LUKÁCS, G. Marxismo e Teoria Da Literatura
LUKÁCS, G. Marxismo e Teoria Da Literatura
LUKÁCS, G. Marxismo e Teoria Da Literatura
Sem um tal amor pela vida e pelos homens, amor que implica necessariamente o mais
profundo dio pela sociedade, pelas classes e pelos homens que os humilham e
ofendem, no pode surgir hoje no mundo capitalista um realismo verdadeiramente
grandioso. Este amor, bom como o dio que lhe complementar, levam o escritor a
descobrir a riqueza das relaes da vida humana e a representar o mundo do capitalismo
como uma incessante luta contra as foras que destroem e matam estas relaes
humanas. Mesmo quando, ao representar os homens que vivem hoje, o escritor mostra
que so miserveis fragmentos e caricaturas do verdadeiro homem, deve ter
experimentado em si mesmo, contudo, quais so as possibilidades de expanso e de
riqueza deste homem verdadeiro; s assim poder ver e representar as caricaturas como
caricaturas, extraindo da mutilao do homem em fragmentos uma atitude de luta contra
o mundo que, dia a dia, hora a hora, reproduz esta mutilao.
Ao contrrio, os escritores que nem veem nem vivem este processo, e que
descrevem o mundo do capitalismo (ainda que o recusando no plano poltico-social) tal
como ele aparece imediatamente, capitulam precisamente como escritores diante da
fatalidade de tal situao. por isto que o costume em moda na literatura da
decadncia ou seja, o de retratar os resultados finais da deformao capitalista do
homem, acrescentando-lhes expresses elegacas ou desdenhosas serve apenas para
fixar a aparncia superficial, ornando-a com comentrios que no tocam, nem podem
tocar, a substncia das coisas. apesar da extraordinria variedade exterior dos temas e
dos modos de desenvolv-los, encontramos nesta aproximao de falsa objetividade
porque morta e de falsa subjetividade porque vazia a velha definio marxiana
da ideologia da decadncia: imediatismo e escolstica. (LUKCS, G. Marx e o
problema da decadncia ideolgica. In: ______. Marxismo e teoria da literatura. 2. ed.
Trad. Carlos Nelson Coutinho. So Paulo: Expresso Popular, 2010, p. 85)
A fecundidade dos conflitos tratados numa narrao tem seu fundamento, igualmente,
nesta veracidade (objetiva) e nesta segurana (subjetiva) do critrio de medida. To
somente quando o escritor sabe e intui, exata e seguramente, o que essencial e o que
secundrio, s ento estar em condies, tambm no plano literrio, de expressar o
essencial e de figurar, a partir de um destino individual, o destino tpico de uma classe,
de uma gerao, de toda uma poca. E, se o escritor abandona este critrio de medida,
perde-se ao mesmo tempo a mtua relao viva entre privado e social, entre individual e
tpico. O elemento social, abstratamente captado, no pode absolutamente se encarnar
em homens vivos, permanecendo algo pobre, rido, abstrato, no potico. E, por outro
lado, a literatura decadente costuma hipostasiar em destinos csmicos as tolices mais
fteis, de carter patolgico e puramente privado, do mundo pequeno-burgus. Em
ambos os extremos, predominam a mesma pobreza e a mesma anemia literrias. ao
contrrio, quanto est presente este critrio de medida, um evento aparentemente
insignificante pode explicitar, nas mos de um grande escritor, uma riqueza infinita de
determinaes humanas e sociais. Tambm aqui se revela verdadeira nossa afirmao: o
relativismo pobreza, enquanto a dialtica viva riqueza. (LUKCS, G. Marx e o
problema da decadncia ideolgica. In: ______. Marxismo e teoria da literatura. 2. ed.
Trad. Carlos Nelson Coutinho. So Paulo: Expresso Popular, 2010, p. 102)
O que queremos dizer quando afirmamos ver no grande escritor o tipo de tribuno em
oposio ao do burocrata? No queremos absolutamente indicar, sempre e
necessariamente, uma tomada de posio poltica diante das questes postas na ordem
do dia, e menos ainda a adeso a um dos partidos em luta num dado perodo, partido do
qual se proclamariam, em forma literria, as diretrizes. Isto no ocorre em muitos
escritores, precisamente entre os maiores. Ao contrrio: seu tribunato, seu
partidarismo, no sentido leniniano da palavra, pode frequentemente se manifestar
precisamente atravs do repdio s divises polticas existentes. Isto ocorre quando o
repdio se apoia no fato de que um Lessing, na Alemanha, ou um Shelley, na Inglaterra,
no reconhecem em nenhum dos partidos, agrupamentos ou correntes existentes a
capacidade de representar a grande causa do povo, da nao, da liberdade, qual
dedicaram sua vida e sua obra. O que importa esta dedicao, sua profundidade
ideolgica e artstica, a solidez das ligaes que a enrazam nos desejos e nas
esperanas, nas alegrias e nas tristezas do povo trabalhador. (LUKCS, G. Tribuno do
povo ou burocrata? In: ______. Marxismo e teoria da literatura. 2. ed. Trad. Carlos
Nelson Coutinho. So Paulo: Expresso Popular, 2010, p. 124)
O segredo dos pontos arquimdicos consiste em que, nos escritores que se elevaram a
tal atitude, o amor inquebrantvel pelo povo e pela vida, a confiana no progresso da
humanidade e a ntima vinculao aos problemas de sua prpria poca, no so
anulados pela expresso intrpida e corajosa de tudo o que existe, pela crtica mais
radical da desumanidade da vida capitalista. Manter os olhos abertos a tudo e, apesar
disso, amar a vida: eis um paradoxo presente em toda sociedade classista, uma
contradio dialtica que pde, todavia, por muito tempo, exercer uma fecunda
influncia criadora. Somente quando estas contradies se aprofundam, a ponto de se
transformarem num ou-ou sem sada, que os escritores se encontram em face de um
dilema trgico e que se abre o perodo da tragdia da arte.
Com efeito, somente a interao fecunda dos dois fatores contraditrios, a
aceitao e a condenao, impede que o trabalho do artista em sua obra, a elaborao
dos meios estticos visando perfeio clssica, degenera em especialismo. Somente
o amor pela vida confere despreconceituosa veracidade do artista, em tudo o que
acolhe e expressa, horizontes vastos e profundos. Todavia, quando surge uma situao
social na qual o artista obrigado a odiar e a desprezar a vida, ou comea mesmo a lhe
dirigir um olhar indiferente, ento a verdade das melhores observaes se empobrece;
superfcie e essncia da vida humana divergem uma da outra, j que a primeira se
esvazia e somente pode ser reavivada atravs de acrscimos alheios substncia, ao
passo que a segunda se abstrai da vida e se torna trivial ou se enche de uma falsa
profundidade puramente subjetiva (para desfazer qualquer equvoco, deve-se sublinhar
expressamente que o dio indignado com o qual Tchedrin ou Swift trataram a ordem
social de sua poca possui natureza inteiramente diversa. Ambos, de modo diverso de
acordo com o perodo histrico, souberam amar a humanidade e a vida, inclusive nesse
dio e precisamente por meio dele).
H um outro aspecto da questo: quando se alcana este distanciamento, quando
a sociedade apaga o amor pela vida, a arte adquire | uma lamentvel autonomia com
relao vida; arte e vida se separam e se enfrentam de modo hostil. A autonomia ,
para a arte, a atmosfera indispensvel sua existncia. Mas h autonomia e autonomia.
H aquela que um momento da vida, que exaltao da sua riqueza e da sua unidade
contraditria; e h aquela que no passa de um enrijecimento, de um estril fechamento
em si mesma, de um alheamento em face da totalidade dinmica. (LUKCS, G.
Tribuno do povo ou burocrata? In: ______. Marxismo e teoria da literatura. 2. ed. Trad.
Carlos Nelson Coutinho. So Paulo: Expresso Popular, 2010, p. 126-127)
Esta verdade do processo social tambm a verdade dos destinos individuais. Mas em
que e de que modo esta verdade se torna visvel? Ora, claro que no somente para a
cincia e para a poltica fundada em bases cientficas, mas tambm para o conhecimento
prtico do homem na sua vida cotidiana essa verdade da vida s pode se manifestar
na prxis, no conjunto dos atos e aes do homem. As palavras dos homens, seus
pensamentos e sentimentos puramente subjetivos, revelam-se verdadeiros ou no
verdadeiros, sinceros ou insinceros, grandes ou limitados, quando se traduzem na
prtica, ou seja, quando as aes dos homens os confirmam ou os desmentem no
contato com a realidade. S a prxis humana pode expressar concretamente a essncia
do homem. Quem forte? Quem bom? Perguntas como estas so respondidas somente
pela prxis.
apenas atravs da prxis que os homens adquirem interesse uns para os outros
e se tornam dignos de ser tomados como objetos da representao literria. A prova que
confirma os traos importantes do carter do homem ou evidencia o seu fracasso no
pode encontrar outra | expresso que no os atos, os comportamentos, a prxis.
(LUKCS, G. Narrar ou descrever? In: ______. Marxismo e teoria da literatura. 2. ed.
Trad. Carlos Nelson Coutinho. So Paulo: Expresso Popular, 2010, p. 161-162)
E o interesse que tem a reunio de vrias aes numa concatenao orgnica tambm
devido fundamentalmente ao fato de que, nas mais diversas e vrias aventuras, se
manifesta continuamente o mesmo trao tpico de um carter humano. Quer se trate de
Ulisses ou de Gil Blas, essa a razo humana e potica do imperecvel vio de uma
sucesso de aventuras. E o fator decisivo naturalmente o homem, a revelao dos
traos essenciais da vida humana. O que nos interessa ver como Ulisses ou Gil Blas,
Moll Flanders ou Dom Quixote reagem diante dos grandes acontecimentos de suas
vidas, como enfrentam os perigos, como superam os obstculos e como os traos que
tornam interessantes e significativas suas personalidades se desenvolvem de modo cada
vez mais amplo e profundo na ao.
Se no revelam traos humanos essenciais, se no expressam as relaes
orgnicas entre os homens e os acontecimentos, entre os homens e o mundo exterior, as
coisas, as foras naturais e as instituies sociais, at mesmo as aventuras mais
extraordinrias tornam-se vazias e destitudas de contedo. necessrio no esquecer
que, na realidade, toda ao ainda que no revele traos humanos tpicos e essenciais
contm sempre em si o esquema abstrato (embora deformado e esmaecido) da prxis
humana. por isso que exposies esquemticas de aes de aventuras nas quais
aparecem apenas sombras humanas podem, apesar disso, despertar transitoriamente
certo interesse: o caso, por exemplo, dos romances de cavalaria ou, em nossos dias,
dos romances policiais. A eficcia destes romances revela uma das razes mais
profundas do interesse dos homens pela literatura, que o interesse pela riqueza e
variedade de cores, pela variabilidade e multiplicidade de aspectos da experincia
humana. Se a literatura artstica de uma poca no consegue encontrar a conexo
existente entre a prxis e a riqueza de desenvolvimento da vida ntima das figuras
tpicas de seu prprio tempo, o interesse do pblico se refugia em sucedneos abstratos
e esquemticos. (LUKCS, G. Narrar ou descrever? In: ______. Marxismo e teoria da
literatura. 2. ed. Trad. Carlos Nelson Coutinho. So Paulo: Expresso Popular, 2010, p.
162)
Esta poesia a poesia dos homens que lutam, a poesia das relaes inter-humanas, das
experincias e aes reais dos homens. Sem essa poesia imanente no pode haver
narrativa autntica, no pode ser elaborada nenhuma composio pica apta a despertar
interesses humanos, a fortalec-los e aviv-los. a arte pica e, naturalmente, tambm
a arte do romance consiste na descoberta dos traos atuais e significativos da prxis
social. O homem quer obter na literatura narrativa a imagem clara da sua prxis social.
A arte do autor pico reside precisamente na justa distribuio dos pesos, na acentuao
apropriada do essencial. A sua ao tanto mais geral e empolgante quanto mais este
elemento essencial o homem e sua prxis social se manifesta no na forma de um
rebuscado produto artificial virtuosstico, mas como algo que nasce e cresce
naturalmente, ou seja, como algo que no inventado e, sim, apenas descoberto.
(LUKCS, G. Narrar ou descrever? In: ______. Marxismo e teoria da literatura. 2. ed.
Trad. Carlos Nelson Coutinho. So Paulo: Expresso Popular, 2010, p. 164)
verdade que o leitor, enquanto l, ainda desconhece o final. Ele se defronta com uma
grande quantidade de detalhes cuja significao e importncia nem sempre pode avaliar
de imediato. Trata-se de elementos que lhe suscitam pressentimentos que o curso
ulterior da narrao poder ou no confirmar. Mas o leitor guiado pelo autor atravs
da variedade e multiplicidade de aspectos do enredo; e o autor, em sua oniscincia,
conhece o significado especial de cada mnimo detalhe para a soluo definitiva, para o
desenvolvimento definitivo dos personagens e s lhe interessam os detalhes que
podem desempenhar esta funo no conjunto da ao. A oniscincia do autor d
segurana ao leitor e permite que ele se instale com familiaridade no mundo da poesia.
Mesmo no sabendo antecipadamente o que acontecer, o leitor pode pressentir com
suficiente exatido o caminho para o qual tendem os acontecimentos em decorrncia da
lgica interna e da necessidade interior existentes no desenvolvimento dos personagens.
De fato, o leitor no sabe tudo sobre o desenvolvimento da ao e a evoluo a ser
sofrida pelos personagens; em geral, contudo, sabe mais do que os prprios
personagens. |
verdade que, no curso da narrao, e medida que seus momentos essenciais
vo sendo revelados, os detalhes ganham nova luz. (LUKCS, G. Narrar ou
descrever? In: ______. Marxismo e teoria da literatura. 2. ed. Trad. Carlos Nelson
Coutinho. So Paulo: Expresso Popular, 2010, p. 166-167)
O verdadeiro estmulo dado pela leitura de um romance aquele que nos leva a uma
espera impaciente da evoluo de personagens que j nos so familiares, do seu xito ou
do seu fracasso. por isso que, na grande arte pica, o fim pode at ser antecipado
desde o princpio. Basta pensar nos exrdios dos poe|mas homricos, que resumem com
brevidade o contedo e a concluso da narrao.
Como se explica, ento, que a tenso continue a reinar? A tenso certamente no
consiste na curiosidade esttica de ver como o artista se desincumbir da tarefa
prefixada. Consiste, ao contrrio, na curiosidade bem humana de saber que iniciativas
dever tomar Ulisses e que obstculos dever ainda superar para alcanar uma meta que
j conhecemos. Tambm na novela de Tolstoi h pouco referida, o leitor sabe com
antecedncia que o amor do narrador no o levar ao casamento. A tenso no reside,
portanto, no desejo de saber o que acontecer finalmente com esse amor, mas no desejo
de saber como chegou a se formar aquele esprito de irnica e madura superioridade,
que j se fez notar como caracterstico do personagem que narra os acontecimentos. Por
conseguinte, a tenso prpria da obra de arte verdadeiramente pica refere-se sempre a
destinos humanos. (LUKCS, G. Narrar ou descrever? In: ______. Marxismo e teoria
da literatura. 2. ed. Trad. Carlos Nelson Coutinho. So Paulo: Expresso Popular, 2010,
p. 167-168)
Mas o escritor precisa ter uma concepo do mundo slida e profunda; precisa ver o
mundo em seu carter contraditrio para ser capaz de selecionar como protagonista um
ser humano em cujo destino se cruzem os contrrios. As concepes do mundo prprias
dos grandes escritores so variadssimas e ainda mais variados so os modos pelos quais
elas se manifestam no plano da composio pica. Na verdade, quanto mais uma
concepo do mundo profunda, diferenciada, alimentada por experincias concretas,
tanto mais variada e multifacetada pode se tornar a sua expresso compositiva.
Mas no h composio sem concepo do mundo. (LUKCS, G. Narrar ou
descrever? In: ______. Marxismo e teoria da literatura. 2. ed. Trad. Carlos Nelson
Coutinho. So Paulo: Expresso Popular, 2010, p. 179)
Sem uma concepo do mundo no se pode narrar bem, ou seja, construir uma
composio pica ordenada, variada e completa. A observao e a descrio constituem
precisamente um sucedneo, destinado a suprir a falta, na mente do escritor, de uma
imagem da dinmica da vida. (LUKCS, G. Narrar ou descrever? In: ______.
Marxismo e teoria da literatura. 2. ed. Trad. Carlos Nelson Coutinho. So Paulo:
Expresso Popular, 2010, p. 181)
precisamente esta a razo pela qual a elaborao de uma ntida e profunda fisionomia
intelectual desempenha funo to decisiva na representao do tipo. O alto nvel
espiritual do heri, que se eleva lcida conscincia do prprio destino, necessrio
sobretudo para retirar s situaes a sua excepcionalidade, expressando assim o
elemento universal sobre o qual eles apoiam, o qual a manifestao dos contrastes em
seu estgio mais alto e mais puro. De fato, verdade que a situao excepcional implica
em si estes contrastes, mas para passar do em si ao para ns absolutamente
indispensvel que os personagens reflitam sobre suas prprias aes. As formas de
reflexo normais, cotidianas, so insuficientes. preciso atingir a altitude da qual
falamos, seja objetivamente na elevao do pensamento, seja subjetivamente
na ligao das reflexes com a situao, com o carter e com as experincias do
personagem. (LUKCS, G. A fisionomia intelectual dos personagens artsticos. In:
______. Marxismo e teoria da literatura. 2. ed. Trad. Carlos Nelson Coutinho. So
Paulo: Expresso Popular, 2010, p. 197)
Em nossos dias a questo acima formulada [Arte livre ou arte dirigida?] considerada
por todos uma questo importante, atual e sobretudo delicada. Precisamente por ser
delicada, no devemos evit-la; preciso dar-lhe uma resposta franca e clara. Mas, se
nos contentarmos em procurar os caminhos para a soluo unicamente no plano das
questes e das respostas habituais em nossos dias, no sairemos como para todas as
questes importantes de nossa poca do labirinto das falsas alternativas.
A falsa alternativa mais amplamente difundida hoje pode ser formulada do
seguinte modo. Afirma-se, por um lado, que a arte e a literatura so apenas propaganda
(eventualmente sob a reserva de que se trata de uma propaganda feita com meios
particulares). A tarefa exclusiva da arte seria a de tomar posio nas lutas da poca, da
sociedade, das classes sociais; de favorecer a vitria social de uma determinada
tendncia, a soluo de um problema social. Tudo o que ultrapasse esta meta j pertence
arte pela arte, fuga na torre de marfim etc.; e, como tal, deve ser
incondicionalmente rejeitado. No panorama internacional, Upton Sinclair representa, do
modo mais caracterstico, esta tendncia.
Em oposio, proclama-se, por outro lado, que a arte e a literatura so totalmente
autnomas. O que se passa na sociedade no interessa literatura. Mais ainda: a arte
no s independente das lutas sociais imediatas, dos problemas sociais imediatos, mas
tambm no tem relaes com os grandes problemas da histria. Nada limita o artista,
nem uma regra formal, nem uma lei relativa ao contedo. Ele independente de
qualquer moral, verdadeira ou convencional, de qualquer pensamento, de qualquer
humanidade, de qualquer profundidade. A personalidade do artista ou, mais
exatamente, o seu estado de esprito particular no instante da criao o princpio
ltimo da arte. O nico objeto, a nica medida da arte a afirmao livre e total deste
estado de esprito, o jogo absolutamente livre de seu desenvolvimento e sua expresso
adequada por meios voluntariamente superficiais, por meios exclusivamente afetivos.
Mas ser que s nos restaria escolher entre essas duas concepes estticas?
(LUKCS, G. Arte livre ou arte dirigida? In: ______. Marxismo e teoria da literatura.
2. ed. Trad. Carlos Nelson Coutinho. So Paulo: Expresso Popular, 2010, p. 267)
Com efeito, somente nas teorias modernas, nas concepes de parte importante dos
artistas de hoje, na ideia que eles fazem do processo de sua prpria criao, que a arte
aparece antes de mais nada como expresso. Objetivamente, a arte uma forma
particular do reflexo da realidade; e, quando se trata de um artista autntico, ele reflete o
movimento desta realidade, sua direo, suas orientaes essenciais na existncia, na
permanncia e na transformao. Alm disso, este reflexo mais uma vez, se
estivermos diante de um artista autntico , na maioria dos casos, mais amplo e mais
profundo, mais rico e mais verdadeiro do que a inteno, a vontade, a deciso subjetivas
que o criaram. A grande arte, a arte do grande artista, sempre mais livre do que ele
mesmo cr e sente; mais livre do que parecem indicar as condies sociais de sua
gnese objetiva. Esta arte mais livre justamente porque est profundamente ligada
essncia da realidade, muito mais do que fazem supor os atos que se manifestam em sua
gnese subjetiva e objetiva.
Contudo, no admissvel que consideraes deste tipo por mais justificadas
que sejam faam perder de vista a diferena fundamental que subsiste entre as
noes antiga e moderna da liberdade na arte. Esta diferena de natureza objetiva. No
suficiente saber que o artista do passado no se sentia livre, que ele no experimentava
sequer a necessidade da liberdade, ao passo que esta liberdade , para o artista moderno,
a experincia fundamental de sua conscincia de artista. Objetivamente, a arte sempre
faz parte da vida social. Uma arte que seja por definio sem repercusso, ou seja,
incompreensvel para os outros, uma arte que tenha o carter de um puro monlogo, s
seria possvel num hospcio, da mesma forma que uma filosofia que levasse o
solipsismo s suas ltimas consequncias. A necessidade da repercusso, tanto do ponto
de vista da forma quanto do contedo, a caracterstica inseparvel, o trao essencial de
toda obra de arte autntica em todos os tempos. A relao entre a obra e seu pblico
ou seja, uma determinada sociedade, | ou uma parte historicamente determinada desta
sociedade no algo que se acrescente posteriormente, de maneira mais ou menos
acidental, obra subjetivamente criada e objetivamente existente. Esta relao a base
constitutiva, o fator efetivo da obra, tanto em sua gnese quanto em sua existncia
esttica. Isto verdade tanto para a arte antiga quanto para a arte moderna. (LUKCS,
G. Arte livre ou arte dirigida? In: ______. Marxismo e teoria da literatura. 2. ed. Trad.
Carlos Nelson Coutinho. So Paulo: Expresso Popular, 2010, p. 270-271)
O artista deve manter uma incessante luta de vida ou morte no s contra este aparelho,
contra a banalidade, a vulgaridade e todas as outras formas de pseudoarte postas em
circulao por este aparelho sob a etiqueta arte, mas tambm contra as formas de
existncia e os contedos humanos que engendraram essas formas e que delas
resultaram. Enquanto os artistas do passado eram filhos de suas pocas e de suas
sociedades, com naturalidade ingnua ou com entusiasmo consciente, a maioria dos
artistas modernos e precisamente os melhores dentre eles contempla com clera,
desespero e at mesmo horror o caos da sociedade que os envolve, que quer form-los
sua semelhana. Quando isso ocorre, a liberdade artstica se funda na subjetividade
exacerbada; ela reivindica a liberdade apenas em nome dessa subjetividade e
unicamente para ela. A personalidade artstica reivindica o direito soberano de escolher
o tema e a forma de sua criao to somente em funo das exigncias da sua prpria
inspirao. Portanto, a noo de liberdade, para o artista moderno, uma noo abstrata,
formal e negativa: ela contm apenas a reivindicao de proibir a quem quer que seja a
possibilidade de intervir nesta soberania pessoal.
Este carter abstrato, formal e negativo marca os limites da liberdade artstica
moderna. Tais limites se manifestam em duas direes. Em primeiro lugar, eles levam
os artistas, cada vez mais, a se fecharem exclusivamente em sua subjetividade interior.
Os artistas renunciam crescentemente a explorar novos domnios, a buscar novas formas
de representao, considerando que essas formas e esses domnios esto totalmente
penetrados pelo invencvel prosasmo do capitalismo e, consequentemente, no
merecem mais que o artista se ocupe deles. Finalmente, no resta liberdade artstica
outro campo de ao que no seja a vida interior, o universo das experincias
puramente subjetivas. Este universo obstinadamente arbitrrio, entregue a si prprio
pelo desafio que lhe deu origem, que busca seu fim apenas em si mesmo, um protesto
desesperado contra um mundo no qual a soberania artstica s pode se manifestar num
domnio bastante exguo (o fato de que numerosas obras e manifestaes criadoras
proclamem a significao csmica desta pura subjetividade em nada altera a essncia da
coisa). (LUKCS, G. Arte livre ou arte dirigida? In: ______. Marxismo e teoria da
literatura. 2. ed. Trad. Carlos Nelson Coutinho. So Paulo: Expresso Popular, 2010, p.
275)
No depende dos artistas que haja ou no haja crise no mundo. Mas depende deles
saber utilizar essa crise de maneira fecunda para eles mesmos e para a arte. | Depende
dos artistas mostrar quanto de liberdade eles so capazes de encontrar na inelutvel
necessidade e em que medida so capazes de utiliz-la livremente e de modo fecundo
para eles mesmos e para a arte. (LUKCS, G. Arte livre ou arte dirigida? In: ______.
Marxismo e teoria da literatura. 2. ed. Trad. Carlos Nelson Coutinho. So Paulo:
Expresso Popular, 2010, p. 284-285)