Yanomami

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VIOLNCIA E APAGAMENTO DA VOZ INDGENA NO BRASIL O CASO

YANOMAMI

Priscila Maria de Barros Borges1

Resumo: O presente texto apresenta discusso sobre a lacuna na Histria Oficial


brasileira que corresponde voz indgena, ainda hoje silenciada. Pretende demonstrar
que este silenciamento foi/ construdo atravs de violncias de vrias ordens ao
longo da constituio de nossa historiografia. Na atualidade as diversas minorias tm
promovido um movimento de contar sua prpria verso da Histria, atravs da
publicao de livros e produo de documentrios. Entre os povos indgenas no
diferente, exemplo disso o livro A queda do cu, assinado pelo xam e lder
yanomami Davi Kopenawa em parceria com o antroplogo Bruce Albert. A obra A
queda do cu, aqui brevemente interpretada luz dos conceitos de memria e
testemunho, dando destaque necessidade de que a voz indgena seja disseminada e
ouvida, principalmente entre a sociedade no-indgena.

Palavras-chave: memria indgena; violncia; testemunho; Yanomami.

Abstract: This paper presents discussion on the gap in the Brazilian Official History
which is the indigenous voice, still muted. It aims to demonstrate that this silencing was
/ is built through violence of various orders over the constitution of our historiography.
Nowadays the various minorities have promoted a movement to tell their own version
of history, through the publication of books and documentary production. Among
indigenous people is no different, example is the book The falling sky, signed by the
leader and shaman Davi Yanomami Kopenawa in partnership with the anthropologist
Bruce Albert. The work The falling sky, here briefly interpreted in the light of the
concepts of memory and testimony, highlighting the need for the indigenous voice is
heard and widespread, especially among the non-indigenous society.

Keywords: indigenous memory; violence; testimony; Yanomami.

1
Mestranda em Teoria da Literatura e Literatura Comparada junto ao Programa de Ps-Graduao em
Estudos Literrios (Pslit) da Faculdade de Letras da UFMG Universidade Federal de Minas Gerais. E-
mail: [email protected].
VIOLNCIA E APAGAMENTO DA VOZ INDGENA NO BRASIL O CASO YANOMAMI

1. Apagamento da voz indgena

Nossos maiores amavam suas prprias


palavras. Eram muito felizes assim. Suas
mentes no estavam fixadas noutro lugar. Os
dizeres dos brancos no tinham se
intrometido entre eles. Possuam seus
prprios pensamentos, voltados para os seus
[...]. Hoje, todas essas falas a respeito dos
brancos atrapalham nosso pensamento. A
floresta perdeu seu silncio. Palavras demais
nos vm das cidades. (Davi Kopenawa. A
queda do cu. 2015).

Desde a invaso de portugueses e espanhis ao nosso continente as


populaes originrias tm sido alvo de violncias de vrias ordens (fsica,
moral, religiosa, territorial etc.), entre elas o apagamento de sua voz perante a
Histria oficial. No caso brasileiro, os registros oficiais que temos dos
primeiros contatos entre europeus e brasileiros so aqueles escritos e
preservados pelos invasores, j que os diversos povos indgenas que aqui
viviam possuam outras tcnicas de preservao da memria (com forte
suporte na oralidade), bem como no possuam sistema de escrita alfabtica.
O pouco que nos chegou da voz indgena daquele tempo foi preservado
atravs de grafismos, cantos e narrativas orais, registros pouco confiveis do
ponto de vista da tradio intelectual ocidental, com forte nfase na escrita.

Ao longo da histria da colonizao do Brasil pelos portugueses a


perspectiva indgena foi sempre apresentada pelo colonizador. As polticas de
governo imputadas no Brasil a partir da chegada dos portugueses em 1500
foram extremamente danosas voz indgena, que se perpetuava na oralidade,
operando um apagamento real, fsico, um genocdio estruturado para a
dizimao dos povos indgenas. Guerras justas, epidemias, imposio da f
crist, proibio de uso de uma lngua prpria, e incitao de guerras tribais
foram as polticas de colonizao adotadas pela Coroa Portuguesa no sculo
XVI. Na poca da invaso portuguesa, a populao indgena do Brasil estava
na casa dos dois milhes (CUNHA, 1992); hoje, segundo dados do IBGE
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(censo 2010) a populao indgena brasileira de pouco mais de 817 mil


habitantes. O Estado republicano brasileiro tambm no se mostrou favorvel
aos povos originais e deu continuidade aos projetos de colonizao iniciado
pelos portugueses. Alm das violncias fsicas, assassinatos e epidemias,
percebemos no processo do contato uma forte violncia de ordem simblica. O
projeto de converso ao cristianismo foi operado desde o incio pelos jesutas,
e continua at hoje. Poderamos citar, ainda, como violncia simblica os
vrios esforos de contato empreendidos por governos, estudiosos e sociedade
envolvente. A introduo de mercadorias nas comunidades indgenas, iniciada
em 1500, ainda prtica nas polticas indigenistas brasileiras2.

Maria Ins de Almeida (2004) fala sobre a recente insero dos


chamados Livros da Floresta na historiografia literria brasileira, e a
importncia para a reconstruo da memria indgena no Brasil, embora
tambm se construa sobre os escombros da sua histria, sobre o
esquecimento do seu passado (ALMEIDA; QUEIROZ, 2004, p. 201). Nesse
contexto, de grande importncia a recm publicao, em lngua portuguesa3,
da obra A Queda do Cu (KOPENAWA, 2015), que relata a violncia sofrida
pelo povo Yanomami, a partir do contato com o homem branco nas primeiras
dcadas do sculo XX, na perspectiva indgena. O antroplogo Eduardo
Viveiros de Castro, que prefacia a edio brasileira do livro, o considera como
um acontecimento cientfico incontestvel. Castro (2002, 2015) tem
evidenciado a contribuio das metafsicas amerndias para a cincia ocidental,
mais especificamente sua contribuio antropologia. Ele afirma que temos a
obrigao de levar absolutamente a srio o que dizem os ndios pela voz de
Davi Kopenawa os ndios e todos os demais povos menores do planeta, as
minorias extranacionais que ainda resistem total dissoluo pelo liquidificador
modernizante do Ocidente (CASTRO apud KOPENAWA, 2015, p.15).

2
A esse respeito temos o documentrio Paralelo 10, realizado por Silvio Da-Rin, que retrata o
sertanista Jos Carlos Meirelles, na condio de consultor da FUNAI, na tentativa de fazer
contato com os isolados no Acre. As filmagens foram realizadas em 2010. Trailer oficial
disponvel em: https://www.youtube.com/watch?v=T2XmlV205As. Acesso em: 09. nov. 2015.
3
O livro foi primeiramente publicado em francs (La chute du ciel, 2010), e posteriormente em
ingls (The falling sky, 2013).
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2. Elementos para uma teoria

Para discutir a memria indgena no Brasil torna-se imprescindvel


pensarmos na transmisso oral do conhecimento e no reconhecimento de uma
definio ampliada de documento, isso para que seja possvel ir preenchendo
as lacunas na Histria oficial, que correspondem justamente ao ponto de vista
dos povos originrios. De igual importncia so os aspectos relacionados s
ideias de testemunho e memria coletiva, bem como da relao de foras entre
histria oficial e a voz dos esquecidos. O esquecimento do trauma indgena
pela sociedade brasileira no gratuito. A ideia de uma memria coletiva, de
acordo com Le Goff (1992), est no centro das lutas pelo poder; e a
manipulao daquilo que deve ser lembrado e esquecido uma das
preocupaes das classes dominantes. Os esquecimentos e os silncios da
histria so reveladores destes mecanismos de manipulao da memria
coletiva (LE GOFF, 1992, p. 422). Os povos indgenas, enquanto habitantes
originrios destes territrios, foram sempre um empecilho nos projetos de
colonizao do governo brasileiro. Dessa forma, ao mesmo tempo em que
foram impedidos de contar sua prpria histria, ficaram sujeitos que a contasse
outros e que se criassem esteretipos como muita terra para pouco ndio, uma
tentativa de esconder a realidade brasileira, em que populaes indgenas
(algumas numerosas, outras muito dizimadas) lutam para manter seu modo de
vida tradicional.

A queda do cu, do Yanomami Davi Kopenawa, um texto narrado em


primeira pessoa, podendo ser classificado entre as autobiografias, mas
certamente no como uma biografia tradicional. Segundo Davi Kopenawa, em
um Seminrio realizado na Faculdade de Educao da UFMG em 23 de
novembro de 20154, para a composio do livro ele e Bruce Albert estiveram
reunidos durante uma semana na aldeia, momento em que as histrias foram
registradas em um gravador. Em seguida, Albert teria transcrito as gravaes,
4
Palavras de um xam yanomami realizado pelo Observatrio da Educao Escolar Indgena
com apoio do IEAT (Instituto Estudos Avanados Transdisciplinares.
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para que posteriormente os dois juntos fizessem a reviso. Este procedimento


aponta para a metodologia de projetos de Histria Oral, o que no nos espanta,
dada a dimenso de coletividade apresentada pela voz de Davi. Devido
natureza traumtica das vivncias e experincias relatadas, o contedo de A
queda do cu pode ser abordado, tambm, a partir do conceito de testemunho.
Seligmann-Silva (2001), ao discutir sobre as caractersticas de Testimonio e
sua insero no contexto da Amrica Latina, indica que o ponto de partida so
as experincias histricas da ditadura, da explorao econmica, da represso
s minorias tnicas, s mulheres e, nos ltimos anos, aos homossexuais
(2001, p. 122). Michael Taussig (1993) reflete sobre os espaos da morte, e
sobre o papel do terror na dominao colonial. Podemos pensar no espao da
morte como uma soleira que permite a iluminao, bem como a extino. De
vez em quando uma pessoa atravessa e volta at ns para dar seu
depoimento (TAUSSIG, 1993, p. 26). Taussig tambm apresenta reflexes
sobre o xamanismo enquanto cura para o trauma. Esse bem o caminho de
Davi Kopenawa: testemunha e vtima do terror, esteve ele prprio no espao da
morte, tendo caminhado no extino, mas iluminao, como liderana e
como um xam yanomami.

3. Histrico do contato o caso Yanomami

Os Yanomami viveram relativamente isolados do contato com o homem


branco at o final do sculo XIX. Em territrio brasileiro os primeiros contatos
foram com soldados da Comisso Brasileira de Demarcao de Limites, no
incio do sculo XX. Por volta da dcada de 1940 tm incio as aes do SPI
(Servio de Proteo ao ndio) na regio yanomami, havendo, a partir da, mais
contatos entre os indgenas e funcionrios do governo. Tambm neste perodo
tem incio a interveno das misses protestantes e catlicas entre este povo
indgena. Estas primeiras misses, de acordo com o relato exposto por Davi
Kopenawa, foram altamente nocivas ao Yanomami:

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Foi ento que comearam a nos amedrontar com as palavras


de Teosi, e a nos ameaar constantemente: No masquem
folhas de tabaco! pecado, sua boca vai ficar queimada! No
bebam o p de ykoana, seu peito ficar enegrecido de
pecado! No riam e no copulem com as mulheres dos outros,
sujo! Teosi s ficar satisfeito com vocs se responderem a
ele! (KOPENAWA, 2015, p. 256).

A tentativa de converso uma grande violncia. As chantagens e as


ameaas de ordem moral e religiosa so constantes nestes processos de
converso, momento em que os xams so alvos de duras crticas, como relata
Davi: Diziam-lhes sem parar que eram maus e que seu peito era sujo.
Chamavam-nos de ignorantes. E ameaavam sempre: parem de fazer danas
seus espritos da floresta, isso mau! So demnios que Teosi rejeitou!
(KOPENAWA, 2015, p. 257). Logo muitos Yanomamis se converteram,
inclusive o padrasto de Davi, que era tambm um xam.

Outras frentes de interveno no territrio Yanomami aconteceram com


a construo da estrada Perimetral Norte na dcada de 1970 e a corrida do
ouro a partir da dcada posterior. A Perimetral Norte, ou BR-210, foi planejada
pela poltica desenvolvimentista do regime militar, e tinha como objetivos
principais a ligao entre partes isoladas do pas (interligao dos estados de
Amap, Roraima e Amazonas) e ainda garantir soberania nesta regio de
fronteiras. A construo da estrada (cujo traado planejado nunca foi
completado) acarretou a dizimao de aldeias yanomamis que se localizavam
em suas proximidades. Nesta poca, Davi Kopenawa, ento com 20 anos, vai
trabalhar como intrprete da Funai, e assim comea sua maior interao com o
mundo dos brancos, bem como comea a perceber as reais intenes do
governo brasileiro para aquelas terras. O regime militar tinha planos de dividir
as terras yanomamis em 21 ilhas cercadas de colonizao como nos informa
Bruce Albert em nota5 e em 1977 tentou promulgar o desmembramento do
territrio Yanomami.

5
Nesta poca Bruce Albert fazia parte da CCPY - Comisso Pr-Yanomami - e acompanhou
de perto este processo.
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Na dcada seguinte, tem incio a corrida do ouro e a invaso de milhares


de garimpeiros, que promoveram uma grande violncia destruindo a floresta,
base da vida e sade Yanomami. Os garimpeiros sujaram a floresta para
valer. Ela ficou impregnada de fumaa de epidemia e fomos pegos num frenesi
de morte (KOPENAWA, 2015, p. 225). Os garimpeiros foram protagonistas de
grandes violncias contra os indgenas; um episdio bastante conhecido foi o
Massacre de Haximu, ocorrido em 1993, quando 16 yanomamis (entre homens,
mulheres, crianas e idosos) foram mortos por 22 garimpeiros. O massacre de
Haximu foi confirmado como crime de genocdio pelo Supremo Tribunal de
Justia em 2006.

4. A queda do cu

A obra A queda do cu, assinada pelo xam yanomami Davi Kopenawa


e pelo antroplogo Bruce Albert, fruto de mais de 20 anos de contato e
trabalho entre esses dois estudiosos. No livro se misturam vrios eus do autor:
um Davi principal, que narra por completo sua histria pessoal, sua infncia, o
contato com o branco, a iniciao xamnica na juventude, as violncias
vivenciadas, a luta pelos direitos territoriais dos yanomamis no Brasil e a
insero no movimento indgena; esta voz constituda por vivncias, fatos dos
quais ele foi protagonista e/ou testemunha. Tambm aparece a voz da
liderana indgena, que em sua atuao poltica critica duramente o modo de
vida do homem branco e os malefcios acarretados, que atingem no s os
povos indgenas, mas todas as formas de vida do planeta. H ainda uma
terceira voz, a do xam, que sonha, revela, cura e nos ensina sobre os
espritos, sobre como proceder para o bem viver.

Leonor Arfuch (2009) considera a autobiografia como um gnero ligado


ao surgimento do sujeito moderno, ao desejo de identidade, veridio e
posteridade (ARFUCH, 2009, p. 113). Na autobiografia de Kopenawa,
percebe-se mais a resposta a uma demanda coletiva, do que o desejo
individual de reconhecimento e posteridade. Arfuch marca a articulao entre o
individual e o social, entendendo que s existe um eu frente a um voc, e se
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apenas somos em relao com outros, pouco haver de verdadeiramente


individual em uma biografia, a trama ser indissocivel do meio, do grupo, da
comunidade (ARFUCH, 2009, p. 120). Isso fica evidente em A Queda do cu,
onde os relatos propriamente pessoais (a infncia, os acontecimentos
vivenciados) se misturam a um relato da comunidade como um todo
(experincias memrias vivenciadas e transmitidas pelos mais velhos
principalmente por seu padrasto e por seu sogro e por yanomamis de outras
casas). Os relatos propriamente biogrficos se misturam ao relato de fatos
histricos importantes na Histria recente do pas. Os fatos histricos
aparecem tanto na pessoalidade de Kopenawa (que os aborda sobre seu ponto
de vista) quanto no endosso formalizado por Bruce Albert por meio de notas
que perpassam todo o texto. H tambm a presena de trechos de documentos
oficiais produzidos na poca dos acontecidos.

Em cenrios de luta poltica, o critrio de atribuio de verdade


a um texto expresso de um posicionamento dentro da luta. A
autobiografia pode assumir um papel de mediao, instrumento
de confronto, em que a experincia individual atua como
fundamento para interpretar e discutir a experincia coletiva
(GINZBURG, 2009, p. 124).

O trabalho de Ginzburg aponta para uma ruptura com essa concepo


afirmativa de biografia (com tendncia a atribuir maior veracidade a estes
relatos em primeira pessoa), incorporando, a partir de Foucault, elementos do
materialismo marxista, da psicanlise de Freud e da crtica ao conhecimento de
Nietzsche. Isso permite a Ginzburg elaborar algumas hipteses para a teoria da
autobiografia, por exemplo: quando a autoria de um texto autobiogrfico
estiver associada a uma situao de dominao econmica e desigualdade de
classes, o esforo de conhecimento de si mesmo pode corresponder a um
confronto com as categorias de pensamento valorizadas pela classe
dominante (GINZBURG, 2009, p. 130). Isso fica claro no trabalho de
Kopenawa aqui abordado, onde o confronto principal se d entre o pensamento

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desenvolvimentista do Estado brasileiro e o preservacionista dos Yanomami,


que possuem uma relao ntima e misteriosa com a floresta.

Eduardo Viveiros de Castro, no prefcio de A queda do cu, classifica a


obra enquanto um depoimento-profecia, o que se evidencia pela posio de
xam ocupada por Kopenawa. O fato de ser um xam, de beber o p ykoana
e ver os xapiris (espritos) que conferem autencidade s palavras de Davi
Kopenawa. Ele se vale, tambm, das palavras dos mais velhos, dos grandes
homens (xams) de seu povo, como o caso de seu padrasto e de seu sogro.
Foi meu padrasto que me contou (KOPENAWA, 2015, p. 255). A ideia de
tica da responsabilidade de grande importncia para pensarmos a
constituio desse texto, construdo a partir de depoimentos dos mais velhos,
sonhos e revelaes feitas pelos espritos. Davi Kopenawa, enquanto liderana
yanomami, responde a e representa uma coletividade, sua fala a fala de seu
povo.

Seligmann-Silva (2001, p. 123) nos explica que a noo de testemunha


normalmente aplicada ao sobrevivente. Nesse sentido, Davi Kopenawa
testemunha primria, sobrevivente das tragdias que dizimaram boa parte da
populao Yanomami a partir do contato. A partir das caractersticas
apresentadas por Seligmann-Silva podemos identificar A queda do cu como
literatura de testimonio. A narrativa de Kopenawa apresenta-se como um
registro da histria (SELIGMANN-SILVA, 2001, p. 126), como o ponto de vista
outro, complementar histria oficial; sua fala responde necessidade de se
fazer justia, de se dar conta da exemplaridade do heroi e de se conquistar
uma voz para o subalterno (SELIGMANN-SILVA, 2001, p. 123). Outro
aspecto que Seligmann-Silva destaca em relao literatura de testemunho
a presena do mediador, papel que em A queda do cu desempenhado por
Bruce Albert. O texto fruto de conversas, entrevistas e gravaes realizadas
com Davi Kopenawa durante muitos anos. certo que o antroplogo foi
responsvel pela compilao escrita dos relatos orais do lder indgena, mas,
ainda assim, o texto mantm uma forte relao com a oralidade,
transparecendo o ritmo do pensamento e da fala do xam. A queda do cu, por
sua fora de testemunho e por sua contribuio histria recente do Brasil,

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merece se juntar a outros cnones da literatura de testimonio, como os citados


por Seligmann-Silva (2001).

5. Quem testemunha pelos Yanomamis?

Os Yanomamis entraram para a histria como um povo feroz,


principalmente devido contribuio de estudos etnogrficos como The fierce
people (1967), do norte-americano Napoleon Chagnon, um best-seller ainda
hoje adotado nos cursos de antropologia e que retrata uma sociedade
Yanomami violenta, onde a violncia motivada por vinganas e pelo controle
sobre os indivduos do sexo feminino. A presena de antroplogos entre os
Yanomamis (principalmente na regio da Venezuela), entre os anos de 1960 e
1970 desencadeou uma das mais srias polmicas envolvendo os limites
ticos da pesquisa etnogrfica, como descrito por Patrick Tierney em Trevas no
eldorado: como cientistas e jornalistas devastaram a Amaznia. O livro de
Tierney, publicado em 2002, reascende o debate, colocando novamente em
evidncia graves denncias que no tiveram nem a repercusso esperada e
muito menos a punio devida aos criminosos. As acusaes feitas ao
antroplogo francs Jacques Lizot giram em torno da pedofilia e do estmulo
prostituio, sendo acusado de trocar as mercadorias (faces, roupas etc.), to
caras e necessrias no universo yanomami, por favores sexuais. As
acusaes em torno do norte-americano Chagnon so igualmente graves. Ele
acusado de estimular as guerras entre diferentes grupos yanomami (e o
fornecimento e o controle sobre as mercadorias tm papel crucial nisso),
manipulando dados e filmagens na tentativa de comprovar sua teoria de
ferocidade do povo yanomami. acusado, tambm, juntamente com o mdico
geneticista James V. Neel (para quem Chagnon trabalhava), de dar incio a um
grande surto de sarampo entre os Yanomami da Venezuela em 1968, devido a

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experimentaes biomdicas6. Esta pesquisa tambm foi responsvel por


recolher material gentico yanomami, sem respeitar as ticas de pesquisas
biomdicas (consentimento informado), barganhando este material gentico
por presentes aos indgenas.

Por enquanto, os brancos continuam mentindo a nosso


respeito, dizendo: os Yanomami so ferozes. S pensam em
fazer guerra e roubar mulheres. So perigosos!. Tais palavras
so nossas inimigas e ns as odiamos. Se fssemos ferozes
de verdade, forasteiro algum jamais teria vivido entre ns. Ao
contrrio, tratamos com amizade os que vieram nossa terra
para nos visitar. Moraram em nossas casas e comeram nossa
comida. Essas palavras torcidas so mentiras de maus
convidados (KOPENAWA, 2015, p. 77).

Diante das polmicas levantadas pelo livro de Tierney7, foi lanado em


2013 o filme Segredos da tribo: guerra tribal na selva acadmica8, do cineasta
Jos Padilha9. O documentrio d voz aos diversos envolvidos nas acusaes
feitas por Tierney Patrick como tambm s populaes yanomami que
conviveram com os acusados. O filme, de certa forma, tambm uma tentativa
de reconciliao, j que apresenta os pontos de vista dos diversos atores
envolvidos (yanomamis, antroplogos, o prprio Tierney Patrick aparece como
depoente no documentrio de Padilha).

6. Memrias verdadeiras

Ento, entreguei a voc minhas palavras e pedi para lev-las longe,


para serem conhecidas pelos brancos, que no sabem nada sobre ns
(KOPENAWA, 2015, p. 63). O lanamento do livro de Davi Kopenawa algo

6 As pesquisas de Neel, segundo as denncias, foram financiadas pela Atomic Energy


Comission, dos EUA, e que as amostras de sangue coletadas foram utilizadas como grupo de
controle de estudos da radioatividade sobre sobreviventes das bombas de Hiroshima e
Nagasaki.
7
O livro traz acusaes tambm ao antroplogo Keneth Good, que teria se casado com uma
menina yanomami.
8
O documentrio est disponvel no Netflix, para assinantes. http://www.netflix.com.
9
Padilha autor de outros filmes polmicos, como nibus 174, Tropa de Elite e a recente
produo, junto com a Netflix, de Narcos srie que retrata a vida do traficante de drogas
Pablo Escobar.
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indito na sociedade yanomami, sendo a possibilidade de contar a prpria


histria diante das calnias e mistrios que sempre envolveram este povo
indgena frente s sociedades nacionais. Paradoxalmente, a escrita uma
aliada recente neste processo de retomada da voz prpria. Eu no tenho livros
como eles, nos quais esto desenhadas as histrias dos meus antepassados.
As palavras dos xapiri esto gravadas no meu pensamento, no mais fundo de
mim (KOPENAWA, 2015, p. 65). A transmisso do conhecimento nas
sociedades amerndias tradicionalmente realizada por vias da oralidade.
Quando eu era pequeno, costumava me falar dos ancestrais que viraram caa
no primeiro tempo. Contava-me tudo com zelo, durante a noite, enquanto eu,
deitado em minha rede, olhava o fogo que minha me soprava de tempos em
tempos. Ele no queria que eu crescesse na ignorncia (KOPENAWA, 2015,
p. 237)10. Os povos amerndios no precisam da escrita para lembrar, isso
torna a memria (aqui entendida como a capacidade de lembrar) mais forte.

Os brancos se dizem inteligentes. No o somos menos.


Nossos pensamentos se expandem em todas as direes e
nossas palavras so antigas e muitas. Elas vm de nossos
antepassados. Porm, no precisamos, como os brancos, de
peles de imagens para impedi-las de fugir da nossa mente.
No temos de desenh-las, como eles fazem com as suas.
Nem por isso elas iro desaparecer, pois ficam gravadas
dentro de ns. Por isso nossa memria longa e forte.
(KOPENAWA, 2015, p. 75).

Michael Pollak (1992), no texto Memria e identidade social, aponta


que a memria constituda por acontecimentos, personagens e lugares. Em
relao aos acontecimentos existem aqueles vividos pessoalmente (vivncia) e
aqueles vividos pela coletividade qual o indivduo faz parte (experincia),
esses ltimos so acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou
mas que, no imaginrio, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas,
quase impossvel saber se participou ou no (POLLAK, 1992, p. 2).
justamente o que percebemos no relato de Davi: ele fala com propriedade tanto
10
Aqui Davi se refere ao padrasto.
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dos fatos vivenciados por ele, quanto aqueles relatados por seus parentes mais
velhos e por yanomamis de outras casas11. A histria relatada pelo xam
apresenta dois personagens principais (alm dele prprio): seu padrasto e seu
sogro, dois grandes homens, dois xams, as vozes de veracidade invocadas
constantemente por Davi. Certamente, Davi Kopenawa Yanomami , ele
prprio, personagem protagonista da histria do movimento indigenista
brasileiro. Em relao ao terceiro elemento, os lugares, percebe-se que a
Floresta figura como aporte principal da memria relatada. Isso bem
interessante, pois os discursos anti-indigenistas querem fazer crer que a luta
sempre por terra, mas a fala de Davi em defesa da Floresta. O trauma e o
luto esto bastante presentes no relato desenvolvido por Davi. Percebe-se,
tambm, um rancor direcionado ao homem branco, marcas do contato entre
culturas to distintas e que sero difceis de serem apagadas. As violncias
vivenciadas, principalmente as situaes de epidemias, colocam a testemunha
naquele espao da morte revelado a Taussig (1993) por um xam colombiano.
A morte deixa de ser percebida como algo natural parte da vida para ser
vivenciada enquanto violncia e trauma:

Antigamente, antes dos brancos chegarem nossa floresta,


morria-se pouco. Um ou outro velho ou velha desapareciam, de
tempos em tempos, quando seus cabelos j tinham ficado
brancos, seus olhos cegos, suas carnes secas e flcidas (...).
Eram de fato poucas pessoas pelas quais se ouviam prantos
funerrios (KOPENAWA, 2015, pp. 175-176).

O genocdio indgena no foi realmente integrado identidade brasileira,


ns, enquanto nao, no sentimos esta dor, e a identificamos sempre dor de
um ndio histrico causada por colonizadores anteriores a ns mesmos. Uma
tentativa de conciliao empreendida pelo Estado brasileiro no caso dos
yanomami foi a regularizao da Terra Indgena. A resposta dos Yanomami
ao trauma (no caso de Davi Kopenawa, como representante dos yanomami do
Brasil) foi a mobilizao poltica. Hoje eles esto organizados atravs da

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As visitas a aldeias vizinhas e afastadas faz parte da dinmica social Yanomami, momentos
em que acontecem os dilogos cerimoniais, quando compartilham histrias, cantos,
experincias, etc.
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VIOLNCIA E APAGAMENTO DA VOZ INDGENA NO BRASIL O CASO YANOMAMI

Hutukara Associao Yanomami, instituio representada legalmente por Davi


Kopenawa.

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