereira da Costa, em que,
considerando uma possvel candidatura de Vargas, o ministro declara ser realmente
desaconselhvel a candidatura. A escolha da fala do ministro da guerra no foi aleatria, antes
ela nos mostra indcios de como o jornal constituiu sua oposio em relao Vargas, e nesse
caso fica claro que a estratgia se pautou em um respaldo de uma voz atravs da qual fosse
possvel dar credibilidade, ou seja, o jornal se apoiou numa figura pblica, constituda de grande
autoridade poltica: o ministro da guerra. Podemos perceber nessa matria que o jornal teria por
objetivo duas principais questes: a primeira seria fazer oposio candidatura de Vargas, fato
esse insistente durante toda a campanha eleitoral e como vimos nesse caso ela se deu antes
mesmo da homologao de sua candidatura; a segunda manifestar uma ideia da qual o jornal
corrobora, mas atravs de outrem, nesse intuito, a opinio do general ganha grande importncia e
embora a matria corrobore a posio do jornal, o Correio da Manh deixa exposto que a
declarao do ministro, que, no em stricto senso a sua prpria opinio, ou seja, uma forma
sensata do jornal se preservar e se manter imparcial nesse jogo poltico, embora tomasse
partido.
Nessa mesma seo o jornal tambm publicou o que seria uma resposta do Senador do
PTB Ernesto Dorneles sobre a fala do ministro da guerra. Em suas declaraes Dorneles afirmou
ser impossvel vetar a candidatura de Vargas dentro das regras constitucionais, isso s se faria por
meio de um golpe. A publicao dessa nota, logo aps a fala do ministro da guerra, muito
interessante para perceber como o Correio da Manh construiu sua oposio. Essas duas notas,
complementares, porm separadas, so colocadas no mesmo espao do ttulo, ou seja, os dois
ttulos, que dizem sobre duas notas diferentes, podem ser lidos como uma frase que remete a um
s sentido: O ministro da Guerra acha desaconselhvel a candidatura do sr. Getlio Vargas:
dentro da ordem constitucional, isso no possvel declarou Dorneles. Essa opo de layout
gera um impacto na leitura em que poderia criar o sentido: seria impossvel a candidatura de
Vargas dentro das regras constitucionais. A meu ver, a resposta de Dorneles tambm serviu para
corroborar a imparcialidade que o jornal pretendia manifestar, embora pode-se perceber a
manipulao como se demonstrou nos ttulos, mesmo ao publicar a notcia dos dois lado. No
decorrer das edies posteriores o jornal vai se declarando, de forma mais aberta, a favor da
campanha do Brigadeiro e mostrando sua oposio ao ex-ditador.
Na edio do dia 2 de junho de 1950 o Correio da Manh retoma a declarao que havia
sido feita pelo ministro da guerra, para colocar em debater e criticar, novamente, a possvel
candidatura de Getlio Vargas. Com o ttulo bem sugestivo Anomalia o jornal usa esse termo
para adjetivar essa candidatura como um fenmeno estranho, indesejado, que no encontraria
respaldo da populao brasileira, ou seja, um fenmeno anmalo, alm de se manifestar como se
a candidatura estivesse homologada, e no estava. Nessa matria o Correio da Manh acrescenta
um elemento de suma importncia no interesse democrtico e eleitoral: os brasileiros; o peridico
tenta criar e compartilhar um sentimento nacional antivargas e nesse sentido estende aos
brasileiros, a declarao de reprovao Vargas emitida pelo ministro da guerra. Segundo o jornal
327O ministro da Guerra acha desaconselhvel a candidatura do sr. Getlio Vargas. Correio da Manh, Rio de
Janeiro, p. 1, ano XLIX, n17548, 1 jun. 1950.
1200
as declaraes do general Canrobert Pereira da Costa no foram feitas como ministro da guerra,
nem em nome do Exrcito, mas como um cidado, e nesse sentido o sentimento do general
representou a manifestao da opinio nacional: (...) milhes de brasileiros julgam igualmente
desaconselhvel e inoportuna a candidatura do sr. Getlio Vargas..328 329
Essa matria, bem como outras que seguiro em anlise no decorrer do texto, nos indica a
tentativa do Correio da Manh de criar um sentimento antivargas na campanha eleitoral, inteno
que passa pela declarao do ministro da guerra e estendida aos milhares de brasileiros, e
como se vir a seguir, atinge a questo partidria. Contudo, devemos avaliar at que ponto esse
sentimento antivargas, idealizado pelo jornal, encontrou correspondncia na sociedade, e
tambm situ-lo dentro do jogo poltico e partidrio das eleies que se seguiram.
Embora o jornal apresente a ideia de um antivarguismo como sentimento dos
brasileiros, queremos colocar prova a abrangncia dessa oposio partindo de duas questes
principais. A primeira sobre a presena de grandes massas nos comcio de Vargas e Ademar de
Barros, e o apoio que essas massas compostas por eleitores e no eleitores330 davam ao candidato.
A segunda a prpria vitria de Vargas na campanha eleitoral com 48,7%331 dos votos. Ora, com
grande presena de eleitores e no eleitores nos comcios, e o resultado de vitria, percebemos
que esse sentimento antivargas no pode ser tomado como uma caracterstica dos brasileiros,
como intencionou o jornal, mas representa e manifesta o interesse do Correio da Manh e dos
partidrios do Brigadeiro, que almejava a sua vitria e tinham Vargas como principal concorrente.
Partindo desses indcios podemos ento construir mais uma hiptese sobre o Correio da
Manh e o antivarguismo. A veemente campanha do jornal em desqualificar o candidato
petebista, mesmo antes da homologao de sua candidatura, revela, a meu ver, o medo do
jornal sobre a possibilidade da volta de Getlio, e ao mesmo tempo a percepo de que essa
possibilidade era real e no estava distante. Embora o jornal coloque a candidatura de Vargas
como uma impossvel vitria, a prpria razo de ser da oposio se justifica pela possibilidade do
adversrio ganhar o pleito, do contrrio essa oposio no seria pauta, ou ento no seria to
forte e aguerrida, afinal o jornal no era apenas participante, mas tambm constituinte dos
interesses partidrios.
A oposio que o Correio da Manh fez Vargas se deu dentro do limite das regras
democrticas, pelo menos em tese, como coloca o prprio jornal, no era de interesse impedir a
candidatura de Vargas, mas sua prpria conscincia lhe bastaria para se sensibilizar opinio
pblica que consideraria sua candidatura uma Anomalia:
Ningum cogita de impedir que essa candidatura seja lanada, nem se trata de
impulsionar contra ela um movimento de fora. Contudo a prpria inteligncia
e o prprio bom senso do sr. Getlio Vargas que se devem tornar sensveis s
328 Anomalia. Correio da Manh, Rio de Janeiro, p. 4, ano XLIX, n17549, 2 jun. 1950.
329 Se aqui o Correio da Manh tenta legitimar suas ideias a partir dos brasileiros, no ser diferente com Vargas, que
tambm ira na populao brasileira reivindicar sua legitimidade poltica.
330 Na constituio de 1946 os analfabetos no tinham direito ao voto, assim, nem todos os apoiadores de Vargas
eram necessariamente votantes, afinal, em 1950, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE) a
taxa de alfabetizao e analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais de idade era 49,4% de alfabetizados e 50,6% de
analfabetos. Disponvel em: Tendncias demogrficas no perodo de 1950/2000. IBGE:
<http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2000/tendencias_demograficas/comentarios.pdf>.
Acesso em 28 abr. 2015.
331 DELGADO. PTB, p.93
1201
correntes de opinio pblica que consideram anmala e perturbadora a sua
candidatura.332
Essa declarao do jornal oportuna para que o impresso se legitime dentro das regras
democrticas de oposio, ou seja, importante, principalmente nesse perodo ps 1945 que o
Correio da Manh se posicione como um jornal democrtico e no se disponha a fazer o que vo
condenar em Vargas, um golpe contra a democracia.
O apelo do jornal para a valorizao da democracia no foi casual, antes teve uma
estratgia bem construda, pois, foi a condio de promoo da democracia enquanto um valor
indiscutvel, o substrato para contrapor esse valor personalidade de Vargas. Assim o jornal faz
uma de suas principais acusaes:
No livre e correto jogo das instituies, o sr. Getlio Vargas violou um dia as
regras do jogo para liquidar os seus companheiros da vida poltica. E a est
exatamente o que torna anmala, como suscetvel de tantas desconfianas, a sua
candidatura: ele um parceiro que no respeita as regras do jogo...333
Aqui, o jornal trs tona o passado ditatorial de Vargas (1937-1945), a pecha de ex-
ditador e em alguns casos ditador, ser recorrente no Correio da Manh desde ento, e o
peridico elege o passado poltico de Vargas como pauta de acusao, crtica e oposio, e
justamente esse passado ditatorial o pressuposto para sua candidatura ser uma anomalia.
Como j havamos analisado a oposio do Correio da Manh candidatura de Vargas se
deu primeiramente, atravs da figura do ministro da guerra. Posteriormente o peridico
adicionou junto opinio do ministro a populao brasileira, e agora essa oposio se manifesta
na questo partidria-ideolgica, por meio dos comunistas. O peridico publicou uma nota
intitulada Violenta campanha dos comunistas contra o sr. Getlio Vargas334 e anuncia que o
jornal comunista A Classe Operria havia dado incio a uma intensa oposio contra a
candidatura de Vargas. Essa campanha dos comunistas contra Vargas havia causado estranheza
nos meios polticos, pois, na perspectiva do Correio da Manh, trabalhistas e comunistas
participariam de objetivos comuns. Assim, o jornal coloca duas ideias principais, a aproximao
de Vargas com o comunismo: (...) at bem pouco tempo havia certa analogia entre os objetivos
dos trabalhistas e comunistas335 e a oposio, intensa, dos comunistas contra o Vargas.
O interesse do Correio da Manh nessa nota pode ser interpretado como um ato
antivarguista em tentativa de enfraquecer sua candidatura a ser homologada. A oposio do
peridico se manifestou, nessa nota, na relao estabelecida entre Vargas e o comunismo, ideia
que deve ser contestada e tambm entendida dentro do jogo poltico. O peridico aproxima
Vargas do comunismo, o inimigo nacional, e ao mesmo tempo coloca este contra a candidatura
de Vargas, assim passando a ideia de ser to negativa essa candidatura que at os comunistas a
rejeitou. Contudo, a associao que o jornal faz de Vargas com o comunismo pode ser
questionada, a partir de duas questes: a represso ao comunismo e o golpe de 1937; e o
alinhamento de Vargas ideologia do Estado de Bem-estar Social.
332 Anomalia. Correio da Manh, Rio de Janeiro, p. 4, ano XLIX, n17549, 2 jun. 1950.
333 Correio da Manh. Anomalia, p.4
334 Violenta campanha dos comunistas contra o sr. Getlio Vargas. Correio da Manh, Rio de Janeiro, p.1, ano
1202
Getlio Vargas teve uma poltica anticomunista como caracterstica de governo,
acentuada em alguns perodos como de 1935-1937. Motta aponta que foi a ameaa comunista
um argumento decisivo para justificar o golpe tanto em 1937 como em 1964.336 Alm disso, em
1936 Vargas manifestara em pronunciamento a Necessidade e dever de represso ao
comunismo.337 Dessa forma, tendo em vista a represso de Vargas ao comunismo, o fato do
perigo comunista ter sido um argumento para a implantao da ditadura do Estado Novo, e
bem como uma avaliao de suas pautas polticas na campanha de 1950, pode-se afirmar que
associar Vargas aos comunistas foi uma calnia significativa no perodo em questo. Essa
aproximao a que o jornal recorreu foi tambm parte do interesse poltico do peridico em
deslegitimar o candidato, e tambm reforar a sua postura no democrtica, lembrando que a
maior experincia comunista do perodo, a Unio Sovitica, se deu em regime autoritrio. Em
sntese, essa relao se explica dentro do jogo poltico, mas em termos objetivos, uma relao
no coerente.338
Como se tentou mostrar at aqui, o Correio da Manh fez forte oposio Vargas em
1950. Contudo, o contra ponto dessa oposio foi o apoio oferecido ao candidato da UDN,
brigadeiro Eduardo Gomes: Em conflito com Getlio desde 1932, o peridico se posicionou
contra o seu retorno ao Catete na eleio de1950, fazendo campanha aberta pela candidatura de
Eduardo Gomes (UDN).339 O apoio e propaganda poltica do Correio da Manh a favor do
brigadeiro colocam em questo a imparcialidade do jornal, sendo praticamente unnime nos
estudos histricos que utilizam como fontes revistas e jornais, que no h imparcialidade na
imprensa. A posio do peridico em apoiar o candidato udenista tambm se deu atravs da
comparao entre os candidatos, exaltando o brigadeiro e suas virtudes, ao contrrio de Vargas,
sempre referido como ex-ditador e s vezes ditador, incapaz de seguir regras democrticas.
Na edio do dia 7 de junho de 1950 o Correio da Manh publicou uma matria que
bem elucidativa sobre o apoio ao brigadeiro e oposio Vargas. Tendo como ttulo bem
sugestivo, Os dois polos: o Brigadeiro e o sr. Getlio Vargas, o jornal estabelece a relao
antagnica entre Eduardo Gomes e Getlio Vargas:
No fundo, essa simplificao representa um progresso. Torna-se, com efeito,
mais fcil educar o povo, ensin-lo a distinguir entre demagogia e popularidade,
democracia e totalitarismo, lderes democrticos genunos e messias ou
fuehrers, quando num lado est um homem como Getlio Vargas e no outro
o brigadeiro Eduardo Gomes. Nessa polarizao tambm os que ficam de
permeio empalidecem aos olhos do eleitorado.340
Rio de Janeiro, a 10 de Maio de 1936. In. VARGAS, Getlio. O pensamento poltico de Getlio Vargas.
Assemblia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, Instituto Histrico e Geogrfico do Rio Grande do Sul e
Museu Julio de Castilhos. Porto Alegre, 2004, p. 67-69.
338 O Correio da Manh ressaltou essa objeo dos comunistas contra Vargas, ser que o jornal comunista no se
ops a outros candidatos tambm? Ser que a escolha do Correio da Manh foi seletiva?
339 MARTINS, Luis Carlos dos Passos. Democrtico, mas no muito: a percepo do jornal Correio da Manh sobre
a democracia brasileira no Segundo Governo Vargas. Anais da ANPUH XXV Simpsio Nacional de Histria.
Fortaleza, 2009.
340 Os dois polos: o Brigadeiro e o sr. Getlio Vargas. Correio da Manh, Rio de Janeiro, p.1, ano XLIX, n17553, 7
jun. 1950.
1203
Ao colocar Eduardo Gomes e Getlio Vargas em polos de oposio, o jornal usa o
recurso da comparao para exaltar o candidato udenista e rebaixar o candidato petebista. Essa
comparao um recurso de grande impacto sobre os leitores e tambm didtico (exemplo e
contraexemplo). Ao usar termos como democracia e totalitarismo, lderes democrticos
genunos e messias ou fuehres, contrapondo dois extremos, o jornal no s estima a qualidade
de um, como tambm expe a fraqueza do outro.
Outra comparao entre Vargas e Eduardo Gomes feita pelo Correio da Manh, e que
revela mais uma vez a posio poltica do jornal na campanha eleitoral, diz sobre a inteno dos
candidatos e suas alianas polticas. Em edio do dia 8 de junho de 1950341 o peridico publica a
carta escrita por Vargas ao presidente do PTB, Salgado Filho, sobre a escolha de seu nome para a
candidatura presidncia, e coloca em pauta, tambm, a candidatura do PSD e da UDN. Nesse
intuito Vargas sugere um possvel reexame da situao342 que diz respeito as alianas polticas e
as candidaturas, ou seja, Vargas tenta propor um rearranjo para as candidaturas, que j estavam
definidas, embora no homologadas. Diante desse reexame proposto por Vargas seria previsvel a
reao do Correio da Manh em se colocar mais uma vez contra o candidato petebista e usar as
declaraes de Vargas contra ele mesmo, e assim o fez.343
Sobre as variadas formas de crticas que o Correio da Manh fez a Vargas vale destacar a
atribuio de ex-ditador e ditador. Como sabido, em 1937 o pas passou a viver sob a
ditadura do Estado Novo, em que Vargas fechou todas as instancias do legislativo federal,
estadual e municipal, foi um tempo de suspeno dos direitos polticos. 344 Como aponta Queler,
em 1950 Vargas procurou se auto-reabilitar para concorrer ao pleito eleitoral, e um dos principais
desafios foi se livrar da pecha de ex-ditador.345 Podemos, ainda, perceber como que essa auto-
reabilitao veio como defesa das acusaes que o Correio da Manh, dentre outros jornais, fazia,
rememorando e trazendo tona o passado de Vargas. Com o fim do Estado Novo em 1945,
pode-se considerar que as eleies presidenciais de 1950 ocorreram sob um passado vioso e
marcado pela ditadura e autoritarismo, a retomada da democracia no Brasil era recente, e por isso
a acusao de ditador nesse contexto demasiado forte e significativo na luta poltica.
Firme em sua atribuio de ex-ditador, o Correio da Manh, em sua estratgia de
criticar Vargas atravs de figuras eminentes da sociedade, publica uma matria do poltico e
diplomata Jos Thomaz Nabuco, membro de uma famlia importante de polticos, diplomatas e
advogados brasileiros, do qual se destaca seu tio Joaquim Nabuco, grande mentor da campanha
abolicionista, e por isso Jos Nabuco j trazia peso e credibilidade sua publicao. 346 Tendo
como ttulo A candidatura de Vargas Nabuco questiona se Vargas teria compromisso de
341 Pronunciamento do sr. Getlio Vargas. Correio da Manh, Rio de Janeiro, p.1, ano XLIX, n17554, 8 jun. 1950.
342 Correio da Manh. Pronunciamento do sr. Getlio Vargas, p.1.
343 Simples manobra estratgica, a carta do sr. Getlio Vargas. Correio da Manh, Rio de Janeiro, p.1, Ano XLIX,
eleitoral de 1950. In: NAXARA, M.; SEIXAS, J.; CERASOLI, J.. (Org.). Tramas do poltico: linguagens, formas,
jogos. Uberlndia: Edufu, 2012, p. 128.
346 NABUCO, Jos Toms. [verbete]. In: PAULA, Christiane Jalles de.; LATTMAN-WELTMAN, Fernando.
1204
guardar a constituio de 1946, pois tendo faltado ao juramento prestado constituio de 1934,
poderia novamente prestar idntico juramento? No, a resposta que podemos dar sem
hesitao.347 Nabuco retoma o golpe de 1937 e a partir dele reprova Vargas e sua candidatura
afirmando que ele no teria credibilidade para guardar a constituio, nesse intuito, o que
prevalece sobre Vargas e sua histria poltica, na perspectiva do jornal, seu passado ditatorial,
aqui tambm corroborado por Nabuco, este passado foi o grande trunfo dos opositores.
Como j se viu o Correio da Manh antecipou a oposio Vargas antes mesmo dele e do
PTB homologar a candidatura e dar incio campanha eleitoral, como sugesto de que a
candidatura seria inevitvel. Em 4 de junho de 1950 o jornal publica a matria O sr. Getlio
Vargas Candidato: seu nome ser lanado em So Paulo pelo sr. Ademar de Barros. 348 Nessa
matria o jornal confirma a candidatura de Vargas e a aliana firmada entre Vargas e Ademar de
Barros, informao obtida atravs da fala de Danton Coelho, um dos principais articuladores da
aliana PTB-PSP e que viria a ser presidente interino do PTB a partir de agosto de 1950. 349 A
aliana firmada entre Vargas e Ademar de Barros (PTB e PSP) foi fundamental para as eleies
de 1950, e tambm foi condio necessria para a vitria do PTB.
Ao abordar a temtica das eleies presidenciais de 1950 e a aliana entre Vargas e
Ademar de Barros, Delgado, em uma perspectiva tambm compartilhada por Maria Celina Soares
Daraujo, mostra como os petebistas tinha entendimento que no seria possvel sustentar uma
vitria, na campanha presidencial, sem uma aliana poltica, pois embora o partido apresentasse
uma tendncia real de crescimento, sua dependncia ao getulismo e as precrias bases regionais
impediam uma consolidao partidria em curto prazo350. A escolha por Ademar de Barros na
aliana foi estratgica para a insero de Vargas no Estado de So Paulo, pois aps as eleies
para vice-governaa do Estado de 1947, em que Vargas apoiou Cirillo Junior do PSD e foi
derrotado, ele avaliou que sua influncia no Estado no era suficiente e se antecipou na aliana
com Ademar de Barros em 1948, o ento governador de So Paulo.
Estava firmado o acordo entre PTB e PSP, Vargas como candidato presidncia e Caf
Filho, indicado por Ademar de Barros, candidato vice-presidncia, porm as alianas partidrias
do PTB no se restringiu apenas ao PSP. Como Coloca Delgado havia o acordo formal e oficial
(PTB-PSP) e o acordo velado (PTB-PSD), no acordo com o PSD Vargas apoiou algumas
candidaturas estaduais de candidatos como Juscelino Kubtschek em Minas Gerais, e Ernesto
Dornelles no Rio Grande do Sul351. Nessa articulao de Vargas foi includo tambm at o
principal opositor do PTB, a UDN; em Pernambuco, Vargas apoiou a candidatura de Joo
Clefas ao governo do estado, e aps o pleito ele foi nomeado por Vargas como Ministro da
Agricultura. As alianas do PTB com esses vrios partidos se explica pelo fato de que o PTB no
347 NABUCO, Jos Thomaz. A candidatura Vargas. Correio da Manh, Rio de Janeiro, ano XLIX, n17560, 15 jun.
1950. 1 Caderno, p.2.
348 O sr. Getlio Vargas Candidato: seu nome ser lanado em So Paulo pelo sr. Ademar de Barros. Correio da
Danton. [verbete]. In: PAULA, Christiane Jalles de.; LATTMAN-WELTMAN, Fernando. Dicionrio Histrico-
Biogrfico Brasileiro [S.l.: s.n.], 2010. Disponvel em:
<http://www.fgv.br/cpdoc/busca/Busca/BuscaConsultar.aspx>. Acesso em: 25 mar. 2015.
350 DELGADO. PTB, p. 89-94; DARAUJO, Maria Celina Soares. O segundo governo Vargas 1951-1954. Zahar
1205
tinha fortes bases regionais, o PSP abrangia apenas So Paulo, e, alm disso, o PTB tinha um
grupo eleitoral bem especfico: os trabalhadores urbanos, assim essas alianas eram necessrias
para maior projeo do PTB e consequentemente arrecadao de mais votos.
Diante das intensas crticas Vargas e aprovao ao brigadeiro Eduardo Gomes, o
Correio da manh empreende a tentativa de se mostrar imparcial, justo e democrtico, nesse
intuito, o peridico publicou uma propagando poltica a favor de Vargas, porm de maneira
muito peculiar e claro, desproporcional ao tamanho das crticas feitas a ele, e elogios tecidos ao
brigadeiro Eduardo Gomes e candidatos da UDN para outros pleitos. Embora no imparcial,
acreditamos que o jornal foi democrtico, no sentido de se declarar contra um golpe, caso Vargas
vencesse, postura diferente assumida por Carlos Lacerda que, como j vimos, se declarou a favor
de um golpe para que Vargas no assumisse a presidncia, caso fosse eleito. A propaganda em
questo trata de um soneto que havia sido publicado no mesmo jornal em 1946, com o ttulo
LE e autor desconhecido, o soneto elenca diversos polticos e a forma como o eleitor se
relacionava a eles: Com Castilho, eu fui positivista (...) Com Washington Luis, protecionista
(...)352. Ao fim do soneto o autor diz haver uma lista imensa de polticos, e por fim vem Getlio
Vargas, que sobrepe toda adjetivao e sua poltica personalizada e singular: No esgoteis,
porem, tamanha lista. No vos canseis, que, na expresso exata. Eu sou, no fundo, apenas
getulista!353.
No soneto publicado tambm h uma nota da redao em que foi escrito:
Reproduzindo-o agora, queremos (sim, tambm queremos) cooperar na propaganda poltica do
terceiro candidato presidncia da Repblica.354. Ao analisar essa propaganda a favor de Vargas
podemos perceber como que ela na verdade mais um remendo imparcialidade do jornal, uma
tentativa de se manter idneo no jogo poltico, do que realmente uma propaganda pr Vargas ou
uma cooperao em sua campanha eleitoral. Isso pode ser verificado atravs da comparao entre
as notcias do brigadeiro Eduardo Gomes e Getlio Vargas. Em termos de dados, no perodo de
campanha eleitoral aqui analisado, 1 de junho 1950 3 de outubro de 1950, esse soneto em
questo foi a nica propagando pr Vargas, enquanto referente ao brigadeiro houve vrias, em
quase todas as edies. E ao contrrio, os ataques candidatura de Vargas foram dirios, em
quase todas as edies, e ao brigadeiro, no houve nenhuma crtica.
Corroborando a ideia de que o soneto publicado a favor de Vargas foi apenas um
remendo imparcialidade do jornal, verificamos as capas dos jornais no dia seguinte publicao
do soneto. O jornal possua em sua organizao mais de uma capa que era organizada em
diferentes modos de cada edio, podendo uma mesma edio ter uma capa ou mais. Na edio
do dia 21 de jun. estampada na 1 capa do jornal a matria Aps a Conveno, o caminho
um s: a vitria do brigadeiro355. E outra capa, posterior a essa e na mesma edio foi escrita a
seguinte matria: A candidatura Vargas uma mentira lanada nao356. A capa do jornal foi
352 LE. Correio da Manh, Rio de Janeiro, p.1, ano L , n17564, 20 jun. 1950.
353 ______. LE, p.1.
354 ______. LE, p.1.
355 Aps a Conveno, o caminho um s: a vitria do brigadeiro. Correio da Manh, Rio de Janeiro, p.1, Ano L,
21 jun. 1950.
1206
estampada primeiramente o elogio a Eduardo Gomes e depois a crtica Vargas. Como se pode
ver nas imagens abaixo, a imparcialidade era retrica, no sentido pejorativo da palavra.
Em sntese tentamos mostrar aqui as principais formas pelas quais o Correio da Manh
fez oposio candidatura de Vargas no perodo de pr-campanha eleitoral, revelando dessa
forma a real possibilidade da vitria que o candidato possua.
1207
As abordagens da ditadura militar (1964- 1985) no
mbito do regional e do local uma breve
abordagem
RESUMO: Aps algumas reflexes no trato da historiografia, pretende-se fazer uma breve
abordagem em torno da relao histria regional e local com a historiografia referente ao perodo
militar brasileiro instaurado em 1964. Sendo assim, a problematizao quanto a localizao da
histria regional e local dentro das discusses sobre os anos de Chumbo no Brasil sero o ponto
chave desta breve abordagem.
PALAVRAS-CHAVE: Ditadura; Relaes de poder; Regio
Consideraes iniciais
1208
(2004)359 a Escola dos Annales passou a difundir aps a primeira grande guerra uma Histria que
narrasse o seu prprio passado. Ainda segundo este estudioso,
Por conseguinte, galgando do pensamento de Barros (2009), a histria local uma realidade no
quadro geral de modalidades historiogrficas contemporneas. Diferentemente de Neves (2008) como
dito anteriormente que v a abordagem regional e local como metodologia, Barros (2009) deixa claro sua
postura, ao defender o regional e o local como um campo da Histria. Ao passo que o Regional seja um
sistema onde ocorrem dinmicas internas, ligadas a outras localidades, enquanto o Local se apresente
como um recorte, a partir de um problema politico, cultural, econmico etc.
Outro debate que chama ateno a relao entre o regional- local e a micro histria. Sendo a
interdisciplinaridade e o avano cronolgico as virtudes da histria regional e local, ao passo que esta
dialoga com outras cincias humanas, desde a geografia antropologia, bem como se relaciona ao tempo
de sua construo (Pereira, 2012)362. Segundo Neves (2008), a Histria Regional e Local parte do recorte
de um pequeno mundo de um grupo social historicamente construdo num determinado lugar pela
CONSTANTINO, Nncia Santoro de. O que a micro- histria tem a nos dizer sobre o regional e o local?. Histria
359
360CONSTANTINO. O que a micro- histria tem a nos dizer sobre o regional e o local?, p. 160
361 NEVES, Erivaldo Fagundes. Histria e regio: tpicos de histria regional e local. Ponta de Lana, So
Cristvo v.1, n. 2, abr.-out. 2008.
362 Pereira, Conceio Meireles. Histria local e regional - singularidades de uma histria plural. In: Histria Regional e Local
II: o plural e o singular em debate. EDUNEB. 2012
1209
totalidade. Enquanto que a Micro histria analisa fragmentos de ocorrncias histricas na forma de recorte
temtico atravs de uma comunidade, sem recorrer ao espao onde os fatos ocorreram.
Podemos compreender que enquanto a micro-histria faz anlises micro-espaciais a partir dos
indcios e revela suas proximidades com uma macro-histria, o campo da histria regional-local, faz um
estudo a partir de determinado recorte espacial que fora construdo em determinado local. Segundo
Neves,
Por conseguinte, na obra A inveno do Nordeste (2009)365, Albuquerque Jr, deixa bem claro, apesar
do ttulo, que no busca fazer uma aproximao com a histria regional. Uma vez que para este autor, a
histria regional busca colocar a ideia de regio em outro patamar, dando-lhe verdade. Em vez de
questionar a prpria ideia de regio e a teia de poder que a institui, ela questiona apenas determinadas
elaboraes da regio, pretendendo encontrar-se verdadeira366. Alm disso, problematiza a ideia de
regio, uma vez que para ele, definir regio pens-la como um grupo de imagens, discursos, diferentes
estudos e no pensa-la como algo homogneo.
364MONTENEGRO, Antonio Torres. Ao trabalhista, represso policial e assassinato em tempos de regime militar. Topoi, v.
12, n. 22, jan.-jun. 2011, p. 228-249
ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A inveno do Nordeste e outras artes. 4 ed. Recife: FJN; Ed.
365
1210
(...) a Histria Regional/ Local que se pretende, antes de ser uma
histria do microespao regional, local, uma histria produzida
em perspectiva diferente e em concepo dialtica. (...) Histria
Regional/ Local na perspectiva da micro- histria significa
revitalizao nas formas de produo histrica com reconstruo
do que aconteceu perto de ns, buscando respostas a problemas
que se impem no presente, em diferentes esferas e mbitos367.
Ainda no mbito do regional e do local, Albuquerque Jr (2009) bem enftico quanto inveno
do Nordeste, ao passo que esta regio, seria uma elaborao a partir de imagens e discursos de uma elite
dominante. Algo que nos remete a ideia inicial de regional ligada s relaes de poder. Alm disso,
Albuquerque Jr (2009) chama ateno que ao se definir uma regio, necessrio pens-la como um grupo
de imagens, discursos etc e no algo homogneo. Alm disso, parte do pressuposto que a ideia de regio
no aglutina culturas semelhantes, mas sim as homogeneza. Ou seja, ao analisarmos a regio Nordestina,
por exemplo, ou propriamente a figura do nordestino, surgem inmeros fatores que no pertencem a
determinados locais que atualmente so denominados de Nordeste, contudo, a classificao no leva esses
fatores no processo de sua elaborao.
Quando pensamos na abordagem de temticas como a ditadura militar brasileira, que no ano de
2014 completou 50 anos de sua instaurao, pouco se problematiza sobre as implicaes do Regional e do
local nesta conjuntura. importante pontuar que o perodo militar (1964 1985) ocorreu aps a tomada
do Estado pelas foras armadas do pas, quando o ento presidente Joo Goulart deposto e torna vaga a
presidncia da repblica, aps ser acusado de ter planos socialistas para o Brasil (Skidmoore, 1988)368.
Com base nos estudos realizados sobre o perodo em questo, at ento no me questionava
sobre a existncia de relaes de poder a partir de uma abordagem do regional e do local. Contudo, passei
a refletir sobre onde teriam se desenvolvido os cenrios mais simblicos da Ditadura e suas maiores
representaes. Quando me refiro a isto, exemplifico com a deposio de Jango, os desdobramentos no
Estado do Rio de Janeiro, desde o incndio da Unio Nacional dos Estudantes (UNE) morte do
estudante secundarista Edson Lus e o quanto, principalmente os dois ltimos fatos, se tornaram smbolos
na histria nacional e referencias para o perodo.
Aps realizar a disciplina Histria Regional e Local no Programa de Ps- Graduao em Histria
da Universidade do Estado da Bahia e que leva o mesmo nome da disciplina sob a superviso da
professora Dr. Sara Farias. Comecei a refletir sobre a temtica da ditadura militar e sua relao com o
regional e local, bem como perceber as relaes de poder voltadas ditadura e o campo do regional- local.
367 CONSTANTINO. O que a micro- histria tem a nos dizer sobre o regional e o local?. p. 177
368 SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo Tancredo. Ed. Paz e terra. So Paulo, 1988
1211
Com isso, fiz um breve levantamento sobre trabalhos que mostram o quanto a ditadura esteve presente
em vrios estados do pas, e no s no eixo Sul-Sudeste.
Por conseguinte, foi possvel perceber que existem muitos trabalhos que abordam a ditadura
militar e suas mais variadas vertentes, sejam politicas, sociais e culturais em diferentes espaos geogrficos.
Nos ltimos anos, por exemplo, surgiram trabalhos que abordam o perodo militar e seus desdobramentos
em estados e municpios. Alguns exemplos encontrados so Ditadura militar na Bahia: novos olhares, novos
objetivos, novos horizontes organizado por Zachariadhes (2011369), e O golpe de 1964 e suas reverberaes em Santo
Antnio de Jesus (1960-1983)370 Mota (2013). Estes estudos so apenas alguns que selecionei e que trazem
uma abordagem do perodo em perspectivas regionais e locais. Ou seja, ao passo que ocorriam os
decretos e atos militares no Sul, no Sudeste, o Norte e o Nordeste possuam os mesmos desdobramentos.
Uma vez utilizando a mtodo de anlise de Albuquerque Jr (2009) ao qual menciona que os
discursos se impem pela repetio, bem como difundido pelas imagens e discursos, nos possvel
perceber o quanto as imagens voltadas ditadura so extradas do Sudeste. Alm disso, uma das
ferramentas mais utilizadas entre os professores da educao bsica e mdia, o livro didtico, so
detentores de imagens e discursos que criam uma identidade da histria recente do Brasil onde os
acontecimentos ficam restritos localidades. No estariam as editoras construindo a partir de uma histria
regional e local, uma histria nacional? Segundo problematiza Albuquerque Jr (2009), existe um problema
de se pensar na diviso historiogrfica em histria nacional e histria regional. Algo muitas vezes aceito
pelos historiadores que trabalham com a histria regional. Albuquerque Jr (2009) bem taxativo quando
usa a terminologia imperialismo paulista e da regio sul na historiografia, ao qual fazem histria nacional
e as demais regies histria regional. Logo, necessrio problematizar a localizao de nosso trabalho,
indo muito mais alm do Nacional e/ou do regional- Local, mas fazendo uma histria sem tantas
classificaes e ou especializaes.
Consideraes finais
ZACHARIADHES, GC., org. Ditadura militar na Bahia: novos olhares, novos objetivos, novos horizontes. Salvador:
369
EDUFBA, 2009
MOTA, Cristiane Lopes da. O Golpe de 1964 e suas reverberaes em Santo Antnio de Jesus (1960-1983). Dissertao
370
(Mestrado em Histria Regional e Local) Universidade do Estado da Bahia. Programa de ps-graduao., Santo
Antnio de Jesus, 2013
1212
os mais variados temas, possvel compreender as inmeras teias de ligao a que a historia esta embutida.
Cabe ao historiador estar atento e aberto a novas perspectivas metodolgicas e campos de abordagem,
algo que permitir ao mesmo obter estudos amplos dentro de sua prpria temtica, como o caso da
relao ditadura e histria regional e local.
1213
ST 19: Ditadura e Transio Poltica no
Brasil: sociedade, poltica e cultura no
regime militar brasileiro (1964-1985)
Natlia Batista
Mestre (UFMG)/ [email protected]
1214
Sou um menino de mentalidade mediana: MPB,
ufanismo e negritude (1960-1970)
Alexandre Reis
Mestre em Histria
SEEDUC/RJ e CULTNA/UFF
[email protected]
RESUMO: H uma cultura histrica muito forte e uma memria construda que associa a
Msica Popular Brasileira com a resistncia Ditadura. Entretanto, pouco so lembradas as
canes de adeso ao regime. Mais relegadas ainda ao esquecimento so outras demandas
polticas da poca como a luta pela igualdade racial e a afirmao de identidade negra positiva e
orgulhosa presente nas canes do cantor Jorge Ben daquele perodo.
PALAVRAS CHAVE: Negritude; Msica popular brasileira; Relaes raciais; Ufanismo;
Ditadura.
A classe artstica, em seu esforo de oposio Ditadura, radicaliza seu discurso. Parte
dela busca articular uma esttica mais agressiva a fim de despertar o pblico. O pesquisador
Gustavo Alonso analisa como esta esttica da violncia foi recorrente entre os msicos caipiras
e perpassou a obra de artistas de outros gneros, como os da MPB.372 Alonso aponta que Geraldo
Vandr, por exemplo, produziu canes com temticas agressivas: O terreiro l de casa/ No se
varre com vassoura/ Varre com ponta de sabre/ Bala de metralhadora.373
371 Parte das ideias aqui debatidas esto presentes no primeiro captulo da minha dissertao de mestrado. Ver REIS,
Alexandre. Eu quero ver quando Zumbi chegar: negritude, poltica e relaes raciais na obra de Jorge Ben (1963-1976). Dissertao
(Mestrado em Histria). Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense. Niteri,
2014.pp. 22-39
372 ALONSO, Gustavo. Cowboys do asfalto: msica sertaneja e modernizao brasileira. Tese (Doutorado). Programa de Ps-
1215
Em meio conjuntura repressora, alguns artistas tinham temticas mais soturnas em suas
canes. Chico Buarque, por exemplo, comps Roda Viva (1968): Tem dias que a gente se
sente/Como quem partiu ou morreu; Deus lhe pague (1971): Por mais um dia, agonia, pra
suportar e assistir/ Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir/ E pelo grito demente que nos
ajuda a fugir/ Deus lhe pague. Embora as canes alegres de certa forma espelhassem o Brasil
do Milagre econmico, uma parcela dos artistas, msicos e dos jornalistas e crticos achavam
que no era tempo pra se comemorar. Para estes, aquele era o Brasil dos anos de chumbo e as
canes alegres eram uma forma de adeso a Ditadura.
Nesta conjuntura, ganharam muita visibilidade as canes ditas de protesto, como Clice
de Chico Buarque, que criticava a censura. Embora as canes contestadoras no fossem as
nicas produzidas na poca, o que se consolidou na memria social sobre o perodo foi uma
viso construda de que a maioria da sociedade brasileira, direta ou indiretamente, resistiu ao
regime, e que a chamada MPB foi uma protagonista muito atuante desta resistncia. Uma
perspectiva importante acerca desta viso a do pesquisador Daniel Aaro Reis, segundo o qual
esta memria cristalizada da resistncia foi se construindo principalmente no perodo da abertura,
pela dificuldade da sociedade brasileira, em sua maioria, de lidar com o fato de que esteve durante
374 ARAJO, Paulo Cesar de. Eu no sou cachorro, no: msica popular cafona e ditadura militar. Rio de Janeiro: Record,
2004, pp. 38 50.
375 _________, Eu no sou cachorro, no, 2004, p. 272.
1216
bastante tempo, aptica e consensualmente, sob um regime ditatorial.376 Penso que esquemas
analticos que apostem no binmio resistncia-cooptao tendem a empobrecer nossa
compreenso do perodo. Defendo que devemos explorar mais em nossas investigaes os que
no estavam nem aqui nem l, como Jorge Ben, para dar um grau de complexidade maior
anlise da sociedade no perodo.
Outra perspectiva importante que tenta dar conta dos comportamentos polticos dos
sujeitos no perodo, mais especificamente daqueles ligados ao campo musical, a de Gustavo
Alonso em sua pesquisa sobre Wilson Simonal.377 Este pesquisador, ao analisar o perodo
ditatorial, defende que a grande maioria da sociedade brasileira pertencia ao grupo dos
indiferentes, que se situava na zona cinzenta, entre a luta armada e o apoio ditadura.378 A
zona cinzenta a que Alonso se refere faz parte do aparato conceitual que o pensador francs
Pierre Laborie utiliza para pensar a Frana durante a ocupao nazista. Se distanciando de
maniquesmos que busquem heris ou traidores, Laborie defende o pensar-duplo que busca
dar conta das nuances, contradies e ambivalncias entre a resistncia e a cooptao.379 Desta
forma, possvel dizer que embora grande parte da sociedade brasileira nunca tenha se oposto ao
regime, tambm no possvel dizer que esta parcela o tenha apoiado diretamente. possvel
classificar Jorge Ben dentro desta grade terica da zona cinzenta criada por Pierre Laborie.
Dentro deste cinza haveria uma infinidade de matizes, de atuaes polticas, algumas
conservadoras, outras mais libertrias, que os sujeitos lanavam mo de acordo com o contexto.
A questo que tal qual muitos artistas vistos como resistentes, Jorge tambm teve canes
censuradas. Ao mesmo tempo em que igualmente aos artistas vistos como adesistas tambm
lanou composies que estavam em consonncia com o iderio do regime. Para exemplificar
uma atuao mais e outra menos engajada possvel citar as canes Mano Caetano (1971) e
Brasil, eu fico (1970).
376 REIS, Daniel Aaro. Ditadura e Sociedade: as reconstrues da memria. In: Daniel Aaro Reis, Marcelo Ridenti
e Rodrigo Motta (orgs). O golpe e a ditadura militar, 40 anos depois (1964- 2004). Bauru: EDUSC, 2004. 332 f.
377 ALONSO, Gustavo Alves. Quem no tem Swing morre com a boca cheia de formiga: Wilson Simonal e os limites de uma
memria tropical. Dissertao (Mestrado em Histria). Programa de Ps-Graduao em Histria, Universidade Federal
Fluminense, 2007. 237 f.
378 ________, Quem no tem swing morre com a boca cheia de formiga, 2007, pp. 45-85.
379 Segundo Laborie, muito longe dos comportamentos heroicos e das rejeies declaradas, o duplo pensar aparece
como uma forma de resposta social a alternativas consideradas insuperveis (...), como a tentativa de ajustamento
entre o desejo e o possvel. (LABORIE, Pierre. 1940-1944: Os franceses do pensar duplo. In: ROLEMBERG,
Denise; QUADRAT, Samantha (orgs). A construo social dos regimes autoritrios: legitimidade, consenso e
consentimento no sculo XX. Rio de Janeiro: Civilizao brasileira, 2010, pp.11-27).
1217
Ele vem sorrindo, ele vem cantando
Ele vem feliz, pois ele vem voltando
L vem o mano Caetano
Menino adorado, menino encantado
o mano Caetano
L vem o mano, meu mano Caetano (...)
L vem o mano Caetano Vem numa linda estrada verde
Cheia de sol e rosas amarelas L vem o menino de camisolas brancas
Debaixo de um lindo cu azul
Verde, amarelo, azul e branco
L vem o mano, meu mano Caetano (...)380
Esta uma cano com a mesma temtica de Debaixo dos caracis dos seus cabelos (1970) de
Roberto Carlos: uma maneira de prestar solidariedade a Caetano Veloso, exilado na Inglaterra
naquele perodo. A composio no foi lanada por Ben, mas pela irm do homenageado, Maria
Bethnia, em seu lbum de 1971. Em todo caso, Jorge fez um dueto com a cantora na gravao.
Em uma entrevista do ano de 1995 TV Cultura, o artista declarou ter tido alguns problemas
com a censura por conta desta cano:
Esta no foi a nica cano que fez Jorge ter problemas com a censura. Olha o balaio dela
(1972), composio que elogiava os glteos femininos, teve de ser alterada. A letra da msica
passa de Olha o balaio dela como grande/Ui ui ui para Olha a beleza dela como
cndida/ui ui ui por conta da preocupao dos rgos da Ditadura em preservar a moral e os
bons costumes.382 O cerceamento moral foi uma constante na poca e atingia diversos gneros
musicais. Outras canes de Jorge que lhe causaram problemas com a Censura foram Charles
Anjo 45 e Pas Tropical conforme a entrevista que concedeu nos anos 1990 ao programa Roda
Viva:
Lambuzada de Amnia), a Censura Federal divulgou a lista das cem msicas j proibidas em 1972, por serem
contrrias a moral e os bons costumes e por conterem implicaes polticos religiosas. (...) Eis algumas das msicas
censuradas: (...) Eu via a cobra (Brulio Sacramento), Olha o balaio dela(Jorge Ben). Folha de S. Paulo.
19/09/1972, p. 37.
1218
voc era perseguido pelas patrulhas e pela ditadura. Que paranoia. Deve ter
sido duro".
Jorge: Foi duro, foi duro. Mas, geralmente, quem sofreu mais na poca... que
eram mais politizados, porque eu sempre fui apoltico, mas eu me lembro que
quem sofreu mais com Charles Anjo 45 foi Caetano, porque a gravao... Eu
fui chamado [pelos militares] vrias vezes, mas ningum falava nada comigo. Eu
ia l e vinha embora [risos]. Mas eles, no, o Caetano, realmente, no Charles,
anjo 45 [msica gravada como um compacto, single, em 1969 por Caetano
Veloso] ele teve problema.383
De acordo com a entrevista, os censores pensaram que Charles fosse uma referncia a
Carlos Lamarca, capito do exrcito que desertou para fazer parte da luta armada contra o
regime, vindo a se tornar um dos lderes do grupo guerrilheiro VPR. A cano na verdade seria
uma homenagem que Jorge Ben fez a um amigo de infncia, Charles Antnio Sodr, que quando
adulto se tornou malandro e contraventor, conforme o artista declarou em outro ponto desta
mesma entrevista. importante assinalar que as declaraes de Jorge da dcada de 1990, em que
afirma no ter tido maiores problemas com a censura, esto em consonncia com suas
declaraes dos anos 1970, quando dizia que no fazia canes de protesto.
Nos anos 1970, alm de Jorge, outros artistas cantaram a alegria de ser brasileiro
evidenciando uma febre nacionalista, isto em um perodo em que a chamada linha dura dos
1219
setores militares atuou de maneira mais efetiva. Pas Tropical uma dentre as muitas canes
ufanistas do perodo tais como Eu te amo, meu Brasil da dupla Dom & Ravel, Pra frente Brasil, tema
da seleo brasileira na Copa de 1970 e Que cada um cumpra o seu dever, de Wilson Simonal.
preciso assinalar que enquanto Simonal foi enquadrado pela memria como adesista, a
imagem de Jorge Ben ficou ilesa. Houve sim algumas crticas a Jorge, mas nada comparadas com
as que sofreu Wilson Simonal. Diferentemente de Jorge Ben, Simonal cultivava uma imagem
arrogante, do negro que botava banca, o que ajuda a explicar a rejeio a este artista e a
aceitao de Jorge, em geral visto como um rapaz bem comportado. O menino que no virou
senhor uma das frases que so usadas para descrev-lo na coleo Histria da MPB grandes
compositores (1982).385 Contribuiu tambm o maior investimento que Simonal fez nas canes
ufanistas, a acusao de delao e o preconceito racial. Para Gustavo Alonso, uma das
explicaes que o intrprete foi eleito pela sociedade como um bode expiatrio, para purgar a
dificuldade em lidar com a memria da tcita colaborao ou apatia em relao ao regime.386
A cano de Jorge Ben, interpretada por Simonal, que talvez seja a mais explcita adeso
ao regime Brasil, Eu fico: Este o meu Brasil/ Cheio de riquezas mil/ Este o meu Brasil/
Futuro e progresso do ano dois mil/ Quem no gostar e for do contra que pr .... O ltimo
verso seguido de um riff de metais que emulam um xingamento. O prprio Jorge nunca gravou
esta cano, mas j a cantou em seus shows, conforme matria da revista Veja de 1970. O
jornalista e crtico musical Trik de Souza descreve genericamente um show de Jorge com o Trio
Mocot em uma boate e como o pblico vibra com a letra.387 Mas no era s o pblico do show
que vibrava; grandes parcelas da sociedade brasileira vibravam com o Brasil do Milagre
econmico da dcada de 1970. O pas na poca tinha um crescimento econmico na faixa de
10% ao ano e o governo empreendia grandes obras de infraestrutura como a Ponte Rio-Niteri, a
hidreltrica de Itaipu e a rodovia Transamaznica. deste perodo tambm a implantao da
zona franca de Manaus, uma iniciativa do governo que instituiu um regime tributrio especial na
regio da Amaznia a fim de estimular a produo industrial e o desenvolvimento econmico
naquela regio.
Um dos lemas mais usados na poca era o ningum segura este pas, que foi
encampado por inmeras peas publicitrias da iniciativa privada, como bancos de
385 Coleo Histria da Msica Popular Brasileira. N08. Abril Cultural. 1972.
386 ALONSO, Gustavo Alves. Quem no tem Swing morre com a boca cheia de formiga: Wilson Simonal e os
Limites de uma memria tropical. Dissertao (Mestrado em Histria). Programa de Ps-Graduao em Histria,
Universidade Federal Fluminense, 2007, p. 36.
387 O jornalista no identifica a boate. O momento mgico de Jorge Ben. Revista Veja n 90. (27/05/1970), p. 70.
1220
investimento.388 O presidente-ditador Mdici chegou a ser homenageado com uma placa por
membros do Clube Rotary estampada com esta frase. Os rotarianos parabenizavam Mdici pelo
MOBRAL, iniciativa para acabar com o analfabetismo, e pelo Programa de Integrao Nacional,
um decreto-lei para concesso de terras em reas desocupadas do interior brasileiro,
principalmente as margens da rodovia transamaznica.389
O lema ningum segura este pas originou-se de uma frase do prprio Mdici ao
comentar o gol do jogador Jairzinho na final da copa de 1970 entre Brasil e Itlia. A frase foi
noticiada pela maioria dos rgos de imprensa e a partir da se popularizou. J o lema Brasil,
ame-o ou deixe-o foi inspirado no America, love or leave it, adesivo de carro criado nos
Estados Unidos para apoiar o presidente Richard Nixon. Esse lema representava o pensamento
do homem mdio estadunidense: contrrio s agitaes estudantis, incomodado com as
mobilizaes dos negros pelos direitos civis e a favor da ofensiva no Vietn. A verso brasileira
do adesivo foi criada por empresrios paulistas em abril de 1970 e distribuda gratuitamente a
bancos e instituies pblicas. Pouco tempo depois, a campanha passou a se propagar
espontaneamente e era grande a procura pelos adesivos, vendidos em bancas de jornal.390
388 Enquanto voc espera a hora de pagar, tire proveito do open Market do Banco Halles. Ningum segura este
Pas. Folha de S. Paulo. 25/08/1970, p.03.
389 Folha de S. Paulo 11/10/1970, p. 03.
390 Revista Veja n95. 01/07/1970, p.30.
391 Revista Compact Disc. N 06 (Set/1991). Editora Globo.
392 O momento mgico de Jorge Ben. Veja n 90 (27/05/1970), p. 76.
1221
um tanto quanto vaga e esquiva, dificulta a tentativa de inferir o que o artista considera como
sendo sujeira. Mas, como a pergunta em relao s canes consideradas de protesto pela
sociedade da poca, que no geral contestavam o regime militar e denunciavam as desigualdades
sociais, plausvel supor que a sujeira se refira tambm a estas questes. Assim, Jorge
demonstra no estar alheio situao poltica do pas, mas pensa ser impotente em relao a
esta conjuntura. Para resolver a situao, s tendo super poderes. O prprio Jorge declarou que
no gosta de poltica em entrevista publicada no fascculo Histria da Msica Popular Brasileira da
Editora Abril, em 1976: No me meto em poltica e nem fao cano de protesto. No
gosto.393 A poltica, para o contexto da poca, para os crticos, jornalistas, pblico consumidor
e para uma significativa parcela de artistas era feita na denncia da Censura ou na crtica ao
regime. Entretanto, como veremos adiante, as canes de Jorge tinham um determinado
contedo crtico e eram sim polticas.
393 Coleo Histria da Msica Popular Brasileira n 08. So Paulo: Abril Cultural, 1976.
394 Coleo Histria da Msica Popular Brasileira Grandes compositores. . So Paulo: Abril Cultural,
1982.
395 Grifos meus.
1222
de forma pungente: eu s quero viver em paz e ser tratado de igual pra igual. Este clamor por
igualdade e liberdade tem um vis extremamente poltico.
De fato, Jorge Ben teve canes ufanistas, duas pelo menos. Em uma cantava a alegria de
ser brasileiro e na outra, cantada por Simonal, aderia ao lema Ame-o ou deixe-o. Em parte, estava
afinado com o pensamento e os sentimentos do brasileiro mdio. Como o prprio artista diz
sou um menino de mentalidade mediana. Entretanto, ao mesmo tempo em que louva o
patropi, se solidariza com o exilado Caetano. No est com os dois ps fincados nem no
plo da resistncia nem no da cooptao, caracterizando assim uma postura prpria da zona
cinzenta, cheia de matizes. Vale ressaltar o modo pelo qual Caetano encara as canes em que
Jorge expressa a sua negritude, classificando-as como canes pelo movimento negro. Embora
no tenha sido filiado oficialmente a grupos militantes, as canes de Ben em que defende a causa
396IMBATVEL ao extremo: assim Jorge Ben Jor. Produo: Paulo da Costa e Silva (Instituto Moreira Sales), 2012 (199
min). Disponvel em <http://ims.uol.com.br/Home-Radio-Batuta-Documentarios-Imbativel-ao-extremo-assim-e-
Jorge-Ben-Jor/D1095>. Consulta em 15 de maro de 2013.
1223
negra evidenciam um contedo crtico, e por isso compreensvel que o cantor baiano o
classifique como pertencente ao movimento. preciso demarcar que esta uma viso
construda a posteriori, uma vez que esta declarao bastante recente. Por esta tica, as canes
de Jorge eram sim canes de protesto, embora no tenham sido encaradas desta forma no
perodo, em que se considerava como canes de protesto aquelas contra o regime militar ou
contra a censura. Embora visto como apoltico, Jorge tinha um engajamento poltico: pela
igualdade racial. Isso pode ser percebido nas suas performances e em suas canes, onde chama
ateno para as desigualdades entre brancos e negros, como na j citada cano Charles Jnior,
onde aciona uma determinada memria da escravido ao dizer no o que foram seus irmos
(escravizados), pois nasceu em um ventre livre no sculo XX.
1224
Memrias Resgatadas, Infncias Violadas
Anna Flvia Arruda Lanna Barreto 397
Ps-doutorado
Universidade Federal de Minas Gerais
[email protected]
RESUMO: Este artigo relata alguns casos de violaes de direitos humanos de crianas e
adolescentes, familiares de desaparecidos polticos, registrados no Fundo Clamor, localizado no
Centro de Documentao e Informao Cientfica CEDIC, da Pontifcia Universidade Catlica
de So Paulo / SP, entre os anos de 1970-1990, nos documentos da associao das Abuelas de
Plaza de Mayo e nos Arquivos do Terror, do Centro de Documentao e Arquivo para a Defesa
dos Direitos Humanos (CDyA) da Corte Suprema de Justia do Paraguai. Atravs da consulta e
anlise desses arquivos foram selecionados documentos cujas informaes remetiam ao
desaparecimento de crianas e priso e/ou sequestro de militantes grvidas. O argumento
central deste artigo consiste na afirmao de que essa documentao contribui de forma
significativa, para o resgate da memria histrica do perodo ditatorial e para a conquista da
cidadania plena nesses pases, sendo o Brasil protagonista da implantao da Doutrina de
Segurana Nacional na Amrica do Sul.
PALAVRAS-CHAVES: Ditadura Cone Sul; Direitos Humanos; Fundo Clamor.
Introduo
Dos ninos, (1) Anatole Boris Julien Grisona, nacido em El Uruguay el 22/09/72, y (2) Eva Luca
Julien Grisona, nacida en la Argentina el 07/05/75, secuestradas el 26/09/76 en Buenos Aires,
em una operacin conjunta de las fuerzas policiales uruguayas y argentinas, fueron encontradas en la
ciudad de Valparaso, Chile. Los ninos estn bien. Sus padres, Roger Julien Cceres (uruguayo) y
Victoria Grisona (argentina), secuestrados en esa misma operacin, continan desaparecidos. La
familia entera fue secuestrada de su residencia em Partido de San Martn, Provincia de Buenos
Aires398.
O texto acima se refere a uma denncia feita pelo Comit de Defesa dos Direitos
Humanos para os Pases do Cone Sul - CLAMOR399, em 1979, a respeito do desaparecimento das
crianas uruguaias Anatole Boris Julien Grisona (4 anos) e Eva Luca Victoria Julien Grisona (1
anos e 4 meses) que foram sequestradas no dia 26 de setembro de 1976 junto com seus pais na
Argentina e deportadas ilegalmente para o Chile. Durante a operao de sequestro, os pais dessas
crianas foram mortos e seus filhos foram levados para centros de interrogatrios.
Direitos Humanos para os Pases do Cone Sul, do Centro de Documentao e Informao Cientfica CEDIC
Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo / SP.
399 Comit em Defesa dos Direitos Humanos dos Refugiados dos Pases do Cone Sul criado em 1977, apoiado pelo
Arcebispo de So Paulo - Cardeal Paulo Evaristo Arns e vinculado Comisso Arquidiocesana de Pastoral dos
Direitos Humanos e Marginalizados. Seu objetivo era prestar proteo e assistncia aos refugiados dos pases do
Cone Sul - Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai.
1225
Posteriormente foram abandonados numa praa, na cidade de Valparaso (Chile) e entregues a
um orfanato por uma assistente social que passava no local400.
A partir de setembro de 1976 os familiares de Anatole e Eva Luca iniciaram uma busca
desesperada para reencontrar as crianas. Segundo a historiadora Ananda Simes Fernandes, esta
prtica se trata de uma modalidade de Terrorismo de Estado das ditaduras de Segurana
Nacional401, sobretudo na Argentina, que durante a vigncia do regime militar (1976-1983)
contou com o alarmante nmero de aproximadamente de 500 crianas sequestradas402.
400 Sobre esse assunto consultar: LIMA, Samarone. Clamor: a vitria de uma conspirao brasileira. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2003.
401 FERNANDES, Ananda Simes. Esta guerra nos es contra los nios: o sequestro de crianas durante as ditaduras de
Segurana Nacional no Cone Sul. In: PADRS, Enrique Serra; NUNES, Crmen Lcia da Silveira; LOPES, Vanessa
Albertinence; FERNANDES, Ananda Simes (Orgs.). Memria, Verdade e Justia: as marcas das ditaduras do Cone
Sul. Porto Alegre: ALRS, 2011. p. 48.
402 BRASIL. Presidncia da Repblica. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Direito Memria e Verdade:
histrias de meninas e meninos marcados pela ditadura / Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Braslia:
Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2009.
403 O fundo Clamor encontra-se distribudo em 106 caixas arquivo, 28 pastas para peridicos e 1 pasta para arquiteto.
Rene documentos textuais, orais e iconogrficos. Os documentos foram adquiridos atravs de doao do Centro
Ecumnico de Servios Evangelizao e Educao Popular (CESEP), em 1993.
404 Perodo de documentao dos arquivos do Fundo Clamor.
1226
Mayo na apurao, localizao e restituio s famlias originais das crianas e adolescentes presos
e sequestrados.
no Brasil foram 50 mil pessoas presas, 20 mil torturados, 356 mortos e desaparecidos, 4
crianas provavelmente sequestradas. No Uruguai foram 166 desaparecidos, 131
mortos, 12 bebs sequestrados, 55 mil detidos. No Paraguai foram de 1 mil a 2 mil
mortos e desaparecidos, 1 milho de exilados. No Chile foram 1.185 desaparecidos,
2.011 mortos (embora estatsticas extraoficiais falem em at 10 mil assassinados),
42.486 presos polticos apenas em 1976. Na Argentina foram 30 mil mortos e
desaparecidos405.
No caso argentino, muitas crianas sequestradas tiveram suas identidades omitidas e
foram posteriormente adotadas ilegalmente por famlias ligadas direta ou indiretamente
represso. Vrias crianas sequestradas junto com seus pais foram adotadas por oficiais da
represso. Exemplo dessa situao o caso de Mariana Zaffaroni, sequestrada quando tinha
dezoito meses de idade, junto com seus pais Jorge Roberto Zaffaroni Castilla e Mara Emilia Islas
de Zaffaroni em Buenos Aires, no dia 27 de setembro de 1976, por foras da represso argentina
e uruguaia. A partir dessa data os familiares de Mariana iniciaram uma busca para encontr-la. No
dia 20 de maio de 1983 o jornal argentino Clarin de Buenos Aires publicou um apelo, com a
foto da menina, solicitando a quem tivesse qualquer informao de Mariana, que entrasse em
contato com as Abuelas da Plaza de Mayo406 ou com o grupo Clamor em So Paulo. Vinte dias aps
o apelo chegou uma carta annima da Argentina enviada ao grupo Clamor. A carta informava
que Miguel Angel Furci, membro do Servio de Inteligncia do Estado (SIDE), estaria com
Mariana em um subrbio de Buenos Aires. A menina havia sido registrada como filha legtima do
casal Furci, sendo registrada dois anos aps o seu nascimento. Segundo Mariana Zaffaroni,
Hasta los 17 aos cre que me llamaba Daniela Furci. Despus de recuperar mi identidad el proceso
de adaptacin fue bastante lento, yo no me quera hacer cargo de mi historia. Pero cuando naci mi
405 BRASIL. Presidncia da Repblica. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Direito Memria e Verdade:
histrias de meninas e meninos marcados pela ditadura / Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Braslia:
Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2009. p. 101.
406Organizao de direitos humanos argentina, fundada em 1977, que tem como finalidade localizar e restituir s suas
famlias legtimas todos os filhos sequestrados e desaparecidos durante a ltima ditadura militar argentina (1976-
1983).
1227
hija, todo empez a fluir con mi familia. Ahora, al ver personas parecidas a m, tengo la sensacin de
pertenecer. Esto yo no lo haba sentido nunca a pesar de que tuve una infancia feliz. 407
Segundo Samantha Viz Quadrat408, a tortura de mulheres, militantes polticas, durante e
aps a gravidez e, posterior sequestro dos bebs, eram prticas comuns exercidas por membros
da ditadura militar argentina. As militantes grvidas eram sequestradas e aps a realizao dos
partos, geralmente em centros clandestinos, os bebs eram retirados das mes com a falsa
informao de que seriam entregues aos avs. Aps a separao, a mes, geralmente, eram
executadas. Esta prtica tinha como objetivo difundir o terror entre a populao, quebrar o
silncio dos pais, educar as crianas com uma ideologia contrria a de seus pais biolgicos. Para
execuo desse plano o exrcito argentino difundiu instrues de seis manuais especficos. O
manual intitulado Instrucciones sobre procedimiento a seguir con menores de edad hijos de dirigentes polticos o
greminales cuando sus progenitores se encuentran detenidos o desaparecidos (abril de 1977), ratifica a
inteno dos militares de entregar para orfanatos ou famlias de militares crianas com at quatro
anos. Acreditava-se que at essa idade, essas crianas estariam livres da influncia poltica de seus
pais.
histrias de meninas e meninos marcados pela ditadura / Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Braslia :
Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2009. p. 101
411 Abuelas de la Plaza de Mayo. Testemonios de Netos. Disponvel em:
http://www.abuelas.org.ar/areas.php?area=testimoniosNietos.php&der1=der1_mat.php&der2=der2_mat.php.
Acesso em 19 de abr. 2014.
412 Associao civil, criada em 1979, por avs de crianas desaparecidas que iniciaram uma luta pela defesa da vida e
pelo direito de manter unidos os membros oriundos do mesmo sangue. Essas avs ficaram conhecidas no mundo
inteiro como smbolo da luta contra a ditadura em defesa dos direitos humanos e do direito de voltar a ter o convvio
com seus netos e netas.
1228
atualidade as Abuelas mantm um trabalho de busca de informaes sobre as crianas
desaparecidas durante o regime militar argentino.
A represso argentina concentrou-se em Buenos Aires, responsvel por quase metade dos
desaparecimentos polticos. Contudo, outras cidades como Crdoba, La Plata e Mendoza tiveram
intensa atuao das foras armadas argentinas nas prticas repressivas. Os principais alvos da
represso eram os sindicalistas, membros do partido peronista, intelectuais, estudantes e
jornalistas. Alm desses setores sociais, os advogados que defendiam prisioneiros polticos e
juzes tambm eram alvos da represso argentina. Segundo Anthony W. Pereira, a ditadura
argentina expressou uma quebra radical com a legalidade anteriormente vigente e um
ataque em grande medida extrajudicial aos oponentes do regime 413. A nova
constituio proibia a atividade dos partidos polticos e cancelava quase todos os
direitos civis, sociais e polticos dos cidados, em funo de um constante Estado de
Stio.
No Paraguai, umas das principais estratgias utilizadas pelas foras repressivas para
obteno de informaes consideradas relevantes a respeito das aes praticadas pelos
terroristas414 era a priso e tortura de filhos de presos polticos durante a realizao dos
interrogatrios.
Y unas de los golpes eran los que me marco que no se ni donde ni cuando me llevan a arriba con la
nia en brazo y tambin me hacen preguntas, y la nia se pone mal porque me empiezan a pegar
estando la nia en mis brazos. Entonces yo para calmarla a nia le doy el pecho. Es ms me doli
porque para mi ms le torturaron a la nia delante de m.415
O texto acima se refere ao depoimento de Maria Felicita Gimenez prestado Comision de
Verdad y Justicia do Paraguai, no dia 11 de novembro de 2006. Ela foi presa e torturada durante a
ditadura militar do general Strossner, junto com sua filha em 1976, quando tinha 24 anos. Filha
de paraguaios vivia em Formosa. Em viagem Assuno por causa da enfermidade de seu sogro,
foi detida e presa junto com sua filha Clarisa Carolina Carrillos, que na poca tinha trs meses.
Seu marido Fausto atuava como advogado dos sindicados dos empregados judiciais e foi
sequestrado em Formosa no mesmo ano. Segundo Maria Felicita, em entrevista Comision de
Verdad y Justicia, ele no tinha envolvimento com partidos polticos. Ela e sua filha ficaram detidas
durante oito meses para investigaes.
413 PEREIRA, Anthony W. Ditadura e Represso: o autoritarismo e o Estado de Direito no Brasil, no Chile e na
Argentina. So Paulo: Paz e Terra, 2010. p. 44.
414 Designao dada pelas militantes aos militantes polticos contrrios ao governo de Alfredo Stroessner.
415 Depoimento de Maria Felicita Gimenez prestado Comision de Verdad y Justicia do Paraguai, no dia 11 de
1229
Alm dessas prticas, tortura psicolgica e fsica era praticada com as crianas, filhas de
militantes polticos, como mecanismo de obteno de informaes. A citao que segue subsidia
essa informao:
Tena 11 aos, nos subieron llevndonos a todos en el chorro, luego nos llevaron ah en donde el
agua estaba medio estancada y ah nos sumergieron la cabeza y luego sacaban de nuevo as
sucesivamente y nos preguntaban otra vez: en dnde est Victoriano Centurin?, y le volvimos a
decir de nuevo que no sabamos nada y nos volvieron a meter en el agua, ah casi me ahogu, al no
decirle nada me soltaron y le trajo a otra persona, as sucesivamente a cada alumno le traan all y les
torturaban.(Marciana Cano, Costa Rosado, 1980)416.
A situao dessas crianas estava determinada pelas condies em que se encontravam
suas mes. Trs situaes so identificadas pela Comisin da Verdad y Justicia do Paraguai417:
mulheres que tinham bebs e foram detidas junto com eles; mulheres que estavam grvidas
durante sua deteno e que tiveram seus filhos na priso; mulheres que tiveram que deixar seus
filhos com outros familiares devido situao de sua priso, mantendo separadas dos mesmos
durantes anos.
H ainda casos como de Maria Margarita Baez de Britez, presa em 17 de agosto de 1976,
quando estava grvida de quatro meses. Devido s sucessivas torturas sofridas diariamente
durante cerca de um ms teve um aborto e foi submetida a um procedimento cirrgico para
retirada do feto. Seu filho teve seu direito de nascer negado pelos agentes da represso paraguaia.
Em dezembro de 1976 Maria Magarita Baez de Britez foi libertada sem responder a processo. Na
poca no lhe foi entregue sua identidade e ela sofria ameaas de morte constantemente. Em 16
de fevereiro de 1982 foi novamente sequestrada sem conhecer os motivos da sua apreenso. Foi
diariamente torturada durante cerca de oitenta dias. As consequncias das torturas fsicas e
psicolgicas que sofreu so inmeras: alucinaes visuais e auditivas, transtornos motores, fortes
dores de cabea e na coluna vertebral, adormecimento do corpo, taquicardia, problemas de
presso arterial e outros418.
416 COMISIN DE VERDAD Y JUSTICIA. Informe Final: Las violaciones de derechos de algunos grupos en
situacin de vulnerabilidad y riesgo. Tomo III. Asuncin: CVJ, 2008. p. 91.
417 COMISIN DE VERDAD Y JUSTICIA. Informe Final: La Secuelas de ls Violaciones de Derechos Humanos,
1230
...Ya tena 12 aos cuando eso despus a las nias que sacaron... una es mi prima, y que dicen que
fue violada, yo no saba cuando eso que le sucedi, pero vi que sangraba y vinieron a meterla otra vez
con el grupo. C.F., Caaguaz, Costa Rosado, 1980419.
Durante a ditadura paraguaia, foram detidas 577 crianas e adolescentes. Dessas 289
foram torturadas, 39 exiladas, 7 desaparecidas e 3 executadas420.
A menina tinha pouco mais de dois anos e o menino trs, quando toda a famlia foi
sequestrada em casa, no dia da promulgao do Ato Institucional n 5, em 13 de
dezembro de 1968, em Pariconha, no interior do estado de Alagoas. Junto com Maria
Auxiliadora, passaram pelo DOPS de Macei, pela Cadeia Pblica, pela Escola de
Aprendizes de Marinheiros e pelo Hospital da Polcia Militar, onde ficaram trancados
em um quarto destinado aos portadores de doenas infectocontagiosas. 422
H ainda os casos de crianas e adolescentes que foram presos e, algumas vezes,
torturados junto com seus pais, como o caso do adolescente Ivan Seixas (16 anos) filho do
operrio paranaense Joaquim Alencar de Seixas. Ambos foram presos em 16 de abril de 1971 e
levados para as dependncias da 37 Delegacia de Polcia e posteriormente para o Destacamento
de Operaes de Informaes/Centro de Operaes de Defesa Interna de So Paulo (DOI-
CODI/SP). Ambos militavam no Movimento Revolucionrio Tiradentes (MRT) quando foram
presos. Pai e filho foram torturados juntos e aps o assassinato de Joaquim Alencar de Seixas, sua
residncia foi invadida, sua mulher e filhas foram presas. Ivan passou seis anos preso sem
responder a um julgamento.
419 COMISIN DE VERDAD Y JUSTICIA. Informe Final: La Secuelas de ls Violaciones de Derechos Humanos,
La Experiencia de las Vctimas. p. 93.
420 COMISIN DE VERDAD Y JUSTICIA. Informe Final: La Secuelas de ls Violaciones de Derechos Humanos,
CALVEIRO, Pilar. Poder e desaparecimento: os campos de concentrao na Argentina. So Paulo: Boitempo, 2013. p. 8.
422 BRASIL. Presidncia da Repblica. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Direito Memria e Verdade:
histrias de meninas e meninos marcados pela ditadura. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Braslia :
Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2009. p. 30.
1231
vai pensar de mim?. Ao mesmo tempo, seu corpo esgotava os limites. Assim, veio a idia
de mentir. Preciso falar, mas no a verdade, pensou. E forneceu a informao de um
ponto falso.423
No dia 30 de setembro de 1969, Virglio Gomes da Silva Filho foi preso junto com sua
me e mais dois irmos. No dia anterior seu pai Virglio havia cado nas mos dos agentes da
represso e foi assassinado. Sua me e irmos foram presos quando estavam hospedados em uma
casa praiana em So Sebastio / SP. Na poca, seu irmo mais velho Vlademir tinha oito anos,
Virglio seis anos e Isabel, sua irm mais nova tinha somente quatro meses. Todos foram detidos
na sede da Operao Bandeirantes (OBAN). As trs crianas foram arrancadas de sua me Ilda e
levadas para o Juizado de Menores, onde permaneceram por dois meses. Antes disso passaram
por vrios interrogatrios.
A noite era pior. Tinham umas luzes meio roxas l para os lados do berrio onde
estava a Isa. Meu irmo me levava na cozinha para a gente roubar leite e dar de mamar
a ela, recorda. O furto tinha um propsito: Isabel teve uma grave desidratao
enquanto estava no Juizado. O instinto protetor impeliu os dois a dormir embaixo do
bero do beb, para impedir que fosse adotada. A adoo, alis, pairava no ar. Eles
nos levavam para ver umas casas bonitas e perguntavam se gostaramos de morar ali,
conta Virglio. Nessas ocasies, o menino permanecia mudo, protegido por uma
teimosa indiferena.424
Ilda ficou presa at o ano de 1979, permanecendo incomunicvel a maior parte do tempo.
As crianas foram separadas e cada uma delas foi morar com um tio. s vezes elas se reuniam e
ficavam paradas em frente a um poste onde sua me, ainda presa, poderia avist-los. Aps ser
libertada e reunir sua famlia, Ilda e seus filhos foram morar em Cuba onde permaneceram at
conclurem o curso universitrio425.
423 ___________. Direito Memria e Verdade: histrias de meninas e meninos marcados pela ditadura. p. 44.
424 BRASIL. Presidncia da Repblica. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Direito Memria e Verdade:
histrias de meninas e meninos marcados pela ditadura. p. 64.
425 PIMENTA, Edileuza; TEIXEIRA, Edson. Virglio Gomes da Silva: de retirante a guerrilheiro. So Paulo: Plena
Editorial, 2009.
1232
submetido a tratamentos com antidepressivos e antipsicticos. No dia 19 de fevereiro de 2013
Carlos Alexandre ps fim sua vida com uma overdose de medicamentos426.
Nossa experincia histrica nos mostra que possvel, apenas de forma figurativa, omitir
o passado, evitar discuti-lo e investig-lo. Todavia, a lembrana deste tempo como um cheiro
que nos acomete quando menos esperamos e que insiste em se fazer sentir, pois, segundo Beatriz
Sarlo428, o presente o nico tempo apropriado para lembrar. A lembrana no se afirma pelo
passado, mas sim pelos seus direitos: direito a justia, a vida e a subjetividade de quem se recorda.
Nesse sentido, o passado guarda um conflito entre a memria e a histria, pois nem sempre a
histria consegue acreditar na memria, e a memria desconfia de uma reconstituio que no
coloque em seu centro os direitos da lembrana429.
Consideraes Finais
426 Morre em So Paulo homem torturado pela ditadura quando tinha um ano. Disponvel em: <
http://noticias.terra.com.br/brasil/,ead367d062fec310VgnVCM3000009acceb0aRCRD.html>. Acesso em 01 mar.
2013.
427 VILLAMA, Luza. Quando meninos so fichados como terroristas. Brasileiros. So Paulo. N. 68. Mar. 2013. p.
54-64.
428 SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memria e guinada subjetiva. Trad. Rosa Freire d Aguiar. So Paulo:
1233
proeza. Ao contrrio, ao tentar omitir o passado, seja atravs da alienao ideolgica ou religiosa,
seja atravs do desaparecimento forado e genocdio de milhes de sujeitos histricos, as
lembranas daqueles que o viveram insistem em se fazerem percebidas e vivas a partir das aes
voluntrias e involuntrias do tempo presente.
Evitar conhecer e discutir este passado deixar de perceber os valores que orientavam a
sociedade civil e o Estado sobre o qual o regime se sustentava. apagar lembranas, sentimentos,
aes e inaes que ainda se fazem presentes e que inviabilizam a conquista da nossa cidadania
plena.
430BLOCH, Marc. Apologia da Histria ou oficio do historiador. Traduo Andr Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2001. P. 65.
1234
Oficina Msicas de Protesto: Enfoque sobre o cantor
Z Ramalho
Beatriz Kller Negri
Ps-Graduanda em Sade para Professores
Universidade Federal do Paran
[email protected]
431NAPOLITANO, Marcos. A MPB sob suspeita: a censura musical vista pela tica dos servios de vigilncia
poltica (1968-1981).. Revista Brasileira de Histria. So Paulo, v. 24, n 47, 2004, p. 105.
1235
Devido ao alto ndice de analfabetismo e a cultura oral estarem mais presentes na vida das
pessoas nesse momento, segundo Ribeiro (2011, p. 181)432 graas a essa oralidade que a cano
popular mostrava-se como a obra cultural capaz para se alcanar o objetivo pretendido: fazer-se
ouvir e ajudar nas causas sociais. O povo analfabeto via na msica um meio de se integrar a
sociedade. Moraes (2000, p. 204)433 cita um pensamento de Antonio Alcntara Machado que diz:
Toda a gente sabe: verso e msica so as expresses de arte mais prximas dos analfabetos.
Conjugados, assumem um poder de comunicao que fura a sensibilidade mais dura. Isso
explicaria os nmeros de participantes nos festivais de msica, pois a msica atingia toda uma
massa de classe mdia, que j vinha descontente com o governo e via na msica uma forma de
expressar esse descontentamento.
Os cantores expressavam seus descontentamentos e o sofrimento da populao em suas
canes, em um pas em que no se podia expressar sua opinio livremente, sendo que esses
questionamentos muitas vezes eram feitos atravs de metforas. Raul Seixas falou abertamente
sobre a censura da msica Rock das Aranhas em um show (26 de fevereiro de 1983, So Paulo,
Ginsio do Palmeiras) dizendo que todos os cantores recebiam um dicionrio do censor de A at
Z o que poderia ou no ser dito, a aranha no fazia parte do dicionrio, mas como ela atentava a
moral e os bons costumes agora passaria a fazer parte.
Todas as msicas antes de serem lanadas necessariamente deveriam passar pelo DOPS, a
partir disso eram feitos os cortes necessrios nas msicas e algumas no chegavam nem a ser
lanadas. Os censores no faziam somente a leitura das msicas eles assistiam posteriormente
aos espetculos para averiguar se os cortes, mudanas ou vetos estavam sendo respeitados
(BERG, 2002, p. 93)434. Em um Festival de Msica no Maracanzinho (1968), o cantor Geraldo
Vandr aps as declaraes dadas antes de cantar a msica Para no dizer que no falei das
flores, foi retirado do palco enquanto cantava e o povo respondeu continuando a cantar a sua
msica somos todos iguais, braos dados ou no.
Alguns nomes como o de Chico Buarque de Holanda e Geraldo Vandr aparecem em
muitos dos relatos de represso da Ditadura Militar como filo-comunistas, com msicas
ideolgicas que atentavam a ordem pblica. Napolitano (2004, p. 107)435 diz que os agentes do
DOPS sempre participavam de festivais em que se encontrava o nome deles vinculados aos
432 RIBEIRO, Maringela. Msica em cena: A Cano popular como forma de resistncia poltica ou sucesso de
mercado? Temticas, Campinas, 19(37/38): 179-200, jan./dez. 2011, p. 181.
433 MORAES, Jos Geraldo Vinci de. Histria e Msica: cano popular e conhecimento histrico. So Paulo: Revista
1236
nomes de Edu Lobo, Nara Leo, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Marilia Medalha, Vinicius de
Moraes, Sidnei Muller, sendo que uma ateno especial era dada aos festivais em que havia a
participao desses cantores, que com msicas jovens davam coragem ao pblico para lutar
contra a dominao poltica e cultural.
nesse contexto musical de protesto em que Jos Ramalho Neto (Z Ramalho) se insere
aps abandonar a cidade de Joo Pessoa e sua faculdade de medicina, se dirigindo cidade do
Rio de Janeiro, no intuito de seguir a vida de cantor. Ele passa fome, vira um sem-teto, e aprende
na pele o que significa lutar pela sobrevivncia neste pas. Com grande influncia da Jovem
Guarda Nordestina, da MPB e do Rock, Z Ramalho comea suas composies, sendo a
primeira Avhai que seria gravada posteriormente pela cantora Vanusa (1977).
Em 1974 gravou seu primeiro LP Pabir. Em 1979, sendo um cantor mais influente
dentro dos movimentos de protesto, ele gravou o disco A Peleja do Diabo com o Dono do Cu. Neste
LP, se encontra a msica Admirvel Gado Novo, msica questionadora em suas metforas tpicas
para os cantores desta poca, a qual foi lanada aps a aprovao do DOPS. A letra colocava o
povo marcado, povo feliz, como um povo que aceitava tudo o que o governo articulava, e que
vivia uma vida sem se preocupar, que no almejava mudanas na sociedade, continuando suas
vidas pacatas, sem mudanas como o andar do gado, que pagavam impostos carssimos, E dar
muito mais, do que receber, sem receber benefcios em troca.
Em seu vdeo no lanamento da msica pelo programa Fantstico da Rede Globo em
(onze de setembro de 1979), ele expe uma cidade movimentada com pessoas que iam e que
vinham, que viviam a vida rotineiramente e que com nada se importavam. Os questionamentos
que Z Ramalho faz nas entrelinhas para que a msica fosse aprovada pela censura caiu nas
graas do povo. Posteriormente, em 1996, a cano foi tema da novela Rei do Gado,e passou a ser
ligada ao movimento sem-terra, voltando em um contexto diferente a questionar a sociedade que
j no vive o Regime Militar, porm, continua seguindo a rotina como se ainda vivessem as
represses do passado.
Z Ramalho lanou a msica O Meu Pas durante o governo de Fernando Henrique
Cardoso, no ano 2000. A msica nos traz questionamentos implcitos, sem uso de metforas,
uma msica que certamente no seria lanada durante o regime militar. Coloca o Brasil numa
poltica de po e circo, um povo que se contenta com feriados, futebol, carnaval, que agora pode
ver tudo o que acontece ao seu redor, mas prefere ficar calado, um pas que no evolui do
terceiro mundo, que no investe em educao, nem na sade, pas preconceituoso, que sepultou
o portugus e a cultura passando a circular em um meio pornogrfico, e Z Ramalho dizia mais -
1237
aderindo a total vulgaridade, Pode ser o pas de quem quiser, mas no com certeza o meu
pas.
Piana (2012, p. 933)436 diz que devemos pensar a msica muito alm da sua estrutura
percebendo os aspectos polticos e sociais que a envolvem e, nesse sentido trabalhar a realidade
do aluno que est inserido dentro de uma sociedade, e como as produes culturais o influenciam
no seu dia-a-dia, e constroem sua identidade.
A msica se torna, assim, um atrativo ao aluno, que v a sala de aula, muitas vezes, como
um local montono, onde o professor assume o papel de mero transmissor do conhecimento e o
aluno de receptor. O uso da msica objetiva atrair a ateno do aluno mesmo que ele no
conhea a letra ou o que o autor quis transmitir com ela, porque ela vai ser um recurso com o
qual o aluno, a principio, no esta acostumado a trabalhar na escola.
Esta oficina foi elaborada de forma a ser utilizada de diferentes maneiras. Por meio dela
podem ser estudados o perodo da Ditadura Militar, a censura do DOPS (Delegacia de Ordem
Poltica e Social), a influncia que a msica de protesto teve nas formaes culturais e sociais
desse perodo ou como essas msicas influenciaram a construo da identidade do povo
brasileiro, neste perodo.
Relato da Oficina
A oficina se iniciou com o questionrio de sondagem (no qual abordamos questes como:
o que protesto? Msicas de protesto? Censura? Z Ramalho? E Woodstock?) e por meio das
respostas dadas constatamos que muitos dos alunos nunca haviam ouvido falar desses temas.
436PIANA, Marivone. Em cada vereda uma cano: a msica como estratgia pedaggica na educao bsica. So
Leopoldo: EST , 2012, p. 933.
1238
Posteriormente passamos a uma breve exposio sobre o tema Msicas de Protesto no
seu mbito geral, buscando demonstrar como elas se deram nos Estados Unidos e no Brasil, seus
representantes, o que os artistas buscavam com esses movimentos, a importncia do movimento
hippie e seus prprios protestos, relacionando tambm as recentes manifestaes ocorridas no
Brasil e junho deste ano.
A Ana Rbia iniciou sua exposio sobre o tema Festival do Woodstock, fez uma breve
explanao sobre o tema, contextualizando a Guerra do Vietn, e levantou questes bem
pertinentes a esse perodo da histria como, por exemplo: como aconteceu o movimento hippie, o
uso de drogas, a motivao que muitos jovens tiveram para aderir ao movimento, e dos muitos
transtornos que o movimento trouxe a populao local, onde o festival foi realizado.
Contextualizar os alunos sobre a situao poltica e econmica que o Brasil viveu a partir
do Golpe Militar de 1964, foi sem dvida uma das maiores bases que os alunos poderiam ter pra
entender a fora que o movimento das msicas de protesto possuiu dentro de todo o mbito
nacional. Deve-se destacar tambm que no s elas foram importantes, mas tambm os jornais,
as revistas, o cinema e teatro desempenharam seu papel de conscientizao da populao, e
lutaram igualmente pela liberdade de expresso neste momento.
Esses nmeros nos revelam que o tema era desconhecido pela grande maioria. As
respostas dadas por eles ao fim da oficina revelam que dos vinte alunos: dezenove alunos
compreenderam o que um protesto; dezessete alunos compreenderam o que foram e a
importncia na histria das msicas de protesto; dezesseis alunos entenderam como se deu a
censura militar; dezoito falaram sobre as novas percepes que adquiriram sobre o cantor Z
Ramalho; e dezesseis alunos viram sobre nova tica sobre o movimento hippie.
1239
Os alunos, em sua maioria, responderam os questionrios com respostas curtas, mas deu
para perceber que eles entenderam bem o mini-curso. Algumas das respostas que surgiram na
primeira pergunta: O que protesto?, foram: uma maneira que a sociedade encontra para
manifestar sua opinio, as pessoas se manifestam em favor dos seus direitos, luta por
justia.
Na segunda questo que perguntava aos alunos Voc j ouviu falar sobre msicas de
protesto?, as respostas que foram sim falaram do RAP e alguns j haviam escutado em
outras aulas de histria.
A atividade realizada por eles aps o intervalo buscou lev-los a expressar seus
sentimentos diante do que vivemos h pouco tempo com as manifestaes que se deram em todo
o pas e aqui na nossa cidade tambm. Solicitava que dispusessem em palavras as reivindicaes
que o tema e as msicas escutadas durante a oficina lhes levaram a pensar.
Alm do que foi escrito tambm fizemos uma mesa redonda onde muitos expuseram ao
grupo sua opinio sobre os manifestos que ocorreram em Ponta Grossa e o tema do mini-curso.
Tambm agradeceram pela oficina, falaram da importncia de se usar outros recursos em sala de
aula, e de como a msica os levou a pensar em tantas coisas, falaram sobre suas interpretaes
sobre os protestos, ocorridos no Brasil, da importncia do gigante acordar, de como
contextualizar o perodo em que foi escrita as msicas foi importante para que eles se
identificassem com elas.
Concluso
1240
O tema aqui trabalhado, das Msicas de Protesto, passando pela constituio da MPB
(Msica Popular Brasileira), dos Movimentos Estudantis, da Ditadura Militar, at o ps-ditadura,
pretendeu ajudar os alunos a perceberem as mudanas que esse movimento trouxe ao Brasil, a
construo da identidade da populao dessa poca, alm da percepo sobre a censura durante o
perodo da ditadura.
Lendo tudo o que eles escreveram podemos chegar a concluso de como uma aula bem
elaborada, preparada para se valer de todos os recursos miditicos disponveis permite que os
alunos consigam chegar a uma compreenso muito maior sobre os contedos e de como esses
interferem em suas vidas e principalmente lhes impulsionam a ir mais longe e no desistir dos
sonhos.
Percebemos ainda que dentro do ensino de histria as msicas podem ser amplamente
estudadas para auxiliar o aluno na compreenso das mudanas da sociedade e como os cantores
de cada perodo descrevem suas emoes percepes, as msicas transmitem a alma do povo.
Com msicas simples conseguimos dar uma aula bem completa e com uma grande participao
de todos os alunos.
Por fim, afirmo a relevncia desse trabalho na minha experincia como acadmica e
futura educadora, ao me ensinar a busca por recursos didticos para auxiliar os alunos na
compreenso e no interesse pela disciplina e de como desenvolver em sala de aula esse material
para alcanar os objetivos pretendidos.
1241
1242
A grande imprensa e a ditadura militar brasileira: a
legitimao do governo militar nas pginas do jornal
O Globo
Camila Barbosa Mono
Graduada em Histria (licenciatura)
Universidade Federal de Minas Gerais
[email protected]
RESUMO: Este trabalho pretende discutir a relao entre a grande imprensa e a ditadura militar
brasileira, especialmente a atuao do jornal O Globo durante o perodo. Para isso, foram
analisados editoriais e algumas reportagens do peridico publicados nas dcadas de 1960 e 1970.
O trabalho busca, portanto, entender O Globo enquanto veculo de comunicao que divulga e
dissemina valores de uma dada cultura poltica de acordo com o seu pblico leitor e com seus
interesses particulares, sendo sempre o primeiro dependente do segundo e vice-versa. Ademais,
esta anlise buscar verificar se o posicionamento da grande imprensa, sobretudo d'O Globo,
sobre a ditadura militar pode ou no estar relacionado ao apoio de parte da populao civil ao
golpe em 1964 e permanncia dos militares no poder por mais de 20 anos.
Introduo
O estudo da ditadura militar brasileira e das ditaduras do Cone Sul tem atrado a ateno
dos historiadores com mais frequncia nos ltimos anos. Pode-se pensar na importncia desses
momentos polticos passados para a melhor compreenso de diversos elementos do presente dos
pases que viveram perodos de intensa represso, autoritarismo e ausncia de liberdade poltica e
social.
A reflexo, pelos historiadores, acerca da ditadura militar brasileira pode ter variadas
abordagens. Neste trabalho, sero apresentados e brevemente discutidos alguns pontos da relao
d'O Globo, jornal carioca de grande circulao nacional, com a ditadura militar brasileira. Busca-se
identificar o posicionamento do peridico com relao ao regime militar atravs da anlise de
seus editoriais e algumas reportagens publicados entre 1964 e 1979. Com isso, possvel perceber
a qual cultura poltica o jornal pertence e, por isso, propaga.
1243
fornece leituras comuns do passado, assim como fornece inspirao para
projetos polticos direcionados ao futuro.437
Sendo o conceito de "representaes" tido como: "[...]conjunto que inclui ideologia, linguagem,
memria, imaginrio, iconografia, e mobilizam, portanto, mitos, smbolos, discursos,
vocabulrios e uma rica cultura visual [...]".438 Os editoriais do jornal tecem representaes acerca
do perodo histrico estudado, buscando legitimar o golpe e a ditadura militar como "Revoluo
Democrtica", algo que seria positivo e nico na histria brasileira.
A autora Tania Regina de Luca442 pontua algumas sugestes para orientar a anlise de
peridicos: ateno materialidade dos jornais e revistas (as mudanas de organizao, aparncia,
apresentao, etc. ao longo do tempo), forma como esses impressos chegavam aos leitores; seu
contedo; sua relao com o mercado; a publicidade nele veiculada; o seu pblico leitor; o motivo
do destaque dado a este ou aquele assunto; a formatao grfica; a temtica do jornal; a
linguagem utilizada; o reconhecimento de seu lugar social e de sua organizao interna. No
estudo que se segue, houve a tentativa de seguir todas essas sugestes apontas para a realizao
da anlise.
437MOTTA, Rodrigo Patto S. Desafios e possibilidades na apropriao de cultura poltica pela historiografia. In:
__________. (org.). Culturas Polticas na Histria: Novos Estudos. Belo Horizonte: Argvmentvn, 2009, p.21
438MOTTA. Desafios e possibilidades na apropriao de cultura poltica pela historiografia.
439CHARTIER, Roger. A Histria Cultural: entre prticas e representaes. Lisboa: Difel, 1990, p.17.
440__________. A Histria Cultural: entre prticas e representaes, p. 16-17.
441Ao dizer "forma de percepo do real" compreende-se que o real mltiplo. Sendo, portanto, um jornal como
parte de um dado extrato social, ele influenciado e influencia apenas uma parcela da sociedade.
442LUCA, Tania Regina de. Histria dos, nos e por meio dos peridicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes
1244
Segundo a autora, at a dcada de 1970 ainda era raro o uso de jornais como fonte para o
conhecimento da histria do Brasil. J havia a preocupao em escrever a histria da imprensa,
mas no por meio da imprensa. Pode-se dizer que uma das razes para a resistncia em utilizar os
peridicos como fonte estava ainda atrelada a ideia dominante de fins do sculo XIX e incio do
sculo XX, que propunha a busca pela verdade dos fatos. O historiador deveria se isentar de
qualquer envolvimento com o objeto de estudo e tambm buscar fontes marcadas pela
objetividade, neutralidade, fidedignidade e credibilidade. Dessa forma, os jornais no seriam
apropriados, uma vez que eram permeados de subjetividade e parcialidade, sendo, alm disso,
marcados pelas paixes do tempo presente.
Visto isso, um jornal no se caracteriza apenas pelo texto que nele publicado, mas
tambm pelo seu pblico leitor, sua linha editorial, seus grupos de interesse econmicos e
polticos, sua relao com o governo, entre outros aspectos que, inclusive, determinam e
influenciam diretamente o texto publicado que analisado, posteriormente, pelo historiador. Ao
fazer uma histria por meio dos peridicos, o historiador acaba fazendo tambm uma histria do
peridico em si e de seu papel na constituio poltica, social, cultural e econmica de alguma
parcela da sociedade.
O conhecimento, mesmo que superficial, das categorias jornalsticas tambm pode ser de
grande ajuda na compreenso e estudo do jornal. De acordo com Jos Marques de Melo443, so
duas as categorias jornalsticas mais tradicionais: jornalismo opinativo e jornalismo informativo.
Cabe questionar, segundo o autor, "(...)at que ponto o jornalismo informativo efetivamente
443 MELO, Jos Marques de. A Opinio no Jornalismo Brasileiro. Petrpolis: Vozes, 1985.
1245
limita-se a informar e at que ponto o jornalismo opinativo circunscreve-se ao mbito da
opinio?".444
Tal questionamento serve tambm ao historiador ao analisar o texto jornalstico, uma vez
que reportagens consideradas informativas podem tambm trazer traos opinativos, que no
ficam restritos editoriais e charges, por exemplo.
Melo ainda aponta para a possibilidade de ser o jornalismo um relato dos fatos como eles
se apresentam no momento do registro, no um estudo definitivo de uma situao. Ainda assim,
o registro no pode ser considerado em absoluto o relato dos fatos exatamente como eles foram
apresentados. A subjetividade do narrador, do jornalista, a forma como ele narra, o que ele
prioriza na construo da narrativa, etc. isso j compromete a imparcialidade da informao. No
h formas de ser imparcial, cada um l e v de acordo com concepes prprias predefinidas.
1246
possvel verificar o apoio de praticamente toda a grande imprensa ao Golpe militar de
1964, exceto do jornal ltima Hora445.
Entretanto, seu apoio [da grande mdia] no implicava concordncia plena com
a pauta poltica da ala extrema-direita do novo regime, que pretendia golpear
duramente as instituies liberais em nome da segurana e da ordem [...]. Em
sua maioria, os jornais perfilavam com a ala liberal dos apoiadores de 1964,
que temperavam seu amor pela liberdade com notvel transigncia a
intervenes autoritrias para defesa do status quo.446
Interessante notar que o apoio da grande imprensa ao golpe militar se insere na discusso
historiogrfica inaugurada por Daniel Aaro Reis sobre a dimenso da participao civil na
implantao e durao da ditadura. Para o autor447, a ocorrncia do golpe e a extenso do regime
militar no seria responsabilidade s dos militares, mas tambm da populao civil, que no pode
ser vista, para este autor, apenas como vtima ou parte da resistncia.
Mesmo que esta tese seja, muitas vezes, duramente criticada448, ela encontra um modelo
de apoio no estudo da grande imprensa, composta por civis que externaram seu apoio ao golpe e
tambm ao governo militar. Contudo, diferente da grande maioria da imprensa tradicional que
retira gradativamente seu apoio ditadura na medida em que ela aumenta a restrio das
liberdades individuais, O Globo mantm seu apoio, considerando decretos como a implantao
do AI-5 como arriscados, mas se bem aplicadas podero significar um avano para o pas:
445MOTTA, Rodrigo Patto S. A ditadura nas representaes verbais e visuais da grande imprensa: 1964-1969. Revista
Topoi, v. 14, n. 26, jan./jul. 2013, p. 62-85.
446__________. A ditadura nas representaes verbais e visuais da grande imprensa: 1964-1969, p. 64
447REIS FILHO, Daniel Aaro Reis. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
448Critica-se a nomenclatura "golpe civil-militar", pois no h um consenso entre os civis sobre a ditadura, o que
tornaria delicada a equivalncia destes como protagonistas da mesma forma que os militares ao longo do processo.
Contudo, no possvel afirmar, tambm, que existia dentro das Foras Armadas um total e irrestrito apoio
interveno militar a ao golpe.
449Editorial do jornal O Globo do dia 04 de janeiro de 1969.
1247
Como pode ser ilustrado pelo trecho do editorial acima transcrito, o estudo do jornal O
Globo permitiu analisar a forma como esse veculo apreciou os rumos tomados pela nova ordem
vigente aps o que eles denominaram de revoluo democrtica. O jornal nunca tratou o incio
da ditadura militar como um golpe de Estado, mas sempre como uma revoluo que tinha o
objetivo de afastar o Brasil da crise poltica trazida pelo que diziam ser uma ameaa comunista, o
governo de Joo Goulart.
Das poucas crticas verificadas nos editoriais voltadas ao governo militar, prevalecem as
de carter econmico, em relao ao intervencionismo estatal abusivo, e algumas sugestes para o
aumento do investimento em educao e pesquisa. Contudo, no faltaram julgamentos contrrios
oposio, seja democrtica, o MDB, ou armada, o que eles denominavam de "terrorismo". A
oposio democrtica era duramente criticada por no apoiar o suficiente a "revoluo",
impedindo os "avanos" propostos pelo governo militar. J a oposio armada ou no
institucional era tida como expoente do "perigo vermelho" dentro do Brasil e, por isso, deveria
ser combatida a todo custo.
Outro aspecto significativo diz respeito ao alinhamento do contedo dos editoriais com
as demais reportagens, colunas de opinio, ilustraes, etc. publicados no jornal: em todos os que
foram verificados prevalece a tradio anticomunista e a crena no regime militar como a melhor
forma de preservar a democracia brasileira. O estudo dos trechos selecionados dO Globo
permitiram a percepo da propagao de um discurso que remete s culturas polticas
conservadora e liberal e tambm tradio anticomunista, que retoma a todo tempo o discurso
construdo, principalmente, aps a Intentona Comunista de 1935, no qual a possibilidade de um
governo de esquerda ou com caractersticas consideradas da esquerda, poderia ser classificado
com todos os inmeros adjetivos negativos: desorganizao, atraso, corrupo, etc450.
Nesse sentido, talvez possa ser explicada a averso d'O Globo Joo Goulart, uma vez que
expoentes da direita, como o veculo de comunicao tratado no trabalho, apoiaram atitudes
450MOTTA, Rodrigo Patto de S. Em guarda contra o perigo vermelho. O anticomunismo no Brasil (1917-1964).
So Paulo: Perspectiva, FAPESP, 2002.
1248
autoritrias no por estarem necessariamente alinhados a ausncia de liberdade de expresso e
atitudes repressivas, mas por considerarem esse meio autoritrio como o nico que poderia
suprimir a "ameaa comunista" naquele momento. Dessa forma, elementos da direita que, talvez,
em outras circunstncias no apoiassem atitudes extremistas e autoritrias, veem a eminncia de
um "perigo vermelho", expressado pelas Reformas de Base propostas por Jango, que s poderia
ser combatido com esses regimes repressivos.
Outro aspecto que deve ser abortado neste trabalho e que retoma a discusso feita
anteriormente sobre a dimenso da participao da populao civil no golpe e no governo militar,
a presena d'O Globo e de seu diretor, Roberto Marinho, na lista de "Ligaes econmicas da
liderana e associados proeminentes do IPES".451
451DREIFUSS, Ren Armand. 1964: a conquista do Estado. Rio de Janeiro: Vozes, 1981, p. 504.
452__________. 1964: a conquista do Estado, p. 161-162.
1249
golpe e do governo militar, atravs de um discurso pertencente a uma cultura poltica liberal-
conservadora e com fortes influncias da tradio anticomunista.
Por fim, ser debatido rapidamente a permanncia da importncia dos diversos meios de
comunicao, inclusive da imprensa escrita, na disseminao de determinados discursos ligados
ao golpe e a ditadura militar na atualidade.
Ao longo do primeiro semestre do ano de 2014, falou-se muito dos 50 anos do golpe
militar brasileiro. Tanto os meios de comunicao de massa, quanto os eventos e publicaes
acadmicas, aproveitaram a ocasio para debater, lembrar e analisar esse perodo da histria do
Brasil que tem fortes sentidos para a atualidade. As heranas polticas, econmicas, culturais e
sociais da ditadura permeiam o cotidiano de formas, muitas vezes, sequer percebidas.
Para efeito de mera exemplificao, basta checar a biografia dos ltimos presidentes
brasileiros, inclusive a atual presidente Dilma Rousseff: todos eles diretamente ligados, de
diferentes formas, a movimentos de resistncia ditadura; ou verificar a denominao de
construes pblicas (praas, ruas, viadutos, etc.) que trazem o nome de governantes militares ou,
agora, de indivduos que se mostraram resistentes eles; ou ler notcias e se deparar com as
apuraes de depoimentos da Comisso Nacional da Verdade... enfim, os poucos exemplos
citados servem apenas para demonstrar a presena, cada vez maior, de debates acerca do golpe e
da ditadura militar brasileira no presente.
Assim como foi notado por Andr Bonsanto Dias,453 as reflexes relacionadas ao perodo
ditatorial e, especialmente, s articulaes do golpe de 1964, esto mais atuais agora do que
estiveram h trinta anos. E, como tambm aponta o autor, a emergncia de batalhas de memria
nesse momento uma demanda prpria do presente, mais ligada ele do que ao evento do
passado em si. Dessa forma, h uma disputa nos meios acadmicos e populares pela legitimao
de recordaes e esquecimentos que articula passado e presente.
Visto isso, a efemride dos 50 anos do golpe militar intensificou disputas entre memrias
individuais e coletivas que tentam recriar narrativas para esse acontecimento de acordo com cada
lugar social e sentimento de pertencimento do grupo ou indivduo. H, por exemplo, por parte
dos militares e setores da extrema direita, o desejo de reafirmar a necessidade e inevitabilidade do
golpe de 1964 e o apoio popular ele, uma vez que o pas estaria ameaado pelo "perigo
453DIAS, Andr Bonsanto. A revoluo no ser comemorada: horizonte de expectativa e as polticas de memria
da grande imprensa brasileira frente ao contexto dos 50 anos do golpe. In: Anais eletrnicos do Seminrio 1964-2014: um
olhar crtico, para no esquecer, UFMG, Belo Horizonte, 18 a 20 de maro de 2014, p.36-47.
1250
comunista"; por outro lado, grupos pertencentes ao espectro poltico de esquerda lutam para
afirmar a represso e inconstitucionalidade do golpe e do governo militar.
A publicao desse texto e o lanamento de seu acervo online, que conta tambm com
artigos que narram a histria do jornal pelo ponto de vista do prprio jornal, tem a clara
finalidade, por parte das Organizaes Globo, de tomar a rdea de sua prpria histria,
escrevendo e reescrevendo-a da forma mais adequada ao presente, compondo assim as batalhas
de memria na atualidade. A emergncia de batalhas de memria nesse momento uma demanda
prpria do presente, mais ligada ele do que ao evento do passado em si.
Dessa forma, h uma disputa nos meios acadmicos e populares pela legitimao de
recordaes e esquecimentos que articula passado e presente. Visto isso, a efemride dos 50 anos
do golpe militar intensificou disputas entre memrias individuais e coletivas que tentam recriar
narrativas para esse acontecimento de acordo com cada lugar social e sentimento de
pertencimento do grupo ou indivduo.
H, por exemplo, por parte dos militares e setores da extrema direita, o desejo de
reafirmar a necessidade e inevitabilidade do golpe de 1964 e o apoio popular ele, uma vez que o
pas estaria ameaado pelo "perigo comunista"; por outro lado, grupos pertencentes ao espectro
poltico de esquerda lutam para recriminar a represso e afirmar inconstitucionalidade do golpe e
do governo militar.
Nesse sentido, fundamental pensar a imprensa como um dos meios que externam essas
batalhas de memria e retomam as discusses acerca do regime militar para alm dos limites
acadmicos. Por isso, relevante acompanhar as diferentes abordagens de revistas e jornais
durante publicadas no ano de 2014 e as outras que ainda viro em que est sendo relembrado o
evento do golpe militar. Tendo em vista o objeto de pesquisa central do trabalho, vale a pena
realar a atitude do jornal O Globo frente a esta ocasio.
454O GLOBO. Apoio editorial ao golpe de 1964 foi um erro, 31 de agosto de 2013.
455O GLOBO. Apoio editorial ao golpe de 1964 foi um erro, 31 de agosto de 2013.
1251
Para justificar seu apoio, o jornal se coloca em meio aos debates do perodo, como o
temor aos resultados das mudanas propostas por Joo Goulart, o discurso anticomunista
propagado em tempos de Guerra Fria, etc. Indo alm, o editorial exalta o fato de que O Globo
abrigou jornalistas de esquerda, sem contudo citar a censura interna que certamente ocorria
dentro das Organizaes para que nenhuma crtica ao governo fosse publicada.
Portanto, o editorial que expressa a mea-culpa do jornal carioca tem sim a inteno de
responder a demanda das ruas, contudo, essa resposta no se mostra como um arrependimento,
mas como uma explicao que visa absolver o apoio do peridico ao regime autoritrio e
repressor que perdurou por mais de vinte anos no Brasil.
A publicao desse texto e o lanamento de seu acervo online, que conta tambm com
artigos que narram a histria do jornal pelo ponto de vista do prprio jornal, tem a clara
finalidade, por parte das Organizaes Globo, de tomar as rdeas de sua prpria histria,
escrevendo e reescrevendo-a da forma mais adequada ao presente, compondo assim as batalhas
de memria na atualidade.
1252
Onde esto os comunistas? Um estudo sobre a
vigilncia ao PCB atravs das correspondncias do
DOPS em Minas Gerais (1945-1964)
A presente comunicao parte integrante das pesquisas desenvolvidas para a tese de doutorado
vinculada ao Programa de Ps-graduao em Histria da Universidade Federal de Juiz de Fora. Em se
tratando de estudos sobre o Partido Comunista Brasileiro/PCB e sobre a atuao das esquerdas no Brasil,
a historiografia possui autores que so referncia, dentre os quais o socilogo Marco Aurlio Santana, os
historiadores Carlos Fico, Daniel Arao Reis Filho, Pedro Moraes e Maria Paula Nascimento Arajo 456.
456FICO, Carlos. Como eles agiam: os subterrneos da ditadura militar: espionagem e polcia poltica. Rio de Janeiro:
Record, 2001. - REIS FILHO, Daniel Aaro; S, Jair Ferreira de (Org.). Imagens da revoluo: documentos polticos
das organizaes clandestinas de esquerda dos anos 1961-1971. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985. - REIS FILHO,
Daniel Aaro; MORAES, Pedro de (Org.). 1968: a paixo de uma utopia. Rio de Janeiro: Espao e Tempo, 1988.
(Pensando o Brasil, v. 9). - REIS FILHO, Daniel Aaro. A revoluo faltou ao encontro: os comunistas no Brasil. So
Paulo: Brasiliense; [Braslia]: CNPq, 1990. - RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revoluo brasileira. So Paulo: Ed. da
Unesp: Fapesp, 1993. - RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revoluo: do CPC era da TV. Rio
de Janeiro: Record, 2000.
1253
Em "Homens partidos: comunistas e sindicatos no Brasil"457, Santana analisa a articulao e atuao do
Partido Comunista Brasileiro com o movimento sindical no perodo de 1945 a 1992. Para o
desenvolvimento desta pesquisa, o autor contou com uma gama variada de fontes, dentre os quais: jornais,
revistas, documentos relativos atuao do PCB e do movimento sindical, e tambm, realizou entrevistas
com integrantes do partido a partir da metodologia da Histria Oral.
No transcorrer do seu trabalho Santana afirma que teve dificuldades em relao ao referencial
terico utilizado na pesquisa, pois farta parcela dos estudos converge para anlises focadas no
desempenho poltico do PCB ao longo da sua trajetria e, sobretudo, as pesquisas tendem a relativizar ou
a minimizar o papel do partido junto ao movimento sindical. A obra "O populismo na poltica brasileira",
do historiador Francisco Weffort, um significativo exemplo deste vis historiogrfico. Neste trabalho, o
autor considera o papel do movimento operrio e do Partido Comunista Brasileiro, nas dcadas de 1930 a
1950, como pouco relevante no cenrio poltico nacional. Segundo o autor, estes segmentos no detinham
autonomia nas decises polticas. A atuao dos sindicatos tida pelo autor apenas como funo de
intercesso entre o poder poltico e empresarial, no tendo, pois um papel forte na consolidao das
reivindicaes trabalhistas. Ainda conforme Weffort, a longa trajetria de ilegalidade do PCB consolidou a
perda de projeo poltica e social. Para ele, somente a partir da dcada de 1960, durante o perodo do
Governo Joo Goulart, que a atuao das esquerdas emerge de maneira efetiva.458
Na contramo desta perspectiva, que podemos considerar como tradicional, a obra "Homens
partidos" se destaca pela valorizao do papel dos indivduos e pelo exame da complexidade das
interaes sociais em um universo coletivo. Trata-se, pois, de um importante referencial para a nossa
proposta de pesquisa, pois corroboramos da concepo de que para compreender a dinmica interna do
PCB mineiro junto ao movimento operrio prioritrio deslocar o eixo analtico da estrutura para as
relaes. Deste modo, ser possvel avaliar a maneira pela qual eram construdas as aes e articulaes
contguas classe trabalhadora, mesmo em meio ilegalidade poltica, para, assim, entender a
multiplicidade de aes do partido no estado de Minas.
Para compreender como se davam as relaes entre os membros do PCB junto a classe
trabalhadora em Minas Gerais, temos no uso das correspondncias fontes basilares no desenvolvimento
desta pesquisa. Nesse sentido, nesta comunicao, apresentaremos alguns resultados das anlises das
correspondncias provenientes do acervo do Departamento de Ordem Poltica e Social de Minas Gerais-
DOPS, que est sob custdia do Arquivo Pblico Mineiro-APM, em Belo Horizonte, desde 1998. O
DOPS foi institudo em Minas Gerais no ano de 1956, tendo como mote principal a represso aos crimes
poltico-sociais. Com esse intento, foi gerado um forte aparato policial coercitivo com sede em Belo
Horizonte, e, articulado com as vrias regies do estado. No obstante, o acervo agrega tambm o
457 SANTANA, Marco Aurlio. Homens partidos: comunistas e sindicatos no Brasil. So Paulo, 2001.
458 WEFFORT, Francisco. O populismo na poltica brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. (Estudos Brasileiros)
1254
material produzido pela Delegacia de Segurana Pessoal e Ordem Poltica e Social criada em 1927 na
capital, que, assim como o DOPS, possua como atribuio a manuteno da ordem pblica. Para esta
exposio inclumos tambm fontes disponveis no acervo "Coleo Informante do Regime Militar" que
esto sob custdia do Arquivo Nacional, do Rio de Janeiro.
O trabalho realizado pelos agentes do DOPS resultou numa vasta documentao, que apreende
inmeras correspondncias enviadas e recebidas pela polcia. Dentre as tipologias de correspondncias
consultadas para este exame, esto cartas, telegramas, boletins e informes produzidos pelos militares,
oficiais, investigadores e delegados. O intercmbio destas correspondncias apresentava como objetivo
central a exposio de inmeros relatos sobre o andamento das aes da polcia poltica referente a
vigilncia aos indivduos integrantes do Partido Comunista nas distintas regies do estado de Minas
Gerais. A rotina dos comunistas, suas aes e dificuldades so comumente relatadas pelos oficiais
designados ao trabalho de vigilncia a paisana ou enquanto infiltrados na faco poltica. Ademais,
tambm eram foco de monitoramento sujeitos que, devido ao envolvimento em aes de cunho poltico e
social eram considerados pelos agentes do DOPS como subversivos. A documentao disponvel no
DOPS tambm resultante da apreenso realizada em sedes e comits do PCB em vrias regies do
estado. Deste modo, as fontes compreendem tanto documentos de autoria do prprio PCB, quanto
elaborados pela polcia poltica.
Nesta comunicao utilizamos das correspondncias oficiais do DOPS que, apesar do seu carter
formal, confidenciam a rotina dos profissionais que eram designados s aes de vigilncia e represso ao
PCB em Minas Gerais, entre os anos de 1950 a 1970. Trabalhamos com trs tipologias documentais, as
cartas e telegramas, os informes e boletins de monitoramento.
Esse corpus documental, de igual modo, apresenta os espaos de sociabilidade que os militares
frequentavam, bem como a dinmica do trabalho desenvolvido por eles. Por conseguinte, a realizao
desta pesquisa permite identificar as estratgias aplicadas pelo DOPS no sentido de acompanhar o
desenvolvimento das aes do PCB mineiro, suas demandas e objetivos, o processo de monitoramento, a
eficincia e as dificuldades impetradas pela realizao deste labor.
Alm de algumas concluses e anlises prvias da pesquisa ora em andamento, fazemos meno a
alguns procedimentos que utilizamos para o exame das correspondncias como fonte para pesquisa
histrica. Dentre os procedimentos destacamos:
1255
Um dos motes inicias do mtodo empregado refere-se a identificao da origem e objetivo destas
correspondncias, ou seja, o motivo que impulsionou os indivduos envolvidos a estabelecerem o
intercmbio de informaes. A razo de ser das cartas, telegramas ou informes, por exemplo, so
elementos definidores para o estabelecimento do tipo de anlises que so desenvolvidas a partir das
informaes apresentadas. Os informes so documentos oficiais que podem conter objetivos como:
definio de ordens, pareceres, instrues ou informaes sobre as atividades desenvolvidas pelos sujeitos
que atuam no processo de monitoramento. Nessa perspectiva, farta parcela dos informes consultados at
o momento, referem-se a exposio dos objetivos alcanados no trabalho dos agentes de monitoramento,
bem como das ordens determinadas pelos militares de patente superior que comandam as operaes.
Como um dos principais objetivos da polcia poltica consistia em realizar o monitoramento das
organizaes de esquerda, os boletins e informes apresentam com riqueza de detalhes informaes sobre
quem eram os membros do Partido Comunista em Minas Gerais, expe a composio dos comits e os
elementos mais atuantes na organizao. Este o caso do comunista Elson Costa, membro da comisso
de organizao do Comit Central do PCB em Belo Horizonte, entre os anos de 1946 e 1947. Elson
citado de modo recorrente tanto em informes, telegramas e nos boletins de monitoramento. Por ser
mencionado como militante muito atuante na capital, incitou a pesquisas ulteriores em que foi possvel
identificar a existncia de uma pasta contendo 196 laudas relativas apreenso de material da organizao
do partido que estava em sua posse459. Alm de informaes sobre a organizao do PCB em Minas
Gerais, o acervo apreendido pessoal do comunista Elson Costa possui material de propaganda sobre o
comunismo utilizado para divulgao no meio sindical, nos anos de 1950 a 1964.
De igual maneira, atravs das correspondncias foi possvel localizar a existncia de agentes
infiltrados como militantes do PCB que acompanharam de maneira contgua as aes. Estes agentes
459 Pasta 0096. Material apreendido - Elson Costa. 1950 a maro de 1964. Disponvel em: <
http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/dops/brtacervo.php?cid=0096 > acesso em outubro de 2014.
1256
forneceram atravs dos relatrios e informes o panorama da atuao do PCB, suas dificuldades
operacionais, bem como a disposio organizacional dos membros da organizao. Alguns agentes
estabeleceram relaes prximas com os comunistas, participando de reunies em clulas e comits e,
inclusive alguns conseguiram frequentar suas residncias. Em um dos informes utilizados em nossas
anlises o relato do agente, infiltrado como militante comunista, foi feita o relato da composio da
estrutura organizacional do Comit Central do PCB mineiro no ano de 1955, bem como a indicao de
uma lista de nomes referente aos responsveis por realizar a ligao entre as organizaes de base e as
regies de Minas Gerais460.
uma partilha no somente porque uma carta pertence a dois sujeitos, mas porque
envolve sempre vrios correspondentes indiretos, no momento mesmo de sua
produo, tanto da produo da carta como do texto literrio.461
Muito embora a mera identificao do nome dos atores envolvidos seja uma ao bsica no que
se refere a anlise de qualquer fonte histrica, em nossa pesquisa, o nome ostenta o papel de fio condutor,
ensejando a abertura de novas possibilidades de identificao de fontes ulteriores, como no exemplo do
comunista Elson Costa.
461BEZERRA, Carlos Eduardo; SILVA, Telma Maciel. Jogo de cartas: a correspondncia como fonte de pesquisas.
Revista Patrimnio e Memria. UNESP FCLAs CEDAP, v. 5, n.2, p.02- dez. 2009. ISSN 18081967.
Disponvel em: < http://pem.assis.unesp.br/index.php/pem/article/view/163 >
1257
Outros elementos que utilizamos para analisar as correspondncias refere-se a percepo do
perodo e da intensidade em que realizado o intercmbio das correspondncias. Este aspecto essencial
em nossa investigao, haja vista que, o perodo tende a revelar a ampliao ou reduo das aes de
monitoramento. No tocante a presente pesquisa, identificamos que aps o retorno a ilegalidade poltica no
ano de 1947, ocorre o crescimento das aes repressivas ao PCB em Minas Gerais e, cresce na mesma
medida as deliberaes e determinaes designadas atravs das correspondncias em todo o estado a
respeito do tipo de trabalho que deveria ser realizado pelos agentes da polcia poltica. Tal ampliao
repercute na dinmica interna da agremiao, sobretudo, na supresso e na coero de muitas das suas
aes.
Para desenvolvimento desta tese de doutorado utilizamos cerca de 300 pastas do acervo do
DOPS de Minas Gerais, correspondente aos anos de 1950 a 1970. Em quase todas as pastas contm
correspondncias que nos fornecem informaes sobre o trabalho realizado pelo PCB no interior do
estado. A anlise dessa documentao permite indicar ainda no apenas o crescimento do monitoramento
das aes do PCB aps o retorno ilegalidade poltica em 1947, mas tambm os meios utilizados para
exercer a vigilncia. Cresce o nmero de informes com relatos sobre a realizao de apreenses em sedes
de comits do PCB e tambm de materiais de propagandas produzidos em tipografias. A apreenso era
realizada tanto na capital como nos comits de vrias cidades em Minas Gerais. Como exemplo desta
ao, podemos citar o Informe enviado pelo Delegado Geral de Juiz de Fora, em 06 de maio de 1952
relatando a apreenso de materiais ao Delegado de Ordem Pblica de Belo Horizonte:
Senhor Delegado,
Atenciosas saudaes,
Delegado Geral.
462Departamento de Ordem Poltica e Social-DOPS. Arquivo Pblico Mineiro. Pasta 4706, imagem 17, Rolo 068.
Disponvel em: < http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/dops/brtacervo.php?cid=4706 >.
1258
Lindolfo Hill era comunista ativo na cidade de Juiz de Fora, foi vereador da cidade at o perodo
da cassao dos mandatos dos membros do PCB em 1948, um ano aps o partido ser posto na ilegalidade.
Alm de verificar o tipo de ao repressiva realizada, identificamos que os comunistas pretendiam realizar
na ocasio do 1 de maio de 1952 o trabalho de agitao e propaganda.
Durante a dcada de 1950, perodo que em Minas Gerais o PCB realizava constante trabalho de
expanso das suas aes, o uso dos informes como fonte nos permite identificar as relaes que
fortaleceram o estabelecimento das aes do Partido no interior do estado. Este o caso do informe
enviado para o servio de Polcia Poltica da capital, em dezembro de 1956 informando que um emissrio
comunista teria sido enviado para a cidade de Montes Claros com o objetivo de estreitar os laos com os
dirigentes locais:
Segundo consta teria sido enviado por Prestes, a Montes Claros, um emissrio com
fim de entender-se com os dirigentes locais, no que respeita a sua ida quela localidade
mineira, onde pretende passar sua data natalcia.
Esto em francos preparativos para receber o lder vermelho indgena, ocasio em que
lhe ser ofertado um livro de ouro, contendo as assinaturas de todos os comunistas do
Norte de Minas Gerais, contendo o histrico de sua vida e um voto de confiana.463
463Departamento de Ordem Poltica e Social-DOPS. Arquivo Pblico Mineiro. Pasta 3983, imagem 3, Rolo 050.
Disponvel em: < http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/dops/brtacervo.php?cid=3983 >
1259
desenvolviam a respeito da rotina de trabalho e antecedentes dos comunistas. Como exemplo, podemos
citar o boletim enviado no dia 30 de janeiro de 1957:
Pequenas informaes:
Segundo soubemos, o delegado foi residncia do Sr. Ado a fim de advert-lo que
no mais continuasse em atividades que pudesse coloc-lo em dificuldades,
convidado-o a retirar-se da cidade.
Atravs deste boletim identificamos algumas informaes relevantes. A primeira refere-se ao fato
de que, durante o processo de reestruturao da linha poltica adotada pelo PCB na dcada de 1950, foram
expressas claras orientaes para ampliao do raio de atuao para alm do segmento operrio. A
ampliao da esfera de trabalho para o permetro rural, atravs da insero do trabalhador campons no
partido era um dos objetivos. Este boletim permite identificar que este trabalho, apesar do
monitoramento, vinha sendo realizado no interior de Minas. Apesar do foco da nossa pesquisa seja o
entendimento das aes do PCB contguas a classe operria, na documentao consultada, existem vrios
exemplos que apontam para o crescimento das aes do PCB no meio rural. O documento mencionado
faz meno ao Deputado Hernani Maia. O referido deputado citado em vrios documentos do PCB
como poltico com ligaes com comunistas de vrias regies de Minas.
Aps o retorno a ilegalidade poltica, o PCB estabeleceu relaes com outros partidos, muitas
vezes, introduzindo seus elementos em outras legendas partidrias. Esta estratgia tambm foi utilizada
pelos deputados estaduais Oscar Dias Correia, Fabrcio Soares, Edgard Godoi Mata Machado, Rodon
Pacheco, atravs da legenda Unio Democrtica Nacional na eleio de 1951. Alm dos deputados
federais Hildelbrando Brislia e Pedro Gomes de Oliveira pelo Partido Trabalhista Brasileiro.
1260
Consideraes Finais
1261
As relaes entre histria e memria no contexto da
Ditadura Militar brasileira
Graduada em Histria
Graduado em Histria
RESUMO: Dentre as diversas temticas discutidas pela historiografia est a questo da memria. As
discusses sobre a mesma dificilmente produzem concluses, sobretudo quando se busca a relao da
memria com a histria. No entanto, importante compreender o papel que ela assume nos eventos
histricos, como no caso da Ditadura Militar brasileira evento este que deve ser tratado com muita
cautela devido sua proximidade com nossa poca e, por consequncia, suas feridas ainda manterem-se
abertas na sociedade. Buscar-se- analisar a conturbada relao existente em discursos sobre a memria e a
histria (sobretudo o perodo supracitado) ressaltando a relao de proximidade que possuem e a
importncia da narrativa para o historiador, sendo essa tratada com muito cuidado, pois, por mais que seja
tecida com base metodolgica slida, jamais consegue alcanar a verdade.
1262
existe, expressam as lutas dos diferentes agentes (pessoas e grupos) pela
superao e transformao de suas condies de existncia.465
Introduo
Dentre os mais diversos assuntos no campo da histria, a memria um dos mais discutidos, sem,
contudo, chegarmos a uma anlise conclusiva acerca da relao entre elas. No entanto, importante
compreender o papel da memria sobre diversos acontecimentos dentro da histria e da historiografia,
como no caso da Ditadura Militar brasileira.
Buscar-se- apontar qual a relao da histria com a memria e qual a importncia da preservao
desta frente aos acontecimentos ocorridos de 1964 a 1985. Para isso, buscou-se analisar a relao,
conturbada, existente em discursos sobre a memria e a histria, ressaltando a relao de proximidade que
possuem e a importncia da narrativa para o historiador - que por mais que seja tecida com base
metodolgica slida, jamais consegue alcanar a verdade.
Assim, entende-se que preciso compreender este evento do passado que nos atingiu de forma
violenta, e que a memria, por meio de relatos orais ou escritos, de suma importncia para tal. Ressalta-
se sua importncia posto que seja por meio dela que rememoramos o ocorrido, que perpetuamos a crtica
a tal evento e que reforamos a discurso de seu no retorno.
Memria e Histria
465 PREZ, Carmen Lcia Vidal. O lugar da memria e a memria do lugar na formao de professores: a reinveno da escola como
uma comunidade investigativa. In: Reunio Anual da Anped, 26, 2003, p.5.
466 Ver: CATROGA, Fernando. A representificao do ausente: memria e historiografia. In: Revista Anistia Poltica e
Justia de Transio / Ministrio da Justia. N. 2 (jul. / dez. 2009). Braslia: Ministrio da Justia, 2009.
1263
Essa concepo de memria como sendo oposta histria se modificou com a terceira gerao da
Escola dos Annales, quando Pierre Nora defendeu a ideia de que a histria e a memria no eram
opositoras, e sim que era possvel se valer de ambas para um produzir historiogrfico. Alm de Nora, Paul
Ricoeur tambm defendeu tal viso, afirmando que ambas possuem uma relao, na qual a memria a
matriz da histria, e que
la mmoire nest pas seulement la vise dun vnement pass dans sa trace laisse en
nous, ni recherche rcompense parfois et par bonheur par le petit miracle de la
reconnaissance, elle est aussi auto-dsignation de son propre sujet; nous disons en
franais que nous nous souvenons. 467
Assim, lembrar pode ser considerado um ato histrico e coletivo, uma vez que nossa memria e
nossa histria esto entrelaadas, fazendo-nos participantes singulares e ao mesmo tempo coletivos;
reconhecimento, auto-designao e coletividade em sincronismo. Nesse ponto, Ricouer e Halbwachs se
encontram, pois para este a memria sempre construda em grupo, mas tambm, sempre, um
trabalho do sujeito468.
Em meio s discusses sobre memria e histria novos rumos foram sendo tomados e novas
teorias em relao s duas foram sendo desenvolvidas, como a busca por um estreitamento de laos entre
elas. Essa busca tomou direo mais delineada a partir da segunda metade do sculo XX, quando as
teorias sobre a sacralizao das recordaes pela memria comearam a ser questionadas. Alguns tericos
como Lucien Febvre viam na memria esse aspecto, enquanto notavam na historiografia um fazer
intelectual desmistificador de representaes.
Teorias como essas comearam a ser questionadas e em seu lugar buscou-se compreender que
memria e historiografia possuem caractersticas comuns, mas cada uma mantendo sua especificidade. A
historiografia considerada um instrumento importante pelo qual o ato de se fazer a histria ganha
narratividade, o que auxilia no no esquecimento dos fatos existentes na trajetria dos homens. Contudo,
memria e historiografia no so necessariamente convergentes469, ao ponto de uma se igualar a outra.
467 Traduo: Memria no apenas algo concernente a evento passado que deixou seu rastro em ns, nem a
procura por vezes recompensado a felicidade atravs do pequeno milagre de reconhecimento, ela tambm auto-
designao de seu prprio sujeito; ns dizemos em francs que ns nos lembramos. RICOEUR, Paul. La mmoire
saisie par lhistoire. In : Rev. Let., So Paulo, v.46, n.1, p.245-258, jan./jun. 2006, p.248.
468 MAHFOUD, Miguel. SCHMIDT, Maria Luisa Sandoval. Halbwachs: memria coletiva e experincia. Psicologia USP, S.
1264
Por mais que a historiografia possa ser considerada um gnero literrio que tem, entre outras, a
finalidade de registrar e conservar as notcias sobre os acontecimentos dignos da memria470, ela baseia-
se em fontes (sejam escritas ou orais), entendidas aqui como rastro. Walter Benjamin define rastro como
a apario de uma proximidade, por mais longnquo esteja daquilo que o deixou471. Ele seria o
fragmento de algo que existiu, algo que pertencente ao passado e que se exibe no presente, devendo ser
notado e analisado para que aquilo que ele carrega do evento passado no se apague.
Com o rompimento da ideia de que a memria e historiografia so incomunicveis, viu-se que esta
est ligada prtica de recordao, a responsvel por preservar a memria e tornar perptua a histria.
Por outro lado, h autores que criticam a produo de documentos, alegando que essa pode levar
diminuio do ato de narrar, na perda de transmisso cultural e compartilhamento de memria num meio
social, uma vez que se diminui o hbito de se falar e ouvir.
O conflito imposto entre a memria e histria tambm possui outros vieses: a confiabilidade ou
no que a histria tem da memria e na desconfiana que a memria possui em relao histria, que
muitas vezes coloca de lado os direitos de lembrana. No entanto, visvel a necessidade que se tem
acerca da memria social ou individual para presentificar determinados acontecimentos. A lembrana
literatura e histria da cultura. Trad. Srgio Paulo Rouanet, 2. ed., Brasiliense, 1986.
474 BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas Vol. I - Magia e Tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura e histria da cultura.
1265
acaba por levar o indivduo para o caminho da perseguio, pois nunca est completa475, e assim o
passado se faz presente - que o tempo prprio da lembrana.
As relaes entre memria e histria ainda so delicadas, sendo tal relao ainda discutida e
reformulada por tericos. Porm, visvel que a relao no est pautada mais na dissociao como se
pensava em meados do sculo XX, mas sim na associao plena entre ambas, sendo discutidos os
melhores meios de se apropriar da memria para um discurso histrico. Mas, o que se v, que recordar
est ligado ao resgate de um passado, e logo manter vivo um passado. Associado memria temos a
reminiscncia, que a capacidade de recuperar algo que se possua antes e que foi esquecido476, sendo
ela uma seleo de imagens com referencial de tempo, que possibilita silogismos, esquadrinhando a
lembrana no passado.
A chegada dos militares ao poder tinha, inicialmente, a proposta de devolverem o poder aos civis.
No entanto, logo nos primeiros anos do governo de Castelo Branco os Atos Institucionais 1 e 2 foram
criados, suspendendo direitos polticos de cidados, cassando mandatos parlamentares, dissolvendo
partidos polticos, transformando as eleies em indiretas e estabelecendo sanes para s pessoas com os
direitos polticos cassados e que se manifestassem contrrios ao governo, iniciando assim, o sistema de
censura. Tal sistema se mostrou configurado em 1968, ano que foi criado o AI-5, que, em resumo:
Suspende a garantia do habeas corpus para determinados crimes; dispe sobre os poderes
do Presidente da Repblica de decretar: estado de stio, nos casos previstos na
Constituio Federal de 1967; interveno federal, sem os limites constitucionais;
suspenso de direitos polticos e restrio ao exerccio de qualquer direito pblico ou
privado; cassao de mandatos eletivos; recesso do Congresso Nacional, das
SARLO, Beatriz. Tempo Passado Cultura da memria e guinada subjetiva. So Paulo: Companhia das Letras; Belo
475
Horizonte: Editora UFMG, 2007, p.10. Captado em: http://goo.gl/r9iJ0p. Acesso em: 15 abr. 2015.
476ROSSI, Paolo. O passado, a memria, o esquecimento: seis ensaios da histria das ideias. So Paulo: Editora UNESP,
2010, p.15.
1266
Assembleias Legislativas e das Cmaras de Vereadores; exclui da apreciao judicial atos
praticados de acordo com suas normas e Atos Complementares decorrentes; e d
outras providncias. 477
O AI-5 foi a representao do endurecimento do governo militar, instaurado por Costa e Silva no
dia 13 de dezembro de 1968, ano em que cem mil pessoas foram s ruas protestar contra as
arbitrariedades do regime, sendo o AI-5 uma resposta s tais manifestaes.
Nesse cenrio, h a importante presena do Movimento Estudantil, que estava na luta por direitos
antes da implantao dos Atos Institucionais, e que desde 1965 agia na clandestinidade, perodo em que a
UNE fica proibida tambm de funcionar como associao civil, proibio que se torna extensiva a todas
as entidades estudantis e ao conjunto de suas atividades478. Mesmo em tais condies, os protestos
estudantis no cessaram, e a luta contra a poltica educacional do governo e por subsdios para a reforma
universitria foi retomada em 1967, sendo recebida pelo governo de forma repressiva e os estudantes
passaram a ser tratados, no mbito da segurana, como uma questo militar. Em maro de 1968 a
represso policial atingiu seu apogeu com a represso ao Movimento Estudantil, no Rio de Janeiro. O
episdio marcou a histria do Movimento, pois as consequncias foram o claro aumento do aparato
repressivo da polcia.
A perseguio aos contrrios ao governo se tornou cada vez mais forte e embasada num discurso
de legitimao do uso do aparato repressivo. Tal represso
esteve concentrada em duas fases: a primeira, entre 1964 e 1966, coincidindo com o
governo Castello Branco, quando somam-se 2.127 nomes de cidados processados. A
segunda fase corresponde quase por completo ao mandato de Garrastazu Mdici:
registram-se 4.460 denunciados entre 1969 e 1974, na avalanche repressiva que se segui
decretao do Ato Institucional n 5, de 13 de dezembro de 1968. 479
A segunda fase do regime, de acordo com Dom Paulo Evaristo Arns, foi a mais violenta do
perodo de 21 anos, uma vez que prises arbitrrias, torturas e assassinatos ocorreram de forma sistmica,
sendo a tortura umas das linhas mestras da represso poltica480. Entre os modos de represso utilizados
pelos militares compreende-se:
VALLE, Maria Ribeiro do. 1968: o dilogo a violncia: movimento estudantil e ditadura militar no Brasil. Campinas, SP:
478
479 ARNS, Dom Paulo Evaristo. Brasil: nunca mais. Petrpolis, RJ: Vozes, 1986, p.85.
480JOFFILY, Mariana. O aparato repressivo: da arquitetura ao desmantelamento. In: REIS FILHO, Daniel Aaro,
RIDENTE, Marcelo. MOTTA, Rodrigo Patto S. A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964. Rio de
Janeiro: Zahar, 2014, p.165.
1267
a aplicao de sofrimento fsico ou a ameaa de aplic-lo imediatamente, com o
propsito de se obterem, ou como decorrncia de medidas adotadas para se obterem,
informaes secretas ou provas forenses de interesse militar, civil ou eclesistico. 481
Nesse perodo, os mtodos de tortura para conseguir informaes para minar grupos contrrios
ao regime eram diversos como: pau de arara, choque eltrico, pimentinha, afogamento, cadeira de drago,
geladeira, uso de insetos, animais, produtos qumicos e agresses fsicas. Geralmente, os que eram
pressionados, buscavam se calar, pois os que contam a verdade tiveram conscincia dos riscos de sua
atividade; 482, que no caso era colocar a vida de outros companheiros em risco, levando-os tambm a
serem presos, torturados e alguns at mortos.
As torturas eram realizadas por militares das foras armadas, no entanto haviam tambm alguns
civis que cumpriam as ordens emanadas por aqueles. Um dos torturadores mais conhecido foi Srgio
Paranhos Fleury, delegado do DOPS de So Paulo, que envolveu-se em diversos casos de perseguio aos
opositores do governo. As torturas ocorriam em lugares distintos, em delegacias, colgios militares, casas e
fazendas, mantendo os torturados sob crcere privado, aps sequestros.
As vtimas de tais mtodos eram diversas: estudantes, militantes de esquerda, grupos de resistncia
no geral. Estas eram presas, interrogadas e torturadas, ficando na priso por meses ou anos, sendo que
muitos morreram durante tal processo ou desapareceram. Nesse cenrio, qualquer tentativa de recriminar
tais atitudes do governo era vetada por meio da censura - seja na msica, na arte ou na mdia pois, o
regime se valia dela para manter sua posio e inibir quaisquer forma de expresso contrria a seus
mtodos de governar.
A ditadura no Brasil encerrou-se por meio de uma anistia de mo dupla imposta pelos ditadores,
que foi aceita por falta de opo e como uma forma de encerrar o ciclo de violncia que estava instaurado
naquele perodo.
482 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. So Paulo: Ed. Perspectiva, 1972, p.285.
1268
O tema da memria e da histria um tema bastante complicado quando situado na esfera social,
uma vez que age no cerne de questes materiais, imateriais, simblicas, morais e de valores particulares,
impactando diretamente nas trs temporalidades: passado, presente e futuro. Assim, preciso ter cautela
ao trabalh-la, sobretudo quando em relao a determinados acontecimentos, como no caso da Ditadura
Militar no Brasil. Neste caso, o tema deve ser tratado no mbito pblico, para que seja encarado como
uma aprendizagem de cidadania e repblica, no intuito de formar opinio pblica em favor de prticas
sociais democrticas.
A narrativa oral ou textual sobre o regime ditatorial brasileiro tem de fazer parte da historiografia,
sobretudo a narrativa dos presos polticos torturados, uma vez que se no fossem os relatos destes, o
conhecimento a respeito do aparato repressivo seria mnimo, e a justia para com esses atingidos poderia
nem existir. Nesse panorama se localiza a importncia da Comisso Nacional da Verdade484, que visa
investigar tais violaes de Direitos Humanos e efetivar o direito memria, contribuindo tambm para
prestar assistncia s vtimas do regime.
A memria, nesse caso, fundamental para uma escrita da histria que visa fazer justia e
reafirmar uma democracia, por este motivo tem de ser trabalhada e reafirmada, para que se possa surgir
483 Beatriz Sarlo mostra que a narrao tambm funda uma temporalidade, que a cada repetio e a cada variante
torna a se atualizar SARLO, Beatriz. Tempo Passado Cultura da memria e guinada subjetiva. So Paulo:
Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007, p.25. Captado em: http://goo.gl/r9iJ0p. Acesso em:
15 abr. 2015.
484 A Comisso Nacional da Verdade foi criada pela Lei N 12.528, de 18 de Novembro de 2011, pela Presidenta da
1269
movimentos renovados de luta pela democracia e para que se possa, a cada gerao, interpretar o ocorrido
de forma clara, evitando-se, assim, o retorno das atrocidades vivenciadas pela sociedade brasileira durante
a segunda metade do sculo XX.
Consideraes Finais
Pode-se compreender que os discursos acerca da memria so ainda bastante complexos, cabendo
uma maior reflexo sobre a mesma, buscando sempre a conciliao entre a memria e a histria. Aquela
muitas vezes foi vista como matriz desta, no entanto preciso cautela ao se trabalhar com a associao
entre ambas, para no se correr o risco de fazer da memria uma verdade. Pois, por se tratar de narrativas
orais ou escritas, a memria est contagiada por aquele que a relata e a vivenciou, assim, as emoes so
reavivadas e a imparcialidade de difcil alcance.
Sobre essa temtica (memria e histria) para o assunto referente Ditadura Militar brasileira,
de extrema importncia a discusso sobre os usos das mesmas, posto que a memria se torna um libi na
luta contra o regime. Os relatos, sobretudo dos que sofreram diretamente com tal governo, servem-nos
para a divulgao das atrocidades cometidas contra os que lutavam por democracia, auxiliando-nos a no
esconder esse perodo obscuro da histria do pas, e sendo um suporte para a luta para que tal perodo no
retorne.
Tal tarefa torna-se ainda mais relevante em perodos onde um conservadorismo forte tende a
tentar construir uma histria pblica que aponta o regime militar como um perodo de paz, segurana e
prosperidade, focando na histria oficial do perodo, ou seja, do regime militar e descreditando os relatos
daqueles que sofreram durante a ditadura.
Dessa forma, dentro das discusses sobre esse campo, possvel vislumbrar sua utilidade para a
sociedade, relembrar para os que conhecem e mostrar aos que desconhecem os efeitos e consequncias de
um regime ditatorial militar, no qual a sociedade fortemente atingida, mesmo que indiretamente. Assim,
reafirma-se novamente a necessidade de se trabalhar com a memria na histria, visando reafirmar a
necessidade da democracia e a condenao das injustias cometidas pelo regime militar. V-se assim, a
importncia da Comisso Nacional da Verdade, que com o intuito de condenar a violao dos direitos
1270
humanos, acaba por mostrar sociedade o que ocorreu durante os 21 anos de represso no Brasil,
acentuando a necessidade de se recordar o mal gerado e de no o comemorar.
1271
Comentando o golpe militar: os editoriais do Estado
de Minas em 1964
Guilherme Alonso Alves
Graduando
Universidade Federal de Minas Gerais
[email protected]
RESUMO: Esse trabalho tem por intuito analisar os editoriais do peridico Estado de Minas entre
Abril e Dezembro de 1964. Tem-se como ponto de partida o entendimento que o editorial o
espao por excelncia do discurso poltico nos meios de comunicao. Assim sendo, a anlise
detalhada da argumentao dos editoriais pode nos dar um rico entendimento sobre as
argumentaes empregadas na ocasio do golpe e as posies polticas defendidas no momento
de instaurao da ditadura. Sem amenizar o papel das foras armadas no momento e na
posterioridade do golpe, esse estudo visa a pluralidade explicativa para os atores desse episdio
poltico, frisando o apoio de parte da sociedade civil por meio da abordagem do principal veculo
de imprensa de Minas Gerias na poca.
Esse trabalho tem por intuito compreender a ao de grupos pr-golpistas como a mdia
impressa, no sentido de pensar suas justificativas para o golpe e suas projees de futuro. De
maneira geral, parto da premissa que a mdia constri sua informao a partir de um ponto de
vista, isto , seu lugar social de fala. Assim sendo, nossa inteno seria deslocar o estudo do
campo da histria dos meios de comunicao para o campo da historia social. Pois a imprensa se
configuraria como uma fora social que trabalha na criao de uma hegemonia atravs de uma
construo que articula as relaes entre passado e presente visando um projeto para o futuro485.
1 CRUZ, Heloisa de Faria; PEIXOTO, Maria do Rosrio da Cunha. Na oficina do historiador: conversas sobre
histria e imprensa. Projeto Histria, So Paulo, n.35, p. 253-270, dez. 2007, p. 258 -259.
486 JEANNENEY, Jean-Pierre. A mdia. In: REMOND, Ren (org). Por uma histria Poltica. 2.ed. Rio de Janeiro:
1272
conscincia da prpria funo, no apenas no campo econmico, mas tambm
no social e no poltico: o empresrio capitalista cria consigo o tcnico da
indstria, o cientista da economia poltica, o organizador de uma nova cultura,
de um novo direito, etc e etc.488
Partindo desse princpio, podemos entender que os editoriais expressam opinies prprias dos
interesses da classe empresarial, como por exemplo: o combate ao comunismo, a defesa do livre mercado
e da propriedade privada. Todavia, necessrio no se deter em uma viso estritamente economicista do
processo social, isto , a classe empresarial no funcionava de maneira monoltica, tendo suas
segmentaes e flexibilidades internas. Importante fazer esse contraponto reflexivo para que no
detenhamos em uma anlise engessada que no consegue dar conta da complexidade da realidade. No
caso especfico que ser estudado aqui, as opinies prprias do interesse empresarial so expressas em
conjunto com outras tpicas argumentativas prprias do momento e da formao social individual tais
como a exaltao aos militares, a defesa de posturas autoritrias perante os comportamentos polticos
desviantes, a defesa de interesses estaduais e etc. Portanto, apesar do estudo editorial constituir uma tima
fonte para compreenso da posio empresarial, esse trabalho s poder ser frutfero se for pensando de
maneira densa atentando-se para uma formao de conscincia que no se detm apenas nos contornos
classistas, existindo espao para a juno de outros diversos interesses naquilo que pode ser entendido
com uma opinio de classe.
Importante fazer a relao da fonte com sua historicidade e a relao com o seu meio
social. necessrio pensar como aquele veculo de comunicao constri sua identidade e quem
488GRAMSCI, Antnio. Os intelectuais e a organizao da cultura. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1982. p. 03.
489 ________. A formao dos intelectuais. p. 03.
490 ________. A formao dos intelectuais. p. 03.
1273
so seus articuladores491. O Estado de Minas era propriedade do empresrio do ramo miditico
Assis Chateaubriand. O jornal foi comprado em 1929 de um grupo492 que o fundou um ano antes
e ento passou a integrar o Dirios Associados493, um conglomerado miditico que contava com
vrios jornais e rdios494.
Chateaubriand desde 1930 sempre foi categrico nas defesas da livre iniciativa, tendo em
1951 manifestando-se contra a Lei do Petrleo, que visava criao da empresa estatal
Petrobras495. Segundo Carrato, o proprietrio do jornal era contrrio ao nacionalismo econmico e
era veemente na defesa da ao empresarial internacional. Segundo a autora, isso se explica pelo
antigo vnculo empregatcio de Chateaubriand. Assis havia trabalhado como advogado da Light
and Power e essa empresa financiou a compra de seu primeiro veculo de mdia - O Jornal. A autora
ainda coloca que esse mesmo grupo canadense estava por trs do financiamento de diversos
empreendimentos dos Dirios Associados. Essa posio o colocava em oposio aos getulistas, aos
trabalhistas e outros defensores do nacionalismo econmico496. Sobre a boa relao que o jornal
mantinha com a poltica liberal, emblemtico o caso de Milton Campos. O jornal apoiou a
candidatura e o governo de Campos no estado de Minas Gerais em 1947, deixando clara a
aproximao de Chateaubriand com os polticos da UDN497. O jornal iria volta a tomar uma
posio de defesa de Milton Campos em 1964. Ainda sobre os contatos de Assis com
empresrios e polticos da UDN, podemos citar o financiamento concedido pelo banqueiro
Benjamim Guimares Chateaubriand para a compra de um canal de televiso a ser colocado em
Minas, na dcada de 1950 esse j era o terceiro canal do empresrio. Nessa mesma dcada, o
governador Juscelino Kubitschek PSD facilitou a instalao em Minas Gerais de uma fbrica de
equipamentos eletrnicos chamada RCS, os produtos dessa fbrica seriam importantes para a
montagem da Tv Itacolomi498. O conglomerado miditico de Chateaubriand distanciava em muito
de um jornal amador. Durante as dcadas de 50 e 60 os Associados contavam, s em Minas, com
as rdios Guarani e Mineiras, os canais de televiso Itacolomi e Alterosa e tambm os peridicos
Estado de Minas e Dirio da Tarde. Portanto j estava encaminhada uma profissionalizao
empresarial dos meios de comunicao.499 Werneck Sodr500 defende que, de maneira geral, o
491 CRUZ; PEIXOTO. Na oficina do historiador: conversas sobre histria e imprensa. p. 260.
492 Pedro Aleixo, Juscelino Barbosa e lvaro Mendes Pimentel.
493CARRATO, ngela. A amena casa de Assis: papel e atuao do jornal o Estado de Minas na dcada 60.
1274
desenvolvimento dos jornais acompanha o desenvolvimento tcnico do capitalismo, portanto
medida que avanava o capitalismo brasileiro a imprensa tambm se modernizava. Essa ligao
mercadolgica, a modernizao do maquinrio que possibilitava uma maior circulao dos jornais
e a intrnseca ligao entre a profissionalizao dos jornais e os fluxos financiadores geravam
reflexos nas notcias e nas opinies dos jornais. Essa opinio parece tambm ser compartilhada
por Carrato.
Devido a essa ocorrncia a opinio pblica estava diretamente influenciada pelos iderios da elite.
Importante dizer que existe a questo da recepo da informao. Como evidenciado por Motta502, uma
matria ou uma charge posicionada podem gerar reaes de apoio ou de crtica por parte da populao,
sendo assim no to direta a determinao da opinio pblica.
500 SODR, Nelson Werneck, 1911-1999. Histria da imprensa no Brasil 4. ed. [atualizada]. Rio de Janeiro: Mauad,
1999.
501 CARRATO. A amena casa de Assis: papel e atuao do jornal o Estado de Minas na dcada 60. p. 73
502 MOTTA, Rodrigo Patto. Jango e o golpe de 64 na caricatura. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006 p. 13
503 CARRATO. A amena casa de Assis: papel e atuao do jornal o Estado de Minas na dcada 60 p .91.
504_________. A amena casa de Assis: papel e atuao do jornal o Estado de Minas na dcada 60 p. 87.
505 Preservao dos Direitos humanos. Estado de Minas, Belo Horizonte, 09 de abr.1964. Caderno 1 ,p. 04. Os
dficits calamitosos. Estado de Minas, Belo Horizonte, 26 de abri. 1964. Caderno 1 ,p.04. O Custo da Vida. Estado de
Minas, Belo Horizonte,19 de mai. 1964. Caderno 1, p.04. Intil resistncia. Estado de Minas, Belo Horizonte, 05 de jul.
1964. Caderno 1, p. 04. Chuva no mar.. Estado de Minas, Belo Horizonte,28 de jul. 1964. Caderno 1, p. 04.
1275
polticos e sindicais devido orientao poltica506. O peridico se posicionou politicamente apoiando o
golpe, pois entendia que o Brasil estava passando por um processo de bolchevizao 507, expresso
constantemente utilizada por eles para caracterizar a poltica do governo federal e seus aliados. Era
supostamente necessria uma interveno para salvar o Brasil do comunismo e restaurar a ordem
democrtica508. No vocabulrio da poca, era necessrio uma interveno saneadora 509.
O Estado de Minas expressa as trs principais matrizes anticomunistas apontadas por Motta, as
matrizes nacionalista, catlica e liberal510. Essa trs matrizes aparecem algumas vezes de maneira
imbricada, por exemplo: [Minas] Partiu para a luta, certa de que teria o apoio de todos os democratas do
Brasil, de todos os cristos, de todos os verdadeiros patriotas, que no desejavam transformar-se em
lacaios dos comunistas.511. Todavia, o modo mais comum era uma juno entre as matrizes nacionalista e
liberal. Nessa argumentao, a questo da soberania e da unidade nacional 512 tambm era frequentemente
colocada junto luta pela democracia, de modo que essas duas matrizes do anticomunismo
nacionalismo e liberalismo - fornecem a chave terica para o entendimento da posio do jornal no que se
refere justificativa golpista.
De maneira geral, nos idos de 1964, o discurso democrtico foi muito explorado pelos
anticomunistas, que pretendiam criar uma contraposio entre democracia versus comunismo. Um bom
exemplo de posicionamento democrtico a argumentao desenvolvida jornal no dia 25 de julho no
editorial intitulado, Coincidncia, tese popular 513. O jornal demonstra o seu entendimento de como
deveria ser o funcionamento democrtico normal do pas, afirmando ter sido um erro os pleitos de dois
em dois anos institudos na constituio de 1946, um verdadeiro crime contra a nao. Afirmavam que no
Brasil os pleitos eram malficos administrao pblica, contudo ponderam que no se poderia suprimi-
los por completo em vista da democracia. Como soluo mediadora, fazem a proposio de espaa-los a
fim de o inconveniente ser menos sensvel. Interessante que o posicionamento democrtico do jornal se
torna muito fragilizado nesse tipo de discurso, se entende democracia como boa administrao e
estabilidade, e no como soberania popular.
506 Governicho, no. Estado de Minas, Belo Horizonte, 04 de abr. 1964. Caderno1, p.04. O dever dos militares. Estado
de Minas, Belo Horizonte, 05 de abr.1964. Caderno 1, p.04 - Desarmamento e esprito?. Estado de Minas, Belo
Horizonte, 07 de abr. 1964. Caderno 1,p.04. Assembleia admirvel. Estado de Minas, Belo Horizonte, 12 de abr. 1964.
Caderno 1, p.04. O aviltamento dos sindicatos. Estado de Minas, Belo Horizonte, 15 de abri.1964. Caderno 1, p. 04. O
expurgo continuara. Estado de Minas, Belo Horizonte, 09 de jul. 1964. Caderno 1,p.04. Pea de Museu. Estado de
Minas, Belo Horizonte, 30 de julho 1964. Caderno 1, p. 04.
507 Governicho, no. Estado de Minas, Belo Horizonte, 04 de abr. 1964. Caderno 1, p. 04 Duas vezes insolente. Estado
de Minas, Belo Horizonte, 06 de mai, 1964. Caderno 1,p.04. MOTTA, Rodrigo Patto. Revista Topoi, Rio de Janeiro. v.
14, n. 26, jan./jul. 2013, p. 70
510 MOTTA. Rodrigo Patto. Em guarda contra o perigo vermelho. So Paulo: editora perspectiva, FAPESP, 2002.
511 Minas fiel a si mesma. Estado de Minas, Belo Horizonte, 02 de abr.1964. Caderno 1, p. 04.
512 MOTTA. Em guarda contra o perigo vermelho. p. 29
513 Coincidncia, tese popular. Estado de Minas, Belo Horizonte, 25 de jul. 1964. Caderno 1, p. 04.
1276
O adjetivo democrtico era tambm uma manobra de alinhamento internacional visto que o
Bloco Ocidental na Guerra Fria era identificado como os defensores dos valores democrticos e do
mundo livre, ocidental e cristo514. Sobre essa viso global interessante as posies adotadas pelo
jornal sobre o combate a inflao. Os editoriais dos dias 26515 e 28516 de julho comentam sobre o
alinhamento internacional, recomendado ao Brasil que ativasse sua diplomacia junto aos pases do bloco
ocidental a fim de angariar um forte fluxo de investimento internacional para o Brasil, para que pas
pudesse combater o dficit financeiro do pas.
Embora as matrizes nacionalista e liberal sejam mais preponderantes, a matriz catlica tambm
encontra o seu lugar. Mas de maneira geral, o anticomunismo catlico se expressa de maneira diminuta, s
vezes se contendo apenas na utilizao de expresses bblicas, como por exemplo, a utilizao de
fariseus 518 para se referirem aos supostos traidores da ptria, tambm colocando o Brasil ps-golpe
como uma espcie de terra prometida, uma nova Cana519 e com louvores a Deus520 pela ao golpista
das Foras Armadas.
A questo da corrupo tambm era muito abordada. Esse problema talvez fosse at um
elemento paralelo em importncia ao comunismo, se no com certeza o segundo elemento da
argumentao editorial. Em outro editorial, de 21 de abril de 1964, intitulado A sombra de Tiradentes521,
o jornal faz um jogo de palavras interessante para exemplificar essa ligao que se imaginava entre
corrupo e comunismo: Batista corrupto gerou Castro comunista.
1277
tocando as justificativas do golpe. Isto , como colocado por Juremir Machado, o papel da
intelectualidade orgnica seria transformar o golpe em contragolpe e a ilegalidade em
legalidade522. E sem dvidas o jornal trabalha nesse sentido quanto aos comentrios sobre o
Golpe de Estado. Entretanto, quando falamos de proposies de projetos de futuro encontramos
as subdivises dentro da classe empresarial. O Estado de Minas tomou diversas posies sobre
como deveria suceder a vida politica brasileira, muitas vezes entrando em confronto com outros
empresrios da mdia, tambm liberais conservadores como o Governador da Guanabara Carlos
Lacerda523, sobre como proceder depois do golpe. Nesse sentido, o peridico iria desenvolver
argumentaes prprias como uma espcie de regionalismo, a defesa da prorrogao de
mandatos e no realizao de eleies de 1965. Tambm entrariam em divergncias com o
governo militar no que tange a economia e algumas propostas de reformas, como o voto do
analfabeto e a reforma agrria. Porm, por outras vezes iria defender econmica e politicamente
o governo e seus representantes, podemos at mesmo adiantar que o jornal tinha um apoio-
crtico ao governo, no tomando posies de aberta oposio e nem to pouco contrariando seus
interesses de classe, limitando suas crticas ao governo quando esse no favorecia a oligarquia
empresarial brasileira.
Sobre os projetos polticos do jornal gostaramos de destacar aquele que parece ser seu carro
chefe, a posio de defesa de Minas como um grande protagonista na vida pblica brasileira, tanto no que
diz respeito ao seu povo de maneira abstrata quanto a seus polticos. Tomamos a liberdade de chamar essa
posio como regionalista no sentido de fortalecimento poltico de uma unidade federativa frente s
demais. Um interessante editorial sobre o governador mineiro do dia 28 de julho. O texto que tem por
ttulo Uma data de Minas 524 dedicado a comentar o aniversrio do governador Magalhes Pinto e a
exaltar a figura deste com um grande homem pblico detentor de altas virtudes cvicas. Alm do elogio
pessoal ao governador, se caracteriza Minas como estado que guia a nao. O poltico mineiro descrito
como articulador e catalizador do movimento que expulsou Jango. Colocam que o prprio Assis
Chateaubriand conclamou que o governador entrou de corpo inteiro na histria. Outras figuras da
politica mineira seriam muito elogiadas por diversas vezes no jornal, como o caso de Milton Campos e
Jose Maria Alkimim.
1278
dedicado a defender a tese de no existncia de pleito direto em 1965 e a extenso do mandato de Castelo
Branco por mais um ano. O jornal chega at mesmo afirmar que se fosse consultar o povo do interior,
poderia se dar at cinco anos a Castelo Branco e que apensar de certa, essa prerrogativa poderia ferir a
sensibilidade de polticos mais formalistas. Assim sendo, defendem a extenso do mandato do presidente
por mais um ano, visto que eleies em 1965 ainda estariam contaminadas pelo esprito da subverso e
sendo contraproducente para a revoluo.
O jornal tambm ira tomar posies de defesa poltica do governo, no dia 18 de julho 526.
Afirmavam que a postura serena de Castelo Branco poderia incomodar alguns, todavia ressaltam que os
jacobinos eram necessrios na hora da demolio e no na hora da reconstruo. O editorial dedicado
defesa da postura de Castelo Branco frente aqueles que acreditavam uma postura mais firme no combate
ao comunismo.
O jornal tambm tomaria posies de apoio a algumas polticas econmicas do governo. No que
tange a Minas Gerais, no dia 08 de julho527o editorial dedicado a elogiar o Documento da extrao
mineral, redigido pelo Ministro de Minas e Energia, Mauro Thibau. O documento basicamente fixava a
diretriz de abrir a explorao do recurso mineral brasileiro ao capital privado e internacional, tendo como
objetivo arrecadar moeda de troca para obteno de bens tecnolgicos ainda no produzidos no pas. O
editorial tem um forte tom de comemorao, pois trs dias antes528 haviam feio um editorial dedicado a
comentar a lei de remessa de lucros, que segundo eles teria sido inadvertidamente votada pelo Congresso
no Governo JK. Segundo o jornal a lei teria sido fruto da infiltrao do comunismo no ISEB que
disseminou por anos a ideologia comunista, portanto a aprovao do novo documento seria um
contraponto importante s posies estatistas e nacionalista.
Apesar de forte apoiador, o jornal tambm divergia do governo e suas polticas, em especial no
que se refere reforma agrria e ao voto do analfabeto. Sobre a delicada questo da reforma agrria, o
jornal agiu no sentido de dar destaque a proposta do Governador Magalhes Pinto para o projeto de
reforma em mais um exemplo dessa busca por uma preponderncia mineira no cenrio nacional. Em
ocasio do dia 01 de julho o peridico publicou o texto, Um novo conceito de reforma agrria,
dedicado a comentar a sugesto de reforma agrria enviada por Magalhes Pinto ao presidente.
Ainda sobre os posicionamentos divergentes tomados pelo jornal frente ao governo militar
podemos destacar o combate inflao. No dia 19 de maio529 o jornal publicou um editorial onde
comentou sobre a necessidade de se estabilizar o custo de vida combatendo a inflao. Identificava como
principal problema o desequilbrio oramentrio do governo, como por exemplo, os encargos do
transporte terrestre e martimo que o governo tomou para si. Para solucionar esse dficit se props
526 No h motivos para decepo. Estado de Minas, Belo Horizonte, 18 de jul. 1964. Caderno 1, p. 04.
527 Um documento extraordinrio. Estado de Minas, Belo Horizonte, 08 de jul. 1964. Caderno 1, p. 04 .
528 Intil resistncia. Estado de Minas, Belo Horizonte, 05 de jul. 1964. Caderno 1 . p. 04.
529 O Custo da Vida. Estado de Minas, Belo Horizonte, 19 de mai. 1964. Caderno 1 , p. 04.
1279
recorrer a emprstimos externos se sugerindo nominalmente os Estados Unidos, mas deixaram em aberto
a todas as naes amigas.
O que se pode observar que o jornal sustentava uma posio poltica de cunho
liberal/conservador que tem como eixo central argumentativo o anticomunismo no tocando as
justificativas do golpe. Em alguma medida, as trs grandes matrizes anticomunistas so mobilizadas pelo
jornal, todavia, as linhas liberal e nacionalista tem preponderncia. A crtica corrupo era feita de
maneira interlaada ao comunismo, os dois fatores so identificados como comprometidos. A luta contra
o comunismo e a corrupo era o pano de fundo da argumentao editorial do peridico531. Junto
justificativa do golpe tambm eram esboados projetos de futuro para o Brasil, como uma radical abertura
ao capital esterno, a manuteno do latifndio, a construo de uma democracia menos participativa e a
prorrogao da ditadura alm do determinado no AI-1.
Sendo o jornal um dos poucos ramos do empresariado que tinha como objetivo a venda de
notcia e a manipulao da opinio pblica, esse tipo de empresa tinha uma condio especial na influncia
do cenrio poltico e no dilogo com a opinio pblica. A produo de uma linha liberal autoritria
funcionou como uma espcie de intelectual orgnico que dava certa coeso e conscincia classe
empresarial no momento do golpe de estado, mas no se detinha somente nisso. O jornal tambm
cumpria um papel de propagador do iderio liberal conservador para outros crculos sociais alm do
empresariado. O jornal tambm era propositivo quanto ao futuro poltico do pas, nesse sentido
encontramos o espao para juno de metas prprias desse jornal que no necessariamente eram
compartilhadas por toda classe empresarial, mas sem nunca contrariar suas premissas bsicas de interesse
de sua classe. A ligao entre Chateaubriand e de seus assessores com o poltico Magalhaes Pinto
contribuiu para que o jornal tomasse posies que divergiam de outros empresrios-jornalistas, como por
exemplo, Carlos Lacerda, e tambm podemos dizer que a formao empresarial de Assis o colocava em
consonncia com a abertura do pas ao capital internacional. Dito isso, entendemos que a impressa serviu
como uma espcie de porta-voz da classe empresarial, expondo publicamente as posies desta classe
quanto ao golpe de Estado e sendo uma tima fonte para compreenso geral dos posicionamentos desta
classe. Todavia, temos de nos manter atentos s singularidades e subjetividades de cada veculo
comunicativo e dos seus empresrios. Ressaltamos que cada veculo possua margem de manobra para
530 A prorrogao se impe. . Estado de Minas, Belo Horizonte, 21 de jul. 1964. Caderno 1, p. 04.
531 MOTTA. Em guarda contra o perigo vermelho. p. 70.
1280
acoplar interesses prprios, visando a construo de uma situao politica em uma viso geral de classe,
que pretendia defender uma viso estrutural da sociedade. Assim sendo, conclumos que a influncia desse
jornal sobre o senso comum foi utilizada para justificar o golpe e para a propagao dos valores do
liberalismo econmico, do nacionalismo autoritrio e do anticomunismo.
1281
Abertura Poltica e Msica Popular Brasileira: um
estudo sobre trs canes do Clube da Esquina
RESUMO: O Clube da Esquina como mediador dos anseios da populao poca da Abertura
Poltica no Brasil (1974-1985) atravs das canes as canes Credo (Milton & Brant, EMI, 1978),
Sol de Primavera (Guedes & Bastos, EMI, 1979), e Todo Prazer (Borges & Bastos, EMI, 1981) o
tema deste artigo. Dialogarei as letras e melodias das canes com o contexto que o pas estava
vivenciando poca.
PALAVRAS-CHAVE: Abertura Poltica; Cano; Clube da Esquina; Composio.
Luiz Henrique Assis Garca utiliza deste conceito para se referir ao Clube da Esquina,
pois o Clube seria uma reunio de amigos sem um compromisso com um manifesto ou
delimitaes de grupo.536 O que une os participantes do Clube so mais laos familiares e de
amizade que esto ligados rua, bairro e cidade que residem.537 Para Garca, o Clube apresenta
ausncia de comprometimentos sistemticos, de disposies de cunho institucional ou
532 WILLIANS, Raymond. Cultura. Trad. Llio Loureno de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 57-85.
533 ________. Cultura p.68-69.
534 ________. Cultura p.68-69.
535 ________. Cultura p.68-69
536 GARCA, Luiz Henrique Assis. De novo na esquina os homens esto: O Clube da Esquina como Formao
Cultural na cidade de Belo Horizonte. In: Coisas que ficaram muito tempo por dizer: O Clube da Esquina como
Formao Cultural. 154 f. Dissertao (Mestrado em Histria) - Universidade Federal de Minas Gerais, Programa de
Ps-Graduao em Histria, Belo Horizonte, 2000, p. 18-47.
537 ________. De novo na esquina os homens esto. p. 26-27.
1282
profissional e a independncia em relao aos movimentos significativos de sua poca, como a
bossa nova e a cano de protesto 538. Como tambm ocorre no caso do Tropicalismo.
Surgido das reunies entre Milton Nascimento e os irmos Borges, o clube teve como
participantes essenciais L Borges, Beto Guedes, Toninho Horta e os letristas Mrcio Borges,
Fernando Brant e Ronaldo Bastos, entre outros. A esquina que se tornou clebre atravs do
Clube se encontra no bairro Santa Tereza e simplesmente uma calada onde se cruzam as ruas
Divinpolis e Paraispolis. Esta informalidade atravs da rua caracterizava bastantes as reunies
do Clube. E o espao, apesar de no estar disposto a propor nada, funciona como um ponto de
encontro democrtico. O Clube, apesar de ter suas razes em Minas, cosmopolita e no exclui
nenhum gnero ou msico de outras regies do Brasil ou internacionais. Fernando Brant, em
entrevista ao reprter Srgio Carvalho da revista Veja, afirmou em 1978:
O lbum mais emblemtico do Clube foi o prprio Clube da Esquina, lanado em 1972
e creditado a Milton e L, mas com a participao de vrios outros msicos prximos. O que
salienta a ideia de amizade sem um compromisso formal.
Coisas que ficaram muito tempo por dizer: O Clube da Esquina como Formao Cultural. 154 f. Dissertao
(Mestrado em Histria) - Universidade Federal de Minas Gerais, Programa de Ps-Graduao em Histria, Belo
Horizonte, 2000, p. 72.
541 ________. O que foi feito de Vera. p. 23.
1283
como Beto e L experimentaram muito em sua formao o Rock trazido ao Brasil atravs das
audies de msicas dos Beatles, Yes, e outras bandas. Alm disso, L quando mais novo teve
um contato bastante influenciador com o Choro e a Bossa nova, enquanto Beto recebeu
influncia do seu pai seresteiro542. O dilogo entre esses variados gneros visto nos lbuns tanto
coletivos quanto nos solos dos membros do Clube.
As Canes
Escolhi as trs canes por acreditar que tanto elas quanto outras que esto inseridas no
contexto de abertura so menos estudadas, pois geralmente se d preferncia nos trabalhos
acadmicos para as produzidas durante os Anos de Chumbo. Quando se fala em canes da
Ditadura, geralmente, a maioria do pblico comum se recorda de Apesar de voc, Clice,
Pra no dizer que no falei das flores, Alegria, alegria, proibido proibir, Ponteio,
Aquele abrao, entre outras. A explicao pra isso passa mais pelo engajamento dos msicos,
gerando fascnio no ouvinte, do que na prpria divulgao na poca. At porque a censura
prejudicou a divulgao das canes, pois muitas delas eram proibidas de serem vendidas e
tocadas nas rdios.
542 Beto Guedes fechava seus primeiros lbuns com regravaes de canes de Godofredo Guedes, seu pai.
543 Nada ser como antes. BASTOS, Ronaldo, NASCIMENTO, Milton (compositores). lbum: Clube da Esquina.
EMI, 1972.
544 Beco do Mota. BRANT, Fernando, NASCIMENTO, Milton (compositores). lbum: Milton Nascimento. EMI,
1969.
1284
censurados utilizou de sutilezas que denunciavam no s a realidade repressiva vivida pela
sociedade como tambm a prpria censura sofrida por seus versos:
No podemos esquecer que a censura das letras contribua para essa sutileza ou omisso
nos versos, fazendo com que os letristas improvisassem em suas produes. Para isso aparecem
elementos do interior, referncias localidade fictcias ou no em regies latino-americanas,
metforas, uso de instrumentos a principio no nacionais, entre outras caractersticas. As trs
canes especficas apresentam todos esses exemplos citados. Alm disso, a mensagem contida
nelas mais clara, diferente do que mencionei nas outras produzidas anteriormente. Isso claro,
se o ouvinte atual e o pesquisador levarem em conta e terem conhecimento do contexto em que
ela foi produzida, como afirma o historiador Marcos Napolitano547. Uma entrevista de Milton
Nascimento Revista Veja indicativo disto:
Eu j chorei muitas noites no meu ntimo, pelas coisas que vejo nas ruas, nas
pessoas que sofrem na carne e por elas, eu meus amigos cantamos nossas
esperanas, nossa amizade e buscas. Aos trancos e barrancos, como exige um
pas como o nosso e com a desajuda da minoria massacrante.548
Credo, Sol de Primavera e Todo Prazer tm trs minutos de durao aproximadamente, o que
denota um objetivo de se divulgar e vender mais as obras para o pblico. Esse formato de
durao das msicas pela indstria fonogrfica remete suas origens, pois os primeiros formatos
de udio comportavam no mximo 3 minutos de registro. Com o passar do tempo essa durao
acabou sendo padronizada, pois mesmo hoje a maioria das canes e musicas que emplacam
sucesso seguem essa faixa.
EMI, 1972.
547 NAPOLITANO, Marcos. Captulo III: Para uma histria cultural da msica popular. In: Histria & Msica
histria cultural da msica popular. Belo Horizonte: Autntica Editora, 2005. p. 77-107.
548Texto sem assinatura. preciso gritar. Revista Veja, So Paulo, ano XI, n. 530, p. 52-55, nov. 1978. p. 52.
1285
Outro aspecto importante de salientar que elas abrem seus respectivos lbuns549. A
partir da dcada de 1960, principalmente atravs do pioneirismo dos Beatles, os lbuns de
msicas e canes eram enxergados como uma obra de arte onde cada faixa deveria dialogar uma
com a outra. No diferente no caso do Clube, pois ao se pretender passar uma mensagem que
contextualizaria com a Abertura Poltica era necessrio uma cano marcante que abrisse o disco.
[minha msica] latina, brasileira. Mas no americana [...]. Com a msica latina,
a coisa outra. afinidade, saber o que eles sentem tambm o que
sentimos550.
A minha msica hoje reflete o que vivo. Tem influncia da poltica, dos tempos
de sufoco e transtornos por que estamos passando. Mas tem relao tambm
com o tempo de abertura que tem de chegar.551
A msica para mim o que vejo aqui, o que sinto ali, me desperta, se
transforma numa espcie de filme que vai passando na minha cabea e a sai.
Nada nela gratuito, tudo tem sentido, razo de ser. Por isso Ponta de Areia
(cano de Milton & Brant), no era s ponta de areia, a saudade dos bons
tempos, era relativa a tudo o que deixamos de ter. A msica o tempo. E num
momento de aperto, claro, ela grita mais.552
Credo
549 NASCIMENTO, Milton. Clube da Esquina 2. EMI, 1978. GUEDES, Beto. Sol de Primavera. EMI, 1979. BORGES,
L. A Via-Lctea. EMI, 1981.
550 WYLER, Vivian Milton Nascimento Os Mitos tambm se queixam. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 de out.
1978. Caderno B, p. 4.
551 ________. WYLER, Vivian. p. 4
552 ________. WYLER, Vivian. p. 4
1286
real/Caminhemos pela noite com a esperana /Caminhemos pela noite com a
juventude.553
A cano foi inicialmente proibida pelos rgos de censura, como salienta uma nota no
Jornal do Brasil554. Em seu incio e final nota-se a presena de trechos da cano San Vicente.
A ideia comparar o contexto de produo das duas canes (1972 e 1978, respectivamente). A
escolha em dialogar ambas explicada por Milton Nascimento em uma entrevista Revista Veja,
em 1978:
Essa msica (San Vicente) se tornou uma espcie de hino. E o Credo tambm
tem a mesma ideia que vamos pra frente, todo mundo. Nesse caso, usei o
San Vicente, dando a ideia do povo, cruzado com o Credo... No fundo,
como se eu estivesse fazendo um flash-back, jogando o passado para o presente
e para o que vem.555
Contribuem ainda para isso as escolhas tcnicas da msica. Marcos Sarieddine Arajo,
msico com formao na UFMG, salienta:
Tanto San Vicente como Credo esto em ritmos ternrios, a primeira em 6/8 e a
segunda em 3/4, ritmo que acentua essa musicalidade andina nas canes de
Milton Nascimento. O coro em San Vicente, que inicia e finaliza a cano
Credo, tambm acentua um carter popular para as canes. Os coros, que nas
peras e tragdias tem a funo de trazer o ponto de vista do povo, daqueles
que no esto acompanhando a trama pelo ponto de vista do protagonista, aos
conflitos que cada obra levanta.556
Analisando a letra da cano, o seu inicio j uma resposta do presente que Milton
Nascimento d ao passado ao se dialogar o contexto de 1972 e o de 1978, pois em contraposio
A espera na fila imensa/E o corpo negro se esqueceu, que d a ideia de uma imobilizao,
estagnao, medo, obscuridade, sentimentos que estavam em voga na fase mais violenta da
Ditadura, a cano Credo comea com Caminhando pela noite de nossa cidade/Acendendo a
esperana e apagando a escurido, trazendo consigo o clima do inicio da abertura poltica do
Regime, onde o movimento, esperana do retorno dos exilados e libertao dos presos polticos
que ocorreria um ano depois estavam ligados redescoberta do espao urbano que antes estava
restrito pela represso. E essa caminhada promove o fim do silncio, da obscuridade, do medo.
Trazendo com isso o renascer de esperanas simbolizadas em uma juventude renovada no povo.
Pra trazer ares mais latinos a msica, remetendo assim tambm a San Vicente, Credo
teve a presena na sua gravao da banda Grupo Tacuab, auxiliando Milton nas vozes e
instrumentos. So eles: Eduardo Marquez no baixo, Pato Rovs na guitarra e no violo, e Pipo
553 NASCIMENTO, Milton, BRANT, Fernando (compositores). Credo. lbum: Clube da Esquina 2. EMI, 1978.
554 Texto sem assinatura. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 2 de set. 1978. Caderno B, p. 5.
555 Texto sem assinatura. preciso gritar. Revista Veja, So Paulo, ano XI, n. 530, p. 52-55, nov. 1978. p. 54.
556 ARAJO, Marcos Sarieddine. Anlise de apreciao das canes Credo (Milton & Brant, EMI, 1978), Sol de
Primavera (Guedes & Bastos, EMI, 1979), e Todo Prazer (Borges & Bastos, EMI, 1981). Trabalho no publicado.
1287
Spera no charango e na zampona. Esse ltimo se destaca por ser um italiano que aderiu aos sons
latino-americanos. Alm disso, os dois instrumentos que toca na cano, remetem a tradies
folclricas sul-americanas. O Charango um pequeno instrumento de corda, proporcionalmente
a um cavaquinho utilizado no samba. O outro a Zampoa, instrumento de sopro semelhante
flauta-de-p. Ambos esto ligados msica produzida por camadas populares da populao
andina. A melodia que se inicia no final do trecho de San Vicente presente no incio de Credo e
que separa ambas as canes foi construda utilizando os dois instrumentos, dando esse ar de
msica sul-americana a Credo.
Muitas outras msicas do lbum remetem a isso, e em especial com letras que esto mais
ligadas ao contexto no s brasileiro. Inclusive o instrumentista Novelli toca bombo leguero,
instrumento argentino tpico que tambm era muito utilizado por Mercedes Sosa.
Sol de Primavera
Quando entrar setembro/E a boa nova andar nos campos/Quero ver brotar o
perdo/Onde a gente plantou/Juntos outra vez/J sonhamos
juntos/Semeando as canes no vento/Quero ver crescer nossa voz/No que
falta sonhar/J choramos muito/Muitos se perderam no caminho/Mesmo
assim no custa inventar/Uma nova cano/Que venha nos trazer/Sol de
primavera/Abre as janelas do meu peito/A lio sabemos de cor/S nos resta
aprender.558
1288
antes, pois enaltece a comunho amistosa como meio de resistncia e resgate da liberdade559.
Enquanto Nada ser somo antes denuncia o exilio, Sol de primavera um canto do retorno
para casa. A expectativa da volta dos exilados atravs da Anistia estava muito presente em 1979,
ano de composio e gravao da cano.
Ao cantar Quero ver brotar o perdo fica clara a referncia ao debate relacionado
Anistia que estava sendo perpetuado em vrios setores da sociedade brasileira a partir da segunda
metade da dcada de 1970. Complementando o trecho anterior, Guedes canta Onde a gente
plantou (Juntos outra vez) e salienta que esse processo foi construdo por todos em maneira
conjunta, celebrando assim o sentimento de amizade que existia no Clube que outrora estava
reunido para combater com as canes a Ditadura em sua fase mais dura e nesse momento
celebra a consagrao dessa luta atravs do momento de Abertura Poltica no Brasil.
O sonho aparece aqui como um ideal que no estava presente na fase mais violenta da
Ditadura. Entretanto, os msicos no se mostraram passivos e impotentes quanto ao contexto
em que viviam e fazendo da sua formao musical um instrumento de resistncia s
arbitrariedades do aparato ditatorial. Alm disso, o vento aparece na cano como algo que
ajudaria a espalhar esse ideal para todos os cantos do pas. E essas canes que foram plantadas
na sociedade agora ganham um significado diferente.
Apesar das conquistas aparentemente celebradas por vrios setores da sociedade da qual o
pessoal do Clube se sente pertencendo, ainda se fez necessrio no se satisfazer com estas
conquistas e continuar lutando pelo ideal a ser alcanado. Para isso, a voz jamais poderia se
calar. Ao escrever J choramos muito/Muitos se perderam no caminho, novamente Bastos
remete ao perodo mais fechado da Ditadura, mostrando o sentimento de tristeza e abandono
frente quele tempo. No segundo verso mostrada a realidade dos mortos e desaparecidos pelo
aparato repressor, assim como os exilados ou ento os que se sentindo impotentes abandonaram
a luta ou desistiram dos ideais que acreditavam quando do Golpe de 64.
O fato de parte de a sociedade ter sofrido com a Ditadura no significa que a luta tenha
sido abandonada, muito menos que a produo do Clube tenha diminudo sua militncia. Os
versos Mesmo assim no custa inventar/Uma nova cano/Que venha nos trazer/Sol de
primavera podem dar margem outra interpretao, onde a cano extrapola o seu sentido
somente musical e vira uma espcie de panfleto visando convocao da populao para resistir
a esses anos de luta. O Sol, que tantas vezes aparece nas canes do Clube, toma novamente o
MARTINS, Bruno Viveiros. Captulo III: Cano Amiga encontros e despedidas nas esquinas da cidade. In:
559
Som Imaginrio: a reinveno da cidade nas canes do Clube da Esquina. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.
1289
sentido de renovao e esperana, alm do simbolismo da luz como algo que contrapem a
obscuridade dos anos anteriores. Assim como Bastos escrevera em Nada Ser Como Antes.
Nos versos da cano janela retoma esse sentido de claridade, lembrando a cano
Paisagem da Janela562. Novamente esse objeto carregado de metforas algo que revela a
libertao da viso para o que estava ocorrendo fora do prprio eu interior. Assim como
salienta que tudo isso j fora anteriormente dito, basta agora no parar no caminho e retomar a
luta.
Todo Prazer
560 ARAJO. Anlise de apreciao das canes Credo (Milton & Brant, EMI, 1978), Sol de Primavera (Guedes &
Bastos, EMI, 1979), e Todo Prazer (Borges & Bastos, EMI, 1981). Trabalho no publicado.
561 ARAJO. Anlise de apreciao das canes
562 BORGES, L, BRANT, Fernando (compositores). Paisagem da Janela. lbum: Clube da Esquina. EMI, 1972.
563 BORGES, L, BASTOS, Ronaldo (compositores). Todo Prazer. lbum: A Via-Lctea. EMI, 1981.
1290
possui um sentido de convocao da juventude para as ruas. Alm de ser possvel constatar isso
atravs de trechos da letra, como Todo vapor/Ningum parou/De andar a luz do sol/Firme no
meu caminho/Junto de quem j sonhou, os produtores do lbum optaram por adaptar a
melodia de L Borges atravs de arranjos tradicionais da msica pop564 fazendo uso de
instrumentao que se aproximam do gnero.565
Mas o que se nota nessa cano a importncia de vivenciar o presente mais do que ficar
retomando o passado ditatorial mais repressivo, pois a construo do futuro parte dessa
valorizao. L Borges atravs de seu canto e Ronaldo Bastos de seus versos retomam Cais,
onde os versos Todo prazer/De conhecer/E sentir a vibrao/Inventa o cais/ Meu
amor/Vamos juntos/No se pode impedir/Ningum de sonhar/De tudo viver/Todo o
prazer...566 dialogam com a letra da cano anterior:
1291
Dramaturgia brasileira nos anos 1970: reorganizao
e resistncia
Mariana Rosell
Mestranda em Histria Social
Universidade de So Paulo
[email protected]
RESUMO: Esse texto visa compreender o papel da dramaturgia comunista no contexto de resistncia ao
regime militar. Queremos observar como um projeto cultural prximo ao projeto poltico do Partido
Comunista Brasileiro (PCB) ocupou um importante espao no teatro, mesmo diante do fracasso do
partido em formular uma poltica cultural durante esse perodo e investigar como o teatro poltico se
reorganizou de acordo com as novas demandas surgidas na dcada de 1970.
PALAVRAS-CHAVE: Regime militar brasileiro; Resistncia cultural; Histria do teatro brasileiro;
Dramaturgia comunista; Partido Comunista Brasileiro
A partir de meados da dcada de 1950, podemos observar uma inquietante busca por renovao
na cultura brasileira, que desencadeou uma movimentao dos artistas engajados que buscavam o
desenvolvimento de uma arte poltica, preocupada em discutir questes nacionais e temticas relevantes
para as classes populares brasileiras. Movimentos que se tornariam referncia nas dcadas seguintes, como
o Cinema Novo e a Bossa Nova, iniciaram nesse perodo, assim como a atuao de importantes artistas a
intelectuais, cuja maioria teria papel de destaque nos anos do regime militar. Obras como Rio, 40 graus
(1955), filme de Nelson Pereira dos Santos, e o LP Chega de Saudade (1959), de Joo Gilberto, so as
primeiras manifestaes dessa busca por renovao. O teatro tambm passou por um processo de
renovao e politizao, que seria fundamental para a organizao deste setor durante o regime militar e
para sua condio pioneira na resistncia568; a partir da encenao de Eles no usam black-tie (Gianfrancesco
Guarnieri, 1958), pelo Teatro de Arena de So Paulo, muitos dramaturgos trabalhariam no sentido de
trazer o povo brasileiro para os palcos.
Cf. FARIA, Joo Roberto (dir.). Histria do teatro brasileiro: volume II. So Paulo: Perspectiva, 2013, pp. 175-215;
568
GARCIA, Miliandre. Teatro e resistncia cultural: o Grupo Opinio. Temticas, Campinas, ano 19, N 37/38, pp.
165-182, 2011.
1292
Gianfrancesco Guarnieri. Peas como Chapetuba Futebol Clube (Oduvaldo Vianna Filho, 1959), A mais-valia
vai acabar, seu Edgar (Oduvaldo Vianna Filho/Chico de Assis, 1960), Revoluo na Amrica do Sul (Augusto
Boal, 1960) e A semente (Gianfrancesco Guarnieri, 1961), ao lado de outras produes culturais, como os
filmes Cinco Vezes Favela (Cac Diegues/Joaquim Pedro de Andrade/Leon Hirszman/Marcos
Farias/Miguel Borges, 1960), Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963) e Deus e o diabo na terra do sol
(Glauber Rocha, 1963), alm do LP O povo canta (1963), produzido pelo CPC/UNE, so importantes
referncias para a compreenso do que significou essa movimentao para a cultura brasileira.
Aps o golpe, que rompeu os laos de ligao entre a intelectualidade engajada e as camadas
populares constitudos no perodo anterior, a reorganizao da esquerda teatral proveniente do
CPC/UNE foi relativamente rpida, resultando no show Opinio, que estreou em 11 de dezembro de
1964, no Rio de Janeiro, e acabou por se constituir numa espcie de modelo de militncia cultural
engajada, sendo considerado a primeira manifestao cultural de resistncia ao regime implantado 569.
Outras peas importantes seriam encenadas nos anos seguintes buscando encontrar a melhor forma de
utilizar o teatro no s como espao de fruio artstica, mas tambm de conscientizao poltica. Dentre
essas peas, destacamos Liberdade Liberdade (Millr Fernandes/Flvio Rangel, 1965) e Se correr o bicho pega, se
ficar o bicho come (Oduvaldo Vianna Filho/Ferreira Gullar, 1966), encenadas pelo Grupo Opinio, e Arena
conta Zumbi (Augusto Boal/Gianfrancesco Guarnieri, 1965) e Arena conta Tiradentes (Augusto
Boal/Gianfrancesco Guarnieri, 1967), encenadas pelo Teatro de Arena de So Paulo.
569 O show Opinio j seria pautado pela noo de frentismo cultural, orientao do PCB que daria as bases para a
resistncia democrtica fundada na aliana de classes. Ao nos referirmos ao show como um modelo, no queremos
dizer que a forma utilizada nele tenha sido nica no teatro de resistncia ao regime militar, mas sim que as discusses
colocadas por ele, em termos de temas e formas, foram retomadas, de diferentes maneiras, ao longo dos anos que se
seguiram. Cf. PATRIOTA, Rosngela. A escrita da histria do teatro no Brasil: questes temticas e aspectos
metodolgicos. Histria, So Paulo, v. 24, pp. 79 110, 2005.
570 Cf. GUINSBURG, J.; FARIA, Joo Roberto; LIMA, Maringela Alves de (coords.). Dicionrio do teatro brasileiro:
temas, formas e conceitos. So Paulo: Perspectiva; Edies SESC SP, 2009, pp. 18-20.
1293
ou questionar, provocar e desrespeitar os valores morais cristos-ocidentais considerados caractersticos da
burguesia atravs do recurso nudez, encenao sexual, entre outros.571
Durante a dcada de 1970, possvel observar uma retomada dos palcos brasileiros pelos
dramaturgos de inspirao marxista, que buscavam construir uma expresso cultural do Partido
Comunista Brasileiro (PCB), reafirmando as propostas da resistncia democrtica orientada pelo partido e
por em discusso a atuao das esquerdas sob o regime.572 Especialmente entre os anos 1973 e 1979,
observamos uma atuao mais enftica dessa dramaturgia no sentido de: 1) trazer o pblico de volta ao
teatro que, a seu ver, havia sido afastado pela agresso; 2) intensificar a luta pela liberdade de expresso e
contra o autoritarismo; 3) desenvolver peas em que a relao entre esttica e poltica se apresentasse de
maneira mais clara, tendo um eixo esttico-ideolgico bem definido. Os anos de 1973 e 1974 tambm
marcam a diluio do teatro de agresso, com a diminuio da atuao do Teatro Oficina e o exlio de seu
principal nome, Z Celso (1974).
Alm disso, esses dramaturgos buscaram refletir sobre as crticas sofridas pela militncia aliada
tradio pecebista e responder a elas. Segundo Maria Paula Arajo, especialmente entre 1973 e 1975, a
concepo de resistncia democrtica se fortaleceu no Brasil, muito em funo da autocrtica da esquerda
armada e da promessa de distenso do regime.573 Atravs da esttica realista, a dramaturgia comunista
buscava se reorganizar e responder ao irracionalismo574 do teatro de agresso com a palavra e o
pensamento. Muitas peas escritas e encenadas na dcada de 1970 apontam a existncia de uma atuao
convergente de alguns dramaturgos nesse sentido como, por exemplo, O ltimo Carro (1967/1976), de
Joo das Neves; Um grito parado no ar (1973), de Gianfrancesco Guarnieri; Rasga Corao (1974/1979), de
Oduvaldo Vianna Filho e Gota Dgua (1975), de Paulo Pontes e Chico Buarque. Outras peas traziam
temticas relevantes para a cultura poltica comunista, como o caso de Ponto de Partida (Gianfrancesco
Guarnieri, 1976) e Pattica (Joo Ribeiro Chaves Neto, 1976), que abordaram metaforicamente o
emblemtico assassinato de Vladimir Herzog, conhecido jornalista comunista que foi morto sob tortura
em 1975, e tantas outras.
Segundo Miriam Hermeto , o prefcio de Gota dgua foi escrito sob a forma de um ensaio
sobre a realidade brasileira de ento [... e] pode ser compreendido como uma forma de autolegitimao
571 Cf. _____________. Dicionrio do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos. Outros exemplos do teatro de
agresso no Brasil so as peas Tom Paine (Paul Foster, 1970) e Missa Leiga (Chico de Assis, 1972), dirigidas por
Ademar Guerra; A vida escrachada de Joana Martini e Baby Stompanato (Brulio Pedroso, 1970); Apareceu a Margarida
(Roberto Athayde, 1973), Maria Manchete, Navalhada e Ketchup (sis Baio, 1975), entre outras.
572 Cf. NAPOLITANO Marcos. Corao civil: arte, resistncia e lutas culturais durante o regime militar. Tese (Livre
Docncia em Histria do Brasil Independente) - Universidade de So Paulo. So Paulo 2011; HERMETO, Miriam.
"Olha a Gota que falta". Um evento no campo artstico-intelectual brasileiro (1975 - 1980). Tese (Doutorado
em Histria) Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Programa de Ps-Graduao em
Histria, 2010.
573 ARAUJO, Maria Paula. A utopia fragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no mundo na dcada de 1970. Rio de
que caberia dramaturgia realista, na medida em que esta prima pela palavra, reflexo e pensamento e aquele, pelo
apelo aos sentidos, performance e corpo.
1294
dos autores do texto no campo artstico-intelectual [...] e uma preparao da recepo do pblico leitor
para os sentidos da obra, direcionando-a para a avaliao crtica da sociedade.575 Nele, Paulo Pontes e
Chico Buarque refletem sobre a importncia da palavra para o contexto no qual se inseriam e apontam
uma crise expressiva pela qual o teatro brasileiro passava, crise essa que colocara a palavra em segundo
plano. Os autores afirmam que
Essas peas nos permitem compreender o dilogo do teatro com o projeto de frentismo cultural
que pautou a resistncia democrtica defendida pelo PCB. Segundo Marcos Napolitano, o frentismo
cultural se construiu sobre trs pilares: a) ocupao dos circuitos mercantilizados e institucionais da
cultura; b) busca de uma esttica nacional-popular; c) afirmao do intelectual como arauto da sociedade
civil e da nao..577 O historiador tambm alerta que a atuao frentista foi marcada por tenses que
tiveram relevantes implicaes na rea teatral. Ele diz que
Isso pode ser observado a partir das grandes contradies que marcaram as relaes entre os
artistas de teatro e os rgos do regime militar e tambm dos rgos entre si , bem exemplificados
pelas vrias peas premiadas pelo Servio Nacional de Teatro (SNT), mas proibidas de serem encenadas,
publicadas e at mesmo lidas pelo Departamento de Censura.579
A partir desse quadro, Reinaldo Cardenuto formulou o conceito de dramaturgia de avaliao, que se
apresenta como uma das principais referncias para o estudo que aqui se prope. A dramaturgia de
575 HERMETO, Miriam. O prefcio de Gota dgua: as bases de um projeto cultural de interface entre intelectuais e
artistas na ditadura militar brasileira. Literatura e Autoritarismo, Santa Maria, v.7, p. 81-102, 2012, p. 82.
576 BUARQUE, Chico; PONTES, Paulo. Gota dgua. So Paulo: Circulo do Livro, 1975, p. 14.
577 NAPOLITANO. Corao civil: arte, resistncia e lutas culturais durante o regime militar, p. 2.
578 _____________. Corao civil: arte, resistncia e lutas culturais durante o regime militar, p. 67.
579 Sobre a censura ao teatro durante o regime militar brasileiro, cf. GARCIA, Miliandre. Ou vocs mudam ou acabam:
teatro e censura na ditadura militar (1964-1985). Tese (Doutorado em Histria) Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
1295
avaliao consiste naquela desenvolvida pelos dramaturgos comunistas que, no inicio dos anos 1970,
buscaram articular duas questes principais: qual seria, afinal, o lugar reservado ao militante tradicional de
esquerda no Brasil ps-1968 e, dentre as possveis formas dramatrgicas, qual permitiria, em tempos
sombrios, uma aproximao critica mais eficaz com os espectadores.580 Ainda segundo o autor, esses
dramaturgos estavam tentando manter o teatro como um espao para o debate pblico das questes
nacionais. Para eles, segundo a concepo marxista da arte, cabia arte politizada oferecer um foco de
resistncia chamada modernizao conservadora e realizar uma reviso da dramaturgia anterior com a
finalidade de conservar, no teatro, uma prtica pulsante de reflexo crtica sobre o pas.581
A pea acontece no interior de um trem que viaja pelos subrbios cariocas e nos d a ver
os dramas particulares de mendigos, operrios e demais representantes de estratos sociais
marginalizados. O universo de O ltimo carro o dos subrbios cariocas [...] dos emparedados
pelos vages da central [...] um universo trgico [...] num mundo que no produz mais heri
porque o herosmo est encravado na luta cotidiana pela sobrevivncia de toda a populao.. 582
O que vemos em nessa pea um denominador comum entre todos os dramas particulares
representados, uma condio social que une a todos os passageiros do trem e os condena a um
destino de sofrimento.
J em Gota dgua, Paulo Pontes e Chico Buarque reconduzem o popular ao palco, atualizando os
seus dilemas no contexto dos anos 1970, denunciando o controle scio-poltico-econmico do pas por
uma elite que cala a esquerda e consegue assimilar as expresses de rebeldia das classes populares. O mote
da pea a relao entre Joana e Jaso, ambientada num conjunto habitacional no Rio de Janeiro,
chamado Vila do Meio-Dia. Em Gota dgua, O fundo social [] uma dura crtica ao milagre econmico
ento em curso [e] surge atravs da mobilizao da populao do morro contra os preos extorsivos das
unidades postas venda..583 O palco d lugar aos dilemas prprios do segmento popular urbano
perifrico, que esto perpassados pelo conflito amoroso do casal protagonista. Antigo companheiro de
Joana, com quem tem dois filhos, Jaso abandona a famlia para relacionar-se com Alma, a filha do dono
do conjunto habitacional. Divide-se, ento, entre o conforto e a estabilidade econmica e as antigas
relaes afetivas, com a famlia e os amigos da Vila do Meio-Dia.
Mas a preocupao desses dramaturgos em repensar sua atuao poltica tambm incluiu
demandas mais especficas relativas resistncia ao regime militar. Da, por exemplo, a discusso
central de Rasga Corao (1974), que refletia sobre a atuao das esquerdas durante a dcada
anterior. Atravs do enfrentamento entre pai e filho, Oduvaldo Vianna Filho recupera mais de
580 CARDENUTO, Reinaldo. Dramaturgia de avaliao: o teatro poltico dos anos 1970. Estudos Avanados, So
Paulo, v. 26, n. 76, pp. 311-332, 2012, p. 317.
581 ______________________. Dramaturgia de avaliao: o teatro poltico dos anos 1970, p. 312. Grifo nosso.
582 NEVES, Joo das. O ltimo carro. Rio de Janeiro: Opinio, 1976, p. 5.
583 GOTA dgua. In: Enciclopedia Ita Cultural de Teatro. So Paulo: Ita Cultural, 2009. Link indisponvel. Acesso em
01.abr.2014.
1296
quarenta anos da histria poltica brasileira, colocando numa perspectiva de longa durao a
militncia de Manguari Pistolo, o autntico militante do PCB. O drama familiar nos lana o
conflito latente nas oposies ao regime militar. O embate entre a perspectiva da luta
armada/ao direta e a da chamada resistncia democrtica se coloca como parte do eixo
constituinte da pea-sntese do projeto dramatrgico de Vianinha, que sempre se pautou pela
concepo da arte como instrumento de transformao social.584 Segundo Rosngela Patriota, seu
trabalho permitiu o registro de discusses fundamentais, no mbito poltico e terico, na dcada
de 60 e incio da de 70, sob a gide do Partido Comunista Brasileiro.585
J Um grito parado no ar iniciava uma fase em que Guarnieri recorreria a uma linguagem metafrica
de modo a facilitar a liberao de seus textos. Segundo o verbete da Enciclopdia Ita Cultural de Teatro,
essa pea reflete o momento difcil que a dramaturgia atravessa[va], desejosa de discutir problemas
sociais, mas obrigada a evitar aluses explcitas que pudessem levar ao veto da Censura.586 O cotidiano
retratado o de um grupo de teatro que enfrenta inmeras dificuldades de atuao, tanto de ordem
poltica quanto de ordem econmica. Em constante luta contra um ambiente repressivo e contra as
dificuldades econmicas impostas pela modernizao capitalista, a mercantilizao da arte e o
aprimoramento da industria cultural brasileira, o pequeno grupo de teatro representado em Um grito parado
no ar grita e resiste. A pea burlou a censura e estreou ainda em 05 de julho de 1973, comprovando que a
investida de seu autor tinha sido bem sucedida.
Esse recurso metafrico seria novamente utilizado pelo autor trs anos depois, em Ponto de partida
que, como j foi dito, referia-se ao assassinato do jornalista Vladimir Herzog. Ambientada numa pequena
aldeia medieval, a pea gira em torno da investigao da morte do jovem Birdo, que encontrado
enforcado na praa central, sendo que a grande questo a se averiguar se o ocorrido se tratava de
assassinato ou suicdio j colocada aqui a referncia ao caso Vlado. As demais personagens so, como
chamou Fernando Peixoto, personagens-smbolos587 que representam as diferentes posies tomadas
diante da situao de conflito: h quem se cale por medo, h quem se cale por conformismo, h quem faa
de tudo para que a verdade venha tona e h quem faa de tudo para ocult-la. Ainda segundo Peixoto,
Ponto de partida se trata de uma parbola que se destina aos que desejam, buscam e so capazes de abrir os
olhos com emoo, dvida e reflexo. E assim, Guarnieri continua fiel ao mais possvel e vigoroso
realismo.588 Ora, com essa afirmao, o ator, diretor e crtico nos reitera que, apesar do recurso
584 Cf. PATRIOTA, Rosngela. Papa Highirte: reflexes sobre a militncia de esquerda frente ao autoritarismo
latino-americano. In: DAYRELL, Eliane; IOKOI, Zilda (orgs.). Amrica Latina contempornea: desafios e
perspectivas. Rio de Janeiro: Expresso e Cultura; So Paulo: EDUSP, 1996.
585 ______________. Papa Highirte: reflexes sobre a militncia de esquerda frente ao autoritarismo latino -
1297
parbola e metfora, Guarnieri trabalhou na perspectiva realista, que estava entre as pautas da
dramaturgia de avaliao.
O deslocamento no tempo como meio para discutir acontecimentos do perodo j havia sido
utilizado por Chico Buarque e Ruy Guerra na dramaturgia de Calabar O elogio da traio (1973).
Recuperando o episdio da ocupao holandesa no nordeste brasileiro no sculo XVII e a figura de
Domingos Fernandes Calabar, os autores buscaram refletir, em pleno Brasil do Ame-o ou deixe-o,
sobre o que de fato poderia ser considerada traio ptria, em que situaes seria legtimo se levantar
contra ela, quais os motivos que levariam a isso. Assim, a metfora da traio de Calabar servia como
mote para a discusso da atuao das oposies ao regime militar, consideradas pelo governo e seus
apoiadores, como traidores da ptria, especialmente os militantes da luta armada, que no ano de 1973 j
haviam sofrido derrotas definitivas. Como afirmou Fernando Peixoto, diretor da primeira montagem da
pea, nela
a Histria utilizada como matria para uma reflexo que ultrapassa os limites
de determinadas circunstncias poltico-econmicas j superadas. [...] O
passado revisto com a lucidez de quem vive o presente: com a conscincia de
quem mergulha na Histria em busca de uma compreenso do mundo de
hoje.589
Protagonista de um dos casos mais emblemticos de censura, Calabar o elogio da traio seria vetada
integralmente poucos dias antes de sua estria, causando um prejuzo aos produtores se precedentes no
teatro brasileiro. Assim como outras peas proibidas durante desde finais dos anos 1960 e 1970, como
Papa Highirte (1968) e Rasga Corao (1974), Calabar estreou na virada de 1979 para 1980.
A pea que, talvez, seja a ltima inserida nessa espcie de projeto pera do malandro, novamente
de Chico Buarque. Escrita e estreada em 1978, baseada na pera dos mendigos (John Gay, 1728) e na pera
dos trs vintns (Bertolt Brecht/Kurt Weill, 1928), alm de ser dedicada pelo autor memria de Paulo
Pontes, seu parceiro em Gota dgua, falecido dois anos antes. Ambientada nos anos 1940, a pea pe em
cena os meandros que regem a vida dos personagens que so, em sua maioria, representantes do lumpem:
prostitutas, travestis, contrabandistas; todos buscando sobreviver sob o jugo do poder econmico e do
controle que Duran, o cafeto, tenta exercer sobre todos e todas. Crtico ao deslumbramento com o
americanismo, o musical ainda expe a falcia da ideia de que o progresso e a modernizao acarretam
numa melhoria na vida de todos. Temos aqui um ponto de dilogo no s com o momento que retrata o
surto desenvolvimentista estimulado pelo varguismo , mas tambm com o contexto em que foi escrita, j
589 PEIXOTO, Fernando. Uma reflexo sobre a traio. In: Teatro em pedaos. So Paulo: Hucitec, 1989, p. 153.
1298
que nesse perodo as consequncias do fim do chamado milagre econmico j se mostravam nefastas, em
especial para a populao mais pobre.
As peas aqui comentadas expressam uma proposta poltica vinculada retomada dos palcos
pelo teatro realista pautado na palavra e, ainda que o faam de maneiras variveis, so paradigmticas no
que tange manifestao do projeto poltico do Partido Comunista Brasileiro na dramaturgia brasileira,
que se realizou ainda que o partido tenha falhado na tentativa de formular uma poltica cultural durante
todo o regime militar. Marcos Napolitano afirma que, no campo teatral, os dramaturgos constituam uma
espcie de ncleo duro da poltica cultural que mais se aproximava das posies do PCB: defendiam a
unidade e o frentismo (artstico e classista); pautavam-se pela busca do homem brasileiro e suas
contradies especficas; filiavam-se ao drama realista.594 Assim, como pudemos ver, temas e abordagens
caractersticos do projeto e da cultura poltica comunista internacional e brasileira marcaram boa parte da
dramaturgia de esquerda nos anos 1970, fazendo do teatro um espao privilegiado de militncia e reflexo.
Para maior compreenso sobre a cultura poltica comunista e suas caractersticas, cf. MOTTA, Rodrigo Patto S.
590
A cultura poltica comunista. Alguns apontamentos. IN: NAPOLITANO, Marcos; CZAJKA, Rodrigo; MOTTA,
Rodrigo Patto S (orgs.). Comunistas brasileiros: cultura poltica e produo cultural. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2013.
591Para melhor entendimento da crtica do PCB moral burguesa, cf. MOTTA, Rodrigo Patto S. O PCB e a moral
comunista. Lcus Revista de Histria, Juiz de Fora, v. 3, n1, 1997, pp. 69-83. importante observar, contudo, que
tanto em A pera do malandro quanto em Calabar, Chico Buarque coloca em pauta a homossexualidade, criticada tanto
pela moral burguesa quanto pela comunista.
592 Para a letra completa da cano, cf. HOLLANDA, Chico Buarque de. Tantas palavras. So Paulo: Companhia das
Letras, 2006, pp. 257-258.
593 _____________________. Tantas palavras, pp. 257 - 258.
594 NAPOLITANO. Corao civil: arte, resistncia e lutas culturais durante o regime militar, p. 166.
1299
Estado de exceo e necessidade potica: o Jornal
da Poesia no JB de 1973
Moniquele Silva de Arajo
Mestranda em Histria Poltica
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
[email protected]
RESUMO: O presente artigo prope uma articulao entre poesia e estado de exceo, entre a ditadura
civil-militar brasileira e a necessidade potica, que chama ateno no Brasil da dcada de 1970, com a
publicao do Jornal da Poesia dentro do caderno B do Jornal do Brasil. As questes abordadas aqui
colocam em perspectiva a compreenso de um estado de exceo em permanncia a partir da construo
de um modelo de estado moderno que est em desenvolvimento nos dias de hoje. Trata-se de um paralelo
entre o desenvolvimento do poder estatal, da alienao poltica e cultural (processo de individualizao,
destruio da realidade) e da arte a partir da modernidade.
PALAVRAS-CHAVE: poesia; estado de exceo; ditadura civil-militar; necessidade; magia.
1300
pois houve uma ruptura de civilizao. O estado tornou-se terrorista utilizando-se de seu instrumento -
a Doutrina de Segurana Nacional - contra a oposio, cometendo ento diversos crimes contra a
humanidade.
Em seu estudo da histria dos estados de exceo, Agamben percebe uma transformao dos
regimes democrticos em consequncia da progressiva expanso dos poderes executivos durante as duas
guerras mundiais. Para ele, o estado de exceo moderno uma criao da tradio democrtico-
revolucionria, sendo introduzido pela primeira vez na constituio de 22 Frimrio, da primeira repblica
francesa, em 1792. Ainda que apostando na modernidade, diferente de Agamben, Paulo Arantes cita a
constituio da Filadlfia de 1787 que sancionava - segundo ele - um verdadeiro golpe de Estado, para
abordar uma histria do estado de exceo. A constituio norte-americana teria sido concebida tendo em
mente o estado de exceo. Arantes chama ateno, portanto, para a inveno norte-americana do estado
de exceo em que, mesmo em tempos de aparente normalidade, o presidente pode converter-se em um
ditador. Em O novo tempo do mundo, Paulo Arantes explcita que em meados do sculo XIX, a violao aos
direitos individuais por parte do Estado tornou-se a razo de ser da prpria constituio garantidora da
ordem mercantil emergente, ameaada pela desordem das novas classes trabalhadoras tidas como
perigosas. Sendo assim, o estado de exceo no algo que comea em 1964 no Brasil com o golpe, mas
algo que tem suas origens numa modernidade, baseado nas relaes de desenvolvimento econmico que
se constituram ao longo da histria, que propicia ao mesmo todo um aparato jurdico para que exista.
Proponho pensar aqui a relao que a obra de arte, a poesia nesse caso, tem com o estado de
exceo. Para isso faz-se necessria a compreenso do que a obra de arte na sociedade, em
correspondncia, na histria. Com base nos artigos publicados no Jornal do Brasil evidenciados mais em
frente - em 1973, advertindo para a necessidade da poesia, a questo pode ser: que sociedade era essa que
reclamava a poesia, que indicava a necessidade da circulao potica? Por que outras figuras, formas? Por
que a fico importa no momento to extremo como o caso do estado de exceo?
Alfredo Bosi em Entre a literatura e a histria discorre sobre a poesia num tempo que isso se tornou
necessrio. No seu captulo a poesia necessria? compreende que num bom tempo no se fala sobre a
necessidade da poesia. Ou seja, o tema proposto pelos crticos literrios da poca da ditadura civil-militar
talvez seja mais um sinal dos tempos: quem pergunta sobre a necessidade da poesia poder estar
experimentando uma falta e provavelmente um sentimento misto de saudade do que ainda enigma.597
Ele aposta que na arte que est a magia do mundo desencantando de Max Weber: a poesia torna
prximo e singular o que a desmemoria cotidiana vai deixando remoto e indistinto.598
O Jornal da Poesia publicado dentro do caderno B do Jornal do Brasil em 1973 - nos meses de
Setembro, Outubro e Novembro, organizado por Affonso Romano de SantAnna por recomendao do
jornalista Alberto Dines foi um dos importantes focos do surto potico brasileiro na dcada de 1970.
Do contexto poltico de ditadura civil-militar e do milagre econmico surgiu o que foi chamado de a
597 BOSI, Alfredo. Entre a Literatura e a histria. So Paulo: Ed. 34, 2013, p. 9.
598 ____________. Entre a Literatura e a histria, p12.
1301
necessria poesia, conforme o texto de abertura do primeiro nmero do jornal, que chamava ateno
para o perodo de efervescncia potica e dizia ter por objetivo fornecer um panorama da poesia
brasileira daquele tempo.
Affonso Romano de SantAnna, editor e responsvel pela seleo das poesias para a publicao
do jornal procurou mesclar e reconhecer a poesia produzida no momento, que andava solta pelas ruas,
pelos botecos, pelas cabeas das pessoas, nas estruturas de sentimentos ou sentidos599 dos brasileiros.
Depois da efervescncia potica - dos movimentos de vanguarda das dcadas de 1950 e 1960 - a
poesia parecia ter-se silenciado ou vivido s expensas da MPB. O pas teria vivido, para muitos autores, o
chamado vazio cultural600 causado pelo Ato Institucional n5, que significou o endurecimento do regime
de exceo ento vivido. No entanto, a dcada de 1970 foi de um momento de alta produo potica.
Como dizia no primeiro nmero do Jornal da Poesia: a poesia voltou, voltou antes mesmo da
primavera. O Jornal do Brasil passou a publicar o Jornal da Poesia em Setembro de 1973, recebendo
centenas de poemas e tambm crticas ao que estava ocorrendo no momento como, por exemplo, a
opinio do crtico literrio Anatol Rosenfeld sobre a publicao das poesias.
sumamente importante que, numa hora em que h uma forte tendncia
neofascista no sentido de minimizar a pertinncia da palavra como formassem
rival de comunicao entre os homens, um rgo srio e respeitvel da
imprensa como o Jornal do Brasil retome o dilogo com a literatura, ao
instituir, ainda que mensalmente, o seu Jornal da Poesia. [...] a abertura das
pginas do JB para o fenmeno da criao potica vem de encontro a uma
necessidade urgente e inadivel, porque, queiram ou no queiram os mal
avisados, a poesia como se fosse o corao do fato literrio, alis o seu centro
mesmo de gravidade. [...] o homem s se distingue dos outros animais porque
usa a palavra. E a palavra como modus vivendi da criatividade potica, aquilo
que, agora, determinados setores antidemocrticos e desumanos gostariam de
ver exterminado da existncia mesma da condio humana.601
J o crtico Oscar Mendes adverte para a marginalidade da nova poesia ento produzida no pas,
ressaltando ainda sua necessidade de existncia e publicao.
599 Estrutura de sentimento enquanto sentimento social, vivido e sentido numa determinada poca: A ideia de
uma estrutura de sentimento pode ser especificamente relacionada evidncia de formas e convenes, figuras
semnticas, que na arte e na literatura esto quase sempre entre as primeiras indicaes que tal estrutura est se
formando WILLIAMS, Raymond. Estruturas de sentimento. In: Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
p.13.
600 Termo utilizado por intelectuais da poca, como o jornalista Zuenir Ventura, que escreveu artigos com esse ttulo.
601 ROSENFELD, Anatol. Opinio do Crtico Anatol Rosenfeld. JB, RJ, 04 de Setembro de 1973, cad. 1, p. 10. (O crtico
nasceu em Berlim em 1912, veio para o Brasil em 1937 fugido da barbrie nazista, tendo sido uma das mais
significativas expresses como ensasta e doutrinador.)
602 MENDES, Oscar. Oscar Mendes acha que o Jornal da Poesia completa obra do Suplemento livro. JB, RJ, 5
1302
O poeta Mrio Chamie chama ateno para a importncia do Jornal da Poesia definindo-o
como [...] espao certo para o uso da palavra no corrompida, capaz de traduzir e interpretar a nossa
realidade acima das iluses convenientes ou das mistificaes programadas.603 J para o diretor do
Suplemento literrio de Minas, Angelo Osvaldo
Importa ainda salientar a opinio de Fabio Lucas sobre o Jornal da Poesia, que compreende a
volta da poesia como um tempero insensibilidade e que os processos sociais envolventes tentaram
desloca-la do seu eixo, mas ela resiste sempre e floresce em campo de esperana.604 Todos os crticos,
poetas e escritores chamam ateno, portanto, para a escassez da arte potica e que os jornais fechavam
suas pginas para a literatura naquele momento, advertindo uma carncia dos rgos de divulgao. O
Jornal da Poesia sanaria esse problema. Sendo assim, tais crticos nos fazem compreender que a poesia
no circulava at ento e que vigorava a fora do desenvolvimento de um modelo econmico que
diminuiu o valor artstico e o seu sentido para a vida, excluindo e paradoxalmente florescendo a
necessidade da arte, da poesia.
Ernst Fischer escreveu sobre A necessidade da arte, publicada em 1959, correlacionando o mundo
artstico-potico necessidade de humanidade. A arte tem funo? e no estado de exceo qual seria a sua
funo caso se pudesse falar de uma, inefvel a funo da arte? Como movimento criado na sociedade,
diz respeito a mesma e tambm a orienta. Fischer traz algumas reflexes a respeito da obra de arte
visualizando-a a partir de um pensamento marxista, apesar disso e por causa disso, no se limita ao
superficial de uma anlise sobre a arte, ainda que possa haver muito a se pensar sobre, a se aprofundar. O
autor no compreende tudo como culpa do capitalismo, segundo ele, o artista expressa a angstia
permanente, ainda que muito do que est em jogo no campo do capital inspire a criao da realidade
(outra), ou seja o desenvolvimento artstico-potico.
A arte compreendida pelo filsofo como meio indispensvel para a unio do indivduo ao todo,
sendo derivada da experincia, uma objetificao dela, do meio social do momento criado e do todo
tambm da humanidade, como uma permanncia. Finito que infinito. Histrico que a-histrico. []
Marx enxergou que, na arte historicamente condicionada por um estgio social no desenvolvido,
perdurava um momento de humanidade; e nisso Marx reconheceu o poder da arte de sobrepor ao
momento histrico e exercer um fascnio permanente.605
603 CHAMIE, Mrio. Chamie louva Jornal da Poesia. JB, RJ, 08 de Setembro de 1973, cad.1, p. 10.
(Crtico e poeta, professor de teoria da comunicao, fundador da Revista de Vanguarda Prxis.) 11 SANTOS,
ngelo Osvaldo de Arajo. Mineiro acha a publicao do Jornal da Poesia uma iniciativa importante. JB, RJ, 11
de Outubro de 1973, cad.1, p.15. (Diretor do suplemento literrio de Minas na poca).
604 LUCAS, Fabio. Crtico acha bom o Jornal da Poesia. JB, 12 de setembro de 1973, cad. 1, p.19.
605 FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. Rio de Janeiro: Zahar, 9 ed., 1983, p.17.
1303
H em sua obra pontos de confronto com a compreenso da obra de arte do socilogo Pierre
Bourdieu, que a compreende como conveno socialmente aceita dentro do campo artstico histrico e
socialmente construdo, defendendo a busca pela gnese dos conceitos que atuam nas relaes de foras
sociais e criando os conceitos operatrios de campo e habitus para, como em As Regras da Arte, buscar a
gnese e estrutura do campo literrio ou artstico. O socilogo compreende a experincia da obra de arte
como imediatamente dotada de sentido e de valor, sendo um efeito da concordncia entre as duas faces da
mesma instituio histrica, o habitus e o campo artstico, que se fundiriam mutuamente.
Ambos discorrem sobre a magia da obra de arte, mas de forma oposta. Para Bourdieu, a magia da
obra de arte estaria dentro do que conceituou como illusio. De acordo com o socilogo, h um jogo social
que cria a illusio, a magia, porque o crculo do jogo social seria o crculo da crena, que envolveria s
relaes de fora na sociedade, reproduzindo os poderes e as dominaes sociais. Ou seja, o campo da
arte compartilha com as regras sociais, inclusive na prpria construo do que seria arte para o jogo social.
J Fischer, na busca pela origem da arte, encontra nela um sentido mgico, pelo qual o homem se
servia para a dominao da natureza e para desenvolver suas relaes sociais. Para o filsofo a arte a
ligao do indivduo com o todo temporal e social porque surge dos estmulos sociais, nesse sentido que
ela magia, ligando o indivduo ao grupo social. No entanto, numa sociedade de classes, diferenciada, ela
se desenvolve fora da magia, como resultado da alienao. Sobre a poesia: o desejo de retornar fonte da
linguagem inerente poesia [] Em todo poeta existe certa nostalgia de uma linguagem mgica,
original.606
Assim Fischer apresenta a arte como produtora-criadora de coletividade. Alm disso, compreende
a arte como sobreposta ao momento histrico e como superao desse momento histrico. Sua tese a de
que dentro do momento histrico, cria-se tambm um momento de humanidade que promete constncia
no desenvolvimento607. Ele, enfatiza, portanto, os elementos contnuos e comuns da arte ao longo da
histria. Ou seja, ao mesmo tempo que acentua sua historicidade, considera o universal.
J Bourdieu demonstra que o campo artstico no um campo autnomo tal como a filosofia, a
literatura e a prpria arte defendem. Ou seja, a aparente anarquia da produo artstica colocada em
questo. Para ele, os campos sociais esto e so ordenados e os indivduos figuram nesse espao, por isso
to importante decifrar essas regras que compem o jogo social, as disputas envolvidas na definio das
classificaes nos campos, a construo do cnone e as hierarquizaes que presidem essas classificaes.
Fischer apela para uma funo que a arte deveria ter, a arte teria uma finalidade de ao de acordo
com a experincia histrica, justamente para sair dessa historicidade sempre limitada e se traspor ao
infinito. Ele reconhece que a arte jamais uma descrio clnica do real608, ela seria o modo mais fcil
de existncia ou mesmo sua busca. No entanto, o filsofo adverte que numa sociedade dividida em
classes, as classes procuram recrutar a arte, que voz da coletividade, a servio de seus propsitos
1304
particulares, e assim: no h porque temer que uma sociedade prspera e altamente diferenciada acarrete
um empobrecimento das artes.609
Bourdieu se preocupa mais com a possibilidade de se trabalhar cientificamente a obra de arte,
defendendo que sua anlise sociolgica permite o conhecimento da estrutura do espao social. Em sua
concepo, h possibilidade de construo do espao social da obra, das prticas sociais e, dessa forma,
visualiza a possibilidade de compreenso do campo de poder a partir de tal anlise. Ou seja, adverte para a
possibilidade de anlise da obra e observao dos seus campos de poderes onde se exercem foras sociais:
mais uma vez, somos obrigados a supor que atravs da elaborao de uma
histria, e graas a ela, que o autor levado a trazer luz a estrutura mais
profundamente enterrada, mais obscura, porque a mais diretamente ligada aos
seus investimentos primrios, que est no prprio princpio de suas estruturas
mentais e de suas estratgias literrias.610
1305
modernizao acelerada. Nesse caso, a arte comportaria uma funo especfica, uma necessidade: a de
criao da realidade (outra).
Numa sociedade em decadncia, a arte, para ser verdadeira, precisa refletir tambm a decadncia.
Mas, a menos que ela queira ser infiel sua funo social, a arte precisa mostrar o mundo como possvel
de ser mudado. E ajudar a mud-lo613.
Relacionando de maneira mais interessante a arte necessidade-funo dela, Fischer discorre que
uma das grandes funes da arte numa poca de imenso poder mecnico a de mostrar que existem
decises livres, que o homem capaz de criar as situaes que precisa, as situaes para as quais se inclina
a sua vontade614
A necessidade da arte ento a de representar a nova realidade num mundo decadente onde sua
tendncia se divorciar do social e encerrar-se com o indivduo na sua desesperada alienao. A arte
necessria pra que o homem se torne capaz de conhecer e mudar o mundo. Mas a arte tambm
necessria em virtude da magia que lhe parece inerente, no sentido de ser uma possibilidade de
transformao da realidade, partindo aqui de uma concepo hegeliana de realidade, em que apenas o que
compreendido chega a ser real.
Assim como Walter Benjamin tambm defendeu que tem sido sempre uma das mais importantes
funes da arte a de criar uma demanda para cuja plena satisfao ainda no soou a hora615, Antnio
Callado coloca tambm na introduo da obra de Fischer que
a medida que a vida do homem se torna mais complexa e mecanizada,
mais dividida em interesses e classes, mais independente da vida dos
outros homens e portanto esquecida do espirito coletivo que completa
uns homens nos outros, a funo da arte refundir esse homem, torna-
lo de novo so e incit-lo permanente escalada de si mesmo.616
A funo da arte , portanto, recriar para a experincia de cada indivduo a plenitude daquilo que
ele no , isto , a experincia da humanidade em geral. A magia da arte est em que, nesse processo de
recriao, ela mostra a realidade como possvel de ser transformada, dominada, tornada brinquedo.
1306
Movimentos de bairros e luta pelo direito cidade
durante o Regime Militar617 em Belo Horizonte.
Philippe Urvoy
Doutorando em histria
RESUMO: O presente trabalho pretende desenvolver uma reflexo acerca dos movimentos de bairros
que eclodiram em Belo Horizonte durante o perodo do Regime Militar, tendo como pauta principal a luta
pelo direito moradia, em um contexto de forte represso moradia informal desempenhado pelo regime.
Aps uma forte mobilizao ocorrida nos bairros populares, entre os anos 1950 e o incio dos
anos 1960 a favor da reforma urbana e do direito moradia, o Golpe de 1964 inaugura um perodo de
represso sistemtica aos movimentos sociais e de erradicao das favelas nas grandes cidades brasileiras.
Com a criao do Banco Nacional de Habitao, inicia-se uma poltica que visa substituir o urbanismo
informal pelos conjuntos habitacionais recentemente construdos, removendo as populaes de diversas
favelas para moradias construdas em reas desvalorizadas, nas periferias dos centros urbanos. Em Belo
Horizonte, apesar da forte represso sofrida pelos movimentos organizados de favelados no princpio do
regime militar, alguns movimentos continuam a atuar de forma clandestina no decorrer dos anos 1960.
Nos anos 1970, diversos movimentos de bairros passam a se organizar de forma mais concreta, no
somente nas favelas mas tambm em bairros de classe mdia baixa. Alm da questo da moradia,
emergem outras pautas, ligadas necessidade de infra-estruturas bsicas e ao direito cidade em geral.
Introduo:
617 Apesar de usarmos a expresso Regime Militar ao longo desse trabalho, consideramos essa expresso
redutora tendo em vista que, como demonstrado pelo Daniel Aaro Reis em seu trabalho, o termo correto seria
Regime Civil-Militar, devido colaborao de entidades civis e militares dentro do governo. Ver: REIS FILHO,
Daniel Aaro. Ditadura e democracia no Brasil: do Golpe de 1964 constituio de 1988, Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
1307
por historiadores. Com a exceo de alguns trabalhos muito recentes, no caso de Belo Horizonte,
podemos citar o trabalho de Samuel Silva de Oliveira Rodrigues618, existe uma lacuna muito grande de
trabalhos sobre essa parte da histria social urbana no perodo que segue a Segunda Guerra e durante o
perodo do Regime Militar. Como se, como diz o gegrafo Andrelino Campos, at hoje ou pelo menos
at pouco tempo atrs, o papel histrico de setores populares, dos movimentos de periferia e moradores
de favelas, dentro do processo de construo e transformao da cidade tenha sido negado ou
silenciado619.
O presente trabalho no pretende fazer um panorama exaustivo dos movimentos de bairros que
existiram na cidade de Belo Horizonte durante este perodo. Pretendemos apenas explorar algumas pistas
de reflexes que poderiam servir para pensar esse assunto levantando a seguinte pergunta: De que forma a
questo dos movimentos por moradia e dos movimentos urbanos poderia ser uma chave, uma porta de
entrada para entender a relao da Ditadura com a questo da habitao e com a questo urbana e, mais
amplamente, para explorar a histria social urbana do perodo, especialmente no que concerne s reas
perifricas?
Para comearmos uma reflexo acerca desta problemtica, ns nos deteremos, num primeiro
momento, no discurso do Regime Militar em relao s favelas e movimentos de favelados em Belo
Horizonte. Em seguida, refletiremos sobre a poltica habitacional do Regime Militar para populaes de
baixa renda. Enfim, ns apresentaremos alguns exemplos dos movimentos de bairros existentes na cidade
entre os anos 1960 e 1970, dividindo esta apresentao em duas fases cronolgicas distintas.
618 OLIVEIRA, Samuel Silva Rodrigues de. O movimento de favelas em Belo Horizonte (1959-1964), Rio de Janeiro:
E-Papers, 2010.
619 CAMPOS, Andrelino. Do quilombo a favela: a produc ao do espac o criminalizado no Rio de Janeiro. 2. ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 68
620 CASTELLS, Manuel. Luttes urbaines et pouvoir politique, Paris: Maspero, 1975. p.12
1308
Essa constatao seria possivelmente, a nosso ver, mais ntida em Belo Horizonte, onde j no
primeiro ano da Ditadura, a represso se voltou muito duramente para os movimentos de favelas
existentes, de forma mais facilmente verificvel do que em outras cidades ou para outros tipos de
movimentos621.
Em 1964, logo aps o Golpe, as principais entidades nas quais os moradores das favelas de Belo
Horizonte se organizavam at ento so fechadas, enquanto que suas lideranas so presas622. Os
inmeros relatos do DOPS, somente no ano de 1964, sobre favelas e movimento de favelados j denotam
obviamente que o Regime se interessava de perto por esses movimentos, que ele considerava como um
perigo para ordem social:
Nesses relatos do DOPS, aparecem ainda rumores de que ocupaes de terrenos realizadas pelo
movimento de favelados poderiam servir para esconder armas e munies e servir de locais de
treinamento para focos de guerrilha urbana625.
Esse primeiro momento da represso, logo aps o Golpe, vai ser acompanhado por uma outra
ofensiva tanto no discurso como nos atos contra as favelas e a moradia informal.
621 BRUM, Mario. Favelas e remocionismo ontem e hoje: da Ditadura de 1964 aos Grandes Eventos. O Social em
uestao, Ano XVI, n. 29, p.179-208, 2013. p. 181 Neste texto, o historiador Mario Brum aponta que no Rio de
Janeiro a represso recai realmente sobre os movimentos comunitrios de favelas a partir de 1968, com a instituio
do Ato Institucional n5 / O socilogo Celso Frederico, ele, observa que as organizaes operrias sero mais
duramente reprimidas ou proibidas tambm a partir do AI-5, em FREDERICO, Celso (Org.). A esquerda e o
movimento operrio, Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1990.
622 OLIVEIRA, Samuel Silva Rodrigues de. O movimento de favelas em Belo Horizonte (1959-1964), p.150
623[Favelas]. Arquivo Publico Mineiro. Fundo DOPS. Pasta 3932. Folha 10.
624 [Favelas]. Arquivo Publico Mineiro. Fundo DOPS. Pasta 3932. Folha 19.
625 [Favelas]. Arquivo Publico Mineiro. Fundo DOPS. Pasta 3932. Folha 12.
1309
Um outro aspecto importante para se compreender a relao da Ditadura com esses bairros, o
fato que no discurso do Regime, a favela uma realidade que h de ser apagada da cidade, tanto por
questes estticas, morais, de higiene, que pelo perigo potencial que o espao da favela representa para a
ordem social que o Regime pretende preservar e defender. Como se a favela fosse um desdobramento
errado da histria urbana.
Um vdeo de propaganda da poca divulgado no Rio no princpio dos anos 1970 resumia o
projeto urbano da Ditadura para as favelas carioca desta forma: O lema demolir para construir626. Essa
expresso resume bem as concepes do urbanismo modernista ps-segunda guerra sobre a necessidade
de fazer tbua rasa da cidade antiga para construir a cidade moderna. Essas teorias inspiraram a poltica de
construo dos grandes conjuntos habitacionais que se espalharam pelo mundo a partir dos anos 1950, e
que foram vistos como a soluo para resolver a crise habitacional no Brasil627.
Desta forma, ao mesmo tempo que a moradia social passa a ser construda numa escala quase que
industrial, a moradia se torna, a partir da criao do BNH, um mercado muito lucrativo atravs de
parcerias entre o Estado e o setor privado, prtica que vem prevalecendo at hoje, como foi demonstrado
pela Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP629.
Portanto, a realidade da questo habitacional ao longo dos anos 1960 continua problemtica, e a
crise urbana se aprofunda cada vez mais. A situao no incio da Ditadura j era crtica: segundo o censo
de 1965, cerca de 120 000 pessoas moravam em favelas em Belo Horizonte para uma populao total de
626 Vdeo Vida nova sem favela Fotografia: Walmor Ribeiro e Paulo Brando / Texto: Hilson C. Waehneldt /
Montagem: Pery Santos / Laboratrio: Lide Cinematogrfica. Acervo: Cinema Nosso RJ.
627 PERISSINOTTO BARON, Cristina Maria. A produo da habitao e os conjuntos habitacionais dos institutos
de aposentadorias e penses IAPs, TPOS, v. 5, n. 2, p.102-127, 2011. p. 113
628 SANTOS, Cynthia de Souza. A politica habitacional para populac ao de baixa renda, em Belo Horizonte, a partir de
1990. 331 f. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo. Area de concentrac ao: Habitat.) - Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo - USP, Sao Paulo, 2006. p. 50
629 ROLNIK, Raquel. Segregao urbana aceita na ditadura segue sendo o prado, entrevista realizada por
Luiz Carlos Azenha para Viomundo. Publicada em 04/04/2014. Disponvel em:
http://www.viomundo.com.br/denuncias/raquel-rolnik-segregacao-urbana-adotada-na-ditadura-militar-segue-
sendo-o-padrao-no-brasil.html . Acesso em 11/05/2015.
1310
800 000630. Ou seja, 15 por cento da populao. Segundo uma outra fonte, por consequncia da poltica
salarial do Regime, cerca de 10 por cento da populao de Minas Gerais teria se deslocado de sua cidade
procura de um trabalho somente no ano de 1968631. A intensificao das migraes do interior para a
capital tem por resultado o crescimento das favelas, o surgimento de outras, alimentando cada vez mais
anseios para movimentos polticos e reivindicatrios ligados moradia ou melhoria urbana.
630 Censo consultado em: OLIVEIRA, Samuel Silva Rodrigues de. O movimento de favelas em Belo Horizonte , p. 26
631 Os generais contra os trabalhadores Movimento de Unidade e Libertao Sindical (PC do B) 1972.
Texto publicado em: FREDERICO, Celso (Org.). A esquerda e o movimento operrio, p. 29
632 SOMARRIBA, Maria das Mercs Gomes; VALADARES, Maria Gezica; AFONSO, Mariza Rezende. Lutas
urbanas em Belo Horizonte. Belo Horizonte: Fundao Joo Pinheiro, 1984. p. 62
633 O nome da Vila 31 de Maro no tem relao com a data do Golpe de 1964 mas foi dado em razo da
proximidade da Vila com uma avenida batizada avenida 31 de maro em razo da data que deu incio construo
do conjunto vizinho Dom Cabral.
634 Entrevista realizada com o Padre Piggi em 11/11/2014.
635 Entrevista realizada com o Padre Piggi em 11/11/2014.
1311
Essas diferenas, esse contraste entre as duas formas de movimentos distintos nos traz uma outra
chave de possvel leitura dos movimentos de bairros enquanto experincia cultural e poltica particular
durante um Regime autoritrio. Esta viso voltada antes de tudo pela mudana local uma singularidade
destes movimentos, empenhados em realizar em seus prprios territrios uma outra proposta social
enquanto, como apontado por David Harvey, a maioria dos movimentos marxistas da poca tinham
dificuldade em enxergar uma possibilidade de transformao social que no necessitasse da conquista do
Estado, seja pelas urnas ou pelas armas636.
636 HARVEY, David. Capitalisme contre le droit la ville, Paris: Amsterdam, 2011, p. 85.
637 FREDERICO, Celso (Org.). A esquerda e o movimento operrio, p. 21.
638 REIS FILHO, Daniel Aaro. Ditadura e democracia no Brasil, p. 90.
1312
j est quase esgotada639. Porm justamente neste momento de grandes
investimentos e expanso industrial que as empresas e grandes indstrias
instaladas na regio vo procurar novos espaos para se expandir. De
repente, ocupaes em terrenos ociosos feitas nos anos 1950 e 60,
principalmente por trabalhadores das fbricas vindos do interior,
instalados perto do seu local de trabalho, vo passar a ser vistos como
problemas a ser eliminados aps esses terrenos terem sido subitamente
valorizados pela sede de novos espaos a serem conquistados pela
indstria.
639 GRANBEL - Associao dos Municpios da Regio Metropolitana de Belo Horizonte. Histria de Contagem/
MG. Disponvel em: http://granbel.com.br/index.php/municipios-metropolitanos/85-municipio-de-contagemmg-
municipio-de-contagemmg/148-historia-de-contagemmg.html. Acesso em: 18/04/ 2015.
640 Prefeitura quer expulsar milhares de moradores Jornal dos Bairros, n17, 29 de maio a 11 de junho 1977. p. 6.
641 SOMARRIBA, Maria das Mercs Gomes; VALADARES, Maria Gezica; AFONSO, Mariza Rezende. Lutas
urbanas em Belo Horizonte, p. 49
1313
representantes de diversos movimentos e associaes de bairros. 642 As
assembleias de moradores ou ainda o Jornal dos Bairros, enquanto espaos
de discusso e de organizao poltica, vo permitir que a pauta da luta
por moradia passe a se articular com diversas outras demandas: a
precariedade do transporte pblico, a falta de creches e escolas pblicas,
a falta de infraestruturas bsicas de forma geral ou ainda questes
ambientais, tal como a forte poluio causada pelas fbricas na Cidade
Industrial. Em suma, aparece no seio dos movimentos um conceito
expandido de luta por moradia, a moradia sendo ento considerada no
somente como quatro paredes e um teto, mas abrangendo uma definio
ampla do direito moradia que inclui a necessidade de infraestruturas, o
desejo de se beneficiar de um quadro de vida sadio e digno onde morar,
criar seus filhos etc. A luta por moradia vai evoluir para uma luta mais
ampla pelo direito cidade, que tem por problemtica no somente:
Onde ns vamos morar? mas: Qual a cidade que queremos?.
Concluso
Nosso recorte cronolgico termina justamente no princpio dos anos 1980, que corresponde ao
fim da poltica federal de moradia popular instaurada pela Ditadura e com o incio em Belo Horizonte, ao
nosso ver, de um outro captulo da histria dos movimentos de luta por moradia com a criao de
programas municipais que pretendem atender as demandas de uma parte dos movimentos.
Como tentamos demonstrar ao longo deste artigo, o Regime Militar inaugurou uma gesto da
cidade, inspirada em parte pelas teorias urbanas modernistas, cujos principais objetivos so: erradicao
das favelas e do urbanismo informal, industrializao da construo da moradia popular ao nvel federal,
reestruturao da malha urbana para atender as demandas dos setores privados e da indstria em
detrimento das demandas sociais. Dentro dos efeitos causados por essas polticas, ressaltaramos um
aprofundamento da crise habitacional e da segregao urbana e social entre centro e periferia.
A violncia social promovida por essa gesto poderia ser um dos motivos que incentiva a
emergncia de diversos movimentos nos bairros populares e nas favelas, organizados em torno de pautas
ligadas questo urbana em geral, indo do direito moradia para a ideia mais ampla do direito cidade.
Segundo nossa hiptese, dentro de um contexto de forte represso e de derrota da estratgia esquerdista
guerrilheira, esses movimentos de bairros vo desenvolver uma outra gramtica de organizao poltica no
1314
meio urbano, voltada para a transformao social ao nvel local, que apontam uma perspectiva de
mudana scio-poltica que no passe necessariamente pela tomada ou pela mediao do Estado.
1315
Ao Democrtica Mato-Grossense: preldios do
golpe civil-militar de 1964 em Campo Grande (MT)
Thas Fleck Olegrio
Graduanda de Histria / Licenciatura
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
[email protected]
Introduo
No estado de Mato Grosso do Sul, em relao produo sobre este perodo, devem ser
destacadas as obras: Dourados: memrias e representaes de 1964 da autora Suzana Arakaki, e
Aquidauana: A Baioneta, a Toga e a Utopia, nos entremeios de uma pretensa revoluo, do autor Eudes
Fernandes Leite.
643No ano de 2014, completaram-se cinquenta anos do golpe civil-militar de 1964 no Brasil. Em atividades de
(des)comemorao do golpe, foram realizados diversos encontros acadmicos, visando a exposio de pesquisas
sobre esta temtica.
1316
1963, composta por latifundirios do sul de Mato Grosso, vinculada ao Instituto Brasileiro de
Ao Democrtica (IBAD).
A abordagem da ADEMAT ser realizada, a partir dos questionamentos: quais eram seu
objetivo e sua orientao ideolgica; como se formou; quem eram seus integrantes; e quais foram
os desdobramentos de sua criao.
Em qualquer avaliao racional, a URSS no apresentava perigo imediato para quem estivesse fora do
alcance das foras de ocupao do Exrcito Vermelho. Sara da guerra em runas, exaurida e exausta,
com a economia de tempo de paz em frangalhos, com o governo desconfiado de uma populao que,
em grande parte fora da Grande Rssia, mostrara uma ntida e compreensvel falta de compromisso
com o regime.646
644COMBLIN, Joseph. A Ideologia da Segurana Nacional: O Poder Militar na Amrica Latina. 2. ed. Trad. A. Veiga
Fialho. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1978, p. 39.
645WASSERMAN, Cludia. O imprio da Segurana Nacional: o golpe de 1964 no Brasil. In: WASSERMAN,
Cludia; GUAZZELLI, Csar A. B. (Orgs.). Ditaduras Militares na Amrica Latina. Porto Alegre: Editora da UFRGS,
2004.p.27.
646HOBSBAWM, Eric J. . Era dos extremos: o breve sculo XX: 1914-1991. So Paulo: Companhia das Letras, 1995,
p.230.
1317
Na Amrica Latina, os tericos da doutrina focavam a segurana interna frente ao
indireta do comunismo, possibilitando, desta maneira, a construo da ideia de um inimigo
interno, eles estavam voltados ao:
Neste sentido, Alves aponta que, a presena dos interesses estrangeiros nas
propostas das elites locais, estava relacionada aos vnculos estruturais entre esses
grupos, e a dependncia entre eles levaria ao desenvolvimento de classes
647ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposio no Brasil (1964-1985). 5. Ed. Trad. Clvis Marques. Petrpolis:
Vozes. 1989, p. 33.
648Formados em escolas tcnicas, como o Instituto Brasileiro de Economia (IBRE) e Fundao Getlio Vargas
1318
clientelsticas651. Neste processo, as elites externas seriam responsveis por criar
ou favorecer a formao de elites locais, atenuando a ligao entre elas por meio
de correlaes entre padres de vida, aspiraes profissionais, entre outros
aspectos que fomentavam uma ideia de objetivo em comum, em relao
economia e a poltica.
Durante a dcada de 1950, com o fortalecimento dos laos entre estes grupos
empresariais multinacionais e associados, foram criadas novas associaes de classe, que tinham
por objetivo, agir em funo dos interesses destes grupos, como apontado por Dreifuss:
1319
empresrios, militares e detentores de altos cargos pblicos, bem como mobilizar o pblico em
geral.654
Alm disso, o IBAD deu origem a diversos grupos regionais de ao, que agindo como
filiais, atuavam no mesmo sentido do instituto. As sees regionais faziam as divulgaes na
imprensa local, do contedo ideolgico disseminado pelo complexo IPES/IBAD/ESG,
adequado s pautas regionais. Estes grupos, tambm eram responsveis pela orientao e
organizao das elites locais.
Em Campo Grande, no antigo estado de Mato Grosso, em abril de 1963, fora criada a
Ao Democrtica Mato-Grossense (ADEMAT). A ao representava o IBAD no estado de
Mato Grosso, e era composta principalmente por latifundirios, do sul do estado.
A organizao, como descrita por um de seus integrantes, foi criada para: combater a
655
ao comunizante do Presidente Joo Goulart, inclusive no campo da luta armada . Alm do
propsito de divulgao ideolgica, a Ao, tambm era responsvel por orientar as elites locais, e
uni-las, em prol de um interesse de classe em comum.
Grossense. Destacaram-se entre os presentes, os Srs. Ccero Castro Farias, representante do PSP,
Cludio Fragelli (UDN), Alcindo de Figueiredo, Arnaldo Figueiredo (PSD), Assis Brasil Correia (PTB),
A diretoria foi assim constituda. Presidente, Assis Brasil Correia; Primeiro Vice-Presidente, Cludio
Fragelli; terceiro Vice-Presidente, Abel Freire de Arago, Primeiro secretrio, Adauto Ferreira; Segundo
Secretrio, Eduardo Nabuco; terceiro Secretrio, Adolfo Andrade e quarto Secretrio Agostinho
1320
Barcela; Primeiro Tesoureiro Ansio de Barros, e Segundo Tesoureiro, Alcino de Figueiredo e Terceiro
1321
A utilizao do peridico pela ADEMAT visava atrair simpatias aos objetivos da Ao,
bem como captar novos integrantes. A utilizao do jornal como veculo para este fim possvel,
a partir do entendimento de que os jornais podem vir a se tornar uma arma de poder, pois, o
contedo veiculado, est relacionado aos interesses dos proprietrios dos jornais, como exposto
por Capelato:
Nos Estados liberais, a Constituio garante a todos a liberdade de expressar sua opinio e de obter
informaes. A imprensa o veculo apropriado para esses fins. Todos so livres e iguais perante a lei,
mas na prtica uns so mais livres e mais iguais. Ocorre ento que, neste mundo desigual a informao,
direito de todos, transforma-se numa arma de poder manipulada pelos poderosos [...] Nesta situao
onde se mesclam o pblico e o privado, os direitos dos cidados se confundem com os do dono do
jornal.660
660CAPELATO, Maria Helena Rolim. A Imprensa na histria do Brasil. 1 ed. So Paulo: Contexto/EDUSP, 1988, p.
18.
661As publicaes da coluna da ADEMAT de 13 de maio a 10 de junho de 1963 tiveram como contedo exclusivo
1322
A situao poltica e econmica cubana retratada pelo peridico, de uma forma
distorcida, minimizando questes sociais e destacando a tirania do regime: O regime comunista
em Cuba fuzilou oficialmente 974 cubanos e vrios milhares mais, sem julgamento e em segredo,
ao mesmo em que mantm encarcerados mais de 80.000 presos polticos.662
662MATOGROSSENSE, Ao Democrtica. Eis o Fidelismo que a UNE, Brizoletas e Nacionalistas querem para o
Brasil. O Matogrossense, Campo Grande, 13 mai. 1963. Edio 3.471, p. 1.
663SADER, Emir. A Revoluo Cubana. So Paulo: Ed. Moderna, 1985, p. 42-43.
664Para maiores esclarecimentos ver: FERREIRA, Jorge; GOMES, Angela de Castro. 1964 O Golpe que derrubou um
presidente, ps fim ao regime democrtico e instituiu a ditadura no Brasil. 1 ed. Rio de Janeiro : Civilizao Brasileira,
2014, p. 161-175.
1323
Congresso, Goulart props trs alternativas para indenizaes, que consistiam: no valor
declarado em imposto de renda ou imposto territorial dos imveis, ou por avaliao judicial665.
A proposta de reforma agrria de Goulart sofria rejeio, principalmente, por parte das
elites da sociedade civil. Neste ponto, destaca-se, por exemplo, o posicionamento da ADEMAT,
que em 20 de julho de 1963, realizou uma palestra, na noite de gala oferecida aos participantes da
XXV Exposio Agropecuria e Feira de mostras de Mato Grosso, destacando qual era o tipo de
reforma agrria pretendida pela Ao. Em exposio o Deputado Federal Armando Falco,
props:
O discurso foi transmitido via radio, sendo posteriormente transcrito pela revista Brasil
Oeste. Nota-se a proposio de uma reforma agrria crist e democrtica, em contraposio
ao projeto de Goulart. Em outro trecho da publicao, podemos notar o papel da ADEMAT,
como divulgadora dos propsitos de seus membros:
[...] Ressaltou, outrossim, que o prprio Governo intenta impor uma reforma
agrria que no corresponde a realidade nacional, nem consubstancia os mais
sentidos anseios do homem do campo. Intenta-se promover uma distribuio
de terras, que vir favorecer os apaniguados do Governo, em detrimento dos
homens que realmente se devotam as lides agropastoris. [...] os mentores do
Governo procuram agradar aos comuno-nacionalistas, propiciando-lhes o pasto
para uma demagogia desenfreada, at mesmo violenta, que poder arrastar o
pas para a desordem e o caos. A terra, simplesmente, de nada valer se seu
proprietrio no dispuser dos meios para lavr-la e torna-la produtiva. Ademais,
extensa e at mesmo desconhecida em seu verdadeiro tamanho, a rea de
terras devolutas existentes no Brasil. desaconselhvel, portanto, que se
intente desorganizar o que j est organizado embora em termos rotineiros
com a mera inteno de satisfazer a uma pregao dos esquerdistas, sem
nenhuma base na realidade brasileira. Na verdade, sublinhou o Deputado
Armando Falco, o que se verifica no pas que uma minoria atuante, de
tendncia marcante comunista, est liderando as reformas de base inclusive a
reforma agrria e tenciona impor solues revolucionrias, ditadas pela
demagogia desenfreada, que no equacionam com os verdadeiros rumos do
progresso de nossa Ptria. Nosso esforo, e conosco da Ao Democrtica
Mato-Grossense, justamente esclarecer o povo, para que ele no se iluda com
as pregaes demaggicas, no impressione com as promessas ilusrias, com os
sonhos de um paraso que jamais ser atingido. Devemos orientar-nos pelo
bom-senso, pela voz da Igreja Catlica, pelo ensinamento dos nossos homens
democratas, porque estes, sim, conhecem o assunto, conhecem a realidade
nacional, conhecem as necessidades do homem do campo e objetivam dar ao
1324
homem do campo um estatuto legal capaz de garantir-lhe uma atividade
pacfica e produtiva e uma prosperidade racional e perene.667
A maior parte dos membros da ADEMAT eram latifundirios do sul do antigo estado de
Mato Grosso, e a reforma agrria, representava de longe, o tema de maior intocabilidade para
eles. Na palestra citada, A ADEMAT destacada como instrumento destinado a esclarecer o
povo, a respeito dos objetivos comunistas por trs das reformas de base de Goulart.
Na realidade construda pela ADEMAT era necessrio destacar que a Reforma Agrria
apenas afetaria o produtor de pequeno e mdio porte, mesmo que tal reforma, constitusse
uma ameaa real aos latifundirios. Utilizando uma linguagem com fins educativos, a ADEMAT
conseguia, ao longo de suas publicaes, estabelecer um imaginrio social profundamente
anticomunista, e, alm disso, reacionrio a qualquer mudana.
Consideraes finais
1325
ST 20: Cultura Intelectual Brasileira
Tiago Lenine
Doutorando (UFMG)
Raul Lanari
Doutorando (UFMG)
1326
Cultura pontagrossense nos Cine-Teatros
Beatriz Kller Negri
Ps-Graduanda em Sade para Professores
UFPR
[email protected]
RESUMO: Os Cine-Teatros desde seu incio vem sendo uma das melhores formas de lazer,
trazendo na sua diversidade a diverso de todas as idades, exibiam filmes abrilhantados ao som de
pianos e orquestras, peas teatrais e musicais. Em Ponta Grossa, no ano de 1906 surge a primeira
casa cinematogrfica Cine Recreio, para enriquecer a cesso do cinema mudo, Manoel Cirilo
Ferreira fazia o acompanhamento musical. Posteriormente em 1911, era a vez de o Teatro
Renascena abrir suas portas. Desde sua abertura at o ano em que ele fechou suas portas em
1964, foi um dos mais procurados Cine-Teatros de Ponta Grossa. Ele trazia para abrilhantar as
cesses Jorge Holzmann e a Banda Lyra dos Campos. Mesmo quando em 1950 inaugura o Cine
pera que vem para ser o grande inovador, o Rena continua sendo um dos preferidos,
principalmente nas matines de domingo, alm de ter sido o primeiro cinema no Paran a exibir
em 1931 filmes com udio. Os cinemas vo surgindo e se ampliando a partir das necessidades da
populao. Durante a dcada de 60, Ponta Grossa vivia em um momento econmico favorvel,
sendo uma cidade do interior do Paran bem desenvolvida, terra de entroncamentos rodo-
ferrovirio, e grande produtora de soja. Para atender a demanda cultural das pessoas que vinham
para a Princesa dos Campos em busca de melhores trabalhos e condio de vida, Ponta Grossa
contava com cinco cinemas: Caribe, Pax, Inaj, pera e Imprio. O cinema era muito mais do
que somente o filme, o espetculo ou o espao, era o convvio da sociedade, e se estendia muito
alm do fim da sesso. As matines do Rena se iniciavam na Rua XV de Novembro com o
passear das moas e os grupinhos de rapazes, aos poucos todos se reuniam para a sesso, e aps
o termino os adultos se reuniam para conversar e os jovens para as paqueras. Com o fechamento
do Cine Inaj em 2001, e a abertura das salas de cinema no Cinesystem Shopping Total em 2000,
Ponta Grossa perde um dos melhores espaos culturais da cidade, o shopping limitou muito seu
pblico, as famlias que tinham como lazer ir ao cinema agora necessitam de novas maneiras de
lazer, que as salas de cinema modernas no supriram.
PALAVRAS-CHAVE: Cine-Teatros; cultura; histria; Ponta Grossa.
1327
os expectadores a compreender a trama do filme. Alguns sons passaram a ser produzido aos
poucos no local de exibio do filme, recursos como orquestras e pianistas tambm eram
utilizados como trilha sonora para o cinema mudo.
Com a expanso no Brasil das estradas de ferro, muitos trabalhadores migravam para
cidades interioranas em busca de trabalho e melhores condies de vida. Devido chegada desses
migrantes e de imigrantes as cidades precisaram se adequar a nova populao, e um meio de
garantir lazer a esses novos moradores foi abertura de Cine-Teatro, que contavam com
entretenimentos semanais ou mensais e que atraiam toda a cidade. Alm de lazer os Cine-Teatros
foram locais propcios para relaes sociais, relaes comerciais e construo de amizades.
Em 1906, surge a primeira casa cinematogrfica de Ponta Grossa: Cine Recreio instalado
primeiramente na Rua 7 de Setembro, ao lado do Hotel Canto (atual Hotel Planalto), e em 1908
668 SILVA JUNIOR, Nelson. O fechamento dos cinemas em Ponta Grossa: particularidades de um processo histrico-
cultural. Dissertao (Mestrado em Cincias Sociais Aplicadas) Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta
Grossa, 2008, p. 14.
1328
mudou para a Rua XV de Novembro (atual Rdio Difusora). Para enriquecer a sesso, Manoel
Cirilo Ferreira fazia o acompanhamento musical.
O Teatro Renascena abria suas portas em 1911, situado na esquina das Ruas XV de
Novembro com a Sete de Setembro. Desde sua abertura at o ano que fechou em 1964, foi um
dos mais procurados Cine-Teatros de Ponta Grossa, ainda que o Cine Recreio e o Theatro
SantAna, tambm exibissem filmes. Ele trazia para abrilhantar as sesses Jorge Holzmann e a
Banda Lyra dos Campos. Mesmo quando em 1950, inaugura o Cine pera que deveria ser o
grande inovador, o Rena continua tendo a preferncia, principalmente nas matins de
domingo, alm de ser o primeiro cinema no Paran a exibir filmes com udio em 1931.
O Cine Imprio abre as portas em 1939, estando localizado na Praa Baro do Rio
Branco, se tornou o queridinho dos alunos do Colgio Regente Feij pela sua proximidade,
esse possua sesses semanais com diversas promoes e distribuio de brindes como gibis e
guloseimas. Suas promoes contavam com o desagrado da direo e professores do colgio que
no conseguiam conter os alunos na sala de aula, esses perdiam aula para assistir as matins.
O Cine-Teatro Pax ou Teatro Municipal lvaro Augusto Cunha Rocha, foi construdo
por iniciativa de Frei Elias, Ordem Terceira dos Franciscanos, e as famlias de ferrovirios que
residiam na Vila Ferroviria. Tendo sido abandonado por vrios anos, em 2008 foi doado a
UEPG, que aps restaura-lo utiliza para eventos da instituio.
O cinema era muito mais do que somente o filme, o espetculo ou o espao, era o
convvio da sociedade, e se estendia muito alm do fim. As matines do Rena se iniciavam na
Rua XV de Novembro com o passear das moas e os grupinhos de rapazes, aos poucos todos se
reuniam para a sesso, e aps o termino os adultos se reuniam para conversar, trocar
experincias, os jovens para as paqueras, para fazer amigos.
1329
Com o fechamento do ltimo Cine-Teatro o Cine Inaj em 2001 e a abertura das salas de
cinema nos Shoppings, Ponta Grossa passa a ter um novo espao cultural, que possui a
necessidade de abranger um pblico mais diversificado.
Pensando nisso o Cine pera nos ltimos dez anos promove projetos como Cine Arte e
Tela Alternativa, projetos que resgatam filmes antigos e novos exibidos gratuitamente, trazendo
debates ao final das sees onde participam pessoas de todas as idades compartilhando
experincias e histrias de vida.
1330
Le thtre brsilien: (auto)representaes do teatro
brasileiro
Mestrando
1331
Os Comediantes669. No entanto, apesar de configurado como marco cronolgico a definir uma ruptura no
teatro brasileiro, no foi unanimidade no perodo, pelo contrrio, foi motor de amplos debates e lutas pela
recepo da obra que envolveram as associaes teatrais, o Servio Nacional de Teatro, companhias
profissionais e amadoras, crticos e literatos.
Esses sujeitos se constituram em meio a batalhas simblicas que colocavam em jogo projetos de
teatro para a nao - muitos advindos de uma tradio crtica modernista -, assim como o papel do Estado
na gerncia desses projetos. Obviamente, se tratam de projetos teatrais que esto envolvidos em projetos
estticos, literrios e polticos, muitos deles se pautando nos dilemas da formao e consolidao da
imagem do Brasil como um pas produtor de um teatro moderno. A consolidao dessa imagem foi um
longo processo constitudo por prticas e discursos que se deram durante quase toda a segunda metade do
sculo XX. Entretanto, as dcadas de 1930 e 1940 se apresentam como cruciais dentro desse processo
uma vez que se acirram os embates, e se delineiam valorizaes e canonizaes que influenciaram as
formas de representao do teatro na histria e na memria coletiva.
Desde a segunda metade do sculo XIX e na primeira metade do sculo XX, o cenrio da cultura
teatral no Rio de Janeiro era marcado pela grande fora dos gneros denominados ligeiros,
caractersticos de uma expanso de indstrias de diverso de massa para um mercado crescente: as revistas
de ano, o teatro de revista, as comdias de costumes, operetas, burletas e chanchadas. em oposio a
esses gneros que se ergue grande parte dos discursos em prol de uma renovao, apesar de notrio o
sucesso de pblico, principalmente entre camadas mdias e baixas da populao. At os anos 1940, a
grande tnica dos crticos teatrais que se pretendiam mais questionadores era o descompasso entre grande
parte da produo teatral brasileira e o que dela exigiam certos intelectuais, baseados no exemplo europeu.
Apontavam o atraso do nosso teatro, opondo, muitas vezes, o que chamavam de teatro para rir ao
teatro srio. Constituiu-se assim um duplo movimento que se caracterizou, por um lado, em apontar o
atraso do teatro brasileiro, e, por outro, em um discurso que poderia at mesmo ser chamado de uma
militncia que tentava impulsionar um percurso moderno, influenciado pelas tendncias europias.
Um questionamento vlido gira em torno de quais seriam as bases dessa propalada renovao, ou
de um teatro moderno, inicialmente europeu, e em seguida, especificamente brasileiro. Em outras
palavras, quais so os princpios que norteiam a conformao de um teatro moderno? Em primeiro lugar,
o que est no cerne da ideia de teatro moderno seria o princpio da encenao, ou da mise-en-scne.
Segundo Patrice Pavis, em seu Dicionrio de Teatro, A noo de encenao recente; ela data apenas da
segunda metade do sculo XIX e o emprego da palavra remonta a 1820. 670 Por volta de 1880 na Frana,
com Andr Antoine e o Thtre Libre, emerge potencialmente a ideia de encenao, tida como um ato de
reflexo que leva a uma conscincia da unidade da representao. Opera-se uma mudana da execuo
cnica para a criao teatral, agregando diversos agentes na conformao de uma nica obra. Outros
O espetculo ainda seria reapresentado em, ao menos, 1944, 1945, 1946 e 1947, com alteraes no elenco.
669
PAVIS, Patrice. Dicionrio de teatro. Traduo para a lngua portuguesa sob a direo de de J. Guinsburg e Maria
670
1332
aspectos esto envolvidos nessa mudana da forma de se encarar a arte dramtica, tais como inovaes
tcnicas e dramatrgicas que interferem nos modos de atuao, no espao cnico, na relao com a platia,
nas temticas e narrativas671. Os debates acerca da encenao moderna e de seu carter coletivo so
questo fundamental para as estticas teatrais ao longo dos sculos XIX e XX, apresentando temas como
a autonomia da arte teatral, a crise do texto e o olhar interpretativo do encenador, que passa a ocupar
posio capital.
Considerando o perodo aqui proposto, se impe a fora do Estado varguista nos rumos tomados
pela modernizao, no empreendimento de burocratizao da cultura por meio de um projeto poltico-
cultural, na construo de um sentido de nacionalidade, e na participao de intelectuais no
direcionamento desses caminhos. O teatro tambm se tornaria alvo desses anseios oficiais, cabendo,
portanto, uma definio do que deveria ser o teatro brasileiro e qual a sua funo, o que no se daria sem
conflitos. O debate sobre os rumos e a modernizao do teatro no Brasil se acirra com a atuao de
intelectuais, muitos egressos das fileiras modernistas, vinculados ou no ao Ministrio da Educao e Sade
(MES), assim como de membros das organizaes profissionais. Entre elas podemos incluir,
principalmente, a Casa dos Artistas (fundada em 1918), a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT,
fundada em 1917) e a Associao Brasileira de Crticos Teatrais (ABCT, criada em 1938), que iro se empenhar
na construo de polticas para o desenvolvimento do teatro e para a proteo das classes.
A criao do Servio Nacional do Teatro (SNT) 672, em 1937, coloca o poder pblico como mais uma
fora atuante nesses debates e, mais do que isso, como receptculo significativo dos anseios do setor.
Como bem nos lembra Cristophe Charle673, vrios teatros tm relao privilegiada com as instncias de
poder, o que resvala em pelo menos duas consequncias: a reduo de risco financeiro e a orientao da
programao. Considerando que a cultura foi rea estratgica do Estado no governo Vargas, a construo
de um teatro brasileiro moderno no se deu sem legitimaes discursivas por parte de intelectuais e
prticas de apoio e subveno exercidas pelo MES, mais especificamente pelo SNT. Como outros rgos
criados no perodo, este se empenhou na construo de uma cultura nacional e de uma imagem da nao
que se criava, exercendo certo controle sobre o campo teatral, demonstrando carter centralizador, e, de
certa forma, clientelista, principalmente em um primeiro momento quando suas polticas ainda no so to
claras. As subvenes concedidas, por vezes obedecendo a editais e por vezes levando em considerao
laos de amizade, levariam a uma srie de polmicas no setor, que se lanou em um debate envolvendo
profissionais e intelectuais, os primeiros defendendo o carter comercial, a autonomia, o mercado, o
gosto do pblico, e acusando os segundos de defensores da produo tutelada pelo Estado Novo. O
671 So inmeros os representantes e as formas sob as quais se desenvolver o chamado teatro moderno. Podemos
citar, inicialmente, os trabalhos de Ibsen, Strindberg, Chekhov, Brecht.
672 Sobre o SNT, assim como sobre as organizaes de classe teatrais, fundamental o trabalho de CAMARGO,
Anglica R. A poltica dos palcos: teatro no primeiro governo Vargas (1930-1945). Rio de Janeiro: FGV, 2013.
673 CHARLE, Christophe. A gnese da sociedade do espetculo: teatro em Paris, Berlim, Londres e Viena. So Paulo:
1333
grupo de Vestido de Noiva foi amplamente inserido nesses embates, que muitas vezes eram apresentados
como uma oposio entre artistas amadores e profissionais.
O grupo Os Comediantes nasceu dentro das atividades desenvolvidas pela Associao de Artistas
Brasileiros (AAB) e como seu brao teatral. A AAB, criada em 1929, se organizava principalmente em
torno das artes plsticas, mas tambm promovia concertos musicais, concursos, conferncias literrias e
cursos. No seu anurio de 1936 pode- se ler que a associao [...] representa ao mesmo tempo um club
em que se renem, em convvio freqente, numerosos artistas, professores, intelectuaes em geral e amigos
das artes, a includas figuras de grande projeo social [...] 674. Reunia nomes como Celso Kelly, C.
Portinari, Oswaldo Goeldi, Oduvaldo Vianna, Andrade Muricy, Raul Pederneiras, Tarsila do Amaral, Raul
Pedrosa, Laura Alvim e Santa Rosa. Segundo relato de Gustavo Dria, A sede da Associao ficava
estrategicamente localizada no antigo Palace Hotel, na Avenida Rio Branco esquina da Almirante Barroso
[...]. E o Palace Hotel era um lugar de encontro das elites do Rio. 675 Apesar da presena de artistas de
variadas vertentes estilsticas, havia um apelo comum de fuso deles em uma ao cultural orgnica que se
empenhasse em uma renovao cultural e artstica da cidade, opondo-se, principalmente, ao
tradicionalismo da Escola Nacional de Belas Artes. A subveno concedida pelo SNT, por intermdio de
Carlos Drummond de Andrade, a Os Comediantes para temporada que inclua a montagem de Vestido de
Noiva, assim como as manifestaes crticas fortemente favorveis ao empreendimento, representaram
ponto de acirramento nas tenses entre aqueles que defendiam diferentes projetos de teatro.
sintomtico que o grupo tenha adotado a sugesto do diretor francs Louis Jouvet, quando da
excurso de sua companhia ao Brasil no incio dos anos 1940676. O termo mise-en-scne era, at ento, quase
desconhecido por aqui. A temporada pela Amrica do Sul, iniciada em 1941 e prolongada em quase quatro
anos devido ao bloqueio do Atlntico, fez com que o diretor travasse contato com Os Comediantes a quem
teria sugerido a montagem de um autor nacional, perspectiva tambm endossada por Ziembinski. Segundo
Gustavo Dria, membro dos Comediantes, Jouvet gostava de receber atores amadores em seu apartamento
no Rio de Janeiro, onde morou por sete meses. Depois de uma dessas visitas, o grupo teria chegado com
1334
Shakespeare seriam experincias futuras. O ponto de partida era o autor
brasileiro.677
Alm de denotar a fora das literaturas nacionais nos processos afirmativos nos campos das artes,
essa concepo representa a penetrao na formao de nosso teatro moderno de uma tradio francesa,
representada principalmente pelos preceitos de Jacques Copeau e Louis Jouvet, que conferem soberania
ao autor a partir de uma valorizao do texto e da crena na fora da palavra, cabendo ao diretor dar vida
a ele e garantir a unidade da encenao. A tourne de Jouvet havia sido patrocinada pelo governo de
Vichy, fato silenciado pelo empresrio judeu Marcel Karsenty e pelo prprio Jouvet, que transformaram as
temporadas em smbolos da resistncia a anunciar a persistncia e vitalidade da cultura francesa clssica
por meio da representao de autores como Molire, La Fontaine, Musset, Paul Claudel e Giraudoux678.
Essas condies da temporada de Jouvet, onde imaginrios sobre teatro e cultura nacional se
associam e at mesmo se fundem, podem ser porta de entrada para a abordagem de trs grupos de fontes
que revelam aspectos de representaes do teatro brasileiro no exterior por meio de escritos de agentes do
meio teatral. Em primeiro lugar, destaco correspondncias endereadas a dois sujeitos fortemente atuantes
no perodo: Paschoal Carlos Magno e Brcio de Abreu. O primeiro, crtico, agitador cultural e teatrlogo,
fundador do Teatro do Estudante do Brasil (TEB) em 1938, scio da ABCT, diplomata entre o ano de 1933 e
meados da dcada de 1940 principalmente na Inglaterra, trocou correspondncias com a Associao
Brasileira de Crticos Teatrais, com jornalistas e outros crticos, como Daniel da Silva Rocha e Guilherme
Figueiredo, e com artistas, como Jayme Costa, Henriette Morineau, Bibi Ferreira e Renato Vianna. O
segundo, Brcio de Abreu, crtico teatral, fundador das revistas Dom Casmurro e Comoedia, membro da
ABCT, tendo migrado posteriormente para o Crculo Independente de Crticos Teatrais (CICT), prximo das
instituies e cultura francesas, na realidade, francfilo convicto, teve como alguns de seus missivistas o
diretor teatral e empresrio Luiz Iglsias, o encenador Louis Jouvet, presidente da Socit d`Histoire Du
Thtre, Lon Chancerel, presidente do Centre Dramatique de Paris, e o escritor Julien Benda.
A ambivalente categoria crtica, exercida por ambos, pode ser apreendida, nessas cartas, como
um macro espao de sociabilidade que extravasa as pginas dos jornais. Apesar de se tratarem de
fragmentos esparsos e de narrativas parciais, essas correspondncias podem significar recortes privados de
temas pblicos relacionados construo de uma identidade para o teatro nacional, por meio da
apresentao de auto-imagens e pelos trnsitos que envolvem a discusso de idias teatrais, estticas e
polticas. H nelas a recorrncia de temas ligados disputa pelo discurso do fazer teatral, que se traduz na
concorrncia, na busca por modelos e na definio de sentidos e valores em uma batalha que envolve o
delineamento de projetos para o teatro nacional. Cito trecho da carta do antigo ator do TEB, Antonio di
Monti, endereada a Paschoal Carlos Magno em nove de dezembro de 1946:
1335
Saiba o amigo que, em 43, quando fazia reportagens sobre o nosso teatro [...]
entrevistei o Sr. Jayme Costa, a quem aprecio bastante, mas que me causou
desagrado por atacar Os Comediantes. [...] o nosso grande comediante
opinava que ainda existia, em nosso ambiente, aqueles que faziam teatro s por
vaidade. [...] E foi essa, se no me engano, a minha ltima reportagem, tal o
desgosto que me deu ao comprovar a m vontade existente entre os nossos
artistas. [...] Pelo que senti, os amadores [...] so antipatizados pelos
profissionais, excepo feita a Dulcina, Bibi Ferreira e outros. Eu mesmo
confesso que no me animei logo por sse conjunto at que compreendesse e
avaliasse o trabalho tcnico de Ziembinsky em Vestido de Noiva [...] Os
Comediantes, conjunto de que todos os brasileiros (mormente os que
trabalham nesse setor) deveriam orgulhar-se, pois a vitria dles tambm a
nossa vitria, o levantamento do grau de cultura nacional! [...]. 679
No mesmo sentido, o missivista ingls Edward Stirling, funcionrio da Radiodifusion Franaise desde
a formao dos teatros aliados na capital parisiense em 1944, em novembro de 1947 pede a Paschoal
livros e peas que possam ser transmitidos na rdio para o pblico francs.
J o crtico Brcio de Abreu, em cartas trocadas com o encenador Louis Jouvet, negocia as
condies para a adeso de membros Socit d`Histoire Du Thtre. Os aderentes poderiam se valer dos
servios de documentao da instituio, assim como receber uma revista de histria do teatro e obter
tarifas especiais para as obras publicadas pela sociedade. Brcio consegue fazer com que 25 homens de
teatro brasileiros entrem para a instituio francesa. Ao mesmo tempo, ele envia a Leon Chancerel
1336
presidente do Centre Dramatique de Paris e vice-presidente da Socit d`Histoire Du Thtre exemplares da
revista Comoedia, por ele editada. A revista debate temas do teatro brasileiro, mas reserva espao especial
ao teatro francs.
Por fim, tomo o relatrio intitulado Le Thtre Brsilien apresentado no Xme. Congrs International de
Thtre Paris em 1937, pelo delegado oficial do Brasil Raul Pedroza, autor, diretor da Associao dos Artistas
Brasileiros e secretrio do P.E.N. Clube do Brasil 681. Esse relatrio foi publicado em francs como separata
do Anurio da Casa dos Artistas em 1939, e abrange [...] de forma sinttica a histria do nosso teatro
desde os autos de Anchieta at os nossos dias de maneira a interessar os estudiosos, provocando
pesquisas mais detalhadas. 682. A justificativa para a sua publicao em francs pela Casa dos Artistas feita
na crena de que seu anurio j teria ultrapassado as fronteiras do Brasil e assim, se contribuiria para um
melhor intercmbio cultural. So destacados atores, crticos, autores teatrais, companhias, espetculos,
associaes de classe, e leis para o setor, frisando os feitos do ministro Gustavo Capanema.
Esses trs corpus documentais apresentam dilemas de profissionais do campo teatral (com suas
prticas e transformaes), articulados pela dinamicidade do mundo intelectual (com suas tradies,
espaos, trnsitos, debates) e afetados pela relao com as polticas culturais do Estado. O teatro , assim,
inserido em um horizonte de diagnstico dos problemas da nao. Para tanto, necessrio que sua
histria seja afirmada, como feito no relatrio de Raul Pedroza. So fragmentos de textos e dilogos
dispersos entre intelectuais ligados ao campo artstico que podem revelar aspectos da construo de uma
identidade do teatro nacional, por meio da exposio e difuso de auto-imagens e pelos trnsitos que
envolvem a discusso de idias, panoramas nacionais, associaes, textos teatrais. Dessa maneira, a noo
desses sujeitos de modernizao e de um desenvolvimento e progresso teatrais em curso aponta para a
configurao de uma conscincia histrica para o teatro.
681 Clube internacional cuja sigla significa Poets, Essayists and Novelists, fundado na Inglaterra em 1921 e no
Brasil em 1936.
682 Pedroza, Raul. Le Thtre Brsilien. Separata du Anurio da Casa dos Artistas. Rio de Janeiro, 1939, p. 6.
1337
O Suplemento Literrio do jornal Minas Gerais e a
ditadura militar
Valdeci da Silva Cunha
Doutorando em Histria Social
Departamento de Histria da UFMG
[email protected]
1. Breve apresentao
Surgido em Belo Horizonte no ano de 1966, perodo que Minas Gerais foi governado
por Israel Pinheiro, eleito em oposio ao regime militar, o Suplemento Literrio configurou-
se em um importante espao para a expresso de escritores, artistas, cronistas, poetas,
ensastas, historiadores, dentre outros, em um projeto editorial que conseguiu ligar a capital
do Estado tanto com as cidades do interior de Minas Gerais como com outras regies do pas
e para alm dele. Destacou-se a importncia da constituio de um grupo de intelectuais e a
elaborao e difuso de uma rede de saberes. Ao ter a frente do grupo o escritor Murilo
Rubio, que viria ocupar um importante lugar como intelectual e articular entre o projeto
institucional de criao do impresso e os seus colaboradores, o projeto congregou nomes
como Affonso vila, Las Corra de Arajo, Aires da Mata Machado Filho, Mrcio Sampaio,
dentre tantos outros.
2. Caractersticas do Suplemento
1338
O primeiro nmero do Suplemento Literrio veio a pblico no ano de 1966, no dia 03
de setembro de 1966, um sbado. Composto de 12 pginas (primeiro nmero; os demais, a
partir de sua inaugurao, mantiveram-se com 8 pginas, exceto os fascculos, ou edies,
especiais, que variaram a quantidade de pgina trazendo, geralmente, 12 pginas), em formato
tabloide,683 foi organizado em colunas e ilustrado com algumas fotografias e desenhos.
Seria objetivo do Suplemento reviver a significativa tradio do jornal,685 que a histria das
letras em Minas no deixou de registrar. Alguns dos influentes escritores mineiros manifestaram-se,
pela primeira vez, no Minas Gerais, como o caso do poeta Carlos Drummond de Andrade. Esses
escritores, afirmava ainda o texto de apresentao, ombrearam-se com autores j consagrados pela
crtica e pblico. De maneira idntica, o Suplemento procederia daquele momento em diante em
relao aos novos escritores e colaboradores.
683Formato popularizado no Reino Unido, em meados do sculo XX, suas dimenses medem aproximadamente 43 x
28 cm e foram adotados por jornais de maior circulao.
684Apresentao. Suplemento Literrio. Belo Horizonte, ano I, v. 1, n. 1, 03 set. 1966, p. 1.
685O jornal Minas Gerais foi criado no final do sculo XIX, no ano de 1892.
1339
algum membro da Comisso de Redao ou mesmo em funo de algum tipo de balano ou
considerao digna de nota ou explicao.
3. Recepo do Suplemento
686Minas lana o seu Suplemento. Suplemento Literrio. Belo Horizonte, ano I, v. 1, n. 2, p. 8, 10 set. 1966.
687Comandante da ID/4 (Infantaria Divisria) e da SADI (Subrea de Defesa Interna)/BH general Gentil Marcondes
Filho, que dez anos mais tarde comandaria o I Exrcito e ficaria conhecido nacionalmente depois do caso Riocentro,
em 1981.
1340
Mrio Matos O Minas Gerais o jornal mais difundido em nosso Estado
e , tambm, o que tem leitores individualmente interessados e restritos.
Mas, de hoje em diante, vai ser, aos sbados, leitura educativa, deleitosa e
enlevadora, graas eficincia de Murilo Rubio, o mgico, e de seus
companheiros, que instituram seu suplemento literrio.
Eduardo Frieiro Est muito bom o Suplemento, no s pelo texto como
pela apresentao. Felicito o corpo de colaboradores, que merecem toda a
simpatia de todos os intelectuais.688
1341
, sem dvida alguma, dos mais completos e mais cuidados suplementos no
gnero que se publicam no Brasil. Reduzido, praticamente a zero, em
matria de redao, suas pginas so abertas, contudo, sem discriminao
regionalista, aos escritores que nele desejem colaborar, nos diversos planos
em que se multiplica a atividade artstica e literria, numa constante e
vigilncia seletiva, como de rigor, a fim de que se mantenha alto e
brilhante o nvel de dos trabalhos que veicula, no setor da crtica, da fico,
da poesia etc.692
Ainda sobre a revista, tudo indicaria que o Suplemento Literrio teria sido vtima de
sua vizinhana e parentesco com o jornal oficial do governo mineiro, pois, nas palavras da
mesma, jamais sofreu qualquer censura que limitasse suas manifestaes culturais e de
vanguarda.696
1342
Da investigao no prprio Suplemento, em arquivos pessoais, fontes da imprensa,
biografias, dentre outras, alguns depoimentos, frutos principalmente de entrevistas, tem sido
muito teis para compor um primeiro mapeamento tanto das memrias construdas quanto dos
relatos prestados sobre e durante o perodo do surgimento da publicao e os anos seguintes.
J em 1969, em uma matria feita pelo jornal O Estado de Minas, Murilo Rubio nos
relata que
1343
Por sua vez, Las Corra de Arajo, foi rduo o trabalho para a valorizao
profissional do artista, tanto no que diz respeito sua remunerao quanto criao de um
espao onde fosse possvel a liberdade de expresso.
Vrios aspectos desses depoimentos nos chamam a ateno, dentre eles, aqueles que
dizem em respeito ao momento poltico vivido pelo pas, e em especial por Minas Gerais, ps
Golpe Civil-Militar de 1964; a descrena em um projeto que mesclava a participao de
intelectuais em um empreendimento mantido e promovido por um rgo oficial do governo
do Estado e, ao mesmo tempo, uma ebulio cultural presenciada e reconhecida por aqueles
que, de alguma forma, tambm dela fizeram parte. Nesse ponto, as declaraes de Las
contribuiem com mais um dado curioso e instigante, na medida em que tenta reflibilizar um
pouco os possveis limites ou margens de atuao dos intelectuais no contexto em dastaque.
De uma forma geral, eles no teriam, por um lado, se adequado completamente ao trabalho
orgnico como funcionrios do poder constitudo, angariando os benefcios concedidos como
parte de sua adeso incondicional s orientaes oficiais, nem por outro exercido um ativismo
independente, autnomo ou mesmo revolucionrio em suas posies polticas. A posio
contraditria do intelectual, como afirmada pela poeta, tambm nos orienta, e nos serve de
indcio, para uma discusso em que as formas de ser e agir dos sujeitos no se ancorem em
princpios ou definies ontolgicas, mas sejam capazes de criar matizes e clivagens sobre a
atuaes.
Em sentido prximo ao deposto por Las Corra, Murilo Rubio, em uma entrevista no
ano de 1987, comenta, quando perguntado sobre a sua fase como jovem socialista, nos anos
1940, que, em meio ao processo de redemocratizao, ps-45, que acreditava ser um
socialista. E por que no comunista?, pergunta a entrevistadora, e ele responde
700ARAJO, Las Corra de. Entrevista. Cf. RIBEIRO, Marlia Andrs. Suplemento Literrio Minas Gerais.
Neovanguardas, anos 60. Belo Horizonte: C/Arte, 1997, p. 137.
1344
preocupao com a liberdade, com o povo. Tudo muito romntico, meio
lrico. Depois veio a polarizao entre UDN e PSD e ento no deu para se
entusiasmar mais. E a poltica, da pra frente, se j no tinha sido algo
prioritrio, muito por causa da falta de ideologia dos partidos, nunca mais
ocupou lugar relevante em sua vida.701
701O importante viver, entrevista com Murilo Rubio a Mirian Chrystus para o Suplemento nmero 1062, de 21
fevereiro de 1987.
702A partir de janeiro de 1970, Murilo Rubio passa a assumir a funo de Chefe do Departamento do Minas
1345
Anais do IV Encontro de Pesquisa em
Histria da UFMG
Comunicaes Livres
Departamento de Histria
Chefe: Ana Carolina Vimieiro Gomes
Colegiado de Ps-Graduao
Coordenador: Luiz Carlos Villalta
Editor Chefe
Prof. Dr. Magno Moraes Mello
Conselho Editorial
Cssio Bruno de Arajo Rocha
Igor Barbosa Cardoso
Mrcio Mota Pereira
Maria Visconti Sales
Rafael Vincius da Fonseca Pereira
Valdeci da Silva Cunha
Reviso
Cssio Bruno de Arajo Rocha
Igor Barbosa Cardoso
Mrcio Mota Pereira
Maria Visconti Sales
Rafael Vincius da Fonseca Pereira
Valdeci da Silva Cunha
Diagramao
Cssio Bruno de Arajo Rocha
Valdeci da Silva Cunha
Capa
Valdeci da Silva Cunha
Site/Banco de Dados
Cssio Bruno de Arajo
Valdeci da Silva Cunha
Comunicaes livres
A contribuio dos manuais tcnicos para a produo das aguardentes nas Minas
Gerais setecentistas..
Valquiria Ferreira da Silva
1428
Introduo
socialismo cristo.
5 Robert Owen (1771-1858) foi um reformista social e um dos pioneiros do socialismo e cooperativismo.
6 Victor Considerant (1808-1893) foi um seguidor de Charles Fourier e desempenhou um papel importante na
7CHOAY, Franoise. O urbanismo. Utopias e realidades. Uma antologia. So Paulo: Editora Perspectiva, 1979.
8tienne Cabet (1788- 1856), filsofo francs e socialista utpico.
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1352
J o modelo culturalista pode ser ilustrado atravs das obras de Ruskin9 e William10
Morris. Seu ponto de partida no mais a situao do indivduo e sim o agrupamento
humano e o desaparecimento da antiga unidade orgnica da cidade.
Apesar de lanar luzes sobre a importncia das aes desses autores que voltam
suas reflexes para os problemas da vida coletiva na construo de um saber que,
posteriormente seria conhecido como "urbanismo", tanto os trabalhos de Choay quanto os
de Benevolo se centram, quase que exclusivamente, em experincias nos EUA e na
Europa.
O presente trabalho toma por objeto o projeto de Benot Jules Mure, francs,
nascido em Lyon no dia 04 de maio de 1809, de construir um falanstrio na Pennsula de
Sa, no atual municpio de So Francisco do Sul, em Santa Catarina.
Alguns desses aspectos seriam retomados por Mure na experincia de Sa. Dentre
eles, segundo Hoydo Nunes Lins13:
Benot Jules Mure, fazia parte do grupo dissidente dos operrios, e saiu da Europa
como representante da Union Industrielle com o intuito de implementar um falanstrio no
Brasil, tendo sido recomendado por Silvestre Pinheiro Ferreira18 Manuel de Arajo Porto
Alegre19. Dessa forma, Mure, no incio, no teve muitas dificuldades em adentrar no meio
poltico e conseguir as terras para a implantao do seu empreendimento.
O contrato para a fundao da colnia foi firmado entre o Ministro e Secretrio de Estado dos
Negcios do Imprio20com o Dr. Mure, deixando claro que cabia a ele as decises da colnia, o cumprimento
do contrato, a administrao dos recursos financeiros e a distribuio de terras. De acordo com esse
documento, Mure seria responsvel tambm pela contratao e pelo transporte de colonos vindos da Frana.
17 VIDAL, Laurent; LUCA, Tania Regina de. Franceses no Brasil - Sculos XIX - XX. So Paulo: Editora
UNESP, 2009, p.151.
18 Filsofo e poltico portugus que ocupou diversos postos governamentais nos primeiros anos da dcada de
1820, entre os quais os de ministro do Reino, ministro da Guerra e ministro dos Negcios Estrangeiros.
19 Manuel de Arajo Porto Alegre (1806- 1879), alm de diplomata brasileiro, foi poeta, pintor, professor,
Com a ciso do grupo, Jamain e Derrion, junto com os colonos que apoiaram o novo grupo da
Union Industrielle, compraram terras prximas ao Sa, onde estabeleceram a colnia do Palmital. Isto no foi
suficiente para que cessassem os conflitos, pois a cada navio de imigrantes franceses que chegava, acirravam-
se as disputas entre as duas colnias. Muitos imigrantes ao se interarem das condies como a falta de
infraestrutura, e do desentendimento que se dava entre o Sa e o Palmital, rumavam para outros locais:
Montevidu, Curitiba, alguns nem saiam do Rio de Janeiro.
Apesar disso, no se pode considerar como inexpressivos os feitos realizados na colnia do Sa. No
curto perodo de vida da colnia foram abertos caminhos que melhoraram o acesso, o desmatamento criou
espaos para as plantaes, tambm foi construda uma olaria e uma forja que abasteciam de ferramentas a
colnia e outras localidades prximas. Contudo, durante o ano de 1843, aps trs anos de incio, as colnias
do Sa e do Palmital, no resistiram a falta de incentivo e de fora de trabalho e declinaram rapidamente.
Em uma das suas viagens para a capital, Mure no voltou mais. Ele deixou o Sa em
agosto de 1843, ficou no Rio de Janeiro onde trabalhou ativamente at 1848 como mdico
e divulgador da homeopatia. Apesar do abandono e do visvel fracasso ao qual a colnia se
destinava, Mure tentou conseguir novos subsdios para que o projeto no findasse. Mure
sempre culpou os desertores do Palmital como responsveis pelo fracasso da colnia e do
ideal falansteriano.
Consideraes Finais
Dentro do campo urbanstico, h uma srie de reformadores sociais que fazem uma
crtica ao modo como vivem e propem outros modos de viver coletivamente e muitos
desses pensadores, que viviam no sculo XIX e que em um determinado momento se
questionaram sobre essa temtica, so temas de estudos atualmente.
A questo que grande parte dos reformadores sociais que so mais apreciados, so
os que viviam e tinham suas propostas fixadas no continente europeu. Em virtude do que
foi mencionado, conclui-se que houveram experincias ligadas aos movimentos socialistas
no Brasil e que este esteve, desde sua descoberta, dentro de uma rede de conhecimentos no
ocidente, apesar das crises.
Aqui no Brasil, Benot Jules Mure, francs, tenta organizar um modo de viver
cooperativamente e trouxe a ideia dos falanstrios, chegando a comear a sua implantao.
Esse acontecimento, porm, teve pouca repercusso apesar de possuir grande potencial
como estudo para a investigao de como foram pensadas as cidades para o futuro.
Resumo: Este trabalho tem o objetivo de analisar a representao da figura da mulher nas
propagandas publicitrias da Revista Silhueta, publicada em Belo Horizonte. A anlise
pauta-se em duas edies datadas nos meses de maro e maio de 1932, ano do lanamento
da primeira edio do magazine e da conquista feminina ao direito do voto. O estudo
feito atravs das imagens publicitrias e anncios nos quais a mulher est inserida como
protagonista e principal consumidora dos produtos que a revista oferece, como
eletrodomsticos e artigos de beleza. A finalidade mostrar como as revistas e a
publicidade podem ser veculos importantes para moldar mentalidades e que, de certo
modo, utilizam da propaganda como uma forma de silenciar a luta feminina e conduzir a
mulher para um consumismo que estimula o trip social imposto a ela, de ser me,
esposa e dona de casa. Por fim, a Revista Silhueta, que obteve ampla divulgao no Brasil,
uma importante fonte documental que contribui para o contnuo estudo da histria das
mulheres.
Por muito tempo as mulheres ficaram submetidas s vontades dos homens e foram
inferiorizadas pelo que a sociedade entendia como a fragilidade do sexo. A tica
masculina via a mulher como um ser subalterno, voltada para o prazer (dos homens) e para
as atividades do lar. Entretanto, com as principais revolues liberais, cria-se na conscincia
feminina a ideia de autonomia, capacidade de tomar suas prprias decises e de lutar por
seus direitos. As mulheres passam a se unir na defesa de um interesse comum que a
igualdade entre os gneros.
A antroploga, inspirada nas ideias marxistas, fornece uma reflexo sobre a relao
da mulher e o trabalho considerando o conceito da mais-valia ainda mais abusivo, afinal os
salrios das mulheres eram mais baixos, a explorao da mo de obra seria a mesma e o
lucro fornecido ao patro maior.
21 RUBAN, Gayle. O trfico de mulheres: notas sobre a economia poltica do sexo. Trad. Christiane Rufino Dabat,
Edileusa Oliveira da Rocha, Sonia Crrea. ed. S.O.S Corpo. Recife, maro 1993, p. 3.
22 Apesar de o movimento ter sido mais forte na Inglaterra e nos Estados Unidos, o primeiro pas a permitir o
Um dos nomes que merece destaque na luta pela igualdade dos direitos jurdicos no
Brasil Bertha Lutz 24 . Formada em cincias naturais na Universidade de Sorbonne
representou as mulheres brasileiras na Assembleia Geral da Liga das Mulheres Eleitoras,
nos Estados Unidos, e ao retornar ao Brasil fundou a Federao Brasileira pelo Progresso
Feminino25, organizao engajada na luta pelo direito ao voto.
KARAWEJCZVK, Mnica. As suffragettes e a luta pelo voto feminino. In: Histria, imagem e narrativa n17, Rio
23
25 BONATO, Nalda Marinho da Costa; COELHO, Lgia Martha Coimbra da Costa. Concepes de
educao integral na dcada de 30: as teses do II Congresso Internacional Feminista. Captado em: <
http://www.sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe4/individuais-
coautorais/eixo01/Nailda%20Marinho%20da%20Costa%20Bonato%20e%20Ligia%20Martha%20Coimbra
%20da%20Cos.pdf> Acesso em: 20 mai. 2015.
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oligarquias que antes revezavam o poder (So Paulo e Minas Gerais) com o auxlio das
fraudes eleitorais e dos votos de cabresto. Entretanto, o Congresso Nacional foi fechado e
os governadores destitudos de seus cargos, Vargas era quem fazia as leis e assinava os
decretos, ademais nomeava os cargos de interventores estaduais.
Nos fins do sculo XX, a terceira gerao dos Annales realizou deslocamentos
importantes no campo das Cincias Humanas, principalmente ao incentivar a
interdisciplinaridade e trazer contribuies metodolgicas para a historiografia. Jacques Le
Goff e Pierre Nora buscaram, em uma coletnea, explicitar as novas transformaes:
Ao mencionar novos objetos, os autores, abarcam novos tipos de fontes para o estudo
do historiador que busca outros objetos de anlise. A partir dos anos de 1970 vrios
projetos j utilizavam os peridicos e as revistas como fonte de pesquisa histrica, pois se
entendia que a imprensa era, fundamentalmente, um instrumento de manipulao de
interesses e de intervenes sociais.
28Goff Jacques Le; NORA, Pierre. Histria: novos problemas. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1978, v, 1,
pp. 11-2.
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existe um grande nmero de colaboradores, diretores e editores com mltiplas concepes
e posicionamentos engajados em sua elaborao. De acordo com Regina Crespo:
Alm disso, a revista tem funes polticas e sociais, isso quer dizer que o magazine
molda comportamentos e aliena seus assinantes com as informaes contidas em suas
pginas. Para isso, os produtores e colaboradores estudam o pblico que pretendem atingir
por meio de pesquisas mercadolgicas e avaliam o contedo que ser escrito mediante estas
informaes.
29CRESPO, Regina. Las revistas y suplementos culturales como objetos de investigacin. Coloquio Internacional de
Historia y Ciencias Sociales. Colima, Universidad de Colima, 2010,p. 1-15.
Outro ponto que merece uma anlise mais a fundo a relao de homens e
mulheres que trabalhavam na organizao da Revista Silhueta destinada, majoritariamente,
ao pblico feminino. Nas edies de maro e maio possvel perceber que o nmero de
homens amplamente superior ao de mulheres. Nas duas edies existem 3 diretores, 8
redatores e as mulheres s aparecem como colaboradoras, em nmero bem inferior, por
exemplo, na edio de maro dos 63 colaboradores apenas 7 eram mulheres e na edio de
maio 5 mulheres em um total de 31 colaboradores. Esses dados servem para mostrar que as
revistas de carter feminino, na maioria das vezes, eram escritas para as mulheres e no por
elas. plausvel que algumas mulheres utilizavam codinomes masculinos para escrever,
mas da mesma forma o nmero de homens ainda era superior.
RESUMO: Uma srie de estudos a partir da dcada de 1960 vem lanando luzes sobre a
historicidade do urbanismo, uma disciplina com ambio cientfica, que toma por objeto as
cidades e que se consolidou apenas no incio do sculo XX. Dentre estes estudos, observa-
se tambm um interesse em relao ao nascimento da disciplina, que autores chamaram de
"pr-urbanismo". Especificamente no Brasil, pode-se dizer que o urbanismo possua razes
no desenvolvimento de uma cultura de construo de cidades que perpassa diversos
debates, como o reconhecimento e o agenciamento do territrio, bem como, o desejo de
melhorar as condies de vida de sua populao. Neste sentido, pode-se dizer que se trata
de um conhecimento que remonta ao perodo em que o Brasil ainda era uma colnia,
perpassando o Imprio at chegar Repblica. Dentre diversos atores que participaram da
construo desse saber, o presente trabalho centra-se na figura de Henrique de Beaurepaire
Rohan (1812-1894), engenheiro militar cuja atuao reflete o perfil de um verdadeiro
humanista. Analisaremos aqui parte de sua variada obra, enfocaremos aquelas que buscam
descrever e propor intervenes em cidades. Atentos natureza das questes levantadas,
bem como, suas diferentes temporalidades, temos por objetivo principal trazer insumos
para uma maior compreenso da formao do urbanismo no pas.
PALAVRAS-CHAVE: Pr-urbanismo, Henrique de Beaurepaire Rohan, Cidades.
Alm desta anlise, o trabalho apresentado Cmara propunha tambm uma srie
de intervenes urbanas na cidade, os melhoramentos para utilizarmos o vocabulrio da
poca. Essas propostas articulavam, ao mesmo tempo, aspectos para melhoria da
circulao, da higiene, do embelezamento e da dimenso social da cidade.
Cabe sinalizar que esse conjunto de propostas de interveno e estudo a cerca das
condies e modo de organizao da cidade antecede em trinta anos organizao da
Comisso de Melhoramentos Urbanos do Rio de Janeiro (1875) que propunha
intervenes urbansticas, sanitaristas, tendo como nfase de atuao a concluses de obras
no Canal do Mangue, demolio do Morro do Senado e abertura de grandes avenidas na
regio central da cidade. Alm disso, tambm muito anterior s conhecidas intervenes
propostas por Pereira Passos, em 1906.
Para tentar lanar luz sobre essa questo, nos aproximamos de dois conceitos
apresentados por Franoise Choay 31 , na obra Urbanismo - Teorias e realizaes: o de pr-
urbanismo e de urbanismo de regularizao.
Choay apontou que at o sculo XVI, as cidades (tendo como referncia aquelas
situadas na Europa), no eram objetos de discursos. Tratava-se, do que a autora chamou,
de cidades vividas em silncio.
Para Choay, o urbanismo, surge ento no fim do sculo XIX e se opunha a arte
urbana por se idenficar como cincia e no como arte, alm de compreender a cidade
como um organismo e no apenas no seu quadro a ser construdo.
Contudo, entre os sculos XVIII e XIX, pode-se observar uma srie de reflexes e
realizaes que pareciam j envolver conhecimentos dessa disciplina nascente sem contudo
ter sido criado um nome em relao ao qual seus praticantes se reconhecessem. Para o
conjunto de aes ainda sem nome, Choay denominou pr-urbanismo e para o conjunto
de realizaes, a autora chamou de urbanismo de regularizao.
31 Franoise Choay historiadora de teorias e formas urbanas e arquitetnicas, professora de urbanismo, arte
e arquitetura na Universit de Paris VIII. Cursou filosofia antes de se tornar crtica de arte. Nos anos 50
colaborou nas revistas L'Observateur, L'il e Art de France. Nos anos 60 dirigiu a seo parisiense da Art
international. Da dcada de 1970 at hoje, publicou diversos estudos sobre arquitetura e urbanismo. Dirigiu a
coleo Espacements nas ditions du Seuil.
32 Arquiteto, terico de arte e humanista italiano. Foi filsofo da arquitetura e do urbanismo, pintor, msico e
escultor. Personificou o ideal renascentista do "uomo universale", o letrado humanista capaz em numerosos
campos de atividade.
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se opunha a essa viso de cidade, levando em conta todos os transtornos sociais, polticos e
econmicos dessa nova sociedade, orientando, ento, projetos contra-sociedade,
sustentados em novas estruturas e instituies, como os falanstrios, que so comunidades
especficas, organizadas de maneira quase reclusa para no se contaminassem com o
exterior, como apresenta Choay.
Contudo, necessrio observar que o trabalho de Choay est muito mais centrado
na experincia de indivduos que atuaram em cidades europeias e norte americanas e
aspectos especficos da cultura de construir cidades no Brasil no so abordados em seus
trabalhos.
Assim, pode-se dizer que no Brasil, os engenheiros militares, desde o sculo XVII,
adquiriram destaque, por atuarem diretamente criao de cidades. Mais do que propor
alteraes espaciais no territrio, esse grupo de profissionais foi fundamental na construo
de um saber civil, possibilitando o levantamento das dimenses do pas e aspectos sociais,
polticos e econmicos.
Concluses
Contudo, como vimos, sua atuao merece ainda estudos mais especficos que
levem em considerao as prticas construdas nas cidades do Brasil em que atuou.
A revista Tricontinental, publicao editorial cujo estudo motivou a produo deste artigo,
fez parte de um projeto poltico e cultural de "solidariedade militante" entre movimentos
revolucionrios e de libertao nacional e de intelectuais da frica, da sia e da Amrica
Latina. Esse projeto foi constitudo de maneira oficial a partir da Conferncia
34WEISS, Peter. The most powerful world of our time. Tricontinental, v.2, 1967, p. 163.
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Tricontinental 35 de Havana que, em janeiro de 1966, reuniu em Cuba representantes de
movimentos revolucionrios e de libertao nacional, bem como intelectuais dos trs
continentes36. Na ocasio, foi fundada a Organizao de Solidariedade entre os Povos de
sia, frica e Amrica Latina (OSPAAAL), rgo responsvel por dar sequncia s
deliberaes da Conferncia, entre elas, o desejo de fundar para a organizao um "brao
terico", que viria a materializar-se, a partir de abril 1967, na publicao da revista
Tricontinental37.
A revista Tricontinental tornou-se importante espao de debate e reflexo sobre o "Terceiro
Mundo"38 enquanto projeto poltico e cultural. Foi publicada bimensalmente em Espanhol,
Ingls, Francs e rabe39. A misso da revista, segundo seu editorial de fundao, era a de
promover "uma maior compreenso dos importantes problemas enfrentados pelos povos
35 Acreditamos que a Conferncia Tricontinental constitui-se como importante marco para as histrias das esquerdas em frica,
sia e Amrica Latina, uma vez que congregou - de maneira pioneira - lderes e intelectuais dos trs continentes em um mesmo
frum de debate, a fim de pensar estratgias e mecanismos coletivos para aproximao e solidariedade, bem como para a
destruio do capitalismo, do imperialismo e do colonialismo em escala global, estabelecendo entre movimentos revolucionrios e de
libertao nacional uma aliana poltica e militar. Corroboram com essa perspectiva os autores Robert J. C. Young e Anne
Garland Mahler. Alm desses, Ocean Sur e Ediciones Tricontinental publicaram em parceria, em 2006, Rebelin
Tricontinental: las voces de los condenados de Africa, Asia y America Latina, uma antologia de textos anteriormente veiculados
na revista. Os dois prlogos dessa antologia, elaborados por Ulises Estrada e Luis Surez nos trazem informaes importantes
sobre a fundao e edio da revista. Ver: TRICONTINENTAL, Ediciones; PRESS, Ocean. Rebelin Tricontinental: las
voces de los condenados de frica, sia y Amrica Latina. La Habana: 2006; MAHLER, Anne. The Global South in the
belly of the beast: Viewing African-American Civil Rights through a Tricontinental lens. Latin American Research Review,
Vol. 50, No. 1. 2015; MAHLER, Anne. Beyond the Color Curtain: Empire and Resistance from the Tricontinental to the
Global South. Tese de Doutorado, Emory University, 2013; YOUNG, Robert J. C. Postcolonialism: an historical
introduction. Oxford: Blackwell Publishing, 2001; YOUNG, Robert J. C. Postcolonialism: a very short introduction. Oxford:
Oxford University Press, 2003 (Kindle Edition); YOUNG, Robert J. C., Postcolonialism: From Bandung to the
Tricontinental. Historein 5 (2005): 11-21.
36 Foram 150 representantes de 28 pases africanos, 197 representantes de 27 pases asiticos, e 165
srie de materiais alm da revista Tricontinental: o boletim Tricontinental e diversos livros, cartazes e filmes.
38 Optamos por no tratar, nesse artigo, das origens e usos do conceito fora de nosso objeto de pesquisa. Para mais informaes,
sobre o conceito e histria do Terceiro Mundo, ler Chaliand, Vigevani, Prashad e Almeida; para mais informaes sobre a
Conferncia Tricontinental, suas implicaes para o que se convenciona chamar aqui de "Terceiro Mundo", bem como crticas
contemporneas ao uso do conceito "Terceiro Mundo", ler Mahler e Young. Para origem do conceito, ler Sauvy. In:
ALMEIDA, Rodrigo Davi. As posies polticas de Jean-Paul Sartre e o Terceiro Mundo (1947 - 1979).
UNESP/Assis/SP, 2010. Tese de Doutorado; CHALIAND, Gerard. Mitos Revolucionrios do Terceiro Mundo. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1977; SAUVY, Albert. Trois Mondes, une plante. LObservateur, 14 aot 1952, #118, p.14;
VIGEVANI, Tullo. Terceiro Mundo: Conceito e Histria. So Paulo: Editora tica, 1990; PRASHAD, Vijay. The
Darker Nations: A Biography of the Short-Lived Third World. New Dehli: LeftWorld Books, 2007 (Kindle Edition);
PRASHAD, Vijay. The South Also Exists, as the Third World Once Did. In: Report: the Multi Polar Moment? Nacla
Report on the Americas. V. 40, i. 005, 2008;
39 Sabe-se que as verses em ingls e espanhol foram publicadas de forma contnua, ao passo que suspeitamos
que as edies em italiano, francs e rabe tenham sido modificadas por seus editores locais. Encontramos
edies impressas na Frana, por exemplo, que no eram compostas pelo mesmo material que as impressas
em Cuba. Esse mapeamento, por seu carter extremamente complexo, no ser abordado extensivamente por
essa pesquisa.
Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMG. v. 7
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do Terceiro Mundo, e como super-los atravs de medidas eficientes" 40 e "denunciar
sistematicamente as polticas criminosas de interveno, pilhagem e agresso utilizados pelo
sistema imperialista mundial [] contra os povos afro-asitico-latino americanos"41. Para
tal, a revista buscaria "coletar em suas pginas as contribuies dos mais proeminentes
lderes do Terceiro Mundo, bem como intelectuais revolucionrios intimamente ligados s
manifestaes culturais dos pases subdesenvolvidos"42, a fim de que pudesse servir "como
meio de agitao, difuso e intercmbio de experincias revolucionrias, bem como das
mais nobres ideias dos homens que lutam pela completa liberdade da humanidade"43. A
revista foi editada, durante o perodo aqui analisado, por Jos Prez Novoa, chefe do
Departamento Sociocultural da OSPAAAL, sediado em Havana. Sua tiragem era de 50 mil
exemplares, distribudos gratuitamente a movimentos revolucionrios, partidos de esquerda
e intelectuais44.
Estudamos a revista Tricontinental sob a tica da Histria Transnacional, segundo a qual
preciso "romper com a ideia e os limites da nao como marco espacial"45. Essa proposta
constitui-se, portanto, em torno do estudo do movimento entre lugares e regies, buscando
no simplesmente abordar o processo histrico que acontece em diferentes lugares de
maneira isolada. Barbara Weinstein afirma que a Histria Transnacional se d atravs do
estudo de zonas de contato: "pontos no necessariamente fsicos nem geogrficos onde os
encontros internacionais mais intensos transparecem"46.
Nesse trabalho, partimos do pressuposto terico-metodolgico de que a revista
Tricontinental pode ser concebida precisamente como uma zona de contato, amparados pela
afirmao de Weinstein de que essas podem ser "comunidades de discurso e
conhecimento"47. Robert J. C. Young, autor de alguns dos poucos trabalhos publicados
sobre nosso tema de pesquisa, conceitua a revista em questo como um "campo de
trabalho transnacional" 48 . Estudar a revista Tricontinental , tambm, uma importante
oportunidade de retirar da Europa o status de locus da produo de todos os saberes, e
compreender, atravs da perspectiva transnacional, "como o liberalismo, o marxismo e
reconhecidos lderes polticos do que se convencionou chamar "Terceiro Mundo", nominalmente Fidel
Castro, Amilcar Cabral, Agostinho Neto, Eduardo Mondlane, Carlos Fonseca Amador e Salvador Allende;
alm de intelectuais de renome como Jean-Paul Sartre, Gabriel Garca Mrquez, Frantz Fanon e Carlos
Altamirano. A revista se encarregou, ainda, de republicar textos "clssicos" sobre poltica e revoluo escritos
por Lenin, Che Guevara, Carlos Marighella, Camilo Torres, Jos Carlos Maritegui, Malcom X, entre outros.
43 TRICONTINENTAL, Editorial ed. #1; p.4.
44 TRICONTINENTAL, Rebelin Tricontinental. p.10.
45 PRADO, Maria Lgia Coelho. Amrica Latina: Histria Comparada, Histrias Conectadas, Histria
49
________. Amrica Latina: Histria Comparada, Histrias Conectadas, Histria Transnacional. p.18.
50 ROSANVALLON, Pierre. Por uma Histria do Poltico. So Paulo: Alameda, 2010. p.87.
51
______. Por uma Histria do Poltico. p.86.
52 KOSELLECK, Reinhardt. Futuro Passado contribuio semntica dos tempos histricos. Rio de Janeiro. Editora
PUC Rio, 2006.
53 Sero analisados: CARMICHAEL, Stokely. The Third World: our world. Tricontinental, 1967, #1, p.15-22 e
WEISS. The most powerful world of our time. Tricontinental, v.2, 1967, p. 163-167.
54 YOUNG. Postcolonialism: a very short introduction. po. 524.
55 SEIDMAN, Sarah. Tricontinental Routes of Solidarity: Stokely Carmichael in Cuba.
Journal of Transnational American Studies, ano 4, #2 (2012).
56RODRIGUEZ, Besenia. "De la Esclavitud Yanqui a la Libertad Cubana": U.S. Black Radicals,
the Cuban Revolution, and the Formation of a Tricontinental Ideology. Radical History Review, #92
(2005): 6287.
57GRONBECK-TEDESCO, John. The Left in Transition: The Cuban Revolution in US Third World
Politics. Journal of Latin American Studies: 2008, 40, p.651-673.
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nome alguns anos aps a publicao desse ensaio em Tricontinental para Kwame Tour. Sua
trajetria se inicia no Student non-Violent Coordinating Committee, passando por sua
participao no movimento dos Panteras Negras - do qual ainda era membro quando
publicou o artigo - e culminando em sua adeso ao All-African Peoples Revolutionary
Party. Em entrevista ao jornal cubano Granma, Carmichael afirmou que a revista era "uma
bblia nos crculos revolucionrios"58.
Seu texto, publicado na sesso Land of ideas, busca aproximar as realidades da black people59
estadunidenses daquela dos demais povos do "Terceiro Mundo", atravs da evocao das
experincias de discriminao e racismo sofridas por ambos e da tentativa de ressaltar que
racismo e explorao so, ambos, recriminveis produtos de um sistema capitalista. Afirma:
[d]iferentemente de muitas das pessoas do Terceiro Mundo [] ns estamos
dentro dos Estados Unidos h quatrocentos anos e reconhecemos a profundidade
desse racismo. Portanto, temos dois fronts de luta a travar: o racismo e a
explorao, que so produtos de um sistema capitalista.60
A partir da associao entre racismo e explorao, Carmichael afirma que a black people
estadunidense se junta
com os povos do Terceiro Mundo, porque nos entendemos como, e somos de
fato, colnias dentro dos Estados Unidos. []. A estrutura de poder que explora e
oprime a vocs exatamente a mesma que nos explora e nos oprime. [] E como
os poderes imperialistas internacionalizaram seu sistema, ns devemos tambm,
internacionalizar nosso sistema, para que nossa luta seja internacional: [E cita Che
Guevara] criar dois, trs, muitos Vietnans.61
Em inmeros momentos, Stokely Carmichael utiliza expresses como "nosso mundo",
"ns do Terceiro Mundo", entre outras, deixando claro que, segundo o autor, o conceito de
Terceiro Mundo deve ser alargado. Nesse sentido, mais do que apenas uma aliana entre o
Black Power e os movimentos presentes na Conferncia Tricontinental, Carmichael
defende uma concepo de "Terceiro Mundo" que se fundamentasse nas condies
compartilhadas de explorao de seus "membros", e no nas disposies geogrficas
fundamentadas em continentes geograficamente estabelecidos. Conforma, nesse sentido, o
que Alexandra Pita Gonzlez 62 descreve como uma geografia imaginria, fundamentada
com base nos encontros e no estabelecimento de redes.
63
CARMICHAEL. The Third World: our world. p.22.
64FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1968.
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poderoso de nossos tempos", o autor discorre sobre os pases que compe essa "regio" e
suas relaes com a intelectualidade e a cultura. Apresenta tambm suas peas de teatro
recentes e a forma como buscou ser um intelectual europeu aliado s lutas dos trs
continentes. Seu artigo foi publicado na sesso New Expression da revista Tricontinental, e
descrito pelo editorial daquela edio como um texto que carrega uma "concepo
polmica sobre o conceito de Terceiro Mundo e a posio que deve ser assumida pelo
intelectual europeu"65.
Enquanto o texto de Carmichael sobre a temtica do Terceiro Mundo foi publicado em
Land of Ideas, sesso privilegiada da publicao e reservado aos debates sobre a revoluo, o
texto de Weiss ficou reservado a um local de pouco destaque na revista, em uma coluna
espordica. Ainda que Weiss trate de cultura em seu ensaio, essa abordagem nos parece, no
mnimo, curiosa.
Peter Weiss foi um reconhecido intelectual das esquerdas nascido na Alemanha, que
poca da publicao dessa colaborao, residia na Suca. O que props com The most
powerful world of our time66 foi, resumidamente, a substituio do uso do conceito de Terceiro
Mundo por algum outro, com argumentos que fariam brilhar os olhos de qualquer ps-
colonialista, que criticaram a ideia de Terceiro Mundo com base em fundamentos
epistemolgicos. Defende o estabelecimento de denominaes alternativas dessa "regio",
que valorizassem suas caractersticas positivas e seu potencial revolucionrio.
"Para comear, eu quero mudar as terminologias" 67 , conclama o autor em sua frase
introdutria. "[E]u no gosto da expresso Terceiro Mundo e no gosto de falar sobre
pases subdesenvolvidos"68, em crtica aberta a termos que haviam sido recorrentes nos
editoriais, artigos, cartas e reportagens publicadas pela revista at ento. E o autor continua,
fazendo questo de explicar, e ressaltando o potencial revolucionrio e transformador dessa
regio geograficamente imaginada:
[a] expresso Terceiro Mundo se baseia em um pensamento classista, qualifica
uma terceira classe do mundo, e no expressa o que compe o [que se convm
chamar de] Terceiro Mundo. [] [e]sse "Terceiro Mundo" consiste no mundo
mais poderoso de nosso tempo. Precisamos escolher uma nova expresso para ele;
poderamos cham-lo "mundo revolucionrio" ou "mundo da luta por libertao",
ou cham-lo por um nome que mostre seu carter militante, dinmico e explosivo.
Dele as grandes mudanas acontecero, ele sobreviver pelos prximos anos.69
Suas justificativas so no s polticas, como morais e epistemolgicas. O autor
critica a prpria fundamentao da ideia que posiciona a Europa ou os Estados Unidos
como Estados nacionais desenvolvidos, aproveitando a oportunidade para criticar tambm
as concepes de desenvolvimento que implicam em caracterizar a esses pases como
desenvolvidos - e ao "Terceiro Mundo" como subdesenvolvido, em um par de oposio.
70
WEISS, Peter. The most. p.165.
71 SAUVY, Albert. Trois Mondes, une plante. LObservateur, 14 aot 1952, #118, p.14;
72CRESPO, Regina. Las revistas y suplementos culturales como objetos de investigacin. Anales do
Coloquio Internacional de Historia y Ciencias Sociales. Colima, Universidad de Colima, 2010. p.4.
73BEIGEL, Fernanda, Las revistas culturales como documentos de la historia Latinoamericana. Utopa y
Praxis Latinoamericana. #20, 2003, p.113.
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dinmico da produo de uma revista, que inclui processos de colaborao e edio - para
citar apenas alguns. Revistas so, precisamente, "objeto capaz de lanar luz sobre as
particularidades da construo de um projeto coletivo"74, por evidenciarem os conflitos e
urgncias presentes em sua conformao.
No se pretende aqui esgotar os debates publicados na revista acerca do conceito de
Terceiro Mundo, mas demonstrar que esse - como qualquer outro - esteve sujeito s
crticas e modificaes ao longo do tempo. Essas crticas, por outro lado, no podem ser
compreendidas sem que se considere a dimenso histrica de seus usos, particularmente, o
fato de que alguns textos de Tricontinental buscaram exatamente reapropri-los e modific-
los em funo de necessidades concretas do presente. Defende-se, portanto, que o conceito
seja estudado a fundo pela historiografia, e que se compreenda, tambm, seu grande
potencial como mobilizador da realidade75, no s no mbito das relaes internacionais
em seu sentido clssico, estabelecidas entre Estados nacionais, mas incorporando tambm a
forma como fundamentou a criao de zonas de contato, como Tricontinental.
Acreditamos que com o auxlio de uma Histria Conceitual do Poltico, como props
Rosavallon76, possvel evidenciar a forma como se operou com o conceito de Terceiro
Mundo na revista Tricontinental, principalmente quando tenta-se perceber como esse foi
definido na prtica. Os usos do conceito de Terceiro Mundo foram claramente
influenciados pelos interesses polticos e imediatos de seus colaboradores aqui citados. Para
Stokely Carmichael, no sentido de expandir e aprofundar o projeto poltico e cultural
conformado na OSPAAAL, incluindo novos atores na concepo de Terceiro Mundo. Por
outro lado, o interesse expresso por Peter Weiss foi o de valorizar a dimenso do potencial
revolucionrio dessa regio geograficamente imaginada e recusar alcunhas pejorativas como
"Terceiro Mundo" e "subdesenvolvido". Usando Koselleck77, percebe-se que esses atores
buscam articular seus campos de experincia - militante, revolucionria, intelectual - a
horizontes de expectativa para o futuro. Para alm dos limites desse trabalho, ressaltamos o
quo interessante e frutfero tem sido o trabalho com a revista Tricontinental, e reiteramos
nossa afirmao de que seu estudo extremamente necessrio e importante para que se
compreenda mais da Histria do Sculo XX.
RESUMO: Nossa pesquisa tem como foco de anlise o Panegrico de D. Joo III (1533), um
escrito do humanista portugus Joo de Barros (1496-1570). Radicados no gnero oratrio,
os panegricos so definidos como composies literrias em prosa ou verso voltadas para
o elogio de um determinado indivduo. No caso do Panegrico de D. Joo III, foi escrito e
endereado ao monarca D. Joo III e lido em vora em 1533 perante o rei, a corte e os
cidados daquela cidade. Alm do carter elogioso, o Panegrico de D. Joo III se destaca pelas
ideias polticas que possui e por um vocabulrio poltico que evidencia a percepo de Joo
de Barros acerca do Estado moderno portugus. O autor se empenha por apresentar ao rei
um conjunto de aes ou modos de atuar frente do seu governo com vistas a alcanar o
bem estar e a segurana do Estado, discutindo temas como a conservao do Estado, a
relao do rei com seus sditos, os conselheiros e as virtudes do governante, as empresas
da guerra e a relao entre Estado e religio. Devido a uma estrita ligao que unia a
Pennsula Ibrica Itlia, foi possvel a Barros ler as principais obras de Maquiavel (os
Discursos, publicados em 1531, e O Prncipe, de 1532) e, em seu Panegrico, pde reproduzir
algumas ideias do escritor florentino ou mesmo contestar. Nosso objetivo , pois, analisar o
vocabulrio poltico do Panegrico dentro do contexto em que foi elaborado, levando em
conta a relao entre Barros e Maquiavel.
PALAVRAS-CHAVE: Joo de Barros; Nicolau Maquiavel; Estado moderno.
Introduo
78 Este texto desdobra-se da pesquisa que venho desenvolvendo com o projeto O modus operandi do
Panegrico de D. Joo III: um estudo das ideias polticas de Joo de Barros na relao com Nicolau Maquiavel
e os ecos em Giovanni Botero (1531-1589), orientado pelo prof. Rubens Leonardo Panegassi e financiado
pela Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG).
79 Cf. MATTOSO, Jos. A consolidao da monarquia e a unidade poltica. In: MATTOSO, Jos e SOUSA,
Armindo de (orgs.). Histria de Portugal. Segundo Volume: A monarquia feudal (1096-1480). Lisboa: Editorial
Estampa, 1997.
80 Cf. FRANA, Eduardo DOliveira. O poder real em Portugal e as origens do absolutismo. Bauru: Edusc, 2013.
81 Cf. HESPANHA, Antnio Manuel. Poder e instituies na Europa no Antigo Regime. Lisboa: Fundao Caloust
Gulbenkian, 1984.
82 MATTOSO, A consolidao da monarquia e a unidade poltica, p. 221-244.
83 Dois exemplos desse tipo de literatura so analisados por Flvio Reis: o De republica per regem gubernanda
(1496), de Diogo Lopes Rebelo, e o Clarimundo (1528) de Joo de Barros. Cf. REIS, Flvio Antnio
Fernandes. A arte de governar no De republica per regem gubernanda de Diogo Lopes Rebelo e no Clarimundo
de Joo de Barros. Revista Signum, vol. 15, n. 1, p. 15-38, 2014.
84 Cf. BUESCU, Ana Isabel. Um discurso sobre o prncipe: a pedagogia especular em Portugal no sculo
XVI. Penlope. Gnero Discurso e guerra, n 17, p. 33-50, 1997, p. 38. Destaque-se, por exemplo, a Breve
Doutrina e Ensinana de Prncipes (1525), ofertada a D. Joo III por Antnio de Beja; a Doutrina de Loureno de
Cceres ao infante D. Lus, sobre as condies e partes que deve ter um bom prncipe e Sobre os Trabalhos do Rei (1528), de
Loureno de Cceres; o Libro Primero da Princesa Christiana (1543) e o Livro Segundo del Principe Cristo (1544),
ambos de Francisco de Monzn; Da [Criao] dos Prncipes (1545), de Antnio Pinheiro e o Tratado Moral de
Louvores e Perigos dalguns Estados Seculares (1549), de Sancho de Noronha.
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1519) de Guillaume Bud. De modo geral, a literatura medieval e renascentista est cheia
desses tratados que, sob diferentes ttulos, foram escritos para a educao dos reis.
Conforme observa Ernst Cassirer, Entre os anos de 800 a 1700 publicaram-se perto de
mil livros destinados a ensinar o rei como se devia conduzir a fim de poder ser ilustre no
seu elevado cargo85.
85 CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1976, p. 168.
86 SENELLART, Michel. As artes de governar: do regime medieval ao conceito de governo. Trad. Paulo Neves.
So Paulo: Ed. 34, 2006, p. 13.
87 Cf. HANSEN, Joo Adolfo. Razo de Estado. In: NOVAES, Adauto (org.). A Crise da razo. So Paulo:
2006, p. 161.
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assumidamente moral e religiosa 89 . Giuseppe Marcocci, por sua vez, anunciou que o
Panegrico pode ser considerado a primeira reao europeia conhecida edio daquelas
obras de Maquiavel 90 . Nosso objetivo, aqui, evidenciar essa relao entre Barros e
Maquiavel e analisar as exposies argumentativas de ambos no que toca ao exerccio do
governo.
um Imprio: Portugal e o seu mundo (scs. XV-XVII). Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012.
91 Cf. MAQUIAVEL, Nicolau. O Prncipe. Trad. Srgio Bath. Introduo e guia de estudos por Rosemary
93 Cf. COMTE-SPONVILLE, Andr. Pequeno tratado das grandes virtudes. Trad. Eduardo Brando. So Paulo:
Martins Fontes, 1999, p. 4-6.
94 Cf. LE GOFF, Jacques. So Lus: biografia. Trad. Marcos de Castro. 3 ed. Rio de Janeiro: Record, 2002, p.
358 e ss.
95 Cf. SENELLART. As artes de governar, p. 69-71.
96 Os espelhos de prncipe constituem um gnero da literatura poltica medieval e apresentam como
caracterstica bsica o elenco das virtudes convenientes a uma autoridade crist: Propondo sempre que a
justia a sntese de todas as virtudes e que o prncipe antes de tudo deve ser justo, o modelo de educao
exposto nos espelhos pressupe [...] a ideia aristotlica da correo da natureza pela arte, adaptando-a, porm,
aos fins da razo de Estado contra-reformada. Cf. HANSEN, Educando prncipes no espelho, p. 150-151.
Marco Antnio Reis observa que a poca Moderna, sua maneira, deu sequncia a esse tipo de literatura
poltica, no entanto, apesar de incorporarem elementos novos, os espelhos mantiveram-se como uma
espcie de catecismo real, trazendo as normas para administrar o Estado, segundo as virtudes crists. Cf.
LOPES, Marco Antnio. Os espelhos de prncipes: um velho gnero para uma nova histria das ideias.
Caderno de Histria, Belo Horizonte, v. 4, n. 5, p. 21-30, dez. 1999, p. 24.
97 So comuns a tais discursos, ainda, a expresso de uma concepo organicista da sociedade, a defesa da
monarquia como regime poltico ideal, a exaltao do ideal de rei sbio, justo e guerreiro que governe pelo
bem comum, a condenao da tirania e a representao da pessoa do monarca em seus aspectos interiores e
exteriores. Cf. BUESCU, Ana Isabel. Imagens do prncipe: discurso normativo e representao (1525-1549). Lisboa:
Cosmos, 1996, p. 64 e ss.
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ganha relevo. A justia tida como a virtude mais necessria para a conservao do estado
e para a garantia da paz e tranquilidade dos reinos. tambm a que ocupa o primeiro lugar,
porque sendo Deus perfeita justia, os reis, que por ele so ordenados e cujo poder
representam, a ele s em tudo devem seguir98. E continua: [...] mas claro a todos quo
aceita virtude a Deus e ao mundo, e quo proveitosa s repblicas a justia, e pelo
contrrio, quantos e quo grandes males nascem da sem justia99. A justia promove a paz,
j a falta de justia provoca o dio e as diferenas dentro do reino.
O prncipe, alm de promover a justia, deve ser prudente. De acordo com Barros,
Entre as virtudes que so necessrias para no somente o prncipe, mas qualquer homem
ser justo, sempre o primeiro lugar foi dado prudncia100. O humanista divide esta virtude
em trs partes: aconselhar bem, julgar bem e mandar bem. O governante prudente aquele
que conhece a verdade e por isso no se limita a despender o tempo em coisas que no
revelam nem servem de nada101. No entanto, mesmo sendo conhecedor da verdade, o
bom prncipe no deve abrir mo do bom conselho, pois o contrrio disso ser o mal para
sua repblica: coisa clara que nenhum reino no pode durar muito sem ajuda de prncipe
que tenha bom conselho; mas cumpre que os conselheiros sejam verdadeiros e amigos de
Deus, e que saibam e no sejam de pouca idade102. Barros ainda afirma que no conselho
no pode entrar paixo, dio ou cobia, nem pouco amor de Deus, pois tais vcios so
prejudiciais s repblicas.
Como se percebe nesta passagem, o prncipe ideal para Barros aquele que ama a virtude
no movido por interesses mundanos, mas por entender que a observao das virtudes a
98 BARROS, Joo de. Panegrico do Rei D. Joo III, por Manuel Rodrigues Lapa. In: Joo de Barros, panegricos.
Lisboa: S da Costa, 1943, p. 4-5. A ortografia foi atualizada por ns. Procederemos assim com as demais
citaes.
99 _______. Panegrico de D. Joo III, p. 22.
100 _______. Panegrico de D. Joo III, p. 104.
101 _______. Panegrico de D. Joo III, p. 104.
102 _______. Panegrico de D. Joo III, p. 108.
103 _______. Panegrico de D. Joo III, p. 122.
lhe obedece e toma seu exemplo, aproveita muito, e tanto mais com esta virtude que com as outras, quanto
esta mais espiritual e chegada a Deus; posto que, sem bem querermos olhar, encadeadas e tecidas esto todas
as virtudes entre si, que aonde h perfeita justia, tambm h perfeita paz e amor do prximo; nem pode
haver perfeita paz sem perfeita religio. Cf. BARROS, Panegrico de D. Joo III, p. 61. Lus de Sousa Rebelo
j acentuou que nos Panegricos de D. Joo III e da Infanta D. Maria Joo de Barros procura acentuar apenas as
qualidades do monarca e da Infanta e trata de fazer realar nesses retratos a vivncia de altos valores ticos,
que imprimem cunho de nobreza queles que so capazes de os aceitar como norma de conduta. Cf.
REBELO, Lus de Sousa. A tradio clssica na literatura portuguesa. Lisboa: Livros Horizonte, 1982, p. 134. De
forma semelhante escreveu Joaquim Romero Magalhes: o retrato do rei perfeito devia servir a qualquer um
no Panegrico Barros no escreve crnica. o rei arqutipo que se procura fixar e transmitir, sem traos
singularizantes. Cf. MAGALHES, Joaquim Romero. As estruturas polticas de unificao: o rei. In:
MATTOSO, Jos (dir.). Histria de Portugal. Terceiro Volume: No alvorecer da Modernidade. Coord. Joaquim
Romero Magalhes. Lisboa: Editorial Estampa, 1997, p. 62.
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virtude, pois ningum desdenha de obedecer e ficar debaixo de quem lhe
superior, mas de quem lhe inferior ou at igual108.
Se para manter o poder a lio catlica reza que o prncipe deve ser virtuoso,
Maquiavel dir que o governante deve apenas parecer virtuoso, distanciando-se, portanto, do
modelo da virtude aristotlico-crist111. Em O prncipe, o florentino escreve que natural aos
soberanos, pela posio elevada que ocupam, contarem com certas qualidades que lhes
valem elogios ou vituprios. No entanto, diante da impossibilidade de um prncipe possuir
todas as qualidades, dada a sua condio humana, necessrio que tenha a prudncia
necessria para evitar o escndalo provocado pelos vcios que poderiam faz-lo perder seus
domnios, evitando os outros se for possvel; se no o for, poder pratic-los com menores
escrpulos112. Em outra passagem Maquiavel mais incisivo: No necessrio que um
prncipe tenha todas as qualidades, mas muito necessrio que as aparente todas. Ousaria
mesmo afirmar que possu-las todas, e sempre as observar, chega a ser perigoso, mas a
aparncia de possu-las todas til113.
108 BOTERO, Joo. Da Razo de Estado. Trad. Raffaella Longobardi Ralha. Coordenao e introduo Lus
Torgal. Coimbra: Instituto Nacional de Investigao Cientfica, 1992, p. 17.
109 ERASMO DE ROTTERD. A educao de um prncipe cristo. Trad. Vanira Tavares de Sousa. In:
interpolou passagens inteiras das obras de Maquiavel (especialmente os Discursos e O prncipe), publicadas
pouco antes de escrever seu Panegrico. Giuseppe Marcocci, por sua vez, anunciou que o Panegrico de D. Joo III
pode ser considerado a primeira reao europeia conhecida edio daquelas obras de Maquiavel.
117 BARROS. Panegrico de D. Joo III, p. 63.
118 BARROS. Panegrico de D. Joo III, p. 103.
119Este artigo adaptao da primeira parte da monografia realizada pelo autor, intitulada: Lugares da memria e
a(s) memria(s) do lugar: Itaguara entre a Tradio e a Modernidade. Uma pesquisa realizada para a obteno do titulo
de Graduao em Histria.
120 Disponvel em: <http://www.iga.br/SiteIGA/mapas/cgi/IGA_09_Cartografia.php> Acesso em: 17 de
abril de 2015.
121Disponvel em: <http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?codmun=313220> Acesso em: 17 de abril de
2015.
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Vasconcelos se tornou, entre os itaguarenses, o ponto de fundao do povoamento da
regio, e sustenta o mito de origem da comunidade. Fato que por sua vez foi imortalizado
no hino da cidade:
Sob o verde esperana da mata / Dorme o ndio seu sono tranquilo /
Nas sedncias de ouro e de prata / A sonhar da esmeralda c'o brilho. /
Se o torro que hoje nosso custara / Todo ardor que o nativo carinha
/ Eia! Vamos pertence a Itaguara / Destas plagas tornar-se a rainha. / O
desperta e o feroz patriota / Com seu tosco aparelho de guerra / Que
importa a vitria ou a derrota / S deseja salvar sua terra. / Da
Conquista lhe nascem as dores / E do seio se levanta Sobreiras /
Homem digno e demais fundadores / Nos deixaram lembrar as
bandeiras. / Conquistanos o passado de glria / Itaguara pra ns
Conquista / Mostraremos em marcha notria / Tendo as bnos de
Deus sempre a vista / Os ministros do Altar nos congregam / A
marcharmos unidos ao Bem. / Conterrneos, o lema que pregam /
transpor as fronteiras do Alm.122
Pode se observar nas primeiras estrofes do Hino que h meno aos ndios e s
esmeraldas, reportando a passagem de Loureno Castanho pela regio, quando, segundo
Diogo de Vasconcelos, ocorreram batalhas entre os bandeirantes e os ndios nativos. Ainda
exalta o antigo nome da comunidade Conquista onde nas estrofes Conquistanos o
passado de gloria / Itaguara pra ns Conquista, percebe-se o louvor ao passado,
chamando os viventes pelo antigo gentlico conquistanos a reconhecer o seu passado e
a exalt-lo, de forma que h o nome oficial do municpio, mas para os habitantes
permanece Conquista. Atualmente ainda possvel perceber nos nomes das lojas
comerciais, nos times de futebol, nas empresas prestadoras de servios, nas fbricas de
mveis, etc., so inmeros os locais que se apropriam do nome de Conquista para titular os
seus empreendimentos. O que mostra uma forte identificao com o passado de glorias.
Contudo, pode-se dizer que so mltiplas identidades construdas atravs de
geraes entre os itaguarenses. De forma que lanamos os olhares para as identidades
atribudas ao municpio, possibilitando compreender dinmica que d consistncia ao
imaginrio dos viventes enquanto reconhecedores de parte pertencente da comunidade.
Como argumenta Jos Carlos Reis (2006), o trabalho do historiador consiste em reescrever
a Histria, de forma que isso se d pelo prprio fato da especificidade mesma do
conhecimento histrico: os homens e as sociedades humanas no tempo. [...] Os homens e
as sociedades humanas, por serem temporais, no permitem um conhecimento imediato,
total, absoluto e definitivo.123 Naturalmente, o estudo da Histria se volta para o passado,
observando os rastros deixados pelos homens e as sociedades nas areias do tempo.
Contudo, encontra-se a perspectiva de que o trabalho do historiador definido pelo seu
prprio tempo vivido. Ao observar os rastros deixados na areia do tempo ele v de um
lugar, de um determinado ngulo, condicionando a sua anlise narrativa.
122Hino de Itaguara. Letra: Paulo de Oliveira Rezende. Musica: Luiz Gonzaga de Paula. 14 de novembro de
1994.
123REIS, Jos Carlos. As Identidades do Brasil: de Varnhagem a FHC. 8ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006,
p.7.
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Neste artigo trabalhou-se com a perspectiva de Benedict Anderson (2008), quando
afirma que qualquer comunidade maior que a aldeia primordial do contato face a face (e
talvez mesmo ela) imaginada. As comunidades se distinguem no por sua
falsidade/autenticidade, mas pelo estilo em que so imaginadas. 124 Nessa vertente
considerada a integrao concomitante entre os habitantes e a cidade, de maneira que as
pessoas representam na cidade espaos de memria, onde as suas experincias cotidianas
transmitem cidade, ou mesmo ao campo, as suas representaes de memria, uma vez
que a memria um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual
ou coletiva, cuja busca uma das atividades fundamentais dos indivduos e das sociedades
de hoje, na febre e na angustia.125 Dessa forma os espaos de memria so lugares onde se
pode, por associao com as representaes dos indivduos, delinear as identidades e o
imaginrio de pertencimento de uma comunidade.
124 ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexes sobre a origem do nacionalismo. So Paulo:
Companhia das Letras, 2008, p.33.
125LE GOFF, Jacques. Histria e Memria. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990, p. 476.
126 ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexes sobre a origem do nacionalismo. So Paulo:
127ROSA, Fleury. Um passado de glrias, um futuro de conquistas. In: Revista Viva Grande BH, Contagem -
MG, ano 2, n. 11, 2014, p. 38.
128NORA, Pierre. Entre Memria e Histria: a problemtica dos lugares. In: KHOURY, Yara Aun. Revista do
programa de estudos ps-graduados em histria e do departamento de histria: tradues. So Paulo, PUC/SP, n10, Dez.
1993, pp. 8-9.
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Tendo o MUSA e a Biblioteca Pblica como lugares de memrias, podemos
interpret-los como espaos que expressam a necessidade de representar o passado,
reconstruindo a memria que habitava entre os itaguarenses. Nesse sentido, os jornais
encontrados nesses arquivos so da mesma forma uma reconstruo do passado, ao passo
que eles esto includos no acervo histrico dessas instituies.
Desta forma, os jornais so explorados como construes culturais selecionadas
pela memria arquivstica dessas instituies, o que nos conduz a pens-los como parte das
expresses da memria coletiva do municpio. De maneira que ao por em pratica um
processo de seleo arquivstica levado em conta o valor que o documento a ser
preservado tem para o grupo a qual a instituio ligada. Ao levar em conta os acervos dos
arquivos devemos olhar para eles como monumentos que pretendem transmitir um
determinado aspecto da memria coletiva. Assim como os documentos monumentos 129 os
arquivos constroem uma rede de poder atravs da memria enquadrada em uma
determinada perspectiva, promovendo leituras particulares sobre o passado e construindo
expectativas para o futuro.
Nos acervos desses espaos foram encontrados treze colees de jornais, mas para
este trabalho foram selecionados quatro dentre elas. Essa seleo foi feita levando em conta
os aspectos presentes nos jornais no que diz respeito problemtica que eles apresentavam
sobre as identidades culturais de Itaguara, observando as particularidades identificadas em
cada um deles na preocupao com a manuteno da histria da cidade e dos antigos
viventes. De forma que foram selecionados para este trabalho os jornais Ita-Panorama,
Conquista: Jornal de Itaguara, Vida Diocesana e Ita-Comunicao.
O jornal Ita-Panorama, com as suas quarenta e nove edies que vo de novembro
de 1968 at abril de 1973. No contexto do Governo Militar, as narrativas desse jornal
dialogam com as polticas de urbanizao, modernizao, progresso e com o sentimento
ufanista que era difundido nesse perodo. Em Itaguara, nesse perodo tambm foi fundado
a Biblioteca Pblica Municipal Guimares Rosa, em 1970, no primeiro mandato do prefeito
Antnio Ferreira de Morais. Um projeto que pretendia expandir os horizontes dos
habitantes a partir da educao e da cultura. A Associao dos Ex-Alunos do Ginsio
Monsenhor Joo Rodrigues, que por sua vez era responsvel pelo editorial do Ita-Panorama,
teve participao importante na fundao da Biblioteca, mobilizando os itaguarenses com o
projeto, publicando notas nos jornais que incentivavam o envolvimento da populao e at
mesmo cobrando a efetivao por parte da prefeitura. Para a Biblioteca este jornal parte
de sua prpria consolidao e efetivao, ter suas edies em seus arquivos conservar a
sua prpria memria.
O Ita-Panorama caracteriza-se em leituras que narram uma histria mestra da vida,
atravs de um passado glorioso que capaz de inspirar o progresso, a modernizao, o
desenvolvimento, o futuro. Contudo, a proposta desse jornal, alm de estar em dialogo
com o jogo simblico de poder que estava em voga no momento do convencionalmente
denominado milagre econmico, tambm fez parte do projeto da Associao dos Ex-
130DE LUCA, Tnia Regina. Histria dos, nos e por meio dos Peridicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi.
Fontes Histricas. So Paulo: Contexto, 2008.
131Itaguara Recusada. In: Conquista: Jornal de Itaguara. Itaguara, n 0, ano 1, Nov. 1982.
Consideraes finais
Podemos notar que as leituras apresentadas pelos jornais constroem diferentes
representaes sobre Itaguara. Em cada momento da escrita o passado (re)significado
para compor as fundamentaes do presente. Se em 1968-73 o Ita-Panorama transpunha as
virtudes do passado para o presente em funo de caminhar rumo ao progresso, em
1982-82 o Conquista coloca em dvida a busca pelo progresso, pelo desenvolvimento e a
modernidade, pois esses movimentos da sociedade estavam levando a memria da cidade
ao esquecimento.
Podemos observar tambm que alm das conjecturas do presente, a rede de poder
que compe o corpo editorial fundamental na construo dos discursos. Por exemplo, os
jornais Ita-Comunicao e Vida Diocesana, ambos dos finais da dcada de 1980. Enquanto o
Ita-Comunicao quer romper com as amarras conservadoras do passado para seguir com
autonomia rumo ao progresso, o Vida Diocesana rememora as heranas culturais num
momento de crise das representaes, uma articulao que aparentemente busca reforar as
identidades.
Aos poucos, possvel adentrar em uma cidade imaginada por diferentes olhares.
So diferentes interpretes sobre um mesmo objeto; so construes discursivas que
representam Itaguara imaginada por um jogo de espelhos, por uma troca de imagens sobre
o que foi o passado e o que seria o futuro.
Itaguara construda como uma comunidade imaginada atravs da comunho dos
produtos culturais, enraizados no mito de origem, em relao aos bandeirantes e o passado
de Conquista. Itaguara uma comunidade imaginada tambm em seu horizonte de
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expectativas, dispondo-se ao futuro, em um olhar conjunto que contempla a si mesma no
horizonte, mesmo sendo ele (re)imaginado e inalcanvel.
Partindo da premissa de que todo objeto de estudo histrico, isto , tem uma
trajetria de construo ao longo do tempo, entendemos que a imagem de Ouro Preto
como cidade histrica no algo intrnseco a ela, nem esteve presente no imaginrio social
dos mineiros desde sempre. Ela foi elaborada em circunstncias determinadas, por atores
especficos com interesses bem definidos ao longo de algumas dcadas. Dentre os
trabalhos que tratam deste processo de construo da imagem histrica da cidade sob uma
perspectiva crtica, podemos destacar: A construo de uma cidade monumento: o caso de Ouro
Preto, de Rodrigo Meniconi 133 ; Ouro Preto, a construo de uma cidade histrica 1891-1933, de
Caion Meneguello134; Tradio e modernidade: a resistncia de Ouro Preto mudana da capital, de
Janete Fonseca135; e Melhorar para no mudar: ferrovia, intervenes urbanas e seu impacto social em
Ouro Preto-MG, 1885-1897, de Andr Mantovani136.
133 MENICONI, Rodrigo Otvio de Marco. A construo de uma cidade monumento: o caso
de Ouro Preto. 155f. Dissertao (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo). Universidade Federal de Minas
Gerais, Programa de Ps-graduao em Arquitetura e Urbanismo. Belo Horizonte, 2000.
134MENEGUELLO, Caion Natal. Ouro Preto: construo de uma cidade histrica, 1891 - 1933. 233f. Dissertao
Preto-MG, 1885-1897. 185f. Dissertao (Mestrado em Histria Social). Pontifcia Universidade Catlica de
So Paulo, Programa de Estudos Ps-graduados em Histria. So Paulo, 2007.
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A proposta de se transferir a capital de Minas Gerais no era indita quando a
Repblica brasileira se instaurou. Ao longo do sculo XIX, essa foi uma pauta defendida
em diferentes momentos, por diversas pessoas. O incio dessa histria se encontra, na
realidade, na Inconfidncia Mineira. Como se sabe, os conjurados tinham como parte de
seu projeto emancipador a transferncia da capital de Ouro Preto para So Joo del Rey.
Desde ento, a capital passou a ser alvo de diversas crticas 137 e propostas de transferncia
da sede do poder executivo mineiro foram feitas em diferentes momentos ao longo do
sculo XIX - h registros de propostas que datam de 1833, 1843, 1851, 1867.138
Com a recm-repblica criada, no entanto, essa ideia ganhou novos ares, novos
adeptos e novos argumentos, devido, sobretudo, ao fortalecimento do iderio progressista
no qual se embasava o republicanismo brasileiro. Higienismo, medicina social, cientificismo
e novas concepes urbanas estavam na base dos projetos de construo de nova capitais
nessa poca. Alguns argumentos utilizados pelos defensores da transferncia da capital para
outra localidade eram a topografia complexa, a sujeira das ruas, a deficitria rede de
esgotos, o difcil acesso cidade, a economia decadente.139 O fim da monarquia tambm
contribuiu para fortalecer a ideia, j que Ouro Preto era comumente identificada com o
Imprio, o qual carregava at em seu nome Imperial Cidade de Ouro Preto.140 Outro
fator importante que influenciou as decises foram as disputas regionais que se
estabeleceram ao longo do sculo XIX entre a regio central e o Sul e Zona da Mata
mineiras. Estas ltimas viveram um considervel crescimento proveniente da economia
cafeeira, enquanto o Centro passou boa parte deste sculo em estagnao. Como mostra
Maria Efignia Lage de Resende, esta questo foi to significativa que chegou a suscitar
movimentos separatistas no Congresso Constituinte de 1981.141
137MENEGUELLO. Ouro Preto: construo de uma cidade histrica, 1891 1933, p.23.
138 ASSIS, Luiz Fernandes de. A mudana da capital na Constituinte mineira de 1891. Caderno Escola do
Legislativo, Belo Horizonte, v. 3, n. 5, p. 141-181, jan/jun. 1997. p. 141.
139MENEGUELLO. Ouro Preto: construo de uma cidade histrica, 1891 1933, p.198.
140SILVA, Rodrigo Machado da. A caducidade das disposies transitrias: o polmico debate a respeito da
transferncia da capital mineira (1890-1893). Outros Tempos, So Luis, v. 9, n. 14, p.72-97, 2012. p. 74.
141 RESENDE, Maria Efignia Lage de. Uma interpretao sobre a fundao de Belo Horizonte. In: VII
possvel dizer que havia uma forte diferena entre as concepes de modernidade
dos dois grupos: os mudancistas acreditavam no progresso a partir de um marco zero,
queriam apagar todas as marcas vergonhosas e smbolos de atraso que eram a colnia e o
imprio. O progresso que buscavam estava voltado para o futuro, para o que haveria de ser
construdo ainda. J os no mudancistas, que tambm queriam o progresso por meio de
uma capital moderna, acreditavam que este s poderia ser alcanado com um apego a
determinadas tradies; era um presente que deveria olhar para o futuro, porm andando
de mos dadas com o passado. A forma de conseguir isto era se voltando ao passado
glorioso de Ouro Preto, inventando e fortalecendo tradies e usando a histria, sobretudo
a dos bandeirantes e dos inconfidentes, como esteio da modernidade. Alegavam que a
semente do carter republicano e da luta pela liberdade, que fazia parte do sangue mineiro,
tinha sua origem na revolta de Tiradentes, e associavam a essa ideia um elemento
geogrfico, isto , prpria Ouro Preto (como se suas ruas e pedras, instituies e
populao fossem a corporificao dos valores que enunciavam).
Nos parece muito clara, aqui, a presena, nos argumentos dos no mudancistas, da
ideia de patrimnio espiritual mencionada por Jacques Le Goff, ao citar Michelet.
Segundo ele, (...) o patrimnio espiritual. Com isso, entendo a introduo no campo do
patrimnio de uma noo da diversidade das tradies, os movimentos insurrecionais, os
jul./dez. 1993.
146 ABREU, Regina. Quando o campo o patrimnio: notas sobre a participao de antroplogos nas
Anurio do Museu da Inconfidncia. Ouro Preto: Ministrio da Cultura Instituto Brasileiro do Patrimnio
Cultural, 1993. p. 190-196.
148CARSALADE, Flvio de Lemos. A preservao do patrimnio como construo cultural. Arquitextos, So
(orgs.). Memria e Patrimnio: ensaios contemporneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 79.
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preservacionistas, porm distintas daquelas que deram origem aos rgos oficiais de
proteo do patrimnio no governo Vargas. Em outras palavras, havia um desejo de se
preservar a memria de um passado construdo como heroico, ainda que essa preservao
no estivesse traduzida em termos de conservao material da cidade. Tambm no
podemos ser ingnuos a ponto de nos esquecermos que era interesse desses grupos
conservar outras coisas alm de um passado de glorias: privilgios, poder e status poltico.
Nesse sentido, acreditamos que, por meio de discursos memorialistas, a instituio de
lugares de memria pelos no mudancistas, no contexto dos debates sobre a mudana da
capital mineira, constituiu-se como como precursora dos discursos preservacionistas sobre
Ouro Preto, consolidados no sculo XX.
Foi nosso interesse, aqui, levantar alguns questionamentos e hipteses iniciais para
uma investigao que busca compreender em que medida os usos polticos da memria, em
um contexto crtico de ameaa de perda simblica por parte de uma elite poltica mineira,
se configuraram como precursores dos discursos preservacionistas sobre a cidade de Ouro
Preto, acalentados nas dcadas posteriores mudana e oficializados nos anos 30 do sculo
XX.
150FONSECA, Maria Ceclia Londres. O patrimnio e processo: trajetria da poltica federal de preservao no Brasil. 2
edio. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/MinC IPHAN, 2005.
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Acervo maestro Chico Aniceto: edio de obras
raras e reviso do catlogo
Felipe Novaes Ricardo
Licenciando em Msica com Habilitao em Violo
Bolsista PIBIC/FAPEMIG
[email protected]
RESUMO: O projeto acervo maestro Chico Aniceto: edio de obras raras e reviso do
catlogo visa a restaurao, reviso e edio de manuscritos autgrafos e cpias de
reconhecidos compositores mineiros dos sculos XVIII e XIX, tais como Jos Joaquim
Emerico Lobo de mesquita e Joo de Deus de Castro Lobo.
Introduo
Fases iniciais
ILARI, Bernardo. Prefcio/Foreword. In: CASTAGNA, Paulo (coord.). Jos Joaquim Emerico Lobo de
151
Mesquita. Belo Horizonte: Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais, 2008. (Patrimnio Arquivstico-
Musical Mineiro, v.1)
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1410
Jos Maurcio Nunes Garcia e Carlos Gomes152. O projeto, em sua primeira fase, relativa
pr - organizao do acervo, os documentos foram doados Escola de Msica da UEMG
em 2004, pela famlia do maestro, sendo em seguida submetidas a um processo de limpeza,
separao e pr-organizao153.
Fase atual
Na fase atual do projeto foram editadas as obras Moteto das Dores, Lauda Sion, Pater
Mihi, Popule Meus, Tota Pulchras e Senhor dos Passos pertencentes a pasta MOT 01, alm das
peas Missa de Suassuy, Officios para Missa de Defuntos e Memento para Encomendao de Almas,
152 BRADO, D.S.L; COSTA, R.; VASCONCELLOS, F.K.L. Descrio do processo de catalogao do Acervo Chico
Aniceto.In: Modus Revista da Escola de Msica da Universidade do Estado de Minas Gerais, n6. Barbacena
(MG): EdUEMG, 2008, p.9-17, p.10.
153 _______________. Descrio do processo de catalogao do Acervo Chico Aniceto, p.10.
154 BRANDO, Domingos Svio Lins. O Sentido Social da Msica em Minas Colonial. 1993. Dissertao
Mestrado (Mestrado em Sociologia) Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, Universidade Federal de
Minas Gerais, Departamento de Sociologia/FAFICH/UFMG, Belo Horizonte, 1993, p. 234.
155 CASTAGNA, Paulo. Nveis de organizao na msica catlica dos sculos XVIII e XIX. I Colquio Brasileiro de
Arquivologia e Edio Musical. Mariana, Coordenadoria de Cultura e Artes da UNI-BH, Secretaria de Estado
da Cultura de Minas Gerais, Fundao Cultural e Educacional da Arquidiocese de Mariana, 18 a 20 de julho
de 2003. Mariana: Coordenadoria de Cultura e Artes da UNI-BH, Secretaria de Estado da Cultura de Minas
Gerais, Fundao Cultural e Educacional da Arquidiocese de Mariana, 2004, p.5.
156 _______________. Nveis de organizao na msica catlica dos sculos XVIII e XIX, p. 7-8.
157 BRANDO, et al. Descrio do processo de catalogao do Acervo Chico Aniceto, p.12.
Funeral de So Francisco
MAR - 01/172
H uma lgrima sobre o tmulo de D. Thefila
COS - 01/357 Symphonia Guarany
PNO - 01/357 A fada do bosque
SSA - 02/594 Tractos a Quatro com Violinos
LAD - 01/594 Ladainha Antnio de Meneses
SSA - 02/595 Tractos para Sbado Santo
LAD - 01/595 Ladainha Corao de Jesus
Consideraes Finais
158
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Traduo: Luiz Felipe Baeta Neves, 5 ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitria, 1997.
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1414
Vises do Protestantismo atravs do filme O
vento ser tua herana
Carolina Silva Horta Machado
Graduao em andamento em Histria
Universidade Federal de Minas Gerais
[email protected]
RESUMO: Essa comunicao busca analisar o filme O vento ser tua herana, que foi
lanado em 1960 e reconta o caso Scopes, um processo jurdico que ganhou grande
repercusso nos Estados Unidos. O filme tem como plano de fundo as discusses entre as
teorias evolucionistas e criacionistas, que dividiam o pas, j que em alguns Estados era
proibido o ensino do evolucionismo. Alm de levantar as questes religiosas advindas das
transformaes da virada do sculo XIX para o XX, o filme suscita questes polticas,
sociais e ideolgicas, como a forte oposio entre o Norte e o Sul americanos e os conflitos
com o autoritarismo e a intolerncia intelectual, que permeavam o perodo. Por fim,
conclumos a analise percebendo que o filme remete a uma critica a poltica governamental
em vigor durante sua produo, o Macartismo. Que realizava uma enlouquecida caa aos
comunistas muitas vezes desrespeitando-se os direitos civis. Assim, levantando as
polmicas do inicio do sculo, sutilmente, o diretor Stanley Kramer faz um paralelo com a
realidade vivenciada pelos americanos no momento da produo do filme, que trabalha as
diferentes e possveis relaes entre passado e presente.
PALAVRAS-CHAVE: Liberalismo teolgico, Fundamentalismo, Macartismo.
Como resposta ao liberalismo teolgico, surge uma corrente que busca resgatar as
verdades crists, postulando pontos que seriam essenciais para a f crist autntica, entre
eles a inerrncia bblica. Essa corrente se denominou fundamentalismo e se expandiu
significativamente nos Estados Unidos, principalmente nos Estados do Sul, se opondo
fortemente ao modernismo, a degradao moral e a secularizao presente cada vez mais
nos EUA. Assim, se oferecia as pessoas uma fonte de verdade em meio s incertezas
advindas de tantas mudanas. O fundamentalismo no se restringiu ao campo religioso,
passando a atuar em diversas frentes polticas e sociais, protestando contra a cultura
moderna que se tornava dominante e que virava as costas para Deus. Se apropriando
dos mitos fundacionais da nao160, o fundamentalismo se tornou uma ideologia de vida
que tem a misso de resgatar e restaurar a sociedade crist Norte americana. Para tanto, os
movimentos fundamentalistas se inseriram politicamente, buscando o retorno dos valores
cristos na formulao e execuo das leis, para que sua ideologia pudesse se tornar
hegemnica em toda a sociedade161.
Ilustrando os embates entre essas duas vertentes teolgicas pode-se citar o caso
Scopes, um processo jurdico que ganhou grande repercusso nos Estados Unidos e que
trouxe a tona mais do que dicotomias religiosas. Com o avano poltico do
fundamentalismo, alguns Estados do Sul dos Estados Unidos aprovaram leis que proibiam
o ensino do evolucionismo de Darwin nas escolas pblicas. Porm em 1925 em Dayton, no
Tennesse, o jovem professor John Scopes, infringindo a lei, ensina seus alunos sobre as
teorias Darwinistas e acaba sendo preso. Assim se inicia o julgamento que ficou conhecido
como Monkey Trial e que segundo Regina Horta:
159 ROCHA, Daniel. Combatendo pela alma da nao: alguns apontamentos sobre a subcultura poltica
fundamentalista nos Estados Unidos. Histria Agora, v. 13, p. 111, 2013.
160 Os mitos fundacionais dos EUA so baseados na retrica religiosa puritana de povo eleito escolhido por
Deus que tem a misso de criar uma cidade sobre uma colina que se tornaria exemplo de salvao para
todos os povos do mundo.
161 ROCHA. Combatendo pela alma da nao, p. 108-123.
162 DUARTE, Regina Horta. O vento ser tua herana: cincia, evolucionismo e sociedade. Coleo Scientia:
Projeto A histria das cincias e o cinema vo s escolas.
163 ALVES JR, A. G. C. A Direita Crist e o Florescer Econmico da Sunbelt nos Estados Unidos nos anos
Nesse contexto, e baseado numa pea escrita em 1955, o diretor Stanley Kramer
produz o filme O vento ser tua herana, que foi lanado em 1960 e reconta o caso
Scopes modificando o nome dos personagens principais. A histria gira em torno do
julgamento do professor Bertram Cates que defendido pelo renomado advogado Henri
Drummond, especialista do Norte em causas como essa. O advogado de acusao
Matthew Harrison Brady, ex-candidato a presidncia dos Estados Unidos e um religioso
fervoroso defensor da leitura literal da Bblia, e grande amigo de infncia de Drummond.
Os dois advogados protagonizam dilogos acalorados no tribunal, onde a principio toda
populao se pe favorvel a Brady, mas durante o filme, as opinies vo se dividindo e
aps a sentena, favorvel a Cates, Brady enlouquecido acaba morrendo de infarto em
pleno tribunal.
165 Referncia ao sculo XVI, onde ocorre a perseguio s supostas bruxas em Salm; perodo de forte
intolerncia religiosa.
166 SCHUNEMANN, Haller E. S. O Papel do Criacionismo Cientfico no Fundamentalismo Protestante.
CONCEITO DE LIVRO
El trmino 'libro' designa un objeto constituido por un conjunto e hojas que
contienem o no un texto y reunidas bajo una encuadernacin o atadura.168
Livro: reunio de folhas impressas presas por um lado e enfeixadas ou montadas
em capa169
Tais escritos eram considerados artigos de luxo onde tinham no s valor material,
mas tambm valores sentimentais. As tiragens eram inexpressivas dado que antes da
imprensa, o trabalho se dava por cpias individuais. Esses trabalhos primeiramente
Esse movimento no se limita somente a exaltar o valor dos livros, mas h tambm
a justificativa de se preservar os saberes e se explicitam as motivaes fundamentais de se
escrever. Entre estas motivaes se destaca a transmisso de bons ensinamentos, sobretudo
de teor moral. Nesse aspecto os trs mestres de Avis D. Joo I (1357-1433), D. Duarte
(1391-1438) e o Infante D. Pedro (1392-1449), deixaram escritos onde tem por finalidade
[...] a preocupao pela reflexo sobre a educao do homem e, particularmente, sobre a
formao poltica dos governantes e a dimenso tica do poder.171
Esses escritos tratam das posturas para uma formao virtuosa do prncipe 172 e
estabelecer um modelo ideal de realeza, ou seja, se unificavam em um ideal pedaggico,
pela preocupao em divulgar determinados valores e instruir os seus leitores a partilharem
desses valores. Os valores defendidos alm de ajudarem na tarefa de governar tambm
eram prescries de como alcanar a salvao.
170 FRANA, Susani, S. L. O intuito pedaggico nas crnicas e nos livros didticos medievais
portugueses. Estudos Portugueses e Africanos, Campinas, n. 31, p. 23, 1998.
171 BUESCO, Ana Isabel. Imagens do Prncipe: Discurso Normativo e Representao (1525-49). Lisboa,
FRANA, Susani S. L. Os reinos dos cronistas medievais (sculo XV). So Paulo: Annablume: Braslia,
173
D. Duarte escreve tambm outro tratado chamado Leal Conselheiro que juntamente
com o de seu irmo, o Infante D. Pedro chamado Livro da Virtuosa Benfeitoria, so
classificados como doutrinas da boa conduta social. Nesses livros a moralidade ganha
corpo, como matria principal em uma obra. Pois:
174 FRANA, Susani S. L. Os reinos dos cronistas medievais (sculo XV). So Paulo: Annablume: Braslia,
DF: Capes, 2006. p. 84.
175 SILVA, Michelle Tatiane Souza e. Prticas de leitura e ensinamentos morais na corte de Avis. 2009. 103 f.
Dissertao (Mestrado em Histria e Cultura Social) Faculdade de Histria, Direito e Servio Social,
Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho, Franca, 2009.
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prncipes e senhores na difcil misso de se conduzirem bem a si
prprios para se tornarem aptos para conduzirem os outros.176
O livro tem incio com a anlise dos vocbulos que compem o ttulo da obra,
analisando os diversos significados de benefcio e suas implicaes nas formas de execuo.
H a construo de uma teoria da estrutura da sociedade, onde o senhor sustenta esta
sociedade, pelo principio da governao. Com esse conceito do senhor sustentar a
sociedade gera outro aspecto a ser analisado de que com o exerccio do poder, os senhores
se aproximavam de Deus, pois enquanto este regia o mundo, os reis eram responsveis
pelos seus senhorios. No tratado tambm h o mapeamento das condutas dos senhores e a
anlise do benefcio como algo moral que deve ser desempenhado em busca da honra e
positiva fama. Atravs disso, o Infante D. Pedro prope o seu objetivo pedaggico no
intuito de encaminhar os homens aos seus afazeres fazendo com que suas idias sejam
postas em prtica.
FRANA, Susani S. L. Os reinos dos cronistas medievais (sculo XV). So Paulo: Annablume: Braslia,
177
178 ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de Antnio. Alteraes nas unidades produtivas mineiras: Mariana 1670 a
1850. Niteri, UFF, 1995. (Histria, dissertao de Mestrado); ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de Antnio.
Ricos e pobres em Minas Gerais: produo e hierarquizao social no mundo colonial, 1750 1822. Belo
Horizonte: Argumentum Editora, 2010.
179 ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de Antnio. Alteraes nas unidades produtivas mineiras, p.89.
180 CHAVES, Cludia Maria das Graas. Perfeitos negociantes: mercadores das Minas setecentistas. So Paulo:
de Minas Gerais e meios de remedi-lo. 4 de agosto de 1780. Revista do Arquivo Pblico Mineiro, ano 2, fascculo
2, p.311-327, 1897.
182 COELHO, Jos Joo Teixeira. Instrues para o governo da capitania de Minas Gerais 1782. Organizao,
transcrio e textos introdutrios de Caio Csar Boschi; Preparao de textos e notas de Melnia da Silva
Aguiar. Belo Horizonte: Secretria de Estado da Cultura, Arquivo Pblico Mineiro, Instituto Histrico e
Geogrfico Brasileiro, 2007, p.56. (Coleo Tesouros do arquivo)
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Essas memrias, em conjunto com outras operaes de conhecimento do territrio
brasileiro, o mineiro includo, encetadas nesse perodo pelas autoridades rgias, 183 segundo
Maria Efignia Lage de Resende, tinham como horizonte a mesma conjuntura e
buscavam o fundamento histrico para instrumentar o poder poltico em funo da
melhor gesto fiscal, administrativa, poltica das Minas.184
Com isso, vrios aspectos e produtos constituintes da economia mineira desse
perodo, dentre eles a aguardente, foram alvos das reflexes destes representantes
metropolitanos. Dom Rodrigo de Meneses defendeu uma poltica ilimitada de engenhos,
o que, consequentemente, favoreceria o aumento do consumo da cachassa, tida por ele
como da primeira necessidade para os escravos, que andavam metidos naguoa todo o dia,
e que com este socorro rezistem a to grande trabalho, vivem mais sos, e mais largo
tempo.185 Jos Joo Teixeira Coelho, com o intuito de nortear a ao dos governantes da
capitania, emitiu uma opinio oposta. Para ele, o ideal seria que se estimulasse a importao
da bebida de reas que no produzissem ouro; com isso, a mo de obra escrava se
concentraria na extrao de ouro.186
Estas posies contrrias dos agentes da Coroa portuguesa em atuao nas Minas,
no que se refere produo, comercializao e consumo da aguardente de cana, refletem a
histria dessa bebida por todo o setecentos mineiro. Uma histria que se caracterizou pela
oscilao entre a tendncia proibio da sua produo e o estmulo a sua comercializao.
183 O conjunto dessas operaes correspondia, entre outras aes, s viagens das autoridades coloniais, as
expedies cientficas, os inquritos locais para a avaliao das possibilidades de rendas reais, a organizao de
estatstica, a organizao estatsticas, a elaborao de roteiros de caminhos, a descrio de viagens, os
trabalhos de cartografia, as viagens de reconhecimento de novas regies, o levantamento de necessidades de
apoio logstico, fortificaes, aberturas de caminhos e estradas para o controle administrativo. RESENDE,
Maira Efignia Laje de. Estudo Crtico. In: ROCHA, Joaquim Jos. Geografia histrica da Capitania de Minas
Gerais: descrio geogrfica, topogrfica, histrica e poltica da Capitania de Minas Gerais. Belo Horizonte:
Fundao Joo Pinheiro, 1995, p.51. (Coleo Mineiriana)
184 RESENDE, Maira Efignia Laje de. Estudo Crtico. In: ROCHA, Joaquim Jos. Geografia histrica da
que um lquido doce fermenta, que esta fermentao o faz vinhoso, e que
este vinho destilado, produz aguardente, em maior, ou menor quantidade,
segundo o grau de doura, que em si contm este lquido.190
Por seu turno, o botnico mineiro o frei Jos Mariano de Veloso, personagem
importantssima no projeto reformista do secretrio de Estado da Marinha e dos Domnios
Ultramarinos de dom Rodrigo de Sousa Coutinho, foi encarregado por este de difundir
187 VELLOSO, Frei Jos Mariano da Conceio. O Fazendeiro do Brasil melhorando na economia rural dos gneros j
cultivados, e de outros, que podem introduzir, e nas fbricas, que lhe so prprias, segundo o melhor, que se tem escrito a esse
assunto: debaixo dos auspcios e de ordem de sua Alteza Real o prncipe do Brasil nosso senhor. Tomo I. Parte I: Da cultura
da cana ao acar. Lisboa: Rgia Oficina Tipogrfica, 1798.
188 GOMES, Jos Caetano. Memoria sobre a cultura e productos da cana de assucar offerecida a S. Alteza real. O
Principe regente Nosso Senhor. Pela Mesa da inspeco do Rio de Janeiro. Apresentado por Joze Caetano
Gomes, e de ordem do mesmo senhor publicada por Fr. Joze Mariano Velloso. Lisboa: Casa Litteraria do
Arco Cego, 1800.
189 GOMES, Jos Caetano. Memoria sobre a cultura e productos da cana de assucar offerecida a S. Alteza real, p.73-77.
190 GOMES, Jos Caetano. Memoria sobre a cultura e productos da cana de assucar offerecida a S. Alteza real, p.63.
Dessa misso, surgiu entre 1798 e 1806 a famosa coleo ilustrada em 11 volumes,
O fazendeiro do Brasil. O primeiro volume da coleo, Tomo 1, Parte 1, Da cultura das
canas, e fatura do acar, corresponde a uma compilao de publicaes inglesas e
francesas, traduzidas e comentadas pelo frei, que versavam sobre vrios aspectos que vo
cultivo da planta at o seus processos de beneficiamento.
Da leitura dessas obras, apreende-se que, embora o frei Jos Mariano da conceio
e Jos Caetano Gomes fossem contemporneos, e mesmo que estivessem tratando de
assuntos afins e com intenes semelhantes, a suas idiossincrasias sobressaem em seus
textos idiossincrasias essas que vo da nomenclatura utilizada at o enfoque de suas
descries.
Contudo, foi possvel perceber a partir das informaes comuns presentes nessas
obras, que tanto a fermentao quanto a destilao constituram-se como etapas
importantes na fabricao das aguardentes. Nesse mesmo sentido, outro dado importante,
provido por esses autores, informa que as aguardentes de cana-de-acar poderiam ser
obtidas a partir de trs materiais diferentes, quais sejam: a garapa ou as fezes das escuma e
do melado. (Figura 1).
191 Jos Caetano Gomes reconhece esse produto descrito por frei Jos Mariano da Conceio apenas como
caldo de cana puro, para ele a guarpa corresponde ao caldo de cana fermentado no ponto de transferido
para o alambique. GOMES, Jos Caetano. Memoria sobre a cultura e productos da cana de assucar offerecida a S. Alteza
real, p.63-64.
192 Fezes do acar, uma espcie de gusmo que sobe superfcie do caldo de cana aquecido, chamada por
Jos Caetano Gomes de cachassa ou fezes do caldo de cana. De acordo com o qumico, para que o acar
no perdesse a sua qualidade, esse material no poderia de nenhuma sorte incorporar-se com o acar,
cabendo ao obreiro dessa caldeira descachassa-la, ou seja, manter o lquido limpo. GOMES, Jos Caetano.
Memoria sobre a cultura e productos da cana de assucar offerecida a S. Alteza real, p.40 e 44-45.
193 VELLOSO, Frei Jos Mariano da Conceio. O Fazendeiro do Brasil I, p.59.
FIGURA 1
Fluxograma da produo de aguardentes no sculo XVIII
Fontes: VELLOSO, Frei Jos Mariano da Conceio. O Fazendeiro do Brasil I, p.59-69 e GOMES, Jos
Caetano. Memoria sobre a cultura e productos da cana de assucar offerecida a S. Alteza real, p.57-79.
O outro produto, comparado pelo frei ao rum de prova da Jamaica, portanto de melhor
qualidade, era obtido depois que a gua fraca fosse uma segunda vez destilada.197
194 ANDREONI, Giovanni Antnio; (ANTONIL). Cultura e opulncia no Brasil Por suas drogas e minas. So
Paulo: Companhia Nacional, 1976. (Texto da Edio de 1711), p.202.
195 VELLOSO, Frei Jos Mariano da Conceio. O Fazendeiro do Brasil I, p.59 e GOMES, Jos Caetano.
Memoria sobre a cultura e productos da cana de assucar offerecida a S. Alteza real, p.42.
196 VELLOSO, Frei Jos Mariano da Conceio. O Fazendeiro do Brasil I, p.61.
197 VELLOSO, Frei Jos Mariano da Conceio. O Fazendeiro do Brasil I, p.61.
Nesse sentido, diversamente da destilao descrita pelo frei, para o Jos Caetano Gomes
elas eram obtidas de uma s vez. Principiava-se lanando bastante fogo debaixo do
alambique, para que a fleuma que deveria ser desprezada pudesse sair primeiro. Logo em
seguida, com o fogo moderado, quando comeava a correr o esprito, aguardente de
melhor qualidade. Depois disso, principiava a correr o que se chama gua fraca.199
198 GOMES, Jos Caetano. Memoria sobre a cultura e productos da cana de assucar offerecida a S. Alteza real, p.71-72.
199 GOMES, Jos Caetano. Memoria sobre a cultura e productos da cana de assucar offerecida a S. Alteza real, p.79.
200 Casa Borba Gato (CBG). Cartrio do Segundo Ofcio (CSO) Inventrio (I) (28) 235. Inventrio de Joo
Consideraes finais
201 CBG. CSO-I (71) 550. Inventrio de Manuel Alves Pinheiro, 1795.
202 CBG. CSO-I (59) 441. Inventrio de Antnio Teixeira Cardoso, 1792.
203 Casa Setecentista de Mariana (CSM). Cartrio do Primeiro Ofcio (CPO). Caixa 104, auto 2165. Antnio
O mais importante deles diz respeito ao lugar creditado s aguardentes dentro das
unidades produtivas. Apesar de serem produtos de alta rentabilidade, principalmente por
poderem ser obtidas a partir do aproveitamento do subproduto da fabricao de acar e
da rapadura, elas acabaram por exercer uma funo complementar na economias das
unidades em que estiveram presentes.
204
BLOCH, Marc. Apologia da histria: ou o ofcio de historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 82.
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recorte do objeto de pesquisa, h sempre a possibilidade de encontrar aquele documento
que h muito se procurava, ou aquele capaz de nos transportar para outra poca e espao,
nos quais deixamo-nos levar e passamos a fazer parte. Em suma, alguns diriam que os
personagens parecem ganhar corpo [...].205
Sem dvida, a busca nos arquivos pode ser cheia de sucessos, mas o pesquisador
bem sabe que a existncia de catlogos com resumos e ndices torna menos rdua a sua
jornada. Esta foi a nossa pretenso com o projeto Minas Gerias no acervo do Arquivo
Histrico do Tribunal de Contas de Portugal206, que, na sua essncia, se caracteriza por
sistematizar, dar a conhecer e por explorar fontes documentais praticamente inditas, como
anunciado no ttulo.
205
BACELLAR, Carlos. Fontes documentais: uso e mau uso dos arquivos. In: Fontes histricas. PINSKY,
Carla Bassanezi. (Org.). 2ed. So Paulo: Contexto, 2008, p. 23-79.
206 O projeto foi desenvolvido na Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais, entre os anos de 2012 e
2014. Coordenado por Caio Csar Boschi e realizado por Rgis Clemente Quinto. O trabalho teve
financiamento da Universidade, por intermdio da Pr-reitora de Pesquisa e Ps-graduao (FIP 2012/7694-
S2I2013/8338-S2).
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posterior foi a elaborao de quadros-resumo dos registros textuais. Complementa o
trabalho o estabelecimento de ndices toponmico, onomstico e ideogrfico dos registros,
isto , cerca de 5.000 verbetes sumrios.
207
Doravante referido na forma abreviada ATCP.
208
ARQUIVO DO TRIBUNAL DE CONTAS DE PORTUGAL. Errio Rgio. Livro (1) de registro das
representaes [de autoridades e rgos administrativos] da Capitania de Minas Gerais. Livro 4066, p. 76, 30-
4-1788.
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(2010) 209 , que, a partir de 1780, prosperaram em funo da diversificao econmica,
chegando, mais tarde, a produzir com vistas exportao para o Rio de Janeiro,
contrariando o que expe o documento acima. Assim, apesar de ser possvel inferir que
houve retrao na atividade aurfera, isso no que dizer que toda a capitania tenha
mergulhado numa profunda crise econmica, e que tal situao de aplicasse a toda
capitania.
Da, o cuidado que se deve ter na leitura das fontes e, por conseguinte, na produo
do conhecimento histrico, de modo a [...] evitar juzos apressados e extrapolaes por
inadequao de evidncia, ou insuficincia de dados.. 210 preciso observar alm do que o
documento diz, haja vista que, como um produto, carregado de intencionalidades,
objetivos e fins.
Esse livro aborda assuntos diversos, entre eles o abastecimento das casas de
fundio, remessas de ouro e diamantes, arrematao de contratos e cobranas de dvidas.
209 ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Ricos e Pobres em Minas Gerais: produo e hierarquizao social no mundo
colonial, 1750-1822. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2010, 263p.
210 LINHARES, Maria Yedda Leite. O Brasil no sculo XVIII e a idade do ouro: a propsito da problemtica
da decadncia. In: Seminrio sobre a cultura mineira no perodo colonial. Belo Horizonte: Conselho Estadual de
Cultura de Minas Gerais, 1979, p. 165.
211 ARQUIVO DO TRIBUNAL DE CONTAS DE PORTUGAL. Errio Rgio. Livro (3) de informaes
da Capitania de Minas Gerais expedidas pela Contadoria Geral do Rio de Janeiro. Livro 4068, p. 9, 08-3-1786.
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Como a carta, de 03 de julho de 1770, dirigida pelo conde inspetor geral do Errio Rgio ao
conde de Valadares, para que sejam cobradas as dvidas ativas do famigerado Felisberto
Caldeira Brant, que foi contratador dos diamantes.212 (ATCP, 1770). 213
Uma conta do Rio de Janeiro, de 12 de janeiro de 1775, refere-se aos gastos que se
fizeram com 2 pacotes de 6@s de barbante, e 8 Massos de Linha de Oeyras; e com 34
Barriz com 150 Milheiros de cravo de ferrar, que foram remetidos da cidade do Porto, por
Para finalizar, sucede um fragmento de uma carta que aponta para uma possvel
carestia nas Minas Setecentistas. Na documentao, muitas vezes, tais carestias esto
relacionadas s secas. Seja como for, a carta dirigida de Lisboa aos administradores gerais
da Real Extrao dos Diamantes, no Arraial do Tijuco, em 10 de dezembro de 1777, diz o
seguinte:
J no ndice onomstico, a frequncia com que alguns nomes aparecem nos cdices
chama a ateno. Abraham Benjamin Cohen aparece mais de 100 vezes, enquanto Caetano
Jos de Sousa, que foi caixa e administrador da Real Extrao, aparece 97 vezes. Outro
nome frequente o do comprador de diamantes Daniel Gildemeester, que aparece cerca de
200 vezes. Domingos Rebelo Pereira tem o nome envolvido em pelo menos 170
documentos. Francisco de Arajo Pereira, comissrio da Real Extrao, aparece em quase
460 registros. Por sua vez, Joo Teixeira de Barros foi citado 135 vezes.
RESUMO: Aps a Revoluo Cubana, surgiu na Amrica Latina, uma nova gerao que
acreditava e tentava fazer uma revoluo socialista em seus respectivos pases. Esse
sentimento, ficou ainda mais forte, aps a srie de golpes militares, que ocorreram em todo
continente. A opo pelo apoio a movimentos revolucionrios de esquerda,
surpreendentemente, foi adotada por setores internos da Igreja Catlica, culminando no
nascimento da chamada Teologia da Libertao. Telogos e adeptos, tentam justificar essa
postura, fazendo resgates bblicos, sobretudo presentes no Segmento de Jesus. O presente
artigo, visa abordar como a solidariedade para com o oprimido, se torna um dos discursos
centrais, para a legitimao da presena constante de cristos, sobretudo parte do clero,
dentro de determinados grupos revolucionrios. Atravs dos estudos de Koselleck,
entenderemos como natural o resgate de certas prticas e experincias passadas, visando
resultados distintos das expectativas anteriores.
PALAVRAS-CHAVE: Teologia da Libertao, Amrica Latina, Cristianismo
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuio semntica dos tempos histricos. 2006. pg.308
217
Apoiar as causas sociais, tem ento a ver, com abdicao de certo poder poltico
que a Igreja carrega. A empatia para com o pobre tentar mostrar para os cristos em
posio privilegiada, o lado da pobreza que Jesus tambm viveu. Aproximar-se com o
pobre e dar preferncia para ele a partir da documentao de Puebla, passa a ter como
simbolismo, uma tentativa de aproximao a figura de Jesus pobre. (Gutirrez.1980) No
ignoramos que a solidariedade e amor presentes no movimento de Jesus, foram projetados
em um espao e num horizonte de expectativas apoltico (Stegmann.2004). Entretanto o
prprio Gutirrez afirma que a morte de Jesus foi levada pelos seus posicionamentos, suas
crticas religio feita de regras e observaes moralmente exteriores que o colocava
diretamente contra os fariseus. Gutirrez, ainda afirma
RESUMO: Ao longo do sculo XVIII, a corrida pelo ouro no alm-mar portugus foi
responsvel por mudar de forma significativa a ateno desta Nao para com seus
territrios. A demografia lusa tambm sofreu significativas alteraes com muitos de seus
patrcios deixando a Metrpole em direo Amrica portuguesa. A transmisso sobre as
boas novas do ouro, quase sempre realizada atravs de correspondncias ou por conversas
informais, ganhou a companhia de obras impressas que procuravam mostrar a seus leitores
as prsperas maravilhas que poderiam ser encontradas naqueles sertes. Uma destas
publicaes, o Itinerrio Geographico, supostamente escrita por Francisco Tavares de Brito
e classificado por Taunay como o primeiro guia turstico do Brasil cooperou de grosso
modo para com a ocupao das Minas Gerais. nossa inteno nessa proposta percorrer
as pginas deste impresso refazendo o caminho que teria sido feito um dia por Brito
verificando, ainda, as singularidades e o destino dos pousos e caminhos que apontou.
PALAVRAS-CHAVE: Itinerrio Geogrphico; Francisco Tavares de Brito; Caminho Novo;
Estrada Real.
224 Anais da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, v. 39, p. 197-200, 1917. p. 200, apud DELVAUX, Marcelo
Motta. Corografia imaginria do serto. In: Revista do Arquivo Pblico Mineiro, ano 46, vol. 2, jul.-dez., 2010, p.
76-77.
225 ANTONIL, Andr Joo. Cultura e opulncia do Brasil por suas drogas e minas. So Paulo: Melhoramentos, 1976.
p. 163-181.
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parte das vezes, oralmente.226 Obviamente no era possvel impedir que portugueses que
retornavam da Amrica confabulassem com seus patrcios as boas novas da colnia
americana ainda que fosse plausvel, medida do possvel, controlar o fluxo de
informaes em vias impressas. E foi assim que cartografias mentais, na forma de relatos,
como aquele escrito pelo padre jesuta toscano Giovanni Antonio (1649-1716) sob o
pseudnimo de Andr Joo Antonil passaram a ser encarados como prejudiciais aos
interesses portugueses. Sua obra, Cultura e Opulncia do Brasil por suas Drogas e Minas, escrita
durante os anos que viveu em Salvador e publicada em Lisboa no ano de 1711 tendo sido
confiscada sendo proibida ainda a sua reimpresso e mesmo sua circulao. Cultura e
Opulncia conteria, segundo os censores, informaes que uma vez extrapoladas as
fronteiras lusas poderiam incitar a pretenso de outras Naes para com aquela colnia.
Outra obra, menos conhecida que aquela de Antonil e mesmo assim igualmente
proibida foi o Itinerrio Geogrfico, supostamente impresso em Sevilha no ano de 1732 e
assinado por um dito Francisco Tavares de Brito.227 Acerca deste autor, Sacramento Blake
traou algumas poucas linhas ainda que no demonstrasse confiana nas informaes que
possua: Natural, segundo me consta, do Rio de Janeiro, e nascido pelo ano de 1700,
tendo sido escritor de um opsculo rarssimo, o qual nosso mote principal.
226 COSTA, Antnio Gilberto. As minas de ouro da Amrica portuguesa e a cartografia dos sertes nos
sculos XVII e XVIII. In: Anais do Simpsio Luso-brasileiro de Cartografia Histrica. Cd-Rom. Ouro Preto, 2009, p.
5.
227 BRITO, Francisco Tavares de. Itinerrio Geogrfico com a verdadeira descripo dos Caminhos, Estradas, Rossas,
Citios, Povoaens, Lugares, Villas, Rios, Montes, e Serras, que h da Cidade de S. Sebastio do Rio de Janeiro at as Minas
do Ouro. Sevilha: Na Officiona de Antonio da Sylva, 1732. Disponvel em verso digitalizada no endereo
eletrnico da Biblioteca Nacional de Portugal. http://purl.pt/150. Acesso em 28 de janeiro de 2015.
228 O Itinerrio Geograhico tambm foi publicado em sua ntegra a partir da verso sevilhana na Revista do Instituto
Histrico e Geogrphico Brasileiro, 230, 1956. p. 428-441 e, mais recentemente, pela Fundao Joo Pinheiro.
FUNDAO Joo Pinheiro. Cdice Costa Matoso. Belo Horizonte: Fundao Joo Pinheiro, 1999. Doc. 139,
p. 898-910. Cohen localizou outros trs exemplares de cpias manuscritas do Itinerrio, os quais deveriam ser
distribudos de forma clandestina entre os interessados em viajar s minas e que esto depositados na
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (ms.148. ff. 1-16; na Biblioteca da Ajuda, em Lisboa (ms. 54-
XIII-4 n. 24) e na Biblioteca Pblica de vora (ms. 54-XIII-4 n. 24). In: COHEN, Maria Antonieta Amarante
de Mendona. Mapa Geogrfico: apresentao e breve estudo de documento relativo ao caminho para as
Minas. Caligrama. Belo Horizonte, v. 15, n. 2, 2010, p. 116. Um estudo pormenorizado do impresso em
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do Itinerrio. Tal documento teria sido escrito, em sua opinio, por volta do ano de 1717,
ou um pouco antes, ou seja, quinze anos antes de sua publicao em Sevilha, o que a
coloca em termos de redao emparelhado cronologicamente com a obra de Antonil. 229 De
fato, o leitor mais atento dar maior juzo aos apontamentos de Derby no tocante ao
momento em que a obra teria sido escrita. Brito procurou expor a seus leitores sem
demonstrar maior esforo ou eloquncia a geografia poltica e administrativa da regio que
dava acesso s minas apontando, de incio, suas comarcas, assim numeradas: So cinco,
sendo que a Capitania do Rio de Janeiro tem s uma. O governo de So Paulo e Minas
tem quatro Comarcas. A primeira a cidade de So Paulo. A segunda a do Ouro Preto. A
terceira a do Rio das Velhas e a quarta a do Rio das Mortes.230 Ora, atentando-nos ao fato
do autor ter se referido a um governo responsvel por So Paulo e Minas de forma
concomitante observa-se que o texto no teria sido lavrado aps 1720, ano em que foi
criada a Capitania de Minas Gerais, desmembrada da Capitania de So Paulo. Ademais, a
presena de apenas trs Comarcas (Villa Rica, Rio das Velhas e Rio das Mortes, criadas em
1714) na descrio que fez do territrio das Minas e a significativa ausncia da Comarca do
Serro do Frio, criada em 1720, tende, por fim, a corroborar o apontamento de Derby.
Enfim, o mais agravante que o Itinerrio era apresentado como uma espcie de
guia responsvel por conduzir seus leitores ao cerne da minerao aurfera justamente num
dos momentos em que mais afluam paulistas e portugueses a estes sertes.231 O texto valia-
se, para tanto, da exposio dos caminhos muito bem descritos pelo autor, inclusive suas
entradas, assim como os destinos das mesmas. Outros elementos como serras, picos,
montes e rios deveriam igualmente ser alvos de maior ateno por parte do viajante. As
ocupaes ao longo do caminho fossem roas, stios, povoaes, lugares ou vilas eram igualmente
assinaladas no impresso e serviam de indicaes de lugares onde o pouso para descanso,
alimentao e pernoite certamente seria facilitado.
questo pode ser encontrado em LIVERMORE, Harold. An early published guide to Minas Gerais: the
Itinerrio Geographico (1732). Revista da Universidade de Coimbra, vol. XXVI, p. 4-10, 1978. (Separata).
229 DERBY, Orville. Um mapa antigo de partes das Capitanias de S. Paulo, Minas Geraes e Rio de Janeiro.
os anos de 1705 e 1750 nada menos que 800.000 pessoas chegaram a Minas Gerais, vindas da terra-me. In:
MACHADO, Simo Ferreira. O Triunfo Eucarstico: exemplar da cristandade lusitana. Lisboa: Companhia de
Jesus, 1734, p. 18, apud BOXER, Charles. A idade de Ouro do Brasil, p. 71.
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Interessa-nos, pois, ao ler o Itinerrio Geographico, as descries dos caminhos e
estradas que j borda dos sertes do ouro e no importando se fossem traadas pela
picada vinda de So Paulo, chamada Caminho Velho, ou pela nova rota aberta por Garcia
Rodrigues Paes, vinda do Rio de Janeiro, invariavelmente terminariam em Vila Rica, capital
do ouro.
Dos caminhos que do litoral deveriam ser percorridos para que se alcanassem as
minas o que partia de Santos foi o primeiro a ser exposto. Da vila de Santos o viajante
deveria embarcar em uma canoa e seguir at o p da Serra de Cubato para que pudessem,
enfim, subir a serra em dois ou trs passos (marchas). Uma vez no alto da serra era
recomendvel que os viajantes descessem de seus cavalos porque para qualquer parte que
carem acharo precipcio inevitvel, e em pouco mais de trs horas o viajante deveria
estar no alto da serra da qual se via o mar e a plancie em terra. Interessante que Brito
no deixar de apontar o exato significado do nome daquela serra, Paranapiacaba, que
significa, na lngua geral do Brasil, lugar donde se v o mar.232
O pernoite deste dia deveria ser realizado na regio do rio dos Couros, atual So
Bernardo do Campo, sendo que at meados do dia seguinte encontraria o viajante a cidade
de So Paulo. Aps So Paulo, a jornada prosseguiria com deslocamento em direo ao vale
do rio Paraba do Sul passando pela fazenda Nossa Senhora da Penha de Frana (Guarulhos);
Magy (Mogi das Cruzes) e Sucary (Jacare), sendo necessrio transpor o Paraba do Sul de
canoa. Depois Princpio do Fao Grande;233 Capella (provavelmente a capela Nossa Senhora
d'Ajuda, hoje Caapava); e as Vilas de Taubat, Pindamunhangaba e Guratinguit
(Pindamonhangaba e Guaratinguet).234
realizado por Brito dista quase 100 quilmetros a Sudeste deste municpio. Passa Vinte foi, tambm, ncleo
de povoamento tardio.
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semelhantes a resposta para assuntos pertinentes aos locais que apresentam Passa como
parte de sua toponmia o que, de fato, no pode ser de todo modo desconsiderado. O
bandeirante Ferno Dias Paes, por exemplo, deixou anotado em seus manuscritos, quando
de sua passagem por aquela regio, que a nica passagem tranquila depois de uma garganta
profunda de onde se deve galgar a serra e passar quatro vezes o rio que se escorrega por um verde e espaoso
vale. Chegars assim a um pouso", hoje o municpio de Passa Quatro. 236 Seguindo a mesma
linha de raciocnio, Passa-Bem, por sua vez, designaria um local onde os moradores,
hospitaleiros, receberiam bem os viajantes. Outros topnimos como Passa Dez, em Ouro
Preto, responderiam por tal denominao por motivos semelhantes ao de Passa Quatro,
segundo Capistrano de Abreu:
confeco do Itinerrio.
240 A ainda existente Fazenda de Traituba, municpio de Cruzlia.
241 Localidade ausente no Mapa da Regio de Minas Gerais da qual no encontramos maiores informaes.
242 BRITO. Itinerrio Geogrfico, p. 4-5.
A etapa seguinte descrita por Brito era a transposio do rio Paraibuna passando
para o Registro (atual municpio de Matias Barbosa), paragem descrita j no avanado ano de
1818 pelo naturalista austraco Pohl como um edifcio quadrado construdo de madeira e
barro onde eram recolhidos os impostos sobre todas as mercadorias que vo do interior
para o Rio, bem como as que vo do Rio para o interior.254 A julgar pelo relato de Pohl
pode-se imaginar que pouca coisa tenha mudado nos quase cem anos de atividades daquele
posto fiscal, quase sempre balizadas por abordagens a viajantes, aportes aduaneiros e
burocrticos e patrulhas pelos caminhos e matas.
246 dem, p. 6.
247 Em Antonil apontada a presena de duas paragens com a denominao de Bispo e que teriam pertencido
a diversos proprietrios entre 1707 e 1713. Nenhum destes, no entanto, teria sido Francisco de So Jernimo,
bispo do Rio de Janeiro entre 1701 e 1721.
248 O governador e capito geral da Capitania do Rio de Janeiro, Francisco Tvora, concedeu em 1716 uma
sesmaria entre a data de Marcos da Costa (atual municpio de Miguel Pereira) e a rochinha do Governo a
Francisco Gomes Ribeiro onde foi instalada a Fazenda do Governo, com 901 braas de testada por 3000 de
fundos. In: FRIDMAN, Fania. Planejamento e rede urbana no serto do oeste fluminense. In: Anais do X
Encontro Nacional da ANPUR. CD-ROM. Belo Horizonte: ANPUR, 2003, v. 1, p. 4.
249 ANTONIL. Cultura e opulncia do Brasil, p. 264.
250 No foi possvel encontrar sua atual localizao. Pertencia, poca, a Manuel da Arajo. In: ANTONIL.
explorada desde pelo menos 1709. Estava situada a duas lguas de Alferes. In: Antonil, p. 264.
252 Ou Cavaru, ao sul do rio Paraba, mencionada em cartas de sesmaria dadas pelo governador Antonio de
Albuquerque Coelho de Carvalho em 13 e 20 de agosto de 1712 a dois irmos do Rio de Janeiro, Domingos
Gonalves e Jos Marques. In: ANTONIL. Cultura e opulncia do Brasil, p. 264.
253 Muitos dos topnimos do Caminho Novo descritos por Brito supostamente carregam o nome de seus
proprietrios, o que provavelmente acontece com estas ditas roas de D. Maria, anotadas com simplrias
denominaes. Interessante verificar que apontamentos sobre estas paragens ou sobre seus proprietrios no
esto presentes nem no Mapa da Regio das Minas Gerais, nem no Mapas da regio de encontro entre os
atuais estados e muito menos em Antonil.
254 POHL, Johann Emmanuel. Antigalhas mineiras: no rio Paraibuna em 1818: registro de Matias Barbosa:
usos e costumes. In: Revista de Histria da USP. Ano I, n. 3, Jul./Set. 1950, p. 383-389.
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O caminho seguia pela Rossinha do Araujo, de Antnio Arajo dos Santos, e que era
alcanada em duas jornadas sendo o pouso da primeira no mato;255 a roa de Constraste,
de Simo Pereira;256 Medeiros, de Jos de Medeiros;257 Joseph de Souza, do Sargento-Mor Jos
de Souza Fragoso; 258 Juiz de Fora, do Juiz de Direito Luiz Fortes Bustamante e S,
adquiridas enquanto terras devolutas do supracitado Jos de Souza Fragoso;259 Alcayde Mor,
de Tom Correia Vasques, no lugar dito Fazenda da Tapera;260 Antonio Moreira, do Capito
Antnio Moreira da Cruz; 261 Manoel Correa, do Juiz de Alfndega Manuel Correia
Vasques; 262 Azevedo, de Jos de Azevedo; 263 Araujo, de Jos de Azevedo; Gonsalves, de
Domingos Gonalves Ramos; 264 outra roa de nome Gonsalves, de Joo Gonalves
Chaves; 265 Pinho, de Agostinho Pinho e Silva 266 e novamente uma paragem denominada
Bispo, stio do Bispo, em Santos Dumont. 267 Seguiam as sesmarias de Coronel, atual
Municpio de Antnio Carlos;268 e a fazenda do Registro, outro posto de controle fiscal e
militar. 269 Deste Registro quem quisesse seguir para a vila de So Joo Del-Rei deveria seguir
255 OLIVEIRA, Francisco Rodrigues de & FONSECA, Luiz Mauro Andrade da. Primeiras sesmarias do
Caminho Novo. In: 3 Encontro de Pesquisadores do Caminho Novo. Conselheiro Lafaiete, junho de 2012, p. 6; e
ANTONIL. Cultura e opulncia do Brasil, p. 265.
256 Ourives e moedeiro da Casa da Moeda do Rio de Janeiro e um dos primeiros beneficiados com
sesmarias no Caminho Novo. Sua roa, denominada Nossa Senhora da Glria, estava situada na regio
nordeste da confluncia do rio Paraibuna com o rio Preto. In: ANTONIL. Cultura e opulncia do Brasil, p. 265.
257 OLIVEIRA & FONSECA. Primeiras sesmarias do Caminho Novo, p. 1.
258 Ento Fazenda do Marmelo, s margens do rio Paraibuna onde seria construda, em 1889, a primeira usina
hidreltrica de grande porte da Amrica do Sul. In: OLIVEIRA & FONSECA. Primeiras sesmarias do
Caminho Novo, p. 7.
259 Atual municpio de Juiz de Fora. In: OLIVEIRA & FONSECA. Primeiras sesmarias do Caminho Novo.
2.
266 Hoje comunidade do Pinho, a nordeste de Santos Dumont e s margens do rio Pinho. Tambm presente
no lbum Chorographico Municipal do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1972.
267 OLIVEIRA & FONSECA. Primeiras sesmarias do Caminho Novo, p. 2.
268 Mais precisamente a Fazenda Borda do Campo, pertencente ao sesmeiro Coronel Domingos Rodrigues de
Fonseca Lemos que teria auxiliado seu cunhado, Garcia Rodrigues Paes, na abertura do Caminho Novo. In:
OLIVEIRA & FONSECA. Primeiras sesmarias do Caminho Novo, p. 2.
269 Fazenda do Registro Velho, Barbacena, onde deveria ser paga de cada carga de seco uma oitava, e de
molhado meia oitava. In: BRITO. Itinerrio Geogrfico, p. 7. A propriedade encontra-se atualmente em runas.
In: ESTADO de Minas. Fazenda do Registro Velho derrubada pelas chuvas. Disponvel em
http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2013/03/05/interna_gerais,354649/fazenda-do-registro-velho-
e-derrubada-pelas-chuvas.shtml. Acesso em 17 de fevereiro de 2014.
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uma estrada mo esquerda, e vai ao stio do Barroso e, em outra jornada pode chegar a
dita vila. E vamos prosseguindo o nosso caminho das minas Gerais.270
A viagem prosseguia atravs das sesmarias dos irmos Joseph e Joo Rodrigues; 271
272
Alberto Dias, atual municpio de Alfredo Vasconcelos; Passagem; Resaca; Caranday,
municpio de Caranda, no devendo ser confundida com a supracitada Callanday, prxima
So Joo del-Rei. Depois Outeiro, Os dous irmos, Gallo cantante, Rossinha,273 Amaro Ribeiro,274
e as j citadas freguesia de Carijos e fazenda de Macabelo, esta ltima onde todos os
caminhos em direo s minas convergiam.275
Em Mal Cabelo o viajante passaria o Rodeo, isto , que se rodea uma serra, a que
chamam Ititiaya.276 Depois Ilheos e Olana (Capo do Lana), e, em seguida, o entroncamento
para a Villa Real, ou seja, Sabar, passando por Cachoeira do Campo, Caza Branca, 277
Rapozos,278. Quem seguia destino para Vila Rica deveria seguir o curso do caminho que se
vai s Trs Cruzes; 279 depois Tripu, que fica a uma lgua de Vila Rica, 280 e por fim a
capital das Minas, a mais soberba e opulenta de todas [as outras vilas] assim pela
frequncia de comerciantes, como pela abundancia de suas minas, um verdadeiro Potos
Chorographico Municipal do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1972.
273 As localidades de Outeiro, Os dous irmos, Gallo cantante e Rossinha no esto presentes no Mapa da regio de
mais recentemente Serra de Ouro Branco sem que o ncleo urbano minerador de Ouro Branco fosse
visitado. A abertura de novos caminhos seria construda paulatinamente e de acordo com o estabelecimento
de outros pousos e fazendas que poderiam oferecer melhores condies de hospedagem e de preos aos
gneros vendidos para os viajantes.
277 Cachoeira do Campo e Casa Branca, ambos distritos de Ouro Preto.
278 Municpio de Raposos.
279 Imagino ter havido algum equivoco no fato de Brito ter includo Trs Cruzes enquanto passagem
obrigatria para quem tinha como origem o Capo do Lana e destino Vila Rica. O stio de Trs cruzes estava
situado em Mariana, mais precisamente na freguesia do Inficionado, distante meia lgua do Taquaral, em
Vila Rica. A importncia de Trs Cruzes no contexto geogrfico tambm no justificaria utiliz-la enquanto
referncia, mas sim, ao menos, caminho que se vai Vila Rica. In: APM, SG-Cx.52-Doc.21. Requerimento de
Matheus Correa e Francisco Fernandes Alla referente a Carta de Sesmaria das terras na paragem Trs Cruzes, termo de
Mariana. 1801; e APM, CMOP, cx. 07, doc. 06. Requerimento de Manuel Fernandes Campos solicitando Cmara
exercer o ofcio de ferrador entre as Trs Cruzes e o Taquaral. 1734.
280 BRITO. Itinerrio Geogrfico, p. 8.
Aps detalhar os roteiros que tinham Villa Rica como destino final o autor dedica o
restante de sua obra a outros apontamentos geogrficos da colnia, em especial aos rios,
serras, principais locais de lavras e s Comarcas das minas assim como suas vilas cabea. As
serras do caminho do ouro receberam menor ateno, o que no significa que tenham sido
ignoradas. Pelo contrrio, foram dispostas, inclusive, de acordo com a rota dos itinerrios:
Paranapiacab, Serra Cubato, Boa Vista, Mantiquera, Morro do Rio das Mortes, Ponta do Morro,
Camapoam, Itambira, Tupanhuacanga, tacolumim, Serra do Rio, Morro da Conceio...
O que Brito descreveu ao traar o Itinerrio Geogrphico sintetiza aquilo que o autor
pode ter vivido enquanto viajante nos sertes do ouro. No apenas a autoria ou o ano do
Itinerrio Geogrphico so ora questionados por uns, ora por outros, mas tambm a prpria
existncia do livro enquanto roteiro de percurso, ou de viagem, construdo a partir de uma
experincia vivida. Abre-se a perspectiva de que o Itinerrio seja, quando muito, uma
compilao em texto do Mapa da Regio Fronteiria Entre os Estados do Rio de Janeiro, Minas
Gerais e So Paulo ou do Mapa da Regio de Minas Gerais com a Parte do Caminho de So Paulo e do
Rio de Janeiro para as Minas
dem, p. 18.
281
dem, p. 14.
282
TAUNAY, Afonso. Primeiro guia turstico do Brasil. In: Jornal do Comrcio. 26 jan. a 2 fev. 1947, apud
283
GRAVAT, Hlio. Contribuio Bibliogrfica para a histria de Minas Gerais. In: Revista do Arquivo Pblico
Mineiro, n. 27, dez. 1976, p. 221.
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Feminismo Negro: existe uma historiografia no
Brasil?
Jacqueline Maia dos Santos
Graduanda em Histria
Universidade Federal de Minas Gerais
[email protected]
Introduo
284 RODRIGUES, Cristiano. Atualidade do conceito de interseccionalidade para a pesquisa e prtica feminista
no Brasil. In: Seminrio Internacional Fazendo Gnero 10 (Anais Eletrnicos), Florianpolis, 2013. Disponvel em
http://www.fazendogenero.ufsc.br/10/resources/anais/20/1384446117_ARQUIVO_CristianoRodrigues.pd
f. Acesso em 10 maio 2015.
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crvel afirmar que um movimento feminista negro est inserido em uma busca no apenas
pelos direitos das mulheres e dos negros, e sim, os direitos dos indivduos, de uma certa
etnia e de um certo sexo, que querem emancipar-se da discriminao que sofrem enquanto
seres humanos.285 Logo, o que est em jogo tornar acessvel as mulheres negras direitos
inerentes ao homem em uma sociedade igualitria: uma educao de qualidade, acesso a
sade, boas oportunidades de trabalho com salrios compatveis ao cargo independente de
gnero e raa, acesso a mais cargos de chefia e menos cargos de subordinao, e diversas
demandas estruturais que caberiam em um artigo a parte.
As ondas do feminismo
285 ROUANET, Sergio Paulo. A coruja e o sambdromo. In : Mal estar na modernidade. So Paulo: Cia das
Letras, 1993. p.71
286
______ A coruja e o sambdromo. In : Mal estar na modernidade. So Paulo: Cia das Letras, 1993. p.66
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escrever. No Brasil, a primeira legislao autorizando a abertura de escolas pblicas
femininas data de 1827287. J naquele perodo, havia mulheres que tinham a conscincia de
que somente a educao permite a mulher tomar conscincia da sua condio inferiorizada.
A primeira onda brasileira vem da Europa e a escritora Nsia Floresta se destaca pela
traduo da obra Direito das Mulheres e dos Homens, publicada originalmente na
Inglaterra por Mary Wollstonecraft , e sua adaptao relacionada a realidade brasileira.
Naquele perodo j se colocava em pauta a capacidade em exercer cargos de comando, bem
como seu discernimento para estudar e opinar politicamente. Porm nem era cogitado que
uma mulher negra tambm pudesse ter essa capacidade.
A ltima onda na dcada de 70, cujo destaque a revoluo sexual, que de fato
contribuiu para uma mudana radical nos costumes. No exterior, a ONU lana em 1975 a
dcada internacional da mulher, com o objetivo de combater a discriminao de gnero em
287 DUARTE, Constncia Lima. Feminismo e literatura no Brasil. Estud. av. [online]. 2003, vol.17,
n.49, pp. 153.Disponvel em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010340142003000300010&lng=en&nrm=i
so. Acesso em 14 Ago, 2014
288 _______Feminismo e literatura no Brasil. Estud. av. [online]. 2003, vol.17, n.49, pp. 160.
Disponvel em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
40142003000300010&lng=en&nrm=iso. Acesso em 14 Ago, 2014
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diversas instncias. No Brasil, foi exigido do movimento feminista um posicionamento
contra a ditadura militar, a censura, pela redemocratizao do pais, e por melhores
condies de vida. E neste contexto que se expande uma discusso sobre feminismo
negro.
Embora isso nunca fosse discutido, era evidente, na vida cotidiana, que
barreiras slidas separavam os dois grupos, tornando impossvel uma
amizade intima. O ponto de contato entre as negras e brancas era a
relao serva-senhora, uma relao hierrquica baseada no poder e no
mediada pelo desejo sexual.289
A introduo de um discurso de raa foi uma luta rdua seja no Brasil ou nos
Estados Unidos. So inmeros os depoimentos nos quais lemos e ouvimos militantes
relatarem sobre terem sido chamadas de agressivas, malucas, histricas, etc; por no
aceitarem mais de forma passiva o discurso que afirmava que a luta da mulher era apenas
contra o patriarcado. Todavia, apesar da conscincia da necessidade de um recorte racial,
por parte do feminismo branco, as relaes de poder ainda prevalecem. As mulheres
negras ainda so minoria no espao acadmico seja lecionando, seja estudando, seja
produzindo contedo acadmico. As mulheres negras ainda so maioria nos empregos com
289
HOOKS, Bell. De mos dadas com a minha irm: solidariedade feminista. Ensinando a transgredir: a
educao como prtica da liberdade. So Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p.128.
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piores salrios e condies de trabalho. As mulheres negras ainda so as maiorias vitimas de
violncia obsttrica. As mulheres negras ainda esto em desvantagens em diversos
aspectos, o que demonstra que ainda h muitas demandas de reivindicao do feminismo
negro.
290
DOMINGUES, Petrnio. Movimento negro brasileiro: alguns apontamentos histricos. Tempo [online].
2007, vol.12, n.23, pp. 109. Disponvel em http://www.scielo.br/pdf/tem/v12n23/v12n23a07.pdf Acesso
em 14 Agosto 2014
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Enquanto no Brasil o movimento negro passava por percalos, nos Estados
Unidos h a ascenso (e morte) de figuras emblemticas, como Malcom X e Mathin Luher
King. A atuao com vis marxista dos Panteras Negras, influenciou a linha do MNU
Movimento Negro Unificado, criado em 1978, e situado no inicio da terceira fase do
movimento negro organizado no Brasil. De orientao trotskista, o grupo entendia que a
luta anti racista tinha que ser combinada com a luta revolucionria anti capitalista291.
O fato que algumas das reivindicaes feitas pelo MNU em 1982 se tornaram
realidade, mesmo que ainda no seja de forma ideal, tais como a introduo da Histria da
frica e dos Negro no Brasil nos currculos escolares, bem como a busca pelo apoio
internacional contra o racismo no pas. 292
291
________Movimento negro brasileiro: alguns apontamentos histricos. Tempo [online]. 2007, vol.12, n.23,
pp. 112.
292
________ Movimento negro brasileiro: alguns apontamentos histricos. Tempo [online]. 2007, vol.12, n.23,
pp. 114.
A literatura uma das formas utilizadas pela intelectualidade negra para a formao
de uma identidade negra combativa e reivindicatria. A anlise da obra literria de
Conceio Evaristo permite uma avaliao do alcance do particularismo da sociedade
brasileira, j que sua produo pretende ser construda sem esteretipos pejorativos e no
permite que se caia em esquecimento no apenas o passado de sofrimento, mas tambm a
resistncia a opresso sofridas pelo povo negro e pobre, particularmente as mulheres. Sua
escrita expressa seus sentimentos e sua experincia como mulher negra. Um exemplo
A voz de minha av
ecoou obedincia
aos brancos donos de tudo.
A voz de minha me
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo favela.
Concluso
295
MACHADO, Barbara Araujo. Memria, histria e literatura na obra da escritora negra Conceio
Evaristo. Brasil. In: Seminrio Internacional Fazendo Gnero 10 (Anais Eletrnicos), Florianpolis, 2013 Disponvel
em
http://www.fazendogenero.ufsc.br/10/resources/anais/20/1383836323_ARQUIVO_BarbaraAraujoMacha
do.pdf Acesso em 10 Maio 2015
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romances, contos e versos a autora fala por sujeitos historicamente excludos da histria
oficial; negros, pobres e mulheres.
Este artigo consiste em uma breve sntese da apresentao que fiz no EHIS 2015
sobre a representao feita da nao brasileira na imprensa moambicana a partir da
repercusso da visita do socilogo brasileiro Gilberto Freyre (1900-1987) na Provncia de
Moambique em Janeiro de 1952 297 . Esta repercusso foi exposta pela imprensa
moambicana, e a partir de alguns discursos reproduzidos nos jornais Notcias (1926-
1975), The Loureno Marques Guardian (1905-1952), e O Brado Africano (1933-1974)298 que
296 Este artigo resultado do projeto no qual participei, denominado As relaes scio-polticas
contemporneas entre Brasil e Moambique (1960-2010), apoiado pela CAPES\AULP e coordenado pela
Professora Dr Vaniclia Silva Santos (Universidade Federal de Minas Gerais), e pelo Professor Dr Joel
Maurcio das Neves Tembe (Universidade Eduardo Modlane).
297 Para saber mais sobre o tema ver: FREYRE, Gilberto. Aventura e Rotina: Sugestes de uma viagem
procura de constantes portuguesas de carter e ao. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001; HEDGES, David.
Histria de Moambique. Moambique no auge do colonialismo 1930-1961. Vol.2 Livraria Universitria: Maputo, 1999;
LEME, Rafael Souza Campos de Moraes. Absurdos e milagres : um estudo sobre a poltica externa do Lusotropicalismo (1930-
1960). Braslia: Fundao Alexandre de Gusmo, 2011.; MEDINA, Joo. Gilberto Freyre contestado: o lusotropicalismo
criticado nas colnias portuguesas como alibi colonial do salazarismo. Revista USP, So Paulo, n.45. maro/maio 2000.
p.48-61; CASTELO, Cludia. O modo portugus de estar no mundo: o lusotropicalismo e a ideologia colonial
portuguesa. Porto: Afrontamento. 1998.
298 O Jornal O Notcias e o The Loureno Marques Guardian podem ser encontrados na Biblioteca Nacional de
Aps a Segunda Guerra Mundial Portugal tentou promover uma imagem positiva
de seu Imprio Ultramarino com base na ideia de uma comunidade transcontinental coesa.
Um dos principais objetivos de Portugal foi manter suas colnias sob seu julgo e anular a
presso internacional que sofria em prol da autodeterminao dos povos 299 . Algumas
mudanas rasas e superficiais foram adotadas para desviar os olhos do mundo da poltica
opressiva introduzida nas colnias: substituio do termo colnias para Provncias
Ultramarinas, Imprio Portugus para Ultramar Portugus em 1951, e a reorganizao
administrativa nas provncias300.
A garantia que Portugal poderia realizar um belo trabalho em frica e na sia era a
sua antiga colnia na Amrica, o Brasil. Alm de ser uma nao que passava por um
considervel desenvolvimento econmico, muitos pensadores e governos naquele contexto
acreditavam que o Brasil caminhava em direo a democracia racial questo constantemente
associada a mestiagem e ao hibridismo cultural do pas. A desconstruo de bases racistas
e eugnicas era um anseio de muitos pases no ps-guerra, e ter um pas exemplo para o
qual se espelhar era conveniente. Esta ideia envolvendo o Brasil logo foi revogada com o
incentivo da ONU301, mas no deixou de ser amplamente utilizada pelo discurso portugus.
Para saber mais sobre imprensa em Moambique ver: Sopa, Antnio Jorge Dinis. Liberdade de imprensa e
regime de censura prvia: o caso moambicano, 1854-1975. In Jos, A. & Meneses, P.M.G. Moambique 16
anos de historiografia: focus, problemas, metodologias, desafios para dcada de 90. Maputo: Edico dos autores, 1991;
SOPA, Antnio. RIBEIRO, Ftima. 140 anos de imprensa em Moambique: Estudos e relatos Ed. Associao
Moambicana da Lngua Portuguesa, 1996; ROCHA, Ildio. Peridicos e Seriados de Moambique. In: A
imprensa de Moambique 1854-1975. Edio Livros do Brasil: Lisboa. 2000.
299 HEDGES, David. Histria de Moambique. Moambique no auge do colonialismo 1930-1961. Vol.2 Livraria
Azevedo, Chales Wagley, Gilberto Freyre, Rne Ribeiro, Costa Pinto e Guerreiro Ramos para pesquisarem as
relaes raciais nas principais capitais brasileiras, e provou exatamente o contrrio do que Gilberto Freyre
defendia: a predominncia de relaes tnico-raciais pacficas no Brasil. SANTOS, Fernanda Barros. A
temtica racial no debate internacional e a conceituao do termo estabelecida pela UNESCO na dcada de 1950. Revista
Thema. 2013.
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Na elaborao de um modelo desenvolvido, ou em estgio de desenvolvimento,
Gilberto Freyre nomeia o Brasil. Este seria o pas no qual as demais sociedades tropicais
poderiam se espelhar para impulsionar um desenvolvimento sustentvel. 302 Um dos
melhores trabalhos de Gilberto Freyre para compreendermos sua percepo sobre o Brasil
como civilizao luso-tropical Novo Mundo nos Trpicos (1959) 303 , no qual o Brasil
retratado como lder de civilizao para as sociedades tropicais, tendo como caractersticas
principais o predomnio da cultura europia, sua capacidade adaptativa as condies
tropicais, o desenvolvimento de novas formas de civilizao com base na europia, e seu
papel como representante da vitalidade portuguesa.
Entre 1937 e 1945 o Brasil e Portugal tiveram uma intensa aproximao. Portugal
utilizava o Brasil como obra portuguesa, e o Governo brasileiro se deleitava na promoo
de uma imagem moderna e industrializada da nao. Em fins de 1940, o Brasil tomado
como modelo principal por sua formao mestia304, e nas dcadas de 1950 e 1960 por seu
carter lusotropical305. O pas era o principal exemplo de civilizao tropical calcada em
suas especificidades e nos valores europeus. Segundo Gilberto Freyre, o governo brasileiro,
mais especificamente o presidente Getlio Vargas(1882-1954), apoiava a divulgao da
concepo de uma sociedade luso-brasileira que conservava uma cultura tradicional
portuguesa e crist 306 . A dcada de 1950 considerada o momento de difuso do
lusotropicalismo, e a partir dessa noo, to defendida e desenvolvida por Gilberto
Freyre, que Portugal protegeu suas colnias dos inmeros movimentos de emancipao
que emergiam.
Em consonncia com a poltica colonial portuguesa, Gilberto Freyre fez uma srie
de viagens custeadas por Portugal entre agosto de 1951 e fevereiro de 1952, passando por
Portugal, Goa, Diu, Damo, Bombai, Guin, Cabo Verde, So Tom, Angola e
302 CANDEAS, Alessandro Warley. Trpico, Cultura e Desenvolvimento: a reflexo da UNESCO e a tropicologia de
Gilberto Freyre. 1. ed. Braslia: UNESCO / Liber Livro, 2010.
303 FREYRE, Gilberto. O Brasil como civilizao europeia nos trpicos. In: Novo Mundo nos Trpicos. 2 edio.
1950. Significa basicamente, a particular atuao dos portugueses nas sociedades tropicais. Para saber mais ver
os seguintes livros do Gilberto Freyre: O Mundo que o Portugus criou (1940), Um brasileiro em terras
portuguesas (1953) , Integrao Portuguesa nos Trpicos (1958), e O Luso e o Trpico (1961)
306 FREYRE, Gilberto. O mundo que o portugus criou: aspectos das relaes sociaes e de cultura do Brasil com Portugal e as
[...] impresso foi a de dej vu, tal a unidade na diversidade que caracteriza
os vrios Portugais espalhados pelo mundo; e tal a semelhana desses
Portugais diversos com o Brasil. Donde a verdade, e no retrica, que
encontro na expresso lusotropical para designar complexo to
disperso; mas quase todo disperso s pelos trpicos.307
307
FREYRE, Gilberto. Aventura e Rotina: Sugestes de uma viagem procura de constantes portuguesas de
carter e ao. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001.p.29
308 Jornal O Brado Africano, Loureno Marques, 05 de Janeiro de 1952. p.1
309 Despedida de Gilberto Freyre no Ministrio do Ultramar. Jornal Notcias, Loureno Marques, 30 de Janeiro.
1952 .p.7; A visita do ilustre brasileiro Gilberto Freyre Metrpole. Jornal Notcias, Loureno Marques, 08 de
Fev.1952. p.1,10
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indiferente e que nada que diga respeito ao Brasil pode ser estranho a
Portugal310
O Sr. . Dr. Cardoso de Vilhena ao saudar o Brasil por suas inmeras qualidades no
Salo dos Organismos Econmicos em Loureno Marques, faz um estudo comparativo, no
qual o Brasil ganha incomparavelmente de qualquer outra colnia portuguesa em
benefcios. Ele cita inmeros escritores literrios, cidades industrializadas, romances
brasileiros, iniciativas de compreenso do negro no pas, das vrias bibliotecas que segundo
ele uma das garantias do combate ao analfabetismo e da elevao cultural e tcnica do
brasileiro, o combate as doenas, a valorizao da terra, a extenso territorial do pas, aos
trabalhadores, e a relao cultural do Brasil com a frica313. Por mais que sua inteno no
fosse ressaltar o atraso das provncias ultramarinas em relao ao Brasil, mas
provavelmente enaltecer o Brasil como modelo quase perfeito da obra portuguesa, a
310 Uma carta do Presidente Getio Vargas ao General Craveiro Lopes Jornal Notcias, Loureno Marques, 01
de Mar.1952. p.1
311
CASTELO, Cludia. Helosa Paulo, Aqui tambm Portugal: a Colnia Portuguesa do Brasil e o
Salazarismo, Coimbra, Quarteto, 2000, 624 pginas. Anlise Social, vol. XXXVII (Primavera), 2002. p.296-297
312 Quelimane: O Prof. Gilberto Freyre na Zambsia. Jornal Notcias, Loureno Marques, 21 de Jan. 1952. .p.4
313 Saudao ao Brasil e a Gilberto Freyre pelo Dr. Cardoso de Vilhena. Jornal Notcias, Loureno Marques, 13
314Gilberto Freyre concedeu anteontem uma hora do seu gentil convvio imprensa de Loureno Marques.
Jornal Notcias, Loureno Marques, 19 de Jan. 1952. p.1,9
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poltica portuguesa no Brasil foram os peridicos O Dirio Portugus (1932) e a Voz de
Portugal (1936). Em oposio ao regime salazarista se destacou Portugal Republicano (1933).315
315 MULLER, Fernanda Suely. Brasil e Portugal em revista : a imprensa peridica na fronteira entre cultura e
poltica. Captado em: http://amerika.revues.org/1408 .Acesso em 30 abr. 2015.
316 Banquete de despedida a Gilberto Freyre na residncia da ponta vermelha. Jornal Notcias, Loureno
[...] Quero apenas agradecer a Gilberto Freyre o conforto moral que nos
trouxe, especialmente aos portugueses de alm-mar que viram na sua
presena e nas suas palavras um grande estmulo para prosseguirem na
sua inquebrantvel tenacidade, a obra em tempos remotos iniciada com a
mesma frrea vontade, a mesma humana generosidade, a mesma
honradez, a mesma clarividncia, a mesma cega confiana no futuro da
lusitanidade.
E permita-me que no possa dissociar da sua presena, a presena do
nosso Brasil, por cuja grandeza eu fao os mais ardentes, os mais
orgulhosos votos.322
321
FREYRE, Gilberto. Aventura e Rotina: Sugestes de uma viagem procura de constantes portuguesas de
carter e ao. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001. p.488
322 Cerimnia de despedida a Gilberto Freyre no Ministrio do Ultramar. Jornal Notcias, Loureno Marques,
324 FREYRE, Gilberto. Aventura e Rotina: Sugestes de uma viagem procura de constantes portuguesas de
carter e ao. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001. p.22
325
HEDGES, David. Histria de Moambique. Moambique no auge do colonialismo 1930-1961. Vol.2. Livraria
Universitria: Maputo, 1999. p. 129-176
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socilogo brasileiro, e a propagao da imagem do Brasil como uma nao em ascenso.
Na Provncia de Moambique, a apropriao do Brasil tambm colaborou com os
interesses econmicos de Portugal e com um frgil incentivo em torno do
desenvolvimento local, que teoricamente se estenderia a toda sociedade.
Introduo
Ineveitabile fatum. Essa expresso latina exprime bem a concepo que a sociedade
Moderna tinha sobre a morte. Ao longo da vida os acidentes, episdios de fomes, guerras e
doenas no permitiam ao homem e a mulher comuns distanciarem-se da constante
sombra que apregoava a efemeridade da vida. A conscincia da finitude dos dias, das
riquezas e dos poderes era bem clara. A roda da fortuna girava para todos e a sade e a
doena eram estgios alternados na vida de cada um. Durante grande parte da Era
Moderna, nos sculos XVI e XVII, cria-se que as doenas eram uma forma de punio
divina por causa dos pecados individuais contra os quais se recomendavam penitncias ou
pecados do coletivo no caso das pestes que desencadeavam procisses a fim de pedir aos
cus clemncia. Mas isso no impedia as pessoas de procurarem por outro tipo de socorro
nos momentos de agonia e sofrimento do corpo 326. Procurando tratamentos e solues
terrenas, nesse segundo caso que nosso objeto se insere.
LINDEMANN, Mary. Medicina e Sociedade no Incio da Europa Moderna novas abordagens da Histria Europeia
326
328 Peclio de alguns remedios para diversos achaques e enfermidades tirados de muitos autores modernos e
antigos e de outras coriosidades pertecentes a Medicina, p. 40.
329
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico. Coimbra: Collegio das
Artes da Companhia de Jesus, 1712 - 1728. 8 v
330 SILVA, Antonio Moraes. Diccionario da lingua portugueza - recompilado dos vocabularios impressos ate
agora, e nesta segunda edio novamente emendado e muito acrescentado, por ANTONIO DE MORAES
SILVA. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813.
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simplssima abordagem metodolgica nos levou a inserir temporalmente - mesmo que de
modo provisrio para efeito de anlise - esta obra entre 1667 at algum ponto acreditamos
que antes da metade do sculo XVIII, por causa da baixa correspondncia com o
dicionrio referncia de fins do sculo.
Ora, sabemos que o trabalho do historiador tem seus limites e algumas fontes
demandam extenso trabalho investigativo. Algumas selees so inevitveis no ofcio
historiogrfico e precisam ser lealmente explicitadas e deve-se manter o trabalho com o
rigor necessrio e possvel.
Sobre o documento convm ainda notar que este manual parece ser a compilao
de receitas de alguns outros manuais. indcio o prprio ttulo da obra Peclio de alguns
remedios para diversos achaques e enfermidades tirados de muitos autores modernos e antigos e de
outras coriosidades pertecentes a Medicina. Parece que o detentor do livro teve contato
com outros livros de receitas para enfermidades e entre alguns encontrou assuntos mais
relevantes para si e os transcreveu e disps em ordem alfabtica. Outro indcio de que este
manual seja uma compilao so as enfermidades nitidamente includas no ndice com
outros tipos de tinta e caligrafia, bem como inseridas nos fins das pginas e inclusive fora
da ordem alfabtica como se nota, por exemplo, na letra B do ndice embaixo de para
no comer barro no fim da pgina l-se remdio para veneno txico e ainda remdio
para espinhela e de novo na letra H logo depois de hidropsia apozima surge destoante
para uma mulher parir sem perigo. Os manuais so um trao da cultura da modernidade,
desde o sculo XV nota-se uma vasta publicao de manuais de agricultura, medicina,
alfaiataria e sobre outros temas de importncia social. Alguns eram copiados e assim
ficavam mais difundidos ainda, como talvez seja o caso deste que analisamos mais
atentamente.
A teoria
Sobre os avanos da cincia no sculo XVII, podemos citar as leis de Isaac Newton
(1643 1727); descoberta de De Graaf (1641 1673) dos folculos ovarianos; ainda como
o uso do microscpio Malpighi (1628 1624) observando glbulos vermelhos do sangue e
Harvey em 1628 diz da circulao sangunea e linftica. Esta ltima teoria prope a partir
do raciocnio dedutivo pautado nas observaes uma herana de Francis Bacon (1521
A prtica
332 Peclio de alguns remedios para diversos achaques e enfermidades tirados de muitos autores modernos e
antigos e de outras coriosidades pertecentes a Medicina, p. 3.
333 LINDEMANN, Mary. Medicina e Sociedade no Incio da Europa Moderna, p. 68.
334 SOURINA, Jean-Charles. Histria da Medicina. Lisboa: Instituto Piaget, 1992, p. 179.
335 LEMOS, Maximiano. Histria da Medicina em Portugal doutrinas e instituies. Lisboa: Publicaes Dom
Quixote/Ordem dos mdicos, 1991, p. 40.
336 LEBIGRE, Arlette. Sangrar e purgar. In As doenas tm histria, Jacques Le Goff, 289 298. Lisboa:
Concluso
Existe possibilidade de um indivduo lidar com suas mazelas sem carregar consigo o
seu lugar social e suas concepes culturais de corpo, enfermidade e tratamento? Os
humanos so sempre humanos de seu tempo e isso mesmo que nos importa observar na
histria da medicina, a forma de perceber o mundo que as pessoas do tempo pretrito
cultivavam atravs do primordial cuidado com sade e a tentativa de cura.
Depois de escrever uma grande obra de cirurgia em doze volumes Lus Gomes
Ferreira na ltima pgina de seu livro nos diz: E agora direi mais: que as coisas, por novas,
no podem desmerecer o crdito de sua verdade, porque, que coisa haver hoje no mundo
to antiga que no fosse nova em algum tempo?339. Vejamos, ao olharmos para o passado
dos cuidados com o corpo, obviamente encontraremos equvocos. Assim como no futuro,
talvez, e principalmente com o avano das tcnicas e tecnologias, tambm nos mostre
nossos enganos. Contudo, o nosso interesse foi e deve ser em observar as manifestaes
culturais e sociais que perpassam o cuidado com a sade.
339FERREIRA, Lus Gomes.; FURTADO, Jnia Ferreira. Errio mineral. Belo Horizonte: Fundao Joo
Pinheiro, Centro de Estudos Histricos e Culturais; Rio de Janeiro: Fundao Oswaldo Cruz, 2002. 2v. P.
699.