A Transcendência No Conto A Terceira Margem Do Rio de Guimarães Rosa

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A TRANSCENDNCIA NO CONTO A TERCEIRA MARGEM DO RIO,


DE GUIMARES ROSA
VITOR, Denise Cristina Rodrigues Caliman 1
COSTA, Sueli Silva Gorricho2

Recebido em: 2011-02-22 Aprovado em: 2011-10-20 ISSUE DOI: 10.3738/1982.2278.569

RESUMO: Este trabalho tem o propsito de enfocar a transcendncia, que norteia o desvendamento do conto
A Terceira Margem do Rio, da obra Primeiras Estrias (1962), de Guimares Rosa (1908-1967). Por meio da
fortuna crtica e da anlise do conto procura-se desvendar aspectos do indizvel a partir da travessia rosiana. A
obra inspira-se em duas vertentes da literatura brasileira da primeira metade do sculo XX: o regionalismo e o
romance psicolgico. A realidade e a cultura sertaneja se transfiguram em retratos de grandes inventividades
lingsticas e literrias, em uma obra de alcance universal. Guimares Rosa lana mo da mitologia, de lendas e
do mito potico para transcender aos padres estticos. Na obra analisada entrev a criao de um narrador que
ao mesmo tempo individualizado e coletivo, j que fala pela comunidade e pede a cumplicidade de um
interlocutor, que tenha coragem de se embrenhar pelos caminhos da leitura, instigando-o a se aventurar mais de
uma vez pelas veredas desse vasto universo. Quanto mais se adentra, mais se descobre, mesclando imaginao,
realidade e poesia.

Palavras-chave: Transcendncia. Travessia. Leitura. Mitologia. Guimares Rosa.

SUMMARY: The present investigation refers to the transcendence that leads to the disclosing of the novel
A Terceira Margem do Rio, Primeiras Estrias (The Third Edge of the River, First Stories (1962), written by
Guimares Rosa (1908-1967). Through the critical purpose and the analysis of the novel we try to disclose the
aspect of the unutterable in the rosiana crossing. The work is inspired into two tendencies of the Brazilian
literature on the first half of the 20th century: the regionalism and the psychological novel. The reality and the
culture of the Brazilian wilderness life is portrayed in a vast linguistic and literary creation, a work of universal
reach. Guimares Rosa makes use of mythology, legends and poetic myth in order to transcend the esthetic
models. By analyzing the work it is possible to catch a sight of the creation of a narrator who is at the same time
individual and collective since he speaks for the community and asks for the complicity of an interlocutor, who
has the courage to go through the paths of reading, and putting him up to venture more and more through the
paths of this vast universe, for the more we go into it the more we discover about it, mixing imagination, reality
and poetry.

Keywords: Transcendence. Crossing. Reading. Mythology. Guimares Rosa.

INTRODUO

Em busca do autoconhecimento a vida, prope travessias, s vezes, fsica que vai de


uma margem outra de um rio, navegando pelas guas. Outras vezes, metafsica que busca a
eternidade ao atingir uma terceira margem imaginria.
A leitura do conto A Terceira Margem do Rio, da obra Primeiras Estrias (1962),
de Guimares Rosa (1908-1967), procura levar o leitor a reconhecer o verdadeiro sentido da
travessia, do conhecimento e do encontro do ser humano consigo mesmo. Desde o ttulo do

1
Licenciatura Plena em Letras- FE/FFCL
2
Prof. Me. da FEI/ Faculdade de Filososfia Cincias e Letras de Ituverava, nos cursos de Letras e Pedagogia.
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conto, at o seu desfecho no final, defronta-se com o paradoxo: um rio e trs margens, o que
seria essa terceira margem? Diferentemente de leituras ps-modernas que privilegiam a
margem, Rosa pe o seu leitor em movimento, solopando o conforto com uma outra
margem, que no necessariamente explicada. Para penetrar na obra necessrio que o leitor
tenha coragem de transcender os padres e as regras estereotipadas da sociedade embotada de
percepes esvaziadas; preciso ir alm da vida e da morte; aprender um idioma; ter um
vasto olhar de mundo, mas, sobretudo de si mesmo; ter certa religiosidade e especialmente
se ligar com a substncia suprema que deu vida ao universo.
Assim, no conto, Rosa aborda a loucura e o abandono com a poesia e a linguagem. a
metfora da origem e da travessia. A necessidade de viver as guas, ora calmas ora violentas
do rio, com o objetivo de chegar ao seu destino.
O narrador a todo o momento exige coragem de seu leitor para tomar decises, para
viver, instigando-o a se posicionar no conto e na vida.
preciso enxergar Rosa com os olhos do mundo, e no com o pensamento embotado
dos comuns. A magia da obra transporta o leitor para dentro da histria e a histria para a vida
do leitor.
Justifica-se a escolha desse tema pela importncia do autor na Literatura Brasileira e
pelo universo de sua obra, em que os segredos e os encantos do que no previsvel
transcende.
Abordar tais questes que ajudem a compreender o texto literrio de suma
importncia para que leitor e texto se aproximem.
Para isso so abordados vrios textos crticos de autores que fazem a leitura se tornar, alm de
entretenimento, uma forma de conhecer melhor a obra rosiana.
Assim, o objetivo desse trabalho desenvolver a necessria aprendizagem para um
melhor entendimento da transcendncia no conto A Terceira Margem do Rio.
A problematizao do trabalho conhecer por que o universo rosiano apresenta-se to
complexo diante de seus leitores?
Os mtodos de anlise do presente trabalho so embasados em pesquisas
bibliogrficas, de textos crticos especficos, que apresentam ao leitor um universo sem
segredos e os encantos do que no previsvel, mas que transcendem a obra e a vida.
O trabalho foi organizado em trs partes. Na primeira parte denominada, vida de
um encantado; apresenta-se vida e obra do autor Guimares Rosa. Na segunda parte que tem
como ttulo O mtico do mstico, procura-se explicar o papel do mtico, do mito e do
mstico da obra enquanto histria narrada.

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Na terceira parte com o ttulo de A Terceira Margem..., apresenta uma anlise global
da obra Primeiras Estrias (1962) e direciona o leitor para o conto. A Terceira Margem do
Rio, em que se prope um olhar alm do conto para compreender os mistrios entre o lado
de c e o lado de l.
E por ltimo, as consideraes finais, que procura seguir uma lio rosiana: O de
palavras pouco comuns no cotidiano, que do um relevo surreal descrio, mostrando algo
enquanto tambm o decifra (PEREIRA, 2010). Para isso preciso atravessar o rio, que como
se sabe, est sempre na mesma direo, entre todos os mistrios que permeiam a derradeira
travessia.
Se o viver perigoso, o narrar tambm o . Mas assim compreendidos o viver e o
narrar, um to perigoso como o outro, pois no se pode narrar tudo, porque no se pode
contar s o certo, e por que se deve faz-lo.

1 A VIDA DE UM ENCANTADO!

Comigo as coisas no tem hoje e anteontem;


Amanh sempre. [...] O senhor por hora mal me entende, se que no fim me
entender. Mas a vida no entendvel,... (Guimares Rosa, 1962)

1.1 COMO TUDO COMEOU...


E a vida de Rosa pode ser lida como uma de suas estrias, na qual o autor v, hora
e a vez de sua derradeira travessia. (Ronai, 2001).

A biografia organizada por Coutinho (1983) permite um conhecimento da trajetria


feita pelo autor desde sua infncia at os primeiros livros.
Guimares Rosa nasceu em 1908, no dia 27 de junho, em Cordisburgo (Minas Gerais)-
filho de Floduardo Pinto Rosa, pequeno comerciante, e de Francisca Guimares Rosa, a Dona
Chiquitinha. Rosa passa a primeira dcada de sua vida na cidade natal.
Desde pequeno se interessava pela leitura e o conhecimento de outras lnguas; torna-se
um poliglota. Mope, calado, sossegado, observador e seu maior prazer a leitura. O contato
com os primeiros ensinamentos acontece com o mestre Candinho.
Muda-se para Belo Horizonte, e vai estudar no colgio Arnaldo; Freqenta a biblioteca
e estuda lnguas por conta prpria. Em 1925 ingressa na faculdade de medicina e torna-se
mdico em 1930, neste mesmo ano casa-se com Lgia Cabral Penna, com quem tem duas
filhas Vilma e Agnes. Estabelece-se em Itaquara, e inicia sua carreira de mdico.
Segundo o crtico Rosa buscava lugares onde no havia muitos recursos, nem muitos
mdicos para suavizar a dor dos seres humanos, seu maior prazer com a medicina era ajudar

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quem realmente precisava, viajava semanas em seu cavalo, procurando lugares esquecidos e
carentes de infraestruturas. H registros em que o doutor Rosa era um profissional dedicado e
respeitado por todos, alm de famoso pela prescrio dos seus diagnsticos. Percorre longas
distncias pelo serto, cujas consultas so pagas, muitas vezes com bolo, pudins, galinhas e
ovos. Seu maior objetivo era buscar uma forma de aliviar o sofrimento humano.
Serve como mdico voluntrio na revoluo constitucionalista de 1932. Em 1934
efetiva-se como mdico oficial do nono batalho de infantaria de Barbacena e num desabafo
diz:
Chegamos novamente no momento em que mdico, rebelde e soldado se misturam:
Como mdico conheci o valor do sofrimento; o homem e sua biografia resultam em
algo completamente novo. Sim, vi como rebelde o valor da conscincia: como
soldado, o valor da proximidade com a morte... (Rosa, V. 1983).

No ano de 1934 presta concurso para o Itamaraty e aprovado, sa ento pelo mundo
como diplomata. Em 1938 nomeado cnsul adjunto em Hamburgo, logo segue para a
Europa, l conhece Dona Aracy Moebius de Carvalho. Desquita-se de sua esposa Lgia e
casa-se com Aracy de acordo com as leis do outro pas.
Exercendo a funo de diplomata, Rosa juntamente com sua esposa Aracy ajudam a
salvar a vida de muitos judeus fornecendo-lhes vistos de entrada para o Brasil. Como homem
do serto Rosa gostaria de responder as injustias dos nazistas bala__ Eu homem do
serto no posso presenciar injustias (Rosa, V. 1983).
A sua carreira literria tem como prlogo o prmio a um livro de versos-Magma
(1936),porm pouco satisfeito no publica a obra, esta s sara em 1997, 30 anos aps sua
morte. Depois desse livro houve muitas pausas e retornos carreira literria; implantou um
jeito novo de fazer literatura, tornando-se universal e reconhecido mundialmente.
Segundo Callado (1992), Rosa candidata-se duas vezes Academia Brasileira de
Letras e na segunda tentativa eleito por unanimidade. Em entrevista, em almoo no
Itamaraty, fala que se candidatou ABL por dois motivos: 1-Porque sua me s acreditaria
que ele era um grande escritor se entrasse na academia. 2- Porque no podia negar a glria
sua pequena cidade de Cordisburgo A academia muito para mim. Sou to pequeno quanto
a cidade que nasci! (Rosa, V. 1983).
eleito em 06 de agosto de 1963, mas s toma posse da cadeira nmero dois quatro
anos aps, em 16 de novembro de 1967, aos 59 anos. Como previa, logo aps sua posse na
ABL, no domingo, dia 19 de novembro, Rosa falece, vtima de infarto. No morreu,
encantou-se!

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De repente, morreu; que quando um homem vem inteiro pronto de suas prprias
profundezas... (ROSA,V. 1983).
Morreu com modstia. Se passou para o lado claro, fora acima de suave ramero e
terrveis balbudias... Alegremos-nos, suspensas ingentes lmpadas. sobre a luz
sobre o justo e d-se o teso corao alegria!Defere ento o salmo; as pessoas no
morrem, ficam encantadas...Mas eu murmure e diga, ante macios morros e fortes
gerais estrelas, verde o moribundo buriti; buriti, e a sempre- viva-dos-gerais, que
mida via e enfeita: O mundo mgico. ---Ministro, est aqui, Cordisburgo3.

1.2 A OBRA DE UM MESTRE

Mestre no quem ensina, mas quem de repente aprende (ROSA, V, 1983).

Rosa comea a escrever ainda jovem, mas somente em 1946 com o livro de contos
Sagarana obteve renome. O livro caracteriza-se por um tipo diferente de regionalismo, no
qual a inveno inclusive lingstica sobrepujava de muito os valores locais. Isso foi
confirmado de maneira triunfal dez anos depois,quando publicou simultaneamente um livro
de novelas, Corpo de Baile (1964) e um romance, Grande Serto: veredas (1954), que
formam o bloco central de sua obra. Depois lana Primeiras Estrias (1962), Tutmeia: trs
Estrias (1967), Estas Estrias (1969) e Ave Palavras (1970-diversos).

A obra-prima sem dvida o romance Grande Serto Veredas, que a principio


deveria ser uma das novelas da coletnea de Corpo de Baile, mas que se ampliou at
as dimenses atuais. Graas a ele, Rosa foi reconhecido quase unanimente, como um
dos maiores escritores brasileiros, pela regionalidade criadora do estilo e da viso de
mundo. Dentro de uma tendncia gasta como o regionalismo, conseguiu fazer um
livro de valor universal, em que elementos pitorescos so meros condutores de um
senso profundo dos grandes problemas do homem. Isso devido a sua capacidade de
criar um estilo prprio, a fuso de local e universal, de presente e eterno, aproxima a
sua obra das grandes experincias literrias da cultura moderna (CANDIDO.
1983.p.365-366).

A obra de Rosa envolve o seu leitor, brinca com a sua imaginao e com o seu
conhecimento de vida. Exprime com sutileza os problemas encarados pela sociedade e exige
constantemente coragem para tomar todo tipo de deciso, seja no envolvimento com a histria
distinguindo o que real ou imaginrio, seja para se portar na sua vida real ou no. Sua
literatura se tornou universal, apesar de se enquadrar na terceira fase do modernismo,
transcendeu ao movimento, usava da cultura regional comum com toque nico, encantando o
leitor no s com os problemas do serto, mas tambm com os causos e as belezas de norte a
sul de cada regio.

3
ltimas palavras do discurso de posse, na Associao Brasileira de Letras- Guimares Rosa, 1967

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A produo de Rosa to rica, que quanto mais se conhece maiores so as surpresas.


Um estudo importante que o autor j foi muitos, nunca deixando de ser um s, como no
estudo de Galvo (1998). Nesse estudo, a critica apresenta as outras faces do autor que usou
de alguns pseudnimos como Viator, Soares Guiamar, Meuriss Arago (ambos anagramas de
Guimares Rosa), entre outros para expressar a sua poesia, a sua arte de criar e de encantar as
pessoas. De todos os pseudnimos o de Viator (o viadante) mais conhecido, pois foi com ele
que concorreu com seu primeiro livro de contos e fora derrotado na competio. Quando
perde essa competio teve como julgador Graciliano Ramos que vota contra o livro, que
mais tarde veio a ser publicado intitulado Sagarana (1946), s ai que Graciliano veio, a
saber, que Viator era na verdade Guimares. Segundo alguns depoimentos do prprio
Graciliano, foi um erro vetar o livro do autor na poca, era uma escrita de contedo que
necessitava apenas de alguns reparos. Essa bibliografia foi colhida por Plnio Doyle que
organizou estes relatos retirados do jornal o Globo do ano de 1961, onde Rosa escrevia e
assinava as matrias com seus pseudnimos, usava nos artigos poesia como: Coisas de
poesia (25/02/61), Outras coisas de poesia (01/04/61) e muitas outras.

O pseudnimo Viator desapareceu logo que suplantado pelo prosador Joo


Guimares Rosa. Mas Soares Guiamar Meuriss Arago so personas de poetas
envergonhados, embries em clamor por reconhecimento, que se ocultam e se
desvelam nas mos do narrador. No fundo do cidado aclamado e do autor bem
sucedido, haveria um(s) poetas irrealizados, entre os quais se inclui um escritor de
livro indito, por ttulo Magma, que a principio no publicou. GALVO (1998).

Como se pode notar h muito mais mistrios do que pode-se imaginar em torno da
obra do autor que brinca com as palavras e envolve o leitor atento e desejoso de novos
desafios, pois o importante no decifrar os desafios, mas fazer parte deles.

1.2.1 PALAVRAS DO SERTO

Meu lema : a linguagem e vida so uma coisa s. Quem no fizer do idioma o


espelho de sua personalidade no vive; e como uma corrente continua, a
linguagem tambm deve evoluir constantemente. Isso significa que como escritor,
devo prestar contas de cada palavra o tempo necessrio ate ela ser novamente vida.
O idioma a nica porta para o infinito... (ROSA, 1983.).

No se pode falar de Guimares sem falar de sua linguagem inovadora, moderna e


dificultosa para o leitor que se inicia, mas que nada os impedem de se apaixonar e viajar pelos
rios de sabores oferecidos pelo autor. Conhecendo mais a linguagem, conhece-se mais o
homem; autor esse que ama a natureza, a vida, o serto e transfere para sua obra muito de sua
sensibilidade. Compreender o que sua obra representa no panorama literrio nacional, faz

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dele, mais que um divisor de guas, talvez do rio mais profundo com que o leitor possa
deparar-se.
A linguagem rosiana consegue ser a um s tempo regional e universal, presente e
atemporal, popular e erudita, mesclando, no papel a genialidade de diplomata e do indivduo
que deambulava, pelos grotes do serto, munido de seu caderninho, anotando os causos que
poderiam vir a compor sua obra.

A escritura de Guimares Rosa procede abolindo intencionalmente as fronteiras


entre a narrativa e a lrica, distino batida e didtica, que se tornou, porm, de uso
embaraaste para a abordagem do romance moderno. O que se passa com a sua
linguagem no tratamento das unidades verbais (fonemas e morfemas), ocorre
tambm no plano dos significados: as suas histrias so fbulas, mutue, que velam e
revelam uma viso global da existncia, prxima de um materialismo religioso, isto
propenso a fundir, numa nica realidade, a natureza, o bem, o mal, o divino e o
demonaco, o uno e o mltiplo (BOSI, 2001, p 428-434) .

Essa anlise remete em base quase todo sentido da obra do autor que usa dos smbolos,
das metforas para sugerir, explicar fatos que muitas vezes so inexplicveis. V-se no
romance Grande Serto: veredas (1954), muito desse imaginrio, onde se contesta a
existncia do bem e do mal, do possvel pacto com o diabo. O pacto percorre todo romance,
porm o leitor est to envolvido com a narrativa que no se preocupa se o fato real ou no,
apenas adere sugesto do autor. Ao passo que o leitor envolve-se com a leitura do romance,
o mistrio do pacto vai se distanciando, passando do centro para parte da histria, abrindo
espao para o personagem principal que toma vida prpria, retratando as crenas do sertanejo,
fazendo do livro mais que uma histria, um retrato da regio e dos costumes religiosos
pregados pelo povo, que acredita no pacto e acredita no jaguno, na sua f e na sua coragem
perante todos os desafios do serto.

1.2.1.1 A lngua de Rosa

Somente renovando a lngua que se pode renovar o mundo (ROSA. 1962)

A palavra para Rosa forte e determinante, sua escrita inovadora, por meio dela o
autor cria novos falares, transcendendo o coloquialismo regional, elevando a obra para um
padro universal. Criticar a grandiosidade de sua escrita, no estar preparado para efetuar
uma leitura polissmica, como esclarece o crtico:

Desconhecer a obra rosiana em sua pluralidade desconhecer a prpria essncia


dessa arte to provocadoramente original e regional. A predileo do autor por
frmulas populares de uso geral no o impedem de se deleitar com inslitas locues
individuais nem de inventar outras que, golpeando em cheio o leitor, lhe possam
inculcar uma percepo nova (RONA, 2001).

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Toda obra do autor tem aparncia regional e popular com um toque inovador, como v
se muito no conto o emprego do artigo definido frente de adjetivos indefinidos, em trechos
que fala por conta prpria, exemplo: as muitas pessoas, o parente nenhum, prtica que o
autor usa para demarcar o uso oral, coloquial do falar sertanejo. Os exemplos poderiam ser
multiplicados, e o formigar de tais rodeios que d aos leitores menos desavisados a idia que
o autor faz apenas uma mera reproduo da linguagem popular. Porm essa deve ser
totalmente descartada, pois Rosa no um decodificador de signos, mas um criador de
sentidos. As palavras e a lngua para o autor so fontes inesgotveis de conhecimento e
aprendizagem. Pode-se afirmar ainda que mesmo frases irredutveis ao esquema comum, que
orientam a um sistema de leitura formatado, podem abrir caminhos para o entendimento da
obra, do autor e de si mesmo.

Atravs de umas tantas questes sem fio gramatical definvel, fica instaurado um
universo lingstico em que mesmo as proposies de lgica perfeita passam a pedir
uma leitura diversa [...], especialmente o verbo de cpula ganha fora em ser
omitido quando substitudo por interrupo do fluxo sonoro: Se homens, meninos,
cavalos e bois--- assim insetos (RONA, 2001).

Como se pode perceber Rosa cria um mundo de palavras novas, sem esquecer suas
origens regionais, e faz o novo na lngua usando o coloquialismo presente no serto, pois
como se sabe o serto est em toda parte.
Criador, portanto de uma lngua indita e surpreendente, Rosa a considera a lngua da
metafsica, mas que se aponta para o transcendente, mantm com a lngua uma relao
carnal.
Em carta a Lorenz (1983), diz:

De certo que eu amava a lngua. Apenas no a amo como a me severa, mas como a
bela amante e companheira... quando escrevo traduzo, extraio de muitos outros
idiomas, disso resultam meus livros, escritos em idioma prprio, meu, e podese
dizer da que no me submeto tirania das gramticas dos outros (ROSA, 1983).

Rosa criou o seu prprio dialeto literrio, vrios so os componentes que constituem
essa linguagem original e bela. Os principais elementos que compem a obra, em nvel de
informao e de interao com a escrita do autor so embasados na revista Discutindo
Literatura (2007; 2008), e em textos crticos especficos, que exemplificam algumas das
artimanhas de Rosa na construo de suas histrias, tais como:
A incorporao do falar coloquial do sertanejo: esse falar serve de base de sua
linguagem, expresses e ditos populares que permeiam toda obra, por exemplo: Ossenhor
uturge, mestre, a gente vinhemos, no graminha...

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Guimares Rosa usa todos os artifcios da arte potica para valorizar e descrever seus
personagens e seus lugares encantados, por meio da: Aliterao--: Existisse, viesse!
Chegasse para o desenlace desse passo.
Gradao: C vai, oc fique, voc nunca volte..
Reiterao: [...] e, eu rio abaixo, rio afora, rio adentro, o rio [...]
Rimas: [...] o de sua filhinha em glria, Santa Nininha [...]
Ritmos: que lembra efeitos obtidos pela mtrica:- [...] a salvo de bicho mexer a seco
de chuva e orvalho [...] Observe, se houver um corte no meio desse enunciado, obtm-se dois
versos de oito slabas, sendo que as tnicas incidem sobre a 2, a 5 e a 8 slabas poticas:
a/sal/vo/de/bi/cho/me/xer
A/se/co/de/chu/va/eor/va/lho.
Emprego de neologismos, uma das grandes marcas de sua escrita. Rosa construiu-os
neologismos por meio de dois modos: A inveno de palavras por aglutinao, composio ou
por adaptao de vocbulos estrangeiros, como por exemplos: Nonada (no + nada),
Desfalam; Milhentos (por milhares), Capisquei (entendi, compreendi, do italiano Capire)
Atribuio de novos sentidos a palavras usuais por meio da contextualizao: Nosso
pai [...] decidiu um adeus para a gente! (Note como o verbo decidir, nesse contexto, ganha
outra dimenso de sentido, o efeito do enunciado mais forte e dramtico, decidir um adeus
mai definitivo do que dar um adeus, como a expresso corrente.
Grande utilizao de diminutivos: abundantes na obra do autor, os quais diminutivos
so empregados para causar um efeito terno, meigo, frgil, infantil e/ou carinhoso:
bonequinho, brejeirinha, gentezinha, miguilim, pamoinha, analfabetinha e muitos outros.
Emprego de aforrismos, ou seja, definies de coisas e de conceitos que soam como
mximas verdades, dentre as inmeras destacam-se:
O senhor sabe o que o silncio ? a gente mesmo demais.
Viver muito perigoso.
Qualquer amor j um pouquinho de sade, um descanso na loucura.
Amar reconhecer-se incompleto.
A recorrncia, a silepse de nmero: - A gente, vamos embora, morar na cidade
grande
As rupturas sintticas: Dono dele nem sei quem for.
Contexto que transfere palavras usualmente de determinada classe gramatical para
outra: O pssaro que separa de outro, vai voando adeus o tempo todoObserve como o
substantivo adeus se torna advrbio.

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Segundo Ronai (1958), predominante o emprego de figuras de linguagem como


metforas, elipses, anacolutos, por toda obra do autor. As metforas de Rosa so tantas e to
originais, que produzem um efeito potico radical, o efeito de ressaca do significado novo
sobre o significado corrente- De noite, saiu uma lua rodoeira, que alumiava at passeio de
pulga no cho (Sagarana, 1946), usa esta expresso para dizer que a lua era cheia e brilhava
intensamente.
Estudar a linguagem rosiana conhecer sua forma diversificada de escrever, do seu
dialeto mgico, sem regras gramaticais moda dos outros; mas suas regras, seu falar, como
dizia: Amo a lngua, realmente a amo como se ama uma pessoa, isto importante, pois sem
esse amor pessoal, por assim dizer, no funciona. - Quando escrevo, repito o que j vivi antes,
e para estas duas vidas um lxico s no suficiente (ROSA, V. 1983).

2 O MTICO DO MSTICO

s vezes acredito que eu mesmo, Joo, seja um conto contado por mim!
(ROSA,V. 1983)

A religiosidade rstica brasileira perpassa por toda obra de Rosa, como em poucos
modernistas em nossa literatura.
O que se nota em sua obra a noo democrtica e tolerante, de que a religiosidade ,
sobretudo, um caso de sincretismo em seu sentido mais amploo de hibridismo mltiplo.
Rosa mostra mais concentradamente na parte inicial de Grande Serto: veredas
(1954), que a grande torrente de religiosidade popular alimentada por inmeros afluentes.
No s h elementos de um catolicismo bsico, como tambm de espiritismo, de
protestantismo, alm de crendice e prtica ritual. Rosa no possua uma religio em especial,
mas respeitava a todas as religies, como respeitava s pessoas e vida. Era um mstico e os
traos desse misticismo so encontrados em grande parte de sua escrita literria.
A obra do autor na maioria das vezes situa-se em um espao mtico, as histrias
narradas em primeira pessoa perpassam em um tempo cclico, como A terceira margem do
rio.
O pensamento mtico ou tempo mtico acontece enquanto histria narrada, como em
Grande Serto: veredas (1954), o mito do pacto com o demnio, transforma o romance,
transcende a lgica do real e do imaginrio, causando no leitor a dvida, enquadrando-se no
espao mtico.
O mito potico a soluo romanesca de Rosa. A sua obra situa-se na vanguarda da
narrativa contempornea que se tem abeirado dos limites entre o real e o surreal, e
tem explorado com paixo as dimenses pr-conscientes do ser humano. Seria talvez
fcil paradoxo lembrar que uma obra de to aguda modernidade se nutre de velhas
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tradies, as mesmas que davam aos cavaleiros feudais a aura do convvio com o
sagrado e com o demonaco. (BOSI, 2001, p.432)

A modernidade de Rosa nutre-se de algumas tradies como o convvio entre o bem e


o mal, presente sempre nas histrias e na vida do sertanejo, que tem suas supersties, suas
crenas. No apenas na vida e costumes do homem do serto enconta-se essa idealizao a
respeito do que bom, o ruim, Deus e Diabo, isso importante, essa abordagem, de algo que
to antigo, mas que Rosa deu-lhe alma nova, colocando em prtica no a crena, ou o real,
porm, o essencial o que est subentendido, o poder que o pacto (com o demnio), passa a
ter no de real, mas de onipotncia entre um e outro, bem e o mal.
A sua obra nos coloca em face do mito como forma de pensar e de dizer atemporal, a
sua escrita um desafio narrao convencional, pois seus processos de escrita pertencem as
esferas do mito e do potico, para compreend-la preciso repensar as possibilidades de
cultura, da linguagem de cada ser.
Segundo Bosi (2001), outro problema seria situar a opo mito potica do autor dentro
da cultura brasileira de hoje. A transfigurao da vivncia rstica interessa principalmente
enquanto mensagem, ou enquanto cdigo? O que ficar em segundo plano na conscincia do
homem culto: a reproposio da vida e da mentalidade rural e agreste, ou o experimento
esttico. Uma leitura da obra que no leve em considerao os fatores internos, e ignore o
sentido dessa literatura moderna na sociedade atual, no est preparado a transcender a obra,
estar esteriotipado aos conceitos previsveis.
Segundo Nunes (2002), ao analisar o romance Grande Serto: veredas (1954)
explica que o romance polimrfico, as formas heterogneas a ele incorporadas nos indicam
a atividade geradora de formas simples, a lenda e a saga, o mito e a adivinha ou enigma:

H uma correlao entre o mito e a adivinha ou enigma, o mito do pacto com o


demnio, entre andanas, proezas de amor e feitos de guerra um conjunto de
peripcias desenroladas num ambiente natural e humano de imediata
referencialidade regional o serto-geogrfico social e politicamente demarcado,
em funo da histria de jagunos que constitui a matria fabular (NUNES, 2002).

No entanto o aproveitamento do mito que sobredetermina o epos implicar, em outra


correlao por sua vez determinante do mito, dentro da estrutura polimrfica do romance. O
mito medieval do pacto com o coisa ruim, com o lcifer, o mito de referncia da obra; o
mito de origem e tem por funo projetar no leitor a profunda indagao, o suspense do pacto,
real ou no.
Segundo Nunes ( 2002 ), o incio da leitura do romance Grande Serto: veredas

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(1954) o epos4, que nos envolve e nos entrega ao mito; ao termin-lo, o mito suspenso, a
indagao reflexiva que foi capaz de neutraliz-lo, quer dizer, uma inquietao tica e no
um cdigo moral. O prprio mito, e o pacto com o demnio assumem a forma de destino: uma
forma de existncia que se temporaliza.
O aproveitamento do mito sobredeterminante do epos, do ciclo de aventuras narradas,
indissocivel da indagao sobre a existncia do Demnio, do mal em si, e de seu oposto,
Deus paciente, o Diabo traioeiro, o romance pertence ao tempo mtico enquanto histria
contada, imaginria.
Assim, Nunes (1995) explica o mito e o mtico dentro do romance e deixa claro que
no h um tempo mtico enquanto tempo real, objetivo, palpvel:
Porque o mito, histria sagrada do cosmos do homem, das coisas e da cultura, abole
a sucesso temporal. O que quer, que o mito narre, ele sempre conta o que produziu
num tempo nico que ele mesmo instaura, no qual aquilo que uma vez aconteceu
continua se produzindo toda vez que narrado. (NUNES, 1995, p 66)

Convm manter a distino entre o tempo do mito, tal como definido o mito do tempo,
isto , o tempo mitificado enquanto potncia criadora e destruidora: o tempo v tudo; o tempo
te desmascara, denunciando o passado.
Quando Nunes (1995) fala do tempo mtico no romance, refere-se ao imaginrio, que
coletivo, por exemplo, a origem do homem pode ser narrada de vrias formas, mas todas se
referem a um tempo nico: o momento da criao, nesse sentido o crtico afirma que o tempo
mtico no existe. O jogo de linguagem no romance Grande Serto: veredas (1954),
proporciona ao leitor acreditar no pacto, nesse sentido o imaginrio manifestado para que se
cumpra a transcendncia na obra.
Alm de uma obra enigmtica, seus personagens so muitas vezes inverossmeis em
relao ao entendimento do leitor que se prope a ler literatura apenas como acessrio. As
histrias de Rosa pem o interlocutor em contato com o que no dizvel, com o inefvel.
No romance de maior impacto do autor, Grande Serto: veredas (1954), o leitor
aceita com o desenrolar da histria, normalmente o pacto do jaguno Riobaldo com o
demnio, pois um livro de realismo mgico, lanando caminhos para um supermundo
metafsico, de maneira a tornar possvel o pacto e verossmel a conduta do protagonista,
sobretudo graas a tcnica do autor que trabalha todo o enredo no sentido duma invaso
iminente do inslito a isto se junta a escolha do foco narrativo, monlogo dum homem
rstico, cuja conscincia serve de palco para os fatos que relata, e que os mistura com sua
prpria viso, sem ter certeza se o pacto ocorreu ou no (CANDIDO, 1964, p 160)

4
De acordo com o dicionrio Houaiss, epos o que se exprime pela palavra; discurso, palavra dada, promessa.
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O importante que, mesmo na dvida se o pacto ocorreu ou no, a narrativa vai sendo
organizada de modo que se torna natural e real, as coisas espantosas e msticas.
Na obra o destino , em vez de fator produtivo, o resultado de coisas opostas,
conflitantes as de Deus mansas e constantes, as do Demo, bruscas e agressivas. Afinal
viver muito perigoso (Riobaldo, G. S. Veredas, 1954), porque no h delimitao entre
elas, apenas se sabe que Deus definitivamente e o Demo, o contrrio dele.

Pode-se ver que o real inteligvel sem o fantstico, e que ao mesmo tempo este o
caminho para o real. Nesta grande obra combinam-se o mito, o mundo da fabulao
lendria e o da interpretao racional, que disputam a mente e nutrem a introspeco
tacteante que extravasa o serto (CANDIDO, 1983 p, 139)

O livro, contudo um livro que reconduz do mito ao fato, faz da lenda smbolo da
vida e mostra que na literatura, a fantasia nos devolve sempre enriquecidos realidade do
quotidiano, onde tecem os fios da treva e da luz, no destino de cada um. A gente tem de sair
do serto (Riobaldo, G. S. Veredas, 1954). Mas s se sai do serto tomando conta dele.
Entra-se nessa realidade fluida para compreender o serto, que nos devolver mais claros a
ns mesmos e aos outros.

2.1 ENTRE DEUS E O DIABO

O homem nasceu para aprender; Aprender tanto quanto a vida lhe permita.
Transformando o inferno real, no cu almejado (ROSA, V.1983)

No se pode conhecer a literatura de Rosa, sem comentar ou examinar, tambm a obra


de autores modernistas que como ele, empregam do regionalismo para expressar formas,
lugares e pessoas. Porm Rosa fazia um regionalismo diferente novo lanando campo para
vrias abordagens, essa diversidade fez dele um dos poucos escritores brasileiros capazes de
transcender o comum.
Um grande escritor brasileiro que admirou a escrita de Rosa desde o seu primeiro livro
foi Graciliano Ramos. Autor esse de uma escrita magnfica e regionalista tambm. Contudo
ambos os autores abordam diferentemente muitos assuntos, dentre eles o serto e as pessoas.
A importncia de se conhecer essa parte da literatura de Graciliano Ramos, completa o que
pretende-se ao final do trabalho, que a transcendncia que permite a obra de Guimares
Rosa; a sua escrita relata o regionalismo, o serto, porm permite que todas as classes sociais
transcendam, sonhem e se encontrem na vida, dando a Rosa a atemporalidade que humaniza
por meio das palavras.

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Ramos em seu livro Vidas secas (1998) v o migrante nordestino objetivamente, narra
a dor de existir do sertanejo. O autor se atenta para o homem explorado, pelo sertanejo
sofrido, mas no consegue entender na sua linguagem ou nos seus devaneios algo mais que a
inconscincia.
Ramos traz consigo um saber que a sociedade onde vive no permite recalcar. Por isso
se permite emitir juzos sobre o comportamento do sertanejo; esses juzos por ele empregados
nunca poderiam fazer parte da literatura rosiana5, que trata, com as fontes sertanejas no plano
da identificao e da empatia.
O caminho do desejo, do sonho, da imaginao e da realidade que so a substncia de
tantas histrias sertanejas contadas por Rosa, no podem ser encontradas na obra de Ramos.

A criana parece viver o cu na terra, mas o adulto no deve segui-la. A educao


sertaneja, tal com Ramos a mostra em Vidas Secas, no se pode prescindir do
inferno, pois um aprendizado brutal de que preciso temer o outro, a natureza, o
acaso. O cotidiano deve se conformar com as leis de determinao social e natural
[...] (TOYOTA, 1988, p 20).

O realismo crtico de Ramos encontra-se no distanciamento, o narrador conhece a dor,


as restries do sertanejo e por isso no se envolvem, no deixa que os sonhos do inconsciente
das personagens se misturem realidade rida e seca do serto.
O modo de falar do serto, do sertanejo diferente entre os dois autores. Em muitos
dos contos de Primeiras Estrias (ROSA, 1962), so personagens que vivem em um,
universo de pobreza, no qual h figuras de crianas, loucos que perpassam toda a obra. A
diferena no est em retratar o sertanejo, mas em como se faz isso. Rosa apresenta em seus
contos o trgico, o ilusrio e o real, mas com uma linguagem que aproxima o narrador e a
personagem: h sentimento, h empatia. O escritor teria preferido pr-se escuta das vozes
singulares que saem da boca do sertanejo, tornando-as por inspiradas, belas e verdadeiras em
si mesmas (TOYOTA, 1988, p 22).
Entre o narrador onisciente de Vidas Secas (1998) e a mente de seu vaqueiro Fabiano,
a nica coisa em comum, a desconfiana que ambos tm em relao lngua dos poderosos
e a certeza das diferenas sociais. J com Guimares, o que o mistura a cultura popular um
fio unido s crenas, no s de contedos e imagens simblicos, mas no modo de ver os
homens, o mundo e a si mesmo.
Alguns dos personagens de Primeiras Estrias (1962) so privados de sade, de
posio social e at do uso da razo, mas mesmo assim so criaturas que relatam alcanar a

5
Optou-se pelo uso da palavra rosiana embasada no texto crtico Mitologia Rosiana (GALVO1978), embora
tambm possa ser encontrada escrita de outras formas.
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suplncia afetiva e simblica com a passagem para o reino da liberdade, para a grande
travessia.
O sertanejo cr no destino, na sorte e no azar, e a sua crena tanto mais slida e
justificada quanto menor o seu raio de ao consciente sobre o que lhe a de
suceder. Quando toda modificao vem de fora, o dentro no precisa desenvolver
nenhuma razo de previsibilidade de longo alcance, nenhum projeto que amarre fins
e meios. A ordem do transcendente abre horizontes sem fim e, no devir da
fantasia, alguma coisa sempre pode acontecer. Rosa entra em sintonia com essa
alma com o maior dos realismos a religio dos oprimidos (TOYOTA, 1988 p 23)

Rosa ousa nas solues formais e realiza artimanhas com a linguagem que o antigo se
torna moderno, ou seja, usa do falar popular de uma forma nova, enraizante, mgica, mas que
obedecem ao cerne da imaginao rstica.
No entanto aquilo que em Graciliano Ramos se firmava como oposto entre o serto
hostil e o sertanejo hostilizado, recebe das mos de Rosa um tratamento pelo qual a
necessidade exterior (a travessia), torna-se um meio de cumprir a necessidade interior que o
desejo de felicidade.
A literatura de Ramos do cu desejado para o inferno real, rido, seco do serto.
Rosa o caminho inverso, o inferno pra quem no tem coragem e se prende a aridez da
vida; o cu s alcana quem se liberta dos esteretipos, e assume o valor da vida, mesmo nas
piores dificuldades sempre pode-se encontrar um caminho. A cantiga de roda sabe o que o
povo sofre e o que o povo espera. No preciso colocar mais dor na vida do sertanejo, ele
precisa de beleza para viver, Rosa v a beleza do povo e do serto, no v apenas os
problemas, isso o distancia, portanto da literatura de Ramos.

3 A TERCEIRA MARGEM...

O correr da vida embrulha tudo. A vida assim, esquenta e da afrouxa, sossega e


depois desinquieta. O que ela quer da gente coragem (ROSA, 1968).

3.1 PRIMEIRAS ESTRIAS (1962)

Tem diversas invenes, o medo, eu sei o senhor sabe. Pior de todas essa; que
tonteia primeiro depois esvazia (ROSA, 1962)

O livro Primeiras Estrias (1962), composto de vinte e um contos diferentes, mas


que num conjunto se entrelaam. A maioria das histrias passa-se em ambiente rural no
especificado, em stios, fazendas: os ambientes so apresentados com poucos, mas precisos
toques, com molduras de altos morros, vastos horizontes, grandes rios e pouca descrio das
cidades.
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O foco narrativo do livro divide-se em primeira e terceira pessoa. Dez contos so


narrados em terceira pessoa: Famigerado, As margem da alegria, Sorco, sua me, sua
filha, A menina de l, Os irmos Dagob, Nenhum, nenhuma, Seqncia, Um
moo muito branco, Substncia e Os cismos. Os onze contos restantes so relatados em
primeira pessoa: A terceira margem do rio, Pirlimpsiquice, Fatalidade, O espelho,
Nada a nossa condio, O cavalo que bebia cerveja, Luas de mel, Partida de audaz
navegante, A benfazeja, Darandina e Taranto meu patro. Desses onze, apenas dois
apresentam narrador como protagonista: O espelho e Pirlimpsiquice, nos outros, o relato
feito por um espectador privilegiado.
Foi o primeiro livro de contos curtos do autor e um sucesso universal, uma linguagem
leve, episdios do cotidiano, o demiurgo do dia a dia. possvel dizer que h uma analogia
entre as sutilezas dos mais profundos meandros da alma humana e a linguagem nova recriada,
do escritor mineiro.
Convm esclarecer a diferena do conto com outras obras literrias:

O conto uma designao da forma narrativa de menor extenso e se diferencia do


romance, da novela no s pelo tamanho, mas por caractersticas estruturais
prprias. Quanto mais concentrado, mais se caracteriza como arte de sugesto,
resultante de rigoroso trabalho de seleo e de harmonizao dos elementos
selecionados e de nfase no essencial. Embora possuindo os mesmos componentes
do romance, o conto elimina as anlises minuciosas; complicaes no enredo, por
exemplo, e delimita fortemente o tempo e o espao. No podemos confundir o conto
literrio, com o popular, folclrico (SOARES, 2007, P 05).

Rosa usou de sua escrita nesse livro e na maioria de sua obra do encantamento e da
imaginao, para compor histrias com imagens e personagens de lugares simples e
encantados para prender a ateno do seu leitor, levando-o muitas vezes a sonhar e a sentir
como seus pequenos ou grandes personagentes.

O papel da literatura na vida social admitir a sua plurifuncionalidade, a arte da


palavra a expresso do belo, ou do difcil de enfrentar, as palavras provocam
prazer alm de um conhecimento de uma realidade objetiva ou psicolgica, como
diria Oswaldinho Marques-a funo social do poeta alm de proporcionar-nos um
prazer esttico, ele pensa e sente o mundo (DOnfrio 1978, p.28)

De acordo com o crtico, os autores colocam seus leitores em contato com um mundo
diferente daquele que se vive, mas que um dia foi idealizado. A obra de Rosa favorece, em
todos os sentidos, principalmente em Primeiras Estrias (1962), o contato com diferentes
situaes que para uma profunda compreenso, indispensvel a valorizao da palavra, o
libertar da imaginao, a irracionalidade que se transubstancia na riqueza de gestos e
smbolos, presentes nos detalhes mais simples.

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O livro Primeiras Estrias (1962), abre vrios caminhos para a interpretao, um


labirinto em que a perspectiva, a temperatura e a atmosfera emocional mudam mais de vinte
vezes, a comear pelo ttulo.
Rona (2001) explica que o ttulo do livro utilizado para firmar uma nova etapa na
vida literria de Rosa. Primeiras serve para designar a novidade do gnero adotado, o conto
curto, sendo Estrias a caracterstica da fico, do caso inventado. Guimares fazia questo
de afirmar que a estria, no quer ser histria, denunciando que o importante no aquilo que
usualmente fica registrado; seus temas se valiam de enredos episdicos que serviam para
ilustrar a travessia, a conquista da alegria.
Cada histria tem como ncleo um acontecimento, mas o sentido atribuvel a esse
termo no o que lhe do comumente os dicionrios, isto , no sinnimo de ocorrncia
Parecia no acontecer coisa nenhuma, [...] certa vez, em outra ocasio o autor pondera ainda
mais explcito: Quando nada acontece h um milagre que no estamos vendo (ROSA,
1962).
Devido ao jogo que Rosa utiliza o leitor no consegue prever o final de nenhum dos
contos, e s vezes se choca com o final, pois nunca o mais previsvel; o melhor da obra est
em sentir, interpretar o momento, este nico. Mesmo assim, sem previso do final das
histrias, o leitor no se sente frustrado, pois j est embebido com a trama, com as
artimanhas que o autor sabe como ningum aplicar a sua obra.

Os protagonistas de Primeiras Estrias farcejam os acontecimentos, adivinham os


milagres que no vemos em um primeiro momento. Neles a intuio o devaneio
substituem o raciocnio, as palavras ecoam mais fundo, os gestos e os atos mais
simples se transubstanciam em smbolos. O que existe dilui-se, desintegra-se; o que
no h toma forma e passa a agir. Essa vitria do irracional sobre o racional
constitui-se em fonte permanente de poesia (RONA p 19, 2001)

O cenrio da maioria dos contos do livro desenrola-se numa regio no muito


especificada, mas identificvel como o de sua obra anterior Grande Serto: Veredas (1954),
o mundo da infncia e da mocidade do autor menos onipresente, o cenrio esboado com
poucos toques, mas de extrema preciso; bichos e plantas tm nome, costumes e hbitos. As
paisagens so como horizontes, amplos rios margeados de brejos---os vastos espaos
desertos so povoados pelos devaneios da imaginao (RONA, 2001)
Os moradores desses lugares muitas vezes acostumados a no encontrarem vivalma
por lguas tornam-se reticentes mesmo no recesso da famlia. Do ensinamento ao isolamento
o caminho direto, os taciturnos calam-se de vez, e uns surpreendem a famlia com o estouro
de sua demncia (RONA, 2001)

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Segundo Ronai (2001), as personagens ou personagentes (neologismo personagente


mais que personagem, menos que protagonista), apresentam em duas categorias: loucos e
crianas. So videntes ou adivinhos que detm uma intuio e so guiados pela paixo ou
pelo devaneio. Nesse ponto levanta-se uma questo: Como demarcar os limites da loucura e
da normalidade? Existe uma linha divisria por mais tnue que seja? Percebe-se ento que a
escolha da criana e do louco no aleatria, possui um significado. A criana apresenta alta
sensibilidade para descobertas, no est limitada pelos valores, crenas e preconceitos que
permeiam as sociedades e os cidados. Assim, como os loucos, que possuem um olhar
diferente, subjetivo, que no se centra na lgica e racionalidade que os normais querem
imprimir ao cotidiano.
Para Rosa o homem , antes de tudo, um ser mutante e o existir s adquire significado
enquanto permanentemente processo de aperfeioamento espiritual.
Desse modo, necessria a constante construo do ser, a transcendncia, a busca das
essncias por trs das coisas simples e puras. Essa viso de mundo no conseguida numa
sociedade embotada de valores, de regras e de muitos preconceitos. Nesse contexto surge
Rosa que joga com o leitor, abalando seus conceitos de verdade e mentira; rompe paradigmas,
obtm do leitor no s um conhecimento da obra, mas de si mesmo, quebrando a rotina e
passando a enxergar a essncia da vida.

3.2 A TERCEIRA MARGEM DO RIO


Deus nos deu pessoas e coisas, para sermos felizes;
Depois nos retirou coisas e pessoas, para ver se somos capazes de ser felizes!
(ROSA,V. 1983)

3.2.1 O CONTO

Nesse conto o narrador apresenta a histria de um homem que rompe com tudo, com a
famlia, com a sociedade para viver em uma terceira margem do rio e da vida.
O pai era um cumpridor de suas obrigaes, mas que um dia resolve abandonar tudo e
seguir seu caminho. Manda construir uma canoa de boa madeira, mas no conta a ningum
sua inteno. Quando a canoa fica pronta ele se despede da famlia e pede a ajuda do filho
mais novo para lev-la at o rio. Todos no conseguem entender o que o homem realmente
pretende a mulher lhe faz uma ltima tentativa, dizendo que se ele for que no volte nunca
mais; mas isso no o comove sobe na canoa, e o filho lhe pede para ir com ele, que faz que
no ouve, abenoa, o filho e comea a seguir o seu novo caminho e segue rio abaixo, rio
adentro. Muitos foram os comentrios dos motivos pelos quais aquele homem, havia tomado

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essa deciso, mas ningum realmente sabia. Todos os vizinhos e parentes participavam de
novenas, na beira do rio para que ele voltasse, mas nunca dava qualquer sinal de vida. O filho
mais novo, mesmo sem entender o pai, sempre pegava o que sobrava em casa e levava para a
margem do rio, escondia dentro de um oco de pedra para que o pai no morresse de fome. O
filho fez esse gesto por anos, e assim o homem ia sobrevivendo. O tempo foi passando, e o pai
nunca mais deu notcias; a irm se casou e mudou-se para a cidade, o filho mais velho
tambm foi embora. E a me com o tempo a velhice chegou e j cansada de tantos sacrifcios
e aflies tambm fora embora. S o filho mais novo no fora, os cabelos brancos j lhe
cobriam a cabea, mas no podia abandonar o pai, foi ficando sempre na esperana de v-lo
novamente. At que um dia toma a deciso de que deveria ocupar o lugar do pai; corre para a
margem do rio e o chama demasiadamente. Ele ento aparece como uma alucinao, e vem na
direo do filho; o narrador se assusta e se acovarda, sa em disparada pedindo desculpas ao
pai e diz: -Sou homem depois deste falimento? Sou o que no foi, o que vai ficar calado!
(ROSA, 1962). Nunca mais se ouviu falar no homem, o filho adoeceu dos graves medos, e
abreviou a vida nos rasos do mundo.

3.2.2 UM OLHAR ALM DO CONTO

Para melhor compreender o conto, optou-se por delimit-lo por segmentos (partes),
onde se props evidenciar as principais passagens do conto, desde o inicio com a deciso de
partida do pai, at o falimento do filho.
A Terceira Margem do Rio um dos contos mais complexos e surpreendentes do
livro Primeiras Estrias (1962), desde a conotao do ttulo, figura inslita do homem que
saiu a procurar sua verdade. A narrativa pode ser dividida por segmentos e o primeiro termina
com a partida do pai (Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalou o chapu e decidiu um
adeus para a gente [...], Nosso pai no voltou. S executava a inveno de se permanecer
naqueles espaos do rio), para sua procura de si mesmo; o narrador nesse momento intervm
sempre tentando retratar o pai como um homem normal, em nada destoando dos outros pais
do lugar.
O segundo segmento narra a reao dos parentes, vizinhos e conhecidos (Todos
pensaram de nosso pai a razo que no queriam falar: doideira, uns achavam que poderia ser
pagamento de promessa, ou ainda caso de doena incurvel), hipteses aventadas por eles,
para explicar a estranha opo do homem, de ir para lugar nenhum. Depois de se isolar na
canoa, o pai entra na categoria do diferente e isso choca o senso comum; mesmo o narrador (o
filho ), evidenciando a atitude vanguardista do pai, de buscar o diferente, no fcil
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compreender tal deciso, em um primeiro momento absurdo. O narrador traduz em seu


discurso o sentido latente da opo feita pelo pai; que sempre ter algum em algum lugar que
ousar desafiar as regras estabelecidas pela maioria da sociedade; homens que proponham o
novo, o diferente e o inesperado sem medo da reao da maioria.
O terceiro segmento so as providncias que a famlia toma para a continuidade da
vida sem o pai (A gente teve que se acostumar com aquilo. s penas, que com aquilo, a
gente mesmo nunca se acostumou, em si de verdade), a vinda do tio e do mestre para a
educao dos meninos (retratando aqui um hbito local do sertanejo, da poca: a cultura era
s para os meninos).
O quarto segmento a passagem do tempo, a irm do narrador se casa, e muitos
conhecidos o acham cada vez mais parecido com o pai (... mas eu sabia que ele agora virara
barbudo, cabeludo, mal, magro, ficando preto de sol e de plos, com aspecto de bicho).
O quinto segmento narra a partida da irm, do irmo mais velho e da me j muito
envelhecida pelo tempo. S o narrador no se vai, ele no podia querer se casar (eu
permaneci ali, com as bagagens da vida [...], E apontaram em mim os primeiros cabelos
brancos), no podia abandonar o pai, no tinha coragem de romper o nico vnculo que ainda
existia entre ele e o pai.
No ltimo segmento o narrador confessa o seu falimento (Eu estou pedindo perdo
[...] Sofri os graves frios dos medos, adoeci [...], Sou o que no foi, o que vai ficar calado), se
reconhece , como um homem de triste palavras. Sentia-se culpado, mas do que? Talvez de no
ter tido coragem de se posicionar entre ficar ou ir embora para sempre.Ou tivesse dificuldade
par aceitar que quem ficou em uma terceira margem do rio fora ele; no se posiciona,
permanece imvel anos e anos. O contraste entre o modus vivendi do pai, e o senso comum
metonimizado pela sua relao com o filho. Aquele que poderia continuar o projeto do pai
fracassa por duas vezes em virtude de sua covardia. A coragem aparece como um dos
atributos mais valiosos dos seres humanos, devendo o medo, a insegurana e a dvida serem
superados. O maior contraste entre pai e filho no conto a ousadia de um e o medo do outro.
A vitalidade do pai parece derivar da vida livre que escolheu, e torna ainda mais
evidente a mesmice da vida comum dos que se acham normais.
Como entender a resoluo do pai? Loucura? Lucidez diante da inutilidade e da
enfermidade da vida? Quando as duas margens da vida no bastam, procura-se uma terceira---
-- como fuga, evaso, alienao? O pai parte procurando se encontrar no mundo; o filho
sente a vocao, mas no momento de agir falta-lhe coragem e ele fica de c, entre as duas
margens para sempre, falido, desencontrado.

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A terceira margem do rio a imagem da travessia como alegoria do viver; uma vez
que a travessia traz consigo toda a simbologia da existncia humana; a escolha do pai pela
terceira margem sugere simultaneamente, a defesa de um espao de exceo, expresso pela
margem e a insero do inslito, no entre lugar, no no lugar indicados pela referncia a uma
terceira margem.
Afinal o conto um enfoque mgico e metafsico, que faz Roni (2001) afirmar:
Todos os rios do mundo de Rosa tem trs margens.
De acordo com o crtico o conto apresenta traos de mistrio e fatalidade, constitudo
por smbolos e metforas para lanar ao leitor a complexidade da alma humana. Para refletir
as dimenses metafricas do conto A Terceira Margem do Rio, necessrio deixar claro as
noes de metforas. A palavra utilizada como metfora no apresenta no texto literrio o
sentido preso, dicionarizado, mas sua funo potica: A palavra potica nunca pode ser falsa
porque total, ela brilha com uma liberdade infinita e prepara-se para resplandecer no rumo
de muitas relaes incertas e possveis (BARTHES, 1971, p 60).
A utilizao da metfora do rio no conto impe ao leitor a essncia do ser humano, sua
existncia, e sendo Rosa um pensador da condio humana, a relao do rio com a alma do
homem muito interessante.
Em entrevista ao crtico Lorenz (1983), Rosa explica o significado do rio em sua vida
e na vida dos outros:
Gostaria de ser um crocodilo porque amo os grandes rios, pois so profundos como a
alma dos homens. Na superfcie so muito vivazes e claros, mas nas profundezas
so tranqilos e escuros como os sofrimentos dos homens. Amo ainda mais uma
coisa dos nossos grandes rios: a eternidade Sim, rio, uma palavra mgica para
conjugar a eternidade (LORENZ, 1983).

Como mestre que era, Rosa deixa bem claro em suas palavras o grande significado do
conto e do rio em sua obra. O rio no apenas o rio, e seus contos so muito mais que apenas
histrias, provocam sentido profundo nas pessoas.
A aventura do pai na travessia do rio permite ser interpretada como um desejo de
mudana, de um novo olhar, de novas possibilidades, de ver as coisas sob outro ngulo, um
recomeo, seria talvez a forma de certificar de que o destino lhe pertencia, estava em busca
de sua identidade. E quantos no so os pais, mes, humanos nessa condio? Quantos esto
ilhados em sua prpria casa, em suas prprias vidas? Margem; muitos homens perdem o
sentido. H ainda os que apenas preferem constituir calados terceira margem, tornando-se
indiferentes ao mundo. Ser margem limitar-se; Ser rio prosseguir.

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338

O conto por si mexe com o leitor, leva-o a se indagar sobre sua coragem e o
preconceito que sente em relao ao que no rotulado comum. Com isso, percebe-se que a
literatura no acessrio, necessria aos olhos humanos, a vida. Atravs da leitura do conto
o indivduo capaz de se perceber melhor e respeitar o outro.
O autor promove no seu interlocutor a incmoda indagao: Por que um homem
largaria seus familiares, sua vida, para ficar em meio a um rio dentro de uma canoa? No seria
possvel afirmar que esse homem j havia se isolado dentro de si mesmo, h muito tempo; e
que na tentativa de se encontrar que decide procurar a sua terceira margem e dar sentido a
sua vida, mesmo sua deciso no sendo comum, o desejo de buscar sua essncia mais forte e
as barreiras do preconceito, do abandono no so maiores que a sensao de liberdade de
plenitude que a grande travessia pode proporcionar.
Rosa constri uma terceira margem, no comum s leis da natureza, podendo
representar a instabilidade, presente de incertezas e permeada de dvidas e conflitos.
Conforme explica Galvo (1978), as duas margens do rio situam-se num mesmo nvel
de realidade. A terceira margem no se sabe, ainda que na linguagem cifrada da mitologia e
das religies, seja freqente o smbolo de praia, de margem, aonde se chega quando se morre.
Compreende-se, portanto, que essa terceira margem do rio, recorre dimenso
desconhecida, longe do real, e forte no imaginrio rosiano.
O termo cursar o rio no escolhido toa, ele d ideia de fazer um curso, no sentido
de aprofundar o conhecimento (no caso do pai). A atitude adotada pelo pai simboliza a
transcendentalizao que se deve imprimir vida para dela recolher seus significados mais
profundos. O rio representa a existncia do homem, seu curso ou o ritmo de sua correnteza
simboliza os desejos, sentimentos que povoam toda essncia humana.
Segundo Castro (1993), a deciso de permanecer dentro do rio simboliza o desejo de
conhecer as profundezas do esprito, de explorar o seu inconsciente, de escavar sua essncia,
alcanando um novo estgio de percepo, que fortalece o esprito e ilumina na busca da
plenitude superando seus limites.

3.3 DO LADO DE C

Desespero quieto, s vezes, o melhor remdio que h. Que alarga o mundo e pe a


criatura solta. A gente morre pra saber que j viveu! (ROSA, 1994)

Segundo Galvo (2008), s vezes Rosa escreve como quem est em estado de graa, e
o conto A Terceira Margem do Rio um desses momentos. A histria ortoga seu carter

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de iluminao, de olhar sbito para dentro do indizvel, criando um clima de mistrio e


seduo, deixando o leitor inquieto, pois A Terceira Margem do Rio a que no !
O rio em sua simbologia mais simples possui duas margens, a do lado de l e a do lado
de c, que consequentemente se remetem. Porm entre elas corre o rio, imagem da
continuidade, e no rio navega uma canoa imagem da descontinuidade, a passagem de tempo
insignificante para o rio, essencial para a canoa e seu ocupante. O rio simboliza sempre
existncia humana e o curso da vida, com a sucesso de desejos, sentimentos e intenes; ou
existe um rio para cada homem que mergulhar em suas guas; penetrar no rio significa para a
alma entrar no corpo (Chevalier e Gheerbrant, 1982). O pai na terceira margem necessita se
recolher para a busca de conhecimento, de superao de limites, de fortalecimento do esprito.
A Terceira Margem seria no o lado de c, nem o lado de l, mas o mistrio rio a dentro:
A Terceira Margem fica pr l do mistrio da morte, da morte de cada um, que cada
um tem que e nunca ningum contou como . A terceira margem no se sabe se na
linguagem cifrada da mitologia e das religies, seja freqente o smbolo de praia, ou
margem, ou terra firme, aonde se chega quando se morre. (GALVO, p.42-2008)

Segundo a crtica no h um consenso, nem na linguagem religiosa sobre o lugar que


se vai quando se morre, assim como ningum morre pelo outro, as descobertas so nicas.
Todos os dias morre-se um pouco, e nem sempre tem-se a oportunidade de contar.
No conto, o pai busca um afastamento para a possvel compreenso do sentido de sua
existncia, necessrio tempo para ordenar os pensamentos, s se percebe quem transcende o
comum, quem se percebe sujeito de seu prprio ser. O mistrio que corrobora por todo o
conto, no a busca pela morte, ou a busca de um lugar, mas a busca do sentido da vida, a
derradeira travessia, o que no se explica, sente-se e se percebe o inefvel.
Os espaos que se entreabrem no conto so modalidades da travessia humana. A
Terceira Margem do Rio a peregrinao soturna tresloucada do individuo, rio abaixo, rio
acima, a deriva sem nunca ir a nenhum lugar concreto.
Nada aqui neste conto de promessa de outra vida depois da morte, nem de vida eterna,
nem de recompensas para os bem-comportados, apenas o espanto ante o que no .
(GALVO, 2008).
Segundo Galvo (2008) neste pargrafo expe que a terceira margem escapa lgica
da concepo humana esteriotipada de vida, morte, mistrio e loucura. Rosa introduz uma
terceira margem no conto que no real, no palpvel, a que no , e o novo, o
inexplicvel causa espanto, choca, quem no se prope a se encontrar no mundo, na vida. O
rio, existncia e mistrio se fundem na figura da viagem sempre recomeada. A viagem que
forma, deforma e transforma aquele que busca a compreenso profunda da existncia. Para

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Rosa, no h, de um lado, o mundo, e de outro, o homem que o atravessa. Alm de viajante, o


homem a viagemobjeto e sujeito da travessia, em cujo processo o homem se faz.
(NUNES, 2002). A experincia do relato do conto e a confluncia de personagem, narrador e
leitor, perto e longe se entrecruzam, perfazendo uma travessia das margens da linguagem, em
um transporte que se faz de perdas em torno do mistrio do indizvel, em uma tentativa de se
encontrar no mundo, na vida.
O homem ento atravessa a realidade, conhecendo-a, e conhecendo-se melhor, ao
passo que evolui.

CONSIDERAES FINAIS

No cerne dessa linguagem, na qual prosa e poesia se confundem, esto as indagaes


universais do homem: o sentido da vida e da morte, o significado do amor, do dio, da
ambio em que, muitas vezes, o real se cruza com o fantstico.
A experincia documentria de Rosa, a observao da vida sertaneja, a paixo pela
coisa e pelo nome da coisa, a capacidade de entrar na psicologia do rstico, tudo se
transformou em significado universal graas inveno, que subtrai o livro matriz regional
para faz-lo exprimir os grandes lugares comuns, sem os quais a arte no sobrevive. A rbita
do conto nos arrasta a cada instante, mostrando que o pitoresco acessrio e que na verdade o
serto o mundo. Essa superao de limites dentro do caminho da linguagem deve-se tambm
ao carter universal das questes morais e metafsicas.
Criando um estilo novo na fico brasileira, Rosa, recria, transforma e inventa diversas
palavras, mescla arcasmos com vocbulos eruditos, com dizeres populares e modernos
(MAIA, 2005). Dentro dessa linguagem plena e moderna, no se pode esquecer que o autor
criou uma infinidade de neologismos, que tiveram de ser dicionarizados, construindo assim
uma sintaxe peculiar, seu prprio idioma, com vrias possibilidades de sentido.
Rosa foi um mestre da descrio clssica, que procura dar no s uma imagem visual
do rosto de um personagem, mas um acesso ao seu estado de esprito. O seu leitor precisa
conhecer a sua forma de escrever, de sonhar, de imaginar e deixar se levar pela leitura
rompendo paradigmas.
No conto A Terceira Margem do Rio usa-se no geral a linguagem conotativa, prope-
se ao leitor um momento de devaneio, em que o inslito se faz presente. Apresenta um
enfoque mgico que transcende travessia de uma margem outra e rotula o que comum.

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Rosa quebra, portanto, um paradigma de percepo do ser humano, isto , percebe-se


o rio com duas margens, a essas ele acrescenta uma terceira, que no nos remete a lugar
concreto, explicvel, e no h em nossa percepo a compreenso do que seria essa terceira
margem.
Esse o enigma do conto, alcanar a busca, a resposta para a terceira margem, e
aceitar o mistrio e compreender que entre os tortuosos caminhos da vida, talvez se consiga
encontrar uma possvel serenidade, ilusria quem sabe, mas, s vezes, necessria ao
amadurecimento do ser humano. A travessia a existncia que se temporaliza e revela, a cada
volta do tempo, maiores questes e maiores problemas, sempre que pensada atravs das
veredas poticas da narrativa, conjugando experimentao lingustica, cultura popular,
verdade e imaginao. A meditao a que nos convida o conto de Rosa a transmisso de
algo que se funda na travessia de margens, de lnguas, em torno de um no-sabido, de um
vazio, de um mistrio a se revelar. O que se leva ento, questo da coragem de tentar, de
arriscar uma interpretao, uma nova experincia que desgua na margem da palavra.
Que o conto seja lido no uma, nem duas, mas sucessivas vezes, para que os leitores, a
cada leitura sejam reconquistados e obrigados a atriburem novos sentidos, novas
possibilidades, novas razes para se fazer da literatura, uma prtica necessria.
Assim, espera-se que o presente trabalho constitua uma significativa contribuio para
despertar novos olhares e novos caminhos em direo obra em questo, a fim de possibilitar
uma maior compreenso da obra literria.

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