(Cliqueapostilas - Com.br) A Moda e Viola

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A MODA VIOLA
ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA
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ROMILDO SANTANNA

A MODA VIOLA
ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

EDITORA

Editora Arte & Cincia

Ano 2 0 0 0
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2000, by Autor
Direo Geral
Henrique Villibor Flory
Editor e Projeto Grfico
Aroldo Jos Abreu Pinto
Diretora Administrativa
Luciana Wolff Zimermann Abreu
Editorao Eletrnica
Rejane Rosa
Reviso
Letizia Zini Antunes

Catalogao na fonte: Universidade de Marlia


Biblioteca Central Zilma Parente

SantAnna, Romildo
S232m A moda viola: ensaio do cantar caipira / Romildo
SantAnna. So Paulo: Arte & Cincia; Marlia, SP: Ed.
UNIMAR, 2000.
398 p. ; 21 cm.
Referncias fonogrficas
Referncias bibliogrficas
ISBN: 85-7473-004-1
1. Msica brasileira regional Moda caipira. 2.Msica
caipira Brasil. 3. Msica popular brasileira Moda de viola.
4.Msica sertaneja Brasil Histria e crtica. 5.Viola e
violeiros Msica Brasil. I. Ttulo. II. 2o ttulo: Ensaio do
cantar caipira.
CDD - 784.0981
- 784.4981
ndice para catlogo sistemtico:

1. Msica sertaneja: Brasil: Ensaios 784.4981


2. Msica regional: Brasil: Moda de viola 784.0981
3.Canes folclricas brasileiras 784.4981
4. Violeiros: Msica: Brasil 784.0981

EDITORA

Editora Arte & Cincia Editora UNIMAR


Rua dos Franceses, 91 Bela Vista Av. Higyno Muzzy Filho, 1001
So Paulo SP - CEP 01329-010 CEP 17525-902
Tel/fax: (011) 253-0746 Tel/Fax: (014) 433-8088 / 433-8691
Internet: http://www.arteciencia.com.br Internet: http://www.unimar.com.br
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a Dinorath do Valle,
Reinaldo Volpato,
Pedro Ganga,
Alaor dos Santos Jnior,
Pedro Beretta SantAnna
Guilhermo de la Cruz Coronado
e Boi Soberano.
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A recusa aos bons modos passo dado em direo poesia,


quer dizer, ao bom modo. O diabo que o poema um ajuntamento
refinado de bons modos, seno, seria poesia pura.
Romildo SantAnna
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SUMRIO

O homem da viola e a prpria ....................................................... 13

I - Levante ........................................................................................... 17

II - Configurao do cantar caipira .............................................. 29


1. O romanceiro tradicional e sua extenso na moda caipira ..... 29
2. Cultura de razes e etnotexto ................................................... 69
3. Moda caipira, razes e brasilidade ............................................ 91
4. O cantador e sua funo interativa ........................................ 111
5. O sentimentalismo reinante .................................................. 135
6. A Moda Viola em vrias pocas e lonjuras ....................... 207
7. O caipira no moda: o heri cantador ............................... 239
8. As sagaranas do heri boi ...................................................... 291

III - Moda caipira e reflexes sobre o hoje em dia ................ 331


9. Moda Caipira no Contexto Social ......................................... 331
10. Moda Caipira Hoje em Dia ................................................. 349
11. Acordes derradeiros .............................................................. 373

V - Referncias Fonogrficas ...................................................... 381

V - Referncias Bibliogrficas .................................................... 385


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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

O HOMEM DA VIOLA E A PRPRIA

Dinorath do Valle

Trabalho muito especial este retrato de mim, flego de grande


fazedor. Romildo SantAnna mostra mais uma faceta de seu amor s
coisas do povo no recente A Moda Viola. Ensaio do Cantar Caipira.
vo de pssaro, enfoca quarenta anos de literatura oral-popular em
seus mais sensveis momentos, em texto que desvela as qualidades
literrias de um pesquisador incansvel, que prope o mergulho a
dois ele e o leitor na Moda Caipira.
Neste novo trabalho, Romildo reafirma a transparncia das pr-
prias origens que preserva, filho de palhao de Folia de Santo Reis,
arranhador de viola, amante de modas com que o rdio encheu-lhe a
infncia em modestssima casa num dos cantos de So Jos do Rio
Preto. A moda caipira lhe entrou na alma com o cheiro do caf da
manh, como confessa. justo, portanto, que reverencie a moda e ele
prprio, neste esplndido trabalho que reconstitui seus comeos. No
sem clamar contra o desprezo com que as elites brindam a produo
dos despojados do refinamento cultural, que o autor possui e do
qual no abusa. Uma de suas propostas levantar a cortina de despre-
zo que cobre a esttica da moda caipira: sua motivao irrefrevel
neste texto escrito em final de milnio. Todos os dias de sua vida
sensvel, inteligente e fiel s realidades do povo brasileiro. Por mais
que ascenda na carreira de ensinar, na carreira de escrever, Romildo
supera a si mesmo em A Moda Viola, tese de livre-docncia, ideal de
livre docncia, homenagem ao povo do qual faz parte por direito de

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senti-lo parte de si mesmo. Romildo no escreve sobre o semelhan-


te; o semelhante.
O livro tem duas partes: a configurao do cantar caipira e moda caipira
e reflexes sobre o hoje em dia. E onze captulos que passam velozes,
esbanjando as associaes de um estudioso, e as intuies de criativos
iletrados. Do romanceiro tradicional s sagaranas do heri-boi, em
vrios tons antes dos acordes finais, passa pela cultura das razes,
retrato falado do cantador, sentimentos, pocas, lonjuras, sagas e
heris. Bombardeia com informaes: veculos da origem da moda
caipira, romanceiro tradicional, gneros, moda de viola como cultura,
ndices de brasilidade do cantar caipira, criadores e modistas, cantadores
como protagonistas, representantes do ns-mesmos em temas,
escrituras, violas como instrumentos radicais, fetiches do violeiro,
motores de sua arte.
Cantadores andarilhos, estradeiros, heris ignorados, parte dos
esquecidos, do lavrador assalariado. Temticas especiais, romnticas,
dissertativas. O boi como smbolo do homem que o tange, no arado
ou entre acordes aprendidos ao deus-dar. A migrao do homem-
boi para o tmulo-cidade no ultimo meio sculo, e a transformao
da moda caipira via disco, via tema, via gneros, via modismos.
Tudo num Brasil como sempre contraditrio entre a linguagem
escrita e a oral, a cultura citadina e a rural, onde a baixa escolaridade,
a falta de conscincia poltica e de aspiraes sociais so marcas da
desateno dos governos. assim que o poeta caipira que desconhe-
ce a histria do mundo cria. Como se o universo comeasse com ele.
Em sua solido e apartheid social, descobre coisas descobertas e at
faz delas belezas originais.
Romildo diz coisas sbias, discorre sobre o mais povo dos ho-
mens do povo e seu criar solitrio, sua sensibilidade. a lucidez que
faz Romildo perguntar a si, a ns: cad o humano? O que responder ao
estudioso que se debrua sobre a mais popular das literaturas, aquela
que oficialmente no considerada literatura? Que o povo fala certo,
no falar errado, como Deus escreve certo por linhas tortas?
ler para crer este magnfico A Moda Viola. Se ele, Romildo,
tivesse concorrido consigo mesmo ao Prmio Casa das Amricas
de Cuba, ao lado de seu ensaio sobre Jos Antnio da Silva que
lhe deu o prmio , os jurados ficariam no maior impasse. A Moda

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Viola tem as qualidades do Silva, Quadros e Livros. Um Artista


Caipira, e o supera, mergulhando no genrico de todo um mundo
surreal onde se movem poetas singelos, sentimentos minimizados
de compositores populares, temas alijados da dita cultura oficial.
Este livro no saiu por uma editora de universidade do governo,
onde o autor escreveu esta livre docncia por quase trinta anos. S
isto j diz muito.

Dinorath do Valle jornalista e escritora. Recebeu


o Prmio Casa das Amricas Cuba, pelo romance Pau Brasil.

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I LEVANTE

El mundo era tan reciente, que muchas cosas


carecan de nombre, y para mencionarlas
haba que sealarlas con el dedo.

Garca Mrquez, el Gabo


Cien Aos de Soledad

Deixei para escrever a introduo em ltimo lugar, quando j


estava na fase de retoques e lapidaes do texto. Fui faz-lo na prima-
vera de 1995. Ano e meio depois, quase pronto. So Jos do Rio
Preto, pousada e eixo de antigos violeiros, completava o ciclo de
ardncia por causa do calor. Passei tempos lambendo a cria. Vejo o
texto como artefato cujo cerne a razo das palavras. Contemplando-
o com o pouco distanciamento que, bem-dizer, a simultaneidade me
permite, uma seqncia do filme A Noite Americana (La Nuit
Americaine, Frana/Itlia, 1973), de Franois Truffaut, comeou a
aferroar-me o esprito. Fui tev e anotei o seguinte trecho cujo
enunciador a criatura do prprio Truffaut, parece que em carne e
osso. Reproduzo o monlogo:

Fazer um filme como uma diligncia indo para


o extremo Oeste. No incio, voc anseia uma bela viagem.
E logo questiona se vai ao menos chegar a seu destino...
(interrupo de atores) O que exatamente um diretor?
uma pessoa constantemente questionada. Sobre tudo. s
vezes ele tem a resposta, mas nem sempre... (interrupo

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de atores) Sete semanas, cinco dias por semana, trinta e


cinco dias... (interrupo de atores) Como fazer um filme
destes em trinta e cinco dias? (interrupo de atores) Con-
tinuo com filmes porque gosto!

mais ou menos isto que estou sentindo ao ver-me prximo


dos acordes finais deste Ensaio. Forcejando por ser breve, imaginei-
o bem menor, no espao textual. Fiz o possvel para enxug-lo, de
modos que a espessura das pginas correspondesse densidade de
substncia reflexiva. Agora voc, interlocutor, o examinar como
produto e, no fundo da conscincia e expectativas, julgar a consis-
tncia, e, na pior das hipteses, se meu sacro ofcio foi tuta-e-meia,
desafortunadamente. Como este livro retrato de mim e, nem
carece de falar, uma empreitada proposital e assumida de fazedor,
bem que no me custa enxergar nele, desde logo e agora que o releio,
algumas passagens de bom tamanho,1 sugestes esclarecedoras e
at interessantes. Pudera!, se nem mesmo eu me afeioasse dele,
que seria de mim? Mas no depende dos propsitos que tive, nem
do discernimento para empreend-lo, descrevendo, deslindando
enigmas da escritura e desempenho do cantar caipira. Ei-lo aqui.
Dedico-o aos amigos queridos Pedro Ganga, Dinorath do Valle,
Alaor dos Santos, Guilhermo da la Cruz Coronado, Pedro Beretta
SantAnna e Reinaldo Volpato, companheiros em muitos filmes, e
que estiveram bem por perto neste mais novo. E a Boi Soberano,
com sua fama de barbato bandido, pela probabilidade de ter sido
apenas um boi de lua, de ovo virado, como se diz, ou talvez meio
sonso no temperamento do tipo maluco-beleza.
***
Procurei realizar um trabalho panormico sobre um tema bastan-
te preciso: a Moda Caipira de razes em sua razo estvel, sedimentada.
Utilizei-me de cerca de setecentos fonogramas. Seguindo rigorosa-
mente os conselhos do mestre Umberto Eco,2 me pus a enfocar
quatro decnios dessa manifestao oral-popular, nos pontos que
me pareceram mais sensveis para sua interpretao, na veiculao em

Atitude reflexiva no texto Borges y Yo, in El Hacedor, de Jorge Lus Borges.


1

Eco, Humberto. Como se Faz uma Tese. 9 ed. So Paulo: Perspectiva, 1992.
2

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

disco.3 H escassa bibliografia sobre o assunto. Este Ensaio serviria,


ento, com humildade cientfica, como ponta de lana para aborda-
gens mais especficas, e certamente mais aprofundadas que as mi-
nhas. Nas trilhas da Nova Histria, e realando aparentes banalida-
des que expliquem o contedo implcito no cantar caipira, adoto a
estratgia da informao insinuante, e anlises com muitos lances
estilsticos de evocatividade. O texto est estruturado no sentido de
estimular a imaginao. Visa a alcanar uma funcionalidade formativa
e educadora. Sem imaginao, ensina Herbert Read, o camarada tor-
na-se incapaz de utilizar criativamente o que leu.4 Embora os onze
captulos tratem de temas especficos, abordam com nfase, mas in-
diretamente, fenmenos e procedimentos literrios perifricos, mas
igualmente importantes. Este mtodo prejudica a leitura aleatria,
por tpicos sumrios. Os captulos se relacionam pela interconexo
das informaes vinculadas. A leitura, pois, deve seguir a linha
seqencial das fases de construo do texto. No interior dessas fases
acontecero novas formulaes pela propagao e at reformulao de
argumentos. De cabo a rabo, o trabalho visa a conceituar, com o leitor,
o regionalismo da Moda Caipira. Entendo que, nos assuntos relacio-
nados ao significado latejante da arte, recomendvel trabalhar com
conceitos, mais que com definies. Essa abordagem se articula em pe-
quenas repeties e fragmentos da mesma idia, sempre impulsiona-
dos por pelo menos dois acrscimos. Assim, o leitor pode ter im-
presso de estar patinando nos eitos do mesmo assunto, revisitando
a mesma paisagem. quando, a meu ver, a estratgia analtica do
texto comea a funcionar. O que era perifrico atinge o primeiro plano
da ateno. Este Ensaio contm, propositadamente, uma estruturao
provocativa de montagem.
Este trabalho enfocar o tempo todo questes relacionadas
tradio, enfatizando a expresso de razes. Simone Weil, ao referir-se
ao conceito de enraizamento escreve que o ser humano tem sua raiz
3
Usarei neste trabalho transcries em LPs, principalmente da Colmbia/
Continental, que funcionou entre 1929 e 1993, e da Chantecler, atuante entre
1958 e 1976. Alguns originais analisados so remasterizaes de gravaes em
78rpm editados em CDs pela Chantecler/Warner Music do Brasil, a partir de
1994.
4
READ, Herbert. A Redeno do Rob: Meu Encontro com a Educao atravs da
Arte. p. 62.

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por sua participao real, ativa e natural na existncia de uma coletivi-


dade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressen-
timentos do futuro.5 Assim, embora discurso fechado em seu uni-
verso lingstico, no h como entender a Moda Caipira de razes fora
de seu mundo societrio e separada da funo performtica retro-
alimentada pelo auditrio. Este valor interativo, do qual o fonograma
se faz simulacro, lhe vital. Ento, penso, por que no tentar aproxi-
mar, no registro discursivo do Ensaio, ele-mesmo e o leitor, prpria
natureza do objeto de estudo e anlise? Para tanto, tive como mto-
do retrico bombardear informaes, aparentemente no-coesivas,
usar formulaes elpticas e fragmentrias, no instante mesmo da
conjuno de frases e perodos, para que essas informaes se fossem
ajuntando na recepo, de modo a conduzir o leitor, por vias indutivas,
a estabelecer sua prpria opinio. Diria um chins que um texto assim
concebido o ensinaria a pescar. E a fisgar comigo os sentidos poticos
por mritos no s meus.
Ao dar cuidado poesia popular, procurei no me colocar na
defensiva, como algum quixotesco que se pe a lutar contra a iluso
de moinhos de vento, a defender a causa perdida de uma manifesta-
o que parece no ser reconhecida como arte literria. Quero exprimir
que me seria mais cmodo tratar de uma expresso tradicionalmente
vista como artstica. A dificuldade seria firmar-me no meio relativo
das discusses, caminhar no aceiro de outros, erguer o pescoo com
respaldos e anjos-da-guarda de todos os lados a me protegerem.
Estas so as regras, o campo e as partituras do jogo, na demo-
cracia e estratgia deste livro. Se sero eficientes e felizes como discur-
so que se pretende esclarecedor na grande rea das humanidades, e
entre as letras em geral e as artes, s poder diz-lo o veredicto dos
juzes-leitores, neste e noutros tempos.
***
O que me fez aproximar da pintura ingnua, do etnotexto e
primitivismo da Moda Caipira e seus afluentes, da arte e literatura
oral-popular com seu linguajar crioulizado do portugus brasileiro,
primeiro foi a vivncia bem de perto, a freqentar meu nimo desde
criana. Isto levou-me a empreender o esforo deste livro. Meu pai,

5
WEIL, Simone. A Condio Operria e Outros Estudos sobre a Opresso, p. 317.

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cuja graa Benedicto Ricci SantAnna, pedreiro de talho campnio,


ex-palhao de Santo Reis e que arranhava violarias (a viola, o violo e o
cavaquinho), me levava aos auditrios caboclos em todas as manhs
de domingo; nos dias de semana me acordava de madrugada com as
modas e o falar molengo, afeioado e gostoso dos apresentadores de
rdio. O prefixo infalvel eram toadas e valsas dolentes e amargura-
das: Tristezas do Jeca, Saudades de Mato... A Moda chegava em casa bem
cedinho, junto com o passo ermo do leiteiro, e misturava ao canto
dos passos-pretos de gaiola, em cheiros de caf. S muito tempo
depois fui descobrir a fora dos smbolos elementares, atinar alguns
dos significados de gnio (ingenuum) e, por conseqncia, a sublimida-
de da arte como um todo. Neste trabalho, narcisicamente, reverencio
meu prprio incio. Segundo, ancorado no hoje, foi um certo desa-
pontamento com relao ao desapreo de alguns setores situados
entre as elites integradas, onde pairam os comandos ideolgicos, os
quais no s desacatam, como tripudiam sobre tudo o que provm
do despossudo povo a imensa maioria da populao brasileira.
Em certos casos, no o tm com seriedade ou, antes, fazem-lhe a
guerra de desfeitas e caoadas. Ao mesmo tempo, festejam o que se
faz no estrangeiro, no se importando se o que l realizam, entre os
seus coetneos, seja uma espcie de arte caipira ou sobre o caipira
da terra l dos outros. Somente para citar alguns artistas contempor-
neos de ndole latina, que tal, s de maravilha, Amarcord (1973) de
Federico Fellini, ou uma de suas gneses suburbanas em As Noites de
Cabria (Le Notti di Cabiria, 1957); que tal Le Novelle per un Anno, escri-
tas por Pirandello pela vida afora, deixando expressar-se aquela gente
do Sul, siciliana, em sua ingnua graa, absoluta carncia material e
grandeza interior. Que tal a candura ingnua de um pescador em seu
mundo grafo, semi-alfabtico, a ministrar lies de vida e poesia a
um poeta Pablo Neruda no filme sensvel de Michael Radford, O
Carteiro e o Poeta (Il Postino, 1994)? Ser que a distncia, a outra lngua,
a iluso das cochinchinas distantes e misteriosas, das aracatacas sono-
ras e inspiradoras, nos levam a fantasiar um ser ideal, abstrado do
espao e temporalidade, para aceit-lo como criatura na arte? E, sendo
assim, o caipira se impe como por demais concreto, corporal e org-
nico para freqentar a nossa imaginao criativa? E o campons p-
duro (que muito a nossa face escondida), desmascarado demais
para desfrutar a primazia da arte? Ou seria desapreo mesmo ao caipi-

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ROMILDO SANTANNA

ra, mero resqucio de comportamento em pas colonizado? Aceitan-


do-se que a chamada arte erudita uma superao encalacrada na
cultura e arte do povo, que tal as tragdias aldes de Lorca e seus
poemas andaluzes del cante-jondo; que tal algumas telas de Picasso,
poemas de Pessoa, filmes dos irmos Paolo e Vittorio Taviani. Ou o
exuberante e genial Grande Serto: Veredas e demais sagaranas de Gui-
mares Rosa que, por ser artista internacionalmente reconhecido, suas
criaturas no sejam sentidas por ns como caipiras? Que tal a beleza
incomparvel de Don Segundo Sombra de Giraldes, as palavras
pantaneiras de Manuel da Barros, a delicada potica de Mart, os con-
tos gauchescos dos seres rsticos de Borges, a saga tropicalista da Cara-
vana Rolidei, em Bye, Bye Brasil (1989), a cor nativista de Glauber
Rocha, o caipirismo pau-brasil de Tarsila do Amaral; que tal a msica
de Manuel de Falla, de Heitor Villa-Lobos, ou a cano de Vctor Jara,
as redondilhas e telas a leo de Violeta Parra, Atahualpa Yupanqui,
Renato Teixeira e Mlton Nascimento... Que tal Pena Branca e
Xavantinho, Roberto Nunes Corra, Z Gomes, Ivan Vilela, Pereira
da Viola... artistas chiques de um serto calado? Nestes artistas e
obras, quem fala uma voz solidria e identificada com o dialeto, com
as leis, gramticas e costumes de aldeias e lugarejos, com a beleza
inefvel da simplicidade e do ingnuo. So obras e artistas to fceis
que ficam difceis. Mas, como escreve Mrio de Andrade, no Lundu do
Escritor Difcil, s tirar a cortina que entra luz nesta escurez... todo
difcil fcil, abasta a gente saber! (A Costela do Gro Co). Tm que
ser percebidos com olhares e ouvidos ternos da afetividade e apurado
senso de penetrao cultural e artstica. Tudo considerado de um jeito
como se a voz do povo, em suas linhas tortas, fosse mesmo a voz de
Deus. E a vida dominada por estranhos sortilgios. Essa graa, bele-
za e construtividade perpassam a fortuna de aguados saberes e a
construtividade sensvel da Moda Caipira de razes. Moda de Razes,
textura e cor do inhame, que lembra mantimento amerndio... O
direito do anzol ser torto, dizemos, o caipira. Ajudar a tentar mover
esta cortina foi um dos propsitos essenciais deste Ensaio. Cito uns
versos de Srgio S e Leci Strada:

Por que as pessoas,


Que diziam ter cultura,
No percebiam a doura

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Da toada to singela?
que o caipira,
Vivendo na natureza,
Percebe mais sua beleza
Do que lendo sobre ela.

(Cezar & Paulinho, 1992.)

Na organizao social brasileira em que os cdigos valorativos da


cultura e da arte se compem de uma gangorra pendendo quase
sempre para o adventcio, formam-se leis de mercado cultural e a
elas, se quiser algum respaldo das alturas, deve-se submeter o artista.
Se questo de mercado e seus insumos, matria de economistas,
assunto para o marketing cultural. No entanto, faz muito mal o estu-
dioso da cultura e da arte em comodamente lavar as suas mos,
deixando tudo como est para ver futuramente como que fica.
Alguns centros metropolitanos de nosso pas, mormente os de mai-
or influncia, se transformaram numa mixrdia na qual eles prprios
no se reconhecem culturalmente. H neles um embrulhamento de
pocas e lugares. A modernidade globalizada imps uma ruptura
desconcertante com as bases de previso, provocando severa
descontinuidade na linha da cultura. Fala-se tanto em globalizao
da economia, imbutindo-se nessa despatriao a idia avanada e ao
mesmo tempo retrospectiva de edificao de um burgo global. a
produzir vulgaridades em escala industrial. De olho no controle ide-
olgico da sociedade e na mercadoria, os meios de comunicao ensi-
nam o de que se deve gostar e o que desprezar, enfeitando uns e
satanizando outros.
***
Coloca-se uma indagao: possvel manter a especificidade cul-
tural de um povo to alijado do desenvolvimento concebido pelas
elites econmicas, sendo estas comprometidas com a globalizao
neoliberal e seus interesses multinacionais? Parece que a produo de
uma cultura transnacional, feita de uma colcha de fragmentos para se
fazer omnipresente, corta em direes transversas a identidade con-
tingente, ligada sabedoria fundamental e mtica enraizada na Terra-
me. H no ar uma modernizao autoritria, resdua do iderio con-
cebido pela Ditadura Militar. Registra-se no Brasil uma contradio

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ROMILDO SANTANNA

entre a linguagem escrita e a oral, entre a cultura citadina e a rural, entre


o estrangeiro e o nacional, entre o rico e o pobre, entre a histria oficial
cunhada pelo vencedor e a histria do vencido, com a hegemonia dos
primeiros sobre os ltimos, sob o amparo do legalismo oficial. A
comear pelos constituintes de ordem lingstica, instaura-se a clara
diviso de exclusividade da cadeia dominante, representada pelo tope
burgus, sobre a maioria dos falantes, discriminada em sua cultura,
linguagem e arte. At bem pouco tempo os iletrados sequem tinham
o direito civil de escolher governantes; dcadas atrs esse era o direito
s dos ricos. Essa maioria marginalizada provm das correntes mi-
gratrias em que o elo desengatado foram as zonas rurais. Indcios
evidentes demonstram que se fizeram consuetudinrias a impunida-
de, a impunibilidade e a iniqidade, pelas vantagens das oligarquias
rurais e urbanas sobre as aspiraes do trabalhador comum. Vale
lembrar que, em 1990, a fora de trabalho brasileira tem um nvel
educacional mdio de apenas trs anos e meio. A baixa escolaridade se
associa ausncia de conscincia de cidadania da populao, no nvel
individual e corporativo de seus direitos sociais. Penso que disto
provm os ndices brutais e consternadores verificados nos incios de
1990: 24 milhes de brasileiros, ou 17,4% da populao, esto viven-
do abaixo da linha de pobreza, segundo dados publicados pelo Ban-
co Mundial. Isto atinge frontalmente a cultura e a arte do povo,
relegadas a condies inferiores no contexto nacional. A esses nme-
ros, para a transformao ocorrida na literatura popular de antiga
procedncia e o aparente quase desaparecimento da Moda Caipira de
razes, concorrem decisivamente os resultados do descontrolado xodo
das populaes caipiras para regies metropolitanas, no sonho do
bem-estar ou estratgia de sobrevivncia. Mas, como escreveu Lobato,
quem sai de seu lugar como bicho de goiaba fora da goiaba.6, ou
seja, leva uma vida sem gosto, desenraizada. ndices divulgados pelo
IBGE informam que, na regio Sudeste, onde ela se expressa com
maior intensidade, 60,6% da populao viviam nas zonas rurais em
1940; em 1980, 82,7% vivem nas cidades. No por coincidncia, os
idos de 1940 representam o auge da Moda Caipira de Razes; os de
1980, o apogeu da chamada Jovem Msica Sertaneja, fruto da moda
caipira de razes, engendrada pela indstria de entretenimento,

6
LOBATO, Monteiro. A Barca de Gleyre (Correspondncia, 1944).

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

consumista e ornamental, de olho nas oscilaes de consumo e, na


maior parte das vezes, voltada ao simplismo da trivilialidade. No
entanto, a configurao primria, etnolgica e mtica da Moda Caipira
de razes assegura a sua permanncia. Sua atemporalidade, atestada
pelas constataes principais deste Ensaio, garante-lhe a perenidade,
como uma das mais relevantes expresses da cultura e da arte radical-
mente brasileira. A poesia cantada sem dvida a mais potente des-
sas expresses, no mundo caboclo.
No isolamento do antigo bairro, que lhe imprime um senti-
mento de localidade e permanncia de valores, e premido pelas pou-
cas letras de forma que impedem o contato refletido com o exterior
sua cultura, o poeta caipira tambm inventa seus prprios meios e
formas de expresso. Algumas se firmaram como traos estilsticos e
so peculiares da Moda Caipira de razes. Outras causam no auditrio
o choque do estranhamento. Explico melhor: s vezes o poeta conce-
be um verso, constri uma metfora e os ostenta com o orgulho e a
solenidade de quem descobriu a Amrica. No era de seu conheci-
mento que a inovao j est vulgarizada pelo uso, em outros confins
e pocas. No sabia que estava redescobrindo a fala do outro em sua
fala. Por isto, seus clichs estruturais e temticos nem sempre podem
ser interpretados como cafonas, piegas e obviedades inteis. Apar-
tado de informaes correntes, sozinho, para ele alguns procedimen-
tos, corriqueiros na perspectiva de fora, se avultam como interessantes
achados criativos no mundo de dentro. Ns, da cidade, convivemos
com o poeta popular, com o guajiro hispano-americano, um tempo
bem diferente, mais avanado. Na solido introspectiva, no sossego
interior, na alquimia de chs de folhas e razes, em sua medicina e
culinria, nos astrolbios e termmetros de olhar os horizontes com
o fito de descobrir os mistrios do mundo, de ouvir a msica da
natureza no compasso rtmico da enxada ou no aboio rouco da boi-
ada, o caipira adota suas frmulas cientficas e estticas. Faz descober-
tas inacreditveis: o mundo redondo como uma laranja, exclama
um velho matuto, para o espanto e descrena geral, sem saber que
esse alumbramento extraordinrio j era creditado a Jos Arcadio
Buenda e outros filsofos, cientistas e tecnocratas at mais ilustres.
O verso, sempre com rimas, a populao da cidade chama de
estrofe, assim est nos livros e criana aprende at no jardim da infn-

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cia; o verso e meio, chama de sextilha; o verso dobrado, de oitava.


Escrever modas avioladas trovar; poeta dos bons folgazo,
cantador-campeo... Soccer, de que se ouviu falar muito na Copa do
Mundo de 1994, continua sendo o velho futibli, o arranca-toco...
Baile o mesmo que pagode, isto todo mundo da roa j sabe; s que
baile no vem a ser baile, esfregao. At parece Dana de So Gon-
alo, com suas licenciosidades erticas, umbigadas excitantes, contu-
do, bem entendido, com as bnos do santo. Pagode pagode mes-
mo, rito de festa e encontro, com muito respeito...
Finalizando, quero exprimir mais um sentimento: presencio na
sociedade esclarecida uma mobilidade de seus aparatos valorativos,
uma inconstncia e fragilidade no horizonte interpretativo das rela-
es ticas e da arte, uma convenincia retrica meio leviana e regressi-
va, afetando positivamente algumas reas e prejudicando outras. Essa
atitude parece revelar um certo oportunismo da conciliao, decerto
proveniente da poltica de resultados, muito em voga hoje em dia.
Esse encaminhamento tramita em paralelo com o pacto moral que
sempre interligou a classe civil economicamente dominadora com os
mecanismos institucionais de dominao, situados nas esferas
legislativa, judiciria e executiva do poder colonial, imperial e republi-
cano... Ela tem agido, penso, como abonadora e legitimadora de uma
iluso: a conciliao fortuita com o irreconcilivel.
Quanto mais se vive nas cidades maiores, mais escassas vo fican-
do algumas validades: tradies, solidariedade, afetividade vicinal...
bens espirituais. Nas grandes cidades esses atributos flutuam rente
ao cho e por eles se transita como na pressa dos tapetes voadores.
No mundo rural, so mais persistentes estes valores. A Literatura
Oral-popular e sua vertente caipira impem, de certo modo, o realce
das diferenas entre o mundo rpido e administrado, de que o beletrismo
se faz representante, e o mundo das vivncias e expresses espontneas. Em
conseqncia, este segundo, desintegrado numa sociedade que lhe
reserva posio marginal, goza de um certo sossego para ser vivenciado
como o que vive margem: no necessita de rezar o catecismo
oficiador. Em geral, o caipira no mistifica nem se seduz pelo que no
compreende. Por isso, passa ao largo das profundezas hermticas
das teses doutas. Sua relatividade mais elstica. Disse-me o
octogenrio pintor primitivo Jos Antnio da Silva, com ares de

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

ensinamento proverbial: A cincia infalvel, mas tem as suas falhas.


Tambm por esses paradoxos de uma ingenuidade estonteante, pa-
recendo frutos de uma rvore original, prevalece no cantar caipira a
riqueza de um despojamento sedutor e de grande interesse
investigativo. Realizei este trabalho em respeito e admirao arte e
voz da populao marginalizada. Como reconhece o violeiro e pes-
quisador de campo Roberto Nunes Corra, em contatos que tive-
mos, as variaes em torno da viola brasileira so to grandes e pro-
fundas que formam um campo misterioso impossvel de ser pene-
trado pelo estudioso comum. Este trabalho percorre apenas um eito,
parte do mundo dos violeiros aclamados e que chegaram s gravaes
eltricas. Para minha frustrao, no registra a voz cheia da graa dos
enjeitados e annimos deste pas que tenho a convico tm de
tudo a nos instruir e a nos ensinar a entrar nos trilhos. Evo, volte-
mos diligncia de Truffaut!

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

II CONFIGURAO
DO CANTAR CAIPIRA

1. O ROMANCEIRO TRADICIONAL
E SUA EXTENSO NA MODA CAIPIRA

O ser humano est no mundo e a todo momento olha para si.


Sempre foi assim e talvez seja a ns mesmos o que mais tentamos
enxergar. Esse olhar para dentro seria a nascente mais lmpida da
arte. No entanto, como um paradoxo, Literatura Popular nem
Literatura, uns afirmam desdenhosamente. Ela faz da existncia
matuta objeto de seu artifcio, no se importando com a caligrafia,
rigores e floreios artesanais germinados no misterioso mundo da
escrita. Seu linguajar cru e direto, diferente da fala cozida, no
vislumbre antropolgico de Levy-Strauss. Como um rio, propaga-
se em paralelo aos padres dominantes de cultura, vinculados s
chamadas elites. Essas, muitas vezes, reconhecem valor literrio
apenas na estabilidade do objeto escrito, calcado no veculo
institucional do livro. Alguns defendem, ao p da letra, a etimologia
de Literatura, e se servem desta para defini-la. Provm de littera,
asseveram, que pressupe o primado documental da letra de for-
ma, seus ornatos e construo ideogrfica. Enquanto acadmicos,
com seus paradigmas etiquetados, acatam o presente com os olhos
nas regras do passado, os que flutuam na onda da modernidade
comumente colocam o mundo no foco no futuro, decorrente das
borbulhas do presente, a rejeitar os estales do outrora. Com os
olhos no l de fora, parecem arredios ao agora nacional como est a,
pulsante e coloquial.

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Contando lendas sedimentadas pelo tempo e projetando mitos


de uma mudividncia longnqua, o designado inconsciente coleti-
vo, nessa faixa quase invisvel que se incrementam as fontes liter-
rias orais-populares, na curtio e vivncia do presente e alheias aos
embates e conflitos das mesmas elites. E assim sendo, o fazer liter-
rio do povo se v rotulado de subliteratura, paraliteratura,
contraliteratura,7 a situar-se no lado abaixo dos horizontes e frontei-
ras do discurso chamado oficialmente de literrio. Expresso oral, ou
o oral escriturado no raro em cadernetas garranchadas, e quase sem-
pre complementado pelos movimentos do corpo, na voz alta e ou-
tras atitudes corporais dos intrpretes, faz da cultura do povo8 seu
cimento de identidade ou re-conhecimento. Em reao a esta, signi-
ficativa poro de aparatos sociais eruditos manifesta profundo pre-
conceito e formidvel desapreo. Proclamando-se democratas, pouco
lhes interessa que seja a produo artstica da maioria! No entanto, a
literatura que precede os livros, e tantas vezes os substitui; no so
vozes que habitam presas dentro de brochuras mas, vivas e impelidas,
escalam os tempos com a tonalidade e o calor de um presente em
transformao. A solidez da letra escrita ostenta um peso que a faz
lenta, se comparada com a dinmica adaptativa da palavra falada, prin-
cipalmente a que voa adornada pela msica. Na era atual, este o dizer
literrio que muitos escondem, guardando-o apenas consigo, caute-
losos ou envergonhados dos modos antigos presos na tradio. Num
belo dia viemos da roa ou de sua extenso nalgum lugarejo e, liga-
dos correnteza familiar, fomos viver num desses arrabaldes brasilei-
ros.
No rol da Literatura Popular de antiga procedncia, e seu extenso
inventrio cultural, configuram-se dos causos de reis e prncipes,
que ainda so contados nos recantos afastados dos grandes centros,

7
As implicaes terminolgicas e conceituais de Literatura Popular e suas
configuraes como objeto de anlise literria encontram-se firmadas exaus-
tivamente no excelente artigo Dez Anos de Pesquisas em Literaturas Popu-
lares: O Estado da Pesquisa Visto de Limoges, de Jacques Migozzi. In: BERND,
Zil e MIGOZZI, Jacques (Orgs.) Fronteiras do Literrio: Literatura Oral e Popu-
lar Brasil/Frana, , p. 11-30. Seguiremos neste trabalho a conceituao tradici-
onal do termo.
8
Arnold Hauser refere-se s culturas de elite, do povo e para o povo em sua Histria
Social da Literatura e da Arte - I, p. 125 e ss.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

aos cnticos entoados na viola; dos autos populares, teatros de circo


e poesias recitadas, aos romances populares em verso e prosa pro-
duzidos por gente do povo, artistas espontneos annimos ou no,
caligrficos ou no e outras formas verbais de manifestaes no
necessariamente veiculadas em livro. Esses artistas produzem entre-
tenimento, informao, persuaso e prazer artstico. Grandssimos
escritores reconhecidos como tais, no curso dos tempos, produziram
genuna poesia popular, em prosa e verso. Fatos exteriores relaciona-
dos com a natureza etnolgica dessa literatura ditaram aceitao nor-
mal desses artistas, no rol daqueles estimados como letrados ou
eruditos. Lgia Chiappini Moraes Leite escreve que se isso um
fato, tambm parece verdade que regionalismo est sento entendido
a como uma restrio qualitativa que, no limite, invalida
conceitualmente a prpria categoria, pois tudo poderia resumir-se
seguinte frmula: quando a obra no atinge um certo padro de
qualidade que a torna digna de figurar entre os grandes nomes da
literatura nacional, ela regionalista; quando, pelo contrrio, se conse-
gue atingir esse padro ela no seria mais regionalista, seria uma obra
da literatura nacional, reconhecida nacionalmente e, at mesmo
candidata, como o caso de Guimares Rosa, a um reconhecimento
supranacional, para no dizer universal.9
O sistema operacional da Literatura Popular de antiga procedncia
compreende o entrelaamento de diversos cdigos que se agrupam
em palavras e sinais paraverbais, extraverbais e os signos literrios
verbalmente realizados. H uma sucesso superposta de modos de
exprimir para formar um campo homogneo de significao. Mobili-
za e rebrota uma rea de conceitos que se situa numa zona de afinida-
des primitivas: a msica, o canto e o agrafismo da palavra memoriza-
da. Realizando-se como ato performtico, portanto um processo ver-
bo-motor de mensagem em situao, pressupe alm da sonoridade
poemtica-musical, na maioria das vezes, o uso expressivo do espao
e da gestualidade, a motricidade do corpo e seu ritmo e, por que no?,
o uso expressivo do silncio; pressupe, em seqncia, a
potencializao dada pela interatividade cantador/ouvinte na mensa-
gem em situao ou como se fosse. Vtor Manuel de Aguiar e Silva

9
Velha Praga? Regionalismo literrio brasileiro. In: PIZARRO, Ana. (Org.)
Amrica Latina: Palavra, Literatura e Cultura II, v.2, p. 699.

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anota o entrelaamento dos seguintes urdimentos expressivos: o


cdigo musical, porque a literatura oral-popular geralmente cantada
ou entoada; o cdigo cinsico, que se expressa nos movimentos rtmi-
cos do cantador, na funo ou desempenho ao vivo; o cdigo proxmico,
que se expressa nas relaes geogrficas entre as coisas e os seres, e o
processo da oralidade; o cdigo paralingstico, que expressa os fatores
vocais, supra-segmentais (entonao, timbre, por exemplo) que acom-
panham a emisso dos signos verbais puros.10
Vincada pelas tradies e tendo suas matrizes genealgicas situa-
das no fundo peninsular da Idade Mdia, a Literatura Popular de
antiga procedncia no pode ser entendida como matria esttica,
guardi do atraso. Como outras manifestaes autnticas das cama-
das marginalizadas, que tm um sentido de persistncia ligado ao
beira-cho, est sujeita a transformaes pelas adaptaes ao meio,
pelos retoques imaginativos e transfiguradores, num contnuo pro-
cesso de reelaborao comunal: quem a modifica so as geraes de
cantadores e ouvintes. O relato oral, esclarece o argentino Adolfo
Colombres, mvel, o que impede seu esclerosamento. Diferente
do livro, no caduca: se transforma. um meio de transmisso de
conhecimentos que em maior ou menor grau veicula uma carga sub-
jetiva que inclui os fermentos que permite ao mito modificar de ms-
cara, responder s novas situaes.11 Sua principal caracterstica per-
siste na oralidade ressalta Cmara Cascudo. Neste sentido, duas
fontes contnuas a mantm viva, assevera o mestre potiguar, uma
exclusivamente oral, resume-se na estria, no canto popular e tradici-
onal, nas danas de roda, danas cantadas, danas de divertimento
coletivo, rondas e jogos infantis, cantigas de embalar (acalantos), nas
estrofes das velhas xcaras e romances portugueses com solfas, nas
msicas annimas, nos aboios, anedotas, adivinhaes, lendas, etc.
A outra fonte a reimpresso de antigos livrinhos, vindos de Espanha
ou de Portugal e que so convergncias de motivos literrios dos
sculos XIII, XIV, XV, XVI ..., alm da produo contempornea
pelos antigos processos de versificao popularizada, fixando assun-

AGUIAR E SILVA,Vtor Manuel de. Teoria da Literatura, p. 138-139.


10

Palabra y Artificio: Las Literaturas Brbaras, de Adolfo Colombres. In:


11

PIZARRO, Ana (Org.) Amrica Latina: Palavra, Literatura e Cultura III, p. 139.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

tos da poca, guerras, poltica, stira, estrias de animais, fbulas, ciclo


do gado, caa, amores, incluindo a poetizao de trechos de romances
famosos tornados conhecidos, Escrava Isaura, Romeu e Julieta, ou mes-
mo criaes no gnero sentimental, com o aproveitamento de cenas
ou perodos de outros folhetos esquecidos em seu conjunto. 12 Os
romances Iracema, Ubirajara e A Viuvinha de Jos de Alencar viraram
folhetos famosos. Vrios autores do conta de que o folheto A
Donzela Que Foi Guerra, que circula de boca em boca em vrios esta-
dos do Nordeste, foi a fonte de inspirao personagem Diadorim,
no Grande Serto: Veredas de Guimares Rosa. No entanto, quando o
escritor popular Joo Martins de Athayde escreve o folheto Amor de
Perdio, apropriando-se de Camilo Castelo Branco, preciso enten-
der que nada mais faz que resgatar de um romance prosificado aquilo
que, em parte, fora apropriado da tradio. Reescreve a mesma fbula
em redondilhas e, em sua forma adequada ao saboreio popular, a
devolve ao antigo dono: o povo.
Evidenciada pela memria afetiva latente, e muito prxima da
ideologia rural e suburbana, a Literatura Popular, no realismo ex-
pressivo do cotidiano, manifesta-se na lngua errada do povo, ln-
gua certa do povo, porque ele que fala gostoso o portugus do
Brasil segundo a Evocao do Recife de Manuel Bandeira. Rolan-
do, saltando, arrastando-se de boca em boca, como um rio, de gera-
o a gerao, enfrentando o poder dissolvente do tempo, no se
lhe podem ignorar a autenticidade e a fina malcia construtiva. Es-
creve o poeta Haroldo de Campos, em seu deslindar singelo do
artista popular e sua arte:

Suando como um shamisem, e feito apenas com


um arame tenso, um cabo e uma lata velha, num fim de
festafeira, no pino do sol pino. Mas para outros no
existia aquela msica. No podia porque no podia. Po-
pular aquela msica? Se no cantam, no popular. Se no
afina, no tintina, no tarantina... E no entanto, puxada
na tripa da misria, na tripa tensa da mais megera misria
12
Literatura Oral no Brasil, p. 22. Cmara Cascudo no inclui a Literatura Popular
na classificao folclrica, pois uma produo, canto, dana, anedota, con-
to, que possa ser localizada no tempo, ser um documento, um ndice de
atividade intelectual, p. 23.

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fsica, e doendo, doendo... Por isto popular, para os


patronos do povo. Mas o povo cria, mas o povo engenha,
mas o povo cavila. O povo o inventalnguas na malcia
da mestria, no matreiro da maravilha, no visgo do impro-
viso, tenteando a travessia... O povo o melhor artfice.13

Ilustrao n.1 Capa do Cancionero de Romances


de Martn Nucio (sem data). 14

num parmetro similar a este que se enquadram as manifesta-


es da Moda Caipira de razes, seus escritores de msicas e
cantadores. De origem peninsular, nela se encontram resduos for-
mais, decalques e vestgios de motivos estilsticos e temticos do
Romanceiro tradicional ibrico, essa Ilada espanhola sem Homero
como escreveu Spitzer15 , que se espalhou pelas letras romnicas
e quatro ventos da Europa. Confabulando com motivos literrios
antigos que incursionam pelo mundo medieval, a Moda Caipira de
razes remoa metforas e instncias temticas profundamente
agregadas na cultura, como a tpica exordial, a do final feliz, a da
invocao da natureza, do lugar ameno e buclico, a da perorao, a

13
Isto no um Livro de Viagem: 16 Fragmentos de Galxias: Circulad de Ful,
de Haroldo de Campos. CD. Ed. 34, Rio de Janeiro: 1992.
14
Apud. GARCA DE ENTERRA, Maria Cruz. Romancero Viejo, p. 51.
15
SPITZER, Leo. Estilo y Estructura en la Literatura Espaola, p. 145.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

das invocaes bblicas, a do passado feliz que no volta mais, a da


moa roubada, a do homem mal, de corao satnico, a da rapariga
pecadora, a do mundo s avessas, a da morte domada, a do pobre
virtuoso, a das transformaes zoomrficas, assombradoras ou
angelicais, a da fora das premonies e vaticnios, todas muito
freqentes e determinantes de ncleos temticos e enredos nas can-
es de gesta e no Romanceiro tradicional. Neste sentido, trata-se de
uma crioulizao da literatura escrita. Disto se explica porque, ao
aproximar-se de nossa poca, agregam-se na Moda Caipira tantas
vibraes da esttica romntica, esta que, em muitos aspectos, se
configura pelo apreo ao medieval. oportuno lembrar que os
padres formais consolidados em poesia e que se expressam no
etnotexto ibrico funcionam como faris a abrir caminho para as
variaes conformes vicissitude vital do mundo hispano-america-
no. Se fosse diferente, e se no Novo Mundo se reproduzissem os
mesmos padres, a estrutura poemtica seria frmula e no forma. E
assim se explica por que a redondilha, to freqente na Moda Caipi-
ra de razes (e outras manifestaes brasileiras), embora to parecida
com o modelo antepassado ibrico, peculiar em suas relaes har-
mnicas, principalmente rtmicas. Existe uma potica da oralidade,
da qual a literatura tipogrfica se desviou, formando seus cnones e
meios. Porm no raro acontece que, quando a grande literatura
quer respirar e restaurar a limpidez da origem, volta s fontes da
oralidade. Ento, injusto afirmar que um poeta popular exce-
lente porque seu estilo se aproxima ao de um poeta erudito. Digo
isto porque comum encontrarmos o vezo em citar procedimentos
estilsticos de um poeta aceito classicamente como abonadores e
justificadores de artimanhas estticas freqentes na poesia de tradi-
o oral. Na Moda Caipira ressoam e sobrevivem as canes lauda-
trias e hericas que so fontes das canes picas, aristocrticas;16

16
Arnold Hauser escreve que a pica popular da histria literria do roman-
ce no teve, originalmente, relao alguma com o povo. As canes laudat-
rias e os lieds hericos, que so a fonte das canes picas, eram da mais pura
qualidade potica que uma classe dominante jamais produziu. No eram nem
criadas, nem cantadas, nem difundidas pelo povo, nem intencionalmente
destinadas ou musicadas para a mentalidade do povo. Eram estruturalmente
poesia artstica e de uma arte aristocrtica. (Histria Social da Literatura e da Arte
- I, p. 228).

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assim, o historicismo ainda que idealizado ou legendrio do Cantar


del Mio Cid (Rodrigo Daz de Vivar, chamado Cid pelos mouros e
Campeador pelos cristos), supostamente escrito em 1140, e outras
gestas dos juglares, as letras morabes do sculo XI, de tradio oral
e cantadas, as cantigas paralelsticas galego-portuguesas cultas (can-
tigas de amor) e populares (cantigas de amigo), tremulam como
bases de grandes escritores peninsulares, brasileiros e hispano-ame-
ricanos. Entre eles se evidenciam Garcilaso de la Vega, Frei Lus de
Len, Lope de Vega. As primitivas gestas castelhanas e o Romanceiro
tradicional tiveram seu esplendor no teatro do Siglo de Oro , Gil
Vicente (com vrios autos explicitamente romanceados); S de
Miranda, Cames, Gngora, Gregrio de Matos, Quevedo, pas-
sando pelo fundador do romantismo espanhol Duque de Rivas
(Romances Histricos, 1841), alm de Jos de Espronceda e o portu-
gus Almeida Garret (Cames, 1825, D. Branca, 1826, e Adozinda,
1828, de sua fase romntica, mais tarde incorporados ao Romanceiro
e Cancioneiro Geral, 3 vols. 1843-1851. So tambm de Garret os
chamados romances reconstrudos, realizados de parfrases e fantasi-
as poticas sobre os romances e outras expresses de tradio oral).
preciso citar Gonalves Dias (Sextilhas de Frei Anto, 1848), Casimiro
de Abreu (vrios poemas de Primaveras, 1859, um deles, romancea-
do, tendo como tema a prpria viola: queixume do mar que rola/
cantiga em noite de lua/ cantada ao som da viola). Entre os mais
recentes, figuram o argentino gauchesco Jos Hernndez (Martn
Fierro, 1872), o modernista cubano Jos Mart (Versos Sencillos, 1891),
o argentino Enrique Banchs (Elogo de una Lluvia, 1908), os espa-
nhis E. Lpez Alarcn (com a pea Gerineldo, Poema de Amor y
Caballera Compuesto en Parte con Pasajes del Romancero, 1909), Jacinto
Grau (El Conde de Alascos, Tragdia Romanesca, 1917) e Gerardo Diego
(Romance de la Novia, 1918), Garca Lorca (Romancero Gitano, 1924-27,
e tragdias andaluzas), Salvador de Madariaga (Romances de Ciego,
1922), Miguel de Unamuno (Romancero del Destierro, 1928) e Anto-
nio Machado, da gerao espanhola de 98, o modernista argentino
Leopoldo Lugones (Romancero, 1924), Ceclia Meireles (Romanceiro
da Inconfidncia, 1953), Ariano Suassuna (Auto da Compadecida, 1955),
Joo Cabral de Melo Neto (Morte e Vida Severina, 1954-55, e outros
poemas em voz alta), Ferreira Gullar (Romances de Cordel, 1962-67) e
tantos outros.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

A respeito das reevocaes temticas e da apropriao pelo poeta


popular de obras literrias consagradas pelo gosto geral, modifican-
do-as ou trazendo para o primeiro plano episdios mais impactantes,
h que sublinhar que era comum esses excertos serem desgarrados
das antigas gestas picas medievais e transformados em formas
poemticas designadas por romances. Vale lembrar que os Romances
tradicionais eram textos musicais-recitativos realizados para uma s
voz, geralmente, com acompanhamento instrumental principal-
mente a vihuela [viola] de mano , de maneira a se evitar que a relevncia
enftica do enredo no se dilusse nos artifcios meldicos e nuanas
da prosdia musical. Eles se caracterizam ento, genericamente, como
episdios baladsticos derivados das extensas epopias medievais.
Com o passar do tempo, observa Pedro M. Piero e Virtudes Atero,
os novos gostos facilitariam a que, independentes j das gestas me-
dievais, nascessem outros romances de assuntos histricos e nove-
lescos, relacionados a acontecimentos coetneos, ao mesmo tempo
que receberiam influncias de outras fontes poticas, como, principal-
mente, das baladas europias com as quais tanto tm em comum e
que asseguram ao romanceiro uma modalidade lrica e contriburam
para fixar determinadas formas mtricas.17 Em certa altura da Idade
Mdia, a palavra romance (rimance ou romano) designava o linguajar do
povo. Nessa poca ainda no havia caracterizao definida entre Ln-
gua Portuguesa e Lngua Espanhola. De relance, gostaria de acrescen-
tar que os autos do artista-apstolo Padre Anchieta (Auto da Festa de
So Loureno por exemplo), escritos j no sculo XVI, na capitania de
So Vicente para serem representados pelos indgenas, foram escritos
numa mistura de lnguas portuguesa, tupi-guarani e espanhola, a
chamada lngua braslica. Essa era a lngua geral dos ndios e dos
lusitanos indianizados. Pode-se afirmar, pois, que o teatro no Brasil
nascia apoiado numa espcie de romance brasileiro.
O vocbulo romance provm do advrbio medieval latino romanice
(romanice loqui falar em lngua romnica), em contraste com latine
loqui (falar em latim), a lngua das camadas nobres e clericais. Este
sentido se confunde com a forma poemtica predileta, primeiramen-
te dos crculos aristocrticos, e aps, dos estratos populares. Por vias
latinas e pela mestiagem lingstica dos romanos, a poesia popular

17
ATERO, Virtudes e PIERO, Pedro M. Romancero de la Tradicin Moderna, p. 12.

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herda a seiva da antigidade clssica. O Romance Tradicional recebe


essa nomenclatura pelo fato de ser uma obra lrico-narrativa trans-
posta para o idioma local, o romano. Lus da Cmara Cascudo ob-
servara confirmaes disto e anota que no final do romance de Calila
e Dimna l-se: aqui se acaba el libro de Calila e Dimna, et fue sacado
del arvigo en latin e rromanado por mandado del infant don Alfon,
fijo del muy nobre rrey don Fernando, en la era de mill e dozientos e
noventa e nueve aos, que significa que foi traduzido e romanado,
do latim (verso do rabe) para o romano ibrico. Nicolas de Piamonte,
abrindo sua traduo de Carlos Magno, em 1525, explicava: ...yo Nicolas
de Piamonte propongo de trasladar la dicha escriptura de lenguaje
frances en romance castellano, sin discrepar, ni anadir, ni quitar cosa
alguma de la escriptura francesa.18 Neste ponto profcuo aduzir
informam os pesquisadores que em nenhum documento anterior
ao sculo XV se encontra empregada a palavra romance ou romano
como designao do gnero poemtico. A primeira vez, relata
Menndez Pidal, aparece no Proemio do Marqus de Santillana (esta-
dista Lpez de Mendoza, 1398-1458), publicado em lngua romni-
ca, e no em latim, em versos geralmente octosslabos, 19
freqentemente com rimas assonantes nas linhas pares. Assim consi-
derado, parte a admirvel fortuna de saberes e as minuciosas refe-
rncias e estudos como os contidos no Romancero Hispnico (Hispano-
Portugus, Americano y Sefard), tomos I e II, o mestre Menndez Pidal
define o romance com extrema conciso: poemas picos-lricos bre-
ves que so cantados ao som de um instrumento, seja em festas
danantes, seja em reunies ensejadas para o recreio simplesmente,
ou para o trabalho comum.20
O romance preferido dos msicos, historiam vrios autores, era
El Conde Claros, histria cavalheiresca de Claros de Montalbn, plena
de paixes e excitaes pelo tumulto da vida, com seus 420
octosslabos, muito difceis de serem cantados na seqncia integral.
18
Apud. CASCUDO, Lus da Cmara Literatura Oral no Brasil, p. 213.
19
De acordo com o padro grave da metrificao espanhola, mais adequado ao
esprito paroxitonal da Lngua Portuguesa. Este padro o adotado pelo
Grupo de Estudos Literatura e Cultura Popular, sediado na UNESP de So
Jos do Rio Preto-SP. As avaliaes estilsticas contidas neste Ensaio tero
pressupostos esse padro mtrico.
20
MENNDEZ PIDAL, R. Flor Nueva de Romances Viejos, p. 7.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Cito um trecho desse romance antigo e atentemos para o intrincado


jogo semntico e sua musicalidade. Arbitrariamente os romances
antigos no eram estrofados , vamos dispor os octosslabos em
dois blocos estrficos (dois sextetos), para que se possa perceber com
mais facilidade o carter funcional do desenvolvimento cclico de uni-
dades narrativas, culminando pela cadncia das pausas, e sua eficcia
poemtica como letra de msica, a propiciar voltas repetitivas da mes-
ma melodia.

EL CONDE CLAROS
Las hijas del rey chiquito
Todas andan a un igual,
Todas visten un vestir,
Todas calzan un calzar,
Todas dicen a una voz:
La infanta preada est.

Si la infanta est preada


Caso es que parir.
Vino tiempo y pas tiempo,
Que la sacan a quemar,
Con quince carros de lea
Y ms que van a buscar.21

***
Os vihueleros ou vihuelistas, como eram conhecidos na Pennsula
Ibrica, e que ficaram sendo os nossos violeiros, preferiam executar
apenas os trechos prediletos, ou preferidos de seus ouvintes, de um
romance lrico-narrativo de larga extenso. Acrescente-se ainda que, se
at o sculo XV era manifestao puramente oral, h que mencionar,
segundo Menndez Pidal que, de todos os gneros poticos penin-
sulares, o romanceiro foi o que mais ocupou as tipografias do sculo
XVI, em forma de pliegos sueltos, anlogos aos folhetos de cordel
(colportage, na Frana, chapbook, na Inglaterra, folhetos volantes ou cordel,
em Portugal) to queridos no Nordeste brasileiro. A partir daquele
perodo, entraram na moda tambm na forma escrita, no como
coletnea ou antologia reunida como preservao dos haveres cultu-
21
Apud. COSSIO, Jos Maria de. Romances de Tradicin Oral, p. 43-4.

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ROMILDO SANTANNA

rais e artsticos, mas para fins de consumo de massa, para o deleite


requerido pelas gentes.
Para elucidao da projeo temtica e dos cdices do Romanceiro
tradicional, pela transmisso oral, to em voga nos sculos XIV e XV,
nos romanceiros modernos orais e escritos, baladas e nossas Modas
Caipiras, necessrio citar quatro dos principais e mais comovedores
contedos do Romanceiro, de acordo com a classificao bem
simplificada e didtica de Guillermo Daz-Plaja, qual
complementamos com observaes de Dmaso Alonso:22
a) Romances que fazem referncia histria antiga. So episdios
tirados da Bblia ou dos historiadores gregos e romanos. Existem,
por exemplo, romances sobre o Sacrifcio de Isaac, O Pecado Ori-
ginal, O Nascimento de Moiss, sobre a Samaritana; sobre o in-
cndio de Roma; sobre a tomada de Numancia, etc.
b) Romances que fazem referncia histria peninsular. So os mais
importantes. Seus heris so o rei Don Rodrigo, o Cid Campeador,
Bernardo del Carpio, o Conde Fernn Gonzales, os Sete Infantes de
Lara, Ximena pedindo justia, Don Sancho e Doa Urraca. So not-
veis os romances fronteirios da guerra de Granada, e os do ciclo de
Don Pedro, el Cruel, assim chamado por envenenar a esposa, Dona
Blanca de Borbn. Cada romance se define por um tema concreto,
abarcando quase toda a histria medieval peninsular e de parte da
Europa, como Expulsin de los Judos de Portugal. Incluem-se nesta
categoria aqueles que constituem verdadeiros ciclos, como a fbula de
Don Rodrigo e a perdio da Espanha de seu pecado sua penitn-
cia e morte, formando em conjunto uma espcie de unidade poemtica.
Sobre esses enredos, existiram antigos cantares de gesta; deles, como
foi mencionado, os romances aproveitaram elementos que pareciam
de maior interesse e emoo.
Por sua riqueza descritiva, certamente carregada de intensidade
dramtica, vale a pena citar o seguinte trecho de um romance velho:
De cmo el rey Don Rodrigo perdi a Espaa, transcrito na forma de dois
hemistquios octosslabos, assonantados os versos pares, conforme
aparece em vrias colees:
22
DAZ-PLAJA, Guilhermo. Historia de la Literatura Espaola, p. 73-8; ALONSO,
Dmaso. Cancionero y Romancero Espaol, p. 9-19, e MENZEZ PIDAL, R. Los
Romances de Amrica y otros Estudios.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Las huestes de don Rodrigo desmayaban y huan


cuando en la octava batalla sus enemigos vencan.
Rodrigo deja sus tiendas y del real se sala;
solo va el desventurado, que no lleva compaa.
El caballo de cansado ya mudar no se poda,
camina por donde quiere, que no le estorba la va.
El rey va tan desmayado, que sentido no tena,
iba tan tinto de sangre, que una brasa pareca.

c) Romances de tema francs. Carlos Magno, o rei dos francos e


Imperador do Ocidente no sculo VIII, e seus cavaleiros so muito
citados. Incluem-se imitaes da Chanson de Roland (conhecido desde
antes do ano de 1080)23 , em que o Imperador descobre, desolado, os
cadveres de Roldo, Oliveiros e Turpim. Pertencem ao ciclo carolngio
e dele fazem parte romances notveis como El Sueo de Doa Alda, El
Conde Claros y el Emperador, Nacimiento de Montesinos, Miliselda y Don
Gaifero, Roncesvalles...; fazem parte tambm dessa classificao os he-
ris do ciclo breto, especialmente figuras hericas como Lanarote.
d) Romances lrico-narrativos. Incluem-se nessa classificao uma
srie de romances que narram histrias de amores e de intrigas
Bernal Francs, a Bela Malmaridada (um dos enredos preferidos dos
vihuelistas, juntamente com La Maana de San Joan), Branca-flor...
ou aqueles em que o juglar (cantador) canta seus amores e desenga-
nos. Os romances de enredos novelescos e lricos so, em geral, carre-
gados de imagens de pondervel intensidade lrica, como a histria de
Amads, o mais famoso caballero do sculo XVI, ou como o seguinte
excerto, em que um navegante se v glorificado pela sua profisso no
mar:

Por Dios te ruego, marinero dgasme ora ese cantar.


Respondile el marinero, tal respuesta le fue a dar:
Yo no digo esa cancin sino a quien conmigo va.

Ou aquele, repleto de subentendidos e certa malcia, em que uma


missa interrompida pela entrada de uma bela mulher. Um jogo
fonossemntico se instaura:

LAATHS, Erwin. Historia de la Literatura Universal.


23

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ROMILDO SANTANNA

El abad que dice la misa, no la puede decir, non;


Monacillos que le ayudan, no aciertan responder, non:
Por decir Amn, amn, decan Amor, amor.

Ilustrao n.2 Romance de Amads y Oriana,


um pliego suelto de cerca de 1515-1519. 24

No gostaria de deixar de citar os dsticos octosslabos de Con


Pavor Record el Moro, pela intensidade emotiva e artificiosidade
paralelstica, assim como por sua construo base de imagens irni-
cas que se fizeram to comuns no romantismo:

Con pavor record el moro y empe de gritos dar:


Mis arreos son las armas, mi descanso es pelear,
...........................................................................
Mi cama las dura peas, mi dormir siempre es velar
Mis vestidos son pesares que no se pueden rasgar.

Apud. GARCA DE ENTERRA, Mara Cruz. Romancero Viejo, p. 48


24

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

E, pela perenidade da maldita esposa infiel, o seguinte trecho


de octosslabos assonantados:

LA ESPOSA INFIEL

Estaba una seorita


Sentadita en su balcn,
Pas por all un soldado
De muy mala condicin
Y la dijo: Senhorita,
Con usted durmiera yo.

Suba, suba, caballero,


Dormir una noche o dos,
Que mi marido fu a caza
A los montes de Len,
Y para que ac no vuelva
Le echaremos maldicin:
Cuervos le saquen los ojos,
guilas el corazn,
Se caiga de un risco abajo
Y muera sin confesin.25

Variantes do Romanceiro tradicional se alastram por toda a


Europa e Amrica hispnica. A ttulo de ilustrao, convido o
interlocutor para comparao de um romance antigo peninsular e
sua variante ocorrente no Chile. Neles se configura o tema primor-
dial da jovem sedutora que atrai um pastor, para tir-lo de seu
paraso, num revivenciamento do mito seminal de Ado e Eva e
o primeiro pecado:

LA GENTIL DAMA Y EL RSTICO PASTOR


Romance Tradicional

Estando un da un pastor de amores muy descuidado,


Vino por all una dama. -Usted me da a m cuidado.
Mira qu trenza de pelo qu delgada de cintura.

25
Apud. COSSIO, Jos Mara de. Romances de Tradicin Oral, p. 60.

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ROMILDO SANTANNA

Si te casaras conmigo gozaras de mi hermosura.


Respondi el bien del pastor: -Tu hermosura no la quiero,
Tendo el ganado en la sierra y quiero dirme con ello.
Pastor, que ests enseado a dormir en las cabaas,
Si te casaras conmigo durmieras en buena cama.
Pastor, que ests enseado a comer pan de centeno,
Si te casaras conmigo comieras de pan y bueno.26

LA DAMA Y EL PASTOR
Romance Chileno

Pastor que andas por la sierra pastoriando tu ganado,


Si te casaras conmigo salieras de esos cuidados.
Yo no me caso contigo, responde el villano vil,
El ganado est en la sierra, adis, que me quiero ir.
Como ests acostumbrado a andar con esas ojotas,
Si te casaras conmigo, te pusieras buenas botas.
Yo no me caso contigo responde el villano vil,
El ganado est en la sierra, adis, que me quiero ir.
Como ests acostumbrado a comer galletas gruesas,
Si te casas conmigo comieras pan de cerveza.27

***
Os quinhentistas portugueses so depositrios da tradio oral-
popular, a exemplo de Cames e Jorge Ferreira de Vasconcelos. Aps
certo arrefecimento, no perodo neoclssico, no romantismo que se
reabilita definitivamente o Romanceiro tradicional, projetando-o em
direo ao sculo XX, ainda que em sua condio puramente escrita
(os estudos sobre a relao palavra-msica ainda esto por fazer).
Entre as coletneas portuguesas destacam-se desde Garrett (Romanceiro,
1843-50) s de Tefilo Braga (Floresta de Vrios Romances, 1869 e os
trs tomos do Romanceiro Geral Portugus, 1906-9), e de Victor Eugnio
Hardung (Romanceiro Portugus, 1877). Garrett, no prefcio de Adozinda
(1828), escreve que de pequeno me lembra que tinha um prazer
extremo de ouvir uma criada nossa em torno da qual nos reunamos
26
Apud. Idem, p. 121-2.
27
Apud. MENNDEZ PIDAL, R. Los Romances de Amrica y Otros Estudios,
p. 31-2.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

ns, os pequenos todos da casa, nas longas noites de inverno, recitar-


nos meio cantadas, meio rezadas, estas xcaras e romances populares
de maravilhas e encantamentos, de lindas princesas, de galantes e
esforados cavaleiros. A monotonia do canto, a singeleza da frase, um
no sei qu de sentimental e terno e mavioso, tudo me fazia to
profunda impresso e me enlevava os sentidos em tal estado de
suavidade melanclica, que ainda hoje me lembram como presentes
aquelas horas de gozo inocente, com uma saudade que me d pena e
prazer ao mesmo tempo. Entrando no sculo XX, os romances
portugueses, em seus textos literrios e musicais, foram conhecidos a
partir de Velhas Canes e Romances Populares Portugueses (1913, de Pedro
Fernandes Toms), Romances e Canes Populares da Minha Terra (1921,
de Francisco Serrano), os romances e melodias inseridos no Cancio-
neiro Musical da Galcia (1842), A Cano Popular Portuguesa (1953, de
Fernando Lopes Graa) e Cancioneiro de Monte Crdova (1958, de Lima
Carneiro).28 Comenta o pesquisador aoriano J. M. Bettencourt da
Cmara que o veculo da difuso do Romance tradicional at para-
gens longnquas , evidentemente, o formidvel movimento de ex-
panso martima que, a partir de fins do sculo XIV, empreendido
pelas duas naes peninsulares. Com os portugueses e espanhis,
impelidos pela circunstncia poltico-social dos dois pases para a aven-
tura do mar que a lenda medieval povoava de monstros, chegaram s
terras descobertas simultaneamente o desejo dos valores materiais
que se esperava retirar delas e as formas culturais trazidas da terra de
origem, incluindo formas potico-musicais populares ou populari-
zadas, como o romance.29 Para um povo de vocao navegadora,
espremido por Castela a empurrar e o Atlntico a libertar (Porto,
Portugal...) pondera Pedro Calmon , claro que as cordas da viola
zuniam nos desembarques portugueses. A poca dos descobrimen-
tos foi o esplendor da viola em Portugal. No so poucos os roman-
ces martimos, como o seguinte trecho do Romance da Nau Catarineta,
muito prximo do texto consagrado por Garret, e copiado por Slvio
Romero, numa verso rio-grandense:

CMARA, J. M. Bettencourt da. Msica Tradicional Aoriana, p. 32-3.


28

Ibidem, p. 38. A revitalizao do Romanceiro em Portugal detalhada com


29

densidade no Dicionrio das Literaturas Portuguesa, Brasileira e Galega, de Jacinto


do Prado Coelho.

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ROMILDO SANTANNA

No tinham mais que comer,


Nem tampouco que manjar;
Botaram solas de molho,
Pra no domingo jantar;
A sola era to dura
Que no podiam tragar.30

***
A forma do romance, introjetada e sonoramente automatizada
pelo conhecer popular, se reproduz em todos os desvos da querncia
brasileira, sedimentando heris legendrios, histricos e verdades
coletivas. As faanhas do heri negro ou do heri indgena, por exem-
plo, associadas ao padecimento do ndio nacional, so registradas em
significativa antologia de poemas, a maior parte exaltada pela
mundividncia romntica do bom selvagem. Tratamento anlogo dado
ao preto. O heri guarani Jos Tiarai (ou So Sep), da guerra das
Misses, cantado no romance O Lunar de So Sep, recolhido por J.
Simes Lopes Neto em 1902, e citado por Pedro Calmon. Vale a pena
admirarmos um certo sabor de arcasmo prprio do romance e a
singela maestria dos seguintes sextetos (ou versos-e-meio, no regio-
nalismo caipira):

Eram armas de Castela


Que vinham do mar de alm;
De Portugal tambm vinham,
Dizendo, por nosso bem:
Mas quem faz gemer a terra...
Em nome da paz no vem!
............................................

Do sangue dum gro-cacique


Nasceu um dia um menino,
Trazendo um lunar na testa,
Que era bem pequenino:
Mas era um cruzeiro feito
Como um emblema divino!...
30
Apud. CALMON, Pedro. Nau Catarineta. In: Histria do Brasil na Poesia do Povo,
p. 17-26.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Diferente em noite escura,


Pelo lunar do seu rosto,
Que se tornava visvel
Apenas era o sol posto;
Assim era Tiarai ,
Chamado Sep, por gosto.
............................................

Das brutas escaramuas


As artes e artimanhas
Foi o grande Languiru
Que lhensinou; e as faanhas
De enredar o inimigo
Com o saber das aranhas...31

***
O romance de tradio ibrica sobrevive em vrias regies do
Brasil. Cmara Cascudo cita os muitos registros feitos pelo Almi-
rante Lucas A. Boiteux no Estado de Santa Catarina, embora sem
msica; cita tambm as dezenas de encontros compilados por
Rossini Tavares de Lima, nos Estados de So Paulo, Minas Gerais e
Mato Grosso, os achados de Guillerme de Santos Neves, no Esp-
rito Santo, outros achados de Fausto Teixeira em Minas Gerais.32 A
maior ocorrncia de variantes de temas concretos do Romanceiro
tradicional na zona nordestina, e sua menor incidncia no perme-
tro caipira, demarcado pelas Regies Centro-sul e Sudeste do Brasil,
explica-se pela decisiva relao texto/zona geogrfica. Determina-
dos temas podem ou no se fixar ou ser incorporados a um lugar,
ou determinar variantes adaptadas ao contexto histrico-geogrfico
da regio, ou simplesmente serem suprimidos do processo espon-
tneo da transmisso oral. Isto depende do impacto que o tema e a
prpria natureza fsica do poema exercem sobre fatores concretos e
legitimados socialmente em cada regio. necessrio ressaltar que,
em Portugal e Espanha, o mesmo fato se dera, tanto em relao ao
Romanceiro tradicional, quanto sua projeo nas formas roman-
31
Apud. CALMON, Pedro. O Bom ndio. In: Histria do Brasil na Poesia do Povo, de
p. 55-61.
32
CASCUDO, Lus da Cmara. Dicionrio do Folclore Brasileiro, de p. 680-1.

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ROMILDO SANTANNA

ceadas posteriores. H sobre o assunto importantes estudos de


Menndez Pidal, como Sobre Geografa Folklrica - Ensayo de un Mto-
do, continuado por Diego Cataln e lvaro Galms em Como Vive
un Romance33 .
Na perspectiva de sua ressonncia pela identificao com certas
modulaes temticas do Romanceiro tradicional, o Nordeste bra-
sileiro mais permevel ou aberto como disponibilidade de aceita-
o, em vista do mantenimento de certas condies histricas e
polticas arcaicas a repercutir nos padres dominantes da cultura.
Franklin Tvora, no prefcio de O Cabeleira (1876) escrevera: Norte
e Sul so irmos, mas so dois. Cada um h de ter uma literatura
sua, porque o gnio de um no se confunde com o do outro. Cada
um tem as suas aspiraes, seus interesses e h de ter, se j no tem,
sua poltica..34 Explica Souza Barros que no vasto interior do
Brasil, o coronel, at 1930, exercia todos os poderes de polcia e s
algumas cidades se livraram indiretamente desse mandonismo que
no deixava de ter uma explicao como estrutura arcaica e necessi-
dade imposta pelo isolamento da distncia e pela ausncia completa
de Poder Pblico.35 Vigora um patriarcalismo fechado, na tradio
do senhor de engenho colonial e do coronel republicano de bo-
tas, rebenque e chapelo , perseverante em seus eitos de
autoritarismo. A dominao alimentada pelo mando do coronel
sobre os eleitores matutos registrada pelo jurista Vctor Nunes
Leal, no livro clssico Coronelismo, Enxada e Voto (1949). A evocao
desse sistema, em infindveis cantares, se reala no excerto de O
Jri, do paraibano Pomplio Diniz:

Dispois foi preso e jurgado


Pelo Juiz de Dereito
Que tombm Delegado
Cum exircio de Prefeito...
ele nessa cidade

33
Apud. ATERO, Virtudes e PIERO, Pedro M. Romancero de la Tradicin Moder-
na, p. 33.
34
Apud. COUTINHO, Afrnio. O Regionalismo na Fico. In: A Literatura no
Brasil, p. 251.
35
BARROS, Souza. Arte, Folclore e Subdesenvolvimento, p. 42.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Um home de oturidade
E o que fiz t bem feito! 36

O coronel seria drago da maldade, na alegoria cinematogrfica


de Glauber Rocha. Repetindo formas embrionrias senhoriais do
feudalismo, o interesse privado da Casa Grande se sobrepe ao de-
senvolvimento dos interesses pblicos, gerando formas localizadas
de despotismo. Ainda que, com a Revoluo de 1930, a fora opressi-
va do poder de polcia tenha diminudo em ostentao, esse domnio
poltico persiste at o ocaso do sculo XX, momento em que me
ponho a redigir este Ensaio. Os coronis caipiras, entretanto, agem
sob outras frmulas. Decorre desta dinmica o fato de que certos
enredos do Romanceiro calcados na mitologia do cristianismo medieval
logo se dissiparam, tiveram pouca ressonncia ou rapidamente se
transformaram na Moda Caipira, a ponto de dificilmente serem reco-
nhecveis em suas motivaes temticas de origem.
***
No entanto, embora no to freqentes como nas cantigas po-
pulares sertanejas, as Modas Caipiras registram essas remembranas
seculares matizadas pela geografia peninsular, ou presentes nos ci-
clos de gestas do Romanceiro tradicional. Mas h uma diferena
essencial que repercute na menor incidncia do Romanceiro, e essa
diferena sobrevm do conceito de quem veio a ser o caipira. O
habitante rstico gerado no planalto de Piratininga, com sua agri-
cultura itinerante, sempre empurrado para o fundo do serto,
devido violncia da expropriao da terra. Situa-se comumente na
rebarba da cultura dominante. Porm, talvez por herana ancestral
indgena, enfrenta o desconhecido, e avana em busca de novas
terras, em princpio s margens do Rio Tiet. O caipira enxerto do
habitante nativo ndios (principalmente de tribos Xavantes,
Guaranis e Caigangues ou Coroados, quase dizimadas pelos
bugreiros, nas marchas colonizatrias, entre 1850 e 1910), brancos
ibricos, quase-brancos, pardos, mulatos e negros , mais o
migrante das mesmas cores, vindo das Minas Gerais, empurrado
para o interior de So Paulo pelo escassamento do ouro e, a partir

36
O Jri, de Pomplio Diniz. In: Man Gonalo: Poesias. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1959, p. 17.

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ROMILDO SANTANNA

do final do sculo passado, o brao e o corao migrados, principal-


mente da Itlia.
Fixando-se na base nativa, aps sublinhar que na verdade, o caipi-
ra de origem paulista; produto da transformao do aventureiro
seminmade em agricultor precrio, na onda dos movimentos de pe-
netrao bandeirante que acabaram no sculo XVIII, Antonio Candido
ressalta que a cultura do caipira no nem nunca foi um reino separa-
do, uma espcie de cultura primitiva independente, como a dos ndios.
Ela representa a adaptao do colonizador ao Brasil e portanto veio na
maior parte de fora, sendo sob diversos aspectos sobrevivncia do
modo de ser, pensar e agir do portugus antigo. Reconhecendo a
peculiaridade de ser do brasileiro em suas regies e, portanto, com as
suas caractersticas adaptativas, sublinha o professor Candido: preci-
so pensar no caipira como um homem que manteve a herana portu-
guesa nas suas formas antigas. Mas preciso tambm pensar na trans-
formao que ela sofreu aqui, fazendo do velho homem rural brasileiro
o que ele , e no um portugus na Amrica.37
J na primeira parte do oitocentismo, com a fundao da Acade-
mia de Direito (1838), e conjuntamente com as transformaes que
se deram no pas na virada do sculo (Lei urea, Proclamao da
Repblica), a capital paulista tornou-se um centro intelectual, literrio
e econmico. Isto determinou o marco divisrio entre a tradio
atrasada da cultura caipira, identificada com o interior do Estado, e
a cultura adiantada da capital, ligada ao progresso, comrcio, inds-
tria e modernidade. Raymond Williams escreveu que o campo pas-
sou a ser associado a uma forma natural de vida de saber, comuni-
caes, luz... o campo como lugar de atraso, ignorncia e limitao.38
O caipira paulista identificou-se com o agricultor itinerante, em esta-
do de isolamento entre as comunidades do interior, por sua vez
isoladas da capital.
***
Vale lembrar, ainda que de passagem, que o Romanceiro tradicio-
nal vindo ao Brasil representa uma etapa evolutiva j bastante refina-
da do antigo romance ibrico. Houve uma evoluo semelhante que
explica o porqu da evoluo da rima assonante ou parcial em rimas
totais, nos romances modernos e, como veremos, nas formas popu-
Caipiradas. In: CANDIDO, Antonio. Recortes, p. 249.
37

O Campo e a Cidade: na Histria e na Literatura, p. 11.


38

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

lares brasileiras e, acentuadamente, na Moda Caipira. A evocao de


um romance popular, talvez tradicional, talvez uma variante moder-
na, encontra-se explicitada na tpica exordial de verso triplo (12 linhas)
da moda-de-viola Catimbau, de Carreirinho (Adauto Ezequiel, Bofete
SP, 1921-) e Teddy Vieira:

CATIMBAU
moda-de-viola

Carreirinho / Teddy Vieira

Tive leno num romance


De um casal de namorado
De Rosinha e Catimbau
Dois joves apaixonado.
Rosinha, famlia rica,
Catimbau era um coitado,
Capataiz de uma fazenda,
Mas trabaiador honrado...
Adomava burro brabo,
No lao era respeitado...
Um caboclo destemido
Ai, por tudo era admirado, ai!

(Tio Carreiro e Pardinho, Modas-de-viola


Classe A - v.3, 1981.)

H ocorrncias bem marcantes de antigas motivaes temticas na


Moda Caipira. Um peo roncando as vantagens de suas vitrias em
rodeios diz que j montei at no co! / nunca precisei de freio, / pra
mont em bicho pago (Boi Veludo, 1959, de Lourival dos Santos e
Jesus Belmiro); noutro romance, diz o eu-cantador que quando eu
era criancinha / tinha mar inclinao / eu arriscava minha vida / pra
mont em quarqu pago (Moda do Peo, de Cornlio Pires [Tiet-SP,
1884-1958] supostamente interpretada por Mariano e Caula, no disco
pioneiro n 20007, de 1929, da Srie Cornlio Pires), ambas referindo-se
ao manga-larga mestio adjetivado como pago, em remembrana
cruzada ao terrvel mouro a campear em terras catlicas de El Cid. Exem-
plo notvel, embora raro, da permanncia de enredos literrios do

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ROMILDO SANTANNA

Romanceiro tradicional no mundo caipira a moda-de-viola Nova Lon-


drina, de Teddy Vieira e Serrinha (Teddy Vieira de Azevedo, Itapetininga-
SP - 1922-1965; Antenor Serra). Constituda base de estrofes de ver-
so dobrado39 isomtrico e de a isorritmia das clulas ternrias de arte
maior (decasslabos com acentos na 3, 6 e 9 slabas, to comum no
martelo agalopado nordestino), anapstica (estilo ligeiro e fluente de se-
qncias de duas slabas breves e uma longa t-t-tt-t-tt-t-
t...), sendo essas estrofes intercaladas por uma quadra heteromtrica,
Nova Londrina revela traos de permanncia do imaginrio carolngio e
guerras entre cristos e mouros, das gestas francesas e castelhanas, com
a histria relacionada ao imperador Carlos Magno e heris a ele ligados
como Oliveiros, Roldo, sobrinho de Carlos Magno, os Doze Pares de
Frana..., incorporados ao mundo imaginrio caipira:

NOVA LONDRINA
moda-de-viola
Teddy Vieira / Serrinha
Pra corr o Norte do Paran
Eu comprei uma mula argentina
Por ser besta boa pra march
Puis o nome de Campolina.
V cort trinta lgua de mata
No dobrar daquelas colina
Quatro ferradura de prata
E uma fita amarrado na crina.

Me veio na lembrana os treis par de Frana,


Seis home valente, mat muita gente,
Eu abanco o Rordo, naquele serto
De Nova Londrina.

(Vieira e Vieirinha, Gara Branca, 1966)

***

39
Cabe observar que comum entre os caipiras designar verso pelo que
corresponde a uma quadra. Neste sentido, verso dobrado significa duas
quadras e verso e meio, um sexteto.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

oportuno observar que procurarei reproduzir neste Ensaio o


linguajar estropiado caipira, tal como pronunciado pelas duplas,
nas gravaes em disco, de modos que a legibilidade se aproxime da
elocuo original. Procura-se com isto manter o metro, o ritmo e o
encarrilhamento original das rimas. O leitor vai notar uma diferena
s vezes grande de registro lingstico entre os vrios locutores. Exis-
tem nas cantorias e tertlias a fala de si mesmo em seus vrios matizes,
e a fala do outro em sua prpria fala. Da as diferenas notveis entre os
registros de fala de Vieira e Vieirinha (Rubens Vieira Marques, 1926-;
Rubio Vieira, 1928-1990, nascidos em Itajobi-SP), por exemplo, em
relao a Tio Carreiro e Pardinho. Na cronologia desta ltima dupla
vamos sentir uma paulatina assimilao do falar correto do outro
em sua fala, medida em que os artistas interagem nos vrios lugares,
dos cafunds rsticos do campo aos ambientes mais refinados das
cidades. H, por assim dizer, a projeo mediadora do discurso letra-
do em ltima anlise escrito sobre a natural oralidade corrente no
bairro rural. A fim de demarcar os vrios registros, os testemunhos e
relatos de experincias de artistas caipiras, no decorrer deste Ensaio,
sero transcritos, ipsis verbis, do gravador. Enfatizo que contra a trans-
crio desse processo dialetal caipira j houve alguma manifestao
em contrrio e, observadas as diferenas regionais pelo interior de
So Paulo, Sul de Minas Gerais e Mato Grosso, parte de Gois, Norte
do Paran, alm de algumas reas rurais dos Estados do Rio de
Janeiro e Esprito Santo (a zona caipira uma espcie de expanso da
antiga Capitania de So Vicente), este um dos pontos marcantes de
especificidade e conseqente preconceito contra os habitantes das zonas
rurais das citadas regies. Perceptvel e estigmatizada como errada,
a fala caipira pouca importncia dedica s regras sintticas de concor-
dncia, talvez pela percepo da redundncia da regra normativa e, em
muitos casos, pela pouca diferena fontica entre singular e plural,
sem nenhuma implicao que turve o sentido lgico e potico do
vernculo. A correo, ademais, soa como enunciado pedante, afe-
tado, divorciado de seu contexto geopoltico. Amadeu Amaral co-
menta que foi o que criou aos paulistas, h j bastante tempo, a fama
de corromperem o vernculo com muitos e feios vcios de lingua-
gem. Relata esse estudioso do caipirismo que quando se tratou, no
Senado do Imprio, de criar os cursos jurdicos no Brasil, tendo-se
proposto So Paulo para sede de um deles, houve quem alegasse

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contra isto o linguajar dos naturais, que inconvenientemente conta-


minaria os futuros bacharis, oriundos de diferentes circunscries
do pas...40
***
Retornando s consideraes sobre Nova Londrina, a respeito da
modificao to evidente (treis par de Frana), isto se explica pela
prpria sucesso da oralidade, na vagareza do tempo. Os nmeros se
perderam porque no foram registrados em livros; encontram-se
pulverizados em informaes e circunstncias difusas na memria
popular. No caso em tela, portanto, o episdio do imaginrio
carolngio passou a ser objeto adquirido da literatura e, deste modo,
vivo e histrico. Porm, como comum, a memria coletiva, a im-
provisao popular na corrente da oralidade, tende a remoar os acon-
tecimentos reais ou imaginrios, transformando-os de verdicos his-
tricos em verdicos artsticos. Esclarece Arnold Hauser, abordando
o mesmo assunto sob a ptica sincrnica da pica medieval, que a
ltima interpretao no , necessariamente, a mais arguta; mas toda
a tentativa sria para interpretar um trabalho sob o ponto de vista de
um presente vivo aprofunda e alarga o seu significado. Todas as teo-
rias que nos mostram a poesia pica de um ponto de vista novo e
historicamente vlido so teis, porque nos interessa, mais do que a
verdade histrica com o que realmente aconteceu, conseguir uma
aproximao direta e nova do assunto.41
O assunto de que estamos tratando um enredo que repercute
no tempo, e se enleia s situaes hodiernas em Nova Londrina. Em
colquio com Rubens Vieira Marques (1926-), o Vieira, da dupla
Vieira e Vieirinha, gravada em l6.set.1994, o artista explica que
As moda que nis canta tm muito de romance, de ima-
ginao, mas tm muito de verdico, porque o povo com-
prova as histria. Moda-de-viola ansim: tem muito de
verdade e tem muito de mentira. que nem um filme de
cinema. Tem gente muito antiga que ouviu fal e at co-
nheceu os tris par de Frana, que era um bando persegui-
do pela capitura e que vivia na regio de Maring (que nem
enxistia naquela poca). O Rordo era um caboclo muito

AMARAL, Amadeu. Dialeto Caipira, p. 41.


40

HAUSER, Arnold. Histria Social da Literatura e da Arte - I, de p. 228.


41

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valente que ajudava os pobre e pertencia ao bando. Diz


que ele nunca cheg a s preso, porque era protegido pelo
prprio delegado da capitura. Quando nis foi pra So
Paulo, eu com o Vieirinha, nis cantava Nova Londrina.
Cantava ela muito comprida, tinha muitos verso [estro-
fes]. Ento o Serrinha e o Teddy Vieira peg a letra, que
achava muito bonita, e reduziu ela pa que cabesse dentro
do disco. Ento fic aqueles verso que c conhece. O que
eu vejo fal do Rordo, no Paran, que foi um home
bo, por um lado, mas perigoso, muito matad e muito
brabo. Os tris par de Frana era tambm muito brabo.
Rordo, eu num sei de que idade ele , mas deve s muito
vio, n? S os antigo conheceu ele. E enxistiu, sim se-
nhor. Enxistiu o Rordo e os par de Frana tambm, l
no Norte do Paran. a mesma coisa que Lampio, que
nis conhece do nosso tempo. O Rordo e os par de
Frana que nem o Lampio e os cangacero...
Em Nova Londrina enxistia muito grilo de terra, grilage
da terra que era muito boa, terra roxa... Ento o personage
da moda abanc o Rordo, pra acab com a grilage de
terra, e proteg coitadinho que j vivia na terra perseguido
pelos jaguno dos fazendero. O Rordo era do lado bo,
como eu falei. O Teddy era tenente do Exrcito, e conhecia
essas histria em livro. Decerto enxistia essas histria ar-
quivada l no Exrcito. Ento porque era verdade no
Paran e porque era verdade nos livro, da nasceu a moda
Nova Londrina, que nis gravemo e foi sucesso.42
So palavras verdadeiras? Respondo que sim, num dos sentidos
difusos e plausveis de verdade, relativizados pelo tempo, como for-
tuna admitida pelo imaginrio e consenso coletivo. Verdade jurada,
pois a verso torna-se acontecimento, valendo mesmo mais que este.
Extingue-se, por assim dizer, a verdade pontual relatada por um indi-
vduo, ao enlear-se e energizar-se de sentidos, na imaginao criativa
comunal, sempre posseira de um contexto histrico vivo. De qual-
quer modo, havendo como no h dvida de que haja, um mecanis-
42
Coletei seis horas de gravaes com Vieira, entre os anos de 1994 e 1995.
Esse artista, de vasto preparo e com uma carreira de mais de 50 anos, configu-
ra-se como nosso principal informante de situaes reais e imaginrias do
mundo caipira.

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mo de indefinio no processo de referencialidade, a aluso aos treis


par de Frana suscita muito mais um apelo imaginao que propri-
amente a lembrana de uma situao palpvel da experincia. Mais ou
menos nessa linha, Northrop Frye lana mo da noo de mundo
hipottico. No correr desse pensamento, Paul Ricoer escreve que a
hiptese potica a proposio de um mundo sob o modo imaginati-
vo, fictcio. Assim, a suspenso da referncia real a condio de aces-
so referncia sobre o modo virtual. Mas o que a vida virtual?
Poder existir uma vida virtual sem um mundo virtual no qual seria
possvel habitar? No ser funo da poesia suscitar um outro mun-
do um outro que corresponde a possibilidades outras de existir, a
possibilidades que sejam os nossos mais prprios possveis? 43
Na poesia, a palavra se propaga entre as palavras, e constri um
mundo de palavras, diferente do mundo das coisas. O mundo de
palavras existe para significar. E significa, se for realmente um mun-
do, ou seja, a poesia. A proposio dos autores Teddy Vieira e Serrinha
tem muito mais de afetivamente evocativo que de referencial e suscita
a especulao e divagao sonhadora. Realiza-se uma definio aceita,
mas conceitualmente indefinida, um jogo no qual concorrem muito
mais as matrias significantes dos signos, deixando aos receptores
uma brecha para o vo imaginativo to caracterstico da obra aberta de
que trata Umberto Eco.
No primitivismo da Moda Caipira h uma polivalncia funcional
que, ao mesmo tempo, se aproxima do designatum a coisa ou situa-
o referidas , d-lhes uma amplitude de sentidos, uma
transcendncia que ultrapassa a realidade tangvel, situada e datada.
Os horizontes de sentido da obra, embora correlatos, nunca so
idnticos realidade bruta. H um deslocamento do prosaico para o
potico; passa-se do denotativo para co-notativo. Deste modo, trata-se
de uma poesia duplamente positiva j que, sem infringir o cdigo
corrente, ela o repe numa dimenso superior. Esclarece o erudito
italiano que quem comunicar conforme tal inteno sabe tambm
que o halo conotativo de um ouvinte no ser igual ao de outros
eventualmente presentes; mas, tendo-os escolhido em idnticas con-
dies psicolgicas e culturais, pretende justamente organizar uma
comunicao de efeito indefinido delimitado porm por aquilo que

RICOER, Paul. A Metfora Viva, p. 341-2.


43

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podemos chamar de campo de sugestividade.44 Neste sentido, o audit-


rio seria o interlocutor abstrato regenerado e latente na conscincia do
autor, no processo da concepo do texto. Este abstrato porque se
realiza no horizonte da cultura. Possui um nvel de significao que
est para alm da superfcie aparente dos significados. Essa proposta
com funo sugestiva abre campo, por assim dizer, ao fator significante
da poesia, carreando ingredientes de transio da unicidade referencial
para a poeticidade da mensagem. Trata-se de um procedimento mui-
to sutil e ilustrativo de como funciona o modo conotativo no linguajar
da Moda Caipira de razes, modo esse que nunca dispensa, a partir do
princpio literarizante do texto, a participao co-produtiva desse ou-
vinte abstrato. Isto se d pela passagem do unvoco para o plural, do
individual para o plenrio, do datado e circunstancial para o potico.
A respeito de ocorrncia anloga, ensina Menndez Pidal: a poetizao
individual, sempre agitada, sempre revolta entre a multiplicidade de
acidentes particulares e efmeros prprios do momento atual, se de-
canta lmpida e pura sob a ao sedimentadora da tradio. Qualquer
desejo de novidade se extingue. O poeta inicial e os refundidores
sucessivos se desvanecem; todo personalismo autoral desaparece
submerso na coletividade.45 O que vale a imaginao que se agrega
ao saber comum, correndo de boca em boca, afortunado pela lapidao
do tempo. Esse, como se pode constatar, um dos pontos essenciais
do rito de transio da realidade histrica, quer dizer, daquilo que
assim mesmo, em realidade artstica. A imaginao interpola-se reali-
dade. Jerusa Pires Ferreira, ao enfocar esses lapsos referencializantes,
como os que ocorrem em Nova Londrina, to naturais e freqentes, e
que deslizam para o mundo literrio das palavras, escreve que se a
poesia popular memria e recriao, lembrana intensa e permanen-
te de matrizes arcaicas que se rearranjam, agrupam e recriam em pro-
cessos contnuos, cresce de importncia a avaliao do fenmeno: a
falha de memria.46 No entanto ela aceita, prazerosa e funcional-
mente, na escritura popular.
***

44
ECO, Umberto. Obra Aberta, p. 78.
45
Romancero Hispnico (Hispano-Portugus, Americano y Sefard) - I, p. 61.
46
FERREIRA, Jerusa Pires. Armadilhas da Memria (Conto e Poesia Popular), p.38.

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Em pginas precedentes deixei consignada indagao sobre


como obras literrias famosas, por terem cado no gosto popular,
se transformaram em fontes temticas da Literatura Popular. Tais
narrativas, lidas geralmente em voz alta, convertem-se em fbulas a
serem contadas oralmente, como se fossem causos vvidos ou
provindos de motivaes acontecidas. Ancoram-se em fatos e situ-
aes acontecidos ou se referem a lugares existentes para proporcio-
nar efeitos de realidade. Por isto, adaptam-se ou se ajuntam aos con-
tedos imaginrios e tangveis, e se sedimentam no verdico. Reali-
zam o percurso de passagem do signo escrito em signo de dico
oral, muito freqente, e que se equaciona em mximas do tipo
conta-me um conto. De fato, at pelas condies de dificuldades
de acesso ao livro, pela pouca familiaridade com as letras, o prazer
do texto tipografado reivindica a volta ao estgio de oralidade, in-
terpondo entre o signo escrito e o auditrio a decisiva participao
recreativa e re-criativa do intrprete, considerado num primeiro es-
tgio o escritor de modas (no pertencimento caipira, a grande mai-
oria das modas vem assinada por uma dupla de autores); num
segundo, o porta-voz do poeta popular, que canta viva voz, com
suas teatralizaes de miragens, relaes interativas e co-produtivas
com a assistncia. Esse emissor de mensagens ser comumente
referido por o violeiro-cantador, o modista ou o cantador: aquele que
anda com inteno sonhosa na cabea. ele que, deixando de lado
o nome de batismo e sua histria de vida privada, assume a mscara
e encarna de corpo e alma a criatura projetada de sua existncia: o
dolo, no resplendor.
***
necessrio entender que o processo de concepo literria asso-
cia-se criao de imagens visuais, alm de provocar correlaes com
experincias concretas. Os jesutas tinham plena conscincia desse fato,
ao se relacionar com populaes iletradas. Trata-se de experincia ad-
quirida que remonta h sculos: os afrescos das igrejas medievais, as
ilustraes dentro dos textos, a oralidade dos sermes eram agentes
de transmisso entre a igreja e seus fiis. Alm dos aspectos ldicos e
artsticos dos atos de recitar e cantar, no difcil entender por que os
jesutas usaram as formas do Romanceiro tradicional como estratgia
de evangelizao.

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Difundido no devocionrio dos jesutas (que chegaram ao Bra-


sil em 1549), o Romanceiro tradicional est na origem dos princi-
pais afluentes de modas caipiras. A Moda-de-viola que, por sua
fabulao novelesca e legendria, autnticas xcaras, mais
homologia apresenta com o Romanceiro. cantada capela e, ao
mesmo tempo, com duas violas, uma ponteada e outra batida.
Durante as estrofes, e marcando o ritmo, a melodia perseguida
pela ornamentao ponteada das cordas mais finas e agudas, difi-
cilmente audveis nas gravaes antigas. O acompanhamento ins-
trumental se evidencia no intervalo entre as estrofes, funcionando
como elemento de suspense e anti-clmax, despertando o interes-
sa pelo porvir lrico-narrativo da estrofe seguinte. O cururu e o
cateret os mais primitivos dos sons caipiras so amlgamas,
mediaes e adaptaes de danas e cantares amerndios. Embora
os europeus pensassem que europeizavam os indgenas e africa-
nos de pele negra, aqueles que se aindiavam, se africanizavam...
se brasilizavam. Nesse sentido, o cururu e o cateret tomaram a
feio dos solenes autos religiosos e rituais de f europeus, com
acompanhamentos da viola, cantos e danas autctones e
primitivistas. Couto de Magalhes, em 1876, registra que o
paulista, o mineiro, o rio-grandense de hoje cantam nas toadas
em que cantavam os selvagens de h quinhentos anos e em que
ainda hoje cantam os que vagam pelas campinas do interior. 47
De fato, esses cantares persistem at hoje em algumas regies, at
como forma de resistncia e fortalecimento da vida caipira. Nas
zonas rurais, como as da regio piracicabana e do pantanal mato-
grossense, o Cururu cantado em carreira, ou seja, com apenas
uma rima, puxada por um cururueiro ou cantorio repentista, que
enxerga e interage com o tocador de viola. Nh Serra e Zico Moreira,
de Piracicaba, so exemplos desses cururueiros persistentes. Alm
dos tradicionais temas religiosos, h os urbanos e os circunstanci-
ais ou encontrados, abstrados na correlao momentnea e interativa
da cantoria. A platia aplaude a cada estrofe reconhecendo-se refle-
tida nas estrofes. O Recorte ou Recortado Mineiro, de ascendncia
amerndia e traos de msica africana, base fundamental do Catira
(de catiret < cateret), com seu repicado de violas entrecortado

MAGALHES, Couto de. O Selvagem, p. 90.


47

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por palmas, sapateados e a coreografia dos intrpretes. Por ele ser


seccionado pela dana, as estrofes do recortado quase sempre tm
motivaes prprias, guiadas pelo fio tnue de um mote ou o
motivo principal que unifica o todo. A Toada, mais melodiosa e
lnguida, caracteriza-se como espcie catalisadora do caudal de can-
tares tradicionais brasileiros. Com sua riqueza polimorfa e
assimetria versal e estrfica, num estilo retrico-expositivo, so
toadas algumas das mais queridas modas caipiras gravadas em dis-
co nas vrias pocas. As mais famosas toadas caipiras se dividem
em dois tempos lrico-narrativos: uma introduo declamada e
um desenvolvimento cantado. Esses tempos podem ter
metrificaes e estrofaes prprias. O Pagode de Viola, afluente
recente e ladino, enxerto repicado e trepidante do Recortado
Mineiro com o Catira, admirvel pelos ornamentos veementes e
sensacionais da viola, tendo os toques de violo no contratempo.
Realizado quase sempre com a exuberncia das antigas Cantigas de
Meestria48 , possui uma estrutura poemtica fincada no preceito
artstico da associao de idias, em que uma coisa puxa a outra,
das construes anafricas (repeties das mesmas estruturas), da
polifonia das correlaes internas no interior dos versos e estro-
fes. Sem enredo narrativo e puxadas pelo fio tnue de um mote
que lhe propicia o contexto (como no vilancete medieval), as es-
trofes do Pagode de Viola tm motivaes que sobrevivem no
interior delas mesmas, e se articulam entre si formando uma se-
qncia elptica, fragmentria, prevalecendo a motivao temtica
predominante o mote.
Exceto alguns gneros menos ocorrentes e sobretudo o Pago-
de de Viola, a Moda Caipira, de acordo com o modelo tradicional
vigente nas camadas pobres dos grupos rurais, ou deles provin-
dos, baseia-se num encadeamento lrico-narrativo que lhe confere
uma espcie de legalidade interna: o tema se desenvolve de acor-
do com o padro de enredo na linha do princpio, desenvolvi-
mento e desfecho. primitivista, crua e direta e, no caudal do

48
As Cantigas Medievais de Meestria so composies poemticas de sete versos
em cada estrofe. Usamos o designativo na acepo tambm usual de compo-
sio de mestre, isto , muito requintadas do ponto de vista tcnico e, por
isto, muito difceis em suas elaboraes.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

romance antigo, narra literariamente o acontecido, conta uma his-


tria.
***
Pesquisa realizada por Osvaldo Lus Barison49 revela as dez prin-
cipais modas caipiras gravadas em disco, na opinio das populaes
geralmente interioranas do Sudeste e Centro-Oeste brasileiro. So
elas, em ordem de preferncia: Menino da Porteira (Cururu - Teddy
Vieira-Luizinho), Cabocla Teresa (Toada histrica - Raul Torres-Joo
Pacfico), Chico Mineiro (Toada - Tinoco-Francisco Ribeiro), Chico Mu-
lato (Toada histrica - Torres-Pacfico), Canoeiro (Cururu - Alocim-Z
Carreiro), Boi Soberano (Moda-de-Viola - Carreirinho-Izaltino de Paula),
Pagode em Braslia (Pagode de Viola - Teddy Vieira-Lourival dos San-
tos), Pingo Dgua (Toada - Torres-Pacfico), Mgoa de Boiadeiro (Toada
- Non Baslio-ndio Vago) e Ferreirinha (Moda-de-Viola -
Carreirinho).
So pioneiros da Moda Caipira em disco os artistas: Bico Doce
(pseudnimo de Raul Torres [Raul Montes Torres, Botucatu SP,
1906-1970]), Caipirada Barretense, Mariano e Caula, Olegrio e
Loureno, Maracaj (pseudnimo de Roque Ricciardi [1874-1976],
que o Paraguau) e os Bandeirantes, Alvarenga e Ranchinho,
Folies do Z Messias, Paraguau e Sebastiozinho e prprio
Cornlio Pires lanados em trs anos, a partir de 1929, nos 52
discos de 78 rotaes da Turma Cornlio Pires, e gravados na
Columbia , e Torres e Florncio, Zico Dias e Ferrinho, Serrinha e
Caboclinho que, no eito de sucesso de Pires, formaram a Turma
Caipira Victor.

Moda Caipira: Cantador, Universo, Mediaes e Participao Emotiva. Dissertao


49

de Mestrado [orientador: Romildo SantAnna], 1994.

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ROMILDO SANTANNA

Ilustrao n .3 Jorginho do Serto, de Cornlio Pires, primeira moda-de-


viola gravada, em outubro de 1929. Disco n 20006/B (srie Regional
numerada a partir do nmero 20000, tiragem independente realizada sob
o patrocnio do autor). No lado A registram-se Como cantam algumas aves,
imitaes de aves. Original gentilmente cedido pelo historiador Agostinho
Brandi, So Jos do Rio Preto.

***
Alm do campo reconhecido como poesia sria, a Moda Caipi-
ra registra tambm as Cantigas de Patacoadas, ou de chacotas, as quais,
pelo tom anedtico, instigante e descabido, fazem muito o gosto da
cidade e do campo. Um dos principais autores desse gnero tradicio-
nal Raul Torres, como se observa nas seguintes passagens de Festa
da Bicharada (1936), em parceria com o poeta Joo Pacfico (Joo
Baptista da Silva, Cordeirpolis-SP, 1909-1998), e Futebol dos Bichos
(1933):

FESTA DA BICHARADA
moda-de-viola

Raul Torres e Joo Pacfico

Fui dan coa bicharada


Passei meio apertado,
A ona tinha uma filha
Delicada de feio.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

No dia do casamento
Fizero grande reunio,
E pra no mistur raa
Fez cas com primo-irmo...

(Torres e Pacfico, Revivendo, 1994.)

FUTEBOL DOS BICHOS


cateret

Raul Torres

O jogo do futebol
um jogo muito falado,
um jogo muito bonito
E bastante admirado.
L no bairro adonde eu moro
Pois formaro um combinado:
O time do Quebra-Dedo
Com o time do P-rapado.

O time do Quebra-Dedo
Tava bem reforado:
Tatu jogava no gol,
Beque de espera, o Leo,
O Sapo, beque de avano,
Halfo-esquerdo era o pre,
Center-halfo era o viado,
Halfo-direito, o gamb...

(Torres e seu Conjunto, Revivendo, 1994.)

A viso reflexa do caipira, fazendo troas e chalaas com o viver na


capital, segundo anunciado antes dos primeiros acordes da viola, j
se encontra numa das primeiras modas-de-viola gravadas. Trata-se de
Bonde Camaro, disco de selo vermelho n 20015, gravao realizada
em 1929 na Columbia do Brasil (Byington & Company) pelos ir-
mos Mariano da Silva e Rubens da Silva, a dupla Mariano e Caula.
Esta a primeira estrofe:

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BONDE CAMARO
moda-de-viola

Cornlio Pires / Mariano da Silva

Aqui em So Paulo
O que mais me amola
esses bonde que nem gaiola,
Cheguei, abriro uma portinhola,
Levei um tranco e quebrei a viola!
Inda puis dinhero na caxa da esmola!

(Mariano e Caula. Nova Histria da Msica


Popular Brasileira, 1978.)

As Cantigas de Patacoadas, ainda que com um certo


histrionismo, revelam uma aproximao com a stira literria de
todas as pocas e, em especial, com o lado cmico, satrico e maluco
de romnticos como Laurindo Rabelo, Bernardo Guimares e l-
vares de Azevedo50 e, no decnio de 1920, o caipirismo macarrnico
e jornalstico de Ju Bananre (Alexandre Ribeiro Marcondes Ma-
chado, 1892-1933). O tom jocoso e burlesco de suas letras muitas
vezes se exprime atravs da pardia. Os personagens so desenha-
dos de modo a aproxim-los da representao plstica da caricatu-
ra jornalstica. Obras satricas, promovem a antropoformizao do
bicho e a zooformizao do personagem. Muito freqentes os ape-
los zoomrficos, no raro fazem aluses a indivduos e instituies
de grande visibilidade social em suas pocas, principalmente as d-
cadas de 1930 a 1960. Tambm de modo satrico, os cimes, as
intrigas, os diz-que-diz-que dos polticos e seus atos so transfor-
mados em balelas e gozaes. Contam com imediata e plenria
aprovao dos ouvintes, num sonho de insurreio e culto vindita
aos estratos sociais e institucionais superiores. Como usual na
stira e nos processos fabulares estou pensando na Fbula como
gnero , lanam-se para dentro do texto elementos humanos e
situacionais extrados da realidade, tais como eles pontificam, in

Ver sobre o assunto o ensaio Dialtica da Malandragem de Antnio Cndi-


50

do, In: ____. O Discurso e a Cidade, p. 18-54.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

natura, no contexto vigente. Para interpret-los, no ambiente


caricatural dos versos, necessrio situ-los na circunstncia prtica
da histria. So expoentes desse gnero humorstico na Moda Cai-
pira, nos shows ao vivo, no rdio e no disco, as duplas Jararaca e
Ratinho, formada em 1927 (Jos Lus Rodrigues Calazans, o Jararaca
- Macei, 1896-1977, e Severino Rangel de Carvalho, o Ratinho -
Itabaiana-PB, 1896-1972) e Alvarenga e Ranchinho, formada em
1929 (Murillo Alvarenga - Itana-MG, 1912-1978, e Dize dos An-
jos Gaia, o Ranchinho - Jacare-SP, 1913-1991).
Esse tom bem-humorado vamos encontrar nas primeiras mo-
das gravadas em disco. Em Jorginho do Serto (1929), de Cornlio
Pires, moda-de-viola que recebeu o nmero 20006-B da Srie Regio-
nal Cornlio Pires, a primeira quadrinha j prenuncia o anedtico de
todo seu contexto: O Jorginho do Serto, / Rapazinho de talento,
Numa carpa de caf / Enjeitou trs casamento. Sobrepassando os
tempos, Na Moda da Pinga em gravao de 1953 de Inesita Barro-
so, o registro vocabular segue o tom jocoso e de magnfica alu-
so plstica:

MODA DA PINGA
moda-de-viola

Ochlsis Aguiar Laureano / Raul Torres


com estrofes de Paulo Vanzolini
(tambm reivindicada por Mariano, Non Baslio)

Com a marvada pinga que eu atrapaio,


Eu entro na venda e j d meu taio,
Eu pego no copo e dali no saio,
Ali mesmo eu bebo, ali mesmo eu caio.
S pra carreg que eu d trabaio, oi, l.

Venho da cidade, j venho cantano,


Trago um garrafo, que venho chupano,
Venho pros caminho, venho trupicano,
Chifrano os barranco, venho cambeteano.
E no lugar que eu caio, j fico roncano, oi, l.
Cada vez que eu caio, caio deferente,
Meao p trs e caio pra frente,

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ROMILDO SANTANNA

Caio devagar, caio de repente,


V de rodopio, v deretamente.
Mas sendo de pinga, eu caio contente, oi, l.

Pego o garrafo e j balanceio,


Que pra mor de ver se t mesmo cheio,
No bebo de vez porque acho feio,
No primeiro gole chego int no meio.
No segundo trago que desfazeio, oi, l...

***
A Moda Caipira de razes a arte do 78rpm, o velho disco pesa-
do e quebrvel de 78 rotaes por minuto. Explico: escrevo que tal
dupla gravou xis nmero de LPs. Por exemplo, a dupla Pedro Ben-
to e Z da Estrada (Joel Antunes Leme, Porto Feliz-SP, 1934- e
Waldomiro de Oliveira, Botucatu-SP, 1930-) gravou mais de cem
LPs em quarenta anos de carreira. Esse nmero altssimo, na mdia
anual, se explica pelas compilaes dos 78rpm em LPs. Diferente-
mente de hoje, nas dcadas iniciais do disco os artistas tinham que
ser grandes dolos nas apresentaes ao vivo, nos shows, nos circos e
rdios,51 para terem acesso a gravaes. Quando eram aceitos na
gravadora, j possuam elevado nmero de sucessos no repertrio.
Vieira e Vieirinha, por exemplo, quando lhes abriram as portas para
o disco, em 1952, j eram idolatrados em vrios programas de rdio
e, em 1950, animaram os comcios de Getlio Vargas na campanha
Presidncia da Repblica. Na estria em disco, gravaram quatro
78rpm em um s dia. Com a oportunidade das gravaes, o que as
duplas faziam era registrar o sucesso tal como era apresentado ao
vivo e testado na repercusso popular. Este fato leva a trs conclu-
ses fundamentais:
a) A moda composta e gravada em disco possui ares e
artimanhas formais e interpretativos da execuo ao vivo;

51
A primeira emissora de rdio de So Paulo foi a Educadora Paulista, inaugurada
em 1923. No ano seguinte surgiu a Clube de So Paulo e, em 1927, a Rdio Cruzeiro
do Sul. Foram redatores dessas emissoras alguns poetas do Modernismo de 1922,
como Menotti del Picchia e Guilherme de Almeida, que valorizaram em
significativo espao da programao o regionalismo da Moda Caipira.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

b) Os idos 1940 so o celeiro de sucessos da Moda Caipira


at hoje;
c) A era do long-playing, a partir de 1951 no Brasil, simu-
lacro do disco em 78rpm: ou so transposies
remasterizadas, no novo formato, das gravaes originais,
ou regravaes da mesma moda.
por isto que no primitivismo da Moda Caipira de razes o
acompanhamento de orquestra ou de instrumentos eletrnico soa
como se ela estivesse ornada de uma maquiagem falsa. No disco,
e sem prescindir da viola, a dupla se afina melhor com os instru-
mentos acsticos, como nas apresentaes ao vivo. por isto que
as velhas duplas, ainda hoje e em eleps, gravam cinco ou seis
msicas novas, e o restante das doze ou catorze faixas so modas
antigas; por isto tambm que difcil encontrarmos o sucesso
exclusivo de tal dupla de violeiros. Como o disco simulacro da
peformance interativa e potencializada com os ouvintes, as duplas
incluam muitas das mesmas modas em seus shows ou apresenta-
es radiofnicas. Em resultado, grandes sucessos como Ferreirinha,
Canoeiro, Rei do Gado, Heri sem Medalha, Menino da Porteira, Boi
Soberano... foram gravados por vrias duplas que apareceram entre
1940 e 1950. Nos finais de 1980, com o aparecimento do CD
(Compact Disc Digital Audio), repete-se o mesmo ciclo. No final
de 1990 foram lanados onze CDs Dose Dupla (com dois eleps
cada) de Tio Carreiro e Pardinho, mais outros trs da srie Som
da Terra, todos pela gravadora Chantecler/Warner Music Brasil.
So ramasterizaes de eleps que, por sua vez, foram em boa
parte ou regravaes ou cpias de 78rpm de sucesso. Dona Nair
Avano Dias, viva de Tio Carreiro, relatou-me que nunca o
Tio vendeu tanto como agora. E no porque ele morreu e d
sensao de perda, mas porque o povo est valorizando mais a
moda caipira. Desta constatao conclui-se: a Moda Caipira de
razes, com suas palavras estropiadas e to serto, no sai de
moda, no se exaure facilmente com o tempo, constituindo-se
talvez, em seu conjunto, no maior fenmeno da mdia em discos,
e com mais longevidade, na fortuna chamada Msica Popular Bra-
sileira. rarssimo no Brasil um artista que, vivo ou ido, brasileiro
ou estrangeiro, tenha lanado catorze CDs, no perodo de vinte e
quatro meses, como o caso do fenmeno Tio Carreiro e

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Pardinho. Na voz desses artistas se compendia outro romanceiro;


reverberam velhos e inusitados e renovados romances.

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2. CULTURA DE RAZES E ETNOTEXTO

Fazendo uma digresso conveniente a este estudo, quero menci-


onar alguns trechos de Vaz de Caminha, na Carta 52 :
...E [Diogo Dias] levou consigo um gaiteiro com sua
gaita. E meteu-se a danar com eles [os indgenas], to-
mando-os pelas mos; e eles folgavam e riam, e anda-
vam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de
danarem fez-lhes ali muitas voltas ligeiras, andando no
cho, e salto real, de que se eles espantavam e riam e
folgavam muito. E conquanto com aquilo os segurou e
afagou muito, tomavam logo uma esquiveza como
monteses, e foram-se para cima... Nesse dia enquanto
andavam, danaram e bailaram sempre com os nossos,
ao som de um tamboril nosso, como se fossem mais
amigos nossos do que ns seus. (...) E, portanto, se os
degredados que aqui ho de ficar, aprenderem bem a sua
fala e os entenderem, no duvido que eles, segundo a
santa teno de Vossa Alteza, se faro cristos e ho de
crer na santa f, qual praza a Nosso Senhor que os
traga, porque certamente, esta gente boa e de bela sim-
plicidade.

Certamente a mais singela de quantas tenham sido produ-


zidas pela literatura ultramarina portuguesa da poca, sendo

52
Carta a El-Rei D. Manuel, escrita do porto seguro de Vera Cruz, com
data de l. de maio de 1500, em linguagem atualizada por Carolina Michalis
de Vasconcelos. In: CALMON, Pedro. Histria do Brasil - I, p. 64-83.

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emblematicamente uma das mais visionrias e enternecedoras de nos-


sa literatura epistolar, a especulao sobre os dizeres da Carta pode
ser ponto de partida para reflexes essenciais sobre a formao
etnolgica e cultural do pas. Mesmo usando o paradigma difuso de
uma concepo existencial ibrica, no ltimo ano do Sculo XV, para
anotar e interpretar a exuberncia do tudo novo do Novo Mundo
cabralino que despontava aos olhos navegantes e invasores, h que
reconhecer na Carta que, de suas observaes, nascia algo de excepcio-
nal para civilizao: portugueses invasores e ndios hospitaleiros se
davam as mos para danar, cirandando, mais pela pureza latente dos
nativos que pela predisposio lusa. Leve-se em conta que desembar-
cava em Vera Cruz um contingente de homens sisudos,
empanturrados de sombras medievais, de zangas seculares e, abrasa-
dos pela cobia, traziam as tenses provocadas pela imposio do
modelo burgus renascentista. Essa turba invasora e aventureira no
tinha outro objetivo j que no viam a cobiada pimenta das ndias
seno garimpar em cada arredor, com os olhos vidos, por um
tronco de brasil, uma pepita de ouro ou outra colheita que permitisse
enriquecer e colorir depsitos, algibeiras e bas. Ao mesmo tempo l
estava, em porto seguro, a gaitinha de fole alde, o tamboril dos
bailes de aldeia, a animarem a aspereza da saudade, num danar sem
enfeites, sem regras e sem mesuras, como se alguma coisa nova esti-
vesse nascendo, ou ento to antiga, to ancestral como o Mito da
soltura de viver.
Relata o beato Jos de Anchieta, em 1584, como resultado de
sua peregrinao religiosa-cultural, que os curumins das casas de
ensino baianas j faziam suas danas portuguesa, com tamboris
e violas [dou nfase viola], com muita graa, como se fossem
meninos portugueses. 53 Escreve Fernando Azevedo, citando
Humberto Campos que o portugus jovial, festeiro, comunicati-
vo; provam-no a alegria de seus vilarejos, e os seus folguedos cam-
pestres em que predominam os bailados nacionais. E o nosso n-
dio no o era menos. As suas festas eram barulhentas, tumultuo-
sas, e duravam dias, s vezes, semanas. Quanto ao fato de o ind-
gena brasileiro ser taciturno continua Azevedo, com grande pene-

53
Apud. TINHORO, Jos Ramos. Os Sons Negros no Brasil, p. 26-7.

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trao analtica: ser taciturno no ser triste. A taciturnidade uma


das caractersticas dos povos caadores e torna-se um hbito pelas
exigncias da ocupao. O silncio e a quietao no significam as-
sim, tristeza pedregosa, que s pode vir do desgosto da vida. Os
nossos silvcolas viviam satisfeitos de sua condio. E consideran-
do-se instintivamente felizes, viviam alegres, mesmo porque triste-
za, como ns a definimos, s pode nascer de um confronto de
destinos, e da certeza de inferioridade, tirada desse confronto.54
Menos de um decnio aps o descobrimento, e devido ao fato de
que os primeiros africanos escravos aqui aportaram nas matulas
dos portugueses em geral com o apoio teolgico da Igreja Cat-
lica, que considerava a escravido negra compatvel com seus
ensinamentos , vingava o confronto de destinos, nascia a
mestiagem da velha cultura, em tempos vidos, mercantilistas, com
etnias e modos de organizao vivencial em estado de graa, marca-
dos pelo primarismo das relaes antropolgicas amerndias e afri-
canas, primarismo de gente boa e de bela simplicidade, como
observara Pero Vaz de Caminha. Em pouco tempo, os bailados de
aldeia do Norte de Portugal, de onde vieram a maior parte dos
navegantes, se contagiaram de uma coreografia nativa, aborgine, de
gingados personalizando animais e pssaros e a cosmogonia da
terra brasileira, e de balancs e bamboleios do litoral e interiores de
florestas africanas. E a prolao de um ritmo quaternrio de respira-
es coletivas amerndias e negras se transforma em versos
contagiantes, nas adaptaes batida alde tradicional do recitar
ibrico. Desse entremeio de raas e lnguas e modos de ser peculia-
res, parece que a prpria Poesia retorna a seus alvores, derivada da
dana e do canto, e do farnel mais corriqueiro e singelo. Das expres-
ses do corpo, surge o Verso, como notao de uma comoo bem
simples, captada de relaes com o Novo Mundo, mais enlevadas
que precavidas. Mais que uma amargura contingencial pela imposi-
o de outra geografia, com ares de desero e com implicaes no
biorritmo das estaes do ano, no depauperamento das condies
vitais e na mudana radical das referncias laborais, h que conside-
rar aspectos mais profundos, e no menos contundentes, que espe-

54
AZEVEDO, Fernando. A Cultura Brasileira - I Os Fatores da Cultura,
p.193.

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tam e sangram a identidade do ser e sua manifestao existencial,


seu novo ethos, marcado pela brutalidade da dissociao dos vncu-
los de origem. Indgenas e africanos de pele preta, por um lado, e
portugueses aventureiros e conquistadores, clericais e degredados,
por outro, ainda que estes hierarquicamente superiores no contrato
de comando, faziam parte de comunidades estruturadas, com esta-
bilidade rtmica da vida, sedimentadas em seus sistemas vivenciais
e de representao do mundo. Nas paragens do Novo Continente,
esfacelam-se as fortunas de saberes, costumes e crenas relacionados
com a magia e com as tradies, que permitem que o esprito se
desenvolva de maneira estruturada. Em seqncia, promove-se uma
desordem psicossocial fulminante, pelo esfacelamento dos hori-
zontes tribais e provincianos, o estilhaar dos afetos contnuos e os
desvios de papis que o indivduo desempenhava na sua tribo de
origem. Lusitanos se indianizaram e, deserdados da escrita, reco-
mearam o mundo na base do aprender-fazendo. Escutemos uns ver-
sos tupis, reparando-se na bela dimenso transcendente de suas
imagens:

Scha mann ruma curi


Tejerru iaschi.
Aiqu Caracara-i
Serapir aramu curi.

Scha mann ruma curi


Ce nombore ca puterpi
Aiqu Tatu memboa
Ce jutma aramu curi.

Traduo de Norberto Silva, da verso portuguesa verbum ad verbum


de Eduardo Laemmert:

Quando me vires sem vida,


Ah! no chore, no, por mim,
Deixa que o Caracara
Deplore meu triste fim.

Quando me vires sem vida


Atira-me selva escura,

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Que o tatu h de apressar-se


Em me dar a sepultura.55

Numa espcie de nivelamento de situaes homogneas para a


formao de um quadro nacional de valores agregados, cabe mencio-
nar que os silvcolas brasileiros ficavam em vantagem, pois, pelo menos
e resignadamente, permaneciam divagando em seu habitat, sabendo
administrar os bens da natureza. Os outros, lusos e afros, que
sofreram o estranhamento dos humores ecolgicos da nova terra e
suas novidades, e os padecimentos inerentes ao desterro. Afora isto,
os ndios eram mais ingnuos, ou melhor, mais singelos que os
negros (na maior parte dos grupos banto, sudans e guineo-sudans
islamizado) e os portugueses. Talvez por isso, essa vantagem te-
nha-se convertido em causa de aflio e conflito: serem tolhidos da
liberdade absoluta de seus estados naturais para existir na tal situao
de encadeamento pelo nivelamento. Fator de uma tristeza congnita, o
indgena suportou outros suplcios mais agudos, pois que, passada
a fase idlica dos primeiros encontros com o branco s lhe viriam
calamidades: escravido, doenas, o extermnio das tribos, a mortan-
dade, a violncia sua natureza acostumada ao ar livre e ao nomadismo.
Preado nas selvas pelos aventureiros gananciosos e inconscientes e
destinado a trabalhos rudes, para os quais nunca fizera qualquer apren-
dizado ou iniciao psicolgica, no tardaria a sofrer as conseqncias
da transplantao e da violncia a que era submetido. 56
Em 1549, com a chegada do Governador Geral Tom de Souza,
vieram para o Brasil cerca de mil e quinhentas pessoas, entre quatro-
centos criminosos condenados ao degredo, artesos, funcionrios da
Coroa portuguesa, soldados, algumas mulheres (nem todas de es-
pontnea vontade) e oito meninos rfos. A vontade espontnea
dos portugueses em vir ao Brasil deve ser enxergada com certa restri-
o j que, naquela poca, o que ambicionavam eram as terras do
Extremo Oriente, o caminho das ndias.57 Assim, diferentemente
dos povos anglo-saxes que para a Amrica vieram com famlias
razoavelmente bem ordenadas, os lusos que aqui chegaram eram

55
Apud. ROMERO, Slvio. Histria da Literatura Brasileira - I, p. 123-4.
56
MOOG,Vianna. Bandeirantes e Pioneiros, p. 83.
57
CALDEIRA, Jorge e outros.Viagem pela Histria do Brasil, p. 30.

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ROMILDO SANTANNA

quase exclusivamente homens. Lidavam com as ndias para o prazer


e a prenha, e com negras para as ligaes transitrias das mancebias,
da luxria, da lascvia e da impudncia....58 Afora os que constitu-
ram famlia estruturada, provocaram em geral o nascimento de filhos
desgarrados, aventureiros e soltos no mundo e, por serem mestios,
estrangeiros em relao aos prprios sangues que lhes deram origem.
Ao mestio coube o papel da travessia de costumes. O mameluco
original, no entanto, segundo Couto Magalhes, era excelente pela
sua energia, coragem, sobriedade, esprito de iniciativa, constncia e
resignao em sofrer trabalhos e privaes, embora herdasse da me
indgena a imprevidncia, a falta de cuidado com o dia de amanh.59
No mais possvel interpretar romanticamente os fatos de me-
ados do sculo XVI como um embate vil entre o conquistador sdico
e estuprador, de um lado, e os bons-selvagens, ndios e negros, de
outro. Embora o assunto merea agudas reflexes, mais sereno
pensar que, para as trs etnias, mundos de entendimentos consuetu-
dinrios deixaram de existir. Com o correr do tempo, e unidos pelo
conflito da anulao de seus totens simblicos, pela dessacralizao e
discrdia da vida, esses povos e culturas se entrecruzaram movidos
pelo reconhecimento, no outro, dos calvrios que identificaram a to-
dos. Assim, criou-se a identidade da resistncia pela resignao dolo-
rosa, como alternativa de sobrevivncia. A aflio e emotividade de-
correntes dessa amargura e o clima de desapego ao que lhes era mais
caros propiciaram o surgimento de relaes naturais e sobrenaturais
culturalmente hbridas, e o antepassado e o presente de cada grupo se
transformaram, por meio de uma costura dos farrapos, num ama-
nh embaado, determinado por sabenas indecisas, pr-lgicas, m-
gico-religiosas, sincrticas. O decantamento dessa situao matricial
na cultura brasileira e determinante da essncia estrutural de nossa
cultura e arte.
O linguajar estruturado dessas representaes artsticas, quer da
Poesia Popular de antiga procedncia, transmitida de boca em boca,
como o tambor das selvas, de gerao em gerao, quer da poesia
formal utilizada pelos jesutas e ilustres, quer da miscigenao de
arquiteturas, de danas e cantares, e tudo quanto for o meio utilizado

MOOG, Vianna, op. cit. p. 82


58

CASCUDO,Lus da Cmara. Dicionrio do Folclore Brasileiro, p. 463.


59

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

para representar a natureza humana, tudo se entrecruza numa espcie


de amaciamento diria Gilberto Freyre se interpenetra cultural-
mente, pela coexistncia harmnica, para fundar a realidade fenome-
nal de uma arte nacional mestia. A Arte Brasileira, filha de ninguns
como diria Darcy Ribeiro , parente de mestios pretizados,
esbranquiados e aindiados (pardos, enfim), nasce forte, resoluta,
engendrada no profundo instinto de sobrevivncia e permanncia do
ser. alicerada no filho bastardo de algum europeu, e no encontro
de mestios, a fermentar a mistura de informaes sangneas e etnias
culturais. Possui a robustez de morenos e mamelucos destemidos e
arrojados, e o enlevo de morenas e mamalucas ou caboclas sensuais e
meigas, renovados pela intersanginidade de novas raas. Dados
censitrios de 1872, embora imprecisos, do conta de que 42,18% da
populao brasileira era constituda de pardos (entendidos como mes-
tios: mamelucos, mulatos e cafuzos). Esse percentual maior, se
considerada tendncia de os quase-brancos se declararem brancos.
Da, a sucinta e superficial definio de brasileiro, dada por Luiz Melo
Rodrigues: europide, de tez morena clara, de estatura pouco supe-
rior mediana, cujos laos culturais acham-se indelevelmente presos
civilizao ocidental.60
Integraes diversificadas e diversidades integradas, isto de certo
modo a fotografia etnocultural do Brasil. Do cruzamento radical de
naes aborgines e peninsulares, no princpio, resultaram marcas de
cosmogonia, uma morfologia embrionria de encontros mticos.
Talvez a se explique o que h de temperamental e sedutor como
caractersticas luminares da arte brasileira, e no s na Literatura oral e,
especialmente, cantada. Nos primeiros decnios de colonizao, e a
partir da interveno jesutica, em que se estilhaam as normalidades
e normatividades da existncia, danas e cantos e um linguajar formal
adventcio porque identificado com os padres do dominador se
mesclam e se decantam, interferindo em hbitos motores rtmicos
concordes com as tipologias tnicas e sociais postas em co-habitao
e consanginidade. Vive da uma nova temperana rtmica, sem con-
troversos profundos. Por isto, germina um novo mundo de relaes
autnticas, porque procriadas da mais primitiva das expresses: as

60
As Etnias Brasileiras. In: AZEVEDO, Aroldo. Brasil. A Terra e o Homem - II,
p. 159.

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vozes do prprio corpo. E essa temperana se alastra pelo pas com


suas caractersticas e predilees regionais. Produz a diversidade org-
nica dos vrios recantos brasileiros, com suas cores, mimos e ritmos,
e o vozerio multiforme das prosdias. Nasce nossa arte vocacionada
para a primariedade, para a sensualidade, devido hegemonia, nas
razes, do cruzamento especial de estratos autctones sobre matizes
culturais peninsulares que, teoricamente, poderiam coloniz-los fora.
Esse primarismo radical, o sal da vida, base de uma arte eviden-
ciada por traos de especificidade que se cristalizaram. Distingue-se
como fator fundamental de nacionalidade, surpreendente, se se leva
em considerao que se engendra em uma terra nova e, portanto, com
as condies sociais de submisso ao mundo invasor, europeu, for-
mado por milenrias culturas. Tais vnculos de primarismo, base de
um encadeamento rtmico que permeia as manifestaes artsticas
brasileiras, exprime-se por um sentido de rusticidade, de espontanei-
dade, de uma condio naf, fauvista, se colocadas em confronto com
os princpios estticos do Velho Mundo, ditos clssicos ou buro-
craticamente assimilados e estatudos pelas elites brancas, integradas,
cimentadas pela escritura.
A mestiagem cultural brasileira se vislumbra pela anatomia rt-
mica de suas cores, pela montagem em banho-maria de um prisma
cultural que, de um lado, fortemente matizado pela fruio de mun-
dos tribais amerndios e africanos; de outro, expresso de uma ecolo-
gia dos trpicos, exuberante, quente e contagiante, perpassada pela
admirao europia colonizadora que, por uma identidade nostlgi-
ca, se ajunta a ela em sua genealogia. H que ter em mente que no
Brasil aportou, em sua maioria, um contingente de homens origin-
rios de classes humildes, provindos da afetividade ecossistmica e
pacata da vida em aldeias e pueblos. Ou cidados urbanos, mas de
incipiente educao formal. E que por certo sentiram na cultura em
gestao resqucios de um mundo perdido, que renascia aos olhos
peninsulares exilados. Esta a especificidade fascinante de uma an-
cestral dialtica artstica que, despida de seculares pudores e regula-
mentos e preceptivas ornamentais, concilia o vermelho, o amarelo e o
azul puros, em sua razo fsica de cores primrias, com seus interme-
dirios laranja, verde e violeta, para ornar as festas populares com
seus cantares, bailados, batuques, literaturas (e outros carnavalismos),
e, puxando as brasas, como se diz, para a nossa sardinha, o objeto

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

artstico deste Ensaio, as Modas Caipiras. Correlata a essas cores a


matria verbal de grandes escritores brasileiros, cultos-populares, como
Gonalves Dias, Machado de Assis, Lima Barreto, Mrio de Andrade,
Joo Cabral de Melo Neto, Joo Guimares Rosa, Drummond de
Andrade, Ariano Suassuna, Jorge Amado, Antnio Callado, Raquel
de Queiroz, Nlson Rodrigues, Darcy Ribeiro, Dlton Trevisan,
Paulinho da Viola, Caetano Veloso..., entre tantos. Disto se entende:
a arte ilustrada uma superao do popular, nunca uma ruptura.
Como impossvel mensurar a zona de limite entre ambas, prefe-
rvel considerar arte como arte, que tem como antnimo a no-arte.
Neste ponto, encaixa-se uma smula esttico-poemtica de Chico
Buarque sobre o sentido que permeia o amaciamento, arranjo
adaptativo e miscigenao da cultura e arte brasileira:

O meu pai era paulista,


Meu av, pernambucano,
O meu bisav, mineiro,
Meu tatarav, baiano,
Meu maestro soberano
Foi Antnio Brasileiro.

Foi Antnio Brasileiro


Quem soprou esta toada
Que cobri de redondilhas
Pra seguir minha jornada,
E com a vista enevoada
Ver o inferno e maravilhas.

(Chico Buarque, Paratodos, 1994.)

***
O campo e o domnio das artes populares se confundem at certo
ponto com o da etnografia cultural escreve Souza Barros. Assinala
o humanista que com o desenvolvimento das culturas as projees
nesse terreno vo correspondendo s alteraes e mudanas dos n-
veis culturais.61 A partir desse substrato, e da fuso de caldeamentos
crus e cozidos (diria Lvi-Strauss), e consideradas as transformaes

BARROS, Souza. Arte, Folclore e Subdesenvolvimento, p. 55.


61

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que se processam a partir das condies geogrficas, das demandas


migratrias internas e imigraes estrangeiras, nasceu um gnero cul-
tural: o caipirismo e seus domnios expressivos. Sua voz mais primi-
tiva, porque orgnica e visceral, associada do prprio corpo, se d
pela dana ou arrasta-p, se d pela oralidade do canto na atitude
funcional dos cantadores, geralmente em duplas. Neles, profunda-
mente marcados pelo vrtice do iderio feudal, pela santa teno de
tornarem [indgenas e africanos] cristos, pelo gosto espoliador dos
degredados portugueses que aqui foram deixados, pelos rigores do
classicismo burgus em expanso, expressos em sua cultura formal,
que d os primeiros passos o que veio a constituir-se na Moda Caipi-
ra, uma poesia-cano fervida com ingredientes autnticos, folclri-
cos, na especificidade do termo.
A Moda Caipira, tal como viemos a conhec-la, emptica por
natureza; nasce no calor existencial do povo. Os escritores de msicas
e os cantadores, iletrados geralmente e autodidatas em Gaia Cincia,62
lhe do forma, e a devolvem prpria identidade: o povo. Sobre o
mtodo da composio de um poeta caipira, declarou-me o cantor e
compositor Rubens Vieira Marques, o Vieira, da dupla Vieira e
Vieirinha:

Pra escrev uma moda boa, a primeira coisa que eu


fao tir trinta e duas trova, que uma moda pa grav, de
quatro verso [4 estrofes de 8 versos cada = 32]. Vai pondo
as trova tudo certinho, as rima... So trinta e duas rima.
Ento c faiz a mtrica pra cab naquelas trova. Tem que s
certinho, porque se c faiz um verso muito comprido e
outro curto, num fica certo, n? As trova tm que s tudo
certinha pra cab na moda. C pega o tema, escolhe a rima
e vai fazendo. Tem rima que no d moda. Cinza, por
enxemplo, que que c vai ach depois de cinza? Que que
voc acha pra rimar com sangue? Tem que estud as rima
certinho pra d a moda.
A pessoa aprende a fazer verso por influncia l de
cima, acho que o Deus. O Teddy Vieira chegava e dizia:

62
Conjunto de princpios que, na Idade Mdia, regiam a arte de poetar. Os
poemas medievais enfocados neste trabalho, diferentemente do que ocorre
em sculos anteriores, so tecnicamente bastante evoludos.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

eu fiz uma moda. Cad, dexa eu v. E ele dizia: eu no


escrevi ainda. Ele no tinha escrivido ainda..., tava s na
cabea. Ele sabia, sentava, e ia cantando pra gente. Ele, e eu
tambm, nunca consigo fal uma moda. Eu s me
alembro cantando. O Lourival dos Santos tambm faz
ansim, porque nis dois aprendemo com o Teddy. O
Teddy Vieira foi um dos maior na moda-de-viola.63

A Moda Caipira de razes, amestiada distante com os antigos


cantares ibricos, possui as caractersticas e especificidades fundamen-
tais de um etnotexto que se esparrama com generosidade por amplo
territrio. Qualifico-a como etnotexto porque, considerado o mbito
de sua virtualidade afetiva e estilstica, constata-se que est enraizada
nos lastros mais profundos e ancestrais da cultura. O poeta caipira
aquele que, personificando os anseios grupais, o tempo todo colhe
informaes antenadas no modo de ser da cultura, fica assuntando
causos e aspiraes coletivas para entorn-los em forma de poesia.
Aprende e aperfeioa frmulas de versejar, no sulco da tradio que,
partindo da frica e da Europa, atravessou o oceano e se amestiou
aqui com a cultura amerndia. Identifica-se por uma espcie de rapsodo,
qualificado pelas funes de um estradeiro (no raro um boiadeiro),
quer dizer, aquele que v antes, ou vivencia os fatos e os interpreta aos
ouvintes. O modista parece ser um ponteiro de comitiva, o que
aponta o caminho, realiza a travessia de costumes, personaliza e ence-
na o mito do eterno retorno: sempre volta a seu bairro e sua gente
para contar. o elo da tradio com o presente e assim, institudo de
gravidade funcional em seu meio, e honrando o passado, garante o
respeito e proteo dos ancestrais. cavalo ou apeado, vive com um
banzo fora do entendimento; e a inteno sonhosa na cabea, nem
preciso redizer. Tem a funo do homo viator (o viajor), figura tantas
vezes rebrotada na Literatura Popular de antiga procedncia. Isto sig-
nifica que uso e costume toma para si o papel de protagonista
das histrias e lerias que narra, fingidamente interpretadas como se
as tivesse vivido. Tal sucede em Ferreirinha (1950), uma das modas-
de-viola mais regravadas em vrias dcadas:

63
Colquio gravado em 11.dez/95.

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FERREIRINHA
moda-de-viola

Carreirinho

Eu tinha um companhero
Por nome de Ferrerinha
Nis lidava com boiada
Desde nis dois rapaizinho.
Fomos busc um boi bravo
No campo do Espraiadinho
Era vinte e oito quilmetro
Da cidade de Pardinho.

(Z Carreiro e Carreirinho,
Os Maiores Violeiros do Brasil, 1970).

O nomadismo do boiadeiro e do carreiro de bois campeando


pelos confins do serto pressupe, por um lado, o conhecimento
libertrio de vrios rinces, por outro, a possibilidade de ensimes-
mar-se por longos tempos, num isolamento reflexivo, meditativo
do que presenciou, viveu e sonhou. O desconhecido, o distante e o
inslito, altamente estimulantes da imaginao, permitem que se acen-
dam os luzeiros dos horizontes projetivos, criativos. Suscitam a
efervescncia potica do mistrio, o enfrentamento do nunca visto.
Encar-los sem retroceder uma heroicidade; compreend-los,
interpret-los e express-los, uma saga que compete ao poeta, especi-
alista em palavras. Por isto, o romance narrado se institui como viso
legendria do incomum, enaltecido de acentos emotivos e individu-
ais de autoria. Este detalhe instaura sua marca especial de credibilidade
e verossimilhana. Observa Jos Guilherme Cantos Magnani, num
interessante estudo, que o carter verossmil [no caso da literatura
oral-popular] reside no numa suposta capacidade de refletir fielmen-
te a realidade, mas no fato de que sua temtica e regras de produo
mtrica, rimas, metforas, sintaxe narrativa assim como a forma de
recepo (lidos ou cantados, para um grupo) so conhecidas e respei-
tadas tanto pelos poetas como pelos consumidores. So verossmeis
para seu pblico porque o registro em que so produzidos se ajusta

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

aos da recepo.64 Tudo aceito como se os fatos que existiram pelo


serto, nas andanas do cantador, se dilussem e se acrescentassem da
interveno imaginativa e artificiosa do poeta, pois a ele dado o
tempo de ver, o espao para confrontar e a quietude taciturna para
sonhar e arquitetar histrias em forma de poemas aviolados. E trans-
formar-se em agente multiplicador. Escreve Alfredo Bosi que a fan-
tasia e o devaneio so a imaginao movida pelos afetos.65 Disto se
conclui que, para o caipira, a moda resultado de um apeneiramento
construtivo, que tem por natureza irradiar eventos frisados pelo au-
tor. A fora e vibrao do tema deixam de ser corpreos.
O cantador um autodidata, tendo a percepo cultural e a intui-
o como pressupostos essenciais de sua inteligncia artstica. Canta
pela necessidade da expresso e pelo impulso solitrio do prazer de
ser artista. Seu ritmo fluente na combinao de palavras, apreendido
da tradio e musicalmente automatizado, possibilita harmonias co-
nhecidas do auditrio, como tambm criativos e oportunos desvios
e dissonncias. Seus temas e tramas enfocados nas modas renem
condies para transformar a realidade imaginada, com a autoridade e
as licenciosidades poticas admitidas por seus concidados. O insumo
mais elementar a concepo mimtica de seu mundo, povoado de
realidades e fantasias. O cantador um discursador de poesias no
sentido estrito, mas que se peculiariza em alguns aspectos inerentes
literatura oral-popular. No sonhar acordado, nesse devaneio pelo
desconhecido do serto, o auditrio lhe solidrio e se arregimenta
sob a mscara da cumplicidade. Fingir ou mentir so marcas primri-
as de civilizao; quando o sonho deixa de ser faculdade da vida e se
torna o teatro de sua prpria representao.
Em Rei do Gado (gravada originalmente em 1946, por Tonico e
Tinoco), outra das modas-de-viola de maior comunicao e empatia
com o pblico, que coloca em contraste o comportamento arrogante
de um personagem rico e poderoso (o Rei do Caf) e a humildade de
um vaqueiro, aparentemente despossudo (o Rei do Gado), o eu-
cantador intervm como testemunha ocular da histria. Trata-se de
uma escritura de contedo pedaggico-moralista e admoestao p-
blica, em que smbolos de riqueza so desmoralizados por valores
Festa no Pedao: Cultura Popular e Lazer na Cidade, p. 57.
64

Ensaio Frase: Msica e Silncio. In: Bosi, Alfredo. O Ser e o Tempo da Poesia, p.65.
65

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correlatos aos de humildes pees e lavradores indivduos identifica-


dos pelo dote da boa conduta, dispostos para a lida e sacrifcio e
vistos positivamente pela virtude da humildade. O Rei do Gado
isto: aquele que saiu de baixo, palmilhou estradas, possui a emboca-
dura do berrante e, um outrora pobre virtuoso como nas tpicas
medievais no tem vocao para alardear outras riquezas.

REI DO GADO
moda-de-viola

Teddy Vieira

Num bar em Ribeiro Preto


Eu vi com meus olhos esta passage
Quando o champanhe corria a rodo
No alto meio da gr-finage.
Nisto cheg um peo
Trazendo na testa o p da viage
Pediu uma pinga para o garo,
Que era pra rebat a friage.

Levant um almofadinha
E fal pro dono: eu no tenho f
Quando um caboclo que no se enxerga,
Num lugar deste vem pr os ps.
Senhor que o proprietrio
Deve barr a entrada de quarqu,
E principarmente nesta ocasio
Que est presente do Rei do Caf...

(Liu e Lu, Jeito de Caipira, 1984)

Cabe uma explicao que se complementa em captulo posterior.


Rei do Gado, com sua reprimenda simblica ao Rei do Caf, reflete a
mal-querncia e escrnio ao tradicional sistema de dominao na zona
caipira. A simpatia que se transfere ao violeiro-cantador decorre de
uma situao histrica pontual relacionada a outra simbologia: a apro-
ximao do auditrio com o ideal idlico, resoluto e herico da figura
de um boiadeiro, o antigo passador de boiada. Como se sabe, os

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Bares do Caf mantiveram total domnio econmico e poltico, des-


de o Perodo Colonial, passando pelo Imprio e adentrando a Rep-
blica. Responsveis pelo ingresso do capitalismo rural no serto da
Provncia de So Paulo, fizeram da expanso cafeeira uma das alavan-
cas de desenvolvimento do Brasil. As lavouras de caf saram das
glebas mineiro-fluminenses e paulistas do Vale do Paraba em dire-
o ao planalto, avanando em direo aos solos de Ribeiro Preto,
Ja, Araraquara, So Manoel, Jaboticabal e logo a seu distrito: So
Jos do Rio Preto. Esses bares todo-poderosos compunham uma
aristocracia luxuosa e intolerante e nunca se adaptaram a outra mo-
de-obra que no fosse o brao escravo. Portanto, continuaram des-
prezando o caipira nativo, tido como imprestvel e velha praga.
Instaura-se um clima de ressentimento de classe. Surgem outros ei-
xos de influncia comunitria e, entre eles, o poder do boiadeiro
aventureiro, aquele que repassa os quatro cantos, despojado a viver na
lida em liberdade, e de um trato mais amistoso e at fraterno com o
caipira tradicional, o ex-escravo que logo adere ao modo de viver
caipira, e o imigrante pobre, o carcamano, logo acaipirado.66 Numa
situao de reflexo com a histria, a moda Rei do Gado ressalta de
pronto o princpio de identidade advindo da iluso aproximativa
com o pecuarista e ruptura de barreiras ticas. Enfeixa de um lado um
estado tensionante e ressentido entre as idias de euforia (boiadeiro)
e disforia (fazendeiro de caf); de outro, encena uma admoestao e
desmerecimento do poder, sentidos e expressos plenariamente como
um espicaar dos males e o tradicional culto vindita. Entre outros
contedos implcitos e irradiantes, essa moda-de-viola registra, me-
diante a transgresso pela irreverncia ao poderoso, a superao de
uma etapa marcada pela quebra da hierarquia. Este o indcio mais
relevante do visgo instantneo de identidade e consenso interativo
com o pblico, em sua funcionalidade como etnotexto, abrindo um
campo de conceitos que se alarga com a idia de socializao.
***

66
O termo carcamano de origem urbana. Pejorativo, tem origem na expres-
so calca la mano, ou seja, reflete a ordem que os comerciantes davam a
seus subalternos imigrados da Itlia para que arredondassem o peso da
mercadoria, forando a mo sobre o prato da balana. In: Carelli, Mario.
Carcamanos & Comendadores, p. 19.

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A incorporao de um caso de amor aventuresco aparece num dos


clssicos da moda-de-viola, Boiada Cuiabana. Composta em 1930 por
Raul Torres e gravada no mesmo ano por Cornlio Pires, Z Messias
e parceiros e, em 1938, por Torres e Serrinha (Antenor Serra, sobrinho
de Torres), trata-se de uma das maiores repercusses de Tonico e
Tinoco (irmos Joo Salvador Prez [So Manoel, 1919-1994] e Jos
Prez [Botucatu, 1920-]) e de Tio Carreiro e Pardinho (Jos Dias
Nunes, Montes Claros MG, 1934-1993; Antnio Henrique de Lima,
So Carlos SP, 1932 ). A enumerao tpica de cidades distantes,
agregadas ao imaginrio inspito e paradsico do pantanal mato-
grossense e dos tocadores de uma boiada, com a participao afetiva
de um menino e demais boiadeiros, tratados nominalmente; o tom
vitorioso de um protagonista endinheirado numa roleta de jogo,
capaz de impressionar uma morena paraguaia, imprimem ares heri-
cos a esta sagarana.67 Os traos de permanncia da tpica da moa rouba-
da e seu carter romanesco, tantas vezes regenerados na Literatura
Popular de antiga procedncia, convertem-se num dos constituintes
temticos de maior simpatia dentro das bases de previso o univer-
so real e imaginrio caipira. Em Boiada Cuiabana, como era comum
nas modas mais antigas, principalmente nas toadas, h entre os ver-
so e meio (sextetos) cantados monlogos prosificados em tom
declamatrio, no caso em pauta, com a participao do estradeiro (o
prprio protagonista que estava cantando) e da personagem femini-
na. Essa boiada, ajuntada dos usos e costumes e afetividades seduto-
res da terra paraguaia, sobrepassando o territrio pantaneiro para
desembocar no mundo caipira, parece alegorizar o transpasse cultural
que se d pela marcha lenta dos intercmbios culturais dos quais o
homo viator o modista agente multiplicador:

BOIADA CUIABANA
moda-de-viola

Raul Torres

V cont a minha vida


Do tempo que eu era moo
67
Apropriei-me da palavra motivado naturalmente em Guimares Rosa: saga
+ -rana = pequena saga.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

De uma viage que eu fiz


L pro serto de Mato Grosso,
Fui buscar uma boiada,
Isto foi no ms de agosto.

Meu patro foi embarcado


Na linha Sorocabana,
Capataiz da comitiva
Era o Juca, flor da fama,
Fui tratado pra trazer
Uma boiada cuiabana.

No baio foi Joo Negro


No turdio Severino
Z Garcia no alazo,
No pampa foi Catarino,
A madrinha e o cargueiro
Quem puxava era um menino.

Eu sa de Lambari
Na minha besta ruana,
S depois de trinta dias
Que cheguei em Aquidauana,
L fiquei enamorado
De uma malvada baiana.

Ao chegar em Campo Grande,


Num cassino eu fui entrando,
Uma linda paraguaia
Na mesa estava jogando,
Botei a mo na argibera
Dinheiro estava sobrando.

Ela mand me diz


Pra que eu fosse chegando,
Eu mandei diz pra ela
V bebendo, eu v pagando,
Eu joguei nove partida
Meu dinhero foi andando.

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ROMILDO SANTANNA

declamado:
A lua foi-se escondendo / Vinha rompendo a manh !
Aquela moa faceira / trigueira, cor de rom / soluando me dizia:
Muchacho, llvame contigo, que te dar mi alma, todo mi amor,
todo mi cario, toda mi vida...
E os boiadeiros no rancho / estavam prontos pra partida. /
Numa roseira cheirosa / os passarinhos cantava. / A minha
besta ruana / parece que adivinhava / que eu sozinho no
partia, / meu amor me acompanhava...

Eu parti de Campo Grande


Com a boiada cuiabana,
Meu amor veio na anca
Da minha besta ruana,
Hoje eu tenho quem me alegra
Na minha velha choupana.

(Tio Carreiro e Pardinho,


Modas de Viola Classe A, 1974)

Esse olhar regressivo como conjetura enunciadora se manifesta,


entre outros recursos textuais, pela retransmisso de um causo
maneira de um ouvi-dizer, reproduzindo-o tal como fora contado.
Elementos textuais de personalizao dos fatos fazem do cantador-
violeiro um avalista das situaes narradas, como se fossem origina-
das de suas prprias inquietaes ou como se as tivesse verdadeira-
mente vivido ou presenciado em suas andanas. Com essa provoca-
o imaginativa, o modista busca o assentimento e solidariedade do
ouvinte.
Exemplifico essa estratgia de enunciao com o seguinte excerto
de Preto Fugido, moda-de-viola de Z Carreiro (Lcio Rodrigues):

PRETO FUGIDO
moda-de-viola

Z Carreiro

Do jeito que me contaro


Eu v cont bem direitinho

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Que um dia o pai de Suzana


Saiu pase no vizinho.
Suzana fic em casa,
Companhero, um irmozinho,
E um preto tava sondano,
De dentro de um capozinho,
Proveit a oportunidade,
Rob a pobre mocinha...

(Z Carreiro e Carreirinho, Canoeiro, 1978)

O homo viator o cantador, identificado como um estradeiro


realiza uma incorporao lrica dos fatos. Quer dizer, na perspectiva
do presente enfoca as situaes pretritas reais ou emotivamente ima-
ginadas. A quadra seguinte exemplifica como um modista descrito,
adjetivado e, de modo afetivo, entoado na voz de outro cantador:

O amigo Chico Mineiro,


Caboclo bo, decidido,
Na viola era delorido,
E era o peo dos boiadeiro.

(Chico Mineiro, toada de


Tonico eFrancisco Ribeiro, 1945)

Indo de encontro a essas ponderaes, Cmara Cascudo observa


que o viajante aquele que, juntamente com o pescador e o caador, tem
consentimento plenrio e o velho privilgio universal para a inveno
de mentiras.68 Simbolicamente, o viajor na funo de enunciador finge
ver o que os outros no vem, confinados no isolamento, represados
enquanto passa o rio da histria.
Afirmam Reinaldo Martiniano Marques e Vera Lcia Felcio Perei-
ra, baseados em Walter Benjamim (O Narrador. Consideraes Sobre a
Obra de Nicolai Leskov) que a literatura oral-popular conta basicamente
com duas espcies de narradores, provindos de modalidades arcaicas
de enunciaes: o narrador-viajante que traz de terras distantes o saber

68
CASCUDO, Lus da Cmara. Dicionrio do Folclore Brasileiro, p. 491-2.

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do outro, e o narrador-arteso que, permanecendo em seu meio e traba-


lho, possui o saber da histria, preservando os casos e tradies da
comunidade.69 Essa primeira espcie de narrador mais freqente
na Moda Caipira, e assimila aspectos fundamentais da segunda. O
modista realiza-se como o intrprete do sonho da eterna procura, o
anelo da busca interior, da procura pela paz almejada no lugar distan-
te. No deslocamento fsico do narrador-viajante, o caboclo70 projeta
seu anelo de travessia, associado aventura e principalmente, uma
aventura associada ao af de tornar-se herico, o desejo de ascenso
na sociedade como um todo a qual o oprime. Neste sentido, e de
maneira geral, o cantar caipira est associado simbologia de uma
quimera de mudana. Por isto, uma das tpicas mais recorrentes de
uma moda lrico-narrativa o me alembro e tenho saudade, e suas
variaes, tal como ocorre em Boi Soberano, uma das dez modas caipi-
ras mais gravadas e lembradas pelo pblico:

BOI SOBERANO
moda-de-viola

Carreirinho / Izaltino Gonalves de


Paula / Pedro Lopes de Oliveira

Me alembro e tenho saudade


Do tempo que vai ficando,
Do tempo de boiadeiro
Que eu vivia viajando.
Eu nunca tinha tristeza,
Vivia sempre cantando,
Ms e ms cortando estrada
No meu cavalo ruano.

69
O Artesanato da Memria na Literatura Popular do Vale do Jequitinhonha.
In: O Eixo e a Roda: Memorialismo e Autobiografia (Revista de Literatura Brasileira),
p. 177.
70
Empregarei caboclo tal como usado no cotidiano caipira, no como a mais
antiga mestiagem brasileira (amerndia e branca peninsular), mas como
designativo de um indivduo, seja qual for a sua etnia. Essa conceituao
coincide com aquela proposta por Jacques Lambert em Os Dois Brasis, p. 86.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Sempre lidando com gado,


Desde a idade de quinze ano,
No me esqueo de um transporte,
Seiscentos boi cuiabano,
No meio tinha um boi preto
Por nome de Soberano...

(Tio Carreiro e Pardinho, Boi Soberano, 1973)

afirmao de alembrar-se de um causo, e dele ter saudade, h


que considerar a prpria voz dos cantadores como integrante funda-
mental para a iluso de veracidade dos fatos. As seguintes observa-
es de Paul Zunthor confirmam essa iluso interativa pela conduta
em presena dos artistas, considerado ainda o sentido verdico dado
pelas vozes: o emprego da dupla dizer-ouvir tem por funo mani-
festa promover (mesmo ficticiamente) o texto ao estatuto do falante
e de designar sua comunicao como uma ocorrncia de discurso in
praesentia.71 O escritor de modas e o violeiro-cantador presentificam
o sonho. Assim, em vista da criao de um estado de concretude,
mais que uma representao teramos uma representificao.
Como se observa, esses narradores ou modistas fazem, por as-
sim dizer, uma espcie de notao psicolgica das experincias vividas
ou imaginadas, das aspiraes e quimeras, e da sabedoria coletiva do
homem e da mulher do campo, caipira. A moda instrumentaliza
uma espcie de confisso em grupo, ou uma con-fico. Neste ponto,
cabe lembrar que este era um procedimento habitual no Romanceiro
tradicional: os romances punham o relato na boca do protagonista,
com o uso do pronome de primeira pessoa.
A respeito desse sentido de obra coletiva e, como tal, incorporada
pelo protagonista e apresentada em primeira pessoa, e embora tra-
tando de elementos temticos e estruturais do Romanceiro nordesti-
no, observa Idelette Muzart Fonseca dos Santos que ao contrrio do
texto escrito, o texto literrio oral encontra-se raramente isolado, ou
produzido como texto, mas sempre inserido num discurso, como
mensagem em situao. Por isso, ele no autnomo: a evoluo de
seu existir sempre depende evolutivamente do co-existir social e das
71
ZUNTHOR, Paul. A Letra e a Voz, p. 87.

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convenes e quadro de valores de seu auditrio. Fonseca dos Santos


adiciona que poder ser melhor definido pelo conceito de etnotexto,
que designa o discurso que um grupo social, uma coletividade, elabora sobre
sua prpria cultura, na diversidade de seus componentes, e atravs do qual
refora ou questiona sua identidade. Este etnotexto prope assim uma
verdadeira leitura cultural do texto literrio, leitura que representa, ao
mesmo tempo, a afirmao de posse, como bem cultural do grupo, e
uma posio crtica e interpretativa, pelo confronto entre o passado e o
presente das prticas comunitrias e da percepo potica. ... por-
tanto atravs do discurso sobre o passado, voluntria e livremente
desenvolvido, que a memria cultural se funda e se estrutura..72

72
Ensaio Escritura da Voz e Memria do Texto: Abordagens atuais da Lite-
ratura Popular Brasileira. In: BERND, Zil e MIGOZZI, Jacques. Fronteiras do
Literrio: Literatura Oral e Popular Brasil/Frana, p. 39.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

3. MODA CAIPIRA,
RAZES E BRASILIDADE

At pelas dificuldades com a palavra escrita, o prazer da poesia


popular no se d pela leitura em silncio, mas em recit-la, cant-la,
ouvi-la. Levando a palavra em forma de pregaes eclesisticas... adi-
vinhaes, quadrinhas, caterets, romances e cururus, nesse contex-
to que germinam vrios gneros de cantares brasileiros, inclusive o
cantar caipira. A cruz solene nos cimos flamejantes das catedrais gti-
cas para aqui foi transportada, com toda a majestade e irradiao ms-
tica, em nome de El-Rei e da espiritualidade lusada de seu povo.
Com esse fervor religioso floresceu a Companhia de Jesus em seu
sacerdcio, filosofia, evangelizao e esprito pedaggico. Nasce a arte
popular. Nascem tambm da as elites encasteladas, as quais muitas
vezes se erguero superpostas e desapegadas do povo.
Sobre os tempos de nascedouro, de onde minavam os primeiros
acordes da cultura brasileira, escreve o sertanista Couto de Magalhes
(Jos Vieira Couto de Magalhes, 1837-1898), chamado o prncipe do
indigenismo brasileiro:

O padre Jos de Anchieta aproveitou-se de uma


dana religiosa dos ndios, chamada cateret, para atra-los
[os indgenas] ao cristianismo; introduziu esta dana nas
festas de Santa Cruz, Esprito Santo, Conceio e Gona-
lo. Este uso subsiste em So Paulo, Rio, Minas, Gois,
Mato Grosso, Par, Amazonas e, provavelmente, em ou-
tros Estados. O cateret, sendo cantado em versos, tem a
vantagem de desenvolver a inteligncia, criando os canto-
res e trovadores populares; possuo versos em tupi, de

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ROMILDO SANTANNA

Anchieta, dedicados Nossa Senhora, para a festa da Con-


ceio. ... O canto do ndio pausado, montono e me-
lanclico. A msica, essa quase no sofreu alterao. O
paulista, o mineiro e o rio-grandense de hoje cantam nas
toadas em que cantavam os selvagens de h quinhentos
anos, e em que ainda hoje cantam os que vagam pelas
extensas campinas do interior. Quanto lngua, foi-se
transformando e h quadras hbridas, como:

Te mandei um passarinho,
Patu miri pup;
Pintadinho de amarelo,
Iporanga v iau.

que quer dizer: mandei-lhe um passarinho, dentro de


uma caixinha; pintadinho de amarelo, e to bonito como
voc. ... O cateret e o cururu so danas cantadas, religi-
osas, indgenas. Ainda hoje, So Paulo adentro, o cateret
e o cururu figuram nas Igrejas, tenho-as ouvido em
Carapicuiba, So Bernardo, Embu, Itaquaquecetuba, Moji
e em muitssimos outros lugares aqui, no Par, Gois,
Cuiab, Minas, Bahia etc. ... Essas canes foram preser-
vadas e o finado Imperador Sr. D. Pedro II obteve, quan-
do esteve em Roma, uma cpia manuscrita das mesmas,
que me foi emprestada, sem traduo; infelizmente no
copiei todas e no sei que rumo levaram. dessas a se-
guinte quadra que os meninos cantavam em So Paulo:

Virgem Maria
Tupan cy t,
Aba p ara pora
Oic end yab.

Traduo: Oh, Virgem Maria, me de Deus verdadeiro;


os homens deste mundo esto muito bem convosco.73

Mencionar o termo brasilidade, no prtico deste captulo, pode


73
O Selvagem. Apud. VALE, Flausino Rodrigues. Elementos de Folclore Musical
Brasileiro, p. 25-6.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

causar em certa corrente elitista averso de ideologia fora de moda.


Mas o nacionalismo escreve Slvio Romero , no h de ser uma
tese objetiva de literatura, a caada de um ttulo; deve-se antes estudar
o nosso povo atual em suas origens, em suas produes annimas,
definindo a sua intimidade emocional, a sua visualidade artstica.
Deve-se proceder ao estudo de nossa poesia e crenas populares, com
a convico do valor dessa contribuio etnolgica, desse subsdio
annimo para a compreenso do esprito da nao.74
Especialmente aludindo Moda Caipira de razes, ela nostlgi-
ca, melanclica e apaixonada. Reflete o sentimento do povo, no que
lhe possa excitar a imaginao. branca nas formas e rimas, e um
tecido de negros, ndios e brancos no pensamento e afeto. Expressa
pela viola e seus cantadores a amargura hereditria das matrizes cultu-
rais brasileiras: o lusitano exilado e melanclico, o ndio e o negro
escravos desterrados, mortificados pela misria fsica e moral a tris-
teza vil de quem teve parte da seiva rapinada de alma, ficando buracos
dolentes em cada peito. A quadra final de uma trgica toada caipira de
Renato Teixeira ilustra o tom tristonho da Sina de Violeiro:

SINA DE VIOLEIRO
toada

Por isso mesmo, amigo, que eu lhe digo,


No tem sentido em peito de cantor
Brotar o riso onde foi semeada
A conscincia viva do que a dor.

(Renato Teixeira, Amora, 1979)

A Moda Caipira cantada no acasalamento do dueto em tera, de


mi e d, em falso bordo de dico anasalada. O anasalamento conser-
va resqucios de lnguas e dialetos amerndios; o cantar entoando
vozes mantm a tradio ritualstica da missa, devocionada na igreja.
Coincidente com a tradio das modinhas portuguesas, a Moda Cai-
pira quase sempre executada por duplas de cantadores masculinos.
Vestindo camisas da mesma fazenda, como se fossem espelhos um

ROMERO, Slvio. Histria da Literatura BrasileiraI, de Slvio Romero, p. 148.


74

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do outro, os companheiros de canto entendem-se almas gmeas


pelos sinais dos olhares, potencializando-se no outro e, incrementados
e solidrios, na partilha e comunho interativa com o pblico.
Excetuando-se os gneros para a dana e mesmo considerando
seu carter de entretenimento (alm de sua funo mstica, como
caso dos cururueiros de Corumb-MT e Piracicaba-SP e tantas outras
danas religiosas), a pessoa concentra-se para escutar a Moda Caipira;
pode eventualmente permanecer com a ateno flutuante; desres-
peito e pouco menos que impossvel faz-la de fundo musical, em
meio das conversas paralelas, algazarras e afazeres. Por isto, no pago-
de ao vivo, como evento de socializao, o desempenho dos violeiros,
com o entusiasmo nos dedos e na voz, equivale a uma audio ou
concerto. A postura dos cantadores assemelha-se, por tradio artsti-
ca, dos antigos contadores de fbulas. Presos pela proximidade,
pela circunstncia de lugar e tempo do auditrio e pela energia expres-
siva da oralidade, os ouvintes se distribuem ritualisticamente em
roda dos cantadores, criando-se um espao sacralizado em que o que
vale so os repertrios grupais moralizantes, vidos de beleza, ampa-
rados pela fora substantiva da tradio.
Outra caracterstica o destaque ao canto agudo, e alto dos modis-
tas, principalmente na primeira voz do dueto a chamada voz do
mestre , que encontra correspondncia na tradio vocal rabe
sedimentada na Pennsula Ibrica. Supostamente, essa voz estridente
e em falsete arremeda a presena da mulher na dupla, j que no era de
bom tom que o recato feminino participasse diretamente de cantorias.
A estridncia alta e aguda de vozes acasala-se com os campos harm-
nicos mdios e agudos tpicos da viola. Esse padro vocal persiste
nos azes da chamada Jovem Msica Sertaneja, mormente Chrystian
& Ralf, Chitozinho e Xoror, Zez de Camargo & Luciano e Lean-
dro & Leonardo. A esse respeito interessante atentar para o seguinte
depoimento: conta Tinoco (Jos Prez, 1920), da dupla Tonico e
Tinoco que, quando foram gravar o primeiro disco, na Gravadora
Continental (Em Vez de me Agradecer, 1944, de Capito Furtado, Jaime
Martins e Aimor), ao terminarem o cateret, veio o tcnico do est-
dio e disparou:
Vanceis canta arto, n? Um olhou pro outro destilando e remon-
tando os pensamentos. Havia uma rstia de orgulhos. Acenaram em

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

dueto que sim, no sorriso dengoso. Pois ceis vai cant ansim arto na
puta que os pariu!, espumou o moo raivoso e ameaador, cobrando
que eles danificaram o microfone da empresa. Naquela poca, conta
Tonico, nis cantava os dois esticano os peito pra sa as viola, e
encoieno o pescoo pra sa as viz, tudo num s microfone. A partir
desse acontecimento, nos primeiros anos da carreira, eram obrigados
a gravar cantando de lado ou de costas pra no estragar o aparelho. 75
A Moda Caipira de razes pressupe a viola caipira, um instru-
mento amargurado que chora, pois, antes de ser viola, em sua
fecundidade ldica, deliciante, liga-se ao encadeamento de trs esta-
dos interiores que esto na base amerndia, africana e ibrica da cultu-
ra: anseios conflitivos, frustraes pelas perdas e prazeres. Ainda que
constitua o primado realista da experincia individual, a Moda Caipira
de razes possui caractersticas que a aproximam da esttica romntica,
na concepo formal e no modo sentimental como os temas e perso-
nagens, heris e anti-heris surgem e ressurgem.
Um romantismo, claro e enftico, falando de temas estabilizados
e paixes imediatas como os enlaces do amor e dor, permeia a con-
cepo esttica do cantar caipira. Um sentimentalismo perpassa
vagueante cada vereda de seus versos, deixando-o com um langor
emotivo e copioso, um lirismo apaixonado, avesso s racionaliza-
es. A viola caipira (alm das violarias como o violo e cavaquinho),
no mundo rural de antigamente, expressa os suspiros poticos e sauda-
des, lembrando Gonalves de Magalhes, nos alvores do romantis-
mo, s que uma saudade temperada das trs raas as quais, hoje, nos
fazem ser aquilo que perdemos e, aqui-mesmo, o fizemos renascer.
Por isto, entremeada de um clima nativista, em cada moda flui uma
atmosfera que leva meditao sobre aquilo que transcende a realida-
de brusca. Neste clima, o escritor de modas constri seus castelos nas
alturas, e pode os exprimir numa coeso rpida e sinesttica de ima-
gens como as que se realam no pagode de viola a seguir:

Passo por cima das nuve


Esbarrado no trovo,
Deso no pingo da chuva

75
Depoimento prestado no programa Ensaio, dirigido por Fernando Faro,
transmitido em 07.mai/9l pela Rede Cultura de Televiso So Paulo.

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ROMILDO SANTANNA

Bem no risco do claro,


Tiro gua no deserto,
Fao poo no areio.

(Na Barba do Leo,


de Lourival dos Santos e Priminho, 1977)

Esta disposio criativa, j mencionada por Schiller em Poesia Ing-


nua e Poesia Sentimental, interpretada por Vtor Manuel de Aguiar e
Silva: a criao potica, no romantismo, mergulha profundamente
no domnio onrico e esta irrupo do inconsciente na poesia assume
no somente uma dimenso psicolgica, mas tambm uma dimen-
so mstica, integrando-se na concepo da poesia como uma revela-
o do invisvel e na concepo do universo como um vasto quadro
hieroglfico onde se reflete uma realidade transcendente. Por outro
lado, o elemento onrico oferece um meio ideal de realizar a aspirao
criadora, no sentido mais profundo da palavra, do poeta, permitindo
identificar poesia e reinveno da realidade.76
Considere-se tambm que a arte do povo, como seu dia-a-dia,
tem um olho preso s tradies e outro bem esperto voltado s
belezas das classes dirigentes, particularmente o senhorio desse
mesmo povo. Assim, o artista popular quando tem acesso a essas
belezas, quando lhe so importantes, impressionantes ou ro-
mnticas, e medida que lhe convier, ele as copia ou as imita. Da
porque a Moda Caipira de razes representa, em essncia, a continui-
dade do iderio ufanista de afirmao nacional que se deu no roman-
tismo, s vezes agnico, s vezes eufrico.
Outro fator de aproximao com o romantismo se d na pontu-
ao meldica do verso, a propiciar uma atmosfera de oralidade, o
tom de poesia recitativa criada para a eloqncia dos sarais e sales,
que os caipiras reeditam nas suas poesias para serem declamadas (ou
lidas em silncio como se fosse em voz alta) e nas partes recitativas
das toadas. Se os romnticos citadinos recitavam ao som bomio da
viola, violo e piano, os caipiras do campo ainda o fazem no entre-
meio enluarado e inspirado da viola.

AGUIAR E SILVA, Vtor Manuel. Teoria da Literatura - I, p. 554.


76

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Para clarear o assunto, acompanhemos o seguinte pagode de


viola de Tio Carreiro e Lourival dos Santos (Lourival dos Santos,
Guaratinguet - SP, 1907-1997). Nele veremos especificam-se as
muitas categorias de idealizaes, emotividades, vises onricas e ex-
panses da psique latentes na Moda Caipira. Em suas estncias
estrficas, formula um canto de aurora e auto-estima. A voz do
cantador-violeiro, como no romantismo, apresenta-o como o vate, o
sujeito resolvido, o ser predestinado, o indivduo criador que, pelo
instinto, densidade emotiva, inspirao e determinao humana, tem
o poder de tudo, inclusive da poesia como misso:

CHORA VIOLA
pagode de viola

Tio Carreiro / Lourival dos Santos

Eu no caio do cavalo,
Nem do burro, nem do gaio,
Ganho dinheiro cantando,
A viola meu trabaio,
No lugar onde tem seca
Eu de sede l no caio...
Levanto de madrugada
E bebo o pingo do orvaio,
Chora, viola!

No como gato por lebre,


Num compro cip por lao,
Eu num durmo de botina,
No d beijo sem abrao,
Fiz um ponto l no mato,
Caprichei e dei um n...
Meus amigos eu ajudo,
E inimigo eu tenho d,
Chora, viola!

A lua dona da noite,


O sol dono do dia,
Admiro as mulheres

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ROMILDO SANTANNA

Que gostam de cantoria,


Mato a ona, bebo o sangue,
Furo a terra e tiro o ouro...
Quem sabe agent saudade,
No agenta desaforo,
Chora, viola!

Eu ando de p no cho,
Piso por cima da brasa,
Quem no gosta de viola,
Que no ponha o p l em casa,
A viola est tinino,
Cantador t de p...
Quem no gosta de viola
Brasilero bo no ,
Chora, viola!

(Tio Carreiro e Pardinho, Pagodes, 1977)

***
Neste ponto vale sublinhar um fenmeno que sinto ocorrer no
mbito da recepo da Moda Caipira. Mesmo que surja uma moda
nova, hodierna e factual, logo que se dissipam os liames com a novi-
dade, ela se agrega ao imaginrio do povo como se fosse tradicional,
quer dizer, como suposta variante de uma formulao antiga. Da
porque as transformaes naturais que vieram ocorrendo, e mesmo
considerando os abrandamentos morfolgicos de um vernculo
semidialetal apropriado veiculao em disco, nunca se desagregam
do conceito de de razes. Brinquemos de fazer de conta: uma virtual
moda-de-viola sobre a morte do piloto de Frmula-1, ou da princesa
de Gales, em pouco tempo se transforma em variante do registro da
morte dum personagem tradicional e, em ltima instncia, na trag-
dia mtica do heri ou da donzela bondosa. Ou seja, superada a
consagrao do instante, instaura-se outra vez o charme do arcaico, do
cavalheiresco.
***
Como acontece com os demais afluentes de manifestaes da
Literatura Popular, escreve Lus da Cmara Cascudo, h uma assis-

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

tncia obstinada para essa literatura, em voz alta, lenta, ou arrebatada


e tatalante nas passagens emocionais ou belicosas. Essa literatura
poderosa e vasta. Compreende um pblico como no sonha a vaida-
de de nossos escritores [consagrados oficialmente]. O desnorteante
que ningum guarda o nome do autor. S o enredo, interesse, assun-
to, ao enfim, gesta....77 De fato, no quadro primitivista da Moda
Caipira o que interessa o arrebatamento do tema envolvendo um
personagem, o enredo de que se nutre a fbula. A palavra no
espetculo em si mesma, como na poesia dos livros; o espetculo se
d pela conexo dialgica da palavra com o mundo cultural. E, assim,
o fazer potico da Moda Caipira de razes difere em essncia daquilo
que comumente designado de literatura da modernidade. Trata-
se de um fazer potico que nunca se desagrega de sua funo especu-
lar: a raiz do inhame, a primitividade indgena e africana, o
passionalismo ibrico... as vivncias e sonhos da populao rural.
Cmara Cascudo relembra que a dana pura para recreao con-
quista milenar do homem s exigncias dos cultos rurais.78 No
mundo caipira, a associao da dana com a letra de fundo religioso,
utilizada como forma de evangelizao nos incios quinhentistas, existe
at hoje em alguns locais. Em Dois Crregos SP, a prpria missa e
alguns rituais de f persistem acompanhados da moda e danas caipi-
ras. Mas, em geral, bipartiu-se em dois ramos: o bailado, por um
lado, a revezar nas funes ou fandangos79 com o canto puro,
por outro. Entre os bailados, a folclorista Oneyda Alvarenga
(Varginha-MG, 1911-1984) pde registrar as danas coletivas Caninha
Verde e Cateret, e as danas religiosas-profanas com canto das Folias

CASCUDO, Lus da Cmara. Literatura Oral no Brasil, p. 27.


77

CASCUDO, Lus da Cmara. Dicionrio do Folclore Brasileiro, p. 279.


78

79
O caipira utilizava comumente, at finais do decnio de 1950, quando se
deu a reviravolta do xodo rural, o termo fandango como sinnimo de
festas com bailes e cantorias. No mesmo sentido se usavam os termos
cateret, samba, pagode e catira. O fandango, como msica e dana,
de origem discutvel, foi introduzido no Brasil pelos portugueses. Tem a
viola caipira como instrumento bsico. Por esse motivo, sua identificao
com a prpria festa caipira. O bate-p do fandango aproxima-o do catira, da
cana-verde e outros bailados que intermedeiam a cantoria, geralmente a moda-
de-viola de longa extenso. Como se sabe, antes do primeiro disco de Moda
Caipira, em 1929, uma moda podia se alongar por duas, trs horas de durao.

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ROMILDO SANTANNA

de Reis, na zona caipira compreendida por Atibaia, Carapicuiba,


Itaquaquecetuba, So Paulo (SP) e Lambari (MG).80 Presenciei o ritu-
al de f da Dana das Fitas de Parati-RJ, em que os festeiros, cantando,
vo enovelando um mastro, como smbolo de um abrao comunit-
rio, e, em alguns lugarejos das imediaes, a Dana do Caranguejo, a
Dana do Marra-paia, alusiva a um seqestro ao Menino Jesus e, por
isto, implica o uso de adereos marciais (bastes ou bordunas indge-
nas) ritmando o canto. Em Parati, como em Divinpolis-GO, a mais
importante congregao comunitria realiza-se com a Festa do Divi-
no. A folia sai pelas zonas rurais arrecadando donativos para os po-
bres e prendas para a festa. No dia de Pentecostes, festeja-se a colheita,
obra e graa do Divino Esprito Santo, com um lauto almoo, como
se fosse para o Imperador. A fila para a comida, pois, que atrai signi-
ficativa parcela da populao, smbolo de humildade, e o comer em
grupo, splica para que nunca falte o de comer na mesa da famlia.
Devotos e festeiros cantam e danam por uma novena, num entre-
meio do litrgico e o profano. A dana da Quadrilha do ciclo de So
Joo (comemorao da colheita agrcola, do solstcio europeu, princi-
palmente ibrico), que se realiza em todos os rinces do pas, princi-
palmente no Nordeste, caracteriza-se pelo imbricamento do religioso
e profano. As festas juninas so to significativas no folclore brasilei-
ro que, segundo contam, em Campina Grande, Paraba, onde tive
oportunidade de estar, o poltico nordestino que no participa da
quadrilha sequer se elege vereador de pequena cidade. Pensando espe-
cificamente na poesia-msica, pauta deste Ensaio, mais adiante vere-
mos as implicaes ritualsticas da festa caipira, envolvendo a comple-
xidade artstica dos encontros do instrumento, da voz, da poesia, no
seio da coletividade caipira. importante observar que, ritualsticas,
as festas sazonais permitem a atualizao de um tempo circular que
sempre volta s origens, que alimenta a expectativa festiva dum dia
melhor. como se o dia de hoje se alimentasse da esperana do
prximo dia-santo-de-guarda. O perptuo passo-a-passo do tempo
parece estagnado, no aguardo de que as coisas mudem. Enquanto
isto, nada acontece que no uma perptua esperana, ningum enve-
lhece, ningum padece da decrepitude. Parece que, no rocio, o ritmo

Catlogo Histrico-Fonogrfico Discoteca Oneyda Alvarenga Centro Cultural


80

de So Paulo Srie Catlogo Acervo Histrico n 1, outubro/1993.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

do mundo fica em suspenso, nutrindo-se da seiva da tradio. Escre-


ve Roberto DaMatta que todas as festas ou ocasies extraordin-
rias recriam e resgatam o tempo, o espao e as relaes sociais. Nelas,
aquilo que passa despercebido, ou nem mesmo visto como algo
maravilhoso ou digno de reflexo, estudo ou desprezo no cotidiano,
ressaltado e realado, alcanando um plano distinto.81

Ilustrao n.4 Z Gato e Tio Canhoto


(dupla de violeiros da Casa de Deteno, So Paulo).
Nanquim de Daniel Firmino da Silva (1991).

***
Os pagodes, como festas de socializao, nalguma varanda ou
no terreiro ao p-do-fogo, esto ligados s colheitas, entreajuda
dos vizinhos e amigos pelos mutires, ao patrocnio dos santos e
dos patres, comunho corporativa, confraternatria e deliciante
do almoo, da merenda e jantar, do calibre de uma boa pinga (que
s faiz bem pra sade) e, como fecho, da Moda Caipira e do baile.
So terapias que mandam embora a solido e as querncias malo-
gradas, chamando benquerena. Acontecem noite, no s porque
hora de folga. No Brasil, como em Portugal e Espanha, relatam os

DAMATTA, Roberto. O Que Faz o brasil, Brasil? p. 81.


81

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ROMILDO SANTANNA

folcloristas, contar histrias de dia faz criar rabo. Nessa crena, claro,
est embutida a restrio pelo olhar severo do patro quebra do
ritmo laboral. Ademais, o escuro da noite uma janela para o
enlevo do sonho, virando contos, cnticos, causos e cantorias. So-
nho que principia pela excitao deliciante e ritualstica da dana.
Dizem Tonico e Tinoco que

Baile na roa, meu bem,


Se dana assim:
Pego na cintura dela e ela
Tarraca em mim...

(Tonico e Tinoco, Viva a Viola, 1991)

Na hora da lida, canto s permitido quando no interrompe a


jornada de trabalho. societrio, no anonimato da labuta em tur-
ma, nos mutires de capina, colheitas em geral, no corte da cana e
panha da laranja. Dispersos em eites, os bias-frias cantam ritmados
pelo movimento das ferramentas uma toada que adquire ares
tristonhos, desenraizados; entoam uma ladainha de vozes espalha-
das, s vezes duetada, marcada pela monotonia rtmica do trabalho.
Outras vezes, simplificando a melodia e ressaltando apenas a letra,
emitem no todo um canto mondico que, ouvido de longe, se
assemelha a um gemido sentido, amolado, a um murmrio voclico,
canto gregoriano alastrado aos quatro ventos.
***
Um dos temas muito ocorrentes na Moda Caipira de razes so
as cantigas de campeo e de abat campeo, em que, na exaltao do eu-
poemtico, o modista exibe seus dotes de versejador incomparvel e
o orgulho da valentia que o faz entestar com qualquer adversrio
fazendo-o depor a viola e calar-se. E celebrizado por isto. Realiza
uma poesia que conta o que se canta, e o modista ou cantador. Revela
a autoconscincia do valor da poesia, como realidade significante nela
prpria e como a projeo significativa em seu ambiente societrio.
Exemplo ilustrativo encontra-se na seqncia de sextetos e quadras
da moda-de-viola P Cascudo (1962), um dos maiores sucessos da
dupla Vieira e Vieirinha:

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

P CASCUDO
moda-de-viola

Vieira / Oscar Martins

Nesse tempo tudo forga


S minha vida apertada,
O povo diz que no acha
Servio de camarada,
Eu trabaio at de noite
Pra d conta da empreitada!

Pego moda por empreita


Pra invent e pr toada,
Invento moda na linha,
Nos campeo dano lambada!

(Vieira e Vieirinha,
30 Anos de Viola e Catira, 1980)

Nesses versos, o mais importante inventar moda na linha,


quer dizer, produzi-la de acordo com os conformes musicais, pa-
dres versificatrios da letra e artesania geral herdados pela tradio e
legitimados pelo saboreio do povo. Permeia, por assim dizer, uma
espcie de inteligncia compositiva dada pela informao sensorial do
ritmo em seu estado mais confortvel, aquele habituado e consagra-
do pela elocuo oral. A prpria melodia, ordenada e previsvel,
colocada em segundo plano, estereotipada, como acontecia na execu-
o das cantigas galego-portuguesas e do Romanceiro tradicional.
interessante compreender o sentido da expresso moda na linha,
nos versos que acabamos de ver. Mesmo que tenhamos a conscincia
de que o cantador-campeo abate seu adversrio a poder de orna-
mentos criativos que o colocam em xeque, principalmente num tor-
neio de desafio, de modo geral o artista popular no se nutre e nem
vive o conflito da superao dos limites do outro, como comum
nas esferas letradas. A chave do sucesso a tradio, o enraizamento.
Vale observar que tradio ou enraizamento e sua fortuna de bens
simblicos foram o retorno de situaes passadas, para legitimar o

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ROMILDO SANTANNA

presente, convertido em rito. Este um dos argumentos que expli-


cam a lentido transformativa da poesia popular, a qual se adensa, s
vezes, at exausto. A ento, a prpria poesia e seus cdigos, impl-
citos na aprovao do auditrio, requerem modificaes.
oportuno observar que a figura do cantador-campeo,
homloga dos repentistas nordestinos, se origina de antigos cantos
e danas caipiras em que predominavam o improviso e o desafio.
Entre essas modalidades, Joseph M. Luyten descreve e relata os se-
guintes gneros: o fandango (de origem ibrica), o batuque (frica), a
cana-verde (Portugal), o samba rural, o jongo (frica), o candango (natural
das Minas Gerais), e o cururu (amerndio).82 De sua performance e
realce nas funes ldicas e religiosas coletivas, surge o campeo
individual, o perito em formas romanceadas, especialmente modas-
de-viola. No rio do tempo a euforia e veemncia do eu-campeo so
pedra-de-toque da ramificao caipira mais recente, e uma das mais
louvadas, o designado Pagode de Viola. Isto se evidencia na correlao
formal de quadra e sexteto de dois campees do gnero, Teddy Vieira e
Lourival dos Santos, no seguinte passo de Pagode em Braslia (1960):

PAGODE EM BRASLIA
pagode de viola

Teddy Vieira / Lourival dos Santos

Tem prisionero enocente


No fundo de uma priso,
Tem muita sogra encrenquera
E tem violero embruio...

Pro prisionero enocente


Eu arranjo adevogado,
E a sogra encrenquera
Eu d de lao dobrado,
E os violero embruio
Com meus verso sto quebrado...

(Tio Carreiro e Pardinho, Os Grandes Sucessos, 1973)


82
Desafio e repentismo do caipira de So Paulo, de Joseph M. Luyten, p. 75-
102. In: BOSI, Alfredo (org.). Cultura Brasileira: Temas e Situaes.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

No nos devemos esquecer de que a cano popular, e sobretudo


a matria estudada neste Ensaio, uma modalidade de discurso que
em muito se assemelha com o falar habitual, com a fbula oralmente
narrada. Explica Luiz Tatit que por mais que uma cano receba
tratamentos rtmico, harmnico e instrumental, o ouvinte depara,
entre outras coisas, com uma ao simulada (simulacro) onde algum
(interpretante vocal) diz (canta) alguma coisa (texto) de uma certa
maneira (melodia).83 A Moda Caipira de razes, com o tinir da viola,
mais rtmica que meldica. Ela se desprende da dana, como temos
visto. Remontando tradio de h sculos em Portugal, explica Ar-
mando Lea que nestas bailias predomina o ritmo sobre a melodia
porque so mais visuais do que auditivas. O povo aprecia o desemba-
rao dos pares, as variantes coreogrficas, sempre recatadas, e as qua-
dras dos cantadores repentistas; quanto msica, basta um tocador
de viola a marcar o ritmo!.84 Tal se confirma com as seguintes obser-
vaes de Ramn Menndez Pidal: como a imensa maioria dos
romances usam o mesmo metro octosslabo, sem acentos fixos e
sem diviso estrfica nenhuma, podem intercambiar suas melodias
sem o menor obstculo. 85 Antonio Candido observa que o
octosslabo uma extenso posta entre a melopia e a simplicidade
prosaica. Ajustando-se a qualquer tipo de poesia, um metro caro
aos romnticos como foi aos clssicos; o grande elo entre a inspi-
rao popular e a erudita, servindo no raro de ponte entre ambas.86
Uma multiplicidade de romances lrico-narrativos se encaixa na mes-
ma msica. As melodias da Moda Caipira e, principalmente, das
modas-de-viola, sempre muito semelhantes entre si, abstm-se de
significaes propriamente musicais em respeito inteligibilidade do
texto. O desempenho instrumental, com a viola ponteando o decor-
rer da melodia e preenchendo as pausas estrficas, a introduo e o
complemento da moda, contribui para o realce dos sentidos dados
pela conexo expressiva das palavras e os sentidos fraseolgicos do
tema. O mesmo se pode afirmar da interpretao vocal dos cantadores,
sempre a realar a natureza semntica da escritura, o romance contado.

83
TATIT, Luiz. A Cano, Eficcia e Encanto, p. 6.
84
LEA, Armando. Msica Popular Portuguesa, p. 125.
85
Romancero Hispnico - (Hispano-Portugus, Americano y Sefard) - I, p. 88-9.
86
CNDIDO, Antnio.Formao da Literatura Brasileira - II, p. 40.

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ROMILDO SANTANNA

A monotonia da msica cede espao para o desempenho, enten-


dida como literria-performtica, resultando em estmulo para o en-
tendimento das nuanas da fbula, quer dizer, a comunicabilidade nar-
rativa do texto. Isto feito sem a relutncia de dizer exatamente o que
se passa e o que se sente. De fato, repito, na Moda Caipira, h poucas
variaes musicais, mormente em referncia a um dos gneros mais
queridos, a Moda-de-viola. Apresento outro exemplo, justamente
aquele em que o cantador, ao referir-se construo da Moda, enaltece
a conscincia operante do poeta, e o prprio discurso em seu estrato
literrio, em detrimento da melodia:

BOMBARDEIO
moda-de-viola

Z Carreiro / Geraldo Costa

Ai, do jeito que me contaro


O negoo pra mim t feio,
J fizero uma reunio,
Ai, j firmaro esse torneio.
Ai, arrespeito a cantoria,
Querem me tir o galeio, Pra arrebaxaro meu nome
J apricaro todos meio.

Ai, j mandaro fazer moda


E diz que estas modas j veio,
Estas modas vm de longe
Enviada pelo correio.
Ai, moda s de me abater,
Ai, diz que tm caderno cheio,
Pro dia do nosso encontro
Me fazer um bombardeio.

Ai, sendo que eu no mereo


De cair nestes enleio,
Quando eu chego nos fandango
Meus colega eu no odeio.
Ai, todas modas que ele canta
Eu d valor e apreceio,

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Conforme repica a viola,


Eu bato parma e sapateio.

Ai, eu no s mesmo instrudo, ai,


Eu poco escrevo e poco leio, ai...

Ai, eu no s mesmo instrudo,


Eu poco escrevo e poco leio,
Mas minha sabiduria
Serve s pro meu custeio.
Ai, quando eu passo a mo no pinho,
Eu canto sem ter arreceio,
Porque eu fao a cortesia
Sem peg chapu aieio.

(Z Carreiro e Carreirinho,
Os Maiores Violeiros do Brasil, 1970)

Como ocorre em vrias modas caipiras, especialmente modas-de-


viola, em Bombardeio as pausas versais do texto escrito no
correspondem s cesuras do discurso cantado. A faixa musical sub-
mete-se melodia do texto, desordenando a previsibilidade natural
da prpria msica. Isto se d pela implantao de um sistema de
tonicidade fortemente matizado, s vezes atribuindo valor acentual a
slabas tonas. Esse procedimento, ao mesmo tempo que, na execu-
o mesma da letra, revela o refinamento tcnico na arte de versejar,
funciona como elemento desnorteante, por assim dizer, na tensa
ligao entre o cantador-campeo e seu virtual oponente, na simula-
o de um torneio ou desafio. Diferentemente da apresentao escrita
do poema, assim se realiza a primeira estrofe, em sua interpretao
cantada:

Ai, do jeit/
Que me contaro o negoci/
Pra mim t feio, j fiz/
Ro uma reunio,
Ai, j formaro este torneio,
Ai, arrespei/
To a cantoria, querem m/

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ROMILDO SANTANNA

Tir o galeio, pra arreb/


X o meu nome
J apricaro todos meio.

Como se nota, h dois ritmos e duas escalas de temporalidade; a


isometria dos redondilhos, na verso escrita, se transforma no enca-
deamento quebradio da palavra e da sintaxe de uma dcima, em
sucesso homognea ou correlativa de pentasslabos e eneasslabos:
5-9-9-5-9 / 5-9-9-5-9.
Confirmando a caracterstica de oralidade escriturada, Bombardeio,
com sua temtica de desafio nas funes de cantorias, reafirma que
as modas dos desafiantes, que querem arrebaxar, abater o cantador,
so enviadas pelo correio, isto , so escritas por escrevinhadores desco-
nhecidos, embruies, longnquos, e que se amoitam covardemente
sombra do anonimato. Ao ameaar o personagem cantador, numa
unio de esforos plenrios, os desafiantes exibem cadernos cheios,
como que a exaltar o privilgio da escritura em detrimento da melodia
a ela associada. As redondilhas de Bombardeio, consumando uma es-
pcie de ameaa de ataque em pblico ao orgulho solene e narcsico de
um cantador-campeo, para tirar-lhe o galeio (silenci-lo), confir-
mam o autodidatismo do poeta caipira, cujo aprendizado de siste-
mas versificatrios segue o automatismo e a mecnica da tradio pela
oralidade, as regras espontneas do esprito lingstico e atavismo
cultural. E at mesmo pode desviar-se desse sistema. Mesmo noto-
riamente coincidindo com o refinamento expressivo e o virtuosismo
elaborativo de tantos poetas letrados, clssicos (no sentido de ser
permitido que se ensinem em classes, salas de aulas), tm seu cami-
nho trilhado pela neblina do aprendizado de boca-em-boca, pelo
apeneiramento do tempo, ditado pela identidade sedutora com o
aguado saber popular, e no pelos modismos e regras de concordn-
cia emblematizados pela tipografia cultivada. neste sentido que,
principiado pela forma de modstia, se devem entender o adgio
final, os galanteios e orgulhos do artista, desafiado no personalismo
de seus brios de poeta:

Ai, eu no s mesmo instrudo,


Eu poco escrevo e poco leio,
Mas minha sabiduria

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Serve s pro meu custeio.


Ai, quando eu passo a mo no pinho,
Eu canto sem ter arreceio,
Porque eu fao a cortesia
Sem peg chapu aieio.

Exibindo em tom exaltativo uma polidez natural, no-adquirida,


e, portanto, anti-literria se examinada na perspectiva dos pa-
dres literatos , o eu-lrico-narrativo d o seu recado com a esponta-
neidade e clareza do discurso construdo sem os atravanques das
etiquetas e o trava-idias das palavras e construes difceis. No entan-
to, tem conscincia de que seu fazer esnobe, pela artesania semntica
e musicalidade verbal que ostenta; reivindica ateno pela lisura artifi-
ciosa do que produz e franqueza satisfatria de seus enleios. Nesse
clima, cantador-violeiro confraterniza com os circundantes o no-
retraimento do caipira, pois cabe a ele desempenhar o papel do lo-
quaz extrovertido em pblico, do matuto sado, despachado e trelente
que o caboclo talvez almejasse ser. Portanto, o modista personifica e
transfere a nota festiva, descontrada e poeteira que o indivduo co-
mum guarda em seu recato, liberando a timidez, a discrio e o
encafifamento, pedras de toque do jeito de ser caipira.
Os exemplos utilizados at aqui, alm de uma sinceridade desa-
brida, denotam um refinamento tcnico na arte de versejar muito
aparentado com expresses literrias ditas eruditas elas mesmas
influenciadas pelo manancial baladstico do Romanceiro e Cancionei-
ros tradicionais. Nas modas citadas esto patenteadas as mesmas
influncias laterais herdadas das lonjuras do tempo, e latentes na
obra de escritores consagrados. Reafirmando argumentos j exposto,
oportuna a esclarecedora observao de Herbert Read: Arte popu-
lar no arte feita pelo povo em imitao da arte de classes mais
cultivadas isto , no o reflexo rstico da arte de gente afetada;
ainda menos a arte que nasce de um amor afetado pela simplicidade e
a vida simples. Para ser preciso, o termo deve limitar-se queles obje-
tos criados por povos pouco cultivados de acordo com uma tradio
nativa e que nada deva a influncias externas pelo menos que nada
deva s influncias verticais de outras classes sociais....87 Assim, re-

Read, Herbert. O Significado da Arte, p. 68.


87

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ROMILDO SANTANNA

conhecendo que uma e outra em vrios momentos se tangenciaram e


se mesclam, a literatura cultivada de tom romanesco seguiu sua
senda pela seriao escrita; a lrica popular de antiga procedncia se-
guiu seu caminho pelas vias do intercmbio mnemnico e analgico,
de experincias de boca em boca, da memria auditiva, de acordo com
o princpio de que mais vale a prtica que a gramtica, no atavismo de pai
pra filho e seus psteros. Um registro gentico as fez aparentadas: as
antigas canes de gesta, os Cancioneiros e Romanceiros tradicionais.
Cabe indagar, com o intuito de fazer progredir a linha de raciocnio:
por que importante o estudo que ora empreendemos, numa ins-
tncia hispano-americana... brasileira... caipira? Dou resposta pelas
palavras do etnlogo e medievalista Paul Zunthor: o letrado sabe o
latim e possui uma relao privilegiada com a cultura que essa lngua
transmite. Ora, durante meio milnio a prpria existncia dessa cul-
tura dominando, de suas fortalezas eclesisticas e universitrias, o
territrio das naes europias em formao constituiu um obst-
culo a que as lnguas vulgares emergissem fora do estatuto da pura
oralidade. Elas emergiram da, de fato, mas bastante lentamente e ao
preo de comprometimentos, dos quais ns, Modernos, somos as
vtimas, pois provocaram a perda irremedivel das formas de
vocalidade que talvez tivessem alto valor potico e cuja preservao
teria de algum modo modificado nossa histria. 88

88
in: A Letra e a Voz, de Paul Zunthor, p. 120.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

4. O CANTADOR E SUA
FUNO INTERATIVA

Mi verso al valiente agrada:


Mi verso, breve y sincero,
Es del vigor del acero
Con que se funde la espada

Jos Mart, Cuba, 1867-1916.

No prembulo, h que se entender que as criaturas concebidas


pelo escritor de modas e a situao de enredo em que essas persona-
gens atuam, realadas pelo cantador, fazem a mediao entre a finitude
do ser humano existencial e a infinitude: enleva-o ao devaneio, ao
sonho, ao mito... a Deus. Assim compreendido, o contedo enfocado
na Moda Caipira de razes, como acontece na arte em geral, provoca
uma espcie de reconciliao do indivduo consigo mesmo e, aps,
com seu grupo social, interativamente. Coloca-o diante do mundo,
no transe entre a realidade e a fantasia, entre o finito e o infinito.
Ainda nesta exortao quero anotar que, seguindo a tradio do
cantar em duplas, a Moda Caipira tambm registra, geralmente, du-
plas de compositores. Como o mais importante o letrista ou escri-
tor de modas, o segundo nomeado da dupla pode ser meiero,
tendo realizado a melodia, idealizado pedaos do texto ou ser citado
como co-autor por uma colherada de palpites. Ou estar ali no crdito
de autoria porque sim, posto garupa como homenagem, por fora
da tradio caipira do compadrio ou solidariedade. No raro figuram
nessa parceria inexistente diretores de gravadoras e tcnicos de estdi-

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ROMILDO SANTANNA

os, como ato gratificatrio. Porm, como a dupla intrprete mais


realada que o compositor, confundindo-se com ele, e, mais impor-
tante que ambos, a figura abstrata do personagem-cantador ou o
modista, tem-se como relevante que o verdadeiro compositor abaste-
ce-se de poucas glrias, da admirao restrita, e, menos ainda, da
remunerao em Direitos Autorais.89 por isto que, salvo excees
como Teddy Vieira e Lourival dos Santos, dois dos mais prolficos
poetas e luminares da Moda Caipira em disco, raramente aparece um
compositor que no seja, ao mesmo tempo, seu prprio intrprete
ou integrante de uma dupla de intrpretes.
Mesmo admitindo-se que os atos sociais em geral no tm a
consistncia da permanncia, no meio rural seus referenciais so mais
duradouros, pois agarram-se s razes fundamentais da tradio. O
escritor de modas caipiras se move em bases de previso aliceradas
nos atos culturais de seu meio, com os ps no presente e os olhos no
passado. Como o matuto, seu receptor, vive um processo lrico, usan-
do da recordao para justificar a verdade do existir. Assim posto, a
lgica da interao do modista e seu pblico resume-se num ato de
troca e congraamento de identidades ou re-conhecimentos; o ato de
busca dirigido pelo sujeito buscado. A inovao esttica conse-
qente e, naturalmente sem traumas, como ato de transmisso soci-
al. Neste ponto, importante sublinhar que a familiaridade que o
ouvinte tem com elementos temticos da histria narrada em outras
modas, a identificao do lugar comum e a previsibilidade do desfe-
cho no depreciam o conceito criativo de autoria. No interferem
negativamente na aceitao da moda. O comum nunca foi feio, sendo
certo que, por ser bonito, que ficou comum. Deparar-se com frag-
mentos de histrias conhecidas, com a simpatia do desfecho previs-
to, mobiliza a idia de que isto tem a ver comigo, e do meu mun-

89
Rubens Vieira Marques, o Vieira da dupla Vieira e Vieirinha, declara que
recebe dos rgos arrecadadores e Gravadoras, por cerca de 80 msicas de sua
autoria, gravadas ao longo de quase 50 anos, o equivalente a US$ 6 mil, por
trimestre, incluindo-se a participao como intrprete em 76 LPs. Se a remu-
nerao de Direitos Autorais pouca, a vaidade de aparecer como autor
muita. Consta que comum na Moda Caipira o surgimento de alguns compo-
sitores absolutamente fictcios que, prometendo ao verdadeiro autor usar de
sua influncia, se encarregam de fazer com que as modas cheguem aos
destinatrios: as duplas. Em troca, figuram como co-autores.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

do; refora a credibilidade prosaica da fico, medida que difunde e


confunde, no campo primitivista da realidade e do sonho, pedaos
difusos de matria imaginria sobre situaes vividas, trazendo-os
para o histrico. Compartilhando a idia de verdade, esses contedos
propiciam moda e a seu heri a iluso de realidade ou verismo. Des-
pertam re-conhecimento e o prazer da identidade; mobilizam no
ouvinte a vaga lembrana de uma situao experimentada ou de
que j se ouvira dizer, e que, encontrando eco no sentido de verdade
comum, fora atualizada em novo discurso, a nova moda. Entenda-se
como autoria, pois, na Moda Caipira de razes, a transgresso da
malha popular, sem desligar-se dela, pela convergncia de estilos do
compositor ou compositores e a dupla de cantadores. Estes do vida
ao texto; so eles que, no ritmo do tempo, articulam poema, canto e
melodia. Transformam o que dito na faixa literria, na bendita
cantoria. Graas dupla de intrpretes, o que parecer, como letra na
caderneta, renasce como ser, ou seja, o canto para ser escutado, literal,
arrebatador, contnuo, e que plenamente vive na interseco e
ajuizamento plenrio com o pblico.
O cantador, essa figura abstrata e ao mesmo tempo substantiva,
com sua fora primitiva e o domnio quase instintivo da palavra, com
seu porte de campons e a postura altiva de campeo, o ente que
encarna, entre outros aspectos, a conscincia da comunidade. O
exemplrio at aqui pautado visa a consolidar a idia de como co-
mum na Moda Caipira de razes a incorporao, feita pelo cantador-
violeiro, de casos reais e imaginrios, apresentando-os, de diversas
formas, como se os tivesse vivido. Nota-se que, muitas vezes mais
importantes que os eventos narrados so as aes dos personagens
diante dos eventos, transferindo-se ao cantador o enaltecimento hu-
mano que se faz por meio das criaturas. Muitas modas so fbulas
conhecidas, annimas, agregadas h muito ao imaginrio caboclo.
Outras so modas j existentes, de procedncia secular, vindas nas
matulas imigrantes, ou sei l de que distncia, das quais tambm no
se conhece a autoria, e que foram agora reformadas, ou passaram
por um processo de copidesque para a veiculao em disco.
A imagem do cantador similar dos menestris e jograis da
Idade Mdia, que, por sua vez, personificam o elo com os trovadores.
L-se na Histria da Msica Europia de Jacques Stehmar que viajando

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ROMILDO SANTANNA

eles prprios [os trovadores], a fim de irem declamar e cantar os seus


poemas e canes nas cortes vizinhas ... fazem-se tambm, por vezes,
representar por menestris e jograis pertencentes sua casa e que
atuam em seu nome percorrendo as estradas de Frana, indo de cas-
telo em castelo, de vila em vila e, em breve, de provncia em provncia.
Nas praas pblicas, nas salas de armas, ou seja onde for que os
acolham, relatam as proezas do seu senhor. Cantam evidentemente o
repertrio que este lhes ensinou, mas como pelo caminho vo vendo
inmeras coisas que se apressam a repetir, este repertrio alarga-se
medida que eles prprios inventam canes, parodiando melodias
ouvidas nas suas digresses. Acabam por misturar de tal forma as
criaes do seu senhor com as da sua prpria autoria, que nem sem-
pre se consegue saber a quem de fato pertencem.90 Assim, repetindo
a atmosfera de conscincia tradicional, a figura do cantador-violeiro,
abstrado dos autores da moda, acaba sendo a dupla caipira; na fun-
o, essa a voz que possui a multividncia de reorganizar a realidade
aquilo que assim mesmo na multiplicidade de pontos de vista,
e a compartilha como saber coletivo; sem anular o a priori existencial
de cada um, conta com o assentimento do pblico. D realidade
a configurao da trova ou verso bem feito, quer dizer, transpe o
causo virtual e pululante no ambiente societrio conferindo-lhe a
linguagem de poesia. O modista representa a mdia do pensamento e
afetividade geral, neste caso indissociada do comportamento de seu gru-
po, como unidade coerente e significativa.91 Disto se infere que o
discurso da Moda Caipira de razes compreende, em sua prpria ra-
zo de ser, a polarizao interativa com o pblico em suas atitudes
globais (mundividncia que se projeta nas relaes interpessoais e
com a natureza), circunstncia concreta do auditrio no espao e no
tempo, e sua virtualidade dinmica diante das situaes dos persona-
gens envolvidas pelo cantador, fantasiando um ensejo vivo,
performtico. Essa interao entre as gentes e seu lugar que organiza
a continuidade do ser no meio circundante, geogrfica e historica-
mente. assim que se formata a base do racionalismo natural, pois,
como aclara Prodi, a vida essa incessante e imperativa percepo de

STEHMAR, Jacques. Histria da Msica Europia, p. 49.


90

91
Essa indissociabilidade do pensamento, afetividade e comportamento estudada
por Lucien Goldmann, em Dialtica e Cultura, p. 107 e ss.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

sentido, que vem bem antes da razo humana.92 E deste modo


que os agentes do discurso cultural e seus intrpretes expressam e
percebem os signos. Atiadas as atenes e os nimos, a cantoria
realiza-se no aceso que abole a dicotomia temporal, a gerar uma esp-
cie de reminiscncia reflexiva, um banzo que no s dos pretos, e que
se faz princpio dinmico do lirismo. Pois o presente torna-se passa-
do e o passado converte-se em presente, na vivncia do instante.
A poesia lrico-narrativa da Moda Caipira pois resultado de uma
afirmao tica, portanto dialgica e social com seu pblico, cabendo
a ele a validao do efeito de transitividade da obra. Esses elementos
so fatores essenciais da coerncia interna da moda, e determinam sua
natureza e estrutura significativa.93 Ento, repito, trata-se de uma lite-
ratura que, como fatura escritural, artefato em si mesma, mas que
possui o condo de expandir-se plenariamente, na interseco vigo-
rosa com o ouvinte. Assim considerada, essa figura concreta (intr-
pretes reais) e ao mesmo tempo fictcia (personagem idealizado) do
cantador-violeiro funciona como antena [e hospedeiro] da raa, no
axioma de Ezra Pound. Subentende afora isso uma situao concreta
de convivncia social, existencial, tica e fctica. Essa circunstncia con-
creta pressupe ainda a responsabilidade de externar no s os uni-
versos simblicos, mas os esquemas estruturais j internalizados no
auditrio: esquemas musicais (modas-de-viola, pagodes de viola,
balanos, cururus, caterets, toadas, valsas, tangos, sambas...), rimas,
ritmos, esquemas mtricos e estrficos consagrados pela tradio oral,
enfim pelo apeneiramento afortunado da maior das sabedorias: o
tempo. Deste modo, ao aproximar cantador e ouvintes, o rito da
cantoria, entendido como o processo performtico ou sua projeo
na gravao em disco, transforma-se numa conveno teatralizada
que no distingue molduras, tampouco delimita campos entre pal-
co e platia. Coloca-os todos num estado de enlevo em relao
realidade contingente e aos esquemas artsticos em questo. parti-
lha e comunho de conhecimentos, sensaes, emoes; ser e estar,
instaura-se um sintoma interior de confluncias, no stio da existn-

PRODI, Giorgio. O Indivduo e sua Marca, p. 105.


92

Determina meu pensamento a metodologia proposta por Goldmann, no


93

ensaio O Conceito de Estrutura Significativa na Histria da Cultura, op. cit.,


p. 91-104.

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ROMILDO SANTANNA

cia e suas representaes. quando a cantoria, em sua funo ldica,


se revigora num ensejo de recreao enlevada, de vividez quase real da
cena imaginria, possibilitando ao caboclo o alumbramento ou des-
coberta de sua especificidade profunda: a natureza da gente do cam-
po. A atmosfera criada pelo sentido de identidade grave e palpitan-
te: acerca-se do sumrio irremedivel do ns-mesmos. Funda-se nes-
se momento de satisfao e bem-querncia um clima de saber estti-
co. Trazendo a poesia para um ato de presentificao, sua
comunicabilidade enfeixa o crculo do viver o invivido.94 A ao esttica
encontro de indivduos livres, mesmo que ilusria ou sonhadora-
mente. E a esses indivduos liberada a oportunidade de continuar
se iludindo ou sonhando, inclusive com a prpria liberdade. Para o
oprimido, a arte, a moda caipira so oportunidades concretas de eman-
cipao.
O cantador ou modista tem conscincia da prpria estima social
e prestgio; ao mesmo tempo, cioso do reconhecimento de exceln-
cia, no pleno orgulho de ser o poeta. proficiente, possui uma capa-
cidade de artesania que implica, em sua inteligibilidade, fluncia e
desembarao, a prtica verbo-motora da comunicao oral. Na execu-
o pulsante (e, portanto, rtmica do artista), a glria de seu mundo
inscrita e celebrada junto a seus coetneos. Instauram-se uma rea de
iluso e um estado potico que emerge e se legitima no universalizante,
no mundo solidrio e participativo da coletividade. Alm dos atribu-
tos de poeta, que consagra o carter sagrado da palavra, o conceito de
cantador embaralha-se com a idia de valentia. ele que enfrenta,
possui o dom da mundividncia, restaura o sentimento ancio dos
antepassados. Esta ligao com o pretrito assinala Adolfo
Colombres no uma abstrao vazia, nem uma repetio cega,
mas a fora espiritual dos mortos, uma palavra que tambm anima,
ilumina e transforma, e que, portanto, se respeita e cultiva95 .
Ao abrir-se o circuito comunicativo envolvendo o comunicador,
a obra e o pblico, acontece um fato extraordinrio, e de uma dimen-

94
Atentar sobre isto s palavras de Gaston Bachelard em A Potica do Espao,
p. 341 e ss.
95
Palabra y Artificio: Las Literaturas Brbaras, de Adolfo Colombres. In:
PIZARRO, Ana (org.), Amrica Latina: Palavra, Literatura e Cultura - III, p. 130.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

so que ultrapassa o esttico, pelo menos dentro daquela concepo


elitista de esttica como obra aberta a uma interpretao vaga, de que
tambm trata Umberto Eco. Neste ponto, conveniente relembrar,
mesmo que como insero de relance, que a abertura a condio de
toda fruio esttica, e toda forma fruvel como dotada de valor est-
tico aberta. aberta mesmo quando o artista visa a uma comuni-
cao unvoca e no-ambgua.96 Talvez fosse o caso de chamar a
ateno para o adendo de que a situao performtica que enfeixa a
Moda Caipira na cantoria (e no disco), de maneira alguma pressupe
univocidade e no-ambigidade. No amlgama desse ciclo to signi-
ficativo, desencadeado pelo processo de enunciao, a integrao
cantadorobrapblico provoca no auditrio a ruptura com a passi-
vidade e submisso emblemas da situao do matuto na vida rural
, e o coloca na dimenso ativa, atrativa e criativa, premiando-o com
um derivativo do viver em devaneio, renovando-lhe um outro e
melhor sentido para a existncia. Como na arte em geral, a Moda
Caipira de razes um desvario do ser na busca e encontro consigo
mesmo. Neste parmetro, realiza-se o que Eco chamou de obra
aberta a um complemento produtivo, quer dizer, o pblico
partcipe, intervm produtivamente e influi como modelador e
realimentador de energias criativas, no ensejo da ao performtica do
cantador.
A criao coletiva, no sentido estrito, d-se nos cnticos das Folias
de Reis, das Festas do Divino e das Festas de So Gonalo. Alm dos
temas bsicos de cada estncia desses rituais festivos e msticos, agre-
gam-se as circunstncias do aqui e do agora: so louvores sobre a
vida, o lar e famlia do festeiro ou do devoto os quais recebem a
sagrada bandeira (de Reis ou do Divino Esprito Santo) em casa.
Essa criao coletiva, realizada em cortejos, e puxada por um mestre
que improvisa quadras e sextilhas (repetindo-as ou respondendo-as
os outros cantores), se revela principalmente na tpica das louvaes
das Folias, mais que na tpica das invocaes bblicas.
***
Em nosso objeto de estudo e, especialmente no momento em
situao, o Autor (confundido com a dupla de intrpretes) e o Ouvin-

ECO, Umberto. Obra Aberta, p. 89.


96

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ROMILDO SANTANNA

te se sentem atrados e colocados numa dimenso conjuntiva e soli-


dria com a fico. Na execuo, ao vivo ou fonogrfica, parece que
diminui a distncia entre o ouvinte implicado no texto e o ouvinte real.
Eliminam-se ao mximo as separaes entre imaginao criativa, erigida
no pertencimento ficcional da moda, e realidade plausvel. O cantador,
antes retrado e tmido por que no dizer caipira emerge loquaz
como agente da promessa dos desejos no realizados. Instituda
como obra aberta a um complemento produtivo, como mecanismo de
enunciao, a Moda Caipira de razes desperta o prazer, pela culmi-
nncia de uma comoo coletiva, uma con-fico. As expectativas dian-
te dos fatos existenciais se acendem por um processo de socializao,
fazendo fortes e instigantes, no tempo e espao da execuo, o autor,
o cantador e o pblico. O mecanismo de que tratamos extraordin-
rio, repito, porque culmina numa realizao individual ou restrita,
que se irmana indissocivel s aspiraes do grupo. No contato com
o pblico, pois, a Moda Caipira alcana uma reiterao de efeitos de
sentidos desencadeados pelo cantador. Pro mor disto, diria um bem
caboclo entendido, o campons caipira sente-se potente, quite de
obrigaes. Experimenta de modo generoso, mesmo que por ins-
tante fugaz, um sentimento de no-supresso, de catarse (pela
mobilizao da inteligncia emotiva), de desmarginalizao e liber-
tao coletiva. Ao invs de serem indivduos deformados pelo meio
que os oprime, modista e pblico vivenciam, por meio da Moda
Caipira, ares de renovao vital e criativa, capazes at de explicar um
dos sentidos ritualsticos que, sem dvida, configura a moda e sua
execuo em seu prprio meio.97
***
Cada moda tem seu sotaque, pois o oleiro deixa as marcas da
mo em cada barro que toca. O discurso do cantador uno, mas num
sentido plural. Tem que se aproximar da equivalncia coletiva, aco-
modar-se a uma espcie de modelo, a uma espcie de arquicantador. Na
tentativa de prefigurar uma tipologia desse poetizador, com seus
estmulos estticos, e melhor alicerar o campo operacional de conceitos
de que tenho lanado mo, vale a pena relembrar reflexes de Osval-
97
Para aprofundamento e melhor compreenso desse assunto deve-se ler o
excelente livro A Socializao da Arte: Teoria e Prtica na Amrica Latina, de
Nstor Garca Canclini.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

do Luiz Barison: apesar das particularidades e estilos de cada cantador,


ou dupla (quer das duplas que fazem parte da comunidade rstica,
ou das que gravaram discos), podemos afirmar que existe um cantador
padro, um ideal que permeia a atividade de todos os cantadores.
um modelo, um ser mtico do qual emana uma postura e uma
maneira de enunciar que foi sendo construda em cada desempenho
particular. , por assim dizer, um arquicantador, um elemento que se
horizontaliza na cultura e a transmite de gerao para gerao. Esse
tipo serve de balizador e parmetro para a produo e execuo das
modas, um ideal que, quanto mais prximo dele, mais se est de
acordo com algo que faz parte do horizonte de curiosidades e ex-
pectativas dos ouvintes. No se pode confundir este cantador com os
homens de carne e osso. O cantador uma criatura, um personagem
desses homens. As duplas caipiras, inclusive as que gravam discos e
fazem sucesso, tm como uma das caractersticas fundamentais o fato
de que praticamente todos os cantadores usam pseudnimos. Sem-
pre se apresentam com uma vestimenta caracterstica, com uma pos-
tura cnica e um timbre de voz diferentes de suas falas concretas no
viver cotidiano.98 Tal como o consideramos, o modista, mais uma
vez como os antigos menestris e jograis, possui a estatura de um
personagem; uma criatura que supre por meio do canto o horizonte
de expectativas de seus ouvintes. Diria mesmo que a voz que inven-
tou a voz do cantador a mesma voz do ouvinte, que se espelha no
cantador, ou que o prprio auditrio extasia-se de si mesmo. Por
isso, os cantadores-violeiros so muito bem quistos em estima de
afeio, idolatrados no mundo caipira. So respeitados por possuir e
exibir o dom, encarnar o sonho do respeito, da honra, do prestgio e
da riqueza, pois, segundo a filosofa do caboclo, sapo no pula s pra
fazer bonito.
Outro fator que repercute na admirao ao violeiro-cantador
seu sentido de superioridade existencial por ser algum que vive na
lambana e lerias de caboclo, afoiteza e mamata de cantar. assanha-
do com as mulheres; no necessita de pegar na aspereza da enxada ou
do arado pra sobreviver. Coloca-se num nvel elevado profissional-
mente, pela renovao do esprito: desgrudado do acanhamento e

98
Moda Caipira: Cantador, Universo, Mediaes e Participao Emotiva, p. 58-9.

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ROMILDO SANTANNA

mesmice cotidiana, vive sempre a conhecer os lugares, em perene


aventura. A dupla de violeiros encarnando o escritor de modas
convidada de honra dos fazendeiros nas festas de casamentos e
batizados da prole, ou quando estes querem exibir aos forasteiros as
belezas do serto. Tm a primazia de entrar pela porta da frente na
casa do patro, estabelecendo-se uma cadeia de concesses sempre
lembrada em pocas de apetites eleitorais. O fazendeiro aquele que,
alm de mandar com austeridade, exerce a figura de pai, sabe dos
mistrios da vida l fora, e os supera auferindo lucros; os violeiros
desfrutam do cafezinho servido por algum que veio da cozinha,
ostentam em companhia do fazendeiro o riso arrogante de quem ri
toa; pessoas de bem, so infalveis cabos eleitorais patrimnio po-
ltico do patro.
Deixando de lado essas prerrogativas de superfcie, anuviadas de
admirao pela momentnea ruptura com a autoridade do patro, e
certa cobia e ressentimento provindos dessa intimidade no fundo
almejada por todos, a dupla de violeiros representa a personalidade
literria do autor, um poder criativo individual que congrega os anseios
coletivos, a igualdade e a plenitude do supra-temporal. Ela, bem-
dizer, s ela em seu meio, exerce o poder do no-cerceamento, o livre-
arbtrio. Seu estilo de vida e suas pompas retricas so respeitados e
admirados. Sendo assim, uma de suas funes fazer emergir o que
latente em si e presente na personalidade do outro. Portanto, como
artista, exerce o ofcio utilitrio de provocar a autoconscincia histri-
ca, antropolgica e criativa. E, atalhando isto, seu discurso, em si
mesmo, precursor herico e voluntarioso do que se descobriu que deveria ter
sido e ser dito. Indo em direo ao saciamento dos anseios populares e
devaneios, define-se ao modo sartriano: eu sou aquele a quem ou-
tros se referem quando se referem a mim.99 Sua voz presumida e
materializada como necessria e essencial. Esse o momento em que
a hipottica inveja, no plano superficial, se dissipa em louvaes,
idolatrias e afetos. O nexo entre a evocao de imagens e a vida exis-
tencial do cantador, que lateja nas modas que canta, fortificante e
transformador, porque o auditrio em sua projeo societria se abas-
tece dos caprichos da imaginao do melhor, na perene iluso da vida.

Apud. DANTO, Arthur C. As Idias de Sartre, p. 291.


99

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

O contentamento pelo enunciador da Moda Caipira se sintetiza


na seguinte quadrinha caipira litornea recolhida por Marcus Pereira,
cantada por Francisco Alves da Silva, o Seu Chico de Ubatuba, na
imprescindvel Coleo Msica Popular do Centro-oeste/Sudeste-4 (1973):

Eu sou aquele que andou


Sessenta lguas num dia
Para ver se breganhava
Tristeza por alegria...

A imagem que se faz do peregrino cantador, ademais, agrega-se


positividade prazerosa da encenao ritual da msica, a descontrao
e sua fora de congrega. Exemplo reflexivo deste comentrio encon-
tra-se exaltado na seqncia de dcimas de Vargem, gravada em 78rpm,
no final da dcada de 1950, por Vieira e Vieirinha:

VARGEM
moda-de-viola

Vieira / Vieirinha

Levantei um dia cedo,


Arrumei minhas bagage,
Eu fui peg a minha besta
Pra faz minhas viage.
Vesti o caro de bombacha
Por eu gost desse traje,
Lao bo t na garupa
E na cintura uma ferrage,
No caso de preciso
Das veiz a gente reage!

Quem veve daqui, dali,


Muitas veiz serve de paje,
Eu j fui trabaiad
Mas hoje eu perdi a corage,
J fui plantad de roa
Mas no sei cont vantage:
O mio a formiga corta,

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ROMILDO SANTANNA

O fejo chocha na bage,


Capivara come tudo,
O arroiz que eu planto na varge.

Amoitei minha enxadinha,


No minha gabolage,
Pareceno um fordinho
Encostado na garage.
V viv sem trabai,
Por eu t camaradage,
Vai quase dois ano intero
Pra corre a parentage,
Tenho amigo com fartura,
Eu v viv de malandrage.

da que eu fao moda,


Eu tano na vadiage,
Nos catira que eu v cant,
Eu no levo desvantage,
Porque sei que meus contrrio
De vanc no tm adage,
Tenho moda de campeo
Que at j perdi a contage,
Respeito o cant de viola,
Teim com nis bobage!

(Vieira e Vieirinha,
Beicinho Vermelho, 1971)

Esse poetizador que, pelo sentido de glorificao em seu meio, o


sujeito existencial coletivizado, reconhecidamente heri do romance cai-
pira, como veremos pginas adiante, funciona como entidade
demirgica, figurativamente a erigir um mundo separado por um
vidro que, na perspectiva de quem canta transparente, de modo a
receber o feedback dos ouvintes; na perspectiva dos ouvintes, esse
vidro coberto de uma pelcula que lhe confere aspecto e funo de
espelho. O que passa por esse espelho, na direo dos destinatrios,
so seivas culturais, retalhos de historicidade da vida que exprimem,
real e imaginativamente, o mundo dos ouvintes, e os congrega coleti-

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

vamente. O espelho a tomada de conscincia, desmascarando o


inominado e o invisvel; uma face frente a si mesma revelando o
idntico, descoisificando a existncia. Neste sentido, h um trnsito
do individual em constante busca da pluralidade. A Moda um
sarilho que seqestra as guas do tempo e da cultura. Assim, a voz
enunciadora da Moda Caipira de razes uma espcie de decoro tico,
ou seja, um emitir sentidos consubstanciados pela acomodao ao
meio social. Northrop Frye explica fenmeno anlogo da seguinte
maneira: trata-se de uma adequao do estilo [do cantador real] a uma
personagem interna [o arquicantador], de modo que o decoro em
geral a voz tica do poeta, a modificao de sua prpria voz na voz de
uma personagem ou no tom vocal exigido pelo assunto ou estado
de esprito.100 Nessa mesma linha, escreve Mikel Dufrenne que sem
nada perder de sua sinceridade, o poeta transcendido pelo que vive
no momento em que o diz; pela virtude do dizer, tudo o que lhe
sucede, o que experimenta, o que espera, desprovido de sua particu-
laridade.101 Com esses atributos arquetpicos, o cantador se conver-
te no gnio, no estro, tal seu vigor numa simbologia romntica, que
teve em alta conta os valores mtico-cristos da Idade Mdia.
O que ora digo relaciona-se analogamente ao sentido atribudo
ao vocbulo causo, no correr deste Ensaio. profcuo sublinhar que o
caso o que passou, e pouco interessa porque emprico, unvoco, qual
seja, no-artstico; o causo o que poderia ter passado, no sentido aristotlico
da verossimilhana, e que se caracteriza pela importncia secundria
do fato pontual e aceitao, de corao aberto, das atraes
identificadoras, erigidas na usinagem de um mundo no qual o que
vale a sagrao do interdito impessoal, a verdade coletiva. Vm-me
nesta hora uns versos de Fernando Pessoa:

Ah, quem escrever a histria do que poderia ter sido?


Ser essa, se algum a escrever,
A verdadeira histria da Humanidade...

(lvaro de Campos, Fices do Interldio).

FRYE, Northrop. Anatomia da Crtica, p. 264.


100

DUFRENNE, Mikel. O Potico, p. 90.


101

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ROMILDO SANTANNA

A plenitude do causo, a verdadeira histria da humanidade se


realiza, em conjunto com o cantador, no momento ritualstico,
propiciatrio e sazonal, ou simplesmente lambanceiro dos pagodes
rurais, as festas caipiras. Na essncia da parte reside a grandiosidade
do todo, a sntese do ser. Dito assim, o sujeito da focalizao de uma
moda institui-a como um romance autoral, no sentido dado por
F. Stanzel,102 quer dizer, aquele que atua, por um lado, como um
vivenciador onisciente dos fatos, selecionando-os, reportando-se a
um acontecimento ulterior, situado alm, num outrora propcio ao
imaginrio, mas rapidamente enfocado desde uma perspectiva
isocrnica, num presente virtual, mesmo que palpvel ou contingen-
te. Isto quer dizer que esse modista ou poetizador, real e ao mesmo
tempo fictcio (ou mtico e sumrio, no sentido de arquicantador),
transporta-se para a circunstncia mesma narrada, na teatralidade e
vividez do tempo circunstancial da narrao, vendo-a por dentro, no
instante memorvel dos acontecimentos. Recorda-os tenso e drama-
ticamente em meio deles, no sentido familiar ao adgio recordar
viver. E, sendo assim, o ouvinte se v includo porque a moda
incorpora a situao e o ambiente que est louvando.
Por outro lado, e decorrente da explanao precedente, esse
cantador, em sua focalizao interna aos fatos, con-figura-se em sua
espontaneidade psicolgica, e penetra psicologicamente no mundo
dos ouvintes, de forma momentnea e teatral integrao. Promove
uma espcie de sacralizao do arqutipo medida que avulta diante da
sua platia como o maioral. Age na dimenso concernente recorda-
o dos fatos vividos, imaginados ou contados a ele, liricamente in-
corporados a seu mundo de experincias, e filtrados por uma reflexo
interiorizada. Lendo os indcios do cotidiano, o cantador funciona
sobretudo como elo testamentrio de seus predecessores tradicio-
nais, reformulando-os aqui e ali, em incessante atualizao do existir
cotidiano.
Os termos lendrio e histrico, no sentido que tenho empregado,
pois, no so antagnicos, mas complementares; ajuntam-se pelo
diapaso que no distingue sonho de realidade. Assim, o modista
um personagem poetizador, ou sujeito da enunciao textual canta-

A Theory of Narrative. Apud. REIS, Carlos e Lopes, Ana Cristina M.


102

Dicionrio de Teoria da Narrativa, p. 251 e s.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

da, que funciona como criatura inserida na prpria fico que realiza.
Promove traslaes ideolgico-culturais, por conexes imediatas
estabelecidas pela subjetividade do intrprete real que canta e de quem
ouve; e, sobretudo, promove com o auditrio um arrendamento de
fatos e circunstncias imaginrios, apresentados como se fossem reais.
Parecem posseiros, no de terras, mas de quimeras. Os textos, como
entidades insubmissas e artsticas, so escrituras de sonhos! E mor-
mente so, na perspectiva do imaginrio, ou seja naquela perspectiva
que talvez Andr Breton defendesse como a verdadeira realidade.103
O cantador-violeiro, assim entendido, realiza, sonhadoramente, uma
forma semelhante da focalizao interna mltipla, na acepo de
Genette, quer dizer, cria um universo de discurso que [pelo processo
de um rito, acrescento] entra em sintonia com a concordncia geral do
grupo.104 Ele o realizador de uma quimera, o que flutua e transpor-
ta-se no espao, na imagem potica de Gilberto Gil:

Se os frutos produzidos pela terra


Ainda no so to doces e polpudos
Quanto as peras da tua iluso,
Amarra o teu arado a uma estrela,
E os tempos daro:
Safras e safras de sonhos,
Quilos e quilos e amor,
Noutros planetas risonhos,
Outras espcies de dor!

(Amarra o Teu Arado a uma Estrela,


in O Eterno Deus Mudana, 1989)

Essa formulao de romance autoral, vamos encontrar numa de


suas mais vigorosas expressividades em O Menino da Porteira, de Teddy
Vieira e Luisinho (Lus Raimundo, So Paulo, 19l6-). Lanado em
1955, e pertencente ao paradigma dos Romances de Vaqueiros de
vastssima ocorrncia na Moda Caipira de razes, esse cururu surgiu
primeiramente com o ttulo O Menino da Portra, reproduzindo a

103
Tenho em mente os Manifestos do Surrealismo (1924 e 1930), de Andr Breton.
104
Figures III, p. 206 e ss.

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ROMILDO SANTANNA

reduo ditongal to caracterstica da linguagem falada e, como induo


identificadora, imitando caligraficamente a prosdia. De acordo com
pesquisa de campo realizada junto a artistas, intrpretes, composito-
res, diretores de gravadoras e apresentadores de rdio, trata-se da
moda caipira gravada em disco mais solicitada, a mais lembrada, por
seus predicados de empatia com o mundo rural.105 Seu tema,
construdo com impulsos simples, atvicos ou elementares se trans-
formou em argumento do filme de cinema de muito sucesso popu-
lar, O Menino da Porteira (1977), dirigido por Jeremias Moreira Filho e
tendo como principal intrprete o cantor Srgio Reis. Ei-la:

O MENINO DA PORTEIRA
cururu

Teddy Vieira / Luisinho

Toda a veiz que eu viajava


Pela estrada de Ouro Fino,
De longe eu avistava
A figura de um menino,
Que corria abri a portera
Depois vinha me pedindo:
Toque o berrante, seu moo,
Que pra mim fic ouvindo.

Quando a boiada passava,


Que a poera ia baixando,
Eu jogava uma moeda
Ele saa pulando.
Obrigado, boiadeiro,
Que Deus vai lhe acompanhando!
Praqueles serto a fora
Meu berrante ia tocando.

No caminho desta vida


Muito espinho eu encontrei,

BARISON, Osvaldo Lus. Moda Caipira: Cantador, Universo, Mediaes e Partici-


105

pao Emotiva.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Mas nenhum cal mais fundo


Do que isto que eu passei:
Na minha viage de vorta
Quarqu coisa eu cismei,
Vendo a portera fechada
O menino no avistei.

Eu apiei do meu cavalo


Num ranchinho bera-cho,
Vi uma mui chorando
Quis saber qual a razo.
Boiadero veio tarde
Veja a cruz no estrado:
Quem mat o meu filhinho
Foi um boi sem corao.

L pras banda de Ouro Fino


Levando gado servage,
Quando eu passo na portera
At vejo a sua image.
O seu rangido to triste
Mais parece uma mensage
Daquele rosto triguero
Desejando-me boa viage.

A cruizinha do estrado
Do pensamento num sai,
Eu j fiz um juramento
Que no esqueo jamais.
Nem que o meu gado estore,
Que eu precise ir atrais,
Neste pedao de cho
Berrante eu num toco mais.

(Luisinho e Limeira, 1955)

Composto de seis estrofes oitavadas, que se articulam em unida-


des funcionais de duas quadras, e estas subdivididas em dois dsticos,
e seguindo o farol da metrificao octossilbica da redondilha maior,

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ROMILDO SANTANNA

O Menino da Porteira caracteriza-se como um pico-lrico exemplar de


um narrador estradeiro, o homo viator: desde logo verificam-se marcas
pronominais de primeira pessoa, identificando o narrador que
deslinda o causo como se fosse real, situando-o num tempo dis-
tante, numa das paragens mineiras da estrada de Ouro Fino, e na
vicissitude habitual do surgimento de um menino, para abrir a por-
teira. Pela familiaridade plstica da cena, implcito que o menino
posta-se sentado no mouro, a admirar em lenta toada, a aproxima-
o ondulante e sinuosa da boiada. Neste contexto, atado vivncia
afetivo-sensorial dos circundantes os ouvintes , a narrao enfatiza
um aspecto fundamental ligado psicologia do cantador-violeiro em
seu entrelaamento com o eu coletivo e solidrio dos ouvintes.
Realiza-se a encenao de um rito: toda a vez em que se realiza o
percurso lento de chegar a boiada por aquelas bandas,
a) surge o mesmo menino;
b) que abre a porteira;
c) que se posta no mesmo lugar;
d) que pede ao ponteiro de comitiva que toque o berrante;
e) que recebe uma moeda, funcionalmente identificada no s
como recompensa pelo favor de abrir a porteira, mas por
constituir-se como o elemento do ritual, no ato de comunica-
o afetiva do boiadeiro com a criana.
Na perspectiva do boiadeiro viandante estabelece-se um contrato
estimulante que o apanha em seu percurso solitrio, e o conduz, pelo
saudosismo, ao ambiente de casa, quem sabe, na presena de seu pr-
prio filho, ou de si mesmo, convertido na mesma criana do passado, e
que o espera, para a redescoberta deliciante de sua prpria infncia, no
contexto dum mesmo ritual. Neste ponto, necessrio que se descubra
o seguinte: no movimento lento e penoso de uma boiada de arribada
pelos eitos do serto, em que o silncio da solido absorta s trincado
por brados graves e agudos, passos pegados, berrantes e mugidos,
cem metros uma distncia enorme; uma lgua, pra l de uma infinida-
de. Assim posto, o longe, infinitamente longe, e o perto, muito perto,
se confluem num momento mgico, de grande coeso comovedora
entre o texto, o cantador e o pblico ouvinte. Esta parece ser a chave de
um dos constituintes principais do rito de jogar uma moeda: o
ponteiro de comitiva realiza o gesto de dar embora o regalo, como se o

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

desejasse receber em criana, na convergncia de sensaes do encontro


com um sacralizvel boiadeiro imaginrio. A encenao ritual assume
valor de consagrao, que envolve a participao tica, coletiva. Assim,
os componentes semnticos que constituem a primeira estrofe j mo-
bilizam a sensibilidade dos destinatrios, prendendo-os num frmito
e a uma espcie de iconizao da realidade sensorial, afetiva e emoci-
onal. Exprime-se como uma espcie de gancho inarredante para o que
vir em seguida: a tragdia da morte da criana, por uma entidade
animizada, maleva, uma espcie de bandido (um boi sem corao).
Estabelece-se o sentimento de perda filial ou perda de si mesmo; expri-
me-se o silncio do berrante e dos brados, cala-se o canto gregoriano
de aboios e instaura-se a sensao de vazio pela dissoluo do ritual.
Essa ruptura com o rito que explica a fora expressiva de seu desfecho:
neste pedao de cho / berrante eu num toco mais. Algo como no
brinco mais nesse lugar fatdico, desrealizador de sonhos. Neste sen-
tido, o signo porteira avulta-se como um relicrio: zona de limite entre
um estado de alma e outro. Abri-la pelo menino simboliza essa passa-
gem. ponto de referncia de uma etapa percorrida, prtico do reco-
meo e renovao. Por isto, no cururu em exame, porteira representa
menos o que se pode ver e mais o que simboliza: d acesso continu-
ao de uma viagem. A morte do menino, pois, representa o prtico
fechado, no aquele que est ali, mas o que ele significa, como realidade
transcendente. A viagem se extingue; no h mais pontos de refernci-
as a ultrapassar, no h mais alavancas que acionam o renascer.
***
A compreenso da eficcia potica pela utilizao do estradeiro, o
ponteiro de comitiva, em O Menino da Porteira, permite conhecer a tipologia
dos narradores na Moda Caipira. Compondo-se de ornamentos tpicos
de um certo contexto escritural o discurso da grande maioria das mo-
das, sobretudo os cururus, caterets, toadas e modas-de-viola , a anlise
desse romance autoral permite conhecer facetas estilsticas do persona-
gem-cantador por meio de sua poesia. A operao contrria nunca
vlida esclarece Mikel Dufrenne,106 pois, mesmo em se tratando de
uma focalizao autoral, dificilmente possvel conhecer o poeta por meio
da poesia. Em cada moda o modista personifica o um, na identidade e
circunstancialidade de sua prpria saga, a nova histria narrada.
106
DUFRENNE, Mikel. O Potico, p. 115 e ss.

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ROMILDO SANTANNA

O que importa, no texto pautado, reconhecer o estado poti-


co implantado pela escritura, na agregao entre o cantador, sua
poesia e os ouvintes, tudo afinado pelo diapaso do reconhecimen-
to mtuo e especular, pela identidade que une mgica e
ritualisticamente o contexto da histria ficcional e o contexto real/
verdadeiro de enunciador/es (autor da escritura e intrpretes-
cantadores) e enunciatrios, por comunho afetiva ligados aos ou-
vintes reais. Lastreado e aguado nas aspiraes e sentimentos cole-
tivos, isto caracteriza o etnotexto. Neste sentido, a voz enunciadora
de O Menino da Porteira e tantas e tantas outras modas caipiras,
funciona como aquela voz que descortina para o auditrio o univer-
so imaginativo de que se tem fome, a ser explorado e penetrado. Ao
exprimir esse mundo, ao adentrar nele, mesmo que por meio de
uma viagem onrica, como se fosse a fluidez de um devaneio, o
cantador-violeiro revela a si mesmo, com mximo tnus de
credibilidade, no como o autor civil de carne e osso, mas como o
narrador, no sentido artstico, com que se caracteriza o enunciador
no contexto da fico. No caso da Moda Caipira, significativamente
enfatizada por procedimentos escriturais de O Menino da Porteira,
volto a dizer, esse narrador protagnico qualifica-se como um eu
coletivo, quer dizer, aquele que incorpora e vivencia, e aps expri-
me, embrenhando no mundo de aspiraes, sentimentos e conhe-
cimentos de sua platia ao vivo, ou distanciada dela pela
intermediao do fonograma em disco. O mosaico altamente orga-
nizado de signos, no cururu em exame, estabelece vnculos indel-
veis com o contexto real do auditrio, em sua esfera de ao social,
provncia tica e imaginativa. O modista ou poetizador sempre expri-
me uma forma de interlocuo imaginria; no constri a poesia
pela poesia, mas pelo mago da cultura em sua historicidade, pela
partilha e comunho deliciante e significativa com aqueles que lhe
so iguais, ou com aqueles, por intermediao da arte, que lhe ficam
iguais. Esta, definitivamente, a idia da necessidade do violeiro-cantador
no seu contexto social, porque, como poeta, torna verdadeira a
magnitude da existncia, antropolgica e politicamente. O cantador
o vate, o estro, o agente poltico e multiplicador capaz de suprir a
necessidade da arte no meio do povo.
Atuando da maneira exposta, por meio de uma literatura borda-
da de signos especulares, identificadores, o primitivismo da Moda

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Caipira de razes possui o condo de raramente deixar o auditrio


diante de, mas, quase sempre, dentro de, na teatralizao confortvel,
vvida e isocrnica da atividade lrica, de uma espcie de devaneio,
num mgico interldio de afetividades recprocas. Constri uma
ambientao poemtica anloga ao mtodo de construo textual-
performtica e ao laboratrio de representao teatral proposto em A
Criao de um Papel pelo encenador russo Constantin Stanislavski (1863-
1928), prenhe de uma modernidade barroca e romntica. O poetizador
repito funciona como entidade densa no discurso, co-extensivo a
seus ouvintes. Em O Menino da Porteira, ou da Portra e tantas
modas avioladas, cantadores-violeiros e seus ouvintes encarnam a
prpria linguagem, em sua funo potica, revivendo a reminiscncia
de um como se fosse real e verdadeiro. E, neste ponto, quero de relance,
e s de maravilha, citar as duas ltimas estrofes do belssimo e
iluminador poema El Tango, de Jorge Lus Borges:

Esa rfaga, el tango, esa diablura,


Los atareados aos desafa;
Hecho de polvo y tiempo el hombre dura
Menos que la liviana meloda,

Que slo es tiempo. El tango crea um turbio


Passado irreal, que de algn modo es cierto.
Un recuerdo imposible de haber muerto,
Peleando, em una esquina del suburbio.

O poetizador e seus ouvintes, no momento maravilhoso da


fruio de uma Moda Caipira, so o tempo e o p na imagstica do
grande artista platino. Contudo, s a moda perdura, com seu
arquicantador e virtuais ouvintes, independente do efmero das pes-
soas, porque eles so a encarnao da cultura, a poesia, o mito... So
slo tiempo, na dimenso utpica de universalidade e atemporalidade
que compete aos produtos artsticos. O cantador pessoa de relevo
em seu meio. Alheio muitas vezes mesmice da vida ordinria no
presente, por ach-la repetitiva e tediosa, busca a emoo dos sonhos,
plenos de aventuras e surpresas. Amarra o seu arado a uma estrela,
disse a cano! D um passeio nas nuvens do amor casto, sem peca-
dos. Sua arte, com aparncia to humana de imperfeio, exprime

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ROMILDO SANTANNA

tambm a existncia num espao pulsante e finito de expectativas.


Quero dizer o seguinte: a moda associa, no suporte do plano finito,
a dimenso infinita da existncia. Ela, imperfeita como as pessoas,
a prpria encarnao da conscincia da vida como um dnamo. No
entanto, retrocede o tempo todo, assuntando a seiva do que passou,
ou do que poderia ter passado, como fonte ou energia de sua prpria
razo, alegria, perenidade e infinitude. Assim, a imperfeio, no plano
do parecer, suporte da perfeio na atemporalidade do ser. por isto
que, na Moda Caipira de razes, o feio to prximo do sublime.
Mesmo enfocando o trivial, sob a inflexo do hoje, poesia que
poesia sempre conta a histria da tribo. Histria.
Repare esta cano:

CASINHA BRANCA
rasqueado

Eupdio dos Santos

Fiz uma casinha branca


L no p da serra, pra nis dois mor,
Fica perto da barranca
Do rio Paran!
O cenrio uma beleza, eu tenho certeza,
Voc vai gost,
Bem pertinho da janela, fiz uma capela
Pra nis dois rez!

Quando dia de festa


Voc pe o seu vestido de algodo,
Quebro o meu chapu na testa
Para arrematar as prendas do leilo,
Satisfeito vou lev voc de braos dado
Atrs da procisso,
E com o meu terno listrado,
Uma flor do lado,
Meu chapu na mo...

(Matogrosso e Mathias,
24 Horas de Amor, 1984)

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Esta a verdadeira histria da fauna humana, no a embrutecida


pela circunstncia que a deixou imperfeita, mas aquela purificada pela
possibilidade infinita do que poderia ter sido ou que, num tempo sei
l quando, deixou de ser. Este o lugar, o ninho, a idealizada e pacifi-
cadora casinha branca, bero ameno do casal, e de onde sai em rito
para a existncia coletiva, em procisso. a dama lendria, o gentleman
lendrio e corts, com os ares da aproximao cerimoniosa, como
num rito de casamento, solene, e ao livre arbtrio. Construir essa
beleza, tal o papel gerenciador do modista, em sua misso afetiva e
poltica, de suscitar o sossegado devaneio, fazer sonhar.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

5. O SENTIMENTALISMO
REINANTE

Inicio este captulo reproduzindo a letra de uma toada de Almir


Ster e Renato Teixeira. Convido-o leitura:

O VIOLEIRO TOCA
toada

Almir Ster / Renato Teixeira

Quando uma estrela cai


No escuro da noite
E um violeiro toca suas mgoas,
Ento os olhos dos bichos
Vo ficando iluminados,
Rebrilham neles estrelas
De um serto enluarado...

Quando um amor termina


Perdido numa esquina
E um violeiro toca a sua sina,
Ento os olho dos bichos
Vo ficando entristecidos,
Rebrilham neles lembranas
Dos amores esquecidos...

Tudo serto, tudo paixo


Se um violeiro toca...

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ROMILDO SANTANNA

A viola e o violeiro
E o amor se tocam...

Quando um amor comea


Nossa alegria chama
E um violeiro toca em nossa cama.
Ento os olhos dos bichos
So os olhos de quem ama,
Pois a natureza isso,
Sem medo, nem d, nem drama...

Tudo serto, tudo paixo


Se um violeiro toca...
A viola e o violeiro
E o amor se tocam...

(Renato Teixeira & Pena Branca e Xavantinho,


Ao Vivo em Tatu, 1992.)

A vida no campo cria um modo de civilizao em que o que


prevalece so os afetos do peito, centralizados no corao. O senti-
mentalismo um dos componentes radicais da literatura popular; a
atmosfera dolente emblema essencial da cultura brasileira, ela mes-
ma radicada no campo.
Sentimentalismo atrela-se paixo, signo extrado do vocbulo
pathos (o ser em si; mote existencial e solitrio da vida), justamente o
tino existencial e a radicalidade que sedimentam a lrica e sua manifes-
tao potica. Nem preciso afirmar que o sentido da paixo vincula-
se diretamente latinidade ibrica e aos superextratos etnolgicos
africanos de pele negra e indgenas. Porm, se podemos pensar numa
paixo brasileira, isto se deve ao mestio das trs raas formadoras,
como usina transformadora, ele-mesmo uma criatura que resultado
da transformao. o mestio que faz a travessia de costumes, a
semeadura do brasileirismo. Percebe Slvio Romero que nestas cria-
es mistas [a poesia oral-popular] d-se cumulativamente a ao das
trs raas; ao mestio pertencem, como prprios, o langor lrico e os
clidos anelos da paixo.107 Esta assertiva certamente contenha o
ROMERO, Slvio. Histria da Literatura BrasileiraI, p. 132.
107

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

sentido de cordialidade e seus afetos do corao, como trao da


especificidade brasileira, na viso antropolgica de Srgio Buarque de
Holanda. Ento, convenhamos, a literatura popular caipira essenci-
almente lrica, em verso e prosa. O sentimentalismo mestio funciona
como estmulo liberador, de extravasamento, de trasbordamento do
eu para limites da afetividade, do misticismo e do pr-lgico. No
entanto, convenhamos com Mikel Dufrenne , sentir experimen-
tar um sentimento no como um estado do meu ser, mas como uma
propriedade do objeto.108 Portanto, sentimento potico uma refe-
rncia de afeto que se projeta coletivamente no valor que se d s
coisas. No mundo caipira, como observaremos em diversas modas,
o sentimento se funde ao conjunto da vida consciente de modos que
a inteligibilidade da existncia e das coisas se realiza como produto de
operaes mstico-afetivas e sensoriais. Este estado de nimo permi-
te que o artista-poetizador navegue do isolamento em seu bairro,
vital e artisticamente, para o sentimento de liberdade; evada-se do
aprisionamento ntimo para os vos ritualsticos to freqentes na
latitude do provvel. Como intrprete dos estados sentimentais da
coletividade, a Moda Caipira de razes funciona como restabelecedora
de estados sentimentais intersubjetivos, euforia, bem-estar, angstia
depressiva, medo e agitaes emocionais de vria espcie. Mrio de
Andrade, num texto de 1924, sobre Msica do Corao, e referindo-se
obra acaipirada de Marcelo Tupinamb (Fernando Lobo, Tiet-SP,
1892-1953), autor de vastssima produo como Ao Som da Viola
(com Arlindo Leal), o cateret Matuto (com C. Costa) e a toada Viola
Mimosa (com Correia Jnior), escreve: trata-se de uma msica que
possui aquela dolncia caprichosa, lnguida; aquela sensualidade
trescalante, opressiva, quase angustiosa; aquela melancolia das vastas
paragens desertas; aquele deserto, digamos assim, da linha meldica
brasileira; e de quando em quando o arabesco inesperado; alerta, a
vivacidade espiritual do caipira, a inteligncia aguda, o burlesco repen-
tino herdado dos negros....109
***
Em se tratando da Moda Caipira de razes, naturalmente ligada aos
108
DUFRENNE, Mikel. Phnomlogie de Lexprience Estthetique, Apud.
In: COHEN, Jean. Estrutura da Linguagem Potica, p. 166.
109
ANDRADE, Mrio de. Msica, Doce Msica, p. 116.

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ROMILDO SANTANNA

estratos mais singelos da vida societria, o misterioso, o maravilhoso, o


encantatrio, o inexplicvel so componentes virtuais significativos para
a liberao sentimental. De fundamentao pr-lgica, h no meio cai-
pira uma circulao de mitos e crenas respeitados, pois tidos como
verdadeiros, verossmeis. O mstico, como a primeira e elementar ma-
nifestao da cultura, motivao de inmeros romances, como de
resto da arte em geral. Sua ocorrncia, no raro, dispersa e subliminar.
Por isto, a latncia do contedo mstico se verifica como pressuposto
cultural, na mais das vezes, ou como mobilizao concreta e nuclear do
texto. Ademais, como forma de expanso do esprito com vistas ao
que poderia acontecer, bem comum a predileo pela oralidade narrativa
dos causos e romances de assombrao que, sem dvida, excitam a faculdade
do imaginrio, a qual, pela possibilidade de evaso ntima, leva s velei-
dades, devaneios (e alguns pesadelos). O fantstico, com seus recheios
sincrticos de religiosidade, faz com que o auditrio flutue no campo
da hesitao, da incerteza. Entre o sim e o no, prevalece o talvez, mais
afirmativo que negativo. Esse e se for? misterioso, inacessvel e temero-
so engaja o caboclo na crena do desconhecido. A dvida, pois, impe
suas leis e to respeitada e temida quanto a lgica da certeza. Vale
observar que a entidade genrica da assombrao alavanca dos medos
individuais e coletivos. Sendo, pois, uma deformao da realidade fsi-
ca, visa ao encontro da realidade profunda do ser.
Relata Cornlio Pires que no grande o nmero de duendes ou
assombraes caipiras. Que eu saiba escreve temos o
popularssimo saci endiabrado e moleque levado dos diabos, o
lubisome, a pisadeira, o caipora, o cavalo ou a mula sem cabea, a bruxa, a me
dgua, a me de ouro e a porca dos sete leites.110 Acrescente-se o
unhudo, ou o porco seco, e as histrias da amaldioada sina do sti-
mo filho homem fadado a virar lobisomem. O mais assombrador e
temeroso do mundo caipira, no entanto, a alma penada o esprito
de gente rim e as vinganas e repreenses do alm, pelas aes dos
mortos e iras da natureza. Da serem bem aceitas as modas que te-
nham como enfoque as visagens e assombraes, o inslito, os mi-
tos de transformaes (lobisomens, demnios e maledetos em geral) e
muitas outras nas quais concorrem decisivamente a participao do
destino, do milagre, das coincidncias que so interpretadas como

PIRES, Cornlio. Conversas ao P do Fogo, p. 173.


110

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

sina, na insistente evocao de que a vida humana, em determinadas


situaes, regida pelas foras e entidades divinas e maravilhosas.
Promove-se a coisificao do sobrenatural, por senti-lo vivo e pulsante,
a estender providncias sobre circunstncias prticas da vida.
Nem vou-me fixar nos efeitos significativos dos santos catlicos
na Moda Caipira, por serem to habituais e quase familiares vida
rotineira, e por participarem bem-dizer de todas as atividades cultu-
rais, sem diferenas de regies, classes e religies. Nesse contexto de
religiosidade, o campo meditativo da toada Romaria, do artista cuja
graa Renato Teixeira, sntese da concepo do caipira como ser
existencial, a precariedade e singeleza da condio humana um esta-
do de solido que se propala como projeo ntima. Com a tempe-
rana que fruto da Moda Caipira de razes, e usando de modo tnue
estmulos que acendem a memria afetiva do ouvinte, tudo
transparece num plano evocativo: de sonho e de p / o destino
de um s, / feito eu, perdido em pensamentos / sobre o meu cava-
lo.... Apenas trazendo lembrana um sentimento, alude mstica e
quilo que o caboclo sente como o grandioso inefvel, o momento
epifnico e o numinoso de suas litanias e preces. Escrita com a agude-
za singela de estrofes que parecem exprimir a forma recitativa de ver-
sos sussurrados, em introspeco e solilquio, ante a sublimidade de
Nossa Senhora Aparecida a Madonna do Brasil (ou o eterno femini-
no, em sua regio mtica) , e na impossibilidade de verbalizar pala-
vras bonitas, o cantador absorto manifesta o indizvel pela prolao
de um silncio contrito, de splica facial e do sentido de verdade que
se manifesta pela chama dos olhos: como eu no sei rezar / s
queria mostrar / meu olhar, meu olhar, meu olhar.... Estabelece-se,
pelo sentidos alojados no silncio, um canal de unio com o sagrado.
Instaura-se a superao da matria visvel. o instante em que a
sensibilidade paira num horizonte anmico e, abdicando-se da lin-
guagem, percebe um nvel de significado que acende a partir do enlace
de elementos que se situam no olho mental do poeta e se estende
sensibilidade do leitor. Este poema-cano de Renato Teixeira,
finamente penetrado na alma cabocla crescida de corao, como diria
Guimares Rosa, atualiza o preceito de que, para a criatura comum, a
palavra est aqum da grandeza que lhe compete exprimir. Essa ma-
nifestao, romanticamente, primazia da inspirao, talento e sabe-
doria do poeta-cantador:

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ROMILDO SANTANNA

ROMARIA
toada

Renato Teixeira

de sonho e de p
O destino de um s,
Feito eu, perdido em pensamentos
Sobre o meu cavalo!
de lao e de n
De gibeira o jil
Desta vida, comprida, a s.

Sou caipira, pirapora Nossa


Senhora de Aparecida!
Ilumina a mina escura e funda,
O trem da minha vida!

O meu pai foi peo,


Minha me, solido,
Meus irmos perderam-se na vida
custa de aventuras,
Descasei, joguei,
Investi, desisti,
Se h sorte, eu no sei,
Nunca vi.

Me disseram, porm,
Que eu viesse aqui
Pra pedir de romaria e prece
Paz nos desaventos,
Como eu no sei rezar
S queria mostrar
Meu olhar, meu olhar,
Meu olhar...

(Renato Teixeira, Romaria, 1978)

Em Romaria talvez se aplique em profundidade a reflexo de

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Staiger111 sobre o estilo lrico em poesia: o assunto de que trata o


poema deixa de ser reproduo para ser incorporao da realidade: a
linguagem se funde ao acontecimento e o acontecimento lingua-
gem. Estabelece-se um campo de sugestividade em que a seqncia
de vazios propicia uma nova sntese na conscincia mstica do ou-
vinte. Assim, o estado lrico instaurado pela linguagem e a linguagem
ela-mesma revelam-se a mesma coisa. Esta falta de distncia entre o
dialeto caipira e a obra corresponde mesma falta de distncia
instaurada pela recordao lrica: a mxima aproximao entre o
cantador que diz e aquilo que dito e que se repassa ao ouvinte.
Provavelmente seja por isto que essa toada possui uma formatao
que produz um encantamento enigmtico, inefvel. Falando sobre o
mundo caipira, e sendo ao mesmo tempo incorporao desse mun-
do, a obra tende a revelar-se como organismo em si. Talvez assim se
explique o inefvel to expressivo de um singelo mostrar um olhar o
qual, despojado de palavras e no afeito a racionalizaes, j diz tudo.
Aos missionrios catlicos, a partir da Primeira Missa e pela
interveno da Companhia de Jesus, devemos os alicerces educacio-
nais e religiosos expandidos de Norte a Sul do pas em todo Pero-
do Colonial, nas cidades, nos campos e at nas matas. Devemos
tambm as bases de uma educao esttica regionalista e nacional,
sedimentadas no por etnias puras, mas pela mestiagem. Quase
toda arte brasileira, at o sculo XVIII, eivada de um profundo
fervor religioso: na literatura, na msica, na arquitetura e artes pls-
ticas em geral. A obra incomparvel e magnfica do mulato Aleijadi-
nho (Antnio Francisco Lisboa, Ouro Preto-MG, 1730-1814), com
suas jias esculturais miniaturadas em madeira, seus santurios e
profetas em pedra-sabo, resistindo ventania da predao huma-
na, podem ser consideradas como o mais vivo e perene emblema da
Arte Nacional em seu nascedouro. Pode-se dizer que a meiguice
caipira de todos os nossos grandes artistas tem na arte sacra e na
alegoria poltica do caipira Aleijadinho, em cada passo de sua paixo,
uma liturgia da liberdade, um alumbramento radical e um encadea-
mento fundamental com o eterno.
O misticismo e o sentimentalismo brasileiro, e o caipira em espe-
cfico, tm que ser vistos na dimenso etnolgica de nossa formao
111
O Potico. In: STAIGER, Emil. Conceitos Fundamentais de Potica.

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ROMILDO SANTANNA

cultural, nem tanto em relao aos amerndios, aos africanos e portu-


gueses originais, mas sobretudo pela transfuso mstica provocada
pela mestiagem de etnias e culturas. Explica Slvio Romero que o
agente transformador por excelncia tem sido entre ns o mestio, que
por sua vez j uma transformao; ele porm tem por seu lado
atuado tambm como criador.112 Assevera Lus da Cmara Cascudo
que os indgenas no se deslocaram to intensamente quanto os
portugueses. As migraes do tupi, do sul para o norte, no explica-
riam a difuso dos seus mitos na populao brasileira posterior. Os
africanos ficaram nas zonas de trabalho e quando fugiam, criando os
quilombos, jamais foram esses muito distanciados das reas iniciais
da fixao. A divulgao deveu-se principalmente aos mestios,
mamelucos, cafuzos, mulatos, curibocas, acompanhando a marcha
bandeirante e pesquisas do ouro e diamantes.113
A ligao com o mstico precede o discurso formal, subjacente a
ele. O exemplrio de modas com a participao do misterioso inten-
so, e vamo-nos fixar nalguns poucos casos mais abrangentes dessa
evaso sentimental pela vertente de nosso misticismo mestio. de
Teddy Vieira e Jayme Ramos a seguinte moda de verso dobrado:

A MOA QUE DANOU COM O DIABO


moda-de-viola

Teddy Vieira / Jayme Ramos

Numa sexta-fera santa


H muitos ano atraiz,
Na cidade de So Carlos,
Pubricaro nos jornais:
Uma moa muito rica
Contrari o gosto dos pais.
Num baile que feiz em casa,
Ela dan co Satanais.

Quando o baile come


Regulava nove hora,

ROMERO, Svio. Histria da Literatura BrasileiraI, p. 131.


112

CASCUDO, Lus da Cmara. Folclore no Brasil, p. 127.


113

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Cheg um moo bem vestido


Arrastano um par de espora,
Dano viva para o povo,
Como vai, minha senhora?
Quero conhec a festera
Porque eu t chegando agora.

O vio disse pra fia:


Hoje o baile t mudado
Tamo no fim da coresma,
Isso pode s pecado.
A mocinha respondeu:
O senhor que t cismado,
Jesus Cristo est no cu
E nis aqui dana largado.

Pegano na mo da moa
O moo saiu danano
Tocava varsa e mazuca
O cabra tava virano.
Com o chapu na cabea
A moa foi incomodano:
O senhor dana direito
Que mame no t gostano.

Ele foi, disse pra moa:


Minha hora j cheg,
Eu preciso ir-me embora
Que o galo j cant.
Tir o chapu da cabea
E os dois chifre ele mostr.
Parecia um toro vio
Daquele mais pecad.

O diabo sort um bufo


E sumiu numa exproso,
Praquela gente sem f
Isto serviu de lio.
No meio da correria
Dois grit em confuso:

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ROMILDO SANTANNA

Fic loca a moa rica


Fia do Major Simo.

(Vieira e Vieirinha, 1989)

Nessas redondilhas, compostas em 1952 e adaptadas de uma


moda caipira suspostamente oitocentista, segundo me relatou o pr-
prio Vieira, as motivaes realistas direcionam a linha do entendi-
mento como romance de causo verdico de assombrao (aconteceu na
cidade de So Carlos-SP, na casa de um certo Major Simo, e foi com-
provado pelos jornalistas). A palavra escrita no jornal abonadora e
oficializa, por assim dizer, o que poderia passar por lenda ou
invencionice; ratifica a transposio do imaginrio como ocorrncia
emprica, situada e datada.
O tema da moa pecadora que danou com o capeta freqente
nos folhetos de cordel nordestinos. H inmeros deles, como O
Grande Exemplo da Moa que Foi ao Inferno por Disfazer da Me Dela e
Zombar de Frei Damio, de Gilberto Severino Francisco, A Moa que
Dansou com Satanaz no Inferno e Estria de Marieta, A Moa que Danou
no Inferno, de Jos Costa Leite. Por isto, suponho que essa moda
possa ser uma adaptao de um desses folhetos, como ocorrera com
outras de Teddy Vieira. Neste caso, a genealogia temtica da moda
segue um percurso indireto em cuja nascente situa-se a permanncia
do Romanceiro tradicional, numa de suas mais constantes tpicas, a
da perorao. No texto em pauta, realiza-se um processo de ancora-
gem semntica para sedimentar, pelo libi, o efeito de realidade. Carre-
gada da simbologia da queda e suas foras regressivas, levando consi-
go a idia de morte, em relao moa, a moda relata uma fbula que
encena outra face do mito da transformao: o rapaz sedutor era na
verdade o corao satnico, o lcifer (etimologicamente, o que carrega a
luz). Apresenta-se como lio de moral, conselho ou advertncia
jovem supostamente de m vida e insubmissa aos cdigos catlicos,
que desobedeceu as ordens dos pais e promoveu um baile no fim da
quaresma. interessante ressaltar que, em modas anlogas, a propa-
gao imaginativa do sobrenatural, pela metamorfose, funciona com
fins pontuais de pedagogia, admoestao e lio de vida, de conheci-
mento do mundo, dentro do quadro de referncias caboclo ou caipi-

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

ra. Deste modo, seu teor moralizante inscreve-se na tbua das histri-
as de sbios conselhos. Atualiza, como afirmei, a tpica medieval da perorao,
ou seja, o desfecho do discurso deve resumir o ponto principal e
depois dirigir um apelo aos sentimentos dos ouvintes, isto , mov-
los revolta ou compaixo.114

Ilustrao n.5 A Moa que Dansou com o Satanaz no Inferno,


folheto de cordel de Jos Costa Leite.
Xilogravura do Autor.115

Em geral, o mstico, o misterioso so postos no contrato das


coisas com as quais no se brinca, que devem ser respeitadas e temi-
das. Se se pode admitir que o sentimentalismo na Moda Caipira de
razes institui-se como um prolongamento do iderio medieval e
romntico, em modas como a que pautamos isto particularmente se
evidencia. No romantismo, como se sabe, a imaginao se antecipa
memria, tornando acontecimento o que seria uma quimera. Este modo
de conceber a natureza da imaginao potica, escreve Vtor Manuel

114
CURTIUS, Ernest Robert. Literatura Europia e Idade Mdia Latina, p. 93.
115
Apud. KLINTOWITZ, Jacob. Mitos Brasileiros, p. 57.

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ROMILDO SANTANNA

de Aguiar e Silva, conexiona-se com uma determinada viso


cosmolgica: o universo surge povoado de coisas e de seres que, para
alm das suas formas aparentes, representam simbolicamente uma
realidade invisvel e divina, constituindo a imaginao o meio ade-
quado de conhecimento desta realidade.116 Tal alastramento de
medievalismo romntico, que recapeia o mundo por uma viso ima-
ginativa e comovedora, associado a questes de ordem histrico-
social e tnica pode constituir a base psicolgica do sincretismo religi-
oso, to comum nas camadas populares. Sincretismo que tende a
vincular os dogmas devocionais da catequese clerical a outras crenas
sobrenaturais amerndias e africanas. Isto engendra uma outra forma
de religiosidade, qual seja o catolicismo brasileiro, a religio concebida
imagem da vontade coletiva, vivo nos segmentos populares, mais
afetivo, familiar e sentimental e, portanto, significativamente diferen-
te do catolicismo romano. A compreenso disto basilar para o en-
tendimento da leitura do mundo no universo de sentidos da Moda
Caipira. Como escrevera Srgio Buarque de Holanda, em Razes do
Brasil, comum no meio rural ficar-se de mal com um santo ou
mesmo submeter-lhe castigos, ou ofertar-lhe recompensas por aten-
der ou no ao pedido de um devoto. So comuns formas de trata-
mento como meu Santo Antoninho, minha Nossa Senhora
Aparecidinha, Jesus Cristinho como se a afeio estilstica do di-
minutivo encurtasse as distncias entre o oculto imaginado e o terrenal
visvel. Assim, avanando nossa reflexo sobre literatura popular cai-
pira, possvel afirmar que, em significativa mostra, a anlise textual
passa pelo pressuposto de que a existncia cabocla dimensionada
tambm pelos valores que no so deste mundo, mas que, em certas
ocasies, possvel acercar-se deles ou torn-los palpveis na aes
mais corriqueiras. As relaes do campnio com a sua roa e as suas
criaes esto estreitamente ligadas s determinaes que vm do cu.
Por isto, em geral, fazem pouco caso aos conselhos agronmicos e
veterinrios. Quem cuida mesmo de uma bicheira a benzedura ou
pajelana de um bom curandeiro.
Ao ensejar o medo na recepo contnua da comunidade, a
execuo da moda tende a funcionar ritualisticamente como uma
prece. Equivale, quantitativamente, reza do tero nas reunies

AGUIAR E SILVA, Vtor Manuel de. Teoria da Literatura - I, p. 553.


116

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

familiares e procisses nas quais a repetio insistente e progressiva


dos mistrios faz com que a splica alcance o alm. A insistncia,
pois, funciona como capricho de conquista. O alm passa a ser o aqui, e
o infinito o agora, embaralhando dimenses. Enfocando essa refe-
rncia sentimental com o mstico, Roberto DaMatta lembra ainda
que o modo mais comum [de relacionar-se misticamente] atra-
vs da cantoria, onde a prece faz com que se juntem todos os pedi-
dos num s, que deve subir aos cus levado pelas harmonias das
vozes que o entoam. Explica o antroplogo cultural que o baixo
a terra em que vivemos: vale de lgrimas onde sofremos, trabalha-
mos e finalmente morremos. A reza, a festividade religiosa e o
canto propiciatrio coletivo so meios de se chegar at essas regies
superiores, ligando o aqui e agora com o alm e o infinito. 117
Como a Moda Caipira de razes pressupe um contrato unificador
com o pblico ouvinte no horizonte de sua cultura, mantendo com
o mesmo uma ligao con-ficcional, exemplos como A Moa que
Danou com o Diabo tendem a funcionar como canto religioso,
propiciatrio de uma mudana de atitude, uma advertncia moral
sria como so srias as interpenetraes do caboclo no mundo das
foras misteriosas, mas correlatas sua prpria maneira sentimental
de lidar com a natureza. Este um dos principais sentidos que
tenho tentado imprimir interpretao do pagode como evento de
socializao. rito compadresco e vicinal. Seu canto e suas histrias,
seu baile no cho-batido de alguma varanda ou paiol, ou numa
roda ao p-do-fogo, assumem um significado que ultrapassa a
univocidade do mero encontro. Observa Eunice R. Durhan que
esse mnimo de sociabilidade se estabelece atravs do parentesco e
compadrio, como princpio de organizao social do mutiro e tro-
ca de dias como formas de cooperao econmica, configurando os
grupos de vizinhana que constituem a unidade por excelncia da
vida social cabocla. ... Na pobreza social das formas coletivas de
ao, destaca-se o mutiro como uma das poucas instituies de
plena participao do grupo vicinal mais amplo. Mas, mesmo no
mutiro, no ocorre, a no ser excepcionalmente, um esforo coo-
perativo que implique na diviso e interdependncia das tarefas,
mas uma justaposio de atividades equivalentes e independentes:

117
DAMATTA, Roberto. O que Faz o brasil, Brasil?, p. 110.

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ROMILDO SANTANNA

antes trabalho associado que trabalho dividido. Referindo-se


festa, aps o mutiro, aos encontros festivos nos dias santos, e seus
significados ritualsticos, e ao encontro religioso propriamente dito,
escreve Durhan que apenas as atividades ldicas-religiosas apare-
cem como manifestaes mais plenas da comunidade enquanto
totalidade. O culto, que freqentemente envolve cerimnias sacras e
profanas bastante complexas, constitui uma das atividades mais
organizadas da vida social cabocla.118 A moda gravada em disco, de
alguma forma, mesmo representando a padronizao imposta pela
indstria de entretenimento, tenta simular uma atmosfera de en-
contro, mediante procedimentos em que concorrem fundamental-
mente os mecanismos de compositivos de enunciao.
A moda seguinte bastante interessante como exemplar dos efei-
tos sensrio-emocionais, mticos e sentimentais reinantes em boa
parte das modas caipiras. Em O Milagre da Vela, realizado nos idos de
1960, o eu-cantador sai de arribada para a cidade, situando-se vizinho
de um sobrado onde morava uma viva. Ela herdou uns cobre
(dinheiro) do marido e trocou a querncia do campo pela vaidade do
conforto seu e dos filhos. seduzida pelo chamariz da cidade, com
seu espetculo de variedades, opulncia e civilizao. O modista,
pois, que geralmente vai buscar assunto nas ninharias dia-a-dia, no
desconhecido e fabuloso do serto, desta feita vem embora da cidade,
para narrar a fbula de quem saiu do campo, e portanto, algum que era
familiar no mundo caipira. O ciclo de regresso do cantador muda o
centro de gravidade da Moda Caipira em geral. Embora seja um
causo emprissionante, tpico do imaginrio campons, os nveis de
correo de linguagem prprios do padro da escrita, j alegorizam
essa passagem pelo mundo urbano, na interpretao mestia de Tio
Carreiro e Pardinho:

O MILAGRE DA VELA
moda-de-viola

Carreirinho

L no bairro aonde eu moro,

DURHAN, Eunice R. A Caminho da Cidade, p. 56-57 e 78.


118

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Um dia desses passado,


Se deu um causo emprissionante
Que ficamo admirado.
Uma vizinha de casa
Que h tempo tinha viuvado,
Fic ela e treis filhinho,
Residiam num sobrado.
O velho quando morreu, ai,
Deix alguns cobre guardado.

Era meia-noite e meia,


O relgio tinha marcado,
E a viva no dormia,
Virando pra todo lado.
Quando quis pegar no sono,
Escut um forte chamado.
E ela ento reconheceu, ai,
Que era a voz do seu finado:
Vai acudir nossos filhos
Para no morr queimado.

A velha vir pro canto,


Pens que tinha sonhado,
Quando a voz se repetia:
Vai faz o meu mandado.
Ela levant depressa,
E o quarto estava fechado.
Arromb a porta e entr, ai,
Num gesto desesperado.
Uma vela sobre a mesa
J com fogo no toalhado.

Com o barulho da porta,


Os menino acord assustado.
E a mesinha em lavareda,
Na cama estava encostado:
Meus filhos, pra qu esta vela
Se a fora no tem faltado!
Minha me, quinze de agosto,
Nis estamos bem lembrado.

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ROMILDO SANTANNA

Que hoje completa um ano


Que papai foi sepultado.

(Tio Carreiro e Pardinho,


Modas de Viola Classe A, v.4, 1984).

De modo sutil, esta moda-de-viola simboliza a lio moral con-


tando um causo de uma viva alongada que se seduziu pelo bem-
estar material e a comodidade, quebrando a referncia de convvio
com seu mundo de origem. Vale sublinhar que o bairro citado no
primeiro verso o espao fsico, vital e social que, na vida isolada do
caipira, lhe permite a idia de sua localidade. Ir morar num sobrado e,
portanto, num pavimento superior, j hierarquiza a superioridade
simblica em relao ao bairro rural de onde veio. Embevecida e vai-
dosa da mudana, a viva olvidou-se do passado e seus votos de
compromisso representados, entre outras ndices, pela forma sim-
blica de aliviar o luto, ou seja, desrespeitar a memria do marido
morto, desligando-se de sua propriedade invisvel. Esse clima se
instaura de maneira crucial pelo processo de desvirtuamento simb-
lico de vela: enquanto na sabena preservada no mundo rural sinal
de vida e f crist, a viva se distancia desses valores para dar ao
mesmo smbolo uma leitura pag, como substituto da falta de fora
(energia eltrica), um dos emblemas da cidade. H, portanto, a trans-
gresso de um tabu, a renegao dos cdigos morais e religiosos,
implicando danos no meio grupal que devem ser reparados e, no
caso, punidos. A primeira reprimenda mulher infiel aos princpios
de sua origem vem do prprio caboclo morrido, que ordena em tom
enfezado: Vai faz o meu mandado!. E ameaa, pelo poder do
fogo purificador, com a runa da famlia e a destruio de tudo. Cabe
reparar que embora o marido no seja vivo, vvido na memria
grupal e, portanto, sua presena sentida e lhe so acreditadas as
prerrogativas do respeito.
Carregado de intenso sentimentalismo (reparem-se os ais!
emotivos dispersos pelas estrofes), pois representifica a sombra ater-
radora da morte, o discurso lrico-narrativo de O Milagre da Vela carac-
teriza-se por um encadeamento e conexo de atrativos temticos que
a todo instante prendem a ateno do auditrio para o desfecho,
remoando mais uma vez a tpica medieval da perorao. Fundamenta-

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

se, diante do pblico, no prazer engendrado pelas emoes pungen-


tes. Tratando do misterioso, esta moda contm ingrediente psicol-
gico que Schiller anotara h tanto tempo: fenmeno comum em
nossa natureza que o que infunde tristeza, temor e mesmo horror,
nos atraia a si com irresistvel magia e que, com igual fora, nos sinta-
mos repelidos e atrados ante cenas de desespero e horror.119 Nesta
ansiedade pelo futuro imediato da mensagem, pela descoberta do
que de misterioso e surpreendente possa acontecer, certamente finca-
do num estado de nimo aproximado da angstia depressiva, os
augrios do outro mundo se do na orbe dos espritos e almas
penadas, outra caracterstica no muito catlica no catolicismo brasi-
leiro. Revigora-se ainda uma variante do mito da transformao: o
morto se transforma e aparece, e se comunica com os vivos, real e
ameaadoramente; sua voz ouvida materialmente, alta e em bom
som; o marido morto, o intangvel tornado tangvel, se anuncia, pela
fora do mistrio, por meio do fogo e da ameaa de morte verdadeira.
Ele se transforma em porta-voz das demandas dos sonhos coleti-
vos, agente cmplice de seu meio. Nesta moda atualiza-se, de igual
maneira, uma variante mtica de Media: a punio ao cnjuge infiel se
daria primeiramente pelo sacrifcio trgico dos filhos. Neste sentido, a
estrutura dramtica do ritmo semntico (que leva, como no teatro,
ansiedade do porvir), o sentimento agnico da relao com o sobre-
natural, a sombra do trgico e do pavoroso provocam na assistncia
o impacto do efeito catrtico, homloga ao da tragdia clssica.
***
Bastante comum na Moda Caipira o surgimento da alma do
outro mundo para cumprir o prometido, para realizar o trabalho
que deixou inacabado, ou para retribuir algum por algum benefcio
que lhe fizera em vida. Neste sentido, desaparece sua feio
assombradora e surge uma face angelical, benfazeja e milagrosa. O
exemplo mais englobador de regenerao do mito da ressurreio
profana que posso oferecer A Alma de Ferreirinha, uma das trs
respostas que conheo da moda-de-viola Ferreirinha. Em letras desse
tipo, como se o romance original se deslacrasse do mundo fechado
de suas palavras e, interativamente, se abrisse continuao. D-se
um processo de transtextualidade, pela produo de uma moda
119
SCHILLER, Friedrich. Teoria da Tragdia, p. 77.

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ROMILDO SANTANNA

congnere. No caso, para enfatizar o sentimento de perda ocasionado


pela morte, e restaurar a imagem de um carter magnnimo que tal-
vez no fora notado em vida, o boiadeiro volta ao mundo dos vivos
e se redimensiona heroicamente. Como que reafirmando um dos
cdigos mais valorizados no ethos caipira, e j enfatizados na moda
original, a solidariedade e o companheirismo adquirem nessa moda
uma dimenso milagrosa que os faz ultrapassar os limites da prpria
existncia. Composta em 1959 por Zilo e Jeca Mineiro, essa forma
romanceada e de suspense um dos grandes sucessos dos irmos
Zilo e Zalo (Anbio Pereira de Souza, 1935- e Belizrio Pereira de
Souza, 1937-, nascidos em Santa Cruz do Rio Pardo-SP):

A ALMA DO FERREIRINHA
moda-de-viola

Zilo / Jeca Mineiro

Eu parei na invernada
Da fazenda gua-Fria,
Pra descansar a boiada
At o raiar do dia.
Os pees da comitiva
Que nesta tarde forgava
Foram todos pra cidade
Comprar o que precisava.
Eu deitei na minha rede
Procurando descansar,
Mas nessa hora pensei
Que o mundo ia desabar.

Uma briga de cachorro


Assustou a zebusada,
Eu fiquei desnorteado
Vendo o estouro da boiada,
Mas naquilo eu avistei
Um compero na invernada
Estalando o seu chicote
E gritando com a boiada.
Ele reuniu o meu gado

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Sem perder uma s reis


Servio de seis pees
Ele sozinho me feiz.

Puxei da minha carteira


Pra pagar o bo campeiro,
Mas por nada deste mundo
Ele quis o meu dinheiro,
Sorrindo, muito contente,
Me disse o bo cavaleiro:
No me esqueci que voc,
Foi meu melhor companheiro,
Suas costa, meu amigo,
Ainda deve estar gelada,
Do dia que me levou
Pra derradera morada.

Dizendo estas palavras


O misterioso peo
Riscou o potro na espora
Partiu acenando a mo.
Por incrvel que parea
Eu no perdi a minha calma,
L mesmo acendi uma vela
E rezei pra sua alma.
Aquela noite eu dormi
Feliz a noite inteirinha
Sonhando com as proezas
Do saudoso Ferreirinha.

(Zilo e Zalo, Som da Terra, 1994).

***
O tema lrico-amoroso, desembocando num desenlace trgico,
vamos encontrar entre as mais conhecidas toadas. Embora gnero
poemtico-musical que abrange as vrias regies do pas, tipicamen-
te caipira, embora no peculiar. O assunto da toada geralmente
amoroso, quase sempre dolente e melanclico. Comporta, volta e
meia, um primeiro tempo ou episdio declamado, com caractersticas

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ROMILDO SANTANNA

funcionais de atestar realismo e veracidade do acontecido (da porque


o poeta Joo Pacfico a denomina toada histrica), mas que tam-
bm semelha ao coro grego. Registra-se ainda um segundo tempo ou
episdio cantado em dueto. H forte coeso entre essas duas instn-
cias. Pode-se mesmo dizer que, nessa assimetria lrico-narrativa com
um tempo representando ilusoriamente a realidade (algum fala) e
outro ilusoriamente a poetizao (algum canta), so dois roman-
ces que se ajuntam em equilbrio. Essas toadas ultrapassam geral-
mente o plano espao-temporal e a trivialidade narrativa para atingir
zonas supratemporais simblicas mais profundas da existncia cabo-
cla e coletiva. A solido do homem, dentro do apangio cultural da
masculinidade, um dos enfoques essenciais, que certamente reflete
no s o estado de isolamento dos grupos regionais campesinos,
mas, retrocedendo no tempo, o estado de desolao do ndio, do
negro e do portugus proscritos, arrancados da terra de origem. Esta
uma essencialidade latente na maior parte das modas caipiras, como
temos visto no decorrer deste Ensaio. Desconhec-lo seria uma redu-
o ingnua. Porm, na toada, a melancolia e a tragdia existencial do
caboclo se refletem sinuosamente na destruio do territrio mais
ntimo, representado simbolicamente pela perda da casa, como espa-
o do refgio do ser, do mais santificado e absoluto domnio priva-
do e das relaes familiares. E que, portanto, no pode ser transgredi-
do ou profanado. individual porque legitima o meu espao, a minha
intimidade; tico porque consagra a minha mulher, a prole, a minha fam-
lia (o casa-mento preside a continuidade da existncia). Instrudas
desse contexto simblico lastreado e aguado nas aspiraes e senti-
mentos coletivos que as caracteriza como etnotexto, algumas toadas,
ao mesmo tempo que reconhecem como natural o culto da vindita
pelo derramamento de sangue, exprimem, por outro lado, numa
simbologia que se enraza no recalque histrico, a quintessncia da
desolao, a amargura do imigrado; a quintessncia do sentido de
frustrao e perda em virtude dos sonhos destrudos. Ou seja, no
momento crucial de aviltamento ou perda da mulher, por um rival, e
conseqente ato de vingana e destruio do refgio ou morada,
ressoam os atributos afetivos do sentimento de perda em conseq-
ncia do desterro pilastra emotiva essencial das populaes proscri-
tas que caldearam a histria do Brasil. Em sntese, paira a sensao de
que se perdera o de fora, a terra; e perde-se o de dentro, a casa.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Em Cabocla Teresa, gravada em 1940 por Torres e Florncio, os


sextetos octosslabos declamados no episdio introdutrio da narrati-
va versificada pem em cena um campnio viandante que, j na pri-
meira estrofe, antecipa a descrio da casa situada no topo da montanha
como estranha. Aqui, como veremos, reala-se a dimenso mtica do
smbolo montanha como o lugar das revelaes. O viandante conta
que, ao ouvir o estampido de uma arma, presencia o assassinato de
uma mulher e, no transcurso, o falar gemido de outro caboclo. A cena
visualizada num recorte de luzes e sombras: o olhar penetra a casa na
perspectiva de um feixe de luz (da lua) que se infiltra pela janela, encon-
trando-se com a luizinha amarela de um lampio se apagando. Os
recursos plsticos descritivos, por meio de efeitos sugestivos
expressionistas, valem-se da progresso de uma viso de fora que,
aos poucos, vai sutilmente infiltrando no espao interior, para desven-
dar a intimidade agnica dos moradores. Desses matizes de luzes que
se mesclam, um direcional e outro espalhando-se cansativamente na
cena, temos o confronto metafrico entre a vida (luz viva e branca de
fora) e a morte (luz desmaiada, apagando-se de dentro). No segun-
do tempo da narrativa lrica (introduzida com o recato da frmula
tradicional era uma vez... = h tempo fiz um ranchinho...), numa
seqncia de quadras em discurso confessional, a toada concede voz ao
prprio morador assassino, que explica ao doutor (autoridade de
fora) a causa de sua agonia: ao enfocar a traio da mulher, murmura
choroso pela destruio da casa, designada afetiva e nostalgicamente
por ranchinho e seu ninho a herana ancestral que se perdeu. Num
processo de transferncia afetiva pela identificao de valores, a voz
explicativa dirigida ao interlocutor situado na dimenso acima (o dou-
tor) perpassa e inquire a conscincia existencial e antropolgica do
ouvinte em sua dimenso comum implicando atitude, buscando a
inteligncia consensual e a pattica conivncia:

CABOCLA TERESA
toada histrica

Raul Torres / Joo Pacfico

Declamado:
L no arto da montanha,

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ROMILDO SANTANNA

Numa casa bem estranha,


Toda feita de sap,
Parei uma noite o cavalo
Pra mor de de dois estalo
Que eu vi l dentro bat.

Apiei com muito jeito,


Vi um gemido perfeito,
E uma viz cheia de d,
Vanc, Teresa, descansa,
Jurei de faz vingana,
Pra mor de do meu am.

Pela rstia da janela,


Por uma luizinha amarela
Dum lampio apagando,
Vi uma caboca no cho
E um cabra tinha na mo
Uma arma alumiando.

Virei meu cavalo a galope,


Risquei de espora e chicote,
Sangrei a anca do t,
Desci a montanha abaixo
Galopeando meu macho,
Seu dot eu fui cham.

Vortemo l pra montanha,


Naquela casinha estranha,
Eu, e mais seu dot,
Topemo um cabra assustado,
Que, chamando nis prum lado,
A sua histria cont:

Cantado:
H tempo fiz um ranchinho,
Pra minha caboca mor,
Pois era ali nosso ninho,
Bem longe deste lug.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

No arto l da montanha,
Perto da luz do lu,
Vivi um ano feliz,
Sem nunca isto esper.

E muito tempo passou,


Pensando em s to feliz,
Mas a Teresa, doutor,
Felicidade no quis.

Pois meu sonho nesse oi,


Paguei caro meu amor,
Pra mor de outro caboclo,
Meu rancho ela abandon.

Senti meu sangue ferv,


Jurei a Teresa mat,
O meu alazo arriei,
E ela eu fui percur.

Agora j me vinguei,
este o fim de um am
Essa cabocla eu matei,
minha histria, dot.

(Raul Torres & Florncio, Som da Terra, 1994).

Nesse conflituoso entrelaamento entre o amor e a morte, as


entrelinhas da tragdia escrita pelo neto de escravos e filho de escrava,
Joo Pacfico, enfocam sobretudo a perda ou destruio de um espa-
o animizado e de ancestralidade antropolgica, s vezes confundido
com a imagem da mulher amada. O urdimento do primeiro e o
segundo tempos narrativos impem mudanas radicais de perspecti-
vas: na introduo, a viso pblica do eu-lrico-narrativo (percebida pe-
los olhos da testemunha) complementa-se na viso privada do outro
eu poemtico, o morador (que se exprime ao modo de uma confis-
so). Nesse trnsito de uma viso coletivizada para individual, o sm-
bolo casa (que se afeioa semanticamente em ninho), como ncleo
existencial ou altar da existncia ntima, lugar sacralizado submetido

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ROMILDO SANTANNA

a uma espcie de profanao. Quero salientar o que segue: os ingredi-


entes simblicos subjacentes nessa fbula, alm do bvio interesse
humano pelo humano e o drama moral, so subliminares e possu-
em fora para superar o prosasmo de um tringulo amoroso, o
corao partido e um crime passional. Assim, atingem zonas simb-
licas comovedoras, mais profundas e ancestrais da existncia indivi-
dual que se projetam no quadro antropolgico dos valores coletivos.
So situaes do existir universal que escapam pelas frestas do in-
consciente. Essas so a casa e a amada nascidas da angstia de nunca t-
las encontrado, embora as soubesse sempre reais e presentes. Assim,
no podem ser entendidas como inveno, mas manifestao. Essa
latncia de valores profundos imprime toada a fora simblica que
a sedimenta no seio comunal, e se legitima no ambiente da cultura. A
casa situada no alto da montanha, e seus atributos mticos de ser o lugar
das revelaes, faz reviver verdades coletivas por chamamentos
introspectivos, vale dizer, latentes e silenciosos.
Em Chico Mulato, primeira toada composta pelos parceiros Torres
e Pacfico, nos idos de 1930, e gravada em 1940, novamente o
cantad a figura principal do enredo, funcionando como espelho
e centro referencial do heri caipira. Esse eixo de referencialidade hu-
mana no mundo caipira, como temos visto, a frmula mediadora
no entrelaamento interativo com o pblico.

CHICO MULATO
toada histrica

Raul Torres e Joo Pacfico

Declamado:
Na vorta daquela estrada,
Em frente quela encruziada
Todo ano a gente via,
L no meio do terrero
A image do padroero
So Joo da freguesia.

Do lado tinha foguera


E, em red, noite intera,

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Tinha caboco violero.


E uma t de Teresinha,
Caboca bem bonitinha
Sambava nesse terrero.

Era noite de So Joo,


Tava tudo no sero,
Tava Ramo, o cantad,
Quando foi de madrugada
Saiu com Teresa pra estrada
Tarvez confess seu am.

Chico Mulato era o festero,


Caboco bo, violero,
Sentiu frio seu corao,
Ranc da cinta o punh,
E foi os dois encontr,
Era o riv, seu irmo.

Hoje, na vorta daquela estrada,


Em frente quela encruziada,
Fic to triste o serto,
Por mor de de Teresinha
Essa t de caboquinha,
Nunca mais teve So Joo.

Cantado:
Tapera de bera de estrada,
Que vive ansim descoberta,
Por dentro no tem mais nada,
Por isto ficou deserta,
Morava Chico Mulato,
O maior dos cantad,
Mas quando Chico foi embora,
Na vila ningum mais samb.
Morava Chico Mulato,
O maior dos cantad.

A causa dessa tristeza


Sabida em todo lug,

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ROMILDO SANTANNA

Foi a caboca Teresa


Com outro ela foi mor.
E o Chico, acabrunhado,
Larg ento de cant,
Vivia triste, calado,
Querendo s se mat,
E o Chico, acabrunhado,
Larg ento de cant.

Emagrecendo, coitado,
Foi indo int se acab,
Chorando tanta sodade,
De quem no quis mais vort.
E todo mundo chorava
A morte do cantad,
No tem batuque, nem samba,
Serto inteiro chor.
E todo mundo chorava
A morte do cantad...

(Rolando Boldrin, Som da Terra, 1994).

Repete-se o sentido simblico de destruio da morada, como


extenso desedificada da existncia (o arrombamento do telhado),
amplificado no s como o espao de intimidade vital e familiar
(so assassinados a mulher e o irmo do cantador), como o espao
comunal de sociabilidade fechada: a destruio dos encontros de
intimidade familiar e do crculo de convvio entre amigos, pela reu-
nio sazonal e ritualstica da festa junina (nunca mais teve So
Joo). Com a tragdia instaurada pelo tringulo amoroso, reno-
vando o tema ancestral do pecado camico (o agricultor Caim
mata o pastor Abel, seu irmo), e o sentido de cessamento simb-
lico da casa, destri-se tambm a encenao do rito de comunho
comunitria. Destri-se o ser como existncia ntima e familiar e o ser
como co-existncia comunal, societria; desarticula-se um elo da en-
grenagem que d ritmo, pacificao e sentido procriativo da existn-
cia. Vale ressaltar a convergncia de valores e relao de semelhana
bastante significativa para o efeito catrtico de recepo dessa toada:
Chico Mulato (assim como Casa de Caboclo, que veremos pginas

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

adiante) apresenta o heri trgico em homologia simblica com a


Tragdia Grega. sabido que a comoo pblica emerge de um
acontecimento trgico que desaba sobre um expoente principal na
comunidade (no caso da Tragdia, um rei, um prncipe); na toada
histrica de Torres e Pacfico, o heri trgico (que mata o irmo, a
amada e definha de tristeza) o o maior dos cantad, o festeiro,
tido em posio de supremacia uma espcie de rei no meio
social caipira (igualmente em Casa de Caboclo o heri trgico Z
Gazela, o maior dos cantad).
Na toada Joo de Barro, gravada por primeira vez em 1946, por
Mineiro e Manduzinho, interagem de um lado, a animizao do ps-
saro e o sonho de liberdade, e de outro o isolamento do caboclo, pela
representao simblica da casinha de pau-a-pique ou de barro a so-
papo (aproximada por similitude ao ninho do pssaro joo-de-bar-
ro). O carter comovedor e o fadrio pela traio amorosa se do em
duas vertentes significativas: o pssaro, quando tem sua esperana
perdida, realiza a vindita lacrando com barro a porta da morada,
matando l dentro a traidora; o cantador, correlativamente, escorraa
a mulher e, com melancolia, chora a prpria solido em comovido
retrato de desolao e perda:

JOO DE BARRO
toada

Teddy Vieira / Muibo Csar Cury

O joo-de-barro
Pra ser feliz como eu,
Certo dia resorveu
Arranj uma companheira,
No vai-e-vem
Com o barro da biquinha,
Ele fez sua casinha
L no galho da paineira.

Toda manh
O pedreiro da floresta
Cantava fazendo festa
Praquela que tanto amava,

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ROMILDO SANTANNA

Mas quando ele


Ia buscar um raminho
Para construir seu ninho
Seu amor lhe enganava.

Mas nesse mundo


O mal feito descoberto
Joo-de-barro viu de perto
Sua esperana perdida,
Cego de dor
Tranc a porta da morada
Deixando l sua amada
Presa pro resto da vida.

Que semelhana
Entre o nosso fadrio,
S que eu fiz ao contrrio
Do que o joo-de-barro fez,
Nosso senhor
Me deu calma nesta hora,
A ingrata eu pus pra fora
Onde anda eu no sei...

(Brazo e Brazozinho,
Sertanejas que Marcaram,1983).

Reafirmando o ncleo simblico das toadas anteriores, o compo-


nente sentimental amoroso implica a destruio da morada que, como
vimos, pode refletir significativamente o grande e trgico sentido de
perda do ninho, a casa em seu valor de origem e ancestralidade, o espao priva-
tivo do ser. Isto se correlaciona ao esfacelamento da identidade senti-
mental brasileira marcada pelo desterro, o fadrio do ndio, do negro
e do portugus, postos na situao desesperante de perda de seu
espao, de sua terra, de sua casa. Num sentido genrico,
universalizado, atualizam-se smbolos radicais e elementares que re-
ferem altivez humana ferida na integridade da origem o sal de sua
terra , e natureza migrante do ser, sempre em busca de uma felici-
dade que foi desedificada pelo destino, pela providncia ou por obra
do malefcio humano.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Na mesma linha interpretativa da simbologia da casa antes vista,


com os indcios de etnotexto que coletivizam essas tragdias do coti-
diano caipira, um dos exemplos mais notveis na Moda Caipira de
razes, em que um ambiente idealizado de amenidade (o ancestral
ninho) se encaminha em refinada transio para a tragdia, vamos
encontrar numa das canes caipiras mais tradicionais de todos os
tempos. Aqui se atualiza a tpica antiga, revigorada no sistema mtico
medieval, da invocao da natureza, e o processo de transferncia de
seus atributos de beleza elementar ao indivduo, o caipira. Na primei-
ra estrofe, a vida do caboclo se parece com a viso do paraso: a casa
onde vive. Trata-se de Casa de Caboclo, realizada em 1928 pelo compo-
sitor, caricaturista, comedigrafo e poeta Lus Peixoto (Lus Carlos
Peixoto de Castro, Niteri-RJ, 1889-1973), em parceria com Hekel
Tavares (Satuba-AL, 1896-1969).

CASA DE CABOCLO
cano caipira

Heckel Tavares / Lus Peixoto

Voc t vendo esta casinha, simplesinha,


Toda branca, de sap,
Diz que ela veve no abandono, no tem dono,
E se tem ningum no v.
Uma roseira cobre a banda da varanda,
E num p de cambuc
Quando o dia se alevanta, Virgem Santa!
Fica assim de sabi.

Deixa fal toda esta gente, maldizente,


Diz que tem um morad:
Sabe quem mora dentro dela?, Z Gazela,
O maior dos cantad.

Quando Gazela viu Si Rita, to bonita,


Ps a mo no corao,
Ela peg, no disse nada, deu risada,
Pondo os oinho no cho!
E se casaram, mas um dia, que agonia!

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ROMILDO SANTANNA

Quando em casa ele volt,


Z Gazela viu Si Rita, to aflita:
Tava l Man Sinh!

Tem duas cruiz entrelaada, bem na estrada,


Escreveram por detrs:
Numa casa de caboclo um pouco,
Dois bom, trs demais.

(Grupo Razes, Brejo das Almas, 1976).

Atravs da formulao de imagens elpticas e fragmentrias, e


motivaes sensrio-emocionais que desembocam num adgio bem
conhecido (um pouco, dois bom, trs demais), a sntese de lingua-
gem e sutileza da caracterizao do cartunista, captando flagrantes
perfeitamente delineados, parece se derramar no cdigo verbal duma
narrativa romanceada, neste caso, realizada em sistema sinttico de
montagem das vrias situaes. Da a impresso das sncopes e o
valor significativo de seus intervalos ou lacunas, como que a convidar
o ouvinte a uma interveno produtiva no texto. Isto porque o espa-
o sensvel da letra parece se configurar, diante da sensibilidade estti-
ca do ouvinte, como um mosaico em que peas invisveis tambm se
encaixam. O sujeito ondeterminado em escreveram por detrs,
reverberao da voz coletiva, a verdade comunitria que campeia pelo
universo caipira: numa casa de caboclo, um pouco, /dois bom ,
trs demais.
***
Passemos em revista outros casos, bastante singelos no quadro
de intensidades emotivas caboclas. O amor dolente, a paixo e o misti-
cismo, como deixei consignado, so trs eixos de especificidade da
Moda Caipira. Dificilmente um tema lrico-pico ou lrico-dramtico
prescinde de um desses atrativos, quando no os abarca em dois
deles, ou mesmo os trs. O sentimentalismo amoroso, certamente o
mais freqente da literatura em todos os tempos, ingrediente de
valor afetivo que no pode faltar em qualquer disco, seja nos gneros
mais executados e peculiares como as modas-de-viola, cururus,
caterets, pagodes de viola, toadas, recortados, seja nas valsinhas ser-

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

tanejas, nos sambas, arrasta-ps, corridos, canes-rancheiras,


guarnias, boleros, rasqueados, rojes, ximangos, jongos e outros
gneros e ritmos musicais brasileiros-mestios ou adquiridos pelo
intercmbio com nossas razes peninsulares e hispano-americanas.
Cultura e arte, legtimo sublinhar neste momento, so como o
sopro do vento. No distinguem delimitaes geopolticas. Vo en-
trando sem pedir licena s autoridades.
Normalmente as modas avioladas de cunho lrico-amoroso so
prolongamentos formais do Romanceiro tradicional e, em nvel de
sua estrutura substancial e do esprito enunciador, derivaes das
Cantigas de Amor medievais. O lirismo trasbordante, a mulher
amada a prpria idia de sublimao, como no seguinte trecho de
Chalana (1949), gravada pela primeira vez em 1954 pelas Irms Cas-
tro, um dos rasqueados pantaneiros e fronteirios com o Paraguai
mais executados, composto por Mrio Zan (Roncade, Veneto/Itlia,
1920-) e Arlindo Pinto (So Paulo, 1906-1968):

CHALANA
rasqueado

Mrio Zan / Arlindo Pinto

L vai uma chalana,


Bem longe se vai...
Navegando no remanso
Do Rio Paraguai.
Oh, chalana, sem querer,
Tu aumentas minha dor,
Nessas guas to serenas
Vais levando o meu amor...

(Renato Teixeira & Pena Branca


e Xavantinho, Ao Vivo em Tatu, 1992)

Essas cantigas damor so cantos populares enunciados pela voz


masculina, chorando as mgoas de um amor impossvel ou proibi-
do, seja pela iminncia e distncia da separao, seja pela no corres-
pondncia amorosa, seja por ela se situar num patamar social mais

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ROMILDO SANTANNA

elevado (a filha do fazendeiro), seja por ser casada, seja por abandon-
lo por outro, gerando, nesse caso, a conscincia da honra ultrajada.
Como deixei escrito, o cateret o primeiro dos ritmos e danares
amerndios nos quais se agregaram as letras. Foram utilizados com
finalidades de converso e catequese. Como diz o compositor-cantador
Vieira, o cateret mais chorado, mais sentido, mais romntico dos
ritmos caipiras. Sua melodia liga-se ao comportamento estrdio e
taciturno do indgena que, como vimos, relaciona-se com aquele cuja
vida em parte devotada caa e pesca. O caador no mato condiciona-
se ao silncio, compenetrao como processo espiritual, ao ritmo
devagar da espera, ao sossego interior, ao tirocnio intuitivo do andar
macio, felino, em estado de concentrao: ele, a flecha e seu alvo a
ave, o bicho ou o peixe. Para o ndio e o matuto descendente, o
tempo um rio remanso deslizando lento. Por isto, o ritmo contagiante
do cateret tem algo de melanclico e espiritualizado, apresenta-se
com a entoao de um contnuo perptuo, montono, espelho da
natureza compenetrada e taciturna do amestiado caboclo. nesse
gnero que se enquadra grande parte das modas lrico-amorosas, ro-
mnticas, apaixonadas, grande predileo do campesino. Trata-se de
uma afeio atvica, pois o caipira tambm, no isolamento de seu
bairro e na reteno do passado, por natureza taciturno, arredio,
ensimesmado, caador e pescador. E, por isso, imprevidente, se olha-
do na perspectiva buliosa da vida na cidade. Decodifica a natureza
por instinto e pe em cada tanto de seu redor um pouco de afetividade,
de sentimentalismo. Sigamos uma cantiga damor, no ritmo senti-
mental do cateret. Trata-se de uma das modas dor de cotovelo
mais admiradas no pertencimento caipira, e, como poderemos verifi-
car comparativamente, anloga atmosfera urbana dos sambas-can-
es do mestre Lupicnio Rodrigues (1914-1974):

AMARGURADO
cateret

Tio Carreiro / Dino Franco

O que feito daqueles beijos


Que eu te dei?
Daquele amor cheio de enluso

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Que foi a razo do nosso querer?


Pra onde foram tantas promessas
Que me fizeste?
No se importando que nosso amor
Viesse a morrer?

Talvez com outro estejas vivendo


Bem mais feliz,
Dizendo ainda que nunca houve
Amor entre ns,
Pois tu sonhavas com uma riqueza
Que eu nunca tive,
E se ao meu lado muito sofreste,
O meu desejo que vivas melhor.

Vai com Deus,


Sejas feliz com o teu amado!
Tens aqui um peito magoado
Que muito sofre por te amar!
Eu s desejo
Que a boa sorte siga teus passos,
Mas se tiveres algum fracasso,
Creias que ainda te posso ajudar!

(Tio Carreiro e Pardinho, Golpe de Mestre, 1979)

Em Amargurado, cujo ttulo j previne essa disposio agnica do


cantador em seu estado de agitao sentimental e insatisfao amoro-
sa, na msica de sintoma taciturno e amargurado do cateret, gera-se
uma perfeita conjuno entre o texto, a percussividade da viola, a
melodia e a cumplicidade performtica do violeiro-cantador. Realiza-
se de maneira cabal a persuaso passional do discurso, no dizer de Luiz
Tatit.120 Abordando um tema altamente sensvel expanso ntima
das emoes, o carter entoativo dado pelo cantador e oriundo do
texto, o coloquial desbragado da letra fazem com que o ouvinte se
reconhea na moda, na oralidade de seu dia-a-dia, em cumplicidade
com os fatos e sentimentos veiculados: o sujeito desprezado pela
mulher, o qual abre mo de sua felicidade pela felicidade dela.
TATIT, Luiz. A Cano, Eficcia e Encanto, p. 6.
120

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ROMILDO SANTANNA

Embora pondo em tela casos amorosos pontuais, alicerados


em fatos e definidos por personagens geogrfica, etria e nominal-
mente localizados, os temas amorosos, quase sempre, falam dos
amores etreos, estilizados, como busca da perfeio, como encontro
coesivo dos melhores desejos. Por isto, falam do amor puro; o
erotismo, a lascvia, os pensamentos impuros, dentro dos padres
conservadores da identidade caipira, so tabus, um campo proibido
e pecaminoso. Assim, a calidez do sexo tocada com pudor e recato;
o amor puro realiza-se na Moda Caipira como o motivo subjacente,
ao qual a ligao fsica ser uma conseqncia.
Tal desprendimento, obviamente idealizante e literrio, ir ocorrer
no cateret Duas Cartas, composto no final de 1950 por Z Carreiro e
Carreirinho, mesmo que o desfecho aponte para a idia de desencontro:

DUAS CARTAS
cateret

Z Carreiro / Carreirinho

Eu arrecebi uma carta


Foi meu bem que me escreveu.
Abri a carta pra l
A minha corage no deu.
S pude ler duas linhas,
Minha vista escureceu,
Ao ler a triste notcia
Que meu bem desprez eu.

Com esse gorpe dodo


Que meu corao sofreu,
Maginei a minha vida,
O que ser que aconteceu?
Na carta no expricava
Que prano novo era o seu,
No cumpriu o juramento
Que a ingrata prometeu.

Daquele dia em diante


Dobr o sentimento meu.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Acab minha alegria


Meu viver se entristeceu,
Mas home deve ser home,
Cumprir o destino seu,
Dei ela por esquecida
E disse o derradeiro adeus.

Quando foi um certo dia


Outra carta apareceu.
Na carta vinha dizendo
Do que fez, arrependeu,
Eu mandei dizer pra ela,
Que siga o caminho seu,
Procure um outro amor
Que voc pra mim morreu.

(Z Carreiro e Carreirinho,
Os Maiores Violeiros do Brasil, 1973)

Em Duas Cartas a persuaso passional se d em forma de mo-


nlogo interior. Em lances repentinos, comparecem as falas indi-
retas da mulher, tiradas de seus recados nas cartas. Essa explicitao
mental do enredo estabelece uma comunicao de mentalidade
para mentalidade, puramente abstrata, que encontra apoio na ex-
perincia amorosa, em referncias cotidianas e mentalizaes cul-
turais estabelecidas entre o modista, o texto e seus ouvintes. Ou-
tra vez a tonalidade agnica do cateret fortalece o clima de dor de
cotovelo vigente nesta moda. Chamo a ateno para o fato de
que, na estruturao dessa moda, parece se estabelecer um contra-
senso quando examinada segundo as expectativas de fora. Na
rusticidade do desfecho, com o corao lacerado pelos demnios
interiores do cime, esperar-se-ia da voz cantante um registro de
linguagem compatvel com a rusticidade raivosa de uma paixo
exaltada. No entanto, comparecem expresses de magnfica pure-
za estilstica como o meu bem desprez eu, maginei a minha
vida, que prano novo era o seu, homem deve cumprir o des-
tino seu as quais emblematizam o poeta caipira na persistncia
resignada da vida. Trata-se de uma delicadeza que se manifesta

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ROMILDO SANTANNA

pela disposio de nimo e uma expresso no irada das palavras;


descobre-se, examinado atentamente que, como se faz constante
na Moda Caipira, parece que o esprito navega em sua limpidez e
inocncia originrias.
O sentimentalismo amoroso, por ser universal, comparece nos
demais gneros freqentes na Moda Caipira de razes. Vejamos a
eficcia do tema em ritmos apropriados do estrangeiro. A atmosfera
de Cantiga dAmor mulher inatingvel vamos encontrar na guarnia
Estrela de Ouro, composta em 1986 por Tio Carreiro e Ronaldo
Adriano:

ESTRELA DE OURO
guarnia

Tio Carreiro / Ronaldo Adriano

Meu Deus, onde est agora


A mulher que amo?
Ser que est sozinha
Ou acompanhada?
S sei que aqui distante
Eu estou morrendo,
Morrendo de saudade dela
Num mundo de lgrimas.

Meu Deus, mande que o vento


Encontre com ela,
Pra dar minhas tristes notcias
Com o seu aoite,
Dizer que por no estar
Abraado com ela,
Eu choro meu pranto escondido
No colo da noite.

Meu Deus, eu morro por ela,


E a ausncia dela
Provoca meu choro.
Ela a luz que me inlumina,

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Deusa da minha sina,


Minha estrela de ouro.

(Tio Carreiro e Pardinho,


Estrela de Ouro, 1986.)

Na evocao sentimental da mulher, o cantador mobiliza as


antinomias finitude e infinitude: ao mesmo tempo em que deseja
estar abraado com ela, numa relao mediata e concreta, ele a
idealiza aproximando-a de entidades infinitas e abstratas (Deus, o
Cu, o vento), para, finalmente, identific-la com a metfora Deu-
sa. Nessa procura, o eu-sentimental se coloca em meio a outra
situao dualstica: a falta de expanso do esprito e alienao ao
mundo devido ausncia da mulher versus sua expanso idealiza-
da e gratificante na imagem da amada inatingvel. Essa dualidade
se reala noutra antinomia representada pelos signos noite (trevas)
a ressaltar simbolicamente a circunstncia presente do eu-lrico,
em oposio a dia (luz), a simular, numa projeo futura, seu
encontro com a amada. Esta, evocada como a Estrela de Ouro,
seria o fator de ruptura com o presente amargo e agnico do
cantador. O tema desta moda, freqente na lrica trovadoresca
peninsular, como fora observado, comparece significativamente
nas vrias tendncias estticas da Literatura Brasileira, do
neoclassicismo, passando pelos romnticos, pelo parnasianismo
e simbolismo.
***
O valseado Golpe de Mestre (1981), de Lourival dos Santos e
Mairipor, apresenta a paixo amorosa simulada na narrao de uma
fbula idlica tendo como personagens duas crianas:

GOLPE DE MESTRE
valseado

Lourival dos Santos / Mairipor

Zezinho no tinha nem pai e nem me,


Rolando pro mundo vivia judiado.
Mariazinha, menina rica,

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ROMILDO SANTANNA

E o pobre Zezinho era seu empregado.


Mas o destino preparou pros dois
Porque um do outro fic enamorado.
Maria dizia: Zezinho, eu te amo,
Serei sempre tua, meu anjo adorado!
Aos ps de Maria dizia o Zezinho ,
Sou muito pouquinho pra ser teu amado!

O pai de Maria, um sujeito malvado,


Cismou de dar fim no amor das crianas,
Peg num chicote de tala bem larga,
Fal pro Zezinho: no coro tu danas.
A minha filha menina rica,
Est nas alturas, voc no alcana.
Moleque atrevido, cachorro sem dono,
Pegue teus trapos e faa mudana!
Zezinho recebe um golpe profundo
E some no mundo cheio de esperana.

Antes da partida, Zezinho escondido,


Procurou Maria, falou deste jeito:
Existe um bom Deus, que est nas alturas,
Ele bom demais, faz tudo perfeito.
Sou um caboclinho, de sangue nas veias,
Enfrento lana e quebro no peito.
Querida Maria, voc vai ser minha,
De agora em diante, meu plano est feito,
Se um dia obrigarem voc se casar
No altar estarei pra ser tudo desfeito.

Passaram dez anos, correram depressa,


Maria solteira, Zezinho solteiro.
O pai de Maria, um sujeito ambicioso,
Arrumou pra filha, por ser interesseiro,
Um velho careca, feio e barrigudo,
Mas dono do mundo, com muito dinheiro,
Pobre Maria, detestava o velho,
Queria Zezinho, seu amor primeiro,
Mas o casamento j estava marcado
Pra ser realizado no ms de janeiro.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Chegou o grande dia do casamento,


Maria de branco estava divina,
Bastante capangas e guardas armados
Cercava a igreja, guardava a menina,
Zezinho amoitado, esperava no altar,
Fugiu com Maria e sumiu na surdina,
O Zezinho deu um golpe de mestre,
S mesmo eu contando, ningum imagina,
L na igreja ningum desconfiava
Que o Zezinho estava dentro da batina.

(Tio Carreiro e Pardinho, Rio do Pranto, 1981.)

A denominao dos personagens, por ser genrica e alusiva aos


padres religiosos brasileiros (Jos e Maria), estabelece a possibilida-
de de sua extenso no universo de abrangncia caipira: todos os ou-
vintes se sentem includos na histria. Ademais, possui o apelo
inocncia infantil que todos viveram, ao passado que no volta mais.
Remoa o tema da virgem prometida ao campnio, tantas vezes pal-
pitantes na lrica oral-popular. Isto se tonifica tambm pela juno do
sufixo diminutivo aos nomes do casal amoroso, agregando-lhes alta
carga de aproximao afetiva e engajamento paternal e maternal pelos
adultos. O caipira, ao mesmo tempo que vivencia a fbula por dentro,
no momento performtico, a contempla de cima, desde o ngulo de
viso do adulto que , para a infncia na qual se projeta. Seu compro-
metimento participativo e cuidadoso. Envolve-o no que foi ou no que
poderia ter sido e, portanto, num sentido de verossimilhana o mais
candente de suas razes e especificidade. O tringulo amoroso que,
nas modas anteriores, era o desencadeador do conflito sentimental,
agora se apresenta tendo como plos diferenas hierrquicas bem
definidas: Zezinho pobre, rfo largado no mundo, empregado;
Mariazinha rica, vive com os pais, o patro. Ela a virgem sublima-
da ante o humilde carpinteiro, em nossa imaginao forjada de cristi-
anismo. Pressupe-se que ambos esto sacramente ligados, e nada
pode haver que dissolva essa agregao. No entanto, nesta Moda
Caipira as crianas esto colocadas numa circunstncia nova, cotidiana
e, portanto, desafiadora e desmontadora das fbulas que preexistiriam
atualizao da nova fbula.

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ROMILDO SANTANNA

A tenso narrativa desse valseado se estabelece a partir de uma jura


de amor, perante Deus, mobilizando o interesse do auditrio para as
instncias futuras do enredo, com vistas ao desfecho. Agora no so
aqueles designados pelos anjos e profecias do alm (So Jos e a
Virgem Maria) so amantes apaixonados. Todas as motivaes
temticas se apresentam como alegorias de situaes aproximativas e
possveis no universo circundante da platia, de modo a que os des-
tinatrios (seja na performance do cantar ao vivo, seja na veiculao
em disco) se sintam atingidos e identificados com a sublimidade,
situaes e peripcias do casal. Nesse delineamento contextual, esta
moda fortalece ainda algumas idias bsicas como reflexo de uma
idealizao do sentimentalismo amoroso, com vistas a servir de exem-
plos e lies a serem aprendidas:
a) A criana, em sua pureza e ingenuidade, no distingue armadi-
lhas montadas pelas hierarquias de classes sociais: todos
deveriam agir como crianas;
b) Embora pobre, Zezinho caboclinho, de sangue nas veias,
isto , determinado, destemido e corajoso. Todos, com esses
atributos de carter, podem superar os obstculos e asperezas
da vida;
c) Os pais no devem obrigar que os filhos se casem com quem
no amem, rompendo com o costume burgus da filha pro-
metida;
d) A astcia e inteligncia do caboclo o fortalecem, abrindo cami-
nhos para a conquista de seus ideais;
e) O altar da igreja, que legitima o casamento, pode abenoar um
empreendimento considerado legtimo, reparador das injusti-
as e, portanto, justo.
O desfecho desse romance, anlogo aspirao da cultura, alm
de suprir os horizontes de expectativas dos ouvintes com a tpica do
final feliz, determina uma penitncia pblica aos agentes responsveis
pelo conflito, em suas caractersticas fundamentais de negatividade: o
pai, ambicioso e interesseiro, insensvel ao amor das crianas, per-
verso, por perverter a idia de amor; o noivo arrumado para a filha
dono do mundo (arrogante e grosseiro), velho, careca, feio e barri-
gudo. Tudo muito explcito em seus ndices delineadores dos per-

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

sonagens. A sutileza se perde na procura dos efeitos instantneos da


comunicao. Como resultado funcional da narrativa, o texto desse
valseado fixa um clima de satisfao interior no ouvinte, no s pela
dissoluo do conflito, como pela reposio da justia, conquistada
pelo caboclinho amoroso, destemido, perseverante e imaginoso. A
indignao contra o causador do sofrimento torna-se a emoo do-
minante, de tal modo intensa que a restaurao da felicidade entre
Zezinho e Mariazinha torna-se at secundria em relao peripcia
de ludibriar os malfeitores e seus capangas, pregando-lhes o castigo
da derrota e a desmoralizao pblica. Deste modo, dando-se maior
destaque aos personagens e suas aes diante dos eventos narrados,
mobiliza-se um princpio tico to comum na Moda Caipira de razes,
e que Marisa Bortolussi anota como de moral naf: condena-se a injus-
tia e se regozija com a sano e com o castigo do ofensor e com a
recompensa para a vtima.121
Mas h que atentar para outra abertura fundamental no final feliz.
Ela pontifica o sinal da reconciliao ntima. Pacifica o estado de alma
pervertido, repe o que faltava, preenche o vazio, tira a sensibilidade
do caboclo do lado tenebroso e a coloca em paz com a vida. O poema
aviolado revive o compromisso psicossocial do prazer pueril, do jogo
de esconde-esconde; notabiliza-se pela satisfao de reencontrar o que
fora dado como perdido. Otimiza os nimos para o que h de vir, a
despeito dos desginios e penitncias da vida. Assim, a vida se recon-
cilia, em nvel simblico, com o anelo reprimido de felicidade. Libera
o prosseguimento da prpria existncia, atravs do encontro amoro-
so e da reparao dos males. Afinal, Zezinho, forte de gnio, vence o
patro; quer dizer, subverte a hierarquia estabelecida; resgata a filha do
poderoso objeto da paixo , na sua perspectiva, e de troca, na
perspectiva do outro. Neste ponto de se acrescentar que a busca do
final feliz de uma narrativa, que algumas reas refratrias denunciam
como piegas ou dmod, desejvel e realiza-se com espontaneidade
na Moda Caipira de razes. Seu xito discursivo, no meio donde pro-
vm, consiste exatamente em dar a conhecer o que se passa no anseio
da alma coletiva, alheia ao sentido repressor dos modismos e pa-
dres comportamentais de linguagem que, diga-se, mudam de poca

BORTOLUSSI, Marisa. Anlisis Terico del Cuento Infantil, p. 9.


121

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ROMILDO SANTANNA

em poca. Tambm no procedimento de busca do final feliz, mesmo


que previsvel, na interpretao insatisfeita e repressiva de fora, a moda
revela a primariedade dos impulsos mais radicais, como saciamento
sublimado de um desejo de libertao, na perspectiva de dentro. A
previsibilidade referida tem eco no cdigo cannico da poesia caipira,
em similitude com a histria e a cultura subjacente.
***
Contudo, se em Golpe de Mestre o conflito se restabelece numa
situao de equilbrio, o cururu Boiadeiro de Palavra, realizado em 1960
pela colaborao trplice de Lourival dos Santos, Tio Carreiro e Mo-
acir dos Santos (Monte Aprazvel-SP, 1932-1966), impe como enre-
do a palavra empenhada, como condio moral do caboclo e seu cdigo
de honra. No meio caipira eram comum, e ainda persistem, os votos
de compromisso serem custodiados por um fio de barba, e no por
documentos escritos. Esta norma de comportamento subjaz at di-
ante da circunstncia amorosa, como preceito patriarcal da tradio.
No importa que os amantes fiquem separados, desde que se preser-
vem os usos e costumes e o cdigos masculinos, sedimentados em
profundas tradies medievais. Em vista disto, assim como a mulher
aparece constantemente como representao de um desejo sublima-
do, por outro lado, o sentimento de honra manchada, conseqn-
cia do primado da masculinidade, transforma o amor em objeto de
posse, personificado na figura feminina.
Observamos um caso extremo desse comportamento que se re-
moa em vrias modas:

BOIADEIRO DE PALAVRA
cururu

Lourival dos Santos / Tio Carreiro


/ Moacir dos Santos

Boiadeiro de palavra
Que nasceu l no serto,
No pensava em casamento
Por gostar da profisso.
Mas ele caiu no lao
De uma rosa em boto,

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Morena cor de canela,


Cabelos cor de carvo,
Desses cabelos compridos
Quase esbarrava no cho,
E pra encurtar a histria,
Era filha do patro.

Boiadeiro deu um pulo,


De pobre foi nobreza,
Alm da moa ser rica
Dona de grande beleza.
Ele disse assim pra ela,
Com classe e delicadeza:
Esses cabelos compridos
So minha maior riqueza,
Se um dia voc cortar,
Ns separa na certeza,
Alm de te abandonar
Vai haver muita surpresa!

Um ms depois de casado
O cabelo ela cortou,
Boiadeiro de palavra
Nessa hora confirmou.
No salo que a esposa foi
Com ela ele voltou,
Mandou sentar na cadeira
E desse jeito falou:
Passe a navalha no resto
Do cabelo que sobrou,
O barbeiro no queria,
A lei do trinta mandou.

Com o dedo no gatilho


Pronto pra fazer fumaa,
Ele virou um leo
Querendo pular na caa.
Quem mexeu neste cabelo
Vai cort o resto de graa,
A navalha fez limpeza

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ROMILDO SANTANNA

Na cabea da ricaa.
Boiadeiro caprichoso
Caprichou mais na pirraa,
Fez a morena careca
Dar uma volta na praa.

E l na casa do sogro
Ele falou sem receio:
Vim devolv sua filha,
Pois no achei outro meio.
A minha maior riqueza,
Eu olho e vejo no espelho,
um rosto com vergonha,
Que toa fica vermelho.
Sou igual um puro-sangue
Que no deita com arreio,
Prefiro morrer de p
Do que viver de joelho.

(Tio Carreiro e Pardinho,


Hoje eu no Posso Ir, 1972)

Quando se coloca na situao-limite da honra maculada, a subli-


midade do amor pode transformar-se em fria demente. Acerca da
punio (rapar os cabelos da mulher), Cmara Cascudo registra que
foi usadssima a pena, tida como infamante de cortar o cabelo s
mulheres de m vida, expulsando-as da cidade. Essa pena de cortar,
aparar, rapar os cabelos constituiu uso legalssimo e os portugueses o
tiveram por intermdio do Cdigo Visigtico. Empregavam-na an-
tes, durante e depois do domnio rabe.122 consenso de que o
estropcio pela honra ultrajada tem que ser reparado com sangue, e at
pode entrar em ao a justia com as prprias mos, pela lei do
trinta, como nos enredos de um faroeste. Esta forma de resoluo,
quase sempre trgica, atrativo nas modas caipiras mais bem aceitas
pelo pblico, como os assassinatos em Cabocla Teresa, de Raul Torres
e Joo Pacfico, e Chico Mineiro, de Tonico e Francisco Ribeiro, ou,

CASCUDO, Lus da Cmara. Dicionrio do Folclore Brasileiro, p. 163.


122

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

como vimos, o aprisionamento da mulher at a morte por inanio,


como na fbula de Joo de Barro, de Teddy Vieira e Muibo Csar Cury.
***
Fazendo valer o primado da masculinidade e tendo-se em mente
a conquista da mulher como objeto de aventura, h exemplos bem
marcantes de um padro de comportamento que novamente aproxi-
ma a Moda Caipira da poesia satrica medieval e romntica. Com
muitssima freqncia, essas modas adquirem ares jocosos, por meio
de um protagonista caracterizado com uma certa picardia, e se mani-
festam como expresses de um esprito descontrado, um lastro
macunamico, digamos assim, cuja ancestralidade brasileira vamos en-
contrar nas Memrias de um Sargento de Milcias, de Manuel Antnio de
Almeida. Tal ocorre no seguinte recorte mineiro composto e gravado
por Vieira e Vieirinha em 1973, no disco Os Bandeirantes de Gois, e
regravado vinte anos depois pela dupla Chrystian & Ralf:

LADRO DE MULHER
recorte com catira

Vieira / Vieirinha

Cachorro latiu, v apreveni:


Ladro de mui ta.
Quem tiv mui bonita
Prepare as arma que tem,
Cachorro latiu de noite,
Ladro de mui l envm.
(palmas e sapateado do catira)
Namor mui casada
s muito atrevido,
D uma oiada nela
E quatro, cinco no marido.
Ser que ele no tem medo
Da bala do trinta no p do ouvido?
(palmas e sapateado do catira)

Muita moa me namora,


Pensa que eu tenho dinhero,

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ROMILDO SANTANNA

Mas dinhero eu no tenho,


Mas s um rapaiz facero.
Apesar de eu s casado
Eu pulo o corgo, eu s sortero.
(palmas e sapateado do catira)

(Chrystian & Ralf, 1993)

O deguste prazeroso do fazer textual j se manifesta pela trans-


gresso do sujeito diante do prprio tema amoroso. Aqui o caipi-
ra conta vantagens de sua masculinidade, naturalmente bem aceita
em seu meio e at elogiada pelas mulheres. Este recorte
desautomatiza, por assim dizer, a freqncia da relao sentimen-
tal entre os amadores, e coloca em tela o instinto rapaz
(etimologicamente o que rapta, rapina) do cantador. Modas
descontradas deste tipo, em que cada estrofe se delineia pelo de-
senvolvimento de um mote da conquista amorosa, pela livre as-
sociao de idias que se intercala s palmas e ao sapateado do
catira, perdem o tom festeiro, obviamente, em gneros mais s-
rios como na moda-de-viola pura, na toada, ou na languidez
chorosa e apaixonada do cateret.
***
Entre as motivaes sentimentais mais sensveis expanso
lrica caipira destaca-se a utilizao expressiva do smbolo terra, o
cho natal. No so poucas as louvaes no mbito dessa configu-
rao simblica, desaparecendo o valor material do solo em seu
valor de troca, para sublimar o torro natal, na acepo mais profun-
da e transcendente de terra como a geratriz primordial, universal,
aquela a partir da qual surgem todas as criaturas do mundo. Na
mitologia grega, h que lembrar, Urano, o Cu, fecunda Gaia, a Terra,
fazendo germinar as coisas do mundo, os espritos e os deuses.
Como aparece na passagem bblica, nascemos da terra e a ela volta-
mos. A vida de sonho e de p na assimilao potica de Renato
Teixeira, em Romaria. Enfoquemos a moda-de-viola Terra Roxa,
composta em 1958 por Teddy Vieira e gravada por primeira vez por
Tio Carreiro e Carreirinho:

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

TERRA ROXA
moda-de-viola

Teddy Vieira

Um gr-fino num carro de luxo,


Par em frente de um restaurante,
Faz favor de trocar mil cruzeiro,
Afobado ele disse para o negociante.
Me desculpe que no tenho troco,
Mas a tem fregus importante!
O gr-fino foi de mesa em mesa
E por uma delas pass por diante.

Por ver um preto que estava almoando


Num traje esquisito, num tipo de andante.
Sem diz que o tal mil cruzero
Ali era dinhero praqueles viajante, ai, ai.

Negociante fal pro gr-fino:


Esse preto, eu j vi, tem trocado!
O gr-fino sorriu com desprezo:
O senhor no t vendo que um pobre coitado!
Com a roupa toda amarrotada,
E um jeito de muito acanhado
Se esse cara for algum na vida
Ento eu serei Presidente do Estado!

Desse mato a no sai coelho


E para o senhor fico muito obrigado.
Pergunt se esse preto tem troco
deixar o caboclo muito envergonhado, ai, ai.

Nisso o preto, que ouviu a conversa,


Cham o moo com um modo educado,
Arranc da goiaca um pacote
Com mais de umas cem flor de abobra embolado.
Uma a uma jog sobre a mesa:
Me desculpe, no lhe ter trocado!
O gr-fino sorriu amarelo:
Na certa o senhor deve ser Deputado!

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ROMILDO SANTANNA

Pela cor vermelha dessas notas


Parece dinheiro que estava enterrado!
Disse o preto: No regale o olho,
Isso apenas o rastoio do que eu tenho empatado, ai, ai.

Essas nota vermelha de terra,


de terra pura, massap,
Foi aonde eu plantei h sete ano
Duzentos e oitenta mil ps de caf!
Essa terra que a gua no lava,
Que sustenta o Brasil de p,
Vanc tando montado nos cobre
Nunca falta amigo e algumas mui!

com elas que nis importamo


Os tais Cadilac, Ford e Chevrolet!
Pra depois os mocinhos gr-fino
Andar se enzibino que nem coroner, ai, ai.

O gr-fino pediu mil desculpas,


Remat meio desenxavido:
Gostaria de arriscar a sorte
Onde est esse imenso tesouro escondido?
Isso fcil respondeu o preto
Se na enxada tu for sacudido!
Terra l a peso de ouro
E o seu futuro estar garantido!

Essa terra abenoada por Deus,


No propaganda, l no fui nascido.
no Estado do Paran
Aonde que est meu ranchinho querido, ai, ai.

(Tio Carreiro e Carreirinho,


Meu Carro Minha Viola, 1990)

Composta a partir do revezamento pela correlao formal de cin-


co oitavas e cinco quadras predominantemente decassilbicas, Terra
Roxa remoa ainda um feixe de outros motivos temticos muito

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

freqentes e at emblemticos na Moda Caipira de razes. O poeta


popular sabe, intuitivamente, que um bom romance lrico-narrativo,
ainda que na curta extenso de uns poucos versos, constitudo de
sucessivos episdios, os quais se edificam por meio de elementos ou
atraes, para integrarem perfeitamente a arquitetura do todo. Assim,
ponto por ponto, os atrativos exercem sua funcionalidade cnica. So
eles, entre outros:
1. A antinomia colocada dramaticamente entre o gr-fino e o humil-
de. Sero ressaltados os defeitos de um e as virtudes de outro.
2. A antinomia colocada dramaticamente entre o caipira de pele preta
e o branco metido da cidade. Desdobramento da circunstncia ante-
rior, o preto ser visto como virtuoso, em aspectos como a
educao, o trabalho, a honestidade e, embora no aparente
pela indumentria de servio, senhor de grandes posses. No
as ostenta por parcimnia e respeito humildade alheia.
3. A antinomia colocada dramaticamente entre o mocinho, geral-
mente configurado como o almofadinha, perdulrio e arrogan-
te, e o pai. Neste caso, o filho tende a gastar com extravagncias
todo o patrimnio acumulado pela famlia, com muito sacrif-
cio.
4. A figura do matuto como esteio da nao, qualidade que no
reconhecida pela cidade e suas instituies.
5. O convite do caboclo, geralmente em forma de ironia e morda-
cidade, para que o almofadinha de mos finas assuma o seu
servio na enxada e no trato do gado, com a ressalva de que se
tu for sacudido. Visa a ressaltar suas qualidades de trabalha-
dor forte, tenaz, em oposio ao que ganha a vida sentado, ao
doutor, ao poltico e aos herdeiros.
Todos esses motivos ou atraes so costurados com vistas a uma
nica formulao temtica que tem como fim uma lio de vida: as
pessoas no so o que parecem. E quem coloca isto em dvida pode
ser desmoralizado em pblico. Nesse jogo perpassado pela figura da
ironia e usando frmulas maniquestas de modo a enfatizar as moti-
vaes mobilizadas, Terra Roxa resgata e rebrota nos ouvintes, e com
eles comunga, um sentimento de euforia marcado pelo orgulho de
ser caipira, pela semelhana genealgica que o caboclo tem com a terra

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ROMILDO SANTANNA

e seus mistrios. Este romance lrico-narrativo repete, instncia por


instncia de seu enunciado, as mesmas frmulas de elaborao temtica
com que se construiu a narrativa de Rei do Gado, do mesmo Teddy
Vieira. Passo a passo, repetem-se uma sucesso de funes narrati-
vas, na acepo de Vladimir Propp.123
***
Outro dos motivos peculiares ao sentimentalismo mestio na
Moda Caipira realiza-se pelo impacto do meio circundante no estado
de alma do cantador-violeiro. Esta consubstanciao de energias
afetivas se revela numa das mais significativas toadas de todos os
tempos: Chitozinho e Xoror, de Athos Campos e Serrinha (Antenor
Serra), composta no final do decnio de 1930. Nela, como iremos
verificar, e a partir do jogo simblico de imagens metonmicas (o
todo expresso pela sua parte), o caipira se insinua em estado de isola-
mento (morar no deserto / sem vizinho eu vivo s) e na melanco-
lia da solido; em seu estado contemplativo dos pssaros e seus
cantos, os quais poderiam simbolizar um anelo de libertao (at pela
progressividade espacial com que se apresentam, indo do terreiro s
matas), mas que se mostram pelo canto triste, e comungam, em
ligao de intimidade, com o mesmo espao de que se nutre o eu-
sentimental do cantador (o galo carij do terreiro, a coruja, a ja, as
rolinhas habitam todos, como o personagem poemtico l praqueles
cafunds); em seu estado existencial de viver da caa e da coleta dos
bens da natureza; e, principalmente, do orgulho de transformar essa
existncia apaixonada em fonte enlevada para a poesia. Os signos que
compem a estrofe de remate, especialmente, canalizam uma
ambincia semntica comparativa do viver caboclo isolado, em sime-
tria conjuntiva com os nhambus chit e o xoror: so aves de vos
rasteiros; de colorao parda (cabocla) que as confunde e as identi-
fica com a quiaa e o mato; que vivem com e da natureza; que produ-
zem um canto-gemido tristonho, alongado, afetivamente tocante,
porm forte e determinado, que serve para delimitar seu espao
vivencial em relao aos outros machos da espcie. O cantar do nhambu
identifica-se com uma certa atmosfera pattica da Moda Caipira de
razes. Ademais, essa ave vive com sua fmea e ninhada em determi-

PROPP, Vladimir. Las Transformaciones del Cuento Maravilloso e Morfologia do


123

Conto.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

nado espao, e, por instinto, no tolera que o mesmo espao seja


invadido por outro macho. Que nem gente. Na caa, a fmea atrada
pelo canto do macho, produzido pelo pio de nhambu artificial
emitido pelo caador. Essa imagem bem sorrateira de demarcao
espacial se transfere para o personagem cantador, integrado ao
ecossistema, quando ouve uma notcia / que otro canta mi / meu
corao d um balano / fica meio banzer. Num processo especu-
lar do que se atribui ao pssaro, os efeitos de sentido alegorizados se
transferem ao personagem; o caado e o caador, o dominado e o
dominador, essas antinomias vocabulares parecem emparelhar o com-
portamento instintivo da ave s categorizaes instintivas do eu-
sentimental do caboclo, quando seu espao de isolamento, mas sem
limites, ameaado pela possibilidade de outro cantador ser mais
artista que ele:

CHITOZINHO E XOROR
toada ligeira

Athos Campos / Serrinha

Eu num troco o meu ranchinho


Marradinho de cip
Pruma casa na cidade
Nem que seja bangal,
Eu moro l no deserto,
Sem vizinho eu vivo s,
S me alegra quando pia
L praqueles cafund:
o nhambuxint e o xoror,
o nhambuxint e o xoror.

Quando rompe a madrugada


Canta o galo carij,
Pia triste a coruja
Na cumiera do pai,
Quando chega o entardec
Pia triste o ja,
S me alegra quando pia
L praqueles cafund:

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ROMILDO SANTANNA

o nhambuxint e o xoror,
o nhambuxint e o xoror.

No me d com a terra roxa


Com a seca larga-p,
Na baxada do ario
Eu sinto um praz mai.
V as rolinha rod
No ario faiz carac,
S me alegra quando pia
L praqueles cafund:
o nhambuxint e o xoror,
o nhambuxint e o xoror.

Eu fao minhas caada


Bem antes de sa o s,
Espingarda de cartucho,
Patrona de tirac,
Tenho buzina e cachorro
Pra faz forrobod,
S me alegra quando pia
L praqueles cafund:
o nhambuxint e o xoror,
o nhambuxint e o xoror.

Quando eu sei de uma notcia,


Que otro canta mi,
Meu corao d um balano,
Fica meio banzer,
Suspiro sai do meu peito
Que nem bala G.V.O.,
S me alegra quando pia
L praqueles cafund:
o nhambuxint e o xoror,
o nhambuxint e o xoror.

(Grupo Corda & Voz, s/d.)

Como se depreende da leitura, num dos mais notveis jogos po-


ticos da Moda Caipira, o contexto vai enumerando situaes alegricas
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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

e circunstanciais do viver caboclo para, no desfecho, enaltecer o prprio


mito do poeta, em seu orgulho e fetiche de produtor artstico. Como
se infere, o falar sobre a poesia, no texto exemplificado, nasce nos
enredos sentimentais da prpria poesia, com a sutileza e refinamento
de um canto que, frudo em sua intensidade, poderia ameaar os
poetas das alturas (escritores reconhecidos como tais), portanto um
cantar diferente dos que vivem num ranchinho bera-cho.
Para interpretar com mais profundidade o versejar simblico desta
letra aviolada, cito mais uma vez o mestre Fernando de Azevedo: entre
os traos dominantes, um dos mais fortes, e considerado s vezes
como a prpria chave do carter brasileiro, o predomnio, na sua
estrutura, do afetivo, do irracional e do mstico que se infiltra por todo
ser espiritual, amolecendo-lhe ou exasperando-lhe a vontade, confor-
me os casos, e dando-lhe inteligncia um aspecto essencialmente
emocional e carregado de imaginao.124 Talvez decorra disto o fato de
que a Moda Caipira de razes, reproduzindo a trs por quatro o territ-
rio das situaes particulares, fabulosas, plausveis ou sumrias, seja de
uma afetividade to abarcadora, universalizante e imaginativa. Neste
sentido, o sentimentalismo atua como vlvula de escape extremamen-
te poderosa, ldica, de libertao dos recalques; suscita no sujeito
enunciador, de um lado, a sensao de alvio, de outro um estado de
glorificao e grandiosidade interior, expressos por singela afetao e at
uma certa prepotncia. Neste segundo caso, o cantador-violeiro apre-
senta-se como um deus pleno de proezas, onisciente e narcisista, um
mago sensacional do manejo expressivo dos signos. Na regio Nor-
deste, conta Cmara Cascudo em seu Dicionrio do Folclore Brasileiro, na
esteira da tradio e deguste prazeroso de o bem vencer o mal, vrios
cantadores ficaram famosos pela notcia de terem derrotado o diabo,
em desafios e demandas por melhores versos. Interprete-se nisto o
smbolo de que o palco da cantoria, com certa freqncia, se faz espao
alegrico de demandas sobre-humanas. O entendimento desse pro-
cesso, parece-me, define a loucura divina do poeta, herana da antigidade
clssica, que se instaura no processo mitolgico da Idade Mdia: o
cantador um numinoso que tem parte com Deus e a loucura,125 mes-
mo que, com certa afetao, se confesse um bom moo e comportado:

AZEVEDO, Fernando. A Cultura Brasileira - I (Os Fatores da Cultura), p.195.


124

CURTIUS, Ernest Robert. Literatura Europia e Idade Mdia Latina, pp. 505-06.
125

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ROMILDO SANTANNA

PAGODE NA PRAA
pagode de viola

Jorge Paulo / Moacir dos Santos

A sina de um cantador
somente Deus quem traa,
Pra ser um bo violeiro
No pode fazer ruaa,
Precisa deixar o nome
No lugar aonde passa...

(Tio Carreiro e Pardinho, Pagodes, 1977)

Este conjunto de simbologias at explica a divinizao do artista


em momentos marcados pela paixo e sentimentalidade, como o
que se atualizou como um dos fundamentos basilares do Romantis-
mo, e se preserva nos cdigos da cantoria caipira.
***
As modas-de-viola de campeo e de abat campeo so, na esteira
dos parmetros apresentados, os casos mais significativos e exem-
plares de conscincia da verve, da aura de deidades, carismas e eufo-
ria ntima do modista. Nelas, extensivamente aos outros afluentes
de modas caipiras, atualizam-se padres de uma mundividncia
romntica: tm como essncia a manifestao sagaz de um eu-
hiperblico, resultado de uma sensao de grandeza interior
missionria como artista. Ele adivinha e encarna o senso emotivo e
ideolgico, a circunspeco interior do ouvinte sequioso. As seguin-
tes estrofes de P Cascudo (1962), uma das modas emblemticas da
dupla Vieira e Vieirinha, ilustram esse matiz sentimental do cantador-
campeo:

P CASCUDO
moda-de-viola

Oscar Martins / Vieira

Quando eu v na pagodera

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Eu levo a cumpanherada
Minha viola tambm vai
Eu no dexo desprezada.
O povo todo arvoroa:
Hora da minha chegada.
As criana vm primero
Grita ia a violerada!
Festero chama pra dentro
Me acompanha rapaziada!

Quando eu entro no salo,


Com minha viola afinada,
Eu canto uma moda arta,
E muito bem expricada,
Dizeno que eu no insurto
Mas topo quarqu parada.
Tenho feito p cascudo
Sa pisando na geada,
Sa derrubano orvaio
Com a carcinha arregaada.

Nas festa que eu chego e canto,


Moa fica arvoroada,
Na cozinha eu escuito
O zunzum das mui casada,
To gavano as minhas moda
Por t palavra apertada.
Os campeo fica num canto,
Tudo o povo do risada,
Eles sai devagarinho
Corre quando pega a estrada!

(Vieira e Vieirinha, 30 Anos de Viola e Catira, 1980)

A expresso p cascudo (o que anda descalo) significa tambm


no Dialeto Caipira, como diria Amadeu Amaral, mau violeiro.
Seu antagonista o folgazo, sinnimo tambm de devoto, que a
maneira como so tratados os eufricos e fabulosos cantadores
campees. Estes ltimos so, pois, na voz corrente caipira, verda-

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ROMILDO SANTANNA

deiros ungidos pelo dom de fazer versos, aqueles home


impossive!, explicou-me Vieira, um dos autores da moda. O perfil
reflexo e despojado do folgazo registrado pelos prprios Vieira
e Vieirinha, no recortado mineiro com catira Quatro Coisas, gravado
em 1976:

QUATRO COISAS
recortado com catira

Vieira e Vieirinha

O home pra s bem home


Quatro coisa h de sab:
Jog e toc de viola,
Rob moa e sab l.
palmas e sapateado

Treis coisa eu aprendi,


Uma no pude aprend:
Toco viola e jogo truque,
Robo moa e no sei l.

(Vieira e Vieirinha, Danando a Catira, 1976)

So folgazes tambm, pela semntica direta da palavra, porque


no se animam com a lida pesada. E, xods do fazendeiro, este lhes
faz vistas grossas ao detalhe de vocao laboral e personalidade. Nas
ocasies propcias, o dono do cho e do cu, como se posta o fazen-
deiro, ele mesmo e seus apadrinhados polticos resguardam a transfe-
rncia do assanhamento popular e simpatia de que desfruta o cantador-
campeo para mais ricos proveitos. O simptico folgazo, destro e
bem-apessoado, um vox populi, cabo eleitoral, manancial de prest-
gio para o patro.
Outro exemplo elucidativo da divinizao do artista, pelo senti-
mentalismo eufrico em relao s quizilas com os contendores, pelo
assanhamento e singela jactncia em ostentar a conscincia operante
do fazer literrio-musical, sua inquietao e competncia, expressa-se
em Campeo Paulista (1962), moda-de-viola escrita e gravada pelos
mesmos Reis do Catira do Brasil, Vieira e Vieirinha:

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

CAMPEO PAULISTA
moda-de-viola
Vieira / Vieirinha

Afirma o p violerada!
Desaforo eu no agento,
Agora cheg a hora
Da cobra mord So Bento!

Pra cant e faz moda


Prendi arte, eu sou um artista,
Eu sou inventor de moda,
Eu invento, eu s modista.
Eu canto e tenho prazer,
Eu quero que o pessoar assista,
Quem duvida dos meus verso,
Que venha faz revista,
Eu s campeo aprovado,
Eu no s contrabandista...

(Vieira e Vieirinha, Minha Boiada, 1967)

O prembulo dessa moda, realizado pela quadra solta (que o


caipira costuma designar por verso de levante) num prolongar de
dcimas, efetua uma variante de permanncia da tpica exordial to
comum na literatura da Idade Mdia. Ao mesmo tempo que chama
ateno dos ouvintes, levanta-os para o que vir a seguir a moda
propriamente dita. Fixemo-nos um pouco na funcionalidade potica
do levante (ou levanto, ou arribada, como tambm conhecido). A
funcionalidade ftica, uma exaltao que, pela sua natureza, estabe-
lece e regula o contato com o pblico.
***
Levante um motivo incidental, uma ou mais frases de toques de
viola, altas, vocativas, ou simplesmente um lararai vocal para o atiamento
da assistncia. Ou, principalmente, um rodeio semntico promio
expresso numa quadra, na maior parte das vezes, sem muita conexo
com o contedo central do poema. Possui um ar de arrebatamento
lrico, principalmente quando funciona como tpica de invocaes da

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ROMILDO SANTANNA

viola e o violeiro. Amadeu Amaral explica que geralmente as modas


tm uma introduo, que no faz corpo com ela, na qual o cantarino
ou anuncia o assunto, ou limita-se a cantar, guisa de preparao,
alguma quadrinha alheia ao assunto... O verdadeiro fim do levante
deve coincidir com a utilidade que se lhe nota: a de prender previamente
a ateno do auditrio, para que nada esperdice do que se vai seguir.126
s vezes so mesmo estrofes j existentes, apropriadas do cancioneiro
annimo, folclrico, como tive oportunidade de encontrar. Po r meio
dele a moda propriamente dita irrompe, aviolada, para a natural e cm-
plice ateno dos ouvintes. O levante, pois, raramente se assemelha ao
prlogo ou epgrafe. uma desordenao interferente que impe uma
nova ordenao, a moda:127 como o que se vai cantar um poema curto,
com cerca de quarenta versos um causo com desenvolvimento fabular
contnuo, analtico-discursivo e alto grau coesivo de princpio, meio e
desfecho (com a estrofe de remate) , fundamental que as atenes
circundantes estejam mobilizadas; importante que a barulheira da
assistncia seja neutralizada, para que nada se perca da narrao que vir
em seguida. Pois, como diz tienne Souriau, um romance como
um universo inteiro que desfilasse em cortejo.128 necessrio parar
para compreend-lo; necessrio que a platia fique grudada nos visgos
intrincados enfticos do enredo.
***
Em Campeo Paulista, em que a estrofe levante, neutra em relao ao
enredo, conecta-se com o pblico por sua funo ftica da linguagem (na
acepo de Roman Jakobson), o poeta-campeo, o folgazo, teatraliza
um vvido desafio e insulto violerada presente na assistncia,
tratada assim, depreciativamente, no coletivo. Esse poder vocativo
mobiliza o fervor sentimental. O levante, repito, estabelece o contato,
para que o romance flua, com relativa organicidade e coeso. De modo

126
A Poesia da Viola. In: AMARAL, Amadeu. Ensaios e Conferncias, p. 128.
127
Jos Miguel Wisnik escreve: um nico som afinado, cantado em unssono
por um grupo humano, tem o poder mgico de evocar uma fundao csmi-
ca: insemina-se coletivamente, no meio dos rudos do mundo, um princpio
ordenador. Sobre uma freqncia invisvel, trava-se um acordo, antes de
qualquer acorde, que projeta no s fundamento de um cosmos sonoro, mas
tambm do universo social. In: ___. O Som e o Sentido, p. 30.
128
SOURIAU, tienne. A Correspondncia das Artes, p. 128.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

implcito, e na euforia hiperblica da voz enunciadora, os violeiros


chamados para o embate seriam os ps cascudos, como so conhecidos
no prosear socializante do pagode: aventureiros que no so de nada,
e falam pelos quatro ventos.
Chamo a ateno para um fato que talvez no tenha ficado bem
claro em pginas antecedentes. No obstante tratar-se de uma grava-
o em disco, e o natural distanciamento imposto voz enunciadora,
essa moda-de-viola mantm a iluso do cantar ao vivo (efeito de
realidade), idealizando um cenrio e o calor comunicativo do como se
fosse uma festana, com seus componentes humanos: a) um violeiro
sagaz como poeta, e herico como resultado psicolgico de sua pos-
tura glorificada no grupo; b) oponentes; c) e, naturalmente, o pbli-
co. Abro parnteses neste ponto para chamar ateno para o fato de
que a audio de uma moda na vitrola domstica ou pelo rdio im-
pe um outro tipo de teatralidade ao ouvinte, pela sua condio
solitria de intimidade. Se, por um lado, lhe sonega o complemento
visual e os efeitos calorosos da companhia de outros, por outro lado
fortalece outras possibilidades emotivas, conforme ensina Umberto
Eco, pois o ouvinte musicalmente inculto aproveitar do isolamen-
to a que o rdio o constrange, para dar asas sua fantasia, que, esti-
mulada pela msica, e no mais orientada pela presena direta de um
aparato ritual, poder fazer, do fato sonoro, ocasio para abandonar-
se onda indiscriminada dos sentidos e imagens.129
No procedimento operante de efeito de realidade, como que pe-
dindo a palavra, o personagem poetizador demarca seu espao de
desempenho, o momento em situao, por um sinal cronolgico e
um enfrentamento da crena: cheg a hora / da cobra mord So
Bento.130 Em outras palavras, expressa algo semelhante a: abram

ECO, Umberto. Apocalpticos e Integrados, p. 319-320.


129

130
Trata-se da inverso da simbologia de So Bento, corrente no meio rural
brasileiro. De acordo com crena vinda de Portugal, quando So Bento
invocado pelos seus devotos, ele afugenta as cobras venenosas. O motivo de
a cobra morder So Bento tambm aparece no pagode O Mundo no Avesso
(1986), de Lourival dos Santos e Tio Carreiro, gravado por Tio Carreiro e
Pardinho. Em Sucuri, cururu de Z Carreiro e Ado Benatti, gravado por Z
Carreiro e Carreirinho nos idos de 1950, quando a cobra que parecia o
Lucif tenta devorar dois canoeiros, confessa o cantador: eu chamei por
todos santo / por So Bento, So Jos....

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ROMILDO SANTANNA

espao porque vocs esto diante de um homem com H maiscu-


lo, enfatizando mais uma vez o primado da masculinidade to
caracterstica da literatura popular de antiga procedncia. Nestes ter-
mos, mobiliza uma situao com todos os anncios de que aquilo
que assim mesmo, no presente, ser virado s avessas. Pelos efei-
tos expressivos do levante o cantador levanta o astral, pe o pblico
em guarda, chama para a briga, provoca a alegria guerreira, a resis-
tncia para a luta. E nesse sentido que a aparente neutralidade do
levante se revigora em sentimentalismo e afetividade. A seqncia
um desfiar das probidades do violeiro-cantador, sua investidura
desafiadora, ameaadora, e a reafirmao de seus dotes em deslindar,
pela prpria poesia, o engenho, a arte (e o honesto estudo) do
poeta. A partir da estrofe-levante, como se nota, as proposies
contextuais abrem alas para o vo imaginativo, altamente convida-
tivo do devaneio. Abrem alas para a transfigurao de um real que,
desvinculado do momento em que a moda executada nas rdios,
ou tocadas nas vitrolas, guarda a configurao do imaginvel poss-
vel, de uma reminiscncia idealizada de um outrora, de um campo
de sugestividade herica, marcados pela reverberao especular de
identidade ou re-conhecimento que une poetizador e ouvintes num
mesmo diapaso to real quanto hiptese de uma veleidade de
indivduo vencedor.
Cabe reconhecer que, percebendo o sentido sociolgico dessa
agregao artista>obra>pblico>efeito, Antonio Candido observa
que a arte social em dois sentidos: depende da ao de fatores do
meio, que se exprimem na obra em graus diversos de sublimao; e
produz sobre os indivduos um efeito prtico, modificando a sua
conduta e concepo do mundo, ou reforando neles o sentimento
dos valores sociais. Isto decorre da prpria natureza da obra e
independe do grau de conscincia que possam ter a respeito os
artistas e os receptores da arte. Destas reflexes inferem-se que a
experincia pretrita do receptor interage com a experincia e as emo-
es vigentes no poema, gerando uma experincia emotiva nova,
ambgua que, aos poucos, remete a um contexto cada vez mais
distante da realidade referenciada. nesse ponto que se realiza, com
a Moda Caipira, a mutabilidade do factual ao emotivo, do
historicismo idealizado ao potico. Ao enfocar essa fosforescncia
interativa, essa provocao imaginativa ocasionada pela inter-relao

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

potencializada emissor>obra>receptor, observa mais uma vez o


professor Candido que a arte um sistema simblico de comuni-
cao inter-humana, e como tal interessa ao socilogo. Ora, todo
processo de comunicao pressupe um comunicante, no caso o
artista; um comunicado, ou seja, a obra; um comunicando, que o
pblico a que se dirige; graas a isso define-se o quarto elemento do
processo, isto , o seu efeito.131
Pelos ndices de identidade com o pblico, e vigorando sua carac-
terstica de etnotexto, Campeo Paulista supre uma necessidade ntima
que se realiza no efeito de entrelaamento interativo com o auditrio, inter-
vindo produtivamente no momento mesmo da situao coletiva do
tocar de viola. Atuando pelo poder de metforas aptas e perfrases
evidentes, e arrebanhando para si os estmulos empricos do real,
tudo germina no contexto de um mundo escritural, em sua funo
potica.132 A vida se incorpora escrita, sendo vida escrita, solidria e
paralela vida, mas diferente, porque envolve a conscincia crtica (da
vida e da linguagem potica) e a despersonalizao, aos poucos, dos
fatos tangenciais. A vida escrita centrada em sua prpria mensagem d
luz outro contexto, o da poesia. A palavra do artista, estendendo-se
aos destinatrios, reorganiza o viver em linguagem de poesia, ou seja,
realiza-se o efeito a que alude Antonio Candido. A heroicidade requerida
engendra-se na prpria usinagem criativa presente na escritura, no
altrusmo e sentimento de magnificncia do poeta pela construo da
redondilha com suas rimas invejveis; no auto-reconhecimento
que se faz aquiescente da inclinao para versejar, inventar, que so
atributos notveis do modista, o violeiro folgazo. O cerne expres-
sivo da moda-de-viola Campeo Paulista se faz ainda pela elocuo de
efeito moral eufrico, ao mesmo tempo potica e vital: de um lado,
permite a iluso do trasbordamento ntimo, do arrefecimento mo-
mentneo da angstia existencial pela criao; de outro, remete ao
sentimento de miragem de vitria, por meio do anestesiamento da
situao histrica e contingente. Tais sensaes, que se traduzem como

131
As duas citaes foram coligidas em Literatura e Sociedade, de Antonio Candido,
p. 20-21.
132
Refiro-me aos pressupostos de funo potica da linguagem enuncia-
dos por Jakobson no ensaio clssico Lingstica e Potica. In: JAKOBSON,
Roman. Lingstica e Comunicao, p. 118-62.

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ROMILDO SANTANNA

efeitos comunicativos, se realam pela ocorrncia do sujeito posto em


relacionamento coletivo; quer dizer, o comunicante atua como um
rapsodo junto a seus iguais, no instante sazonal, festivo, ritualstico
e desafiador da cantoria na festa-baile popular, o fandango.
***
Outro procedimento de grande freqncia e visibilidade no
primitivismo da Moda Caipira, a evidenciar o sentimentalismo do eu-
cantador, realiza-se pela revivncia sonhadora do passado, por uma
espcie de sndrome pastoril que se extravasa em reunidas reminis-
cncias, designadas por Antonio Candido como uma nostalgia
transfiguradora.133 A nostalgia de um passado perdido imagem do ser
desfalcado de atributos essenciais que se perderam, os quais se busca
recuperar e dar a conhecer. Portanto o que se reala mais um estado
anmico do ser, um banzo meditativo, que o empirismo cronolgico
do que se passou. Neste caso, a experincia vital do criador se dissolve
no entreato da fantasia, gerando o acontecimento lrico por excelncia: a
reminiscncia idealizada, referenciada na ancestralidade do grupo, que
assume aspectos de memria heroicizante. Gaston Bachelard, aludin-
do simbologia da casa, assim se exprime: o mundo real apaga-se de
uma s vez, quando se vai viver na casa da lembrana. De que valem as
casas da rua quando se evoca a casa de intimidade absoluta, a casa onde
se adquiriu o sentido de intimidade? Essa casa est distante, est perdi-
da, no a habitamos mais. Temos certeza, infelizmente, de que nunca
mais a habitaremos. Ento ela mais do que uma lembrana. uma
casa de sonhos, a nossa casa onrica..134 Tal se exemplifica, entre in-
meros casos, na moda-de-viola Tempo de Infncia, de Joo Mulato e
Tio do Ouro. Nela se remoa a tpica do passado que no volta mais,
emblemtico numa das quadras mais lembradas de Casimiro de Abreu
(Oh! que saudades que tenho / Da aurora da minha vida, / Da minha
infncia querida / Que os anos no trazem mais! Meus Oito Anos, in:
As Primaveras, Lisboa, 1857), tantas vezes ocorrente no romantismo
brasileiro e parodiada com conotaes pejorativas por alguns moder-
nos que, em seu dio maniquesta pelo anteontem, a classificam como
poesia gua com acar:

Os Parceiros do Rio Bonito, p. 107 e ss.


133

BACHELARD, Gaston. A Terra e os Devaneios do Repouso, p. 75.


134

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

TEMPO DE INFNCIA
moda-de-viola

Joo Mulato / Tio do Ouro

Parei pra pensar o tempo de infncia


E me vi criana l no meu serto,
Que um dia deixei, e vim pra cidade,
Seguindo o progresso da evoluo,
Que destri a beleza e a natureza,
Ainda mata o caboclo com a solido, ai.

O tal de progresso que um mal necessrio,


Com o seu avano em tudo deu fim.
Antigas pinguela, as pontes cobriram,
No tm mais monjolos batendo pra mim.
Os grandes roados e os cafezais
No tm mais sinais, tambm teve fim, ai.

Asfalto cobriram as velhas estradas


No cu formam nuvem de poluio.
As grandes fazendas construiu indstria,
Que triste angstia pro nosso serto.
Os burros cargueros foram abandonado,
Tambm foi trocado por caminho, ai.

Malvado progresso, voc me maltrata,


Destruiu as matas aonde eu vivia.
O nhambu guau e a ona pintada
E l na baxada a paca e a cotia,
Nas altas peroba as pombas do ar
Nas grandes ramagem jacu se escondia, ai.

O carro-de-boi num canto esquecido,


Seus coces rodos, rodas cai-no-cai.
Seguindo o progresso da evoluo,
Dos boi os mugidos eu no ouo mais.
No escuto a voz do velho carreiro,
Grande companheiro, meu querido pai, ai.

(Joo Mulato e Douradinho,


Moda-de-viola, v.1, s/d.)

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ROMILDO SANTANNA

Um fator de densidade potica em Tempo de Infncia reside j em


seu estrato fnico, pela repetio rtmica e correlaes internas dadas
pela sensualidade sonora das rimas. A espessura textual se organiza
por meio de procedimentos isomrficos em sua matria significante,
gerando em seu interior o colorido fnico to familiar ao solene
dodecasslabo de Arte Maior. De modo anlogo ao verso alexandrino
clssico, com seu movimento ondulatrio, todos os segmentos so
compostos de dois hexasslabos, constituindo hemistquios separa-
dos por uma cesura em que se encavalgam o fnico e o ritmo se-
mntico. Ritmo, vale sublinhar, uma dana de simetrias e nfases.
Assim, os grupos sonoros de que se compem os versos
correspondem a unidades de sentido que se articulam no interior
mesmo dos versos e nas relaes interversais. regularidade mtrica
das cinco estrofes, corresponde a correlao rtmica dos versos, com
os acentos de intensidade formando seriaes do tipo 2-5 / 8-11,
como se visualizam no seguinte esquema, de quaisquer dos sextetos:

/ / | / / .

/ / | / / .

/ / | / / .

/ / | / / .

/ / | / / .

/ / | / / .

Como no difcil perceber, a musicalidade articulada do poema


aviolado e seu ritmo corredio se realizam pelo encavalgamento so-
noro de clulas ternrias anapsticas ( / ), no interior do verso
e na inter-relao dos mesmos

/ / | / / .> / / .| / / .

Trocando em midos, e pelejando para ser mais explcito em


referncia aos conceitos tericos operacionais, entendam-se: todos os
versos possuem a mesma extenso mtrica, 12 slabas; cada verso se
subdivide, por uma leve pausa interna, em extenses: 6 + 6 (parei pra

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

pensar / o tempo de infncia); em cada subdiviso, o acento de inten-


sidade que marca o eixo rtmico recai sobre as slabas 2 e 5, ou, no
verso inteiro, 2, 5 8, 11, portanto, com o intervalo de duas slabas
tonas entre as tnicas. Esse ritmo, fortemente matizado pela repeti-
o jactante e insistente, sobrepassando inclusive os limites do pr-
prio verso na unio sonora com o seguinte, institui uma espcie de
alicerce musical, pontuando alguns deslocamentos da tonicidade lxi-
co-gramatical (nhambu, rodas, coces, grande, querido, evoluo...), ou
transformando monosslabos tonos em tnicos, e impondo-se com
suas insinuaes prpria faixa meldica da moda. Como se nota, a
matria sonora do corpo textual promove um condicionamento in-
terno subordinado ao impulso rtmico, muito freqente na Moda
Caipira, capaz de submeter os elementos de codificao lingstica a
seus princpios extralingsticos ou rtmicos. Isto freqente na po-
tica literria popular. Compreender este procedimento equivale a
considerar o acento de intensidade como fator objetivo do
pragmatismo no interior mesmo da estrofe; quer dizer, o ritmo
acentual dos signos no elemento que se induz de fora (leis externas)
para dentro da escritura. Ela emerge da espontaneidade lingstica e
se ajusta ao contexto cultural, s mesmas provncias ticas em que a
mesma fortuna potica interage. Isto : a Moda Caipira de razes,
desplugada das regras que regem o mundo letrado, v o ritmo com
uma elasticidade que ultrapassa a tonicidade gramatical padro. Nela,
parece que o verso recupera a sua oralidade original. Com admirvel
clareza, Ossip Brik explica: o movimento rtmico anterior ao verso.
No podemos compreender o ritmo a partir da linha do verso; ao
contrrio, compreender-se- o verso a partir do movimento rtmi-
co.135 Tal seriao rtmica, com os condicionamentos mencionados,
to comum na literatura popular brasileira de antiga procedncia,
um dos emblemas lricos do romantismo brasileiro.
Outro ornamento de linguagem que confere grande sonoridade
moda-de-viola Tempo de Infncia so as ocorrncias de rimas em
versos pares que se diversificam de estrofe em estrofe (o, na 1;
im, na 2; o, na 3; ia, na 4; e ai, na 5). A essas rimas finiversais,
se entrelaam rimas intraversais, pelas ocorrncias de signos como
infncia > criana, beleza > natureza (1 estrofe); cafezais >
135
0. Brik. O Poema In: Formalistas Russos: Teoria da Literatura. p.132.

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ROMILDO SANTANNA

sinais (2 estrofe); indstria > angstia, abandonado > troca-


do (3 estrofe); maltrata > matas, nhambu > guau > jacu,
pintada > baxada > paca (4 estrofe); esquecido > rodo > mu-
gido, carreiro > companheiro (5 estrofe). Esse sensorialismo
fnico, que propicia interessante fluncia na perspectiva do encade-
amento da matria significante e sua eficcia musical, coaduna com
a fluncia com que os autores Joo Mulato e Tio do Ouro articu-
lam a substncia semntica do texto. De fato, prevalecem os fios de
dois motes encadeados: no primeiro, a tenso entre os conceitos de
ontem (a infncia, o campo) e hoje (o progresso, a cidade); no segun-
do, como que num processo de recolha de todos os elementos
sublimados utopicamente no passado, qualificados afetiva e senti-
mentalmente como amenos, encantadores, aprazveis, produtivos
e vicejantes, surgem os dois versos que se enfeixam no desfecho do
poema: no escuto a voz do velho carreiro, / grande companheiro,
meu querido pai. As interjeies ai, sempre no momento caden-
te do ltimo verso de cada estrofe, costuram ao longo da letra os
ares de afetividade lrica e sua ligao sentimental com vivncias que
trincaram e partiram, e se perderam no tempo, e que permeiam a
concepo textual, voltada a uma plangente recordao de minha
infncia querida / que os anos no trazem mais.
O poema se organiza pela enumerao fragmentria da
remembrana de fatos da vida, paisagens, bichos e aves, e tudo aquilo
que, ligado vivncia humana do matuto, lhe confere identidade.
Essa disperso voltada contemplao afetiva do ontem se entremeia
de julgamentos e enumeraes comparativas muito pontuais com o
hoje (evoluo que destri, asfalto, poluio, indstria, progresso, ca-
minho), propiciando conjuno expressiva do texto o efeito de
ressos do antepassado em seu choque com o presente, vindos em frag-
mentos, sem ordenao cronolgica ou razes de causa e efeito. As-
sim, esta moda comunica um desdobramento de circunstncias
afetivas prenhes de sensorialismos, principalmente visuais, pelas su-
gestes tpicas e auditivas. Neste segundo caso, alm da arquitetura
fnica, com sua estrutura rtmica e rmica repetitiva, a harmonizar-se
com a matria semntica de ecos do antepassado, interessante atentar
para a funcionalidade ambgua de dois termos dados no arremate
exercido pela ltima estrofe, exatamente a instncia em que se fecha a
complexidade fonossemntica do texto: canto e rodos. Ambos os

200
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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

signos, em seus contextos morfossintticos, referem-se a vivncias


desagradveis de algo esquecido, abandonado no espao, no pri-
meiro caso; algo em decomposio, mortificado, consumido pelo
tempo, no outro. No entanto, carro-de-boi num canto esquecido
se tonifica tambm pela idia de canto [o cantar] do carro-de-boi; a
expresso coces rodos [rudos, na prosdia], remete ao mesmo
canto do carro-de-boi, que, pela latncia da memria afetiva, se
desliga da idia de rudo, rangido dos coces para soar como uma
estimada msica que vem de longe, pelas veredas poeirentas do
serto de ontem, e que se dissolve agressivamente no inspito asfalto
de agora. Se esta interpretao for correta, e considerando a polivalncia
semntica dos signos canto e rodo [prosodicamente rudo], em
sua graa construtiva como achado de linguagem, tais constituintes
de construtividade potica se harmonizam com a idia de canto dos
pssaros, sugerida na estrofe antecedente, e com o mugido dos bois, no
quarto verso da ltima estrofe, elementos de sonoridade, de ecos e
reverberaes fragmentrios do passado que culminam, num pro-
cesso de smula, com no escuto a voz do velho carreiro, / grande
companheiro, meu querido pai. Neste sentido, parece que uma
idia de msica une os elementos dispersos na lembrana copiosa
das lonjuras do tempo, na indstria operacional e significativa do
poema, tudo em contraste com a aridez do momento existencial e
potico do eu-cantador. Parece que, subtrado dos elementos que o
identificavam no seu meio, o ser humano torna-se vazio de si mes-
mo, transitrio, disperso no mundo, nesse presente confundido
com os valores da cidade, que mata o caboclo com a solido,
conforme escrito e cantado.
Estruturado pela livre associao de idias, o texto possui uma
nica gradao, pela sntese repentina dos dois ltimos versos, que
atualizam a imagem do pai. Repare-se que se trata de uma sntese
genealgica, confundida com a idia de um cantar: aquilo que radical-
mente identifica o eu, colocando-o pacificamente na referncia com o
mundo, converte-se na figura do pai, o estar no mundo. O entendimen-
to dessa nostalgia transfiguradora, retrospectiva, que se passa em Tempo de
Infncia, pressupe a compreenso de simbologias afetivas radicais,
intimamente internalizadas e agregadas ao mundo do campesinato
caipira. Nelas certamente se incluem a bondade que parece brotar da
alma do povo, do seu temperamento natural; a sensibilidade ao so-

201
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ROMILDO SANTANNA

frimento alheio, a facilidade em esquecer e em perdoar as ofensas


recebidas, um certo pudor em manifestar os seus egosmos, a ausn-
cia de qualquer orgulho de raa, a repugnncia pelas solues radicais,
a tolerncia, a hospitalidade, a largueza e a generosidade no acolhi-
mento,136 to afetivamente espontneos no mundo da roa que vai-
se perdendo, e to escassos na aridez do hoje urbano. So simbologias
de um tempo idealizado, extraviado, que se procura em vo. E a
Moda Caipira o repe, em suas funes ldica, sentimental e potica.
O passado evocado como um tempo mtico, numinoso,
imemorial da plenitude humana. O lamento pela chegada do pro-
gresso, no mundo caboclo, deve ser entendido em sua dimenso
etnolgica, poltico-social, cultural. So saudosas reminiscncias de
uma substncia que sedimenta a vida, pois o cidado rural integra-se
ao meio por uma conciliao ecossistmica que lhe fundamental,
fazendo parte de sua radicalidade de ser. neste sentido que se deve
entender o processo analgico com que o texto se fecha: a revivncia
simbolizada pelas coisas pretritas, em seu conjunto, espontaneamen-
te transita para a figura do pai carreiro, como se o calor da afetividade
inter-humana e a materialidade do ambiente vivenciado e perdido
pelo personagem cantador se humanizassem na expressividade do
signo de quem os vivenciou plenamente no passado: o pai. Para a
interpretao desse sentimento nostlgico de que o texto se nutre, e
da maneira como est circunstanciado, nada melhor que ouvirmos as
observaes de Antonio Candido em sua tese publicada em 1954
sobre os parceiros de Rio Bonito (Bofete): havia entre as atividades
do caipira uma correlao estreita, e todas elas representavam, no
conjunto, sntese adaptativa da vida econmico-social. Assim que o
trabalho agrcola, a caa, a pesca e a coleta no eram prticas separadas,
e de significado diverso mas complementares, significando cada
uma per si, e todas no conjunto, os diferentes momentos dum mes-
mo processo de utilizao do meio imediato. A roa, as guas, os
matos e campos encerravam-se numa continuidade geogrfica, deli-
mitando esse complexo de atividades solitrias de tal forma que as
atividades do grupo e o meio em que eles se inseriam formavam por
sua vez uma continuidade geossocial, um interajuste ecolgico, onde
cultura e natureza apareciam, a bem-dizer, como dois plos da mes-

AZEVEDO, Fernando. A Cultura Brasileira - I (Os Fatores da Cultura), p. 198.


136

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

ma realidade. ... Magia, medicina simptica, invocao divina, explo-


rao da fauna e da floresta, conhecimentos agrcolas fundem-se, des-
te modo, num sistema que abrange, na mesma continuidade, o cam-
po, a mata, a semente, o ar, o bicho, a gua e o prprio cu. Dobrado
sobre si mesmo pela economia de subsistncia, encerrado no quadro
dos agrupamentos vicinais, o homem aparece ele prprio como seg-
mento de um vasto meio, ao mesmo tempo natural, social e sobre-
natural.137
Tempo de Infncia, refletindo as antinomias ontem/hoje, campo/cida-
de, tradio/ruptura, exuberncia vital/impotncia diante do futuro, compa-
nhia/solido, apresenta-se com imagens fortemente vincadas por uma
experincia aflitiva, dolorosa e sem entusiasmo do hoje, como se o
atual, romntica e sentimentalmente, sempre refletisse a idia de um
mundo em desconcerto. O tema, de to martelado, bem comum,
quase prosaico, quase vulgar. Sua graa, entretanto, nasce de uma
contextualizao prpria, no espao mesmo da poesia, em que os
efeitos de sentido se extraem da harmonia entre estrutura e
simbolizao, entre significante e significado, entre a cultura e o ver-
bo. Tal tem sido, em todos os tempos, o efeito sensacional da
poesia em sua viso poetizante e funo potica. Esta moda-de-viola,
enfocando o trivial, o social em sua fruio mais profunda e
agregadora, e sendo por isto mesmo cotidiana e crtica, dilata suas
fronteiras com o histrico, num acolhimento encantador entre o real
e o idealizado.
Ao enfocar a estrutura significativa de Tempo de Infncia, trouxe
tona vrios procedimentos autorais que repercutem um trabalho so-
bre a faixa fnica do texto. Sendo a essncia do canto inerente ao
poema, alguns estratos significantes da matria fnica so claramente
extralingsticos. por isto que a anlise puramente lingstica frus-
tra as categorias insinuantes da letra. No desfecho deste captulo mais
duas questes quero acrescentar: 1) Na Literatura Oral-popular pou-
co importam os apriorismos das regras forasteiras, alentadas pelas
tendncias de pocas. Nela, essas regras se revigoram rapidamente,
adaptam-se num sistema de circuito prprio, ditado pela fruio es-
pontnea do esprito da lngua. Assim, a Moda Caipira de razes no
cativa da dependncia externa; seu limite o espao interior de sua
CANDIDO, Antonio. Os Parceiros do Rio Bonito, p. 173-5.
137

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ROMILDO SANTANNA

prpria cultura e linguagem. Desenvolver no significa mudar, mas


transformar. Por isto, vista com pouco cuidado, parece esttica; apar-
tada do burburinho mundano, arcaica. Assim entendida, inviabiliza a
idia de novo, para vigorar a noo de atualidade. Isto pressupe uma
viso original e uma decolagem para o sonho, espao em que os
conceitos e valores perdem seu significado corporal e a inteligibilidade
individual. Os sentidos incrustados na mensagem so especulares; e
espelho, parece, restitui o antepassado, o aqum do prprio espelho,
confabulando com o atual de sempre. 2) Acerca do funcionamento
da binmia significante/significado, h que se levar em conta o se-
guinte: o ritmo, a rima, a reiterao entonacional e outros fatores
prosdicos que se revelam como matrias expressivas dissociadas da
relao estrita entre expresso e contedo, configuram-se como aqui-
lo que os lingistas denominam constituintes supra-segmentais. Ou
seja, so matrias acsticas-meldicas que, ocorrendo paralelamente
ao estrato segmental (lingstico propriamente dito) da cadeia fnica
do texto, constituem a parte complementar importante da
orquestrao textual e da significao processo fono-psico-cultural
da linguagem humana. por isto que, em muitos casos, para anlise
do verso cantado, so necessrias ferramentas de uso clssico, que
implicam a considerao do timbre (aberto/fechado), da intensidade
(forte/fraco), da altura (grave/agudo) e da durao (longa/breve). Tro-
cando em midos, so fatores que no pressupem, necessariamen-
te, a correlao fechada, encalacrada, entre significante e significado, ou
seja, quase sempre no h aportes significacionais engendrados no
interior mesmo da estrutura significante capazes de alterar significati-
vamente o que foi organizado pelas inter-relaes semnticas. Como
tenho observado, a Moda Caipira de razes reflete uma nfase estilstica
substncia semntica, s explicitudes e entornos significativos do
enredo. Assim, a faixa do contedo dos signos prende-se apenas aos
contornos da sonoridade expressiva, de modo que a musicalidade auferida
projeta-se para fora, desliga-se, por assim dizer, da formatao do
signo como unidade lingstica. So, pois, elementos de prosdia mu-
sical, que funcionam como contornos.
A oralidade da Moda Caipira, volto a dizer, muito constante-
mente, se nutre da natureza semntica do discurso, prescindindo de
imagens do significante, ou significantes auto-motivados, como
paronomsias, onomatopias e outros recursos icnicos ou imitativos

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

germinados pela inter-relao fnica do potencial significante da ma-


tria lingstica. Assim, o estrato da sonoridade tende a funcionar
como ornamento, realce, recurso destinado fluncia articulatria entre
as palavras, musicalidade do ato de fala, e, ao mesmo tempo,
viabilizao do estmulo memorizao da letra fator essencial da
sua oralidade e vitalidade performtica. Essa nfase faixa semntica
faz da poesia caipira um discurso de natureza anloga ao que ocorre
com freqncia nas expresses acadmicas das artes plsticas: a beleza
se d pela correlao analgica de estmulos referenciados. A Moda
Caipira realiza-se por uma sinuosa semntica rtmica, o verso social
carregado de semntica, nos dizeres de Ossip Brik.138 Da sua comu-
nicao instantnea com o pblico, provinda de um grau de concretude
espao-temporal muito latente. S ao final desse processo, e em seu
entrelaamento ntimo, interativo e potencializado com o ouvinte, a
moda comea a surtir os efeitos de seus sentidos sensoriais emana-
dos da escritura. Escreve Alfredo Bosi que no poema primitivo o
ritmo retoma, concentra e reala os acentos da linguagem oral. Os
passos picos das gestas, as falas mgicas e propiciatrias, os versculos
do Antigo Testamento, os cantos da liturgia bizantina e medieval
cujos textos se preservam at hoje, colam estrutura frsica acentuando-
a pela repetio e pelo paralelismo.139 Arrematando, se h significantes
auto-motivados na moda-de-viola h pouco em questo, eles no
so tpicos ou peculiares ao gnero. Acontecem em baixa freqncia.

O. Brik. O Poema. In: Formalistas Russos, Teoria da Literatura, p. 131-140.


138

139
Ensaio Frase: Msica e Silncio. In: BOSI, Alfredo. O Ser e o Tempo da
Poesia, p. 70.

205
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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

6. A MODA VIOLA EM
VRIAS POCAS E LONJURAS

Assim como o bandnion est umbilicalmente ligado ao tango, a


harpa guarnia, a guitarra portuguesa ao fado, a guitarra espanhola
ao cante flamenco, o acordeo chanon francesa, o violo modinha
brasileira e cano de seresta, os instrumentos de percusso ao sam-
ba, o cavaquinho ao chorinho..., a velha viola indissocivel do
Romanceiro tradicional peninsular e, em sua extenso acaipirada,
Moda Caipira. As guitarras, violes, cavaquinhos e bandolins, o cuatro
venezuelano, equatoriano, colombiano, o charango andino e a guitarra
gacha, cuja caixa de ressonncia pode ser a couraa de tatu, o tololocho
mexicano, o banjo, instrumento principal do jazz sulista norte-ame-
ricano... so derivaes da viola, a antiga vihuela de mano espanhola. Ela
fetiche do caipira e so considerados violarias o violo e o cavaquinho.
Violeiros caipiras costumam usar o guizo da cascavel dentro da caixa
de ressonncia para melhorar a sonoridade. Conta o pesquisador e
concertista de viola Roberto Nunes Corra, reportando-se ao artigo
Anotaes para um Estudo sobre a Viola: Origem do Instrumento e sua
Difuso no Brasil, de Ascendino Theodoro Nogueira (publicado em A
Gazeta, em 1963) que, segundo um violeiro de So Jos do Rio
Preto-SP, uma viola para ser boa, tem que ser feita com cedro da
baixada. Esta madeira tem o tino muito mais bonito que o cedro do
morro. No morro, a rvore judiada pela chuva de pedras e pelo
vento, o que faz o som da viola, feita desta madeira ficar neurastnico...
O violeiro Palmiro Miranda, de Sorocaba-SP, afirma que o segredo do
som da viola est na cola. A viola tem que ser colada com uma resina
que, para descolar, precisa de uma junta de bois. Afirma ainda que o
quinto trasto do instrumento o ponto falso. A gente afina, afina e

207
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ROMILDO SANTANNA

continua desafinado. Para ajust-lo preciso temperar a viola. Um


violeiro de Mato Grosso assegura que a nota mais aguda da viola o
r-mi-f. Outro violeiro paulista disse que a viola s afinada at a
meia-noite. Depois, o sereno da noite e a ressaca da pinga seguram a
afinao.140 Mas a verdade uma s, ou so duas... Relata Vieira, da
dupla Vieira e Vieirinha:

Eu vi muitas lenda, naquela regio de Piracicaba, que


dos curuero, aquele povo que num tira a viola do brao... A
primera lenda diz que a viola... at hoje t escrito nas Escri-
tura Sagrada, t escrito l um verso que diz: pegue um
instrumento de deiz corda e cante. O nico instrumento
de deiz corda a viola! Ento diz que Cristo e os apsto-
los todos sabia que Cristo ia morr. Tavam triste. E ele
fal pra Gonalo So Gonalo , que at hoje protege os
violero: pegue a viola e cante. Ele pregunt: o que a
viola? Cristo disse: vai na casa de Lzaro que tem uma
viola. E ele foi l e ach. Agora da onde vem a viola, isso
ningum sabe... At hoje o instrumento que a Igreja Ca-
tlica aceita, com todo respeito, a viola dentro da Igreja.
Pode entr com a viola que os padre aceita, porque o
instrumento de deiz corda, como foi falado nas Escritura.

Reportando outra lenda, conta Vieira que, por ocasio da nativi-


dade de Cristo, um plebeu...

...muito pobre queria visit o Menino Jesus. Como que


ia lev presente? Ele no tinha! Ele tava montado num
jumentinho... Ele sent debaxo de um pau e esse pau
sortava casca. Ento ele, triste, porque no tinha nada... o
burro comeo bat o rabo no rosto dele, a pertub. A ele
enfez e deu um soco no rabo do burro e tir deiz cabelo.
E peg uma casca de pau, e estic os fio de cabelo e deu o
som. Foi da que nasceu a viola! E lev pra manjedora,
onde estava Maria, Jos e o nen. por causa dessa lenda
do prebeu que levou a viola pro Menino Jesus que a viola
sagrada, da Igreja.141

140
CORRA, Roberto Nunes. Viola Caipira, p.19.
141
Colquio gravado em 11.dez./95.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Ilustrao n.6 So Gonalo dAmarante, o Protetor dos Violeiros,


nascido em Arriconha, Portugal, em 1259.
O dia de So Gonalo festejado em 10 de janeiro.

As duas lendas tm em comum a vinculao com o sagrado, e


indicam, na opinio do artista, perene aceitao da viola pelo clero.
Essa interpretao discutvel, creio que indiferente em relao aos
padres de hoje, mas confortante para o caboclo. Afora isso, no
impossvel supor que guarda uma lembrana ancestral das origens da
viola no pas, pelos ensinamentos dos jesutas portugueses, em suas
aes devocionrias de converso e catequese. Juntamente com o tam-
boril e a flauta, era o instrumento favorito nas festas jesuticas do
Brasil colonial. Escreve Alceu Maynard de Arajo que a viola bas-
tante idosa, veio de Portugal e ao aclimatar-se em terras brasileiras
sofreu alguma modificao, no s na sua anatomia bem como no
nmero de cordas. a lei da evoluo. Tanto tem evoludo que no
Brasil so feitos, pelo menos cinco tipos distintos de violas de cordas
de ao: a paulista, a cuiabana, a angrense, a goiana, e a nordestina... As
violas mais antigas de que temos tido conhecimento so feitas mo
por algum curioso. recente a sua industrializao. As violas feitas
em srie e vendidas a baixo custo so inferiores em som s feitas

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ROMILDO SANTANNA

mo. Tiveram, porm, o privilgio de desbancar aquelas, sendo hoje


rarssimo encontrar fazedores de viola. Embora o violeiro d prefe-
rncia feita mo, economicamente se v obrigado a comprar a
industrializada. E digno de nota, estas so muito vendidas nas Mecas
do catolicismo romano no Estado de So Paulo. Assim pudemos
ver em Pirapora do Bom Jesus, Aparecida do Norte, Bom Jesus de
Iguape e Bom Jesus dos Perdes, onde os romeiros, na sua maioria
gente da roa, aproveitam para cumprir suas promessas e fazer sua
comprinha... Nos quatro lugares acima mencionados, pudemos em
1946-1947-1948, constatar a venda de violas industrializadas e as ra-
ras feitas mo e ao mesmo tempo confirmar a diferena que hava-
mos notado entre a viola do beira-mar e a da serra acima... claro que
os acidentes geogrficos, os meios de comunicao influenciam os
usos e costumes. A facilidade de compra de um instrumento contri-
bui para que se generalize a sua adoo. Assim que, antigamente, os
moradores de Cunha, que levavam dois dias para ir at Guaratinguet
ou Aparecida, e apenas um para ir at Parati, no litoral fluminense,
adotaram a viola do tipo angrense ou do litoral.142 A Enciclopdia da
Msica Brasileira define a viola como instrumento folclrico cordofone
que soa por dedilhado. Muito divulgado no Brasil, principalmente
nas zonas rurais, de provvel procedncia portuguesa, embora a
introduo do nome e do instrumento em Portugal possa ser
italianismo, por sua vez provenalismo. semelhante na

Ilustrao n.7 Anatomia da Viola Caipira: 1. Furo para o barbante de


pendurar; 2. Pestana, trasto de osso, ou capo trasto; 3. Rastilho; 4.
Cravelha ; 5. Trasto ou ponto; 6. Brao; 7. Boca ou ressonncia; 8.
Cintura, curva ou volta; 9. Tampo da caixa de ressonncia; 10.
Cavalete. Desenho: Dinorath do Valle.
142
ARAJO, Alceu Maynard. Folclore Nacional - Vol. II, p. 433-50.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

forma ao violo [aumentativo de viola], com cinco ou seis cordas


metlicas duplas. A afinao muito varivel, parecendo, entretanto,
que a mais comum misisolrla ou misisolrlami e suas
inverses. De som agudo e em geral sentido como triste, em verda-
de o grande instrumento de cantoria sertaneja. Tambm chamado
pinho, machete, machetinho, machim, machinho, mocinho, ligina.143
A precariedade da vida e o isolamento do caboclo e, sobretudo, a
ao recproca com os costumes e musicalidade amerndios e africa-
nos propiciaram o surgimento de violas muito rudimentares, cujas
cordas nem sempre so de arame, mas confeccionadas de tripas de
animais (macacos, porcos do mato...), e as caixas de ressonncia feitas
de materiais extrados da natureza. Muitas so mantidas ainda hoje,
como a Viola de Buriti, feita a partir de trs pedaos de tronco do
coqueiro, sendo a parte central com um furo no meio, quadrado ou
redondo; a Viola de Cabaa, cujo brao fixado na fruta do cabaceiro
amargoso. A Viola de Cocho, com que se apresentam os cururueiros de
Corumb-MT, adentrando os territrios da Bolvia, e violeiros do
pantanal mato-grossense, feita de um tronco escavado de rvores
como a figueira branca, o sar, a tuna e a ximbuva, madeiras leves,
resistentes e muito sonoras. O tampo colado com o ingrediente que
medra do sambar, uma orqudea que se instala em espcies de palmei-
ras, ou com um preparo base de poca (bexiga) de piranha. O
encordoamento feito das tripas de animais, como o macaco, o gato,
o porco-espinho, ou da lngua de tamandus e nervos de cobras.
Roberto Nunes Corra, que usa a viola de cocho no CD Urboro
(1994), no encarte do disco levanta a hiptese de que essa viola pode
derivar-se diretamente do alade rabe.
Sobre essa rstica variedade da viola, Z Gomes escreve o seguin-
te, no encarte do CD instrumental Palavras Querem Dizer: A rabeca e o
cocho tm o carter do que do povo. Essa grandeza que saber
guardar a essncia, memria do homem como sociedade, particulari-
zada pelos que fazem e tocam esses instrumentos. Sua importncia
ainda merece mais ateno. O interesse histrico transcende os limites
das eras. Os encontramos na mais remota antigidade ou, como hoje,
usados por gente que no passou pela Revoluo Francesa nem pela

143
Enciclopdia da Msica Brasileira (Erudita Folclrica Popular), p. 801.

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ROMILDO SANTANNA

Era Industrial, que seguem seu passo apesar das eras. So smbolos
de uma riqueza cultural submersa mas pronta para ser mostrada.
[Pois , para o homem, a mulher e filhos da roa, o sonho ainda nem
comeou!]. Essa ligao estreita com a natureza se presentifica em
artistas como a violeira Helena Meireles (1924-) instrumentista auto-
didata como quase todos, a qual, tocando a viola nos bordis e putarias
do interior do Mato Grosso, ou para a boiaderama do pantanal e
divisas paraguaias, usa uma estranha palheta feita de chifre de boi,
confeccionada sempre s Sextas-feiras Santas, sob uma figueira, an-
tes do sol nascer, para atrair as boas vibraes. Na interpretao de
Guaxo (s/d., domnio pblico), ela imita o rudo do vo desse ps-
saro devorador de laranja. Em Araponga (s/d., domnio pblico),
reproduz na viola o canto dessa ave.144 Z da Estrada (Waldomiro de
Oliveira, Botucatu-SP, 1929-), da dupla Pedro Bento e Z da Estrada,
com 40 anos de carreira e mais de uma centena de LPs gravados, em
entrevista para este Ensaio disse:

A viola pra mim representa a minha vida. Meu


bisav, em Botucatu, era violeiro, violeiro repentista, apai-
xonado por viola. Ele fic famoso na cidade porque cant
pra D. Pedro II. Fez um show pro Imperador usando a
viola, que era o smbolo da cidade. D. Pedro gost mui-
to porque lembrava a terra dele. Voc sabe, Botucatu
terra de violeiro: tem Raul Torres, tem Serrinha, sobri-
nho dele, tem Carreirinho, tem Tonico, tem Angelino de
Oliveira, tem eu, modestamente. Naquele tempo nis
s via viola feita de pau, viola de arrai. Na sala da casa do
meu bisav tinha um quadro da viola pintado na pare-
de. Eu perguntava pra minha av o que era aquilo e ela
explicava tintim por tintim. Ento nasci e cresci com
aquelas explicao na cabea, e s ouvindo viola. Quan-
do eu escuto o som da violinha caipira eu vorto minha
144
Pelas qualidades de instrumentista e contadora de causos autobiogrficos,
a violeira mato-grossense Helena Meireles apresentou-se em programas de
rdio e televiso de grande prestgio nacional. Recebeu em 1993 o prmio
Artist, da revista norte-americana Guitar Player, juntamente com artistas inter-
nacionais como Eric Clapton, Jeff Beck, George Benson, Keith Richards e
outros. Informaes coligidas do encarte assinado por Mrio Arajo (In:
Helena Meireles, CD da Gravadora Eldorado, 1994).

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

infncia, eu vorto ao meu passado. isto que me enfez


e me influenci pra cant de dupla.145

Para entender melhor o significado desse instrumento musical, do


mais elementarmente rstico sua fabricao em srie, nos enredos
tradicionais e inquietantes do mundo caipira, nos momentos solitri-
os de o caboclo passar o tempo, no entretenimento coletivo e na evo-
cao da arte, vou repetir que a viola, como manifestao etnolgica do
ser moldado pelo caldeamento das culturas amerndia, africana e pe-
ninsular ibrica, possui um fundo de tristonho e de melanclico ligado
ao escravismo, ao desterro e mortificao de estados vivenciais estabi-
lizados, postos em correlaes estranhas, obrigados a compartilhar da
unio comum. Pelas duplas caipiras, a viola sublimada; s vezes repre-
senta os prprios cantadores-violeiros, por antonomsia, e adquire
um qu de herico, resoluto, grandioso, como brado defensor do
caipirismo. Este o sentido que do viola Tio Carreiro e Jesus
Belmiro, na moda-de-viola que canta a saudade de Florncio (Joo
Batista Pinto, 1910-1972), um canhoteiro de fibra / um exemplo de
violeiro. Em forma de litania e epitfio, um cantador real se faz lend-
rio e fabuloso; seu fazer artstico um idlio que une a viola e o violeiro
numa saga histrica da cultura e da arte do povo:

VIOLA VERMELHA
moda-de-viola

Tio Carreiro / Jesus Delmiro

Esta viola vermelha,


Cor de bandeira de guerra
Cor de sangue de caboclo,
Cor de poeira de terra.
Foi a fiel companheira,
Numa longa trajetria.
De um artista to querido,
Que deixou nome na histria
Um canhoteiro de fibra,
Um exemplo de violeiro.
Com talento e traquejo,
145
Colquio gravado em 12.fev/96.

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ROMILDO SANTANNA

Do progresso sertanejo,
Ele foi o pioneiro.

Esta viola vermelha,


J feiz tristeza acab,
Feiz muitos lbios sorrir,
Feiz platias delir.
Mais um dia entristeceu,
No silncio da saudade.
Quando pra sempre seu dono,
Partiu para a eternidade,
Ela chora apaixonada,
Que at meu corpo arrepia.
D um gemido em cada corda,
Quando comigo recorda
Esta imortal melodia:

[Solo de viola da moda Boiada Cuiabana (1938), de Raul


Torres, na interpretao da dupla Torres e Florncio]

Esta viola vermelha,


Que tanto alegr o povo,
Defendendo o que nosso
Est na luta de novo.
Volt a ser aplaudida
Como foi antigamente.
O seu passado de glria
Revivendo no presente,
Florncio descanse em paz,
Porque essa viola sua,
Volt para o p do eito,
Encostada no meu peito,
Sua luta continua.

Essa viola vermelha


Est chorando comigo!
Ela perdeu o seu dono,
Eu perdi um grande amigo!

(Tio Carreiro e Pardinho,


Modas de Viola Classe A, v.4, 1984)

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Roberto Nunes Corra, em seu livro-mtodo Viola Caipira, escla-


rece que h dois grandes nervos de viola no Brasil: as Regies Nor-
deste e Centro-sul. No Nordeste o instrumento chamado viola ser-
taneja, de tamanho igual ao violo; no Centro-sul conhecida com o
nome de viola caipira e bem menor que o violo, com a cintura mais
proeminente. Possui dez cordas (cinco pares), agrupadas duas a duas,
sendo as mesmas de ao ou revestidas de metal. Alm de ser o instru-
mento mais representativo de nosso folclore, no um instrumento
limitado, pelo contrrio, as suas variadas afinaes propiciam campos
harmnicos e extremamente originais.146 Ainda de acordo com o
violeiro-musiclogo, os nomes dados s cordas so de origem por-
tuguesa, existindo, no entanto, muita contradio nas informaes
prestadas pelos violeiros, ou seja, a mesma corda recebe vrios no-
mes diferentes. Alguns violeiros concordam em geral com os seguin-
tes nomes: prima ou contra-prima ou primas; requinta e contra-re-
quinta ou segundas; turina e contra-turina; toeira e contra-toeira;
canotilho e contra-canotilho. Para o terceiro par encontramos o nome
verdegal, quando usada linha de pesca no lugar de corda de ao.147
Interessante paralelismo entre os cinco pares de cordas e cinco juntas
de bois-carreiros aparece no cururu Meu Carro Minha Viola, de
Carreirinho e Mozarth Novaes, gravado em 1958 por Tio Carreiro
em dupla com Carreirinho:

MEU CARRO MINHA VIOLA


cururu

Carreirinho / Mozart Novaes

Perguntam se argum dia eu fui carrero,


No senhor, muito menos meu parcero,
bastante diferente o nosso nome verdadero,
Tio Carrero e Carrerinho apelido de violero.
Nis dois no somos irmo, somente companhero,
Na viola nis ponteia uma semana, um ano intero,
Ai, ai.

146
CORRA, Roberto Nunes. Viola Caipira, p. 27.
147
idem, p. 27

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ROMILDO SANTANNA

Nosso carro, nis no toca nas estrada,


S nas festa, no meio das morenada,
A viola o nosso carro e as corda a boiada,
So cinco juntas de boi e muito bem combinada.
A nossa vida carrera uma vida delicada,
O carro que nis carreia a viola bem afinada,
Ai, ai.

As corda fina os primero boi-da-guia,


E as segunda so os boi da sub-guia,
Vem a prima e a requinta na puxada bem macia,
A toera os boi de coice, com a sua companhia.
Canotia o cabeaio, o boi de mais garantia,
Quando puxa, toda junta, at o corpo se arrepia,
Ai, ai.

Nosso carro nis traiz muito conservado,


Nis carreia com jeito e muito cuidado,
Tem dias que canta alegre, e outros dia amargurado,
s veiz canta por prazer, muitas vezes obrigado.
O coco o nosso peito, no dueto apaixonado,
Nessa hora de trabaio eu dexo a tristeza de lado,
Ai, ai.

(Tio Carreiro e Carreirinho,


Meu Carro Minha Viola, 1958)

Algumas variaes na denominao do encordoamento da viola


encontram paralelo nas diversas formas de afinao do instrumento.
Isto se explica, por um lado, por ele estar intimamente ligado ao
estado de isolamento do campnio, com seus valores lapidados pela
reteno do passado e pelo aprender-fazendo que incorpora as con-
venes de seus bairros e bairros vizinhos; por outro, devido ao
carter artesanal que acompanhou no Brasil, at meados do decnio
de 1940, a fabricao do instrumento. Exprime Vieira, em cuja famlia
h vrios luthiers, a voz corrente no mundo caipira:

A viola nasceu pra divertimento. Tem vinte e cin-


co finao. O nome delas toda eu num sei. Mas sei que

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

tem Rio-a-baxo, Cebolinha, Cebolo, tem Quatro-ponto,


ou Boiadera, Itabira, tem Gaspeado, tem Meia-guitarra...
Ao todo vinte e cinco.
Sempre usamo o Cebolo. Antes de nis ir pra So
Paulo usava a Boiadera, ou Quatro-ponto, que era a finao
usada pra dan o catira. Era um tipo de finao que nem
de violo, s que era Quatro-ponto, bem caipira mesmo.
Bem caipira porque era aquela violinha que raspava a
madera, sabe? Num era alto que nem essas de agora, que
se bate e num pega a madera. Aquela tinha trastos s at
no brao, num tinha trasto pra traiz, e era baixim. Ento
oc tocava e raspava a caxa dela. Essa era a verdadera viola
caipira. essa viola Boiadera... a Quatro-ponto. As corda
era deferente. Era canutiu e toera, turina, prima, duas marela e
a vinha o mizinho, debaxo, que era os dois mizinho mes-
mo. Agora essas finao que nis usava pra grav o
Cebolo. O Cebolo uma finao sorta; que ela sorta d
o mi maior no violo, afinado no diapaso, mi por mi. Bateno
a viola sorta, sem ponteio sem nada, j o mi maior no
violo. As corda os dois mi, o mizo; tem o si, tem o sol,
mi-sol, junta de duas em duas; depois tem a quarta que
mi-r; depois vem a quinta que o si-l. O jeito de toc so
todas deferente do Quatro-ponto. Tem finao que... tem
posio que t em treis, quatro lugar, uma s. s pricur
no brao da viola que acha. Pa moda-de-viola, na introdu-
o e entre os verso, a gente toca a viola sorta, bate sorta, e
prende no mizo e no r, em cima, sorta.148

Escreve o pesquisador e concertista Roberto Nunes Corra que


as violas, geralmente, so feitas artesanalmente, e o tempo mnimo
para se fazer uma viola de dez dias. O conhecido arteso Z Coco do
Riacho, um dos raros fabricadores de violas e rabecas, utiliza uma
cola feita de banana do mato, tambm conhecida por sumar. No
tampo, ele usa a madeira emburana de espinho; o brao feito de
cedro; o espelho, cravelhas e ornamentos de cavina (candeia); e a
lateral feita de pinho.149

148
Colquio gravado em 25.mai/94.
149
CORRA, Roberto Nunes. Viola Caipira, p. 16.

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ROMILDO SANTANNA

A primeira luteria de violas industrializadas no Brasil est ligada


famlia de Bernardino Vieira Marques, imigrante de Lisboa, e, assim
a seus filhos, a dupla Vieira e Vieirinha e aos primos-irmos, tambm
nascidos em Itajobi-SP, Liu e Lu (Lincoln, 1934- e Walter Paulino da
Costa, 1937-) e Zico e Zeca (Antnio Bernardo, 1930- e Domingos
Paulino da Costa, 1932-). Observa o estudo A Expressividade Caipira
em Vieira e Vieirinha, de Maria Madalena Bernadeli, que Bernardino
fez uma casa na fazendinha da famlia, chamada Crrego da Figueira,
em Campo Triste, hoje Itajobi-SP, com assoalho especial para a dan-
a do cateret. Os filhos [nove ao todo] no podiam danar baile, que
dana com esfregao; s cantavam e danavam catira, ou cateret,
que lembravam os cantos e bailados, principalmente o vira, to a
gosto do pai, em Portugal.150 As primeiras Violas Xadrez (1945,
primeiramente fabricadas a canivete, na Fazenda Crrego da Figueira
e, a partir de 1950, na cidade de Novo Horizonte e, aps, Catanduva-
SP) foram feitas do pinho das embalagens do bacalhau importado de
Lisboa. O primeiro luthier da famlia foi um dos filhos do velho
Bernardino, Antnio Paulino Vieira, tambm violeiro. A viso idlica
do surgimento das violas Xadrez e o reconhecimento pblico do
pioneirismo dessa luteria familiar e profissional vamos encontrar na
seguinte dcima composta por Carreirinho:

VIOLA DA FAZENDA
moda-de-viola

Carreirinho

Cidade de Itajobi,
Na Fazenda da Figuera
O Dego e o seu irmo,
Antnio Paulino Viera,
Entraram na mata virge
procura de madera
Pra faz uma viola
E fizero a primera.

150
BERNADELI, Maria Madalena. A Expressividade Caipira em Vieira e Vieirinha
p. 11-2.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

E a notcia esparram
Da violinha fandanguera.

(Vieira e Vieirinha,
Vieira e Vieirinha 37 Anos, 1986)

A transmisso e o aprendizado da arte de tocar a viola, como a


literatura popular que ela acompanha, quase sempre foram de pais
para filhos, no recolhimento familiar e amistoso, e localizados em
comunidades restritas. Em estado de isolamento e sem as oportuni-
dade das lies formais, assim que se aprendiam os segredos da
luteria e as sutilezas meldicas da viola. Por isto, mesmo em recantos
prximos entre si, do Centro-Sul e do Sudeste, certos bairros rurais
afinam as cordas de modos distintos, conseguindo acordes seme-
lhantes pressionando com os dedos da mo esquerda em posies
diferentes. As migraes to constantes do campesinato, no ritmo do
avano do capitalismo rural para os cafunds e veredas do serto,
difundiram as vrias maneiras de executar musicalmente o instru-
mento, ou cantar de viola. Explicou Vieira:

...a viola o seguinte, uma coisa ansim: c pode t cansa-


do, o caipira chega da roa, trabai o dia inteirinho, mas se
ele peg na viola ele descansa, ele sente leviado, acho que t
no sangue, n? Na nossa famia, minha me cantava de
viola na sala, pra dan catira. Ela e o pai dela. E vem meus
tio do lado da minha me, todos so catirero, que o pai
do Zico e Zeca e do Liu e Lu. O nome dele Gabriel
Bernardo da Cunha e a me tia Rosa. Veio nascendo os
fio e todos so violero.
A viola mais minera do que paulista. Ela bem
minera mesmo. A deferena da viola minera com os
paulista foi que os minero forgado. Ento eles no
envoluro a viola e nem o catira tambm. Ele ficaro dan-
ando daquele jeito minero, e no envoluiu. O catira e a
viola minero, envoluda pelos paulista. Tudo quanto
minero tanto faz do Sul como s do Tringulo, como s l
pas banda de Belo Horizonte, naquele mundo l, quarqu
lug que c chega tem violero. E bo! S que eles ansim...,
so muito bom catirero mas s aquilo, minero, sem

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ROMILDO SANTANNA

envolu. A finao deles Gaspeada, e o catira deles


aquele catiro, comprido, que lai-vai. Se err eles no to
ligando, e vai segurando. 151

A viola, s vezes referida como o pinho, requisito indissocivel


do cantador. Realiza de modo conjuntivo a cordialidade de que trata
Srgio Buarque de Holanda em Razes do Brasil, um fundo emotivo
extremamente rico e transbordante.152 Junto ao peito do cantador-
violeiro o corao , no pulsar emotivo, sentimental, expressam-se
o pensamento, o sentimento, as paixes, as intuies e pressgios
relacionados com o existir (pathos), o coexistir (ethos) e a projeo
espao-temporal da existncia (epos) do caipira. Da, em sua radicalidade
lrica, os contedos de natureza essencialmente lricos, dramticos e
picos freqentes na Moda Caipira. Concebida cordialmente, no
raro a viola adquire conotaes animizadas, em seu reduto privilegia-
do o peito na interao com o cantador-violeiro. Tal se exprime na
quadra-levante de Padecimento, moda realizada no decnio de 1950 por
Carreirinho. Arribando a ateno dos circundantes para as estrofes
que viro a seguir, assim pronuncia o dueto forte, na empostao
grave e pretice aindiada de Tio Carreiro e Pardinho:

Ai, a viola me conhece


Que eu no posso cantar s.
Ai, se eu sozinho canto bem,
Junto, eu canto mi...

A estrofe-levante nem sempre tem uma ligao direta com a moda


em si. Como foi observado, muitas vezes se constitui de uma
quadrinha popular, apanhada no cancioneiro annimo. Tal ocorre na
moda-de-viola pautada. Num show realizado em Araraquara por Drcio
e Doroty Marques, e Diana Pequeno, em 05.mar.79, e felizmente
gravado por um amigo, aps anunciarem que iriam cantar uma can-
o coligida nas cercanias de Ubatuba, cantada por um velho caiara,
principiam pronunciando a seguinte estrofe:

151
Colquio gravado em 28.out/95.
152
O Homem Cordial. In: HOLLANDA, Srgio Buarque de. Razes do Brasil,
p. 101-12.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Companhero, me ajude
Que eu no posso ficar s,
Se sozinho canto bem,
Junto eu canto mi...

Na famosa coleo Msica Popular do Centro-Oeste/Sudeste-4 (1973),


esplndida pesquisa de Marcus Pereira, Francisco Alves da Silva, o Seu
Chico de Ubatuba, canta a seguinte variante Companheiro, me ajude
/ Que eu no posso cantar s, / Se eu sozinho canto bem / Com
voc canto melh. Nem preciso apontar as semelhanas com a
invocao da viola na quadra-levante de Padecimento.

PADECIMENTO
moda-de-viola

Carreirinho

Ai, a viola me conhece


Que eu no posso cantar s.
Ai, se eu sozinho canto bem,
Junto, eu canto mi...

Ai, vai chegando o ms de agosto,


Bem pertinho de setembro,
Os passarinho canta alegre
Por ver as matas florecendo.
Ai, eu no sei o que ser
Que j vai me entristecendo,
Passando tantos trabaio
Debaixo de chuva e sereno,
Eu no como e no bebo nada,
Vivo triste e padecendo.
Ai, prum corao de quem ama,
O alvio s morrendo, ai, ai, ai.

Ai, quem j teve amor na vida


E por desventura perdeu,
No deve se lastim,
E fic triste como eu.

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ROMILDO SANTANNA

Pois eu tambm j tive amor


Mas no me correspondeu.
O desgosto no meu peito,
Quis ser enquilino meu.
Mas eu tenho essa viola,
Que foi enviada por Deus.
Ai, que s me traz alegria
E as tristeza arrebateu, ai, ai, ai.

Ai, a viola me acompanha


Desde quinze anos de idade,
Ela minha companhera
Nas minhas contrariedade.
Fao moda alegre e triste,
Conforme a oportunidade,
Esse dom de faz moda
No quer e ter vontade,
Tem muita gente que quer
Mas no tem facilidade.
um dom que Deus me deu
Pra desabafar saudade, ai, ai, ai.

Ai, pra aprend cantar de viola


Primeiro estudo que eu tive:
Aprendi com violeiro vio
Que fazia moda impossive.
Pois eu s um violero novo
Mas tambm quero ser terrive,
Fao modas de gente boa
E de arguns incorrigive.
Todas moda que eu invento
Poupo rgua, prumo e nive.
Ai, pensando bem, um violero,
Com prazer no mundo vive, ai, ai, ai.

(Tio Carreiro e Pardinho,


Modas de Viola Classe A, v.3, 1981)

Aquela quadra inicial, o levante, propaga-se nas quatro estrofes de


treze versos cada, sempre arrematadas no ltimo verso pela seqncia

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

sentimental de ais pausados que, em sua prosdia musical e por um


processo de acomodao rtmica na estrofe, realizam uma espcie de
fuso com os octosslabos, adquirindo a extenso mtrica de treze
slabas:

o a li vio s mo rren doai i | ai i | ai i.


3 5 7 8 10 12 .

Como possvel notar, na seqncia interjectiva de ais, as slabas


mtricas pares (8 10 12) impem uma anti-ritmia, em relao
marcao anterior, ritmada nas slabas mpares (3 5 7). Instituem
impulsos salientes no compasso, havendo pois, na ruptura, trs sub-
divises binrias que, encerrando a estrofe em entoao cadente, im-
pem a pausa que delimita uma estrofe em relao a outra. Assim, o
primeiro e o ltimo versos de cada bloco estrfico, pelo lamento
interjectivo que se realiza como marca profunda de manifestao
emotiva da cordialidade, se fazem pela insinuao rtmica em nove e
treze slabas, respectivamente, enfeixando os octosslabos que padro-
nizam cada estrofe. Tais interjeies exprimem uma espcie de enlevo
intra-subjetivo entre o eu identificado com a viola, e esta com o corao
do personagem-cantador, animizadamente. Assim compreendida, Padeci-
mento registra pelo menos seis elementos de solidariedade entre a
viola e o violeiro, numa espcie de reportagem bastante freqente na
Moda Caipira de razes. Dessa unio resultam imagens confluentes
pela reflexo sobre o processo fctico do violeiro, sua manha como
artista, que no discerne, mas integra, a aptido de cantar, a proficin-
cia tcnica de tocar, e a competncia para o fazer elaborativo do poema
que tanto desvelam e sobrepem, na tertlia da cantoria, as imagens
do cantador-violeiro e dos compositores, ou realizadores escriturais
de modas. Ei-las:
a) A viola como lenitivo da amargura ou padecimento, de que trata o
ttulo: ai, que s me traz alegria / e as tristeza arrebateu;
b) A viola como enviada de Deus, ou ligada a foras sobrenaturais que
regem a existncia;
c) A viola, companheira desde sempre, como recorrncia nos momen-
tos aflitivos: ai, a viola me acompanha / desde quinze anos
de idade;

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ROMILDO SANTANNA

d) A viola e o violeiro, unidos por um dom espontneo: esse dom de faz


moda / no quer e ter vontade / tem muita gente que quer
/ mas no tem facilidade;
e) A viola e o autodidatismo um processo de aprendizagem impul-
sionado pela tradio: ai, pra aprend cantar de viola / primei-
ro estudo que tive / aprendi com violeiro vio / que fazia
moda impossive;
f) A viola e a competncia do modista, figurativizados pelas ferramen-
tas de um pedreiro o barro e o tijolo nativos com que se
constri uma cultura: todas moda que eu invento/ poupo
rgua, prumo e nive;
g) A viola e a delcia vital de ser violeiro, celebrado como heri no
grupo social coetneo: ai, pensando bem, um violeiro / com
prazer no mundo vive.
Como se nota, a viola e sua moda representam as entrelinhas
de um refluxo para o passado, entendido como um tempo ideali-
zado do aqui-agora, sulco da matria lrica; tm funo importan-
te, em similitude a muitas outras formas artsticas de expresso:
produzir um acalento para gente grande, no deliciante sonhar de
olhos abertos.
***
No raramente, o etnocentrismo do caipira e seu meio artstico
atribuem smbolo de brasilidade viola. Isto no est errado, porque
no Brasil mesmo expresso de identidade nacional, independente
da origem que tenha. Ns brasileiros temos a viola por usucapio,
pela posse pacfica e ininterrupta. Dedilhada ou rasqueada, no pas
metfora e sinonmia de instrumento musical, identifica-se com a
prpria msica popular e, por extenso, com o cantar e a prpria
poesia brasileira. anloga ao prprio ser do caipira; metfora do
corao do caboclo, em refres como o seguinte:

que a viola fala alto no meio peito humano,


E toda moda um remdio pros meus desenganos,
que a viola fala alto no meio peito, mano,
E toda mgoa um mistrio fora deste plano.
Pra todo aquele que s fala que eu no sei viver,
Chega l em casa pra uma visitinha

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Que, no verso e no reverso da vida inteirinha,


Hai de encontrar-me num cateret.

(Rolando Boldrin, Vide Vida Marvada, 1981)

Expresses como meter a viola no saco (calar-se, emudecer, retirar-


se de uma atividade), tocar viola (dizer disparates), adeus, viola (est
tudo acabado), tocar viola sem corda (falar toa; dizer coisas sem nexo)
so habituais de norte a sul do pas. Comparece orgulhosamente em
eptetos e aluso a artistas famosos como Francisco Alves (1898-
1952), apelidado Chico Viola, Paulinho da Viola (Paulo Csar Batista
de Faria, 1942-); em ttulos de obras literrias, como Viola de Bolso
(1952) e Viola de Bolso Novamente Encordoada (1955), de Carlos
Drummond de Andrade; em poemas famosos, como Minha Viola
Bonita, 1947, em Lira Paulistana, de Mrio de Andrade; ou em ttulos
de canes dos mais diversos autores, estilos e pocas (Viola Quebrada
[em Canes Tpicas Brasileiras, para canto, piano ou orquestra, 1919-
1935], de Heitor Villa-Lobos, Viola Mimosa, 1930, de Marcelo
Tupinamb e Correia Jnior, Ao Som da Viola (193?), de Marcelo
Tupinamb e Arlindo Leal, Viola Cabocla, 1952, de Tonico e Piraci, A
Viola e o Violeiro, 1960, de Tio Carreiro e Lourival dos Santos, Viola
Enluarada, 1967, de Paulo Srgio Vale e Marcos Vale, Guardei Minha
Viola, 1972, de Paulinho da Viola, Viola Fora de Moda, 1973, de Edu
Lobo e Capinan, Viola Violar, 1974, de Mlton Nascimento e Mrcio
Borges, Viola Malvada, 1978, de Renato Teixeira, Eu, a Viola e Deus,
1981, de Rolando Boldrin, Anti-viola, 1984, de Roberto Nunes Corra,
Aboiador de Viola (1996), de Pereira da Viola e Joo Evangelista
Rodrigues, Viola Menina (1996), de Josino Medina... No poema-
cano Paratodos, 1994, evocando o ouvinte pelo vocativo, cerimonio-
so e cavalheiresco e, pois arcaizante, ilustre cavalheiro, Chico Buarque
escreve:

Nessas tortuosas trilhas


A viola me redime,
Creia, ilustre cavalheiro,
Contra fel, molstia, crime
Use Dorival Caymmi,
V de Jakson do Pandeiro...

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ROMILDO SANTANNA

Ilustrao n.8 O Malho, 21.nov.1929. Um ano antes de liderar a


Revoluo de 1930, que deps o Presidente Washington Lus, Getlio
Vargas caricaturado metendo a viola no saco.153

A improvisao dos menestris das cidades produziu os se-


guintes versinhos coligidos por Slvio Romero, da boca de uns garo-
tos do Rio de Janeiro:

Quando ia hoje
Pela Rua das Violas
Pedro Segundo
Deu um tiro de pistola.

Quando ia hoje
Pela Rua do Sabo
Pedro Segundo
Deu um grande escorrego.154

Nos tempos de El-Rei a viola participava como figura solene dos


rebulios e alegrias da cidade do Rio de Janeiro e territrios

Apud. Nosso Sculo II - 1910/1930: Anos de Crise e Criao, p. 288.


153

Apud. ROMERO, Slvio. Histria da Literatura Brasileira I, p. 174.


154

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

fluminenses. Disto nos do conta vrios cronistas, entre eles Manuel


Antnio de Almeida nas Memrias de um Sargento de Milcias. A viola
tocava alto nos ranchos e procisses e funes de divertimento, a
acompanhar fados e modinhas. So vrias as passagens da viola nessa
narrativa urbana da poca de 1800, entre as quais a seguinte:
Grande parte do Campo estava j coberta daqueles ran-
chos sentados em esteiras, ceando, conversando, cantan-
do modinhas ao som de guitarras e viola. Fazia gosto
passear por entre eles, e ouvir aqui a anedota que contava
um conviva de bom gosto, ali a modinha cantada naquele
tom apaixonadamente potico que faz uma das nossas
raras originalidades...155
***
Afora isso, h que lembrar que as formas embrionrias da viola
se localizam em remoto tempo. Procedente do mundo aristocrti-
co, de onde tambm saiu a pica popular, deixou a fidalguia para
os braos e o corao do povo. Cito a Histria da Msica Europia, de
Jacques Stehmar: A vihuela de mano, instrumento aristocrtico que
possui uma extensa literatura, tornar-se- a guitarra espanhola, que
conhecemos e que ser simultaneamente a mensageira de uma arte
erudita e do repertrio popular em todos os pases de cultura ibri-
ca, gozando de inaltervel preferncia, como se pode verificar.156
Na tradio hispnica do Romanceiro tradicional, o instrumento
(vihuela > vigela, na prosdia popular) citado j na primeira es-
trofe do mais notvel pico-lrico do Cone-Sul american: Martn
Fierro, do argentino Jos Hernndez (1834-1886). No exrdio des-
sa que se assemelha a uma balada de grande extenso, num
castelhano errado expresso do criollismo tpico , um gaucho
rompe a cantar, narrando seus trabalhos, aventuras, desventuras e
discrdias e azares da vida. Como na epopia clssica, pede s foras
sobrenaturais que o ajudem no engenho e na arte, o talento e a
eloqncia que realizam a cincia do poeta. Ao compasso da viola, canta
ou recita o seguinte:

155
ALMEIDA, Manuel Antnio de. Memrias de um Sargento de Milcias. So Paulo:
tica, 1969, p. 73.
156
STEHMAR, Jacques. Histria da Msica Europia, p. 71.

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ROMILDO SANTANNA

MARTN FIERRO

Aqu me pongo a cantar


Al comps de la vigela
Que el hombre que lo desvela
Una pena estraordinaria,
Como la ave solitaria
Con el cantar se consuela.

Pido a los santos del cielo


Que ayuden mi pensamiento,
Les pido en este momento
Que voy a cantar mi historia
Me refresquen la memoria
Y aclaren mi entendimiento...

(Jos Hernndez, 1872)

Enquanto nas Regies Nordeste, Centro-Sul e Sudeste do Brasil


persistiu o modelo de dez cordas, em cinco duplas, sempre na forma
de uma caixa de ressonncia acinturada, anloga ao nmero 8 (repor-
to-me s violas caipiras, mais acinturadinhas [paulista, cuiabana, angrense,
goiana] e nordestina, descritas por Alceu Maynard de Arajo, no Volu-
me II de seu excelente Folclore Nacional), mas com diversificados modos
de afinaes,157 a viola tambm apresenta essa variedade em Portugal,
distinta de regio para regio, na anatomia, no encordoamento e ti-
pos de afinaes. No entanto, a maioria das violas portuguesas
tocada com dez cordas. Registra a Grande Enciclopdia Portuguesa e
Brasileira,v.36 que a viola de resto como a guitarra, o instrumento
tpico do povo portugus; pode-se mesmo consider-lo como o
nosso instrumento clssico, sendo dado que mais antigo que a

157
Escreve Maynard Arajo que tempero a afinao. Esta varia. Dizem
alguns caipiras paulistas [inclusive Vieira, h pouco citado] que h vinte e
cinco afinaes diferentes. Mas o nmero 25 para eles significa imensidade,
o incontvel, multido. Conhecemos as seguintes afinaes para violas do
serra-acima paulista: cebolo, cebolinha, r-abaixo, castelhana, quatro-pontos,
oitavado, tempero-mineiro, tempero-pro-meio, guariano, guaianinho, guiano,
tempero, som-de-guitarra, cana-verde, do sossego, pontiado-do-paran (p.445).

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

guitarra e que consideravelmente empregado em todos os centros


populares. H provncias em que a viola companheira inseparvel de
todo o trabalhador, de todo o operrio rstico, nos momentos de
lazer.158 Citando as evolues por que passou a viola, h referncias
antigas em Portugal de que ela era montada geralmente com trs
cordas duplas para os agudos e duas cordas triplas para os baixos. Ao
todo eram doze cordas, dez das quais de ao nu, e duas recobertas do
mesmo metal ou de cobre. A viola braguesa [de Braga] difere desta de
doze por no possuir seno geralmente dez, mantendo, no entanto
as mesmas doze cravelhas; essas duas a mais so de dois bordes que
poderiam servir de contrabaixos. Nesse caso, a disposio das cordas
lmisilr. [Supe-se que a viola braguesa serviu de modelo
para a nossa viola caipira; existe como tal no Brasil; tambm difun-
dida nos Aores e na Madeira.] Em Portugal, registra-se tambm a
denominada Viola Toeira, instrumento executado no Norte, na re-
gio de Coimbra, mais pequena e com corda de arame, empregada
sobretudo nas aldeias para acompanhar a msica popular, fazendo
grande barulheira.159
No trovadorismo medieval, a viola, com seu dedilhado (opon-
do-se viola de arco) era instrumento dos mais requeridos. Suas
caractersticas eram semelhantes a seu correspondente trovadoresco
francs vile. A mesma Enciclopdia, citando a Encyclopdie de la Musique
(1914) de Michel-Angelo Lambertini, registra que a viola portuguesa,
acompanhadora tradicional da cano desse pas, foi em todos os
tempos muito espalhada em quase todas as provncias continentais,
assim como nas ilhas da Madeira e Aores. mais pequena, no seu
tipo principal, do que a guitare francesa e montada geralmente em
cordas de ao. A esta tambm se d o nome de viola de arame, viola
chuleira e viola braguesa.
Vrios indcios levam a acreditar que a viola de mo instrumen-
to procedente do Ud (ou Oud) rabe, Alud, donde provm alade,
introduzido aps a conquista da Pennsula Ibrica pelos mouros.
Registra Menndez Pidal que o Libro de Msica de Vihuela de Mano, de
Lus Miln (1535-1536) apresentava na capa uma lmina representan-
do Orfeu, o deus da msica, como o primeiro inventor da viola. Uma
158
Grande Enciclopdia Portuguesa e Brasileira. v.36, p. 272-74.
159
Idem

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ROMILDO SANTANNA

legenda exclamava: Se ele foi o primeiro, no foi sem segundo.160 O carter


lambanceiro da viola atestado pelos cronistas medievais. Escreve
um deles que os caballeros quando estavam de folga pediam que os
menestris e jograis viessem com seus alades e violas e outros ins-
trumentos, para que com eles tocassem e cantassem os romances que
eram inventados dos feitos de cavalaria.161
Relata Armando Lea que, no sculo XV, azulejos, mormente dos
claustros de S. Vicente de Fora e da S do Porto, estampavam cegos
bailadores e romeiros, e anjos gorduchos todos a tocar violas.
dessa poca a seguinte quadra coligida pelo pesquisador na Biblioteca
Municipal do Porto:

Ilustrao n.9 Don Lus Miln, Libro de Msica.


Valencia, 1535.162

Se a tanta pena
Nada a consola

160
MENNDEZ PIDAL, Ramn.. Romancero Hispnico (Hispano-Portugus, Ameri-
cano y Sefard) - I, p. 82.
161
Citao de Diego Rodrguez de Almela (Compendio Historial, 1479), reprodu-
zido na Antologa de la Poesa Medieval EspaolaII, de A. Rodrguez Rey, p. 11.
162
MENNDEZ PIDAL, Ramn.. Romancero Hispnico (Hispano-Portugus, Ameri-
cano y Sefard) - I, de Ramn Menndez Pidal. Ilustraes Musicais por Gonzalo
Menndez Pidal, p. 381.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Na doce viola
Podeis pegar.163

Entre vrios outros exemplos, o autor apresenta ainda uma vari-


ante da cana-verde, de secular tradio portuguesa, que diz:

Biola, seu for pra guerra


Hei-de lebar comigo;
Bais ser a minha defesa
Pra quando eu stiver em prigo.164

O primeiro livro didtico ilustrado em portugus, que a


Grammatica da lingua portuguesa, com os mandamentos da santa madre igreja,
de Joo de Barros (1497-1562), editada em Lisboa em 1539 e dedicada
educao palaciana e aristocrtica, estampa a velha viola em seu bece
de figuras, ressaltando-a como um dos principais cones da poca.

Ilustrao n.10 V de Viola no Bece de Figuras. Grammatica da lingua


portuguesa, com os mandamentos da santa madre igreja (1539), de Joo de
Barros. Acervo: Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.

LEA, Armando. Msica Popular Portuguesa, p. 105.


163

Id. p. 150.
164

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ROMILDO SANTANNA

Na primeira metade do sculo XVI comeam a aparecer os trata-


dos musicais ibricos acerca da vihuela, com transcries de obras
dos sculos anteriores. Eles so fundamentais no s do ponto de
vista das cifras musicais, que orientam a melodia, como do ponto de
vista literrio, pela possibilidade de identificao das pausas que decla-
ram a delimitao do verso e da estrofao, alm das cadncias e anti-
cadncias entonacionais, em decorrncia das mesmas pausas versais e
estrficas. A primeira dessas publicaes surge em Valncia, em 1535-
1536, de autoria de Don Lus Miln. um tratado onde na capa se l:
Libro de Msica de Vihuela de Mano. Intitulado el Maestro. El qual trahe el
mesmo estilo y orden que un maestro trahera con um discpulo principal;
Mostrndole ordenadamente os principios de cada cosa que podra ignorar para
entender la presente obra. Outro tratado pioneiro o Delphin de Msica
(1538), do granadino Lus de Narvez publicado em Valladolid, abor-
dando a tcnica do ponteado, no incio, com suas vinculaes aristo-
crticas, e o do rasqueado popular. Outros tratadistas fundamentais
da vihuela e que, quase simultaneamente, oferecem pistas da estreita
vinculao do instrumento com o Romanceiro tradicional so: Alonso
Mudarra, em seus Tres Libros de Cifra para Vihuela (1546), Diego Pisador
em Libro de Msica de Vihuela. Dirigido al Muy Alto e Muy Poderoso Seor
Don Filipe, Prncipe de Espanha (1552), e Miguel de Fuenllana, com seu
Libro de Vihuela Intitulado Orfnica Lira (1554).

Ilustrao n.11 Desenho de um dos manuscritos das


Cantigas de Alfonso el Sabio, conservado na Biblioteca do Escorial, e que
representa um tocador de Ud rabe e outro de Vihuela peninsular.165

165
Enciclopdia Universal Ilustrada Europeo-Americana - Tomo 68, p. 1162.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Comparando-se as tcnicas do dedilhado (aristocrtico) e do


rasqueado (popular) da viola, cujas tcnicas se fizeram comuns no
Brasil, sem distino de classes, dependendo do contexto semnti-
co-musical da moda, que se entende por que a Viola Toeira das
aldeias do Norte de Portugal, instrumento que provoca grande
barulheira. Nesta observao de carter timbrstico decerto h um
qu evidente de preconceituoso que, em vrios recantos e lonjuras
do tempo, cerca observaes e registros sobre a execuo do instru-
mento no mundo elitizado. Em algumas citaes h referncias
sobre os perigos da viola nos ambientes aristocrticos, dadas as
suas grandes identificaes com o gosto popular. Outras vezes a
censura viola liga-se s pndegas populares. Algumas so pitores-
cas. Roberto Nunes Corra, em seu mtodo Viola Caipira, toman-
do por base o livro Instrumentos Musicais Populares Portugueses, de
Ernesto Veiga de Oliveira, assinala que uma reclamao dos procu-
radores da cidade Ponte de Lima, s cortes de Lisboa de 1459, enu-
merando os males que, por causa da viola, se faziam sentir em todo
o reino. Eles alegavam que certas pessoas se serviam da viola para,
tocando e cantando, mais facilmente roubarem as casas e dormirem
com as suas mulheres, filhas e criadas, que, como ouvem tanger a viola,
vamlhes desfechar as portas.166 Registra Paul Zunthor que a rejeio
das formas de arte tidas como demasiado rsticas clich freqente
no meio corteso, do sculo XII ao XV, pela pena de autores liga-
dos aristocracia poltica, como um Chrtien de Troyes ou um
marqus de Santillana. A fora dessas tenses variou ao longo do
tempo. Desse ponto de vista, os sculos XII e XIII constituem
uma poca quente. Pois nela mesma que comeam a escrever as
poesias em lngua vulgar [o romano] e que os modelos latinos
comeam a influenciar suas formas.167 Recorrendo outra vez ao
saber de Vieira, da dupla Vieira e Vieirinha, e tendo em mente a
diviso de classes que se notava na alta Idade Mdia, no que tange
tcnica de desempenho da viola, o artista explica de que modo, no
regionalismo caipira, so igualmente importantes o dedilhado, o
ponteado (algumas vezes no estilo espanhol da mo esquerda
aranhada os dedos manejam as cordas como se fossem as patas da

166
CORRA, Roberto Nunes. Viola Caipira, p. 11.
167
ZUNTHOR, Paul. A Letra e a Voz, p. 118.

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ROMILDO SANTANNA

aranha) ou o rasqueado da viola, em certos cantares caipiras, ou em


algumas situaes pontuais no contexto fraseolgico da moda, as-
sim como o vigor com que o cantador-violeiro toca as cordas com a
mo direita. Tudo depende do clima escritural, em consonncia
com a emotividade, passionalidade de certas passagens que se enca-
deiam no fio narrativo do texto. O artista se recorda de que

numa moda de campeo ou de abat campeo, por


enzempro, nis num podia toc devagarinho. Tinha que
toc com fora, porque ansim enzige o romance, e desse
jeito que o campeo se impe. Pra cant moda de cam-
peo tem que t flego. Porque ele t insurtando o otro
violero. O jeito de bat na viola mais agressivo. A mo
direita mais agressiva. Na moda de campeo a msica
em si, a viola afinada em mi. C bate a viola como se fosse
dan o catira, igualzinho, s que c d o tom l embaixo,
com mais agressividade... A viola sabe s triste, e sabe s
braba tambm. Na moda de campeo, que um desafio, a
viola tem de s batida de modo que tambm desafio,
uma batida enfezada, como se teje enfezado, seca, com a
mo direita enfezada, braba. Quando uma moda de
amor, a viola tem que s sentida, brandinha, gostosa, dentro
daquilo que c t sentindo. Quem ensin nis cant ansim
foi o Arlindo Mendes, do Sul de Minas. Ele dizia: a viola
tem que acompanh o assunto da moda. Ento, nessa
hora de toc moda de campeo, como se diz, a viola num
chora, ela guerreia.168

Como se observa, sua execuo caipira difere do modo gemido e


montono da viola nordestina. O mais importante, no entanto,
que a moda caipira, em sua tcnica de desempenho, ajunta os mo-
dos refinados do dedilhar e pontear, aos modos despojados do
rasquear a viola, dinamizando suas possibilidades instrumentais.
Feitas essas ponderaes, ainda que dispersas e sem o objetivo
de dissecao exaustiva do assunto, torna-se possvel fazer uma
aproximao entre a importncia da viola e seus antigos vihuelistas,
com a forma poemtica que, mais tarde, veio a se exprimir nas
168
Colquio gravado em 11.dez/95.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Modas-de-viola, Cururus, Caterets e demais gneros caipiras.


proveitoso ressaltar que o primeiro manuscrito de Romance tradici-
onal conhecido, o da Gentil Dama y el Pastor, copiado por Jaime de
Olesa, em 1421, composto por unidades de quartetos duplos
(uma octavilla, ou, como diz o caipira, verso dobrado). Isto indica
que, para dar sentido completo a um fragmento lrico-narrativo da
escritura, os poetas e vihuelistas preferiam a seqncia de duas qua-
dras octossilbicas, articuladas numa estrofe, a octavilla. Esclarece J.
M. Bettencourt da Cmara que simplicidade, monotonia mesmo,
caracterizam os esquemas rtmicos: predomnio da terminao fe-
minina, repetio excessiva de determinadas frmulas verbais, forte
tendncia para a monorrmia, rima deficiente ou at inexistente...
Dada a natureza narrativa do romance popular, a qual implica um
texto de certas dimenses, a menos que parte dele se tenha perdido,
a estrutura musical que o serve apresenta caractersticas estrficas. Tal
justifica a possibilidade de tomarmos como critrio para a diviso
do poema em estncias o retorno da melodia ao seu princpio.
Estas observaes so aplicveis ao romance mondico como ao ro-
mance polifnico.169 Neste sentido, entra em acordo com os defen-
sores da disposio versal em octosslabos simples (Juan del Encina,
em 1496), e no em octosslabos duplos (dois hemistquios), como
tambm defenderam tantos e importantes transcritores e estudio-
sos do Romanceiro tradicional (Nebrija, na Gramtica, 1492; Mil,
nas Observaciones Sobre la Poesa Popular, 1853, e De la Poesa Herico-
popular Castellana, 1874; Menndez Pelayo, em Romances Viejos
Castellanos, 1899-1900).170 So inmeros os exemplos citados no
Libro de Msica de Vihuela de Mano, do pioneiro valenciano Lus
Miln. Observemos uma passagem de Gentil Dama y el Pastor que,
como vimos, o primeiro dos romances tradicionais publicados
num tratado de msica:

169
CMARA, J. M. Bettencourt da. Msica Tradicional Aoriana, p. 35.
170
Apud. PIDAL, Menndez. Romancero Hispnico (Hispano-Portugus, Americano y
Sefard) - II, p. 92-4.

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ROMILDO SANTANNA

Ilustrao n.12 Alonso Mudarra,


Tres Libros de Cifra para Vihuela. Sevilha, 1546.171

GENTIL DAMA Y EL PASTOR


romance tradicional

Si te vas conmigo a Francia,


Todos nos ser alegra,
Har justas y torneos
Por servirte cada dia.
Y vers la flor del mundo
De mejor cavallera.
Yo ser tu cavallero,
T sers mi linda amiga.172

Repare a semelhana desse trecho de um Romance antigo, em


seus aspectos estrfico, mtrico e rmico, com o seguinte verso do-
brado de A Morte do Carreiro, de Z Carreiro e Carreirinho.

171
Idem, Romancero Hispnico (Hispano-Portugus, Americano y Sefard) - I, Ilustra-
es Musicais por Gonzalo Menndez Pidal, p. 382.
172
Ibidem, p. 92.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

A MORTE DO CARREIRO
moda-de-viola

Z Carreiro / Carreirinho

Isto foi no ms de outubro,


Regulava o meio dia,
O sor parecia brasa,
Queimava que at feria.
Foi num dia muito triste,
S cigarra que se ouvia.
O triste cantar dos pasros,
Naquelas mata sombria.

(Z Carreiro e Carreirinho,
Os Grandes Sucessos, 1984)

Como normalmente acontece na Moda Caipira, numa acomoda-


o aos impulsos musicais da melodia, na interpretao de Z Carreiro
e Carreirinho (como na de Tio Carreiro e Pardinho), so acentuadas
a 4 e 7 slabas mtricas: Isto foi no ms de outubro / Regulava o meio
dia... Aproximando-se do Romance, h uma conjugao da sintaxe
com o corte dos versos e da estrofe, num acordo de contedos lricos
que, sua vez, se harmonizam prosodicamente com os movimentos
repetitivos da msica. Como no excerto do romance antigo, alm da
articulao temtica em duas quadras (uma octavilla), o detalhe de a
segunda quadra se subdividir em dois dsticos, como se fossem uni-
dades que se completam morfossintaticamente, torneadas no senti-
do inteiro do segundo quarteto e da estrofe oitavada, como forma
integrada de sentido:

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ROMILDO SANTANNA

A MORTE DO CARREIRO
GENTIL DAMA Y EL PASTOR

versos dobrados (octavillas) com


segundas quadras bipartidas em dsticos

outubro, 1 Francia,
dia, 2 alegra
brasa, 3 torneos
feria. 4 dia.

triste, 5 mundo
ouvia. 6 cavallera

pasros 7 cavallero
sombria. 8 amiga.

Desde os antigos vihueleros de tempos entrelaados pelos mouros,


nas asas da oralidade, na prosdia musical e no repicado da velha
viola, o antepassado se estende ao presente, pelo vo radicalmente
humano do esttico e do ldico. Essas modas so eternas.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

7. O CAIPIRA NO MODA:
O HERI CANTADOR

Se Joseph Folliet ensina que a msica e o canto so o primeiro


sorriso da cultura,173 a Moda Caipira de razes e sua qualidade estvel
so o sorriso primordial da Regio Centro-Sul e Sudeste do pas. Mas
ser caipira no moda. H muitos e longos anos, apesar das represen-
tativas telas do interiorano paulista Almeida Jnior (1850-1899), como
Picando Fumo e Violeiro (Museu Paulista) e Amolao Interrompida (Pi-
nacoteca do Estado de So Paulo), realizadas no meio-tempo de
Saint-Hillaire e Lobato, como se ver adiante.
O vocbulo moda derivativo de mote sinnimo de cantiga,
balada tradicional. Em Portugal, designa uma msica geralmente ligei-
ra de seu folclore; cantigas que se pem no cravo e na viola, como nas
modas de romaria, modas de balhar, modas de terno, modas in-
fantis, modas do lote. Ainda que ao nvel do beira-cho, ou principal-
mente por isto, a Moda Caipira de razes nunca sai de moda: carrega
em sua ndole a atemporalidade e vinculaes com os cdigos e sm-
bolos das orquestraes elementares da existncia, afortunados pela
talhadura do tempo. Embora tida como subalterna pelos detentores
citadinos da cultura dominante, perdura latente, pulsante e viva. Sen-
do originria do meio rural, como sorriso cultural do povo poetizante,
em seu sentido de produtor de uma obra coletiva, desdobra-se no
urbano, em momentos necessrios e propcios florao dos valores
que identificam o jeito radical de pensar e sonhar.
O sentido reprimido da Moda Caipira de razes vincula-se hist-
rica e ritualisticamente quele que est sob as ordens de outro, como
173
FOLLIET, Joseph. O Povo e a Cultura, p. l38.

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ROMILDO SANTANNA

verdade de antemo. Relaciona-se a um sentido de marginalizao


social de que o caipira padece, pelas regras do mundo oficial. Muito se
fala da origem do caipira como um campeiro residente. Algumas
pesquisas atestam ser cruzamento dos bandeirantes, bugreiros e suas
comitivas com mulheres ndias e pretas, originando o caboclo.
verdade que, na organizao social brasileira, a amante de cor compar-
tilhava com a esposa branca a mesa do patro. Isto porque, sem
nenhuma pendenga ou desconfiana estrdia, e embora catlico pra-
ticante, ao homem so liberadas as delcias de certos pecados. Cornlio
Pires, em sua vivncia por dentro do mundo caipira, reconhece e descre-
ve o caipira preto [ex-escravo que adere ao modo de viver caipira], o
caipira branco (mestio descendente de estrangeiro branco), o caipira
caboclo (descendente de ndios catequizados), o caipira mulato (descen-
dente de preto com branco e s vezes com o caboclo).174 H tambm
o caipira imigrante, principalmente o italiano, rapidamente acaipirado,
no se esquecendo de mencionar os caipiras portugueses, espanhis...,
a confirmar o caipirismo como fruto da diversidade etnocultural inte-
grada.
Valdomiro Silveira (1873-1941), precursor do conto regionalista
paulista, define o caipira como homem ou mulher que no mo-
ram na povoao, que no tm instruo ou trato social, que no
sabem vestir-se ou apresentar-se em pblico.175 O Lello Universal:
Novo Dicionrio Enciclopdico Luso-Brasileiro, firmando-se em concei-
tos do sculo XIX, o qualifica como um nome depreciativo com
que os realistas designavam cada um dos constitucionais, durante
as lutas civis de 1828-1834. Nessa mesma linha, a Grande Enciclop-
dia Portuguesa e Brasileira - I define caipira como alcunha dos consti-
tucionais durante as guerras da liberdade do sculo XIX, e acres-
centa os pejorativos de pessoa avarenta, sovina e miservel, alm
dos conceitos brasileiros de habitante do interior, da roa, roceiro,
acanhado, sovina e avarento. H uma aceitao passiva e reconheci-
da de uma baixa hierarquia no meio social. O caipira no moda.
Esclarece Antonio Candido:

Nessa linha de formao social e cultural, o caipira

174
PIRES, Cornlio. Conversas ao P do Fogo, p. 180 e ss.
175
SILVEIRA, Valdomiro.. Os Caboclos, p. 193.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

se define como um homem rstico de evoluo muito


lenta, tendo por frmula de equilbrio a fuso intensa da
cultura portuguesa com a aborgine e conservando a fala,
os usos, as tcnicas, os cantos, as lendas que a cultura da
cidade ia destruindo, alterando essencialmente ou carica-
turando. No se trata, portanto, de um ser parte, mas de
um irmo mais lerdo para quem o tempo correu to deva-
gar que freqentemente no entra como critrio de conhe-
cimento, e que em pleno sculo XX podia viver, em parte,
como um homem do sculo XVIII. ... Do ancestral por-
tugus herdara com a lngua e a religio a maioria dos
costumes e das crenas; do ancestral ndio herdara a fami-
liaridade com o mato, o faro na caa, a arte das ervas, o
ritmo do bate-p (que noutros lugares se chama cateret),
a caudalosa eloqncia no cururu. 176

E escreve Carlos Rodrigues Brando:

...o caipira sai como o viu e pensou uma gente letrada e


urbana. Por isso, comparado com o cidado, ao citadino livre
do trabalho com a terra, o caipira sai dito pelo que no e
adjetivado pelo que no tem. Ele ponto por ponto a face
negada do homem burgus e se define pelas caricaturas
que de longe a cidade faz dele, para estabelecer, atravs da
prpria diferena entre um tipo de pessoa e a outra, a sua
grandeza.177

Slvio Romero, em carta dirigida a Jos Piza, exclamara: caipira,


matuto, tabaru, mandioca, capixaba e outros congneres so ex-
presses de menosprezo, de debique, atiradas pela gente das povo-
aes, cidades, vilas, aldeias e at arraiais contra os habitantes do
campo, do mato, do rocio. So chufas de desfrutadores de empre-
gos, profisses e outros variados meios de vida, que a habilidade de
certas populaes faz nascer nas grandes aglomeraes de gente,
especialmente contra os que mourejam nas rudes tarefas do ama-
nho das terras, do cultivo dos campos ... Assim, pois, a cidade e a

176
Caipiradas. In: CANDIDO, Antonio. Recortes, p. 250.
177
BRANDO, Carlos Rodrigues. Os Caipiras de So Paulo, p. 12.

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roa, eis os dois plos opostos, eis os dois termos da grande


antinomia social brasileira.178
Neste ponto talvez fosse indicado me referir a alguns tipos de
perspectivas por meio das quais se referenciam as vises do mundo
de lavradores e vaqueiros. J deixei consignado que, na Moda Caipira
tradicional, o modista realiza o exerccio inquietante da reflexo ou do
pensamento crtico, da fruio dos ideais, anseios, paixes, sentimen-
tos e arqutipos, instituindo-se como mediador especular entre o ser
em si, a cultura como sistema e o pensamento comum, articulados
no espao e no tempo. Seus canais de comunicao so os naturais: a
visibilidade, a proximidade e o alcance da voz e sua viola. o cantador
o portador latente da memria, da inteligncia, da imaginao, da
espontaneidade, do repertrio abalizado, do ritmo do corpo, tudo
expresso pela fora do canto, como processo de entrega ou doao. O
modista sintoniza-se com o auditrio, e sintonizado por ele, numa
partilha e comunho de energias criativas extensas, que se difundem
na temporalidade da cantoria. O descerramento de um arquicantador
caipira vamos encontrar na seguinte oitava do cururu Joo Carreiro,
composto na dcada de 1940 por Raul Torres:

JOO CARREIRO
cururu

Raul Torres

O meu nome Joo Carreiro,


Conhecido no lugar.
Eu vou contar minha histria
Pra vocs no duvidar.
J t vio, t cansado
J no posso carrear.
Mas o galo quando morre
Dexa as pena por sinar.

(Rolando Boldrin. Som da Terra, 1994)

178
Que um Caipira?, carta de Silvio Romero. In: ROCHA, Hildon. Realida-
des e Iluses do Brasil, p. 195.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

O signo galo, ultrapassando a sinuosidade simblica de violeiro-


cantador, se eleva s acepes de aguerrido, de forte, de altivo, apesar da
idade avanada, daquele que se situa no centro do terreiro, demarcando
o espao tribal que, por direito e fibra, foi conquistado. Sendo um
dos smbolos mais fortes da cultura caipira, o galo simboliza o
guardio das casas, o sinalizador evanglico de Pedro, o relgio da
madrugada, a coragem para a luta, que pode chegar ao embate fratricida.
Neste sentido, metfora das marcas deixadas pelos sujeitos
cantadores em suas comunidades e das quais se fez herdeiro. Assim,
o cantador, como homo viator que encena o mito da sada e retorno,
aquele que carimba com suas cantigas caipiras os rastros empoeirentos
das legendas do tempo. Isto so marcas de origem, e se rearticula com
o advento dos primeiros discos de modas caipiras, a partir 1929. O
pioneiro Cornlio Pires, ao sair de Tiet-SP, onde foi dono de olaria,
tornou-se pedreiro, engenheiro e arquiteto da Moda Caipira em dis-
cos. Outra perspectiva aquela da cidade, em que prevalece, romanti-
camente, um bucolismo idealizado do mundo do campo, estilizado,
prenhe de amenidades e horizontes pitorescos. A casa de barro a
sopapo ou de pau a pique ninho de joo-de-barro, no o lugar da
vida privada e onde convive gente. So seres desmaterializados, imu-
nes s sensaes fisiolgicas. A esse respeito, Jos Ramos Tinhoro
registra que o aproveitamento, por parte de compositores das cida-
des, de gneros de msicas da zona rural, de carter folclrico, remon-
ta ao sculo XIX e tem sua origem no interesse que o tema dos
costumes do campo comea a despertar no pblico urbano
freqentador do teatro de revista. ... A primeira compositora profis-
sional a transformar em sucesso da msica popular brasileira a
estilizao consciente de um gnero de msica rural foi a maestrina
Chiquinha Gonzaga. Convidada a colaborar em 1897 para a parte
musical da revista Zizinha Maxixe, de Machado Careca, levada cena
no Teatro den Lavradio, do Rio de Janeiro, a maestrina ... comps
um tango intitulado Gacho, que trazia como indicao, no subttulo:
dana do corta-jaca.179 parte essa idealizao de um bucolismo
artificial, como se o espao rural reproduzisse a utopia indianista de
um mundo entrecortado de regatos, avencas e pessoas imbudas de

179
Pequena Histria da Msica Popular Brasileira: da Modinha Cano de Protes-
to, p. 185.

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pureza angelical, despolitizadas, sem ansiedades devido explorao


social uma verso tpica de um existir no lugar ameno e do
bom [selvagem] caipira , aparece em oposio uma imagem
distorcida do caipira, identificado com um tipo cuja smula o Jeca
Tatu, personagem que se engendra e se materializa plstica e nominal-
mente a partir de Urups (1918), passando por Jeca Tatu : Vida e Costu-
mes (ao Deus dar) e Cidades Mortas, ambas de 1919, e Negrinha (1920),
de Monteiro Lobato, como contraface regionalista de escritores como
Valdomiro Silveira, por exemplo. O prprio Lobato conta sobre o
nascimento de seu Jeca:

Foi na Fazenda Paraso. ... A conheci um dia Nh


Gertrudes Reboque, uma velhinha que morava num ran-
cho, beira da estrada. Pois a Nh Gertrudes vivia falando
dum neto, para ela o maior homem do mundo. O Jeca,
que era como o chamava, era um portento, um colosso,
aos seus olhos de av. De tanto ela falar no Jeca, todos
quisemos conhec-lo. Pedimo-lhe que aparecesse com ele,
na fazenda.
Apareceu?
E foi uma decepo. Um bichinho magruo, feio, barri-
gudo, arisco, desconfiado, sem jeito de gente. Anos mais
tarde, precisando batizar um caboclo, logo me veio a figu-
ra desajeitada do Jeca, o mais jeca de todos os jecas que
tenho visto.
E o Tatu?
Em princpio, tinha lhe dado outro sobrenome. Cha-
mei-lhe Jeca Peroba. No me soou bem. Lembrei-me de
que, minutos antes, um capataz da fazenda, o Chico me
falara nuns tatus que andavam estragando uma roa de
milho. Adotei o Tatu.180

180
Vida, Paixo e Morte de Lobato, de Silveira Peixoto. In: Boletim Bibliogrfico
da Biblioteca Mrio de Andrade (So Paulo), p. 55.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Ilustrao n.13 Jeca Tatu: Vida e Costumes


(Conto brazileiro celebrisado pelo Conselheiro Ruy Barbosa. Imprensa
Carvalho, Bahia, 1919).
Acervo: Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.

Esse tipo imaginrio, metfora do homem que vem de baixo, do


subsolo, baldio, com as unhas lanhadas de cho, logo incorporado
como esteretipo. Provm de idealizaes que coincidem cronologica-
mente com o Romantismo, e se fixaram, entre outras mais ou menos
impressionantes, das anotaes do botnico francs Auguste de Saint-
Hilaire (1779-1853) que, em expedies sobre a flora nativa pelo Esta-
do de So Paulo, realizadas entre 1819 e 1822 (duas viagens), assim
percebia o habitante isolado nas malocas e choas do interior:

Enquanto descrevia e examinava as plantas, apro-


ximou-se um homem do rancho, permanecendo vrias
horas a olhar-me, sem proferir qualquer palavra. Desde
Vila Boa at Rio das Pedras, tinha eu tido qui cem exem-
plos dessa estpida indolncia. Esses homens,

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embrutecidos pela ignorncia, pela falta de convivncia com


seus semelhantes, e, talvez, por excessos venreos prema-
turos, no pensam: vegetam como as rvores, como as
ervas dos campos. Obrigado, pela ventania, a deixar o
rancho, fui procurar abrigo numa das cabanas principais,
mas admirei-me da desordem e da imundice reinantes na
mesma. Grande nmero de homens, mulheres e crianas
desde logo rodeou-me. Os primeiros s vestiam uma
camisa e uma cala de tecido de algodo grosseiro; as mu-
lheres, uma camisa e uma saia simples. Os goianos e,
mesmo, os mineiros de classe inferior vestem-se com
muito pouco apuro, mas pelo menos, so limpos, a
indumentria dos pobres habitantes de Rio das Pedras
era to imunda quanto suas cabanas. primeira vista, a
maioria deles parecia ser constituda por gente branca, mas,
a largura de suas faces e a proeminncia dos ossos das
mesmas traam, para logo, o sangue indgena que lhes
corria nas veias, mesclado com a raa caucsica.
Esses indivduos, que tinham o ar to doentio
quanto o dos habitantes das margens do Rio Grande,
disseram-me que sua terra era muito pantanosa e que as
febres intermitentes muito os castigavam. A bem pouca
distncia dessa regio insalubre encontrariam terras frteis
e desocupadas, podendo, nas mesmas, respirar o ar mais
puro da terra; mas os mestios de indgenas com brancos
tm a mesma imprevidncia dos representantes de sua
ascendncia materna e, talvez, mais apatia. Pode-se acres-
centar, ao demais, que, indolncia, juntam eles, geral-
mente, a idiotice e a impolidez; todavia no mostram,
nem a arrogncia, nem a maldade caracterstica, muitas
vezes, do habitante dos camponeses de Frana.181

A viso dispersa no texto de Saint-Hilaire no difere da plasmada


por Lobato, no texto Velha Praga, destinado seo Queixas e
Reclamaes, mas publicado como artigo em O Estado de S. Paulo,
em 12.nov.1914 (e includo na segunda edio de Urups, 1918).
Baseado em observaes dos vizinhos de sua fazenda no Vale do
Paraba, pelos quais nutria confessado menosprezo por atearem fogo
181
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem Provncia de So Paulo, p. 113-4.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

s matas como vons alemes (e s votarem no governo), quali-


fica o caipira como um urumbeva de barba rala, amoitado num litro
de terra litigiosa, e o desumaniza:

A nossa montanha vtima de um parasita, um pio-


lho da terra. Este funesto parasita da terra o Caboclo,
espcie de homem baldio, semi-nmade inadaptvel ci-
vilizao, mas que vive beira dela na penumbra das zo-
nas fronteirias. medida que o progresso vem chegando
com a via frrea, o italiano, o arado, a valorizao da pro-
priedade, vai ele refugiando em silncio, com o seu cachor-
ro, o seu pilo, a pica-pau e o isqueiro, de modo a sempre
conservar-se fronteirio, mudo e sorna. Encoscorado numa
rotina de pedra, recua para no adaptar-se.182

Ilustrao n.14 Capa de Jeca Tatuzinho,183


12 pg., 18 cap., 17 ilustr. color., 13x18cm (Ilustraes: K. Wirse).

Em Viagem Provncia de So Paulo, Saint-Hilaire descreve, de acor-


do com sua visura estrangeira, mais um pouco do que viria a se firmar
como o clich do Jeca, logo irradiada como prottipo do caipira:
182
Urups e Outros Contos e Coisas, p. 121.
Gentilmente cedido pelo Centro de Documentao e Pesquisa Histria
183

UNITAU (Taubat-SP).

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Os mamelucos no herdaram apenas o gosto


pela vida errante que caracterizava os indgenas, pois des-
tes herdaram tambm a descuidada preguia, vcio esse
que mais se acentuou em relao aos que no tinham
coragem de se aventurar pelos desertos. Criados pelas
indgenas, esses homens viviam em completo isolamen-
to, desprezados pelos pais; ningum procurava elev-los
da ignorncia em que jaziam. Seus costumes eram, ne-
cessariamente, grosseiros. Vrios cruzamentos, em ver-
dade, aproximaram da raa caucsica os descendentes dos
primeiros mestios; entretanto, como j tive o ensejo de
observar, notam-se ainda, na fisionomia de um grande
nmero de agricultores paulistas, traos caractersticos
da raa americana; eles no procuram instruir-se, seu
modo de vida continua a se ressentir da rusticidade de
seus antepassados pelo lado materno, cuja indolncia
herdaram tambm. ... A populao, muito escassa, apre-
senta, igualmente, uma mistura de antigos habitantes
com outros mais recentemente ali chegados. Os primei-
ros, todos paulistas e, provavelmente, mestios de ind-
genas com brancos, em diferentes graus, so, como os
agricultores de Rio das Pedras, das vizinhanas de Pouso
Alegre etc., homens grosseiros, apticos e sem nenhum
asseio. Os segundos, nascidos, em geral, na comarca de
So Joo Del Rei, sem possurem as qualidades que dis-
tinguem os mineiros das comarcas de Ouro Preto, de
Sabar e de Vila do Prncipe, diferem, entretanto, muito
e muito, de seus vizinhos. H limpeza em suas residn-
cia e eles so mais ativos, muito mais inteligentes, me-
nos grosseiros e mais hospitaleiros do que os verdadei-
ros paulistas instalados na regio; entre eles so, em suma,
encontrados todos os usos e costumes de seu torro
natal - Minas Gerais.184

Essa estereotipia engendrada com o passar dos anos, na se-


gunda metade dos anos de 1800 e meados de 1920. Os tpicos
Caipira: Uma Aproximao e Tipo e Esteretipo, de Osvaldo

184
Viagem Provncia de So Paulo, cit., p. 188 e 24.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Lus Barison, com nossa colaborao, oferecem mais reflexes so-


bre a figura do Jeca. Numa delas elencam-se vrias citaes de ro-
mancistas brasileiros que, pejorativamente, se referem ao primitivo
habitante do campo designado por caipira. Tal ocorre em Jos de
Alencar, Visconde de Taunay, Bernardo Guimares, Alusio Azeve-
do e outros.185
No comeo do sculo XX, o caipira vivia o choque entre seu
modo de vida de posseiro, agregado e parceiro, e a agricultura fami-
liar ou de subsistncia (arroz, feijo, milho, mandioca, alguma bata-
ta, e o algodo para os andrajos), e a poltica de exportao do
acar, bem antes, e depois do caf. Como se tornou tradio, devi-
do ao comportamento pacato e acanhado de viver, o caipira s saa
em direo freguesia ou vila e isto diminuto mas persiste at
hoje em algumas regies para a compra do sal, do fumo, da pinga,
do querosene e de alguma fazenda de tecido, entre os poucos pro-
dutos essenciais que s existem fora de seu mundo. Ao patrimnio,
espcie de campo neutro limtrofe das fazendas, recorria constante-
mente para as aes do catolicismo, o futebol e lazeres. Afora isto,
relacionava-se com seus iguais, nas aes familiares, vicinais e de
compadrio. Vivia o choque, igualmente, proporcionado pela chega-
da dos imigrantes para substituir, de forma mais barata, o trabalho
escravo dos pretos. Tais imigrantes italianos vindos de aldeias
nativas do Norte da pennsula (Piemonte) e, principalmente do
Centro-Sul (Campnia, Calbria e Siclia), alm de portugueses, es-
panhis e japoneses (estes ltimos mais para o lado esquerdo do
rio Tiet, no sentido do serto) possuam vivncia do trabalho
organizado em fazendas, no sistema de colonato. A desiluso do
caipira, portanto, em decorrncia do choque cultural com os estran-
geiros, coincidir, pouco depois, com a desiluso dos prprios talo-
paulistas, expropriados da veleidade de fazer Amrica, e coloca-
dos em igualdade de condies com a brusca realidade do camarada
livre numa sociedade de tradio escravocrata. Nos ajustes de servi-
o com os fazendeiros, custodiados por um fio de barba, tornam-
se prisioneiros das antecipaes salariais. Esse labor transformava a

Moda Caipira: Cantador, Universo, Mediaes e Participao Emotiva. pp.


185

16-8. A compilagem das citaes contou com a colaborao do Prof. Dr.


Ermnio Rodrigues.

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caipirada em famlias servis. Pior de tudo, a notificao da diferena


entre o salrio combinado e o que o patro lhes descontava era
motivo para cham-los de vadios. Darcy Ribeiro observa que o
que Lobato no viu, ento, foi o traumatismo cultural em que vivia
o caipira, marginalizado pelo despojo de suas terras, resistente ao
engajamento do colonato e ao abandono compulsrio de seu modo
tradicional de vida. certo que, mais tarde, Lobato compreendeu
que o caipira era o produto residual natural e necessrio do latifn-
dio agroexportador. J ento propugnando, ele tambm, uma re-
forma agrria.186 Mas o que poderia ser uma retratao de Lobato
confirma, com outras palavras, o que escrevera e divulgara 25 anos
antes: associa a preguia ao estado enfermio de seu anti-heri Jeca
Tatu:

Entra neste livro de contos uma caricatura que o no ,


Urups. Ela veio solver o tremendo problema batismal. E
aqui aproveito o lance para implorar perdo ao pobre Jeca.
Eu ignorava que eras assim, meu Tatu, por motivo de
doena. Hoje com piedade infinita que te encara quem,
naquele tempo, s via em ti mamparreiro da marca. Per-
doas?187

O rolo compressor dos estamentos citadinos sobre o serto


no de agora, tampouco exclusivamente brasileiro. Jos Ramos
Tinhoro, aps citar o estranhamento negativista causado pela pre-
sena de um campons no ambiente corteso, ante o nascimento de
um prncipe herdeiro, no Monlogo do Vaqueiro (1502) de Gil Vicente,
afirma que no Brasil, o palco dos teatros foi o campo neutro en-
contrado para a apresentao, ao divertido preconceito da gente cita-
dina, desses tipos humanos do mundo rural que o desenvolvi-
mento das reas urbanas comeava a afastar progressivamente para
reas cada vez mais distantes do interior. Em 1838, quando o teatro
brasileiro de costumes comea com o carioca Martins Pena, sua pri-

186
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: A Formao e o Sentido do Brasil, p. 387.
187
LOBATO, Monteiro. Urups (1943). Introduo de Edgard Cavalheiro, na
edio comemorativa do Jubileu de Prata da primeira edio.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

meira comdia representada tem por ttulo O Juiz de Paz na Roa, e,


em 1840, a segunda de enredo ainda mais concludente da dualidade
dos estilos de vida do campo e da cidade recebeu o ttulo inicial de
Uma Famlia Roceira, antes de sair com o nome definitivo de A Fam-
lia e a Festa da Roa. E tudo isso sem contar que, entre os papis de
Martins Pena, se achou o manuscrito incompleto do que teria sido
sua primeira tentativa de autor no gnero teatro (escrita entre 1833
e 1837), e essa comdia nunca encenada ou editada chamava-se Um
Sertanejo na Corte. Assinala o violeiro-musiclogo que de incio,
bem verdade, o que o teatro exibia sob a figura do roceiro ainda no
era o homem do povo depois conhecido como caipira mas o
dono de terras ou o figuro local, que, tendo dinheiro para eventu-
almente viajar Capital, acabava entrando em choque com os costu-
mes da vida urbana.188 Nos mesmos parmetros de preconceito
ao ser no mundo da roa, e contrafao do caipira, a verso mirim de
Jeca Tatu se materializa no personagem Chico Bento, criao de
1963 do quadrinista Maurcio de Sousa, para as tiras de jornais (Fo-
lha de S. Paulo), gibis e almanaques da Mnica e Cebolinha (Editora
Abril), e almanaque e gibi Chico Bento (Editora Globo), at a atuali-
dade:

Ilustrao n.15 Tira de Jornal. Personagens Chico Bento e Z


Revista Mnica e Sua Turma, n 75 (junho de 1976).
So Paulo, Editora Abril.

TINHORO, Jos Ramos. Pequena Histria da Msica Popular: da Modinha


188

Lambada, pp. 184-185.

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Ilustrao n.16 Personagens Z e Chico Bento


Revista Cebolinha n 6 (junho de 1973). So Paulo, Editora Abril.

O preconceito da cidade desapropria do caipira do campo a sua


prpria natureza, atribuindo-lhe outra, extica, pitoresca. Esse dese-
nho psicolgico do personagem colabora para sedimentar no espri-
to da criana e do jovem o clich de caipira como sinnimo de p-
descalo, molambento e destitudo.
***
A Moda Caipira em geral reala uma contradio com a viso e
iderio sobre matuto, quando ela mesma os registra, em relao ao
olhar de fora, contaminado de uma idealizao citadina, e da m von-
tade subconsciente em relao ao caipira. Ainda que uma criatura fan-
tasiada, em conformidade com a imitao ou fingimento do ser uni-
versal to prprio da Arte, o tom tristonho e melanclico do sujeito,
na perspectiva de dentro, em nada se assemelha com a negatividade
simplria, malfadada e ridcula com que o caipira visto e representa-
do, na perspectiva de fora. O exemplrio imenso na Moda Caipira, e
proponho o seguinte: o antolgico Tristezas do Jeca, de Angelino de
Oliveira (Itaporanga - SP, 1888-1964, considerado artista de Botucatu),
uma das toadas mais queridas no regionalismo caipira (e, talvez pela

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

sua nostalgia idealizante, muito bem aceita no mundo urbano) e


mais representativas da Msica Popular Brasileira, no Brasil e exteri-
or. Foram estas as suas primeiras gravaes: pela Orquestra Brasil-
Amrica, realizada em 1923 (Odeon n 122.608), pelo cantor carioca
Patrcio Teixeira (1893-1972), realizada em 1926 (Odeon n 123.134) e
a mais divulgada no incio, feita por Paraguau em 1937 (Colmbia,
n 8.287). Como se poder notar, embora incorporando no ttulo o
designativo Jeca to estreitamente ligado imagem caricata do caipira,
neste poema aviolado o que se reala, com elevao e lirismo, a
ligao atvica do campnio com o seu meio existencial, em seu sos-
sego emotivo, numa espcie de equivalncia entre a dolncia das para-
gens desertas ao entardecer e de madrugada , e o estado anmico
do cantador, transpostos para o seu cantar. Nessas horas angustio-
sas, de melancolia pela transitoriedade entre o dia e a noite, simboli-
camente entre o nascer e o morrer, a instaurar no corao um vago, o
vago na alma,189 uma nostalgia inefvel, o eu-sentimental do violeiro
e sua viola se convertem num mesmo e enlevado lamento, ditado na
forma confissional mulher amada:

TRISTEZAS DO JECA
toada ligeira

Angelino de Oliveira

Nestes verso to singelo,


Minha bela, meu amor,
Pra mec quero cont
O meu sofr e a minha dor,
Eu sou como o sabi,
Quando canta s tristeza,
Desde o gaio onde ele t.

Nesta viola
Eu canto e gemo de verdade...
Cada quadra (toada*)
Representa uma saudade...
189
O caipira londrinense da msica dodecafnica Arrigo Barnab concebe a
imagem como uma tristeza estranha, uma vontade de chorar, em sua valsa
Londrina, finalista e prmio de Melhor Arranjo no Festival MPB-Shell (1981),
da Rede Globo de Televiso.

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ROMILDO SANTANNA

Eu nasci naquela serra


Num ranchinho bera-cho,
Tudo cheio de buraco
Adonde a lua fai claro,
Quando chega a madrugada
L no mato, a passarada
Principia um baruio.
Nesta viola
Eu canto e gemo de verdade...
Cada quadra (toada*)
Representa uma saudade...

V par coa mia viola


J no posso mais cant,
Pois o Jeca quando canta
Tem vontade de chor,
O choro que vai caindo
Devag vai se sumindo
Como as gua vo pro mar...

* variante alternada em diversas gravaes


(Tonico e Tinoco, 35 Anos, 1976)

importante verificar que em Tristezas do Jeca,190 realizada com


uma economia parcimoniosa de signos (a refletir desde logo o talen-
to do artista Angelino de Oliveira), e em que a voz enunciadora parece
acariciar o mundo das palavras como quem afaga o prprio cho, por
detrs do clima de melancolia que paira nos versos, h uma exubern-
cia do existir, um enlevo e uma fora aguada, erigidos a partir de
expresses apositivas ditas pelo narrador-arteso como minha bela,
meu amor, num ambiente prenhe do romantismo de afetividades,
de vegetaes e pssaros e cantos e guas, e uma casa cabocla (o
ranchinho, como se diz) em que, pelos buracos do teto, a criatura
que mora nela enxerga a lua que se projeta na terra, em clares salpica-
dos. Situa-se num tempo em que o caipira vivia da coleta de manti-

190
Tanto nas gravaes de Tonico e Tinoco (numa delas omitem a ltima
estrofe), como na recente interpretao de Ney Matogrosso, o ttulo aparece
modificado para Tristeza do Jeca (Ney Matogrosso, Pescador de Prolas).

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

mentos nativos vegetais e de alguma caa e pesca. Evoca o tempo


mtico de um paraso ecossistmico. Os esmerados versos esto con-
cebidos de modo a que seus efeitos de sentido repassem a significa-
o de que o viver do matuto est integrado natureza e, ali isolado
no seu habitat, o ser humano contagia-se de uma tristeza estranha,
de um estado de alma penetrado pelo sentido de apoucamento do eu
perante o fenmeno grandioso: a percepo do ser na amplitude do
mundo. Nas entrelinhas desse poema-toada paulista se forma um halo
inefvel e mstico, e um ambiente, um homem e uma poesia que em
nada se identificam com a sonoridade marcante do signo Jeca Tatu
to conhecido: aquele camarada desengonado, esgueirando e pele-
jando em seu territrio, sem eira nem beira, fruta sem suco da terrinha
chocha, bem ruizinha, inspita, como o perfil de sua barba
esmirradinha de caboclo. Essas ltimas so as imagens que tanta
gente insiste em fotografar, identificando o caipira como um
caboclinho tuta-e-meia, coisificado e mal nascido, minado pelo des-
leixo fsico e espiritual.
O caipira tradicional, estabilizado no tempo e no espao, e sabe-
dor de que sua essncia lhe basta, contrrio s inovaes. Os minu-
tos e as horas se aguam em sua paisagem, por herana indgena, e
isto lhe confere a imagem, vista de fora, de passividade, preguia
doentia e melanclica calmaria. A viso certamente caricata e pouco
fundamentada no trao personalizante, na aparncia e modo de viver
do cidado real, foi bastante incrementada nos reclames de rdio do
fortificante Biotnico Fontoura e do vermfugo Ankilostomina, alm
dos Almanaques Biotnico e da fbula de Monteiro Lobato, ilustrada
no almanaque Jeca Tatuzinho, com tiragem de 100 milhes de exem-
plares at 1982, em cerca de 50 edies, produzidos pelo Laboratrio
Fontoura. O diminutivo Tatuzinho tinha a finalidade de cativar o
pblico infantil, j que o livreto, com a chancela de Lobato e seu
carter educativo, era tambm distribudo gratuitamente s portas
dos Grupos Escolares, nas sesses ziguezagues e matins dos cine-
mas e circos, e indicado pelos professores. (Estou me referindo a um
tempo em que os textos da revista Selees do Readers Digest eram
comumente apontados como o melhor exemplo de uso do idioma
nacional). Tudo logo aps a publicao de Urups, em 1918, utilizan-
do-se do personagem Jeca Tatu, associado preguia, indolncia,
apatia enfermia, imbecilidade e s verminoses do amarelo. A

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ROMILDO SANTANNA

prpria palavra Urups pluraliza esta sugesto: em lngua tupi


urup significa uma espcie de fungo, um parasito vegetal. Regis-
trem-se ainda, como fatores decisivos da divulgao em massa dessa
estereotipia, os filmes realizados pelo comediante caipira Mazzaropi
(1912-1981), mormente Sai da Frente (1952, direo Ablio Pereira de
Almeida), Candinho (1954, direo Ablio Pereira de Almeida), Chico
Fumaa (1958, direo Vctor Lima ), Jeca Tatu (1959, direo Mlton
Amaral, dedicado a Monteiro Lobato e direitos autorais cedidos pelo
Instituto Medicamenta Fontoura), Tristeza do Jeca (1961, direo
Amcio Mazzaropi), Casinha Pequenina (1963, direo Glauco Mirko
Laurelli), Jeca e a Freira (1968, direo Amcio Mazzaropi), Uma Pistola
para Djeca (1970, direo Ary Fernandes), Jeca, o Macumbeiro (1974,
direo Pio Zamuner), Jeca Contra o Capeta (1976, direo Pio Zamuner),
Jeco... um Fofoqueiro no Cu (1977, direo Pio Zamuner), Jeca e seu
Filho Preto (1978, direo Pio Zamuner), Jeca e a gua Milagrosa (1980,
direo Pio Zamuner), e tantos outros, todos de enorme sucesso
popular. Foi uma idia preconceituosa veiculada pelo cinema, um
dos mais poderosos veculos de comunicao dos tempos moder-
nos, e que varou dcadas.

Ilustrao n.17 Cartaz de Tristeza do Jeca (1961).


Reproduo a partir do estojo de vdeo (Globo Vdeo).

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Convm lembrar que Mazzaropi, tanto no teatro ambulante cai-


pira que representou durante todo seu percurso artstico, como em
seu programa Rancho Alegre, primeiro na Rdio Tupi de So Paulo
(1946), e aps na TV Tupi, a partir de 1950, comps um nico tipo:
a derivao histrinica da idia do Jeca Tatu de Lobato, quer como o
caipira do campo e seus conflitos com os poderosos, quer como o
caipira na cidade, vivendo o impacto do estranhamento, da anacronia
e do preconceito. Essa premissa equivocada encontra-se em A Marvada
Carne, por exemplo, realizado em 1985 por Andr Klotzel. H, no
entanto, um filo contrrio bastante significativo de uma viso me-
nos preconceituosa do caipira, a comear pelos curtas-metragens do
pioneiro do Ciclo de Cataguases Humberto Mauro (1897-1983), como
Manh na Roa, Canes Populares, Cantos de Trabalho, Aboio e Cantigas,
Carros de Bois e A Velha de Fiar, realizados em vrias pocas de sua
carreira, Cano da Primavera, realizado em 1923 por outro pioneiro do
cinema brasileiro, Igino Bonfiglioli, Coisas Nossas (1931), dirigido por
Wallace Downey e Fazendo Fita (1935), dirigido por Vitrio Capellaro,
ambos estrelados pelo cantor caipira Paraguau.
O caipira minado pela verminose, descalo, de andar tonto, torpe,
sem modos dignos e destrambelhado; o caipira truo e sorna, o olhar
atrapalhado s vezes, e baldio quase sempre; o caipira visto como
subespcie grosseira, pancada, covarde e embrutecido; a lassido mental
(burrice), a incapacidade para grandes esforos (preguia) e a inutilida-
de para extrair da vida qualquer lance de espiritual (insensibilidade),
esses qualificativos certamente se devem vincular a concepes de clas-
se, na perspectiva dos que o exploram, e que tm poder poltico para
isto. em confronto a essa linha de pensamento que Rui Barbosa,
ento candidato de oposio presidncia da Repblica, proferiu dis-
curso, no Teatro Lrico do Rio de Janeiro, em 20 de maro de 1919,
fazendo ressalvas a Lobato, por sua concepo do Jeca Tatu. O referi-
do discurso, interpretando o Jeca como um brasileiro explorado, ser-
viu para tornar extraordinria a vendagem das edies posteriores de
Urups, logo chegando a tiragens estrondosas para a poca: 30 mil
exemplares. Eis uma passagem:

No sei bem, senhores, se no tracejar deste quadro, teve


o autor s em mente debuxar o piraquara do Paraba e a
degenerescncia inata da sua raa. Mas a impresso do leitor

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ROMILDO SANTANNA

que, neste smbolo de preguia e fatalismo, de sonolncia


e impreviso, de esterilidade e tristeza, de subservincia e
impreviso, de esterilidade e tristeza, de subservincia e
hebetamento, o gnio do artista [Lobato], refletindo algu-
ma coisa de seu meio, nos pincelou, consciente ou incons-
cientemente, a sntese da concepo que tem, da nossa naci-
onalidade pelos homens que a exploram.191

O discurso do orador, escritor e jurisconsulto baiano de pouco


serviu. Falava com verve oposicionista e contra os exploradores, com
a conivncia do governo. Falava contra os que adotavam mais e mais
a mo-de-obra estrangeira, por considerar o nativo indolente, desa-
lentado e preguioso. Isto comprova o consenso que se cristalizava
em relao ao matuto do campo, mormente por parte dos sitiantes e
fazendeiros da poca e, principalmente, pela fidalguia burguesa das
cidades. Naquela poca (como hoje), um valo imenso se abria entre a
cidade e o campo, tornando-os dicotmicos; evidenciava-se a fora
futurista da luz eltrica, do capital e da poltica, ditando a moda.
***
Rejeitando a imagem de torpeza relacionada ao campons do
Centro-Sul e Sudeste, o escritor e entusiasta Cornlio Pires, engajado
por dentro ao caipira e sua cultura, e assinala que

...certos escritores do campo ao seu pessimismo, julgan-


do o todo pela parte, justamente a parte podre, apre-
sentando-nos o campons brasileiro coberto de ridculo,
intil, vadio, ladro, bbado, idiota e nhampan. ... Cai-
piras caboclos so os descendentes diretos dos bugres
catequizados pelos primeiros povoadores do serto. ... s
vezes tm um tiquinho de sangue portugus ou espa-
nhol em mestiagem com as nossas bugras e bugres...
Raramente so aceitos em casamento pelas famlias bran-
cas. As pretas os detestam, porque dentre eles sempre
foram tirados os feitores de escravos e capites do mato,
pegadores de negros fugidos. ... Geralmente os caipiras
caboclos so madraos. Arranjando um cantinho no stio

191
Velha Praga, publicado no prefcio de Urups (1918).

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

branco, ou numa fazenda, l ficam mumbaveando, tolera-


dos pelos patres... aos quais prestam servio. ... So ma-
rotos. Criam os filhos ao Deus dar.192

Vale observar, neste ponto, que o preconceito ao homem e mu-


lher do campo, at agora em vigncia, traz tambm embutido o des-
prezo, to inculcado nas classes mdias e altas, ao trabalho braal.
Observa-se em nosso pas que o de mais valor o fazer saber e no o
saber fazer. A cultura do cio, o dolce far niente, de uma moral aristocr-
tica antiga, bem anterior moral burguesa renascentista que nega o
cio (negcio), talvez provenha de uma adeso ao regime de servido
feudal e logo escravocrata, ainda muito usuais nos campos e cidades
quando se regenera a relao tica do capital e do trabalho. No se
misturando com as coisas do povo, que ganha a vida com o suor
de cada dia, as elites de classe mdia, corroborando o que acontece nas
classes altas, ficam de bem com os padres dominantes os quais,
eventualmente, lhes poderiam acenar com uma promoo social, no
grangeamento, na excitao e desfrute de suas benesses. Referendam,
num lance de anacronismo imprprio condio de pessoas que
tiveram oportunidade de se ilustrar, o regime patriarcal de economia,
baseado na tradio, famlia e propriedade.
***
Um trao de carter desse personagem a esperteza finria e
maliciosa com caipira no se facilita!, diz a fama , a argcia para
enrolar os poderosos nos enredos de seus fiascos, a capacidade de
enredar o patro branco, o fidalgo, o poltico provinciano, o forasteiro
rico italiano, portugus, espanhol, o turco , sempre tidos como
dominadores e aviltadores, envolvidos pelos nativos em tramias e
atazanamentos que, de alguma maneira, resultam em benefcio do
protagonista ou da comunidade coetnea. Isto lhe confere certa ad-
mirao, ainda que pelo rebaixamento moral das atitudes e os meios
pelos quais atingiu o seu intento. At porque comum nessas ocasi-
es a pendenga adquirir ares de disputa e revanchismo, e a simpatia da
torcida recair sobre o mais fraco. Este trao personalizante, com sua
relativa positividade, transparece na Moda Caipira de razes como

192
PIRES, Cornlio. Conversas ao P do Fogo, p. 5-38.

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ROMILDO SANTANNA

uma das variantes psicolgicas de alguns personagens. A moda-de-


viola O Mineiro e o Italiano (1960), de Teddy Vieira e Nlson Gomes,
um dos exemplos mais vigorosos:

O MINEIRO E O ITALIANO
moda-de-viola

Teddy Vieira / Nlson Gomes

O Mineiro e o Italiano
Vivia s barras dos tribunais,
Numa demanda de terra
Que no dexava os dois em paz.
S em pens na derrota
O pobre caboclo no dormia mais.
O Italiano roncava
Nem que eu gaste arguns capitais,
Quero v esse Minero
Vort de a p pra Minas Gerais.

Vort de a p pro Minero


Seria feio pros seus parente.
Apel pro adevogado:
Fale pro juiz pra t d da gente.
Diga que nis semos pobre
Que meus filhinho vivem doente,
Um parmo de terra a mais
Para o Italiano indiferente.
Se o juiz me ajud a ganh
Lhe d uma leitoa de presente.

Retruc o adevogado:
O senhor num sabe o que est falando,
Num caia nessa bestera
Seno nis vamo entr pro cano.
Este Juiz uma fera
Caboco srio e de tutano,
Paulista da velha-guarda,
Famlia de quatrocentos ano.
Mand a leitoa pra ele
dar a vitria pro Italiano.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Porm cheg o grande dia


Que o tribunal deu o veredito.
Minero ganh a demanda
O adevogado ach esquisito.
Minero disse ao dotor:
Eu fiz conforme lhe havia dito.
Respondeu o adevogado:
Que o Juiz vendeu, eu no acredito!
Jogo o meu deproma fora
Se nesse angu no tiver mosquito.

De fato, fal o Minero,


Nem mesmo eu t acreditando,
Ver meus filhinho de a p
Meu corao vivia sangrando.
Peguei uma leitoa gorda,
Foi Deus do cu!, me deu esse plano,
De uma cidade vizinha
Para o Juiz eu fui despachando.
S no mandei no meu nome,
Mandei no nome do Italiano!

(Tio Carreiro e Pardinho,


Os Grandes Sucessos, 1973)

Conforme antecipei na introduo deste Ensaio, o mtodo para


anlise da presente moda seguir a mesma estratgia e apresentao
retrico-crtica das anteriores. s vezes redundante e prolixa, visa a
no dissociar o texto de seu terreno performtico, em situao, socio-
lgico e sumrio. No caso peculiar da Moda, como em geral da Litera-
tura Popular de antiga procedncia, importante considerar no s o
plo da emisso como o circuito que se estabelece com o plo da
recepo. Forma-se um campo de sugestividade que no prescinde, e
at depende, de aportes extratextuais. Para que uma obra possa ter
ressonncia na opinio pblica necessrio que haja verossimilhana,
no sentido clssico do que poderia ter sido, e nem tanto do que foi
(Aristteles, A Potica). Deste modo, como observa Julia Kristeva,
verossmil todo discurso que est em relao de semelhana, de
identificao, de reflexo com outro. O verossmil pr juntos dois

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ROMILDO SANTANNA

discursos diferentes, um dos quais se projeta sobre o outro que lhe


serve de espelho e se identifica com ele por cima da diferena. 193
Creio que, para a abordagem crtica do tipo de linguagem sobre a qual
estamos pensando, levar em considerao apenas o contedo mani-
festo [no texto], e no o contedo implcito, deixar passar o essen-
cial.194
Composta pela correlao formal de octosslabos e decasslabos,
em cinco dcimas, essa moda-de-viola apresenta o causo anedtico
do caipira Mineiro, em confronto com outros personagens identifica-
dos pela idia de poder: o Italiano (dono da terra e de capitais, que
pretende banir o Mineiro, at com o sadismo de v-lo desenraizar-se
pela segunda vez e passar pelo constrangimento tico de voltar de a
p com a famlia pra Minas Gerais), o Advogado (dono do saber e
intermediador com o poder constitudo) e o Juiz (descendente de
famlia tradicional paulistana smbolo da majestade forense autori-
tria e dono dos veredictos: simbolicamente tambm, represen-
tante do aparelho oficial do Estado, respeitado pelo temor aos fun-
damentos da tradio bacharelista brasileira, da nobreza togada195 ).
Talvez convenham outras observaes para a melhor compreenso
desse personagem, no contexto regionalista de valores que entremei-
am a obra e seu pblico. H, por assim dizer, um espao ntimo e
privativo em interao cultural. Esse Juiz o paulista da velha guarda
conforme diz a letra , sujeito diferenciado, quase de todo sentindo-
se europeu, a no ser por circunstncia de ter nascido na capital de So
Paulo. Caracteriza-se por ser o quatrocento de costa larga, dono da
sabedoria, forte de gnio e bons modos, opressivo, superior a tudo,
mormente ao caipira e, extensivamente, ao z-povinho, visto como
semi-alfabtico, imoral, imprestvel para o trabalho e desorganizado.
o tradicional cultuador de um bandeirismo fictcio, sobrinho sisu-
do das tradies coloniais e imperiais de antanho. Relata Gilberto
Freyre, com aguda sondagem analtica, que esses paulistas recusaram

193
BARTHES, Rolland et al. Lo Verosmil, p. 66.
194
QUERIDO, C. Vers Une Sociologie des Sisthmes Simboliques: Essai de
Methodologie, p. 21.
195
O conceito de noblesse de robe (nobreza togada) tomado de Lucien
Goldmann em Dialtica e Cultura, p. 151-72. Inclui a idia de oficialidade: no
s de judicirio, mas o bojo da aristocracia e o parlamento legislativo.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

a homogeneizao biolgica brasileira criando uma profunda


endogamia ou atravs do longo in-breeding [procriao interna] que
tornou os descendentes dos primeiros povoadores uma vasta cons-
telao de primos casados com primas, de tios casados com sobri-
nhas. Endogamia ou in-breeding que perturbado durante o fim do
perodo colonial e parte do imperial por uma ou outra invaso de
sangue reinol ou portugus, baiano, pernambucano, cearense,
sergipano, irlands, flamengo, italiano, alemo, foi, desde os fins do
oitocentismo, perturbadssimo pelas novas e vigorosas correntes de
imigrao: quer de bacharis e doutores das vrias provncias do Nor-
te, quer de camponeses, artesos e pequenos comerciantes de diver-
sos pases da Europa. Principalmente da Itlia e Alemanha.196 Este
o Juiz que se identifica com o sistema poltico, e para quem est
reservado o galardo de opinar sobre todas as coisas. o decifrador
do mundo, herdeiro do saber, da seriedade, da sobriedade, sendo em
sua formao aristocrtica o clone do portugus de ontem, e do anglo-
saxo de hoje, desafortunadamente nascido (na perspectiva dele) na
terra de Piratininga. Falo isto para realar nesse personagem um certo
halo de negatividade, que permeia sua conotao pblica, e no o faz
ser visto, instintiva e culturalmente, com bons olhos, como se diz,
pelo caipira comum.
Desde logo percebe-se que a moda O Mineiro e o Italiano se afinca
em tipos bem marcados funcionalmente. So criaturas dotadas no
s de alma cultural e funcionalidade social, mas tambm de individu-
alidade, que se projetam em smbolos de classes e de indivduos.
Tendo como eixo temtico uma demanda de terras, e construdo
narrativamente base de discursos diretos, o texto contrasta a relao
de poder, com a possibilidade da supremacia do caipira, movido por
um sentido de sagacidade, arquitetada pelas artimanhas e astcias da
tapeao. Na posse dessas virtudes, o caboclo nativo passa uma
rasteira nos todo-poderosos e malvistos em seu meio:
a) o Adevogado, que alerta antecipadamente ao caipira o veredito
do Juiz, propiciando-lhe a luz para resoluo da demanda;
b) o Juiz, que tapeado por uma propina apcrifa;

196
FREYRE, Gilberto. Problemas Brasileiros de Antropologia, p. 42-3.

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ROMILDO SANTANNA

c) o Italiano, que o principal atingido pela perda da causa jurdi-


ca, em conseqncia de um estratagema ardiloso.
Esta escritura, como tpico no primitivismo da Moda Caipira de
razes, estabelece aluses ao mundo concreto e pertencimento sim-
blico de seu pblico. Faz com que a percepo deste navegue pelo
interior da letra e colha elementos sensveis de destaque, postando-as
no mesmo nvel e no primeiro plano das atenes. A partir da,
mobilizados esses signos, eles interagem, se correlacionam, primeira-
mente no espao textual; aps, nos intertextos da comunicao cole-
tiva, e no espao vivencial e significativo dos ouvintes, erigindo uma
cadeia de significaes latejantes. Assim, ao mesmo tempo, o conte-
do poemtico se adensa de uma realidade virtual na medida em que
posto em funcionamento interativo com o plano da realidade emprica
no presente ou herdada do passado. E da, h uma ao reflexiva e
dialgica na equao obra/destinatrio; h uma interao e convergncia
com a idia sedimentada do passado, uma ao mediadora com o
presente imediato e uma tenso que se projeta no futuro como ele-
mento modificador do estado de alma do ouvinte. O poeta caipira
demonstra noo disto, mesmo que por habilidade intuitiva. Sabe,
como pensou Kandinsky, que o artista tem no s o direito, mas
tambm o dever de utilizar as formas da maneira que julgue necessria
para atingir seus objetivos... Para a arte, este direito o plano moral
interior.197
O efeito significativo de O Mineiro e o Italiano particularmente
fecundo. Ao despertar uma energia imaginativa pelo devaneio grupal,
essa energia colabora para a tomada de conscincia da vicissitude his-
trica do caboclo. Estes so os devaneios dinmicos estudados por
Bachelard: a resistncia real suscita devaneios dinmicos; os devanei-
os dinmicos vo despertar uma resistncia adormecida nas
profundezas do ser.198 Este fenmeno, deixando de lado sua fun-
o recreativa e potica, ressalta a grande importncia que a Moda
Caipira exerce como funo empreendedora de uma modificao do
indivduo e sua conscincia poltica. Sobressai dessa conscincia do poder
comunicativo por parte do poeta a ao emancipadora que a Moda
exerce em seu meio, decerto incapaz de significativas revolues de
197
KANDINSKY. Do Espiritual na Arte, p.114.
198
BACHELARD, Gaston. A Terra e os Devaneios da Vontade, p. 20.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

comportamento, porm abastecedora de estmulos que tonificam o


ser cultural, ajudando-o a permanecer de p, saciando-lhe o af de
relacionar-se com a poesia que ele sente no cerne de seu idntico.
Os constituintes literrios que participam da configurao textual
dessa moda-de-viola promovem no contrato com o pblico um
intrincamento evocativo que possibilita a formao de um halo
conotativo aos signos que a compem, considerado o teor do poema
em seu tempo e na situao espacial dessa interao. Aqui talvez vales-
se a pena relembrar um ensinamento de Umberto Eco: o emprego
esttico da linguagem (a linguagem potica) implica um uso emotivo
de referncias e um uso referencial de emoes, pois a reao senti-
mental manifesta-se como realizao de um campo de significados
conotados. Tudo isso se obtm atravs de uma identificao de
significante e significado, de veculo e teor.199
Compreendidas mais essas anotaes acerca da Moda Caipira em
geral, e seu impacto no universo comunitrio em que atua, cabe reafir-
mar que a arquitetura anedtica que enfeixa o crepitar de situaes
fabulares para a construo de O Mineiro e o Italiano d ao personagem
caipira um sentido de supremacia anti-herica, mas resignada, ou
admitida emotivamente como legtima, construda pelo ajuizamento e
indulgncia plenria. Isto se deve, de um lado, pela nfase humildade;
de outro pela insurreio do humilde na luta contra os fundamentos
sociais do poder poltico, movido pelo poder da astcia. Em resulta-
do, o personagem central, no quadro de uma moral naf, aufere simpa-
tia e degusta o gozo da graa de um gesto levado (e at enlevado!),
pela manha e peraltice venturosa de insurgimento impune contra o
processo societrio dominante, o status quo.
O insurgimento do personagem, de alguma maneira, se transfe-
re para a voz enunciadora, o cantador-violeiro; transfere-se, por tabe-
la, para a figura dos violeiros de carne e osso. Sendo a voz dissidente
que fala em nome do coletivo, essa voz decalque da situao existen-
cial dos ouvintes. O heri [cantador] passa a ser um simulacro das
virtudes de sua coletividade, pensava Lukcs.200 Como deixei escrito,
199
ECO, Umberto. Obra Aberta, p. 83-4.
200
Este assunto remete-se ao captulo Discurso Literrio e Dialogismo em
Bakhtin, no livro A Palavra e os Dias: Ensaios sobre a Teoria e a Prtica da
Literatura, de Edward Lopes, p. 81-106.

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ROMILDO SANTANNA

na Moda Caipira de razes um desrespeito e mesmo inadmissvel t-


la como simples msica de fundo, em meio a conversas moles e
afazeres. O zunzum bem-dizer uma blasfmia, de modos que o
heri-violeiro se v no foco das audies. Porta-voz de um etnotexto,
aguado e lastreado no fervor do sentimento e demandas coletivas
mais profundas, sua figura assemelha-se de um concertista. Consi-
derada essa transferncia dos elementos formalizadores do discurso
(enunciao), motivos temticos e suas atraes e enredo elaborado,
para a figura real da dupla executante (essa figura flutuante entre o real
e o imaginrio, e herica, a qual tenho designado pelo nome de
arquicantador, modista ou cantador-violeiro) entende-se que, por uma
conexo tribal entre realidade e fico, entre executantes, personagem
e seu pblico, da figura adjetivada como humilde, o personagem
Mineiro transgride para a substantivao de um carter de humildade
insubmissa. Ao ludibriar a palavra intransigente e autoritria do Juiz,
a voz da enunciao que se faz coletiva ludibria o prprio Poder Institu-
do que a agride. Sobrepuja o poder consuetudinrio, de iniqidade,
do patriarcalismo latente na vida comum. Rompe e subverte o senti-
do de verdade aceita de antemo. Deste modo, e pensando no univer-
so da escritura, o eu-produtor do discurso impe-se pela criatividade
e esperteza, como um ridicularizador da casta e expiador dos males.
Repare-se, insisto, que a moda estabelece um jogo entre o signo e
aquilo que assim mesmo (realidade histrica), entre a sugestividade
imagstica da linguagem e a referencialidade pura e simples. No
interldio desse jogo, a atitude do protagonista mensurada positi-
vamente e se reala tambm, distintivamente, por detalhes semnti-
cos negativos, mormente de vilania e intolerncia, atribudos ao anta-
gonista e contendor, o Italiano rico: por uma parte, aqueles traos
qualificativos admitidos tacitamente pela cultura, o forasteiro rico sem-
pre invasor, arrogante, explorador de corao satnico, sobretudo o imi-
grante italiano, reconhecido pelo pecado da usura e o vcio da avareza;
por outra parte, a prepotncia intrnseca ao personagem: no elencar de
suas atitudes, roncava alto, quer dizer, esbanjava suas vantagens
pela ostentao de poder; a insensibilidade, por no se importar com a
carncia do caipira e sua condio de ter os filhinhos doente; o
sadismo, por querer obrigar um necessitado e sua famlia a vort de a
p pra Minas Gerais; a ambio desmesurada, por querer acrescentar aos
haveres um palmo de terra a mais, que no lhe faria muita diferena

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

patrimonial. A acumulao semntica de caracteres negativos faz do


Italiano a encarnao figurativa da soberba, em contraponto idia de
humildade. Em contraste atenuante, a atitude trapaceira do humilde
Mineiro legitima-se por trs detalhes inerentes sua personalizao: a
bondade e desprendimento (ainda que interesseiros) em oferecer o que lhe
caro e custoso (uma leitoa); a meiguice e terna melancolia ao solicitar
que o adevogado fale pro Juiz pra t d da gente; e o sentimento de
honradez e desconforto moral, pois vort de a p.../ seria feio pros seus
parente. Ademais e este o argumento mais forte para a solidari-
edade do auditrio no vamos esquecer de que o protagonista
exclama que foi Deus do cu!, [que] me deu este plano. Ao chegar
nesse ponto, e na confluncia do texto com a leitura da platia, passa
no ouvinte um efeito indutivo e uma indagao imediatamente
assertiva do tipo: se o que o Mineiro fez foi inspirado e ungido pelo
referendo das alturas, nem h o que discutir... Foi le que assim o
quis...!
Referindo-se a situaes pretritas incorporadas ao imaginrio ou
no desatualizadas no presente, a Moda Caipira exerce sua funo
social, como veremos em seguida. Na moda-de-viola em anlise, a
questo da idia de injustia estava em ebulio h bastante tempo.
Carmen Lydia de Souza Dias, ao verificar os personagens de Valdomiro
Silveira, escreve que, no final do sculo XIX, operara um indcio de
mudana de mentalidade no meio caboclo: a pr-conscincia... da
distncia que separa os ricos dos pobres, e do hiato que se impe
entre os instrumentos da lei e seus usurios menos favorecidos. Essa
pr-conscincia aparece, ao ser considerado o problema da violncia,
em circunstncias que envolvem o uso e a propriedade da terra.201
Este pretrito que se faz presente o contedo que se remoa na
matria textual. Incrementando a discusso sobre o universo de
referencialidades implcitas contidas nessa moda de Teddy
Vieira e Nlson Gomes, vale a pena reproduzir o sentimento do
prprio Vieira, da dupla Vieira e Vieirinha, que inclua O Mineiro e o
Italiano no repertrio de shows:

O minero fogo, n? O minero da moda conse-

201
DIAS, Carmen Lydia de Souza. Paixo de Raiz. Valdomiro Silveira e o Regiona-
lismo, p. 130.

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ROMILDO SANTANNA

guiu lev o italiano no bico. E tambm adevogado e o


juiz. O minero parado..., mas quando ele fala, c pode
escrev. A moda j confirma o que do uso, o que todo
mundo sabe... O minero ving do italiano. (pausa reflexi-
va)
Eu acho que a moda caipira s foi pra frente por causa
dos filho de italiano. Os filho de italiano era os f dos
violero! C chegava num circo pra cant, c via um mundo
de cavalo amarrado. Era tudo de filho de italiano. Mas de
italiano pobre, porque ele j veio massacrado de l da It-
lia; agora o rico veio pa compr fazenda, pa indstria, pa
explor a gente... O portugus rico, do mesmo modo,
veio pa compr padaria, granfo... J os pobre veio no
poro dos navio, veio sofrendo de l at aqui. Meu pai
portugus e veio no poro... Ento meu pai, os otro por-
tugus pobre, e o italiano pobre gosta do Mineiro e o Itali-
ano, porque atravs da moda eles se vinga.202

O encontro do Italiano e o Mineiro elemento-chave na consoli-


dao etnocultural do caipira identificado com o interior paulista. Se,
de um lado, h correntes migratrias avanando pelas aguadas do Rio
Tiet, para se alastrar a Norte e Oeste do Estado, na mistura do
habitante nativo (ndios Caigangues e Xavantes, brancos, negros e,
principalmente, mestios) com o imigrante vindo da Itlia, por ou-
tro, h a marcha do Mineiro pelo interior de So Paulo, principalmen-
te, a partir de 1850, motivada pela decadncia do ouro na provncia
das Minas Gerais. Vieram os mineiros na esteira dos mateiros e
bugreiros em busca de novas terras, desacoroados com o ouro que
escasseava. Amestiados antigos, mineiros, italianos, ndios e negros
sados das senzalas, e novamente mestios, este o caipira paulista.
certo, como tem sido explicado, que a chegada em massa dos
imigrantes para o trabalho assalariado no campo, para o colonato, no
final do sculo oitocentista, foi traumtica para o caipira tradicional,
grafo, cativo ou e semi-escravo, posseiro confinado em minguada
terra, acostumado desde sempre condio de fundirio invisvel,
velha praga a subsistir de sofrvel roado. Monteiro Lobato assim o

202
Colquio gravado em 25.set/94.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

enxergava: medida que o progresso vem chegando com a via frrea,


o italiano, o arado, a valorizao da propriedade, vai ele [o caipira]
refugindo em silncio, com seu cachorro, seu pilo, a picapau e o
isqueiro, de modo a sempre conservar-se fronteirio, mudo, sorna.203
Somente entre 1890 e 1900 aportaram em Santos mais de 300 mil
italianos. Confiando no mito do retorno breve e prspero, vieram no
sonho de fazer Amrica, mas acabaram foi substituindo o escravo
africano nas fazendas. O trauma do caipira nato se deu ainda pela sua
continuidade a um modo de vida que, no sendo desdouro para o
ndio, ressalta aos olhos do imigrante como defeito: a imprevidncia. O
caboclo, por seu viver improvisado, transitrio e uma crnica falta de
perspectivas decorrente da sedimentada cultura escravista, conheci-
do pela despreveno com que toca a vida e encara o porvir. Passa a
idia de um comodismo que chega a amolar o estrangeiro, confinado
nas lavouras do serto, sem outros referenciais comparativos que no
os seus de origem. O botnico francs Saint-Hilaire, se bem que na
perspectiva de uma Europa urbana e industrial dos anos de 1820, via
no caipira um indolente e o caracteriza como o indivduo aptico que
pouco trabalha nos dias teis; nos dias de festa nenhum trabalho
executa, e essa a diferena entre os dias teis e os de festa. 204 Nos
finaizinhos do sculo XIX e incio do XX, o brao imigrado italia-
nos na maior parte, alm de espanhis, portugueses e japoneses na
imensa maioria desiludido do sonho de possuir terras, conforman-
do-se com o sistema republicano de servido disfarada e mantendo
resqucios das culturas de origem, acaipira-se. Essa desiluso se deu
tambm devido ao choque de expectativas do fazendeiro que, com o
Governo, subsidiara a chegada do brao livre requisitado de fora. O
dono das glebas, acostumado que estava submisso servil, no se
entendeu com o imigrante. Este, por sua vez, alm de ir habitar as
antigas senzalas, com as portas e janelas voltadas s vistas da casa-
grande, teve em relao s suas mulheres o mesmo assdio usual s
mulheres cativas. Identificados os dois, o caboclo paulista e o imi-
grante, esta a razo por que, em algumas situaes, a imagem do
italiano pobre passou a indiferenciar-se com a do caipira, consolidan-

203
Velha Praga, prosa de gnero inclassificvel, includa na segunda edi-
o de Urups (1918).
204
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem Provncia de So Paulo, p. 254.

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ROMILDO SANTANNA

do tudo como um mesmo contingente de desanimados e oprimi-


dos. Muitos desses polenteiros foram viver, com outros imigra-
dos, na cidade de So Paulo, formando grandes contingentes mdios
e pobres da sociedade paulistana nos comeos do sculo XX. Os
carcamanos, representavam [na capital] mais da metade da popula-
o adulta de sexo masculino, vivendo em bairros, como os
napolitanos no Brs, os venezianos no Bom Retiro, calabreses na
Bela Vista ou Bexiga, alm de grandes comunidades em Santana,
Mooca, Belenzinho e Barra Funda, dando metrpole que se expan-
dia um sotaque talo-brasileiro e, na cidade e no campo, adaptaes
lxicas e fonticas de um vernculo macarrnico, algumas vezes iden-
tificados com o dialeto caipira.205 Os italianos que enriqueceram se
uniram num sistema semelhante ao ideal de vida bandeirante, nessas
alturas em pleno reinado do caf, a prevalecer a instituio colonial e
imperial do baronato. Instaura-se, pela similitude entre os caipiras
nativos e a verso rural do carcamano o polenteiro , um senti-
mento de classe que se expressa em ressentimentos. A partir de 1830,
no interior de So Paulo, a economia cafeeira erigia as igrejas e suntu-
osos casares os solares senhoriais de quem dirigia a poltica do
Estado em estilos neoclssico e art nouveau, encomendados a algum
arquiteto de renome, como o italiano Gherardo Bozzani, com vidra-
as de cristal bizotado, afrescos de artistas europeus, frisos e frontes
em alto-relevo, dos quais uns poucos se conservam, como nas regi-
es de Ribeiro Preto e Mococa e proximidades da divisa com o
Estado do Rio de Janeiro. A nobreza rural, luxuosa e refinada,
constri na fazenda, no incio do sculo, o desfrute da belle poque
vivida no Rio e So Paulo. Os italianos novos-ricos, claro, com exce-
es, fecharam-se em copas e adotam a poltica da boa vizinhana
com os bares nativos do caf e capitalistas urbanos, estes na maior
parte antigos fazendeiros. Alguns italianos tornaram-se mesmo reis
do caf. Vieram a ser, com os ricos locais, j em perodo republicano,
os bares lampees! os condes Joes! os duques zurros! / que
vivem dentro de muros..., como escreve o sarcasmo de Mrio de
Andrade na Ode ao Burgus (Paulicea Desvairada, 1921).

205
Informaes mais aprofundadas a esse respeito so encontradas em publi-
caes como Do Outro Lado do Atlntico: Um Sculo de Imigrao Italiana no
Brasil, de ngelo Trento, p. 123-4.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

O italiano endinheirado, o tubaro burgus, se distanciou do


pobre, o carcamano. Assim posto, na contextualizao de O Mineiro e
o Italiano, demarca-se uma circunstncia em que se atualiza uma
antinomia muito clara que se alicera em dois vetores: o da materialidade
(Italiano da moda) versus o da espiritualidade (Mineiro). Num misto de
suavidade e esperteza, claro est que a desmesura do protagonista
autoridade do Juiz no se caracteriza pela proposta de um ilcito
moral, uma tapeao, mas como uma disponibilidade de esprito (e
com o referendo de um Deus!, bem entendido), logo, aceita como
virtude e designao. Desta maneira, colocados num palco de julga-
mento, todos os prognsticos virtualmente negativos relacionados
ao caipira caem por terra no seio de sua ambincia comunitria: este
romance lrico-narrativo apresenta argumentos que possibilitam uma
leitura parcialmente negativa das aes do protagonista, mas que se
afianam por uma espcie de corrupo consentida, pelo respaldo moral
e religioso coletivo, como se os fins justificassem os meios. Afinal, o
Italiano rico conquistou seus bens talvez se utilizando de roubos
legais ou de tretas poucos ticas; ento, para o trapaceiro, um tra-
paceiro e meio. Como reza a proverbial sabedoria popular, quem
rouba ladro, cem anos de perdo! Ademais, os danos praticados so
imperceptveis, consolam-se todos: arrefece o dano moral, na pers-
pectiva do Juiz, que nem notara a trama dolosa; arrefece o dano
material, na perspectiva do Italiano, por ser insignificante a quantida-
de de terras no conquistadas. Sobra, afora isso e isto parece o mais
significativo a punio moral imposta ao imigrante explorador, que
o caboclo desfruta como uma satisfao ressentida. Deste modo co-
locada e aceita, repito, a ao anti-herica, na viso de fora, converte-se
em gesto de personalizao a ser glorificado, na perspectiva de dentro, no
interior societrio onde a narrao nasce e interage.
Claro est que os valores simblicos de O Mineiro e o Italiano
aplicam-se a outras situaes anlogas, nas pelejas contra a injustia e
aos poderes constitudos, na mundividncia do caipira. Os versos
finais da moda repercutem como palavras espirituosas que levam satis-
fao. Afirmei no incio que o contexto cria uma feio anedtica: o
auditrio, num momento deliciante, curva-se seduo do pitoresco
e do inslito. Se fundamentalmente anedota, ressalta apenas meia
verdade: prope uma causa a se conquistar ou, serenamente, a se
almejar. Essa meia verdade se explica pelo carter flutuante entre o imagi-

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ROMILDO SANTANNA

nrio, o preconceituoso e o real, tendo em vista os entes da enunciao


poemtica, os cantadores-violeiros reais e o mesmo auditrio. E, por
suposto, a espessa relao de identidade entre o universo de signos
em suas conotaes culturais de que a moda se compe e a situao
social em que a mesma se insere. Isto sensibiliza uma faculdade fun-
damental para a existncia: a do sonho. O mal da vilania simbolizado
pelo Italiano rico, birrento e possuidor, espicaado pelo matuto
mineiro pobre, na situao-limite de ser desalojado da terra e privado
dos vnculos com ela. Esses vnculos, ressalto, so os atrativos basilares
nesta e noutras modas.
A situao de catarse, num sorriso abafado e airoso, que se esta-
belece na execuo de O Mineiro e o Italiano dotada de grande interes-
se para uma penetrao mais aguda em uma srie notvel de modas
caipiras. Nelas se atualiza a viso ressentida que o caboclo tem do
imigrante, nem sempre justa, h que sublinhar! Alm de seu aspecto
mtico e, portanto universal, conforme entendimentos da antropo-
logia cultural e, mormente Mircea Eliade (o Mito Agrrio da Terra-
me), a terra, como simbologia estendida que se quer retirar do
Mineiro, reveste-se de situaes histricas muito especficas. preci-
so ter em mente que o brasileiro comum (o imigrante aviltado e
desvalido, o mestio degredado..., o povo, enfim) possui trao cam-
pons ligado atavicamente terra, qual devota o smbolo de um
mundo perdido que de fato nunca reconquistou. Trata-se de um
apego subconsciente, como talho fundamental da personalidade viva
da coletividade, provinda de uma situao existencial, profundamen-
te cimentada na sensibilidade da populao marginalizada. Lembremo-
nos de que, na origem, se trata de coletividade de individuais dester-
rados (ibricos e africanos) e desterrados em sua prpria terra, ou
expropriados (indgenas). Portanto, o uso de qualquer expediente
para no ser expulso do ventre, a Terra-me, honroso, altivo e justo;
conspirao contra o Sistema, contra a organizao e regras de funci-
onamento da vida que, ditadas de cima para baixo, ou criadas de
modo a manter o status dos poderosos, oprimem e trazem mais
misria e amargura. A atitude do protagonista, na moda que estamos
acompanhando, institui-se como triunfo da tarefa do destino, como
uma sina a cumprir, justa, altiva e honrosa, que, por isto mesmo,
conta com o beneplcito de seus semelhantes na vida real. Assim
posta, a narrao funciona como surtidor, por assim dizer, a fazer

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

germinar, na solido de cada um, a conscincia, inventrio e resgate da


integridade perdida, e o gozo efmero da ruptura hierrquica. A liga-
o entre os personagens, no modo como so caracterizados, e as
circunstncias em que esto inseridos confere ao personagem Mineiro
a ponderao de seus atos dentro de um cdigo de obrigaes a
cumprir. Numa viso elstica, ele simboliza o enfrentamento contra
as foras histrico-sociais opressoras. O ilcito praticado, repito, se
circunscreve como forma de desgnio, intento do destino de algum
em pratic-lo; coube ao Mineiro, num misto de bendio, a oportuni-
dade de faz-lo. O dever cumprido certamente exultado pelo
grupo, reconhecido e admirado. Quero frisar neste ponto que a catarse
e o culto vindita contidos nessa moda pontificam numa quantidade
muito significativa de Modas Caipiras tradicionais. So tpicos, por
isto, e tonificam o sentido de empatia e atavismo com o pblico.
A moda-de-viola O Mineiro e o Italiano exerce um papel narrativo
conveniente de o indivduo projetar-se no outro, no metabolismo
da vida comunitria. contextura imagtica do texto, dada pela
gradao que culmina no arremate final, une-se a tangibilidade da
escritura, pelo romance lrico-narrativo; s situaes historicamente
concretas e peremptrias da existncia pblica, agrria, liga-se a idia
do viver nos outros, de que fala Srgio Buarque de Holanda. Sobre
essa projeo inter-humana, esclarece o ensasta de Razes do Brasil que
a vida em sociedade , de certo modo, uma verdadeira libertao do
pavor que ele [o brasileiro cordial] sente em viver consigo mesmo, em
apoiar-se sobre si prprio em todas as circunstncias da existncia.
Sua maneira de expanso para com os outros reduz o indivduo, cada
vez mais, parcela social, perifrica, que no brasileiro como bom
americano tende a ser a que mais importa.206
A palavra, entendida na referncia performtica da cantoria, subs-
titui e se sobrepe realidade societria, transformando, por instan-
tes, a obra, o cantador-violeiro e os ouvintes num teatro de imagens,
situados num nexo flutuante entre a realidade e a imaginao. As
personagens so criaturas vivas, na esfera elementar da imaginao. Se
isto verdadeiro, caberia questionar em que dimenso ocorre a
ficcionalidade, se que ela est compartimentada em alguma dimen-
so da vida. Para mim, a arte o elo absoluto entre o que pode ser e o
206
HOLANDA, Srgio Buarque de. Razes do Brasil, p. 108.

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ROMILDO SANTANNA

que . Apartada dessa extenso humana, deixa de ser arte. Isto certa-
mente elimina as diferenas entre o acadmico e o moderno, entre os
hodiernos e os antigos, entre o ilustrado e o popular. O primitivismo
da Moda Caipira de razes um teatro, repito e acrescento: uma vividez
convulsa de sonhos. Por definir-se como atividade performtica en-
volvendo ou sendo envolvida pela coletividade em contnua reali-
mentao, esse processo de flutuao entre o real e o fingido muito
comum na discursividade literria popular. Basta lembrar que ela tam-
bm ocorre nas estrofes de adivinhaes, nos autos populares, nos
poemas de cordel, no teatro de revistas, nas narraes de causos e,
principalmente, na estrutura dramatrgica dos dramas e tragicomdi-
as com que se encerram os espetculos circenses das companhias fa-
miliares que ainda percorrem os lugarejos e pequenas cidades do inte-
rior e centros metropolitanos. A respeito dessa mescla de situaes
reais e fictcias na composio imagstica do discurso literrio-popu-
lar, escreve Jos Guilherme Cantor Magnani que o que caracteriza o
circo justamente a capacidade no s de transpor para o palco essas
e outras peripcias do dia-a-dia dos espectadores, mas sobretudo de
explicitar seus contrastes atravs da articulao srio vs. cmico que cons-
titui seu princpio estruturante bsico. No apenas a presena desta
ou daquela crena ou fragmento do cotidiano o que explica o carter
verossmil do espetculo de circo, mas a existncia de uma lgica que
articula de forma circense as contradies, incongruncias e
descompassos da vida diria, tais como a valorizao da famlia e as
dificuldades em mant-la, o reconhecimento da autoridade e o temor
da polcia, as esperanas postas na cidade e a desigual repartio de
seus servios, etc.. 207
Voltando anlise textual da Moda Caipira, que erige a atmos-
fera espiritual de um teatro de representaes, com essa flutuao
instaura-se mais uma vez a cosmologia de um tempo e de um
espao mticos engendrados na poesia: tempo em que no h ho-
ras, e um lugar sem paragens. Visto em sua funcionalidade social,
cabe ao modista o papel de restaurador do mundo, dissipando-o
dos agravos e tramias do destino; ao protagonista cabe a mscara,
quer dizer, a destituio de um carter especfico, individualizado,

207
MAGNANI, J. G. C. Festa no Pedao: Cultura Popular e Lazer na Cidade, p. 175.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

para estender-se no assentimento plenrio, na categoria coletiva; ao


cantador-violeiro real e contingente, as glrias hericas por ensejar o
efeito de dissipao dos agravos e o deguste de uma beleza clssi-
ca que essa situao inspira. Ao poema aviolado, e seu
pertencimento palpitante de smbolos, cabe o estabelecimento de
um vigoroso jogo verbal convincente, verossmil, pela convenincia
e historicidade. Realiza um esteticismo dialgico com o que con-
tingente no contexto social em que atua. Sua funo literria realiza-
se na interseco dos fatos reais com as miragens coletivas. Por
meio da anormalidade de aes, a moda finge restabelecer a norma-
lidade da vida comum. O enfrentamento ao poder constitudo se,
por um lado, soa como profanao pecaminosa de um dogma (a
usurpao tida como normal e aceitvel), por outro, realiza a vonta-
de de superao do isto assim porque assim mesmo. Regenera
a referncia dialgica entre o no-ser annimo, passivo e pungente, e
o ser transformador e abolicionista. Ainda que em sonho, o caipira
desfruta o momento fugaz de ser um cidado. Observa Antonio
Candido que no a representao dos dados concretos particula-
res que produz, na fico, o senso de realidade, mas sim a sugesto
de uma certa generalidade [ou flutuao em nosso dizer] que
olha para os dois lados e d consistncia tanto aos dados particula-
res do real quanto os dos mundo fictcio.208 A aventura que o
texto e seu teatro performtico pem em evidncia no se expressa
pela empreitada de um personagem numa peregrinao pica; dra-
mtica, conjuntural e conjetural, anloga, nos efeitos, a de um Davi
contra o Gigante. E, assim, o personagem submisso (e suas exten-
ses nas criaturas reais), na origem, conquista o mximo grau de
glorificao, na smula dos fatos.
Em O Mineiro e o Italiano, como tenho firmado, a linguagem
representada artisticamente por uma pretensa estratificao de vozes
em interlocuo: a fala do sujeito que narra (o cantador-violeiro) e os
dilogos entre o Mineiro e o Advogado. Digo pretensa porque preva-
lece o registro lingstico do narrador que, indiretamente, filtra os
discursos por ele introduzidos, resultando apenas um discurso, line-

208
CANDIDO, Antnio. Dialtica da Malandragem, In: ___. O Discurso e a
Cidade, p. 18-54.

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ROMILDO SANTANNA

ar, em consonncia com a prpria seqncia expositiva dos fatos.


Persistem no texto os ndices de oralidade209 to familiares e
catalisadores da Literatura Popular de antiga procedncia. O cantador-
estradeiro, sujeito da enunciao verbal, dissolve a palavra de outrem
em suas prprias palavras. Isto importante porque, pela
homogeneizao das falas, ressoa nos ouvintes apenas um plano
seqencial de discurso, na linha de seu registro cultural, exatamente
aquele mais prximo da situao expressiva de linguagem dos mes-
mos destinatrios. Ou seja, o adevogado que, teoricamente, desto-
aria por um registro categorizado pelo padro forense, fala pela voz
do narrador, num portugus errado, ou usando frases-feitas de
grande eficcia e predileo na comunicao oral-popular como entr
pro cano ou se nesse angu no tiver mosquito. Sobre esse aspecto, h que se
levar em considerao que artimanhas desse quilate tendem a funcio-
nar em dois sentidos convergentes: a) alm de evitar o pedantismo de
um falar ilustrado, no contexto do romance popular (o que pode-
ria funcionar como notvel realce, mas no importante, na estilstica
do texto); b) trazem a linguagem para o campo do caipira, no espao
de seu domnio e jurisdio, como que a conjeturar psicologicamente
a previsibilidade do desfecho da histria em favor do Mineiro. Possui
o sentido de palavra interiormente persuasiva, na reflexo de Bakhtin.210
Assim, a escritura, entendida como a prpria moda, e os discursos
inerentes aos personagens se nutrem e se ajustam ao cotidiano espe-
cfico, ao tempo e espao da realidade social. A oniscincia do cantador-
violeiro fundamental para o sucesso anedtico da histria. ele
mesmo que conta, propiciando aos fatos, convertidos em lingua-
gem, a graa narrativa do bom contador de um causo. Cabe tam-
bm a ele, ou principalmente a ele afianar junto a seus semelhantes a
ilusria, mas benfazeja descontinuidade com o passado histrico,
esse Saturno ou Golias devorador dos mais fracos.
Comprazendo-se dos fatos e das artimanhas do Mineiro, prevalece
no auditrio a admirao extensiva ao cantador.
209
Escreve Paul Zunthor que por ndice de oralidade entendo tudo o que, no
interior de um texto, informa-nos sobre a interveno da voz humana em sua
publicao quer dizer, na mutao pela qual o texto passou, uma ou mais
vezes, de um estado virtual atualidade e existiu na ateno e na memria de
um certo nmero de indivduos In: A Letra e a Voz, p. 35.
210
BAKTHTIN, Mikhail. Questes de Literatura e de Esttica, p. 134-63.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

No sentido at agora percorrido, e procurando salientar a univer-


salidade do discurso infiltrado pelo perfil distintivo de uma cultura,
resta lembrar que a figura ocasional do trapaceiro em O Mineiro e o
Italiano regenera uma temtica literria ancestral, com funes especi-
ais que remontam a literaturas da Idade Mdia e a situaes literrias
conhecidas desde a antigidade e o Oriente Antigo. Ligam-se s alego-
rias prosaicas de que se nutriram os romances modernos, conforme
aparece em vrios estudos, entre os quais os de Mikhail Bakhtin. 211
Neste sentido, pode-se afirmar tambm que as peripcias do Mineiro
carregam consigo a funcionalidade e o cerne aventuresco do persona-
gem Pedro Malazarte de antiga tradio ibrica. So as ms artes
daquele que atazana e inferniza os poderosos. Esse personagem-
tipo, que carrega um lastro da picardia de Lazarillo de Tormes (1554)
ensina Lus da Cmara Cascudo, citando Tefilo Braga aparece na
cano 1121 do Cancioneiro da Vaticana (chegou Payo de Maas Ar-
tes). Freqenta a literatura peninsular desde o sculo XIII (Malaartes,
Urdemales, Ulimale, Urdemale): sua caracterstica funcional o
utilitarismo. Malazarte so convergncias de episdios tradicionais
europeus, espalhados na novelstica popular e agrupados sob seu
nome em Espanha... e vindos para o continente americano. Nenhu-
ma idia instintiva de maldade desinteressada o anima a cometer uma
diabrura. H nele igualmente o plano social de crtica, de ataque, de
castigo aos ricos e aos fidalgos, adaptado, no serto brasileiro, aos
fazendeiros e comerciantes que so ludibriados....212 Enfatizo esta
caracterstica do personagem para ratificar mais uma vez a presena de
estruturas de antiga procedncia peninsular na oralidade da Moda
Caipira de razes. Alm dos livretos populares, em prosa e verso,
Pedro Malazarte foi tambm notabilizado em 1932, por Mrio de
Andrade e Camargo Guarnieri, com a pera que leva o nome do
personagem, e retrata o carter brasileiro, no pensamento dos au-
tores.
Assim posto, necessrio acrescentar outras ponderaes acerca do
heri na Moda Caipira de razes. O cantador-violeiro, como sujeito da
enunciao, o idelogo-mor da poesia na conjuntura eletrizante da

211
Funes do Trapaceiro, do Bufo e do Bobo no Romance. Idem, Ibidem.
p. 275-8l.
212
CASCUDO, Lus da Cmara Literatura Oral no Brasil, p. 260-63.

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execuo, um heri criador, pensante, sentinte, parodiador e estilizador


de todas as falas, trazedor dos planos do imaginrio para as dimenses
sociais e histricas. testamentrio da tradio literria; o articulador
fecundo, o famoso fingidor pessoano em poesia. Deste modo ins-
titudo, a fala comunicativa do cantador (e das duplas caipiras que lhe
so porta-vozes) cai como gua fecundante sobre a realidade histrico-
social dos ouvintes, suscitando o arcabouo do imaginrio em sua
tenso dialgica com o real. O verismo da escritura, corporificada pelo
modista, se confunde com o verismo da existncia, tornando poesia e
realidade um trem muito semelhante entre si. Este procedimento con-
fere figura do modista uma fortificao junto a seus coetneos, uma
autoridade que brota da glorificao em seu prprio meio. Sendo um
discurso eficaz pela fotografia do idntico, exemplar tpico da Moda
Caipira, o que uno desliza para encaixar-se no quadro das inquietaes
coletivas. Num contexto que pode ser interpretado como rstico, con-
forme veremos logo adiante, o personagem-cantador o verdadeiro heri na
moda caipira, um eu que se confunde com um ns, ou seja, o
concertista e ouvidor, ao mesmo tempo, que personifica os anseios da
coletividade. Por isto, no espao mesmo do caboclo, e da Moda Caipira
em geral, no existe a caricatura depreciativa dos jecas. Se existem, como
fiz observar, isto se d na projeo de fora para dentro, do urbano para o
rural. Observemos o romantismo eufrico do cantador nas estrofes
dos mestres Lourival dos Santos e Tio Carreiro:

EM TEMPO DE AVANO
pagode de viola

O destino aqui me trouxe


Cant pra vocs eu vou,
Eu s truxe coisa boa
Foi meu serto quem mandou.

No lugar que tem tristeza


Eu vou levar alegria,
Vou levar sinceridade
Onde existe hipocrisia.
No lugar que tem mentira
Eu vou levar a verdade,

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Vou levar amor sincero


Onde existe falsidade,
Quando ieu daqui sair
Vocs vo sentir saudade.

A terra hoje balana


Vou agentar o balano,
Quem espera sempre alcana,
Eu espero e no me canso,
Cantando a gente avana
Para depois ter descanso,
Cheguei trazendo esperana
Cantando em tempo de avano.

Vou soltar o inocente,


No tem culpa quem prendeu,
Vou castigar quem matou,
Vou rezar pra quem morreu.
Vou defender quem apanha
Batendo em quem bateu,
Vou tomar de quem roubou
Tirando o que no seu,
Vou jogar com quem ganhou,
Vou ganhar pra quem perdeu,
E para quem no tem nada
Vou dar o que Deus me deu,
Se eu der tudo que eu tenho
No acaba o que meu...

(Tio Carreiro e Pardinho,


Pagodes, 1977)

Na sntese do que foi discutido, preciso dar mais um passo e


acrescentar que, embora revelem nobreza de carter, so raros na Moda
Caipira os heris fcticos, os empreendedores de aventuras hericas,
no sentido da pica clssica e do romanesco moderno. Como Em
Tempo de Avano a idealizao desse heri se faz como promessa,
sonho. E isto j abastece o interlocutor como sentimento romntico
de euforia. De uma maneira geral, excetuando o homo viator o va-

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queiro, o tropeiro, o carreiro de bois , que incorporam as asas da


imaginao de quem vive em isolamento e desapreo, tambm como
personagens os caipiras so submissos e se confundem muitas vezes
com a idia de despossudos. No raro, seus feitos materializados na
arte so torneados como acontecimentos vindos por obra do desti-
no, do acaso, do fortuito, da coincidncia, da determinao mstica;
suas aventuras so na aparncia desinteressadas, suscitam admirao
pela humildade e passividade. Vivem o presente com formidvel
nostalgia de um tempo perdido que, em vrias ocasies, representa-
do pela fisionomia combalida do presente, ou pela lembrana do
velho pai que j passou ou padece de uma decrepitude disfarada. O
pai smbolo de conquista, pela gentica de tudo; e de perda.
***
J vimos que a principal caracterstica de que se fundamenta o
enredo da moda-de-viola a sucessividade clara e enftica de elemen-
tos, em conformidade com a frmula do princpio, meio e desfecho.
Isto fator essencial de sua estrutura lrico-narrativa e, sob as atenes
gerais, consolida o ajuizamento e consenso interativo em meio a seu
pblico. Pela proximidade, a voz do cantador a voz do grupo no grupo,
semeando a energia positiva do comportamento em grupo. O registro
discursivo marcado pela semelhana de opinies. A narratividade da
Moda congrega o princpio estrutural de uma Fbula, como se sabe,
de antiga tradio literria, que, por meio da conciso, marcas de
oralidade e mobilizao de temas e fabulrios tradicionais, mantm o
auditrio preso a uma situao de conflito que s se resolve no des-
fecho. Embarquemos na moda Boiadeiro Punho de Ao:

BOIADEIRO PUNHO DE AO
moda-de-viola

Teddy Vieira / Tio Carreiro


Me criei em Araatuba
Laando potro e dando repasso,
Meu velho pai, pra lidar bom boi,
Desde pequeno gui meus passo.
Meu filho, o mundo uma estrada
Cheia de ataio e tanto embarao,
Mas se voc for bom no cip,

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Na vida nunca ters fracasso.

Com vinte anos parti


Fui na comitiva de um tar Incio,
Senti um n me apert a garganta,
Quando meu pai me deu um abrao.
Meu filho, Deus lhe acompanhe,
So esses votos que eu lhe fao,
E como prmio do teu talento
Lhe presenteio com este meu lao.

Por este Brasil afora


Fiz como faiz as nuvem no espao
Vaguei ao lu conhecendo terras,
Sempre ganhando dinhero aos mao.
Meu cip de tris rodia
Cubria a anca do meu picao,
Foi o que me garantiu o nome
De boiadero punho de ao.

De volta pra minha terra


Viajava noite, com um mormao,
Naquilo eu topei com uma boiada
Beirando o rio, vinha passo a passo.
Um grito de boiadero
Pedindo ajuda cort o espao
E ouvi o peo que ia rodando,
Saltei no rio com o meu picasso.

A correnteza era forte


Tirei o cip da chincha do macho
E pelo escuro inda consegui
La o peo por um dos seus brao.
Ao traz ele na praia
Meu corao se fez em pedao,
Por um milagre que Deus mand,
Salvei meu pai com seu prprio lao.

Tio Carreiro e Pardinho,


Modas de Viola Classe A, v.2, 1975)

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Esta moda-de-viola realizada em 1957 por Teddy Vieira e Tio


Carreiro um dos grandes sucessos e um dos emblemas da Moda
Caipira em disco. Gravada por primeira vez pelo intrprete Pereira
para selo Colmbia e, aps, pela dupla Pedro Bento e Z da Estra-
da, em 1963, para gravadora Chantecler, afigura-se como um ponto
culminante do repertrio da dupla Tio Carreiro e Pardinho.
cursividade lrico-narrativa do enredo com vistas ao final feliz se
encadeia um feixe de correspondncias internas de musicalidade e
fluncia rtmica: o texto se compe de cinco oitavas, todas subdivi-
didas em duas quadras por uma cesura entre elas; s cesuras
correspondem blocos sintticos-semnticos bem delineados e cir-
cunscritos em mdulos temticos; cada um dos blocos ou quarte-
tos se inicia como p-quebrado de um octosslabo seguido de
trs decasslabos, impondo uma correspondncia mtrica e rtmica
entre as estrofes. Tais fatores de ordem expressiva se alinham em
tpicos pares monorrmicos, com a reduplicao assonante das ri-
mas asso / acho, do comeo ao fim.
O ttulo Boiadeiro Punho de Ao j predispe a uma viso herica do
protagonista. Este o prprio cantador-violeiro, o homo viator que se pe,
por meio de motivaes realistas (me criei em Araatuba, fui na comi-
tiva de um tar Incio), a contar o que se passou. Por meio dessas suges-
tes a letra se ancora em fatos supostamente conhecidos para propor-
cionar efeitos de realidade. A primeira e ltima estrofes, seguindo a lei da
cursividade retilnea, se fecham em crculo: na primeira, em forma de
ensinamento, o pai prediz com ares sentenciosos e profticos de um vate:

Meu filho, o mundo uma estrada


Cheia de ataio e tanto embarao,
Mas se voc for bom no cip,
Na vida nunca ters fracasso.

Na ltima, como predestinao dos milagres da vida (essa estra-


da [da vida] cheia de ataio e tanto embarao), obra da providncia, se
confirma o vaticnio do incio, em forma de exemplo e novo
ensinamento:

Ao traz ele na praia


Meu corao se feiz em pedao,

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Por um milagre que Deus mand,


Salvei meu pai com seu prprio lao.

Temos, pois, traos de permanncia e remoamento da tpica


medieval da morte domada, neste caso, por um pacto de amor
entre pai e filho: a palavra empenhada em forma de vaticnio capaz
de suplantar, em qualquer tempo e lugar, a fora misteriosa que d
fim a tudo. Aps ser submetido a uma prova ou s provaes de ser
um boiadeiro, o desfecho da moda situa o cantador numa dimen-
so que protagoniza o herico e o faz ao mesmo tempo merecedor
espontneo de recompensa: pelo milagre do encontro, salva algum
da morte e esse algum o prprio pai.
Aos impulsos rtmicos com que deslancha a matria semntica
correspondem as inter-relaes passado > presente < passado,
representificados no momento-mesmo da narrao; a sada e a volta
do protagonista, em sua peregrinao devaneante pelo Brasil (fiz
como faiz as nuvem no espao); a dinamizao do smbolo lao ou
cip, como se todos os motivos se enlaassem, enrodilhassem
em roda de uma nica e verdadeira histria. Este embasamento cau-
sal imprime narrativa um sentido de verossimilhana, isto , corres-
pondncia e identificao do que dito, no esprito do ouvinte. As-
sim, o ensinamento do pai ao filho se expande e se potencializa no
ser coletivo. Na construo dessas imagens participam formulaes
expressionistas do tipo:

Viajava noite, com um mormao,


Naquilo eu topei com uma boiada,
Beirando o rio, vinha passo a passo...
ou
Um grito de boiadero
Pedindo ajuda cort o espao...
ou
A correnteza era forte
Tirei o cip da chincha do macho
E pelo escuro inda consegui
La o peo por um dos seus brao...

A vibrao desses efeitos de sentido, informativos e ao mesmo

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tempo sugestivos, traz para o processo da enunciao o condo do


sonho, no enredar enrodilhante, sentimental, sinestsico e afetivo
das imagens. A laada certeira do homo viator restaura a unidade que se
ia perdendo: a morte domada. Invertendo a ordem natural e focali-
zando o trao umbilical de unio (o lao), o pai renasce pelas mos e
conscincia do filho-cantador. Ao mesmo tempo em que regenera
constituintes humanitrios de ordem moral, tica, mstica e familiar,
o poema-cano dignifica a referncia tensiva entre vida (destreza, for-
a, valentia e altrusmo do filho) e morte (noite, correnteza, precarieda-
de de resistncia fsica do pai), como que a realar o poder determinista
da unio genealgica, da simbologia do cordo umbilical como
fator antropolgico de resgate do sopro da existncia e sublimao da
vida. O acaso, a sina, a fora do destino subvertem a linha do tempo,
pem em xeque a contraposio velho/jovem, e so homlogos
condio existencial do ser, na reafirmao do existir como conquista
e preservao da espcie. E se ajuntam ao campo sentimental de
felicidade ou recompensa. Simultaneamente, o texto transfere esse
feixe de afetos figura do cantador e seus atributos poderosos. O que
quero mencionar que alm da heroicidade de cantador-violeiro, que
canta rasgado e nas alturas, suprindo o af coletivo reprimido em
modstia e acanhamento (a natureza caipira do caipira), esse cantador,
mais uma vez se faz admirado e bem quisto pela capacidade de poetar,
de transformar o conto do trivial em sublime, de fisgar o pitoresco
do cotidiano, de vislumbrar a beleza na rusticidade, de comungar
com o inslito e misterioso. Seu ato herico de salvar algum da
morte, por coincidncia o prprio pai (simbolicamente a genealogia e o
passado de todos os ouvintes), no se esvai por ter sido obra do destino,
do acaso, mas se engrandece, como se ao poeta fosse dada tambm a
graa de incorporar as alianas e desgnios misteriosos e inexplicveis
que do vida crena e ao imaginrio coletivo. O poeta d luz um
turvo passado que, sendo provvel, por isso mesmo verdadeiro.
Por esses refinamentos de construo artstica e aguda capacidade de
penetrao nos cdigos culturais de seus coetneos, repito, o violeiro-
cantador o verdadeiro heri.
Tenho observado que, exceto os casos dos violeiros-cantadores
o homo viator e as exaltaes do eu-poemtico nas modas de campeo e
de abat campeo, que circunscrevem o prprio meio caboclo na agita-
o ldica do fandango, os personagens caipiras em geral no se

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

situam pela conjugao de verbos do tipo eu sou, eu estou, eu


permaneo, eu fico, eu quero, eu sei, ou seja, no se abstraem
de seus estados e aes. Se a percepo no me atraioa, o exemplo
mais representativo desse sinal de desiluso se notabiliza na toada
Mgoa de Boiadeiro, de Non Baslio (Alcides Felisbino de Sousa, For-
miga-MG, 1922-) e ndio Vago. Nesta moda, gravada com grande
sucesso por Pedro Bento e Z da Estrada em 1967, o homo viator
boiadeiro o heri de seu prprio desencanto. Deprimido e humil-
de, e com a auto-estima curvada s presses de fora (sou apenas um
caipira) renega sua condio de poeta. Desperta simpatia e identida-
de no ouvinte pelo sentido de auto-piedade, pela lembrana da felici-
dade perdida, pelo confronto da vicissitude presente em relao ao
passado que no volta mais. Verifiquemos apenas um trecho:

MGOA DE BOIADEIRO
toada (fragmento)

Non Baslio / ndio Vago

No sou poeta,
Sou apenas um caipira,
E o tema que me inspira
a fibra do peo.
Quase chorando,
Imbudo nesta mgoa
Rabisquei estas palavras
E saiu esta cano.

Cano que fala


Da saudade das pousadas
Que j fiz com a peonada
Junto ao fogo de um galpo.
Saudade louca
De ouvir o som manhoso
De um berrante preguioso
Nos confins do meu serto.

(Ouro e Pinguinho,
Nosso Amor de Criana, 1975)

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Mgoa de Boiadeiro exemplo palpitante de uma lrica profunda,


em que o objeto principal o prprio eu, a filtrar a recordao.
Restaurando as preliminares deste captulo, sublinhemos outra
vez: o caipira no moda. Os protagonistas na Moda Caipira so,
com rarssimas excees, pacientes no meio histrico-social; como o
trabalhador e a trabalhadora da roa, seus filhos e agregados,
protagonizam uma desiluso diante do no-eu a contingncia
social tudo em consonncia com o estado depreciativo que lhes
imposto, e do isolamento dessa gente, entendida no s como uma
separao psicolgica do mundo urbano dominante, mas sobretudo
o que fundamental uma confinao instituda pelo urbano na
forma de desapreo cidadania. So raros, na Moda Caipira, heris
empreendedores, graves e espiritualizados. Essa raridade se observa
tambm nos folhetim da televiso, no teatro e no cinema, quando o
protagonista um caipira. Nos dramas (geralmente tragicomdias)
encenados em circos-teatros, que ainda deambulam nas periferias e
lugarejos do interior, o heri caipira comumente interpretado pelo
palhao em suas caractersticas de picardia. Por isto, reduzido (ou
talvez engrandecido?) ao sentido pattico de existncia. As mais de
duas dezenas de peas escritas por Tonico (Joo Salvador Prez, 1919-
1994), as vrias de Sulino (Francisco Gottardi, Penpolis-SP, 1924-) e
outras tantas dezenas concebidas por Z Fortuna (Jos Fortuna,
Itpolis SP, 1923-1983), que precisam ser recolhidas e estudadas,
comprovam o que digo. Trata-se de um gnero em prosa sem dvida
muito rico, e at agora pouco lembrado pelos estudiosos de literatu-
ra. Muitos de seus temas so desenvolvimento de modas caipiras e
outras canes que caram no gosto popular, j que no raro a prpria
dupla participa das encenaes, como: Tristeza do Jeca (toada de
Angelino de Oliveira), A Vingana de Chico Mineiro (toada de Tonico e
Francisco Ribeiro), Cabocla Tereza (toada histrica de Raul Torres e
Joo Pacfico), O brio e Corao Materno (canes de Vicente Celestino),
Corao de Luto (toada de Teixeirinha) alm de dramas de vrios auto-
res conhecidos ou no, como Ferro em Brasa, O Cu Uniu Dois Coraes,
O Crime de Tobias, Trs Almas para Deus, O Filho Monstro, A Marca da
Ferradura, Mgoas de um Palhao... Como se infere por alguns dos ttu-
los acima, os protagonistas caipiras so geralmente encolhidos, retra-
dos, parece que premeditadamente imbudos da derrota que os apa-
vora e os desanima, e de um perene sentimento trgico da vida. Por

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

esta razo, muitas vezes so patticos, so agnicos, so picarescos


e quixotescos. Isto explica o fato de serem mais freqentes no can-
tar caipira as sagaranas de um heri boi (o Boi Soberano, o Boi Fu-
maa, o Boi Veludo, o Boi Cigano, o Boi Sete Ouro, o Boi Palcio, o
Nelore Valente),213 que do heri-gente. Parece que os protagonistas
esto fadados a viver um tempo e espao abstratos e, em analogia
com a vida coletiva, repletos de coincidncias atrativas, curiosidades
fortuitas, intervenes sobrenaturais e calamidades sempre es-
preita, a desanim-los antes de qualquer ao construtiva e
dissipadora dos perigos. Assim, o personalismo do vencedor fica
submerso na coletividade, no ato da cantoria. Assim, mais uma vez
repito, o grande heri o violeiro-cantador confundido pela voz
interpretativa da dupla. Por meio desta, no ato da performance,
germinam os causos que me contaram, os causos que ouvi di-
zer, os causos que se ouvem no rdio ou que so lidos no jor-
nal, os causos que presenciei..., todos intermediados por um
libi, e o prestgio, a glorificao do cantador-violeiro, e os devanei-
os coletivos, e a arte...
Um sentimento reprimido dos personagens comuns nas modas
reflete a imagem dos caipiras comuns. Isto no equivale, como tenho
demonstrado, caricatura do Jeca Tatu. Entre os seus semelhantes, o
caipira festeiro, inspirado, amoroso, realizador, diferente da timidez
que se lhe atribuem numa viso de fora. Tal se expressa numa das mais
singelas modas de razes gravadas nos bem-dizer cinqenta anos de
carreira da dupla Vieira e Vieirinha. Trata-se da notao do folgazo, o
cantador-violeiro campeo. Composta em 1960, ao mesmo tempo que
glorifica o heri violeiro-cantador, explicitamente nega a deturpao da
imagem atribuda ao caipira (nis no sofre amarelo / e nem estruo

213
Os heris-bois so geralmente ttulos das prprias modas-de-viola: Boi
Soberano (de Carreirinho, Izaltino Gonalves de Paula e Pedro Lopes de Oli-
veira), Retrato do Boi Soberano (de Piraununga e Joo Caboclo), Boi Fumaa (de
Sulino e Moacir dos Santos), Boi Veludo (de Lourival dos Santos e Jesus Belmiro),
Boi Cigano - I (de Tio Carreiro e Peo Carreiro), Boi Cigano - II (de Geraldinho
e Fauzi Kanso), Boi Sete Ouro (Teddy Vieira e Arlindo Rosa), Derrota do Boi
Palcio (de Z Carreiro e Jos de Morais), Nelore Valente (Sulino e Antnio
Carlos da Silva). Foram interpretadas e regravadas pelas maiores duplas caipi-
ras do Brasil, entre as quais Tio Carreiro e Pardinho, Tio Carreiro e
Carreirinho, Zilo e Zalo, e Dino Franco e Mora.

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[febro] de maleita) em clara reao ao efeito biotnico proposto na


fbula de Monteiro Lobato difundida no livreto do Jeca Tatuzinho:

MARRETA
moda-de-viola

Vieira / Vieirinha

Ai, eu e meu companhero,


Na hora que nis despeita,
Ai, quando nis pega a cant,
Mais uma vitrola perfeita!
Ai, nis no sofre amarelo,
E nem estruo de maleita,
Ai, nis canta em quarqu artura
Exprica as palavra direita!

Ai, eu e o meu companhero


A parada nis no enjeita!
Ai, nis achano um truquinho,
Nis joga at na sarjeta,
Eu jogo na banca de buzo,
Eu jogo na banca-roleta!
Ai, neste jogo de bandera
Eu jogo na bandera preta!

Ai, se f pra arriscar no bicho,


Eu jogo na borboleta!
Nos macaco eu jogo pedra,
S pra v faz careta!
E no campeo nis joga moda
Trovada em linha, e bem feita,
Na capitar de So Paulo
A violerada me respeita!

(Vieira e Vieirinha, Peo Boiadeiro, 1973)

Encerrando esta partio, cabe observar, ainda que de passagem, a


existncia de dois pontos fundamentais para interpretao do fandango

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

como atividade prpria do regionalismo caipira: um deles relaciona-


se cronologia; o outro, a seu aspecto ritualstico. No atinente ao
primeiro fundamento, necessrio atentar para o fato de que o baile
acompanhado do canto narrativo dos romances tradio muito
antiga e, como a prpria Moda Caipira, herana europia. Escreve
Menndez Pidal que a dana a manifestao da arte popular mais
complexa e acabada, concorrendo para ela os instrumentos, a voz, a
poesia e a rtmica coreogrfica. Ainda, segundo o mestre espanhol,
o mais provvel que este costume popular deriva-se de um costu-
me cavalheiresco medieval. Da Frana sabemos que, no sculo XII ...
no podendo dispor facilmente de um menestrel que tinisse instru-
mento [a viola], se danava naturalmente ao som de canes (uso que
ainda durava no sculo XVIII entre os habitantes do campo). Esta
maneira de dana passou da Frana a outros pases, como a Dinamar-
ca, onde desde o sculo XIII foi moda a dana acompanhada da
cano pico-lrica. ... Algo semelhante podemos supor que passava
na Espanha, ainda que sobre isto nada nos informe a nossa literatura,
sempre to parcimoniosa de notcias.214 Tais congraamentos grupais,
que se realizam geralmente na sazonalidade do calendrio agrcola e
suas projees msticas, devem ser interpretados como atividades
no meramente ldicas e folgazonas. Numa viso elstica dos proces-
sos ritualsticos, so ritos sociais cujo sentido de eficcia possui a
simbologia de propiciar o ensejo fecundante e comovedor do encon-
tro, numa situao comunitria que se caracteriza pelo isolamento e
reteno dos valores tradicionais. Esses ritos possuem outros senti-
dos societrios profundamente ocultos e nos quais interagem com
grande nfase o significado implcito dado arte, e seus efeitos funci-
onais. Assim interpretado, como a encenao de um rito, o pagode ou
evento de socializao caipira pressupe a presena do vihuelero e sua
moda e, to obrigatoriamente, o prazer da dana, do instrumento, da
coreografia... Como base de outros reflexes sobre o tema, e certa-
mente bastante fecundas, indicaria para leitura o livro Sociologia do
Rito, do cientista social Jean Cazeneuve.
Talvez fosse o caso retornar a algumas passagens de Viola Verme-
lha, realizada em tributo memria do violeiro Florncio, falecido em

214
MENNDEZ PIDAL, Ramn. Romance Hispnico (Hispano-Portugus, America-
no e Sefard) - II, p. 98-100.

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ROMILDO SANTANNA

1972, mas que, igualmente noo de cantador-violeiro, a louvao se


faz viola, como personalidade ritualstica exponencial. Entre ou-
tras imagens compostas por Tio Carreiro e Jesus Delmiro ressal-
tam-se: o sentido de reafirmao do rito, pelos elementos comparativos
com o sangue do caboclo; sensorialmente, se aproxima das virtudes
aguerridas da viola e do sentimento sublimado que o caipira tem
pela Terra-me, como centro magnfico de um mito agrrio (Esta
viola vermelha, / cor de bandeira de guerra / Cor de sangue de cabo-
clo, / cor de poeira de terra); o sentido de fora pela consolidao do eufrico,
no seio da coletividade (Esta viola vermelha / j feiz tristeza acab, / Feiz
muitos lbios sorrir, / feiz platias delir). Esta ltima significao,
determinada imagisticamente pela reduplicao enftica do verbo fa-
zer, amplifica-se na penltima estrofe, e d viola e ao violeiro uma
dimenso semntica de criaturas eternizadas, fincadas para sempre,
como um totem antropolgico, no rito de que faz parte a da Moda
Caipira como encenao e cantar do povo. A aluso ao artista Florncio
funciona como matria elementar simbolizada por outra provocao:
a de um mouro de uma aroeira que, em sua aparncia de rstica
dureza, parece que excede a finitude do tempo. A figura arquetpica do
violeiro ou modista pressupe compreender a funo poltica e est-
tica de um intrprete e restaurador das coisas do mundo, o qual
desvenda o itinerrio destas e incontveis histrias:

Esta viola vermelha


Que tanto alegr o povo,
Defendendo o que nosso
Est na luta de novo.
Volt a ser aplaudida
Como foi antigamente.

O seu passado de glria


Revivendo no presente,
Florncio descanse em paz,
Porque essa viola sua,
Volt para o p do eito,
Encostada no meu peito:
Sua luta continua.
8. AS SAGARANAS
DO HERI BOI

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Buey que vi en mi niez echando vaho un da


Bajo el nicaragense sol de encendidos oros,
En la hacienda fecunda, plena de la armona
Del trpico; paloma de los bosques sonoros,
Del viento, de las hachas, de pjaros y toros
Salvajes, yo os saludo, pues sois la vida ma.

Rubn Daro, Nicargua, l867-1916.

Boi pasteja, boiadeiro queima o alho. conceito de bondade,


sossego, fora, trabalho e doao, o boi. impulsor de gente, a quem
devota sacrifcio, inclusive o de conceder as carnes, os ossos, o couro
e o mugido, arremedado no berrante feito das guampas. montaria
calma sem cobrana da indisposio ou fadiga; ajuda com doura e
desapego. Evoca o aceno de contemplao e afetividades do carinho.
O canto grave, desprendido bem do fundo; tem um qu de
acasalamento com os ermos do serto. acalento e ao mesmo tempo
pacincia e renncia. At no momento tirano do ferro em brasa que o
deixa assinalado at o fim dos dias. H o que desembeste toa e
aplique carreires a quem lhe invada o repasto, mas em geral boi no
rumina ressentimentos pelos nscios que nada entendem. lio
bovina de tolerncia contra o estpido. Tem boi de trao, tem gado
de corte. No geral, gente da cidade s entende de comer boi, ou t-lo
com o zelo comercial, de troca.
A msica clssica do berrante e o canto gregoriano dos aboios
deixam a boiada comovida, vaidosa e sossegada. Mugido cantar
solitrio, ensimesmado, recordando um nem te conto que sempre
tem jeito honesto, compenetrado, ou elocuo de um notar pungen-
te. Sua fora indelvel, o corpanzil macio, mas boi gente compas-

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ROMILDO SANTANNA

siva, delicada, que se apega ao cuidador e amigo, ao lugar, paisagem,


origem. Aprecia o retireiro, no no sentido que lhe do os burros.
No olhar pensativo do boi, cristal fum aceso, espelho desembaado,
caboclo se v bem l no fundo, pequenininho, refletido, apegado. Ao
conter a imagem humana dentro si, boi no cobra preo de hierar-
quia. Olho dele selo raro, acostumado a ver a vida devagar, sem
ansiedade. Que nem o caboclo, neto de ndia. Touro um grandalho
insacivel; bezerro adolescente o marruais rufio, tem faro e jeito
desengonado de perceber fmea no cio. 215
Boi boi, na zona caipira; o matuto chama o cavalo de animal e os
bichos do terreiro de criao. Mas boi boi desde o Sculo XVII,
quando foi plantado em Pernambuco, Bahia, chegando capitania de
So Vicente. Como coisas que s acontecem no passar do tempo,
surgiram as figuras reais e lendrias do vaqueiro, dos garrotes
infernizados e molecotes e bois bravios, inteligentes, presumidos,
milagrosos... Ajuntamento de boi gado, e na andana sertaneja,
boiada. E de gente gentarada. Na boiada a caminho do matador,
fenece-lhe a fora e a individualidade, vira gado, parece escravo. Fica
como quem ficasse alegre da vida, mas alegria chocha, no de boi,
mais boi, mais boi, mais boi... gado mesmo, no coletivo disforme.
Por causa disto que veio aquela msica de gente: eh, eh boi, vida de
gado / povo marcado, eh, povo feliz... A distncia de uma lgua na
toada aboiada da boiada um mundo que no tem fim. So tempos
de bois e boiadeiros frudos em jeito de expectao e devaneio. O
discernimento de cada um situa-se no meio-a-meio, entre o cuidado
e a divagao inspirada pela boiada, caminho lento e o sonho da tarefa
cumprida, da volta e do encontro almejado.
Junta de bois cincia, orquestra de seis, de oito, de doze ins-
trumentos, no carroo do carreiro. O coco largo canta grosso; o
coco quente canta fino, dodo. O carreiro e os bois caminham nessa
msica. Os dois da frente sabem das coisas os bois de guia ,
entendem o carreiro, adivinham-lhe a querncia. So os que puxam a
fieira meio sonolenta; os outros, os subguias, a chavia e o cabeaio
que impem a fora. Tudo recorda um Brasil plangente, gemente, aos
solavancos, carregando-se nas costas de um carroo. Hoje o boi e o

Os dois pargrafos so inspirados no verbete Boi. Bfalo, do Dicionrio de


215

Smbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

pas patinam e deixam o casco no reto negro do asfalto. Boi que boi
tem nome e apelido de gente, ou apelido que gente muito bem que
poderia de ter: Minerinho, porque foi filho de Minero, Paulista e
Paulistinha, Negrinho, tem Possante, Possantinho, Pantanero, tem
Lobisome, Estrelo filho de Estrela, Canind (bochechudo, de chifres
semilunares), Sintido, Vermelhinho, Rodopio, Marelinho, Maiado,
Maiadinho, Espadio que era filho de Espadia, Sete de Ouro, Boa Bisca,
tem Gaiera (que t chegadinha de cria), Brinquinho porque filho de
Brinquinha, que era filha de Brilhante (que falava dormindo), Cigano,
Bordado, Jangado e Jangadinho, neto de Jangada, tem Moleque, tem Veludo,
Palcio, Namorado e Soberano, Palacinho, que no filho do Boi
Palcio, Delegado, Princesa, Rosera... um monto de nomeaes e
parentescos, no dados ou impostos, mas apanhados num arbusto
emocionante do cotidiano pelo vaqueiro que assistiu na pario, e nos
primeiros passos entrevados e fraquinhos de nen. Gigante ficou
com esse nome alegre e atravessado porque era to pequenino ao
nascer que o retireiro precisava ergu-lo para poder alcanar as tetas da
me. E mamava que nem gente grande. Boi no tem preconceito de
ter nome de mulher, e fica bem assentado. Seu Manuelzo Nardi diz
que lhe soa musical Rosa Amlia como nome de boi. por isto que
bois de todo tipo so que nem o caboclo. Porque caboclo mistura de
mulher do mato com caboclo de longe. E o boi entende e atende pelo
nome, ou parece compreender tudo isso. Bois de carro falam com
gente e entre os bois. Isto no conversa pra boi dormir!
Introspectivos, vez por outra falam coisas que nenhum no sabe.
Pois boi que no fala, mesmo que seja to sozinho, tapado, burro
como um tijolo. Nem sabe que boi diria seu Joo Rosa, um caipira
para l de excelso. Gente da cidade escreve floreado, cavoucando met-
foras; boi no, fala substantivo direto no assunto. Boi, parece que
no, mas ladino nessas reparaes de gentes e de coisas. Pode at ter
gesto, e testa, e estro de poetas que escrevem letra de mquina. Pra ele,
os humanos so to delicados (mais que um arbusto) e correm e
correm de um lado para outro, sempre esquecidos de alguma coisa.
Certamente falta-lhes no sei que atributo essencial, posto que se
apresentem nobres e graves, por vezes. Ah, espantosamente graves,
at sinistros. Coitados, dir-se-ia no escutam nem o canto do ar nem
os segredos do feno, como tambm parecem no enxergar o que
visvel e comum a cada um de ns, no espao. E ficam tristes e no

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ROMILDO SANTANNA

rasto da tristeza chegam crueldade...216 Alm de poeta, existe boi


encrenqueiro, boi galinha, boi porco, boi galo, boi veado, boi pavo
(que de exposio de animais), boi burro, boi de escorpio, de tou-
ro, de cncer, de peixes... que nem gente. Existe boi que avoa, que o
Boi Lua, do Renato Teixeira, que ficou l no cu boiando e nunca mais
desboiou, e Boi Voador, que do filho do Srgio Buarque. Tem boi
de toda qualidade: tem o ndio-brasil da orelha grande e meio mole
quando nasce; tem o caracu, bom de carro, bravo danado do casco
riscado boi dos vinte e um berrados; tem o gir da orelha engavionada,
o sute meio preto, queimado; tem graser da orelha larga e fumao;
tem o zebu ligeiro, muito rim de amansar; tem o mestio que o
que mais atende no carro, o mais inteligente, o mais ligeiro, s que
no pode ficar relando nele, porque bravo. Boi qualquer pula, ele
tem os quartos moles e a bunda pra cima, no h peo que pra em
cima dele. Boi parte humana do campnio qual recorre quando v
dissipar a prpria humanidade, nos forrobods e encrencas s de
gente s. Boi-corneta defeituoso de chifre, aleijado, e tem razo pra
ser mau de gnio. Tem Boi-vaquim chispando fogo pelas guampas e
assustando campeiros do Sul; o Boi-santo o mansinho milagreiro
do Padre Ccero, nos grotes do Crato, Cear; Boi-de-jac brinca em
So Paulo. Boi-bumb, boi-de-mamo, boi-calemba, boi-surubim,
boi-barroso, boi-de-fitas, os brincantes brincam o boi, bumba. No
boi se pem cangalhas, furam-lhe as ventas e lhe colocam ferrolho na
chincha, em penitncia por ser levado. herana da lei dos homens,
nos tempos da escravido. Alguns bois so barbates indomveis e
gloriosos, lanando a todo momento um desafio ao brio do peo.
Domar o boi, ou fazer o peo beijar a palha de um picadeiro so
questes de honra para ambos. Outros so barbates de veneta, bois
de lua que fazem o que lhes d na teia, tipo maluco-beleza.
Uma toada gravada por Tio Carreiro e Paraso em 1980 diz o
seguinte: Boiadeiro e boiada / So dois filhos de ningum / Nas
mos de um senhor malvado / Boiadeiro boi tambm. Isto
bonito, como todo mundo v. Mas gente tem mania de misturar
suas coisas com coisas de bois: manda que o outro v amolar o boi, para
contrari-lo; diz que quando tem boi na linha, h problemas a ser resol-
vido; fala que pegar o boi pelos chifres lidar com os problemas da vida;
216
Um Boi V os Homens, de Carlos Drummond de Andrade, em Claro Enigma
(1951).

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

mulher que est de boi menstruada; o camarada boi corno, quer


dizer, recebeu um par de guampas na testa, trado pela mulher. Desde
as paredes rupestres de Altamira, l esto os bois, uns investindo,
outros deitados, anchos. Egpcios, gregos e romanos... os tm como
smbolo da agricultura, no mesmo sentido de mansido com que
bafeja quente o bero do menino, na adorao do Santo Reis. Do
gado, do boi, o nego bebe todo santo dia o suco de ensinamento e a
seiva grave da existncia. Prestemos ateno no lamento caipira:

HERI SEM MEDALHA


moda-de-viola

Sulino

S filho do interior
Do grande estado minero
Fui um heri sem medaia
Na profisso de carrero.
Puxando tora do mato
Com doze bois pantanero,
Eu ajudei desbrav
Nosso serto brasilero.
Sem vaidade eu confesso:
Do nosso imenso progresso
Eu fui um dos pionero.

Veja bem como o destino


Muda a vida de um home
Uma doena marvada
Minha boiada consome.
S fic um boi mestio
Que chamava Lobisome.
Por ser preto igual carvo
Foi que eu lhe pus esse nome.
Em poco tempo depois
Eu vendi aquele boi
Pros filhos no pass fome.

Aborrecido com a sorte


Dali resorvi mud,

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ROMILDO SANTANNA

E numa cidade grande


Com a famlia fui mor.
Por eu ser anarfabeto
Tive de me sujeit,
Trabai num matad
Para o po pod ganh.
Como eu era um home forte
Nuqueava o gado de corte
Pros companhero sangr.

Veja bem a nossa vida


Como muda de repente,
Eu que s veiz int chorava
Quando um boi ficava doente,
Ali eu era obrigado
Mat a reis inocente.
Mas certo dia o destino
Me transform novamente.
Um boi da cor de carvo
Pra morr na minha mo
Estava na minha frente.

Quando eu vi meu boi carrero


No contive a emoo,
Meus io se enchero dgua
E o pranto caiu no cho.
O boi me reconheceu
E lambeu a minha mo.
Sem pod sarv a vida
Do boi de estimao.
Pedi as conta e fui embora
Desisti na mesma hora
Dessa ingrata profisso.

(Rolando Boldrin, Som da Terra, 1994)

Agora diz eu mesmo. O sentido impactante desta moda se faz


pela degradao do ser, extensivamente famlia, marcada pelas estro-
fes situadas nas extremidades: a primeira, relacionada com o passado
e as foras substantivas da tradio, grandiloqente, eufrica; a lti-

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

ma, relacionada com o presente, agnica, a dissipar quaisquer pers-


pectivas de futuro. Repare que, embora seja fato consumado (do
presente o cantador canta o que passou), instaura-se uma homologia
entre o tempo da narrao e os tpicos temporais do caso narrado,
numa perfeita concordncia tipicamente lrica de que recordar viver.
Nessa transio alegrica, demarca-se o rito de transio do campo
cidade e a tenso provocada pela idia do progresso social que o
prprio caboclo annimo ajudou a construir. E se v excludo de seu
desfrute. Primitivista e ingenuamente, compreende esta mutao com
influxos da fora do destino. Atrao nuclear que serpenteia o texto e
agente agregador da vibrao lrico-narrativa o signo boi e sua
simbologia.
***
Embora nem sempre a Moda Caipira enfoque bois em aes
comuns, quando um deles aparece, sua existncia correlata do
prprio campons comum. Nesse caso uma vida de trabalho no
recompensado, sombra da tragdia imposta pelo predador. A
metonmia se faz pela conscincia da explorao do boi pelos ho-
mens, como, entre os humanos, a explorao do homem pelo ho-
mem, do oprimido pelo poderoso. Tal se registra na moda-de-viola
mais famosa de Raul Torres, Boi Amarelinho (1937). Intensamente
matizada pela correlatividade ao caboclo, a voz enunciadora a do
prprio boi. Escutemos a face amena desse romance, que decorre de
uma gradao de atributos os quais funcionam, por contigidade,
como alavanca primordial da narrativa de sacrifcio de um cristo na
arena do mundo:

BOI AMARELINHO
moda-de-viola

Raul Torres

Eu sou aquele boizinho


Que nasceu no ms de maio,
Desde que nasci no mundo
Foi pra s sofr trabaio.
Fizero logo batismo
L nas margem no riozinho,

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ROMILDO SANTANNA

Por causa da minha cor


Eu fui chamado Amarelinho.

Meu pai era um boi turuna


Que nasceu num sapez,
Seu nome era Barbato
Por sobrenome de Marru,
Quando eu tava de ano e meio
J fizero amansao,
Em veiz de amans de carro,
Amansaro de carreto...

(Os Grandes Sucessos de


Torres e Florncio, 1968)

***
Fala, boi. Os velhos bois e gentes se entendem. Olhando a
vida desde o largueiro do tempo, repassado por lugares, e lutas e
prantos, vem a existncia com a paixo compassiva, a mais calada
das paixes. Sabem que atrs de si atravessa uma boiada incauta, de
couro que no to duro para a tala da chibata, que no pode ser
atingido por tormentas, naquela barranca da travessia. que os
jovens, gentes e bois, estouram ao ver o pano vermelho desenhado
com cenas da tragdia. O estouro da boiada desembestada um
Deus nos acuda!, uma confuso que no tem arrumao. Velhos
ranzinzas no estouram, se esvaem, ficam decrpitos, vivos da
prpria vida; mas enfrentam os azares com grandeza, para que a
boiada possa seguir com sossego. Incorporam em si mesmos, e a si
mesmos, um sentido de tragdia: aquela que desperta o prazer na
compaixo e deixa o nego encafifado, com o olhar longnquo, pen-
sativo nas sombras das travessias que ho de vir. Desligam-se dos
rodeios cotidianos da juventude e, por momentos, olham o existir
com a gravidade de um cientista das coisas do mundo, gravidade de
um jequitib antigo ou de um lenhador. Este o sentido de poesia
que toma conta dum fandango quando chega a hora de uma moda
como a que se atravessa no caminho deste Ensaio. Acompanhemos
a alegoria comovente de uma criatura martirizada no calvrio como
boi de piranha:

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

TRAVESSIA DO ARAGUAIA
moda-de-viola

Dino Franco / Dcio dos Santos

Naquele estrado deserto


Uma boiada descia,
Pras bandas do Araguaia,
Pra fazer a travessia.
O capataiz era um velho
De muita sabedoria,
As ordens eram severas,
E a peonada obedecia.

O ponteiro, moo novo,


Muito desembaraado
Mas era a primeira viagem
Que fazia nesses lados.
No conhecia os tormentos
Do Araguaia afamado,
No sabia que as piranhas
Era um perigo danado.

Ao chegarem na barranca,
Disse o velho ao boiadeiro:
Derrubamos um boi ngua
Deu a ordem ao ponteiro ,
Enquanto as piranhas comem
Temos que passar ligeiro,
Toque logo este boi velho
Que vale pouco dinheiro.

Era um boi de aspa grande,


J rodo pelos anos,
O coitado no sabia
Do seu destino tirano.
Sangrando por ferroadas
No Araguaia foi entrando,
As piranhas vieram loucas
E o boi foram devorando.

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ROMILDO SANTANNA

Enquanto o pobre boi velho


Ia sendo devorado
A boiada foi nadando
E saiu do outro lado.
Naquelas verde pastagem
Tudo estava sossegado.
Disse o velho ao ponteiro:
Pode ficar descansado!

O ponteiro revoltado
Disse: Que barbaridade!
Sacrificar um boi velho
Pra qu esta crueldade?
Respondeu o boiadeiro:
Aprenda esta verdade:
Que Jesus tambm morreu
Pra salvar a humanidade!

(Dino Franco e Bi, 1972)

Cmara Cascudo, citando o Visconde de Taunay, atesta que esse


um costume que perdura e dele se tira lio. Escreve que os boiadeiros,
nos pontos de passagem infestados por to temido bicho, costu-
mam, antes de transposio de toda a boiada, tanger na gua as reses
mais fracas e magras, que sacrificam, como obrigado tributo, ao tre-
mendo apetite das piranhas. 217 O boi velho, nesta moda-de-viola,
estabelece intermediao com a figura espiritual mais sagrada de to-
das, simultaneamente visvel e invisvel, finita como ser humano e
infinita como Deus: Jesus Cristo. A vulgaridade impressionista da
expresso boi de piranha se revigora num sentido espiritualizado e
solene, expressionista, levando o nego a pensar na condio humana,
e a resignar-se diante das ordens infinitas do universo. Suscita, de
forma abrupta, o sentimento concreto e vertiginoso da morte, super-
lativamente trgica, assustadora e utilitria. O desfecho dessa moda,
numa fruio superficial e apressada, poderia conduzir a concluses
pejorativas do tipo apelao barata, cafonice, mau gosto. No
penso desta maneira. A arte popular com sua comunicao instant-
217
CASCUDO, Lus da Cmara. Dicionrio do Folclore Brasileiro, p.621.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

nea deve buscar a abstrao por meio da mxima concretude. Por


meio de exemplos muito evidentes deve alcanar um simbolismo
transcendente. Ademais, nunca nos devemos esquecer de que o que
trivial para mim pode ser uma grande novidade para outro, principal-
mente quando esse outro, como o caipira, to apartado espacial e
temporalmente de mim. No vau de um rio qualquer a humanidade
depara com uma de suas tragdias, restituindo-lhe o estigma grave
do existir.
***
razoavelmente conhecido que o referente lingstico, isto , aquilo
que poderia ser designado como a coisa em si, uma conveno
cultural e, portanto, uma entidade abstrata, no a mesma coisa real e
disponvel na natureza.218 como se algum colocasse uma figura
sobre um novo fundo. Ela adquire uma feio diversa se colocada
sob a ao de outro cenrio. Portanto, um referente nunca estvel,
depende do fundo, quer dizer, da realidade social que o contorna e em
meio qual se dispersa para ser novamente mobilizado na ao
significante do texto. Na roa, escreve Drummond, o dia um
pasto azul / que o gado reconquista.219 Neste sentido que Peter
Burke registra: cada ato de dizer uma interseco entre o dito e o
no-dito. 220 Assim, o signo boi se assemelha ao boi;
plurissignificativo quanto mais se distancia da verdade imanente de
seu prprio discurso. Por isto, sempre prefervel compreend-lo
artisticamente como arqutipo, no sentido de verdade mais extensa
possvel.221 neste sentido que procurei situar o signo boi como
referente, ou seja, dentro do horizonte cultural campesino e caipira.
Nesse mundo, sem dvida, h uma consubstanciao entre dois sig-
nos, que se reala com eloqncia em vrias modas, como no seguinte
trecho de Rolando Boldrin, prefixo do programa Som Brasil, exibido
a partir de 1981 pela Rede Globo de Televiso:

218
Este sentido, que pode ser percebido na obra de Umberto Eco, me parece
mais avanado que a acepo dada a referente por Louis Hjelmslev nos
Prolegmenos a uma Teoria da Linguagem.
219
Boitempo. In: ANDRADE, Carlos Drummond de. Boitempo (1968)
220
BURKE, Peter. A Arte da Conversao, p. 162.
221
Este assunto teorizado com profundidade no livro Fenomenologia da Percep-
o de Maurice Marleau-Ponty.

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ROMILDO SANTANNA

Que no capim mascado do meu boi


A baba sempre foi santa e purificada.
Diz que eu rumino desde menininho
Fraco e mirradinho a rao da estrada,
Vou mastigando o mundo e ruminando
E assim vou tocando essa vida marvada.

(Rolando Boldrin, Vide Vida Marvada, 1981)

O referente, no caso o boi, dito em outras palavras, vale o quanto


vale no entrelaamento de seu universo de intrpretes. E, desta vali-
dade, fluem seus sentidos simblicos e suas possibilidades de recep-
o. a partir desta ptica que deve ser relevada a ciranda de signos e
procedimentos de linguagem potica dos quais se constitui produti-
vamente a Moda Caipira.
Deixei escrito que raro no objeto deste Ensaio o surgimento de
um heri, no sentido daquele protagonista titnico que empreende
sagas hericas. O caipira criatura que parece permanecer nos batentes
da labuta pela vida. A aventura do matuto protagnico possui o tom
realista de uma desventura lenta, calcada na sua histria. Por isso
tambm como personagens so tmidos, honestos, solidrios no
ideal de companheirismo, compenetrados, amorosos, pouco falan-
tes, parece que sados de uma foto do real. Talvez a timidez de no
ostentar vantagens se transfira para a procriao de um tipo seme-
lhante a si mesmo, correlato no temperamento que faz jus reflexivo a
seu prprio esprito: o heri boi. Este heri animizado se encarrega
da evaso onrica. Transcende o nhenhenhm de mazelas habituais.
Dentro de um crculo simblico da existncia caipira, encarrega-se de
personalizar o ente acima do comum, para-real e meta-real. O homo
viator conta fbulas e sagaranas de gente simples e de barbates me-
donhos, quando preciso. Ao boi o cantador, o vaqueiro ou carreiro-
cantador prende-se por um lao, que transcende o sentido de apreender
e se aninha simbolicamente ao significado de aliana. Enlaado ao
boi, para exibir-se a trs jovens mato-grossenses, um violeiro toca:

Tinha tris mocinha na janela,


Joviliana, Clarice e Inis,
Uma delas tava me gavando:

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Paulistinha ainda surra vancis!


Cuiabanos quisero ach rim,
O meu trinta na cinta eu bambiei.
Pra mostrar minha cincia melhor,
Por capricho o mestio sortei,
Ele tinha as guampa arrevessa,
E o lao escap da cabea
E pelas duas mo eu lacei otra veiz!

(Z Carreiro e Carreirinho, As Trs Cuiabanas)

***
Muitas modas atualizam a figura mtica do barbato. Brulio do
Nascimento o interpreta como o boi bravio, rebelde aos domnios
do vaqueiro, arredio do curral, famoso pelas estripulias e finalmente
lendrio.222 Acintosos e desafiadores, os barbates parecem recusar
o qualificativo gado. Decerto, exclamou um amigo meu, so bois pro-
fanos que pem seus cornos pra fora e acima da manada. Pode-se
afirmar que na Literatura Oral-popular brasileira verifica-se um Ciclo
do Boi. Slvio Romero o denominou Romances de Vaqueiros, assinalan-
do que neles, alm da influncia ibrica, h mais influxos indgenas
que africanos [Introduo Literatura Brasileira e Histria da Literatura
BrasileiraI]; Amadeu Amaral, Romances Rsticos [Tradies Populares].
Escreve Gustavo Barroso, em Ao Som da Viola que possivelmente
este o mais tpico dos ciclos sertanejos, porque diretamente criado no
prprio meio. Embora no se furte a influncias naturais provenien-
tes das tradies das raas que se chocaram no povoamento e forma-
o da sociedade sertaneja, descreve e representa a vida dos vaqueiros
e fazendeiros, exprime os seus pensamentos e nos mostra as suas
reaes em face dos acontecimentos comuns ou extraordinrios da
terra em que habitam. Recorrendo ainda a Brulio do Nascimento,
um dos maiores investigadores da Literatura Oral-popular no mo-
mento, escreve o pesquisador da Biblioteca Nacional do Rio de Janei-
ro que a estrutura temtica desses romances equivalente quela que
caracteriza o ciclo do boi nas vrias regies do pas: a luta do boi com
As informaes a seguir foram coligidas no ensaio O Ciclo do Boi na Poesia
222

Popular, de Brulio do Nascimento. in: DIGUES JNIOR, Manuel et al,


Literatura Popular em Verso, p. 165-232.

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ROMILDO SANTANNA

os vaqueiros, estes ambicionando demonstrar sua valentia e percia


na pega do barbato, que procura fugir ao jugo, defender a liberdade,
conservar-se solta nos campos, longe dos currais; semelhantes so
as fases da vida, as estripulias, as vitrias do animal, heri das narra-
tivas, sobre vaqueiros famosos; semelhantes tambm os processos
estilsticos, em que sobressai a construo hiperblica em numerosas
passagens.
***
A projeo simblica do caboclo na figura herica do boi, na
Moda Caipira de razes, emerge numa seqncia de ttulos identifica-
dos como etnotextos. Entre eles o seguinte:

BOI CIGANO
moda-de-viola

Tio Carreiro/Peo Carreiro

Na cidade de Andradina
Com a boiada eu fui chegando,
Eu tava s com seis peo,
Oitocentos bois nis vinha tocando,
Com esse gado de raa
Naquela praa fui travessando
O pontero ia adiante
Com o berrante ia arrepicando.

No meio dessa boiada


Eu levava um boi por nome Cigano,
O mestio era valente
Por onde andava fazia dano.
Ganhei o boi de presente
Na negociada dos cuiabano,
J vinha recomendado
Pra ter cuidado com esse tirano.

O comprador desse gado


Na estao j estava esperando,
Pra faz o pagamento
Depois do embarque dos cuiabano.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Joguei os boi na mangera


E gritei pros peo: J pode ir embarcando!
Embarquemo os pantanero
E no manguero fic o Cigano.

Cheg naquela cidade


O Grande Circo Sul-africano,
Uns homes co propietrio
A respeito o boi tava comentando,
Insurt-me numa briga
Do leo feriz e o cuiabano,
Bati vinte mir na hora
E jogos por fora estava sobrando.

O circo tava lotado


E o dado momento estava chegando
Quando as fera se encontraram,
Eu vi que o mundo ia-se acabando,
Uns gritava de emoo,
E outros de medo tava chorando,
Em vinte minuto o leo
Assent no cho e fic urrando.

O leo o rei das fera,


Na selva ele o soberano, ai, ai!
Com sentimento, seu dono,
Entreg o trono
Pro meu Cigano, ai, ai!

(Tio Carreiro e Carreirinho,


Meu Carro Minha Viola, 1990)

Composta em 1959, o nome do boi que d ttulo ao texto aviolado


j evoca a aventura e o af do misterioso: o nomadismo ligado ao
povo cigano, forasteiro e aptrida, suas reunies de cantorias e danas
empinadas, sensuais, elegantes e selvagens em roda de uma fogueira,
a beleza irradiante de seus jovens e velhos de roupas rendadas e
coloridas, o erradio enigmtico de sua origem, a incompreenso de
seu cdigo de honra, decodificada pelo oculto, por selvageria e por

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ROMILDO SANTANNA

supostos danos s pessoas comuns, seu romani estranho e de dialetos


secretos, a valentia dbia, a astcia ladina de saber decifrar as encrencas
do destino. Boi Cigano, um adjetivo que atribui ao animal mestio a
idia de fascnio e suspeita, aproximao e repulsa inconscientes, sem-
pre marcadas pela linha da afetividade.
Em Boi Cigano o mestio tinha panca de valente por onde an-
dava fazia dano. Ligado ao boiadeiro-cantador que o qualifica sen-
timentalmente como o meu cigano, constituindo-se ainda na sua
prpria projeo, na dimenso sonhadora, o barbato realiza o ato
titnico de derrotar o leo sul-africano, atrao nmero um de uma
companhia circense. Os estmulos retricos articulados na narrao
fazem com que a luta inslita entre o conhecido (leo) e o desconhecido
(cigano) seja das mais dramticas: realam-se as construes de ima-
gens sensrio-emocionais muito eficientes pela plasticidade dram-
tica (eu vi que o mundo ia-se acabando) e sonoridade passional
(uns gritava de emoo e outros de medo estava chorando). O
baixo que se realiza na rabeira do poema, modulando a voz em
uma oitava acima, na escala musical, e pela reduplicao das expres-
ses interjectivas plenas de emotividade (ai, ai!) frisam a concluso
psicologicamente esperada: o sdito insubmisso entesta e derrota a
primazia do adversrio, o rei imponente, tornando-se o novo rei;
extensivamente, o pequeno (o dominado) se impe frente ao grande
(o dominador), como se estabelecesse um processo de transferncia
alegrica e sonhadora pela inverso da vicissitude do caboclo, o
oprimido, em relao ao no-eu (realidade externa) que o oprime.
Desperta tambm um clima de vangloriao ufanista, altamente
desejvel e reconciliante com o bem-estar ntimo: o nosso boi
pantaneiro derrota o Rei Leo.
Chamo ateno neste ponto para o fato de que a heroicidade do
boi, transitivamente associada ao homo viator o outro heri, o
cantador-violeiro , corporifica neste ltimo o mito de travessia o
desejo profundo da busca interior e da mudana. Ao mesmo tem-
po, o signo boi-cigano em sua notao de significados perifricos,
mas latentes, confabula com uma variante do mito da verticalidade,
da travessia, do anelo de ascenso e progresso, da busca da harmo-
nia das alturas representada pela idealizao do grandioso e do su-
blime. Em ltima anlise, como assinalariam Chevalier e

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Gheerbrant,223 simboliza o cu e sua justia, numa constatao ati-


va da fora deste smbolo no meio caboclo, dada idiossincrasia cat-
lica altamente sensvel. o pequeno, o baixo que se impe frente ao
poderoso, ante as alturas. ele que, ao derrotar o rei, a fera assassi-
na, dissipa os entraves e percalos na procura infinita de uma qui-
mera de mudana. Para tanto, nada melhor que a regenerao de um
smbolo de construo afetivamente muito forte, o boi, associado
ao que pode haver de misterioso e sonhador na figura do cigano. A
referida construo de imagens quimricas, que o caboclo deposita
numa moda-de-viola como a que foi pautada, tem sua eficcia plena
no meio circundante da cultura onde ela se insere e interage, e na
proliferao de ingredientes extratextuais, paraliterrios, dados pela
interferncia e entrelaamento com outros cdigos (entoao, pau-
sas interpretativas, inflexo de voz, por exemplo). Isto de funda-
mental relevncia no hoje por hoje da ao performtica do cantador-
violeiro, a representificar o enunciado do ldico, do sonhador, do
justiceiro que promove o remate dos fatos, no meio caipira.
***
oportuno chamar ateno para a categorizao formal das estro-
fes a que o caipira denomina baixo. Num relato sobre Poetas Caipiras,
em dado momento Cornlio Pires escreve o seguinte: para terminar
as modas cantam os caipiras o Arto ou Baixo, que sinal do fim, em
contraste com o levante, que uma quadra que o cantor canta com o
fito de chamar para si as atenes. Cita o seguinte baixo cantado
por um matuto:

No fundo do mar eu vi,


O cantar de ua sereia...
Corro os dedo na viola
As minhas corda brandeia...
A viola me conhece
Quando bulo na craveia...224

A outra denominao a esse tipo de estrofe, relatada por Pires, no


meio caipira (arto), se deve sem dvida ao alteamento das vozes, em

CHEVALIER, Jean e GHEERBRANDT., Alain. Dicionrio de Smbolos.


223

PIRES, Cornlio. Conversas do P do Fogo, p. 185-6.


224

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ROMILDO SANTANNA

contradio com a denominao mais corrente: baixo, ou seja, a


usinagem de uma atmosfera passional, como se acontecesse por
debaixo, ou viesse do fundo. Baixo/arto porque um suspiro
forte, emotivo, que se derrama em modulao lrica. Tais estrofes
ocorrem geralmente em situaes-limites do desenvolvimento narra-
tivo, sempre beira do clmax na induo dos fatos narrados. Carac-
terizam-se pelo aspecto funcional de serem estroficamente peculiares
no interior do poema, quanto ao nmero de versos, metrificao e
rtmico. O baixo sempre uma estrofe solta e, em sua poesia, caracte-
riza-se pela forte participao da funo emotiva da linguagem. Sua
melodia soa como um corte, atravs de uma semi-pausa, ascendendo
o tom musical em uma oitava acima na escala, para o acrscimo da
inflexo baixa da voz. Amadeu Amaral descreve a presena desta
estrofe de maneira um pouco diferente da que tenho constatado,
embora com a mesma fecundidade funcional, e a designa pelo nome
de volta. Escreve: como os vilancetes e outras composies antigas,
de Portugal, a moda tem, prximo do final, uma volta. A volta consta
quase sempre de um ou dois versos isolados, aos quais se segue uma
estrofe de remate, onde s vezes se repete alguma coisa da primei-
ra.225 Tal inflexo, de fundo marcadamente emocional, reala-se por
seu tnus anti-climtico, suspendendo a ao para dar lugar notao
sentimental da voz enunciadora. Ofereo outros exemplos de baixes
bastante eloqentes na escritura caipira, tal como o seguinte dstico:

Ai, eu no s mesmo instrudo, ai!


Eu poco escrevo e poco leio, ai!

(Bombardeio, moda-de-viola de Z Carreiro e Geraldo Costa),

ou noutro dstico como:

Mora em Campina Verde


No querido cho de Minas.

(Vitria de um Baluarte, moda-de-viola de Seresteiro e Vieira),

225
A Poesia da Viola. In: AMARAL, Amadeu. Ensaios e Conferncias, p. 128.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

no terceto:

Tiveram uma sina triste,


Ai, Ai, Ai!
Gerardo com as mui!

(Desastre de Ipanema, moda-de-viola de Carreirinho e Z Carreiro),

na quadra:

Os galo cantaram triste,


Ai, ai, ai, ai!
No retiro adonde eu moro,
Ai, ai, ai, ai!

(A Morte do Carreiro, moda-de-viola de Z Carreiro e Carreirinho),

O baixo como procedimento literrio tambm tem suas razes


fincadas na esttica do Romanceiro tradicional. Alm dos estribilhos
to comuns na poesia popular de antiga procedncia, escreve Mara
Cruz Garca de Enterra que sem chegar ao sculo XVI, que um
perodo de consolidao e florescimento do romance, no sculo XV
haviam aparecido outras peculiaridades do ponto de vista mtrico.
Assim, surge o gosto de acrescentar ao trmino dos romances com-
posies lricas [designadas como deshechas] que tinham uma funo
de remate e acorde final tanto do ponto de vista mtrico como em
relao ao contedo ou assunto. Cita a pesquisadora um passo do
Romance de don Diego de Acua num pliego suelto (cordel ou folha
volante) do sculo XVI:

Alterado el pensamiento de exercicio enamorado


A las puertas del dolor el pensamiento ha llegado
...............................................................................
No digo su merecer porque est muy publicado;
Dir, triste, mi ventura que en m su nombre ha trocado.

Lloran mis ojos


Mi corazn
Con mucha razn.226

GARCA DE ENTERRA, Mara Cruz. Romancero Viejo, p. 15.


226

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ROMILDO SANTANNA

***
A moda Boi Cigano, ao ensejar sua anlise, puxa outra caracterstica
fundamental no primitivismo da Moda Caipira de razes. Ao trazer o
auditrio para uma ambincia interativa, provoca impactos e resso-
nncias altamente significativos na perspectiva sensrio-emocional.
Instaura-se como um acontecimento incorporado realidade, objeto
de comentrios, assunto de proseios, mudanas de comportamento
e o ludismo devaneante do sonhar acordado. Isto implica considerar
o valor significativo do intervalo entre uma ocorrncia simblica de
uma mensagem e outra. Os efeitos de sentido duma moda no
interferem apenas na atmosfera presente. Ela se perpetua no tempo e
no espao, desdobrando-se no correr dos dias. Num rito de passa-
gem do discurso para a realidade situada e datada, a Moda Caipira de
razes pode se transformar sucessivamente em novos discursos. Tal-
vez porque o esprito societrio no esteja inteiramente saciado pela
mensagem que desencadeara o sonho e, naturalmente, requeira o
aparecimento de novas verses e escrituras que sero mais uma vez
incorporadas pelo real.
bem provvel que a notao que acabo de fazer explique o
surgimento de tantas respostas e desdobramentos de uma moda
original. Elas se do de trs maneiras: a) continuao pura e simples do
enredo; b) continuao com mudana de perspectivas ao retomar o as-
sunto; c) rplica da voz enunciadora. Tal remisso ocorreu, por exemplo,
com a moda-de-viola Ferreirinha, de Carreirinho, lanada em 1950, em
disco de 78rpm de estria da dupla Z Carreiro e Carreirinho (o outro
lado do mesmo disco era o cururu de tremendo sucesso Canoeiro). Logo
surgiram os romances ulteriores Irmo de Ferreirinha, de Teddy Vieira e
Carreirinho, Companheiro de Ferreirinha, de Germano Galdino e Pinheirinho
e A Alma do Ferreirinha, de Zilo e Jeca Mineiro. Esses prolongamentos,
subtextos das narrativas atuais, se integram num todo, agregando-se de
forma folhetinesca ao contedo precursor. Contam com os pressupos-
tos recortes semnticos e conhecimentos do passado anterior mensa-
gem, j assimilados como verdicos, contidos no romance precedente.
Outra continuao notvel e auspiciosa Rei do Caf, de Teddy Vieira e
Carreirinho, lanado em 1958 por Liu e Lu, em resposta mensagem
impressionante de Rei do Gado, de Teddy Vieira, lanado no mesmo ano
por Tio Carreiro e Pardinho. Preto Fugido, de Z Carreiro, se prolonga em

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Preto Inocente, moda-de-viola de Teddy Vieira, Campo e Bento Palmiro.


Boi Soberano, de Carreirinho, Isaltino Gonalves de Paula e Pedro Lopes
de Oliveira, composto em meados de 1950, se desdobra nas modas-de-
viola Retrato do Soberano (1965), de Pirassununga (Dino Franco [Osvaldo
Franco, Paranapanema-SP, 1936-]) e Joo Caboclo e O Chifre do Boi Sobe-
rano (1979), de Cacique, Geraldo Sampaio e Jos Rosa, conforme vere-
mos logo adiante; a moda-de-viola Corumb (O Cachorro Corumb) com-
posta por Sulino (Francisco Gottardi, Penpolis-SP, 1924-) e Teddy Vieira
e com a qual Sulino e Marrueiro principiavam a carreira em disco, em
1949, tem sua congnere em A Volta do Corumb, de Sulino e Ado Benatti
(Taquaritinga-SP, 1908-1962), anos mais tarde; a famosa toada Chico Mi-
neiro, de Tonico e Francisco Ribeiro, lanada em 1945 por Tonico e Tinoco,
tem sua mensagem recuperada logo em seguida noutra toada: Capelinha
de Chico Mineiro, de Teddy Vieira e Bigu. Algumas modas so remisses
inalteradas umas das outras, como se observa em Marreta (1960) e Respos-
ta da Marreta (1964), modas autobiogrficas escritas e interpretadas por
Vieira e Vieirinha. Observemos fragmentos dessas duas modas-de-viola
realando suas equivalncias e superposies intertextuais:

MARRETA
moda-de-viola

Vieira / Vieirinha

Ai, l no bairro adonde eu moro,


Ansim o pessoar suspeita:
Ai, eu s um inventor de moda,
Eu pego s dzia, por empreita,
Eu sento na bera da mesa,
Eu tiro o bloque da gaveta.

Ai, no prazo de meia hora,


Eu tenho quatro moda feita,
Ai, gente, que eu passo na idia,
E copeio na cardeneta,
Ai, moda de verso dobrado,
Conforme vem na receita...

(Vieira e Vieirinha, Peo de Boiadeiro, 1973)

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ROMILDO SANTANNA

RESPOSTA DA MARRETA
moda-de-viola

Vieira / Vieirinha

Ai, foi dispois que nis gravemo


Aquela moda da Marreta,
Eu fui-se embora pra Goiis,
Eu levei minha cardeneta,
No caminho ieu fui leno,
E achei o resto da receita,
Dois verso que eu no gravei,
Fic guardado na gaveta.

Tornei vort pra So Paulo,


Pra cantar moda bem feita!
Ai, o meu peito um transmissor,
E minha garganta estreita,
No brao desta viola
Ieu no agento desfeita,
Ai, campeo pra me quebr,
Mas s se vim de otro planeta...

(Vieira e Vieirinha. Os Catireiros, 1964)

De acordo com Vieira, depois da gravao de Marreta, juntaram


um bom dinheiro e adquiriram umas terras em Gois. Depois de
tudo pago, verificaram que se tratava de trambique, as terras eram
ilegais e perderam tudo. Mas no meteram a viola no saco. Rebusca-
ram na cardeneta dois versos dobrados que no couberam em
Marreta, quer dizer, intertextualizaram o passado, reiniciando a car-
reira de modistas. Voltaram para So Paulo para a gravao de mais
um disco.
Se nestas modas h claras ramificaes com a histria biogrfica
dos dois irmos, por outro lado, os desdobramentos ou respostas
ligam-se radicalmente tradio dos torneios poticos muito
freqentes no meio caipira de antigamente, que consistiam em se
dar um mote para os violeiros principiarem o desafio da improvisa-
o. Comuns nos interiores do Estado de So Paulo, Minas Gerais,

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Mato Grosso e Gois, tive oportunidade de presenciar dois desses


torneios ou desafios entre os cururueiros nas cidades de Piracicaba e
Polni-SP. Em ambas as funes, revezando pares de duplas de
violeiros, a cantoria durou vrias horas da noite. Desses desafios
emergem os folgazes (violeiros reconhecidos como bambas no f-
lego, na afinao da voz, na capacidade interpretativa, na qualidade e
quantidade do repertrio e no talento como instrumentistas) e as
modas de campeo e de abat campeo anteriormente enfocadas.
Um tipo muito especial de desdobramento de uma moda na
outra pelo processo intertextual da resposta vamos encontrar na
relao entre os cururus Canoeiro, este composto por Z Carreiro e
Alocin em 1950, e Caador, realizado por Carreirinho e Tio Carreiro
em 1968. No preciso sublinhar que a caa e a pesca situam-se no
mesmo campo de referenciais caipiras. Ligam-se soturnidade da
me indgena, sendo um tema recorrente. Este um dos princi-
pais lazeres do caboclo e um tema recorrente em vrias modas de
grande sucesso. A caa e a pesca como esporte peregrino, toda
caipirada da roa sabe disso, simboliza a conquista, a superao do
indivduo, em nveis sensoriais e intuitivos. Reconcilia o caboclo
com o pathos (o ser humano consigo mesmo) tribal. Por isto,
bem sabido que, mesmo usando equipagens e artifcios oriundos
da razo e artesania civilizada, o enfrentamento se d numa
espcie de mobilizao da zona animal do ser humano. Portanto,
o gozo da felicidade do caador mediante a caa se reveste de um
discernimento irracional, instintivo. Seu alcance de viso rebaixa-
do sintonia plena dos predicados no-humanos. E, s assim, de
igual para igual com a condio selvagem do ser, se trava o embate.
Ensina a antropologia cultural que, no por outras explicaes,
nos ritos de caadores, o humano reproduz trejeitos de animal, na
tentativa de equiparar-se a ele.
Nos fragmentos a seguir, de modas que se interseccionam, re-
petem-se na segunda as mesmas correlaes formais do verso e
meio ou sexteto, na redondilha maior com rimas pares. Repete-se o
desenvolvimento temtico pertencente ao mesmo campo semnti-
co e, principalmente, a melodia de Caador decalcada quase que
inteiramente sobre as entrelinhas da cano original (Canoeiro).
Vejamo-las:

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ROMILDO SANTANNA

CANOEIRO
cururu

Z Carreiro / Alocin

O rio tava enchendo muito


Fui encostando a canoa,
Eu entrei numa vazante,
Fui sa notra lagoa.
Fui mexendo aquele lodo:
Ai, ai, onde que os pintado amoa...

(Z Carreiro e Carreirinho,
Os Maiores Violeiros do Brasil, 1970)

CAADOR
cururu

Tio Carreiro / Carreirinho

A anta se apincha ngua,


Na correnteza, no pra.
Vai coa cabea de fora
E a dois-cano j dispara.
Ai, ai, a bicha prancheia ngua
s fisg ela na vara.

(Tio Carreiro e Pardinho,


Encantos da Natureza, 1968)

***
Feitas estas observaes incidentais, retornemos s sagas dos he-
ris-bois na moda-de-viola Boi Cigano II, de Geraldinho e Jesus Belmiro:

BOI CIGANO II
moda-de-viola

Geraldinho/Jesus Belmiro

Entre grandes companhia


De grandes Circo Rodeio,

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

O Capito Asa Branca


Se destaca nesse meio,
Exibindo o Boi Cigano
Nos seus pesados torneio,
Muitos pees de nome e glria
Foi em busca de vitria
E acab fazendo feio.

A atrao da companhia
Permanece h muitos anos,
A platia se arrepia
Quando entra o Boi Cigano,
Pra montar e no cair, ai,
No conheo um ser humano,
Derrot em Andradina,
A grande fera assassina,
O leo sul-africano.

Um peo compareceu
Por anncio dos jornais,
Por sinal tinha seu nome
Entre os bons profissionais,
O Fumaa e Montaria...
J ganh prmio demais,
Mas no lombo do Cigano
Conheceu o desengano
E acab o seu cartaiz, ai.

Z Corisco, peo mineiro,


Veio com toda certeza,
Por ter ele derrotado
A tal mula Fortaleza,
A platia lhe aplaudia,
O tombo foi de surpresa,
Por Cigano derrotado
Acab sendo vaiado
No valeu sua destreza.

O Capito Asa Branca


Percorre o Brasil inteiro,

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ROMILDO SANTANNA

Desafiando a peonada
Pagando prmio em dinheiro.
A derrota do Cigano
Eu tenho que ver primeiro,
Se um dia acontecer
E o peo aparecer
Ser o campeo brasileiro.

(Tio Carreiro e Pardinho,


Modas de Viola Classe A, v. 4, 1984)

No espao significativo do intervalo intertextualizando a moda


original e sua seqncia, e partindo-se do princpio de que se passa-
ram alguns anos entre um romance e outro, notam-se:
a) Boi Cigano passou a ser propriedade do Capito Asa Branca,
dono de um Circo-rodeio;
b) A voz-enunciadora outra, porm carregada do mesmo senso
afetivo contido na moda-de-viola original;
c) Na segunda estrofe, a mensagem recupera seu passado imedi-
ato na cidade de Andradina e qualifica o leo sul-africano como
a grande fera assassina;
d) Enumera casos realisticamente motivados (lugares, nomes,
referncias conhecidas) de pees derrotados pelo heri cabo-
clo, o Boi Cigano.
Atravs das respostas, parece que o poeta capta os significados
flutuantes em meio a seu pblico, e os converte em nova e arejada
poesia. Num processo de confluncia, a escritura nmero dois renas-
ce das entrelinhas da escritura anterior, numa espcie de fico do
segundo grau. Fazendo parte do repertrio das imaginaes curtidas
com intensidade, o primeiro texto no distingue realidade e transpo-
sio; os fatos reportados por ele j esto fincados como verdicos no
ambiente comunitrio.
***
Observemos mais duas modas que privilegiam a figura herica
do boi. Em Boi Veludo, de Teddy Vieira e Jesus Belmiro, lanada em
1959, repetem-se praticamente as mesmas senhas simblicas e fr-
mulas discursivas de Boi Cigano II. Em Boi Sete de Ouro, de Teddy

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Vieira e Arlindo Rosa, cujo nome vincula-se ao jogo da sorte no


carteado do baralho, junto s peripcias hericas do barbato, os au-
tores agregam a disputa de dois macumbeiros, para gerar a ao
comprobatria do dito proverbial de que o feitio vira contra o
feiticeiro:

BOI VELUDO
moda-de-viola

Lourival dos Santos / Jesus Belmiro

Num jornal que sempre leio


Procurando distrao,
Eu encontrei bem no meio
Uma grande atrao.
Ia t um grande torneio,
L na minha regio.
Eu que sempre tive anseio,
Num duelo de ao,
Fui assistir um rodeio
Por nome de Furaco,
Eu avistei bem no meio
Um boi da cor de carvo,
O seu nome Veludo,
Esse boi est com tudo,
No deixa nada pro peo.

Peo que de longe veio,


Com fama e tradio,
Foi dizendo, sem receio:
J montei at no co!
Nunca precisei de freio,
Pra mont em bicho pago,
No vou precisar de reio,
Pra quebr o boi campeo,
Hoje v dar um passeio
No lombo do Veludo.
O brinquedo fic feio,
Bateu coa cara no cho.
O pobre peo tremendo

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ROMILDO SANTANNA

De medo saiu correndo


E troc de profisso.

Peo que no fizer feio,


Vai ganhar um dinheiro.
Est crescendo o rateio,
Dinhero tem de monto.
O lombo do boi cheio,
Mas liso igual sabo,
Pra quebr o seu galeio
Duvido que tenha peo,
Nesta viola que eu ponteio,
Vai aqui minha opinio:
Boi Veludo um esteio,
Garantia do patro,
O Boi Veludo um craque
O amigo Joo Gargalaque
Tem um tesouro na mo.

(Tio Carreiro e Pardinho,


Modas de Viola Classe A, v.4, 1984)

BOI SETE DE OURO


moda-de-viola

Teddy Vieira / Arlindo Rosa

Circo Rodeio Ipiranga


Sua fama vai avante,
Faixa Preta o propietrio,
Tem um boi que lhe garante.
O seu nome Sete dOuro,
Seus pulos vale diamante.
So Paulo, Gois e Minas
Feiz proeza importante!

Parece que o tar boi


Tem sabo em cima do couro,
Faixa Preta fala grosso,

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

O bicho vale um tesouro.


Derrub seiscentos peo,
No contando com os calouro.
Dexo da vida de circo,
Se quebrarem o Sete Ouro!

Certo dia um feiticero


Feiz um trabaio pesado,
Lev um peo no rodeio,
Cem conto foi apostado.
Sete Ouro no pul,
Dex o povo admirado!
Faixa Preta descobriu
Que o boi foi enfeitiado.

Faixa Preta, na revanche,


Contrat um macumbero,
Dobr a aposta com o peo
Pra duzentos mir cruzero.
E foi no primero pulo,
O peo bej o picadero.
Nesse dia o feitio
Vir contra o feiticero!

Faixa Preta se orgulha


Das faanha que o boi feiz,
Quem tent munt no bicho
Nunca mais fica fregueis.
Pros peo da minha terra
Lano um desafio corteiz:
Pra quebr meu Sete Ouro
Precisa nasc outra veiz.

(Tio Carreiro e Pardinho,


Modas de Viola Classe A, v. 3, 1981)

Mais uma vez as aes hericas do boi so amparadas por indcios


de realidade, pelas citaes de locais, referncias conhecidas ou notcias
de jornais, que estabelecem um cunho verdico aos acontecimentos.
Como comum nas sagas hericas clssicas, o destino do heri est

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ROMILDO SANTANNA

submetido s foras sobrenaturais. Em Boi Sete de Ouro isto clara-


mente ocorre. O proceder do barbato intermediado pelas foras
sobrenaturais de um feiticeiro que lhe coloca um encosto (alma de
outro mundo que no se desgruda dele), e de um macumbeiro que o
livra dos espritos. Transpondo para a vivncia concreta do caipira,
a simbologia dessa moda traz baila a assertiva de que o destino das
criaturas se coloca nas mos do alm, este visto como uma parte
sombreada da realidade cotidiana, como verificamos em pginas pre-
cedentes.
***
Na simbologia herica do boi, a moda emblemtica e mais signi-
ficativa , sem dvida, Boi Soberano, de Carreirinho, Isaltino Gonal-
ves de Paula e Pedro Lopes de Oliveira. At porque enquadra-se entre
as modas-de-viola mais regravadas e cantadas de todos os tempos,
segundo depoimentos de diretores de gravadoras, autores, intrpre-
tes e programadores de rdio. Vejamo-la:

BOI SOBERANO
moda-de-viola

Carreirinho / Isaltino Gonalves


de Paula / Pedro Lopes de Oliveira

Me alembro e tenho saudade,


Do tempo que vai ficando,
Do tempo de boiadero,
Que eu vivia viajando.
Eu nunca tinha tristeza
Vivia sempre cantando,
Ms a ms cortando estrada
No meu cavalo ruano.

Sempre lidando com gado,


Desde a idade de quinze ano,
No me esqueo de um transporte,
Seiscentos boi cuiabano,
No meio tinha um boi preto
Por nome de Soberano.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Na hora da despedida
O fazendero foi falando:
Cuidado com esse boi
Que nas guampa leviano!
Este boi criminoso,
J me fez diversos dano!
Toquemo pelas estrada
Naquilo sempre pensano.

Na cidade de Barretos,
Na hora que eu foi chegando,
A boiada estorou, ai!
S via gente gritando!
Foi mesmo uma tirania
Na frente ia o Soberano!

O comero da cidade
As porta foram fechando,
E na rua tinha um menino,
Decerto estava brincando.
Quando ele viu que morria
De susto foi desmaiando
Coitadinho debru
Na frente do Soberano.
O Soberano par, ai!
Em cima fic bufando,
Rebatendo com o chifre,
Os boi que vinha passando!
Naquilo o pai da criana
De longe vinha gritando:

Se esse boi mat meu filho,


Eu mato quem vai tocando,
E quando viu seu filho vivo
E o boi por ele velando.
Caiu de joelho por terra
E para Deus foi implorando:
Sarvai, meu anjo-da-guarda,
Deste momento tirano!

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ROMILDO SANTANNA

Quando pass a boiada,


O boi foi se arretirando,
Veio o pai dessa criana,
Me compr o Soberano.
Esse boi sarv meu filho
Ningum mata o Soberano!

(Z Carreiro e Carreirinho, Canoeiro, 1978)

Composta pela sucesso de quatro oitavas intercaladas por qua-


tro sextetos, em versos brancos mpares revezados por rimas
assonantadas nas linhas pares (monorrimia ano, ando), na
metrificao tpica da redondilha maior, Boi Soberano apresenta ainda
outra caracterstica peculiar na estrofao caipira: cada oitava se biparte
em duas quadras, na cesura imposta pela melodia e pela disposio
em blocos sintticos-semnticos, tpica formatao do verso dobrado (4
+ 4), como diz o matuto. Deste modo, a letra se realiza pelo
revezamento estrfico do verso dobrado e verso e meio. A voz enunciadora
outra vez de um vaqueiro, o qual narra a histria e cede voz a outros
personagens em discurso direto. A narrao marcada por ndices de
realidade e indcios do cotidiano (a cidade de Barretos, o grande Fri-
gorfico Anglo que l existe), por estrutura discursiva caracteristica-
mente tensa, no sentido de prender a ateno do ouvinte para o
futuro imediato da mensagem, ou o desfecho do causo, e marcas
estilsticas de afetividade, pela insero de elementos que tonificam a
funo emotiva da linguagem. Sua estrutura lrico-narrativa, pode-se
dizer, decalque do tradicional ngulo primrio de narrao: era-se
uma vez, em tal lugar..., estabelecendo um esboo de dilogo entre
o narrador e ouvinte. Situa-se o cantador-violeiro no tempo presente,
e reporta-se a um causo verdico vivido por ele, no passado. Com res-
peitabilidade de um modista que conta o que se passou consigo, suas
palavras so abonadoras dos acontecimentos. Esse passado se
representifica na teatralidade insubmissa dos procedimentos lrico-
narrativos e, extraliterariamente, na teatralidade do desempenho pe-
los intrpretes e sua interao com o pblico. O sentido de satisfao
pelo remoamento do que passou justifica-se em seu onirismo por
expresses to habituais como ah, no meu tempo, como era bem
melhor! uma espcie de exerccio transfigurador do passado dado,

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de um lado, pela reabilitao das maravilhas e, de outro, pelo esqueci-


mento dos transtornos e desgraas.
Em atmosfera de plangentes recordaes (me alembro e tenho sau-
dade...), o que h de excepcional na formulao potica de Boi Soberano
a passagem delicada e, bem-dizer, imperceptvel dos atributos se-
mnticos do signo boi, exatamente na zona central do tempo da
narrao (entre 4 e 5 estrofes), deslizando de qualificativos ligados
intrepidez e denodo, como fera criminosa que nas guampas [chifres]
leviana, boi preto ameaador que j fez diversos danos, para um
sentido animizado e edificante, correlato acepo afetiva de boi ami-
go, mais humano que animal. O barbato valente para o vaqueiro,
tem fama de bandido, como questo de sua prpria honra. Pode ser
anjo-da-guarda, na circunstncia de salvar uma criana. e h esta
probabilidade boi surpreendente, que faz o que lhe vem da lua ou
lhe cai na veneta. Assim, o heri boi desta poesia-cano difere do boi heri
nas modas anteriores, pois que naquelas as atuaes eram como os
animais propriamente ditos. Havia, aps, um processo de desloca-
mento psicolgico para o correlato humanizado; em Boi Soberano, as
aes do protagonista so de gente; ele recobra a conscincia, a con-
quista do livre-arbtrio, exerceu o poder da liberdade de escolha. No
momento crucial o que foi, e isto que o credencia a no ser
abatido como bicho. O ato herico, super-herico, salvar uma criana
de ser pisoteada pelo estouro da boiada, ficar velando um menino
desmaiado, rebatendo com os chifres a turba de gado desembestado
e ensandecido. Transferindo uma poro de seus atributos ao outro
heri, o violeiro-cantador e ao mesmo tempo seu boiadeiro, Boi Soberano,
no suspense institudo pelo desfibrar narrativo, credencia-se como o
portador de uma aliana com Deus e os santos, como se suas aes
inexplicveis ou surpreendentes fossem resultado de uma interveno
do alm. O cipoal de situaes interpostas converge na existncia cabo-
cla para a concretizao de um mundo feito de palavras, em seu halo do
possvel. H, neste sentido, um trnsito de atributos que se delineiam,
paulatinamente, no feixe de signos enunciados. Soberano no vinha
com boas recomendaes de seu antigo dono: j lhe havia feito diver-
sos danos. Era realmente um boi de lua, para quem no sabia entend-
lo, um barbato incorrigvel.
Se atinarmos para a referncia humanizada nas sagaranas entre o

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ROMILDO SANTANNA

homem e o boi, prtico deste captulo, o passado de Soberano tingi-


do no esprito do auditrio por marcas de freges e arruaas. Decerto,
por ser um boi diferente, destacado da sua condio genrica de gado
(animal sem alma, para o comrcio), no fora compreendido como
indivduo comum exposto aos humores da vida, ou como um heri
latente. Mas em certo passo da moda, o boi e o nome se olham no
espelho, e confluem na psicologia do ouvinte. Essa configurao do
passado importante no enredo, porque colabora para o fator de
estranhamento e surpresa. Ademais, fortalece a idia de que o heri emerge
nas situaes propcias, e que efetivamente requerem a ao herica. No
demais, nas ocasies comuns, agem de maneira comum, falvel, como
qualquer criatura, em situaes ordinrias do existir. Isto de funda-
mental importncia para a eficcia potica de Boi Soberano porque exalta,
por um lado, sua condio de igual entre os demais, sem ostentar
diferenas e, ao mesmo tempo, diferente, quando se faz necessrio. Afi-
nal, Soberano reabilita seu nome de rei (o rei bonzinho dos contos-de-
fadas). O protagonista age como por uma casualidade inexplicvel e
inteiramente humana, determinada por um desses atalhos de compor-
tamento que ningum explica. Que nem gente, repito. Esta animizao
do heri boi se enfatiza na seguinte passagem:

Quando pass a boiada,


O boi foi se arretirando...,

ou seja, terminada a faanha, recua, humilde, vicissitude ordinria


da criatura comum, mas coroada em glrias. A empatia com Sobera-
no se d pela forte simbologia antropolgica de seu gesto, sacramentada
pela identificao cultural. Trata-se do heri renunciador de homenagens,
ou seja, aquele que, renunciando a ddiva pessoal, almeja a recriao
de um mundo melhor, centrado no coletivo, em bases comunitrias,
sob a gide da justia e paz social.227 o momento crucial, que acen-
tua a soberania e majestade do protagonista.
Quero chamar ateno para os efeitos de identidade que essa moda
exerce no meio campons e caipira. Heri pode ser o indivduo trivial,
cotidiano, e no o inaudito idealizado nas fbulas fantsticas e ma-

227
O tema enfocado por Roberto DaMatta, em Carnavais, Malandros e Heris,
p. 207.

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ravilhosas. Boi Soberano traz, atravs da criatura que se fez herica, a


realidade possvel para o terreno das situaes concretas, palpveis.
Neste mbito aproximativo, o camarada se v tambm refletido em
suas exploses de comportamento, para o bem e para o mal. Apro-
veito, nesta etapa, para enfatizar uma caracterstica da Moda Caipira
como um todo: o maravilhoso, o milagroso, o descomunal, o oculto
sobrevivem quando postos em situao de eqidistncia e equilbrio
entre fantasia e realidade, agregando-se a esta como concretizao do
possvel. Surge desse feitio o sentido de sublimao de Soberano, no
qual emerge poder de aproximar o finito do infinito, o humano do
celestial, sem intermediaes que ultrapassem o nvel das aes corri-
queiras, ainda que surpreendentes. Configurado por ndices semnti-
cos que o animizam, a sagarana de Boi Soberano une em si os predicados
da bravura, da astcia, da fora fsica, da veneta, da religiosidade e
da humildade, cabendo-lhe at a primazia de sujeitar-se intercesso
divina pelos milagres. Transposta para situaes virtuais da existncia
corriqueira, a mensagem funciona como lio de vida e persuaso, to
comum na moral romntica, convidando ao embarque nas asas do
imaginrio, da aventura, da surpresa e do mistrio.
Tenho chamado ateno para o processo de transferncia de atri-
butos do boi heri e heri boi para a imagem do violeiro-cantador ou
heri-cantador. Este desdobramento se exemplifica na congnere de
Boi Soberano, a moda-de-viola Retrato de Soberano, realizada em 1965
por Dino Franco (que tambm assinava Pirassununga) e Joo Cabo-
clo, e gravado por Junqueira (outro pseudnimo de Dino Franco) e
Juquinha (Jos Duarte da Costa), pelo selo Califrnia:

RETRATO DO SOBERANO
moda-de-viola

Dino Franco / Joo Caboclo

No brao desta viola


Quero contar quem eu sou,
No meu tempo de menino
Este causo se passou,
Fiquei ciente da histria
Porque meu pai me contou,

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O velhinho foi falando,


Com a voz quase apagando,
De seus olhos marejando,
Duas lgrima rolou.

Meu filho, nunca duvide


Do poder do criador!
O retrato de um boi preto
Nesse hora me mostrou:
Este boi o Soberano
Que um dia te sarvou,
No me sai mais do sentido
Quando eu vi voc perdido
Na hora fiz um pedido
E o milagre Deus mandou.

Na cidade de Barretos
Muita gente presenciou
O passar de uma boiada
Com destino ao matador,
Num repique do berrante
A boiada estourou,
Neste momento tirano
Voc estava brincando,
Quando o Boi Soberano
Na sua frente parou!

Um grito dos boiadeiro


De muito longe escutou,
A rua cobriu de poera
Quando a boiada passou,
Quem assistiu a passagem
De emoo at chorou,
Este boi te defendia
Com tamanha valentia,
Que at chorei de alegria
E o povo se admirou!

Este causo do passado


Assim meu pai me contou.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Do milagre acontecido
Eu fiquei conhecedor.
Fui crescendo e fiquei moo
Hoje eu sou um cantador.
Vou seguindo o meu destino
E por um milagre divino
Eu sou aquele menino
Que o Soberano sarvou!

(Pedro Bento e Z da Estrada, 1968)

Como no romantismo, o poeta na Moda Caipira de razes o


vate, aquele que l o augrio dos horizontes, v antes, e detm o
estro de ser o poeta: o engenho potico, a inspirao, a imaginao
criativa e os dotes do improviso, como um loquaz artfice da palavra.
Possui ainda a capacidade de filtrar a tudo, fazendo bonito no pagode
por seus atributos de cante-autor e instrumentista. o heri-cantador.
Se Boi Soberano simboliza uma aliana do sobrenatural e o humano,
materializando-se como o ente atravs do qual se realiza uma inter-
cesso da providncia divina aqui na terra, o ser ungido pela sina de
ser herico o prprio cantador, o que foi ungido pelo milagre. Isto
fica claro em Retrato do Soberano: o cantador um cantador em decor-
rncia de uma intercesso, por efeito dessa partilha com o sobre-
humano. Esse detalhe de aliana com o sagrado, de quem nasceu para isto,
de quem possui o dom que fora revelado transmite o atributo radical da
feio e funo excelsa do cantador na Moda Caipira de razes:

Fui crescendo e fiquei moo


Hoje eu sou um cantador.
Vou seguindo o meu destino
E por um milagre divino
Eu sou aquele menino
Que o Soberano salvou!

E, neste sentido, o advrbio hoje, como se fosse uma recolha do


pretrito, comporta a significao de em conseqncia de.
Em Retrato do Soberano, a viagem teatralizada da vida retroage
vvida duas vezes no tempo. Na primeira, retrocede ao passado

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textualizado na moda original. A um outrora que ocorreu noutro


passado (me alembro e tenho saudade... dos tempos de boiadeiro
que eu vivia viajando... Boi Soberano). Na segunda, estabelecendo
um campo intertextual, recua ao presente desde o qual aquele espao
repassado, enfocado num outro hoje em que o modista se pe a cantar.
H, no concorde ao tempo, uma transubstanciao lrica. Cria-se o
instante a partir do qual, no mundo da fico o tempo se reedifica,
emerge o menino, protagonista, noutro presente, de Retrato do Sobe-
rano. Esta a cronologia em que se aninha o mito, e que propicia ao
contedo da arte uma temporalidade que sobrepassa os tempos.
Ento, como no Quixote (Parte II, 1615), o personagem desliga-se
das pginas da literatura cavalheiresca e de sua prpria literatura (Parte
I, 1605), as quais, por sua vez, desprendem-se da tradio. Realiza,
como observei, uma fico do segundo grau: um cantador conta um
romance em cujas pginas o pai e seu filho so personagens (Boi
Soberano); numa segunda dimenso, um cantador o filho agora
velho conta um romance que lhe foi contado pelo pai, deixando-o,
agora bem velho e em vrios momentos, que ele assuma a elocuo
em discurso direto, por meio de sua prpria voz. Assim, como
comum no primitivismo da Moda Caipira, as linhas imaginrias se
sobrepem, no cipoal vivo dos textos que se entrecruzam e se emara-
nham. Como acontece na Literatura Medieval peninsular, o leitor
nunca se v na atmosfera de lenda. Tudo parece muito real e certifica-
do, mesmo que o lendrio esteja de permeio. Em Retrato do Soberano
a necessidade e o libi do verismo se do por uma fotografia (o mais
icnico indcio do real), o retrato que confirma documentalmente o
ocorrido e lhe atesta a veracidade. De modo figurativo eu afirmaria: o
entendimento profundo do processo imaginativo-potico dessa es-
critura se revela como um retrato, uma fotografia, a tilintar procedi-
mentos literrios essenciais na Moda Caipira. Neles se mobilizam
vnculos da seriao de pai para filho, que trazem o antepassado ima-
ginrio, as energias da ancestralidade, para o presente sonhado, clcio
fortificante de um caro sensacional: as asas da oralidade.

No brao desta viola


Quero contar quem eu sou,
No meu tempo de menino
Este causo se passou,

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Fiquei ciente da histria


Porque meu pai me contou.
O velhinho foi falando,
Com a voz quase apagando,
De seus olhos marejando,
Duas lgrima rolou.

O tema do Soberano e a criana salva por milagre se desdobram,


desta vez enfatizando a idia de que, alm da relao com o sobrena-
tural, cada pedao fsico do boi revive como uma espcie de fetiche do
cantador-boiadeiro. Observemos uma estrofe da seqncia de dci-
mas de O Chifre do Boi Soberano, gravado por Cacique e Paj em 1979:

O CHIFRE DO BOI SOBERANO


moda-de-viola

Cacique / Geraldo Sampaio / Jos Rosa

O Soberano morreu
Do couro foi feito um lao
Que at hoje no quebrou.
Do chifre, este berrante,
O meu pai quem fabricou.
Recebi como herana
E guardo como lembrana,
Eu sou aquela criana
Que o Soberano salvou.

(Cacique e Paj, Os ndios e a Viola, 1979)

Apesar dos focos que consolidam as diversidades regionais, a


viola moda em todos os rinces do pas. No peito do cantador
(reduto privilegiado do sentimento), remoa e reedifica a gesta de um
povo. A moda viola, no entrelaamento de argutos e sensveis
violeiros. Cantador e boiadeiro se unem no diapaso da similitude e
recorrncia mtua. O vaqueiro, no fio rijo do cip, laa o boi, como
quem vai atrs do mpeto elementar, da maravilha instintiva, apren-
dendo e remoando lies, na superao do que no se ensina na
escola, mas que se adquire na vitalidade das tradies. Transforma

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isto em cnticos de cantorias. Termino o captulo citando uma profis-


so de f, num trecho de desafio dos cantadores nordestinos Ivanildo
Vilanova e Severino Ferreira, a dimensionar a arte do violeiro e sua
viola num frmito guerreiro e de bravuras:

(Ivanildo Vilanova)
Eu acho que a minha arte
Tem muito a ver com cangao,
Minha viola no brao
Me leva por toda parte.
No preciso bacamarte,
Nem punhal e nem pistola,
Porque quando o verso rola
Eu j veno o companheiro.
Eu tambm sou cangaceiro,
Minha arma a viola.

(A Arte da Cantoria, v.4, Cangao, 1989)

Aqu me pongo a cantar, al comps de la vigela...

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III MODA CAIPIRA


E REFLEXES SOBRE
O HOJE EM DIA

9. MODA CAIPIRA E CONTEXTO SOCIAL

No intrito desejo mencionar trechos de uma conversa com Alton


Estulano Vieira (1965-), filho de Vieira, da dupla Vieira e Vieirinha.
Alton violeiro e trabalha com o pai na lojinha Musicais Vieira, em
So Jos do Rio Preto-SP. Ali comercializam violas, violes e guitar-
ras eltricas, alm de encordoamentos e acessrios midos. A fama
da loja, ligada ao Rei dos Catireiros, faz com que de dez instrumentos
negociados, oito sejam violas caipiras. A loja e uns direitos autorais
mantm remediadamente a famlia. Alton, senhor de uns acordes de
gosto antigo, e orgulhoso de ter sado como o pai, d aulas de viola.
Atende adolescentes e estudantes universitrios. Interpreta o signifi-
cado dessa procura e entende que tocar de viola, hoje em dia, d status.
Imprime ao aprendiz de violeiro certa distino, um halo de compe-
netrao e probidade. Espalha ares, ainda que para a carcia subjetiva,
do adorvel pastor de uma sabena de cultura brasileira.
Em certa passagem, Alton Vieira, que em 1996 gravou um CD
em dupla com o pai, fazendo substituio segunda voz do tio
Vieirinha, e naturalmente tomado pelo efeito dessa emoo, con-
fessou:

A viola representa alegria e tristeza ao mesmo tem-


po. Alegria por eu ter conseguido aprender a toc-la, a

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viver no meio dela, e meu pai ter conseguido criar a gente


atravs dela. E tristeza, pelas dificuldades que trouxe para
a nossa casa. Mas que um instrumento muito bonito,
isto . Mas trouxe tristeza, repito. Tristeza porque a viola
no era reconhecida, talvez at menos do que hoje. Quan-
do meu pai cantava, viajando por esse Brasil; na poca em
que chegou a gravar mais de setenta discos-eleps, nin-
gum dava valor. E acho que ainda no d. Quando o pai
cantava com o meu tio, o Vieirinha, as pessoas mais ricas,
ou remediadas, e que tinham condies, tinham vergo-
nha de admitir com gostavam da viola, de ser caipira, de
cantar moda caipira. Ento no compravam os discos...
Vendiam-se poucos discos naquela poca. E pagavam quase
nada por uma apresentao. Desprezavam a gente at no
grupo escolar aqui da cidade... Hoje eu acho que comple-
tamente diferente. Filho de caipira, ham!
A gente, minha me, meus irmos... a gente sempre
viveu sem dinheiro e no meio de preconceito. A gente no
teve uma infncia muito boa, no teve muita fartura l em
casa. Esse o lado da tristeza que a viola trouxe. Digo isso
no por mim mesmo, mas pelo meu pai, que j est velho
e ainda precisa trabalhar aqui na loja, por necessidade. Ele
no pde dar uma infncia gostosa pra gente, uma educa-
o boa, propiciando famlia o que achava que seria de
bom. Trabalhava muito, lutando, viajando de carro, trem,
jardineira e caminho por esse Brasil, de ponta a ponta. Se
expondo de tudo quanto jeito, campeando servio. Era
em praa pblica, era em circo, era em quermesse, era em
rdio, era em fazenda... era onde fosse chamado, ao preo
de uns trocados. Eu e os irmos, com saudade do pai;
minha me, se mordendo de cimes; e todos ns, dias e
dias separados. O certo que a vida ficou diferente depois
que meu pai e minha me pegaram os trens da casa, no
stio, e foram viver na cidade, para facilitar os compromis-
sos profissionais do pai. A viola mudou pra cidade, onde
nunca foi o seu lugar. Nossa vida e sempre foi assim, de
muita raa.
Mas a viola deu alegria tambm, no sentido de
hoje a gente ver o pai, com quase setenta anos, reconheci-
do, com tese estudada na Universidade... todo mundo

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

conhece, e foi atravs da viola mesmo, e do catira, que o


pai propiciou felicidade, com o Vieirinha, a tanta gente.
Essa fama do meu pai at abre as portas para mim.
Mas s vezes atrapalha. Em algumas ocasies, quando a
gente vai procurar emprego em So Paulo e, quando ficam
sabendo que eu sou filho do Vieira, dizem: Voc no
precisa de emprego, voc filho do Vieira... rico. Eles
acham que ser reconhecido no Brasil, ser artista como o
meu pai foi e ainda , ser rico, ter feito fartura a vida
inteira. Que confuso eles fazem, como desconhecem a
vida da gente!228
***
Observa a historiadora Eunice Rocha que o choque de idias
entre o antigo e o atual gera, de certa forma, um conflito entre pais e
filhos e reflete uma gravssima omisso de nosso sistema educacio-
nal. Assim continua a pesquisadora os filhos, desprestigiando as
tradies paternas, passam a funcionar como verdadeiros grupos de
presso impelindo-os ao abandono dos antigos rituais e chegando
mesmo a deixar de tocar, cantar e participar desses folguedos popula-
res.229 Premissas equivocadas, o ponto de vista limitado pelo pre-
conceito, no raro expresso em comportamentos denotativos de pi-
lhrias e descrditos, e o desinteresse por atacado das novas geraes
urbanas, edulcoradas pelo poder voluptuoso dos meios de
massificao e pelo fascnio aos arrojos esbanjados dos efeitos eletr-
nicos (o kitsch com aparncia de luxo), impedem que se veja a Moda
Caipira em sua dimenso cultural e esttica, em sua literariedade. E
a viola, em seu estatuto de instrumento dotado de amplos recursos,
que, desde remoto tempo, por ser vincada de aspectos coletivos, nun-
ca saiu da moda. Aquelas atitudes negativistas vm unidas ou se
configuram paralelamente ao posicionamento de setores ilustra-
dos pouco arejados, escudados por uma aura circunspecta de zelosa
e desconfiada cisma. Transigem do que aprenderam e sabem, em
obsquio ao sistema e lema dos que se sentem ou so reconhecidos
como poderosos, legitimando-os. Nesse crculo de autopreservao

228
Colquio gravado em 13.dez.1995.
229
Dissertao de Mestrado Uma Expresso do Folclore Mato-grossense: Cururu em
Corumb (1991), de Eunice Rocha, p. 61.

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de uma cultura mais ou menos postia, que tantos interesses econ-


micos e sociais custodiam,230 parece, a oralidade popular, em seu
rebulio vioso, em suas estripulias recreativas, desedifica o saber, o
imaginrio do que seria ordenado e sereno. Por isso, tais setores aca-
bam situando-se no plano do no me toques, com uma aura de
pureza angelical ou santificada e, pouco e pouco, sentem que o mistu-
rar-se com o que do povo poderia macular-lhes a imagem e o pres-
tgio. Por isso, se tonificam da iluso psicolgica dessa pureza.
Contentam-se com o aforismo de que o que est embaixo permanece
embaixo, essa a lei. Guardies de um retardado bom senso das
normas e instituies de pele branca, e de uma utpica razo pura,
agem como que querendo livrar a cidade da paixo que consideram
desregrada, do sensorialismo que consideram anti-cientfico, do
emotivo que consideram insensato e piegas, do sincretismo religioso
que consideram heresia perturbadora, tidos como desprezveis cala-
midades toa do z-povinho. Ora, h nisto uma incongruncia.
Como observa o cientista poltico Srgio Paulo Rouanet, a razo
que rejeita o que nela irracional acaba sucumbindo ao irracional. Ela
se condena perturbao da falsa conscincia.231 Portanto, repito,
no se constituem bons modos ignorar o que peculiar natureza
singela: a leitura instintiva dos sinais da natureza, o poder proftico
do corao. Estas virtudes so, no entender de tantos, o que pode
haver de mais prodigioso e invejvel no gnio campesino. essa
lgica de processos internos e esse temperamento de cuerdo loco o
lcido desvario um pouco quixotesco, que o caipira transfere para
seu canto. A Moda Caipira de razes legtima representante da faixa
culta em nossa cano brasileira, entendendo-se por culto um modo
de encarar os valores que derivam da toda uma tradio cultural de
cunho humanista.232
***
Movimentos pr-romnticos europeus postulavam a reconstru-
o nacional pelo reconhecimento dado tradio e aos valores regio-

230
CANCLINI, Nstor Garca. A Socializao da Arte: Teoria e Prtica na Am-
rica Latina, p. 42.
231
Razo e Paixo. In: NOVAES, Adauto et al. Os Sentidos da Paixo, p. 453.
232
ECO, Umberto. Apocalpticos e Integrados, p. 301-2.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

nais. Esta voga esteve na pauta entre grupos intelectuais e artsticos


brasileiros na segunda metade do oitocentismo e primeiros decnios
do sculo XX. O nacionalismo que se instaura tem conscincia da
heterogeneidade brasileira. O modelo federativo, por meio da procla-
mao da Repblica em 1889, estabelece uma referncia difusa com as
desigualdades econmicas, de estgios de desenvolvimento e
etnoculturais de especificidades regionais. Na zona caipira, a situao
ganha novos contornos com outro componente fundamental: a abo-
lio da escravatura substitui o brao africano pelo imigrado, princi-
palmente da Itlia, com seus valores provinciais de aldeia.
A postura de querer ser moderno rejeitando o que do povo,
portanto, entra em dissonncia com o prprio sentido de
modernidade que, no Brasil, se fortaleceu com a pliade de literatos e
intelectuais da gerao de 1930. Na Europa e Amricas, amplos seto-
res intelectuais, filosficos e artsticos manifestaram nas primeiras
dcadas do sculo XX um forte interesse pelas canes e danas
populares, como uma reao s culturas oficiais mantidas pelas elites
conservadoras e como uma tentativa no sentido de preservar a
especificidade cultural de uma nao, mediante a coleta e organizao
de ncleos documentais sobre o imaginrio popular prestes a desa-
parecer, devido modernizao do sistema capitalista e dos proces-
sos de urbanizao.233 Este pensamento, sublinhe-se, particulari-
zando a questo, na tentativa de redescobrir o Brasil pedra de
toque de apreciveis crculos esclarecidos, no correr de todo o sculo.
Institui-se como um dos alicerces do modernismo brasileiro de 1922,
de modernos pensadores e artistas de vrias geraes, dos expoentes
da poesia concreta, do Cinema Novo, do Teatro Popular, dos teatros
Oficina e de Arena, dos anos de 1960, e da Tropiclia, na msica
popular, na literatura, nas artes plsticas, no teatro, no cinema e na
televiso. Encadeiam-se aos ideais nativistas e antropofgicos do
Manifesto da Poesia Pau Brasil (1924) de Oswald de Andrade: Tupy or
not tupy, that is the question. Mrio de Andrade sempre deixou impl-
cito que a conquista da modernidade tinha como pressuposto a valo-
rizao da identidade nacional. O final dos idos de 1920 foi funda-
mental para sedimentar essas idias e realizaes: ao mesmo tempo

233
CONTIER, Arnaldo D. Modernismos e Brasilidade - Msica, Utopia e
Tradio, In: ABENSOUR, Miguel et al, Tempo e Histria, p. 159-288.

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em que se gravavam os primeiros discos de Moda Caipira, nasciam


no Rio de Janeiro, entre 1928 e 1931, as primeiras Escolas de Samba
e seus desfiles. A etnia brasileira se fortalece, ainda que sob enorme
perseguio.
preciso reconhecer um fato: a literatura oral (e outras frmulas
artsticas de expresso popular), em sua espontaneidade e desajeito,
soa como conspiratria em relao aos valores comedidos e sem-
pre srios dos setores integrados da elite, quer econmica, quer
intelectual de hoje em dia. O orgulho solene do poeta caipira parece
ameaar o brio do crtico literrio, como se s a este, em seu mundo
cimentado pela escritura, fosse permitido ostentar solene orgulho. O
caipira e tantos artistas populares interpretariam esse comportamen-
to, com todas as letras, como inveja ressentida. Mas isto no com-
portamento somente de agora. So ondas que se vo e voltam, no
ciclo do tempo, e se realam quando os movimentos populares se
erguem em sombra aos mecanismos do controle oficial. Das hastes
do confronto germinam poderosas reaes. Da porque os gregos
clssicos construram teatros de pedra, com modulaes cnicas pre-
determinadas. E s suas demarcaes passaram a se submeter drama-
turgos de seu tempo, os magnficos artistas que chegaram at ns,
banindo a crueza dionisaca, arretada, desorganizada e obscena do
cidado comum. E, no Brasil, passarelas do samba, designadas pelo
neologismo sambdromos 234 (vigiados pelo aparato de comisses
julgadoras, quesitos de julgamentos e lemas e cmeras de TV, a
regimentar os participantes de dentro, e pelo alto preo dos ingressos s
arquibancadas, vendidos no cmbio negro e em dlar, aos espectadores
de fora), construdos de cimento e concreto, aos quais tiveram que se
submeter as Escolas de Samba e Cordes, banindo quase por com-
pleto a congregao popular do carnaval, e impondo-lhe outros cor-
des, de isolamento. As quermesses e festas nos dias-santos-de-guar-
da de bairros rurais, arraiais e arrabaldes, as antigas touradas e desafi-
os ao lombo de burros bravos e xucros foram substitudos por
festas de rodeios e pees-boiadeiros, estreitamente organizadas. E a
caboclada vai em procisses e multides a essas festanas, marcadas

234
Oscar Niemeyer, que projetou o Sambdromo do Rio de Janeiro, projetou a
arena de 45 mil lugares do Barreto que, em agosto 1996, reuniu mais de l,5
milho de espectadores na 41 Festa do Peo de Barretos-SP.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

por grande movimentao financeira, em recintos fechados de expo-


sies, ou em arenas construdas para esse fim, e administradas com
fins eleitorais pelos poderes provinciais e integrantes afins.
As Festas de Pees-boiadeiros, agora com suas regras e quesitos,
to a coqueluche dos tempos atuais vale acrescentar representam
a volta aos jogos eqestres medievais, praticados por homens de
armas e cultivadas pela aristocracia da poca. A cavalaria, para quem
no sabe, era o futebol da poca medieval, o esporte das multi-
des!, como esbravejam os locutores do rdio e da TV. Neste senti-
do, o grande pblico escreve Jos Guilherme Cantor Magnani
no tinha acesso s demonstraes e exerccios, restritos aos ptios
dos quartis e dos castelos. Aos poucos, contudo, elementos egres-
sos das fileiras militares comearam a organizar espetculos abertos
mediante pagamento, tendo-se destacado, em Londres, as apresenta-
es realizadas pelas companhias de Hayam, Jacob Bates, Price e Philip
Astley. Este ltimo, aps haver-se desligado de seu regimento, em
1766, inicia com alguns companheiros suas exibies pblicas, e mais
tarde monta um circo de madeira que j contava com nmeros de
variedades a cargo de renomados acrobatas italianos, os Ferzi.235
Essas artes eqestres medievais, ensina Magnani, tornaram-se ob-
soletas pelo peso que, de tempos em tempos, era acrescentado s
armaduras, tornando impraticveis os espetculos pblicos. De sua
adaptao, originou-se na Europa o espetculo circense que chegou
ao Brasil, zona caipira em finais do sculo XVIII, seja aquele de
estrutura familiar e de variedades, inclusive com as Horas do Rdio em
que se apresentavam as duplas caipiras e intrpretes populares, e o
teatro tragicmico com que os espetculos se encerravam, e que ainda
podem ser vistos, mambembes, nas pequenas cidades do interior e
periferias metropolitanas. Nas consideradas instalaes nobres, as
companhias circenses tradicionais foram substitudas pelos circos
multinacionais, de holliwoodiana estrutura, cercados por um aparato
econmico que, no raro, censura a freqncia de espectadores de
menores posses na aquisio de ingressos. Estas grandiosas organi-
zaes de espetculos, sim, que tm direito aos apoios culturais
de empresas e de estruturas institucionais. A pedra e o concreto e o
lugar fechado (e a censura econmica ao boleto de ingresso)

235
In: Festa no Pedao: Cultura Popular e Lazer na Cidade, p. 61-2.

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ROMILDO SANTANNA

sedimentam paradigmas de comportamento, cnones, ordens e re-


gras fixas a cumprir. No fundo, erigem-se instituies excludentes ou
controladoras da liberdade popular em sua essncia criadora, instinti-
va e tradicional.
Os setores pseudo-ilustrados e enrgicos antes referidos, ao
mesmo que regulam uma coero ideolgica e unilateral do gosto,
acabam formando um grupo parte, fronteiro, mas so decisivos
como marcas de dominao. Ao mesmo tempo auferem lucros de
projeo poltica, ao tentar em vo reproduzir o cdice europeu, sim-
blico nostlgico de civilizao. Acabam instituindo um padro de
valores e comportamentos fatigados, aborrecidos e des-integrados,
desrealizadores da cultura, pois no so nem o retrato vivo de seus
antepassados ibricos dos tempos de D. Manuel, o Venturoso e da
Coroa espanhola, nem so romnicos, em seu estado de alta Idade
Mdia; no so todavia nem anglo-saxes puros e suas continuida-
des que admiram tanto na Amrica do Norte e s quais devotam
subordinao ideolgica e fascnio, pela exuberncia do esbanjamen-
to econmico; nem so o resultado da fuso cultural com o amerndio
e o africano de pele preta, aos quais discriminam com ardor; nem so
o caldeamento dissipado, devido s circunstncias da ocupao do
sculo XVI, da cultura peninsular com os aborgines afro-ndios, que
resultou no brasileiro comum. No so... se no me engano... a reen-
carnao da aristocracia rural brasileira, esteio do imprio... E assim,
parece que no sendo nada disto, formam uma casta sem cabea,
por um lado daninha na perspectiva de dentro, pois mexem com os
pauzinhos nos corredores do poder, e imprimem as etiquetas dos
movimentos datados da modernidade; por outro lado bizarra na
perspectiva de fora, pois a Europa hoje, mesmo na monarquia s
vezes to raqutica e desmoralizada, no tem como reconhecer essa
casta como europia. E, agindo assim, realizam a mais sutil e invisvel
forma de cooptao com o poder e de censura que conheo. E censu-
ra, toda gente sabe, essa atividade impolida, apangio da intolern-
cia, uma avenida invisvel que s tem a contramo; traz em seu ninho
a germinao do inerte,236 do nada.

236
O professor Guillermo de la Cruz Coronado relaciona esse inerte
etimologia de in-arte, ou seja, sem arte. In: Arte Natureza Homem.
Revista Universitas, p. 15-40.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Os referidos setores agem como a respaldar-se num contradit-


rio cristianismo da excluso, quer dizer, um fundo misterioso de
pensamento catalisador do ideal civilizatrio, evidentemente anacr-
nico, que identifica o popular como literal rusticidade, no iletrismo
da oralidade, em seu sincretismo religioso qualificado como heresia
, excluindo-o, para no se conturbar, da gema finria e discreto
charme de uma Corte. Pensando numa ocorrncia parecida a este
estado de contradies, Paul Zunhtor (talvez na esteira de Rousseau
e Lvi-Strauss) equaciona a seguinte proposio:

pagopopularoral cristoeruditoescrito.237

A contradio e o descompasso que envolvem a situao brasileira


e os donos do poder so enfocados com vivo e penetrante poder
de sntese no seguinte excerto de Alfredo Bosi: A cronologia, que
reparte e mede a aventura da vida e da Histria em unidades seriadas,
insatisfatria para penetrar e compreender as esferas simultneas da
existncia social. Nos pases de passado colonial como o Brasil (e isto
valer agudamente para o Mxico e o Peru), a co-habitao de tempos
mais evidente e tangvel do que entre alguns povos mais
sincronicamente modernizados do Primeiro Mundo. Talvez o nosso
processo de aculturao euro-afro-americano ainda esteja longe de
ter-se completado. E certamente os seus descompassos e a sua
polirritmia ferem os ouvidos afinados pelo som dos clarins e das
trombetas evolucionistas. Por tudo isso, preciso escutar a nossa
msica sem pressa nem preconceito. Com delicada ateno. um
concerto que traz um repertrio de surpresas, verdade, mas que, no
seu desenrolar-se, est constituindo a nossa identidade possvel. So-
mos hoje a memria, viva ou entorpecida, do ontem e do anteontem
e o preldio do amanh.238
razoavelmente aceito desde h muito que a oralidade pressu-
pe aproximao; a escrita, as decretaes de distanciamentos, hierar-
quias e prestgio. Assim, a oralidade, o do povo acabam sendo tidos
como uma espcie de dessacralizao do mundo da escrita, esta

ZUNTHOR, Paul. A Letra e a Voz, p. 118.


237

BOSI, Alfredo. O Tempo e os Tempos. In: ABENSOUR, Miguel et al,


238

Tempo e Histria, p. 32.

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ROMILDO SANTANNA

identificada como edifcio esquadrinhado do culto ao cnone e s


convenes oficiais. Por estes raciocnios, infere-se, na figurao de
um costume social muito velho, arte popular e seus artistas reser-
vam-se os subterrneos e as catacumbas. A percepo, pelo caipira,
desse distanciamento vamos encontrar no seguinte aplogo de enor-
me sucesso at hoje, de Teddy Vieira e Capito Barduno, e com o
qual se lanava a dupla Zico e Zeca na antiga gravadora Colmbia, em
1956:

A ENXADA E A CANETA
toada

Teddy Vieira / Capito Barduno

Disse a caneta pra enxada:


No vem perto de mim, no!
Voc t suja de terra
De terra suja do cho!
Sabe com quem t falando?
Veja a sua posio!
E no esquea a distncia
Da nossa separao!

Eu sou a caneta dorada


Que escreve nos tabelio,
Eu escrevo pros governo
A lei da Constituio!
Escrevi em pape de linho
Pros ricao e pros baro!
S ando na mo dos mestre,
Dos home de posio!

A enxada respondeu:
De fato eu vivo no cho,
Pra pod dar o que com
E vestir o seu patro!
Eu vim no mundo primero,
Quase no tempo de Ado,
Se no fosse o meu sustento
Ningum tinha instruo!

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Vai-te, caneta orguiosa!


Vergonha da gerao,
A tua arta nobreza
No passa de pretenso,
Voc diz que escreve tudo,
Tem uma coisa que no:
a palavra bonita
Que se chama educao!

(Zico e Zeca Cantam Teddy Vieira, 1994)

***
Esses preceitos que no so de hoje, e tampouco circunscritos a
determinada topografia no espao brasileiro, se mobilizam e se agra-
vam quando so expandidos para todo o horizonte da repblica. O
preconceito referido tem como conseqncias, entre outras, duas fun-
damentais. A primeira advm de uma espcie de ausncia oficializada
de Poder Pblico para a maioria, quer dizer, ausncia de democracia
para essas camadas sociais no Brasil. As Cartas Magnas sempre pres-
creveram o primado da igualdade. Porm sabemos que nem tanto,
mesmo em se tratando da obedincia aos direitos e deveres funda-
mentais da pessoa. Sempre houve em nossa histria, mas, sobretu-
do, neste final de sculo, h um dissenso generalizado no pas. Vive-
se num mundo domesticado pelas foras histrico-sociais dos
estamentos possuidores, com suas prerrogativas e teias de privilgios
(privus = privado; lex = lei), num processo de anulao civil dos que
nada tm. Negando os avanos por que passou a sociedade, agem
como proprietrios dos meios de produo que no atingiram o
estgio elementar de considerar o trabalho um produto equivalente e,
portanto, objeto de troca (Marx). Isto debilita ainda mais a fora da
populao agrria como fonte de mudana social. Como tenho deixa-
do escrito, repetindo os esquemas senhoriais ancies, em umas zonas
mais que outras, o interesse privado da casta dos coronis ou po-
derosos locais se sobrepe ao desenvolvimento dos interesses pbli-
cos, gerando formas regionalizadas de despotismo, a impossibilitar,
entre outras coisas, a democracia cultural. Todavia, parafraseando
Zunthor, a cultura popular amacetada, mas impossvel de se extir-
par, pela acusao de heresia religiosa ou paganismo esttico.

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ROMILDO SANTANNA

Com sua indulgncia, carssimo interlocutor, quero acrescentar


que penso que a segunda causa fundamental do preconceito reinante
tem como base, at como alastramento da primeira, as brutais estru-
turas de distribuio de rendas no Brasil, colocando-o nos nfimos
patamares que comprometem a idia de civilizao, digamos, entre
as naes. Esta disparidade econmica, que se tem confirmado como
mal crnico, e em vista da subservincia administrativa poltica eco-
nmica internacional e aos preceitos neo-liberais-conservadores e re-
gressivos da chamada globalizao da economia, aprofundou o grau
de empobrecimento de grandes camadas populacionais na segunda
metade do sculo XX, alcanando patamares pouco dignificantes
alvorada do ano dois mil. Isto fulminou o nvel de desenvolvimento
educacional da maioria e sua conscincia de cidadania, nacionalidade e
discernimento para tomadas de posies polticas. Tal empobreci-
mento intelectual e econmico colocou a nao em estado de enorme
discrepncia em nveis de qualidade de vida. O corao do brasileiro
cordial talvez viesse a pensar hoje em dia Srgio Buarque de Holanda
tambm ficou mais pobre!
A massificao imposta pelo mandonismo das elites integra-
das civis e institucionais distorce e depaupera a prpria cultura
de elite, e se converte materializada numa cultura para o povo tre-
mendamente esqulida e vazia, e com as feies, s aparentes, de
um organismo benfazejo, fascinante e cheio de atrativos moder-
nos. Nossa cultura de massa tambm pegou a doena do raquitis-
mo que, diga-se, caracteriza a indstria de cultura de massas de
muitos pases, inclusive da ilustrada Europa e Estados Unidos.
Desde os gregos antigos se sabe o quanto as camadas populares se
espelham e se projetam nos modelos e valores de seus prceres
hierrquicos; o quanto a maioria marginalizada se impressiona e se
condi com os tropeos e tragdias de prncipes e figuras principais
da polys, quando essa maioria discriminada, amordaada em seus
paradigmas, na fotografia etnolgica de seu idntico. Isto se conver-
teu de maneira acintosa no Brasil, pela tachao de inferioridade e
literal desapreo cultura do povo manifesta em suas artes. Tal senti-
do de inferioridade de uma cultura autntica liga-se histrica dis-
criminao ao indgena brasileiro, visto entre outros atributos como
o desvalido, o escravo, a raa inferior, indigno at do pedao de terra
que lhe vital. Tem em suas razes essa desgraa e descalabro de

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

genocdio e dizimao, iniciada pela disseminao de enfermidades,


pela escravatura, pela interveno criminosa dos bandeirantes... e
por situaes e mecanismos internos que legitimam moralmente
esses preceitos. Alm de execues individuais e coletivas, por ca-
pangas, jagunos e capites-de-mato, cujos assassinos profissionais
e seus mandantes sistematicamente permanecem os intocveis,
acobertados pelo lema da impunibilidade, em todas as partes da na-
o, outros casos terrveis tm sido registrados no decnio de 1990,
como o suicdio em massa de ndios guaranis-cauis, tribos inteiras
transformadas em farrapentos e alcoolizados indigentes de estra-
das, prostitutas desvalidas de vilas e cidades, na regio de Doura-
dos-MS. S no ms de janeiro de 1996 houve quatro suicdios de
indgenas, com idades de 16 a 24 anos. O tema do calvrio indgena,
indigno da idia de humanidade, magnificamente pautado por
Darcy Ribeiro, no livro O Povo Brasileiro: a Formao e o Sentido do
Brasil (1995).
Por outra parte, a discriminao e censura cultura do povo rela-
cionam-se com a idia hipocritamente disfarada de um negro africa-
no servil e inferior, deambulando como gente boiada desde a Lei
urea por territrios perifricos das cidades, com sua cultura, seu
ritmo e sua arte, s suportados quando mascarados por carapaas ou
fantasias de carnavais. Ou fazendo parte entre a grande maioria dos
reeducandos do Sistema Penitencirio Brasileiro. A cor da pele faz
diferena no corao de muita gente. Escrevem e cantam Caetano
Veloso e Gilberto Gil: Aos pretos e outros quase-brancos, tratados
como pretos, s pra mostrar aos outros quase-pretos [e so quase
todos pretos], como que pretos, pobres e mulatos, e quase-bran-
cos, quase-pretos, to pobres so tratados... (Haiti, 1993). Isto
velho. Como afirma Lus da Cmara Cascudo, do africano, em fins
do sculo XIX, ouvira-se pouco. O cuidado de estud-lo, numa apro-
ximao desinteressada, humana e lgica, quase contemporneo. Os
registros de seus bailes e festas so confusos memoriais de crtica adminis-
trativa [vindas geralmente de Lisboa, da aristocracia e do clero locais],
com sugestes para a represso dos abusos. E, com tantos sculos de vida
comum com os portugueses, seus mitos, crenas e supersties esta-
riam resolvidos pela influncia branca ou complicados pela
interdependncia de outros negros, doutras regies, amalgamados
nos eitos dos engenhos de acar ou ao redor de fogueiras, nos

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ROMILDO SANTANNA

terreiros das senzalas.239 Tais confusos memoriais de crtica admi-


nistrativa podem ser avaliados no trecho abaixo, escrito em 1780 por
D. Jos da Cunha Gr Atade, em resposta ao governador de
Pernambuco Jos Csar de Meneses, o qual no sabia que providn-
cias tomar em relao a indagaes que lhe fazia o Tribunal da Inquisio
contra as danas supersticiosas dos negros:

Recebi o avizo de V. Exa. de 9 de Junho em q. S. Mag.


ordena d o meu parecer a visto das Cartas do Sto. Officio
e do Governador de Pernambuco; pela do Sto. Officio
vejo tratar de danas supersticiosas, e pela do Govor. vejo
tratar de danas que ainda que no sejo as mais santas
no as considero dignas de huma total reprovao; estas
considero Eu e pella carta do Govor, vejo serem as mes-
mas aquellas que os Pretos divididos em Nagoens [divi-
didos em naes] e com instrumentos prprios de cada
huma nao e fazem voltas como Harlequins, e outros
danam com diversos movimentos do corpo, que ainda
que no sejam os mais innocentes so como os Fandangos
de Castella, e fofas de Portugal, e os Lundus dos Brancos
e Pardos daquelle Paiz.240

A cultura afro-brasileira, e suas crenas, e suas danas e batuques,


muitas vezes tm que se dissimular em estruturas embranquecidas,
para se tornarem possveis como mecanismo de sobrevivncia. Alm
da imoralidade de ter transformado o crioulo em peas de leiles e
negcios, como animais ou tratores adquiridos para o trabalho mais
pesado nos eitos do serto, h que se avaliar o crime pelo
amordaamento do esprito, que leva o camarada ao desnimo e
mortificao da vida. Pois de ndios e pretos e portugueses degreda-
dos, e principalmente seus mestios, se funda a cultura popular bra-
sileira a que o Brasil oficial e branco administra ferreamente o controle
social, em atlntica desagregao.
***
A cultura do brasileiro marginalizado profundamente relacio-

239
CASCUDO, Lus da Cmara. Literatura Oral no Brasil, p. 28.
240
Apud. TINHORO, Jos Ramos. Os Sons dos Negros no Brasil, p. 44.

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nada com a idia tirana de povo indigente, mal nascido, num contexto
social absurdo e marcado por fundamentais diferenas entre a mino-
ria mandante e a legio interminvel de mandados. Abro aqui outros
parnteses para adicionar que quem no tem condies de enxergar
essa base radical de uma cultura do povo que germinou de seu prprio
hmus e se fez prpria, pode estar despreparado para a especulao
crtica sobre o substrato cultural da arte brasileira, da mais rstica
mais refinada pelos contornos moduladores das vrias pocas, ou
pelas cpias de modelos adiantados importados dos centros oci-
dentais. Isto vale tambm para a ao especulativa sobre a expresso
contempornea, definida muitas vezes por elocues tipicamente pro-
vinciais e arroladas pelo conceito movedio e jactancioso de progresso
ou modernidade.
A onipotncia econmica da cultura de massa (e sua indstria de
entretenimento) fragiliza o processo espontneo da cultura. Ela ins-
titui artificialmente uma outra cultura, apenas com recortes de com-
ponentes genunos da cultura, de modo a regular e preservar a estru-
tura scio-econmica existente e da qual emana. Como se sabe, em
sua truculenta caracterstica de transformar o indivduo em especta-
dor passivo da histria, a ao dos meios de comunicao de massa,
presos s rdeas desses senhorios, barra a correnteza genuna da trans-
misso oral, dos falares, cantares e danares espontneos, asfixiando
a criatividade do povo. Vale aqui aduzir palavras de Mrio Pedrosa,
num texto intitulado Arte Culta e Arte Popular: ideais como o criador,
o artista, valores da sociedade burguesa, so vinculados diretamente
idia de xito e de triunfo do indivduo. O artista s existe como
produtor de arte erudita; quem faz arte popular no artista, dificil-
mente um criador, mas apenas um arteso.241 At a semntica de
arteso foi corroda pelo preconceito! No filme Canabraba: a Necessidade
da Expresso, que realizamos eu e o cineasta Reinaldo Volpato, sobre
dois bias-frias e pintores primitivos da regio caipira de Sales Olivei-
ra-SP, em certo momento um deles revela a prpria descrena, to
introjetada da cultura dominante, de que a espontaneidade da mani-
festao popular que realizam possa ser classificada como Arte. Diz
um deles, Zequinha Scarelli, hoje com 63 anos, idealizando uma
aspirao embutida no conceito de verdadeiro artista: Nis j tentemo
241
Arte em Revista 3: Questo O Popular, p. 22.

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s artista, mas por ora... Ah, nis j cant de viola, j feiz tudo quanto
foi coisa por a, mas... Ah, a vida do artista boa, n? A vida do
artista..., ele conhece o mun..., pelo menos o Brasil. E outros conhece
at pra fora, a, noutros pas... Ele leva uma vida mais tranqila,
n?242 Como se pode inferir, a singeleza de ambos os coloca hierar-
quicamente mais aqum, muito aqum do eclipse em que sobrevive-
ram e subsistem os poetas-cantadores de modas caipiras e outros
cantares da populao rural brasileira.
O artista popular, devido ao esquema de valores to identificados
pela discriminao, no rene condies de incluir-se como artista, ou
incluir sua arte como fim, na seduo dos bens materiais, ou do
reconhecimento pelas camadas letradas. E, vale relembrar, so elas
que guarnecem a sabedoria do bom gosto, do que esttico.
Conforma-se, esse artista do povo, que a velha histria escrita pelos
vencedores, e que seu lugar o rinco dos excludos. E, bem dizer,
este estado de coisas exerce o valor funcional de alvio. Junto a seus
iguais, sente-se resistente e protegido, medida que no desagrega da
maioria. Neste sentido, desprovido da gana de outros benefcios,
canta pelo prazer do canto, pela compensao mgica, gratificante e
inefvel da consagrao e do rito, e pela delcia da admirao e reconhe-
cimento de seus conterrneos.
O primitivismo da Moda Caipira de razes um fim em si mes-
ma, nasce da necessidade da expresso; consome-a a necessidade do
sonho. Por sua configurao atrelada ao trivial do dia-a-dia, no lhe
cabe a sintaxe rebuscada que anuvia a comunicao gil da oralidade,
nem a palavra difcil que enrosca a ateno dos ouvintes nos eitos e
ondulncias do espao discursivo em letra de forma. Tudo direto
como deve ser, como um assopro na amplitude, como um discurso
revelador que se faz humanamente singelo, sem percalos pseudo-
intelectivos. Neste sentido, parece seguir caminho paralelo ao da
moderna crnica de jornal, no ambiente urbano, tantas vezes usurpa-
da da qualificao de gnero literrio. Na despretenso do poeta caipi-
ra, muitas vezes, est o caminho para penetrar poesia a dentro,

242
Canabraba: a Necessidade da Expresso, curta-metragem em 35 mm, cor, 11m37.
Argumento, roteiro, montagem e direo: Romildo SantAnna e Reinaldo
Volpato. Taus Filme Vdeo Produes (So Paulo). Embrafilme (Rio de Janei-
ro), 1988.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

diria Antonio Candido. Mantendo essa homologia com a crnica


jornaleira, bem-nascida brasileira, encaixam-se aqui as impresses sem-
pre reveladoras do cndido humanista : o seu intuito [dos cronistas]
no dos escritores que pensam em ficar, isto , permanecer na
lembrana e na admirao da posteridade; e sua perspectiva no a
dos que escrevem do alto da montanha, mas do simples rs-do-
cho.243 Desde pocas longnquas, passando pelos primeiros 52
discos em 78 rotaes realizados por Cornlio Pires na gravadora
Columbia entre 1929 e 1931, a Moda Caipira de razes mantm a
ocorrncia de procedimentos comuns na poesia dita erudita, letra-
da (ou clssica, no sentido de ser permitido ministr-la em classes): o
jogo (ainda que comedido) de correspondncias fonossemnticas, a
isometria e isorritmia da redondilha maior e dos metros e ritmos
hericos, a regularidade estrfica, o colorido aliterativo das rimas e
outros efeitos supra-segmentais, o jogo refinado dos efeitos semn-
ticos de sentidos por meio da manobra expressiva das palavras. En-
fim um discurso que se auto-alimenta no interior de si mesmo e se
projeta no vaivm entre fico e realidade; enfim poesia, na sua fun-
o essencial.

243
A Vida ao Rs-do-cho, em Recortes, pp. 23/29. Esse texto fora publicado
originalmente por Antnio Cndido no prefcio do livro Para Gostar de Ler V
- Crnicas (Ed. tica, 1984), pp. 4-13.

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10. MODA CAIPIRA HOJE EM DIA

Como natural da prpria dinmica em sociedade, a Moda Caipi-


ra de razes sofreu transformaes em consonncia com sua referncia
com o mundo atual, adaptando-se organicamente. Uma das causas,
de ordem temtica, relaciona-se com as intensas alteraes nos fatos
motores que peculiarizavam o campo e a cidade. Do ponto de vista
demogrfico, registrou-se no Brasil uma brutal e ostensiva mutao
migratria, como sonho de bem-estar ou estratgia de sobrevivncia.
De aproximadamente 68,8% da populao vivendo em zonas rurais,
no decnio de 1940, o pas passou para alarmantes 67%, nos anos de
1980, vivendo nas cidades, conforme esclarece a seguinte tabela:
Populao rural e urbana
segundo as grandes regies do Brasil em %.
1940 1950 1960 1970 1980

REGIES PR PU PR PU PR PU PR PU PR PU
Norte 72,3 27,7 68,5 31,5 62,2 37,8 54,9 45,1 48,4 51,6
Nordeste 76,5 23,5 73,6 26,4 65,8 34,2 58,0 42,0 49,5 50,5
Sudeste 60,6 39,4 52,5 47,5 42,7 57,3 27,2 72,8 17,3 82,7
Sul 72,3 27,7 70,5 29,5 62,4 37,6 55,4 44,6 37,3 62,7
Centro-oeste 78,5 21,5 75,6 24,4 65,0 35,0 51,7 48,3 33,0 67,0
BRASIL 68,8 31,2 63,8 36,2 54,9 45,1 44,0 56,0 33,0 67,0
Fonte: Anurio Estatstico do Brasil, 1982, IBGE.

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Em 1991, de acordo com o IBGE, 22,4% (35,834 milhes) da


populao brasileira vivem no campo; 75,6% (110,900 milhes), nas
cidades.
A conjuntura no Sudeste brasileiro centro da cultura caipira
mais significante ainda. Com a presso exercida pela agro-indstria, a
mecanizao acelerada dos meios de produo nas pequenas e gran-
des glebas e, o gado de corte ou de leite para o comrcio e transforma-
o industrial exigindo mo-de-obra com especializao escolarizada
e substituindo o saber tradicional, dos 60,6% da populao vivendo
nas reas rurais em 1940, 82,7% se desenraizaram e foram viver nas
periferias de reas urbanas, em 1980. Estes percentuais so expressi-
vos e elucidadores quando verificamos que o decnio de 1940 repre-
sentou o apogeu da Moda Caipira de razes; a dcada de 1980, princi-
palmente a partir de sua segunda metade, representa a primazia da
chamada Jovem Msica Sertaneja, poca em que, no Sudeste, apenas
17,3% da populao fazia parte do mundo campons tradicional.
Com o desemprego disseminado em massa, produto ainda da trans-
formao modernizante havida na cidade, houve um profundo
dilaceramento social, aumentando ainda mais o abismo entre os in-
cludos e a multido de exclusos. O inchao dos grandes centros
metropolitanos repercute, salvo rarssima exceo, no urbanismo
desordenado, ele mesmo desenraizado, causando mais pobreza, per-
da do eixo de gravidade cultural, dos princpios morais, e conseqen-
te desfibramento do esprito.
Nestas condies, houve na Moda Caipira de razes transforma-
es por adaptaes ao meio, pelos retoques em vista dos desvios de
percurso proporcionados pela brusca mudana de perspectivas. In-
verte-se o eixo de um modo tradicional de civilizao, e instaura-se
outro modelo, marcado pela lgica do autoritarismo neo-liberal e
ligado usura mercantilista do que, certo ou errado, se convencionou
chamar de modernidade. Transfere-se para as franjas do urbano a
simbologia escravista inculcada nos pilares da formao histrica e,
por isso, entendida como legtima. O fazendeiro transforma-se em
empresrio urbano; o birolo (beira-corgo, cafumango, mano-juca,
p-duro, piraquara, tabaru, sem-terra...), na mo-de-obra barata do
operariado em geral, mormente da construo civil, da fbrica, comr-
cio informal de bugigangas asiticas, na catao de lixo urbano
reciclvel, apelidados de burros sem rabos...

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

***
O xodo para a cidade interferiu na contrafao simblica das
modas caipiras, no repertrio de referncias, pela interpenetrao no
cdigo de valores tradicionais do campo com outra ordem de valores,
os da cidade, com seus fascnios de asfaltos e das foras da eletricida-
de. A cidade e seu ritmo impem um sentido de absoro temporal
em que o que vale o Agora. Aqui talvez se faam oportunas as
observaes de Giorgio Prodi, em seu captulo sobre O Estmulo,
os Limites e o Hbito: a distncia tem um determinado modo de
colocar-se (de ser construda) conforme se ande a p ou a cavalo, e tem
outro completamente diferente quando se viaja velocidade do som.
Neste caso, tudo se torna global e resumido, desprovido de detalhes,
e sobretudo da participao ativa do corpo, que transportado passi-
vamente. Poderamos dizer: transportado como em um tapete voa-
dor de fbula infantil, mas no realmente assim. Existe uma extre-
ma naturalidade naquilo que h apenas alguns anos podia parecer
maravilhoso e aquilo que precedeu o aumento (da velocidade, por
exemplo) cada vez menos seguido de um aumento da ateno e da
participao.244 Em Mundo no Avesso, que vamos examinar a seguir,
a habilidade construtiva de Lourival dos Santos e Tio Carreiro, em
fluente versificao combinando versos dobrados e estribilho, co-
loca em evidncia o impacto do estranhamento dado, entre outras
causas, pela desrealizao imaginativa daquele tapete voador a que
se referiu Prodi, e a notao de um mundo absurdamente duro, de
espessura agressiva e desalentada, na viso pacificante do caipira dos
campos e roados. Um mundo em seu carter paradoxal, no qual a
tecnologia avana sobre a terra, em seu iderio mercantilista, a im-
plantar uma desordem ecolgica. Deste modo, o caipira exprime a
recusa de seus valores, considerados hostis e contraditrios. O voc-
bulo avesso do ttulo se institui, no correr do poema-aviolado, por
meio de um torneado jogo que se realiza pela combinao inesperada
de palavras, por uma espcie de divagao livre, pelo manejo fluente
de paradoxos. Repartindo as estrofes oitavadas, homognea e parale-
lamente, em blocos de sucessivos dsticos, o que em si j revela algum
requinte de artesania, o texto se baseia numa enumerao aparente-
mente desconexa de situaes, que revelam a degenerao do mundo,

244
PRODI, Giorgio. O Indivduo e Sua Marca, p. 180-1.

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ROMILDO SANTANNA

a inverso de papis e o antagonismo das geraes, expondo a vida de


maneira inslita, desafinada e descabida.

MUNDO NO AVESSO
pagode de viola

Tio Carreiro/Lourival dos Santos

O mundo j est no avesso,


No avesso eu dou o embalo.
Carneiro comendo leo,
E o pinto matando o galo.
Cavaleiro vai por baixo,
Por cima vai o cavalo.
sapo engolindo cobra,
E o coco quebrando o ralo.
mulher virando homem,
Homem virando mulher,
Do jeito que o diabo gosta, t!
Do jeito que o diabo quer.

O mar no est pra peixe,


E a vida t um caso srio,
Eu j estou vendo defunto,
Indo a p pro cemitrio.
O touro mata o toureiro,
Soldado prende o sargento.
Banana come o macaco,
E a cobra morde o So Bento.
mulher virando homem,
Homem virando mulher,
Do jeito que o diabo gosta, t!
Do jeito que o diabo quer.

J tem criana nascendo,


Cobre a enfermeira no tapa.
Onde que ns estamos,
Tentaram matar o Papa!
A cruz foge do diabo,
Cachorro foge do gato.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Tem queijo treinando boxe,


Pra quebrar a cara do rato.
mulher virando homem,
Homem virando mulher,
Do jeito que o diabo gosta, t!
Do jeito que o diabo quer.

Qualquer dia a lua esquenta,


Qualquer dia o sol esfria,
O sol vai andar de noite,
Caminha a lua de dia.
O inquilino no paga,
E na casa continua.
Empregado j tem fora,
Pra jogar o patro na rua.
mulher virando homem,
Homem virando mulher,
Do jeito que o diabo gosta, t!
Do jeito que o diabo quer.

(Tio Carreiro e Pardinho,


Os Reis do Pagode, 1986)

A conscincia dessa forma de estruturao poemtica, pelo dom-


nio da inveno lxica, tratada quase que sensorialmente, muito
reveladora diga-se da potica do notvel Lourival dos Santos, j se
consolida e se justifica na elaborao dos dois primeiros versos: o
personagem-cantador previne seus ouvintes que, na lgica de um
mundo que j est no avesso, ele dar o embalo de seus versos.
Redige-os, pois, como ponto de partida para a formulao de um
contexto escritural homlogo tpica medieval do mundo s avessas, dado
pela seriao de descontinuidade com as bases de previso psicologi-
camente esperadas, mediante um jogo de situaes marcadas por
desvios semnticos.
Em contato com os smbolos citadinos natural que os caipi-
ras, cantadores e ouvintes, perdessem o referencial do territrio que
dominavam, havendo um hiperblico choque causado pelo impac-
to do estranhamento. Isto se deu ou por uma reao de acanha-
mento do sujeito, ficando ainda mais submisso aos entraves desse

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ROMILDO SANTANNA

novo contato, ou por uma reao de falseada euforia, tendo-se em


vista uma recodificao artificial de valores, que tem como base a
percepo dos suportes tecnolgicos vigentes no ambiente desco-
munal da cidade, sempre uma metrpole, na fruio de quem vem do
stio.
Reportando o mundo desde a perspectiva da cidade, a Moda
Caipira exerce sua viso crtica do mundo s avessas que a envolve.
Estabelece parmetros que evidenciam a injustia social, implicita-
mente gerada pela tica urbana, em confronto com os modos sim-
ples cultivados no mundo da roa. Este tema, marcado por referenciais
tpicos da metrpole, registrado com a acidez de uma linguagem
gramaticalizada, e explcita afetao dos clichs panfletrios corren-
tes nos horrios poltico-eleitorais exibidos na televiso, nos
versinhos do pagode de viola Osso Duro de Roer, gravao da ltima
fase de Tio Carreiro e Pardinho:

OSSO DURO DE ROER


pagode de viola

Z Paulo / Mlton Jos / Antnio Ventura Filho

Osso duro de ro
o Brasil da qualidade,
dodo a gente v
A cruel desigualdade.
O pobre fica mais pobre
O rico enriquece mais,
Tubares e agiotas
Aumentam seus capitais.

Os tais colarinhos brancos


Da cadeia vive ausente,
Os malandros de casaca
Esto agindo livremente.

O povo segue sem rumo


Numa canoa furada,
Tem tudo quem no trabalha,
Quem trabalha no tem nada.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Deiz por cento come a carne


E noventa ri o osso
Meia dzia come a fruta
O resto engole o caroo.

A inflao uma espada


Que fere e causa pavor,
Salrio sobe de escada
E os preos de elevador.

Das crianas tenho pena


So as que padece mais
Vo perdendo a esperana
De ter conforto dos pais.

Os poderes competentes
Nada fazem para o povo,
Ns estamos num aperto
Iguar o pinto no ovo.

No adianta rez tero


Nem pedir Nossa Senhora,
A santa j no d conta,
O povo que sofre e chora.

(Tio Carreiro e Pardinho,


Som da Terra, 1994)

Embora aqui e ali surjam modas bem aprumadas, o saudosismo


da Moda Caipira de razes ficou diferente, deslocado do meio, transi-
trio, mundano, s vezes simplesmente debuxado. As circunstncias
da vida urbana parecem desencaixados recortes de papel pousados na
poesia. Em Osso Duro de Roer, se por um lado persiste o rigor de
construo, por outro, cada estrofe soa como letreiros incendirios,
mas apagados pela nvoa fria do lugar comum. Cada passo refora
uma atmosfera disjuntiva, irresoluta, artisticamente evasiva. factual
e fria. Em mbito de enunciado, no espao do sonho (o campo) d-
se a interseo do sonho de um novo espao (a cidade). O que deve
ter ocorrido esta uma interpretao foi uma superposio abrupta

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ROMILDO SANTANNA

de outras senhas e, em conseqncia, uma perda do eixo da vida. Este


fenmeno reflete a inibio psicolgica para ler as coisas do mundo,
um desfibramento dos valores essenciais, uma perda da profundida-
de espiritual, em vista das tenses provocadas pelas motivaes
conflitantes. Pedro Bento (Joel Antnio Leme, Porto Feliz-SP, 1934),
da dupla Pedro Bento e Z da Estrada, disse-me:

A ltima gravao minha agora foi uma moda-


de-viola. Rei dos Judeus. A gente canta ela porque uma
histria do povo de hoje. S que uma histria diferente,
num tem boi. Ela vem do Hitler, ela entra na Alemanha e
termina em N. S. Aparecida [cidade de Aparecida do Nor-
te-SP]. uma coisa muito linda, vai fazer sucesso de ven-
da, que est nesse CD da gravadora Som Livre. 245

Neste ponto, talvez valesse a pena tecer algumas afirmaes que,


com certeza, destoam do tom que vim imprimindo neste Ensaio: a
tibieza esttica que tem caracterizado algumas produes de hoje em
dia, interferindo inclusive na quantidade produtiva de muitas modas
recentes, tem outra justificativa, em d maior. Num ambiente intu-
mescido de iniqidades, a perpetuar o privilgio de poucos, e sobera-
nos chulos, satlites de interesses profundos particulares, provinciais
e de castas, em que o desemprego generalizado de mo-de-obra,
mensurado por frias tabelas estatsticas, e a fome

Colquio gravado para este Ensaio em 24.fev/96.


245

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Ilustrao n.18 Angelli, charge publicada na


Folha de S. Paulo em 1.out/95, cad. 1, p. 2.

consternada so os regalos dilatados de tantos tantos, nem sempre


possvel ser guapo. J ensinava Don Quixote a seu parceiro: si el
poeta fuere casto en sus costumbres, lo ser tambin en sus ver-
sos.246 Pois entender isto reconhecer um Brasil contemporneo
que convive em vrias temporalidades, geogrficas e socioeconmicas,
s vezes aparadas por uma modernizao autoritria. A questo
fundiria um mal estritamente vigiado pelas oligarquias. Na Dita-
dura Militar de 1964 eram generais casmurros que cuidavam deste
assunto. Hoje em dia, so os prprios latifundirios e seus lbis no
Congresso Nacional.
Em todos os recantos h imensos latifndios improdutivos,
catalogados como estoques econmicos e dotes familiares. Assim,
no concernente populao trabalhadora agrria ou quela vocacionada
para a terra e umbilicalmente ligada Moda Caipira, o estado de
desvalia, a intimao insistente do estmago e o suplcio moral de
calotear o dono do emprio afogam qualquer inspirao elevada.
Entre os trabalhadores braais que, devido crise, depauperaram-se
mais ainda, a alegria se esvaiu. Para eles, negra a tez da manh,
parodiando um verso do cantor e compositor Djavan. O esprito

246
El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha, Parte II, Cap. XVI.

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ROMILDO SANTANNA

ficou oco, circunscrito em auras de desesperanas. O retrato dessa


situao no se registra apenas em complicadas elucubraes sociol-
gicas, mas na acidez cotidiana das charges de jornal. Deslocada de seu
meio, e empobrecida, a gentarada e sua manifestao ldica, e sua arte
ficaram lamentveis, enxotadas de si, num ermo da pobreza macilen-
ta, isenta de cidadania. Mesmo os que tinham a predileo do cantar,
perderam dentro e fora de casa, e na reunio da cantoria, a f antropo-
lgica na idia de utopia. As modas, genericamente, ficaram chochas,
desalinhadas de seu ritmo interior.
***
No correr do tempo, e tendo-se a conscincia de que esta no
pode ser evocada como causa nica, houve uma espcie de desagrega-
o das razes expressa na chamada Jovem Msica Sertaneja, a partir
de meados de 1950. Waldenyr Caldas observa que as duplas de maior
sucesso na poca, como Palmeira e Bi, Tibagi e Miltinho, Cascatinha
e Inhana, Zico e Zeca, Moreno e Moreninho, Pedro Bento e Z da
Estrada, Luisinho e Limeira gravaram boleros, guarnias e rasqueados,
a exemplo do bolero Boneca Cobiada, com Palmeira e Bi (1956), as
guarnias ndia e Meu Primeiro Amor [1955], os maiores sucessos de
Cascatinha e Inhana, o bolero Paloma [que j havia sido gravado por
Cascatinha e Inhana], interpretado por Pedro Bento e Z da Estrada
(1960).247 O prprio Z da Estrada, em entrevista para este Ensaio,
disse-me:

Em 1958, foi na poca que nis tivemo que disput


vendage de disco. Tivemo que partir pra outros ritmos. A
gravadora queria que nis gravasse bolero, ranchera,
guarnia, maxixe, tango, corrido... Aonde estava no suces-
so tremendo Miguel Aceves Mejas, que era o intrprete
mais fabuloso daquela poca. Todo mundo imitava pra
tent faz sucesso. De modos que nis, por ordem da
gravadora, partimo copiando o estilo, disputano vendage
de disco com as msica ranchera. Foi aonde ns colocamo
pisto, harpa, baixo de pau, importamo o guitarro
[tololocho], e sempre malhano no estilo mexicano. uma
msica que se assemelha muito com o nossos gosto de

247
CALDAS, Waldenyr. O Que Msica Sertaneja, p. 62.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

brasileiro, uma msica muito amorosa. O primeiro disco


em 78 rotaes foi Seresteiro da Lua [de Pedro Bento, Z da
Estrada e Cafezinho], era uma ranchera brasilera, no era
verso mexicana, era indita nossa. Nis vendemo 680
mil disco de 78 rotaes, num trimestre, em 1958. Foi um
sucesso tremendo, um estouro de vendage:

Muitas mulheres me querem


Mas no adianta,
Somente uma que eu amo na vida!
Mas o destino roubou meu amor
Por isso hoje me entrego bebida...

Prov que a gravadora tinha razo. Nis abrimo cami-


nho dessa moda sertaneja de hoje. Zez di Camargo toca-
va sanfona, era humirde que nem nis. Fazia a dupla Zez
e Zaz. Todos eles um plantio caboclo. Leandro e Leo-
nardo, Giani e Giovani, Chitozinho e Xoror fizero muito
show em circo do nosso lado. Era uns menino humirde
que viajava com os pais. Tivero a sorte de estour no
sucesso. Deus ajude eles. Mas essas msica msica de
marketing, leva trs, quatro ano e depois ningum mais se
alembra. T dando resultado pra eles, eu aplaudo, desejo
que aproveitem bem. Porque nis, o Vieira e Vieirinha, os
outros, nis s cantava, e por isso num ganhamo dinhei-
ro. As msicas sertaneja de hoje tira o caipira da bera do
riozinho e pe ele encima da onda do mar. Com o tempo,
ele afunda. No riozinho, pelo menos, nis tinha histria
pra cont, histria romanceada do povo.248

Logo surge a dupla realmente com esprito jovem, Leo Ca-


nhoto e Robertinho (vestidos de cowboys e cantando no estilo dos
mariachis mexicanos, em especial das canes de Miguel Aceves Mejas,
que j faziam enorme sucesso de vendagem de discos com a dupla
Pedro Bento e Z da Estrada) e, em seguida, Milionrio e Jos Rico,
com suas rancheiras, boleros, polcas, huapangos, corridos, guarnias,
rasqueados e vaneres, e remanescentes acaipirados da Jovem Guar-

248
Colquio gravado em 26.fev/96.

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ROMILDO SANTANNA

da, como os cantores Srgio Reis, Nalva Aguiar e Eduardo Arajo. A


moda sertaneja, nos decnios de 1960 e 1970, tinha um p no campo
e outro na cidade. Interditando a tradio, a nova msica caipira im-
pe uma espcie de acabou-se o que era doce, com que terminam,
deliciantes, as sagaranas populares com cheiro da terra e suas criaes.
Como ficou registrado simbolicamente no filme A Estrada da
Vida, de Nlson Pereira dos Santos, a casa dos violeiros o Hotel
Rio Preto (na verdade o Bar e Restaurante Ponto Chic, no Largo do
Paissandu), mas que fica dentro da cidade de So Paulo. Como na casa
de antigamente, no Rio Preto metonmia de um centro interiorano
que nasceram vrias duplas, algumas persistindo na Moda Caipira
de razes, outras na esteira do sucesso da nova tendncia. Entre os
caipiras na capital infunde-se a idia de que a velha guarda o que
passou; o jovem, a jovem guarda, o que vir, moderno e reluzente,
a avant-gard, a desqualificar as marcas do passado, a transformar a
histria com seus valores em sucatas e entulhos. Utilizando-se de
instrumentos eletrnicos e de avanados efeitos de estdio e mixagem,
roupas incomuns e grande investimento em publicidade, a partir dos
incios dos anos de 1980 os sertanejos conseguiram sucesso es-
trondoso, com o Trio Parada Dura, as duplas Joo Mineiro e Marcia-
no, Matogrosso e Mathias, As Marcianas, Chitozinho & Xoror,
Leandro e Leonardo, Zez di Camargo & Luciano, Chrystian & Ralf...
Ressalvadas pouqussimas excees, essas roupas incomuns su-
blinhem-se , s vezes imitando as de um mocinho pinado de al-
gum filme de faroeste, s vezes de um cowboy do asfalto equivalente
ao fanfarro e opulento agroboy, novo rico do interior s vezes de
um roqueiro bisonho e desenturmado, no escondem a variante atu-
alizada pelo modelo citadino e hodierno de um Jeca do asfalto ou
Bufalo Bill de nosso serto. O marketing da indstria de entreteni-
mento os vestiu, sem que o percebessem, com as senhas e insumos,
e nos figurinos das sanes implcitas, nas requerncias de uma ima-
gem modernosa com ares at de uma certa comicidade. Tais se
exemplificam nos efeitos trash das fotos nas capas de discos. Algu-
mas duplas tradicionais de violeiros tambm se vestiram de moci-
nhos: entregaram os anis pra no perder os dedos, como se diz. Nos
anos de 1990 os mil e duzentos rodeios espalhados pelo pas, enfati-
camente na zona caipira, renem mais de 20 milhes de admiradores.
O principal deles, ou o mi da galxia, de Barretos, congrega em

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

agosto mais de um milho e meio de jovens traiados de cowboys.


Em 1996, dos 90 milhes de discos produzidos pela indstria
fonogrfica, 12,6 milhes, ou 14% pertenceram ao segmento country.
Como costumam anunciar os locutores dessas festas, numa renncia
grupal ao esteretipo do caipira matuto, tenho carro pra and, us-
que pra beb, uma loira de manh, uma morena no entardec. Se isso
ser caipira, quero ser caipira t morr!.
Como aconteceu na Europa de fins do sculo XIX, o enriqueci-
mento em geral se traduz em uma ostentao de vulgaridade.249
Produtos do novo naipe, definitivamente controlados pelos meios
de produo discogrfico e musical, visam efetivamente tornar a po-
pulao mera consumidora e no produtora de seu discurso cultural,
como se verificava na realizao espontnea da Moda Caipira de razes.
Umberto Eco observara que atravs das comunicaes de massa, a
mensagem formulada segundo o cdigo da classe dominante, a
partir de uma cultura burguesa, na medida em que a cultura superior
ainda a cultura da sociedade burguesa posterior ao sculo XVII.
Em outro ponto, escreve o mestre italiano que a msica de consu-
mo produto industrial que no mira a nenhuma inteno de arte, e
sim satisfao das demandas do mercado. Mas como o mercado
dirigido por uma persuaso oculta de gostos, sentimentos e idias
raciocina o pensador italiano , a cano de consumo surge ento
como um dos instrumentos mais eficazes para a coero ideolgica
do cidado numa sociedade de massa.250 Alm da absoro de idi-
as-chave da cultura em seu valor mercadolgico, h que se ter em
mente que vivamos num instante de grande efervescncia dos dita-
mes da Ditadura Militar que impunha sociedade, por meio dos
meios eletrnicos de comunicao, uma alienao premeditada para o
controle social. Reproduzindo clichs de informao zero e atualizan-
do a cena tpica da massificao, tais produtos de consumo sempre se
mostraram bastante convenientes s indstrias e aos comerciantes do
setor, e poltica partidrio-ideolgica em ao. Na Jovem Msica
Sertaneja, em suas feies citadinas, realizada a partir de resduos cul-
turais, como no gnero folhetinesco das fotonovelas de ontem e
telenovelas de hoje, os problemas da vida se resumem na ansiedade
249
FOLLIET, Joseph. O Povo e a Cultura, p. 32.
250
ECO, Umberto. Apocalpticos e Integrados, p. 296-7.

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ROMILDO SANTANNA

das questes sentimentais e na alheao e frouxido da cantilena im-


pressionante de namoricos, mexericos e futricas. Nem necessrio
ressaltar que esse produto, tal como se caracteriza em sua modalidade
discursiva, e usado e consumido, isenta a Moda Caipira de razes de
possveis relaes de identidade.
Waldenyr Caldas lembra de que, nos idos de 1970, surgem duplas
de nomes inacreditveis como Ringo Black e Kid Hollyday, pela grava-
dora RGE-Fermata, Tony e Jerry, pela Dex, e Scott e Smith, pela
Chantecler, claro que aproveitando a onda faroeste e o gracejo sdico
dos personagens dos comics e desenhos animados. Leo Canhoto e
Robertinho no teatro de circo representam peas em estilo bangue-
bangue; o trio Tibagi, Miltinho e Meirinho, nos shows em praa pbica,
circos e rodeios, faz o gnero jovem sertanejo, numa derivao de
arrabalde da Jovem Guarda. No princpio dos anos de 1980, aprovei-
tando a efervescncia do deguste dessa produo de massa reparou o
crtico e musiclogo Tarik de Souza as gravadoras multinacionais
PolyGram e Ariola criaram os selos de discos Rancho e Regio, respec-
tivamente; a gravadora Copacabana adquiriu os selos independentes
Crazy, Cartaz e Jaboti. Em 1981 a gravadora Chantecler, numa espalha-
fatosa campanha de marketing lotou o ginsio Maracanzinho, no Rio
de Janeiro, com o show Grande Noite da Viola, misturando artistas
primevos como Tonico e Tinoco, Tio Carreiro e Pardinho, Vieira e
Vieirinha, Cascatinha e Inhana e Irms Galvo, com os novos sertane-
jos e regionalistas, como Teixeirinha e Mary Terezinha, Milionrio e
Jos Rico, Baduy e Nhozinho, Matogrosso e Mathias e Berenice
Azambuja.251 A transformao ocorrida foi to drstica, repetimos,
que acabou por gerar uma nova categoria de msica popular, hbrida da
Jovem Guarda e de certos gneros da msica popular internacional,
como o mariachis, corridos (usando instrumentos como os violes, vio-
linos, baixo, trompetes, pistons e tololocho instrumento de cor-
das parecido com o violino, porm grande e agudo e boleros veicula-
dos pelos filmes mexicanos da Pelmex, de incio, e o country norte-
americano, hoje em dia, com simulaes de Moda Caipira.

A maioria das informaes citadas neste trecho foi compilada do artigo A


251

Grande Noite da Viola. Sertanejos Desembarcam no Maracanzinho, deTarik


de Souza em seu livro O Som Nosso de Cada Dia, p. 113-7.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

At agora procurei situar a chamada Jovem Msica Sertaneja em


seu aspecto de comunicao de massa e, portanto, um produto estri-
tamente de olho nos fenmenos e tendncias da recepo e venda-
gem. Presumo que devo ter passado uma idia preconceituosa em
relao a esses artistas. Em tempo, apresso-me em desfaz-la. So
cantores dotados de aprecivel talento comunicativo e equipados de
amplos recursos de voz. Sobretudo, tiraram a Moda Caipira de razes
de seu rinco fechado em seu prprio meio e, modificada (e at esque-
cida), a transpuseram para todos os confins da nao. Um passo foi
dado, pelo menos no incio da onda, no sentido de acender visibilida-
de ao caipira. Esses intrpretes so tambm artistas caipiras, filhos de
caipiras tradicionais. Muitos chegaram a pegar no cabo da enxada.
Todos, literalmente todos, so filhos do xodo rural, que, na cidade,
no tiveram o destino da construo civil ou do subemprego, ou da
explorao barata e servil do trabalho.
***
Contudo, no foram somente o xodo do relegado trabalha-
dor da roa, o birolo de turma, tangido para os grandes centros
urbanos, e o baque depressivo determinado pelo empobrecimento
econmico, que determinaram o florescimento da chamada Jovem
Msica Sertaneja, ou country caipira. No Brasil, at agora, o submis-
so proletrio raramente determina alguma mudana de comporta-
mento poltico-social significativa que venha de encontro a suas
necessidades e direitos. A transformao ocorrida na produo de
objetos de arte e entretenimento, mormente aqueles relacionados
ao prazer do cantar, liga-se tambm a ditames gerados pelo apareci-
mento de uma nova burguesia agrria nas Regies Sudeste e Cen-
tro-Sul do Brasil. A este respeito h perspicaz artigo do musiclogo
Jos Ramos Tinhoro.252 A partir de diretrizes impostas pela Dita-
dura Militar de 1964, que declaravam, em forma de refro e trocadi-
lho, que exportar o que importa, e, a partir do advento do
chamado Programa do Acar e do lcool, o Prolcool, os campos,
as reas verdes e cerrados do Planalto Central e do Sudeste se trans-
formaram em latifndios de monoculturas, predominantemente
da soja, da laranja e da cana. Em relao a esta ltima, e geografica-

252
Country Brasileiro Jeca Tatu Vestido de Cowboy, In: Leitura, ago/91.

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ROMILDO SANTANNA

mente avanando pela direo Norte do Estado de So Paulo (o


lado direito do Rio Tiet, na perspectiva da Vila de So Paulo de
Piratininga, a boca do serto), as terras antes repartidas em peque-
nas propriedades foram arrendadas por fazendeiros e pelas prpri-
as usinas de moagem de cana, e agroindstria de acar, fazendo
desaparecer em alguns municpios os pequenos ncleos de comu-
nidades rurais. Era implcito abolir as culturas diversificadas de
mantimentos, algodo, caf (j atingido pela praga da ferrugem),
pois o bom massap, a terra rossa,253 deveria produzir um verde de
outra docilidade: o dlar. Se, com a cana-de-acar e os trs enge-
nhos,254, abriram-se os primeiros cantes cultivveis e o processo
colonizador e escravocrata dos sculos XVI e XVII, essa economia
destrutiva, pois devasta o que h sobre a terra, inclusive a presena
de gente, ter novo papel devastador e novos senhores, criados
sobra dos novos engenhos. Neste brasilzo de hoje em dia, a mata
o elo mais fraco entre a ecologia e o lucro.255 Desapareceram os
casares dos antigos Bares do Caf e o terru vermelho, prepara-
do para semeadura; apagaram-se os campos de algodo, de milho;
sumiram as quebras de horizontes de pastagens um vai-indo que
aparece e reaparece que no tem fim , a agricultura de subsistncia,
as criaes de fundo de terreiro. Com eles sumiu quase literalmente
a fauna de pequenos animais silvestres. E os pssaros, tangidos
pelo agrotxico e pela cabeleira verde inspita, ou pela meseta
esturricada pelas queimadas nos canaviais. Stios e fazendas fundi-
ram-se em reas de grande extenso. Sumiram as colnias agrcolas,
arrodeando as casas grandes dos fazendeiros de ontem, abando-

253
Por confuso fontica com a lngua dos italianos que, a partir do final do
sculo passado, ajudaram a povoar o serto paulista, o caipira traduz terra rossa
(vermelha) por terra roxa.
254
Por volta de 1533 surgiram em Santos os engenhos Madre de Deus, de So
Joo e dos Erasmos, considerados os primeiros do Brasil. Diferentes dos
engenhos nordestinos, foram construdos em estilo aoriano (todas as insta-
laes aglutinadas sob o mesmo teto).
255
Para aprofundamento da questo da evoluo do capitalismo global de
hoje em dia, e as relaes entre economia e ecossistema, inclusive em pases
como o Brasil, convido-o a percorrer as pginas de O Preo da Riqueza: Pilha-
gem Ambiental e a Nova (Des)Ordem Mundial, do alemo Elmar Altvater (So
Paulo: Editora Unesp, 1995).

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

nadas ao mato e s ervas daninhas; extinguiu-se s vezes por com-


pleto a figura laboral e ao mesmo tempo comunitria do parceiro,
do meeiro, do retireiro e pees de gado; desfiguraram-se e mesmo
se apagaram as precrias relaes empregatcias, ainda que nitida-
mente informais, com os donos das terras. A mesma ordem irraci-
onal de explorao das pessoas une-se lgica de agresso terra e
ao que a ela est ligado, anti-ecologicamente. Por causa, enquanto
por um lado germinou uma brutal onda de desemprego no interi-
or do campesinato tradicional, estimulou-se a sedimentao de uma
nova forma de explorao da fora humana de trabalho: o Bia-fria,
apanhado em casebres de pequenas cidades e posto na roa por
contrato no com o dono da terra, mas com o gato o proprie-
trio e motorista da conduo , com o qual o trabalhador, com sua
mulher e filhos pequenos, passou a estabelecer a relao de valia do
emprego, pago em dirias, sem nenhum tipo de vnculo legal ou
segurana no dia de amanh.256 A existncia se tornou mais aviltada
ainda; as pequenas cidades e vilarejos se transformaram em dormi-
trios de trabalhadores volantes, os bias-frias. Varando ruas e vi-
elas quase solitrias desses povoados, resta a divagao desacoroada
dos velhos campeando o que fazer, e de crianas novinhas esqueci-
das, baldias, pois ainda sem o muque para o aoite alargado do
podo ou para a panha cautelosa da laranja. parte isto, mas na
proliferao do desemprego e histrico desamparo, no se pode
fechar os olhos para a existncia de dezenas de milhares de famlias
deambulantes pelas estradas, sem eira nem beira, e combatidas po-

256
Os dados do censo de 1980 revelam a extrema pobreza dos assalariados
agrcolas. Em jornadas de trabalho mdias de 12 horas dirias, os salrios so
baixssimos: em 1980, 66,7% dos empregados em estabelecimentos
agropecurios recebiam at um salrio mnimo ao ms. Em 1987, o valor do
salrio mnimo era equivalente a US $ 42,24, ou seja, 37% do valor real que
atingiu em 1956. Ainda segundo o IBGE, de uma populao economicamente
ativa de 13 milhes de pessoas nas reas rurais, apenas 4,5 milhes so assala-
riados permanentes ou temporrios. Desses ltimos, os volantes ou bias-frias
somam cerca de 1,5 milhes de pessoas. H no Brasil forte concentrao de
propriedade da terra. Segundo o Censo Agropecurio de 1985, menos de 10%
dos estabelecimentos agropecurios controlam quase 80% das terras cadastra-
das. As propriedades rurais de mais de 1000 ha (menos de 1% do total)
perfazem 177 milhes de hectares. As propriedades de menos de 1000 ha
ocupam cerca de 79 milhes de hectares.

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ROMILDO SANTANNA

licialmente como Os Sem-terras. Estes caipiras, parece, canalizam


o fervor energtico do prazer, em gestos de desespero que se expri-
mem em organizao e militncia sociopoltica. Nos anos de 1990,
a bandeira vermelha do MST (Movimento dos Trabalhadores Ru-
rais Sem Terra) , como trinta anos atrs ocorrera com as Ligas Cam-
ponesas nordestinas, acusadas de comunistas, restaura o fervor da
luta de classes em vrios rinces do pas. Em reao, so constantes
os assassinatos de lideranas individuais e massacres coletivos a
esses trabalhadores, executados por milcias paramilitares e oficiais.
Com o avano dos novos tempos pela imposio do carter
descontinusta da modernidade,257 desapareceram as festas popu-
lares, com suas encenaes e ritos propiciatrios, protetivos e pro-
dutivos, ou no dia que viesse telha, simplesmente porque sim, no
lero-lero prazeroso dos fandangos, sempre simbolizados pela coe-
so grupal. Desapareceu a vibrao calorosa de solidariedade da vizi-
nhana, em agradecimentos pelas treies (chegada dos vizinhos para
entreajuda, traio, de surpresa) e dos mutires, nos tempos de
semeaduras, capinas dos roados e das colheitas. Tratava-se de uma
prtica socializada em que mais uma vez o comportamento vinha
associado ao pensamento e afetividade, como acumulao de va-
lores humanos desinteressados. Desapareceram esses ritos e consa-
graes comunitrios realizados na periodicidade e ensejos dos ci-
clos agrcolas e dos dias santificados. Nestes casos, a bendio religi-
osa e a conciliao amistosa com os vizinhos (que mista de uma
significao ritualstica) se animavam do porre da cachaa (que acirra
o nimo, as palavras e os gestos ficam molhados de afetividade, a
invocar o el dionisaco), da comunho da macarronada e, obrigato-
riamente, do catira, do arrasta-p, da caninha-verde... e, naturalmen-
te, dos torneios de desafios e das modas caipiras. Desapareceram as
comemoraes que se realizavam apenas porque sim, mas de que o
caboclo bem sabe discernir a extenso da funcionalidade e simbologia
no meio coletivo. Se, por um lado, esses congraamentos comuni-
cavam a confluncia plenria do ludismo, misticismo e solidarieda-

257
O assunto complexo e, num sistema de transformaes sociais to vis-
veis, implica reflexes especficas. Tais estudos, entre outros largamente
conhecidos, so delineados por Antony Giddens em As Conseqncias da
Modernidade (1991).

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

de, por outro cumpriam a finalidade tica do convvio, do regozijo


pela necessidade existencial de sada do estado de isolamento. De
sbito, um sentido de lascado progresso ou modernidade varou
violentamente tudo isto.
A desestruturao do mundo tradicional agropecurio em sua
referncia laboral, produtiva e de existncia comunitria, e os macios
subsdios do Governo Federal para a produo da cana e outros
produtos exportveis provocaram em pouco tempo o
depauperamento da qualidade de vida da grande maioria que habita-
va o campo, e, simultaneamente, a gerao de uma classe interiorana
de vida recentemente arranjada. A respeito do segundo caso, o citado
texto de Jos Ramos Tinhoro agudamente esclarece que situados
em posio de contraste com as elites locais, historicamente
preconceituosas e acomodadas, esses impacientes grupos de fidalgos
e novos ricos da rea rural comeam a forar o rompimento dos
padres convencionais atravs de uma acelerada busca de reproduo
da vida nos grandes centros. ... No plano cultural, essa falsa posio
que tornava os novos ricos do campo desidentificados com seu pr-
prio meio e deslocados quando de suas incurses nos grandes cen-
tros refletiu-se desde logo numa espcie de crise de identidade, que
levava tais grupos (como se tornou notrio) a exibir ostensivamente
o gosto da moderna msica de massa internacional cantada em in-
gls, e a ouvir secretamente discos sertanejos nacionais, que lhes lem-
bravam as suas origens caipiras reais. ... Foi, pois, atravs da repercus-
so da msica country, ou seja, do som caipira americano ... que viria a
surgir, no Brasil, a partir da dcada de 80, o caipira de butique.258 O
agroboy ressuscita uma nova estirpe de cavaleiro medieval frente aristo-
cracia tradicional. No por acaso so fs e patrocinadores incondicio-
nais de jogos eqestres Festas de Rodeios e Festas de Pees-
boiadeiros. So militantes ferrenhos do ideal poltico dessa aristocra-
cia agrria, muito mais que a prpria aristocracia, acomodada em seu
status de mando. esta uma caracterstica bem conhecida observa
Hauser , e muito freqentemente repetida na histria social: o
novus homo mostra-se sempre inclinado a excessos de compensao,
em virtude de seu complexo de inferioridade, insistindo nas prerro-

258
Country Brasileiro Jeca Tatu Vestido de Cowboy, artigo de Jos Ramos
Tinhoro publicado em Leitura, ago/91, p. 5.

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ROMILDO SANTANNA

gativas morais inerentes aos privilgios de que goza.259 Com o tem-


po, esses novos cavaleiros passam a desprezar a velha aristocracia agrria
fora de moda. Correlativamente, querendo adotar os modelos me-
tropolitanos, desprezam as artes populares e a Moda Caipira de razes,
uma predileo do antigo fazendeiro e, na presuno de modernidade,
assumem o novo modelo, to jovem quanto o cdigo de valores
velhos que passaram a negar.
***
A Moda Caipira tradicional canto tido como haver comum, de
herana secular. Ao ser cantada ao vivo, ou fixada no disco, passou
pela seleo qualitativa da sbia drenagem do tempo; nela, o campesino
sente-se co-autor, como se o fragmentrio de sua vida estivesse ali
espelhado, em episdicas recordaes.
O admirvel artista Tom Z (Antnio Jos Santana Martins, Irar-
BA, 1936-), por ocasio de seu show Caipira Ps-moderno, e em colquio
que tivemos para este Ensaio, assim expressa:

Isto que voc est falando do tropicalismo abarcar


gneros e volver os olhos em todas as direes, realmente
era uma coisa que estava mo entre nossas armas. E,
como o Um Instante, Maestro do Flvio Cavalcanti costu-
mava quebrar um disco caipira por semana voc se lem-
bra disso, n? -- ento eu fiz uma msica chamada Sabor de
Burrice, pra lembrar o negcio do Flvio Cavalcanti, que
quebrava msica caipira. Eu fiz como msica caipira. A
letra de 2001 fiz antes do carnaval de 68. O Gil, o Caetano
comemoramos. Que idia linda, diziam eles. A Rita Lee
que teve a idia de fazer como msica caipira. Ela fez uma
senhora msica caipira, linda, claro, influenciada pelo
universo que ela vivia e se ambientava, que era o rock.
Esse seu trabalho, A Moda Viola, muito perti-
nente, muita gente deveria se interessar por esse universo.
Eu acho que ele necessrio, que comecem a aparecer crti-
cos que, mais sofisticadamente, estabeleam as divises,
os compartimentos, pra poder esse tipo de msica ter
tambm um desenvolvimento. E no se arrebate somen-

259
HAUSER, Arnold. Histria Social da Literatura e da Arte I, p. 282.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

te pela glria de ser pop, repetitiva e ch, como j comea a


ser pelas vedetes que fazem essa Msica Sertaneja de hoje.
A Moda Caipira tem outras qualidades muito mais sutis.
A Moda Caipira como um feixe de nervos e sensibilida-
des que advm dessa alma brasileira to rica em invenes.

Indagado sobre a razo de o ttulo de seu show ser Caipira Ps-


moderno, o artista asseverou:

Eu nasci um caipira. verdade que essa palavra l na


Bahia no caipira. tabaru. Eu nasci um tabaru, e
depois quando vim estudar msica na Universidade, j
aprendi o ps-moderno, o dodecafonismo, o serialismo,
politonalidade... [estudou composio, contraponto, har-
monia, piano e violoncelo na Universidade de Msica da
Bahia]. Fui um estudante muito dedicado, muito interes-
sado, e quando consegui encontrar um caminho pra per-
correr, uma vereda com um estilo praticamente meu, eu
tinha a mistura dessas duas vertentes: do mundo caipira
onde nasci e me criei, e da msica que estudei na escola.
por isto o nome do meu show.260

Ao enfocar a Moda Caipira tal como a conhecemos hoje em dia,


outro fato de extraordinria importncia no pode ser esquecido,
pois que afetou a ordem estrutural de sua poesia popular e produziu
transformaes fundamentais e definitivas. Deixei firmado que as
modas de antigamente eram de longa extenso (por analogia, opor-
tuno salientar que o romance antigo de Condes Claros, um dos predi-
letos dos vihuelistas medievais, possui originalmente 420 octosslabos).
Como nos confirmou Vieira (da dupla Vieira e Vieirinha), s vezes
um romance [a moda] possua pra mais de quarenta verso (estro-
fes), e sua execuo s vezes durava uma noitada. Para o descanso dos
violeiros e como procedimento retrico de tenso lrico-narrativa,
havia pausas em determinadas instncias ou episdios climticos do

260
O show Caipira Ps-moderno estreou em meados de 1995 nos Estados Unidos.
Foi apresentado em diversas capitais da Europa e, a partir de fevereiro de
1996, apresenta-se em vrias capitais e cidades mdias brasileiras. Colquio
gravado em 24.mar/96.

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ROMILDO SANTANNA

enredo, oportunidade em que um sanfoneiro assumia o cargo para


animar o baile. Nesse revezamento de canto e dana passavam-se as
horas da festa, que quase sempre terminava na aurora seguinte. Com
o advento das primeiras modas gravadas, em 1929, e a partir do
decnio de 1940 (quando a Moda Caipira conseguiu seu apogeu em
venda de discos), o gramofone e a vitrola comearam a tomar o lugar
do antigo costume de execues ao vivo das duplas de cantadores nas
festas de canto e dana tradicionais. Nessa poca, como foi demons-
trado, na Regio Sudeste, 60,6% da populao vivia no campo; no
Centro-Oeste, 78,5%.261 As duplas mais famosas, que a partir de
1923 j se apresentavam nas primeiras rdios de So Paulo, passaram
a ser mais insistentemente requisitadas pelas emissoras da capital
(quase todas j vinham se apresentando em programas do interior
do Estado de So Paulo e estados vizinhos). Enquanto at final dos
idos de 1950 eram as grandes atraes de programas em vrios hor-
rios, sobretudo de madrugada e noturnos, e dos programas domini-
cais de auditrio, de grande assistncia e audincia, a partir de meados
de 1960 passaram a servir mais como referncias e smbolos do mun-
do rural, que como os intrpretes, na vivncia coletiva e coetnea, em
suas antigas funes. Passaram locuo de programas, anunciando
modas suas e de outras duplas, que antes participavam ao vivo; ou
lendo cartas de ouvintes, geralmente a remeter notcias da cidade aos
que ficaram no serto; ou emprestando a credibilidade a que esto
associados, pela imagem de autnticos e honestos, para anunciar
reclames publicitrios de vrias mercadorias e marcas, entre as quais as
cadeias de lojas populares, produtos agrcolas e os remdios. So
exemplos de interferncia radiofnica os programas de Alvarenga e
Ranchinho (1932) e Arraial da Curva Torta, da Rdio Difusora de So
Paulo, apresentado a partir de 1943 por Capito Furtado, que revelou
os Irmos Prez (Tonico e Tinoco) e no qual se apresentava a dupla
Rosalinda e Florisbela (Rosalinda a conhecida apresentadora de tele-
viso Hebe Camargo), Os Trs Batutas do Serto, da Rdio Record de
So Paulo, apresentado em 1945 por Raul Torres, Florncio e Joo
Rielli, e, a partir de 1947, formando novo trio com Rielli Filho (Emlio
Rielli); em meados de 1940 havia o programa Serra da Mantiqueira, na
Rdio Bandeirantes de So Paulo, do qual participava Sulino, na for-

Anurio Estatstico do IBGE, 1980.


261

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

mao do Trio Campeiro, com Marrueiro e o sanfoneiro Castelinho;


Brasil Caboclo, apresentado por Capito Barduno, a partir de 1952,
tambm na Rdio Bandeirantes; Alma da Terra, apresentado entre
1955 e 1958 por Vieira e Vieirinha, na Rdio Tupi de So Paulo, e
Alvorada Cabocla, apresentado pelos mesmos artistas em diversos
perodos, num montante de quinze anos, na Rdio Nacional de So
Paulo; A Hora dos Municpios, apresentado por Blota Jr. a partir de
1950, e Na Beira da Tuia, apresentado a partir de 1950, na Rdio
Nacional do Rio de Janeiro e, at o comeo do decnio de 1990, na
Rdio Bandeirantes de So Paulo, por Tonico e Tinoco, a dupla Cora-
o do Brasil (esse programa executava em disco msicas exclusivas da
dupla a qual, incidentalmente, cantarolava alguma moda ao vivo). As
emissoras de rdio da capital do Estado de So Paulo (e s vezes de
Belo Horizonte, Goinia, Cuiab, Curitiba, Vitria e Rio de Janeiro)
parecem ter requisitado para o seu recinto o artista do campo. Demar-
caram o ponto de chegada do caipira da roa, em vista do valor sim-
blico da volpia da eletricidade e do status de poder viajar pelo espa-
o e chegar ao isolado serto por ondas radiofnicas. Esses progra-
mas, ao mesmo tempo que culminaram pela divulgao da Moda
Caipira em locais refratrios ao gnero, estabeleceram com o homem
e a mulher do campo importante canal de comunicao dos lana-
mentos em discos. Por outro lado serviram para arredar tremenda-
mente o costume da festa ao vivo. Tudo passou a ser decantado pela
nostalgia de uma distncia geogrfica e temporal, demarcada pelo
rdio e pelo disco. Em vista das apresentaes no rdio, em que as
modas tiveram que ser resumidas para encurtar o tempo, e das grava-
es fonogrficas, elas passaram por um processo de copidescagem
para se adaptar extenso de uma faixa de disco em 78rpm , a pouco
mais ou menos trs e quatro minutos. Neste sentido, vrios compo-
sitores famosos, como Teddy Vieira, no comeo da carreira, ficaram
conhecidos como reformadores ou copidescadores de antigas
modas de letras caudalosas, geralmente de domnio pblico, adap-
tando-as nova situao da Moda Caipira. Isto quer dizer que, a
mesma moda-de-viola, recortado, cururu, toada ou cateret de grande
extenso podem ter originado diversas outras, na formatao tem-
poral e enxugamento para a veiculao no rdio, em princpio, e
depois no disco. A passagem reelaborativa do romance, adaptando-
se a novas circunstncias, num processo de compresso formal e

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ROMILDO SANTANNA

estilstica, realiza aquilo que constitui a essncia da poesia tradicional, a


qual se revigora por meio das formas variantes.262 A esse respeito, e
tendo em vista o impacto com a nova situao de vida na cidade, o
renomado Tonico (Joo Salvador Prez, 1919-1994), da dupla Tonico
e Tinoco, relatou que hoje o mundo mud muito, ento nis tivemo
que envolu tambm, no saino do estilo, mas fazeno umas musi-
quinha mais curta e mais alegrinha. Porque o povo, hoje, eles ouve
uma msica ansim, olhano o relgio. Sempre tm o que faz... Hoje,
ento, a mensage mais curta: comeo, meio e fim. Antigamente, eu
com o Tinoco, nis cantava romance, romance de treis hora, duas hora,
tomava caf com bolinho, no meio ansim, nos intervalo do romance,
que tava tudo de cor da cabea... Nis tinha diversos romance que nis
cantava l nas fazenda e era bem apreciado.263 Repetindo o que
aconteceu com as transformaes dos antigos ciclos picos em ro-
mances medievais, a Moda Caipira teve que se adaptar aos novos
tempos, sem sair do estilo, aos tempos da pressa, aos tempos da
cidade, transformando-se em baladas curtas, os romances atuais.

262
Ramn Menndez Pidal aborda esta questo em vrias instncias de sua
obra, como em Estudio sobre el Romancero, p. 345.
263
Depoimento prestado no programa Ensaio, dirigido por Fernando Faro,
transmitido em 07.mai/91 pela Rede Cultura de Televiso - So Paulo.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

11. ACORDES
DERRADEIROS

hora de livrar-se da tentao introspectiva, contraditria, de que


caipira equivale a Jeca Tatu. A gente carece de examinar o indivduo e
suas belezas no contexto pulsante de seu mundo, livrando-se da
prenoo descabida. O preconceito em cincia desmoralizante,
ineficiente, estril, uma espcie de sal de fruta vencida a validade, que
no borbulha, tampouco elimina o incmodo da indigesto. A fun-
o crtica e sua competncia lgica impem obrigaes entre as quais
se erigir para dissipar a contradio de encarar o ser fora de sua catego-
ria e funo especficas. Ensina Giorgio Prodi, num livro que procura
recolocar a pessoa em suas relaes com a natureza e consigo mesma,
que a espcie uma funo categorial, ou seja, um conjunto de nor-
mas de fato, elaboradas pela mesma, que demonstram a coerncia de
um organismo, a sua capacidade de interpretar o meio ambiente e de
agir sobre ele. As estruturas e funes particulares que permitem aos
indivduos de uma dada espcie mudar, reproduzir, fugir da morte,
em condies muito diferentes entre si, constituem justamente a
espcie. As relaes com o meio ambiente no so quaisquer: so aque-
las que a espcie impe, muito normativas, muito complexas, muito
especficas. Viver em determinado ambiente e sob determinado am-
biente significa conhecer e interpretar esse ambiente mediante justa-
mente as categorias da espcie. Cada espcie conduz uma leitura pr-
pria do mundo e precisamente daquela parte do mundo que ade-
quada s suas categorias.264 Fora de seu meio, o ser humano uma
bola alienada; sua arte, agente contempladora de anseios de novida-

264
PRODI, Giorgio. O Indivduo e Sua Marca, p. 102.

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des, que bia na superfcie e escorre apressadamente no rio do tempo.


Na coerncia csmica do comum ou do fabuloso local e regional
decantam e germinam os frutos da essncia, na espessura e profundi-
dade mtica do humano, portanto de todos os tempos e lugares.
necessrio examinar o caipira e seu cantar no consrcio huma-
no de sua existncia. A msica popular brasileira a mais completa,
mais totalmente nacional, mais forte criao da nossa raa at agora,
escreveu Mrio de Andrade, alertando que devemos alargar as nossas
idias estticas.265 Com sua riqueza esttica e diversidade, ela perpassa
classes sociais, raas, idades e idias. Em seus focos de pluralidade,
mais do que qualquer outra situao poltica, confere ao pas o singu-
lar sentido federativo.
Claro que no tive inteno de propor neste Ensaio, e mormente
em estudo anterior,266, uma xenofobia artstica, proslita e estril,
como se o Brasil fosse uma ilha desplugada do restante do mundo,
ou como se as demais formas de expresses artsticas no fossem
igualmente vlidas e sublimveis. Porm, sejamos antropofgicos!, j
convidara Oswald de Andrade. O exclusivismo e o bisturi nas formas
culturais so reacionrios e, no mnimo, incultos e chatos. J passou
da hora de olharmos para o potencial das artes populares brasileiras e
latino-americanas, to essenciais na perspectiva de essncias. No pla-
no da msica, escreve Aracy A. Amaral, h que prestigiar desde
Piazzola a Mercedes Sosa, a um Joo Gilberto e Mlton Nascimento,
que interessam fora daqui porque trazem algo daqui, pois somente a
partir do particular, do local, pode-se alcanar a universalidade.267
Nossas msicas so troncos de brasil que tanto fascinam no estran-
geiro. Diz a autora, no artigo O Regional e o Universal na Arte: Por
Que o Temor pelo Latino-americano que vivemos longos anos
sob o domnio colonial primeiro, e a seguir dos imperialismos eco-
nmicos que conformaram o comportamento de todos os que aqui
vivem, nativos, importados ou imigrados e mestiados. Mais ainda:
no estamos liberados das metrpoles, sejam elas das tendncias que
foram, do ponto de vista de modelos sociais, polticos e econmicos.

265
ANDRADE, Mrio de. Ensaio Sobre a Msica Brasileira, p. 24.
266
SANTANNA, Romildo. Silva, Quadros e Livros: Um Artista Caipira (1994).
267
Arte e Meio Artstico: entre a Feijoada e o X-Burger, p. 295.

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A MODA VIOLA: ENSAIO DO CANTAR CAIPIRA

Assim sendo, quase utpico, de fato, o anseio por uma autonomia


do ponto de vista artstico. Mas vlida essa aspirao. Em s consci-
ncia, na atual conjuntura latino-americana, considero esta vontade
de se ver, de se pensar, importante, quase como um motivador,
cadeia num processo de conscientizao do qual no podemos fugir.
No somos mero prolongamento da Europa, ou reedio fac-similar
das experincias norte-americanas, que pouco ou nada tm a ver com
nossa cultura mestia. Os Estados Unidos so uma sociedade de
grupos raciais-culturais justapostos, governados por uma mentalida-
de pragmtica, oriunda do protestantismo anglo-saxo. A Amrica
Latina uma sociedade de mestios e em processo de mestiagem, ou
de ndios, governados em geral por elites brancas, que exercem o
poder econmico de forma instvel, precria, satlite. Existe aqui uma
fluidez de comportamento, em pases que no da rea andina e
sobretudo no Brasil, Caribe, Amrica Central, Venezuela bem facil-
mente identificvel.268 Somos filhos de raas cantadeiras e danari-
nas, observa Cmara Cascudo e, instintivamente, possumos simpa-
tias naturais para essas atividades, inseparveis de nossa alegria, pois
canto e dana so expresses de uma alegria plena; a forma de uma
comunicao mais rpida, unnime e completa dentro do pas.269
O entendimento da Moda Caipira de razes em sua significao
cultural e artstica perfaz uma indagao potica de Mrio de Andrade,
traduzida no Lundu do Escritor Difcil, sobre o alheamento da arte
popular: Voc sabe o francs singe / mas no sabe o que guariba? /
Pois macaco, seu mano / que s sabe o que da estranja. s vezes
viajamos pela estranja, e conhecemos o quase-nada do Brasil. To-
dos os aparatos sociais dominantes insistem em empurrar a popula-
o entre o mar e a terra, ou a posicion-la de frente para o Atlntico,
numa indiscernvel nostalgia de uma nau cabralina, que j se foi em
boa hora no horizonte dalm mar. Entre os mais atingidos por esse
equvoco ou arremedo de elitismo est a originalidade ativa da arte e
dos artistas populares. Este pensamento fora traduzido nas palavras
do poeta-crtico e calgrafo da poesia Augusto de Campos: no h
por que subestimar a capacidade latente ou patente do povo para
entender ou fazer arte. O povo o inventa-lnguas, como disse Maiakvski.
268
Arte e Meio Artstico: entre a Feijoada e o X-Burger, p. 293.
269
Cascudo, Lus da Cmara. Literatura Oral no Brasil, p. 35.

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Se a tentativa de provincianizar a cultura das cidades, por mauvaise


conscience, artificial e frustrada (Trtski j o advertia, quando denun-
ciava como populismo reacionrio as frmulas de uma arte pseudo-prolet-
ria), preciso reconhecer a garra da inveno na arte autenticamente
popular, muito menos ingnua, muito mais elaborada e inteligente
do que alguns querem fazer crer.270 Com um vocabulrio restrito,
intuitivo e rude, mas de uma rudeza que est mais para o singelo e
nunca para a impolidez; com um discurso que, sobretudo, empresta
relevo s atraes fundamentais, mais significativas, o que em si reve-
la um refinamento de poder de sntese na arte de narrar; com uma
exuberncia dada pelo carter ardente e impulsivo que condiciona a
contemplao da vida a um fulgor exemplar, a Moda Caipira de razes
segue seu caminho, simptico e persistente. A poesia popular caipira,
com a licena de uma linguagem figurada, possui o cheiro primrio de
plantaes e criaes num ermo de terra fofa contemplado pela chuva.
escritura concebida para o canto, por mos e tinos de artistas caleja-
dos, speros, como as condies da vida rural brasileira, com ndulos
de terra da boa sob unhas duras, duradouras. Universal na essncia
do particular, portanto mtica, carrega com o homem e a mulher do
campo o mito da eterna esperana no ano que vem, na chuvarada que
tudo germina e viceja. E, assim, apresenta constituintes de padro
universal como nos oferecem os poetas de todos os tempos. Hauser,
ao questionar a rusticidade de algumas espcies de arte popular, racio-
cina: a maior parte das produes desta arte que tem chegado at ns
pressupe uma habilidade artstica que supera qualquer espcie de
diletantismo; inteiramente inconcebvel que tenha sido realizada
por artistas sem longa prtica e um completo treino profissional.271
Meu objetivo foi estudar a Moda Caipira em suas feies literrias.
Adotei como corpus a fortuna de expresses gravada em disco, averi-
guando sua funcionalidade como simuladora da cantoria. Desse modo,
vimo-la em sua condio re-presentativa, teatralmente vvida, entra-
nhadamente ldica, sonhadora e, pela possibilidade que lhe peculiar
de entrelaamento com o pblico, transformadora e edificante da
conscincia individual e coletiva. Enfocamos o fazer, o ser e o estar

270
Um Dia, Um Dado, Um Dedo. In: Campos, Augusto de. Verso Reverso
Contraverso, p. 262.
271
HAUSER, Arnold. Histria Social da Literatura e da Arte I, p. 212.

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potico da moda, na perspectiva de seu meio social. Sem querer ser


literria, no sentido beletrista e das alturas, despretensioso entrete-
nimento, para o cantador e ouvintes; jogo prazeroso, num rito de
encontros de indivduos e suas concepes de beleza. estmulo
para a entreajuda, e para a unio amistosa entre pessoas. Na ocupao
agradvel do jogo, no embalo dessa simulao imaginativa, o relgio
passa inadvertido para o caipira. Situa-o num tempo dissociado e
suspenso, o espao-tempo sem limites entre o pretrito e o que h de
vir. Enleva-o afetivamente no recanto mtico e etnolgico das repre-
sentaes simblicas. Sendo assim, a arte cumpriu um de seus papis
(por suposto um papel de menor importncia, para quem v e critica
a vida e a esttica estribado pelo exerccio compulsrio da nobreza): o
divertimento singelo e desinteressado. O caboclo ingnuo no tem
conscincia, e nem lhe faz falta saber que, nas cantorias sazonais das
colheitas e outros labores rurais (do qual o disco se faz simulacro), ele
repete outro rito importante, purificador, consagrador e simblico de
um recomeo, o recomeo da arte em estado de alvorada. Examinan-
do a expressividade da Moda Caipira de razes em fonogramas, veri-
ficamos como ela exerce o papel de sua prpria representao, no
ensejo da execuo viva, ao vivo, plangente, alegre e viosa, convicta e
dinmica. Isto extraordinrio, na dimenso de seu grande interesse
para as investigaes estticas, para a Literatura Comparada e para as
especulaes no campo da comunicao, embora seja corriqueiro, apou-
cado e mixuruca, na perspectiva das relaes primrias, ingnuas e
sentimentais, esse mundo em que o caipira habita, e que, no seu
lugar, tambm sabe ser literrio e musical, sua moda. Para essas
coisas difceis da cincia sofisticada dos signos e sua aplicao crtica, o
caipira no d a mnima confiana. Faz porque lhe dado o saber
fazer, aprendido no horizonte da tradio. Vale repetir: a moda viola
pela atualidade das coisas perenes, por no se desenlear do humano
em seu universal espao-tempo de vida, certamente um tempo e
espao muito antigos, defasados em relao cronologia que caracte-
riza o mundo da cidade.
Nos chamados tempos ps-modernos, em que o que parece evi-
dencia predominncias e expectativas sobre o ser das coisas e criaturas,
fatal e lastimvel que o autenticamente vincado pelo saber popular,
no mosaico de suas dimenses antropolgicas, emotivas, mticas,
ritualsticas, estticas, sofra o processo de uma sufocao que se expri-

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me em destrutiva eficcia: imensurvel o fascnio jovial e exuberan-


te, e a pirotecnia sedutora dos meios eletrnicos de comunicao,
sntese de uma estrutura de poder, a reafirmar que a beleza resume-se
no saciamento do efmero, do eficaz traduzvel em lucro, do superfi-
cial-utilitrio. Algumas academias compactuam com isto; para elas,
popular o contrrio de austeridade, seriedade, e sinnimo de mun-
dano, na pior acepo que possa ter essa palavra. A arte passou a ser
medida pelo valor de mercado, por sua possibilidade de troca materi-
al ou de status, neste mundo regressivo, de economia neoliberal con-
servadora. Transformou-se em guloseima, capaz de saciar uma fome
estomacal imediata. Esses dotes glamurosos no so facilmente
encontrveis na espontaneidade da literatura popular de antiga proce-
dncia. As chamadas leis de mercado perseguem convenincias pro-
dutivas de fcil e rpida assimilao por parte do consumidor. Quan-
to mais descartvel o produto da indstria de entretenimento, quan-
to mais imbudo de preceitos conservadores, mais ele se recicla nas
gndolas do comrcio. pontual, localizado no diapaso do ordin-
rio, desgrudado do passado longnquo e sem alcances de futuro. Na
contramo desse sistema, a expresso reflexiva e interiorizada da cul-
tura e, pois, interligada aos valores perenes, torna-se inconveniente se
so levadas em conta apenas as leis de mercado. H que existir, no
sistema econmico neoliberal, globalizado, com as caractersticas que
se consolidam no Brasil, mecanismos que garantam as expresses
culturais marcadas pela idia da persistncia. Mais do que nunca corre-
mos o risco de corroer ainda mais a nossa especificidade.
A moda caipira de razes se recusa a mediaes de embalagens, ao
planejamento e tretas, e camada cosmtica do marketing, que lhe
dariam a visibilidade de mercadoria atraente, rentvel. Contenta-se
com o bastante que , numa consagrao ritual que pode ser entendi-
da como mecanismo de resistncia. Resistncia instintiva quilo que
Goldmann explica com clareza: a economia mercantil, e em particu-
lar a economia capitalista, tende a substituir na conscincia dos pro-
dutores o valor de uso pelo valor de troca e as relaes humanas
concretas e significativas por relaes abstratas e universais entre ven-
dedores e compradores; tende, assim a substituir no conjunto da
vida humana o qualitativo pelo quantitativo.272 Perto desse fogo-f-
272
GOLDMANN, Lucien. Dialtica e Cultura, p. 125.

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tuo de uma belezura estril, que o superficial-utilitrio acima aludi-


do, o absolutamente humano, em sua limpidez e candura, a
grandiosidade do que meigo, com suas artrias plantadas no Mito
Agrrio da Terra-me, parecem inexoravelmente fora de moda. Afor-
tunadamente que no, pois o simplesmente humano que eterno;
o demais, fumo colorido que se dissipa, mesmo com leve brisa. Vale.

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IV REFERNCIAS
FONOGRFICAS

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Lder/Grav. Eltricas, s/d.
Luisinho e Limeira. Luisinho e Limeira. LP CALB 5092, RCA Victor,
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Vieira e Vieirinha. Gara Branca. LP-CH-3.107, Continental/Chantecler,
1966.
Vieira e Vieirinha. Minha Boiada. LP-CH-3.174, Continental/
Chantecler, 1967.
Tonico e Tinoco. As 12 Mais de Tonico e Tinoco. LP 2-11-405-588,
Chantecler, 1968.
Torres e Florncio. Os Grandes Sucessos. LP S-17004, Chantecler/Con-
tinental, 1968.
Tio Carreiro e Pardinho. Encantos da Natureza. LP 1-71-405-577,
Continental, 1968.
Z Carreiro e Carreirinho. Os Maiores Violeiros do Brasil. LP 01033,
Tropicana/CBS, 1970.
Vieira e Vieirinha. Sorrindo e Chorando, LP-CH-3.228, Continental/
Chantecler, 1970.
Z Carreiro e Carreirinho. Z Carreiro e Carreirinho. LP 106 0025, RCA-
Canden, 1970.
Vieira e Vieirinha. Beicinho Vermelho. LP -CH-3.231, Continental/
Chantecler, 1971.
Vieira e Vieirinha. Peo de Boiadeiro. LP-CLP-9.150, Continental/
Chantecler, 1973.
Vieira e Vieirinha. Os Bandeirantes de Gois. LP-CLP 9.162, Continen-
tal/Chantecler, 1973.
Tio Carreiro e Pardinho. Os Grandes Sucessos. LP 1-71-405-579, Con-
tinental, 1973.

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ROMILDO SANTANNA

Tio Carreiro e Pardinho. Boi Soberano. LP l-71-405-578, Continental,


1973.
Pedro Bento e Z da Estrada. Mgoas de Boiadeiro, LP 40961,
Copacabana, 1973.
Tio Carreiro e Pardinho. Modas de Viola Classe A, LP 1-71-405-581,
Continental, 1974.
Ouro e Pinguinho. Nosso Amor de Criana, LP 211405112, Chantecler/
Continental, 1975.
Vieira e Vieirinha. Boiadeiro de Gois, LP 1.03.405.177, Continental/
Chantecler, 1975.
Grupo Razes. Brejo das Almas. LP CGE-121.017. Crazy, 1976.
Vieira e Vieirinha. Danando a Catira, LP 103405200, Continental/
Chantecler, 1976.
Elis Regina. Elis, LP 6349 334, Philips, 1977.
Zita Carreiro e Carreirinho. Amor e Felicidade. LP 5392. Sabi, 1977.
Alvarenga e Ranchinho. Monumento da Msica Popular Brasileira. LP
052 422061M, Associao Brasileira dos Produtores de Discos /
MEC / FUNART/INM, 1977.
Tio Carreiro e Pardinho. Pagodes. LP 1-71-405-584, 1977.
Tonico e Tinoco. 35 Anos. LP 103501002, Continental, 1977.
Z Carreiro e Carreirinho. Canoeiro. LP 2-11-405-667, Chantecler, 1978.
Renato Teixeira. lbum de Famlia. LP MPA9379, Discos Marcus Perei-
ra, 1978.
Renato Teixeira. Romaria. LP 103.0231, RCA, 1978.
Renato Teixeira. Amora. LP 103.0287, RCA, 1979.
Vieira e Vieirinha. 30 Anos de Viola e Catira. LP-2.11.405.289, Conti-
nental/Chantecler, 1980.
Zita Carreiro e Carreirinho. A Autntica Msica Sertaneja. LP 2 11 405
410. Chantecler, 198l.
Rolando Boldrin. Vide Vida Marvada. Comp. 301.6033, RGE, 1981.
Lencio e Leonel. O Melhor de Lencio e Leonel. LP 226 705 145,
Chantecler, 1982.
Zita Carreiro e Carreirinho. Modas e Viola. LP 249343, Rancho, 1983.
Sertanejas que Marcaram. LP 106.2007, RCA, 1983.
Liu e Lu. Jeito de Caipira. LP GTL LP 1067, Tocantins, 1984.
Tio Carreiro e Pardinho. Modas de Viola Classe A (Vol. 4). LP l-71-
405-640, Continental, 1984.
Matogrosso e Mathias. 24 Horas de Amor. LP 2-11-405-651, Chantecler,
1984.

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Z Carreiro e Carreirinho. Os Grandes Sucessos. LP 2-11-405-667,


Chantecler, 1984.
Z Mato e Carreirinho. Doze Modas de Viola. K7 2 234. CID, 1985.
Tonico e Tinoco. Canoeiro. LP 2-11-405-694, Chantecler, 1985.
Tio Carreiro e Pardinho. Estrela de Ouro. LP 1.71.405.655, Continen-
tal, 1986.
Raul Torres e Florncio. Inesquecveis. LP 0-34-405.485, Phonodisc,
1988.
Vieira e Vieirinha. Vieira e Vieirinha. LP 0.034.405.574, Phonodisc,
1989.
A Arte da Viola - Vol. 4 - Cangao. LP INF-1004, Funarte/Instituto
Nacional do Folclore (pesq. e edio: Rosa Maria Zamith e
Elizabeth Travassos. Gravado ao vivo em Olinda [nov/87] e Rio
de Janeiro [mai/jun/88], 1989.
Gilberto Gil. O Eterno Deus Mudana. LP 670 8059, WEA, 1989.
Tonico e Tinoco. Viva a Viola. LP SALP 61039, Sabi, 1991.
Renato Teixeira & Pena Branca e Xavantinho. Ao Vivo em Tatu. CD
KCDS-053, Kuarup Discos, 1992.
Cezar & Paulinho. Cesar & Paulinho. LP 2-07-405-356, Chantecler,
1992.
Chrystian & Ralf. Chrystian & Ralf. CD 2.07.800.390, Chantecler/
Warner Music, 1993.
Tropiclia ou Panis et Circencis. CD 512 089-2, Philips, 1993.
Tio Carreiro e Pardinho. Som da Terra. CD 994878. Warner Music
Continental, 1994.
Chico Buarque. Paratodos. CD 7 43211 81632 8. RCA-BMG, 1994.
Helena Meireles. Helena Meireles. CD Gravadora Eldorado, 1994.
Zico & Zeca. Zico & Zeca Cantam Teddy Vieira. CD 179325-2.
Chantecler/Warner, 1994.
Raul Torres. Revivendo. CD LB-054, Revivendo, 1994.
Zilo e Zalo. Som da Terra. CD995050-2, Chantecler/Warner Music,
1994.
Msica Popular do Centro-oeste/Sudeste-4 (Lps 1973). Coleo Marcus
Pereira. CD MPA-10068, Discos Marcus Pereira, 1994.
Roberto Nunes Corra. Urboro, CD 107.384, Sony Music, 1994.
Pedro Bento & Z da Estrada. Som da Terra. CD 450999819-2,
Chantecler/Warner Music, 1995.
Z Gomes. Palavras Querem Dizer. CDS 1394, Caipirapira, 1995.
Tio Carreiro & Paraso. Um mais Um. CD C450999917-2, Phonodisc,
1995.

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Vieira & Vieira Jr. Dona de Mim. CD 063015288-2, Warner Music,


1996.
Pereira da Viola. Tawaran. CD Lapa 001, Lapa, 1996.
Cacique e Paj. Dose Dupla. CD 06301 7814-1, Chantecler/Warner
Music, 1997.
Grupo Corda & Voz. Grupo Corda & Voz. LP 67.82.0353, Estdio
Eldorado, s/d.
Ney Matogrosso. Pescador de Prolas, CD 850.006, Colmbia, s/d.

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