A Transcendência No Conto A Terceira Margem Do Rio de Guimarães Rosa
A Transcendência No Conto A Terceira Margem Do Rio de Guimarães Rosa
A Transcendência No Conto A Terceira Margem Do Rio de Guimarães Rosa
RESUMO: Este trabalho tem o propsito de enfocar a transcendncia, que norteia o desvendamento do conto
A Terceira Margem do Rio, da obra Primeiras Estrias (1962), de Guimares Rosa (1908-1967). Por meio da
fortuna crtica e da anlise do conto procura-se desvendar aspectos do indizvel a partir da travessia rosiana. A
obra inspira-se em duas vertentes da literatura brasileira da primeira metade do sculo XX: o regionalismo e o
romance psicolgico. A realidade e a cultura sertaneja se transfiguram em retratos de grandes inventividades
lingsticas e literrias, em uma obra de alcance universal. Guimares Rosa lana mo da mitologia, de lendas e
do mito potico para transcender aos padres estticos. Na obra analisada entrev a criao de um narrador que
ao mesmo tempo individualizado e coletivo, j que fala pela comunidade e pede a cumplicidade de um
interlocutor, que tenha coragem de se embrenhar pelos caminhos da leitura, instigando-o a se aventurar mais de
uma vez pelas veredas desse vasto universo. Quanto mais se adentra, mais se descobre, mesclando imaginao,
realidade e poesia.
SUMMARY: The present investigation refers to the transcendence that leads to the disclosing of the novel
A Terceira Margem do Rio, Primeiras Estrias (The Third Edge of the River, First Stories (1962), written by
Guimares Rosa (1908-1967). Through the critical purpose and the analysis of the novel we try to disclose the
aspect of the unutterable in the rosiana crossing. The work is inspired into two tendencies of the Brazilian
literature on the first half of the 20th century: the regionalism and the psychological novel. The reality and the
culture of the Brazilian wilderness life is portrayed in a vast linguistic and literary creation, a work of universal
reach. Guimares Rosa makes use of mythology, legends and poetic myth in order to transcend the esthetic
models. By analyzing the work it is possible to catch a sight of the creation of a narrator who is at the same time
individual and collective since he speaks for the community and asks for the complicity of an interlocutor, who
has the courage to go through the paths of reading, and putting him up to venture more and more through the
paths of this vast universe, for the more we go into it the more we discover about it, mixing imagination, reality
and poetry.
INTRODUO
1
Licenciatura Plena em Letras- FE/FFCL
2
Prof. Me. da FEI/ Faculdade de Filososfia Cincias e Letras de Ituverava, nos cursos de Letras e Pedagogia.
Nucleus, v.8, n.2, out.2011
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conto, at o seu desfecho no final, defronta-se com o paradoxo: um rio e trs margens, o que
seria essa terceira margem? Diferentemente de leituras ps-modernas que privilegiam a
margem, Rosa pe o seu leitor em movimento, solopando o conforto com uma outra
margem, que no necessariamente explicada. Para penetrar na obra necessrio que o leitor
tenha coragem de transcender os padres e as regras estereotipadas da sociedade embotada de
percepes esvaziadas; preciso ir alm da vida e da morte; aprender um idioma; ter um
vasto olhar de mundo, mas, sobretudo de si mesmo; ter certa religiosidade e especialmente
se ligar com a substncia suprema que deu vida ao universo.
Assim, no conto, Rosa aborda a loucura e o abandono com a poesia e a linguagem. a
metfora da origem e da travessia. A necessidade de viver as guas, ora calmas ora violentas
do rio, com o objetivo de chegar ao seu destino.
O narrador a todo o momento exige coragem de seu leitor para tomar decises, para
viver, instigando-o a se posicionar no conto e na vida.
preciso enxergar Rosa com os olhos do mundo, e no com o pensamento embotado
dos comuns. A magia da obra transporta o leitor para dentro da histria e a histria para a vida
do leitor.
Justifica-se a escolha desse tema pela importncia do autor na Literatura Brasileira e
pelo universo de sua obra, em que os segredos e os encantos do que no previsvel
transcende.
Abordar tais questes que ajudem a compreender o texto literrio de suma
importncia para que leitor e texto se aproximem.
Para isso so abordados vrios textos crticos de autores que fazem a leitura se tornar, alm de
entretenimento, uma forma de conhecer melhor a obra rosiana.
Assim, o objetivo desse trabalho desenvolver a necessria aprendizagem para um
melhor entendimento da transcendncia no conto A Terceira Margem do Rio.
A problematizao do trabalho conhecer por que o universo rosiano apresenta-se to
complexo diante de seus leitores?
Os mtodos de anlise do presente trabalho so embasados em pesquisas
bibliogrficas, de textos crticos especficos, que apresentam ao leitor um universo sem
segredos e os encantos do que no previsvel, mas que transcendem a obra e a vida.
O trabalho foi organizado em trs partes. Na primeira parte denominada, vida de
um encantado; apresenta-se vida e obra do autor Guimares Rosa. Na segunda parte que tem
como ttulo O mtico do mstico, procura-se explicar o papel do mtico, do mito e do
mstico da obra enquanto histria narrada.
Na terceira parte com o ttulo de A Terceira Margem..., apresenta uma anlise global
da obra Primeiras Estrias (1962) e direciona o leitor para o conto. A Terceira Margem do
Rio, em que se prope um olhar alm do conto para compreender os mistrios entre o lado
de c e o lado de l.
E por ltimo, as consideraes finais, que procura seguir uma lio rosiana: O de
palavras pouco comuns no cotidiano, que do um relevo surreal descrio, mostrando algo
enquanto tambm o decifra (PEREIRA, 2010). Para isso preciso atravessar o rio, que como
se sabe, est sempre na mesma direo, entre todos os mistrios que permeiam a derradeira
travessia.
Se o viver perigoso, o narrar tambm o . Mas assim compreendidos o viver e o
narrar, um to perigoso como o outro, pois no se pode narrar tudo, porque no se pode
contar s o certo, e por que se deve faz-lo.
1 A VIDA DE UM ENCANTADO!
quem realmente precisava, viajava semanas em seu cavalo, procurando lugares esquecidos e
carentes de infraestruturas. H registros em que o doutor Rosa era um profissional dedicado e
respeitado por todos, alm de famoso pela prescrio dos seus diagnsticos. Percorre longas
distncias pelo serto, cujas consultas so pagas, muitas vezes com bolo, pudins, galinhas e
ovos. Seu maior objetivo era buscar uma forma de aliviar o sofrimento humano.
Serve como mdico voluntrio na revoluo constitucionalista de 1932. Em 1934
efetiva-se como mdico oficial do nono batalho de infantaria de Barbacena e num desabafo
diz:
Chegamos novamente no momento em que mdico, rebelde e soldado se misturam:
Como mdico conheci o valor do sofrimento; o homem e sua biografia resultam em
algo completamente novo. Sim, vi como rebelde o valor da conscincia: como
soldado, o valor da proximidade com a morte... (Rosa, V. 1983).
No ano de 1934 presta concurso para o Itamaraty e aprovado, sa ento pelo mundo
como diplomata. Em 1938 nomeado cnsul adjunto em Hamburgo, logo segue para a
Europa, l conhece Dona Aracy Moebius de Carvalho. Desquita-se de sua esposa Lgia e
casa-se com Aracy de acordo com as leis do outro pas.
Exercendo a funo de diplomata, Rosa juntamente com sua esposa Aracy ajudam a
salvar a vida de muitos judeus fornecendo-lhes vistos de entrada para o Brasil. Como homem
do serto Rosa gostaria de responder as injustias dos nazistas bala__ Eu homem do
serto no posso presenciar injustias (Rosa, V. 1983).
A sua carreira literria tem como prlogo o prmio a um livro de versos-Magma
(1936),porm pouco satisfeito no publica a obra, esta s sara em 1997, 30 anos aps sua
morte. Depois desse livro houve muitas pausas e retornos carreira literria; implantou um
jeito novo de fazer literatura, tornando-se universal e reconhecido mundialmente.
Segundo Callado (1992), Rosa candidata-se duas vezes Academia Brasileira de
Letras e na segunda tentativa eleito por unanimidade. Em entrevista, em almoo no
Itamaraty, fala que se candidatou ABL por dois motivos: 1-Porque sua me s acreditaria
que ele era um grande escritor se entrasse na academia. 2- Porque no podia negar a glria
sua pequena cidade de Cordisburgo A academia muito para mim. Sou to pequeno quanto
a cidade que nasci! (Rosa, V. 1983).
eleito em 06 de agosto de 1963, mas s toma posse da cadeira nmero dois quatro
anos aps, em 16 de novembro de 1967, aos 59 anos. Como previa, logo aps sua posse na
ABL, no domingo, dia 19 de novembro, Rosa falece, vtima de infarto. No morreu,
encantou-se!
De repente, morreu; que quando um homem vem inteiro pronto de suas prprias
profundezas... (ROSA,V. 1983).
Morreu com modstia. Se passou para o lado claro, fora acima de suave ramero e
terrveis balbudias... Alegremos-nos, suspensas ingentes lmpadas. sobre a luz
sobre o justo e d-se o teso corao alegria!Defere ento o salmo; as pessoas no
morrem, ficam encantadas...Mas eu murmure e diga, ante macios morros e fortes
gerais estrelas, verde o moribundo buriti; buriti, e a sempre- viva-dos-gerais, que
mida via e enfeita: O mundo mgico. ---Ministro, est aqui, Cordisburgo3.
Rosa comea a escrever ainda jovem, mas somente em 1946 com o livro de contos
Sagarana obteve renome. O livro caracteriza-se por um tipo diferente de regionalismo, no
qual a inveno inclusive lingstica sobrepujava de muito os valores locais. Isso foi
confirmado de maneira triunfal dez anos depois,quando publicou simultaneamente um livro
de novelas, Corpo de Baile (1964) e um romance, Grande Serto: veredas (1954), que
formam o bloco central de sua obra. Depois lana Primeiras Estrias (1962), Tutmeia: trs
Estrias (1967), Estas Estrias (1969) e Ave Palavras (1970-diversos).
A obra de Rosa envolve o seu leitor, brinca com a sua imaginao e com o seu
conhecimento de vida. Exprime com sutileza os problemas encarados pela sociedade e exige
constantemente coragem para tomar todo tipo de deciso, seja no envolvimento com a histria
distinguindo o que real ou imaginrio, seja para se portar na sua vida real ou no. Sua
literatura se tornou universal, apesar de se enquadrar na terceira fase do modernismo,
transcendeu ao movimento, usava da cultura regional comum com toque nico, encantando o
leitor no s com os problemas do serto, mas tambm com os causos e as belezas de norte a
sul de cada regio.
3
ltimas palavras do discurso de posse, na Associao Brasileira de Letras- Guimares Rosa, 1967
Como se pode notar h muito mais mistrios do que pode-se imaginar em torno da
obra do autor que brinca com as palavras e envolve o leitor atento e desejoso de novos
desafios, pois o importante no decifrar os desafios, mas fazer parte deles.
dele, mais que um divisor de guas, talvez do rio mais profundo com que o leitor possa
deparar-se.
A linguagem rosiana consegue ser a um s tempo regional e universal, presente e
atemporal, popular e erudita, mesclando, no papel a genialidade de diplomata e do indivduo
que deambulava, pelos grotes do serto, munido de seu caderninho, anotando os causos que
poderiam vir a compor sua obra.
Essa anlise remete em base quase todo sentido da obra do autor que usa dos smbolos,
das metforas para sugerir, explicar fatos que muitas vezes so inexplicveis. V-se no
romance Grande Serto: veredas (1954), muito desse imaginrio, onde se contesta a
existncia do bem e do mal, do possvel pacto com o diabo. O pacto percorre todo romance,
porm o leitor est to envolvido com a narrativa que no se preocupa se o fato real ou no,
apenas adere sugesto do autor. Ao passo que o leitor envolve-se com a leitura do romance,
o mistrio do pacto vai se distanciando, passando do centro para parte da histria, abrindo
espao para o personagem principal que toma vida prpria, retratando as crenas do sertanejo,
fazendo do livro mais que uma histria, um retrato da regio e dos costumes religiosos
pregados pelo povo, que acredita no pacto e acredita no jaguno, na sua f e na sua coragem
perante todos os desafios do serto.
A palavra para Rosa forte e determinante, sua escrita inovadora, por meio dela o
autor cria novos falares, transcendendo o coloquialismo regional, elevando a obra para um
padro universal. Criticar a grandiosidade de sua escrita, no estar preparado para efetuar
uma leitura polissmica, como esclarece o crtico:
Toda obra do autor tem aparncia regional e popular com um toque inovador, como v
se muito no conto o emprego do artigo definido frente de adjetivos indefinidos, em trechos
que fala por conta prpria, exemplo: as muitas pessoas, o parente nenhum, prtica que o
autor usa para demarcar o uso oral, coloquial do falar sertanejo. Os exemplos poderiam ser
multiplicados, e o formigar de tais rodeios que d aos leitores menos desavisados a idia que
o autor faz apenas uma mera reproduo da linguagem popular. Porm essa deve ser
totalmente descartada, pois Rosa no um decodificador de signos, mas um criador de
sentidos. As palavras e a lngua para o autor so fontes inesgotveis de conhecimento e
aprendizagem. Pode-se afirmar ainda que mesmo frases irredutveis ao esquema comum, que
orientam a um sistema de leitura formatado, podem abrir caminhos para o entendimento da
obra, do autor e de si mesmo.
Atravs de umas tantas questes sem fio gramatical definvel, fica instaurado um
universo lingstico em que mesmo as proposies de lgica perfeita passam a pedir
uma leitura diversa [...], especialmente o verbo de cpula ganha fora em ser
omitido quando substitudo por interrupo do fluxo sonoro: Se homens, meninos,
cavalos e bois--- assim insetos (RONA, 2001).
Como se pode perceber Rosa cria um mundo de palavras novas, sem esquecer suas
origens regionais, e faz o novo na lngua usando o coloquialismo presente no serto, pois
como se sabe o serto est em toda parte.
Criador, portanto de uma lngua indita e surpreendente, Rosa a considera a lngua da
metafsica, mas que se aponta para o transcendente, mantm com a lngua uma relao
carnal.
Em carta a Lorenz (1983), diz:
De certo que eu amava a lngua. Apenas no a amo como a me severa, mas como a
bela amante e companheira... quando escrevo traduzo, extraio de muitos outros
idiomas, disso resultam meus livros, escritos em idioma prprio, meu, e podese
dizer da que no me submeto tirania das gramticas dos outros (ROSA, 1983).
Rosa criou o seu prprio dialeto literrio, vrios so os componentes que constituem
essa linguagem original e bela. Os principais elementos que compem a obra, em nvel de
informao e de interao com a escrita do autor so embasados na revista Discutindo
Literatura (2007; 2008), e em textos crticos especficos, que exemplificam algumas das
artimanhas de Rosa na construo de suas histrias, tais como:
A incorporao do falar coloquial do sertanejo: esse falar serve de base de sua
linguagem, expresses e ditos populares que permeiam toda obra, por exemplo: Ossenhor
uturge, mestre, a gente vinhemos, no graminha...
Guimares Rosa usa todos os artifcios da arte potica para valorizar e descrever seus
personagens e seus lugares encantados, por meio da: Aliterao--: Existisse, viesse!
Chegasse para o desenlace desse passo.
Gradao: C vai, oc fique, voc nunca volte..
Reiterao: [...] e, eu rio abaixo, rio afora, rio adentro, o rio [...]
Rimas: [...] o de sua filhinha em glria, Santa Nininha [...]
Ritmos: que lembra efeitos obtidos pela mtrica:- [...] a salvo de bicho mexer a seco
de chuva e orvalho [...] Observe, se houver um corte no meio desse enunciado, obtm-se dois
versos de oito slabas, sendo que as tnicas incidem sobre a 2, a 5 e a 8 slabas poticas:
a/sal/vo/de/bi/cho/me/xer
A/se/co/de/chu/va/eor/va/lho.
Emprego de neologismos, uma das grandes marcas de sua escrita. Rosa construiu-os
neologismos por meio de dois modos: A inveno de palavras por aglutinao, composio ou
por adaptao de vocbulos estrangeiros, como por exemplos: Nonada (no + nada),
Desfalam; Milhentos (por milhares), Capisquei (entendi, compreendi, do italiano Capire)
Atribuio de novos sentidos a palavras usuais por meio da contextualizao: Nosso
pai [...] decidiu um adeus para a gente! (Note como o verbo decidir, nesse contexto, ganha
outra dimenso de sentido, o efeito do enunciado mais forte e dramtico, decidir um adeus
mai definitivo do que dar um adeus, como a expresso corrente.
Grande utilizao de diminutivos: abundantes na obra do autor, os quais diminutivos
so empregados para causar um efeito terno, meigo, frgil, infantil e/ou carinhoso:
bonequinho, brejeirinha, gentezinha, miguilim, pamoinha, analfabetinha e muitos outros.
Emprego de aforrismos, ou seja, definies de coisas e de conceitos que soam como
mximas verdades, dentre as inmeras destacam-se:
O senhor sabe o que o silncio ? a gente mesmo demais.
Viver muito perigoso.
Qualquer amor j um pouquinho de sade, um descanso na loucura.
Amar reconhecer-se incompleto.
A recorrncia, a silepse de nmero: - A gente, vamos embora, morar na cidade
grande
As rupturas sintticas: Dono dele nem sei quem for.
Contexto que transfere palavras usualmente de determinada classe gramatical para
outra: O pssaro que separa de outro, vai voando adeus o tempo todoObserve como o
substantivo adeus se torna advrbio.
2 O MTICO DO MSTICO
s vezes acredito que eu mesmo, Joo, seja um conto contado por mim!
(ROSA,V. 1983)
A religiosidade rstica brasileira perpassa por toda obra de Rosa, como em poucos
modernistas em nossa literatura.
O que se nota em sua obra a noo democrtica e tolerante, de que a religiosidade ,
sobretudo, um caso de sincretismo em seu sentido mais amploo de hibridismo mltiplo.
Rosa mostra mais concentradamente na parte inicial de Grande Serto: veredas
(1954), que a grande torrente de religiosidade popular alimentada por inmeros afluentes.
No s h elementos de um catolicismo bsico, como tambm de espiritismo, de
protestantismo, alm de crendice e prtica ritual. Rosa no possua uma religio em especial,
mas respeitava a todas as religies, como respeitava s pessoas e vida. Era um mstico e os
traos desse misticismo so encontrados em grande parte de sua escrita literria.
A obra do autor na maioria das vezes situa-se em um espao mtico, as histrias
narradas em primeira pessoa perpassam em um tempo cclico, como A terceira margem do
rio.
O pensamento mtico ou tempo mtico acontece enquanto histria narrada, como em
Grande Serto: veredas (1954), o mito do pacto com o demnio, transforma o romance,
transcende a lgica do real e do imaginrio, causando no leitor a dvida, enquadrando-se no
espao mtico.
O mito potico a soluo romanesca de Rosa. A sua obra situa-se na vanguarda da
narrativa contempornea que se tem abeirado dos limites entre o real e o surreal, e
tem explorado com paixo as dimenses pr-conscientes do ser humano. Seria talvez
fcil paradoxo lembrar que uma obra de to aguda modernidade se nutre de velhas
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tradies, as mesmas que davam aos cavaleiros feudais a aura do convvio com o
sagrado e com o demonaco. (BOSI, 2001, p.432)
(1954) o epos4, que nos envolve e nos entrega ao mito; ao termin-lo, o mito suspenso, a
indagao reflexiva que foi capaz de neutraliz-lo, quer dizer, uma inquietao tica e no
um cdigo moral. O prprio mito, e o pacto com o demnio assumem a forma de destino: uma
forma de existncia que se temporaliza.
O aproveitamento do mito sobredeterminante do epos, do ciclo de aventuras narradas,
indissocivel da indagao sobre a existncia do Demnio, do mal em si, e de seu oposto,
Deus paciente, o Diabo traioeiro, o romance pertence ao tempo mtico enquanto histria
contada, imaginria.
Assim, Nunes (1995) explica o mito e o mtico dentro do romance e deixa claro que
no h um tempo mtico enquanto tempo real, objetivo, palpvel:
Porque o mito, histria sagrada do cosmos do homem, das coisas e da cultura, abole
a sucesso temporal. O que quer, que o mito narre, ele sempre conta o que produziu
num tempo nico que ele mesmo instaura, no qual aquilo que uma vez aconteceu
continua se produzindo toda vez que narrado. (NUNES, 1995, p 66)
Convm manter a distino entre o tempo do mito, tal como definido o mito do tempo,
isto , o tempo mitificado enquanto potncia criadora e destruidora: o tempo v tudo; o tempo
te desmascara, denunciando o passado.
Quando Nunes (1995) fala do tempo mtico no romance, refere-se ao imaginrio, que
coletivo, por exemplo, a origem do homem pode ser narrada de vrias formas, mas todas se
referem a um tempo nico: o momento da criao, nesse sentido o crtico afirma que o tempo
mtico no existe. O jogo de linguagem no romance Grande Serto: veredas (1954),
proporciona ao leitor acreditar no pacto, nesse sentido o imaginrio manifestado para que se
cumpra a transcendncia na obra.
Alm de uma obra enigmtica, seus personagens so muitas vezes inverossmeis em
relao ao entendimento do leitor que se prope a ler literatura apenas como acessrio. As
histrias de Rosa pem o interlocutor em contato com o que no dizvel, com o inefvel.
No romance de maior impacto do autor, Grande Serto: veredas (1954), o leitor
aceita com o desenrolar da histria, normalmente o pacto do jaguno Riobaldo com o
demnio, pois um livro de realismo mgico, lanando caminhos para um supermundo
metafsico, de maneira a tornar possvel o pacto e verossmel a conduta do protagonista,
sobretudo graas a tcnica do autor que trabalha todo o enredo no sentido duma invaso
iminente do inslito a isto se junta a escolha do foco narrativo, monlogo dum homem
rstico, cuja conscincia serve de palco para os fatos que relata, e que os mistura com sua
prpria viso, sem ter certeza se o pacto ocorreu ou no (CANDIDO, 1964, p 160)
4
De acordo com o dicionrio Houaiss, epos o que se exprime pela palavra; discurso, palavra dada, promessa.
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O importante que, mesmo na dvida se o pacto ocorreu ou no, a narrativa vai sendo
organizada de modo que se torna natural e real, as coisas espantosas e msticas.
Na obra o destino , em vez de fator produtivo, o resultado de coisas opostas,
conflitantes as de Deus mansas e constantes, as do Demo, bruscas e agressivas. Afinal
viver muito perigoso (Riobaldo, G. S. Veredas, 1954), porque no h delimitao entre
elas, apenas se sabe que Deus definitivamente e o Demo, o contrrio dele.
Pode-se ver que o real inteligvel sem o fantstico, e que ao mesmo tempo este o
caminho para o real. Nesta grande obra combinam-se o mito, o mundo da fabulao
lendria e o da interpretao racional, que disputam a mente e nutrem a introspeco
tacteante que extravasa o serto (CANDIDO, 1983 p, 139)
O livro, contudo um livro que reconduz do mito ao fato, faz da lenda smbolo da
vida e mostra que na literatura, a fantasia nos devolve sempre enriquecidos realidade do
quotidiano, onde tecem os fios da treva e da luz, no destino de cada um. A gente tem de sair
do serto (Riobaldo, G. S. Veredas, 1954). Mas s se sai do serto tomando conta dele.
Entra-se nessa realidade fluida para compreender o serto, que nos devolver mais claros a
ns mesmos e aos outros.
O homem nasceu para aprender; Aprender tanto quanto a vida lhe permita.
Transformando o inferno real, no cu almejado (ROSA, V.1983)
Ramos em seu livro Vidas secas (1998) v o migrante nordestino objetivamente, narra
a dor de existir do sertanejo. O autor se atenta para o homem explorado, pelo sertanejo
sofrido, mas no consegue entender na sua linguagem ou nos seus devaneios algo mais que a
inconscincia.
Ramos traz consigo um saber que a sociedade onde vive no permite recalcar. Por isso
se permite emitir juzos sobre o comportamento do sertanejo; esses juzos por ele empregados
nunca poderiam fazer parte da literatura rosiana5, que trata, com as fontes sertanejas no plano
da identificao e da empatia.
O caminho do desejo, do sonho, da imaginao e da realidade que so a substncia de
tantas histrias sertanejas contadas por Rosa, no podem ser encontradas na obra de Ramos.
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Optou-se pelo uso da palavra rosiana embasada no texto crtico Mitologia Rosiana (GALVO1978), embora
tambm possa ser encontrada escrita de outras formas.
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suplncia afetiva e simblica com a passagem para o reino da liberdade, para a grande
travessia.
O sertanejo cr no destino, na sorte e no azar, e a sua crena tanto mais slida e
justificada quanto menor o seu raio de ao consciente sobre o que lhe a de
suceder. Quando toda modificao vem de fora, o dentro no precisa desenvolver
nenhuma razo de previsibilidade de longo alcance, nenhum projeto que amarre fins
e meios. A ordem do transcendente abre horizontes sem fim e, no devir da
fantasia, alguma coisa sempre pode acontecer. Rosa entra em sintonia com essa
alma com o maior dos realismos a religio dos oprimidos (TOYOTA, 1988 p 23)
Rosa ousa nas solues formais e realiza artimanhas com a linguagem que o antigo se
torna moderno, ou seja, usa do falar popular de uma forma nova, enraizante, mgica, mas que
obedecem ao cerne da imaginao rstica.
No entanto aquilo que em Graciliano Ramos se firmava como oposto entre o serto
hostil e o sertanejo hostilizado, recebe das mos de Rosa um tratamento pelo qual a
necessidade exterior (a travessia), torna-se um meio de cumprir a necessidade interior que o
desejo de felicidade.
A literatura de Ramos do cu desejado para o inferno real, rido, seco do serto.
Rosa o caminho inverso, o inferno pra quem no tem coragem e se prende a aridez da
vida; o cu s alcana quem se liberta dos esteretipos, e assume o valor da vida, mesmo nas
piores dificuldades sempre pode-se encontrar um caminho. A cantiga de roda sabe o que o
povo sofre e o que o povo espera. No preciso colocar mais dor na vida do sertanejo, ele
precisa de beleza para viver, Rosa v a beleza do povo e do serto, no v apenas os
problemas, isso o distancia, portanto da literatura de Ramos.
3 A TERCEIRA MARGEM...
Tem diversas invenes, o medo, eu sei o senhor sabe. Pior de todas essa; que
tonteia primeiro depois esvazia (ROSA, 1962)
Rosa usou de sua escrita nesse livro e na maioria de sua obra do encantamento e da
imaginao, para compor histrias com imagens e personagens de lugares simples e
encantados para prender a ateno do seu leitor, levando-o muitas vezes a sonhar e a sentir
como seus pequenos ou grandes personagentes.
De acordo com o crtico, os autores colocam seus leitores em contato com um mundo
diferente daquele que se vive, mas que um dia foi idealizado. A obra de Rosa favorece, em
todos os sentidos, principalmente em Primeiras Estrias (1962), o contato com diferentes
situaes que para uma profunda compreenso, indispensvel a valorizao da palavra, o
libertar da imaginao, a irracionalidade que se transubstancia na riqueza de gestos e
smbolos, presentes nos detalhes mais simples.
3.2.1 O CONTO
Nesse conto o narrador apresenta a histria de um homem que rompe com tudo, com a
famlia, com a sociedade para viver em uma terceira margem do rio e da vida.
O pai era um cumpridor de suas obrigaes, mas que um dia resolve abandonar tudo e
seguir seu caminho. Manda construir uma canoa de boa madeira, mas no conta a ningum
sua inteno. Quando a canoa fica pronta ele se despede da famlia e pede a ajuda do filho
mais novo para lev-la at o rio. Todos no conseguem entender o que o homem realmente
pretende a mulher lhe faz uma ltima tentativa, dizendo que se ele for que no volte nunca
mais; mas isso no o comove sobe na canoa, e o filho lhe pede para ir com ele, que faz que
no ouve, abenoa, o filho e comea a seguir o seu novo caminho e segue rio abaixo, rio
adentro. Muitos foram os comentrios dos motivos pelos quais aquele homem, havia tomado
essa deciso, mas ningum realmente sabia. Todos os vizinhos e parentes participavam de
novenas, na beira do rio para que ele voltasse, mas nunca dava qualquer sinal de vida. O filho
mais novo, mesmo sem entender o pai, sempre pegava o que sobrava em casa e levava para a
margem do rio, escondia dentro de um oco de pedra para que o pai no morresse de fome. O
filho fez esse gesto por anos, e assim o homem ia sobrevivendo. O tempo foi passando, e o pai
nunca mais deu notcias; a irm se casou e mudou-se para a cidade, o filho mais velho
tambm foi embora. E a me com o tempo a velhice chegou e j cansada de tantos sacrifcios
e aflies tambm fora embora. S o filho mais novo no fora, os cabelos brancos j lhe
cobriam a cabea, mas no podia abandonar o pai, foi ficando sempre na esperana de v-lo
novamente. At que um dia toma a deciso de que deveria ocupar o lugar do pai; corre para a
margem do rio e o chama demasiadamente. Ele ento aparece como uma alucinao, e vem na
direo do filho; o narrador se assusta e se acovarda, sa em disparada pedindo desculpas ao
pai e diz: -Sou homem depois deste falimento? Sou o que no foi, o que vai ficar calado!
(ROSA, 1962). Nunca mais se ouviu falar no homem, o filho adoeceu dos graves medos, e
abreviou a vida nos rasos do mundo.
Para melhor compreender o conto, optou-se por delimit-lo por segmentos (partes),
onde se props evidenciar as principais passagens do conto, desde o inicio com a deciso de
partida do pai, at o falimento do filho.
A Terceira Margem do Rio um dos contos mais complexos e surpreendentes do
livro Primeiras Estrias (1962), desde a conotao do ttulo, figura inslita do homem que
saiu a procurar sua verdade. A narrativa pode ser dividida por segmentos e o primeiro termina
com a partida do pai (Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalou o chapu e decidiu um
adeus para a gente [...], Nosso pai no voltou. S executava a inveno de se permanecer
naqueles espaos do rio), para sua procura de si mesmo; o narrador nesse momento intervm
sempre tentando retratar o pai como um homem normal, em nada destoando dos outros pais
do lugar.
O segundo segmento narra a reao dos parentes, vizinhos e conhecidos (Todos
pensaram de nosso pai a razo que no queriam falar: doideira, uns achavam que poderia ser
pagamento de promessa, ou ainda caso de doena incurvel), hipteses aventadas por eles,
para explicar a estranha opo do homem, de ir para lugar nenhum. Depois de se isolar na
canoa, o pai entra na categoria do diferente e isso choca o senso comum; mesmo o narrador (o
filho ), evidenciando a atitude vanguardista do pai, de buscar o diferente, no fcil
Nucleus, v.8, n.2, out.2011
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A terceira margem do rio a imagem da travessia como alegoria do viver; uma vez
que a travessia traz consigo toda a simbologia da existncia humana; a escolha do pai pela
terceira margem sugere simultaneamente, a defesa de um espao de exceo, expresso pela
margem e a insero do inslito, no entre lugar, no no lugar indicados pela referncia a uma
terceira margem.
Afinal o conto um enfoque mgico e metafsico, que faz Roni (2001) afirmar:
Todos os rios do mundo de Rosa tem trs margens.
De acordo com o crtico o conto apresenta traos de mistrio e fatalidade, constitudo
por smbolos e metforas para lanar ao leitor a complexidade da alma humana. Para refletir
as dimenses metafricas do conto A Terceira Margem do Rio, necessrio deixar claro as
noes de metforas. A palavra utilizada como metfora no apresenta no texto literrio o
sentido preso, dicionarizado, mas sua funo potica: A palavra potica nunca pode ser falsa
porque total, ela brilha com uma liberdade infinita e prepara-se para resplandecer no rumo
de muitas relaes incertas e possveis (BARTHES, 1971, p 60).
A utilizao da metfora do rio no conto impe ao leitor a essncia do ser humano, sua
existncia, e sendo Rosa um pensador da condio humana, a relao do rio com a alma do
homem muito interessante.
Em entrevista ao crtico Lorenz (1983), Rosa explica o significado do rio em sua vida
e na vida dos outros:
Gostaria de ser um crocodilo porque amo os grandes rios, pois so profundos como a
alma dos homens. Na superfcie so muito vivazes e claros, mas nas profundezas
so tranqilos e escuros como os sofrimentos dos homens. Amo ainda mais uma
coisa dos nossos grandes rios: a eternidade Sim, rio, uma palavra mgica para
conjugar a eternidade (LORENZ, 1983).
Como mestre que era, Rosa deixa bem claro em suas palavras o grande significado do
conto e do rio em sua obra. O rio no apenas o rio, e seus contos so muito mais que apenas
histrias, provocam sentido profundo nas pessoas.
A aventura do pai na travessia do rio permite ser interpretada como um desejo de
mudana, de um novo olhar, de novas possibilidades, de ver as coisas sob outro ngulo, um
recomeo, seria talvez a forma de certificar de que o destino lhe pertencia, estava em busca
de sua identidade. E quantos no so os pais, mes, humanos nessa condio? Quantos esto
ilhados em sua prpria casa, em suas prprias vidas? Margem; muitos homens perdem o
sentido. H ainda os que apenas preferem constituir calados terceira margem, tornando-se
indiferentes ao mundo. Ser margem limitar-se; Ser rio prosseguir.
O conto por si mexe com o leitor, leva-o a se indagar sobre sua coragem e o
preconceito que sente em relao ao que no rotulado comum. Com isso, percebe-se que a
literatura no acessrio, necessria aos olhos humanos, a vida. Atravs da leitura do conto
o indivduo capaz de se perceber melhor e respeitar o outro.
O autor promove no seu interlocutor a incmoda indagao: Por que um homem
largaria seus familiares, sua vida, para ficar em meio a um rio dentro de uma canoa? No seria
possvel afirmar que esse homem j havia se isolado dentro de si mesmo, h muito tempo; e
que na tentativa de se encontrar que decide procurar a sua terceira margem e dar sentido a
sua vida, mesmo sua deciso no sendo comum, o desejo de buscar sua essncia mais forte e
as barreiras do preconceito, do abandono no so maiores que a sensao de liberdade de
plenitude que a grande travessia pode proporcionar.
Rosa constri uma terceira margem, no comum s leis da natureza, podendo
representar a instabilidade, presente de incertezas e permeada de dvidas e conflitos.
Conforme explica Galvo (1978), as duas margens do rio situam-se num mesmo nvel
de realidade. A terceira margem no se sabe, ainda que na linguagem cifrada da mitologia e
das religies, seja freqente o smbolo de praia, de margem, aonde se chega quando se morre.
Compreende-se, portanto, que essa terceira margem do rio, recorre dimenso
desconhecida, longe do real, e forte no imaginrio rosiano.
O termo cursar o rio no escolhido toa, ele d ideia de fazer um curso, no sentido
de aprofundar o conhecimento (no caso do pai). A atitude adotada pelo pai simboliza a
transcendentalizao que se deve imprimir vida para dela recolher seus significados mais
profundos. O rio representa a existncia do homem, seu curso ou o ritmo de sua correnteza
simboliza os desejos, sentimentos que povoam toda essncia humana.
Segundo Castro (1993), a deciso de permanecer dentro do rio simboliza o desejo de
conhecer as profundezas do esprito, de explorar o seu inconsciente, de escavar sua essncia,
alcanando um novo estgio de percepo, que fortalece o esprito e ilumina na busca da
plenitude superando seus limites.
3.3 DO LADO DE C
Segundo Galvo (2008), s vezes Rosa escreve como quem est em estado de graa, e
o conto A Terceira Margem do Rio um desses momentos. A histria ortoga seu carter
CONSIDERAES FINAIS
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